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PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DO PARANAacute
CENTRO DE TEOLOGIA E CIEcircNCIAS HUMANAS
MESTRADO EM TEOLOGIA
JONAS SILVA FARIA
JESUS DE NAZAREacute SUA RELACcedilAtildeO COM DEUS PAI EM JOACHIM
JEREMIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS
CURITIBA
2012
JONAS SILVA FARIA
JESUS DE NAZAREacute SUA RELACcedilAtildeO COM DEUS PAI EM JOACHIM
JEREMIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS
Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teologia da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Teologia
Orientador Prof Dr Vicente Artuso
CURITIBA
2012
Dados da Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute
Sistema Integrado de Bibliotecas ndash SIBIPUCPR
Biblioteca Central
Faria Jonas Silva
F224j Jesus de Nazareacute sua relaccedilatildeo com Deus Pai em Joachim Jeremias e seus 2012 Desdobramentos Jonas Silva Faria orientador Vicente Artuso ndash 2012
151 f 30 cm
Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute
Curitiba 2012
Bibliografia f 146-151
1 Biacuteblia AT - Antiguidades 2 Biacuteblia NT - Histoacuteria de fatos
contemporacircneos 3 Jeremias Joachim 1900- 4 Teologia I Artuso Vicente
1952- II Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Teologia III Tiacutetulo
CDD 20 ed ndash 232908
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a Deus pela inspiraccedilatildeo e pela vida sem as quais natildeo seria possiacutevel concluir este trabalho
Agradeccedilo a minha esposa Josiane pela compreensatildeo e apoio nas inuacutemeras horas em que me dediquei agrave pesquisa abdicando dos momentos que poderiam ser aproveitados junto da famiacutelia e em especial agrave nossa filha Sofia Gabriela que nasceu durante o periacuteodo da minha pesquisa trazendo luz alegria e motivaccedilatildeo para que essa empreitada fosse concluiacuteda
Agradeccedilo aos meus pais pela educaccedilatildeo a mim proporcionada e em especial a minha tia Eli Kowalski por ter tornado possiacutevel meu sonho de cursar teologia em uma instituiccedilatildeo de ensino superior o qual ampliou meus horizontes para o labor teoloacutegico e por fim abriu o caminho para mais esta conquista
Meu agradecimento especial ao meu orientador Prof Dr Vicente Artuso por ter acreditado na possibilidade desta pesquisa e me fornecido o suporte necessaacuterio para a concretizaccedilatildeo deste trabalho
Agradeccedilo ao corpo docente e ao programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia da PUC-PR pela contribuiccedilatildeo valiosa em minha formaccedilatildeo teoloacutegica durante todo o processo
Agradeccedilo agrave secretaacuteria Maria pela paciecircncia e eficiecircncia nas informaccedilotildees fornecidas desde o primeiro contato com a instituiccedilatildeo
Agradeccedilo a Marta pela disponibilidade e empenho na correccedilatildeo ortograacutefica e gramatical desta dissertaccedilatildeo
Agradeccedilo aos dirigentes do Studium Theologicum de Curitiba por ter permitido a utilizaccedilatildeo da biblioteca na qual encontrei grande parte da bibliografia aqui utilizada e a Flaacutevia pela paciecircncia e disponibilidade no auxiacutelio agraves consultas bibliograacuteficas
RESUMO
O objetivo deste trabalho eacute levar-nos agrave compreensatildeo da relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo Joachim Jeremias Para isso realizamos o estudo do Jesus histoacuterico e seu contexto social poliacutetico e religioso bem como a visatildeo que os povos antigos incluindo o Israel do Antigo Testamento tinham de Deus Por fim visotildees contraacuterias agrave interpretaccedilatildeo de J Jeremias satildeo apresentadas As diversas teorias que os homens tecircm da paternidade divina chamam agrave nossa atenccedilatildeo para a incessante busca da humanidade para identificar-se com o Criador especificamente com a figura de um Deus Pai No entanto nesta pesquisa observamos que mesmo no judaiacutesmo onde natildeo encontramos a antiga imagem de uma deusa matildee observamos a figura de um Deus Pai com afetos e sentimentos maternos Para J Jeremias eacute com Jesus que o relacionamento do humano com o Pai divino atinge seu aacutepice atraveacutes da magna expressatildeo ldquoAbba Pai Segundo este autor Jesus de um balbucio das criancinhas teria tornado o Abba Pai uma expressatildeo sagrada entre os seus disciacutepulos a ponto de posteriormente ela ser absorvida pelas comunidades cristatildes primitivas como a forma de comunicaccedilatildeo do Espiacuterito para testificar no interior do disciacutepulo que este agora eacute tambeacutem filho de Deus A teoria de que o Abba natildeo era apenas um balbucio infantil ou muito menos um termo sagrado eacute contestada por correntes teoloacutegicas judaicas e feministas que veem os argumentos de J Jeremias como infundados ou repletos de exageros No entanto ao final da pesquisa procuramos mostrar que mesmo diante de tais contestaccedilotildees a paternidade divina proclamada por Jesus natildeo eacute natural ou seja uma posse de todos os seres humanos mas exclusividade dele e dos seus disciacutepulos uma vez que a filiaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica do reino de Deus e soacute os filhos do reino eacute quem podem usufruir de tal privileacutegio e dirigir-se a Deus invocando-o como o Abba Pai Jesus de Nazareacute nesta pesquisa eacute o exemplo a ser seguido no tocante agrave humildade e sofrimento numa sociedade profundamente marcada pelo preconceito e desigualdade social Compreendecirc-lo e segui-lo na sua humanidade eacute um grande passo para aproximar-se dele como o Cristo poacutes-pascal onde a revelaccedilatildeo do divino ao humano se concretiza com toda a plenitude Palavras-chave Jesus histoacuterico Paternidade divina
ABSTRACT
This work aims to understand the relationship between Jesus and God the Father according to Joachim Jeremias For this we studied the historical Jesus and his social political and religious context as well the ancient people view of God including the view of Israel from Old Testament Finally views that are opposed to Jeremias are presented The various theories that men have on the fatherhood of God call our attention to the relentless pursuit of humanity to identify with the Creator specifically with a figure of God the Father However in this study we observed that even in Judaism where it cannot find the ancient image of a mother goddess we see a picture of a God Father with affection and maternal feelings For J Jeremias it is in Jesus that the relationship of the human with the divine Father reaches its peak through the magna term Abba Father According to this author Jesus through a babble of little children would have made the Abba Father a sacred expression among his disciples and He subsequently extent it in order to being absorbed by the early Christian communities as a way of communicating of the Spirit to testify within the disciple that he is also the son of God The theory that Abba was not just a babbling child or much less a sacred term is challenged by current theological and Jewish feminists who see the arguments of J Jeremias as unfounded or exaggerated However at the end of the study we sought to show that even in the face of such challenges the fatherhood of God proclaimed by Jesus is not natural ie a possession of all human beings but it is exclusive to Him and his disciples once the sonship is a feature of the kingdom of God and only the children of the kingdom is the one who can enjoy such a privilege and turn to God calling him Abba Father Jesus of Nazareth on this research is the example to be followed regarding the humility and suffering in a society deeply marked by prejudice and social inequality To understand and follow Him in his humanity is a big step to be close to him as the post-Passover Christ where the revelation of the divine to the human is fully realized Key-words Historical Jesus Gods fatherhood
Sumaacuterio
1 INTRODUCcedilAtildeO 7 2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO 19 3 O JESUS HISTOacuteRICO 27 31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO 27 32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO 32 4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE SUA EacutePOCA 40 41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE CONTEMPORAcircNEA DE JESUS 41 42 JESUS O HUMILDE NAZARENO 46 43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES 50 44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS 59 45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS 61 451 OS ESSEcircNIOS 63 452 OS FARISEUS 66 453 OS SADUCEUS 72 454 OS ZELOTAS 74 5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS E SEUS
DESDOBRAMENTOS 79 51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA 79 52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA 85 53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS 91 54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS 100 55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR 102 56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA 110 6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS 122 61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO 122 62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA LEITURA A PARTIR DA
TEOLOGIA FEMINISTA 130 7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 137 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 146
7
1 INTRODUCcedilAtildeO
A ideia de Deus como pai da humanidade sempre esteve presente na mitologia dos
povos antigos Pai eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e na
Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Segundo Joachim Jeremias
(1977 p11-12) muitas tribos e famiacutelias acreditavam que eram procedentes de um
ancestral divino isto eacute de um ldquopairdquo divino Ephraim descreve-nos que a relaccedilatildeo de Deus
como Pai entre os povos antigos era bastante conhecida contudo ele evidencia que o
Abba de Jesus foi a mais iacutentima forma de invocar a Deus propagada entre os homens
atraveacutes dos ensinamentos de Jesus
A palavra Abba (Pai) posta na boca de Jesus eacute como se fosse a uacuteltima tentativa de Deus para ensinar os homens a pronunciarem seu nome Muitas vezes no passado Deus tentou fazer isto atraveacutes de seus servidores os profetas mas Israel natildeo compreendeu ldquoPairdquo eacute um tiacutetulo divino muito antigo encontrado em quase todas as religiotildees do Oriente meacutedio mas no caso ele eacute pai como a terra eacute matildee isto eacute exige na medida em que daacute Eacute o deus tutelar que deve ser adulado pois do contraacuterio ele natildeo outorga as suas graccedilas Eacute um deus que eacute pai do mesmo modo que Zeus era o pai de todos os deuses (Ephraim 1998 p171)
Observa-se que para os povos antigos Deus era um ancestral divino distante de
suas criaturas Aleacutem disso para Israel conforme a tese sustentada por J Jeremias vecirc-
se que no Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai principalmente quando
essa forma de invocar a Deus estaacute relacionada a um indiviacuteduo (Jeremias 2005 p19) Por
outro lado se no Antigo Testamento Deus natildeo eacute invocado como Pai de uma forma
individual como Senhor Ele eacute constantemente invocado a exemplo do salmista (Sl 338)
que menciona Deus como o Senhor que fala e as coisas acontecem conforme as suas
ordenanccedilas (Jeremias 2008 p 269)
Em contraste a essa relaccedilatildeo aparentemente tatildeo distante do Deus Pai com seus
filhos no periacuteodo veterotestamentaacuterio observa-se que a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute
profundamente marcante nos Evangelhos Haacute poreacutem diferentes interpretaccedilotildees com
relaccedilatildeo ao sentido da palavra Pai quando esta era proferida por Jesus J Jeremias
embora natildeo tenha sido o primeiro a tratar dessa questatildeo provavelmente foi o mais
influente quando ele sugere que Jesus ao dirigir-se a Deus invocando-o como o ἀββᾶ
(Abba) estava atribuindo um novo enfoque ao costume judaico de interpelaccedilatildeo a Deus
fazendo uso de uma linguagem cotidiana assim como as crianccedilas dirigiam-se a seus pais
expressando familiaridade e intimidade (cf Goshen-Gottstein 2001 p 493)
O objetivo deste trabalho eacute o estudo do Jesus histoacuterico (humano) com ecircnfase em
seu contexto social culminando no estudo histoacuterico-teoloacutegico da relaccedilatildeo de Jesus com o
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Pai Este estudo tem como ponto de partida a teologia de Joachim Jeremias concernente
ao Abba proferido por Jesus no Evangelho de Marcos (1436) que diz ldquo[] Abba (Pai)
Tudo eacute possiacutevel para ti afasta de mim este caacutelice poreacutem natildeo o que eu quero mas o que
tu queresrdquo
Para entendermos a relaccedilatildeo de Jesus com o Deus Pai no Novo Testamento e como
ele transformou uma distante relaccedilatildeo entre o Pai ldquoque estaacute nos ceacuteusrdquo e seus filhos eacute
interessante vislumbrar o mundo poliacutetico religioso e cultural no qual ele esteve inserido
comeccedilando pela pequena Nazareacute um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que
vivia em casebres um povoado simples composto de camponeses entre duzentos a
quatrocentos habitantes (Crossan 2007 p 75) ateacute ao Getsecircmani onde Jesus proferiu a
magna expressatildeo Ἀββᾶ ὁ πατὴρ (Abba Pai) que para J Jeremias eacute a mensagem central
do Novo Testamento
No entanto a pesquisa do Jesus histoacuterico eacute complexa visto que os cristatildeos
primitivos preocuparam-se apenas em preservar ditos isolados a respeito de Jesus A
expectativa do retorno iminente do Mestre pode ter sido o motivo principal que levou o
cristianismo primitivo a preferir apenas fatos relacionados ao ministeacuterio de Jesus do que
relatar uma biografia completa do Jesus histoacuterico (Schweitzer 2003 p 11) Apesar de
toda a complexidade em se estudar o Jesus histoacuterico eacute possiacutevel investigar alguns
aspectos relativos a sua existecircncia a partir dos evangelhos e de muitos escritores que ao
longo dos seacuteculos tecircm se empenhado em coletar informaccedilotildees atraveacutes de achados
arqueoloacutegicos e de toda literatura que de uma forma direta ou indireta traz-nos
informaccedilotildees do mundo no qual Jesus estava inserido
Partindo das fontes primaacuterias J Jeremias observa que Jesus tinha uma relaccedilatildeo
iacutentima com Deus pois somente se referia a Ele chamando-o de meu Pai comportamento
este que natildeo era observado entre o povo judeu Assim para uma melhor compreensatildeo
dessa relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute interessante pesquisar como os povos antigos
viam a questatildeo da paternidade divina e desse modo confrontar os modelos antigos com
o modelo de paternidade difundido por Jesus e pelas primeiras comunidades cristatildes
Tendo em vista a complexidade e a diversidade do tema proposto e o profundo
interesse de J Jeremias e de outros pensadores que com ele concordaram ou divergiram
a respeito do assunto esta pesquisa torna-se um desafio empolgante tendo sempre em
vista o crescimento e o amadurecimento em questotildees importantes da teologia
A escolha deste tema eacute motivada pela relevacircncia da produccedilatildeo acadecircmica de J
Jeremias no contexto da Teologia do Novo Testamento mais especificamente sobre a
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relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai Embora os argumentos de J Jeremias natildeo sejam
unanimidade no contexto dos estudiosos que tecircm escrito sobre tal tema eacute inegaacutevel o
grande impacto que as suas teses tecircm causado na comunidade cientiacutefica ligada ao
assunto que tem se debruccedilado para contestar ou entatildeo para sustentar que Deus natildeo eacute
como um soberano inacessiacutevel mas como um pai que se relaciona com seus filhos e isso
soacute foi enfatizado com propriedade a partir do Abba de Jesus
Essa visatildeo de J Jeremias entra em conflito com as teses de alguns estudiosos
contemporacircneos os quais discutem se realmente houve novidade na forma como Jesus
fez uso da palavra Pai (ipsissima vox) em suas oraccedilotildees ou se esta era um dito autecircntico
(ipsissima verba) Seria Abba realmente a ipsissima vox de Jesus e o centro de sua
mensagem e a afirmaccedilatildeo de sua messianidade conforme afirma J Jeremias ou apenas
uma expressatildeo lituacutergica comum nas comunidades cristatildes do periacuteodo poacutes-pascal da igreja
primitiva (DAngelo 1992b p151) Teria Jesus realmente legado aos seus disciacutepulos a
palavra Abba como um termo sagrado ou Abba tem apenas a conotaccedilatildeo poliacutetica anti-
imperialista (DAngelo 1992a p623)
A partir das questotildees levantadas acima este trabalho tem por objetivo investigar o
Jesus histoacuterico e seu contexto social a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo a
interpretaccedilatildeo dada por J Jeremias bem como alguns desdobramentos deste tema
segundo algumas correntes teoloacutegicas cristatildes e judaicas com as seguintes finalidades
Verificar a visatildeo que os povos antigos (ldquopagatildeosrdquo natildeo judeus) bem como o antigo
Israel tinham de Deus como Pai
Pesquisar a relaccedilatildeo do Jesus histoacuterico no seu contexto familiar e social
Analisar a tese de J Jeremias concernente ao sentido que a palavra Abba tinha
quando proferida por Jesus
Confrontar o pensamento de J Jeremias frente a algumas correntes teoloacutegicas
favoraacuteveis e contraacuterias aos seus argumentos
10
2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS
Neste capiacutetulo seraacute abordado o conceito de paternidade divina entre os povos
antigos com o enfoque sobre a ideia que tais povos tinham de Deus como um ancestral
divino do homem conforme exposto por Jeremias Face agraves inuacutemeras epopeias da
criaccedilatildeo abaixo mencionadas veremos que a criaccedilatildeo do homem a partir do relato do
Gecircnesis eacute bem mais otimista uma vez que o homem do Gecircnesis natildeo eacute um ancestral dos
deuses mas foi criado para ser a imagem do seu proacuteprio Criador
21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS
A ideia mitoloacutegica de um deus como pai da humanidade sempre esteve presente
entre os povos antigos como os sumeacuterios e babilocircnios Segundo J Jeremias tais povos
diziam que suas tribos e famiacutelias procediam de um ancestral divino como se observa por
exemplo no ceacutelebre hino sumeacuterio e acaacutedico de Ur Nesse hino o deus Lua Sin eacute
invocado como o ldquoPai misericordioso em suas disposiccedilotildees que reteacutem em sua matildeo a vida
de todo o paiacutesrdquo Aleacutem de tal hino encontramos na tradiccedilatildeo de tais povos a seguinte
citaccedilatildeo sobre Ea um deus sumeacuterio-babilocircnico ldquoSua coacutelera eacute como o diluacutevio Ele se
reconcilia como um pai misericordiosordquo (Jeremias 1977 p11-12) Complementando essa
ideia Santos Sabugal afirma que a ideia de paternidade divina entre os povos antigos era
largamente atestada na literatura de vaacuterios povos A Aacutefrica a Ameacuterica a China e a Iacutendia
bem como o Egito e tambeacutem os Greco-romanos invocaram a paternidade de Zeus e de
Juacutepiter sobre todos os deuses e homens (Sabugal 1985 p 367-368)
Contudo para J Jeremias as histoacuterias de invocaccedilotildees a Deus como Pai satildeo tatildeo
profundas que sempre se tem a sensaccedilatildeo de que novas e inesperadas galerias sempre
surgem A invocaccedilatildeo a Deus como Pai nos povos antigos desde as suas origens nem
sempre estava relacionada a Deus como um antepassado do rei ou do povo mas podia
ser invocado como um pai misericordioso conforme nos relata J Jeremias
Eacute assombroso verificarmos como jaacute no antigo oriente e com seguranccedila desde o segundo e ainda no terceiro milecircnio aC a divindade era invocada assim Nas oraccedilotildees sumeacuterias muito anteriores a Moiseacutes e os profetas encontramos a invocaccedilatildeo ldquopairdquo e desde laacute esta palavra designava a divindade natildeo apenas como antepassado do rei e do povo ou como o soberano pleno de poder mas tambeacutem como o ldquopai magnacircnimo e misericordioso em cuja matildeo estaacute a vida da naccedilatildeo inteirardquo (Hino de Ur a Sin divindade da lua) A palavra ldquopairdquo na invocaccedilatildeo a Deus implicava pois para os orientais desde os tempos mais antigos algo que pode ser considerado como para noacutes significa a palavra ldquomatildeerdquo (Jeremias 2006 p61)
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Pai1 portanto para os povos antigos como os assiacuterios babilocircnios egiacutepcios
gregos e outros povos eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e
na Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Aleacutem disso o historiador
das religiotildees Mircea Eliade tambeacutem descreve que satildeo diversas as versotildees sumerianas
sobre a origem divina dos seres humanos e dentre elas consta o poema cosmogocircnico
conhecido como Enuma elish (ldquoQuando no altordquo) que relata as origens do mundo e do
homem buscando exaltar a Marduk um deus nacional da Babilocircnia o qual triunfa sobre
os deuses com ldquovalores demoniacuteacosrdquo dentre eles Tiamat e Kingu
Esse poema traz o mito de que Marduk decidiu criar o homem para que ele sirva
aos deuses Assim a partir do corte das veias de Kingu um deus vencido que foi
sacrificado a humanidade foi criada (Eliade 2010 p79) No entanto com a derrota dos
deuses inimigos de Marduk a criaccedilatildeo do homem inicia-se com um agravante na tradiccedilatildeo
sumeriana mesmo sendo Kingu um dos primeiros deuses ele se tornara o arquidemocircnio
chefe dos monstros e democircnios criados pelo deus Tiamat que tambeacutem foi derrotado por
Marduk Dessa forma sendo o homem constituiacutedo do sangue de Kingu torna-se ele parte
constitutiva de uma mateacuteria demoniacuteaca (Eliade 2010 p 80) Segundo essa vertente
mitoloacutegica sumeriana a uacutenica esperanccedila do homem eacute que ele tenha sido criado por um
grande deus Ea ldquoA partir desse prisma existe uma simetria entre a criaccedilatildeo do homem e
a origem do mundo Em ambos os casos a mateacuteria-prima eacute constituiacuteda pela substacircncia
de uma divindade primordial decaiacuteda demonizada e morta pelos jovens deuses
vitoriososrdquo (Eliade 2010 p 80) Conforme P Grelot ldquoo mito babilocircnico da criaccedilatildeordquo eacute
repleto de violecircncia e sangue (Grelot 1973 p 31)
[] Marduque ouvindo o apelo dos deuses resolveu criar uma obra prima ldquofarei canais de sangue formarei uma ossatura e suscitarei um ser cujo nome seraacute homem Sim vou criar um ser humano um homem Que sobre ele recaia o serviccedilo dos deuses para o bem estar delesrdquo
Ainda com relaccedilatildeo ao mito babilocircnico relata-se que na epopeia de Atra-Hasis (ldquoo
muito inteligenterdquo) cuja coacutepia mais antiga data aproximadamente de 1600 aC o deus Uecirc
1 A relaccedilatildeo de Deus como Pai nas religiotildees do oriente antigo e da Greacutecia e Roma antigas estaacute sempre de
uma forma ligada a ldquoideias miacutesticas de gerar e na descendecircncia fiacutesica e natural de todos os homens a partir de Deus Assim o deus El de Igariteacute eacute chamado o pai da humanidade e o deus da lua na Babilocircnia sin eacute pai e gerador dos homens e dos deusesrdquo No Egito o Faraoacute eacute considerado de modo especial o filho Deus no sentido fiacutesico O nome de pai expressa sobre tudo a absoluta autoridade de deus exigindo a obediecircncia havendo poreacutem ao mesmo tempo seu amor bondade e cuidado misericordiosos (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)
12
eacute morto Entatildeo a deusa matildee (Nintu) e Ea (deus das aacuteguas) fazem um apelo agraves sete
genitoras que ao som de encantamentos maacutegicos se potildeem a amassar a argila A epopeia
narra que a partir de catorze pedaccedilos de argila que satildeo separados metade agrave direita e
metade agrave esquerda pela deusa matildee que apoacutes serem pisados pelas deusas genitoras
estas ldquodatildeo agrave luz sete homens e sete mulheres que imediatamente satildeo dispostos aos
pares e a raccedila humana recebe as leis do seu laborrdquo (Grelot 1973 p 31)
[] Que seja morto um deus e que todos os deuses se purifiquem no seu sangue Que com a sua carne e o seu sangue Nintu (= a deusa matildee) misture argila de modo que deus e homem sejam misturados juntos na argila Que por esta carne de deus haja um espiacuterito Sim Responderam na assembleia os grandes Anunaqui que regem os destinos (Grelot 1973 p 19)
Nesse mito babilocircnico Ea ficou encarregado de consumar o trabalho imolando
Kingu que era o chefe dos deuses revoltosos para que o seu sangue estivesse nas veias
do homem de sorte que este tenha ldquoem suas veias o sangue de um deus decaiacutedordquo
Grelot observa que a partir desses mitos pode-se ver que o homem natildeo eacute apenas um
suacutedito e escravo dos deuses ldquomas tambeacutem eacute um joguete das potecircncias coacutesmicas que
fazem pesar sobre ele uma fatalidade inexoraacutevelrdquo (Grelot 1973 p 31)
[] Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido cortando suas veias Com o seu sangue Eia criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses para libertaacute-los Depois que Eia o saacutebio criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses obra superior a toda inteligecircncia que realizou Nudimude graccedilas aos artifiacutecios de Marduque Marduque rei dos deuses dividiu o conjunto dos Anunaacutequi em deuses de cima e deuses de baixo e encarregou Anu de velar pelas suas ordens nos ceacuteus e na terra ele estabeleceu seiscentos deuses (Vl 1-1031-34)
Pode-se ainda observar a ideia da existecircncia de um ancestral divino entre outros
povos antigos Segundo Campbell tal conceito pode ser visto na cultura da tribo Aranda
da Austraacutelia Central Nessa tribo o rito de transformaccedilatildeo de um menino em adulto
demonstra a forma primitiva com que esse povo se relaciona com a divindade desde a
antiguidade quando um jovem dessa tribo estaacute entre os dez e os doze anos ele e os
outros membros de sua faixa etaacuteria satildeo tomados pelos homens da aldeia e levantados
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vaacuterias vezes no ar enquanto os homens realizam o ritual de transformaccedilatildeo as mulheres
por sua vez tambeacutem tomam parte do ritual danccedilando em volta agitando os braccedilos e
gritando Em cada menino satildeo entatildeo pintados no peito e nas costas desenhos simples
por um homem relacionado com o grupo social ao qual pertence a sua futura mulher e
enquanto os meninos satildeo pintados os homens cantam ldquoQue ele possa atingir a barriga
do ceacuteu que ele possa crescer ateacute a barriga do ceacuteu que ele possa ir diretamente para
dentro da barriga do ceacuteurdquo (Campbell 1992 p82)
Assim que o ritual eacute finalizado os meninos recebem a instruccedilatildeo que desde que o
ritual foi concluiacutedo cada um deles tem sobre si a insiacutegnia do ancestral mitoloacutegico
particular do qual ele eacute a contraparte viva A partir de entatildeo os meninos passam a ter
algumas responsabilidades e satildeo advertidos de que de agora em diante haacute algumas
restriccedilotildees entre eles e o sexo oposto Eles natildeo poderatildeo mais brincar ou acampar com as
mulheres e meninas mas somente com os homens Das atividades de caccedila de pequenos
animais e procura de raiacutezes eles natildeo tomaratildeo parte visto ser uma atividade realizada
pelas mulheres mas receberatildeo uma responsabilidade maior que eacute acompanhar os
homens na caccedila aos cangurusrdquo (Campbell 1992 p 82) Campbell observa que nessa
tribo eles acreditam que as crianccedilas nascidas de mulheres satildeo reapariccedilotildees de seres que
viveram na era mitoloacutegica no chamado ldquotempo dos sonhosrdquo ou altjeringa (Campbell
1992 p 82) Nesse mundo mitoloacutegico maacutegico dos sonhos o menino da tribo Aranda
passa entatildeo a compreender que ele proacuteprio eacute um ser mitoloacutegico eterno que se
encarnou e da mesma forma seus companheiros tambeacutem satildeo as manifestaccedilotildees das
formas eternas (Campbell 1992 p82)
A ancestralidade divina tambeacutem pode ser constatada entre os gregos como no mito
de Ascleacutepio um deus popular classificado por Homero e Piacutendaro como um heroacutei ou
divindade da cura Ascleacutepio segundo a mitologia grega era filho do deus Apolo com a
humana Corocircnis ele tambeacutem se casou com uma humana com quem teve filhos e filhas
(Koester 2005 vol1 p176)
A relaccedilatildeo entre deuses e humanos tambeacutem pode ser vista nos relatos mitoloacutegicos
dos chamados heroacuteis ou semideuses Segundo a mitologia os heroacuteis pertenciam agrave
espeacutecie dos humanos visto que conheceram a morte e o sofrimento contudo
diferenciavam-se destes pelo fato de que eles viveram numa eacutepoca denominada pelos
gregos como o antigo tempo onde os homens denominados de heroacuteis eram mais belos e
mais fortes do que os homens que conhecemos Esses ancestrais (noacutenymnoy) ou seja
os sem nome fazem parte do passado lendaacuterio da Greacutecia antiga Mesmo sendo homens
eles se aproximam muito dos deuses mais dos que os homens atuais Nessa eacutepoca
14
lendaacuteria segundo a mitologia grega os deuses ainda se misturavam com os mortais na
vida diaacuteria como comer juntos e ateacute em relaccedilotildees sexuais onde os imortais se uniam aos
mortais a fim de gerarem filhos belos Os heroacuteis faziam parte dessa relaccedilatildeo amorosa
entre deuses e humanos como diz Hesiacuteodo ldquoeles formam a raccedila divina dos heroacuteis que
satildeo denominados semideuses conhecidos como os hemitheoiacuterdquo (Vernant 2006 p 47) A
partir desse relato observamos que os humanos realmente acreditavam procederem de
uma raccedila mitologicamente humana e divina ou seja uma mistura das duas
Observamos que ateacute esse ponto temos entre os ancestrais divinos apenas figuras
masculinas A figura masculina de Deus como Pai da humanidade entre os povos antigos
eacute marcante poreacutem natildeo eacute unanimidade Gerald Messadieacute afirma que natildeo existe nenhuma
figura masculina da idade da pedra que evoque o conceito de um deus masculino
(Messadieacute 2001 p44) De fato esse autor observa que os deuses masculinos como Aacutetis
Tamuz Adoacutenis Patilde Silvano Fauno Narciso Jacinto satildeo comparados agrave vegetaccedilatildeo visto
que mesmo sendo deuses heroicos miacuteticos morrem com a chegada do inverno e
renascem com a chegada da primavera assim como ocorre com a vegetaccedilatildeo
No entanto diferentemente do que ocorre no aspecto masculino para o autor
supracitado o princiacutepio feminino da divindade eacute algo permanente Segundo Messadieacute o
culto da Terra-Matildee foi tatildeo fortemente enraizado nas culturas primitivas que seus vestiacutegios
perduraram ateacute tempos recentes (Messadieacute 2001 p44) Nesse sentido pode-se citar as
oraccedilotildees que se faziam agrave deusa-matildee (Zemyna equivalente agrave deusa grega Gaia) na
Lituacircnia entre os seacuteculos XVII e XVIII onde ela era vista como aquela que faz florescer
os bototildees O mais admiraacutevel eacute que em pleno seacuteculo XX em numerosos paiacuteses da
Europa como Escoacutecia Irlanda Lituacircnia Pruacutessia Oriental e Malta ainda era dedicado um
dia (15 de agosto) a Terra-Matildee Messadieacute enfatiza que o dia dedicado agrave deusa-matildee era
uma data tatildeo significativa a ponto de ser transformada no dia da festa catoacutelica da
Assunccedilatildeo data esta que mesmo tendo sentido diferente e ser de outra religiatildeo ainda
assim foi recuperada em benefiacutecio de uma mulher (Messadieacute 2001 p 45)
A deusa-matildee era vista como doadora de tudo quer fosse da vida ou da morte Entre
suas formas mais conhecidas estatildeo Istar Astarte Inana Ciacutebele Ceres e Afrodite A
importacircncia da deusa-matildee como protetora da vida era fundamental em uma sociedade
onde a esperanccedila de vida em geral natildeo ultrapassava quarenta e cinco anos Por isso a
fertilidade das mulheres era vista como essencial para a sobrevivecircncia das sociedades ldquoA
deusa-matildee foi o reflexo de um estado socioeconocircmico que ditava a economia e a religiatildeordquo
(Messadieacute 2001 p47)
15
O culto agrave deusa universal foi duradouro e seu decliacutenio foi tardio e nunca totalmente
consumado em nenhuma religiatildeo ateacute o aparecimento do judaiacutesmo (Messadieacute 2001 p
59) Na Europa a primeira vez que um deus masculino partilhou o poder oficialmente
com a deusa-matildee foi com a revoluccedilatildeo Celta dos oriundos da Iacutendia ramo indo-europeu
dos indo-arianos por volta do seacuteculo VIII aC Os Celtas apesar dessa aparecircncia politeiacutesta
natildeo o eram pode-se dizer que ldquoeram quase monoteiacutestasrdquo (Messadieacute 2001 p72) Seus
deuses mitoloacutegicos estatildeo mais para heroacuteis do que para divindades ldquoOs Celtas como
revelou Juacutelio Ceacutesar satildeo todos filhos de Dis pater O Pai muito simplesmenterdquo (Messadieacute
2001 p69) Continua Messadieacute ldquoos Celtas lanccedilaram no Ocidente as fundaccedilotildees do
Cristianismo antes mesmo deste ter nascido Quase o inventaramrdquo (Messadieacute 2001
p70)
Dentre as muitas teorias acerca da origem dos deuses e suas relaccedilotildees com os
humanos verificamos que segundo Joatildeo Evangelista Martins Terra a palavra Deus tem
sua origem no protoindo-europeu onde era designada como DEIWOS e de onde provecircm
os dois vocaacutebulos latinos para dizer deus (Deus e divus) palavras que derivam do latim
arcaico deivos (Martins Terra 2001 p274) A religiatildeo dos indo-europeus acreditava na
existecircncia de um Ser Supremo conhecido como o Deus celeste tambeacutem chamado de
DEIWOS palavra esta que deriva do radical DEI (iluminar) (Martins Terra 2001 p291)
De acordo com Martins Terra DEIWOS estaacute presente em inuacutemeras religiotildees antigas
Na religiatildeo messaacutepica (populaccedilatildeo indo-europeia proto-histoacuterica da peniacutensula salentina)
religiatildeo dos etruscos dos gregos dos traacutecios dos celtas dos antigos germanos dos
persas dos baacutelticos dos antigos eslavos e das religiotildees indianas (Martins Terra 2001 p
277-286)
O indo-europeu DEIWOS originariamente natildeo designava o ceacuteu fiacutesico (caelum)
visto que as liacutenguas indo-europeias natildeo tecircm um nome comum para designar o ceacuteu fiacutesico
(Martins Terra 2001 p 291) DEIWOS designava um ser pessoal que frequentemente eacute
contraposto ao HOMO um ser pessoal terreno (Martins Terra 2001 p 305)
Na cultura indo-europeia o conceito de pai era muito mais do que genealoacutegico
juriacutedico e socioloacutegico O conceito de pai sempre se referia ao chefe de famiacutelia como
aquele que exercia um poder monaacuterquico com funccedilotildees judiciais e penais sobre os seus
dependentes Para os indo-europeus o deus supremo dyeu-pater (pai) natildeo se refere a
deus pai ldquocomo progenitor mas ao sentido social do adulto que eacute chefe da casa no
sentido do latim pater famiacuteliasrdquo (Martins Terra 2001 p153) Contudo segundo Martins
Terra Porfiacuterio relaciona Zeus como pai dos deuses e coloca o homem como parente de
Deus Para Porfiacuterio uma das finalidades dessa relaccedilatildeo eacute que ldquoo homem respeitaraacute o
16
direito do proacuteximo que tambeacutem tem a Zeus como progenitor [proacutegonos]rdquo (Martins Terra
2001 p351)
Na religiatildeo dos indo-europeus DEIWOS eacute sempre o ser transcendente (celeste) No
entanto essa transcendecircncia estaacute sempre proacutexima do divino como o autor da vida o
Deus Pai Segundo Martins Terra o antigo nome divino em latim era DIESPITER uma
forma primitiva derivada de DEIWOS ou de Dieus ldquonas invocaccedilotildees mais primitivas de
Zeus jaacute encontramos o vocativo Zeu paacuteter Em latim a palavra pater associa-se
intimamente com a palavra Deus e formava ela um soacute nome DIESPITER Iovispater
vocativo Juppiter em uacutembrio Jupater em iliacuterico Deipaturosrdquo (Martins Terra 2001 p337)
Como suporte agrave teoria da invocaccedilatildeo de Zeus partes do hino de Cleantes esclarecem
esse conceito
[]32 ndash Ah Zeus benfeitor universal 33 ndash Salva os homens de sua ignoracircncia funesta 34 ndash Purifica oacute Pai suas almas desta ignoracircncia e concede-lhes atingir 35 ndash O pensamento que te guia para tudo governares com justiccedila Somente Zeus pode salvar o homem de seus pendores funestos E o homem pode com confianccedila invocar a Zeus porque ele eacute Pai e dele com efeito todos noacutes nascemos 1 ndash Oacute o mais glorioso dos imortais sob mil nomes onipotente para sempre 2 ndash Zeus senhor da natureza que com a lei governas todas as coisas 3 ndash Salve Porque eacute a Ti que todos noacutes mortais temos o direito de invocar 4 ndash Visto que de Ti todos noacutes nascemos (Martins Terra2001 p332-333)
Esse hino mostra que Zeus natildeo era invocado apenas como rei senhor governador
mas tambeacutem como um Deus pessoal num relacionamento familiar um Deus Pai2
Conforme Martins Terra invocar a ldquodivindade sob o nome de pai eacute um dos fenocircmenos
primordiais na histoacuteria das religiotildeesrdquo Martins Terra ainda observa que nas liacutenguas indo-
europeias essa forma de invocaccedilatildeo fica mais evidente ainda nas palavras Dyaus pitatilde
Zeugraves pater Deipaturos e Iuppiter (Martins Terra 2001 pg433) Segundo Martins Terra
ldquoem Homero a invocaccedilatildeo de Zeus no vocativo aparece quase sempre unida agrave palavra
pai Zeucirc paacuteterrdquo (Martins Terra 2001 p 435)
Diferentemente dos povos antigos a atividade criadora de Deus no livro do Gecircnesis
eacute sempre cosmoloacutegica onde a ordem e a beleza satildeo os temas centrais Do caos Deus
cria a ordem o universo que culmina com a criaccedilatildeo do homem como o aacutepice da obra da
criaccedilatildeo conforme vemos no Gecircnesis onde ldquoDeus viu que isso era bom (1 10 13 18 21
25)rdquo e ainda segundo o texto sagrado (131) temos a seguinte conclusatildeo ldquoIsso era
2 Segundo Vernant Zeus eacute Pai dos deuses e dos homens natildeo porque tenha gerado ou criado todos os
seres mas porque exerce autoridade absoluta sobre todos como um chefe de famiacutelia sobre seu clatilde (Cf Vernant 2006 p33)
17
muito bomrdquo Segundo P Grelot ldquoa histoacuteria sagrada sacerdotal Gn 1-24ardquo - das origens do
mundo ao tempo em que Israel viveu no deserto - foi escrita no tempo em que o povo
estava no exiacutelio (entre 587 e 538 aC) Babilocircnia eacute o lugar onde se venera o deus Marduk
e de onde provecircm as narrativas mitoloacutegicas de como os deuses criaram o mundo Para
proteger seus irmatildeos dos mitos babilocircnicos o autor sagrado teria escrito a primeira
narraccedilatildeo da criaccedilatildeo Contudo a narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo difere teologicamente dos
mitos babilocircnicos e dos povos antigos conforme relata Grelot
[] O universo eacute de certa forma um templo gigantesco que Deus levanta para a sua gloacuteria Quando o templo estaacute pronto ele coloca nele o homem criado ldquoagrave sua imagem e semelhanccedilardquo (126) Fica assim proibido representar a divindade por meio de imagens porque estas lembrariam o culto prestado a criaturas divinizadas (Ex 20 3-6) essa proibiccedilatildeo natildeo tem paralelo em nenhum povo da antiguidade A uacutenica imagem permitida de Deus eacute o rosto humano Mas se Deus eacute representado agrave imagem de uma pessoa viva de um homem que fala para fazer as coisas existirem (ldquoDeus disserdquo) nem por isso o homem eacute divinizado ldquoimagem de Deusrdquo deve ele voltar-se para aquele cujos traccedilos reflete (Grelot 1973 p 43)
Da mesma forma para Heinrich Krauss e Max Kuumlchler comparar o relato biacuteblico da
criaccedilatildeo do homem com a mitologia sumeacuterio-babilocircnia ou egiacutepcia serve para demonstrar
diferenccedilas importantes entre eles Na mitologia pagatilde o acircmago de toda a criaccedilatildeo estaacute
mais voltada ao nascimento dos deuses (teogonias) Por sua vez a criaccedilatildeo do homem
estaacute ligada a esses relatos apenas por uma linha tecircnue Para Krauss e Kuumlchler somente
num periacuteodo bem posterior ao nascimento dos deuses eacute que o ser humano eacute criado
quase que por um acidente ou entatildeo para servir como trabalhador escravo dos deuses
Em alguns aspectos notamos que haacute semelhanccedilas entre a criaccedilatildeo do homem no relato
do Gecircnesis e as mitologias pagatildes quando observamos que no Gecircnesis a criaccedilatildeo do
homem tambeacutem se daacute por uacuteltimo Contudo conforme Krauss e Kuumlchler diferentemente
dos antigos mitos no Gecircnesis a criaccedilatildeo do homem se daacute por meio de um processo
premeditado Eacute possiacutevel por analogia observarmos que na narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo
tanto o cosmos quanto o homem satildeo criados num ambiente onde o respeito e a
admiraccedilatildeo pelo ser humano satildeo evidentes como podemos observar na poesia do Salmo
8 4-9 que diz
Quando vejo o ceacuteu obra dos teus dedos a lua e as estrelas que fixaste que eacute um mortal para dele te lembrares e um filho de Adatildeo para vires visitaacute-lo E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de gloacuteria e beleza Para que domine as obras de tuas matildeos sob seus peacutes tudo colocaste ovelhas e bois todos e as feras do campo tambeacutem a ave do ceacuteu e os peixes do mar
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quando percorre ele as ondas dos mares (Krauss e Kuumlchler 2007 p 48-49)
A relaccedilatildeo do homem com os deuses nas mitologias antigas eram caracterizadas
pelas forccedilas da natureza Os diversos deuses exerciam poderes sobre tais forccedilas que por
sua vez determinavam o destino do homem ldquoNa tempestade e na brisa na chuva e na
seca viam-se igualmente manifestaccedilotildees de poderes divinos tal como no amor e no
matrimocircnio na vida e na morte na violecircncia e na guerra no crescimento e na destruiccedilatildeordquo
(Krauss e Kuumlchler 2007 p 61) Todos os acontecimentos da vida dos homens eram
resultados da influecircncia de uma ou mais divindades conforme as suas funccedilotildees dentro do
panteatildeo Alguns deuses eram considerados de boa iacutendole poreacutem outros eram
considerados perversos e maus e por essa razatildeo deveriam ser lisonjeados atraveacutes de
rituais de sacrifiacutecios ou praacuteticas maacutegicas
Krauss e Kuumlchler apesar de descreverem os deuses mitoloacutegicos da antiguidade com
poderes sobrenaturais e sobre-humanos sobre o mundo ressaltam que tais deuses
mesmo o chamado deus criador da mitologia antiga eram limitados agrave esfera deste
mundo ou seja natildeo tinham poder absoluto nem garantido para sempre Por outro lado o
Deus dos relatos biacuteblicos da criaccedilatildeo eacute diferente Ele natildeo faz parte deste mundo mesmo
que aqui esteja presente e sempre atuando Tambeacutem natildeo estaacute sujeito agrave limitaccedilatildeo das
forccedilas da natureza e tem poder para conduzir soberanamente o destino dos seres
humanos O Deus criador do Gecircnesis natildeo sofre oposiccedilatildeo de divindade alguma a natildeo ser
em pequena escala dos seres humanos ldquoA diferenccedila entre o monoteiacutesmo judeu-cristatildeo
ou islacircmico de um lado e o politeiacutesmo de outro natildeo eacute uma questatildeo de nuacutemero (um
uacutenico Deus ou diversos deuses) mas da concepccedilatildeo do que eacute Deusrdquo (Krauss e Kuumlchler
2007 p61)
No tocante agraves narrativas e mitos antigos da criaccedilatildeo Vicente Artuso desenvolve um
trabalho no qual compara o relato da criaccedilatildeo no livro do Gecircnesis com a epopeia de Atra
Asis e os demais mitos antigos da criaccedilatildeo e conclui que o relato da criaccedilatildeo no Gecircnesis eacute
mais otimista em relaccedilatildeo aos mitos antigos Embora por um lado haja algumas
semelhanccedilas na forma da criaccedilatildeo do homem conforme jaacute foi visto acima por outro lado
elas estatildeo muito distantes Artuso observa que nessa epopeia o homem eacute feito a partir
do barro e do sangue de um deus decaiacutedo Na Biacuteblia o homem proveacutem do barro e do
sopro de Deus que eacute a fonte da vida Na epopeia o ser humano eacute criado para livrar os
deuses de seu castigo na Biacuteblia o homem eacute criado por Deus de uma forma totalmente
desinteressada Na epopeia o ser humano participa da divindade assim como na Biacuteblia
Contudo Artuso pontua que mesmo que em ambos os relatos da criaccedilatildeo o homem
participe da divindade na epopeia fica evidente que o homem participa da divindade de
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um deus decaiacutedo sendo que no relato da criaccedilatildeo da Biacuteblia o homem eacute criado agrave imagem
e semelhanccedila do Criador No Gecircnesis o homem eacute criado pelo Deus uacutenico que do caos
traz todas as coisas a existecircncia cria o homem e o faz participante de sua obra quando
ordena ao ser humano o crescimento a multiplicaccedilatildeo e que o mesmo exerccedila o domiacutenio
sobre todas as coisas criadas (Artuso 2009 p80-81)
22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO
No Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai3 J Jeremias relaciona
que isso ocorre apenas quinze vezes conforme podemos verificar nos seguintes textos
ldquoDt 326 2 Sam 714 (textos paralelos em 1 Cron 1713 22 10 286) Sl 68 6 8927 Is
6316 (duas vezes) 647 Jr 3419 31 9 Mal 1 6 2 10 (Jeremias 2005 p19) Mesmo
esses textos quando relacionados a Deus como Pai indicam que Deus eacute primeiramente
o Senhor como diz o Salmo 33 8 ldquoTema o Senhor todo o mundo e tremam diante dele
todos os habitantes da terra porque ele fala e acontece ele ordena e aiacute estaacuterdquo (Jeremias
2008 p269) Como Senhor Deus tambeacutem se compadece de seus filhos como um Pai
conforme o Salmo 10313 (Jeremias 1977 p13) Aleacutem de Senhor o Pai tambeacutem eacute
honrado como Criador ldquoNatildeo eacute ele porventura teu pai que te fez seu que te formou e te
consolidourdquo (Dt 326) ldquoPorventura natildeo eacute um o Pai de todos noacutes Natildeo eacute um soacute Deus que
nos criourdquo(Ml 2 10) Observa-se que o reduzido uso do conceito de Deus como Pai no
Antigo Testamento pode estar relacionado ao uso abusivo que os povos cananeus faziam
desse termo em seus cultos de fertilidade (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo
Testamento 1998 p 6)
A relaccedilatildeo de Deus como Pai no Antigo Testamento eacute diferente do conceito de
paternidade dos povos antigos As diferenccedilas satildeo fundamentais visto que Deus natildeo eacute um
ancestral da raccedila humana como podemos ver nas palavras de J Jeremias
O fato de que no Antigo Testamento Deus natildeo eacute o ancestral mas o criador natildeo eacute a menor E que o que eacute ainda mais importante no antigo Testamento a paternidade divina atribui-se soacute a Israel e de uma maneira que natildeo encontra nenhum equivalente Eles tecircm uma relaccedilatildeo toda particular com Deus isto eacute um povo escolhido dentre todos os povos para ser o filho primogecircnito de Deus (Jeremias 1977 p13)
3 ldquoO AT emprega a palavra pai () quase que exclusivamente (c De 180 vezes) num sentido secular e soacute
muito ocasionalmente (15 vezes) num sentido religioso Como acontece no AT assim tambeacutem na literatura do judaiacutesmo palestinense podemos notar reserva marcante no emprego da palavra num sentido religioso Soacute mais tarde na literatura do judaiacutesmo da diaacutespora eacute que achamos o emprego mais frequente do nome Pai com referecircncia a Deusrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
20
No contexto biacuteblico a histoacuteria de Israel eacute notoriamente descrita colocando Israel
sempre como o povo eleito e exclusivo de Deus e essa eleiccedilatildeo eacute histoacuterica e concreta A
paternidade divina4 pode ser considerada histoacuterica quando tambeacutem atestamos que o
ecircxodo do Egito a peregrinaccedilatildeo no deserto e a conquista da terra de Canaatilde satildeo tratados
como fatos histoacutericos fatos esses que tornam Israel como o filho primogecircnito conforme a
eleiccedilatildeo divina Alguns textos corroboram esse pensamento entre os quais podemos
destacar ldquoFilhos sois do SENHOR vosso Deusrdquo (Dt 141)
A paternidade divina no Antigo Testamento natildeo eacute privileacutegio do indiviacuteduo mas sempre
privileacutegio da coletividade e juridicamente da figura do rei Com efeito Deus eacute sempre visto
como o ldquoPai do Reirdquo (2 Sam 7 14 Sl 8927) e ldquoPai de Israel como naccedilatildeordquo (Jr 34 3 19
319 Ml 16 Is 6315 657) J Jeremias faz questatildeo de enfatizar a respeito da
paternidade divina que em todo o Antigo Testamento natildeo encontramos nenhuma
passagem na qual Deus seja interpelado como Pai por um indiviacuteduo mas isso eacute sempre
realizado pela coletividade (Jeremias 2008 p115) Quando observamos as expressotildees
ldquoTu eacutes nosso Pairdquo (Is 6316) e ldquoTu eacutes meu Pairdquo (Jr 34) verificamos que as mesmas se
tratam de ldquosentenccedilas afirmativas e natildeo da invocaccedilatildeo de Deus usando o nome de Pai
para elerdquo (Jeremias 2008 p115) Deus natildeo eacute Pai porque gera de forma fiacutesica mas
porque chamou os filhos de Israel para ser um povo constituiacutedo de homens livres eacute Pai
porque ama escolhe e guia seus filhos por um reto caminho segundo a lei Dessa forma
mesmo fazendo pouco uso do termo Pai Israel comeccedilou a realizar o que poderiacuteamos
chamar de a grande revoluccedilatildeo do siacutembolo paterno
Em relaccedilatildeo ao siacutembolo de Deus como Pai Robert Hamerton-Kelly seguindo a
mesma linha de pensamento de J Jeremias concorda que no Antigo Testamento a
designaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rara e as poucas vezes em que isso ocorre natildeo eacute no
sentido literal do termo Hamerton Kelly faz referecircncia a dois tipos de simbolismo que
aparecem na Biacuteblia concernentes agrave figura de Deus como Pai um simbolismo indireto e
outro direto O simbolismo indireto ocorre por meio de uma associaccedilatildeo enquanto que o
simbolismo direto eacute feito por intermeacutedio de uma metaacutefora ou alegoria No modo indireto
Deus eacute mostrado claramente em conexatildeo com os pais humanos Ele eacute o ldquoDeus dos paisrdquo
e a associaccedilatildeo aqui eacute por intermeacutedio da identificaccedilatildeo de Deus como chefe No modo
direto a Biacuteblia usa a alegoria ou a metaacutefora Deus eacute como um pai ou Deus eacute nosso Pai
(Hamerton-Kelly 1979 p20-21)
4 ldquoA descriccedilatildeo de Deus como Pai se refere no AT apenas as Seu relacionamento com o povo de Israel
(Dt326 Is6316 duas vezes 648 Jr319 Ml16 210) ou com o rei de Israel (2Sm 714 par 1 Cr 1713 2210 286 Sl 8926 cf 27) Nunca se refere a qualquer indiviacuteduo () ou a humanidade em geralrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
21
No Antigo Testamento o simbolismo indireto eacute usado na transiccedilatildeo do Pai dos
deuses para o Deus dos pais e do Deus dos pais para o Deus de Moiseacutes (Hamerton-
Kelly 1979 p21-28) Qualquer consideraccedilatildeo sobre o entendimento biacuteblico de Deus no
periacuteodo preacute-mosaico deve ser relacionado aos deuses adorados pela religiatildeo dos
cananeus ancestral da religiatildeo dos hebreus os quais eram denominados em Canaatilde pelo
nome ldquoEl5rdquo o chefe do panteatildeo e tambeacutem progenitor dos deuses na mitologia cananita
(Martins Terra 1987 p11) De acordo com a tradiccedilatildeo Yahweh era ldquoo Deus dos Paisrdquo e
Abraatildeo pode provavelmente ter sido considerado ldquopai dos deusesrdquo como uma descriccedilatildeo
de sua possiacutevel divindade Entre os outros povos existiam vaacuterios deuses que eram vistos
como figuras paternas como Anu (deus do ceacuteu) Enlil (deus do vento e da tempestade) e
Ea (deus da aacutegua) os quais tinham seu proacuteprio santuaacuterio e eram patronos de suas
respectivas cidades (Hamerton-Kelly 1979 p21-23)
Os compiladores das sagas patriarcais do Gecircnesis acreditavam que os pais
adoravam El como El Elyon El Olam El Roi El Shaddai e El Betel Esses nomes
compostos mostram que a adoraccedilatildeo era estabelecida em um lugar fiacutesico por intermeacutedio
de alguma outra divindade ou seja os lugares de adoraccedilatildeo eram relacionados a um
deus Embora natildeo possa ser encontrada a praacutetica monoteiacutesta entre os patriarcas pode-se
assumir que os deuses distintos estavam associados em algum estaacutegio da tradiccedilatildeo
sendo identificados como manifestaccedilotildees do grande deus El - o pai dos deuses Mesmo
que natildeo seja possiacutevel falar de um preacute-Mosaico ldquoEl-monoteiacutesmordquo 6 eacute possiacutevel falar de um
deus supremo que eacute a fonte e origem de todas as coisas o pai dos deuses e da
humanidade que eacute o ponto de contato com o monoteiacutesmo Javista (Hamerton-Kelly 1979
p24-25)
Outro ponto de contato entre a teologia Preacute-Mosaica e Mosaica pode ser
encontrado no fato que cada um dos grandes patriarcas tinha um deus associado com
eles mesmos o ldquoEl de Abraatildeordquo (Gn 31 42) o ldquoTemor de Isaquerdquo (Gn 31 53) o ldquoForte de
Jacoacuterdquo (Gn 49 24-25) os quais tinham como sinocircnimos o ldquoDeus (El) de meu pairdquo Por fim
5 A palavra El ocorre 238 vezes no Antigo Testamento Eacute uma palavra de origem protossemiacutetico ou
semiacutetico-comum para designar Deus em todas as liacutenguas semiacuteticas Ele eacute o Deus-patriarca criador anciatildeo cujas forccedilas extraordinaacuterias criaram e povoaram o ceacuteu El eacute ldquoum Deus pessoardquo de cada patriarca ele eacute ldquoo Deus dos paisrdquo familiar uacutenico e universal mas tambeacutem eacute o Deus tribal (Cf Martins Terra em Elohim o Deus dos Patriarcas p 19 37 39 51)
6 Surge um problema relacionado a este assunto eacute possiacutevel falar de monoteiacutesmo neste periacuteodo Alguns
pesquisadores acham difiacutecil o conceito de um monoteiacutesmo preacute-mosaico ou mesmo de uma ideia de adoraccedilatildeo exclusiva a Deus mesmo que o texto do livro do Ecircxodo 34 11-26 trate com detalhes este tema ainda assim este pensamento parece ser uma ideia muito complexa uma vez que muitos estudiosos observam que o referido texto pode ter sido redigido em uma eacutepoca tardia ou seja ldquouma espeacutecie de seleccedilatildeo ou resumo a partir de outros textosrdquo (Cruumlsemann 2002 p167-169) Segundo Cruumlsemann o Pentateuco deve ter surgido entre o exiacutelio e o inicio da eacutepoca helenista para ser mais objetivo no periacuteodo Persa (cf Cruumlsemann 2002 p454)
22
vecirc-se que o deus eacute identificado mais pelo seu relacionamento com uma pessoa do que
com um lugar ou um fenocircmeno natural isto eacute muda-se o simbolismo do divino de lugar
para pessoa deixando claro que a Revelaccedilatildeo de Deus estaacute no domiacutenio das relaccedilotildees e
accedilotildees humanas mais especificamente nas relaccedilotildees de familia (Hamerton-Kelly 1979
p25-27)
Aleacutem disso observamos que sob a influecircncia de Moiseacutes as tribos de Israel foram
unificadas em fidelidade ao Deus Yahweh A identidade de Yahweh estaacute fortemente
relacionada com ldquoos paisrdquo como se vecirc na revelaccedilatildeo de Deus a Moiseacutes no monte Horebe
[hellip] Moiseacutes Moiseacutes [hellip] Eu sou o Deus de teus pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute [hellip] Iahweh disse Eu vi Eu vi a miseacuteria do meu povo que estaacute no Egito Ouvi seu grito por causa dos seus opressores pois Eu conheccedilo as suas anguacutestias Por isso desci a fim de libertaacute-lo da matildeo dos egipcios e para fazecirc-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta terra que mana leite e mel [hellip] Disse Deus a Moiseacutes Eu sou aquele que eacute Disse mais Assim diraacutes aos israelitas EU SOU me enviou ateacute voacutes [hellip] Iahweh o Deus o Deus de vossos pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute me enviou ateacute voacutes Eacute o meu nome para sempre e eacute assim que me invocaratildeo de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (Ex 3 1-15)
Iahweh eacute o Deus de Israel isso fica evidente na foacutermula ldquoElohecirc Israelrdquo (Martins
Terra 1987 p 82) O ponto central de toda a teologia do Antigo Testamento eacute que o
Deus de Israel eacute o uacutenico e verdadeiro Quando os autores sagrados comparam Iahweh
com os deuses de outras naccedilotildees (Dt 4 34 Sl 11 3-5) eacute para fortalecer a convicccedilatildeo dos
israelitas de que haacute somente um Deus tanto ldquoem cima no ceacuteurdquo como ldquoembaixo na terrardquo
(Dt 439) Para Martins Terra o ldquoemprego de Elohim7 natildeo pode ser interpretado como
reliacutequia de um antigo politeiacutesmo Israelitardquo ou seja Elohim se converte em sinocircnimo de
Iahweh o Deus uacutenico e verdadeiro
O nome divino de Elohim que se radica na liacutenguagem religiosa de todos os povos semitas do Antigo Oriente Proacuteximo reconhecido e confessado por Israel como o Deus pessoal e uacutenico ajudou o Antigo testamento a entender e proclamar o Deus da histoacuteria da Salvaccedilatildeo como Deus do universo como lemos na primeira linha da Biacuteblia ldquoNo principio Elohim criou os ceacuteus e a terrardquo (Martins Terra 1987 p 85)
Fazendo uma transiccedilatildeo do simbolismo indireto para o simbolismo direto
mostraremos o pai (matildee) como uma alegoria ou metaacutefora para Deus Vale observar que a
figura da matildee faz parte desta anaacutelise uma vez que esse simbolismo natildeo a exclui apenas
7 A palavra Elohim pode ser um desenvolvimento do termo Eloah (Deus) como uma forma de
representaccedilatildeo da pluralidade de pessoas existentes na divindade (Trindade) ou ainda a terminaccedilatildeo plural pode ser descrita como um plural de majestade natildeo com a intencionalidade de ser usado na forma de plural para referir-se a Deus Isto pode ser averiguado quando Elohim eacute usado com o verbo no singular bem como os adjetivos e pronomes tambeacutem no singular (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento 1998 p68-72)
23
inclui sua presenccedila No simbolismo direto os pais satildeo muito mais do que meros sinais da
natureza e presenccedila de Deus O profeta Oseacuteias nos mostra um Deus que ao mesmo
tempo em que eacute Pai tem para com Israel seu filho afetos que satildeo proacuteprios da matildee A
ternura os cuidados e o afeto de Deus em Oseacuteias satildeo comparados agraves caracteriacutesticas
proacuteprias que uma matildee tem por seus filhinhos
Quando Israel era menino eu o amei e do Egito chamei meu filho (hellip) Fui eu contudo quem ensinou Efraim a caminhar eu os tomei pelos braccedilos mas natildeo reconheceram que eu cuidava deles Com viacutenculo de amor eu os atraiacutea com laccedilos de amor eu era para eles como os que levantavam uma criancinha contra o seu rosto eu me inclinava para ele e o alimentava (Os 11 1-4)
Nesse texto vemos a ideia de que Israel era filho de Deus e que essa filiaccedilatildeo eacute
usualmente associada ao periacuteodo do deserto e eacute entendida como uma experiecircncia da
paternidade de Iahweh Contudo observamos no texto que Iahweh inclinava-se para
alimentaacute-los expressatildeo essa que denota uma funccedilatildeo especificamente desempenhada
pela figura materna Aleacutem disso em uma passagem do livro de Nuacutemeros Moiseacutes de
uma forma impliacutecita afirma que Deus eacute como uma matildee para Israel
[] Moiseacutes sentiu-se grandemente desgostoso e disse a Iahweh ldquoPor que fazes mal a teu servo Por que natildeo achei graccedila a teus olhos visto que me impusestes o encargo de todo este povo Fui eu porventura que concebi todo este povo Fui eu que o dei agrave luz para que me digas Leva-o em teu regaccedilo como a ama leva a crianccedila no colo agrave terra que prometi sob juramento a seus pais (Num 1110b-
12)rdquo
Esse texto soacute pode referir-se a Deus visto que Moiseacutes natildeo era a matildee daquele
povo portanto teoricamente natildeo tinha a responsabilidade de ser o protetor e nem o
provedor deles em momentos de crise Na visatildeo de Moiseacutes Deus era o responsaacutevel pelos
cuidados essenciais do povo assim como uma matildee cuida de seus filhos Dessa forma a
figura materna tambeacutem pode ser usada como uma designaccedilatildeo para Deus (Hamerton-
Kelly 1979 p 39-40)
Haacute ainda outros exemplos em que a imagem de Deus pode ser comparada a de
uma mulher que cuida de seus filhos como lemos em Isaiacuteas 4915
Por um acaso uma mulher se esqueceraacute de uma criancinha de peito Natildeo se compadeceraacute ela do filho do seu ventre Ainda que as mulheres se esquecessem
24
eu natildeo me esqueceria de ti
Na simbologia em que Deus exerce as funccedilotildees de provedor protetor e mantenedor
de seu povo encontramos textos em que Ele exerce funccedilotildees ora como Pai e ora Matildee
Segundo Hamerton-Kelly no livro do profeta Isaiacuteas (66 10-13) encontramos uma
imagem de Deus como a de uma matildee bem como em Deuteronocircmio 131 e 85 em que
encontramos em ambos os textos a imagem de Deus que como um homem (pai) educa
os seus filhos pelo caminho correto Portanto numa visatildeo simboacutelica Deus eacute apresentado
ora como pai e ora como matildee do povo (Hamerton-Kelly 1979 p40)
Alegrai-vos com Jerusaleacutem exultai nela todos os que a amais regozijai-vos com ela todos os que por ela estaacuteveis de luto pois sereis amamentados e saciados
pelo seu seio consolador pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo Com efeito assim diz Iahweh Eis que trarei a Paz como um rio e a gloacuteria das naccedilotildees como uma torrente transbordante Sereis amamentados sereis carregados sobre ancas e acariciados sobre os joelhos Como a uma pessoa que a sua matildee consola Assim eu vos consolarei Sim em Jerusaleacutem sereis consolados (Is 66 10-13)
Como tambeacutem no deserto onde vistes que o SENHOR vosso Deus nele vos levou como um homem leva seu filho por todo o caminho que andastes ateacute chegardes a este lugar Deuteronocircmio 131 Sabes pois no teu coraccedilatildeo que como um homem castiga a seu filho assim te castiga o SENHOR teu Deus Deuteronocircmio 85
Mesmo diante de vaacuterios textos em que observamos Deus exercendo figuradamente
as funccedilotildees de pai e matildee natildeo temos um texto em que Deus seja diretamente chamado de
matildee e nem mesmo Jesus jamais invocou a Deus como matildee Segundo Matthias Grenzer
a razatildeo disso encontra-se no fato de Deus ser diversas vezes tratado como o esposo ou
o amado enquanto que Israel eacute descrito como a virgem noiva mulher amada ou ateacute
mesmo como prostituta (cf Jr 2-3 Ez16 Os 2 e Ct) Dentro desse imaginaacuterio a figura de
Deus eacute vista como a parte masculina enquanto que a naccedilatildeo de Israel ocupa a parte
feminina sendo assim essa seria a razatildeo de Deus ldquoser chamado somente de Pai e natildeo
de matildeerdquo (Grenzer 2009 p 182)
Ainda em relaccedilatildeo agrave paternidade de Deus no Antigo Testamento Sabugal observa
que a mesma eacute sempre vista nos seguintes aspectos Deus como o Pai do povo de Israel
(Is 6316) Pai do rei (2 Sam 7 14 Sl 8927) Pai dos justos israelitas (Sab 216) e
tambeacutem como Rei Messiacircnico (2Sm 7 12-16) (Sabugal 1985 p370)
25
Yahveh com efeito eacute o Pai de Israel por haver resgatado ltltdesde sempregtgt (Is 6316b) primeiro do Egito (Jer 34 cf Ez 23 319) e depois da Babilocircnia (cf Jer 319) tambeacutem por haver-lhes criado mediante a alianccedila (Dt 366 Mal 210 cf 317) conduzindo-o pelo deserto e corrigindo-o ltltcomo um pai a seus filhosgtgt (Dt 131 85) provando-o paternalmente (Sab 1110) e paternalmente amando-o (cf Mal 317) pois ele fez o seu povo que o confessa como Pai (Is 6319 647) e como tal deve honrar (Mal 16) Israel eacute consequentemente o filho de Deus seu primogecircnito (Ex 422 Jer 319) e ltlt filho tatildeo amadogtgt (Jer 3120) a quem desde o Ecircxodo elegeu por pai (Nuacutem 1112 Dt 32 518) e modelou (cf Is 647) por ter-lhes amado (Os 111) ltlt com um amor eternogtgt (Jer 313) tornando-se assim mesmo os israelitas a raiz da eleiccedilatildeo divina realizada na alianccedila do Sinai ltlt filhos de Yahvehgtgt (cf Dt 326 Mal 317) como membros de ltltum povo consagrado a seu Deusgtgt (Dt 14 1-2 Sal 7315) E certo que como ltltfilhos rebeldesgtgt (Is 30 19) esqueceram ltlto Deus que os criougtgt (Jer 321 Dt 3218) mas se como ltltfilhos apoacutestatasgtgt ouvirem a exortaccedilatildeo e converterem-se (Jer 3 1422) seratildeo novamente chamados ltlt filhos do deus vivogtgt (Os 21) que mostrando-se ltltindulgente para com eles como um pai com um filho que lhe servegtgt (Mal 317) uma vez mais os salvaraacute Israel segue sendo o ltltfilho amadogtgt e ltltmenino mimadogtgt de Yahveh (Jer 319) (Sabugal 1985 p 371)
Em suma podemos observar que o conceito que os israelitas tinham de Deus como
Pai defendido por J Jeremias fundamenta-se na tese de que a paternidade de Deus
sobre Israel eacute diferente da paternidade divina entre os demais povos antigos De fato o
Deus dos israelitas natildeo eacute um pai por geraccedilatildeo fiacutesica (Sabugal 1985 p371) e nem mesmo
o progenitor dos deuses e dos homens (Sabugal 1985 p368) como criam os demais
povos antigos Contudo observamos que a figura de Deus metaforicamente exerce
funccedilotildees que satildeo em suas origens de ofiacutecio materno e de ofiacutecio paterno
Realmente o Antigo Testamento eacute rico em metaacuteforas para Deus Christopher J H
Wrighth nota que entre as imagens humanas para Deus no Antigo Testamento
encontramos que ele eacute rei juiz e redentor Tambeacutem Yahweh eacute comparado a um pastor
soldado ou a um agricultor Yaweh pode ser chamado tambeacutem de rocha abrigo escudo
esconderijo leatildeo fogo ou uma fonte de aacutegua (Wright 2007 p 22)
Uma outra maneira de se observar a figura de Deus como Pai no Antigo Testamento
eacute atraveacutes dos nomes teofoacutericos Geza Vermes vecirc que a representaccedilatildeo de Deus como Pai
eacute um elemento baacutesico na Teologia do Antigo Testamento Vermes cita trecircs nomes como
exemplo os quais ldquoproclamam uma relaccedilatildeo de parentesco entre Deus e os membros
individuais do povo Judeurdquo 8 Tais nomes como Abiel (Deus eacute meu Pai) Eliab (meu Deus
eacute Pai) Abijah (Yah [Yahweh Jeovaacute eacute meu Pai] segundo Vermes atestam o conceito de
que Deus era invocado como Pai no judaiacutesmo veterotestamentaacuterio (Vermes 2006 p 259)
9 Sobre a imagem de Deus Pai na Biacuteblia Vermes concorda que ela natildeo eacute tatildeo
8 Acredito que com o termo parentesco Vermes natildeo estaacute se referindo a ancestralidade conforme
debatemos acima baseado no pensamento de J Jeremias 9 Matthias Grenzer tambeacutem coloca esses nomes citados por Vermes como uma forma de ver ldquoo
comportamento do Senhor Deusrdquo comparado a atitude de um Pai humano Grenzer ainda menciona o nome do sobrinho de Davi Joab cujo significado eacute ldquoJaveacute (Yahweh) eacute Pairdquo (Cf Grenzer 2009 p 180)
26
abundantemente atestada nas Escrituras contudo a familiaridade dessa imagem eacute
manifesta na ldquovariedade de nomes teofoacutericos que conteacutem o elemento ab (Pai)rdquo Sobre os
nomes teofoacutericos ele diz ainda que
Eles empregam tanto os tiacutetulos divinos do hebraico YH (W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai) ou YoAB (Yo eacute o Pai) Do mesmo modo temos Abbi eL e ELIab (Deus eacute o Pai) em nomes judaicos da era preacute-exiacutelica e do Segundo Templo Abram e Abiram (Pai excelso e Meu Pai eacute exaltado) que podem ser rastreados agrave idade patriarcal representam o mesmo tipo Enquanto as nuances exatas do termo ldquoPairdquo permanecem vagas natildeo pode haver duacutevida de que mesmo em niacutevel individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de famiacutelia Essa antiga atitude subjacente eacute explicitamente expressa principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da naccedilatildeo judaica Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusatildeo a eles como seus filhos (Vermes 1995 p158-159)
Para Christopher Wright a ocorrecircncia desses nomes metafoacutericos no Antigo
Testamento demonstra como a ideia de Deus como Pai era bem aceita nesse periacuteodo
Para esse autor pais que davam nomes aos filhos como Joabe (Yahweh eacute meu pai) ou
Abiel (Deus eacute meu Pai) tinham algum conhecimento metafoacuterico de Deus como Pai
Portanto para Israel o conhecimento de Deus como Pai pode ser mais bem
compreendido sob o ponto de vista que para eles Deus eacute comparado com um pai
humano que disciplina mas ensina seus filhos Como Pai ele tambeacutem se compadece
carrega adota os sem-teto e os oacuterfatildeos enfim ele eacute o Pai em que podemos encontrar
perfeita seguranccedila (Wright 2007 p24-25 38-39)
27
3 O JESUS HISTOacuteRICO
Depois de investigarmos a relaccedilatildeo de Deus como ldquoPairdquo entre os povos antigos
aproximamo-nos do ponto central da pesquisa Jesus de Nazareacute o qual segundo J
Jeremias trouxe-nos uma nova forma ou seja deu um novo enfoque sobre o termo Pai
quando dirigido a Deus Para um melhor embasamento sobre a relaccedilatildeo de Jesus com
Deus Pai buscaremos entender o homem chamado Jesus dentro das pesquisas
modernas sobre ldquoa vida de Jesusrdquo bem como das fontes evangeacutelicas disponiacuteveis no Novo
Testamento Procurar conhecer Jesus partindo do meio social em que ele esteve inserido
com certeza torna a pesquisa sobre o Cristo mais profunda e interessante uma vez que
Jesus antes de ser conhecido e pregado como Cristo foi um cidadatildeo judeu que viveu na
Galileia para ser mais preciso na pequena e humilde Nazareacute
31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO
Jesus de Nazareacute constitui personagem histoacuterico da maior importacircncia a comeccedilar pelo proacuteprio calendaacuterio hoje universal baseado na era cristatilde Uma parte consideraacutevel da humanidade professa a feacute cristatilde e outra parte considera Jesus como um profeta Para aleacutem do Cristianismo e do Islamismo Jesus constitui para outros crentes ou para agnoacutesticos e ateus uma referecircncia fundamental pela diferenccedila contraste ou oposiccedilatildeo No entanto o Jesus da histoacuteria aquele homem galileu que viveu haacute dois mil anos ainda constitui um grande desconhecido O Cristo da feacute dominou por muitos seacuteculos as reflexotildees sobre este homem de singular significaccedilatildeo As paixotildees das discussotildees teoloacutegicas foram muitas mas o homem Jesus foi tocado pelos estudiosos apenas nos uacuteltimos dois seacuteculos
(Funari 2009 p 7 in Chevitarese A L Cornelli G)
A busca pelo Jesus da histoacuteria tem mais de 200 anos No final do seacuteculo XVIII um
pequeno nuacutemero de bravos europeus comeccedilou a aplicar criacutetica literaacuteria a livros histoacutericos
do Novo Testamento Segundo E P Sanders a pesquisa sobre Jesus escrita durante
esse periacuteodo de 200 anos por estudiosos seacuterios e determinados trouxe resultados
bastante diversificados sobre o assunto o que levou muitos a pensar que na realidade
natildeo sabemos nada sobre o Jesus da histoacuteria No entanto essa eacute uma reaccedilatildeo exagerada
uma vez que sabemos muitas coisas O problema consiste em saber conciliar os nossos
conhecimentos com as nossas esperanccedilas e aspiraccedilotildees a respeito da vida e ministeacuterio de
Jesus (Sanders 2005 p21)
A pesquisa sobre a vida de Jesus pode ser dividida em cinco fases conforme as
descrevem Gerd Theissen e Annette Merz A primeira fase tem como principais
representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-
28
1874) 10 Reimarus um professor de liacutenguas orientais de Hamburg teve seus escritos
principais publicados somente apoacutes a sua morte por G E Lessing o qual a partir de
1774 comeccedilou a publicar as partes mais importantes do ensaio sobre ldquoApologia ou
Escritos de Defesa para os adoradores Racionais de Deusrdquo Em 1778 ele tinha publicado
sete fragmentos da obra quando iniciou o tratamento da vida de Jesus em perspectiva
puramente histoacuterica (Theissen amp Merz 2004 p21) Conforme Albert Schweitzer estes
satildeo os tiacutetulos dos fragmentos de Reimarus publicados por Lessing (Schweitzer 2003 p
23)
1 A Toleracircncia dos Deiacutestas
2 A Desmoralizaccedilatildeo da Razatildeo no Puacutelpito
3 A Impossibilidade de uma Revelaccedilatildeo em que todos os homens teriam bons motivos
para acreditar
4 A Passagem dos Israelitas pelo Mar Vermelho
5 Demonstrando que os Livros do Antigo Testamento natildeo foram escritos para revelar
uma religiatildeo
6 Acerca da Histoacuteria da Ressurreiccedilatildeo
7 Os objetivos de Jesus e seus Disciacutepulos
Reimarus de acordo com Theissen defendeu a ideia de que Jesus natildeo fundou
uma nova religiatildeo e tambeacutem nunca teve a intenccedilatildeo de desfazer-se do judaiacutesmo visto que
ele sempre esteve inserido na religiatildeo Judaica A pregaccedilatildeo de Jesus era sempre baseada
na apocaliacuteptica judaica O reino prometido por Jesus segundo Reimarus era um reino
terreno nos mesmos moldes e expectativas do pensamento judaico de sua eacutepoca
Portanto para Reimarus ldquoJesus eacute uma figura judaica profeacutetico-apocaliacutepticardquo ou seja
apenas um judeu enquanto que o cristianismo nada mais era do que uma invenccedilatildeo dos
apoacutestolos (Theissen e Merz 2004 p21) Martins Terra fazendo uma anaacutelise do
pensamento de Reimarus sobre a pessoa de Jesus conclui que para o referido teoacutelogo
ldquoJesus natildeo passou de um poliacutetico ambicioso e seus disciacutepulos foram verdadeiros
falsaacuteriosrdquo Na analogia de Reimarus Jesus e sua pretensatildeo poliacutetica terminaram com o
fracasso e a morte na cruz Sobre a ressurreiccedilatildeo de Jesus ele teria dito que foram os
disciacutepulos roubaram o cadaacutever inventaram a mensagem de sua ressurreiccedilatildeo e da vinda
futura Para concluir o pensamento de Reimarus sobre a imagem que temos de Jesus a
10
Essa fase eacute tambeacutem conhecida como a ldquoold questrdquo Essa fase natildeo eacute movida pelo cientificismo mas tem como caracteriacutesticas a rejeiccedilatildeo aos dogmas da Igreja a diferenciaccedilatildeo entre os sinoacuteticos e Joatildeo como fontes histoacutericas a colocaccedilatildeo de Jesus dentro do contexto escatoloacutegico de seu tempo e a ecircnfase sobre o Evangelho de Marcos como sendo o mais antigo dos Evangelhos (Schiavo 2006 p 15-17)
29
partir dos Evangelhos ele afirma que isso foi apenas criaccedilatildeo e ldquofrauderdquo dos disciacutepulos (cf
Martins Terra 1977 p10-12)
Strauss que foi filoacutesofo e teoacutelogo publicou em 18351836 a obra intitulada Vida de
Jesus Para Schweitzer ele natildeo estaacute entre os grandes teoacutelogos mas foi o mais sincero
(Schweitzer 2003 p85) Strauss aplicou aos Evangelhos o conceito de mito algo que jaacute
era comum nas pesquisas sobre o Antigo Testamento de sua eacutepoca (Theissen e Merz
2004 p22) Para ele mesmo que os Evangelhos (sinoacuteticos) tenham sido escritos num
periacuteodo de aproximadamente 40 anos apoacutes a morte de Jesus isso natildeo impede de que
estejam misturados com o mito Ele deixa sua forma de pensar mais evidente quando diz
que ldquonatildeo eacute preciso que um grande homem esteja morto haacute muito tempo para que a lenda
jaacute se ocupe da sua vidardquo (Schweitzer 2003 p 98) Contudo precisamos entender qual eacute
o verdadeiro sentido do mito religioso conforme nos descreve Schweitzer
[] a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha compreendido o caraacuteter essencial do mito religioso Ele nada mais eacute do que ideias religiosas vestidas em uma forma histoacuterica modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda e corporificado numa personalidade histoacuterica Ateacute por motivos a priori somos quase compelidos a assumir que o Jesus histoacuterico nos encontraraacute com as vestes das ideias messiacircnicas do Antigo Testamento e expectativas do cristianismo primitivo (Schweitzer p98)
Segundo Schweitzer a diferenccedila entre Strauss e os seus predecessores eacute que
para aqueles se aplicassem rigorosamente o conceito de mito agrave vida histoacuterica de Jesus
havia um grande questionamento sobre se restaria alguma coisa do Jesus histoacuterico
enquanto que para este essa questatildeo natildeo apresentava nada que fosse considerado um
terror (Schweitzer 2003 p98) Theissen assim resume Strauss ldquoPara Strauss
hegeliano declarado o cerne da feacute cristatilde natildeo eacute atingido pela abordagem miacutetica pois no
indiviacuteduo histoacuterico Jesus realiza a ideia da humanidade de Deus a mais sublime de todas
as ideias O mito eacute a roupagem legiacutetima de tipo histoacuterico dessa humanidade geralrdquo
(Theissen 2004 p22)
De uma forma sucinta Theissen descreve as demais fases da seguinte forma a
segunda eacute denominada como a fase do ldquootimismo da pesquisa liberal sobre a vida de
Jesusrdquo Essa fase eacute marcada por um florescimento do liberalismo teoloacutegico sobre a vida
de Jesus sob o ponto de vista de pesquisadores na Alemanha onde era esperado que se
chegasse agrave reconstruccedilatildeo histoacuterico-criacutetica da histoacuteria de Jesus e de sua personalidade
Essa escola teve como seu principal representante Heinrich Julius Holtzmann (1832-
1910) Destaca-se nessa fase que enquanto F Chr Baur demonstrou a primazia dos
sinoacuteticos sobre o Evangelho de Joatildeo Holtzmann contribuiu para que a teoria das duas
30
fontes desenvolvida por Christian Gottob Wilke e Christian Hermann Weise tornasse-se
um sucesso duradouro (Theissen e Merz 2004 p23)
A terceira fase eacute definida como ldquoo colapso da pesquisa sobre a vida de Jesusrdquo 11
Trecircs foram os motivos para tal colapso o primeiro fator foi a obra de Schweitzer Histoacuteria
de Investigaccedilatildeo da vida de Jesus que provocou o desvelamento das imagens das Vidas
de Jesus criadas pela teologia liberal que conforme os olhos de cada autor revelava-se a
estrutura de personalidade de Jesus com o ideal eacutetico que cada autor almejava O
segundo motivo estaacute concentrado na pessoa de W Wrede que em 1901 demonstrou ldquoo
caraacuteter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesusrdquo Para
Wrede o Evangelho de Marcos era a expressatildeo dogmaacutetica da comunidade cristatilde
primitiva que projetou sobre Jesus de Nazareacute a messianidade do Jesus poacutes-pascal E
por fim K L Schmidt demonstra o ldquocaraacuteter fragmentaacuterio dos evangelhosrdquo Para Schmidt
o Evangelho de Marcos eacute composto por periacutecopes que foram juntadas cronoloacutegica e
geograficamente somente mais tarde pelo autor Sendo assim desaparece totalmente a
possibilidade de se construir uma personalidade de Jesus visto que a histoacuteria das formas
reconhece que as periacutecopes foram juntadas primeiramente para satisfazer as
necessidades das comunidades e soacute em segundo plano como recordaccedilotildees histoacutericas
(Theissen e Merz 2004 p24)
Diante desses movimentos ceticistas surge uma teologia que ora amortece ora
aguccedila ainda mais os debates em torno das pesquisas sobre as Vidas de Jesus Nesse
sentido Rudolf Bultmann (1884 -1976) expotildee a sua teologia dialeacutetica contrapondo Deus e
o mundo de uma forma tatildeo radical a tal ponto que seria possiacutevel um encontro entre
ambas as partes apenas em um ponto assim ldquocomo uma tangente toca um ciacuterculordquo
(Theissen e Merz 2004 p24) Para Bultmann o fator decisivo natildeo era o que Jesus disse
ou fez mas sim o que Deus disse ou fez na cruz e na ressurreiccedilatildeo Nesse sentido
Bultmann afirma que o ensino de Jesus natildeo eacute relevante para a feacute cristatilde e partindo desse
pensamento Theissen define a teologia de Bultmann nas seguintes palavras ldquoSe D F
Strauss viu a verdade do mito de Cristo na ldquoideiardquo R Bultmann a viu no querigma um
chamado de Deus vindo de forardquo (Theissen e Merz 2004 p24-25)
11
Schiavo define essa fase como a ldquono questrdquo Os principais nomes dessa fase satildeo Wrede Dibelius Schmidt e Bultmann Neste movimento os Evangelhos satildeo considerados como um conjunto de tradiccedilotildees desarticuladas e pequenas (periacutecopes) sem interesses histoacutericos A finalidade principal dos Evangelhos estaacute centrada no fato de transmitir mensagens espirituais catequeacuteticas e lituacutergicas para os cristatildeos da Igreja Primitiva Sendo assim eacute impossiacutevel conhecer o Jesus histoacuterico pois a imagem que temos dele nos Evangelhos eacute querigmaacutetica e centrada no Jesus da feacute (Schiavo 2006 p 17-18)
31
A quarta fase eacute definida por Theissen como ldquoa nova pergunta pelo Jesus histoacutericordquo
12 Essa fase desenvolvida pelos disciacutepulos de Bultmann pergunta ou busca uma relaccedilatildeo
a partir do Jesus querigmaacutetico questionando se ldquosua exaltaccedilatildeo na cruz e na ressurreiccedilatildeo
tem alguma base na pregaccedilatildeo preacute-pascalrdquo Os pressupostos para tal questionamento satildeo
fundamentados nas seguintes pressuposiccedilotildees ldquoO querigma cristoloacutegico compromete-se
com a pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Isso se fundamenta segundo essa escola no fato
de que ldquoa identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado eacute pressuposta em todos os
escritos do cristianismo primitivordquo (Theissen e Merz 2004 p25ndash26) O segundo
pressuposto eacute ldquoa base metodoloacutegica da pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Segundo
Theissen esse pressuposto metodoloacutegico eacute ldquoa confianccedila de que se pode encontrar um
miacutenimo criticamente assegurado de tradiccedilatildeo autecircntica de Jesus quando se exclui o que
pode ser derivado tanto do judaiacutesmo como do cristianismo primitivordquo Entende-se que
nessa quarta fase para os disciacutepulos de Bultmann a busca de um fundamento preacute-pascal
que apoie o querigma de Cristo independe do fato de Jesus ter usado algum tiacutetulo
cristoloacutegico visto que isso jaacute estaacute impliacutecito em seu ministeacuterio e em seu anuacutencio (Theissen
e Merz 2004 p26)
Finalmente surge a quinta fase conforme Theissen denominada de ldquoa third
quest13 pelo Jesus Histoacutericordquo Essa fase predominantemente exposta no mundo de fala
inglesa diferencia-se das anteriores pelos seguintes aspectos o interesse histoacuterico-social
substitui o teoloacutegico a inserccedilatildeo de Jesus no Judaiacutesmo ao inveacutes de separaacute-lo como os
disciacutepulos de Bultmann procura fazecirc-lo e por fim haacute uma abertura para as fontes natildeo
canocircnicas substituindo a preferecircncia apenas por fontes canocircnicas A third quest dividiu a
pesquisa sobre Jesus em diferentes correntes No entanto segundo Theissen essa
variedade de interpretaccedilotildees e figuras de Jesus que pode ser visto tanto como um ciacutenico
judeu ou como um personagem colocado no centro do judaiacutesmo a espera do
restabelecimento de um reino escatoloacutegico daacute a essas correntes um tom de
plausibilidade ou seja ldquoo que eacute plausiacutevel no contexto judaico e torna compreensiacutevel o
12
Conhecida como a ldquoNew questrdquo a New quest caracteriza-se por diferenciar o que eacute proacuteprio do judaiacutesmo com o que eacute tambeacutem proacuteprio do cristianismo primitivo Dessa forma seria possiacutevel chegar ao Jesus da histoacuteria Ernst Kaumlsemann eacute um dos representantes dessa escola Para Schiavo J Jeremias tambeacutem pode ser representado nessa escola Visto que o mesmo com a ajuda da filologia e conhecimentos profundos do aramaico tentou reconstruir os ditos autecircnticos de Jesus (Schiavo 2006 p 18)
13 Schiavo complementa que essa fase que teve iniacutecio a partir da deacutecada de 1980 deixa de ser
exclusividade da academia alematilde e a pesquisa do Jesus histoacuterico passa a fazer parte da academia anglo-americana Este movimento tem como caracteriacutesticas principais os seguintes toacutepicos O interesse histoacuterico-socioloacutegico para com o mundo judaico do seacuteculo I dC a inserccedilatildeo de Jesus dentro do Judaiacutesmo A referecircncia agraves fontes natildeo canocircnicas e a aproximaccedilatildeo da fonte Q com o Evangelho de Tomeacute Dentre os representantes dessa escola encontram-se Crossan Sanders Meyer Vermes Freyne Horsley e Theissen (Schiavo 2006 p 18-19)
32
surgimento do cristianismo primitivo poderia ser histoacutericordquo (Theissen e Merz 2004 p28ndash
29)
32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO
Um dos temas da teologia que tem levantado inuacutemeras questotildees a mais de dois
seacuteculos eacute a busca histoacuterica por Jesus de Nazareacute um humilde judeu que viveu na Galileia
agraves margens do Mediterracircneo Sean Freyne avalia que ldquoas muitas idas e vindas dos
estudos que marcam a busca pelo Jesus histoacuterico tecircm sido uma preocupaccedilatildeo constante
da teologia ocidental por mais de dois seacuteculos e mesmo assim nenhum consenso foi
atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundourdquo (Freyne 2008
p1) Sobre a possibilidade de se buscar pelo Jesus histoacuterico Freyne observa que hoje
natildeo eacute mais suficiente apenas assumir uma posiccedilatildeo numa questatildeo por demais debatida Eacute
necessaacuterio que o pesquisador aleacutem de ter conhecimentos da histoacuteria da antiguidade
tambeacutem possua conhecimentos de arqueologia ciecircncias sociais e particularmente de
antropologia cultural (Freyne 2008 p2) Isso demonstra que haacute necessidade de uma
visatildeo interdisciplinar entre essas ciecircncias e seus pesquisadores
A pergunta sobre o Jesus histoacuterico segundo J Jeremias chega a ser absurda e
sem significaccedilatildeo para a feacute cristatilde apenas para aqueles que natildeo conhecem a questatildeo Ele
ainda pergunta ldquoComo eacute possiacutevel que esta questatildeo seja a questatildeo central de todas as
discussotildees sobre o Novo Testamentordquo (Jeremias 2005 p199) Segundo J Jeremias eacute
hora de questionarmos as teorias de Rudolf Bultmann que propagam que o Jesus
histoacuterico eacute irrelevante para a feacute cristatilde e a teoria que apregoa que o Jesus histoacuterico e o
Cristo proclamado pela Igreja natildeo satildeo as mesmas de Reimarus (Jeremias 2005 p 200)
Partindo das questotildees levantadas por J Jeremias e da forma como Bultmann diverge
desse pensador um diaacutelogo sobre a questatildeo eacute sempre gratificante para darmos pelo
menos um passo agrave frente no que se refere ao Jesus histoacuterico
Tendo em vista a amplitude da questatildeo acima levantada fica evidente que
trabalhar temas relacionados agrave vida do Jesus histoacuterico eacute sempre desafiador Muitos foram
os teoacutelogos e pensadores que a partir do ano de 1778 ano em que nasce o ldquoproblema do
Jesus histoacutericordquo (Jeremias 2005 p 200) esforccedilaram-se nessa tarefa com um espiacuterito
criacutetico e investigativo a fim de encontrar evidecircncias histoacutericas a respeito do homem mais
marcante de toda a histoacuteria da humanidade Tambeacutem natildeo significa que antes de Reimarus
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o Jesus histoacuterico fosse negligenciado a questatildeo eacute que os teoacutelogos e historiadores desde
a igreja primitiva haviam sustentado que os Evangelhos eram documentos dignos de
absoluto creacutedito acerca da vida e histoacuteria de Jesus por isso tiveram a preocupaccedilatildeo de
apenas parafrasear e harmonizar os Evangelhos uma vez que natildeo viam necessidade de
uma investigaccedilatildeo aleacutem das fontes canocircnicas (Jeremias 2005 p 200) As palavras de Udo
Schnelle assim resumem a teologia do Jesus histoacuterico
A pergunta histoacuterica por Jesus eacute uma filha do iluminismo Para os periacuteodos anteriores era evidente que os Evangelhos transmitiam notiacutecias confiaacuteveis sobre Jesus Antes do Iluminismo a pesquisa neotestamentaacuteria dos Evangelhos limitava-se essencialmente agrave harmonizaccedilatildeo dos quatros Evangelhos Na praacutetica a Exegese do Novo Testamento era uma disciplina auxiliar da Dogmaacutetica (Schnelle 2010 p 70)
Ainda com relaccedilatildeo agrave pesquisa sobre o Jesus histoacuterico Joseacute Antonio Pagola diz
que quando nos referimos ao Jesus histoacuterico ldquoestamos falando do conhecimento de
Jesus que os historiadores podem obter utilizando os meacutetodos cientiacuteficos da moderna
investigaccedilatildeo histoacutericardquo (Pagola 2010 p13)
A magnitude de se escrever sobre o Jesus da Galileia eacute descrita por Schweitzer
com as seguintes palavras ldquo[] natildeo haacute tarefa histoacuterica que revele o verdadeiro interior de
um homem como a de escrever uma Vida de Jesus Nenhuma forccedila vital move o
personagem a natildeo ser que o homem sopre nele todo o oacutedio ou todo o amor de que eacute
capaz Quanto mais intenso o amor ou o oacutedio mais realista eacute a figura produzidardquo
(Schweitzer 2003 p11) Em outras palavras Schweitzer diz que aqueles que buscaram
despir Jesus do sobrenatural acabaram descobrindo fatos que enalteceram ainda mais a
sua histoacuteria Para Schweitzer tanto o oacutedio quanto o amor leva o escritor a investigaccedilotildees
profundas no intuito de provar verdade ou falsidade de um acontecimento histoacuterico Nesse
sentido as maiores produccedilotildees a respeito do Jesus histoacuterico foram escritas com oacutedio e
entre elas segundo Schweitzer estatildeo as de Reimarus e a de Strauss (Schweitzer 2003
p11)
Segundo J Jeremias a tese defendida por Reimarus em que Jesus eacute visto como
um revolucionaacuterio poliacutetico que fracassou na cruz quando exclamou ldquoDeus meu Deus
meu por que me desamparastesrdquo era estuacutepida e artificial visto que Jesus natildeo foi um
revolucionaacuterio poliacutetico e sempre reagiu energicamente contra todas as tendecircncias
nacionalistas dos zelotas Ao fazer uma anaacutelise do momento em que Reimarus escreveu
J Jeremias relata que Reimarus estava fazendo uma investigaccedilatildeo voltada ao homem
Jesus para sua personalidade sua religiatildeo e natildeo voltada para o dogma cristoloacutegico e
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que a princiacutepio tinha como objetivo libertar-se dos dogmas da igreja (Jeremias 2005 p
201)
O resultado desses trabalhos sobre ltltas vidas de Jesusgtgt nos legaram muitas
imagens de sua personalidade que produzem risos Para os racionalistas Jesus eacute visto
como um pregador de moral para os idealistas a quintessecircncia do humanismo e por fim
para os estetas ele eacute posto como o amigo dos pobres e como um reformador social
Assim satildeo inuacutemeras as imagens que fazem de Jesus um personagem de romance
Jesus portanto eacute modernizado conforme as imagens carregadas de fantasias de cada
autor conforme os seus ideais suas eacutepocas ou suas teologias (Jeremias 2005 p 201)
J Jeremias questiona entatildeo onde estaria o erro E a resposta estaacute no fato de que
esses escritores ltltdas vidas de Jesusgtgt sem ter a plena consciecircncia acabaram
substituindo o dogma cristoloacutegico pela psicologia e pela fantasia Haacute poreacutem um ponto em
comum em todas as obras sobre ltlt as vidas de Jesusgtgt todas elas tratam de desenhar
a personalidade de Jesus com a ajuda dos instrumentos da psicologia e da fantasia Os
padrinhos nesse esforccedilo natildeo satildeo apenas as fontes mas a maior parte pertence agrave
imaginaccedilatildeo criativa a uma construccedilatildeo psicoloacutegica livre de obstaacuteculos (Jeremias 2005 p
201-202)
Conforme J Jeremias Albert Schweitzer de uma forma traacutegica poreacutem com muita
destreza desmascara essas criaccedilotildees repletas de fantasias e depois ele mesmo cairia
em falta fazendo uma construccedilatildeo psicoloacutegica a partir do texto do Evangelho de Mateus
(10 23) declarando que a grande decepccedilatildeo na vida de Jesus foi natildeo ter chegado ao final
causando grandes mudanccedilas em sua vida a ponto de aceitar o sofrimento para forccedilar a
chegada do reino de Deus (Jeremias 2005 p 203)
Pesquisar a vida do Jesus histoacuterico eacute muito mais que contar a histoacuteria de um
grande homem Eacute deparar-se com um personagem vital para a histoacuteria da humanidade
que ldquoveio para reger sobre o mundo Ele o regeu para o bem e para o mal como a histoacuteria
testificardquo (Schweitzer 2003 p8) Jesus revolucionou o mundo de sua eacutepoca mudou o
rumo da histoacuteria inseriu-se nela como protagonista mesmo natildeo sendo essa a sua
intenccedilatildeo A histoacuteria do mundo natildeo poderia mais ser contada sem ele ou seja Jesus
dividiu a histoacuteria em o antes e o depois dele A grandiosidade do homem Jesus fascinou
tanto os que o amaram como aqueles que o odiaram Nesse sentido podemos justificar o
fato de tantos pensadores estudarem a respeito do Jesus histoacuterico com as palavras
atribuiacutedas a Hegel por Bernard Bourgeois ldquoUm grande homem condena os humanos a
explicaacute-lordquo (Bourgeois1995 p 375)
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Segundo Schweitzer os cristatildeos primitivos preocuparam-se apenas em preservar
ditos isolados a respeito do Jesus histoacuterico A expectativa do retorno iminente do Mestre
pode ter sido o motivo principal que levou o cristianismo primitivo a preferir apenas fatos
relacionados ao ministeacuterio de Jesus a uma biografia completa do Jesus histoacuterico O autor
ainda considera isso como um impulso de autopreservaccedilatildeo visto que a introduccedilatildeo do
Jesus histoacuterico na feacute da comunidade primitiva seria algo novo jaacute que o proacuteprio Jesus natildeo
se preocupou em deixar uma autobiografia Pagola compartilha desse pensamento
dizendo que
os evangelistas natildeo compuseram uma ldquobiografiardquo de Jesus no sentido moderno desta palavra Seus escritos estatildeo impregnados de sua feacute no Cristo ressuscitado satildeo sumamente seletivos foram narrados em funccedilatildeo de problemas e necessidades das primeiras comunidades cristatildes e estatildeo ordenados para objetivos teoloacutegicos e concretos Por isso exigem um estudo criacutetico cuidadoso antes de podermos obter deles informaccedilotildees fidedignas para a investigaccedilatildeo (Pagola 2010 p17)
O fato de Jesus natildeo ter deixado nenhum texto escrito e o texto do apoacutestolo Paulo
na segunda carta aos Coriacutentios capiacutetulo cap 5 verso 16 ldquo[hellip] doravante a ningueacutem
conhecemos segundo a carne Tambeacutem se conhecemos Cristo segundo a carne agora jaacute
natildeo o conhecemos assimrdquo abriu o caminho para diversas interpretaccedilotildees acerca de Jesus
De fato Leonhard Goppelt menciona a interpretaccedilatildeo de Rudolf Bultmann segundo a qual
se infere que para Paulo a accedilatildeo terrena de Jesus natildeo teria tido a miacutenima importacircncia o
que importava era a feacute pascal Natildeo obstante a ldquofeacute pascal bem como a cristologia natildeo satildeo
simplesmente uma transfiguraccedilatildeo miacutetica do terreno Muito antes nelas toma forma o que
no Jesus terreno agia apenas de maneira ocultardquo (Goppelt 2002 p 46)
O pensamento de Bultmann a respeito da importacircncia de se investigar a vida e a
personalidade do Jesus histoacuterico se resume nas seguintes palavras
Natildeo podemos saber praticamente nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus jaacute que as fontes cristatildes natildeo se interessaram por elas sendo ademais bastante fragmentaacuterias e encobertas pela lenda uma vez que natildeo existem outras fontes sobre Jesus O que se estaacute escrevendo haacute mais de um seacuteculo e meio sobre a vida de Jesus sua personalidade seu desenvolvimento interior e coisas semelhantes ndash uma vez que natildeo se trata de investigaccedilotildees criacuteticas ndash natildeo passa de fantasia e romance (Bultmann 2005 p 26)
Dessa forma o logos natildeo se torna verdadeiramente carne mas apenas palavra
(kerygma) Na visatildeo de Bultmann o Jesus histoacuterico natildeo faz parte da teologia do Novo
Testamento pois o objeto da teologia do Novo Testamento eacute o Cristo da feacute (pascal) Em
vista disso um estudo acerca do Jesus histoacuterico fica relegado a uma primeira etapa tal
qual uma primeira premissa no interior de um argumento mais elaborado (Bultmann
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2004 p 24) J Jeremias enfatiza que para Bultmann a pregaccedilatildeo de Jesus eacute apenas
uma premissa entre muitas outras do Novo Testamento (Jeremias 2005 p 204)
Para J Jeremias Bultmann sofreu influecircncia de Martin Kaumlhler atraveacutes de sua obra
Der sogenannte historische Jesus und der geschichtiche biblische Cristus (O chamado
Jesus histoacuterico e o Cristo existencialmente histoacuterico e biacuteblico) Kaumlhler distinguiu por um
lado entre Jesus e Cristo e por outro entre historische (histoacuterico) e geschichtiche
(existencialmente histoacuterico) Por Jesus Kaumlhler compreendia o homem de Nazareacute tal
como foi descrito pelos que investigaram a vida do Jesus histoacuterico por Cristo ele entendia
como aquele que foi proclamado como o Salvador pela igreja Quanto ao significado do
adjetivo historische (histoacuterico) ele compreendia como uma mera designaccedilatildeo dos fatos do
passado e para geschichtiche (existencialmente histoacuterico) como aquele que tem um
significado permanente Portanto para Kaumlhler toda a tentativa de reconstruir a vida do
Jesus histoacuterico se contrapotildee ao Cristo biacuteblico e existencialmente histoacuterico tal como foi
pregado pelos apoacutestolos e para noacutes conforme Kaumlhler o que importa eacute unicamente o
Cristo da Biacuteblia conforme descrito pelos Evangelhos e natildeo as supostas reconstruccedilotildees
cientiacuteficas a respeito da pessoa de Jesus que chegam ateacute a passar a impressatildeo de uma
plena realidade dos fatos (Jeremias 2005 p 202)
A voz de Kaumlhler se extinguiu no vaacutecuo e natildeo surtiu um efeito pleno ateacute o ecoar da
voz de Bultmann que com coragem irredutiacutevel entrou no campo do inimigo e
abertamente lutou contra uma teologia que por um periacuteodo de aproximadamente cento e
cinquenta anos esforccedilou-se para chegar ao Jesus histoacuterico (Jeremias 2005 p 202)
Concordando com Kaumlhler Bultmann declara que todo o esforccedilo para chegar ao Jesus
histoacuterico foi um empreendimento insoluacutevel e infecundo que retirou a inexpugnaacutevel
fortaleza da proclamaccedilatildeo (kerigma) de Cristo (Jeremias 2005 p 203)
Os argumentos de Bultmann para a renuacutencia da teologia do Jesus histoacuterico
fundamentam-se no princiacutepio de que haacute falta de fontes seguras para a fundamentaccedilatildeo
dessa teologia Tambeacutem leva-se em consideraccedilatildeo que natildeo temos nada escrito pelas
matildeos de Jesus As uacutenicas fontes que temos a respeito de Jesus satildeo os Evangelhos e
esses natildeo satildeo biografias de Jesus mas satildeo apenas testemunhos de feacute secundaacuterios e
recobertos de lendas como no caso dos milagres Os Evangelhos segundo esse
pensamento satildeo a demonstraccedilatildeo de feacute dos evangelistas (Jeremias p 203) Concernente
agrave vida e agrave proclamaccedilatildeo de Jesus Bultmann assim descreve
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[] Pouco sabemos sobre sua vida e personalidade ndash em compensaccedilatildeo sabemos o suficiente sobre sua proclamaccedilatildeo para pintar um quadro coerente Todavia tambeacutem nesse ponto recomenda-se um cuidado extremo em vista do caraacuteter das fontes que dispomos Pois o que as fontes nos oferecem eacute em primeira linha a proclamaccedilatildeo da comunidade que no entanto remonta em sua maior parte a Jesus Naturalmente isso prova que ele realmente tenha pronunciado todas as palavras que essa comunidade lhe pocircs na boca No caso de muitas palavras eacute possiacutevel demonstrar que soacute vieram a surgir na comunidade ao passo que no caso de outras elas foram reformuladas pela comunidade A investigaccedilatildeo criacutetica mostra que o conjunto da tradiccedilatildeo sobre Jesus ndash disponiacutevel nos trecircs evangelhos sinoacuteticos de Mateus Marcos e Lucas ndash se desmembra em uma seacuterie de camadas que em termos gerais podem ser distinguidas umas das outras com bastante seguranccedila mas cuja separaccedilatildeo em alguns detalhes apresenta dificuldades e levanta duacutevidas (Bultmann 2005 p 29-30)
Contudo essa visatildeo de Bultmann natildeo significa a negaccedilatildeo da existecircncia do homem
chamado Jesus de Nazareacute Segundo esse autor eacute possiacutevel conhecer muito dele atraveacutes
de suas pregaccedilotildees poreacutem na anaacutelise da criacutetica histoacuterica em relaccedilatildeo ao homem Jesus
conclui-se que natildeo haacute nada de importante para a feacute cristatilde (Jeremias 2005 p 203)
Quanto agrave questatildeo da existecircncia de Jesus vejamos o que nos diz Bultmann
[hellip] Eacute verdade que a duacutevida se Jesus realmente existiu eacute infundada e natildeo vale a pena gastar nenhuma palavra para refutaacute-la Eacute evidente que ele eacute o gerador do movimento histoacuterico cujo primeiro estaacutegio constataacutevel eacute representado pela comunidade palestinense mais antiga No entanto outra questatildeo eacute ateacute que ponto a comunidade preservou de modo objetivamente fiel a imagem dele e de sua proclamaccedilatildeo Para aqueles que tecircm interesse na personalidade de Jesus esse estado de coisas eacute inquietante e arrasador para nosso propoacutesito ele natildeo eacute de fundamental importacircncia (Bultmann 2005 p 30-31)
J Jeremias analisa entatildeo que para Bultmann Jesus de Nazareacute foi um profeta
judeu que permaneceu sempre dentro dos marcos do judaiacutesmo O Jesus histoacuterico
segundo Bultmann pode ser interessante para a teologia do Novo Testamento e para
compreender a origem do cristianismo mas natildeo tem significaccedilatildeo alguma para a feacute cristatilde
porque o cristianismo comeccedila com a Paacutescoa (Jeremias 2005 p204) Martins Terra expotildee
que o Jesus histoacuterico para Bultmann realmente eacute um profeta e sem duacutevida o maior
deles contudo profeta pertence ao Antigo Testamento Sendo assim Jesus era apenas
um judeu e natildeo um cristatildeo14 ldquoporque cristatildeo eacute aquele que acredita no Senhor
ressuscitado e natildeo aquele que funda sua feacute sobre uma figura histoacutericardquo (Martins Terra
1977 p21)
14
A resposta dada a Bultmann veio de seu disciacutepulo Ernst Kaumlsemann que observa que tanto Jesus quanto
os apoacutestolos eram judeus E se os apoacutestolos eram judeus natildeo eram eles tambeacutem cristatildeos desde o momento que seguiram a Jesus Kaumlsemann ainda pergunta teria havido algum keacuterygma sem a pregaccedilatildeo de Jesus Kaumlsemann chama a atenccedilatildeo para que Jesus natildeo se torne um pretexto e Cristo uma mera cifra mitoloacutegica (Martins Terra 1977 p 44)
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Escrever uma biografia sobre o Jesus histoacuterico eacute algo descartado na teologia e isso
eacute visto com justiccedila por J Jeremias quando diz ldquo[] eacute muito correto afirmar que jaacute temos
despertado do sonho de acreditar que podemos escrever uma biografia de Jesusrdquo
(Jeremias 2006 p28) No entanto isso natildeo significa passar com indiferenccedila por essa
teologia eacute preciso voltar ao Jesus de Nazareacute e a sua pregaccedilatildeo As fontes nos
impulsionam a cada versiacuteculo dos Evangelhos a buscar pelo homem Jesus que
historicamente apareceu em Nazareacute e que foi crucificado no governo de Pocircncio Pilatos
(Jeremias 2006 p28) Leonard Swidler diz estar ciente tambeacutem das dificuldades para
se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade sobre o Jesus (Ieshua) histoacuterico
Contudo para ele podemos chegar ao fundamental ou seja podemos sempre lutar para
chegar mais perto Para Swidler a consciecircncia dessa limitaccedilatildeo permite que a pessoa
evite os extremos isto eacute tanto a ingecircnua certeza absoluta quanto o ceticismo total sobre
a possibilidade da busca pelo Jesus histoacuterico (Swidler 1993 p 16-18)
A visatildeo de Bultmann a respeito do Jesus histoacuterico natildeo foi seguida pelo seu
sucessor catedraacutetico em Magburg W G Kuumlmmel Para Kuumlmmel interpretar as palavras
de Paulo15 na letra do texto 2 Cor 516 e concluir que o Jesus terreno natildeo teve
importacircncia para o apoacutestolo eacute uma interpretaccedilatildeo ldquoseguramente errocircneardquo (Kummel 2003
p210) pois mesmo que elas natildeo tenham um papel tatildeo importante nos escritos do
apoacutestolo elas natildeo deixam de ser significantes Errocircneo para Kuumlmmel seria o fato de um
cristatildeo procurar ter uma relaccedilatildeo intraterrena com Jesus ou conhececirc-lo apenas
historicamente o que seria insignificante para um cristatildeo Rochus Zuurmond tambeacutem
define o pensamento do apoacutestolo Paulo sobre o versiacuteculo 16 acima mencionado da
seguinte forma
[hellip] Nessa periacutecope natildeo se trata da distinccedilatildeo entre o Jesus preacute-pascal e o poacutes-pascal mas da diferenccedila entre conhecer Jesus da maneira antiga e conhececirc-lo da maneira nova O Jesus poacutes-pascal ainda pode ser ldquoconhecidordquo da maneira antiga o jovem Paulo mas tambeacutem seus adversaacuterios atuais eacute disso um exemplo Em princiacutepio o Jesus preacute-pascal tambeacutem podia ser conhecido de maneira nova se fosse ldquotirado o veacuteurdquo na leitura do Antigo Testamento (314ss cf Jo 856) Mas na praacutetica isso se verificou impossiacutevel por causa da carne (Zuurmond 1998 p 87)
Conhecer Jesus ldquosegundo a carnerdquo na interpretaccedilatildeo de Zuurmond inclui com
certeza todo o conhecimento que podemos ter do Jesus histoacuterico Para ele Paulo natildeo
15
Kaumlsemann tambeacutem contrapotildee essa tese de Bultmann colocando os seguintes argumentos Se o Apoacutestolo Paulo natildeo levou em consideraccedilatildeo a vida terrena de Jesus e a Igreja jaacute estava realizada com o keacuterygma contido nas cartas paulinas por que entatildeo os Evangelhos tornaram-se necessaacuterios jaacute que foram escritos (os Sinoacuteticos) depois que Paulo jaacute tinha escrito todas as cartas Segundo Kaumlsemann a necessidade dos Evangelhos deu-se principalmente porque havia vaacuterios keacuterygmas e a necessidade do discernimento desses deu-se a princiacutepio pelo Espiacuterito todavia quando o entusiasmo cresceu tornou-se necessaacuterio o criteacuterio da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 44-45)
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estava referindo-se ao Jesus histoacuterico quando fala ldquose jaacute conhecemos o cristo segundo a
carne agora jaacute natildeo o conhecemos maisrdquo (516) Toda a atividade cientiacutefica eacute carne ou
seja pode ser verificado com os recursos da historiografia moderna A pesquisa sobre o
Jesus histoacuterico eacute possiacutevel desde que ela natildeo tenha a pretensatildeo de ser a verdade absoluta
a respeito de Jesus Para Zuurmond o apoacutestolo estaacute enfatizando que o conhecimento
espiritual estaacute aleacutem do conhecimento cientiacutefico contudo natildeo eacute anticientiacutefico mas apenas
natildeo estaacute submisso a qualquer criteacuterio da ciecircncia Zuurmond conclui que ldquoPaulo tem
pouquiacutessima coisa para dizer sobre o Jesus histoacutericordquo uma vez que o apoacutestolo dos
gentios natildeo teria muito interesse pelo ldquotipo de conhecimento sobre Jesus que daiacute
resultariardquo (Zuurmond 1998 p88)
Voltando aos disciacutepulos de Bultmann ainda podemos mencionar Ernst Kaumlsemann
que tambeacutem contestou os ldquodogmasrdquo de seu mestre Para Kaumlsemann a pergunta pelo
Jesus histoacuterico e pelas palavras de Jesus eacute uma praacutetica e exigecircncia do Novo Testamento
visto que satildeo a base e o criteacuterio do keacuterygma Sem essas perguntas o Cristo da feacute se
tornaria em mera ideologia religiosa A importacircncia dessas questotildees torna relevante a
busca pelo Jesus da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 32)
Como se pode compreender em diferentes eacutepocas pensadores divergiram a
respeito da histoacuteria da pessoa do humilde carpinteiro de Nazareacute As especulaccedilotildees a
respeito da vida do Jesus histoacuterico cresceram tanto pelos seus fieacuteis seguidores quanto
pelos seus mais aacutevidos inimigos pelo menos desde o seacuteculo II dC (tal como se pode ver
na calorosa refutaccedilatildeo de Oriacutegenes contra Celso) Em um periacuteodo mais recente teoacutelogos
e arqueoacutelogos tecircm procurado com maior intensidade dados a respeito do homem Jesus e
do estilo de vida que a comunidade do seu tempo vivia com a finalidade de compreender
melhor o contexto em que Jesus estava socialmente inserido
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4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE
SUA EacutePOCA O objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar o Jesus da histoacuteria dentro do contexto
dos grupos religiosos de sua eacutepoca a fim de observarmos ateacute que ponto Jesus teve
ou natildeo contato com tais grupos abaixo mencionados A preferecircncia de Jesus por um
determinado grupo poderia determinar o que era o Reino de Deus na visatildeo do jovem
pregador galileu Seria Jesus um adepto da seita dos apocaliacutepticos essecircnios dos
moralistas fariseus dos revolucionaacuterios zelotes ou ainda da ldquocorrompidardquo classe
sacerdotal dos saduceus Nos Evangelhos eacute que encontramos a histoacuteria de Jesus
uma vez que eles satildeo as principais fontes que possuiacutemos para montarmos a figura
do maior homem de todos os tempos Mas surgem algumas perguntas Seriam os
Evangelhos fontes histoacutericas confiaacuteveis na apresentaccedilatildeo do homem Jesus Sendo
Jesus pertencente agrave maioria da populaccedilatildeo ou seja da classe pobre e oprimida
pelos romanos teria ele sofrido alguma influecircncia do mundo helenizado da cidade
de Seacuteforis da qual tatildeo perto ele residia ou teria ele totalmente ignorado a cultura e
o mundo helecircnico-romano
Jesus o nazareno na condiccedilatildeo de Filho de Deus repudia todo o tipo de
opressatildeo uma vez que ele veio para ldquoproclamar a libertaccedilatildeo dos presosrdquo e
ldquoevangelizar os pobresrdquo (Lc 4-18) os quais satildeo felizes porque deles eacute o Reino de
Deus (Lc 620-23) Ao proclamar a bem-aventuranccedila dos pobres ele tambeacutem
proclama ldquomaldiccedilotildeesrdquo sobre os ricos que os oprimem e riem deles visto que chegaraacute
a hora em que os que dessa forma riem conheceratildeo o luto e as laacutegrimas (Lc 6 24-
26) Jesus ao ensinar os seus disciacutepulos a como se prevenir e se comportar diante
de uma sociedade poliacutetica e religiosa completamente desprovida do genuiacuteno amor
ao proacuteximo o Mestre da Galileia ensina os seus seguidores a serem
ldquomisericordiososrdquo como o Pai do Ceacuteu eacute misericordioso (cf Lc 6 36)
41
41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE
CONTEMPORAcircNEA DE JESUS
Segundo J Jeremias Jesus16 era proveniente de uma famiacutelia pobre e isso
pode ser constatado na ocasiatildeo do sacrifiacutecio de purificaccedilatildeo ldquoMaria serviu-se do
privileacutegio dos pobres oferecer duas rolasrdquo (Lc 224 cf Lv 128) (Jeremias 1983
p165) No tocante ao seu modo de vida eram tantas as privaccedilotildees que natildeo tinha
onde repousar a cabeccedila (Mt 820 Lc 958) J Jeremias observa que ele natildeo possuiacutea
dinheiro - a histoacuteria do estaacuteter e do ldquotributo a Cesarrdquo o demonstram (Mt 17 24-27 Cf
Mc 12 13-17 Mt 22 15-22 Lc 20 20-26) - tambeacutem aceitou esmolas (Lc 8 1-3)
Jesus provavelmente foi considerado um escriba (da classe mais humilde
desse grupo) conforme subentende J Jeremias (1983 p 59-165) Bultmann
tambeacutem concorda que Jesus era chamado pela tradiccedilatildeo de Rabi (Mc 95 1051
11121 1445) Para ele o tiacutetulo rabi foi substituiacutedo pelos evangelistas de origem
grega quase que completamente pela forma de tratamento grega Senhor
expressatildeo esta que designa Jesus como pertencente agrave classe dos escribas
(Bultmann 2005 p71) Para esse autor natildeo podemos afirmar se nos dias de Jesus
jaacute era necessaacuteria certa formaccedilatildeo cultural para a funccedilatildeo de escriba17 como foi uma
exigecircncia cem anos mais tarde Contudo natildeo podemos ignorar o fato de Jesus ter
sido considerado um Rabi (Bultmann 2005 p71-72)
Vale ressaltar que a relaccedilatildeo de Jesus com os escribas eacute quase sempre
relatada de forma polecircmica nos Evangelhos Quando estava ensinando sobre o fim
de Jerusaleacutem e do mundo Jesus advertiu seus disciacutepulos a respeito dos escribas
dizendo que eles sempre procuravam a distinccedilatildeo social eram arrogantes e
16
O nome Jesus origina-se do hebraico ldquoYehoshuardquo (o Yoshua biacuteblico) que significa YHWH (que provavelmente era pronunciado Yahweh) O Nome Jesus eacute uma forma latina do grego Iesous que por sua vez eacute uma forma grega do termo hebraico O nome Yehoshua foi abreviado no linguajar coloquial para Yeshua ou ateacute mesmo para Yeshu A raiz etimoloacutegica de Ieshua eacute ldquoYerdquo eacute a forma hebraica abreviada do proacuteprio nome de Deus YHWH enquanto que ldquoshuardquo eacute a palavra hebraica que significa Salvaccedilatildeo (cf Swidler 1993 p7-8)
17 Vermes define os escribas da seguinte forma ldquoo termo eacutescriba (sofer em hebraico safra em
aramaico) eacute usado para designar um estudioso um especialista na Biacuteblia particularmente em direito biacuteblico e tradicional A vida religiosa e secular bem organizada dependia desses homens Eram geralmente respeitados e sem duacutevida amiuacutede tornavam-se presunccedilosos vestiam-se apropriadamente usando uma tuacutenica longa (stole ou talit) e estavam habituados a ser respeitosamente saudados por todos indiscriminadamente Em reconhecimento agrave sua dignidade recebiam os lugares de escolha em locais de adoraccedilatildeo e em banquetes e os evangelistas indicam que eles esperavam receber tal tratamento preferencialrdquo (Vermes 2006 p 89)
42
pretensiosos na oraccedilatildeo Em Marcos os escribas dos fariseus criticam Jesus porque
ele come com os cobradores de impostos e com os pecadores (Mc 216) tambeacutem
os disciacutepulos de Jesus reconhecem que o seu ensinamento natildeo eacute como o dos
escribas sem autoridade (Mc 1 22-28 cf Mt 7 29) e por fim os escribas
questionaram a autoridade de Jesus para perdoar os pecados do paraliacutetico de
Cafarnaum (Mc 2 6 cf Mt 93) Eacute bem verdade que em Mateus 819 1352 2334
os escribas satildeo vistos de uma forma positiva e isso eacute mais evidente ainda em
Marcos 12 28-34 onde Jesus e um escriba concordaram a respeito do maior dos
mandamentos o que faz Jesus concluir que tal escriba natildeo estava longe do Reino
de Deus No entanto a impressatildeo que se obteacutem a partir das Escrituras eacute a que
Jesus possuiacutea um conceito formado a respeito dos escribas conforme o descrito
pelo evangelista Marcos nas seguintes palavras (Saldarini 2005 p 164-172)
[] E dizia no seu ensinamento ldquoGuardai-vos dos escribas que gostam de circular de toga de ser saudados nas praccedilas puacuteblicas e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes mas devoram as casas das viuacutevas e simulam fazer longas preces Esses receberatildeo condenaccedilatildeo mais severardquo (Mc 12 38-40)
Os escribas parecem natildeo ser um grupo muito coeso no oriente proacuteximo dos
dias de Jesus Eles eram provenientes de vaacuterias classes do povo ou entatildeo dos
sacerdotes ou de famiacutelias proeminentes Geralmente eles eram dependentes das
classes dominantes que dirigiam a naccedilatildeo Segundo Saldarini (2005 p 282-283) a
maioria dos escribas havia saiacutedo do campesinato para ser treinado pelo governo ou
por famiacutelias ricas para resguardar os registros coletar impostos servir como
funcionaacuterios e juiacutezes e trabalhar com o serviccedilo de correspondecircncias
Ainda com relaccedilatildeo a esse grupo de indiviacuteduos observa-se que os escribas
considerados socialmente inferiores eram aqueles que faziam parte de um pequeno
povoado que tinham entre outras funccedilotildees a de ensinar jovens a ler e escrever mas
natildeo eram considerados mestres visto que natildeo tinha uma educaccedilatildeo elevada para os
padrotildees da eacutepoca Saldarini observa no entanto que a maioria dos escribas
incluindo os apresentados nos evangelhos era considerada funcionaacuterios de niacutevel
meacutedio que eram dependentes da classe sacerdotal das famiacutelias ricas em
Jerusaleacutem e de Herodes Antipas na Galileia
43
Em todos os casos poreacutem os escribas precisam ser contextualizados entre outros grupos sociais e o poder de influecircncia deles integrado no quadro global da sociedade judaica Eles natildeo devem ser tratados como um grupo autocircnomo com seu proacuteprio poder e agenda contiacutenua Os escribas eram diferentes em suas origens e em suas dependecircncias e eram indiviacuteduos que desempenhavam um papel social em diferentes contextos e natildeo uma forccedila poliacutetica e religiosa unificada (Saldarini 2005 p 284-285)
Com relaccedilatildeo ao grupo dos rabinos segundo J Jeremias observa-se de um
modo geral que ele se situa entre as camadas pobres da populaccedilatildeo (Jeremias
1983 p165-166) Mais ainda as informaccedilotildees tradicionais sobre os escribas nos
dias de Jesus concordam que os escribas ricos natildeo eram numerosos Portanto se
realmente Jesus era considerado um escriba certamente ele fazia parte da classe
pobre dos escribas Crossan problematiza mais a questatildeo quando coloca que a
maioria da populaccedilatildeo Judaica da eacutepoca de Jesus era constituiacuteda de analfabetos18
supotildee-se que Jesus tambeacutem era analfabeto que ele conhecia como a ampla maioria de seus contemporacircneos de uma cultura oral as narrativas fundacionais estoacuterias baacutesicas e expectativas gerais de sua tradiccedilatildeo mas natildeo os textos exatos citaccedilotildees precisas ou argumentaccedilotildees intrincadas de suas elites de escribas (CROSSAN 1995 p41)
Em outro momento Crossan observa que o niacutevel de alfabetizaccedilatildeo na
Palestina estava abaixo de 3 segundo fontes rabiacutenicas o que natildeo era tatildeo baixo
para os padrotildees sociais das sociedades tradicionais do passado Crossan reitera
que Jesus era um camponecircs da Galileia e portanto natildeo haacute duacutevidas que Jesus era
analfabeto ldquopara mim Jesus era analfabeto ateacute que o contraacuterio seja comprovado E
natildeo eacute comprovado mas apenas presumido por Lucas quando ele faz Jesus ler o
profeta Isaiacuteas na sinagoga de Nazareacute em 4 16-20rdquo (Crossan 2004 p 274-275)
18
Diferentemente de Crossan David Flusser defende que Jesus ldquoestava longe de ser um iletradordquo Para ele com algumas justificativas eacute possiacutevel que os disciacutepulos de Jesus fossem homens iletrados e sem posiccedilatildeo social (cf At 413) e isso levou os historiadores a pensar que o proacuteprio Jesus nunca havia estudado Flusser vai mais longe ainda quando observa que Jesus era versado tanto nas Escrituras Sagradas como na tradiccedilatildeo oral ldquoAdemais sua educaccedilatildeo era incomparavelmente superior agrave de Satildeo Paulordquo Flusser vecirc na narrativa de Lucas (2 41-51) a histoacuteria de ldquoum erudito precoce pode-se dizer quase um jovem talmudistardquo A fonte de Flusser para tal argumento eacute Flaacutevio Josefo que se referindo a Jesus disse ldquonesta eacutepoca viveu Jesus um homem saacutebio ndash se eacute que na verdade deveriacuteamos chamaacute-lo de homemrdquo Mesmo que tenha havido algumas alteraccedilotildees por um interpolador cristatildeo eacute provaacutevel que a redaccedilatildeo original natildeo se perdeu totalmente jaacute que o texto de Josefo pode ser confirmado ldquopela suposta redaccedilatildeo original da passagemrdquo (Flusser 2002 p 11-12)
44
Carlos Mesters tambeacutem observa que Jesus mesmo antes de nascer jaacute era
viacutetima do sistema poliacutetico e econocircmico predominantes na eacutepoca Com efeito uma
vez que ele natildeo nasceu de uma famiacutelia sacerdotal como Joatildeo Batista (Lc 15) nem
teve o privileacutegio de estudar como o apoacutestolo Paulo (At 22 3) Jesus teve desde
pequeno que trabalhar como agricultor e ainda aprender a profissatildeo de seu pai (Mt
13 55) e por isso era conhecido como carpinteiro (τέκτων) de Nazareacute (Mc 6 3)
Assim como Crossan Mesters analisa que a vida de Jesus desde a infacircncia ateacute a
vida adulta natildeo foi nada faacutecil Sobre a educaccedilatildeo formal do nazareno Mesters nos
diz que ldquoa escola do Jesus era antes de tudo a vida em casa na famiacutelia na
comunidade Foi laacute que aprendeu a conviver a rezar e a trabalharrdquo (Mesters 2011
p 17-21)
O caos econocircmico e cultural entre a populaccedilatildeo contemporacircnea de Jesus natildeo
eacute fato apenas na Galileia19 J Jeremias descreve que a cidade de Jerusaleacutem nos
tempos de Jesus era um centro de mendicacircncia que geralmente girava em torno
do templo Para ele ldquonatildeo eacute de causar espanto se jaacute naquela eacutepoca houvesse
pessoas que simulavam cegueiras surdez e outras doenccedilas a fim de ganharem
esmolasrdquo (Jeremias 1983 p166) Se Jerusaleacutem que era o centro dos
acontecimentos estava numa situaccedilatildeo caoacutetica natildeo muito distante ficava Nazareacute
que conforme Crossan era um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que
vivia em casebres ldquoum povoado simples composto de camponeses entre duzentos a
quatrocentos habitantesrdquo (Crossan Reed 2007 p 7518) Crossan observa que
Nazareacute nunca foi mencionada pelos rabinos na Mishinaacute nem no Talmude nem por
Flaacutevio Josefo quando esse cita o nome de 45 lugares durante a primeira revolta
judaica em 66-67 dC Nem mesmo o Antigo Testamento a conheceu A relaccedilatildeo das
tribos de Zebulon enumera quinze localidades na Baixa Galileia nas proximidades
de Nazareacute mas natildeo a inclui (Js19 10-15) Crossan eacute taxativo ao afirmar que Nazareacute
ldquoera um lugar absolutamente insignificanterdquo (Crossan Reed 2007 p 64)
19
Apesar da Galileia onde Jesus viveu ter sido um lugar de extrema pobreza geograficamente era ldquouma regiatildeo beliacutessima a planiacutecie o lago as colinas a montanha o verde as suas matas fazem da Galileia um ambiente tranquilo e repousanterdquo A pobreza natildeo estava ligada ao aspecto geograacutefico mas sim agrave dominaccedilatildeo romana atraveacutes dos altos e impiedosos impostos que segundo Marconcini natildeo era menos do que 40 do miacutesero rendimento de cada trabalhador que tambeacutem eram destinadas para o aumento do bem-estar dos ricos conforme vemos nos evangelhos de Mateus 18 23-30 e Lucas 16 1-7 -20 (Cf Marconcini 2009 p 38)
45
Tambeacutem observa-se que Nazareacute era um povoado proacuteximo de Seacuteforis que
permaneceu no anonimato ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo
quando se tornou alvo de peregrinaccedilotildees dos cristatildeos (Crossan Reed 2007 p79)
Eles dependiam de espaccedilo fiacutesico para desempenhar atividades agriacutecolas guardar
ferramentas de uso comunitaacuterio cultivo de jardins e pomares tambeacutem precisavam de
espaccedilo para a criaccedilatildeo de animais domeacutesticos e isso explica o porquecirc de uma baixa
densidade populacional Crossan afirma que a maioria dos galileus ganhava a vida
com os produtos da terra com ferramentas precaacuterias e condiccedilotildees geograacuteficas
desfavoraacuteveis O seu estilo de vida em particular dos nazarenos era simples e o
que eles ganhavam era apenas o suficiente para pagar as diacutevidas e impostos
Quanto agraves tradiccedilotildees eles eram zelosos celebravam a paacutescoa descansavam no
Saacutebado e valorizavam as tradiccedilotildees de Moiseacutes e dos profetas
Gerhard Lenski citado por Crossan faz uma interessante descriccedilatildeo de como
eram as divisotildees das classes sociais pelo impeacuterio romano O simples fato de uma
famiacutelia ou povoado possuir arados de ferro poder usufruir de transportes utilizando-
se da roda e da vela gerava um abismo entre as classes designadas altas e outras
designadas baixas Segundo esse autor as classes eram divididas da seguinte
maneira 1 da populaccedilatildeo era constituiacuteda pelos governantes que eram possuidores
de pelo menos a metade das terras os sacerdotes podiam possuir ateacute 15 da
terra logo apoacutes vinham os arrendataacuterios que iam de generais a burocratas
especializados mercadores que provavelmente ascendiam das classes mais
baixas mas que chegavam a ter consideraacutevel riqueza e algum poder poliacutetico e por
fim os camponeses que eram a maioria da populaccedilatildeo de cuja colheita cerca de
dois terccedilos do total as classes altas eram sustentadas
Os camponeses cujas safras dependiam das colheitas nem sempre eram
bem sucedidos pois se houvesse muita chuva ou seca ou ainda doenccedilas e morte
eram expulsos de suas proacuteprias terras Entatildeo eram forccedilados ao arrendamento ou
ateacute mesmo podiam ser submetidos agraves piores humilhaccedilotildees Existia ainda a classe
dos artesatildeos considerada acima dos camponeses porque em geral eram
recrutados entre seus membros desalojados Abaixo dos camponeses existiam
ainda as classes dos degradados e dispensaacuteveis os quais eram rejeitados e iam de
46
mendigos a foras da lei ladrotildees trabalhadores diaristas e escravos (Crossan 1995
p 41)
De acordo com essa divisatildeo de classes deduz-se que se Jesus era
carpinteiro (τέκτων) entatildeo ele pertencia agrave classe dos artesatildeos que por sua vez
estava perigosamente situada entre os camponeses e os degradados ou
dispensaacuteveis Segundo Crossan a pobreza dos conterracircneos de Jesus natildeo se
limitava apenas a Galileia jaacute que de 95 a 97 da populaccedilatildeo do estado judaico era
constituiacuteda por analfabetos Se essa estatiacutestica for verdadeira possivelmente Jesus
tambeacutem era um analfabeto Quanto ao fato dele ensinar eacute provaacutevel que o seu
aprendizado e ensino tenha sido a partir da educaccedilatildeo da tradiccedilatildeo em forma oral
Conforme Crossan os textos de Lucas 2 41-52 e Lucas 4 1-30 devem ser vistos
como ldquopropaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em
termos de instruccedilatildeo e exegese de escribardquo (Crossan 1995 p 41-42)
42 JESUS O HUMILDE NAZARENO
Jesus viveu em Nazareacute a maior parte de sua vida Segundo Pagola uma
pequena aldeia de ldquoapenas duzentos a quatrocentos habitantesrdquo onde alguns
habitantes viviam ldquoem cavernas escavadas nas encostas a maioria em casas baixas
e primitivas de paredes escuras de adobe ou pedra com telhados confeccionados
com ramos secos e argila e chatildeo de terra batidardquo O quesito conforto e comodidade
natildeo era privileacutegio dos nazarenos uma vez que em geral as casas soacute tinham um
cocircmodo no qual se alojava a famiacutelia toda inclusive os animais (Pagola 2010 p62)
Esse pequeno vilarejo ficava a 4 quilocircmetros ao norte de Seacuteforis 20 a cidade
residencial de Herodes Antipas (Gnilka 2000 p71) Seacuteforis diferentemente de
Nazareacute era uma cidade que crescia cheia de curiosidades21 Jerome Murphy-
20
Koester natildeo especifica a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis mas observa que a distacircncia entre essas duas localidades era de poucos quilocircmetros Seacuteforis foi ampliada por Antipas que como seu Pai (Herodes o grande) era amante do esplendor e da grandeza que muitas vezes era expresso por grandes construccedilotildees Aleacutem de Seacuteforis (a primeira capital) Antipas (Tetrarca da Galileia e da Pereia) ainda construiu uma segunda capital a qual deu o nome de Tibeacuterias (Tiberiacuteades) em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (Cf Koester 205 Vl 1 p 395) Theissen especifica como sendo de 6 km a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis (cf Theissen 2004 p 186) A partir desses dados conclui-se que Seacuteforis e Nazareacute ficavam muito proacuteximas
21 As hipoacuteteses de Murphy-OConnor em relaccedilatildeo agrave Seacuteforis satildeo bem diferentes da visatildeo que Crossan
tinha desta cidade como vimos anteriormente Para Crossan Seacuteforis permaneceu no anonimato
47
OConnor observa que seria um equiacutevoco supor que Jesus natildeo passaria todo o
tempo que pudesse em Seacuteforis junto com os amigos Nesse sentido pode-se
questionar Teria Jesus tido em Seacuteforis contato com a liacutengua grega por morar bem
proacuteximo da elegante cidade Seacuteforis era a cidade das atraccedilotildees tanto para os
adultos como para as crianccedilas fato esse que pode ser constatado com Herodes
Antipas o qual teria aprendido a oferecer espetaacuteculos com seu pai Herodes o
grande e nos poucos anos que passou em Roma teria ficado impressionado com os
espetaacuteculos dados por Augusto (Murphy-OConnor 2008 p38-39)
O teatro de Antipas era a grande atraccedilatildeo da cidade Segundo Murphy-
OConnor-OConnor o grande teatro de 45 mil lugares22 sentados em pedra visto
ateacute hoje foi precedido pelo de Antipas em madeira Mesmo que os judeus tenham
sido advertidos a respeito da origem pagatilde do teatro eacute razoaacutevel que Jesus tenha
visto em torno das imediaccedilotildees do teatro atores subindo e descendo pelas ruas e
praticando suas deixas23 Para Murphy-OConnor foi desse contexto que Jesus
conheceu a palavra grega hypokritecircs (ὑποκριτής) que significa ldquoum orador puacuteblicordquo
ldquoum atorrdquo Jesus usou a mesma palavra poreacutem deu a ela um sentido mais profundo
no que se refere agrave vida religiosa A maacutescara refere-se ao ldquofingidorrdquo ou seja agravequeles
que dizem ou parecem ser uma coisa mas na praacutetica satildeo outra conforme vemos
nos Evangelhos (Mt 75 Mc 76 = Lc 642)
O maior acontecimento que Jesus pode ter visto em Seacuteforis ou ouvido falar
muito a respeito quando tinha aproximadamente seis anos de idade foi o
casamento de Herodes Antipas com a filha do rei nabateu Aretas IV de Petra que
governou entre 9 aC e 40 dC Segundo Murphy-OConnor mesmo que o
casamento tenha acontecido em Petra uma caravana de nobres nabateus
provavelmente teria acompanhado Antipas ateacute a cidade de Seacuteforis onde uma
grande multidatildeo de todas as aldeias proacuteximas agrave cidade o aguardava para saudar o
jovem rei (Murphy-OConnor 2008 p40)
ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo quando segundo Crossan a cidade se tornou alvo de peregrinaccedilotildees cristatildes (cf Crossan Reed 2007 p79)
22 Theissen diz que o teatro comportava 5000 pessoas (ver Theissen 2004 p 187)
23 Koester nota que eacute interessante que cidades como Cesareia Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo constem da
tradiccedilatildeo Contudo cidades heleniacutesticas menos importantes como Cesareia de Felipe e Gadara agraves vezes satildeo mencionadas Para Koester ldquonatildeo se pode concluir que Jesus nunca tenha visitado Terras pagatildesrdquo (Cf Koester Vl 2 p 86)
48
Sobre Jesus podemos dizer que aleacutem de ter vivido na pequena Nazareacute de laacute
saiu para ser batizado por Joatildeo Batista Aleacutem disso conforme Mc 63 em Nazareacute e
adjacecircncias ele exerceu a carpintaria (τεκτων) 24 como profissatildeo atividade essa
exercida por seu pai Joseacute Nessa profissatildeo aleacutem de trabalhar com madeira
tambeacutem trabalhava-se com pedras Dessa forma podemos dizer que Jesus era
tambeacutem um entalhador (Gnilka 2000 p 71-72)
Sobre Jesus aleacutem de algumas hipoacuteteses e relatos concernentes ao lugar de
sua residecircncia e outras suposiccedilotildees relacionadas agrave sua vida enquanto um simples
homem inserido em sua comunidade que na qualidade de profeta da Galileia natildeo foi
bem recebido entre seus conterracircneos De acordo com o evangelista Lucas o
ministeacuterio de Jesus comeccedilou aos 30 anos (Lc 323) Para Gnilka a informaccedilatildeo
obtida a partir desse Evangelho possui tambeacutem uma motivaccedilatildeo teoloacutegica visto que
a idade de Jesus deve estar relacionada com a idade do rei Davi conforme vemos
em 2 Sm 54 ldquoTinha Davi trinta anos quando comeccedilou a reinarrdquo Natildeo obstante agrave
determinaccedilatildeo aproximada da idade cerca de 30 anos Lucas revela-nos um
interesse histoacuterico-cronoloacutegico a respeito da vida e ministeacuterio de Jesus (Gnilka
2000 p73)
Jaacute em pleno exerciacutecio ministerial conforme a narrativa de Marcos (Mc 6 1-6)
Jesus fez uma fracassada visita num dia de saacutebado aos seus conterracircneos Quando
Jesus estava a ensinar na sinagoga seus conterracircneos escandalizam-se dele O
motivo para tal desprezo estava relacionado ao fato de ele ser proveniente de uma
famiacutelia pobre conhecida por todos na pequena Nazareacute A origem humilde de Jesus
provocou em seus conterracircneos um sentimento de rejeiccedilatildeo e desprezo chegando
ao ponto de total descreacutedito agrave sua sabedoria e ao seu poder de realizar milagres
Esses fatos provavelmente natildeo devem ter ocorrido no comeccedilo do ministeacuterio de
Jesus como descreve Lucas (Lc 4 14-30) ateacute porque se todos esses
acontecimentos fossem no iniacutecio de seu ministeacuterio a comunidade de Nazareacute natildeo o
teria rejeitado imediatamente mas teriam ficado na expectativa do sucesso de seu
mais conhecido cidadatildeo (Gnilka 2000 p 122)
24
Eacute possiacutevel que como artesatildeo Jesus tenha tomado parte na construccedilatildeo de Seacuteforis O silecircncio da tradiccedilatildeo de Jesus sobre Seacuteforis nos induz a crer que mesmo que Jesus tenha conhecido essa cidade atuou tatildeo pouco nela como deve ter atuado em Tiberiacuteades Jesus deve ter evitado as grandes cidades porque se identificava mais com o campo onde encontrava maior ressonacircncia (Cf Theissen 2004 p 187)
49
Aleacutem das fontes evangeacutelicas sobre Jesus temos alguns relatos de fontes natildeo
cristatildes sobre o homem chamado Jesus de Nazareacute O relato mais conhecido dos
cristatildeos eacute de Flaacutevio Josefo que por volta do ano 93 dC (eacutepoca em que ele morava
em Roma) ele testemunha a respeito de Jesus com as seguintes palavras
conforme a citaccedilatildeo de Rochus Zuurmond25
Naquele tempo a atividade de Jesus um homem saacutebio se eacute que conveacutem chamaacute-lo de homem Pois fez coisas incriacuteveis e foi mestre dos que gostam de aceitar a verdade Teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos Ele foi o Cristo Depois que Pilatos o condenou agrave morte na Cruz porque preeminentes de nosso meio o haviam acusado natildeo cessou o amor que lhe tinham seus sequazes Revivificado ele lhes apareceu no terceiro dia pois os profetas de Deus haviam a seu respeito anunciado este fato e mil outras coisas espantosas Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)
Zuurmond duvida que essa citaccedilatildeo seja de Josefo uma vez que seria
praticamente impossiacutevel Josefo referir-se a Jesus como Cristo e muito mais difiacutecil
ainda seria ele mencionar a ressurreiccedilatildeo ldquocom apelo aos profetasrdquo Contudo
segundo Zuurmond seria muito difiacutecil que Josefo vivendo naquela eacutepoca natildeo
mencionasse Jesus em seus escritos Partindo desse princiacutepio o mais provaacutevel eacute
que o texto tenha sido ldquoprofundamente revisadordquo por um cristatildeo Para Zuurmond
dentre as vaacuterias tentativas para reproduzir o texto original de Josefo a mais provaacutevel
seria a de que o texto teria a seguinte conotaccedilatildeo
foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus um saacutebio que teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos chamaram-no de Cristo Seus sequazes afirmam que ele revivificado lhes apareceu Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome ainda natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)
O proacuteprio Zuurmond acredita que essa reconstruccedilatildeo eacute muito hipoteacutetica
Segundo ele o mais provaacutevel eacute que o texto tenha sido muito mais reduzido e que
tenha sido totalmente substituiacutedo (cf Zuurmond 1998 p 74)
Aleacutem de Josefo temos ainda outras citaccedilotildees hipoteacuteticas de fontes natildeo
cristatildes como a correspondecircncia de Pliacutenio Juacutenior com Trajano por volta de 115 dC
Pliacutenio refere-se agrave reuniatildeo dos cristatildeos e detalha o fato de que cantam um hino ldquoa
Cristo como Deusrdquo Suetocircnio por volta de 120 dC descreve que o Imperador
25
Essa citaccedilatildeo tambeacutem pode ser conferida em Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 3 p 590
50
Claacuteudio expulsou os judeus de Roma porque causavam problemas ldquopor instigaccedilatildeo
de Crestordquo Ainda por volta de 115 dC Taacutecito em annales XV 44 relata sobre o
incecircndio de Roma e sobre um grupo de Cristatildeos seguidores de ldquoum tal Cristordquo
Segundo Zuurmond estas foram as palavras do historiador romano
A fim de abafar este boato (de que ele mesmo foi responsaacutevel pelo incecircndio de Roma Nero inventou alguns bodes expiatoacuterios e submeteu agraves mais sofisticadas formas de supliacutecio aqueles que costumavam ser chamados de cristatildeos um grupo de gente odiado por todos por causa de seus crimes abominaacuteveis Eles devem o seu nome a um tal Cristo que durante o governo de Tibeacuterio (imperador de 14 a 37) por ordem do procurador Pocircncio Pilatos foi executado Depois de ter sido oprimida durante algum tempo essa supersticcedilatildeo perniciosa irrompeu novamente natildeo apenas na Judeacuteia onde este mal se originou mas tambeacutem em Roma para onde confluem e onde costumam ser assiduamente fomentados costumes horrorosos e vergonhosos de toda a espeacutecie (cf Zuurmond 1998 p75-76)
Essas fontes natildeo cristatildes quase que sempre satildeo vistas com alguma
desconfianccedila por alguns especialistas quanto agrave autenticidade de seus conteuacutedos
No entanto qualquer conjectura sobre o assunto natildeo passaraacute de mera
especulaccedilatildeo O mais importante eacute que a histoacuteria de Jesus eacute tatildeo grande que o mais
aacutevido inimigo jamais poderaacute tornaacute-la como algo insignificante para a humanidade
43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES
Como sabemos Jesus nunca nos deixou nada por escrito no entanto tudo o
que sabemos sobre ele estaacute registrado nos evangelhos especificamente nos
evangelhos canocircnicos considerados pela tradiccedilatildeo cristatilde como os mais confiaacuteveis jaacute
que para a tradiccedilatildeo cristatilde conforme vemos em Duquoc os evangelhos apoacutecrifos26
podem sem duacutevida transmitir autecircnticos dados histoacutericos mas natildeo possuem
autoridade para que a partir dos testemunhos descritos neles possa-se elaborar
uma teologia consistente (Duquoc 1992 p 21)
26
Sanders compartilha da ideia da maioria dos estudiosos de que muito pouco dos evangelhos apoacutecrifos pode situar-se aos dias de Jesus Para ele esses evangelhos satildeo ldquolegendaacuterios e mitoloacutegicosrdquo De todo o material apoacutecrifo segundo Sanders somente alguns ditos do evangelho de Tomeacute merecem consideraccedilatildeo No entanto natildeo significa que seja possiacutevel fazer uma divisatildeo clara colocando os Evangelhos canocircnicos de um lado e os apoacutecrifos de outro uma vez que segundo Sanders haacute material lendaacuterio e criaccedilatildeo posterior nos Evangelhos do Novo Testamento Natildeo obstante eacute nos quatro Evangelhos que devemos buscar traccedilos do Jesus histoacuterico conclui Sanders (Sanders 2005 p 88-89)
51
Leif E Vaage eacute mais radical chegando afirmar que todos os escritos cristatildeos
primitivos que tratam da infacircncia de Jesus satildeo apoacutecrifos Segundo ele inclusive os
Evangelhos canocircnicos (Vaage 2007 p 38) Vaage baseia seu argumento no fato de
que nenhum dos Evangelhos relata realmente como foi a gravidez nascimento e
infacircncia de Jesus Por isso natildeo podem ser considerados historicamente
ldquoautecircnticosrdquo No entanto temos um olhar mais positivo sobre os apoacutecrifos em Jacir
de Freitas Faria Para ele noacutes podemos encontrar nos apoacutecrifos ldquovalores que a
piedade popular conservou como dogma de feacuterdquo (Faria 2007 p9) Na visatildeo de Faria
se natildeo fossem os apoacutecrifos do Novo Testamento natildeo saberiacuteamos os nomes de
pessoas como os avoacutes de Jesus dos reis magos dos dois ladrotildees da cruz e outros
nomes relacionados aos cristatildeos do primeiro seacuteculo
Os evangelhos27 por certo satildeo a histoacuteria do Jesus terreno contudo segundo
Bornkamm vale ressaltar que os Evangelhos satildeo histoacuteria mas natildeo no sentido da
histoacuteria moderna ou seja ldquoos evangelistas natildeo eram historiadores de profissatildeo e a
tradiccedilatildeo popular estaacute sempre sujeita a mudanccedilas no processo de transmissatildeordquo
(Bornkamm 1981 p35) Os evangelhos prossegue Bornkamm ldquonatildeo podem ser
classificados entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos como
Tuciacutedides Poliacutebio e Taacutecito nem entre biografias contemporacircneas como As Vidas
dos Ceacutesares de Suetocircnio [cerca de 70-140 dC] rdquo (1981 p35)
Sanders analisando a natureza do material evangeacutelico considera tal tarefa
como uma das mais desafiadoras a ser realizada pelo pesquisador Ainda que a
opiniatildeo dele sobre as fontes seja positiva ele natildeo deixa de enumerar alguns
aspectos considerados problemaacuteticos ou negativos conforme resumimos abaixo
1) Os primeiros cristatildeos natildeo escreveram uma narrativa (histoacuteria) da vida
de Jesus mas escreveram pequenas passagens sobre as suas
palavras e obras Essas pequenas partes foram mais tarde
organizadas pelos autores dos Evangelhos Isso significa que nunca
poderemos estar tatildeo perto do contexto imediato dos ditos e feitos de
Jesus
27
Conforme Marconcini (2009 p 6) o termo evangelho encontra-se doze vezes nos sinoacuteticos das quais quatro vezes em Mateus (423 9 35 24 14 26 13) em Marcos oito vezes (114-15 835 1029 1310 149 1615) a palavra vem sempre da boca de Jesus com exceccedilatildeo de Marcos 11 Jaacute no Evangelho de Lucas prevalece o verbo evangelizar que aparece dez vezes (119 210 318 41843 722 81 96 1616 201)
52
2) Os primeiros cristatildeos revisaram alguns materiais e criaram outros
3) Os Evangelhos foram escritos de forma anocircnima28
4) O Evangelho de Joatildeo eacute muito diferente dos outros trecircs Evangelhos e eacute
principalmente nesse Evangelho que devemos buscar informaccedilotildees
sobre Jesus
5) Aos Evangelhos faltam muitas caracteriacutesticas para ser uma biografia e
temos que distingui-los das biografias modernas (cf Sanders 2005 p
81-82)
A partir dos dados acima observamos que os Evangelhos realmente natildeo
satildeo histoacuteria no sentido moderno do termo No entanto conforme Martins Terra
devemos aplicar a criteriologia moderna de atestar a autenticidade dos escritos ou
seja aquela que estaacute focada mais nos criteacuterios internos29 do que nos criteacuterios
externos mas sempre tendo como base os testemunhos histoacutericos (Martins Terra
1977 p126)
Segundo Latourelle a criacutetica externa analisa os Evangelhos a partir dos
escritos extra-evangeacutelicos (Cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos) e sobretudo a
partir dos testemunhos das Igrejas poacutes-apostoacutelicas (II e III seacuteculos) enquanto que a
criacutetica interna apoia-se no proacuteprio texto (anaacutelise do tecido literaacuterio estudo do
conteuacutedo) Para esse teoacutelogo a criacutetica externa sempre obteve ecircxito em relaccedilatildeo agrave
critica interna mas nos dias atuais essa situaccedilatildeo tem mudado ou seja a criacutetica
interna tem se sobreposto agrave critica externa No entanto Latourelle prefere ficar em
um meio termo e mesmo que a criacutetica externa esteja em decadecircncia Latourelle vecirc
trecircs pontos importantes que podem ser explorados nela ldquosobre os autores dos
28
Sanders referindo-se a autoria dos Evangelhos diz que natildeo sabemos quem realmente satildeo os autores Mateus e Joatildeo foram disciacutepulos de Jesus Marcos foi seguidor de Paulo e possivelmente tambeacutem de Pedro jaacute Lucas foi um dos convertidos (disciacutepulos) de Paulo Mateus Marcos Lucas e Joatildeo realmente existiram mas natildeo podemos afirmar que eles escreveram os Evangelhos Existem provas que os Evangelhos permaneceram sem tiacutetulo de autoria ateacute a metade do seacuteculo II dC e eram sempre citados anonimamente A nomenclatura segundo Mateus segundo Marcos segundo Lucas segundo Joatildeo apareceram de repente por volta do ano 180 em meio ao grande nuacutemero de evangelhos escritos a Igreja teve que decidir quais deles seriam canocircnicos e diante de diferentes opiniotildees os que pensavam que apenas os quatro citados acima eram os que testemunhavam sobre Jesus com autoridade ganharam a questatildeo (cf Sanders 2005 p 87-88)
29 Segundo Martins Terra ldquoa criacutetica interna procura refazer na medida do possiacutevel a histoacuteria das
tradiccedilotildees [traditionsgeschichte] e separar os elementos redacionais [=dos evangelistas] dos elementos provenientes da tradiccedilatildeo anterior ateacute seus estratos mais primitivos Admite-se pois como vaacutelida a ideia fundamental da histoacuteria das formas (formgeschichte e da histoacuteria da redaccedilatildeo [Redaktionsgeschichte])rdquo (Martins Terra 1977 p 126)
53
Evangelhos sobre a autoridade desses na Igreja dos primeiros seacuteculos e sobre a
atitude da Igreja perante as tendecircncias deformadoras dos apoacutecrifos e dos escritos
gnoacutesticosrdquo (Latourelle 1989 p118)
Latourelle observa que ldquoa tradiccedilatildeo tem a tendecircncia de individualizar os
autores e colocaacute-los em relaccedilatildeo iacutentima com uma autoridade apostoacutelicardquo (Latourelle
p118) Um argumento bem aceito pela criacutetica contemporacircnea eacute de que documentos
- o Cacircnon Muratori os proacutelogos antimarcionistas - e os antigos teoacutelogos da Igreja
(Paacutepias Irineu de Liatildeo) - aceitaram Marcos e Lucas como autores dos Evangelhos
que levam os seus nomes porque eles realmente satildeo os verdadeiros autores O
raciociacutenio para defender essa tese conforme expotildee Latourelle eacute que se os teoacutelogos
da patriacutestica (seacuteculo II) tivessem interesse em ldquofalsificarrdquo a autoria dos Evangelhos
para dar maior credibilidade aos mesmos teriam dado a esses dois nomes de
apoacutestolos que conviveram com Jesus e natildeo de testemunhas indiretas como nos
casos de Marcos e Lucas Partindo desse raciociacutenio Latourelle citando Descamps
conclui ldquose as Igrejas do seacuteculo II mantiveram os nomes de Marcos e Lucas como
autores fizeram-no sem duacutevida sob a pressatildeo dos fatosrdquo (Latourelle 1989 p 18)
Segundo Bornkamm ldquoeacute significativo que os evangelhos satildeo anocircnimos e que
os nomes (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo) foram dados para aleacutem do seacuteculo II O
evangelho de Lucas eacute o que mais se aproxima da historiografiardquo (Bornkamm 1981
p35) Aparentemente os Evangelhos datildeo a impressatildeo de continuidade mas os
textos natildeo oferecem um fundo real de uma histoacuteria reconstituiacutevel (Bornkamm 1981
p37) Um fato importante a se observar satildeo as legendas ou seja a forma como
fatos da vida de Jesus ou de personagens do Novo Testamento foram contados
(Bornkamm 1981 p41) O narrador natildeo estaacute preocupado em escrever histoacuterias
mas com a santidade e a piedade exemplar dessas figuras Em alguns casos
chamamos legenda ou embelezamento Bornkamm acredita que temos boas razotildees
para confiar na memoacuteria simples dos disciacutepulos contudo ldquonatildeo devemos subestimar
a influecircncia da feacute poacutes-pascal mesmo com a tradiccedilatildeo passada de matildeo em matildeosrdquo
(Bornkamm 1981 p 43)
A tradiccedilatildeo como vimos acima esforccedila-se para aproximar os Evangelhos das
testemunhas oculares e supervaloriza a qualidade das testemunhas fazendo de
Marcos um porta-voz de Pedro quando Marcos eacute muito mais um relator fiel da
54
pregaccedilatildeo da comunidade primitiva30 A tradiccedilatildeo tambeacutem atribui o primeiro Evangelho
a Mateus e o uacuteltimo a Joatildeo Poreacutem Bornkamm partindo do princiacutepio da teoria das
duas fontes analisa a origem dos Evangelhos especificamente os sinoacuteticos da
seguinte forma dentre as teorias a respeito da formaccedilatildeo dos Evangelhos a mais
aceita e mais coerente eacute a teoria das duas fontes Segundo essa teoria Marcos eacute o
Evangelho mais antigo ele forma a base dos outros dois Evangelhos ldquomaioresrdquo e
estaacute inserido neles Aleacutem de usarem Marcos tanto Mateus como Lucas fizeram uso
independente de uma segunda fonte isso se pode ver pelos muitos ditos e grupos
de ditos natildeo encontrados em Marcos que eles tecircm em comum (Bornkamm 1981
p31) De acordo com J Jeremias Marcos escreveu em grego mais primitivo e
serviu de base para os outros dois Isso comprova que ele eacute o Evangelho mais
antigo O Evangelho de Mateus eacute um Evangelho de Marcos reelaborado
estilisticamente e acrescido de material novo que daacute mais da metade de Marcos
Seguindo a linha de pesquisa da teoria das duas fontes verificamos que mesmo que
Mateus e Marcos discordem de Lucas na ordem dos acontecimentos ou Lucas e
Marcos estejam em discordacircncia em relaccedilatildeo a Mateus dificilmente Mateus e Lucas
juntos oponham-se a Marcos
Haacute poreacutem algumas hipoacuteteses contraacuterias a teoria das duas fontes e elas se
apoiam no testemunho de Papias bispo de Hieraacutepolis na Friacutegia que compocircs por
volta de 130 uma exegese dos oraacuteculos do Senhor conforme relatado por Euseacutebio
de Cesareia em a ldquoHistoacuteria da Igrejardquo Eis o que dizia o Presbiacutetero
Marcos que era o inteacuterprete de Pedro escreveu com exatidatildeo no entanto sem ordem tudo o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor mais tarde poreacutem como jaacute disse ele acompanhou Pedro Este ministrava seus ensinamentos segundo as necessidades mas sem fazer uma siacutentese das palavras do Senhor Desse modo Marcos natildeo cometeu erro escrevendo como se lembrava Seu uacutenico propoacutesito foi nada omitir do que havia ouvido e em nada enganar no que relatava (Latourelle 1989 p121-122)
30
Martins Terra comentando sobre a tradiccedilatildeo sobre os Evangelhos observa que ldquohoje em dia se insiste mais na inspiraccedilatildeo do livro do que no autorrdquo O problema consiste no fato de os Evangelhos terem sido escritos depois de 30 anos de pregaccedilatildeo da Igreja e da tradiccedilatildeo oral Muitas coisas devem ser levadas em consideraccedilatildeo quando se trata da autoria dos Evangelhos uma vez que haacute vaacuterios niacuteveis de mediaccedilotildees que devem ser levados em consideraccedilatildeo (cf Martins Terra 1977 p 125)
55
Segundo Euseacutebio baseado no testemunho de Papias foi Mateus quem
colocou em ordem os oraacuteculos do Senhor em liacutengua hebraica31 Qualquer que seja a
data e o conhecimento de Papias aquilo que ele de fato escreveu estaacute em nosso
alcance apenas em citaccedilotildees de Euseacutebio Os livros de Papias (logiotilden Kyriakotilden
Exegesis Exegese das Logia do Senhor) sobreviveram ateacute a Idade Meacutedia em
algumas bibliotecas da Europa mas natildeo mais existem (Carson et al 1997 p75)
Dalman (1902 p 87) fazendo uma anaacutelise sobre os testemunhos a favor da
teoria que se refere agrave origem aramaica dos Evangelhos eacute categoacuterico em afirmar
que aleacutem do bem conhecido depoimento de Euseacutebio noacutes natildeo temos nenhum traccedilo
a favor da existecircncia de um Evangelho escrito em liacutengua semiacutetica Ateacute mesmo
Jerocircnimo deve ter se enganado em ter dito que o Evangelho original de Mateus
escrito em hebraico ainda existia em seus dias Para Dalman mesmo os vaacuterios
textos dos Evangelhos em aramaico que satildeo conhecidos hoje e ateacute mesmo o texto
que Jerocircnimo usava em aramaico era derivado dos originais gregos
Temos ainda um segundo testemunho da origem dos Evangelhos dado por
Clemente de Alexandria conforme descrito por Euseacutebio na obra Histoacuteria da Igreja
Segundo Euseacutebio Clemente cita uma tradiccedilatildeo dos Anciatildeos a respeito da ordem dos
Evangelhos Conforme essa teoria os Evangelhos que compreendem as
genealogias foram escritos primeiro (Mateus e Lucas) jaacute o Evangelho de Marcos foi
escrito nas seguintes circunstacircncias O apoacutestolo Pedro pregou em Roma e expocircs
publicamente sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo a doutrina evangeacutelica do
cristianismo primitivo Os numerosos ouvintes de Pedro exortaram a Marcos a
transcrever as palavras do apoacutestolo jaacute que aquele tinha acompanhado Pedro por
muito tempo e por certo tinha vivo em sua mente muito do que o apoacutestolo Pedro
havia dito Todavia segundo Euseacutebio quando Pedro soube disso nada fez por meio
de seus conselhos para impedi-lo disso ou para forccedilaacute-lo a isso32
Esse testemunho como o de Papias referem-se aos Anciatildeos isto eacute a
homens da segunda geraccedilatildeo cristatilde A tradiccedilatildeo posterior natildeo faraacute mais do que
retomar esses argumentos
31
Cf Eusebius the Church History translation and commentary by Paul L Maier 2007 p 114 32
Cf Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p 1690 citaccedilatildeo da Hist Ecl IV 14 5-7
56
Papias e Clemente estatildeo de acordo em atribuir a composiccedilatildeo de um dos evangelhos a Marcos disciacutepulo de Pedro (cf 1Pd 5 13) cuja pregaccedilatildeo ele havia escrito Vindo de duas fontes arcaicas diferentes esta informaccedilatildeo pode ser considerada como certa Conforme Clemente Marcos teria escrito enquanto Pedro ainda vivia uma vez que ele estava por outro lado mais ou menos desinteressado desse empreendimento Papias natildeo nos daacute nenhuma informaccedilatildeo expliacutecita sobre este ponto Seu texto permite ao contraacuterio pensar que Marcos havia escrito depois da morte de Pedro e eacute neste sentido que interpretaratildeo Irineu de Liatildeo e o mais antigo Proacutelogo evangeacutelico que nos chegou (fim do seacuteculo II) Papias natildeo nos diz onde Marcos escreveu o seu Evangelho Clemente precisa que foi em Roma onde Pedro exercia o seu ministeacuterio Este pormenor retomado na tradiccedilatildeo posterior parece exato pois o Evangelho de Marcos conteacutem certo nuacutemero de termos gregos que satildeo apenas transcriccedilatildeo do latim (Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p1690)
Apesar de todo o complexo em torno das fontes atualmente a teoria das
duas fontes eacute a mais aceitaacutevel Para Bornkamn haacute tantos paralelos entre Mateus e
Lucas que podemos confiar que tal fonte existiu O que natildeo podemos saber eacute em
que extensatildeo ela jaacute tinha adquirido uma forma literaacuteria fixa Uma coisa eacute certa ela
deve ter sido bem diferente do Evangelho de Marcos Eacute possiacutevel ter certeza que a
fonte Q natildeo era um Evangelho acabado como o Evangelho de Marcos o eacute O modo
como Q eacute usada em Mateus e Lucas mostra como os dois evangelistas a trataram
com mais liberdade do que fizeram com Marcos Isso eacute verdade tanto com
referecircncia ao teor verbal quanto agrave sequecircncia do material Marcos e Q
absolutamente natildeo exaurem as fontes da tradiccedilatildeo sinoacutetica Mesmo Marcos tem
material proacuteprio Lucas eacute quem possui mais cobrindo tanto o ministeacuterio terreno
como as narrativas pascais bem como o material consideraacutevel que ele inseriu na
moldura criada por Marcos
A noccedilatildeo de autoria natildeo resiste aos dados da criacutetica contemporacircnea Os
Evangelhos de Mateus e Joatildeo natildeo possuem nenhuma evidecircncia interna que possa
atribuir a eles a autoria e da mesma forma Lucas e Joatildeo Segundo Latourelle a
criacutetica duvida que eles tenham sido testemunhas ateacute mesmo de segunda matildeo No
entanto a criacutetica reconhece que o autor do primeiro Evangelho era um judeu de
liacutengua grega profundamente conhecedor do judaiacutesmo de sua eacutepoca A criacutetica
tambeacutem reconhece Lucas como o meacutedico e companheiro de Paulo assim como
reconhece Marcos como companheiro de Paulo e sua influecircncia sobre os
evangelhos de Mateus e de Lucas Quanto agrave influecircncia de Pedro sobre o Evangelho
de Marcos a mesma eacute contestada pela criacutetica visto que Marcos parece ser mais um
57
relator e transmissor da pregaccedilatildeo da Igreja primitiva aleacutem de parecer ter sofrido
mais a influecircncia de Paulo
A contribuiccedilatildeo da patriacutestica testemunhada pelos pais da Igreja jamais pode
ser descartada por mais acriacutetica e ingecircnua que pareccedila ser visto que eles viveram
bem proacuteximos dos acontecimentos registrados nos Evangelhos
A importacircncia dos escritos antigos a respeito dos Evangelhos foi a resposta
da igreja aos hereges e aos evangelhos apoacutecrifos O exagerado embelezamento que
os apoacutecrifos criam para ldquocomplementarrdquo os Evangelhos canocircnicos obrigou a Igreja a
criteriosamente separar os Escritos canocircnicos dos apoacutecrifos Para Bornkamm a
formaccedilatildeo do cacircnon do Novo Testamento sempre foi um processo de separar e
nunca de juntar Conforme esse teoacutelogo seria mais viaacutevel perguntar se um livro
deveria estar no cacircnon do Novo Testamento do que perguntar por que determinado
livro natildeo faz parte dele
A Igreja tambeacutem teve que combater o gnosticismo que estava tentando minar
a veracidade dos Escritos Sagrados principalmente com Marciatildeo que com seu
dualismo ldquoopotildee o Deus bom do Novo Testamento ao Deus justo do Antigo
Testamentordquo (Latourelle 1989 p124) A Igreja entatildeo saiu em defesa do
cristianismo autecircntico levantando o estandarte dos quatro Evangelhos como os
uacutenicos reconhecidos como a ldquoautecircntica mensagem de Cristo reconhecida e
ensinada pela tradiccedilatildeo viva da igreja O criteacuterio decisivo eacute o acordo entre os
Evangelhos e a tradiccedilatildeo apostoacutelica que por sua vez se refere ao Cristo vivordquo
(Latourelle 1989 p125)
Eacute vaacutelido observar que os evangelhos sinoacuteticos33 satildeo compostos de ldquotradiccedilotildees
isoladas chamadas de periacutecopesrdquo Essas periacutecopes geralmente tecircm uma
conotaccedilatildeo teoloacutegica e natildeo necessariamente cronoloacutegica ldquoNa verdade muitas
periacutecopes incluem indicaccedilotildees topograacuteficas (no mar da Galileia em Cafarnaum
etc) mas a maioria delas natildeo eacute bem determinada Outro fato a se observar eacute que
nos sinoacuteticos Jesus se dirige a Jerusaleacutem uma uacutenica vez poreacutem em Joatildeo lsquovemos
Jesus se dirigindo a Jerusaleacutem repetidas vezesrsquordquo Segundo Gnilka o importante natildeo
eacute a exatidatildeo do itineraacuterio mas sim a reflexatildeo teoloacutegica (Gnilka 2000 p 24) No
33
O nome sinoacuteticos foi dado aos trecircs primeiros Evangelhos pelo pesquisador alematildeo J J Griesbach em sua obra Synopsis evangeliorum [Sinopse dos Evangelhos] obra que foi publicada em Halle em 1976 (Cf Marconcini 2009 p 10)
58
entanto conforme Benito Marconcini haacute uma concordacircncia nos sinoacuteticos quanto agrave
sucessatildeo dos fatos no ministeacuterio de Jesus Conforme Marconcini ldquoJesus inicia seu
ministeacuterio na Galileia atravessa a Samaria e chega a Jerusaleacutem onde tem o
encontro com a morterdquo (Marconcini 2009 p 10)
O concilio do Vaticano II reproduziu na constituiccedilatildeo sobre a Revelaccedilatildeo o
resultado das pesquisas modernas sobre a Historicidade dos Evangelhos e sobre o
Jesus Histoacuterico conforme resumimos abaixo
a) Os quatro Evangelhos transmitem fielmente o que Jesus realmente fez e
ensinou para a eterna salvaccedilatildeo dos homens
b) Os Apoacutestolos depois transmitiram o que Jesus havia dito e feito ()
c) Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos selecionando
algumas coisas dentre as muitas que tinham sido transmitidas oralmente ou por
escrito sintetizando outras ou adotando-as agraves situaccedilotildees das igrejas (Martins Terra
1977 p 129)
Seria imprudente buscar nos Evangelhos fatos como se busca numa revista
ou jornal de grande circulaccedilatildeo internacional moderna como New York Times por
exemplo Contudo segundo Swidler devemos olhar os quatro Evangelhos como
uma variedade de fontes orais e escritas que apoacutes um periacuteodo de tempo foram
redigidas conforme as necessidades sentidas pelas comunidades e indiviacuteduos da
eacutepoca No entanto fica claro que essa visatildeo criacutetica (moderna) dos Evangelhos natildeo
invalida o caraacuteter histoacuterico desses escritos Eles retratam com muito maior exatidatildeo
sob o ponto de vista histoacuterico-religioso (teoloacutegico) o que Jesus queria dizer com
certas declaraccedilotildees e accedilotildees relatadas pelas primeiras comunidades da Igreja
Primitiva (cf Swidler 1993 p104-105)
Natildeo podemos menosprezar a capacidade da comunidade cristatilde primitiva de
memorizar os fatos relacionados agrave vida de Jesus mas por outro lado natildeo podemos
negligenciar a limitaccedilatildeo humana em memorizar acontecimentos histoacutericos
Raciocinando dessa forma pode-se deduzir que com certeza muitas dessas
recordaccedilotildees natildeo foram transmitidas e nem registradas Eacute evidente que nem todas as
paraacutebolas foram registradas isso estaacute claro em Marcos 433 onde se lecirc ldquoE com
muitas paraacutebolas como esta anunciava-lhes a palavra segundo podiam entenderrdquo
ldquoPodemos partir do pressuposto de que nos evangelhos ficaram conservadas as
59
paacuteginas da atuaccedilatildeo e dos discursos de Jesus que satildeo de decisiva importacircncia para
a nossa feacuterdquo (Gnilka 2000 p25)
44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS
Jesus segundo Gnilka (2000 p35-36) viveu durante o governo de dois
imperadores romanos ldquoo de Otaviano Augusto (27 aC - 14 dC) e o de Tibeacuterio (14-
37)rdquo Nenhum dos dois esteve nessas paragens orientais do Impeacuterio nenhum dos
dois pisou territoacuterio da Siacuteria ou da Palestinardquo A histoacuteria de Jesus estaacute intimamente
ligada agrave famiacutelia Herodes Jesus nasceu sob o governo de Herodes o Grande filho
de Antiacutepater de origem idumeia Por decisatildeo do senado romano e tambeacutem por
iniciativa dos triuacutenviros Antocircnio e Otaviano e mais tarde Augusto pelo fim do ano 40
aC Herodes foi nomeado rei da Judeia
Apoacutes a morte de Herodes o Grande em 4 aC inicia-se uma disputa entre
seus filhos pela sucessatildeo que culminou na divisatildeo do poder entre os descendentes
de Herodes pelo imperador Historicamente dentre os filhos de Herodes o que mais
nos interessa eacute Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) que ficou como tetrarca da
Galileia Dentre os feitos de Antipas podemos citar a reconstruccedilatildeo da cidade de
Seacuteforis e a fundaccedilatildeo da cidade de Tiberiacuteades agrave margem do lago de Genezareacute
cidade que recebeu esse nome em honra ao Imperador Tibeacuterio Foi essa cidade
construiacuteda sobre um cemiteacuterio que Antipas escolheu para residecircncia oficial
tornando-a impura aos olhos dos Judeus crentes por causa das leis leviacuteticas (Gnilka
2000 p 39)
Herodes Antipas ficou conhecido por mandar matar Joatildeo Batista conforme o
relato nos evangelhos (Mc 617-29 Mt 14 3-12) e tambeacutem por Flaacutevio Josefo34 Os
motivos da morte de Joatildeo Batista nos evangelhos satildeo diferentes dos motivos
expostos por Josefo visto que Josefo coloca questotildees poliacuteticas como a principal
causa da execuccedilatildeo de Joatildeo jaacute que Antipas temia uma revolta poliacutetica a partir do
movimento do Batista Para Jesus Antipas tambeacutem tornou-se perigoso ldquoSegundo
Lc 1331 Jesus eacute aconselhado a sair de seu territoacuterio porque o priacutencipe pretendia
mataacute-lordquo (Gnilka 2000 p 40)
34
Cf Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 5 p 594-597
60
Na Judeia a situaccedilatildeo poliacutetica e religiosa era caoacutetica Arquelau (4 aC ndash 6
dC) filho de Herodes o Grande logo depois de ser instituiacutedo etnarca da Judeia e
Idumeia devido a sua extrema tirania tornou-se insuportaacutevel para os judeus a
ponto de um grupo desses ir ateacute Roma para denunciaacute-lo pela forma tiracircnica de
governar bem como a liberdade que tomou para depor e instituir sacerdotes no
templo em Jerusaleacutem Judeia Samaria e Idumeia passam a ser administradas
diretamente por Roma apoacutes Arquelau ser deposto (Gnilka 2000 p 41-42)
Eacute a partir de toda essa confusatildeo que entra em cena a figura de Pocircncio
Pilatos como governador da Judeia (praefectus Judaeae) Nessa eacutepoca tanto o
poder poliacutetico quanto o religioso eram controlados diretamente por Roma ldquoNo
templo tinha que ser oferecido duas vezes por dia um sacrifiacutecio pelo imperador e
pelo povo romano Sobre a administraccedilatildeo das financcedilas do templo o governador
provavelmente tinha uma espeacutecie de supervisatildeo As nomeaccedilotildees dos sumos
sacerdotes tambeacutem eram feitas pelos romanos fosse atraveacutes do governador da
Siacuteria ou do governador da Judeia Isto foi assim nos anos 6-41 depois de Cristordquo
(Gnilka 2000 p 42-43)
O mais importante dos governadores da Judeia que foi contemporacircneo de
Jesus foi Pilatos que segundo os Evangelhos participou decisivamente na morte
de Jesus ldquoFilon de Alexandria caracteriza Pilatos como um homem de natureza
inflexiacutevel obstinado e duro e acusa-o de corrupccedilatildeo violecircncia roubo maus tratos
ofensas continuadas execuccedilotildees sem julgamento constante e insuportaacutevel
crueldaderdquo (Gnilka 2000 p 44) Os dez anos em que Pilatos governou a Judeia
nos quais Caifaacutes tambeacutem sempre foi o Sumo Sacerdote foram marcados pela
crueldade e imprevisibilidade ateacute que no ano 36 ele foi deposto apoacutes ter feito um
violento massacre de samaritanos enquanto esses escalavam o monte Garizim Pelo
fato de estarem armados Pilatos os interpretou mal e resolveu intervir
massacrando-os Mediante esse fato Pilatos foi chamado a Roma para depor diante
do imperador Tibeacuterio mas com a morte deste ele ldquodesaparece do palco da histoacuteria
Notiacutecias surgidas mais tarde dando conta de que ele teria se suicidado ou que teria
sido executado pelo imperador Nero devem ser creditadas a lenda cristatilderdquo (Gnilka
2000 p 44-45)
61
Abaixo segue um resumo do governo poliacutetico e religioso das regiotildees e
cidades com as quais Jesus conviveu (Gnilka 2000 p 47)
- Os herodianos Herodes o Grande (37-4 aC) Antipas (4 aC-39 dC
GalileiaPereia) Filipe (4 aC -34 dC GaulaniacutetideBataneia Arquelau (4 aC -6 C
JudeiaSamariaIdumeia)
- Os Governadores na JudeiaSamariaIdumeia Copocircnio (6-9) Marcos
Antiacutebulo (circa 9-12) Acircnio Rufo (circa 12-15) Valeacuterio Grato (15-26) Pocircncio Pilatos
(26-36)
- Os sumos sacerdotes em Jerusaleacutem Simatildeo ben Boethos (24-5 aC)
Matias ben Theophilos (5-4) Joseacute bem Ellem (exerceu soacute por uma festa) Joazar ben
Boethos (4 aC) Eleazar ben Boethos (4 aC -) Jesus ben sieuml (tempo de cargo
desconhecido) Joazar ben boethos (no cargo pela segunda vez de -6 d C) Anaacutes
ben Sethi (6-15 d C) Ismael bem Phiabi (15-16) Eleazar ben Kamithos (17-18)
Joseacute Caifaacutes (18-36)
Jerusaleacutem era a cidade onde giravam os grandes acontecimentos da
Palestina era considerada a cidade santa natildeo somente por ser administrada
politicamente por Herodes o grande jaacute que muito antes dele a cidade jaacute havia se
transformado no centro espiritual e religioso do Judaiacutesmo A cidade no tempo dos
gregos e romanos tinha de certa forma uma feiccedilatildeo internacional Jesus entrou na
cidade foi aclamado mas logo rejeitado e entregue para ser morto pelo grupo dos
religiosos encarregados de todos os rituais do Templo (Gnilka 2000 p 49)
45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS
Jesus viveu num contexto muito religioso Foi apresentado no templo
circuncidado ao oitavo dia conforme a tradiccedilatildeo da religiatildeo judaica Sempre houve
uma tendecircncia de separar Jesus do contexto judaico tanto por judeus como por
cristatildeos Swidler pontua que os cristatildeos historicamente natildeo somente procuraram
mostrar que tudo o que Jesus fez era bom como procuraram demonstrar que tudo o
que ele fez foi oposto ao modo de agir dos judeus Por outro lado os judeus
aceitaram a interpretaccedilatildeo cristatilde que via Jesus como um antijudeu Atualmente as
coisas estatildeo mudando judeus tecircm visto Jesus como um autecircntico judeu enquanto
que um grande nuacutemero de estudiosos cristatildeos estatildeo convencidos de que soacute se pode
62
compreender adequadamente Jesus contextualizando-o num ambiente e como um
autecircntico Judeu (Swidler 1993 p108)
O Judeu Geza Vermes (com formaccedilatildeo cristatilde) no proacutelogo de seu livro o
ldquoAutecircntico Evangelho de Jesusrdquo relata que desde o fim da deacutecada de 1960 vem se
dedicando a pesquisar sobre Jesus indiferente agraves tradiccedilotildees cristatildes e judaicas a
respeito da pessoa do nazareno Vermes assim se expressa ldquoatuando como
historiador simpatizante e descartando vieses denominacionais tanto a deificaccedilatildeo
de Jesus pelos cristatildeos como a sua caricatura judaica tradicional como apoacutestata
maacutegico e inimigo do povo de Israel eu apenas tentei tirar a limpo e reconstruir uma
imagem de Yeshua filho de Joseacute do pequeno povoado galileu de Nazareacute (Vermes
2006 p7)
Digno de nota eacute que sendo Jesus judeu da Palestina judaica do primeiro
seacuteculo ldquona divisatildeo temporal feita em torno delerdquo (Vermes 2006 p7) obviamente
Jesus conviveu com os diversos grupos existentes na Palestina Conforme os
Evangelhos as relaccedilotildees de Jesus com os liacutederes dos movimentos religiosos nem
sempre foram amistosos Segundo Gnilka diversos eram os movimentos e grupos
poliacuteticos-religiosos nos dias de Jesus Quase todos provieram dos chassidim (os
piedosos) que haviam apoiado a resistecircncia dos macabeus e tambeacutem resistiram agrave
usurpaccedilatildeo dos asmoneus Desse movimento surgiu a maioria dos grupos religiosos
contemporacircneos de Jesus Esses grupos a maioria citados nos evangelhos satildeo
denominados de essecircnios fariseus saduceus e zelotes (Gnilka 2000 p52-53)
Enumerar esses grupos em relaccedilatildeo ao grau de importacircncia que eles exerciam
na sociedade judaica natildeo eacute uma tarefa faacutecil Diversas satildeo as hipoacuteteses levantadas
pelos pesquisadores a respeito de cada um dos grupos acima mencionados
Saldarini observa o fato de os escribas serem vistos como um grupo coeso apenas
no Novo Testamento sendo que em outras fontes eles satildeo vistos como um grupo
composto por pessoas desde a classe de altos funcionaacuterios ateacute a funccedilatildeo de um
humilde copista Outro fator que o autor observa eacute que para Josefo as trecircs
principais escolas de pensamento judaico dos dias de Jesus eram os fariseus os
saduceus e os essecircnios quando no Novo Testamento os principais oponentes de
Jesus satildeo os fariseus escribas e saduceus (Saldarini 2005 p 15)
63
451 OS ESSEcircNIOS
Dentre os grupos religiosos que temos mencionado os essecircnios satildeo os
menos conhecidos se levarmos em consideraccedilatildeo que a biacuteblia natildeo os menciona
contudo eles tecircm despertado muito interesse desde que foram descobertos os
manuscritos nas cavernas de Qumran em 1947 O jovem Mohammed ed-Dib (= ldquoo
lobordquo) conforme a descriccedilatildeo feita por J Jeremias (Jeremias 2006 p 401-429 cf
Jeremias 1979 p 117-148) tornou-se o grande protagonista talvez da maior
descoberta do seacuteculo concernente agrave literatura religiosa ou por que natildeo dizer
universal J Jeremias nos fornece alguns detalhes sobre a importacircncia das
descobertas de Qumran e o judaiacutesmo contemporacircneo de Jesus Depois que
Mohammed descobriu a primeira gruta outras dez foram descobertas sendo ateacute
hoje numeradas de 1 a 11 O papel dos beduiacutenos foi fundamental nas descobertas
visto que sem a busca incessante deles a maioria dos rolos natildeo teriam sido
descobertos Os manuscritos satildeo em um nuacutemero de aproximadamente 600 Mesmo
que a maioria seja apenas de fragmentos alguns do tamanho de uma unha mas
pelo menos uns dez encontram-se quase que totalmente preservados Eles satildeo
datados do periacuteodo que se compreende do seacuteculo III aC ao seacuteculo I da era cristatilde
Atribui-se a produccedilatildeo dos textos e o armazenamento deles em grutas aos essecircnios
conforme nos descreve J Jeremias citando a ldquoHistoacuteria Natural de Pliacutenio
A margem ocidental (do Mar Morto) fora do alcance da influecircncia nociva (de suas aacuteguas) estatildeo estabelecidos os essecircnios Eacute um agrupamento de solitaacuterios uacutenico no mundo sem mulheres ndash pois renunciam ao amor sexual e sem dinheiro eles vivem na sociedade das palmeiras (Embora se abstenham do casamento) o nuacutemero de seus adeptos se manteacutem e se renova cada dia pela afluecircncia daqueles que cansados de lutar contra as vagas de destino vecircm participar de sua vida Assim coisa incriacutevel eles permanecem atraveacutes de milhares de geraccedilotildees uma raccedila eterna ainda que natildeo existam nascimentos entre eles (V 1713)
Para J Jeremias natildeo haacute duacutevida que Pliacutenio se refere aos essecircnios mesmo
que por engano os tenha chamado de raccedila eterna Os essecircnios surgiram por volta
de 167-154 aC apoacutes Antiacuteoco Epifacircnio profanar o Templo de Jerusaleacutem Em 152
aC apoacutes a guerra com os siacuterios Jocircnatas Macabeus cinge a tiara de sumo
sacerdote mesmo natildeo pertencendo agrave descendecircncia dos sadoquitas que eram os
64
uacutenicos habilitados para exercer tal funccedilatildeo Uma revoluccedilatildeo acontece no coleacutegio
sacerdotal resultando na formaccedilatildeo de um grupo denominado de ldquoKhassyyayardquo os
piedosos que em grego satildeo denominados de ldquoessenoirdquo ou ldquoessaicircoirdquo conhecidos
hoje por essecircnios
Os essecircnios eram apocaliacutepticos esperavam o iminente fim deste mundo que
eles acreditavam estar bem proacuteximo Guardavam o saacutebado a ponto de natildeo ajudar
um animal no parto e nem socorrecirc-lo caso caiacutesse num buraco no dia de saacutebado
(Gnilka 2000 p 55-56) tambeacutem tinham como chefe um homem chamado com toda
reverecircncia nos rolos como o ldquoMestre da Justiccedilardquo ldquoo grande teoacutelogo e exegeta da
seitardquo (cf Jeremias 2006 p 408) Para Sean Freyne o chamado ldquoPapiro da Guerrardquo
(1QM) intitulado como ldquoA Guerra dos filhos da luzrdquo mostra como essa comunidade
apregoava um certo tipo de guerra coacutesmica parecida com a religiatildeo zoroaacutestrica da
Peacutersia onde a ecircnfase do conflito estaacute centrada na ideia de uma guerra do bem e o
mal (Freyne 2008 p26) J Jeremias define a teologia tambeacutem como uma doutrina
baseada em dois espiacuteritos ou seja no espiacuterito de Deus e no espiacuterito de Belial ou
seja no diabo e isso resulta na constante luta entre a Luz e as Trevas que tambeacutem
se desenrolam no interior do ser humano (Jeremias 2006 p 412) De acordo com J
Jeremias o dualismo essecircnio eacute monoteiacutesta conforme podemos ver em IQS 31517-
1925 abaixo reproduzido
Do Deus dos conhecimentos Vem tudo o que eacute tudo o que acontece e antes mesmo que as coisas existissem ele fixara todo o seu plano
Eacute ele quem criou o homem para dominar o mundo e pocircs diante de dois espiacuteritos para que ele ande neles ateacute ao momento fixado por sua divina visita
Satildeo os (dois) espiacuteritos de verdade e de iniquidade Da fonte da luz sai a verdade E da fonte das trevas sai a iniquidade Eacute ele (Deus) quem criou os espiacuteritos da luz e das trevas
65
Observamos acima algumas descriccedilotildees a respeito do grupo dos essecircnios
contudo segundo Freyne (Freyne 2008 p26) natildeo se pode resumir o pensamento
desse grupo com um periacuteodo de aproximadamente 200 anos de histoacuteria apenas em
um ponto de vista Isso pode ser visto por exemplo em 4Q 521 onde o texto
demonstra o anseio dos oprimidos por um messias libertador que venha ldquocurar os
feridos distribuir riquezas entre os necessitados conduzir de volta os exilados e
enriquecer os famintosrdquo ou ainda textos como 4Q 426 onde o ldquoGrande Deusrdquo trava
uma decisiva batalha contra as naccedilotildees e garante a paz definitiva ao seu povo O
que Freyne procura dizer eacute que o pensamento dos essecircnios eacute amplo demais para
ser resumido em poucas palavras contudo como natildeo eacute nosso interesse pesquisar a
fundo essa seita contentamo-nos a princiacutepio com algumas informaccedilotildees sobre
eles35
Ainda sobre os essecircnios sabemos por David Flusser que eles eram ferrenhos
inimigos dos fariseus uma vez que condenavam os feitos farisaicos energicamente
No Rolo de Accedilatildeo de Graccedilas (IQH) 4 6-8 estaacute escrito sobre os fariseus da seguinte
maneira ldquoE conduziram o povo por caminhos desviados ao lhes proferir discursos
macios Falsos mestres levam para maus caminhos e caminham cegamente para a
queda pois suas obras satildeo feitas no logrordquo (cf Flusser 2002 p 46)
Aleacutem do que jaacute foi dito sobre os essecircnios surge uma pergunta Ateacute que ponto
os essecircnios tiveram contato com Jesus ou seria Jesus membro da seita dos
essecircnios Segundo Charlesworth eacute possiacutevel que Jesus tenha encontrado alguns
essecircnios em suas idas e vindas no periacuteodo em que exerceu o seu ministeacuterio ou ateacute
antes disso Contudo natildeo podemos afirmar isso jaacute que os essecircnios natildeo satildeo
mencionados no Novo Testamento e na verdade natildeo temos certeza se eles
exatamente eram conhecidos (Charlesworth 1992 p76) Para Charlesworth o que
fica evidente eacute que os essecircnios e Jesus foram contemporacircneos o que nos leva a
deduzir que eacute muito provaacutevel que Jesus ao menos tenha ouvido falar deles e ateacute
conhecesse a doutrina rituais religiosos e haacutebitos sociais desse grupo
(Charlesworth 1992 p79)
Charlesworth enumera algumas semelhanccedilas e diferenccedilas entre Jesus e os
essecircnios 35
Para mais informaccedilotildees sobre os essecircnios ver (Jeremias 2006 p 401-429 e Charlesworth 1992 p 70-89)
66
a) Jesus partilha com os essecircnios de uma teologia monoteiacutesta
b) Como os essecircnios a teologia de Jesus era categoricamente escatoloacutegica
c) Jesus partilhava com os essecircnios uma total entrega a Deus e a Toraacute (Ele
pode ter se referido aos essecircnios quando elogiou os eunucos por causa do reino de
Deus cf Mt 19 10-12)
d) Jesus conforme o Evangelho de Marcos proibiu o divoacutercio (Mateus tornou-
a casuiacutestica Mt 5 31-32 199) assim como os essecircnios eram totalmente contraacuterios
ao divoacutercio ldquoo rei deve permanecer casado com apenas uma mulherrdquo (cf II Q
Temple 57 17-18)
f) Dos essecircnios Jesus rejeita a riacutegida observacircncia do Saacutebado
g) Jesus ao contraacuterio dos essecircnios aproximou-se de todas as classes
sociais inclusive de prostitutas e cobradores de impostos Aleacutem disso a visatildeo de
Jesus em relaccedilatildeo aos rituais de purificaccedilatildeo judaicos era muito diversa das dos
judeus
h) A atitude liberal de Jesus sobre a purificaccedilatildeo se contrastava com a
paranoia dos essecircnios principalmente em relaccedilatildeo ao afastamento das pessoas que
tinham lepra Em II Q Temple 48 14-15 eacute orientado a que existam cidades proacuteprias
para o isolamento dos leprosos enquanto que Jesus repousou em Betacircnia na casa
de Simatildeo o leproso (Mc 143)
i) Jesus enfatizou o amar uns aos outros (na paraacutebola do bom samaritano)
enquanto que os essecircnios na renovaccedilatildeo anual entoavam maldiccedilotildees sobre os filhos
das trevas especialmente sobre aqueles que natildeo eram essecircnios (1Qs) Jesus pode
ter se dirigido a eles quando se referiu ao dito ldquoamaraacutes o teu proacuteximo e odiaraacutes ao
teu inimigo (Mt 5 43)
Em resumo Charlesworth conclui que o cristianismo natildeo foi fundado com as
bases do essenismo conforme havia dito Renan em sua obra ldquoVida de Jesusrdquo
Jesus foi o fundador do cristianismo que foi fundado em meio agraves vaacuterias correntes
judaicas da eacutepoca sem que se possa mencionar uma uacutenica fonte como a trajetoacuteria
Jesus natildeo era um essecircnio ldquomas pode ter partilhado com os essecircnios mais do que a
mesma naccedilatildeo tempo e lugarrdquo (Charlesworth 1992 p 84-88)
452 OS FARISEUS
67
Os fariseus (pharushim ndash separados) - ldquoum grupo de estudiosos leigos que
apareceram na histoacuteria cerca de um seacuteculo e meio antes do nascimento de Jesus
() e se tornaram autoridades na vida dos judeus durante o reinado da rainha
Alexandra em (76-67 aC)rdquo (Swidler 1993 p 74) - nasceram do grupo dos chassidim
e eram em nuacutemero de seis mil pessoas em Jerusaleacutem nos dias de Jesus (Flusser
2002 p 44) Eles tambeacutem natildeo concordavam com a usurpaccedilatildeo por parte dos
asmoneus Segundo Gnilka a maioria dos escribas pertencia ao grupo dos fariseus
Em relaccedilatildeo aos saduceus os fariseus eram a maioria mas a influecircncia poliacutetica
destes era menor Jaacute o clima entre fariseus e essecircnios era hostil Os essecircnios
consideravam os fariseus com ldquogente que amolece e dissolve a lei e de quem se
pode esperar o logro mentira seduccedilatildeo e errordquo (Gnilka 2000 p57-60) Segundo
Flusser os fariseus eram denominados pelos essecircnios como ldquocaiadosrdquo e Jesus
tambeacutem se referiu a eles no Evangelho de Mateus 23 27-28 dizendo ldquoAi de voacutes
escribas e fariseus hipoacutecritas Sois semelhantes a sepulcros caiados que por fora
parecem bonitos mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidaderdquo
Embora o ataque dos essecircnios fosse em alguns pontos parecidos com a criacutetica que
Jesus fez contra os fariseus a distacircncia entre eles eacute muito grande Os essecircnios
rejeitavam explicitamente a doutrina dos fariseus ao passo que Jesus de uma
forma mais positiva via-os como os ldquoherdeiros contemporacircneos de Moiseacutesrdquo (cf
Flusser 2002 p46-48)
Os fariseus eram muito queridos pela maioria da populaccedilatildeo judaica devido agrave
devoccedilatildeo deles aos rituais religiosos Segundo Sanders no periacuteodo asmoneu os
fariseus tambeacutem exerceram uma influecircncia e forccedila poliacutetica muito importante ainda
que depois perderam tal forccedila No governo de Herodes somente o rei tinha o poder
poliacutetico uma vez que todos os que o ameaccedilassem eram imediatamente executados
Na Galileia o sucessor de Herodes foi seu filho Antipas que tambeacutem natildeo se mostrou
muito disposto assim como seu pai a dar autoridade a algum grupo de piedosos e
mestres religiosos Somente em Jerusaleacutem apoacutes Arquelau (irmatildeo de Antipas) ser
deposto eacute que os saduceus respaldados pelo poder romano puderam como grupo
religioso exercer forccedila poliacutetica Os fariseus mesmo sendo a maioria em relaccedilatildeo aos
saduceus continuaram apenas trabalhando ensinando e exercendo suas funccedilotildees
68
no culto judaico nas sinagogas A popularidade deles provavelmente aumentou
contudo natildeo o poder poliacutetico (cf Sanders 2005 p68)
A visatildeo de Saldarini sobre os fariseus compactua com Sanders a respeito da
popularidade dos fariseus Ele observa que para o evangelista Marcos os fariseus
eram um grupo muito reconhecido na comunidade da Galileia Jesus um jovem
oriundo de uma famiacutelia de artesatildeos considerada uma classe inferior na Palestina
natildeo dispunha da mesma honra dada aos fariseus principalmente em Nazareacute sua
terra natal Mas com o decorrer do tempo Jesus atraveacutes de seu ministeacuterio
conseguiu a simpatia de muitos seguidores em outras cidades da Galileia
contraindo para si o ciuacuteme a ira e a perseguiccedilatildeo dos fariseus O confronto dos
fariseus com Jesus a princiacutepio estava baseado em temas teoloacutegicos a respeito do
Jejum (Mc 218) da observacircncia do saacutebado (Mc 224 32) e sobre o divoacutercio (Mc
102) da purificaccedilatildeo das matildeos (Mc 71) e outros temas relacionados com respeito agrave
conduta de Jesus entre os homens considerados pecadores (Mc 216) etc Para os
fariseus no entanto o que estava em jogo natildeo eram apenas os debates teoloacutegicos
mas principalmente a simpatia e o controle da comunidade (Saldarini 2005 p 162-
164)
Para Saldarini os fariseus juntamente com os escribas eram os principais
opositores de Jesus na Galileia Em Jerusaleacutem os seus adversaacuterios tinham um
poder poliacutetico muito maior jaacute que entre eles estavam os chefes dos sacerdotes os
escribas e os anciatildeos do povo dentre os membros desses grupos principalmente
dos sacerdotes estavam os que entregaram Jesus agrave morte O evangelista Marcos
menciona os fariseus em cinco casos (2 18 224 32 811-15 102) e em todos os
casos eles estatildeo em conflito com Jesus36 Os escribas e fariseus juntos satildeo
mencionados duas vezes em Marcos tambeacutem quando estatildeo em conflito com Jesus
(216 7 1-5) Com os herodianos os fariseus satildeo mencionados duas vezes em
Marcos (36 1213) Para o evangelista Marcos os fariseus satildeo situados sempre na
36
Geza Vermes observa que no Evangelho de Mateus os fariseus natildeo satildeo sempre vistos no aspecto negativo Vermes vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e amor a Deusrdquo eles por outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser seguida
69
Galileia (3 2-6 7 1-5 2 18-24 811 102) A uacutenica exceccedilatildeo no evangelho de
Marcos eacute quando os fariseus e os herodianos satildeo enviados a Jesus a fim de
apanhaacute-lo em Jerusaleacutem (1213) Ao contraacuterio de Josefo que situa os fariseus
sempre em Jerusaleacutem ao lado dos chefes dos judeus Marcos mostra-os sempre
ativos na Galileia (Saldarini 2005 p159-160)
Apesar dos fariseus estarem sempre em confronto com Jesus nos
Evangelhos alguns pesquisadores veem algumas semelhanccedilas entre o movimento
de Jesus e o movimento dos fariseus Swidler lista algumas semelhanccedilas entre os
dois grupos Segundo Swidler Jesus reinterpretou as Escrituras hebraicas de
maneira condizente com o meio social onde se encontrava Jesus tambeacutem participou
de refeiccedilotildees entre amigos do tipo farisaico Tambeacutem segundo Swidler eacute possiacutevel ver
semelhanccedilas na doutrina de Jesus a respeito do amor no Shema oraccedilatildeo do
monoteiacutesmo nas bem aventuranccedilas em questotildees relacionadas agrave ressurreiccedilatildeo
tambeacutem seria ver fortes indiacutecios de um espiacuterito farisaico na vida de Jesus (cf
Swidler 1993 p78)
Para fundamentar essa teoria Swidler busca outros pesquisadores como o
teoacutelogo catoacutelico Pawlikowski que chegou a concluir que natildeo seria errado ldquoconsiderar
o movimento de Jesus como uma parte do movimento farisaico geral embora em
muitos campos tivesse um ponto de vista diferenciadordquo Swidler ainda cita o
estudioso protestante E P Sanders referindo-se a ele como mais cauteloso sobre o
assunto abordado poreacutem natildeo hesita em afirmar tambeacutem que ele faz parte do
nuacutemero sempre crescente de especialistas que duvidam que tenham existido
ldquopontos importantes de oposiccedilatildeo entre Jesus e os fariseusrdquo (Swidler 1993 p78)
A forte tendecircncia de colocar Jesus como um judeu apenas corrobora o que
ele sempre foi um judeu e natildeo um cristatildeo uma vez que o cristianismo soacute veio a
existir apoacutes a morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus Entre os judeus catoacutelicos e
protestantes tecircm surgido renomados defensores da teoria Jesus dentro do
judaiacutesmo Swidler aleacutem de citar um catoacutelico e um protestante como referecircncia cita
ainda um judeu (Geza Vermes) para corroborar esse pensamento Vermes em seu
livro Jesus e o mundo do Judaiacutesmo descreve ldquoJesus era um hasid galileu nisso a
meu ver reside a sua grandeza e tambeacutem o germe de sua trageacutediardquo (Vermes 1996
p20)
70
Para Vermes contudo Jesus natildeo foi muito amado pelos fariseus porque
Jesus segundo a visatildeo e interpretaccedilatildeo biacuteblica dos fariseus desprezava
propositadamente alguns costumes tradicionais como sentar-se agrave mesa com
publicanos e prostitutas No entanto para Vermes natildeo parece que tenha havido
discoacuterdia entre Jesus e os fariseus em temas essenciais da religiatildeo e feacute judaica
Vermes define a relaccedilatildeo de Jesus com os fariseus da seguinte maneira ldquoNatildeo
obstante o conflito entre Jesus da Galileia e os fariseus de sua eacutepoca ter-se-ia
assemelhado em circunstacircncias normais agrave mera luta intestina de facccedilotildees
pertencentes ao mesmo corpo religioso como a que se travou entre caraiacutetas e
rabanitas na Idade Meacutedia ou entre os ramos ortodoxo e progressista do judaiacutesmo na
eacutepoca modernardquo (Vermes 1996 p20)
Vermes observa ainda que no Evangelho de Mateus os fariseus nem
sempre satildeo vistos no aspecto negativo Ele vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a
respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles
tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado
juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento
os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e a mor a Deusrdquo eles por
outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o
assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos
fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles
eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser
seguida (Vermes 2006 p98)
Segundo Swidler tanto os pontos positivos e os negativos foram adotados
diretamente pela Comissatildeo do Vaticano para Relaccedilotildees Religiosas com os Judeus e
indiretamente por outras igrejas O Catecismo da Igreja catoacutelica romana diz que
ldquopode-se tambeacutem frisar que se Jesus se mostra severo para com os fariseus eacute
porque estaacute mais proacuteximo deles que de quaisquer outros grupos judaicos seus
contemporacircneosrdquo (cf Vermes 1996 p79)
Nesse invoacutelucro de pensamentos sobre Jesus e os fariseus Swidler leva em
conta o fato de Vermes ter apontado Jesus como participante do grupo dos
ldquohassideus ou devotosrdquo Dentre as muitas especulaccedilotildees descritas por Swidler (nem
71
todas expostas aqui) eacute digna de nota a conclusatildeo desses apontamentos nas
palavras do proacuteprio autor
Assim talvez a melhor maneira de situar Ieshua no contexto do judaiacutesmo da sua eacutepoca seja como mestre (rabi) viandante e que fazia milagres um saacutebio (hakaham) da Galileia hassid galileu que sob muitos aspectos se assemelhava a Hillel (cujos ensinamentos acabaram mais tarde prevalecendo sobre os Shammai no judaiacutesmo rabiacutenico) que alguns estudiosos iriam considerar como algueacutem que teve um relacionamento muito proacuteximo com os fariseus aos quais poreacutem ele criticava sendo por sua vez criticado por eles Sigal o considerou hassid galileu hakham e proto-rabino o qual como Iohanan ben Zakkai antes e depois do ano 70 dC criticou duramente os pharisaioi os perushim (que Sigal natildeo considerava predecessores do judaiacutesmo rabiacutenico muito embora por vezes um emprego impreciso do termo pharisaioi nos evangelhos e em Josefo pudesse incluir alguns proto-rabinos) Estou convencido de que Sigal nos fornece a mais exata e abrangente descriccedilatildeo do lugar de Ieshua na vida judaica do seu
tempo (Swidler 1993 p 86-87)37
A proximidade de Jesus com os fariseus eacute tambeacutem notada por Flusser Ele
nota que nos Evangelhos sinoacuteticos diferentemente de Joatildeo (cf Jo 18 3) os fariseus
natildeo figuram em nenhuma descriccedilatildeo do julgamento de Jesus Flusser ainda nota
que nos primoacuterdios do cristianismo quando os cristatildeos foram perseguidos pelo
ldquosumo sacerdote saduceu o Raban Gamaliel tomou seu partido e os salvourdquo (At 5
17-42) Da mesma maneira Paulo quando estava perante o Sineacutedrio em Jerusaleacutem
vendo que seria punido severamente apelou para os fariseus e encontrou neles
solidariedade (At 22 30 236-10) jaacute que a outra parte era composta por saduceus
(Flusser 2002 p49)
A possiacutevel afeiccedilatildeo dos fariseus em relaccedilatildeo aos primeiros cristatildeos eacute
mencionada por Flusser sobre ldquoTiago o irmatildeo do Senhor e aparentemente outros
cristatildeosrdquo (cf Antiquities book 20 200-2001 in Josephus 1999 p656) que foram
condenados agrave morte em 62 dC pelo sumo sacerdote saduceu (ilegalmente) mas
foram salvos pelos fariseus quando estes apelaram ao rei que por sua vez acabou
37
Segundo Swidler o rabino Phillip Sigal de Pittsburgh os fariseus dos evangelhos natildeo satildeo os
predecessores dos rabis posteriores a 70 dC responsaacuteveis pelos escritos e tambeacutem sem duacutevida fundadores do judaiacutesmo dos nossos dias Para Sigal os predecessores dos rabis natildeo eram nem hillelistas (da escola de Hillel) nem Shamaiacutetas (da escola de Shamai) e nem pertenciam a nenhuma escola ou ldquocasardquo (bet) propriamente dita Ieshua (Jesus) natildeo era saduceu ou fariseu tampouco hilletita nem shamaiacuteta mas era um protorrabi antecipado da eacutepoca tanaiacutetica A sua maneira de ensinar era baseada na liberdade de interpretaccedilatildeo e autoridade conforme o modelo de ensinar protorrabiacutenico [] Ieshua era hakham (saacutebio filoacutesofo um protorrabi) como um profeta carismaacutetico que pregava sobre assuntos assombrosos e aterradores conforme a halakhah juntamente com sua pregaccedilatildeo hagaacutedica (Swidler 1993 p 86)
72
destituindo tal sumo sacerdote Segundo Flusser os fariseus possivelmente
consideravam a relaccedilatildeo dos saduceus com os romanos como um ato de
ldquodespotismo sacerdotalrdquo e essa poderia ser a causa a partir da leitura dos Sinoacuteticos
da ausecircncia de relatos da presenccedila de fariseus no julgamento e condenaccedilatildeo de
Jesus Flusser pressupotildee que os Sinoacuteticos natildeo mencionam um protesto dos fariseus
a favor de Jesus uma vez que eles jaacute haviam registrado anteriormente um Jesus
ldquoantifarisaicordquo em suas narrativas (Flusser 2002 p50)
453 OS SADUCEUS
Os saduceus que natildeo eram originaacuterios dos chassidim mas dos asmoneus
respeitavam os fariseus porque estes tinham um grande prestiacutegio com a populaccedilatildeo
em geral A classe dos saduceus era composta por gente nobre e rica da sociedade
Eles rejeitavam a doutrina da ressurreiccedilatildeo dos mortos e a existecircncia dos anjos
Tambeacutem soacute aceitavam o Pentateuco como verdade de feacute ldquoOs saduceus possuiacuteam o
poder os fariseus possuiacuteam a influecircncia sobre o povordquo (Gnilka 2000 p 61-62)
Flusser tambeacutem coloca os saduceus como um grupo pequeno menor do que os
fariseus por outro lado ele observa que os saduceus eram poderosos uma vez que
pertenciam a aristocracia sacerdotal do templo Eles natildeo eram revolucionaacuterios como
os fariseus (que se envolveram na guerra civil no periacuteodo macabeu) negavam a
validade da tradiccedilatildeo oral e consideravam toda a crenccedila na vida futura como uma
tolice (Flusser 2002 p45)
Nos Evangelhos sinoacuteticos os saduceus satildeo mencionados mais no Evangelho
de Mateus sendo que em Marcos e Lucas eles satildeo mencionados apenas uma vez
em cada Evangelho (Mc 12 18-27 Lc 20 27-40) No entanto tanto para Mateus e
Marcos como para Josefo os saduceus assim como os fariseus eram muito
conhecidos no primeiro seacuteculo da era cristatilde (Saldarini 2005 p183-184) Os
saduceus satildeo sempre colocados por Josefo ao lado dos fariseus Josefo tambeacutem
situa os saduceus como sendo um grupo pertencente agrave classe dominante Em Atos
dos apoacutestolos os saduceus discutem com os fariseus acerca da ressurreiccedilatildeo por
causa de um discurso de Paulo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (At 23) Em Atos
(41 517) os saduceus tambeacutem satildeo associados aos maiorais do templo ou seja agrave
classe sacerdotal (Saldarini 2005 p308-309)
73
A classe sacerdotal estaacute intimamente relacionada ao julgamento de Jesus
Em Lucas 22 54 lemos ldquoPrenderam-no e levaram-no introduzindo-o na casa do
Sumo Sacerdote Pedro seguia de longerdquo Segundo Flusser o clatilde sacerdotal e o
proacuteprio sumo sacerdote eram saduceus Caifaacutes era o sumo sacerdote e tambeacutem era
a figura mais importante do segundo Templo Foi na casa (palaacutecio) de Caifaacutes que
Jesus passou a noite sob custoacutedia enquanto era escarnecido pelos guardas (Lc 22
63) Os saduceus odiavam a Jesus possivelmente porque o consideravam um
profeta (ldquoFaz uma profecia quem eacute que te bateurdquo Lc 22 64) e sua presenccedila em
Jerusaleacutem podia ser uma clara ameaccedila Segundo Joatildeo os motivos da condenaccedilatildeo
de Jesus pela classe sacerdotal eacute que
[] os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram ldquoQue faremos Esse homem realiza muitos sinais Se o deixarmos assim todos creratildeo nele e os romanos viratildeo destruindo o nosso lugar santo e a naccedilatildeordquo Um deles poreacutem Caifaacutes que era o Sumo Sacerdote naquele ano disse-lhes ldquoVoacutes nada entendeis Natildeo compreendeis que eacute de vosso interesse que um soacute homem morra pelo povo e natildeo pereccedila a naccedilatildeo todardquo Natildeo dizia isso por si mesmo mas sendo sumo Sacerdote naquele ano profetizou que Jesus morreria pela naccedilatildeo ndash e natildeo soacute pela naccedilatildeo mas tambeacutem para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos Entatildeo a partir desse dia resolveram mataacute-lo Jesus por isso natildeo andava em puacuteblico entre os judeus mas retirou-se para a regiatildeo proacutexima do deserto para a cidade chamada Efraim e aiacute permaneceu com seus disciacutepulos (Jo 11 47-54)
A atitude de Caifaacutes em relaccedilatildeo agrave morte substituta de Jesus (ldquoeacute de vosso
interesse que um soacute homem morra pelo povordquo) eacute vista por Flusser mais como uma
justificativa do sumo sacerdote uma vez que a tradiccedilatildeo judaica repudiava o ato de
entregar um cidadatildeo judeu para que fosse morto por estrangeiros era um pecado
imperdoaacutevel segundo a halakaacute38 Flusser cita ainda o Rolo do Templo essecircnico
(64 7-8) que diz ldquoSe um homem calunia Meu povo e entrega Meu povo para uma
naccedilatildeo estrangeira e pratica a iniquidade contra meu povo penduraacute-lo-eis numa
38
Zuurmond define a halakaacute da seguinte maneira ldquoeacute o way of life judaico o conjunto de prescriccedilotildees e proibiccedilotildees que definem a maneira como vivem os judeus Uma questatildeo halaacutequica eacute uma disputa sobre a halakaacute geralmente com base na interpretaccedilatildeo de textos do Antigo Testamento Nem toda a questatildeo halaacutequica eacute de ordem moral As leis de pureza por exemplo formam uma parte importante da halakaacute mas ndash pelo menos segundo nosso modo de falar ndash natildeo tem caraacuteter moralrdquo (Zuurmond 1998 p 77) A raiz halak tambeacutem pode ser definida como a ldquoviardquo a ldquocaminhadardquo ou seja ldquoa regra (de vida) que vai permitir a aplicaccedilatildeo da Torah escrita agraves circunstacircncias reais e mutaacuteveis da vida O plural eacute halakot regras decisotildees e coleccedilotildees de leisrdquo (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
74
aacutervore e ele morreraacuterdquo Ainda havia uma tradiccedilatildeo oral dos saacutebios judeus com o
seguinte teor ldquose haacute um grupo de pessoas e os gentios lhes dizem entregai um de
voacutes para noacutes e o mataremos se natildeo fizerdes mataremos a todos a (regra eacute) deixai
que todos sejam assassinados e natildeo entregueis a eles uma uacutenica alma em Israel
poreacutem se eles o escolherem deixai que o entreguem para que todos natildeo sejam
massacradosrdquo (cf Flusser 2002 p 164-166)
Caifaacutes natildeo se restringiu apenas a entregar Jesus aos romanos Ele sabia que
eles eram implacaacuteveis a qualquer judeu rebelde ou a movimentos profeacuteticos
entusiastas que se levantassem na Palestina No entanto parece que Caifaacutes natildeo
estava preocupado com as tradiccedilotildees de seu povo O viacutenculo dele com os suacuteditos e
representantes de Cesar se estreitava ainda mais quando o vemos em Atos dos
Apoacutestolos (4 1-3 46 5 27-28) juntamente com a classe sacerdotal (os saduceus)
prendendo muitos cristatildeos em Jerusaleacutem pelos mesmos motivos que Jesus foi
entregue aos romanos sem se importar com as tradiccedilotildees judaicas das quais ele
deveria ser o principal observador (Flusser 2002 p 154-166)
454 OS ZELOTAS
Os movimentos de resistecircncia nos dias de Jesus estatildeo ligados ao projeto de
romanizaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo da Galileia por Herodes Antipas (Crossan 2009 p16-
18) O anseio de Antipas em se tornar rei uma vez que ele foi nomeado por Cesar
Augusto como tetrarca da Galileia e Pereia e seu irmatildeo Felipe ficou como tetrarca
da parte do extremo norte do paiacutes Jaacute Arquelau o outro filho de Herodes o Grande
ficou como etnarca da Idumeia Judeia e Samaria o que deixou Antipas muito
desapontado
Segundo Crossan Antipas comeccedilou a trabalhar para ganhar prestiacutegio em
Roma poreacutem agraves custas de um jugo pesado aos habitantes da Galileia Primeiro ele
fortificou Seacuteforis ldquopara ser o ornamento de toda a Galileiardquo e dedicou a Augusto a
sua cidade-capital reconstruiacuteda Apoacutes a morte de Augusto assumiu como Imperador
de Roma Tibeacuterio Antipas logo teve a ideia de substituir a capital Seacuteforis fundando
uma nova cidade a 32 quilocircmetros ao leste na costa ocidental do mar da Galileia e
nomeou-a Tiberiacuteades em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (cf Crossan 2009 p
17-18) O problema de tudo isso era que as construccedilotildees de Antipas provocavam o
75
aumento dos tributos sobre os galileus causando um descontentamento geral
Contudo para Antipas o que mais importava conforme Crossan nos descreve era
passar a Roma uma imagem de um governante lucrativo na questatildeo da arrecadaccedilatildeo
de impostos o que poderia levar o Imperador a pensar ldquoque eacute que natildeo faria ele
como monarca de toda a paacutetria judaicardquo
As construccedilotildees de Antipas poderiam impressionar Roma mas natildeo poderiam
evitar os movimentos de resistecircncia judaica uma vez que segundo Pagola (2010 p
48) ldquoos camponeses experimentaram pela primeira vez a pressatildeo e o controle
proacuteximo dos governos herodianosrdquo A situaccedilatildeo era tatildeo caoacutetica que aumentou
assustadoramente o nuacutemero de indigentes prostitutas e diaristas enfim parece que
Jesus conheceu ao longo de sua vida uma Galileia onde a desigualdade social era
enorme onde se favorecia a minoria privilegiada de Seacuteforis e Tiberiacuteades ao custo da
pobreza e sofrimento e desintegraccedilatildeo de muitas famiacutelias
Crossan (2004 p 275) nota que a construccedilatildeo ou reconstruccedilatildeo das cidades
de Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo afetou apenas os camponeses iletrados ou seja os
trabalhadores mais humildes mas tambeacutem afetou agrave classe dos letrados Assim ele
conclui que ateacute mesmo o movimento de Jesus relacionado ao reino de Deus
comeccedilou como um movimente de resistecircncia a partir dos camponeses ldquomas
abandonou seu caraacuteter localista e regionalista sob a lideranccedila dos letradosrdquo
Dentre os movimentos de Revolta encontramos Judas galileu que apoacutes a
deposiccedilatildeo de Arquelau (6 d c) natildeo aceitava que o pagamento de impostos devia
ser efetuado diretamente a Roma Segundo Theissen (2004 p163-164) a doutrina
de Judas repercutiu muito chegando ao ponto de alguns ldquoherodianosrdquo questionarem
a Jesus a respeito da questatildeo de se era liacutecito ou natildeo pagar impostos ao Imperador
(cf Mc 12 13-17) Horsley defende que o movimento de Judas o Galileu e de
Sadoc o fariseu que Josefo rotula como a quarta filosofia (as outras satildeo os
fariseus os saduceus e os essecircnios) tecircm sido interpretadas de uma forma errada
por vaacuterios especialistas que afirmam que esse movimento pregava a revolta armada
contra Roma De acordo com Horsley Josefo assim descreveu esse movimento em
Ant 18 4-5 23
Mas um certo Judas gaulanita da cidade de Gamala em combinaccedilatildeo com o fariseus Sadoc insistiu fortemente na resistecircncia Eles diziam que tal
76
avaliaccedilatildeo tributaacuteria implicava escravidatildeo pura e simples e pressionavam a naccedilatildeo a exigir sua liberdade [] Judas o Galileu estabeleceu-se como o liacuteder da quarta filosofia Os seus adeptos concordaram com as ideia dos fariseus em tudo exceto em sua indomaacutevel paixatildeo pela liberdade pois consideram Deus o seu uacutenico liacuteder e senhor (cf Horsley 2010 p 72)
Horsley avalia que Judas e Sadoc estivessem mais ligados ao ensino ou
pregaccedilatildeo ldquocontra a avaliaccedilatildeo tributaacuteria ou ateacute mesmo uma resistecircncia organizada
contra os impostos do que um grupo armado e violento conforme tem sido
interpretado a partir dos escritos de Josefordquo (Horsley 2010 p 78-79)
As informaccedilotildees sobre os grupos de resistecircncias nem sempre satildeo unacircnimes
como vimos acima No entanto podemos afirmar que entre os grupos de resistecircncia
encontram-se os Zelotes (Zelotas) talvez os mais conhecidos O termo Zelotas
encontra-se oito vezes registrado no Novo Testamento Esse termo geralmente
aplica-se ldquoaos guerrilheiros da resistecircncia desde Judas Galileu (6 aC) ateacute os
defensores da fortaleza de Masadaacute (74 dC) Eles eram rigorosamente
observadores do saacutebado da circuncisatildeo (exigiam a circuncisatildeo ateacute mesmo dos
antigos) e tinham fortes crenccedilas escatoloacutegicasrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia
do Novo Testamento p 2686) De acordo com Theissen mesmo que os
seguidores de Judas Galileu sejam chamados de Zelotes natildeo eacute possiacutevel afirmar tal
coisa visto que em Josefo eles ldquoaparecem como grupo apenas depois do inicio da
guerra judaica em 66 dC em relaccedilatildeo com o Templordquo (cf Theissen 2004 p164)
contudo haacute um argumento de peso contra essa teoria uma vez que entre os
disciacutepulos de Jesus por volta da metade do seacuteculo I havia um zelole (Simatildeo Zelote
cf Lc 6 15) e Theissen faz uma observaccedilatildeo ldquoaleacutem disso na Galileiardquo
Os zelotas eram originaacuterios dos fariseus e assim como os essecircnios estavam
ligados pela guerra santa e escatoloacutegica Natildeo satildeo citados nos evangelhos como
grupo mas entre os disciacutepulos de Jesus como foi dito acima havia um disciacutepulo
chamado de ldquoSimatildeo o Zeloterdquo (Lc 615 At 113) Eles lutavam pelos direitos do
pobre do oprimido e a esses ldquoprometiam com a chegada do Reino de Deus a
restauraccedilatildeo de seus direitos e uma nova ordem estabelecida por Deusrdquo (Gnilka
2000 p 60) O fato de entre os disciacutepulos ter um zelote natildeo significa que esse
movimento tenha sido endossado por Jesus jaacute que os ensinamentos de Jesus sobre
o tributo a Cesar e sua atitude para com o saacutebado eacute uma forma de repuacutedio a
77
doutrina apregoada pelos zelotas (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo
Testamento p 2686)
Podemos observar portanto que a possiacutevel relaccedilatildeo de Jesus com os Zelotas
como grupo de resistecircncia eacute muito remota ou praticamente inexistente conforme
Crossan (2004 p275) tem observado Ainda na mesma linha de pensamento de
Crossan Sean Freyne tambeacutem considera remota a hipoacutetese do possiacutevel
envolvimento de Jesus com o grupo dos zelotas Para Freyne (2008 p 130) a
pregaccedilatildeo de Jesus natildeo incitava a vinganccedila uma vez que estava mais baseada no
livro do Gecircnesis (criaccedilatildeo) do que no livro do Ecircxodo (libertaccedilatildeo) ou seja Jesus natildeo
via as demais naccedilotildees ou outras origens eacutetnicas como objeto de remoccedilatildeo
aniquilaccedilatildeo conversatildeo ou conquista como viam os heroacuteis do Antigo Testamento
Contudo para Freyne devemos observar que haacute duas formas de
interpretarmos Jesus de Nazareacute Se o olharmos segundo o ponto de vista de
Crossan veremos um Jesus voltado para um entendimento sapiencial e natildeo
apocaliacuteptico ou seja Jesus teria escolhido um modelo de dominaccedilatildeo monaacuterquica
baseado num ldquoreino dos destituiacutedos e Jootildees ningueacutem vigente no aqui e agora um
reino realizado (por meios maacutegicos e materiais) natildeo apenas proclamadordquo Por outro
lado Freyne observa que o pensamento de Horsley sobre Jesus eacute bem diferente
dos de Crossan Jesus segundo Horsley teria sido um revolucionaacuterio ou seja
partindo desse ponto de vista ldquoo siacutembolo do reino de Deus tal como empregado por
Jesus significava a vitoacuteria de Deus sobre as forccedilas do mal uma concepccedilatildeo que se
coadunava com as expectativas apocaliacutepticas judaicas padratildeordquo posiccedilatildeo essa que
segundo Freyne seria mais convincente (Freyne 2008 p 132)
Bruce Malina vecirc o grupo de Jesus como uma religiatildeo politicamente inserida
onde o reino e o governo de Deus satildeo iminentes ou seja seus disciacutepulos devem
orar para que o reino de Deus venha para o julgamento e recompensa e isso
segundo Malina era compreendido sob o ponto de vista poliacutetico por uma pessoa do
primeiro seacuteculo A morte de Jesus natildeo foi o fim desse reinado pois ldquoos seguidores
de Jesus acreditavam que Deus o ressuscitou dos mortos de maneira que o proacuteprio
Jesus em breve surgiria como vice regente do Deus de Israel como Messias de
Israel com poderrdquo (Malina 2004 p 99) Malina conclui esse pensamento afirmando
que
78
o reino de Deus veio para tomar a forma de uma teocracia representativa e pessoal Nestas dimensotildees ele teria tido a mesma estrutura da religiatildeo poliacutetica de Israel durante o tempo de Jesus A questatildeo aberta era Quem seria o agente o substituto concreto para o Deus de Israel Os membros do grupo de Jesus tinham pouca duacutevida de que esse agente fosse Jesus o Messias de Israel Mas Deus tinha em mente mais natildeo apenas Israel (Malina 2004 p 164)
Portanto pertencer ao grupo de Jesus era mais do que esperar por um reino
poliacutetico era ter um novo modo de vida ia aleacutem das fronteiras de Israel natildeo significa
apenas a libertaccedilatildeo de um jugo poliacutetico mas a libertaccedilatildeo do ser humano como um
todo
79
5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS
E SEUS DESDOBRAMENTOS
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Jesus apesar de ser visto por alguns
pesquisadores com caracteriacutesticas proacuteximas do grupo dos fariseus natildeo fez parte de
nenhum grupo revolucionaacuterio Contudo isso natildeo significa que ele fosse indiferente
aos problemas sociais que afligiam toda a Palestina Em contraste com os
poderosos da eacutepoca que exploravam os pobres atraveacutes da cobranccedila desmedida de
tributos Jesus oferece-se como um descanso aos cansados e oprimidos porque
somente ele tem um jugo suave e um fardo leve (cf Mt 11 28-30) Esse descanso
soacute ele pode oferecer porque recebeu do Pai a quem ele conhece e por quem
tambeacutem eacute conhecido (cf Mt 1127) Abba eacute a palavra por excelecircncia no quesito
intimidade entre Jesus e Pai dos Ceacuteus conforme a tese defendida por J Jeremias
51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA
Jesus conforme a tradiccedilatildeo cristatilde e os vaacuterios testemunhos das fontes (os
Evangelhos) possui o testemunho intriacutenseco de que eacute o Filho de Deus (cf Mt 1433
Mc 11 311 1539 Lc 2227 Jo 134 1127) O Evangelho de Marcos de uma
forma clara jaacute nos mostra a importacircncia desse pensamento teoloacutegico nas seguintes
palavras ldquoPrinciacutepio do Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deusrdquo (Mc 11) Justino
de Roma tambeacutem prima pela exaltaccedilatildeo de Jesus como o Filho de Deus dizendo que
ldquo[] com razatildeo honramos tambeacutem a Jesus Cristo que foi nosso Mestre nessas
coisas e para isto nasceu o mesmo que foi crucificado sob Pocircncio Pilatos
procurador na Judeia no tempo de Tibeacuterio Ceacutesar Aprendemos que ele eacute o Filho
proacuteprio do Deus verdadeirordquo (Justino 1995 p28) ou ainda conforme a confissatildeo
de feacute de Calcedocircnia (451 dC) ldquoJesus eacute verdadeiramente homem e
verdadeiramente Deusrdquo ( Swidler 1993 p30)
Os Evangelhos da infacircncia (Mateus e Lucas) de uma forma independente
narram alguns acontecimentos relacionados ao nascimento e agrave infacircncia de Jesus
Segundo Duquoc as narrativas do nascimento de Jesus relatadas por Mateus e
Lucas se inserem na tradiccedilatildeo do Antigo Testamento como vemos no nascimento de
Isaac (Gn 21 1-7) de Jacoacute (Gn 25 25-26) de Moiseacutes (Ex 2 1-10) de Sansatildeo (Jz
80
13 1-25) e o de Samuel (1 Sam 1 19-26) As caracteriacutesticas de tais narrativas satildeo
ldquodiscernir na concepccedilatildeo ou no nascimento os sinais antecipadores de um destino
particularmente abenccediloado por Deusrdquo Para Duquoc contudo tratar as narrativas de
Mateus e Lucas como Evangelhos da Infacircncia natildeo eacute a forma mais correta e pode
induzir em erro mesmo que a tradiccedilatildeo assim os mencione Nos textos de Mateus e
Lucas observamos que ali se trata mais do nascimento do que a infacircncia de Jesus
conforme vemos resumido no quadro comparativo abaixo (Duquoc 1992 p22)
Mateus Lucas
Genealogia de Cristo 1 1-17 Anuacutencio da concepccedilatildeo virginal a Joseacute 1 18-24 Nascimento do Salvador 125 Visita dos magos 2 1-12 Fuga para o Egito e massacre dos inocentes 2 13-18 Volta a Nazareacute 2 19-23
Anuacutencio do nascimento de Joatildeo Batista 1 5-25 Anuacutencio a Maria 1 26-28 Visitaccedilatildeo 1 39-56 Nascimento do Salvador 2 1-14 Visita dos Pastores 2 15-20 Circuncisatildeo 2 21 Apresentaccedilatildeo no Templo 2 22-38 Volta a Nazareacute 2 39-40 Reencontro no Templo 2 41-52
Os relatos da infacircncia ou do nascimento conforme menciona Duquoc natildeo
fazem parte do querigma (Keacuterygma) mas estatildeo associados mais ao Antigo
Testamento como vimos acima Contudo eles foram inseridos nos Evangelhos e
devem ser lidos a partir da perspectiva dos evangelistas Eles natildeo satisfazem a
curiosidade como fazem os Apoacutecrifos visto que eles estatildeo relacionados mais agrave feacute da
Igreja primitiva do que aos acontecimentos histoacutericos ldquoMateus e Lucas iluminaram
retrospectivamente as recordaccedilotildees atraveacutes da catequese evangeacutelica e os eventos
decisivos da Paacutescoa Natildeo narram uma histoacuteria Propotildeem apenas uma doutrina em
forma de histoacuteria Seria errocircneo querer iluminar a catequese por meio de narrativas
de nascimento O processo foi inversordquo (Duquoc 1992 p24-25)
81
Observamos que as narrativas da infacircncia levantam questotildees sobre a
autenticidade histoacuterica dos relatos dos evangelistas Para Fitzmyer nas narrativas
da infacircncia eacute difiacutecil constatar o realmente histoacuterico poreacutem eacute inegaacutevel o fato de que
exista um nuacutecleo histoacuterico nesses acontecimentos os quais serviram como base
para que os evangelistas numa tradiccedilatildeo posterior pudessem responder perguntas
sobre ldquoQuem eacute elerdquo ou ldquoDe onde ele veiordquo39 (Fitzmyer 1997 p34-35)
Apesar das diferenccedilas e da independecircncia dos evangelhos (Mateus e Lucas)
Fitzmyer observa que haacute pelo menos doze pontos nas narrativas da infacircncia que satildeo
comuns ou pelo menos haacute concoacuterdia entre os dois evangelistas a respeito do
nascimento do menino Jesus os quais seratildeo transcritos abaixo
1) O nascimento de Jesus relaciona-se com o reinado de Herodes Magno
(Mt 21 Lc 15)
2) Maria sua futura matildee eacute uma virgem noiva de Joseacute mas eles ainda
natildeo coabitaram (Mt 118 Lc 12734 25)
3) Joseacute eacute da casa de Davi (Mt 1 1620 Lc 127 24)
4) Um anjo do ceacuteu anuncia a concepccedilatildeo e o nascimento futuros de Jesus
(Mt1 20-21 Lc 1 28-30)
5) O proacuteprio Jesus eacute reconhecido como filho de Davi (Mt 11 Lc 132)
6) Sua concepccedilatildeo aconteceraacute por intermeacutedio do Espiacuterito santo (Mt 1
1820 Lc 1 35)
7) Joseacute natildeo se envolve na concepccedilatildeo (Mt1 18-25 Lc 134)
8) O nome ldquoJesusrdquo eacute imposto antes de seu nascimento (Mt 1 21 Lc
131)
9) O ceacuteu identifica Jesus como ldquoSalvadorrdquo (Mt 121 Lc 211)
10) Jesus nasce depois que Joseacute e Maria vatildeo viver juntos (Mt 1 24-25 Lc
2 4-7)
11) Jesus nasce em Beleacutem (Mt 21 Lc 2 4-7)
12) Jesus se fixa com Maria e Joseacute em Nazareacute na Galileia (Mt 2 22-23
Lc 239-51)
39
Segundo Fitzmyer as narrativas da infacircncia natildeo se originaram de uma tradiccedilatildeo mais primitiva da Igreja visto que nem Marcos (que eacute considerado o primeiro Evangelho a ser escrito) e nem Joatildeo (que eacute reconhecido como sendo de uma tradiccedilatildeo igualmente primitiva a de Marcos mas independente dos Sinoacuteticos) natildeo conteacutem tais relatos mas inicia-se com o Verbo que se fez carne (1 1-18) ou seja com o Verbo divino e preexistente
82
Nos primoacuterdios da Igreja a questatildeo da divindade e humanidade de Cristo era
o centro de muitas controveacutersias teoloacutegicas que partiam de vertentes judaicas ou
entatildeo de certos movimentos cristatildeos considerados como hereges Face agraves muitas
divergecircncias a respeito do Cristo a Igreja tomou frente a tais controveacutersias e pocircs-se
a refutar as heresias com toda a forccedila possiacutevel Correntes judaizantes e gnoacutesticas
que incansavelmente procuravam por todos os meios possiacuteveis proclamar que Jesus
era apenas um homem que morreu pregado na cruz ou entatildeo um divino que
parecia ser humano procuravam a todo custo abalar a feacute daqueles que foram
alcanccedilados pela feacute cristatilde Os Evangelhos e todo o Novo Testamento foram escritos
para fundamentar a feacute dos primeiros cristatildeos em Jesus Cristo Mediante a tantas
heresias que foram surgindo na Igreja tentando negar a divindade de Jesus os
cristatildeos reagiram com veemecircncia escrevendo muitas histoacuterias sobre Jesus como
forma de demonstrar que desde menino o filho de Joseacute e Maria era detentor de
muitos prodiacutegios nunca antes realizados em Israel nem mesmo pelos grandes
profetas do Antigo Testamento
Estas narrativas foram redigidas e fazem parte do que posteriormente ficou
conhecido como os ldquoEvangelhos Apoacutecrifosrdquo Os Apoacutecrifos satildeo portanto a forma
mais clara que a Igreja usou para se opor as teorias que negavam a divindade de
Jesus Na busca de por em evidecircncia a divindade do Mestre os Apoacutecrifos
apresentam Jesus quase sempre como um menino ou um homem prodigioso capaz
de realizar milagres tatildeo grandes que chegam a ser absurdo
A tradiccedilatildeo cristatilde ainda no intuito de preservar a doutrina da filiaccedilatildeo divina de
Jesus procurou de uma forma cuidadosa defender tal doutrina em seus vaacuterios
credos ao longo da histoacuteria do cristianismo Os mais antigos e conhecidos credos
satildeo Credo Apostoacutelico (Seacuteculo III e IV) Credo de Niceacuteia (325 AD - revisado em
Constantinopla em 381 AD) Credo de Calcedocircnia (451 AD) e o Credo de Atanaacutesio
(seacuteculos IV e V) A relaccedilatildeo de Jesus Cristo com Deus Pai e sua funccedilatildeo na
Santiacutessima Trindade satildeo mencionadas em todas as confissotildees acima citadas
(Grudem 1999 p996) Jaacute no primeiro credo (Credo Apostoacutelico) observamos a
importacircncia de Jesus como o Filho de Deus encarnado
Creio em Deus Pai Todo Poderoso Criador do ceacuteu e da terra E em Jesus Cristo seu Filho unigecircnito nosso Senhor concebido pelo Espiacuterito Santo e nascido da Virgem Maria que padeceu sob Pocircncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos
83
que subiu ao ceacuteu e assentou-se agrave direita do Pai Todo-Poderoso de onde haacute de vir para julgar os vivos e os mortos Creio no Espiacuterito Santo na santa igreja catoacutelica na comunhatildeo dos santos na remissatildeo de pecados na ressurreiccedilatildeo da carne e na vida eterna Ameacutem (Grudem 1999 p996)
O credo segundo Thomas P Rausch (2006 p16) ldquoeacute uma declaraccedilatildeo oficial
da crenccedila da Igreja e tem poder normativo para a feacute da Igrejardquo Rausch observa que
o entatildeo cardeal Ratzinger escolheu o Credo Apostoacutelico como base para a sua
abordagem do livro Introduccedilatildeo ao Cristianismo De acordo com Rausch nessa obra
o cardeal faz uma mediaccedilatildeo entre os extremos relacionados agrave Cristologia da feacute e o
Jesus da histoacuteria Por um lado haacute os que procuram reduzir a Cristologia agrave histoacuteria
enquanto que por outro lado haacute os que buscam o abandono da histoacuteria
considerando-a como algo irrelevante para a feacute40 Abaixo reproduzimos um quadro
resumido dos principais conciacutelios Gerais da igreja onde foram formulados os
principais credos da Igreja (cf Rausch 2006 p261)
Conciacutelio Principais Figuras Temas
Niceia (325) Aacuterio (que natildeo estava presente) ldquohouve um tempo em que ele natildeo erardquo 381 bispos presentes
Rejeitou a opiniatildeo de Aacuterio de que o logos havia sido criado Cristo eacute homoousion41 ao Pai
Constantinopla I (381) Influecircncia Capadoacutecia Afirma a feacute de Niceacuteia Um novo credo afirma a divindade do Espiacuterito Nosso credo eacute uma combinaccedilatildeo de ambos
Eacutefeso I (431) Nestoacuterio conjunccedilatildeo de naturezas Maria eacute christokos42 Joatildeo de
Condena Nestoacuterio Maria eacute theotokos mas Cirilo e Joatildeo de Antioquia e excomungam
40
Nesse tratado escrito no final da deacutecada de 60 Ratzinger procura encontrar um meio termo entre Harnack que purifica a feacute da doutrina e do credo colocando a reconstruccedilatildeo do Jesus histoacuterico como fator determinante para a Cristologia com Bultmann para quem somente a feacute em Cristo tem importacircncia para o cristatildeo (cf Rausch 2006 p16) Vale ressaltar aqui que para o entatildeo cardeal Ratzinger ldquosegundo a feacute da Igreja a filiaccedilatildeo divina de Jesus natildeo se deve ao fato de Jesus natildeo ter um pai humano a doutrina do ser divino de Jesus natildeo sofreria nenhuma restriccedilatildeo se Jesus fosse o fruto de um casamento humano normal porque a filiaccedilatildeo divina que eacute objeto da feacute cristatilde natildeo eacute um fato bioloacutegico e sim ontoloacutegico natildeo eacute um evento no tempo e sim na eternidade de Deus ()rdquo Se considerarmos este texto como a base do pensamento de Ratzinger percebemos que a teologia de Bultmann teve para ele na eacutepoca um peso maior (cf Ratzinger 2006 p 204) 41
Homoi ser ldquosemelhanterdquo semelhante quanto ao ser (cf Rausch 2006 p 249) 42
Significa ldquoPortadora do Cristordquo Matildee de Cristo (cf Rausch 2006 p 249)
84
Conciacutelio Principais Figuras Temas
Antioquia Cirilo de Alexandria uniatildeo hipostaacutetica Maria eacute theotokos43
um ao outro
Eacutefeso II (449) (ldquoConciacutelio do Ladratildeordquo)
Flaviano de Constantinopla ldquoa partir de duas naturezas numa soacute hipoacutestase44 e numa soacute pessoardquo (foacutermula da uniatildeo) Dioacutescoro de Alexandria
Dioacutescoro domina Eacute rejeitada a foacutermula de Flaviano (ldquoa partir de duas naturezas uma soacute pessoardquo) O proacuteprio conciacutelio poreacutem eacute rejeitado
Calcedocircnia (451) 600 bispos Tomus do papa Leatildeo escrito para apoiar Flaviano Legados papais insistem numa nova profissatildeo de feacute
Condena Dioacutescoro aceita o Tomus de Leatildeo Prega duas naturezas numa uacutenica pessoa e numa uacutenica hipoacutestase verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem
Observamos que para a Igreja dos primeiros seacuteculos as verdades teoloacutegicas
a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus com o Pai eram de suma importacircncia para a
formaccedilatildeo e crescimento das comunidades cristatildes Por isso defenderam com
coragem e destemor o que acreditavam ser a essecircncia do Evangelho de Jesus
Cristo No entanto sempre houve aqueles que lutaram de todas as maneiras para
por em descreacutedito tanto o Evangelho como a pessoa de Jesus de Nazareacute Os pais
da Igreja tiveram que lutar contra as heresias e contra os hereges que procuraram
desmoralizar o mais importante homem do vilarejo de Nazareacute No entanto conforme
observa Rausch haacute problemas metodoloacutegicos nos Credos da Igreja Eles sempre
pressupotildeem uma Cristologia de ldquocima para baixordquo por isso a Cristologia necessita
de um fundamento criacutetico Para Rausch a Cristologia precisa ser estabelecida de
ldquobaixo para cimardquo ou seja ela precisa estar baseada nos atos e feitos do Jesus
histoacuterico para que natildeo seja acusada de ser uma feacute helenizada onde o carpinteiro
43
Significa ldquoPortadora de Deusrdquo Matildee de Deus (cf Rausch 2006 p 249) 44
Aquilo que estaacute sob ou daacute suporte a um objeto realizaccedilatildeo um ser concreto que suporta as diversas qualidades ou aparecircncias de uma coisa Ser subsistente realidade que existe por si mesma substacircncia (Exemplo medieval- ldquotransubstanciaccedilatildeordquo (cf Rausch 2006 p 249)
85
de Nazareacute teria sido transformado em um ldquosalvador divinizadordquo conforme o conceito
grego do divino (Rausch 2006 p 17)
52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA
Se para termos sucesso no estudo da Cristologia eacute necessaacuterio partirmos de
baixo para cima ou seja nas palavras de Rogers Haight ldquoseria difiacutecil imaginar
algueacutem interessado pela existecircncia humana de uma perspectiva religiosa que natildeo se
sentisse motivado a saber mais sobre Jesusrdquo uma vez que ldquoa Cristologia comeccedilou
com Jesus de Nazareacute e deve comeccedilar com Jesus hoje em diardquo (Rogers 2003
p75) precisamos analisar as fontes e teorias sobre Jesus desde as canocircnicas ateacute
as mais rejeitadas pela tradiccedilatildeo cristatilde Jaacute observamos acima que a Igreja dos
primeiros seacuteculos priorizou por razotildees apologeacuteticas em propagar e defender a
divindade de Cristo e por outro lado natildeo houve um interesse igual quando o tema
era a humanidade de Jesus No entanto com o passar dos seacuteculos surgiram
inuacutemeras questotildees a respeito do homem chamado Jesus de Nazareacute Para responder
tais questotildees ou pelo menos investigaacute-las faz-se necessaacuterio o estudo da Cristologia
partindo do homem Jesus ao Cristo da feacute
Edward Schillebeeckx nos diz que para uma boa reflexatildeo sobre a Trindade
faz-se necessaacuterio uma interpretaccedilatildeo cristoloacutegica de Jesus ou seja ldquona sua
humanidade Jesus eacute tatildeo intimamente do Pai que eacute exatamente nisso que ele eacute
Filho de Deusrdquo Podemos ver isso nas palavras de Schillebeeckx abaixo
[hellip] natildeo devemos compreender Jesus a partir da Trindade mas vice-versa eacute somente a partir de Jesus que a plenitude da unidade divina (natildeo tanto unitas trinitaris mas trinitas unitaris) se torna acessiacutevel para noacutes de alguma forma somente com base na vida morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus sabemos que a Trindade eacute o modo divino da absoluta unidade da essecircncia divina Somente a partir de Jesus de Nazareacute de sua experiecircncia com o ldquoAbbardquo -fonte e alma de sua mensagem atuaccedilatildeo e morte ndash e de sua ressurreiccedilatildeo eacute que algo cheio de sentido pode ser dito sobre o Pai Filho e Espiacuterito Santo Pois na vivecircncia de Jesus com seu ldquoAbbardquo o importante eacute que esse ldquoestar voltado para o Pairdquo e ldquoprecedidordquo com a absoluta prioridade e internamente sustentado pelo entregar-se do proacuteprio Pai a Jesus de forma uacutenica Ora a mais antiga tradiccedilatildeo cristatilde chama de ldquoPalavraVerbordquo a essa autocomunicacatildeo de Pai base e fonte da proacutepria experiecircncia de Jesus com o ldquoAbbardquo Isso implica que a palavra de Deus eacute a base total de tudo o que apareceu em Jesus ( Schillebeeckx 2008 p663)
86
A Cristologia portanto deve comeccedilar a partir do Jesus humano sem que se
negligencie o Cristo da feacute Jesus foi o nome que mudou a histoacuteria da humanidade
como podemos dizer parafraseando Haight que Jesus de Nazareacute eacute praticamente
um consenso universal na histoacuteria como sendo um judeu que viveu nos primoacuterdios
do seacuteculo I e que posteriormente veio a ser reconhecido como o Messias ou o
Cristo Conforme Haight podemos afirmar ainda que ldquoJesus foi uma figura
concreta na histoacuteria humanardquo e por isso essa histoacuteria natildeo pode ser relegada ao
esquecimento (Haight 2003 p29)
Geza Vermes compocircs um resumo histoacuterico da vida de Jesus a partir do
Evangelho de Marcos sem as narrativas da infacircncia acima esboccediladas (em 51)
Vermes chama essas informaccedilotildees peculiares de ldquoo evangelho fundamental ndash
representado por Marcos (cf Vermes 1990 p 20) que conteacutem as seguintes
informaccedilotildees
Nome Jesus
Nome do Pai Joseacute
Nome da matildee Maria
Lugar do nascimento natildeo mencionado
Data do nascimento natildeo mencionada
Domiciacutelio Nazareacute na Galileia
Estado Civil natildeo mencionado45
Profissatildeo carpinteiro (τέκτων ) mas tambeacutem exorcista e pregador itinerante
O certificado de oacutebito pode ser preenchido de maneira um pouco mais
completa
Lugar do oacutebito Jerusaleacutem
Data da morte ldquoSob Pocircncio Pilatosrdquo entre os anos 26 e 36 dC
Causa da morte crucificaccedilatildeo ordenada pelo governador romano
Lugar do sepultamento Jerusaleacutem
45
Vermes contudo considera que Jesus era celibataacuterio uma vez que nunca haacute menccedilatildeo de qualquer esposa no decorrer do seu ministeacuterio (cf Vermes 1990 p 21)
87
Para falar do Jesus humano eacute preciso contextualizaacute-lo ao tempo e ao espaccedilo
ou seja natildeo podemos menosprezar o periacuteodo em que Jesus viveu entre os homens
Sabendo que a Palestina dos dias de Jesus estava politicamente sob o impeacuterio
romano e religiosamente dominada pelo extremismo e exclusivismo religioso natildeo eacute
difiacutecil de imaginar o quanto Jesus e sua famiacutelia devem ter sofrido preconceito numa
sociedade patriarcal em meio ao caos poliacutetico e religioso
Bruce Chilton examina a questatildeo do Jesus histoacuterico desde os dias em que
Jesus estava com os disciacutepulos ateacute um periacuteodo poacutes-apostoacutelico Segundo ele sempre
houve aqueles que questionaram a filiaccedilatildeo divina de Cristo assim como colocaram
em duacutevida a sua filiaccedilatildeo terrena Vermes um judeu com formaccedilatildeo cristatilde considera
que falar das histoacuterias da infacircncia de Jesus de uma forma ou de outra acabam por
introduzir ldquoum elemento de duacutevida acerca da paternidaderdquo (cf Vermes 1990 p21)
Como foi dito acima eacute muito provaacutevel que Jesus e seus pais tenham sofrido algum
preconceito em relaccedilatildeo agrave paternidade de Joseacute em relaccedilatildeo ao seu filho Jesus
Segundo Chilton existem trecircs teorias a respeito do nascimento de Jesus A
primeira delas eacute a que Jesus foi concebido por obra do Espiacuterito Santo conforme
descrito nos Evangelhos (Mt 118-25 Lc 134-35) A segunda teoria tem a pretensatildeo
de especular que Jesus era filho bioloacutegico de Joseacute tal como se pode compreender
da afirmaccedilatildeo de Filipe achamos a Jesus de Nazareacute ldquofilho de Joseacuterdquo (Jo 145) A
terceira teoria eacute que Jesus era filho de fornicaccedilatildeo conforme uma das interpretaccedilotildees
do evangelho de Joatildeo 841 ldquoVoacutes fazeis as obras de vosso pai Disseram-lhe entatildeo
natildeo nascemos da prostituiccedilatildeo temos soacute um pai Deusrdquo (Charlesworth 2006
p87)46
46
Juan Mateos interpreta o texto de Jo 841 partindo do princiacutepio que Jesus acusa os judeus que nele ldquohaviam cridordquo (o crer aqui pode ser obra do redator uma vez que um pouco agrave frente os mesmos querem matar Jesus cf Brown 1975 p80) de cometerem o pecado da idolatria uma vez que segundo alguns rabinos ser filho de Abraatildeo significava praticar a benevolecircncia a modeacutestia e a humildade Os que tais virtudes natildeo praticavam eram considerados como servo de um outro deus totalmente diferente do Deus de Abraatildeo por isso chamados de idoacutelatras Os judeus entenderam atraveacutes da interpretaccedilatildeo dos profetas que ao serem chamados de idoacutelatras era o mesmo que ser chamado de filhos da prostituiccedilatildeordquo algo que eles negam teoricamente mas como seus pais idoacutelatras que mataram os profetas eles da mesma forma querem matar Jesus que vem da parte de Deus (cf J Mateos 1989 p392-393) Segundo Brown ser descendente de Abraatildeo fisicamente natildeo tem nenhum meacuterito quando esse suposto filho natildeo age como agiu seu pai aqui no caso ldquoAbraatildeo que Creu quando Deus lhe falourdquo eles por outro lado natildeo creem no enviado de Deus (Jesus) por isso satildeo filhos ilegiacutetimos (cf Brown 1975 p80-81)
88
Diante desse contexto Chilton levanta uma questatildeo polecircmica Jesus pode ter
sido considerado um mamzer Algumas condiccedilotildees poderiam ser determinantes para
expor um indiviacuteduo na condiccedilatildeo de mamzer A principal caracteriacutestica que definia
uma pessoa nessa condiccedilatildeo era se tal indiviacuteduo era fruto de uma uniatildeo proibida e
consequentemente um filho proibido de acordo com a Toraacute ldquoNenhum bastardo
entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar
na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo (Dt 233) Conforme a Mishnah47
poderia ser considerado um mamzer aquele filho cuja paternidade natildeo era
conhecida e portanto natildeo havia evidecircncias que tal uniatildeo fosse permitida de acordo
com a Lei Por outro lado na visatildeo do Talmude Babilocircnico48 bastava ser filho de um
natildeo israelita para que o indiviacuteduo fosse considerado um mamzer
A legitimidade da paternidade bioloacutegica de Jesus foi assunto controverso
como indicado mais acima jaacute no segundo seacuteculo da era Cristatilde Alguns autores
como John P Meier (1991 p223) e Bruce Chilton (in Charlesworth 2006 p 85)
mencionam a acusaccedilatildeo feita por Celso jaacute no ano de 178 dC que Jesus era filho de
Maria com um soldado Romano chamado Pantera49
A fonte desta histoacuteria de acordo com Dalman (2002 p152-153) vem do
Talmude Babilocircnico O nome de um certo Jesus eacute comumente mencionado no
Talmude e na literatura talmuacutedica pelas expressotildees Filho de Stada (Satda) e Filho
de Pandera (Pantera) Segundo Dalman a traduccedilatildeo literal do texto talmuacutedico de
Shabat 104b e Sanhedrin 67a tem a seguinte forma
O filho de Stada era o filho de Pandera O Rabi Chisda disse O marido era
Stada o amante Pandera (Outro disse) o marido era Paphos ben Yehudah
Stada era sua matildee (ou) sua matildee era Mirian a cabeleireira de mulheres
como eles diriam em Pumbeditha Stath da (ie Ela era infiel) para o marido
47
A palavra Mishnah vem de Shanah ldquorepetirrdquo significa ldquorepeticcedilatildeordquo ou ldquoestudo atraveacutes da repeticcedilatildeordquo Publicada por volta do ano 200 dC pelo patriarca judeu Judas I a Mishnah eacute uma coletacircnea de leis que se impocircs como coacutedigo oficial do judaiacutesmo Ela resulta de uma compilaccedilatildeo seletiva feita no decurso do seacuteculo II da era cristatilde ndash de tradiccedilotildees normativas ambientes (halakot) Ela estaacute redigida em hebraico (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
48 ldquoTalmudrdquo significa ensinamento estudo Haacute dois Talmuds 1) o Talmud de Jerusaleacutem terminado
pelo fim do seacuteculo IV na Palestina 2) o Talmud da Babilocircnia composto no seacuteculo V em Sura Mesmo na Palestina o Talmud da Babilocircnia o mais completo suplantou o Talmud de Jerusaleacutem quando se fala do ldquoTalmudrdquo sem especificar qual designa-se exclusivamente o da Babilocircnia (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
49 Zuurmond acha que provavelmente Pantera (ou Pandera) ldquoseja uma deformaccedilatildeo acintosa de
parthenos= virgem Deformar de propoacutesito o nome de um inimigo era (e eacute) um uso bastante comum (cf Zuurmond 1998 p77)
89
No entanto uma traduccedilatildeo mais livre do mesmo texto talmuacutedico teria a
seguinte forma segundo Dalman
Ele natildeo era filho de estada mas filho de Pandera Rab Chisda afirma
que o marido da matildee de Jesus era Stada mas o amante dela era Pandera
Outro (diz) que o marido dela era certamente Paphos ben Yeshua que ao
contraacuterio Stada era a matildee dele (Jesus) de acordo com outros sua matildee era
Mirian (Maria em hebraico) a cabeleireira das mulheres A treacuteplica eacute e eu
concordo simplesmente Stada era o apelido dela (Maria) como dito no (ou
na) Pumbeditha Stath da (que significa ldquoela provou ser infielrdquo) ao marido dela
Provavelmente a partir da leitura desses textos eacute que Celso tomou o nome
deste Jesus citado no Talmude e relacionou com o Jesus dos Evangelhos
considerando que ambos os personagens se tratavam da mesma pessoa Desta
forma conforme mencionado por Oriacutegenes Celso acusa Jesus de aleacutem de ter
inventado seu nascimento ter nascido numa cidadezinha da Judeia ser filho de uma
pobre fiandeira ter adquirido poderes maacutegicos no Egito ainda usou esses poderes
para proclamar-se Deus (Oriacutegenes 2004 p68) Embora esse relato tenha sido
retomado tambeacutem por pensadores contemporacircneos como mais um argumento para
contestar a legitimidade do nascimento de Jesus conforme relatado nos Evangelhos
Chilton no entanto considera que esse relato eacute infundado e foi apenas mais uma
ficccedilatildeo que circulou nos primeiros seacuteculos da era cristatilde
Nas comunidades judaicas dos dias de Jesus se uma mulher estivesse
graacutevida antes da consumaccedilatildeo plena do matrimocircnio ela precisaria pela tradiccedilatildeo
apresentar agrave comunidade em que vivia provas de quem era o pai da crianccedila que
estava sendo gerado em seu ventre A casta do filho estava condicionada a quem
era o seu pai ou seja se o filho por ela gerado fosse fruto de uma uniatildeo proibida
obviamente ele seria excluiacutedo da congregaccedilatildeo de Israel conforme estabelecido na
Toraacute especificamente em Deuteronocircmio 233 onde lemos ldquoNenhum bastardo
entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar
na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo
Vale ainda ressaltar que quando um contrato de casamento era firmado a
Mishnah dava o direito ao contratante de anular o mesmo sem uma justificativa
formal caso ele se sentisse injusticcedilado Se a mulher estivesse graacutevida na ocasiatildeo
do rompimento do contrato esse ato do contratante eximia a mulher da acusaccedilatildeo de
90
adulteacuterio e dessa forma o filho natildeo poderia ser considerado formalmente um
mamzer Tal situaccedilatildeo poderia dar margem a um problema de interpretaccedilatildeo da Lei a
saber a mulher uma vez abandonada poderia usar apenas a palavra acerca da
paternidade do fruto de seu ventre Essa palavra seria aceita como verdade tal
como pensavam os rabinos Gamaliel e Eliezer ou rejeitada se natildeo houvesse uma
prova concreta no pensamento do rabino Joshua (Charlesworth 2006 p87)
No primeiro caso a mulher poderia alegar que um determinado cidadatildeo da
sua comunidade era o pai da crianccedila que ela estava esperando Se a palavra dessa
mulher fosse aceita como verdadeira entatildeo pela Toraacute esse homem seria obrigado
a casar com ela e natildeo poderia mandaacute-la embora por toda a vida conforme lemos
em Deuteronocircmio 22 28-29
Se um homem encontra uma jovem virgem que natildeo estaacute prometida e a agarra e se deita com ela e eacute pego em flagrante o homem que se deitou com ela daraacute ao pai da jovem cinquenta ciclos de prata e ela ficaraacute sendo a sua mulher uma vez que abusou dela Ele natildeo poderaacute mandaacute-la embora durante toda a sua vida
Essa interpretaccedilatildeo daria margem para que as mulheres mesmo que
concebessem um filho fruto de uma uniatildeo proibida mas que indicassem um
determinado homem como sendo o pai da crianccedila pudessem tornar o fruto do
ventre em um legiacutetimo judeu aos olhos da comunidade tendo em vista que a mulher
alcanccedilou ecircxito em sua argumentaccedilatildeo o que segundo essa visatildeo natildeo seria difiacutecil
conseguir (Charlesworth 2006 p 87)
Partindo da premissa que a relaccedilatildeo sexual entre pessoas que jaacute haviam
estabelecido o contrato de casamento era toleraacutevel na eacutepoca uma possiacutevel relaccedilatildeo
sexual entre Joseacute e Maria natildeo seria proibida Mas o fato de Joseacute morar em Beleacutem e
Maria em Nazareacute exclui as possibilidades do filho ser dele (Chilton 2002 p13)
Dessa forma Jesus poderia ser considerado um mamzer jaacute que a sua concepccedilatildeo
ocorreu no periacuteodo entre o contrato de casamento e a coabitaccedilatildeo de Joseacute e Maria
Chilton observa que o pensamento de Joseacute em deixar Maria secretamente
conforme lemos em Mateus 119 seria portanto uma forma de natildeo acusar Maria de
fornicaccedilatildeo Natildeo obstante a maravilhosa forma como Joseacute assumiu a paternidade
pode natildeo ter sido suficiente para inibir as mais adversas situaccedilotildees pelas quais Jesus
91
tenha sido alvo desde a infacircncia ateacute a crucificaccedilatildeo proveniente de especulaccedilotildees
sobre a legitimidade de sua paternidade bioloacutegica
Observando as teorias propostas acima a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus
podemos pensar sobre os diferentes conceitos que seus contemporacircneos tinham a
respeito dele Ele era filho de Deus gerado pelo Espiacuterito Santo Ele era filho de Joseacute
ou de um pai desconhecido As palavras ldquoNatildeo nascemos da prostituiccedilatildeordquo (Jo 841)
poderiam ter sido usadas com ironia a fim de colocar em duacutevida sua reputaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees concernentes agrave paternidade bioloacutegica Por que ele foi
chamado de o ldquocarpinteiro o filho de Mariardquo (Mc 63) e natildeo filho de Joseacute e de Maria
entre os seus conterracircneos
Essas questotildees levantadas acima satildeo passiacuteveis de outras interpretaccedilotildees
quando olhamos o texto do Evangelho de Joatildeo a partir de uma cristologia alta50
Embora seja possiacutevel que os judeus tenham procurado debater com Jesus sobre
sua filiaccedilatildeo humana Jesus no entanto sempre usou tais debates para evidenciar
sua filiaccedilatildeo divina e enfatizar sua relaccedilatildeo com o Pai atraveacutes da palavra Abba que
para J Jeremias eacute a mensagem central do Novo Testamento
53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS
Jesus se relacionava com Deus de uma maneira peculiar a qual eacute evidente
nos evangelhos Segundo Pagola a experiecircncia de vida de Jesus eacute a partir de um
Deus Pai que para Jesus eacute aquele que cuida ateacute mesmo das criaturas fraacutegeis e
insignificantes aos olhos dos homens Esse Pai tambeacutem atende aos pobres e
necessitados traz a cura aos enfermos busca os perdidos enfim Deus Pai se torna
o centro de toda a mensagem e da proacutepria vida de Jesus de Nazareacute (Pagola 2010
p 380-381)
Nos Evangelhos a palavra Pai aparece nos laacutebios de Jesus mais de 170
vezes quando ele se dirige a Deus seja por interpelaccedilatildeo ou por designaccedilatildeo
Segundo J Jeremias eacute preciso distinguir a interpelaccedilatildeo da designaccedilatildeo de Deus
como Pai quando esse termo eacute proferido por Jesus nos evangelhos Em suas
50
A cristologia alta refere-se agrave crenccedila na preexistecircncia e na divindade de Jesus (cf
httpwwwcentroestudosanglicanoscombrbancodetextosbibliahermeneuticaresenhas_brown_julio_cesarpdf acesso em 23102011 as 1225 horas)
92
oraccedilotildees Jesus sempre fez uso da interpelaccedilatildeo Pai para invocar a Deus com
exceccedilatildeo do grito da cruz em Mc 1534 par Mt 2746 ldquoMeu Deus meu Deus por que
me abandonasterdquo interpelaccedilatildeo essa que jaacute estava prefixada pelo Sl 221 Aleacutem da
interpelaccedilatildeo eacute muito comum Jesus referir-se a Deus como ldquoo Pairdquo (ὁ πατὴρ) ldquomeu
Pairdquo (τοῦ πατρός μου) e ldquovosso Pairdquo (ὁ πατὴρ ὑμῶν ) (Jeremias 2005 p43)
De fato Jesus usou essas trecircs formas para designar Deus como Pai A
designaccedilatildeo ldquoo Pairdquo encontra-se em alguns textos dos evangelhos em Marcos (Mc
13 32 = Mt 24 36) em Mateus e Lucas juntos (Mt 11 27 = Lc 10 22) somente em
Lucas (Lc 9 26 1113) somente em Mateus (Mt 28 19) e em Joatildeo setenta e trecircs
vezes Sobre a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo encontramos em Marcos (Mc 11 25)
Mateus e Lucas juntos (Mt 5 48 = Lc 6 36 1230) somente em Lucas (Lc 12 32)
somente em Mateus (Mt 5 16 44 61 81526 7 11 10 20 29 18 14) e em Joatildeo
(Jo 8 42 20 17) Aleacutem disso o termo ldquomeu Pairdquo que se encontra em Marcos (Mc
838 = Mt 16 27) τοῦ πατρὸς αὐτοῦ [de seu Pai] mesmo que em referecircncia ao
Filho do Homem natildeo pode figurar sem reservas entre os testemunhos da foacutermula
Meu Pai) (Jeremias 2005 p43) E por fim conforme J Jeremias a expressatildeo
ldquomeu Pairdquo encontra-se nos seguintes textos dos Evangelhos Mateus e Lucas juntos
(Mt 11 27 ndash Lc 1022) somente em Lucas (Lc 249 22 29 24 49) somente em
Mateus (Mt 7 21 10 32-33 12 50 15 13 16 17 18 10 19 35 20 23 25 34 26
29 53 e em Joatildeo vinte e cinco vezes
Para J Jeremias haacute uma crescente tendecircncia em introduzir a designaccedilatildeo de
Deus como Pai nos evangelhos Excluindo as invocaccedilotildees de Pai por Jesus e
contando os paralelos sinoacuteticos J Jeremias observa que em Marcos aparece
apenas trecircs vezes jaacute em Mateus e Lucas juntos (coleccedilatildeo dos logias) aparece
quatro vezes enquanto que somente em Lucas eacute mencionado quatro vezes Os
ditos que satildeo proacuteprios de Mateus satildeo citados trinta e uma vezes A ecircnfase recai
sobre o Evangelho de Joatildeo escrito mais tarde onde a designaccedilatildeo de Deus como
Pai nas palavras de Jesus aparece cem vezes Segundo J Jeremias haacute uma
evidente progressatildeo do uso da palavra Pai usada por Jesus em Marcos na coleccedilatildeo
dos Logia e nos elementos proacuteprios de Lucas Analisando os textos dos Evangelhos
referentes ao uso da palavra Pai observa-se que todos enfatizam essa relaccedilatildeo
iacutentima de Jesus com o Pai do ceacuteu Desse modo ldquopode-se dizer que Jesus se servia
93
da palavra Pai para designar a Deus somente em certas circunstacircncias Em
Mateus acha-se uma progressatildeo sensiacutevel no uso do termo e em Joatildeo Pai quase
tornou-se sinocircnimo de Deusrdquo (Jeremias 1977 p26-27)
Francisco Reyes Archila nota a frequecircncia do uso da palavra Pai em Joatildeo
mesmo sendo este o Evangelho que ao mesmo tempo em que evidencia a
paternidade divina protagoniza tambeacutem a figura feminina no discipulado
especialmente de Maria Madalena51 Archila analisando essa progressatildeo do uso da
palavra Pai em Joatildeo nos laacutebios de Jesus como tambeacutem jaacute havia sido observada por
J Jeremias vecirc ainda uma tendecircncia maior em Mateus em registrar o termo Pai em
relaccedilatildeo a Deus do que em Marcos e Lucas onde o termo praticamente natildeo aparece
Referindo-se a Joatildeo Archila tambeacutem eacute de acordo que natildeo somente nos
Evangelhos mas tambeacutem nas cartas o termo Pai eacute usado com uma frequecircncia
muito alta Para Archila jaacute que em Mateus a frequecircncia natildeo eacute tatildeo alta e em Marcos
e Lucas ela praticamente natildeo aparece e nem nas cartas de Paulo se usa esse
termo referindo-se a Deus somente na introduccedilatildeo das cartas (Rm 17 1 Co 13
2Cor 13 2Cor 12 1131 Gl 1 1-3 Ef 11 520 Cl 1 2-3 1Ts 11 2Ts 11 1tm 12
2Tm 12 Tt 14 Fm3) Eacute de se suspeitar segundo esse autor52 de que Jesus tenha
realmente dirigido-se a Deus sempre como Pai o mais provaacutevel seria que com o
decorrer do tempo (jaacute que Joatildeo foi escrito posteriormente aos outros Evangelhos) a
Igreja primitiva tenha assumido progressivamente essa expressatildeo devido ao
ldquoespiacuterito patriarcal proacuteprio do ambiente cultural da eacutepocardquo (Archila 2007 p99)
Podemos ver sobre o relevante uso do termo Pai no Evangelho de Joatildeo no
resumo feito por Matthias Grenzer conforme exposto abaixo
1ndash O Pai ama o Filho porque este uacuteltimo daacute a sua vida (Jo 1017)
2- O Pai mostra ao Filho tudo o que ele mesmo faz (Jo 5 20)
51
Hamerton-Kelly esclarece que o fato de Jesus ter escolhido o siacutembolo de ldquopairdquo para referir-se a
Deus foi uma forma de reorganizar a forma de patriarcado da eacutepoca com a finalidade de tornar as pessoas livres das ldquogarras do patriarcadordquo Para Hamerton-Kelly longe de ser um siacutembolo sexista o pai era para Jesus uma arma escolhida para combater o que chamam de sexismo O termo ldquopairdquo tem sido interpretado fora de seu contexto apresentando um ldquodeusrdquo do sexo masculino que tem sido colocado primariamente como macho mas segundo esse autor a situaccedilatildeo poderia ser mudada ldquocomo temos tentado fazerrdquo (cf Hamerton-kelly 1979 p103) Roger Haight estaacute de acordo que Hamerton-Kelly na nota acima segue J Jeremias sobre a forma como Jesus fazia uso do termo ldquopairdquo que em seu contexto significa algo semelhante agrave ldquomatildeerdquo na sociedade moderna desenvolvida (cf Haight 2003 p 128)
52 Archila estaacute citando Lothar Coenen e outros (Diccionaacuterio teoloacutegico del Nuevo Testamento
Salamanca Siacutegueme vol 3 1983 p 244)
94
3- Ao permanecer no Filho o Pai realiza as suas obras (Jo 1410)
4- O Pai vivo enviou o filho e o filho vive atraveacutes do Pai (Jo 6 57)
5- O Filho fala o que o Pai lhe diz (Jo 12 49-50)
6- O Filho por si mesmo nada faz mas realiza soacute aquilo que vecirc o Pai fazer (Jo
519)
7- Com esse relacionamento muacutetuo de maior intensidade o Pai ama o filho (Jo
335 5 20 1017 159) e o Filho ama o Pai (Jo 1431)
8- O Filho permanece no amor do Pai (Jo 1510)
9- O Pai estaacute no Filho e o Filho estaacute no Pai (Jo 1038 1411 1721)
Esse profundo relacionamento do Filho com o Pai pode ser compartilhado com
o ser humano segundo Grenzer desde que o disciacutepulo reconheccedila o Filho no Pai (Jo
1417) pois aquele que conhece o Filho tambeacutem conhece o Pai (Jo 14 7-9)
ldquoAquele que ama o Filho observando os mandamentos dele seraacute amado pelo Pairdquo
(Jo 1421) Ou ao contraacuterio ldquoquem natildeo honra o Filho tambeacutem natildeo honra o Pai que
o enviou (Jo 523)rdquo Portanto a relaccedilatildeo de Jesus (o Filho) com Deus (o Pai) no
Evangelho de Joatildeo eacute de extrema relevacircncia para compreendermos a cristologia e
para aprendermos a perfeita forma de nos relacionarmos com o Pai celeste
(Grenzer 2009 p 184)
Archila (2007 p99) contabiliza que a expressatildeo Pai para nomear Deus no
Novo Testamento ocorre 245 vezes enquanto que a mesma palavra para designar o
pai bioloacutegico ocorre 157 vezes O motivo para tal ecircnfase para o uso dessa
expressatildeo referindo-se a Deus pode ser pela ldquoinfluecircncia da filosofia grega53 na
nomeaccedilatildeo de Deus como Pai Contudo segundo o mesmo autor o mais plausiacutevel
do ponto de vista histoacuterico eacute a possibilidade que Jesus realmente ldquotenha chamado a
Deus como meu pai ou nosso pai ou pai de vocecircs (Mt 69 2629 42 Lc 112)
Inclusive eacute mais provaacutevel que Jesus o tenha nomeado como Abba palavra usada
pelos filhos ao dirigir-se a seus pais e que equivale a papai (Archila 2007 p99-
53
ldquoA ideia da paternidade de Deus recebe uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica em Platatildeo e nos estoicos
Platatildeo na sua elaboraccedilatildeo cosmoloacutegica da ideia do pai ressalta o relacionamento criador de Deus o pai universal para com o cosmos inteiro (Tim 28c 41a e frequentemente) Para os estoicos a autoridade de deus como Pai permeia o universo ele eacute criador pai e sustentador dos homensrdquo (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)
95
100) Essa forma de dirigir-se a Deus como Pai ou seja essa ideia de ser filho de
Deus contrapotildee-se a ideia presente na filosofia grega e tambeacutem da concepccedilatildeo
romana do Imperador como ldquofilho de deusrdquo Por outro lado ainda o Abba de Jesus
assimilado pela Igreja primitiva dava o direito aos considerados apaacutetridas sociais a
terem o direito de ter um pai o que provavelmente deve ter provocado implicaccedilotildees
agrave Igreja jaacute que essas ideias iam contra aos valores da sociedade patriarcal daquela
eacutepoca (Archila 2007 p103-104)
A imagem que Jesus apresentou do Pai do ceacuteu natildeo pode ser associada com o
que a patriarcalizaccedilatildeo que a cristandade ocidental fez de Deus Para Jesus
segundo Archila Deus natildeo eacute um pai superpoderoso dominante prepotente e
distante dos seus filhosrsquo ele eacute por natureza um pai proacuteximo iacutentimo terno e
misericordioso ou seja ele nos mostra a imagem de um Deus Pai bom e justo Em
outras palavras pode-se dizer que Jesus humanizou a imagem de Deus rompendo
com a imagem patriarcal54 androcecircntrica e exclusivista para apresentar a imagem
de Deus como o Pai bom que projeta nos seus filhos um modelo de relacionamento
fraterno entre homens mulheres crianccedilas com a proacutepria natureza e por fim com o
proacuteprio Deus (Archila 2007 p107)
Trabalhando ainda o Abba nos laacutebios de Jesus eacute relevante observarmos que
Santos Sabugal tambeacutem lista as invocaccedilotildees e designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo nos
laacutebios de Jesus como sendo empregado natildeo menos de 184 vezes (Marcos 4 Lucas
17 Mateus 44 Joatildeo 119 = 111 nos laacutebios de Jesus) assim o referido autor resume
o emprego das designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo por Jesus nos Evangelhos
Esse uso eacute portanto limitado em Marcos mas frequente em Lucas e sobre tudo em Mateus para culminar no evangelho de Joatildeo E as estatiacutesticas refletem de alguma forma em cada evangelho a concepccedilatildeo teoloacutegica da paternidade divina Marcos representa o estagio inicial desta concepccedilatildeo desenvolvida pela teologia de Lucas e significativamente ampliada por Mateus atingindo seu pico mais alto em Joatildeo o teoacutelogo por excelecircncia da paternidade de Deus (Sabugal 1985 p381)
54
Segundo Archila o patriarcado eacute definido como ldquouma relaccedilatildeo de poder entendido como dominaccedilatildeo e superioridade que o varatildeo exerce sobre mulheres e crianccedilasrdquo O modelo que o sistema patriarcal pretende representar eacute baseado numa forma hegemocircnica da dominaccedilatildeo do varatildeo sobre a mulher Esse modelo ldquoinclui papeis competecircncias haacutebitos valores formas de pensar e inclusive formas institucionais como leis e normasrdquo (Archila 2007 p 91-92)
96
Para Sabugal portanto nenhum judeu mesmo os mais piedosos invocou a
Deus como o Abba assim como fez Jesus constantemente Ele tinha a
autoconsciecircncia de ser o filho de Deus Essa forma de invocar a Deus tornou-se natildeo
apenas parte integrante e essencial das suas oraccedilotildees como tambeacutem parte
integrante do seu meacutetodo de ensino sobre a oraccedilatildeo (Sabugal 1985 p386)
Joseacute Antonio Pagola tambeacutem eacute de acordo que Jesus como todas as demais
crianccedilas da Galileia em suas primeiras palavras balbuciou os termos immaacute
(mamatildee) e abba (papai) quando se dirigia a Maria e Joseacute seus pais Contudo
segundo Pagola pode ser um exagero limitar o uso do abba apenas agraves criancinhas
visto que ateacute mesmo os adultos parece que usavam tal expressatildeo como forma de
respeito agrave figura paterna dentro de uma estrutura familiar patriarcal (Pagola 2010
p383)
Mas natildeo precisamos exagerar Parece que tambeacutem os adultos empregavam esta palavra expressando seu respeito e obediecircncia ao pai da famiacutelia patriarcal Chamar a Deus de Abbaacute indica carinho intimidade e proximidade mas tambeacutem respeito e submissatildeo Jesus havia conhecido em sua proacutepria casa a importacircncia do pai Joseacute era o centro de toda a famiacutelia Tudo gira em torno dele O pai cuida dos seus e os protege Se ele falta a famiacutelia corre o risco de desintegrar-se e desaparecer Eacute ele quem sustenta e assegura o futuro de todos Haacute dois traccedilos que caracterizam um bom pai O primeiro eacute a solicitude para com os filhos eacute ele quem deve assegurar-lhes o sustento necessaacuterio protegecirc-los e ajudaacute-los em tudo Ao mesmo tempo o pai eacute autoridade da famiacutelia ele daacute as ordens para assegurar o bem de todos Ele instrui os filhos ensina-lhes um oficio se necessaacuterio Os filhos por sua vez satildeo chamados a ser a alegria do pai (Pagola 2010 p 383-384)
Para fundamentar sua tese de que o abba era um linguajar infantil e que
Jesus que ressignificou esse termo J Jeremias recorre aos pais da Igreja
Crisoacutestomo Teodoro de Mopsueacutestia e Teodoreto de Ciro originaacuterios de Antioquia
uma populaccedilatildeo que falava o siriacuteaco ocidental do aramaico Segundo J Jeremias
esses ldquopais da Igrejardquo satildeo de comum acordo de que o termo Abba era a palavra
usada por um filho pequenino quando se dirigia ao seu pai Um outro documento
usado por J Jeremias para dar sustentaccedilatildeo agrave sua pesquisa eacute o relato do Talmude (b
Berakocirct 40a b Sanedriacuten 70b) citado por ele com as seguintes palavras ldquoQuando
uma crianccedila prova o gosto do cereal isto eacute tatildeo logo como o detestam aprende a
dizer Abba e imma (papai e mamatildee) Abba e imma satildeo pois as primeiras palavras
que a crianccedila balbucia Abba era a linguagem infantil uma palavra comum
97
empregada diariamente ningueacutem tinha ousado dirigir-se a Deus desse modordquo (cf
Jeremias 2006 p63)
Deus como Pai para Jesus eacute com frequecircncia um Pai bom Ele ldquofaz nascer
seu sol sobre bons e maus Manda a chuva sobre justos e injustos (Lc 635 Mt
545) Para Pagola Jesus demonstra isso com muita maestria na paraacutebola do ldquofilho
perdidordquo (Lc 15 11-32) Nessa paraacutebola Pagola observa que o pai natildeo eacute um
personagem autoritaacuterio que natildeo respeita as decisotildees dos filhos pelo contraacuterio ele eacute
um pai amoroso e mesmo que o filho o tenha abandonado ele o recebe de braccedilos
abertos assim que este o pede perdatildeo (Pagola 2010 p386)
Embora a teologia do Abba seja defendida como a ipssissima vox de Jesus
por J Jeremias alguns autores contemporacircneos como Udo Schnelle defende que
natildeo haacute novidade na forma de Jesus invocar ou designar a Deus como pai visto que
isso era uma praacutetica comum tanto no judaiacutesmo como no mundo greco-romano
Segundo Schnelle a novidade do Abba nos laacutebios de Jesus estaacute na ecircnfase na
frequecircncia e na simplicidade com que Deus eacute designado como Pai nos Evangelhos
quando esse termo eacute proferido por Jesus (Schnelle 2010 p99-100)
J Jeremias defende que Jesus usou a palavra Pai na maioria das vezes
quando essa relaccedilatildeo era do Filho com o Pai Quanto ao uso da palavra Pai em
relaccedilatildeo a outras pessoas Jesus nunca fez alguma referecircncia a natildeo ser raras vezes
a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo apenas aos seus disciacutepulos e nunca a outros grupos
visto que a paternidade divina era uma exclusividade estendida apenas aos
disciacutepulos Grupos como os escribas e fariseus foram excluiacutedos dessa filiaccedilatildeo pois
o pai deles eacute o diabo conforme Joatildeo 8 42-44 (Jeremias 2008 p271)
Disse-lhes Jesus ldquoSe Deus fosse o vosso pai voacutes me amariacuteeis porque saiacute de Deus e dele venho natildeo venho por mim mesmo mas foi ele que me enviou Por que natildeo reconheceis minha linguagem Eacute porque natildeo podeis escutar minha palavra Voacutes sois do diabo vosso pai e quereis realizar os desejos do vosso pai Ele foi homicida desde o princiacutepio e natildeo permaneceu na verdade quando ele mente fala do que lhe eacute proacuteprio porque eacute mentiroso e pai da mentira
98
A questatildeo da filiaccedilatildeo divina eacute um processo iacutentimo entre o Pai e seu filho J
Jeremias observou que o texto do evangelho de Mateus (Mt 1127) pode ser mais
bem traduzido do seguinte modo ldquocomo soacute um Pai conhece o seu filho assim soacute um
filho conhece o seu pairdquo (Jeremias 1977 p29) Essa relaccedilatildeo de Filho e Pai que
Jesus propagou no Novo Testamento tem no Antigo Testamento o paralelo mais
proacuteximo nas palavras do salmista ldquoComo um pai se compadece dos filhos assim se
apieda o Senhor dos que o tememrdquo (Sl 103 13) Mas para os filhos do Reino o pai
eacute ainda maior Ele aleacutem de bondoso e misericordioso eacute benigno ateacute mesmo com os
ingratos e maus (Lc 635)
Seguindo esse pensamento Joseph A Fitzmyer observa que quando Jesus
instruiu os disciacutepulos a invocar a Deus como Pai Ele estava mostrando que Deus
natildeo era somente o ldquotranscendente Senhor dos ceacuteus mas estaacute perto assim como um
pai com seus filhosrdquo (Fitzmyer 1985 p898) Para Stephen A Missick Abba eacute
contudo um misteacuterio uma revelaccedilatildeo especial que vem somente atraveacutes de Jesus
Cristo Missick assim como J Jeremias observa que o texto de Mateus 1127
poderia ser parafraseado em aramaico ficando da seguinte forma ldquosomente pai e
filho realmente se conhecem Porque apenas um pai e um filho verdadeiramente
conhecem um ao outro portanto um filho pode revelar aos outros os pensamentos
mais iacutentimos de seu pairdquo (Missick 2006 p23) Para Missick o maior exemplo para
demonstrar essa intimidade entre o Filho e o Pai e o poder que o Filho tem de
revelar o Pai estaacute registrado em Joatildeo 148
Filipe lhe diz ldquoSenhor mostra-nos o Pai e isso nos bastardquo Diz-lhe Jesus ldquoHaacute tanto tempo estou convosco e tu natildeo me conheces Filipe Quem me vecirc vecirc o Pai Como podes dizer Mostra-nos o Pai Natildeo crecircs que estou no Pai e que o Pai estaacute em mim As palavras que vos digo natildeo as digo de mim mesmo mas o Pai que permanece em mim realiza suas obras Crede-me eu estou no Pai e o Pai em mim Crede-o ao menos por causa dessas obrasrdquo
O discurso de Jesus sempre foi conflitante com os grupos religiosos de sua
eacutepoca e isto se agravou mais ainda pelo modo como Ele invocava a Deus mediante
a expressatildeo ldquomeu Pairdquo fato que natildeo era comum no Judaiacutesmo Se essa forma de
99
dirigir-se a Deus chamando-o de ldquomeu Pairdquo era incomum muito mais incomum
ainda era o emprego da forma aramaica ldquoAbbardquo (Jeremias 2008 p116) Os Judeus
usavam duas maneiras de tratar o Pai uma que era muito comum e tambeacutem usada
no cotidiano familiar abba e outra que era mais solene e elevada abicirc (אב)
(Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p649) Para um judeu usar a palavra
Abba para dirigir-se a Deus parecia ser um atrevimento pois tal palavra soava como
balbucio Abba estava entre as primeiras palavras que uma crianccedila aprendia a falar
conforme a referecircncia que J Jeremias faz ao Talmude Babilocircnico jaacute citado neste
trabalho55
Jaacute nos dias de Jesus abba jaacute tinha deixado de ser apenas uma linguagem das
criancinhas para tornar-se uma forma como os filhos adultos se dirigiam a seu pai
como podemos ver na paraacutebola do filho proacutedigo (Lc 15 21) Nos laacutebios de Jesus
aleacutem de tornar-se uma forma familiar de invocar e dirigir-se a Deus abba passou a
ser tambeacutem considerada uma palavra lsquosagradarsquo uma vez que um soacute eacute o Pai dos
disciacutepulos a saber o que estaacute nos ceacuteus conforme Mateus 239 (Jeremias 2008
p121) Para Jesus Abba tornou-se uma expressatildeo de honra que somente o Pai
celeste eacute digno Essa maneira simples e iacutentima de Jesus dirigir-se a Deus como
uma criancinha fala a seu pai foi considerado por J Jeremias como a ipsiacutessima vox
de Jesus isto eacute um modo proacuteprio e original de falar usado por Jesus e que natildeo
tinha nenhuma analogia na literatura da eacutepoca (Jeremias 2008 p120)
[] a forma abbaacute suplantou a forma abbi usada no aramaico paletinense ateacute pelo menos o seacutec 2 a C como constatamos pela documentaccedilatildeo Aleacutem disso abbaacute tomou o sentido de ldquomeu pairdquo e de ldquoo pairdquo e ldquonosso pairdquo De tal modo que a palavra natildeo era apenas parte do linguajar das crianccedilas Os jovens de ambos os sexos tambeacutem chamavam o proacuteprio pai de Abbaacute (cf Lc 15 21) natildeo recorrendo agrave palavra ldquoSenhorrdquo (Kyrie) a natildeo ser cerimonioso (cf Mt 21 29-30) Mas apesar destes desenvolvimentos jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil (Jeremias 1977 p 24-25)
Mais tarde Fitzmyer comentando essa tese reconhece que J Jeremias
entendeu que Jesus natildeo se dirigiu a Deus invocando-o como uma criancinha faz
com seu pai Fitzmyer tambeacutem concorda que Abba eacute a ipisissima vox de Jesus para
55
para esclarecer essa tese podemos ver uma versatildeo semelhante a jaacute citada por J Jeremias (2006 p63) em outra obra sua conforme transcrevemos abaixo ldquoSomente quando uma crianccedila experimenta o gosto do trigo (isto eacute quando eacute desmamada) eacute que ela diz aacutebba imma [matildee] ou seja estes satildeo os primeiros balbuciosrdquo (cf Jeremias 2008 p119)
100
expressar o seu relacionamento com Deus mas que Abba por si soacute sem as oraccedilotildees
de louvor registradas pelos evangelistas Mateus e Lucas (Mt 11 25-27 Lc 10 21-
22) natildeo eacute suficiente para subsidiar tal argumento (Fitzmyer 1993 p61) Para
Ephraim o meacuterito de ter levado ao grande puacuteblico o verdadeiro sentido de como
Jesus se dirigia a Deus Pai chamando-o de Abba eacute de J Jeremias
[hellip] Joachim Jeremias levou ao grande puacuteblico toda a beleza do nome Abba tal como Jesus o pronunciava Enfatizou com razatildeo que em nenhuma outra parte do judaiacutesmo se encontra tal familiariadade Mesmo se por vezes Deus era invocado pelo vocaacutebulo Pai ningueacutem ousou antes do Filho primogecircnito dentre um grande nuacutemero de irmatildeos chamaacute-lo de Abba que literalmente quer dizer papai A ousadia amorosa sempre estivera do lado do Pai pois do lado da criatura nunca ningueacutem fora tatildeo longe como Jesus na resposta adesatildeo e entrega ao amor misericordioso (Ephraim 1998 p174)
54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS
Sabendo que os Evangelhos sinoacuteticos contecircm muitos traccedilos que remontam
para uma redaccedilatildeo poacutes-pascal J Jeremias pergunta ldquoseremos capazes de
remontarmos em particular a ipsissima vox de Jesusrdquo Os evangelhos apresentam
o querigma de Jesus ou segundo J Jeremias seria mais exato dizer que eles
apresentam a Didaquecirc (ensino) da Igreja primitiva A pergunta acima pode gerar um
certo ceticismo contudo natildeo tem forccedila para destruir o argumento de que
[] os logia de Jesus apresentam certas particularidades que devemos considerar como suas expressotildees favoritas jaacute que figuram independentemente uma das outras nas diversas narrativas da tradiccedilatildeo Abba e amen satildeo os traccedilos da linguagem mais caracteriacutesticos da ipsissima vox de Jesus (Jeremias 2006 p 137-138)
Haacute uma distinccedilatildeo entre ipsissima vox e ipsissima verba de Jesus Segundo J
Jeremias a presenccedila de um modo de falar preferido de Jesus (ipsissima vox) natildeo
dispensa absolutamente de examinar em cada caso particular se temos um dito
autecircntico (ipsissima verba) (Jeremias 2008 p79) Os apoacutestolos assim
compreenderam e Paulo vai dizer mais tarde que Abba eacute o clamor (ipsissima vox)
dos filhos de Deus daqueles que foram adotados na comunhatildeo do Espiacuterito Santo
Segundo Missick a importacircncia da palavra Abba vem justamente ao encontro dessa
teoria pois segundo ele natildeo haacute duacutevida de que essa foi a palavra exata que Jesus
101
falou ou seja Abba eacute a ipsissima vox a voz original ou a ipsissima verba as
autecircnticas palavras de Jesus (Missick 2006 p 23)
J Jeremias baseando-se em Dalman diz-nos que assim como o Abba a
palavra amen (ἀμήν) quando proferida por Jesus natildeo possui nenhum equivalente
na literatura judaica e nem nos demais escritos do Novo Testamento Nos discursos
judaicos a palavra ameacuten ldquoservia para ratificar reforccedilar e fazer proacuteprias as palavras
de outro (cf Jr 28 6) na tradiccedilatildeo dos logia de Jesus se utiliza sem exceccedilatildeo esse
termo para reforccedilar o proacuteprio discursordquo (cf Jeremias 2006 p 138) Podemos ver
esse pensamento exposto nas palavras do proacuteprio Dalman
Jaacute foi frequumlentemente apontado que o modo como Jesus usa a palavra ameacutem natildeo eacute familiar em toda a literatura judaica Mesmo em Sota II 5 cf Jerus I e II num 522 realmente natildeo pode ser forccedilado a comparaccedilatildeo Nessa passagem a repeticcedilatildeo amen pronunciado pela mulher suspeita de adulteacuterio eacute explicada como um protesto de sua inocecircncia como se ela estivesse a dizer ameacutem [= eu protesto] que eu natildeo me poluiacute ameacutem que eu natildeo vou poluir a mim mesma (cf Dalman 1902 p226)
J Jeremias refere-se agraves foacutermulas ameacuten legocirc hymin (sou) (em verdade vos [te]
digo) nos sinoacuteticos e amen ameacuten legocirc hymin (soi) (em verdade em verdade vos
[te] digo) em Joatildeo Segundo ele o nuacutemero de vezes que tais expressotildees aparecem
nos evangelhos eacute 13 vezes em Marcos 30 em Mateus (+ Mt 18 19 var) 6 em
Lucas e 25 em Joatildeo onde haacute uma reduplicaccedilatildeo Para J Jeremias este amen natildeo
responsivo coloca-nos diante de uma forma totalmente nova e peculiar dos
Evangelhos e principalmente de Jesus (Jeremias 2006 p 138-139)
Sobre a grandeza do Abba como a ipsissima vox de Jesus vejamos o que nos
diz J Jeremias
Natildeo haacute paralelos com esta mensagem de que Jesus quer ocupar-se dos pecadores natildeo dos justos e que desde agora lhes daacute jaacute a participaccedilatildeo em seu reinado Natildeo haacute paralelos com este Jesus que se senta agrave mesa com publicanos e pecadores Natildeo haacute paralelos com a autoridade com que Jesus se atreve a dirigir-se a Deus com a invocaccedilatildeo de Abba Quem reconhece unicamente o fato (e natildeo sei como algueacutem poderia negaacute-lo) de que a palavra ldquoabbardquo eacute ipsissima vox Iesu esse tal se entende bem a palavra e natildeo a desvirtua estaacute diante da pretensatildeo que Jesus tinha de sua proacutepria majestade (Jeremias 2006 p40)
Se para Jesus invocar a Deus como Pai era um direito exclusivo dado aos
disciacutepulos na igreja primitiva isso era privileacutegio apenas dos membros que jaacute
102
estavam integrados na igreja aos neoacutefitos era lhes reservado o direito de aprender a
oraccedilatildeo mas soacute podiam pronunciaacute-la em puacuteblico a partir da primeira Eucaristia logo
apoacutes o batismo conforme Cirilo um sacerdote de Jerusaleacutem que viveu por volta do
ano 350 dC (Jeremias 1979 p10) Segundo J Jeremias essas restriccedilotildees podem
ser vistas ateacute mesmo na divisatildeo dos capiacutetulos da Didaquecirc no seacuteculo I Na Didaquecirc
a oraccedilatildeo e a ceia do Senhor soacute vecircm depois do batismo (Jeremias 1979 p9-10)
Isso demonstra o quanto era sagrado o direito de invocar a Deus Pai chamando-o
de Abba Pai
55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR
Jesus pertencia a uma famiacutelia piedosa judaica (Lc 2 1-52 cf 416) viveu no
meio de um povo que sabia orar por isso eacute bem provaacutevel que desde menino tenha
aprendido em casa com seus pais a exercer a praacutetica da oraccedilatildeo cotidiana
Segundo J Jeremias natildeo eacute possiacutevel saber muita coisa sobre a praacutetica de oraccedilatildeo na
vida de Jesus aleacutem dos trecircs gritos da cruz relacionados nos sinoacuteticos haacute ainda
duas oraccedilotildees ldquoo grito de juacutebilo (Mt 11 25-26) e a oraccedilatildeo do Getsecircmani (Mc 14 36)rdquo
O Evangelho de Joatildeo registra outras trecircs oraccedilotildees de Jesus na ressurreiccedilatildeo de
Laacutezaro (Jo 1 14-42) na esplanada do templo (equivalente joanino da oraccedilatildeo do
Getsecircmani Jo 12 27) e a oraccedilatildeo sacerdotal (Jo 17) Aleacutem disso temos outros
relatos gerais de oraccedilatildeo registrados nos Evangelhos (cf Mc 1 35 646=Mt 14 23
Lc 3 21 5 16 6 12 9 18 28-29 Lc 22 31-32) e a oraccedilatildeo do Pai-nosso
(Jeremias 2006 p123)
Podemos ainda mencionar que com exceccedilatildeo das mulheres dos filhos
pequenos e dos escravos todos os homens de Israel a partir dos treze anos
estavam obrigados a recitar regularmente o Shemaacute56 (ldquoOuve oacute Israel Iahweh nosso
Deus eacute o uacutenico Iahwehrdquo Dt 64) duas vezes ao dia Aleacutem da profissatildeo de feacute judaica o
mandamento divino era logo recitado em seguida (cf Jeremias 2006 p 116)
Portanto amaraacutes a Iahweh teu Deus com todo o seu coraccedilatildeo com toda a tua alma e com toda a tua forccedila Que estas palavras que hoje te ordeno
56
No entanto segundo J Jeremias o shemaacute era ensinado aos filhos desde que esses aprendiam a falar (cf Jeremias 2006 p 116)
103
estejam em teu coraccedilatildeo Tu as inculcaraacutes aos teus filhos e delas falaraacutes sentado em tua casa e andando pelo caminho deitado e de peacute (Dt 6 5-7)
No Novo Testamento a oraccedilatildeo jaacute havia deixado de ser praticada duas vezes
ao dia para concretizar-se em trecircs vezes conforme vemos no livro dos Atos dos
Apoacutestolos (31 10 3-30) e na Didaquecirc (83) Segundo Jeremias isso se deve ao
fato de ter havido uma fusatildeo entre o Shemaacute (apesar dessa natildeo ser propriamente
uma oraccedilatildeo mas uma profissatildeo de feacute) com a Tefilaacute no periacuteodo da manhatilde e da noite
enquanto que na oraccedilatildeo da tarde natildeo se recitava o Shemaacute Para os israelitas esses
momentos de oraccedilatildeo eram muito preciosos jaacute que se assegurava a formaccedilatildeo dos
jovens na praacutetica da oraccedilatildeo (Jeremias 2006 p22)
Jesus com certeza conhecia as oraccedilotildees e as formas lituacutergicas para proferi-las
no entanto ao ser indagado pelo disciacutepulo anocircnimo (Lc 111) com a indagaccedilatildeo
ldquoSenhor ensina-nos a orarrdquo eacute claro que o Mestre sabia que seus disciacutepulos tambeacutem
conheciam as oraccedilotildees tradicionais visto que tambeacutem eram judeus No entanto eacute
muito provaacutevel que o disciacutepulo anocircnimo estaacute pedindo a Jesus um novo modelo de
oraccedilatildeo que os distinguisse como um grupo Jesus ensinou-lhes o Pai-nosso que se
tornaria a oraccedilatildeo oficial da Igreja primitiva e viria a substituir o antigo modelo das
trecircs oraccedilotildees diaacuterias tatildeo conhecidas em Israel conforme pode ser visto na Didaquecirc
(9-10) Surge entatildeo uma nova forma de orar a partir do ensinamento de Jesus
baseado na expressatildeo Abba que era a forma singular de expressatildeo usada por ele
para dirigir-se ao Pai que estaacute nos ceacuteus (Jeremias 2006 p129-131)
A relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai atinge seu aacutepice na Oraccedilatildeo do Pai-nosso
onde Jesus estaacute ensinando seus disciacutepulos orar A pergunta feita pelo disciacutepulo
anocircnimo em Lucas 111 (Senhor ensina-nos a orar) resultou no mais belo
ensinamento de Jesus a respeito da oraccedilatildeo Na oraccedilatildeo do Pai-nosso como exemplo
de humildade e obediecircncia ldquoJesus se entrega agrave vontade de Deus como a crianccedila o
faz em relaccedilatildeo ao Pairdquo (Goppelt 2002 p 216) Para Haight a oraccedilatildeo modelo eacute
composta por uma invocaccedilatildeo dois anseios ou esperanccedilas e trecircs pedidos (cf Haight
2003 p139) 57 O teoacutelogo Leonardo Boff assim resume a essecircncia desse magniacutefico
modelo de oraccedilatildeo
57
A forma apresentada por Lucas da oraccedilatildeo do Pai-nosso consiste de um endereccedilamento (ldquoPairdquo) dois desejos proferidos a Deus e trecircs peticcedilotildees ditas a ele A forma em Mateus apresenta um endereccedilamento expandido trecircs desejos e quatro peticcedilotildees Nesse modo de orar Jesus instrui e
104
Na oraccedilatildeo do Senhor encontramos praticamente a correta relaccedilatildeo entre Deus e o homem o ceacuteu e a Terra o religioso e o poliacutetico mantendo a unidade do mesmo processo A primeira parte diz respeito agrave causa de Deus o Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome seu Reino sua Vontade santa A segunda parte concerne agrave causa do homem o patildeo necessaacuterio o perdatildeo indispensaacutevel a tentaccedilatildeo sempre presente e o mal continuamente ameaccedilador Ambas as partes constituem a mesma e uacutenica oraccedilatildeo de Jesus Deus natildeo soacute se interessa pelo que eacute seu o Nome o Reino a Vontade divina Ele se preocupa tambeacutem pelo que eacute do homem o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo o mal Igualmente o homem natildeo soacute se prende ao que lhe importa o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo e o mal abre-se tambeacutem ao que respeita ao Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome a chegada de seu Reino a realizaccedilatildeo de sua Vontade (Boff 2009 p17-18)
Em seu livro ldquoO Pai-nosso a oraccedilatildeo do Senhorrdquo J Jeremias enfatiza o alto
valor que a referida oraccedilatildeo tinha na liturgia entre os cristatildeos da Igreja primitiva J
Jeremias nos diz que o mais antigo uso dessa oraccedilatildeo era a recitaccedilatildeo da mesma na
24ordf catequese de Cirilo onde o Pai-nosso era recitado antes da comunhatildeo e era
restrito dentro do culto divino apenas aos batizados ou seja aos membros efetivos
da Igreja Essa praacutetica provinha de Jerusaleacutem e vigorava por toda a Igreja Desde os
primeiros passos na feacute os neoacutefitos jaacute aprendiam a recitar de cor a oraccedilatildeo do Pai-
nosso mas soacute tinham o direito de rezaacute-lo com os demais fieacuteis a partir do momento
em que participavam da primeira eucaristia ou seja logo apoacutes o batismo (Jeremias
1979 p 5-6)
O uso regular do Pai-nosso na liturgia da Igreja eacute tambeacutem testemunhado na
Didaquecirc (Doutrina dos Doze Apoacutestolos) que segundo J Jeremias eacute tatildeo antiga que
chega a ser datada no seacutec I dC ou para ser mais preciso segundo Boff ela foi
escrita por volta dos anos 50 a 70 dC (Boff 2009 p36) Para J Jeremias a
importacircncia dada ao Pai-nosso na Didaquecirc pode ser observada na estrutura da
obra
[] O livro comeccedila (cc 1-6) com a doutrina dos dois caminhos o da vida e da morte que evidentemente pertencia agrave instruccedilatildeo dada aos catecuacutemenos Em seguida o c 7 trata do batismo soacute depois disso eacute que vecircm as seccedilotildees de importacircncia para os batizados Jejum e oraccedilatildeo (inclusive o Pai-nosso) no c 8 Ceia do Senhor nos cc 9 e 10 organizaccedilatildeo e disciplina eclesiaacutesticas nos cc 11 a 15 O que nos interessa aqui eacute que oraccedilatildeo e Ceia do Senhor vecircm depois do batismo
autoriza seus disciacutepulos a chamar a Deus como ldquoPairdquo usando o mesmo tiacutetulo que ele mesmo utilizou em sua oraccedilatildeo de louvor Lc 1021 (duas vezes) e utilizaraacute de novo em Lc 22 42 (cf Fitzmyer 1985 p 899)
105
O que J Jeremias conclui eacute que diferentemente de hoje onde o Pai-nosso eacute
acessiacutevel a todos nos primoacuterdios do cristianismo era bem diferente O privileacutegio de
recitar a oraccedilatildeo do Senhor era reservado apenas aos membros que estavam
plenamente integrados agrave Igreja A perda da reverecircncia e do temor pela oraccedilatildeo do
Senhor eacute tratada por J Jeremias com apreensatildeo e o retorno agrave reverecircncia que a
Igreja primitiva dava ao Pai-nosso soacute pode ser reconquistada se atraveacutes da exegese
biacuteblica buscarmos entender qual era o sentido que o proacuteprio Senhor quis dar agraves
palavras dessa sagrada oraccedilatildeo (Jeremias 1979 p 8-12)
Concordando com J Jeremias Ephraim tambeacutem observa que nos primeiros
seacuteculos da era cristatilde os cristatildeos pronunciavam as palavras do Pai-nosso ldquocom
grande temor como que em segredordquo O motivo para tal respeito era o medo de
transpassar os limites da reverecircncia e cair na blasfecircmia ao pronunciar o nome
inefaacutevel de Deus Segundo Ephraim ainda hoje baseado nesse profundo respeito
pela sagrada oraccedilatildeo os cristatildeos bizantinos ainda conservam a seguinte foacutermula
antes de iniciarem a oraccedilatildeo ensinada pelo senhor ldquoE torna-nos dignos Mestre de
ousar com toda a seguranccedila e sem incorrer em condenaccedilatildeo de te chamar de Pai a
ti o Deus do ceacuteu e de te dizer Pai nossordquo Ao observarmos essa foacutermula bizantina
que antecede a oraccedilatildeo do Pai-nosso concluiacutemos com Ephraim que o respeito e o
medo de ser indigno de pronunciar tal oraccedilatildeo fizeram com que a tradiccedilatildeo da
comunidade cristatilde acima mencionada conservasse com muita precauccedilatildeo haacutebitos e
costumes dos primeiros cristatildeos no que diz respeito a como se deve orar o Pai-
nosso (Ephraim 1998 p 174)
Partindo do princiacutepio que por volta do ano 75 dC a oraccedilatildeo do Pai-nosso era
obrigatoacuteria na formaccedilatildeo dos neoacutefitos tanto os cristatildeos de origem judaica quanto os
de origem grega tinham em comum a obrigatoriedade da oraccedilatildeo do Senhor na
formaccedilatildeo dos novos disciacutepulos Quanto agrave questatildeo do por que duas versotildees do Pai-
nosso ou se eacute possiacutevel que um dos disciacutepulos tenha acrescentado ou retirado
palavras da forma original J Jeremias conclui que ambos os disciacutepulos jamais
alterariam algum ponto da oraccedilatildeo do Senhor A forma mais clara para se
compreender a aparente divergecircncia estaacute no fato de que ambos escreveram para
igrejas diferentes locais e situaccedilotildees diferentes por isso cada evangelista optou por
transmitir um texto segundo o seu tempo e sua Igreja (Jeremias 1979 p 16-21)
106
Quando lemos a oraccedilatildeo do Pai-nosso nas duas versotildees ou seja por Mateus
e por Lucas surgem questotildees a respeito da antiguidade dos textos e das variantes
textuais entre os dois Evangelhos J Jeremias em sua obra acima citada trabalha
com esmero essas duas questotildees e outras tambeacutem natildeo menos importantes Antes
de abordamos as questotildees levantadas por J Jeremias segue abaixo os textos dos
Evangelhos bem como o texto de Lucas retraduzido para o aramaico segundo J
Jeremias e uma versatildeo do aramaico recitado por cristatildeos que ainda hoje falam o
aramaico conforme Stephen Missick
Mt 6 9-13 Lc 11 2-4
() Portanto orai desta maneira
Pai nosso que estaacutes nos ceacuteus
Santificado seja o teu Nome
venha o teu Reino
seja feita a tua vontade
na terra como no ceacuteu
o patildeo nosso de cada dia
daacute-nos hoje
E perdoa-nos as nossas diacutevidas
como tambeacutem noacutes perdoamos aos
nossos devedores
E natildeo nos submeta agrave tentaccedilatildeo
mas livra-nos do Maligno
() Respondeu-lhes ldquoQuando orardes
dizei
Pai santificado seja o teu Nome
venha o teu reino
o patildeo nosso cotidiano daacute-nos a cada dia
pois tambeacutem noacutes perdoamos aos nossos
devedores
e natildeo nos deixes cair na tentaccedilatildeordquo
Pai Nosso aramaico segundo J
Jeremias
Pai-nosso em aramaico recitado pelos
cristatildeos em aramaico segundo Missick
abba [pai]
yitqaddash shemak tete malkutak
[santificado seja o teu nome venha teu
reino]
Awoon Dwashmaya
Nethqaddash Shmakh
Tethe malkuthakh
Nehweh sebayanakh
107
lahman delimhar hab lan yoma den [o
patildeo nosso de amanhatilde daacute-nos neste dia]
ushebok lan hobenan kedishebaqnan
lehayyabenan [e perdoa-nos as nossas
diacutevidas (pecados) assim como
perdoamos os nossos devedores
(pecadores)]
wela ta el nnan lenisayon [e natildeo nos
conduza agrave tentaccedilatildeo] (cf Jeremias 2008
p291)
Aykana dwashmayya aph ara
Hab lan lakhma dsunkanan yowmana
Washboq lan hawbayn aykanan dap
hanan shwaqnan l-hayawayn
Wa la talain Inesyona
Ella passan min beesha
Mittol dlakh hee malkoota wa khaylan w
tishbookhta alalam almeen Amen (cf
Missick 2006 p58)
Para J Jeremias para entendermos o sentido do Pai-nosso na redaccedilatildeo de
Mateus eacute preciso ver que Jesus estaacute advertindo seus disciacutepulos a natildeo praticarem as
esmolas oraccedilatildeo e jejum da mesma forma que elas eram praticadas pelos fariseus
visto que estes amavam praticaacute-las desde que fossem vistos e reconhecidos pelos
homens Os disciacutepulos deviam procurar um cocircmodo por menor que fosse e natildeo
imitar os fariseus em hipoacutetese alguma no quesito de sempre ser pegos em uma
aparente surpresa na hora da oraccedilatildeo para que dessa forma pudessem sempre que
possiacutevel orar no meio da multidatildeo com o uacutenico objetivo de serem reconhecidos e
honrados
Em relaccedilatildeo ao texto de Lucas J Jeremias descreve sobre o fato de tanto a
situaccedilatildeo quanto os leitores de Lucas serem diferentes dos de Mateus Em Lucas a
oraccedilatildeo eacute mais breve o sentido do texto eacute o ensinar a perseveranccedila na oraccedilatildeo visto
que a mesma eacute precedida pela paraacutebola do amigo importuno As diferenccedilas entre a
oraccedilatildeo contida em Mateus e a de Lucas eacute devido aos diferentes grupos a quem
essa oraccedilatildeo foi destinada Segundo J Jeremias os leitores para os quais Mateus
deve ter destinado o Evangelho eram homens que desde a infacircncia aprenderam a
orar enquanto que os de Lucas eram antigos convertidos ao cristianismo
Ao nos depararmos com as duas versotildees da oraccedilatildeo do Pai Nosso na Biacuteblia
(Mateus 6 9 -13 e Lucas11 2-4) logo vem agrave mente qual delas se aproxima mais da
versatildeo original de Jesus ou entatildeo em que liacutengua Jesus proferiu essa magniacutefica
oraccedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta J Jeremias responde da seguinte forma
108
[] a formulaccedilatildeo mais curta de Lucas estaacute integralmente contida na redaccedilatildeo longa de Mateus Isto faz com que seja bem provaacutevel que a forma de Mateus seja uma ampliaccedilatildeo pois pelo que sabemos das leis que regem a transmissatildeo dos textos lituacutergicos quando uma redaccedilatildeo mais curta estaacute assim integralmente contida numa longa eacute a mais curta que deve ser considerada como original (J Jeremias 1979 p23)
Contudo J Jeremias conclui que o texto de Lucas eacute o mais antigo quanto agrave
extensatildeo mas em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo oral (verbal) o texto de Mateus eacute o mais antigo
(cf Jeremias 2008 p 291) Complementando o pensamento de J Jeremias a
respeito da versatildeo original do Pai Nosso Boff assim conclui ldquoDestarte Lucas seria
mais originalrdquo (Boff 2009 p36)
Concernente agrave liacutengua materna de Jesus e agrave cultura da Palestina daquela
eacutepoca podemos ainda perguntar era Jesus um poliglota ou falava apenas o
aramaico Antes de tratarmos com mais detalhes a respeito da liacutengua e cultura de
Jesus observamos a princiacutepio que pelo menos trecircs liacutenguas eram faladas na
Palestina nos dia de Jesus (aramaico grego e latim) conforme as informaccedilotildees
contidas no texto de Joatildeo 19 19-20
Segundo Sabugal haacute uma grande probabilidade de que Jesus possuiacutesse
conhecimentos da liacutengua grega pelos contatos registrados entre Jesus e algumas
pessoas de origem helecircnica como o centuriatildeo romano (Mt 5 8-13 cf Lc 7 1-10)
tambeacutem com a mulher sirofeniacutecia aleacutem do disciacutepulo chamado Filipe que
provavelmente conhecia a liacutengua grega conforme podemos interpretar a partir da
leitura de Joatildeo 12 20-2 (Sabugal 1985 p319) No entanto para Sabugal a liacutengua
popular na Palestina dos dias de Jesus era o aramaico galileu58 Tal liacutengua era tatildeo
familiar agraves comunidades a ponto de apoacutes a leitura de um texto sagrado em
hebraico (Toraacute) logo seguia-se uma traduccedilatildeo para o aramaico (Targum) onde o
texto podia ser compreendido por todos Portanto fica evidente que o aramaico foi a
liacutengua materna de Jesus isso fica mais claro ainda quando encontramos nos
evangelhos palavras aramaicas (cf Mc 14 36 Lc 23 34 42 46 Mc 15 34 = Mt
58 Para Geza Vermes a liacutengua original do Pai-nosso era o aramaico mesmo que alguns estudiosos
discordem colocando o hebraico como a liacutengua original (segundo vermes sem convencer) a maioria dos especialistas eacute de acordo com essa teoria Vermes observa que aleacutem das peculiaridades do grego de Mateus o Pai-nosso tem semelhanccedilas com o kadish uma antiga oraccedilatildeo judaica composta em aramaico que era conhecida por Jesus e que ele teria sido influenciado e inspirado por ela (Vermes 2006 p 258)
109
27 46) conservadas pelos evangelistas sem traduccedilatildeo para a liacutengua grega (Sabugal
1985 p321)
Ao se referir sobre a origem do Pai Nosso Sabugal assim exclama ldquoQue
alegria seria se conseguiacutessemos recuperar a ipsissima verba do Pai Nosso ensinado
por Jesus de Nazareacute e reconstruindo seu texto primitivo pudeacutessemos escutar a
ipsissima vox do Mestrerdquo (Sabugal 1985 p317) Para Sabugal natildeo haacute duacutevida que
os vocaacutebulos gregos estatildeo dispostos segundo os usos da gramaacutetica semiacutetica O
autor tambeacutem entende que na oraccedilatildeo do Pai Nosso tanto de Mateus como na de
Lucas teve como fundo doutrinaacuterio e literaacuterio a liacutengua materna de Jesus (aramaico)
Conforme J Jeremias para compreendermos a essecircncia da oraccedilatildeo de Jesus faz-se
necessaacuterio aproximarmo-nos do proacuteprio modo de falar do Mestre e isso soacute eacute
possiacutevel quando chegamos a ipsissima vox de Jesus (Sabugal 1985 p317)
Sabugal (1985 p317) concorda que descobrir a liacutengua materna de Jesus eacute
algo muito importante e extraordinariamente fundamental O referido autor
compartilha com J Jeremias dessa tese haja vista que eacute importante levar em
consideraccedilatildeo o fato de que para ele os escritores dos evangelhos eram verdadeiros
autores literaacuterios e autecircnticos teoacutelogos de suas comunidades cristatildes capazes de
transmitir com fidelidade a essecircncia da mensagem de Jesus59 Aleacutem do mais os
autores biacuteblicos eram divinamente inspirados pelo Espiacuterito Santo conforme os
textos de 2 Tm 316 e 2Pe 121
Por outro lado Leonardo Boff (2009 p36) considera que a oraccedilatildeo de Jesus
natildeo pode ser tratada como uma oraccedilatildeo simples que possa ser retraduzida do grego
para o aramaico primitivo conforme fez J Jeremias no texto que reproduzimos
abaixo
Pai querido Que o teu nome seja santificado Que venha o teu reino Daacute-nos hoje nosso patildeo de amanhatilde E perdoa-nos nossas diacutevidas como noacutes tambeacutem ao dizermos estas palavras estamos perdoando a nossos devedores E natildeo nos deixes sucumbir agrave tentaccedilatildeo (Jeremias 1979 p33)
59
Sobre a autoria e composiccedilatildeo dos Evangelhos ver o capiacutetulo 4 paraacutegrafo 3 deste trabalho
110
Observamos que de acordo com o pensamento de Boff natildeo eacute faacutecil reproduzir
a oraccedilatildeo de Jesus do grego para o aramaico e dessa forma tambeacutem pensa
Sabugal o qual apesar de achar o trabalho de J Jeremias de extrema importacircncia
no entanto assim como Boff pensa que realizar tal tarefa natildeo eacute nada faacutecil uma vez
que envolve estudos linguiacutesticos e literaacuterios concernentes agrave liacutengua materna e ao
texto primitivo do Pai-nosso em sua composiccedilatildeo riacutetmica e literaacuteria bem como a real
motivaccedilatildeo de Jesus ao ensinar essa oraccedilatildeo aos seus disciacutepulos Haja vista o grau
de dificuldade apresentado acima natildeo podemos deixar de observar que quanto
mais nos aproximarmos do Pai-nosso de Jesus na sua originalidade mais
maravilhados ficaremos diante da grandiosidade dessa magniacutefica oraccedilatildeo
56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA
Conforme J Jeremias e a maioria dos estudiosos Abba eacute um termo que faz
parte da liacutengua semiacutetica para ser mais preciso do aramaico Oriacutegenes pertencente
ao periacuteodo da Patriacutestica profundo conhecedor do grego e das liacutenguas semiacuteticas
segundo Fitzmyer (1992 p 48) estranhamente considerou o termo Abba como
sendo uma palavra hebraica Restou a Jerocircnimo esclarecer que o termo Abba era
siacuterio (Syrum est non hebraeum) e natildeo hebraico Lembrando que o que Jerocircnimo
chamava de siacuterio nos dias dele noacutes chamamos de aramaico
Segundo Matthew Black o aramaico foi uma das grandes liacutenguas faladas na
antiguidade por volta do VI e III seacuteculos aC quando o mundo era governado pelos
grandes impeacuterios orientais desde o Eufrates ateacute o Nilo Essa liacutengua tornou-se a
liacutengua dos judeus provavelmente depois do Exiacutelio O aramaico foi suplantado pelo
grego koineacute no mundo civilizado da eacutepoca durante o impeacuterio de Alexandre o
Grande No entanto o grego nunca substituiu por completo o uso do aramaico entre
os judeus tanto da Palestina como da Babilocircnia bem como de alguns povos de
cultura semiacutetica na Siacuteria e Mesopotacircmia (Black 1998 p14)
Entre os judeus podemos encontrar dois dialetos aramaicos na Palestina
conforme a pesquisa apresentada por Dalman Black menciona que segundo a
distinccedilatildeo feita por Dalman os dialetos estatildeo propostos na seguinte forma o primeiro
representado pelo aramaico do Antigo Testamento e o aramaico do Targum para
Pentateuco e para os profetas O segundo composto pelo conjunto de anedotas
111
popular do Talmude Palestino junto com outras partes do comentaacuterio palestinense
do Antigo Testamento dos antigos Midrash60 haggaacutedicos (Black 1998 p19)
No entanto a liacutengua na qual foi escrito o Novo Testamento eacute aceita quase que
por unanimidade pelos eruditos como sendo o grego coineacute ou grego biacuteblico
conforme foi chamado pelos especialistas ateacute o comeccedilo do seacuteculo XX (Koester
2005 vol I p118) Segundo Koester (2005 vol1 p120-121) todos os livros do
Novo Testamento foram escritos originalmente em grego e esse autor eacute mais
enfaacutetico ainda quando afirma que nenhuma obra dos primeiros cristatildeos escrita em
grego pode ser traduccedilatildeo direta do hebraico ou do aramaico De acordo com Koester
eacute fato que existem inuacutemeros hebraiacutesmos e aramaiacutesmos constantes no Novo
Testamento que podem ser citaccedilotildees gregas da Biacuteblia hebraica ou ainda que
podem ser justificadas pelo fato de que o autor estava inserido num ambiente que
propiciava a formulaccedilatildeo de palavras semiacuteticas como no caso dos Evangelhos onde
Jesus e seus disciacutepulos eram falantes nativos do aramaico
Koester observa que as traduccedilotildees do aramaico para o grego devem ter
acontecido num periacuteodo anterior aos escritos dos primeiros cristatildeos quando esses
ainda conservavam na memoacuteria apenas a tradiccedilatildeo oral Essas traduccedilotildees foram
feitas deacutecadas antes da composiccedilatildeo dos Evangelhos e dessa forma no processo
de composiccedilatildeo das fontes dos Evangelhos praticamente todos os aramaiacutesmos
foram substituiacutedos por palavras gregas com exceccedilatildeo do Evangelho de Marcos que
parece ter usado fontes gregas que eram traduccedilotildees diretas dos originais aramaicos
ou ainda os relatos de milagres no Evangelho de Joatildeo que possivelmente tambeacutem
pode ter sido traduccedilatildeo de um original aramaico (Koester 2005 vl 1 p121-122)
Outra observaccedilatildeo de Koester eacute a questatildeo do bilinguismo na Palestina Entre
os primeiros cristatildeos havia uma mescla de seguidores de Jesus que falavam o
aramaico e o grego Esses foram determinantes para que a composiccedilatildeo dos
Evangelhos fosse fortemente influenciada pelo aramaico Para Koester ldquoalguns
desses semitismos satildeo empreacutestimos semacircnticos que derivam do ambiente geral da
liacutengua como θάλασσα natildeo soacute para mar ou oceano mas tambeacutem para lago uma
vez que o aramaico יםאא denota ambosrdquo (Koester 2005 vl1 p122)
60
Etimologicamente essa palavra tem como raiz o termo darash procurar significa pesquisa sobre a Escritura e tem como funccedilatildeo o meacutetodo de estudo das Escrituras com vistas agrave sua atualizaccedilatildeo (cf Vermes 1990 p11)
112
Para trabalhar as questotildees filoloacutegicas e semacircnticas do Abba precisamos
investigar se a liacutengua materna de Jesus era realmente o aramaico Muitas questotildees
tecircm sido levantadas sobre a liacutengua que Jesus falava e tambeacutem questotildees sobre o
niacutevel cultural do Nazareno As liacutenguas oficiais do impeacuterio romano eram o latim e o
grego Para John P Meier questotildees relacionadas ao idioma ou idiomas que Jesus
falava satildeo muito complexas visto que natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz daquele
periacuteodo e as inscriccedilotildees em latim podem apenas ser um sinal para demonstrar a
presenccedila do poderio romano do que ter a finalidade de informar aos judeus sobre
algo que lhes fosse interessante Como para Meier no mundo greco-romano a
maioria da populaccedilatildeo era analfabeta isso obviamente era vaacutelido tambeacutem para a
populaccedilatildeo judaica (Meier 1993 p254)
Meier usa como exemplo uma famosa ldquoinscriccedilatildeo de Pocircncio Pilatosrdquo que foi
descoberta na Cesareia Mariacutetima em 1961 Essa inscriccedilatildeo em latim foi dedicada ao
Imperador Tibeacuterio por Pilatos A questatildeo levantada por Meier eacute ateacute que ponto esta
inscriccedilatildeo alcanccedilou os gentios e judeus que viviam em Cesareia Possivelmente
para esse autor Pilatos estava preocupado em alcanccedilar apenas as elites ou seja
ele se dirigia apenas aos seus ldquoiguaisrdquo aqueles que estavam a serviccedilo do Impeacuterio ou
faziam parte das elites dominantes As inscriccedilotildees mesmo que sejam as oficiais em
preacutedios puacuteblicos ou aquedutos construiacutedos pelo Impeacuterio ou ateacute mesmo as inscriccedilotildees
funeraacuterias natildeo provam em nada que o latim fosse uma liacutengua comum na Palestina
O fato de uma laacutepide tumular estar em latim poderia apenas ser ldquoo desejo de dar
uma impressatildeo de alta culturardquo e nada mais Assim como segundo Meier natildeo se
pode concluir que os catoacutelicos americanos do iniacutecio do seacuteculo XX tinham um idioma
comum apenas observando a frase Requiescat in pace (do latim descanse em Paz)
inscrita em seus tuacutemulos e nem as muitas inscriccedilotildees em latim espalhadas pela
Europa podem refletir as inuacutemeras liacutenguas faladas hoje em dia nesse continente
Meier observa entatildeo que o Latim eacute visto quase que por unanimidade como o
idioma menos falado na Palestina nos dias de Jesus e por isso ldquonatildeo haacute razatildeo para
se pensar que Jesus falou e muito menos leu o latimrdquo (Meier 1993 p 254 ndash 255)
Se o latim natildeo era tatildeo comum na Palestina jaacute o grego segundo Meier era
um caso totalmente diferente O grego era comum em todo o Impeacuterio romano
inclusive em Roma capital do Impeacuterio A Palestina dos dias de Jesus era altamente
113
helenizada haviam cidades e povoados que foram transformados de uma forma
poliacutetica e cultural em cidades gregas61 Segundo Meier o debate atual entre os
estudiosos estaacute concentrado apenas em saber qual era o grau de helenizaccedilatildeo
nessas cidades Mesmo apoacutes o periacuteodo dos Macabeus onde houve um movimento
de resistecircncia agrave liacutengua e a cultura grega natildeo foi possiacutevel extinguir essa cultura da
Palestina porque apoacutes esse periacuteodo (dos Macabeus) a Palestina passou a ser
governada pelos Asmoneus que tiveram como monarca principal por volta do final
do seacuteculo I aC Herodes o Grande Herodes deu continuidade agrave poliacutetica de
helenizaccedilatildeo que tinha comeccedilado com os reis Selecircucidas especificamente por
Antiacuteoco Epiacutefanes IV O processo de helenizaccedilatildeo de Herodes foi desde a construccedilatildeo
do porto da Cesareia Mariacutetima a cidade de Sebaste em Samaria e muitas outras
grandes edificaccedilotildees em Jerusaleacutem Segundo Meier as inscriccedilotildees em Grego em
Jerusaleacutem eram inuacutemeras desde o Templo as sinagogas ateacute ossuaacuterios Meier assim
descreve a influecircncia grega na Palestina
[] Martin Hengel afirma que uma terccedila parte dos epitaacutefios em Jerusaleacutem do periacuteodo do Segundo Templo eram escritos em grego e ele ainda calcula que das 80000 ou 100000 pessoas que residiam na grande Jerusaleacutem entre 8000 e 16000 teriam falado grego Mas natildeo foi soacute em Jerusaleacutem que a liacutengua e a cultura gregas alcanccedilaram os judeus Um grande nuacutemero de judeus vivia nas cidades helenizadas da planiacutecie litoracircnea desde Gaza no sul ateacute Dor ou Ptolomaicas-Acco no norte Em Cesareia a capital romana da Judeia havia quase tantos judeus como gentios As cavernas de Murabaat nos forneceram papiros gregos sobre a vida diaacuteria e ateacute mesmo ndash por ironia ndash coacutepias de cartas em grego do tempo da revolta de Bar Kochba exatamente quando os nacionalistas lutavam e morriam para se libertarem do jugo estrangeiro e da dominaccedilatildeo cultural
Concernente agrave liacutengua grega e suas influecircncias na Palestina Meier observa
que para se chegar a uma conclusatildeo ou aproximaccedilatildeo de algum fato referente agrave que
idioma era falado pelos judeus residentes na Palestina faz-se necessaacuterio ter uma
atenccedilatildeo redobrada ao periacuteodo em questatildeo Por exemplo se atentarmos para os
seacuteculos III e II aC observa-se um eclipsamento do aramaico devido agrave helenizaccedilatildeo
da Palestina pelos reis selecircucidas da Siacuteria Segundo Meier parece que o aramaico
soacute voltou a retomar a prioridade na Palestina apoacutes a revolta dos Macabeus por isso
61
Se levarmos em consideraccedilatildeo os dados de Martin Hengel citados acima por Meier podemos
deduzir que aproximadamente de 10 a 20 da populaccedilatildeo de Jerusaleacutem falava grego Entatildeo eacute difiacutecil considerar a Palestina dos dias de Jesus como sendo altamente helenizada como fez Meier uma vez que nem mesmo na capital havia tantas pessoas que falavam tal liacutengua
114
natildeo eacute possiacutevel determinar qual era a liacutengua mais falada na Palestina dos seacuteculos II e
I aC tomando como exemplo inscriccedilotildees e textos dos seacuteculos III e II aC (Meier
1993 p 255)
A opiniatildeo de Meier eacute que vaacuterios textos de Flaacutevio Josefo levam agrave conclusatildeo de
que a liacutengua grega natildeo era tatildeo conhecida ou tatildeo falada na Palestina do seacuteculo I
pelos judeus Meier analisa que Josefo mesmo apoacutes se gabar de seu alto niacutevel
cultural tanto em relaccedilatildeo agrave lei como agrave prosa e poesia gregas demonstra algumas
dificuldades com a pronuacutencia do grego Meier observa que as dificuldades de Josefo
parecem natildeo ser apenas de pronuacutencia mas seu domiacutenio de escrita tambeacutem natildeo era
ldquoexatamente perfeitordquo Outro fator observado por Meier eacute a forma de comunicaccedilatildeo
que o general romano Tito usou para se comunicar com os judeus Tito que falava
bem o grego segundo Suetocircnio mas para se comunicar com os judeus precisou de
um ldquomensageiro em aramaico (Josefo) para ser compreendido pelos judeus Surge
entatildeo a grande pergunta Jesus falava grego Para Meier se nem mesmo Josefo
que era haacutebil na liacutengua grega natildeo se sentiu agrave vontade para transmitir o recado de
Tito em grego mas em aramaico porque natildeo dominava bem a liacutengua ou porque os
ouvintes natildeo entenderiam deduz-se que ldquoa probabilidade de um camponecircs galileu
ter suficiente conhecimento para se tornar um mestre e pregador bem-sucedido que
proferisse seus discursos em grego parece muito pequenardquo (Meier 1993 p 258-
259)
Ao fazer um trabalho minucioso sobre a liacutengua que Jesus falava Meier
depois de muitos questionamentos levanta a suposiccedilatildeo de que natildeo podemos negar
que Jesus fosse totalmente desconhecedor da liacutengua dos helenos Primeiro porque
Jesus ateacute mesmo por causa de sua profissatildeo e viagens a Jerusaleacutem tinha contato
com pessoas que falavam grego Eacute possiacutevel segundo Meier que Jesus vez ou outra
fizesse algum contrato ou assinasse algum recibo que tivesse sido redigido em
grego62 Mas o fato de assinar recibos ou mesmo ter dialogado com Pilatos pode
apenas presumir que Jesus possuiacutesse alguns conhecimentos da liacutengua grega
62
A hipoacutetese de Meier sobre a possibilidade de Jesus ter assinado pequenos contratos em grego eacute questionaacutevel uma vez que segundo Meier se nem mesmo Josefo era fluente na liacutengua dos helenos muito menos Jesus que era um humilde galileu Outrossim segundo Crossan eram poucas as pessoas alfabetizadas na Palestina (no maacuteximo 3 da populaccedilatildeo) Crossan chega a afirmar que Jesus era analfabeto como a maioria dos seus conterracircneos Se tal hipoacutetese tambeacutem for verdadeira dificilmente Jesus teria condiccedilotildees de assinar pequenos contratos profissionais na liacutengua grega
115
suficientes apenas para um pequeno diaacutelogo composto de frases curtas Meier acha
muito difiacutecil Jesus ter adquirido alfabetizaccedilatildeo para a escrita em grego O referido
autor ainda aprofunda mais as suas desconfianccedilas a respeito do assunto quando
diz ldquoPortanto acompanhando Fitzmyer mantenho minhas duacutevidas se qualquer parte
dos pronunciamentos de Jesus foi feita desde o iniacutecio em grego dispensando a
traduccedilatildeo ao passar para os Evangelhos gregos que conhecemosrdquo (Meier 1993 p
260)
Apoacutes verificarmos as influecircncias do latim e do grego na Palestina nos dias de
Jesus resta-nos verificar as liacutenguas faladas em Israel desde os primoacuterdios da
naccedilatildeo O hebraico era o antigo e sagrado idioma falado em Israel mas desde que
os judeus voltaram do cativeiro babilocircnico o hebraico sofreu um decliacutenio como
liacutengua falada e passou a ser substituiacutedo gradualmente pelo aramaico Essa
influecircncia do aramaico sobre o hebraico jaacute pode ser vista nos livros poacutes-exiacutelicos
mais precisamente sobre ldquoos livros de Esdras e Daniel que contecircm capiacutetulos inteiros
escritos em aramaico sendo que em Daniel eles chegam agrave metade do totalrdquo (Meier
1993 p 260)
Contudo segundo Meier o hebraico continuou sendo uma liacutengua viva em
Israel principalmente em Qumran onde tinha primazia com o aramaico em
segundo lugar e o grego ocupando apenas uma distante terceira colocaccedilatildeo No
entanto o fato do hebraico ser a liacutengua oficial da comunidade de Qumran natildeo
confirma em nada que o hebraico fosse uma liacutengua usada no dia a dia dos demais
israelitas fora dessa restrita comunidade O que parece ser mais evidente era que o
hebraico aleacutem de em Qumran era usado por religiosos e grupos nacionalistas e por
judeus devotos e em algumas regiotildees de Israel ainda se falava e escrevia em
hebraico (Meier 1993 p 261)
Mesmo sendo o hebraico uma liacutengua viva em Israel Jesus segundo Meier
usava o aramaico para comunicar-se com os seus conterracircneos na vida diaacuteria uma
vez que se acredita que ele natildeo pertencia agrave comunidade de Qumran e nem agrave elite
dos religiosos da eacutepoca bem como seus ouvintes que em sua maioria pertenciam
agraves classes sociais mais humildes A maior evidecircncia disso estaacute nos aramaiacutesmos
registrados nos Evangelhos e especificamente no Evangelho de Marcos onde
encontramos a palavra Abba proferida por Jesus (Mc 1436) De acordo com Meier
116
J Jeremias relacionou 26 palavras aramaicas atribuiacutedas a Jesus nos evangelhos
Dessas palavras Meier opina que duas delas Talita cumi e Abba (Mc 5 41 14 36)
satildeo as que mais proacuteximas estatildeo do Jesus histoacuterico Para ele nem todos os
exemplos citados por J Jeremias podem ser comprovados entretanto alguns satildeo
uacuteteis para demonstrar a forma como Jesus instruiacutea os seus disciacutepulos (Meier 1993
p 264)
A questatildeo da liacutengua falada nos dias de Jesus eacute complexa uma vez que o
aramaico eacute uma liacutengua semiacutetica e estaacute intimamente relacionada com o hebraico No
entanto o aramaico natildeo eacute um dialeto do hebraico mas uma liacutengua semiacutetica distinta
De fato se partirmos do pensamento de Black e considerarmos que Jesus era um
Rabi na Galileia entatildeo natildeo podemos descartar a possibilidade de que ele fez uso
tanto do hebraico como do aramaico especialmente em suas disputas formais com
os fariseus (Black 1998 p16) Aleacutem disso ter conhecimento das duas liacutenguas natildeo
era nada anormal visto que segundo Missick em alguns casos as liacutenguas eram tatildeo
similares que existiam palavras usadas em ambas as liacutenguas com o mesmo
significado (Missick 2010 p 4)
Analisando a coexistecircncia das duas liacutenguas na Palestina nos dias de Jesus
observa-se que as origens do aramaico podem ser anotadas a partir do cativeiro
babilocircnico que ocorreu no periacuteodo de 586 a 539 aC antes disso o hebraico era a
liacutengua oficial dos judeus Com o retorno do hebraico como a liacutengua e a identificaccedilatildeo
da cultura e existecircncia do povo judeu o aramaico foi perdendo forccedilas ateacute ser
considerado uma liacutengua morta No entanto segundo Missick ainda existem
comunidades que falam o aramaico nos dias atuais como os cristatildeos assiacuterios63 do
Iratilde e do Iraque Antigos cristatildeos dessas regiotildees preservaram uma importante versatildeo
da Biacuteblia em aramaico que hoje eacute conhecida como a Biacuteblia Peshitta que segundo
Missick eacute muito valiosa porque a partir dela eacute possiacutevel estudar as palavras de
Jesus no aramaico pois acreditam os cristatildeos do oriente que os Evangelhos foram
63
Matthew Black observa que foi encontrado entre os siriacuteacos cristatildeos palestinos o dialeto aramaico
mais proacuteximo do aramaico dos Evangelhos enquanto que para Dalman segundo Black o aramaico que mais se aproxima do falado nos dias de Jesus era o aramaico dos Targuns judaicos para o Pentateuco e os profetas (cf Black 1998 p18-19)
117
primeiro escritos em aramaico e soacute depois traduzidos para o grego (Missick 2010
p5) 64
Para enfatizar a importacircncia do aramaico no Novo Testamento Missick
relaciona as palavras aramaicas compostas de oraccedilotildees tiacutetulos divinos nomes de
pessoas nomes de lugares e outras palavras e frases usadas no Novo Testamento
Abba (Mc 14 36) Eloiacute Eloiacute lemaacute sabachtaacuteni (Mc 15 34 cf Mt 2746) segundo
Missick se Jesus estivesse falando em hebraico ele teria dito Eli Eli lama azabanti
Nesse caso Jesus estaacute citando o Salmo 221 em aramaico Essa traduccedilatildeo do Antigo
Testamento eacute chamada de Targum65 pela tradiccedilatildeo judaica Dentre as palavras
relacionadas por Missick temos tambeacutem Maranatha (1 Co 1622) que
etimologicamente conforme a definiccedilatildeo dada por Missick (2010 p22-26) tem como
prefixo o termo ldquoMarrdquo que significa Senhor ou ldquoMaranrdquo que significa nosso Senhor
donde temos Maranatha que tem como definiccedilatildeo completa o significado de ldquonosso
Senhor vemrdquo (Marana tha) ou ainda ldquonosso Senhor estaacute vindordquo (Maran atha) Em
aramaico temos ainda outra palavra Rabboni (Jo 2016)
Em relaccedilatildeo aos nomes em aramaico mencionados no Novo Testamento
Missick argumenta que essas pessoas natildeo teriam outro motivo para receber nomes
64
Missick (2006 p170) refere-se a dois grupos significantes de cristatildeos que ainda falam o aramaico O primeiro grupo eacute composto por siacuterios Ortodoxos que vivem na Siacuteria O Segundo grupo do oriente (leste) da Siacuteria satildeo chamados de Assiacuterios e satildeo nativos do Iratilde e do Iraque conforme jaacute comentado acima Segundo Missick os cristatildeos mesmo sendo chamados de assiacuterios satildeo totalmente distintos da cultura do antigo Impeacuterio Assiacuterio A avanccedilada e militarista cultura da Assiacuteria antiga desapareceu com o tempo mas seus descendentes satildeo os modernos siacuterios do Oriente chamados de assiacuterios Os antigos assiacuterios falavam o Acadiano liacutengua falada por assiacuterios e babilocircnios que natildeo eacute mais falada na atualidade
Os atuais cristatildeos Siacuterios e Assiacuterios pertencem a denominaccedilotildees diferentes Segundo Missick (2006 p170) os siacuterios do oeste pertencem agrave Igreja Ortodoxa siacuteria e jaacute foram chamados de Jacobitas ou seja porque provinham do bispo Jacob Bardesanes (542-578 dC) Os cristatildeos chamados de assiacuterios eram conhecidos como nestorianos visto que o patriarca deles foi Nestoacuterio de Constantinopla um Patriarca da Igreja Ortodoxa grega (428-431 dC) A igreja no entanto eacute mais apropriadamente chamada de ldquoAntiga Igreja assiacuteria do Orienterdquo
65 Esta palavra eacute de origem natildeo semiacutetica mas foi adotada pelos judeus para designar tradiccedilatildeo (aqui
parece haver um equiacutevoco do comentador uma vez que a palavra Targum vem do hebraico lsquo targucircmimrsquo e significa traduccedilatildeo Cf La Sor 1999 p 670) ldquoOs targuns satildeo as traduccedilotildees aramaicas dos textos biacuteblicos destinados ao uso sinagogal Na sua origem essas traduccedilotildees eram orais e mais ou menos improvisadas e fragmentaacuterias sendo depois progressivamente fixadas por escrito e reunidas em grandes secccedilotildees (targum do Pentateuco targum dos Profetas targum dos Hagioacutegrefos) Mesmo quando eacute literal na aparecircncia o targum conteacutem elementos mais ou menos amplos de paraacutefrase ou de explicaccedilatildeo de atualizaccedilatildeo e ateacute de correccedilotildees Ele integra o midrash sobretudo na sua forma haggaacutedica Eacute possiacutevel que existisse um targum do Pentateuco ndash ou torah aramaica ndash na eacutepoca de Jesus e ateacute antes na Palestina A atividade targuacutemica evoluiacutera no decorrer dos seacuteculos em que foi praticada para a atividade propriamente midraacuteshica (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p11-12)
118
em aramaico se natildeo estivessem inseridos numa determinada comunidade que
falasse aramaico Missick cita como exemplo o prefixo ldquoBarrdquo antes de alguns nomes
que em aramaico tem o sentido de ldquofilho derdquo enquanto que para nomes em hebraico
se usava o prefixo ldquoBenrdquo que tambeacutem tinha o sentido de ldquofilho derdquo (Missick 2010
p26) Os nomes pessoais que segundo Missick tecircm origem no aramaico satildeo
Cephas (Jo 142 1 Co 112 Gl 29) Tomeacute que vem do aramaico ldquoteomardquo cujo
significado eacute gecircmeo (Jo 212) Simatildeo o Zelota (Mc 318) Maria Madalena que era
natural da cidade de Magdala que em aramaico significa Torre66 Tadeu e Lebeu (Mt
103) Tadeu em aramaico significa mamilo e Lebeu significa coraccedilatildeo
A extensa relaccedilatildeo de nomes pode ser assim resumida Tabita (At 936) Marta
(Lc 10 38-41 Jo 11 1-39 122) Bartolomeu (Mt 103) Jesus Barrabaacutes (Mt 2736)
Simatildeo Bar-Jonas (Mt 2716) Joseacute Barsabaacutes (At 123) Elimas Bar-Jesus (At 13 6-8)
Judas Barsabaacutes (At 15 22) Joseacute Barnabas ou Barnabeacute ndash Filho da profecia- (At
436) Aleacutem dos nomes de pessoas e dos tiacutetulos divinos em aramaico ainda
segundo Missick haacute vaacuterios nomes de cidades com origens no aramaico Gaacutebata (Jo
1913) Goacutelgota (Jo 19 17-18 Mc 1522) Betacircnia (Jo 111) Betesda (Jo 5 1-15)
Geena Mt 1028) Resta-nos ainda conforme Missick relacionar palavras e frases
em aramaico usadas no Novo Testamento Effatha (Mc 734) Taliacutetha Kum (Mc 541)
Raca (Mt 5 22) Mamon (Mt 624) Corban (Mc 7 9-13)
Para Missick natildeo haacute duacutevidas que Jesus falou aramaico Um dos argumentos
levantados por esse autor estaacute baseado no relato da morte de Judas conforme
registrou Lucas (At 119) No discurso de Pedro sobre a substituiccedilatildeo de Judas o
lugar onde o corpo de Judas caiu e se arrebentou ao meio conforme o texto
chamava-se Haceacuteldama na proacutepria liacutengua dos moradores de Jerusaleacutem Para
Missick essa palavra eacute aramaica e natildeo hebraica Se a palavra realmente eacute
aramaica entatildeo deduz-se que o idioma falado naqueles dias era o aramaico e natildeo
o hebraico e nem o grego muito menos o latim Missick conclui entatildeo que para se
compreender a mensagem de Jesus que antes de ser escrita foi transmitida
oralmente eacute necessaacuterio compreender as palavras na liacutengua em que Jesus as
66
Missick menciona que ela era conhecida como Madalena porque sua feacute era como uma torre Esse argumento foi defendido por Jerocircnimo contudo segundo Missick o mais provaacutevel eacute que ela tenha adquirido este tiacutetulo por ter vindo da cidade de Magdala (cf Missick p28)
119
proferiu e a melhor forma de alcanccedilar tal objetivo eacute compreender o aramaico
(Missick 2010 p4-35)
Entre os autores que defendem que o aramaico era a liacutengua dos galileus
contemporacircneos de Jesus encontramos tambeacutem Joseacute Pagola Jesus conforme
esse teoacutelogo falava o aramaico em casa assim como todos os galileus Pagola
ainda analisa que ateacute mesmo na Judeia se falava o aramaico no dia a dia Segundo
Pagola as diferenccedilas entre o aramaico da Galileia para o aramaico da Judeia era
apenas de dialeto (sotaque)
Embora o aramaico seja defendido pela maioria dos estudiosos de teologia do
Novo Testamento haacute no entanto autores que defendem que o hebraico natildeo
somente era uma liacutengua viva como era a mais falada nos dias de Jesus Para os
teoacutelogos David Biacutevin e Roy Bliacutezard Jr o hebraico era o idioma mais falado pelos
contemporacircneos de Jesus e dos primeiros cristatildeos Para esses autores um idioma
pode ser definido da seguinte maneira ldquoo idioma eacute uma expressatildeo no uso de uma
liacutenguagem que eacute peculiar a si proacuteprio na construccedilatildeo gramatical ou em ter um
significado que natildeo pode ser derivado como um todo a partir dos significados do
conjunto de seus elementos Na visatildeo deles o ldquohebraico eacute a chave para entender
as palavras de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p 2-4)
Os defensores do hebraico como a liacutengua falada na Palestina dos dias de
Jesus criticam os defensores da inerracircncia das Escrituras quando esses mesmo
depois de ler o texto de Atos 2614 em que Jesus fala em Hebraico com o apoacutestolo
Paulo e tambeacutem o texto de Atos 2140 no qual o mesmo apoacutestolo falou em hebraico
com uma multidatildeo satildeo os mesmos que afirmam que onde se diz hebraico deve-se
entender aramaico Para defender essa teoria eles argumentam que os mais
antigos manuscritos do Novo testamento datam do quarto e quinto seacuteculos da era
cristatilde (Codex Sinaiticus Codex Alexandrinus e Codex Bezae) afirmam que a
inscriccedilatildeo ldquoEste eacute o Rei dos Judeusrdquo estava escrito em grego latim e hebraico
Partindo desses argumentos Bivin e Bliacutezard lanccedilam a seguinte questatildeo
ldquoPorventura natildeo eacute significativo que os manuscritos gregos mais antigos infiram que
o hebraico era mais popular que o aramaico naquele periacuteodordquo (Biacutevin e Bliacutezard
2001 p8)
120
Biacutevin e Bliacutezard argumentam que mesmo a presenccedila de uma palavra aramaica
(Abba) no Evangelho de Marcos (Mc 1436) natildeo prova em nada a existecircncia de
uma liacutengua original falada em aramaico no periacuteodo de Jesus Para esses autores
Abba aparece sempre entre os escritos em hebraico daquele periacuteodo como uma
palavra de empreacutestimo A razatildeo para tal empreacutestimo do aramaico seria pelo fato
dessa palavra ter um ldquosabor especialrdquo quando usado como forma de relacionamento
entre os filhos e seus pais O sentido dessa expressatildeo pode ser relacionado com a
forma como os filhos se dirigem aos seus pais chamando-os de ldquodaddyrdquo (Papai) ou
ldquopapardquo (pai) em Inglecircs Um outro argumento ainda usado como forma de demonstrar
que usar Abba como forma de provar que a liacutengua falada por Jesus natildeo era o
aramaico eacute demonstrar que ainda hoje em Israel onde se fala o hebraico moderno
ldquoas crianccedilas usam Abba na abordagem de seus pais exatamente da mesma
maneira como foi usado no tempo de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p10)
Murphy-OConnor diferentemente de Biacutevin e Bliacutezard comunga da mesma
ideia de Jerocircnimo de que o apoacutestolo Paulo era de origem palestinense conforme os
textos de 2 Co 11 22 e Fl 3 5 onde Paulo identifica-se como ldquoisraelitardquo ldquodo povo de
Israelrdquo e como um ldquohebreurdquo Poreacutem quanto aos textos onde Lucas diz que Paulo
falou com a multidatildeo ldquonuma linguagem hebraicardquo (At 2140 222 2614) Murphy-
OConnor argumenta que a linguagem deveria significar aramaico e natildeo hebraico
Segundo esse autor naquela eacutepoca a maioria dos judeus jaacute natildeo conheciam mais o
hebraico e os textos das Escrituras nas sinagogas eram traduzidos para o aramaico
Outro argumento eacute que as palavras Gaacutebata (Jo 1913 o lugar onde Pilatos
condenou Jesus) e Goacutelgota (Jo 19 17) que satildeo mencionadas como palavras
hebraicas na verdade satildeo palavras aramaicas Sendo assim segundo Murphy-
OConnor a divisatildeo entre os primeiros cristatildeos de Jerusaleacutem (At 61) era permeada
pelos que falavam aramaico e pelos que falavam o grego (Murphy-OConnor 2008
p 29-30)
Matthew Black analisando a liacutengua falada por Jesus observa que alguns
estudiosos defendem o hebraico como a liacutengua vernaacutecula na Palestina dos dias de
Jesus Segundo Black alguns propotildeem que o hebraico natildeo era soacute apenas uma
forma literaacuteria de expressatildeo ou entatildeo apenas uma liacutengua falada nos ciacuterculos
rabiacutenicos mas o hebraico era um veiacuteculo normal de expressatildeo (Black 1998 p 47)
121
Douglas Hamp defende que o hebraico era realmente uma liacutengua muito viva nos
dias de Jesus e natildeo uma liacutengua morta como muitas vezes eacute dito Aleacutem de tudo para
ele o hebraico era a primeira liacutengua na Palestina nos dias de Jesus apesar de
segundo ele Jesus poderia ser triliacutengue ou seja falava hebraico aramaico e grego
e possivelmente ateacute o latim (Hamp 2005 p40) Hamp defende entatildeo que Jesus
provavelmente conhecia o aramaico e o grego e deve ter usado essas liacutenguas em
alguns contextos no entanto com seus disciacutepulos e na comunicaccedilatildeo com as
massas ele falou hebraico (Hamp 2005 p73)
Sobre a posiccedilatildeo daqueles que consideram o hebraico e natildeo o aramaico
como o vernaacuteculo ou seja a liacutengua mais falada nos dias de Jesus Black responde
ldquoesta posiccedilatildeo extrema tem encontrado pouco ou nenhum apoio entre as autoridades
competentes a evidecircncia da ipsissima verba de Jesus nos Evangelhos eacute impossiacutevel
de explicar se o aramaico natildeo era a liacutengua que Jesus falavardquo No entanto para ele eacute
provaacutevel que Jesus sendo um Rabi que comeccedilou seu ministeacuterio na Galileia e muito
bem versado nas Escrituras tenha sido capaz de ensinar com maestria tanto em
hebraico que poderia usar para ocasiotildees solenes como em aramaico com que se
comunicava com as massas (Black 1998 p 48-49)
Considerando as diversas opiniotildees sobre a liacutengua materna de Jesus
observamos que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus falava o aramaico
uma vez que esta foi a liacutengua predominante na Palestina apoacutes o exiacutelio babilocircnico
Contudo natildeo eacute tarefa faacutecil chegar a uma conclusatildeo Como vimos os estudiosos que
defendem o aramaico como a liacutengua materna de Jesus buscam como prova de tal
tese o argumento de que o Novo Testamento conteacutem muitas palavras aramaicas que
deviam ser comuns nos dias de Jesus Possivelmente o aramaico era uma liacutengua
falada pela populaccedilatildeo em geral enquanto que o hebraico reservava-se mais a
escrita de textos religiosos (sacros) e tambeacutem era usado pela classe sacerdotal que
por sua vez era mais elitizada Contudo devido agrave semelhanccedila entre as duas liacutenguas
torna-se difiacutecil delimitar uma linha divisoacuteria entre as mesmas uma vez que natildeo
possuiacutemos textos em aramaico da eacutepoca e natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz
que nos permita concluirmos com precisatildeo
122
6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS
Apoacutes termos apresentado a tese de J Jeremias sobre o Abba e alguns
pesquisadores que com ele concordam eacute oportuno tambeacutem olharmos algumas
teorias e pesquisadores que divergem de suas ideias
61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO
A relaccedilatildeo de paternidade divina no Antigo Testamento eacute refletida na literatura
poacutes-canocircnica do judaiacutesmo No Judaiacutesmo palestinense67 de acordo com J Jeremias
natildeo haacute relatos que em toda a literatura de Qumran que deve ser anterior a 68 a C
(Jeremias 1977 p17) de que Deus tenha sido invocado como Pai Haacute apenas uma
exceccedilatildeo em I QH 9 55 S ldquoEu te agradeccedilo oh Senhor porque natildeo abandonou a
paternidade ou desprezou o pobrerdquo (Vermes 2004 p274) A questatildeo da paternidade
divina era vista pelos rabinos como um direito dado apenas para aqueles que
cumpriam a Lei (Torah) (Jeremias p 1977 p19)
As oraccedilotildees judaicas eram dirigidas geralmente a Deus como nosso Pai
nosso Rei (abinu malkenu) 68 ldquoNosso Pai Nosso Rei Em vista de nossos pais que
creem em ti e a quem ensinas as leis da vida ndash tem piedade de noacutes e ilumina-nosrdquo
(Jeremias 1977 p18) Para J Jeremias mesmo essa oraccedilatildeo sendo antiga
podendo mesmo ser situada na eacutepoca de Jesus haacute algumas coisas que precisam
ser observadas A ecircnfase da oraccedilatildeo estaacute na duplicidade dos termos que se referem
a Deus ou seja ldquoDeus eacute invocado como o pai da comunidaderdquo e a comunidade por
sua vez invoca o Pai que ldquoeacute o rei celestial do povo de Deusrdquo (Jeremias 2008 p116)
Tambeacutem segundo J Jeremias esse texto foi escrito em hebraico que nos dias de
67
ldquo[] no judaiacutesmo palestinense do periacuteodo preacute-cristatildeo eacute rara a descriccedilatildeo de Deus como pai Nos
apoacutecrifos e pseudoepiacutegrafos no que diz respeito aos escritos de origem palestinense acha-se muito raramente (tob 134 Sir 5110 Jub 124-25 28 1929) enquanto os textos de Cunratilde oferecem um uacutenico exemplo isolado (1QH 935-36) No judaiacutesmo rab do seacuteculo I dC o emprego do nome Pai tornou-se mais generalizado mas ainda era muito menos frequente do que outras descriccedilotildees de Deus (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
68 Charlesworth afirma que Jesus invocava a Deus como Abba e natildeo como Abinu Charlesworth
entatildeo pergunta ldquonatildeo seraacute concebiacutevel que tenha chamado Deus de Abba porque tinha uma concepccedilatildeo de Deus que era de algumas maneiras diferente daquela da maioria de seus contemporacircneos (cf Charlesworth 1992 p148)
123
Jesus era uma liacutengua sacra usada com maior frequecircncia nas reuniotildees lituacutergicas e
natildeo como uma praacutetica comum no dia a dia (Jeremias 1977 p19)
Entre os escritos do judaiacutesmo palestinense haacute duas oraccedilotildees em que Deus eacute
invocado como Pai Satildeo invocaccedilotildees muito semelhantes do c 23 de Ben Sira
(Eclesiaacutestico) escrito por volta do comeccedilo do seacuteculo II aC (Jeremias 1977 p19)
Esses dois versiacuteculos (v1 e v4) onde Deus eacute invocado como ldquoPai e dono da minha
vidardquo e como ldquoSenhor Pai e Deus da minha vidardquo (Jeremias 1977 p19) poderiam
ser um preluacutedio do evangelho segundo J Jeremias se por volta da deacutecada de 40
natildeo tivesse sido descoberto uma paraacutefrase em hebraico desse texto que hoje existe
apenas em grego A paraacutefrase desse texto escrito em hebraico natildeo invoca Deus
como ldquoSenhor e Pairdquo mas invoca-o como ldquoDeus de meu Pairdquo Ficam evidentes
entatildeo as diferenccedilas entre o texto que temos em grego e a paraacutefrase em hebraico
Partindo desses raciociacutenios J Jeremias entatildeo conclui que mesmo que no
Judaiacutesmo da diaacutespora haja testemunhos esporaacutedicos da invocaccedilatildeo de Deus como
Pai (Jeremias 2008 p117) eles satildeo apenas ditos isolados nos quais Deus eacute
invocado como (Pater) mas sempre com influecircncia do helenismo e da liacutengua grega
(Jeremias 2008 p115-116) e natildeo se tem notiacutecias de que no judaiacutesmo palestinense
algum indiviacuteduo tenha dirigido-se a Deus chamando-o de meu Pai (Jeremias 1977
p 19-20)
Contudo J Jeremias ainda menciona uma oraccedilatildeo do final do seacuteculo 1 aC
feita por um homem chamado Hanin ha-Nehba conhecido por seu sucesso nas
oraccedilotildees para obter chuva Nessa oraccedilatildeo Deus eacute invocado como papai ou como o
Abba que tem o poder de enviar chuva
Quando o mundo precisava de chuva nossos mestres tinham o costume de lhe mandar crianccedilas das escolas que se agarravam ao seu manto e imploravam Abbaacute Abbaacute habh lan mitra papai papai daacute-nos chuvardquo E ele lhe (a Deus) dizia Senhor do universo concede-nos (a chuva) em vista destes que natildeo satildeo ainda capazes de distinguir entre um abbaacute que tem o poder de dar a chuva e um abbaacute que natildeo tem (Jeremias 1977 p 22)
Por fim o autor supracitado observa que mesmo que as evidecircncias sejam
favoraacuteveis a uma invocaccedilatildeo de Deus como papai (Abbaacute) ainda assim com um olhar
mais criterioso nota-se que a forma como Hanin invoca a Deus eacute tomada com um
tom carregado de humor e Hanin comeccedila a sua oraccedilatildeo dirigindo-se a Deus natildeo
como o Abba mas sim como o Senhor do universo J Jeremias vecirc essa histoacuteria
124
como um preluacutedio das afirmaccedilotildees de Jesus nos Evangelhos onde ele diz que ldquoo Pai
celeste sabe do que precisam os seus filhos (Mt 632) que ele envia a chuva sobre
os justos e os injustos (Mt 5 45) e daacute coisas boas aos seus filhos que lhas pedem
(Mt 711 par Lc 1113) (Jeremias 1977 p 23) Entatildeo J Jeremias tem como
resultado de suma importacircncia de que realmente natildeo existe nenhum testemunho
nas oraccedilotildees judaicas do uso do Abba (papai) em todo o judaiacutesmo Defende esse
autor que o emprego do Abba foi uma caracteriacutestica peculiar de Jesus dirigir-se a
Deus invocando-o como o Abba e isso coloca o abba como sendo a ipsissima vox
de Jesus (Jeremias 1977 p23)
Eis-nos pois autorizados a dizer por que natildeo se usa abbaacute nas oraccedilotildees Judaicas para invocar a Deus seria desrespeitoso e portanto impensaacutevel para uma mentalidade judaica chamar a Deus com um nome tatildeo familiar Foi algo de novo uacutenico e inaudito ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma crianccedila fala ao seu pai com simplicidade intimidade e sem temor Portanto natildeo haacute duacutevida alguma de que a palavra abbaacute utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus revela o proacuteprio fundamento de sua comunhatildeo com ele (Jeremias 1977 p25)
J Jeremias ainda conclui seu pensamento sobre o uso do Abba nas oraccedilotildees
judaicas ldquoUma revisatildeo da rica e abundante literatura oracional judaica ainda pouco
estudada leva-nos a conclusatildeo de que em nenhuma das suas passagens estaacute
atestado o termo abba para invocar a Deusrdquo (Jeremias 2006 p63)
Com um pensamento em alguns pontos diferentes ao de J Jeremias de que
para este Deus nunca foi invocado como pai no judaiacutesmo quer seja no Antigo
Testamento ou no judaiacutesmo palestinense Bultmann afirma que a visatildeo de Deus
como pai no Judaiacutesmo era corriqueira quer seja atraveacutes das oraccedilotildees ou ateacute mesmo
pelo piedoso individualmente Bultmann usa alguns textos como o Eclesiaacutestico 410
para justificar a sua tese ldquoSecirc um pai para os oacuterfatildeos e o substituto do esposo para as
viuacutevas Entatildeo Deus te chamaraacute de filho seraacute gracioso para contigo e te salvaraacute da
perdiccedilatildeordquo (Bultmann 2005 p 191)
A condiccedilatildeo de filho de Deus no judaiacutesmo pode ser tambeacutem escatoloacutegica Para
Bultmann o chamado Salmo de Salomatildeo (1730) trata sobre o regimento do
Messias no tempo do fim com as seguintes palavras ldquoEle os conhece e sabe que
satildeo todos filhos do seu Deusrdquo E para enfatizar ainda mais o seu argumento ele
ainda cita o ldquochamado Livro dos jubileus (1 24-25)rdquo no qual Deus em uma forma
escatoloacutegica promete para os israelitas no tempo da salvaccedilatildeo ldquoEles cumpriratildeo os
125
meus mandamentos e eu serei um pai para eles e eles seratildeo meus filhos E todos
eles se chamaratildeo filhos do Deus vivo e todos os anjos e todos os espiacuteritos os
conheceratildeo e saberatildeo que eles satildeo meus filhos e que eu sou o pai em firmeza e
justiccedila e que eu os amordquo
A ideia que Jesus tem da designaccedilatildeo de Deus como pai segundo Bultmann
natildeo traz nenhuma novidade a respeito do assunto pelo contraacuterio era jaacute uma
caracteriacutestica de muitas religiotildees e cosmovisotildees religiosas e entre elas encontra-se
a visatildeo dos antigos estoicos para os quais a ldquofiliaccedilatildeo divina cabe ao ser humano por
natureza e eacute algo que se aplica a ele na esfera das ideias logo que se situa aleacutem
de sua existecircncia concreta no aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p192-193)
A relaccedilatildeo de pai e filhos no judaiacutesmo ocorre de uma forma diferente da do
estoicismo Bultmann defende que no judaiacutesmo natildeo haacute uma relaccedilatildeo de pai e filhos
de Deus por natureza mas pela livre eleiccedilatildeo de Deus A filiaccedilatildeo divina portanto natildeo
eacute algo natural mas eacute algo miraculoso Quanto agrave possibilidade da filiaccedilatildeo essa natildeo eacute
exclusividade de um grupo pelo contraacuterio eacute aberta a todos pois o pai do ceacuteu provecirc
para todas as pessoas aquilo que necessitam (Mt 6 2632) Da mesma forma a
oportunidade para rogar ao pai do ceacuteu (Mt 7 7-11) eacute uma oportunidade oferecida a
todas as pessoas Dessa forma Bultmann declara que ldquo o ser humano eacute visto de
modo bem diferente ou seja natildeo como aquilo que eacute na esfera das ideias para aleacutem
de sua existecircncia concreta mas justamente como aquilo que eacute em sua existecircncia
na singularidade de seu aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p 193)
O conceito de paternidade no judaiacutesmo eacute tambeacutem discutido por Alon Goshen-
Gottstein em ldquoDeus como Pai no judaiacutesmordquo (Goshen-Gottstein 2001 p475) Para
ele a referecircncia rabiacutenica de Deus como pai no judaiacutesmo tambeacutem eacute uma
peculiaridade de Israel como naccedilatildeo natildeo que indiviacuteduos natildeo possam dirigir-se a Ele
como pai Mas natildeo eacute possiacutevel encontrar nas fontes sobre algueacutem que de forma
especiacutefica e individual tenha dirigido-se a Deus chamando-o de Pai No entanto
para Goshen-Gottstein essa relaccedilatildeo paternal era apenas um sentimento religioso
reciacuteproco de Israel para com Deus isto eacute chamar Deus de Pai era apenas uma das
muitas metaacuteforas que Israel usava para referir-se a Deus (Goshen-Gottstein 2001
p475)
Para Goshen-Gottstein os cristatildeos e judeus divergem muito sobre a questatildeo
da segunda e a terceira pessoas da trindade cristatilde parece que a primeira pessoa da
trindade (o Pai) eacute o elo que une o cristianismo e o judaiacutesmo num fundo teoloacutegico
126
comum Contudo ele pergunta sobre em que extensatildeo a pessoa do Pai eacute um
conceito comum para o judaiacutesmo e para o cristianismo (Goshen-Gottstein 2001
p471) Goshen-Gottstein coloca que o primeiro problema eacute metodoloacutegico visto que
eacute natural que os pesquisadores do Novo Testamento vasculhem a literatura rabiacutenica
agrave procura daquilo que apenas lhes interessa A exemplo disso esse autor observa
que teoacutelogos cristatildeos pentearam a literatura rabiacutenica em busca de exemplos de
expressotildees sobre o ldquoPai celesterdquo que estatildeo no singular ou no plural para dessa
forma avaliar a importacircncia que a expressatildeo ldquoPai celesterdquo tem na literatura rabiacutenica
quando analisada sobre a perspectiva da intimidade e relaccedilatildeo pessoal que o ldquoPai
Celesterdquo tinha para os autores rabiacutenicos Goshen-Gottstein vecirc isso como perda de
tempo pois considera que as fontes rabiacutenicas natildeo podem ser analisadas para fins
especiacuteficos mas devem ser apreciadas a partir da unicidade das suas estruturas
literaacuterias meacutetodos de expressatildeo e convenccedilotildees estiliacutesticas (Goshen-Gottstein 2001
p473)
Referindo-se ao conceito de metaacuteforas atribuiacutedas a Deus Goshen-Gottstein
afirma que descrever Deus como Pai no Judaiacutesmo natildeo eacute essencial ou fundamental
Esse conceito tem uma conotaccedilatildeo religiosa e faz parte de um vocabulaacuterio religioso
Ele eacute apenas uma descriccedilatildeo repleta de imagens e metaacuteforas que faz parte de um
vocabulaacuterio religioso que daacute expressatildeo aos sentimentos do povo e que enchem o
espectro de Israel Portanto para Goshen-Gottstein ldquoPairdquo natildeo eacute uma expressatildeo
privilegiada dentro do judaiacutesmo e tambeacutem ldquonatildeo eacute o nome proacuteprio de Deus Antes eacute
uma das inuacutemeras metaacuteforas atraveacutes das quais Israel se refere a Deusrdquo A
paternidade na literatura rabiacutenica eacute sempre vista em relaccedilatildeo a Israel como naccedilatildeo
Embora Goshen-Gottstein afirme tal expressatildeo ele admite que haja casos em que
indiviacuteduos se dirijam a Deus como Pai inclusive em fontes biacuteblicas No entanto natildeo
se encontra em nenhuma fonte Deus sendo considerado Pai de um indiviacuteduo
somente Sempre Deus eacute visto como sendo o Pai de Israel poreacutem isso natildeo
evidencia que a paternidade de Deus natildeo seja estendida a outros fora de Israel pelo
menos natildeo encontramos na literatura rabiacutenica textos que suponham tal expressatildeo
O que Goshen-Gottstein procura deixar claro eacute que a referecircncia rabiacutenica a Deus
como Pai estaacute fundamentalmente fiel ao uso biacuteblico Isso difere de Filo para quem
Deus o Pai eacute tambeacutem Deus o Criador do mundo Para os rabinos a paternidade
divina se refere somente em relaccedilatildeo a Israel ou seja as fontes referem-se a Deus
127
como Pai somente no contexto do relacionamento especial de Israel com Deus
(Goshen-Gottstein 2001 p475)
A representaccedilatildeo metafoacuterica de Deus como Pai de Israel eacute tambeacutem defendida
por Vermes em Jesus e o mundo do Judaiacutesmo Vermes defende que Deus foi
representado metaforicamente como Pai do povo eleito (Israel) natildeo somente na
literatura biacuteblica mas tambeacutem na literatura apoacutecrifa Entre os textos biacuteblicos por ele
citados encontram-se os seguintes ldquoEu sou pai para Israel e Efraim eacute o meu
primogecircnitordquo (Jr 319) ldquoE no entanto Senhor tu eacutes o nosso Pairdquo [] todos noacutes
somos obras de suas matildeosrdquo (Is 647) ldquoSerei para ele um Pai e ele seraacute para mim
um filho e seraacute chamado filho do Deus vivo (Jub 1 24-25) ldquoFiz a vontade do Abba
que estaacute nos ceacuteusrdquo (Lv R 321) ldquoOacute Senhor Pai Soberano (ou Deus) da minha vidardquo
(Sr 23 14) ldquoA tua providecircncia oacute Pai eacute o seu pilotordquo (Sb 14 3) Vermes apoacutes
analisar os textos das fontes mencionadas acima e outros natildeo reluta em afirmar que
a invocaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rica no judaiacutesmo antigo (Vermes 1996 p53)
Analisando as teses de J Jeremias concernentes ao Abba de Jesus Vermes
observa que elas estatildeo sujeitas a questionamentos J Jeremias defende que Abba
quando dirigido a Deus em forma de invocaccedilatildeo natildeo se encontra na oraccedilatildeo judaica
antiga Vermes contudo soacute concordaria com essa tese se fosse possiacutevel analisar
todas as oraccedilotildees individuais e confirmar que em nenhuma delas algum indiviacuteduo
dirigiu-se a Deus em oraccedilatildeo com a forma invocativa do Abba Para Vermes o
seguinte pensamento de David Flusser resume bem os argumentos acima
apresentados ldquoJ Jeremias natildeo conseguiu encontrar o uso de Abba como vocativo
para Deus na literatura talmuacutedica poreacutem considerando a escassez de material
rabiacutenico sobre a oraccedilatildeo carismaacutetica isso natildeo nos diz muita coisardquo (Vermes 1996
p55)
Goshen-Gottstein fazendo referecircncia a Joseph Heinemann justifica a tese de
Vermes de que eacute preciso distinguir a oraccedilatildeo judaica antiga quando era puacuteblica e
coletiva da oraccedilatildeo de um indiviacuteduo Seguindo esse argumento observa-se que a
oraccedilatildeo puacuteblica recorre a linguagem e padrotildees especiacuteficos enquanto que a oraccedilatildeo
quando efetuada pelo indiviacuteduo eacute mais livre e tambeacutem mais carismaacutetica Nesse
sentido o exemplo por excelecircncia de oraccedilatildeo livre e individual eacute a oraccedilatildeo do Senhor
(Goshen-Gottstein 2001 p487)
Dentre os argumentos contraacuterios a visatildeo de J Jeremias temos ainda a
refutaccedilatildeo de Vermes sobre a tese em que J Jeremias defende que Jesus dirigia-se
128
a Deus chamando-o de ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo Para Vermes essa forma invocativa
realmente era usada pelas criancinhas quando essas se dirigiam aos seus pais
Contudo Vermes natildeo concorda que abba ou imma tenha tido uma uacutenica forma
determinada de uso Para ele na eacutepoca de Jesus abba poderia tambeacutem possuir
simplesmente o significado de ldquomeu pairdquo principalmente quando usadas em
situaccedilotildees solenes que natildeo tinham nada de infantil ldquocomo na altercaccedilatildeo imaginaacuteria
entre os patriarcas Judaacute e Joseacute relatado no Targum Palestino quando o furioso Judaacute
ameaccedila o governador [vizir] do Egito (seu irmatildeo que ele natildeo reconhecera) dizendo
Juro pela vida da cabeccedila de abba (meu pai) tal como tu juras pela cabeccedila do Faraoacute
teu senhor que se tirar a espada da bainha natildeo a devolverei mais enquanto a terra
do Egito natildeo tiver coberta de cadaacuteveresrdquo (Vermes 1996 p55)
James Barr tambeacutem eacute de acordo que abba era uma palavra usada por
adultos embora tambeacutem fosse muito usada por crianccedilas Segundo Barr no grego do
Novo Testamento a palavra ldquopaterrdquo (pai) eacute normalmente usada para referir-se a
figura paterna Contudo ele observa que na liacutengua grega tambeacutem havia uma palavra
em particular no diminutivo pertencente agrave fala das crianccedilas um pouco semelhante agrave
palavra Daddy em Inglecircs (papai) Poreacutem mesmo existindo a palavra em grego natildeo
haacute indiacutecio algum de que tal palavra tenha sido usada no Novo Testamento (Barr
1988 p 36-38)
As teorias com visotildees diferentes das de J Jeremias satildeo muitas como temos
visto Vermes conforme vimos acima eacute enfaacutetico ao contrapor J Jeremias
considerando as teses do professor de Gotinga sobre o Abba como incongruentes e
desprovidas de bases linguiacutesticas
[] J Jeremias compreendia que Jesus dirigia-se a Deus por ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo contudo afora a improbabilidade e incongruecircncia a priori dessa teoria parece natildeo haver bases linguiacutesticas para ela As criancinhas falantes de aramaico dirigiam-se aos seus pais por meio de abba ou imma mas esse natildeo era o uacutenico contexto do uso de abba Na eacutepoca de Jesus a forma determinada do nome abba (- ldquoo pairdquo) tambeacutem significava ldquomeu pairdquo ldquomeu pairdquo se bem que ainda atestado em qumran e no aramaico biacuteblico praticamente jaacute desaparecera como forma idiomaacutetica do dialeto galileu (Vermes 1996 p55)
No apecircndice de seu livro ldquoA Religiatildeo de Jesus o Judeurdquo Geza Vermes posta
um resumo da tese de J Jeremias sobre o Abba de Jesus (The Prayers of Jesus de
1967) baseadas em um artigo ldquoAbba natildeo eacute Papairdquo (Abba isnt Daddy) de James
129
Barr Os argumentos de J Jeremias estatildeo expostos da seguinte maneira conforme
transcritos abaixo
a) O termo aramaico eacute ldquouma expressatildeo puramente exclamatoacuteriardquo como em
Pai e natildeo um aspecto enfaacutetico correspondente em inglecircs a um substantivo
acompanhado do artigo definido (= o pai)
b) A origem do Abba se encontra no balbuciar do ldquofalar infantilrdquo A geminaccedilatildeo
ab-ba (ldquoDadaacuterdquo) tem como modelo o chamado mais frequente do bebecirc agrave Im-ma
(ldquoMamardquo)
c) Essa forma de invocaccedilatildeo eacute de tom tatildeo familiar que sua associaccedilatildeo com a
Deidade chocaria os judeus comuns de liacutengua aramaica como ldquodesrespeitosardquo
d) Seu emprego por Jesus era ldquoalgo de novo e inauditordquo
e) Abba no aramaico da Palestina tornou-se uma expressatildeo polivalente As
diversas expressotildees nos Evangelhos em Grego como ldquoo Pairdquo ldquoPairdquo (vocativo) e
tambeacutem ldquomeuteunosso Pairdquo (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)
podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus
Para Vermes se J Jeremias estiver correto isso pode trazer tantas
implicaccedilotildees porque o estilo de Jesus dirigir-se a Deus seria tatildeo peculiar a ponto de
representar um idiossincrasia Vermes prefere entender que J Jeremias
compreendeu mal o Abba de Jesus e ateacute por uma questatildeo de teimosia persistiu
defendo tal tese Ele ainda reafirma que o Abba natildeo era apenas o linguajar infantil
mas poderia ser usado em momentos solenes ou religiosos Vermes cita uma vez
mais James Barr dizendo que ironicamente esse observa ldquoque a teoria de J
Jeremias vinculando Abba agraves crianccedilas considera uma situaccedilatildeo que antedata Jesus
em alguns milecircniosrdquo Para fechar a analogia de Barr Vermes ainda cita-o ldquoComo
Explanaccedilatildeo de Abba nos tempos do Novo Testamento o balbuciar infantil natildeo faz
sentidordquo
A refutaccedilatildeo de Vermes eacute enfaacutetica ou seja explicitamente ele coloca sua visatildeo
teoloacutegica sobre o Abba de Jesus como uma contestaccedilatildeo a todos os argumentos de
J Jeremias Para finalizar Vermes assim resume seu pensamento sobre a teoria de
J Jeremias ldquo[] a teoria de J Jeremias popular ateacute agora natildeo encontra
fundamento filoloacutegico A conclusatildeo literaacuterio-histoacuterica dessa teoria vale dizer que
antes de Jesus os judeus natildeo se dirigiam a Deus como Abba natildeo eacute apenas
incomprovada como tambeacutem implausiacutevelrdquo (Vermes 1995 p163-167)
130
Apoacutes os diversos argumentos contraacuterios a J Jeremias concluiacutemos com
Swidler que fazendo menccedilatildeo de Georg Schelbert observa que aleacutem do termo
abba natildeo havia nenhuma outra palavra a disposiccedilatildeo de Jesus se ele quisesse falar
de Deus ou a Deus como Pai Se essa era a uacutenica forma de Jesus dirigir-se a Deus
entatildeo ela natildeo poderia ter nada de especial como afirma J Jeremias ateacute porque
como mostra Schelbert a Mishnaacute (que significa ensinamento que eacute recitado
oralmente) mostra um relacionamento iacutentimo com Deus como o Pai do Ceacuteu (Swidler
1993 p73-75) Em relaccedilatildeo ao termo abba Barr conclui que eacute razoaacutevel que abba no
tempo de Jesus pertencia a uma linguagem familiar ou coloquial distinto do uso
formal e cerimonioso mas por outro lado tendo em vista o uso do Targum seria
imprudente comparaacute-la a expressatildeo infantil Daddy (papai) O uso do abba era mais
solene podemos dizer que estava mais relacionado ao uso do adulto para com seu
Pai (Barr 1988 p 46)
62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA
LEITURA A PARTIR DA TEOLOGIA FEMINISTA
A figura feminina sempre foi discriminada pelas sociedades patriarcais ao
longo dos seacuteculos da histoacuteria da humanidade Podemos dizer que o cristianismo um
importante movimento de massa a pregar a liberdade e a igualdade entre os homens
e mulheres ldquoNatildeo haacute judeu nem grego natildeo haacute escravo nem livre natildeo haacute homem
nem mulher pois todos voacutes sois um soacute em Cristo Jesusrdquo (Gl 3 28) 69 Eacute comum
ouvirmos que Jesus libertou as mulheres uma vez que em seu ministeacuterio o mestre
da Galileia teve como disciacutepulas vaacuterias mulheres inclusive como jaacute mencionamos
neste trabalho (53) Maria Madalena (cf Lc 8 2 2410)
Elisabeth Schuumlssler Fiorenza referindo-se a Leonard Swidler vai mais aleacutem
quando afirma que Jesus foi um feminista e isso foi primeiramente atestado por um
estudioso homem e natildeo por uma mulher70 Schuumlssler Fiorenza apela para o fato de
Jesus ter tido disciacutepulas e tambeacutem ter violado as leis de pureza (algo que era
69
Swidler refere-se a esse texto de Paulo como uma contestaccedilatildeo a uma oraccedilatildeo rabiacutenica que diz ldquoLouvado seja Deus por natildeo me ter criado gentio Louvado seja Deus por natildeo ter me criado mulher Louvado seja Deus por natildeo ter me criado ignoranterdquo (Swidler 1993 p 101)
70 Basicamente para Swidler feminista eacute a pessoa a favor da igualdade de homens e mulheres ou
seja a pessoa que trata primeiramente a mulher como uma pessoa assim como os homens satildeo tratados (Swidler 1993 p100)
131
contraacuterio aos rabinos judeus) como argumento para fundamentar a tese de um
Jesus feminista (Schuumlssler Fiorenza 2005 p 37)
Contudo para Swidler a atitude feminista era uma exclusividade de Jesus e
natildeo dos evangelistas e suas fontes Para ele a Igreja primitiva tornou-se
rapidamente antifeminista como pode ser visto em textos como ldquo[] estejam as
mulheres caladas nas assembleias pois natildeo lhes eacute permitido tornar a palavra
Devem ficar submissas como diz tambeacutem a Lei (1Cor 14 34)rdquo Swidler ainda cita
outro texto (1Tm 2 11-12) que diz que ldquodurante a instruccedilatildeo a mulher conserve o
silecircncio com toda a submissatildeo Natildeo permito que a mulher ensine ou domine o
homem Que ela conserve o silecircnciordquo Para Swidler a Igreja natildeo soacute se tornou
antifeminista como tambeacutem se tornou misoacutegina uma vez que aleacutem dos textos acima
mencionados jaacute no II seacuteculo Tertuliano refere-se agraves mulheres com as palavras ldquosois
o portatildeo do diabordquo Natildeo bastasse Tertuliano Oriacutegenes afirma que ldquoaquilo que eacute visto
com os olhos do criador eacute masculino e natildeo feminino pois Deus natildeo se curva para
olhar aquilo que eacute feminino e da carnerdquo (Swidler 1993 p106)
Tal afirmaccedilatildeo (Jesus libertou as mulheres) eacute muito bem aceita entre as
teoacutelogas feministas e por todos que defendem essa teoria Para Schuumlssler Fiorenza
Jesus natildeo somente libertou as mulheres da degradaccedilatildeo imposta pela sociedade
judaica patriarcal da antiguidade (apesar dessa tese ser considerada como
historicamente falsa e antijudaica pelas teoacutelogas feministas judias) como tambeacutem o
proacuteprio Jesus era um feminista (Fiorenza 2005 p110)
Conforme Swidler a condiccedilatildeo das mulheres na sociedade contemporacircnea de
Jesus na Palestina era sem duacutevida de inferioridade em relaccedilatildeo aos homens
Segundo Swidler natildeo obstante o fato de ter havido vaacuterias heroiacutenas nas Escrituras
hebraicas natildeo impediu que nos dias de Jesus e ateacute muito tempo depois natildeo fosse
concedido agraves mulheres a permissatildeo de estudar a Toraacute Swidler citando um texto da
Mishnaacute (Sita 34) refere-se a um rabino do seacuteculo I chamado Eliezer que
pronunciou as seguintes palavras referindo-se agraves mulheres ldquoAs palavras da Toraacute
deveriam antes ser queimadas do que confiadas a uma mulher [] todo aquele que
ensina a Toraacute a sua filha eacute como aquele que lhe ensina a lasciacuteviardquo (Swidler 1993
p100-101)
As mulheres no templo de Jerusaleacutem estavam limitadas agrave parte externa ou
seja ficavam no paacutetio das mulheres que estavam cinco degraus abaixo do paacutetio dos
homens Nas sinagogas aleacutem de ficarem separadas dos homens natildeo tinham
132
permissatildeo para ler em voz alta muito menos assumir alguma funccedilatildeo de lideranccedila
Swidler cita Filon contemporacircneo de Jesus que pensava que as mulheres natildeo
deviam sair de casa a uacutenica exceccedilatildeo era para ir agrave sinagoga e preferencialmente
em horaacuterios em que a maioria das pessoas estivessem em casa De uma maneira
geral as mulheres serviam apenas para ter filhos estavam sempre sob a tutela de
um homem que seria o marido ou no caso de viuvez sob a tutela do irmatildeo do
falecido sem contar com o fato de que tinham que se sujeitar a poligamia (ainda que
natildeo muito praticada nos dias de Jesus) eram facilmente repudiadas com a carta de
divoacutercio poreacutem natildeo tinham permissatildeo para se divorciarem Enfim ldquoa condiccedilatildeo das
mulheres na Palestina era aquela dos inferioresrdquo (cf Swidler 1993 p102-104)
A teologia de J Jeremias referente agrave relaccedilatildeo de Deus como Pai nos laacutebios de
Jesus de Nazareacute71 natildeo eacute aceita em algumas correntes teoloacutegicas como por
exemplo pelos defensores da teologia feminista72 Poreacutem quando falamos do
movimento feminista natildeo significa que exista um uacutenico ponto de vista sobre um
mesmo pensamento teoloacutegico Algumas feministas que adotam o pensamento de
reforma da tradiccedilatildeo o qual implica em conservar o que eacute melhor ao inveacutes de
simplesmente imitar as tradiccedilotildees lutam por uma reforma e uma flexibilidade na
linguagem da igreja quando o assunto se refere agrave pessoa de Deus argumentando
que o uso exclusivo da imagem masculina natildeo faz justiccedila agrave imagem biacuteblica de Deus
mas limita o acesso ao entendimento que temos de Deus Para essa corrente
feminista a imagem de Deus natildeo estaacute relacionada a gecircnero visto que Deus pode
ser visto tanto como pai e como matildee segundo Marianne Thompson para uma parte
dessas feministas e ainda para outras portanto a ideia central natildeo eacute descartar a
71 Elisabeth Schuumlssler Fiorenza observa que os livros e artigos sobre ldquoJesus e as mulheresrdquo se
proliferam contudo ela cita Crossan quando este acusa as feministas pela falta de interesse na busca pelo Jesus histoacuterico Crossan pergunta onde estatildeo elas Schuumlssler responde ldquoCrossan natildeo pode reconhecer as afinidades entre seu proacuteprio modelo de reconstruccedilatildeo histoacuterica e o meu modelo feminista (cf Schuumlssler 2005 p 30)
72 Haight coloca que a teologia feminista eacute por muitos comparada agrave teologia da libertaccedilatildeo uma vez
que compartilham de ideais e estrutura formal comum no que diz respeito agrave libertaccedilatildeo e tambeacutem a maioria dos pobres no mundo eacute constituiacuteda de mulheres ldquo[] No que tange agrave loacutegica hermenecircutica da teologia portanto as teoacutelogas feministas podem referir-se a si mesmas como teoacutelogas da libertaccedilatildeo [] Na medida em que o androcentrismo controla o significado de Jesus cristo a cristologia feminista eacute levada a questionar como uma figura masculina de Salvador pode oferecer a salvaccedilatildeo agraves mulheres Em termos mais amplos contudo a cristologia feminista ocupa-se de toda a forma de opressatildeo e de suas inter-relaccedilotildees O Deus mediado por Jesus Cristo coloca em xeque todo poder de dominaccedilatildeo Natildeo era o sexo mas o gecircnero como categoria cultural que tinha primazia e era parte da ordem das coisas O significado de homem e de mulher era determinado pela posiccedilatildeo na hierarquia social e pelo lugar que se ocupava na sociedade natildeo pela genitaacuteliardquo (cf Haight 2003 p37)
133
linguagem de Deus como Pai mas apenas incluir essa com outra variedade de
imagens de Deus (Thompson 2000 p 3)
Para outras feministas no entanto nenhum acordo sobre a questatildeo da
imagem paterna de Deus pode ser atingido facilmente pois tais questotildees natildeo
podem ser tatildeo facilmente resolvidas e as respostas necessaacuterias satildeo muito radicais
pois trariam uma postura revolucionaacuteria para a tradiccedilatildeo Para elas o uso histoacuterico
que a Igreja tem da linguagem exclusivamente masculina de Deus deve ser
inteiramente refeito73 Em vez de buscar as reformas dentro das estruturas atuais da
igreja ou dentro de construccedilotildees teoloacutegicas tradicionais essas feministas oferecem
uma pauta mais radical o que tem implicaccedilotildees natildeo apenas para a linguagem sobre
Deus mas tambeacutem para o carater baacutesico de toda a teologia e feacute cristatilde Algumas
feministas satildeo mais radicais ainda pois explicitamente rejeitam as tradiccedilotildees da feacute
cristatilde afirmando que os textos cristatildeos e a feacute satildeo inevitavelmente e
intoleravelmente patriarcal elas abandonaram o cristianismo por completo
(Thompson 2000 p 4)
Para Thompsom (2000 p 18) a designaccedilatildeo de Deus como Pai natildeo eacute
invenccedilatildeo de Jesus e nem criaccedilatildeo da Igreja primitiva A designaccedilatildeo de Deus como
Pai faz parte de ambos os Testamentos ou como o Pai que eacute o ancestral que daacute a
vida e lega uma heranccedila aos seus filhos ou como o Pai que ama e cuida dos seus
filhos ou ainda como o Pai que eacute uma figura de autoridade a quem se deve
obediecircncia e honra Thompsom afirma que Jesus dirigiu-se a Deus como Pai em
primeira instacircncia natildeo como um mero testemunho de sua proacutepria experiecircncia de
Deus mas ao inveacutes disso pelas suas proacuteprias convicccedilotildees de Deus como renovador
e restaurador de Israel ou seja isso natildeo era fruto de uma experiecircncia privada mas
assunto de uma missatildeo puacuteblica Essa afirmaccedilatildeo de Thompson natildeo se coaduna com
o pensamento de J Jeremias para quem a relaccedilatildeo de Jesus com o Pai era iacutentima e
pessoal
Nesse sentido Mary Rose DAngelo ao analisar o texto do Evangelho de
Marcos 1436 quando Jesus invocava o Pai (Ἀββᾶ ὁ πατήρ) ela observa que a
73
Elisabeth Schuumlssler Fiorenza em seu livro Jesus e a poliacutetica da interpretaccedilatildeo coloca uma teoria polecircmica ou pelo menos curiosa Segundo Schuumlssler os antropoacutelogos tecircm assinalado que nem todas as culturas e liacutenguas conhecem dois sexosgecircneros e que mesmo em culturas ocidentais isso eacute coisa da modernidade ldquoDurante milhares de anos considerava-se comum que as mulheres tivessem o mesmo sexo e os mesmos oacutergatildeos genitais que os homens estando a diferenccedila no fato de se acharem no interior do corpo ao passo que os dos homens estavam no exterior A vagina era entendida como um pecircnis interior os laacutebios como prepuacutecio o uacutetero como saco escrotal e os ovaacuterios como testiacuteculosrdquo (cf Schuumlssler 2005 p9)
134
oraccedilatildeo contida nesse texto pode ser apenas redacional visto que tal oraccedilatildeo ocorreu
no cenaacuterio do Getsecircmani onde Jesus estava naquele momento sem os seus
disciacutepulos portanto eles natildeo estavam laacute para ouvir e descrever o momento de sua
agonia Ela concorda com a teoria de que a narrativa desse cenaacuterio poderia ser
apenas um soliloacutequio dramaacutetico de Jesus ou entatildeo uma repeticcedilatildeo da oraccedilatildeo de
Joseph (4Q372 1 23-24) onde ele suplica para que Deus natildeo lhe abandone Para
D`Angelo a narrativa de Marcos tende muito para o lado emotivo procurando
dessa forma colocar Jesus como o verdadeiro Filho de Deus e grande maacutertir da
histoacuteria do judaiacutesmo conforme os livros Sabedoria de Salomatildeo e 3 Macabeus (D`
Angelo 1992b p159) Em outro artigo (Abba and ldquoFatherrdquo Imperial Theology and
the Jesus Traditions) D Angelo reafirma seu argumento sobre o cenaacuterio do
Getsecircmani dizendo ldquoEsta eacute uma cena da revelaccedilatildeo entre Jesus e leitor os
disciacutepulos estatildeo laacute para relatar a agonia de Jesus Assim a atribuiccedilatildeo de abba a
Jesus natildeo tem muacuteltipla atestaccedilatildeo Na verdade ocorre apenas em uma cena que
quase certamente deriva da atividade literaacuteria de Marcosrdquo (D` Angelo 1992a p614-
615)
Segundo D Angelo o uso do Abba pela Igreja primitiva natildeo eacute uma heranccedila dos
ensinamentos de Jesus como acreditam alguns teoacutelogos De acordo com essa
autora o uso do Abba na Igreja primitiva era mais uma questatildeo de ecircxtase provocada
por uma accedilatildeo do Espiacuterito Santo do que uma referecircncia agraves palavras ditas por Jesus
Para a autora se o Abba usado nas igrejas tivesse uma ligaccedilatildeo direta com Jesus
entatildeo seriamos obrigados a aceitar que outras palavras de origem aramaica como
Maranatha tambeacutem seriam provenientes dos discursos do mestre (D Angelo 1992a
p 615)
Um outro argumento defendido por D` Angelo eacute que o uso da expressatildeo ldquoAbba
Pairdquo no Evangelho de Marcos eacute anti-imperialista visto que o Imperador de Roma
considerava-se o pai da paacutetria (parens patriae pater patriae) preferindo ser
reconhecido com o tiacutetulo de pai ao tiacutetulo de rei designaccedilatildeo esta que natildeo soava bem
aos ouvidos do povo romano (D` Angelo 1992a p623-630) De fato de acordo com
DAngelo foi concedido a Juacutelio Cesar ainda em vida o tiacutetulo de ldquopaterldquo (pai) o qual
buscava estabelecer uma relaccedilatildeo de devoccedilatildeo (pietas) entre ele e o povo romano
Isso se deve ao fato que o uso de pater subentende o impeacuterio como uma grande
famiacutelia na qual o imperador funciona como um paterfamilias e cuja autoridade eacute
baseada em sua habilidade de reger todo o povo romano como seus clientes Ainda
135
seguindo com essa visatildeo imperialista observa-se que Augusto adquiriu oficialmente
o tiacutetulo pater patriae no ano 2 aC
No intuito de descrever o caraacuteter dos imperadores DAngelo aponta que
Cassius Dio o qual acreditava que os tiacutetulos supracitados representavam mais
afeiccedilatildeo do que autoridade tratou augustus e pater como duas denominaccedilotildees
atraveacutes das quais os imperadores primeiro permitiam a si mesmos serem
distinguidos do resto dos cidadatildeos substituindo o tiacutetulo ldquoreirdquo por tais designaccedilotildees
cujas essecircncias soariam de maneira menos ofensiva aos ouvidos dos romanos De
acordo com Dio o termo pater concorda com a ideia que o Imperador tem a mesma
autoridade que um pai tem sobre seus filhos escravo e outros sujeitos
Por outro lado dois filoacutesofos estoicos do primeiro e segundo seacuteculos nos
ajudam a entender como o tiacutetulo pai concedido ao Imperador poderia sofrer uma
reaccedilatildeo com o pensamento teoloacutegico da eacutepoca Para Dio Crisoacutestomo ldquoDeus como
pai racionaliza o governo imperial e convida-o a adotar um coacutedigo de eacutetica de
clemecircncia e de responsabilidaderdquo ao descrever que o bom rei eacute aquele que prefere a
labuta aos prazeres e as riquezas Tal rei prefere o tiacutetulo ldquopairdquo ao referir-se agrave sua
capacidade de provisatildeo Jaacute Epiacuteteto ldquousa a paternidade de Deus para oferecer uma
dignidade alternativa para aqueles que natildeo tecircm acesso ao poder dentro da ordem
imperialrdquo Esses dois autores satildeo importantes para o cristianismo primitivo e para o
judaiacutesmo natildeo pela influecircncia que exerceram sobre eles mas porque respondem as
mesmas realidades poliacuteticas
Um outro argumento de DAngelo com relaccedilatildeo ao uso de Abba por Jesus eacute
que o mesmo natildeo pode ser explicado apenas como uma relaccedilatildeo afetiva entre pai e
filho mas tambeacutem reflete a praacutetica carismaacutetica da comunidade na qual Marcos
estava inserido assim como ocorreu nas igrejas de origem grega da Galaacutecia e em
Roma (Gl 46 Rm 816) onde o uso da palavra ldquoAbbardquo eacute fruto da accedilatildeo do Espiacuterito
Santo
D`Angelo justifica essa tese a partir do fato que segundo ela J Jeremias
tomou como base em seus estudos apenas os textos provenientes de oraccedilotildees e
ainda excluiu textos em grego os quais ele considerou serem oraccedilotildees feitas pela
comunidade e natildeo como fruto de uma accedilatildeo do indiviacuteduo (D`Angelo 1992b p151)
Para dar suporte a esse argumento D`Angelo faz referecircncia ao texto de 4Q372 1
originalmente escrito em hebraico no qual Joseph invoca a Deus chamando-o de
meu Pai ldquoMeu Pai e meu Deus natildeo me abandone nas matildeos das naccedilotildees faccedila
136
justiccedila por mim o aflito e pobre pereciacutevel Vocecirc natildeo precisa de nenhuma pessoa ou
naccedilatildeo para lhe ajudar seu dedo eacute maior e mais forte do que qualquer coisa no
mundordquo (Vermes 2004 p566) Ela ainda cita outros textos onde Deus eacute invocado
como Pai (3 Mac 6 3-4 78 Sab 143 1 QH 935)
Embora alguns desses textos tenham sido escritos em grego quando lidos no
contexto de 4Q372 1 e 4Q460 5 DAngelo observa os textos hebraicos e gregos
mostram que era uma praacutetica comum tanto da comunidade quanto do indiviacuteduo
dirigir-se a Deus em oraccedilotildees chamando-o de Pai (D`Angelo 1992b p 152) Dessa
forma ela entende que o conceito de Deus como Pai sempre esteve presente no
judaiacutesmo antigo influenciando toda a literatura judaica da eacutepoca (DAngelo 1992a
618)
Face aos argumentos acima expostos D Angelo conclui que a originalidade
do uso do Abba natildeo pode ser atribuiacutedo a Jesus com toda certeza e mais ainda
segundo ela seria menos provaacutevel que Jesus usasse o termo pai numa linguagem
familiar do que em resistecircncia agrave ordem do Impeacuterio romano
Finalmente considerando os argumentos apresentados a partir da
interpretaccedilatildeo feminista Thompson conclui que tanto Jesus como a Igreja primitiva
natildeo deram origem ao conceito de Deus como Pai Aleacutem disso apesar das
caracteriacutesticas do Pai no Israel antigo serem utilizadas para falar de Deus como Pai
elas nunca estiveram ligadas a uma essecircncia masculina de Deus mas servem como
exemplo de feacute misericoacuterdia justiccedila humildade bem como responsabilidade
individual e corporativa e obediecircncia a Deus para a comunidade (Thompson 2000
p 19)
137
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Naquela noite em sonhos Joseacute teve um aviso O Evangelista natildeo diz em que cidade ou lugar a famiacutelia se encontrava Natildeo devia ser do lado norte e talvez fosse mesmo nas montanhas do sul fora do alcance das batidas policiais de Herodes Suponhamos que fosse na estrada do Heacutebron Com a cabeccedila reclinada sobre uma pedra o carpinteiro adormece E eis que o anjo do Senhor (aquele mesmo que lhe confiara a guarda de Jesus) lhe diz - Levanta-te e toma o menino e sua matildee e foge para o Egito e demora-te laacute ateacute que eu diga porque Herodes haacute de procurar o menino para o matar Joseacute desperta Sobre os montes luzem os primeiros alvores da madrugada Prepara o alforje avisa Maria para que tambeacutem se prepare porque longa eacute a viagem [] Joseacute sela o jumento acomoda Maria e o Menino sobre o animal Toma o bordatildeo E parte A viagem prolonga-se por muitos dias pela Idumeacuteia pelas montanhas de Sin pelo deserto de Sur Uma tarde sobre as colinas a cavaleiro do Nilo avistam as piracircmides de Miquerinos de Queacutefren e de Queops grandiosas e silenciosas no ar trecircmulo de mormaccedilo Junto agrave piracircmide de Miquerinos olhando para o abismo do ceacuteu e para a amplitude do deserto uma cabeccedila gigantesca de pedra tem indefiniacutevel indecifraacutevel expressatildeo Eacute a grande esfinge [] Os egiacutepcios viam naquele rochedo a imagem humana do sol Os gregos viam naquela imagem o monstro proponente de problemas insoluacuteveis (Salgado 1985 p67-69)
Em tom poeacutetico Plinio Salgado narra a histoacuteria da fuga do menino Jesus e
seus pais para o Egito conforme o texto do Evangelho de Mateus que diz ldquo[] eis
que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonhos a Joseacute e lhe disse Levanta-te toma
o menino e sua matildee e foge para o Egitordquo (Mt 213) Salgado usa o mito da esfinge74
para relacionar com o mito de Eacutedipo onde o enigma eacute decifrado pelo personagem
Eacutedipo75 Para Salgado Eacutedipo decifrou a Esfinge mas natildeo decifrou o homem que
continua nas trevas
A pergunta do monstro na estrada de Tebas refere-se ao homem ldquoQual eacute o animal que pela manhatilde anda com quatro pernas ao meio-dia com duas e agrave
74
Segundo Plinio Salgado o mito da Esfinge rezava que enquanto ser vivente misto de leatildeo e de mulher a Esfinge andava pelas estradas de Tebas devorando os viajantes que eram incapazes de responder as suas perguntas enigmaacuteticas Contudo o monstro morreria quando algueacutem decifrasse seu enigma
75 O mito de Eacutedipo pode ser visto com detalhes no claacutessico Antiacutegona de Soacutefocles
138
tarde com trecircsrdquo Eacutedipo responde ldquoEacute o homemrdquo e respondendo revela que toda a preocupaccedilatildeo da Esfinge eacute o gecircnero humano Decifrar a Esfinge eacute a preocupaccedilatildeo do homem Decifrar o homem eacute a preocupaccedilatildeo da Esfinge (Salgado 1985 p67-69)
Conforme Salgado a trageacutedia de Eacutedipo eacute a trageacutedia do homem Somente
Jesus decifraraacute a ldquoEsfinge-Homem e iluminaraacute todo o universordquo
A histoacuteria da humanidade eacute repleta de trageacutedias desde as suas origens Jaacute
nos primeiros capiacutetulos do Gecircnesis vemos Abel sendo viacutetima de seu irmatildeo Caim 76
Diante de tantas cataacutestrofes o homem procura refuacutegio em um ser sobrenatural que
possa amenizar seu sofrimento e dar-lhe alguma explicaccedilatildeo para o porquecirc de tantos
desalentos nesta vida
A relaccedilatildeo do ser humano com o Ser sobrenatural faz parte da cultura de todos
os povos antigos como vimos no primeiro capiacutetulo deste trabalho Isso nos mostra o
anseio do ser humano em busca do seu criador Observamos que para os povos
antigos Deus era visto como um ancestral divino ou seja o homem era visto como
descendente da divindade Essa relaccedilatildeo entre o homem primitivo e a deidade nos
povos antigos era sempre marcada por sangue violecircncia guerra entre os deuses
ateacute o surgimento do homem como vimos no mito sumeacuterio babilocircnico em que o
homem proveacutem do sangue de um deus decaiacutedo chamado Kingu
Em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem na narrativa do Gecircnesis verificamos que o
proacuteprio Deus eacute quem modela e cria o homem a partir do barro (argila) O homem
entatildeo recebe a vida atraveacutes do sopro divino Essa relaccedilatildeo tatildeo proacutexima entre criatura
e criador eacute descrita nas Escrituras de uma forma progressiva desde o Gecircnesis ateacute
os escritos neotestamentaacuterios Agrave medida que Deus se revela ao homem este se
aproxima mais dele Aos patriarcas Deus eacute o El Shaday (Todo Poderoso) mas jaacute a
Moiseacutes ele revela o seu proacuteprio Nome Ele eacute o ldquoEu Sourdquo o Yahweh
Mesmo Yahweh sendo um Deus proacuteximo Ele ainda eacute visto no Antigo
Testamento como figura de um Senhor Criador o Todo Poderoso que luta e peleja
por Israel mas que ao mesmo tempo em que defende seu povo pune-os e os
entrega nas matildeos dos inimigos quando esses se desviam dos seus mandamentos
J Jeremias sabiamente observa que no Antigo Testamento a relaccedilatildeo de Israel com
Deus natildeo eacute vista como o relacionamento de pai para filho principalmente por parte
76
Cf Gn 4 1-16
139
do indiviacuteduo Deus sempre se apresenta como o Pai do rei ou entatildeo como o Pai da
naccedilatildeo Mesmo que Pai seja uma das muitas metaacuteforas para Deus como afirma
Goshen-Gottstein dificilmente podemos contestar a tese de J Jeremias uma vez
que uma clara invocaccedilatildeo de Deus como Pai feita por algum indiviacuteduo no Antigo
Testamento eacute difiacutecil de ser encontrada
Em relaccedilatildeo ao Novo Testamento observamos que Jesus que conviveu em
uma sociedade muito pobre carregada de preconceitos viu na expressatildeo Abba a
forma por excelecircncia para projetar nela o modelo de uma verdadeira e iacutentima
relaccedilatildeo entre filho e pai O fato de Jesus ter sofrido preconceitos como em sua
infacircncia adolescecircncia e ateacute na vida adulta por causa da sua filiaccedilatildeo humana natildeo o
impediu de demonstrar o quanto a sua relaccedilatildeo com o Pai divino era estreita e isso
estava acima de todos os preconceitos concebidos dentro de uma sociedade cheia
de costumes rigidamente observados a ponto de natildeo mais compreenderem o
verdadeiro sentido do amor a Deus e ao proacuteximo conforme era a verdadeira
vontade de Deus expressa nos ensinamentos do mestre da Galileia
Embora Joseacute tenha assumido a paternidade de Jesus isso natildeo foi suficiente
para impedir o preconceito contra ele em relaccedilatildeo a sua filiaccedilatildeo humana Contudo
quando Bruce Chilton potildee a questatildeo relacionada agrave possibilidade de Jesus ter sido
considerado um Mamzer a partir da interpretaccedilatildeo do texto do Evangelho de Joatildeo 8
40-41 onde os Judeus fazem a seguinte afirmaccedilatildeo a Jesus ldquo[] natildeo nascemos da
prostituiccedilatildeo temos um soacute pai Deusrdquo podemos tambeacutem olhar esse texto a partir de
uma interpretaccedilatildeo de uma Cristologia alta ou seja aqui o debate entre Jesus e os
judeus tem como ponto principal a filiaccedilatildeo divina onde Jesus se coloca como o
Verbo divino preexistente Poreacutem eacute bem verdade que isso natildeo anula o pensamento
de Chilton em relaccedilatildeo agrave possiacutevel discriminaccedilatildeo sofrida por Jesus levando em
consideraccedilatildeo o contexto a eacutepoca a cultura e o ambiente social em que Jesus viveu
durante o periacuteodo da infacircncia ateacute a vida adulta
Aleacutem disso podemos dizer com Martins Terra que a vida de Cristo eacute a
Revelaccedilatildeo do Pai que pode ser demonstrada nas palavras no silecircncio e nos
sofrimentos de Jesus Martins Terra observa que essa relaccedilatildeo eacute plena de intimidade
como pode ser visto nas palavras do proacuteprio Mestre ldquoAquele que me viu viu o Pairdquo
(Jo 149) e da mesma forma o Pai tambeacutem pode dizer assim do Filho ldquoEste eacute o
140
meu Filho muito amado ouvi-o (Lc 935)rdquo Notamos aqui que a relaccedilatildeo de Jesus
com o Pai eacute desde a eternidade onde o Verbo divino jaacute estava presente com o Pai
na criaccedilatildeo de todas as coisas (Martins Terra 2009 p283-284)
Para Martins Terra assim como para J Jeremias o Abba de Jesus eacute o
modelo da perfeita relaccedilatildeo dos filhos de Deus com o Pai do ceacuteu Assim como Jesus
relacionou-se com o Pai divino seus disciacutepulos tambeacutem o poderatildeo desde que se
aproximem e ldquoamem a Deus acima de todas as coisas e o proacuteximo como a si
mesmordquo Eacute na oraccedilatildeo do Pai Nosso que Jesus ensina como os disciacutepulos devem
orar em uma estreita ligaccedilatildeo com o Abba conforme nos descreve Martins Terra
[] Os disciacutepulos ficam impressionados com a oraccedilatildeo de Jesus Ele chamava a Deus de Aba (Mc 14 36) que natildeo eacute um termo usado nas oraccedilotildees judaicas Aba eacute um diminutivo aramaico que significa ldquopapairdquo Eacute a expressatildeo de uma crianccedila dirigindo-se a seu progenitor Jesus natildeo pode desde o inicio revelar o misteacuterio da Santiacutessima Trindade e de sua pessoa divina Esse misteacuterio natildeo tinha sido revelado no AT Foi invocando a Deus como Aba ldquomeu Pairdquo que Jesus foi levantando aos poucos o veacuteu que ocultava o misteacuterio da trindade e do seu relacionamento filial uacutenico com o Pai (Martins Terra 2009 p283-284)
Aleacutem disso de acordo com James D G Dunn podemos dizer com confianccedila
que Jesus experimentou uma iacutentima relaccedilatildeo com Deus expressa atraveacutes da oraccedilatildeo
Ele se relacionou com Deus caracteristicamente como Filho e Pai e o sentido dessa
relaccedilatildeo com Deus era tatildeo real tatildeo amorosa e tatildeo atraente que Jesus sempre se
dirigiu a Deus dessa maneira chamando-o de Pai ldquoAbba foi o grito que veio mais
naturalmente aos laacutebios de Jesusrdquo (Dunn 1997 p26)
Segundo J Jeremias para compreendermos o Abba como a ipsissima vox de
Jesus eacute preciso observar a origem de sua liacutengua materna Conforme observamos
no decorrer desta pesquisa haacute alguns pesquisadores que defendem que a liacutengua
corrente nos dias de Jesus era o hebraico e por sinal tambeacutem falada por Jesus
Esse argumento natildeo eacute seguido pela maioria dos especialistas do Novo Testamento
bem como por J Jeremias A liacutengua falada por Jesus era do ldquoramo ocidental da
famiacutelia linguiacutestica aramaicardquo J Jeremias para embasar sua tese menciona
respeitaacuteveis nomes como J Wellhausen Jouumlon Matthew Black e principalmente G
Dalman (Jeremias 2008 p32-33) que ldquoapresentou a prova baacutesica para este fatordquo
Tendo Dalman ainda como referecircncia J Jeremias afirma que natildeo eacute possiacutevel mais
141
duvidar que o aramaico ou para ser mais preciso ldquoo dialeto galileu do aramaico
ocidentalrdquo era a liacutengua materna de Jesus
As evidecircncias aramaicas satildeo evidentes nos ditos de Jesus por outro lado
praticamente natildeo se encontra palavras em hebraico ditas por ele nem mesmo o
ldquoAmenrdquo ou ldquoEliacuterdquo uma vez que essas palavras foram absorvidas pelo aramaico
(Jeremias 2008 p36) J Jeremias admite que em alguns poucos casos
encontramos palavras hebraicas nos laacutebios de Jesus mas sempre em situaccedilotildees
solenes como as palavras proferidas na uacuteltima ceia em liacutengua sacra
A importacircncia do aramaico como a primeira liacutengua de Jesus encontra-se na
possibilidade de nos aproximarmos o quanto possiacutevel do modo de falar do mestre
ou seja voltarmos ldquoagraves caracteriacutesticas da dicccedilatildeo de Jesus que natildeo possuem
nenhuma analogia na literatura da eacutepoca e que por isso podem ser consideradas
como marcas da ipsissima vox de Jesusrdquo (cf Jeremias 2008 p 68-79) Entre as
particularidades de Jesus concernentes agrave fala encontramos as seguintes
peculiaridades conforme J Jeremias
1 - As paraacutebolas de Jesus satildeo exclusividade dele natildeo encontradas em toda a
literatura judaica do Antigo ou do Novo Testamento quer canocircnica ou apoacutecrifa Nas
paraacutebolas de Jesus natildeo se encontra nenhuma faacutebula ou seja ele nunca coloca
uma videira ou figueira para falar Suas paraacutebolas (mesmo contendo metaacuteforas do
Antigo Testamento) tinham por maior finalidade atingir o coraccedilatildeo pulsante do ouvinte
e tratar de assuntos relacionados ao dia-a-dia da vida do ser humano
2 - Os ditos enigmaacuteticos como o proferido sobre Joatildeo Batista ldquoo maior entre
os nascidos de mulher eacute ao mesmo tempo o menor no reino de Deusrdquo (Mt11 11)
eram incomuns nos dias de Jesus seja entre os mestres ou ateacute mesmo dos
primeiros cristatildeos que natildeo inventaram tais ditos mas apenas os tornaram mais
evidentes
3 ndash A expressatildeo ldquoreino de Deusrdquo eacute escassa na literatura judaica antiga
recebendo um aumento apenas na literatura rabiacutenica Contudo nos Evangelhos natildeo
soacute o aumento mas a forma que Jesus usa as expressotildees relacionadas ao reino de
Deus satildeo profundamente marcantes para se caracterizar como a ipsissima vox de
Jesus conforme encontramos em textos como Mateus 519 11 12 Marcos 115
Lucas 112 1231 1721 etc
142
4 ndash O termo Ameacutem como jaacute foi mencionado nesta pesquisa (54) no Antigo
Testamento era usado como foacutermula solene para confirmar ldquouma palavra de benccedilatildeo
maldiccedilatildeo ou desejordquo Nos laacutebios de Jesus o termo eacute usado para testificar as
proacuteprias palavras do falante e natildeo de outrem J Jeremias conclui sobre o ameacutem
com as seguintes palavras ldquoA novidade desse uso linguiacutestico sua estrita restriccedilatildeo
agraves palavras de Jesus e o testemunho unacircnime de todas as camadas da tradiccedilatildeo
evidenciam que nos deparamos com uma inovaccedilatildeo linguiacutestica nos laacutebios de Jesusrdquo
5 ndash E por uacuteltimo temos o Abba proferido por Jesus Abba eacute a mais importante
palavra pronunciada por Jesus quando invocava a Deus com o Pai eacute o modo
preferido de Jesus para referir-se ao Pai Dificilmente poderiacuteamos interpretar o Abba
de Jesus como faz Malina comentando o Abba natildeo eacute paizinho de James Barr
Como tem sido demonstrado por James Barr (1988) a palavra aramaica Abba natildeo significa ldquopaizinhordquo como no hebraico moderno Tanto na traduccedilatildeo do Novo Testamento (Abba = ho pater Mc 14 36 Rm 815 Gl46) quanto de honra No patriarcado ele implica tambeacutem distacircncia Deus natildeo eacute um paizinho mas um patrono Na religiatildeo poliacutetica pregada por Jesus o deus de Israel eacute o patrono de Israel (cf Malina 2004 p145)
Compreende-se portanto que o Abba proferido por Jesus eacute ipsissima vox
Julgar J Jeremias alegando que ele considerou o linguajar de Jesus infantil natildeo eacute
cabiacutevel dentro do contexto de toda a sua teologia J Jeremias defende-se dessa
acusaccedilatildeo que a princiacutepio ateacute poderia ser justa uma vez que ele admite que jaacute
chegou a acreditar que Jesus tenha assumido a linguagem das criancinhas quando
se dirigia a Deus Pai como ele mesmo admite ldquoeu tambeacutem acreditei nissordquo
contudo agora natildeo mais jaacute que nas proacuteprias palavras desse teoacutelogo ele assim
admite ldquoa constataccedilatildeo de que jaacute desde os tempos preacute-cristatildeos os filhos e filhas
adultos se dirigiam a seus pais chamando-os de Abba proiacutebe esta limitaccedilatildeordquo
(Jeremias 2008 p121)
Portanto no Abba de Jesus natildeo haacute espaccedilos para patriarcados exclusivistas
uma vez que o proacuteprio ldquoFilho de Deusrdquo na sua condiccedilatildeo de homem acolheu os
pobres religiosos doentes e marginalizados pela sociedade cobradores de
impostos e tambeacutem acolheu o que a sociedade machista da eacutepoca mais discriminou
as mulheres Talvez seja uma precipitaccedilatildeo eliminar a linguagem metafoacuterica da
palavra Pai ou mesmo deixar de observar nela o conceito anti-imperialista ou ateacute
mesmo a patronagem No entanto natildeo podemos deixar de priorizar que para Jesus
143
Abba era uma palavra sagrada era ldquoa revelaccedilatildeo Deus porque Deus se tinha dado a
conhecer a ele como seu Pairdquo (Mt 11 27) um ldquoPairdquo acolhedor que quis ajuntar os
seus filhos como a galinha ajunta os seus os seus pintos debaixo das suas asas (cf
Lucas 1334)
A paternidade de Deus conforme J Jeremias natildeo eacute algo natural tambeacutem
natildeo eacute uma posse de todos os seres humanos mas reserva-se apenas aos
disciacutepulos uma vez que Jesus nunca dirigiu a expressatildeo ldquovosso Pairdquo a algueacutem que
estivesse fora do rol dos seus seguidores A filiaccedilatildeo faz parte do reino (basileia) de
Deus Uma das exigecircncias para fazer parte de tal reino eacute tornar-se como uma
crianccedila (Mt 183) Essa filiaccedilatildeo eacute escatoloacutegica eacute um dom salviacutefico de Deus (J
Jeremias 2008 p 271-273)
O Pai apresentado por Jesus eacute bom e cuida dos seus lsquopequeninosrsquo jaacute que
ele sabe do que eles realmente precisam (Mt 6 8 32) A invocaccedilatildeo de Deus como
Abba eacute mais forte do que todas as adversidades e anguacutestias mesmo que Satatilde
ldquoqueira peneirar o disciacutepulordquo (Lc 22 31) o Pai do ceacuteu ldquoeacute mais forte do que todos os
problemas enigmas e anguacutestias e sabe do que precisam os filhos do reino (J
Jeremias 2008 p276) O ponto central de toda essa exposiccedilatildeo sobre o Abba
consiste no ldquovoltar a ser como uma crianccedilardquo O significado disso estaacute em tornar-se
dependente do Pai voltar para os braccedilos do Pai (cf Lc 15 11-32) depositar total
confianccedila nele enfim resumimos isso nas palavras de J Jeremias ldquovoltar a ser
crianccedilardquo significa reaprender a dizer Abba (J Jeremias 2008 p 238) como diz J
Jeremias ldquo[] Abba eacute percebido como um grande privileacutegiordquo Ter a coragem de
chamar Deus de Pai proveacutem da conscientizaccedilatildeo da filiaccedilatildeo satildeo os filhos que podem
dizer Abbardquo (J Jeremias 2008 p293)
Jesus de Nazareacute o Filho de Deus o homem que dividiu a histoacuteria em antes e
depois dele mudou os rumos da humanidade para sempre Amado e odiado
apregoado e perseguido mas nunca esquecido Verificamos ao longo deste trabalho
as mais variadas teorias sobre ele ora como um mago um judeu marginal um
profeta um bastardo um judeu praticante ou apenas uma figura lendaacuteria
embelezada por seus seguidores Schuumlssler Fiorenza relata uma histoacuteria rabiacutenica
em que Moiseacutes visita o rabino Akiva Ao ouvir os infindaacuteveis discursos sobre a Toraacute
Moiseacutes teria perguntado ldquoquem escrevera aquelas coisas grandiosas que ele jamais
144
tomara conhecimentordquo Schuumlssler Fiorenza (2005 p1) relacionando a histoacuteria
rabiacutenica sobre a Toraacute com as milhares escritas sobre Jesus ela levanta a seguinte
questatildeo ldquoSe Jesus tal como Moiseacutes voltasse a terra lesse todas as suas biografias
e frequentasse o Jesus Seminar ou fosse agrave reuniatildeo anual da Society of Biblical
Literature tambeacutem se maravilharia e perguntaria tomado de assombro Quem eacute
essa pessoa de quem estatildeo falandordquo
A busca pelo Jesus da histoacuteria levou a tantos extremos mas com certeza
acrescentou inuacutemeros fatos ou ateacute mesmo suposiccedilotildees que enriqueceram o
conhecimento que temos hoje sobre Jesus e os Evangelhos Eacute inegaacutevel o fato de
que os Evangelhos natildeo satildeo histoacuteria no sentido moderno e que os disciacutepulos natildeo
tinham a mesma pretensatildeo ou necessidade de relatar os fatos em detalhes visto
que viveram em um mundo cultura e eacutepoca totalmente diferente da nossa cultura
ocidental Portanto quanto mais perto quisermos chegar do Jesus humano mais
perto devemos nos aproximar da cultura do seacuteculo I
Sobre o divisor de aacuteguas entre J Jeremias e Bultmann ou seja se devemos
buscar pelo Jesus da histoacuteria ou pelo Cristo querigmaacutetico nada melhor do que
concluir com as palavras do proacuteprio J Jeremias
A boa nova sobre Jesus e o testemunho da feacute da igreja primitiva estatildeo indissoluvelmente ligados Natildeo podemos isolar nenhuma dessas magnitudes Pois o evangelho de Jesus se converte em histoacuteria morta sem o testemunho de feacute da igreja (a qual estaacute transmitindo sem cessar esse evangelho e o estaacute confessando e testemunhando sempre novamente) Sem Jesus e seu evangelho a igreja natildeo pregava mais que uma ideia um teorema Quem isola a pregaccedilatildeo de Jesus termina no ebionismo Quem isola o querigma da igreja primitiva termina no docetismo (Jeremias 2006 p 42)
Portanto descrever sobre Jesus realmente natildeo eacute tarefa faacutecil como parece
ser Como afirmar que ele era analfabeto ou entatildeo um rabi letrado da Galileia As
evidecircncias internas como vimos levam-nos a pensar em um homem que escrevia
lia e interpretava as Escrituras Por outro lado como nos mostra Crossan as
evidecircncias externas levam-nos a pensar em um camponecircs sofredor e iletrado como
a maioria dos galileus ou entatildeo dos judeus subjugados ao terriacutevel e impiedoso
Impeacuterio romano principalmente a Galileia diretamente afetada pelo deacutespota
Herodes Antipas
145
O importante eacute que Jesus com ou sem instruccedilatildeo douto ou indouto
conseguiu com a graccedila do Pai dos Ceacuteus deixar aos homens de todas as eacutepocas o
exemplo de um servo sofredor de amor ao proacuteximo de renuacutencia e acima de tudo
de um homem que cumpriu com toda a vontade e propoacutesitos de Deus Pai para a
salvaccedilatildeo da humanidade O apoacutestolo Joatildeo o descreveu como o Verbo o Logos
preexistente que existe antes de todas as coisas uma vez que as mesmas foram
criadas por ele
146
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The complete Dead Sea Scrolls in English Vermes Geza tradutor London Penguin Books 2004 THEISSEN G MERZ A O Jesus Histoacuterico Satildeo Paulo Loyola 2004 THOMPSON MM The Promise of the Father Jesus and God in the New Testament Louiville Kentucky Wetminster John Knox Press 2000 VAAGE L E O Evangelho de Tomeacute da Infacircncia de Jesus e Outros Textos Apoacutecrifos in Revista de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica Latino-Americana 20073 n 58 Petroacutepolis Vozes 2007 VERMES G A Religiatildeo de Jesus o Judeu Rio de Janeiro Imago 1995 VERMES G Jesus e o Mundo do Judaiacutesmo Satildeo Paulo Loyola 1996 VERMES G Jesus o Judeu Satildeo Paulo Loyola 1990 VERMES G O Autecircntico Evangelho de Jesus Rio de Janeiro Record 2006 VERNANT J P Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Traduccedilatildeo Joana Angeacutelica DAvila Melo WRIGHT J C Knowing God the Father Through the Old Testament Illinois IVP Academic 2007 ZUURMOND R Procurais o Jesus Histoacuterico Satildeo Paulo Loyola 1998
JONAS SILVA FARIA
JESUS DE NAZAREacute SUA RELACcedilAtildeO COM DEUS PAI EM JOACHIM
JEREMIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS
Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teologia da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Teologia
Orientador Prof Dr Vicente Artuso
CURITIBA
2012
Dados da Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute
Sistema Integrado de Bibliotecas ndash SIBIPUCPR
Biblioteca Central
Faria Jonas Silva
F224j Jesus de Nazareacute sua relaccedilatildeo com Deus Pai em Joachim Jeremias e seus 2012 Desdobramentos Jonas Silva Faria orientador Vicente Artuso ndash 2012
151 f 30 cm
Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute
Curitiba 2012
Bibliografia f 146-151
1 Biacuteblia AT - Antiguidades 2 Biacuteblia NT - Histoacuteria de fatos
contemporacircneos 3 Jeremias Joachim 1900- 4 Teologia I Artuso Vicente
1952- II Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Teologia III Tiacutetulo
CDD 20 ed ndash 232908
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a Deus pela inspiraccedilatildeo e pela vida sem as quais natildeo seria possiacutevel concluir este trabalho
Agradeccedilo a minha esposa Josiane pela compreensatildeo e apoio nas inuacutemeras horas em que me dediquei agrave pesquisa abdicando dos momentos que poderiam ser aproveitados junto da famiacutelia e em especial agrave nossa filha Sofia Gabriela que nasceu durante o periacuteodo da minha pesquisa trazendo luz alegria e motivaccedilatildeo para que essa empreitada fosse concluiacuteda
Agradeccedilo aos meus pais pela educaccedilatildeo a mim proporcionada e em especial a minha tia Eli Kowalski por ter tornado possiacutevel meu sonho de cursar teologia em uma instituiccedilatildeo de ensino superior o qual ampliou meus horizontes para o labor teoloacutegico e por fim abriu o caminho para mais esta conquista
Meu agradecimento especial ao meu orientador Prof Dr Vicente Artuso por ter acreditado na possibilidade desta pesquisa e me fornecido o suporte necessaacuterio para a concretizaccedilatildeo deste trabalho
Agradeccedilo ao corpo docente e ao programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia da PUC-PR pela contribuiccedilatildeo valiosa em minha formaccedilatildeo teoloacutegica durante todo o processo
Agradeccedilo agrave secretaacuteria Maria pela paciecircncia e eficiecircncia nas informaccedilotildees fornecidas desde o primeiro contato com a instituiccedilatildeo
Agradeccedilo a Marta pela disponibilidade e empenho na correccedilatildeo ortograacutefica e gramatical desta dissertaccedilatildeo
Agradeccedilo aos dirigentes do Studium Theologicum de Curitiba por ter permitido a utilizaccedilatildeo da biblioteca na qual encontrei grande parte da bibliografia aqui utilizada e a Flaacutevia pela paciecircncia e disponibilidade no auxiacutelio agraves consultas bibliograacuteficas
RESUMO
O objetivo deste trabalho eacute levar-nos agrave compreensatildeo da relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo Joachim Jeremias Para isso realizamos o estudo do Jesus histoacuterico e seu contexto social poliacutetico e religioso bem como a visatildeo que os povos antigos incluindo o Israel do Antigo Testamento tinham de Deus Por fim visotildees contraacuterias agrave interpretaccedilatildeo de J Jeremias satildeo apresentadas As diversas teorias que os homens tecircm da paternidade divina chamam agrave nossa atenccedilatildeo para a incessante busca da humanidade para identificar-se com o Criador especificamente com a figura de um Deus Pai No entanto nesta pesquisa observamos que mesmo no judaiacutesmo onde natildeo encontramos a antiga imagem de uma deusa matildee observamos a figura de um Deus Pai com afetos e sentimentos maternos Para J Jeremias eacute com Jesus que o relacionamento do humano com o Pai divino atinge seu aacutepice atraveacutes da magna expressatildeo ldquoAbba Pai Segundo este autor Jesus de um balbucio das criancinhas teria tornado o Abba Pai uma expressatildeo sagrada entre os seus disciacutepulos a ponto de posteriormente ela ser absorvida pelas comunidades cristatildes primitivas como a forma de comunicaccedilatildeo do Espiacuterito para testificar no interior do disciacutepulo que este agora eacute tambeacutem filho de Deus A teoria de que o Abba natildeo era apenas um balbucio infantil ou muito menos um termo sagrado eacute contestada por correntes teoloacutegicas judaicas e feministas que veem os argumentos de J Jeremias como infundados ou repletos de exageros No entanto ao final da pesquisa procuramos mostrar que mesmo diante de tais contestaccedilotildees a paternidade divina proclamada por Jesus natildeo eacute natural ou seja uma posse de todos os seres humanos mas exclusividade dele e dos seus disciacutepulos uma vez que a filiaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica do reino de Deus e soacute os filhos do reino eacute quem podem usufruir de tal privileacutegio e dirigir-se a Deus invocando-o como o Abba Pai Jesus de Nazareacute nesta pesquisa eacute o exemplo a ser seguido no tocante agrave humildade e sofrimento numa sociedade profundamente marcada pelo preconceito e desigualdade social Compreendecirc-lo e segui-lo na sua humanidade eacute um grande passo para aproximar-se dele como o Cristo poacutes-pascal onde a revelaccedilatildeo do divino ao humano se concretiza com toda a plenitude Palavras-chave Jesus histoacuterico Paternidade divina
ABSTRACT
This work aims to understand the relationship between Jesus and God the Father according to Joachim Jeremias For this we studied the historical Jesus and his social political and religious context as well the ancient people view of God including the view of Israel from Old Testament Finally views that are opposed to Jeremias are presented The various theories that men have on the fatherhood of God call our attention to the relentless pursuit of humanity to identify with the Creator specifically with a figure of God the Father However in this study we observed that even in Judaism where it cannot find the ancient image of a mother goddess we see a picture of a God Father with affection and maternal feelings For J Jeremias it is in Jesus that the relationship of the human with the divine Father reaches its peak through the magna term Abba Father According to this author Jesus through a babble of little children would have made the Abba Father a sacred expression among his disciples and He subsequently extent it in order to being absorbed by the early Christian communities as a way of communicating of the Spirit to testify within the disciple that he is also the son of God The theory that Abba was not just a babbling child or much less a sacred term is challenged by current theological and Jewish feminists who see the arguments of J Jeremias as unfounded or exaggerated However at the end of the study we sought to show that even in the face of such challenges the fatherhood of God proclaimed by Jesus is not natural ie a possession of all human beings but it is exclusive to Him and his disciples once the sonship is a feature of the kingdom of God and only the children of the kingdom is the one who can enjoy such a privilege and turn to God calling him Abba Father Jesus of Nazareth on this research is the example to be followed regarding the humility and suffering in a society deeply marked by prejudice and social inequality To understand and follow Him in his humanity is a big step to be close to him as the post-Passover Christ where the revelation of the divine to the human is fully realized Key-words Historical Jesus Gods fatherhood
Sumaacuterio
1 INTRODUCcedilAtildeO 7 2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO 19 3 O JESUS HISTOacuteRICO 27 31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO 27 32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO 32 4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE SUA EacutePOCA 40 41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE CONTEMPORAcircNEA DE JESUS 41 42 JESUS O HUMILDE NAZARENO 46 43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES 50 44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS 59 45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS 61 451 OS ESSEcircNIOS 63 452 OS FARISEUS 66 453 OS SADUCEUS 72 454 OS ZELOTAS 74 5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS E SEUS
DESDOBRAMENTOS 79 51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA 79 52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA 85 53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS 91 54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS 100 55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR 102 56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA 110 6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS 122 61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO 122 62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA LEITURA A PARTIR DA
TEOLOGIA FEMINISTA 130 7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 137 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 146
7
1 INTRODUCcedilAtildeO
A ideia de Deus como pai da humanidade sempre esteve presente na mitologia dos
povos antigos Pai eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e na
Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Segundo Joachim Jeremias
(1977 p11-12) muitas tribos e famiacutelias acreditavam que eram procedentes de um
ancestral divino isto eacute de um ldquopairdquo divino Ephraim descreve-nos que a relaccedilatildeo de Deus
como Pai entre os povos antigos era bastante conhecida contudo ele evidencia que o
Abba de Jesus foi a mais iacutentima forma de invocar a Deus propagada entre os homens
atraveacutes dos ensinamentos de Jesus
A palavra Abba (Pai) posta na boca de Jesus eacute como se fosse a uacuteltima tentativa de Deus para ensinar os homens a pronunciarem seu nome Muitas vezes no passado Deus tentou fazer isto atraveacutes de seus servidores os profetas mas Israel natildeo compreendeu ldquoPairdquo eacute um tiacutetulo divino muito antigo encontrado em quase todas as religiotildees do Oriente meacutedio mas no caso ele eacute pai como a terra eacute matildee isto eacute exige na medida em que daacute Eacute o deus tutelar que deve ser adulado pois do contraacuterio ele natildeo outorga as suas graccedilas Eacute um deus que eacute pai do mesmo modo que Zeus era o pai de todos os deuses (Ephraim 1998 p171)
Observa-se que para os povos antigos Deus era um ancestral divino distante de
suas criaturas Aleacutem disso para Israel conforme a tese sustentada por J Jeremias vecirc-
se que no Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai principalmente quando
essa forma de invocar a Deus estaacute relacionada a um indiviacuteduo (Jeremias 2005 p19) Por
outro lado se no Antigo Testamento Deus natildeo eacute invocado como Pai de uma forma
individual como Senhor Ele eacute constantemente invocado a exemplo do salmista (Sl 338)
que menciona Deus como o Senhor que fala e as coisas acontecem conforme as suas
ordenanccedilas (Jeremias 2008 p 269)
Em contraste a essa relaccedilatildeo aparentemente tatildeo distante do Deus Pai com seus
filhos no periacuteodo veterotestamentaacuterio observa-se que a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute
profundamente marcante nos Evangelhos Haacute poreacutem diferentes interpretaccedilotildees com
relaccedilatildeo ao sentido da palavra Pai quando esta era proferida por Jesus J Jeremias
embora natildeo tenha sido o primeiro a tratar dessa questatildeo provavelmente foi o mais
influente quando ele sugere que Jesus ao dirigir-se a Deus invocando-o como o ἀββᾶ
(Abba) estava atribuindo um novo enfoque ao costume judaico de interpelaccedilatildeo a Deus
fazendo uso de uma linguagem cotidiana assim como as crianccedilas dirigiam-se a seus pais
expressando familiaridade e intimidade (cf Goshen-Gottstein 2001 p 493)
O objetivo deste trabalho eacute o estudo do Jesus histoacuterico (humano) com ecircnfase em
seu contexto social culminando no estudo histoacuterico-teoloacutegico da relaccedilatildeo de Jesus com o
8
Pai Este estudo tem como ponto de partida a teologia de Joachim Jeremias concernente
ao Abba proferido por Jesus no Evangelho de Marcos (1436) que diz ldquo[] Abba (Pai)
Tudo eacute possiacutevel para ti afasta de mim este caacutelice poreacutem natildeo o que eu quero mas o que
tu queresrdquo
Para entendermos a relaccedilatildeo de Jesus com o Deus Pai no Novo Testamento e como
ele transformou uma distante relaccedilatildeo entre o Pai ldquoque estaacute nos ceacuteusrdquo e seus filhos eacute
interessante vislumbrar o mundo poliacutetico religioso e cultural no qual ele esteve inserido
comeccedilando pela pequena Nazareacute um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que
vivia em casebres um povoado simples composto de camponeses entre duzentos a
quatrocentos habitantes (Crossan 2007 p 75) ateacute ao Getsecircmani onde Jesus proferiu a
magna expressatildeo Ἀββᾶ ὁ πατὴρ (Abba Pai) que para J Jeremias eacute a mensagem central
do Novo Testamento
No entanto a pesquisa do Jesus histoacuterico eacute complexa visto que os cristatildeos
primitivos preocuparam-se apenas em preservar ditos isolados a respeito de Jesus A
expectativa do retorno iminente do Mestre pode ter sido o motivo principal que levou o
cristianismo primitivo a preferir apenas fatos relacionados ao ministeacuterio de Jesus do que
relatar uma biografia completa do Jesus histoacuterico (Schweitzer 2003 p 11) Apesar de
toda a complexidade em se estudar o Jesus histoacuterico eacute possiacutevel investigar alguns
aspectos relativos a sua existecircncia a partir dos evangelhos e de muitos escritores que ao
longo dos seacuteculos tecircm se empenhado em coletar informaccedilotildees atraveacutes de achados
arqueoloacutegicos e de toda literatura que de uma forma direta ou indireta traz-nos
informaccedilotildees do mundo no qual Jesus estava inserido
Partindo das fontes primaacuterias J Jeremias observa que Jesus tinha uma relaccedilatildeo
iacutentima com Deus pois somente se referia a Ele chamando-o de meu Pai comportamento
este que natildeo era observado entre o povo judeu Assim para uma melhor compreensatildeo
dessa relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute interessante pesquisar como os povos antigos
viam a questatildeo da paternidade divina e desse modo confrontar os modelos antigos com
o modelo de paternidade difundido por Jesus e pelas primeiras comunidades cristatildes
Tendo em vista a complexidade e a diversidade do tema proposto e o profundo
interesse de J Jeremias e de outros pensadores que com ele concordaram ou divergiram
a respeito do assunto esta pesquisa torna-se um desafio empolgante tendo sempre em
vista o crescimento e o amadurecimento em questotildees importantes da teologia
A escolha deste tema eacute motivada pela relevacircncia da produccedilatildeo acadecircmica de J
Jeremias no contexto da Teologia do Novo Testamento mais especificamente sobre a
9
relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai Embora os argumentos de J Jeremias natildeo sejam
unanimidade no contexto dos estudiosos que tecircm escrito sobre tal tema eacute inegaacutevel o
grande impacto que as suas teses tecircm causado na comunidade cientiacutefica ligada ao
assunto que tem se debruccedilado para contestar ou entatildeo para sustentar que Deus natildeo eacute
como um soberano inacessiacutevel mas como um pai que se relaciona com seus filhos e isso
soacute foi enfatizado com propriedade a partir do Abba de Jesus
Essa visatildeo de J Jeremias entra em conflito com as teses de alguns estudiosos
contemporacircneos os quais discutem se realmente houve novidade na forma como Jesus
fez uso da palavra Pai (ipsissima vox) em suas oraccedilotildees ou se esta era um dito autecircntico
(ipsissima verba) Seria Abba realmente a ipsissima vox de Jesus e o centro de sua
mensagem e a afirmaccedilatildeo de sua messianidade conforme afirma J Jeremias ou apenas
uma expressatildeo lituacutergica comum nas comunidades cristatildes do periacuteodo poacutes-pascal da igreja
primitiva (DAngelo 1992b p151) Teria Jesus realmente legado aos seus disciacutepulos a
palavra Abba como um termo sagrado ou Abba tem apenas a conotaccedilatildeo poliacutetica anti-
imperialista (DAngelo 1992a p623)
A partir das questotildees levantadas acima este trabalho tem por objetivo investigar o
Jesus histoacuterico e seu contexto social a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo a
interpretaccedilatildeo dada por J Jeremias bem como alguns desdobramentos deste tema
segundo algumas correntes teoloacutegicas cristatildes e judaicas com as seguintes finalidades
Verificar a visatildeo que os povos antigos (ldquopagatildeosrdquo natildeo judeus) bem como o antigo
Israel tinham de Deus como Pai
Pesquisar a relaccedilatildeo do Jesus histoacuterico no seu contexto familiar e social
Analisar a tese de J Jeremias concernente ao sentido que a palavra Abba tinha
quando proferida por Jesus
Confrontar o pensamento de J Jeremias frente a algumas correntes teoloacutegicas
favoraacuteveis e contraacuterias aos seus argumentos
10
2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS
Neste capiacutetulo seraacute abordado o conceito de paternidade divina entre os povos
antigos com o enfoque sobre a ideia que tais povos tinham de Deus como um ancestral
divino do homem conforme exposto por Jeremias Face agraves inuacutemeras epopeias da
criaccedilatildeo abaixo mencionadas veremos que a criaccedilatildeo do homem a partir do relato do
Gecircnesis eacute bem mais otimista uma vez que o homem do Gecircnesis natildeo eacute um ancestral dos
deuses mas foi criado para ser a imagem do seu proacuteprio Criador
21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS
A ideia mitoloacutegica de um deus como pai da humanidade sempre esteve presente
entre os povos antigos como os sumeacuterios e babilocircnios Segundo J Jeremias tais povos
diziam que suas tribos e famiacutelias procediam de um ancestral divino como se observa por
exemplo no ceacutelebre hino sumeacuterio e acaacutedico de Ur Nesse hino o deus Lua Sin eacute
invocado como o ldquoPai misericordioso em suas disposiccedilotildees que reteacutem em sua matildeo a vida
de todo o paiacutesrdquo Aleacutem de tal hino encontramos na tradiccedilatildeo de tais povos a seguinte
citaccedilatildeo sobre Ea um deus sumeacuterio-babilocircnico ldquoSua coacutelera eacute como o diluacutevio Ele se
reconcilia como um pai misericordiosordquo (Jeremias 1977 p11-12) Complementando essa
ideia Santos Sabugal afirma que a ideia de paternidade divina entre os povos antigos era
largamente atestada na literatura de vaacuterios povos A Aacutefrica a Ameacuterica a China e a Iacutendia
bem como o Egito e tambeacutem os Greco-romanos invocaram a paternidade de Zeus e de
Juacutepiter sobre todos os deuses e homens (Sabugal 1985 p 367-368)
Contudo para J Jeremias as histoacuterias de invocaccedilotildees a Deus como Pai satildeo tatildeo
profundas que sempre se tem a sensaccedilatildeo de que novas e inesperadas galerias sempre
surgem A invocaccedilatildeo a Deus como Pai nos povos antigos desde as suas origens nem
sempre estava relacionada a Deus como um antepassado do rei ou do povo mas podia
ser invocado como um pai misericordioso conforme nos relata J Jeremias
Eacute assombroso verificarmos como jaacute no antigo oriente e com seguranccedila desde o segundo e ainda no terceiro milecircnio aC a divindade era invocada assim Nas oraccedilotildees sumeacuterias muito anteriores a Moiseacutes e os profetas encontramos a invocaccedilatildeo ldquopairdquo e desde laacute esta palavra designava a divindade natildeo apenas como antepassado do rei e do povo ou como o soberano pleno de poder mas tambeacutem como o ldquopai magnacircnimo e misericordioso em cuja matildeo estaacute a vida da naccedilatildeo inteirardquo (Hino de Ur a Sin divindade da lua) A palavra ldquopairdquo na invocaccedilatildeo a Deus implicava pois para os orientais desde os tempos mais antigos algo que pode ser considerado como para noacutes significa a palavra ldquomatildeerdquo (Jeremias 2006 p61)
11
Pai1 portanto para os povos antigos como os assiacuterios babilocircnios egiacutepcios
gregos e outros povos eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e
na Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Aleacutem disso o historiador
das religiotildees Mircea Eliade tambeacutem descreve que satildeo diversas as versotildees sumerianas
sobre a origem divina dos seres humanos e dentre elas consta o poema cosmogocircnico
conhecido como Enuma elish (ldquoQuando no altordquo) que relata as origens do mundo e do
homem buscando exaltar a Marduk um deus nacional da Babilocircnia o qual triunfa sobre
os deuses com ldquovalores demoniacuteacosrdquo dentre eles Tiamat e Kingu
Esse poema traz o mito de que Marduk decidiu criar o homem para que ele sirva
aos deuses Assim a partir do corte das veias de Kingu um deus vencido que foi
sacrificado a humanidade foi criada (Eliade 2010 p79) No entanto com a derrota dos
deuses inimigos de Marduk a criaccedilatildeo do homem inicia-se com um agravante na tradiccedilatildeo
sumeriana mesmo sendo Kingu um dos primeiros deuses ele se tornara o arquidemocircnio
chefe dos monstros e democircnios criados pelo deus Tiamat que tambeacutem foi derrotado por
Marduk Dessa forma sendo o homem constituiacutedo do sangue de Kingu torna-se ele parte
constitutiva de uma mateacuteria demoniacuteaca (Eliade 2010 p 80) Segundo essa vertente
mitoloacutegica sumeriana a uacutenica esperanccedila do homem eacute que ele tenha sido criado por um
grande deus Ea ldquoA partir desse prisma existe uma simetria entre a criaccedilatildeo do homem e
a origem do mundo Em ambos os casos a mateacuteria-prima eacute constituiacuteda pela substacircncia
de uma divindade primordial decaiacuteda demonizada e morta pelos jovens deuses
vitoriososrdquo (Eliade 2010 p 80) Conforme P Grelot ldquoo mito babilocircnico da criaccedilatildeordquo eacute
repleto de violecircncia e sangue (Grelot 1973 p 31)
[] Marduque ouvindo o apelo dos deuses resolveu criar uma obra prima ldquofarei canais de sangue formarei uma ossatura e suscitarei um ser cujo nome seraacute homem Sim vou criar um ser humano um homem Que sobre ele recaia o serviccedilo dos deuses para o bem estar delesrdquo
Ainda com relaccedilatildeo ao mito babilocircnico relata-se que na epopeia de Atra-Hasis (ldquoo
muito inteligenterdquo) cuja coacutepia mais antiga data aproximadamente de 1600 aC o deus Uecirc
1 A relaccedilatildeo de Deus como Pai nas religiotildees do oriente antigo e da Greacutecia e Roma antigas estaacute sempre de
uma forma ligada a ldquoideias miacutesticas de gerar e na descendecircncia fiacutesica e natural de todos os homens a partir de Deus Assim o deus El de Igariteacute eacute chamado o pai da humanidade e o deus da lua na Babilocircnia sin eacute pai e gerador dos homens e dos deusesrdquo No Egito o Faraoacute eacute considerado de modo especial o filho Deus no sentido fiacutesico O nome de pai expressa sobre tudo a absoluta autoridade de deus exigindo a obediecircncia havendo poreacutem ao mesmo tempo seu amor bondade e cuidado misericordiosos (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)
12
eacute morto Entatildeo a deusa matildee (Nintu) e Ea (deus das aacuteguas) fazem um apelo agraves sete
genitoras que ao som de encantamentos maacutegicos se potildeem a amassar a argila A epopeia
narra que a partir de catorze pedaccedilos de argila que satildeo separados metade agrave direita e
metade agrave esquerda pela deusa matildee que apoacutes serem pisados pelas deusas genitoras
estas ldquodatildeo agrave luz sete homens e sete mulheres que imediatamente satildeo dispostos aos
pares e a raccedila humana recebe as leis do seu laborrdquo (Grelot 1973 p 31)
[] Que seja morto um deus e que todos os deuses se purifiquem no seu sangue Que com a sua carne e o seu sangue Nintu (= a deusa matildee) misture argila de modo que deus e homem sejam misturados juntos na argila Que por esta carne de deus haja um espiacuterito Sim Responderam na assembleia os grandes Anunaqui que regem os destinos (Grelot 1973 p 19)
Nesse mito babilocircnico Ea ficou encarregado de consumar o trabalho imolando
Kingu que era o chefe dos deuses revoltosos para que o seu sangue estivesse nas veias
do homem de sorte que este tenha ldquoem suas veias o sangue de um deus decaiacutedordquo
Grelot observa que a partir desses mitos pode-se ver que o homem natildeo eacute apenas um
suacutedito e escravo dos deuses ldquomas tambeacutem eacute um joguete das potecircncias coacutesmicas que
fazem pesar sobre ele uma fatalidade inexoraacutevelrdquo (Grelot 1973 p 31)
[] Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido cortando suas veias Com o seu sangue Eia criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses para libertaacute-los Depois que Eia o saacutebio criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses obra superior a toda inteligecircncia que realizou Nudimude graccedilas aos artifiacutecios de Marduque Marduque rei dos deuses dividiu o conjunto dos Anunaacutequi em deuses de cima e deuses de baixo e encarregou Anu de velar pelas suas ordens nos ceacuteus e na terra ele estabeleceu seiscentos deuses (Vl 1-1031-34)
Pode-se ainda observar a ideia da existecircncia de um ancestral divino entre outros
povos antigos Segundo Campbell tal conceito pode ser visto na cultura da tribo Aranda
da Austraacutelia Central Nessa tribo o rito de transformaccedilatildeo de um menino em adulto
demonstra a forma primitiva com que esse povo se relaciona com a divindade desde a
antiguidade quando um jovem dessa tribo estaacute entre os dez e os doze anos ele e os
outros membros de sua faixa etaacuteria satildeo tomados pelos homens da aldeia e levantados
13
vaacuterias vezes no ar enquanto os homens realizam o ritual de transformaccedilatildeo as mulheres
por sua vez tambeacutem tomam parte do ritual danccedilando em volta agitando os braccedilos e
gritando Em cada menino satildeo entatildeo pintados no peito e nas costas desenhos simples
por um homem relacionado com o grupo social ao qual pertence a sua futura mulher e
enquanto os meninos satildeo pintados os homens cantam ldquoQue ele possa atingir a barriga
do ceacuteu que ele possa crescer ateacute a barriga do ceacuteu que ele possa ir diretamente para
dentro da barriga do ceacuteurdquo (Campbell 1992 p82)
Assim que o ritual eacute finalizado os meninos recebem a instruccedilatildeo que desde que o
ritual foi concluiacutedo cada um deles tem sobre si a insiacutegnia do ancestral mitoloacutegico
particular do qual ele eacute a contraparte viva A partir de entatildeo os meninos passam a ter
algumas responsabilidades e satildeo advertidos de que de agora em diante haacute algumas
restriccedilotildees entre eles e o sexo oposto Eles natildeo poderatildeo mais brincar ou acampar com as
mulheres e meninas mas somente com os homens Das atividades de caccedila de pequenos
animais e procura de raiacutezes eles natildeo tomaratildeo parte visto ser uma atividade realizada
pelas mulheres mas receberatildeo uma responsabilidade maior que eacute acompanhar os
homens na caccedila aos cangurusrdquo (Campbell 1992 p 82) Campbell observa que nessa
tribo eles acreditam que as crianccedilas nascidas de mulheres satildeo reapariccedilotildees de seres que
viveram na era mitoloacutegica no chamado ldquotempo dos sonhosrdquo ou altjeringa (Campbell
1992 p 82) Nesse mundo mitoloacutegico maacutegico dos sonhos o menino da tribo Aranda
passa entatildeo a compreender que ele proacuteprio eacute um ser mitoloacutegico eterno que se
encarnou e da mesma forma seus companheiros tambeacutem satildeo as manifestaccedilotildees das
formas eternas (Campbell 1992 p82)
A ancestralidade divina tambeacutem pode ser constatada entre os gregos como no mito
de Ascleacutepio um deus popular classificado por Homero e Piacutendaro como um heroacutei ou
divindade da cura Ascleacutepio segundo a mitologia grega era filho do deus Apolo com a
humana Corocircnis ele tambeacutem se casou com uma humana com quem teve filhos e filhas
(Koester 2005 vol1 p176)
A relaccedilatildeo entre deuses e humanos tambeacutem pode ser vista nos relatos mitoloacutegicos
dos chamados heroacuteis ou semideuses Segundo a mitologia os heroacuteis pertenciam agrave
espeacutecie dos humanos visto que conheceram a morte e o sofrimento contudo
diferenciavam-se destes pelo fato de que eles viveram numa eacutepoca denominada pelos
gregos como o antigo tempo onde os homens denominados de heroacuteis eram mais belos e
mais fortes do que os homens que conhecemos Esses ancestrais (noacutenymnoy) ou seja
os sem nome fazem parte do passado lendaacuterio da Greacutecia antiga Mesmo sendo homens
eles se aproximam muito dos deuses mais dos que os homens atuais Nessa eacutepoca
14
lendaacuteria segundo a mitologia grega os deuses ainda se misturavam com os mortais na
vida diaacuteria como comer juntos e ateacute em relaccedilotildees sexuais onde os imortais se uniam aos
mortais a fim de gerarem filhos belos Os heroacuteis faziam parte dessa relaccedilatildeo amorosa
entre deuses e humanos como diz Hesiacuteodo ldquoeles formam a raccedila divina dos heroacuteis que
satildeo denominados semideuses conhecidos como os hemitheoiacuterdquo (Vernant 2006 p 47) A
partir desse relato observamos que os humanos realmente acreditavam procederem de
uma raccedila mitologicamente humana e divina ou seja uma mistura das duas
Observamos que ateacute esse ponto temos entre os ancestrais divinos apenas figuras
masculinas A figura masculina de Deus como Pai da humanidade entre os povos antigos
eacute marcante poreacutem natildeo eacute unanimidade Gerald Messadieacute afirma que natildeo existe nenhuma
figura masculina da idade da pedra que evoque o conceito de um deus masculino
(Messadieacute 2001 p44) De fato esse autor observa que os deuses masculinos como Aacutetis
Tamuz Adoacutenis Patilde Silvano Fauno Narciso Jacinto satildeo comparados agrave vegetaccedilatildeo visto
que mesmo sendo deuses heroicos miacuteticos morrem com a chegada do inverno e
renascem com a chegada da primavera assim como ocorre com a vegetaccedilatildeo
No entanto diferentemente do que ocorre no aspecto masculino para o autor
supracitado o princiacutepio feminino da divindade eacute algo permanente Segundo Messadieacute o
culto da Terra-Matildee foi tatildeo fortemente enraizado nas culturas primitivas que seus vestiacutegios
perduraram ateacute tempos recentes (Messadieacute 2001 p44) Nesse sentido pode-se citar as
oraccedilotildees que se faziam agrave deusa-matildee (Zemyna equivalente agrave deusa grega Gaia) na
Lituacircnia entre os seacuteculos XVII e XVIII onde ela era vista como aquela que faz florescer
os bototildees O mais admiraacutevel eacute que em pleno seacuteculo XX em numerosos paiacuteses da
Europa como Escoacutecia Irlanda Lituacircnia Pruacutessia Oriental e Malta ainda era dedicado um
dia (15 de agosto) a Terra-Matildee Messadieacute enfatiza que o dia dedicado agrave deusa-matildee era
uma data tatildeo significativa a ponto de ser transformada no dia da festa catoacutelica da
Assunccedilatildeo data esta que mesmo tendo sentido diferente e ser de outra religiatildeo ainda
assim foi recuperada em benefiacutecio de uma mulher (Messadieacute 2001 p 45)
A deusa-matildee era vista como doadora de tudo quer fosse da vida ou da morte Entre
suas formas mais conhecidas estatildeo Istar Astarte Inana Ciacutebele Ceres e Afrodite A
importacircncia da deusa-matildee como protetora da vida era fundamental em uma sociedade
onde a esperanccedila de vida em geral natildeo ultrapassava quarenta e cinco anos Por isso a
fertilidade das mulheres era vista como essencial para a sobrevivecircncia das sociedades ldquoA
deusa-matildee foi o reflexo de um estado socioeconocircmico que ditava a economia e a religiatildeordquo
(Messadieacute 2001 p47)
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O culto agrave deusa universal foi duradouro e seu decliacutenio foi tardio e nunca totalmente
consumado em nenhuma religiatildeo ateacute o aparecimento do judaiacutesmo (Messadieacute 2001 p
59) Na Europa a primeira vez que um deus masculino partilhou o poder oficialmente
com a deusa-matildee foi com a revoluccedilatildeo Celta dos oriundos da Iacutendia ramo indo-europeu
dos indo-arianos por volta do seacuteculo VIII aC Os Celtas apesar dessa aparecircncia politeiacutesta
natildeo o eram pode-se dizer que ldquoeram quase monoteiacutestasrdquo (Messadieacute 2001 p72) Seus
deuses mitoloacutegicos estatildeo mais para heroacuteis do que para divindades ldquoOs Celtas como
revelou Juacutelio Ceacutesar satildeo todos filhos de Dis pater O Pai muito simplesmenterdquo (Messadieacute
2001 p69) Continua Messadieacute ldquoos Celtas lanccedilaram no Ocidente as fundaccedilotildees do
Cristianismo antes mesmo deste ter nascido Quase o inventaramrdquo (Messadieacute 2001
p70)
Dentre as muitas teorias acerca da origem dos deuses e suas relaccedilotildees com os
humanos verificamos que segundo Joatildeo Evangelista Martins Terra a palavra Deus tem
sua origem no protoindo-europeu onde era designada como DEIWOS e de onde provecircm
os dois vocaacutebulos latinos para dizer deus (Deus e divus) palavras que derivam do latim
arcaico deivos (Martins Terra 2001 p274) A religiatildeo dos indo-europeus acreditava na
existecircncia de um Ser Supremo conhecido como o Deus celeste tambeacutem chamado de
DEIWOS palavra esta que deriva do radical DEI (iluminar) (Martins Terra 2001 p291)
De acordo com Martins Terra DEIWOS estaacute presente em inuacutemeras religiotildees antigas
Na religiatildeo messaacutepica (populaccedilatildeo indo-europeia proto-histoacuterica da peniacutensula salentina)
religiatildeo dos etruscos dos gregos dos traacutecios dos celtas dos antigos germanos dos
persas dos baacutelticos dos antigos eslavos e das religiotildees indianas (Martins Terra 2001 p
277-286)
O indo-europeu DEIWOS originariamente natildeo designava o ceacuteu fiacutesico (caelum)
visto que as liacutenguas indo-europeias natildeo tecircm um nome comum para designar o ceacuteu fiacutesico
(Martins Terra 2001 p 291) DEIWOS designava um ser pessoal que frequentemente eacute
contraposto ao HOMO um ser pessoal terreno (Martins Terra 2001 p 305)
Na cultura indo-europeia o conceito de pai era muito mais do que genealoacutegico
juriacutedico e socioloacutegico O conceito de pai sempre se referia ao chefe de famiacutelia como
aquele que exercia um poder monaacuterquico com funccedilotildees judiciais e penais sobre os seus
dependentes Para os indo-europeus o deus supremo dyeu-pater (pai) natildeo se refere a
deus pai ldquocomo progenitor mas ao sentido social do adulto que eacute chefe da casa no
sentido do latim pater famiacuteliasrdquo (Martins Terra 2001 p153) Contudo segundo Martins
Terra Porfiacuterio relaciona Zeus como pai dos deuses e coloca o homem como parente de
Deus Para Porfiacuterio uma das finalidades dessa relaccedilatildeo eacute que ldquoo homem respeitaraacute o
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direito do proacuteximo que tambeacutem tem a Zeus como progenitor [proacutegonos]rdquo (Martins Terra
2001 p351)
Na religiatildeo dos indo-europeus DEIWOS eacute sempre o ser transcendente (celeste) No
entanto essa transcendecircncia estaacute sempre proacutexima do divino como o autor da vida o
Deus Pai Segundo Martins Terra o antigo nome divino em latim era DIESPITER uma
forma primitiva derivada de DEIWOS ou de Dieus ldquonas invocaccedilotildees mais primitivas de
Zeus jaacute encontramos o vocativo Zeu paacuteter Em latim a palavra pater associa-se
intimamente com a palavra Deus e formava ela um soacute nome DIESPITER Iovispater
vocativo Juppiter em uacutembrio Jupater em iliacuterico Deipaturosrdquo (Martins Terra 2001 p337)
Como suporte agrave teoria da invocaccedilatildeo de Zeus partes do hino de Cleantes esclarecem
esse conceito
[]32 ndash Ah Zeus benfeitor universal 33 ndash Salva os homens de sua ignoracircncia funesta 34 ndash Purifica oacute Pai suas almas desta ignoracircncia e concede-lhes atingir 35 ndash O pensamento que te guia para tudo governares com justiccedila Somente Zeus pode salvar o homem de seus pendores funestos E o homem pode com confianccedila invocar a Zeus porque ele eacute Pai e dele com efeito todos noacutes nascemos 1 ndash Oacute o mais glorioso dos imortais sob mil nomes onipotente para sempre 2 ndash Zeus senhor da natureza que com a lei governas todas as coisas 3 ndash Salve Porque eacute a Ti que todos noacutes mortais temos o direito de invocar 4 ndash Visto que de Ti todos noacutes nascemos (Martins Terra2001 p332-333)
Esse hino mostra que Zeus natildeo era invocado apenas como rei senhor governador
mas tambeacutem como um Deus pessoal num relacionamento familiar um Deus Pai2
Conforme Martins Terra invocar a ldquodivindade sob o nome de pai eacute um dos fenocircmenos
primordiais na histoacuteria das religiotildeesrdquo Martins Terra ainda observa que nas liacutenguas indo-
europeias essa forma de invocaccedilatildeo fica mais evidente ainda nas palavras Dyaus pitatilde
Zeugraves pater Deipaturos e Iuppiter (Martins Terra 2001 pg433) Segundo Martins Terra
ldquoem Homero a invocaccedilatildeo de Zeus no vocativo aparece quase sempre unida agrave palavra
pai Zeucirc paacuteterrdquo (Martins Terra 2001 p 435)
Diferentemente dos povos antigos a atividade criadora de Deus no livro do Gecircnesis
eacute sempre cosmoloacutegica onde a ordem e a beleza satildeo os temas centrais Do caos Deus
cria a ordem o universo que culmina com a criaccedilatildeo do homem como o aacutepice da obra da
criaccedilatildeo conforme vemos no Gecircnesis onde ldquoDeus viu que isso era bom (1 10 13 18 21
25)rdquo e ainda segundo o texto sagrado (131) temos a seguinte conclusatildeo ldquoIsso era
2 Segundo Vernant Zeus eacute Pai dos deuses e dos homens natildeo porque tenha gerado ou criado todos os
seres mas porque exerce autoridade absoluta sobre todos como um chefe de famiacutelia sobre seu clatilde (Cf Vernant 2006 p33)
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muito bomrdquo Segundo P Grelot ldquoa histoacuteria sagrada sacerdotal Gn 1-24ardquo - das origens do
mundo ao tempo em que Israel viveu no deserto - foi escrita no tempo em que o povo
estava no exiacutelio (entre 587 e 538 aC) Babilocircnia eacute o lugar onde se venera o deus Marduk
e de onde provecircm as narrativas mitoloacutegicas de como os deuses criaram o mundo Para
proteger seus irmatildeos dos mitos babilocircnicos o autor sagrado teria escrito a primeira
narraccedilatildeo da criaccedilatildeo Contudo a narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo difere teologicamente dos
mitos babilocircnicos e dos povos antigos conforme relata Grelot
[] O universo eacute de certa forma um templo gigantesco que Deus levanta para a sua gloacuteria Quando o templo estaacute pronto ele coloca nele o homem criado ldquoagrave sua imagem e semelhanccedilardquo (126) Fica assim proibido representar a divindade por meio de imagens porque estas lembrariam o culto prestado a criaturas divinizadas (Ex 20 3-6) essa proibiccedilatildeo natildeo tem paralelo em nenhum povo da antiguidade A uacutenica imagem permitida de Deus eacute o rosto humano Mas se Deus eacute representado agrave imagem de uma pessoa viva de um homem que fala para fazer as coisas existirem (ldquoDeus disserdquo) nem por isso o homem eacute divinizado ldquoimagem de Deusrdquo deve ele voltar-se para aquele cujos traccedilos reflete (Grelot 1973 p 43)
Da mesma forma para Heinrich Krauss e Max Kuumlchler comparar o relato biacuteblico da
criaccedilatildeo do homem com a mitologia sumeacuterio-babilocircnia ou egiacutepcia serve para demonstrar
diferenccedilas importantes entre eles Na mitologia pagatilde o acircmago de toda a criaccedilatildeo estaacute
mais voltada ao nascimento dos deuses (teogonias) Por sua vez a criaccedilatildeo do homem
estaacute ligada a esses relatos apenas por uma linha tecircnue Para Krauss e Kuumlchler somente
num periacuteodo bem posterior ao nascimento dos deuses eacute que o ser humano eacute criado
quase que por um acidente ou entatildeo para servir como trabalhador escravo dos deuses
Em alguns aspectos notamos que haacute semelhanccedilas entre a criaccedilatildeo do homem no relato
do Gecircnesis e as mitologias pagatildes quando observamos que no Gecircnesis a criaccedilatildeo do
homem tambeacutem se daacute por uacuteltimo Contudo conforme Krauss e Kuumlchler diferentemente
dos antigos mitos no Gecircnesis a criaccedilatildeo do homem se daacute por meio de um processo
premeditado Eacute possiacutevel por analogia observarmos que na narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo
tanto o cosmos quanto o homem satildeo criados num ambiente onde o respeito e a
admiraccedilatildeo pelo ser humano satildeo evidentes como podemos observar na poesia do Salmo
8 4-9 que diz
Quando vejo o ceacuteu obra dos teus dedos a lua e as estrelas que fixaste que eacute um mortal para dele te lembrares e um filho de Adatildeo para vires visitaacute-lo E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de gloacuteria e beleza Para que domine as obras de tuas matildeos sob seus peacutes tudo colocaste ovelhas e bois todos e as feras do campo tambeacutem a ave do ceacuteu e os peixes do mar
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quando percorre ele as ondas dos mares (Krauss e Kuumlchler 2007 p 48-49)
A relaccedilatildeo do homem com os deuses nas mitologias antigas eram caracterizadas
pelas forccedilas da natureza Os diversos deuses exerciam poderes sobre tais forccedilas que por
sua vez determinavam o destino do homem ldquoNa tempestade e na brisa na chuva e na
seca viam-se igualmente manifestaccedilotildees de poderes divinos tal como no amor e no
matrimocircnio na vida e na morte na violecircncia e na guerra no crescimento e na destruiccedilatildeordquo
(Krauss e Kuumlchler 2007 p 61) Todos os acontecimentos da vida dos homens eram
resultados da influecircncia de uma ou mais divindades conforme as suas funccedilotildees dentro do
panteatildeo Alguns deuses eram considerados de boa iacutendole poreacutem outros eram
considerados perversos e maus e por essa razatildeo deveriam ser lisonjeados atraveacutes de
rituais de sacrifiacutecios ou praacuteticas maacutegicas
Krauss e Kuumlchler apesar de descreverem os deuses mitoloacutegicos da antiguidade com
poderes sobrenaturais e sobre-humanos sobre o mundo ressaltam que tais deuses
mesmo o chamado deus criador da mitologia antiga eram limitados agrave esfera deste
mundo ou seja natildeo tinham poder absoluto nem garantido para sempre Por outro lado o
Deus dos relatos biacuteblicos da criaccedilatildeo eacute diferente Ele natildeo faz parte deste mundo mesmo
que aqui esteja presente e sempre atuando Tambeacutem natildeo estaacute sujeito agrave limitaccedilatildeo das
forccedilas da natureza e tem poder para conduzir soberanamente o destino dos seres
humanos O Deus criador do Gecircnesis natildeo sofre oposiccedilatildeo de divindade alguma a natildeo ser
em pequena escala dos seres humanos ldquoA diferenccedila entre o monoteiacutesmo judeu-cristatildeo
ou islacircmico de um lado e o politeiacutesmo de outro natildeo eacute uma questatildeo de nuacutemero (um
uacutenico Deus ou diversos deuses) mas da concepccedilatildeo do que eacute Deusrdquo (Krauss e Kuumlchler
2007 p61)
No tocante agraves narrativas e mitos antigos da criaccedilatildeo Vicente Artuso desenvolve um
trabalho no qual compara o relato da criaccedilatildeo no livro do Gecircnesis com a epopeia de Atra
Asis e os demais mitos antigos da criaccedilatildeo e conclui que o relato da criaccedilatildeo no Gecircnesis eacute
mais otimista em relaccedilatildeo aos mitos antigos Embora por um lado haja algumas
semelhanccedilas na forma da criaccedilatildeo do homem conforme jaacute foi visto acima por outro lado
elas estatildeo muito distantes Artuso observa que nessa epopeia o homem eacute feito a partir
do barro e do sangue de um deus decaiacutedo Na Biacuteblia o homem proveacutem do barro e do
sopro de Deus que eacute a fonte da vida Na epopeia o ser humano eacute criado para livrar os
deuses de seu castigo na Biacuteblia o homem eacute criado por Deus de uma forma totalmente
desinteressada Na epopeia o ser humano participa da divindade assim como na Biacuteblia
Contudo Artuso pontua que mesmo que em ambos os relatos da criaccedilatildeo o homem
participe da divindade na epopeia fica evidente que o homem participa da divindade de
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um deus decaiacutedo sendo que no relato da criaccedilatildeo da Biacuteblia o homem eacute criado agrave imagem
e semelhanccedila do Criador No Gecircnesis o homem eacute criado pelo Deus uacutenico que do caos
traz todas as coisas a existecircncia cria o homem e o faz participante de sua obra quando
ordena ao ser humano o crescimento a multiplicaccedilatildeo e que o mesmo exerccedila o domiacutenio
sobre todas as coisas criadas (Artuso 2009 p80-81)
22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO
No Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai3 J Jeremias relaciona
que isso ocorre apenas quinze vezes conforme podemos verificar nos seguintes textos
ldquoDt 326 2 Sam 714 (textos paralelos em 1 Cron 1713 22 10 286) Sl 68 6 8927 Is
6316 (duas vezes) 647 Jr 3419 31 9 Mal 1 6 2 10 (Jeremias 2005 p19) Mesmo
esses textos quando relacionados a Deus como Pai indicam que Deus eacute primeiramente
o Senhor como diz o Salmo 33 8 ldquoTema o Senhor todo o mundo e tremam diante dele
todos os habitantes da terra porque ele fala e acontece ele ordena e aiacute estaacuterdquo (Jeremias
2008 p269) Como Senhor Deus tambeacutem se compadece de seus filhos como um Pai
conforme o Salmo 10313 (Jeremias 1977 p13) Aleacutem de Senhor o Pai tambeacutem eacute
honrado como Criador ldquoNatildeo eacute ele porventura teu pai que te fez seu que te formou e te
consolidourdquo (Dt 326) ldquoPorventura natildeo eacute um o Pai de todos noacutes Natildeo eacute um soacute Deus que
nos criourdquo(Ml 2 10) Observa-se que o reduzido uso do conceito de Deus como Pai no
Antigo Testamento pode estar relacionado ao uso abusivo que os povos cananeus faziam
desse termo em seus cultos de fertilidade (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo
Testamento 1998 p 6)
A relaccedilatildeo de Deus como Pai no Antigo Testamento eacute diferente do conceito de
paternidade dos povos antigos As diferenccedilas satildeo fundamentais visto que Deus natildeo eacute um
ancestral da raccedila humana como podemos ver nas palavras de J Jeremias
O fato de que no Antigo Testamento Deus natildeo eacute o ancestral mas o criador natildeo eacute a menor E que o que eacute ainda mais importante no antigo Testamento a paternidade divina atribui-se soacute a Israel e de uma maneira que natildeo encontra nenhum equivalente Eles tecircm uma relaccedilatildeo toda particular com Deus isto eacute um povo escolhido dentre todos os povos para ser o filho primogecircnito de Deus (Jeremias 1977 p13)
3 ldquoO AT emprega a palavra pai () quase que exclusivamente (c De 180 vezes) num sentido secular e soacute
muito ocasionalmente (15 vezes) num sentido religioso Como acontece no AT assim tambeacutem na literatura do judaiacutesmo palestinense podemos notar reserva marcante no emprego da palavra num sentido religioso Soacute mais tarde na literatura do judaiacutesmo da diaacutespora eacute que achamos o emprego mais frequente do nome Pai com referecircncia a Deusrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
20
No contexto biacuteblico a histoacuteria de Israel eacute notoriamente descrita colocando Israel
sempre como o povo eleito e exclusivo de Deus e essa eleiccedilatildeo eacute histoacuterica e concreta A
paternidade divina4 pode ser considerada histoacuterica quando tambeacutem atestamos que o
ecircxodo do Egito a peregrinaccedilatildeo no deserto e a conquista da terra de Canaatilde satildeo tratados
como fatos histoacutericos fatos esses que tornam Israel como o filho primogecircnito conforme a
eleiccedilatildeo divina Alguns textos corroboram esse pensamento entre os quais podemos
destacar ldquoFilhos sois do SENHOR vosso Deusrdquo (Dt 141)
A paternidade divina no Antigo Testamento natildeo eacute privileacutegio do indiviacuteduo mas sempre
privileacutegio da coletividade e juridicamente da figura do rei Com efeito Deus eacute sempre visto
como o ldquoPai do Reirdquo (2 Sam 7 14 Sl 8927) e ldquoPai de Israel como naccedilatildeordquo (Jr 34 3 19
319 Ml 16 Is 6315 657) J Jeremias faz questatildeo de enfatizar a respeito da
paternidade divina que em todo o Antigo Testamento natildeo encontramos nenhuma
passagem na qual Deus seja interpelado como Pai por um indiviacuteduo mas isso eacute sempre
realizado pela coletividade (Jeremias 2008 p115) Quando observamos as expressotildees
ldquoTu eacutes nosso Pairdquo (Is 6316) e ldquoTu eacutes meu Pairdquo (Jr 34) verificamos que as mesmas se
tratam de ldquosentenccedilas afirmativas e natildeo da invocaccedilatildeo de Deus usando o nome de Pai
para elerdquo (Jeremias 2008 p115) Deus natildeo eacute Pai porque gera de forma fiacutesica mas
porque chamou os filhos de Israel para ser um povo constituiacutedo de homens livres eacute Pai
porque ama escolhe e guia seus filhos por um reto caminho segundo a lei Dessa forma
mesmo fazendo pouco uso do termo Pai Israel comeccedilou a realizar o que poderiacuteamos
chamar de a grande revoluccedilatildeo do siacutembolo paterno
Em relaccedilatildeo ao siacutembolo de Deus como Pai Robert Hamerton-Kelly seguindo a
mesma linha de pensamento de J Jeremias concorda que no Antigo Testamento a
designaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rara e as poucas vezes em que isso ocorre natildeo eacute no
sentido literal do termo Hamerton Kelly faz referecircncia a dois tipos de simbolismo que
aparecem na Biacuteblia concernentes agrave figura de Deus como Pai um simbolismo indireto e
outro direto O simbolismo indireto ocorre por meio de uma associaccedilatildeo enquanto que o
simbolismo direto eacute feito por intermeacutedio de uma metaacutefora ou alegoria No modo indireto
Deus eacute mostrado claramente em conexatildeo com os pais humanos Ele eacute o ldquoDeus dos paisrdquo
e a associaccedilatildeo aqui eacute por intermeacutedio da identificaccedilatildeo de Deus como chefe No modo
direto a Biacuteblia usa a alegoria ou a metaacutefora Deus eacute como um pai ou Deus eacute nosso Pai
(Hamerton-Kelly 1979 p20-21)
4 ldquoA descriccedilatildeo de Deus como Pai se refere no AT apenas as Seu relacionamento com o povo de Israel
(Dt326 Is6316 duas vezes 648 Jr319 Ml16 210) ou com o rei de Israel (2Sm 714 par 1 Cr 1713 2210 286 Sl 8926 cf 27) Nunca se refere a qualquer indiviacuteduo () ou a humanidade em geralrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
21
No Antigo Testamento o simbolismo indireto eacute usado na transiccedilatildeo do Pai dos
deuses para o Deus dos pais e do Deus dos pais para o Deus de Moiseacutes (Hamerton-
Kelly 1979 p21-28) Qualquer consideraccedilatildeo sobre o entendimento biacuteblico de Deus no
periacuteodo preacute-mosaico deve ser relacionado aos deuses adorados pela religiatildeo dos
cananeus ancestral da religiatildeo dos hebreus os quais eram denominados em Canaatilde pelo
nome ldquoEl5rdquo o chefe do panteatildeo e tambeacutem progenitor dos deuses na mitologia cananita
(Martins Terra 1987 p11) De acordo com a tradiccedilatildeo Yahweh era ldquoo Deus dos Paisrdquo e
Abraatildeo pode provavelmente ter sido considerado ldquopai dos deusesrdquo como uma descriccedilatildeo
de sua possiacutevel divindade Entre os outros povos existiam vaacuterios deuses que eram vistos
como figuras paternas como Anu (deus do ceacuteu) Enlil (deus do vento e da tempestade) e
Ea (deus da aacutegua) os quais tinham seu proacuteprio santuaacuterio e eram patronos de suas
respectivas cidades (Hamerton-Kelly 1979 p21-23)
Os compiladores das sagas patriarcais do Gecircnesis acreditavam que os pais
adoravam El como El Elyon El Olam El Roi El Shaddai e El Betel Esses nomes
compostos mostram que a adoraccedilatildeo era estabelecida em um lugar fiacutesico por intermeacutedio
de alguma outra divindade ou seja os lugares de adoraccedilatildeo eram relacionados a um
deus Embora natildeo possa ser encontrada a praacutetica monoteiacutesta entre os patriarcas pode-se
assumir que os deuses distintos estavam associados em algum estaacutegio da tradiccedilatildeo
sendo identificados como manifestaccedilotildees do grande deus El - o pai dos deuses Mesmo
que natildeo seja possiacutevel falar de um preacute-Mosaico ldquoEl-monoteiacutesmordquo 6 eacute possiacutevel falar de um
deus supremo que eacute a fonte e origem de todas as coisas o pai dos deuses e da
humanidade que eacute o ponto de contato com o monoteiacutesmo Javista (Hamerton-Kelly 1979
p24-25)
Outro ponto de contato entre a teologia Preacute-Mosaica e Mosaica pode ser
encontrado no fato que cada um dos grandes patriarcas tinha um deus associado com
eles mesmos o ldquoEl de Abraatildeordquo (Gn 31 42) o ldquoTemor de Isaquerdquo (Gn 31 53) o ldquoForte de
Jacoacuterdquo (Gn 49 24-25) os quais tinham como sinocircnimos o ldquoDeus (El) de meu pairdquo Por fim
5 A palavra El ocorre 238 vezes no Antigo Testamento Eacute uma palavra de origem protossemiacutetico ou
semiacutetico-comum para designar Deus em todas as liacutenguas semiacuteticas Ele eacute o Deus-patriarca criador anciatildeo cujas forccedilas extraordinaacuterias criaram e povoaram o ceacuteu El eacute ldquoum Deus pessoardquo de cada patriarca ele eacute ldquoo Deus dos paisrdquo familiar uacutenico e universal mas tambeacutem eacute o Deus tribal (Cf Martins Terra em Elohim o Deus dos Patriarcas p 19 37 39 51)
6 Surge um problema relacionado a este assunto eacute possiacutevel falar de monoteiacutesmo neste periacuteodo Alguns
pesquisadores acham difiacutecil o conceito de um monoteiacutesmo preacute-mosaico ou mesmo de uma ideia de adoraccedilatildeo exclusiva a Deus mesmo que o texto do livro do Ecircxodo 34 11-26 trate com detalhes este tema ainda assim este pensamento parece ser uma ideia muito complexa uma vez que muitos estudiosos observam que o referido texto pode ter sido redigido em uma eacutepoca tardia ou seja ldquouma espeacutecie de seleccedilatildeo ou resumo a partir de outros textosrdquo (Cruumlsemann 2002 p167-169) Segundo Cruumlsemann o Pentateuco deve ter surgido entre o exiacutelio e o inicio da eacutepoca helenista para ser mais objetivo no periacuteodo Persa (cf Cruumlsemann 2002 p454)
22
vecirc-se que o deus eacute identificado mais pelo seu relacionamento com uma pessoa do que
com um lugar ou um fenocircmeno natural isto eacute muda-se o simbolismo do divino de lugar
para pessoa deixando claro que a Revelaccedilatildeo de Deus estaacute no domiacutenio das relaccedilotildees e
accedilotildees humanas mais especificamente nas relaccedilotildees de familia (Hamerton-Kelly 1979
p25-27)
Aleacutem disso observamos que sob a influecircncia de Moiseacutes as tribos de Israel foram
unificadas em fidelidade ao Deus Yahweh A identidade de Yahweh estaacute fortemente
relacionada com ldquoos paisrdquo como se vecirc na revelaccedilatildeo de Deus a Moiseacutes no monte Horebe
[hellip] Moiseacutes Moiseacutes [hellip] Eu sou o Deus de teus pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute [hellip] Iahweh disse Eu vi Eu vi a miseacuteria do meu povo que estaacute no Egito Ouvi seu grito por causa dos seus opressores pois Eu conheccedilo as suas anguacutestias Por isso desci a fim de libertaacute-lo da matildeo dos egipcios e para fazecirc-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta terra que mana leite e mel [hellip] Disse Deus a Moiseacutes Eu sou aquele que eacute Disse mais Assim diraacutes aos israelitas EU SOU me enviou ateacute voacutes [hellip] Iahweh o Deus o Deus de vossos pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute me enviou ateacute voacutes Eacute o meu nome para sempre e eacute assim que me invocaratildeo de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (Ex 3 1-15)
Iahweh eacute o Deus de Israel isso fica evidente na foacutermula ldquoElohecirc Israelrdquo (Martins
Terra 1987 p 82) O ponto central de toda a teologia do Antigo Testamento eacute que o
Deus de Israel eacute o uacutenico e verdadeiro Quando os autores sagrados comparam Iahweh
com os deuses de outras naccedilotildees (Dt 4 34 Sl 11 3-5) eacute para fortalecer a convicccedilatildeo dos
israelitas de que haacute somente um Deus tanto ldquoem cima no ceacuteurdquo como ldquoembaixo na terrardquo
(Dt 439) Para Martins Terra o ldquoemprego de Elohim7 natildeo pode ser interpretado como
reliacutequia de um antigo politeiacutesmo Israelitardquo ou seja Elohim se converte em sinocircnimo de
Iahweh o Deus uacutenico e verdadeiro
O nome divino de Elohim que se radica na liacutenguagem religiosa de todos os povos semitas do Antigo Oriente Proacuteximo reconhecido e confessado por Israel como o Deus pessoal e uacutenico ajudou o Antigo testamento a entender e proclamar o Deus da histoacuteria da Salvaccedilatildeo como Deus do universo como lemos na primeira linha da Biacuteblia ldquoNo principio Elohim criou os ceacuteus e a terrardquo (Martins Terra 1987 p 85)
Fazendo uma transiccedilatildeo do simbolismo indireto para o simbolismo direto
mostraremos o pai (matildee) como uma alegoria ou metaacutefora para Deus Vale observar que a
figura da matildee faz parte desta anaacutelise uma vez que esse simbolismo natildeo a exclui apenas
7 A palavra Elohim pode ser um desenvolvimento do termo Eloah (Deus) como uma forma de
representaccedilatildeo da pluralidade de pessoas existentes na divindade (Trindade) ou ainda a terminaccedilatildeo plural pode ser descrita como um plural de majestade natildeo com a intencionalidade de ser usado na forma de plural para referir-se a Deus Isto pode ser averiguado quando Elohim eacute usado com o verbo no singular bem como os adjetivos e pronomes tambeacutem no singular (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento 1998 p68-72)
23
inclui sua presenccedila No simbolismo direto os pais satildeo muito mais do que meros sinais da
natureza e presenccedila de Deus O profeta Oseacuteias nos mostra um Deus que ao mesmo
tempo em que eacute Pai tem para com Israel seu filho afetos que satildeo proacuteprios da matildee A
ternura os cuidados e o afeto de Deus em Oseacuteias satildeo comparados agraves caracteriacutesticas
proacuteprias que uma matildee tem por seus filhinhos
Quando Israel era menino eu o amei e do Egito chamei meu filho (hellip) Fui eu contudo quem ensinou Efraim a caminhar eu os tomei pelos braccedilos mas natildeo reconheceram que eu cuidava deles Com viacutenculo de amor eu os atraiacutea com laccedilos de amor eu era para eles como os que levantavam uma criancinha contra o seu rosto eu me inclinava para ele e o alimentava (Os 11 1-4)
Nesse texto vemos a ideia de que Israel era filho de Deus e que essa filiaccedilatildeo eacute
usualmente associada ao periacuteodo do deserto e eacute entendida como uma experiecircncia da
paternidade de Iahweh Contudo observamos no texto que Iahweh inclinava-se para
alimentaacute-los expressatildeo essa que denota uma funccedilatildeo especificamente desempenhada
pela figura materna Aleacutem disso em uma passagem do livro de Nuacutemeros Moiseacutes de
uma forma impliacutecita afirma que Deus eacute como uma matildee para Israel
[] Moiseacutes sentiu-se grandemente desgostoso e disse a Iahweh ldquoPor que fazes mal a teu servo Por que natildeo achei graccedila a teus olhos visto que me impusestes o encargo de todo este povo Fui eu porventura que concebi todo este povo Fui eu que o dei agrave luz para que me digas Leva-o em teu regaccedilo como a ama leva a crianccedila no colo agrave terra que prometi sob juramento a seus pais (Num 1110b-
12)rdquo
Esse texto soacute pode referir-se a Deus visto que Moiseacutes natildeo era a matildee daquele
povo portanto teoricamente natildeo tinha a responsabilidade de ser o protetor e nem o
provedor deles em momentos de crise Na visatildeo de Moiseacutes Deus era o responsaacutevel pelos
cuidados essenciais do povo assim como uma matildee cuida de seus filhos Dessa forma a
figura materna tambeacutem pode ser usada como uma designaccedilatildeo para Deus (Hamerton-
Kelly 1979 p 39-40)
Haacute ainda outros exemplos em que a imagem de Deus pode ser comparada a de
uma mulher que cuida de seus filhos como lemos em Isaiacuteas 4915
Por um acaso uma mulher se esqueceraacute de uma criancinha de peito Natildeo se compadeceraacute ela do filho do seu ventre Ainda que as mulheres se esquecessem
24
eu natildeo me esqueceria de ti
Na simbologia em que Deus exerce as funccedilotildees de provedor protetor e mantenedor
de seu povo encontramos textos em que Ele exerce funccedilotildees ora como Pai e ora Matildee
Segundo Hamerton-Kelly no livro do profeta Isaiacuteas (66 10-13) encontramos uma
imagem de Deus como a de uma matildee bem como em Deuteronocircmio 131 e 85 em que
encontramos em ambos os textos a imagem de Deus que como um homem (pai) educa
os seus filhos pelo caminho correto Portanto numa visatildeo simboacutelica Deus eacute apresentado
ora como pai e ora como matildee do povo (Hamerton-Kelly 1979 p40)
Alegrai-vos com Jerusaleacutem exultai nela todos os que a amais regozijai-vos com ela todos os que por ela estaacuteveis de luto pois sereis amamentados e saciados
pelo seu seio consolador pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo Com efeito assim diz Iahweh Eis que trarei a Paz como um rio e a gloacuteria das naccedilotildees como uma torrente transbordante Sereis amamentados sereis carregados sobre ancas e acariciados sobre os joelhos Como a uma pessoa que a sua matildee consola Assim eu vos consolarei Sim em Jerusaleacutem sereis consolados (Is 66 10-13)
Como tambeacutem no deserto onde vistes que o SENHOR vosso Deus nele vos levou como um homem leva seu filho por todo o caminho que andastes ateacute chegardes a este lugar Deuteronocircmio 131 Sabes pois no teu coraccedilatildeo que como um homem castiga a seu filho assim te castiga o SENHOR teu Deus Deuteronocircmio 85
Mesmo diante de vaacuterios textos em que observamos Deus exercendo figuradamente
as funccedilotildees de pai e matildee natildeo temos um texto em que Deus seja diretamente chamado de
matildee e nem mesmo Jesus jamais invocou a Deus como matildee Segundo Matthias Grenzer
a razatildeo disso encontra-se no fato de Deus ser diversas vezes tratado como o esposo ou
o amado enquanto que Israel eacute descrito como a virgem noiva mulher amada ou ateacute
mesmo como prostituta (cf Jr 2-3 Ez16 Os 2 e Ct) Dentro desse imaginaacuterio a figura de
Deus eacute vista como a parte masculina enquanto que a naccedilatildeo de Israel ocupa a parte
feminina sendo assim essa seria a razatildeo de Deus ldquoser chamado somente de Pai e natildeo
de matildeerdquo (Grenzer 2009 p 182)
Ainda em relaccedilatildeo agrave paternidade de Deus no Antigo Testamento Sabugal observa
que a mesma eacute sempre vista nos seguintes aspectos Deus como o Pai do povo de Israel
(Is 6316) Pai do rei (2 Sam 7 14 Sl 8927) Pai dos justos israelitas (Sab 216) e
tambeacutem como Rei Messiacircnico (2Sm 7 12-16) (Sabugal 1985 p370)
25
Yahveh com efeito eacute o Pai de Israel por haver resgatado ltltdesde sempregtgt (Is 6316b) primeiro do Egito (Jer 34 cf Ez 23 319) e depois da Babilocircnia (cf Jer 319) tambeacutem por haver-lhes criado mediante a alianccedila (Dt 366 Mal 210 cf 317) conduzindo-o pelo deserto e corrigindo-o ltltcomo um pai a seus filhosgtgt (Dt 131 85) provando-o paternalmente (Sab 1110) e paternalmente amando-o (cf Mal 317) pois ele fez o seu povo que o confessa como Pai (Is 6319 647) e como tal deve honrar (Mal 16) Israel eacute consequentemente o filho de Deus seu primogecircnito (Ex 422 Jer 319) e ltlt filho tatildeo amadogtgt (Jer 3120) a quem desde o Ecircxodo elegeu por pai (Nuacutem 1112 Dt 32 518) e modelou (cf Is 647) por ter-lhes amado (Os 111) ltlt com um amor eternogtgt (Jer 313) tornando-se assim mesmo os israelitas a raiz da eleiccedilatildeo divina realizada na alianccedila do Sinai ltlt filhos de Yahvehgtgt (cf Dt 326 Mal 317) como membros de ltltum povo consagrado a seu Deusgtgt (Dt 14 1-2 Sal 7315) E certo que como ltltfilhos rebeldesgtgt (Is 30 19) esqueceram ltlto Deus que os criougtgt (Jer 321 Dt 3218) mas se como ltltfilhos apoacutestatasgtgt ouvirem a exortaccedilatildeo e converterem-se (Jer 3 1422) seratildeo novamente chamados ltlt filhos do deus vivogtgt (Os 21) que mostrando-se ltltindulgente para com eles como um pai com um filho que lhe servegtgt (Mal 317) uma vez mais os salvaraacute Israel segue sendo o ltltfilho amadogtgt e ltltmenino mimadogtgt de Yahveh (Jer 319) (Sabugal 1985 p 371)
Em suma podemos observar que o conceito que os israelitas tinham de Deus como
Pai defendido por J Jeremias fundamenta-se na tese de que a paternidade de Deus
sobre Israel eacute diferente da paternidade divina entre os demais povos antigos De fato o
Deus dos israelitas natildeo eacute um pai por geraccedilatildeo fiacutesica (Sabugal 1985 p371) e nem mesmo
o progenitor dos deuses e dos homens (Sabugal 1985 p368) como criam os demais
povos antigos Contudo observamos que a figura de Deus metaforicamente exerce
funccedilotildees que satildeo em suas origens de ofiacutecio materno e de ofiacutecio paterno
Realmente o Antigo Testamento eacute rico em metaacuteforas para Deus Christopher J H
Wrighth nota que entre as imagens humanas para Deus no Antigo Testamento
encontramos que ele eacute rei juiz e redentor Tambeacutem Yahweh eacute comparado a um pastor
soldado ou a um agricultor Yaweh pode ser chamado tambeacutem de rocha abrigo escudo
esconderijo leatildeo fogo ou uma fonte de aacutegua (Wright 2007 p 22)
Uma outra maneira de se observar a figura de Deus como Pai no Antigo Testamento
eacute atraveacutes dos nomes teofoacutericos Geza Vermes vecirc que a representaccedilatildeo de Deus como Pai
eacute um elemento baacutesico na Teologia do Antigo Testamento Vermes cita trecircs nomes como
exemplo os quais ldquoproclamam uma relaccedilatildeo de parentesco entre Deus e os membros
individuais do povo Judeurdquo 8 Tais nomes como Abiel (Deus eacute meu Pai) Eliab (meu Deus
eacute Pai) Abijah (Yah [Yahweh Jeovaacute eacute meu Pai] segundo Vermes atestam o conceito de
que Deus era invocado como Pai no judaiacutesmo veterotestamentaacuterio (Vermes 2006 p 259)
9 Sobre a imagem de Deus Pai na Biacuteblia Vermes concorda que ela natildeo eacute tatildeo
8 Acredito que com o termo parentesco Vermes natildeo estaacute se referindo a ancestralidade conforme
debatemos acima baseado no pensamento de J Jeremias 9 Matthias Grenzer tambeacutem coloca esses nomes citados por Vermes como uma forma de ver ldquoo
comportamento do Senhor Deusrdquo comparado a atitude de um Pai humano Grenzer ainda menciona o nome do sobrinho de Davi Joab cujo significado eacute ldquoJaveacute (Yahweh) eacute Pairdquo (Cf Grenzer 2009 p 180)
26
abundantemente atestada nas Escrituras contudo a familiaridade dessa imagem eacute
manifesta na ldquovariedade de nomes teofoacutericos que conteacutem o elemento ab (Pai)rdquo Sobre os
nomes teofoacutericos ele diz ainda que
Eles empregam tanto os tiacutetulos divinos do hebraico YH (W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai) ou YoAB (Yo eacute o Pai) Do mesmo modo temos Abbi eL e ELIab (Deus eacute o Pai) em nomes judaicos da era preacute-exiacutelica e do Segundo Templo Abram e Abiram (Pai excelso e Meu Pai eacute exaltado) que podem ser rastreados agrave idade patriarcal representam o mesmo tipo Enquanto as nuances exatas do termo ldquoPairdquo permanecem vagas natildeo pode haver duacutevida de que mesmo em niacutevel individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de famiacutelia Essa antiga atitude subjacente eacute explicitamente expressa principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da naccedilatildeo judaica Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusatildeo a eles como seus filhos (Vermes 1995 p158-159)
Para Christopher Wright a ocorrecircncia desses nomes metafoacutericos no Antigo
Testamento demonstra como a ideia de Deus como Pai era bem aceita nesse periacuteodo
Para esse autor pais que davam nomes aos filhos como Joabe (Yahweh eacute meu pai) ou
Abiel (Deus eacute meu Pai) tinham algum conhecimento metafoacuterico de Deus como Pai
Portanto para Israel o conhecimento de Deus como Pai pode ser mais bem
compreendido sob o ponto de vista que para eles Deus eacute comparado com um pai
humano que disciplina mas ensina seus filhos Como Pai ele tambeacutem se compadece
carrega adota os sem-teto e os oacuterfatildeos enfim ele eacute o Pai em que podemos encontrar
perfeita seguranccedila (Wright 2007 p24-25 38-39)
27
3 O JESUS HISTOacuteRICO
Depois de investigarmos a relaccedilatildeo de Deus como ldquoPairdquo entre os povos antigos
aproximamo-nos do ponto central da pesquisa Jesus de Nazareacute o qual segundo J
Jeremias trouxe-nos uma nova forma ou seja deu um novo enfoque sobre o termo Pai
quando dirigido a Deus Para um melhor embasamento sobre a relaccedilatildeo de Jesus com
Deus Pai buscaremos entender o homem chamado Jesus dentro das pesquisas
modernas sobre ldquoa vida de Jesusrdquo bem como das fontes evangeacutelicas disponiacuteveis no Novo
Testamento Procurar conhecer Jesus partindo do meio social em que ele esteve inserido
com certeza torna a pesquisa sobre o Cristo mais profunda e interessante uma vez que
Jesus antes de ser conhecido e pregado como Cristo foi um cidadatildeo judeu que viveu na
Galileia para ser mais preciso na pequena e humilde Nazareacute
31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO
Jesus de Nazareacute constitui personagem histoacuterico da maior importacircncia a comeccedilar pelo proacuteprio calendaacuterio hoje universal baseado na era cristatilde Uma parte consideraacutevel da humanidade professa a feacute cristatilde e outra parte considera Jesus como um profeta Para aleacutem do Cristianismo e do Islamismo Jesus constitui para outros crentes ou para agnoacutesticos e ateus uma referecircncia fundamental pela diferenccedila contraste ou oposiccedilatildeo No entanto o Jesus da histoacuteria aquele homem galileu que viveu haacute dois mil anos ainda constitui um grande desconhecido O Cristo da feacute dominou por muitos seacuteculos as reflexotildees sobre este homem de singular significaccedilatildeo As paixotildees das discussotildees teoloacutegicas foram muitas mas o homem Jesus foi tocado pelos estudiosos apenas nos uacuteltimos dois seacuteculos
(Funari 2009 p 7 in Chevitarese A L Cornelli G)
A busca pelo Jesus da histoacuteria tem mais de 200 anos No final do seacuteculo XVIII um
pequeno nuacutemero de bravos europeus comeccedilou a aplicar criacutetica literaacuteria a livros histoacutericos
do Novo Testamento Segundo E P Sanders a pesquisa sobre Jesus escrita durante
esse periacuteodo de 200 anos por estudiosos seacuterios e determinados trouxe resultados
bastante diversificados sobre o assunto o que levou muitos a pensar que na realidade
natildeo sabemos nada sobre o Jesus da histoacuteria No entanto essa eacute uma reaccedilatildeo exagerada
uma vez que sabemos muitas coisas O problema consiste em saber conciliar os nossos
conhecimentos com as nossas esperanccedilas e aspiraccedilotildees a respeito da vida e ministeacuterio de
Jesus (Sanders 2005 p21)
A pesquisa sobre a vida de Jesus pode ser dividida em cinco fases conforme as
descrevem Gerd Theissen e Annette Merz A primeira fase tem como principais
representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-
28
1874) 10 Reimarus um professor de liacutenguas orientais de Hamburg teve seus escritos
principais publicados somente apoacutes a sua morte por G E Lessing o qual a partir de
1774 comeccedilou a publicar as partes mais importantes do ensaio sobre ldquoApologia ou
Escritos de Defesa para os adoradores Racionais de Deusrdquo Em 1778 ele tinha publicado
sete fragmentos da obra quando iniciou o tratamento da vida de Jesus em perspectiva
puramente histoacuterica (Theissen amp Merz 2004 p21) Conforme Albert Schweitzer estes
satildeo os tiacutetulos dos fragmentos de Reimarus publicados por Lessing (Schweitzer 2003 p
23)
1 A Toleracircncia dos Deiacutestas
2 A Desmoralizaccedilatildeo da Razatildeo no Puacutelpito
3 A Impossibilidade de uma Revelaccedilatildeo em que todos os homens teriam bons motivos
para acreditar
4 A Passagem dos Israelitas pelo Mar Vermelho
5 Demonstrando que os Livros do Antigo Testamento natildeo foram escritos para revelar
uma religiatildeo
6 Acerca da Histoacuteria da Ressurreiccedilatildeo
7 Os objetivos de Jesus e seus Disciacutepulos
Reimarus de acordo com Theissen defendeu a ideia de que Jesus natildeo fundou
uma nova religiatildeo e tambeacutem nunca teve a intenccedilatildeo de desfazer-se do judaiacutesmo visto que
ele sempre esteve inserido na religiatildeo Judaica A pregaccedilatildeo de Jesus era sempre baseada
na apocaliacuteptica judaica O reino prometido por Jesus segundo Reimarus era um reino
terreno nos mesmos moldes e expectativas do pensamento judaico de sua eacutepoca
Portanto para Reimarus ldquoJesus eacute uma figura judaica profeacutetico-apocaliacutepticardquo ou seja
apenas um judeu enquanto que o cristianismo nada mais era do que uma invenccedilatildeo dos
apoacutestolos (Theissen e Merz 2004 p21) Martins Terra fazendo uma anaacutelise do
pensamento de Reimarus sobre a pessoa de Jesus conclui que para o referido teoacutelogo
ldquoJesus natildeo passou de um poliacutetico ambicioso e seus disciacutepulos foram verdadeiros
falsaacuteriosrdquo Na analogia de Reimarus Jesus e sua pretensatildeo poliacutetica terminaram com o
fracasso e a morte na cruz Sobre a ressurreiccedilatildeo de Jesus ele teria dito que foram os
disciacutepulos roubaram o cadaacutever inventaram a mensagem de sua ressurreiccedilatildeo e da vinda
futura Para concluir o pensamento de Reimarus sobre a imagem que temos de Jesus a
10
Essa fase eacute tambeacutem conhecida como a ldquoold questrdquo Essa fase natildeo eacute movida pelo cientificismo mas tem como caracteriacutesticas a rejeiccedilatildeo aos dogmas da Igreja a diferenciaccedilatildeo entre os sinoacuteticos e Joatildeo como fontes histoacutericas a colocaccedilatildeo de Jesus dentro do contexto escatoloacutegico de seu tempo e a ecircnfase sobre o Evangelho de Marcos como sendo o mais antigo dos Evangelhos (Schiavo 2006 p 15-17)
29
partir dos Evangelhos ele afirma que isso foi apenas criaccedilatildeo e ldquofrauderdquo dos disciacutepulos (cf
Martins Terra 1977 p10-12)
Strauss que foi filoacutesofo e teoacutelogo publicou em 18351836 a obra intitulada Vida de
Jesus Para Schweitzer ele natildeo estaacute entre os grandes teoacutelogos mas foi o mais sincero
(Schweitzer 2003 p85) Strauss aplicou aos Evangelhos o conceito de mito algo que jaacute
era comum nas pesquisas sobre o Antigo Testamento de sua eacutepoca (Theissen e Merz
2004 p22) Para ele mesmo que os Evangelhos (sinoacuteticos) tenham sido escritos num
periacuteodo de aproximadamente 40 anos apoacutes a morte de Jesus isso natildeo impede de que
estejam misturados com o mito Ele deixa sua forma de pensar mais evidente quando diz
que ldquonatildeo eacute preciso que um grande homem esteja morto haacute muito tempo para que a lenda
jaacute se ocupe da sua vidardquo (Schweitzer 2003 p 98) Contudo precisamos entender qual eacute
o verdadeiro sentido do mito religioso conforme nos descreve Schweitzer
[] a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha compreendido o caraacuteter essencial do mito religioso Ele nada mais eacute do que ideias religiosas vestidas em uma forma histoacuterica modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda e corporificado numa personalidade histoacuterica Ateacute por motivos a priori somos quase compelidos a assumir que o Jesus histoacuterico nos encontraraacute com as vestes das ideias messiacircnicas do Antigo Testamento e expectativas do cristianismo primitivo (Schweitzer p98)
Segundo Schweitzer a diferenccedila entre Strauss e os seus predecessores eacute que
para aqueles se aplicassem rigorosamente o conceito de mito agrave vida histoacuterica de Jesus
havia um grande questionamento sobre se restaria alguma coisa do Jesus histoacuterico
enquanto que para este essa questatildeo natildeo apresentava nada que fosse considerado um
terror (Schweitzer 2003 p98) Theissen assim resume Strauss ldquoPara Strauss
hegeliano declarado o cerne da feacute cristatilde natildeo eacute atingido pela abordagem miacutetica pois no
indiviacuteduo histoacuterico Jesus realiza a ideia da humanidade de Deus a mais sublime de todas
as ideias O mito eacute a roupagem legiacutetima de tipo histoacuterico dessa humanidade geralrdquo
(Theissen 2004 p22)
De uma forma sucinta Theissen descreve as demais fases da seguinte forma a
segunda eacute denominada como a fase do ldquootimismo da pesquisa liberal sobre a vida de
Jesusrdquo Essa fase eacute marcada por um florescimento do liberalismo teoloacutegico sobre a vida
de Jesus sob o ponto de vista de pesquisadores na Alemanha onde era esperado que se
chegasse agrave reconstruccedilatildeo histoacuterico-criacutetica da histoacuteria de Jesus e de sua personalidade
Essa escola teve como seu principal representante Heinrich Julius Holtzmann (1832-
1910) Destaca-se nessa fase que enquanto F Chr Baur demonstrou a primazia dos
sinoacuteticos sobre o Evangelho de Joatildeo Holtzmann contribuiu para que a teoria das duas
30
fontes desenvolvida por Christian Gottob Wilke e Christian Hermann Weise tornasse-se
um sucesso duradouro (Theissen e Merz 2004 p23)
A terceira fase eacute definida como ldquoo colapso da pesquisa sobre a vida de Jesusrdquo 11
Trecircs foram os motivos para tal colapso o primeiro fator foi a obra de Schweitzer Histoacuteria
de Investigaccedilatildeo da vida de Jesus que provocou o desvelamento das imagens das Vidas
de Jesus criadas pela teologia liberal que conforme os olhos de cada autor revelava-se a
estrutura de personalidade de Jesus com o ideal eacutetico que cada autor almejava O
segundo motivo estaacute concentrado na pessoa de W Wrede que em 1901 demonstrou ldquoo
caraacuteter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesusrdquo Para
Wrede o Evangelho de Marcos era a expressatildeo dogmaacutetica da comunidade cristatilde
primitiva que projetou sobre Jesus de Nazareacute a messianidade do Jesus poacutes-pascal E
por fim K L Schmidt demonstra o ldquocaraacuteter fragmentaacuterio dos evangelhosrdquo Para Schmidt
o Evangelho de Marcos eacute composto por periacutecopes que foram juntadas cronoloacutegica e
geograficamente somente mais tarde pelo autor Sendo assim desaparece totalmente a
possibilidade de se construir uma personalidade de Jesus visto que a histoacuteria das formas
reconhece que as periacutecopes foram juntadas primeiramente para satisfazer as
necessidades das comunidades e soacute em segundo plano como recordaccedilotildees histoacutericas
(Theissen e Merz 2004 p24)
Diante desses movimentos ceticistas surge uma teologia que ora amortece ora
aguccedila ainda mais os debates em torno das pesquisas sobre as Vidas de Jesus Nesse
sentido Rudolf Bultmann (1884 -1976) expotildee a sua teologia dialeacutetica contrapondo Deus e
o mundo de uma forma tatildeo radical a tal ponto que seria possiacutevel um encontro entre
ambas as partes apenas em um ponto assim ldquocomo uma tangente toca um ciacuterculordquo
(Theissen e Merz 2004 p24) Para Bultmann o fator decisivo natildeo era o que Jesus disse
ou fez mas sim o que Deus disse ou fez na cruz e na ressurreiccedilatildeo Nesse sentido
Bultmann afirma que o ensino de Jesus natildeo eacute relevante para a feacute cristatilde e partindo desse
pensamento Theissen define a teologia de Bultmann nas seguintes palavras ldquoSe D F
Strauss viu a verdade do mito de Cristo na ldquoideiardquo R Bultmann a viu no querigma um
chamado de Deus vindo de forardquo (Theissen e Merz 2004 p24-25)
11
Schiavo define essa fase como a ldquono questrdquo Os principais nomes dessa fase satildeo Wrede Dibelius Schmidt e Bultmann Neste movimento os Evangelhos satildeo considerados como um conjunto de tradiccedilotildees desarticuladas e pequenas (periacutecopes) sem interesses histoacutericos A finalidade principal dos Evangelhos estaacute centrada no fato de transmitir mensagens espirituais catequeacuteticas e lituacutergicas para os cristatildeos da Igreja Primitiva Sendo assim eacute impossiacutevel conhecer o Jesus histoacuterico pois a imagem que temos dele nos Evangelhos eacute querigmaacutetica e centrada no Jesus da feacute (Schiavo 2006 p 17-18)
31
A quarta fase eacute definida por Theissen como ldquoa nova pergunta pelo Jesus histoacutericordquo
12 Essa fase desenvolvida pelos disciacutepulos de Bultmann pergunta ou busca uma relaccedilatildeo
a partir do Jesus querigmaacutetico questionando se ldquosua exaltaccedilatildeo na cruz e na ressurreiccedilatildeo
tem alguma base na pregaccedilatildeo preacute-pascalrdquo Os pressupostos para tal questionamento satildeo
fundamentados nas seguintes pressuposiccedilotildees ldquoO querigma cristoloacutegico compromete-se
com a pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Isso se fundamenta segundo essa escola no fato
de que ldquoa identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado eacute pressuposta em todos os
escritos do cristianismo primitivordquo (Theissen e Merz 2004 p25ndash26) O segundo
pressuposto eacute ldquoa base metodoloacutegica da pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Segundo
Theissen esse pressuposto metodoloacutegico eacute ldquoa confianccedila de que se pode encontrar um
miacutenimo criticamente assegurado de tradiccedilatildeo autecircntica de Jesus quando se exclui o que
pode ser derivado tanto do judaiacutesmo como do cristianismo primitivordquo Entende-se que
nessa quarta fase para os disciacutepulos de Bultmann a busca de um fundamento preacute-pascal
que apoie o querigma de Cristo independe do fato de Jesus ter usado algum tiacutetulo
cristoloacutegico visto que isso jaacute estaacute impliacutecito em seu ministeacuterio e em seu anuacutencio (Theissen
e Merz 2004 p26)
Finalmente surge a quinta fase conforme Theissen denominada de ldquoa third
quest13 pelo Jesus Histoacutericordquo Essa fase predominantemente exposta no mundo de fala
inglesa diferencia-se das anteriores pelos seguintes aspectos o interesse histoacuterico-social
substitui o teoloacutegico a inserccedilatildeo de Jesus no Judaiacutesmo ao inveacutes de separaacute-lo como os
disciacutepulos de Bultmann procura fazecirc-lo e por fim haacute uma abertura para as fontes natildeo
canocircnicas substituindo a preferecircncia apenas por fontes canocircnicas A third quest dividiu a
pesquisa sobre Jesus em diferentes correntes No entanto segundo Theissen essa
variedade de interpretaccedilotildees e figuras de Jesus que pode ser visto tanto como um ciacutenico
judeu ou como um personagem colocado no centro do judaiacutesmo a espera do
restabelecimento de um reino escatoloacutegico daacute a essas correntes um tom de
plausibilidade ou seja ldquoo que eacute plausiacutevel no contexto judaico e torna compreensiacutevel o
12
Conhecida como a ldquoNew questrdquo a New quest caracteriza-se por diferenciar o que eacute proacuteprio do judaiacutesmo com o que eacute tambeacutem proacuteprio do cristianismo primitivo Dessa forma seria possiacutevel chegar ao Jesus da histoacuteria Ernst Kaumlsemann eacute um dos representantes dessa escola Para Schiavo J Jeremias tambeacutem pode ser representado nessa escola Visto que o mesmo com a ajuda da filologia e conhecimentos profundos do aramaico tentou reconstruir os ditos autecircnticos de Jesus (Schiavo 2006 p 18)
13 Schiavo complementa que essa fase que teve iniacutecio a partir da deacutecada de 1980 deixa de ser
exclusividade da academia alematilde e a pesquisa do Jesus histoacuterico passa a fazer parte da academia anglo-americana Este movimento tem como caracteriacutesticas principais os seguintes toacutepicos O interesse histoacuterico-socioloacutegico para com o mundo judaico do seacuteculo I dC a inserccedilatildeo de Jesus dentro do Judaiacutesmo A referecircncia agraves fontes natildeo canocircnicas e a aproximaccedilatildeo da fonte Q com o Evangelho de Tomeacute Dentre os representantes dessa escola encontram-se Crossan Sanders Meyer Vermes Freyne Horsley e Theissen (Schiavo 2006 p 18-19)
32
surgimento do cristianismo primitivo poderia ser histoacutericordquo (Theissen e Merz 2004 p28ndash
29)
32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO
Um dos temas da teologia que tem levantado inuacutemeras questotildees a mais de dois
seacuteculos eacute a busca histoacuterica por Jesus de Nazareacute um humilde judeu que viveu na Galileia
agraves margens do Mediterracircneo Sean Freyne avalia que ldquoas muitas idas e vindas dos
estudos que marcam a busca pelo Jesus histoacuterico tecircm sido uma preocupaccedilatildeo constante
da teologia ocidental por mais de dois seacuteculos e mesmo assim nenhum consenso foi
atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundourdquo (Freyne 2008
p1) Sobre a possibilidade de se buscar pelo Jesus histoacuterico Freyne observa que hoje
natildeo eacute mais suficiente apenas assumir uma posiccedilatildeo numa questatildeo por demais debatida Eacute
necessaacuterio que o pesquisador aleacutem de ter conhecimentos da histoacuteria da antiguidade
tambeacutem possua conhecimentos de arqueologia ciecircncias sociais e particularmente de
antropologia cultural (Freyne 2008 p2) Isso demonstra que haacute necessidade de uma
visatildeo interdisciplinar entre essas ciecircncias e seus pesquisadores
A pergunta sobre o Jesus histoacuterico segundo J Jeremias chega a ser absurda e
sem significaccedilatildeo para a feacute cristatilde apenas para aqueles que natildeo conhecem a questatildeo Ele
ainda pergunta ldquoComo eacute possiacutevel que esta questatildeo seja a questatildeo central de todas as
discussotildees sobre o Novo Testamentordquo (Jeremias 2005 p199) Segundo J Jeremias eacute
hora de questionarmos as teorias de Rudolf Bultmann que propagam que o Jesus
histoacuterico eacute irrelevante para a feacute cristatilde e a teoria que apregoa que o Jesus histoacuterico e o
Cristo proclamado pela Igreja natildeo satildeo as mesmas de Reimarus (Jeremias 2005 p 200)
Partindo das questotildees levantadas por J Jeremias e da forma como Bultmann diverge
desse pensador um diaacutelogo sobre a questatildeo eacute sempre gratificante para darmos pelo
menos um passo agrave frente no que se refere ao Jesus histoacuterico
Tendo em vista a amplitude da questatildeo acima levantada fica evidente que
trabalhar temas relacionados agrave vida do Jesus histoacuterico eacute sempre desafiador Muitos foram
os teoacutelogos e pensadores que a partir do ano de 1778 ano em que nasce o ldquoproblema do
Jesus histoacutericordquo (Jeremias 2005 p 200) esforccedilaram-se nessa tarefa com um espiacuterito
criacutetico e investigativo a fim de encontrar evidecircncias histoacutericas a respeito do homem mais
marcante de toda a histoacuteria da humanidade Tambeacutem natildeo significa que antes de Reimarus
33
o Jesus histoacuterico fosse negligenciado a questatildeo eacute que os teoacutelogos e historiadores desde
a igreja primitiva haviam sustentado que os Evangelhos eram documentos dignos de
absoluto creacutedito acerca da vida e histoacuteria de Jesus por isso tiveram a preocupaccedilatildeo de
apenas parafrasear e harmonizar os Evangelhos uma vez que natildeo viam necessidade de
uma investigaccedilatildeo aleacutem das fontes canocircnicas (Jeremias 2005 p 200) As palavras de Udo
Schnelle assim resumem a teologia do Jesus histoacuterico
A pergunta histoacuterica por Jesus eacute uma filha do iluminismo Para os periacuteodos anteriores era evidente que os Evangelhos transmitiam notiacutecias confiaacuteveis sobre Jesus Antes do Iluminismo a pesquisa neotestamentaacuteria dos Evangelhos limitava-se essencialmente agrave harmonizaccedilatildeo dos quatros Evangelhos Na praacutetica a Exegese do Novo Testamento era uma disciplina auxiliar da Dogmaacutetica (Schnelle 2010 p 70)
Ainda com relaccedilatildeo agrave pesquisa sobre o Jesus histoacuterico Joseacute Antonio Pagola diz
que quando nos referimos ao Jesus histoacuterico ldquoestamos falando do conhecimento de
Jesus que os historiadores podem obter utilizando os meacutetodos cientiacuteficos da moderna
investigaccedilatildeo histoacutericardquo (Pagola 2010 p13)
A magnitude de se escrever sobre o Jesus da Galileia eacute descrita por Schweitzer
com as seguintes palavras ldquo[] natildeo haacute tarefa histoacuterica que revele o verdadeiro interior de
um homem como a de escrever uma Vida de Jesus Nenhuma forccedila vital move o
personagem a natildeo ser que o homem sopre nele todo o oacutedio ou todo o amor de que eacute
capaz Quanto mais intenso o amor ou o oacutedio mais realista eacute a figura produzidardquo
(Schweitzer 2003 p11) Em outras palavras Schweitzer diz que aqueles que buscaram
despir Jesus do sobrenatural acabaram descobrindo fatos que enalteceram ainda mais a
sua histoacuteria Para Schweitzer tanto o oacutedio quanto o amor leva o escritor a investigaccedilotildees
profundas no intuito de provar verdade ou falsidade de um acontecimento histoacuterico Nesse
sentido as maiores produccedilotildees a respeito do Jesus histoacuterico foram escritas com oacutedio e
entre elas segundo Schweitzer estatildeo as de Reimarus e a de Strauss (Schweitzer 2003
p11)
Segundo J Jeremias a tese defendida por Reimarus em que Jesus eacute visto como
um revolucionaacuterio poliacutetico que fracassou na cruz quando exclamou ldquoDeus meu Deus
meu por que me desamparastesrdquo era estuacutepida e artificial visto que Jesus natildeo foi um
revolucionaacuterio poliacutetico e sempre reagiu energicamente contra todas as tendecircncias
nacionalistas dos zelotas Ao fazer uma anaacutelise do momento em que Reimarus escreveu
J Jeremias relata que Reimarus estava fazendo uma investigaccedilatildeo voltada ao homem
Jesus para sua personalidade sua religiatildeo e natildeo voltada para o dogma cristoloacutegico e
34
que a princiacutepio tinha como objetivo libertar-se dos dogmas da igreja (Jeremias 2005 p
201)
O resultado desses trabalhos sobre ltltas vidas de Jesusgtgt nos legaram muitas
imagens de sua personalidade que produzem risos Para os racionalistas Jesus eacute visto
como um pregador de moral para os idealistas a quintessecircncia do humanismo e por fim
para os estetas ele eacute posto como o amigo dos pobres e como um reformador social
Assim satildeo inuacutemeras as imagens que fazem de Jesus um personagem de romance
Jesus portanto eacute modernizado conforme as imagens carregadas de fantasias de cada
autor conforme os seus ideais suas eacutepocas ou suas teologias (Jeremias 2005 p 201)
J Jeremias questiona entatildeo onde estaria o erro E a resposta estaacute no fato de que
esses escritores ltltdas vidas de Jesusgtgt sem ter a plena consciecircncia acabaram
substituindo o dogma cristoloacutegico pela psicologia e pela fantasia Haacute poreacutem um ponto em
comum em todas as obras sobre ltlt as vidas de Jesusgtgt todas elas tratam de desenhar
a personalidade de Jesus com a ajuda dos instrumentos da psicologia e da fantasia Os
padrinhos nesse esforccedilo natildeo satildeo apenas as fontes mas a maior parte pertence agrave
imaginaccedilatildeo criativa a uma construccedilatildeo psicoloacutegica livre de obstaacuteculos (Jeremias 2005 p
201-202)
Conforme J Jeremias Albert Schweitzer de uma forma traacutegica poreacutem com muita
destreza desmascara essas criaccedilotildees repletas de fantasias e depois ele mesmo cairia
em falta fazendo uma construccedilatildeo psicoloacutegica a partir do texto do Evangelho de Mateus
(10 23) declarando que a grande decepccedilatildeo na vida de Jesus foi natildeo ter chegado ao final
causando grandes mudanccedilas em sua vida a ponto de aceitar o sofrimento para forccedilar a
chegada do reino de Deus (Jeremias 2005 p 203)
Pesquisar a vida do Jesus histoacuterico eacute muito mais que contar a histoacuteria de um
grande homem Eacute deparar-se com um personagem vital para a histoacuteria da humanidade
que ldquoveio para reger sobre o mundo Ele o regeu para o bem e para o mal como a histoacuteria
testificardquo (Schweitzer 2003 p8) Jesus revolucionou o mundo de sua eacutepoca mudou o
rumo da histoacuteria inseriu-se nela como protagonista mesmo natildeo sendo essa a sua
intenccedilatildeo A histoacuteria do mundo natildeo poderia mais ser contada sem ele ou seja Jesus
dividiu a histoacuteria em o antes e o depois dele A grandiosidade do homem Jesus fascinou
tanto os que o amaram como aqueles que o odiaram Nesse sentido podemos justificar o
fato de tantos pensadores estudarem a respeito do Jesus histoacuterico com as palavras
atribuiacutedas a Hegel por Bernard Bourgeois ldquoUm grande homem condena os humanos a
explicaacute-lordquo (Bourgeois1995 p 375)
35
Segundo Schweitzer os cristatildeos primitivos preocuparam-se apenas em preservar
ditos isolados a respeito do Jesus histoacuterico A expectativa do retorno iminente do Mestre
pode ter sido o motivo principal que levou o cristianismo primitivo a preferir apenas fatos
relacionados ao ministeacuterio de Jesus a uma biografia completa do Jesus histoacuterico O autor
ainda considera isso como um impulso de autopreservaccedilatildeo visto que a introduccedilatildeo do
Jesus histoacuterico na feacute da comunidade primitiva seria algo novo jaacute que o proacuteprio Jesus natildeo
se preocupou em deixar uma autobiografia Pagola compartilha desse pensamento
dizendo que
os evangelistas natildeo compuseram uma ldquobiografiardquo de Jesus no sentido moderno desta palavra Seus escritos estatildeo impregnados de sua feacute no Cristo ressuscitado satildeo sumamente seletivos foram narrados em funccedilatildeo de problemas e necessidades das primeiras comunidades cristatildes e estatildeo ordenados para objetivos teoloacutegicos e concretos Por isso exigem um estudo criacutetico cuidadoso antes de podermos obter deles informaccedilotildees fidedignas para a investigaccedilatildeo (Pagola 2010 p17)
O fato de Jesus natildeo ter deixado nenhum texto escrito e o texto do apoacutestolo Paulo
na segunda carta aos Coriacutentios capiacutetulo cap 5 verso 16 ldquo[hellip] doravante a ningueacutem
conhecemos segundo a carne Tambeacutem se conhecemos Cristo segundo a carne agora jaacute
natildeo o conhecemos assimrdquo abriu o caminho para diversas interpretaccedilotildees acerca de Jesus
De fato Leonhard Goppelt menciona a interpretaccedilatildeo de Rudolf Bultmann segundo a qual
se infere que para Paulo a accedilatildeo terrena de Jesus natildeo teria tido a miacutenima importacircncia o
que importava era a feacute pascal Natildeo obstante a ldquofeacute pascal bem como a cristologia natildeo satildeo
simplesmente uma transfiguraccedilatildeo miacutetica do terreno Muito antes nelas toma forma o que
no Jesus terreno agia apenas de maneira ocultardquo (Goppelt 2002 p 46)
O pensamento de Bultmann a respeito da importacircncia de se investigar a vida e a
personalidade do Jesus histoacuterico se resume nas seguintes palavras
Natildeo podemos saber praticamente nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus jaacute que as fontes cristatildes natildeo se interessaram por elas sendo ademais bastante fragmentaacuterias e encobertas pela lenda uma vez que natildeo existem outras fontes sobre Jesus O que se estaacute escrevendo haacute mais de um seacuteculo e meio sobre a vida de Jesus sua personalidade seu desenvolvimento interior e coisas semelhantes ndash uma vez que natildeo se trata de investigaccedilotildees criacuteticas ndash natildeo passa de fantasia e romance (Bultmann 2005 p 26)
Dessa forma o logos natildeo se torna verdadeiramente carne mas apenas palavra
(kerygma) Na visatildeo de Bultmann o Jesus histoacuterico natildeo faz parte da teologia do Novo
Testamento pois o objeto da teologia do Novo Testamento eacute o Cristo da feacute (pascal) Em
vista disso um estudo acerca do Jesus histoacuterico fica relegado a uma primeira etapa tal
qual uma primeira premissa no interior de um argumento mais elaborado (Bultmann
36
2004 p 24) J Jeremias enfatiza que para Bultmann a pregaccedilatildeo de Jesus eacute apenas
uma premissa entre muitas outras do Novo Testamento (Jeremias 2005 p 204)
Para J Jeremias Bultmann sofreu influecircncia de Martin Kaumlhler atraveacutes de sua obra
Der sogenannte historische Jesus und der geschichtiche biblische Cristus (O chamado
Jesus histoacuterico e o Cristo existencialmente histoacuterico e biacuteblico) Kaumlhler distinguiu por um
lado entre Jesus e Cristo e por outro entre historische (histoacuterico) e geschichtiche
(existencialmente histoacuterico) Por Jesus Kaumlhler compreendia o homem de Nazareacute tal
como foi descrito pelos que investigaram a vida do Jesus histoacuterico por Cristo ele entendia
como aquele que foi proclamado como o Salvador pela igreja Quanto ao significado do
adjetivo historische (histoacuterico) ele compreendia como uma mera designaccedilatildeo dos fatos do
passado e para geschichtiche (existencialmente histoacuterico) como aquele que tem um
significado permanente Portanto para Kaumlhler toda a tentativa de reconstruir a vida do
Jesus histoacuterico se contrapotildee ao Cristo biacuteblico e existencialmente histoacuterico tal como foi
pregado pelos apoacutestolos e para noacutes conforme Kaumlhler o que importa eacute unicamente o
Cristo da Biacuteblia conforme descrito pelos Evangelhos e natildeo as supostas reconstruccedilotildees
cientiacuteficas a respeito da pessoa de Jesus que chegam ateacute a passar a impressatildeo de uma
plena realidade dos fatos (Jeremias 2005 p 202)
A voz de Kaumlhler se extinguiu no vaacutecuo e natildeo surtiu um efeito pleno ateacute o ecoar da
voz de Bultmann que com coragem irredutiacutevel entrou no campo do inimigo e
abertamente lutou contra uma teologia que por um periacuteodo de aproximadamente cento e
cinquenta anos esforccedilou-se para chegar ao Jesus histoacuterico (Jeremias 2005 p 202)
Concordando com Kaumlhler Bultmann declara que todo o esforccedilo para chegar ao Jesus
histoacuterico foi um empreendimento insoluacutevel e infecundo que retirou a inexpugnaacutevel
fortaleza da proclamaccedilatildeo (kerigma) de Cristo (Jeremias 2005 p 203)
Os argumentos de Bultmann para a renuacutencia da teologia do Jesus histoacuterico
fundamentam-se no princiacutepio de que haacute falta de fontes seguras para a fundamentaccedilatildeo
dessa teologia Tambeacutem leva-se em consideraccedilatildeo que natildeo temos nada escrito pelas
matildeos de Jesus As uacutenicas fontes que temos a respeito de Jesus satildeo os Evangelhos e
esses natildeo satildeo biografias de Jesus mas satildeo apenas testemunhos de feacute secundaacuterios e
recobertos de lendas como no caso dos milagres Os Evangelhos segundo esse
pensamento satildeo a demonstraccedilatildeo de feacute dos evangelistas (Jeremias p 203) Concernente
agrave vida e agrave proclamaccedilatildeo de Jesus Bultmann assim descreve
37
[] Pouco sabemos sobre sua vida e personalidade ndash em compensaccedilatildeo sabemos o suficiente sobre sua proclamaccedilatildeo para pintar um quadro coerente Todavia tambeacutem nesse ponto recomenda-se um cuidado extremo em vista do caraacuteter das fontes que dispomos Pois o que as fontes nos oferecem eacute em primeira linha a proclamaccedilatildeo da comunidade que no entanto remonta em sua maior parte a Jesus Naturalmente isso prova que ele realmente tenha pronunciado todas as palavras que essa comunidade lhe pocircs na boca No caso de muitas palavras eacute possiacutevel demonstrar que soacute vieram a surgir na comunidade ao passo que no caso de outras elas foram reformuladas pela comunidade A investigaccedilatildeo criacutetica mostra que o conjunto da tradiccedilatildeo sobre Jesus ndash disponiacutevel nos trecircs evangelhos sinoacuteticos de Mateus Marcos e Lucas ndash se desmembra em uma seacuterie de camadas que em termos gerais podem ser distinguidas umas das outras com bastante seguranccedila mas cuja separaccedilatildeo em alguns detalhes apresenta dificuldades e levanta duacutevidas (Bultmann 2005 p 29-30)
Contudo essa visatildeo de Bultmann natildeo significa a negaccedilatildeo da existecircncia do homem
chamado Jesus de Nazareacute Segundo esse autor eacute possiacutevel conhecer muito dele atraveacutes
de suas pregaccedilotildees poreacutem na anaacutelise da criacutetica histoacuterica em relaccedilatildeo ao homem Jesus
conclui-se que natildeo haacute nada de importante para a feacute cristatilde (Jeremias 2005 p 203)
Quanto agrave questatildeo da existecircncia de Jesus vejamos o que nos diz Bultmann
[hellip] Eacute verdade que a duacutevida se Jesus realmente existiu eacute infundada e natildeo vale a pena gastar nenhuma palavra para refutaacute-la Eacute evidente que ele eacute o gerador do movimento histoacuterico cujo primeiro estaacutegio constataacutevel eacute representado pela comunidade palestinense mais antiga No entanto outra questatildeo eacute ateacute que ponto a comunidade preservou de modo objetivamente fiel a imagem dele e de sua proclamaccedilatildeo Para aqueles que tecircm interesse na personalidade de Jesus esse estado de coisas eacute inquietante e arrasador para nosso propoacutesito ele natildeo eacute de fundamental importacircncia (Bultmann 2005 p 30-31)
J Jeremias analisa entatildeo que para Bultmann Jesus de Nazareacute foi um profeta
judeu que permaneceu sempre dentro dos marcos do judaiacutesmo O Jesus histoacuterico
segundo Bultmann pode ser interessante para a teologia do Novo Testamento e para
compreender a origem do cristianismo mas natildeo tem significaccedilatildeo alguma para a feacute cristatilde
porque o cristianismo comeccedila com a Paacutescoa (Jeremias 2005 p204) Martins Terra expotildee
que o Jesus histoacuterico para Bultmann realmente eacute um profeta e sem duacutevida o maior
deles contudo profeta pertence ao Antigo Testamento Sendo assim Jesus era apenas
um judeu e natildeo um cristatildeo14 ldquoporque cristatildeo eacute aquele que acredita no Senhor
ressuscitado e natildeo aquele que funda sua feacute sobre uma figura histoacutericardquo (Martins Terra
1977 p21)
14
A resposta dada a Bultmann veio de seu disciacutepulo Ernst Kaumlsemann que observa que tanto Jesus quanto
os apoacutestolos eram judeus E se os apoacutestolos eram judeus natildeo eram eles tambeacutem cristatildeos desde o momento que seguiram a Jesus Kaumlsemann ainda pergunta teria havido algum keacuterygma sem a pregaccedilatildeo de Jesus Kaumlsemann chama a atenccedilatildeo para que Jesus natildeo se torne um pretexto e Cristo uma mera cifra mitoloacutegica (Martins Terra 1977 p 44)
38
Escrever uma biografia sobre o Jesus histoacuterico eacute algo descartado na teologia e isso
eacute visto com justiccedila por J Jeremias quando diz ldquo[] eacute muito correto afirmar que jaacute temos
despertado do sonho de acreditar que podemos escrever uma biografia de Jesusrdquo
(Jeremias 2006 p28) No entanto isso natildeo significa passar com indiferenccedila por essa
teologia eacute preciso voltar ao Jesus de Nazareacute e a sua pregaccedilatildeo As fontes nos
impulsionam a cada versiacuteculo dos Evangelhos a buscar pelo homem Jesus que
historicamente apareceu em Nazareacute e que foi crucificado no governo de Pocircncio Pilatos
(Jeremias 2006 p28) Leonard Swidler diz estar ciente tambeacutem das dificuldades para
se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade sobre o Jesus (Ieshua) histoacuterico
Contudo para ele podemos chegar ao fundamental ou seja podemos sempre lutar para
chegar mais perto Para Swidler a consciecircncia dessa limitaccedilatildeo permite que a pessoa
evite os extremos isto eacute tanto a ingecircnua certeza absoluta quanto o ceticismo total sobre
a possibilidade da busca pelo Jesus histoacuterico (Swidler 1993 p 16-18)
A visatildeo de Bultmann a respeito do Jesus histoacuterico natildeo foi seguida pelo seu
sucessor catedraacutetico em Magburg W G Kuumlmmel Para Kuumlmmel interpretar as palavras
de Paulo15 na letra do texto 2 Cor 516 e concluir que o Jesus terreno natildeo teve
importacircncia para o apoacutestolo eacute uma interpretaccedilatildeo ldquoseguramente errocircneardquo (Kummel 2003
p210) pois mesmo que elas natildeo tenham um papel tatildeo importante nos escritos do
apoacutestolo elas natildeo deixam de ser significantes Errocircneo para Kuumlmmel seria o fato de um
cristatildeo procurar ter uma relaccedilatildeo intraterrena com Jesus ou conhececirc-lo apenas
historicamente o que seria insignificante para um cristatildeo Rochus Zuurmond tambeacutem
define o pensamento do apoacutestolo Paulo sobre o versiacuteculo 16 acima mencionado da
seguinte forma
[hellip] Nessa periacutecope natildeo se trata da distinccedilatildeo entre o Jesus preacute-pascal e o poacutes-pascal mas da diferenccedila entre conhecer Jesus da maneira antiga e conhececirc-lo da maneira nova O Jesus poacutes-pascal ainda pode ser ldquoconhecidordquo da maneira antiga o jovem Paulo mas tambeacutem seus adversaacuterios atuais eacute disso um exemplo Em princiacutepio o Jesus preacute-pascal tambeacutem podia ser conhecido de maneira nova se fosse ldquotirado o veacuteurdquo na leitura do Antigo Testamento (314ss cf Jo 856) Mas na praacutetica isso se verificou impossiacutevel por causa da carne (Zuurmond 1998 p 87)
Conhecer Jesus ldquosegundo a carnerdquo na interpretaccedilatildeo de Zuurmond inclui com
certeza todo o conhecimento que podemos ter do Jesus histoacuterico Para ele Paulo natildeo
15
Kaumlsemann tambeacutem contrapotildee essa tese de Bultmann colocando os seguintes argumentos Se o Apoacutestolo Paulo natildeo levou em consideraccedilatildeo a vida terrena de Jesus e a Igreja jaacute estava realizada com o keacuterygma contido nas cartas paulinas por que entatildeo os Evangelhos tornaram-se necessaacuterios jaacute que foram escritos (os Sinoacuteticos) depois que Paulo jaacute tinha escrito todas as cartas Segundo Kaumlsemann a necessidade dos Evangelhos deu-se principalmente porque havia vaacuterios keacuterygmas e a necessidade do discernimento desses deu-se a princiacutepio pelo Espiacuterito todavia quando o entusiasmo cresceu tornou-se necessaacuterio o criteacuterio da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 44-45)
39
estava referindo-se ao Jesus histoacuterico quando fala ldquose jaacute conhecemos o cristo segundo a
carne agora jaacute natildeo o conhecemos maisrdquo (516) Toda a atividade cientiacutefica eacute carne ou
seja pode ser verificado com os recursos da historiografia moderna A pesquisa sobre o
Jesus histoacuterico eacute possiacutevel desde que ela natildeo tenha a pretensatildeo de ser a verdade absoluta
a respeito de Jesus Para Zuurmond o apoacutestolo estaacute enfatizando que o conhecimento
espiritual estaacute aleacutem do conhecimento cientiacutefico contudo natildeo eacute anticientiacutefico mas apenas
natildeo estaacute submisso a qualquer criteacuterio da ciecircncia Zuurmond conclui que ldquoPaulo tem
pouquiacutessima coisa para dizer sobre o Jesus histoacutericordquo uma vez que o apoacutestolo dos
gentios natildeo teria muito interesse pelo ldquotipo de conhecimento sobre Jesus que daiacute
resultariardquo (Zuurmond 1998 p88)
Voltando aos disciacutepulos de Bultmann ainda podemos mencionar Ernst Kaumlsemann
que tambeacutem contestou os ldquodogmasrdquo de seu mestre Para Kaumlsemann a pergunta pelo
Jesus histoacuterico e pelas palavras de Jesus eacute uma praacutetica e exigecircncia do Novo Testamento
visto que satildeo a base e o criteacuterio do keacuterygma Sem essas perguntas o Cristo da feacute se
tornaria em mera ideologia religiosa A importacircncia dessas questotildees torna relevante a
busca pelo Jesus da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 32)
Como se pode compreender em diferentes eacutepocas pensadores divergiram a
respeito da histoacuteria da pessoa do humilde carpinteiro de Nazareacute As especulaccedilotildees a
respeito da vida do Jesus histoacuterico cresceram tanto pelos seus fieacuteis seguidores quanto
pelos seus mais aacutevidos inimigos pelo menos desde o seacuteculo II dC (tal como se pode ver
na calorosa refutaccedilatildeo de Oriacutegenes contra Celso) Em um periacuteodo mais recente teoacutelogos
e arqueoacutelogos tecircm procurado com maior intensidade dados a respeito do homem Jesus e
do estilo de vida que a comunidade do seu tempo vivia com a finalidade de compreender
melhor o contexto em que Jesus estava socialmente inserido
40
4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE
SUA EacutePOCA O objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar o Jesus da histoacuteria dentro do contexto
dos grupos religiosos de sua eacutepoca a fim de observarmos ateacute que ponto Jesus teve
ou natildeo contato com tais grupos abaixo mencionados A preferecircncia de Jesus por um
determinado grupo poderia determinar o que era o Reino de Deus na visatildeo do jovem
pregador galileu Seria Jesus um adepto da seita dos apocaliacutepticos essecircnios dos
moralistas fariseus dos revolucionaacuterios zelotes ou ainda da ldquocorrompidardquo classe
sacerdotal dos saduceus Nos Evangelhos eacute que encontramos a histoacuteria de Jesus
uma vez que eles satildeo as principais fontes que possuiacutemos para montarmos a figura
do maior homem de todos os tempos Mas surgem algumas perguntas Seriam os
Evangelhos fontes histoacutericas confiaacuteveis na apresentaccedilatildeo do homem Jesus Sendo
Jesus pertencente agrave maioria da populaccedilatildeo ou seja da classe pobre e oprimida
pelos romanos teria ele sofrido alguma influecircncia do mundo helenizado da cidade
de Seacuteforis da qual tatildeo perto ele residia ou teria ele totalmente ignorado a cultura e
o mundo helecircnico-romano
Jesus o nazareno na condiccedilatildeo de Filho de Deus repudia todo o tipo de
opressatildeo uma vez que ele veio para ldquoproclamar a libertaccedilatildeo dos presosrdquo e
ldquoevangelizar os pobresrdquo (Lc 4-18) os quais satildeo felizes porque deles eacute o Reino de
Deus (Lc 620-23) Ao proclamar a bem-aventuranccedila dos pobres ele tambeacutem
proclama ldquomaldiccedilotildeesrdquo sobre os ricos que os oprimem e riem deles visto que chegaraacute
a hora em que os que dessa forma riem conheceratildeo o luto e as laacutegrimas (Lc 6 24-
26) Jesus ao ensinar os seus disciacutepulos a como se prevenir e se comportar diante
de uma sociedade poliacutetica e religiosa completamente desprovida do genuiacuteno amor
ao proacuteximo o Mestre da Galileia ensina os seus seguidores a serem
ldquomisericordiososrdquo como o Pai do Ceacuteu eacute misericordioso (cf Lc 6 36)
41
41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE
CONTEMPORAcircNEA DE JESUS
Segundo J Jeremias Jesus16 era proveniente de uma famiacutelia pobre e isso
pode ser constatado na ocasiatildeo do sacrifiacutecio de purificaccedilatildeo ldquoMaria serviu-se do
privileacutegio dos pobres oferecer duas rolasrdquo (Lc 224 cf Lv 128) (Jeremias 1983
p165) No tocante ao seu modo de vida eram tantas as privaccedilotildees que natildeo tinha
onde repousar a cabeccedila (Mt 820 Lc 958) J Jeremias observa que ele natildeo possuiacutea
dinheiro - a histoacuteria do estaacuteter e do ldquotributo a Cesarrdquo o demonstram (Mt 17 24-27 Cf
Mc 12 13-17 Mt 22 15-22 Lc 20 20-26) - tambeacutem aceitou esmolas (Lc 8 1-3)
Jesus provavelmente foi considerado um escriba (da classe mais humilde
desse grupo) conforme subentende J Jeremias (1983 p 59-165) Bultmann
tambeacutem concorda que Jesus era chamado pela tradiccedilatildeo de Rabi (Mc 95 1051
11121 1445) Para ele o tiacutetulo rabi foi substituiacutedo pelos evangelistas de origem
grega quase que completamente pela forma de tratamento grega Senhor
expressatildeo esta que designa Jesus como pertencente agrave classe dos escribas
(Bultmann 2005 p71) Para esse autor natildeo podemos afirmar se nos dias de Jesus
jaacute era necessaacuteria certa formaccedilatildeo cultural para a funccedilatildeo de escriba17 como foi uma
exigecircncia cem anos mais tarde Contudo natildeo podemos ignorar o fato de Jesus ter
sido considerado um Rabi (Bultmann 2005 p71-72)
Vale ressaltar que a relaccedilatildeo de Jesus com os escribas eacute quase sempre
relatada de forma polecircmica nos Evangelhos Quando estava ensinando sobre o fim
de Jerusaleacutem e do mundo Jesus advertiu seus disciacutepulos a respeito dos escribas
dizendo que eles sempre procuravam a distinccedilatildeo social eram arrogantes e
16
O nome Jesus origina-se do hebraico ldquoYehoshuardquo (o Yoshua biacuteblico) que significa YHWH (que provavelmente era pronunciado Yahweh) O Nome Jesus eacute uma forma latina do grego Iesous que por sua vez eacute uma forma grega do termo hebraico O nome Yehoshua foi abreviado no linguajar coloquial para Yeshua ou ateacute mesmo para Yeshu A raiz etimoloacutegica de Ieshua eacute ldquoYerdquo eacute a forma hebraica abreviada do proacuteprio nome de Deus YHWH enquanto que ldquoshuardquo eacute a palavra hebraica que significa Salvaccedilatildeo (cf Swidler 1993 p7-8)
17 Vermes define os escribas da seguinte forma ldquoo termo eacutescriba (sofer em hebraico safra em
aramaico) eacute usado para designar um estudioso um especialista na Biacuteblia particularmente em direito biacuteblico e tradicional A vida religiosa e secular bem organizada dependia desses homens Eram geralmente respeitados e sem duacutevida amiuacutede tornavam-se presunccedilosos vestiam-se apropriadamente usando uma tuacutenica longa (stole ou talit) e estavam habituados a ser respeitosamente saudados por todos indiscriminadamente Em reconhecimento agrave sua dignidade recebiam os lugares de escolha em locais de adoraccedilatildeo e em banquetes e os evangelistas indicam que eles esperavam receber tal tratamento preferencialrdquo (Vermes 2006 p 89)
42
pretensiosos na oraccedilatildeo Em Marcos os escribas dos fariseus criticam Jesus porque
ele come com os cobradores de impostos e com os pecadores (Mc 216) tambeacutem
os disciacutepulos de Jesus reconhecem que o seu ensinamento natildeo eacute como o dos
escribas sem autoridade (Mc 1 22-28 cf Mt 7 29) e por fim os escribas
questionaram a autoridade de Jesus para perdoar os pecados do paraliacutetico de
Cafarnaum (Mc 2 6 cf Mt 93) Eacute bem verdade que em Mateus 819 1352 2334
os escribas satildeo vistos de uma forma positiva e isso eacute mais evidente ainda em
Marcos 12 28-34 onde Jesus e um escriba concordaram a respeito do maior dos
mandamentos o que faz Jesus concluir que tal escriba natildeo estava longe do Reino
de Deus No entanto a impressatildeo que se obteacutem a partir das Escrituras eacute a que
Jesus possuiacutea um conceito formado a respeito dos escribas conforme o descrito
pelo evangelista Marcos nas seguintes palavras (Saldarini 2005 p 164-172)
[] E dizia no seu ensinamento ldquoGuardai-vos dos escribas que gostam de circular de toga de ser saudados nas praccedilas puacuteblicas e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes mas devoram as casas das viuacutevas e simulam fazer longas preces Esses receberatildeo condenaccedilatildeo mais severardquo (Mc 12 38-40)
Os escribas parecem natildeo ser um grupo muito coeso no oriente proacuteximo dos
dias de Jesus Eles eram provenientes de vaacuterias classes do povo ou entatildeo dos
sacerdotes ou de famiacutelias proeminentes Geralmente eles eram dependentes das
classes dominantes que dirigiam a naccedilatildeo Segundo Saldarini (2005 p 282-283) a
maioria dos escribas havia saiacutedo do campesinato para ser treinado pelo governo ou
por famiacutelias ricas para resguardar os registros coletar impostos servir como
funcionaacuterios e juiacutezes e trabalhar com o serviccedilo de correspondecircncias
Ainda com relaccedilatildeo a esse grupo de indiviacuteduos observa-se que os escribas
considerados socialmente inferiores eram aqueles que faziam parte de um pequeno
povoado que tinham entre outras funccedilotildees a de ensinar jovens a ler e escrever mas
natildeo eram considerados mestres visto que natildeo tinha uma educaccedilatildeo elevada para os
padrotildees da eacutepoca Saldarini observa no entanto que a maioria dos escribas
incluindo os apresentados nos evangelhos era considerada funcionaacuterios de niacutevel
meacutedio que eram dependentes da classe sacerdotal das famiacutelias ricas em
Jerusaleacutem e de Herodes Antipas na Galileia
43
Em todos os casos poreacutem os escribas precisam ser contextualizados entre outros grupos sociais e o poder de influecircncia deles integrado no quadro global da sociedade judaica Eles natildeo devem ser tratados como um grupo autocircnomo com seu proacuteprio poder e agenda contiacutenua Os escribas eram diferentes em suas origens e em suas dependecircncias e eram indiviacuteduos que desempenhavam um papel social em diferentes contextos e natildeo uma forccedila poliacutetica e religiosa unificada (Saldarini 2005 p 284-285)
Com relaccedilatildeo ao grupo dos rabinos segundo J Jeremias observa-se de um
modo geral que ele se situa entre as camadas pobres da populaccedilatildeo (Jeremias
1983 p165-166) Mais ainda as informaccedilotildees tradicionais sobre os escribas nos
dias de Jesus concordam que os escribas ricos natildeo eram numerosos Portanto se
realmente Jesus era considerado um escriba certamente ele fazia parte da classe
pobre dos escribas Crossan problematiza mais a questatildeo quando coloca que a
maioria da populaccedilatildeo Judaica da eacutepoca de Jesus era constituiacuteda de analfabetos18
supotildee-se que Jesus tambeacutem era analfabeto que ele conhecia como a ampla maioria de seus contemporacircneos de uma cultura oral as narrativas fundacionais estoacuterias baacutesicas e expectativas gerais de sua tradiccedilatildeo mas natildeo os textos exatos citaccedilotildees precisas ou argumentaccedilotildees intrincadas de suas elites de escribas (CROSSAN 1995 p41)
Em outro momento Crossan observa que o niacutevel de alfabetizaccedilatildeo na
Palestina estava abaixo de 3 segundo fontes rabiacutenicas o que natildeo era tatildeo baixo
para os padrotildees sociais das sociedades tradicionais do passado Crossan reitera
que Jesus era um camponecircs da Galileia e portanto natildeo haacute duacutevidas que Jesus era
analfabeto ldquopara mim Jesus era analfabeto ateacute que o contraacuterio seja comprovado E
natildeo eacute comprovado mas apenas presumido por Lucas quando ele faz Jesus ler o
profeta Isaiacuteas na sinagoga de Nazareacute em 4 16-20rdquo (Crossan 2004 p 274-275)
18
Diferentemente de Crossan David Flusser defende que Jesus ldquoestava longe de ser um iletradordquo Para ele com algumas justificativas eacute possiacutevel que os disciacutepulos de Jesus fossem homens iletrados e sem posiccedilatildeo social (cf At 413) e isso levou os historiadores a pensar que o proacuteprio Jesus nunca havia estudado Flusser vai mais longe ainda quando observa que Jesus era versado tanto nas Escrituras Sagradas como na tradiccedilatildeo oral ldquoAdemais sua educaccedilatildeo era incomparavelmente superior agrave de Satildeo Paulordquo Flusser vecirc na narrativa de Lucas (2 41-51) a histoacuteria de ldquoum erudito precoce pode-se dizer quase um jovem talmudistardquo A fonte de Flusser para tal argumento eacute Flaacutevio Josefo que se referindo a Jesus disse ldquonesta eacutepoca viveu Jesus um homem saacutebio ndash se eacute que na verdade deveriacuteamos chamaacute-lo de homemrdquo Mesmo que tenha havido algumas alteraccedilotildees por um interpolador cristatildeo eacute provaacutevel que a redaccedilatildeo original natildeo se perdeu totalmente jaacute que o texto de Josefo pode ser confirmado ldquopela suposta redaccedilatildeo original da passagemrdquo (Flusser 2002 p 11-12)
44
Carlos Mesters tambeacutem observa que Jesus mesmo antes de nascer jaacute era
viacutetima do sistema poliacutetico e econocircmico predominantes na eacutepoca Com efeito uma
vez que ele natildeo nasceu de uma famiacutelia sacerdotal como Joatildeo Batista (Lc 15) nem
teve o privileacutegio de estudar como o apoacutestolo Paulo (At 22 3) Jesus teve desde
pequeno que trabalhar como agricultor e ainda aprender a profissatildeo de seu pai (Mt
13 55) e por isso era conhecido como carpinteiro (τέκτων) de Nazareacute (Mc 6 3)
Assim como Crossan Mesters analisa que a vida de Jesus desde a infacircncia ateacute a
vida adulta natildeo foi nada faacutecil Sobre a educaccedilatildeo formal do nazareno Mesters nos
diz que ldquoa escola do Jesus era antes de tudo a vida em casa na famiacutelia na
comunidade Foi laacute que aprendeu a conviver a rezar e a trabalharrdquo (Mesters 2011
p 17-21)
O caos econocircmico e cultural entre a populaccedilatildeo contemporacircnea de Jesus natildeo
eacute fato apenas na Galileia19 J Jeremias descreve que a cidade de Jerusaleacutem nos
tempos de Jesus era um centro de mendicacircncia que geralmente girava em torno
do templo Para ele ldquonatildeo eacute de causar espanto se jaacute naquela eacutepoca houvesse
pessoas que simulavam cegueiras surdez e outras doenccedilas a fim de ganharem
esmolasrdquo (Jeremias 1983 p166) Se Jerusaleacutem que era o centro dos
acontecimentos estava numa situaccedilatildeo caoacutetica natildeo muito distante ficava Nazareacute
que conforme Crossan era um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que
vivia em casebres ldquoum povoado simples composto de camponeses entre duzentos a
quatrocentos habitantesrdquo (Crossan Reed 2007 p 7518) Crossan observa que
Nazareacute nunca foi mencionada pelos rabinos na Mishinaacute nem no Talmude nem por
Flaacutevio Josefo quando esse cita o nome de 45 lugares durante a primeira revolta
judaica em 66-67 dC Nem mesmo o Antigo Testamento a conheceu A relaccedilatildeo das
tribos de Zebulon enumera quinze localidades na Baixa Galileia nas proximidades
de Nazareacute mas natildeo a inclui (Js19 10-15) Crossan eacute taxativo ao afirmar que Nazareacute
ldquoera um lugar absolutamente insignificanterdquo (Crossan Reed 2007 p 64)
19
Apesar da Galileia onde Jesus viveu ter sido um lugar de extrema pobreza geograficamente era ldquouma regiatildeo beliacutessima a planiacutecie o lago as colinas a montanha o verde as suas matas fazem da Galileia um ambiente tranquilo e repousanterdquo A pobreza natildeo estava ligada ao aspecto geograacutefico mas sim agrave dominaccedilatildeo romana atraveacutes dos altos e impiedosos impostos que segundo Marconcini natildeo era menos do que 40 do miacutesero rendimento de cada trabalhador que tambeacutem eram destinadas para o aumento do bem-estar dos ricos conforme vemos nos evangelhos de Mateus 18 23-30 e Lucas 16 1-7 -20 (Cf Marconcini 2009 p 38)
45
Tambeacutem observa-se que Nazareacute era um povoado proacuteximo de Seacuteforis que
permaneceu no anonimato ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo
quando se tornou alvo de peregrinaccedilotildees dos cristatildeos (Crossan Reed 2007 p79)
Eles dependiam de espaccedilo fiacutesico para desempenhar atividades agriacutecolas guardar
ferramentas de uso comunitaacuterio cultivo de jardins e pomares tambeacutem precisavam de
espaccedilo para a criaccedilatildeo de animais domeacutesticos e isso explica o porquecirc de uma baixa
densidade populacional Crossan afirma que a maioria dos galileus ganhava a vida
com os produtos da terra com ferramentas precaacuterias e condiccedilotildees geograacuteficas
desfavoraacuteveis O seu estilo de vida em particular dos nazarenos era simples e o
que eles ganhavam era apenas o suficiente para pagar as diacutevidas e impostos
Quanto agraves tradiccedilotildees eles eram zelosos celebravam a paacutescoa descansavam no
Saacutebado e valorizavam as tradiccedilotildees de Moiseacutes e dos profetas
Gerhard Lenski citado por Crossan faz uma interessante descriccedilatildeo de como
eram as divisotildees das classes sociais pelo impeacuterio romano O simples fato de uma
famiacutelia ou povoado possuir arados de ferro poder usufruir de transportes utilizando-
se da roda e da vela gerava um abismo entre as classes designadas altas e outras
designadas baixas Segundo esse autor as classes eram divididas da seguinte
maneira 1 da populaccedilatildeo era constituiacuteda pelos governantes que eram possuidores
de pelo menos a metade das terras os sacerdotes podiam possuir ateacute 15 da
terra logo apoacutes vinham os arrendataacuterios que iam de generais a burocratas
especializados mercadores que provavelmente ascendiam das classes mais
baixas mas que chegavam a ter consideraacutevel riqueza e algum poder poliacutetico e por
fim os camponeses que eram a maioria da populaccedilatildeo de cuja colheita cerca de
dois terccedilos do total as classes altas eram sustentadas
Os camponeses cujas safras dependiam das colheitas nem sempre eram
bem sucedidos pois se houvesse muita chuva ou seca ou ainda doenccedilas e morte
eram expulsos de suas proacuteprias terras Entatildeo eram forccedilados ao arrendamento ou
ateacute mesmo podiam ser submetidos agraves piores humilhaccedilotildees Existia ainda a classe
dos artesatildeos considerada acima dos camponeses porque em geral eram
recrutados entre seus membros desalojados Abaixo dos camponeses existiam
ainda as classes dos degradados e dispensaacuteveis os quais eram rejeitados e iam de
46
mendigos a foras da lei ladrotildees trabalhadores diaristas e escravos (Crossan 1995
p 41)
De acordo com essa divisatildeo de classes deduz-se que se Jesus era
carpinteiro (τέκτων) entatildeo ele pertencia agrave classe dos artesatildeos que por sua vez
estava perigosamente situada entre os camponeses e os degradados ou
dispensaacuteveis Segundo Crossan a pobreza dos conterracircneos de Jesus natildeo se
limitava apenas a Galileia jaacute que de 95 a 97 da populaccedilatildeo do estado judaico era
constituiacuteda por analfabetos Se essa estatiacutestica for verdadeira possivelmente Jesus
tambeacutem era um analfabeto Quanto ao fato dele ensinar eacute provaacutevel que o seu
aprendizado e ensino tenha sido a partir da educaccedilatildeo da tradiccedilatildeo em forma oral
Conforme Crossan os textos de Lucas 2 41-52 e Lucas 4 1-30 devem ser vistos
como ldquopropaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em
termos de instruccedilatildeo e exegese de escribardquo (Crossan 1995 p 41-42)
42 JESUS O HUMILDE NAZARENO
Jesus viveu em Nazareacute a maior parte de sua vida Segundo Pagola uma
pequena aldeia de ldquoapenas duzentos a quatrocentos habitantesrdquo onde alguns
habitantes viviam ldquoem cavernas escavadas nas encostas a maioria em casas baixas
e primitivas de paredes escuras de adobe ou pedra com telhados confeccionados
com ramos secos e argila e chatildeo de terra batidardquo O quesito conforto e comodidade
natildeo era privileacutegio dos nazarenos uma vez que em geral as casas soacute tinham um
cocircmodo no qual se alojava a famiacutelia toda inclusive os animais (Pagola 2010 p62)
Esse pequeno vilarejo ficava a 4 quilocircmetros ao norte de Seacuteforis 20 a cidade
residencial de Herodes Antipas (Gnilka 2000 p71) Seacuteforis diferentemente de
Nazareacute era uma cidade que crescia cheia de curiosidades21 Jerome Murphy-
20
Koester natildeo especifica a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis mas observa que a distacircncia entre essas duas localidades era de poucos quilocircmetros Seacuteforis foi ampliada por Antipas que como seu Pai (Herodes o grande) era amante do esplendor e da grandeza que muitas vezes era expresso por grandes construccedilotildees Aleacutem de Seacuteforis (a primeira capital) Antipas (Tetrarca da Galileia e da Pereia) ainda construiu uma segunda capital a qual deu o nome de Tibeacuterias (Tiberiacuteades) em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (Cf Koester 205 Vl 1 p 395) Theissen especifica como sendo de 6 km a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis (cf Theissen 2004 p 186) A partir desses dados conclui-se que Seacuteforis e Nazareacute ficavam muito proacuteximas
21 As hipoacuteteses de Murphy-OConnor em relaccedilatildeo agrave Seacuteforis satildeo bem diferentes da visatildeo que Crossan
tinha desta cidade como vimos anteriormente Para Crossan Seacuteforis permaneceu no anonimato
47
OConnor observa que seria um equiacutevoco supor que Jesus natildeo passaria todo o
tempo que pudesse em Seacuteforis junto com os amigos Nesse sentido pode-se
questionar Teria Jesus tido em Seacuteforis contato com a liacutengua grega por morar bem
proacuteximo da elegante cidade Seacuteforis era a cidade das atraccedilotildees tanto para os
adultos como para as crianccedilas fato esse que pode ser constatado com Herodes
Antipas o qual teria aprendido a oferecer espetaacuteculos com seu pai Herodes o
grande e nos poucos anos que passou em Roma teria ficado impressionado com os
espetaacuteculos dados por Augusto (Murphy-OConnor 2008 p38-39)
O teatro de Antipas era a grande atraccedilatildeo da cidade Segundo Murphy-
OConnor-OConnor o grande teatro de 45 mil lugares22 sentados em pedra visto
ateacute hoje foi precedido pelo de Antipas em madeira Mesmo que os judeus tenham
sido advertidos a respeito da origem pagatilde do teatro eacute razoaacutevel que Jesus tenha
visto em torno das imediaccedilotildees do teatro atores subindo e descendo pelas ruas e
praticando suas deixas23 Para Murphy-OConnor foi desse contexto que Jesus
conheceu a palavra grega hypokritecircs (ὑποκριτής) que significa ldquoum orador puacuteblicordquo
ldquoum atorrdquo Jesus usou a mesma palavra poreacutem deu a ela um sentido mais profundo
no que se refere agrave vida religiosa A maacutescara refere-se ao ldquofingidorrdquo ou seja agravequeles
que dizem ou parecem ser uma coisa mas na praacutetica satildeo outra conforme vemos
nos Evangelhos (Mt 75 Mc 76 = Lc 642)
O maior acontecimento que Jesus pode ter visto em Seacuteforis ou ouvido falar
muito a respeito quando tinha aproximadamente seis anos de idade foi o
casamento de Herodes Antipas com a filha do rei nabateu Aretas IV de Petra que
governou entre 9 aC e 40 dC Segundo Murphy-OConnor mesmo que o
casamento tenha acontecido em Petra uma caravana de nobres nabateus
provavelmente teria acompanhado Antipas ateacute a cidade de Seacuteforis onde uma
grande multidatildeo de todas as aldeias proacuteximas agrave cidade o aguardava para saudar o
jovem rei (Murphy-OConnor 2008 p40)
ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo quando segundo Crossan a cidade se tornou alvo de peregrinaccedilotildees cristatildes (cf Crossan Reed 2007 p79)
22 Theissen diz que o teatro comportava 5000 pessoas (ver Theissen 2004 p 187)
23 Koester nota que eacute interessante que cidades como Cesareia Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo constem da
tradiccedilatildeo Contudo cidades heleniacutesticas menos importantes como Cesareia de Felipe e Gadara agraves vezes satildeo mencionadas Para Koester ldquonatildeo se pode concluir que Jesus nunca tenha visitado Terras pagatildesrdquo (Cf Koester Vl 2 p 86)
48
Sobre Jesus podemos dizer que aleacutem de ter vivido na pequena Nazareacute de laacute
saiu para ser batizado por Joatildeo Batista Aleacutem disso conforme Mc 63 em Nazareacute e
adjacecircncias ele exerceu a carpintaria (τεκτων) 24 como profissatildeo atividade essa
exercida por seu pai Joseacute Nessa profissatildeo aleacutem de trabalhar com madeira
tambeacutem trabalhava-se com pedras Dessa forma podemos dizer que Jesus era
tambeacutem um entalhador (Gnilka 2000 p 71-72)
Sobre Jesus aleacutem de algumas hipoacuteteses e relatos concernentes ao lugar de
sua residecircncia e outras suposiccedilotildees relacionadas agrave sua vida enquanto um simples
homem inserido em sua comunidade que na qualidade de profeta da Galileia natildeo foi
bem recebido entre seus conterracircneos De acordo com o evangelista Lucas o
ministeacuterio de Jesus comeccedilou aos 30 anos (Lc 323) Para Gnilka a informaccedilatildeo
obtida a partir desse Evangelho possui tambeacutem uma motivaccedilatildeo teoloacutegica visto que
a idade de Jesus deve estar relacionada com a idade do rei Davi conforme vemos
em 2 Sm 54 ldquoTinha Davi trinta anos quando comeccedilou a reinarrdquo Natildeo obstante agrave
determinaccedilatildeo aproximada da idade cerca de 30 anos Lucas revela-nos um
interesse histoacuterico-cronoloacutegico a respeito da vida e ministeacuterio de Jesus (Gnilka
2000 p73)
Jaacute em pleno exerciacutecio ministerial conforme a narrativa de Marcos (Mc 6 1-6)
Jesus fez uma fracassada visita num dia de saacutebado aos seus conterracircneos Quando
Jesus estava a ensinar na sinagoga seus conterracircneos escandalizam-se dele O
motivo para tal desprezo estava relacionado ao fato de ele ser proveniente de uma
famiacutelia pobre conhecida por todos na pequena Nazareacute A origem humilde de Jesus
provocou em seus conterracircneos um sentimento de rejeiccedilatildeo e desprezo chegando
ao ponto de total descreacutedito agrave sua sabedoria e ao seu poder de realizar milagres
Esses fatos provavelmente natildeo devem ter ocorrido no comeccedilo do ministeacuterio de
Jesus como descreve Lucas (Lc 4 14-30) ateacute porque se todos esses
acontecimentos fossem no iniacutecio de seu ministeacuterio a comunidade de Nazareacute natildeo o
teria rejeitado imediatamente mas teriam ficado na expectativa do sucesso de seu
mais conhecido cidadatildeo (Gnilka 2000 p 122)
24
Eacute possiacutevel que como artesatildeo Jesus tenha tomado parte na construccedilatildeo de Seacuteforis O silecircncio da tradiccedilatildeo de Jesus sobre Seacuteforis nos induz a crer que mesmo que Jesus tenha conhecido essa cidade atuou tatildeo pouco nela como deve ter atuado em Tiberiacuteades Jesus deve ter evitado as grandes cidades porque se identificava mais com o campo onde encontrava maior ressonacircncia (Cf Theissen 2004 p 187)
49
Aleacutem das fontes evangeacutelicas sobre Jesus temos alguns relatos de fontes natildeo
cristatildes sobre o homem chamado Jesus de Nazareacute O relato mais conhecido dos
cristatildeos eacute de Flaacutevio Josefo que por volta do ano 93 dC (eacutepoca em que ele morava
em Roma) ele testemunha a respeito de Jesus com as seguintes palavras
conforme a citaccedilatildeo de Rochus Zuurmond25
Naquele tempo a atividade de Jesus um homem saacutebio se eacute que conveacutem chamaacute-lo de homem Pois fez coisas incriacuteveis e foi mestre dos que gostam de aceitar a verdade Teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos Ele foi o Cristo Depois que Pilatos o condenou agrave morte na Cruz porque preeminentes de nosso meio o haviam acusado natildeo cessou o amor que lhe tinham seus sequazes Revivificado ele lhes apareceu no terceiro dia pois os profetas de Deus haviam a seu respeito anunciado este fato e mil outras coisas espantosas Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)
Zuurmond duvida que essa citaccedilatildeo seja de Josefo uma vez que seria
praticamente impossiacutevel Josefo referir-se a Jesus como Cristo e muito mais difiacutecil
ainda seria ele mencionar a ressurreiccedilatildeo ldquocom apelo aos profetasrdquo Contudo
segundo Zuurmond seria muito difiacutecil que Josefo vivendo naquela eacutepoca natildeo
mencionasse Jesus em seus escritos Partindo desse princiacutepio o mais provaacutevel eacute
que o texto tenha sido ldquoprofundamente revisadordquo por um cristatildeo Para Zuurmond
dentre as vaacuterias tentativas para reproduzir o texto original de Josefo a mais provaacutevel
seria a de que o texto teria a seguinte conotaccedilatildeo
foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus um saacutebio que teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos chamaram-no de Cristo Seus sequazes afirmam que ele revivificado lhes apareceu Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome ainda natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)
O proacuteprio Zuurmond acredita que essa reconstruccedilatildeo eacute muito hipoteacutetica
Segundo ele o mais provaacutevel eacute que o texto tenha sido muito mais reduzido e que
tenha sido totalmente substituiacutedo (cf Zuurmond 1998 p 74)
Aleacutem de Josefo temos ainda outras citaccedilotildees hipoteacuteticas de fontes natildeo
cristatildes como a correspondecircncia de Pliacutenio Juacutenior com Trajano por volta de 115 dC
Pliacutenio refere-se agrave reuniatildeo dos cristatildeos e detalha o fato de que cantam um hino ldquoa
Cristo como Deusrdquo Suetocircnio por volta de 120 dC descreve que o Imperador
25
Essa citaccedilatildeo tambeacutem pode ser conferida em Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 3 p 590
50
Claacuteudio expulsou os judeus de Roma porque causavam problemas ldquopor instigaccedilatildeo
de Crestordquo Ainda por volta de 115 dC Taacutecito em annales XV 44 relata sobre o
incecircndio de Roma e sobre um grupo de Cristatildeos seguidores de ldquoum tal Cristordquo
Segundo Zuurmond estas foram as palavras do historiador romano
A fim de abafar este boato (de que ele mesmo foi responsaacutevel pelo incecircndio de Roma Nero inventou alguns bodes expiatoacuterios e submeteu agraves mais sofisticadas formas de supliacutecio aqueles que costumavam ser chamados de cristatildeos um grupo de gente odiado por todos por causa de seus crimes abominaacuteveis Eles devem o seu nome a um tal Cristo que durante o governo de Tibeacuterio (imperador de 14 a 37) por ordem do procurador Pocircncio Pilatos foi executado Depois de ter sido oprimida durante algum tempo essa supersticcedilatildeo perniciosa irrompeu novamente natildeo apenas na Judeacuteia onde este mal se originou mas tambeacutem em Roma para onde confluem e onde costumam ser assiduamente fomentados costumes horrorosos e vergonhosos de toda a espeacutecie (cf Zuurmond 1998 p75-76)
Essas fontes natildeo cristatildes quase que sempre satildeo vistas com alguma
desconfianccedila por alguns especialistas quanto agrave autenticidade de seus conteuacutedos
No entanto qualquer conjectura sobre o assunto natildeo passaraacute de mera
especulaccedilatildeo O mais importante eacute que a histoacuteria de Jesus eacute tatildeo grande que o mais
aacutevido inimigo jamais poderaacute tornaacute-la como algo insignificante para a humanidade
43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES
Como sabemos Jesus nunca nos deixou nada por escrito no entanto tudo o
que sabemos sobre ele estaacute registrado nos evangelhos especificamente nos
evangelhos canocircnicos considerados pela tradiccedilatildeo cristatilde como os mais confiaacuteveis jaacute
que para a tradiccedilatildeo cristatilde conforme vemos em Duquoc os evangelhos apoacutecrifos26
podem sem duacutevida transmitir autecircnticos dados histoacutericos mas natildeo possuem
autoridade para que a partir dos testemunhos descritos neles possa-se elaborar
uma teologia consistente (Duquoc 1992 p 21)
26
Sanders compartilha da ideia da maioria dos estudiosos de que muito pouco dos evangelhos apoacutecrifos pode situar-se aos dias de Jesus Para ele esses evangelhos satildeo ldquolegendaacuterios e mitoloacutegicosrdquo De todo o material apoacutecrifo segundo Sanders somente alguns ditos do evangelho de Tomeacute merecem consideraccedilatildeo No entanto natildeo significa que seja possiacutevel fazer uma divisatildeo clara colocando os Evangelhos canocircnicos de um lado e os apoacutecrifos de outro uma vez que segundo Sanders haacute material lendaacuterio e criaccedilatildeo posterior nos Evangelhos do Novo Testamento Natildeo obstante eacute nos quatro Evangelhos que devemos buscar traccedilos do Jesus histoacuterico conclui Sanders (Sanders 2005 p 88-89)
51
Leif E Vaage eacute mais radical chegando afirmar que todos os escritos cristatildeos
primitivos que tratam da infacircncia de Jesus satildeo apoacutecrifos Segundo ele inclusive os
Evangelhos canocircnicos (Vaage 2007 p 38) Vaage baseia seu argumento no fato de
que nenhum dos Evangelhos relata realmente como foi a gravidez nascimento e
infacircncia de Jesus Por isso natildeo podem ser considerados historicamente
ldquoautecircnticosrdquo No entanto temos um olhar mais positivo sobre os apoacutecrifos em Jacir
de Freitas Faria Para ele noacutes podemos encontrar nos apoacutecrifos ldquovalores que a
piedade popular conservou como dogma de feacuterdquo (Faria 2007 p9) Na visatildeo de Faria
se natildeo fossem os apoacutecrifos do Novo Testamento natildeo saberiacuteamos os nomes de
pessoas como os avoacutes de Jesus dos reis magos dos dois ladrotildees da cruz e outros
nomes relacionados aos cristatildeos do primeiro seacuteculo
Os evangelhos27 por certo satildeo a histoacuteria do Jesus terreno contudo segundo
Bornkamm vale ressaltar que os Evangelhos satildeo histoacuteria mas natildeo no sentido da
histoacuteria moderna ou seja ldquoos evangelistas natildeo eram historiadores de profissatildeo e a
tradiccedilatildeo popular estaacute sempre sujeita a mudanccedilas no processo de transmissatildeordquo
(Bornkamm 1981 p35) Os evangelhos prossegue Bornkamm ldquonatildeo podem ser
classificados entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos como
Tuciacutedides Poliacutebio e Taacutecito nem entre biografias contemporacircneas como As Vidas
dos Ceacutesares de Suetocircnio [cerca de 70-140 dC] rdquo (1981 p35)
Sanders analisando a natureza do material evangeacutelico considera tal tarefa
como uma das mais desafiadoras a ser realizada pelo pesquisador Ainda que a
opiniatildeo dele sobre as fontes seja positiva ele natildeo deixa de enumerar alguns
aspectos considerados problemaacuteticos ou negativos conforme resumimos abaixo
1) Os primeiros cristatildeos natildeo escreveram uma narrativa (histoacuteria) da vida
de Jesus mas escreveram pequenas passagens sobre as suas
palavras e obras Essas pequenas partes foram mais tarde
organizadas pelos autores dos Evangelhos Isso significa que nunca
poderemos estar tatildeo perto do contexto imediato dos ditos e feitos de
Jesus
27
Conforme Marconcini (2009 p 6) o termo evangelho encontra-se doze vezes nos sinoacuteticos das quais quatro vezes em Mateus (423 9 35 24 14 26 13) em Marcos oito vezes (114-15 835 1029 1310 149 1615) a palavra vem sempre da boca de Jesus com exceccedilatildeo de Marcos 11 Jaacute no Evangelho de Lucas prevalece o verbo evangelizar que aparece dez vezes (119 210 318 41843 722 81 96 1616 201)
52
2) Os primeiros cristatildeos revisaram alguns materiais e criaram outros
3) Os Evangelhos foram escritos de forma anocircnima28
4) O Evangelho de Joatildeo eacute muito diferente dos outros trecircs Evangelhos e eacute
principalmente nesse Evangelho que devemos buscar informaccedilotildees
sobre Jesus
5) Aos Evangelhos faltam muitas caracteriacutesticas para ser uma biografia e
temos que distingui-los das biografias modernas (cf Sanders 2005 p
81-82)
A partir dos dados acima observamos que os Evangelhos realmente natildeo
satildeo histoacuteria no sentido moderno do termo No entanto conforme Martins Terra
devemos aplicar a criteriologia moderna de atestar a autenticidade dos escritos ou
seja aquela que estaacute focada mais nos criteacuterios internos29 do que nos criteacuterios
externos mas sempre tendo como base os testemunhos histoacutericos (Martins Terra
1977 p126)
Segundo Latourelle a criacutetica externa analisa os Evangelhos a partir dos
escritos extra-evangeacutelicos (Cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos) e sobretudo a
partir dos testemunhos das Igrejas poacutes-apostoacutelicas (II e III seacuteculos) enquanto que a
criacutetica interna apoia-se no proacuteprio texto (anaacutelise do tecido literaacuterio estudo do
conteuacutedo) Para esse teoacutelogo a criacutetica externa sempre obteve ecircxito em relaccedilatildeo agrave
critica interna mas nos dias atuais essa situaccedilatildeo tem mudado ou seja a criacutetica
interna tem se sobreposto agrave critica externa No entanto Latourelle prefere ficar em
um meio termo e mesmo que a criacutetica externa esteja em decadecircncia Latourelle vecirc
trecircs pontos importantes que podem ser explorados nela ldquosobre os autores dos
28
Sanders referindo-se a autoria dos Evangelhos diz que natildeo sabemos quem realmente satildeo os autores Mateus e Joatildeo foram disciacutepulos de Jesus Marcos foi seguidor de Paulo e possivelmente tambeacutem de Pedro jaacute Lucas foi um dos convertidos (disciacutepulos) de Paulo Mateus Marcos Lucas e Joatildeo realmente existiram mas natildeo podemos afirmar que eles escreveram os Evangelhos Existem provas que os Evangelhos permaneceram sem tiacutetulo de autoria ateacute a metade do seacuteculo II dC e eram sempre citados anonimamente A nomenclatura segundo Mateus segundo Marcos segundo Lucas segundo Joatildeo apareceram de repente por volta do ano 180 em meio ao grande nuacutemero de evangelhos escritos a Igreja teve que decidir quais deles seriam canocircnicos e diante de diferentes opiniotildees os que pensavam que apenas os quatro citados acima eram os que testemunhavam sobre Jesus com autoridade ganharam a questatildeo (cf Sanders 2005 p 87-88)
29 Segundo Martins Terra ldquoa criacutetica interna procura refazer na medida do possiacutevel a histoacuteria das
tradiccedilotildees [traditionsgeschichte] e separar os elementos redacionais [=dos evangelistas] dos elementos provenientes da tradiccedilatildeo anterior ateacute seus estratos mais primitivos Admite-se pois como vaacutelida a ideia fundamental da histoacuteria das formas (formgeschichte e da histoacuteria da redaccedilatildeo [Redaktionsgeschichte])rdquo (Martins Terra 1977 p 126)
53
Evangelhos sobre a autoridade desses na Igreja dos primeiros seacuteculos e sobre a
atitude da Igreja perante as tendecircncias deformadoras dos apoacutecrifos e dos escritos
gnoacutesticosrdquo (Latourelle 1989 p118)
Latourelle observa que ldquoa tradiccedilatildeo tem a tendecircncia de individualizar os
autores e colocaacute-los em relaccedilatildeo iacutentima com uma autoridade apostoacutelicardquo (Latourelle
p118) Um argumento bem aceito pela criacutetica contemporacircnea eacute de que documentos
- o Cacircnon Muratori os proacutelogos antimarcionistas - e os antigos teoacutelogos da Igreja
(Paacutepias Irineu de Liatildeo) - aceitaram Marcos e Lucas como autores dos Evangelhos
que levam os seus nomes porque eles realmente satildeo os verdadeiros autores O
raciociacutenio para defender essa tese conforme expotildee Latourelle eacute que se os teoacutelogos
da patriacutestica (seacuteculo II) tivessem interesse em ldquofalsificarrdquo a autoria dos Evangelhos
para dar maior credibilidade aos mesmos teriam dado a esses dois nomes de
apoacutestolos que conviveram com Jesus e natildeo de testemunhas indiretas como nos
casos de Marcos e Lucas Partindo desse raciociacutenio Latourelle citando Descamps
conclui ldquose as Igrejas do seacuteculo II mantiveram os nomes de Marcos e Lucas como
autores fizeram-no sem duacutevida sob a pressatildeo dos fatosrdquo (Latourelle 1989 p 18)
Segundo Bornkamm ldquoeacute significativo que os evangelhos satildeo anocircnimos e que
os nomes (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo) foram dados para aleacutem do seacuteculo II O
evangelho de Lucas eacute o que mais se aproxima da historiografiardquo (Bornkamm 1981
p35) Aparentemente os Evangelhos datildeo a impressatildeo de continuidade mas os
textos natildeo oferecem um fundo real de uma histoacuteria reconstituiacutevel (Bornkamm 1981
p37) Um fato importante a se observar satildeo as legendas ou seja a forma como
fatos da vida de Jesus ou de personagens do Novo Testamento foram contados
(Bornkamm 1981 p41) O narrador natildeo estaacute preocupado em escrever histoacuterias
mas com a santidade e a piedade exemplar dessas figuras Em alguns casos
chamamos legenda ou embelezamento Bornkamm acredita que temos boas razotildees
para confiar na memoacuteria simples dos disciacutepulos contudo ldquonatildeo devemos subestimar
a influecircncia da feacute poacutes-pascal mesmo com a tradiccedilatildeo passada de matildeo em matildeosrdquo
(Bornkamm 1981 p 43)
A tradiccedilatildeo como vimos acima esforccedila-se para aproximar os Evangelhos das
testemunhas oculares e supervaloriza a qualidade das testemunhas fazendo de
Marcos um porta-voz de Pedro quando Marcos eacute muito mais um relator fiel da
54
pregaccedilatildeo da comunidade primitiva30 A tradiccedilatildeo tambeacutem atribui o primeiro Evangelho
a Mateus e o uacuteltimo a Joatildeo Poreacutem Bornkamm partindo do princiacutepio da teoria das
duas fontes analisa a origem dos Evangelhos especificamente os sinoacuteticos da
seguinte forma dentre as teorias a respeito da formaccedilatildeo dos Evangelhos a mais
aceita e mais coerente eacute a teoria das duas fontes Segundo essa teoria Marcos eacute o
Evangelho mais antigo ele forma a base dos outros dois Evangelhos ldquomaioresrdquo e
estaacute inserido neles Aleacutem de usarem Marcos tanto Mateus como Lucas fizeram uso
independente de uma segunda fonte isso se pode ver pelos muitos ditos e grupos
de ditos natildeo encontrados em Marcos que eles tecircm em comum (Bornkamm 1981
p31) De acordo com J Jeremias Marcos escreveu em grego mais primitivo e
serviu de base para os outros dois Isso comprova que ele eacute o Evangelho mais
antigo O Evangelho de Mateus eacute um Evangelho de Marcos reelaborado
estilisticamente e acrescido de material novo que daacute mais da metade de Marcos
Seguindo a linha de pesquisa da teoria das duas fontes verificamos que mesmo que
Mateus e Marcos discordem de Lucas na ordem dos acontecimentos ou Lucas e
Marcos estejam em discordacircncia em relaccedilatildeo a Mateus dificilmente Mateus e Lucas
juntos oponham-se a Marcos
Haacute poreacutem algumas hipoacuteteses contraacuterias a teoria das duas fontes e elas se
apoiam no testemunho de Papias bispo de Hieraacutepolis na Friacutegia que compocircs por
volta de 130 uma exegese dos oraacuteculos do Senhor conforme relatado por Euseacutebio
de Cesareia em a ldquoHistoacuteria da Igrejardquo Eis o que dizia o Presbiacutetero
Marcos que era o inteacuterprete de Pedro escreveu com exatidatildeo no entanto sem ordem tudo o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor mais tarde poreacutem como jaacute disse ele acompanhou Pedro Este ministrava seus ensinamentos segundo as necessidades mas sem fazer uma siacutentese das palavras do Senhor Desse modo Marcos natildeo cometeu erro escrevendo como se lembrava Seu uacutenico propoacutesito foi nada omitir do que havia ouvido e em nada enganar no que relatava (Latourelle 1989 p121-122)
30
Martins Terra comentando sobre a tradiccedilatildeo sobre os Evangelhos observa que ldquohoje em dia se insiste mais na inspiraccedilatildeo do livro do que no autorrdquo O problema consiste no fato de os Evangelhos terem sido escritos depois de 30 anos de pregaccedilatildeo da Igreja e da tradiccedilatildeo oral Muitas coisas devem ser levadas em consideraccedilatildeo quando se trata da autoria dos Evangelhos uma vez que haacute vaacuterios niacuteveis de mediaccedilotildees que devem ser levados em consideraccedilatildeo (cf Martins Terra 1977 p 125)
55
Segundo Euseacutebio baseado no testemunho de Papias foi Mateus quem
colocou em ordem os oraacuteculos do Senhor em liacutengua hebraica31 Qualquer que seja a
data e o conhecimento de Papias aquilo que ele de fato escreveu estaacute em nosso
alcance apenas em citaccedilotildees de Euseacutebio Os livros de Papias (logiotilden Kyriakotilden
Exegesis Exegese das Logia do Senhor) sobreviveram ateacute a Idade Meacutedia em
algumas bibliotecas da Europa mas natildeo mais existem (Carson et al 1997 p75)
Dalman (1902 p 87) fazendo uma anaacutelise sobre os testemunhos a favor da
teoria que se refere agrave origem aramaica dos Evangelhos eacute categoacuterico em afirmar
que aleacutem do bem conhecido depoimento de Euseacutebio noacutes natildeo temos nenhum traccedilo
a favor da existecircncia de um Evangelho escrito em liacutengua semiacutetica Ateacute mesmo
Jerocircnimo deve ter se enganado em ter dito que o Evangelho original de Mateus
escrito em hebraico ainda existia em seus dias Para Dalman mesmo os vaacuterios
textos dos Evangelhos em aramaico que satildeo conhecidos hoje e ateacute mesmo o texto
que Jerocircnimo usava em aramaico era derivado dos originais gregos
Temos ainda um segundo testemunho da origem dos Evangelhos dado por
Clemente de Alexandria conforme descrito por Euseacutebio na obra Histoacuteria da Igreja
Segundo Euseacutebio Clemente cita uma tradiccedilatildeo dos Anciatildeos a respeito da ordem dos
Evangelhos Conforme essa teoria os Evangelhos que compreendem as
genealogias foram escritos primeiro (Mateus e Lucas) jaacute o Evangelho de Marcos foi
escrito nas seguintes circunstacircncias O apoacutestolo Pedro pregou em Roma e expocircs
publicamente sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo a doutrina evangeacutelica do
cristianismo primitivo Os numerosos ouvintes de Pedro exortaram a Marcos a
transcrever as palavras do apoacutestolo jaacute que aquele tinha acompanhado Pedro por
muito tempo e por certo tinha vivo em sua mente muito do que o apoacutestolo Pedro
havia dito Todavia segundo Euseacutebio quando Pedro soube disso nada fez por meio
de seus conselhos para impedi-lo disso ou para forccedilaacute-lo a isso32
Esse testemunho como o de Papias referem-se aos Anciatildeos isto eacute a
homens da segunda geraccedilatildeo cristatilde A tradiccedilatildeo posterior natildeo faraacute mais do que
retomar esses argumentos
31
Cf Eusebius the Church History translation and commentary by Paul L Maier 2007 p 114 32
Cf Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p 1690 citaccedilatildeo da Hist Ecl IV 14 5-7
56
Papias e Clemente estatildeo de acordo em atribuir a composiccedilatildeo de um dos evangelhos a Marcos disciacutepulo de Pedro (cf 1Pd 5 13) cuja pregaccedilatildeo ele havia escrito Vindo de duas fontes arcaicas diferentes esta informaccedilatildeo pode ser considerada como certa Conforme Clemente Marcos teria escrito enquanto Pedro ainda vivia uma vez que ele estava por outro lado mais ou menos desinteressado desse empreendimento Papias natildeo nos daacute nenhuma informaccedilatildeo expliacutecita sobre este ponto Seu texto permite ao contraacuterio pensar que Marcos havia escrito depois da morte de Pedro e eacute neste sentido que interpretaratildeo Irineu de Liatildeo e o mais antigo Proacutelogo evangeacutelico que nos chegou (fim do seacuteculo II) Papias natildeo nos diz onde Marcos escreveu o seu Evangelho Clemente precisa que foi em Roma onde Pedro exercia o seu ministeacuterio Este pormenor retomado na tradiccedilatildeo posterior parece exato pois o Evangelho de Marcos conteacutem certo nuacutemero de termos gregos que satildeo apenas transcriccedilatildeo do latim (Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p1690)
Apesar de todo o complexo em torno das fontes atualmente a teoria das
duas fontes eacute a mais aceitaacutevel Para Bornkamn haacute tantos paralelos entre Mateus e
Lucas que podemos confiar que tal fonte existiu O que natildeo podemos saber eacute em
que extensatildeo ela jaacute tinha adquirido uma forma literaacuteria fixa Uma coisa eacute certa ela
deve ter sido bem diferente do Evangelho de Marcos Eacute possiacutevel ter certeza que a
fonte Q natildeo era um Evangelho acabado como o Evangelho de Marcos o eacute O modo
como Q eacute usada em Mateus e Lucas mostra como os dois evangelistas a trataram
com mais liberdade do que fizeram com Marcos Isso eacute verdade tanto com
referecircncia ao teor verbal quanto agrave sequecircncia do material Marcos e Q
absolutamente natildeo exaurem as fontes da tradiccedilatildeo sinoacutetica Mesmo Marcos tem
material proacuteprio Lucas eacute quem possui mais cobrindo tanto o ministeacuterio terreno
como as narrativas pascais bem como o material consideraacutevel que ele inseriu na
moldura criada por Marcos
A noccedilatildeo de autoria natildeo resiste aos dados da criacutetica contemporacircnea Os
Evangelhos de Mateus e Joatildeo natildeo possuem nenhuma evidecircncia interna que possa
atribuir a eles a autoria e da mesma forma Lucas e Joatildeo Segundo Latourelle a
criacutetica duvida que eles tenham sido testemunhas ateacute mesmo de segunda matildeo No
entanto a criacutetica reconhece que o autor do primeiro Evangelho era um judeu de
liacutengua grega profundamente conhecedor do judaiacutesmo de sua eacutepoca A criacutetica
tambeacutem reconhece Lucas como o meacutedico e companheiro de Paulo assim como
reconhece Marcos como companheiro de Paulo e sua influecircncia sobre os
evangelhos de Mateus e de Lucas Quanto agrave influecircncia de Pedro sobre o Evangelho
de Marcos a mesma eacute contestada pela criacutetica visto que Marcos parece ser mais um
57
relator e transmissor da pregaccedilatildeo da Igreja primitiva aleacutem de parecer ter sofrido
mais a influecircncia de Paulo
A contribuiccedilatildeo da patriacutestica testemunhada pelos pais da Igreja jamais pode
ser descartada por mais acriacutetica e ingecircnua que pareccedila ser visto que eles viveram
bem proacuteximos dos acontecimentos registrados nos Evangelhos
A importacircncia dos escritos antigos a respeito dos Evangelhos foi a resposta
da igreja aos hereges e aos evangelhos apoacutecrifos O exagerado embelezamento que
os apoacutecrifos criam para ldquocomplementarrdquo os Evangelhos canocircnicos obrigou a Igreja a
criteriosamente separar os Escritos canocircnicos dos apoacutecrifos Para Bornkamm a
formaccedilatildeo do cacircnon do Novo Testamento sempre foi um processo de separar e
nunca de juntar Conforme esse teoacutelogo seria mais viaacutevel perguntar se um livro
deveria estar no cacircnon do Novo Testamento do que perguntar por que determinado
livro natildeo faz parte dele
A Igreja tambeacutem teve que combater o gnosticismo que estava tentando minar
a veracidade dos Escritos Sagrados principalmente com Marciatildeo que com seu
dualismo ldquoopotildee o Deus bom do Novo Testamento ao Deus justo do Antigo
Testamentordquo (Latourelle 1989 p124) A Igreja entatildeo saiu em defesa do
cristianismo autecircntico levantando o estandarte dos quatro Evangelhos como os
uacutenicos reconhecidos como a ldquoautecircntica mensagem de Cristo reconhecida e
ensinada pela tradiccedilatildeo viva da igreja O criteacuterio decisivo eacute o acordo entre os
Evangelhos e a tradiccedilatildeo apostoacutelica que por sua vez se refere ao Cristo vivordquo
(Latourelle 1989 p125)
Eacute vaacutelido observar que os evangelhos sinoacuteticos33 satildeo compostos de ldquotradiccedilotildees
isoladas chamadas de periacutecopesrdquo Essas periacutecopes geralmente tecircm uma
conotaccedilatildeo teoloacutegica e natildeo necessariamente cronoloacutegica ldquoNa verdade muitas
periacutecopes incluem indicaccedilotildees topograacuteficas (no mar da Galileia em Cafarnaum
etc) mas a maioria delas natildeo eacute bem determinada Outro fato a se observar eacute que
nos sinoacuteticos Jesus se dirige a Jerusaleacutem uma uacutenica vez poreacutem em Joatildeo lsquovemos
Jesus se dirigindo a Jerusaleacutem repetidas vezesrsquordquo Segundo Gnilka o importante natildeo
eacute a exatidatildeo do itineraacuterio mas sim a reflexatildeo teoloacutegica (Gnilka 2000 p 24) No
33
O nome sinoacuteticos foi dado aos trecircs primeiros Evangelhos pelo pesquisador alematildeo J J Griesbach em sua obra Synopsis evangeliorum [Sinopse dos Evangelhos] obra que foi publicada em Halle em 1976 (Cf Marconcini 2009 p 10)
58
entanto conforme Benito Marconcini haacute uma concordacircncia nos sinoacuteticos quanto agrave
sucessatildeo dos fatos no ministeacuterio de Jesus Conforme Marconcini ldquoJesus inicia seu
ministeacuterio na Galileia atravessa a Samaria e chega a Jerusaleacutem onde tem o
encontro com a morterdquo (Marconcini 2009 p 10)
O concilio do Vaticano II reproduziu na constituiccedilatildeo sobre a Revelaccedilatildeo o
resultado das pesquisas modernas sobre a Historicidade dos Evangelhos e sobre o
Jesus Histoacuterico conforme resumimos abaixo
a) Os quatro Evangelhos transmitem fielmente o que Jesus realmente fez e
ensinou para a eterna salvaccedilatildeo dos homens
b) Os Apoacutestolos depois transmitiram o que Jesus havia dito e feito ()
c) Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos selecionando
algumas coisas dentre as muitas que tinham sido transmitidas oralmente ou por
escrito sintetizando outras ou adotando-as agraves situaccedilotildees das igrejas (Martins Terra
1977 p 129)
Seria imprudente buscar nos Evangelhos fatos como se busca numa revista
ou jornal de grande circulaccedilatildeo internacional moderna como New York Times por
exemplo Contudo segundo Swidler devemos olhar os quatro Evangelhos como
uma variedade de fontes orais e escritas que apoacutes um periacuteodo de tempo foram
redigidas conforme as necessidades sentidas pelas comunidades e indiviacuteduos da
eacutepoca No entanto fica claro que essa visatildeo criacutetica (moderna) dos Evangelhos natildeo
invalida o caraacuteter histoacuterico desses escritos Eles retratam com muito maior exatidatildeo
sob o ponto de vista histoacuterico-religioso (teoloacutegico) o que Jesus queria dizer com
certas declaraccedilotildees e accedilotildees relatadas pelas primeiras comunidades da Igreja
Primitiva (cf Swidler 1993 p104-105)
Natildeo podemos menosprezar a capacidade da comunidade cristatilde primitiva de
memorizar os fatos relacionados agrave vida de Jesus mas por outro lado natildeo podemos
negligenciar a limitaccedilatildeo humana em memorizar acontecimentos histoacutericos
Raciocinando dessa forma pode-se deduzir que com certeza muitas dessas
recordaccedilotildees natildeo foram transmitidas e nem registradas Eacute evidente que nem todas as
paraacutebolas foram registradas isso estaacute claro em Marcos 433 onde se lecirc ldquoE com
muitas paraacutebolas como esta anunciava-lhes a palavra segundo podiam entenderrdquo
ldquoPodemos partir do pressuposto de que nos evangelhos ficaram conservadas as
59
paacuteginas da atuaccedilatildeo e dos discursos de Jesus que satildeo de decisiva importacircncia para
a nossa feacuterdquo (Gnilka 2000 p25)
44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS
Jesus segundo Gnilka (2000 p35-36) viveu durante o governo de dois
imperadores romanos ldquoo de Otaviano Augusto (27 aC - 14 dC) e o de Tibeacuterio (14-
37)rdquo Nenhum dos dois esteve nessas paragens orientais do Impeacuterio nenhum dos
dois pisou territoacuterio da Siacuteria ou da Palestinardquo A histoacuteria de Jesus estaacute intimamente
ligada agrave famiacutelia Herodes Jesus nasceu sob o governo de Herodes o Grande filho
de Antiacutepater de origem idumeia Por decisatildeo do senado romano e tambeacutem por
iniciativa dos triuacutenviros Antocircnio e Otaviano e mais tarde Augusto pelo fim do ano 40
aC Herodes foi nomeado rei da Judeia
Apoacutes a morte de Herodes o Grande em 4 aC inicia-se uma disputa entre
seus filhos pela sucessatildeo que culminou na divisatildeo do poder entre os descendentes
de Herodes pelo imperador Historicamente dentre os filhos de Herodes o que mais
nos interessa eacute Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) que ficou como tetrarca da
Galileia Dentre os feitos de Antipas podemos citar a reconstruccedilatildeo da cidade de
Seacuteforis e a fundaccedilatildeo da cidade de Tiberiacuteades agrave margem do lago de Genezareacute
cidade que recebeu esse nome em honra ao Imperador Tibeacuterio Foi essa cidade
construiacuteda sobre um cemiteacuterio que Antipas escolheu para residecircncia oficial
tornando-a impura aos olhos dos Judeus crentes por causa das leis leviacuteticas (Gnilka
2000 p 39)
Herodes Antipas ficou conhecido por mandar matar Joatildeo Batista conforme o
relato nos evangelhos (Mc 617-29 Mt 14 3-12) e tambeacutem por Flaacutevio Josefo34 Os
motivos da morte de Joatildeo Batista nos evangelhos satildeo diferentes dos motivos
expostos por Josefo visto que Josefo coloca questotildees poliacuteticas como a principal
causa da execuccedilatildeo de Joatildeo jaacute que Antipas temia uma revolta poliacutetica a partir do
movimento do Batista Para Jesus Antipas tambeacutem tornou-se perigoso ldquoSegundo
Lc 1331 Jesus eacute aconselhado a sair de seu territoacuterio porque o priacutencipe pretendia
mataacute-lordquo (Gnilka 2000 p 40)
34
Cf Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 5 p 594-597
60
Na Judeia a situaccedilatildeo poliacutetica e religiosa era caoacutetica Arquelau (4 aC ndash 6
dC) filho de Herodes o Grande logo depois de ser instituiacutedo etnarca da Judeia e
Idumeia devido a sua extrema tirania tornou-se insuportaacutevel para os judeus a
ponto de um grupo desses ir ateacute Roma para denunciaacute-lo pela forma tiracircnica de
governar bem como a liberdade que tomou para depor e instituir sacerdotes no
templo em Jerusaleacutem Judeia Samaria e Idumeia passam a ser administradas
diretamente por Roma apoacutes Arquelau ser deposto (Gnilka 2000 p 41-42)
Eacute a partir de toda essa confusatildeo que entra em cena a figura de Pocircncio
Pilatos como governador da Judeia (praefectus Judaeae) Nessa eacutepoca tanto o
poder poliacutetico quanto o religioso eram controlados diretamente por Roma ldquoNo
templo tinha que ser oferecido duas vezes por dia um sacrifiacutecio pelo imperador e
pelo povo romano Sobre a administraccedilatildeo das financcedilas do templo o governador
provavelmente tinha uma espeacutecie de supervisatildeo As nomeaccedilotildees dos sumos
sacerdotes tambeacutem eram feitas pelos romanos fosse atraveacutes do governador da
Siacuteria ou do governador da Judeia Isto foi assim nos anos 6-41 depois de Cristordquo
(Gnilka 2000 p 42-43)
O mais importante dos governadores da Judeia que foi contemporacircneo de
Jesus foi Pilatos que segundo os Evangelhos participou decisivamente na morte
de Jesus ldquoFilon de Alexandria caracteriza Pilatos como um homem de natureza
inflexiacutevel obstinado e duro e acusa-o de corrupccedilatildeo violecircncia roubo maus tratos
ofensas continuadas execuccedilotildees sem julgamento constante e insuportaacutevel
crueldaderdquo (Gnilka 2000 p 44) Os dez anos em que Pilatos governou a Judeia
nos quais Caifaacutes tambeacutem sempre foi o Sumo Sacerdote foram marcados pela
crueldade e imprevisibilidade ateacute que no ano 36 ele foi deposto apoacutes ter feito um
violento massacre de samaritanos enquanto esses escalavam o monte Garizim Pelo
fato de estarem armados Pilatos os interpretou mal e resolveu intervir
massacrando-os Mediante esse fato Pilatos foi chamado a Roma para depor diante
do imperador Tibeacuterio mas com a morte deste ele ldquodesaparece do palco da histoacuteria
Notiacutecias surgidas mais tarde dando conta de que ele teria se suicidado ou que teria
sido executado pelo imperador Nero devem ser creditadas a lenda cristatilderdquo (Gnilka
2000 p 44-45)
61
Abaixo segue um resumo do governo poliacutetico e religioso das regiotildees e
cidades com as quais Jesus conviveu (Gnilka 2000 p 47)
- Os herodianos Herodes o Grande (37-4 aC) Antipas (4 aC-39 dC
GalileiaPereia) Filipe (4 aC -34 dC GaulaniacutetideBataneia Arquelau (4 aC -6 C
JudeiaSamariaIdumeia)
- Os Governadores na JudeiaSamariaIdumeia Copocircnio (6-9) Marcos
Antiacutebulo (circa 9-12) Acircnio Rufo (circa 12-15) Valeacuterio Grato (15-26) Pocircncio Pilatos
(26-36)
- Os sumos sacerdotes em Jerusaleacutem Simatildeo ben Boethos (24-5 aC)
Matias ben Theophilos (5-4) Joseacute bem Ellem (exerceu soacute por uma festa) Joazar ben
Boethos (4 aC) Eleazar ben Boethos (4 aC -) Jesus ben sieuml (tempo de cargo
desconhecido) Joazar ben boethos (no cargo pela segunda vez de -6 d C) Anaacutes
ben Sethi (6-15 d C) Ismael bem Phiabi (15-16) Eleazar ben Kamithos (17-18)
Joseacute Caifaacutes (18-36)
Jerusaleacutem era a cidade onde giravam os grandes acontecimentos da
Palestina era considerada a cidade santa natildeo somente por ser administrada
politicamente por Herodes o grande jaacute que muito antes dele a cidade jaacute havia se
transformado no centro espiritual e religioso do Judaiacutesmo A cidade no tempo dos
gregos e romanos tinha de certa forma uma feiccedilatildeo internacional Jesus entrou na
cidade foi aclamado mas logo rejeitado e entregue para ser morto pelo grupo dos
religiosos encarregados de todos os rituais do Templo (Gnilka 2000 p 49)
45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS
Jesus viveu num contexto muito religioso Foi apresentado no templo
circuncidado ao oitavo dia conforme a tradiccedilatildeo da religiatildeo judaica Sempre houve
uma tendecircncia de separar Jesus do contexto judaico tanto por judeus como por
cristatildeos Swidler pontua que os cristatildeos historicamente natildeo somente procuraram
mostrar que tudo o que Jesus fez era bom como procuraram demonstrar que tudo o
que ele fez foi oposto ao modo de agir dos judeus Por outro lado os judeus
aceitaram a interpretaccedilatildeo cristatilde que via Jesus como um antijudeu Atualmente as
coisas estatildeo mudando judeus tecircm visto Jesus como um autecircntico judeu enquanto
que um grande nuacutemero de estudiosos cristatildeos estatildeo convencidos de que soacute se pode
62
compreender adequadamente Jesus contextualizando-o num ambiente e como um
autecircntico Judeu (Swidler 1993 p108)
O Judeu Geza Vermes (com formaccedilatildeo cristatilde) no proacutelogo de seu livro o
ldquoAutecircntico Evangelho de Jesusrdquo relata que desde o fim da deacutecada de 1960 vem se
dedicando a pesquisar sobre Jesus indiferente agraves tradiccedilotildees cristatildes e judaicas a
respeito da pessoa do nazareno Vermes assim se expressa ldquoatuando como
historiador simpatizante e descartando vieses denominacionais tanto a deificaccedilatildeo
de Jesus pelos cristatildeos como a sua caricatura judaica tradicional como apoacutestata
maacutegico e inimigo do povo de Israel eu apenas tentei tirar a limpo e reconstruir uma
imagem de Yeshua filho de Joseacute do pequeno povoado galileu de Nazareacute (Vermes
2006 p7)
Digno de nota eacute que sendo Jesus judeu da Palestina judaica do primeiro
seacuteculo ldquona divisatildeo temporal feita em torno delerdquo (Vermes 2006 p7) obviamente
Jesus conviveu com os diversos grupos existentes na Palestina Conforme os
Evangelhos as relaccedilotildees de Jesus com os liacutederes dos movimentos religiosos nem
sempre foram amistosos Segundo Gnilka diversos eram os movimentos e grupos
poliacuteticos-religiosos nos dias de Jesus Quase todos provieram dos chassidim (os
piedosos) que haviam apoiado a resistecircncia dos macabeus e tambeacutem resistiram agrave
usurpaccedilatildeo dos asmoneus Desse movimento surgiu a maioria dos grupos religiosos
contemporacircneos de Jesus Esses grupos a maioria citados nos evangelhos satildeo
denominados de essecircnios fariseus saduceus e zelotes (Gnilka 2000 p52-53)
Enumerar esses grupos em relaccedilatildeo ao grau de importacircncia que eles exerciam
na sociedade judaica natildeo eacute uma tarefa faacutecil Diversas satildeo as hipoacuteteses levantadas
pelos pesquisadores a respeito de cada um dos grupos acima mencionados
Saldarini observa o fato de os escribas serem vistos como um grupo coeso apenas
no Novo Testamento sendo que em outras fontes eles satildeo vistos como um grupo
composto por pessoas desde a classe de altos funcionaacuterios ateacute a funccedilatildeo de um
humilde copista Outro fator que o autor observa eacute que para Josefo as trecircs
principais escolas de pensamento judaico dos dias de Jesus eram os fariseus os
saduceus e os essecircnios quando no Novo Testamento os principais oponentes de
Jesus satildeo os fariseus escribas e saduceus (Saldarini 2005 p 15)
63
451 OS ESSEcircNIOS
Dentre os grupos religiosos que temos mencionado os essecircnios satildeo os
menos conhecidos se levarmos em consideraccedilatildeo que a biacuteblia natildeo os menciona
contudo eles tecircm despertado muito interesse desde que foram descobertos os
manuscritos nas cavernas de Qumran em 1947 O jovem Mohammed ed-Dib (= ldquoo
lobordquo) conforme a descriccedilatildeo feita por J Jeremias (Jeremias 2006 p 401-429 cf
Jeremias 1979 p 117-148) tornou-se o grande protagonista talvez da maior
descoberta do seacuteculo concernente agrave literatura religiosa ou por que natildeo dizer
universal J Jeremias nos fornece alguns detalhes sobre a importacircncia das
descobertas de Qumran e o judaiacutesmo contemporacircneo de Jesus Depois que
Mohammed descobriu a primeira gruta outras dez foram descobertas sendo ateacute
hoje numeradas de 1 a 11 O papel dos beduiacutenos foi fundamental nas descobertas
visto que sem a busca incessante deles a maioria dos rolos natildeo teriam sido
descobertos Os manuscritos satildeo em um nuacutemero de aproximadamente 600 Mesmo
que a maioria seja apenas de fragmentos alguns do tamanho de uma unha mas
pelo menos uns dez encontram-se quase que totalmente preservados Eles satildeo
datados do periacuteodo que se compreende do seacuteculo III aC ao seacuteculo I da era cristatilde
Atribui-se a produccedilatildeo dos textos e o armazenamento deles em grutas aos essecircnios
conforme nos descreve J Jeremias citando a ldquoHistoacuteria Natural de Pliacutenio
A margem ocidental (do Mar Morto) fora do alcance da influecircncia nociva (de suas aacuteguas) estatildeo estabelecidos os essecircnios Eacute um agrupamento de solitaacuterios uacutenico no mundo sem mulheres ndash pois renunciam ao amor sexual e sem dinheiro eles vivem na sociedade das palmeiras (Embora se abstenham do casamento) o nuacutemero de seus adeptos se manteacutem e se renova cada dia pela afluecircncia daqueles que cansados de lutar contra as vagas de destino vecircm participar de sua vida Assim coisa incriacutevel eles permanecem atraveacutes de milhares de geraccedilotildees uma raccedila eterna ainda que natildeo existam nascimentos entre eles (V 1713)
Para J Jeremias natildeo haacute duacutevida que Pliacutenio se refere aos essecircnios mesmo
que por engano os tenha chamado de raccedila eterna Os essecircnios surgiram por volta
de 167-154 aC apoacutes Antiacuteoco Epifacircnio profanar o Templo de Jerusaleacutem Em 152
aC apoacutes a guerra com os siacuterios Jocircnatas Macabeus cinge a tiara de sumo
sacerdote mesmo natildeo pertencendo agrave descendecircncia dos sadoquitas que eram os
64
uacutenicos habilitados para exercer tal funccedilatildeo Uma revoluccedilatildeo acontece no coleacutegio
sacerdotal resultando na formaccedilatildeo de um grupo denominado de ldquoKhassyyayardquo os
piedosos que em grego satildeo denominados de ldquoessenoirdquo ou ldquoessaicircoirdquo conhecidos
hoje por essecircnios
Os essecircnios eram apocaliacutepticos esperavam o iminente fim deste mundo que
eles acreditavam estar bem proacuteximo Guardavam o saacutebado a ponto de natildeo ajudar
um animal no parto e nem socorrecirc-lo caso caiacutesse num buraco no dia de saacutebado
(Gnilka 2000 p 55-56) tambeacutem tinham como chefe um homem chamado com toda
reverecircncia nos rolos como o ldquoMestre da Justiccedilardquo ldquoo grande teoacutelogo e exegeta da
seitardquo (cf Jeremias 2006 p 408) Para Sean Freyne o chamado ldquoPapiro da Guerrardquo
(1QM) intitulado como ldquoA Guerra dos filhos da luzrdquo mostra como essa comunidade
apregoava um certo tipo de guerra coacutesmica parecida com a religiatildeo zoroaacutestrica da
Peacutersia onde a ecircnfase do conflito estaacute centrada na ideia de uma guerra do bem e o
mal (Freyne 2008 p26) J Jeremias define a teologia tambeacutem como uma doutrina
baseada em dois espiacuteritos ou seja no espiacuterito de Deus e no espiacuterito de Belial ou
seja no diabo e isso resulta na constante luta entre a Luz e as Trevas que tambeacutem
se desenrolam no interior do ser humano (Jeremias 2006 p 412) De acordo com J
Jeremias o dualismo essecircnio eacute monoteiacutesta conforme podemos ver em IQS 31517-
1925 abaixo reproduzido
Do Deus dos conhecimentos Vem tudo o que eacute tudo o que acontece e antes mesmo que as coisas existissem ele fixara todo o seu plano
Eacute ele quem criou o homem para dominar o mundo e pocircs diante de dois espiacuteritos para que ele ande neles ateacute ao momento fixado por sua divina visita
Satildeo os (dois) espiacuteritos de verdade e de iniquidade Da fonte da luz sai a verdade E da fonte das trevas sai a iniquidade Eacute ele (Deus) quem criou os espiacuteritos da luz e das trevas
65
Observamos acima algumas descriccedilotildees a respeito do grupo dos essecircnios
contudo segundo Freyne (Freyne 2008 p26) natildeo se pode resumir o pensamento
desse grupo com um periacuteodo de aproximadamente 200 anos de histoacuteria apenas em
um ponto de vista Isso pode ser visto por exemplo em 4Q 521 onde o texto
demonstra o anseio dos oprimidos por um messias libertador que venha ldquocurar os
feridos distribuir riquezas entre os necessitados conduzir de volta os exilados e
enriquecer os famintosrdquo ou ainda textos como 4Q 426 onde o ldquoGrande Deusrdquo trava
uma decisiva batalha contra as naccedilotildees e garante a paz definitiva ao seu povo O
que Freyne procura dizer eacute que o pensamento dos essecircnios eacute amplo demais para
ser resumido em poucas palavras contudo como natildeo eacute nosso interesse pesquisar a
fundo essa seita contentamo-nos a princiacutepio com algumas informaccedilotildees sobre
eles35
Ainda sobre os essecircnios sabemos por David Flusser que eles eram ferrenhos
inimigos dos fariseus uma vez que condenavam os feitos farisaicos energicamente
No Rolo de Accedilatildeo de Graccedilas (IQH) 4 6-8 estaacute escrito sobre os fariseus da seguinte
maneira ldquoE conduziram o povo por caminhos desviados ao lhes proferir discursos
macios Falsos mestres levam para maus caminhos e caminham cegamente para a
queda pois suas obras satildeo feitas no logrordquo (cf Flusser 2002 p 46)
Aleacutem do que jaacute foi dito sobre os essecircnios surge uma pergunta Ateacute que ponto
os essecircnios tiveram contato com Jesus ou seria Jesus membro da seita dos
essecircnios Segundo Charlesworth eacute possiacutevel que Jesus tenha encontrado alguns
essecircnios em suas idas e vindas no periacuteodo em que exerceu o seu ministeacuterio ou ateacute
antes disso Contudo natildeo podemos afirmar isso jaacute que os essecircnios natildeo satildeo
mencionados no Novo Testamento e na verdade natildeo temos certeza se eles
exatamente eram conhecidos (Charlesworth 1992 p76) Para Charlesworth o que
fica evidente eacute que os essecircnios e Jesus foram contemporacircneos o que nos leva a
deduzir que eacute muito provaacutevel que Jesus ao menos tenha ouvido falar deles e ateacute
conhecesse a doutrina rituais religiosos e haacutebitos sociais desse grupo
(Charlesworth 1992 p79)
Charlesworth enumera algumas semelhanccedilas e diferenccedilas entre Jesus e os
essecircnios 35
Para mais informaccedilotildees sobre os essecircnios ver (Jeremias 2006 p 401-429 e Charlesworth 1992 p 70-89)
66
a) Jesus partilha com os essecircnios de uma teologia monoteiacutesta
b) Como os essecircnios a teologia de Jesus era categoricamente escatoloacutegica
c) Jesus partilhava com os essecircnios uma total entrega a Deus e a Toraacute (Ele
pode ter se referido aos essecircnios quando elogiou os eunucos por causa do reino de
Deus cf Mt 19 10-12)
d) Jesus conforme o Evangelho de Marcos proibiu o divoacutercio (Mateus tornou-
a casuiacutestica Mt 5 31-32 199) assim como os essecircnios eram totalmente contraacuterios
ao divoacutercio ldquoo rei deve permanecer casado com apenas uma mulherrdquo (cf II Q
Temple 57 17-18)
f) Dos essecircnios Jesus rejeita a riacutegida observacircncia do Saacutebado
g) Jesus ao contraacuterio dos essecircnios aproximou-se de todas as classes
sociais inclusive de prostitutas e cobradores de impostos Aleacutem disso a visatildeo de
Jesus em relaccedilatildeo aos rituais de purificaccedilatildeo judaicos era muito diversa das dos
judeus
h) A atitude liberal de Jesus sobre a purificaccedilatildeo se contrastava com a
paranoia dos essecircnios principalmente em relaccedilatildeo ao afastamento das pessoas que
tinham lepra Em II Q Temple 48 14-15 eacute orientado a que existam cidades proacuteprias
para o isolamento dos leprosos enquanto que Jesus repousou em Betacircnia na casa
de Simatildeo o leproso (Mc 143)
i) Jesus enfatizou o amar uns aos outros (na paraacutebola do bom samaritano)
enquanto que os essecircnios na renovaccedilatildeo anual entoavam maldiccedilotildees sobre os filhos
das trevas especialmente sobre aqueles que natildeo eram essecircnios (1Qs) Jesus pode
ter se dirigido a eles quando se referiu ao dito ldquoamaraacutes o teu proacuteximo e odiaraacutes ao
teu inimigo (Mt 5 43)
Em resumo Charlesworth conclui que o cristianismo natildeo foi fundado com as
bases do essenismo conforme havia dito Renan em sua obra ldquoVida de Jesusrdquo
Jesus foi o fundador do cristianismo que foi fundado em meio agraves vaacuterias correntes
judaicas da eacutepoca sem que se possa mencionar uma uacutenica fonte como a trajetoacuteria
Jesus natildeo era um essecircnio ldquomas pode ter partilhado com os essecircnios mais do que a
mesma naccedilatildeo tempo e lugarrdquo (Charlesworth 1992 p 84-88)
452 OS FARISEUS
67
Os fariseus (pharushim ndash separados) - ldquoum grupo de estudiosos leigos que
apareceram na histoacuteria cerca de um seacuteculo e meio antes do nascimento de Jesus
() e se tornaram autoridades na vida dos judeus durante o reinado da rainha
Alexandra em (76-67 aC)rdquo (Swidler 1993 p 74) - nasceram do grupo dos chassidim
e eram em nuacutemero de seis mil pessoas em Jerusaleacutem nos dias de Jesus (Flusser
2002 p 44) Eles tambeacutem natildeo concordavam com a usurpaccedilatildeo por parte dos
asmoneus Segundo Gnilka a maioria dos escribas pertencia ao grupo dos fariseus
Em relaccedilatildeo aos saduceus os fariseus eram a maioria mas a influecircncia poliacutetica
destes era menor Jaacute o clima entre fariseus e essecircnios era hostil Os essecircnios
consideravam os fariseus com ldquogente que amolece e dissolve a lei e de quem se
pode esperar o logro mentira seduccedilatildeo e errordquo (Gnilka 2000 p57-60) Segundo
Flusser os fariseus eram denominados pelos essecircnios como ldquocaiadosrdquo e Jesus
tambeacutem se referiu a eles no Evangelho de Mateus 23 27-28 dizendo ldquoAi de voacutes
escribas e fariseus hipoacutecritas Sois semelhantes a sepulcros caiados que por fora
parecem bonitos mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidaderdquo
Embora o ataque dos essecircnios fosse em alguns pontos parecidos com a criacutetica que
Jesus fez contra os fariseus a distacircncia entre eles eacute muito grande Os essecircnios
rejeitavam explicitamente a doutrina dos fariseus ao passo que Jesus de uma
forma mais positiva via-os como os ldquoherdeiros contemporacircneos de Moiseacutesrdquo (cf
Flusser 2002 p46-48)
Os fariseus eram muito queridos pela maioria da populaccedilatildeo judaica devido agrave
devoccedilatildeo deles aos rituais religiosos Segundo Sanders no periacuteodo asmoneu os
fariseus tambeacutem exerceram uma influecircncia e forccedila poliacutetica muito importante ainda
que depois perderam tal forccedila No governo de Herodes somente o rei tinha o poder
poliacutetico uma vez que todos os que o ameaccedilassem eram imediatamente executados
Na Galileia o sucessor de Herodes foi seu filho Antipas que tambeacutem natildeo se mostrou
muito disposto assim como seu pai a dar autoridade a algum grupo de piedosos e
mestres religiosos Somente em Jerusaleacutem apoacutes Arquelau (irmatildeo de Antipas) ser
deposto eacute que os saduceus respaldados pelo poder romano puderam como grupo
religioso exercer forccedila poliacutetica Os fariseus mesmo sendo a maioria em relaccedilatildeo aos
saduceus continuaram apenas trabalhando ensinando e exercendo suas funccedilotildees
68
no culto judaico nas sinagogas A popularidade deles provavelmente aumentou
contudo natildeo o poder poliacutetico (cf Sanders 2005 p68)
A visatildeo de Saldarini sobre os fariseus compactua com Sanders a respeito da
popularidade dos fariseus Ele observa que para o evangelista Marcos os fariseus
eram um grupo muito reconhecido na comunidade da Galileia Jesus um jovem
oriundo de uma famiacutelia de artesatildeos considerada uma classe inferior na Palestina
natildeo dispunha da mesma honra dada aos fariseus principalmente em Nazareacute sua
terra natal Mas com o decorrer do tempo Jesus atraveacutes de seu ministeacuterio
conseguiu a simpatia de muitos seguidores em outras cidades da Galileia
contraindo para si o ciuacuteme a ira e a perseguiccedilatildeo dos fariseus O confronto dos
fariseus com Jesus a princiacutepio estava baseado em temas teoloacutegicos a respeito do
Jejum (Mc 218) da observacircncia do saacutebado (Mc 224 32) e sobre o divoacutercio (Mc
102) da purificaccedilatildeo das matildeos (Mc 71) e outros temas relacionados com respeito agrave
conduta de Jesus entre os homens considerados pecadores (Mc 216) etc Para os
fariseus no entanto o que estava em jogo natildeo eram apenas os debates teoloacutegicos
mas principalmente a simpatia e o controle da comunidade (Saldarini 2005 p 162-
164)
Para Saldarini os fariseus juntamente com os escribas eram os principais
opositores de Jesus na Galileia Em Jerusaleacutem os seus adversaacuterios tinham um
poder poliacutetico muito maior jaacute que entre eles estavam os chefes dos sacerdotes os
escribas e os anciatildeos do povo dentre os membros desses grupos principalmente
dos sacerdotes estavam os que entregaram Jesus agrave morte O evangelista Marcos
menciona os fariseus em cinco casos (2 18 224 32 811-15 102) e em todos os
casos eles estatildeo em conflito com Jesus36 Os escribas e fariseus juntos satildeo
mencionados duas vezes em Marcos tambeacutem quando estatildeo em conflito com Jesus
(216 7 1-5) Com os herodianos os fariseus satildeo mencionados duas vezes em
Marcos (36 1213) Para o evangelista Marcos os fariseus satildeo situados sempre na
36
Geza Vermes observa que no Evangelho de Mateus os fariseus natildeo satildeo sempre vistos no aspecto negativo Vermes vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e amor a Deusrdquo eles por outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser seguida
69
Galileia (3 2-6 7 1-5 2 18-24 811 102) A uacutenica exceccedilatildeo no evangelho de
Marcos eacute quando os fariseus e os herodianos satildeo enviados a Jesus a fim de
apanhaacute-lo em Jerusaleacutem (1213) Ao contraacuterio de Josefo que situa os fariseus
sempre em Jerusaleacutem ao lado dos chefes dos judeus Marcos mostra-os sempre
ativos na Galileia (Saldarini 2005 p159-160)
Apesar dos fariseus estarem sempre em confronto com Jesus nos
Evangelhos alguns pesquisadores veem algumas semelhanccedilas entre o movimento
de Jesus e o movimento dos fariseus Swidler lista algumas semelhanccedilas entre os
dois grupos Segundo Swidler Jesus reinterpretou as Escrituras hebraicas de
maneira condizente com o meio social onde se encontrava Jesus tambeacutem participou
de refeiccedilotildees entre amigos do tipo farisaico Tambeacutem segundo Swidler eacute possiacutevel ver
semelhanccedilas na doutrina de Jesus a respeito do amor no Shema oraccedilatildeo do
monoteiacutesmo nas bem aventuranccedilas em questotildees relacionadas agrave ressurreiccedilatildeo
tambeacutem seria ver fortes indiacutecios de um espiacuterito farisaico na vida de Jesus (cf
Swidler 1993 p78)
Para fundamentar essa teoria Swidler busca outros pesquisadores como o
teoacutelogo catoacutelico Pawlikowski que chegou a concluir que natildeo seria errado ldquoconsiderar
o movimento de Jesus como uma parte do movimento farisaico geral embora em
muitos campos tivesse um ponto de vista diferenciadordquo Swidler ainda cita o
estudioso protestante E P Sanders referindo-se a ele como mais cauteloso sobre o
assunto abordado poreacutem natildeo hesita em afirmar tambeacutem que ele faz parte do
nuacutemero sempre crescente de especialistas que duvidam que tenham existido
ldquopontos importantes de oposiccedilatildeo entre Jesus e os fariseusrdquo (Swidler 1993 p78)
A forte tendecircncia de colocar Jesus como um judeu apenas corrobora o que
ele sempre foi um judeu e natildeo um cristatildeo uma vez que o cristianismo soacute veio a
existir apoacutes a morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus Entre os judeus catoacutelicos e
protestantes tecircm surgido renomados defensores da teoria Jesus dentro do
judaiacutesmo Swidler aleacutem de citar um catoacutelico e um protestante como referecircncia cita
ainda um judeu (Geza Vermes) para corroborar esse pensamento Vermes em seu
livro Jesus e o mundo do Judaiacutesmo descreve ldquoJesus era um hasid galileu nisso a
meu ver reside a sua grandeza e tambeacutem o germe de sua trageacutediardquo (Vermes 1996
p20)
70
Para Vermes contudo Jesus natildeo foi muito amado pelos fariseus porque
Jesus segundo a visatildeo e interpretaccedilatildeo biacuteblica dos fariseus desprezava
propositadamente alguns costumes tradicionais como sentar-se agrave mesa com
publicanos e prostitutas No entanto para Vermes natildeo parece que tenha havido
discoacuterdia entre Jesus e os fariseus em temas essenciais da religiatildeo e feacute judaica
Vermes define a relaccedilatildeo de Jesus com os fariseus da seguinte maneira ldquoNatildeo
obstante o conflito entre Jesus da Galileia e os fariseus de sua eacutepoca ter-se-ia
assemelhado em circunstacircncias normais agrave mera luta intestina de facccedilotildees
pertencentes ao mesmo corpo religioso como a que se travou entre caraiacutetas e
rabanitas na Idade Meacutedia ou entre os ramos ortodoxo e progressista do judaiacutesmo na
eacutepoca modernardquo (Vermes 1996 p20)
Vermes observa ainda que no Evangelho de Mateus os fariseus nem
sempre satildeo vistos no aspecto negativo Ele vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a
respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles
tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado
juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento
os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e a mor a Deusrdquo eles por
outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o
assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos
fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles
eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser
seguida (Vermes 2006 p98)
Segundo Swidler tanto os pontos positivos e os negativos foram adotados
diretamente pela Comissatildeo do Vaticano para Relaccedilotildees Religiosas com os Judeus e
indiretamente por outras igrejas O Catecismo da Igreja catoacutelica romana diz que
ldquopode-se tambeacutem frisar que se Jesus se mostra severo para com os fariseus eacute
porque estaacute mais proacuteximo deles que de quaisquer outros grupos judaicos seus
contemporacircneosrdquo (cf Vermes 1996 p79)
Nesse invoacutelucro de pensamentos sobre Jesus e os fariseus Swidler leva em
conta o fato de Vermes ter apontado Jesus como participante do grupo dos
ldquohassideus ou devotosrdquo Dentre as muitas especulaccedilotildees descritas por Swidler (nem
71
todas expostas aqui) eacute digna de nota a conclusatildeo desses apontamentos nas
palavras do proacuteprio autor
Assim talvez a melhor maneira de situar Ieshua no contexto do judaiacutesmo da sua eacutepoca seja como mestre (rabi) viandante e que fazia milagres um saacutebio (hakaham) da Galileia hassid galileu que sob muitos aspectos se assemelhava a Hillel (cujos ensinamentos acabaram mais tarde prevalecendo sobre os Shammai no judaiacutesmo rabiacutenico) que alguns estudiosos iriam considerar como algueacutem que teve um relacionamento muito proacuteximo com os fariseus aos quais poreacutem ele criticava sendo por sua vez criticado por eles Sigal o considerou hassid galileu hakham e proto-rabino o qual como Iohanan ben Zakkai antes e depois do ano 70 dC criticou duramente os pharisaioi os perushim (que Sigal natildeo considerava predecessores do judaiacutesmo rabiacutenico muito embora por vezes um emprego impreciso do termo pharisaioi nos evangelhos e em Josefo pudesse incluir alguns proto-rabinos) Estou convencido de que Sigal nos fornece a mais exata e abrangente descriccedilatildeo do lugar de Ieshua na vida judaica do seu
tempo (Swidler 1993 p 86-87)37
A proximidade de Jesus com os fariseus eacute tambeacutem notada por Flusser Ele
nota que nos Evangelhos sinoacuteticos diferentemente de Joatildeo (cf Jo 18 3) os fariseus
natildeo figuram em nenhuma descriccedilatildeo do julgamento de Jesus Flusser ainda nota
que nos primoacuterdios do cristianismo quando os cristatildeos foram perseguidos pelo
ldquosumo sacerdote saduceu o Raban Gamaliel tomou seu partido e os salvourdquo (At 5
17-42) Da mesma maneira Paulo quando estava perante o Sineacutedrio em Jerusaleacutem
vendo que seria punido severamente apelou para os fariseus e encontrou neles
solidariedade (At 22 30 236-10) jaacute que a outra parte era composta por saduceus
(Flusser 2002 p49)
A possiacutevel afeiccedilatildeo dos fariseus em relaccedilatildeo aos primeiros cristatildeos eacute
mencionada por Flusser sobre ldquoTiago o irmatildeo do Senhor e aparentemente outros
cristatildeosrdquo (cf Antiquities book 20 200-2001 in Josephus 1999 p656) que foram
condenados agrave morte em 62 dC pelo sumo sacerdote saduceu (ilegalmente) mas
foram salvos pelos fariseus quando estes apelaram ao rei que por sua vez acabou
37
Segundo Swidler o rabino Phillip Sigal de Pittsburgh os fariseus dos evangelhos natildeo satildeo os
predecessores dos rabis posteriores a 70 dC responsaacuteveis pelos escritos e tambeacutem sem duacutevida fundadores do judaiacutesmo dos nossos dias Para Sigal os predecessores dos rabis natildeo eram nem hillelistas (da escola de Hillel) nem Shamaiacutetas (da escola de Shamai) e nem pertenciam a nenhuma escola ou ldquocasardquo (bet) propriamente dita Ieshua (Jesus) natildeo era saduceu ou fariseu tampouco hilletita nem shamaiacuteta mas era um protorrabi antecipado da eacutepoca tanaiacutetica A sua maneira de ensinar era baseada na liberdade de interpretaccedilatildeo e autoridade conforme o modelo de ensinar protorrabiacutenico [] Ieshua era hakham (saacutebio filoacutesofo um protorrabi) como um profeta carismaacutetico que pregava sobre assuntos assombrosos e aterradores conforme a halakhah juntamente com sua pregaccedilatildeo hagaacutedica (Swidler 1993 p 86)
72
destituindo tal sumo sacerdote Segundo Flusser os fariseus possivelmente
consideravam a relaccedilatildeo dos saduceus com os romanos como um ato de
ldquodespotismo sacerdotalrdquo e essa poderia ser a causa a partir da leitura dos Sinoacuteticos
da ausecircncia de relatos da presenccedila de fariseus no julgamento e condenaccedilatildeo de
Jesus Flusser pressupotildee que os Sinoacuteticos natildeo mencionam um protesto dos fariseus
a favor de Jesus uma vez que eles jaacute haviam registrado anteriormente um Jesus
ldquoantifarisaicordquo em suas narrativas (Flusser 2002 p50)
453 OS SADUCEUS
Os saduceus que natildeo eram originaacuterios dos chassidim mas dos asmoneus
respeitavam os fariseus porque estes tinham um grande prestiacutegio com a populaccedilatildeo
em geral A classe dos saduceus era composta por gente nobre e rica da sociedade
Eles rejeitavam a doutrina da ressurreiccedilatildeo dos mortos e a existecircncia dos anjos
Tambeacutem soacute aceitavam o Pentateuco como verdade de feacute ldquoOs saduceus possuiacuteam o
poder os fariseus possuiacuteam a influecircncia sobre o povordquo (Gnilka 2000 p 61-62)
Flusser tambeacutem coloca os saduceus como um grupo pequeno menor do que os
fariseus por outro lado ele observa que os saduceus eram poderosos uma vez que
pertenciam a aristocracia sacerdotal do templo Eles natildeo eram revolucionaacuterios como
os fariseus (que se envolveram na guerra civil no periacuteodo macabeu) negavam a
validade da tradiccedilatildeo oral e consideravam toda a crenccedila na vida futura como uma
tolice (Flusser 2002 p45)
Nos Evangelhos sinoacuteticos os saduceus satildeo mencionados mais no Evangelho
de Mateus sendo que em Marcos e Lucas eles satildeo mencionados apenas uma vez
em cada Evangelho (Mc 12 18-27 Lc 20 27-40) No entanto tanto para Mateus e
Marcos como para Josefo os saduceus assim como os fariseus eram muito
conhecidos no primeiro seacuteculo da era cristatilde (Saldarini 2005 p183-184) Os
saduceus satildeo sempre colocados por Josefo ao lado dos fariseus Josefo tambeacutem
situa os saduceus como sendo um grupo pertencente agrave classe dominante Em Atos
dos apoacutestolos os saduceus discutem com os fariseus acerca da ressurreiccedilatildeo por
causa de um discurso de Paulo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (At 23) Em Atos
(41 517) os saduceus tambeacutem satildeo associados aos maiorais do templo ou seja agrave
classe sacerdotal (Saldarini 2005 p308-309)
73
A classe sacerdotal estaacute intimamente relacionada ao julgamento de Jesus
Em Lucas 22 54 lemos ldquoPrenderam-no e levaram-no introduzindo-o na casa do
Sumo Sacerdote Pedro seguia de longerdquo Segundo Flusser o clatilde sacerdotal e o
proacuteprio sumo sacerdote eram saduceus Caifaacutes era o sumo sacerdote e tambeacutem era
a figura mais importante do segundo Templo Foi na casa (palaacutecio) de Caifaacutes que
Jesus passou a noite sob custoacutedia enquanto era escarnecido pelos guardas (Lc 22
63) Os saduceus odiavam a Jesus possivelmente porque o consideravam um
profeta (ldquoFaz uma profecia quem eacute que te bateurdquo Lc 22 64) e sua presenccedila em
Jerusaleacutem podia ser uma clara ameaccedila Segundo Joatildeo os motivos da condenaccedilatildeo
de Jesus pela classe sacerdotal eacute que
[] os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram ldquoQue faremos Esse homem realiza muitos sinais Se o deixarmos assim todos creratildeo nele e os romanos viratildeo destruindo o nosso lugar santo e a naccedilatildeordquo Um deles poreacutem Caifaacutes que era o Sumo Sacerdote naquele ano disse-lhes ldquoVoacutes nada entendeis Natildeo compreendeis que eacute de vosso interesse que um soacute homem morra pelo povo e natildeo pereccedila a naccedilatildeo todardquo Natildeo dizia isso por si mesmo mas sendo sumo Sacerdote naquele ano profetizou que Jesus morreria pela naccedilatildeo ndash e natildeo soacute pela naccedilatildeo mas tambeacutem para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos Entatildeo a partir desse dia resolveram mataacute-lo Jesus por isso natildeo andava em puacuteblico entre os judeus mas retirou-se para a regiatildeo proacutexima do deserto para a cidade chamada Efraim e aiacute permaneceu com seus disciacutepulos (Jo 11 47-54)
A atitude de Caifaacutes em relaccedilatildeo agrave morte substituta de Jesus (ldquoeacute de vosso
interesse que um soacute homem morra pelo povordquo) eacute vista por Flusser mais como uma
justificativa do sumo sacerdote uma vez que a tradiccedilatildeo judaica repudiava o ato de
entregar um cidadatildeo judeu para que fosse morto por estrangeiros era um pecado
imperdoaacutevel segundo a halakaacute38 Flusser cita ainda o Rolo do Templo essecircnico
(64 7-8) que diz ldquoSe um homem calunia Meu povo e entrega Meu povo para uma
naccedilatildeo estrangeira e pratica a iniquidade contra meu povo penduraacute-lo-eis numa
38
Zuurmond define a halakaacute da seguinte maneira ldquoeacute o way of life judaico o conjunto de prescriccedilotildees e proibiccedilotildees que definem a maneira como vivem os judeus Uma questatildeo halaacutequica eacute uma disputa sobre a halakaacute geralmente com base na interpretaccedilatildeo de textos do Antigo Testamento Nem toda a questatildeo halaacutequica eacute de ordem moral As leis de pureza por exemplo formam uma parte importante da halakaacute mas ndash pelo menos segundo nosso modo de falar ndash natildeo tem caraacuteter moralrdquo (Zuurmond 1998 p 77) A raiz halak tambeacutem pode ser definida como a ldquoviardquo a ldquocaminhadardquo ou seja ldquoa regra (de vida) que vai permitir a aplicaccedilatildeo da Torah escrita agraves circunstacircncias reais e mutaacuteveis da vida O plural eacute halakot regras decisotildees e coleccedilotildees de leisrdquo (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
74
aacutervore e ele morreraacuterdquo Ainda havia uma tradiccedilatildeo oral dos saacutebios judeus com o
seguinte teor ldquose haacute um grupo de pessoas e os gentios lhes dizem entregai um de
voacutes para noacutes e o mataremos se natildeo fizerdes mataremos a todos a (regra eacute) deixai
que todos sejam assassinados e natildeo entregueis a eles uma uacutenica alma em Israel
poreacutem se eles o escolherem deixai que o entreguem para que todos natildeo sejam
massacradosrdquo (cf Flusser 2002 p 164-166)
Caifaacutes natildeo se restringiu apenas a entregar Jesus aos romanos Ele sabia que
eles eram implacaacuteveis a qualquer judeu rebelde ou a movimentos profeacuteticos
entusiastas que se levantassem na Palestina No entanto parece que Caifaacutes natildeo
estava preocupado com as tradiccedilotildees de seu povo O viacutenculo dele com os suacuteditos e
representantes de Cesar se estreitava ainda mais quando o vemos em Atos dos
Apoacutestolos (4 1-3 46 5 27-28) juntamente com a classe sacerdotal (os saduceus)
prendendo muitos cristatildeos em Jerusaleacutem pelos mesmos motivos que Jesus foi
entregue aos romanos sem se importar com as tradiccedilotildees judaicas das quais ele
deveria ser o principal observador (Flusser 2002 p 154-166)
454 OS ZELOTAS
Os movimentos de resistecircncia nos dias de Jesus estatildeo ligados ao projeto de
romanizaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo da Galileia por Herodes Antipas (Crossan 2009 p16-
18) O anseio de Antipas em se tornar rei uma vez que ele foi nomeado por Cesar
Augusto como tetrarca da Galileia e Pereia e seu irmatildeo Felipe ficou como tetrarca
da parte do extremo norte do paiacutes Jaacute Arquelau o outro filho de Herodes o Grande
ficou como etnarca da Idumeia Judeia e Samaria o que deixou Antipas muito
desapontado
Segundo Crossan Antipas comeccedilou a trabalhar para ganhar prestiacutegio em
Roma poreacutem agraves custas de um jugo pesado aos habitantes da Galileia Primeiro ele
fortificou Seacuteforis ldquopara ser o ornamento de toda a Galileiardquo e dedicou a Augusto a
sua cidade-capital reconstruiacuteda Apoacutes a morte de Augusto assumiu como Imperador
de Roma Tibeacuterio Antipas logo teve a ideia de substituir a capital Seacuteforis fundando
uma nova cidade a 32 quilocircmetros ao leste na costa ocidental do mar da Galileia e
nomeou-a Tiberiacuteades em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (cf Crossan 2009 p
17-18) O problema de tudo isso era que as construccedilotildees de Antipas provocavam o
75
aumento dos tributos sobre os galileus causando um descontentamento geral
Contudo para Antipas o que mais importava conforme Crossan nos descreve era
passar a Roma uma imagem de um governante lucrativo na questatildeo da arrecadaccedilatildeo
de impostos o que poderia levar o Imperador a pensar ldquoque eacute que natildeo faria ele
como monarca de toda a paacutetria judaicardquo
As construccedilotildees de Antipas poderiam impressionar Roma mas natildeo poderiam
evitar os movimentos de resistecircncia judaica uma vez que segundo Pagola (2010 p
48) ldquoos camponeses experimentaram pela primeira vez a pressatildeo e o controle
proacuteximo dos governos herodianosrdquo A situaccedilatildeo era tatildeo caoacutetica que aumentou
assustadoramente o nuacutemero de indigentes prostitutas e diaristas enfim parece que
Jesus conheceu ao longo de sua vida uma Galileia onde a desigualdade social era
enorme onde se favorecia a minoria privilegiada de Seacuteforis e Tiberiacuteades ao custo da
pobreza e sofrimento e desintegraccedilatildeo de muitas famiacutelias
Crossan (2004 p 275) nota que a construccedilatildeo ou reconstruccedilatildeo das cidades
de Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo afetou apenas os camponeses iletrados ou seja os
trabalhadores mais humildes mas tambeacutem afetou agrave classe dos letrados Assim ele
conclui que ateacute mesmo o movimento de Jesus relacionado ao reino de Deus
comeccedilou como um movimente de resistecircncia a partir dos camponeses ldquomas
abandonou seu caraacuteter localista e regionalista sob a lideranccedila dos letradosrdquo
Dentre os movimentos de Revolta encontramos Judas galileu que apoacutes a
deposiccedilatildeo de Arquelau (6 d c) natildeo aceitava que o pagamento de impostos devia
ser efetuado diretamente a Roma Segundo Theissen (2004 p163-164) a doutrina
de Judas repercutiu muito chegando ao ponto de alguns ldquoherodianosrdquo questionarem
a Jesus a respeito da questatildeo de se era liacutecito ou natildeo pagar impostos ao Imperador
(cf Mc 12 13-17) Horsley defende que o movimento de Judas o Galileu e de
Sadoc o fariseu que Josefo rotula como a quarta filosofia (as outras satildeo os
fariseus os saduceus e os essecircnios) tecircm sido interpretadas de uma forma errada
por vaacuterios especialistas que afirmam que esse movimento pregava a revolta armada
contra Roma De acordo com Horsley Josefo assim descreveu esse movimento em
Ant 18 4-5 23
Mas um certo Judas gaulanita da cidade de Gamala em combinaccedilatildeo com o fariseus Sadoc insistiu fortemente na resistecircncia Eles diziam que tal
76
avaliaccedilatildeo tributaacuteria implicava escravidatildeo pura e simples e pressionavam a naccedilatildeo a exigir sua liberdade [] Judas o Galileu estabeleceu-se como o liacuteder da quarta filosofia Os seus adeptos concordaram com as ideia dos fariseus em tudo exceto em sua indomaacutevel paixatildeo pela liberdade pois consideram Deus o seu uacutenico liacuteder e senhor (cf Horsley 2010 p 72)
Horsley avalia que Judas e Sadoc estivessem mais ligados ao ensino ou
pregaccedilatildeo ldquocontra a avaliaccedilatildeo tributaacuteria ou ateacute mesmo uma resistecircncia organizada
contra os impostos do que um grupo armado e violento conforme tem sido
interpretado a partir dos escritos de Josefordquo (Horsley 2010 p 78-79)
As informaccedilotildees sobre os grupos de resistecircncias nem sempre satildeo unacircnimes
como vimos acima No entanto podemos afirmar que entre os grupos de resistecircncia
encontram-se os Zelotes (Zelotas) talvez os mais conhecidos O termo Zelotas
encontra-se oito vezes registrado no Novo Testamento Esse termo geralmente
aplica-se ldquoaos guerrilheiros da resistecircncia desde Judas Galileu (6 aC) ateacute os
defensores da fortaleza de Masadaacute (74 dC) Eles eram rigorosamente
observadores do saacutebado da circuncisatildeo (exigiam a circuncisatildeo ateacute mesmo dos
antigos) e tinham fortes crenccedilas escatoloacutegicasrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia
do Novo Testamento p 2686) De acordo com Theissen mesmo que os
seguidores de Judas Galileu sejam chamados de Zelotes natildeo eacute possiacutevel afirmar tal
coisa visto que em Josefo eles ldquoaparecem como grupo apenas depois do inicio da
guerra judaica em 66 dC em relaccedilatildeo com o Templordquo (cf Theissen 2004 p164)
contudo haacute um argumento de peso contra essa teoria uma vez que entre os
disciacutepulos de Jesus por volta da metade do seacuteculo I havia um zelole (Simatildeo Zelote
cf Lc 6 15) e Theissen faz uma observaccedilatildeo ldquoaleacutem disso na Galileiardquo
Os zelotas eram originaacuterios dos fariseus e assim como os essecircnios estavam
ligados pela guerra santa e escatoloacutegica Natildeo satildeo citados nos evangelhos como
grupo mas entre os disciacutepulos de Jesus como foi dito acima havia um disciacutepulo
chamado de ldquoSimatildeo o Zeloterdquo (Lc 615 At 113) Eles lutavam pelos direitos do
pobre do oprimido e a esses ldquoprometiam com a chegada do Reino de Deus a
restauraccedilatildeo de seus direitos e uma nova ordem estabelecida por Deusrdquo (Gnilka
2000 p 60) O fato de entre os disciacutepulos ter um zelote natildeo significa que esse
movimento tenha sido endossado por Jesus jaacute que os ensinamentos de Jesus sobre
o tributo a Cesar e sua atitude para com o saacutebado eacute uma forma de repuacutedio a
77
doutrina apregoada pelos zelotas (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo
Testamento p 2686)
Podemos observar portanto que a possiacutevel relaccedilatildeo de Jesus com os Zelotas
como grupo de resistecircncia eacute muito remota ou praticamente inexistente conforme
Crossan (2004 p275) tem observado Ainda na mesma linha de pensamento de
Crossan Sean Freyne tambeacutem considera remota a hipoacutetese do possiacutevel
envolvimento de Jesus com o grupo dos zelotas Para Freyne (2008 p 130) a
pregaccedilatildeo de Jesus natildeo incitava a vinganccedila uma vez que estava mais baseada no
livro do Gecircnesis (criaccedilatildeo) do que no livro do Ecircxodo (libertaccedilatildeo) ou seja Jesus natildeo
via as demais naccedilotildees ou outras origens eacutetnicas como objeto de remoccedilatildeo
aniquilaccedilatildeo conversatildeo ou conquista como viam os heroacuteis do Antigo Testamento
Contudo para Freyne devemos observar que haacute duas formas de
interpretarmos Jesus de Nazareacute Se o olharmos segundo o ponto de vista de
Crossan veremos um Jesus voltado para um entendimento sapiencial e natildeo
apocaliacuteptico ou seja Jesus teria escolhido um modelo de dominaccedilatildeo monaacuterquica
baseado num ldquoreino dos destituiacutedos e Jootildees ningueacutem vigente no aqui e agora um
reino realizado (por meios maacutegicos e materiais) natildeo apenas proclamadordquo Por outro
lado Freyne observa que o pensamento de Horsley sobre Jesus eacute bem diferente
dos de Crossan Jesus segundo Horsley teria sido um revolucionaacuterio ou seja
partindo desse ponto de vista ldquoo siacutembolo do reino de Deus tal como empregado por
Jesus significava a vitoacuteria de Deus sobre as forccedilas do mal uma concepccedilatildeo que se
coadunava com as expectativas apocaliacutepticas judaicas padratildeordquo posiccedilatildeo essa que
segundo Freyne seria mais convincente (Freyne 2008 p 132)
Bruce Malina vecirc o grupo de Jesus como uma religiatildeo politicamente inserida
onde o reino e o governo de Deus satildeo iminentes ou seja seus disciacutepulos devem
orar para que o reino de Deus venha para o julgamento e recompensa e isso
segundo Malina era compreendido sob o ponto de vista poliacutetico por uma pessoa do
primeiro seacuteculo A morte de Jesus natildeo foi o fim desse reinado pois ldquoos seguidores
de Jesus acreditavam que Deus o ressuscitou dos mortos de maneira que o proacuteprio
Jesus em breve surgiria como vice regente do Deus de Israel como Messias de
Israel com poderrdquo (Malina 2004 p 99) Malina conclui esse pensamento afirmando
que
78
o reino de Deus veio para tomar a forma de uma teocracia representativa e pessoal Nestas dimensotildees ele teria tido a mesma estrutura da religiatildeo poliacutetica de Israel durante o tempo de Jesus A questatildeo aberta era Quem seria o agente o substituto concreto para o Deus de Israel Os membros do grupo de Jesus tinham pouca duacutevida de que esse agente fosse Jesus o Messias de Israel Mas Deus tinha em mente mais natildeo apenas Israel (Malina 2004 p 164)
Portanto pertencer ao grupo de Jesus era mais do que esperar por um reino
poliacutetico era ter um novo modo de vida ia aleacutem das fronteiras de Israel natildeo significa
apenas a libertaccedilatildeo de um jugo poliacutetico mas a libertaccedilatildeo do ser humano como um
todo
79
5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS
E SEUS DESDOBRAMENTOS
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Jesus apesar de ser visto por alguns
pesquisadores com caracteriacutesticas proacuteximas do grupo dos fariseus natildeo fez parte de
nenhum grupo revolucionaacuterio Contudo isso natildeo significa que ele fosse indiferente
aos problemas sociais que afligiam toda a Palestina Em contraste com os
poderosos da eacutepoca que exploravam os pobres atraveacutes da cobranccedila desmedida de
tributos Jesus oferece-se como um descanso aos cansados e oprimidos porque
somente ele tem um jugo suave e um fardo leve (cf Mt 11 28-30) Esse descanso
soacute ele pode oferecer porque recebeu do Pai a quem ele conhece e por quem
tambeacutem eacute conhecido (cf Mt 1127) Abba eacute a palavra por excelecircncia no quesito
intimidade entre Jesus e Pai dos Ceacuteus conforme a tese defendida por J Jeremias
51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA
Jesus conforme a tradiccedilatildeo cristatilde e os vaacuterios testemunhos das fontes (os
Evangelhos) possui o testemunho intriacutenseco de que eacute o Filho de Deus (cf Mt 1433
Mc 11 311 1539 Lc 2227 Jo 134 1127) O Evangelho de Marcos de uma
forma clara jaacute nos mostra a importacircncia desse pensamento teoloacutegico nas seguintes
palavras ldquoPrinciacutepio do Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deusrdquo (Mc 11) Justino
de Roma tambeacutem prima pela exaltaccedilatildeo de Jesus como o Filho de Deus dizendo que
ldquo[] com razatildeo honramos tambeacutem a Jesus Cristo que foi nosso Mestre nessas
coisas e para isto nasceu o mesmo que foi crucificado sob Pocircncio Pilatos
procurador na Judeia no tempo de Tibeacuterio Ceacutesar Aprendemos que ele eacute o Filho
proacuteprio do Deus verdadeirordquo (Justino 1995 p28) ou ainda conforme a confissatildeo
de feacute de Calcedocircnia (451 dC) ldquoJesus eacute verdadeiramente homem e
verdadeiramente Deusrdquo ( Swidler 1993 p30)
Os Evangelhos da infacircncia (Mateus e Lucas) de uma forma independente
narram alguns acontecimentos relacionados ao nascimento e agrave infacircncia de Jesus
Segundo Duquoc as narrativas do nascimento de Jesus relatadas por Mateus e
Lucas se inserem na tradiccedilatildeo do Antigo Testamento como vemos no nascimento de
Isaac (Gn 21 1-7) de Jacoacute (Gn 25 25-26) de Moiseacutes (Ex 2 1-10) de Sansatildeo (Jz
80
13 1-25) e o de Samuel (1 Sam 1 19-26) As caracteriacutesticas de tais narrativas satildeo
ldquodiscernir na concepccedilatildeo ou no nascimento os sinais antecipadores de um destino
particularmente abenccediloado por Deusrdquo Para Duquoc contudo tratar as narrativas de
Mateus e Lucas como Evangelhos da Infacircncia natildeo eacute a forma mais correta e pode
induzir em erro mesmo que a tradiccedilatildeo assim os mencione Nos textos de Mateus e
Lucas observamos que ali se trata mais do nascimento do que a infacircncia de Jesus
conforme vemos resumido no quadro comparativo abaixo (Duquoc 1992 p22)
Mateus Lucas
Genealogia de Cristo 1 1-17 Anuacutencio da concepccedilatildeo virginal a Joseacute 1 18-24 Nascimento do Salvador 125 Visita dos magos 2 1-12 Fuga para o Egito e massacre dos inocentes 2 13-18 Volta a Nazareacute 2 19-23
Anuacutencio do nascimento de Joatildeo Batista 1 5-25 Anuacutencio a Maria 1 26-28 Visitaccedilatildeo 1 39-56 Nascimento do Salvador 2 1-14 Visita dos Pastores 2 15-20 Circuncisatildeo 2 21 Apresentaccedilatildeo no Templo 2 22-38 Volta a Nazareacute 2 39-40 Reencontro no Templo 2 41-52
Os relatos da infacircncia ou do nascimento conforme menciona Duquoc natildeo
fazem parte do querigma (Keacuterygma) mas estatildeo associados mais ao Antigo
Testamento como vimos acima Contudo eles foram inseridos nos Evangelhos e
devem ser lidos a partir da perspectiva dos evangelistas Eles natildeo satisfazem a
curiosidade como fazem os Apoacutecrifos visto que eles estatildeo relacionados mais agrave feacute da
Igreja primitiva do que aos acontecimentos histoacutericos ldquoMateus e Lucas iluminaram
retrospectivamente as recordaccedilotildees atraveacutes da catequese evangeacutelica e os eventos
decisivos da Paacutescoa Natildeo narram uma histoacuteria Propotildeem apenas uma doutrina em
forma de histoacuteria Seria errocircneo querer iluminar a catequese por meio de narrativas
de nascimento O processo foi inversordquo (Duquoc 1992 p24-25)
81
Observamos que as narrativas da infacircncia levantam questotildees sobre a
autenticidade histoacuterica dos relatos dos evangelistas Para Fitzmyer nas narrativas
da infacircncia eacute difiacutecil constatar o realmente histoacuterico poreacutem eacute inegaacutevel o fato de que
exista um nuacutecleo histoacuterico nesses acontecimentos os quais serviram como base
para que os evangelistas numa tradiccedilatildeo posterior pudessem responder perguntas
sobre ldquoQuem eacute elerdquo ou ldquoDe onde ele veiordquo39 (Fitzmyer 1997 p34-35)
Apesar das diferenccedilas e da independecircncia dos evangelhos (Mateus e Lucas)
Fitzmyer observa que haacute pelo menos doze pontos nas narrativas da infacircncia que satildeo
comuns ou pelo menos haacute concoacuterdia entre os dois evangelistas a respeito do
nascimento do menino Jesus os quais seratildeo transcritos abaixo
1) O nascimento de Jesus relaciona-se com o reinado de Herodes Magno
(Mt 21 Lc 15)
2) Maria sua futura matildee eacute uma virgem noiva de Joseacute mas eles ainda
natildeo coabitaram (Mt 118 Lc 12734 25)
3) Joseacute eacute da casa de Davi (Mt 1 1620 Lc 127 24)
4) Um anjo do ceacuteu anuncia a concepccedilatildeo e o nascimento futuros de Jesus
(Mt1 20-21 Lc 1 28-30)
5) O proacuteprio Jesus eacute reconhecido como filho de Davi (Mt 11 Lc 132)
6) Sua concepccedilatildeo aconteceraacute por intermeacutedio do Espiacuterito santo (Mt 1
1820 Lc 1 35)
7) Joseacute natildeo se envolve na concepccedilatildeo (Mt1 18-25 Lc 134)
8) O nome ldquoJesusrdquo eacute imposto antes de seu nascimento (Mt 1 21 Lc
131)
9) O ceacuteu identifica Jesus como ldquoSalvadorrdquo (Mt 121 Lc 211)
10) Jesus nasce depois que Joseacute e Maria vatildeo viver juntos (Mt 1 24-25 Lc
2 4-7)
11) Jesus nasce em Beleacutem (Mt 21 Lc 2 4-7)
12) Jesus se fixa com Maria e Joseacute em Nazareacute na Galileia (Mt 2 22-23
Lc 239-51)
39
Segundo Fitzmyer as narrativas da infacircncia natildeo se originaram de uma tradiccedilatildeo mais primitiva da Igreja visto que nem Marcos (que eacute considerado o primeiro Evangelho a ser escrito) e nem Joatildeo (que eacute reconhecido como sendo de uma tradiccedilatildeo igualmente primitiva a de Marcos mas independente dos Sinoacuteticos) natildeo conteacutem tais relatos mas inicia-se com o Verbo que se fez carne (1 1-18) ou seja com o Verbo divino e preexistente
82
Nos primoacuterdios da Igreja a questatildeo da divindade e humanidade de Cristo era
o centro de muitas controveacutersias teoloacutegicas que partiam de vertentes judaicas ou
entatildeo de certos movimentos cristatildeos considerados como hereges Face agraves muitas
divergecircncias a respeito do Cristo a Igreja tomou frente a tais controveacutersias e pocircs-se
a refutar as heresias com toda a forccedila possiacutevel Correntes judaizantes e gnoacutesticas
que incansavelmente procuravam por todos os meios possiacuteveis proclamar que Jesus
era apenas um homem que morreu pregado na cruz ou entatildeo um divino que
parecia ser humano procuravam a todo custo abalar a feacute daqueles que foram
alcanccedilados pela feacute cristatilde Os Evangelhos e todo o Novo Testamento foram escritos
para fundamentar a feacute dos primeiros cristatildeos em Jesus Cristo Mediante a tantas
heresias que foram surgindo na Igreja tentando negar a divindade de Jesus os
cristatildeos reagiram com veemecircncia escrevendo muitas histoacuterias sobre Jesus como
forma de demonstrar que desde menino o filho de Joseacute e Maria era detentor de
muitos prodiacutegios nunca antes realizados em Israel nem mesmo pelos grandes
profetas do Antigo Testamento
Estas narrativas foram redigidas e fazem parte do que posteriormente ficou
conhecido como os ldquoEvangelhos Apoacutecrifosrdquo Os Apoacutecrifos satildeo portanto a forma
mais clara que a Igreja usou para se opor as teorias que negavam a divindade de
Jesus Na busca de por em evidecircncia a divindade do Mestre os Apoacutecrifos
apresentam Jesus quase sempre como um menino ou um homem prodigioso capaz
de realizar milagres tatildeo grandes que chegam a ser absurdo
A tradiccedilatildeo cristatilde ainda no intuito de preservar a doutrina da filiaccedilatildeo divina de
Jesus procurou de uma forma cuidadosa defender tal doutrina em seus vaacuterios
credos ao longo da histoacuteria do cristianismo Os mais antigos e conhecidos credos
satildeo Credo Apostoacutelico (Seacuteculo III e IV) Credo de Niceacuteia (325 AD - revisado em
Constantinopla em 381 AD) Credo de Calcedocircnia (451 AD) e o Credo de Atanaacutesio
(seacuteculos IV e V) A relaccedilatildeo de Jesus Cristo com Deus Pai e sua funccedilatildeo na
Santiacutessima Trindade satildeo mencionadas em todas as confissotildees acima citadas
(Grudem 1999 p996) Jaacute no primeiro credo (Credo Apostoacutelico) observamos a
importacircncia de Jesus como o Filho de Deus encarnado
Creio em Deus Pai Todo Poderoso Criador do ceacuteu e da terra E em Jesus Cristo seu Filho unigecircnito nosso Senhor concebido pelo Espiacuterito Santo e nascido da Virgem Maria que padeceu sob Pocircncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos
83
que subiu ao ceacuteu e assentou-se agrave direita do Pai Todo-Poderoso de onde haacute de vir para julgar os vivos e os mortos Creio no Espiacuterito Santo na santa igreja catoacutelica na comunhatildeo dos santos na remissatildeo de pecados na ressurreiccedilatildeo da carne e na vida eterna Ameacutem (Grudem 1999 p996)
O credo segundo Thomas P Rausch (2006 p16) ldquoeacute uma declaraccedilatildeo oficial
da crenccedila da Igreja e tem poder normativo para a feacute da Igrejardquo Rausch observa que
o entatildeo cardeal Ratzinger escolheu o Credo Apostoacutelico como base para a sua
abordagem do livro Introduccedilatildeo ao Cristianismo De acordo com Rausch nessa obra
o cardeal faz uma mediaccedilatildeo entre os extremos relacionados agrave Cristologia da feacute e o
Jesus da histoacuteria Por um lado haacute os que procuram reduzir a Cristologia agrave histoacuteria
enquanto que por outro lado haacute os que buscam o abandono da histoacuteria
considerando-a como algo irrelevante para a feacute40 Abaixo reproduzimos um quadro
resumido dos principais conciacutelios Gerais da igreja onde foram formulados os
principais credos da Igreja (cf Rausch 2006 p261)
Conciacutelio Principais Figuras Temas
Niceia (325) Aacuterio (que natildeo estava presente) ldquohouve um tempo em que ele natildeo erardquo 381 bispos presentes
Rejeitou a opiniatildeo de Aacuterio de que o logos havia sido criado Cristo eacute homoousion41 ao Pai
Constantinopla I (381) Influecircncia Capadoacutecia Afirma a feacute de Niceacuteia Um novo credo afirma a divindade do Espiacuterito Nosso credo eacute uma combinaccedilatildeo de ambos
Eacutefeso I (431) Nestoacuterio conjunccedilatildeo de naturezas Maria eacute christokos42 Joatildeo de
Condena Nestoacuterio Maria eacute theotokos mas Cirilo e Joatildeo de Antioquia e excomungam
40
Nesse tratado escrito no final da deacutecada de 60 Ratzinger procura encontrar um meio termo entre Harnack que purifica a feacute da doutrina e do credo colocando a reconstruccedilatildeo do Jesus histoacuterico como fator determinante para a Cristologia com Bultmann para quem somente a feacute em Cristo tem importacircncia para o cristatildeo (cf Rausch 2006 p16) Vale ressaltar aqui que para o entatildeo cardeal Ratzinger ldquosegundo a feacute da Igreja a filiaccedilatildeo divina de Jesus natildeo se deve ao fato de Jesus natildeo ter um pai humano a doutrina do ser divino de Jesus natildeo sofreria nenhuma restriccedilatildeo se Jesus fosse o fruto de um casamento humano normal porque a filiaccedilatildeo divina que eacute objeto da feacute cristatilde natildeo eacute um fato bioloacutegico e sim ontoloacutegico natildeo eacute um evento no tempo e sim na eternidade de Deus ()rdquo Se considerarmos este texto como a base do pensamento de Ratzinger percebemos que a teologia de Bultmann teve para ele na eacutepoca um peso maior (cf Ratzinger 2006 p 204) 41
Homoi ser ldquosemelhanterdquo semelhante quanto ao ser (cf Rausch 2006 p 249) 42
Significa ldquoPortadora do Cristordquo Matildee de Cristo (cf Rausch 2006 p 249)
84
Conciacutelio Principais Figuras Temas
Antioquia Cirilo de Alexandria uniatildeo hipostaacutetica Maria eacute theotokos43
um ao outro
Eacutefeso II (449) (ldquoConciacutelio do Ladratildeordquo)
Flaviano de Constantinopla ldquoa partir de duas naturezas numa soacute hipoacutestase44 e numa soacute pessoardquo (foacutermula da uniatildeo) Dioacutescoro de Alexandria
Dioacutescoro domina Eacute rejeitada a foacutermula de Flaviano (ldquoa partir de duas naturezas uma soacute pessoardquo) O proacuteprio conciacutelio poreacutem eacute rejeitado
Calcedocircnia (451) 600 bispos Tomus do papa Leatildeo escrito para apoiar Flaviano Legados papais insistem numa nova profissatildeo de feacute
Condena Dioacutescoro aceita o Tomus de Leatildeo Prega duas naturezas numa uacutenica pessoa e numa uacutenica hipoacutestase verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem
Observamos que para a Igreja dos primeiros seacuteculos as verdades teoloacutegicas
a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus com o Pai eram de suma importacircncia para a
formaccedilatildeo e crescimento das comunidades cristatildes Por isso defenderam com
coragem e destemor o que acreditavam ser a essecircncia do Evangelho de Jesus
Cristo No entanto sempre houve aqueles que lutaram de todas as maneiras para
por em descreacutedito tanto o Evangelho como a pessoa de Jesus de Nazareacute Os pais
da Igreja tiveram que lutar contra as heresias e contra os hereges que procuraram
desmoralizar o mais importante homem do vilarejo de Nazareacute No entanto conforme
observa Rausch haacute problemas metodoloacutegicos nos Credos da Igreja Eles sempre
pressupotildeem uma Cristologia de ldquocima para baixordquo por isso a Cristologia necessita
de um fundamento criacutetico Para Rausch a Cristologia precisa ser estabelecida de
ldquobaixo para cimardquo ou seja ela precisa estar baseada nos atos e feitos do Jesus
histoacuterico para que natildeo seja acusada de ser uma feacute helenizada onde o carpinteiro
43
Significa ldquoPortadora de Deusrdquo Matildee de Deus (cf Rausch 2006 p 249) 44
Aquilo que estaacute sob ou daacute suporte a um objeto realizaccedilatildeo um ser concreto que suporta as diversas qualidades ou aparecircncias de uma coisa Ser subsistente realidade que existe por si mesma substacircncia (Exemplo medieval- ldquotransubstanciaccedilatildeordquo (cf Rausch 2006 p 249)
85
de Nazareacute teria sido transformado em um ldquosalvador divinizadordquo conforme o conceito
grego do divino (Rausch 2006 p 17)
52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA
Se para termos sucesso no estudo da Cristologia eacute necessaacuterio partirmos de
baixo para cima ou seja nas palavras de Rogers Haight ldquoseria difiacutecil imaginar
algueacutem interessado pela existecircncia humana de uma perspectiva religiosa que natildeo se
sentisse motivado a saber mais sobre Jesusrdquo uma vez que ldquoa Cristologia comeccedilou
com Jesus de Nazareacute e deve comeccedilar com Jesus hoje em diardquo (Rogers 2003
p75) precisamos analisar as fontes e teorias sobre Jesus desde as canocircnicas ateacute
as mais rejeitadas pela tradiccedilatildeo cristatilde Jaacute observamos acima que a Igreja dos
primeiros seacuteculos priorizou por razotildees apologeacuteticas em propagar e defender a
divindade de Cristo e por outro lado natildeo houve um interesse igual quando o tema
era a humanidade de Jesus No entanto com o passar dos seacuteculos surgiram
inuacutemeras questotildees a respeito do homem chamado Jesus de Nazareacute Para responder
tais questotildees ou pelo menos investigaacute-las faz-se necessaacuterio o estudo da Cristologia
partindo do homem Jesus ao Cristo da feacute
Edward Schillebeeckx nos diz que para uma boa reflexatildeo sobre a Trindade
faz-se necessaacuterio uma interpretaccedilatildeo cristoloacutegica de Jesus ou seja ldquona sua
humanidade Jesus eacute tatildeo intimamente do Pai que eacute exatamente nisso que ele eacute
Filho de Deusrdquo Podemos ver isso nas palavras de Schillebeeckx abaixo
[hellip] natildeo devemos compreender Jesus a partir da Trindade mas vice-versa eacute somente a partir de Jesus que a plenitude da unidade divina (natildeo tanto unitas trinitaris mas trinitas unitaris) se torna acessiacutevel para noacutes de alguma forma somente com base na vida morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus sabemos que a Trindade eacute o modo divino da absoluta unidade da essecircncia divina Somente a partir de Jesus de Nazareacute de sua experiecircncia com o ldquoAbbardquo -fonte e alma de sua mensagem atuaccedilatildeo e morte ndash e de sua ressurreiccedilatildeo eacute que algo cheio de sentido pode ser dito sobre o Pai Filho e Espiacuterito Santo Pois na vivecircncia de Jesus com seu ldquoAbbardquo o importante eacute que esse ldquoestar voltado para o Pairdquo e ldquoprecedidordquo com a absoluta prioridade e internamente sustentado pelo entregar-se do proacuteprio Pai a Jesus de forma uacutenica Ora a mais antiga tradiccedilatildeo cristatilde chama de ldquoPalavraVerbordquo a essa autocomunicacatildeo de Pai base e fonte da proacutepria experiecircncia de Jesus com o ldquoAbbardquo Isso implica que a palavra de Deus eacute a base total de tudo o que apareceu em Jesus ( Schillebeeckx 2008 p663)
86
A Cristologia portanto deve comeccedilar a partir do Jesus humano sem que se
negligencie o Cristo da feacute Jesus foi o nome que mudou a histoacuteria da humanidade
como podemos dizer parafraseando Haight que Jesus de Nazareacute eacute praticamente
um consenso universal na histoacuteria como sendo um judeu que viveu nos primoacuterdios
do seacuteculo I e que posteriormente veio a ser reconhecido como o Messias ou o
Cristo Conforme Haight podemos afirmar ainda que ldquoJesus foi uma figura
concreta na histoacuteria humanardquo e por isso essa histoacuteria natildeo pode ser relegada ao
esquecimento (Haight 2003 p29)
Geza Vermes compocircs um resumo histoacuterico da vida de Jesus a partir do
Evangelho de Marcos sem as narrativas da infacircncia acima esboccediladas (em 51)
Vermes chama essas informaccedilotildees peculiares de ldquoo evangelho fundamental ndash
representado por Marcos (cf Vermes 1990 p 20) que conteacutem as seguintes
informaccedilotildees
Nome Jesus
Nome do Pai Joseacute
Nome da matildee Maria
Lugar do nascimento natildeo mencionado
Data do nascimento natildeo mencionada
Domiciacutelio Nazareacute na Galileia
Estado Civil natildeo mencionado45
Profissatildeo carpinteiro (τέκτων ) mas tambeacutem exorcista e pregador itinerante
O certificado de oacutebito pode ser preenchido de maneira um pouco mais
completa
Lugar do oacutebito Jerusaleacutem
Data da morte ldquoSob Pocircncio Pilatosrdquo entre os anos 26 e 36 dC
Causa da morte crucificaccedilatildeo ordenada pelo governador romano
Lugar do sepultamento Jerusaleacutem
45
Vermes contudo considera que Jesus era celibataacuterio uma vez que nunca haacute menccedilatildeo de qualquer esposa no decorrer do seu ministeacuterio (cf Vermes 1990 p 21)
87
Para falar do Jesus humano eacute preciso contextualizaacute-lo ao tempo e ao espaccedilo
ou seja natildeo podemos menosprezar o periacuteodo em que Jesus viveu entre os homens
Sabendo que a Palestina dos dias de Jesus estava politicamente sob o impeacuterio
romano e religiosamente dominada pelo extremismo e exclusivismo religioso natildeo eacute
difiacutecil de imaginar o quanto Jesus e sua famiacutelia devem ter sofrido preconceito numa
sociedade patriarcal em meio ao caos poliacutetico e religioso
Bruce Chilton examina a questatildeo do Jesus histoacuterico desde os dias em que
Jesus estava com os disciacutepulos ateacute um periacuteodo poacutes-apostoacutelico Segundo ele sempre
houve aqueles que questionaram a filiaccedilatildeo divina de Cristo assim como colocaram
em duacutevida a sua filiaccedilatildeo terrena Vermes um judeu com formaccedilatildeo cristatilde considera
que falar das histoacuterias da infacircncia de Jesus de uma forma ou de outra acabam por
introduzir ldquoum elemento de duacutevida acerca da paternidaderdquo (cf Vermes 1990 p21)
Como foi dito acima eacute muito provaacutevel que Jesus e seus pais tenham sofrido algum
preconceito em relaccedilatildeo agrave paternidade de Joseacute em relaccedilatildeo ao seu filho Jesus
Segundo Chilton existem trecircs teorias a respeito do nascimento de Jesus A
primeira delas eacute a que Jesus foi concebido por obra do Espiacuterito Santo conforme
descrito nos Evangelhos (Mt 118-25 Lc 134-35) A segunda teoria tem a pretensatildeo
de especular que Jesus era filho bioloacutegico de Joseacute tal como se pode compreender
da afirmaccedilatildeo de Filipe achamos a Jesus de Nazareacute ldquofilho de Joseacuterdquo (Jo 145) A
terceira teoria eacute que Jesus era filho de fornicaccedilatildeo conforme uma das interpretaccedilotildees
do evangelho de Joatildeo 841 ldquoVoacutes fazeis as obras de vosso pai Disseram-lhe entatildeo
natildeo nascemos da prostituiccedilatildeo temos soacute um pai Deusrdquo (Charlesworth 2006
p87)46
46
Juan Mateos interpreta o texto de Jo 841 partindo do princiacutepio que Jesus acusa os judeus que nele ldquohaviam cridordquo (o crer aqui pode ser obra do redator uma vez que um pouco agrave frente os mesmos querem matar Jesus cf Brown 1975 p80) de cometerem o pecado da idolatria uma vez que segundo alguns rabinos ser filho de Abraatildeo significava praticar a benevolecircncia a modeacutestia e a humildade Os que tais virtudes natildeo praticavam eram considerados como servo de um outro deus totalmente diferente do Deus de Abraatildeo por isso chamados de idoacutelatras Os judeus entenderam atraveacutes da interpretaccedilatildeo dos profetas que ao serem chamados de idoacutelatras era o mesmo que ser chamado de filhos da prostituiccedilatildeordquo algo que eles negam teoricamente mas como seus pais idoacutelatras que mataram os profetas eles da mesma forma querem matar Jesus que vem da parte de Deus (cf J Mateos 1989 p392-393) Segundo Brown ser descendente de Abraatildeo fisicamente natildeo tem nenhum meacuterito quando esse suposto filho natildeo age como agiu seu pai aqui no caso ldquoAbraatildeo que Creu quando Deus lhe falourdquo eles por outro lado natildeo creem no enviado de Deus (Jesus) por isso satildeo filhos ilegiacutetimos (cf Brown 1975 p80-81)
88
Diante desse contexto Chilton levanta uma questatildeo polecircmica Jesus pode ter
sido considerado um mamzer Algumas condiccedilotildees poderiam ser determinantes para
expor um indiviacuteduo na condiccedilatildeo de mamzer A principal caracteriacutestica que definia
uma pessoa nessa condiccedilatildeo era se tal indiviacuteduo era fruto de uma uniatildeo proibida e
consequentemente um filho proibido de acordo com a Toraacute ldquoNenhum bastardo
entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar
na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo (Dt 233) Conforme a Mishnah47
poderia ser considerado um mamzer aquele filho cuja paternidade natildeo era
conhecida e portanto natildeo havia evidecircncias que tal uniatildeo fosse permitida de acordo
com a Lei Por outro lado na visatildeo do Talmude Babilocircnico48 bastava ser filho de um
natildeo israelita para que o indiviacuteduo fosse considerado um mamzer
A legitimidade da paternidade bioloacutegica de Jesus foi assunto controverso
como indicado mais acima jaacute no segundo seacuteculo da era Cristatilde Alguns autores
como John P Meier (1991 p223) e Bruce Chilton (in Charlesworth 2006 p 85)
mencionam a acusaccedilatildeo feita por Celso jaacute no ano de 178 dC que Jesus era filho de
Maria com um soldado Romano chamado Pantera49
A fonte desta histoacuteria de acordo com Dalman (2002 p152-153) vem do
Talmude Babilocircnico O nome de um certo Jesus eacute comumente mencionado no
Talmude e na literatura talmuacutedica pelas expressotildees Filho de Stada (Satda) e Filho
de Pandera (Pantera) Segundo Dalman a traduccedilatildeo literal do texto talmuacutedico de
Shabat 104b e Sanhedrin 67a tem a seguinte forma
O filho de Stada era o filho de Pandera O Rabi Chisda disse O marido era
Stada o amante Pandera (Outro disse) o marido era Paphos ben Yehudah
Stada era sua matildee (ou) sua matildee era Mirian a cabeleireira de mulheres
como eles diriam em Pumbeditha Stath da (ie Ela era infiel) para o marido
47
A palavra Mishnah vem de Shanah ldquorepetirrdquo significa ldquorepeticcedilatildeordquo ou ldquoestudo atraveacutes da repeticcedilatildeordquo Publicada por volta do ano 200 dC pelo patriarca judeu Judas I a Mishnah eacute uma coletacircnea de leis que se impocircs como coacutedigo oficial do judaiacutesmo Ela resulta de uma compilaccedilatildeo seletiva feita no decurso do seacuteculo II da era cristatilde ndash de tradiccedilotildees normativas ambientes (halakot) Ela estaacute redigida em hebraico (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
48 ldquoTalmudrdquo significa ensinamento estudo Haacute dois Talmuds 1) o Talmud de Jerusaleacutem terminado
pelo fim do seacuteculo IV na Palestina 2) o Talmud da Babilocircnia composto no seacuteculo V em Sura Mesmo na Palestina o Talmud da Babilocircnia o mais completo suplantou o Talmud de Jerusaleacutem quando se fala do ldquoTalmudrdquo sem especificar qual designa-se exclusivamente o da Babilocircnia (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
49 Zuurmond acha que provavelmente Pantera (ou Pandera) ldquoseja uma deformaccedilatildeo acintosa de
parthenos= virgem Deformar de propoacutesito o nome de um inimigo era (e eacute) um uso bastante comum (cf Zuurmond 1998 p77)
89
No entanto uma traduccedilatildeo mais livre do mesmo texto talmuacutedico teria a
seguinte forma segundo Dalman
Ele natildeo era filho de estada mas filho de Pandera Rab Chisda afirma
que o marido da matildee de Jesus era Stada mas o amante dela era Pandera
Outro (diz) que o marido dela era certamente Paphos ben Yeshua que ao
contraacuterio Stada era a matildee dele (Jesus) de acordo com outros sua matildee era
Mirian (Maria em hebraico) a cabeleireira das mulheres A treacuteplica eacute e eu
concordo simplesmente Stada era o apelido dela (Maria) como dito no (ou
na) Pumbeditha Stath da (que significa ldquoela provou ser infielrdquo) ao marido dela
Provavelmente a partir da leitura desses textos eacute que Celso tomou o nome
deste Jesus citado no Talmude e relacionou com o Jesus dos Evangelhos
considerando que ambos os personagens se tratavam da mesma pessoa Desta
forma conforme mencionado por Oriacutegenes Celso acusa Jesus de aleacutem de ter
inventado seu nascimento ter nascido numa cidadezinha da Judeia ser filho de uma
pobre fiandeira ter adquirido poderes maacutegicos no Egito ainda usou esses poderes
para proclamar-se Deus (Oriacutegenes 2004 p68) Embora esse relato tenha sido
retomado tambeacutem por pensadores contemporacircneos como mais um argumento para
contestar a legitimidade do nascimento de Jesus conforme relatado nos Evangelhos
Chilton no entanto considera que esse relato eacute infundado e foi apenas mais uma
ficccedilatildeo que circulou nos primeiros seacuteculos da era cristatilde
Nas comunidades judaicas dos dias de Jesus se uma mulher estivesse
graacutevida antes da consumaccedilatildeo plena do matrimocircnio ela precisaria pela tradiccedilatildeo
apresentar agrave comunidade em que vivia provas de quem era o pai da crianccedila que
estava sendo gerado em seu ventre A casta do filho estava condicionada a quem
era o seu pai ou seja se o filho por ela gerado fosse fruto de uma uniatildeo proibida
obviamente ele seria excluiacutedo da congregaccedilatildeo de Israel conforme estabelecido na
Toraacute especificamente em Deuteronocircmio 233 onde lemos ldquoNenhum bastardo
entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar
na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo
Vale ainda ressaltar que quando um contrato de casamento era firmado a
Mishnah dava o direito ao contratante de anular o mesmo sem uma justificativa
formal caso ele se sentisse injusticcedilado Se a mulher estivesse graacutevida na ocasiatildeo
do rompimento do contrato esse ato do contratante eximia a mulher da acusaccedilatildeo de
90
adulteacuterio e dessa forma o filho natildeo poderia ser considerado formalmente um
mamzer Tal situaccedilatildeo poderia dar margem a um problema de interpretaccedilatildeo da Lei a
saber a mulher uma vez abandonada poderia usar apenas a palavra acerca da
paternidade do fruto de seu ventre Essa palavra seria aceita como verdade tal
como pensavam os rabinos Gamaliel e Eliezer ou rejeitada se natildeo houvesse uma
prova concreta no pensamento do rabino Joshua (Charlesworth 2006 p87)
No primeiro caso a mulher poderia alegar que um determinado cidadatildeo da
sua comunidade era o pai da crianccedila que ela estava esperando Se a palavra dessa
mulher fosse aceita como verdadeira entatildeo pela Toraacute esse homem seria obrigado
a casar com ela e natildeo poderia mandaacute-la embora por toda a vida conforme lemos
em Deuteronocircmio 22 28-29
Se um homem encontra uma jovem virgem que natildeo estaacute prometida e a agarra e se deita com ela e eacute pego em flagrante o homem que se deitou com ela daraacute ao pai da jovem cinquenta ciclos de prata e ela ficaraacute sendo a sua mulher uma vez que abusou dela Ele natildeo poderaacute mandaacute-la embora durante toda a sua vida
Essa interpretaccedilatildeo daria margem para que as mulheres mesmo que
concebessem um filho fruto de uma uniatildeo proibida mas que indicassem um
determinado homem como sendo o pai da crianccedila pudessem tornar o fruto do
ventre em um legiacutetimo judeu aos olhos da comunidade tendo em vista que a mulher
alcanccedilou ecircxito em sua argumentaccedilatildeo o que segundo essa visatildeo natildeo seria difiacutecil
conseguir (Charlesworth 2006 p 87)
Partindo da premissa que a relaccedilatildeo sexual entre pessoas que jaacute haviam
estabelecido o contrato de casamento era toleraacutevel na eacutepoca uma possiacutevel relaccedilatildeo
sexual entre Joseacute e Maria natildeo seria proibida Mas o fato de Joseacute morar em Beleacutem e
Maria em Nazareacute exclui as possibilidades do filho ser dele (Chilton 2002 p13)
Dessa forma Jesus poderia ser considerado um mamzer jaacute que a sua concepccedilatildeo
ocorreu no periacuteodo entre o contrato de casamento e a coabitaccedilatildeo de Joseacute e Maria
Chilton observa que o pensamento de Joseacute em deixar Maria secretamente
conforme lemos em Mateus 119 seria portanto uma forma de natildeo acusar Maria de
fornicaccedilatildeo Natildeo obstante a maravilhosa forma como Joseacute assumiu a paternidade
pode natildeo ter sido suficiente para inibir as mais adversas situaccedilotildees pelas quais Jesus
91
tenha sido alvo desde a infacircncia ateacute a crucificaccedilatildeo proveniente de especulaccedilotildees
sobre a legitimidade de sua paternidade bioloacutegica
Observando as teorias propostas acima a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus
podemos pensar sobre os diferentes conceitos que seus contemporacircneos tinham a
respeito dele Ele era filho de Deus gerado pelo Espiacuterito Santo Ele era filho de Joseacute
ou de um pai desconhecido As palavras ldquoNatildeo nascemos da prostituiccedilatildeordquo (Jo 841)
poderiam ter sido usadas com ironia a fim de colocar em duacutevida sua reputaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees concernentes agrave paternidade bioloacutegica Por que ele foi
chamado de o ldquocarpinteiro o filho de Mariardquo (Mc 63) e natildeo filho de Joseacute e de Maria
entre os seus conterracircneos
Essas questotildees levantadas acima satildeo passiacuteveis de outras interpretaccedilotildees
quando olhamos o texto do Evangelho de Joatildeo a partir de uma cristologia alta50
Embora seja possiacutevel que os judeus tenham procurado debater com Jesus sobre
sua filiaccedilatildeo humana Jesus no entanto sempre usou tais debates para evidenciar
sua filiaccedilatildeo divina e enfatizar sua relaccedilatildeo com o Pai atraveacutes da palavra Abba que
para J Jeremias eacute a mensagem central do Novo Testamento
53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS
Jesus se relacionava com Deus de uma maneira peculiar a qual eacute evidente
nos evangelhos Segundo Pagola a experiecircncia de vida de Jesus eacute a partir de um
Deus Pai que para Jesus eacute aquele que cuida ateacute mesmo das criaturas fraacutegeis e
insignificantes aos olhos dos homens Esse Pai tambeacutem atende aos pobres e
necessitados traz a cura aos enfermos busca os perdidos enfim Deus Pai se torna
o centro de toda a mensagem e da proacutepria vida de Jesus de Nazareacute (Pagola 2010
p 380-381)
Nos Evangelhos a palavra Pai aparece nos laacutebios de Jesus mais de 170
vezes quando ele se dirige a Deus seja por interpelaccedilatildeo ou por designaccedilatildeo
Segundo J Jeremias eacute preciso distinguir a interpelaccedilatildeo da designaccedilatildeo de Deus
como Pai quando esse termo eacute proferido por Jesus nos evangelhos Em suas
50
A cristologia alta refere-se agrave crenccedila na preexistecircncia e na divindade de Jesus (cf
httpwwwcentroestudosanglicanoscombrbancodetextosbibliahermeneuticaresenhas_brown_julio_cesarpdf acesso em 23102011 as 1225 horas)
92
oraccedilotildees Jesus sempre fez uso da interpelaccedilatildeo Pai para invocar a Deus com
exceccedilatildeo do grito da cruz em Mc 1534 par Mt 2746 ldquoMeu Deus meu Deus por que
me abandonasterdquo interpelaccedilatildeo essa que jaacute estava prefixada pelo Sl 221 Aleacutem da
interpelaccedilatildeo eacute muito comum Jesus referir-se a Deus como ldquoo Pairdquo (ὁ πατὴρ) ldquomeu
Pairdquo (τοῦ πατρός μου) e ldquovosso Pairdquo (ὁ πατὴρ ὑμῶν ) (Jeremias 2005 p43)
De fato Jesus usou essas trecircs formas para designar Deus como Pai A
designaccedilatildeo ldquoo Pairdquo encontra-se em alguns textos dos evangelhos em Marcos (Mc
13 32 = Mt 24 36) em Mateus e Lucas juntos (Mt 11 27 = Lc 10 22) somente em
Lucas (Lc 9 26 1113) somente em Mateus (Mt 28 19) e em Joatildeo setenta e trecircs
vezes Sobre a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo encontramos em Marcos (Mc 11 25)
Mateus e Lucas juntos (Mt 5 48 = Lc 6 36 1230) somente em Lucas (Lc 12 32)
somente em Mateus (Mt 5 16 44 61 81526 7 11 10 20 29 18 14) e em Joatildeo
(Jo 8 42 20 17) Aleacutem disso o termo ldquomeu Pairdquo que se encontra em Marcos (Mc
838 = Mt 16 27) τοῦ πατρὸς αὐτοῦ [de seu Pai] mesmo que em referecircncia ao
Filho do Homem natildeo pode figurar sem reservas entre os testemunhos da foacutermula
Meu Pai) (Jeremias 2005 p43) E por fim conforme J Jeremias a expressatildeo
ldquomeu Pairdquo encontra-se nos seguintes textos dos Evangelhos Mateus e Lucas juntos
(Mt 11 27 ndash Lc 1022) somente em Lucas (Lc 249 22 29 24 49) somente em
Mateus (Mt 7 21 10 32-33 12 50 15 13 16 17 18 10 19 35 20 23 25 34 26
29 53 e em Joatildeo vinte e cinco vezes
Para J Jeremias haacute uma crescente tendecircncia em introduzir a designaccedilatildeo de
Deus como Pai nos evangelhos Excluindo as invocaccedilotildees de Pai por Jesus e
contando os paralelos sinoacuteticos J Jeremias observa que em Marcos aparece
apenas trecircs vezes jaacute em Mateus e Lucas juntos (coleccedilatildeo dos logias) aparece
quatro vezes enquanto que somente em Lucas eacute mencionado quatro vezes Os
ditos que satildeo proacuteprios de Mateus satildeo citados trinta e uma vezes A ecircnfase recai
sobre o Evangelho de Joatildeo escrito mais tarde onde a designaccedilatildeo de Deus como
Pai nas palavras de Jesus aparece cem vezes Segundo J Jeremias haacute uma
evidente progressatildeo do uso da palavra Pai usada por Jesus em Marcos na coleccedilatildeo
dos Logia e nos elementos proacuteprios de Lucas Analisando os textos dos Evangelhos
referentes ao uso da palavra Pai observa-se que todos enfatizam essa relaccedilatildeo
iacutentima de Jesus com o Pai do ceacuteu Desse modo ldquopode-se dizer que Jesus se servia
93
da palavra Pai para designar a Deus somente em certas circunstacircncias Em
Mateus acha-se uma progressatildeo sensiacutevel no uso do termo e em Joatildeo Pai quase
tornou-se sinocircnimo de Deusrdquo (Jeremias 1977 p26-27)
Francisco Reyes Archila nota a frequecircncia do uso da palavra Pai em Joatildeo
mesmo sendo este o Evangelho que ao mesmo tempo em que evidencia a
paternidade divina protagoniza tambeacutem a figura feminina no discipulado
especialmente de Maria Madalena51 Archila analisando essa progressatildeo do uso da
palavra Pai em Joatildeo nos laacutebios de Jesus como tambeacutem jaacute havia sido observada por
J Jeremias vecirc ainda uma tendecircncia maior em Mateus em registrar o termo Pai em
relaccedilatildeo a Deus do que em Marcos e Lucas onde o termo praticamente natildeo aparece
Referindo-se a Joatildeo Archila tambeacutem eacute de acordo que natildeo somente nos
Evangelhos mas tambeacutem nas cartas o termo Pai eacute usado com uma frequecircncia
muito alta Para Archila jaacute que em Mateus a frequecircncia natildeo eacute tatildeo alta e em Marcos
e Lucas ela praticamente natildeo aparece e nem nas cartas de Paulo se usa esse
termo referindo-se a Deus somente na introduccedilatildeo das cartas (Rm 17 1 Co 13
2Cor 13 2Cor 12 1131 Gl 1 1-3 Ef 11 520 Cl 1 2-3 1Ts 11 2Ts 11 1tm 12
2Tm 12 Tt 14 Fm3) Eacute de se suspeitar segundo esse autor52 de que Jesus tenha
realmente dirigido-se a Deus sempre como Pai o mais provaacutevel seria que com o
decorrer do tempo (jaacute que Joatildeo foi escrito posteriormente aos outros Evangelhos) a
Igreja primitiva tenha assumido progressivamente essa expressatildeo devido ao
ldquoespiacuterito patriarcal proacuteprio do ambiente cultural da eacutepocardquo (Archila 2007 p99)
Podemos ver sobre o relevante uso do termo Pai no Evangelho de Joatildeo no
resumo feito por Matthias Grenzer conforme exposto abaixo
1ndash O Pai ama o Filho porque este uacuteltimo daacute a sua vida (Jo 1017)
2- O Pai mostra ao Filho tudo o que ele mesmo faz (Jo 5 20)
51
Hamerton-Kelly esclarece que o fato de Jesus ter escolhido o siacutembolo de ldquopairdquo para referir-se a
Deus foi uma forma de reorganizar a forma de patriarcado da eacutepoca com a finalidade de tornar as pessoas livres das ldquogarras do patriarcadordquo Para Hamerton-Kelly longe de ser um siacutembolo sexista o pai era para Jesus uma arma escolhida para combater o que chamam de sexismo O termo ldquopairdquo tem sido interpretado fora de seu contexto apresentando um ldquodeusrdquo do sexo masculino que tem sido colocado primariamente como macho mas segundo esse autor a situaccedilatildeo poderia ser mudada ldquocomo temos tentado fazerrdquo (cf Hamerton-kelly 1979 p103) Roger Haight estaacute de acordo que Hamerton-Kelly na nota acima segue J Jeremias sobre a forma como Jesus fazia uso do termo ldquopairdquo que em seu contexto significa algo semelhante agrave ldquomatildeerdquo na sociedade moderna desenvolvida (cf Haight 2003 p 128)
52 Archila estaacute citando Lothar Coenen e outros (Diccionaacuterio teoloacutegico del Nuevo Testamento
Salamanca Siacutegueme vol 3 1983 p 244)
94
3- Ao permanecer no Filho o Pai realiza as suas obras (Jo 1410)
4- O Pai vivo enviou o filho e o filho vive atraveacutes do Pai (Jo 6 57)
5- O Filho fala o que o Pai lhe diz (Jo 12 49-50)
6- O Filho por si mesmo nada faz mas realiza soacute aquilo que vecirc o Pai fazer (Jo
519)
7- Com esse relacionamento muacutetuo de maior intensidade o Pai ama o filho (Jo
335 5 20 1017 159) e o Filho ama o Pai (Jo 1431)
8- O Filho permanece no amor do Pai (Jo 1510)
9- O Pai estaacute no Filho e o Filho estaacute no Pai (Jo 1038 1411 1721)
Esse profundo relacionamento do Filho com o Pai pode ser compartilhado com
o ser humano segundo Grenzer desde que o disciacutepulo reconheccedila o Filho no Pai (Jo
1417) pois aquele que conhece o Filho tambeacutem conhece o Pai (Jo 14 7-9)
ldquoAquele que ama o Filho observando os mandamentos dele seraacute amado pelo Pairdquo
(Jo 1421) Ou ao contraacuterio ldquoquem natildeo honra o Filho tambeacutem natildeo honra o Pai que
o enviou (Jo 523)rdquo Portanto a relaccedilatildeo de Jesus (o Filho) com Deus (o Pai) no
Evangelho de Joatildeo eacute de extrema relevacircncia para compreendermos a cristologia e
para aprendermos a perfeita forma de nos relacionarmos com o Pai celeste
(Grenzer 2009 p 184)
Archila (2007 p99) contabiliza que a expressatildeo Pai para nomear Deus no
Novo Testamento ocorre 245 vezes enquanto que a mesma palavra para designar o
pai bioloacutegico ocorre 157 vezes O motivo para tal ecircnfase para o uso dessa
expressatildeo referindo-se a Deus pode ser pela ldquoinfluecircncia da filosofia grega53 na
nomeaccedilatildeo de Deus como Pai Contudo segundo o mesmo autor o mais plausiacutevel
do ponto de vista histoacuterico eacute a possibilidade que Jesus realmente ldquotenha chamado a
Deus como meu pai ou nosso pai ou pai de vocecircs (Mt 69 2629 42 Lc 112)
Inclusive eacute mais provaacutevel que Jesus o tenha nomeado como Abba palavra usada
pelos filhos ao dirigir-se a seus pais e que equivale a papai (Archila 2007 p99-
53
ldquoA ideia da paternidade de Deus recebe uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica em Platatildeo e nos estoicos
Platatildeo na sua elaboraccedilatildeo cosmoloacutegica da ideia do pai ressalta o relacionamento criador de Deus o pai universal para com o cosmos inteiro (Tim 28c 41a e frequentemente) Para os estoicos a autoridade de deus como Pai permeia o universo ele eacute criador pai e sustentador dos homensrdquo (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)
95
100) Essa forma de dirigir-se a Deus como Pai ou seja essa ideia de ser filho de
Deus contrapotildee-se a ideia presente na filosofia grega e tambeacutem da concepccedilatildeo
romana do Imperador como ldquofilho de deusrdquo Por outro lado ainda o Abba de Jesus
assimilado pela Igreja primitiva dava o direito aos considerados apaacutetridas sociais a
terem o direito de ter um pai o que provavelmente deve ter provocado implicaccedilotildees
agrave Igreja jaacute que essas ideias iam contra aos valores da sociedade patriarcal daquela
eacutepoca (Archila 2007 p103-104)
A imagem que Jesus apresentou do Pai do ceacuteu natildeo pode ser associada com o
que a patriarcalizaccedilatildeo que a cristandade ocidental fez de Deus Para Jesus
segundo Archila Deus natildeo eacute um pai superpoderoso dominante prepotente e
distante dos seus filhosrsquo ele eacute por natureza um pai proacuteximo iacutentimo terno e
misericordioso ou seja ele nos mostra a imagem de um Deus Pai bom e justo Em
outras palavras pode-se dizer que Jesus humanizou a imagem de Deus rompendo
com a imagem patriarcal54 androcecircntrica e exclusivista para apresentar a imagem
de Deus como o Pai bom que projeta nos seus filhos um modelo de relacionamento
fraterno entre homens mulheres crianccedilas com a proacutepria natureza e por fim com o
proacuteprio Deus (Archila 2007 p107)
Trabalhando ainda o Abba nos laacutebios de Jesus eacute relevante observarmos que
Santos Sabugal tambeacutem lista as invocaccedilotildees e designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo nos
laacutebios de Jesus como sendo empregado natildeo menos de 184 vezes (Marcos 4 Lucas
17 Mateus 44 Joatildeo 119 = 111 nos laacutebios de Jesus) assim o referido autor resume
o emprego das designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo por Jesus nos Evangelhos
Esse uso eacute portanto limitado em Marcos mas frequente em Lucas e sobre tudo em Mateus para culminar no evangelho de Joatildeo E as estatiacutesticas refletem de alguma forma em cada evangelho a concepccedilatildeo teoloacutegica da paternidade divina Marcos representa o estagio inicial desta concepccedilatildeo desenvolvida pela teologia de Lucas e significativamente ampliada por Mateus atingindo seu pico mais alto em Joatildeo o teoacutelogo por excelecircncia da paternidade de Deus (Sabugal 1985 p381)
54
Segundo Archila o patriarcado eacute definido como ldquouma relaccedilatildeo de poder entendido como dominaccedilatildeo e superioridade que o varatildeo exerce sobre mulheres e crianccedilasrdquo O modelo que o sistema patriarcal pretende representar eacute baseado numa forma hegemocircnica da dominaccedilatildeo do varatildeo sobre a mulher Esse modelo ldquoinclui papeis competecircncias haacutebitos valores formas de pensar e inclusive formas institucionais como leis e normasrdquo (Archila 2007 p 91-92)
96
Para Sabugal portanto nenhum judeu mesmo os mais piedosos invocou a
Deus como o Abba assim como fez Jesus constantemente Ele tinha a
autoconsciecircncia de ser o filho de Deus Essa forma de invocar a Deus tornou-se natildeo
apenas parte integrante e essencial das suas oraccedilotildees como tambeacutem parte
integrante do seu meacutetodo de ensino sobre a oraccedilatildeo (Sabugal 1985 p386)
Joseacute Antonio Pagola tambeacutem eacute de acordo que Jesus como todas as demais
crianccedilas da Galileia em suas primeiras palavras balbuciou os termos immaacute
(mamatildee) e abba (papai) quando se dirigia a Maria e Joseacute seus pais Contudo
segundo Pagola pode ser um exagero limitar o uso do abba apenas agraves criancinhas
visto que ateacute mesmo os adultos parece que usavam tal expressatildeo como forma de
respeito agrave figura paterna dentro de uma estrutura familiar patriarcal (Pagola 2010
p383)
Mas natildeo precisamos exagerar Parece que tambeacutem os adultos empregavam esta palavra expressando seu respeito e obediecircncia ao pai da famiacutelia patriarcal Chamar a Deus de Abbaacute indica carinho intimidade e proximidade mas tambeacutem respeito e submissatildeo Jesus havia conhecido em sua proacutepria casa a importacircncia do pai Joseacute era o centro de toda a famiacutelia Tudo gira em torno dele O pai cuida dos seus e os protege Se ele falta a famiacutelia corre o risco de desintegrar-se e desaparecer Eacute ele quem sustenta e assegura o futuro de todos Haacute dois traccedilos que caracterizam um bom pai O primeiro eacute a solicitude para com os filhos eacute ele quem deve assegurar-lhes o sustento necessaacuterio protegecirc-los e ajudaacute-los em tudo Ao mesmo tempo o pai eacute autoridade da famiacutelia ele daacute as ordens para assegurar o bem de todos Ele instrui os filhos ensina-lhes um oficio se necessaacuterio Os filhos por sua vez satildeo chamados a ser a alegria do pai (Pagola 2010 p 383-384)
Para fundamentar sua tese de que o abba era um linguajar infantil e que
Jesus que ressignificou esse termo J Jeremias recorre aos pais da Igreja
Crisoacutestomo Teodoro de Mopsueacutestia e Teodoreto de Ciro originaacuterios de Antioquia
uma populaccedilatildeo que falava o siriacuteaco ocidental do aramaico Segundo J Jeremias
esses ldquopais da Igrejardquo satildeo de comum acordo de que o termo Abba era a palavra
usada por um filho pequenino quando se dirigia ao seu pai Um outro documento
usado por J Jeremias para dar sustentaccedilatildeo agrave sua pesquisa eacute o relato do Talmude (b
Berakocirct 40a b Sanedriacuten 70b) citado por ele com as seguintes palavras ldquoQuando
uma crianccedila prova o gosto do cereal isto eacute tatildeo logo como o detestam aprende a
dizer Abba e imma (papai e mamatildee) Abba e imma satildeo pois as primeiras palavras
que a crianccedila balbucia Abba era a linguagem infantil uma palavra comum
97
empregada diariamente ningueacutem tinha ousado dirigir-se a Deus desse modordquo (cf
Jeremias 2006 p63)
Deus como Pai para Jesus eacute com frequecircncia um Pai bom Ele ldquofaz nascer
seu sol sobre bons e maus Manda a chuva sobre justos e injustos (Lc 635 Mt
545) Para Pagola Jesus demonstra isso com muita maestria na paraacutebola do ldquofilho
perdidordquo (Lc 15 11-32) Nessa paraacutebola Pagola observa que o pai natildeo eacute um
personagem autoritaacuterio que natildeo respeita as decisotildees dos filhos pelo contraacuterio ele eacute
um pai amoroso e mesmo que o filho o tenha abandonado ele o recebe de braccedilos
abertos assim que este o pede perdatildeo (Pagola 2010 p386)
Embora a teologia do Abba seja defendida como a ipssissima vox de Jesus
por J Jeremias alguns autores contemporacircneos como Udo Schnelle defende que
natildeo haacute novidade na forma de Jesus invocar ou designar a Deus como pai visto que
isso era uma praacutetica comum tanto no judaiacutesmo como no mundo greco-romano
Segundo Schnelle a novidade do Abba nos laacutebios de Jesus estaacute na ecircnfase na
frequecircncia e na simplicidade com que Deus eacute designado como Pai nos Evangelhos
quando esse termo eacute proferido por Jesus (Schnelle 2010 p99-100)
J Jeremias defende que Jesus usou a palavra Pai na maioria das vezes
quando essa relaccedilatildeo era do Filho com o Pai Quanto ao uso da palavra Pai em
relaccedilatildeo a outras pessoas Jesus nunca fez alguma referecircncia a natildeo ser raras vezes
a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo apenas aos seus disciacutepulos e nunca a outros grupos
visto que a paternidade divina era uma exclusividade estendida apenas aos
disciacutepulos Grupos como os escribas e fariseus foram excluiacutedos dessa filiaccedilatildeo pois
o pai deles eacute o diabo conforme Joatildeo 8 42-44 (Jeremias 2008 p271)
Disse-lhes Jesus ldquoSe Deus fosse o vosso pai voacutes me amariacuteeis porque saiacute de Deus e dele venho natildeo venho por mim mesmo mas foi ele que me enviou Por que natildeo reconheceis minha linguagem Eacute porque natildeo podeis escutar minha palavra Voacutes sois do diabo vosso pai e quereis realizar os desejos do vosso pai Ele foi homicida desde o princiacutepio e natildeo permaneceu na verdade quando ele mente fala do que lhe eacute proacuteprio porque eacute mentiroso e pai da mentira
98
A questatildeo da filiaccedilatildeo divina eacute um processo iacutentimo entre o Pai e seu filho J
Jeremias observou que o texto do evangelho de Mateus (Mt 1127) pode ser mais
bem traduzido do seguinte modo ldquocomo soacute um Pai conhece o seu filho assim soacute um
filho conhece o seu pairdquo (Jeremias 1977 p29) Essa relaccedilatildeo de Filho e Pai que
Jesus propagou no Novo Testamento tem no Antigo Testamento o paralelo mais
proacuteximo nas palavras do salmista ldquoComo um pai se compadece dos filhos assim se
apieda o Senhor dos que o tememrdquo (Sl 103 13) Mas para os filhos do Reino o pai
eacute ainda maior Ele aleacutem de bondoso e misericordioso eacute benigno ateacute mesmo com os
ingratos e maus (Lc 635)
Seguindo esse pensamento Joseph A Fitzmyer observa que quando Jesus
instruiu os disciacutepulos a invocar a Deus como Pai Ele estava mostrando que Deus
natildeo era somente o ldquotranscendente Senhor dos ceacuteus mas estaacute perto assim como um
pai com seus filhosrdquo (Fitzmyer 1985 p898) Para Stephen A Missick Abba eacute
contudo um misteacuterio uma revelaccedilatildeo especial que vem somente atraveacutes de Jesus
Cristo Missick assim como J Jeremias observa que o texto de Mateus 1127
poderia ser parafraseado em aramaico ficando da seguinte forma ldquosomente pai e
filho realmente se conhecem Porque apenas um pai e um filho verdadeiramente
conhecem um ao outro portanto um filho pode revelar aos outros os pensamentos
mais iacutentimos de seu pairdquo (Missick 2006 p23) Para Missick o maior exemplo para
demonstrar essa intimidade entre o Filho e o Pai e o poder que o Filho tem de
revelar o Pai estaacute registrado em Joatildeo 148
Filipe lhe diz ldquoSenhor mostra-nos o Pai e isso nos bastardquo Diz-lhe Jesus ldquoHaacute tanto tempo estou convosco e tu natildeo me conheces Filipe Quem me vecirc vecirc o Pai Como podes dizer Mostra-nos o Pai Natildeo crecircs que estou no Pai e que o Pai estaacute em mim As palavras que vos digo natildeo as digo de mim mesmo mas o Pai que permanece em mim realiza suas obras Crede-me eu estou no Pai e o Pai em mim Crede-o ao menos por causa dessas obrasrdquo
O discurso de Jesus sempre foi conflitante com os grupos religiosos de sua
eacutepoca e isto se agravou mais ainda pelo modo como Ele invocava a Deus mediante
a expressatildeo ldquomeu Pairdquo fato que natildeo era comum no Judaiacutesmo Se essa forma de
99
dirigir-se a Deus chamando-o de ldquomeu Pairdquo era incomum muito mais incomum
ainda era o emprego da forma aramaica ldquoAbbardquo (Jeremias 2008 p116) Os Judeus
usavam duas maneiras de tratar o Pai uma que era muito comum e tambeacutem usada
no cotidiano familiar abba e outra que era mais solene e elevada abicirc (אב)
(Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p649) Para um judeu usar a palavra
Abba para dirigir-se a Deus parecia ser um atrevimento pois tal palavra soava como
balbucio Abba estava entre as primeiras palavras que uma crianccedila aprendia a falar
conforme a referecircncia que J Jeremias faz ao Talmude Babilocircnico jaacute citado neste
trabalho55
Jaacute nos dias de Jesus abba jaacute tinha deixado de ser apenas uma linguagem das
criancinhas para tornar-se uma forma como os filhos adultos se dirigiam a seu pai
como podemos ver na paraacutebola do filho proacutedigo (Lc 15 21) Nos laacutebios de Jesus
aleacutem de tornar-se uma forma familiar de invocar e dirigir-se a Deus abba passou a
ser tambeacutem considerada uma palavra lsquosagradarsquo uma vez que um soacute eacute o Pai dos
disciacutepulos a saber o que estaacute nos ceacuteus conforme Mateus 239 (Jeremias 2008
p121) Para Jesus Abba tornou-se uma expressatildeo de honra que somente o Pai
celeste eacute digno Essa maneira simples e iacutentima de Jesus dirigir-se a Deus como
uma criancinha fala a seu pai foi considerado por J Jeremias como a ipsiacutessima vox
de Jesus isto eacute um modo proacuteprio e original de falar usado por Jesus e que natildeo
tinha nenhuma analogia na literatura da eacutepoca (Jeremias 2008 p120)
[] a forma abbaacute suplantou a forma abbi usada no aramaico paletinense ateacute pelo menos o seacutec 2 a C como constatamos pela documentaccedilatildeo Aleacutem disso abbaacute tomou o sentido de ldquomeu pairdquo e de ldquoo pairdquo e ldquonosso pairdquo De tal modo que a palavra natildeo era apenas parte do linguajar das crianccedilas Os jovens de ambos os sexos tambeacutem chamavam o proacuteprio pai de Abbaacute (cf Lc 15 21) natildeo recorrendo agrave palavra ldquoSenhorrdquo (Kyrie) a natildeo ser cerimonioso (cf Mt 21 29-30) Mas apesar destes desenvolvimentos jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil (Jeremias 1977 p 24-25)
Mais tarde Fitzmyer comentando essa tese reconhece que J Jeremias
entendeu que Jesus natildeo se dirigiu a Deus invocando-o como uma criancinha faz
com seu pai Fitzmyer tambeacutem concorda que Abba eacute a ipisissima vox de Jesus para
55
para esclarecer essa tese podemos ver uma versatildeo semelhante a jaacute citada por J Jeremias (2006 p63) em outra obra sua conforme transcrevemos abaixo ldquoSomente quando uma crianccedila experimenta o gosto do trigo (isto eacute quando eacute desmamada) eacute que ela diz aacutebba imma [matildee] ou seja estes satildeo os primeiros balbuciosrdquo (cf Jeremias 2008 p119)
100
expressar o seu relacionamento com Deus mas que Abba por si soacute sem as oraccedilotildees
de louvor registradas pelos evangelistas Mateus e Lucas (Mt 11 25-27 Lc 10 21-
22) natildeo eacute suficiente para subsidiar tal argumento (Fitzmyer 1993 p61) Para
Ephraim o meacuterito de ter levado ao grande puacuteblico o verdadeiro sentido de como
Jesus se dirigia a Deus Pai chamando-o de Abba eacute de J Jeremias
[hellip] Joachim Jeremias levou ao grande puacuteblico toda a beleza do nome Abba tal como Jesus o pronunciava Enfatizou com razatildeo que em nenhuma outra parte do judaiacutesmo se encontra tal familiariadade Mesmo se por vezes Deus era invocado pelo vocaacutebulo Pai ningueacutem ousou antes do Filho primogecircnito dentre um grande nuacutemero de irmatildeos chamaacute-lo de Abba que literalmente quer dizer papai A ousadia amorosa sempre estivera do lado do Pai pois do lado da criatura nunca ningueacutem fora tatildeo longe como Jesus na resposta adesatildeo e entrega ao amor misericordioso (Ephraim 1998 p174)
54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS
Sabendo que os Evangelhos sinoacuteticos contecircm muitos traccedilos que remontam
para uma redaccedilatildeo poacutes-pascal J Jeremias pergunta ldquoseremos capazes de
remontarmos em particular a ipsissima vox de Jesusrdquo Os evangelhos apresentam
o querigma de Jesus ou segundo J Jeremias seria mais exato dizer que eles
apresentam a Didaquecirc (ensino) da Igreja primitiva A pergunta acima pode gerar um
certo ceticismo contudo natildeo tem forccedila para destruir o argumento de que
[] os logia de Jesus apresentam certas particularidades que devemos considerar como suas expressotildees favoritas jaacute que figuram independentemente uma das outras nas diversas narrativas da tradiccedilatildeo Abba e amen satildeo os traccedilos da linguagem mais caracteriacutesticos da ipsissima vox de Jesus (Jeremias 2006 p 137-138)
Haacute uma distinccedilatildeo entre ipsissima vox e ipsissima verba de Jesus Segundo J
Jeremias a presenccedila de um modo de falar preferido de Jesus (ipsissima vox) natildeo
dispensa absolutamente de examinar em cada caso particular se temos um dito
autecircntico (ipsissima verba) (Jeremias 2008 p79) Os apoacutestolos assim
compreenderam e Paulo vai dizer mais tarde que Abba eacute o clamor (ipsissima vox)
dos filhos de Deus daqueles que foram adotados na comunhatildeo do Espiacuterito Santo
Segundo Missick a importacircncia da palavra Abba vem justamente ao encontro dessa
teoria pois segundo ele natildeo haacute duacutevida de que essa foi a palavra exata que Jesus
101
falou ou seja Abba eacute a ipsissima vox a voz original ou a ipsissima verba as
autecircnticas palavras de Jesus (Missick 2006 p 23)
J Jeremias baseando-se em Dalman diz-nos que assim como o Abba a
palavra amen (ἀμήν) quando proferida por Jesus natildeo possui nenhum equivalente
na literatura judaica e nem nos demais escritos do Novo Testamento Nos discursos
judaicos a palavra ameacuten ldquoservia para ratificar reforccedilar e fazer proacuteprias as palavras
de outro (cf Jr 28 6) na tradiccedilatildeo dos logia de Jesus se utiliza sem exceccedilatildeo esse
termo para reforccedilar o proacuteprio discursordquo (cf Jeremias 2006 p 138) Podemos ver
esse pensamento exposto nas palavras do proacuteprio Dalman
Jaacute foi frequumlentemente apontado que o modo como Jesus usa a palavra ameacutem natildeo eacute familiar em toda a literatura judaica Mesmo em Sota II 5 cf Jerus I e II num 522 realmente natildeo pode ser forccedilado a comparaccedilatildeo Nessa passagem a repeticcedilatildeo amen pronunciado pela mulher suspeita de adulteacuterio eacute explicada como um protesto de sua inocecircncia como se ela estivesse a dizer ameacutem [= eu protesto] que eu natildeo me poluiacute ameacutem que eu natildeo vou poluir a mim mesma (cf Dalman 1902 p226)
J Jeremias refere-se agraves foacutermulas ameacuten legocirc hymin (sou) (em verdade vos [te]
digo) nos sinoacuteticos e amen ameacuten legocirc hymin (soi) (em verdade em verdade vos
[te] digo) em Joatildeo Segundo ele o nuacutemero de vezes que tais expressotildees aparecem
nos evangelhos eacute 13 vezes em Marcos 30 em Mateus (+ Mt 18 19 var) 6 em
Lucas e 25 em Joatildeo onde haacute uma reduplicaccedilatildeo Para J Jeremias este amen natildeo
responsivo coloca-nos diante de uma forma totalmente nova e peculiar dos
Evangelhos e principalmente de Jesus (Jeremias 2006 p 138-139)
Sobre a grandeza do Abba como a ipsissima vox de Jesus vejamos o que nos
diz J Jeremias
Natildeo haacute paralelos com esta mensagem de que Jesus quer ocupar-se dos pecadores natildeo dos justos e que desde agora lhes daacute jaacute a participaccedilatildeo em seu reinado Natildeo haacute paralelos com este Jesus que se senta agrave mesa com publicanos e pecadores Natildeo haacute paralelos com a autoridade com que Jesus se atreve a dirigir-se a Deus com a invocaccedilatildeo de Abba Quem reconhece unicamente o fato (e natildeo sei como algueacutem poderia negaacute-lo) de que a palavra ldquoabbardquo eacute ipsissima vox Iesu esse tal se entende bem a palavra e natildeo a desvirtua estaacute diante da pretensatildeo que Jesus tinha de sua proacutepria majestade (Jeremias 2006 p40)
Se para Jesus invocar a Deus como Pai era um direito exclusivo dado aos
disciacutepulos na igreja primitiva isso era privileacutegio apenas dos membros que jaacute
102
estavam integrados na igreja aos neoacutefitos era lhes reservado o direito de aprender a
oraccedilatildeo mas soacute podiam pronunciaacute-la em puacuteblico a partir da primeira Eucaristia logo
apoacutes o batismo conforme Cirilo um sacerdote de Jerusaleacutem que viveu por volta do
ano 350 dC (Jeremias 1979 p10) Segundo J Jeremias essas restriccedilotildees podem
ser vistas ateacute mesmo na divisatildeo dos capiacutetulos da Didaquecirc no seacuteculo I Na Didaquecirc
a oraccedilatildeo e a ceia do Senhor soacute vecircm depois do batismo (Jeremias 1979 p9-10)
Isso demonstra o quanto era sagrado o direito de invocar a Deus Pai chamando-o
de Abba Pai
55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR
Jesus pertencia a uma famiacutelia piedosa judaica (Lc 2 1-52 cf 416) viveu no
meio de um povo que sabia orar por isso eacute bem provaacutevel que desde menino tenha
aprendido em casa com seus pais a exercer a praacutetica da oraccedilatildeo cotidiana
Segundo J Jeremias natildeo eacute possiacutevel saber muita coisa sobre a praacutetica de oraccedilatildeo na
vida de Jesus aleacutem dos trecircs gritos da cruz relacionados nos sinoacuteticos haacute ainda
duas oraccedilotildees ldquoo grito de juacutebilo (Mt 11 25-26) e a oraccedilatildeo do Getsecircmani (Mc 14 36)rdquo
O Evangelho de Joatildeo registra outras trecircs oraccedilotildees de Jesus na ressurreiccedilatildeo de
Laacutezaro (Jo 1 14-42) na esplanada do templo (equivalente joanino da oraccedilatildeo do
Getsecircmani Jo 12 27) e a oraccedilatildeo sacerdotal (Jo 17) Aleacutem disso temos outros
relatos gerais de oraccedilatildeo registrados nos Evangelhos (cf Mc 1 35 646=Mt 14 23
Lc 3 21 5 16 6 12 9 18 28-29 Lc 22 31-32) e a oraccedilatildeo do Pai-nosso
(Jeremias 2006 p123)
Podemos ainda mencionar que com exceccedilatildeo das mulheres dos filhos
pequenos e dos escravos todos os homens de Israel a partir dos treze anos
estavam obrigados a recitar regularmente o Shemaacute56 (ldquoOuve oacute Israel Iahweh nosso
Deus eacute o uacutenico Iahwehrdquo Dt 64) duas vezes ao dia Aleacutem da profissatildeo de feacute judaica o
mandamento divino era logo recitado em seguida (cf Jeremias 2006 p 116)
Portanto amaraacutes a Iahweh teu Deus com todo o seu coraccedilatildeo com toda a tua alma e com toda a tua forccedila Que estas palavras que hoje te ordeno
56
No entanto segundo J Jeremias o shemaacute era ensinado aos filhos desde que esses aprendiam a falar (cf Jeremias 2006 p 116)
103
estejam em teu coraccedilatildeo Tu as inculcaraacutes aos teus filhos e delas falaraacutes sentado em tua casa e andando pelo caminho deitado e de peacute (Dt 6 5-7)
No Novo Testamento a oraccedilatildeo jaacute havia deixado de ser praticada duas vezes
ao dia para concretizar-se em trecircs vezes conforme vemos no livro dos Atos dos
Apoacutestolos (31 10 3-30) e na Didaquecirc (83) Segundo Jeremias isso se deve ao
fato de ter havido uma fusatildeo entre o Shemaacute (apesar dessa natildeo ser propriamente
uma oraccedilatildeo mas uma profissatildeo de feacute) com a Tefilaacute no periacuteodo da manhatilde e da noite
enquanto que na oraccedilatildeo da tarde natildeo se recitava o Shemaacute Para os israelitas esses
momentos de oraccedilatildeo eram muito preciosos jaacute que se assegurava a formaccedilatildeo dos
jovens na praacutetica da oraccedilatildeo (Jeremias 2006 p22)
Jesus com certeza conhecia as oraccedilotildees e as formas lituacutergicas para proferi-las
no entanto ao ser indagado pelo disciacutepulo anocircnimo (Lc 111) com a indagaccedilatildeo
ldquoSenhor ensina-nos a orarrdquo eacute claro que o Mestre sabia que seus disciacutepulos tambeacutem
conheciam as oraccedilotildees tradicionais visto que tambeacutem eram judeus No entanto eacute
muito provaacutevel que o disciacutepulo anocircnimo estaacute pedindo a Jesus um novo modelo de
oraccedilatildeo que os distinguisse como um grupo Jesus ensinou-lhes o Pai-nosso que se
tornaria a oraccedilatildeo oficial da Igreja primitiva e viria a substituir o antigo modelo das
trecircs oraccedilotildees diaacuterias tatildeo conhecidas em Israel conforme pode ser visto na Didaquecirc
(9-10) Surge entatildeo uma nova forma de orar a partir do ensinamento de Jesus
baseado na expressatildeo Abba que era a forma singular de expressatildeo usada por ele
para dirigir-se ao Pai que estaacute nos ceacuteus (Jeremias 2006 p129-131)
A relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai atinge seu aacutepice na Oraccedilatildeo do Pai-nosso
onde Jesus estaacute ensinando seus disciacutepulos orar A pergunta feita pelo disciacutepulo
anocircnimo em Lucas 111 (Senhor ensina-nos a orar) resultou no mais belo
ensinamento de Jesus a respeito da oraccedilatildeo Na oraccedilatildeo do Pai-nosso como exemplo
de humildade e obediecircncia ldquoJesus se entrega agrave vontade de Deus como a crianccedila o
faz em relaccedilatildeo ao Pairdquo (Goppelt 2002 p 216) Para Haight a oraccedilatildeo modelo eacute
composta por uma invocaccedilatildeo dois anseios ou esperanccedilas e trecircs pedidos (cf Haight
2003 p139) 57 O teoacutelogo Leonardo Boff assim resume a essecircncia desse magniacutefico
modelo de oraccedilatildeo
57
A forma apresentada por Lucas da oraccedilatildeo do Pai-nosso consiste de um endereccedilamento (ldquoPairdquo) dois desejos proferidos a Deus e trecircs peticcedilotildees ditas a ele A forma em Mateus apresenta um endereccedilamento expandido trecircs desejos e quatro peticcedilotildees Nesse modo de orar Jesus instrui e
104
Na oraccedilatildeo do Senhor encontramos praticamente a correta relaccedilatildeo entre Deus e o homem o ceacuteu e a Terra o religioso e o poliacutetico mantendo a unidade do mesmo processo A primeira parte diz respeito agrave causa de Deus o Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome seu Reino sua Vontade santa A segunda parte concerne agrave causa do homem o patildeo necessaacuterio o perdatildeo indispensaacutevel a tentaccedilatildeo sempre presente e o mal continuamente ameaccedilador Ambas as partes constituem a mesma e uacutenica oraccedilatildeo de Jesus Deus natildeo soacute se interessa pelo que eacute seu o Nome o Reino a Vontade divina Ele se preocupa tambeacutem pelo que eacute do homem o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo o mal Igualmente o homem natildeo soacute se prende ao que lhe importa o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo e o mal abre-se tambeacutem ao que respeita ao Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome a chegada de seu Reino a realizaccedilatildeo de sua Vontade (Boff 2009 p17-18)
Em seu livro ldquoO Pai-nosso a oraccedilatildeo do Senhorrdquo J Jeremias enfatiza o alto
valor que a referida oraccedilatildeo tinha na liturgia entre os cristatildeos da Igreja primitiva J
Jeremias nos diz que o mais antigo uso dessa oraccedilatildeo era a recitaccedilatildeo da mesma na
24ordf catequese de Cirilo onde o Pai-nosso era recitado antes da comunhatildeo e era
restrito dentro do culto divino apenas aos batizados ou seja aos membros efetivos
da Igreja Essa praacutetica provinha de Jerusaleacutem e vigorava por toda a Igreja Desde os
primeiros passos na feacute os neoacutefitos jaacute aprendiam a recitar de cor a oraccedilatildeo do Pai-
nosso mas soacute tinham o direito de rezaacute-lo com os demais fieacuteis a partir do momento
em que participavam da primeira eucaristia ou seja logo apoacutes o batismo (Jeremias
1979 p 5-6)
O uso regular do Pai-nosso na liturgia da Igreja eacute tambeacutem testemunhado na
Didaquecirc (Doutrina dos Doze Apoacutestolos) que segundo J Jeremias eacute tatildeo antiga que
chega a ser datada no seacutec I dC ou para ser mais preciso segundo Boff ela foi
escrita por volta dos anos 50 a 70 dC (Boff 2009 p36) Para J Jeremias a
importacircncia dada ao Pai-nosso na Didaquecirc pode ser observada na estrutura da
obra
[] O livro comeccedila (cc 1-6) com a doutrina dos dois caminhos o da vida e da morte que evidentemente pertencia agrave instruccedilatildeo dada aos catecuacutemenos Em seguida o c 7 trata do batismo soacute depois disso eacute que vecircm as seccedilotildees de importacircncia para os batizados Jejum e oraccedilatildeo (inclusive o Pai-nosso) no c 8 Ceia do Senhor nos cc 9 e 10 organizaccedilatildeo e disciplina eclesiaacutesticas nos cc 11 a 15 O que nos interessa aqui eacute que oraccedilatildeo e Ceia do Senhor vecircm depois do batismo
autoriza seus disciacutepulos a chamar a Deus como ldquoPairdquo usando o mesmo tiacutetulo que ele mesmo utilizou em sua oraccedilatildeo de louvor Lc 1021 (duas vezes) e utilizaraacute de novo em Lc 22 42 (cf Fitzmyer 1985 p 899)
105
O que J Jeremias conclui eacute que diferentemente de hoje onde o Pai-nosso eacute
acessiacutevel a todos nos primoacuterdios do cristianismo era bem diferente O privileacutegio de
recitar a oraccedilatildeo do Senhor era reservado apenas aos membros que estavam
plenamente integrados agrave Igreja A perda da reverecircncia e do temor pela oraccedilatildeo do
Senhor eacute tratada por J Jeremias com apreensatildeo e o retorno agrave reverecircncia que a
Igreja primitiva dava ao Pai-nosso soacute pode ser reconquistada se atraveacutes da exegese
biacuteblica buscarmos entender qual era o sentido que o proacuteprio Senhor quis dar agraves
palavras dessa sagrada oraccedilatildeo (Jeremias 1979 p 8-12)
Concordando com J Jeremias Ephraim tambeacutem observa que nos primeiros
seacuteculos da era cristatilde os cristatildeos pronunciavam as palavras do Pai-nosso ldquocom
grande temor como que em segredordquo O motivo para tal respeito era o medo de
transpassar os limites da reverecircncia e cair na blasfecircmia ao pronunciar o nome
inefaacutevel de Deus Segundo Ephraim ainda hoje baseado nesse profundo respeito
pela sagrada oraccedilatildeo os cristatildeos bizantinos ainda conservam a seguinte foacutermula
antes de iniciarem a oraccedilatildeo ensinada pelo senhor ldquoE torna-nos dignos Mestre de
ousar com toda a seguranccedila e sem incorrer em condenaccedilatildeo de te chamar de Pai a
ti o Deus do ceacuteu e de te dizer Pai nossordquo Ao observarmos essa foacutermula bizantina
que antecede a oraccedilatildeo do Pai-nosso concluiacutemos com Ephraim que o respeito e o
medo de ser indigno de pronunciar tal oraccedilatildeo fizeram com que a tradiccedilatildeo da
comunidade cristatilde acima mencionada conservasse com muita precauccedilatildeo haacutebitos e
costumes dos primeiros cristatildeos no que diz respeito a como se deve orar o Pai-
nosso (Ephraim 1998 p 174)
Partindo do princiacutepio que por volta do ano 75 dC a oraccedilatildeo do Pai-nosso era
obrigatoacuteria na formaccedilatildeo dos neoacutefitos tanto os cristatildeos de origem judaica quanto os
de origem grega tinham em comum a obrigatoriedade da oraccedilatildeo do Senhor na
formaccedilatildeo dos novos disciacutepulos Quanto agrave questatildeo do por que duas versotildees do Pai-
nosso ou se eacute possiacutevel que um dos disciacutepulos tenha acrescentado ou retirado
palavras da forma original J Jeremias conclui que ambos os disciacutepulos jamais
alterariam algum ponto da oraccedilatildeo do Senhor A forma mais clara para se
compreender a aparente divergecircncia estaacute no fato de que ambos escreveram para
igrejas diferentes locais e situaccedilotildees diferentes por isso cada evangelista optou por
transmitir um texto segundo o seu tempo e sua Igreja (Jeremias 1979 p 16-21)
106
Quando lemos a oraccedilatildeo do Pai-nosso nas duas versotildees ou seja por Mateus
e por Lucas surgem questotildees a respeito da antiguidade dos textos e das variantes
textuais entre os dois Evangelhos J Jeremias em sua obra acima citada trabalha
com esmero essas duas questotildees e outras tambeacutem natildeo menos importantes Antes
de abordamos as questotildees levantadas por J Jeremias segue abaixo os textos dos
Evangelhos bem como o texto de Lucas retraduzido para o aramaico segundo J
Jeremias e uma versatildeo do aramaico recitado por cristatildeos que ainda hoje falam o
aramaico conforme Stephen Missick
Mt 6 9-13 Lc 11 2-4
() Portanto orai desta maneira
Pai nosso que estaacutes nos ceacuteus
Santificado seja o teu Nome
venha o teu Reino
seja feita a tua vontade
na terra como no ceacuteu
o patildeo nosso de cada dia
daacute-nos hoje
E perdoa-nos as nossas diacutevidas
como tambeacutem noacutes perdoamos aos
nossos devedores
E natildeo nos submeta agrave tentaccedilatildeo
mas livra-nos do Maligno
() Respondeu-lhes ldquoQuando orardes
dizei
Pai santificado seja o teu Nome
venha o teu reino
o patildeo nosso cotidiano daacute-nos a cada dia
pois tambeacutem noacutes perdoamos aos nossos
devedores
e natildeo nos deixes cair na tentaccedilatildeordquo
Pai Nosso aramaico segundo J
Jeremias
Pai-nosso em aramaico recitado pelos
cristatildeos em aramaico segundo Missick
abba [pai]
yitqaddash shemak tete malkutak
[santificado seja o teu nome venha teu
reino]
Awoon Dwashmaya
Nethqaddash Shmakh
Tethe malkuthakh
Nehweh sebayanakh
107
lahman delimhar hab lan yoma den [o
patildeo nosso de amanhatilde daacute-nos neste dia]
ushebok lan hobenan kedishebaqnan
lehayyabenan [e perdoa-nos as nossas
diacutevidas (pecados) assim como
perdoamos os nossos devedores
(pecadores)]
wela ta el nnan lenisayon [e natildeo nos
conduza agrave tentaccedilatildeo] (cf Jeremias 2008
p291)
Aykana dwashmayya aph ara
Hab lan lakhma dsunkanan yowmana
Washboq lan hawbayn aykanan dap
hanan shwaqnan l-hayawayn
Wa la talain Inesyona
Ella passan min beesha
Mittol dlakh hee malkoota wa khaylan w
tishbookhta alalam almeen Amen (cf
Missick 2006 p58)
Para J Jeremias para entendermos o sentido do Pai-nosso na redaccedilatildeo de
Mateus eacute preciso ver que Jesus estaacute advertindo seus disciacutepulos a natildeo praticarem as
esmolas oraccedilatildeo e jejum da mesma forma que elas eram praticadas pelos fariseus
visto que estes amavam praticaacute-las desde que fossem vistos e reconhecidos pelos
homens Os disciacutepulos deviam procurar um cocircmodo por menor que fosse e natildeo
imitar os fariseus em hipoacutetese alguma no quesito de sempre ser pegos em uma
aparente surpresa na hora da oraccedilatildeo para que dessa forma pudessem sempre que
possiacutevel orar no meio da multidatildeo com o uacutenico objetivo de serem reconhecidos e
honrados
Em relaccedilatildeo ao texto de Lucas J Jeremias descreve sobre o fato de tanto a
situaccedilatildeo quanto os leitores de Lucas serem diferentes dos de Mateus Em Lucas a
oraccedilatildeo eacute mais breve o sentido do texto eacute o ensinar a perseveranccedila na oraccedilatildeo visto
que a mesma eacute precedida pela paraacutebola do amigo importuno As diferenccedilas entre a
oraccedilatildeo contida em Mateus e a de Lucas eacute devido aos diferentes grupos a quem
essa oraccedilatildeo foi destinada Segundo J Jeremias os leitores para os quais Mateus
deve ter destinado o Evangelho eram homens que desde a infacircncia aprenderam a
orar enquanto que os de Lucas eram antigos convertidos ao cristianismo
Ao nos depararmos com as duas versotildees da oraccedilatildeo do Pai Nosso na Biacuteblia
(Mateus 6 9 -13 e Lucas11 2-4) logo vem agrave mente qual delas se aproxima mais da
versatildeo original de Jesus ou entatildeo em que liacutengua Jesus proferiu essa magniacutefica
oraccedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta J Jeremias responde da seguinte forma
108
[] a formulaccedilatildeo mais curta de Lucas estaacute integralmente contida na redaccedilatildeo longa de Mateus Isto faz com que seja bem provaacutevel que a forma de Mateus seja uma ampliaccedilatildeo pois pelo que sabemos das leis que regem a transmissatildeo dos textos lituacutergicos quando uma redaccedilatildeo mais curta estaacute assim integralmente contida numa longa eacute a mais curta que deve ser considerada como original (J Jeremias 1979 p23)
Contudo J Jeremias conclui que o texto de Lucas eacute o mais antigo quanto agrave
extensatildeo mas em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo oral (verbal) o texto de Mateus eacute o mais antigo
(cf Jeremias 2008 p 291) Complementando o pensamento de J Jeremias a
respeito da versatildeo original do Pai Nosso Boff assim conclui ldquoDestarte Lucas seria
mais originalrdquo (Boff 2009 p36)
Concernente agrave liacutengua materna de Jesus e agrave cultura da Palestina daquela
eacutepoca podemos ainda perguntar era Jesus um poliglota ou falava apenas o
aramaico Antes de tratarmos com mais detalhes a respeito da liacutengua e cultura de
Jesus observamos a princiacutepio que pelo menos trecircs liacutenguas eram faladas na
Palestina nos dia de Jesus (aramaico grego e latim) conforme as informaccedilotildees
contidas no texto de Joatildeo 19 19-20
Segundo Sabugal haacute uma grande probabilidade de que Jesus possuiacutesse
conhecimentos da liacutengua grega pelos contatos registrados entre Jesus e algumas
pessoas de origem helecircnica como o centuriatildeo romano (Mt 5 8-13 cf Lc 7 1-10)
tambeacutem com a mulher sirofeniacutecia aleacutem do disciacutepulo chamado Filipe que
provavelmente conhecia a liacutengua grega conforme podemos interpretar a partir da
leitura de Joatildeo 12 20-2 (Sabugal 1985 p319) No entanto para Sabugal a liacutengua
popular na Palestina dos dias de Jesus era o aramaico galileu58 Tal liacutengua era tatildeo
familiar agraves comunidades a ponto de apoacutes a leitura de um texto sagrado em
hebraico (Toraacute) logo seguia-se uma traduccedilatildeo para o aramaico (Targum) onde o
texto podia ser compreendido por todos Portanto fica evidente que o aramaico foi a
liacutengua materna de Jesus isso fica mais claro ainda quando encontramos nos
evangelhos palavras aramaicas (cf Mc 14 36 Lc 23 34 42 46 Mc 15 34 = Mt
58 Para Geza Vermes a liacutengua original do Pai-nosso era o aramaico mesmo que alguns estudiosos
discordem colocando o hebraico como a liacutengua original (segundo vermes sem convencer) a maioria dos especialistas eacute de acordo com essa teoria Vermes observa que aleacutem das peculiaridades do grego de Mateus o Pai-nosso tem semelhanccedilas com o kadish uma antiga oraccedilatildeo judaica composta em aramaico que era conhecida por Jesus e que ele teria sido influenciado e inspirado por ela (Vermes 2006 p 258)
109
27 46) conservadas pelos evangelistas sem traduccedilatildeo para a liacutengua grega (Sabugal
1985 p321)
Ao se referir sobre a origem do Pai Nosso Sabugal assim exclama ldquoQue
alegria seria se conseguiacutessemos recuperar a ipsissima verba do Pai Nosso ensinado
por Jesus de Nazareacute e reconstruindo seu texto primitivo pudeacutessemos escutar a
ipsissima vox do Mestrerdquo (Sabugal 1985 p317) Para Sabugal natildeo haacute duacutevida que
os vocaacutebulos gregos estatildeo dispostos segundo os usos da gramaacutetica semiacutetica O
autor tambeacutem entende que na oraccedilatildeo do Pai Nosso tanto de Mateus como na de
Lucas teve como fundo doutrinaacuterio e literaacuterio a liacutengua materna de Jesus (aramaico)
Conforme J Jeremias para compreendermos a essecircncia da oraccedilatildeo de Jesus faz-se
necessaacuterio aproximarmo-nos do proacuteprio modo de falar do Mestre e isso soacute eacute
possiacutevel quando chegamos a ipsissima vox de Jesus (Sabugal 1985 p317)
Sabugal (1985 p317) concorda que descobrir a liacutengua materna de Jesus eacute
algo muito importante e extraordinariamente fundamental O referido autor
compartilha com J Jeremias dessa tese haja vista que eacute importante levar em
consideraccedilatildeo o fato de que para ele os escritores dos evangelhos eram verdadeiros
autores literaacuterios e autecircnticos teoacutelogos de suas comunidades cristatildes capazes de
transmitir com fidelidade a essecircncia da mensagem de Jesus59 Aleacutem do mais os
autores biacuteblicos eram divinamente inspirados pelo Espiacuterito Santo conforme os
textos de 2 Tm 316 e 2Pe 121
Por outro lado Leonardo Boff (2009 p36) considera que a oraccedilatildeo de Jesus
natildeo pode ser tratada como uma oraccedilatildeo simples que possa ser retraduzida do grego
para o aramaico primitivo conforme fez J Jeremias no texto que reproduzimos
abaixo
Pai querido Que o teu nome seja santificado Que venha o teu reino Daacute-nos hoje nosso patildeo de amanhatilde E perdoa-nos nossas diacutevidas como noacutes tambeacutem ao dizermos estas palavras estamos perdoando a nossos devedores E natildeo nos deixes sucumbir agrave tentaccedilatildeo (Jeremias 1979 p33)
59
Sobre a autoria e composiccedilatildeo dos Evangelhos ver o capiacutetulo 4 paraacutegrafo 3 deste trabalho
110
Observamos que de acordo com o pensamento de Boff natildeo eacute faacutecil reproduzir
a oraccedilatildeo de Jesus do grego para o aramaico e dessa forma tambeacutem pensa
Sabugal o qual apesar de achar o trabalho de J Jeremias de extrema importacircncia
no entanto assim como Boff pensa que realizar tal tarefa natildeo eacute nada faacutecil uma vez
que envolve estudos linguiacutesticos e literaacuterios concernentes agrave liacutengua materna e ao
texto primitivo do Pai-nosso em sua composiccedilatildeo riacutetmica e literaacuteria bem como a real
motivaccedilatildeo de Jesus ao ensinar essa oraccedilatildeo aos seus disciacutepulos Haja vista o grau
de dificuldade apresentado acima natildeo podemos deixar de observar que quanto
mais nos aproximarmos do Pai-nosso de Jesus na sua originalidade mais
maravilhados ficaremos diante da grandiosidade dessa magniacutefica oraccedilatildeo
56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA
Conforme J Jeremias e a maioria dos estudiosos Abba eacute um termo que faz
parte da liacutengua semiacutetica para ser mais preciso do aramaico Oriacutegenes pertencente
ao periacuteodo da Patriacutestica profundo conhecedor do grego e das liacutenguas semiacuteticas
segundo Fitzmyer (1992 p 48) estranhamente considerou o termo Abba como
sendo uma palavra hebraica Restou a Jerocircnimo esclarecer que o termo Abba era
siacuterio (Syrum est non hebraeum) e natildeo hebraico Lembrando que o que Jerocircnimo
chamava de siacuterio nos dias dele noacutes chamamos de aramaico
Segundo Matthew Black o aramaico foi uma das grandes liacutenguas faladas na
antiguidade por volta do VI e III seacuteculos aC quando o mundo era governado pelos
grandes impeacuterios orientais desde o Eufrates ateacute o Nilo Essa liacutengua tornou-se a
liacutengua dos judeus provavelmente depois do Exiacutelio O aramaico foi suplantado pelo
grego koineacute no mundo civilizado da eacutepoca durante o impeacuterio de Alexandre o
Grande No entanto o grego nunca substituiu por completo o uso do aramaico entre
os judeus tanto da Palestina como da Babilocircnia bem como de alguns povos de
cultura semiacutetica na Siacuteria e Mesopotacircmia (Black 1998 p14)
Entre os judeus podemos encontrar dois dialetos aramaicos na Palestina
conforme a pesquisa apresentada por Dalman Black menciona que segundo a
distinccedilatildeo feita por Dalman os dialetos estatildeo propostos na seguinte forma o primeiro
representado pelo aramaico do Antigo Testamento e o aramaico do Targum para
Pentateuco e para os profetas O segundo composto pelo conjunto de anedotas
111
popular do Talmude Palestino junto com outras partes do comentaacuterio palestinense
do Antigo Testamento dos antigos Midrash60 haggaacutedicos (Black 1998 p19)
No entanto a liacutengua na qual foi escrito o Novo Testamento eacute aceita quase que
por unanimidade pelos eruditos como sendo o grego coineacute ou grego biacuteblico
conforme foi chamado pelos especialistas ateacute o comeccedilo do seacuteculo XX (Koester
2005 vol I p118) Segundo Koester (2005 vol1 p120-121) todos os livros do
Novo Testamento foram escritos originalmente em grego e esse autor eacute mais
enfaacutetico ainda quando afirma que nenhuma obra dos primeiros cristatildeos escrita em
grego pode ser traduccedilatildeo direta do hebraico ou do aramaico De acordo com Koester
eacute fato que existem inuacutemeros hebraiacutesmos e aramaiacutesmos constantes no Novo
Testamento que podem ser citaccedilotildees gregas da Biacuteblia hebraica ou ainda que
podem ser justificadas pelo fato de que o autor estava inserido num ambiente que
propiciava a formulaccedilatildeo de palavras semiacuteticas como no caso dos Evangelhos onde
Jesus e seus disciacutepulos eram falantes nativos do aramaico
Koester observa que as traduccedilotildees do aramaico para o grego devem ter
acontecido num periacuteodo anterior aos escritos dos primeiros cristatildeos quando esses
ainda conservavam na memoacuteria apenas a tradiccedilatildeo oral Essas traduccedilotildees foram
feitas deacutecadas antes da composiccedilatildeo dos Evangelhos e dessa forma no processo
de composiccedilatildeo das fontes dos Evangelhos praticamente todos os aramaiacutesmos
foram substituiacutedos por palavras gregas com exceccedilatildeo do Evangelho de Marcos que
parece ter usado fontes gregas que eram traduccedilotildees diretas dos originais aramaicos
ou ainda os relatos de milagres no Evangelho de Joatildeo que possivelmente tambeacutem
pode ter sido traduccedilatildeo de um original aramaico (Koester 2005 vl 1 p121-122)
Outra observaccedilatildeo de Koester eacute a questatildeo do bilinguismo na Palestina Entre
os primeiros cristatildeos havia uma mescla de seguidores de Jesus que falavam o
aramaico e o grego Esses foram determinantes para que a composiccedilatildeo dos
Evangelhos fosse fortemente influenciada pelo aramaico Para Koester ldquoalguns
desses semitismos satildeo empreacutestimos semacircnticos que derivam do ambiente geral da
liacutengua como θάλασσα natildeo soacute para mar ou oceano mas tambeacutem para lago uma
vez que o aramaico יםאא denota ambosrdquo (Koester 2005 vl1 p122)
60
Etimologicamente essa palavra tem como raiz o termo darash procurar significa pesquisa sobre a Escritura e tem como funccedilatildeo o meacutetodo de estudo das Escrituras com vistas agrave sua atualizaccedilatildeo (cf Vermes 1990 p11)
112
Para trabalhar as questotildees filoloacutegicas e semacircnticas do Abba precisamos
investigar se a liacutengua materna de Jesus era realmente o aramaico Muitas questotildees
tecircm sido levantadas sobre a liacutengua que Jesus falava e tambeacutem questotildees sobre o
niacutevel cultural do Nazareno As liacutenguas oficiais do impeacuterio romano eram o latim e o
grego Para John P Meier questotildees relacionadas ao idioma ou idiomas que Jesus
falava satildeo muito complexas visto que natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz daquele
periacuteodo e as inscriccedilotildees em latim podem apenas ser um sinal para demonstrar a
presenccedila do poderio romano do que ter a finalidade de informar aos judeus sobre
algo que lhes fosse interessante Como para Meier no mundo greco-romano a
maioria da populaccedilatildeo era analfabeta isso obviamente era vaacutelido tambeacutem para a
populaccedilatildeo judaica (Meier 1993 p254)
Meier usa como exemplo uma famosa ldquoinscriccedilatildeo de Pocircncio Pilatosrdquo que foi
descoberta na Cesareia Mariacutetima em 1961 Essa inscriccedilatildeo em latim foi dedicada ao
Imperador Tibeacuterio por Pilatos A questatildeo levantada por Meier eacute ateacute que ponto esta
inscriccedilatildeo alcanccedilou os gentios e judeus que viviam em Cesareia Possivelmente
para esse autor Pilatos estava preocupado em alcanccedilar apenas as elites ou seja
ele se dirigia apenas aos seus ldquoiguaisrdquo aqueles que estavam a serviccedilo do Impeacuterio ou
faziam parte das elites dominantes As inscriccedilotildees mesmo que sejam as oficiais em
preacutedios puacuteblicos ou aquedutos construiacutedos pelo Impeacuterio ou ateacute mesmo as inscriccedilotildees
funeraacuterias natildeo provam em nada que o latim fosse uma liacutengua comum na Palestina
O fato de uma laacutepide tumular estar em latim poderia apenas ser ldquoo desejo de dar
uma impressatildeo de alta culturardquo e nada mais Assim como segundo Meier natildeo se
pode concluir que os catoacutelicos americanos do iniacutecio do seacuteculo XX tinham um idioma
comum apenas observando a frase Requiescat in pace (do latim descanse em Paz)
inscrita em seus tuacutemulos e nem as muitas inscriccedilotildees em latim espalhadas pela
Europa podem refletir as inuacutemeras liacutenguas faladas hoje em dia nesse continente
Meier observa entatildeo que o Latim eacute visto quase que por unanimidade como o
idioma menos falado na Palestina nos dias de Jesus e por isso ldquonatildeo haacute razatildeo para
se pensar que Jesus falou e muito menos leu o latimrdquo (Meier 1993 p 254 ndash 255)
Se o latim natildeo era tatildeo comum na Palestina jaacute o grego segundo Meier era
um caso totalmente diferente O grego era comum em todo o Impeacuterio romano
inclusive em Roma capital do Impeacuterio A Palestina dos dias de Jesus era altamente
113
helenizada haviam cidades e povoados que foram transformados de uma forma
poliacutetica e cultural em cidades gregas61 Segundo Meier o debate atual entre os
estudiosos estaacute concentrado apenas em saber qual era o grau de helenizaccedilatildeo
nessas cidades Mesmo apoacutes o periacuteodo dos Macabeus onde houve um movimento
de resistecircncia agrave liacutengua e a cultura grega natildeo foi possiacutevel extinguir essa cultura da
Palestina porque apoacutes esse periacuteodo (dos Macabeus) a Palestina passou a ser
governada pelos Asmoneus que tiveram como monarca principal por volta do final
do seacuteculo I aC Herodes o Grande Herodes deu continuidade agrave poliacutetica de
helenizaccedilatildeo que tinha comeccedilado com os reis Selecircucidas especificamente por
Antiacuteoco Epiacutefanes IV O processo de helenizaccedilatildeo de Herodes foi desde a construccedilatildeo
do porto da Cesareia Mariacutetima a cidade de Sebaste em Samaria e muitas outras
grandes edificaccedilotildees em Jerusaleacutem Segundo Meier as inscriccedilotildees em Grego em
Jerusaleacutem eram inuacutemeras desde o Templo as sinagogas ateacute ossuaacuterios Meier assim
descreve a influecircncia grega na Palestina
[] Martin Hengel afirma que uma terccedila parte dos epitaacutefios em Jerusaleacutem do periacuteodo do Segundo Templo eram escritos em grego e ele ainda calcula que das 80000 ou 100000 pessoas que residiam na grande Jerusaleacutem entre 8000 e 16000 teriam falado grego Mas natildeo foi soacute em Jerusaleacutem que a liacutengua e a cultura gregas alcanccedilaram os judeus Um grande nuacutemero de judeus vivia nas cidades helenizadas da planiacutecie litoracircnea desde Gaza no sul ateacute Dor ou Ptolomaicas-Acco no norte Em Cesareia a capital romana da Judeia havia quase tantos judeus como gentios As cavernas de Murabaat nos forneceram papiros gregos sobre a vida diaacuteria e ateacute mesmo ndash por ironia ndash coacutepias de cartas em grego do tempo da revolta de Bar Kochba exatamente quando os nacionalistas lutavam e morriam para se libertarem do jugo estrangeiro e da dominaccedilatildeo cultural
Concernente agrave liacutengua grega e suas influecircncias na Palestina Meier observa
que para se chegar a uma conclusatildeo ou aproximaccedilatildeo de algum fato referente agrave que
idioma era falado pelos judeus residentes na Palestina faz-se necessaacuterio ter uma
atenccedilatildeo redobrada ao periacuteodo em questatildeo Por exemplo se atentarmos para os
seacuteculos III e II aC observa-se um eclipsamento do aramaico devido agrave helenizaccedilatildeo
da Palestina pelos reis selecircucidas da Siacuteria Segundo Meier parece que o aramaico
soacute voltou a retomar a prioridade na Palestina apoacutes a revolta dos Macabeus por isso
61
Se levarmos em consideraccedilatildeo os dados de Martin Hengel citados acima por Meier podemos
deduzir que aproximadamente de 10 a 20 da populaccedilatildeo de Jerusaleacutem falava grego Entatildeo eacute difiacutecil considerar a Palestina dos dias de Jesus como sendo altamente helenizada como fez Meier uma vez que nem mesmo na capital havia tantas pessoas que falavam tal liacutengua
114
natildeo eacute possiacutevel determinar qual era a liacutengua mais falada na Palestina dos seacuteculos II e
I aC tomando como exemplo inscriccedilotildees e textos dos seacuteculos III e II aC (Meier
1993 p 255)
A opiniatildeo de Meier eacute que vaacuterios textos de Flaacutevio Josefo levam agrave conclusatildeo de
que a liacutengua grega natildeo era tatildeo conhecida ou tatildeo falada na Palestina do seacuteculo I
pelos judeus Meier analisa que Josefo mesmo apoacutes se gabar de seu alto niacutevel
cultural tanto em relaccedilatildeo agrave lei como agrave prosa e poesia gregas demonstra algumas
dificuldades com a pronuacutencia do grego Meier observa que as dificuldades de Josefo
parecem natildeo ser apenas de pronuacutencia mas seu domiacutenio de escrita tambeacutem natildeo era
ldquoexatamente perfeitordquo Outro fator observado por Meier eacute a forma de comunicaccedilatildeo
que o general romano Tito usou para se comunicar com os judeus Tito que falava
bem o grego segundo Suetocircnio mas para se comunicar com os judeus precisou de
um ldquomensageiro em aramaico (Josefo) para ser compreendido pelos judeus Surge
entatildeo a grande pergunta Jesus falava grego Para Meier se nem mesmo Josefo
que era haacutebil na liacutengua grega natildeo se sentiu agrave vontade para transmitir o recado de
Tito em grego mas em aramaico porque natildeo dominava bem a liacutengua ou porque os
ouvintes natildeo entenderiam deduz-se que ldquoa probabilidade de um camponecircs galileu
ter suficiente conhecimento para se tornar um mestre e pregador bem-sucedido que
proferisse seus discursos em grego parece muito pequenardquo (Meier 1993 p 258-
259)
Ao fazer um trabalho minucioso sobre a liacutengua que Jesus falava Meier
depois de muitos questionamentos levanta a suposiccedilatildeo de que natildeo podemos negar
que Jesus fosse totalmente desconhecedor da liacutengua dos helenos Primeiro porque
Jesus ateacute mesmo por causa de sua profissatildeo e viagens a Jerusaleacutem tinha contato
com pessoas que falavam grego Eacute possiacutevel segundo Meier que Jesus vez ou outra
fizesse algum contrato ou assinasse algum recibo que tivesse sido redigido em
grego62 Mas o fato de assinar recibos ou mesmo ter dialogado com Pilatos pode
apenas presumir que Jesus possuiacutesse alguns conhecimentos da liacutengua grega
62
A hipoacutetese de Meier sobre a possibilidade de Jesus ter assinado pequenos contratos em grego eacute questionaacutevel uma vez que segundo Meier se nem mesmo Josefo era fluente na liacutengua dos helenos muito menos Jesus que era um humilde galileu Outrossim segundo Crossan eram poucas as pessoas alfabetizadas na Palestina (no maacuteximo 3 da populaccedilatildeo) Crossan chega a afirmar que Jesus era analfabeto como a maioria dos seus conterracircneos Se tal hipoacutetese tambeacutem for verdadeira dificilmente Jesus teria condiccedilotildees de assinar pequenos contratos profissionais na liacutengua grega
115
suficientes apenas para um pequeno diaacutelogo composto de frases curtas Meier acha
muito difiacutecil Jesus ter adquirido alfabetizaccedilatildeo para a escrita em grego O referido
autor ainda aprofunda mais as suas desconfianccedilas a respeito do assunto quando
diz ldquoPortanto acompanhando Fitzmyer mantenho minhas duacutevidas se qualquer parte
dos pronunciamentos de Jesus foi feita desde o iniacutecio em grego dispensando a
traduccedilatildeo ao passar para os Evangelhos gregos que conhecemosrdquo (Meier 1993 p
260)
Apoacutes verificarmos as influecircncias do latim e do grego na Palestina nos dias de
Jesus resta-nos verificar as liacutenguas faladas em Israel desde os primoacuterdios da
naccedilatildeo O hebraico era o antigo e sagrado idioma falado em Israel mas desde que
os judeus voltaram do cativeiro babilocircnico o hebraico sofreu um decliacutenio como
liacutengua falada e passou a ser substituiacutedo gradualmente pelo aramaico Essa
influecircncia do aramaico sobre o hebraico jaacute pode ser vista nos livros poacutes-exiacutelicos
mais precisamente sobre ldquoos livros de Esdras e Daniel que contecircm capiacutetulos inteiros
escritos em aramaico sendo que em Daniel eles chegam agrave metade do totalrdquo (Meier
1993 p 260)
Contudo segundo Meier o hebraico continuou sendo uma liacutengua viva em
Israel principalmente em Qumran onde tinha primazia com o aramaico em
segundo lugar e o grego ocupando apenas uma distante terceira colocaccedilatildeo No
entanto o fato do hebraico ser a liacutengua oficial da comunidade de Qumran natildeo
confirma em nada que o hebraico fosse uma liacutengua usada no dia a dia dos demais
israelitas fora dessa restrita comunidade O que parece ser mais evidente era que o
hebraico aleacutem de em Qumran era usado por religiosos e grupos nacionalistas e por
judeus devotos e em algumas regiotildees de Israel ainda se falava e escrevia em
hebraico (Meier 1993 p 261)
Mesmo sendo o hebraico uma liacutengua viva em Israel Jesus segundo Meier
usava o aramaico para comunicar-se com os seus conterracircneos na vida diaacuteria uma
vez que se acredita que ele natildeo pertencia agrave comunidade de Qumran e nem agrave elite
dos religiosos da eacutepoca bem como seus ouvintes que em sua maioria pertenciam
agraves classes sociais mais humildes A maior evidecircncia disso estaacute nos aramaiacutesmos
registrados nos Evangelhos e especificamente no Evangelho de Marcos onde
encontramos a palavra Abba proferida por Jesus (Mc 1436) De acordo com Meier
116
J Jeremias relacionou 26 palavras aramaicas atribuiacutedas a Jesus nos evangelhos
Dessas palavras Meier opina que duas delas Talita cumi e Abba (Mc 5 41 14 36)
satildeo as que mais proacuteximas estatildeo do Jesus histoacuterico Para ele nem todos os
exemplos citados por J Jeremias podem ser comprovados entretanto alguns satildeo
uacuteteis para demonstrar a forma como Jesus instruiacutea os seus disciacutepulos (Meier 1993
p 264)
A questatildeo da liacutengua falada nos dias de Jesus eacute complexa uma vez que o
aramaico eacute uma liacutengua semiacutetica e estaacute intimamente relacionada com o hebraico No
entanto o aramaico natildeo eacute um dialeto do hebraico mas uma liacutengua semiacutetica distinta
De fato se partirmos do pensamento de Black e considerarmos que Jesus era um
Rabi na Galileia entatildeo natildeo podemos descartar a possibilidade de que ele fez uso
tanto do hebraico como do aramaico especialmente em suas disputas formais com
os fariseus (Black 1998 p16) Aleacutem disso ter conhecimento das duas liacutenguas natildeo
era nada anormal visto que segundo Missick em alguns casos as liacutenguas eram tatildeo
similares que existiam palavras usadas em ambas as liacutenguas com o mesmo
significado (Missick 2010 p 4)
Analisando a coexistecircncia das duas liacutenguas na Palestina nos dias de Jesus
observa-se que as origens do aramaico podem ser anotadas a partir do cativeiro
babilocircnico que ocorreu no periacuteodo de 586 a 539 aC antes disso o hebraico era a
liacutengua oficial dos judeus Com o retorno do hebraico como a liacutengua e a identificaccedilatildeo
da cultura e existecircncia do povo judeu o aramaico foi perdendo forccedilas ateacute ser
considerado uma liacutengua morta No entanto segundo Missick ainda existem
comunidades que falam o aramaico nos dias atuais como os cristatildeos assiacuterios63 do
Iratilde e do Iraque Antigos cristatildeos dessas regiotildees preservaram uma importante versatildeo
da Biacuteblia em aramaico que hoje eacute conhecida como a Biacuteblia Peshitta que segundo
Missick eacute muito valiosa porque a partir dela eacute possiacutevel estudar as palavras de
Jesus no aramaico pois acreditam os cristatildeos do oriente que os Evangelhos foram
63
Matthew Black observa que foi encontrado entre os siriacuteacos cristatildeos palestinos o dialeto aramaico
mais proacuteximo do aramaico dos Evangelhos enquanto que para Dalman segundo Black o aramaico que mais se aproxima do falado nos dias de Jesus era o aramaico dos Targuns judaicos para o Pentateuco e os profetas (cf Black 1998 p18-19)
117
primeiro escritos em aramaico e soacute depois traduzidos para o grego (Missick 2010
p5) 64
Para enfatizar a importacircncia do aramaico no Novo Testamento Missick
relaciona as palavras aramaicas compostas de oraccedilotildees tiacutetulos divinos nomes de
pessoas nomes de lugares e outras palavras e frases usadas no Novo Testamento
Abba (Mc 14 36) Eloiacute Eloiacute lemaacute sabachtaacuteni (Mc 15 34 cf Mt 2746) segundo
Missick se Jesus estivesse falando em hebraico ele teria dito Eli Eli lama azabanti
Nesse caso Jesus estaacute citando o Salmo 221 em aramaico Essa traduccedilatildeo do Antigo
Testamento eacute chamada de Targum65 pela tradiccedilatildeo judaica Dentre as palavras
relacionadas por Missick temos tambeacutem Maranatha (1 Co 1622) que
etimologicamente conforme a definiccedilatildeo dada por Missick (2010 p22-26) tem como
prefixo o termo ldquoMarrdquo que significa Senhor ou ldquoMaranrdquo que significa nosso Senhor
donde temos Maranatha que tem como definiccedilatildeo completa o significado de ldquonosso
Senhor vemrdquo (Marana tha) ou ainda ldquonosso Senhor estaacute vindordquo (Maran atha) Em
aramaico temos ainda outra palavra Rabboni (Jo 2016)
Em relaccedilatildeo aos nomes em aramaico mencionados no Novo Testamento
Missick argumenta que essas pessoas natildeo teriam outro motivo para receber nomes
64
Missick (2006 p170) refere-se a dois grupos significantes de cristatildeos que ainda falam o aramaico O primeiro grupo eacute composto por siacuterios Ortodoxos que vivem na Siacuteria O Segundo grupo do oriente (leste) da Siacuteria satildeo chamados de Assiacuterios e satildeo nativos do Iratilde e do Iraque conforme jaacute comentado acima Segundo Missick os cristatildeos mesmo sendo chamados de assiacuterios satildeo totalmente distintos da cultura do antigo Impeacuterio Assiacuterio A avanccedilada e militarista cultura da Assiacuteria antiga desapareceu com o tempo mas seus descendentes satildeo os modernos siacuterios do Oriente chamados de assiacuterios Os antigos assiacuterios falavam o Acadiano liacutengua falada por assiacuterios e babilocircnios que natildeo eacute mais falada na atualidade
Os atuais cristatildeos Siacuterios e Assiacuterios pertencem a denominaccedilotildees diferentes Segundo Missick (2006 p170) os siacuterios do oeste pertencem agrave Igreja Ortodoxa siacuteria e jaacute foram chamados de Jacobitas ou seja porque provinham do bispo Jacob Bardesanes (542-578 dC) Os cristatildeos chamados de assiacuterios eram conhecidos como nestorianos visto que o patriarca deles foi Nestoacuterio de Constantinopla um Patriarca da Igreja Ortodoxa grega (428-431 dC) A igreja no entanto eacute mais apropriadamente chamada de ldquoAntiga Igreja assiacuteria do Orienterdquo
65 Esta palavra eacute de origem natildeo semiacutetica mas foi adotada pelos judeus para designar tradiccedilatildeo (aqui
parece haver um equiacutevoco do comentador uma vez que a palavra Targum vem do hebraico lsquo targucircmimrsquo e significa traduccedilatildeo Cf La Sor 1999 p 670) ldquoOs targuns satildeo as traduccedilotildees aramaicas dos textos biacuteblicos destinados ao uso sinagogal Na sua origem essas traduccedilotildees eram orais e mais ou menos improvisadas e fragmentaacuterias sendo depois progressivamente fixadas por escrito e reunidas em grandes secccedilotildees (targum do Pentateuco targum dos Profetas targum dos Hagioacutegrefos) Mesmo quando eacute literal na aparecircncia o targum conteacutem elementos mais ou menos amplos de paraacutefrase ou de explicaccedilatildeo de atualizaccedilatildeo e ateacute de correccedilotildees Ele integra o midrash sobretudo na sua forma haggaacutedica Eacute possiacutevel que existisse um targum do Pentateuco ndash ou torah aramaica ndash na eacutepoca de Jesus e ateacute antes na Palestina A atividade targuacutemica evoluiacutera no decorrer dos seacuteculos em que foi praticada para a atividade propriamente midraacuteshica (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p11-12)
118
em aramaico se natildeo estivessem inseridos numa determinada comunidade que
falasse aramaico Missick cita como exemplo o prefixo ldquoBarrdquo antes de alguns nomes
que em aramaico tem o sentido de ldquofilho derdquo enquanto que para nomes em hebraico
se usava o prefixo ldquoBenrdquo que tambeacutem tinha o sentido de ldquofilho derdquo (Missick 2010
p26) Os nomes pessoais que segundo Missick tecircm origem no aramaico satildeo
Cephas (Jo 142 1 Co 112 Gl 29) Tomeacute que vem do aramaico ldquoteomardquo cujo
significado eacute gecircmeo (Jo 212) Simatildeo o Zelota (Mc 318) Maria Madalena que era
natural da cidade de Magdala que em aramaico significa Torre66 Tadeu e Lebeu (Mt
103) Tadeu em aramaico significa mamilo e Lebeu significa coraccedilatildeo
A extensa relaccedilatildeo de nomes pode ser assim resumida Tabita (At 936) Marta
(Lc 10 38-41 Jo 11 1-39 122) Bartolomeu (Mt 103) Jesus Barrabaacutes (Mt 2736)
Simatildeo Bar-Jonas (Mt 2716) Joseacute Barsabaacutes (At 123) Elimas Bar-Jesus (At 13 6-8)
Judas Barsabaacutes (At 15 22) Joseacute Barnabas ou Barnabeacute ndash Filho da profecia- (At
436) Aleacutem dos nomes de pessoas e dos tiacutetulos divinos em aramaico ainda
segundo Missick haacute vaacuterios nomes de cidades com origens no aramaico Gaacutebata (Jo
1913) Goacutelgota (Jo 19 17-18 Mc 1522) Betacircnia (Jo 111) Betesda (Jo 5 1-15)
Geena Mt 1028) Resta-nos ainda conforme Missick relacionar palavras e frases
em aramaico usadas no Novo Testamento Effatha (Mc 734) Taliacutetha Kum (Mc 541)
Raca (Mt 5 22) Mamon (Mt 624) Corban (Mc 7 9-13)
Para Missick natildeo haacute duacutevidas que Jesus falou aramaico Um dos argumentos
levantados por esse autor estaacute baseado no relato da morte de Judas conforme
registrou Lucas (At 119) No discurso de Pedro sobre a substituiccedilatildeo de Judas o
lugar onde o corpo de Judas caiu e se arrebentou ao meio conforme o texto
chamava-se Haceacuteldama na proacutepria liacutengua dos moradores de Jerusaleacutem Para
Missick essa palavra eacute aramaica e natildeo hebraica Se a palavra realmente eacute
aramaica entatildeo deduz-se que o idioma falado naqueles dias era o aramaico e natildeo
o hebraico e nem o grego muito menos o latim Missick conclui entatildeo que para se
compreender a mensagem de Jesus que antes de ser escrita foi transmitida
oralmente eacute necessaacuterio compreender as palavras na liacutengua em que Jesus as
66
Missick menciona que ela era conhecida como Madalena porque sua feacute era como uma torre Esse argumento foi defendido por Jerocircnimo contudo segundo Missick o mais provaacutevel eacute que ela tenha adquirido este tiacutetulo por ter vindo da cidade de Magdala (cf Missick p28)
119
proferiu e a melhor forma de alcanccedilar tal objetivo eacute compreender o aramaico
(Missick 2010 p4-35)
Entre os autores que defendem que o aramaico era a liacutengua dos galileus
contemporacircneos de Jesus encontramos tambeacutem Joseacute Pagola Jesus conforme
esse teoacutelogo falava o aramaico em casa assim como todos os galileus Pagola
ainda analisa que ateacute mesmo na Judeia se falava o aramaico no dia a dia Segundo
Pagola as diferenccedilas entre o aramaico da Galileia para o aramaico da Judeia era
apenas de dialeto (sotaque)
Embora o aramaico seja defendido pela maioria dos estudiosos de teologia do
Novo Testamento haacute no entanto autores que defendem que o hebraico natildeo
somente era uma liacutengua viva como era a mais falada nos dias de Jesus Para os
teoacutelogos David Biacutevin e Roy Bliacutezard Jr o hebraico era o idioma mais falado pelos
contemporacircneos de Jesus e dos primeiros cristatildeos Para esses autores um idioma
pode ser definido da seguinte maneira ldquoo idioma eacute uma expressatildeo no uso de uma
liacutenguagem que eacute peculiar a si proacuteprio na construccedilatildeo gramatical ou em ter um
significado que natildeo pode ser derivado como um todo a partir dos significados do
conjunto de seus elementos Na visatildeo deles o ldquohebraico eacute a chave para entender
as palavras de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p 2-4)
Os defensores do hebraico como a liacutengua falada na Palestina dos dias de
Jesus criticam os defensores da inerracircncia das Escrituras quando esses mesmo
depois de ler o texto de Atos 2614 em que Jesus fala em Hebraico com o apoacutestolo
Paulo e tambeacutem o texto de Atos 2140 no qual o mesmo apoacutestolo falou em hebraico
com uma multidatildeo satildeo os mesmos que afirmam que onde se diz hebraico deve-se
entender aramaico Para defender essa teoria eles argumentam que os mais
antigos manuscritos do Novo testamento datam do quarto e quinto seacuteculos da era
cristatilde (Codex Sinaiticus Codex Alexandrinus e Codex Bezae) afirmam que a
inscriccedilatildeo ldquoEste eacute o Rei dos Judeusrdquo estava escrito em grego latim e hebraico
Partindo desses argumentos Bivin e Bliacutezard lanccedilam a seguinte questatildeo
ldquoPorventura natildeo eacute significativo que os manuscritos gregos mais antigos infiram que
o hebraico era mais popular que o aramaico naquele periacuteodordquo (Biacutevin e Bliacutezard
2001 p8)
120
Biacutevin e Bliacutezard argumentam que mesmo a presenccedila de uma palavra aramaica
(Abba) no Evangelho de Marcos (Mc 1436) natildeo prova em nada a existecircncia de
uma liacutengua original falada em aramaico no periacuteodo de Jesus Para esses autores
Abba aparece sempre entre os escritos em hebraico daquele periacuteodo como uma
palavra de empreacutestimo A razatildeo para tal empreacutestimo do aramaico seria pelo fato
dessa palavra ter um ldquosabor especialrdquo quando usado como forma de relacionamento
entre os filhos e seus pais O sentido dessa expressatildeo pode ser relacionado com a
forma como os filhos se dirigem aos seus pais chamando-os de ldquodaddyrdquo (Papai) ou
ldquopapardquo (pai) em Inglecircs Um outro argumento ainda usado como forma de demonstrar
que usar Abba como forma de provar que a liacutengua falada por Jesus natildeo era o
aramaico eacute demonstrar que ainda hoje em Israel onde se fala o hebraico moderno
ldquoas crianccedilas usam Abba na abordagem de seus pais exatamente da mesma
maneira como foi usado no tempo de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p10)
Murphy-OConnor diferentemente de Biacutevin e Bliacutezard comunga da mesma
ideia de Jerocircnimo de que o apoacutestolo Paulo era de origem palestinense conforme os
textos de 2 Co 11 22 e Fl 3 5 onde Paulo identifica-se como ldquoisraelitardquo ldquodo povo de
Israelrdquo e como um ldquohebreurdquo Poreacutem quanto aos textos onde Lucas diz que Paulo
falou com a multidatildeo ldquonuma linguagem hebraicardquo (At 2140 222 2614) Murphy-
OConnor argumenta que a linguagem deveria significar aramaico e natildeo hebraico
Segundo esse autor naquela eacutepoca a maioria dos judeus jaacute natildeo conheciam mais o
hebraico e os textos das Escrituras nas sinagogas eram traduzidos para o aramaico
Outro argumento eacute que as palavras Gaacutebata (Jo 1913 o lugar onde Pilatos
condenou Jesus) e Goacutelgota (Jo 19 17) que satildeo mencionadas como palavras
hebraicas na verdade satildeo palavras aramaicas Sendo assim segundo Murphy-
OConnor a divisatildeo entre os primeiros cristatildeos de Jerusaleacutem (At 61) era permeada
pelos que falavam aramaico e pelos que falavam o grego (Murphy-OConnor 2008
p 29-30)
Matthew Black analisando a liacutengua falada por Jesus observa que alguns
estudiosos defendem o hebraico como a liacutengua vernaacutecula na Palestina dos dias de
Jesus Segundo Black alguns propotildeem que o hebraico natildeo era soacute apenas uma
forma literaacuteria de expressatildeo ou entatildeo apenas uma liacutengua falada nos ciacuterculos
rabiacutenicos mas o hebraico era um veiacuteculo normal de expressatildeo (Black 1998 p 47)
121
Douglas Hamp defende que o hebraico era realmente uma liacutengua muito viva nos
dias de Jesus e natildeo uma liacutengua morta como muitas vezes eacute dito Aleacutem de tudo para
ele o hebraico era a primeira liacutengua na Palestina nos dias de Jesus apesar de
segundo ele Jesus poderia ser triliacutengue ou seja falava hebraico aramaico e grego
e possivelmente ateacute o latim (Hamp 2005 p40) Hamp defende entatildeo que Jesus
provavelmente conhecia o aramaico e o grego e deve ter usado essas liacutenguas em
alguns contextos no entanto com seus disciacutepulos e na comunicaccedilatildeo com as
massas ele falou hebraico (Hamp 2005 p73)
Sobre a posiccedilatildeo daqueles que consideram o hebraico e natildeo o aramaico
como o vernaacuteculo ou seja a liacutengua mais falada nos dias de Jesus Black responde
ldquoesta posiccedilatildeo extrema tem encontrado pouco ou nenhum apoio entre as autoridades
competentes a evidecircncia da ipsissima verba de Jesus nos Evangelhos eacute impossiacutevel
de explicar se o aramaico natildeo era a liacutengua que Jesus falavardquo No entanto para ele eacute
provaacutevel que Jesus sendo um Rabi que comeccedilou seu ministeacuterio na Galileia e muito
bem versado nas Escrituras tenha sido capaz de ensinar com maestria tanto em
hebraico que poderia usar para ocasiotildees solenes como em aramaico com que se
comunicava com as massas (Black 1998 p 48-49)
Considerando as diversas opiniotildees sobre a liacutengua materna de Jesus
observamos que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus falava o aramaico
uma vez que esta foi a liacutengua predominante na Palestina apoacutes o exiacutelio babilocircnico
Contudo natildeo eacute tarefa faacutecil chegar a uma conclusatildeo Como vimos os estudiosos que
defendem o aramaico como a liacutengua materna de Jesus buscam como prova de tal
tese o argumento de que o Novo Testamento conteacutem muitas palavras aramaicas que
deviam ser comuns nos dias de Jesus Possivelmente o aramaico era uma liacutengua
falada pela populaccedilatildeo em geral enquanto que o hebraico reservava-se mais a
escrita de textos religiosos (sacros) e tambeacutem era usado pela classe sacerdotal que
por sua vez era mais elitizada Contudo devido agrave semelhanccedila entre as duas liacutenguas
torna-se difiacutecil delimitar uma linha divisoacuteria entre as mesmas uma vez que natildeo
possuiacutemos textos em aramaico da eacutepoca e natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz
que nos permita concluirmos com precisatildeo
122
6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS
Apoacutes termos apresentado a tese de J Jeremias sobre o Abba e alguns
pesquisadores que com ele concordam eacute oportuno tambeacutem olharmos algumas
teorias e pesquisadores que divergem de suas ideias
61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO
A relaccedilatildeo de paternidade divina no Antigo Testamento eacute refletida na literatura
poacutes-canocircnica do judaiacutesmo No Judaiacutesmo palestinense67 de acordo com J Jeremias
natildeo haacute relatos que em toda a literatura de Qumran que deve ser anterior a 68 a C
(Jeremias 1977 p17) de que Deus tenha sido invocado como Pai Haacute apenas uma
exceccedilatildeo em I QH 9 55 S ldquoEu te agradeccedilo oh Senhor porque natildeo abandonou a
paternidade ou desprezou o pobrerdquo (Vermes 2004 p274) A questatildeo da paternidade
divina era vista pelos rabinos como um direito dado apenas para aqueles que
cumpriam a Lei (Torah) (Jeremias p 1977 p19)
As oraccedilotildees judaicas eram dirigidas geralmente a Deus como nosso Pai
nosso Rei (abinu malkenu) 68 ldquoNosso Pai Nosso Rei Em vista de nossos pais que
creem em ti e a quem ensinas as leis da vida ndash tem piedade de noacutes e ilumina-nosrdquo
(Jeremias 1977 p18) Para J Jeremias mesmo essa oraccedilatildeo sendo antiga
podendo mesmo ser situada na eacutepoca de Jesus haacute algumas coisas que precisam
ser observadas A ecircnfase da oraccedilatildeo estaacute na duplicidade dos termos que se referem
a Deus ou seja ldquoDeus eacute invocado como o pai da comunidaderdquo e a comunidade por
sua vez invoca o Pai que ldquoeacute o rei celestial do povo de Deusrdquo (Jeremias 2008 p116)
Tambeacutem segundo J Jeremias esse texto foi escrito em hebraico que nos dias de
67
ldquo[] no judaiacutesmo palestinense do periacuteodo preacute-cristatildeo eacute rara a descriccedilatildeo de Deus como pai Nos
apoacutecrifos e pseudoepiacutegrafos no que diz respeito aos escritos de origem palestinense acha-se muito raramente (tob 134 Sir 5110 Jub 124-25 28 1929) enquanto os textos de Cunratilde oferecem um uacutenico exemplo isolado (1QH 935-36) No judaiacutesmo rab do seacuteculo I dC o emprego do nome Pai tornou-se mais generalizado mas ainda era muito menos frequente do que outras descriccedilotildees de Deus (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
68 Charlesworth afirma que Jesus invocava a Deus como Abba e natildeo como Abinu Charlesworth
entatildeo pergunta ldquonatildeo seraacute concebiacutevel que tenha chamado Deus de Abba porque tinha uma concepccedilatildeo de Deus que era de algumas maneiras diferente daquela da maioria de seus contemporacircneos (cf Charlesworth 1992 p148)
123
Jesus era uma liacutengua sacra usada com maior frequecircncia nas reuniotildees lituacutergicas e
natildeo como uma praacutetica comum no dia a dia (Jeremias 1977 p19)
Entre os escritos do judaiacutesmo palestinense haacute duas oraccedilotildees em que Deus eacute
invocado como Pai Satildeo invocaccedilotildees muito semelhantes do c 23 de Ben Sira
(Eclesiaacutestico) escrito por volta do comeccedilo do seacuteculo II aC (Jeremias 1977 p19)
Esses dois versiacuteculos (v1 e v4) onde Deus eacute invocado como ldquoPai e dono da minha
vidardquo e como ldquoSenhor Pai e Deus da minha vidardquo (Jeremias 1977 p19) poderiam
ser um preluacutedio do evangelho segundo J Jeremias se por volta da deacutecada de 40
natildeo tivesse sido descoberto uma paraacutefrase em hebraico desse texto que hoje existe
apenas em grego A paraacutefrase desse texto escrito em hebraico natildeo invoca Deus
como ldquoSenhor e Pairdquo mas invoca-o como ldquoDeus de meu Pairdquo Ficam evidentes
entatildeo as diferenccedilas entre o texto que temos em grego e a paraacutefrase em hebraico
Partindo desses raciociacutenios J Jeremias entatildeo conclui que mesmo que no
Judaiacutesmo da diaacutespora haja testemunhos esporaacutedicos da invocaccedilatildeo de Deus como
Pai (Jeremias 2008 p117) eles satildeo apenas ditos isolados nos quais Deus eacute
invocado como (Pater) mas sempre com influecircncia do helenismo e da liacutengua grega
(Jeremias 2008 p115-116) e natildeo se tem notiacutecias de que no judaiacutesmo palestinense
algum indiviacuteduo tenha dirigido-se a Deus chamando-o de meu Pai (Jeremias 1977
p 19-20)
Contudo J Jeremias ainda menciona uma oraccedilatildeo do final do seacuteculo 1 aC
feita por um homem chamado Hanin ha-Nehba conhecido por seu sucesso nas
oraccedilotildees para obter chuva Nessa oraccedilatildeo Deus eacute invocado como papai ou como o
Abba que tem o poder de enviar chuva
Quando o mundo precisava de chuva nossos mestres tinham o costume de lhe mandar crianccedilas das escolas que se agarravam ao seu manto e imploravam Abbaacute Abbaacute habh lan mitra papai papai daacute-nos chuvardquo E ele lhe (a Deus) dizia Senhor do universo concede-nos (a chuva) em vista destes que natildeo satildeo ainda capazes de distinguir entre um abbaacute que tem o poder de dar a chuva e um abbaacute que natildeo tem (Jeremias 1977 p 22)
Por fim o autor supracitado observa que mesmo que as evidecircncias sejam
favoraacuteveis a uma invocaccedilatildeo de Deus como papai (Abbaacute) ainda assim com um olhar
mais criterioso nota-se que a forma como Hanin invoca a Deus eacute tomada com um
tom carregado de humor e Hanin comeccedila a sua oraccedilatildeo dirigindo-se a Deus natildeo
como o Abba mas sim como o Senhor do universo J Jeremias vecirc essa histoacuteria
124
como um preluacutedio das afirmaccedilotildees de Jesus nos Evangelhos onde ele diz que ldquoo Pai
celeste sabe do que precisam os seus filhos (Mt 632) que ele envia a chuva sobre
os justos e os injustos (Mt 5 45) e daacute coisas boas aos seus filhos que lhas pedem
(Mt 711 par Lc 1113) (Jeremias 1977 p 23) Entatildeo J Jeremias tem como
resultado de suma importacircncia de que realmente natildeo existe nenhum testemunho
nas oraccedilotildees judaicas do uso do Abba (papai) em todo o judaiacutesmo Defende esse
autor que o emprego do Abba foi uma caracteriacutestica peculiar de Jesus dirigir-se a
Deus invocando-o como o Abba e isso coloca o abba como sendo a ipsissima vox
de Jesus (Jeremias 1977 p23)
Eis-nos pois autorizados a dizer por que natildeo se usa abbaacute nas oraccedilotildees Judaicas para invocar a Deus seria desrespeitoso e portanto impensaacutevel para uma mentalidade judaica chamar a Deus com um nome tatildeo familiar Foi algo de novo uacutenico e inaudito ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma crianccedila fala ao seu pai com simplicidade intimidade e sem temor Portanto natildeo haacute duacutevida alguma de que a palavra abbaacute utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus revela o proacuteprio fundamento de sua comunhatildeo com ele (Jeremias 1977 p25)
J Jeremias ainda conclui seu pensamento sobre o uso do Abba nas oraccedilotildees
judaicas ldquoUma revisatildeo da rica e abundante literatura oracional judaica ainda pouco
estudada leva-nos a conclusatildeo de que em nenhuma das suas passagens estaacute
atestado o termo abba para invocar a Deusrdquo (Jeremias 2006 p63)
Com um pensamento em alguns pontos diferentes ao de J Jeremias de que
para este Deus nunca foi invocado como pai no judaiacutesmo quer seja no Antigo
Testamento ou no judaiacutesmo palestinense Bultmann afirma que a visatildeo de Deus
como pai no Judaiacutesmo era corriqueira quer seja atraveacutes das oraccedilotildees ou ateacute mesmo
pelo piedoso individualmente Bultmann usa alguns textos como o Eclesiaacutestico 410
para justificar a sua tese ldquoSecirc um pai para os oacuterfatildeos e o substituto do esposo para as
viuacutevas Entatildeo Deus te chamaraacute de filho seraacute gracioso para contigo e te salvaraacute da
perdiccedilatildeordquo (Bultmann 2005 p 191)
A condiccedilatildeo de filho de Deus no judaiacutesmo pode ser tambeacutem escatoloacutegica Para
Bultmann o chamado Salmo de Salomatildeo (1730) trata sobre o regimento do
Messias no tempo do fim com as seguintes palavras ldquoEle os conhece e sabe que
satildeo todos filhos do seu Deusrdquo E para enfatizar ainda mais o seu argumento ele
ainda cita o ldquochamado Livro dos jubileus (1 24-25)rdquo no qual Deus em uma forma
escatoloacutegica promete para os israelitas no tempo da salvaccedilatildeo ldquoEles cumpriratildeo os
125
meus mandamentos e eu serei um pai para eles e eles seratildeo meus filhos E todos
eles se chamaratildeo filhos do Deus vivo e todos os anjos e todos os espiacuteritos os
conheceratildeo e saberatildeo que eles satildeo meus filhos e que eu sou o pai em firmeza e
justiccedila e que eu os amordquo
A ideia que Jesus tem da designaccedilatildeo de Deus como pai segundo Bultmann
natildeo traz nenhuma novidade a respeito do assunto pelo contraacuterio era jaacute uma
caracteriacutestica de muitas religiotildees e cosmovisotildees religiosas e entre elas encontra-se
a visatildeo dos antigos estoicos para os quais a ldquofiliaccedilatildeo divina cabe ao ser humano por
natureza e eacute algo que se aplica a ele na esfera das ideias logo que se situa aleacutem
de sua existecircncia concreta no aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p192-193)
A relaccedilatildeo de pai e filhos no judaiacutesmo ocorre de uma forma diferente da do
estoicismo Bultmann defende que no judaiacutesmo natildeo haacute uma relaccedilatildeo de pai e filhos
de Deus por natureza mas pela livre eleiccedilatildeo de Deus A filiaccedilatildeo divina portanto natildeo
eacute algo natural mas eacute algo miraculoso Quanto agrave possibilidade da filiaccedilatildeo essa natildeo eacute
exclusividade de um grupo pelo contraacuterio eacute aberta a todos pois o pai do ceacuteu provecirc
para todas as pessoas aquilo que necessitam (Mt 6 2632) Da mesma forma a
oportunidade para rogar ao pai do ceacuteu (Mt 7 7-11) eacute uma oportunidade oferecida a
todas as pessoas Dessa forma Bultmann declara que ldquo o ser humano eacute visto de
modo bem diferente ou seja natildeo como aquilo que eacute na esfera das ideias para aleacutem
de sua existecircncia concreta mas justamente como aquilo que eacute em sua existecircncia
na singularidade de seu aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p 193)
O conceito de paternidade no judaiacutesmo eacute tambeacutem discutido por Alon Goshen-
Gottstein em ldquoDeus como Pai no judaiacutesmordquo (Goshen-Gottstein 2001 p475) Para
ele a referecircncia rabiacutenica de Deus como pai no judaiacutesmo tambeacutem eacute uma
peculiaridade de Israel como naccedilatildeo natildeo que indiviacuteduos natildeo possam dirigir-se a Ele
como pai Mas natildeo eacute possiacutevel encontrar nas fontes sobre algueacutem que de forma
especiacutefica e individual tenha dirigido-se a Deus chamando-o de Pai No entanto
para Goshen-Gottstein essa relaccedilatildeo paternal era apenas um sentimento religioso
reciacuteproco de Israel para com Deus isto eacute chamar Deus de Pai era apenas uma das
muitas metaacuteforas que Israel usava para referir-se a Deus (Goshen-Gottstein 2001
p475)
Para Goshen-Gottstein os cristatildeos e judeus divergem muito sobre a questatildeo
da segunda e a terceira pessoas da trindade cristatilde parece que a primeira pessoa da
trindade (o Pai) eacute o elo que une o cristianismo e o judaiacutesmo num fundo teoloacutegico
126
comum Contudo ele pergunta sobre em que extensatildeo a pessoa do Pai eacute um
conceito comum para o judaiacutesmo e para o cristianismo (Goshen-Gottstein 2001
p471) Goshen-Gottstein coloca que o primeiro problema eacute metodoloacutegico visto que
eacute natural que os pesquisadores do Novo Testamento vasculhem a literatura rabiacutenica
agrave procura daquilo que apenas lhes interessa A exemplo disso esse autor observa
que teoacutelogos cristatildeos pentearam a literatura rabiacutenica em busca de exemplos de
expressotildees sobre o ldquoPai celesterdquo que estatildeo no singular ou no plural para dessa
forma avaliar a importacircncia que a expressatildeo ldquoPai celesterdquo tem na literatura rabiacutenica
quando analisada sobre a perspectiva da intimidade e relaccedilatildeo pessoal que o ldquoPai
Celesterdquo tinha para os autores rabiacutenicos Goshen-Gottstein vecirc isso como perda de
tempo pois considera que as fontes rabiacutenicas natildeo podem ser analisadas para fins
especiacuteficos mas devem ser apreciadas a partir da unicidade das suas estruturas
literaacuterias meacutetodos de expressatildeo e convenccedilotildees estiliacutesticas (Goshen-Gottstein 2001
p473)
Referindo-se ao conceito de metaacuteforas atribuiacutedas a Deus Goshen-Gottstein
afirma que descrever Deus como Pai no Judaiacutesmo natildeo eacute essencial ou fundamental
Esse conceito tem uma conotaccedilatildeo religiosa e faz parte de um vocabulaacuterio religioso
Ele eacute apenas uma descriccedilatildeo repleta de imagens e metaacuteforas que faz parte de um
vocabulaacuterio religioso que daacute expressatildeo aos sentimentos do povo e que enchem o
espectro de Israel Portanto para Goshen-Gottstein ldquoPairdquo natildeo eacute uma expressatildeo
privilegiada dentro do judaiacutesmo e tambeacutem ldquonatildeo eacute o nome proacuteprio de Deus Antes eacute
uma das inuacutemeras metaacuteforas atraveacutes das quais Israel se refere a Deusrdquo A
paternidade na literatura rabiacutenica eacute sempre vista em relaccedilatildeo a Israel como naccedilatildeo
Embora Goshen-Gottstein afirme tal expressatildeo ele admite que haja casos em que
indiviacuteduos se dirijam a Deus como Pai inclusive em fontes biacuteblicas No entanto natildeo
se encontra em nenhuma fonte Deus sendo considerado Pai de um indiviacuteduo
somente Sempre Deus eacute visto como sendo o Pai de Israel poreacutem isso natildeo
evidencia que a paternidade de Deus natildeo seja estendida a outros fora de Israel pelo
menos natildeo encontramos na literatura rabiacutenica textos que suponham tal expressatildeo
O que Goshen-Gottstein procura deixar claro eacute que a referecircncia rabiacutenica a Deus
como Pai estaacute fundamentalmente fiel ao uso biacuteblico Isso difere de Filo para quem
Deus o Pai eacute tambeacutem Deus o Criador do mundo Para os rabinos a paternidade
divina se refere somente em relaccedilatildeo a Israel ou seja as fontes referem-se a Deus
127
como Pai somente no contexto do relacionamento especial de Israel com Deus
(Goshen-Gottstein 2001 p475)
A representaccedilatildeo metafoacuterica de Deus como Pai de Israel eacute tambeacutem defendida
por Vermes em Jesus e o mundo do Judaiacutesmo Vermes defende que Deus foi
representado metaforicamente como Pai do povo eleito (Israel) natildeo somente na
literatura biacuteblica mas tambeacutem na literatura apoacutecrifa Entre os textos biacuteblicos por ele
citados encontram-se os seguintes ldquoEu sou pai para Israel e Efraim eacute o meu
primogecircnitordquo (Jr 319) ldquoE no entanto Senhor tu eacutes o nosso Pairdquo [] todos noacutes
somos obras de suas matildeosrdquo (Is 647) ldquoSerei para ele um Pai e ele seraacute para mim
um filho e seraacute chamado filho do Deus vivo (Jub 1 24-25) ldquoFiz a vontade do Abba
que estaacute nos ceacuteusrdquo (Lv R 321) ldquoOacute Senhor Pai Soberano (ou Deus) da minha vidardquo
(Sr 23 14) ldquoA tua providecircncia oacute Pai eacute o seu pilotordquo (Sb 14 3) Vermes apoacutes
analisar os textos das fontes mencionadas acima e outros natildeo reluta em afirmar que
a invocaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rica no judaiacutesmo antigo (Vermes 1996 p53)
Analisando as teses de J Jeremias concernentes ao Abba de Jesus Vermes
observa que elas estatildeo sujeitas a questionamentos J Jeremias defende que Abba
quando dirigido a Deus em forma de invocaccedilatildeo natildeo se encontra na oraccedilatildeo judaica
antiga Vermes contudo soacute concordaria com essa tese se fosse possiacutevel analisar
todas as oraccedilotildees individuais e confirmar que em nenhuma delas algum indiviacuteduo
dirigiu-se a Deus em oraccedilatildeo com a forma invocativa do Abba Para Vermes o
seguinte pensamento de David Flusser resume bem os argumentos acima
apresentados ldquoJ Jeremias natildeo conseguiu encontrar o uso de Abba como vocativo
para Deus na literatura talmuacutedica poreacutem considerando a escassez de material
rabiacutenico sobre a oraccedilatildeo carismaacutetica isso natildeo nos diz muita coisardquo (Vermes 1996
p55)
Goshen-Gottstein fazendo referecircncia a Joseph Heinemann justifica a tese de
Vermes de que eacute preciso distinguir a oraccedilatildeo judaica antiga quando era puacuteblica e
coletiva da oraccedilatildeo de um indiviacuteduo Seguindo esse argumento observa-se que a
oraccedilatildeo puacuteblica recorre a linguagem e padrotildees especiacuteficos enquanto que a oraccedilatildeo
quando efetuada pelo indiviacuteduo eacute mais livre e tambeacutem mais carismaacutetica Nesse
sentido o exemplo por excelecircncia de oraccedilatildeo livre e individual eacute a oraccedilatildeo do Senhor
(Goshen-Gottstein 2001 p487)
Dentre os argumentos contraacuterios a visatildeo de J Jeremias temos ainda a
refutaccedilatildeo de Vermes sobre a tese em que J Jeremias defende que Jesus dirigia-se
128
a Deus chamando-o de ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo Para Vermes essa forma invocativa
realmente era usada pelas criancinhas quando essas se dirigiam aos seus pais
Contudo Vermes natildeo concorda que abba ou imma tenha tido uma uacutenica forma
determinada de uso Para ele na eacutepoca de Jesus abba poderia tambeacutem possuir
simplesmente o significado de ldquomeu pairdquo principalmente quando usadas em
situaccedilotildees solenes que natildeo tinham nada de infantil ldquocomo na altercaccedilatildeo imaginaacuteria
entre os patriarcas Judaacute e Joseacute relatado no Targum Palestino quando o furioso Judaacute
ameaccedila o governador [vizir] do Egito (seu irmatildeo que ele natildeo reconhecera) dizendo
Juro pela vida da cabeccedila de abba (meu pai) tal como tu juras pela cabeccedila do Faraoacute
teu senhor que se tirar a espada da bainha natildeo a devolverei mais enquanto a terra
do Egito natildeo tiver coberta de cadaacuteveresrdquo (Vermes 1996 p55)
James Barr tambeacutem eacute de acordo que abba era uma palavra usada por
adultos embora tambeacutem fosse muito usada por crianccedilas Segundo Barr no grego do
Novo Testamento a palavra ldquopaterrdquo (pai) eacute normalmente usada para referir-se a
figura paterna Contudo ele observa que na liacutengua grega tambeacutem havia uma palavra
em particular no diminutivo pertencente agrave fala das crianccedilas um pouco semelhante agrave
palavra Daddy em Inglecircs (papai) Poreacutem mesmo existindo a palavra em grego natildeo
haacute indiacutecio algum de que tal palavra tenha sido usada no Novo Testamento (Barr
1988 p 36-38)
As teorias com visotildees diferentes das de J Jeremias satildeo muitas como temos
visto Vermes conforme vimos acima eacute enfaacutetico ao contrapor J Jeremias
considerando as teses do professor de Gotinga sobre o Abba como incongruentes e
desprovidas de bases linguiacutesticas
[] J Jeremias compreendia que Jesus dirigia-se a Deus por ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo contudo afora a improbabilidade e incongruecircncia a priori dessa teoria parece natildeo haver bases linguiacutesticas para ela As criancinhas falantes de aramaico dirigiam-se aos seus pais por meio de abba ou imma mas esse natildeo era o uacutenico contexto do uso de abba Na eacutepoca de Jesus a forma determinada do nome abba (- ldquoo pairdquo) tambeacutem significava ldquomeu pairdquo ldquomeu pairdquo se bem que ainda atestado em qumran e no aramaico biacuteblico praticamente jaacute desaparecera como forma idiomaacutetica do dialeto galileu (Vermes 1996 p55)
No apecircndice de seu livro ldquoA Religiatildeo de Jesus o Judeurdquo Geza Vermes posta
um resumo da tese de J Jeremias sobre o Abba de Jesus (The Prayers of Jesus de
1967) baseadas em um artigo ldquoAbba natildeo eacute Papairdquo (Abba isnt Daddy) de James
129
Barr Os argumentos de J Jeremias estatildeo expostos da seguinte maneira conforme
transcritos abaixo
a) O termo aramaico eacute ldquouma expressatildeo puramente exclamatoacuteriardquo como em
Pai e natildeo um aspecto enfaacutetico correspondente em inglecircs a um substantivo
acompanhado do artigo definido (= o pai)
b) A origem do Abba se encontra no balbuciar do ldquofalar infantilrdquo A geminaccedilatildeo
ab-ba (ldquoDadaacuterdquo) tem como modelo o chamado mais frequente do bebecirc agrave Im-ma
(ldquoMamardquo)
c) Essa forma de invocaccedilatildeo eacute de tom tatildeo familiar que sua associaccedilatildeo com a
Deidade chocaria os judeus comuns de liacutengua aramaica como ldquodesrespeitosardquo
d) Seu emprego por Jesus era ldquoalgo de novo e inauditordquo
e) Abba no aramaico da Palestina tornou-se uma expressatildeo polivalente As
diversas expressotildees nos Evangelhos em Grego como ldquoo Pairdquo ldquoPairdquo (vocativo) e
tambeacutem ldquomeuteunosso Pairdquo (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)
podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus
Para Vermes se J Jeremias estiver correto isso pode trazer tantas
implicaccedilotildees porque o estilo de Jesus dirigir-se a Deus seria tatildeo peculiar a ponto de
representar um idiossincrasia Vermes prefere entender que J Jeremias
compreendeu mal o Abba de Jesus e ateacute por uma questatildeo de teimosia persistiu
defendo tal tese Ele ainda reafirma que o Abba natildeo era apenas o linguajar infantil
mas poderia ser usado em momentos solenes ou religiosos Vermes cita uma vez
mais James Barr dizendo que ironicamente esse observa ldquoque a teoria de J
Jeremias vinculando Abba agraves crianccedilas considera uma situaccedilatildeo que antedata Jesus
em alguns milecircniosrdquo Para fechar a analogia de Barr Vermes ainda cita-o ldquoComo
Explanaccedilatildeo de Abba nos tempos do Novo Testamento o balbuciar infantil natildeo faz
sentidordquo
A refutaccedilatildeo de Vermes eacute enfaacutetica ou seja explicitamente ele coloca sua visatildeo
teoloacutegica sobre o Abba de Jesus como uma contestaccedilatildeo a todos os argumentos de
J Jeremias Para finalizar Vermes assim resume seu pensamento sobre a teoria de
J Jeremias ldquo[] a teoria de J Jeremias popular ateacute agora natildeo encontra
fundamento filoloacutegico A conclusatildeo literaacuterio-histoacuterica dessa teoria vale dizer que
antes de Jesus os judeus natildeo se dirigiam a Deus como Abba natildeo eacute apenas
incomprovada como tambeacutem implausiacutevelrdquo (Vermes 1995 p163-167)
130
Apoacutes os diversos argumentos contraacuterios a J Jeremias concluiacutemos com
Swidler que fazendo menccedilatildeo de Georg Schelbert observa que aleacutem do termo
abba natildeo havia nenhuma outra palavra a disposiccedilatildeo de Jesus se ele quisesse falar
de Deus ou a Deus como Pai Se essa era a uacutenica forma de Jesus dirigir-se a Deus
entatildeo ela natildeo poderia ter nada de especial como afirma J Jeremias ateacute porque
como mostra Schelbert a Mishnaacute (que significa ensinamento que eacute recitado
oralmente) mostra um relacionamento iacutentimo com Deus como o Pai do Ceacuteu (Swidler
1993 p73-75) Em relaccedilatildeo ao termo abba Barr conclui que eacute razoaacutevel que abba no
tempo de Jesus pertencia a uma linguagem familiar ou coloquial distinto do uso
formal e cerimonioso mas por outro lado tendo em vista o uso do Targum seria
imprudente comparaacute-la a expressatildeo infantil Daddy (papai) O uso do abba era mais
solene podemos dizer que estava mais relacionado ao uso do adulto para com seu
Pai (Barr 1988 p 46)
62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA
LEITURA A PARTIR DA TEOLOGIA FEMINISTA
A figura feminina sempre foi discriminada pelas sociedades patriarcais ao
longo dos seacuteculos da histoacuteria da humanidade Podemos dizer que o cristianismo um
importante movimento de massa a pregar a liberdade e a igualdade entre os homens
e mulheres ldquoNatildeo haacute judeu nem grego natildeo haacute escravo nem livre natildeo haacute homem
nem mulher pois todos voacutes sois um soacute em Cristo Jesusrdquo (Gl 3 28) 69 Eacute comum
ouvirmos que Jesus libertou as mulheres uma vez que em seu ministeacuterio o mestre
da Galileia teve como disciacutepulas vaacuterias mulheres inclusive como jaacute mencionamos
neste trabalho (53) Maria Madalena (cf Lc 8 2 2410)
Elisabeth Schuumlssler Fiorenza referindo-se a Leonard Swidler vai mais aleacutem
quando afirma que Jesus foi um feminista e isso foi primeiramente atestado por um
estudioso homem e natildeo por uma mulher70 Schuumlssler Fiorenza apela para o fato de
Jesus ter tido disciacutepulas e tambeacutem ter violado as leis de pureza (algo que era
69
Swidler refere-se a esse texto de Paulo como uma contestaccedilatildeo a uma oraccedilatildeo rabiacutenica que diz ldquoLouvado seja Deus por natildeo me ter criado gentio Louvado seja Deus por natildeo ter me criado mulher Louvado seja Deus por natildeo ter me criado ignoranterdquo (Swidler 1993 p 101)
70 Basicamente para Swidler feminista eacute a pessoa a favor da igualdade de homens e mulheres ou
seja a pessoa que trata primeiramente a mulher como uma pessoa assim como os homens satildeo tratados (Swidler 1993 p100)
131
contraacuterio aos rabinos judeus) como argumento para fundamentar a tese de um
Jesus feminista (Schuumlssler Fiorenza 2005 p 37)
Contudo para Swidler a atitude feminista era uma exclusividade de Jesus e
natildeo dos evangelistas e suas fontes Para ele a Igreja primitiva tornou-se
rapidamente antifeminista como pode ser visto em textos como ldquo[] estejam as
mulheres caladas nas assembleias pois natildeo lhes eacute permitido tornar a palavra
Devem ficar submissas como diz tambeacutem a Lei (1Cor 14 34)rdquo Swidler ainda cita
outro texto (1Tm 2 11-12) que diz que ldquodurante a instruccedilatildeo a mulher conserve o
silecircncio com toda a submissatildeo Natildeo permito que a mulher ensine ou domine o
homem Que ela conserve o silecircnciordquo Para Swidler a Igreja natildeo soacute se tornou
antifeminista como tambeacutem se tornou misoacutegina uma vez que aleacutem dos textos acima
mencionados jaacute no II seacuteculo Tertuliano refere-se agraves mulheres com as palavras ldquosois
o portatildeo do diabordquo Natildeo bastasse Tertuliano Oriacutegenes afirma que ldquoaquilo que eacute visto
com os olhos do criador eacute masculino e natildeo feminino pois Deus natildeo se curva para
olhar aquilo que eacute feminino e da carnerdquo (Swidler 1993 p106)
Tal afirmaccedilatildeo (Jesus libertou as mulheres) eacute muito bem aceita entre as
teoacutelogas feministas e por todos que defendem essa teoria Para Schuumlssler Fiorenza
Jesus natildeo somente libertou as mulheres da degradaccedilatildeo imposta pela sociedade
judaica patriarcal da antiguidade (apesar dessa tese ser considerada como
historicamente falsa e antijudaica pelas teoacutelogas feministas judias) como tambeacutem o
proacuteprio Jesus era um feminista (Fiorenza 2005 p110)
Conforme Swidler a condiccedilatildeo das mulheres na sociedade contemporacircnea de
Jesus na Palestina era sem duacutevida de inferioridade em relaccedilatildeo aos homens
Segundo Swidler natildeo obstante o fato de ter havido vaacuterias heroiacutenas nas Escrituras
hebraicas natildeo impediu que nos dias de Jesus e ateacute muito tempo depois natildeo fosse
concedido agraves mulheres a permissatildeo de estudar a Toraacute Swidler citando um texto da
Mishnaacute (Sita 34) refere-se a um rabino do seacuteculo I chamado Eliezer que
pronunciou as seguintes palavras referindo-se agraves mulheres ldquoAs palavras da Toraacute
deveriam antes ser queimadas do que confiadas a uma mulher [] todo aquele que
ensina a Toraacute a sua filha eacute como aquele que lhe ensina a lasciacuteviardquo (Swidler 1993
p100-101)
As mulheres no templo de Jerusaleacutem estavam limitadas agrave parte externa ou
seja ficavam no paacutetio das mulheres que estavam cinco degraus abaixo do paacutetio dos
homens Nas sinagogas aleacutem de ficarem separadas dos homens natildeo tinham
132
permissatildeo para ler em voz alta muito menos assumir alguma funccedilatildeo de lideranccedila
Swidler cita Filon contemporacircneo de Jesus que pensava que as mulheres natildeo
deviam sair de casa a uacutenica exceccedilatildeo era para ir agrave sinagoga e preferencialmente
em horaacuterios em que a maioria das pessoas estivessem em casa De uma maneira
geral as mulheres serviam apenas para ter filhos estavam sempre sob a tutela de
um homem que seria o marido ou no caso de viuvez sob a tutela do irmatildeo do
falecido sem contar com o fato de que tinham que se sujeitar a poligamia (ainda que
natildeo muito praticada nos dias de Jesus) eram facilmente repudiadas com a carta de
divoacutercio poreacutem natildeo tinham permissatildeo para se divorciarem Enfim ldquoa condiccedilatildeo das
mulheres na Palestina era aquela dos inferioresrdquo (cf Swidler 1993 p102-104)
A teologia de J Jeremias referente agrave relaccedilatildeo de Deus como Pai nos laacutebios de
Jesus de Nazareacute71 natildeo eacute aceita em algumas correntes teoloacutegicas como por
exemplo pelos defensores da teologia feminista72 Poreacutem quando falamos do
movimento feminista natildeo significa que exista um uacutenico ponto de vista sobre um
mesmo pensamento teoloacutegico Algumas feministas que adotam o pensamento de
reforma da tradiccedilatildeo o qual implica em conservar o que eacute melhor ao inveacutes de
simplesmente imitar as tradiccedilotildees lutam por uma reforma e uma flexibilidade na
linguagem da igreja quando o assunto se refere agrave pessoa de Deus argumentando
que o uso exclusivo da imagem masculina natildeo faz justiccedila agrave imagem biacuteblica de Deus
mas limita o acesso ao entendimento que temos de Deus Para essa corrente
feminista a imagem de Deus natildeo estaacute relacionada a gecircnero visto que Deus pode
ser visto tanto como pai e como matildee segundo Marianne Thompson para uma parte
dessas feministas e ainda para outras portanto a ideia central natildeo eacute descartar a
71 Elisabeth Schuumlssler Fiorenza observa que os livros e artigos sobre ldquoJesus e as mulheresrdquo se
proliferam contudo ela cita Crossan quando este acusa as feministas pela falta de interesse na busca pelo Jesus histoacuterico Crossan pergunta onde estatildeo elas Schuumlssler responde ldquoCrossan natildeo pode reconhecer as afinidades entre seu proacuteprio modelo de reconstruccedilatildeo histoacuterica e o meu modelo feminista (cf Schuumlssler 2005 p 30)
72 Haight coloca que a teologia feminista eacute por muitos comparada agrave teologia da libertaccedilatildeo uma vez
que compartilham de ideais e estrutura formal comum no que diz respeito agrave libertaccedilatildeo e tambeacutem a maioria dos pobres no mundo eacute constituiacuteda de mulheres ldquo[] No que tange agrave loacutegica hermenecircutica da teologia portanto as teoacutelogas feministas podem referir-se a si mesmas como teoacutelogas da libertaccedilatildeo [] Na medida em que o androcentrismo controla o significado de Jesus cristo a cristologia feminista eacute levada a questionar como uma figura masculina de Salvador pode oferecer a salvaccedilatildeo agraves mulheres Em termos mais amplos contudo a cristologia feminista ocupa-se de toda a forma de opressatildeo e de suas inter-relaccedilotildees O Deus mediado por Jesus Cristo coloca em xeque todo poder de dominaccedilatildeo Natildeo era o sexo mas o gecircnero como categoria cultural que tinha primazia e era parte da ordem das coisas O significado de homem e de mulher era determinado pela posiccedilatildeo na hierarquia social e pelo lugar que se ocupava na sociedade natildeo pela genitaacuteliardquo (cf Haight 2003 p37)
133
linguagem de Deus como Pai mas apenas incluir essa com outra variedade de
imagens de Deus (Thompson 2000 p 3)
Para outras feministas no entanto nenhum acordo sobre a questatildeo da
imagem paterna de Deus pode ser atingido facilmente pois tais questotildees natildeo
podem ser tatildeo facilmente resolvidas e as respostas necessaacuterias satildeo muito radicais
pois trariam uma postura revolucionaacuteria para a tradiccedilatildeo Para elas o uso histoacuterico
que a Igreja tem da linguagem exclusivamente masculina de Deus deve ser
inteiramente refeito73 Em vez de buscar as reformas dentro das estruturas atuais da
igreja ou dentro de construccedilotildees teoloacutegicas tradicionais essas feministas oferecem
uma pauta mais radical o que tem implicaccedilotildees natildeo apenas para a linguagem sobre
Deus mas tambeacutem para o carater baacutesico de toda a teologia e feacute cristatilde Algumas
feministas satildeo mais radicais ainda pois explicitamente rejeitam as tradiccedilotildees da feacute
cristatilde afirmando que os textos cristatildeos e a feacute satildeo inevitavelmente e
intoleravelmente patriarcal elas abandonaram o cristianismo por completo
(Thompson 2000 p 4)
Para Thompsom (2000 p 18) a designaccedilatildeo de Deus como Pai natildeo eacute
invenccedilatildeo de Jesus e nem criaccedilatildeo da Igreja primitiva A designaccedilatildeo de Deus como
Pai faz parte de ambos os Testamentos ou como o Pai que eacute o ancestral que daacute a
vida e lega uma heranccedila aos seus filhos ou como o Pai que ama e cuida dos seus
filhos ou ainda como o Pai que eacute uma figura de autoridade a quem se deve
obediecircncia e honra Thompsom afirma que Jesus dirigiu-se a Deus como Pai em
primeira instacircncia natildeo como um mero testemunho de sua proacutepria experiecircncia de
Deus mas ao inveacutes disso pelas suas proacuteprias convicccedilotildees de Deus como renovador
e restaurador de Israel ou seja isso natildeo era fruto de uma experiecircncia privada mas
assunto de uma missatildeo puacuteblica Essa afirmaccedilatildeo de Thompson natildeo se coaduna com
o pensamento de J Jeremias para quem a relaccedilatildeo de Jesus com o Pai era iacutentima e
pessoal
Nesse sentido Mary Rose DAngelo ao analisar o texto do Evangelho de
Marcos 1436 quando Jesus invocava o Pai (Ἀββᾶ ὁ πατήρ) ela observa que a
73
Elisabeth Schuumlssler Fiorenza em seu livro Jesus e a poliacutetica da interpretaccedilatildeo coloca uma teoria polecircmica ou pelo menos curiosa Segundo Schuumlssler os antropoacutelogos tecircm assinalado que nem todas as culturas e liacutenguas conhecem dois sexosgecircneros e que mesmo em culturas ocidentais isso eacute coisa da modernidade ldquoDurante milhares de anos considerava-se comum que as mulheres tivessem o mesmo sexo e os mesmos oacutergatildeos genitais que os homens estando a diferenccedila no fato de se acharem no interior do corpo ao passo que os dos homens estavam no exterior A vagina era entendida como um pecircnis interior os laacutebios como prepuacutecio o uacutetero como saco escrotal e os ovaacuterios como testiacuteculosrdquo (cf Schuumlssler 2005 p9)
134
oraccedilatildeo contida nesse texto pode ser apenas redacional visto que tal oraccedilatildeo ocorreu
no cenaacuterio do Getsecircmani onde Jesus estava naquele momento sem os seus
disciacutepulos portanto eles natildeo estavam laacute para ouvir e descrever o momento de sua
agonia Ela concorda com a teoria de que a narrativa desse cenaacuterio poderia ser
apenas um soliloacutequio dramaacutetico de Jesus ou entatildeo uma repeticcedilatildeo da oraccedilatildeo de
Joseph (4Q372 1 23-24) onde ele suplica para que Deus natildeo lhe abandone Para
D`Angelo a narrativa de Marcos tende muito para o lado emotivo procurando
dessa forma colocar Jesus como o verdadeiro Filho de Deus e grande maacutertir da
histoacuteria do judaiacutesmo conforme os livros Sabedoria de Salomatildeo e 3 Macabeus (D`
Angelo 1992b p159) Em outro artigo (Abba and ldquoFatherrdquo Imperial Theology and
the Jesus Traditions) D Angelo reafirma seu argumento sobre o cenaacuterio do
Getsecircmani dizendo ldquoEsta eacute uma cena da revelaccedilatildeo entre Jesus e leitor os
disciacutepulos estatildeo laacute para relatar a agonia de Jesus Assim a atribuiccedilatildeo de abba a
Jesus natildeo tem muacuteltipla atestaccedilatildeo Na verdade ocorre apenas em uma cena que
quase certamente deriva da atividade literaacuteria de Marcosrdquo (D` Angelo 1992a p614-
615)
Segundo D Angelo o uso do Abba pela Igreja primitiva natildeo eacute uma heranccedila dos
ensinamentos de Jesus como acreditam alguns teoacutelogos De acordo com essa
autora o uso do Abba na Igreja primitiva era mais uma questatildeo de ecircxtase provocada
por uma accedilatildeo do Espiacuterito Santo do que uma referecircncia agraves palavras ditas por Jesus
Para a autora se o Abba usado nas igrejas tivesse uma ligaccedilatildeo direta com Jesus
entatildeo seriamos obrigados a aceitar que outras palavras de origem aramaica como
Maranatha tambeacutem seriam provenientes dos discursos do mestre (D Angelo 1992a
p 615)
Um outro argumento defendido por D` Angelo eacute que o uso da expressatildeo ldquoAbba
Pairdquo no Evangelho de Marcos eacute anti-imperialista visto que o Imperador de Roma
considerava-se o pai da paacutetria (parens patriae pater patriae) preferindo ser
reconhecido com o tiacutetulo de pai ao tiacutetulo de rei designaccedilatildeo esta que natildeo soava bem
aos ouvidos do povo romano (D` Angelo 1992a p623-630) De fato de acordo com
DAngelo foi concedido a Juacutelio Cesar ainda em vida o tiacutetulo de ldquopaterldquo (pai) o qual
buscava estabelecer uma relaccedilatildeo de devoccedilatildeo (pietas) entre ele e o povo romano
Isso se deve ao fato que o uso de pater subentende o impeacuterio como uma grande
famiacutelia na qual o imperador funciona como um paterfamilias e cuja autoridade eacute
baseada em sua habilidade de reger todo o povo romano como seus clientes Ainda
135
seguindo com essa visatildeo imperialista observa-se que Augusto adquiriu oficialmente
o tiacutetulo pater patriae no ano 2 aC
No intuito de descrever o caraacuteter dos imperadores DAngelo aponta que
Cassius Dio o qual acreditava que os tiacutetulos supracitados representavam mais
afeiccedilatildeo do que autoridade tratou augustus e pater como duas denominaccedilotildees
atraveacutes das quais os imperadores primeiro permitiam a si mesmos serem
distinguidos do resto dos cidadatildeos substituindo o tiacutetulo ldquoreirdquo por tais designaccedilotildees
cujas essecircncias soariam de maneira menos ofensiva aos ouvidos dos romanos De
acordo com Dio o termo pater concorda com a ideia que o Imperador tem a mesma
autoridade que um pai tem sobre seus filhos escravo e outros sujeitos
Por outro lado dois filoacutesofos estoicos do primeiro e segundo seacuteculos nos
ajudam a entender como o tiacutetulo pai concedido ao Imperador poderia sofrer uma
reaccedilatildeo com o pensamento teoloacutegico da eacutepoca Para Dio Crisoacutestomo ldquoDeus como
pai racionaliza o governo imperial e convida-o a adotar um coacutedigo de eacutetica de
clemecircncia e de responsabilidaderdquo ao descrever que o bom rei eacute aquele que prefere a
labuta aos prazeres e as riquezas Tal rei prefere o tiacutetulo ldquopairdquo ao referir-se agrave sua
capacidade de provisatildeo Jaacute Epiacuteteto ldquousa a paternidade de Deus para oferecer uma
dignidade alternativa para aqueles que natildeo tecircm acesso ao poder dentro da ordem
imperialrdquo Esses dois autores satildeo importantes para o cristianismo primitivo e para o
judaiacutesmo natildeo pela influecircncia que exerceram sobre eles mas porque respondem as
mesmas realidades poliacuteticas
Um outro argumento de DAngelo com relaccedilatildeo ao uso de Abba por Jesus eacute
que o mesmo natildeo pode ser explicado apenas como uma relaccedilatildeo afetiva entre pai e
filho mas tambeacutem reflete a praacutetica carismaacutetica da comunidade na qual Marcos
estava inserido assim como ocorreu nas igrejas de origem grega da Galaacutecia e em
Roma (Gl 46 Rm 816) onde o uso da palavra ldquoAbbardquo eacute fruto da accedilatildeo do Espiacuterito
Santo
D`Angelo justifica essa tese a partir do fato que segundo ela J Jeremias
tomou como base em seus estudos apenas os textos provenientes de oraccedilotildees e
ainda excluiu textos em grego os quais ele considerou serem oraccedilotildees feitas pela
comunidade e natildeo como fruto de uma accedilatildeo do indiviacuteduo (D`Angelo 1992b p151)
Para dar suporte a esse argumento D`Angelo faz referecircncia ao texto de 4Q372 1
originalmente escrito em hebraico no qual Joseph invoca a Deus chamando-o de
meu Pai ldquoMeu Pai e meu Deus natildeo me abandone nas matildeos das naccedilotildees faccedila
136
justiccedila por mim o aflito e pobre pereciacutevel Vocecirc natildeo precisa de nenhuma pessoa ou
naccedilatildeo para lhe ajudar seu dedo eacute maior e mais forte do que qualquer coisa no
mundordquo (Vermes 2004 p566) Ela ainda cita outros textos onde Deus eacute invocado
como Pai (3 Mac 6 3-4 78 Sab 143 1 QH 935)
Embora alguns desses textos tenham sido escritos em grego quando lidos no
contexto de 4Q372 1 e 4Q460 5 DAngelo observa os textos hebraicos e gregos
mostram que era uma praacutetica comum tanto da comunidade quanto do indiviacuteduo
dirigir-se a Deus em oraccedilotildees chamando-o de Pai (D`Angelo 1992b p 152) Dessa
forma ela entende que o conceito de Deus como Pai sempre esteve presente no
judaiacutesmo antigo influenciando toda a literatura judaica da eacutepoca (DAngelo 1992a
618)
Face aos argumentos acima expostos D Angelo conclui que a originalidade
do uso do Abba natildeo pode ser atribuiacutedo a Jesus com toda certeza e mais ainda
segundo ela seria menos provaacutevel que Jesus usasse o termo pai numa linguagem
familiar do que em resistecircncia agrave ordem do Impeacuterio romano
Finalmente considerando os argumentos apresentados a partir da
interpretaccedilatildeo feminista Thompson conclui que tanto Jesus como a Igreja primitiva
natildeo deram origem ao conceito de Deus como Pai Aleacutem disso apesar das
caracteriacutesticas do Pai no Israel antigo serem utilizadas para falar de Deus como Pai
elas nunca estiveram ligadas a uma essecircncia masculina de Deus mas servem como
exemplo de feacute misericoacuterdia justiccedila humildade bem como responsabilidade
individual e corporativa e obediecircncia a Deus para a comunidade (Thompson 2000
p 19)
137
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Naquela noite em sonhos Joseacute teve um aviso O Evangelista natildeo diz em que cidade ou lugar a famiacutelia se encontrava Natildeo devia ser do lado norte e talvez fosse mesmo nas montanhas do sul fora do alcance das batidas policiais de Herodes Suponhamos que fosse na estrada do Heacutebron Com a cabeccedila reclinada sobre uma pedra o carpinteiro adormece E eis que o anjo do Senhor (aquele mesmo que lhe confiara a guarda de Jesus) lhe diz - Levanta-te e toma o menino e sua matildee e foge para o Egito e demora-te laacute ateacute que eu diga porque Herodes haacute de procurar o menino para o matar Joseacute desperta Sobre os montes luzem os primeiros alvores da madrugada Prepara o alforje avisa Maria para que tambeacutem se prepare porque longa eacute a viagem [] Joseacute sela o jumento acomoda Maria e o Menino sobre o animal Toma o bordatildeo E parte A viagem prolonga-se por muitos dias pela Idumeacuteia pelas montanhas de Sin pelo deserto de Sur Uma tarde sobre as colinas a cavaleiro do Nilo avistam as piracircmides de Miquerinos de Queacutefren e de Queops grandiosas e silenciosas no ar trecircmulo de mormaccedilo Junto agrave piracircmide de Miquerinos olhando para o abismo do ceacuteu e para a amplitude do deserto uma cabeccedila gigantesca de pedra tem indefiniacutevel indecifraacutevel expressatildeo Eacute a grande esfinge [] Os egiacutepcios viam naquele rochedo a imagem humana do sol Os gregos viam naquela imagem o monstro proponente de problemas insoluacuteveis (Salgado 1985 p67-69)
Em tom poeacutetico Plinio Salgado narra a histoacuteria da fuga do menino Jesus e
seus pais para o Egito conforme o texto do Evangelho de Mateus que diz ldquo[] eis
que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonhos a Joseacute e lhe disse Levanta-te toma
o menino e sua matildee e foge para o Egitordquo (Mt 213) Salgado usa o mito da esfinge74
para relacionar com o mito de Eacutedipo onde o enigma eacute decifrado pelo personagem
Eacutedipo75 Para Salgado Eacutedipo decifrou a Esfinge mas natildeo decifrou o homem que
continua nas trevas
A pergunta do monstro na estrada de Tebas refere-se ao homem ldquoQual eacute o animal que pela manhatilde anda com quatro pernas ao meio-dia com duas e agrave
74
Segundo Plinio Salgado o mito da Esfinge rezava que enquanto ser vivente misto de leatildeo e de mulher a Esfinge andava pelas estradas de Tebas devorando os viajantes que eram incapazes de responder as suas perguntas enigmaacuteticas Contudo o monstro morreria quando algueacutem decifrasse seu enigma
75 O mito de Eacutedipo pode ser visto com detalhes no claacutessico Antiacutegona de Soacutefocles
138
tarde com trecircsrdquo Eacutedipo responde ldquoEacute o homemrdquo e respondendo revela que toda a preocupaccedilatildeo da Esfinge eacute o gecircnero humano Decifrar a Esfinge eacute a preocupaccedilatildeo do homem Decifrar o homem eacute a preocupaccedilatildeo da Esfinge (Salgado 1985 p67-69)
Conforme Salgado a trageacutedia de Eacutedipo eacute a trageacutedia do homem Somente
Jesus decifraraacute a ldquoEsfinge-Homem e iluminaraacute todo o universordquo
A histoacuteria da humanidade eacute repleta de trageacutedias desde as suas origens Jaacute
nos primeiros capiacutetulos do Gecircnesis vemos Abel sendo viacutetima de seu irmatildeo Caim 76
Diante de tantas cataacutestrofes o homem procura refuacutegio em um ser sobrenatural que
possa amenizar seu sofrimento e dar-lhe alguma explicaccedilatildeo para o porquecirc de tantos
desalentos nesta vida
A relaccedilatildeo do ser humano com o Ser sobrenatural faz parte da cultura de todos
os povos antigos como vimos no primeiro capiacutetulo deste trabalho Isso nos mostra o
anseio do ser humano em busca do seu criador Observamos que para os povos
antigos Deus era visto como um ancestral divino ou seja o homem era visto como
descendente da divindade Essa relaccedilatildeo entre o homem primitivo e a deidade nos
povos antigos era sempre marcada por sangue violecircncia guerra entre os deuses
ateacute o surgimento do homem como vimos no mito sumeacuterio babilocircnico em que o
homem proveacutem do sangue de um deus decaiacutedo chamado Kingu
Em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem na narrativa do Gecircnesis verificamos que o
proacuteprio Deus eacute quem modela e cria o homem a partir do barro (argila) O homem
entatildeo recebe a vida atraveacutes do sopro divino Essa relaccedilatildeo tatildeo proacutexima entre criatura
e criador eacute descrita nas Escrituras de uma forma progressiva desde o Gecircnesis ateacute
os escritos neotestamentaacuterios Agrave medida que Deus se revela ao homem este se
aproxima mais dele Aos patriarcas Deus eacute o El Shaday (Todo Poderoso) mas jaacute a
Moiseacutes ele revela o seu proacuteprio Nome Ele eacute o ldquoEu Sourdquo o Yahweh
Mesmo Yahweh sendo um Deus proacuteximo Ele ainda eacute visto no Antigo
Testamento como figura de um Senhor Criador o Todo Poderoso que luta e peleja
por Israel mas que ao mesmo tempo em que defende seu povo pune-os e os
entrega nas matildeos dos inimigos quando esses se desviam dos seus mandamentos
J Jeremias sabiamente observa que no Antigo Testamento a relaccedilatildeo de Israel com
Deus natildeo eacute vista como o relacionamento de pai para filho principalmente por parte
76
Cf Gn 4 1-16
139
do indiviacuteduo Deus sempre se apresenta como o Pai do rei ou entatildeo como o Pai da
naccedilatildeo Mesmo que Pai seja uma das muitas metaacuteforas para Deus como afirma
Goshen-Gottstein dificilmente podemos contestar a tese de J Jeremias uma vez
que uma clara invocaccedilatildeo de Deus como Pai feita por algum indiviacuteduo no Antigo
Testamento eacute difiacutecil de ser encontrada
Em relaccedilatildeo ao Novo Testamento observamos que Jesus que conviveu em
uma sociedade muito pobre carregada de preconceitos viu na expressatildeo Abba a
forma por excelecircncia para projetar nela o modelo de uma verdadeira e iacutentima
relaccedilatildeo entre filho e pai O fato de Jesus ter sofrido preconceitos como em sua
infacircncia adolescecircncia e ateacute na vida adulta por causa da sua filiaccedilatildeo humana natildeo o
impediu de demonstrar o quanto a sua relaccedilatildeo com o Pai divino era estreita e isso
estava acima de todos os preconceitos concebidos dentro de uma sociedade cheia
de costumes rigidamente observados a ponto de natildeo mais compreenderem o
verdadeiro sentido do amor a Deus e ao proacuteximo conforme era a verdadeira
vontade de Deus expressa nos ensinamentos do mestre da Galileia
Embora Joseacute tenha assumido a paternidade de Jesus isso natildeo foi suficiente
para impedir o preconceito contra ele em relaccedilatildeo a sua filiaccedilatildeo humana Contudo
quando Bruce Chilton potildee a questatildeo relacionada agrave possibilidade de Jesus ter sido
considerado um Mamzer a partir da interpretaccedilatildeo do texto do Evangelho de Joatildeo 8
40-41 onde os Judeus fazem a seguinte afirmaccedilatildeo a Jesus ldquo[] natildeo nascemos da
prostituiccedilatildeo temos um soacute pai Deusrdquo podemos tambeacutem olhar esse texto a partir de
uma interpretaccedilatildeo de uma Cristologia alta ou seja aqui o debate entre Jesus e os
judeus tem como ponto principal a filiaccedilatildeo divina onde Jesus se coloca como o
Verbo divino preexistente Poreacutem eacute bem verdade que isso natildeo anula o pensamento
de Chilton em relaccedilatildeo agrave possiacutevel discriminaccedilatildeo sofrida por Jesus levando em
consideraccedilatildeo o contexto a eacutepoca a cultura e o ambiente social em que Jesus viveu
durante o periacuteodo da infacircncia ateacute a vida adulta
Aleacutem disso podemos dizer com Martins Terra que a vida de Cristo eacute a
Revelaccedilatildeo do Pai que pode ser demonstrada nas palavras no silecircncio e nos
sofrimentos de Jesus Martins Terra observa que essa relaccedilatildeo eacute plena de intimidade
como pode ser visto nas palavras do proacuteprio Mestre ldquoAquele que me viu viu o Pairdquo
(Jo 149) e da mesma forma o Pai tambeacutem pode dizer assim do Filho ldquoEste eacute o
140
meu Filho muito amado ouvi-o (Lc 935)rdquo Notamos aqui que a relaccedilatildeo de Jesus
com o Pai eacute desde a eternidade onde o Verbo divino jaacute estava presente com o Pai
na criaccedilatildeo de todas as coisas (Martins Terra 2009 p283-284)
Para Martins Terra assim como para J Jeremias o Abba de Jesus eacute o
modelo da perfeita relaccedilatildeo dos filhos de Deus com o Pai do ceacuteu Assim como Jesus
relacionou-se com o Pai divino seus disciacutepulos tambeacutem o poderatildeo desde que se
aproximem e ldquoamem a Deus acima de todas as coisas e o proacuteximo como a si
mesmordquo Eacute na oraccedilatildeo do Pai Nosso que Jesus ensina como os disciacutepulos devem
orar em uma estreita ligaccedilatildeo com o Abba conforme nos descreve Martins Terra
[] Os disciacutepulos ficam impressionados com a oraccedilatildeo de Jesus Ele chamava a Deus de Aba (Mc 14 36) que natildeo eacute um termo usado nas oraccedilotildees judaicas Aba eacute um diminutivo aramaico que significa ldquopapairdquo Eacute a expressatildeo de uma crianccedila dirigindo-se a seu progenitor Jesus natildeo pode desde o inicio revelar o misteacuterio da Santiacutessima Trindade e de sua pessoa divina Esse misteacuterio natildeo tinha sido revelado no AT Foi invocando a Deus como Aba ldquomeu Pairdquo que Jesus foi levantando aos poucos o veacuteu que ocultava o misteacuterio da trindade e do seu relacionamento filial uacutenico com o Pai (Martins Terra 2009 p283-284)
Aleacutem disso de acordo com James D G Dunn podemos dizer com confianccedila
que Jesus experimentou uma iacutentima relaccedilatildeo com Deus expressa atraveacutes da oraccedilatildeo
Ele se relacionou com Deus caracteristicamente como Filho e Pai e o sentido dessa
relaccedilatildeo com Deus era tatildeo real tatildeo amorosa e tatildeo atraente que Jesus sempre se
dirigiu a Deus dessa maneira chamando-o de Pai ldquoAbba foi o grito que veio mais
naturalmente aos laacutebios de Jesusrdquo (Dunn 1997 p26)
Segundo J Jeremias para compreendermos o Abba como a ipsissima vox de
Jesus eacute preciso observar a origem de sua liacutengua materna Conforme observamos
no decorrer desta pesquisa haacute alguns pesquisadores que defendem que a liacutengua
corrente nos dias de Jesus era o hebraico e por sinal tambeacutem falada por Jesus
Esse argumento natildeo eacute seguido pela maioria dos especialistas do Novo Testamento
bem como por J Jeremias A liacutengua falada por Jesus era do ldquoramo ocidental da
famiacutelia linguiacutestica aramaicardquo J Jeremias para embasar sua tese menciona
respeitaacuteveis nomes como J Wellhausen Jouumlon Matthew Black e principalmente G
Dalman (Jeremias 2008 p32-33) que ldquoapresentou a prova baacutesica para este fatordquo
Tendo Dalman ainda como referecircncia J Jeremias afirma que natildeo eacute possiacutevel mais
141
duvidar que o aramaico ou para ser mais preciso ldquoo dialeto galileu do aramaico
ocidentalrdquo era a liacutengua materna de Jesus
As evidecircncias aramaicas satildeo evidentes nos ditos de Jesus por outro lado
praticamente natildeo se encontra palavras em hebraico ditas por ele nem mesmo o
ldquoAmenrdquo ou ldquoEliacuterdquo uma vez que essas palavras foram absorvidas pelo aramaico
(Jeremias 2008 p36) J Jeremias admite que em alguns poucos casos
encontramos palavras hebraicas nos laacutebios de Jesus mas sempre em situaccedilotildees
solenes como as palavras proferidas na uacuteltima ceia em liacutengua sacra
A importacircncia do aramaico como a primeira liacutengua de Jesus encontra-se na
possibilidade de nos aproximarmos o quanto possiacutevel do modo de falar do mestre
ou seja voltarmos ldquoagraves caracteriacutesticas da dicccedilatildeo de Jesus que natildeo possuem
nenhuma analogia na literatura da eacutepoca e que por isso podem ser consideradas
como marcas da ipsissima vox de Jesusrdquo (cf Jeremias 2008 p 68-79) Entre as
particularidades de Jesus concernentes agrave fala encontramos as seguintes
peculiaridades conforme J Jeremias
1 - As paraacutebolas de Jesus satildeo exclusividade dele natildeo encontradas em toda a
literatura judaica do Antigo ou do Novo Testamento quer canocircnica ou apoacutecrifa Nas
paraacutebolas de Jesus natildeo se encontra nenhuma faacutebula ou seja ele nunca coloca
uma videira ou figueira para falar Suas paraacutebolas (mesmo contendo metaacuteforas do
Antigo Testamento) tinham por maior finalidade atingir o coraccedilatildeo pulsante do ouvinte
e tratar de assuntos relacionados ao dia-a-dia da vida do ser humano
2 - Os ditos enigmaacuteticos como o proferido sobre Joatildeo Batista ldquoo maior entre
os nascidos de mulher eacute ao mesmo tempo o menor no reino de Deusrdquo (Mt11 11)
eram incomuns nos dias de Jesus seja entre os mestres ou ateacute mesmo dos
primeiros cristatildeos que natildeo inventaram tais ditos mas apenas os tornaram mais
evidentes
3 ndash A expressatildeo ldquoreino de Deusrdquo eacute escassa na literatura judaica antiga
recebendo um aumento apenas na literatura rabiacutenica Contudo nos Evangelhos natildeo
soacute o aumento mas a forma que Jesus usa as expressotildees relacionadas ao reino de
Deus satildeo profundamente marcantes para se caracterizar como a ipsissima vox de
Jesus conforme encontramos em textos como Mateus 519 11 12 Marcos 115
Lucas 112 1231 1721 etc
142
4 ndash O termo Ameacutem como jaacute foi mencionado nesta pesquisa (54) no Antigo
Testamento era usado como foacutermula solene para confirmar ldquouma palavra de benccedilatildeo
maldiccedilatildeo ou desejordquo Nos laacutebios de Jesus o termo eacute usado para testificar as
proacuteprias palavras do falante e natildeo de outrem J Jeremias conclui sobre o ameacutem
com as seguintes palavras ldquoA novidade desse uso linguiacutestico sua estrita restriccedilatildeo
agraves palavras de Jesus e o testemunho unacircnime de todas as camadas da tradiccedilatildeo
evidenciam que nos deparamos com uma inovaccedilatildeo linguiacutestica nos laacutebios de Jesusrdquo
5 ndash E por uacuteltimo temos o Abba proferido por Jesus Abba eacute a mais importante
palavra pronunciada por Jesus quando invocava a Deus com o Pai eacute o modo
preferido de Jesus para referir-se ao Pai Dificilmente poderiacuteamos interpretar o Abba
de Jesus como faz Malina comentando o Abba natildeo eacute paizinho de James Barr
Como tem sido demonstrado por James Barr (1988) a palavra aramaica Abba natildeo significa ldquopaizinhordquo como no hebraico moderno Tanto na traduccedilatildeo do Novo Testamento (Abba = ho pater Mc 14 36 Rm 815 Gl46) quanto de honra No patriarcado ele implica tambeacutem distacircncia Deus natildeo eacute um paizinho mas um patrono Na religiatildeo poliacutetica pregada por Jesus o deus de Israel eacute o patrono de Israel (cf Malina 2004 p145)
Compreende-se portanto que o Abba proferido por Jesus eacute ipsissima vox
Julgar J Jeremias alegando que ele considerou o linguajar de Jesus infantil natildeo eacute
cabiacutevel dentro do contexto de toda a sua teologia J Jeremias defende-se dessa
acusaccedilatildeo que a princiacutepio ateacute poderia ser justa uma vez que ele admite que jaacute
chegou a acreditar que Jesus tenha assumido a linguagem das criancinhas quando
se dirigia a Deus Pai como ele mesmo admite ldquoeu tambeacutem acreditei nissordquo
contudo agora natildeo mais jaacute que nas proacuteprias palavras desse teoacutelogo ele assim
admite ldquoa constataccedilatildeo de que jaacute desde os tempos preacute-cristatildeos os filhos e filhas
adultos se dirigiam a seus pais chamando-os de Abba proiacutebe esta limitaccedilatildeordquo
(Jeremias 2008 p121)
Portanto no Abba de Jesus natildeo haacute espaccedilos para patriarcados exclusivistas
uma vez que o proacuteprio ldquoFilho de Deusrdquo na sua condiccedilatildeo de homem acolheu os
pobres religiosos doentes e marginalizados pela sociedade cobradores de
impostos e tambeacutem acolheu o que a sociedade machista da eacutepoca mais discriminou
as mulheres Talvez seja uma precipitaccedilatildeo eliminar a linguagem metafoacuterica da
palavra Pai ou mesmo deixar de observar nela o conceito anti-imperialista ou ateacute
mesmo a patronagem No entanto natildeo podemos deixar de priorizar que para Jesus
143
Abba era uma palavra sagrada era ldquoa revelaccedilatildeo Deus porque Deus se tinha dado a
conhecer a ele como seu Pairdquo (Mt 11 27) um ldquoPairdquo acolhedor que quis ajuntar os
seus filhos como a galinha ajunta os seus os seus pintos debaixo das suas asas (cf
Lucas 1334)
A paternidade de Deus conforme J Jeremias natildeo eacute algo natural tambeacutem
natildeo eacute uma posse de todos os seres humanos mas reserva-se apenas aos
disciacutepulos uma vez que Jesus nunca dirigiu a expressatildeo ldquovosso Pairdquo a algueacutem que
estivesse fora do rol dos seus seguidores A filiaccedilatildeo faz parte do reino (basileia) de
Deus Uma das exigecircncias para fazer parte de tal reino eacute tornar-se como uma
crianccedila (Mt 183) Essa filiaccedilatildeo eacute escatoloacutegica eacute um dom salviacutefico de Deus (J
Jeremias 2008 p 271-273)
O Pai apresentado por Jesus eacute bom e cuida dos seus lsquopequeninosrsquo jaacute que
ele sabe do que eles realmente precisam (Mt 6 8 32) A invocaccedilatildeo de Deus como
Abba eacute mais forte do que todas as adversidades e anguacutestias mesmo que Satatilde
ldquoqueira peneirar o disciacutepulordquo (Lc 22 31) o Pai do ceacuteu ldquoeacute mais forte do que todos os
problemas enigmas e anguacutestias e sabe do que precisam os filhos do reino (J
Jeremias 2008 p276) O ponto central de toda essa exposiccedilatildeo sobre o Abba
consiste no ldquovoltar a ser como uma crianccedilardquo O significado disso estaacute em tornar-se
dependente do Pai voltar para os braccedilos do Pai (cf Lc 15 11-32) depositar total
confianccedila nele enfim resumimos isso nas palavras de J Jeremias ldquovoltar a ser
crianccedilardquo significa reaprender a dizer Abba (J Jeremias 2008 p 238) como diz J
Jeremias ldquo[] Abba eacute percebido como um grande privileacutegiordquo Ter a coragem de
chamar Deus de Pai proveacutem da conscientizaccedilatildeo da filiaccedilatildeo satildeo os filhos que podem
dizer Abbardquo (J Jeremias 2008 p293)
Jesus de Nazareacute o Filho de Deus o homem que dividiu a histoacuteria em antes e
depois dele mudou os rumos da humanidade para sempre Amado e odiado
apregoado e perseguido mas nunca esquecido Verificamos ao longo deste trabalho
as mais variadas teorias sobre ele ora como um mago um judeu marginal um
profeta um bastardo um judeu praticante ou apenas uma figura lendaacuteria
embelezada por seus seguidores Schuumlssler Fiorenza relata uma histoacuteria rabiacutenica
em que Moiseacutes visita o rabino Akiva Ao ouvir os infindaacuteveis discursos sobre a Toraacute
Moiseacutes teria perguntado ldquoquem escrevera aquelas coisas grandiosas que ele jamais
144
tomara conhecimentordquo Schuumlssler Fiorenza (2005 p1) relacionando a histoacuteria
rabiacutenica sobre a Toraacute com as milhares escritas sobre Jesus ela levanta a seguinte
questatildeo ldquoSe Jesus tal como Moiseacutes voltasse a terra lesse todas as suas biografias
e frequentasse o Jesus Seminar ou fosse agrave reuniatildeo anual da Society of Biblical
Literature tambeacutem se maravilharia e perguntaria tomado de assombro Quem eacute
essa pessoa de quem estatildeo falandordquo
A busca pelo Jesus da histoacuteria levou a tantos extremos mas com certeza
acrescentou inuacutemeros fatos ou ateacute mesmo suposiccedilotildees que enriqueceram o
conhecimento que temos hoje sobre Jesus e os Evangelhos Eacute inegaacutevel o fato de
que os Evangelhos natildeo satildeo histoacuteria no sentido moderno e que os disciacutepulos natildeo
tinham a mesma pretensatildeo ou necessidade de relatar os fatos em detalhes visto
que viveram em um mundo cultura e eacutepoca totalmente diferente da nossa cultura
ocidental Portanto quanto mais perto quisermos chegar do Jesus humano mais
perto devemos nos aproximar da cultura do seacuteculo I
Sobre o divisor de aacuteguas entre J Jeremias e Bultmann ou seja se devemos
buscar pelo Jesus da histoacuteria ou pelo Cristo querigmaacutetico nada melhor do que
concluir com as palavras do proacuteprio J Jeremias
A boa nova sobre Jesus e o testemunho da feacute da igreja primitiva estatildeo indissoluvelmente ligados Natildeo podemos isolar nenhuma dessas magnitudes Pois o evangelho de Jesus se converte em histoacuteria morta sem o testemunho de feacute da igreja (a qual estaacute transmitindo sem cessar esse evangelho e o estaacute confessando e testemunhando sempre novamente) Sem Jesus e seu evangelho a igreja natildeo pregava mais que uma ideia um teorema Quem isola a pregaccedilatildeo de Jesus termina no ebionismo Quem isola o querigma da igreja primitiva termina no docetismo (Jeremias 2006 p 42)
Portanto descrever sobre Jesus realmente natildeo eacute tarefa faacutecil como parece
ser Como afirmar que ele era analfabeto ou entatildeo um rabi letrado da Galileia As
evidecircncias internas como vimos levam-nos a pensar em um homem que escrevia
lia e interpretava as Escrituras Por outro lado como nos mostra Crossan as
evidecircncias externas levam-nos a pensar em um camponecircs sofredor e iletrado como
a maioria dos galileus ou entatildeo dos judeus subjugados ao terriacutevel e impiedoso
Impeacuterio romano principalmente a Galileia diretamente afetada pelo deacutespota
Herodes Antipas
145
O importante eacute que Jesus com ou sem instruccedilatildeo douto ou indouto
conseguiu com a graccedila do Pai dos Ceacuteus deixar aos homens de todas as eacutepocas o
exemplo de um servo sofredor de amor ao proacuteximo de renuacutencia e acima de tudo
de um homem que cumpriu com toda a vontade e propoacutesitos de Deus Pai para a
salvaccedilatildeo da humanidade O apoacutestolo Joatildeo o descreveu como o Verbo o Logos
preexistente que existe antes de todas as coisas uma vez que as mesmas foram
criadas por ele
146
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Dados da Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute
Sistema Integrado de Bibliotecas ndash SIBIPUCPR
Biblioteca Central
Faria Jonas Silva
F224j Jesus de Nazareacute sua relaccedilatildeo com Deus Pai em Joachim Jeremias e seus 2012 Desdobramentos Jonas Silva Faria orientador Vicente Artuso ndash 2012
151 f 30 cm
Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute
Curitiba 2012
Bibliografia f 146-151
1 Biacuteblia AT - Antiguidades 2 Biacuteblia NT - Histoacuteria de fatos
contemporacircneos 3 Jeremias Joachim 1900- 4 Teologia I Artuso Vicente
1952- II Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Teologia III Tiacutetulo
CDD 20 ed ndash 232908
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a Deus pela inspiraccedilatildeo e pela vida sem as quais natildeo seria possiacutevel concluir este trabalho
Agradeccedilo a minha esposa Josiane pela compreensatildeo e apoio nas inuacutemeras horas em que me dediquei agrave pesquisa abdicando dos momentos que poderiam ser aproveitados junto da famiacutelia e em especial agrave nossa filha Sofia Gabriela que nasceu durante o periacuteodo da minha pesquisa trazendo luz alegria e motivaccedilatildeo para que essa empreitada fosse concluiacuteda
Agradeccedilo aos meus pais pela educaccedilatildeo a mim proporcionada e em especial a minha tia Eli Kowalski por ter tornado possiacutevel meu sonho de cursar teologia em uma instituiccedilatildeo de ensino superior o qual ampliou meus horizontes para o labor teoloacutegico e por fim abriu o caminho para mais esta conquista
Meu agradecimento especial ao meu orientador Prof Dr Vicente Artuso por ter acreditado na possibilidade desta pesquisa e me fornecido o suporte necessaacuterio para a concretizaccedilatildeo deste trabalho
Agradeccedilo ao corpo docente e ao programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia da PUC-PR pela contribuiccedilatildeo valiosa em minha formaccedilatildeo teoloacutegica durante todo o processo
Agradeccedilo agrave secretaacuteria Maria pela paciecircncia e eficiecircncia nas informaccedilotildees fornecidas desde o primeiro contato com a instituiccedilatildeo
Agradeccedilo a Marta pela disponibilidade e empenho na correccedilatildeo ortograacutefica e gramatical desta dissertaccedilatildeo
Agradeccedilo aos dirigentes do Studium Theologicum de Curitiba por ter permitido a utilizaccedilatildeo da biblioteca na qual encontrei grande parte da bibliografia aqui utilizada e a Flaacutevia pela paciecircncia e disponibilidade no auxiacutelio agraves consultas bibliograacuteficas
RESUMO
O objetivo deste trabalho eacute levar-nos agrave compreensatildeo da relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo Joachim Jeremias Para isso realizamos o estudo do Jesus histoacuterico e seu contexto social poliacutetico e religioso bem como a visatildeo que os povos antigos incluindo o Israel do Antigo Testamento tinham de Deus Por fim visotildees contraacuterias agrave interpretaccedilatildeo de J Jeremias satildeo apresentadas As diversas teorias que os homens tecircm da paternidade divina chamam agrave nossa atenccedilatildeo para a incessante busca da humanidade para identificar-se com o Criador especificamente com a figura de um Deus Pai No entanto nesta pesquisa observamos que mesmo no judaiacutesmo onde natildeo encontramos a antiga imagem de uma deusa matildee observamos a figura de um Deus Pai com afetos e sentimentos maternos Para J Jeremias eacute com Jesus que o relacionamento do humano com o Pai divino atinge seu aacutepice atraveacutes da magna expressatildeo ldquoAbba Pai Segundo este autor Jesus de um balbucio das criancinhas teria tornado o Abba Pai uma expressatildeo sagrada entre os seus disciacutepulos a ponto de posteriormente ela ser absorvida pelas comunidades cristatildes primitivas como a forma de comunicaccedilatildeo do Espiacuterito para testificar no interior do disciacutepulo que este agora eacute tambeacutem filho de Deus A teoria de que o Abba natildeo era apenas um balbucio infantil ou muito menos um termo sagrado eacute contestada por correntes teoloacutegicas judaicas e feministas que veem os argumentos de J Jeremias como infundados ou repletos de exageros No entanto ao final da pesquisa procuramos mostrar que mesmo diante de tais contestaccedilotildees a paternidade divina proclamada por Jesus natildeo eacute natural ou seja uma posse de todos os seres humanos mas exclusividade dele e dos seus disciacutepulos uma vez que a filiaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica do reino de Deus e soacute os filhos do reino eacute quem podem usufruir de tal privileacutegio e dirigir-se a Deus invocando-o como o Abba Pai Jesus de Nazareacute nesta pesquisa eacute o exemplo a ser seguido no tocante agrave humildade e sofrimento numa sociedade profundamente marcada pelo preconceito e desigualdade social Compreendecirc-lo e segui-lo na sua humanidade eacute um grande passo para aproximar-se dele como o Cristo poacutes-pascal onde a revelaccedilatildeo do divino ao humano se concretiza com toda a plenitude Palavras-chave Jesus histoacuterico Paternidade divina
ABSTRACT
This work aims to understand the relationship between Jesus and God the Father according to Joachim Jeremias For this we studied the historical Jesus and his social political and religious context as well the ancient people view of God including the view of Israel from Old Testament Finally views that are opposed to Jeremias are presented The various theories that men have on the fatherhood of God call our attention to the relentless pursuit of humanity to identify with the Creator specifically with a figure of God the Father However in this study we observed that even in Judaism where it cannot find the ancient image of a mother goddess we see a picture of a God Father with affection and maternal feelings For J Jeremias it is in Jesus that the relationship of the human with the divine Father reaches its peak through the magna term Abba Father According to this author Jesus through a babble of little children would have made the Abba Father a sacred expression among his disciples and He subsequently extent it in order to being absorbed by the early Christian communities as a way of communicating of the Spirit to testify within the disciple that he is also the son of God The theory that Abba was not just a babbling child or much less a sacred term is challenged by current theological and Jewish feminists who see the arguments of J Jeremias as unfounded or exaggerated However at the end of the study we sought to show that even in the face of such challenges the fatherhood of God proclaimed by Jesus is not natural ie a possession of all human beings but it is exclusive to Him and his disciples once the sonship is a feature of the kingdom of God and only the children of the kingdom is the one who can enjoy such a privilege and turn to God calling him Abba Father Jesus of Nazareth on this research is the example to be followed regarding the humility and suffering in a society deeply marked by prejudice and social inequality To understand and follow Him in his humanity is a big step to be close to him as the post-Passover Christ where the revelation of the divine to the human is fully realized Key-words Historical Jesus Gods fatherhood
Sumaacuterio
1 INTRODUCcedilAtildeO 7 2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO 19 3 O JESUS HISTOacuteRICO 27 31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO 27 32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO 32 4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE SUA EacutePOCA 40 41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE CONTEMPORAcircNEA DE JESUS 41 42 JESUS O HUMILDE NAZARENO 46 43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES 50 44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS 59 45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS 61 451 OS ESSEcircNIOS 63 452 OS FARISEUS 66 453 OS SADUCEUS 72 454 OS ZELOTAS 74 5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS E SEUS
DESDOBRAMENTOS 79 51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA 79 52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA 85 53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS 91 54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS 100 55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR 102 56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA 110 6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS 122 61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO 122 62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA LEITURA A PARTIR DA
TEOLOGIA FEMINISTA 130 7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 137 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 146
7
1 INTRODUCcedilAtildeO
A ideia de Deus como pai da humanidade sempre esteve presente na mitologia dos
povos antigos Pai eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e na
Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Segundo Joachim Jeremias
(1977 p11-12) muitas tribos e famiacutelias acreditavam que eram procedentes de um
ancestral divino isto eacute de um ldquopairdquo divino Ephraim descreve-nos que a relaccedilatildeo de Deus
como Pai entre os povos antigos era bastante conhecida contudo ele evidencia que o
Abba de Jesus foi a mais iacutentima forma de invocar a Deus propagada entre os homens
atraveacutes dos ensinamentos de Jesus
A palavra Abba (Pai) posta na boca de Jesus eacute como se fosse a uacuteltima tentativa de Deus para ensinar os homens a pronunciarem seu nome Muitas vezes no passado Deus tentou fazer isto atraveacutes de seus servidores os profetas mas Israel natildeo compreendeu ldquoPairdquo eacute um tiacutetulo divino muito antigo encontrado em quase todas as religiotildees do Oriente meacutedio mas no caso ele eacute pai como a terra eacute matildee isto eacute exige na medida em que daacute Eacute o deus tutelar que deve ser adulado pois do contraacuterio ele natildeo outorga as suas graccedilas Eacute um deus que eacute pai do mesmo modo que Zeus era o pai de todos os deuses (Ephraim 1998 p171)
Observa-se que para os povos antigos Deus era um ancestral divino distante de
suas criaturas Aleacutem disso para Israel conforme a tese sustentada por J Jeremias vecirc-
se que no Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai principalmente quando
essa forma de invocar a Deus estaacute relacionada a um indiviacuteduo (Jeremias 2005 p19) Por
outro lado se no Antigo Testamento Deus natildeo eacute invocado como Pai de uma forma
individual como Senhor Ele eacute constantemente invocado a exemplo do salmista (Sl 338)
que menciona Deus como o Senhor que fala e as coisas acontecem conforme as suas
ordenanccedilas (Jeremias 2008 p 269)
Em contraste a essa relaccedilatildeo aparentemente tatildeo distante do Deus Pai com seus
filhos no periacuteodo veterotestamentaacuterio observa-se que a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute
profundamente marcante nos Evangelhos Haacute poreacutem diferentes interpretaccedilotildees com
relaccedilatildeo ao sentido da palavra Pai quando esta era proferida por Jesus J Jeremias
embora natildeo tenha sido o primeiro a tratar dessa questatildeo provavelmente foi o mais
influente quando ele sugere que Jesus ao dirigir-se a Deus invocando-o como o ἀββᾶ
(Abba) estava atribuindo um novo enfoque ao costume judaico de interpelaccedilatildeo a Deus
fazendo uso de uma linguagem cotidiana assim como as crianccedilas dirigiam-se a seus pais
expressando familiaridade e intimidade (cf Goshen-Gottstein 2001 p 493)
O objetivo deste trabalho eacute o estudo do Jesus histoacuterico (humano) com ecircnfase em
seu contexto social culminando no estudo histoacuterico-teoloacutegico da relaccedilatildeo de Jesus com o
8
Pai Este estudo tem como ponto de partida a teologia de Joachim Jeremias concernente
ao Abba proferido por Jesus no Evangelho de Marcos (1436) que diz ldquo[] Abba (Pai)
Tudo eacute possiacutevel para ti afasta de mim este caacutelice poreacutem natildeo o que eu quero mas o que
tu queresrdquo
Para entendermos a relaccedilatildeo de Jesus com o Deus Pai no Novo Testamento e como
ele transformou uma distante relaccedilatildeo entre o Pai ldquoque estaacute nos ceacuteusrdquo e seus filhos eacute
interessante vislumbrar o mundo poliacutetico religioso e cultural no qual ele esteve inserido
comeccedilando pela pequena Nazareacute um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que
vivia em casebres um povoado simples composto de camponeses entre duzentos a
quatrocentos habitantes (Crossan 2007 p 75) ateacute ao Getsecircmani onde Jesus proferiu a
magna expressatildeo Ἀββᾶ ὁ πατὴρ (Abba Pai) que para J Jeremias eacute a mensagem central
do Novo Testamento
No entanto a pesquisa do Jesus histoacuterico eacute complexa visto que os cristatildeos
primitivos preocuparam-se apenas em preservar ditos isolados a respeito de Jesus A
expectativa do retorno iminente do Mestre pode ter sido o motivo principal que levou o
cristianismo primitivo a preferir apenas fatos relacionados ao ministeacuterio de Jesus do que
relatar uma biografia completa do Jesus histoacuterico (Schweitzer 2003 p 11) Apesar de
toda a complexidade em se estudar o Jesus histoacuterico eacute possiacutevel investigar alguns
aspectos relativos a sua existecircncia a partir dos evangelhos e de muitos escritores que ao
longo dos seacuteculos tecircm se empenhado em coletar informaccedilotildees atraveacutes de achados
arqueoloacutegicos e de toda literatura que de uma forma direta ou indireta traz-nos
informaccedilotildees do mundo no qual Jesus estava inserido
Partindo das fontes primaacuterias J Jeremias observa que Jesus tinha uma relaccedilatildeo
iacutentima com Deus pois somente se referia a Ele chamando-o de meu Pai comportamento
este que natildeo era observado entre o povo judeu Assim para uma melhor compreensatildeo
dessa relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute interessante pesquisar como os povos antigos
viam a questatildeo da paternidade divina e desse modo confrontar os modelos antigos com
o modelo de paternidade difundido por Jesus e pelas primeiras comunidades cristatildes
Tendo em vista a complexidade e a diversidade do tema proposto e o profundo
interesse de J Jeremias e de outros pensadores que com ele concordaram ou divergiram
a respeito do assunto esta pesquisa torna-se um desafio empolgante tendo sempre em
vista o crescimento e o amadurecimento em questotildees importantes da teologia
A escolha deste tema eacute motivada pela relevacircncia da produccedilatildeo acadecircmica de J
Jeremias no contexto da Teologia do Novo Testamento mais especificamente sobre a
9
relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai Embora os argumentos de J Jeremias natildeo sejam
unanimidade no contexto dos estudiosos que tecircm escrito sobre tal tema eacute inegaacutevel o
grande impacto que as suas teses tecircm causado na comunidade cientiacutefica ligada ao
assunto que tem se debruccedilado para contestar ou entatildeo para sustentar que Deus natildeo eacute
como um soberano inacessiacutevel mas como um pai que se relaciona com seus filhos e isso
soacute foi enfatizado com propriedade a partir do Abba de Jesus
Essa visatildeo de J Jeremias entra em conflito com as teses de alguns estudiosos
contemporacircneos os quais discutem se realmente houve novidade na forma como Jesus
fez uso da palavra Pai (ipsissima vox) em suas oraccedilotildees ou se esta era um dito autecircntico
(ipsissima verba) Seria Abba realmente a ipsissima vox de Jesus e o centro de sua
mensagem e a afirmaccedilatildeo de sua messianidade conforme afirma J Jeremias ou apenas
uma expressatildeo lituacutergica comum nas comunidades cristatildes do periacuteodo poacutes-pascal da igreja
primitiva (DAngelo 1992b p151) Teria Jesus realmente legado aos seus disciacutepulos a
palavra Abba como um termo sagrado ou Abba tem apenas a conotaccedilatildeo poliacutetica anti-
imperialista (DAngelo 1992a p623)
A partir das questotildees levantadas acima este trabalho tem por objetivo investigar o
Jesus histoacuterico e seu contexto social a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo a
interpretaccedilatildeo dada por J Jeremias bem como alguns desdobramentos deste tema
segundo algumas correntes teoloacutegicas cristatildes e judaicas com as seguintes finalidades
Verificar a visatildeo que os povos antigos (ldquopagatildeosrdquo natildeo judeus) bem como o antigo
Israel tinham de Deus como Pai
Pesquisar a relaccedilatildeo do Jesus histoacuterico no seu contexto familiar e social
Analisar a tese de J Jeremias concernente ao sentido que a palavra Abba tinha
quando proferida por Jesus
Confrontar o pensamento de J Jeremias frente a algumas correntes teoloacutegicas
favoraacuteveis e contraacuterias aos seus argumentos
10
2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS
Neste capiacutetulo seraacute abordado o conceito de paternidade divina entre os povos
antigos com o enfoque sobre a ideia que tais povos tinham de Deus como um ancestral
divino do homem conforme exposto por Jeremias Face agraves inuacutemeras epopeias da
criaccedilatildeo abaixo mencionadas veremos que a criaccedilatildeo do homem a partir do relato do
Gecircnesis eacute bem mais otimista uma vez que o homem do Gecircnesis natildeo eacute um ancestral dos
deuses mas foi criado para ser a imagem do seu proacuteprio Criador
21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS
A ideia mitoloacutegica de um deus como pai da humanidade sempre esteve presente
entre os povos antigos como os sumeacuterios e babilocircnios Segundo J Jeremias tais povos
diziam que suas tribos e famiacutelias procediam de um ancestral divino como se observa por
exemplo no ceacutelebre hino sumeacuterio e acaacutedico de Ur Nesse hino o deus Lua Sin eacute
invocado como o ldquoPai misericordioso em suas disposiccedilotildees que reteacutem em sua matildeo a vida
de todo o paiacutesrdquo Aleacutem de tal hino encontramos na tradiccedilatildeo de tais povos a seguinte
citaccedilatildeo sobre Ea um deus sumeacuterio-babilocircnico ldquoSua coacutelera eacute como o diluacutevio Ele se
reconcilia como um pai misericordiosordquo (Jeremias 1977 p11-12) Complementando essa
ideia Santos Sabugal afirma que a ideia de paternidade divina entre os povos antigos era
largamente atestada na literatura de vaacuterios povos A Aacutefrica a Ameacuterica a China e a Iacutendia
bem como o Egito e tambeacutem os Greco-romanos invocaram a paternidade de Zeus e de
Juacutepiter sobre todos os deuses e homens (Sabugal 1985 p 367-368)
Contudo para J Jeremias as histoacuterias de invocaccedilotildees a Deus como Pai satildeo tatildeo
profundas que sempre se tem a sensaccedilatildeo de que novas e inesperadas galerias sempre
surgem A invocaccedilatildeo a Deus como Pai nos povos antigos desde as suas origens nem
sempre estava relacionada a Deus como um antepassado do rei ou do povo mas podia
ser invocado como um pai misericordioso conforme nos relata J Jeremias
Eacute assombroso verificarmos como jaacute no antigo oriente e com seguranccedila desde o segundo e ainda no terceiro milecircnio aC a divindade era invocada assim Nas oraccedilotildees sumeacuterias muito anteriores a Moiseacutes e os profetas encontramos a invocaccedilatildeo ldquopairdquo e desde laacute esta palavra designava a divindade natildeo apenas como antepassado do rei e do povo ou como o soberano pleno de poder mas tambeacutem como o ldquopai magnacircnimo e misericordioso em cuja matildeo estaacute a vida da naccedilatildeo inteirardquo (Hino de Ur a Sin divindade da lua) A palavra ldquopairdquo na invocaccedilatildeo a Deus implicava pois para os orientais desde os tempos mais antigos algo que pode ser considerado como para noacutes significa a palavra ldquomatildeerdquo (Jeremias 2006 p61)
11
Pai1 portanto para os povos antigos como os assiacuterios babilocircnios egiacutepcios
gregos e outros povos eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e
na Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Aleacutem disso o historiador
das religiotildees Mircea Eliade tambeacutem descreve que satildeo diversas as versotildees sumerianas
sobre a origem divina dos seres humanos e dentre elas consta o poema cosmogocircnico
conhecido como Enuma elish (ldquoQuando no altordquo) que relata as origens do mundo e do
homem buscando exaltar a Marduk um deus nacional da Babilocircnia o qual triunfa sobre
os deuses com ldquovalores demoniacuteacosrdquo dentre eles Tiamat e Kingu
Esse poema traz o mito de que Marduk decidiu criar o homem para que ele sirva
aos deuses Assim a partir do corte das veias de Kingu um deus vencido que foi
sacrificado a humanidade foi criada (Eliade 2010 p79) No entanto com a derrota dos
deuses inimigos de Marduk a criaccedilatildeo do homem inicia-se com um agravante na tradiccedilatildeo
sumeriana mesmo sendo Kingu um dos primeiros deuses ele se tornara o arquidemocircnio
chefe dos monstros e democircnios criados pelo deus Tiamat que tambeacutem foi derrotado por
Marduk Dessa forma sendo o homem constituiacutedo do sangue de Kingu torna-se ele parte
constitutiva de uma mateacuteria demoniacuteaca (Eliade 2010 p 80) Segundo essa vertente
mitoloacutegica sumeriana a uacutenica esperanccedila do homem eacute que ele tenha sido criado por um
grande deus Ea ldquoA partir desse prisma existe uma simetria entre a criaccedilatildeo do homem e
a origem do mundo Em ambos os casos a mateacuteria-prima eacute constituiacuteda pela substacircncia
de uma divindade primordial decaiacuteda demonizada e morta pelos jovens deuses
vitoriososrdquo (Eliade 2010 p 80) Conforme P Grelot ldquoo mito babilocircnico da criaccedilatildeordquo eacute
repleto de violecircncia e sangue (Grelot 1973 p 31)
[] Marduque ouvindo o apelo dos deuses resolveu criar uma obra prima ldquofarei canais de sangue formarei uma ossatura e suscitarei um ser cujo nome seraacute homem Sim vou criar um ser humano um homem Que sobre ele recaia o serviccedilo dos deuses para o bem estar delesrdquo
Ainda com relaccedilatildeo ao mito babilocircnico relata-se que na epopeia de Atra-Hasis (ldquoo
muito inteligenterdquo) cuja coacutepia mais antiga data aproximadamente de 1600 aC o deus Uecirc
1 A relaccedilatildeo de Deus como Pai nas religiotildees do oriente antigo e da Greacutecia e Roma antigas estaacute sempre de
uma forma ligada a ldquoideias miacutesticas de gerar e na descendecircncia fiacutesica e natural de todos os homens a partir de Deus Assim o deus El de Igariteacute eacute chamado o pai da humanidade e o deus da lua na Babilocircnia sin eacute pai e gerador dos homens e dos deusesrdquo No Egito o Faraoacute eacute considerado de modo especial o filho Deus no sentido fiacutesico O nome de pai expressa sobre tudo a absoluta autoridade de deus exigindo a obediecircncia havendo poreacutem ao mesmo tempo seu amor bondade e cuidado misericordiosos (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)
12
eacute morto Entatildeo a deusa matildee (Nintu) e Ea (deus das aacuteguas) fazem um apelo agraves sete
genitoras que ao som de encantamentos maacutegicos se potildeem a amassar a argila A epopeia
narra que a partir de catorze pedaccedilos de argila que satildeo separados metade agrave direita e
metade agrave esquerda pela deusa matildee que apoacutes serem pisados pelas deusas genitoras
estas ldquodatildeo agrave luz sete homens e sete mulheres que imediatamente satildeo dispostos aos
pares e a raccedila humana recebe as leis do seu laborrdquo (Grelot 1973 p 31)
[] Que seja morto um deus e que todos os deuses se purifiquem no seu sangue Que com a sua carne e o seu sangue Nintu (= a deusa matildee) misture argila de modo que deus e homem sejam misturados juntos na argila Que por esta carne de deus haja um espiacuterito Sim Responderam na assembleia os grandes Anunaqui que regem os destinos (Grelot 1973 p 19)
Nesse mito babilocircnico Ea ficou encarregado de consumar o trabalho imolando
Kingu que era o chefe dos deuses revoltosos para que o seu sangue estivesse nas veias
do homem de sorte que este tenha ldquoem suas veias o sangue de um deus decaiacutedordquo
Grelot observa que a partir desses mitos pode-se ver que o homem natildeo eacute apenas um
suacutedito e escravo dos deuses ldquomas tambeacutem eacute um joguete das potecircncias coacutesmicas que
fazem pesar sobre ele uma fatalidade inexoraacutevelrdquo (Grelot 1973 p 31)
[] Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido cortando suas veias Com o seu sangue Eia criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses para libertaacute-los Depois que Eia o saacutebio criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses obra superior a toda inteligecircncia que realizou Nudimude graccedilas aos artifiacutecios de Marduque Marduque rei dos deuses dividiu o conjunto dos Anunaacutequi em deuses de cima e deuses de baixo e encarregou Anu de velar pelas suas ordens nos ceacuteus e na terra ele estabeleceu seiscentos deuses (Vl 1-1031-34)
Pode-se ainda observar a ideia da existecircncia de um ancestral divino entre outros
povos antigos Segundo Campbell tal conceito pode ser visto na cultura da tribo Aranda
da Austraacutelia Central Nessa tribo o rito de transformaccedilatildeo de um menino em adulto
demonstra a forma primitiva com que esse povo se relaciona com a divindade desde a
antiguidade quando um jovem dessa tribo estaacute entre os dez e os doze anos ele e os
outros membros de sua faixa etaacuteria satildeo tomados pelos homens da aldeia e levantados
13
vaacuterias vezes no ar enquanto os homens realizam o ritual de transformaccedilatildeo as mulheres
por sua vez tambeacutem tomam parte do ritual danccedilando em volta agitando os braccedilos e
gritando Em cada menino satildeo entatildeo pintados no peito e nas costas desenhos simples
por um homem relacionado com o grupo social ao qual pertence a sua futura mulher e
enquanto os meninos satildeo pintados os homens cantam ldquoQue ele possa atingir a barriga
do ceacuteu que ele possa crescer ateacute a barriga do ceacuteu que ele possa ir diretamente para
dentro da barriga do ceacuteurdquo (Campbell 1992 p82)
Assim que o ritual eacute finalizado os meninos recebem a instruccedilatildeo que desde que o
ritual foi concluiacutedo cada um deles tem sobre si a insiacutegnia do ancestral mitoloacutegico
particular do qual ele eacute a contraparte viva A partir de entatildeo os meninos passam a ter
algumas responsabilidades e satildeo advertidos de que de agora em diante haacute algumas
restriccedilotildees entre eles e o sexo oposto Eles natildeo poderatildeo mais brincar ou acampar com as
mulheres e meninas mas somente com os homens Das atividades de caccedila de pequenos
animais e procura de raiacutezes eles natildeo tomaratildeo parte visto ser uma atividade realizada
pelas mulheres mas receberatildeo uma responsabilidade maior que eacute acompanhar os
homens na caccedila aos cangurusrdquo (Campbell 1992 p 82) Campbell observa que nessa
tribo eles acreditam que as crianccedilas nascidas de mulheres satildeo reapariccedilotildees de seres que
viveram na era mitoloacutegica no chamado ldquotempo dos sonhosrdquo ou altjeringa (Campbell
1992 p 82) Nesse mundo mitoloacutegico maacutegico dos sonhos o menino da tribo Aranda
passa entatildeo a compreender que ele proacuteprio eacute um ser mitoloacutegico eterno que se
encarnou e da mesma forma seus companheiros tambeacutem satildeo as manifestaccedilotildees das
formas eternas (Campbell 1992 p82)
A ancestralidade divina tambeacutem pode ser constatada entre os gregos como no mito
de Ascleacutepio um deus popular classificado por Homero e Piacutendaro como um heroacutei ou
divindade da cura Ascleacutepio segundo a mitologia grega era filho do deus Apolo com a
humana Corocircnis ele tambeacutem se casou com uma humana com quem teve filhos e filhas
(Koester 2005 vol1 p176)
A relaccedilatildeo entre deuses e humanos tambeacutem pode ser vista nos relatos mitoloacutegicos
dos chamados heroacuteis ou semideuses Segundo a mitologia os heroacuteis pertenciam agrave
espeacutecie dos humanos visto que conheceram a morte e o sofrimento contudo
diferenciavam-se destes pelo fato de que eles viveram numa eacutepoca denominada pelos
gregos como o antigo tempo onde os homens denominados de heroacuteis eram mais belos e
mais fortes do que os homens que conhecemos Esses ancestrais (noacutenymnoy) ou seja
os sem nome fazem parte do passado lendaacuterio da Greacutecia antiga Mesmo sendo homens
eles se aproximam muito dos deuses mais dos que os homens atuais Nessa eacutepoca
14
lendaacuteria segundo a mitologia grega os deuses ainda se misturavam com os mortais na
vida diaacuteria como comer juntos e ateacute em relaccedilotildees sexuais onde os imortais se uniam aos
mortais a fim de gerarem filhos belos Os heroacuteis faziam parte dessa relaccedilatildeo amorosa
entre deuses e humanos como diz Hesiacuteodo ldquoeles formam a raccedila divina dos heroacuteis que
satildeo denominados semideuses conhecidos como os hemitheoiacuterdquo (Vernant 2006 p 47) A
partir desse relato observamos que os humanos realmente acreditavam procederem de
uma raccedila mitologicamente humana e divina ou seja uma mistura das duas
Observamos que ateacute esse ponto temos entre os ancestrais divinos apenas figuras
masculinas A figura masculina de Deus como Pai da humanidade entre os povos antigos
eacute marcante poreacutem natildeo eacute unanimidade Gerald Messadieacute afirma que natildeo existe nenhuma
figura masculina da idade da pedra que evoque o conceito de um deus masculino
(Messadieacute 2001 p44) De fato esse autor observa que os deuses masculinos como Aacutetis
Tamuz Adoacutenis Patilde Silvano Fauno Narciso Jacinto satildeo comparados agrave vegetaccedilatildeo visto
que mesmo sendo deuses heroicos miacuteticos morrem com a chegada do inverno e
renascem com a chegada da primavera assim como ocorre com a vegetaccedilatildeo
No entanto diferentemente do que ocorre no aspecto masculino para o autor
supracitado o princiacutepio feminino da divindade eacute algo permanente Segundo Messadieacute o
culto da Terra-Matildee foi tatildeo fortemente enraizado nas culturas primitivas que seus vestiacutegios
perduraram ateacute tempos recentes (Messadieacute 2001 p44) Nesse sentido pode-se citar as
oraccedilotildees que se faziam agrave deusa-matildee (Zemyna equivalente agrave deusa grega Gaia) na
Lituacircnia entre os seacuteculos XVII e XVIII onde ela era vista como aquela que faz florescer
os bototildees O mais admiraacutevel eacute que em pleno seacuteculo XX em numerosos paiacuteses da
Europa como Escoacutecia Irlanda Lituacircnia Pruacutessia Oriental e Malta ainda era dedicado um
dia (15 de agosto) a Terra-Matildee Messadieacute enfatiza que o dia dedicado agrave deusa-matildee era
uma data tatildeo significativa a ponto de ser transformada no dia da festa catoacutelica da
Assunccedilatildeo data esta que mesmo tendo sentido diferente e ser de outra religiatildeo ainda
assim foi recuperada em benefiacutecio de uma mulher (Messadieacute 2001 p 45)
A deusa-matildee era vista como doadora de tudo quer fosse da vida ou da morte Entre
suas formas mais conhecidas estatildeo Istar Astarte Inana Ciacutebele Ceres e Afrodite A
importacircncia da deusa-matildee como protetora da vida era fundamental em uma sociedade
onde a esperanccedila de vida em geral natildeo ultrapassava quarenta e cinco anos Por isso a
fertilidade das mulheres era vista como essencial para a sobrevivecircncia das sociedades ldquoA
deusa-matildee foi o reflexo de um estado socioeconocircmico que ditava a economia e a religiatildeordquo
(Messadieacute 2001 p47)
15
O culto agrave deusa universal foi duradouro e seu decliacutenio foi tardio e nunca totalmente
consumado em nenhuma religiatildeo ateacute o aparecimento do judaiacutesmo (Messadieacute 2001 p
59) Na Europa a primeira vez que um deus masculino partilhou o poder oficialmente
com a deusa-matildee foi com a revoluccedilatildeo Celta dos oriundos da Iacutendia ramo indo-europeu
dos indo-arianos por volta do seacuteculo VIII aC Os Celtas apesar dessa aparecircncia politeiacutesta
natildeo o eram pode-se dizer que ldquoeram quase monoteiacutestasrdquo (Messadieacute 2001 p72) Seus
deuses mitoloacutegicos estatildeo mais para heroacuteis do que para divindades ldquoOs Celtas como
revelou Juacutelio Ceacutesar satildeo todos filhos de Dis pater O Pai muito simplesmenterdquo (Messadieacute
2001 p69) Continua Messadieacute ldquoos Celtas lanccedilaram no Ocidente as fundaccedilotildees do
Cristianismo antes mesmo deste ter nascido Quase o inventaramrdquo (Messadieacute 2001
p70)
Dentre as muitas teorias acerca da origem dos deuses e suas relaccedilotildees com os
humanos verificamos que segundo Joatildeo Evangelista Martins Terra a palavra Deus tem
sua origem no protoindo-europeu onde era designada como DEIWOS e de onde provecircm
os dois vocaacutebulos latinos para dizer deus (Deus e divus) palavras que derivam do latim
arcaico deivos (Martins Terra 2001 p274) A religiatildeo dos indo-europeus acreditava na
existecircncia de um Ser Supremo conhecido como o Deus celeste tambeacutem chamado de
DEIWOS palavra esta que deriva do radical DEI (iluminar) (Martins Terra 2001 p291)
De acordo com Martins Terra DEIWOS estaacute presente em inuacutemeras religiotildees antigas
Na religiatildeo messaacutepica (populaccedilatildeo indo-europeia proto-histoacuterica da peniacutensula salentina)
religiatildeo dos etruscos dos gregos dos traacutecios dos celtas dos antigos germanos dos
persas dos baacutelticos dos antigos eslavos e das religiotildees indianas (Martins Terra 2001 p
277-286)
O indo-europeu DEIWOS originariamente natildeo designava o ceacuteu fiacutesico (caelum)
visto que as liacutenguas indo-europeias natildeo tecircm um nome comum para designar o ceacuteu fiacutesico
(Martins Terra 2001 p 291) DEIWOS designava um ser pessoal que frequentemente eacute
contraposto ao HOMO um ser pessoal terreno (Martins Terra 2001 p 305)
Na cultura indo-europeia o conceito de pai era muito mais do que genealoacutegico
juriacutedico e socioloacutegico O conceito de pai sempre se referia ao chefe de famiacutelia como
aquele que exercia um poder monaacuterquico com funccedilotildees judiciais e penais sobre os seus
dependentes Para os indo-europeus o deus supremo dyeu-pater (pai) natildeo se refere a
deus pai ldquocomo progenitor mas ao sentido social do adulto que eacute chefe da casa no
sentido do latim pater famiacuteliasrdquo (Martins Terra 2001 p153) Contudo segundo Martins
Terra Porfiacuterio relaciona Zeus como pai dos deuses e coloca o homem como parente de
Deus Para Porfiacuterio uma das finalidades dessa relaccedilatildeo eacute que ldquoo homem respeitaraacute o
16
direito do proacuteximo que tambeacutem tem a Zeus como progenitor [proacutegonos]rdquo (Martins Terra
2001 p351)
Na religiatildeo dos indo-europeus DEIWOS eacute sempre o ser transcendente (celeste) No
entanto essa transcendecircncia estaacute sempre proacutexima do divino como o autor da vida o
Deus Pai Segundo Martins Terra o antigo nome divino em latim era DIESPITER uma
forma primitiva derivada de DEIWOS ou de Dieus ldquonas invocaccedilotildees mais primitivas de
Zeus jaacute encontramos o vocativo Zeu paacuteter Em latim a palavra pater associa-se
intimamente com a palavra Deus e formava ela um soacute nome DIESPITER Iovispater
vocativo Juppiter em uacutembrio Jupater em iliacuterico Deipaturosrdquo (Martins Terra 2001 p337)
Como suporte agrave teoria da invocaccedilatildeo de Zeus partes do hino de Cleantes esclarecem
esse conceito
[]32 ndash Ah Zeus benfeitor universal 33 ndash Salva os homens de sua ignoracircncia funesta 34 ndash Purifica oacute Pai suas almas desta ignoracircncia e concede-lhes atingir 35 ndash O pensamento que te guia para tudo governares com justiccedila Somente Zeus pode salvar o homem de seus pendores funestos E o homem pode com confianccedila invocar a Zeus porque ele eacute Pai e dele com efeito todos noacutes nascemos 1 ndash Oacute o mais glorioso dos imortais sob mil nomes onipotente para sempre 2 ndash Zeus senhor da natureza que com a lei governas todas as coisas 3 ndash Salve Porque eacute a Ti que todos noacutes mortais temos o direito de invocar 4 ndash Visto que de Ti todos noacutes nascemos (Martins Terra2001 p332-333)
Esse hino mostra que Zeus natildeo era invocado apenas como rei senhor governador
mas tambeacutem como um Deus pessoal num relacionamento familiar um Deus Pai2
Conforme Martins Terra invocar a ldquodivindade sob o nome de pai eacute um dos fenocircmenos
primordiais na histoacuteria das religiotildeesrdquo Martins Terra ainda observa que nas liacutenguas indo-
europeias essa forma de invocaccedilatildeo fica mais evidente ainda nas palavras Dyaus pitatilde
Zeugraves pater Deipaturos e Iuppiter (Martins Terra 2001 pg433) Segundo Martins Terra
ldquoem Homero a invocaccedilatildeo de Zeus no vocativo aparece quase sempre unida agrave palavra
pai Zeucirc paacuteterrdquo (Martins Terra 2001 p 435)
Diferentemente dos povos antigos a atividade criadora de Deus no livro do Gecircnesis
eacute sempre cosmoloacutegica onde a ordem e a beleza satildeo os temas centrais Do caos Deus
cria a ordem o universo que culmina com a criaccedilatildeo do homem como o aacutepice da obra da
criaccedilatildeo conforme vemos no Gecircnesis onde ldquoDeus viu que isso era bom (1 10 13 18 21
25)rdquo e ainda segundo o texto sagrado (131) temos a seguinte conclusatildeo ldquoIsso era
2 Segundo Vernant Zeus eacute Pai dos deuses e dos homens natildeo porque tenha gerado ou criado todos os
seres mas porque exerce autoridade absoluta sobre todos como um chefe de famiacutelia sobre seu clatilde (Cf Vernant 2006 p33)
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muito bomrdquo Segundo P Grelot ldquoa histoacuteria sagrada sacerdotal Gn 1-24ardquo - das origens do
mundo ao tempo em que Israel viveu no deserto - foi escrita no tempo em que o povo
estava no exiacutelio (entre 587 e 538 aC) Babilocircnia eacute o lugar onde se venera o deus Marduk
e de onde provecircm as narrativas mitoloacutegicas de como os deuses criaram o mundo Para
proteger seus irmatildeos dos mitos babilocircnicos o autor sagrado teria escrito a primeira
narraccedilatildeo da criaccedilatildeo Contudo a narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo difere teologicamente dos
mitos babilocircnicos e dos povos antigos conforme relata Grelot
[] O universo eacute de certa forma um templo gigantesco que Deus levanta para a sua gloacuteria Quando o templo estaacute pronto ele coloca nele o homem criado ldquoagrave sua imagem e semelhanccedilardquo (126) Fica assim proibido representar a divindade por meio de imagens porque estas lembrariam o culto prestado a criaturas divinizadas (Ex 20 3-6) essa proibiccedilatildeo natildeo tem paralelo em nenhum povo da antiguidade A uacutenica imagem permitida de Deus eacute o rosto humano Mas se Deus eacute representado agrave imagem de uma pessoa viva de um homem que fala para fazer as coisas existirem (ldquoDeus disserdquo) nem por isso o homem eacute divinizado ldquoimagem de Deusrdquo deve ele voltar-se para aquele cujos traccedilos reflete (Grelot 1973 p 43)
Da mesma forma para Heinrich Krauss e Max Kuumlchler comparar o relato biacuteblico da
criaccedilatildeo do homem com a mitologia sumeacuterio-babilocircnia ou egiacutepcia serve para demonstrar
diferenccedilas importantes entre eles Na mitologia pagatilde o acircmago de toda a criaccedilatildeo estaacute
mais voltada ao nascimento dos deuses (teogonias) Por sua vez a criaccedilatildeo do homem
estaacute ligada a esses relatos apenas por uma linha tecircnue Para Krauss e Kuumlchler somente
num periacuteodo bem posterior ao nascimento dos deuses eacute que o ser humano eacute criado
quase que por um acidente ou entatildeo para servir como trabalhador escravo dos deuses
Em alguns aspectos notamos que haacute semelhanccedilas entre a criaccedilatildeo do homem no relato
do Gecircnesis e as mitologias pagatildes quando observamos que no Gecircnesis a criaccedilatildeo do
homem tambeacutem se daacute por uacuteltimo Contudo conforme Krauss e Kuumlchler diferentemente
dos antigos mitos no Gecircnesis a criaccedilatildeo do homem se daacute por meio de um processo
premeditado Eacute possiacutevel por analogia observarmos que na narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo
tanto o cosmos quanto o homem satildeo criados num ambiente onde o respeito e a
admiraccedilatildeo pelo ser humano satildeo evidentes como podemos observar na poesia do Salmo
8 4-9 que diz
Quando vejo o ceacuteu obra dos teus dedos a lua e as estrelas que fixaste que eacute um mortal para dele te lembrares e um filho de Adatildeo para vires visitaacute-lo E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de gloacuteria e beleza Para que domine as obras de tuas matildeos sob seus peacutes tudo colocaste ovelhas e bois todos e as feras do campo tambeacutem a ave do ceacuteu e os peixes do mar
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quando percorre ele as ondas dos mares (Krauss e Kuumlchler 2007 p 48-49)
A relaccedilatildeo do homem com os deuses nas mitologias antigas eram caracterizadas
pelas forccedilas da natureza Os diversos deuses exerciam poderes sobre tais forccedilas que por
sua vez determinavam o destino do homem ldquoNa tempestade e na brisa na chuva e na
seca viam-se igualmente manifestaccedilotildees de poderes divinos tal como no amor e no
matrimocircnio na vida e na morte na violecircncia e na guerra no crescimento e na destruiccedilatildeordquo
(Krauss e Kuumlchler 2007 p 61) Todos os acontecimentos da vida dos homens eram
resultados da influecircncia de uma ou mais divindades conforme as suas funccedilotildees dentro do
panteatildeo Alguns deuses eram considerados de boa iacutendole poreacutem outros eram
considerados perversos e maus e por essa razatildeo deveriam ser lisonjeados atraveacutes de
rituais de sacrifiacutecios ou praacuteticas maacutegicas
Krauss e Kuumlchler apesar de descreverem os deuses mitoloacutegicos da antiguidade com
poderes sobrenaturais e sobre-humanos sobre o mundo ressaltam que tais deuses
mesmo o chamado deus criador da mitologia antiga eram limitados agrave esfera deste
mundo ou seja natildeo tinham poder absoluto nem garantido para sempre Por outro lado o
Deus dos relatos biacuteblicos da criaccedilatildeo eacute diferente Ele natildeo faz parte deste mundo mesmo
que aqui esteja presente e sempre atuando Tambeacutem natildeo estaacute sujeito agrave limitaccedilatildeo das
forccedilas da natureza e tem poder para conduzir soberanamente o destino dos seres
humanos O Deus criador do Gecircnesis natildeo sofre oposiccedilatildeo de divindade alguma a natildeo ser
em pequena escala dos seres humanos ldquoA diferenccedila entre o monoteiacutesmo judeu-cristatildeo
ou islacircmico de um lado e o politeiacutesmo de outro natildeo eacute uma questatildeo de nuacutemero (um
uacutenico Deus ou diversos deuses) mas da concepccedilatildeo do que eacute Deusrdquo (Krauss e Kuumlchler
2007 p61)
No tocante agraves narrativas e mitos antigos da criaccedilatildeo Vicente Artuso desenvolve um
trabalho no qual compara o relato da criaccedilatildeo no livro do Gecircnesis com a epopeia de Atra
Asis e os demais mitos antigos da criaccedilatildeo e conclui que o relato da criaccedilatildeo no Gecircnesis eacute
mais otimista em relaccedilatildeo aos mitos antigos Embora por um lado haja algumas
semelhanccedilas na forma da criaccedilatildeo do homem conforme jaacute foi visto acima por outro lado
elas estatildeo muito distantes Artuso observa que nessa epopeia o homem eacute feito a partir
do barro e do sangue de um deus decaiacutedo Na Biacuteblia o homem proveacutem do barro e do
sopro de Deus que eacute a fonte da vida Na epopeia o ser humano eacute criado para livrar os
deuses de seu castigo na Biacuteblia o homem eacute criado por Deus de uma forma totalmente
desinteressada Na epopeia o ser humano participa da divindade assim como na Biacuteblia
Contudo Artuso pontua que mesmo que em ambos os relatos da criaccedilatildeo o homem
participe da divindade na epopeia fica evidente que o homem participa da divindade de
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um deus decaiacutedo sendo que no relato da criaccedilatildeo da Biacuteblia o homem eacute criado agrave imagem
e semelhanccedila do Criador No Gecircnesis o homem eacute criado pelo Deus uacutenico que do caos
traz todas as coisas a existecircncia cria o homem e o faz participante de sua obra quando
ordena ao ser humano o crescimento a multiplicaccedilatildeo e que o mesmo exerccedila o domiacutenio
sobre todas as coisas criadas (Artuso 2009 p80-81)
22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO
No Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai3 J Jeremias relaciona
que isso ocorre apenas quinze vezes conforme podemos verificar nos seguintes textos
ldquoDt 326 2 Sam 714 (textos paralelos em 1 Cron 1713 22 10 286) Sl 68 6 8927 Is
6316 (duas vezes) 647 Jr 3419 31 9 Mal 1 6 2 10 (Jeremias 2005 p19) Mesmo
esses textos quando relacionados a Deus como Pai indicam que Deus eacute primeiramente
o Senhor como diz o Salmo 33 8 ldquoTema o Senhor todo o mundo e tremam diante dele
todos os habitantes da terra porque ele fala e acontece ele ordena e aiacute estaacuterdquo (Jeremias
2008 p269) Como Senhor Deus tambeacutem se compadece de seus filhos como um Pai
conforme o Salmo 10313 (Jeremias 1977 p13) Aleacutem de Senhor o Pai tambeacutem eacute
honrado como Criador ldquoNatildeo eacute ele porventura teu pai que te fez seu que te formou e te
consolidourdquo (Dt 326) ldquoPorventura natildeo eacute um o Pai de todos noacutes Natildeo eacute um soacute Deus que
nos criourdquo(Ml 2 10) Observa-se que o reduzido uso do conceito de Deus como Pai no
Antigo Testamento pode estar relacionado ao uso abusivo que os povos cananeus faziam
desse termo em seus cultos de fertilidade (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo
Testamento 1998 p 6)
A relaccedilatildeo de Deus como Pai no Antigo Testamento eacute diferente do conceito de
paternidade dos povos antigos As diferenccedilas satildeo fundamentais visto que Deus natildeo eacute um
ancestral da raccedila humana como podemos ver nas palavras de J Jeremias
O fato de que no Antigo Testamento Deus natildeo eacute o ancestral mas o criador natildeo eacute a menor E que o que eacute ainda mais importante no antigo Testamento a paternidade divina atribui-se soacute a Israel e de uma maneira que natildeo encontra nenhum equivalente Eles tecircm uma relaccedilatildeo toda particular com Deus isto eacute um povo escolhido dentre todos os povos para ser o filho primogecircnito de Deus (Jeremias 1977 p13)
3 ldquoO AT emprega a palavra pai () quase que exclusivamente (c De 180 vezes) num sentido secular e soacute
muito ocasionalmente (15 vezes) num sentido religioso Como acontece no AT assim tambeacutem na literatura do judaiacutesmo palestinense podemos notar reserva marcante no emprego da palavra num sentido religioso Soacute mais tarde na literatura do judaiacutesmo da diaacutespora eacute que achamos o emprego mais frequente do nome Pai com referecircncia a Deusrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
20
No contexto biacuteblico a histoacuteria de Israel eacute notoriamente descrita colocando Israel
sempre como o povo eleito e exclusivo de Deus e essa eleiccedilatildeo eacute histoacuterica e concreta A
paternidade divina4 pode ser considerada histoacuterica quando tambeacutem atestamos que o
ecircxodo do Egito a peregrinaccedilatildeo no deserto e a conquista da terra de Canaatilde satildeo tratados
como fatos histoacutericos fatos esses que tornam Israel como o filho primogecircnito conforme a
eleiccedilatildeo divina Alguns textos corroboram esse pensamento entre os quais podemos
destacar ldquoFilhos sois do SENHOR vosso Deusrdquo (Dt 141)
A paternidade divina no Antigo Testamento natildeo eacute privileacutegio do indiviacuteduo mas sempre
privileacutegio da coletividade e juridicamente da figura do rei Com efeito Deus eacute sempre visto
como o ldquoPai do Reirdquo (2 Sam 7 14 Sl 8927) e ldquoPai de Israel como naccedilatildeordquo (Jr 34 3 19
319 Ml 16 Is 6315 657) J Jeremias faz questatildeo de enfatizar a respeito da
paternidade divina que em todo o Antigo Testamento natildeo encontramos nenhuma
passagem na qual Deus seja interpelado como Pai por um indiviacuteduo mas isso eacute sempre
realizado pela coletividade (Jeremias 2008 p115) Quando observamos as expressotildees
ldquoTu eacutes nosso Pairdquo (Is 6316) e ldquoTu eacutes meu Pairdquo (Jr 34) verificamos que as mesmas se
tratam de ldquosentenccedilas afirmativas e natildeo da invocaccedilatildeo de Deus usando o nome de Pai
para elerdquo (Jeremias 2008 p115) Deus natildeo eacute Pai porque gera de forma fiacutesica mas
porque chamou os filhos de Israel para ser um povo constituiacutedo de homens livres eacute Pai
porque ama escolhe e guia seus filhos por um reto caminho segundo a lei Dessa forma
mesmo fazendo pouco uso do termo Pai Israel comeccedilou a realizar o que poderiacuteamos
chamar de a grande revoluccedilatildeo do siacutembolo paterno
Em relaccedilatildeo ao siacutembolo de Deus como Pai Robert Hamerton-Kelly seguindo a
mesma linha de pensamento de J Jeremias concorda que no Antigo Testamento a
designaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rara e as poucas vezes em que isso ocorre natildeo eacute no
sentido literal do termo Hamerton Kelly faz referecircncia a dois tipos de simbolismo que
aparecem na Biacuteblia concernentes agrave figura de Deus como Pai um simbolismo indireto e
outro direto O simbolismo indireto ocorre por meio de uma associaccedilatildeo enquanto que o
simbolismo direto eacute feito por intermeacutedio de uma metaacutefora ou alegoria No modo indireto
Deus eacute mostrado claramente em conexatildeo com os pais humanos Ele eacute o ldquoDeus dos paisrdquo
e a associaccedilatildeo aqui eacute por intermeacutedio da identificaccedilatildeo de Deus como chefe No modo
direto a Biacuteblia usa a alegoria ou a metaacutefora Deus eacute como um pai ou Deus eacute nosso Pai
(Hamerton-Kelly 1979 p20-21)
4 ldquoA descriccedilatildeo de Deus como Pai se refere no AT apenas as Seu relacionamento com o povo de Israel
(Dt326 Is6316 duas vezes 648 Jr319 Ml16 210) ou com o rei de Israel (2Sm 714 par 1 Cr 1713 2210 286 Sl 8926 cf 27) Nunca se refere a qualquer indiviacuteduo () ou a humanidade em geralrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
21
No Antigo Testamento o simbolismo indireto eacute usado na transiccedilatildeo do Pai dos
deuses para o Deus dos pais e do Deus dos pais para o Deus de Moiseacutes (Hamerton-
Kelly 1979 p21-28) Qualquer consideraccedilatildeo sobre o entendimento biacuteblico de Deus no
periacuteodo preacute-mosaico deve ser relacionado aos deuses adorados pela religiatildeo dos
cananeus ancestral da religiatildeo dos hebreus os quais eram denominados em Canaatilde pelo
nome ldquoEl5rdquo o chefe do panteatildeo e tambeacutem progenitor dos deuses na mitologia cananita
(Martins Terra 1987 p11) De acordo com a tradiccedilatildeo Yahweh era ldquoo Deus dos Paisrdquo e
Abraatildeo pode provavelmente ter sido considerado ldquopai dos deusesrdquo como uma descriccedilatildeo
de sua possiacutevel divindade Entre os outros povos existiam vaacuterios deuses que eram vistos
como figuras paternas como Anu (deus do ceacuteu) Enlil (deus do vento e da tempestade) e
Ea (deus da aacutegua) os quais tinham seu proacuteprio santuaacuterio e eram patronos de suas
respectivas cidades (Hamerton-Kelly 1979 p21-23)
Os compiladores das sagas patriarcais do Gecircnesis acreditavam que os pais
adoravam El como El Elyon El Olam El Roi El Shaddai e El Betel Esses nomes
compostos mostram que a adoraccedilatildeo era estabelecida em um lugar fiacutesico por intermeacutedio
de alguma outra divindade ou seja os lugares de adoraccedilatildeo eram relacionados a um
deus Embora natildeo possa ser encontrada a praacutetica monoteiacutesta entre os patriarcas pode-se
assumir que os deuses distintos estavam associados em algum estaacutegio da tradiccedilatildeo
sendo identificados como manifestaccedilotildees do grande deus El - o pai dos deuses Mesmo
que natildeo seja possiacutevel falar de um preacute-Mosaico ldquoEl-monoteiacutesmordquo 6 eacute possiacutevel falar de um
deus supremo que eacute a fonte e origem de todas as coisas o pai dos deuses e da
humanidade que eacute o ponto de contato com o monoteiacutesmo Javista (Hamerton-Kelly 1979
p24-25)
Outro ponto de contato entre a teologia Preacute-Mosaica e Mosaica pode ser
encontrado no fato que cada um dos grandes patriarcas tinha um deus associado com
eles mesmos o ldquoEl de Abraatildeordquo (Gn 31 42) o ldquoTemor de Isaquerdquo (Gn 31 53) o ldquoForte de
Jacoacuterdquo (Gn 49 24-25) os quais tinham como sinocircnimos o ldquoDeus (El) de meu pairdquo Por fim
5 A palavra El ocorre 238 vezes no Antigo Testamento Eacute uma palavra de origem protossemiacutetico ou
semiacutetico-comum para designar Deus em todas as liacutenguas semiacuteticas Ele eacute o Deus-patriarca criador anciatildeo cujas forccedilas extraordinaacuterias criaram e povoaram o ceacuteu El eacute ldquoum Deus pessoardquo de cada patriarca ele eacute ldquoo Deus dos paisrdquo familiar uacutenico e universal mas tambeacutem eacute o Deus tribal (Cf Martins Terra em Elohim o Deus dos Patriarcas p 19 37 39 51)
6 Surge um problema relacionado a este assunto eacute possiacutevel falar de monoteiacutesmo neste periacuteodo Alguns
pesquisadores acham difiacutecil o conceito de um monoteiacutesmo preacute-mosaico ou mesmo de uma ideia de adoraccedilatildeo exclusiva a Deus mesmo que o texto do livro do Ecircxodo 34 11-26 trate com detalhes este tema ainda assim este pensamento parece ser uma ideia muito complexa uma vez que muitos estudiosos observam que o referido texto pode ter sido redigido em uma eacutepoca tardia ou seja ldquouma espeacutecie de seleccedilatildeo ou resumo a partir de outros textosrdquo (Cruumlsemann 2002 p167-169) Segundo Cruumlsemann o Pentateuco deve ter surgido entre o exiacutelio e o inicio da eacutepoca helenista para ser mais objetivo no periacuteodo Persa (cf Cruumlsemann 2002 p454)
22
vecirc-se que o deus eacute identificado mais pelo seu relacionamento com uma pessoa do que
com um lugar ou um fenocircmeno natural isto eacute muda-se o simbolismo do divino de lugar
para pessoa deixando claro que a Revelaccedilatildeo de Deus estaacute no domiacutenio das relaccedilotildees e
accedilotildees humanas mais especificamente nas relaccedilotildees de familia (Hamerton-Kelly 1979
p25-27)
Aleacutem disso observamos que sob a influecircncia de Moiseacutes as tribos de Israel foram
unificadas em fidelidade ao Deus Yahweh A identidade de Yahweh estaacute fortemente
relacionada com ldquoos paisrdquo como se vecirc na revelaccedilatildeo de Deus a Moiseacutes no monte Horebe
[hellip] Moiseacutes Moiseacutes [hellip] Eu sou o Deus de teus pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute [hellip] Iahweh disse Eu vi Eu vi a miseacuteria do meu povo que estaacute no Egito Ouvi seu grito por causa dos seus opressores pois Eu conheccedilo as suas anguacutestias Por isso desci a fim de libertaacute-lo da matildeo dos egipcios e para fazecirc-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta terra que mana leite e mel [hellip] Disse Deus a Moiseacutes Eu sou aquele que eacute Disse mais Assim diraacutes aos israelitas EU SOU me enviou ateacute voacutes [hellip] Iahweh o Deus o Deus de vossos pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute me enviou ateacute voacutes Eacute o meu nome para sempre e eacute assim que me invocaratildeo de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (Ex 3 1-15)
Iahweh eacute o Deus de Israel isso fica evidente na foacutermula ldquoElohecirc Israelrdquo (Martins
Terra 1987 p 82) O ponto central de toda a teologia do Antigo Testamento eacute que o
Deus de Israel eacute o uacutenico e verdadeiro Quando os autores sagrados comparam Iahweh
com os deuses de outras naccedilotildees (Dt 4 34 Sl 11 3-5) eacute para fortalecer a convicccedilatildeo dos
israelitas de que haacute somente um Deus tanto ldquoem cima no ceacuteurdquo como ldquoembaixo na terrardquo
(Dt 439) Para Martins Terra o ldquoemprego de Elohim7 natildeo pode ser interpretado como
reliacutequia de um antigo politeiacutesmo Israelitardquo ou seja Elohim se converte em sinocircnimo de
Iahweh o Deus uacutenico e verdadeiro
O nome divino de Elohim que se radica na liacutenguagem religiosa de todos os povos semitas do Antigo Oriente Proacuteximo reconhecido e confessado por Israel como o Deus pessoal e uacutenico ajudou o Antigo testamento a entender e proclamar o Deus da histoacuteria da Salvaccedilatildeo como Deus do universo como lemos na primeira linha da Biacuteblia ldquoNo principio Elohim criou os ceacuteus e a terrardquo (Martins Terra 1987 p 85)
Fazendo uma transiccedilatildeo do simbolismo indireto para o simbolismo direto
mostraremos o pai (matildee) como uma alegoria ou metaacutefora para Deus Vale observar que a
figura da matildee faz parte desta anaacutelise uma vez que esse simbolismo natildeo a exclui apenas
7 A palavra Elohim pode ser um desenvolvimento do termo Eloah (Deus) como uma forma de
representaccedilatildeo da pluralidade de pessoas existentes na divindade (Trindade) ou ainda a terminaccedilatildeo plural pode ser descrita como um plural de majestade natildeo com a intencionalidade de ser usado na forma de plural para referir-se a Deus Isto pode ser averiguado quando Elohim eacute usado com o verbo no singular bem como os adjetivos e pronomes tambeacutem no singular (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento 1998 p68-72)
23
inclui sua presenccedila No simbolismo direto os pais satildeo muito mais do que meros sinais da
natureza e presenccedila de Deus O profeta Oseacuteias nos mostra um Deus que ao mesmo
tempo em que eacute Pai tem para com Israel seu filho afetos que satildeo proacuteprios da matildee A
ternura os cuidados e o afeto de Deus em Oseacuteias satildeo comparados agraves caracteriacutesticas
proacuteprias que uma matildee tem por seus filhinhos
Quando Israel era menino eu o amei e do Egito chamei meu filho (hellip) Fui eu contudo quem ensinou Efraim a caminhar eu os tomei pelos braccedilos mas natildeo reconheceram que eu cuidava deles Com viacutenculo de amor eu os atraiacutea com laccedilos de amor eu era para eles como os que levantavam uma criancinha contra o seu rosto eu me inclinava para ele e o alimentava (Os 11 1-4)
Nesse texto vemos a ideia de que Israel era filho de Deus e que essa filiaccedilatildeo eacute
usualmente associada ao periacuteodo do deserto e eacute entendida como uma experiecircncia da
paternidade de Iahweh Contudo observamos no texto que Iahweh inclinava-se para
alimentaacute-los expressatildeo essa que denota uma funccedilatildeo especificamente desempenhada
pela figura materna Aleacutem disso em uma passagem do livro de Nuacutemeros Moiseacutes de
uma forma impliacutecita afirma que Deus eacute como uma matildee para Israel
[] Moiseacutes sentiu-se grandemente desgostoso e disse a Iahweh ldquoPor que fazes mal a teu servo Por que natildeo achei graccedila a teus olhos visto que me impusestes o encargo de todo este povo Fui eu porventura que concebi todo este povo Fui eu que o dei agrave luz para que me digas Leva-o em teu regaccedilo como a ama leva a crianccedila no colo agrave terra que prometi sob juramento a seus pais (Num 1110b-
12)rdquo
Esse texto soacute pode referir-se a Deus visto que Moiseacutes natildeo era a matildee daquele
povo portanto teoricamente natildeo tinha a responsabilidade de ser o protetor e nem o
provedor deles em momentos de crise Na visatildeo de Moiseacutes Deus era o responsaacutevel pelos
cuidados essenciais do povo assim como uma matildee cuida de seus filhos Dessa forma a
figura materna tambeacutem pode ser usada como uma designaccedilatildeo para Deus (Hamerton-
Kelly 1979 p 39-40)
Haacute ainda outros exemplos em que a imagem de Deus pode ser comparada a de
uma mulher que cuida de seus filhos como lemos em Isaiacuteas 4915
Por um acaso uma mulher se esqueceraacute de uma criancinha de peito Natildeo se compadeceraacute ela do filho do seu ventre Ainda que as mulheres se esquecessem
24
eu natildeo me esqueceria de ti
Na simbologia em que Deus exerce as funccedilotildees de provedor protetor e mantenedor
de seu povo encontramos textos em que Ele exerce funccedilotildees ora como Pai e ora Matildee
Segundo Hamerton-Kelly no livro do profeta Isaiacuteas (66 10-13) encontramos uma
imagem de Deus como a de uma matildee bem como em Deuteronocircmio 131 e 85 em que
encontramos em ambos os textos a imagem de Deus que como um homem (pai) educa
os seus filhos pelo caminho correto Portanto numa visatildeo simboacutelica Deus eacute apresentado
ora como pai e ora como matildee do povo (Hamerton-Kelly 1979 p40)
Alegrai-vos com Jerusaleacutem exultai nela todos os que a amais regozijai-vos com ela todos os que por ela estaacuteveis de luto pois sereis amamentados e saciados
pelo seu seio consolador pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo Com efeito assim diz Iahweh Eis que trarei a Paz como um rio e a gloacuteria das naccedilotildees como uma torrente transbordante Sereis amamentados sereis carregados sobre ancas e acariciados sobre os joelhos Como a uma pessoa que a sua matildee consola Assim eu vos consolarei Sim em Jerusaleacutem sereis consolados (Is 66 10-13)
Como tambeacutem no deserto onde vistes que o SENHOR vosso Deus nele vos levou como um homem leva seu filho por todo o caminho que andastes ateacute chegardes a este lugar Deuteronocircmio 131 Sabes pois no teu coraccedilatildeo que como um homem castiga a seu filho assim te castiga o SENHOR teu Deus Deuteronocircmio 85
Mesmo diante de vaacuterios textos em que observamos Deus exercendo figuradamente
as funccedilotildees de pai e matildee natildeo temos um texto em que Deus seja diretamente chamado de
matildee e nem mesmo Jesus jamais invocou a Deus como matildee Segundo Matthias Grenzer
a razatildeo disso encontra-se no fato de Deus ser diversas vezes tratado como o esposo ou
o amado enquanto que Israel eacute descrito como a virgem noiva mulher amada ou ateacute
mesmo como prostituta (cf Jr 2-3 Ez16 Os 2 e Ct) Dentro desse imaginaacuterio a figura de
Deus eacute vista como a parte masculina enquanto que a naccedilatildeo de Israel ocupa a parte
feminina sendo assim essa seria a razatildeo de Deus ldquoser chamado somente de Pai e natildeo
de matildeerdquo (Grenzer 2009 p 182)
Ainda em relaccedilatildeo agrave paternidade de Deus no Antigo Testamento Sabugal observa
que a mesma eacute sempre vista nos seguintes aspectos Deus como o Pai do povo de Israel
(Is 6316) Pai do rei (2 Sam 7 14 Sl 8927) Pai dos justos israelitas (Sab 216) e
tambeacutem como Rei Messiacircnico (2Sm 7 12-16) (Sabugal 1985 p370)
25
Yahveh com efeito eacute o Pai de Israel por haver resgatado ltltdesde sempregtgt (Is 6316b) primeiro do Egito (Jer 34 cf Ez 23 319) e depois da Babilocircnia (cf Jer 319) tambeacutem por haver-lhes criado mediante a alianccedila (Dt 366 Mal 210 cf 317) conduzindo-o pelo deserto e corrigindo-o ltltcomo um pai a seus filhosgtgt (Dt 131 85) provando-o paternalmente (Sab 1110) e paternalmente amando-o (cf Mal 317) pois ele fez o seu povo que o confessa como Pai (Is 6319 647) e como tal deve honrar (Mal 16) Israel eacute consequentemente o filho de Deus seu primogecircnito (Ex 422 Jer 319) e ltlt filho tatildeo amadogtgt (Jer 3120) a quem desde o Ecircxodo elegeu por pai (Nuacutem 1112 Dt 32 518) e modelou (cf Is 647) por ter-lhes amado (Os 111) ltlt com um amor eternogtgt (Jer 313) tornando-se assim mesmo os israelitas a raiz da eleiccedilatildeo divina realizada na alianccedila do Sinai ltlt filhos de Yahvehgtgt (cf Dt 326 Mal 317) como membros de ltltum povo consagrado a seu Deusgtgt (Dt 14 1-2 Sal 7315) E certo que como ltltfilhos rebeldesgtgt (Is 30 19) esqueceram ltlto Deus que os criougtgt (Jer 321 Dt 3218) mas se como ltltfilhos apoacutestatasgtgt ouvirem a exortaccedilatildeo e converterem-se (Jer 3 1422) seratildeo novamente chamados ltlt filhos do deus vivogtgt (Os 21) que mostrando-se ltltindulgente para com eles como um pai com um filho que lhe servegtgt (Mal 317) uma vez mais os salvaraacute Israel segue sendo o ltltfilho amadogtgt e ltltmenino mimadogtgt de Yahveh (Jer 319) (Sabugal 1985 p 371)
Em suma podemos observar que o conceito que os israelitas tinham de Deus como
Pai defendido por J Jeremias fundamenta-se na tese de que a paternidade de Deus
sobre Israel eacute diferente da paternidade divina entre os demais povos antigos De fato o
Deus dos israelitas natildeo eacute um pai por geraccedilatildeo fiacutesica (Sabugal 1985 p371) e nem mesmo
o progenitor dos deuses e dos homens (Sabugal 1985 p368) como criam os demais
povos antigos Contudo observamos que a figura de Deus metaforicamente exerce
funccedilotildees que satildeo em suas origens de ofiacutecio materno e de ofiacutecio paterno
Realmente o Antigo Testamento eacute rico em metaacuteforas para Deus Christopher J H
Wrighth nota que entre as imagens humanas para Deus no Antigo Testamento
encontramos que ele eacute rei juiz e redentor Tambeacutem Yahweh eacute comparado a um pastor
soldado ou a um agricultor Yaweh pode ser chamado tambeacutem de rocha abrigo escudo
esconderijo leatildeo fogo ou uma fonte de aacutegua (Wright 2007 p 22)
Uma outra maneira de se observar a figura de Deus como Pai no Antigo Testamento
eacute atraveacutes dos nomes teofoacutericos Geza Vermes vecirc que a representaccedilatildeo de Deus como Pai
eacute um elemento baacutesico na Teologia do Antigo Testamento Vermes cita trecircs nomes como
exemplo os quais ldquoproclamam uma relaccedilatildeo de parentesco entre Deus e os membros
individuais do povo Judeurdquo 8 Tais nomes como Abiel (Deus eacute meu Pai) Eliab (meu Deus
eacute Pai) Abijah (Yah [Yahweh Jeovaacute eacute meu Pai] segundo Vermes atestam o conceito de
que Deus era invocado como Pai no judaiacutesmo veterotestamentaacuterio (Vermes 2006 p 259)
9 Sobre a imagem de Deus Pai na Biacuteblia Vermes concorda que ela natildeo eacute tatildeo
8 Acredito que com o termo parentesco Vermes natildeo estaacute se referindo a ancestralidade conforme
debatemos acima baseado no pensamento de J Jeremias 9 Matthias Grenzer tambeacutem coloca esses nomes citados por Vermes como uma forma de ver ldquoo
comportamento do Senhor Deusrdquo comparado a atitude de um Pai humano Grenzer ainda menciona o nome do sobrinho de Davi Joab cujo significado eacute ldquoJaveacute (Yahweh) eacute Pairdquo (Cf Grenzer 2009 p 180)
26
abundantemente atestada nas Escrituras contudo a familiaridade dessa imagem eacute
manifesta na ldquovariedade de nomes teofoacutericos que conteacutem o elemento ab (Pai)rdquo Sobre os
nomes teofoacutericos ele diz ainda que
Eles empregam tanto os tiacutetulos divinos do hebraico YH (W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai) ou YoAB (Yo eacute o Pai) Do mesmo modo temos Abbi eL e ELIab (Deus eacute o Pai) em nomes judaicos da era preacute-exiacutelica e do Segundo Templo Abram e Abiram (Pai excelso e Meu Pai eacute exaltado) que podem ser rastreados agrave idade patriarcal representam o mesmo tipo Enquanto as nuances exatas do termo ldquoPairdquo permanecem vagas natildeo pode haver duacutevida de que mesmo em niacutevel individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de famiacutelia Essa antiga atitude subjacente eacute explicitamente expressa principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da naccedilatildeo judaica Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusatildeo a eles como seus filhos (Vermes 1995 p158-159)
Para Christopher Wright a ocorrecircncia desses nomes metafoacutericos no Antigo
Testamento demonstra como a ideia de Deus como Pai era bem aceita nesse periacuteodo
Para esse autor pais que davam nomes aos filhos como Joabe (Yahweh eacute meu pai) ou
Abiel (Deus eacute meu Pai) tinham algum conhecimento metafoacuterico de Deus como Pai
Portanto para Israel o conhecimento de Deus como Pai pode ser mais bem
compreendido sob o ponto de vista que para eles Deus eacute comparado com um pai
humano que disciplina mas ensina seus filhos Como Pai ele tambeacutem se compadece
carrega adota os sem-teto e os oacuterfatildeos enfim ele eacute o Pai em que podemos encontrar
perfeita seguranccedila (Wright 2007 p24-25 38-39)
27
3 O JESUS HISTOacuteRICO
Depois de investigarmos a relaccedilatildeo de Deus como ldquoPairdquo entre os povos antigos
aproximamo-nos do ponto central da pesquisa Jesus de Nazareacute o qual segundo J
Jeremias trouxe-nos uma nova forma ou seja deu um novo enfoque sobre o termo Pai
quando dirigido a Deus Para um melhor embasamento sobre a relaccedilatildeo de Jesus com
Deus Pai buscaremos entender o homem chamado Jesus dentro das pesquisas
modernas sobre ldquoa vida de Jesusrdquo bem como das fontes evangeacutelicas disponiacuteveis no Novo
Testamento Procurar conhecer Jesus partindo do meio social em que ele esteve inserido
com certeza torna a pesquisa sobre o Cristo mais profunda e interessante uma vez que
Jesus antes de ser conhecido e pregado como Cristo foi um cidadatildeo judeu que viveu na
Galileia para ser mais preciso na pequena e humilde Nazareacute
31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO
Jesus de Nazareacute constitui personagem histoacuterico da maior importacircncia a comeccedilar pelo proacuteprio calendaacuterio hoje universal baseado na era cristatilde Uma parte consideraacutevel da humanidade professa a feacute cristatilde e outra parte considera Jesus como um profeta Para aleacutem do Cristianismo e do Islamismo Jesus constitui para outros crentes ou para agnoacutesticos e ateus uma referecircncia fundamental pela diferenccedila contraste ou oposiccedilatildeo No entanto o Jesus da histoacuteria aquele homem galileu que viveu haacute dois mil anos ainda constitui um grande desconhecido O Cristo da feacute dominou por muitos seacuteculos as reflexotildees sobre este homem de singular significaccedilatildeo As paixotildees das discussotildees teoloacutegicas foram muitas mas o homem Jesus foi tocado pelos estudiosos apenas nos uacuteltimos dois seacuteculos
(Funari 2009 p 7 in Chevitarese A L Cornelli G)
A busca pelo Jesus da histoacuteria tem mais de 200 anos No final do seacuteculo XVIII um
pequeno nuacutemero de bravos europeus comeccedilou a aplicar criacutetica literaacuteria a livros histoacutericos
do Novo Testamento Segundo E P Sanders a pesquisa sobre Jesus escrita durante
esse periacuteodo de 200 anos por estudiosos seacuterios e determinados trouxe resultados
bastante diversificados sobre o assunto o que levou muitos a pensar que na realidade
natildeo sabemos nada sobre o Jesus da histoacuteria No entanto essa eacute uma reaccedilatildeo exagerada
uma vez que sabemos muitas coisas O problema consiste em saber conciliar os nossos
conhecimentos com as nossas esperanccedilas e aspiraccedilotildees a respeito da vida e ministeacuterio de
Jesus (Sanders 2005 p21)
A pesquisa sobre a vida de Jesus pode ser dividida em cinco fases conforme as
descrevem Gerd Theissen e Annette Merz A primeira fase tem como principais
representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-
28
1874) 10 Reimarus um professor de liacutenguas orientais de Hamburg teve seus escritos
principais publicados somente apoacutes a sua morte por G E Lessing o qual a partir de
1774 comeccedilou a publicar as partes mais importantes do ensaio sobre ldquoApologia ou
Escritos de Defesa para os adoradores Racionais de Deusrdquo Em 1778 ele tinha publicado
sete fragmentos da obra quando iniciou o tratamento da vida de Jesus em perspectiva
puramente histoacuterica (Theissen amp Merz 2004 p21) Conforme Albert Schweitzer estes
satildeo os tiacutetulos dos fragmentos de Reimarus publicados por Lessing (Schweitzer 2003 p
23)
1 A Toleracircncia dos Deiacutestas
2 A Desmoralizaccedilatildeo da Razatildeo no Puacutelpito
3 A Impossibilidade de uma Revelaccedilatildeo em que todos os homens teriam bons motivos
para acreditar
4 A Passagem dos Israelitas pelo Mar Vermelho
5 Demonstrando que os Livros do Antigo Testamento natildeo foram escritos para revelar
uma religiatildeo
6 Acerca da Histoacuteria da Ressurreiccedilatildeo
7 Os objetivos de Jesus e seus Disciacutepulos
Reimarus de acordo com Theissen defendeu a ideia de que Jesus natildeo fundou
uma nova religiatildeo e tambeacutem nunca teve a intenccedilatildeo de desfazer-se do judaiacutesmo visto que
ele sempre esteve inserido na religiatildeo Judaica A pregaccedilatildeo de Jesus era sempre baseada
na apocaliacuteptica judaica O reino prometido por Jesus segundo Reimarus era um reino
terreno nos mesmos moldes e expectativas do pensamento judaico de sua eacutepoca
Portanto para Reimarus ldquoJesus eacute uma figura judaica profeacutetico-apocaliacutepticardquo ou seja
apenas um judeu enquanto que o cristianismo nada mais era do que uma invenccedilatildeo dos
apoacutestolos (Theissen e Merz 2004 p21) Martins Terra fazendo uma anaacutelise do
pensamento de Reimarus sobre a pessoa de Jesus conclui que para o referido teoacutelogo
ldquoJesus natildeo passou de um poliacutetico ambicioso e seus disciacutepulos foram verdadeiros
falsaacuteriosrdquo Na analogia de Reimarus Jesus e sua pretensatildeo poliacutetica terminaram com o
fracasso e a morte na cruz Sobre a ressurreiccedilatildeo de Jesus ele teria dito que foram os
disciacutepulos roubaram o cadaacutever inventaram a mensagem de sua ressurreiccedilatildeo e da vinda
futura Para concluir o pensamento de Reimarus sobre a imagem que temos de Jesus a
10
Essa fase eacute tambeacutem conhecida como a ldquoold questrdquo Essa fase natildeo eacute movida pelo cientificismo mas tem como caracteriacutesticas a rejeiccedilatildeo aos dogmas da Igreja a diferenciaccedilatildeo entre os sinoacuteticos e Joatildeo como fontes histoacutericas a colocaccedilatildeo de Jesus dentro do contexto escatoloacutegico de seu tempo e a ecircnfase sobre o Evangelho de Marcos como sendo o mais antigo dos Evangelhos (Schiavo 2006 p 15-17)
29
partir dos Evangelhos ele afirma que isso foi apenas criaccedilatildeo e ldquofrauderdquo dos disciacutepulos (cf
Martins Terra 1977 p10-12)
Strauss que foi filoacutesofo e teoacutelogo publicou em 18351836 a obra intitulada Vida de
Jesus Para Schweitzer ele natildeo estaacute entre os grandes teoacutelogos mas foi o mais sincero
(Schweitzer 2003 p85) Strauss aplicou aos Evangelhos o conceito de mito algo que jaacute
era comum nas pesquisas sobre o Antigo Testamento de sua eacutepoca (Theissen e Merz
2004 p22) Para ele mesmo que os Evangelhos (sinoacuteticos) tenham sido escritos num
periacuteodo de aproximadamente 40 anos apoacutes a morte de Jesus isso natildeo impede de que
estejam misturados com o mito Ele deixa sua forma de pensar mais evidente quando diz
que ldquonatildeo eacute preciso que um grande homem esteja morto haacute muito tempo para que a lenda
jaacute se ocupe da sua vidardquo (Schweitzer 2003 p 98) Contudo precisamos entender qual eacute
o verdadeiro sentido do mito religioso conforme nos descreve Schweitzer
[] a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha compreendido o caraacuteter essencial do mito religioso Ele nada mais eacute do que ideias religiosas vestidas em uma forma histoacuterica modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda e corporificado numa personalidade histoacuterica Ateacute por motivos a priori somos quase compelidos a assumir que o Jesus histoacuterico nos encontraraacute com as vestes das ideias messiacircnicas do Antigo Testamento e expectativas do cristianismo primitivo (Schweitzer p98)
Segundo Schweitzer a diferenccedila entre Strauss e os seus predecessores eacute que
para aqueles se aplicassem rigorosamente o conceito de mito agrave vida histoacuterica de Jesus
havia um grande questionamento sobre se restaria alguma coisa do Jesus histoacuterico
enquanto que para este essa questatildeo natildeo apresentava nada que fosse considerado um
terror (Schweitzer 2003 p98) Theissen assim resume Strauss ldquoPara Strauss
hegeliano declarado o cerne da feacute cristatilde natildeo eacute atingido pela abordagem miacutetica pois no
indiviacuteduo histoacuterico Jesus realiza a ideia da humanidade de Deus a mais sublime de todas
as ideias O mito eacute a roupagem legiacutetima de tipo histoacuterico dessa humanidade geralrdquo
(Theissen 2004 p22)
De uma forma sucinta Theissen descreve as demais fases da seguinte forma a
segunda eacute denominada como a fase do ldquootimismo da pesquisa liberal sobre a vida de
Jesusrdquo Essa fase eacute marcada por um florescimento do liberalismo teoloacutegico sobre a vida
de Jesus sob o ponto de vista de pesquisadores na Alemanha onde era esperado que se
chegasse agrave reconstruccedilatildeo histoacuterico-criacutetica da histoacuteria de Jesus e de sua personalidade
Essa escola teve como seu principal representante Heinrich Julius Holtzmann (1832-
1910) Destaca-se nessa fase que enquanto F Chr Baur demonstrou a primazia dos
sinoacuteticos sobre o Evangelho de Joatildeo Holtzmann contribuiu para que a teoria das duas
30
fontes desenvolvida por Christian Gottob Wilke e Christian Hermann Weise tornasse-se
um sucesso duradouro (Theissen e Merz 2004 p23)
A terceira fase eacute definida como ldquoo colapso da pesquisa sobre a vida de Jesusrdquo 11
Trecircs foram os motivos para tal colapso o primeiro fator foi a obra de Schweitzer Histoacuteria
de Investigaccedilatildeo da vida de Jesus que provocou o desvelamento das imagens das Vidas
de Jesus criadas pela teologia liberal que conforme os olhos de cada autor revelava-se a
estrutura de personalidade de Jesus com o ideal eacutetico que cada autor almejava O
segundo motivo estaacute concentrado na pessoa de W Wrede que em 1901 demonstrou ldquoo
caraacuteter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesusrdquo Para
Wrede o Evangelho de Marcos era a expressatildeo dogmaacutetica da comunidade cristatilde
primitiva que projetou sobre Jesus de Nazareacute a messianidade do Jesus poacutes-pascal E
por fim K L Schmidt demonstra o ldquocaraacuteter fragmentaacuterio dos evangelhosrdquo Para Schmidt
o Evangelho de Marcos eacute composto por periacutecopes que foram juntadas cronoloacutegica e
geograficamente somente mais tarde pelo autor Sendo assim desaparece totalmente a
possibilidade de se construir uma personalidade de Jesus visto que a histoacuteria das formas
reconhece que as periacutecopes foram juntadas primeiramente para satisfazer as
necessidades das comunidades e soacute em segundo plano como recordaccedilotildees histoacutericas
(Theissen e Merz 2004 p24)
Diante desses movimentos ceticistas surge uma teologia que ora amortece ora
aguccedila ainda mais os debates em torno das pesquisas sobre as Vidas de Jesus Nesse
sentido Rudolf Bultmann (1884 -1976) expotildee a sua teologia dialeacutetica contrapondo Deus e
o mundo de uma forma tatildeo radical a tal ponto que seria possiacutevel um encontro entre
ambas as partes apenas em um ponto assim ldquocomo uma tangente toca um ciacuterculordquo
(Theissen e Merz 2004 p24) Para Bultmann o fator decisivo natildeo era o que Jesus disse
ou fez mas sim o que Deus disse ou fez na cruz e na ressurreiccedilatildeo Nesse sentido
Bultmann afirma que o ensino de Jesus natildeo eacute relevante para a feacute cristatilde e partindo desse
pensamento Theissen define a teologia de Bultmann nas seguintes palavras ldquoSe D F
Strauss viu a verdade do mito de Cristo na ldquoideiardquo R Bultmann a viu no querigma um
chamado de Deus vindo de forardquo (Theissen e Merz 2004 p24-25)
11
Schiavo define essa fase como a ldquono questrdquo Os principais nomes dessa fase satildeo Wrede Dibelius Schmidt e Bultmann Neste movimento os Evangelhos satildeo considerados como um conjunto de tradiccedilotildees desarticuladas e pequenas (periacutecopes) sem interesses histoacutericos A finalidade principal dos Evangelhos estaacute centrada no fato de transmitir mensagens espirituais catequeacuteticas e lituacutergicas para os cristatildeos da Igreja Primitiva Sendo assim eacute impossiacutevel conhecer o Jesus histoacuterico pois a imagem que temos dele nos Evangelhos eacute querigmaacutetica e centrada no Jesus da feacute (Schiavo 2006 p 17-18)
31
A quarta fase eacute definida por Theissen como ldquoa nova pergunta pelo Jesus histoacutericordquo
12 Essa fase desenvolvida pelos disciacutepulos de Bultmann pergunta ou busca uma relaccedilatildeo
a partir do Jesus querigmaacutetico questionando se ldquosua exaltaccedilatildeo na cruz e na ressurreiccedilatildeo
tem alguma base na pregaccedilatildeo preacute-pascalrdquo Os pressupostos para tal questionamento satildeo
fundamentados nas seguintes pressuposiccedilotildees ldquoO querigma cristoloacutegico compromete-se
com a pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Isso se fundamenta segundo essa escola no fato
de que ldquoa identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado eacute pressuposta em todos os
escritos do cristianismo primitivordquo (Theissen e Merz 2004 p25ndash26) O segundo
pressuposto eacute ldquoa base metodoloacutegica da pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Segundo
Theissen esse pressuposto metodoloacutegico eacute ldquoa confianccedila de que se pode encontrar um
miacutenimo criticamente assegurado de tradiccedilatildeo autecircntica de Jesus quando se exclui o que
pode ser derivado tanto do judaiacutesmo como do cristianismo primitivordquo Entende-se que
nessa quarta fase para os disciacutepulos de Bultmann a busca de um fundamento preacute-pascal
que apoie o querigma de Cristo independe do fato de Jesus ter usado algum tiacutetulo
cristoloacutegico visto que isso jaacute estaacute impliacutecito em seu ministeacuterio e em seu anuacutencio (Theissen
e Merz 2004 p26)
Finalmente surge a quinta fase conforme Theissen denominada de ldquoa third
quest13 pelo Jesus Histoacutericordquo Essa fase predominantemente exposta no mundo de fala
inglesa diferencia-se das anteriores pelos seguintes aspectos o interesse histoacuterico-social
substitui o teoloacutegico a inserccedilatildeo de Jesus no Judaiacutesmo ao inveacutes de separaacute-lo como os
disciacutepulos de Bultmann procura fazecirc-lo e por fim haacute uma abertura para as fontes natildeo
canocircnicas substituindo a preferecircncia apenas por fontes canocircnicas A third quest dividiu a
pesquisa sobre Jesus em diferentes correntes No entanto segundo Theissen essa
variedade de interpretaccedilotildees e figuras de Jesus que pode ser visto tanto como um ciacutenico
judeu ou como um personagem colocado no centro do judaiacutesmo a espera do
restabelecimento de um reino escatoloacutegico daacute a essas correntes um tom de
plausibilidade ou seja ldquoo que eacute plausiacutevel no contexto judaico e torna compreensiacutevel o
12
Conhecida como a ldquoNew questrdquo a New quest caracteriza-se por diferenciar o que eacute proacuteprio do judaiacutesmo com o que eacute tambeacutem proacuteprio do cristianismo primitivo Dessa forma seria possiacutevel chegar ao Jesus da histoacuteria Ernst Kaumlsemann eacute um dos representantes dessa escola Para Schiavo J Jeremias tambeacutem pode ser representado nessa escola Visto que o mesmo com a ajuda da filologia e conhecimentos profundos do aramaico tentou reconstruir os ditos autecircnticos de Jesus (Schiavo 2006 p 18)
13 Schiavo complementa que essa fase que teve iniacutecio a partir da deacutecada de 1980 deixa de ser
exclusividade da academia alematilde e a pesquisa do Jesus histoacuterico passa a fazer parte da academia anglo-americana Este movimento tem como caracteriacutesticas principais os seguintes toacutepicos O interesse histoacuterico-socioloacutegico para com o mundo judaico do seacuteculo I dC a inserccedilatildeo de Jesus dentro do Judaiacutesmo A referecircncia agraves fontes natildeo canocircnicas e a aproximaccedilatildeo da fonte Q com o Evangelho de Tomeacute Dentre os representantes dessa escola encontram-se Crossan Sanders Meyer Vermes Freyne Horsley e Theissen (Schiavo 2006 p 18-19)
32
surgimento do cristianismo primitivo poderia ser histoacutericordquo (Theissen e Merz 2004 p28ndash
29)
32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO
Um dos temas da teologia que tem levantado inuacutemeras questotildees a mais de dois
seacuteculos eacute a busca histoacuterica por Jesus de Nazareacute um humilde judeu que viveu na Galileia
agraves margens do Mediterracircneo Sean Freyne avalia que ldquoas muitas idas e vindas dos
estudos que marcam a busca pelo Jesus histoacuterico tecircm sido uma preocupaccedilatildeo constante
da teologia ocidental por mais de dois seacuteculos e mesmo assim nenhum consenso foi
atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundourdquo (Freyne 2008
p1) Sobre a possibilidade de se buscar pelo Jesus histoacuterico Freyne observa que hoje
natildeo eacute mais suficiente apenas assumir uma posiccedilatildeo numa questatildeo por demais debatida Eacute
necessaacuterio que o pesquisador aleacutem de ter conhecimentos da histoacuteria da antiguidade
tambeacutem possua conhecimentos de arqueologia ciecircncias sociais e particularmente de
antropologia cultural (Freyne 2008 p2) Isso demonstra que haacute necessidade de uma
visatildeo interdisciplinar entre essas ciecircncias e seus pesquisadores
A pergunta sobre o Jesus histoacuterico segundo J Jeremias chega a ser absurda e
sem significaccedilatildeo para a feacute cristatilde apenas para aqueles que natildeo conhecem a questatildeo Ele
ainda pergunta ldquoComo eacute possiacutevel que esta questatildeo seja a questatildeo central de todas as
discussotildees sobre o Novo Testamentordquo (Jeremias 2005 p199) Segundo J Jeremias eacute
hora de questionarmos as teorias de Rudolf Bultmann que propagam que o Jesus
histoacuterico eacute irrelevante para a feacute cristatilde e a teoria que apregoa que o Jesus histoacuterico e o
Cristo proclamado pela Igreja natildeo satildeo as mesmas de Reimarus (Jeremias 2005 p 200)
Partindo das questotildees levantadas por J Jeremias e da forma como Bultmann diverge
desse pensador um diaacutelogo sobre a questatildeo eacute sempre gratificante para darmos pelo
menos um passo agrave frente no que se refere ao Jesus histoacuterico
Tendo em vista a amplitude da questatildeo acima levantada fica evidente que
trabalhar temas relacionados agrave vida do Jesus histoacuterico eacute sempre desafiador Muitos foram
os teoacutelogos e pensadores que a partir do ano de 1778 ano em que nasce o ldquoproblema do
Jesus histoacutericordquo (Jeremias 2005 p 200) esforccedilaram-se nessa tarefa com um espiacuterito
criacutetico e investigativo a fim de encontrar evidecircncias histoacutericas a respeito do homem mais
marcante de toda a histoacuteria da humanidade Tambeacutem natildeo significa que antes de Reimarus
33
o Jesus histoacuterico fosse negligenciado a questatildeo eacute que os teoacutelogos e historiadores desde
a igreja primitiva haviam sustentado que os Evangelhos eram documentos dignos de
absoluto creacutedito acerca da vida e histoacuteria de Jesus por isso tiveram a preocupaccedilatildeo de
apenas parafrasear e harmonizar os Evangelhos uma vez que natildeo viam necessidade de
uma investigaccedilatildeo aleacutem das fontes canocircnicas (Jeremias 2005 p 200) As palavras de Udo
Schnelle assim resumem a teologia do Jesus histoacuterico
A pergunta histoacuterica por Jesus eacute uma filha do iluminismo Para os periacuteodos anteriores era evidente que os Evangelhos transmitiam notiacutecias confiaacuteveis sobre Jesus Antes do Iluminismo a pesquisa neotestamentaacuteria dos Evangelhos limitava-se essencialmente agrave harmonizaccedilatildeo dos quatros Evangelhos Na praacutetica a Exegese do Novo Testamento era uma disciplina auxiliar da Dogmaacutetica (Schnelle 2010 p 70)
Ainda com relaccedilatildeo agrave pesquisa sobre o Jesus histoacuterico Joseacute Antonio Pagola diz
que quando nos referimos ao Jesus histoacuterico ldquoestamos falando do conhecimento de
Jesus que os historiadores podem obter utilizando os meacutetodos cientiacuteficos da moderna
investigaccedilatildeo histoacutericardquo (Pagola 2010 p13)
A magnitude de se escrever sobre o Jesus da Galileia eacute descrita por Schweitzer
com as seguintes palavras ldquo[] natildeo haacute tarefa histoacuterica que revele o verdadeiro interior de
um homem como a de escrever uma Vida de Jesus Nenhuma forccedila vital move o
personagem a natildeo ser que o homem sopre nele todo o oacutedio ou todo o amor de que eacute
capaz Quanto mais intenso o amor ou o oacutedio mais realista eacute a figura produzidardquo
(Schweitzer 2003 p11) Em outras palavras Schweitzer diz que aqueles que buscaram
despir Jesus do sobrenatural acabaram descobrindo fatos que enalteceram ainda mais a
sua histoacuteria Para Schweitzer tanto o oacutedio quanto o amor leva o escritor a investigaccedilotildees
profundas no intuito de provar verdade ou falsidade de um acontecimento histoacuterico Nesse
sentido as maiores produccedilotildees a respeito do Jesus histoacuterico foram escritas com oacutedio e
entre elas segundo Schweitzer estatildeo as de Reimarus e a de Strauss (Schweitzer 2003
p11)
Segundo J Jeremias a tese defendida por Reimarus em que Jesus eacute visto como
um revolucionaacuterio poliacutetico que fracassou na cruz quando exclamou ldquoDeus meu Deus
meu por que me desamparastesrdquo era estuacutepida e artificial visto que Jesus natildeo foi um
revolucionaacuterio poliacutetico e sempre reagiu energicamente contra todas as tendecircncias
nacionalistas dos zelotas Ao fazer uma anaacutelise do momento em que Reimarus escreveu
J Jeremias relata que Reimarus estava fazendo uma investigaccedilatildeo voltada ao homem
Jesus para sua personalidade sua religiatildeo e natildeo voltada para o dogma cristoloacutegico e
34
que a princiacutepio tinha como objetivo libertar-se dos dogmas da igreja (Jeremias 2005 p
201)
O resultado desses trabalhos sobre ltltas vidas de Jesusgtgt nos legaram muitas
imagens de sua personalidade que produzem risos Para os racionalistas Jesus eacute visto
como um pregador de moral para os idealistas a quintessecircncia do humanismo e por fim
para os estetas ele eacute posto como o amigo dos pobres e como um reformador social
Assim satildeo inuacutemeras as imagens que fazem de Jesus um personagem de romance
Jesus portanto eacute modernizado conforme as imagens carregadas de fantasias de cada
autor conforme os seus ideais suas eacutepocas ou suas teologias (Jeremias 2005 p 201)
J Jeremias questiona entatildeo onde estaria o erro E a resposta estaacute no fato de que
esses escritores ltltdas vidas de Jesusgtgt sem ter a plena consciecircncia acabaram
substituindo o dogma cristoloacutegico pela psicologia e pela fantasia Haacute poreacutem um ponto em
comum em todas as obras sobre ltlt as vidas de Jesusgtgt todas elas tratam de desenhar
a personalidade de Jesus com a ajuda dos instrumentos da psicologia e da fantasia Os
padrinhos nesse esforccedilo natildeo satildeo apenas as fontes mas a maior parte pertence agrave
imaginaccedilatildeo criativa a uma construccedilatildeo psicoloacutegica livre de obstaacuteculos (Jeremias 2005 p
201-202)
Conforme J Jeremias Albert Schweitzer de uma forma traacutegica poreacutem com muita
destreza desmascara essas criaccedilotildees repletas de fantasias e depois ele mesmo cairia
em falta fazendo uma construccedilatildeo psicoloacutegica a partir do texto do Evangelho de Mateus
(10 23) declarando que a grande decepccedilatildeo na vida de Jesus foi natildeo ter chegado ao final
causando grandes mudanccedilas em sua vida a ponto de aceitar o sofrimento para forccedilar a
chegada do reino de Deus (Jeremias 2005 p 203)
Pesquisar a vida do Jesus histoacuterico eacute muito mais que contar a histoacuteria de um
grande homem Eacute deparar-se com um personagem vital para a histoacuteria da humanidade
que ldquoveio para reger sobre o mundo Ele o regeu para o bem e para o mal como a histoacuteria
testificardquo (Schweitzer 2003 p8) Jesus revolucionou o mundo de sua eacutepoca mudou o
rumo da histoacuteria inseriu-se nela como protagonista mesmo natildeo sendo essa a sua
intenccedilatildeo A histoacuteria do mundo natildeo poderia mais ser contada sem ele ou seja Jesus
dividiu a histoacuteria em o antes e o depois dele A grandiosidade do homem Jesus fascinou
tanto os que o amaram como aqueles que o odiaram Nesse sentido podemos justificar o
fato de tantos pensadores estudarem a respeito do Jesus histoacuterico com as palavras
atribuiacutedas a Hegel por Bernard Bourgeois ldquoUm grande homem condena os humanos a
explicaacute-lordquo (Bourgeois1995 p 375)
35
Segundo Schweitzer os cristatildeos primitivos preocuparam-se apenas em preservar
ditos isolados a respeito do Jesus histoacuterico A expectativa do retorno iminente do Mestre
pode ter sido o motivo principal que levou o cristianismo primitivo a preferir apenas fatos
relacionados ao ministeacuterio de Jesus a uma biografia completa do Jesus histoacuterico O autor
ainda considera isso como um impulso de autopreservaccedilatildeo visto que a introduccedilatildeo do
Jesus histoacuterico na feacute da comunidade primitiva seria algo novo jaacute que o proacuteprio Jesus natildeo
se preocupou em deixar uma autobiografia Pagola compartilha desse pensamento
dizendo que
os evangelistas natildeo compuseram uma ldquobiografiardquo de Jesus no sentido moderno desta palavra Seus escritos estatildeo impregnados de sua feacute no Cristo ressuscitado satildeo sumamente seletivos foram narrados em funccedilatildeo de problemas e necessidades das primeiras comunidades cristatildes e estatildeo ordenados para objetivos teoloacutegicos e concretos Por isso exigem um estudo criacutetico cuidadoso antes de podermos obter deles informaccedilotildees fidedignas para a investigaccedilatildeo (Pagola 2010 p17)
O fato de Jesus natildeo ter deixado nenhum texto escrito e o texto do apoacutestolo Paulo
na segunda carta aos Coriacutentios capiacutetulo cap 5 verso 16 ldquo[hellip] doravante a ningueacutem
conhecemos segundo a carne Tambeacutem se conhecemos Cristo segundo a carne agora jaacute
natildeo o conhecemos assimrdquo abriu o caminho para diversas interpretaccedilotildees acerca de Jesus
De fato Leonhard Goppelt menciona a interpretaccedilatildeo de Rudolf Bultmann segundo a qual
se infere que para Paulo a accedilatildeo terrena de Jesus natildeo teria tido a miacutenima importacircncia o
que importava era a feacute pascal Natildeo obstante a ldquofeacute pascal bem como a cristologia natildeo satildeo
simplesmente uma transfiguraccedilatildeo miacutetica do terreno Muito antes nelas toma forma o que
no Jesus terreno agia apenas de maneira ocultardquo (Goppelt 2002 p 46)
O pensamento de Bultmann a respeito da importacircncia de se investigar a vida e a
personalidade do Jesus histoacuterico se resume nas seguintes palavras
Natildeo podemos saber praticamente nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus jaacute que as fontes cristatildes natildeo se interessaram por elas sendo ademais bastante fragmentaacuterias e encobertas pela lenda uma vez que natildeo existem outras fontes sobre Jesus O que se estaacute escrevendo haacute mais de um seacuteculo e meio sobre a vida de Jesus sua personalidade seu desenvolvimento interior e coisas semelhantes ndash uma vez que natildeo se trata de investigaccedilotildees criacuteticas ndash natildeo passa de fantasia e romance (Bultmann 2005 p 26)
Dessa forma o logos natildeo se torna verdadeiramente carne mas apenas palavra
(kerygma) Na visatildeo de Bultmann o Jesus histoacuterico natildeo faz parte da teologia do Novo
Testamento pois o objeto da teologia do Novo Testamento eacute o Cristo da feacute (pascal) Em
vista disso um estudo acerca do Jesus histoacuterico fica relegado a uma primeira etapa tal
qual uma primeira premissa no interior de um argumento mais elaborado (Bultmann
36
2004 p 24) J Jeremias enfatiza que para Bultmann a pregaccedilatildeo de Jesus eacute apenas
uma premissa entre muitas outras do Novo Testamento (Jeremias 2005 p 204)
Para J Jeremias Bultmann sofreu influecircncia de Martin Kaumlhler atraveacutes de sua obra
Der sogenannte historische Jesus und der geschichtiche biblische Cristus (O chamado
Jesus histoacuterico e o Cristo existencialmente histoacuterico e biacuteblico) Kaumlhler distinguiu por um
lado entre Jesus e Cristo e por outro entre historische (histoacuterico) e geschichtiche
(existencialmente histoacuterico) Por Jesus Kaumlhler compreendia o homem de Nazareacute tal
como foi descrito pelos que investigaram a vida do Jesus histoacuterico por Cristo ele entendia
como aquele que foi proclamado como o Salvador pela igreja Quanto ao significado do
adjetivo historische (histoacuterico) ele compreendia como uma mera designaccedilatildeo dos fatos do
passado e para geschichtiche (existencialmente histoacuterico) como aquele que tem um
significado permanente Portanto para Kaumlhler toda a tentativa de reconstruir a vida do
Jesus histoacuterico se contrapotildee ao Cristo biacuteblico e existencialmente histoacuterico tal como foi
pregado pelos apoacutestolos e para noacutes conforme Kaumlhler o que importa eacute unicamente o
Cristo da Biacuteblia conforme descrito pelos Evangelhos e natildeo as supostas reconstruccedilotildees
cientiacuteficas a respeito da pessoa de Jesus que chegam ateacute a passar a impressatildeo de uma
plena realidade dos fatos (Jeremias 2005 p 202)
A voz de Kaumlhler se extinguiu no vaacutecuo e natildeo surtiu um efeito pleno ateacute o ecoar da
voz de Bultmann que com coragem irredutiacutevel entrou no campo do inimigo e
abertamente lutou contra uma teologia que por um periacuteodo de aproximadamente cento e
cinquenta anos esforccedilou-se para chegar ao Jesus histoacuterico (Jeremias 2005 p 202)
Concordando com Kaumlhler Bultmann declara que todo o esforccedilo para chegar ao Jesus
histoacuterico foi um empreendimento insoluacutevel e infecundo que retirou a inexpugnaacutevel
fortaleza da proclamaccedilatildeo (kerigma) de Cristo (Jeremias 2005 p 203)
Os argumentos de Bultmann para a renuacutencia da teologia do Jesus histoacuterico
fundamentam-se no princiacutepio de que haacute falta de fontes seguras para a fundamentaccedilatildeo
dessa teologia Tambeacutem leva-se em consideraccedilatildeo que natildeo temos nada escrito pelas
matildeos de Jesus As uacutenicas fontes que temos a respeito de Jesus satildeo os Evangelhos e
esses natildeo satildeo biografias de Jesus mas satildeo apenas testemunhos de feacute secundaacuterios e
recobertos de lendas como no caso dos milagres Os Evangelhos segundo esse
pensamento satildeo a demonstraccedilatildeo de feacute dos evangelistas (Jeremias p 203) Concernente
agrave vida e agrave proclamaccedilatildeo de Jesus Bultmann assim descreve
37
[] Pouco sabemos sobre sua vida e personalidade ndash em compensaccedilatildeo sabemos o suficiente sobre sua proclamaccedilatildeo para pintar um quadro coerente Todavia tambeacutem nesse ponto recomenda-se um cuidado extremo em vista do caraacuteter das fontes que dispomos Pois o que as fontes nos oferecem eacute em primeira linha a proclamaccedilatildeo da comunidade que no entanto remonta em sua maior parte a Jesus Naturalmente isso prova que ele realmente tenha pronunciado todas as palavras que essa comunidade lhe pocircs na boca No caso de muitas palavras eacute possiacutevel demonstrar que soacute vieram a surgir na comunidade ao passo que no caso de outras elas foram reformuladas pela comunidade A investigaccedilatildeo criacutetica mostra que o conjunto da tradiccedilatildeo sobre Jesus ndash disponiacutevel nos trecircs evangelhos sinoacuteticos de Mateus Marcos e Lucas ndash se desmembra em uma seacuterie de camadas que em termos gerais podem ser distinguidas umas das outras com bastante seguranccedila mas cuja separaccedilatildeo em alguns detalhes apresenta dificuldades e levanta duacutevidas (Bultmann 2005 p 29-30)
Contudo essa visatildeo de Bultmann natildeo significa a negaccedilatildeo da existecircncia do homem
chamado Jesus de Nazareacute Segundo esse autor eacute possiacutevel conhecer muito dele atraveacutes
de suas pregaccedilotildees poreacutem na anaacutelise da criacutetica histoacuterica em relaccedilatildeo ao homem Jesus
conclui-se que natildeo haacute nada de importante para a feacute cristatilde (Jeremias 2005 p 203)
Quanto agrave questatildeo da existecircncia de Jesus vejamos o que nos diz Bultmann
[hellip] Eacute verdade que a duacutevida se Jesus realmente existiu eacute infundada e natildeo vale a pena gastar nenhuma palavra para refutaacute-la Eacute evidente que ele eacute o gerador do movimento histoacuterico cujo primeiro estaacutegio constataacutevel eacute representado pela comunidade palestinense mais antiga No entanto outra questatildeo eacute ateacute que ponto a comunidade preservou de modo objetivamente fiel a imagem dele e de sua proclamaccedilatildeo Para aqueles que tecircm interesse na personalidade de Jesus esse estado de coisas eacute inquietante e arrasador para nosso propoacutesito ele natildeo eacute de fundamental importacircncia (Bultmann 2005 p 30-31)
J Jeremias analisa entatildeo que para Bultmann Jesus de Nazareacute foi um profeta
judeu que permaneceu sempre dentro dos marcos do judaiacutesmo O Jesus histoacuterico
segundo Bultmann pode ser interessante para a teologia do Novo Testamento e para
compreender a origem do cristianismo mas natildeo tem significaccedilatildeo alguma para a feacute cristatilde
porque o cristianismo comeccedila com a Paacutescoa (Jeremias 2005 p204) Martins Terra expotildee
que o Jesus histoacuterico para Bultmann realmente eacute um profeta e sem duacutevida o maior
deles contudo profeta pertence ao Antigo Testamento Sendo assim Jesus era apenas
um judeu e natildeo um cristatildeo14 ldquoporque cristatildeo eacute aquele que acredita no Senhor
ressuscitado e natildeo aquele que funda sua feacute sobre uma figura histoacutericardquo (Martins Terra
1977 p21)
14
A resposta dada a Bultmann veio de seu disciacutepulo Ernst Kaumlsemann que observa que tanto Jesus quanto
os apoacutestolos eram judeus E se os apoacutestolos eram judeus natildeo eram eles tambeacutem cristatildeos desde o momento que seguiram a Jesus Kaumlsemann ainda pergunta teria havido algum keacuterygma sem a pregaccedilatildeo de Jesus Kaumlsemann chama a atenccedilatildeo para que Jesus natildeo se torne um pretexto e Cristo uma mera cifra mitoloacutegica (Martins Terra 1977 p 44)
38
Escrever uma biografia sobre o Jesus histoacuterico eacute algo descartado na teologia e isso
eacute visto com justiccedila por J Jeremias quando diz ldquo[] eacute muito correto afirmar que jaacute temos
despertado do sonho de acreditar que podemos escrever uma biografia de Jesusrdquo
(Jeremias 2006 p28) No entanto isso natildeo significa passar com indiferenccedila por essa
teologia eacute preciso voltar ao Jesus de Nazareacute e a sua pregaccedilatildeo As fontes nos
impulsionam a cada versiacuteculo dos Evangelhos a buscar pelo homem Jesus que
historicamente apareceu em Nazareacute e que foi crucificado no governo de Pocircncio Pilatos
(Jeremias 2006 p28) Leonard Swidler diz estar ciente tambeacutem das dificuldades para
se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade sobre o Jesus (Ieshua) histoacuterico
Contudo para ele podemos chegar ao fundamental ou seja podemos sempre lutar para
chegar mais perto Para Swidler a consciecircncia dessa limitaccedilatildeo permite que a pessoa
evite os extremos isto eacute tanto a ingecircnua certeza absoluta quanto o ceticismo total sobre
a possibilidade da busca pelo Jesus histoacuterico (Swidler 1993 p 16-18)
A visatildeo de Bultmann a respeito do Jesus histoacuterico natildeo foi seguida pelo seu
sucessor catedraacutetico em Magburg W G Kuumlmmel Para Kuumlmmel interpretar as palavras
de Paulo15 na letra do texto 2 Cor 516 e concluir que o Jesus terreno natildeo teve
importacircncia para o apoacutestolo eacute uma interpretaccedilatildeo ldquoseguramente errocircneardquo (Kummel 2003
p210) pois mesmo que elas natildeo tenham um papel tatildeo importante nos escritos do
apoacutestolo elas natildeo deixam de ser significantes Errocircneo para Kuumlmmel seria o fato de um
cristatildeo procurar ter uma relaccedilatildeo intraterrena com Jesus ou conhececirc-lo apenas
historicamente o que seria insignificante para um cristatildeo Rochus Zuurmond tambeacutem
define o pensamento do apoacutestolo Paulo sobre o versiacuteculo 16 acima mencionado da
seguinte forma
[hellip] Nessa periacutecope natildeo se trata da distinccedilatildeo entre o Jesus preacute-pascal e o poacutes-pascal mas da diferenccedila entre conhecer Jesus da maneira antiga e conhececirc-lo da maneira nova O Jesus poacutes-pascal ainda pode ser ldquoconhecidordquo da maneira antiga o jovem Paulo mas tambeacutem seus adversaacuterios atuais eacute disso um exemplo Em princiacutepio o Jesus preacute-pascal tambeacutem podia ser conhecido de maneira nova se fosse ldquotirado o veacuteurdquo na leitura do Antigo Testamento (314ss cf Jo 856) Mas na praacutetica isso se verificou impossiacutevel por causa da carne (Zuurmond 1998 p 87)
Conhecer Jesus ldquosegundo a carnerdquo na interpretaccedilatildeo de Zuurmond inclui com
certeza todo o conhecimento que podemos ter do Jesus histoacuterico Para ele Paulo natildeo
15
Kaumlsemann tambeacutem contrapotildee essa tese de Bultmann colocando os seguintes argumentos Se o Apoacutestolo Paulo natildeo levou em consideraccedilatildeo a vida terrena de Jesus e a Igreja jaacute estava realizada com o keacuterygma contido nas cartas paulinas por que entatildeo os Evangelhos tornaram-se necessaacuterios jaacute que foram escritos (os Sinoacuteticos) depois que Paulo jaacute tinha escrito todas as cartas Segundo Kaumlsemann a necessidade dos Evangelhos deu-se principalmente porque havia vaacuterios keacuterygmas e a necessidade do discernimento desses deu-se a princiacutepio pelo Espiacuterito todavia quando o entusiasmo cresceu tornou-se necessaacuterio o criteacuterio da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 44-45)
39
estava referindo-se ao Jesus histoacuterico quando fala ldquose jaacute conhecemos o cristo segundo a
carne agora jaacute natildeo o conhecemos maisrdquo (516) Toda a atividade cientiacutefica eacute carne ou
seja pode ser verificado com os recursos da historiografia moderna A pesquisa sobre o
Jesus histoacuterico eacute possiacutevel desde que ela natildeo tenha a pretensatildeo de ser a verdade absoluta
a respeito de Jesus Para Zuurmond o apoacutestolo estaacute enfatizando que o conhecimento
espiritual estaacute aleacutem do conhecimento cientiacutefico contudo natildeo eacute anticientiacutefico mas apenas
natildeo estaacute submisso a qualquer criteacuterio da ciecircncia Zuurmond conclui que ldquoPaulo tem
pouquiacutessima coisa para dizer sobre o Jesus histoacutericordquo uma vez que o apoacutestolo dos
gentios natildeo teria muito interesse pelo ldquotipo de conhecimento sobre Jesus que daiacute
resultariardquo (Zuurmond 1998 p88)
Voltando aos disciacutepulos de Bultmann ainda podemos mencionar Ernst Kaumlsemann
que tambeacutem contestou os ldquodogmasrdquo de seu mestre Para Kaumlsemann a pergunta pelo
Jesus histoacuterico e pelas palavras de Jesus eacute uma praacutetica e exigecircncia do Novo Testamento
visto que satildeo a base e o criteacuterio do keacuterygma Sem essas perguntas o Cristo da feacute se
tornaria em mera ideologia religiosa A importacircncia dessas questotildees torna relevante a
busca pelo Jesus da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 32)
Como se pode compreender em diferentes eacutepocas pensadores divergiram a
respeito da histoacuteria da pessoa do humilde carpinteiro de Nazareacute As especulaccedilotildees a
respeito da vida do Jesus histoacuterico cresceram tanto pelos seus fieacuteis seguidores quanto
pelos seus mais aacutevidos inimigos pelo menos desde o seacuteculo II dC (tal como se pode ver
na calorosa refutaccedilatildeo de Oriacutegenes contra Celso) Em um periacuteodo mais recente teoacutelogos
e arqueoacutelogos tecircm procurado com maior intensidade dados a respeito do homem Jesus e
do estilo de vida que a comunidade do seu tempo vivia com a finalidade de compreender
melhor o contexto em que Jesus estava socialmente inserido
40
4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE
SUA EacutePOCA O objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar o Jesus da histoacuteria dentro do contexto
dos grupos religiosos de sua eacutepoca a fim de observarmos ateacute que ponto Jesus teve
ou natildeo contato com tais grupos abaixo mencionados A preferecircncia de Jesus por um
determinado grupo poderia determinar o que era o Reino de Deus na visatildeo do jovem
pregador galileu Seria Jesus um adepto da seita dos apocaliacutepticos essecircnios dos
moralistas fariseus dos revolucionaacuterios zelotes ou ainda da ldquocorrompidardquo classe
sacerdotal dos saduceus Nos Evangelhos eacute que encontramos a histoacuteria de Jesus
uma vez que eles satildeo as principais fontes que possuiacutemos para montarmos a figura
do maior homem de todos os tempos Mas surgem algumas perguntas Seriam os
Evangelhos fontes histoacutericas confiaacuteveis na apresentaccedilatildeo do homem Jesus Sendo
Jesus pertencente agrave maioria da populaccedilatildeo ou seja da classe pobre e oprimida
pelos romanos teria ele sofrido alguma influecircncia do mundo helenizado da cidade
de Seacuteforis da qual tatildeo perto ele residia ou teria ele totalmente ignorado a cultura e
o mundo helecircnico-romano
Jesus o nazareno na condiccedilatildeo de Filho de Deus repudia todo o tipo de
opressatildeo uma vez que ele veio para ldquoproclamar a libertaccedilatildeo dos presosrdquo e
ldquoevangelizar os pobresrdquo (Lc 4-18) os quais satildeo felizes porque deles eacute o Reino de
Deus (Lc 620-23) Ao proclamar a bem-aventuranccedila dos pobres ele tambeacutem
proclama ldquomaldiccedilotildeesrdquo sobre os ricos que os oprimem e riem deles visto que chegaraacute
a hora em que os que dessa forma riem conheceratildeo o luto e as laacutegrimas (Lc 6 24-
26) Jesus ao ensinar os seus disciacutepulos a como se prevenir e se comportar diante
de uma sociedade poliacutetica e religiosa completamente desprovida do genuiacuteno amor
ao proacuteximo o Mestre da Galileia ensina os seus seguidores a serem
ldquomisericordiososrdquo como o Pai do Ceacuteu eacute misericordioso (cf Lc 6 36)
41
41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE
CONTEMPORAcircNEA DE JESUS
Segundo J Jeremias Jesus16 era proveniente de uma famiacutelia pobre e isso
pode ser constatado na ocasiatildeo do sacrifiacutecio de purificaccedilatildeo ldquoMaria serviu-se do
privileacutegio dos pobres oferecer duas rolasrdquo (Lc 224 cf Lv 128) (Jeremias 1983
p165) No tocante ao seu modo de vida eram tantas as privaccedilotildees que natildeo tinha
onde repousar a cabeccedila (Mt 820 Lc 958) J Jeremias observa que ele natildeo possuiacutea
dinheiro - a histoacuteria do estaacuteter e do ldquotributo a Cesarrdquo o demonstram (Mt 17 24-27 Cf
Mc 12 13-17 Mt 22 15-22 Lc 20 20-26) - tambeacutem aceitou esmolas (Lc 8 1-3)
Jesus provavelmente foi considerado um escriba (da classe mais humilde
desse grupo) conforme subentende J Jeremias (1983 p 59-165) Bultmann
tambeacutem concorda que Jesus era chamado pela tradiccedilatildeo de Rabi (Mc 95 1051
11121 1445) Para ele o tiacutetulo rabi foi substituiacutedo pelos evangelistas de origem
grega quase que completamente pela forma de tratamento grega Senhor
expressatildeo esta que designa Jesus como pertencente agrave classe dos escribas
(Bultmann 2005 p71) Para esse autor natildeo podemos afirmar se nos dias de Jesus
jaacute era necessaacuteria certa formaccedilatildeo cultural para a funccedilatildeo de escriba17 como foi uma
exigecircncia cem anos mais tarde Contudo natildeo podemos ignorar o fato de Jesus ter
sido considerado um Rabi (Bultmann 2005 p71-72)
Vale ressaltar que a relaccedilatildeo de Jesus com os escribas eacute quase sempre
relatada de forma polecircmica nos Evangelhos Quando estava ensinando sobre o fim
de Jerusaleacutem e do mundo Jesus advertiu seus disciacutepulos a respeito dos escribas
dizendo que eles sempre procuravam a distinccedilatildeo social eram arrogantes e
16
O nome Jesus origina-se do hebraico ldquoYehoshuardquo (o Yoshua biacuteblico) que significa YHWH (que provavelmente era pronunciado Yahweh) O Nome Jesus eacute uma forma latina do grego Iesous que por sua vez eacute uma forma grega do termo hebraico O nome Yehoshua foi abreviado no linguajar coloquial para Yeshua ou ateacute mesmo para Yeshu A raiz etimoloacutegica de Ieshua eacute ldquoYerdquo eacute a forma hebraica abreviada do proacuteprio nome de Deus YHWH enquanto que ldquoshuardquo eacute a palavra hebraica que significa Salvaccedilatildeo (cf Swidler 1993 p7-8)
17 Vermes define os escribas da seguinte forma ldquoo termo eacutescriba (sofer em hebraico safra em
aramaico) eacute usado para designar um estudioso um especialista na Biacuteblia particularmente em direito biacuteblico e tradicional A vida religiosa e secular bem organizada dependia desses homens Eram geralmente respeitados e sem duacutevida amiuacutede tornavam-se presunccedilosos vestiam-se apropriadamente usando uma tuacutenica longa (stole ou talit) e estavam habituados a ser respeitosamente saudados por todos indiscriminadamente Em reconhecimento agrave sua dignidade recebiam os lugares de escolha em locais de adoraccedilatildeo e em banquetes e os evangelistas indicam que eles esperavam receber tal tratamento preferencialrdquo (Vermes 2006 p 89)
42
pretensiosos na oraccedilatildeo Em Marcos os escribas dos fariseus criticam Jesus porque
ele come com os cobradores de impostos e com os pecadores (Mc 216) tambeacutem
os disciacutepulos de Jesus reconhecem que o seu ensinamento natildeo eacute como o dos
escribas sem autoridade (Mc 1 22-28 cf Mt 7 29) e por fim os escribas
questionaram a autoridade de Jesus para perdoar os pecados do paraliacutetico de
Cafarnaum (Mc 2 6 cf Mt 93) Eacute bem verdade que em Mateus 819 1352 2334
os escribas satildeo vistos de uma forma positiva e isso eacute mais evidente ainda em
Marcos 12 28-34 onde Jesus e um escriba concordaram a respeito do maior dos
mandamentos o que faz Jesus concluir que tal escriba natildeo estava longe do Reino
de Deus No entanto a impressatildeo que se obteacutem a partir das Escrituras eacute a que
Jesus possuiacutea um conceito formado a respeito dos escribas conforme o descrito
pelo evangelista Marcos nas seguintes palavras (Saldarini 2005 p 164-172)
[] E dizia no seu ensinamento ldquoGuardai-vos dos escribas que gostam de circular de toga de ser saudados nas praccedilas puacuteblicas e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes mas devoram as casas das viuacutevas e simulam fazer longas preces Esses receberatildeo condenaccedilatildeo mais severardquo (Mc 12 38-40)
Os escribas parecem natildeo ser um grupo muito coeso no oriente proacuteximo dos
dias de Jesus Eles eram provenientes de vaacuterias classes do povo ou entatildeo dos
sacerdotes ou de famiacutelias proeminentes Geralmente eles eram dependentes das
classes dominantes que dirigiam a naccedilatildeo Segundo Saldarini (2005 p 282-283) a
maioria dos escribas havia saiacutedo do campesinato para ser treinado pelo governo ou
por famiacutelias ricas para resguardar os registros coletar impostos servir como
funcionaacuterios e juiacutezes e trabalhar com o serviccedilo de correspondecircncias
Ainda com relaccedilatildeo a esse grupo de indiviacuteduos observa-se que os escribas
considerados socialmente inferiores eram aqueles que faziam parte de um pequeno
povoado que tinham entre outras funccedilotildees a de ensinar jovens a ler e escrever mas
natildeo eram considerados mestres visto que natildeo tinha uma educaccedilatildeo elevada para os
padrotildees da eacutepoca Saldarini observa no entanto que a maioria dos escribas
incluindo os apresentados nos evangelhos era considerada funcionaacuterios de niacutevel
meacutedio que eram dependentes da classe sacerdotal das famiacutelias ricas em
Jerusaleacutem e de Herodes Antipas na Galileia
43
Em todos os casos poreacutem os escribas precisam ser contextualizados entre outros grupos sociais e o poder de influecircncia deles integrado no quadro global da sociedade judaica Eles natildeo devem ser tratados como um grupo autocircnomo com seu proacuteprio poder e agenda contiacutenua Os escribas eram diferentes em suas origens e em suas dependecircncias e eram indiviacuteduos que desempenhavam um papel social em diferentes contextos e natildeo uma forccedila poliacutetica e religiosa unificada (Saldarini 2005 p 284-285)
Com relaccedilatildeo ao grupo dos rabinos segundo J Jeremias observa-se de um
modo geral que ele se situa entre as camadas pobres da populaccedilatildeo (Jeremias
1983 p165-166) Mais ainda as informaccedilotildees tradicionais sobre os escribas nos
dias de Jesus concordam que os escribas ricos natildeo eram numerosos Portanto se
realmente Jesus era considerado um escriba certamente ele fazia parte da classe
pobre dos escribas Crossan problematiza mais a questatildeo quando coloca que a
maioria da populaccedilatildeo Judaica da eacutepoca de Jesus era constituiacuteda de analfabetos18
supotildee-se que Jesus tambeacutem era analfabeto que ele conhecia como a ampla maioria de seus contemporacircneos de uma cultura oral as narrativas fundacionais estoacuterias baacutesicas e expectativas gerais de sua tradiccedilatildeo mas natildeo os textos exatos citaccedilotildees precisas ou argumentaccedilotildees intrincadas de suas elites de escribas (CROSSAN 1995 p41)
Em outro momento Crossan observa que o niacutevel de alfabetizaccedilatildeo na
Palestina estava abaixo de 3 segundo fontes rabiacutenicas o que natildeo era tatildeo baixo
para os padrotildees sociais das sociedades tradicionais do passado Crossan reitera
que Jesus era um camponecircs da Galileia e portanto natildeo haacute duacutevidas que Jesus era
analfabeto ldquopara mim Jesus era analfabeto ateacute que o contraacuterio seja comprovado E
natildeo eacute comprovado mas apenas presumido por Lucas quando ele faz Jesus ler o
profeta Isaiacuteas na sinagoga de Nazareacute em 4 16-20rdquo (Crossan 2004 p 274-275)
18
Diferentemente de Crossan David Flusser defende que Jesus ldquoestava longe de ser um iletradordquo Para ele com algumas justificativas eacute possiacutevel que os disciacutepulos de Jesus fossem homens iletrados e sem posiccedilatildeo social (cf At 413) e isso levou os historiadores a pensar que o proacuteprio Jesus nunca havia estudado Flusser vai mais longe ainda quando observa que Jesus era versado tanto nas Escrituras Sagradas como na tradiccedilatildeo oral ldquoAdemais sua educaccedilatildeo era incomparavelmente superior agrave de Satildeo Paulordquo Flusser vecirc na narrativa de Lucas (2 41-51) a histoacuteria de ldquoum erudito precoce pode-se dizer quase um jovem talmudistardquo A fonte de Flusser para tal argumento eacute Flaacutevio Josefo que se referindo a Jesus disse ldquonesta eacutepoca viveu Jesus um homem saacutebio ndash se eacute que na verdade deveriacuteamos chamaacute-lo de homemrdquo Mesmo que tenha havido algumas alteraccedilotildees por um interpolador cristatildeo eacute provaacutevel que a redaccedilatildeo original natildeo se perdeu totalmente jaacute que o texto de Josefo pode ser confirmado ldquopela suposta redaccedilatildeo original da passagemrdquo (Flusser 2002 p 11-12)
44
Carlos Mesters tambeacutem observa que Jesus mesmo antes de nascer jaacute era
viacutetima do sistema poliacutetico e econocircmico predominantes na eacutepoca Com efeito uma
vez que ele natildeo nasceu de uma famiacutelia sacerdotal como Joatildeo Batista (Lc 15) nem
teve o privileacutegio de estudar como o apoacutestolo Paulo (At 22 3) Jesus teve desde
pequeno que trabalhar como agricultor e ainda aprender a profissatildeo de seu pai (Mt
13 55) e por isso era conhecido como carpinteiro (τέκτων) de Nazareacute (Mc 6 3)
Assim como Crossan Mesters analisa que a vida de Jesus desde a infacircncia ateacute a
vida adulta natildeo foi nada faacutecil Sobre a educaccedilatildeo formal do nazareno Mesters nos
diz que ldquoa escola do Jesus era antes de tudo a vida em casa na famiacutelia na
comunidade Foi laacute que aprendeu a conviver a rezar e a trabalharrdquo (Mesters 2011
p 17-21)
O caos econocircmico e cultural entre a populaccedilatildeo contemporacircnea de Jesus natildeo
eacute fato apenas na Galileia19 J Jeremias descreve que a cidade de Jerusaleacutem nos
tempos de Jesus era um centro de mendicacircncia que geralmente girava em torno
do templo Para ele ldquonatildeo eacute de causar espanto se jaacute naquela eacutepoca houvesse
pessoas que simulavam cegueiras surdez e outras doenccedilas a fim de ganharem
esmolasrdquo (Jeremias 1983 p166) Se Jerusaleacutem que era o centro dos
acontecimentos estava numa situaccedilatildeo caoacutetica natildeo muito distante ficava Nazareacute
que conforme Crossan era um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que
vivia em casebres ldquoum povoado simples composto de camponeses entre duzentos a
quatrocentos habitantesrdquo (Crossan Reed 2007 p 7518) Crossan observa que
Nazareacute nunca foi mencionada pelos rabinos na Mishinaacute nem no Talmude nem por
Flaacutevio Josefo quando esse cita o nome de 45 lugares durante a primeira revolta
judaica em 66-67 dC Nem mesmo o Antigo Testamento a conheceu A relaccedilatildeo das
tribos de Zebulon enumera quinze localidades na Baixa Galileia nas proximidades
de Nazareacute mas natildeo a inclui (Js19 10-15) Crossan eacute taxativo ao afirmar que Nazareacute
ldquoera um lugar absolutamente insignificanterdquo (Crossan Reed 2007 p 64)
19
Apesar da Galileia onde Jesus viveu ter sido um lugar de extrema pobreza geograficamente era ldquouma regiatildeo beliacutessima a planiacutecie o lago as colinas a montanha o verde as suas matas fazem da Galileia um ambiente tranquilo e repousanterdquo A pobreza natildeo estava ligada ao aspecto geograacutefico mas sim agrave dominaccedilatildeo romana atraveacutes dos altos e impiedosos impostos que segundo Marconcini natildeo era menos do que 40 do miacutesero rendimento de cada trabalhador que tambeacutem eram destinadas para o aumento do bem-estar dos ricos conforme vemos nos evangelhos de Mateus 18 23-30 e Lucas 16 1-7 -20 (Cf Marconcini 2009 p 38)
45
Tambeacutem observa-se que Nazareacute era um povoado proacuteximo de Seacuteforis que
permaneceu no anonimato ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo
quando se tornou alvo de peregrinaccedilotildees dos cristatildeos (Crossan Reed 2007 p79)
Eles dependiam de espaccedilo fiacutesico para desempenhar atividades agriacutecolas guardar
ferramentas de uso comunitaacuterio cultivo de jardins e pomares tambeacutem precisavam de
espaccedilo para a criaccedilatildeo de animais domeacutesticos e isso explica o porquecirc de uma baixa
densidade populacional Crossan afirma que a maioria dos galileus ganhava a vida
com os produtos da terra com ferramentas precaacuterias e condiccedilotildees geograacuteficas
desfavoraacuteveis O seu estilo de vida em particular dos nazarenos era simples e o
que eles ganhavam era apenas o suficiente para pagar as diacutevidas e impostos
Quanto agraves tradiccedilotildees eles eram zelosos celebravam a paacutescoa descansavam no
Saacutebado e valorizavam as tradiccedilotildees de Moiseacutes e dos profetas
Gerhard Lenski citado por Crossan faz uma interessante descriccedilatildeo de como
eram as divisotildees das classes sociais pelo impeacuterio romano O simples fato de uma
famiacutelia ou povoado possuir arados de ferro poder usufruir de transportes utilizando-
se da roda e da vela gerava um abismo entre as classes designadas altas e outras
designadas baixas Segundo esse autor as classes eram divididas da seguinte
maneira 1 da populaccedilatildeo era constituiacuteda pelos governantes que eram possuidores
de pelo menos a metade das terras os sacerdotes podiam possuir ateacute 15 da
terra logo apoacutes vinham os arrendataacuterios que iam de generais a burocratas
especializados mercadores que provavelmente ascendiam das classes mais
baixas mas que chegavam a ter consideraacutevel riqueza e algum poder poliacutetico e por
fim os camponeses que eram a maioria da populaccedilatildeo de cuja colheita cerca de
dois terccedilos do total as classes altas eram sustentadas
Os camponeses cujas safras dependiam das colheitas nem sempre eram
bem sucedidos pois se houvesse muita chuva ou seca ou ainda doenccedilas e morte
eram expulsos de suas proacuteprias terras Entatildeo eram forccedilados ao arrendamento ou
ateacute mesmo podiam ser submetidos agraves piores humilhaccedilotildees Existia ainda a classe
dos artesatildeos considerada acima dos camponeses porque em geral eram
recrutados entre seus membros desalojados Abaixo dos camponeses existiam
ainda as classes dos degradados e dispensaacuteveis os quais eram rejeitados e iam de
46
mendigos a foras da lei ladrotildees trabalhadores diaristas e escravos (Crossan 1995
p 41)
De acordo com essa divisatildeo de classes deduz-se que se Jesus era
carpinteiro (τέκτων) entatildeo ele pertencia agrave classe dos artesatildeos que por sua vez
estava perigosamente situada entre os camponeses e os degradados ou
dispensaacuteveis Segundo Crossan a pobreza dos conterracircneos de Jesus natildeo se
limitava apenas a Galileia jaacute que de 95 a 97 da populaccedilatildeo do estado judaico era
constituiacuteda por analfabetos Se essa estatiacutestica for verdadeira possivelmente Jesus
tambeacutem era um analfabeto Quanto ao fato dele ensinar eacute provaacutevel que o seu
aprendizado e ensino tenha sido a partir da educaccedilatildeo da tradiccedilatildeo em forma oral
Conforme Crossan os textos de Lucas 2 41-52 e Lucas 4 1-30 devem ser vistos
como ldquopropaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em
termos de instruccedilatildeo e exegese de escribardquo (Crossan 1995 p 41-42)
42 JESUS O HUMILDE NAZARENO
Jesus viveu em Nazareacute a maior parte de sua vida Segundo Pagola uma
pequena aldeia de ldquoapenas duzentos a quatrocentos habitantesrdquo onde alguns
habitantes viviam ldquoem cavernas escavadas nas encostas a maioria em casas baixas
e primitivas de paredes escuras de adobe ou pedra com telhados confeccionados
com ramos secos e argila e chatildeo de terra batidardquo O quesito conforto e comodidade
natildeo era privileacutegio dos nazarenos uma vez que em geral as casas soacute tinham um
cocircmodo no qual se alojava a famiacutelia toda inclusive os animais (Pagola 2010 p62)
Esse pequeno vilarejo ficava a 4 quilocircmetros ao norte de Seacuteforis 20 a cidade
residencial de Herodes Antipas (Gnilka 2000 p71) Seacuteforis diferentemente de
Nazareacute era uma cidade que crescia cheia de curiosidades21 Jerome Murphy-
20
Koester natildeo especifica a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis mas observa que a distacircncia entre essas duas localidades era de poucos quilocircmetros Seacuteforis foi ampliada por Antipas que como seu Pai (Herodes o grande) era amante do esplendor e da grandeza que muitas vezes era expresso por grandes construccedilotildees Aleacutem de Seacuteforis (a primeira capital) Antipas (Tetrarca da Galileia e da Pereia) ainda construiu uma segunda capital a qual deu o nome de Tibeacuterias (Tiberiacuteades) em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (Cf Koester 205 Vl 1 p 395) Theissen especifica como sendo de 6 km a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis (cf Theissen 2004 p 186) A partir desses dados conclui-se que Seacuteforis e Nazareacute ficavam muito proacuteximas
21 As hipoacuteteses de Murphy-OConnor em relaccedilatildeo agrave Seacuteforis satildeo bem diferentes da visatildeo que Crossan
tinha desta cidade como vimos anteriormente Para Crossan Seacuteforis permaneceu no anonimato
47
OConnor observa que seria um equiacutevoco supor que Jesus natildeo passaria todo o
tempo que pudesse em Seacuteforis junto com os amigos Nesse sentido pode-se
questionar Teria Jesus tido em Seacuteforis contato com a liacutengua grega por morar bem
proacuteximo da elegante cidade Seacuteforis era a cidade das atraccedilotildees tanto para os
adultos como para as crianccedilas fato esse que pode ser constatado com Herodes
Antipas o qual teria aprendido a oferecer espetaacuteculos com seu pai Herodes o
grande e nos poucos anos que passou em Roma teria ficado impressionado com os
espetaacuteculos dados por Augusto (Murphy-OConnor 2008 p38-39)
O teatro de Antipas era a grande atraccedilatildeo da cidade Segundo Murphy-
OConnor-OConnor o grande teatro de 45 mil lugares22 sentados em pedra visto
ateacute hoje foi precedido pelo de Antipas em madeira Mesmo que os judeus tenham
sido advertidos a respeito da origem pagatilde do teatro eacute razoaacutevel que Jesus tenha
visto em torno das imediaccedilotildees do teatro atores subindo e descendo pelas ruas e
praticando suas deixas23 Para Murphy-OConnor foi desse contexto que Jesus
conheceu a palavra grega hypokritecircs (ὑποκριτής) que significa ldquoum orador puacuteblicordquo
ldquoum atorrdquo Jesus usou a mesma palavra poreacutem deu a ela um sentido mais profundo
no que se refere agrave vida religiosa A maacutescara refere-se ao ldquofingidorrdquo ou seja agravequeles
que dizem ou parecem ser uma coisa mas na praacutetica satildeo outra conforme vemos
nos Evangelhos (Mt 75 Mc 76 = Lc 642)
O maior acontecimento que Jesus pode ter visto em Seacuteforis ou ouvido falar
muito a respeito quando tinha aproximadamente seis anos de idade foi o
casamento de Herodes Antipas com a filha do rei nabateu Aretas IV de Petra que
governou entre 9 aC e 40 dC Segundo Murphy-OConnor mesmo que o
casamento tenha acontecido em Petra uma caravana de nobres nabateus
provavelmente teria acompanhado Antipas ateacute a cidade de Seacuteforis onde uma
grande multidatildeo de todas as aldeias proacuteximas agrave cidade o aguardava para saudar o
jovem rei (Murphy-OConnor 2008 p40)
ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo quando segundo Crossan a cidade se tornou alvo de peregrinaccedilotildees cristatildes (cf Crossan Reed 2007 p79)
22 Theissen diz que o teatro comportava 5000 pessoas (ver Theissen 2004 p 187)
23 Koester nota que eacute interessante que cidades como Cesareia Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo constem da
tradiccedilatildeo Contudo cidades heleniacutesticas menos importantes como Cesareia de Felipe e Gadara agraves vezes satildeo mencionadas Para Koester ldquonatildeo se pode concluir que Jesus nunca tenha visitado Terras pagatildesrdquo (Cf Koester Vl 2 p 86)
48
Sobre Jesus podemos dizer que aleacutem de ter vivido na pequena Nazareacute de laacute
saiu para ser batizado por Joatildeo Batista Aleacutem disso conforme Mc 63 em Nazareacute e
adjacecircncias ele exerceu a carpintaria (τεκτων) 24 como profissatildeo atividade essa
exercida por seu pai Joseacute Nessa profissatildeo aleacutem de trabalhar com madeira
tambeacutem trabalhava-se com pedras Dessa forma podemos dizer que Jesus era
tambeacutem um entalhador (Gnilka 2000 p 71-72)
Sobre Jesus aleacutem de algumas hipoacuteteses e relatos concernentes ao lugar de
sua residecircncia e outras suposiccedilotildees relacionadas agrave sua vida enquanto um simples
homem inserido em sua comunidade que na qualidade de profeta da Galileia natildeo foi
bem recebido entre seus conterracircneos De acordo com o evangelista Lucas o
ministeacuterio de Jesus comeccedilou aos 30 anos (Lc 323) Para Gnilka a informaccedilatildeo
obtida a partir desse Evangelho possui tambeacutem uma motivaccedilatildeo teoloacutegica visto que
a idade de Jesus deve estar relacionada com a idade do rei Davi conforme vemos
em 2 Sm 54 ldquoTinha Davi trinta anos quando comeccedilou a reinarrdquo Natildeo obstante agrave
determinaccedilatildeo aproximada da idade cerca de 30 anos Lucas revela-nos um
interesse histoacuterico-cronoloacutegico a respeito da vida e ministeacuterio de Jesus (Gnilka
2000 p73)
Jaacute em pleno exerciacutecio ministerial conforme a narrativa de Marcos (Mc 6 1-6)
Jesus fez uma fracassada visita num dia de saacutebado aos seus conterracircneos Quando
Jesus estava a ensinar na sinagoga seus conterracircneos escandalizam-se dele O
motivo para tal desprezo estava relacionado ao fato de ele ser proveniente de uma
famiacutelia pobre conhecida por todos na pequena Nazareacute A origem humilde de Jesus
provocou em seus conterracircneos um sentimento de rejeiccedilatildeo e desprezo chegando
ao ponto de total descreacutedito agrave sua sabedoria e ao seu poder de realizar milagres
Esses fatos provavelmente natildeo devem ter ocorrido no comeccedilo do ministeacuterio de
Jesus como descreve Lucas (Lc 4 14-30) ateacute porque se todos esses
acontecimentos fossem no iniacutecio de seu ministeacuterio a comunidade de Nazareacute natildeo o
teria rejeitado imediatamente mas teriam ficado na expectativa do sucesso de seu
mais conhecido cidadatildeo (Gnilka 2000 p 122)
24
Eacute possiacutevel que como artesatildeo Jesus tenha tomado parte na construccedilatildeo de Seacuteforis O silecircncio da tradiccedilatildeo de Jesus sobre Seacuteforis nos induz a crer que mesmo que Jesus tenha conhecido essa cidade atuou tatildeo pouco nela como deve ter atuado em Tiberiacuteades Jesus deve ter evitado as grandes cidades porque se identificava mais com o campo onde encontrava maior ressonacircncia (Cf Theissen 2004 p 187)
49
Aleacutem das fontes evangeacutelicas sobre Jesus temos alguns relatos de fontes natildeo
cristatildes sobre o homem chamado Jesus de Nazareacute O relato mais conhecido dos
cristatildeos eacute de Flaacutevio Josefo que por volta do ano 93 dC (eacutepoca em que ele morava
em Roma) ele testemunha a respeito de Jesus com as seguintes palavras
conforme a citaccedilatildeo de Rochus Zuurmond25
Naquele tempo a atividade de Jesus um homem saacutebio se eacute que conveacutem chamaacute-lo de homem Pois fez coisas incriacuteveis e foi mestre dos que gostam de aceitar a verdade Teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos Ele foi o Cristo Depois que Pilatos o condenou agrave morte na Cruz porque preeminentes de nosso meio o haviam acusado natildeo cessou o amor que lhe tinham seus sequazes Revivificado ele lhes apareceu no terceiro dia pois os profetas de Deus haviam a seu respeito anunciado este fato e mil outras coisas espantosas Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)
Zuurmond duvida que essa citaccedilatildeo seja de Josefo uma vez que seria
praticamente impossiacutevel Josefo referir-se a Jesus como Cristo e muito mais difiacutecil
ainda seria ele mencionar a ressurreiccedilatildeo ldquocom apelo aos profetasrdquo Contudo
segundo Zuurmond seria muito difiacutecil que Josefo vivendo naquela eacutepoca natildeo
mencionasse Jesus em seus escritos Partindo desse princiacutepio o mais provaacutevel eacute
que o texto tenha sido ldquoprofundamente revisadordquo por um cristatildeo Para Zuurmond
dentre as vaacuterias tentativas para reproduzir o texto original de Josefo a mais provaacutevel
seria a de que o texto teria a seguinte conotaccedilatildeo
foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus um saacutebio que teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos chamaram-no de Cristo Seus sequazes afirmam que ele revivificado lhes apareceu Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome ainda natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)
O proacuteprio Zuurmond acredita que essa reconstruccedilatildeo eacute muito hipoteacutetica
Segundo ele o mais provaacutevel eacute que o texto tenha sido muito mais reduzido e que
tenha sido totalmente substituiacutedo (cf Zuurmond 1998 p 74)
Aleacutem de Josefo temos ainda outras citaccedilotildees hipoteacuteticas de fontes natildeo
cristatildes como a correspondecircncia de Pliacutenio Juacutenior com Trajano por volta de 115 dC
Pliacutenio refere-se agrave reuniatildeo dos cristatildeos e detalha o fato de que cantam um hino ldquoa
Cristo como Deusrdquo Suetocircnio por volta de 120 dC descreve que o Imperador
25
Essa citaccedilatildeo tambeacutem pode ser conferida em Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 3 p 590
50
Claacuteudio expulsou os judeus de Roma porque causavam problemas ldquopor instigaccedilatildeo
de Crestordquo Ainda por volta de 115 dC Taacutecito em annales XV 44 relata sobre o
incecircndio de Roma e sobre um grupo de Cristatildeos seguidores de ldquoum tal Cristordquo
Segundo Zuurmond estas foram as palavras do historiador romano
A fim de abafar este boato (de que ele mesmo foi responsaacutevel pelo incecircndio de Roma Nero inventou alguns bodes expiatoacuterios e submeteu agraves mais sofisticadas formas de supliacutecio aqueles que costumavam ser chamados de cristatildeos um grupo de gente odiado por todos por causa de seus crimes abominaacuteveis Eles devem o seu nome a um tal Cristo que durante o governo de Tibeacuterio (imperador de 14 a 37) por ordem do procurador Pocircncio Pilatos foi executado Depois de ter sido oprimida durante algum tempo essa supersticcedilatildeo perniciosa irrompeu novamente natildeo apenas na Judeacuteia onde este mal se originou mas tambeacutem em Roma para onde confluem e onde costumam ser assiduamente fomentados costumes horrorosos e vergonhosos de toda a espeacutecie (cf Zuurmond 1998 p75-76)
Essas fontes natildeo cristatildes quase que sempre satildeo vistas com alguma
desconfianccedila por alguns especialistas quanto agrave autenticidade de seus conteuacutedos
No entanto qualquer conjectura sobre o assunto natildeo passaraacute de mera
especulaccedilatildeo O mais importante eacute que a histoacuteria de Jesus eacute tatildeo grande que o mais
aacutevido inimigo jamais poderaacute tornaacute-la como algo insignificante para a humanidade
43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES
Como sabemos Jesus nunca nos deixou nada por escrito no entanto tudo o
que sabemos sobre ele estaacute registrado nos evangelhos especificamente nos
evangelhos canocircnicos considerados pela tradiccedilatildeo cristatilde como os mais confiaacuteveis jaacute
que para a tradiccedilatildeo cristatilde conforme vemos em Duquoc os evangelhos apoacutecrifos26
podem sem duacutevida transmitir autecircnticos dados histoacutericos mas natildeo possuem
autoridade para que a partir dos testemunhos descritos neles possa-se elaborar
uma teologia consistente (Duquoc 1992 p 21)
26
Sanders compartilha da ideia da maioria dos estudiosos de que muito pouco dos evangelhos apoacutecrifos pode situar-se aos dias de Jesus Para ele esses evangelhos satildeo ldquolegendaacuterios e mitoloacutegicosrdquo De todo o material apoacutecrifo segundo Sanders somente alguns ditos do evangelho de Tomeacute merecem consideraccedilatildeo No entanto natildeo significa que seja possiacutevel fazer uma divisatildeo clara colocando os Evangelhos canocircnicos de um lado e os apoacutecrifos de outro uma vez que segundo Sanders haacute material lendaacuterio e criaccedilatildeo posterior nos Evangelhos do Novo Testamento Natildeo obstante eacute nos quatro Evangelhos que devemos buscar traccedilos do Jesus histoacuterico conclui Sanders (Sanders 2005 p 88-89)
51
Leif E Vaage eacute mais radical chegando afirmar que todos os escritos cristatildeos
primitivos que tratam da infacircncia de Jesus satildeo apoacutecrifos Segundo ele inclusive os
Evangelhos canocircnicos (Vaage 2007 p 38) Vaage baseia seu argumento no fato de
que nenhum dos Evangelhos relata realmente como foi a gravidez nascimento e
infacircncia de Jesus Por isso natildeo podem ser considerados historicamente
ldquoautecircnticosrdquo No entanto temos um olhar mais positivo sobre os apoacutecrifos em Jacir
de Freitas Faria Para ele noacutes podemos encontrar nos apoacutecrifos ldquovalores que a
piedade popular conservou como dogma de feacuterdquo (Faria 2007 p9) Na visatildeo de Faria
se natildeo fossem os apoacutecrifos do Novo Testamento natildeo saberiacuteamos os nomes de
pessoas como os avoacutes de Jesus dos reis magos dos dois ladrotildees da cruz e outros
nomes relacionados aos cristatildeos do primeiro seacuteculo
Os evangelhos27 por certo satildeo a histoacuteria do Jesus terreno contudo segundo
Bornkamm vale ressaltar que os Evangelhos satildeo histoacuteria mas natildeo no sentido da
histoacuteria moderna ou seja ldquoos evangelistas natildeo eram historiadores de profissatildeo e a
tradiccedilatildeo popular estaacute sempre sujeita a mudanccedilas no processo de transmissatildeordquo
(Bornkamm 1981 p35) Os evangelhos prossegue Bornkamm ldquonatildeo podem ser
classificados entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos como
Tuciacutedides Poliacutebio e Taacutecito nem entre biografias contemporacircneas como As Vidas
dos Ceacutesares de Suetocircnio [cerca de 70-140 dC] rdquo (1981 p35)
Sanders analisando a natureza do material evangeacutelico considera tal tarefa
como uma das mais desafiadoras a ser realizada pelo pesquisador Ainda que a
opiniatildeo dele sobre as fontes seja positiva ele natildeo deixa de enumerar alguns
aspectos considerados problemaacuteticos ou negativos conforme resumimos abaixo
1) Os primeiros cristatildeos natildeo escreveram uma narrativa (histoacuteria) da vida
de Jesus mas escreveram pequenas passagens sobre as suas
palavras e obras Essas pequenas partes foram mais tarde
organizadas pelos autores dos Evangelhos Isso significa que nunca
poderemos estar tatildeo perto do contexto imediato dos ditos e feitos de
Jesus
27
Conforme Marconcini (2009 p 6) o termo evangelho encontra-se doze vezes nos sinoacuteticos das quais quatro vezes em Mateus (423 9 35 24 14 26 13) em Marcos oito vezes (114-15 835 1029 1310 149 1615) a palavra vem sempre da boca de Jesus com exceccedilatildeo de Marcos 11 Jaacute no Evangelho de Lucas prevalece o verbo evangelizar que aparece dez vezes (119 210 318 41843 722 81 96 1616 201)
52
2) Os primeiros cristatildeos revisaram alguns materiais e criaram outros
3) Os Evangelhos foram escritos de forma anocircnima28
4) O Evangelho de Joatildeo eacute muito diferente dos outros trecircs Evangelhos e eacute
principalmente nesse Evangelho que devemos buscar informaccedilotildees
sobre Jesus
5) Aos Evangelhos faltam muitas caracteriacutesticas para ser uma biografia e
temos que distingui-los das biografias modernas (cf Sanders 2005 p
81-82)
A partir dos dados acima observamos que os Evangelhos realmente natildeo
satildeo histoacuteria no sentido moderno do termo No entanto conforme Martins Terra
devemos aplicar a criteriologia moderna de atestar a autenticidade dos escritos ou
seja aquela que estaacute focada mais nos criteacuterios internos29 do que nos criteacuterios
externos mas sempre tendo como base os testemunhos histoacutericos (Martins Terra
1977 p126)
Segundo Latourelle a criacutetica externa analisa os Evangelhos a partir dos
escritos extra-evangeacutelicos (Cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos) e sobretudo a
partir dos testemunhos das Igrejas poacutes-apostoacutelicas (II e III seacuteculos) enquanto que a
criacutetica interna apoia-se no proacuteprio texto (anaacutelise do tecido literaacuterio estudo do
conteuacutedo) Para esse teoacutelogo a criacutetica externa sempre obteve ecircxito em relaccedilatildeo agrave
critica interna mas nos dias atuais essa situaccedilatildeo tem mudado ou seja a criacutetica
interna tem se sobreposto agrave critica externa No entanto Latourelle prefere ficar em
um meio termo e mesmo que a criacutetica externa esteja em decadecircncia Latourelle vecirc
trecircs pontos importantes que podem ser explorados nela ldquosobre os autores dos
28
Sanders referindo-se a autoria dos Evangelhos diz que natildeo sabemos quem realmente satildeo os autores Mateus e Joatildeo foram disciacutepulos de Jesus Marcos foi seguidor de Paulo e possivelmente tambeacutem de Pedro jaacute Lucas foi um dos convertidos (disciacutepulos) de Paulo Mateus Marcos Lucas e Joatildeo realmente existiram mas natildeo podemos afirmar que eles escreveram os Evangelhos Existem provas que os Evangelhos permaneceram sem tiacutetulo de autoria ateacute a metade do seacuteculo II dC e eram sempre citados anonimamente A nomenclatura segundo Mateus segundo Marcos segundo Lucas segundo Joatildeo apareceram de repente por volta do ano 180 em meio ao grande nuacutemero de evangelhos escritos a Igreja teve que decidir quais deles seriam canocircnicos e diante de diferentes opiniotildees os que pensavam que apenas os quatro citados acima eram os que testemunhavam sobre Jesus com autoridade ganharam a questatildeo (cf Sanders 2005 p 87-88)
29 Segundo Martins Terra ldquoa criacutetica interna procura refazer na medida do possiacutevel a histoacuteria das
tradiccedilotildees [traditionsgeschichte] e separar os elementos redacionais [=dos evangelistas] dos elementos provenientes da tradiccedilatildeo anterior ateacute seus estratos mais primitivos Admite-se pois como vaacutelida a ideia fundamental da histoacuteria das formas (formgeschichte e da histoacuteria da redaccedilatildeo [Redaktionsgeschichte])rdquo (Martins Terra 1977 p 126)
53
Evangelhos sobre a autoridade desses na Igreja dos primeiros seacuteculos e sobre a
atitude da Igreja perante as tendecircncias deformadoras dos apoacutecrifos e dos escritos
gnoacutesticosrdquo (Latourelle 1989 p118)
Latourelle observa que ldquoa tradiccedilatildeo tem a tendecircncia de individualizar os
autores e colocaacute-los em relaccedilatildeo iacutentima com uma autoridade apostoacutelicardquo (Latourelle
p118) Um argumento bem aceito pela criacutetica contemporacircnea eacute de que documentos
- o Cacircnon Muratori os proacutelogos antimarcionistas - e os antigos teoacutelogos da Igreja
(Paacutepias Irineu de Liatildeo) - aceitaram Marcos e Lucas como autores dos Evangelhos
que levam os seus nomes porque eles realmente satildeo os verdadeiros autores O
raciociacutenio para defender essa tese conforme expotildee Latourelle eacute que se os teoacutelogos
da patriacutestica (seacuteculo II) tivessem interesse em ldquofalsificarrdquo a autoria dos Evangelhos
para dar maior credibilidade aos mesmos teriam dado a esses dois nomes de
apoacutestolos que conviveram com Jesus e natildeo de testemunhas indiretas como nos
casos de Marcos e Lucas Partindo desse raciociacutenio Latourelle citando Descamps
conclui ldquose as Igrejas do seacuteculo II mantiveram os nomes de Marcos e Lucas como
autores fizeram-no sem duacutevida sob a pressatildeo dos fatosrdquo (Latourelle 1989 p 18)
Segundo Bornkamm ldquoeacute significativo que os evangelhos satildeo anocircnimos e que
os nomes (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo) foram dados para aleacutem do seacuteculo II O
evangelho de Lucas eacute o que mais se aproxima da historiografiardquo (Bornkamm 1981
p35) Aparentemente os Evangelhos datildeo a impressatildeo de continuidade mas os
textos natildeo oferecem um fundo real de uma histoacuteria reconstituiacutevel (Bornkamm 1981
p37) Um fato importante a se observar satildeo as legendas ou seja a forma como
fatos da vida de Jesus ou de personagens do Novo Testamento foram contados
(Bornkamm 1981 p41) O narrador natildeo estaacute preocupado em escrever histoacuterias
mas com a santidade e a piedade exemplar dessas figuras Em alguns casos
chamamos legenda ou embelezamento Bornkamm acredita que temos boas razotildees
para confiar na memoacuteria simples dos disciacutepulos contudo ldquonatildeo devemos subestimar
a influecircncia da feacute poacutes-pascal mesmo com a tradiccedilatildeo passada de matildeo em matildeosrdquo
(Bornkamm 1981 p 43)
A tradiccedilatildeo como vimos acima esforccedila-se para aproximar os Evangelhos das
testemunhas oculares e supervaloriza a qualidade das testemunhas fazendo de
Marcos um porta-voz de Pedro quando Marcos eacute muito mais um relator fiel da
54
pregaccedilatildeo da comunidade primitiva30 A tradiccedilatildeo tambeacutem atribui o primeiro Evangelho
a Mateus e o uacuteltimo a Joatildeo Poreacutem Bornkamm partindo do princiacutepio da teoria das
duas fontes analisa a origem dos Evangelhos especificamente os sinoacuteticos da
seguinte forma dentre as teorias a respeito da formaccedilatildeo dos Evangelhos a mais
aceita e mais coerente eacute a teoria das duas fontes Segundo essa teoria Marcos eacute o
Evangelho mais antigo ele forma a base dos outros dois Evangelhos ldquomaioresrdquo e
estaacute inserido neles Aleacutem de usarem Marcos tanto Mateus como Lucas fizeram uso
independente de uma segunda fonte isso se pode ver pelos muitos ditos e grupos
de ditos natildeo encontrados em Marcos que eles tecircm em comum (Bornkamm 1981
p31) De acordo com J Jeremias Marcos escreveu em grego mais primitivo e
serviu de base para os outros dois Isso comprova que ele eacute o Evangelho mais
antigo O Evangelho de Mateus eacute um Evangelho de Marcos reelaborado
estilisticamente e acrescido de material novo que daacute mais da metade de Marcos
Seguindo a linha de pesquisa da teoria das duas fontes verificamos que mesmo que
Mateus e Marcos discordem de Lucas na ordem dos acontecimentos ou Lucas e
Marcos estejam em discordacircncia em relaccedilatildeo a Mateus dificilmente Mateus e Lucas
juntos oponham-se a Marcos
Haacute poreacutem algumas hipoacuteteses contraacuterias a teoria das duas fontes e elas se
apoiam no testemunho de Papias bispo de Hieraacutepolis na Friacutegia que compocircs por
volta de 130 uma exegese dos oraacuteculos do Senhor conforme relatado por Euseacutebio
de Cesareia em a ldquoHistoacuteria da Igrejardquo Eis o que dizia o Presbiacutetero
Marcos que era o inteacuterprete de Pedro escreveu com exatidatildeo no entanto sem ordem tudo o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor mais tarde poreacutem como jaacute disse ele acompanhou Pedro Este ministrava seus ensinamentos segundo as necessidades mas sem fazer uma siacutentese das palavras do Senhor Desse modo Marcos natildeo cometeu erro escrevendo como se lembrava Seu uacutenico propoacutesito foi nada omitir do que havia ouvido e em nada enganar no que relatava (Latourelle 1989 p121-122)
30
Martins Terra comentando sobre a tradiccedilatildeo sobre os Evangelhos observa que ldquohoje em dia se insiste mais na inspiraccedilatildeo do livro do que no autorrdquo O problema consiste no fato de os Evangelhos terem sido escritos depois de 30 anos de pregaccedilatildeo da Igreja e da tradiccedilatildeo oral Muitas coisas devem ser levadas em consideraccedilatildeo quando se trata da autoria dos Evangelhos uma vez que haacute vaacuterios niacuteveis de mediaccedilotildees que devem ser levados em consideraccedilatildeo (cf Martins Terra 1977 p 125)
55
Segundo Euseacutebio baseado no testemunho de Papias foi Mateus quem
colocou em ordem os oraacuteculos do Senhor em liacutengua hebraica31 Qualquer que seja a
data e o conhecimento de Papias aquilo que ele de fato escreveu estaacute em nosso
alcance apenas em citaccedilotildees de Euseacutebio Os livros de Papias (logiotilden Kyriakotilden
Exegesis Exegese das Logia do Senhor) sobreviveram ateacute a Idade Meacutedia em
algumas bibliotecas da Europa mas natildeo mais existem (Carson et al 1997 p75)
Dalman (1902 p 87) fazendo uma anaacutelise sobre os testemunhos a favor da
teoria que se refere agrave origem aramaica dos Evangelhos eacute categoacuterico em afirmar
que aleacutem do bem conhecido depoimento de Euseacutebio noacutes natildeo temos nenhum traccedilo
a favor da existecircncia de um Evangelho escrito em liacutengua semiacutetica Ateacute mesmo
Jerocircnimo deve ter se enganado em ter dito que o Evangelho original de Mateus
escrito em hebraico ainda existia em seus dias Para Dalman mesmo os vaacuterios
textos dos Evangelhos em aramaico que satildeo conhecidos hoje e ateacute mesmo o texto
que Jerocircnimo usava em aramaico era derivado dos originais gregos
Temos ainda um segundo testemunho da origem dos Evangelhos dado por
Clemente de Alexandria conforme descrito por Euseacutebio na obra Histoacuteria da Igreja
Segundo Euseacutebio Clemente cita uma tradiccedilatildeo dos Anciatildeos a respeito da ordem dos
Evangelhos Conforme essa teoria os Evangelhos que compreendem as
genealogias foram escritos primeiro (Mateus e Lucas) jaacute o Evangelho de Marcos foi
escrito nas seguintes circunstacircncias O apoacutestolo Pedro pregou em Roma e expocircs
publicamente sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo a doutrina evangeacutelica do
cristianismo primitivo Os numerosos ouvintes de Pedro exortaram a Marcos a
transcrever as palavras do apoacutestolo jaacute que aquele tinha acompanhado Pedro por
muito tempo e por certo tinha vivo em sua mente muito do que o apoacutestolo Pedro
havia dito Todavia segundo Euseacutebio quando Pedro soube disso nada fez por meio
de seus conselhos para impedi-lo disso ou para forccedilaacute-lo a isso32
Esse testemunho como o de Papias referem-se aos Anciatildeos isto eacute a
homens da segunda geraccedilatildeo cristatilde A tradiccedilatildeo posterior natildeo faraacute mais do que
retomar esses argumentos
31
Cf Eusebius the Church History translation and commentary by Paul L Maier 2007 p 114 32
Cf Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p 1690 citaccedilatildeo da Hist Ecl IV 14 5-7
56
Papias e Clemente estatildeo de acordo em atribuir a composiccedilatildeo de um dos evangelhos a Marcos disciacutepulo de Pedro (cf 1Pd 5 13) cuja pregaccedilatildeo ele havia escrito Vindo de duas fontes arcaicas diferentes esta informaccedilatildeo pode ser considerada como certa Conforme Clemente Marcos teria escrito enquanto Pedro ainda vivia uma vez que ele estava por outro lado mais ou menos desinteressado desse empreendimento Papias natildeo nos daacute nenhuma informaccedilatildeo expliacutecita sobre este ponto Seu texto permite ao contraacuterio pensar que Marcos havia escrito depois da morte de Pedro e eacute neste sentido que interpretaratildeo Irineu de Liatildeo e o mais antigo Proacutelogo evangeacutelico que nos chegou (fim do seacuteculo II) Papias natildeo nos diz onde Marcos escreveu o seu Evangelho Clemente precisa que foi em Roma onde Pedro exercia o seu ministeacuterio Este pormenor retomado na tradiccedilatildeo posterior parece exato pois o Evangelho de Marcos conteacutem certo nuacutemero de termos gregos que satildeo apenas transcriccedilatildeo do latim (Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p1690)
Apesar de todo o complexo em torno das fontes atualmente a teoria das
duas fontes eacute a mais aceitaacutevel Para Bornkamn haacute tantos paralelos entre Mateus e
Lucas que podemos confiar que tal fonte existiu O que natildeo podemos saber eacute em
que extensatildeo ela jaacute tinha adquirido uma forma literaacuteria fixa Uma coisa eacute certa ela
deve ter sido bem diferente do Evangelho de Marcos Eacute possiacutevel ter certeza que a
fonte Q natildeo era um Evangelho acabado como o Evangelho de Marcos o eacute O modo
como Q eacute usada em Mateus e Lucas mostra como os dois evangelistas a trataram
com mais liberdade do que fizeram com Marcos Isso eacute verdade tanto com
referecircncia ao teor verbal quanto agrave sequecircncia do material Marcos e Q
absolutamente natildeo exaurem as fontes da tradiccedilatildeo sinoacutetica Mesmo Marcos tem
material proacuteprio Lucas eacute quem possui mais cobrindo tanto o ministeacuterio terreno
como as narrativas pascais bem como o material consideraacutevel que ele inseriu na
moldura criada por Marcos
A noccedilatildeo de autoria natildeo resiste aos dados da criacutetica contemporacircnea Os
Evangelhos de Mateus e Joatildeo natildeo possuem nenhuma evidecircncia interna que possa
atribuir a eles a autoria e da mesma forma Lucas e Joatildeo Segundo Latourelle a
criacutetica duvida que eles tenham sido testemunhas ateacute mesmo de segunda matildeo No
entanto a criacutetica reconhece que o autor do primeiro Evangelho era um judeu de
liacutengua grega profundamente conhecedor do judaiacutesmo de sua eacutepoca A criacutetica
tambeacutem reconhece Lucas como o meacutedico e companheiro de Paulo assim como
reconhece Marcos como companheiro de Paulo e sua influecircncia sobre os
evangelhos de Mateus e de Lucas Quanto agrave influecircncia de Pedro sobre o Evangelho
de Marcos a mesma eacute contestada pela criacutetica visto que Marcos parece ser mais um
57
relator e transmissor da pregaccedilatildeo da Igreja primitiva aleacutem de parecer ter sofrido
mais a influecircncia de Paulo
A contribuiccedilatildeo da patriacutestica testemunhada pelos pais da Igreja jamais pode
ser descartada por mais acriacutetica e ingecircnua que pareccedila ser visto que eles viveram
bem proacuteximos dos acontecimentos registrados nos Evangelhos
A importacircncia dos escritos antigos a respeito dos Evangelhos foi a resposta
da igreja aos hereges e aos evangelhos apoacutecrifos O exagerado embelezamento que
os apoacutecrifos criam para ldquocomplementarrdquo os Evangelhos canocircnicos obrigou a Igreja a
criteriosamente separar os Escritos canocircnicos dos apoacutecrifos Para Bornkamm a
formaccedilatildeo do cacircnon do Novo Testamento sempre foi um processo de separar e
nunca de juntar Conforme esse teoacutelogo seria mais viaacutevel perguntar se um livro
deveria estar no cacircnon do Novo Testamento do que perguntar por que determinado
livro natildeo faz parte dele
A Igreja tambeacutem teve que combater o gnosticismo que estava tentando minar
a veracidade dos Escritos Sagrados principalmente com Marciatildeo que com seu
dualismo ldquoopotildee o Deus bom do Novo Testamento ao Deus justo do Antigo
Testamentordquo (Latourelle 1989 p124) A Igreja entatildeo saiu em defesa do
cristianismo autecircntico levantando o estandarte dos quatro Evangelhos como os
uacutenicos reconhecidos como a ldquoautecircntica mensagem de Cristo reconhecida e
ensinada pela tradiccedilatildeo viva da igreja O criteacuterio decisivo eacute o acordo entre os
Evangelhos e a tradiccedilatildeo apostoacutelica que por sua vez se refere ao Cristo vivordquo
(Latourelle 1989 p125)
Eacute vaacutelido observar que os evangelhos sinoacuteticos33 satildeo compostos de ldquotradiccedilotildees
isoladas chamadas de periacutecopesrdquo Essas periacutecopes geralmente tecircm uma
conotaccedilatildeo teoloacutegica e natildeo necessariamente cronoloacutegica ldquoNa verdade muitas
periacutecopes incluem indicaccedilotildees topograacuteficas (no mar da Galileia em Cafarnaum
etc) mas a maioria delas natildeo eacute bem determinada Outro fato a se observar eacute que
nos sinoacuteticos Jesus se dirige a Jerusaleacutem uma uacutenica vez poreacutem em Joatildeo lsquovemos
Jesus se dirigindo a Jerusaleacutem repetidas vezesrsquordquo Segundo Gnilka o importante natildeo
eacute a exatidatildeo do itineraacuterio mas sim a reflexatildeo teoloacutegica (Gnilka 2000 p 24) No
33
O nome sinoacuteticos foi dado aos trecircs primeiros Evangelhos pelo pesquisador alematildeo J J Griesbach em sua obra Synopsis evangeliorum [Sinopse dos Evangelhos] obra que foi publicada em Halle em 1976 (Cf Marconcini 2009 p 10)
58
entanto conforme Benito Marconcini haacute uma concordacircncia nos sinoacuteticos quanto agrave
sucessatildeo dos fatos no ministeacuterio de Jesus Conforme Marconcini ldquoJesus inicia seu
ministeacuterio na Galileia atravessa a Samaria e chega a Jerusaleacutem onde tem o
encontro com a morterdquo (Marconcini 2009 p 10)
O concilio do Vaticano II reproduziu na constituiccedilatildeo sobre a Revelaccedilatildeo o
resultado das pesquisas modernas sobre a Historicidade dos Evangelhos e sobre o
Jesus Histoacuterico conforme resumimos abaixo
a) Os quatro Evangelhos transmitem fielmente o que Jesus realmente fez e
ensinou para a eterna salvaccedilatildeo dos homens
b) Os Apoacutestolos depois transmitiram o que Jesus havia dito e feito ()
c) Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos selecionando
algumas coisas dentre as muitas que tinham sido transmitidas oralmente ou por
escrito sintetizando outras ou adotando-as agraves situaccedilotildees das igrejas (Martins Terra
1977 p 129)
Seria imprudente buscar nos Evangelhos fatos como se busca numa revista
ou jornal de grande circulaccedilatildeo internacional moderna como New York Times por
exemplo Contudo segundo Swidler devemos olhar os quatro Evangelhos como
uma variedade de fontes orais e escritas que apoacutes um periacuteodo de tempo foram
redigidas conforme as necessidades sentidas pelas comunidades e indiviacuteduos da
eacutepoca No entanto fica claro que essa visatildeo criacutetica (moderna) dos Evangelhos natildeo
invalida o caraacuteter histoacuterico desses escritos Eles retratam com muito maior exatidatildeo
sob o ponto de vista histoacuterico-religioso (teoloacutegico) o que Jesus queria dizer com
certas declaraccedilotildees e accedilotildees relatadas pelas primeiras comunidades da Igreja
Primitiva (cf Swidler 1993 p104-105)
Natildeo podemos menosprezar a capacidade da comunidade cristatilde primitiva de
memorizar os fatos relacionados agrave vida de Jesus mas por outro lado natildeo podemos
negligenciar a limitaccedilatildeo humana em memorizar acontecimentos histoacutericos
Raciocinando dessa forma pode-se deduzir que com certeza muitas dessas
recordaccedilotildees natildeo foram transmitidas e nem registradas Eacute evidente que nem todas as
paraacutebolas foram registradas isso estaacute claro em Marcos 433 onde se lecirc ldquoE com
muitas paraacutebolas como esta anunciava-lhes a palavra segundo podiam entenderrdquo
ldquoPodemos partir do pressuposto de que nos evangelhos ficaram conservadas as
59
paacuteginas da atuaccedilatildeo e dos discursos de Jesus que satildeo de decisiva importacircncia para
a nossa feacuterdquo (Gnilka 2000 p25)
44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS
Jesus segundo Gnilka (2000 p35-36) viveu durante o governo de dois
imperadores romanos ldquoo de Otaviano Augusto (27 aC - 14 dC) e o de Tibeacuterio (14-
37)rdquo Nenhum dos dois esteve nessas paragens orientais do Impeacuterio nenhum dos
dois pisou territoacuterio da Siacuteria ou da Palestinardquo A histoacuteria de Jesus estaacute intimamente
ligada agrave famiacutelia Herodes Jesus nasceu sob o governo de Herodes o Grande filho
de Antiacutepater de origem idumeia Por decisatildeo do senado romano e tambeacutem por
iniciativa dos triuacutenviros Antocircnio e Otaviano e mais tarde Augusto pelo fim do ano 40
aC Herodes foi nomeado rei da Judeia
Apoacutes a morte de Herodes o Grande em 4 aC inicia-se uma disputa entre
seus filhos pela sucessatildeo que culminou na divisatildeo do poder entre os descendentes
de Herodes pelo imperador Historicamente dentre os filhos de Herodes o que mais
nos interessa eacute Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) que ficou como tetrarca da
Galileia Dentre os feitos de Antipas podemos citar a reconstruccedilatildeo da cidade de
Seacuteforis e a fundaccedilatildeo da cidade de Tiberiacuteades agrave margem do lago de Genezareacute
cidade que recebeu esse nome em honra ao Imperador Tibeacuterio Foi essa cidade
construiacuteda sobre um cemiteacuterio que Antipas escolheu para residecircncia oficial
tornando-a impura aos olhos dos Judeus crentes por causa das leis leviacuteticas (Gnilka
2000 p 39)
Herodes Antipas ficou conhecido por mandar matar Joatildeo Batista conforme o
relato nos evangelhos (Mc 617-29 Mt 14 3-12) e tambeacutem por Flaacutevio Josefo34 Os
motivos da morte de Joatildeo Batista nos evangelhos satildeo diferentes dos motivos
expostos por Josefo visto que Josefo coloca questotildees poliacuteticas como a principal
causa da execuccedilatildeo de Joatildeo jaacute que Antipas temia uma revolta poliacutetica a partir do
movimento do Batista Para Jesus Antipas tambeacutem tornou-se perigoso ldquoSegundo
Lc 1331 Jesus eacute aconselhado a sair de seu territoacuterio porque o priacutencipe pretendia
mataacute-lordquo (Gnilka 2000 p 40)
34
Cf Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 5 p 594-597
60
Na Judeia a situaccedilatildeo poliacutetica e religiosa era caoacutetica Arquelau (4 aC ndash 6
dC) filho de Herodes o Grande logo depois de ser instituiacutedo etnarca da Judeia e
Idumeia devido a sua extrema tirania tornou-se insuportaacutevel para os judeus a
ponto de um grupo desses ir ateacute Roma para denunciaacute-lo pela forma tiracircnica de
governar bem como a liberdade que tomou para depor e instituir sacerdotes no
templo em Jerusaleacutem Judeia Samaria e Idumeia passam a ser administradas
diretamente por Roma apoacutes Arquelau ser deposto (Gnilka 2000 p 41-42)
Eacute a partir de toda essa confusatildeo que entra em cena a figura de Pocircncio
Pilatos como governador da Judeia (praefectus Judaeae) Nessa eacutepoca tanto o
poder poliacutetico quanto o religioso eram controlados diretamente por Roma ldquoNo
templo tinha que ser oferecido duas vezes por dia um sacrifiacutecio pelo imperador e
pelo povo romano Sobre a administraccedilatildeo das financcedilas do templo o governador
provavelmente tinha uma espeacutecie de supervisatildeo As nomeaccedilotildees dos sumos
sacerdotes tambeacutem eram feitas pelos romanos fosse atraveacutes do governador da
Siacuteria ou do governador da Judeia Isto foi assim nos anos 6-41 depois de Cristordquo
(Gnilka 2000 p 42-43)
O mais importante dos governadores da Judeia que foi contemporacircneo de
Jesus foi Pilatos que segundo os Evangelhos participou decisivamente na morte
de Jesus ldquoFilon de Alexandria caracteriza Pilatos como um homem de natureza
inflexiacutevel obstinado e duro e acusa-o de corrupccedilatildeo violecircncia roubo maus tratos
ofensas continuadas execuccedilotildees sem julgamento constante e insuportaacutevel
crueldaderdquo (Gnilka 2000 p 44) Os dez anos em que Pilatos governou a Judeia
nos quais Caifaacutes tambeacutem sempre foi o Sumo Sacerdote foram marcados pela
crueldade e imprevisibilidade ateacute que no ano 36 ele foi deposto apoacutes ter feito um
violento massacre de samaritanos enquanto esses escalavam o monte Garizim Pelo
fato de estarem armados Pilatos os interpretou mal e resolveu intervir
massacrando-os Mediante esse fato Pilatos foi chamado a Roma para depor diante
do imperador Tibeacuterio mas com a morte deste ele ldquodesaparece do palco da histoacuteria
Notiacutecias surgidas mais tarde dando conta de que ele teria se suicidado ou que teria
sido executado pelo imperador Nero devem ser creditadas a lenda cristatilderdquo (Gnilka
2000 p 44-45)
61
Abaixo segue um resumo do governo poliacutetico e religioso das regiotildees e
cidades com as quais Jesus conviveu (Gnilka 2000 p 47)
- Os herodianos Herodes o Grande (37-4 aC) Antipas (4 aC-39 dC
GalileiaPereia) Filipe (4 aC -34 dC GaulaniacutetideBataneia Arquelau (4 aC -6 C
JudeiaSamariaIdumeia)
- Os Governadores na JudeiaSamariaIdumeia Copocircnio (6-9) Marcos
Antiacutebulo (circa 9-12) Acircnio Rufo (circa 12-15) Valeacuterio Grato (15-26) Pocircncio Pilatos
(26-36)
- Os sumos sacerdotes em Jerusaleacutem Simatildeo ben Boethos (24-5 aC)
Matias ben Theophilos (5-4) Joseacute bem Ellem (exerceu soacute por uma festa) Joazar ben
Boethos (4 aC) Eleazar ben Boethos (4 aC -) Jesus ben sieuml (tempo de cargo
desconhecido) Joazar ben boethos (no cargo pela segunda vez de -6 d C) Anaacutes
ben Sethi (6-15 d C) Ismael bem Phiabi (15-16) Eleazar ben Kamithos (17-18)
Joseacute Caifaacutes (18-36)
Jerusaleacutem era a cidade onde giravam os grandes acontecimentos da
Palestina era considerada a cidade santa natildeo somente por ser administrada
politicamente por Herodes o grande jaacute que muito antes dele a cidade jaacute havia se
transformado no centro espiritual e religioso do Judaiacutesmo A cidade no tempo dos
gregos e romanos tinha de certa forma uma feiccedilatildeo internacional Jesus entrou na
cidade foi aclamado mas logo rejeitado e entregue para ser morto pelo grupo dos
religiosos encarregados de todos os rituais do Templo (Gnilka 2000 p 49)
45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS
Jesus viveu num contexto muito religioso Foi apresentado no templo
circuncidado ao oitavo dia conforme a tradiccedilatildeo da religiatildeo judaica Sempre houve
uma tendecircncia de separar Jesus do contexto judaico tanto por judeus como por
cristatildeos Swidler pontua que os cristatildeos historicamente natildeo somente procuraram
mostrar que tudo o que Jesus fez era bom como procuraram demonstrar que tudo o
que ele fez foi oposto ao modo de agir dos judeus Por outro lado os judeus
aceitaram a interpretaccedilatildeo cristatilde que via Jesus como um antijudeu Atualmente as
coisas estatildeo mudando judeus tecircm visto Jesus como um autecircntico judeu enquanto
que um grande nuacutemero de estudiosos cristatildeos estatildeo convencidos de que soacute se pode
62
compreender adequadamente Jesus contextualizando-o num ambiente e como um
autecircntico Judeu (Swidler 1993 p108)
O Judeu Geza Vermes (com formaccedilatildeo cristatilde) no proacutelogo de seu livro o
ldquoAutecircntico Evangelho de Jesusrdquo relata que desde o fim da deacutecada de 1960 vem se
dedicando a pesquisar sobre Jesus indiferente agraves tradiccedilotildees cristatildes e judaicas a
respeito da pessoa do nazareno Vermes assim se expressa ldquoatuando como
historiador simpatizante e descartando vieses denominacionais tanto a deificaccedilatildeo
de Jesus pelos cristatildeos como a sua caricatura judaica tradicional como apoacutestata
maacutegico e inimigo do povo de Israel eu apenas tentei tirar a limpo e reconstruir uma
imagem de Yeshua filho de Joseacute do pequeno povoado galileu de Nazareacute (Vermes
2006 p7)
Digno de nota eacute que sendo Jesus judeu da Palestina judaica do primeiro
seacuteculo ldquona divisatildeo temporal feita em torno delerdquo (Vermes 2006 p7) obviamente
Jesus conviveu com os diversos grupos existentes na Palestina Conforme os
Evangelhos as relaccedilotildees de Jesus com os liacutederes dos movimentos religiosos nem
sempre foram amistosos Segundo Gnilka diversos eram os movimentos e grupos
poliacuteticos-religiosos nos dias de Jesus Quase todos provieram dos chassidim (os
piedosos) que haviam apoiado a resistecircncia dos macabeus e tambeacutem resistiram agrave
usurpaccedilatildeo dos asmoneus Desse movimento surgiu a maioria dos grupos religiosos
contemporacircneos de Jesus Esses grupos a maioria citados nos evangelhos satildeo
denominados de essecircnios fariseus saduceus e zelotes (Gnilka 2000 p52-53)
Enumerar esses grupos em relaccedilatildeo ao grau de importacircncia que eles exerciam
na sociedade judaica natildeo eacute uma tarefa faacutecil Diversas satildeo as hipoacuteteses levantadas
pelos pesquisadores a respeito de cada um dos grupos acima mencionados
Saldarini observa o fato de os escribas serem vistos como um grupo coeso apenas
no Novo Testamento sendo que em outras fontes eles satildeo vistos como um grupo
composto por pessoas desde a classe de altos funcionaacuterios ateacute a funccedilatildeo de um
humilde copista Outro fator que o autor observa eacute que para Josefo as trecircs
principais escolas de pensamento judaico dos dias de Jesus eram os fariseus os
saduceus e os essecircnios quando no Novo Testamento os principais oponentes de
Jesus satildeo os fariseus escribas e saduceus (Saldarini 2005 p 15)
63
451 OS ESSEcircNIOS
Dentre os grupos religiosos que temos mencionado os essecircnios satildeo os
menos conhecidos se levarmos em consideraccedilatildeo que a biacuteblia natildeo os menciona
contudo eles tecircm despertado muito interesse desde que foram descobertos os
manuscritos nas cavernas de Qumran em 1947 O jovem Mohammed ed-Dib (= ldquoo
lobordquo) conforme a descriccedilatildeo feita por J Jeremias (Jeremias 2006 p 401-429 cf
Jeremias 1979 p 117-148) tornou-se o grande protagonista talvez da maior
descoberta do seacuteculo concernente agrave literatura religiosa ou por que natildeo dizer
universal J Jeremias nos fornece alguns detalhes sobre a importacircncia das
descobertas de Qumran e o judaiacutesmo contemporacircneo de Jesus Depois que
Mohammed descobriu a primeira gruta outras dez foram descobertas sendo ateacute
hoje numeradas de 1 a 11 O papel dos beduiacutenos foi fundamental nas descobertas
visto que sem a busca incessante deles a maioria dos rolos natildeo teriam sido
descobertos Os manuscritos satildeo em um nuacutemero de aproximadamente 600 Mesmo
que a maioria seja apenas de fragmentos alguns do tamanho de uma unha mas
pelo menos uns dez encontram-se quase que totalmente preservados Eles satildeo
datados do periacuteodo que se compreende do seacuteculo III aC ao seacuteculo I da era cristatilde
Atribui-se a produccedilatildeo dos textos e o armazenamento deles em grutas aos essecircnios
conforme nos descreve J Jeremias citando a ldquoHistoacuteria Natural de Pliacutenio
A margem ocidental (do Mar Morto) fora do alcance da influecircncia nociva (de suas aacuteguas) estatildeo estabelecidos os essecircnios Eacute um agrupamento de solitaacuterios uacutenico no mundo sem mulheres ndash pois renunciam ao amor sexual e sem dinheiro eles vivem na sociedade das palmeiras (Embora se abstenham do casamento) o nuacutemero de seus adeptos se manteacutem e se renova cada dia pela afluecircncia daqueles que cansados de lutar contra as vagas de destino vecircm participar de sua vida Assim coisa incriacutevel eles permanecem atraveacutes de milhares de geraccedilotildees uma raccedila eterna ainda que natildeo existam nascimentos entre eles (V 1713)
Para J Jeremias natildeo haacute duacutevida que Pliacutenio se refere aos essecircnios mesmo
que por engano os tenha chamado de raccedila eterna Os essecircnios surgiram por volta
de 167-154 aC apoacutes Antiacuteoco Epifacircnio profanar o Templo de Jerusaleacutem Em 152
aC apoacutes a guerra com os siacuterios Jocircnatas Macabeus cinge a tiara de sumo
sacerdote mesmo natildeo pertencendo agrave descendecircncia dos sadoquitas que eram os
64
uacutenicos habilitados para exercer tal funccedilatildeo Uma revoluccedilatildeo acontece no coleacutegio
sacerdotal resultando na formaccedilatildeo de um grupo denominado de ldquoKhassyyayardquo os
piedosos que em grego satildeo denominados de ldquoessenoirdquo ou ldquoessaicircoirdquo conhecidos
hoje por essecircnios
Os essecircnios eram apocaliacutepticos esperavam o iminente fim deste mundo que
eles acreditavam estar bem proacuteximo Guardavam o saacutebado a ponto de natildeo ajudar
um animal no parto e nem socorrecirc-lo caso caiacutesse num buraco no dia de saacutebado
(Gnilka 2000 p 55-56) tambeacutem tinham como chefe um homem chamado com toda
reverecircncia nos rolos como o ldquoMestre da Justiccedilardquo ldquoo grande teoacutelogo e exegeta da
seitardquo (cf Jeremias 2006 p 408) Para Sean Freyne o chamado ldquoPapiro da Guerrardquo
(1QM) intitulado como ldquoA Guerra dos filhos da luzrdquo mostra como essa comunidade
apregoava um certo tipo de guerra coacutesmica parecida com a religiatildeo zoroaacutestrica da
Peacutersia onde a ecircnfase do conflito estaacute centrada na ideia de uma guerra do bem e o
mal (Freyne 2008 p26) J Jeremias define a teologia tambeacutem como uma doutrina
baseada em dois espiacuteritos ou seja no espiacuterito de Deus e no espiacuterito de Belial ou
seja no diabo e isso resulta na constante luta entre a Luz e as Trevas que tambeacutem
se desenrolam no interior do ser humano (Jeremias 2006 p 412) De acordo com J
Jeremias o dualismo essecircnio eacute monoteiacutesta conforme podemos ver em IQS 31517-
1925 abaixo reproduzido
Do Deus dos conhecimentos Vem tudo o que eacute tudo o que acontece e antes mesmo que as coisas existissem ele fixara todo o seu plano
Eacute ele quem criou o homem para dominar o mundo e pocircs diante de dois espiacuteritos para que ele ande neles ateacute ao momento fixado por sua divina visita
Satildeo os (dois) espiacuteritos de verdade e de iniquidade Da fonte da luz sai a verdade E da fonte das trevas sai a iniquidade Eacute ele (Deus) quem criou os espiacuteritos da luz e das trevas
65
Observamos acima algumas descriccedilotildees a respeito do grupo dos essecircnios
contudo segundo Freyne (Freyne 2008 p26) natildeo se pode resumir o pensamento
desse grupo com um periacuteodo de aproximadamente 200 anos de histoacuteria apenas em
um ponto de vista Isso pode ser visto por exemplo em 4Q 521 onde o texto
demonstra o anseio dos oprimidos por um messias libertador que venha ldquocurar os
feridos distribuir riquezas entre os necessitados conduzir de volta os exilados e
enriquecer os famintosrdquo ou ainda textos como 4Q 426 onde o ldquoGrande Deusrdquo trava
uma decisiva batalha contra as naccedilotildees e garante a paz definitiva ao seu povo O
que Freyne procura dizer eacute que o pensamento dos essecircnios eacute amplo demais para
ser resumido em poucas palavras contudo como natildeo eacute nosso interesse pesquisar a
fundo essa seita contentamo-nos a princiacutepio com algumas informaccedilotildees sobre
eles35
Ainda sobre os essecircnios sabemos por David Flusser que eles eram ferrenhos
inimigos dos fariseus uma vez que condenavam os feitos farisaicos energicamente
No Rolo de Accedilatildeo de Graccedilas (IQH) 4 6-8 estaacute escrito sobre os fariseus da seguinte
maneira ldquoE conduziram o povo por caminhos desviados ao lhes proferir discursos
macios Falsos mestres levam para maus caminhos e caminham cegamente para a
queda pois suas obras satildeo feitas no logrordquo (cf Flusser 2002 p 46)
Aleacutem do que jaacute foi dito sobre os essecircnios surge uma pergunta Ateacute que ponto
os essecircnios tiveram contato com Jesus ou seria Jesus membro da seita dos
essecircnios Segundo Charlesworth eacute possiacutevel que Jesus tenha encontrado alguns
essecircnios em suas idas e vindas no periacuteodo em que exerceu o seu ministeacuterio ou ateacute
antes disso Contudo natildeo podemos afirmar isso jaacute que os essecircnios natildeo satildeo
mencionados no Novo Testamento e na verdade natildeo temos certeza se eles
exatamente eram conhecidos (Charlesworth 1992 p76) Para Charlesworth o que
fica evidente eacute que os essecircnios e Jesus foram contemporacircneos o que nos leva a
deduzir que eacute muito provaacutevel que Jesus ao menos tenha ouvido falar deles e ateacute
conhecesse a doutrina rituais religiosos e haacutebitos sociais desse grupo
(Charlesworth 1992 p79)
Charlesworth enumera algumas semelhanccedilas e diferenccedilas entre Jesus e os
essecircnios 35
Para mais informaccedilotildees sobre os essecircnios ver (Jeremias 2006 p 401-429 e Charlesworth 1992 p 70-89)
66
a) Jesus partilha com os essecircnios de uma teologia monoteiacutesta
b) Como os essecircnios a teologia de Jesus era categoricamente escatoloacutegica
c) Jesus partilhava com os essecircnios uma total entrega a Deus e a Toraacute (Ele
pode ter se referido aos essecircnios quando elogiou os eunucos por causa do reino de
Deus cf Mt 19 10-12)
d) Jesus conforme o Evangelho de Marcos proibiu o divoacutercio (Mateus tornou-
a casuiacutestica Mt 5 31-32 199) assim como os essecircnios eram totalmente contraacuterios
ao divoacutercio ldquoo rei deve permanecer casado com apenas uma mulherrdquo (cf II Q
Temple 57 17-18)
f) Dos essecircnios Jesus rejeita a riacutegida observacircncia do Saacutebado
g) Jesus ao contraacuterio dos essecircnios aproximou-se de todas as classes
sociais inclusive de prostitutas e cobradores de impostos Aleacutem disso a visatildeo de
Jesus em relaccedilatildeo aos rituais de purificaccedilatildeo judaicos era muito diversa das dos
judeus
h) A atitude liberal de Jesus sobre a purificaccedilatildeo se contrastava com a
paranoia dos essecircnios principalmente em relaccedilatildeo ao afastamento das pessoas que
tinham lepra Em II Q Temple 48 14-15 eacute orientado a que existam cidades proacuteprias
para o isolamento dos leprosos enquanto que Jesus repousou em Betacircnia na casa
de Simatildeo o leproso (Mc 143)
i) Jesus enfatizou o amar uns aos outros (na paraacutebola do bom samaritano)
enquanto que os essecircnios na renovaccedilatildeo anual entoavam maldiccedilotildees sobre os filhos
das trevas especialmente sobre aqueles que natildeo eram essecircnios (1Qs) Jesus pode
ter se dirigido a eles quando se referiu ao dito ldquoamaraacutes o teu proacuteximo e odiaraacutes ao
teu inimigo (Mt 5 43)
Em resumo Charlesworth conclui que o cristianismo natildeo foi fundado com as
bases do essenismo conforme havia dito Renan em sua obra ldquoVida de Jesusrdquo
Jesus foi o fundador do cristianismo que foi fundado em meio agraves vaacuterias correntes
judaicas da eacutepoca sem que se possa mencionar uma uacutenica fonte como a trajetoacuteria
Jesus natildeo era um essecircnio ldquomas pode ter partilhado com os essecircnios mais do que a
mesma naccedilatildeo tempo e lugarrdquo (Charlesworth 1992 p 84-88)
452 OS FARISEUS
67
Os fariseus (pharushim ndash separados) - ldquoum grupo de estudiosos leigos que
apareceram na histoacuteria cerca de um seacuteculo e meio antes do nascimento de Jesus
() e se tornaram autoridades na vida dos judeus durante o reinado da rainha
Alexandra em (76-67 aC)rdquo (Swidler 1993 p 74) - nasceram do grupo dos chassidim
e eram em nuacutemero de seis mil pessoas em Jerusaleacutem nos dias de Jesus (Flusser
2002 p 44) Eles tambeacutem natildeo concordavam com a usurpaccedilatildeo por parte dos
asmoneus Segundo Gnilka a maioria dos escribas pertencia ao grupo dos fariseus
Em relaccedilatildeo aos saduceus os fariseus eram a maioria mas a influecircncia poliacutetica
destes era menor Jaacute o clima entre fariseus e essecircnios era hostil Os essecircnios
consideravam os fariseus com ldquogente que amolece e dissolve a lei e de quem se
pode esperar o logro mentira seduccedilatildeo e errordquo (Gnilka 2000 p57-60) Segundo
Flusser os fariseus eram denominados pelos essecircnios como ldquocaiadosrdquo e Jesus
tambeacutem se referiu a eles no Evangelho de Mateus 23 27-28 dizendo ldquoAi de voacutes
escribas e fariseus hipoacutecritas Sois semelhantes a sepulcros caiados que por fora
parecem bonitos mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidaderdquo
Embora o ataque dos essecircnios fosse em alguns pontos parecidos com a criacutetica que
Jesus fez contra os fariseus a distacircncia entre eles eacute muito grande Os essecircnios
rejeitavam explicitamente a doutrina dos fariseus ao passo que Jesus de uma
forma mais positiva via-os como os ldquoherdeiros contemporacircneos de Moiseacutesrdquo (cf
Flusser 2002 p46-48)
Os fariseus eram muito queridos pela maioria da populaccedilatildeo judaica devido agrave
devoccedilatildeo deles aos rituais religiosos Segundo Sanders no periacuteodo asmoneu os
fariseus tambeacutem exerceram uma influecircncia e forccedila poliacutetica muito importante ainda
que depois perderam tal forccedila No governo de Herodes somente o rei tinha o poder
poliacutetico uma vez que todos os que o ameaccedilassem eram imediatamente executados
Na Galileia o sucessor de Herodes foi seu filho Antipas que tambeacutem natildeo se mostrou
muito disposto assim como seu pai a dar autoridade a algum grupo de piedosos e
mestres religiosos Somente em Jerusaleacutem apoacutes Arquelau (irmatildeo de Antipas) ser
deposto eacute que os saduceus respaldados pelo poder romano puderam como grupo
religioso exercer forccedila poliacutetica Os fariseus mesmo sendo a maioria em relaccedilatildeo aos
saduceus continuaram apenas trabalhando ensinando e exercendo suas funccedilotildees
68
no culto judaico nas sinagogas A popularidade deles provavelmente aumentou
contudo natildeo o poder poliacutetico (cf Sanders 2005 p68)
A visatildeo de Saldarini sobre os fariseus compactua com Sanders a respeito da
popularidade dos fariseus Ele observa que para o evangelista Marcos os fariseus
eram um grupo muito reconhecido na comunidade da Galileia Jesus um jovem
oriundo de uma famiacutelia de artesatildeos considerada uma classe inferior na Palestina
natildeo dispunha da mesma honra dada aos fariseus principalmente em Nazareacute sua
terra natal Mas com o decorrer do tempo Jesus atraveacutes de seu ministeacuterio
conseguiu a simpatia de muitos seguidores em outras cidades da Galileia
contraindo para si o ciuacuteme a ira e a perseguiccedilatildeo dos fariseus O confronto dos
fariseus com Jesus a princiacutepio estava baseado em temas teoloacutegicos a respeito do
Jejum (Mc 218) da observacircncia do saacutebado (Mc 224 32) e sobre o divoacutercio (Mc
102) da purificaccedilatildeo das matildeos (Mc 71) e outros temas relacionados com respeito agrave
conduta de Jesus entre os homens considerados pecadores (Mc 216) etc Para os
fariseus no entanto o que estava em jogo natildeo eram apenas os debates teoloacutegicos
mas principalmente a simpatia e o controle da comunidade (Saldarini 2005 p 162-
164)
Para Saldarini os fariseus juntamente com os escribas eram os principais
opositores de Jesus na Galileia Em Jerusaleacutem os seus adversaacuterios tinham um
poder poliacutetico muito maior jaacute que entre eles estavam os chefes dos sacerdotes os
escribas e os anciatildeos do povo dentre os membros desses grupos principalmente
dos sacerdotes estavam os que entregaram Jesus agrave morte O evangelista Marcos
menciona os fariseus em cinco casos (2 18 224 32 811-15 102) e em todos os
casos eles estatildeo em conflito com Jesus36 Os escribas e fariseus juntos satildeo
mencionados duas vezes em Marcos tambeacutem quando estatildeo em conflito com Jesus
(216 7 1-5) Com os herodianos os fariseus satildeo mencionados duas vezes em
Marcos (36 1213) Para o evangelista Marcos os fariseus satildeo situados sempre na
36
Geza Vermes observa que no Evangelho de Mateus os fariseus natildeo satildeo sempre vistos no aspecto negativo Vermes vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e amor a Deusrdquo eles por outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser seguida
69
Galileia (3 2-6 7 1-5 2 18-24 811 102) A uacutenica exceccedilatildeo no evangelho de
Marcos eacute quando os fariseus e os herodianos satildeo enviados a Jesus a fim de
apanhaacute-lo em Jerusaleacutem (1213) Ao contraacuterio de Josefo que situa os fariseus
sempre em Jerusaleacutem ao lado dos chefes dos judeus Marcos mostra-os sempre
ativos na Galileia (Saldarini 2005 p159-160)
Apesar dos fariseus estarem sempre em confronto com Jesus nos
Evangelhos alguns pesquisadores veem algumas semelhanccedilas entre o movimento
de Jesus e o movimento dos fariseus Swidler lista algumas semelhanccedilas entre os
dois grupos Segundo Swidler Jesus reinterpretou as Escrituras hebraicas de
maneira condizente com o meio social onde se encontrava Jesus tambeacutem participou
de refeiccedilotildees entre amigos do tipo farisaico Tambeacutem segundo Swidler eacute possiacutevel ver
semelhanccedilas na doutrina de Jesus a respeito do amor no Shema oraccedilatildeo do
monoteiacutesmo nas bem aventuranccedilas em questotildees relacionadas agrave ressurreiccedilatildeo
tambeacutem seria ver fortes indiacutecios de um espiacuterito farisaico na vida de Jesus (cf
Swidler 1993 p78)
Para fundamentar essa teoria Swidler busca outros pesquisadores como o
teoacutelogo catoacutelico Pawlikowski que chegou a concluir que natildeo seria errado ldquoconsiderar
o movimento de Jesus como uma parte do movimento farisaico geral embora em
muitos campos tivesse um ponto de vista diferenciadordquo Swidler ainda cita o
estudioso protestante E P Sanders referindo-se a ele como mais cauteloso sobre o
assunto abordado poreacutem natildeo hesita em afirmar tambeacutem que ele faz parte do
nuacutemero sempre crescente de especialistas que duvidam que tenham existido
ldquopontos importantes de oposiccedilatildeo entre Jesus e os fariseusrdquo (Swidler 1993 p78)
A forte tendecircncia de colocar Jesus como um judeu apenas corrobora o que
ele sempre foi um judeu e natildeo um cristatildeo uma vez que o cristianismo soacute veio a
existir apoacutes a morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus Entre os judeus catoacutelicos e
protestantes tecircm surgido renomados defensores da teoria Jesus dentro do
judaiacutesmo Swidler aleacutem de citar um catoacutelico e um protestante como referecircncia cita
ainda um judeu (Geza Vermes) para corroborar esse pensamento Vermes em seu
livro Jesus e o mundo do Judaiacutesmo descreve ldquoJesus era um hasid galileu nisso a
meu ver reside a sua grandeza e tambeacutem o germe de sua trageacutediardquo (Vermes 1996
p20)
70
Para Vermes contudo Jesus natildeo foi muito amado pelos fariseus porque
Jesus segundo a visatildeo e interpretaccedilatildeo biacuteblica dos fariseus desprezava
propositadamente alguns costumes tradicionais como sentar-se agrave mesa com
publicanos e prostitutas No entanto para Vermes natildeo parece que tenha havido
discoacuterdia entre Jesus e os fariseus em temas essenciais da religiatildeo e feacute judaica
Vermes define a relaccedilatildeo de Jesus com os fariseus da seguinte maneira ldquoNatildeo
obstante o conflito entre Jesus da Galileia e os fariseus de sua eacutepoca ter-se-ia
assemelhado em circunstacircncias normais agrave mera luta intestina de facccedilotildees
pertencentes ao mesmo corpo religioso como a que se travou entre caraiacutetas e
rabanitas na Idade Meacutedia ou entre os ramos ortodoxo e progressista do judaiacutesmo na
eacutepoca modernardquo (Vermes 1996 p20)
Vermes observa ainda que no Evangelho de Mateus os fariseus nem
sempre satildeo vistos no aspecto negativo Ele vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a
respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles
tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado
juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento
os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e a mor a Deusrdquo eles por
outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o
assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos
fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles
eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser
seguida (Vermes 2006 p98)
Segundo Swidler tanto os pontos positivos e os negativos foram adotados
diretamente pela Comissatildeo do Vaticano para Relaccedilotildees Religiosas com os Judeus e
indiretamente por outras igrejas O Catecismo da Igreja catoacutelica romana diz que
ldquopode-se tambeacutem frisar que se Jesus se mostra severo para com os fariseus eacute
porque estaacute mais proacuteximo deles que de quaisquer outros grupos judaicos seus
contemporacircneosrdquo (cf Vermes 1996 p79)
Nesse invoacutelucro de pensamentos sobre Jesus e os fariseus Swidler leva em
conta o fato de Vermes ter apontado Jesus como participante do grupo dos
ldquohassideus ou devotosrdquo Dentre as muitas especulaccedilotildees descritas por Swidler (nem
71
todas expostas aqui) eacute digna de nota a conclusatildeo desses apontamentos nas
palavras do proacuteprio autor
Assim talvez a melhor maneira de situar Ieshua no contexto do judaiacutesmo da sua eacutepoca seja como mestre (rabi) viandante e que fazia milagres um saacutebio (hakaham) da Galileia hassid galileu que sob muitos aspectos se assemelhava a Hillel (cujos ensinamentos acabaram mais tarde prevalecendo sobre os Shammai no judaiacutesmo rabiacutenico) que alguns estudiosos iriam considerar como algueacutem que teve um relacionamento muito proacuteximo com os fariseus aos quais poreacutem ele criticava sendo por sua vez criticado por eles Sigal o considerou hassid galileu hakham e proto-rabino o qual como Iohanan ben Zakkai antes e depois do ano 70 dC criticou duramente os pharisaioi os perushim (que Sigal natildeo considerava predecessores do judaiacutesmo rabiacutenico muito embora por vezes um emprego impreciso do termo pharisaioi nos evangelhos e em Josefo pudesse incluir alguns proto-rabinos) Estou convencido de que Sigal nos fornece a mais exata e abrangente descriccedilatildeo do lugar de Ieshua na vida judaica do seu
tempo (Swidler 1993 p 86-87)37
A proximidade de Jesus com os fariseus eacute tambeacutem notada por Flusser Ele
nota que nos Evangelhos sinoacuteticos diferentemente de Joatildeo (cf Jo 18 3) os fariseus
natildeo figuram em nenhuma descriccedilatildeo do julgamento de Jesus Flusser ainda nota
que nos primoacuterdios do cristianismo quando os cristatildeos foram perseguidos pelo
ldquosumo sacerdote saduceu o Raban Gamaliel tomou seu partido e os salvourdquo (At 5
17-42) Da mesma maneira Paulo quando estava perante o Sineacutedrio em Jerusaleacutem
vendo que seria punido severamente apelou para os fariseus e encontrou neles
solidariedade (At 22 30 236-10) jaacute que a outra parte era composta por saduceus
(Flusser 2002 p49)
A possiacutevel afeiccedilatildeo dos fariseus em relaccedilatildeo aos primeiros cristatildeos eacute
mencionada por Flusser sobre ldquoTiago o irmatildeo do Senhor e aparentemente outros
cristatildeosrdquo (cf Antiquities book 20 200-2001 in Josephus 1999 p656) que foram
condenados agrave morte em 62 dC pelo sumo sacerdote saduceu (ilegalmente) mas
foram salvos pelos fariseus quando estes apelaram ao rei que por sua vez acabou
37
Segundo Swidler o rabino Phillip Sigal de Pittsburgh os fariseus dos evangelhos natildeo satildeo os
predecessores dos rabis posteriores a 70 dC responsaacuteveis pelos escritos e tambeacutem sem duacutevida fundadores do judaiacutesmo dos nossos dias Para Sigal os predecessores dos rabis natildeo eram nem hillelistas (da escola de Hillel) nem Shamaiacutetas (da escola de Shamai) e nem pertenciam a nenhuma escola ou ldquocasardquo (bet) propriamente dita Ieshua (Jesus) natildeo era saduceu ou fariseu tampouco hilletita nem shamaiacuteta mas era um protorrabi antecipado da eacutepoca tanaiacutetica A sua maneira de ensinar era baseada na liberdade de interpretaccedilatildeo e autoridade conforme o modelo de ensinar protorrabiacutenico [] Ieshua era hakham (saacutebio filoacutesofo um protorrabi) como um profeta carismaacutetico que pregava sobre assuntos assombrosos e aterradores conforme a halakhah juntamente com sua pregaccedilatildeo hagaacutedica (Swidler 1993 p 86)
72
destituindo tal sumo sacerdote Segundo Flusser os fariseus possivelmente
consideravam a relaccedilatildeo dos saduceus com os romanos como um ato de
ldquodespotismo sacerdotalrdquo e essa poderia ser a causa a partir da leitura dos Sinoacuteticos
da ausecircncia de relatos da presenccedila de fariseus no julgamento e condenaccedilatildeo de
Jesus Flusser pressupotildee que os Sinoacuteticos natildeo mencionam um protesto dos fariseus
a favor de Jesus uma vez que eles jaacute haviam registrado anteriormente um Jesus
ldquoantifarisaicordquo em suas narrativas (Flusser 2002 p50)
453 OS SADUCEUS
Os saduceus que natildeo eram originaacuterios dos chassidim mas dos asmoneus
respeitavam os fariseus porque estes tinham um grande prestiacutegio com a populaccedilatildeo
em geral A classe dos saduceus era composta por gente nobre e rica da sociedade
Eles rejeitavam a doutrina da ressurreiccedilatildeo dos mortos e a existecircncia dos anjos
Tambeacutem soacute aceitavam o Pentateuco como verdade de feacute ldquoOs saduceus possuiacuteam o
poder os fariseus possuiacuteam a influecircncia sobre o povordquo (Gnilka 2000 p 61-62)
Flusser tambeacutem coloca os saduceus como um grupo pequeno menor do que os
fariseus por outro lado ele observa que os saduceus eram poderosos uma vez que
pertenciam a aristocracia sacerdotal do templo Eles natildeo eram revolucionaacuterios como
os fariseus (que se envolveram na guerra civil no periacuteodo macabeu) negavam a
validade da tradiccedilatildeo oral e consideravam toda a crenccedila na vida futura como uma
tolice (Flusser 2002 p45)
Nos Evangelhos sinoacuteticos os saduceus satildeo mencionados mais no Evangelho
de Mateus sendo que em Marcos e Lucas eles satildeo mencionados apenas uma vez
em cada Evangelho (Mc 12 18-27 Lc 20 27-40) No entanto tanto para Mateus e
Marcos como para Josefo os saduceus assim como os fariseus eram muito
conhecidos no primeiro seacuteculo da era cristatilde (Saldarini 2005 p183-184) Os
saduceus satildeo sempre colocados por Josefo ao lado dos fariseus Josefo tambeacutem
situa os saduceus como sendo um grupo pertencente agrave classe dominante Em Atos
dos apoacutestolos os saduceus discutem com os fariseus acerca da ressurreiccedilatildeo por
causa de um discurso de Paulo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (At 23) Em Atos
(41 517) os saduceus tambeacutem satildeo associados aos maiorais do templo ou seja agrave
classe sacerdotal (Saldarini 2005 p308-309)
73
A classe sacerdotal estaacute intimamente relacionada ao julgamento de Jesus
Em Lucas 22 54 lemos ldquoPrenderam-no e levaram-no introduzindo-o na casa do
Sumo Sacerdote Pedro seguia de longerdquo Segundo Flusser o clatilde sacerdotal e o
proacuteprio sumo sacerdote eram saduceus Caifaacutes era o sumo sacerdote e tambeacutem era
a figura mais importante do segundo Templo Foi na casa (palaacutecio) de Caifaacutes que
Jesus passou a noite sob custoacutedia enquanto era escarnecido pelos guardas (Lc 22
63) Os saduceus odiavam a Jesus possivelmente porque o consideravam um
profeta (ldquoFaz uma profecia quem eacute que te bateurdquo Lc 22 64) e sua presenccedila em
Jerusaleacutem podia ser uma clara ameaccedila Segundo Joatildeo os motivos da condenaccedilatildeo
de Jesus pela classe sacerdotal eacute que
[] os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram ldquoQue faremos Esse homem realiza muitos sinais Se o deixarmos assim todos creratildeo nele e os romanos viratildeo destruindo o nosso lugar santo e a naccedilatildeordquo Um deles poreacutem Caifaacutes que era o Sumo Sacerdote naquele ano disse-lhes ldquoVoacutes nada entendeis Natildeo compreendeis que eacute de vosso interesse que um soacute homem morra pelo povo e natildeo pereccedila a naccedilatildeo todardquo Natildeo dizia isso por si mesmo mas sendo sumo Sacerdote naquele ano profetizou que Jesus morreria pela naccedilatildeo ndash e natildeo soacute pela naccedilatildeo mas tambeacutem para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos Entatildeo a partir desse dia resolveram mataacute-lo Jesus por isso natildeo andava em puacuteblico entre os judeus mas retirou-se para a regiatildeo proacutexima do deserto para a cidade chamada Efraim e aiacute permaneceu com seus disciacutepulos (Jo 11 47-54)
A atitude de Caifaacutes em relaccedilatildeo agrave morte substituta de Jesus (ldquoeacute de vosso
interesse que um soacute homem morra pelo povordquo) eacute vista por Flusser mais como uma
justificativa do sumo sacerdote uma vez que a tradiccedilatildeo judaica repudiava o ato de
entregar um cidadatildeo judeu para que fosse morto por estrangeiros era um pecado
imperdoaacutevel segundo a halakaacute38 Flusser cita ainda o Rolo do Templo essecircnico
(64 7-8) que diz ldquoSe um homem calunia Meu povo e entrega Meu povo para uma
naccedilatildeo estrangeira e pratica a iniquidade contra meu povo penduraacute-lo-eis numa
38
Zuurmond define a halakaacute da seguinte maneira ldquoeacute o way of life judaico o conjunto de prescriccedilotildees e proibiccedilotildees que definem a maneira como vivem os judeus Uma questatildeo halaacutequica eacute uma disputa sobre a halakaacute geralmente com base na interpretaccedilatildeo de textos do Antigo Testamento Nem toda a questatildeo halaacutequica eacute de ordem moral As leis de pureza por exemplo formam uma parte importante da halakaacute mas ndash pelo menos segundo nosso modo de falar ndash natildeo tem caraacuteter moralrdquo (Zuurmond 1998 p 77) A raiz halak tambeacutem pode ser definida como a ldquoviardquo a ldquocaminhadardquo ou seja ldquoa regra (de vida) que vai permitir a aplicaccedilatildeo da Torah escrita agraves circunstacircncias reais e mutaacuteveis da vida O plural eacute halakot regras decisotildees e coleccedilotildees de leisrdquo (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
74
aacutervore e ele morreraacuterdquo Ainda havia uma tradiccedilatildeo oral dos saacutebios judeus com o
seguinte teor ldquose haacute um grupo de pessoas e os gentios lhes dizem entregai um de
voacutes para noacutes e o mataremos se natildeo fizerdes mataremos a todos a (regra eacute) deixai
que todos sejam assassinados e natildeo entregueis a eles uma uacutenica alma em Israel
poreacutem se eles o escolherem deixai que o entreguem para que todos natildeo sejam
massacradosrdquo (cf Flusser 2002 p 164-166)
Caifaacutes natildeo se restringiu apenas a entregar Jesus aos romanos Ele sabia que
eles eram implacaacuteveis a qualquer judeu rebelde ou a movimentos profeacuteticos
entusiastas que se levantassem na Palestina No entanto parece que Caifaacutes natildeo
estava preocupado com as tradiccedilotildees de seu povo O viacutenculo dele com os suacuteditos e
representantes de Cesar se estreitava ainda mais quando o vemos em Atos dos
Apoacutestolos (4 1-3 46 5 27-28) juntamente com a classe sacerdotal (os saduceus)
prendendo muitos cristatildeos em Jerusaleacutem pelos mesmos motivos que Jesus foi
entregue aos romanos sem se importar com as tradiccedilotildees judaicas das quais ele
deveria ser o principal observador (Flusser 2002 p 154-166)
454 OS ZELOTAS
Os movimentos de resistecircncia nos dias de Jesus estatildeo ligados ao projeto de
romanizaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo da Galileia por Herodes Antipas (Crossan 2009 p16-
18) O anseio de Antipas em se tornar rei uma vez que ele foi nomeado por Cesar
Augusto como tetrarca da Galileia e Pereia e seu irmatildeo Felipe ficou como tetrarca
da parte do extremo norte do paiacutes Jaacute Arquelau o outro filho de Herodes o Grande
ficou como etnarca da Idumeia Judeia e Samaria o que deixou Antipas muito
desapontado
Segundo Crossan Antipas comeccedilou a trabalhar para ganhar prestiacutegio em
Roma poreacutem agraves custas de um jugo pesado aos habitantes da Galileia Primeiro ele
fortificou Seacuteforis ldquopara ser o ornamento de toda a Galileiardquo e dedicou a Augusto a
sua cidade-capital reconstruiacuteda Apoacutes a morte de Augusto assumiu como Imperador
de Roma Tibeacuterio Antipas logo teve a ideia de substituir a capital Seacuteforis fundando
uma nova cidade a 32 quilocircmetros ao leste na costa ocidental do mar da Galileia e
nomeou-a Tiberiacuteades em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (cf Crossan 2009 p
17-18) O problema de tudo isso era que as construccedilotildees de Antipas provocavam o
75
aumento dos tributos sobre os galileus causando um descontentamento geral
Contudo para Antipas o que mais importava conforme Crossan nos descreve era
passar a Roma uma imagem de um governante lucrativo na questatildeo da arrecadaccedilatildeo
de impostos o que poderia levar o Imperador a pensar ldquoque eacute que natildeo faria ele
como monarca de toda a paacutetria judaicardquo
As construccedilotildees de Antipas poderiam impressionar Roma mas natildeo poderiam
evitar os movimentos de resistecircncia judaica uma vez que segundo Pagola (2010 p
48) ldquoos camponeses experimentaram pela primeira vez a pressatildeo e o controle
proacuteximo dos governos herodianosrdquo A situaccedilatildeo era tatildeo caoacutetica que aumentou
assustadoramente o nuacutemero de indigentes prostitutas e diaristas enfim parece que
Jesus conheceu ao longo de sua vida uma Galileia onde a desigualdade social era
enorme onde se favorecia a minoria privilegiada de Seacuteforis e Tiberiacuteades ao custo da
pobreza e sofrimento e desintegraccedilatildeo de muitas famiacutelias
Crossan (2004 p 275) nota que a construccedilatildeo ou reconstruccedilatildeo das cidades
de Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo afetou apenas os camponeses iletrados ou seja os
trabalhadores mais humildes mas tambeacutem afetou agrave classe dos letrados Assim ele
conclui que ateacute mesmo o movimento de Jesus relacionado ao reino de Deus
comeccedilou como um movimente de resistecircncia a partir dos camponeses ldquomas
abandonou seu caraacuteter localista e regionalista sob a lideranccedila dos letradosrdquo
Dentre os movimentos de Revolta encontramos Judas galileu que apoacutes a
deposiccedilatildeo de Arquelau (6 d c) natildeo aceitava que o pagamento de impostos devia
ser efetuado diretamente a Roma Segundo Theissen (2004 p163-164) a doutrina
de Judas repercutiu muito chegando ao ponto de alguns ldquoherodianosrdquo questionarem
a Jesus a respeito da questatildeo de se era liacutecito ou natildeo pagar impostos ao Imperador
(cf Mc 12 13-17) Horsley defende que o movimento de Judas o Galileu e de
Sadoc o fariseu que Josefo rotula como a quarta filosofia (as outras satildeo os
fariseus os saduceus e os essecircnios) tecircm sido interpretadas de uma forma errada
por vaacuterios especialistas que afirmam que esse movimento pregava a revolta armada
contra Roma De acordo com Horsley Josefo assim descreveu esse movimento em
Ant 18 4-5 23
Mas um certo Judas gaulanita da cidade de Gamala em combinaccedilatildeo com o fariseus Sadoc insistiu fortemente na resistecircncia Eles diziam que tal
76
avaliaccedilatildeo tributaacuteria implicava escravidatildeo pura e simples e pressionavam a naccedilatildeo a exigir sua liberdade [] Judas o Galileu estabeleceu-se como o liacuteder da quarta filosofia Os seus adeptos concordaram com as ideia dos fariseus em tudo exceto em sua indomaacutevel paixatildeo pela liberdade pois consideram Deus o seu uacutenico liacuteder e senhor (cf Horsley 2010 p 72)
Horsley avalia que Judas e Sadoc estivessem mais ligados ao ensino ou
pregaccedilatildeo ldquocontra a avaliaccedilatildeo tributaacuteria ou ateacute mesmo uma resistecircncia organizada
contra os impostos do que um grupo armado e violento conforme tem sido
interpretado a partir dos escritos de Josefordquo (Horsley 2010 p 78-79)
As informaccedilotildees sobre os grupos de resistecircncias nem sempre satildeo unacircnimes
como vimos acima No entanto podemos afirmar que entre os grupos de resistecircncia
encontram-se os Zelotes (Zelotas) talvez os mais conhecidos O termo Zelotas
encontra-se oito vezes registrado no Novo Testamento Esse termo geralmente
aplica-se ldquoaos guerrilheiros da resistecircncia desde Judas Galileu (6 aC) ateacute os
defensores da fortaleza de Masadaacute (74 dC) Eles eram rigorosamente
observadores do saacutebado da circuncisatildeo (exigiam a circuncisatildeo ateacute mesmo dos
antigos) e tinham fortes crenccedilas escatoloacutegicasrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia
do Novo Testamento p 2686) De acordo com Theissen mesmo que os
seguidores de Judas Galileu sejam chamados de Zelotes natildeo eacute possiacutevel afirmar tal
coisa visto que em Josefo eles ldquoaparecem como grupo apenas depois do inicio da
guerra judaica em 66 dC em relaccedilatildeo com o Templordquo (cf Theissen 2004 p164)
contudo haacute um argumento de peso contra essa teoria uma vez que entre os
disciacutepulos de Jesus por volta da metade do seacuteculo I havia um zelole (Simatildeo Zelote
cf Lc 6 15) e Theissen faz uma observaccedilatildeo ldquoaleacutem disso na Galileiardquo
Os zelotas eram originaacuterios dos fariseus e assim como os essecircnios estavam
ligados pela guerra santa e escatoloacutegica Natildeo satildeo citados nos evangelhos como
grupo mas entre os disciacutepulos de Jesus como foi dito acima havia um disciacutepulo
chamado de ldquoSimatildeo o Zeloterdquo (Lc 615 At 113) Eles lutavam pelos direitos do
pobre do oprimido e a esses ldquoprometiam com a chegada do Reino de Deus a
restauraccedilatildeo de seus direitos e uma nova ordem estabelecida por Deusrdquo (Gnilka
2000 p 60) O fato de entre os disciacutepulos ter um zelote natildeo significa que esse
movimento tenha sido endossado por Jesus jaacute que os ensinamentos de Jesus sobre
o tributo a Cesar e sua atitude para com o saacutebado eacute uma forma de repuacutedio a
77
doutrina apregoada pelos zelotas (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo
Testamento p 2686)
Podemos observar portanto que a possiacutevel relaccedilatildeo de Jesus com os Zelotas
como grupo de resistecircncia eacute muito remota ou praticamente inexistente conforme
Crossan (2004 p275) tem observado Ainda na mesma linha de pensamento de
Crossan Sean Freyne tambeacutem considera remota a hipoacutetese do possiacutevel
envolvimento de Jesus com o grupo dos zelotas Para Freyne (2008 p 130) a
pregaccedilatildeo de Jesus natildeo incitava a vinganccedila uma vez que estava mais baseada no
livro do Gecircnesis (criaccedilatildeo) do que no livro do Ecircxodo (libertaccedilatildeo) ou seja Jesus natildeo
via as demais naccedilotildees ou outras origens eacutetnicas como objeto de remoccedilatildeo
aniquilaccedilatildeo conversatildeo ou conquista como viam os heroacuteis do Antigo Testamento
Contudo para Freyne devemos observar que haacute duas formas de
interpretarmos Jesus de Nazareacute Se o olharmos segundo o ponto de vista de
Crossan veremos um Jesus voltado para um entendimento sapiencial e natildeo
apocaliacuteptico ou seja Jesus teria escolhido um modelo de dominaccedilatildeo monaacuterquica
baseado num ldquoreino dos destituiacutedos e Jootildees ningueacutem vigente no aqui e agora um
reino realizado (por meios maacutegicos e materiais) natildeo apenas proclamadordquo Por outro
lado Freyne observa que o pensamento de Horsley sobre Jesus eacute bem diferente
dos de Crossan Jesus segundo Horsley teria sido um revolucionaacuterio ou seja
partindo desse ponto de vista ldquoo siacutembolo do reino de Deus tal como empregado por
Jesus significava a vitoacuteria de Deus sobre as forccedilas do mal uma concepccedilatildeo que se
coadunava com as expectativas apocaliacutepticas judaicas padratildeordquo posiccedilatildeo essa que
segundo Freyne seria mais convincente (Freyne 2008 p 132)
Bruce Malina vecirc o grupo de Jesus como uma religiatildeo politicamente inserida
onde o reino e o governo de Deus satildeo iminentes ou seja seus disciacutepulos devem
orar para que o reino de Deus venha para o julgamento e recompensa e isso
segundo Malina era compreendido sob o ponto de vista poliacutetico por uma pessoa do
primeiro seacuteculo A morte de Jesus natildeo foi o fim desse reinado pois ldquoos seguidores
de Jesus acreditavam que Deus o ressuscitou dos mortos de maneira que o proacuteprio
Jesus em breve surgiria como vice regente do Deus de Israel como Messias de
Israel com poderrdquo (Malina 2004 p 99) Malina conclui esse pensamento afirmando
que
78
o reino de Deus veio para tomar a forma de uma teocracia representativa e pessoal Nestas dimensotildees ele teria tido a mesma estrutura da religiatildeo poliacutetica de Israel durante o tempo de Jesus A questatildeo aberta era Quem seria o agente o substituto concreto para o Deus de Israel Os membros do grupo de Jesus tinham pouca duacutevida de que esse agente fosse Jesus o Messias de Israel Mas Deus tinha em mente mais natildeo apenas Israel (Malina 2004 p 164)
Portanto pertencer ao grupo de Jesus era mais do que esperar por um reino
poliacutetico era ter um novo modo de vida ia aleacutem das fronteiras de Israel natildeo significa
apenas a libertaccedilatildeo de um jugo poliacutetico mas a libertaccedilatildeo do ser humano como um
todo
79
5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS
E SEUS DESDOBRAMENTOS
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Jesus apesar de ser visto por alguns
pesquisadores com caracteriacutesticas proacuteximas do grupo dos fariseus natildeo fez parte de
nenhum grupo revolucionaacuterio Contudo isso natildeo significa que ele fosse indiferente
aos problemas sociais que afligiam toda a Palestina Em contraste com os
poderosos da eacutepoca que exploravam os pobres atraveacutes da cobranccedila desmedida de
tributos Jesus oferece-se como um descanso aos cansados e oprimidos porque
somente ele tem um jugo suave e um fardo leve (cf Mt 11 28-30) Esse descanso
soacute ele pode oferecer porque recebeu do Pai a quem ele conhece e por quem
tambeacutem eacute conhecido (cf Mt 1127) Abba eacute a palavra por excelecircncia no quesito
intimidade entre Jesus e Pai dos Ceacuteus conforme a tese defendida por J Jeremias
51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA
Jesus conforme a tradiccedilatildeo cristatilde e os vaacuterios testemunhos das fontes (os
Evangelhos) possui o testemunho intriacutenseco de que eacute o Filho de Deus (cf Mt 1433
Mc 11 311 1539 Lc 2227 Jo 134 1127) O Evangelho de Marcos de uma
forma clara jaacute nos mostra a importacircncia desse pensamento teoloacutegico nas seguintes
palavras ldquoPrinciacutepio do Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deusrdquo (Mc 11) Justino
de Roma tambeacutem prima pela exaltaccedilatildeo de Jesus como o Filho de Deus dizendo que
ldquo[] com razatildeo honramos tambeacutem a Jesus Cristo que foi nosso Mestre nessas
coisas e para isto nasceu o mesmo que foi crucificado sob Pocircncio Pilatos
procurador na Judeia no tempo de Tibeacuterio Ceacutesar Aprendemos que ele eacute o Filho
proacuteprio do Deus verdadeirordquo (Justino 1995 p28) ou ainda conforme a confissatildeo
de feacute de Calcedocircnia (451 dC) ldquoJesus eacute verdadeiramente homem e
verdadeiramente Deusrdquo ( Swidler 1993 p30)
Os Evangelhos da infacircncia (Mateus e Lucas) de uma forma independente
narram alguns acontecimentos relacionados ao nascimento e agrave infacircncia de Jesus
Segundo Duquoc as narrativas do nascimento de Jesus relatadas por Mateus e
Lucas se inserem na tradiccedilatildeo do Antigo Testamento como vemos no nascimento de
Isaac (Gn 21 1-7) de Jacoacute (Gn 25 25-26) de Moiseacutes (Ex 2 1-10) de Sansatildeo (Jz
80
13 1-25) e o de Samuel (1 Sam 1 19-26) As caracteriacutesticas de tais narrativas satildeo
ldquodiscernir na concepccedilatildeo ou no nascimento os sinais antecipadores de um destino
particularmente abenccediloado por Deusrdquo Para Duquoc contudo tratar as narrativas de
Mateus e Lucas como Evangelhos da Infacircncia natildeo eacute a forma mais correta e pode
induzir em erro mesmo que a tradiccedilatildeo assim os mencione Nos textos de Mateus e
Lucas observamos que ali se trata mais do nascimento do que a infacircncia de Jesus
conforme vemos resumido no quadro comparativo abaixo (Duquoc 1992 p22)
Mateus Lucas
Genealogia de Cristo 1 1-17 Anuacutencio da concepccedilatildeo virginal a Joseacute 1 18-24 Nascimento do Salvador 125 Visita dos magos 2 1-12 Fuga para o Egito e massacre dos inocentes 2 13-18 Volta a Nazareacute 2 19-23
Anuacutencio do nascimento de Joatildeo Batista 1 5-25 Anuacutencio a Maria 1 26-28 Visitaccedilatildeo 1 39-56 Nascimento do Salvador 2 1-14 Visita dos Pastores 2 15-20 Circuncisatildeo 2 21 Apresentaccedilatildeo no Templo 2 22-38 Volta a Nazareacute 2 39-40 Reencontro no Templo 2 41-52
Os relatos da infacircncia ou do nascimento conforme menciona Duquoc natildeo
fazem parte do querigma (Keacuterygma) mas estatildeo associados mais ao Antigo
Testamento como vimos acima Contudo eles foram inseridos nos Evangelhos e
devem ser lidos a partir da perspectiva dos evangelistas Eles natildeo satisfazem a
curiosidade como fazem os Apoacutecrifos visto que eles estatildeo relacionados mais agrave feacute da
Igreja primitiva do que aos acontecimentos histoacutericos ldquoMateus e Lucas iluminaram
retrospectivamente as recordaccedilotildees atraveacutes da catequese evangeacutelica e os eventos
decisivos da Paacutescoa Natildeo narram uma histoacuteria Propotildeem apenas uma doutrina em
forma de histoacuteria Seria errocircneo querer iluminar a catequese por meio de narrativas
de nascimento O processo foi inversordquo (Duquoc 1992 p24-25)
81
Observamos que as narrativas da infacircncia levantam questotildees sobre a
autenticidade histoacuterica dos relatos dos evangelistas Para Fitzmyer nas narrativas
da infacircncia eacute difiacutecil constatar o realmente histoacuterico poreacutem eacute inegaacutevel o fato de que
exista um nuacutecleo histoacuterico nesses acontecimentos os quais serviram como base
para que os evangelistas numa tradiccedilatildeo posterior pudessem responder perguntas
sobre ldquoQuem eacute elerdquo ou ldquoDe onde ele veiordquo39 (Fitzmyer 1997 p34-35)
Apesar das diferenccedilas e da independecircncia dos evangelhos (Mateus e Lucas)
Fitzmyer observa que haacute pelo menos doze pontos nas narrativas da infacircncia que satildeo
comuns ou pelo menos haacute concoacuterdia entre os dois evangelistas a respeito do
nascimento do menino Jesus os quais seratildeo transcritos abaixo
1) O nascimento de Jesus relaciona-se com o reinado de Herodes Magno
(Mt 21 Lc 15)
2) Maria sua futura matildee eacute uma virgem noiva de Joseacute mas eles ainda
natildeo coabitaram (Mt 118 Lc 12734 25)
3) Joseacute eacute da casa de Davi (Mt 1 1620 Lc 127 24)
4) Um anjo do ceacuteu anuncia a concepccedilatildeo e o nascimento futuros de Jesus
(Mt1 20-21 Lc 1 28-30)
5) O proacuteprio Jesus eacute reconhecido como filho de Davi (Mt 11 Lc 132)
6) Sua concepccedilatildeo aconteceraacute por intermeacutedio do Espiacuterito santo (Mt 1
1820 Lc 1 35)
7) Joseacute natildeo se envolve na concepccedilatildeo (Mt1 18-25 Lc 134)
8) O nome ldquoJesusrdquo eacute imposto antes de seu nascimento (Mt 1 21 Lc
131)
9) O ceacuteu identifica Jesus como ldquoSalvadorrdquo (Mt 121 Lc 211)
10) Jesus nasce depois que Joseacute e Maria vatildeo viver juntos (Mt 1 24-25 Lc
2 4-7)
11) Jesus nasce em Beleacutem (Mt 21 Lc 2 4-7)
12) Jesus se fixa com Maria e Joseacute em Nazareacute na Galileia (Mt 2 22-23
Lc 239-51)
39
Segundo Fitzmyer as narrativas da infacircncia natildeo se originaram de uma tradiccedilatildeo mais primitiva da Igreja visto que nem Marcos (que eacute considerado o primeiro Evangelho a ser escrito) e nem Joatildeo (que eacute reconhecido como sendo de uma tradiccedilatildeo igualmente primitiva a de Marcos mas independente dos Sinoacuteticos) natildeo conteacutem tais relatos mas inicia-se com o Verbo que se fez carne (1 1-18) ou seja com o Verbo divino e preexistente
82
Nos primoacuterdios da Igreja a questatildeo da divindade e humanidade de Cristo era
o centro de muitas controveacutersias teoloacutegicas que partiam de vertentes judaicas ou
entatildeo de certos movimentos cristatildeos considerados como hereges Face agraves muitas
divergecircncias a respeito do Cristo a Igreja tomou frente a tais controveacutersias e pocircs-se
a refutar as heresias com toda a forccedila possiacutevel Correntes judaizantes e gnoacutesticas
que incansavelmente procuravam por todos os meios possiacuteveis proclamar que Jesus
era apenas um homem que morreu pregado na cruz ou entatildeo um divino que
parecia ser humano procuravam a todo custo abalar a feacute daqueles que foram
alcanccedilados pela feacute cristatilde Os Evangelhos e todo o Novo Testamento foram escritos
para fundamentar a feacute dos primeiros cristatildeos em Jesus Cristo Mediante a tantas
heresias que foram surgindo na Igreja tentando negar a divindade de Jesus os
cristatildeos reagiram com veemecircncia escrevendo muitas histoacuterias sobre Jesus como
forma de demonstrar que desde menino o filho de Joseacute e Maria era detentor de
muitos prodiacutegios nunca antes realizados em Israel nem mesmo pelos grandes
profetas do Antigo Testamento
Estas narrativas foram redigidas e fazem parte do que posteriormente ficou
conhecido como os ldquoEvangelhos Apoacutecrifosrdquo Os Apoacutecrifos satildeo portanto a forma
mais clara que a Igreja usou para se opor as teorias que negavam a divindade de
Jesus Na busca de por em evidecircncia a divindade do Mestre os Apoacutecrifos
apresentam Jesus quase sempre como um menino ou um homem prodigioso capaz
de realizar milagres tatildeo grandes que chegam a ser absurdo
A tradiccedilatildeo cristatilde ainda no intuito de preservar a doutrina da filiaccedilatildeo divina de
Jesus procurou de uma forma cuidadosa defender tal doutrina em seus vaacuterios
credos ao longo da histoacuteria do cristianismo Os mais antigos e conhecidos credos
satildeo Credo Apostoacutelico (Seacuteculo III e IV) Credo de Niceacuteia (325 AD - revisado em
Constantinopla em 381 AD) Credo de Calcedocircnia (451 AD) e o Credo de Atanaacutesio
(seacuteculos IV e V) A relaccedilatildeo de Jesus Cristo com Deus Pai e sua funccedilatildeo na
Santiacutessima Trindade satildeo mencionadas em todas as confissotildees acima citadas
(Grudem 1999 p996) Jaacute no primeiro credo (Credo Apostoacutelico) observamos a
importacircncia de Jesus como o Filho de Deus encarnado
Creio em Deus Pai Todo Poderoso Criador do ceacuteu e da terra E em Jesus Cristo seu Filho unigecircnito nosso Senhor concebido pelo Espiacuterito Santo e nascido da Virgem Maria que padeceu sob Pocircncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos
83
que subiu ao ceacuteu e assentou-se agrave direita do Pai Todo-Poderoso de onde haacute de vir para julgar os vivos e os mortos Creio no Espiacuterito Santo na santa igreja catoacutelica na comunhatildeo dos santos na remissatildeo de pecados na ressurreiccedilatildeo da carne e na vida eterna Ameacutem (Grudem 1999 p996)
O credo segundo Thomas P Rausch (2006 p16) ldquoeacute uma declaraccedilatildeo oficial
da crenccedila da Igreja e tem poder normativo para a feacute da Igrejardquo Rausch observa que
o entatildeo cardeal Ratzinger escolheu o Credo Apostoacutelico como base para a sua
abordagem do livro Introduccedilatildeo ao Cristianismo De acordo com Rausch nessa obra
o cardeal faz uma mediaccedilatildeo entre os extremos relacionados agrave Cristologia da feacute e o
Jesus da histoacuteria Por um lado haacute os que procuram reduzir a Cristologia agrave histoacuteria
enquanto que por outro lado haacute os que buscam o abandono da histoacuteria
considerando-a como algo irrelevante para a feacute40 Abaixo reproduzimos um quadro
resumido dos principais conciacutelios Gerais da igreja onde foram formulados os
principais credos da Igreja (cf Rausch 2006 p261)
Conciacutelio Principais Figuras Temas
Niceia (325) Aacuterio (que natildeo estava presente) ldquohouve um tempo em que ele natildeo erardquo 381 bispos presentes
Rejeitou a opiniatildeo de Aacuterio de que o logos havia sido criado Cristo eacute homoousion41 ao Pai
Constantinopla I (381) Influecircncia Capadoacutecia Afirma a feacute de Niceacuteia Um novo credo afirma a divindade do Espiacuterito Nosso credo eacute uma combinaccedilatildeo de ambos
Eacutefeso I (431) Nestoacuterio conjunccedilatildeo de naturezas Maria eacute christokos42 Joatildeo de
Condena Nestoacuterio Maria eacute theotokos mas Cirilo e Joatildeo de Antioquia e excomungam
40
Nesse tratado escrito no final da deacutecada de 60 Ratzinger procura encontrar um meio termo entre Harnack que purifica a feacute da doutrina e do credo colocando a reconstruccedilatildeo do Jesus histoacuterico como fator determinante para a Cristologia com Bultmann para quem somente a feacute em Cristo tem importacircncia para o cristatildeo (cf Rausch 2006 p16) Vale ressaltar aqui que para o entatildeo cardeal Ratzinger ldquosegundo a feacute da Igreja a filiaccedilatildeo divina de Jesus natildeo se deve ao fato de Jesus natildeo ter um pai humano a doutrina do ser divino de Jesus natildeo sofreria nenhuma restriccedilatildeo se Jesus fosse o fruto de um casamento humano normal porque a filiaccedilatildeo divina que eacute objeto da feacute cristatilde natildeo eacute um fato bioloacutegico e sim ontoloacutegico natildeo eacute um evento no tempo e sim na eternidade de Deus ()rdquo Se considerarmos este texto como a base do pensamento de Ratzinger percebemos que a teologia de Bultmann teve para ele na eacutepoca um peso maior (cf Ratzinger 2006 p 204) 41
Homoi ser ldquosemelhanterdquo semelhante quanto ao ser (cf Rausch 2006 p 249) 42
Significa ldquoPortadora do Cristordquo Matildee de Cristo (cf Rausch 2006 p 249)
84
Conciacutelio Principais Figuras Temas
Antioquia Cirilo de Alexandria uniatildeo hipostaacutetica Maria eacute theotokos43
um ao outro
Eacutefeso II (449) (ldquoConciacutelio do Ladratildeordquo)
Flaviano de Constantinopla ldquoa partir de duas naturezas numa soacute hipoacutestase44 e numa soacute pessoardquo (foacutermula da uniatildeo) Dioacutescoro de Alexandria
Dioacutescoro domina Eacute rejeitada a foacutermula de Flaviano (ldquoa partir de duas naturezas uma soacute pessoardquo) O proacuteprio conciacutelio poreacutem eacute rejeitado
Calcedocircnia (451) 600 bispos Tomus do papa Leatildeo escrito para apoiar Flaviano Legados papais insistem numa nova profissatildeo de feacute
Condena Dioacutescoro aceita o Tomus de Leatildeo Prega duas naturezas numa uacutenica pessoa e numa uacutenica hipoacutestase verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem
Observamos que para a Igreja dos primeiros seacuteculos as verdades teoloacutegicas
a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus com o Pai eram de suma importacircncia para a
formaccedilatildeo e crescimento das comunidades cristatildes Por isso defenderam com
coragem e destemor o que acreditavam ser a essecircncia do Evangelho de Jesus
Cristo No entanto sempre houve aqueles que lutaram de todas as maneiras para
por em descreacutedito tanto o Evangelho como a pessoa de Jesus de Nazareacute Os pais
da Igreja tiveram que lutar contra as heresias e contra os hereges que procuraram
desmoralizar o mais importante homem do vilarejo de Nazareacute No entanto conforme
observa Rausch haacute problemas metodoloacutegicos nos Credos da Igreja Eles sempre
pressupotildeem uma Cristologia de ldquocima para baixordquo por isso a Cristologia necessita
de um fundamento criacutetico Para Rausch a Cristologia precisa ser estabelecida de
ldquobaixo para cimardquo ou seja ela precisa estar baseada nos atos e feitos do Jesus
histoacuterico para que natildeo seja acusada de ser uma feacute helenizada onde o carpinteiro
43
Significa ldquoPortadora de Deusrdquo Matildee de Deus (cf Rausch 2006 p 249) 44
Aquilo que estaacute sob ou daacute suporte a um objeto realizaccedilatildeo um ser concreto que suporta as diversas qualidades ou aparecircncias de uma coisa Ser subsistente realidade que existe por si mesma substacircncia (Exemplo medieval- ldquotransubstanciaccedilatildeordquo (cf Rausch 2006 p 249)
85
de Nazareacute teria sido transformado em um ldquosalvador divinizadordquo conforme o conceito
grego do divino (Rausch 2006 p 17)
52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA
Se para termos sucesso no estudo da Cristologia eacute necessaacuterio partirmos de
baixo para cima ou seja nas palavras de Rogers Haight ldquoseria difiacutecil imaginar
algueacutem interessado pela existecircncia humana de uma perspectiva religiosa que natildeo se
sentisse motivado a saber mais sobre Jesusrdquo uma vez que ldquoa Cristologia comeccedilou
com Jesus de Nazareacute e deve comeccedilar com Jesus hoje em diardquo (Rogers 2003
p75) precisamos analisar as fontes e teorias sobre Jesus desde as canocircnicas ateacute
as mais rejeitadas pela tradiccedilatildeo cristatilde Jaacute observamos acima que a Igreja dos
primeiros seacuteculos priorizou por razotildees apologeacuteticas em propagar e defender a
divindade de Cristo e por outro lado natildeo houve um interesse igual quando o tema
era a humanidade de Jesus No entanto com o passar dos seacuteculos surgiram
inuacutemeras questotildees a respeito do homem chamado Jesus de Nazareacute Para responder
tais questotildees ou pelo menos investigaacute-las faz-se necessaacuterio o estudo da Cristologia
partindo do homem Jesus ao Cristo da feacute
Edward Schillebeeckx nos diz que para uma boa reflexatildeo sobre a Trindade
faz-se necessaacuterio uma interpretaccedilatildeo cristoloacutegica de Jesus ou seja ldquona sua
humanidade Jesus eacute tatildeo intimamente do Pai que eacute exatamente nisso que ele eacute
Filho de Deusrdquo Podemos ver isso nas palavras de Schillebeeckx abaixo
[hellip] natildeo devemos compreender Jesus a partir da Trindade mas vice-versa eacute somente a partir de Jesus que a plenitude da unidade divina (natildeo tanto unitas trinitaris mas trinitas unitaris) se torna acessiacutevel para noacutes de alguma forma somente com base na vida morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus sabemos que a Trindade eacute o modo divino da absoluta unidade da essecircncia divina Somente a partir de Jesus de Nazareacute de sua experiecircncia com o ldquoAbbardquo -fonte e alma de sua mensagem atuaccedilatildeo e morte ndash e de sua ressurreiccedilatildeo eacute que algo cheio de sentido pode ser dito sobre o Pai Filho e Espiacuterito Santo Pois na vivecircncia de Jesus com seu ldquoAbbardquo o importante eacute que esse ldquoestar voltado para o Pairdquo e ldquoprecedidordquo com a absoluta prioridade e internamente sustentado pelo entregar-se do proacuteprio Pai a Jesus de forma uacutenica Ora a mais antiga tradiccedilatildeo cristatilde chama de ldquoPalavraVerbordquo a essa autocomunicacatildeo de Pai base e fonte da proacutepria experiecircncia de Jesus com o ldquoAbbardquo Isso implica que a palavra de Deus eacute a base total de tudo o que apareceu em Jesus ( Schillebeeckx 2008 p663)
86
A Cristologia portanto deve comeccedilar a partir do Jesus humano sem que se
negligencie o Cristo da feacute Jesus foi o nome que mudou a histoacuteria da humanidade
como podemos dizer parafraseando Haight que Jesus de Nazareacute eacute praticamente
um consenso universal na histoacuteria como sendo um judeu que viveu nos primoacuterdios
do seacuteculo I e que posteriormente veio a ser reconhecido como o Messias ou o
Cristo Conforme Haight podemos afirmar ainda que ldquoJesus foi uma figura
concreta na histoacuteria humanardquo e por isso essa histoacuteria natildeo pode ser relegada ao
esquecimento (Haight 2003 p29)
Geza Vermes compocircs um resumo histoacuterico da vida de Jesus a partir do
Evangelho de Marcos sem as narrativas da infacircncia acima esboccediladas (em 51)
Vermes chama essas informaccedilotildees peculiares de ldquoo evangelho fundamental ndash
representado por Marcos (cf Vermes 1990 p 20) que conteacutem as seguintes
informaccedilotildees
Nome Jesus
Nome do Pai Joseacute
Nome da matildee Maria
Lugar do nascimento natildeo mencionado
Data do nascimento natildeo mencionada
Domiciacutelio Nazareacute na Galileia
Estado Civil natildeo mencionado45
Profissatildeo carpinteiro (τέκτων ) mas tambeacutem exorcista e pregador itinerante
O certificado de oacutebito pode ser preenchido de maneira um pouco mais
completa
Lugar do oacutebito Jerusaleacutem
Data da morte ldquoSob Pocircncio Pilatosrdquo entre os anos 26 e 36 dC
Causa da morte crucificaccedilatildeo ordenada pelo governador romano
Lugar do sepultamento Jerusaleacutem
45
Vermes contudo considera que Jesus era celibataacuterio uma vez que nunca haacute menccedilatildeo de qualquer esposa no decorrer do seu ministeacuterio (cf Vermes 1990 p 21)
87
Para falar do Jesus humano eacute preciso contextualizaacute-lo ao tempo e ao espaccedilo
ou seja natildeo podemos menosprezar o periacuteodo em que Jesus viveu entre os homens
Sabendo que a Palestina dos dias de Jesus estava politicamente sob o impeacuterio
romano e religiosamente dominada pelo extremismo e exclusivismo religioso natildeo eacute
difiacutecil de imaginar o quanto Jesus e sua famiacutelia devem ter sofrido preconceito numa
sociedade patriarcal em meio ao caos poliacutetico e religioso
Bruce Chilton examina a questatildeo do Jesus histoacuterico desde os dias em que
Jesus estava com os disciacutepulos ateacute um periacuteodo poacutes-apostoacutelico Segundo ele sempre
houve aqueles que questionaram a filiaccedilatildeo divina de Cristo assim como colocaram
em duacutevida a sua filiaccedilatildeo terrena Vermes um judeu com formaccedilatildeo cristatilde considera
que falar das histoacuterias da infacircncia de Jesus de uma forma ou de outra acabam por
introduzir ldquoum elemento de duacutevida acerca da paternidaderdquo (cf Vermes 1990 p21)
Como foi dito acima eacute muito provaacutevel que Jesus e seus pais tenham sofrido algum
preconceito em relaccedilatildeo agrave paternidade de Joseacute em relaccedilatildeo ao seu filho Jesus
Segundo Chilton existem trecircs teorias a respeito do nascimento de Jesus A
primeira delas eacute a que Jesus foi concebido por obra do Espiacuterito Santo conforme
descrito nos Evangelhos (Mt 118-25 Lc 134-35) A segunda teoria tem a pretensatildeo
de especular que Jesus era filho bioloacutegico de Joseacute tal como se pode compreender
da afirmaccedilatildeo de Filipe achamos a Jesus de Nazareacute ldquofilho de Joseacuterdquo (Jo 145) A
terceira teoria eacute que Jesus era filho de fornicaccedilatildeo conforme uma das interpretaccedilotildees
do evangelho de Joatildeo 841 ldquoVoacutes fazeis as obras de vosso pai Disseram-lhe entatildeo
natildeo nascemos da prostituiccedilatildeo temos soacute um pai Deusrdquo (Charlesworth 2006
p87)46
46
Juan Mateos interpreta o texto de Jo 841 partindo do princiacutepio que Jesus acusa os judeus que nele ldquohaviam cridordquo (o crer aqui pode ser obra do redator uma vez que um pouco agrave frente os mesmos querem matar Jesus cf Brown 1975 p80) de cometerem o pecado da idolatria uma vez que segundo alguns rabinos ser filho de Abraatildeo significava praticar a benevolecircncia a modeacutestia e a humildade Os que tais virtudes natildeo praticavam eram considerados como servo de um outro deus totalmente diferente do Deus de Abraatildeo por isso chamados de idoacutelatras Os judeus entenderam atraveacutes da interpretaccedilatildeo dos profetas que ao serem chamados de idoacutelatras era o mesmo que ser chamado de filhos da prostituiccedilatildeordquo algo que eles negam teoricamente mas como seus pais idoacutelatras que mataram os profetas eles da mesma forma querem matar Jesus que vem da parte de Deus (cf J Mateos 1989 p392-393) Segundo Brown ser descendente de Abraatildeo fisicamente natildeo tem nenhum meacuterito quando esse suposto filho natildeo age como agiu seu pai aqui no caso ldquoAbraatildeo que Creu quando Deus lhe falourdquo eles por outro lado natildeo creem no enviado de Deus (Jesus) por isso satildeo filhos ilegiacutetimos (cf Brown 1975 p80-81)
88
Diante desse contexto Chilton levanta uma questatildeo polecircmica Jesus pode ter
sido considerado um mamzer Algumas condiccedilotildees poderiam ser determinantes para
expor um indiviacuteduo na condiccedilatildeo de mamzer A principal caracteriacutestica que definia
uma pessoa nessa condiccedilatildeo era se tal indiviacuteduo era fruto de uma uniatildeo proibida e
consequentemente um filho proibido de acordo com a Toraacute ldquoNenhum bastardo
entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar
na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo (Dt 233) Conforme a Mishnah47
poderia ser considerado um mamzer aquele filho cuja paternidade natildeo era
conhecida e portanto natildeo havia evidecircncias que tal uniatildeo fosse permitida de acordo
com a Lei Por outro lado na visatildeo do Talmude Babilocircnico48 bastava ser filho de um
natildeo israelita para que o indiviacuteduo fosse considerado um mamzer
A legitimidade da paternidade bioloacutegica de Jesus foi assunto controverso
como indicado mais acima jaacute no segundo seacuteculo da era Cristatilde Alguns autores
como John P Meier (1991 p223) e Bruce Chilton (in Charlesworth 2006 p 85)
mencionam a acusaccedilatildeo feita por Celso jaacute no ano de 178 dC que Jesus era filho de
Maria com um soldado Romano chamado Pantera49
A fonte desta histoacuteria de acordo com Dalman (2002 p152-153) vem do
Talmude Babilocircnico O nome de um certo Jesus eacute comumente mencionado no
Talmude e na literatura talmuacutedica pelas expressotildees Filho de Stada (Satda) e Filho
de Pandera (Pantera) Segundo Dalman a traduccedilatildeo literal do texto talmuacutedico de
Shabat 104b e Sanhedrin 67a tem a seguinte forma
O filho de Stada era o filho de Pandera O Rabi Chisda disse O marido era
Stada o amante Pandera (Outro disse) o marido era Paphos ben Yehudah
Stada era sua matildee (ou) sua matildee era Mirian a cabeleireira de mulheres
como eles diriam em Pumbeditha Stath da (ie Ela era infiel) para o marido
47
A palavra Mishnah vem de Shanah ldquorepetirrdquo significa ldquorepeticcedilatildeordquo ou ldquoestudo atraveacutes da repeticcedilatildeordquo Publicada por volta do ano 200 dC pelo patriarca judeu Judas I a Mishnah eacute uma coletacircnea de leis que se impocircs como coacutedigo oficial do judaiacutesmo Ela resulta de uma compilaccedilatildeo seletiva feita no decurso do seacuteculo II da era cristatilde ndash de tradiccedilotildees normativas ambientes (halakot) Ela estaacute redigida em hebraico (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
48 ldquoTalmudrdquo significa ensinamento estudo Haacute dois Talmuds 1) o Talmud de Jerusaleacutem terminado
pelo fim do seacuteculo IV na Palestina 2) o Talmud da Babilocircnia composto no seacuteculo V em Sura Mesmo na Palestina o Talmud da Babilocircnia o mais completo suplantou o Talmud de Jerusaleacutem quando se fala do ldquoTalmudrdquo sem especificar qual designa-se exclusivamente o da Babilocircnia (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
49 Zuurmond acha que provavelmente Pantera (ou Pandera) ldquoseja uma deformaccedilatildeo acintosa de
parthenos= virgem Deformar de propoacutesito o nome de um inimigo era (e eacute) um uso bastante comum (cf Zuurmond 1998 p77)
89
No entanto uma traduccedilatildeo mais livre do mesmo texto talmuacutedico teria a
seguinte forma segundo Dalman
Ele natildeo era filho de estada mas filho de Pandera Rab Chisda afirma
que o marido da matildee de Jesus era Stada mas o amante dela era Pandera
Outro (diz) que o marido dela era certamente Paphos ben Yeshua que ao
contraacuterio Stada era a matildee dele (Jesus) de acordo com outros sua matildee era
Mirian (Maria em hebraico) a cabeleireira das mulheres A treacuteplica eacute e eu
concordo simplesmente Stada era o apelido dela (Maria) como dito no (ou
na) Pumbeditha Stath da (que significa ldquoela provou ser infielrdquo) ao marido dela
Provavelmente a partir da leitura desses textos eacute que Celso tomou o nome
deste Jesus citado no Talmude e relacionou com o Jesus dos Evangelhos
considerando que ambos os personagens se tratavam da mesma pessoa Desta
forma conforme mencionado por Oriacutegenes Celso acusa Jesus de aleacutem de ter
inventado seu nascimento ter nascido numa cidadezinha da Judeia ser filho de uma
pobre fiandeira ter adquirido poderes maacutegicos no Egito ainda usou esses poderes
para proclamar-se Deus (Oriacutegenes 2004 p68) Embora esse relato tenha sido
retomado tambeacutem por pensadores contemporacircneos como mais um argumento para
contestar a legitimidade do nascimento de Jesus conforme relatado nos Evangelhos
Chilton no entanto considera que esse relato eacute infundado e foi apenas mais uma
ficccedilatildeo que circulou nos primeiros seacuteculos da era cristatilde
Nas comunidades judaicas dos dias de Jesus se uma mulher estivesse
graacutevida antes da consumaccedilatildeo plena do matrimocircnio ela precisaria pela tradiccedilatildeo
apresentar agrave comunidade em que vivia provas de quem era o pai da crianccedila que
estava sendo gerado em seu ventre A casta do filho estava condicionada a quem
era o seu pai ou seja se o filho por ela gerado fosse fruto de uma uniatildeo proibida
obviamente ele seria excluiacutedo da congregaccedilatildeo de Israel conforme estabelecido na
Toraacute especificamente em Deuteronocircmio 233 onde lemos ldquoNenhum bastardo
entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar
na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo
Vale ainda ressaltar que quando um contrato de casamento era firmado a
Mishnah dava o direito ao contratante de anular o mesmo sem uma justificativa
formal caso ele se sentisse injusticcedilado Se a mulher estivesse graacutevida na ocasiatildeo
do rompimento do contrato esse ato do contratante eximia a mulher da acusaccedilatildeo de
90
adulteacuterio e dessa forma o filho natildeo poderia ser considerado formalmente um
mamzer Tal situaccedilatildeo poderia dar margem a um problema de interpretaccedilatildeo da Lei a
saber a mulher uma vez abandonada poderia usar apenas a palavra acerca da
paternidade do fruto de seu ventre Essa palavra seria aceita como verdade tal
como pensavam os rabinos Gamaliel e Eliezer ou rejeitada se natildeo houvesse uma
prova concreta no pensamento do rabino Joshua (Charlesworth 2006 p87)
No primeiro caso a mulher poderia alegar que um determinado cidadatildeo da
sua comunidade era o pai da crianccedila que ela estava esperando Se a palavra dessa
mulher fosse aceita como verdadeira entatildeo pela Toraacute esse homem seria obrigado
a casar com ela e natildeo poderia mandaacute-la embora por toda a vida conforme lemos
em Deuteronocircmio 22 28-29
Se um homem encontra uma jovem virgem que natildeo estaacute prometida e a agarra e se deita com ela e eacute pego em flagrante o homem que se deitou com ela daraacute ao pai da jovem cinquenta ciclos de prata e ela ficaraacute sendo a sua mulher uma vez que abusou dela Ele natildeo poderaacute mandaacute-la embora durante toda a sua vida
Essa interpretaccedilatildeo daria margem para que as mulheres mesmo que
concebessem um filho fruto de uma uniatildeo proibida mas que indicassem um
determinado homem como sendo o pai da crianccedila pudessem tornar o fruto do
ventre em um legiacutetimo judeu aos olhos da comunidade tendo em vista que a mulher
alcanccedilou ecircxito em sua argumentaccedilatildeo o que segundo essa visatildeo natildeo seria difiacutecil
conseguir (Charlesworth 2006 p 87)
Partindo da premissa que a relaccedilatildeo sexual entre pessoas que jaacute haviam
estabelecido o contrato de casamento era toleraacutevel na eacutepoca uma possiacutevel relaccedilatildeo
sexual entre Joseacute e Maria natildeo seria proibida Mas o fato de Joseacute morar em Beleacutem e
Maria em Nazareacute exclui as possibilidades do filho ser dele (Chilton 2002 p13)
Dessa forma Jesus poderia ser considerado um mamzer jaacute que a sua concepccedilatildeo
ocorreu no periacuteodo entre o contrato de casamento e a coabitaccedilatildeo de Joseacute e Maria
Chilton observa que o pensamento de Joseacute em deixar Maria secretamente
conforme lemos em Mateus 119 seria portanto uma forma de natildeo acusar Maria de
fornicaccedilatildeo Natildeo obstante a maravilhosa forma como Joseacute assumiu a paternidade
pode natildeo ter sido suficiente para inibir as mais adversas situaccedilotildees pelas quais Jesus
91
tenha sido alvo desde a infacircncia ateacute a crucificaccedilatildeo proveniente de especulaccedilotildees
sobre a legitimidade de sua paternidade bioloacutegica
Observando as teorias propostas acima a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus
podemos pensar sobre os diferentes conceitos que seus contemporacircneos tinham a
respeito dele Ele era filho de Deus gerado pelo Espiacuterito Santo Ele era filho de Joseacute
ou de um pai desconhecido As palavras ldquoNatildeo nascemos da prostituiccedilatildeordquo (Jo 841)
poderiam ter sido usadas com ironia a fim de colocar em duacutevida sua reputaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees concernentes agrave paternidade bioloacutegica Por que ele foi
chamado de o ldquocarpinteiro o filho de Mariardquo (Mc 63) e natildeo filho de Joseacute e de Maria
entre os seus conterracircneos
Essas questotildees levantadas acima satildeo passiacuteveis de outras interpretaccedilotildees
quando olhamos o texto do Evangelho de Joatildeo a partir de uma cristologia alta50
Embora seja possiacutevel que os judeus tenham procurado debater com Jesus sobre
sua filiaccedilatildeo humana Jesus no entanto sempre usou tais debates para evidenciar
sua filiaccedilatildeo divina e enfatizar sua relaccedilatildeo com o Pai atraveacutes da palavra Abba que
para J Jeremias eacute a mensagem central do Novo Testamento
53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS
Jesus se relacionava com Deus de uma maneira peculiar a qual eacute evidente
nos evangelhos Segundo Pagola a experiecircncia de vida de Jesus eacute a partir de um
Deus Pai que para Jesus eacute aquele que cuida ateacute mesmo das criaturas fraacutegeis e
insignificantes aos olhos dos homens Esse Pai tambeacutem atende aos pobres e
necessitados traz a cura aos enfermos busca os perdidos enfim Deus Pai se torna
o centro de toda a mensagem e da proacutepria vida de Jesus de Nazareacute (Pagola 2010
p 380-381)
Nos Evangelhos a palavra Pai aparece nos laacutebios de Jesus mais de 170
vezes quando ele se dirige a Deus seja por interpelaccedilatildeo ou por designaccedilatildeo
Segundo J Jeremias eacute preciso distinguir a interpelaccedilatildeo da designaccedilatildeo de Deus
como Pai quando esse termo eacute proferido por Jesus nos evangelhos Em suas
50
A cristologia alta refere-se agrave crenccedila na preexistecircncia e na divindade de Jesus (cf
httpwwwcentroestudosanglicanoscombrbancodetextosbibliahermeneuticaresenhas_brown_julio_cesarpdf acesso em 23102011 as 1225 horas)
92
oraccedilotildees Jesus sempre fez uso da interpelaccedilatildeo Pai para invocar a Deus com
exceccedilatildeo do grito da cruz em Mc 1534 par Mt 2746 ldquoMeu Deus meu Deus por que
me abandonasterdquo interpelaccedilatildeo essa que jaacute estava prefixada pelo Sl 221 Aleacutem da
interpelaccedilatildeo eacute muito comum Jesus referir-se a Deus como ldquoo Pairdquo (ὁ πατὴρ) ldquomeu
Pairdquo (τοῦ πατρός μου) e ldquovosso Pairdquo (ὁ πατὴρ ὑμῶν ) (Jeremias 2005 p43)
De fato Jesus usou essas trecircs formas para designar Deus como Pai A
designaccedilatildeo ldquoo Pairdquo encontra-se em alguns textos dos evangelhos em Marcos (Mc
13 32 = Mt 24 36) em Mateus e Lucas juntos (Mt 11 27 = Lc 10 22) somente em
Lucas (Lc 9 26 1113) somente em Mateus (Mt 28 19) e em Joatildeo setenta e trecircs
vezes Sobre a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo encontramos em Marcos (Mc 11 25)
Mateus e Lucas juntos (Mt 5 48 = Lc 6 36 1230) somente em Lucas (Lc 12 32)
somente em Mateus (Mt 5 16 44 61 81526 7 11 10 20 29 18 14) e em Joatildeo
(Jo 8 42 20 17) Aleacutem disso o termo ldquomeu Pairdquo que se encontra em Marcos (Mc
838 = Mt 16 27) τοῦ πατρὸς αὐτοῦ [de seu Pai] mesmo que em referecircncia ao
Filho do Homem natildeo pode figurar sem reservas entre os testemunhos da foacutermula
Meu Pai) (Jeremias 2005 p43) E por fim conforme J Jeremias a expressatildeo
ldquomeu Pairdquo encontra-se nos seguintes textos dos Evangelhos Mateus e Lucas juntos
(Mt 11 27 ndash Lc 1022) somente em Lucas (Lc 249 22 29 24 49) somente em
Mateus (Mt 7 21 10 32-33 12 50 15 13 16 17 18 10 19 35 20 23 25 34 26
29 53 e em Joatildeo vinte e cinco vezes
Para J Jeremias haacute uma crescente tendecircncia em introduzir a designaccedilatildeo de
Deus como Pai nos evangelhos Excluindo as invocaccedilotildees de Pai por Jesus e
contando os paralelos sinoacuteticos J Jeremias observa que em Marcos aparece
apenas trecircs vezes jaacute em Mateus e Lucas juntos (coleccedilatildeo dos logias) aparece
quatro vezes enquanto que somente em Lucas eacute mencionado quatro vezes Os
ditos que satildeo proacuteprios de Mateus satildeo citados trinta e uma vezes A ecircnfase recai
sobre o Evangelho de Joatildeo escrito mais tarde onde a designaccedilatildeo de Deus como
Pai nas palavras de Jesus aparece cem vezes Segundo J Jeremias haacute uma
evidente progressatildeo do uso da palavra Pai usada por Jesus em Marcos na coleccedilatildeo
dos Logia e nos elementos proacuteprios de Lucas Analisando os textos dos Evangelhos
referentes ao uso da palavra Pai observa-se que todos enfatizam essa relaccedilatildeo
iacutentima de Jesus com o Pai do ceacuteu Desse modo ldquopode-se dizer que Jesus se servia
93
da palavra Pai para designar a Deus somente em certas circunstacircncias Em
Mateus acha-se uma progressatildeo sensiacutevel no uso do termo e em Joatildeo Pai quase
tornou-se sinocircnimo de Deusrdquo (Jeremias 1977 p26-27)
Francisco Reyes Archila nota a frequecircncia do uso da palavra Pai em Joatildeo
mesmo sendo este o Evangelho que ao mesmo tempo em que evidencia a
paternidade divina protagoniza tambeacutem a figura feminina no discipulado
especialmente de Maria Madalena51 Archila analisando essa progressatildeo do uso da
palavra Pai em Joatildeo nos laacutebios de Jesus como tambeacutem jaacute havia sido observada por
J Jeremias vecirc ainda uma tendecircncia maior em Mateus em registrar o termo Pai em
relaccedilatildeo a Deus do que em Marcos e Lucas onde o termo praticamente natildeo aparece
Referindo-se a Joatildeo Archila tambeacutem eacute de acordo que natildeo somente nos
Evangelhos mas tambeacutem nas cartas o termo Pai eacute usado com uma frequecircncia
muito alta Para Archila jaacute que em Mateus a frequecircncia natildeo eacute tatildeo alta e em Marcos
e Lucas ela praticamente natildeo aparece e nem nas cartas de Paulo se usa esse
termo referindo-se a Deus somente na introduccedilatildeo das cartas (Rm 17 1 Co 13
2Cor 13 2Cor 12 1131 Gl 1 1-3 Ef 11 520 Cl 1 2-3 1Ts 11 2Ts 11 1tm 12
2Tm 12 Tt 14 Fm3) Eacute de se suspeitar segundo esse autor52 de que Jesus tenha
realmente dirigido-se a Deus sempre como Pai o mais provaacutevel seria que com o
decorrer do tempo (jaacute que Joatildeo foi escrito posteriormente aos outros Evangelhos) a
Igreja primitiva tenha assumido progressivamente essa expressatildeo devido ao
ldquoespiacuterito patriarcal proacuteprio do ambiente cultural da eacutepocardquo (Archila 2007 p99)
Podemos ver sobre o relevante uso do termo Pai no Evangelho de Joatildeo no
resumo feito por Matthias Grenzer conforme exposto abaixo
1ndash O Pai ama o Filho porque este uacuteltimo daacute a sua vida (Jo 1017)
2- O Pai mostra ao Filho tudo o que ele mesmo faz (Jo 5 20)
51
Hamerton-Kelly esclarece que o fato de Jesus ter escolhido o siacutembolo de ldquopairdquo para referir-se a
Deus foi uma forma de reorganizar a forma de patriarcado da eacutepoca com a finalidade de tornar as pessoas livres das ldquogarras do patriarcadordquo Para Hamerton-Kelly longe de ser um siacutembolo sexista o pai era para Jesus uma arma escolhida para combater o que chamam de sexismo O termo ldquopairdquo tem sido interpretado fora de seu contexto apresentando um ldquodeusrdquo do sexo masculino que tem sido colocado primariamente como macho mas segundo esse autor a situaccedilatildeo poderia ser mudada ldquocomo temos tentado fazerrdquo (cf Hamerton-kelly 1979 p103) Roger Haight estaacute de acordo que Hamerton-Kelly na nota acima segue J Jeremias sobre a forma como Jesus fazia uso do termo ldquopairdquo que em seu contexto significa algo semelhante agrave ldquomatildeerdquo na sociedade moderna desenvolvida (cf Haight 2003 p 128)
52 Archila estaacute citando Lothar Coenen e outros (Diccionaacuterio teoloacutegico del Nuevo Testamento
Salamanca Siacutegueme vol 3 1983 p 244)
94
3- Ao permanecer no Filho o Pai realiza as suas obras (Jo 1410)
4- O Pai vivo enviou o filho e o filho vive atraveacutes do Pai (Jo 6 57)
5- O Filho fala o que o Pai lhe diz (Jo 12 49-50)
6- O Filho por si mesmo nada faz mas realiza soacute aquilo que vecirc o Pai fazer (Jo
519)
7- Com esse relacionamento muacutetuo de maior intensidade o Pai ama o filho (Jo
335 5 20 1017 159) e o Filho ama o Pai (Jo 1431)
8- O Filho permanece no amor do Pai (Jo 1510)
9- O Pai estaacute no Filho e o Filho estaacute no Pai (Jo 1038 1411 1721)
Esse profundo relacionamento do Filho com o Pai pode ser compartilhado com
o ser humano segundo Grenzer desde que o disciacutepulo reconheccedila o Filho no Pai (Jo
1417) pois aquele que conhece o Filho tambeacutem conhece o Pai (Jo 14 7-9)
ldquoAquele que ama o Filho observando os mandamentos dele seraacute amado pelo Pairdquo
(Jo 1421) Ou ao contraacuterio ldquoquem natildeo honra o Filho tambeacutem natildeo honra o Pai que
o enviou (Jo 523)rdquo Portanto a relaccedilatildeo de Jesus (o Filho) com Deus (o Pai) no
Evangelho de Joatildeo eacute de extrema relevacircncia para compreendermos a cristologia e
para aprendermos a perfeita forma de nos relacionarmos com o Pai celeste
(Grenzer 2009 p 184)
Archila (2007 p99) contabiliza que a expressatildeo Pai para nomear Deus no
Novo Testamento ocorre 245 vezes enquanto que a mesma palavra para designar o
pai bioloacutegico ocorre 157 vezes O motivo para tal ecircnfase para o uso dessa
expressatildeo referindo-se a Deus pode ser pela ldquoinfluecircncia da filosofia grega53 na
nomeaccedilatildeo de Deus como Pai Contudo segundo o mesmo autor o mais plausiacutevel
do ponto de vista histoacuterico eacute a possibilidade que Jesus realmente ldquotenha chamado a
Deus como meu pai ou nosso pai ou pai de vocecircs (Mt 69 2629 42 Lc 112)
Inclusive eacute mais provaacutevel que Jesus o tenha nomeado como Abba palavra usada
pelos filhos ao dirigir-se a seus pais e que equivale a papai (Archila 2007 p99-
53
ldquoA ideia da paternidade de Deus recebe uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica em Platatildeo e nos estoicos
Platatildeo na sua elaboraccedilatildeo cosmoloacutegica da ideia do pai ressalta o relacionamento criador de Deus o pai universal para com o cosmos inteiro (Tim 28c 41a e frequentemente) Para os estoicos a autoridade de deus como Pai permeia o universo ele eacute criador pai e sustentador dos homensrdquo (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)
95
100) Essa forma de dirigir-se a Deus como Pai ou seja essa ideia de ser filho de
Deus contrapotildee-se a ideia presente na filosofia grega e tambeacutem da concepccedilatildeo
romana do Imperador como ldquofilho de deusrdquo Por outro lado ainda o Abba de Jesus
assimilado pela Igreja primitiva dava o direito aos considerados apaacutetridas sociais a
terem o direito de ter um pai o que provavelmente deve ter provocado implicaccedilotildees
agrave Igreja jaacute que essas ideias iam contra aos valores da sociedade patriarcal daquela
eacutepoca (Archila 2007 p103-104)
A imagem que Jesus apresentou do Pai do ceacuteu natildeo pode ser associada com o
que a patriarcalizaccedilatildeo que a cristandade ocidental fez de Deus Para Jesus
segundo Archila Deus natildeo eacute um pai superpoderoso dominante prepotente e
distante dos seus filhosrsquo ele eacute por natureza um pai proacuteximo iacutentimo terno e
misericordioso ou seja ele nos mostra a imagem de um Deus Pai bom e justo Em
outras palavras pode-se dizer que Jesus humanizou a imagem de Deus rompendo
com a imagem patriarcal54 androcecircntrica e exclusivista para apresentar a imagem
de Deus como o Pai bom que projeta nos seus filhos um modelo de relacionamento
fraterno entre homens mulheres crianccedilas com a proacutepria natureza e por fim com o
proacuteprio Deus (Archila 2007 p107)
Trabalhando ainda o Abba nos laacutebios de Jesus eacute relevante observarmos que
Santos Sabugal tambeacutem lista as invocaccedilotildees e designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo nos
laacutebios de Jesus como sendo empregado natildeo menos de 184 vezes (Marcos 4 Lucas
17 Mateus 44 Joatildeo 119 = 111 nos laacutebios de Jesus) assim o referido autor resume
o emprego das designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo por Jesus nos Evangelhos
Esse uso eacute portanto limitado em Marcos mas frequente em Lucas e sobre tudo em Mateus para culminar no evangelho de Joatildeo E as estatiacutesticas refletem de alguma forma em cada evangelho a concepccedilatildeo teoloacutegica da paternidade divina Marcos representa o estagio inicial desta concepccedilatildeo desenvolvida pela teologia de Lucas e significativamente ampliada por Mateus atingindo seu pico mais alto em Joatildeo o teoacutelogo por excelecircncia da paternidade de Deus (Sabugal 1985 p381)
54
Segundo Archila o patriarcado eacute definido como ldquouma relaccedilatildeo de poder entendido como dominaccedilatildeo e superioridade que o varatildeo exerce sobre mulheres e crianccedilasrdquo O modelo que o sistema patriarcal pretende representar eacute baseado numa forma hegemocircnica da dominaccedilatildeo do varatildeo sobre a mulher Esse modelo ldquoinclui papeis competecircncias haacutebitos valores formas de pensar e inclusive formas institucionais como leis e normasrdquo (Archila 2007 p 91-92)
96
Para Sabugal portanto nenhum judeu mesmo os mais piedosos invocou a
Deus como o Abba assim como fez Jesus constantemente Ele tinha a
autoconsciecircncia de ser o filho de Deus Essa forma de invocar a Deus tornou-se natildeo
apenas parte integrante e essencial das suas oraccedilotildees como tambeacutem parte
integrante do seu meacutetodo de ensino sobre a oraccedilatildeo (Sabugal 1985 p386)
Joseacute Antonio Pagola tambeacutem eacute de acordo que Jesus como todas as demais
crianccedilas da Galileia em suas primeiras palavras balbuciou os termos immaacute
(mamatildee) e abba (papai) quando se dirigia a Maria e Joseacute seus pais Contudo
segundo Pagola pode ser um exagero limitar o uso do abba apenas agraves criancinhas
visto que ateacute mesmo os adultos parece que usavam tal expressatildeo como forma de
respeito agrave figura paterna dentro de uma estrutura familiar patriarcal (Pagola 2010
p383)
Mas natildeo precisamos exagerar Parece que tambeacutem os adultos empregavam esta palavra expressando seu respeito e obediecircncia ao pai da famiacutelia patriarcal Chamar a Deus de Abbaacute indica carinho intimidade e proximidade mas tambeacutem respeito e submissatildeo Jesus havia conhecido em sua proacutepria casa a importacircncia do pai Joseacute era o centro de toda a famiacutelia Tudo gira em torno dele O pai cuida dos seus e os protege Se ele falta a famiacutelia corre o risco de desintegrar-se e desaparecer Eacute ele quem sustenta e assegura o futuro de todos Haacute dois traccedilos que caracterizam um bom pai O primeiro eacute a solicitude para com os filhos eacute ele quem deve assegurar-lhes o sustento necessaacuterio protegecirc-los e ajudaacute-los em tudo Ao mesmo tempo o pai eacute autoridade da famiacutelia ele daacute as ordens para assegurar o bem de todos Ele instrui os filhos ensina-lhes um oficio se necessaacuterio Os filhos por sua vez satildeo chamados a ser a alegria do pai (Pagola 2010 p 383-384)
Para fundamentar sua tese de que o abba era um linguajar infantil e que
Jesus que ressignificou esse termo J Jeremias recorre aos pais da Igreja
Crisoacutestomo Teodoro de Mopsueacutestia e Teodoreto de Ciro originaacuterios de Antioquia
uma populaccedilatildeo que falava o siriacuteaco ocidental do aramaico Segundo J Jeremias
esses ldquopais da Igrejardquo satildeo de comum acordo de que o termo Abba era a palavra
usada por um filho pequenino quando se dirigia ao seu pai Um outro documento
usado por J Jeremias para dar sustentaccedilatildeo agrave sua pesquisa eacute o relato do Talmude (b
Berakocirct 40a b Sanedriacuten 70b) citado por ele com as seguintes palavras ldquoQuando
uma crianccedila prova o gosto do cereal isto eacute tatildeo logo como o detestam aprende a
dizer Abba e imma (papai e mamatildee) Abba e imma satildeo pois as primeiras palavras
que a crianccedila balbucia Abba era a linguagem infantil uma palavra comum
97
empregada diariamente ningueacutem tinha ousado dirigir-se a Deus desse modordquo (cf
Jeremias 2006 p63)
Deus como Pai para Jesus eacute com frequecircncia um Pai bom Ele ldquofaz nascer
seu sol sobre bons e maus Manda a chuva sobre justos e injustos (Lc 635 Mt
545) Para Pagola Jesus demonstra isso com muita maestria na paraacutebola do ldquofilho
perdidordquo (Lc 15 11-32) Nessa paraacutebola Pagola observa que o pai natildeo eacute um
personagem autoritaacuterio que natildeo respeita as decisotildees dos filhos pelo contraacuterio ele eacute
um pai amoroso e mesmo que o filho o tenha abandonado ele o recebe de braccedilos
abertos assim que este o pede perdatildeo (Pagola 2010 p386)
Embora a teologia do Abba seja defendida como a ipssissima vox de Jesus
por J Jeremias alguns autores contemporacircneos como Udo Schnelle defende que
natildeo haacute novidade na forma de Jesus invocar ou designar a Deus como pai visto que
isso era uma praacutetica comum tanto no judaiacutesmo como no mundo greco-romano
Segundo Schnelle a novidade do Abba nos laacutebios de Jesus estaacute na ecircnfase na
frequecircncia e na simplicidade com que Deus eacute designado como Pai nos Evangelhos
quando esse termo eacute proferido por Jesus (Schnelle 2010 p99-100)
J Jeremias defende que Jesus usou a palavra Pai na maioria das vezes
quando essa relaccedilatildeo era do Filho com o Pai Quanto ao uso da palavra Pai em
relaccedilatildeo a outras pessoas Jesus nunca fez alguma referecircncia a natildeo ser raras vezes
a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo apenas aos seus disciacutepulos e nunca a outros grupos
visto que a paternidade divina era uma exclusividade estendida apenas aos
disciacutepulos Grupos como os escribas e fariseus foram excluiacutedos dessa filiaccedilatildeo pois
o pai deles eacute o diabo conforme Joatildeo 8 42-44 (Jeremias 2008 p271)
Disse-lhes Jesus ldquoSe Deus fosse o vosso pai voacutes me amariacuteeis porque saiacute de Deus e dele venho natildeo venho por mim mesmo mas foi ele que me enviou Por que natildeo reconheceis minha linguagem Eacute porque natildeo podeis escutar minha palavra Voacutes sois do diabo vosso pai e quereis realizar os desejos do vosso pai Ele foi homicida desde o princiacutepio e natildeo permaneceu na verdade quando ele mente fala do que lhe eacute proacuteprio porque eacute mentiroso e pai da mentira
98
A questatildeo da filiaccedilatildeo divina eacute um processo iacutentimo entre o Pai e seu filho J
Jeremias observou que o texto do evangelho de Mateus (Mt 1127) pode ser mais
bem traduzido do seguinte modo ldquocomo soacute um Pai conhece o seu filho assim soacute um
filho conhece o seu pairdquo (Jeremias 1977 p29) Essa relaccedilatildeo de Filho e Pai que
Jesus propagou no Novo Testamento tem no Antigo Testamento o paralelo mais
proacuteximo nas palavras do salmista ldquoComo um pai se compadece dos filhos assim se
apieda o Senhor dos que o tememrdquo (Sl 103 13) Mas para os filhos do Reino o pai
eacute ainda maior Ele aleacutem de bondoso e misericordioso eacute benigno ateacute mesmo com os
ingratos e maus (Lc 635)
Seguindo esse pensamento Joseph A Fitzmyer observa que quando Jesus
instruiu os disciacutepulos a invocar a Deus como Pai Ele estava mostrando que Deus
natildeo era somente o ldquotranscendente Senhor dos ceacuteus mas estaacute perto assim como um
pai com seus filhosrdquo (Fitzmyer 1985 p898) Para Stephen A Missick Abba eacute
contudo um misteacuterio uma revelaccedilatildeo especial que vem somente atraveacutes de Jesus
Cristo Missick assim como J Jeremias observa que o texto de Mateus 1127
poderia ser parafraseado em aramaico ficando da seguinte forma ldquosomente pai e
filho realmente se conhecem Porque apenas um pai e um filho verdadeiramente
conhecem um ao outro portanto um filho pode revelar aos outros os pensamentos
mais iacutentimos de seu pairdquo (Missick 2006 p23) Para Missick o maior exemplo para
demonstrar essa intimidade entre o Filho e o Pai e o poder que o Filho tem de
revelar o Pai estaacute registrado em Joatildeo 148
Filipe lhe diz ldquoSenhor mostra-nos o Pai e isso nos bastardquo Diz-lhe Jesus ldquoHaacute tanto tempo estou convosco e tu natildeo me conheces Filipe Quem me vecirc vecirc o Pai Como podes dizer Mostra-nos o Pai Natildeo crecircs que estou no Pai e que o Pai estaacute em mim As palavras que vos digo natildeo as digo de mim mesmo mas o Pai que permanece em mim realiza suas obras Crede-me eu estou no Pai e o Pai em mim Crede-o ao menos por causa dessas obrasrdquo
O discurso de Jesus sempre foi conflitante com os grupos religiosos de sua
eacutepoca e isto se agravou mais ainda pelo modo como Ele invocava a Deus mediante
a expressatildeo ldquomeu Pairdquo fato que natildeo era comum no Judaiacutesmo Se essa forma de
99
dirigir-se a Deus chamando-o de ldquomeu Pairdquo era incomum muito mais incomum
ainda era o emprego da forma aramaica ldquoAbbardquo (Jeremias 2008 p116) Os Judeus
usavam duas maneiras de tratar o Pai uma que era muito comum e tambeacutem usada
no cotidiano familiar abba e outra que era mais solene e elevada abicirc (אב)
(Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p649) Para um judeu usar a palavra
Abba para dirigir-se a Deus parecia ser um atrevimento pois tal palavra soava como
balbucio Abba estava entre as primeiras palavras que uma crianccedila aprendia a falar
conforme a referecircncia que J Jeremias faz ao Talmude Babilocircnico jaacute citado neste
trabalho55
Jaacute nos dias de Jesus abba jaacute tinha deixado de ser apenas uma linguagem das
criancinhas para tornar-se uma forma como os filhos adultos se dirigiam a seu pai
como podemos ver na paraacutebola do filho proacutedigo (Lc 15 21) Nos laacutebios de Jesus
aleacutem de tornar-se uma forma familiar de invocar e dirigir-se a Deus abba passou a
ser tambeacutem considerada uma palavra lsquosagradarsquo uma vez que um soacute eacute o Pai dos
disciacutepulos a saber o que estaacute nos ceacuteus conforme Mateus 239 (Jeremias 2008
p121) Para Jesus Abba tornou-se uma expressatildeo de honra que somente o Pai
celeste eacute digno Essa maneira simples e iacutentima de Jesus dirigir-se a Deus como
uma criancinha fala a seu pai foi considerado por J Jeremias como a ipsiacutessima vox
de Jesus isto eacute um modo proacuteprio e original de falar usado por Jesus e que natildeo
tinha nenhuma analogia na literatura da eacutepoca (Jeremias 2008 p120)
[] a forma abbaacute suplantou a forma abbi usada no aramaico paletinense ateacute pelo menos o seacutec 2 a C como constatamos pela documentaccedilatildeo Aleacutem disso abbaacute tomou o sentido de ldquomeu pairdquo e de ldquoo pairdquo e ldquonosso pairdquo De tal modo que a palavra natildeo era apenas parte do linguajar das crianccedilas Os jovens de ambos os sexos tambeacutem chamavam o proacuteprio pai de Abbaacute (cf Lc 15 21) natildeo recorrendo agrave palavra ldquoSenhorrdquo (Kyrie) a natildeo ser cerimonioso (cf Mt 21 29-30) Mas apesar destes desenvolvimentos jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil (Jeremias 1977 p 24-25)
Mais tarde Fitzmyer comentando essa tese reconhece que J Jeremias
entendeu que Jesus natildeo se dirigiu a Deus invocando-o como uma criancinha faz
com seu pai Fitzmyer tambeacutem concorda que Abba eacute a ipisissima vox de Jesus para
55
para esclarecer essa tese podemos ver uma versatildeo semelhante a jaacute citada por J Jeremias (2006 p63) em outra obra sua conforme transcrevemos abaixo ldquoSomente quando uma crianccedila experimenta o gosto do trigo (isto eacute quando eacute desmamada) eacute que ela diz aacutebba imma [matildee] ou seja estes satildeo os primeiros balbuciosrdquo (cf Jeremias 2008 p119)
100
expressar o seu relacionamento com Deus mas que Abba por si soacute sem as oraccedilotildees
de louvor registradas pelos evangelistas Mateus e Lucas (Mt 11 25-27 Lc 10 21-
22) natildeo eacute suficiente para subsidiar tal argumento (Fitzmyer 1993 p61) Para
Ephraim o meacuterito de ter levado ao grande puacuteblico o verdadeiro sentido de como
Jesus se dirigia a Deus Pai chamando-o de Abba eacute de J Jeremias
[hellip] Joachim Jeremias levou ao grande puacuteblico toda a beleza do nome Abba tal como Jesus o pronunciava Enfatizou com razatildeo que em nenhuma outra parte do judaiacutesmo se encontra tal familiariadade Mesmo se por vezes Deus era invocado pelo vocaacutebulo Pai ningueacutem ousou antes do Filho primogecircnito dentre um grande nuacutemero de irmatildeos chamaacute-lo de Abba que literalmente quer dizer papai A ousadia amorosa sempre estivera do lado do Pai pois do lado da criatura nunca ningueacutem fora tatildeo longe como Jesus na resposta adesatildeo e entrega ao amor misericordioso (Ephraim 1998 p174)
54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS
Sabendo que os Evangelhos sinoacuteticos contecircm muitos traccedilos que remontam
para uma redaccedilatildeo poacutes-pascal J Jeremias pergunta ldquoseremos capazes de
remontarmos em particular a ipsissima vox de Jesusrdquo Os evangelhos apresentam
o querigma de Jesus ou segundo J Jeremias seria mais exato dizer que eles
apresentam a Didaquecirc (ensino) da Igreja primitiva A pergunta acima pode gerar um
certo ceticismo contudo natildeo tem forccedila para destruir o argumento de que
[] os logia de Jesus apresentam certas particularidades que devemos considerar como suas expressotildees favoritas jaacute que figuram independentemente uma das outras nas diversas narrativas da tradiccedilatildeo Abba e amen satildeo os traccedilos da linguagem mais caracteriacutesticos da ipsissima vox de Jesus (Jeremias 2006 p 137-138)
Haacute uma distinccedilatildeo entre ipsissima vox e ipsissima verba de Jesus Segundo J
Jeremias a presenccedila de um modo de falar preferido de Jesus (ipsissima vox) natildeo
dispensa absolutamente de examinar em cada caso particular se temos um dito
autecircntico (ipsissima verba) (Jeremias 2008 p79) Os apoacutestolos assim
compreenderam e Paulo vai dizer mais tarde que Abba eacute o clamor (ipsissima vox)
dos filhos de Deus daqueles que foram adotados na comunhatildeo do Espiacuterito Santo
Segundo Missick a importacircncia da palavra Abba vem justamente ao encontro dessa
teoria pois segundo ele natildeo haacute duacutevida de que essa foi a palavra exata que Jesus
101
falou ou seja Abba eacute a ipsissima vox a voz original ou a ipsissima verba as
autecircnticas palavras de Jesus (Missick 2006 p 23)
J Jeremias baseando-se em Dalman diz-nos que assim como o Abba a
palavra amen (ἀμήν) quando proferida por Jesus natildeo possui nenhum equivalente
na literatura judaica e nem nos demais escritos do Novo Testamento Nos discursos
judaicos a palavra ameacuten ldquoservia para ratificar reforccedilar e fazer proacuteprias as palavras
de outro (cf Jr 28 6) na tradiccedilatildeo dos logia de Jesus se utiliza sem exceccedilatildeo esse
termo para reforccedilar o proacuteprio discursordquo (cf Jeremias 2006 p 138) Podemos ver
esse pensamento exposto nas palavras do proacuteprio Dalman
Jaacute foi frequumlentemente apontado que o modo como Jesus usa a palavra ameacutem natildeo eacute familiar em toda a literatura judaica Mesmo em Sota II 5 cf Jerus I e II num 522 realmente natildeo pode ser forccedilado a comparaccedilatildeo Nessa passagem a repeticcedilatildeo amen pronunciado pela mulher suspeita de adulteacuterio eacute explicada como um protesto de sua inocecircncia como se ela estivesse a dizer ameacutem [= eu protesto] que eu natildeo me poluiacute ameacutem que eu natildeo vou poluir a mim mesma (cf Dalman 1902 p226)
J Jeremias refere-se agraves foacutermulas ameacuten legocirc hymin (sou) (em verdade vos [te]
digo) nos sinoacuteticos e amen ameacuten legocirc hymin (soi) (em verdade em verdade vos
[te] digo) em Joatildeo Segundo ele o nuacutemero de vezes que tais expressotildees aparecem
nos evangelhos eacute 13 vezes em Marcos 30 em Mateus (+ Mt 18 19 var) 6 em
Lucas e 25 em Joatildeo onde haacute uma reduplicaccedilatildeo Para J Jeremias este amen natildeo
responsivo coloca-nos diante de uma forma totalmente nova e peculiar dos
Evangelhos e principalmente de Jesus (Jeremias 2006 p 138-139)
Sobre a grandeza do Abba como a ipsissima vox de Jesus vejamos o que nos
diz J Jeremias
Natildeo haacute paralelos com esta mensagem de que Jesus quer ocupar-se dos pecadores natildeo dos justos e que desde agora lhes daacute jaacute a participaccedilatildeo em seu reinado Natildeo haacute paralelos com este Jesus que se senta agrave mesa com publicanos e pecadores Natildeo haacute paralelos com a autoridade com que Jesus se atreve a dirigir-se a Deus com a invocaccedilatildeo de Abba Quem reconhece unicamente o fato (e natildeo sei como algueacutem poderia negaacute-lo) de que a palavra ldquoabbardquo eacute ipsissima vox Iesu esse tal se entende bem a palavra e natildeo a desvirtua estaacute diante da pretensatildeo que Jesus tinha de sua proacutepria majestade (Jeremias 2006 p40)
Se para Jesus invocar a Deus como Pai era um direito exclusivo dado aos
disciacutepulos na igreja primitiva isso era privileacutegio apenas dos membros que jaacute
102
estavam integrados na igreja aos neoacutefitos era lhes reservado o direito de aprender a
oraccedilatildeo mas soacute podiam pronunciaacute-la em puacuteblico a partir da primeira Eucaristia logo
apoacutes o batismo conforme Cirilo um sacerdote de Jerusaleacutem que viveu por volta do
ano 350 dC (Jeremias 1979 p10) Segundo J Jeremias essas restriccedilotildees podem
ser vistas ateacute mesmo na divisatildeo dos capiacutetulos da Didaquecirc no seacuteculo I Na Didaquecirc
a oraccedilatildeo e a ceia do Senhor soacute vecircm depois do batismo (Jeremias 1979 p9-10)
Isso demonstra o quanto era sagrado o direito de invocar a Deus Pai chamando-o
de Abba Pai
55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR
Jesus pertencia a uma famiacutelia piedosa judaica (Lc 2 1-52 cf 416) viveu no
meio de um povo que sabia orar por isso eacute bem provaacutevel que desde menino tenha
aprendido em casa com seus pais a exercer a praacutetica da oraccedilatildeo cotidiana
Segundo J Jeremias natildeo eacute possiacutevel saber muita coisa sobre a praacutetica de oraccedilatildeo na
vida de Jesus aleacutem dos trecircs gritos da cruz relacionados nos sinoacuteticos haacute ainda
duas oraccedilotildees ldquoo grito de juacutebilo (Mt 11 25-26) e a oraccedilatildeo do Getsecircmani (Mc 14 36)rdquo
O Evangelho de Joatildeo registra outras trecircs oraccedilotildees de Jesus na ressurreiccedilatildeo de
Laacutezaro (Jo 1 14-42) na esplanada do templo (equivalente joanino da oraccedilatildeo do
Getsecircmani Jo 12 27) e a oraccedilatildeo sacerdotal (Jo 17) Aleacutem disso temos outros
relatos gerais de oraccedilatildeo registrados nos Evangelhos (cf Mc 1 35 646=Mt 14 23
Lc 3 21 5 16 6 12 9 18 28-29 Lc 22 31-32) e a oraccedilatildeo do Pai-nosso
(Jeremias 2006 p123)
Podemos ainda mencionar que com exceccedilatildeo das mulheres dos filhos
pequenos e dos escravos todos os homens de Israel a partir dos treze anos
estavam obrigados a recitar regularmente o Shemaacute56 (ldquoOuve oacute Israel Iahweh nosso
Deus eacute o uacutenico Iahwehrdquo Dt 64) duas vezes ao dia Aleacutem da profissatildeo de feacute judaica o
mandamento divino era logo recitado em seguida (cf Jeremias 2006 p 116)
Portanto amaraacutes a Iahweh teu Deus com todo o seu coraccedilatildeo com toda a tua alma e com toda a tua forccedila Que estas palavras que hoje te ordeno
56
No entanto segundo J Jeremias o shemaacute era ensinado aos filhos desde que esses aprendiam a falar (cf Jeremias 2006 p 116)
103
estejam em teu coraccedilatildeo Tu as inculcaraacutes aos teus filhos e delas falaraacutes sentado em tua casa e andando pelo caminho deitado e de peacute (Dt 6 5-7)
No Novo Testamento a oraccedilatildeo jaacute havia deixado de ser praticada duas vezes
ao dia para concretizar-se em trecircs vezes conforme vemos no livro dos Atos dos
Apoacutestolos (31 10 3-30) e na Didaquecirc (83) Segundo Jeremias isso se deve ao
fato de ter havido uma fusatildeo entre o Shemaacute (apesar dessa natildeo ser propriamente
uma oraccedilatildeo mas uma profissatildeo de feacute) com a Tefilaacute no periacuteodo da manhatilde e da noite
enquanto que na oraccedilatildeo da tarde natildeo se recitava o Shemaacute Para os israelitas esses
momentos de oraccedilatildeo eram muito preciosos jaacute que se assegurava a formaccedilatildeo dos
jovens na praacutetica da oraccedilatildeo (Jeremias 2006 p22)
Jesus com certeza conhecia as oraccedilotildees e as formas lituacutergicas para proferi-las
no entanto ao ser indagado pelo disciacutepulo anocircnimo (Lc 111) com a indagaccedilatildeo
ldquoSenhor ensina-nos a orarrdquo eacute claro que o Mestre sabia que seus disciacutepulos tambeacutem
conheciam as oraccedilotildees tradicionais visto que tambeacutem eram judeus No entanto eacute
muito provaacutevel que o disciacutepulo anocircnimo estaacute pedindo a Jesus um novo modelo de
oraccedilatildeo que os distinguisse como um grupo Jesus ensinou-lhes o Pai-nosso que se
tornaria a oraccedilatildeo oficial da Igreja primitiva e viria a substituir o antigo modelo das
trecircs oraccedilotildees diaacuterias tatildeo conhecidas em Israel conforme pode ser visto na Didaquecirc
(9-10) Surge entatildeo uma nova forma de orar a partir do ensinamento de Jesus
baseado na expressatildeo Abba que era a forma singular de expressatildeo usada por ele
para dirigir-se ao Pai que estaacute nos ceacuteus (Jeremias 2006 p129-131)
A relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai atinge seu aacutepice na Oraccedilatildeo do Pai-nosso
onde Jesus estaacute ensinando seus disciacutepulos orar A pergunta feita pelo disciacutepulo
anocircnimo em Lucas 111 (Senhor ensina-nos a orar) resultou no mais belo
ensinamento de Jesus a respeito da oraccedilatildeo Na oraccedilatildeo do Pai-nosso como exemplo
de humildade e obediecircncia ldquoJesus se entrega agrave vontade de Deus como a crianccedila o
faz em relaccedilatildeo ao Pairdquo (Goppelt 2002 p 216) Para Haight a oraccedilatildeo modelo eacute
composta por uma invocaccedilatildeo dois anseios ou esperanccedilas e trecircs pedidos (cf Haight
2003 p139) 57 O teoacutelogo Leonardo Boff assim resume a essecircncia desse magniacutefico
modelo de oraccedilatildeo
57
A forma apresentada por Lucas da oraccedilatildeo do Pai-nosso consiste de um endereccedilamento (ldquoPairdquo) dois desejos proferidos a Deus e trecircs peticcedilotildees ditas a ele A forma em Mateus apresenta um endereccedilamento expandido trecircs desejos e quatro peticcedilotildees Nesse modo de orar Jesus instrui e
104
Na oraccedilatildeo do Senhor encontramos praticamente a correta relaccedilatildeo entre Deus e o homem o ceacuteu e a Terra o religioso e o poliacutetico mantendo a unidade do mesmo processo A primeira parte diz respeito agrave causa de Deus o Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome seu Reino sua Vontade santa A segunda parte concerne agrave causa do homem o patildeo necessaacuterio o perdatildeo indispensaacutevel a tentaccedilatildeo sempre presente e o mal continuamente ameaccedilador Ambas as partes constituem a mesma e uacutenica oraccedilatildeo de Jesus Deus natildeo soacute se interessa pelo que eacute seu o Nome o Reino a Vontade divina Ele se preocupa tambeacutem pelo que eacute do homem o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo o mal Igualmente o homem natildeo soacute se prende ao que lhe importa o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo e o mal abre-se tambeacutem ao que respeita ao Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome a chegada de seu Reino a realizaccedilatildeo de sua Vontade (Boff 2009 p17-18)
Em seu livro ldquoO Pai-nosso a oraccedilatildeo do Senhorrdquo J Jeremias enfatiza o alto
valor que a referida oraccedilatildeo tinha na liturgia entre os cristatildeos da Igreja primitiva J
Jeremias nos diz que o mais antigo uso dessa oraccedilatildeo era a recitaccedilatildeo da mesma na
24ordf catequese de Cirilo onde o Pai-nosso era recitado antes da comunhatildeo e era
restrito dentro do culto divino apenas aos batizados ou seja aos membros efetivos
da Igreja Essa praacutetica provinha de Jerusaleacutem e vigorava por toda a Igreja Desde os
primeiros passos na feacute os neoacutefitos jaacute aprendiam a recitar de cor a oraccedilatildeo do Pai-
nosso mas soacute tinham o direito de rezaacute-lo com os demais fieacuteis a partir do momento
em que participavam da primeira eucaristia ou seja logo apoacutes o batismo (Jeremias
1979 p 5-6)
O uso regular do Pai-nosso na liturgia da Igreja eacute tambeacutem testemunhado na
Didaquecirc (Doutrina dos Doze Apoacutestolos) que segundo J Jeremias eacute tatildeo antiga que
chega a ser datada no seacutec I dC ou para ser mais preciso segundo Boff ela foi
escrita por volta dos anos 50 a 70 dC (Boff 2009 p36) Para J Jeremias a
importacircncia dada ao Pai-nosso na Didaquecirc pode ser observada na estrutura da
obra
[] O livro comeccedila (cc 1-6) com a doutrina dos dois caminhos o da vida e da morte que evidentemente pertencia agrave instruccedilatildeo dada aos catecuacutemenos Em seguida o c 7 trata do batismo soacute depois disso eacute que vecircm as seccedilotildees de importacircncia para os batizados Jejum e oraccedilatildeo (inclusive o Pai-nosso) no c 8 Ceia do Senhor nos cc 9 e 10 organizaccedilatildeo e disciplina eclesiaacutesticas nos cc 11 a 15 O que nos interessa aqui eacute que oraccedilatildeo e Ceia do Senhor vecircm depois do batismo
autoriza seus disciacutepulos a chamar a Deus como ldquoPairdquo usando o mesmo tiacutetulo que ele mesmo utilizou em sua oraccedilatildeo de louvor Lc 1021 (duas vezes) e utilizaraacute de novo em Lc 22 42 (cf Fitzmyer 1985 p 899)
105
O que J Jeremias conclui eacute que diferentemente de hoje onde o Pai-nosso eacute
acessiacutevel a todos nos primoacuterdios do cristianismo era bem diferente O privileacutegio de
recitar a oraccedilatildeo do Senhor era reservado apenas aos membros que estavam
plenamente integrados agrave Igreja A perda da reverecircncia e do temor pela oraccedilatildeo do
Senhor eacute tratada por J Jeremias com apreensatildeo e o retorno agrave reverecircncia que a
Igreja primitiva dava ao Pai-nosso soacute pode ser reconquistada se atraveacutes da exegese
biacuteblica buscarmos entender qual era o sentido que o proacuteprio Senhor quis dar agraves
palavras dessa sagrada oraccedilatildeo (Jeremias 1979 p 8-12)
Concordando com J Jeremias Ephraim tambeacutem observa que nos primeiros
seacuteculos da era cristatilde os cristatildeos pronunciavam as palavras do Pai-nosso ldquocom
grande temor como que em segredordquo O motivo para tal respeito era o medo de
transpassar os limites da reverecircncia e cair na blasfecircmia ao pronunciar o nome
inefaacutevel de Deus Segundo Ephraim ainda hoje baseado nesse profundo respeito
pela sagrada oraccedilatildeo os cristatildeos bizantinos ainda conservam a seguinte foacutermula
antes de iniciarem a oraccedilatildeo ensinada pelo senhor ldquoE torna-nos dignos Mestre de
ousar com toda a seguranccedila e sem incorrer em condenaccedilatildeo de te chamar de Pai a
ti o Deus do ceacuteu e de te dizer Pai nossordquo Ao observarmos essa foacutermula bizantina
que antecede a oraccedilatildeo do Pai-nosso concluiacutemos com Ephraim que o respeito e o
medo de ser indigno de pronunciar tal oraccedilatildeo fizeram com que a tradiccedilatildeo da
comunidade cristatilde acima mencionada conservasse com muita precauccedilatildeo haacutebitos e
costumes dos primeiros cristatildeos no que diz respeito a como se deve orar o Pai-
nosso (Ephraim 1998 p 174)
Partindo do princiacutepio que por volta do ano 75 dC a oraccedilatildeo do Pai-nosso era
obrigatoacuteria na formaccedilatildeo dos neoacutefitos tanto os cristatildeos de origem judaica quanto os
de origem grega tinham em comum a obrigatoriedade da oraccedilatildeo do Senhor na
formaccedilatildeo dos novos disciacutepulos Quanto agrave questatildeo do por que duas versotildees do Pai-
nosso ou se eacute possiacutevel que um dos disciacutepulos tenha acrescentado ou retirado
palavras da forma original J Jeremias conclui que ambos os disciacutepulos jamais
alterariam algum ponto da oraccedilatildeo do Senhor A forma mais clara para se
compreender a aparente divergecircncia estaacute no fato de que ambos escreveram para
igrejas diferentes locais e situaccedilotildees diferentes por isso cada evangelista optou por
transmitir um texto segundo o seu tempo e sua Igreja (Jeremias 1979 p 16-21)
106
Quando lemos a oraccedilatildeo do Pai-nosso nas duas versotildees ou seja por Mateus
e por Lucas surgem questotildees a respeito da antiguidade dos textos e das variantes
textuais entre os dois Evangelhos J Jeremias em sua obra acima citada trabalha
com esmero essas duas questotildees e outras tambeacutem natildeo menos importantes Antes
de abordamos as questotildees levantadas por J Jeremias segue abaixo os textos dos
Evangelhos bem como o texto de Lucas retraduzido para o aramaico segundo J
Jeremias e uma versatildeo do aramaico recitado por cristatildeos que ainda hoje falam o
aramaico conforme Stephen Missick
Mt 6 9-13 Lc 11 2-4
() Portanto orai desta maneira
Pai nosso que estaacutes nos ceacuteus
Santificado seja o teu Nome
venha o teu Reino
seja feita a tua vontade
na terra como no ceacuteu
o patildeo nosso de cada dia
daacute-nos hoje
E perdoa-nos as nossas diacutevidas
como tambeacutem noacutes perdoamos aos
nossos devedores
E natildeo nos submeta agrave tentaccedilatildeo
mas livra-nos do Maligno
() Respondeu-lhes ldquoQuando orardes
dizei
Pai santificado seja o teu Nome
venha o teu reino
o patildeo nosso cotidiano daacute-nos a cada dia
pois tambeacutem noacutes perdoamos aos nossos
devedores
e natildeo nos deixes cair na tentaccedilatildeordquo
Pai Nosso aramaico segundo J
Jeremias
Pai-nosso em aramaico recitado pelos
cristatildeos em aramaico segundo Missick
abba [pai]
yitqaddash shemak tete malkutak
[santificado seja o teu nome venha teu
reino]
Awoon Dwashmaya
Nethqaddash Shmakh
Tethe malkuthakh
Nehweh sebayanakh
107
lahman delimhar hab lan yoma den [o
patildeo nosso de amanhatilde daacute-nos neste dia]
ushebok lan hobenan kedishebaqnan
lehayyabenan [e perdoa-nos as nossas
diacutevidas (pecados) assim como
perdoamos os nossos devedores
(pecadores)]
wela ta el nnan lenisayon [e natildeo nos
conduza agrave tentaccedilatildeo] (cf Jeremias 2008
p291)
Aykana dwashmayya aph ara
Hab lan lakhma dsunkanan yowmana
Washboq lan hawbayn aykanan dap
hanan shwaqnan l-hayawayn
Wa la talain Inesyona
Ella passan min beesha
Mittol dlakh hee malkoota wa khaylan w
tishbookhta alalam almeen Amen (cf
Missick 2006 p58)
Para J Jeremias para entendermos o sentido do Pai-nosso na redaccedilatildeo de
Mateus eacute preciso ver que Jesus estaacute advertindo seus disciacutepulos a natildeo praticarem as
esmolas oraccedilatildeo e jejum da mesma forma que elas eram praticadas pelos fariseus
visto que estes amavam praticaacute-las desde que fossem vistos e reconhecidos pelos
homens Os disciacutepulos deviam procurar um cocircmodo por menor que fosse e natildeo
imitar os fariseus em hipoacutetese alguma no quesito de sempre ser pegos em uma
aparente surpresa na hora da oraccedilatildeo para que dessa forma pudessem sempre que
possiacutevel orar no meio da multidatildeo com o uacutenico objetivo de serem reconhecidos e
honrados
Em relaccedilatildeo ao texto de Lucas J Jeremias descreve sobre o fato de tanto a
situaccedilatildeo quanto os leitores de Lucas serem diferentes dos de Mateus Em Lucas a
oraccedilatildeo eacute mais breve o sentido do texto eacute o ensinar a perseveranccedila na oraccedilatildeo visto
que a mesma eacute precedida pela paraacutebola do amigo importuno As diferenccedilas entre a
oraccedilatildeo contida em Mateus e a de Lucas eacute devido aos diferentes grupos a quem
essa oraccedilatildeo foi destinada Segundo J Jeremias os leitores para os quais Mateus
deve ter destinado o Evangelho eram homens que desde a infacircncia aprenderam a
orar enquanto que os de Lucas eram antigos convertidos ao cristianismo
Ao nos depararmos com as duas versotildees da oraccedilatildeo do Pai Nosso na Biacuteblia
(Mateus 6 9 -13 e Lucas11 2-4) logo vem agrave mente qual delas se aproxima mais da
versatildeo original de Jesus ou entatildeo em que liacutengua Jesus proferiu essa magniacutefica
oraccedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta J Jeremias responde da seguinte forma
108
[] a formulaccedilatildeo mais curta de Lucas estaacute integralmente contida na redaccedilatildeo longa de Mateus Isto faz com que seja bem provaacutevel que a forma de Mateus seja uma ampliaccedilatildeo pois pelo que sabemos das leis que regem a transmissatildeo dos textos lituacutergicos quando uma redaccedilatildeo mais curta estaacute assim integralmente contida numa longa eacute a mais curta que deve ser considerada como original (J Jeremias 1979 p23)
Contudo J Jeremias conclui que o texto de Lucas eacute o mais antigo quanto agrave
extensatildeo mas em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo oral (verbal) o texto de Mateus eacute o mais antigo
(cf Jeremias 2008 p 291) Complementando o pensamento de J Jeremias a
respeito da versatildeo original do Pai Nosso Boff assim conclui ldquoDestarte Lucas seria
mais originalrdquo (Boff 2009 p36)
Concernente agrave liacutengua materna de Jesus e agrave cultura da Palestina daquela
eacutepoca podemos ainda perguntar era Jesus um poliglota ou falava apenas o
aramaico Antes de tratarmos com mais detalhes a respeito da liacutengua e cultura de
Jesus observamos a princiacutepio que pelo menos trecircs liacutenguas eram faladas na
Palestina nos dia de Jesus (aramaico grego e latim) conforme as informaccedilotildees
contidas no texto de Joatildeo 19 19-20
Segundo Sabugal haacute uma grande probabilidade de que Jesus possuiacutesse
conhecimentos da liacutengua grega pelos contatos registrados entre Jesus e algumas
pessoas de origem helecircnica como o centuriatildeo romano (Mt 5 8-13 cf Lc 7 1-10)
tambeacutem com a mulher sirofeniacutecia aleacutem do disciacutepulo chamado Filipe que
provavelmente conhecia a liacutengua grega conforme podemos interpretar a partir da
leitura de Joatildeo 12 20-2 (Sabugal 1985 p319) No entanto para Sabugal a liacutengua
popular na Palestina dos dias de Jesus era o aramaico galileu58 Tal liacutengua era tatildeo
familiar agraves comunidades a ponto de apoacutes a leitura de um texto sagrado em
hebraico (Toraacute) logo seguia-se uma traduccedilatildeo para o aramaico (Targum) onde o
texto podia ser compreendido por todos Portanto fica evidente que o aramaico foi a
liacutengua materna de Jesus isso fica mais claro ainda quando encontramos nos
evangelhos palavras aramaicas (cf Mc 14 36 Lc 23 34 42 46 Mc 15 34 = Mt
58 Para Geza Vermes a liacutengua original do Pai-nosso era o aramaico mesmo que alguns estudiosos
discordem colocando o hebraico como a liacutengua original (segundo vermes sem convencer) a maioria dos especialistas eacute de acordo com essa teoria Vermes observa que aleacutem das peculiaridades do grego de Mateus o Pai-nosso tem semelhanccedilas com o kadish uma antiga oraccedilatildeo judaica composta em aramaico que era conhecida por Jesus e que ele teria sido influenciado e inspirado por ela (Vermes 2006 p 258)
109
27 46) conservadas pelos evangelistas sem traduccedilatildeo para a liacutengua grega (Sabugal
1985 p321)
Ao se referir sobre a origem do Pai Nosso Sabugal assim exclama ldquoQue
alegria seria se conseguiacutessemos recuperar a ipsissima verba do Pai Nosso ensinado
por Jesus de Nazareacute e reconstruindo seu texto primitivo pudeacutessemos escutar a
ipsissima vox do Mestrerdquo (Sabugal 1985 p317) Para Sabugal natildeo haacute duacutevida que
os vocaacutebulos gregos estatildeo dispostos segundo os usos da gramaacutetica semiacutetica O
autor tambeacutem entende que na oraccedilatildeo do Pai Nosso tanto de Mateus como na de
Lucas teve como fundo doutrinaacuterio e literaacuterio a liacutengua materna de Jesus (aramaico)
Conforme J Jeremias para compreendermos a essecircncia da oraccedilatildeo de Jesus faz-se
necessaacuterio aproximarmo-nos do proacuteprio modo de falar do Mestre e isso soacute eacute
possiacutevel quando chegamos a ipsissima vox de Jesus (Sabugal 1985 p317)
Sabugal (1985 p317) concorda que descobrir a liacutengua materna de Jesus eacute
algo muito importante e extraordinariamente fundamental O referido autor
compartilha com J Jeremias dessa tese haja vista que eacute importante levar em
consideraccedilatildeo o fato de que para ele os escritores dos evangelhos eram verdadeiros
autores literaacuterios e autecircnticos teoacutelogos de suas comunidades cristatildes capazes de
transmitir com fidelidade a essecircncia da mensagem de Jesus59 Aleacutem do mais os
autores biacuteblicos eram divinamente inspirados pelo Espiacuterito Santo conforme os
textos de 2 Tm 316 e 2Pe 121
Por outro lado Leonardo Boff (2009 p36) considera que a oraccedilatildeo de Jesus
natildeo pode ser tratada como uma oraccedilatildeo simples que possa ser retraduzida do grego
para o aramaico primitivo conforme fez J Jeremias no texto que reproduzimos
abaixo
Pai querido Que o teu nome seja santificado Que venha o teu reino Daacute-nos hoje nosso patildeo de amanhatilde E perdoa-nos nossas diacutevidas como noacutes tambeacutem ao dizermos estas palavras estamos perdoando a nossos devedores E natildeo nos deixes sucumbir agrave tentaccedilatildeo (Jeremias 1979 p33)
59
Sobre a autoria e composiccedilatildeo dos Evangelhos ver o capiacutetulo 4 paraacutegrafo 3 deste trabalho
110
Observamos que de acordo com o pensamento de Boff natildeo eacute faacutecil reproduzir
a oraccedilatildeo de Jesus do grego para o aramaico e dessa forma tambeacutem pensa
Sabugal o qual apesar de achar o trabalho de J Jeremias de extrema importacircncia
no entanto assim como Boff pensa que realizar tal tarefa natildeo eacute nada faacutecil uma vez
que envolve estudos linguiacutesticos e literaacuterios concernentes agrave liacutengua materna e ao
texto primitivo do Pai-nosso em sua composiccedilatildeo riacutetmica e literaacuteria bem como a real
motivaccedilatildeo de Jesus ao ensinar essa oraccedilatildeo aos seus disciacutepulos Haja vista o grau
de dificuldade apresentado acima natildeo podemos deixar de observar que quanto
mais nos aproximarmos do Pai-nosso de Jesus na sua originalidade mais
maravilhados ficaremos diante da grandiosidade dessa magniacutefica oraccedilatildeo
56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA
Conforme J Jeremias e a maioria dos estudiosos Abba eacute um termo que faz
parte da liacutengua semiacutetica para ser mais preciso do aramaico Oriacutegenes pertencente
ao periacuteodo da Patriacutestica profundo conhecedor do grego e das liacutenguas semiacuteticas
segundo Fitzmyer (1992 p 48) estranhamente considerou o termo Abba como
sendo uma palavra hebraica Restou a Jerocircnimo esclarecer que o termo Abba era
siacuterio (Syrum est non hebraeum) e natildeo hebraico Lembrando que o que Jerocircnimo
chamava de siacuterio nos dias dele noacutes chamamos de aramaico
Segundo Matthew Black o aramaico foi uma das grandes liacutenguas faladas na
antiguidade por volta do VI e III seacuteculos aC quando o mundo era governado pelos
grandes impeacuterios orientais desde o Eufrates ateacute o Nilo Essa liacutengua tornou-se a
liacutengua dos judeus provavelmente depois do Exiacutelio O aramaico foi suplantado pelo
grego koineacute no mundo civilizado da eacutepoca durante o impeacuterio de Alexandre o
Grande No entanto o grego nunca substituiu por completo o uso do aramaico entre
os judeus tanto da Palestina como da Babilocircnia bem como de alguns povos de
cultura semiacutetica na Siacuteria e Mesopotacircmia (Black 1998 p14)
Entre os judeus podemos encontrar dois dialetos aramaicos na Palestina
conforme a pesquisa apresentada por Dalman Black menciona que segundo a
distinccedilatildeo feita por Dalman os dialetos estatildeo propostos na seguinte forma o primeiro
representado pelo aramaico do Antigo Testamento e o aramaico do Targum para
Pentateuco e para os profetas O segundo composto pelo conjunto de anedotas
111
popular do Talmude Palestino junto com outras partes do comentaacuterio palestinense
do Antigo Testamento dos antigos Midrash60 haggaacutedicos (Black 1998 p19)
No entanto a liacutengua na qual foi escrito o Novo Testamento eacute aceita quase que
por unanimidade pelos eruditos como sendo o grego coineacute ou grego biacuteblico
conforme foi chamado pelos especialistas ateacute o comeccedilo do seacuteculo XX (Koester
2005 vol I p118) Segundo Koester (2005 vol1 p120-121) todos os livros do
Novo Testamento foram escritos originalmente em grego e esse autor eacute mais
enfaacutetico ainda quando afirma que nenhuma obra dos primeiros cristatildeos escrita em
grego pode ser traduccedilatildeo direta do hebraico ou do aramaico De acordo com Koester
eacute fato que existem inuacutemeros hebraiacutesmos e aramaiacutesmos constantes no Novo
Testamento que podem ser citaccedilotildees gregas da Biacuteblia hebraica ou ainda que
podem ser justificadas pelo fato de que o autor estava inserido num ambiente que
propiciava a formulaccedilatildeo de palavras semiacuteticas como no caso dos Evangelhos onde
Jesus e seus disciacutepulos eram falantes nativos do aramaico
Koester observa que as traduccedilotildees do aramaico para o grego devem ter
acontecido num periacuteodo anterior aos escritos dos primeiros cristatildeos quando esses
ainda conservavam na memoacuteria apenas a tradiccedilatildeo oral Essas traduccedilotildees foram
feitas deacutecadas antes da composiccedilatildeo dos Evangelhos e dessa forma no processo
de composiccedilatildeo das fontes dos Evangelhos praticamente todos os aramaiacutesmos
foram substituiacutedos por palavras gregas com exceccedilatildeo do Evangelho de Marcos que
parece ter usado fontes gregas que eram traduccedilotildees diretas dos originais aramaicos
ou ainda os relatos de milagres no Evangelho de Joatildeo que possivelmente tambeacutem
pode ter sido traduccedilatildeo de um original aramaico (Koester 2005 vl 1 p121-122)
Outra observaccedilatildeo de Koester eacute a questatildeo do bilinguismo na Palestina Entre
os primeiros cristatildeos havia uma mescla de seguidores de Jesus que falavam o
aramaico e o grego Esses foram determinantes para que a composiccedilatildeo dos
Evangelhos fosse fortemente influenciada pelo aramaico Para Koester ldquoalguns
desses semitismos satildeo empreacutestimos semacircnticos que derivam do ambiente geral da
liacutengua como θάλασσα natildeo soacute para mar ou oceano mas tambeacutem para lago uma
vez que o aramaico יםאא denota ambosrdquo (Koester 2005 vl1 p122)
60
Etimologicamente essa palavra tem como raiz o termo darash procurar significa pesquisa sobre a Escritura e tem como funccedilatildeo o meacutetodo de estudo das Escrituras com vistas agrave sua atualizaccedilatildeo (cf Vermes 1990 p11)
112
Para trabalhar as questotildees filoloacutegicas e semacircnticas do Abba precisamos
investigar se a liacutengua materna de Jesus era realmente o aramaico Muitas questotildees
tecircm sido levantadas sobre a liacutengua que Jesus falava e tambeacutem questotildees sobre o
niacutevel cultural do Nazareno As liacutenguas oficiais do impeacuterio romano eram o latim e o
grego Para John P Meier questotildees relacionadas ao idioma ou idiomas que Jesus
falava satildeo muito complexas visto que natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz daquele
periacuteodo e as inscriccedilotildees em latim podem apenas ser um sinal para demonstrar a
presenccedila do poderio romano do que ter a finalidade de informar aos judeus sobre
algo que lhes fosse interessante Como para Meier no mundo greco-romano a
maioria da populaccedilatildeo era analfabeta isso obviamente era vaacutelido tambeacutem para a
populaccedilatildeo judaica (Meier 1993 p254)
Meier usa como exemplo uma famosa ldquoinscriccedilatildeo de Pocircncio Pilatosrdquo que foi
descoberta na Cesareia Mariacutetima em 1961 Essa inscriccedilatildeo em latim foi dedicada ao
Imperador Tibeacuterio por Pilatos A questatildeo levantada por Meier eacute ateacute que ponto esta
inscriccedilatildeo alcanccedilou os gentios e judeus que viviam em Cesareia Possivelmente
para esse autor Pilatos estava preocupado em alcanccedilar apenas as elites ou seja
ele se dirigia apenas aos seus ldquoiguaisrdquo aqueles que estavam a serviccedilo do Impeacuterio ou
faziam parte das elites dominantes As inscriccedilotildees mesmo que sejam as oficiais em
preacutedios puacuteblicos ou aquedutos construiacutedos pelo Impeacuterio ou ateacute mesmo as inscriccedilotildees
funeraacuterias natildeo provam em nada que o latim fosse uma liacutengua comum na Palestina
O fato de uma laacutepide tumular estar em latim poderia apenas ser ldquoo desejo de dar
uma impressatildeo de alta culturardquo e nada mais Assim como segundo Meier natildeo se
pode concluir que os catoacutelicos americanos do iniacutecio do seacuteculo XX tinham um idioma
comum apenas observando a frase Requiescat in pace (do latim descanse em Paz)
inscrita em seus tuacutemulos e nem as muitas inscriccedilotildees em latim espalhadas pela
Europa podem refletir as inuacutemeras liacutenguas faladas hoje em dia nesse continente
Meier observa entatildeo que o Latim eacute visto quase que por unanimidade como o
idioma menos falado na Palestina nos dias de Jesus e por isso ldquonatildeo haacute razatildeo para
se pensar que Jesus falou e muito menos leu o latimrdquo (Meier 1993 p 254 ndash 255)
Se o latim natildeo era tatildeo comum na Palestina jaacute o grego segundo Meier era
um caso totalmente diferente O grego era comum em todo o Impeacuterio romano
inclusive em Roma capital do Impeacuterio A Palestina dos dias de Jesus era altamente
113
helenizada haviam cidades e povoados que foram transformados de uma forma
poliacutetica e cultural em cidades gregas61 Segundo Meier o debate atual entre os
estudiosos estaacute concentrado apenas em saber qual era o grau de helenizaccedilatildeo
nessas cidades Mesmo apoacutes o periacuteodo dos Macabeus onde houve um movimento
de resistecircncia agrave liacutengua e a cultura grega natildeo foi possiacutevel extinguir essa cultura da
Palestina porque apoacutes esse periacuteodo (dos Macabeus) a Palestina passou a ser
governada pelos Asmoneus que tiveram como monarca principal por volta do final
do seacuteculo I aC Herodes o Grande Herodes deu continuidade agrave poliacutetica de
helenizaccedilatildeo que tinha comeccedilado com os reis Selecircucidas especificamente por
Antiacuteoco Epiacutefanes IV O processo de helenizaccedilatildeo de Herodes foi desde a construccedilatildeo
do porto da Cesareia Mariacutetima a cidade de Sebaste em Samaria e muitas outras
grandes edificaccedilotildees em Jerusaleacutem Segundo Meier as inscriccedilotildees em Grego em
Jerusaleacutem eram inuacutemeras desde o Templo as sinagogas ateacute ossuaacuterios Meier assim
descreve a influecircncia grega na Palestina
[] Martin Hengel afirma que uma terccedila parte dos epitaacutefios em Jerusaleacutem do periacuteodo do Segundo Templo eram escritos em grego e ele ainda calcula que das 80000 ou 100000 pessoas que residiam na grande Jerusaleacutem entre 8000 e 16000 teriam falado grego Mas natildeo foi soacute em Jerusaleacutem que a liacutengua e a cultura gregas alcanccedilaram os judeus Um grande nuacutemero de judeus vivia nas cidades helenizadas da planiacutecie litoracircnea desde Gaza no sul ateacute Dor ou Ptolomaicas-Acco no norte Em Cesareia a capital romana da Judeia havia quase tantos judeus como gentios As cavernas de Murabaat nos forneceram papiros gregos sobre a vida diaacuteria e ateacute mesmo ndash por ironia ndash coacutepias de cartas em grego do tempo da revolta de Bar Kochba exatamente quando os nacionalistas lutavam e morriam para se libertarem do jugo estrangeiro e da dominaccedilatildeo cultural
Concernente agrave liacutengua grega e suas influecircncias na Palestina Meier observa
que para se chegar a uma conclusatildeo ou aproximaccedilatildeo de algum fato referente agrave que
idioma era falado pelos judeus residentes na Palestina faz-se necessaacuterio ter uma
atenccedilatildeo redobrada ao periacuteodo em questatildeo Por exemplo se atentarmos para os
seacuteculos III e II aC observa-se um eclipsamento do aramaico devido agrave helenizaccedilatildeo
da Palestina pelos reis selecircucidas da Siacuteria Segundo Meier parece que o aramaico
soacute voltou a retomar a prioridade na Palestina apoacutes a revolta dos Macabeus por isso
61
Se levarmos em consideraccedilatildeo os dados de Martin Hengel citados acima por Meier podemos
deduzir que aproximadamente de 10 a 20 da populaccedilatildeo de Jerusaleacutem falava grego Entatildeo eacute difiacutecil considerar a Palestina dos dias de Jesus como sendo altamente helenizada como fez Meier uma vez que nem mesmo na capital havia tantas pessoas que falavam tal liacutengua
114
natildeo eacute possiacutevel determinar qual era a liacutengua mais falada na Palestina dos seacuteculos II e
I aC tomando como exemplo inscriccedilotildees e textos dos seacuteculos III e II aC (Meier
1993 p 255)
A opiniatildeo de Meier eacute que vaacuterios textos de Flaacutevio Josefo levam agrave conclusatildeo de
que a liacutengua grega natildeo era tatildeo conhecida ou tatildeo falada na Palestina do seacuteculo I
pelos judeus Meier analisa que Josefo mesmo apoacutes se gabar de seu alto niacutevel
cultural tanto em relaccedilatildeo agrave lei como agrave prosa e poesia gregas demonstra algumas
dificuldades com a pronuacutencia do grego Meier observa que as dificuldades de Josefo
parecem natildeo ser apenas de pronuacutencia mas seu domiacutenio de escrita tambeacutem natildeo era
ldquoexatamente perfeitordquo Outro fator observado por Meier eacute a forma de comunicaccedilatildeo
que o general romano Tito usou para se comunicar com os judeus Tito que falava
bem o grego segundo Suetocircnio mas para se comunicar com os judeus precisou de
um ldquomensageiro em aramaico (Josefo) para ser compreendido pelos judeus Surge
entatildeo a grande pergunta Jesus falava grego Para Meier se nem mesmo Josefo
que era haacutebil na liacutengua grega natildeo se sentiu agrave vontade para transmitir o recado de
Tito em grego mas em aramaico porque natildeo dominava bem a liacutengua ou porque os
ouvintes natildeo entenderiam deduz-se que ldquoa probabilidade de um camponecircs galileu
ter suficiente conhecimento para se tornar um mestre e pregador bem-sucedido que
proferisse seus discursos em grego parece muito pequenardquo (Meier 1993 p 258-
259)
Ao fazer um trabalho minucioso sobre a liacutengua que Jesus falava Meier
depois de muitos questionamentos levanta a suposiccedilatildeo de que natildeo podemos negar
que Jesus fosse totalmente desconhecedor da liacutengua dos helenos Primeiro porque
Jesus ateacute mesmo por causa de sua profissatildeo e viagens a Jerusaleacutem tinha contato
com pessoas que falavam grego Eacute possiacutevel segundo Meier que Jesus vez ou outra
fizesse algum contrato ou assinasse algum recibo que tivesse sido redigido em
grego62 Mas o fato de assinar recibos ou mesmo ter dialogado com Pilatos pode
apenas presumir que Jesus possuiacutesse alguns conhecimentos da liacutengua grega
62
A hipoacutetese de Meier sobre a possibilidade de Jesus ter assinado pequenos contratos em grego eacute questionaacutevel uma vez que segundo Meier se nem mesmo Josefo era fluente na liacutengua dos helenos muito menos Jesus que era um humilde galileu Outrossim segundo Crossan eram poucas as pessoas alfabetizadas na Palestina (no maacuteximo 3 da populaccedilatildeo) Crossan chega a afirmar que Jesus era analfabeto como a maioria dos seus conterracircneos Se tal hipoacutetese tambeacutem for verdadeira dificilmente Jesus teria condiccedilotildees de assinar pequenos contratos profissionais na liacutengua grega
115
suficientes apenas para um pequeno diaacutelogo composto de frases curtas Meier acha
muito difiacutecil Jesus ter adquirido alfabetizaccedilatildeo para a escrita em grego O referido
autor ainda aprofunda mais as suas desconfianccedilas a respeito do assunto quando
diz ldquoPortanto acompanhando Fitzmyer mantenho minhas duacutevidas se qualquer parte
dos pronunciamentos de Jesus foi feita desde o iniacutecio em grego dispensando a
traduccedilatildeo ao passar para os Evangelhos gregos que conhecemosrdquo (Meier 1993 p
260)
Apoacutes verificarmos as influecircncias do latim e do grego na Palestina nos dias de
Jesus resta-nos verificar as liacutenguas faladas em Israel desde os primoacuterdios da
naccedilatildeo O hebraico era o antigo e sagrado idioma falado em Israel mas desde que
os judeus voltaram do cativeiro babilocircnico o hebraico sofreu um decliacutenio como
liacutengua falada e passou a ser substituiacutedo gradualmente pelo aramaico Essa
influecircncia do aramaico sobre o hebraico jaacute pode ser vista nos livros poacutes-exiacutelicos
mais precisamente sobre ldquoos livros de Esdras e Daniel que contecircm capiacutetulos inteiros
escritos em aramaico sendo que em Daniel eles chegam agrave metade do totalrdquo (Meier
1993 p 260)
Contudo segundo Meier o hebraico continuou sendo uma liacutengua viva em
Israel principalmente em Qumran onde tinha primazia com o aramaico em
segundo lugar e o grego ocupando apenas uma distante terceira colocaccedilatildeo No
entanto o fato do hebraico ser a liacutengua oficial da comunidade de Qumran natildeo
confirma em nada que o hebraico fosse uma liacutengua usada no dia a dia dos demais
israelitas fora dessa restrita comunidade O que parece ser mais evidente era que o
hebraico aleacutem de em Qumran era usado por religiosos e grupos nacionalistas e por
judeus devotos e em algumas regiotildees de Israel ainda se falava e escrevia em
hebraico (Meier 1993 p 261)
Mesmo sendo o hebraico uma liacutengua viva em Israel Jesus segundo Meier
usava o aramaico para comunicar-se com os seus conterracircneos na vida diaacuteria uma
vez que se acredita que ele natildeo pertencia agrave comunidade de Qumran e nem agrave elite
dos religiosos da eacutepoca bem como seus ouvintes que em sua maioria pertenciam
agraves classes sociais mais humildes A maior evidecircncia disso estaacute nos aramaiacutesmos
registrados nos Evangelhos e especificamente no Evangelho de Marcos onde
encontramos a palavra Abba proferida por Jesus (Mc 1436) De acordo com Meier
116
J Jeremias relacionou 26 palavras aramaicas atribuiacutedas a Jesus nos evangelhos
Dessas palavras Meier opina que duas delas Talita cumi e Abba (Mc 5 41 14 36)
satildeo as que mais proacuteximas estatildeo do Jesus histoacuterico Para ele nem todos os
exemplos citados por J Jeremias podem ser comprovados entretanto alguns satildeo
uacuteteis para demonstrar a forma como Jesus instruiacutea os seus disciacutepulos (Meier 1993
p 264)
A questatildeo da liacutengua falada nos dias de Jesus eacute complexa uma vez que o
aramaico eacute uma liacutengua semiacutetica e estaacute intimamente relacionada com o hebraico No
entanto o aramaico natildeo eacute um dialeto do hebraico mas uma liacutengua semiacutetica distinta
De fato se partirmos do pensamento de Black e considerarmos que Jesus era um
Rabi na Galileia entatildeo natildeo podemos descartar a possibilidade de que ele fez uso
tanto do hebraico como do aramaico especialmente em suas disputas formais com
os fariseus (Black 1998 p16) Aleacutem disso ter conhecimento das duas liacutenguas natildeo
era nada anormal visto que segundo Missick em alguns casos as liacutenguas eram tatildeo
similares que existiam palavras usadas em ambas as liacutenguas com o mesmo
significado (Missick 2010 p 4)
Analisando a coexistecircncia das duas liacutenguas na Palestina nos dias de Jesus
observa-se que as origens do aramaico podem ser anotadas a partir do cativeiro
babilocircnico que ocorreu no periacuteodo de 586 a 539 aC antes disso o hebraico era a
liacutengua oficial dos judeus Com o retorno do hebraico como a liacutengua e a identificaccedilatildeo
da cultura e existecircncia do povo judeu o aramaico foi perdendo forccedilas ateacute ser
considerado uma liacutengua morta No entanto segundo Missick ainda existem
comunidades que falam o aramaico nos dias atuais como os cristatildeos assiacuterios63 do
Iratilde e do Iraque Antigos cristatildeos dessas regiotildees preservaram uma importante versatildeo
da Biacuteblia em aramaico que hoje eacute conhecida como a Biacuteblia Peshitta que segundo
Missick eacute muito valiosa porque a partir dela eacute possiacutevel estudar as palavras de
Jesus no aramaico pois acreditam os cristatildeos do oriente que os Evangelhos foram
63
Matthew Black observa que foi encontrado entre os siriacuteacos cristatildeos palestinos o dialeto aramaico
mais proacuteximo do aramaico dos Evangelhos enquanto que para Dalman segundo Black o aramaico que mais se aproxima do falado nos dias de Jesus era o aramaico dos Targuns judaicos para o Pentateuco e os profetas (cf Black 1998 p18-19)
117
primeiro escritos em aramaico e soacute depois traduzidos para o grego (Missick 2010
p5) 64
Para enfatizar a importacircncia do aramaico no Novo Testamento Missick
relaciona as palavras aramaicas compostas de oraccedilotildees tiacutetulos divinos nomes de
pessoas nomes de lugares e outras palavras e frases usadas no Novo Testamento
Abba (Mc 14 36) Eloiacute Eloiacute lemaacute sabachtaacuteni (Mc 15 34 cf Mt 2746) segundo
Missick se Jesus estivesse falando em hebraico ele teria dito Eli Eli lama azabanti
Nesse caso Jesus estaacute citando o Salmo 221 em aramaico Essa traduccedilatildeo do Antigo
Testamento eacute chamada de Targum65 pela tradiccedilatildeo judaica Dentre as palavras
relacionadas por Missick temos tambeacutem Maranatha (1 Co 1622) que
etimologicamente conforme a definiccedilatildeo dada por Missick (2010 p22-26) tem como
prefixo o termo ldquoMarrdquo que significa Senhor ou ldquoMaranrdquo que significa nosso Senhor
donde temos Maranatha que tem como definiccedilatildeo completa o significado de ldquonosso
Senhor vemrdquo (Marana tha) ou ainda ldquonosso Senhor estaacute vindordquo (Maran atha) Em
aramaico temos ainda outra palavra Rabboni (Jo 2016)
Em relaccedilatildeo aos nomes em aramaico mencionados no Novo Testamento
Missick argumenta que essas pessoas natildeo teriam outro motivo para receber nomes
64
Missick (2006 p170) refere-se a dois grupos significantes de cristatildeos que ainda falam o aramaico O primeiro grupo eacute composto por siacuterios Ortodoxos que vivem na Siacuteria O Segundo grupo do oriente (leste) da Siacuteria satildeo chamados de Assiacuterios e satildeo nativos do Iratilde e do Iraque conforme jaacute comentado acima Segundo Missick os cristatildeos mesmo sendo chamados de assiacuterios satildeo totalmente distintos da cultura do antigo Impeacuterio Assiacuterio A avanccedilada e militarista cultura da Assiacuteria antiga desapareceu com o tempo mas seus descendentes satildeo os modernos siacuterios do Oriente chamados de assiacuterios Os antigos assiacuterios falavam o Acadiano liacutengua falada por assiacuterios e babilocircnios que natildeo eacute mais falada na atualidade
Os atuais cristatildeos Siacuterios e Assiacuterios pertencem a denominaccedilotildees diferentes Segundo Missick (2006 p170) os siacuterios do oeste pertencem agrave Igreja Ortodoxa siacuteria e jaacute foram chamados de Jacobitas ou seja porque provinham do bispo Jacob Bardesanes (542-578 dC) Os cristatildeos chamados de assiacuterios eram conhecidos como nestorianos visto que o patriarca deles foi Nestoacuterio de Constantinopla um Patriarca da Igreja Ortodoxa grega (428-431 dC) A igreja no entanto eacute mais apropriadamente chamada de ldquoAntiga Igreja assiacuteria do Orienterdquo
65 Esta palavra eacute de origem natildeo semiacutetica mas foi adotada pelos judeus para designar tradiccedilatildeo (aqui
parece haver um equiacutevoco do comentador uma vez que a palavra Targum vem do hebraico lsquo targucircmimrsquo e significa traduccedilatildeo Cf La Sor 1999 p 670) ldquoOs targuns satildeo as traduccedilotildees aramaicas dos textos biacuteblicos destinados ao uso sinagogal Na sua origem essas traduccedilotildees eram orais e mais ou menos improvisadas e fragmentaacuterias sendo depois progressivamente fixadas por escrito e reunidas em grandes secccedilotildees (targum do Pentateuco targum dos Profetas targum dos Hagioacutegrefos) Mesmo quando eacute literal na aparecircncia o targum conteacutem elementos mais ou menos amplos de paraacutefrase ou de explicaccedilatildeo de atualizaccedilatildeo e ateacute de correccedilotildees Ele integra o midrash sobretudo na sua forma haggaacutedica Eacute possiacutevel que existisse um targum do Pentateuco ndash ou torah aramaica ndash na eacutepoca de Jesus e ateacute antes na Palestina A atividade targuacutemica evoluiacutera no decorrer dos seacuteculos em que foi praticada para a atividade propriamente midraacuteshica (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p11-12)
118
em aramaico se natildeo estivessem inseridos numa determinada comunidade que
falasse aramaico Missick cita como exemplo o prefixo ldquoBarrdquo antes de alguns nomes
que em aramaico tem o sentido de ldquofilho derdquo enquanto que para nomes em hebraico
se usava o prefixo ldquoBenrdquo que tambeacutem tinha o sentido de ldquofilho derdquo (Missick 2010
p26) Os nomes pessoais que segundo Missick tecircm origem no aramaico satildeo
Cephas (Jo 142 1 Co 112 Gl 29) Tomeacute que vem do aramaico ldquoteomardquo cujo
significado eacute gecircmeo (Jo 212) Simatildeo o Zelota (Mc 318) Maria Madalena que era
natural da cidade de Magdala que em aramaico significa Torre66 Tadeu e Lebeu (Mt
103) Tadeu em aramaico significa mamilo e Lebeu significa coraccedilatildeo
A extensa relaccedilatildeo de nomes pode ser assim resumida Tabita (At 936) Marta
(Lc 10 38-41 Jo 11 1-39 122) Bartolomeu (Mt 103) Jesus Barrabaacutes (Mt 2736)
Simatildeo Bar-Jonas (Mt 2716) Joseacute Barsabaacutes (At 123) Elimas Bar-Jesus (At 13 6-8)
Judas Barsabaacutes (At 15 22) Joseacute Barnabas ou Barnabeacute ndash Filho da profecia- (At
436) Aleacutem dos nomes de pessoas e dos tiacutetulos divinos em aramaico ainda
segundo Missick haacute vaacuterios nomes de cidades com origens no aramaico Gaacutebata (Jo
1913) Goacutelgota (Jo 19 17-18 Mc 1522) Betacircnia (Jo 111) Betesda (Jo 5 1-15)
Geena Mt 1028) Resta-nos ainda conforme Missick relacionar palavras e frases
em aramaico usadas no Novo Testamento Effatha (Mc 734) Taliacutetha Kum (Mc 541)
Raca (Mt 5 22) Mamon (Mt 624) Corban (Mc 7 9-13)
Para Missick natildeo haacute duacutevidas que Jesus falou aramaico Um dos argumentos
levantados por esse autor estaacute baseado no relato da morte de Judas conforme
registrou Lucas (At 119) No discurso de Pedro sobre a substituiccedilatildeo de Judas o
lugar onde o corpo de Judas caiu e se arrebentou ao meio conforme o texto
chamava-se Haceacuteldama na proacutepria liacutengua dos moradores de Jerusaleacutem Para
Missick essa palavra eacute aramaica e natildeo hebraica Se a palavra realmente eacute
aramaica entatildeo deduz-se que o idioma falado naqueles dias era o aramaico e natildeo
o hebraico e nem o grego muito menos o latim Missick conclui entatildeo que para se
compreender a mensagem de Jesus que antes de ser escrita foi transmitida
oralmente eacute necessaacuterio compreender as palavras na liacutengua em que Jesus as
66
Missick menciona que ela era conhecida como Madalena porque sua feacute era como uma torre Esse argumento foi defendido por Jerocircnimo contudo segundo Missick o mais provaacutevel eacute que ela tenha adquirido este tiacutetulo por ter vindo da cidade de Magdala (cf Missick p28)
119
proferiu e a melhor forma de alcanccedilar tal objetivo eacute compreender o aramaico
(Missick 2010 p4-35)
Entre os autores que defendem que o aramaico era a liacutengua dos galileus
contemporacircneos de Jesus encontramos tambeacutem Joseacute Pagola Jesus conforme
esse teoacutelogo falava o aramaico em casa assim como todos os galileus Pagola
ainda analisa que ateacute mesmo na Judeia se falava o aramaico no dia a dia Segundo
Pagola as diferenccedilas entre o aramaico da Galileia para o aramaico da Judeia era
apenas de dialeto (sotaque)
Embora o aramaico seja defendido pela maioria dos estudiosos de teologia do
Novo Testamento haacute no entanto autores que defendem que o hebraico natildeo
somente era uma liacutengua viva como era a mais falada nos dias de Jesus Para os
teoacutelogos David Biacutevin e Roy Bliacutezard Jr o hebraico era o idioma mais falado pelos
contemporacircneos de Jesus e dos primeiros cristatildeos Para esses autores um idioma
pode ser definido da seguinte maneira ldquoo idioma eacute uma expressatildeo no uso de uma
liacutenguagem que eacute peculiar a si proacuteprio na construccedilatildeo gramatical ou em ter um
significado que natildeo pode ser derivado como um todo a partir dos significados do
conjunto de seus elementos Na visatildeo deles o ldquohebraico eacute a chave para entender
as palavras de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p 2-4)
Os defensores do hebraico como a liacutengua falada na Palestina dos dias de
Jesus criticam os defensores da inerracircncia das Escrituras quando esses mesmo
depois de ler o texto de Atos 2614 em que Jesus fala em Hebraico com o apoacutestolo
Paulo e tambeacutem o texto de Atos 2140 no qual o mesmo apoacutestolo falou em hebraico
com uma multidatildeo satildeo os mesmos que afirmam que onde se diz hebraico deve-se
entender aramaico Para defender essa teoria eles argumentam que os mais
antigos manuscritos do Novo testamento datam do quarto e quinto seacuteculos da era
cristatilde (Codex Sinaiticus Codex Alexandrinus e Codex Bezae) afirmam que a
inscriccedilatildeo ldquoEste eacute o Rei dos Judeusrdquo estava escrito em grego latim e hebraico
Partindo desses argumentos Bivin e Bliacutezard lanccedilam a seguinte questatildeo
ldquoPorventura natildeo eacute significativo que os manuscritos gregos mais antigos infiram que
o hebraico era mais popular que o aramaico naquele periacuteodordquo (Biacutevin e Bliacutezard
2001 p8)
120
Biacutevin e Bliacutezard argumentam que mesmo a presenccedila de uma palavra aramaica
(Abba) no Evangelho de Marcos (Mc 1436) natildeo prova em nada a existecircncia de
uma liacutengua original falada em aramaico no periacuteodo de Jesus Para esses autores
Abba aparece sempre entre os escritos em hebraico daquele periacuteodo como uma
palavra de empreacutestimo A razatildeo para tal empreacutestimo do aramaico seria pelo fato
dessa palavra ter um ldquosabor especialrdquo quando usado como forma de relacionamento
entre os filhos e seus pais O sentido dessa expressatildeo pode ser relacionado com a
forma como os filhos se dirigem aos seus pais chamando-os de ldquodaddyrdquo (Papai) ou
ldquopapardquo (pai) em Inglecircs Um outro argumento ainda usado como forma de demonstrar
que usar Abba como forma de provar que a liacutengua falada por Jesus natildeo era o
aramaico eacute demonstrar que ainda hoje em Israel onde se fala o hebraico moderno
ldquoas crianccedilas usam Abba na abordagem de seus pais exatamente da mesma
maneira como foi usado no tempo de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p10)
Murphy-OConnor diferentemente de Biacutevin e Bliacutezard comunga da mesma
ideia de Jerocircnimo de que o apoacutestolo Paulo era de origem palestinense conforme os
textos de 2 Co 11 22 e Fl 3 5 onde Paulo identifica-se como ldquoisraelitardquo ldquodo povo de
Israelrdquo e como um ldquohebreurdquo Poreacutem quanto aos textos onde Lucas diz que Paulo
falou com a multidatildeo ldquonuma linguagem hebraicardquo (At 2140 222 2614) Murphy-
OConnor argumenta que a linguagem deveria significar aramaico e natildeo hebraico
Segundo esse autor naquela eacutepoca a maioria dos judeus jaacute natildeo conheciam mais o
hebraico e os textos das Escrituras nas sinagogas eram traduzidos para o aramaico
Outro argumento eacute que as palavras Gaacutebata (Jo 1913 o lugar onde Pilatos
condenou Jesus) e Goacutelgota (Jo 19 17) que satildeo mencionadas como palavras
hebraicas na verdade satildeo palavras aramaicas Sendo assim segundo Murphy-
OConnor a divisatildeo entre os primeiros cristatildeos de Jerusaleacutem (At 61) era permeada
pelos que falavam aramaico e pelos que falavam o grego (Murphy-OConnor 2008
p 29-30)
Matthew Black analisando a liacutengua falada por Jesus observa que alguns
estudiosos defendem o hebraico como a liacutengua vernaacutecula na Palestina dos dias de
Jesus Segundo Black alguns propotildeem que o hebraico natildeo era soacute apenas uma
forma literaacuteria de expressatildeo ou entatildeo apenas uma liacutengua falada nos ciacuterculos
rabiacutenicos mas o hebraico era um veiacuteculo normal de expressatildeo (Black 1998 p 47)
121
Douglas Hamp defende que o hebraico era realmente uma liacutengua muito viva nos
dias de Jesus e natildeo uma liacutengua morta como muitas vezes eacute dito Aleacutem de tudo para
ele o hebraico era a primeira liacutengua na Palestina nos dias de Jesus apesar de
segundo ele Jesus poderia ser triliacutengue ou seja falava hebraico aramaico e grego
e possivelmente ateacute o latim (Hamp 2005 p40) Hamp defende entatildeo que Jesus
provavelmente conhecia o aramaico e o grego e deve ter usado essas liacutenguas em
alguns contextos no entanto com seus disciacutepulos e na comunicaccedilatildeo com as
massas ele falou hebraico (Hamp 2005 p73)
Sobre a posiccedilatildeo daqueles que consideram o hebraico e natildeo o aramaico
como o vernaacuteculo ou seja a liacutengua mais falada nos dias de Jesus Black responde
ldquoesta posiccedilatildeo extrema tem encontrado pouco ou nenhum apoio entre as autoridades
competentes a evidecircncia da ipsissima verba de Jesus nos Evangelhos eacute impossiacutevel
de explicar se o aramaico natildeo era a liacutengua que Jesus falavardquo No entanto para ele eacute
provaacutevel que Jesus sendo um Rabi que comeccedilou seu ministeacuterio na Galileia e muito
bem versado nas Escrituras tenha sido capaz de ensinar com maestria tanto em
hebraico que poderia usar para ocasiotildees solenes como em aramaico com que se
comunicava com as massas (Black 1998 p 48-49)
Considerando as diversas opiniotildees sobre a liacutengua materna de Jesus
observamos que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus falava o aramaico
uma vez que esta foi a liacutengua predominante na Palestina apoacutes o exiacutelio babilocircnico
Contudo natildeo eacute tarefa faacutecil chegar a uma conclusatildeo Como vimos os estudiosos que
defendem o aramaico como a liacutengua materna de Jesus buscam como prova de tal
tese o argumento de que o Novo Testamento conteacutem muitas palavras aramaicas que
deviam ser comuns nos dias de Jesus Possivelmente o aramaico era uma liacutengua
falada pela populaccedilatildeo em geral enquanto que o hebraico reservava-se mais a
escrita de textos religiosos (sacros) e tambeacutem era usado pela classe sacerdotal que
por sua vez era mais elitizada Contudo devido agrave semelhanccedila entre as duas liacutenguas
torna-se difiacutecil delimitar uma linha divisoacuteria entre as mesmas uma vez que natildeo
possuiacutemos textos em aramaico da eacutepoca e natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz
que nos permita concluirmos com precisatildeo
122
6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS
Apoacutes termos apresentado a tese de J Jeremias sobre o Abba e alguns
pesquisadores que com ele concordam eacute oportuno tambeacutem olharmos algumas
teorias e pesquisadores que divergem de suas ideias
61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO
A relaccedilatildeo de paternidade divina no Antigo Testamento eacute refletida na literatura
poacutes-canocircnica do judaiacutesmo No Judaiacutesmo palestinense67 de acordo com J Jeremias
natildeo haacute relatos que em toda a literatura de Qumran que deve ser anterior a 68 a C
(Jeremias 1977 p17) de que Deus tenha sido invocado como Pai Haacute apenas uma
exceccedilatildeo em I QH 9 55 S ldquoEu te agradeccedilo oh Senhor porque natildeo abandonou a
paternidade ou desprezou o pobrerdquo (Vermes 2004 p274) A questatildeo da paternidade
divina era vista pelos rabinos como um direito dado apenas para aqueles que
cumpriam a Lei (Torah) (Jeremias p 1977 p19)
As oraccedilotildees judaicas eram dirigidas geralmente a Deus como nosso Pai
nosso Rei (abinu malkenu) 68 ldquoNosso Pai Nosso Rei Em vista de nossos pais que
creem em ti e a quem ensinas as leis da vida ndash tem piedade de noacutes e ilumina-nosrdquo
(Jeremias 1977 p18) Para J Jeremias mesmo essa oraccedilatildeo sendo antiga
podendo mesmo ser situada na eacutepoca de Jesus haacute algumas coisas que precisam
ser observadas A ecircnfase da oraccedilatildeo estaacute na duplicidade dos termos que se referem
a Deus ou seja ldquoDeus eacute invocado como o pai da comunidaderdquo e a comunidade por
sua vez invoca o Pai que ldquoeacute o rei celestial do povo de Deusrdquo (Jeremias 2008 p116)
Tambeacutem segundo J Jeremias esse texto foi escrito em hebraico que nos dias de
67
ldquo[] no judaiacutesmo palestinense do periacuteodo preacute-cristatildeo eacute rara a descriccedilatildeo de Deus como pai Nos
apoacutecrifos e pseudoepiacutegrafos no que diz respeito aos escritos de origem palestinense acha-se muito raramente (tob 134 Sir 5110 Jub 124-25 28 1929) enquanto os textos de Cunratilde oferecem um uacutenico exemplo isolado (1QH 935-36) No judaiacutesmo rab do seacuteculo I dC o emprego do nome Pai tornou-se mais generalizado mas ainda era muito menos frequente do que outras descriccedilotildees de Deus (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
68 Charlesworth afirma que Jesus invocava a Deus como Abba e natildeo como Abinu Charlesworth
entatildeo pergunta ldquonatildeo seraacute concebiacutevel que tenha chamado Deus de Abba porque tinha uma concepccedilatildeo de Deus que era de algumas maneiras diferente daquela da maioria de seus contemporacircneos (cf Charlesworth 1992 p148)
123
Jesus era uma liacutengua sacra usada com maior frequecircncia nas reuniotildees lituacutergicas e
natildeo como uma praacutetica comum no dia a dia (Jeremias 1977 p19)
Entre os escritos do judaiacutesmo palestinense haacute duas oraccedilotildees em que Deus eacute
invocado como Pai Satildeo invocaccedilotildees muito semelhantes do c 23 de Ben Sira
(Eclesiaacutestico) escrito por volta do comeccedilo do seacuteculo II aC (Jeremias 1977 p19)
Esses dois versiacuteculos (v1 e v4) onde Deus eacute invocado como ldquoPai e dono da minha
vidardquo e como ldquoSenhor Pai e Deus da minha vidardquo (Jeremias 1977 p19) poderiam
ser um preluacutedio do evangelho segundo J Jeremias se por volta da deacutecada de 40
natildeo tivesse sido descoberto uma paraacutefrase em hebraico desse texto que hoje existe
apenas em grego A paraacutefrase desse texto escrito em hebraico natildeo invoca Deus
como ldquoSenhor e Pairdquo mas invoca-o como ldquoDeus de meu Pairdquo Ficam evidentes
entatildeo as diferenccedilas entre o texto que temos em grego e a paraacutefrase em hebraico
Partindo desses raciociacutenios J Jeremias entatildeo conclui que mesmo que no
Judaiacutesmo da diaacutespora haja testemunhos esporaacutedicos da invocaccedilatildeo de Deus como
Pai (Jeremias 2008 p117) eles satildeo apenas ditos isolados nos quais Deus eacute
invocado como (Pater) mas sempre com influecircncia do helenismo e da liacutengua grega
(Jeremias 2008 p115-116) e natildeo se tem notiacutecias de que no judaiacutesmo palestinense
algum indiviacuteduo tenha dirigido-se a Deus chamando-o de meu Pai (Jeremias 1977
p 19-20)
Contudo J Jeremias ainda menciona uma oraccedilatildeo do final do seacuteculo 1 aC
feita por um homem chamado Hanin ha-Nehba conhecido por seu sucesso nas
oraccedilotildees para obter chuva Nessa oraccedilatildeo Deus eacute invocado como papai ou como o
Abba que tem o poder de enviar chuva
Quando o mundo precisava de chuva nossos mestres tinham o costume de lhe mandar crianccedilas das escolas que se agarravam ao seu manto e imploravam Abbaacute Abbaacute habh lan mitra papai papai daacute-nos chuvardquo E ele lhe (a Deus) dizia Senhor do universo concede-nos (a chuva) em vista destes que natildeo satildeo ainda capazes de distinguir entre um abbaacute que tem o poder de dar a chuva e um abbaacute que natildeo tem (Jeremias 1977 p 22)
Por fim o autor supracitado observa que mesmo que as evidecircncias sejam
favoraacuteveis a uma invocaccedilatildeo de Deus como papai (Abbaacute) ainda assim com um olhar
mais criterioso nota-se que a forma como Hanin invoca a Deus eacute tomada com um
tom carregado de humor e Hanin comeccedila a sua oraccedilatildeo dirigindo-se a Deus natildeo
como o Abba mas sim como o Senhor do universo J Jeremias vecirc essa histoacuteria
124
como um preluacutedio das afirmaccedilotildees de Jesus nos Evangelhos onde ele diz que ldquoo Pai
celeste sabe do que precisam os seus filhos (Mt 632) que ele envia a chuva sobre
os justos e os injustos (Mt 5 45) e daacute coisas boas aos seus filhos que lhas pedem
(Mt 711 par Lc 1113) (Jeremias 1977 p 23) Entatildeo J Jeremias tem como
resultado de suma importacircncia de que realmente natildeo existe nenhum testemunho
nas oraccedilotildees judaicas do uso do Abba (papai) em todo o judaiacutesmo Defende esse
autor que o emprego do Abba foi uma caracteriacutestica peculiar de Jesus dirigir-se a
Deus invocando-o como o Abba e isso coloca o abba como sendo a ipsissima vox
de Jesus (Jeremias 1977 p23)
Eis-nos pois autorizados a dizer por que natildeo se usa abbaacute nas oraccedilotildees Judaicas para invocar a Deus seria desrespeitoso e portanto impensaacutevel para uma mentalidade judaica chamar a Deus com um nome tatildeo familiar Foi algo de novo uacutenico e inaudito ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma crianccedila fala ao seu pai com simplicidade intimidade e sem temor Portanto natildeo haacute duacutevida alguma de que a palavra abbaacute utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus revela o proacuteprio fundamento de sua comunhatildeo com ele (Jeremias 1977 p25)
J Jeremias ainda conclui seu pensamento sobre o uso do Abba nas oraccedilotildees
judaicas ldquoUma revisatildeo da rica e abundante literatura oracional judaica ainda pouco
estudada leva-nos a conclusatildeo de que em nenhuma das suas passagens estaacute
atestado o termo abba para invocar a Deusrdquo (Jeremias 2006 p63)
Com um pensamento em alguns pontos diferentes ao de J Jeremias de que
para este Deus nunca foi invocado como pai no judaiacutesmo quer seja no Antigo
Testamento ou no judaiacutesmo palestinense Bultmann afirma que a visatildeo de Deus
como pai no Judaiacutesmo era corriqueira quer seja atraveacutes das oraccedilotildees ou ateacute mesmo
pelo piedoso individualmente Bultmann usa alguns textos como o Eclesiaacutestico 410
para justificar a sua tese ldquoSecirc um pai para os oacuterfatildeos e o substituto do esposo para as
viuacutevas Entatildeo Deus te chamaraacute de filho seraacute gracioso para contigo e te salvaraacute da
perdiccedilatildeordquo (Bultmann 2005 p 191)
A condiccedilatildeo de filho de Deus no judaiacutesmo pode ser tambeacutem escatoloacutegica Para
Bultmann o chamado Salmo de Salomatildeo (1730) trata sobre o regimento do
Messias no tempo do fim com as seguintes palavras ldquoEle os conhece e sabe que
satildeo todos filhos do seu Deusrdquo E para enfatizar ainda mais o seu argumento ele
ainda cita o ldquochamado Livro dos jubileus (1 24-25)rdquo no qual Deus em uma forma
escatoloacutegica promete para os israelitas no tempo da salvaccedilatildeo ldquoEles cumpriratildeo os
125
meus mandamentos e eu serei um pai para eles e eles seratildeo meus filhos E todos
eles se chamaratildeo filhos do Deus vivo e todos os anjos e todos os espiacuteritos os
conheceratildeo e saberatildeo que eles satildeo meus filhos e que eu sou o pai em firmeza e
justiccedila e que eu os amordquo
A ideia que Jesus tem da designaccedilatildeo de Deus como pai segundo Bultmann
natildeo traz nenhuma novidade a respeito do assunto pelo contraacuterio era jaacute uma
caracteriacutestica de muitas religiotildees e cosmovisotildees religiosas e entre elas encontra-se
a visatildeo dos antigos estoicos para os quais a ldquofiliaccedilatildeo divina cabe ao ser humano por
natureza e eacute algo que se aplica a ele na esfera das ideias logo que se situa aleacutem
de sua existecircncia concreta no aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p192-193)
A relaccedilatildeo de pai e filhos no judaiacutesmo ocorre de uma forma diferente da do
estoicismo Bultmann defende que no judaiacutesmo natildeo haacute uma relaccedilatildeo de pai e filhos
de Deus por natureza mas pela livre eleiccedilatildeo de Deus A filiaccedilatildeo divina portanto natildeo
eacute algo natural mas eacute algo miraculoso Quanto agrave possibilidade da filiaccedilatildeo essa natildeo eacute
exclusividade de um grupo pelo contraacuterio eacute aberta a todos pois o pai do ceacuteu provecirc
para todas as pessoas aquilo que necessitam (Mt 6 2632) Da mesma forma a
oportunidade para rogar ao pai do ceacuteu (Mt 7 7-11) eacute uma oportunidade oferecida a
todas as pessoas Dessa forma Bultmann declara que ldquo o ser humano eacute visto de
modo bem diferente ou seja natildeo como aquilo que eacute na esfera das ideias para aleacutem
de sua existecircncia concreta mas justamente como aquilo que eacute em sua existecircncia
na singularidade de seu aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p 193)
O conceito de paternidade no judaiacutesmo eacute tambeacutem discutido por Alon Goshen-
Gottstein em ldquoDeus como Pai no judaiacutesmordquo (Goshen-Gottstein 2001 p475) Para
ele a referecircncia rabiacutenica de Deus como pai no judaiacutesmo tambeacutem eacute uma
peculiaridade de Israel como naccedilatildeo natildeo que indiviacuteduos natildeo possam dirigir-se a Ele
como pai Mas natildeo eacute possiacutevel encontrar nas fontes sobre algueacutem que de forma
especiacutefica e individual tenha dirigido-se a Deus chamando-o de Pai No entanto
para Goshen-Gottstein essa relaccedilatildeo paternal era apenas um sentimento religioso
reciacuteproco de Israel para com Deus isto eacute chamar Deus de Pai era apenas uma das
muitas metaacuteforas que Israel usava para referir-se a Deus (Goshen-Gottstein 2001
p475)
Para Goshen-Gottstein os cristatildeos e judeus divergem muito sobre a questatildeo
da segunda e a terceira pessoas da trindade cristatilde parece que a primeira pessoa da
trindade (o Pai) eacute o elo que une o cristianismo e o judaiacutesmo num fundo teoloacutegico
126
comum Contudo ele pergunta sobre em que extensatildeo a pessoa do Pai eacute um
conceito comum para o judaiacutesmo e para o cristianismo (Goshen-Gottstein 2001
p471) Goshen-Gottstein coloca que o primeiro problema eacute metodoloacutegico visto que
eacute natural que os pesquisadores do Novo Testamento vasculhem a literatura rabiacutenica
agrave procura daquilo que apenas lhes interessa A exemplo disso esse autor observa
que teoacutelogos cristatildeos pentearam a literatura rabiacutenica em busca de exemplos de
expressotildees sobre o ldquoPai celesterdquo que estatildeo no singular ou no plural para dessa
forma avaliar a importacircncia que a expressatildeo ldquoPai celesterdquo tem na literatura rabiacutenica
quando analisada sobre a perspectiva da intimidade e relaccedilatildeo pessoal que o ldquoPai
Celesterdquo tinha para os autores rabiacutenicos Goshen-Gottstein vecirc isso como perda de
tempo pois considera que as fontes rabiacutenicas natildeo podem ser analisadas para fins
especiacuteficos mas devem ser apreciadas a partir da unicidade das suas estruturas
literaacuterias meacutetodos de expressatildeo e convenccedilotildees estiliacutesticas (Goshen-Gottstein 2001
p473)
Referindo-se ao conceito de metaacuteforas atribuiacutedas a Deus Goshen-Gottstein
afirma que descrever Deus como Pai no Judaiacutesmo natildeo eacute essencial ou fundamental
Esse conceito tem uma conotaccedilatildeo religiosa e faz parte de um vocabulaacuterio religioso
Ele eacute apenas uma descriccedilatildeo repleta de imagens e metaacuteforas que faz parte de um
vocabulaacuterio religioso que daacute expressatildeo aos sentimentos do povo e que enchem o
espectro de Israel Portanto para Goshen-Gottstein ldquoPairdquo natildeo eacute uma expressatildeo
privilegiada dentro do judaiacutesmo e tambeacutem ldquonatildeo eacute o nome proacuteprio de Deus Antes eacute
uma das inuacutemeras metaacuteforas atraveacutes das quais Israel se refere a Deusrdquo A
paternidade na literatura rabiacutenica eacute sempre vista em relaccedilatildeo a Israel como naccedilatildeo
Embora Goshen-Gottstein afirme tal expressatildeo ele admite que haja casos em que
indiviacuteduos se dirijam a Deus como Pai inclusive em fontes biacuteblicas No entanto natildeo
se encontra em nenhuma fonte Deus sendo considerado Pai de um indiviacuteduo
somente Sempre Deus eacute visto como sendo o Pai de Israel poreacutem isso natildeo
evidencia que a paternidade de Deus natildeo seja estendida a outros fora de Israel pelo
menos natildeo encontramos na literatura rabiacutenica textos que suponham tal expressatildeo
O que Goshen-Gottstein procura deixar claro eacute que a referecircncia rabiacutenica a Deus
como Pai estaacute fundamentalmente fiel ao uso biacuteblico Isso difere de Filo para quem
Deus o Pai eacute tambeacutem Deus o Criador do mundo Para os rabinos a paternidade
divina se refere somente em relaccedilatildeo a Israel ou seja as fontes referem-se a Deus
127
como Pai somente no contexto do relacionamento especial de Israel com Deus
(Goshen-Gottstein 2001 p475)
A representaccedilatildeo metafoacuterica de Deus como Pai de Israel eacute tambeacutem defendida
por Vermes em Jesus e o mundo do Judaiacutesmo Vermes defende que Deus foi
representado metaforicamente como Pai do povo eleito (Israel) natildeo somente na
literatura biacuteblica mas tambeacutem na literatura apoacutecrifa Entre os textos biacuteblicos por ele
citados encontram-se os seguintes ldquoEu sou pai para Israel e Efraim eacute o meu
primogecircnitordquo (Jr 319) ldquoE no entanto Senhor tu eacutes o nosso Pairdquo [] todos noacutes
somos obras de suas matildeosrdquo (Is 647) ldquoSerei para ele um Pai e ele seraacute para mim
um filho e seraacute chamado filho do Deus vivo (Jub 1 24-25) ldquoFiz a vontade do Abba
que estaacute nos ceacuteusrdquo (Lv R 321) ldquoOacute Senhor Pai Soberano (ou Deus) da minha vidardquo
(Sr 23 14) ldquoA tua providecircncia oacute Pai eacute o seu pilotordquo (Sb 14 3) Vermes apoacutes
analisar os textos das fontes mencionadas acima e outros natildeo reluta em afirmar que
a invocaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rica no judaiacutesmo antigo (Vermes 1996 p53)
Analisando as teses de J Jeremias concernentes ao Abba de Jesus Vermes
observa que elas estatildeo sujeitas a questionamentos J Jeremias defende que Abba
quando dirigido a Deus em forma de invocaccedilatildeo natildeo se encontra na oraccedilatildeo judaica
antiga Vermes contudo soacute concordaria com essa tese se fosse possiacutevel analisar
todas as oraccedilotildees individuais e confirmar que em nenhuma delas algum indiviacuteduo
dirigiu-se a Deus em oraccedilatildeo com a forma invocativa do Abba Para Vermes o
seguinte pensamento de David Flusser resume bem os argumentos acima
apresentados ldquoJ Jeremias natildeo conseguiu encontrar o uso de Abba como vocativo
para Deus na literatura talmuacutedica poreacutem considerando a escassez de material
rabiacutenico sobre a oraccedilatildeo carismaacutetica isso natildeo nos diz muita coisardquo (Vermes 1996
p55)
Goshen-Gottstein fazendo referecircncia a Joseph Heinemann justifica a tese de
Vermes de que eacute preciso distinguir a oraccedilatildeo judaica antiga quando era puacuteblica e
coletiva da oraccedilatildeo de um indiviacuteduo Seguindo esse argumento observa-se que a
oraccedilatildeo puacuteblica recorre a linguagem e padrotildees especiacuteficos enquanto que a oraccedilatildeo
quando efetuada pelo indiviacuteduo eacute mais livre e tambeacutem mais carismaacutetica Nesse
sentido o exemplo por excelecircncia de oraccedilatildeo livre e individual eacute a oraccedilatildeo do Senhor
(Goshen-Gottstein 2001 p487)
Dentre os argumentos contraacuterios a visatildeo de J Jeremias temos ainda a
refutaccedilatildeo de Vermes sobre a tese em que J Jeremias defende que Jesus dirigia-se
128
a Deus chamando-o de ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo Para Vermes essa forma invocativa
realmente era usada pelas criancinhas quando essas se dirigiam aos seus pais
Contudo Vermes natildeo concorda que abba ou imma tenha tido uma uacutenica forma
determinada de uso Para ele na eacutepoca de Jesus abba poderia tambeacutem possuir
simplesmente o significado de ldquomeu pairdquo principalmente quando usadas em
situaccedilotildees solenes que natildeo tinham nada de infantil ldquocomo na altercaccedilatildeo imaginaacuteria
entre os patriarcas Judaacute e Joseacute relatado no Targum Palestino quando o furioso Judaacute
ameaccedila o governador [vizir] do Egito (seu irmatildeo que ele natildeo reconhecera) dizendo
Juro pela vida da cabeccedila de abba (meu pai) tal como tu juras pela cabeccedila do Faraoacute
teu senhor que se tirar a espada da bainha natildeo a devolverei mais enquanto a terra
do Egito natildeo tiver coberta de cadaacuteveresrdquo (Vermes 1996 p55)
James Barr tambeacutem eacute de acordo que abba era uma palavra usada por
adultos embora tambeacutem fosse muito usada por crianccedilas Segundo Barr no grego do
Novo Testamento a palavra ldquopaterrdquo (pai) eacute normalmente usada para referir-se a
figura paterna Contudo ele observa que na liacutengua grega tambeacutem havia uma palavra
em particular no diminutivo pertencente agrave fala das crianccedilas um pouco semelhante agrave
palavra Daddy em Inglecircs (papai) Poreacutem mesmo existindo a palavra em grego natildeo
haacute indiacutecio algum de que tal palavra tenha sido usada no Novo Testamento (Barr
1988 p 36-38)
As teorias com visotildees diferentes das de J Jeremias satildeo muitas como temos
visto Vermes conforme vimos acima eacute enfaacutetico ao contrapor J Jeremias
considerando as teses do professor de Gotinga sobre o Abba como incongruentes e
desprovidas de bases linguiacutesticas
[] J Jeremias compreendia que Jesus dirigia-se a Deus por ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo contudo afora a improbabilidade e incongruecircncia a priori dessa teoria parece natildeo haver bases linguiacutesticas para ela As criancinhas falantes de aramaico dirigiam-se aos seus pais por meio de abba ou imma mas esse natildeo era o uacutenico contexto do uso de abba Na eacutepoca de Jesus a forma determinada do nome abba (- ldquoo pairdquo) tambeacutem significava ldquomeu pairdquo ldquomeu pairdquo se bem que ainda atestado em qumran e no aramaico biacuteblico praticamente jaacute desaparecera como forma idiomaacutetica do dialeto galileu (Vermes 1996 p55)
No apecircndice de seu livro ldquoA Religiatildeo de Jesus o Judeurdquo Geza Vermes posta
um resumo da tese de J Jeremias sobre o Abba de Jesus (The Prayers of Jesus de
1967) baseadas em um artigo ldquoAbba natildeo eacute Papairdquo (Abba isnt Daddy) de James
129
Barr Os argumentos de J Jeremias estatildeo expostos da seguinte maneira conforme
transcritos abaixo
a) O termo aramaico eacute ldquouma expressatildeo puramente exclamatoacuteriardquo como em
Pai e natildeo um aspecto enfaacutetico correspondente em inglecircs a um substantivo
acompanhado do artigo definido (= o pai)
b) A origem do Abba se encontra no balbuciar do ldquofalar infantilrdquo A geminaccedilatildeo
ab-ba (ldquoDadaacuterdquo) tem como modelo o chamado mais frequente do bebecirc agrave Im-ma
(ldquoMamardquo)
c) Essa forma de invocaccedilatildeo eacute de tom tatildeo familiar que sua associaccedilatildeo com a
Deidade chocaria os judeus comuns de liacutengua aramaica como ldquodesrespeitosardquo
d) Seu emprego por Jesus era ldquoalgo de novo e inauditordquo
e) Abba no aramaico da Palestina tornou-se uma expressatildeo polivalente As
diversas expressotildees nos Evangelhos em Grego como ldquoo Pairdquo ldquoPairdquo (vocativo) e
tambeacutem ldquomeuteunosso Pairdquo (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)
podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus
Para Vermes se J Jeremias estiver correto isso pode trazer tantas
implicaccedilotildees porque o estilo de Jesus dirigir-se a Deus seria tatildeo peculiar a ponto de
representar um idiossincrasia Vermes prefere entender que J Jeremias
compreendeu mal o Abba de Jesus e ateacute por uma questatildeo de teimosia persistiu
defendo tal tese Ele ainda reafirma que o Abba natildeo era apenas o linguajar infantil
mas poderia ser usado em momentos solenes ou religiosos Vermes cita uma vez
mais James Barr dizendo que ironicamente esse observa ldquoque a teoria de J
Jeremias vinculando Abba agraves crianccedilas considera uma situaccedilatildeo que antedata Jesus
em alguns milecircniosrdquo Para fechar a analogia de Barr Vermes ainda cita-o ldquoComo
Explanaccedilatildeo de Abba nos tempos do Novo Testamento o balbuciar infantil natildeo faz
sentidordquo
A refutaccedilatildeo de Vermes eacute enfaacutetica ou seja explicitamente ele coloca sua visatildeo
teoloacutegica sobre o Abba de Jesus como uma contestaccedilatildeo a todos os argumentos de
J Jeremias Para finalizar Vermes assim resume seu pensamento sobre a teoria de
J Jeremias ldquo[] a teoria de J Jeremias popular ateacute agora natildeo encontra
fundamento filoloacutegico A conclusatildeo literaacuterio-histoacuterica dessa teoria vale dizer que
antes de Jesus os judeus natildeo se dirigiam a Deus como Abba natildeo eacute apenas
incomprovada como tambeacutem implausiacutevelrdquo (Vermes 1995 p163-167)
130
Apoacutes os diversos argumentos contraacuterios a J Jeremias concluiacutemos com
Swidler que fazendo menccedilatildeo de Georg Schelbert observa que aleacutem do termo
abba natildeo havia nenhuma outra palavra a disposiccedilatildeo de Jesus se ele quisesse falar
de Deus ou a Deus como Pai Se essa era a uacutenica forma de Jesus dirigir-se a Deus
entatildeo ela natildeo poderia ter nada de especial como afirma J Jeremias ateacute porque
como mostra Schelbert a Mishnaacute (que significa ensinamento que eacute recitado
oralmente) mostra um relacionamento iacutentimo com Deus como o Pai do Ceacuteu (Swidler
1993 p73-75) Em relaccedilatildeo ao termo abba Barr conclui que eacute razoaacutevel que abba no
tempo de Jesus pertencia a uma linguagem familiar ou coloquial distinto do uso
formal e cerimonioso mas por outro lado tendo em vista o uso do Targum seria
imprudente comparaacute-la a expressatildeo infantil Daddy (papai) O uso do abba era mais
solene podemos dizer que estava mais relacionado ao uso do adulto para com seu
Pai (Barr 1988 p 46)
62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA
LEITURA A PARTIR DA TEOLOGIA FEMINISTA
A figura feminina sempre foi discriminada pelas sociedades patriarcais ao
longo dos seacuteculos da histoacuteria da humanidade Podemos dizer que o cristianismo um
importante movimento de massa a pregar a liberdade e a igualdade entre os homens
e mulheres ldquoNatildeo haacute judeu nem grego natildeo haacute escravo nem livre natildeo haacute homem
nem mulher pois todos voacutes sois um soacute em Cristo Jesusrdquo (Gl 3 28) 69 Eacute comum
ouvirmos que Jesus libertou as mulheres uma vez que em seu ministeacuterio o mestre
da Galileia teve como disciacutepulas vaacuterias mulheres inclusive como jaacute mencionamos
neste trabalho (53) Maria Madalena (cf Lc 8 2 2410)
Elisabeth Schuumlssler Fiorenza referindo-se a Leonard Swidler vai mais aleacutem
quando afirma que Jesus foi um feminista e isso foi primeiramente atestado por um
estudioso homem e natildeo por uma mulher70 Schuumlssler Fiorenza apela para o fato de
Jesus ter tido disciacutepulas e tambeacutem ter violado as leis de pureza (algo que era
69
Swidler refere-se a esse texto de Paulo como uma contestaccedilatildeo a uma oraccedilatildeo rabiacutenica que diz ldquoLouvado seja Deus por natildeo me ter criado gentio Louvado seja Deus por natildeo ter me criado mulher Louvado seja Deus por natildeo ter me criado ignoranterdquo (Swidler 1993 p 101)
70 Basicamente para Swidler feminista eacute a pessoa a favor da igualdade de homens e mulheres ou
seja a pessoa que trata primeiramente a mulher como uma pessoa assim como os homens satildeo tratados (Swidler 1993 p100)
131
contraacuterio aos rabinos judeus) como argumento para fundamentar a tese de um
Jesus feminista (Schuumlssler Fiorenza 2005 p 37)
Contudo para Swidler a atitude feminista era uma exclusividade de Jesus e
natildeo dos evangelistas e suas fontes Para ele a Igreja primitiva tornou-se
rapidamente antifeminista como pode ser visto em textos como ldquo[] estejam as
mulheres caladas nas assembleias pois natildeo lhes eacute permitido tornar a palavra
Devem ficar submissas como diz tambeacutem a Lei (1Cor 14 34)rdquo Swidler ainda cita
outro texto (1Tm 2 11-12) que diz que ldquodurante a instruccedilatildeo a mulher conserve o
silecircncio com toda a submissatildeo Natildeo permito que a mulher ensine ou domine o
homem Que ela conserve o silecircnciordquo Para Swidler a Igreja natildeo soacute se tornou
antifeminista como tambeacutem se tornou misoacutegina uma vez que aleacutem dos textos acima
mencionados jaacute no II seacuteculo Tertuliano refere-se agraves mulheres com as palavras ldquosois
o portatildeo do diabordquo Natildeo bastasse Tertuliano Oriacutegenes afirma que ldquoaquilo que eacute visto
com os olhos do criador eacute masculino e natildeo feminino pois Deus natildeo se curva para
olhar aquilo que eacute feminino e da carnerdquo (Swidler 1993 p106)
Tal afirmaccedilatildeo (Jesus libertou as mulheres) eacute muito bem aceita entre as
teoacutelogas feministas e por todos que defendem essa teoria Para Schuumlssler Fiorenza
Jesus natildeo somente libertou as mulheres da degradaccedilatildeo imposta pela sociedade
judaica patriarcal da antiguidade (apesar dessa tese ser considerada como
historicamente falsa e antijudaica pelas teoacutelogas feministas judias) como tambeacutem o
proacuteprio Jesus era um feminista (Fiorenza 2005 p110)
Conforme Swidler a condiccedilatildeo das mulheres na sociedade contemporacircnea de
Jesus na Palestina era sem duacutevida de inferioridade em relaccedilatildeo aos homens
Segundo Swidler natildeo obstante o fato de ter havido vaacuterias heroiacutenas nas Escrituras
hebraicas natildeo impediu que nos dias de Jesus e ateacute muito tempo depois natildeo fosse
concedido agraves mulheres a permissatildeo de estudar a Toraacute Swidler citando um texto da
Mishnaacute (Sita 34) refere-se a um rabino do seacuteculo I chamado Eliezer que
pronunciou as seguintes palavras referindo-se agraves mulheres ldquoAs palavras da Toraacute
deveriam antes ser queimadas do que confiadas a uma mulher [] todo aquele que
ensina a Toraacute a sua filha eacute como aquele que lhe ensina a lasciacuteviardquo (Swidler 1993
p100-101)
As mulheres no templo de Jerusaleacutem estavam limitadas agrave parte externa ou
seja ficavam no paacutetio das mulheres que estavam cinco degraus abaixo do paacutetio dos
homens Nas sinagogas aleacutem de ficarem separadas dos homens natildeo tinham
132
permissatildeo para ler em voz alta muito menos assumir alguma funccedilatildeo de lideranccedila
Swidler cita Filon contemporacircneo de Jesus que pensava que as mulheres natildeo
deviam sair de casa a uacutenica exceccedilatildeo era para ir agrave sinagoga e preferencialmente
em horaacuterios em que a maioria das pessoas estivessem em casa De uma maneira
geral as mulheres serviam apenas para ter filhos estavam sempre sob a tutela de
um homem que seria o marido ou no caso de viuvez sob a tutela do irmatildeo do
falecido sem contar com o fato de que tinham que se sujeitar a poligamia (ainda que
natildeo muito praticada nos dias de Jesus) eram facilmente repudiadas com a carta de
divoacutercio poreacutem natildeo tinham permissatildeo para se divorciarem Enfim ldquoa condiccedilatildeo das
mulheres na Palestina era aquela dos inferioresrdquo (cf Swidler 1993 p102-104)
A teologia de J Jeremias referente agrave relaccedilatildeo de Deus como Pai nos laacutebios de
Jesus de Nazareacute71 natildeo eacute aceita em algumas correntes teoloacutegicas como por
exemplo pelos defensores da teologia feminista72 Poreacutem quando falamos do
movimento feminista natildeo significa que exista um uacutenico ponto de vista sobre um
mesmo pensamento teoloacutegico Algumas feministas que adotam o pensamento de
reforma da tradiccedilatildeo o qual implica em conservar o que eacute melhor ao inveacutes de
simplesmente imitar as tradiccedilotildees lutam por uma reforma e uma flexibilidade na
linguagem da igreja quando o assunto se refere agrave pessoa de Deus argumentando
que o uso exclusivo da imagem masculina natildeo faz justiccedila agrave imagem biacuteblica de Deus
mas limita o acesso ao entendimento que temos de Deus Para essa corrente
feminista a imagem de Deus natildeo estaacute relacionada a gecircnero visto que Deus pode
ser visto tanto como pai e como matildee segundo Marianne Thompson para uma parte
dessas feministas e ainda para outras portanto a ideia central natildeo eacute descartar a
71 Elisabeth Schuumlssler Fiorenza observa que os livros e artigos sobre ldquoJesus e as mulheresrdquo se
proliferam contudo ela cita Crossan quando este acusa as feministas pela falta de interesse na busca pelo Jesus histoacuterico Crossan pergunta onde estatildeo elas Schuumlssler responde ldquoCrossan natildeo pode reconhecer as afinidades entre seu proacuteprio modelo de reconstruccedilatildeo histoacuterica e o meu modelo feminista (cf Schuumlssler 2005 p 30)
72 Haight coloca que a teologia feminista eacute por muitos comparada agrave teologia da libertaccedilatildeo uma vez
que compartilham de ideais e estrutura formal comum no que diz respeito agrave libertaccedilatildeo e tambeacutem a maioria dos pobres no mundo eacute constituiacuteda de mulheres ldquo[] No que tange agrave loacutegica hermenecircutica da teologia portanto as teoacutelogas feministas podem referir-se a si mesmas como teoacutelogas da libertaccedilatildeo [] Na medida em que o androcentrismo controla o significado de Jesus cristo a cristologia feminista eacute levada a questionar como uma figura masculina de Salvador pode oferecer a salvaccedilatildeo agraves mulheres Em termos mais amplos contudo a cristologia feminista ocupa-se de toda a forma de opressatildeo e de suas inter-relaccedilotildees O Deus mediado por Jesus Cristo coloca em xeque todo poder de dominaccedilatildeo Natildeo era o sexo mas o gecircnero como categoria cultural que tinha primazia e era parte da ordem das coisas O significado de homem e de mulher era determinado pela posiccedilatildeo na hierarquia social e pelo lugar que se ocupava na sociedade natildeo pela genitaacuteliardquo (cf Haight 2003 p37)
133
linguagem de Deus como Pai mas apenas incluir essa com outra variedade de
imagens de Deus (Thompson 2000 p 3)
Para outras feministas no entanto nenhum acordo sobre a questatildeo da
imagem paterna de Deus pode ser atingido facilmente pois tais questotildees natildeo
podem ser tatildeo facilmente resolvidas e as respostas necessaacuterias satildeo muito radicais
pois trariam uma postura revolucionaacuteria para a tradiccedilatildeo Para elas o uso histoacuterico
que a Igreja tem da linguagem exclusivamente masculina de Deus deve ser
inteiramente refeito73 Em vez de buscar as reformas dentro das estruturas atuais da
igreja ou dentro de construccedilotildees teoloacutegicas tradicionais essas feministas oferecem
uma pauta mais radical o que tem implicaccedilotildees natildeo apenas para a linguagem sobre
Deus mas tambeacutem para o carater baacutesico de toda a teologia e feacute cristatilde Algumas
feministas satildeo mais radicais ainda pois explicitamente rejeitam as tradiccedilotildees da feacute
cristatilde afirmando que os textos cristatildeos e a feacute satildeo inevitavelmente e
intoleravelmente patriarcal elas abandonaram o cristianismo por completo
(Thompson 2000 p 4)
Para Thompsom (2000 p 18) a designaccedilatildeo de Deus como Pai natildeo eacute
invenccedilatildeo de Jesus e nem criaccedilatildeo da Igreja primitiva A designaccedilatildeo de Deus como
Pai faz parte de ambos os Testamentos ou como o Pai que eacute o ancestral que daacute a
vida e lega uma heranccedila aos seus filhos ou como o Pai que ama e cuida dos seus
filhos ou ainda como o Pai que eacute uma figura de autoridade a quem se deve
obediecircncia e honra Thompsom afirma que Jesus dirigiu-se a Deus como Pai em
primeira instacircncia natildeo como um mero testemunho de sua proacutepria experiecircncia de
Deus mas ao inveacutes disso pelas suas proacuteprias convicccedilotildees de Deus como renovador
e restaurador de Israel ou seja isso natildeo era fruto de uma experiecircncia privada mas
assunto de uma missatildeo puacuteblica Essa afirmaccedilatildeo de Thompson natildeo se coaduna com
o pensamento de J Jeremias para quem a relaccedilatildeo de Jesus com o Pai era iacutentima e
pessoal
Nesse sentido Mary Rose DAngelo ao analisar o texto do Evangelho de
Marcos 1436 quando Jesus invocava o Pai (Ἀββᾶ ὁ πατήρ) ela observa que a
73
Elisabeth Schuumlssler Fiorenza em seu livro Jesus e a poliacutetica da interpretaccedilatildeo coloca uma teoria polecircmica ou pelo menos curiosa Segundo Schuumlssler os antropoacutelogos tecircm assinalado que nem todas as culturas e liacutenguas conhecem dois sexosgecircneros e que mesmo em culturas ocidentais isso eacute coisa da modernidade ldquoDurante milhares de anos considerava-se comum que as mulheres tivessem o mesmo sexo e os mesmos oacutergatildeos genitais que os homens estando a diferenccedila no fato de se acharem no interior do corpo ao passo que os dos homens estavam no exterior A vagina era entendida como um pecircnis interior os laacutebios como prepuacutecio o uacutetero como saco escrotal e os ovaacuterios como testiacuteculosrdquo (cf Schuumlssler 2005 p9)
134
oraccedilatildeo contida nesse texto pode ser apenas redacional visto que tal oraccedilatildeo ocorreu
no cenaacuterio do Getsecircmani onde Jesus estava naquele momento sem os seus
disciacutepulos portanto eles natildeo estavam laacute para ouvir e descrever o momento de sua
agonia Ela concorda com a teoria de que a narrativa desse cenaacuterio poderia ser
apenas um soliloacutequio dramaacutetico de Jesus ou entatildeo uma repeticcedilatildeo da oraccedilatildeo de
Joseph (4Q372 1 23-24) onde ele suplica para que Deus natildeo lhe abandone Para
D`Angelo a narrativa de Marcos tende muito para o lado emotivo procurando
dessa forma colocar Jesus como o verdadeiro Filho de Deus e grande maacutertir da
histoacuteria do judaiacutesmo conforme os livros Sabedoria de Salomatildeo e 3 Macabeus (D`
Angelo 1992b p159) Em outro artigo (Abba and ldquoFatherrdquo Imperial Theology and
the Jesus Traditions) D Angelo reafirma seu argumento sobre o cenaacuterio do
Getsecircmani dizendo ldquoEsta eacute uma cena da revelaccedilatildeo entre Jesus e leitor os
disciacutepulos estatildeo laacute para relatar a agonia de Jesus Assim a atribuiccedilatildeo de abba a
Jesus natildeo tem muacuteltipla atestaccedilatildeo Na verdade ocorre apenas em uma cena que
quase certamente deriva da atividade literaacuteria de Marcosrdquo (D` Angelo 1992a p614-
615)
Segundo D Angelo o uso do Abba pela Igreja primitiva natildeo eacute uma heranccedila dos
ensinamentos de Jesus como acreditam alguns teoacutelogos De acordo com essa
autora o uso do Abba na Igreja primitiva era mais uma questatildeo de ecircxtase provocada
por uma accedilatildeo do Espiacuterito Santo do que uma referecircncia agraves palavras ditas por Jesus
Para a autora se o Abba usado nas igrejas tivesse uma ligaccedilatildeo direta com Jesus
entatildeo seriamos obrigados a aceitar que outras palavras de origem aramaica como
Maranatha tambeacutem seriam provenientes dos discursos do mestre (D Angelo 1992a
p 615)
Um outro argumento defendido por D` Angelo eacute que o uso da expressatildeo ldquoAbba
Pairdquo no Evangelho de Marcos eacute anti-imperialista visto que o Imperador de Roma
considerava-se o pai da paacutetria (parens patriae pater patriae) preferindo ser
reconhecido com o tiacutetulo de pai ao tiacutetulo de rei designaccedilatildeo esta que natildeo soava bem
aos ouvidos do povo romano (D` Angelo 1992a p623-630) De fato de acordo com
DAngelo foi concedido a Juacutelio Cesar ainda em vida o tiacutetulo de ldquopaterldquo (pai) o qual
buscava estabelecer uma relaccedilatildeo de devoccedilatildeo (pietas) entre ele e o povo romano
Isso se deve ao fato que o uso de pater subentende o impeacuterio como uma grande
famiacutelia na qual o imperador funciona como um paterfamilias e cuja autoridade eacute
baseada em sua habilidade de reger todo o povo romano como seus clientes Ainda
135
seguindo com essa visatildeo imperialista observa-se que Augusto adquiriu oficialmente
o tiacutetulo pater patriae no ano 2 aC
No intuito de descrever o caraacuteter dos imperadores DAngelo aponta que
Cassius Dio o qual acreditava que os tiacutetulos supracitados representavam mais
afeiccedilatildeo do que autoridade tratou augustus e pater como duas denominaccedilotildees
atraveacutes das quais os imperadores primeiro permitiam a si mesmos serem
distinguidos do resto dos cidadatildeos substituindo o tiacutetulo ldquoreirdquo por tais designaccedilotildees
cujas essecircncias soariam de maneira menos ofensiva aos ouvidos dos romanos De
acordo com Dio o termo pater concorda com a ideia que o Imperador tem a mesma
autoridade que um pai tem sobre seus filhos escravo e outros sujeitos
Por outro lado dois filoacutesofos estoicos do primeiro e segundo seacuteculos nos
ajudam a entender como o tiacutetulo pai concedido ao Imperador poderia sofrer uma
reaccedilatildeo com o pensamento teoloacutegico da eacutepoca Para Dio Crisoacutestomo ldquoDeus como
pai racionaliza o governo imperial e convida-o a adotar um coacutedigo de eacutetica de
clemecircncia e de responsabilidaderdquo ao descrever que o bom rei eacute aquele que prefere a
labuta aos prazeres e as riquezas Tal rei prefere o tiacutetulo ldquopairdquo ao referir-se agrave sua
capacidade de provisatildeo Jaacute Epiacuteteto ldquousa a paternidade de Deus para oferecer uma
dignidade alternativa para aqueles que natildeo tecircm acesso ao poder dentro da ordem
imperialrdquo Esses dois autores satildeo importantes para o cristianismo primitivo e para o
judaiacutesmo natildeo pela influecircncia que exerceram sobre eles mas porque respondem as
mesmas realidades poliacuteticas
Um outro argumento de DAngelo com relaccedilatildeo ao uso de Abba por Jesus eacute
que o mesmo natildeo pode ser explicado apenas como uma relaccedilatildeo afetiva entre pai e
filho mas tambeacutem reflete a praacutetica carismaacutetica da comunidade na qual Marcos
estava inserido assim como ocorreu nas igrejas de origem grega da Galaacutecia e em
Roma (Gl 46 Rm 816) onde o uso da palavra ldquoAbbardquo eacute fruto da accedilatildeo do Espiacuterito
Santo
D`Angelo justifica essa tese a partir do fato que segundo ela J Jeremias
tomou como base em seus estudos apenas os textos provenientes de oraccedilotildees e
ainda excluiu textos em grego os quais ele considerou serem oraccedilotildees feitas pela
comunidade e natildeo como fruto de uma accedilatildeo do indiviacuteduo (D`Angelo 1992b p151)
Para dar suporte a esse argumento D`Angelo faz referecircncia ao texto de 4Q372 1
originalmente escrito em hebraico no qual Joseph invoca a Deus chamando-o de
meu Pai ldquoMeu Pai e meu Deus natildeo me abandone nas matildeos das naccedilotildees faccedila
136
justiccedila por mim o aflito e pobre pereciacutevel Vocecirc natildeo precisa de nenhuma pessoa ou
naccedilatildeo para lhe ajudar seu dedo eacute maior e mais forte do que qualquer coisa no
mundordquo (Vermes 2004 p566) Ela ainda cita outros textos onde Deus eacute invocado
como Pai (3 Mac 6 3-4 78 Sab 143 1 QH 935)
Embora alguns desses textos tenham sido escritos em grego quando lidos no
contexto de 4Q372 1 e 4Q460 5 DAngelo observa os textos hebraicos e gregos
mostram que era uma praacutetica comum tanto da comunidade quanto do indiviacuteduo
dirigir-se a Deus em oraccedilotildees chamando-o de Pai (D`Angelo 1992b p 152) Dessa
forma ela entende que o conceito de Deus como Pai sempre esteve presente no
judaiacutesmo antigo influenciando toda a literatura judaica da eacutepoca (DAngelo 1992a
618)
Face aos argumentos acima expostos D Angelo conclui que a originalidade
do uso do Abba natildeo pode ser atribuiacutedo a Jesus com toda certeza e mais ainda
segundo ela seria menos provaacutevel que Jesus usasse o termo pai numa linguagem
familiar do que em resistecircncia agrave ordem do Impeacuterio romano
Finalmente considerando os argumentos apresentados a partir da
interpretaccedilatildeo feminista Thompson conclui que tanto Jesus como a Igreja primitiva
natildeo deram origem ao conceito de Deus como Pai Aleacutem disso apesar das
caracteriacutesticas do Pai no Israel antigo serem utilizadas para falar de Deus como Pai
elas nunca estiveram ligadas a uma essecircncia masculina de Deus mas servem como
exemplo de feacute misericoacuterdia justiccedila humildade bem como responsabilidade
individual e corporativa e obediecircncia a Deus para a comunidade (Thompson 2000
p 19)
137
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Naquela noite em sonhos Joseacute teve um aviso O Evangelista natildeo diz em que cidade ou lugar a famiacutelia se encontrava Natildeo devia ser do lado norte e talvez fosse mesmo nas montanhas do sul fora do alcance das batidas policiais de Herodes Suponhamos que fosse na estrada do Heacutebron Com a cabeccedila reclinada sobre uma pedra o carpinteiro adormece E eis que o anjo do Senhor (aquele mesmo que lhe confiara a guarda de Jesus) lhe diz - Levanta-te e toma o menino e sua matildee e foge para o Egito e demora-te laacute ateacute que eu diga porque Herodes haacute de procurar o menino para o matar Joseacute desperta Sobre os montes luzem os primeiros alvores da madrugada Prepara o alforje avisa Maria para que tambeacutem se prepare porque longa eacute a viagem [] Joseacute sela o jumento acomoda Maria e o Menino sobre o animal Toma o bordatildeo E parte A viagem prolonga-se por muitos dias pela Idumeacuteia pelas montanhas de Sin pelo deserto de Sur Uma tarde sobre as colinas a cavaleiro do Nilo avistam as piracircmides de Miquerinos de Queacutefren e de Queops grandiosas e silenciosas no ar trecircmulo de mormaccedilo Junto agrave piracircmide de Miquerinos olhando para o abismo do ceacuteu e para a amplitude do deserto uma cabeccedila gigantesca de pedra tem indefiniacutevel indecifraacutevel expressatildeo Eacute a grande esfinge [] Os egiacutepcios viam naquele rochedo a imagem humana do sol Os gregos viam naquela imagem o monstro proponente de problemas insoluacuteveis (Salgado 1985 p67-69)
Em tom poeacutetico Plinio Salgado narra a histoacuteria da fuga do menino Jesus e
seus pais para o Egito conforme o texto do Evangelho de Mateus que diz ldquo[] eis
que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonhos a Joseacute e lhe disse Levanta-te toma
o menino e sua matildee e foge para o Egitordquo (Mt 213) Salgado usa o mito da esfinge74
para relacionar com o mito de Eacutedipo onde o enigma eacute decifrado pelo personagem
Eacutedipo75 Para Salgado Eacutedipo decifrou a Esfinge mas natildeo decifrou o homem que
continua nas trevas
A pergunta do monstro na estrada de Tebas refere-se ao homem ldquoQual eacute o animal que pela manhatilde anda com quatro pernas ao meio-dia com duas e agrave
74
Segundo Plinio Salgado o mito da Esfinge rezava que enquanto ser vivente misto de leatildeo e de mulher a Esfinge andava pelas estradas de Tebas devorando os viajantes que eram incapazes de responder as suas perguntas enigmaacuteticas Contudo o monstro morreria quando algueacutem decifrasse seu enigma
75 O mito de Eacutedipo pode ser visto com detalhes no claacutessico Antiacutegona de Soacutefocles
138
tarde com trecircsrdquo Eacutedipo responde ldquoEacute o homemrdquo e respondendo revela que toda a preocupaccedilatildeo da Esfinge eacute o gecircnero humano Decifrar a Esfinge eacute a preocupaccedilatildeo do homem Decifrar o homem eacute a preocupaccedilatildeo da Esfinge (Salgado 1985 p67-69)
Conforme Salgado a trageacutedia de Eacutedipo eacute a trageacutedia do homem Somente
Jesus decifraraacute a ldquoEsfinge-Homem e iluminaraacute todo o universordquo
A histoacuteria da humanidade eacute repleta de trageacutedias desde as suas origens Jaacute
nos primeiros capiacutetulos do Gecircnesis vemos Abel sendo viacutetima de seu irmatildeo Caim 76
Diante de tantas cataacutestrofes o homem procura refuacutegio em um ser sobrenatural que
possa amenizar seu sofrimento e dar-lhe alguma explicaccedilatildeo para o porquecirc de tantos
desalentos nesta vida
A relaccedilatildeo do ser humano com o Ser sobrenatural faz parte da cultura de todos
os povos antigos como vimos no primeiro capiacutetulo deste trabalho Isso nos mostra o
anseio do ser humano em busca do seu criador Observamos que para os povos
antigos Deus era visto como um ancestral divino ou seja o homem era visto como
descendente da divindade Essa relaccedilatildeo entre o homem primitivo e a deidade nos
povos antigos era sempre marcada por sangue violecircncia guerra entre os deuses
ateacute o surgimento do homem como vimos no mito sumeacuterio babilocircnico em que o
homem proveacutem do sangue de um deus decaiacutedo chamado Kingu
Em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem na narrativa do Gecircnesis verificamos que o
proacuteprio Deus eacute quem modela e cria o homem a partir do barro (argila) O homem
entatildeo recebe a vida atraveacutes do sopro divino Essa relaccedilatildeo tatildeo proacutexima entre criatura
e criador eacute descrita nas Escrituras de uma forma progressiva desde o Gecircnesis ateacute
os escritos neotestamentaacuterios Agrave medida que Deus se revela ao homem este se
aproxima mais dele Aos patriarcas Deus eacute o El Shaday (Todo Poderoso) mas jaacute a
Moiseacutes ele revela o seu proacuteprio Nome Ele eacute o ldquoEu Sourdquo o Yahweh
Mesmo Yahweh sendo um Deus proacuteximo Ele ainda eacute visto no Antigo
Testamento como figura de um Senhor Criador o Todo Poderoso que luta e peleja
por Israel mas que ao mesmo tempo em que defende seu povo pune-os e os
entrega nas matildeos dos inimigos quando esses se desviam dos seus mandamentos
J Jeremias sabiamente observa que no Antigo Testamento a relaccedilatildeo de Israel com
Deus natildeo eacute vista como o relacionamento de pai para filho principalmente por parte
76
Cf Gn 4 1-16
139
do indiviacuteduo Deus sempre se apresenta como o Pai do rei ou entatildeo como o Pai da
naccedilatildeo Mesmo que Pai seja uma das muitas metaacuteforas para Deus como afirma
Goshen-Gottstein dificilmente podemos contestar a tese de J Jeremias uma vez
que uma clara invocaccedilatildeo de Deus como Pai feita por algum indiviacuteduo no Antigo
Testamento eacute difiacutecil de ser encontrada
Em relaccedilatildeo ao Novo Testamento observamos que Jesus que conviveu em
uma sociedade muito pobre carregada de preconceitos viu na expressatildeo Abba a
forma por excelecircncia para projetar nela o modelo de uma verdadeira e iacutentima
relaccedilatildeo entre filho e pai O fato de Jesus ter sofrido preconceitos como em sua
infacircncia adolescecircncia e ateacute na vida adulta por causa da sua filiaccedilatildeo humana natildeo o
impediu de demonstrar o quanto a sua relaccedilatildeo com o Pai divino era estreita e isso
estava acima de todos os preconceitos concebidos dentro de uma sociedade cheia
de costumes rigidamente observados a ponto de natildeo mais compreenderem o
verdadeiro sentido do amor a Deus e ao proacuteximo conforme era a verdadeira
vontade de Deus expressa nos ensinamentos do mestre da Galileia
Embora Joseacute tenha assumido a paternidade de Jesus isso natildeo foi suficiente
para impedir o preconceito contra ele em relaccedilatildeo a sua filiaccedilatildeo humana Contudo
quando Bruce Chilton potildee a questatildeo relacionada agrave possibilidade de Jesus ter sido
considerado um Mamzer a partir da interpretaccedilatildeo do texto do Evangelho de Joatildeo 8
40-41 onde os Judeus fazem a seguinte afirmaccedilatildeo a Jesus ldquo[] natildeo nascemos da
prostituiccedilatildeo temos um soacute pai Deusrdquo podemos tambeacutem olhar esse texto a partir de
uma interpretaccedilatildeo de uma Cristologia alta ou seja aqui o debate entre Jesus e os
judeus tem como ponto principal a filiaccedilatildeo divina onde Jesus se coloca como o
Verbo divino preexistente Poreacutem eacute bem verdade que isso natildeo anula o pensamento
de Chilton em relaccedilatildeo agrave possiacutevel discriminaccedilatildeo sofrida por Jesus levando em
consideraccedilatildeo o contexto a eacutepoca a cultura e o ambiente social em que Jesus viveu
durante o periacuteodo da infacircncia ateacute a vida adulta
Aleacutem disso podemos dizer com Martins Terra que a vida de Cristo eacute a
Revelaccedilatildeo do Pai que pode ser demonstrada nas palavras no silecircncio e nos
sofrimentos de Jesus Martins Terra observa que essa relaccedilatildeo eacute plena de intimidade
como pode ser visto nas palavras do proacuteprio Mestre ldquoAquele que me viu viu o Pairdquo
(Jo 149) e da mesma forma o Pai tambeacutem pode dizer assim do Filho ldquoEste eacute o
140
meu Filho muito amado ouvi-o (Lc 935)rdquo Notamos aqui que a relaccedilatildeo de Jesus
com o Pai eacute desde a eternidade onde o Verbo divino jaacute estava presente com o Pai
na criaccedilatildeo de todas as coisas (Martins Terra 2009 p283-284)
Para Martins Terra assim como para J Jeremias o Abba de Jesus eacute o
modelo da perfeita relaccedilatildeo dos filhos de Deus com o Pai do ceacuteu Assim como Jesus
relacionou-se com o Pai divino seus disciacutepulos tambeacutem o poderatildeo desde que se
aproximem e ldquoamem a Deus acima de todas as coisas e o proacuteximo como a si
mesmordquo Eacute na oraccedilatildeo do Pai Nosso que Jesus ensina como os disciacutepulos devem
orar em uma estreita ligaccedilatildeo com o Abba conforme nos descreve Martins Terra
[] Os disciacutepulos ficam impressionados com a oraccedilatildeo de Jesus Ele chamava a Deus de Aba (Mc 14 36) que natildeo eacute um termo usado nas oraccedilotildees judaicas Aba eacute um diminutivo aramaico que significa ldquopapairdquo Eacute a expressatildeo de uma crianccedila dirigindo-se a seu progenitor Jesus natildeo pode desde o inicio revelar o misteacuterio da Santiacutessima Trindade e de sua pessoa divina Esse misteacuterio natildeo tinha sido revelado no AT Foi invocando a Deus como Aba ldquomeu Pairdquo que Jesus foi levantando aos poucos o veacuteu que ocultava o misteacuterio da trindade e do seu relacionamento filial uacutenico com o Pai (Martins Terra 2009 p283-284)
Aleacutem disso de acordo com James D G Dunn podemos dizer com confianccedila
que Jesus experimentou uma iacutentima relaccedilatildeo com Deus expressa atraveacutes da oraccedilatildeo
Ele se relacionou com Deus caracteristicamente como Filho e Pai e o sentido dessa
relaccedilatildeo com Deus era tatildeo real tatildeo amorosa e tatildeo atraente que Jesus sempre se
dirigiu a Deus dessa maneira chamando-o de Pai ldquoAbba foi o grito que veio mais
naturalmente aos laacutebios de Jesusrdquo (Dunn 1997 p26)
Segundo J Jeremias para compreendermos o Abba como a ipsissima vox de
Jesus eacute preciso observar a origem de sua liacutengua materna Conforme observamos
no decorrer desta pesquisa haacute alguns pesquisadores que defendem que a liacutengua
corrente nos dias de Jesus era o hebraico e por sinal tambeacutem falada por Jesus
Esse argumento natildeo eacute seguido pela maioria dos especialistas do Novo Testamento
bem como por J Jeremias A liacutengua falada por Jesus era do ldquoramo ocidental da
famiacutelia linguiacutestica aramaicardquo J Jeremias para embasar sua tese menciona
respeitaacuteveis nomes como J Wellhausen Jouumlon Matthew Black e principalmente G
Dalman (Jeremias 2008 p32-33) que ldquoapresentou a prova baacutesica para este fatordquo
Tendo Dalman ainda como referecircncia J Jeremias afirma que natildeo eacute possiacutevel mais
141
duvidar que o aramaico ou para ser mais preciso ldquoo dialeto galileu do aramaico
ocidentalrdquo era a liacutengua materna de Jesus
As evidecircncias aramaicas satildeo evidentes nos ditos de Jesus por outro lado
praticamente natildeo se encontra palavras em hebraico ditas por ele nem mesmo o
ldquoAmenrdquo ou ldquoEliacuterdquo uma vez que essas palavras foram absorvidas pelo aramaico
(Jeremias 2008 p36) J Jeremias admite que em alguns poucos casos
encontramos palavras hebraicas nos laacutebios de Jesus mas sempre em situaccedilotildees
solenes como as palavras proferidas na uacuteltima ceia em liacutengua sacra
A importacircncia do aramaico como a primeira liacutengua de Jesus encontra-se na
possibilidade de nos aproximarmos o quanto possiacutevel do modo de falar do mestre
ou seja voltarmos ldquoagraves caracteriacutesticas da dicccedilatildeo de Jesus que natildeo possuem
nenhuma analogia na literatura da eacutepoca e que por isso podem ser consideradas
como marcas da ipsissima vox de Jesusrdquo (cf Jeremias 2008 p 68-79) Entre as
particularidades de Jesus concernentes agrave fala encontramos as seguintes
peculiaridades conforme J Jeremias
1 - As paraacutebolas de Jesus satildeo exclusividade dele natildeo encontradas em toda a
literatura judaica do Antigo ou do Novo Testamento quer canocircnica ou apoacutecrifa Nas
paraacutebolas de Jesus natildeo se encontra nenhuma faacutebula ou seja ele nunca coloca
uma videira ou figueira para falar Suas paraacutebolas (mesmo contendo metaacuteforas do
Antigo Testamento) tinham por maior finalidade atingir o coraccedilatildeo pulsante do ouvinte
e tratar de assuntos relacionados ao dia-a-dia da vida do ser humano
2 - Os ditos enigmaacuteticos como o proferido sobre Joatildeo Batista ldquoo maior entre
os nascidos de mulher eacute ao mesmo tempo o menor no reino de Deusrdquo (Mt11 11)
eram incomuns nos dias de Jesus seja entre os mestres ou ateacute mesmo dos
primeiros cristatildeos que natildeo inventaram tais ditos mas apenas os tornaram mais
evidentes
3 ndash A expressatildeo ldquoreino de Deusrdquo eacute escassa na literatura judaica antiga
recebendo um aumento apenas na literatura rabiacutenica Contudo nos Evangelhos natildeo
soacute o aumento mas a forma que Jesus usa as expressotildees relacionadas ao reino de
Deus satildeo profundamente marcantes para se caracterizar como a ipsissima vox de
Jesus conforme encontramos em textos como Mateus 519 11 12 Marcos 115
Lucas 112 1231 1721 etc
142
4 ndash O termo Ameacutem como jaacute foi mencionado nesta pesquisa (54) no Antigo
Testamento era usado como foacutermula solene para confirmar ldquouma palavra de benccedilatildeo
maldiccedilatildeo ou desejordquo Nos laacutebios de Jesus o termo eacute usado para testificar as
proacuteprias palavras do falante e natildeo de outrem J Jeremias conclui sobre o ameacutem
com as seguintes palavras ldquoA novidade desse uso linguiacutestico sua estrita restriccedilatildeo
agraves palavras de Jesus e o testemunho unacircnime de todas as camadas da tradiccedilatildeo
evidenciam que nos deparamos com uma inovaccedilatildeo linguiacutestica nos laacutebios de Jesusrdquo
5 ndash E por uacuteltimo temos o Abba proferido por Jesus Abba eacute a mais importante
palavra pronunciada por Jesus quando invocava a Deus com o Pai eacute o modo
preferido de Jesus para referir-se ao Pai Dificilmente poderiacuteamos interpretar o Abba
de Jesus como faz Malina comentando o Abba natildeo eacute paizinho de James Barr
Como tem sido demonstrado por James Barr (1988) a palavra aramaica Abba natildeo significa ldquopaizinhordquo como no hebraico moderno Tanto na traduccedilatildeo do Novo Testamento (Abba = ho pater Mc 14 36 Rm 815 Gl46) quanto de honra No patriarcado ele implica tambeacutem distacircncia Deus natildeo eacute um paizinho mas um patrono Na religiatildeo poliacutetica pregada por Jesus o deus de Israel eacute o patrono de Israel (cf Malina 2004 p145)
Compreende-se portanto que o Abba proferido por Jesus eacute ipsissima vox
Julgar J Jeremias alegando que ele considerou o linguajar de Jesus infantil natildeo eacute
cabiacutevel dentro do contexto de toda a sua teologia J Jeremias defende-se dessa
acusaccedilatildeo que a princiacutepio ateacute poderia ser justa uma vez que ele admite que jaacute
chegou a acreditar que Jesus tenha assumido a linguagem das criancinhas quando
se dirigia a Deus Pai como ele mesmo admite ldquoeu tambeacutem acreditei nissordquo
contudo agora natildeo mais jaacute que nas proacuteprias palavras desse teoacutelogo ele assim
admite ldquoa constataccedilatildeo de que jaacute desde os tempos preacute-cristatildeos os filhos e filhas
adultos se dirigiam a seus pais chamando-os de Abba proiacutebe esta limitaccedilatildeordquo
(Jeremias 2008 p121)
Portanto no Abba de Jesus natildeo haacute espaccedilos para patriarcados exclusivistas
uma vez que o proacuteprio ldquoFilho de Deusrdquo na sua condiccedilatildeo de homem acolheu os
pobres religiosos doentes e marginalizados pela sociedade cobradores de
impostos e tambeacutem acolheu o que a sociedade machista da eacutepoca mais discriminou
as mulheres Talvez seja uma precipitaccedilatildeo eliminar a linguagem metafoacuterica da
palavra Pai ou mesmo deixar de observar nela o conceito anti-imperialista ou ateacute
mesmo a patronagem No entanto natildeo podemos deixar de priorizar que para Jesus
143
Abba era uma palavra sagrada era ldquoa revelaccedilatildeo Deus porque Deus se tinha dado a
conhecer a ele como seu Pairdquo (Mt 11 27) um ldquoPairdquo acolhedor que quis ajuntar os
seus filhos como a galinha ajunta os seus os seus pintos debaixo das suas asas (cf
Lucas 1334)
A paternidade de Deus conforme J Jeremias natildeo eacute algo natural tambeacutem
natildeo eacute uma posse de todos os seres humanos mas reserva-se apenas aos
disciacutepulos uma vez que Jesus nunca dirigiu a expressatildeo ldquovosso Pairdquo a algueacutem que
estivesse fora do rol dos seus seguidores A filiaccedilatildeo faz parte do reino (basileia) de
Deus Uma das exigecircncias para fazer parte de tal reino eacute tornar-se como uma
crianccedila (Mt 183) Essa filiaccedilatildeo eacute escatoloacutegica eacute um dom salviacutefico de Deus (J
Jeremias 2008 p 271-273)
O Pai apresentado por Jesus eacute bom e cuida dos seus lsquopequeninosrsquo jaacute que
ele sabe do que eles realmente precisam (Mt 6 8 32) A invocaccedilatildeo de Deus como
Abba eacute mais forte do que todas as adversidades e anguacutestias mesmo que Satatilde
ldquoqueira peneirar o disciacutepulordquo (Lc 22 31) o Pai do ceacuteu ldquoeacute mais forte do que todos os
problemas enigmas e anguacutestias e sabe do que precisam os filhos do reino (J
Jeremias 2008 p276) O ponto central de toda essa exposiccedilatildeo sobre o Abba
consiste no ldquovoltar a ser como uma crianccedilardquo O significado disso estaacute em tornar-se
dependente do Pai voltar para os braccedilos do Pai (cf Lc 15 11-32) depositar total
confianccedila nele enfim resumimos isso nas palavras de J Jeremias ldquovoltar a ser
crianccedilardquo significa reaprender a dizer Abba (J Jeremias 2008 p 238) como diz J
Jeremias ldquo[] Abba eacute percebido como um grande privileacutegiordquo Ter a coragem de
chamar Deus de Pai proveacutem da conscientizaccedilatildeo da filiaccedilatildeo satildeo os filhos que podem
dizer Abbardquo (J Jeremias 2008 p293)
Jesus de Nazareacute o Filho de Deus o homem que dividiu a histoacuteria em antes e
depois dele mudou os rumos da humanidade para sempre Amado e odiado
apregoado e perseguido mas nunca esquecido Verificamos ao longo deste trabalho
as mais variadas teorias sobre ele ora como um mago um judeu marginal um
profeta um bastardo um judeu praticante ou apenas uma figura lendaacuteria
embelezada por seus seguidores Schuumlssler Fiorenza relata uma histoacuteria rabiacutenica
em que Moiseacutes visita o rabino Akiva Ao ouvir os infindaacuteveis discursos sobre a Toraacute
Moiseacutes teria perguntado ldquoquem escrevera aquelas coisas grandiosas que ele jamais
144
tomara conhecimentordquo Schuumlssler Fiorenza (2005 p1) relacionando a histoacuteria
rabiacutenica sobre a Toraacute com as milhares escritas sobre Jesus ela levanta a seguinte
questatildeo ldquoSe Jesus tal como Moiseacutes voltasse a terra lesse todas as suas biografias
e frequentasse o Jesus Seminar ou fosse agrave reuniatildeo anual da Society of Biblical
Literature tambeacutem se maravilharia e perguntaria tomado de assombro Quem eacute
essa pessoa de quem estatildeo falandordquo
A busca pelo Jesus da histoacuteria levou a tantos extremos mas com certeza
acrescentou inuacutemeros fatos ou ateacute mesmo suposiccedilotildees que enriqueceram o
conhecimento que temos hoje sobre Jesus e os Evangelhos Eacute inegaacutevel o fato de
que os Evangelhos natildeo satildeo histoacuteria no sentido moderno e que os disciacutepulos natildeo
tinham a mesma pretensatildeo ou necessidade de relatar os fatos em detalhes visto
que viveram em um mundo cultura e eacutepoca totalmente diferente da nossa cultura
ocidental Portanto quanto mais perto quisermos chegar do Jesus humano mais
perto devemos nos aproximar da cultura do seacuteculo I
Sobre o divisor de aacuteguas entre J Jeremias e Bultmann ou seja se devemos
buscar pelo Jesus da histoacuteria ou pelo Cristo querigmaacutetico nada melhor do que
concluir com as palavras do proacuteprio J Jeremias
A boa nova sobre Jesus e o testemunho da feacute da igreja primitiva estatildeo indissoluvelmente ligados Natildeo podemos isolar nenhuma dessas magnitudes Pois o evangelho de Jesus se converte em histoacuteria morta sem o testemunho de feacute da igreja (a qual estaacute transmitindo sem cessar esse evangelho e o estaacute confessando e testemunhando sempre novamente) Sem Jesus e seu evangelho a igreja natildeo pregava mais que uma ideia um teorema Quem isola a pregaccedilatildeo de Jesus termina no ebionismo Quem isola o querigma da igreja primitiva termina no docetismo (Jeremias 2006 p 42)
Portanto descrever sobre Jesus realmente natildeo eacute tarefa faacutecil como parece
ser Como afirmar que ele era analfabeto ou entatildeo um rabi letrado da Galileia As
evidecircncias internas como vimos levam-nos a pensar em um homem que escrevia
lia e interpretava as Escrituras Por outro lado como nos mostra Crossan as
evidecircncias externas levam-nos a pensar em um camponecircs sofredor e iletrado como
a maioria dos galileus ou entatildeo dos judeus subjugados ao terriacutevel e impiedoso
Impeacuterio romano principalmente a Galileia diretamente afetada pelo deacutespota
Herodes Antipas
145
O importante eacute que Jesus com ou sem instruccedilatildeo douto ou indouto
conseguiu com a graccedila do Pai dos Ceacuteus deixar aos homens de todas as eacutepocas o
exemplo de um servo sofredor de amor ao proacuteximo de renuacutencia e acima de tudo
de um homem que cumpriu com toda a vontade e propoacutesitos de Deus Pai para a
salvaccedilatildeo da humanidade O apoacutestolo Joatildeo o descreveu como o Verbo o Logos
preexistente que existe antes de todas as coisas uma vez que as mesmas foram
criadas por ele
146
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AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a Deus pela inspiraccedilatildeo e pela vida sem as quais natildeo seria possiacutevel concluir este trabalho
Agradeccedilo a minha esposa Josiane pela compreensatildeo e apoio nas inuacutemeras horas em que me dediquei agrave pesquisa abdicando dos momentos que poderiam ser aproveitados junto da famiacutelia e em especial agrave nossa filha Sofia Gabriela que nasceu durante o periacuteodo da minha pesquisa trazendo luz alegria e motivaccedilatildeo para que essa empreitada fosse concluiacuteda
Agradeccedilo aos meus pais pela educaccedilatildeo a mim proporcionada e em especial a minha tia Eli Kowalski por ter tornado possiacutevel meu sonho de cursar teologia em uma instituiccedilatildeo de ensino superior o qual ampliou meus horizontes para o labor teoloacutegico e por fim abriu o caminho para mais esta conquista
Meu agradecimento especial ao meu orientador Prof Dr Vicente Artuso por ter acreditado na possibilidade desta pesquisa e me fornecido o suporte necessaacuterio para a concretizaccedilatildeo deste trabalho
Agradeccedilo ao corpo docente e ao programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia da PUC-PR pela contribuiccedilatildeo valiosa em minha formaccedilatildeo teoloacutegica durante todo o processo
Agradeccedilo agrave secretaacuteria Maria pela paciecircncia e eficiecircncia nas informaccedilotildees fornecidas desde o primeiro contato com a instituiccedilatildeo
Agradeccedilo a Marta pela disponibilidade e empenho na correccedilatildeo ortograacutefica e gramatical desta dissertaccedilatildeo
Agradeccedilo aos dirigentes do Studium Theologicum de Curitiba por ter permitido a utilizaccedilatildeo da biblioteca na qual encontrei grande parte da bibliografia aqui utilizada e a Flaacutevia pela paciecircncia e disponibilidade no auxiacutelio agraves consultas bibliograacuteficas
RESUMO
O objetivo deste trabalho eacute levar-nos agrave compreensatildeo da relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo Joachim Jeremias Para isso realizamos o estudo do Jesus histoacuterico e seu contexto social poliacutetico e religioso bem como a visatildeo que os povos antigos incluindo o Israel do Antigo Testamento tinham de Deus Por fim visotildees contraacuterias agrave interpretaccedilatildeo de J Jeremias satildeo apresentadas As diversas teorias que os homens tecircm da paternidade divina chamam agrave nossa atenccedilatildeo para a incessante busca da humanidade para identificar-se com o Criador especificamente com a figura de um Deus Pai No entanto nesta pesquisa observamos que mesmo no judaiacutesmo onde natildeo encontramos a antiga imagem de uma deusa matildee observamos a figura de um Deus Pai com afetos e sentimentos maternos Para J Jeremias eacute com Jesus que o relacionamento do humano com o Pai divino atinge seu aacutepice atraveacutes da magna expressatildeo ldquoAbba Pai Segundo este autor Jesus de um balbucio das criancinhas teria tornado o Abba Pai uma expressatildeo sagrada entre os seus disciacutepulos a ponto de posteriormente ela ser absorvida pelas comunidades cristatildes primitivas como a forma de comunicaccedilatildeo do Espiacuterito para testificar no interior do disciacutepulo que este agora eacute tambeacutem filho de Deus A teoria de que o Abba natildeo era apenas um balbucio infantil ou muito menos um termo sagrado eacute contestada por correntes teoloacutegicas judaicas e feministas que veem os argumentos de J Jeremias como infundados ou repletos de exageros No entanto ao final da pesquisa procuramos mostrar que mesmo diante de tais contestaccedilotildees a paternidade divina proclamada por Jesus natildeo eacute natural ou seja uma posse de todos os seres humanos mas exclusividade dele e dos seus disciacutepulos uma vez que a filiaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica do reino de Deus e soacute os filhos do reino eacute quem podem usufruir de tal privileacutegio e dirigir-se a Deus invocando-o como o Abba Pai Jesus de Nazareacute nesta pesquisa eacute o exemplo a ser seguido no tocante agrave humildade e sofrimento numa sociedade profundamente marcada pelo preconceito e desigualdade social Compreendecirc-lo e segui-lo na sua humanidade eacute um grande passo para aproximar-se dele como o Cristo poacutes-pascal onde a revelaccedilatildeo do divino ao humano se concretiza com toda a plenitude Palavras-chave Jesus histoacuterico Paternidade divina
ABSTRACT
This work aims to understand the relationship between Jesus and God the Father according to Joachim Jeremias For this we studied the historical Jesus and his social political and religious context as well the ancient people view of God including the view of Israel from Old Testament Finally views that are opposed to Jeremias are presented The various theories that men have on the fatherhood of God call our attention to the relentless pursuit of humanity to identify with the Creator specifically with a figure of God the Father However in this study we observed that even in Judaism where it cannot find the ancient image of a mother goddess we see a picture of a God Father with affection and maternal feelings For J Jeremias it is in Jesus that the relationship of the human with the divine Father reaches its peak through the magna term Abba Father According to this author Jesus through a babble of little children would have made the Abba Father a sacred expression among his disciples and He subsequently extent it in order to being absorbed by the early Christian communities as a way of communicating of the Spirit to testify within the disciple that he is also the son of God The theory that Abba was not just a babbling child or much less a sacred term is challenged by current theological and Jewish feminists who see the arguments of J Jeremias as unfounded or exaggerated However at the end of the study we sought to show that even in the face of such challenges the fatherhood of God proclaimed by Jesus is not natural ie a possession of all human beings but it is exclusive to Him and his disciples once the sonship is a feature of the kingdom of God and only the children of the kingdom is the one who can enjoy such a privilege and turn to God calling him Abba Father Jesus of Nazareth on this research is the example to be followed regarding the humility and suffering in a society deeply marked by prejudice and social inequality To understand and follow Him in his humanity is a big step to be close to him as the post-Passover Christ where the revelation of the divine to the human is fully realized Key-words Historical Jesus Gods fatherhood
Sumaacuterio
1 INTRODUCcedilAtildeO 7 2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO 19 3 O JESUS HISTOacuteRICO 27 31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO 27 32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO 32 4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE SUA EacutePOCA 40 41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE CONTEMPORAcircNEA DE JESUS 41 42 JESUS O HUMILDE NAZARENO 46 43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES 50 44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS 59 45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS 61 451 OS ESSEcircNIOS 63 452 OS FARISEUS 66 453 OS SADUCEUS 72 454 OS ZELOTAS 74 5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS E SEUS
DESDOBRAMENTOS 79 51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA 79 52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA 85 53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS 91 54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS 100 55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR 102 56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA 110 6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS 122 61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO 122 62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA LEITURA A PARTIR DA
TEOLOGIA FEMINISTA 130 7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 137 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 146
7
1 INTRODUCcedilAtildeO
A ideia de Deus como pai da humanidade sempre esteve presente na mitologia dos
povos antigos Pai eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e na
Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Segundo Joachim Jeremias
(1977 p11-12) muitas tribos e famiacutelias acreditavam que eram procedentes de um
ancestral divino isto eacute de um ldquopairdquo divino Ephraim descreve-nos que a relaccedilatildeo de Deus
como Pai entre os povos antigos era bastante conhecida contudo ele evidencia que o
Abba de Jesus foi a mais iacutentima forma de invocar a Deus propagada entre os homens
atraveacutes dos ensinamentos de Jesus
A palavra Abba (Pai) posta na boca de Jesus eacute como se fosse a uacuteltima tentativa de Deus para ensinar os homens a pronunciarem seu nome Muitas vezes no passado Deus tentou fazer isto atraveacutes de seus servidores os profetas mas Israel natildeo compreendeu ldquoPairdquo eacute um tiacutetulo divino muito antigo encontrado em quase todas as religiotildees do Oriente meacutedio mas no caso ele eacute pai como a terra eacute matildee isto eacute exige na medida em que daacute Eacute o deus tutelar que deve ser adulado pois do contraacuterio ele natildeo outorga as suas graccedilas Eacute um deus que eacute pai do mesmo modo que Zeus era o pai de todos os deuses (Ephraim 1998 p171)
Observa-se que para os povos antigos Deus era um ancestral divino distante de
suas criaturas Aleacutem disso para Israel conforme a tese sustentada por J Jeremias vecirc-
se que no Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai principalmente quando
essa forma de invocar a Deus estaacute relacionada a um indiviacuteduo (Jeremias 2005 p19) Por
outro lado se no Antigo Testamento Deus natildeo eacute invocado como Pai de uma forma
individual como Senhor Ele eacute constantemente invocado a exemplo do salmista (Sl 338)
que menciona Deus como o Senhor que fala e as coisas acontecem conforme as suas
ordenanccedilas (Jeremias 2008 p 269)
Em contraste a essa relaccedilatildeo aparentemente tatildeo distante do Deus Pai com seus
filhos no periacuteodo veterotestamentaacuterio observa-se que a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute
profundamente marcante nos Evangelhos Haacute poreacutem diferentes interpretaccedilotildees com
relaccedilatildeo ao sentido da palavra Pai quando esta era proferida por Jesus J Jeremias
embora natildeo tenha sido o primeiro a tratar dessa questatildeo provavelmente foi o mais
influente quando ele sugere que Jesus ao dirigir-se a Deus invocando-o como o ἀββᾶ
(Abba) estava atribuindo um novo enfoque ao costume judaico de interpelaccedilatildeo a Deus
fazendo uso de uma linguagem cotidiana assim como as crianccedilas dirigiam-se a seus pais
expressando familiaridade e intimidade (cf Goshen-Gottstein 2001 p 493)
O objetivo deste trabalho eacute o estudo do Jesus histoacuterico (humano) com ecircnfase em
seu contexto social culminando no estudo histoacuterico-teoloacutegico da relaccedilatildeo de Jesus com o
8
Pai Este estudo tem como ponto de partida a teologia de Joachim Jeremias concernente
ao Abba proferido por Jesus no Evangelho de Marcos (1436) que diz ldquo[] Abba (Pai)
Tudo eacute possiacutevel para ti afasta de mim este caacutelice poreacutem natildeo o que eu quero mas o que
tu queresrdquo
Para entendermos a relaccedilatildeo de Jesus com o Deus Pai no Novo Testamento e como
ele transformou uma distante relaccedilatildeo entre o Pai ldquoque estaacute nos ceacuteusrdquo e seus filhos eacute
interessante vislumbrar o mundo poliacutetico religioso e cultural no qual ele esteve inserido
comeccedilando pela pequena Nazareacute um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que
vivia em casebres um povoado simples composto de camponeses entre duzentos a
quatrocentos habitantes (Crossan 2007 p 75) ateacute ao Getsecircmani onde Jesus proferiu a
magna expressatildeo Ἀββᾶ ὁ πατὴρ (Abba Pai) que para J Jeremias eacute a mensagem central
do Novo Testamento
No entanto a pesquisa do Jesus histoacuterico eacute complexa visto que os cristatildeos
primitivos preocuparam-se apenas em preservar ditos isolados a respeito de Jesus A
expectativa do retorno iminente do Mestre pode ter sido o motivo principal que levou o
cristianismo primitivo a preferir apenas fatos relacionados ao ministeacuterio de Jesus do que
relatar uma biografia completa do Jesus histoacuterico (Schweitzer 2003 p 11) Apesar de
toda a complexidade em se estudar o Jesus histoacuterico eacute possiacutevel investigar alguns
aspectos relativos a sua existecircncia a partir dos evangelhos e de muitos escritores que ao
longo dos seacuteculos tecircm se empenhado em coletar informaccedilotildees atraveacutes de achados
arqueoloacutegicos e de toda literatura que de uma forma direta ou indireta traz-nos
informaccedilotildees do mundo no qual Jesus estava inserido
Partindo das fontes primaacuterias J Jeremias observa que Jesus tinha uma relaccedilatildeo
iacutentima com Deus pois somente se referia a Ele chamando-o de meu Pai comportamento
este que natildeo era observado entre o povo judeu Assim para uma melhor compreensatildeo
dessa relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute interessante pesquisar como os povos antigos
viam a questatildeo da paternidade divina e desse modo confrontar os modelos antigos com
o modelo de paternidade difundido por Jesus e pelas primeiras comunidades cristatildes
Tendo em vista a complexidade e a diversidade do tema proposto e o profundo
interesse de J Jeremias e de outros pensadores que com ele concordaram ou divergiram
a respeito do assunto esta pesquisa torna-se um desafio empolgante tendo sempre em
vista o crescimento e o amadurecimento em questotildees importantes da teologia
A escolha deste tema eacute motivada pela relevacircncia da produccedilatildeo acadecircmica de J
Jeremias no contexto da Teologia do Novo Testamento mais especificamente sobre a
9
relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai Embora os argumentos de J Jeremias natildeo sejam
unanimidade no contexto dos estudiosos que tecircm escrito sobre tal tema eacute inegaacutevel o
grande impacto que as suas teses tecircm causado na comunidade cientiacutefica ligada ao
assunto que tem se debruccedilado para contestar ou entatildeo para sustentar que Deus natildeo eacute
como um soberano inacessiacutevel mas como um pai que se relaciona com seus filhos e isso
soacute foi enfatizado com propriedade a partir do Abba de Jesus
Essa visatildeo de J Jeremias entra em conflito com as teses de alguns estudiosos
contemporacircneos os quais discutem se realmente houve novidade na forma como Jesus
fez uso da palavra Pai (ipsissima vox) em suas oraccedilotildees ou se esta era um dito autecircntico
(ipsissima verba) Seria Abba realmente a ipsissima vox de Jesus e o centro de sua
mensagem e a afirmaccedilatildeo de sua messianidade conforme afirma J Jeremias ou apenas
uma expressatildeo lituacutergica comum nas comunidades cristatildes do periacuteodo poacutes-pascal da igreja
primitiva (DAngelo 1992b p151) Teria Jesus realmente legado aos seus disciacutepulos a
palavra Abba como um termo sagrado ou Abba tem apenas a conotaccedilatildeo poliacutetica anti-
imperialista (DAngelo 1992a p623)
A partir das questotildees levantadas acima este trabalho tem por objetivo investigar o
Jesus histoacuterico e seu contexto social a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo a
interpretaccedilatildeo dada por J Jeremias bem como alguns desdobramentos deste tema
segundo algumas correntes teoloacutegicas cristatildes e judaicas com as seguintes finalidades
Verificar a visatildeo que os povos antigos (ldquopagatildeosrdquo natildeo judeus) bem como o antigo
Israel tinham de Deus como Pai
Pesquisar a relaccedilatildeo do Jesus histoacuterico no seu contexto familiar e social
Analisar a tese de J Jeremias concernente ao sentido que a palavra Abba tinha
quando proferida por Jesus
Confrontar o pensamento de J Jeremias frente a algumas correntes teoloacutegicas
favoraacuteveis e contraacuterias aos seus argumentos
10
2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS
Neste capiacutetulo seraacute abordado o conceito de paternidade divina entre os povos
antigos com o enfoque sobre a ideia que tais povos tinham de Deus como um ancestral
divino do homem conforme exposto por Jeremias Face agraves inuacutemeras epopeias da
criaccedilatildeo abaixo mencionadas veremos que a criaccedilatildeo do homem a partir do relato do
Gecircnesis eacute bem mais otimista uma vez que o homem do Gecircnesis natildeo eacute um ancestral dos
deuses mas foi criado para ser a imagem do seu proacuteprio Criador
21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS
A ideia mitoloacutegica de um deus como pai da humanidade sempre esteve presente
entre os povos antigos como os sumeacuterios e babilocircnios Segundo J Jeremias tais povos
diziam que suas tribos e famiacutelias procediam de um ancestral divino como se observa por
exemplo no ceacutelebre hino sumeacuterio e acaacutedico de Ur Nesse hino o deus Lua Sin eacute
invocado como o ldquoPai misericordioso em suas disposiccedilotildees que reteacutem em sua matildeo a vida
de todo o paiacutesrdquo Aleacutem de tal hino encontramos na tradiccedilatildeo de tais povos a seguinte
citaccedilatildeo sobre Ea um deus sumeacuterio-babilocircnico ldquoSua coacutelera eacute como o diluacutevio Ele se
reconcilia como um pai misericordiosordquo (Jeremias 1977 p11-12) Complementando essa
ideia Santos Sabugal afirma que a ideia de paternidade divina entre os povos antigos era
largamente atestada na literatura de vaacuterios povos A Aacutefrica a Ameacuterica a China e a Iacutendia
bem como o Egito e tambeacutem os Greco-romanos invocaram a paternidade de Zeus e de
Juacutepiter sobre todos os deuses e homens (Sabugal 1985 p 367-368)
Contudo para J Jeremias as histoacuterias de invocaccedilotildees a Deus como Pai satildeo tatildeo
profundas que sempre se tem a sensaccedilatildeo de que novas e inesperadas galerias sempre
surgem A invocaccedilatildeo a Deus como Pai nos povos antigos desde as suas origens nem
sempre estava relacionada a Deus como um antepassado do rei ou do povo mas podia
ser invocado como um pai misericordioso conforme nos relata J Jeremias
Eacute assombroso verificarmos como jaacute no antigo oriente e com seguranccedila desde o segundo e ainda no terceiro milecircnio aC a divindade era invocada assim Nas oraccedilotildees sumeacuterias muito anteriores a Moiseacutes e os profetas encontramos a invocaccedilatildeo ldquopairdquo e desde laacute esta palavra designava a divindade natildeo apenas como antepassado do rei e do povo ou como o soberano pleno de poder mas tambeacutem como o ldquopai magnacircnimo e misericordioso em cuja matildeo estaacute a vida da naccedilatildeo inteirardquo (Hino de Ur a Sin divindade da lua) A palavra ldquopairdquo na invocaccedilatildeo a Deus implicava pois para os orientais desde os tempos mais antigos algo que pode ser considerado como para noacutes significa a palavra ldquomatildeerdquo (Jeremias 2006 p61)
11
Pai1 portanto para os povos antigos como os assiacuterios babilocircnios egiacutepcios
gregos e outros povos eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e
na Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Aleacutem disso o historiador
das religiotildees Mircea Eliade tambeacutem descreve que satildeo diversas as versotildees sumerianas
sobre a origem divina dos seres humanos e dentre elas consta o poema cosmogocircnico
conhecido como Enuma elish (ldquoQuando no altordquo) que relata as origens do mundo e do
homem buscando exaltar a Marduk um deus nacional da Babilocircnia o qual triunfa sobre
os deuses com ldquovalores demoniacuteacosrdquo dentre eles Tiamat e Kingu
Esse poema traz o mito de que Marduk decidiu criar o homem para que ele sirva
aos deuses Assim a partir do corte das veias de Kingu um deus vencido que foi
sacrificado a humanidade foi criada (Eliade 2010 p79) No entanto com a derrota dos
deuses inimigos de Marduk a criaccedilatildeo do homem inicia-se com um agravante na tradiccedilatildeo
sumeriana mesmo sendo Kingu um dos primeiros deuses ele se tornara o arquidemocircnio
chefe dos monstros e democircnios criados pelo deus Tiamat que tambeacutem foi derrotado por
Marduk Dessa forma sendo o homem constituiacutedo do sangue de Kingu torna-se ele parte
constitutiva de uma mateacuteria demoniacuteaca (Eliade 2010 p 80) Segundo essa vertente
mitoloacutegica sumeriana a uacutenica esperanccedila do homem eacute que ele tenha sido criado por um
grande deus Ea ldquoA partir desse prisma existe uma simetria entre a criaccedilatildeo do homem e
a origem do mundo Em ambos os casos a mateacuteria-prima eacute constituiacuteda pela substacircncia
de uma divindade primordial decaiacuteda demonizada e morta pelos jovens deuses
vitoriososrdquo (Eliade 2010 p 80) Conforme P Grelot ldquoo mito babilocircnico da criaccedilatildeordquo eacute
repleto de violecircncia e sangue (Grelot 1973 p 31)
[] Marduque ouvindo o apelo dos deuses resolveu criar uma obra prima ldquofarei canais de sangue formarei uma ossatura e suscitarei um ser cujo nome seraacute homem Sim vou criar um ser humano um homem Que sobre ele recaia o serviccedilo dos deuses para o bem estar delesrdquo
Ainda com relaccedilatildeo ao mito babilocircnico relata-se que na epopeia de Atra-Hasis (ldquoo
muito inteligenterdquo) cuja coacutepia mais antiga data aproximadamente de 1600 aC o deus Uecirc
1 A relaccedilatildeo de Deus como Pai nas religiotildees do oriente antigo e da Greacutecia e Roma antigas estaacute sempre de
uma forma ligada a ldquoideias miacutesticas de gerar e na descendecircncia fiacutesica e natural de todos os homens a partir de Deus Assim o deus El de Igariteacute eacute chamado o pai da humanidade e o deus da lua na Babilocircnia sin eacute pai e gerador dos homens e dos deusesrdquo No Egito o Faraoacute eacute considerado de modo especial o filho Deus no sentido fiacutesico O nome de pai expressa sobre tudo a absoluta autoridade de deus exigindo a obediecircncia havendo poreacutem ao mesmo tempo seu amor bondade e cuidado misericordiosos (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)
12
eacute morto Entatildeo a deusa matildee (Nintu) e Ea (deus das aacuteguas) fazem um apelo agraves sete
genitoras que ao som de encantamentos maacutegicos se potildeem a amassar a argila A epopeia
narra que a partir de catorze pedaccedilos de argila que satildeo separados metade agrave direita e
metade agrave esquerda pela deusa matildee que apoacutes serem pisados pelas deusas genitoras
estas ldquodatildeo agrave luz sete homens e sete mulheres que imediatamente satildeo dispostos aos
pares e a raccedila humana recebe as leis do seu laborrdquo (Grelot 1973 p 31)
[] Que seja morto um deus e que todos os deuses se purifiquem no seu sangue Que com a sua carne e o seu sangue Nintu (= a deusa matildee) misture argila de modo que deus e homem sejam misturados juntos na argila Que por esta carne de deus haja um espiacuterito Sim Responderam na assembleia os grandes Anunaqui que regem os destinos (Grelot 1973 p 19)
Nesse mito babilocircnico Ea ficou encarregado de consumar o trabalho imolando
Kingu que era o chefe dos deuses revoltosos para que o seu sangue estivesse nas veias
do homem de sorte que este tenha ldquoem suas veias o sangue de um deus decaiacutedordquo
Grelot observa que a partir desses mitos pode-se ver que o homem natildeo eacute apenas um
suacutedito e escravo dos deuses ldquomas tambeacutem eacute um joguete das potecircncias coacutesmicas que
fazem pesar sobre ele uma fatalidade inexoraacutevelrdquo (Grelot 1973 p 31)
[] Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido cortando suas veias Com o seu sangue Eia criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses para libertaacute-los Depois que Eia o saacutebio criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses obra superior a toda inteligecircncia que realizou Nudimude graccedilas aos artifiacutecios de Marduque Marduque rei dos deuses dividiu o conjunto dos Anunaacutequi em deuses de cima e deuses de baixo e encarregou Anu de velar pelas suas ordens nos ceacuteus e na terra ele estabeleceu seiscentos deuses (Vl 1-1031-34)
Pode-se ainda observar a ideia da existecircncia de um ancestral divino entre outros
povos antigos Segundo Campbell tal conceito pode ser visto na cultura da tribo Aranda
da Austraacutelia Central Nessa tribo o rito de transformaccedilatildeo de um menino em adulto
demonstra a forma primitiva com que esse povo se relaciona com a divindade desde a
antiguidade quando um jovem dessa tribo estaacute entre os dez e os doze anos ele e os
outros membros de sua faixa etaacuteria satildeo tomados pelos homens da aldeia e levantados
13
vaacuterias vezes no ar enquanto os homens realizam o ritual de transformaccedilatildeo as mulheres
por sua vez tambeacutem tomam parte do ritual danccedilando em volta agitando os braccedilos e
gritando Em cada menino satildeo entatildeo pintados no peito e nas costas desenhos simples
por um homem relacionado com o grupo social ao qual pertence a sua futura mulher e
enquanto os meninos satildeo pintados os homens cantam ldquoQue ele possa atingir a barriga
do ceacuteu que ele possa crescer ateacute a barriga do ceacuteu que ele possa ir diretamente para
dentro da barriga do ceacuteurdquo (Campbell 1992 p82)
Assim que o ritual eacute finalizado os meninos recebem a instruccedilatildeo que desde que o
ritual foi concluiacutedo cada um deles tem sobre si a insiacutegnia do ancestral mitoloacutegico
particular do qual ele eacute a contraparte viva A partir de entatildeo os meninos passam a ter
algumas responsabilidades e satildeo advertidos de que de agora em diante haacute algumas
restriccedilotildees entre eles e o sexo oposto Eles natildeo poderatildeo mais brincar ou acampar com as
mulheres e meninas mas somente com os homens Das atividades de caccedila de pequenos
animais e procura de raiacutezes eles natildeo tomaratildeo parte visto ser uma atividade realizada
pelas mulheres mas receberatildeo uma responsabilidade maior que eacute acompanhar os
homens na caccedila aos cangurusrdquo (Campbell 1992 p 82) Campbell observa que nessa
tribo eles acreditam que as crianccedilas nascidas de mulheres satildeo reapariccedilotildees de seres que
viveram na era mitoloacutegica no chamado ldquotempo dos sonhosrdquo ou altjeringa (Campbell
1992 p 82) Nesse mundo mitoloacutegico maacutegico dos sonhos o menino da tribo Aranda
passa entatildeo a compreender que ele proacuteprio eacute um ser mitoloacutegico eterno que se
encarnou e da mesma forma seus companheiros tambeacutem satildeo as manifestaccedilotildees das
formas eternas (Campbell 1992 p82)
A ancestralidade divina tambeacutem pode ser constatada entre os gregos como no mito
de Ascleacutepio um deus popular classificado por Homero e Piacutendaro como um heroacutei ou
divindade da cura Ascleacutepio segundo a mitologia grega era filho do deus Apolo com a
humana Corocircnis ele tambeacutem se casou com uma humana com quem teve filhos e filhas
(Koester 2005 vol1 p176)
A relaccedilatildeo entre deuses e humanos tambeacutem pode ser vista nos relatos mitoloacutegicos
dos chamados heroacuteis ou semideuses Segundo a mitologia os heroacuteis pertenciam agrave
espeacutecie dos humanos visto que conheceram a morte e o sofrimento contudo
diferenciavam-se destes pelo fato de que eles viveram numa eacutepoca denominada pelos
gregos como o antigo tempo onde os homens denominados de heroacuteis eram mais belos e
mais fortes do que os homens que conhecemos Esses ancestrais (noacutenymnoy) ou seja
os sem nome fazem parte do passado lendaacuterio da Greacutecia antiga Mesmo sendo homens
eles se aproximam muito dos deuses mais dos que os homens atuais Nessa eacutepoca
14
lendaacuteria segundo a mitologia grega os deuses ainda se misturavam com os mortais na
vida diaacuteria como comer juntos e ateacute em relaccedilotildees sexuais onde os imortais se uniam aos
mortais a fim de gerarem filhos belos Os heroacuteis faziam parte dessa relaccedilatildeo amorosa
entre deuses e humanos como diz Hesiacuteodo ldquoeles formam a raccedila divina dos heroacuteis que
satildeo denominados semideuses conhecidos como os hemitheoiacuterdquo (Vernant 2006 p 47) A
partir desse relato observamos que os humanos realmente acreditavam procederem de
uma raccedila mitologicamente humana e divina ou seja uma mistura das duas
Observamos que ateacute esse ponto temos entre os ancestrais divinos apenas figuras
masculinas A figura masculina de Deus como Pai da humanidade entre os povos antigos
eacute marcante poreacutem natildeo eacute unanimidade Gerald Messadieacute afirma que natildeo existe nenhuma
figura masculina da idade da pedra que evoque o conceito de um deus masculino
(Messadieacute 2001 p44) De fato esse autor observa que os deuses masculinos como Aacutetis
Tamuz Adoacutenis Patilde Silvano Fauno Narciso Jacinto satildeo comparados agrave vegetaccedilatildeo visto
que mesmo sendo deuses heroicos miacuteticos morrem com a chegada do inverno e
renascem com a chegada da primavera assim como ocorre com a vegetaccedilatildeo
No entanto diferentemente do que ocorre no aspecto masculino para o autor
supracitado o princiacutepio feminino da divindade eacute algo permanente Segundo Messadieacute o
culto da Terra-Matildee foi tatildeo fortemente enraizado nas culturas primitivas que seus vestiacutegios
perduraram ateacute tempos recentes (Messadieacute 2001 p44) Nesse sentido pode-se citar as
oraccedilotildees que se faziam agrave deusa-matildee (Zemyna equivalente agrave deusa grega Gaia) na
Lituacircnia entre os seacuteculos XVII e XVIII onde ela era vista como aquela que faz florescer
os bototildees O mais admiraacutevel eacute que em pleno seacuteculo XX em numerosos paiacuteses da
Europa como Escoacutecia Irlanda Lituacircnia Pruacutessia Oriental e Malta ainda era dedicado um
dia (15 de agosto) a Terra-Matildee Messadieacute enfatiza que o dia dedicado agrave deusa-matildee era
uma data tatildeo significativa a ponto de ser transformada no dia da festa catoacutelica da
Assunccedilatildeo data esta que mesmo tendo sentido diferente e ser de outra religiatildeo ainda
assim foi recuperada em benefiacutecio de uma mulher (Messadieacute 2001 p 45)
A deusa-matildee era vista como doadora de tudo quer fosse da vida ou da morte Entre
suas formas mais conhecidas estatildeo Istar Astarte Inana Ciacutebele Ceres e Afrodite A
importacircncia da deusa-matildee como protetora da vida era fundamental em uma sociedade
onde a esperanccedila de vida em geral natildeo ultrapassava quarenta e cinco anos Por isso a
fertilidade das mulheres era vista como essencial para a sobrevivecircncia das sociedades ldquoA
deusa-matildee foi o reflexo de um estado socioeconocircmico que ditava a economia e a religiatildeordquo
(Messadieacute 2001 p47)
15
O culto agrave deusa universal foi duradouro e seu decliacutenio foi tardio e nunca totalmente
consumado em nenhuma religiatildeo ateacute o aparecimento do judaiacutesmo (Messadieacute 2001 p
59) Na Europa a primeira vez que um deus masculino partilhou o poder oficialmente
com a deusa-matildee foi com a revoluccedilatildeo Celta dos oriundos da Iacutendia ramo indo-europeu
dos indo-arianos por volta do seacuteculo VIII aC Os Celtas apesar dessa aparecircncia politeiacutesta
natildeo o eram pode-se dizer que ldquoeram quase monoteiacutestasrdquo (Messadieacute 2001 p72) Seus
deuses mitoloacutegicos estatildeo mais para heroacuteis do que para divindades ldquoOs Celtas como
revelou Juacutelio Ceacutesar satildeo todos filhos de Dis pater O Pai muito simplesmenterdquo (Messadieacute
2001 p69) Continua Messadieacute ldquoos Celtas lanccedilaram no Ocidente as fundaccedilotildees do
Cristianismo antes mesmo deste ter nascido Quase o inventaramrdquo (Messadieacute 2001
p70)
Dentre as muitas teorias acerca da origem dos deuses e suas relaccedilotildees com os
humanos verificamos que segundo Joatildeo Evangelista Martins Terra a palavra Deus tem
sua origem no protoindo-europeu onde era designada como DEIWOS e de onde provecircm
os dois vocaacutebulos latinos para dizer deus (Deus e divus) palavras que derivam do latim
arcaico deivos (Martins Terra 2001 p274) A religiatildeo dos indo-europeus acreditava na
existecircncia de um Ser Supremo conhecido como o Deus celeste tambeacutem chamado de
DEIWOS palavra esta que deriva do radical DEI (iluminar) (Martins Terra 2001 p291)
De acordo com Martins Terra DEIWOS estaacute presente em inuacutemeras religiotildees antigas
Na religiatildeo messaacutepica (populaccedilatildeo indo-europeia proto-histoacuterica da peniacutensula salentina)
religiatildeo dos etruscos dos gregos dos traacutecios dos celtas dos antigos germanos dos
persas dos baacutelticos dos antigos eslavos e das religiotildees indianas (Martins Terra 2001 p
277-286)
O indo-europeu DEIWOS originariamente natildeo designava o ceacuteu fiacutesico (caelum)
visto que as liacutenguas indo-europeias natildeo tecircm um nome comum para designar o ceacuteu fiacutesico
(Martins Terra 2001 p 291) DEIWOS designava um ser pessoal que frequentemente eacute
contraposto ao HOMO um ser pessoal terreno (Martins Terra 2001 p 305)
Na cultura indo-europeia o conceito de pai era muito mais do que genealoacutegico
juriacutedico e socioloacutegico O conceito de pai sempre se referia ao chefe de famiacutelia como
aquele que exercia um poder monaacuterquico com funccedilotildees judiciais e penais sobre os seus
dependentes Para os indo-europeus o deus supremo dyeu-pater (pai) natildeo se refere a
deus pai ldquocomo progenitor mas ao sentido social do adulto que eacute chefe da casa no
sentido do latim pater famiacuteliasrdquo (Martins Terra 2001 p153) Contudo segundo Martins
Terra Porfiacuterio relaciona Zeus como pai dos deuses e coloca o homem como parente de
Deus Para Porfiacuterio uma das finalidades dessa relaccedilatildeo eacute que ldquoo homem respeitaraacute o
16
direito do proacuteximo que tambeacutem tem a Zeus como progenitor [proacutegonos]rdquo (Martins Terra
2001 p351)
Na religiatildeo dos indo-europeus DEIWOS eacute sempre o ser transcendente (celeste) No
entanto essa transcendecircncia estaacute sempre proacutexima do divino como o autor da vida o
Deus Pai Segundo Martins Terra o antigo nome divino em latim era DIESPITER uma
forma primitiva derivada de DEIWOS ou de Dieus ldquonas invocaccedilotildees mais primitivas de
Zeus jaacute encontramos o vocativo Zeu paacuteter Em latim a palavra pater associa-se
intimamente com a palavra Deus e formava ela um soacute nome DIESPITER Iovispater
vocativo Juppiter em uacutembrio Jupater em iliacuterico Deipaturosrdquo (Martins Terra 2001 p337)
Como suporte agrave teoria da invocaccedilatildeo de Zeus partes do hino de Cleantes esclarecem
esse conceito
[]32 ndash Ah Zeus benfeitor universal 33 ndash Salva os homens de sua ignoracircncia funesta 34 ndash Purifica oacute Pai suas almas desta ignoracircncia e concede-lhes atingir 35 ndash O pensamento que te guia para tudo governares com justiccedila Somente Zeus pode salvar o homem de seus pendores funestos E o homem pode com confianccedila invocar a Zeus porque ele eacute Pai e dele com efeito todos noacutes nascemos 1 ndash Oacute o mais glorioso dos imortais sob mil nomes onipotente para sempre 2 ndash Zeus senhor da natureza que com a lei governas todas as coisas 3 ndash Salve Porque eacute a Ti que todos noacutes mortais temos o direito de invocar 4 ndash Visto que de Ti todos noacutes nascemos (Martins Terra2001 p332-333)
Esse hino mostra que Zeus natildeo era invocado apenas como rei senhor governador
mas tambeacutem como um Deus pessoal num relacionamento familiar um Deus Pai2
Conforme Martins Terra invocar a ldquodivindade sob o nome de pai eacute um dos fenocircmenos
primordiais na histoacuteria das religiotildeesrdquo Martins Terra ainda observa que nas liacutenguas indo-
europeias essa forma de invocaccedilatildeo fica mais evidente ainda nas palavras Dyaus pitatilde
Zeugraves pater Deipaturos e Iuppiter (Martins Terra 2001 pg433) Segundo Martins Terra
ldquoem Homero a invocaccedilatildeo de Zeus no vocativo aparece quase sempre unida agrave palavra
pai Zeucirc paacuteterrdquo (Martins Terra 2001 p 435)
Diferentemente dos povos antigos a atividade criadora de Deus no livro do Gecircnesis
eacute sempre cosmoloacutegica onde a ordem e a beleza satildeo os temas centrais Do caos Deus
cria a ordem o universo que culmina com a criaccedilatildeo do homem como o aacutepice da obra da
criaccedilatildeo conforme vemos no Gecircnesis onde ldquoDeus viu que isso era bom (1 10 13 18 21
25)rdquo e ainda segundo o texto sagrado (131) temos a seguinte conclusatildeo ldquoIsso era
2 Segundo Vernant Zeus eacute Pai dos deuses e dos homens natildeo porque tenha gerado ou criado todos os
seres mas porque exerce autoridade absoluta sobre todos como um chefe de famiacutelia sobre seu clatilde (Cf Vernant 2006 p33)
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muito bomrdquo Segundo P Grelot ldquoa histoacuteria sagrada sacerdotal Gn 1-24ardquo - das origens do
mundo ao tempo em que Israel viveu no deserto - foi escrita no tempo em que o povo
estava no exiacutelio (entre 587 e 538 aC) Babilocircnia eacute o lugar onde se venera o deus Marduk
e de onde provecircm as narrativas mitoloacutegicas de como os deuses criaram o mundo Para
proteger seus irmatildeos dos mitos babilocircnicos o autor sagrado teria escrito a primeira
narraccedilatildeo da criaccedilatildeo Contudo a narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo difere teologicamente dos
mitos babilocircnicos e dos povos antigos conforme relata Grelot
[] O universo eacute de certa forma um templo gigantesco que Deus levanta para a sua gloacuteria Quando o templo estaacute pronto ele coloca nele o homem criado ldquoagrave sua imagem e semelhanccedilardquo (126) Fica assim proibido representar a divindade por meio de imagens porque estas lembrariam o culto prestado a criaturas divinizadas (Ex 20 3-6) essa proibiccedilatildeo natildeo tem paralelo em nenhum povo da antiguidade A uacutenica imagem permitida de Deus eacute o rosto humano Mas se Deus eacute representado agrave imagem de uma pessoa viva de um homem que fala para fazer as coisas existirem (ldquoDeus disserdquo) nem por isso o homem eacute divinizado ldquoimagem de Deusrdquo deve ele voltar-se para aquele cujos traccedilos reflete (Grelot 1973 p 43)
Da mesma forma para Heinrich Krauss e Max Kuumlchler comparar o relato biacuteblico da
criaccedilatildeo do homem com a mitologia sumeacuterio-babilocircnia ou egiacutepcia serve para demonstrar
diferenccedilas importantes entre eles Na mitologia pagatilde o acircmago de toda a criaccedilatildeo estaacute
mais voltada ao nascimento dos deuses (teogonias) Por sua vez a criaccedilatildeo do homem
estaacute ligada a esses relatos apenas por uma linha tecircnue Para Krauss e Kuumlchler somente
num periacuteodo bem posterior ao nascimento dos deuses eacute que o ser humano eacute criado
quase que por um acidente ou entatildeo para servir como trabalhador escravo dos deuses
Em alguns aspectos notamos que haacute semelhanccedilas entre a criaccedilatildeo do homem no relato
do Gecircnesis e as mitologias pagatildes quando observamos que no Gecircnesis a criaccedilatildeo do
homem tambeacutem se daacute por uacuteltimo Contudo conforme Krauss e Kuumlchler diferentemente
dos antigos mitos no Gecircnesis a criaccedilatildeo do homem se daacute por meio de um processo
premeditado Eacute possiacutevel por analogia observarmos que na narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo
tanto o cosmos quanto o homem satildeo criados num ambiente onde o respeito e a
admiraccedilatildeo pelo ser humano satildeo evidentes como podemos observar na poesia do Salmo
8 4-9 que diz
Quando vejo o ceacuteu obra dos teus dedos a lua e as estrelas que fixaste que eacute um mortal para dele te lembrares e um filho de Adatildeo para vires visitaacute-lo E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de gloacuteria e beleza Para que domine as obras de tuas matildeos sob seus peacutes tudo colocaste ovelhas e bois todos e as feras do campo tambeacutem a ave do ceacuteu e os peixes do mar
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quando percorre ele as ondas dos mares (Krauss e Kuumlchler 2007 p 48-49)
A relaccedilatildeo do homem com os deuses nas mitologias antigas eram caracterizadas
pelas forccedilas da natureza Os diversos deuses exerciam poderes sobre tais forccedilas que por
sua vez determinavam o destino do homem ldquoNa tempestade e na brisa na chuva e na
seca viam-se igualmente manifestaccedilotildees de poderes divinos tal como no amor e no
matrimocircnio na vida e na morte na violecircncia e na guerra no crescimento e na destruiccedilatildeordquo
(Krauss e Kuumlchler 2007 p 61) Todos os acontecimentos da vida dos homens eram
resultados da influecircncia de uma ou mais divindades conforme as suas funccedilotildees dentro do
panteatildeo Alguns deuses eram considerados de boa iacutendole poreacutem outros eram
considerados perversos e maus e por essa razatildeo deveriam ser lisonjeados atraveacutes de
rituais de sacrifiacutecios ou praacuteticas maacutegicas
Krauss e Kuumlchler apesar de descreverem os deuses mitoloacutegicos da antiguidade com
poderes sobrenaturais e sobre-humanos sobre o mundo ressaltam que tais deuses
mesmo o chamado deus criador da mitologia antiga eram limitados agrave esfera deste
mundo ou seja natildeo tinham poder absoluto nem garantido para sempre Por outro lado o
Deus dos relatos biacuteblicos da criaccedilatildeo eacute diferente Ele natildeo faz parte deste mundo mesmo
que aqui esteja presente e sempre atuando Tambeacutem natildeo estaacute sujeito agrave limitaccedilatildeo das
forccedilas da natureza e tem poder para conduzir soberanamente o destino dos seres
humanos O Deus criador do Gecircnesis natildeo sofre oposiccedilatildeo de divindade alguma a natildeo ser
em pequena escala dos seres humanos ldquoA diferenccedila entre o monoteiacutesmo judeu-cristatildeo
ou islacircmico de um lado e o politeiacutesmo de outro natildeo eacute uma questatildeo de nuacutemero (um
uacutenico Deus ou diversos deuses) mas da concepccedilatildeo do que eacute Deusrdquo (Krauss e Kuumlchler
2007 p61)
No tocante agraves narrativas e mitos antigos da criaccedilatildeo Vicente Artuso desenvolve um
trabalho no qual compara o relato da criaccedilatildeo no livro do Gecircnesis com a epopeia de Atra
Asis e os demais mitos antigos da criaccedilatildeo e conclui que o relato da criaccedilatildeo no Gecircnesis eacute
mais otimista em relaccedilatildeo aos mitos antigos Embora por um lado haja algumas
semelhanccedilas na forma da criaccedilatildeo do homem conforme jaacute foi visto acima por outro lado
elas estatildeo muito distantes Artuso observa que nessa epopeia o homem eacute feito a partir
do barro e do sangue de um deus decaiacutedo Na Biacuteblia o homem proveacutem do barro e do
sopro de Deus que eacute a fonte da vida Na epopeia o ser humano eacute criado para livrar os
deuses de seu castigo na Biacuteblia o homem eacute criado por Deus de uma forma totalmente
desinteressada Na epopeia o ser humano participa da divindade assim como na Biacuteblia
Contudo Artuso pontua que mesmo que em ambos os relatos da criaccedilatildeo o homem
participe da divindade na epopeia fica evidente que o homem participa da divindade de
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um deus decaiacutedo sendo que no relato da criaccedilatildeo da Biacuteblia o homem eacute criado agrave imagem
e semelhanccedila do Criador No Gecircnesis o homem eacute criado pelo Deus uacutenico que do caos
traz todas as coisas a existecircncia cria o homem e o faz participante de sua obra quando
ordena ao ser humano o crescimento a multiplicaccedilatildeo e que o mesmo exerccedila o domiacutenio
sobre todas as coisas criadas (Artuso 2009 p80-81)
22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO
No Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai3 J Jeremias relaciona
que isso ocorre apenas quinze vezes conforme podemos verificar nos seguintes textos
ldquoDt 326 2 Sam 714 (textos paralelos em 1 Cron 1713 22 10 286) Sl 68 6 8927 Is
6316 (duas vezes) 647 Jr 3419 31 9 Mal 1 6 2 10 (Jeremias 2005 p19) Mesmo
esses textos quando relacionados a Deus como Pai indicam que Deus eacute primeiramente
o Senhor como diz o Salmo 33 8 ldquoTema o Senhor todo o mundo e tremam diante dele
todos os habitantes da terra porque ele fala e acontece ele ordena e aiacute estaacuterdquo (Jeremias
2008 p269) Como Senhor Deus tambeacutem se compadece de seus filhos como um Pai
conforme o Salmo 10313 (Jeremias 1977 p13) Aleacutem de Senhor o Pai tambeacutem eacute
honrado como Criador ldquoNatildeo eacute ele porventura teu pai que te fez seu que te formou e te
consolidourdquo (Dt 326) ldquoPorventura natildeo eacute um o Pai de todos noacutes Natildeo eacute um soacute Deus que
nos criourdquo(Ml 2 10) Observa-se que o reduzido uso do conceito de Deus como Pai no
Antigo Testamento pode estar relacionado ao uso abusivo que os povos cananeus faziam
desse termo em seus cultos de fertilidade (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo
Testamento 1998 p 6)
A relaccedilatildeo de Deus como Pai no Antigo Testamento eacute diferente do conceito de
paternidade dos povos antigos As diferenccedilas satildeo fundamentais visto que Deus natildeo eacute um
ancestral da raccedila humana como podemos ver nas palavras de J Jeremias
O fato de que no Antigo Testamento Deus natildeo eacute o ancestral mas o criador natildeo eacute a menor E que o que eacute ainda mais importante no antigo Testamento a paternidade divina atribui-se soacute a Israel e de uma maneira que natildeo encontra nenhum equivalente Eles tecircm uma relaccedilatildeo toda particular com Deus isto eacute um povo escolhido dentre todos os povos para ser o filho primogecircnito de Deus (Jeremias 1977 p13)
3 ldquoO AT emprega a palavra pai () quase que exclusivamente (c De 180 vezes) num sentido secular e soacute
muito ocasionalmente (15 vezes) num sentido religioso Como acontece no AT assim tambeacutem na literatura do judaiacutesmo palestinense podemos notar reserva marcante no emprego da palavra num sentido religioso Soacute mais tarde na literatura do judaiacutesmo da diaacutespora eacute que achamos o emprego mais frequente do nome Pai com referecircncia a Deusrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
20
No contexto biacuteblico a histoacuteria de Israel eacute notoriamente descrita colocando Israel
sempre como o povo eleito e exclusivo de Deus e essa eleiccedilatildeo eacute histoacuterica e concreta A
paternidade divina4 pode ser considerada histoacuterica quando tambeacutem atestamos que o
ecircxodo do Egito a peregrinaccedilatildeo no deserto e a conquista da terra de Canaatilde satildeo tratados
como fatos histoacutericos fatos esses que tornam Israel como o filho primogecircnito conforme a
eleiccedilatildeo divina Alguns textos corroboram esse pensamento entre os quais podemos
destacar ldquoFilhos sois do SENHOR vosso Deusrdquo (Dt 141)
A paternidade divina no Antigo Testamento natildeo eacute privileacutegio do indiviacuteduo mas sempre
privileacutegio da coletividade e juridicamente da figura do rei Com efeito Deus eacute sempre visto
como o ldquoPai do Reirdquo (2 Sam 7 14 Sl 8927) e ldquoPai de Israel como naccedilatildeordquo (Jr 34 3 19
319 Ml 16 Is 6315 657) J Jeremias faz questatildeo de enfatizar a respeito da
paternidade divina que em todo o Antigo Testamento natildeo encontramos nenhuma
passagem na qual Deus seja interpelado como Pai por um indiviacuteduo mas isso eacute sempre
realizado pela coletividade (Jeremias 2008 p115) Quando observamos as expressotildees
ldquoTu eacutes nosso Pairdquo (Is 6316) e ldquoTu eacutes meu Pairdquo (Jr 34) verificamos que as mesmas se
tratam de ldquosentenccedilas afirmativas e natildeo da invocaccedilatildeo de Deus usando o nome de Pai
para elerdquo (Jeremias 2008 p115) Deus natildeo eacute Pai porque gera de forma fiacutesica mas
porque chamou os filhos de Israel para ser um povo constituiacutedo de homens livres eacute Pai
porque ama escolhe e guia seus filhos por um reto caminho segundo a lei Dessa forma
mesmo fazendo pouco uso do termo Pai Israel comeccedilou a realizar o que poderiacuteamos
chamar de a grande revoluccedilatildeo do siacutembolo paterno
Em relaccedilatildeo ao siacutembolo de Deus como Pai Robert Hamerton-Kelly seguindo a
mesma linha de pensamento de J Jeremias concorda que no Antigo Testamento a
designaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rara e as poucas vezes em que isso ocorre natildeo eacute no
sentido literal do termo Hamerton Kelly faz referecircncia a dois tipos de simbolismo que
aparecem na Biacuteblia concernentes agrave figura de Deus como Pai um simbolismo indireto e
outro direto O simbolismo indireto ocorre por meio de uma associaccedilatildeo enquanto que o
simbolismo direto eacute feito por intermeacutedio de uma metaacutefora ou alegoria No modo indireto
Deus eacute mostrado claramente em conexatildeo com os pais humanos Ele eacute o ldquoDeus dos paisrdquo
e a associaccedilatildeo aqui eacute por intermeacutedio da identificaccedilatildeo de Deus como chefe No modo
direto a Biacuteblia usa a alegoria ou a metaacutefora Deus eacute como um pai ou Deus eacute nosso Pai
(Hamerton-Kelly 1979 p20-21)
4 ldquoA descriccedilatildeo de Deus como Pai se refere no AT apenas as Seu relacionamento com o povo de Israel
(Dt326 Is6316 duas vezes 648 Jr319 Ml16 210) ou com o rei de Israel (2Sm 714 par 1 Cr 1713 2210 286 Sl 8926 cf 27) Nunca se refere a qualquer indiviacuteduo () ou a humanidade em geralrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
21
No Antigo Testamento o simbolismo indireto eacute usado na transiccedilatildeo do Pai dos
deuses para o Deus dos pais e do Deus dos pais para o Deus de Moiseacutes (Hamerton-
Kelly 1979 p21-28) Qualquer consideraccedilatildeo sobre o entendimento biacuteblico de Deus no
periacuteodo preacute-mosaico deve ser relacionado aos deuses adorados pela religiatildeo dos
cananeus ancestral da religiatildeo dos hebreus os quais eram denominados em Canaatilde pelo
nome ldquoEl5rdquo o chefe do panteatildeo e tambeacutem progenitor dos deuses na mitologia cananita
(Martins Terra 1987 p11) De acordo com a tradiccedilatildeo Yahweh era ldquoo Deus dos Paisrdquo e
Abraatildeo pode provavelmente ter sido considerado ldquopai dos deusesrdquo como uma descriccedilatildeo
de sua possiacutevel divindade Entre os outros povos existiam vaacuterios deuses que eram vistos
como figuras paternas como Anu (deus do ceacuteu) Enlil (deus do vento e da tempestade) e
Ea (deus da aacutegua) os quais tinham seu proacuteprio santuaacuterio e eram patronos de suas
respectivas cidades (Hamerton-Kelly 1979 p21-23)
Os compiladores das sagas patriarcais do Gecircnesis acreditavam que os pais
adoravam El como El Elyon El Olam El Roi El Shaddai e El Betel Esses nomes
compostos mostram que a adoraccedilatildeo era estabelecida em um lugar fiacutesico por intermeacutedio
de alguma outra divindade ou seja os lugares de adoraccedilatildeo eram relacionados a um
deus Embora natildeo possa ser encontrada a praacutetica monoteiacutesta entre os patriarcas pode-se
assumir que os deuses distintos estavam associados em algum estaacutegio da tradiccedilatildeo
sendo identificados como manifestaccedilotildees do grande deus El - o pai dos deuses Mesmo
que natildeo seja possiacutevel falar de um preacute-Mosaico ldquoEl-monoteiacutesmordquo 6 eacute possiacutevel falar de um
deus supremo que eacute a fonte e origem de todas as coisas o pai dos deuses e da
humanidade que eacute o ponto de contato com o monoteiacutesmo Javista (Hamerton-Kelly 1979
p24-25)
Outro ponto de contato entre a teologia Preacute-Mosaica e Mosaica pode ser
encontrado no fato que cada um dos grandes patriarcas tinha um deus associado com
eles mesmos o ldquoEl de Abraatildeordquo (Gn 31 42) o ldquoTemor de Isaquerdquo (Gn 31 53) o ldquoForte de
Jacoacuterdquo (Gn 49 24-25) os quais tinham como sinocircnimos o ldquoDeus (El) de meu pairdquo Por fim
5 A palavra El ocorre 238 vezes no Antigo Testamento Eacute uma palavra de origem protossemiacutetico ou
semiacutetico-comum para designar Deus em todas as liacutenguas semiacuteticas Ele eacute o Deus-patriarca criador anciatildeo cujas forccedilas extraordinaacuterias criaram e povoaram o ceacuteu El eacute ldquoum Deus pessoardquo de cada patriarca ele eacute ldquoo Deus dos paisrdquo familiar uacutenico e universal mas tambeacutem eacute o Deus tribal (Cf Martins Terra em Elohim o Deus dos Patriarcas p 19 37 39 51)
6 Surge um problema relacionado a este assunto eacute possiacutevel falar de monoteiacutesmo neste periacuteodo Alguns
pesquisadores acham difiacutecil o conceito de um monoteiacutesmo preacute-mosaico ou mesmo de uma ideia de adoraccedilatildeo exclusiva a Deus mesmo que o texto do livro do Ecircxodo 34 11-26 trate com detalhes este tema ainda assim este pensamento parece ser uma ideia muito complexa uma vez que muitos estudiosos observam que o referido texto pode ter sido redigido em uma eacutepoca tardia ou seja ldquouma espeacutecie de seleccedilatildeo ou resumo a partir de outros textosrdquo (Cruumlsemann 2002 p167-169) Segundo Cruumlsemann o Pentateuco deve ter surgido entre o exiacutelio e o inicio da eacutepoca helenista para ser mais objetivo no periacuteodo Persa (cf Cruumlsemann 2002 p454)
22
vecirc-se que o deus eacute identificado mais pelo seu relacionamento com uma pessoa do que
com um lugar ou um fenocircmeno natural isto eacute muda-se o simbolismo do divino de lugar
para pessoa deixando claro que a Revelaccedilatildeo de Deus estaacute no domiacutenio das relaccedilotildees e
accedilotildees humanas mais especificamente nas relaccedilotildees de familia (Hamerton-Kelly 1979
p25-27)
Aleacutem disso observamos que sob a influecircncia de Moiseacutes as tribos de Israel foram
unificadas em fidelidade ao Deus Yahweh A identidade de Yahweh estaacute fortemente
relacionada com ldquoos paisrdquo como se vecirc na revelaccedilatildeo de Deus a Moiseacutes no monte Horebe
[hellip] Moiseacutes Moiseacutes [hellip] Eu sou o Deus de teus pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute [hellip] Iahweh disse Eu vi Eu vi a miseacuteria do meu povo que estaacute no Egito Ouvi seu grito por causa dos seus opressores pois Eu conheccedilo as suas anguacutestias Por isso desci a fim de libertaacute-lo da matildeo dos egipcios e para fazecirc-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta terra que mana leite e mel [hellip] Disse Deus a Moiseacutes Eu sou aquele que eacute Disse mais Assim diraacutes aos israelitas EU SOU me enviou ateacute voacutes [hellip] Iahweh o Deus o Deus de vossos pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute me enviou ateacute voacutes Eacute o meu nome para sempre e eacute assim que me invocaratildeo de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (Ex 3 1-15)
Iahweh eacute o Deus de Israel isso fica evidente na foacutermula ldquoElohecirc Israelrdquo (Martins
Terra 1987 p 82) O ponto central de toda a teologia do Antigo Testamento eacute que o
Deus de Israel eacute o uacutenico e verdadeiro Quando os autores sagrados comparam Iahweh
com os deuses de outras naccedilotildees (Dt 4 34 Sl 11 3-5) eacute para fortalecer a convicccedilatildeo dos
israelitas de que haacute somente um Deus tanto ldquoem cima no ceacuteurdquo como ldquoembaixo na terrardquo
(Dt 439) Para Martins Terra o ldquoemprego de Elohim7 natildeo pode ser interpretado como
reliacutequia de um antigo politeiacutesmo Israelitardquo ou seja Elohim se converte em sinocircnimo de
Iahweh o Deus uacutenico e verdadeiro
O nome divino de Elohim que se radica na liacutenguagem religiosa de todos os povos semitas do Antigo Oriente Proacuteximo reconhecido e confessado por Israel como o Deus pessoal e uacutenico ajudou o Antigo testamento a entender e proclamar o Deus da histoacuteria da Salvaccedilatildeo como Deus do universo como lemos na primeira linha da Biacuteblia ldquoNo principio Elohim criou os ceacuteus e a terrardquo (Martins Terra 1987 p 85)
Fazendo uma transiccedilatildeo do simbolismo indireto para o simbolismo direto
mostraremos o pai (matildee) como uma alegoria ou metaacutefora para Deus Vale observar que a
figura da matildee faz parte desta anaacutelise uma vez que esse simbolismo natildeo a exclui apenas
7 A palavra Elohim pode ser um desenvolvimento do termo Eloah (Deus) como uma forma de
representaccedilatildeo da pluralidade de pessoas existentes na divindade (Trindade) ou ainda a terminaccedilatildeo plural pode ser descrita como um plural de majestade natildeo com a intencionalidade de ser usado na forma de plural para referir-se a Deus Isto pode ser averiguado quando Elohim eacute usado com o verbo no singular bem como os adjetivos e pronomes tambeacutem no singular (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento 1998 p68-72)
23
inclui sua presenccedila No simbolismo direto os pais satildeo muito mais do que meros sinais da
natureza e presenccedila de Deus O profeta Oseacuteias nos mostra um Deus que ao mesmo
tempo em que eacute Pai tem para com Israel seu filho afetos que satildeo proacuteprios da matildee A
ternura os cuidados e o afeto de Deus em Oseacuteias satildeo comparados agraves caracteriacutesticas
proacuteprias que uma matildee tem por seus filhinhos
Quando Israel era menino eu o amei e do Egito chamei meu filho (hellip) Fui eu contudo quem ensinou Efraim a caminhar eu os tomei pelos braccedilos mas natildeo reconheceram que eu cuidava deles Com viacutenculo de amor eu os atraiacutea com laccedilos de amor eu era para eles como os que levantavam uma criancinha contra o seu rosto eu me inclinava para ele e o alimentava (Os 11 1-4)
Nesse texto vemos a ideia de que Israel era filho de Deus e que essa filiaccedilatildeo eacute
usualmente associada ao periacuteodo do deserto e eacute entendida como uma experiecircncia da
paternidade de Iahweh Contudo observamos no texto que Iahweh inclinava-se para
alimentaacute-los expressatildeo essa que denota uma funccedilatildeo especificamente desempenhada
pela figura materna Aleacutem disso em uma passagem do livro de Nuacutemeros Moiseacutes de
uma forma impliacutecita afirma que Deus eacute como uma matildee para Israel
[] Moiseacutes sentiu-se grandemente desgostoso e disse a Iahweh ldquoPor que fazes mal a teu servo Por que natildeo achei graccedila a teus olhos visto que me impusestes o encargo de todo este povo Fui eu porventura que concebi todo este povo Fui eu que o dei agrave luz para que me digas Leva-o em teu regaccedilo como a ama leva a crianccedila no colo agrave terra que prometi sob juramento a seus pais (Num 1110b-
12)rdquo
Esse texto soacute pode referir-se a Deus visto que Moiseacutes natildeo era a matildee daquele
povo portanto teoricamente natildeo tinha a responsabilidade de ser o protetor e nem o
provedor deles em momentos de crise Na visatildeo de Moiseacutes Deus era o responsaacutevel pelos
cuidados essenciais do povo assim como uma matildee cuida de seus filhos Dessa forma a
figura materna tambeacutem pode ser usada como uma designaccedilatildeo para Deus (Hamerton-
Kelly 1979 p 39-40)
Haacute ainda outros exemplos em que a imagem de Deus pode ser comparada a de
uma mulher que cuida de seus filhos como lemos em Isaiacuteas 4915
Por um acaso uma mulher se esqueceraacute de uma criancinha de peito Natildeo se compadeceraacute ela do filho do seu ventre Ainda que as mulheres se esquecessem
24
eu natildeo me esqueceria de ti
Na simbologia em que Deus exerce as funccedilotildees de provedor protetor e mantenedor
de seu povo encontramos textos em que Ele exerce funccedilotildees ora como Pai e ora Matildee
Segundo Hamerton-Kelly no livro do profeta Isaiacuteas (66 10-13) encontramos uma
imagem de Deus como a de uma matildee bem como em Deuteronocircmio 131 e 85 em que
encontramos em ambos os textos a imagem de Deus que como um homem (pai) educa
os seus filhos pelo caminho correto Portanto numa visatildeo simboacutelica Deus eacute apresentado
ora como pai e ora como matildee do povo (Hamerton-Kelly 1979 p40)
Alegrai-vos com Jerusaleacutem exultai nela todos os que a amais regozijai-vos com ela todos os que por ela estaacuteveis de luto pois sereis amamentados e saciados
pelo seu seio consolador pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo Com efeito assim diz Iahweh Eis que trarei a Paz como um rio e a gloacuteria das naccedilotildees como uma torrente transbordante Sereis amamentados sereis carregados sobre ancas e acariciados sobre os joelhos Como a uma pessoa que a sua matildee consola Assim eu vos consolarei Sim em Jerusaleacutem sereis consolados (Is 66 10-13)
Como tambeacutem no deserto onde vistes que o SENHOR vosso Deus nele vos levou como um homem leva seu filho por todo o caminho que andastes ateacute chegardes a este lugar Deuteronocircmio 131 Sabes pois no teu coraccedilatildeo que como um homem castiga a seu filho assim te castiga o SENHOR teu Deus Deuteronocircmio 85
Mesmo diante de vaacuterios textos em que observamos Deus exercendo figuradamente
as funccedilotildees de pai e matildee natildeo temos um texto em que Deus seja diretamente chamado de
matildee e nem mesmo Jesus jamais invocou a Deus como matildee Segundo Matthias Grenzer
a razatildeo disso encontra-se no fato de Deus ser diversas vezes tratado como o esposo ou
o amado enquanto que Israel eacute descrito como a virgem noiva mulher amada ou ateacute
mesmo como prostituta (cf Jr 2-3 Ez16 Os 2 e Ct) Dentro desse imaginaacuterio a figura de
Deus eacute vista como a parte masculina enquanto que a naccedilatildeo de Israel ocupa a parte
feminina sendo assim essa seria a razatildeo de Deus ldquoser chamado somente de Pai e natildeo
de matildeerdquo (Grenzer 2009 p 182)
Ainda em relaccedilatildeo agrave paternidade de Deus no Antigo Testamento Sabugal observa
que a mesma eacute sempre vista nos seguintes aspectos Deus como o Pai do povo de Israel
(Is 6316) Pai do rei (2 Sam 7 14 Sl 8927) Pai dos justos israelitas (Sab 216) e
tambeacutem como Rei Messiacircnico (2Sm 7 12-16) (Sabugal 1985 p370)
25
Yahveh com efeito eacute o Pai de Israel por haver resgatado ltltdesde sempregtgt (Is 6316b) primeiro do Egito (Jer 34 cf Ez 23 319) e depois da Babilocircnia (cf Jer 319) tambeacutem por haver-lhes criado mediante a alianccedila (Dt 366 Mal 210 cf 317) conduzindo-o pelo deserto e corrigindo-o ltltcomo um pai a seus filhosgtgt (Dt 131 85) provando-o paternalmente (Sab 1110) e paternalmente amando-o (cf Mal 317) pois ele fez o seu povo que o confessa como Pai (Is 6319 647) e como tal deve honrar (Mal 16) Israel eacute consequentemente o filho de Deus seu primogecircnito (Ex 422 Jer 319) e ltlt filho tatildeo amadogtgt (Jer 3120) a quem desde o Ecircxodo elegeu por pai (Nuacutem 1112 Dt 32 518) e modelou (cf Is 647) por ter-lhes amado (Os 111) ltlt com um amor eternogtgt (Jer 313) tornando-se assim mesmo os israelitas a raiz da eleiccedilatildeo divina realizada na alianccedila do Sinai ltlt filhos de Yahvehgtgt (cf Dt 326 Mal 317) como membros de ltltum povo consagrado a seu Deusgtgt (Dt 14 1-2 Sal 7315) E certo que como ltltfilhos rebeldesgtgt (Is 30 19) esqueceram ltlto Deus que os criougtgt (Jer 321 Dt 3218) mas se como ltltfilhos apoacutestatasgtgt ouvirem a exortaccedilatildeo e converterem-se (Jer 3 1422) seratildeo novamente chamados ltlt filhos do deus vivogtgt (Os 21) que mostrando-se ltltindulgente para com eles como um pai com um filho que lhe servegtgt (Mal 317) uma vez mais os salvaraacute Israel segue sendo o ltltfilho amadogtgt e ltltmenino mimadogtgt de Yahveh (Jer 319) (Sabugal 1985 p 371)
Em suma podemos observar que o conceito que os israelitas tinham de Deus como
Pai defendido por J Jeremias fundamenta-se na tese de que a paternidade de Deus
sobre Israel eacute diferente da paternidade divina entre os demais povos antigos De fato o
Deus dos israelitas natildeo eacute um pai por geraccedilatildeo fiacutesica (Sabugal 1985 p371) e nem mesmo
o progenitor dos deuses e dos homens (Sabugal 1985 p368) como criam os demais
povos antigos Contudo observamos que a figura de Deus metaforicamente exerce
funccedilotildees que satildeo em suas origens de ofiacutecio materno e de ofiacutecio paterno
Realmente o Antigo Testamento eacute rico em metaacuteforas para Deus Christopher J H
Wrighth nota que entre as imagens humanas para Deus no Antigo Testamento
encontramos que ele eacute rei juiz e redentor Tambeacutem Yahweh eacute comparado a um pastor
soldado ou a um agricultor Yaweh pode ser chamado tambeacutem de rocha abrigo escudo
esconderijo leatildeo fogo ou uma fonte de aacutegua (Wright 2007 p 22)
Uma outra maneira de se observar a figura de Deus como Pai no Antigo Testamento
eacute atraveacutes dos nomes teofoacutericos Geza Vermes vecirc que a representaccedilatildeo de Deus como Pai
eacute um elemento baacutesico na Teologia do Antigo Testamento Vermes cita trecircs nomes como
exemplo os quais ldquoproclamam uma relaccedilatildeo de parentesco entre Deus e os membros
individuais do povo Judeurdquo 8 Tais nomes como Abiel (Deus eacute meu Pai) Eliab (meu Deus
eacute Pai) Abijah (Yah [Yahweh Jeovaacute eacute meu Pai] segundo Vermes atestam o conceito de
que Deus era invocado como Pai no judaiacutesmo veterotestamentaacuterio (Vermes 2006 p 259)
9 Sobre a imagem de Deus Pai na Biacuteblia Vermes concorda que ela natildeo eacute tatildeo
8 Acredito que com o termo parentesco Vermes natildeo estaacute se referindo a ancestralidade conforme
debatemos acima baseado no pensamento de J Jeremias 9 Matthias Grenzer tambeacutem coloca esses nomes citados por Vermes como uma forma de ver ldquoo
comportamento do Senhor Deusrdquo comparado a atitude de um Pai humano Grenzer ainda menciona o nome do sobrinho de Davi Joab cujo significado eacute ldquoJaveacute (Yahweh) eacute Pairdquo (Cf Grenzer 2009 p 180)
26
abundantemente atestada nas Escrituras contudo a familiaridade dessa imagem eacute
manifesta na ldquovariedade de nomes teofoacutericos que conteacutem o elemento ab (Pai)rdquo Sobre os
nomes teofoacutericos ele diz ainda que
Eles empregam tanto os tiacutetulos divinos do hebraico YH (W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai) ou YoAB (Yo eacute o Pai) Do mesmo modo temos Abbi eL e ELIab (Deus eacute o Pai) em nomes judaicos da era preacute-exiacutelica e do Segundo Templo Abram e Abiram (Pai excelso e Meu Pai eacute exaltado) que podem ser rastreados agrave idade patriarcal representam o mesmo tipo Enquanto as nuances exatas do termo ldquoPairdquo permanecem vagas natildeo pode haver duacutevida de que mesmo em niacutevel individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de famiacutelia Essa antiga atitude subjacente eacute explicitamente expressa principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da naccedilatildeo judaica Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusatildeo a eles como seus filhos (Vermes 1995 p158-159)
Para Christopher Wright a ocorrecircncia desses nomes metafoacutericos no Antigo
Testamento demonstra como a ideia de Deus como Pai era bem aceita nesse periacuteodo
Para esse autor pais que davam nomes aos filhos como Joabe (Yahweh eacute meu pai) ou
Abiel (Deus eacute meu Pai) tinham algum conhecimento metafoacuterico de Deus como Pai
Portanto para Israel o conhecimento de Deus como Pai pode ser mais bem
compreendido sob o ponto de vista que para eles Deus eacute comparado com um pai
humano que disciplina mas ensina seus filhos Como Pai ele tambeacutem se compadece
carrega adota os sem-teto e os oacuterfatildeos enfim ele eacute o Pai em que podemos encontrar
perfeita seguranccedila (Wright 2007 p24-25 38-39)
27
3 O JESUS HISTOacuteRICO
Depois de investigarmos a relaccedilatildeo de Deus como ldquoPairdquo entre os povos antigos
aproximamo-nos do ponto central da pesquisa Jesus de Nazareacute o qual segundo J
Jeremias trouxe-nos uma nova forma ou seja deu um novo enfoque sobre o termo Pai
quando dirigido a Deus Para um melhor embasamento sobre a relaccedilatildeo de Jesus com
Deus Pai buscaremos entender o homem chamado Jesus dentro das pesquisas
modernas sobre ldquoa vida de Jesusrdquo bem como das fontes evangeacutelicas disponiacuteveis no Novo
Testamento Procurar conhecer Jesus partindo do meio social em que ele esteve inserido
com certeza torna a pesquisa sobre o Cristo mais profunda e interessante uma vez que
Jesus antes de ser conhecido e pregado como Cristo foi um cidadatildeo judeu que viveu na
Galileia para ser mais preciso na pequena e humilde Nazareacute
31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO
Jesus de Nazareacute constitui personagem histoacuterico da maior importacircncia a comeccedilar pelo proacuteprio calendaacuterio hoje universal baseado na era cristatilde Uma parte consideraacutevel da humanidade professa a feacute cristatilde e outra parte considera Jesus como um profeta Para aleacutem do Cristianismo e do Islamismo Jesus constitui para outros crentes ou para agnoacutesticos e ateus uma referecircncia fundamental pela diferenccedila contraste ou oposiccedilatildeo No entanto o Jesus da histoacuteria aquele homem galileu que viveu haacute dois mil anos ainda constitui um grande desconhecido O Cristo da feacute dominou por muitos seacuteculos as reflexotildees sobre este homem de singular significaccedilatildeo As paixotildees das discussotildees teoloacutegicas foram muitas mas o homem Jesus foi tocado pelos estudiosos apenas nos uacuteltimos dois seacuteculos
(Funari 2009 p 7 in Chevitarese A L Cornelli G)
A busca pelo Jesus da histoacuteria tem mais de 200 anos No final do seacuteculo XVIII um
pequeno nuacutemero de bravos europeus comeccedilou a aplicar criacutetica literaacuteria a livros histoacutericos
do Novo Testamento Segundo E P Sanders a pesquisa sobre Jesus escrita durante
esse periacuteodo de 200 anos por estudiosos seacuterios e determinados trouxe resultados
bastante diversificados sobre o assunto o que levou muitos a pensar que na realidade
natildeo sabemos nada sobre o Jesus da histoacuteria No entanto essa eacute uma reaccedilatildeo exagerada
uma vez que sabemos muitas coisas O problema consiste em saber conciliar os nossos
conhecimentos com as nossas esperanccedilas e aspiraccedilotildees a respeito da vida e ministeacuterio de
Jesus (Sanders 2005 p21)
A pesquisa sobre a vida de Jesus pode ser dividida em cinco fases conforme as
descrevem Gerd Theissen e Annette Merz A primeira fase tem como principais
representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-
28
1874) 10 Reimarus um professor de liacutenguas orientais de Hamburg teve seus escritos
principais publicados somente apoacutes a sua morte por G E Lessing o qual a partir de
1774 comeccedilou a publicar as partes mais importantes do ensaio sobre ldquoApologia ou
Escritos de Defesa para os adoradores Racionais de Deusrdquo Em 1778 ele tinha publicado
sete fragmentos da obra quando iniciou o tratamento da vida de Jesus em perspectiva
puramente histoacuterica (Theissen amp Merz 2004 p21) Conforme Albert Schweitzer estes
satildeo os tiacutetulos dos fragmentos de Reimarus publicados por Lessing (Schweitzer 2003 p
23)
1 A Toleracircncia dos Deiacutestas
2 A Desmoralizaccedilatildeo da Razatildeo no Puacutelpito
3 A Impossibilidade de uma Revelaccedilatildeo em que todos os homens teriam bons motivos
para acreditar
4 A Passagem dos Israelitas pelo Mar Vermelho
5 Demonstrando que os Livros do Antigo Testamento natildeo foram escritos para revelar
uma religiatildeo
6 Acerca da Histoacuteria da Ressurreiccedilatildeo
7 Os objetivos de Jesus e seus Disciacutepulos
Reimarus de acordo com Theissen defendeu a ideia de que Jesus natildeo fundou
uma nova religiatildeo e tambeacutem nunca teve a intenccedilatildeo de desfazer-se do judaiacutesmo visto que
ele sempre esteve inserido na religiatildeo Judaica A pregaccedilatildeo de Jesus era sempre baseada
na apocaliacuteptica judaica O reino prometido por Jesus segundo Reimarus era um reino
terreno nos mesmos moldes e expectativas do pensamento judaico de sua eacutepoca
Portanto para Reimarus ldquoJesus eacute uma figura judaica profeacutetico-apocaliacutepticardquo ou seja
apenas um judeu enquanto que o cristianismo nada mais era do que uma invenccedilatildeo dos
apoacutestolos (Theissen e Merz 2004 p21) Martins Terra fazendo uma anaacutelise do
pensamento de Reimarus sobre a pessoa de Jesus conclui que para o referido teoacutelogo
ldquoJesus natildeo passou de um poliacutetico ambicioso e seus disciacutepulos foram verdadeiros
falsaacuteriosrdquo Na analogia de Reimarus Jesus e sua pretensatildeo poliacutetica terminaram com o
fracasso e a morte na cruz Sobre a ressurreiccedilatildeo de Jesus ele teria dito que foram os
disciacutepulos roubaram o cadaacutever inventaram a mensagem de sua ressurreiccedilatildeo e da vinda
futura Para concluir o pensamento de Reimarus sobre a imagem que temos de Jesus a
10
Essa fase eacute tambeacutem conhecida como a ldquoold questrdquo Essa fase natildeo eacute movida pelo cientificismo mas tem como caracteriacutesticas a rejeiccedilatildeo aos dogmas da Igreja a diferenciaccedilatildeo entre os sinoacuteticos e Joatildeo como fontes histoacutericas a colocaccedilatildeo de Jesus dentro do contexto escatoloacutegico de seu tempo e a ecircnfase sobre o Evangelho de Marcos como sendo o mais antigo dos Evangelhos (Schiavo 2006 p 15-17)
29
partir dos Evangelhos ele afirma que isso foi apenas criaccedilatildeo e ldquofrauderdquo dos disciacutepulos (cf
Martins Terra 1977 p10-12)
Strauss que foi filoacutesofo e teoacutelogo publicou em 18351836 a obra intitulada Vida de
Jesus Para Schweitzer ele natildeo estaacute entre os grandes teoacutelogos mas foi o mais sincero
(Schweitzer 2003 p85) Strauss aplicou aos Evangelhos o conceito de mito algo que jaacute
era comum nas pesquisas sobre o Antigo Testamento de sua eacutepoca (Theissen e Merz
2004 p22) Para ele mesmo que os Evangelhos (sinoacuteticos) tenham sido escritos num
periacuteodo de aproximadamente 40 anos apoacutes a morte de Jesus isso natildeo impede de que
estejam misturados com o mito Ele deixa sua forma de pensar mais evidente quando diz
que ldquonatildeo eacute preciso que um grande homem esteja morto haacute muito tempo para que a lenda
jaacute se ocupe da sua vidardquo (Schweitzer 2003 p 98) Contudo precisamos entender qual eacute
o verdadeiro sentido do mito religioso conforme nos descreve Schweitzer
[] a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha compreendido o caraacuteter essencial do mito religioso Ele nada mais eacute do que ideias religiosas vestidas em uma forma histoacuterica modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda e corporificado numa personalidade histoacuterica Ateacute por motivos a priori somos quase compelidos a assumir que o Jesus histoacuterico nos encontraraacute com as vestes das ideias messiacircnicas do Antigo Testamento e expectativas do cristianismo primitivo (Schweitzer p98)
Segundo Schweitzer a diferenccedila entre Strauss e os seus predecessores eacute que
para aqueles se aplicassem rigorosamente o conceito de mito agrave vida histoacuterica de Jesus
havia um grande questionamento sobre se restaria alguma coisa do Jesus histoacuterico
enquanto que para este essa questatildeo natildeo apresentava nada que fosse considerado um
terror (Schweitzer 2003 p98) Theissen assim resume Strauss ldquoPara Strauss
hegeliano declarado o cerne da feacute cristatilde natildeo eacute atingido pela abordagem miacutetica pois no
indiviacuteduo histoacuterico Jesus realiza a ideia da humanidade de Deus a mais sublime de todas
as ideias O mito eacute a roupagem legiacutetima de tipo histoacuterico dessa humanidade geralrdquo
(Theissen 2004 p22)
De uma forma sucinta Theissen descreve as demais fases da seguinte forma a
segunda eacute denominada como a fase do ldquootimismo da pesquisa liberal sobre a vida de
Jesusrdquo Essa fase eacute marcada por um florescimento do liberalismo teoloacutegico sobre a vida
de Jesus sob o ponto de vista de pesquisadores na Alemanha onde era esperado que se
chegasse agrave reconstruccedilatildeo histoacuterico-criacutetica da histoacuteria de Jesus e de sua personalidade
Essa escola teve como seu principal representante Heinrich Julius Holtzmann (1832-
1910) Destaca-se nessa fase que enquanto F Chr Baur demonstrou a primazia dos
sinoacuteticos sobre o Evangelho de Joatildeo Holtzmann contribuiu para que a teoria das duas
30
fontes desenvolvida por Christian Gottob Wilke e Christian Hermann Weise tornasse-se
um sucesso duradouro (Theissen e Merz 2004 p23)
A terceira fase eacute definida como ldquoo colapso da pesquisa sobre a vida de Jesusrdquo 11
Trecircs foram os motivos para tal colapso o primeiro fator foi a obra de Schweitzer Histoacuteria
de Investigaccedilatildeo da vida de Jesus que provocou o desvelamento das imagens das Vidas
de Jesus criadas pela teologia liberal que conforme os olhos de cada autor revelava-se a
estrutura de personalidade de Jesus com o ideal eacutetico que cada autor almejava O
segundo motivo estaacute concentrado na pessoa de W Wrede que em 1901 demonstrou ldquoo
caraacuteter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesusrdquo Para
Wrede o Evangelho de Marcos era a expressatildeo dogmaacutetica da comunidade cristatilde
primitiva que projetou sobre Jesus de Nazareacute a messianidade do Jesus poacutes-pascal E
por fim K L Schmidt demonstra o ldquocaraacuteter fragmentaacuterio dos evangelhosrdquo Para Schmidt
o Evangelho de Marcos eacute composto por periacutecopes que foram juntadas cronoloacutegica e
geograficamente somente mais tarde pelo autor Sendo assim desaparece totalmente a
possibilidade de se construir uma personalidade de Jesus visto que a histoacuteria das formas
reconhece que as periacutecopes foram juntadas primeiramente para satisfazer as
necessidades das comunidades e soacute em segundo plano como recordaccedilotildees histoacutericas
(Theissen e Merz 2004 p24)
Diante desses movimentos ceticistas surge uma teologia que ora amortece ora
aguccedila ainda mais os debates em torno das pesquisas sobre as Vidas de Jesus Nesse
sentido Rudolf Bultmann (1884 -1976) expotildee a sua teologia dialeacutetica contrapondo Deus e
o mundo de uma forma tatildeo radical a tal ponto que seria possiacutevel um encontro entre
ambas as partes apenas em um ponto assim ldquocomo uma tangente toca um ciacuterculordquo
(Theissen e Merz 2004 p24) Para Bultmann o fator decisivo natildeo era o que Jesus disse
ou fez mas sim o que Deus disse ou fez na cruz e na ressurreiccedilatildeo Nesse sentido
Bultmann afirma que o ensino de Jesus natildeo eacute relevante para a feacute cristatilde e partindo desse
pensamento Theissen define a teologia de Bultmann nas seguintes palavras ldquoSe D F
Strauss viu a verdade do mito de Cristo na ldquoideiardquo R Bultmann a viu no querigma um
chamado de Deus vindo de forardquo (Theissen e Merz 2004 p24-25)
11
Schiavo define essa fase como a ldquono questrdquo Os principais nomes dessa fase satildeo Wrede Dibelius Schmidt e Bultmann Neste movimento os Evangelhos satildeo considerados como um conjunto de tradiccedilotildees desarticuladas e pequenas (periacutecopes) sem interesses histoacutericos A finalidade principal dos Evangelhos estaacute centrada no fato de transmitir mensagens espirituais catequeacuteticas e lituacutergicas para os cristatildeos da Igreja Primitiva Sendo assim eacute impossiacutevel conhecer o Jesus histoacuterico pois a imagem que temos dele nos Evangelhos eacute querigmaacutetica e centrada no Jesus da feacute (Schiavo 2006 p 17-18)
31
A quarta fase eacute definida por Theissen como ldquoa nova pergunta pelo Jesus histoacutericordquo
12 Essa fase desenvolvida pelos disciacutepulos de Bultmann pergunta ou busca uma relaccedilatildeo
a partir do Jesus querigmaacutetico questionando se ldquosua exaltaccedilatildeo na cruz e na ressurreiccedilatildeo
tem alguma base na pregaccedilatildeo preacute-pascalrdquo Os pressupostos para tal questionamento satildeo
fundamentados nas seguintes pressuposiccedilotildees ldquoO querigma cristoloacutegico compromete-se
com a pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Isso se fundamenta segundo essa escola no fato
de que ldquoa identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado eacute pressuposta em todos os
escritos do cristianismo primitivordquo (Theissen e Merz 2004 p25ndash26) O segundo
pressuposto eacute ldquoa base metodoloacutegica da pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Segundo
Theissen esse pressuposto metodoloacutegico eacute ldquoa confianccedila de que se pode encontrar um
miacutenimo criticamente assegurado de tradiccedilatildeo autecircntica de Jesus quando se exclui o que
pode ser derivado tanto do judaiacutesmo como do cristianismo primitivordquo Entende-se que
nessa quarta fase para os disciacutepulos de Bultmann a busca de um fundamento preacute-pascal
que apoie o querigma de Cristo independe do fato de Jesus ter usado algum tiacutetulo
cristoloacutegico visto que isso jaacute estaacute impliacutecito em seu ministeacuterio e em seu anuacutencio (Theissen
e Merz 2004 p26)
Finalmente surge a quinta fase conforme Theissen denominada de ldquoa third
quest13 pelo Jesus Histoacutericordquo Essa fase predominantemente exposta no mundo de fala
inglesa diferencia-se das anteriores pelos seguintes aspectos o interesse histoacuterico-social
substitui o teoloacutegico a inserccedilatildeo de Jesus no Judaiacutesmo ao inveacutes de separaacute-lo como os
disciacutepulos de Bultmann procura fazecirc-lo e por fim haacute uma abertura para as fontes natildeo
canocircnicas substituindo a preferecircncia apenas por fontes canocircnicas A third quest dividiu a
pesquisa sobre Jesus em diferentes correntes No entanto segundo Theissen essa
variedade de interpretaccedilotildees e figuras de Jesus que pode ser visto tanto como um ciacutenico
judeu ou como um personagem colocado no centro do judaiacutesmo a espera do
restabelecimento de um reino escatoloacutegico daacute a essas correntes um tom de
plausibilidade ou seja ldquoo que eacute plausiacutevel no contexto judaico e torna compreensiacutevel o
12
Conhecida como a ldquoNew questrdquo a New quest caracteriza-se por diferenciar o que eacute proacuteprio do judaiacutesmo com o que eacute tambeacutem proacuteprio do cristianismo primitivo Dessa forma seria possiacutevel chegar ao Jesus da histoacuteria Ernst Kaumlsemann eacute um dos representantes dessa escola Para Schiavo J Jeremias tambeacutem pode ser representado nessa escola Visto que o mesmo com a ajuda da filologia e conhecimentos profundos do aramaico tentou reconstruir os ditos autecircnticos de Jesus (Schiavo 2006 p 18)
13 Schiavo complementa que essa fase que teve iniacutecio a partir da deacutecada de 1980 deixa de ser
exclusividade da academia alematilde e a pesquisa do Jesus histoacuterico passa a fazer parte da academia anglo-americana Este movimento tem como caracteriacutesticas principais os seguintes toacutepicos O interesse histoacuterico-socioloacutegico para com o mundo judaico do seacuteculo I dC a inserccedilatildeo de Jesus dentro do Judaiacutesmo A referecircncia agraves fontes natildeo canocircnicas e a aproximaccedilatildeo da fonte Q com o Evangelho de Tomeacute Dentre os representantes dessa escola encontram-se Crossan Sanders Meyer Vermes Freyne Horsley e Theissen (Schiavo 2006 p 18-19)
32
surgimento do cristianismo primitivo poderia ser histoacutericordquo (Theissen e Merz 2004 p28ndash
29)
32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO
Um dos temas da teologia que tem levantado inuacutemeras questotildees a mais de dois
seacuteculos eacute a busca histoacuterica por Jesus de Nazareacute um humilde judeu que viveu na Galileia
agraves margens do Mediterracircneo Sean Freyne avalia que ldquoas muitas idas e vindas dos
estudos que marcam a busca pelo Jesus histoacuterico tecircm sido uma preocupaccedilatildeo constante
da teologia ocidental por mais de dois seacuteculos e mesmo assim nenhum consenso foi
atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundourdquo (Freyne 2008
p1) Sobre a possibilidade de se buscar pelo Jesus histoacuterico Freyne observa que hoje
natildeo eacute mais suficiente apenas assumir uma posiccedilatildeo numa questatildeo por demais debatida Eacute
necessaacuterio que o pesquisador aleacutem de ter conhecimentos da histoacuteria da antiguidade
tambeacutem possua conhecimentos de arqueologia ciecircncias sociais e particularmente de
antropologia cultural (Freyne 2008 p2) Isso demonstra que haacute necessidade de uma
visatildeo interdisciplinar entre essas ciecircncias e seus pesquisadores
A pergunta sobre o Jesus histoacuterico segundo J Jeremias chega a ser absurda e
sem significaccedilatildeo para a feacute cristatilde apenas para aqueles que natildeo conhecem a questatildeo Ele
ainda pergunta ldquoComo eacute possiacutevel que esta questatildeo seja a questatildeo central de todas as
discussotildees sobre o Novo Testamentordquo (Jeremias 2005 p199) Segundo J Jeremias eacute
hora de questionarmos as teorias de Rudolf Bultmann que propagam que o Jesus
histoacuterico eacute irrelevante para a feacute cristatilde e a teoria que apregoa que o Jesus histoacuterico e o
Cristo proclamado pela Igreja natildeo satildeo as mesmas de Reimarus (Jeremias 2005 p 200)
Partindo das questotildees levantadas por J Jeremias e da forma como Bultmann diverge
desse pensador um diaacutelogo sobre a questatildeo eacute sempre gratificante para darmos pelo
menos um passo agrave frente no que se refere ao Jesus histoacuterico
Tendo em vista a amplitude da questatildeo acima levantada fica evidente que
trabalhar temas relacionados agrave vida do Jesus histoacuterico eacute sempre desafiador Muitos foram
os teoacutelogos e pensadores que a partir do ano de 1778 ano em que nasce o ldquoproblema do
Jesus histoacutericordquo (Jeremias 2005 p 200) esforccedilaram-se nessa tarefa com um espiacuterito
criacutetico e investigativo a fim de encontrar evidecircncias histoacutericas a respeito do homem mais
marcante de toda a histoacuteria da humanidade Tambeacutem natildeo significa que antes de Reimarus
33
o Jesus histoacuterico fosse negligenciado a questatildeo eacute que os teoacutelogos e historiadores desde
a igreja primitiva haviam sustentado que os Evangelhos eram documentos dignos de
absoluto creacutedito acerca da vida e histoacuteria de Jesus por isso tiveram a preocupaccedilatildeo de
apenas parafrasear e harmonizar os Evangelhos uma vez que natildeo viam necessidade de
uma investigaccedilatildeo aleacutem das fontes canocircnicas (Jeremias 2005 p 200) As palavras de Udo
Schnelle assim resumem a teologia do Jesus histoacuterico
A pergunta histoacuterica por Jesus eacute uma filha do iluminismo Para os periacuteodos anteriores era evidente que os Evangelhos transmitiam notiacutecias confiaacuteveis sobre Jesus Antes do Iluminismo a pesquisa neotestamentaacuteria dos Evangelhos limitava-se essencialmente agrave harmonizaccedilatildeo dos quatros Evangelhos Na praacutetica a Exegese do Novo Testamento era uma disciplina auxiliar da Dogmaacutetica (Schnelle 2010 p 70)
Ainda com relaccedilatildeo agrave pesquisa sobre o Jesus histoacuterico Joseacute Antonio Pagola diz
que quando nos referimos ao Jesus histoacuterico ldquoestamos falando do conhecimento de
Jesus que os historiadores podem obter utilizando os meacutetodos cientiacuteficos da moderna
investigaccedilatildeo histoacutericardquo (Pagola 2010 p13)
A magnitude de se escrever sobre o Jesus da Galileia eacute descrita por Schweitzer
com as seguintes palavras ldquo[] natildeo haacute tarefa histoacuterica que revele o verdadeiro interior de
um homem como a de escrever uma Vida de Jesus Nenhuma forccedila vital move o
personagem a natildeo ser que o homem sopre nele todo o oacutedio ou todo o amor de que eacute
capaz Quanto mais intenso o amor ou o oacutedio mais realista eacute a figura produzidardquo
(Schweitzer 2003 p11) Em outras palavras Schweitzer diz que aqueles que buscaram
despir Jesus do sobrenatural acabaram descobrindo fatos que enalteceram ainda mais a
sua histoacuteria Para Schweitzer tanto o oacutedio quanto o amor leva o escritor a investigaccedilotildees
profundas no intuito de provar verdade ou falsidade de um acontecimento histoacuterico Nesse
sentido as maiores produccedilotildees a respeito do Jesus histoacuterico foram escritas com oacutedio e
entre elas segundo Schweitzer estatildeo as de Reimarus e a de Strauss (Schweitzer 2003
p11)
Segundo J Jeremias a tese defendida por Reimarus em que Jesus eacute visto como
um revolucionaacuterio poliacutetico que fracassou na cruz quando exclamou ldquoDeus meu Deus
meu por que me desamparastesrdquo era estuacutepida e artificial visto que Jesus natildeo foi um
revolucionaacuterio poliacutetico e sempre reagiu energicamente contra todas as tendecircncias
nacionalistas dos zelotas Ao fazer uma anaacutelise do momento em que Reimarus escreveu
J Jeremias relata que Reimarus estava fazendo uma investigaccedilatildeo voltada ao homem
Jesus para sua personalidade sua religiatildeo e natildeo voltada para o dogma cristoloacutegico e
34
que a princiacutepio tinha como objetivo libertar-se dos dogmas da igreja (Jeremias 2005 p
201)
O resultado desses trabalhos sobre ltltas vidas de Jesusgtgt nos legaram muitas
imagens de sua personalidade que produzem risos Para os racionalistas Jesus eacute visto
como um pregador de moral para os idealistas a quintessecircncia do humanismo e por fim
para os estetas ele eacute posto como o amigo dos pobres e como um reformador social
Assim satildeo inuacutemeras as imagens que fazem de Jesus um personagem de romance
Jesus portanto eacute modernizado conforme as imagens carregadas de fantasias de cada
autor conforme os seus ideais suas eacutepocas ou suas teologias (Jeremias 2005 p 201)
J Jeremias questiona entatildeo onde estaria o erro E a resposta estaacute no fato de que
esses escritores ltltdas vidas de Jesusgtgt sem ter a plena consciecircncia acabaram
substituindo o dogma cristoloacutegico pela psicologia e pela fantasia Haacute poreacutem um ponto em
comum em todas as obras sobre ltlt as vidas de Jesusgtgt todas elas tratam de desenhar
a personalidade de Jesus com a ajuda dos instrumentos da psicologia e da fantasia Os
padrinhos nesse esforccedilo natildeo satildeo apenas as fontes mas a maior parte pertence agrave
imaginaccedilatildeo criativa a uma construccedilatildeo psicoloacutegica livre de obstaacuteculos (Jeremias 2005 p
201-202)
Conforme J Jeremias Albert Schweitzer de uma forma traacutegica poreacutem com muita
destreza desmascara essas criaccedilotildees repletas de fantasias e depois ele mesmo cairia
em falta fazendo uma construccedilatildeo psicoloacutegica a partir do texto do Evangelho de Mateus
(10 23) declarando que a grande decepccedilatildeo na vida de Jesus foi natildeo ter chegado ao final
causando grandes mudanccedilas em sua vida a ponto de aceitar o sofrimento para forccedilar a
chegada do reino de Deus (Jeremias 2005 p 203)
Pesquisar a vida do Jesus histoacuterico eacute muito mais que contar a histoacuteria de um
grande homem Eacute deparar-se com um personagem vital para a histoacuteria da humanidade
que ldquoveio para reger sobre o mundo Ele o regeu para o bem e para o mal como a histoacuteria
testificardquo (Schweitzer 2003 p8) Jesus revolucionou o mundo de sua eacutepoca mudou o
rumo da histoacuteria inseriu-se nela como protagonista mesmo natildeo sendo essa a sua
intenccedilatildeo A histoacuteria do mundo natildeo poderia mais ser contada sem ele ou seja Jesus
dividiu a histoacuteria em o antes e o depois dele A grandiosidade do homem Jesus fascinou
tanto os que o amaram como aqueles que o odiaram Nesse sentido podemos justificar o
fato de tantos pensadores estudarem a respeito do Jesus histoacuterico com as palavras
atribuiacutedas a Hegel por Bernard Bourgeois ldquoUm grande homem condena os humanos a
explicaacute-lordquo (Bourgeois1995 p 375)
35
Segundo Schweitzer os cristatildeos primitivos preocuparam-se apenas em preservar
ditos isolados a respeito do Jesus histoacuterico A expectativa do retorno iminente do Mestre
pode ter sido o motivo principal que levou o cristianismo primitivo a preferir apenas fatos
relacionados ao ministeacuterio de Jesus a uma biografia completa do Jesus histoacuterico O autor
ainda considera isso como um impulso de autopreservaccedilatildeo visto que a introduccedilatildeo do
Jesus histoacuterico na feacute da comunidade primitiva seria algo novo jaacute que o proacuteprio Jesus natildeo
se preocupou em deixar uma autobiografia Pagola compartilha desse pensamento
dizendo que
os evangelistas natildeo compuseram uma ldquobiografiardquo de Jesus no sentido moderno desta palavra Seus escritos estatildeo impregnados de sua feacute no Cristo ressuscitado satildeo sumamente seletivos foram narrados em funccedilatildeo de problemas e necessidades das primeiras comunidades cristatildes e estatildeo ordenados para objetivos teoloacutegicos e concretos Por isso exigem um estudo criacutetico cuidadoso antes de podermos obter deles informaccedilotildees fidedignas para a investigaccedilatildeo (Pagola 2010 p17)
O fato de Jesus natildeo ter deixado nenhum texto escrito e o texto do apoacutestolo Paulo
na segunda carta aos Coriacutentios capiacutetulo cap 5 verso 16 ldquo[hellip] doravante a ningueacutem
conhecemos segundo a carne Tambeacutem se conhecemos Cristo segundo a carne agora jaacute
natildeo o conhecemos assimrdquo abriu o caminho para diversas interpretaccedilotildees acerca de Jesus
De fato Leonhard Goppelt menciona a interpretaccedilatildeo de Rudolf Bultmann segundo a qual
se infere que para Paulo a accedilatildeo terrena de Jesus natildeo teria tido a miacutenima importacircncia o
que importava era a feacute pascal Natildeo obstante a ldquofeacute pascal bem como a cristologia natildeo satildeo
simplesmente uma transfiguraccedilatildeo miacutetica do terreno Muito antes nelas toma forma o que
no Jesus terreno agia apenas de maneira ocultardquo (Goppelt 2002 p 46)
O pensamento de Bultmann a respeito da importacircncia de se investigar a vida e a
personalidade do Jesus histoacuterico se resume nas seguintes palavras
Natildeo podemos saber praticamente nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus jaacute que as fontes cristatildes natildeo se interessaram por elas sendo ademais bastante fragmentaacuterias e encobertas pela lenda uma vez que natildeo existem outras fontes sobre Jesus O que se estaacute escrevendo haacute mais de um seacuteculo e meio sobre a vida de Jesus sua personalidade seu desenvolvimento interior e coisas semelhantes ndash uma vez que natildeo se trata de investigaccedilotildees criacuteticas ndash natildeo passa de fantasia e romance (Bultmann 2005 p 26)
Dessa forma o logos natildeo se torna verdadeiramente carne mas apenas palavra
(kerygma) Na visatildeo de Bultmann o Jesus histoacuterico natildeo faz parte da teologia do Novo
Testamento pois o objeto da teologia do Novo Testamento eacute o Cristo da feacute (pascal) Em
vista disso um estudo acerca do Jesus histoacuterico fica relegado a uma primeira etapa tal
qual uma primeira premissa no interior de um argumento mais elaborado (Bultmann
36
2004 p 24) J Jeremias enfatiza que para Bultmann a pregaccedilatildeo de Jesus eacute apenas
uma premissa entre muitas outras do Novo Testamento (Jeremias 2005 p 204)
Para J Jeremias Bultmann sofreu influecircncia de Martin Kaumlhler atraveacutes de sua obra
Der sogenannte historische Jesus und der geschichtiche biblische Cristus (O chamado
Jesus histoacuterico e o Cristo existencialmente histoacuterico e biacuteblico) Kaumlhler distinguiu por um
lado entre Jesus e Cristo e por outro entre historische (histoacuterico) e geschichtiche
(existencialmente histoacuterico) Por Jesus Kaumlhler compreendia o homem de Nazareacute tal
como foi descrito pelos que investigaram a vida do Jesus histoacuterico por Cristo ele entendia
como aquele que foi proclamado como o Salvador pela igreja Quanto ao significado do
adjetivo historische (histoacuterico) ele compreendia como uma mera designaccedilatildeo dos fatos do
passado e para geschichtiche (existencialmente histoacuterico) como aquele que tem um
significado permanente Portanto para Kaumlhler toda a tentativa de reconstruir a vida do
Jesus histoacuterico se contrapotildee ao Cristo biacuteblico e existencialmente histoacuterico tal como foi
pregado pelos apoacutestolos e para noacutes conforme Kaumlhler o que importa eacute unicamente o
Cristo da Biacuteblia conforme descrito pelos Evangelhos e natildeo as supostas reconstruccedilotildees
cientiacuteficas a respeito da pessoa de Jesus que chegam ateacute a passar a impressatildeo de uma
plena realidade dos fatos (Jeremias 2005 p 202)
A voz de Kaumlhler se extinguiu no vaacutecuo e natildeo surtiu um efeito pleno ateacute o ecoar da
voz de Bultmann que com coragem irredutiacutevel entrou no campo do inimigo e
abertamente lutou contra uma teologia que por um periacuteodo de aproximadamente cento e
cinquenta anos esforccedilou-se para chegar ao Jesus histoacuterico (Jeremias 2005 p 202)
Concordando com Kaumlhler Bultmann declara que todo o esforccedilo para chegar ao Jesus
histoacuterico foi um empreendimento insoluacutevel e infecundo que retirou a inexpugnaacutevel
fortaleza da proclamaccedilatildeo (kerigma) de Cristo (Jeremias 2005 p 203)
Os argumentos de Bultmann para a renuacutencia da teologia do Jesus histoacuterico
fundamentam-se no princiacutepio de que haacute falta de fontes seguras para a fundamentaccedilatildeo
dessa teologia Tambeacutem leva-se em consideraccedilatildeo que natildeo temos nada escrito pelas
matildeos de Jesus As uacutenicas fontes que temos a respeito de Jesus satildeo os Evangelhos e
esses natildeo satildeo biografias de Jesus mas satildeo apenas testemunhos de feacute secundaacuterios e
recobertos de lendas como no caso dos milagres Os Evangelhos segundo esse
pensamento satildeo a demonstraccedilatildeo de feacute dos evangelistas (Jeremias p 203) Concernente
agrave vida e agrave proclamaccedilatildeo de Jesus Bultmann assim descreve
37
[] Pouco sabemos sobre sua vida e personalidade ndash em compensaccedilatildeo sabemos o suficiente sobre sua proclamaccedilatildeo para pintar um quadro coerente Todavia tambeacutem nesse ponto recomenda-se um cuidado extremo em vista do caraacuteter das fontes que dispomos Pois o que as fontes nos oferecem eacute em primeira linha a proclamaccedilatildeo da comunidade que no entanto remonta em sua maior parte a Jesus Naturalmente isso prova que ele realmente tenha pronunciado todas as palavras que essa comunidade lhe pocircs na boca No caso de muitas palavras eacute possiacutevel demonstrar que soacute vieram a surgir na comunidade ao passo que no caso de outras elas foram reformuladas pela comunidade A investigaccedilatildeo criacutetica mostra que o conjunto da tradiccedilatildeo sobre Jesus ndash disponiacutevel nos trecircs evangelhos sinoacuteticos de Mateus Marcos e Lucas ndash se desmembra em uma seacuterie de camadas que em termos gerais podem ser distinguidas umas das outras com bastante seguranccedila mas cuja separaccedilatildeo em alguns detalhes apresenta dificuldades e levanta duacutevidas (Bultmann 2005 p 29-30)
Contudo essa visatildeo de Bultmann natildeo significa a negaccedilatildeo da existecircncia do homem
chamado Jesus de Nazareacute Segundo esse autor eacute possiacutevel conhecer muito dele atraveacutes
de suas pregaccedilotildees poreacutem na anaacutelise da criacutetica histoacuterica em relaccedilatildeo ao homem Jesus
conclui-se que natildeo haacute nada de importante para a feacute cristatilde (Jeremias 2005 p 203)
Quanto agrave questatildeo da existecircncia de Jesus vejamos o que nos diz Bultmann
[hellip] Eacute verdade que a duacutevida se Jesus realmente existiu eacute infundada e natildeo vale a pena gastar nenhuma palavra para refutaacute-la Eacute evidente que ele eacute o gerador do movimento histoacuterico cujo primeiro estaacutegio constataacutevel eacute representado pela comunidade palestinense mais antiga No entanto outra questatildeo eacute ateacute que ponto a comunidade preservou de modo objetivamente fiel a imagem dele e de sua proclamaccedilatildeo Para aqueles que tecircm interesse na personalidade de Jesus esse estado de coisas eacute inquietante e arrasador para nosso propoacutesito ele natildeo eacute de fundamental importacircncia (Bultmann 2005 p 30-31)
J Jeremias analisa entatildeo que para Bultmann Jesus de Nazareacute foi um profeta
judeu que permaneceu sempre dentro dos marcos do judaiacutesmo O Jesus histoacuterico
segundo Bultmann pode ser interessante para a teologia do Novo Testamento e para
compreender a origem do cristianismo mas natildeo tem significaccedilatildeo alguma para a feacute cristatilde
porque o cristianismo comeccedila com a Paacutescoa (Jeremias 2005 p204) Martins Terra expotildee
que o Jesus histoacuterico para Bultmann realmente eacute um profeta e sem duacutevida o maior
deles contudo profeta pertence ao Antigo Testamento Sendo assim Jesus era apenas
um judeu e natildeo um cristatildeo14 ldquoporque cristatildeo eacute aquele que acredita no Senhor
ressuscitado e natildeo aquele que funda sua feacute sobre uma figura histoacutericardquo (Martins Terra
1977 p21)
14
A resposta dada a Bultmann veio de seu disciacutepulo Ernst Kaumlsemann que observa que tanto Jesus quanto
os apoacutestolos eram judeus E se os apoacutestolos eram judeus natildeo eram eles tambeacutem cristatildeos desde o momento que seguiram a Jesus Kaumlsemann ainda pergunta teria havido algum keacuterygma sem a pregaccedilatildeo de Jesus Kaumlsemann chama a atenccedilatildeo para que Jesus natildeo se torne um pretexto e Cristo uma mera cifra mitoloacutegica (Martins Terra 1977 p 44)
38
Escrever uma biografia sobre o Jesus histoacuterico eacute algo descartado na teologia e isso
eacute visto com justiccedila por J Jeremias quando diz ldquo[] eacute muito correto afirmar que jaacute temos
despertado do sonho de acreditar que podemos escrever uma biografia de Jesusrdquo
(Jeremias 2006 p28) No entanto isso natildeo significa passar com indiferenccedila por essa
teologia eacute preciso voltar ao Jesus de Nazareacute e a sua pregaccedilatildeo As fontes nos
impulsionam a cada versiacuteculo dos Evangelhos a buscar pelo homem Jesus que
historicamente apareceu em Nazareacute e que foi crucificado no governo de Pocircncio Pilatos
(Jeremias 2006 p28) Leonard Swidler diz estar ciente tambeacutem das dificuldades para
se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade sobre o Jesus (Ieshua) histoacuterico
Contudo para ele podemos chegar ao fundamental ou seja podemos sempre lutar para
chegar mais perto Para Swidler a consciecircncia dessa limitaccedilatildeo permite que a pessoa
evite os extremos isto eacute tanto a ingecircnua certeza absoluta quanto o ceticismo total sobre
a possibilidade da busca pelo Jesus histoacuterico (Swidler 1993 p 16-18)
A visatildeo de Bultmann a respeito do Jesus histoacuterico natildeo foi seguida pelo seu
sucessor catedraacutetico em Magburg W G Kuumlmmel Para Kuumlmmel interpretar as palavras
de Paulo15 na letra do texto 2 Cor 516 e concluir que o Jesus terreno natildeo teve
importacircncia para o apoacutestolo eacute uma interpretaccedilatildeo ldquoseguramente errocircneardquo (Kummel 2003
p210) pois mesmo que elas natildeo tenham um papel tatildeo importante nos escritos do
apoacutestolo elas natildeo deixam de ser significantes Errocircneo para Kuumlmmel seria o fato de um
cristatildeo procurar ter uma relaccedilatildeo intraterrena com Jesus ou conhececirc-lo apenas
historicamente o que seria insignificante para um cristatildeo Rochus Zuurmond tambeacutem
define o pensamento do apoacutestolo Paulo sobre o versiacuteculo 16 acima mencionado da
seguinte forma
[hellip] Nessa periacutecope natildeo se trata da distinccedilatildeo entre o Jesus preacute-pascal e o poacutes-pascal mas da diferenccedila entre conhecer Jesus da maneira antiga e conhececirc-lo da maneira nova O Jesus poacutes-pascal ainda pode ser ldquoconhecidordquo da maneira antiga o jovem Paulo mas tambeacutem seus adversaacuterios atuais eacute disso um exemplo Em princiacutepio o Jesus preacute-pascal tambeacutem podia ser conhecido de maneira nova se fosse ldquotirado o veacuteurdquo na leitura do Antigo Testamento (314ss cf Jo 856) Mas na praacutetica isso se verificou impossiacutevel por causa da carne (Zuurmond 1998 p 87)
Conhecer Jesus ldquosegundo a carnerdquo na interpretaccedilatildeo de Zuurmond inclui com
certeza todo o conhecimento que podemos ter do Jesus histoacuterico Para ele Paulo natildeo
15
Kaumlsemann tambeacutem contrapotildee essa tese de Bultmann colocando os seguintes argumentos Se o Apoacutestolo Paulo natildeo levou em consideraccedilatildeo a vida terrena de Jesus e a Igreja jaacute estava realizada com o keacuterygma contido nas cartas paulinas por que entatildeo os Evangelhos tornaram-se necessaacuterios jaacute que foram escritos (os Sinoacuteticos) depois que Paulo jaacute tinha escrito todas as cartas Segundo Kaumlsemann a necessidade dos Evangelhos deu-se principalmente porque havia vaacuterios keacuterygmas e a necessidade do discernimento desses deu-se a princiacutepio pelo Espiacuterito todavia quando o entusiasmo cresceu tornou-se necessaacuterio o criteacuterio da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 44-45)
39
estava referindo-se ao Jesus histoacuterico quando fala ldquose jaacute conhecemos o cristo segundo a
carne agora jaacute natildeo o conhecemos maisrdquo (516) Toda a atividade cientiacutefica eacute carne ou
seja pode ser verificado com os recursos da historiografia moderna A pesquisa sobre o
Jesus histoacuterico eacute possiacutevel desde que ela natildeo tenha a pretensatildeo de ser a verdade absoluta
a respeito de Jesus Para Zuurmond o apoacutestolo estaacute enfatizando que o conhecimento
espiritual estaacute aleacutem do conhecimento cientiacutefico contudo natildeo eacute anticientiacutefico mas apenas
natildeo estaacute submisso a qualquer criteacuterio da ciecircncia Zuurmond conclui que ldquoPaulo tem
pouquiacutessima coisa para dizer sobre o Jesus histoacutericordquo uma vez que o apoacutestolo dos
gentios natildeo teria muito interesse pelo ldquotipo de conhecimento sobre Jesus que daiacute
resultariardquo (Zuurmond 1998 p88)
Voltando aos disciacutepulos de Bultmann ainda podemos mencionar Ernst Kaumlsemann
que tambeacutem contestou os ldquodogmasrdquo de seu mestre Para Kaumlsemann a pergunta pelo
Jesus histoacuterico e pelas palavras de Jesus eacute uma praacutetica e exigecircncia do Novo Testamento
visto que satildeo a base e o criteacuterio do keacuterygma Sem essas perguntas o Cristo da feacute se
tornaria em mera ideologia religiosa A importacircncia dessas questotildees torna relevante a
busca pelo Jesus da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 32)
Como se pode compreender em diferentes eacutepocas pensadores divergiram a
respeito da histoacuteria da pessoa do humilde carpinteiro de Nazareacute As especulaccedilotildees a
respeito da vida do Jesus histoacuterico cresceram tanto pelos seus fieacuteis seguidores quanto
pelos seus mais aacutevidos inimigos pelo menos desde o seacuteculo II dC (tal como se pode ver
na calorosa refutaccedilatildeo de Oriacutegenes contra Celso) Em um periacuteodo mais recente teoacutelogos
e arqueoacutelogos tecircm procurado com maior intensidade dados a respeito do homem Jesus e
do estilo de vida que a comunidade do seu tempo vivia com a finalidade de compreender
melhor o contexto em que Jesus estava socialmente inserido
40
4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE
SUA EacutePOCA O objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar o Jesus da histoacuteria dentro do contexto
dos grupos religiosos de sua eacutepoca a fim de observarmos ateacute que ponto Jesus teve
ou natildeo contato com tais grupos abaixo mencionados A preferecircncia de Jesus por um
determinado grupo poderia determinar o que era o Reino de Deus na visatildeo do jovem
pregador galileu Seria Jesus um adepto da seita dos apocaliacutepticos essecircnios dos
moralistas fariseus dos revolucionaacuterios zelotes ou ainda da ldquocorrompidardquo classe
sacerdotal dos saduceus Nos Evangelhos eacute que encontramos a histoacuteria de Jesus
uma vez que eles satildeo as principais fontes que possuiacutemos para montarmos a figura
do maior homem de todos os tempos Mas surgem algumas perguntas Seriam os
Evangelhos fontes histoacutericas confiaacuteveis na apresentaccedilatildeo do homem Jesus Sendo
Jesus pertencente agrave maioria da populaccedilatildeo ou seja da classe pobre e oprimida
pelos romanos teria ele sofrido alguma influecircncia do mundo helenizado da cidade
de Seacuteforis da qual tatildeo perto ele residia ou teria ele totalmente ignorado a cultura e
o mundo helecircnico-romano
Jesus o nazareno na condiccedilatildeo de Filho de Deus repudia todo o tipo de
opressatildeo uma vez que ele veio para ldquoproclamar a libertaccedilatildeo dos presosrdquo e
ldquoevangelizar os pobresrdquo (Lc 4-18) os quais satildeo felizes porque deles eacute o Reino de
Deus (Lc 620-23) Ao proclamar a bem-aventuranccedila dos pobres ele tambeacutem
proclama ldquomaldiccedilotildeesrdquo sobre os ricos que os oprimem e riem deles visto que chegaraacute
a hora em que os que dessa forma riem conheceratildeo o luto e as laacutegrimas (Lc 6 24-
26) Jesus ao ensinar os seus disciacutepulos a como se prevenir e se comportar diante
de uma sociedade poliacutetica e religiosa completamente desprovida do genuiacuteno amor
ao proacuteximo o Mestre da Galileia ensina os seus seguidores a serem
ldquomisericordiososrdquo como o Pai do Ceacuteu eacute misericordioso (cf Lc 6 36)
41
41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE
CONTEMPORAcircNEA DE JESUS
Segundo J Jeremias Jesus16 era proveniente de uma famiacutelia pobre e isso
pode ser constatado na ocasiatildeo do sacrifiacutecio de purificaccedilatildeo ldquoMaria serviu-se do
privileacutegio dos pobres oferecer duas rolasrdquo (Lc 224 cf Lv 128) (Jeremias 1983
p165) No tocante ao seu modo de vida eram tantas as privaccedilotildees que natildeo tinha
onde repousar a cabeccedila (Mt 820 Lc 958) J Jeremias observa que ele natildeo possuiacutea
dinheiro - a histoacuteria do estaacuteter e do ldquotributo a Cesarrdquo o demonstram (Mt 17 24-27 Cf
Mc 12 13-17 Mt 22 15-22 Lc 20 20-26) - tambeacutem aceitou esmolas (Lc 8 1-3)
Jesus provavelmente foi considerado um escriba (da classe mais humilde
desse grupo) conforme subentende J Jeremias (1983 p 59-165) Bultmann
tambeacutem concorda que Jesus era chamado pela tradiccedilatildeo de Rabi (Mc 95 1051
11121 1445) Para ele o tiacutetulo rabi foi substituiacutedo pelos evangelistas de origem
grega quase que completamente pela forma de tratamento grega Senhor
expressatildeo esta que designa Jesus como pertencente agrave classe dos escribas
(Bultmann 2005 p71) Para esse autor natildeo podemos afirmar se nos dias de Jesus
jaacute era necessaacuteria certa formaccedilatildeo cultural para a funccedilatildeo de escriba17 como foi uma
exigecircncia cem anos mais tarde Contudo natildeo podemos ignorar o fato de Jesus ter
sido considerado um Rabi (Bultmann 2005 p71-72)
Vale ressaltar que a relaccedilatildeo de Jesus com os escribas eacute quase sempre
relatada de forma polecircmica nos Evangelhos Quando estava ensinando sobre o fim
de Jerusaleacutem e do mundo Jesus advertiu seus disciacutepulos a respeito dos escribas
dizendo que eles sempre procuravam a distinccedilatildeo social eram arrogantes e
16
O nome Jesus origina-se do hebraico ldquoYehoshuardquo (o Yoshua biacuteblico) que significa YHWH (que provavelmente era pronunciado Yahweh) O Nome Jesus eacute uma forma latina do grego Iesous que por sua vez eacute uma forma grega do termo hebraico O nome Yehoshua foi abreviado no linguajar coloquial para Yeshua ou ateacute mesmo para Yeshu A raiz etimoloacutegica de Ieshua eacute ldquoYerdquo eacute a forma hebraica abreviada do proacuteprio nome de Deus YHWH enquanto que ldquoshuardquo eacute a palavra hebraica que significa Salvaccedilatildeo (cf Swidler 1993 p7-8)
17 Vermes define os escribas da seguinte forma ldquoo termo eacutescriba (sofer em hebraico safra em
aramaico) eacute usado para designar um estudioso um especialista na Biacuteblia particularmente em direito biacuteblico e tradicional A vida religiosa e secular bem organizada dependia desses homens Eram geralmente respeitados e sem duacutevida amiuacutede tornavam-se presunccedilosos vestiam-se apropriadamente usando uma tuacutenica longa (stole ou talit) e estavam habituados a ser respeitosamente saudados por todos indiscriminadamente Em reconhecimento agrave sua dignidade recebiam os lugares de escolha em locais de adoraccedilatildeo e em banquetes e os evangelistas indicam que eles esperavam receber tal tratamento preferencialrdquo (Vermes 2006 p 89)
42
pretensiosos na oraccedilatildeo Em Marcos os escribas dos fariseus criticam Jesus porque
ele come com os cobradores de impostos e com os pecadores (Mc 216) tambeacutem
os disciacutepulos de Jesus reconhecem que o seu ensinamento natildeo eacute como o dos
escribas sem autoridade (Mc 1 22-28 cf Mt 7 29) e por fim os escribas
questionaram a autoridade de Jesus para perdoar os pecados do paraliacutetico de
Cafarnaum (Mc 2 6 cf Mt 93) Eacute bem verdade que em Mateus 819 1352 2334
os escribas satildeo vistos de uma forma positiva e isso eacute mais evidente ainda em
Marcos 12 28-34 onde Jesus e um escriba concordaram a respeito do maior dos
mandamentos o que faz Jesus concluir que tal escriba natildeo estava longe do Reino
de Deus No entanto a impressatildeo que se obteacutem a partir das Escrituras eacute a que
Jesus possuiacutea um conceito formado a respeito dos escribas conforme o descrito
pelo evangelista Marcos nas seguintes palavras (Saldarini 2005 p 164-172)
[] E dizia no seu ensinamento ldquoGuardai-vos dos escribas que gostam de circular de toga de ser saudados nas praccedilas puacuteblicas e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes mas devoram as casas das viuacutevas e simulam fazer longas preces Esses receberatildeo condenaccedilatildeo mais severardquo (Mc 12 38-40)
Os escribas parecem natildeo ser um grupo muito coeso no oriente proacuteximo dos
dias de Jesus Eles eram provenientes de vaacuterias classes do povo ou entatildeo dos
sacerdotes ou de famiacutelias proeminentes Geralmente eles eram dependentes das
classes dominantes que dirigiam a naccedilatildeo Segundo Saldarini (2005 p 282-283) a
maioria dos escribas havia saiacutedo do campesinato para ser treinado pelo governo ou
por famiacutelias ricas para resguardar os registros coletar impostos servir como
funcionaacuterios e juiacutezes e trabalhar com o serviccedilo de correspondecircncias
Ainda com relaccedilatildeo a esse grupo de indiviacuteduos observa-se que os escribas
considerados socialmente inferiores eram aqueles que faziam parte de um pequeno
povoado que tinham entre outras funccedilotildees a de ensinar jovens a ler e escrever mas
natildeo eram considerados mestres visto que natildeo tinha uma educaccedilatildeo elevada para os
padrotildees da eacutepoca Saldarini observa no entanto que a maioria dos escribas
incluindo os apresentados nos evangelhos era considerada funcionaacuterios de niacutevel
meacutedio que eram dependentes da classe sacerdotal das famiacutelias ricas em
Jerusaleacutem e de Herodes Antipas na Galileia
43
Em todos os casos poreacutem os escribas precisam ser contextualizados entre outros grupos sociais e o poder de influecircncia deles integrado no quadro global da sociedade judaica Eles natildeo devem ser tratados como um grupo autocircnomo com seu proacuteprio poder e agenda contiacutenua Os escribas eram diferentes em suas origens e em suas dependecircncias e eram indiviacuteduos que desempenhavam um papel social em diferentes contextos e natildeo uma forccedila poliacutetica e religiosa unificada (Saldarini 2005 p 284-285)
Com relaccedilatildeo ao grupo dos rabinos segundo J Jeremias observa-se de um
modo geral que ele se situa entre as camadas pobres da populaccedilatildeo (Jeremias
1983 p165-166) Mais ainda as informaccedilotildees tradicionais sobre os escribas nos
dias de Jesus concordam que os escribas ricos natildeo eram numerosos Portanto se
realmente Jesus era considerado um escriba certamente ele fazia parte da classe
pobre dos escribas Crossan problematiza mais a questatildeo quando coloca que a
maioria da populaccedilatildeo Judaica da eacutepoca de Jesus era constituiacuteda de analfabetos18
supotildee-se que Jesus tambeacutem era analfabeto que ele conhecia como a ampla maioria de seus contemporacircneos de uma cultura oral as narrativas fundacionais estoacuterias baacutesicas e expectativas gerais de sua tradiccedilatildeo mas natildeo os textos exatos citaccedilotildees precisas ou argumentaccedilotildees intrincadas de suas elites de escribas (CROSSAN 1995 p41)
Em outro momento Crossan observa que o niacutevel de alfabetizaccedilatildeo na
Palestina estava abaixo de 3 segundo fontes rabiacutenicas o que natildeo era tatildeo baixo
para os padrotildees sociais das sociedades tradicionais do passado Crossan reitera
que Jesus era um camponecircs da Galileia e portanto natildeo haacute duacutevidas que Jesus era
analfabeto ldquopara mim Jesus era analfabeto ateacute que o contraacuterio seja comprovado E
natildeo eacute comprovado mas apenas presumido por Lucas quando ele faz Jesus ler o
profeta Isaiacuteas na sinagoga de Nazareacute em 4 16-20rdquo (Crossan 2004 p 274-275)
18
Diferentemente de Crossan David Flusser defende que Jesus ldquoestava longe de ser um iletradordquo Para ele com algumas justificativas eacute possiacutevel que os disciacutepulos de Jesus fossem homens iletrados e sem posiccedilatildeo social (cf At 413) e isso levou os historiadores a pensar que o proacuteprio Jesus nunca havia estudado Flusser vai mais longe ainda quando observa que Jesus era versado tanto nas Escrituras Sagradas como na tradiccedilatildeo oral ldquoAdemais sua educaccedilatildeo era incomparavelmente superior agrave de Satildeo Paulordquo Flusser vecirc na narrativa de Lucas (2 41-51) a histoacuteria de ldquoum erudito precoce pode-se dizer quase um jovem talmudistardquo A fonte de Flusser para tal argumento eacute Flaacutevio Josefo que se referindo a Jesus disse ldquonesta eacutepoca viveu Jesus um homem saacutebio ndash se eacute que na verdade deveriacuteamos chamaacute-lo de homemrdquo Mesmo que tenha havido algumas alteraccedilotildees por um interpolador cristatildeo eacute provaacutevel que a redaccedilatildeo original natildeo se perdeu totalmente jaacute que o texto de Josefo pode ser confirmado ldquopela suposta redaccedilatildeo original da passagemrdquo (Flusser 2002 p 11-12)
44
Carlos Mesters tambeacutem observa que Jesus mesmo antes de nascer jaacute era
viacutetima do sistema poliacutetico e econocircmico predominantes na eacutepoca Com efeito uma
vez que ele natildeo nasceu de uma famiacutelia sacerdotal como Joatildeo Batista (Lc 15) nem
teve o privileacutegio de estudar como o apoacutestolo Paulo (At 22 3) Jesus teve desde
pequeno que trabalhar como agricultor e ainda aprender a profissatildeo de seu pai (Mt
13 55) e por isso era conhecido como carpinteiro (τέκτων) de Nazareacute (Mc 6 3)
Assim como Crossan Mesters analisa que a vida de Jesus desde a infacircncia ateacute a
vida adulta natildeo foi nada faacutecil Sobre a educaccedilatildeo formal do nazareno Mesters nos
diz que ldquoa escola do Jesus era antes de tudo a vida em casa na famiacutelia na
comunidade Foi laacute que aprendeu a conviver a rezar e a trabalharrdquo (Mesters 2011
p 17-21)
O caos econocircmico e cultural entre a populaccedilatildeo contemporacircnea de Jesus natildeo
eacute fato apenas na Galileia19 J Jeremias descreve que a cidade de Jerusaleacutem nos
tempos de Jesus era um centro de mendicacircncia que geralmente girava em torno
do templo Para ele ldquonatildeo eacute de causar espanto se jaacute naquela eacutepoca houvesse
pessoas que simulavam cegueiras surdez e outras doenccedilas a fim de ganharem
esmolasrdquo (Jeremias 1983 p166) Se Jerusaleacutem que era o centro dos
acontecimentos estava numa situaccedilatildeo caoacutetica natildeo muito distante ficava Nazareacute
que conforme Crossan era um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que
vivia em casebres ldquoum povoado simples composto de camponeses entre duzentos a
quatrocentos habitantesrdquo (Crossan Reed 2007 p 7518) Crossan observa que
Nazareacute nunca foi mencionada pelos rabinos na Mishinaacute nem no Talmude nem por
Flaacutevio Josefo quando esse cita o nome de 45 lugares durante a primeira revolta
judaica em 66-67 dC Nem mesmo o Antigo Testamento a conheceu A relaccedilatildeo das
tribos de Zebulon enumera quinze localidades na Baixa Galileia nas proximidades
de Nazareacute mas natildeo a inclui (Js19 10-15) Crossan eacute taxativo ao afirmar que Nazareacute
ldquoera um lugar absolutamente insignificanterdquo (Crossan Reed 2007 p 64)
19
Apesar da Galileia onde Jesus viveu ter sido um lugar de extrema pobreza geograficamente era ldquouma regiatildeo beliacutessima a planiacutecie o lago as colinas a montanha o verde as suas matas fazem da Galileia um ambiente tranquilo e repousanterdquo A pobreza natildeo estava ligada ao aspecto geograacutefico mas sim agrave dominaccedilatildeo romana atraveacutes dos altos e impiedosos impostos que segundo Marconcini natildeo era menos do que 40 do miacutesero rendimento de cada trabalhador que tambeacutem eram destinadas para o aumento do bem-estar dos ricos conforme vemos nos evangelhos de Mateus 18 23-30 e Lucas 16 1-7 -20 (Cf Marconcini 2009 p 38)
45
Tambeacutem observa-se que Nazareacute era um povoado proacuteximo de Seacuteforis que
permaneceu no anonimato ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo
quando se tornou alvo de peregrinaccedilotildees dos cristatildeos (Crossan Reed 2007 p79)
Eles dependiam de espaccedilo fiacutesico para desempenhar atividades agriacutecolas guardar
ferramentas de uso comunitaacuterio cultivo de jardins e pomares tambeacutem precisavam de
espaccedilo para a criaccedilatildeo de animais domeacutesticos e isso explica o porquecirc de uma baixa
densidade populacional Crossan afirma que a maioria dos galileus ganhava a vida
com os produtos da terra com ferramentas precaacuterias e condiccedilotildees geograacuteficas
desfavoraacuteveis O seu estilo de vida em particular dos nazarenos era simples e o
que eles ganhavam era apenas o suficiente para pagar as diacutevidas e impostos
Quanto agraves tradiccedilotildees eles eram zelosos celebravam a paacutescoa descansavam no
Saacutebado e valorizavam as tradiccedilotildees de Moiseacutes e dos profetas
Gerhard Lenski citado por Crossan faz uma interessante descriccedilatildeo de como
eram as divisotildees das classes sociais pelo impeacuterio romano O simples fato de uma
famiacutelia ou povoado possuir arados de ferro poder usufruir de transportes utilizando-
se da roda e da vela gerava um abismo entre as classes designadas altas e outras
designadas baixas Segundo esse autor as classes eram divididas da seguinte
maneira 1 da populaccedilatildeo era constituiacuteda pelos governantes que eram possuidores
de pelo menos a metade das terras os sacerdotes podiam possuir ateacute 15 da
terra logo apoacutes vinham os arrendataacuterios que iam de generais a burocratas
especializados mercadores que provavelmente ascendiam das classes mais
baixas mas que chegavam a ter consideraacutevel riqueza e algum poder poliacutetico e por
fim os camponeses que eram a maioria da populaccedilatildeo de cuja colheita cerca de
dois terccedilos do total as classes altas eram sustentadas
Os camponeses cujas safras dependiam das colheitas nem sempre eram
bem sucedidos pois se houvesse muita chuva ou seca ou ainda doenccedilas e morte
eram expulsos de suas proacuteprias terras Entatildeo eram forccedilados ao arrendamento ou
ateacute mesmo podiam ser submetidos agraves piores humilhaccedilotildees Existia ainda a classe
dos artesatildeos considerada acima dos camponeses porque em geral eram
recrutados entre seus membros desalojados Abaixo dos camponeses existiam
ainda as classes dos degradados e dispensaacuteveis os quais eram rejeitados e iam de
46
mendigos a foras da lei ladrotildees trabalhadores diaristas e escravos (Crossan 1995
p 41)
De acordo com essa divisatildeo de classes deduz-se que se Jesus era
carpinteiro (τέκτων) entatildeo ele pertencia agrave classe dos artesatildeos que por sua vez
estava perigosamente situada entre os camponeses e os degradados ou
dispensaacuteveis Segundo Crossan a pobreza dos conterracircneos de Jesus natildeo se
limitava apenas a Galileia jaacute que de 95 a 97 da populaccedilatildeo do estado judaico era
constituiacuteda por analfabetos Se essa estatiacutestica for verdadeira possivelmente Jesus
tambeacutem era um analfabeto Quanto ao fato dele ensinar eacute provaacutevel que o seu
aprendizado e ensino tenha sido a partir da educaccedilatildeo da tradiccedilatildeo em forma oral
Conforme Crossan os textos de Lucas 2 41-52 e Lucas 4 1-30 devem ser vistos
como ldquopropaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em
termos de instruccedilatildeo e exegese de escribardquo (Crossan 1995 p 41-42)
42 JESUS O HUMILDE NAZARENO
Jesus viveu em Nazareacute a maior parte de sua vida Segundo Pagola uma
pequena aldeia de ldquoapenas duzentos a quatrocentos habitantesrdquo onde alguns
habitantes viviam ldquoem cavernas escavadas nas encostas a maioria em casas baixas
e primitivas de paredes escuras de adobe ou pedra com telhados confeccionados
com ramos secos e argila e chatildeo de terra batidardquo O quesito conforto e comodidade
natildeo era privileacutegio dos nazarenos uma vez que em geral as casas soacute tinham um
cocircmodo no qual se alojava a famiacutelia toda inclusive os animais (Pagola 2010 p62)
Esse pequeno vilarejo ficava a 4 quilocircmetros ao norte de Seacuteforis 20 a cidade
residencial de Herodes Antipas (Gnilka 2000 p71) Seacuteforis diferentemente de
Nazareacute era uma cidade que crescia cheia de curiosidades21 Jerome Murphy-
20
Koester natildeo especifica a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis mas observa que a distacircncia entre essas duas localidades era de poucos quilocircmetros Seacuteforis foi ampliada por Antipas que como seu Pai (Herodes o grande) era amante do esplendor e da grandeza que muitas vezes era expresso por grandes construccedilotildees Aleacutem de Seacuteforis (a primeira capital) Antipas (Tetrarca da Galileia e da Pereia) ainda construiu uma segunda capital a qual deu o nome de Tibeacuterias (Tiberiacuteades) em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (Cf Koester 205 Vl 1 p 395) Theissen especifica como sendo de 6 km a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis (cf Theissen 2004 p 186) A partir desses dados conclui-se que Seacuteforis e Nazareacute ficavam muito proacuteximas
21 As hipoacuteteses de Murphy-OConnor em relaccedilatildeo agrave Seacuteforis satildeo bem diferentes da visatildeo que Crossan
tinha desta cidade como vimos anteriormente Para Crossan Seacuteforis permaneceu no anonimato
47
OConnor observa que seria um equiacutevoco supor que Jesus natildeo passaria todo o
tempo que pudesse em Seacuteforis junto com os amigos Nesse sentido pode-se
questionar Teria Jesus tido em Seacuteforis contato com a liacutengua grega por morar bem
proacuteximo da elegante cidade Seacuteforis era a cidade das atraccedilotildees tanto para os
adultos como para as crianccedilas fato esse que pode ser constatado com Herodes
Antipas o qual teria aprendido a oferecer espetaacuteculos com seu pai Herodes o
grande e nos poucos anos que passou em Roma teria ficado impressionado com os
espetaacuteculos dados por Augusto (Murphy-OConnor 2008 p38-39)
O teatro de Antipas era a grande atraccedilatildeo da cidade Segundo Murphy-
OConnor-OConnor o grande teatro de 45 mil lugares22 sentados em pedra visto
ateacute hoje foi precedido pelo de Antipas em madeira Mesmo que os judeus tenham
sido advertidos a respeito da origem pagatilde do teatro eacute razoaacutevel que Jesus tenha
visto em torno das imediaccedilotildees do teatro atores subindo e descendo pelas ruas e
praticando suas deixas23 Para Murphy-OConnor foi desse contexto que Jesus
conheceu a palavra grega hypokritecircs (ὑποκριτής) que significa ldquoum orador puacuteblicordquo
ldquoum atorrdquo Jesus usou a mesma palavra poreacutem deu a ela um sentido mais profundo
no que se refere agrave vida religiosa A maacutescara refere-se ao ldquofingidorrdquo ou seja agravequeles
que dizem ou parecem ser uma coisa mas na praacutetica satildeo outra conforme vemos
nos Evangelhos (Mt 75 Mc 76 = Lc 642)
O maior acontecimento que Jesus pode ter visto em Seacuteforis ou ouvido falar
muito a respeito quando tinha aproximadamente seis anos de idade foi o
casamento de Herodes Antipas com a filha do rei nabateu Aretas IV de Petra que
governou entre 9 aC e 40 dC Segundo Murphy-OConnor mesmo que o
casamento tenha acontecido em Petra uma caravana de nobres nabateus
provavelmente teria acompanhado Antipas ateacute a cidade de Seacuteforis onde uma
grande multidatildeo de todas as aldeias proacuteximas agrave cidade o aguardava para saudar o
jovem rei (Murphy-OConnor 2008 p40)
ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo quando segundo Crossan a cidade se tornou alvo de peregrinaccedilotildees cristatildes (cf Crossan Reed 2007 p79)
22 Theissen diz que o teatro comportava 5000 pessoas (ver Theissen 2004 p 187)
23 Koester nota que eacute interessante que cidades como Cesareia Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo constem da
tradiccedilatildeo Contudo cidades heleniacutesticas menos importantes como Cesareia de Felipe e Gadara agraves vezes satildeo mencionadas Para Koester ldquonatildeo se pode concluir que Jesus nunca tenha visitado Terras pagatildesrdquo (Cf Koester Vl 2 p 86)
48
Sobre Jesus podemos dizer que aleacutem de ter vivido na pequena Nazareacute de laacute
saiu para ser batizado por Joatildeo Batista Aleacutem disso conforme Mc 63 em Nazareacute e
adjacecircncias ele exerceu a carpintaria (τεκτων) 24 como profissatildeo atividade essa
exercida por seu pai Joseacute Nessa profissatildeo aleacutem de trabalhar com madeira
tambeacutem trabalhava-se com pedras Dessa forma podemos dizer que Jesus era
tambeacutem um entalhador (Gnilka 2000 p 71-72)
Sobre Jesus aleacutem de algumas hipoacuteteses e relatos concernentes ao lugar de
sua residecircncia e outras suposiccedilotildees relacionadas agrave sua vida enquanto um simples
homem inserido em sua comunidade que na qualidade de profeta da Galileia natildeo foi
bem recebido entre seus conterracircneos De acordo com o evangelista Lucas o
ministeacuterio de Jesus comeccedilou aos 30 anos (Lc 323) Para Gnilka a informaccedilatildeo
obtida a partir desse Evangelho possui tambeacutem uma motivaccedilatildeo teoloacutegica visto que
a idade de Jesus deve estar relacionada com a idade do rei Davi conforme vemos
em 2 Sm 54 ldquoTinha Davi trinta anos quando comeccedilou a reinarrdquo Natildeo obstante agrave
determinaccedilatildeo aproximada da idade cerca de 30 anos Lucas revela-nos um
interesse histoacuterico-cronoloacutegico a respeito da vida e ministeacuterio de Jesus (Gnilka
2000 p73)
Jaacute em pleno exerciacutecio ministerial conforme a narrativa de Marcos (Mc 6 1-6)
Jesus fez uma fracassada visita num dia de saacutebado aos seus conterracircneos Quando
Jesus estava a ensinar na sinagoga seus conterracircneos escandalizam-se dele O
motivo para tal desprezo estava relacionado ao fato de ele ser proveniente de uma
famiacutelia pobre conhecida por todos na pequena Nazareacute A origem humilde de Jesus
provocou em seus conterracircneos um sentimento de rejeiccedilatildeo e desprezo chegando
ao ponto de total descreacutedito agrave sua sabedoria e ao seu poder de realizar milagres
Esses fatos provavelmente natildeo devem ter ocorrido no comeccedilo do ministeacuterio de
Jesus como descreve Lucas (Lc 4 14-30) ateacute porque se todos esses
acontecimentos fossem no iniacutecio de seu ministeacuterio a comunidade de Nazareacute natildeo o
teria rejeitado imediatamente mas teriam ficado na expectativa do sucesso de seu
mais conhecido cidadatildeo (Gnilka 2000 p 122)
24
Eacute possiacutevel que como artesatildeo Jesus tenha tomado parte na construccedilatildeo de Seacuteforis O silecircncio da tradiccedilatildeo de Jesus sobre Seacuteforis nos induz a crer que mesmo que Jesus tenha conhecido essa cidade atuou tatildeo pouco nela como deve ter atuado em Tiberiacuteades Jesus deve ter evitado as grandes cidades porque se identificava mais com o campo onde encontrava maior ressonacircncia (Cf Theissen 2004 p 187)
49
Aleacutem das fontes evangeacutelicas sobre Jesus temos alguns relatos de fontes natildeo
cristatildes sobre o homem chamado Jesus de Nazareacute O relato mais conhecido dos
cristatildeos eacute de Flaacutevio Josefo que por volta do ano 93 dC (eacutepoca em que ele morava
em Roma) ele testemunha a respeito de Jesus com as seguintes palavras
conforme a citaccedilatildeo de Rochus Zuurmond25
Naquele tempo a atividade de Jesus um homem saacutebio se eacute que conveacutem chamaacute-lo de homem Pois fez coisas incriacuteveis e foi mestre dos que gostam de aceitar a verdade Teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos Ele foi o Cristo Depois que Pilatos o condenou agrave morte na Cruz porque preeminentes de nosso meio o haviam acusado natildeo cessou o amor que lhe tinham seus sequazes Revivificado ele lhes apareceu no terceiro dia pois os profetas de Deus haviam a seu respeito anunciado este fato e mil outras coisas espantosas Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)
Zuurmond duvida que essa citaccedilatildeo seja de Josefo uma vez que seria
praticamente impossiacutevel Josefo referir-se a Jesus como Cristo e muito mais difiacutecil
ainda seria ele mencionar a ressurreiccedilatildeo ldquocom apelo aos profetasrdquo Contudo
segundo Zuurmond seria muito difiacutecil que Josefo vivendo naquela eacutepoca natildeo
mencionasse Jesus em seus escritos Partindo desse princiacutepio o mais provaacutevel eacute
que o texto tenha sido ldquoprofundamente revisadordquo por um cristatildeo Para Zuurmond
dentre as vaacuterias tentativas para reproduzir o texto original de Josefo a mais provaacutevel
seria a de que o texto teria a seguinte conotaccedilatildeo
foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus um saacutebio que teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos chamaram-no de Cristo Seus sequazes afirmam que ele revivificado lhes apareceu Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome ainda natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)
O proacuteprio Zuurmond acredita que essa reconstruccedilatildeo eacute muito hipoteacutetica
Segundo ele o mais provaacutevel eacute que o texto tenha sido muito mais reduzido e que
tenha sido totalmente substituiacutedo (cf Zuurmond 1998 p 74)
Aleacutem de Josefo temos ainda outras citaccedilotildees hipoteacuteticas de fontes natildeo
cristatildes como a correspondecircncia de Pliacutenio Juacutenior com Trajano por volta de 115 dC
Pliacutenio refere-se agrave reuniatildeo dos cristatildeos e detalha o fato de que cantam um hino ldquoa
Cristo como Deusrdquo Suetocircnio por volta de 120 dC descreve que o Imperador
25
Essa citaccedilatildeo tambeacutem pode ser conferida em Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 3 p 590
50
Claacuteudio expulsou os judeus de Roma porque causavam problemas ldquopor instigaccedilatildeo
de Crestordquo Ainda por volta de 115 dC Taacutecito em annales XV 44 relata sobre o
incecircndio de Roma e sobre um grupo de Cristatildeos seguidores de ldquoum tal Cristordquo
Segundo Zuurmond estas foram as palavras do historiador romano
A fim de abafar este boato (de que ele mesmo foi responsaacutevel pelo incecircndio de Roma Nero inventou alguns bodes expiatoacuterios e submeteu agraves mais sofisticadas formas de supliacutecio aqueles que costumavam ser chamados de cristatildeos um grupo de gente odiado por todos por causa de seus crimes abominaacuteveis Eles devem o seu nome a um tal Cristo que durante o governo de Tibeacuterio (imperador de 14 a 37) por ordem do procurador Pocircncio Pilatos foi executado Depois de ter sido oprimida durante algum tempo essa supersticcedilatildeo perniciosa irrompeu novamente natildeo apenas na Judeacuteia onde este mal se originou mas tambeacutem em Roma para onde confluem e onde costumam ser assiduamente fomentados costumes horrorosos e vergonhosos de toda a espeacutecie (cf Zuurmond 1998 p75-76)
Essas fontes natildeo cristatildes quase que sempre satildeo vistas com alguma
desconfianccedila por alguns especialistas quanto agrave autenticidade de seus conteuacutedos
No entanto qualquer conjectura sobre o assunto natildeo passaraacute de mera
especulaccedilatildeo O mais importante eacute que a histoacuteria de Jesus eacute tatildeo grande que o mais
aacutevido inimigo jamais poderaacute tornaacute-la como algo insignificante para a humanidade
43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES
Como sabemos Jesus nunca nos deixou nada por escrito no entanto tudo o
que sabemos sobre ele estaacute registrado nos evangelhos especificamente nos
evangelhos canocircnicos considerados pela tradiccedilatildeo cristatilde como os mais confiaacuteveis jaacute
que para a tradiccedilatildeo cristatilde conforme vemos em Duquoc os evangelhos apoacutecrifos26
podem sem duacutevida transmitir autecircnticos dados histoacutericos mas natildeo possuem
autoridade para que a partir dos testemunhos descritos neles possa-se elaborar
uma teologia consistente (Duquoc 1992 p 21)
26
Sanders compartilha da ideia da maioria dos estudiosos de que muito pouco dos evangelhos apoacutecrifos pode situar-se aos dias de Jesus Para ele esses evangelhos satildeo ldquolegendaacuterios e mitoloacutegicosrdquo De todo o material apoacutecrifo segundo Sanders somente alguns ditos do evangelho de Tomeacute merecem consideraccedilatildeo No entanto natildeo significa que seja possiacutevel fazer uma divisatildeo clara colocando os Evangelhos canocircnicos de um lado e os apoacutecrifos de outro uma vez que segundo Sanders haacute material lendaacuterio e criaccedilatildeo posterior nos Evangelhos do Novo Testamento Natildeo obstante eacute nos quatro Evangelhos que devemos buscar traccedilos do Jesus histoacuterico conclui Sanders (Sanders 2005 p 88-89)
51
Leif E Vaage eacute mais radical chegando afirmar que todos os escritos cristatildeos
primitivos que tratam da infacircncia de Jesus satildeo apoacutecrifos Segundo ele inclusive os
Evangelhos canocircnicos (Vaage 2007 p 38) Vaage baseia seu argumento no fato de
que nenhum dos Evangelhos relata realmente como foi a gravidez nascimento e
infacircncia de Jesus Por isso natildeo podem ser considerados historicamente
ldquoautecircnticosrdquo No entanto temos um olhar mais positivo sobre os apoacutecrifos em Jacir
de Freitas Faria Para ele noacutes podemos encontrar nos apoacutecrifos ldquovalores que a
piedade popular conservou como dogma de feacuterdquo (Faria 2007 p9) Na visatildeo de Faria
se natildeo fossem os apoacutecrifos do Novo Testamento natildeo saberiacuteamos os nomes de
pessoas como os avoacutes de Jesus dos reis magos dos dois ladrotildees da cruz e outros
nomes relacionados aos cristatildeos do primeiro seacuteculo
Os evangelhos27 por certo satildeo a histoacuteria do Jesus terreno contudo segundo
Bornkamm vale ressaltar que os Evangelhos satildeo histoacuteria mas natildeo no sentido da
histoacuteria moderna ou seja ldquoos evangelistas natildeo eram historiadores de profissatildeo e a
tradiccedilatildeo popular estaacute sempre sujeita a mudanccedilas no processo de transmissatildeordquo
(Bornkamm 1981 p35) Os evangelhos prossegue Bornkamm ldquonatildeo podem ser
classificados entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos como
Tuciacutedides Poliacutebio e Taacutecito nem entre biografias contemporacircneas como As Vidas
dos Ceacutesares de Suetocircnio [cerca de 70-140 dC] rdquo (1981 p35)
Sanders analisando a natureza do material evangeacutelico considera tal tarefa
como uma das mais desafiadoras a ser realizada pelo pesquisador Ainda que a
opiniatildeo dele sobre as fontes seja positiva ele natildeo deixa de enumerar alguns
aspectos considerados problemaacuteticos ou negativos conforme resumimos abaixo
1) Os primeiros cristatildeos natildeo escreveram uma narrativa (histoacuteria) da vida
de Jesus mas escreveram pequenas passagens sobre as suas
palavras e obras Essas pequenas partes foram mais tarde
organizadas pelos autores dos Evangelhos Isso significa que nunca
poderemos estar tatildeo perto do contexto imediato dos ditos e feitos de
Jesus
27
Conforme Marconcini (2009 p 6) o termo evangelho encontra-se doze vezes nos sinoacuteticos das quais quatro vezes em Mateus (423 9 35 24 14 26 13) em Marcos oito vezes (114-15 835 1029 1310 149 1615) a palavra vem sempre da boca de Jesus com exceccedilatildeo de Marcos 11 Jaacute no Evangelho de Lucas prevalece o verbo evangelizar que aparece dez vezes (119 210 318 41843 722 81 96 1616 201)
52
2) Os primeiros cristatildeos revisaram alguns materiais e criaram outros
3) Os Evangelhos foram escritos de forma anocircnima28
4) O Evangelho de Joatildeo eacute muito diferente dos outros trecircs Evangelhos e eacute
principalmente nesse Evangelho que devemos buscar informaccedilotildees
sobre Jesus
5) Aos Evangelhos faltam muitas caracteriacutesticas para ser uma biografia e
temos que distingui-los das biografias modernas (cf Sanders 2005 p
81-82)
A partir dos dados acima observamos que os Evangelhos realmente natildeo
satildeo histoacuteria no sentido moderno do termo No entanto conforme Martins Terra
devemos aplicar a criteriologia moderna de atestar a autenticidade dos escritos ou
seja aquela que estaacute focada mais nos criteacuterios internos29 do que nos criteacuterios
externos mas sempre tendo como base os testemunhos histoacutericos (Martins Terra
1977 p126)
Segundo Latourelle a criacutetica externa analisa os Evangelhos a partir dos
escritos extra-evangeacutelicos (Cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos) e sobretudo a
partir dos testemunhos das Igrejas poacutes-apostoacutelicas (II e III seacuteculos) enquanto que a
criacutetica interna apoia-se no proacuteprio texto (anaacutelise do tecido literaacuterio estudo do
conteuacutedo) Para esse teoacutelogo a criacutetica externa sempre obteve ecircxito em relaccedilatildeo agrave
critica interna mas nos dias atuais essa situaccedilatildeo tem mudado ou seja a criacutetica
interna tem se sobreposto agrave critica externa No entanto Latourelle prefere ficar em
um meio termo e mesmo que a criacutetica externa esteja em decadecircncia Latourelle vecirc
trecircs pontos importantes que podem ser explorados nela ldquosobre os autores dos
28
Sanders referindo-se a autoria dos Evangelhos diz que natildeo sabemos quem realmente satildeo os autores Mateus e Joatildeo foram disciacutepulos de Jesus Marcos foi seguidor de Paulo e possivelmente tambeacutem de Pedro jaacute Lucas foi um dos convertidos (disciacutepulos) de Paulo Mateus Marcos Lucas e Joatildeo realmente existiram mas natildeo podemos afirmar que eles escreveram os Evangelhos Existem provas que os Evangelhos permaneceram sem tiacutetulo de autoria ateacute a metade do seacuteculo II dC e eram sempre citados anonimamente A nomenclatura segundo Mateus segundo Marcos segundo Lucas segundo Joatildeo apareceram de repente por volta do ano 180 em meio ao grande nuacutemero de evangelhos escritos a Igreja teve que decidir quais deles seriam canocircnicos e diante de diferentes opiniotildees os que pensavam que apenas os quatro citados acima eram os que testemunhavam sobre Jesus com autoridade ganharam a questatildeo (cf Sanders 2005 p 87-88)
29 Segundo Martins Terra ldquoa criacutetica interna procura refazer na medida do possiacutevel a histoacuteria das
tradiccedilotildees [traditionsgeschichte] e separar os elementos redacionais [=dos evangelistas] dos elementos provenientes da tradiccedilatildeo anterior ateacute seus estratos mais primitivos Admite-se pois como vaacutelida a ideia fundamental da histoacuteria das formas (formgeschichte e da histoacuteria da redaccedilatildeo [Redaktionsgeschichte])rdquo (Martins Terra 1977 p 126)
53
Evangelhos sobre a autoridade desses na Igreja dos primeiros seacuteculos e sobre a
atitude da Igreja perante as tendecircncias deformadoras dos apoacutecrifos e dos escritos
gnoacutesticosrdquo (Latourelle 1989 p118)
Latourelle observa que ldquoa tradiccedilatildeo tem a tendecircncia de individualizar os
autores e colocaacute-los em relaccedilatildeo iacutentima com uma autoridade apostoacutelicardquo (Latourelle
p118) Um argumento bem aceito pela criacutetica contemporacircnea eacute de que documentos
- o Cacircnon Muratori os proacutelogos antimarcionistas - e os antigos teoacutelogos da Igreja
(Paacutepias Irineu de Liatildeo) - aceitaram Marcos e Lucas como autores dos Evangelhos
que levam os seus nomes porque eles realmente satildeo os verdadeiros autores O
raciociacutenio para defender essa tese conforme expotildee Latourelle eacute que se os teoacutelogos
da patriacutestica (seacuteculo II) tivessem interesse em ldquofalsificarrdquo a autoria dos Evangelhos
para dar maior credibilidade aos mesmos teriam dado a esses dois nomes de
apoacutestolos que conviveram com Jesus e natildeo de testemunhas indiretas como nos
casos de Marcos e Lucas Partindo desse raciociacutenio Latourelle citando Descamps
conclui ldquose as Igrejas do seacuteculo II mantiveram os nomes de Marcos e Lucas como
autores fizeram-no sem duacutevida sob a pressatildeo dos fatosrdquo (Latourelle 1989 p 18)
Segundo Bornkamm ldquoeacute significativo que os evangelhos satildeo anocircnimos e que
os nomes (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo) foram dados para aleacutem do seacuteculo II O
evangelho de Lucas eacute o que mais se aproxima da historiografiardquo (Bornkamm 1981
p35) Aparentemente os Evangelhos datildeo a impressatildeo de continuidade mas os
textos natildeo oferecem um fundo real de uma histoacuteria reconstituiacutevel (Bornkamm 1981
p37) Um fato importante a se observar satildeo as legendas ou seja a forma como
fatos da vida de Jesus ou de personagens do Novo Testamento foram contados
(Bornkamm 1981 p41) O narrador natildeo estaacute preocupado em escrever histoacuterias
mas com a santidade e a piedade exemplar dessas figuras Em alguns casos
chamamos legenda ou embelezamento Bornkamm acredita que temos boas razotildees
para confiar na memoacuteria simples dos disciacutepulos contudo ldquonatildeo devemos subestimar
a influecircncia da feacute poacutes-pascal mesmo com a tradiccedilatildeo passada de matildeo em matildeosrdquo
(Bornkamm 1981 p 43)
A tradiccedilatildeo como vimos acima esforccedila-se para aproximar os Evangelhos das
testemunhas oculares e supervaloriza a qualidade das testemunhas fazendo de
Marcos um porta-voz de Pedro quando Marcos eacute muito mais um relator fiel da
54
pregaccedilatildeo da comunidade primitiva30 A tradiccedilatildeo tambeacutem atribui o primeiro Evangelho
a Mateus e o uacuteltimo a Joatildeo Poreacutem Bornkamm partindo do princiacutepio da teoria das
duas fontes analisa a origem dos Evangelhos especificamente os sinoacuteticos da
seguinte forma dentre as teorias a respeito da formaccedilatildeo dos Evangelhos a mais
aceita e mais coerente eacute a teoria das duas fontes Segundo essa teoria Marcos eacute o
Evangelho mais antigo ele forma a base dos outros dois Evangelhos ldquomaioresrdquo e
estaacute inserido neles Aleacutem de usarem Marcos tanto Mateus como Lucas fizeram uso
independente de uma segunda fonte isso se pode ver pelos muitos ditos e grupos
de ditos natildeo encontrados em Marcos que eles tecircm em comum (Bornkamm 1981
p31) De acordo com J Jeremias Marcos escreveu em grego mais primitivo e
serviu de base para os outros dois Isso comprova que ele eacute o Evangelho mais
antigo O Evangelho de Mateus eacute um Evangelho de Marcos reelaborado
estilisticamente e acrescido de material novo que daacute mais da metade de Marcos
Seguindo a linha de pesquisa da teoria das duas fontes verificamos que mesmo que
Mateus e Marcos discordem de Lucas na ordem dos acontecimentos ou Lucas e
Marcos estejam em discordacircncia em relaccedilatildeo a Mateus dificilmente Mateus e Lucas
juntos oponham-se a Marcos
Haacute poreacutem algumas hipoacuteteses contraacuterias a teoria das duas fontes e elas se
apoiam no testemunho de Papias bispo de Hieraacutepolis na Friacutegia que compocircs por
volta de 130 uma exegese dos oraacuteculos do Senhor conforme relatado por Euseacutebio
de Cesareia em a ldquoHistoacuteria da Igrejardquo Eis o que dizia o Presbiacutetero
Marcos que era o inteacuterprete de Pedro escreveu com exatidatildeo no entanto sem ordem tudo o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor mais tarde poreacutem como jaacute disse ele acompanhou Pedro Este ministrava seus ensinamentos segundo as necessidades mas sem fazer uma siacutentese das palavras do Senhor Desse modo Marcos natildeo cometeu erro escrevendo como se lembrava Seu uacutenico propoacutesito foi nada omitir do que havia ouvido e em nada enganar no que relatava (Latourelle 1989 p121-122)
30
Martins Terra comentando sobre a tradiccedilatildeo sobre os Evangelhos observa que ldquohoje em dia se insiste mais na inspiraccedilatildeo do livro do que no autorrdquo O problema consiste no fato de os Evangelhos terem sido escritos depois de 30 anos de pregaccedilatildeo da Igreja e da tradiccedilatildeo oral Muitas coisas devem ser levadas em consideraccedilatildeo quando se trata da autoria dos Evangelhos uma vez que haacute vaacuterios niacuteveis de mediaccedilotildees que devem ser levados em consideraccedilatildeo (cf Martins Terra 1977 p 125)
55
Segundo Euseacutebio baseado no testemunho de Papias foi Mateus quem
colocou em ordem os oraacuteculos do Senhor em liacutengua hebraica31 Qualquer que seja a
data e o conhecimento de Papias aquilo que ele de fato escreveu estaacute em nosso
alcance apenas em citaccedilotildees de Euseacutebio Os livros de Papias (logiotilden Kyriakotilden
Exegesis Exegese das Logia do Senhor) sobreviveram ateacute a Idade Meacutedia em
algumas bibliotecas da Europa mas natildeo mais existem (Carson et al 1997 p75)
Dalman (1902 p 87) fazendo uma anaacutelise sobre os testemunhos a favor da
teoria que se refere agrave origem aramaica dos Evangelhos eacute categoacuterico em afirmar
que aleacutem do bem conhecido depoimento de Euseacutebio noacutes natildeo temos nenhum traccedilo
a favor da existecircncia de um Evangelho escrito em liacutengua semiacutetica Ateacute mesmo
Jerocircnimo deve ter se enganado em ter dito que o Evangelho original de Mateus
escrito em hebraico ainda existia em seus dias Para Dalman mesmo os vaacuterios
textos dos Evangelhos em aramaico que satildeo conhecidos hoje e ateacute mesmo o texto
que Jerocircnimo usava em aramaico era derivado dos originais gregos
Temos ainda um segundo testemunho da origem dos Evangelhos dado por
Clemente de Alexandria conforme descrito por Euseacutebio na obra Histoacuteria da Igreja
Segundo Euseacutebio Clemente cita uma tradiccedilatildeo dos Anciatildeos a respeito da ordem dos
Evangelhos Conforme essa teoria os Evangelhos que compreendem as
genealogias foram escritos primeiro (Mateus e Lucas) jaacute o Evangelho de Marcos foi
escrito nas seguintes circunstacircncias O apoacutestolo Pedro pregou em Roma e expocircs
publicamente sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo a doutrina evangeacutelica do
cristianismo primitivo Os numerosos ouvintes de Pedro exortaram a Marcos a
transcrever as palavras do apoacutestolo jaacute que aquele tinha acompanhado Pedro por
muito tempo e por certo tinha vivo em sua mente muito do que o apoacutestolo Pedro
havia dito Todavia segundo Euseacutebio quando Pedro soube disso nada fez por meio
de seus conselhos para impedi-lo disso ou para forccedilaacute-lo a isso32
Esse testemunho como o de Papias referem-se aos Anciatildeos isto eacute a
homens da segunda geraccedilatildeo cristatilde A tradiccedilatildeo posterior natildeo faraacute mais do que
retomar esses argumentos
31
Cf Eusebius the Church History translation and commentary by Paul L Maier 2007 p 114 32
Cf Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p 1690 citaccedilatildeo da Hist Ecl IV 14 5-7
56
Papias e Clemente estatildeo de acordo em atribuir a composiccedilatildeo de um dos evangelhos a Marcos disciacutepulo de Pedro (cf 1Pd 5 13) cuja pregaccedilatildeo ele havia escrito Vindo de duas fontes arcaicas diferentes esta informaccedilatildeo pode ser considerada como certa Conforme Clemente Marcos teria escrito enquanto Pedro ainda vivia uma vez que ele estava por outro lado mais ou menos desinteressado desse empreendimento Papias natildeo nos daacute nenhuma informaccedilatildeo expliacutecita sobre este ponto Seu texto permite ao contraacuterio pensar que Marcos havia escrito depois da morte de Pedro e eacute neste sentido que interpretaratildeo Irineu de Liatildeo e o mais antigo Proacutelogo evangeacutelico que nos chegou (fim do seacuteculo II) Papias natildeo nos diz onde Marcos escreveu o seu Evangelho Clemente precisa que foi em Roma onde Pedro exercia o seu ministeacuterio Este pormenor retomado na tradiccedilatildeo posterior parece exato pois o Evangelho de Marcos conteacutem certo nuacutemero de termos gregos que satildeo apenas transcriccedilatildeo do latim (Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p1690)
Apesar de todo o complexo em torno das fontes atualmente a teoria das
duas fontes eacute a mais aceitaacutevel Para Bornkamn haacute tantos paralelos entre Mateus e
Lucas que podemos confiar que tal fonte existiu O que natildeo podemos saber eacute em
que extensatildeo ela jaacute tinha adquirido uma forma literaacuteria fixa Uma coisa eacute certa ela
deve ter sido bem diferente do Evangelho de Marcos Eacute possiacutevel ter certeza que a
fonte Q natildeo era um Evangelho acabado como o Evangelho de Marcos o eacute O modo
como Q eacute usada em Mateus e Lucas mostra como os dois evangelistas a trataram
com mais liberdade do que fizeram com Marcos Isso eacute verdade tanto com
referecircncia ao teor verbal quanto agrave sequecircncia do material Marcos e Q
absolutamente natildeo exaurem as fontes da tradiccedilatildeo sinoacutetica Mesmo Marcos tem
material proacuteprio Lucas eacute quem possui mais cobrindo tanto o ministeacuterio terreno
como as narrativas pascais bem como o material consideraacutevel que ele inseriu na
moldura criada por Marcos
A noccedilatildeo de autoria natildeo resiste aos dados da criacutetica contemporacircnea Os
Evangelhos de Mateus e Joatildeo natildeo possuem nenhuma evidecircncia interna que possa
atribuir a eles a autoria e da mesma forma Lucas e Joatildeo Segundo Latourelle a
criacutetica duvida que eles tenham sido testemunhas ateacute mesmo de segunda matildeo No
entanto a criacutetica reconhece que o autor do primeiro Evangelho era um judeu de
liacutengua grega profundamente conhecedor do judaiacutesmo de sua eacutepoca A criacutetica
tambeacutem reconhece Lucas como o meacutedico e companheiro de Paulo assim como
reconhece Marcos como companheiro de Paulo e sua influecircncia sobre os
evangelhos de Mateus e de Lucas Quanto agrave influecircncia de Pedro sobre o Evangelho
de Marcos a mesma eacute contestada pela criacutetica visto que Marcos parece ser mais um
57
relator e transmissor da pregaccedilatildeo da Igreja primitiva aleacutem de parecer ter sofrido
mais a influecircncia de Paulo
A contribuiccedilatildeo da patriacutestica testemunhada pelos pais da Igreja jamais pode
ser descartada por mais acriacutetica e ingecircnua que pareccedila ser visto que eles viveram
bem proacuteximos dos acontecimentos registrados nos Evangelhos
A importacircncia dos escritos antigos a respeito dos Evangelhos foi a resposta
da igreja aos hereges e aos evangelhos apoacutecrifos O exagerado embelezamento que
os apoacutecrifos criam para ldquocomplementarrdquo os Evangelhos canocircnicos obrigou a Igreja a
criteriosamente separar os Escritos canocircnicos dos apoacutecrifos Para Bornkamm a
formaccedilatildeo do cacircnon do Novo Testamento sempre foi um processo de separar e
nunca de juntar Conforme esse teoacutelogo seria mais viaacutevel perguntar se um livro
deveria estar no cacircnon do Novo Testamento do que perguntar por que determinado
livro natildeo faz parte dele
A Igreja tambeacutem teve que combater o gnosticismo que estava tentando minar
a veracidade dos Escritos Sagrados principalmente com Marciatildeo que com seu
dualismo ldquoopotildee o Deus bom do Novo Testamento ao Deus justo do Antigo
Testamentordquo (Latourelle 1989 p124) A Igreja entatildeo saiu em defesa do
cristianismo autecircntico levantando o estandarte dos quatro Evangelhos como os
uacutenicos reconhecidos como a ldquoautecircntica mensagem de Cristo reconhecida e
ensinada pela tradiccedilatildeo viva da igreja O criteacuterio decisivo eacute o acordo entre os
Evangelhos e a tradiccedilatildeo apostoacutelica que por sua vez se refere ao Cristo vivordquo
(Latourelle 1989 p125)
Eacute vaacutelido observar que os evangelhos sinoacuteticos33 satildeo compostos de ldquotradiccedilotildees
isoladas chamadas de periacutecopesrdquo Essas periacutecopes geralmente tecircm uma
conotaccedilatildeo teoloacutegica e natildeo necessariamente cronoloacutegica ldquoNa verdade muitas
periacutecopes incluem indicaccedilotildees topograacuteficas (no mar da Galileia em Cafarnaum
etc) mas a maioria delas natildeo eacute bem determinada Outro fato a se observar eacute que
nos sinoacuteticos Jesus se dirige a Jerusaleacutem uma uacutenica vez poreacutem em Joatildeo lsquovemos
Jesus se dirigindo a Jerusaleacutem repetidas vezesrsquordquo Segundo Gnilka o importante natildeo
eacute a exatidatildeo do itineraacuterio mas sim a reflexatildeo teoloacutegica (Gnilka 2000 p 24) No
33
O nome sinoacuteticos foi dado aos trecircs primeiros Evangelhos pelo pesquisador alematildeo J J Griesbach em sua obra Synopsis evangeliorum [Sinopse dos Evangelhos] obra que foi publicada em Halle em 1976 (Cf Marconcini 2009 p 10)
58
entanto conforme Benito Marconcini haacute uma concordacircncia nos sinoacuteticos quanto agrave
sucessatildeo dos fatos no ministeacuterio de Jesus Conforme Marconcini ldquoJesus inicia seu
ministeacuterio na Galileia atravessa a Samaria e chega a Jerusaleacutem onde tem o
encontro com a morterdquo (Marconcini 2009 p 10)
O concilio do Vaticano II reproduziu na constituiccedilatildeo sobre a Revelaccedilatildeo o
resultado das pesquisas modernas sobre a Historicidade dos Evangelhos e sobre o
Jesus Histoacuterico conforme resumimos abaixo
a) Os quatro Evangelhos transmitem fielmente o que Jesus realmente fez e
ensinou para a eterna salvaccedilatildeo dos homens
b) Os Apoacutestolos depois transmitiram o que Jesus havia dito e feito ()
c) Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos selecionando
algumas coisas dentre as muitas que tinham sido transmitidas oralmente ou por
escrito sintetizando outras ou adotando-as agraves situaccedilotildees das igrejas (Martins Terra
1977 p 129)
Seria imprudente buscar nos Evangelhos fatos como se busca numa revista
ou jornal de grande circulaccedilatildeo internacional moderna como New York Times por
exemplo Contudo segundo Swidler devemos olhar os quatro Evangelhos como
uma variedade de fontes orais e escritas que apoacutes um periacuteodo de tempo foram
redigidas conforme as necessidades sentidas pelas comunidades e indiviacuteduos da
eacutepoca No entanto fica claro que essa visatildeo criacutetica (moderna) dos Evangelhos natildeo
invalida o caraacuteter histoacuterico desses escritos Eles retratam com muito maior exatidatildeo
sob o ponto de vista histoacuterico-religioso (teoloacutegico) o que Jesus queria dizer com
certas declaraccedilotildees e accedilotildees relatadas pelas primeiras comunidades da Igreja
Primitiva (cf Swidler 1993 p104-105)
Natildeo podemos menosprezar a capacidade da comunidade cristatilde primitiva de
memorizar os fatos relacionados agrave vida de Jesus mas por outro lado natildeo podemos
negligenciar a limitaccedilatildeo humana em memorizar acontecimentos histoacutericos
Raciocinando dessa forma pode-se deduzir que com certeza muitas dessas
recordaccedilotildees natildeo foram transmitidas e nem registradas Eacute evidente que nem todas as
paraacutebolas foram registradas isso estaacute claro em Marcos 433 onde se lecirc ldquoE com
muitas paraacutebolas como esta anunciava-lhes a palavra segundo podiam entenderrdquo
ldquoPodemos partir do pressuposto de que nos evangelhos ficaram conservadas as
59
paacuteginas da atuaccedilatildeo e dos discursos de Jesus que satildeo de decisiva importacircncia para
a nossa feacuterdquo (Gnilka 2000 p25)
44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS
Jesus segundo Gnilka (2000 p35-36) viveu durante o governo de dois
imperadores romanos ldquoo de Otaviano Augusto (27 aC - 14 dC) e o de Tibeacuterio (14-
37)rdquo Nenhum dos dois esteve nessas paragens orientais do Impeacuterio nenhum dos
dois pisou territoacuterio da Siacuteria ou da Palestinardquo A histoacuteria de Jesus estaacute intimamente
ligada agrave famiacutelia Herodes Jesus nasceu sob o governo de Herodes o Grande filho
de Antiacutepater de origem idumeia Por decisatildeo do senado romano e tambeacutem por
iniciativa dos triuacutenviros Antocircnio e Otaviano e mais tarde Augusto pelo fim do ano 40
aC Herodes foi nomeado rei da Judeia
Apoacutes a morte de Herodes o Grande em 4 aC inicia-se uma disputa entre
seus filhos pela sucessatildeo que culminou na divisatildeo do poder entre os descendentes
de Herodes pelo imperador Historicamente dentre os filhos de Herodes o que mais
nos interessa eacute Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) que ficou como tetrarca da
Galileia Dentre os feitos de Antipas podemos citar a reconstruccedilatildeo da cidade de
Seacuteforis e a fundaccedilatildeo da cidade de Tiberiacuteades agrave margem do lago de Genezareacute
cidade que recebeu esse nome em honra ao Imperador Tibeacuterio Foi essa cidade
construiacuteda sobre um cemiteacuterio que Antipas escolheu para residecircncia oficial
tornando-a impura aos olhos dos Judeus crentes por causa das leis leviacuteticas (Gnilka
2000 p 39)
Herodes Antipas ficou conhecido por mandar matar Joatildeo Batista conforme o
relato nos evangelhos (Mc 617-29 Mt 14 3-12) e tambeacutem por Flaacutevio Josefo34 Os
motivos da morte de Joatildeo Batista nos evangelhos satildeo diferentes dos motivos
expostos por Josefo visto que Josefo coloca questotildees poliacuteticas como a principal
causa da execuccedilatildeo de Joatildeo jaacute que Antipas temia uma revolta poliacutetica a partir do
movimento do Batista Para Jesus Antipas tambeacutem tornou-se perigoso ldquoSegundo
Lc 1331 Jesus eacute aconselhado a sair de seu territoacuterio porque o priacutencipe pretendia
mataacute-lordquo (Gnilka 2000 p 40)
34
Cf Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 5 p 594-597
60
Na Judeia a situaccedilatildeo poliacutetica e religiosa era caoacutetica Arquelau (4 aC ndash 6
dC) filho de Herodes o Grande logo depois de ser instituiacutedo etnarca da Judeia e
Idumeia devido a sua extrema tirania tornou-se insuportaacutevel para os judeus a
ponto de um grupo desses ir ateacute Roma para denunciaacute-lo pela forma tiracircnica de
governar bem como a liberdade que tomou para depor e instituir sacerdotes no
templo em Jerusaleacutem Judeia Samaria e Idumeia passam a ser administradas
diretamente por Roma apoacutes Arquelau ser deposto (Gnilka 2000 p 41-42)
Eacute a partir de toda essa confusatildeo que entra em cena a figura de Pocircncio
Pilatos como governador da Judeia (praefectus Judaeae) Nessa eacutepoca tanto o
poder poliacutetico quanto o religioso eram controlados diretamente por Roma ldquoNo
templo tinha que ser oferecido duas vezes por dia um sacrifiacutecio pelo imperador e
pelo povo romano Sobre a administraccedilatildeo das financcedilas do templo o governador
provavelmente tinha uma espeacutecie de supervisatildeo As nomeaccedilotildees dos sumos
sacerdotes tambeacutem eram feitas pelos romanos fosse atraveacutes do governador da
Siacuteria ou do governador da Judeia Isto foi assim nos anos 6-41 depois de Cristordquo
(Gnilka 2000 p 42-43)
O mais importante dos governadores da Judeia que foi contemporacircneo de
Jesus foi Pilatos que segundo os Evangelhos participou decisivamente na morte
de Jesus ldquoFilon de Alexandria caracteriza Pilatos como um homem de natureza
inflexiacutevel obstinado e duro e acusa-o de corrupccedilatildeo violecircncia roubo maus tratos
ofensas continuadas execuccedilotildees sem julgamento constante e insuportaacutevel
crueldaderdquo (Gnilka 2000 p 44) Os dez anos em que Pilatos governou a Judeia
nos quais Caifaacutes tambeacutem sempre foi o Sumo Sacerdote foram marcados pela
crueldade e imprevisibilidade ateacute que no ano 36 ele foi deposto apoacutes ter feito um
violento massacre de samaritanos enquanto esses escalavam o monte Garizim Pelo
fato de estarem armados Pilatos os interpretou mal e resolveu intervir
massacrando-os Mediante esse fato Pilatos foi chamado a Roma para depor diante
do imperador Tibeacuterio mas com a morte deste ele ldquodesaparece do palco da histoacuteria
Notiacutecias surgidas mais tarde dando conta de que ele teria se suicidado ou que teria
sido executado pelo imperador Nero devem ser creditadas a lenda cristatilderdquo (Gnilka
2000 p 44-45)
61
Abaixo segue um resumo do governo poliacutetico e religioso das regiotildees e
cidades com as quais Jesus conviveu (Gnilka 2000 p 47)
- Os herodianos Herodes o Grande (37-4 aC) Antipas (4 aC-39 dC
GalileiaPereia) Filipe (4 aC -34 dC GaulaniacutetideBataneia Arquelau (4 aC -6 C
JudeiaSamariaIdumeia)
- Os Governadores na JudeiaSamariaIdumeia Copocircnio (6-9) Marcos
Antiacutebulo (circa 9-12) Acircnio Rufo (circa 12-15) Valeacuterio Grato (15-26) Pocircncio Pilatos
(26-36)
- Os sumos sacerdotes em Jerusaleacutem Simatildeo ben Boethos (24-5 aC)
Matias ben Theophilos (5-4) Joseacute bem Ellem (exerceu soacute por uma festa) Joazar ben
Boethos (4 aC) Eleazar ben Boethos (4 aC -) Jesus ben sieuml (tempo de cargo
desconhecido) Joazar ben boethos (no cargo pela segunda vez de -6 d C) Anaacutes
ben Sethi (6-15 d C) Ismael bem Phiabi (15-16) Eleazar ben Kamithos (17-18)
Joseacute Caifaacutes (18-36)
Jerusaleacutem era a cidade onde giravam os grandes acontecimentos da
Palestina era considerada a cidade santa natildeo somente por ser administrada
politicamente por Herodes o grande jaacute que muito antes dele a cidade jaacute havia se
transformado no centro espiritual e religioso do Judaiacutesmo A cidade no tempo dos
gregos e romanos tinha de certa forma uma feiccedilatildeo internacional Jesus entrou na
cidade foi aclamado mas logo rejeitado e entregue para ser morto pelo grupo dos
religiosos encarregados de todos os rituais do Templo (Gnilka 2000 p 49)
45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS
Jesus viveu num contexto muito religioso Foi apresentado no templo
circuncidado ao oitavo dia conforme a tradiccedilatildeo da religiatildeo judaica Sempre houve
uma tendecircncia de separar Jesus do contexto judaico tanto por judeus como por
cristatildeos Swidler pontua que os cristatildeos historicamente natildeo somente procuraram
mostrar que tudo o que Jesus fez era bom como procuraram demonstrar que tudo o
que ele fez foi oposto ao modo de agir dos judeus Por outro lado os judeus
aceitaram a interpretaccedilatildeo cristatilde que via Jesus como um antijudeu Atualmente as
coisas estatildeo mudando judeus tecircm visto Jesus como um autecircntico judeu enquanto
que um grande nuacutemero de estudiosos cristatildeos estatildeo convencidos de que soacute se pode
62
compreender adequadamente Jesus contextualizando-o num ambiente e como um
autecircntico Judeu (Swidler 1993 p108)
O Judeu Geza Vermes (com formaccedilatildeo cristatilde) no proacutelogo de seu livro o
ldquoAutecircntico Evangelho de Jesusrdquo relata que desde o fim da deacutecada de 1960 vem se
dedicando a pesquisar sobre Jesus indiferente agraves tradiccedilotildees cristatildes e judaicas a
respeito da pessoa do nazareno Vermes assim se expressa ldquoatuando como
historiador simpatizante e descartando vieses denominacionais tanto a deificaccedilatildeo
de Jesus pelos cristatildeos como a sua caricatura judaica tradicional como apoacutestata
maacutegico e inimigo do povo de Israel eu apenas tentei tirar a limpo e reconstruir uma
imagem de Yeshua filho de Joseacute do pequeno povoado galileu de Nazareacute (Vermes
2006 p7)
Digno de nota eacute que sendo Jesus judeu da Palestina judaica do primeiro
seacuteculo ldquona divisatildeo temporal feita em torno delerdquo (Vermes 2006 p7) obviamente
Jesus conviveu com os diversos grupos existentes na Palestina Conforme os
Evangelhos as relaccedilotildees de Jesus com os liacutederes dos movimentos religiosos nem
sempre foram amistosos Segundo Gnilka diversos eram os movimentos e grupos
poliacuteticos-religiosos nos dias de Jesus Quase todos provieram dos chassidim (os
piedosos) que haviam apoiado a resistecircncia dos macabeus e tambeacutem resistiram agrave
usurpaccedilatildeo dos asmoneus Desse movimento surgiu a maioria dos grupos religiosos
contemporacircneos de Jesus Esses grupos a maioria citados nos evangelhos satildeo
denominados de essecircnios fariseus saduceus e zelotes (Gnilka 2000 p52-53)
Enumerar esses grupos em relaccedilatildeo ao grau de importacircncia que eles exerciam
na sociedade judaica natildeo eacute uma tarefa faacutecil Diversas satildeo as hipoacuteteses levantadas
pelos pesquisadores a respeito de cada um dos grupos acima mencionados
Saldarini observa o fato de os escribas serem vistos como um grupo coeso apenas
no Novo Testamento sendo que em outras fontes eles satildeo vistos como um grupo
composto por pessoas desde a classe de altos funcionaacuterios ateacute a funccedilatildeo de um
humilde copista Outro fator que o autor observa eacute que para Josefo as trecircs
principais escolas de pensamento judaico dos dias de Jesus eram os fariseus os
saduceus e os essecircnios quando no Novo Testamento os principais oponentes de
Jesus satildeo os fariseus escribas e saduceus (Saldarini 2005 p 15)
63
451 OS ESSEcircNIOS
Dentre os grupos religiosos que temos mencionado os essecircnios satildeo os
menos conhecidos se levarmos em consideraccedilatildeo que a biacuteblia natildeo os menciona
contudo eles tecircm despertado muito interesse desde que foram descobertos os
manuscritos nas cavernas de Qumran em 1947 O jovem Mohammed ed-Dib (= ldquoo
lobordquo) conforme a descriccedilatildeo feita por J Jeremias (Jeremias 2006 p 401-429 cf
Jeremias 1979 p 117-148) tornou-se o grande protagonista talvez da maior
descoberta do seacuteculo concernente agrave literatura religiosa ou por que natildeo dizer
universal J Jeremias nos fornece alguns detalhes sobre a importacircncia das
descobertas de Qumran e o judaiacutesmo contemporacircneo de Jesus Depois que
Mohammed descobriu a primeira gruta outras dez foram descobertas sendo ateacute
hoje numeradas de 1 a 11 O papel dos beduiacutenos foi fundamental nas descobertas
visto que sem a busca incessante deles a maioria dos rolos natildeo teriam sido
descobertos Os manuscritos satildeo em um nuacutemero de aproximadamente 600 Mesmo
que a maioria seja apenas de fragmentos alguns do tamanho de uma unha mas
pelo menos uns dez encontram-se quase que totalmente preservados Eles satildeo
datados do periacuteodo que se compreende do seacuteculo III aC ao seacuteculo I da era cristatilde
Atribui-se a produccedilatildeo dos textos e o armazenamento deles em grutas aos essecircnios
conforme nos descreve J Jeremias citando a ldquoHistoacuteria Natural de Pliacutenio
A margem ocidental (do Mar Morto) fora do alcance da influecircncia nociva (de suas aacuteguas) estatildeo estabelecidos os essecircnios Eacute um agrupamento de solitaacuterios uacutenico no mundo sem mulheres ndash pois renunciam ao amor sexual e sem dinheiro eles vivem na sociedade das palmeiras (Embora se abstenham do casamento) o nuacutemero de seus adeptos se manteacutem e se renova cada dia pela afluecircncia daqueles que cansados de lutar contra as vagas de destino vecircm participar de sua vida Assim coisa incriacutevel eles permanecem atraveacutes de milhares de geraccedilotildees uma raccedila eterna ainda que natildeo existam nascimentos entre eles (V 1713)
Para J Jeremias natildeo haacute duacutevida que Pliacutenio se refere aos essecircnios mesmo
que por engano os tenha chamado de raccedila eterna Os essecircnios surgiram por volta
de 167-154 aC apoacutes Antiacuteoco Epifacircnio profanar o Templo de Jerusaleacutem Em 152
aC apoacutes a guerra com os siacuterios Jocircnatas Macabeus cinge a tiara de sumo
sacerdote mesmo natildeo pertencendo agrave descendecircncia dos sadoquitas que eram os
64
uacutenicos habilitados para exercer tal funccedilatildeo Uma revoluccedilatildeo acontece no coleacutegio
sacerdotal resultando na formaccedilatildeo de um grupo denominado de ldquoKhassyyayardquo os
piedosos que em grego satildeo denominados de ldquoessenoirdquo ou ldquoessaicircoirdquo conhecidos
hoje por essecircnios
Os essecircnios eram apocaliacutepticos esperavam o iminente fim deste mundo que
eles acreditavam estar bem proacuteximo Guardavam o saacutebado a ponto de natildeo ajudar
um animal no parto e nem socorrecirc-lo caso caiacutesse num buraco no dia de saacutebado
(Gnilka 2000 p 55-56) tambeacutem tinham como chefe um homem chamado com toda
reverecircncia nos rolos como o ldquoMestre da Justiccedilardquo ldquoo grande teoacutelogo e exegeta da
seitardquo (cf Jeremias 2006 p 408) Para Sean Freyne o chamado ldquoPapiro da Guerrardquo
(1QM) intitulado como ldquoA Guerra dos filhos da luzrdquo mostra como essa comunidade
apregoava um certo tipo de guerra coacutesmica parecida com a religiatildeo zoroaacutestrica da
Peacutersia onde a ecircnfase do conflito estaacute centrada na ideia de uma guerra do bem e o
mal (Freyne 2008 p26) J Jeremias define a teologia tambeacutem como uma doutrina
baseada em dois espiacuteritos ou seja no espiacuterito de Deus e no espiacuterito de Belial ou
seja no diabo e isso resulta na constante luta entre a Luz e as Trevas que tambeacutem
se desenrolam no interior do ser humano (Jeremias 2006 p 412) De acordo com J
Jeremias o dualismo essecircnio eacute monoteiacutesta conforme podemos ver em IQS 31517-
1925 abaixo reproduzido
Do Deus dos conhecimentos Vem tudo o que eacute tudo o que acontece e antes mesmo que as coisas existissem ele fixara todo o seu plano
Eacute ele quem criou o homem para dominar o mundo e pocircs diante de dois espiacuteritos para que ele ande neles ateacute ao momento fixado por sua divina visita
Satildeo os (dois) espiacuteritos de verdade e de iniquidade Da fonte da luz sai a verdade E da fonte das trevas sai a iniquidade Eacute ele (Deus) quem criou os espiacuteritos da luz e das trevas
65
Observamos acima algumas descriccedilotildees a respeito do grupo dos essecircnios
contudo segundo Freyne (Freyne 2008 p26) natildeo se pode resumir o pensamento
desse grupo com um periacuteodo de aproximadamente 200 anos de histoacuteria apenas em
um ponto de vista Isso pode ser visto por exemplo em 4Q 521 onde o texto
demonstra o anseio dos oprimidos por um messias libertador que venha ldquocurar os
feridos distribuir riquezas entre os necessitados conduzir de volta os exilados e
enriquecer os famintosrdquo ou ainda textos como 4Q 426 onde o ldquoGrande Deusrdquo trava
uma decisiva batalha contra as naccedilotildees e garante a paz definitiva ao seu povo O
que Freyne procura dizer eacute que o pensamento dos essecircnios eacute amplo demais para
ser resumido em poucas palavras contudo como natildeo eacute nosso interesse pesquisar a
fundo essa seita contentamo-nos a princiacutepio com algumas informaccedilotildees sobre
eles35
Ainda sobre os essecircnios sabemos por David Flusser que eles eram ferrenhos
inimigos dos fariseus uma vez que condenavam os feitos farisaicos energicamente
No Rolo de Accedilatildeo de Graccedilas (IQH) 4 6-8 estaacute escrito sobre os fariseus da seguinte
maneira ldquoE conduziram o povo por caminhos desviados ao lhes proferir discursos
macios Falsos mestres levam para maus caminhos e caminham cegamente para a
queda pois suas obras satildeo feitas no logrordquo (cf Flusser 2002 p 46)
Aleacutem do que jaacute foi dito sobre os essecircnios surge uma pergunta Ateacute que ponto
os essecircnios tiveram contato com Jesus ou seria Jesus membro da seita dos
essecircnios Segundo Charlesworth eacute possiacutevel que Jesus tenha encontrado alguns
essecircnios em suas idas e vindas no periacuteodo em que exerceu o seu ministeacuterio ou ateacute
antes disso Contudo natildeo podemos afirmar isso jaacute que os essecircnios natildeo satildeo
mencionados no Novo Testamento e na verdade natildeo temos certeza se eles
exatamente eram conhecidos (Charlesworth 1992 p76) Para Charlesworth o que
fica evidente eacute que os essecircnios e Jesus foram contemporacircneos o que nos leva a
deduzir que eacute muito provaacutevel que Jesus ao menos tenha ouvido falar deles e ateacute
conhecesse a doutrina rituais religiosos e haacutebitos sociais desse grupo
(Charlesworth 1992 p79)
Charlesworth enumera algumas semelhanccedilas e diferenccedilas entre Jesus e os
essecircnios 35
Para mais informaccedilotildees sobre os essecircnios ver (Jeremias 2006 p 401-429 e Charlesworth 1992 p 70-89)
66
a) Jesus partilha com os essecircnios de uma teologia monoteiacutesta
b) Como os essecircnios a teologia de Jesus era categoricamente escatoloacutegica
c) Jesus partilhava com os essecircnios uma total entrega a Deus e a Toraacute (Ele
pode ter se referido aos essecircnios quando elogiou os eunucos por causa do reino de
Deus cf Mt 19 10-12)
d) Jesus conforme o Evangelho de Marcos proibiu o divoacutercio (Mateus tornou-
a casuiacutestica Mt 5 31-32 199) assim como os essecircnios eram totalmente contraacuterios
ao divoacutercio ldquoo rei deve permanecer casado com apenas uma mulherrdquo (cf II Q
Temple 57 17-18)
f) Dos essecircnios Jesus rejeita a riacutegida observacircncia do Saacutebado
g) Jesus ao contraacuterio dos essecircnios aproximou-se de todas as classes
sociais inclusive de prostitutas e cobradores de impostos Aleacutem disso a visatildeo de
Jesus em relaccedilatildeo aos rituais de purificaccedilatildeo judaicos era muito diversa das dos
judeus
h) A atitude liberal de Jesus sobre a purificaccedilatildeo se contrastava com a
paranoia dos essecircnios principalmente em relaccedilatildeo ao afastamento das pessoas que
tinham lepra Em II Q Temple 48 14-15 eacute orientado a que existam cidades proacuteprias
para o isolamento dos leprosos enquanto que Jesus repousou em Betacircnia na casa
de Simatildeo o leproso (Mc 143)
i) Jesus enfatizou o amar uns aos outros (na paraacutebola do bom samaritano)
enquanto que os essecircnios na renovaccedilatildeo anual entoavam maldiccedilotildees sobre os filhos
das trevas especialmente sobre aqueles que natildeo eram essecircnios (1Qs) Jesus pode
ter se dirigido a eles quando se referiu ao dito ldquoamaraacutes o teu proacuteximo e odiaraacutes ao
teu inimigo (Mt 5 43)
Em resumo Charlesworth conclui que o cristianismo natildeo foi fundado com as
bases do essenismo conforme havia dito Renan em sua obra ldquoVida de Jesusrdquo
Jesus foi o fundador do cristianismo que foi fundado em meio agraves vaacuterias correntes
judaicas da eacutepoca sem que se possa mencionar uma uacutenica fonte como a trajetoacuteria
Jesus natildeo era um essecircnio ldquomas pode ter partilhado com os essecircnios mais do que a
mesma naccedilatildeo tempo e lugarrdquo (Charlesworth 1992 p 84-88)
452 OS FARISEUS
67
Os fariseus (pharushim ndash separados) - ldquoum grupo de estudiosos leigos que
apareceram na histoacuteria cerca de um seacuteculo e meio antes do nascimento de Jesus
() e se tornaram autoridades na vida dos judeus durante o reinado da rainha
Alexandra em (76-67 aC)rdquo (Swidler 1993 p 74) - nasceram do grupo dos chassidim
e eram em nuacutemero de seis mil pessoas em Jerusaleacutem nos dias de Jesus (Flusser
2002 p 44) Eles tambeacutem natildeo concordavam com a usurpaccedilatildeo por parte dos
asmoneus Segundo Gnilka a maioria dos escribas pertencia ao grupo dos fariseus
Em relaccedilatildeo aos saduceus os fariseus eram a maioria mas a influecircncia poliacutetica
destes era menor Jaacute o clima entre fariseus e essecircnios era hostil Os essecircnios
consideravam os fariseus com ldquogente que amolece e dissolve a lei e de quem se
pode esperar o logro mentira seduccedilatildeo e errordquo (Gnilka 2000 p57-60) Segundo
Flusser os fariseus eram denominados pelos essecircnios como ldquocaiadosrdquo e Jesus
tambeacutem se referiu a eles no Evangelho de Mateus 23 27-28 dizendo ldquoAi de voacutes
escribas e fariseus hipoacutecritas Sois semelhantes a sepulcros caiados que por fora
parecem bonitos mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidaderdquo
Embora o ataque dos essecircnios fosse em alguns pontos parecidos com a criacutetica que
Jesus fez contra os fariseus a distacircncia entre eles eacute muito grande Os essecircnios
rejeitavam explicitamente a doutrina dos fariseus ao passo que Jesus de uma
forma mais positiva via-os como os ldquoherdeiros contemporacircneos de Moiseacutesrdquo (cf
Flusser 2002 p46-48)
Os fariseus eram muito queridos pela maioria da populaccedilatildeo judaica devido agrave
devoccedilatildeo deles aos rituais religiosos Segundo Sanders no periacuteodo asmoneu os
fariseus tambeacutem exerceram uma influecircncia e forccedila poliacutetica muito importante ainda
que depois perderam tal forccedila No governo de Herodes somente o rei tinha o poder
poliacutetico uma vez que todos os que o ameaccedilassem eram imediatamente executados
Na Galileia o sucessor de Herodes foi seu filho Antipas que tambeacutem natildeo se mostrou
muito disposto assim como seu pai a dar autoridade a algum grupo de piedosos e
mestres religiosos Somente em Jerusaleacutem apoacutes Arquelau (irmatildeo de Antipas) ser
deposto eacute que os saduceus respaldados pelo poder romano puderam como grupo
religioso exercer forccedila poliacutetica Os fariseus mesmo sendo a maioria em relaccedilatildeo aos
saduceus continuaram apenas trabalhando ensinando e exercendo suas funccedilotildees
68
no culto judaico nas sinagogas A popularidade deles provavelmente aumentou
contudo natildeo o poder poliacutetico (cf Sanders 2005 p68)
A visatildeo de Saldarini sobre os fariseus compactua com Sanders a respeito da
popularidade dos fariseus Ele observa que para o evangelista Marcos os fariseus
eram um grupo muito reconhecido na comunidade da Galileia Jesus um jovem
oriundo de uma famiacutelia de artesatildeos considerada uma classe inferior na Palestina
natildeo dispunha da mesma honra dada aos fariseus principalmente em Nazareacute sua
terra natal Mas com o decorrer do tempo Jesus atraveacutes de seu ministeacuterio
conseguiu a simpatia de muitos seguidores em outras cidades da Galileia
contraindo para si o ciuacuteme a ira e a perseguiccedilatildeo dos fariseus O confronto dos
fariseus com Jesus a princiacutepio estava baseado em temas teoloacutegicos a respeito do
Jejum (Mc 218) da observacircncia do saacutebado (Mc 224 32) e sobre o divoacutercio (Mc
102) da purificaccedilatildeo das matildeos (Mc 71) e outros temas relacionados com respeito agrave
conduta de Jesus entre os homens considerados pecadores (Mc 216) etc Para os
fariseus no entanto o que estava em jogo natildeo eram apenas os debates teoloacutegicos
mas principalmente a simpatia e o controle da comunidade (Saldarini 2005 p 162-
164)
Para Saldarini os fariseus juntamente com os escribas eram os principais
opositores de Jesus na Galileia Em Jerusaleacutem os seus adversaacuterios tinham um
poder poliacutetico muito maior jaacute que entre eles estavam os chefes dos sacerdotes os
escribas e os anciatildeos do povo dentre os membros desses grupos principalmente
dos sacerdotes estavam os que entregaram Jesus agrave morte O evangelista Marcos
menciona os fariseus em cinco casos (2 18 224 32 811-15 102) e em todos os
casos eles estatildeo em conflito com Jesus36 Os escribas e fariseus juntos satildeo
mencionados duas vezes em Marcos tambeacutem quando estatildeo em conflito com Jesus
(216 7 1-5) Com os herodianos os fariseus satildeo mencionados duas vezes em
Marcos (36 1213) Para o evangelista Marcos os fariseus satildeo situados sempre na
36
Geza Vermes observa que no Evangelho de Mateus os fariseus natildeo satildeo sempre vistos no aspecto negativo Vermes vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e amor a Deusrdquo eles por outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser seguida
69
Galileia (3 2-6 7 1-5 2 18-24 811 102) A uacutenica exceccedilatildeo no evangelho de
Marcos eacute quando os fariseus e os herodianos satildeo enviados a Jesus a fim de
apanhaacute-lo em Jerusaleacutem (1213) Ao contraacuterio de Josefo que situa os fariseus
sempre em Jerusaleacutem ao lado dos chefes dos judeus Marcos mostra-os sempre
ativos na Galileia (Saldarini 2005 p159-160)
Apesar dos fariseus estarem sempre em confronto com Jesus nos
Evangelhos alguns pesquisadores veem algumas semelhanccedilas entre o movimento
de Jesus e o movimento dos fariseus Swidler lista algumas semelhanccedilas entre os
dois grupos Segundo Swidler Jesus reinterpretou as Escrituras hebraicas de
maneira condizente com o meio social onde se encontrava Jesus tambeacutem participou
de refeiccedilotildees entre amigos do tipo farisaico Tambeacutem segundo Swidler eacute possiacutevel ver
semelhanccedilas na doutrina de Jesus a respeito do amor no Shema oraccedilatildeo do
monoteiacutesmo nas bem aventuranccedilas em questotildees relacionadas agrave ressurreiccedilatildeo
tambeacutem seria ver fortes indiacutecios de um espiacuterito farisaico na vida de Jesus (cf
Swidler 1993 p78)
Para fundamentar essa teoria Swidler busca outros pesquisadores como o
teoacutelogo catoacutelico Pawlikowski que chegou a concluir que natildeo seria errado ldquoconsiderar
o movimento de Jesus como uma parte do movimento farisaico geral embora em
muitos campos tivesse um ponto de vista diferenciadordquo Swidler ainda cita o
estudioso protestante E P Sanders referindo-se a ele como mais cauteloso sobre o
assunto abordado poreacutem natildeo hesita em afirmar tambeacutem que ele faz parte do
nuacutemero sempre crescente de especialistas que duvidam que tenham existido
ldquopontos importantes de oposiccedilatildeo entre Jesus e os fariseusrdquo (Swidler 1993 p78)
A forte tendecircncia de colocar Jesus como um judeu apenas corrobora o que
ele sempre foi um judeu e natildeo um cristatildeo uma vez que o cristianismo soacute veio a
existir apoacutes a morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus Entre os judeus catoacutelicos e
protestantes tecircm surgido renomados defensores da teoria Jesus dentro do
judaiacutesmo Swidler aleacutem de citar um catoacutelico e um protestante como referecircncia cita
ainda um judeu (Geza Vermes) para corroborar esse pensamento Vermes em seu
livro Jesus e o mundo do Judaiacutesmo descreve ldquoJesus era um hasid galileu nisso a
meu ver reside a sua grandeza e tambeacutem o germe de sua trageacutediardquo (Vermes 1996
p20)
70
Para Vermes contudo Jesus natildeo foi muito amado pelos fariseus porque
Jesus segundo a visatildeo e interpretaccedilatildeo biacuteblica dos fariseus desprezava
propositadamente alguns costumes tradicionais como sentar-se agrave mesa com
publicanos e prostitutas No entanto para Vermes natildeo parece que tenha havido
discoacuterdia entre Jesus e os fariseus em temas essenciais da religiatildeo e feacute judaica
Vermes define a relaccedilatildeo de Jesus com os fariseus da seguinte maneira ldquoNatildeo
obstante o conflito entre Jesus da Galileia e os fariseus de sua eacutepoca ter-se-ia
assemelhado em circunstacircncias normais agrave mera luta intestina de facccedilotildees
pertencentes ao mesmo corpo religioso como a que se travou entre caraiacutetas e
rabanitas na Idade Meacutedia ou entre os ramos ortodoxo e progressista do judaiacutesmo na
eacutepoca modernardquo (Vermes 1996 p20)
Vermes observa ainda que no Evangelho de Mateus os fariseus nem
sempre satildeo vistos no aspecto negativo Ele vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a
respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles
tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado
juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento
os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e a mor a Deusrdquo eles por
outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o
assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos
fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles
eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser
seguida (Vermes 2006 p98)
Segundo Swidler tanto os pontos positivos e os negativos foram adotados
diretamente pela Comissatildeo do Vaticano para Relaccedilotildees Religiosas com os Judeus e
indiretamente por outras igrejas O Catecismo da Igreja catoacutelica romana diz que
ldquopode-se tambeacutem frisar que se Jesus se mostra severo para com os fariseus eacute
porque estaacute mais proacuteximo deles que de quaisquer outros grupos judaicos seus
contemporacircneosrdquo (cf Vermes 1996 p79)
Nesse invoacutelucro de pensamentos sobre Jesus e os fariseus Swidler leva em
conta o fato de Vermes ter apontado Jesus como participante do grupo dos
ldquohassideus ou devotosrdquo Dentre as muitas especulaccedilotildees descritas por Swidler (nem
71
todas expostas aqui) eacute digna de nota a conclusatildeo desses apontamentos nas
palavras do proacuteprio autor
Assim talvez a melhor maneira de situar Ieshua no contexto do judaiacutesmo da sua eacutepoca seja como mestre (rabi) viandante e que fazia milagres um saacutebio (hakaham) da Galileia hassid galileu que sob muitos aspectos se assemelhava a Hillel (cujos ensinamentos acabaram mais tarde prevalecendo sobre os Shammai no judaiacutesmo rabiacutenico) que alguns estudiosos iriam considerar como algueacutem que teve um relacionamento muito proacuteximo com os fariseus aos quais poreacutem ele criticava sendo por sua vez criticado por eles Sigal o considerou hassid galileu hakham e proto-rabino o qual como Iohanan ben Zakkai antes e depois do ano 70 dC criticou duramente os pharisaioi os perushim (que Sigal natildeo considerava predecessores do judaiacutesmo rabiacutenico muito embora por vezes um emprego impreciso do termo pharisaioi nos evangelhos e em Josefo pudesse incluir alguns proto-rabinos) Estou convencido de que Sigal nos fornece a mais exata e abrangente descriccedilatildeo do lugar de Ieshua na vida judaica do seu
tempo (Swidler 1993 p 86-87)37
A proximidade de Jesus com os fariseus eacute tambeacutem notada por Flusser Ele
nota que nos Evangelhos sinoacuteticos diferentemente de Joatildeo (cf Jo 18 3) os fariseus
natildeo figuram em nenhuma descriccedilatildeo do julgamento de Jesus Flusser ainda nota
que nos primoacuterdios do cristianismo quando os cristatildeos foram perseguidos pelo
ldquosumo sacerdote saduceu o Raban Gamaliel tomou seu partido e os salvourdquo (At 5
17-42) Da mesma maneira Paulo quando estava perante o Sineacutedrio em Jerusaleacutem
vendo que seria punido severamente apelou para os fariseus e encontrou neles
solidariedade (At 22 30 236-10) jaacute que a outra parte era composta por saduceus
(Flusser 2002 p49)
A possiacutevel afeiccedilatildeo dos fariseus em relaccedilatildeo aos primeiros cristatildeos eacute
mencionada por Flusser sobre ldquoTiago o irmatildeo do Senhor e aparentemente outros
cristatildeosrdquo (cf Antiquities book 20 200-2001 in Josephus 1999 p656) que foram
condenados agrave morte em 62 dC pelo sumo sacerdote saduceu (ilegalmente) mas
foram salvos pelos fariseus quando estes apelaram ao rei que por sua vez acabou
37
Segundo Swidler o rabino Phillip Sigal de Pittsburgh os fariseus dos evangelhos natildeo satildeo os
predecessores dos rabis posteriores a 70 dC responsaacuteveis pelos escritos e tambeacutem sem duacutevida fundadores do judaiacutesmo dos nossos dias Para Sigal os predecessores dos rabis natildeo eram nem hillelistas (da escola de Hillel) nem Shamaiacutetas (da escola de Shamai) e nem pertenciam a nenhuma escola ou ldquocasardquo (bet) propriamente dita Ieshua (Jesus) natildeo era saduceu ou fariseu tampouco hilletita nem shamaiacuteta mas era um protorrabi antecipado da eacutepoca tanaiacutetica A sua maneira de ensinar era baseada na liberdade de interpretaccedilatildeo e autoridade conforme o modelo de ensinar protorrabiacutenico [] Ieshua era hakham (saacutebio filoacutesofo um protorrabi) como um profeta carismaacutetico que pregava sobre assuntos assombrosos e aterradores conforme a halakhah juntamente com sua pregaccedilatildeo hagaacutedica (Swidler 1993 p 86)
72
destituindo tal sumo sacerdote Segundo Flusser os fariseus possivelmente
consideravam a relaccedilatildeo dos saduceus com os romanos como um ato de
ldquodespotismo sacerdotalrdquo e essa poderia ser a causa a partir da leitura dos Sinoacuteticos
da ausecircncia de relatos da presenccedila de fariseus no julgamento e condenaccedilatildeo de
Jesus Flusser pressupotildee que os Sinoacuteticos natildeo mencionam um protesto dos fariseus
a favor de Jesus uma vez que eles jaacute haviam registrado anteriormente um Jesus
ldquoantifarisaicordquo em suas narrativas (Flusser 2002 p50)
453 OS SADUCEUS
Os saduceus que natildeo eram originaacuterios dos chassidim mas dos asmoneus
respeitavam os fariseus porque estes tinham um grande prestiacutegio com a populaccedilatildeo
em geral A classe dos saduceus era composta por gente nobre e rica da sociedade
Eles rejeitavam a doutrina da ressurreiccedilatildeo dos mortos e a existecircncia dos anjos
Tambeacutem soacute aceitavam o Pentateuco como verdade de feacute ldquoOs saduceus possuiacuteam o
poder os fariseus possuiacuteam a influecircncia sobre o povordquo (Gnilka 2000 p 61-62)
Flusser tambeacutem coloca os saduceus como um grupo pequeno menor do que os
fariseus por outro lado ele observa que os saduceus eram poderosos uma vez que
pertenciam a aristocracia sacerdotal do templo Eles natildeo eram revolucionaacuterios como
os fariseus (que se envolveram na guerra civil no periacuteodo macabeu) negavam a
validade da tradiccedilatildeo oral e consideravam toda a crenccedila na vida futura como uma
tolice (Flusser 2002 p45)
Nos Evangelhos sinoacuteticos os saduceus satildeo mencionados mais no Evangelho
de Mateus sendo que em Marcos e Lucas eles satildeo mencionados apenas uma vez
em cada Evangelho (Mc 12 18-27 Lc 20 27-40) No entanto tanto para Mateus e
Marcos como para Josefo os saduceus assim como os fariseus eram muito
conhecidos no primeiro seacuteculo da era cristatilde (Saldarini 2005 p183-184) Os
saduceus satildeo sempre colocados por Josefo ao lado dos fariseus Josefo tambeacutem
situa os saduceus como sendo um grupo pertencente agrave classe dominante Em Atos
dos apoacutestolos os saduceus discutem com os fariseus acerca da ressurreiccedilatildeo por
causa de um discurso de Paulo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (At 23) Em Atos
(41 517) os saduceus tambeacutem satildeo associados aos maiorais do templo ou seja agrave
classe sacerdotal (Saldarini 2005 p308-309)
73
A classe sacerdotal estaacute intimamente relacionada ao julgamento de Jesus
Em Lucas 22 54 lemos ldquoPrenderam-no e levaram-no introduzindo-o na casa do
Sumo Sacerdote Pedro seguia de longerdquo Segundo Flusser o clatilde sacerdotal e o
proacuteprio sumo sacerdote eram saduceus Caifaacutes era o sumo sacerdote e tambeacutem era
a figura mais importante do segundo Templo Foi na casa (palaacutecio) de Caifaacutes que
Jesus passou a noite sob custoacutedia enquanto era escarnecido pelos guardas (Lc 22
63) Os saduceus odiavam a Jesus possivelmente porque o consideravam um
profeta (ldquoFaz uma profecia quem eacute que te bateurdquo Lc 22 64) e sua presenccedila em
Jerusaleacutem podia ser uma clara ameaccedila Segundo Joatildeo os motivos da condenaccedilatildeo
de Jesus pela classe sacerdotal eacute que
[] os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram ldquoQue faremos Esse homem realiza muitos sinais Se o deixarmos assim todos creratildeo nele e os romanos viratildeo destruindo o nosso lugar santo e a naccedilatildeordquo Um deles poreacutem Caifaacutes que era o Sumo Sacerdote naquele ano disse-lhes ldquoVoacutes nada entendeis Natildeo compreendeis que eacute de vosso interesse que um soacute homem morra pelo povo e natildeo pereccedila a naccedilatildeo todardquo Natildeo dizia isso por si mesmo mas sendo sumo Sacerdote naquele ano profetizou que Jesus morreria pela naccedilatildeo ndash e natildeo soacute pela naccedilatildeo mas tambeacutem para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos Entatildeo a partir desse dia resolveram mataacute-lo Jesus por isso natildeo andava em puacuteblico entre os judeus mas retirou-se para a regiatildeo proacutexima do deserto para a cidade chamada Efraim e aiacute permaneceu com seus disciacutepulos (Jo 11 47-54)
A atitude de Caifaacutes em relaccedilatildeo agrave morte substituta de Jesus (ldquoeacute de vosso
interesse que um soacute homem morra pelo povordquo) eacute vista por Flusser mais como uma
justificativa do sumo sacerdote uma vez que a tradiccedilatildeo judaica repudiava o ato de
entregar um cidadatildeo judeu para que fosse morto por estrangeiros era um pecado
imperdoaacutevel segundo a halakaacute38 Flusser cita ainda o Rolo do Templo essecircnico
(64 7-8) que diz ldquoSe um homem calunia Meu povo e entrega Meu povo para uma
naccedilatildeo estrangeira e pratica a iniquidade contra meu povo penduraacute-lo-eis numa
38
Zuurmond define a halakaacute da seguinte maneira ldquoeacute o way of life judaico o conjunto de prescriccedilotildees e proibiccedilotildees que definem a maneira como vivem os judeus Uma questatildeo halaacutequica eacute uma disputa sobre a halakaacute geralmente com base na interpretaccedilatildeo de textos do Antigo Testamento Nem toda a questatildeo halaacutequica eacute de ordem moral As leis de pureza por exemplo formam uma parte importante da halakaacute mas ndash pelo menos segundo nosso modo de falar ndash natildeo tem caraacuteter moralrdquo (Zuurmond 1998 p 77) A raiz halak tambeacutem pode ser definida como a ldquoviardquo a ldquocaminhadardquo ou seja ldquoa regra (de vida) que vai permitir a aplicaccedilatildeo da Torah escrita agraves circunstacircncias reais e mutaacuteveis da vida O plural eacute halakot regras decisotildees e coleccedilotildees de leisrdquo (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
74
aacutervore e ele morreraacuterdquo Ainda havia uma tradiccedilatildeo oral dos saacutebios judeus com o
seguinte teor ldquose haacute um grupo de pessoas e os gentios lhes dizem entregai um de
voacutes para noacutes e o mataremos se natildeo fizerdes mataremos a todos a (regra eacute) deixai
que todos sejam assassinados e natildeo entregueis a eles uma uacutenica alma em Israel
poreacutem se eles o escolherem deixai que o entreguem para que todos natildeo sejam
massacradosrdquo (cf Flusser 2002 p 164-166)
Caifaacutes natildeo se restringiu apenas a entregar Jesus aos romanos Ele sabia que
eles eram implacaacuteveis a qualquer judeu rebelde ou a movimentos profeacuteticos
entusiastas que se levantassem na Palestina No entanto parece que Caifaacutes natildeo
estava preocupado com as tradiccedilotildees de seu povo O viacutenculo dele com os suacuteditos e
representantes de Cesar se estreitava ainda mais quando o vemos em Atos dos
Apoacutestolos (4 1-3 46 5 27-28) juntamente com a classe sacerdotal (os saduceus)
prendendo muitos cristatildeos em Jerusaleacutem pelos mesmos motivos que Jesus foi
entregue aos romanos sem se importar com as tradiccedilotildees judaicas das quais ele
deveria ser o principal observador (Flusser 2002 p 154-166)
454 OS ZELOTAS
Os movimentos de resistecircncia nos dias de Jesus estatildeo ligados ao projeto de
romanizaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo da Galileia por Herodes Antipas (Crossan 2009 p16-
18) O anseio de Antipas em se tornar rei uma vez que ele foi nomeado por Cesar
Augusto como tetrarca da Galileia e Pereia e seu irmatildeo Felipe ficou como tetrarca
da parte do extremo norte do paiacutes Jaacute Arquelau o outro filho de Herodes o Grande
ficou como etnarca da Idumeia Judeia e Samaria o que deixou Antipas muito
desapontado
Segundo Crossan Antipas comeccedilou a trabalhar para ganhar prestiacutegio em
Roma poreacutem agraves custas de um jugo pesado aos habitantes da Galileia Primeiro ele
fortificou Seacuteforis ldquopara ser o ornamento de toda a Galileiardquo e dedicou a Augusto a
sua cidade-capital reconstruiacuteda Apoacutes a morte de Augusto assumiu como Imperador
de Roma Tibeacuterio Antipas logo teve a ideia de substituir a capital Seacuteforis fundando
uma nova cidade a 32 quilocircmetros ao leste na costa ocidental do mar da Galileia e
nomeou-a Tiberiacuteades em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (cf Crossan 2009 p
17-18) O problema de tudo isso era que as construccedilotildees de Antipas provocavam o
75
aumento dos tributos sobre os galileus causando um descontentamento geral
Contudo para Antipas o que mais importava conforme Crossan nos descreve era
passar a Roma uma imagem de um governante lucrativo na questatildeo da arrecadaccedilatildeo
de impostos o que poderia levar o Imperador a pensar ldquoque eacute que natildeo faria ele
como monarca de toda a paacutetria judaicardquo
As construccedilotildees de Antipas poderiam impressionar Roma mas natildeo poderiam
evitar os movimentos de resistecircncia judaica uma vez que segundo Pagola (2010 p
48) ldquoos camponeses experimentaram pela primeira vez a pressatildeo e o controle
proacuteximo dos governos herodianosrdquo A situaccedilatildeo era tatildeo caoacutetica que aumentou
assustadoramente o nuacutemero de indigentes prostitutas e diaristas enfim parece que
Jesus conheceu ao longo de sua vida uma Galileia onde a desigualdade social era
enorme onde se favorecia a minoria privilegiada de Seacuteforis e Tiberiacuteades ao custo da
pobreza e sofrimento e desintegraccedilatildeo de muitas famiacutelias
Crossan (2004 p 275) nota que a construccedilatildeo ou reconstruccedilatildeo das cidades
de Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo afetou apenas os camponeses iletrados ou seja os
trabalhadores mais humildes mas tambeacutem afetou agrave classe dos letrados Assim ele
conclui que ateacute mesmo o movimento de Jesus relacionado ao reino de Deus
comeccedilou como um movimente de resistecircncia a partir dos camponeses ldquomas
abandonou seu caraacuteter localista e regionalista sob a lideranccedila dos letradosrdquo
Dentre os movimentos de Revolta encontramos Judas galileu que apoacutes a
deposiccedilatildeo de Arquelau (6 d c) natildeo aceitava que o pagamento de impostos devia
ser efetuado diretamente a Roma Segundo Theissen (2004 p163-164) a doutrina
de Judas repercutiu muito chegando ao ponto de alguns ldquoherodianosrdquo questionarem
a Jesus a respeito da questatildeo de se era liacutecito ou natildeo pagar impostos ao Imperador
(cf Mc 12 13-17) Horsley defende que o movimento de Judas o Galileu e de
Sadoc o fariseu que Josefo rotula como a quarta filosofia (as outras satildeo os
fariseus os saduceus e os essecircnios) tecircm sido interpretadas de uma forma errada
por vaacuterios especialistas que afirmam que esse movimento pregava a revolta armada
contra Roma De acordo com Horsley Josefo assim descreveu esse movimento em
Ant 18 4-5 23
Mas um certo Judas gaulanita da cidade de Gamala em combinaccedilatildeo com o fariseus Sadoc insistiu fortemente na resistecircncia Eles diziam que tal
76
avaliaccedilatildeo tributaacuteria implicava escravidatildeo pura e simples e pressionavam a naccedilatildeo a exigir sua liberdade [] Judas o Galileu estabeleceu-se como o liacuteder da quarta filosofia Os seus adeptos concordaram com as ideia dos fariseus em tudo exceto em sua indomaacutevel paixatildeo pela liberdade pois consideram Deus o seu uacutenico liacuteder e senhor (cf Horsley 2010 p 72)
Horsley avalia que Judas e Sadoc estivessem mais ligados ao ensino ou
pregaccedilatildeo ldquocontra a avaliaccedilatildeo tributaacuteria ou ateacute mesmo uma resistecircncia organizada
contra os impostos do que um grupo armado e violento conforme tem sido
interpretado a partir dos escritos de Josefordquo (Horsley 2010 p 78-79)
As informaccedilotildees sobre os grupos de resistecircncias nem sempre satildeo unacircnimes
como vimos acima No entanto podemos afirmar que entre os grupos de resistecircncia
encontram-se os Zelotes (Zelotas) talvez os mais conhecidos O termo Zelotas
encontra-se oito vezes registrado no Novo Testamento Esse termo geralmente
aplica-se ldquoaos guerrilheiros da resistecircncia desde Judas Galileu (6 aC) ateacute os
defensores da fortaleza de Masadaacute (74 dC) Eles eram rigorosamente
observadores do saacutebado da circuncisatildeo (exigiam a circuncisatildeo ateacute mesmo dos
antigos) e tinham fortes crenccedilas escatoloacutegicasrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia
do Novo Testamento p 2686) De acordo com Theissen mesmo que os
seguidores de Judas Galileu sejam chamados de Zelotes natildeo eacute possiacutevel afirmar tal
coisa visto que em Josefo eles ldquoaparecem como grupo apenas depois do inicio da
guerra judaica em 66 dC em relaccedilatildeo com o Templordquo (cf Theissen 2004 p164)
contudo haacute um argumento de peso contra essa teoria uma vez que entre os
disciacutepulos de Jesus por volta da metade do seacuteculo I havia um zelole (Simatildeo Zelote
cf Lc 6 15) e Theissen faz uma observaccedilatildeo ldquoaleacutem disso na Galileiardquo
Os zelotas eram originaacuterios dos fariseus e assim como os essecircnios estavam
ligados pela guerra santa e escatoloacutegica Natildeo satildeo citados nos evangelhos como
grupo mas entre os disciacutepulos de Jesus como foi dito acima havia um disciacutepulo
chamado de ldquoSimatildeo o Zeloterdquo (Lc 615 At 113) Eles lutavam pelos direitos do
pobre do oprimido e a esses ldquoprometiam com a chegada do Reino de Deus a
restauraccedilatildeo de seus direitos e uma nova ordem estabelecida por Deusrdquo (Gnilka
2000 p 60) O fato de entre os disciacutepulos ter um zelote natildeo significa que esse
movimento tenha sido endossado por Jesus jaacute que os ensinamentos de Jesus sobre
o tributo a Cesar e sua atitude para com o saacutebado eacute uma forma de repuacutedio a
77
doutrina apregoada pelos zelotas (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo
Testamento p 2686)
Podemos observar portanto que a possiacutevel relaccedilatildeo de Jesus com os Zelotas
como grupo de resistecircncia eacute muito remota ou praticamente inexistente conforme
Crossan (2004 p275) tem observado Ainda na mesma linha de pensamento de
Crossan Sean Freyne tambeacutem considera remota a hipoacutetese do possiacutevel
envolvimento de Jesus com o grupo dos zelotas Para Freyne (2008 p 130) a
pregaccedilatildeo de Jesus natildeo incitava a vinganccedila uma vez que estava mais baseada no
livro do Gecircnesis (criaccedilatildeo) do que no livro do Ecircxodo (libertaccedilatildeo) ou seja Jesus natildeo
via as demais naccedilotildees ou outras origens eacutetnicas como objeto de remoccedilatildeo
aniquilaccedilatildeo conversatildeo ou conquista como viam os heroacuteis do Antigo Testamento
Contudo para Freyne devemos observar que haacute duas formas de
interpretarmos Jesus de Nazareacute Se o olharmos segundo o ponto de vista de
Crossan veremos um Jesus voltado para um entendimento sapiencial e natildeo
apocaliacuteptico ou seja Jesus teria escolhido um modelo de dominaccedilatildeo monaacuterquica
baseado num ldquoreino dos destituiacutedos e Jootildees ningueacutem vigente no aqui e agora um
reino realizado (por meios maacutegicos e materiais) natildeo apenas proclamadordquo Por outro
lado Freyne observa que o pensamento de Horsley sobre Jesus eacute bem diferente
dos de Crossan Jesus segundo Horsley teria sido um revolucionaacuterio ou seja
partindo desse ponto de vista ldquoo siacutembolo do reino de Deus tal como empregado por
Jesus significava a vitoacuteria de Deus sobre as forccedilas do mal uma concepccedilatildeo que se
coadunava com as expectativas apocaliacutepticas judaicas padratildeordquo posiccedilatildeo essa que
segundo Freyne seria mais convincente (Freyne 2008 p 132)
Bruce Malina vecirc o grupo de Jesus como uma religiatildeo politicamente inserida
onde o reino e o governo de Deus satildeo iminentes ou seja seus disciacutepulos devem
orar para que o reino de Deus venha para o julgamento e recompensa e isso
segundo Malina era compreendido sob o ponto de vista poliacutetico por uma pessoa do
primeiro seacuteculo A morte de Jesus natildeo foi o fim desse reinado pois ldquoos seguidores
de Jesus acreditavam que Deus o ressuscitou dos mortos de maneira que o proacuteprio
Jesus em breve surgiria como vice regente do Deus de Israel como Messias de
Israel com poderrdquo (Malina 2004 p 99) Malina conclui esse pensamento afirmando
que
78
o reino de Deus veio para tomar a forma de uma teocracia representativa e pessoal Nestas dimensotildees ele teria tido a mesma estrutura da religiatildeo poliacutetica de Israel durante o tempo de Jesus A questatildeo aberta era Quem seria o agente o substituto concreto para o Deus de Israel Os membros do grupo de Jesus tinham pouca duacutevida de que esse agente fosse Jesus o Messias de Israel Mas Deus tinha em mente mais natildeo apenas Israel (Malina 2004 p 164)
Portanto pertencer ao grupo de Jesus era mais do que esperar por um reino
poliacutetico era ter um novo modo de vida ia aleacutem das fronteiras de Israel natildeo significa
apenas a libertaccedilatildeo de um jugo poliacutetico mas a libertaccedilatildeo do ser humano como um
todo
79
5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS
E SEUS DESDOBRAMENTOS
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Jesus apesar de ser visto por alguns
pesquisadores com caracteriacutesticas proacuteximas do grupo dos fariseus natildeo fez parte de
nenhum grupo revolucionaacuterio Contudo isso natildeo significa que ele fosse indiferente
aos problemas sociais que afligiam toda a Palestina Em contraste com os
poderosos da eacutepoca que exploravam os pobres atraveacutes da cobranccedila desmedida de
tributos Jesus oferece-se como um descanso aos cansados e oprimidos porque
somente ele tem um jugo suave e um fardo leve (cf Mt 11 28-30) Esse descanso
soacute ele pode oferecer porque recebeu do Pai a quem ele conhece e por quem
tambeacutem eacute conhecido (cf Mt 1127) Abba eacute a palavra por excelecircncia no quesito
intimidade entre Jesus e Pai dos Ceacuteus conforme a tese defendida por J Jeremias
51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA
Jesus conforme a tradiccedilatildeo cristatilde e os vaacuterios testemunhos das fontes (os
Evangelhos) possui o testemunho intriacutenseco de que eacute o Filho de Deus (cf Mt 1433
Mc 11 311 1539 Lc 2227 Jo 134 1127) O Evangelho de Marcos de uma
forma clara jaacute nos mostra a importacircncia desse pensamento teoloacutegico nas seguintes
palavras ldquoPrinciacutepio do Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deusrdquo (Mc 11) Justino
de Roma tambeacutem prima pela exaltaccedilatildeo de Jesus como o Filho de Deus dizendo que
ldquo[] com razatildeo honramos tambeacutem a Jesus Cristo que foi nosso Mestre nessas
coisas e para isto nasceu o mesmo que foi crucificado sob Pocircncio Pilatos
procurador na Judeia no tempo de Tibeacuterio Ceacutesar Aprendemos que ele eacute o Filho
proacuteprio do Deus verdadeirordquo (Justino 1995 p28) ou ainda conforme a confissatildeo
de feacute de Calcedocircnia (451 dC) ldquoJesus eacute verdadeiramente homem e
verdadeiramente Deusrdquo ( Swidler 1993 p30)
Os Evangelhos da infacircncia (Mateus e Lucas) de uma forma independente
narram alguns acontecimentos relacionados ao nascimento e agrave infacircncia de Jesus
Segundo Duquoc as narrativas do nascimento de Jesus relatadas por Mateus e
Lucas se inserem na tradiccedilatildeo do Antigo Testamento como vemos no nascimento de
Isaac (Gn 21 1-7) de Jacoacute (Gn 25 25-26) de Moiseacutes (Ex 2 1-10) de Sansatildeo (Jz
80
13 1-25) e o de Samuel (1 Sam 1 19-26) As caracteriacutesticas de tais narrativas satildeo
ldquodiscernir na concepccedilatildeo ou no nascimento os sinais antecipadores de um destino
particularmente abenccediloado por Deusrdquo Para Duquoc contudo tratar as narrativas de
Mateus e Lucas como Evangelhos da Infacircncia natildeo eacute a forma mais correta e pode
induzir em erro mesmo que a tradiccedilatildeo assim os mencione Nos textos de Mateus e
Lucas observamos que ali se trata mais do nascimento do que a infacircncia de Jesus
conforme vemos resumido no quadro comparativo abaixo (Duquoc 1992 p22)
Mateus Lucas
Genealogia de Cristo 1 1-17 Anuacutencio da concepccedilatildeo virginal a Joseacute 1 18-24 Nascimento do Salvador 125 Visita dos magos 2 1-12 Fuga para o Egito e massacre dos inocentes 2 13-18 Volta a Nazareacute 2 19-23
Anuacutencio do nascimento de Joatildeo Batista 1 5-25 Anuacutencio a Maria 1 26-28 Visitaccedilatildeo 1 39-56 Nascimento do Salvador 2 1-14 Visita dos Pastores 2 15-20 Circuncisatildeo 2 21 Apresentaccedilatildeo no Templo 2 22-38 Volta a Nazareacute 2 39-40 Reencontro no Templo 2 41-52
Os relatos da infacircncia ou do nascimento conforme menciona Duquoc natildeo
fazem parte do querigma (Keacuterygma) mas estatildeo associados mais ao Antigo
Testamento como vimos acima Contudo eles foram inseridos nos Evangelhos e
devem ser lidos a partir da perspectiva dos evangelistas Eles natildeo satisfazem a
curiosidade como fazem os Apoacutecrifos visto que eles estatildeo relacionados mais agrave feacute da
Igreja primitiva do que aos acontecimentos histoacutericos ldquoMateus e Lucas iluminaram
retrospectivamente as recordaccedilotildees atraveacutes da catequese evangeacutelica e os eventos
decisivos da Paacutescoa Natildeo narram uma histoacuteria Propotildeem apenas uma doutrina em
forma de histoacuteria Seria errocircneo querer iluminar a catequese por meio de narrativas
de nascimento O processo foi inversordquo (Duquoc 1992 p24-25)
81
Observamos que as narrativas da infacircncia levantam questotildees sobre a
autenticidade histoacuterica dos relatos dos evangelistas Para Fitzmyer nas narrativas
da infacircncia eacute difiacutecil constatar o realmente histoacuterico poreacutem eacute inegaacutevel o fato de que
exista um nuacutecleo histoacuterico nesses acontecimentos os quais serviram como base
para que os evangelistas numa tradiccedilatildeo posterior pudessem responder perguntas
sobre ldquoQuem eacute elerdquo ou ldquoDe onde ele veiordquo39 (Fitzmyer 1997 p34-35)
Apesar das diferenccedilas e da independecircncia dos evangelhos (Mateus e Lucas)
Fitzmyer observa que haacute pelo menos doze pontos nas narrativas da infacircncia que satildeo
comuns ou pelo menos haacute concoacuterdia entre os dois evangelistas a respeito do
nascimento do menino Jesus os quais seratildeo transcritos abaixo
1) O nascimento de Jesus relaciona-se com o reinado de Herodes Magno
(Mt 21 Lc 15)
2) Maria sua futura matildee eacute uma virgem noiva de Joseacute mas eles ainda
natildeo coabitaram (Mt 118 Lc 12734 25)
3) Joseacute eacute da casa de Davi (Mt 1 1620 Lc 127 24)
4) Um anjo do ceacuteu anuncia a concepccedilatildeo e o nascimento futuros de Jesus
(Mt1 20-21 Lc 1 28-30)
5) O proacuteprio Jesus eacute reconhecido como filho de Davi (Mt 11 Lc 132)
6) Sua concepccedilatildeo aconteceraacute por intermeacutedio do Espiacuterito santo (Mt 1
1820 Lc 1 35)
7) Joseacute natildeo se envolve na concepccedilatildeo (Mt1 18-25 Lc 134)
8) O nome ldquoJesusrdquo eacute imposto antes de seu nascimento (Mt 1 21 Lc
131)
9) O ceacuteu identifica Jesus como ldquoSalvadorrdquo (Mt 121 Lc 211)
10) Jesus nasce depois que Joseacute e Maria vatildeo viver juntos (Mt 1 24-25 Lc
2 4-7)
11) Jesus nasce em Beleacutem (Mt 21 Lc 2 4-7)
12) Jesus se fixa com Maria e Joseacute em Nazareacute na Galileia (Mt 2 22-23
Lc 239-51)
39
Segundo Fitzmyer as narrativas da infacircncia natildeo se originaram de uma tradiccedilatildeo mais primitiva da Igreja visto que nem Marcos (que eacute considerado o primeiro Evangelho a ser escrito) e nem Joatildeo (que eacute reconhecido como sendo de uma tradiccedilatildeo igualmente primitiva a de Marcos mas independente dos Sinoacuteticos) natildeo conteacutem tais relatos mas inicia-se com o Verbo que se fez carne (1 1-18) ou seja com o Verbo divino e preexistente
82
Nos primoacuterdios da Igreja a questatildeo da divindade e humanidade de Cristo era
o centro de muitas controveacutersias teoloacutegicas que partiam de vertentes judaicas ou
entatildeo de certos movimentos cristatildeos considerados como hereges Face agraves muitas
divergecircncias a respeito do Cristo a Igreja tomou frente a tais controveacutersias e pocircs-se
a refutar as heresias com toda a forccedila possiacutevel Correntes judaizantes e gnoacutesticas
que incansavelmente procuravam por todos os meios possiacuteveis proclamar que Jesus
era apenas um homem que morreu pregado na cruz ou entatildeo um divino que
parecia ser humano procuravam a todo custo abalar a feacute daqueles que foram
alcanccedilados pela feacute cristatilde Os Evangelhos e todo o Novo Testamento foram escritos
para fundamentar a feacute dos primeiros cristatildeos em Jesus Cristo Mediante a tantas
heresias que foram surgindo na Igreja tentando negar a divindade de Jesus os
cristatildeos reagiram com veemecircncia escrevendo muitas histoacuterias sobre Jesus como
forma de demonstrar que desde menino o filho de Joseacute e Maria era detentor de
muitos prodiacutegios nunca antes realizados em Israel nem mesmo pelos grandes
profetas do Antigo Testamento
Estas narrativas foram redigidas e fazem parte do que posteriormente ficou
conhecido como os ldquoEvangelhos Apoacutecrifosrdquo Os Apoacutecrifos satildeo portanto a forma
mais clara que a Igreja usou para se opor as teorias que negavam a divindade de
Jesus Na busca de por em evidecircncia a divindade do Mestre os Apoacutecrifos
apresentam Jesus quase sempre como um menino ou um homem prodigioso capaz
de realizar milagres tatildeo grandes que chegam a ser absurdo
A tradiccedilatildeo cristatilde ainda no intuito de preservar a doutrina da filiaccedilatildeo divina de
Jesus procurou de uma forma cuidadosa defender tal doutrina em seus vaacuterios
credos ao longo da histoacuteria do cristianismo Os mais antigos e conhecidos credos
satildeo Credo Apostoacutelico (Seacuteculo III e IV) Credo de Niceacuteia (325 AD - revisado em
Constantinopla em 381 AD) Credo de Calcedocircnia (451 AD) e o Credo de Atanaacutesio
(seacuteculos IV e V) A relaccedilatildeo de Jesus Cristo com Deus Pai e sua funccedilatildeo na
Santiacutessima Trindade satildeo mencionadas em todas as confissotildees acima citadas
(Grudem 1999 p996) Jaacute no primeiro credo (Credo Apostoacutelico) observamos a
importacircncia de Jesus como o Filho de Deus encarnado
Creio em Deus Pai Todo Poderoso Criador do ceacuteu e da terra E em Jesus Cristo seu Filho unigecircnito nosso Senhor concebido pelo Espiacuterito Santo e nascido da Virgem Maria que padeceu sob Pocircncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos
83
que subiu ao ceacuteu e assentou-se agrave direita do Pai Todo-Poderoso de onde haacute de vir para julgar os vivos e os mortos Creio no Espiacuterito Santo na santa igreja catoacutelica na comunhatildeo dos santos na remissatildeo de pecados na ressurreiccedilatildeo da carne e na vida eterna Ameacutem (Grudem 1999 p996)
O credo segundo Thomas P Rausch (2006 p16) ldquoeacute uma declaraccedilatildeo oficial
da crenccedila da Igreja e tem poder normativo para a feacute da Igrejardquo Rausch observa que
o entatildeo cardeal Ratzinger escolheu o Credo Apostoacutelico como base para a sua
abordagem do livro Introduccedilatildeo ao Cristianismo De acordo com Rausch nessa obra
o cardeal faz uma mediaccedilatildeo entre os extremos relacionados agrave Cristologia da feacute e o
Jesus da histoacuteria Por um lado haacute os que procuram reduzir a Cristologia agrave histoacuteria
enquanto que por outro lado haacute os que buscam o abandono da histoacuteria
considerando-a como algo irrelevante para a feacute40 Abaixo reproduzimos um quadro
resumido dos principais conciacutelios Gerais da igreja onde foram formulados os
principais credos da Igreja (cf Rausch 2006 p261)
Conciacutelio Principais Figuras Temas
Niceia (325) Aacuterio (que natildeo estava presente) ldquohouve um tempo em que ele natildeo erardquo 381 bispos presentes
Rejeitou a opiniatildeo de Aacuterio de que o logos havia sido criado Cristo eacute homoousion41 ao Pai
Constantinopla I (381) Influecircncia Capadoacutecia Afirma a feacute de Niceacuteia Um novo credo afirma a divindade do Espiacuterito Nosso credo eacute uma combinaccedilatildeo de ambos
Eacutefeso I (431) Nestoacuterio conjunccedilatildeo de naturezas Maria eacute christokos42 Joatildeo de
Condena Nestoacuterio Maria eacute theotokos mas Cirilo e Joatildeo de Antioquia e excomungam
40
Nesse tratado escrito no final da deacutecada de 60 Ratzinger procura encontrar um meio termo entre Harnack que purifica a feacute da doutrina e do credo colocando a reconstruccedilatildeo do Jesus histoacuterico como fator determinante para a Cristologia com Bultmann para quem somente a feacute em Cristo tem importacircncia para o cristatildeo (cf Rausch 2006 p16) Vale ressaltar aqui que para o entatildeo cardeal Ratzinger ldquosegundo a feacute da Igreja a filiaccedilatildeo divina de Jesus natildeo se deve ao fato de Jesus natildeo ter um pai humano a doutrina do ser divino de Jesus natildeo sofreria nenhuma restriccedilatildeo se Jesus fosse o fruto de um casamento humano normal porque a filiaccedilatildeo divina que eacute objeto da feacute cristatilde natildeo eacute um fato bioloacutegico e sim ontoloacutegico natildeo eacute um evento no tempo e sim na eternidade de Deus ()rdquo Se considerarmos este texto como a base do pensamento de Ratzinger percebemos que a teologia de Bultmann teve para ele na eacutepoca um peso maior (cf Ratzinger 2006 p 204) 41
Homoi ser ldquosemelhanterdquo semelhante quanto ao ser (cf Rausch 2006 p 249) 42
Significa ldquoPortadora do Cristordquo Matildee de Cristo (cf Rausch 2006 p 249)
84
Conciacutelio Principais Figuras Temas
Antioquia Cirilo de Alexandria uniatildeo hipostaacutetica Maria eacute theotokos43
um ao outro
Eacutefeso II (449) (ldquoConciacutelio do Ladratildeordquo)
Flaviano de Constantinopla ldquoa partir de duas naturezas numa soacute hipoacutestase44 e numa soacute pessoardquo (foacutermula da uniatildeo) Dioacutescoro de Alexandria
Dioacutescoro domina Eacute rejeitada a foacutermula de Flaviano (ldquoa partir de duas naturezas uma soacute pessoardquo) O proacuteprio conciacutelio poreacutem eacute rejeitado
Calcedocircnia (451) 600 bispos Tomus do papa Leatildeo escrito para apoiar Flaviano Legados papais insistem numa nova profissatildeo de feacute
Condena Dioacutescoro aceita o Tomus de Leatildeo Prega duas naturezas numa uacutenica pessoa e numa uacutenica hipoacutestase verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem
Observamos que para a Igreja dos primeiros seacuteculos as verdades teoloacutegicas
a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus com o Pai eram de suma importacircncia para a
formaccedilatildeo e crescimento das comunidades cristatildes Por isso defenderam com
coragem e destemor o que acreditavam ser a essecircncia do Evangelho de Jesus
Cristo No entanto sempre houve aqueles que lutaram de todas as maneiras para
por em descreacutedito tanto o Evangelho como a pessoa de Jesus de Nazareacute Os pais
da Igreja tiveram que lutar contra as heresias e contra os hereges que procuraram
desmoralizar o mais importante homem do vilarejo de Nazareacute No entanto conforme
observa Rausch haacute problemas metodoloacutegicos nos Credos da Igreja Eles sempre
pressupotildeem uma Cristologia de ldquocima para baixordquo por isso a Cristologia necessita
de um fundamento criacutetico Para Rausch a Cristologia precisa ser estabelecida de
ldquobaixo para cimardquo ou seja ela precisa estar baseada nos atos e feitos do Jesus
histoacuterico para que natildeo seja acusada de ser uma feacute helenizada onde o carpinteiro
43
Significa ldquoPortadora de Deusrdquo Matildee de Deus (cf Rausch 2006 p 249) 44
Aquilo que estaacute sob ou daacute suporte a um objeto realizaccedilatildeo um ser concreto que suporta as diversas qualidades ou aparecircncias de uma coisa Ser subsistente realidade que existe por si mesma substacircncia (Exemplo medieval- ldquotransubstanciaccedilatildeordquo (cf Rausch 2006 p 249)
85
de Nazareacute teria sido transformado em um ldquosalvador divinizadordquo conforme o conceito
grego do divino (Rausch 2006 p 17)
52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA
Se para termos sucesso no estudo da Cristologia eacute necessaacuterio partirmos de
baixo para cima ou seja nas palavras de Rogers Haight ldquoseria difiacutecil imaginar
algueacutem interessado pela existecircncia humana de uma perspectiva religiosa que natildeo se
sentisse motivado a saber mais sobre Jesusrdquo uma vez que ldquoa Cristologia comeccedilou
com Jesus de Nazareacute e deve comeccedilar com Jesus hoje em diardquo (Rogers 2003
p75) precisamos analisar as fontes e teorias sobre Jesus desde as canocircnicas ateacute
as mais rejeitadas pela tradiccedilatildeo cristatilde Jaacute observamos acima que a Igreja dos
primeiros seacuteculos priorizou por razotildees apologeacuteticas em propagar e defender a
divindade de Cristo e por outro lado natildeo houve um interesse igual quando o tema
era a humanidade de Jesus No entanto com o passar dos seacuteculos surgiram
inuacutemeras questotildees a respeito do homem chamado Jesus de Nazareacute Para responder
tais questotildees ou pelo menos investigaacute-las faz-se necessaacuterio o estudo da Cristologia
partindo do homem Jesus ao Cristo da feacute
Edward Schillebeeckx nos diz que para uma boa reflexatildeo sobre a Trindade
faz-se necessaacuterio uma interpretaccedilatildeo cristoloacutegica de Jesus ou seja ldquona sua
humanidade Jesus eacute tatildeo intimamente do Pai que eacute exatamente nisso que ele eacute
Filho de Deusrdquo Podemos ver isso nas palavras de Schillebeeckx abaixo
[hellip] natildeo devemos compreender Jesus a partir da Trindade mas vice-versa eacute somente a partir de Jesus que a plenitude da unidade divina (natildeo tanto unitas trinitaris mas trinitas unitaris) se torna acessiacutevel para noacutes de alguma forma somente com base na vida morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus sabemos que a Trindade eacute o modo divino da absoluta unidade da essecircncia divina Somente a partir de Jesus de Nazareacute de sua experiecircncia com o ldquoAbbardquo -fonte e alma de sua mensagem atuaccedilatildeo e morte ndash e de sua ressurreiccedilatildeo eacute que algo cheio de sentido pode ser dito sobre o Pai Filho e Espiacuterito Santo Pois na vivecircncia de Jesus com seu ldquoAbbardquo o importante eacute que esse ldquoestar voltado para o Pairdquo e ldquoprecedidordquo com a absoluta prioridade e internamente sustentado pelo entregar-se do proacuteprio Pai a Jesus de forma uacutenica Ora a mais antiga tradiccedilatildeo cristatilde chama de ldquoPalavraVerbordquo a essa autocomunicacatildeo de Pai base e fonte da proacutepria experiecircncia de Jesus com o ldquoAbbardquo Isso implica que a palavra de Deus eacute a base total de tudo o que apareceu em Jesus ( Schillebeeckx 2008 p663)
86
A Cristologia portanto deve comeccedilar a partir do Jesus humano sem que se
negligencie o Cristo da feacute Jesus foi o nome que mudou a histoacuteria da humanidade
como podemos dizer parafraseando Haight que Jesus de Nazareacute eacute praticamente
um consenso universal na histoacuteria como sendo um judeu que viveu nos primoacuterdios
do seacuteculo I e que posteriormente veio a ser reconhecido como o Messias ou o
Cristo Conforme Haight podemos afirmar ainda que ldquoJesus foi uma figura
concreta na histoacuteria humanardquo e por isso essa histoacuteria natildeo pode ser relegada ao
esquecimento (Haight 2003 p29)
Geza Vermes compocircs um resumo histoacuterico da vida de Jesus a partir do
Evangelho de Marcos sem as narrativas da infacircncia acima esboccediladas (em 51)
Vermes chama essas informaccedilotildees peculiares de ldquoo evangelho fundamental ndash
representado por Marcos (cf Vermes 1990 p 20) que conteacutem as seguintes
informaccedilotildees
Nome Jesus
Nome do Pai Joseacute
Nome da matildee Maria
Lugar do nascimento natildeo mencionado
Data do nascimento natildeo mencionada
Domiciacutelio Nazareacute na Galileia
Estado Civil natildeo mencionado45
Profissatildeo carpinteiro (τέκτων ) mas tambeacutem exorcista e pregador itinerante
O certificado de oacutebito pode ser preenchido de maneira um pouco mais
completa
Lugar do oacutebito Jerusaleacutem
Data da morte ldquoSob Pocircncio Pilatosrdquo entre os anos 26 e 36 dC
Causa da morte crucificaccedilatildeo ordenada pelo governador romano
Lugar do sepultamento Jerusaleacutem
45
Vermes contudo considera que Jesus era celibataacuterio uma vez que nunca haacute menccedilatildeo de qualquer esposa no decorrer do seu ministeacuterio (cf Vermes 1990 p 21)
87
Para falar do Jesus humano eacute preciso contextualizaacute-lo ao tempo e ao espaccedilo
ou seja natildeo podemos menosprezar o periacuteodo em que Jesus viveu entre os homens
Sabendo que a Palestina dos dias de Jesus estava politicamente sob o impeacuterio
romano e religiosamente dominada pelo extremismo e exclusivismo religioso natildeo eacute
difiacutecil de imaginar o quanto Jesus e sua famiacutelia devem ter sofrido preconceito numa
sociedade patriarcal em meio ao caos poliacutetico e religioso
Bruce Chilton examina a questatildeo do Jesus histoacuterico desde os dias em que
Jesus estava com os disciacutepulos ateacute um periacuteodo poacutes-apostoacutelico Segundo ele sempre
houve aqueles que questionaram a filiaccedilatildeo divina de Cristo assim como colocaram
em duacutevida a sua filiaccedilatildeo terrena Vermes um judeu com formaccedilatildeo cristatilde considera
que falar das histoacuterias da infacircncia de Jesus de uma forma ou de outra acabam por
introduzir ldquoum elemento de duacutevida acerca da paternidaderdquo (cf Vermes 1990 p21)
Como foi dito acima eacute muito provaacutevel que Jesus e seus pais tenham sofrido algum
preconceito em relaccedilatildeo agrave paternidade de Joseacute em relaccedilatildeo ao seu filho Jesus
Segundo Chilton existem trecircs teorias a respeito do nascimento de Jesus A
primeira delas eacute a que Jesus foi concebido por obra do Espiacuterito Santo conforme
descrito nos Evangelhos (Mt 118-25 Lc 134-35) A segunda teoria tem a pretensatildeo
de especular que Jesus era filho bioloacutegico de Joseacute tal como se pode compreender
da afirmaccedilatildeo de Filipe achamos a Jesus de Nazareacute ldquofilho de Joseacuterdquo (Jo 145) A
terceira teoria eacute que Jesus era filho de fornicaccedilatildeo conforme uma das interpretaccedilotildees
do evangelho de Joatildeo 841 ldquoVoacutes fazeis as obras de vosso pai Disseram-lhe entatildeo
natildeo nascemos da prostituiccedilatildeo temos soacute um pai Deusrdquo (Charlesworth 2006
p87)46
46
Juan Mateos interpreta o texto de Jo 841 partindo do princiacutepio que Jesus acusa os judeus que nele ldquohaviam cridordquo (o crer aqui pode ser obra do redator uma vez que um pouco agrave frente os mesmos querem matar Jesus cf Brown 1975 p80) de cometerem o pecado da idolatria uma vez que segundo alguns rabinos ser filho de Abraatildeo significava praticar a benevolecircncia a modeacutestia e a humildade Os que tais virtudes natildeo praticavam eram considerados como servo de um outro deus totalmente diferente do Deus de Abraatildeo por isso chamados de idoacutelatras Os judeus entenderam atraveacutes da interpretaccedilatildeo dos profetas que ao serem chamados de idoacutelatras era o mesmo que ser chamado de filhos da prostituiccedilatildeordquo algo que eles negam teoricamente mas como seus pais idoacutelatras que mataram os profetas eles da mesma forma querem matar Jesus que vem da parte de Deus (cf J Mateos 1989 p392-393) Segundo Brown ser descendente de Abraatildeo fisicamente natildeo tem nenhum meacuterito quando esse suposto filho natildeo age como agiu seu pai aqui no caso ldquoAbraatildeo que Creu quando Deus lhe falourdquo eles por outro lado natildeo creem no enviado de Deus (Jesus) por isso satildeo filhos ilegiacutetimos (cf Brown 1975 p80-81)
88
Diante desse contexto Chilton levanta uma questatildeo polecircmica Jesus pode ter
sido considerado um mamzer Algumas condiccedilotildees poderiam ser determinantes para
expor um indiviacuteduo na condiccedilatildeo de mamzer A principal caracteriacutestica que definia
uma pessoa nessa condiccedilatildeo era se tal indiviacuteduo era fruto de uma uniatildeo proibida e
consequentemente um filho proibido de acordo com a Toraacute ldquoNenhum bastardo
entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar
na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo (Dt 233) Conforme a Mishnah47
poderia ser considerado um mamzer aquele filho cuja paternidade natildeo era
conhecida e portanto natildeo havia evidecircncias que tal uniatildeo fosse permitida de acordo
com a Lei Por outro lado na visatildeo do Talmude Babilocircnico48 bastava ser filho de um
natildeo israelita para que o indiviacuteduo fosse considerado um mamzer
A legitimidade da paternidade bioloacutegica de Jesus foi assunto controverso
como indicado mais acima jaacute no segundo seacuteculo da era Cristatilde Alguns autores
como John P Meier (1991 p223) e Bruce Chilton (in Charlesworth 2006 p 85)
mencionam a acusaccedilatildeo feita por Celso jaacute no ano de 178 dC que Jesus era filho de
Maria com um soldado Romano chamado Pantera49
A fonte desta histoacuteria de acordo com Dalman (2002 p152-153) vem do
Talmude Babilocircnico O nome de um certo Jesus eacute comumente mencionado no
Talmude e na literatura talmuacutedica pelas expressotildees Filho de Stada (Satda) e Filho
de Pandera (Pantera) Segundo Dalman a traduccedilatildeo literal do texto talmuacutedico de
Shabat 104b e Sanhedrin 67a tem a seguinte forma
O filho de Stada era o filho de Pandera O Rabi Chisda disse O marido era
Stada o amante Pandera (Outro disse) o marido era Paphos ben Yehudah
Stada era sua matildee (ou) sua matildee era Mirian a cabeleireira de mulheres
como eles diriam em Pumbeditha Stath da (ie Ela era infiel) para o marido
47
A palavra Mishnah vem de Shanah ldquorepetirrdquo significa ldquorepeticcedilatildeordquo ou ldquoestudo atraveacutes da repeticcedilatildeordquo Publicada por volta do ano 200 dC pelo patriarca judeu Judas I a Mishnah eacute uma coletacircnea de leis que se impocircs como coacutedigo oficial do judaiacutesmo Ela resulta de uma compilaccedilatildeo seletiva feita no decurso do seacuteculo II da era cristatilde ndash de tradiccedilotildees normativas ambientes (halakot) Ela estaacute redigida em hebraico (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
48 ldquoTalmudrdquo significa ensinamento estudo Haacute dois Talmuds 1) o Talmud de Jerusaleacutem terminado
pelo fim do seacuteculo IV na Palestina 2) o Talmud da Babilocircnia composto no seacuteculo V em Sura Mesmo na Palestina o Talmud da Babilocircnia o mais completo suplantou o Talmud de Jerusaleacutem quando se fala do ldquoTalmudrdquo sem especificar qual designa-se exclusivamente o da Babilocircnia (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
49 Zuurmond acha que provavelmente Pantera (ou Pandera) ldquoseja uma deformaccedilatildeo acintosa de
parthenos= virgem Deformar de propoacutesito o nome de um inimigo era (e eacute) um uso bastante comum (cf Zuurmond 1998 p77)
89
No entanto uma traduccedilatildeo mais livre do mesmo texto talmuacutedico teria a
seguinte forma segundo Dalman
Ele natildeo era filho de estada mas filho de Pandera Rab Chisda afirma
que o marido da matildee de Jesus era Stada mas o amante dela era Pandera
Outro (diz) que o marido dela era certamente Paphos ben Yeshua que ao
contraacuterio Stada era a matildee dele (Jesus) de acordo com outros sua matildee era
Mirian (Maria em hebraico) a cabeleireira das mulheres A treacuteplica eacute e eu
concordo simplesmente Stada era o apelido dela (Maria) como dito no (ou
na) Pumbeditha Stath da (que significa ldquoela provou ser infielrdquo) ao marido dela
Provavelmente a partir da leitura desses textos eacute que Celso tomou o nome
deste Jesus citado no Talmude e relacionou com o Jesus dos Evangelhos
considerando que ambos os personagens se tratavam da mesma pessoa Desta
forma conforme mencionado por Oriacutegenes Celso acusa Jesus de aleacutem de ter
inventado seu nascimento ter nascido numa cidadezinha da Judeia ser filho de uma
pobre fiandeira ter adquirido poderes maacutegicos no Egito ainda usou esses poderes
para proclamar-se Deus (Oriacutegenes 2004 p68) Embora esse relato tenha sido
retomado tambeacutem por pensadores contemporacircneos como mais um argumento para
contestar a legitimidade do nascimento de Jesus conforme relatado nos Evangelhos
Chilton no entanto considera que esse relato eacute infundado e foi apenas mais uma
ficccedilatildeo que circulou nos primeiros seacuteculos da era cristatilde
Nas comunidades judaicas dos dias de Jesus se uma mulher estivesse
graacutevida antes da consumaccedilatildeo plena do matrimocircnio ela precisaria pela tradiccedilatildeo
apresentar agrave comunidade em que vivia provas de quem era o pai da crianccedila que
estava sendo gerado em seu ventre A casta do filho estava condicionada a quem
era o seu pai ou seja se o filho por ela gerado fosse fruto de uma uniatildeo proibida
obviamente ele seria excluiacutedo da congregaccedilatildeo de Israel conforme estabelecido na
Toraacute especificamente em Deuteronocircmio 233 onde lemos ldquoNenhum bastardo
entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar
na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo
Vale ainda ressaltar que quando um contrato de casamento era firmado a
Mishnah dava o direito ao contratante de anular o mesmo sem uma justificativa
formal caso ele se sentisse injusticcedilado Se a mulher estivesse graacutevida na ocasiatildeo
do rompimento do contrato esse ato do contratante eximia a mulher da acusaccedilatildeo de
90
adulteacuterio e dessa forma o filho natildeo poderia ser considerado formalmente um
mamzer Tal situaccedilatildeo poderia dar margem a um problema de interpretaccedilatildeo da Lei a
saber a mulher uma vez abandonada poderia usar apenas a palavra acerca da
paternidade do fruto de seu ventre Essa palavra seria aceita como verdade tal
como pensavam os rabinos Gamaliel e Eliezer ou rejeitada se natildeo houvesse uma
prova concreta no pensamento do rabino Joshua (Charlesworth 2006 p87)
No primeiro caso a mulher poderia alegar que um determinado cidadatildeo da
sua comunidade era o pai da crianccedila que ela estava esperando Se a palavra dessa
mulher fosse aceita como verdadeira entatildeo pela Toraacute esse homem seria obrigado
a casar com ela e natildeo poderia mandaacute-la embora por toda a vida conforme lemos
em Deuteronocircmio 22 28-29
Se um homem encontra uma jovem virgem que natildeo estaacute prometida e a agarra e se deita com ela e eacute pego em flagrante o homem que se deitou com ela daraacute ao pai da jovem cinquenta ciclos de prata e ela ficaraacute sendo a sua mulher uma vez que abusou dela Ele natildeo poderaacute mandaacute-la embora durante toda a sua vida
Essa interpretaccedilatildeo daria margem para que as mulheres mesmo que
concebessem um filho fruto de uma uniatildeo proibida mas que indicassem um
determinado homem como sendo o pai da crianccedila pudessem tornar o fruto do
ventre em um legiacutetimo judeu aos olhos da comunidade tendo em vista que a mulher
alcanccedilou ecircxito em sua argumentaccedilatildeo o que segundo essa visatildeo natildeo seria difiacutecil
conseguir (Charlesworth 2006 p 87)
Partindo da premissa que a relaccedilatildeo sexual entre pessoas que jaacute haviam
estabelecido o contrato de casamento era toleraacutevel na eacutepoca uma possiacutevel relaccedilatildeo
sexual entre Joseacute e Maria natildeo seria proibida Mas o fato de Joseacute morar em Beleacutem e
Maria em Nazareacute exclui as possibilidades do filho ser dele (Chilton 2002 p13)
Dessa forma Jesus poderia ser considerado um mamzer jaacute que a sua concepccedilatildeo
ocorreu no periacuteodo entre o contrato de casamento e a coabitaccedilatildeo de Joseacute e Maria
Chilton observa que o pensamento de Joseacute em deixar Maria secretamente
conforme lemos em Mateus 119 seria portanto uma forma de natildeo acusar Maria de
fornicaccedilatildeo Natildeo obstante a maravilhosa forma como Joseacute assumiu a paternidade
pode natildeo ter sido suficiente para inibir as mais adversas situaccedilotildees pelas quais Jesus
91
tenha sido alvo desde a infacircncia ateacute a crucificaccedilatildeo proveniente de especulaccedilotildees
sobre a legitimidade de sua paternidade bioloacutegica
Observando as teorias propostas acima a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus
podemos pensar sobre os diferentes conceitos que seus contemporacircneos tinham a
respeito dele Ele era filho de Deus gerado pelo Espiacuterito Santo Ele era filho de Joseacute
ou de um pai desconhecido As palavras ldquoNatildeo nascemos da prostituiccedilatildeordquo (Jo 841)
poderiam ter sido usadas com ironia a fim de colocar em duacutevida sua reputaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees concernentes agrave paternidade bioloacutegica Por que ele foi
chamado de o ldquocarpinteiro o filho de Mariardquo (Mc 63) e natildeo filho de Joseacute e de Maria
entre os seus conterracircneos
Essas questotildees levantadas acima satildeo passiacuteveis de outras interpretaccedilotildees
quando olhamos o texto do Evangelho de Joatildeo a partir de uma cristologia alta50
Embora seja possiacutevel que os judeus tenham procurado debater com Jesus sobre
sua filiaccedilatildeo humana Jesus no entanto sempre usou tais debates para evidenciar
sua filiaccedilatildeo divina e enfatizar sua relaccedilatildeo com o Pai atraveacutes da palavra Abba que
para J Jeremias eacute a mensagem central do Novo Testamento
53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS
Jesus se relacionava com Deus de uma maneira peculiar a qual eacute evidente
nos evangelhos Segundo Pagola a experiecircncia de vida de Jesus eacute a partir de um
Deus Pai que para Jesus eacute aquele que cuida ateacute mesmo das criaturas fraacutegeis e
insignificantes aos olhos dos homens Esse Pai tambeacutem atende aos pobres e
necessitados traz a cura aos enfermos busca os perdidos enfim Deus Pai se torna
o centro de toda a mensagem e da proacutepria vida de Jesus de Nazareacute (Pagola 2010
p 380-381)
Nos Evangelhos a palavra Pai aparece nos laacutebios de Jesus mais de 170
vezes quando ele se dirige a Deus seja por interpelaccedilatildeo ou por designaccedilatildeo
Segundo J Jeremias eacute preciso distinguir a interpelaccedilatildeo da designaccedilatildeo de Deus
como Pai quando esse termo eacute proferido por Jesus nos evangelhos Em suas
50
A cristologia alta refere-se agrave crenccedila na preexistecircncia e na divindade de Jesus (cf
httpwwwcentroestudosanglicanoscombrbancodetextosbibliahermeneuticaresenhas_brown_julio_cesarpdf acesso em 23102011 as 1225 horas)
92
oraccedilotildees Jesus sempre fez uso da interpelaccedilatildeo Pai para invocar a Deus com
exceccedilatildeo do grito da cruz em Mc 1534 par Mt 2746 ldquoMeu Deus meu Deus por que
me abandonasterdquo interpelaccedilatildeo essa que jaacute estava prefixada pelo Sl 221 Aleacutem da
interpelaccedilatildeo eacute muito comum Jesus referir-se a Deus como ldquoo Pairdquo (ὁ πατὴρ) ldquomeu
Pairdquo (τοῦ πατρός μου) e ldquovosso Pairdquo (ὁ πατὴρ ὑμῶν ) (Jeremias 2005 p43)
De fato Jesus usou essas trecircs formas para designar Deus como Pai A
designaccedilatildeo ldquoo Pairdquo encontra-se em alguns textos dos evangelhos em Marcos (Mc
13 32 = Mt 24 36) em Mateus e Lucas juntos (Mt 11 27 = Lc 10 22) somente em
Lucas (Lc 9 26 1113) somente em Mateus (Mt 28 19) e em Joatildeo setenta e trecircs
vezes Sobre a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo encontramos em Marcos (Mc 11 25)
Mateus e Lucas juntos (Mt 5 48 = Lc 6 36 1230) somente em Lucas (Lc 12 32)
somente em Mateus (Mt 5 16 44 61 81526 7 11 10 20 29 18 14) e em Joatildeo
(Jo 8 42 20 17) Aleacutem disso o termo ldquomeu Pairdquo que se encontra em Marcos (Mc
838 = Mt 16 27) τοῦ πατρὸς αὐτοῦ [de seu Pai] mesmo que em referecircncia ao
Filho do Homem natildeo pode figurar sem reservas entre os testemunhos da foacutermula
Meu Pai) (Jeremias 2005 p43) E por fim conforme J Jeremias a expressatildeo
ldquomeu Pairdquo encontra-se nos seguintes textos dos Evangelhos Mateus e Lucas juntos
(Mt 11 27 ndash Lc 1022) somente em Lucas (Lc 249 22 29 24 49) somente em
Mateus (Mt 7 21 10 32-33 12 50 15 13 16 17 18 10 19 35 20 23 25 34 26
29 53 e em Joatildeo vinte e cinco vezes
Para J Jeremias haacute uma crescente tendecircncia em introduzir a designaccedilatildeo de
Deus como Pai nos evangelhos Excluindo as invocaccedilotildees de Pai por Jesus e
contando os paralelos sinoacuteticos J Jeremias observa que em Marcos aparece
apenas trecircs vezes jaacute em Mateus e Lucas juntos (coleccedilatildeo dos logias) aparece
quatro vezes enquanto que somente em Lucas eacute mencionado quatro vezes Os
ditos que satildeo proacuteprios de Mateus satildeo citados trinta e uma vezes A ecircnfase recai
sobre o Evangelho de Joatildeo escrito mais tarde onde a designaccedilatildeo de Deus como
Pai nas palavras de Jesus aparece cem vezes Segundo J Jeremias haacute uma
evidente progressatildeo do uso da palavra Pai usada por Jesus em Marcos na coleccedilatildeo
dos Logia e nos elementos proacuteprios de Lucas Analisando os textos dos Evangelhos
referentes ao uso da palavra Pai observa-se que todos enfatizam essa relaccedilatildeo
iacutentima de Jesus com o Pai do ceacuteu Desse modo ldquopode-se dizer que Jesus se servia
93
da palavra Pai para designar a Deus somente em certas circunstacircncias Em
Mateus acha-se uma progressatildeo sensiacutevel no uso do termo e em Joatildeo Pai quase
tornou-se sinocircnimo de Deusrdquo (Jeremias 1977 p26-27)
Francisco Reyes Archila nota a frequecircncia do uso da palavra Pai em Joatildeo
mesmo sendo este o Evangelho que ao mesmo tempo em que evidencia a
paternidade divina protagoniza tambeacutem a figura feminina no discipulado
especialmente de Maria Madalena51 Archila analisando essa progressatildeo do uso da
palavra Pai em Joatildeo nos laacutebios de Jesus como tambeacutem jaacute havia sido observada por
J Jeremias vecirc ainda uma tendecircncia maior em Mateus em registrar o termo Pai em
relaccedilatildeo a Deus do que em Marcos e Lucas onde o termo praticamente natildeo aparece
Referindo-se a Joatildeo Archila tambeacutem eacute de acordo que natildeo somente nos
Evangelhos mas tambeacutem nas cartas o termo Pai eacute usado com uma frequecircncia
muito alta Para Archila jaacute que em Mateus a frequecircncia natildeo eacute tatildeo alta e em Marcos
e Lucas ela praticamente natildeo aparece e nem nas cartas de Paulo se usa esse
termo referindo-se a Deus somente na introduccedilatildeo das cartas (Rm 17 1 Co 13
2Cor 13 2Cor 12 1131 Gl 1 1-3 Ef 11 520 Cl 1 2-3 1Ts 11 2Ts 11 1tm 12
2Tm 12 Tt 14 Fm3) Eacute de se suspeitar segundo esse autor52 de que Jesus tenha
realmente dirigido-se a Deus sempre como Pai o mais provaacutevel seria que com o
decorrer do tempo (jaacute que Joatildeo foi escrito posteriormente aos outros Evangelhos) a
Igreja primitiva tenha assumido progressivamente essa expressatildeo devido ao
ldquoespiacuterito patriarcal proacuteprio do ambiente cultural da eacutepocardquo (Archila 2007 p99)
Podemos ver sobre o relevante uso do termo Pai no Evangelho de Joatildeo no
resumo feito por Matthias Grenzer conforme exposto abaixo
1ndash O Pai ama o Filho porque este uacuteltimo daacute a sua vida (Jo 1017)
2- O Pai mostra ao Filho tudo o que ele mesmo faz (Jo 5 20)
51
Hamerton-Kelly esclarece que o fato de Jesus ter escolhido o siacutembolo de ldquopairdquo para referir-se a
Deus foi uma forma de reorganizar a forma de patriarcado da eacutepoca com a finalidade de tornar as pessoas livres das ldquogarras do patriarcadordquo Para Hamerton-Kelly longe de ser um siacutembolo sexista o pai era para Jesus uma arma escolhida para combater o que chamam de sexismo O termo ldquopairdquo tem sido interpretado fora de seu contexto apresentando um ldquodeusrdquo do sexo masculino que tem sido colocado primariamente como macho mas segundo esse autor a situaccedilatildeo poderia ser mudada ldquocomo temos tentado fazerrdquo (cf Hamerton-kelly 1979 p103) Roger Haight estaacute de acordo que Hamerton-Kelly na nota acima segue J Jeremias sobre a forma como Jesus fazia uso do termo ldquopairdquo que em seu contexto significa algo semelhante agrave ldquomatildeerdquo na sociedade moderna desenvolvida (cf Haight 2003 p 128)
52 Archila estaacute citando Lothar Coenen e outros (Diccionaacuterio teoloacutegico del Nuevo Testamento
Salamanca Siacutegueme vol 3 1983 p 244)
94
3- Ao permanecer no Filho o Pai realiza as suas obras (Jo 1410)
4- O Pai vivo enviou o filho e o filho vive atraveacutes do Pai (Jo 6 57)
5- O Filho fala o que o Pai lhe diz (Jo 12 49-50)
6- O Filho por si mesmo nada faz mas realiza soacute aquilo que vecirc o Pai fazer (Jo
519)
7- Com esse relacionamento muacutetuo de maior intensidade o Pai ama o filho (Jo
335 5 20 1017 159) e o Filho ama o Pai (Jo 1431)
8- O Filho permanece no amor do Pai (Jo 1510)
9- O Pai estaacute no Filho e o Filho estaacute no Pai (Jo 1038 1411 1721)
Esse profundo relacionamento do Filho com o Pai pode ser compartilhado com
o ser humano segundo Grenzer desde que o disciacutepulo reconheccedila o Filho no Pai (Jo
1417) pois aquele que conhece o Filho tambeacutem conhece o Pai (Jo 14 7-9)
ldquoAquele que ama o Filho observando os mandamentos dele seraacute amado pelo Pairdquo
(Jo 1421) Ou ao contraacuterio ldquoquem natildeo honra o Filho tambeacutem natildeo honra o Pai que
o enviou (Jo 523)rdquo Portanto a relaccedilatildeo de Jesus (o Filho) com Deus (o Pai) no
Evangelho de Joatildeo eacute de extrema relevacircncia para compreendermos a cristologia e
para aprendermos a perfeita forma de nos relacionarmos com o Pai celeste
(Grenzer 2009 p 184)
Archila (2007 p99) contabiliza que a expressatildeo Pai para nomear Deus no
Novo Testamento ocorre 245 vezes enquanto que a mesma palavra para designar o
pai bioloacutegico ocorre 157 vezes O motivo para tal ecircnfase para o uso dessa
expressatildeo referindo-se a Deus pode ser pela ldquoinfluecircncia da filosofia grega53 na
nomeaccedilatildeo de Deus como Pai Contudo segundo o mesmo autor o mais plausiacutevel
do ponto de vista histoacuterico eacute a possibilidade que Jesus realmente ldquotenha chamado a
Deus como meu pai ou nosso pai ou pai de vocecircs (Mt 69 2629 42 Lc 112)
Inclusive eacute mais provaacutevel que Jesus o tenha nomeado como Abba palavra usada
pelos filhos ao dirigir-se a seus pais e que equivale a papai (Archila 2007 p99-
53
ldquoA ideia da paternidade de Deus recebe uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica em Platatildeo e nos estoicos
Platatildeo na sua elaboraccedilatildeo cosmoloacutegica da ideia do pai ressalta o relacionamento criador de Deus o pai universal para com o cosmos inteiro (Tim 28c 41a e frequentemente) Para os estoicos a autoridade de deus como Pai permeia o universo ele eacute criador pai e sustentador dos homensrdquo (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)
95
100) Essa forma de dirigir-se a Deus como Pai ou seja essa ideia de ser filho de
Deus contrapotildee-se a ideia presente na filosofia grega e tambeacutem da concepccedilatildeo
romana do Imperador como ldquofilho de deusrdquo Por outro lado ainda o Abba de Jesus
assimilado pela Igreja primitiva dava o direito aos considerados apaacutetridas sociais a
terem o direito de ter um pai o que provavelmente deve ter provocado implicaccedilotildees
agrave Igreja jaacute que essas ideias iam contra aos valores da sociedade patriarcal daquela
eacutepoca (Archila 2007 p103-104)
A imagem que Jesus apresentou do Pai do ceacuteu natildeo pode ser associada com o
que a patriarcalizaccedilatildeo que a cristandade ocidental fez de Deus Para Jesus
segundo Archila Deus natildeo eacute um pai superpoderoso dominante prepotente e
distante dos seus filhosrsquo ele eacute por natureza um pai proacuteximo iacutentimo terno e
misericordioso ou seja ele nos mostra a imagem de um Deus Pai bom e justo Em
outras palavras pode-se dizer que Jesus humanizou a imagem de Deus rompendo
com a imagem patriarcal54 androcecircntrica e exclusivista para apresentar a imagem
de Deus como o Pai bom que projeta nos seus filhos um modelo de relacionamento
fraterno entre homens mulheres crianccedilas com a proacutepria natureza e por fim com o
proacuteprio Deus (Archila 2007 p107)
Trabalhando ainda o Abba nos laacutebios de Jesus eacute relevante observarmos que
Santos Sabugal tambeacutem lista as invocaccedilotildees e designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo nos
laacutebios de Jesus como sendo empregado natildeo menos de 184 vezes (Marcos 4 Lucas
17 Mateus 44 Joatildeo 119 = 111 nos laacutebios de Jesus) assim o referido autor resume
o emprego das designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo por Jesus nos Evangelhos
Esse uso eacute portanto limitado em Marcos mas frequente em Lucas e sobre tudo em Mateus para culminar no evangelho de Joatildeo E as estatiacutesticas refletem de alguma forma em cada evangelho a concepccedilatildeo teoloacutegica da paternidade divina Marcos representa o estagio inicial desta concepccedilatildeo desenvolvida pela teologia de Lucas e significativamente ampliada por Mateus atingindo seu pico mais alto em Joatildeo o teoacutelogo por excelecircncia da paternidade de Deus (Sabugal 1985 p381)
54
Segundo Archila o patriarcado eacute definido como ldquouma relaccedilatildeo de poder entendido como dominaccedilatildeo e superioridade que o varatildeo exerce sobre mulheres e crianccedilasrdquo O modelo que o sistema patriarcal pretende representar eacute baseado numa forma hegemocircnica da dominaccedilatildeo do varatildeo sobre a mulher Esse modelo ldquoinclui papeis competecircncias haacutebitos valores formas de pensar e inclusive formas institucionais como leis e normasrdquo (Archila 2007 p 91-92)
96
Para Sabugal portanto nenhum judeu mesmo os mais piedosos invocou a
Deus como o Abba assim como fez Jesus constantemente Ele tinha a
autoconsciecircncia de ser o filho de Deus Essa forma de invocar a Deus tornou-se natildeo
apenas parte integrante e essencial das suas oraccedilotildees como tambeacutem parte
integrante do seu meacutetodo de ensino sobre a oraccedilatildeo (Sabugal 1985 p386)
Joseacute Antonio Pagola tambeacutem eacute de acordo que Jesus como todas as demais
crianccedilas da Galileia em suas primeiras palavras balbuciou os termos immaacute
(mamatildee) e abba (papai) quando se dirigia a Maria e Joseacute seus pais Contudo
segundo Pagola pode ser um exagero limitar o uso do abba apenas agraves criancinhas
visto que ateacute mesmo os adultos parece que usavam tal expressatildeo como forma de
respeito agrave figura paterna dentro de uma estrutura familiar patriarcal (Pagola 2010
p383)
Mas natildeo precisamos exagerar Parece que tambeacutem os adultos empregavam esta palavra expressando seu respeito e obediecircncia ao pai da famiacutelia patriarcal Chamar a Deus de Abbaacute indica carinho intimidade e proximidade mas tambeacutem respeito e submissatildeo Jesus havia conhecido em sua proacutepria casa a importacircncia do pai Joseacute era o centro de toda a famiacutelia Tudo gira em torno dele O pai cuida dos seus e os protege Se ele falta a famiacutelia corre o risco de desintegrar-se e desaparecer Eacute ele quem sustenta e assegura o futuro de todos Haacute dois traccedilos que caracterizam um bom pai O primeiro eacute a solicitude para com os filhos eacute ele quem deve assegurar-lhes o sustento necessaacuterio protegecirc-los e ajudaacute-los em tudo Ao mesmo tempo o pai eacute autoridade da famiacutelia ele daacute as ordens para assegurar o bem de todos Ele instrui os filhos ensina-lhes um oficio se necessaacuterio Os filhos por sua vez satildeo chamados a ser a alegria do pai (Pagola 2010 p 383-384)
Para fundamentar sua tese de que o abba era um linguajar infantil e que
Jesus que ressignificou esse termo J Jeremias recorre aos pais da Igreja
Crisoacutestomo Teodoro de Mopsueacutestia e Teodoreto de Ciro originaacuterios de Antioquia
uma populaccedilatildeo que falava o siriacuteaco ocidental do aramaico Segundo J Jeremias
esses ldquopais da Igrejardquo satildeo de comum acordo de que o termo Abba era a palavra
usada por um filho pequenino quando se dirigia ao seu pai Um outro documento
usado por J Jeremias para dar sustentaccedilatildeo agrave sua pesquisa eacute o relato do Talmude (b
Berakocirct 40a b Sanedriacuten 70b) citado por ele com as seguintes palavras ldquoQuando
uma crianccedila prova o gosto do cereal isto eacute tatildeo logo como o detestam aprende a
dizer Abba e imma (papai e mamatildee) Abba e imma satildeo pois as primeiras palavras
que a crianccedila balbucia Abba era a linguagem infantil uma palavra comum
97
empregada diariamente ningueacutem tinha ousado dirigir-se a Deus desse modordquo (cf
Jeremias 2006 p63)
Deus como Pai para Jesus eacute com frequecircncia um Pai bom Ele ldquofaz nascer
seu sol sobre bons e maus Manda a chuva sobre justos e injustos (Lc 635 Mt
545) Para Pagola Jesus demonstra isso com muita maestria na paraacutebola do ldquofilho
perdidordquo (Lc 15 11-32) Nessa paraacutebola Pagola observa que o pai natildeo eacute um
personagem autoritaacuterio que natildeo respeita as decisotildees dos filhos pelo contraacuterio ele eacute
um pai amoroso e mesmo que o filho o tenha abandonado ele o recebe de braccedilos
abertos assim que este o pede perdatildeo (Pagola 2010 p386)
Embora a teologia do Abba seja defendida como a ipssissima vox de Jesus
por J Jeremias alguns autores contemporacircneos como Udo Schnelle defende que
natildeo haacute novidade na forma de Jesus invocar ou designar a Deus como pai visto que
isso era uma praacutetica comum tanto no judaiacutesmo como no mundo greco-romano
Segundo Schnelle a novidade do Abba nos laacutebios de Jesus estaacute na ecircnfase na
frequecircncia e na simplicidade com que Deus eacute designado como Pai nos Evangelhos
quando esse termo eacute proferido por Jesus (Schnelle 2010 p99-100)
J Jeremias defende que Jesus usou a palavra Pai na maioria das vezes
quando essa relaccedilatildeo era do Filho com o Pai Quanto ao uso da palavra Pai em
relaccedilatildeo a outras pessoas Jesus nunca fez alguma referecircncia a natildeo ser raras vezes
a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo apenas aos seus disciacutepulos e nunca a outros grupos
visto que a paternidade divina era uma exclusividade estendida apenas aos
disciacutepulos Grupos como os escribas e fariseus foram excluiacutedos dessa filiaccedilatildeo pois
o pai deles eacute o diabo conforme Joatildeo 8 42-44 (Jeremias 2008 p271)
Disse-lhes Jesus ldquoSe Deus fosse o vosso pai voacutes me amariacuteeis porque saiacute de Deus e dele venho natildeo venho por mim mesmo mas foi ele que me enviou Por que natildeo reconheceis minha linguagem Eacute porque natildeo podeis escutar minha palavra Voacutes sois do diabo vosso pai e quereis realizar os desejos do vosso pai Ele foi homicida desde o princiacutepio e natildeo permaneceu na verdade quando ele mente fala do que lhe eacute proacuteprio porque eacute mentiroso e pai da mentira
98
A questatildeo da filiaccedilatildeo divina eacute um processo iacutentimo entre o Pai e seu filho J
Jeremias observou que o texto do evangelho de Mateus (Mt 1127) pode ser mais
bem traduzido do seguinte modo ldquocomo soacute um Pai conhece o seu filho assim soacute um
filho conhece o seu pairdquo (Jeremias 1977 p29) Essa relaccedilatildeo de Filho e Pai que
Jesus propagou no Novo Testamento tem no Antigo Testamento o paralelo mais
proacuteximo nas palavras do salmista ldquoComo um pai se compadece dos filhos assim se
apieda o Senhor dos que o tememrdquo (Sl 103 13) Mas para os filhos do Reino o pai
eacute ainda maior Ele aleacutem de bondoso e misericordioso eacute benigno ateacute mesmo com os
ingratos e maus (Lc 635)
Seguindo esse pensamento Joseph A Fitzmyer observa que quando Jesus
instruiu os disciacutepulos a invocar a Deus como Pai Ele estava mostrando que Deus
natildeo era somente o ldquotranscendente Senhor dos ceacuteus mas estaacute perto assim como um
pai com seus filhosrdquo (Fitzmyer 1985 p898) Para Stephen A Missick Abba eacute
contudo um misteacuterio uma revelaccedilatildeo especial que vem somente atraveacutes de Jesus
Cristo Missick assim como J Jeremias observa que o texto de Mateus 1127
poderia ser parafraseado em aramaico ficando da seguinte forma ldquosomente pai e
filho realmente se conhecem Porque apenas um pai e um filho verdadeiramente
conhecem um ao outro portanto um filho pode revelar aos outros os pensamentos
mais iacutentimos de seu pairdquo (Missick 2006 p23) Para Missick o maior exemplo para
demonstrar essa intimidade entre o Filho e o Pai e o poder que o Filho tem de
revelar o Pai estaacute registrado em Joatildeo 148
Filipe lhe diz ldquoSenhor mostra-nos o Pai e isso nos bastardquo Diz-lhe Jesus ldquoHaacute tanto tempo estou convosco e tu natildeo me conheces Filipe Quem me vecirc vecirc o Pai Como podes dizer Mostra-nos o Pai Natildeo crecircs que estou no Pai e que o Pai estaacute em mim As palavras que vos digo natildeo as digo de mim mesmo mas o Pai que permanece em mim realiza suas obras Crede-me eu estou no Pai e o Pai em mim Crede-o ao menos por causa dessas obrasrdquo
O discurso de Jesus sempre foi conflitante com os grupos religiosos de sua
eacutepoca e isto se agravou mais ainda pelo modo como Ele invocava a Deus mediante
a expressatildeo ldquomeu Pairdquo fato que natildeo era comum no Judaiacutesmo Se essa forma de
99
dirigir-se a Deus chamando-o de ldquomeu Pairdquo era incomum muito mais incomum
ainda era o emprego da forma aramaica ldquoAbbardquo (Jeremias 2008 p116) Os Judeus
usavam duas maneiras de tratar o Pai uma que era muito comum e tambeacutem usada
no cotidiano familiar abba e outra que era mais solene e elevada abicirc (אב)
(Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p649) Para um judeu usar a palavra
Abba para dirigir-se a Deus parecia ser um atrevimento pois tal palavra soava como
balbucio Abba estava entre as primeiras palavras que uma crianccedila aprendia a falar
conforme a referecircncia que J Jeremias faz ao Talmude Babilocircnico jaacute citado neste
trabalho55
Jaacute nos dias de Jesus abba jaacute tinha deixado de ser apenas uma linguagem das
criancinhas para tornar-se uma forma como os filhos adultos se dirigiam a seu pai
como podemos ver na paraacutebola do filho proacutedigo (Lc 15 21) Nos laacutebios de Jesus
aleacutem de tornar-se uma forma familiar de invocar e dirigir-se a Deus abba passou a
ser tambeacutem considerada uma palavra lsquosagradarsquo uma vez que um soacute eacute o Pai dos
disciacutepulos a saber o que estaacute nos ceacuteus conforme Mateus 239 (Jeremias 2008
p121) Para Jesus Abba tornou-se uma expressatildeo de honra que somente o Pai
celeste eacute digno Essa maneira simples e iacutentima de Jesus dirigir-se a Deus como
uma criancinha fala a seu pai foi considerado por J Jeremias como a ipsiacutessima vox
de Jesus isto eacute um modo proacuteprio e original de falar usado por Jesus e que natildeo
tinha nenhuma analogia na literatura da eacutepoca (Jeremias 2008 p120)
[] a forma abbaacute suplantou a forma abbi usada no aramaico paletinense ateacute pelo menos o seacutec 2 a C como constatamos pela documentaccedilatildeo Aleacutem disso abbaacute tomou o sentido de ldquomeu pairdquo e de ldquoo pairdquo e ldquonosso pairdquo De tal modo que a palavra natildeo era apenas parte do linguajar das crianccedilas Os jovens de ambos os sexos tambeacutem chamavam o proacuteprio pai de Abbaacute (cf Lc 15 21) natildeo recorrendo agrave palavra ldquoSenhorrdquo (Kyrie) a natildeo ser cerimonioso (cf Mt 21 29-30) Mas apesar destes desenvolvimentos jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil (Jeremias 1977 p 24-25)
Mais tarde Fitzmyer comentando essa tese reconhece que J Jeremias
entendeu que Jesus natildeo se dirigiu a Deus invocando-o como uma criancinha faz
com seu pai Fitzmyer tambeacutem concorda que Abba eacute a ipisissima vox de Jesus para
55
para esclarecer essa tese podemos ver uma versatildeo semelhante a jaacute citada por J Jeremias (2006 p63) em outra obra sua conforme transcrevemos abaixo ldquoSomente quando uma crianccedila experimenta o gosto do trigo (isto eacute quando eacute desmamada) eacute que ela diz aacutebba imma [matildee] ou seja estes satildeo os primeiros balbuciosrdquo (cf Jeremias 2008 p119)
100
expressar o seu relacionamento com Deus mas que Abba por si soacute sem as oraccedilotildees
de louvor registradas pelos evangelistas Mateus e Lucas (Mt 11 25-27 Lc 10 21-
22) natildeo eacute suficiente para subsidiar tal argumento (Fitzmyer 1993 p61) Para
Ephraim o meacuterito de ter levado ao grande puacuteblico o verdadeiro sentido de como
Jesus se dirigia a Deus Pai chamando-o de Abba eacute de J Jeremias
[hellip] Joachim Jeremias levou ao grande puacuteblico toda a beleza do nome Abba tal como Jesus o pronunciava Enfatizou com razatildeo que em nenhuma outra parte do judaiacutesmo se encontra tal familiariadade Mesmo se por vezes Deus era invocado pelo vocaacutebulo Pai ningueacutem ousou antes do Filho primogecircnito dentre um grande nuacutemero de irmatildeos chamaacute-lo de Abba que literalmente quer dizer papai A ousadia amorosa sempre estivera do lado do Pai pois do lado da criatura nunca ningueacutem fora tatildeo longe como Jesus na resposta adesatildeo e entrega ao amor misericordioso (Ephraim 1998 p174)
54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS
Sabendo que os Evangelhos sinoacuteticos contecircm muitos traccedilos que remontam
para uma redaccedilatildeo poacutes-pascal J Jeremias pergunta ldquoseremos capazes de
remontarmos em particular a ipsissima vox de Jesusrdquo Os evangelhos apresentam
o querigma de Jesus ou segundo J Jeremias seria mais exato dizer que eles
apresentam a Didaquecirc (ensino) da Igreja primitiva A pergunta acima pode gerar um
certo ceticismo contudo natildeo tem forccedila para destruir o argumento de que
[] os logia de Jesus apresentam certas particularidades que devemos considerar como suas expressotildees favoritas jaacute que figuram independentemente uma das outras nas diversas narrativas da tradiccedilatildeo Abba e amen satildeo os traccedilos da linguagem mais caracteriacutesticos da ipsissima vox de Jesus (Jeremias 2006 p 137-138)
Haacute uma distinccedilatildeo entre ipsissima vox e ipsissima verba de Jesus Segundo J
Jeremias a presenccedila de um modo de falar preferido de Jesus (ipsissima vox) natildeo
dispensa absolutamente de examinar em cada caso particular se temos um dito
autecircntico (ipsissima verba) (Jeremias 2008 p79) Os apoacutestolos assim
compreenderam e Paulo vai dizer mais tarde que Abba eacute o clamor (ipsissima vox)
dos filhos de Deus daqueles que foram adotados na comunhatildeo do Espiacuterito Santo
Segundo Missick a importacircncia da palavra Abba vem justamente ao encontro dessa
teoria pois segundo ele natildeo haacute duacutevida de que essa foi a palavra exata que Jesus
101
falou ou seja Abba eacute a ipsissima vox a voz original ou a ipsissima verba as
autecircnticas palavras de Jesus (Missick 2006 p 23)
J Jeremias baseando-se em Dalman diz-nos que assim como o Abba a
palavra amen (ἀμήν) quando proferida por Jesus natildeo possui nenhum equivalente
na literatura judaica e nem nos demais escritos do Novo Testamento Nos discursos
judaicos a palavra ameacuten ldquoservia para ratificar reforccedilar e fazer proacuteprias as palavras
de outro (cf Jr 28 6) na tradiccedilatildeo dos logia de Jesus se utiliza sem exceccedilatildeo esse
termo para reforccedilar o proacuteprio discursordquo (cf Jeremias 2006 p 138) Podemos ver
esse pensamento exposto nas palavras do proacuteprio Dalman
Jaacute foi frequumlentemente apontado que o modo como Jesus usa a palavra ameacutem natildeo eacute familiar em toda a literatura judaica Mesmo em Sota II 5 cf Jerus I e II num 522 realmente natildeo pode ser forccedilado a comparaccedilatildeo Nessa passagem a repeticcedilatildeo amen pronunciado pela mulher suspeita de adulteacuterio eacute explicada como um protesto de sua inocecircncia como se ela estivesse a dizer ameacutem [= eu protesto] que eu natildeo me poluiacute ameacutem que eu natildeo vou poluir a mim mesma (cf Dalman 1902 p226)
J Jeremias refere-se agraves foacutermulas ameacuten legocirc hymin (sou) (em verdade vos [te]
digo) nos sinoacuteticos e amen ameacuten legocirc hymin (soi) (em verdade em verdade vos
[te] digo) em Joatildeo Segundo ele o nuacutemero de vezes que tais expressotildees aparecem
nos evangelhos eacute 13 vezes em Marcos 30 em Mateus (+ Mt 18 19 var) 6 em
Lucas e 25 em Joatildeo onde haacute uma reduplicaccedilatildeo Para J Jeremias este amen natildeo
responsivo coloca-nos diante de uma forma totalmente nova e peculiar dos
Evangelhos e principalmente de Jesus (Jeremias 2006 p 138-139)
Sobre a grandeza do Abba como a ipsissima vox de Jesus vejamos o que nos
diz J Jeremias
Natildeo haacute paralelos com esta mensagem de que Jesus quer ocupar-se dos pecadores natildeo dos justos e que desde agora lhes daacute jaacute a participaccedilatildeo em seu reinado Natildeo haacute paralelos com este Jesus que se senta agrave mesa com publicanos e pecadores Natildeo haacute paralelos com a autoridade com que Jesus se atreve a dirigir-se a Deus com a invocaccedilatildeo de Abba Quem reconhece unicamente o fato (e natildeo sei como algueacutem poderia negaacute-lo) de que a palavra ldquoabbardquo eacute ipsissima vox Iesu esse tal se entende bem a palavra e natildeo a desvirtua estaacute diante da pretensatildeo que Jesus tinha de sua proacutepria majestade (Jeremias 2006 p40)
Se para Jesus invocar a Deus como Pai era um direito exclusivo dado aos
disciacutepulos na igreja primitiva isso era privileacutegio apenas dos membros que jaacute
102
estavam integrados na igreja aos neoacutefitos era lhes reservado o direito de aprender a
oraccedilatildeo mas soacute podiam pronunciaacute-la em puacuteblico a partir da primeira Eucaristia logo
apoacutes o batismo conforme Cirilo um sacerdote de Jerusaleacutem que viveu por volta do
ano 350 dC (Jeremias 1979 p10) Segundo J Jeremias essas restriccedilotildees podem
ser vistas ateacute mesmo na divisatildeo dos capiacutetulos da Didaquecirc no seacuteculo I Na Didaquecirc
a oraccedilatildeo e a ceia do Senhor soacute vecircm depois do batismo (Jeremias 1979 p9-10)
Isso demonstra o quanto era sagrado o direito de invocar a Deus Pai chamando-o
de Abba Pai
55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR
Jesus pertencia a uma famiacutelia piedosa judaica (Lc 2 1-52 cf 416) viveu no
meio de um povo que sabia orar por isso eacute bem provaacutevel que desde menino tenha
aprendido em casa com seus pais a exercer a praacutetica da oraccedilatildeo cotidiana
Segundo J Jeremias natildeo eacute possiacutevel saber muita coisa sobre a praacutetica de oraccedilatildeo na
vida de Jesus aleacutem dos trecircs gritos da cruz relacionados nos sinoacuteticos haacute ainda
duas oraccedilotildees ldquoo grito de juacutebilo (Mt 11 25-26) e a oraccedilatildeo do Getsecircmani (Mc 14 36)rdquo
O Evangelho de Joatildeo registra outras trecircs oraccedilotildees de Jesus na ressurreiccedilatildeo de
Laacutezaro (Jo 1 14-42) na esplanada do templo (equivalente joanino da oraccedilatildeo do
Getsecircmani Jo 12 27) e a oraccedilatildeo sacerdotal (Jo 17) Aleacutem disso temos outros
relatos gerais de oraccedilatildeo registrados nos Evangelhos (cf Mc 1 35 646=Mt 14 23
Lc 3 21 5 16 6 12 9 18 28-29 Lc 22 31-32) e a oraccedilatildeo do Pai-nosso
(Jeremias 2006 p123)
Podemos ainda mencionar que com exceccedilatildeo das mulheres dos filhos
pequenos e dos escravos todos os homens de Israel a partir dos treze anos
estavam obrigados a recitar regularmente o Shemaacute56 (ldquoOuve oacute Israel Iahweh nosso
Deus eacute o uacutenico Iahwehrdquo Dt 64) duas vezes ao dia Aleacutem da profissatildeo de feacute judaica o
mandamento divino era logo recitado em seguida (cf Jeremias 2006 p 116)
Portanto amaraacutes a Iahweh teu Deus com todo o seu coraccedilatildeo com toda a tua alma e com toda a tua forccedila Que estas palavras que hoje te ordeno
56
No entanto segundo J Jeremias o shemaacute era ensinado aos filhos desde que esses aprendiam a falar (cf Jeremias 2006 p 116)
103
estejam em teu coraccedilatildeo Tu as inculcaraacutes aos teus filhos e delas falaraacutes sentado em tua casa e andando pelo caminho deitado e de peacute (Dt 6 5-7)
No Novo Testamento a oraccedilatildeo jaacute havia deixado de ser praticada duas vezes
ao dia para concretizar-se em trecircs vezes conforme vemos no livro dos Atos dos
Apoacutestolos (31 10 3-30) e na Didaquecirc (83) Segundo Jeremias isso se deve ao
fato de ter havido uma fusatildeo entre o Shemaacute (apesar dessa natildeo ser propriamente
uma oraccedilatildeo mas uma profissatildeo de feacute) com a Tefilaacute no periacuteodo da manhatilde e da noite
enquanto que na oraccedilatildeo da tarde natildeo se recitava o Shemaacute Para os israelitas esses
momentos de oraccedilatildeo eram muito preciosos jaacute que se assegurava a formaccedilatildeo dos
jovens na praacutetica da oraccedilatildeo (Jeremias 2006 p22)
Jesus com certeza conhecia as oraccedilotildees e as formas lituacutergicas para proferi-las
no entanto ao ser indagado pelo disciacutepulo anocircnimo (Lc 111) com a indagaccedilatildeo
ldquoSenhor ensina-nos a orarrdquo eacute claro que o Mestre sabia que seus disciacutepulos tambeacutem
conheciam as oraccedilotildees tradicionais visto que tambeacutem eram judeus No entanto eacute
muito provaacutevel que o disciacutepulo anocircnimo estaacute pedindo a Jesus um novo modelo de
oraccedilatildeo que os distinguisse como um grupo Jesus ensinou-lhes o Pai-nosso que se
tornaria a oraccedilatildeo oficial da Igreja primitiva e viria a substituir o antigo modelo das
trecircs oraccedilotildees diaacuterias tatildeo conhecidas em Israel conforme pode ser visto na Didaquecirc
(9-10) Surge entatildeo uma nova forma de orar a partir do ensinamento de Jesus
baseado na expressatildeo Abba que era a forma singular de expressatildeo usada por ele
para dirigir-se ao Pai que estaacute nos ceacuteus (Jeremias 2006 p129-131)
A relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai atinge seu aacutepice na Oraccedilatildeo do Pai-nosso
onde Jesus estaacute ensinando seus disciacutepulos orar A pergunta feita pelo disciacutepulo
anocircnimo em Lucas 111 (Senhor ensina-nos a orar) resultou no mais belo
ensinamento de Jesus a respeito da oraccedilatildeo Na oraccedilatildeo do Pai-nosso como exemplo
de humildade e obediecircncia ldquoJesus se entrega agrave vontade de Deus como a crianccedila o
faz em relaccedilatildeo ao Pairdquo (Goppelt 2002 p 216) Para Haight a oraccedilatildeo modelo eacute
composta por uma invocaccedilatildeo dois anseios ou esperanccedilas e trecircs pedidos (cf Haight
2003 p139) 57 O teoacutelogo Leonardo Boff assim resume a essecircncia desse magniacutefico
modelo de oraccedilatildeo
57
A forma apresentada por Lucas da oraccedilatildeo do Pai-nosso consiste de um endereccedilamento (ldquoPairdquo) dois desejos proferidos a Deus e trecircs peticcedilotildees ditas a ele A forma em Mateus apresenta um endereccedilamento expandido trecircs desejos e quatro peticcedilotildees Nesse modo de orar Jesus instrui e
104
Na oraccedilatildeo do Senhor encontramos praticamente a correta relaccedilatildeo entre Deus e o homem o ceacuteu e a Terra o religioso e o poliacutetico mantendo a unidade do mesmo processo A primeira parte diz respeito agrave causa de Deus o Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome seu Reino sua Vontade santa A segunda parte concerne agrave causa do homem o patildeo necessaacuterio o perdatildeo indispensaacutevel a tentaccedilatildeo sempre presente e o mal continuamente ameaccedilador Ambas as partes constituem a mesma e uacutenica oraccedilatildeo de Jesus Deus natildeo soacute se interessa pelo que eacute seu o Nome o Reino a Vontade divina Ele se preocupa tambeacutem pelo que eacute do homem o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo o mal Igualmente o homem natildeo soacute se prende ao que lhe importa o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo e o mal abre-se tambeacutem ao que respeita ao Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome a chegada de seu Reino a realizaccedilatildeo de sua Vontade (Boff 2009 p17-18)
Em seu livro ldquoO Pai-nosso a oraccedilatildeo do Senhorrdquo J Jeremias enfatiza o alto
valor que a referida oraccedilatildeo tinha na liturgia entre os cristatildeos da Igreja primitiva J
Jeremias nos diz que o mais antigo uso dessa oraccedilatildeo era a recitaccedilatildeo da mesma na
24ordf catequese de Cirilo onde o Pai-nosso era recitado antes da comunhatildeo e era
restrito dentro do culto divino apenas aos batizados ou seja aos membros efetivos
da Igreja Essa praacutetica provinha de Jerusaleacutem e vigorava por toda a Igreja Desde os
primeiros passos na feacute os neoacutefitos jaacute aprendiam a recitar de cor a oraccedilatildeo do Pai-
nosso mas soacute tinham o direito de rezaacute-lo com os demais fieacuteis a partir do momento
em que participavam da primeira eucaristia ou seja logo apoacutes o batismo (Jeremias
1979 p 5-6)
O uso regular do Pai-nosso na liturgia da Igreja eacute tambeacutem testemunhado na
Didaquecirc (Doutrina dos Doze Apoacutestolos) que segundo J Jeremias eacute tatildeo antiga que
chega a ser datada no seacutec I dC ou para ser mais preciso segundo Boff ela foi
escrita por volta dos anos 50 a 70 dC (Boff 2009 p36) Para J Jeremias a
importacircncia dada ao Pai-nosso na Didaquecirc pode ser observada na estrutura da
obra
[] O livro comeccedila (cc 1-6) com a doutrina dos dois caminhos o da vida e da morte que evidentemente pertencia agrave instruccedilatildeo dada aos catecuacutemenos Em seguida o c 7 trata do batismo soacute depois disso eacute que vecircm as seccedilotildees de importacircncia para os batizados Jejum e oraccedilatildeo (inclusive o Pai-nosso) no c 8 Ceia do Senhor nos cc 9 e 10 organizaccedilatildeo e disciplina eclesiaacutesticas nos cc 11 a 15 O que nos interessa aqui eacute que oraccedilatildeo e Ceia do Senhor vecircm depois do batismo
autoriza seus disciacutepulos a chamar a Deus como ldquoPairdquo usando o mesmo tiacutetulo que ele mesmo utilizou em sua oraccedilatildeo de louvor Lc 1021 (duas vezes) e utilizaraacute de novo em Lc 22 42 (cf Fitzmyer 1985 p 899)
105
O que J Jeremias conclui eacute que diferentemente de hoje onde o Pai-nosso eacute
acessiacutevel a todos nos primoacuterdios do cristianismo era bem diferente O privileacutegio de
recitar a oraccedilatildeo do Senhor era reservado apenas aos membros que estavam
plenamente integrados agrave Igreja A perda da reverecircncia e do temor pela oraccedilatildeo do
Senhor eacute tratada por J Jeremias com apreensatildeo e o retorno agrave reverecircncia que a
Igreja primitiva dava ao Pai-nosso soacute pode ser reconquistada se atraveacutes da exegese
biacuteblica buscarmos entender qual era o sentido que o proacuteprio Senhor quis dar agraves
palavras dessa sagrada oraccedilatildeo (Jeremias 1979 p 8-12)
Concordando com J Jeremias Ephraim tambeacutem observa que nos primeiros
seacuteculos da era cristatilde os cristatildeos pronunciavam as palavras do Pai-nosso ldquocom
grande temor como que em segredordquo O motivo para tal respeito era o medo de
transpassar os limites da reverecircncia e cair na blasfecircmia ao pronunciar o nome
inefaacutevel de Deus Segundo Ephraim ainda hoje baseado nesse profundo respeito
pela sagrada oraccedilatildeo os cristatildeos bizantinos ainda conservam a seguinte foacutermula
antes de iniciarem a oraccedilatildeo ensinada pelo senhor ldquoE torna-nos dignos Mestre de
ousar com toda a seguranccedila e sem incorrer em condenaccedilatildeo de te chamar de Pai a
ti o Deus do ceacuteu e de te dizer Pai nossordquo Ao observarmos essa foacutermula bizantina
que antecede a oraccedilatildeo do Pai-nosso concluiacutemos com Ephraim que o respeito e o
medo de ser indigno de pronunciar tal oraccedilatildeo fizeram com que a tradiccedilatildeo da
comunidade cristatilde acima mencionada conservasse com muita precauccedilatildeo haacutebitos e
costumes dos primeiros cristatildeos no que diz respeito a como se deve orar o Pai-
nosso (Ephraim 1998 p 174)
Partindo do princiacutepio que por volta do ano 75 dC a oraccedilatildeo do Pai-nosso era
obrigatoacuteria na formaccedilatildeo dos neoacutefitos tanto os cristatildeos de origem judaica quanto os
de origem grega tinham em comum a obrigatoriedade da oraccedilatildeo do Senhor na
formaccedilatildeo dos novos disciacutepulos Quanto agrave questatildeo do por que duas versotildees do Pai-
nosso ou se eacute possiacutevel que um dos disciacutepulos tenha acrescentado ou retirado
palavras da forma original J Jeremias conclui que ambos os disciacutepulos jamais
alterariam algum ponto da oraccedilatildeo do Senhor A forma mais clara para se
compreender a aparente divergecircncia estaacute no fato de que ambos escreveram para
igrejas diferentes locais e situaccedilotildees diferentes por isso cada evangelista optou por
transmitir um texto segundo o seu tempo e sua Igreja (Jeremias 1979 p 16-21)
106
Quando lemos a oraccedilatildeo do Pai-nosso nas duas versotildees ou seja por Mateus
e por Lucas surgem questotildees a respeito da antiguidade dos textos e das variantes
textuais entre os dois Evangelhos J Jeremias em sua obra acima citada trabalha
com esmero essas duas questotildees e outras tambeacutem natildeo menos importantes Antes
de abordamos as questotildees levantadas por J Jeremias segue abaixo os textos dos
Evangelhos bem como o texto de Lucas retraduzido para o aramaico segundo J
Jeremias e uma versatildeo do aramaico recitado por cristatildeos que ainda hoje falam o
aramaico conforme Stephen Missick
Mt 6 9-13 Lc 11 2-4
() Portanto orai desta maneira
Pai nosso que estaacutes nos ceacuteus
Santificado seja o teu Nome
venha o teu Reino
seja feita a tua vontade
na terra como no ceacuteu
o patildeo nosso de cada dia
daacute-nos hoje
E perdoa-nos as nossas diacutevidas
como tambeacutem noacutes perdoamos aos
nossos devedores
E natildeo nos submeta agrave tentaccedilatildeo
mas livra-nos do Maligno
() Respondeu-lhes ldquoQuando orardes
dizei
Pai santificado seja o teu Nome
venha o teu reino
o patildeo nosso cotidiano daacute-nos a cada dia
pois tambeacutem noacutes perdoamos aos nossos
devedores
e natildeo nos deixes cair na tentaccedilatildeordquo
Pai Nosso aramaico segundo J
Jeremias
Pai-nosso em aramaico recitado pelos
cristatildeos em aramaico segundo Missick
abba [pai]
yitqaddash shemak tete malkutak
[santificado seja o teu nome venha teu
reino]
Awoon Dwashmaya
Nethqaddash Shmakh
Tethe malkuthakh
Nehweh sebayanakh
107
lahman delimhar hab lan yoma den [o
patildeo nosso de amanhatilde daacute-nos neste dia]
ushebok lan hobenan kedishebaqnan
lehayyabenan [e perdoa-nos as nossas
diacutevidas (pecados) assim como
perdoamos os nossos devedores
(pecadores)]
wela ta el nnan lenisayon [e natildeo nos
conduza agrave tentaccedilatildeo] (cf Jeremias 2008
p291)
Aykana dwashmayya aph ara
Hab lan lakhma dsunkanan yowmana
Washboq lan hawbayn aykanan dap
hanan shwaqnan l-hayawayn
Wa la talain Inesyona
Ella passan min beesha
Mittol dlakh hee malkoota wa khaylan w
tishbookhta alalam almeen Amen (cf
Missick 2006 p58)
Para J Jeremias para entendermos o sentido do Pai-nosso na redaccedilatildeo de
Mateus eacute preciso ver que Jesus estaacute advertindo seus disciacutepulos a natildeo praticarem as
esmolas oraccedilatildeo e jejum da mesma forma que elas eram praticadas pelos fariseus
visto que estes amavam praticaacute-las desde que fossem vistos e reconhecidos pelos
homens Os disciacutepulos deviam procurar um cocircmodo por menor que fosse e natildeo
imitar os fariseus em hipoacutetese alguma no quesito de sempre ser pegos em uma
aparente surpresa na hora da oraccedilatildeo para que dessa forma pudessem sempre que
possiacutevel orar no meio da multidatildeo com o uacutenico objetivo de serem reconhecidos e
honrados
Em relaccedilatildeo ao texto de Lucas J Jeremias descreve sobre o fato de tanto a
situaccedilatildeo quanto os leitores de Lucas serem diferentes dos de Mateus Em Lucas a
oraccedilatildeo eacute mais breve o sentido do texto eacute o ensinar a perseveranccedila na oraccedilatildeo visto
que a mesma eacute precedida pela paraacutebola do amigo importuno As diferenccedilas entre a
oraccedilatildeo contida em Mateus e a de Lucas eacute devido aos diferentes grupos a quem
essa oraccedilatildeo foi destinada Segundo J Jeremias os leitores para os quais Mateus
deve ter destinado o Evangelho eram homens que desde a infacircncia aprenderam a
orar enquanto que os de Lucas eram antigos convertidos ao cristianismo
Ao nos depararmos com as duas versotildees da oraccedilatildeo do Pai Nosso na Biacuteblia
(Mateus 6 9 -13 e Lucas11 2-4) logo vem agrave mente qual delas se aproxima mais da
versatildeo original de Jesus ou entatildeo em que liacutengua Jesus proferiu essa magniacutefica
oraccedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta J Jeremias responde da seguinte forma
108
[] a formulaccedilatildeo mais curta de Lucas estaacute integralmente contida na redaccedilatildeo longa de Mateus Isto faz com que seja bem provaacutevel que a forma de Mateus seja uma ampliaccedilatildeo pois pelo que sabemos das leis que regem a transmissatildeo dos textos lituacutergicos quando uma redaccedilatildeo mais curta estaacute assim integralmente contida numa longa eacute a mais curta que deve ser considerada como original (J Jeremias 1979 p23)
Contudo J Jeremias conclui que o texto de Lucas eacute o mais antigo quanto agrave
extensatildeo mas em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo oral (verbal) o texto de Mateus eacute o mais antigo
(cf Jeremias 2008 p 291) Complementando o pensamento de J Jeremias a
respeito da versatildeo original do Pai Nosso Boff assim conclui ldquoDestarte Lucas seria
mais originalrdquo (Boff 2009 p36)
Concernente agrave liacutengua materna de Jesus e agrave cultura da Palestina daquela
eacutepoca podemos ainda perguntar era Jesus um poliglota ou falava apenas o
aramaico Antes de tratarmos com mais detalhes a respeito da liacutengua e cultura de
Jesus observamos a princiacutepio que pelo menos trecircs liacutenguas eram faladas na
Palestina nos dia de Jesus (aramaico grego e latim) conforme as informaccedilotildees
contidas no texto de Joatildeo 19 19-20
Segundo Sabugal haacute uma grande probabilidade de que Jesus possuiacutesse
conhecimentos da liacutengua grega pelos contatos registrados entre Jesus e algumas
pessoas de origem helecircnica como o centuriatildeo romano (Mt 5 8-13 cf Lc 7 1-10)
tambeacutem com a mulher sirofeniacutecia aleacutem do disciacutepulo chamado Filipe que
provavelmente conhecia a liacutengua grega conforme podemos interpretar a partir da
leitura de Joatildeo 12 20-2 (Sabugal 1985 p319) No entanto para Sabugal a liacutengua
popular na Palestina dos dias de Jesus era o aramaico galileu58 Tal liacutengua era tatildeo
familiar agraves comunidades a ponto de apoacutes a leitura de um texto sagrado em
hebraico (Toraacute) logo seguia-se uma traduccedilatildeo para o aramaico (Targum) onde o
texto podia ser compreendido por todos Portanto fica evidente que o aramaico foi a
liacutengua materna de Jesus isso fica mais claro ainda quando encontramos nos
evangelhos palavras aramaicas (cf Mc 14 36 Lc 23 34 42 46 Mc 15 34 = Mt
58 Para Geza Vermes a liacutengua original do Pai-nosso era o aramaico mesmo que alguns estudiosos
discordem colocando o hebraico como a liacutengua original (segundo vermes sem convencer) a maioria dos especialistas eacute de acordo com essa teoria Vermes observa que aleacutem das peculiaridades do grego de Mateus o Pai-nosso tem semelhanccedilas com o kadish uma antiga oraccedilatildeo judaica composta em aramaico que era conhecida por Jesus e que ele teria sido influenciado e inspirado por ela (Vermes 2006 p 258)
109
27 46) conservadas pelos evangelistas sem traduccedilatildeo para a liacutengua grega (Sabugal
1985 p321)
Ao se referir sobre a origem do Pai Nosso Sabugal assim exclama ldquoQue
alegria seria se conseguiacutessemos recuperar a ipsissima verba do Pai Nosso ensinado
por Jesus de Nazareacute e reconstruindo seu texto primitivo pudeacutessemos escutar a
ipsissima vox do Mestrerdquo (Sabugal 1985 p317) Para Sabugal natildeo haacute duacutevida que
os vocaacutebulos gregos estatildeo dispostos segundo os usos da gramaacutetica semiacutetica O
autor tambeacutem entende que na oraccedilatildeo do Pai Nosso tanto de Mateus como na de
Lucas teve como fundo doutrinaacuterio e literaacuterio a liacutengua materna de Jesus (aramaico)
Conforme J Jeremias para compreendermos a essecircncia da oraccedilatildeo de Jesus faz-se
necessaacuterio aproximarmo-nos do proacuteprio modo de falar do Mestre e isso soacute eacute
possiacutevel quando chegamos a ipsissima vox de Jesus (Sabugal 1985 p317)
Sabugal (1985 p317) concorda que descobrir a liacutengua materna de Jesus eacute
algo muito importante e extraordinariamente fundamental O referido autor
compartilha com J Jeremias dessa tese haja vista que eacute importante levar em
consideraccedilatildeo o fato de que para ele os escritores dos evangelhos eram verdadeiros
autores literaacuterios e autecircnticos teoacutelogos de suas comunidades cristatildes capazes de
transmitir com fidelidade a essecircncia da mensagem de Jesus59 Aleacutem do mais os
autores biacuteblicos eram divinamente inspirados pelo Espiacuterito Santo conforme os
textos de 2 Tm 316 e 2Pe 121
Por outro lado Leonardo Boff (2009 p36) considera que a oraccedilatildeo de Jesus
natildeo pode ser tratada como uma oraccedilatildeo simples que possa ser retraduzida do grego
para o aramaico primitivo conforme fez J Jeremias no texto que reproduzimos
abaixo
Pai querido Que o teu nome seja santificado Que venha o teu reino Daacute-nos hoje nosso patildeo de amanhatilde E perdoa-nos nossas diacutevidas como noacutes tambeacutem ao dizermos estas palavras estamos perdoando a nossos devedores E natildeo nos deixes sucumbir agrave tentaccedilatildeo (Jeremias 1979 p33)
59
Sobre a autoria e composiccedilatildeo dos Evangelhos ver o capiacutetulo 4 paraacutegrafo 3 deste trabalho
110
Observamos que de acordo com o pensamento de Boff natildeo eacute faacutecil reproduzir
a oraccedilatildeo de Jesus do grego para o aramaico e dessa forma tambeacutem pensa
Sabugal o qual apesar de achar o trabalho de J Jeremias de extrema importacircncia
no entanto assim como Boff pensa que realizar tal tarefa natildeo eacute nada faacutecil uma vez
que envolve estudos linguiacutesticos e literaacuterios concernentes agrave liacutengua materna e ao
texto primitivo do Pai-nosso em sua composiccedilatildeo riacutetmica e literaacuteria bem como a real
motivaccedilatildeo de Jesus ao ensinar essa oraccedilatildeo aos seus disciacutepulos Haja vista o grau
de dificuldade apresentado acima natildeo podemos deixar de observar que quanto
mais nos aproximarmos do Pai-nosso de Jesus na sua originalidade mais
maravilhados ficaremos diante da grandiosidade dessa magniacutefica oraccedilatildeo
56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA
Conforme J Jeremias e a maioria dos estudiosos Abba eacute um termo que faz
parte da liacutengua semiacutetica para ser mais preciso do aramaico Oriacutegenes pertencente
ao periacuteodo da Patriacutestica profundo conhecedor do grego e das liacutenguas semiacuteticas
segundo Fitzmyer (1992 p 48) estranhamente considerou o termo Abba como
sendo uma palavra hebraica Restou a Jerocircnimo esclarecer que o termo Abba era
siacuterio (Syrum est non hebraeum) e natildeo hebraico Lembrando que o que Jerocircnimo
chamava de siacuterio nos dias dele noacutes chamamos de aramaico
Segundo Matthew Black o aramaico foi uma das grandes liacutenguas faladas na
antiguidade por volta do VI e III seacuteculos aC quando o mundo era governado pelos
grandes impeacuterios orientais desde o Eufrates ateacute o Nilo Essa liacutengua tornou-se a
liacutengua dos judeus provavelmente depois do Exiacutelio O aramaico foi suplantado pelo
grego koineacute no mundo civilizado da eacutepoca durante o impeacuterio de Alexandre o
Grande No entanto o grego nunca substituiu por completo o uso do aramaico entre
os judeus tanto da Palestina como da Babilocircnia bem como de alguns povos de
cultura semiacutetica na Siacuteria e Mesopotacircmia (Black 1998 p14)
Entre os judeus podemos encontrar dois dialetos aramaicos na Palestina
conforme a pesquisa apresentada por Dalman Black menciona que segundo a
distinccedilatildeo feita por Dalman os dialetos estatildeo propostos na seguinte forma o primeiro
representado pelo aramaico do Antigo Testamento e o aramaico do Targum para
Pentateuco e para os profetas O segundo composto pelo conjunto de anedotas
111
popular do Talmude Palestino junto com outras partes do comentaacuterio palestinense
do Antigo Testamento dos antigos Midrash60 haggaacutedicos (Black 1998 p19)
No entanto a liacutengua na qual foi escrito o Novo Testamento eacute aceita quase que
por unanimidade pelos eruditos como sendo o grego coineacute ou grego biacuteblico
conforme foi chamado pelos especialistas ateacute o comeccedilo do seacuteculo XX (Koester
2005 vol I p118) Segundo Koester (2005 vol1 p120-121) todos os livros do
Novo Testamento foram escritos originalmente em grego e esse autor eacute mais
enfaacutetico ainda quando afirma que nenhuma obra dos primeiros cristatildeos escrita em
grego pode ser traduccedilatildeo direta do hebraico ou do aramaico De acordo com Koester
eacute fato que existem inuacutemeros hebraiacutesmos e aramaiacutesmos constantes no Novo
Testamento que podem ser citaccedilotildees gregas da Biacuteblia hebraica ou ainda que
podem ser justificadas pelo fato de que o autor estava inserido num ambiente que
propiciava a formulaccedilatildeo de palavras semiacuteticas como no caso dos Evangelhos onde
Jesus e seus disciacutepulos eram falantes nativos do aramaico
Koester observa que as traduccedilotildees do aramaico para o grego devem ter
acontecido num periacuteodo anterior aos escritos dos primeiros cristatildeos quando esses
ainda conservavam na memoacuteria apenas a tradiccedilatildeo oral Essas traduccedilotildees foram
feitas deacutecadas antes da composiccedilatildeo dos Evangelhos e dessa forma no processo
de composiccedilatildeo das fontes dos Evangelhos praticamente todos os aramaiacutesmos
foram substituiacutedos por palavras gregas com exceccedilatildeo do Evangelho de Marcos que
parece ter usado fontes gregas que eram traduccedilotildees diretas dos originais aramaicos
ou ainda os relatos de milagres no Evangelho de Joatildeo que possivelmente tambeacutem
pode ter sido traduccedilatildeo de um original aramaico (Koester 2005 vl 1 p121-122)
Outra observaccedilatildeo de Koester eacute a questatildeo do bilinguismo na Palestina Entre
os primeiros cristatildeos havia uma mescla de seguidores de Jesus que falavam o
aramaico e o grego Esses foram determinantes para que a composiccedilatildeo dos
Evangelhos fosse fortemente influenciada pelo aramaico Para Koester ldquoalguns
desses semitismos satildeo empreacutestimos semacircnticos que derivam do ambiente geral da
liacutengua como θάλασσα natildeo soacute para mar ou oceano mas tambeacutem para lago uma
vez que o aramaico יםאא denota ambosrdquo (Koester 2005 vl1 p122)
60
Etimologicamente essa palavra tem como raiz o termo darash procurar significa pesquisa sobre a Escritura e tem como funccedilatildeo o meacutetodo de estudo das Escrituras com vistas agrave sua atualizaccedilatildeo (cf Vermes 1990 p11)
112
Para trabalhar as questotildees filoloacutegicas e semacircnticas do Abba precisamos
investigar se a liacutengua materna de Jesus era realmente o aramaico Muitas questotildees
tecircm sido levantadas sobre a liacutengua que Jesus falava e tambeacutem questotildees sobre o
niacutevel cultural do Nazareno As liacutenguas oficiais do impeacuterio romano eram o latim e o
grego Para John P Meier questotildees relacionadas ao idioma ou idiomas que Jesus
falava satildeo muito complexas visto que natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz daquele
periacuteodo e as inscriccedilotildees em latim podem apenas ser um sinal para demonstrar a
presenccedila do poderio romano do que ter a finalidade de informar aos judeus sobre
algo que lhes fosse interessante Como para Meier no mundo greco-romano a
maioria da populaccedilatildeo era analfabeta isso obviamente era vaacutelido tambeacutem para a
populaccedilatildeo judaica (Meier 1993 p254)
Meier usa como exemplo uma famosa ldquoinscriccedilatildeo de Pocircncio Pilatosrdquo que foi
descoberta na Cesareia Mariacutetima em 1961 Essa inscriccedilatildeo em latim foi dedicada ao
Imperador Tibeacuterio por Pilatos A questatildeo levantada por Meier eacute ateacute que ponto esta
inscriccedilatildeo alcanccedilou os gentios e judeus que viviam em Cesareia Possivelmente
para esse autor Pilatos estava preocupado em alcanccedilar apenas as elites ou seja
ele se dirigia apenas aos seus ldquoiguaisrdquo aqueles que estavam a serviccedilo do Impeacuterio ou
faziam parte das elites dominantes As inscriccedilotildees mesmo que sejam as oficiais em
preacutedios puacuteblicos ou aquedutos construiacutedos pelo Impeacuterio ou ateacute mesmo as inscriccedilotildees
funeraacuterias natildeo provam em nada que o latim fosse uma liacutengua comum na Palestina
O fato de uma laacutepide tumular estar em latim poderia apenas ser ldquoo desejo de dar
uma impressatildeo de alta culturardquo e nada mais Assim como segundo Meier natildeo se
pode concluir que os catoacutelicos americanos do iniacutecio do seacuteculo XX tinham um idioma
comum apenas observando a frase Requiescat in pace (do latim descanse em Paz)
inscrita em seus tuacutemulos e nem as muitas inscriccedilotildees em latim espalhadas pela
Europa podem refletir as inuacutemeras liacutenguas faladas hoje em dia nesse continente
Meier observa entatildeo que o Latim eacute visto quase que por unanimidade como o
idioma menos falado na Palestina nos dias de Jesus e por isso ldquonatildeo haacute razatildeo para
se pensar que Jesus falou e muito menos leu o latimrdquo (Meier 1993 p 254 ndash 255)
Se o latim natildeo era tatildeo comum na Palestina jaacute o grego segundo Meier era
um caso totalmente diferente O grego era comum em todo o Impeacuterio romano
inclusive em Roma capital do Impeacuterio A Palestina dos dias de Jesus era altamente
113
helenizada haviam cidades e povoados que foram transformados de uma forma
poliacutetica e cultural em cidades gregas61 Segundo Meier o debate atual entre os
estudiosos estaacute concentrado apenas em saber qual era o grau de helenizaccedilatildeo
nessas cidades Mesmo apoacutes o periacuteodo dos Macabeus onde houve um movimento
de resistecircncia agrave liacutengua e a cultura grega natildeo foi possiacutevel extinguir essa cultura da
Palestina porque apoacutes esse periacuteodo (dos Macabeus) a Palestina passou a ser
governada pelos Asmoneus que tiveram como monarca principal por volta do final
do seacuteculo I aC Herodes o Grande Herodes deu continuidade agrave poliacutetica de
helenizaccedilatildeo que tinha comeccedilado com os reis Selecircucidas especificamente por
Antiacuteoco Epiacutefanes IV O processo de helenizaccedilatildeo de Herodes foi desde a construccedilatildeo
do porto da Cesareia Mariacutetima a cidade de Sebaste em Samaria e muitas outras
grandes edificaccedilotildees em Jerusaleacutem Segundo Meier as inscriccedilotildees em Grego em
Jerusaleacutem eram inuacutemeras desde o Templo as sinagogas ateacute ossuaacuterios Meier assim
descreve a influecircncia grega na Palestina
[] Martin Hengel afirma que uma terccedila parte dos epitaacutefios em Jerusaleacutem do periacuteodo do Segundo Templo eram escritos em grego e ele ainda calcula que das 80000 ou 100000 pessoas que residiam na grande Jerusaleacutem entre 8000 e 16000 teriam falado grego Mas natildeo foi soacute em Jerusaleacutem que a liacutengua e a cultura gregas alcanccedilaram os judeus Um grande nuacutemero de judeus vivia nas cidades helenizadas da planiacutecie litoracircnea desde Gaza no sul ateacute Dor ou Ptolomaicas-Acco no norte Em Cesareia a capital romana da Judeia havia quase tantos judeus como gentios As cavernas de Murabaat nos forneceram papiros gregos sobre a vida diaacuteria e ateacute mesmo ndash por ironia ndash coacutepias de cartas em grego do tempo da revolta de Bar Kochba exatamente quando os nacionalistas lutavam e morriam para se libertarem do jugo estrangeiro e da dominaccedilatildeo cultural
Concernente agrave liacutengua grega e suas influecircncias na Palestina Meier observa
que para se chegar a uma conclusatildeo ou aproximaccedilatildeo de algum fato referente agrave que
idioma era falado pelos judeus residentes na Palestina faz-se necessaacuterio ter uma
atenccedilatildeo redobrada ao periacuteodo em questatildeo Por exemplo se atentarmos para os
seacuteculos III e II aC observa-se um eclipsamento do aramaico devido agrave helenizaccedilatildeo
da Palestina pelos reis selecircucidas da Siacuteria Segundo Meier parece que o aramaico
soacute voltou a retomar a prioridade na Palestina apoacutes a revolta dos Macabeus por isso
61
Se levarmos em consideraccedilatildeo os dados de Martin Hengel citados acima por Meier podemos
deduzir que aproximadamente de 10 a 20 da populaccedilatildeo de Jerusaleacutem falava grego Entatildeo eacute difiacutecil considerar a Palestina dos dias de Jesus como sendo altamente helenizada como fez Meier uma vez que nem mesmo na capital havia tantas pessoas que falavam tal liacutengua
114
natildeo eacute possiacutevel determinar qual era a liacutengua mais falada na Palestina dos seacuteculos II e
I aC tomando como exemplo inscriccedilotildees e textos dos seacuteculos III e II aC (Meier
1993 p 255)
A opiniatildeo de Meier eacute que vaacuterios textos de Flaacutevio Josefo levam agrave conclusatildeo de
que a liacutengua grega natildeo era tatildeo conhecida ou tatildeo falada na Palestina do seacuteculo I
pelos judeus Meier analisa que Josefo mesmo apoacutes se gabar de seu alto niacutevel
cultural tanto em relaccedilatildeo agrave lei como agrave prosa e poesia gregas demonstra algumas
dificuldades com a pronuacutencia do grego Meier observa que as dificuldades de Josefo
parecem natildeo ser apenas de pronuacutencia mas seu domiacutenio de escrita tambeacutem natildeo era
ldquoexatamente perfeitordquo Outro fator observado por Meier eacute a forma de comunicaccedilatildeo
que o general romano Tito usou para se comunicar com os judeus Tito que falava
bem o grego segundo Suetocircnio mas para se comunicar com os judeus precisou de
um ldquomensageiro em aramaico (Josefo) para ser compreendido pelos judeus Surge
entatildeo a grande pergunta Jesus falava grego Para Meier se nem mesmo Josefo
que era haacutebil na liacutengua grega natildeo se sentiu agrave vontade para transmitir o recado de
Tito em grego mas em aramaico porque natildeo dominava bem a liacutengua ou porque os
ouvintes natildeo entenderiam deduz-se que ldquoa probabilidade de um camponecircs galileu
ter suficiente conhecimento para se tornar um mestre e pregador bem-sucedido que
proferisse seus discursos em grego parece muito pequenardquo (Meier 1993 p 258-
259)
Ao fazer um trabalho minucioso sobre a liacutengua que Jesus falava Meier
depois de muitos questionamentos levanta a suposiccedilatildeo de que natildeo podemos negar
que Jesus fosse totalmente desconhecedor da liacutengua dos helenos Primeiro porque
Jesus ateacute mesmo por causa de sua profissatildeo e viagens a Jerusaleacutem tinha contato
com pessoas que falavam grego Eacute possiacutevel segundo Meier que Jesus vez ou outra
fizesse algum contrato ou assinasse algum recibo que tivesse sido redigido em
grego62 Mas o fato de assinar recibos ou mesmo ter dialogado com Pilatos pode
apenas presumir que Jesus possuiacutesse alguns conhecimentos da liacutengua grega
62
A hipoacutetese de Meier sobre a possibilidade de Jesus ter assinado pequenos contratos em grego eacute questionaacutevel uma vez que segundo Meier se nem mesmo Josefo era fluente na liacutengua dos helenos muito menos Jesus que era um humilde galileu Outrossim segundo Crossan eram poucas as pessoas alfabetizadas na Palestina (no maacuteximo 3 da populaccedilatildeo) Crossan chega a afirmar que Jesus era analfabeto como a maioria dos seus conterracircneos Se tal hipoacutetese tambeacutem for verdadeira dificilmente Jesus teria condiccedilotildees de assinar pequenos contratos profissionais na liacutengua grega
115
suficientes apenas para um pequeno diaacutelogo composto de frases curtas Meier acha
muito difiacutecil Jesus ter adquirido alfabetizaccedilatildeo para a escrita em grego O referido
autor ainda aprofunda mais as suas desconfianccedilas a respeito do assunto quando
diz ldquoPortanto acompanhando Fitzmyer mantenho minhas duacutevidas se qualquer parte
dos pronunciamentos de Jesus foi feita desde o iniacutecio em grego dispensando a
traduccedilatildeo ao passar para os Evangelhos gregos que conhecemosrdquo (Meier 1993 p
260)
Apoacutes verificarmos as influecircncias do latim e do grego na Palestina nos dias de
Jesus resta-nos verificar as liacutenguas faladas em Israel desde os primoacuterdios da
naccedilatildeo O hebraico era o antigo e sagrado idioma falado em Israel mas desde que
os judeus voltaram do cativeiro babilocircnico o hebraico sofreu um decliacutenio como
liacutengua falada e passou a ser substituiacutedo gradualmente pelo aramaico Essa
influecircncia do aramaico sobre o hebraico jaacute pode ser vista nos livros poacutes-exiacutelicos
mais precisamente sobre ldquoos livros de Esdras e Daniel que contecircm capiacutetulos inteiros
escritos em aramaico sendo que em Daniel eles chegam agrave metade do totalrdquo (Meier
1993 p 260)
Contudo segundo Meier o hebraico continuou sendo uma liacutengua viva em
Israel principalmente em Qumran onde tinha primazia com o aramaico em
segundo lugar e o grego ocupando apenas uma distante terceira colocaccedilatildeo No
entanto o fato do hebraico ser a liacutengua oficial da comunidade de Qumran natildeo
confirma em nada que o hebraico fosse uma liacutengua usada no dia a dia dos demais
israelitas fora dessa restrita comunidade O que parece ser mais evidente era que o
hebraico aleacutem de em Qumran era usado por religiosos e grupos nacionalistas e por
judeus devotos e em algumas regiotildees de Israel ainda se falava e escrevia em
hebraico (Meier 1993 p 261)
Mesmo sendo o hebraico uma liacutengua viva em Israel Jesus segundo Meier
usava o aramaico para comunicar-se com os seus conterracircneos na vida diaacuteria uma
vez que se acredita que ele natildeo pertencia agrave comunidade de Qumran e nem agrave elite
dos religiosos da eacutepoca bem como seus ouvintes que em sua maioria pertenciam
agraves classes sociais mais humildes A maior evidecircncia disso estaacute nos aramaiacutesmos
registrados nos Evangelhos e especificamente no Evangelho de Marcos onde
encontramos a palavra Abba proferida por Jesus (Mc 1436) De acordo com Meier
116
J Jeremias relacionou 26 palavras aramaicas atribuiacutedas a Jesus nos evangelhos
Dessas palavras Meier opina que duas delas Talita cumi e Abba (Mc 5 41 14 36)
satildeo as que mais proacuteximas estatildeo do Jesus histoacuterico Para ele nem todos os
exemplos citados por J Jeremias podem ser comprovados entretanto alguns satildeo
uacuteteis para demonstrar a forma como Jesus instruiacutea os seus disciacutepulos (Meier 1993
p 264)
A questatildeo da liacutengua falada nos dias de Jesus eacute complexa uma vez que o
aramaico eacute uma liacutengua semiacutetica e estaacute intimamente relacionada com o hebraico No
entanto o aramaico natildeo eacute um dialeto do hebraico mas uma liacutengua semiacutetica distinta
De fato se partirmos do pensamento de Black e considerarmos que Jesus era um
Rabi na Galileia entatildeo natildeo podemos descartar a possibilidade de que ele fez uso
tanto do hebraico como do aramaico especialmente em suas disputas formais com
os fariseus (Black 1998 p16) Aleacutem disso ter conhecimento das duas liacutenguas natildeo
era nada anormal visto que segundo Missick em alguns casos as liacutenguas eram tatildeo
similares que existiam palavras usadas em ambas as liacutenguas com o mesmo
significado (Missick 2010 p 4)
Analisando a coexistecircncia das duas liacutenguas na Palestina nos dias de Jesus
observa-se que as origens do aramaico podem ser anotadas a partir do cativeiro
babilocircnico que ocorreu no periacuteodo de 586 a 539 aC antes disso o hebraico era a
liacutengua oficial dos judeus Com o retorno do hebraico como a liacutengua e a identificaccedilatildeo
da cultura e existecircncia do povo judeu o aramaico foi perdendo forccedilas ateacute ser
considerado uma liacutengua morta No entanto segundo Missick ainda existem
comunidades que falam o aramaico nos dias atuais como os cristatildeos assiacuterios63 do
Iratilde e do Iraque Antigos cristatildeos dessas regiotildees preservaram uma importante versatildeo
da Biacuteblia em aramaico que hoje eacute conhecida como a Biacuteblia Peshitta que segundo
Missick eacute muito valiosa porque a partir dela eacute possiacutevel estudar as palavras de
Jesus no aramaico pois acreditam os cristatildeos do oriente que os Evangelhos foram
63
Matthew Black observa que foi encontrado entre os siriacuteacos cristatildeos palestinos o dialeto aramaico
mais proacuteximo do aramaico dos Evangelhos enquanto que para Dalman segundo Black o aramaico que mais se aproxima do falado nos dias de Jesus era o aramaico dos Targuns judaicos para o Pentateuco e os profetas (cf Black 1998 p18-19)
117
primeiro escritos em aramaico e soacute depois traduzidos para o grego (Missick 2010
p5) 64
Para enfatizar a importacircncia do aramaico no Novo Testamento Missick
relaciona as palavras aramaicas compostas de oraccedilotildees tiacutetulos divinos nomes de
pessoas nomes de lugares e outras palavras e frases usadas no Novo Testamento
Abba (Mc 14 36) Eloiacute Eloiacute lemaacute sabachtaacuteni (Mc 15 34 cf Mt 2746) segundo
Missick se Jesus estivesse falando em hebraico ele teria dito Eli Eli lama azabanti
Nesse caso Jesus estaacute citando o Salmo 221 em aramaico Essa traduccedilatildeo do Antigo
Testamento eacute chamada de Targum65 pela tradiccedilatildeo judaica Dentre as palavras
relacionadas por Missick temos tambeacutem Maranatha (1 Co 1622) que
etimologicamente conforme a definiccedilatildeo dada por Missick (2010 p22-26) tem como
prefixo o termo ldquoMarrdquo que significa Senhor ou ldquoMaranrdquo que significa nosso Senhor
donde temos Maranatha que tem como definiccedilatildeo completa o significado de ldquonosso
Senhor vemrdquo (Marana tha) ou ainda ldquonosso Senhor estaacute vindordquo (Maran atha) Em
aramaico temos ainda outra palavra Rabboni (Jo 2016)
Em relaccedilatildeo aos nomes em aramaico mencionados no Novo Testamento
Missick argumenta que essas pessoas natildeo teriam outro motivo para receber nomes
64
Missick (2006 p170) refere-se a dois grupos significantes de cristatildeos que ainda falam o aramaico O primeiro grupo eacute composto por siacuterios Ortodoxos que vivem na Siacuteria O Segundo grupo do oriente (leste) da Siacuteria satildeo chamados de Assiacuterios e satildeo nativos do Iratilde e do Iraque conforme jaacute comentado acima Segundo Missick os cristatildeos mesmo sendo chamados de assiacuterios satildeo totalmente distintos da cultura do antigo Impeacuterio Assiacuterio A avanccedilada e militarista cultura da Assiacuteria antiga desapareceu com o tempo mas seus descendentes satildeo os modernos siacuterios do Oriente chamados de assiacuterios Os antigos assiacuterios falavam o Acadiano liacutengua falada por assiacuterios e babilocircnios que natildeo eacute mais falada na atualidade
Os atuais cristatildeos Siacuterios e Assiacuterios pertencem a denominaccedilotildees diferentes Segundo Missick (2006 p170) os siacuterios do oeste pertencem agrave Igreja Ortodoxa siacuteria e jaacute foram chamados de Jacobitas ou seja porque provinham do bispo Jacob Bardesanes (542-578 dC) Os cristatildeos chamados de assiacuterios eram conhecidos como nestorianos visto que o patriarca deles foi Nestoacuterio de Constantinopla um Patriarca da Igreja Ortodoxa grega (428-431 dC) A igreja no entanto eacute mais apropriadamente chamada de ldquoAntiga Igreja assiacuteria do Orienterdquo
65 Esta palavra eacute de origem natildeo semiacutetica mas foi adotada pelos judeus para designar tradiccedilatildeo (aqui
parece haver um equiacutevoco do comentador uma vez que a palavra Targum vem do hebraico lsquo targucircmimrsquo e significa traduccedilatildeo Cf La Sor 1999 p 670) ldquoOs targuns satildeo as traduccedilotildees aramaicas dos textos biacuteblicos destinados ao uso sinagogal Na sua origem essas traduccedilotildees eram orais e mais ou menos improvisadas e fragmentaacuterias sendo depois progressivamente fixadas por escrito e reunidas em grandes secccedilotildees (targum do Pentateuco targum dos Profetas targum dos Hagioacutegrefos) Mesmo quando eacute literal na aparecircncia o targum conteacutem elementos mais ou menos amplos de paraacutefrase ou de explicaccedilatildeo de atualizaccedilatildeo e ateacute de correccedilotildees Ele integra o midrash sobretudo na sua forma haggaacutedica Eacute possiacutevel que existisse um targum do Pentateuco ndash ou torah aramaica ndash na eacutepoca de Jesus e ateacute antes na Palestina A atividade targuacutemica evoluiacutera no decorrer dos seacuteculos em que foi praticada para a atividade propriamente midraacuteshica (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p11-12)
118
em aramaico se natildeo estivessem inseridos numa determinada comunidade que
falasse aramaico Missick cita como exemplo o prefixo ldquoBarrdquo antes de alguns nomes
que em aramaico tem o sentido de ldquofilho derdquo enquanto que para nomes em hebraico
se usava o prefixo ldquoBenrdquo que tambeacutem tinha o sentido de ldquofilho derdquo (Missick 2010
p26) Os nomes pessoais que segundo Missick tecircm origem no aramaico satildeo
Cephas (Jo 142 1 Co 112 Gl 29) Tomeacute que vem do aramaico ldquoteomardquo cujo
significado eacute gecircmeo (Jo 212) Simatildeo o Zelota (Mc 318) Maria Madalena que era
natural da cidade de Magdala que em aramaico significa Torre66 Tadeu e Lebeu (Mt
103) Tadeu em aramaico significa mamilo e Lebeu significa coraccedilatildeo
A extensa relaccedilatildeo de nomes pode ser assim resumida Tabita (At 936) Marta
(Lc 10 38-41 Jo 11 1-39 122) Bartolomeu (Mt 103) Jesus Barrabaacutes (Mt 2736)
Simatildeo Bar-Jonas (Mt 2716) Joseacute Barsabaacutes (At 123) Elimas Bar-Jesus (At 13 6-8)
Judas Barsabaacutes (At 15 22) Joseacute Barnabas ou Barnabeacute ndash Filho da profecia- (At
436) Aleacutem dos nomes de pessoas e dos tiacutetulos divinos em aramaico ainda
segundo Missick haacute vaacuterios nomes de cidades com origens no aramaico Gaacutebata (Jo
1913) Goacutelgota (Jo 19 17-18 Mc 1522) Betacircnia (Jo 111) Betesda (Jo 5 1-15)
Geena Mt 1028) Resta-nos ainda conforme Missick relacionar palavras e frases
em aramaico usadas no Novo Testamento Effatha (Mc 734) Taliacutetha Kum (Mc 541)
Raca (Mt 5 22) Mamon (Mt 624) Corban (Mc 7 9-13)
Para Missick natildeo haacute duacutevidas que Jesus falou aramaico Um dos argumentos
levantados por esse autor estaacute baseado no relato da morte de Judas conforme
registrou Lucas (At 119) No discurso de Pedro sobre a substituiccedilatildeo de Judas o
lugar onde o corpo de Judas caiu e se arrebentou ao meio conforme o texto
chamava-se Haceacuteldama na proacutepria liacutengua dos moradores de Jerusaleacutem Para
Missick essa palavra eacute aramaica e natildeo hebraica Se a palavra realmente eacute
aramaica entatildeo deduz-se que o idioma falado naqueles dias era o aramaico e natildeo
o hebraico e nem o grego muito menos o latim Missick conclui entatildeo que para se
compreender a mensagem de Jesus que antes de ser escrita foi transmitida
oralmente eacute necessaacuterio compreender as palavras na liacutengua em que Jesus as
66
Missick menciona que ela era conhecida como Madalena porque sua feacute era como uma torre Esse argumento foi defendido por Jerocircnimo contudo segundo Missick o mais provaacutevel eacute que ela tenha adquirido este tiacutetulo por ter vindo da cidade de Magdala (cf Missick p28)
119
proferiu e a melhor forma de alcanccedilar tal objetivo eacute compreender o aramaico
(Missick 2010 p4-35)
Entre os autores que defendem que o aramaico era a liacutengua dos galileus
contemporacircneos de Jesus encontramos tambeacutem Joseacute Pagola Jesus conforme
esse teoacutelogo falava o aramaico em casa assim como todos os galileus Pagola
ainda analisa que ateacute mesmo na Judeia se falava o aramaico no dia a dia Segundo
Pagola as diferenccedilas entre o aramaico da Galileia para o aramaico da Judeia era
apenas de dialeto (sotaque)
Embora o aramaico seja defendido pela maioria dos estudiosos de teologia do
Novo Testamento haacute no entanto autores que defendem que o hebraico natildeo
somente era uma liacutengua viva como era a mais falada nos dias de Jesus Para os
teoacutelogos David Biacutevin e Roy Bliacutezard Jr o hebraico era o idioma mais falado pelos
contemporacircneos de Jesus e dos primeiros cristatildeos Para esses autores um idioma
pode ser definido da seguinte maneira ldquoo idioma eacute uma expressatildeo no uso de uma
liacutenguagem que eacute peculiar a si proacuteprio na construccedilatildeo gramatical ou em ter um
significado que natildeo pode ser derivado como um todo a partir dos significados do
conjunto de seus elementos Na visatildeo deles o ldquohebraico eacute a chave para entender
as palavras de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p 2-4)
Os defensores do hebraico como a liacutengua falada na Palestina dos dias de
Jesus criticam os defensores da inerracircncia das Escrituras quando esses mesmo
depois de ler o texto de Atos 2614 em que Jesus fala em Hebraico com o apoacutestolo
Paulo e tambeacutem o texto de Atos 2140 no qual o mesmo apoacutestolo falou em hebraico
com uma multidatildeo satildeo os mesmos que afirmam que onde se diz hebraico deve-se
entender aramaico Para defender essa teoria eles argumentam que os mais
antigos manuscritos do Novo testamento datam do quarto e quinto seacuteculos da era
cristatilde (Codex Sinaiticus Codex Alexandrinus e Codex Bezae) afirmam que a
inscriccedilatildeo ldquoEste eacute o Rei dos Judeusrdquo estava escrito em grego latim e hebraico
Partindo desses argumentos Bivin e Bliacutezard lanccedilam a seguinte questatildeo
ldquoPorventura natildeo eacute significativo que os manuscritos gregos mais antigos infiram que
o hebraico era mais popular que o aramaico naquele periacuteodordquo (Biacutevin e Bliacutezard
2001 p8)
120
Biacutevin e Bliacutezard argumentam que mesmo a presenccedila de uma palavra aramaica
(Abba) no Evangelho de Marcos (Mc 1436) natildeo prova em nada a existecircncia de
uma liacutengua original falada em aramaico no periacuteodo de Jesus Para esses autores
Abba aparece sempre entre os escritos em hebraico daquele periacuteodo como uma
palavra de empreacutestimo A razatildeo para tal empreacutestimo do aramaico seria pelo fato
dessa palavra ter um ldquosabor especialrdquo quando usado como forma de relacionamento
entre os filhos e seus pais O sentido dessa expressatildeo pode ser relacionado com a
forma como os filhos se dirigem aos seus pais chamando-os de ldquodaddyrdquo (Papai) ou
ldquopapardquo (pai) em Inglecircs Um outro argumento ainda usado como forma de demonstrar
que usar Abba como forma de provar que a liacutengua falada por Jesus natildeo era o
aramaico eacute demonstrar que ainda hoje em Israel onde se fala o hebraico moderno
ldquoas crianccedilas usam Abba na abordagem de seus pais exatamente da mesma
maneira como foi usado no tempo de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p10)
Murphy-OConnor diferentemente de Biacutevin e Bliacutezard comunga da mesma
ideia de Jerocircnimo de que o apoacutestolo Paulo era de origem palestinense conforme os
textos de 2 Co 11 22 e Fl 3 5 onde Paulo identifica-se como ldquoisraelitardquo ldquodo povo de
Israelrdquo e como um ldquohebreurdquo Poreacutem quanto aos textos onde Lucas diz que Paulo
falou com a multidatildeo ldquonuma linguagem hebraicardquo (At 2140 222 2614) Murphy-
OConnor argumenta que a linguagem deveria significar aramaico e natildeo hebraico
Segundo esse autor naquela eacutepoca a maioria dos judeus jaacute natildeo conheciam mais o
hebraico e os textos das Escrituras nas sinagogas eram traduzidos para o aramaico
Outro argumento eacute que as palavras Gaacutebata (Jo 1913 o lugar onde Pilatos
condenou Jesus) e Goacutelgota (Jo 19 17) que satildeo mencionadas como palavras
hebraicas na verdade satildeo palavras aramaicas Sendo assim segundo Murphy-
OConnor a divisatildeo entre os primeiros cristatildeos de Jerusaleacutem (At 61) era permeada
pelos que falavam aramaico e pelos que falavam o grego (Murphy-OConnor 2008
p 29-30)
Matthew Black analisando a liacutengua falada por Jesus observa que alguns
estudiosos defendem o hebraico como a liacutengua vernaacutecula na Palestina dos dias de
Jesus Segundo Black alguns propotildeem que o hebraico natildeo era soacute apenas uma
forma literaacuteria de expressatildeo ou entatildeo apenas uma liacutengua falada nos ciacuterculos
rabiacutenicos mas o hebraico era um veiacuteculo normal de expressatildeo (Black 1998 p 47)
121
Douglas Hamp defende que o hebraico era realmente uma liacutengua muito viva nos
dias de Jesus e natildeo uma liacutengua morta como muitas vezes eacute dito Aleacutem de tudo para
ele o hebraico era a primeira liacutengua na Palestina nos dias de Jesus apesar de
segundo ele Jesus poderia ser triliacutengue ou seja falava hebraico aramaico e grego
e possivelmente ateacute o latim (Hamp 2005 p40) Hamp defende entatildeo que Jesus
provavelmente conhecia o aramaico e o grego e deve ter usado essas liacutenguas em
alguns contextos no entanto com seus disciacutepulos e na comunicaccedilatildeo com as
massas ele falou hebraico (Hamp 2005 p73)
Sobre a posiccedilatildeo daqueles que consideram o hebraico e natildeo o aramaico
como o vernaacuteculo ou seja a liacutengua mais falada nos dias de Jesus Black responde
ldquoesta posiccedilatildeo extrema tem encontrado pouco ou nenhum apoio entre as autoridades
competentes a evidecircncia da ipsissima verba de Jesus nos Evangelhos eacute impossiacutevel
de explicar se o aramaico natildeo era a liacutengua que Jesus falavardquo No entanto para ele eacute
provaacutevel que Jesus sendo um Rabi que comeccedilou seu ministeacuterio na Galileia e muito
bem versado nas Escrituras tenha sido capaz de ensinar com maestria tanto em
hebraico que poderia usar para ocasiotildees solenes como em aramaico com que se
comunicava com as massas (Black 1998 p 48-49)
Considerando as diversas opiniotildees sobre a liacutengua materna de Jesus
observamos que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus falava o aramaico
uma vez que esta foi a liacutengua predominante na Palestina apoacutes o exiacutelio babilocircnico
Contudo natildeo eacute tarefa faacutecil chegar a uma conclusatildeo Como vimos os estudiosos que
defendem o aramaico como a liacutengua materna de Jesus buscam como prova de tal
tese o argumento de que o Novo Testamento conteacutem muitas palavras aramaicas que
deviam ser comuns nos dias de Jesus Possivelmente o aramaico era uma liacutengua
falada pela populaccedilatildeo em geral enquanto que o hebraico reservava-se mais a
escrita de textos religiosos (sacros) e tambeacutem era usado pela classe sacerdotal que
por sua vez era mais elitizada Contudo devido agrave semelhanccedila entre as duas liacutenguas
torna-se difiacutecil delimitar uma linha divisoacuteria entre as mesmas uma vez que natildeo
possuiacutemos textos em aramaico da eacutepoca e natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz
que nos permita concluirmos com precisatildeo
122
6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS
Apoacutes termos apresentado a tese de J Jeremias sobre o Abba e alguns
pesquisadores que com ele concordam eacute oportuno tambeacutem olharmos algumas
teorias e pesquisadores que divergem de suas ideias
61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO
A relaccedilatildeo de paternidade divina no Antigo Testamento eacute refletida na literatura
poacutes-canocircnica do judaiacutesmo No Judaiacutesmo palestinense67 de acordo com J Jeremias
natildeo haacute relatos que em toda a literatura de Qumran que deve ser anterior a 68 a C
(Jeremias 1977 p17) de que Deus tenha sido invocado como Pai Haacute apenas uma
exceccedilatildeo em I QH 9 55 S ldquoEu te agradeccedilo oh Senhor porque natildeo abandonou a
paternidade ou desprezou o pobrerdquo (Vermes 2004 p274) A questatildeo da paternidade
divina era vista pelos rabinos como um direito dado apenas para aqueles que
cumpriam a Lei (Torah) (Jeremias p 1977 p19)
As oraccedilotildees judaicas eram dirigidas geralmente a Deus como nosso Pai
nosso Rei (abinu malkenu) 68 ldquoNosso Pai Nosso Rei Em vista de nossos pais que
creem em ti e a quem ensinas as leis da vida ndash tem piedade de noacutes e ilumina-nosrdquo
(Jeremias 1977 p18) Para J Jeremias mesmo essa oraccedilatildeo sendo antiga
podendo mesmo ser situada na eacutepoca de Jesus haacute algumas coisas que precisam
ser observadas A ecircnfase da oraccedilatildeo estaacute na duplicidade dos termos que se referem
a Deus ou seja ldquoDeus eacute invocado como o pai da comunidaderdquo e a comunidade por
sua vez invoca o Pai que ldquoeacute o rei celestial do povo de Deusrdquo (Jeremias 2008 p116)
Tambeacutem segundo J Jeremias esse texto foi escrito em hebraico que nos dias de
67
ldquo[] no judaiacutesmo palestinense do periacuteodo preacute-cristatildeo eacute rara a descriccedilatildeo de Deus como pai Nos
apoacutecrifos e pseudoepiacutegrafos no que diz respeito aos escritos de origem palestinense acha-se muito raramente (tob 134 Sir 5110 Jub 124-25 28 1929) enquanto os textos de Cunratilde oferecem um uacutenico exemplo isolado (1QH 935-36) No judaiacutesmo rab do seacuteculo I dC o emprego do nome Pai tornou-se mais generalizado mas ainda era muito menos frequente do que outras descriccedilotildees de Deus (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
68 Charlesworth afirma que Jesus invocava a Deus como Abba e natildeo como Abinu Charlesworth
entatildeo pergunta ldquonatildeo seraacute concebiacutevel que tenha chamado Deus de Abba porque tinha uma concepccedilatildeo de Deus que era de algumas maneiras diferente daquela da maioria de seus contemporacircneos (cf Charlesworth 1992 p148)
123
Jesus era uma liacutengua sacra usada com maior frequecircncia nas reuniotildees lituacutergicas e
natildeo como uma praacutetica comum no dia a dia (Jeremias 1977 p19)
Entre os escritos do judaiacutesmo palestinense haacute duas oraccedilotildees em que Deus eacute
invocado como Pai Satildeo invocaccedilotildees muito semelhantes do c 23 de Ben Sira
(Eclesiaacutestico) escrito por volta do comeccedilo do seacuteculo II aC (Jeremias 1977 p19)
Esses dois versiacuteculos (v1 e v4) onde Deus eacute invocado como ldquoPai e dono da minha
vidardquo e como ldquoSenhor Pai e Deus da minha vidardquo (Jeremias 1977 p19) poderiam
ser um preluacutedio do evangelho segundo J Jeremias se por volta da deacutecada de 40
natildeo tivesse sido descoberto uma paraacutefrase em hebraico desse texto que hoje existe
apenas em grego A paraacutefrase desse texto escrito em hebraico natildeo invoca Deus
como ldquoSenhor e Pairdquo mas invoca-o como ldquoDeus de meu Pairdquo Ficam evidentes
entatildeo as diferenccedilas entre o texto que temos em grego e a paraacutefrase em hebraico
Partindo desses raciociacutenios J Jeremias entatildeo conclui que mesmo que no
Judaiacutesmo da diaacutespora haja testemunhos esporaacutedicos da invocaccedilatildeo de Deus como
Pai (Jeremias 2008 p117) eles satildeo apenas ditos isolados nos quais Deus eacute
invocado como (Pater) mas sempre com influecircncia do helenismo e da liacutengua grega
(Jeremias 2008 p115-116) e natildeo se tem notiacutecias de que no judaiacutesmo palestinense
algum indiviacuteduo tenha dirigido-se a Deus chamando-o de meu Pai (Jeremias 1977
p 19-20)
Contudo J Jeremias ainda menciona uma oraccedilatildeo do final do seacuteculo 1 aC
feita por um homem chamado Hanin ha-Nehba conhecido por seu sucesso nas
oraccedilotildees para obter chuva Nessa oraccedilatildeo Deus eacute invocado como papai ou como o
Abba que tem o poder de enviar chuva
Quando o mundo precisava de chuva nossos mestres tinham o costume de lhe mandar crianccedilas das escolas que se agarravam ao seu manto e imploravam Abbaacute Abbaacute habh lan mitra papai papai daacute-nos chuvardquo E ele lhe (a Deus) dizia Senhor do universo concede-nos (a chuva) em vista destes que natildeo satildeo ainda capazes de distinguir entre um abbaacute que tem o poder de dar a chuva e um abbaacute que natildeo tem (Jeremias 1977 p 22)
Por fim o autor supracitado observa que mesmo que as evidecircncias sejam
favoraacuteveis a uma invocaccedilatildeo de Deus como papai (Abbaacute) ainda assim com um olhar
mais criterioso nota-se que a forma como Hanin invoca a Deus eacute tomada com um
tom carregado de humor e Hanin comeccedila a sua oraccedilatildeo dirigindo-se a Deus natildeo
como o Abba mas sim como o Senhor do universo J Jeremias vecirc essa histoacuteria
124
como um preluacutedio das afirmaccedilotildees de Jesus nos Evangelhos onde ele diz que ldquoo Pai
celeste sabe do que precisam os seus filhos (Mt 632) que ele envia a chuva sobre
os justos e os injustos (Mt 5 45) e daacute coisas boas aos seus filhos que lhas pedem
(Mt 711 par Lc 1113) (Jeremias 1977 p 23) Entatildeo J Jeremias tem como
resultado de suma importacircncia de que realmente natildeo existe nenhum testemunho
nas oraccedilotildees judaicas do uso do Abba (papai) em todo o judaiacutesmo Defende esse
autor que o emprego do Abba foi uma caracteriacutestica peculiar de Jesus dirigir-se a
Deus invocando-o como o Abba e isso coloca o abba como sendo a ipsissima vox
de Jesus (Jeremias 1977 p23)
Eis-nos pois autorizados a dizer por que natildeo se usa abbaacute nas oraccedilotildees Judaicas para invocar a Deus seria desrespeitoso e portanto impensaacutevel para uma mentalidade judaica chamar a Deus com um nome tatildeo familiar Foi algo de novo uacutenico e inaudito ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma crianccedila fala ao seu pai com simplicidade intimidade e sem temor Portanto natildeo haacute duacutevida alguma de que a palavra abbaacute utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus revela o proacuteprio fundamento de sua comunhatildeo com ele (Jeremias 1977 p25)
J Jeremias ainda conclui seu pensamento sobre o uso do Abba nas oraccedilotildees
judaicas ldquoUma revisatildeo da rica e abundante literatura oracional judaica ainda pouco
estudada leva-nos a conclusatildeo de que em nenhuma das suas passagens estaacute
atestado o termo abba para invocar a Deusrdquo (Jeremias 2006 p63)
Com um pensamento em alguns pontos diferentes ao de J Jeremias de que
para este Deus nunca foi invocado como pai no judaiacutesmo quer seja no Antigo
Testamento ou no judaiacutesmo palestinense Bultmann afirma que a visatildeo de Deus
como pai no Judaiacutesmo era corriqueira quer seja atraveacutes das oraccedilotildees ou ateacute mesmo
pelo piedoso individualmente Bultmann usa alguns textos como o Eclesiaacutestico 410
para justificar a sua tese ldquoSecirc um pai para os oacuterfatildeos e o substituto do esposo para as
viuacutevas Entatildeo Deus te chamaraacute de filho seraacute gracioso para contigo e te salvaraacute da
perdiccedilatildeordquo (Bultmann 2005 p 191)
A condiccedilatildeo de filho de Deus no judaiacutesmo pode ser tambeacutem escatoloacutegica Para
Bultmann o chamado Salmo de Salomatildeo (1730) trata sobre o regimento do
Messias no tempo do fim com as seguintes palavras ldquoEle os conhece e sabe que
satildeo todos filhos do seu Deusrdquo E para enfatizar ainda mais o seu argumento ele
ainda cita o ldquochamado Livro dos jubileus (1 24-25)rdquo no qual Deus em uma forma
escatoloacutegica promete para os israelitas no tempo da salvaccedilatildeo ldquoEles cumpriratildeo os
125
meus mandamentos e eu serei um pai para eles e eles seratildeo meus filhos E todos
eles se chamaratildeo filhos do Deus vivo e todos os anjos e todos os espiacuteritos os
conheceratildeo e saberatildeo que eles satildeo meus filhos e que eu sou o pai em firmeza e
justiccedila e que eu os amordquo
A ideia que Jesus tem da designaccedilatildeo de Deus como pai segundo Bultmann
natildeo traz nenhuma novidade a respeito do assunto pelo contraacuterio era jaacute uma
caracteriacutestica de muitas religiotildees e cosmovisotildees religiosas e entre elas encontra-se
a visatildeo dos antigos estoicos para os quais a ldquofiliaccedilatildeo divina cabe ao ser humano por
natureza e eacute algo que se aplica a ele na esfera das ideias logo que se situa aleacutem
de sua existecircncia concreta no aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p192-193)
A relaccedilatildeo de pai e filhos no judaiacutesmo ocorre de uma forma diferente da do
estoicismo Bultmann defende que no judaiacutesmo natildeo haacute uma relaccedilatildeo de pai e filhos
de Deus por natureza mas pela livre eleiccedilatildeo de Deus A filiaccedilatildeo divina portanto natildeo
eacute algo natural mas eacute algo miraculoso Quanto agrave possibilidade da filiaccedilatildeo essa natildeo eacute
exclusividade de um grupo pelo contraacuterio eacute aberta a todos pois o pai do ceacuteu provecirc
para todas as pessoas aquilo que necessitam (Mt 6 2632) Da mesma forma a
oportunidade para rogar ao pai do ceacuteu (Mt 7 7-11) eacute uma oportunidade oferecida a
todas as pessoas Dessa forma Bultmann declara que ldquo o ser humano eacute visto de
modo bem diferente ou seja natildeo como aquilo que eacute na esfera das ideias para aleacutem
de sua existecircncia concreta mas justamente como aquilo que eacute em sua existecircncia
na singularidade de seu aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p 193)
O conceito de paternidade no judaiacutesmo eacute tambeacutem discutido por Alon Goshen-
Gottstein em ldquoDeus como Pai no judaiacutesmordquo (Goshen-Gottstein 2001 p475) Para
ele a referecircncia rabiacutenica de Deus como pai no judaiacutesmo tambeacutem eacute uma
peculiaridade de Israel como naccedilatildeo natildeo que indiviacuteduos natildeo possam dirigir-se a Ele
como pai Mas natildeo eacute possiacutevel encontrar nas fontes sobre algueacutem que de forma
especiacutefica e individual tenha dirigido-se a Deus chamando-o de Pai No entanto
para Goshen-Gottstein essa relaccedilatildeo paternal era apenas um sentimento religioso
reciacuteproco de Israel para com Deus isto eacute chamar Deus de Pai era apenas uma das
muitas metaacuteforas que Israel usava para referir-se a Deus (Goshen-Gottstein 2001
p475)
Para Goshen-Gottstein os cristatildeos e judeus divergem muito sobre a questatildeo
da segunda e a terceira pessoas da trindade cristatilde parece que a primeira pessoa da
trindade (o Pai) eacute o elo que une o cristianismo e o judaiacutesmo num fundo teoloacutegico
126
comum Contudo ele pergunta sobre em que extensatildeo a pessoa do Pai eacute um
conceito comum para o judaiacutesmo e para o cristianismo (Goshen-Gottstein 2001
p471) Goshen-Gottstein coloca que o primeiro problema eacute metodoloacutegico visto que
eacute natural que os pesquisadores do Novo Testamento vasculhem a literatura rabiacutenica
agrave procura daquilo que apenas lhes interessa A exemplo disso esse autor observa
que teoacutelogos cristatildeos pentearam a literatura rabiacutenica em busca de exemplos de
expressotildees sobre o ldquoPai celesterdquo que estatildeo no singular ou no plural para dessa
forma avaliar a importacircncia que a expressatildeo ldquoPai celesterdquo tem na literatura rabiacutenica
quando analisada sobre a perspectiva da intimidade e relaccedilatildeo pessoal que o ldquoPai
Celesterdquo tinha para os autores rabiacutenicos Goshen-Gottstein vecirc isso como perda de
tempo pois considera que as fontes rabiacutenicas natildeo podem ser analisadas para fins
especiacuteficos mas devem ser apreciadas a partir da unicidade das suas estruturas
literaacuterias meacutetodos de expressatildeo e convenccedilotildees estiliacutesticas (Goshen-Gottstein 2001
p473)
Referindo-se ao conceito de metaacuteforas atribuiacutedas a Deus Goshen-Gottstein
afirma que descrever Deus como Pai no Judaiacutesmo natildeo eacute essencial ou fundamental
Esse conceito tem uma conotaccedilatildeo religiosa e faz parte de um vocabulaacuterio religioso
Ele eacute apenas uma descriccedilatildeo repleta de imagens e metaacuteforas que faz parte de um
vocabulaacuterio religioso que daacute expressatildeo aos sentimentos do povo e que enchem o
espectro de Israel Portanto para Goshen-Gottstein ldquoPairdquo natildeo eacute uma expressatildeo
privilegiada dentro do judaiacutesmo e tambeacutem ldquonatildeo eacute o nome proacuteprio de Deus Antes eacute
uma das inuacutemeras metaacuteforas atraveacutes das quais Israel se refere a Deusrdquo A
paternidade na literatura rabiacutenica eacute sempre vista em relaccedilatildeo a Israel como naccedilatildeo
Embora Goshen-Gottstein afirme tal expressatildeo ele admite que haja casos em que
indiviacuteduos se dirijam a Deus como Pai inclusive em fontes biacuteblicas No entanto natildeo
se encontra em nenhuma fonte Deus sendo considerado Pai de um indiviacuteduo
somente Sempre Deus eacute visto como sendo o Pai de Israel poreacutem isso natildeo
evidencia que a paternidade de Deus natildeo seja estendida a outros fora de Israel pelo
menos natildeo encontramos na literatura rabiacutenica textos que suponham tal expressatildeo
O que Goshen-Gottstein procura deixar claro eacute que a referecircncia rabiacutenica a Deus
como Pai estaacute fundamentalmente fiel ao uso biacuteblico Isso difere de Filo para quem
Deus o Pai eacute tambeacutem Deus o Criador do mundo Para os rabinos a paternidade
divina se refere somente em relaccedilatildeo a Israel ou seja as fontes referem-se a Deus
127
como Pai somente no contexto do relacionamento especial de Israel com Deus
(Goshen-Gottstein 2001 p475)
A representaccedilatildeo metafoacuterica de Deus como Pai de Israel eacute tambeacutem defendida
por Vermes em Jesus e o mundo do Judaiacutesmo Vermes defende que Deus foi
representado metaforicamente como Pai do povo eleito (Israel) natildeo somente na
literatura biacuteblica mas tambeacutem na literatura apoacutecrifa Entre os textos biacuteblicos por ele
citados encontram-se os seguintes ldquoEu sou pai para Israel e Efraim eacute o meu
primogecircnitordquo (Jr 319) ldquoE no entanto Senhor tu eacutes o nosso Pairdquo [] todos noacutes
somos obras de suas matildeosrdquo (Is 647) ldquoSerei para ele um Pai e ele seraacute para mim
um filho e seraacute chamado filho do Deus vivo (Jub 1 24-25) ldquoFiz a vontade do Abba
que estaacute nos ceacuteusrdquo (Lv R 321) ldquoOacute Senhor Pai Soberano (ou Deus) da minha vidardquo
(Sr 23 14) ldquoA tua providecircncia oacute Pai eacute o seu pilotordquo (Sb 14 3) Vermes apoacutes
analisar os textos das fontes mencionadas acima e outros natildeo reluta em afirmar que
a invocaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rica no judaiacutesmo antigo (Vermes 1996 p53)
Analisando as teses de J Jeremias concernentes ao Abba de Jesus Vermes
observa que elas estatildeo sujeitas a questionamentos J Jeremias defende que Abba
quando dirigido a Deus em forma de invocaccedilatildeo natildeo se encontra na oraccedilatildeo judaica
antiga Vermes contudo soacute concordaria com essa tese se fosse possiacutevel analisar
todas as oraccedilotildees individuais e confirmar que em nenhuma delas algum indiviacuteduo
dirigiu-se a Deus em oraccedilatildeo com a forma invocativa do Abba Para Vermes o
seguinte pensamento de David Flusser resume bem os argumentos acima
apresentados ldquoJ Jeremias natildeo conseguiu encontrar o uso de Abba como vocativo
para Deus na literatura talmuacutedica poreacutem considerando a escassez de material
rabiacutenico sobre a oraccedilatildeo carismaacutetica isso natildeo nos diz muita coisardquo (Vermes 1996
p55)
Goshen-Gottstein fazendo referecircncia a Joseph Heinemann justifica a tese de
Vermes de que eacute preciso distinguir a oraccedilatildeo judaica antiga quando era puacuteblica e
coletiva da oraccedilatildeo de um indiviacuteduo Seguindo esse argumento observa-se que a
oraccedilatildeo puacuteblica recorre a linguagem e padrotildees especiacuteficos enquanto que a oraccedilatildeo
quando efetuada pelo indiviacuteduo eacute mais livre e tambeacutem mais carismaacutetica Nesse
sentido o exemplo por excelecircncia de oraccedilatildeo livre e individual eacute a oraccedilatildeo do Senhor
(Goshen-Gottstein 2001 p487)
Dentre os argumentos contraacuterios a visatildeo de J Jeremias temos ainda a
refutaccedilatildeo de Vermes sobre a tese em que J Jeremias defende que Jesus dirigia-se
128
a Deus chamando-o de ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo Para Vermes essa forma invocativa
realmente era usada pelas criancinhas quando essas se dirigiam aos seus pais
Contudo Vermes natildeo concorda que abba ou imma tenha tido uma uacutenica forma
determinada de uso Para ele na eacutepoca de Jesus abba poderia tambeacutem possuir
simplesmente o significado de ldquomeu pairdquo principalmente quando usadas em
situaccedilotildees solenes que natildeo tinham nada de infantil ldquocomo na altercaccedilatildeo imaginaacuteria
entre os patriarcas Judaacute e Joseacute relatado no Targum Palestino quando o furioso Judaacute
ameaccedila o governador [vizir] do Egito (seu irmatildeo que ele natildeo reconhecera) dizendo
Juro pela vida da cabeccedila de abba (meu pai) tal como tu juras pela cabeccedila do Faraoacute
teu senhor que se tirar a espada da bainha natildeo a devolverei mais enquanto a terra
do Egito natildeo tiver coberta de cadaacuteveresrdquo (Vermes 1996 p55)
James Barr tambeacutem eacute de acordo que abba era uma palavra usada por
adultos embora tambeacutem fosse muito usada por crianccedilas Segundo Barr no grego do
Novo Testamento a palavra ldquopaterrdquo (pai) eacute normalmente usada para referir-se a
figura paterna Contudo ele observa que na liacutengua grega tambeacutem havia uma palavra
em particular no diminutivo pertencente agrave fala das crianccedilas um pouco semelhante agrave
palavra Daddy em Inglecircs (papai) Poreacutem mesmo existindo a palavra em grego natildeo
haacute indiacutecio algum de que tal palavra tenha sido usada no Novo Testamento (Barr
1988 p 36-38)
As teorias com visotildees diferentes das de J Jeremias satildeo muitas como temos
visto Vermes conforme vimos acima eacute enfaacutetico ao contrapor J Jeremias
considerando as teses do professor de Gotinga sobre o Abba como incongruentes e
desprovidas de bases linguiacutesticas
[] J Jeremias compreendia que Jesus dirigia-se a Deus por ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo contudo afora a improbabilidade e incongruecircncia a priori dessa teoria parece natildeo haver bases linguiacutesticas para ela As criancinhas falantes de aramaico dirigiam-se aos seus pais por meio de abba ou imma mas esse natildeo era o uacutenico contexto do uso de abba Na eacutepoca de Jesus a forma determinada do nome abba (- ldquoo pairdquo) tambeacutem significava ldquomeu pairdquo ldquomeu pairdquo se bem que ainda atestado em qumran e no aramaico biacuteblico praticamente jaacute desaparecera como forma idiomaacutetica do dialeto galileu (Vermes 1996 p55)
No apecircndice de seu livro ldquoA Religiatildeo de Jesus o Judeurdquo Geza Vermes posta
um resumo da tese de J Jeremias sobre o Abba de Jesus (The Prayers of Jesus de
1967) baseadas em um artigo ldquoAbba natildeo eacute Papairdquo (Abba isnt Daddy) de James
129
Barr Os argumentos de J Jeremias estatildeo expostos da seguinte maneira conforme
transcritos abaixo
a) O termo aramaico eacute ldquouma expressatildeo puramente exclamatoacuteriardquo como em
Pai e natildeo um aspecto enfaacutetico correspondente em inglecircs a um substantivo
acompanhado do artigo definido (= o pai)
b) A origem do Abba se encontra no balbuciar do ldquofalar infantilrdquo A geminaccedilatildeo
ab-ba (ldquoDadaacuterdquo) tem como modelo o chamado mais frequente do bebecirc agrave Im-ma
(ldquoMamardquo)
c) Essa forma de invocaccedilatildeo eacute de tom tatildeo familiar que sua associaccedilatildeo com a
Deidade chocaria os judeus comuns de liacutengua aramaica como ldquodesrespeitosardquo
d) Seu emprego por Jesus era ldquoalgo de novo e inauditordquo
e) Abba no aramaico da Palestina tornou-se uma expressatildeo polivalente As
diversas expressotildees nos Evangelhos em Grego como ldquoo Pairdquo ldquoPairdquo (vocativo) e
tambeacutem ldquomeuteunosso Pairdquo (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)
podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus
Para Vermes se J Jeremias estiver correto isso pode trazer tantas
implicaccedilotildees porque o estilo de Jesus dirigir-se a Deus seria tatildeo peculiar a ponto de
representar um idiossincrasia Vermes prefere entender que J Jeremias
compreendeu mal o Abba de Jesus e ateacute por uma questatildeo de teimosia persistiu
defendo tal tese Ele ainda reafirma que o Abba natildeo era apenas o linguajar infantil
mas poderia ser usado em momentos solenes ou religiosos Vermes cita uma vez
mais James Barr dizendo que ironicamente esse observa ldquoque a teoria de J
Jeremias vinculando Abba agraves crianccedilas considera uma situaccedilatildeo que antedata Jesus
em alguns milecircniosrdquo Para fechar a analogia de Barr Vermes ainda cita-o ldquoComo
Explanaccedilatildeo de Abba nos tempos do Novo Testamento o balbuciar infantil natildeo faz
sentidordquo
A refutaccedilatildeo de Vermes eacute enfaacutetica ou seja explicitamente ele coloca sua visatildeo
teoloacutegica sobre o Abba de Jesus como uma contestaccedilatildeo a todos os argumentos de
J Jeremias Para finalizar Vermes assim resume seu pensamento sobre a teoria de
J Jeremias ldquo[] a teoria de J Jeremias popular ateacute agora natildeo encontra
fundamento filoloacutegico A conclusatildeo literaacuterio-histoacuterica dessa teoria vale dizer que
antes de Jesus os judeus natildeo se dirigiam a Deus como Abba natildeo eacute apenas
incomprovada como tambeacutem implausiacutevelrdquo (Vermes 1995 p163-167)
130
Apoacutes os diversos argumentos contraacuterios a J Jeremias concluiacutemos com
Swidler que fazendo menccedilatildeo de Georg Schelbert observa que aleacutem do termo
abba natildeo havia nenhuma outra palavra a disposiccedilatildeo de Jesus se ele quisesse falar
de Deus ou a Deus como Pai Se essa era a uacutenica forma de Jesus dirigir-se a Deus
entatildeo ela natildeo poderia ter nada de especial como afirma J Jeremias ateacute porque
como mostra Schelbert a Mishnaacute (que significa ensinamento que eacute recitado
oralmente) mostra um relacionamento iacutentimo com Deus como o Pai do Ceacuteu (Swidler
1993 p73-75) Em relaccedilatildeo ao termo abba Barr conclui que eacute razoaacutevel que abba no
tempo de Jesus pertencia a uma linguagem familiar ou coloquial distinto do uso
formal e cerimonioso mas por outro lado tendo em vista o uso do Targum seria
imprudente comparaacute-la a expressatildeo infantil Daddy (papai) O uso do abba era mais
solene podemos dizer que estava mais relacionado ao uso do adulto para com seu
Pai (Barr 1988 p 46)
62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA
LEITURA A PARTIR DA TEOLOGIA FEMINISTA
A figura feminina sempre foi discriminada pelas sociedades patriarcais ao
longo dos seacuteculos da histoacuteria da humanidade Podemos dizer que o cristianismo um
importante movimento de massa a pregar a liberdade e a igualdade entre os homens
e mulheres ldquoNatildeo haacute judeu nem grego natildeo haacute escravo nem livre natildeo haacute homem
nem mulher pois todos voacutes sois um soacute em Cristo Jesusrdquo (Gl 3 28) 69 Eacute comum
ouvirmos que Jesus libertou as mulheres uma vez que em seu ministeacuterio o mestre
da Galileia teve como disciacutepulas vaacuterias mulheres inclusive como jaacute mencionamos
neste trabalho (53) Maria Madalena (cf Lc 8 2 2410)
Elisabeth Schuumlssler Fiorenza referindo-se a Leonard Swidler vai mais aleacutem
quando afirma que Jesus foi um feminista e isso foi primeiramente atestado por um
estudioso homem e natildeo por uma mulher70 Schuumlssler Fiorenza apela para o fato de
Jesus ter tido disciacutepulas e tambeacutem ter violado as leis de pureza (algo que era
69
Swidler refere-se a esse texto de Paulo como uma contestaccedilatildeo a uma oraccedilatildeo rabiacutenica que diz ldquoLouvado seja Deus por natildeo me ter criado gentio Louvado seja Deus por natildeo ter me criado mulher Louvado seja Deus por natildeo ter me criado ignoranterdquo (Swidler 1993 p 101)
70 Basicamente para Swidler feminista eacute a pessoa a favor da igualdade de homens e mulheres ou
seja a pessoa que trata primeiramente a mulher como uma pessoa assim como os homens satildeo tratados (Swidler 1993 p100)
131
contraacuterio aos rabinos judeus) como argumento para fundamentar a tese de um
Jesus feminista (Schuumlssler Fiorenza 2005 p 37)
Contudo para Swidler a atitude feminista era uma exclusividade de Jesus e
natildeo dos evangelistas e suas fontes Para ele a Igreja primitiva tornou-se
rapidamente antifeminista como pode ser visto em textos como ldquo[] estejam as
mulheres caladas nas assembleias pois natildeo lhes eacute permitido tornar a palavra
Devem ficar submissas como diz tambeacutem a Lei (1Cor 14 34)rdquo Swidler ainda cita
outro texto (1Tm 2 11-12) que diz que ldquodurante a instruccedilatildeo a mulher conserve o
silecircncio com toda a submissatildeo Natildeo permito que a mulher ensine ou domine o
homem Que ela conserve o silecircnciordquo Para Swidler a Igreja natildeo soacute se tornou
antifeminista como tambeacutem se tornou misoacutegina uma vez que aleacutem dos textos acima
mencionados jaacute no II seacuteculo Tertuliano refere-se agraves mulheres com as palavras ldquosois
o portatildeo do diabordquo Natildeo bastasse Tertuliano Oriacutegenes afirma que ldquoaquilo que eacute visto
com os olhos do criador eacute masculino e natildeo feminino pois Deus natildeo se curva para
olhar aquilo que eacute feminino e da carnerdquo (Swidler 1993 p106)
Tal afirmaccedilatildeo (Jesus libertou as mulheres) eacute muito bem aceita entre as
teoacutelogas feministas e por todos que defendem essa teoria Para Schuumlssler Fiorenza
Jesus natildeo somente libertou as mulheres da degradaccedilatildeo imposta pela sociedade
judaica patriarcal da antiguidade (apesar dessa tese ser considerada como
historicamente falsa e antijudaica pelas teoacutelogas feministas judias) como tambeacutem o
proacuteprio Jesus era um feminista (Fiorenza 2005 p110)
Conforme Swidler a condiccedilatildeo das mulheres na sociedade contemporacircnea de
Jesus na Palestina era sem duacutevida de inferioridade em relaccedilatildeo aos homens
Segundo Swidler natildeo obstante o fato de ter havido vaacuterias heroiacutenas nas Escrituras
hebraicas natildeo impediu que nos dias de Jesus e ateacute muito tempo depois natildeo fosse
concedido agraves mulheres a permissatildeo de estudar a Toraacute Swidler citando um texto da
Mishnaacute (Sita 34) refere-se a um rabino do seacuteculo I chamado Eliezer que
pronunciou as seguintes palavras referindo-se agraves mulheres ldquoAs palavras da Toraacute
deveriam antes ser queimadas do que confiadas a uma mulher [] todo aquele que
ensina a Toraacute a sua filha eacute como aquele que lhe ensina a lasciacuteviardquo (Swidler 1993
p100-101)
As mulheres no templo de Jerusaleacutem estavam limitadas agrave parte externa ou
seja ficavam no paacutetio das mulheres que estavam cinco degraus abaixo do paacutetio dos
homens Nas sinagogas aleacutem de ficarem separadas dos homens natildeo tinham
132
permissatildeo para ler em voz alta muito menos assumir alguma funccedilatildeo de lideranccedila
Swidler cita Filon contemporacircneo de Jesus que pensava que as mulheres natildeo
deviam sair de casa a uacutenica exceccedilatildeo era para ir agrave sinagoga e preferencialmente
em horaacuterios em que a maioria das pessoas estivessem em casa De uma maneira
geral as mulheres serviam apenas para ter filhos estavam sempre sob a tutela de
um homem que seria o marido ou no caso de viuvez sob a tutela do irmatildeo do
falecido sem contar com o fato de que tinham que se sujeitar a poligamia (ainda que
natildeo muito praticada nos dias de Jesus) eram facilmente repudiadas com a carta de
divoacutercio poreacutem natildeo tinham permissatildeo para se divorciarem Enfim ldquoa condiccedilatildeo das
mulheres na Palestina era aquela dos inferioresrdquo (cf Swidler 1993 p102-104)
A teologia de J Jeremias referente agrave relaccedilatildeo de Deus como Pai nos laacutebios de
Jesus de Nazareacute71 natildeo eacute aceita em algumas correntes teoloacutegicas como por
exemplo pelos defensores da teologia feminista72 Poreacutem quando falamos do
movimento feminista natildeo significa que exista um uacutenico ponto de vista sobre um
mesmo pensamento teoloacutegico Algumas feministas que adotam o pensamento de
reforma da tradiccedilatildeo o qual implica em conservar o que eacute melhor ao inveacutes de
simplesmente imitar as tradiccedilotildees lutam por uma reforma e uma flexibilidade na
linguagem da igreja quando o assunto se refere agrave pessoa de Deus argumentando
que o uso exclusivo da imagem masculina natildeo faz justiccedila agrave imagem biacuteblica de Deus
mas limita o acesso ao entendimento que temos de Deus Para essa corrente
feminista a imagem de Deus natildeo estaacute relacionada a gecircnero visto que Deus pode
ser visto tanto como pai e como matildee segundo Marianne Thompson para uma parte
dessas feministas e ainda para outras portanto a ideia central natildeo eacute descartar a
71 Elisabeth Schuumlssler Fiorenza observa que os livros e artigos sobre ldquoJesus e as mulheresrdquo se
proliferam contudo ela cita Crossan quando este acusa as feministas pela falta de interesse na busca pelo Jesus histoacuterico Crossan pergunta onde estatildeo elas Schuumlssler responde ldquoCrossan natildeo pode reconhecer as afinidades entre seu proacuteprio modelo de reconstruccedilatildeo histoacuterica e o meu modelo feminista (cf Schuumlssler 2005 p 30)
72 Haight coloca que a teologia feminista eacute por muitos comparada agrave teologia da libertaccedilatildeo uma vez
que compartilham de ideais e estrutura formal comum no que diz respeito agrave libertaccedilatildeo e tambeacutem a maioria dos pobres no mundo eacute constituiacuteda de mulheres ldquo[] No que tange agrave loacutegica hermenecircutica da teologia portanto as teoacutelogas feministas podem referir-se a si mesmas como teoacutelogas da libertaccedilatildeo [] Na medida em que o androcentrismo controla o significado de Jesus cristo a cristologia feminista eacute levada a questionar como uma figura masculina de Salvador pode oferecer a salvaccedilatildeo agraves mulheres Em termos mais amplos contudo a cristologia feminista ocupa-se de toda a forma de opressatildeo e de suas inter-relaccedilotildees O Deus mediado por Jesus Cristo coloca em xeque todo poder de dominaccedilatildeo Natildeo era o sexo mas o gecircnero como categoria cultural que tinha primazia e era parte da ordem das coisas O significado de homem e de mulher era determinado pela posiccedilatildeo na hierarquia social e pelo lugar que se ocupava na sociedade natildeo pela genitaacuteliardquo (cf Haight 2003 p37)
133
linguagem de Deus como Pai mas apenas incluir essa com outra variedade de
imagens de Deus (Thompson 2000 p 3)
Para outras feministas no entanto nenhum acordo sobre a questatildeo da
imagem paterna de Deus pode ser atingido facilmente pois tais questotildees natildeo
podem ser tatildeo facilmente resolvidas e as respostas necessaacuterias satildeo muito radicais
pois trariam uma postura revolucionaacuteria para a tradiccedilatildeo Para elas o uso histoacuterico
que a Igreja tem da linguagem exclusivamente masculina de Deus deve ser
inteiramente refeito73 Em vez de buscar as reformas dentro das estruturas atuais da
igreja ou dentro de construccedilotildees teoloacutegicas tradicionais essas feministas oferecem
uma pauta mais radical o que tem implicaccedilotildees natildeo apenas para a linguagem sobre
Deus mas tambeacutem para o carater baacutesico de toda a teologia e feacute cristatilde Algumas
feministas satildeo mais radicais ainda pois explicitamente rejeitam as tradiccedilotildees da feacute
cristatilde afirmando que os textos cristatildeos e a feacute satildeo inevitavelmente e
intoleravelmente patriarcal elas abandonaram o cristianismo por completo
(Thompson 2000 p 4)
Para Thompsom (2000 p 18) a designaccedilatildeo de Deus como Pai natildeo eacute
invenccedilatildeo de Jesus e nem criaccedilatildeo da Igreja primitiva A designaccedilatildeo de Deus como
Pai faz parte de ambos os Testamentos ou como o Pai que eacute o ancestral que daacute a
vida e lega uma heranccedila aos seus filhos ou como o Pai que ama e cuida dos seus
filhos ou ainda como o Pai que eacute uma figura de autoridade a quem se deve
obediecircncia e honra Thompsom afirma que Jesus dirigiu-se a Deus como Pai em
primeira instacircncia natildeo como um mero testemunho de sua proacutepria experiecircncia de
Deus mas ao inveacutes disso pelas suas proacuteprias convicccedilotildees de Deus como renovador
e restaurador de Israel ou seja isso natildeo era fruto de uma experiecircncia privada mas
assunto de uma missatildeo puacuteblica Essa afirmaccedilatildeo de Thompson natildeo se coaduna com
o pensamento de J Jeremias para quem a relaccedilatildeo de Jesus com o Pai era iacutentima e
pessoal
Nesse sentido Mary Rose DAngelo ao analisar o texto do Evangelho de
Marcos 1436 quando Jesus invocava o Pai (Ἀββᾶ ὁ πατήρ) ela observa que a
73
Elisabeth Schuumlssler Fiorenza em seu livro Jesus e a poliacutetica da interpretaccedilatildeo coloca uma teoria polecircmica ou pelo menos curiosa Segundo Schuumlssler os antropoacutelogos tecircm assinalado que nem todas as culturas e liacutenguas conhecem dois sexosgecircneros e que mesmo em culturas ocidentais isso eacute coisa da modernidade ldquoDurante milhares de anos considerava-se comum que as mulheres tivessem o mesmo sexo e os mesmos oacutergatildeos genitais que os homens estando a diferenccedila no fato de se acharem no interior do corpo ao passo que os dos homens estavam no exterior A vagina era entendida como um pecircnis interior os laacutebios como prepuacutecio o uacutetero como saco escrotal e os ovaacuterios como testiacuteculosrdquo (cf Schuumlssler 2005 p9)
134
oraccedilatildeo contida nesse texto pode ser apenas redacional visto que tal oraccedilatildeo ocorreu
no cenaacuterio do Getsecircmani onde Jesus estava naquele momento sem os seus
disciacutepulos portanto eles natildeo estavam laacute para ouvir e descrever o momento de sua
agonia Ela concorda com a teoria de que a narrativa desse cenaacuterio poderia ser
apenas um soliloacutequio dramaacutetico de Jesus ou entatildeo uma repeticcedilatildeo da oraccedilatildeo de
Joseph (4Q372 1 23-24) onde ele suplica para que Deus natildeo lhe abandone Para
D`Angelo a narrativa de Marcos tende muito para o lado emotivo procurando
dessa forma colocar Jesus como o verdadeiro Filho de Deus e grande maacutertir da
histoacuteria do judaiacutesmo conforme os livros Sabedoria de Salomatildeo e 3 Macabeus (D`
Angelo 1992b p159) Em outro artigo (Abba and ldquoFatherrdquo Imperial Theology and
the Jesus Traditions) D Angelo reafirma seu argumento sobre o cenaacuterio do
Getsecircmani dizendo ldquoEsta eacute uma cena da revelaccedilatildeo entre Jesus e leitor os
disciacutepulos estatildeo laacute para relatar a agonia de Jesus Assim a atribuiccedilatildeo de abba a
Jesus natildeo tem muacuteltipla atestaccedilatildeo Na verdade ocorre apenas em uma cena que
quase certamente deriva da atividade literaacuteria de Marcosrdquo (D` Angelo 1992a p614-
615)
Segundo D Angelo o uso do Abba pela Igreja primitiva natildeo eacute uma heranccedila dos
ensinamentos de Jesus como acreditam alguns teoacutelogos De acordo com essa
autora o uso do Abba na Igreja primitiva era mais uma questatildeo de ecircxtase provocada
por uma accedilatildeo do Espiacuterito Santo do que uma referecircncia agraves palavras ditas por Jesus
Para a autora se o Abba usado nas igrejas tivesse uma ligaccedilatildeo direta com Jesus
entatildeo seriamos obrigados a aceitar que outras palavras de origem aramaica como
Maranatha tambeacutem seriam provenientes dos discursos do mestre (D Angelo 1992a
p 615)
Um outro argumento defendido por D` Angelo eacute que o uso da expressatildeo ldquoAbba
Pairdquo no Evangelho de Marcos eacute anti-imperialista visto que o Imperador de Roma
considerava-se o pai da paacutetria (parens patriae pater patriae) preferindo ser
reconhecido com o tiacutetulo de pai ao tiacutetulo de rei designaccedilatildeo esta que natildeo soava bem
aos ouvidos do povo romano (D` Angelo 1992a p623-630) De fato de acordo com
DAngelo foi concedido a Juacutelio Cesar ainda em vida o tiacutetulo de ldquopaterldquo (pai) o qual
buscava estabelecer uma relaccedilatildeo de devoccedilatildeo (pietas) entre ele e o povo romano
Isso se deve ao fato que o uso de pater subentende o impeacuterio como uma grande
famiacutelia na qual o imperador funciona como um paterfamilias e cuja autoridade eacute
baseada em sua habilidade de reger todo o povo romano como seus clientes Ainda
135
seguindo com essa visatildeo imperialista observa-se que Augusto adquiriu oficialmente
o tiacutetulo pater patriae no ano 2 aC
No intuito de descrever o caraacuteter dos imperadores DAngelo aponta que
Cassius Dio o qual acreditava que os tiacutetulos supracitados representavam mais
afeiccedilatildeo do que autoridade tratou augustus e pater como duas denominaccedilotildees
atraveacutes das quais os imperadores primeiro permitiam a si mesmos serem
distinguidos do resto dos cidadatildeos substituindo o tiacutetulo ldquoreirdquo por tais designaccedilotildees
cujas essecircncias soariam de maneira menos ofensiva aos ouvidos dos romanos De
acordo com Dio o termo pater concorda com a ideia que o Imperador tem a mesma
autoridade que um pai tem sobre seus filhos escravo e outros sujeitos
Por outro lado dois filoacutesofos estoicos do primeiro e segundo seacuteculos nos
ajudam a entender como o tiacutetulo pai concedido ao Imperador poderia sofrer uma
reaccedilatildeo com o pensamento teoloacutegico da eacutepoca Para Dio Crisoacutestomo ldquoDeus como
pai racionaliza o governo imperial e convida-o a adotar um coacutedigo de eacutetica de
clemecircncia e de responsabilidaderdquo ao descrever que o bom rei eacute aquele que prefere a
labuta aos prazeres e as riquezas Tal rei prefere o tiacutetulo ldquopairdquo ao referir-se agrave sua
capacidade de provisatildeo Jaacute Epiacuteteto ldquousa a paternidade de Deus para oferecer uma
dignidade alternativa para aqueles que natildeo tecircm acesso ao poder dentro da ordem
imperialrdquo Esses dois autores satildeo importantes para o cristianismo primitivo e para o
judaiacutesmo natildeo pela influecircncia que exerceram sobre eles mas porque respondem as
mesmas realidades poliacuteticas
Um outro argumento de DAngelo com relaccedilatildeo ao uso de Abba por Jesus eacute
que o mesmo natildeo pode ser explicado apenas como uma relaccedilatildeo afetiva entre pai e
filho mas tambeacutem reflete a praacutetica carismaacutetica da comunidade na qual Marcos
estava inserido assim como ocorreu nas igrejas de origem grega da Galaacutecia e em
Roma (Gl 46 Rm 816) onde o uso da palavra ldquoAbbardquo eacute fruto da accedilatildeo do Espiacuterito
Santo
D`Angelo justifica essa tese a partir do fato que segundo ela J Jeremias
tomou como base em seus estudos apenas os textos provenientes de oraccedilotildees e
ainda excluiu textos em grego os quais ele considerou serem oraccedilotildees feitas pela
comunidade e natildeo como fruto de uma accedilatildeo do indiviacuteduo (D`Angelo 1992b p151)
Para dar suporte a esse argumento D`Angelo faz referecircncia ao texto de 4Q372 1
originalmente escrito em hebraico no qual Joseph invoca a Deus chamando-o de
meu Pai ldquoMeu Pai e meu Deus natildeo me abandone nas matildeos das naccedilotildees faccedila
136
justiccedila por mim o aflito e pobre pereciacutevel Vocecirc natildeo precisa de nenhuma pessoa ou
naccedilatildeo para lhe ajudar seu dedo eacute maior e mais forte do que qualquer coisa no
mundordquo (Vermes 2004 p566) Ela ainda cita outros textos onde Deus eacute invocado
como Pai (3 Mac 6 3-4 78 Sab 143 1 QH 935)
Embora alguns desses textos tenham sido escritos em grego quando lidos no
contexto de 4Q372 1 e 4Q460 5 DAngelo observa os textos hebraicos e gregos
mostram que era uma praacutetica comum tanto da comunidade quanto do indiviacuteduo
dirigir-se a Deus em oraccedilotildees chamando-o de Pai (D`Angelo 1992b p 152) Dessa
forma ela entende que o conceito de Deus como Pai sempre esteve presente no
judaiacutesmo antigo influenciando toda a literatura judaica da eacutepoca (DAngelo 1992a
618)
Face aos argumentos acima expostos D Angelo conclui que a originalidade
do uso do Abba natildeo pode ser atribuiacutedo a Jesus com toda certeza e mais ainda
segundo ela seria menos provaacutevel que Jesus usasse o termo pai numa linguagem
familiar do que em resistecircncia agrave ordem do Impeacuterio romano
Finalmente considerando os argumentos apresentados a partir da
interpretaccedilatildeo feminista Thompson conclui que tanto Jesus como a Igreja primitiva
natildeo deram origem ao conceito de Deus como Pai Aleacutem disso apesar das
caracteriacutesticas do Pai no Israel antigo serem utilizadas para falar de Deus como Pai
elas nunca estiveram ligadas a uma essecircncia masculina de Deus mas servem como
exemplo de feacute misericoacuterdia justiccedila humildade bem como responsabilidade
individual e corporativa e obediecircncia a Deus para a comunidade (Thompson 2000
p 19)
137
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Naquela noite em sonhos Joseacute teve um aviso O Evangelista natildeo diz em que cidade ou lugar a famiacutelia se encontrava Natildeo devia ser do lado norte e talvez fosse mesmo nas montanhas do sul fora do alcance das batidas policiais de Herodes Suponhamos que fosse na estrada do Heacutebron Com a cabeccedila reclinada sobre uma pedra o carpinteiro adormece E eis que o anjo do Senhor (aquele mesmo que lhe confiara a guarda de Jesus) lhe diz - Levanta-te e toma o menino e sua matildee e foge para o Egito e demora-te laacute ateacute que eu diga porque Herodes haacute de procurar o menino para o matar Joseacute desperta Sobre os montes luzem os primeiros alvores da madrugada Prepara o alforje avisa Maria para que tambeacutem se prepare porque longa eacute a viagem [] Joseacute sela o jumento acomoda Maria e o Menino sobre o animal Toma o bordatildeo E parte A viagem prolonga-se por muitos dias pela Idumeacuteia pelas montanhas de Sin pelo deserto de Sur Uma tarde sobre as colinas a cavaleiro do Nilo avistam as piracircmides de Miquerinos de Queacutefren e de Queops grandiosas e silenciosas no ar trecircmulo de mormaccedilo Junto agrave piracircmide de Miquerinos olhando para o abismo do ceacuteu e para a amplitude do deserto uma cabeccedila gigantesca de pedra tem indefiniacutevel indecifraacutevel expressatildeo Eacute a grande esfinge [] Os egiacutepcios viam naquele rochedo a imagem humana do sol Os gregos viam naquela imagem o monstro proponente de problemas insoluacuteveis (Salgado 1985 p67-69)
Em tom poeacutetico Plinio Salgado narra a histoacuteria da fuga do menino Jesus e
seus pais para o Egito conforme o texto do Evangelho de Mateus que diz ldquo[] eis
que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonhos a Joseacute e lhe disse Levanta-te toma
o menino e sua matildee e foge para o Egitordquo (Mt 213) Salgado usa o mito da esfinge74
para relacionar com o mito de Eacutedipo onde o enigma eacute decifrado pelo personagem
Eacutedipo75 Para Salgado Eacutedipo decifrou a Esfinge mas natildeo decifrou o homem que
continua nas trevas
A pergunta do monstro na estrada de Tebas refere-se ao homem ldquoQual eacute o animal que pela manhatilde anda com quatro pernas ao meio-dia com duas e agrave
74
Segundo Plinio Salgado o mito da Esfinge rezava que enquanto ser vivente misto de leatildeo e de mulher a Esfinge andava pelas estradas de Tebas devorando os viajantes que eram incapazes de responder as suas perguntas enigmaacuteticas Contudo o monstro morreria quando algueacutem decifrasse seu enigma
75 O mito de Eacutedipo pode ser visto com detalhes no claacutessico Antiacutegona de Soacutefocles
138
tarde com trecircsrdquo Eacutedipo responde ldquoEacute o homemrdquo e respondendo revela que toda a preocupaccedilatildeo da Esfinge eacute o gecircnero humano Decifrar a Esfinge eacute a preocupaccedilatildeo do homem Decifrar o homem eacute a preocupaccedilatildeo da Esfinge (Salgado 1985 p67-69)
Conforme Salgado a trageacutedia de Eacutedipo eacute a trageacutedia do homem Somente
Jesus decifraraacute a ldquoEsfinge-Homem e iluminaraacute todo o universordquo
A histoacuteria da humanidade eacute repleta de trageacutedias desde as suas origens Jaacute
nos primeiros capiacutetulos do Gecircnesis vemos Abel sendo viacutetima de seu irmatildeo Caim 76
Diante de tantas cataacutestrofes o homem procura refuacutegio em um ser sobrenatural que
possa amenizar seu sofrimento e dar-lhe alguma explicaccedilatildeo para o porquecirc de tantos
desalentos nesta vida
A relaccedilatildeo do ser humano com o Ser sobrenatural faz parte da cultura de todos
os povos antigos como vimos no primeiro capiacutetulo deste trabalho Isso nos mostra o
anseio do ser humano em busca do seu criador Observamos que para os povos
antigos Deus era visto como um ancestral divino ou seja o homem era visto como
descendente da divindade Essa relaccedilatildeo entre o homem primitivo e a deidade nos
povos antigos era sempre marcada por sangue violecircncia guerra entre os deuses
ateacute o surgimento do homem como vimos no mito sumeacuterio babilocircnico em que o
homem proveacutem do sangue de um deus decaiacutedo chamado Kingu
Em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem na narrativa do Gecircnesis verificamos que o
proacuteprio Deus eacute quem modela e cria o homem a partir do barro (argila) O homem
entatildeo recebe a vida atraveacutes do sopro divino Essa relaccedilatildeo tatildeo proacutexima entre criatura
e criador eacute descrita nas Escrituras de uma forma progressiva desde o Gecircnesis ateacute
os escritos neotestamentaacuterios Agrave medida que Deus se revela ao homem este se
aproxima mais dele Aos patriarcas Deus eacute o El Shaday (Todo Poderoso) mas jaacute a
Moiseacutes ele revela o seu proacuteprio Nome Ele eacute o ldquoEu Sourdquo o Yahweh
Mesmo Yahweh sendo um Deus proacuteximo Ele ainda eacute visto no Antigo
Testamento como figura de um Senhor Criador o Todo Poderoso que luta e peleja
por Israel mas que ao mesmo tempo em que defende seu povo pune-os e os
entrega nas matildeos dos inimigos quando esses se desviam dos seus mandamentos
J Jeremias sabiamente observa que no Antigo Testamento a relaccedilatildeo de Israel com
Deus natildeo eacute vista como o relacionamento de pai para filho principalmente por parte
76
Cf Gn 4 1-16
139
do indiviacuteduo Deus sempre se apresenta como o Pai do rei ou entatildeo como o Pai da
naccedilatildeo Mesmo que Pai seja uma das muitas metaacuteforas para Deus como afirma
Goshen-Gottstein dificilmente podemos contestar a tese de J Jeremias uma vez
que uma clara invocaccedilatildeo de Deus como Pai feita por algum indiviacuteduo no Antigo
Testamento eacute difiacutecil de ser encontrada
Em relaccedilatildeo ao Novo Testamento observamos que Jesus que conviveu em
uma sociedade muito pobre carregada de preconceitos viu na expressatildeo Abba a
forma por excelecircncia para projetar nela o modelo de uma verdadeira e iacutentima
relaccedilatildeo entre filho e pai O fato de Jesus ter sofrido preconceitos como em sua
infacircncia adolescecircncia e ateacute na vida adulta por causa da sua filiaccedilatildeo humana natildeo o
impediu de demonstrar o quanto a sua relaccedilatildeo com o Pai divino era estreita e isso
estava acima de todos os preconceitos concebidos dentro de uma sociedade cheia
de costumes rigidamente observados a ponto de natildeo mais compreenderem o
verdadeiro sentido do amor a Deus e ao proacuteximo conforme era a verdadeira
vontade de Deus expressa nos ensinamentos do mestre da Galileia
Embora Joseacute tenha assumido a paternidade de Jesus isso natildeo foi suficiente
para impedir o preconceito contra ele em relaccedilatildeo a sua filiaccedilatildeo humana Contudo
quando Bruce Chilton potildee a questatildeo relacionada agrave possibilidade de Jesus ter sido
considerado um Mamzer a partir da interpretaccedilatildeo do texto do Evangelho de Joatildeo 8
40-41 onde os Judeus fazem a seguinte afirmaccedilatildeo a Jesus ldquo[] natildeo nascemos da
prostituiccedilatildeo temos um soacute pai Deusrdquo podemos tambeacutem olhar esse texto a partir de
uma interpretaccedilatildeo de uma Cristologia alta ou seja aqui o debate entre Jesus e os
judeus tem como ponto principal a filiaccedilatildeo divina onde Jesus se coloca como o
Verbo divino preexistente Poreacutem eacute bem verdade que isso natildeo anula o pensamento
de Chilton em relaccedilatildeo agrave possiacutevel discriminaccedilatildeo sofrida por Jesus levando em
consideraccedilatildeo o contexto a eacutepoca a cultura e o ambiente social em que Jesus viveu
durante o periacuteodo da infacircncia ateacute a vida adulta
Aleacutem disso podemos dizer com Martins Terra que a vida de Cristo eacute a
Revelaccedilatildeo do Pai que pode ser demonstrada nas palavras no silecircncio e nos
sofrimentos de Jesus Martins Terra observa que essa relaccedilatildeo eacute plena de intimidade
como pode ser visto nas palavras do proacuteprio Mestre ldquoAquele que me viu viu o Pairdquo
(Jo 149) e da mesma forma o Pai tambeacutem pode dizer assim do Filho ldquoEste eacute o
140
meu Filho muito amado ouvi-o (Lc 935)rdquo Notamos aqui que a relaccedilatildeo de Jesus
com o Pai eacute desde a eternidade onde o Verbo divino jaacute estava presente com o Pai
na criaccedilatildeo de todas as coisas (Martins Terra 2009 p283-284)
Para Martins Terra assim como para J Jeremias o Abba de Jesus eacute o
modelo da perfeita relaccedilatildeo dos filhos de Deus com o Pai do ceacuteu Assim como Jesus
relacionou-se com o Pai divino seus disciacutepulos tambeacutem o poderatildeo desde que se
aproximem e ldquoamem a Deus acima de todas as coisas e o proacuteximo como a si
mesmordquo Eacute na oraccedilatildeo do Pai Nosso que Jesus ensina como os disciacutepulos devem
orar em uma estreita ligaccedilatildeo com o Abba conforme nos descreve Martins Terra
[] Os disciacutepulos ficam impressionados com a oraccedilatildeo de Jesus Ele chamava a Deus de Aba (Mc 14 36) que natildeo eacute um termo usado nas oraccedilotildees judaicas Aba eacute um diminutivo aramaico que significa ldquopapairdquo Eacute a expressatildeo de uma crianccedila dirigindo-se a seu progenitor Jesus natildeo pode desde o inicio revelar o misteacuterio da Santiacutessima Trindade e de sua pessoa divina Esse misteacuterio natildeo tinha sido revelado no AT Foi invocando a Deus como Aba ldquomeu Pairdquo que Jesus foi levantando aos poucos o veacuteu que ocultava o misteacuterio da trindade e do seu relacionamento filial uacutenico com o Pai (Martins Terra 2009 p283-284)
Aleacutem disso de acordo com James D G Dunn podemos dizer com confianccedila
que Jesus experimentou uma iacutentima relaccedilatildeo com Deus expressa atraveacutes da oraccedilatildeo
Ele se relacionou com Deus caracteristicamente como Filho e Pai e o sentido dessa
relaccedilatildeo com Deus era tatildeo real tatildeo amorosa e tatildeo atraente que Jesus sempre se
dirigiu a Deus dessa maneira chamando-o de Pai ldquoAbba foi o grito que veio mais
naturalmente aos laacutebios de Jesusrdquo (Dunn 1997 p26)
Segundo J Jeremias para compreendermos o Abba como a ipsissima vox de
Jesus eacute preciso observar a origem de sua liacutengua materna Conforme observamos
no decorrer desta pesquisa haacute alguns pesquisadores que defendem que a liacutengua
corrente nos dias de Jesus era o hebraico e por sinal tambeacutem falada por Jesus
Esse argumento natildeo eacute seguido pela maioria dos especialistas do Novo Testamento
bem como por J Jeremias A liacutengua falada por Jesus era do ldquoramo ocidental da
famiacutelia linguiacutestica aramaicardquo J Jeremias para embasar sua tese menciona
respeitaacuteveis nomes como J Wellhausen Jouumlon Matthew Black e principalmente G
Dalman (Jeremias 2008 p32-33) que ldquoapresentou a prova baacutesica para este fatordquo
Tendo Dalman ainda como referecircncia J Jeremias afirma que natildeo eacute possiacutevel mais
141
duvidar que o aramaico ou para ser mais preciso ldquoo dialeto galileu do aramaico
ocidentalrdquo era a liacutengua materna de Jesus
As evidecircncias aramaicas satildeo evidentes nos ditos de Jesus por outro lado
praticamente natildeo se encontra palavras em hebraico ditas por ele nem mesmo o
ldquoAmenrdquo ou ldquoEliacuterdquo uma vez que essas palavras foram absorvidas pelo aramaico
(Jeremias 2008 p36) J Jeremias admite que em alguns poucos casos
encontramos palavras hebraicas nos laacutebios de Jesus mas sempre em situaccedilotildees
solenes como as palavras proferidas na uacuteltima ceia em liacutengua sacra
A importacircncia do aramaico como a primeira liacutengua de Jesus encontra-se na
possibilidade de nos aproximarmos o quanto possiacutevel do modo de falar do mestre
ou seja voltarmos ldquoagraves caracteriacutesticas da dicccedilatildeo de Jesus que natildeo possuem
nenhuma analogia na literatura da eacutepoca e que por isso podem ser consideradas
como marcas da ipsissima vox de Jesusrdquo (cf Jeremias 2008 p 68-79) Entre as
particularidades de Jesus concernentes agrave fala encontramos as seguintes
peculiaridades conforme J Jeremias
1 - As paraacutebolas de Jesus satildeo exclusividade dele natildeo encontradas em toda a
literatura judaica do Antigo ou do Novo Testamento quer canocircnica ou apoacutecrifa Nas
paraacutebolas de Jesus natildeo se encontra nenhuma faacutebula ou seja ele nunca coloca
uma videira ou figueira para falar Suas paraacutebolas (mesmo contendo metaacuteforas do
Antigo Testamento) tinham por maior finalidade atingir o coraccedilatildeo pulsante do ouvinte
e tratar de assuntos relacionados ao dia-a-dia da vida do ser humano
2 - Os ditos enigmaacuteticos como o proferido sobre Joatildeo Batista ldquoo maior entre
os nascidos de mulher eacute ao mesmo tempo o menor no reino de Deusrdquo (Mt11 11)
eram incomuns nos dias de Jesus seja entre os mestres ou ateacute mesmo dos
primeiros cristatildeos que natildeo inventaram tais ditos mas apenas os tornaram mais
evidentes
3 ndash A expressatildeo ldquoreino de Deusrdquo eacute escassa na literatura judaica antiga
recebendo um aumento apenas na literatura rabiacutenica Contudo nos Evangelhos natildeo
soacute o aumento mas a forma que Jesus usa as expressotildees relacionadas ao reino de
Deus satildeo profundamente marcantes para se caracterizar como a ipsissima vox de
Jesus conforme encontramos em textos como Mateus 519 11 12 Marcos 115
Lucas 112 1231 1721 etc
142
4 ndash O termo Ameacutem como jaacute foi mencionado nesta pesquisa (54) no Antigo
Testamento era usado como foacutermula solene para confirmar ldquouma palavra de benccedilatildeo
maldiccedilatildeo ou desejordquo Nos laacutebios de Jesus o termo eacute usado para testificar as
proacuteprias palavras do falante e natildeo de outrem J Jeremias conclui sobre o ameacutem
com as seguintes palavras ldquoA novidade desse uso linguiacutestico sua estrita restriccedilatildeo
agraves palavras de Jesus e o testemunho unacircnime de todas as camadas da tradiccedilatildeo
evidenciam que nos deparamos com uma inovaccedilatildeo linguiacutestica nos laacutebios de Jesusrdquo
5 ndash E por uacuteltimo temos o Abba proferido por Jesus Abba eacute a mais importante
palavra pronunciada por Jesus quando invocava a Deus com o Pai eacute o modo
preferido de Jesus para referir-se ao Pai Dificilmente poderiacuteamos interpretar o Abba
de Jesus como faz Malina comentando o Abba natildeo eacute paizinho de James Barr
Como tem sido demonstrado por James Barr (1988) a palavra aramaica Abba natildeo significa ldquopaizinhordquo como no hebraico moderno Tanto na traduccedilatildeo do Novo Testamento (Abba = ho pater Mc 14 36 Rm 815 Gl46) quanto de honra No patriarcado ele implica tambeacutem distacircncia Deus natildeo eacute um paizinho mas um patrono Na religiatildeo poliacutetica pregada por Jesus o deus de Israel eacute o patrono de Israel (cf Malina 2004 p145)
Compreende-se portanto que o Abba proferido por Jesus eacute ipsissima vox
Julgar J Jeremias alegando que ele considerou o linguajar de Jesus infantil natildeo eacute
cabiacutevel dentro do contexto de toda a sua teologia J Jeremias defende-se dessa
acusaccedilatildeo que a princiacutepio ateacute poderia ser justa uma vez que ele admite que jaacute
chegou a acreditar que Jesus tenha assumido a linguagem das criancinhas quando
se dirigia a Deus Pai como ele mesmo admite ldquoeu tambeacutem acreditei nissordquo
contudo agora natildeo mais jaacute que nas proacuteprias palavras desse teoacutelogo ele assim
admite ldquoa constataccedilatildeo de que jaacute desde os tempos preacute-cristatildeos os filhos e filhas
adultos se dirigiam a seus pais chamando-os de Abba proiacutebe esta limitaccedilatildeordquo
(Jeremias 2008 p121)
Portanto no Abba de Jesus natildeo haacute espaccedilos para patriarcados exclusivistas
uma vez que o proacuteprio ldquoFilho de Deusrdquo na sua condiccedilatildeo de homem acolheu os
pobres religiosos doentes e marginalizados pela sociedade cobradores de
impostos e tambeacutem acolheu o que a sociedade machista da eacutepoca mais discriminou
as mulheres Talvez seja uma precipitaccedilatildeo eliminar a linguagem metafoacuterica da
palavra Pai ou mesmo deixar de observar nela o conceito anti-imperialista ou ateacute
mesmo a patronagem No entanto natildeo podemos deixar de priorizar que para Jesus
143
Abba era uma palavra sagrada era ldquoa revelaccedilatildeo Deus porque Deus se tinha dado a
conhecer a ele como seu Pairdquo (Mt 11 27) um ldquoPairdquo acolhedor que quis ajuntar os
seus filhos como a galinha ajunta os seus os seus pintos debaixo das suas asas (cf
Lucas 1334)
A paternidade de Deus conforme J Jeremias natildeo eacute algo natural tambeacutem
natildeo eacute uma posse de todos os seres humanos mas reserva-se apenas aos
disciacutepulos uma vez que Jesus nunca dirigiu a expressatildeo ldquovosso Pairdquo a algueacutem que
estivesse fora do rol dos seus seguidores A filiaccedilatildeo faz parte do reino (basileia) de
Deus Uma das exigecircncias para fazer parte de tal reino eacute tornar-se como uma
crianccedila (Mt 183) Essa filiaccedilatildeo eacute escatoloacutegica eacute um dom salviacutefico de Deus (J
Jeremias 2008 p 271-273)
O Pai apresentado por Jesus eacute bom e cuida dos seus lsquopequeninosrsquo jaacute que
ele sabe do que eles realmente precisam (Mt 6 8 32) A invocaccedilatildeo de Deus como
Abba eacute mais forte do que todas as adversidades e anguacutestias mesmo que Satatilde
ldquoqueira peneirar o disciacutepulordquo (Lc 22 31) o Pai do ceacuteu ldquoeacute mais forte do que todos os
problemas enigmas e anguacutestias e sabe do que precisam os filhos do reino (J
Jeremias 2008 p276) O ponto central de toda essa exposiccedilatildeo sobre o Abba
consiste no ldquovoltar a ser como uma crianccedilardquo O significado disso estaacute em tornar-se
dependente do Pai voltar para os braccedilos do Pai (cf Lc 15 11-32) depositar total
confianccedila nele enfim resumimos isso nas palavras de J Jeremias ldquovoltar a ser
crianccedilardquo significa reaprender a dizer Abba (J Jeremias 2008 p 238) como diz J
Jeremias ldquo[] Abba eacute percebido como um grande privileacutegiordquo Ter a coragem de
chamar Deus de Pai proveacutem da conscientizaccedilatildeo da filiaccedilatildeo satildeo os filhos que podem
dizer Abbardquo (J Jeremias 2008 p293)
Jesus de Nazareacute o Filho de Deus o homem que dividiu a histoacuteria em antes e
depois dele mudou os rumos da humanidade para sempre Amado e odiado
apregoado e perseguido mas nunca esquecido Verificamos ao longo deste trabalho
as mais variadas teorias sobre ele ora como um mago um judeu marginal um
profeta um bastardo um judeu praticante ou apenas uma figura lendaacuteria
embelezada por seus seguidores Schuumlssler Fiorenza relata uma histoacuteria rabiacutenica
em que Moiseacutes visita o rabino Akiva Ao ouvir os infindaacuteveis discursos sobre a Toraacute
Moiseacutes teria perguntado ldquoquem escrevera aquelas coisas grandiosas que ele jamais
144
tomara conhecimentordquo Schuumlssler Fiorenza (2005 p1) relacionando a histoacuteria
rabiacutenica sobre a Toraacute com as milhares escritas sobre Jesus ela levanta a seguinte
questatildeo ldquoSe Jesus tal como Moiseacutes voltasse a terra lesse todas as suas biografias
e frequentasse o Jesus Seminar ou fosse agrave reuniatildeo anual da Society of Biblical
Literature tambeacutem se maravilharia e perguntaria tomado de assombro Quem eacute
essa pessoa de quem estatildeo falandordquo
A busca pelo Jesus da histoacuteria levou a tantos extremos mas com certeza
acrescentou inuacutemeros fatos ou ateacute mesmo suposiccedilotildees que enriqueceram o
conhecimento que temos hoje sobre Jesus e os Evangelhos Eacute inegaacutevel o fato de
que os Evangelhos natildeo satildeo histoacuteria no sentido moderno e que os disciacutepulos natildeo
tinham a mesma pretensatildeo ou necessidade de relatar os fatos em detalhes visto
que viveram em um mundo cultura e eacutepoca totalmente diferente da nossa cultura
ocidental Portanto quanto mais perto quisermos chegar do Jesus humano mais
perto devemos nos aproximar da cultura do seacuteculo I
Sobre o divisor de aacuteguas entre J Jeremias e Bultmann ou seja se devemos
buscar pelo Jesus da histoacuteria ou pelo Cristo querigmaacutetico nada melhor do que
concluir com as palavras do proacuteprio J Jeremias
A boa nova sobre Jesus e o testemunho da feacute da igreja primitiva estatildeo indissoluvelmente ligados Natildeo podemos isolar nenhuma dessas magnitudes Pois o evangelho de Jesus se converte em histoacuteria morta sem o testemunho de feacute da igreja (a qual estaacute transmitindo sem cessar esse evangelho e o estaacute confessando e testemunhando sempre novamente) Sem Jesus e seu evangelho a igreja natildeo pregava mais que uma ideia um teorema Quem isola a pregaccedilatildeo de Jesus termina no ebionismo Quem isola o querigma da igreja primitiva termina no docetismo (Jeremias 2006 p 42)
Portanto descrever sobre Jesus realmente natildeo eacute tarefa faacutecil como parece
ser Como afirmar que ele era analfabeto ou entatildeo um rabi letrado da Galileia As
evidecircncias internas como vimos levam-nos a pensar em um homem que escrevia
lia e interpretava as Escrituras Por outro lado como nos mostra Crossan as
evidecircncias externas levam-nos a pensar em um camponecircs sofredor e iletrado como
a maioria dos galileus ou entatildeo dos judeus subjugados ao terriacutevel e impiedoso
Impeacuterio romano principalmente a Galileia diretamente afetada pelo deacutespota
Herodes Antipas
145
O importante eacute que Jesus com ou sem instruccedilatildeo douto ou indouto
conseguiu com a graccedila do Pai dos Ceacuteus deixar aos homens de todas as eacutepocas o
exemplo de um servo sofredor de amor ao proacuteximo de renuacutencia e acima de tudo
de um homem que cumpriu com toda a vontade e propoacutesitos de Deus Pai para a
salvaccedilatildeo da humanidade O apoacutestolo Joatildeo o descreveu como o Verbo o Logos
preexistente que existe antes de todas as coisas uma vez que as mesmas foram
criadas por ele
146
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RESUMO
O objetivo deste trabalho eacute levar-nos agrave compreensatildeo da relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo Joachim Jeremias Para isso realizamos o estudo do Jesus histoacuterico e seu contexto social poliacutetico e religioso bem como a visatildeo que os povos antigos incluindo o Israel do Antigo Testamento tinham de Deus Por fim visotildees contraacuterias agrave interpretaccedilatildeo de J Jeremias satildeo apresentadas As diversas teorias que os homens tecircm da paternidade divina chamam agrave nossa atenccedilatildeo para a incessante busca da humanidade para identificar-se com o Criador especificamente com a figura de um Deus Pai No entanto nesta pesquisa observamos que mesmo no judaiacutesmo onde natildeo encontramos a antiga imagem de uma deusa matildee observamos a figura de um Deus Pai com afetos e sentimentos maternos Para J Jeremias eacute com Jesus que o relacionamento do humano com o Pai divino atinge seu aacutepice atraveacutes da magna expressatildeo ldquoAbba Pai Segundo este autor Jesus de um balbucio das criancinhas teria tornado o Abba Pai uma expressatildeo sagrada entre os seus disciacutepulos a ponto de posteriormente ela ser absorvida pelas comunidades cristatildes primitivas como a forma de comunicaccedilatildeo do Espiacuterito para testificar no interior do disciacutepulo que este agora eacute tambeacutem filho de Deus A teoria de que o Abba natildeo era apenas um balbucio infantil ou muito menos um termo sagrado eacute contestada por correntes teoloacutegicas judaicas e feministas que veem os argumentos de J Jeremias como infundados ou repletos de exageros No entanto ao final da pesquisa procuramos mostrar que mesmo diante de tais contestaccedilotildees a paternidade divina proclamada por Jesus natildeo eacute natural ou seja uma posse de todos os seres humanos mas exclusividade dele e dos seus disciacutepulos uma vez que a filiaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica do reino de Deus e soacute os filhos do reino eacute quem podem usufruir de tal privileacutegio e dirigir-se a Deus invocando-o como o Abba Pai Jesus de Nazareacute nesta pesquisa eacute o exemplo a ser seguido no tocante agrave humildade e sofrimento numa sociedade profundamente marcada pelo preconceito e desigualdade social Compreendecirc-lo e segui-lo na sua humanidade eacute um grande passo para aproximar-se dele como o Cristo poacutes-pascal onde a revelaccedilatildeo do divino ao humano se concretiza com toda a plenitude Palavras-chave Jesus histoacuterico Paternidade divina
ABSTRACT
This work aims to understand the relationship between Jesus and God the Father according to Joachim Jeremias For this we studied the historical Jesus and his social political and religious context as well the ancient people view of God including the view of Israel from Old Testament Finally views that are opposed to Jeremias are presented The various theories that men have on the fatherhood of God call our attention to the relentless pursuit of humanity to identify with the Creator specifically with a figure of God the Father However in this study we observed that even in Judaism where it cannot find the ancient image of a mother goddess we see a picture of a God Father with affection and maternal feelings For J Jeremias it is in Jesus that the relationship of the human with the divine Father reaches its peak through the magna term Abba Father According to this author Jesus through a babble of little children would have made the Abba Father a sacred expression among his disciples and He subsequently extent it in order to being absorbed by the early Christian communities as a way of communicating of the Spirit to testify within the disciple that he is also the son of God The theory that Abba was not just a babbling child or much less a sacred term is challenged by current theological and Jewish feminists who see the arguments of J Jeremias as unfounded or exaggerated However at the end of the study we sought to show that even in the face of such challenges the fatherhood of God proclaimed by Jesus is not natural ie a possession of all human beings but it is exclusive to Him and his disciples once the sonship is a feature of the kingdom of God and only the children of the kingdom is the one who can enjoy such a privilege and turn to God calling him Abba Father Jesus of Nazareth on this research is the example to be followed regarding the humility and suffering in a society deeply marked by prejudice and social inequality To understand and follow Him in his humanity is a big step to be close to him as the post-Passover Christ where the revelation of the divine to the human is fully realized Key-words Historical Jesus Gods fatherhood
Sumaacuterio
1 INTRODUCcedilAtildeO 7 2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO 19 3 O JESUS HISTOacuteRICO 27 31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO 27 32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO 32 4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE SUA EacutePOCA 40 41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE CONTEMPORAcircNEA DE JESUS 41 42 JESUS O HUMILDE NAZARENO 46 43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES 50 44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS 59 45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS 61 451 OS ESSEcircNIOS 63 452 OS FARISEUS 66 453 OS SADUCEUS 72 454 OS ZELOTAS 74 5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS E SEUS
DESDOBRAMENTOS 79 51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA 79 52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA 85 53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS 91 54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS 100 55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR 102 56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA 110 6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS 122 61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO 122 62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA LEITURA A PARTIR DA
TEOLOGIA FEMINISTA 130 7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 137 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 146
7
1 INTRODUCcedilAtildeO
A ideia de Deus como pai da humanidade sempre esteve presente na mitologia dos
povos antigos Pai eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e na
Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Segundo Joachim Jeremias
(1977 p11-12) muitas tribos e famiacutelias acreditavam que eram procedentes de um
ancestral divino isto eacute de um ldquopairdquo divino Ephraim descreve-nos que a relaccedilatildeo de Deus
como Pai entre os povos antigos era bastante conhecida contudo ele evidencia que o
Abba de Jesus foi a mais iacutentima forma de invocar a Deus propagada entre os homens
atraveacutes dos ensinamentos de Jesus
A palavra Abba (Pai) posta na boca de Jesus eacute como se fosse a uacuteltima tentativa de Deus para ensinar os homens a pronunciarem seu nome Muitas vezes no passado Deus tentou fazer isto atraveacutes de seus servidores os profetas mas Israel natildeo compreendeu ldquoPairdquo eacute um tiacutetulo divino muito antigo encontrado em quase todas as religiotildees do Oriente meacutedio mas no caso ele eacute pai como a terra eacute matildee isto eacute exige na medida em que daacute Eacute o deus tutelar que deve ser adulado pois do contraacuterio ele natildeo outorga as suas graccedilas Eacute um deus que eacute pai do mesmo modo que Zeus era o pai de todos os deuses (Ephraim 1998 p171)
Observa-se que para os povos antigos Deus era um ancestral divino distante de
suas criaturas Aleacutem disso para Israel conforme a tese sustentada por J Jeremias vecirc-
se que no Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai principalmente quando
essa forma de invocar a Deus estaacute relacionada a um indiviacuteduo (Jeremias 2005 p19) Por
outro lado se no Antigo Testamento Deus natildeo eacute invocado como Pai de uma forma
individual como Senhor Ele eacute constantemente invocado a exemplo do salmista (Sl 338)
que menciona Deus como o Senhor que fala e as coisas acontecem conforme as suas
ordenanccedilas (Jeremias 2008 p 269)
Em contraste a essa relaccedilatildeo aparentemente tatildeo distante do Deus Pai com seus
filhos no periacuteodo veterotestamentaacuterio observa-se que a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute
profundamente marcante nos Evangelhos Haacute poreacutem diferentes interpretaccedilotildees com
relaccedilatildeo ao sentido da palavra Pai quando esta era proferida por Jesus J Jeremias
embora natildeo tenha sido o primeiro a tratar dessa questatildeo provavelmente foi o mais
influente quando ele sugere que Jesus ao dirigir-se a Deus invocando-o como o ἀββᾶ
(Abba) estava atribuindo um novo enfoque ao costume judaico de interpelaccedilatildeo a Deus
fazendo uso de uma linguagem cotidiana assim como as crianccedilas dirigiam-se a seus pais
expressando familiaridade e intimidade (cf Goshen-Gottstein 2001 p 493)
O objetivo deste trabalho eacute o estudo do Jesus histoacuterico (humano) com ecircnfase em
seu contexto social culminando no estudo histoacuterico-teoloacutegico da relaccedilatildeo de Jesus com o
8
Pai Este estudo tem como ponto de partida a teologia de Joachim Jeremias concernente
ao Abba proferido por Jesus no Evangelho de Marcos (1436) que diz ldquo[] Abba (Pai)
Tudo eacute possiacutevel para ti afasta de mim este caacutelice poreacutem natildeo o que eu quero mas o que
tu queresrdquo
Para entendermos a relaccedilatildeo de Jesus com o Deus Pai no Novo Testamento e como
ele transformou uma distante relaccedilatildeo entre o Pai ldquoque estaacute nos ceacuteusrdquo e seus filhos eacute
interessante vislumbrar o mundo poliacutetico religioso e cultural no qual ele esteve inserido
comeccedilando pela pequena Nazareacute um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que
vivia em casebres um povoado simples composto de camponeses entre duzentos a
quatrocentos habitantes (Crossan 2007 p 75) ateacute ao Getsecircmani onde Jesus proferiu a
magna expressatildeo Ἀββᾶ ὁ πατὴρ (Abba Pai) que para J Jeremias eacute a mensagem central
do Novo Testamento
No entanto a pesquisa do Jesus histoacuterico eacute complexa visto que os cristatildeos
primitivos preocuparam-se apenas em preservar ditos isolados a respeito de Jesus A
expectativa do retorno iminente do Mestre pode ter sido o motivo principal que levou o
cristianismo primitivo a preferir apenas fatos relacionados ao ministeacuterio de Jesus do que
relatar uma biografia completa do Jesus histoacuterico (Schweitzer 2003 p 11) Apesar de
toda a complexidade em se estudar o Jesus histoacuterico eacute possiacutevel investigar alguns
aspectos relativos a sua existecircncia a partir dos evangelhos e de muitos escritores que ao
longo dos seacuteculos tecircm se empenhado em coletar informaccedilotildees atraveacutes de achados
arqueoloacutegicos e de toda literatura que de uma forma direta ou indireta traz-nos
informaccedilotildees do mundo no qual Jesus estava inserido
Partindo das fontes primaacuterias J Jeremias observa que Jesus tinha uma relaccedilatildeo
iacutentima com Deus pois somente se referia a Ele chamando-o de meu Pai comportamento
este que natildeo era observado entre o povo judeu Assim para uma melhor compreensatildeo
dessa relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute interessante pesquisar como os povos antigos
viam a questatildeo da paternidade divina e desse modo confrontar os modelos antigos com
o modelo de paternidade difundido por Jesus e pelas primeiras comunidades cristatildes
Tendo em vista a complexidade e a diversidade do tema proposto e o profundo
interesse de J Jeremias e de outros pensadores que com ele concordaram ou divergiram
a respeito do assunto esta pesquisa torna-se um desafio empolgante tendo sempre em
vista o crescimento e o amadurecimento em questotildees importantes da teologia
A escolha deste tema eacute motivada pela relevacircncia da produccedilatildeo acadecircmica de J
Jeremias no contexto da Teologia do Novo Testamento mais especificamente sobre a
9
relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai Embora os argumentos de J Jeremias natildeo sejam
unanimidade no contexto dos estudiosos que tecircm escrito sobre tal tema eacute inegaacutevel o
grande impacto que as suas teses tecircm causado na comunidade cientiacutefica ligada ao
assunto que tem se debruccedilado para contestar ou entatildeo para sustentar que Deus natildeo eacute
como um soberano inacessiacutevel mas como um pai que se relaciona com seus filhos e isso
soacute foi enfatizado com propriedade a partir do Abba de Jesus
Essa visatildeo de J Jeremias entra em conflito com as teses de alguns estudiosos
contemporacircneos os quais discutem se realmente houve novidade na forma como Jesus
fez uso da palavra Pai (ipsissima vox) em suas oraccedilotildees ou se esta era um dito autecircntico
(ipsissima verba) Seria Abba realmente a ipsissima vox de Jesus e o centro de sua
mensagem e a afirmaccedilatildeo de sua messianidade conforme afirma J Jeremias ou apenas
uma expressatildeo lituacutergica comum nas comunidades cristatildes do periacuteodo poacutes-pascal da igreja
primitiva (DAngelo 1992b p151) Teria Jesus realmente legado aos seus disciacutepulos a
palavra Abba como um termo sagrado ou Abba tem apenas a conotaccedilatildeo poliacutetica anti-
imperialista (DAngelo 1992a p623)
A partir das questotildees levantadas acima este trabalho tem por objetivo investigar o
Jesus histoacuterico e seu contexto social a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo a
interpretaccedilatildeo dada por J Jeremias bem como alguns desdobramentos deste tema
segundo algumas correntes teoloacutegicas cristatildes e judaicas com as seguintes finalidades
Verificar a visatildeo que os povos antigos (ldquopagatildeosrdquo natildeo judeus) bem como o antigo
Israel tinham de Deus como Pai
Pesquisar a relaccedilatildeo do Jesus histoacuterico no seu contexto familiar e social
Analisar a tese de J Jeremias concernente ao sentido que a palavra Abba tinha
quando proferida por Jesus
Confrontar o pensamento de J Jeremias frente a algumas correntes teoloacutegicas
favoraacuteveis e contraacuterias aos seus argumentos
10
2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS
Neste capiacutetulo seraacute abordado o conceito de paternidade divina entre os povos
antigos com o enfoque sobre a ideia que tais povos tinham de Deus como um ancestral
divino do homem conforme exposto por Jeremias Face agraves inuacutemeras epopeias da
criaccedilatildeo abaixo mencionadas veremos que a criaccedilatildeo do homem a partir do relato do
Gecircnesis eacute bem mais otimista uma vez que o homem do Gecircnesis natildeo eacute um ancestral dos
deuses mas foi criado para ser a imagem do seu proacuteprio Criador
21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS
A ideia mitoloacutegica de um deus como pai da humanidade sempre esteve presente
entre os povos antigos como os sumeacuterios e babilocircnios Segundo J Jeremias tais povos
diziam que suas tribos e famiacutelias procediam de um ancestral divino como se observa por
exemplo no ceacutelebre hino sumeacuterio e acaacutedico de Ur Nesse hino o deus Lua Sin eacute
invocado como o ldquoPai misericordioso em suas disposiccedilotildees que reteacutem em sua matildeo a vida
de todo o paiacutesrdquo Aleacutem de tal hino encontramos na tradiccedilatildeo de tais povos a seguinte
citaccedilatildeo sobre Ea um deus sumeacuterio-babilocircnico ldquoSua coacutelera eacute como o diluacutevio Ele se
reconcilia como um pai misericordiosordquo (Jeremias 1977 p11-12) Complementando essa
ideia Santos Sabugal afirma que a ideia de paternidade divina entre os povos antigos era
largamente atestada na literatura de vaacuterios povos A Aacutefrica a Ameacuterica a China e a Iacutendia
bem como o Egito e tambeacutem os Greco-romanos invocaram a paternidade de Zeus e de
Juacutepiter sobre todos os deuses e homens (Sabugal 1985 p 367-368)
Contudo para J Jeremias as histoacuterias de invocaccedilotildees a Deus como Pai satildeo tatildeo
profundas que sempre se tem a sensaccedilatildeo de que novas e inesperadas galerias sempre
surgem A invocaccedilatildeo a Deus como Pai nos povos antigos desde as suas origens nem
sempre estava relacionada a Deus como um antepassado do rei ou do povo mas podia
ser invocado como um pai misericordioso conforme nos relata J Jeremias
Eacute assombroso verificarmos como jaacute no antigo oriente e com seguranccedila desde o segundo e ainda no terceiro milecircnio aC a divindade era invocada assim Nas oraccedilotildees sumeacuterias muito anteriores a Moiseacutes e os profetas encontramos a invocaccedilatildeo ldquopairdquo e desde laacute esta palavra designava a divindade natildeo apenas como antepassado do rei e do povo ou como o soberano pleno de poder mas tambeacutem como o ldquopai magnacircnimo e misericordioso em cuja matildeo estaacute a vida da naccedilatildeo inteirardquo (Hino de Ur a Sin divindade da lua) A palavra ldquopairdquo na invocaccedilatildeo a Deus implicava pois para os orientais desde os tempos mais antigos algo que pode ser considerado como para noacutes significa a palavra ldquomatildeerdquo (Jeremias 2006 p61)
11
Pai1 portanto para os povos antigos como os assiacuterios babilocircnios egiacutepcios
gregos e outros povos eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e
na Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Aleacutem disso o historiador
das religiotildees Mircea Eliade tambeacutem descreve que satildeo diversas as versotildees sumerianas
sobre a origem divina dos seres humanos e dentre elas consta o poema cosmogocircnico
conhecido como Enuma elish (ldquoQuando no altordquo) que relata as origens do mundo e do
homem buscando exaltar a Marduk um deus nacional da Babilocircnia o qual triunfa sobre
os deuses com ldquovalores demoniacuteacosrdquo dentre eles Tiamat e Kingu
Esse poema traz o mito de que Marduk decidiu criar o homem para que ele sirva
aos deuses Assim a partir do corte das veias de Kingu um deus vencido que foi
sacrificado a humanidade foi criada (Eliade 2010 p79) No entanto com a derrota dos
deuses inimigos de Marduk a criaccedilatildeo do homem inicia-se com um agravante na tradiccedilatildeo
sumeriana mesmo sendo Kingu um dos primeiros deuses ele se tornara o arquidemocircnio
chefe dos monstros e democircnios criados pelo deus Tiamat que tambeacutem foi derrotado por
Marduk Dessa forma sendo o homem constituiacutedo do sangue de Kingu torna-se ele parte
constitutiva de uma mateacuteria demoniacuteaca (Eliade 2010 p 80) Segundo essa vertente
mitoloacutegica sumeriana a uacutenica esperanccedila do homem eacute que ele tenha sido criado por um
grande deus Ea ldquoA partir desse prisma existe uma simetria entre a criaccedilatildeo do homem e
a origem do mundo Em ambos os casos a mateacuteria-prima eacute constituiacuteda pela substacircncia
de uma divindade primordial decaiacuteda demonizada e morta pelos jovens deuses
vitoriososrdquo (Eliade 2010 p 80) Conforme P Grelot ldquoo mito babilocircnico da criaccedilatildeordquo eacute
repleto de violecircncia e sangue (Grelot 1973 p 31)
[] Marduque ouvindo o apelo dos deuses resolveu criar uma obra prima ldquofarei canais de sangue formarei uma ossatura e suscitarei um ser cujo nome seraacute homem Sim vou criar um ser humano um homem Que sobre ele recaia o serviccedilo dos deuses para o bem estar delesrdquo
Ainda com relaccedilatildeo ao mito babilocircnico relata-se que na epopeia de Atra-Hasis (ldquoo
muito inteligenterdquo) cuja coacutepia mais antiga data aproximadamente de 1600 aC o deus Uecirc
1 A relaccedilatildeo de Deus como Pai nas religiotildees do oriente antigo e da Greacutecia e Roma antigas estaacute sempre de
uma forma ligada a ldquoideias miacutesticas de gerar e na descendecircncia fiacutesica e natural de todos os homens a partir de Deus Assim o deus El de Igariteacute eacute chamado o pai da humanidade e o deus da lua na Babilocircnia sin eacute pai e gerador dos homens e dos deusesrdquo No Egito o Faraoacute eacute considerado de modo especial o filho Deus no sentido fiacutesico O nome de pai expressa sobre tudo a absoluta autoridade de deus exigindo a obediecircncia havendo poreacutem ao mesmo tempo seu amor bondade e cuidado misericordiosos (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)
12
eacute morto Entatildeo a deusa matildee (Nintu) e Ea (deus das aacuteguas) fazem um apelo agraves sete
genitoras que ao som de encantamentos maacutegicos se potildeem a amassar a argila A epopeia
narra que a partir de catorze pedaccedilos de argila que satildeo separados metade agrave direita e
metade agrave esquerda pela deusa matildee que apoacutes serem pisados pelas deusas genitoras
estas ldquodatildeo agrave luz sete homens e sete mulheres que imediatamente satildeo dispostos aos
pares e a raccedila humana recebe as leis do seu laborrdquo (Grelot 1973 p 31)
[] Que seja morto um deus e que todos os deuses se purifiquem no seu sangue Que com a sua carne e o seu sangue Nintu (= a deusa matildee) misture argila de modo que deus e homem sejam misturados juntos na argila Que por esta carne de deus haja um espiacuterito Sim Responderam na assembleia os grandes Anunaqui que regem os destinos (Grelot 1973 p 19)
Nesse mito babilocircnico Ea ficou encarregado de consumar o trabalho imolando
Kingu que era o chefe dos deuses revoltosos para que o seu sangue estivesse nas veias
do homem de sorte que este tenha ldquoem suas veias o sangue de um deus decaiacutedordquo
Grelot observa que a partir desses mitos pode-se ver que o homem natildeo eacute apenas um
suacutedito e escravo dos deuses ldquomas tambeacutem eacute um joguete das potecircncias coacutesmicas que
fazem pesar sobre ele uma fatalidade inexoraacutevelrdquo (Grelot 1973 p 31)
[] Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido cortando suas veias Com o seu sangue Eia criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses para libertaacute-los Depois que Eia o saacutebio criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses obra superior a toda inteligecircncia que realizou Nudimude graccedilas aos artifiacutecios de Marduque Marduque rei dos deuses dividiu o conjunto dos Anunaacutequi em deuses de cima e deuses de baixo e encarregou Anu de velar pelas suas ordens nos ceacuteus e na terra ele estabeleceu seiscentos deuses (Vl 1-1031-34)
Pode-se ainda observar a ideia da existecircncia de um ancestral divino entre outros
povos antigos Segundo Campbell tal conceito pode ser visto na cultura da tribo Aranda
da Austraacutelia Central Nessa tribo o rito de transformaccedilatildeo de um menino em adulto
demonstra a forma primitiva com que esse povo se relaciona com a divindade desde a
antiguidade quando um jovem dessa tribo estaacute entre os dez e os doze anos ele e os
outros membros de sua faixa etaacuteria satildeo tomados pelos homens da aldeia e levantados
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vaacuterias vezes no ar enquanto os homens realizam o ritual de transformaccedilatildeo as mulheres
por sua vez tambeacutem tomam parte do ritual danccedilando em volta agitando os braccedilos e
gritando Em cada menino satildeo entatildeo pintados no peito e nas costas desenhos simples
por um homem relacionado com o grupo social ao qual pertence a sua futura mulher e
enquanto os meninos satildeo pintados os homens cantam ldquoQue ele possa atingir a barriga
do ceacuteu que ele possa crescer ateacute a barriga do ceacuteu que ele possa ir diretamente para
dentro da barriga do ceacuteurdquo (Campbell 1992 p82)
Assim que o ritual eacute finalizado os meninos recebem a instruccedilatildeo que desde que o
ritual foi concluiacutedo cada um deles tem sobre si a insiacutegnia do ancestral mitoloacutegico
particular do qual ele eacute a contraparte viva A partir de entatildeo os meninos passam a ter
algumas responsabilidades e satildeo advertidos de que de agora em diante haacute algumas
restriccedilotildees entre eles e o sexo oposto Eles natildeo poderatildeo mais brincar ou acampar com as
mulheres e meninas mas somente com os homens Das atividades de caccedila de pequenos
animais e procura de raiacutezes eles natildeo tomaratildeo parte visto ser uma atividade realizada
pelas mulheres mas receberatildeo uma responsabilidade maior que eacute acompanhar os
homens na caccedila aos cangurusrdquo (Campbell 1992 p 82) Campbell observa que nessa
tribo eles acreditam que as crianccedilas nascidas de mulheres satildeo reapariccedilotildees de seres que
viveram na era mitoloacutegica no chamado ldquotempo dos sonhosrdquo ou altjeringa (Campbell
1992 p 82) Nesse mundo mitoloacutegico maacutegico dos sonhos o menino da tribo Aranda
passa entatildeo a compreender que ele proacuteprio eacute um ser mitoloacutegico eterno que se
encarnou e da mesma forma seus companheiros tambeacutem satildeo as manifestaccedilotildees das
formas eternas (Campbell 1992 p82)
A ancestralidade divina tambeacutem pode ser constatada entre os gregos como no mito
de Ascleacutepio um deus popular classificado por Homero e Piacutendaro como um heroacutei ou
divindade da cura Ascleacutepio segundo a mitologia grega era filho do deus Apolo com a
humana Corocircnis ele tambeacutem se casou com uma humana com quem teve filhos e filhas
(Koester 2005 vol1 p176)
A relaccedilatildeo entre deuses e humanos tambeacutem pode ser vista nos relatos mitoloacutegicos
dos chamados heroacuteis ou semideuses Segundo a mitologia os heroacuteis pertenciam agrave
espeacutecie dos humanos visto que conheceram a morte e o sofrimento contudo
diferenciavam-se destes pelo fato de que eles viveram numa eacutepoca denominada pelos
gregos como o antigo tempo onde os homens denominados de heroacuteis eram mais belos e
mais fortes do que os homens que conhecemos Esses ancestrais (noacutenymnoy) ou seja
os sem nome fazem parte do passado lendaacuterio da Greacutecia antiga Mesmo sendo homens
eles se aproximam muito dos deuses mais dos que os homens atuais Nessa eacutepoca
14
lendaacuteria segundo a mitologia grega os deuses ainda se misturavam com os mortais na
vida diaacuteria como comer juntos e ateacute em relaccedilotildees sexuais onde os imortais se uniam aos
mortais a fim de gerarem filhos belos Os heroacuteis faziam parte dessa relaccedilatildeo amorosa
entre deuses e humanos como diz Hesiacuteodo ldquoeles formam a raccedila divina dos heroacuteis que
satildeo denominados semideuses conhecidos como os hemitheoiacuterdquo (Vernant 2006 p 47) A
partir desse relato observamos que os humanos realmente acreditavam procederem de
uma raccedila mitologicamente humana e divina ou seja uma mistura das duas
Observamos que ateacute esse ponto temos entre os ancestrais divinos apenas figuras
masculinas A figura masculina de Deus como Pai da humanidade entre os povos antigos
eacute marcante poreacutem natildeo eacute unanimidade Gerald Messadieacute afirma que natildeo existe nenhuma
figura masculina da idade da pedra que evoque o conceito de um deus masculino
(Messadieacute 2001 p44) De fato esse autor observa que os deuses masculinos como Aacutetis
Tamuz Adoacutenis Patilde Silvano Fauno Narciso Jacinto satildeo comparados agrave vegetaccedilatildeo visto
que mesmo sendo deuses heroicos miacuteticos morrem com a chegada do inverno e
renascem com a chegada da primavera assim como ocorre com a vegetaccedilatildeo
No entanto diferentemente do que ocorre no aspecto masculino para o autor
supracitado o princiacutepio feminino da divindade eacute algo permanente Segundo Messadieacute o
culto da Terra-Matildee foi tatildeo fortemente enraizado nas culturas primitivas que seus vestiacutegios
perduraram ateacute tempos recentes (Messadieacute 2001 p44) Nesse sentido pode-se citar as
oraccedilotildees que se faziam agrave deusa-matildee (Zemyna equivalente agrave deusa grega Gaia) na
Lituacircnia entre os seacuteculos XVII e XVIII onde ela era vista como aquela que faz florescer
os bototildees O mais admiraacutevel eacute que em pleno seacuteculo XX em numerosos paiacuteses da
Europa como Escoacutecia Irlanda Lituacircnia Pruacutessia Oriental e Malta ainda era dedicado um
dia (15 de agosto) a Terra-Matildee Messadieacute enfatiza que o dia dedicado agrave deusa-matildee era
uma data tatildeo significativa a ponto de ser transformada no dia da festa catoacutelica da
Assunccedilatildeo data esta que mesmo tendo sentido diferente e ser de outra religiatildeo ainda
assim foi recuperada em benefiacutecio de uma mulher (Messadieacute 2001 p 45)
A deusa-matildee era vista como doadora de tudo quer fosse da vida ou da morte Entre
suas formas mais conhecidas estatildeo Istar Astarte Inana Ciacutebele Ceres e Afrodite A
importacircncia da deusa-matildee como protetora da vida era fundamental em uma sociedade
onde a esperanccedila de vida em geral natildeo ultrapassava quarenta e cinco anos Por isso a
fertilidade das mulheres era vista como essencial para a sobrevivecircncia das sociedades ldquoA
deusa-matildee foi o reflexo de um estado socioeconocircmico que ditava a economia e a religiatildeordquo
(Messadieacute 2001 p47)
15
O culto agrave deusa universal foi duradouro e seu decliacutenio foi tardio e nunca totalmente
consumado em nenhuma religiatildeo ateacute o aparecimento do judaiacutesmo (Messadieacute 2001 p
59) Na Europa a primeira vez que um deus masculino partilhou o poder oficialmente
com a deusa-matildee foi com a revoluccedilatildeo Celta dos oriundos da Iacutendia ramo indo-europeu
dos indo-arianos por volta do seacuteculo VIII aC Os Celtas apesar dessa aparecircncia politeiacutesta
natildeo o eram pode-se dizer que ldquoeram quase monoteiacutestasrdquo (Messadieacute 2001 p72) Seus
deuses mitoloacutegicos estatildeo mais para heroacuteis do que para divindades ldquoOs Celtas como
revelou Juacutelio Ceacutesar satildeo todos filhos de Dis pater O Pai muito simplesmenterdquo (Messadieacute
2001 p69) Continua Messadieacute ldquoos Celtas lanccedilaram no Ocidente as fundaccedilotildees do
Cristianismo antes mesmo deste ter nascido Quase o inventaramrdquo (Messadieacute 2001
p70)
Dentre as muitas teorias acerca da origem dos deuses e suas relaccedilotildees com os
humanos verificamos que segundo Joatildeo Evangelista Martins Terra a palavra Deus tem
sua origem no protoindo-europeu onde era designada como DEIWOS e de onde provecircm
os dois vocaacutebulos latinos para dizer deus (Deus e divus) palavras que derivam do latim
arcaico deivos (Martins Terra 2001 p274) A religiatildeo dos indo-europeus acreditava na
existecircncia de um Ser Supremo conhecido como o Deus celeste tambeacutem chamado de
DEIWOS palavra esta que deriva do radical DEI (iluminar) (Martins Terra 2001 p291)
De acordo com Martins Terra DEIWOS estaacute presente em inuacutemeras religiotildees antigas
Na religiatildeo messaacutepica (populaccedilatildeo indo-europeia proto-histoacuterica da peniacutensula salentina)
religiatildeo dos etruscos dos gregos dos traacutecios dos celtas dos antigos germanos dos
persas dos baacutelticos dos antigos eslavos e das religiotildees indianas (Martins Terra 2001 p
277-286)
O indo-europeu DEIWOS originariamente natildeo designava o ceacuteu fiacutesico (caelum)
visto que as liacutenguas indo-europeias natildeo tecircm um nome comum para designar o ceacuteu fiacutesico
(Martins Terra 2001 p 291) DEIWOS designava um ser pessoal que frequentemente eacute
contraposto ao HOMO um ser pessoal terreno (Martins Terra 2001 p 305)
Na cultura indo-europeia o conceito de pai era muito mais do que genealoacutegico
juriacutedico e socioloacutegico O conceito de pai sempre se referia ao chefe de famiacutelia como
aquele que exercia um poder monaacuterquico com funccedilotildees judiciais e penais sobre os seus
dependentes Para os indo-europeus o deus supremo dyeu-pater (pai) natildeo se refere a
deus pai ldquocomo progenitor mas ao sentido social do adulto que eacute chefe da casa no
sentido do latim pater famiacuteliasrdquo (Martins Terra 2001 p153) Contudo segundo Martins
Terra Porfiacuterio relaciona Zeus como pai dos deuses e coloca o homem como parente de
Deus Para Porfiacuterio uma das finalidades dessa relaccedilatildeo eacute que ldquoo homem respeitaraacute o
16
direito do proacuteximo que tambeacutem tem a Zeus como progenitor [proacutegonos]rdquo (Martins Terra
2001 p351)
Na religiatildeo dos indo-europeus DEIWOS eacute sempre o ser transcendente (celeste) No
entanto essa transcendecircncia estaacute sempre proacutexima do divino como o autor da vida o
Deus Pai Segundo Martins Terra o antigo nome divino em latim era DIESPITER uma
forma primitiva derivada de DEIWOS ou de Dieus ldquonas invocaccedilotildees mais primitivas de
Zeus jaacute encontramos o vocativo Zeu paacuteter Em latim a palavra pater associa-se
intimamente com a palavra Deus e formava ela um soacute nome DIESPITER Iovispater
vocativo Juppiter em uacutembrio Jupater em iliacuterico Deipaturosrdquo (Martins Terra 2001 p337)
Como suporte agrave teoria da invocaccedilatildeo de Zeus partes do hino de Cleantes esclarecem
esse conceito
[]32 ndash Ah Zeus benfeitor universal 33 ndash Salva os homens de sua ignoracircncia funesta 34 ndash Purifica oacute Pai suas almas desta ignoracircncia e concede-lhes atingir 35 ndash O pensamento que te guia para tudo governares com justiccedila Somente Zeus pode salvar o homem de seus pendores funestos E o homem pode com confianccedila invocar a Zeus porque ele eacute Pai e dele com efeito todos noacutes nascemos 1 ndash Oacute o mais glorioso dos imortais sob mil nomes onipotente para sempre 2 ndash Zeus senhor da natureza que com a lei governas todas as coisas 3 ndash Salve Porque eacute a Ti que todos noacutes mortais temos o direito de invocar 4 ndash Visto que de Ti todos noacutes nascemos (Martins Terra2001 p332-333)
Esse hino mostra que Zeus natildeo era invocado apenas como rei senhor governador
mas tambeacutem como um Deus pessoal num relacionamento familiar um Deus Pai2
Conforme Martins Terra invocar a ldquodivindade sob o nome de pai eacute um dos fenocircmenos
primordiais na histoacuteria das religiotildeesrdquo Martins Terra ainda observa que nas liacutenguas indo-
europeias essa forma de invocaccedilatildeo fica mais evidente ainda nas palavras Dyaus pitatilde
Zeugraves pater Deipaturos e Iuppiter (Martins Terra 2001 pg433) Segundo Martins Terra
ldquoem Homero a invocaccedilatildeo de Zeus no vocativo aparece quase sempre unida agrave palavra
pai Zeucirc paacuteterrdquo (Martins Terra 2001 p 435)
Diferentemente dos povos antigos a atividade criadora de Deus no livro do Gecircnesis
eacute sempre cosmoloacutegica onde a ordem e a beleza satildeo os temas centrais Do caos Deus
cria a ordem o universo que culmina com a criaccedilatildeo do homem como o aacutepice da obra da
criaccedilatildeo conforme vemos no Gecircnesis onde ldquoDeus viu que isso era bom (1 10 13 18 21
25)rdquo e ainda segundo o texto sagrado (131) temos a seguinte conclusatildeo ldquoIsso era
2 Segundo Vernant Zeus eacute Pai dos deuses e dos homens natildeo porque tenha gerado ou criado todos os
seres mas porque exerce autoridade absoluta sobre todos como um chefe de famiacutelia sobre seu clatilde (Cf Vernant 2006 p33)
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muito bomrdquo Segundo P Grelot ldquoa histoacuteria sagrada sacerdotal Gn 1-24ardquo - das origens do
mundo ao tempo em que Israel viveu no deserto - foi escrita no tempo em que o povo
estava no exiacutelio (entre 587 e 538 aC) Babilocircnia eacute o lugar onde se venera o deus Marduk
e de onde provecircm as narrativas mitoloacutegicas de como os deuses criaram o mundo Para
proteger seus irmatildeos dos mitos babilocircnicos o autor sagrado teria escrito a primeira
narraccedilatildeo da criaccedilatildeo Contudo a narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo difere teologicamente dos
mitos babilocircnicos e dos povos antigos conforme relata Grelot
[] O universo eacute de certa forma um templo gigantesco que Deus levanta para a sua gloacuteria Quando o templo estaacute pronto ele coloca nele o homem criado ldquoagrave sua imagem e semelhanccedilardquo (126) Fica assim proibido representar a divindade por meio de imagens porque estas lembrariam o culto prestado a criaturas divinizadas (Ex 20 3-6) essa proibiccedilatildeo natildeo tem paralelo em nenhum povo da antiguidade A uacutenica imagem permitida de Deus eacute o rosto humano Mas se Deus eacute representado agrave imagem de uma pessoa viva de um homem que fala para fazer as coisas existirem (ldquoDeus disserdquo) nem por isso o homem eacute divinizado ldquoimagem de Deusrdquo deve ele voltar-se para aquele cujos traccedilos reflete (Grelot 1973 p 43)
Da mesma forma para Heinrich Krauss e Max Kuumlchler comparar o relato biacuteblico da
criaccedilatildeo do homem com a mitologia sumeacuterio-babilocircnia ou egiacutepcia serve para demonstrar
diferenccedilas importantes entre eles Na mitologia pagatilde o acircmago de toda a criaccedilatildeo estaacute
mais voltada ao nascimento dos deuses (teogonias) Por sua vez a criaccedilatildeo do homem
estaacute ligada a esses relatos apenas por uma linha tecircnue Para Krauss e Kuumlchler somente
num periacuteodo bem posterior ao nascimento dos deuses eacute que o ser humano eacute criado
quase que por um acidente ou entatildeo para servir como trabalhador escravo dos deuses
Em alguns aspectos notamos que haacute semelhanccedilas entre a criaccedilatildeo do homem no relato
do Gecircnesis e as mitologias pagatildes quando observamos que no Gecircnesis a criaccedilatildeo do
homem tambeacutem se daacute por uacuteltimo Contudo conforme Krauss e Kuumlchler diferentemente
dos antigos mitos no Gecircnesis a criaccedilatildeo do homem se daacute por meio de um processo
premeditado Eacute possiacutevel por analogia observarmos que na narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo
tanto o cosmos quanto o homem satildeo criados num ambiente onde o respeito e a
admiraccedilatildeo pelo ser humano satildeo evidentes como podemos observar na poesia do Salmo
8 4-9 que diz
Quando vejo o ceacuteu obra dos teus dedos a lua e as estrelas que fixaste que eacute um mortal para dele te lembrares e um filho de Adatildeo para vires visitaacute-lo E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de gloacuteria e beleza Para que domine as obras de tuas matildeos sob seus peacutes tudo colocaste ovelhas e bois todos e as feras do campo tambeacutem a ave do ceacuteu e os peixes do mar
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quando percorre ele as ondas dos mares (Krauss e Kuumlchler 2007 p 48-49)
A relaccedilatildeo do homem com os deuses nas mitologias antigas eram caracterizadas
pelas forccedilas da natureza Os diversos deuses exerciam poderes sobre tais forccedilas que por
sua vez determinavam o destino do homem ldquoNa tempestade e na brisa na chuva e na
seca viam-se igualmente manifestaccedilotildees de poderes divinos tal como no amor e no
matrimocircnio na vida e na morte na violecircncia e na guerra no crescimento e na destruiccedilatildeordquo
(Krauss e Kuumlchler 2007 p 61) Todos os acontecimentos da vida dos homens eram
resultados da influecircncia de uma ou mais divindades conforme as suas funccedilotildees dentro do
panteatildeo Alguns deuses eram considerados de boa iacutendole poreacutem outros eram
considerados perversos e maus e por essa razatildeo deveriam ser lisonjeados atraveacutes de
rituais de sacrifiacutecios ou praacuteticas maacutegicas
Krauss e Kuumlchler apesar de descreverem os deuses mitoloacutegicos da antiguidade com
poderes sobrenaturais e sobre-humanos sobre o mundo ressaltam que tais deuses
mesmo o chamado deus criador da mitologia antiga eram limitados agrave esfera deste
mundo ou seja natildeo tinham poder absoluto nem garantido para sempre Por outro lado o
Deus dos relatos biacuteblicos da criaccedilatildeo eacute diferente Ele natildeo faz parte deste mundo mesmo
que aqui esteja presente e sempre atuando Tambeacutem natildeo estaacute sujeito agrave limitaccedilatildeo das
forccedilas da natureza e tem poder para conduzir soberanamente o destino dos seres
humanos O Deus criador do Gecircnesis natildeo sofre oposiccedilatildeo de divindade alguma a natildeo ser
em pequena escala dos seres humanos ldquoA diferenccedila entre o monoteiacutesmo judeu-cristatildeo
ou islacircmico de um lado e o politeiacutesmo de outro natildeo eacute uma questatildeo de nuacutemero (um
uacutenico Deus ou diversos deuses) mas da concepccedilatildeo do que eacute Deusrdquo (Krauss e Kuumlchler
2007 p61)
No tocante agraves narrativas e mitos antigos da criaccedilatildeo Vicente Artuso desenvolve um
trabalho no qual compara o relato da criaccedilatildeo no livro do Gecircnesis com a epopeia de Atra
Asis e os demais mitos antigos da criaccedilatildeo e conclui que o relato da criaccedilatildeo no Gecircnesis eacute
mais otimista em relaccedilatildeo aos mitos antigos Embora por um lado haja algumas
semelhanccedilas na forma da criaccedilatildeo do homem conforme jaacute foi visto acima por outro lado
elas estatildeo muito distantes Artuso observa que nessa epopeia o homem eacute feito a partir
do barro e do sangue de um deus decaiacutedo Na Biacuteblia o homem proveacutem do barro e do
sopro de Deus que eacute a fonte da vida Na epopeia o ser humano eacute criado para livrar os
deuses de seu castigo na Biacuteblia o homem eacute criado por Deus de uma forma totalmente
desinteressada Na epopeia o ser humano participa da divindade assim como na Biacuteblia
Contudo Artuso pontua que mesmo que em ambos os relatos da criaccedilatildeo o homem
participe da divindade na epopeia fica evidente que o homem participa da divindade de
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um deus decaiacutedo sendo que no relato da criaccedilatildeo da Biacuteblia o homem eacute criado agrave imagem
e semelhanccedila do Criador No Gecircnesis o homem eacute criado pelo Deus uacutenico que do caos
traz todas as coisas a existecircncia cria o homem e o faz participante de sua obra quando
ordena ao ser humano o crescimento a multiplicaccedilatildeo e que o mesmo exerccedila o domiacutenio
sobre todas as coisas criadas (Artuso 2009 p80-81)
22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO
No Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai3 J Jeremias relaciona
que isso ocorre apenas quinze vezes conforme podemos verificar nos seguintes textos
ldquoDt 326 2 Sam 714 (textos paralelos em 1 Cron 1713 22 10 286) Sl 68 6 8927 Is
6316 (duas vezes) 647 Jr 3419 31 9 Mal 1 6 2 10 (Jeremias 2005 p19) Mesmo
esses textos quando relacionados a Deus como Pai indicam que Deus eacute primeiramente
o Senhor como diz o Salmo 33 8 ldquoTema o Senhor todo o mundo e tremam diante dele
todos os habitantes da terra porque ele fala e acontece ele ordena e aiacute estaacuterdquo (Jeremias
2008 p269) Como Senhor Deus tambeacutem se compadece de seus filhos como um Pai
conforme o Salmo 10313 (Jeremias 1977 p13) Aleacutem de Senhor o Pai tambeacutem eacute
honrado como Criador ldquoNatildeo eacute ele porventura teu pai que te fez seu que te formou e te
consolidourdquo (Dt 326) ldquoPorventura natildeo eacute um o Pai de todos noacutes Natildeo eacute um soacute Deus que
nos criourdquo(Ml 2 10) Observa-se que o reduzido uso do conceito de Deus como Pai no
Antigo Testamento pode estar relacionado ao uso abusivo que os povos cananeus faziam
desse termo em seus cultos de fertilidade (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo
Testamento 1998 p 6)
A relaccedilatildeo de Deus como Pai no Antigo Testamento eacute diferente do conceito de
paternidade dos povos antigos As diferenccedilas satildeo fundamentais visto que Deus natildeo eacute um
ancestral da raccedila humana como podemos ver nas palavras de J Jeremias
O fato de que no Antigo Testamento Deus natildeo eacute o ancestral mas o criador natildeo eacute a menor E que o que eacute ainda mais importante no antigo Testamento a paternidade divina atribui-se soacute a Israel e de uma maneira que natildeo encontra nenhum equivalente Eles tecircm uma relaccedilatildeo toda particular com Deus isto eacute um povo escolhido dentre todos os povos para ser o filho primogecircnito de Deus (Jeremias 1977 p13)
3 ldquoO AT emprega a palavra pai () quase que exclusivamente (c De 180 vezes) num sentido secular e soacute
muito ocasionalmente (15 vezes) num sentido religioso Como acontece no AT assim tambeacutem na literatura do judaiacutesmo palestinense podemos notar reserva marcante no emprego da palavra num sentido religioso Soacute mais tarde na literatura do judaiacutesmo da diaacutespora eacute que achamos o emprego mais frequente do nome Pai com referecircncia a Deusrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
20
No contexto biacuteblico a histoacuteria de Israel eacute notoriamente descrita colocando Israel
sempre como o povo eleito e exclusivo de Deus e essa eleiccedilatildeo eacute histoacuterica e concreta A
paternidade divina4 pode ser considerada histoacuterica quando tambeacutem atestamos que o
ecircxodo do Egito a peregrinaccedilatildeo no deserto e a conquista da terra de Canaatilde satildeo tratados
como fatos histoacutericos fatos esses que tornam Israel como o filho primogecircnito conforme a
eleiccedilatildeo divina Alguns textos corroboram esse pensamento entre os quais podemos
destacar ldquoFilhos sois do SENHOR vosso Deusrdquo (Dt 141)
A paternidade divina no Antigo Testamento natildeo eacute privileacutegio do indiviacuteduo mas sempre
privileacutegio da coletividade e juridicamente da figura do rei Com efeito Deus eacute sempre visto
como o ldquoPai do Reirdquo (2 Sam 7 14 Sl 8927) e ldquoPai de Israel como naccedilatildeordquo (Jr 34 3 19
319 Ml 16 Is 6315 657) J Jeremias faz questatildeo de enfatizar a respeito da
paternidade divina que em todo o Antigo Testamento natildeo encontramos nenhuma
passagem na qual Deus seja interpelado como Pai por um indiviacuteduo mas isso eacute sempre
realizado pela coletividade (Jeremias 2008 p115) Quando observamos as expressotildees
ldquoTu eacutes nosso Pairdquo (Is 6316) e ldquoTu eacutes meu Pairdquo (Jr 34) verificamos que as mesmas se
tratam de ldquosentenccedilas afirmativas e natildeo da invocaccedilatildeo de Deus usando o nome de Pai
para elerdquo (Jeremias 2008 p115) Deus natildeo eacute Pai porque gera de forma fiacutesica mas
porque chamou os filhos de Israel para ser um povo constituiacutedo de homens livres eacute Pai
porque ama escolhe e guia seus filhos por um reto caminho segundo a lei Dessa forma
mesmo fazendo pouco uso do termo Pai Israel comeccedilou a realizar o que poderiacuteamos
chamar de a grande revoluccedilatildeo do siacutembolo paterno
Em relaccedilatildeo ao siacutembolo de Deus como Pai Robert Hamerton-Kelly seguindo a
mesma linha de pensamento de J Jeremias concorda que no Antigo Testamento a
designaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rara e as poucas vezes em que isso ocorre natildeo eacute no
sentido literal do termo Hamerton Kelly faz referecircncia a dois tipos de simbolismo que
aparecem na Biacuteblia concernentes agrave figura de Deus como Pai um simbolismo indireto e
outro direto O simbolismo indireto ocorre por meio de uma associaccedilatildeo enquanto que o
simbolismo direto eacute feito por intermeacutedio de uma metaacutefora ou alegoria No modo indireto
Deus eacute mostrado claramente em conexatildeo com os pais humanos Ele eacute o ldquoDeus dos paisrdquo
e a associaccedilatildeo aqui eacute por intermeacutedio da identificaccedilatildeo de Deus como chefe No modo
direto a Biacuteblia usa a alegoria ou a metaacutefora Deus eacute como um pai ou Deus eacute nosso Pai
(Hamerton-Kelly 1979 p20-21)
4 ldquoA descriccedilatildeo de Deus como Pai se refere no AT apenas as Seu relacionamento com o povo de Israel
(Dt326 Is6316 duas vezes 648 Jr319 Ml16 210) ou com o rei de Israel (2Sm 714 par 1 Cr 1713 2210 286 Sl 8926 cf 27) Nunca se refere a qualquer indiviacuteduo () ou a humanidade em geralrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
21
No Antigo Testamento o simbolismo indireto eacute usado na transiccedilatildeo do Pai dos
deuses para o Deus dos pais e do Deus dos pais para o Deus de Moiseacutes (Hamerton-
Kelly 1979 p21-28) Qualquer consideraccedilatildeo sobre o entendimento biacuteblico de Deus no
periacuteodo preacute-mosaico deve ser relacionado aos deuses adorados pela religiatildeo dos
cananeus ancestral da religiatildeo dos hebreus os quais eram denominados em Canaatilde pelo
nome ldquoEl5rdquo o chefe do panteatildeo e tambeacutem progenitor dos deuses na mitologia cananita
(Martins Terra 1987 p11) De acordo com a tradiccedilatildeo Yahweh era ldquoo Deus dos Paisrdquo e
Abraatildeo pode provavelmente ter sido considerado ldquopai dos deusesrdquo como uma descriccedilatildeo
de sua possiacutevel divindade Entre os outros povos existiam vaacuterios deuses que eram vistos
como figuras paternas como Anu (deus do ceacuteu) Enlil (deus do vento e da tempestade) e
Ea (deus da aacutegua) os quais tinham seu proacuteprio santuaacuterio e eram patronos de suas
respectivas cidades (Hamerton-Kelly 1979 p21-23)
Os compiladores das sagas patriarcais do Gecircnesis acreditavam que os pais
adoravam El como El Elyon El Olam El Roi El Shaddai e El Betel Esses nomes
compostos mostram que a adoraccedilatildeo era estabelecida em um lugar fiacutesico por intermeacutedio
de alguma outra divindade ou seja os lugares de adoraccedilatildeo eram relacionados a um
deus Embora natildeo possa ser encontrada a praacutetica monoteiacutesta entre os patriarcas pode-se
assumir que os deuses distintos estavam associados em algum estaacutegio da tradiccedilatildeo
sendo identificados como manifestaccedilotildees do grande deus El - o pai dos deuses Mesmo
que natildeo seja possiacutevel falar de um preacute-Mosaico ldquoEl-monoteiacutesmordquo 6 eacute possiacutevel falar de um
deus supremo que eacute a fonte e origem de todas as coisas o pai dos deuses e da
humanidade que eacute o ponto de contato com o monoteiacutesmo Javista (Hamerton-Kelly 1979
p24-25)
Outro ponto de contato entre a teologia Preacute-Mosaica e Mosaica pode ser
encontrado no fato que cada um dos grandes patriarcas tinha um deus associado com
eles mesmos o ldquoEl de Abraatildeordquo (Gn 31 42) o ldquoTemor de Isaquerdquo (Gn 31 53) o ldquoForte de
Jacoacuterdquo (Gn 49 24-25) os quais tinham como sinocircnimos o ldquoDeus (El) de meu pairdquo Por fim
5 A palavra El ocorre 238 vezes no Antigo Testamento Eacute uma palavra de origem protossemiacutetico ou
semiacutetico-comum para designar Deus em todas as liacutenguas semiacuteticas Ele eacute o Deus-patriarca criador anciatildeo cujas forccedilas extraordinaacuterias criaram e povoaram o ceacuteu El eacute ldquoum Deus pessoardquo de cada patriarca ele eacute ldquoo Deus dos paisrdquo familiar uacutenico e universal mas tambeacutem eacute o Deus tribal (Cf Martins Terra em Elohim o Deus dos Patriarcas p 19 37 39 51)
6 Surge um problema relacionado a este assunto eacute possiacutevel falar de monoteiacutesmo neste periacuteodo Alguns
pesquisadores acham difiacutecil o conceito de um monoteiacutesmo preacute-mosaico ou mesmo de uma ideia de adoraccedilatildeo exclusiva a Deus mesmo que o texto do livro do Ecircxodo 34 11-26 trate com detalhes este tema ainda assim este pensamento parece ser uma ideia muito complexa uma vez que muitos estudiosos observam que o referido texto pode ter sido redigido em uma eacutepoca tardia ou seja ldquouma espeacutecie de seleccedilatildeo ou resumo a partir de outros textosrdquo (Cruumlsemann 2002 p167-169) Segundo Cruumlsemann o Pentateuco deve ter surgido entre o exiacutelio e o inicio da eacutepoca helenista para ser mais objetivo no periacuteodo Persa (cf Cruumlsemann 2002 p454)
22
vecirc-se que o deus eacute identificado mais pelo seu relacionamento com uma pessoa do que
com um lugar ou um fenocircmeno natural isto eacute muda-se o simbolismo do divino de lugar
para pessoa deixando claro que a Revelaccedilatildeo de Deus estaacute no domiacutenio das relaccedilotildees e
accedilotildees humanas mais especificamente nas relaccedilotildees de familia (Hamerton-Kelly 1979
p25-27)
Aleacutem disso observamos que sob a influecircncia de Moiseacutes as tribos de Israel foram
unificadas em fidelidade ao Deus Yahweh A identidade de Yahweh estaacute fortemente
relacionada com ldquoos paisrdquo como se vecirc na revelaccedilatildeo de Deus a Moiseacutes no monte Horebe
[hellip] Moiseacutes Moiseacutes [hellip] Eu sou o Deus de teus pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute [hellip] Iahweh disse Eu vi Eu vi a miseacuteria do meu povo que estaacute no Egito Ouvi seu grito por causa dos seus opressores pois Eu conheccedilo as suas anguacutestias Por isso desci a fim de libertaacute-lo da matildeo dos egipcios e para fazecirc-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta terra que mana leite e mel [hellip] Disse Deus a Moiseacutes Eu sou aquele que eacute Disse mais Assim diraacutes aos israelitas EU SOU me enviou ateacute voacutes [hellip] Iahweh o Deus o Deus de vossos pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute me enviou ateacute voacutes Eacute o meu nome para sempre e eacute assim que me invocaratildeo de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (Ex 3 1-15)
Iahweh eacute o Deus de Israel isso fica evidente na foacutermula ldquoElohecirc Israelrdquo (Martins
Terra 1987 p 82) O ponto central de toda a teologia do Antigo Testamento eacute que o
Deus de Israel eacute o uacutenico e verdadeiro Quando os autores sagrados comparam Iahweh
com os deuses de outras naccedilotildees (Dt 4 34 Sl 11 3-5) eacute para fortalecer a convicccedilatildeo dos
israelitas de que haacute somente um Deus tanto ldquoem cima no ceacuteurdquo como ldquoembaixo na terrardquo
(Dt 439) Para Martins Terra o ldquoemprego de Elohim7 natildeo pode ser interpretado como
reliacutequia de um antigo politeiacutesmo Israelitardquo ou seja Elohim se converte em sinocircnimo de
Iahweh o Deus uacutenico e verdadeiro
O nome divino de Elohim que se radica na liacutenguagem religiosa de todos os povos semitas do Antigo Oriente Proacuteximo reconhecido e confessado por Israel como o Deus pessoal e uacutenico ajudou o Antigo testamento a entender e proclamar o Deus da histoacuteria da Salvaccedilatildeo como Deus do universo como lemos na primeira linha da Biacuteblia ldquoNo principio Elohim criou os ceacuteus e a terrardquo (Martins Terra 1987 p 85)
Fazendo uma transiccedilatildeo do simbolismo indireto para o simbolismo direto
mostraremos o pai (matildee) como uma alegoria ou metaacutefora para Deus Vale observar que a
figura da matildee faz parte desta anaacutelise uma vez que esse simbolismo natildeo a exclui apenas
7 A palavra Elohim pode ser um desenvolvimento do termo Eloah (Deus) como uma forma de
representaccedilatildeo da pluralidade de pessoas existentes na divindade (Trindade) ou ainda a terminaccedilatildeo plural pode ser descrita como um plural de majestade natildeo com a intencionalidade de ser usado na forma de plural para referir-se a Deus Isto pode ser averiguado quando Elohim eacute usado com o verbo no singular bem como os adjetivos e pronomes tambeacutem no singular (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento 1998 p68-72)
23
inclui sua presenccedila No simbolismo direto os pais satildeo muito mais do que meros sinais da
natureza e presenccedila de Deus O profeta Oseacuteias nos mostra um Deus que ao mesmo
tempo em que eacute Pai tem para com Israel seu filho afetos que satildeo proacuteprios da matildee A
ternura os cuidados e o afeto de Deus em Oseacuteias satildeo comparados agraves caracteriacutesticas
proacuteprias que uma matildee tem por seus filhinhos
Quando Israel era menino eu o amei e do Egito chamei meu filho (hellip) Fui eu contudo quem ensinou Efraim a caminhar eu os tomei pelos braccedilos mas natildeo reconheceram que eu cuidava deles Com viacutenculo de amor eu os atraiacutea com laccedilos de amor eu era para eles como os que levantavam uma criancinha contra o seu rosto eu me inclinava para ele e o alimentava (Os 11 1-4)
Nesse texto vemos a ideia de que Israel era filho de Deus e que essa filiaccedilatildeo eacute
usualmente associada ao periacuteodo do deserto e eacute entendida como uma experiecircncia da
paternidade de Iahweh Contudo observamos no texto que Iahweh inclinava-se para
alimentaacute-los expressatildeo essa que denota uma funccedilatildeo especificamente desempenhada
pela figura materna Aleacutem disso em uma passagem do livro de Nuacutemeros Moiseacutes de
uma forma impliacutecita afirma que Deus eacute como uma matildee para Israel
[] Moiseacutes sentiu-se grandemente desgostoso e disse a Iahweh ldquoPor que fazes mal a teu servo Por que natildeo achei graccedila a teus olhos visto que me impusestes o encargo de todo este povo Fui eu porventura que concebi todo este povo Fui eu que o dei agrave luz para que me digas Leva-o em teu regaccedilo como a ama leva a crianccedila no colo agrave terra que prometi sob juramento a seus pais (Num 1110b-
12)rdquo
Esse texto soacute pode referir-se a Deus visto que Moiseacutes natildeo era a matildee daquele
povo portanto teoricamente natildeo tinha a responsabilidade de ser o protetor e nem o
provedor deles em momentos de crise Na visatildeo de Moiseacutes Deus era o responsaacutevel pelos
cuidados essenciais do povo assim como uma matildee cuida de seus filhos Dessa forma a
figura materna tambeacutem pode ser usada como uma designaccedilatildeo para Deus (Hamerton-
Kelly 1979 p 39-40)
Haacute ainda outros exemplos em que a imagem de Deus pode ser comparada a de
uma mulher que cuida de seus filhos como lemos em Isaiacuteas 4915
Por um acaso uma mulher se esqueceraacute de uma criancinha de peito Natildeo se compadeceraacute ela do filho do seu ventre Ainda que as mulheres se esquecessem
24
eu natildeo me esqueceria de ti
Na simbologia em que Deus exerce as funccedilotildees de provedor protetor e mantenedor
de seu povo encontramos textos em que Ele exerce funccedilotildees ora como Pai e ora Matildee
Segundo Hamerton-Kelly no livro do profeta Isaiacuteas (66 10-13) encontramos uma
imagem de Deus como a de uma matildee bem como em Deuteronocircmio 131 e 85 em que
encontramos em ambos os textos a imagem de Deus que como um homem (pai) educa
os seus filhos pelo caminho correto Portanto numa visatildeo simboacutelica Deus eacute apresentado
ora como pai e ora como matildee do povo (Hamerton-Kelly 1979 p40)
Alegrai-vos com Jerusaleacutem exultai nela todos os que a amais regozijai-vos com ela todos os que por ela estaacuteveis de luto pois sereis amamentados e saciados
pelo seu seio consolador pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo Com efeito assim diz Iahweh Eis que trarei a Paz como um rio e a gloacuteria das naccedilotildees como uma torrente transbordante Sereis amamentados sereis carregados sobre ancas e acariciados sobre os joelhos Como a uma pessoa que a sua matildee consola Assim eu vos consolarei Sim em Jerusaleacutem sereis consolados (Is 66 10-13)
Como tambeacutem no deserto onde vistes que o SENHOR vosso Deus nele vos levou como um homem leva seu filho por todo o caminho que andastes ateacute chegardes a este lugar Deuteronocircmio 131 Sabes pois no teu coraccedilatildeo que como um homem castiga a seu filho assim te castiga o SENHOR teu Deus Deuteronocircmio 85
Mesmo diante de vaacuterios textos em que observamos Deus exercendo figuradamente
as funccedilotildees de pai e matildee natildeo temos um texto em que Deus seja diretamente chamado de
matildee e nem mesmo Jesus jamais invocou a Deus como matildee Segundo Matthias Grenzer
a razatildeo disso encontra-se no fato de Deus ser diversas vezes tratado como o esposo ou
o amado enquanto que Israel eacute descrito como a virgem noiva mulher amada ou ateacute
mesmo como prostituta (cf Jr 2-3 Ez16 Os 2 e Ct) Dentro desse imaginaacuterio a figura de
Deus eacute vista como a parte masculina enquanto que a naccedilatildeo de Israel ocupa a parte
feminina sendo assim essa seria a razatildeo de Deus ldquoser chamado somente de Pai e natildeo
de matildeerdquo (Grenzer 2009 p 182)
Ainda em relaccedilatildeo agrave paternidade de Deus no Antigo Testamento Sabugal observa
que a mesma eacute sempre vista nos seguintes aspectos Deus como o Pai do povo de Israel
(Is 6316) Pai do rei (2 Sam 7 14 Sl 8927) Pai dos justos israelitas (Sab 216) e
tambeacutem como Rei Messiacircnico (2Sm 7 12-16) (Sabugal 1985 p370)
25
Yahveh com efeito eacute o Pai de Israel por haver resgatado ltltdesde sempregtgt (Is 6316b) primeiro do Egito (Jer 34 cf Ez 23 319) e depois da Babilocircnia (cf Jer 319) tambeacutem por haver-lhes criado mediante a alianccedila (Dt 366 Mal 210 cf 317) conduzindo-o pelo deserto e corrigindo-o ltltcomo um pai a seus filhosgtgt (Dt 131 85) provando-o paternalmente (Sab 1110) e paternalmente amando-o (cf Mal 317) pois ele fez o seu povo que o confessa como Pai (Is 6319 647) e como tal deve honrar (Mal 16) Israel eacute consequentemente o filho de Deus seu primogecircnito (Ex 422 Jer 319) e ltlt filho tatildeo amadogtgt (Jer 3120) a quem desde o Ecircxodo elegeu por pai (Nuacutem 1112 Dt 32 518) e modelou (cf Is 647) por ter-lhes amado (Os 111) ltlt com um amor eternogtgt (Jer 313) tornando-se assim mesmo os israelitas a raiz da eleiccedilatildeo divina realizada na alianccedila do Sinai ltlt filhos de Yahvehgtgt (cf Dt 326 Mal 317) como membros de ltltum povo consagrado a seu Deusgtgt (Dt 14 1-2 Sal 7315) E certo que como ltltfilhos rebeldesgtgt (Is 30 19) esqueceram ltlto Deus que os criougtgt (Jer 321 Dt 3218) mas se como ltltfilhos apoacutestatasgtgt ouvirem a exortaccedilatildeo e converterem-se (Jer 3 1422) seratildeo novamente chamados ltlt filhos do deus vivogtgt (Os 21) que mostrando-se ltltindulgente para com eles como um pai com um filho que lhe servegtgt (Mal 317) uma vez mais os salvaraacute Israel segue sendo o ltltfilho amadogtgt e ltltmenino mimadogtgt de Yahveh (Jer 319) (Sabugal 1985 p 371)
Em suma podemos observar que o conceito que os israelitas tinham de Deus como
Pai defendido por J Jeremias fundamenta-se na tese de que a paternidade de Deus
sobre Israel eacute diferente da paternidade divina entre os demais povos antigos De fato o
Deus dos israelitas natildeo eacute um pai por geraccedilatildeo fiacutesica (Sabugal 1985 p371) e nem mesmo
o progenitor dos deuses e dos homens (Sabugal 1985 p368) como criam os demais
povos antigos Contudo observamos que a figura de Deus metaforicamente exerce
funccedilotildees que satildeo em suas origens de ofiacutecio materno e de ofiacutecio paterno
Realmente o Antigo Testamento eacute rico em metaacuteforas para Deus Christopher J H
Wrighth nota que entre as imagens humanas para Deus no Antigo Testamento
encontramos que ele eacute rei juiz e redentor Tambeacutem Yahweh eacute comparado a um pastor
soldado ou a um agricultor Yaweh pode ser chamado tambeacutem de rocha abrigo escudo
esconderijo leatildeo fogo ou uma fonte de aacutegua (Wright 2007 p 22)
Uma outra maneira de se observar a figura de Deus como Pai no Antigo Testamento
eacute atraveacutes dos nomes teofoacutericos Geza Vermes vecirc que a representaccedilatildeo de Deus como Pai
eacute um elemento baacutesico na Teologia do Antigo Testamento Vermes cita trecircs nomes como
exemplo os quais ldquoproclamam uma relaccedilatildeo de parentesco entre Deus e os membros
individuais do povo Judeurdquo 8 Tais nomes como Abiel (Deus eacute meu Pai) Eliab (meu Deus
eacute Pai) Abijah (Yah [Yahweh Jeovaacute eacute meu Pai] segundo Vermes atestam o conceito de
que Deus era invocado como Pai no judaiacutesmo veterotestamentaacuterio (Vermes 2006 p 259)
9 Sobre a imagem de Deus Pai na Biacuteblia Vermes concorda que ela natildeo eacute tatildeo
8 Acredito que com o termo parentesco Vermes natildeo estaacute se referindo a ancestralidade conforme
debatemos acima baseado no pensamento de J Jeremias 9 Matthias Grenzer tambeacutem coloca esses nomes citados por Vermes como uma forma de ver ldquoo
comportamento do Senhor Deusrdquo comparado a atitude de um Pai humano Grenzer ainda menciona o nome do sobrinho de Davi Joab cujo significado eacute ldquoJaveacute (Yahweh) eacute Pairdquo (Cf Grenzer 2009 p 180)
26
abundantemente atestada nas Escrituras contudo a familiaridade dessa imagem eacute
manifesta na ldquovariedade de nomes teofoacutericos que conteacutem o elemento ab (Pai)rdquo Sobre os
nomes teofoacutericos ele diz ainda que
Eles empregam tanto os tiacutetulos divinos do hebraico YH (W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai) ou YoAB (Yo eacute o Pai) Do mesmo modo temos Abbi eL e ELIab (Deus eacute o Pai) em nomes judaicos da era preacute-exiacutelica e do Segundo Templo Abram e Abiram (Pai excelso e Meu Pai eacute exaltado) que podem ser rastreados agrave idade patriarcal representam o mesmo tipo Enquanto as nuances exatas do termo ldquoPairdquo permanecem vagas natildeo pode haver duacutevida de que mesmo em niacutevel individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de famiacutelia Essa antiga atitude subjacente eacute explicitamente expressa principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da naccedilatildeo judaica Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusatildeo a eles como seus filhos (Vermes 1995 p158-159)
Para Christopher Wright a ocorrecircncia desses nomes metafoacutericos no Antigo
Testamento demonstra como a ideia de Deus como Pai era bem aceita nesse periacuteodo
Para esse autor pais que davam nomes aos filhos como Joabe (Yahweh eacute meu pai) ou
Abiel (Deus eacute meu Pai) tinham algum conhecimento metafoacuterico de Deus como Pai
Portanto para Israel o conhecimento de Deus como Pai pode ser mais bem
compreendido sob o ponto de vista que para eles Deus eacute comparado com um pai
humano que disciplina mas ensina seus filhos Como Pai ele tambeacutem se compadece
carrega adota os sem-teto e os oacuterfatildeos enfim ele eacute o Pai em que podemos encontrar
perfeita seguranccedila (Wright 2007 p24-25 38-39)
27
3 O JESUS HISTOacuteRICO
Depois de investigarmos a relaccedilatildeo de Deus como ldquoPairdquo entre os povos antigos
aproximamo-nos do ponto central da pesquisa Jesus de Nazareacute o qual segundo J
Jeremias trouxe-nos uma nova forma ou seja deu um novo enfoque sobre o termo Pai
quando dirigido a Deus Para um melhor embasamento sobre a relaccedilatildeo de Jesus com
Deus Pai buscaremos entender o homem chamado Jesus dentro das pesquisas
modernas sobre ldquoa vida de Jesusrdquo bem como das fontes evangeacutelicas disponiacuteveis no Novo
Testamento Procurar conhecer Jesus partindo do meio social em que ele esteve inserido
com certeza torna a pesquisa sobre o Cristo mais profunda e interessante uma vez que
Jesus antes de ser conhecido e pregado como Cristo foi um cidadatildeo judeu que viveu na
Galileia para ser mais preciso na pequena e humilde Nazareacute
31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO
Jesus de Nazareacute constitui personagem histoacuterico da maior importacircncia a comeccedilar pelo proacuteprio calendaacuterio hoje universal baseado na era cristatilde Uma parte consideraacutevel da humanidade professa a feacute cristatilde e outra parte considera Jesus como um profeta Para aleacutem do Cristianismo e do Islamismo Jesus constitui para outros crentes ou para agnoacutesticos e ateus uma referecircncia fundamental pela diferenccedila contraste ou oposiccedilatildeo No entanto o Jesus da histoacuteria aquele homem galileu que viveu haacute dois mil anos ainda constitui um grande desconhecido O Cristo da feacute dominou por muitos seacuteculos as reflexotildees sobre este homem de singular significaccedilatildeo As paixotildees das discussotildees teoloacutegicas foram muitas mas o homem Jesus foi tocado pelos estudiosos apenas nos uacuteltimos dois seacuteculos
(Funari 2009 p 7 in Chevitarese A L Cornelli G)
A busca pelo Jesus da histoacuteria tem mais de 200 anos No final do seacuteculo XVIII um
pequeno nuacutemero de bravos europeus comeccedilou a aplicar criacutetica literaacuteria a livros histoacutericos
do Novo Testamento Segundo E P Sanders a pesquisa sobre Jesus escrita durante
esse periacuteodo de 200 anos por estudiosos seacuterios e determinados trouxe resultados
bastante diversificados sobre o assunto o que levou muitos a pensar que na realidade
natildeo sabemos nada sobre o Jesus da histoacuteria No entanto essa eacute uma reaccedilatildeo exagerada
uma vez que sabemos muitas coisas O problema consiste em saber conciliar os nossos
conhecimentos com as nossas esperanccedilas e aspiraccedilotildees a respeito da vida e ministeacuterio de
Jesus (Sanders 2005 p21)
A pesquisa sobre a vida de Jesus pode ser dividida em cinco fases conforme as
descrevem Gerd Theissen e Annette Merz A primeira fase tem como principais
representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-
28
1874) 10 Reimarus um professor de liacutenguas orientais de Hamburg teve seus escritos
principais publicados somente apoacutes a sua morte por G E Lessing o qual a partir de
1774 comeccedilou a publicar as partes mais importantes do ensaio sobre ldquoApologia ou
Escritos de Defesa para os adoradores Racionais de Deusrdquo Em 1778 ele tinha publicado
sete fragmentos da obra quando iniciou o tratamento da vida de Jesus em perspectiva
puramente histoacuterica (Theissen amp Merz 2004 p21) Conforme Albert Schweitzer estes
satildeo os tiacutetulos dos fragmentos de Reimarus publicados por Lessing (Schweitzer 2003 p
23)
1 A Toleracircncia dos Deiacutestas
2 A Desmoralizaccedilatildeo da Razatildeo no Puacutelpito
3 A Impossibilidade de uma Revelaccedilatildeo em que todos os homens teriam bons motivos
para acreditar
4 A Passagem dos Israelitas pelo Mar Vermelho
5 Demonstrando que os Livros do Antigo Testamento natildeo foram escritos para revelar
uma religiatildeo
6 Acerca da Histoacuteria da Ressurreiccedilatildeo
7 Os objetivos de Jesus e seus Disciacutepulos
Reimarus de acordo com Theissen defendeu a ideia de que Jesus natildeo fundou
uma nova religiatildeo e tambeacutem nunca teve a intenccedilatildeo de desfazer-se do judaiacutesmo visto que
ele sempre esteve inserido na religiatildeo Judaica A pregaccedilatildeo de Jesus era sempre baseada
na apocaliacuteptica judaica O reino prometido por Jesus segundo Reimarus era um reino
terreno nos mesmos moldes e expectativas do pensamento judaico de sua eacutepoca
Portanto para Reimarus ldquoJesus eacute uma figura judaica profeacutetico-apocaliacutepticardquo ou seja
apenas um judeu enquanto que o cristianismo nada mais era do que uma invenccedilatildeo dos
apoacutestolos (Theissen e Merz 2004 p21) Martins Terra fazendo uma anaacutelise do
pensamento de Reimarus sobre a pessoa de Jesus conclui que para o referido teoacutelogo
ldquoJesus natildeo passou de um poliacutetico ambicioso e seus disciacutepulos foram verdadeiros
falsaacuteriosrdquo Na analogia de Reimarus Jesus e sua pretensatildeo poliacutetica terminaram com o
fracasso e a morte na cruz Sobre a ressurreiccedilatildeo de Jesus ele teria dito que foram os
disciacutepulos roubaram o cadaacutever inventaram a mensagem de sua ressurreiccedilatildeo e da vinda
futura Para concluir o pensamento de Reimarus sobre a imagem que temos de Jesus a
10
Essa fase eacute tambeacutem conhecida como a ldquoold questrdquo Essa fase natildeo eacute movida pelo cientificismo mas tem como caracteriacutesticas a rejeiccedilatildeo aos dogmas da Igreja a diferenciaccedilatildeo entre os sinoacuteticos e Joatildeo como fontes histoacutericas a colocaccedilatildeo de Jesus dentro do contexto escatoloacutegico de seu tempo e a ecircnfase sobre o Evangelho de Marcos como sendo o mais antigo dos Evangelhos (Schiavo 2006 p 15-17)
29
partir dos Evangelhos ele afirma que isso foi apenas criaccedilatildeo e ldquofrauderdquo dos disciacutepulos (cf
Martins Terra 1977 p10-12)
Strauss que foi filoacutesofo e teoacutelogo publicou em 18351836 a obra intitulada Vida de
Jesus Para Schweitzer ele natildeo estaacute entre os grandes teoacutelogos mas foi o mais sincero
(Schweitzer 2003 p85) Strauss aplicou aos Evangelhos o conceito de mito algo que jaacute
era comum nas pesquisas sobre o Antigo Testamento de sua eacutepoca (Theissen e Merz
2004 p22) Para ele mesmo que os Evangelhos (sinoacuteticos) tenham sido escritos num
periacuteodo de aproximadamente 40 anos apoacutes a morte de Jesus isso natildeo impede de que
estejam misturados com o mito Ele deixa sua forma de pensar mais evidente quando diz
que ldquonatildeo eacute preciso que um grande homem esteja morto haacute muito tempo para que a lenda
jaacute se ocupe da sua vidardquo (Schweitzer 2003 p 98) Contudo precisamos entender qual eacute
o verdadeiro sentido do mito religioso conforme nos descreve Schweitzer
[] a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha compreendido o caraacuteter essencial do mito religioso Ele nada mais eacute do que ideias religiosas vestidas em uma forma histoacuterica modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda e corporificado numa personalidade histoacuterica Ateacute por motivos a priori somos quase compelidos a assumir que o Jesus histoacuterico nos encontraraacute com as vestes das ideias messiacircnicas do Antigo Testamento e expectativas do cristianismo primitivo (Schweitzer p98)
Segundo Schweitzer a diferenccedila entre Strauss e os seus predecessores eacute que
para aqueles se aplicassem rigorosamente o conceito de mito agrave vida histoacuterica de Jesus
havia um grande questionamento sobre se restaria alguma coisa do Jesus histoacuterico
enquanto que para este essa questatildeo natildeo apresentava nada que fosse considerado um
terror (Schweitzer 2003 p98) Theissen assim resume Strauss ldquoPara Strauss
hegeliano declarado o cerne da feacute cristatilde natildeo eacute atingido pela abordagem miacutetica pois no
indiviacuteduo histoacuterico Jesus realiza a ideia da humanidade de Deus a mais sublime de todas
as ideias O mito eacute a roupagem legiacutetima de tipo histoacuterico dessa humanidade geralrdquo
(Theissen 2004 p22)
De uma forma sucinta Theissen descreve as demais fases da seguinte forma a
segunda eacute denominada como a fase do ldquootimismo da pesquisa liberal sobre a vida de
Jesusrdquo Essa fase eacute marcada por um florescimento do liberalismo teoloacutegico sobre a vida
de Jesus sob o ponto de vista de pesquisadores na Alemanha onde era esperado que se
chegasse agrave reconstruccedilatildeo histoacuterico-criacutetica da histoacuteria de Jesus e de sua personalidade
Essa escola teve como seu principal representante Heinrich Julius Holtzmann (1832-
1910) Destaca-se nessa fase que enquanto F Chr Baur demonstrou a primazia dos
sinoacuteticos sobre o Evangelho de Joatildeo Holtzmann contribuiu para que a teoria das duas
30
fontes desenvolvida por Christian Gottob Wilke e Christian Hermann Weise tornasse-se
um sucesso duradouro (Theissen e Merz 2004 p23)
A terceira fase eacute definida como ldquoo colapso da pesquisa sobre a vida de Jesusrdquo 11
Trecircs foram os motivos para tal colapso o primeiro fator foi a obra de Schweitzer Histoacuteria
de Investigaccedilatildeo da vida de Jesus que provocou o desvelamento das imagens das Vidas
de Jesus criadas pela teologia liberal que conforme os olhos de cada autor revelava-se a
estrutura de personalidade de Jesus com o ideal eacutetico que cada autor almejava O
segundo motivo estaacute concentrado na pessoa de W Wrede que em 1901 demonstrou ldquoo
caraacuteter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesusrdquo Para
Wrede o Evangelho de Marcos era a expressatildeo dogmaacutetica da comunidade cristatilde
primitiva que projetou sobre Jesus de Nazareacute a messianidade do Jesus poacutes-pascal E
por fim K L Schmidt demonstra o ldquocaraacuteter fragmentaacuterio dos evangelhosrdquo Para Schmidt
o Evangelho de Marcos eacute composto por periacutecopes que foram juntadas cronoloacutegica e
geograficamente somente mais tarde pelo autor Sendo assim desaparece totalmente a
possibilidade de se construir uma personalidade de Jesus visto que a histoacuteria das formas
reconhece que as periacutecopes foram juntadas primeiramente para satisfazer as
necessidades das comunidades e soacute em segundo plano como recordaccedilotildees histoacutericas
(Theissen e Merz 2004 p24)
Diante desses movimentos ceticistas surge uma teologia que ora amortece ora
aguccedila ainda mais os debates em torno das pesquisas sobre as Vidas de Jesus Nesse
sentido Rudolf Bultmann (1884 -1976) expotildee a sua teologia dialeacutetica contrapondo Deus e
o mundo de uma forma tatildeo radical a tal ponto que seria possiacutevel um encontro entre
ambas as partes apenas em um ponto assim ldquocomo uma tangente toca um ciacuterculordquo
(Theissen e Merz 2004 p24) Para Bultmann o fator decisivo natildeo era o que Jesus disse
ou fez mas sim o que Deus disse ou fez na cruz e na ressurreiccedilatildeo Nesse sentido
Bultmann afirma que o ensino de Jesus natildeo eacute relevante para a feacute cristatilde e partindo desse
pensamento Theissen define a teologia de Bultmann nas seguintes palavras ldquoSe D F
Strauss viu a verdade do mito de Cristo na ldquoideiardquo R Bultmann a viu no querigma um
chamado de Deus vindo de forardquo (Theissen e Merz 2004 p24-25)
11
Schiavo define essa fase como a ldquono questrdquo Os principais nomes dessa fase satildeo Wrede Dibelius Schmidt e Bultmann Neste movimento os Evangelhos satildeo considerados como um conjunto de tradiccedilotildees desarticuladas e pequenas (periacutecopes) sem interesses histoacutericos A finalidade principal dos Evangelhos estaacute centrada no fato de transmitir mensagens espirituais catequeacuteticas e lituacutergicas para os cristatildeos da Igreja Primitiva Sendo assim eacute impossiacutevel conhecer o Jesus histoacuterico pois a imagem que temos dele nos Evangelhos eacute querigmaacutetica e centrada no Jesus da feacute (Schiavo 2006 p 17-18)
31
A quarta fase eacute definida por Theissen como ldquoa nova pergunta pelo Jesus histoacutericordquo
12 Essa fase desenvolvida pelos disciacutepulos de Bultmann pergunta ou busca uma relaccedilatildeo
a partir do Jesus querigmaacutetico questionando se ldquosua exaltaccedilatildeo na cruz e na ressurreiccedilatildeo
tem alguma base na pregaccedilatildeo preacute-pascalrdquo Os pressupostos para tal questionamento satildeo
fundamentados nas seguintes pressuposiccedilotildees ldquoO querigma cristoloacutegico compromete-se
com a pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Isso se fundamenta segundo essa escola no fato
de que ldquoa identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado eacute pressuposta em todos os
escritos do cristianismo primitivordquo (Theissen e Merz 2004 p25ndash26) O segundo
pressuposto eacute ldquoa base metodoloacutegica da pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Segundo
Theissen esse pressuposto metodoloacutegico eacute ldquoa confianccedila de que se pode encontrar um
miacutenimo criticamente assegurado de tradiccedilatildeo autecircntica de Jesus quando se exclui o que
pode ser derivado tanto do judaiacutesmo como do cristianismo primitivordquo Entende-se que
nessa quarta fase para os disciacutepulos de Bultmann a busca de um fundamento preacute-pascal
que apoie o querigma de Cristo independe do fato de Jesus ter usado algum tiacutetulo
cristoloacutegico visto que isso jaacute estaacute impliacutecito em seu ministeacuterio e em seu anuacutencio (Theissen
e Merz 2004 p26)
Finalmente surge a quinta fase conforme Theissen denominada de ldquoa third
quest13 pelo Jesus Histoacutericordquo Essa fase predominantemente exposta no mundo de fala
inglesa diferencia-se das anteriores pelos seguintes aspectos o interesse histoacuterico-social
substitui o teoloacutegico a inserccedilatildeo de Jesus no Judaiacutesmo ao inveacutes de separaacute-lo como os
disciacutepulos de Bultmann procura fazecirc-lo e por fim haacute uma abertura para as fontes natildeo
canocircnicas substituindo a preferecircncia apenas por fontes canocircnicas A third quest dividiu a
pesquisa sobre Jesus em diferentes correntes No entanto segundo Theissen essa
variedade de interpretaccedilotildees e figuras de Jesus que pode ser visto tanto como um ciacutenico
judeu ou como um personagem colocado no centro do judaiacutesmo a espera do
restabelecimento de um reino escatoloacutegico daacute a essas correntes um tom de
plausibilidade ou seja ldquoo que eacute plausiacutevel no contexto judaico e torna compreensiacutevel o
12
Conhecida como a ldquoNew questrdquo a New quest caracteriza-se por diferenciar o que eacute proacuteprio do judaiacutesmo com o que eacute tambeacutem proacuteprio do cristianismo primitivo Dessa forma seria possiacutevel chegar ao Jesus da histoacuteria Ernst Kaumlsemann eacute um dos representantes dessa escola Para Schiavo J Jeremias tambeacutem pode ser representado nessa escola Visto que o mesmo com a ajuda da filologia e conhecimentos profundos do aramaico tentou reconstruir os ditos autecircnticos de Jesus (Schiavo 2006 p 18)
13 Schiavo complementa que essa fase que teve iniacutecio a partir da deacutecada de 1980 deixa de ser
exclusividade da academia alematilde e a pesquisa do Jesus histoacuterico passa a fazer parte da academia anglo-americana Este movimento tem como caracteriacutesticas principais os seguintes toacutepicos O interesse histoacuterico-socioloacutegico para com o mundo judaico do seacuteculo I dC a inserccedilatildeo de Jesus dentro do Judaiacutesmo A referecircncia agraves fontes natildeo canocircnicas e a aproximaccedilatildeo da fonte Q com o Evangelho de Tomeacute Dentre os representantes dessa escola encontram-se Crossan Sanders Meyer Vermes Freyne Horsley e Theissen (Schiavo 2006 p 18-19)
32
surgimento do cristianismo primitivo poderia ser histoacutericordquo (Theissen e Merz 2004 p28ndash
29)
32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO
Um dos temas da teologia que tem levantado inuacutemeras questotildees a mais de dois
seacuteculos eacute a busca histoacuterica por Jesus de Nazareacute um humilde judeu que viveu na Galileia
agraves margens do Mediterracircneo Sean Freyne avalia que ldquoas muitas idas e vindas dos
estudos que marcam a busca pelo Jesus histoacuterico tecircm sido uma preocupaccedilatildeo constante
da teologia ocidental por mais de dois seacuteculos e mesmo assim nenhum consenso foi
atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundourdquo (Freyne 2008
p1) Sobre a possibilidade de se buscar pelo Jesus histoacuterico Freyne observa que hoje
natildeo eacute mais suficiente apenas assumir uma posiccedilatildeo numa questatildeo por demais debatida Eacute
necessaacuterio que o pesquisador aleacutem de ter conhecimentos da histoacuteria da antiguidade
tambeacutem possua conhecimentos de arqueologia ciecircncias sociais e particularmente de
antropologia cultural (Freyne 2008 p2) Isso demonstra que haacute necessidade de uma
visatildeo interdisciplinar entre essas ciecircncias e seus pesquisadores
A pergunta sobre o Jesus histoacuterico segundo J Jeremias chega a ser absurda e
sem significaccedilatildeo para a feacute cristatilde apenas para aqueles que natildeo conhecem a questatildeo Ele
ainda pergunta ldquoComo eacute possiacutevel que esta questatildeo seja a questatildeo central de todas as
discussotildees sobre o Novo Testamentordquo (Jeremias 2005 p199) Segundo J Jeremias eacute
hora de questionarmos as teorias de Rudolf Bultmann que propagam que o Jesus
histoacuterico eacute irrelevante para a feacute cristatilde e a teoria que apregoa que o Jesus histoacuterico e o
Cristo proclamado pela Igreja natildeo satildeo as mesmas de Reimarus (Jeremias 2005 p 200)
Partindo das questotildees levantadas por J Jeremias e da forma como Bultmann diverge
desse pensador um diaacutelogo sobre a questatildeo eacute sempre gratificante para darmos pelo
menos um passo agrave frente no que se refere ao Jesus histoacuterico
Tendo em vista a amplitude da questatildeo acima levantada fica evidente que
trabalhar temas relacionados agrave vida do Jesus histoacuterico eacute sempre desafiador Muitos foram
os teoacutelogos e pensadores que a partir do ano de 1778 ano em que nasce o ldquoproblema do
Jesus histoacutericordquo (Jeremias 2005 p 200) esforccedilaram-se nessa tarefa com um espiacuterito
criacutetico e investigativo a fim de encontrar evidecircncias histoacutericas a respeito do homem mais
marcante de toda a histoacuteria da humanidade Tambeacutem natildeo significa que antes de Reimarus
33
o Jesus histoacuterico fosse negligenciado a questatildeo eacute que os teoacutelogos e historiadores desde
a igreja primitiva haviam sustentado que os Evangelhos eram documentos dignos de
absoluto creacutedito acerca da vida e histoacuteria de Jesus por isso tiveram a preocupaccedilatildeo de
apenas parafrasear e harmonizar os Evangelhos uma vez que natildeo viam necessidade de
uma investigaccedilatildeo aleacutem das fontes canocircnicas (Jeremias 2005 p 200) As palavras de Udo
Schnelle assim resumem a teologia do Jesus histoacuterico
A pergunta histoacuterica por Jesus eacute uma filha do iluminismo Para os periacuteodos anteriores era evidente que os Evangelhos transmitiam notiacutecias confiaacuteveis sobre Jesus Antes do Iluminismo a pesquisa neotestamentaacuteria dos Evangelhos limitava-se essencialmente agrave harmonizaccedilatildeo dos quatros Evangelhos Na praacutetica a Exegese do Novo Testamento era uma disciplina auxiliar da Dogmaacutetica (Schnelle 2010 p 70)
Ainda com relaccedilatildeo agrave pesquisa sobre o Jesus histoacuterico Joseacute Antonio Pagola diz
que quando nos referimos ao Jesus histoacuterico ldquoestamos falando do conhecimento de
Jesus que os historiadores podem obter utilizando os meacutetodos cientiacuteficos da moderna
investigaccedilatildeo histoacutericardquo (Pagola 2010 p13)
A magnitude de se escrever sobre o Jesus da Galileia eacute descrita por Schweitzer
com as seguintes palavras ldquo[] natildeo haacute tarefa histoacuterica que revele o verdadeiro interior de
um homem como a de escrever uma Vida de Jesus Nenhuma forccedila vital move o
personagem a natildeo ser que o homem sopre nele todo o oacutedio ou todo o amor de que eacute
capaz Quanto mais intenso o amor ou o oacutedio mais realista eacute a figura produzidardquo
(Schweitzer 2003 p11) Em outras palavras Schweitzer diz que aqueles que buscaram
despir Jesus do sobrenatural acabaram descobrindo fatos que enalteceram ainda mais a
sua histoacuteria Para Schweitzer tanto o oacutedio quanto o amor leva o escritor a investigaccedilotildees
profundas no intuito de provar verdade ou falsidade de um acontecimento histoacuterico Nesse
sentido as maiores produccedilotildees a respeito do Jesus histoacuterico foram escritas com oacutedio e
entre elas segundo Schweitzer estatildeo as de Reimarus e a de Strauss (Schweitzer 2003
p11)
Segundo J Jeremias a tese defendida por Reimarus em que Jesus eacute visto como
um revolucionaacuterio poliacutetico que fracassou na cruz quando exclamou ldquoDeus meu Deus
meu por que me desamparastesrdquo era estuacutepida e artificial visto que Jesus natildeo foi um
revolucionaacuterio poliacutetico e sempre reagiu energicamente contra todas as tendecircncias
nacionalistas dos zelotas Ao fazer uma anaacutelise do momento em que Reimarus escreveu
J Jeremias relata que Reimarus estava fazendo uma investigaccedilatildeo voltada ao homem
Jesus para sua personalidade sua religiatildeo e natildeo voltada para o dogma cristoloacutegico e
34
que a princiacutepio tinha como objetivo libertar-se dos dogmas da igreja (Jeremias 2005 p
201)
O resultado desses trabalhos sobre ltltas vidas de Jesusgtgt nos legaram muitas
imagens de sua personalidade que produzem risos Para os racionalistas Jesus eacute visto
como um pregador de moral para os idealistas a quintessecircncia do humanismo e por fim
para os estetas ele eacute posto como o amigo dos pobres e como um reformador social
Assim satildeo inuacutemeras as imagens que fazem de Jesus um personagem de romance
Jesus portanto eacute modernizado conforme as imagens carregadas de fantasias de cada
autor conforme os seus ideais suas eacutepocas ou suas teologias (Jeremias 2005 p 201)
J Jeremias questiona entatildeo onde estaria o erro E a resposta estaacute no fato de que
esses escritores ltltdas vidas de Jesusgtgt sem ter a plena consciecircncia acabaram
substituindo o dogma cristoloacutegico pela psicologia e pela fantasia Haacute poreacutem um ponto em
comum em todas as obras sobre ltlt as vidas de Jesusgtgt todas elas tratam de desenhar
a personalidade de Jesus com a ajuda dos instrumentos da psicologia e da fantasia Os
padrinhos nesse esforccedilo natildeo satildeo apenas as fontes mas a maior parte pertence agrave
imaginaccedilatildeo criativa a uma construccedilatildeo psicoloacutegica livre de obstaacuteculos (Jeremias 2005 p
201-202)
Conforme J Jeremias Albert Schweitzer de uma forma traacutegica poreacutem com muita
destreza desmascara essas criaccedilotildees repletas de fantasias e depois ele mesmo cairia
em falta fazendo uma construccedilatildeo psicoloacutegica a partir do texto do Evangelho de Mateus
(10 23) declarando que a grande decepccedilatildeo na vida de Jesus foi natildeo ter chegado ao final
causando grandes mudanccedilas em sua vida a ponto de aceitar o sofrimento para forccedilar a
chegada do reino de Deus (Jeremias 2005 p 203)
Pesquisar a vida do Jesus histoacuterico eacute muito mais que contar a histoacuteria de um
grande homem Eacute deparar-se com um personagem vital para a histoacuteria da humanidade
que ldquoveio para reger sobre o mundo Ele o regeu para o bem e para o mal como a histoacuteria
testificardquo (Schweitzer 2003 p8) Jesus revolucionou o mundo de sua eacutepoca mudou o
rumo da histoacuteria inseriu-se nela como protagonista mesmo natildeo sendo essa a sua
intenccedilatildeo A histoacuteria do mundo natildeo poderia mais ser contada sem ele ou seja Jesus
dividiu a histoacuteria em o antes e o depois dele A grandiosidade do homem Jesus fascinou
tanto os que o amaram como aqueles que o odiaram Nesse sentido podemos justificar o
fato de tantos pensadores estudarem a respeito do Jesus histoacuterico com as palavras
atribuiacutedas a Hegel por Bernard Bourgeois ldquoUm grande homem condena os humanos a
explicaacute-lordquo (Bourgeois1995 p 375)
35
Segundo Schweitzer os cristatildeos primitivos preocuparam-se apenas em preservar
ditos isolados a respeito do Jesus histoacuterico A expectativa do retorno iminente do Mestre
pode ter sido o motivo principal que levou o cristianismo primitivo a preferir apenas fatos
relacionados ao ministeacuterio de Jesus a uma biografia completa do Jesus histoacuterico O autor
ainda considera isso como um impulso de autopreservaccedilatildeo visto que a introduccedilatildeo do
Jesus histoacuterico na feacute da comunidade primitiva seria algo novo jaacute que o proacuteprio Jesus natildeo
se preocupou em deixar uma autobiografia Pagola compartilha desse pensamento
dizendo que
os evangelistas natildeo compuseram uma ldquobiografiardquo de Jesus no sentido moderno desta palavra Seus escritos estatildeo impregnados de sua feacute no Cristo ressuscitado satildeo sumamente seletivos foram narrados em funccedilatildeo de problemas e necessidades das primeiras comunidades cristatildes e estatildeo ordenados para objetivos teoloacutegicos e concretos Por isso exigem um estudo criacutetico cuidadoso antes de podermos obter deles informaccedilotildees fidedignas para a investigaccedilatildeo (Pagola 2010 p17)
O fato de Jesus natildeo ter deixado nenhum texto escrito e o texto do apoacutestolo Paulo
na segunda carta aos Coriacutentios capiacutetulo cap 5 verso 16 ldquo[hellip] doravante a ningueacutem
conhecemos segundo a carne Tambeacutem se conhecemos Cristo segundo a carne agora jaacute
natildeo o conhecemos assimrdquo abriu o caminho para diversas interpretaccedilotildees acerca de Jesus
De fato Leonhard Goppelt menciona a interpretaccedilatildeo de Rudolf Bultmann segundo a qual
se infere que para Paulo a accedilatildeo terrena de Jesus natildeo teria tido a miacutenima importacircncia o
que importava era a feacute pascal Natildeo obstante a ldquofeacute pascal bem como a cristologia natildeo satildeo
simplesmente uma transfiguraccedilatildeo miacutetica do terreno Muito antes nelas toma forma o que
no Jesus terreno agia apenas de maneira ocultardquo (Goppelt 2002 p 46)
O pensamento de Bultmann a respeito da importacircncia de se investigar a vida e a
personalidade do Jesus histoacuterico se resume nas seguintes palavras
Natildeo podemos saber praticamente nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus jaacute que as fontes cristatildes natildeo se interessaram por elas sendo ademais bastante fragmentaacuterias e encobertas pela lenda uma vez que natildeo existem outras fontes sobre Jesus O que se estaacute escrevendo haacute mais de um seacuteculo e meio sobre a vida de Jesus sua personalidade seu desenvolvimento interior e coisas semelhantes ndash uma vez que natildeo se trata de investigaccedilotildees criacuteticas ndash natildeo passa de fantasia e romance (Bultmann 2005 p 26)
Dessa forma o logos natildeo se torna verdadeiramente carne mas apenas palavra
(kerygma) Na visatildeo de Bultmann o Jesus histoacuterico natildeo faz parte da teologia do Novo
Testamento pois o objeto da teologia do Novo Testamento eacute o Cristo da feacute (pascal) Em
vista disso um estudo acerca do Jesus histoacuterico fica relegado a uma primeira etapa tal
qual uma primeira premissa no interior de um argumento mais elaborado (Bultmann
36
2004 p 24) J Jeremias enfatiza que para Bultmann a pregaccedilatildeo de Jesus eacute apenas
uma premissa entre muitas outras do Novo Testamento (Jeremias 2005 p 204)
Para J Jeremias Bultmann sofreu influecircncia de Martin Kaumlhler atraveacutes de sua obra
Der sogenannte historische Jesus und der geschichtiche biblische Cristus (O chamado
Jesus histoacuterico e o Cristo existencialmente histoacuterico e biacuteblico) Kaumlhler distinguiu por um
lado entre Jesus e Cristo e por outro entre historische (histoacuterico) e geschichtiche
(existencialmente histoacuterico) Por Jesus Kaumlhler compreendia o homem de Nazareacute tal
como foi descrito pelos que investigaram a vida do Jesus histoacuterico por Cristo ele entendia
como aquele que foi proclamado como o Salvador pela igreja Quanto ao significado do
adjetivo historische (histoacuterico) ele compreendia como uma mera designaccedilatildeo dos fatos do
passado e para geschichtiche (existencialmente histoacuterico) como aquele que tem um
significado permanente Portanto para Kaumlhler toda a tentativa de reconstruir a vida do
Jesus histoacuterico se contrapotildee ao Cristo biacuteblico e existencialmente histoacuterico tal como foi
pregado pelos apoacutestolos e para noacutes conforme Kaumlhler o que importa eacute unicamente o
Cristo da Biacuteblia conforme descrito pelos Evangelhos e natildeo as supostas reconstruccedilotildees
cientiacuteficas a respeito da pessoa de Jesus que chegam ateacute a passar a impressatildeo de uma
plena realidade dos fatos (Jeremias 2005 p 202)
A voz de Kaumlhler se extinguiu no vaacutecuo e natildeo surtiu um efeito pleno ateacute o ecoar da
voz de Bultmann que com coragem irredutiacutevel entrou no campo do inimigo e
abertamente lutou contra uma teologia que por um periacuteodo de aproximadamente cento e
cinquenta anos esforccedilou-se para chegar ao Jesus histoacuterico (Jeremias 2005 p 202)
Concordando com Kaumlhler Bultmann declara que todo o esforccedilo para chegar ao Jesus
histoacuterico foi um empreendimento insoluacutevel e infecundo que retirou a inexpugnaacutevel
fortaleza da proclamaccedilatildeo (kerigma) de Cristo (Jeremias 2005 p 203)
Os argumentos de Bultmann para a renuacutencia da teologia do Jesus histoacuterico
fundamentam-se no princiacutepio de que haacute falta de fontes seguras para a fundamentaccedilatildeo
dessa teologia Tambeacutem leva-se em consideraccedilatildeo que natildeo temos nada escrito pelas
matildeos de Jesus As uacutenicas fontes que temos a respeito de Jesus satildeo os Evangelhos e
esses natildeo satildeo biografias de Jesus mas satildeo apenas testemunhos de feacute secundaacuterios e
recobertos de lendas como no caso dos milagres Os Evangelhos segundo esse
pensamento satildeo a demonstraccedilatildeo de feacute dos evangelistas (Jeremias p 203) Concernente
agrave vida e agrave proclamaccedilatildeo de Jesus Bultmann assim descreve
37
[] Pouco sabemos sobre sua vida e personalidade ndash em compensaccedilatildeo sabemos o suficiente sobre sua proclamaccedilatildeo para pintar um quadro coerente Todavia tambeacutem nesse ponto recomenda-se um cuidado extremo em vista do caraacuteter das fontes que dispomos Pois o que as fontes nos oferecem eacute em primeira linha a proclamaccedilatildeo da comunidade que no entanto remonta em sua maior parte a Jesus Naturalmente isso prova que ele realmente tenha pronunciado todas as palavras que essa comunidade lhe pocircs na boca No caso de muitas palavras eacute possiacutevel demonstrar que soacute vieram a surgir na comunidade ao passo que no caso de outras elas foram reformuladas pela comunidade A investigaccedilatildeo criacutetica mostra que o conjunto da tradiccedilatildeo sobre Jesus ndash disponiacutevel nos trecircs evangelhos sinoacuteticos de Mateus Marcos e Lucas ndash se desmembra em uma seacuterie de camadas que em termos gerais podem ser distinguidas umas das outras com bastante seguranccedila mas cuja separaccedilatildeo em alguns detalhes apresenta dificuldades e levanta duacutevidas (Bultmann 2005 p 29-30)
Contudo essa visatildeo de Bultmann natildeo significa a negaccedilatildeo da existecircncia do homem
chamado Jesus de Nazareacute Segundo esse autor eacute possiacutevel conhecer muito dele atraveacutes
de suas pregaccedilotildees poreacutem na anaacutelise da criacutetica histoacuterica em relaccedilatildeo ao homem Jesus
conclui-se que natildeo haacute nada de importante para a feacute cristatilde (Jeremias 2005 p 203)
Quanto agrave questatildeo da existecircncia de Jesus vejamos o que nos diz Bultmann
[hellip] Eacute verdade que a duacutevida se Jesus realmente existiu eacute infundada e natildeo vale a pena gastar nenhuma palavra para refutaacute-la Eacute evidente que ele eacute o gerador do movimento histoacuterico cujo primeiro estaacutegio constataacutevel eacute representado pela comunidade palestinense mais antiga No entanto outra questatildeo eacute ateacute que ponto a comunidade preservou de modo objetivamente fiel a imagem dele e de sua proclamaccedilatildeo Para aqueles que tecircm interesse na personalidade de Jesus esse estado de coisas eacute inquietante e arrasador para nosso propoacutesito ele natildeo eacute de fundamental importacircncia (Bultmann 2005 p 30-31)
J Jeremias analisa entatildeo que para Bultmann Jesus de Nazareacute foi um profeta
judeu que permaneceu sempre dentro dos marcos do judaiacutesmo O Jesus histoacuterico
segundo Bultmann pode ser interessante para a teologia do Novo Testamento e para
compreender a origem do cristianismo mas natildeo tem significaccedilatildeo alguma para a feacute cristatilde
porque o cristianismo comeccedila com a Paacutescoa (Jeremias 2005 p204) Martins Terra expotildee
que o Jesus histoacuterico para Bultmann realmente eacute um profeta e sem duacutevida o maior
deles contudo profeta pertence ao Antigo Testamento Sendo assim Jesus era apenas
um judeu e natildeo um cristatildeo14 ldquoporque cristatildeo eacute aquele que acredita no Senhor
ressuscitado e natildeo aquele que funda sua feacute sobre uma figura histoacutericardquo (Martins Terra
1977 p21)
14
A resposta dada a Bultmann veio de seu disciacutepulo Ernst Kaumlsemann que observa que tanto Jesus quanto
os apoacutestolos eram judeus E se os apoacutestolos eram judeus natildeo eram eles tambeacutem cristatildeos desde o momento que seguiram a Jesus Kaumlsemann ainda pergunta teria havido algum keacuterygma sem a pregaccedilatildeo de Jesus Kaumlsemann chama a atenccedilatildeo para que Jesus natildeo se torne um pretexto e Cristo uma mera cifra mitoloacutegica (Martins Terra 1977 p 44)
38
Escrever uma biografia sobre o Jesus histoacuterico eacute algo descartado na teologia e isso
eacute visto com justiccedila por J Jeremias quando diz ldquo[] eacute muito correto afirmar que jaacute temos
despertado do sonho de acreditar que podemos escrever uma biografia de Jesusrdquo
(Jeremias 2006 p28) No entanto isso natildeo significa passar com indiferenccedila por essa
teologia eacute preciso voltar ao Jesus de Nazareacute e a sua pregaccedilatildeo As fontes nos
impulsionam a cada versiacuteculo dos Evangelhos a buscar pelo homem Jesus que
historicamente apareceu em Nazareacute e que foi crucificado no governo de Pocircncio Pilatos
(Jeremias 2006 p28) Leonard Swidler diz estar ciente tambeacutem das dificuldades para
se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade sobre o Jesus (Ieshua) histoacuterico
Contudo para ele podemos chegar ao fundamental ou seja podemos sempre lutar para
chegar mais perto Para Swidler a consciecircncia dessa limitaccedilatildeo permite que a pessoa
evite os extremos isto eacute tanto a ingecircnua certeza absoluta quanto o ceticismo total sobre
a possibilidade da busca pelo Jesus histoacuterico (Swidler 1993 p 16-18)
A visatildeo de Bultmann a respeito do Jesus histoacuterico natildeo foi seguida pelo seu
sucessor catedraacutetico em Magburg W G Kuumlmmel Para Kuumlmmel interpretar as palavras
de Paulo15 na letra do texto 2 Cor 516 e concluir que o Jesus terreno natildeo teve
importacircncia para o apoacutestolo eacute uma interpretaccedilatildeo ldquoseguramente errocircneardquo (Kummel 2003
p210) pois mesmo que elas natildeo tenham um papel tatildeo importante nos escritos do
apoacutestolo elas natildeo deixam de ser significantes Errocircneo para Kuumlmmel seria o fato de um
cristatildeo procurar ter uma relaccedilatildeo intraterrena com Jesus ou conhececirc-lo apenas
historicamente o que seria insignificante para um cristatildeo Rochus Zuurmond tambeacutem
define o pensamento do apoacutestolo Paulo sobre o versiacuteculo 16 acima mencionado da
seguinte forma
[hellip] Nessa periacutecope natildeo se trata da distinccedilatildeo entre o Jesus preacute-pascal e o poacutes-pascal mas da diferenccedila entre conhecer Jesus da maneira antiga e conhececirc-lo da maneira nova O Jesus poacutes-pascal ainda pode ser ldquoconhecidordquo da maneira antiga o jovem Paulo mas tambeacutem seus adversaacuterios atuais eacute disso um exemplo Em princiacutepio o Jesus preacute-pascal tambeacutem podia ser conhecido de maneira nova se fosse ldquotirado o veacuteurdquo na leitura do Antigo Testamento (314ss cf Jo 856) Mas na praacutetica isso se verificou impossiacutevel por causa da carne (Zuurmond 1998 p 87)
Conhecer Jesus ldquosegundo a carnerdquo na interpretaccedilatildeo de Zuurmond inclui com
certeza todo o conhecimento que podemos ter do Jesus histoacuterico Para ele Paulo natildeo
15
Kaumlsemann tambeacutem contrapotildee essa tese de Bultmann colocando os seguintes argumentos Se o Apoacutestolo Paulo natildeo levou em consideraccedilatildeo a vida terrena de Jesus e a Igreja jaacute estava realizada com o keacuterygma contido nas cartas paulinas por que entatildeo os Evangelhos tornaram-se necessaacuterios jaacute que foram escritos (os Sinoacuteticos) depois que Paulo jaacute tinha escrito todas as cartas Segundo Kaumlsemann a necessidade dos Evangelhos deu-se principalmente porque havia vaacuterios keacuterygmas e a necessidade do discernimento desses deu-se a princiacutepio pelo Espiacuterito todavia quando o entusiasmo cresceu tornou-se necessaacuterio o criteacuterio da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 44-45)
39
estava referindo-se ao Jesus histoacuterico quando fala ldquose jaacute conhecemos o cristo segundo a
carne agora jaacute natildeo o conhecemos maisrdquo (516) Toda a atividade cientiacutefica eacute carne ou
seja pode ser verificado com os recursos da historiografia moderna A pesquisa sobre o
Jesus histoacuterico eacute possiacutevel desde que ela natildeo tenha a pretensatildeo de ser a verdade absoluta
a respeito de Jesus Para Zuurmond o apoacutestolo estaacute enfatizando que o conhecimento
espiritual estaacute aleacutem do conhecimento cientiacutefico contudo natildeo eacute anticientiacutefico mas apenas
natildeo estaacute submisso a qualquer criteacuterio da ciecircncia Zuurmond conclui que ldquoPaulo tem
pouquiacutessima coisa para dizer sobre o Jesus histoacutericordquo uma vez que o apoacutestolo dos
gentios natildeo teria muito interesse pelo ldquotipo de conhecimento sobre Jesus que daiacute
resultariardquo (Zuurmond 1998 p88)
Voltando aos disciacutepulos de Bultmann ainda podemos mencionar Ernst Kaumlsemann
que tambeacutem contestou os ldquodogmasrdquo de seu mestre Para Kaumlsemann a pergunta pelo
Jesus histoacuterico e pelas palavras de Jesus eacute uma praacutetica e exigecircncia do Novo Testamento
visto que satildeo a base e o criteacuterio do keacuterygma Sem essas perguntas o Cristo da feacute se
tornaria em mera ideologia religiosa A importacircncia dessas questotildees torna relevante a
busca pelo Jesus da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 32)
Como se pode compreender em diferentes eacutepocas pensadores divergiram a
respeito da histoacuteria da pessoa do humilde carpinteiro de Nazareacute As especulaccedilotildees a
respeito da vida do Jesus histoacuterico cresceram tanto pelos seus fieacuteis seguidores quanto
pelos seus mais aacutevidos inimigos pelo menos desde o seacuteculo II dC (tal como se pode ver
na calorosa refutaccedilatildeo de Oriacutegenes contra Celso) Em um periacuteodo mais recente teoacutelogos
e arqueoacutelogos tecircm procurado com maior intensidade dados a respeito do homem Jesus e
do estilo de vida que a comunidade do seu tempo vivia com a finalidade de compreender
melhor o contexto em que Jesus estava socialmente inserido
40
4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE
SUA EacutePOCA O objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar o Jesus da histoacuteria dentro do contexto
dos grupos religiosos de sua eacutepoca a fim de observarmos ateacute que ponto Jesus teve
ou natildeo contato com tais grupos abaixo mencionados A preferecircncia de Jesus por um
determinado grupo poderia determinar o que era o Reino de Deus na visatildeo do jovem
pregador galileu Seria Jesus um adepto da seita dos apocaliacutepticos essecircnios dos
moralistas fariseus dos revolucionaacuterios zelotes ou ainda da ldquocorrompidardquo classe
sacerdotal dos saduceus Nos Evangelhos eacute que encontramos a histoacuteria de Jesus
uma vez que eles satildeo as principais fontes que possuiacutemos para montarmos a figura
do maior homem de todos os tempos Mas surgem algumas perguntas Seriam os
Evangelhos fontes histoacutericas confiaacuteveis na apresentaccedilatildeo do homem Jesus Sendo
Jesus pertencente agrave maioria da populaccedilatildeo ou seja da classe pobre e oprimida
pelos romanos teria ele sofrido alguma influecircncia do mundo helenizado da cidade
de Seacuteforis da qual tatildeo perto ele residia ou teria ele totalmente ignorado a cultura e
o mundo helecircnico-romano
Jesus o nazareno na condiccedilatildeo de Filho de Deus repudia todo o tipo de
opressatildeo uma vez que ele veio para ldquoproclamar a libertaccedilatildeo dos presosrdquo e
ldquoevangelizar os pobresrdquo (Lc 4-18) os quais satildeo felizes porque deles eacute o Reino de
Deus (Lc 620-23) Ao proclamar a bem-aventuranccedila dos pobres ele tambeacutem
proclama ldquomaldiccedilotildeesrdquo sobre os ricos que os oprimem e riem deles visto que chegaraacute
a hora em que os que dessa forma riem conheceratildeo o luto e as laacutegrimas (Lc 6 24-
26) Jesus ao ensinar os seus disciacutepulos a como se prevenir e se comportar diante
de uma sociedade poliacutetica e religiosa completamente desprovida do genuiacuteno amor
ao proacuteximo o Mestre da Galileia ensina os seus seguidores a serem
ldquomisericordiososrdquo como o Pai do Ceacuteu eacute misericordioso (cf Lc 6 36)
41
41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE
CONTEMPORAcircNEA DE JESUS
Segundo J Jeremias Jesus16 era proveniente de uma famiacutelia pobre e isso
pode ser constatado na ocasiatildeo do sacrifiacutecio de purificaccedilatildeo ldquoMaria serviu-se do
privileacutegio dos pobres oferecer duas rolasrdquo (Lc 224 cf Lv 128) (Jeremias 1983
p165) No tocante ao seu modo de vida eram tantas as privaccedilotildees que natildeo tinha
onde repousar a cabeccedila (Mt 820 Lc 958) J Jeremias observa que ele natildeo possuiacutea
dinheiro - a histoacuteria do estaacuteter e do ldquotributo a Cesarrdquo o demonstram (Mt 17 24-27 Cf
Mc 12 13-17 Mt 22 15-22 Lc 20 20-26) - tambeacutem aceitou esmolas (Lc 8 1-3)
Jesus provavelmente foi considerado um escriba (da classe mais humilde
desse grupo) conforme subentende J Jeremias (1983 p 59-165) Bultmann
tambeacutem concorda que Jesus era chamado pela tradiccedilatildeo de Rabi (Mc 95 1051
11121 1445) Para ele o tiacutetulo rabi foi substituiacutedo pelos evangelistas de origem
grega quase que completamente pela forma de tratamento grega Senhor
expressatildeo esta que designa Jesus como pertencente agrave classe dos escribas
(Bultmann 2005 p71) Para esse autor natildeo podemos afirmar se nos dias de Jesus
jaacute era necessaacuteria certa formaccedilatildeo cultural para a funccedilatildeo de escriba17 como foi uma
exigecircncia cem anos mais tarde Contudo natildeo podemos ignorar o fato de Jesus ter
sido considerado um Rabi (Bultmann 2005 p71-72)
Vale ressaltar que a relaccedilatildeo de Jesus com os escribas eacute quase sempre
relatada de forma polecircmica nos Evangelhos Quando estava ensinando sobre o fim
de Jerusaleacutem e do mundo Jesus advertiu seus disciacutepulos a respeito dos escribas
dizendo que eles sempre procuravam a distinccedilatildeo social eram arrogantes e
16
O nome Jesus origina-se do hebraico ldquoYehoshuardquo (o Yoshua biacuteblico) que significa YHWH (que provavelmente era pronunciado Yahweh) O Nome Jesus eacute uma forma latina do grego Iesous que por sua vez eacute uma forma grega do termo hebraico O nome Yehoshua foi abreviado no linguajar coloquial para Yeshua ou ateacute mesmo para Yeshu A raiz etimoloacutegica de Ieshua eacute ldquoYerdquo eacute a forma hebraica abreviada do proacuteprio nome de Deus YHWH enquanto que ldquoshuardquo eacute a palavra hebraica que significa Salvaccedilatildeo (cf Swidler 1993 p7-8)
17 Vermes define os escribas da seguinte forma ldquoo termo eacutescriba (sofer em hebraico safra em
aramaico) eacute usado para designar um estudioso um especialista na Biacuteblia particularmente em direito biacuteblico e tradicional A vida religiosa e secular bem organizada dependia desses homens Eram geralmente respeitados e sem duacutevida amiuacutede tornavam-se presunccedilosos vestiam-se apropriadamente usando uma tuacutenica longa (stole ou talit) e estavam habituados a ser respeitosamente saudados por todos indiscriminadamente Em reconhecimento agrave sua dignidade recebiam os lugares de escolha em locais de adoraccedilatildeo e em banquetes e os evangelistas indicam que eles esperavam receber tal tratamento preferencialrdquo (Vermes 2006 p 89)
42
pretensiosos na oraccedilatildeo Em Marcos os escribas dos fariseus criticam Jesus porque
ele come com os cobradores de impostos e com os pecadores (Mc 216) tambeacutem
os disciacutepulos de Jesus reconhecem que o seu ensinamento natildeo eacute como o dos
escribas sem autoridade (Mc 1 22-28 cf Mt 7 29) e por fim os escribas
questionaram a autoridade de Jesus para perdoar os pecados do paraliacutetico de
Cafarnaum (Mc 2 6 cf Mt 93) Eacute bem verdade que em Mateus 819 1352 2334
os escribas satildeo vistos de uma forma positiva e isso eacute mais evidente ainda em
Marcos 12 28-34 onde Jesus e um escriba concordaram a respeito do maior dos
mandamentos o que faz Jesus concluir que tal escriba natildeo estava longe do Reino
de Deus No entanto a impressatildeo que se obteacutem a partir das Escrituras eacute a que
Jesus possuiacutea um conceito formado a respeito dos escribas conforme o descrito
pelo evangelista Marcos nas seguintes palavras (Saldarini 2005 p 164-172)
[] E dizia no seu ensinamento ldquoGuardai-vos dos escribas que gostam de circular de toga de ser saudados nas praccedilas puacuteblicas e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes mas devoram as casas das viuacutevas e simulam fazer longas preces Esses receberatildeo condenaccedilatildeo mais severardquo (Mc 12 38-40)
Os escribas parecem natildeo ser um grupo muito coeso no oriente proacuteximo dos
dias de Jesus Eles eram provenientes de vaacuterias classes do povo ou entatildeo dos
sacerdotes ou de famiacutelias proeminentes Geralmente eles eram dependentes das
classes dominantes que dirigiam a naccedilatildeo Segundo Saldarini (2005 p 282-283) a
maioria dos escribas havia saiacutedo do campesinato para ser treinado pelo governo ou
por famiacutelias ricas para resguardar os registros coletar impostos servir como
funcionaacuterios e juiacutezes e trabalhar com o serviccedilo de correspondecircncias
Ainda com relaccedilatildeo a esse grupo de indiviacuteduos observa-se que os escribas
considerados socialmente inferiores eram aqueles que faziam parte de um pequeno
povoado que tinham entre outras funccedilotildees a de ensinar jovens a ler e escrever mas
natildeo eram considerados mestres visto que natildeo tinha uma educaccedilatildeo elevada para os
padrotildees da eacutepoca Saldarini observa no entanto que a maioria dos escribas
incluindo os apresentados nos evangelhos era considerada funcionaacuterios de niacutevel
meacutedio que eram dependentes da classe sacerdotal das famiacutelias ricas em
Jerusaleacutem e de Herodes Antipas na Galileia
43
Em todos os casos poreacutem os escribas precisam ser contextualizados entre outros grupos sociais e o poder de influecircncia deles integrado no quadro global da sociedade judaica Eles natildeo devem ser tratados como um grupo autocircnomo com seu proacuteprio poder e agenda contiacutenua Os escribas eram diferentes em suas origens e em suas dependecircncias e eram indiviacuteduos que desempenhavam um papel social em diferentes contextos e natildeo uma forccedila poliacutetica e religiosa unificada (Saldarini 2005 p 284-285)
Com relaccedilatildeo ao grupo dos rabinos segundo J Jeremias observa-se de um
modo geral que ele se situa entre as camadas pobres da populaccedilatildeo (Jeremias
1983 p165-166) Mais ainda as informaccedilotildees tradicionais sobre os escribas nos
dias de Jesus concordam que os escribas ricos natildeo eram numerosos Portanto se
realmente Jesus era considerado um escriba certamente ele fazia parte da classe
pobre dos escribas Crossan problematiza mais a questatildeo quando coloca que a
maioria da populaccedilatildeo Judaica da eacutepoca de Jesus era constituiacuteda de analfabetos18
supotildee-se que Jesus tambeacutem era analfabeto que ele conhecia como a ampla maioria de seus contemporacircneos de uma cultura oral as narrativas fundacionais estoacuterias baacutesicas e expectativas gerais de sua tradiccedilatildeo mas natildeo os textos exatos citaccedilotildees precisas ou argumentaccedilotildees intrincadas de suas elites de escribas (CROSSAN 1995 p41)
Em outro momento Crossan observa que o niacutevel de alfabetizaccedilatildeo na
Palestina estava abaixo de 3 segundo fontes rabiacutenicas o que natildeo era tatildeo baixo
para os padrotildees sociais das sociedades tradicionais do passado Crossan reitera
que Jesus era um camponecircs da Galileia e portanto natildeo haacute duacutevidas que Jesus era
analfabeto ldquopara mim Jesus era analfabeto ateacute que o contraacuterio seja comprovado E
natildeo eacute comprovado mas apenas presumido por Lucas quando ele faz Jesus ler o
profeta Isaiacuteas na sinagoga de Nazareacute em 4 16-20rdquo (Crossan 2004 p 274-275)
18
Diferentemente de Crossan David Flusser defende que Jesus ldquoestava longe de ser um iletradordquo Para ele com algumas justificativas eacute possiacutevel que os disciacutepulos de Jesus fossem homens iletrados e sem posiccedilatildeo social (cf At 413) e isso levou os historiadores a pensar que o proacuteprio Jesus nunca havia estudado Flusser vai mais longe ainda quando observa que Jesus era versado tanto nas Escrituras Sagradas como na tradiccedilatildeo oral ldquoAdemais sua educaccedilatildeo era incomparavelmente superior agrave de Satildeo Paulordquo Flusser vecirc na narrativa de Lucas (2 41-51) a histoacuteria de ldquoum erudito precoce pode-se dizer quase um jovem talmudistardquo A fonte de Flusser para tal argumento eacute Flaacutevio Josefo que se referindo a Jesus disse ldquonesta eacutepoca viveu Jesus um homem saacutebio ndash se eacute que na verdade deveriacuteamos chamaacute-lo de homemrdquo Mesmo que tenha havido algumas alteraccedilotildees por um interpolador cristatildeo eacute provaacutevel que a redaccedilatildeo original natildeo se perdeu totalmente jaacute que o texto de Josefo pode ser confirmado ldquopela suposta redaccedilatildeo original da passagemrdquo (Flusser 2002 p 11-12)
44
Carlos Mesters tambeacutem observa que Jesus mesmo antes de nascer jaacute era
viacutetima do sistema poliacutetico e econocircmico predominantes na eacutepoca Com efeito uma
vez que ele natildeo nasceu de uma famiacutelia sacerdotal como Joatildeo Batista (Lc 15) nem
teve o privileacutegio de estudar como o apoacutestolo Paulo (At 22 3) Jesus teve desde
pequeno que trabalhar como agricultor e ainda aprender a profissatildeo de seu pai (Mt
13 55) e por isso era conhecido como carpinteiro (τέκτων) de Nazareacute (Mc 6 3)
Assim como Crossan Mesters analisa que a vida de Jesus desde a infacircncia ateacute a
vida adulta natildeo foi nada faacutecil Sobre a educaccedilatildeo formal do nazareno Mesters nos
diz que ldquoa escola do Jesus era antes de tudo a vida em casa na famiacutelia na
comunidade Foi laacute que aprendeu a conviver a rezar e a trabalharrdquo (Mesters 2011
p 17-21)
O caos econocircmico e cultural entre a populaccedilatildeo contemporacircnea de Jesus natildeo
eacute fato apenas na Galileia19 J Jeremias descreve que a cidade de Jerusaleacutem nos
tempos de Jesus era um centro de mendicacircncia que geralmente girava em torno
do templo Para ele ldquonatildeo eacute de causar espanto se jaacute naquela eacutepoca houvesse
pessoas que simulavam cegueiras surdez e outras doenccedilas a fim de ganharem
esmolasrdquo (Jeremias 1983 p166) Se Jerusaleacutem que era o centro dos
acontecimentos estava numa situaccedilatildeo caoacutetica natildeo muito distante ficava Nazareacute
que conforme Crossan era um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que
vivia em casebres ldquoum povoado simples composto de camponeses entre duzentos a
quatrocentos habitantesrdquo (Crossan Reed 2007 p 7518) Crossan observa que
Nazareacute nunca foi mencionada pelos rabinos na Mishinaacute nem no Talmude nem por
Flaacutevio Josefo quando esse cita o nome de 45 lugares durante a primeira revolta
judaica em 66-67 dC Nem mesmo o Antigo Testamento a conheceu A relaccedilatildeo das
tribos de Zebulon enumera quinze localidades na Baixa Galileia nas proximidades
de Nazareacute mas natildeo a inclui (Js19 10-15) Crossan eacute taxativo ao afirmar que Nazareacute
ldquoera um lugar absolutamente insignificanterdquo (Crossan Reed 2007 p 64)
19
Apesar da Galileia onde Jesus viveu ter sido um lugar de extrema pobreza geograficamente era ldquouma regiatildeo beliacutessima a planiacutecie o lago as colinas a montanha o verde as suas matas fazem da Galileia um ambiente tranquilo e repousanterdquo A pobreza natildeo estava ligada ao aspecto geograacutefico mas sim agrave dominaccedilatildeo romana atraveacutes dos altos e impiedosos impostos que segundo Marconcini natildeo era menos do que 40 do miacutesero rendimento de cada trabalhador que tambeacutem eram destinadas para o aumento do bem-estar dos ricos conforme vemos nos evangelhos de Mateus 18 23-30 e Lucas 16 1-7 -20 (Cf Marconcini 2009 p 38)
45
Tambeacutem observa-se que Nazareacute era um povoado proacuteximo de Seacuteforis que
permaneceu no anonimato ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo
quando se tornou alvo de peregrinaccedilotildees dos cristatildeos (Crossan Reed 2007 p79)
Eles dependiam de espaccedilo fiacutesico para desempenhar atividades agriacutecolas guardar
ferramentas de uso comunitaacuterio cultivo de jardins e pomares tambeacutem precisavam de
espaccedilo para a criaccedilatildeo de animais domeacutesticos e isso explica o porquecirc de uma baixa
densidade populacional Crossan afirma que a maioria dos galileus ganhava a vida
com os produtos da terra com ferramentas precaacuterias e condiccedilotildees geograacuteficas
desfavoraacuteveis O seu estilo de vida em particular dos nazarenos era simples e o
que eles ganhavam era apenas o suficiente para pagar as diacutevidas e impostos
Quanto agraves tradiccedilotildees eles eram zelosos celebravam a paacutescoa descansavam no
Saacutebado e valorizavam as tradiccedilotildees de Moiseacutes e dos profetas
Gerhard Lenski citado por Crossan faz uma interessante descriccedilatildeo de como
eram as divisotildees das classes sociais pelo impeacuterio romano O simples fato de uma
famiacutelia ou povoado possuir arados de ferro poder usufruir de transportes utilizando-
se da roda e da vela gerava um abismo entre as classes designadas altas e outras
designadas baixas Segundo esse autor as classes eram divididas da seguinte
maneira 1 da populaccedilatildeo era constituiacuteda pelos governantes que eram possuidores
de pelo menos a metade das terras os sacerdotes podiam possuir ateacute 15 da
terra logo apoacutes vinham os arrendataacuterios que iam de generais a burocratas
especializados mercadores que provavelmente ascendiam das classes mais
baixas mas que chegavam a ter consideraacutevel riqueza e algum poder poliacutetico e por
fim os camponeses que eram a maioria da populaccedilatildeo de cuja colheita cerca de
dois terccedilos do total as classes altas eram sustentadas
Os camponeses cujas safras dependiam das colheitas nem sempre eram
bem sucedidos pois se houvesse muita chuva ou seca ou ainda doenccedilas e morte
eram expulsos de suas proacuteprias terras Entatildeo eram forccedilados ao arrendamento ou
ateacute mesmo podiam ser submetidos agraves piores humilhaccedilotildees Existia ainda a classe
dos artesatildeos considerada acima dos camponeses porque em geral eram
recrutados entre seus membros desalojados Abaixo dos camponeses existiam
ainda as classes dos degradados e dispensaacuteveis os quais eram rejeitados e iam de
46
mendigos a foras da lei ladrotildees trabalhadores diaristas e escravos (Crossan 1995
p 41)
De acordo com essa divisatildeo de classes deduz-se que se Jesus era
carpinteiro (τέκτων) entatildeo ele pertencia agrave classe dos artesatildeos que por sua vez
estava perigosamente situada entre os camponeses e os degradados ou
dispensaacuteveis Segundo Crossan a pobreza dos conterracircneos de Jesus natildeo se
limitava apenas a Galileia jaacute que de 95 a 97 da populaccedilatildeo do estado judaico era
constituiacuteda por analfabetos Se essa estatiacutestica for verdadeira possivelmente Jesus
tambeacutem era um analfabeto Quanto ao fato dele ensinar eacute provaacutevel que o seu
aprendizado e ensino tenha sido a partir da educaccedilatildeo da tradiccedilatildeo em forma oral
Conforme Crossan os textos de Lucas 2 41-52 e Lucas 4 1-30 devem ser vistos
como ldquopropaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em
termos de instruccedilatildeo e exegese de escribardquo (Crossan 1995 p 41-42)
42 JESUS O HUMILDE NAZARENO
Jesus viveu em Nazareacute a maior parte de sua vida Segundo Pagola uma
pequena aldeia de ldquoapenas duzentos a quatrocentos habitantesrdquo onde alguns
habitantes viviam ldquoem cavernas escavadas nas encostas a maioria em casas baixas
e primitivas de paredes escuras de adobe ou pedra com telhados confeccionados
com ramos secos e argila e chatildeo de terra batidardquo O quesito conforto e comodidade
natildeo era privileacutegio dos nazarenos uma vez que em geral as casas soacute tinham um
cocircmodo no qual se alojava a famiacutelia toda inclusive os animais (Pagola 2010 p62)
Esse pequeno vilarejo ficava a 4 quilocircmetros ao norte de Seacuteforis 20 a cidade
residencial de Herodes Antipas (Gnilka 2000 p71) Seacuteforis diferentemente de
Nazareacute era uma cidade que crescia cheia de curiosidades21 Jerome Murphy-
20
Koester natildeo especifica a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis mas observa que a distacircncia entre essas duas localidades era de poucos quilocircmetros Seacuteforis foi ampliada por Antipas que como seu Pai (Herodes o grande) era amante do esplendor e da grandeza que muitas vezes era expresso por grandes construccedilotildees Aleacutem de Seacuteforis (a primeira capital) Antipas (Tetrarca da Galileia e da Pereia) ainda construiu uma segunda capital a qual deu o nome de Tibeacuterias (Tiberiacuteades) em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (Cf Koester 205 Vl 1 p 395) Theissen especifica como sendo de 6 km a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis (cf Theissen 2004 p 186) A partir desses dados conclui-se que Seacuteforis e Nazareacute ficavam muito proacuteximas
21 As hipoacuteteses de Murphy-OConnor em relaccedilatildeo agrave Seacuteforis satildeo bem diferentes da visatildeo que Crossan
tinha desta cidade como vimos anteriormente Para Crossan Seacuteforis permaneceu no anonimato
47
OConnor observa que seria um equiacutevoco supor que Jesus natildeo passaria todo o
tempo que pudesse em Seacuteforis junto com os amigos Nesse sentido pode-se
questionar Teria Jesus tido em Seacuteforis contato com a liacutengua grega por morar bem
proacuteximo da elegante cidade Seacuteforis era a cidade das atraccedilotildees tanto para os
adultos como para as crianccedilas fato esse que pode ser constatado com Herodes
Antipas o qual teria aprendido a oferecer espetaacuteculos com seu pai Herodes o
grande e nos poucos anos que passou em Roma teria ficado impressionado com os
espetaacuteculos dados por Augusto (Murphy-OConnor 2008 p38-39)
O teatro de Antipas era a grande atraccedilatildeo da cidade Segundo Murphy-
OConnor-OConnor o grande teatro de 45 mil lugares22 sentados em pedra visto
ateacute hoje foi precedido pelo de Antipas em madeira Mesmo que os judeus tenham
sido advertidos a respeito da origem pagatilde do teatro eacute razoaacutevel que Jesus tenha
visto em torno das imediaccedilotildees do teatro atores subindo e descendo pelas ruas e
praticando suas deixas23 Para Murphy-OConnor foi desse contexto que Jesus
conheceu a palavra grega hypokritecircs (ὑποκριτής) que significa ldquoum orador puacuteblicordquo
ldquoum atorrdquo Jesus usou a mesma palavra poreacutem deu a ela um sentido mais profundo
no que se refere agrave vida religiosa A maacutescara refere-se ao ldquofingidorrdquo ou seja agravequeles
que dizem ou parecem ser uma coisa mas na praacutetica satildeo outra conforme vemos
nos Evangelhos (Mt 75 Mc 76 = Lc 642)
O maior acontecimento que Jesus pode ter visto em Seacuteforis ou ouvido falar
muito a respeito quando tinha aproximadamente seis anos de idade foi o
casamento de Herodes Antipas com a filha do rei nabateu Aretas IV de Petra que
governou entre 9 aC e 40 dC Segundo Murphy-OConnor mesmo que o
casamento tenha acontecido em Petra uma caravana de nobres nabateus
provavelmente teria acompanhado Antipas ateacute a cidade de Seacuteforis onde uma
grande multidatildeo de todas as aldeias proacuteximas agrave cidade o aguardava para saudar o
jovem rei (Murphy-OConnor 2008 p40)
ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo quando segundo Crossan a cidade se tornou alvo de peregrinaccedilotildees cristatildes (cf Crossan Reed 2007 p79)
22 Theissen diz que o teatro comportava 5000 pessoas (ver Theissen 2004 p 187)
23 Koester nota que eacute interessante que cidades como Cesareia Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo constem da
tradiccedilatildeo Contudo cidades heleniacutesticas menos importantes como Cesareia de Felipe e Gadara agraves vezes satildeo mencionadas Para Koester ldquonatildeo se pode concluir que Jesus nunca tenha visitado Terras pagatildesrdquo (Cf Koester Vl 2 p 86)
48
Sobre Jesus podemos dizer que aleacutem de ter vivido na pequena Nazareacute de laacute
saiu para ser batizado por Joatildeo Batista Aleacutem disso conforme Mc 63 em Nazareacute e
adjacecircncias ele exerceu a carpintaria (τεκτων) 24 como profissatildeo atividade essa
exercida por seu pai Joseacute Nessa profissatildeo aleacutem de trabalhar com madeira
tambeacutem trabalhava-se com pedras Dessa forma podemos dizer que Jesus era
tambeacutem um entalhador (Gnilka 2000 p 71-72)
Sobre Jesus aleacutem de algumas hipoacuteteses e relatos concernentes ao lugar de
sua residecircncia e outras suposiccedilotildees relacionadas agrave sua vida enquanto um simples
homem inserido em sua comunidade que na qualidade de profeta da Galileia natildeo foi
bem recebido entre seus conterracircneos De acordo com o evangelista Lucas o
ministeacuterio de Jesus comeccedilou aos 30 anos (Lc 323) Para Gnilka a informaccedilatildeo
obtida a partir desse Evangelho possui tambeacutem uma motivaccedilatildeo teoloacutegica visto que
a idade de Jesus deve estar relacionada com a idade do rei Davi conforme vemos
em 2 Sm 54 ldquoTinha Davi trinta anos quando comeccedilou a reinarrdquo Natildeo obstante agrave
determinaccedilatildeo aproximada da idade cerca de 30 anos Lucas revela-nos um
interesse histoacuterico-cronoloacutegico a respeito da vida e ministeacuterio de Jesus (Gnilka
2000 p73)
Jaacute em pleno exerciacutecio ministerial conforme a narrativa de Marcos (Mc 6 1-6)
Jesus fez uma fracassada visita num dia de saacutebado aos seus conterracircneos Quando
Jesus estava a ensinar na sinagoga seus conterracircneos escandalizam-se dele O
motivo para tal desprezo estava relacionado ao fato de ele ser proveniente de uma
famiacutelia pobre conhecida por todos na pequena Nazareacute A origem humilde de Jesus
provocou em seus conterracircneos um sentimento de rejeiccedilatildeo e desprezo chegando
ao ponto de total descreacutedito agrave sua sabedoria e ao seu poder de realizar milagres
Esses fatos provavelmente natildeo devem ter ocorrido no comeccedilo do ministeacuterio de
Jesus como descreve Lucas (Lc 4 14-30) ateacute porque se todos esses
acontecimentos fossem no iniacutecio de seu ministeacuterio a comunidade de Nazareacute natildeo o
teria rejeitado imediatamente mas teriam ficado na expectativa do sucesso de seu
mais conhecido cidadatildeo (Gnilka 2000 p 122)
24
Eacute possiacutevel que como artesatildeo Jesus tenha tomado parte na construccedilatildeo de Seacuteforis O silecircncio da tradiccedilatildeo de Jesus sobre Seacuteforis nos induz a crer que mesmo que Jesus tenha conhecido essa cidade atuou tatildeo pouco nela como deve ter atuado em Tiberiacuteades Jesus deve ter evitado as grandes cidades porque se identificava mais com o campo onde encontrava maior ressonacircncia (Cf Theissen 2004 p 187)
49
Aleacutem das fontes evangeacutelicas sobre Jesus temos alguns relatos de fontes natildeo
cristatildes sobre o homem chamado Jesus de Nazareacute O relato mais conhecido dos
cristatildeos eacute de Flaacutevio Josefo que por volta do ano 93 dC (eacutepoca em que ele morava
em Roma) ele testemunha a respeito de Jesus com as seguintes palavras
conforme a citaccedilatildeo de Rochus Zuurmond25
Naquele tempo a atividade de Jesus um homem saacutebio se eacute que conveacutem chamaacute-lo de homem Pois fez coisas incriacuteveis e foi mestre dos que gostam de aceitar a verdade Teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos Ele foi o Cristo Depois que Pilatos o condenou agrave morte na Cruz porque preeminentes de nosso meio o haviam acusado natildeo cessou o amor que lhe tinham seus sequazes Revivificado ele lhes apareceu no terceiro dia pois os profetas de Deus haviam a seu respeito anunciado este fato e mil outras coisas espantosas Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)
Zuurmond duvida que essa citaccedilatildeo seja de Josefo uma vez que seria
praticamente impossiacutevel Josefo referir-se a Jesus como Cristo e muito mais difiacutecil
ainda seria ele mencionar a ressurreiccedilatildeo ldquocom apelo aos profetasrdquo Contudo
segundo Zuurmond seria muito difiacutecil que Josefo vivendo naquela eacutepoca natildeo
mencionasse Jesus em seus escritos Partindo desse princiacutepio o mais provaacutevel eacute
que o texto tenha sido ldquoprofundamente revisadordquo por um cristatildeo Para Zuurmond
dentre as vaacuterias tentativas para reproduzir o texto original de Josefo a mais provaacutevel
seria a de que o texto teria a seguinte conotaccedilatildeo
foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus um saacutebio que teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos chamaram-no de Cristo Seus sequazes afirmam que ele revivificado lhes apareceu Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome ainda natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)
O proacuteprio Zuurmond acredita que essa reconstruccedilatildeo eacute muito hipoteacutetica
Segundo ele o mais provaacutevel eacute que o texto tenha sido muito mais reduzido e que
tenha sido totalmente substituiacutedo (cf Zuurmond 1998 p 74)
Aleacutem de Josefo temos ainda outras citaccedilotildees hipoteacuteticas de fontes natildeo
cristatildes como a correspondecircncia de Pliacutenio Juacutenior com Trajano por volta de 115 dC
Pliacutenio refere-se agrave reuniatildeo dos cristatildeos e detalha o fato de que cantam um hino ldquoa
Cristo como Deusrdquo Suetocircnio por volta de 120 dC descreve que o Imperador
25
Essa citaccedilatildeo tambeacutem pode ser conferida em Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 3 p 590
50
Claacuteudio expulsou os judeus de Roma porque causavam problemas ldquopor instigaccedilatildeo
de Crestordquo Ainda por volta de 115 dC Taacutecito em annales XV 44 relata sobre o
incecircndio de Roma e sobre um grupo de Cristatildeos seguidores de ldquoum tal Cristordquo
Segundo Zuurmond estas foram as palavras do historiador romano
A fim de abafar este boato (de que ele mesmo foi responsaacutevel pelo incecircndio de Roma Nero inventou alguns bodes expiatoacuterios e submeteu agraves mais sofisticadas formas de supliacutecio aqueles que costumavam ser chamados de cristatildeos um grupo de gente odiado por todos por causa de seus crimes abominaacuteveis Eles devem o seu nome a um tal Cristo que durante o governo de Tibeacuterio (imperador de 14 a 37) por ordem do procurador Pocircncio Pilatos foi executado Depois de ter sido oprimida durante algum tempo essa supersticcedilatildeo perniciosa irrompeu novamente natildeo apenas na Judeacuteia onde este mal se originou mas tambeacutem em Roma para onde confluem e onde costumam ser assiduamente fomentados costumes horrorosos e vergonhosos de toda a espeacutecie (cf Zuurmond 1998 p75-76)
Essas fontes natildeo cristatildes quase que sempre satildeo vistas com alguma
desconfianccedila por alguns especialistas quanto agrave autenticidade de seus conteuacutedos
No entanto qualquer conjectura sobre o assunto natildeo passaraacute de mera
especulaccedilatildeo O mais importante eacute que a histoacuteria de Jesus eacute tatildeo grande que o mais
aacutevido inimigo jamais poderaacute tornaacute-la como algo insignificante para a humanidade
43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES
Como sabemos Jesus nunca nos deixou nada por escrito no entanto tudo o
que sabemos sobre ele estaacute registrado nos evangelhos especificamente nos
evangelhos canocircnicos considerados pela tradiccedilatildeo cristatilde como os mais confiaacuteveis jaacute
que para a tradiccedilatildeo cristatilde conforme vemos em Duquoc os evangelhos apoacutecrifos26
podem sem duacutevida transmitir autecircnticos dados histoacutericos mas natildeo possuem
autoridade para que a partir dos testemunhos descritos neles possa-se elaborar
uma teologia consistente (Duquoc 1992 p 21)
26
Sanders compartilha da ideia da maioria dos estudiosos de que muito pouco dos evangelhos apoacutecrifos pode situar-se aos dias de Jesus Para ele esses evangelhos satildeo ldquolegendaacuterios e mitoloacutegicosrdquo De todo o material apoacutecrifo segundo Sanders somente alguns ditos do evangelho de Tomeacute merecem consideraccedilatildeo No entanto natildeo significa que seja possiacutevel fazer uma divisatildeo clara colocando os Evangelhos canocircnicos de um lado e os apoacutecrifos de outro uma vez que segundo Sanders haacute material lendaacuterio e criaccedilatildeo posterior nos Evangelhos do Novo Testamento Natildeo obstante eacute nos quatro Evangelhos que devemos buscar traccedilos do Jesus histoacuterico conclui Sanders (Sanders 2005 p 88-89)
51
Leif E Vaage eacute mais radical chegando afirmar que todos os escritos cristatildeos
primitivos que tratam da infacircncia de Jesus satildeo apoacutecrifos Segundo ele inclusive os
Evangelhos canocircnicos (Vaage 2007 p 38) Vaage baseia seu argumento no fato de
que nenhum dos Evangelhos relata realmente como foi a gravidez nascimento e
infacircncia de Jesus Por isso natildeo podem ser considerados historicamente
ldquoautecircnticosrdquo No entanto temos um olhar mais positivo sobre os apoacutecrifos em Jacir
de Freitas Faria Para ele noacutes podemos encontrar nos apoacutecrifos ldquovalores que a
piedade popular conservou como dogma de feacuterdquo (Faria 2007 p9) Na visatildeo de Faria
se natildeo fossem os apoacutecrifos do Novo Testamento natildeo saberiacuteamos os nomes de
pessoas como os avoacutes de Jesus dos reis magos dos dois ladrotildees da cruz e outros
nomes relacionados aos cristatildeos do primeiro seacuteculo
Os evangelhos27 por certo satildeo a histoacuteria do Jesus terreno contudo segundo
Bornkamm vale ressaltar que os Evangelhos satildeo histoacuteria mas natildeo no sentido da
histoacuteria moderna ou seja ldquoos evangelistas natildeo eram historiadores de profissatildeo e a
tradiccedilatildeo popular estaacute sempre sujeita a mudanccedilas no processo de transmissatildeordquo
(Bornkamm 1981 p35) Os evangelhos prossegue Bornkamm ldquonatildeo podem ser
classificados entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos como
Tuciacutedides Poliacutebio e Taacutecito nem entre biografias contemporacircneas como As Vidas
dos Ceacutesares de Suetocircnio [cerca de 70-140 dC] rdquo (1981 p35)
Sanders analisando a natureza do material evangeacutelico considera tal tarefa
como uma das mais desafiadoras a ser realizada pelo pesquisador Ainda que a
opiniatildeo dele sobre as fontes seja positiva ele natildeo deixa de enumerar alguns
aspectos considerados problemaacuteticos ou negativos conforme resumimos abaixo
1) Os primeiros cristatildeos natildeo escreveram uma narrativa (histoacuteria) da vida
de Jesus mas escreveram pequenas passagens sobre as suas
palavras e obras Essas pequenas partes foram mais tarde
organizadas pelos autores dos Evangelhos Isso significa que nunca
poderemos estar tatildeo perto do contexto imediato dos ditos e feitos de
Jesus
27
Conforme Marconcini (2009 p 6) o termo evangelho encontra-se doze vezes nos sinoacuteticos das quais quatro vezes em Mateus (423 9 35 24 14 26 13) em Marcos oito vezes (114-15 835 1029 1310 149 1615) a palavra vem sempre da boca de Jesus com exceccedilatildeo de Marcos 11 Jaacute no Evangelho de Lucas prevalece o verbo evangelizar que aparece dez vezes (119 210 318 41843 722 81 96 1616 201)
52
2) Os primeiros cristatildeos revisaram alguns materiais e criaram outros
3) Os Evangelhos foram escritos de forma anocircnima28
4) O Evangelho de Joatildeo eacute muito diferente dos outros trecircs Evangelhos e eacute
principalmente nesse Evangelho que devemos buscar informaccedilotildees
sobre Jesus
5) Aos Evangelhos faltam muitas caracteriacutesticas para ser uma biografia e
temos que distingui-los das biografias modernas (cf Sanders 2005 p
81-82)
A partir dos dados acima observamos que os Evangelhos realmente natildeo
satildeo histoacuteria no sentido moderno do termo No entanto conforme Martins Terra
devemos aplicar a criteriologia moderna de atestar a autenticidade dos escritos ou
seja aquela que estaacute focada mais nos criteacuterios internos29 do que nos criteacuterios
externos mas sempre tendo como base os testemunhos histoacutericos (Martins Terra
1977 p126)
Segundo Latourelle a criacutetica externa analisa os Evangelhos a partir dos
escritos extra-evangeacutelicos (Cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos) e sobretudo a
partir dos testemunhos das Igrejas poacutes-apostoacutelicas (II e III seacuteculos) enquanto que a
criacutetica interna apoia-se no proacuteprio texto (anaacutelise do tecido literaacuterio estudo do
conteuacutedo) Para esse teoacutelogo a criacutetica externa sempre obteve ecircxito em relaccedilatildeo agrave
critica interna mas nos dias atuais essa situaccedilatildeo tem mudado ou seja a criacutetica
interna tem se sobreposto agrave critica externa No entanto Latourelle prefere ficar em
um meio termo e mesmo que a criacutetica externa esteja em decadecircncia Latourelle vecirc
trecircs pontos importantes que podem ser explorados nela ldquosobre os autores dos
28
Sanders referindo-se a autoria dos Evangelhos diz que natildeo sabemos quem realmente satildeo os autores Mateus e Joatildeo foram disciacutepulos de Jesus Marcos foi seguidor de Paulo e possivelmente tambeacutem de Pedro jaacute Lucas foi um dos convertidos (disciacutepulos) de Paulo Mateus Marcos Lucas e Joatildeo realmente existiram mas natildeo podemos afirmar que eles escreveram os Evangelhos Existem provas que os Evangelhos permaneceram sem tiacutetulo de autoria ateacute a metade do seacuteculo II dC e eram sempre citados anonimamente A nomenclatura segundo Mateus segundo Marcos segundo Lucas segundo Joatildeo apareceram de repente por volta do ano 180 em meio ao grande nuacutemero de evangelhos escritos a Igreja teve que decidir quais deles seriam canocircnicos e diante de diferentes opiniotildees os que pensavam que apenas os quatro citados acima eram os que testemunhavam sobre Jesus com autoridade ganharam a questatildeo (cf Sanders 2005 p 87-88)
29 Segundo Martins Terra ldquoa criacutetica interna procura refazer na medida do possiacutevel a histoacuteria das
tradiccedilotildees [traditionsgeschichte] e separar os elementos redacionais [=dos evangelistas] dos elementos provenientes da tradiccedilatildeo anterior ateacute seus estratos mais primitivos Admite-se pois como vaacutelida a ideia fundamental da histoacuteria das formas (formgeschichte e da histoacuteria da redaccedilatildeo [Redaktionsgeschichte])rdquo (Martins Terra 1977 p 126)
53
Evangelhos sobre a autoridade desses na Igreja dos primeiros seacuteculos e sobre a
atitude da Igreja perante as tendecircncias deformadoras dos apoacutecrifos e dos escritos
gnoacutesticosrdquo (Latourelle 1989 p118)
Latourelle observa que ldquoa tradiccedilatildeo tem a tendecircncia de individualizar os
autores e colocaacute-los em relaccedilatildeo iacutentima com uma autoridade apostoacutelicardquo (Latourelle
p118) Um argumento bem aceito pela criacutetica contemporacircnea eacute de que documentos
- o Cacircnon Muratori os proacutelogos antimarcionistas - e os antigos teoacutelogos da Igreja
(Paacutepias Irineu de Liatildeo) - aceitaram Marcos e Lucas como autores dos Evangelhos
que levam os seus nomes porque eles realmente satildeo os verdadeiros autores O
raciociacutenio para defender essa tese conforme expotildee Latourelle eacute que se os teoacutelogos
da patriacutestica (seacuteculo II) tivessem interesse em ldquofalsificarrdquo a autoria dos Evangelhos
para dar maior credibilidade aos mesmos teriam dado a esses dois nomes de
apoacutestolos que conviveram com Jesus e natildeo de testemunhas indiretas como nos
casos de Marcos e Lucas Partindo desse raciociacutenio Latourelle citando Descamps
conclui ldquose as Igrejas do seacuteculo II mantiveram os nomes de Marcos e Lucas como
autores fizeram-no sem duacutevida sob a pressatildeo dos fatosrdquo (Latourelle 1989 p 18)
Segundo Bornkamm ldquoeacute significativo que os evangelhos satildeo anocircnimos e que
os nomes (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo) foram dados para aleacutem do seacuteculo II O
evangelho de Lucas eacute o que mais se aproxima da historiografiardquo (Bornkamm 1981
p35) Aparentemente os Evangelhos datildeo a impressatildeo de continuidade mas os
textos natildeo oferecem um fundo real de uma histoacuteria reconstituiacutevel (Bornkamm 1981
p37) Um fato importante a se observar satildeo as legendas ou seja a forma como
fatos da vida de Jesus ou de personagens do Novo Testamento foram contados
(Bornkamm 1981 p41) O narrador natildeo estaacute preocupado em escrever histoacuterias
mas com a santidade e a piedade exemplar dessas figuras Em alguns casos
chamamos legenda ou embelezamento Bornkamm acredita que temos boas razotildees
para confiar na memoacuteria simples dos disciacutepulos contudo ldquonatildeo devemos subestimar
a influecircncia da feacute poacutes-pascal mesmo com a tradiccedilatildeo passada de matildeo em matildeosrdquo
(Bornkamm 1981 p 43)
A tradiccedilatildeo como vimos acima esforccedila-se para aproximar os Evangelhos das
testemunhas oculares e supervaloriza a qualidade das testemunhas fazendo de
Marcos um porta-voz de Pedro quando Marcos eacute muito mais um relator fiel da
54
pregaccedilatildeo da comunidade primitiva30 A tradiccedilatildeo tambeacutem atribui o primeiro Evangelho
a Mateus e o uacuteltimo a Joatildeo Poreacutem Bornkamm partindo do princiacutepio da teoria das
duas fontes analisa a origem dos Evangelhos especificamente os sinoacuteticos da
seguinte forma dentre as teorias a respeito da formaccedilatildeo dos Evangelhos a mais
aceita e mais coerente eacute a teoria das duas fontes Segundo essa teoria Marcos eacute o
Evangelho mais antigo ele forma a base dos outros dois Evangelhos ldquomaioresrdquo e
estaacute inserido neles Aleacutem de usarem Marcos tanto Mateus como Lucas fizeram uso
independente de uma segunda fonte isso se pode ver pelos muitos ditos e grupos
de ditos natildeo encontrados em Marcos que eles tecircm em comum (Bornkamm 1981
p31) De acordo com J Jeremias Marcos escreveu em grego mais primitivo e
serviu de base para os outros dois Isso comprova que ele eacute o Evangelho mais
antigo O Evangelho de Mateus eacute um Evangelho de Marcos reelaborado
estilisticamente e acrescido de material novo que daacute mais da metade de Marcos
Seguindo a linha de pesquisa da teoria das duas fontes verificamos que mesmo que
Mateus e Marcos discordem de Lucas na ordem dos acontecimentos ou Lucas e
Marcos estejam em discordacircncia em relaccedilatildeo a Mateus dificilmente Mateus e Lucas
juntos oponham-se a Marcos
Haacute poreacutem algumas hipoacuteteses contraacuterias a teoria das duas fontes e elas se
apoiam no testemunho de Papias bispo de Hieraacutepolis na Friacutegia que compocircs por
volta de 130 uma exegese dos oraacuteculos do Senhor conforme relatado por Euseacutebio
de Cesareia em a ldquoHistoacuteria da Igrejardquo Eis o que dizia o Presbiacutetero
Marcos que era o inteacuterprete de Pedro escreveu com exatidatildeo no entanto sem ordem tudo o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor mais tarde poreacutem como jaacute disse ele acompanhou Pedro Este ministrava seus ensinamentos segundo as necessidades mas sem fazer uma siacutentese das palavras do Senhor Desse modo Marcos natildeo cometeu erro escrevendo como se lembrava Seu uacutenico propoacutesito foi nada omitir do que havia ouvido e em nada enganar no que relatava (Latourelle 1989 p121-122)
30
Martins Terra comentando sobre a tradiccedilatildeo sobre os Evangelhos observa que ldquohoje em dia se insiste mais na inspiraccedilatildeo do livro do que no autorrdquo O problema consiste no fato de os Evangelhos terem sido escritos depois de 30 anos de pregaccedilatildeo da Igreja e da tradiccedilatildeo oral Muitas coisas devem ser levadas em consideraccedilatildeo quando se trata da autoria dos Evangelhos uma vez que haacute vaacuterios niacuteveis de mediaccedilotildees que devem ser levados em consideraccedilatildeo (cf Martins Terra 1977 p 125)
55
Segundo Euseacutebio baseado no testemunho de Papias foi Mateus quem
colocou em ordem os oraacuteculos do Senhor em liacutengua hebraica31 Qualquer que seja a
data e o conhecimento de Papias aquilo que ele de fato escreveu estaacute em nosso
alcance apenas em citaccedilotildees de Euseacutebio Os livros de Papias (logiotilden Kyriakotilden
Exegesis Exegese das Logia do Senhor) sobreviveram ateacute a Idade Meacutedia em
algumas bibliotecas da Europa mas natildeo mais existem (Carson et al 1997 p75)
Dalman (1902 p 87) fazendo uma anaacutelise sobre os testemunhos a favor da
teoria que se refere agrave origem aramaica dos Evangelhos eacute categoacuterico em afirmar
que aleacutem do bem conhecido depoimento de Euseacutebio noacutes natildeo temos nenhum traccedilo
a favor da existecircncia de um Evangelho escrito em liacutengua semiacutetica Ateacute mesmo
Jerocircnimo deve ter se enganado em ter dito que o Evangelho original de Mateus
escrito em hebraico ainda existia em seus dias Para Dalman mesmo os vaacuterios
textos dos Evangelhos em aramaico que satildeo conhecidos hoje e ateacute mesmo o texto
que Jerocircnimo usava em aramaico era derivado dos originais gregos
Temos ainda um segundo testemunho da origem dos Evangelhos dado por
Clemente de Alexandria conforme descrito por Euseacutebio na obra Histoacuteria da Igreja
Segundo Euseacutebio Clemente cita uma tradiccedilatildeo dos Anciatildeos a respeito da ordem dos
Evangelhos Conforme essa teoria os Evangelhos que compreendem as
genealogias foram escritos primeiro (Mateus e Lucas) jaacute o Evangelho de Marcos foi
escrito nas seguintes circunstacircncias O apoacutestolo Pedro pregou em Roma e expocircs
publicamente sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo a doutrina evangeacutelica do
cristianismo primitivo Os numerosos ouvintes de Pedro exortaram a Marcos a
transcrever as palavras do apoacutestolo jaacute que aquele tinha acompanhado Pedro por
muito tempo e por certo tinha vivo em sua mente muito do que o apoacutestolo Pedro
havia dito Todavia segundo Euseacutebio quando Pedro soube disso nada fez por meio
de seus conselhos para impedi-lo disso ou para forccedilaacute-lo a isso32
Esse testemunho como o de Papias referem-se aos Anciatildeos isto eacute a
homens da segunda geraccedilatildeo cristatilde A tradiccedilatildeo posterior natildeo faraacute mais do que
retomar esses argumentos
31
Cf Eusebius the Church History translation and commentary by Paul L Maier 2007 p 114 32
Cf Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p 1690 citaccedilatildeo da Hist Ecl IV 14 5-7
56
Papias e Clemente estatildeo de acordo em atribuir a composiccedilatildeo de um dos evangelhos a Marcos disciacutepulo de Pedro (cf 1Pd 5 13) cuja pregaccedilatildeo ele havia escrito Vindo de duas fontes arcaicas diferentes esta informaccedilatildeo pode ser considerada como certa Conforme Clemente Marcos teria escrito enquanto Pedro ainda vivia uma vez que ele estava por outro lado mais ou menos desinteressado desse empreendimento Papias natildeo nos daacute nenhuma informaccedilatildeo expliacutecita sobre este ponto Seu texto permite ao contraacuterio pensar que Marcos havia escrito depois da morte de Pedro e eacute neste sentido que interpretaratildeo Irineu de Liatildeo e o mais antigo Proacutelogo evangeacutelico que nos chegou (fim do seacuteculo II) Papias natildeo nos diz onde Marcos escreveu o seu Evangelho Clemente precisa que foi em Roma onde Pedro exercia o seu ministeacuterio Este pormenor retomado na tradiccedilatildeo posterior parece exato pois o Evangelho de Marcos conteacutem certo nuacutemero de termos gregos que satildeo apenas transcriccedilatildeo do latim (Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p1690)
Apesar de todo o complexo em torno das fontes atualmente a teoria das
duas fontes eacute a mais aceitaacutevel Para Bornkamn haacute tantos paralelos entre Mateus e
Lucas que podemos confiar que tal fonte existiu O que natildeo podemos saber eacute em
que extensatildeo ela jaacute tinha adquirido uma forma literaacuteria fixa Uma coisa eacute certa ela
deve ter sido bem diferente do Evangelho de Marcos Eacute possiacutevel ter certeza que a
fonte Q natildeo era um Evangelho acabado como o Evangelho de Marcos o eacute O modo
como Q eacute usada em Mateus e Lucas mostra como os dois evangelistas a trataram
com mais liberdade do que fizeram com Marcos Isso eacute verdade tanto com
referecircncia ao teor verbal quanto agrave sequecircncia do material Marcos e Q
absolutamente natildeo exaurem as fontes da tradiccedilatildeo sinoacutetica Mesmo Marcos tem
material proacuteprio Lucas eacute quem possui mais cobrindo tanto o ministeacuterio terreno
como as narrativas pascais bem como o material consideraacutevel que ele inseriu na
moldura criada por Marcos
A noccedilatildeo de autoria natildeo resiste aos dados da criacutetica contemporacircnea Os
Evangelhos de Mateus e Joatildeo natildeo possuem nenhuma evidecircncia interna que possa
atribuir a eles a autoria e da mesma forma Lucas e Joatildeo Segundo Latourelle a
criacutetica duvida que eles tenham sido testemunhas ateacute mesmo de segunda matildeo No
entanto a criacutetica reconhece que o autor do primeiro Evangelho era um judeu de
liacutengua grega profundamente conhecedor do judaiacutesmo de sua eacutepoca A criacutetica
tambeacutem reconhece Lucas como o meacutedico e companheiro de Paulo assim como
reconhece Marcos como companheiro de Paulo e sua influecircncia sobre os
evangelhos de Mateus e de Lucas Quanto agrave influecircncia de Pedro sobre o Evangelho
de Marcos a mesma eacute contestada pela criacutetica visto que Marcos parece ser mais um
57
relator e transmissor da pregaccedilatildeo da Igreja primitiva aleacutem de parecer ter sofrido
mais a influecircncia de Paulo
A contribuiccedilatildeo da patriacutestica testemunhada pelos pais da Igreja jamais pode
ser descartada por mais acriacutetica e ingecircnua que pareccedila ser visto que eles viveram
bem proacuteximos dos acontecimentos registrados nos Evangelhos
A importacircncia dos escritos antigos a respeito dos Evangelhos foi a resposta
da igreja aos hereges e aos evangelhos apoacutecrifos O exagerado embelezamento que
os apoacutecrifos criam para ldquocomplementarrdquo os Evangelhos canocircnicos obrigou a Igreja a
criteriosamente separar os Escritos canocircnicos dos apoacutecrifos Para Bornkamm a
formaccedilatildeo do cacircnon do Novo Testamento sempre foi um processo de separar e
nunca de juntar Conforme esse teoacutelogo seria mais viaacutevel perguntar se um livro
deveria estar no cacircnon do Novo Testamento do que perguntar por que determinado
livro natildeo faz parte dele
A Igreja tambeacutem teve que combater o gnosticismo que estava tentando minar
a veracidade dos Escritos Sagrados principalmente com Marciatildeo que com seu
dualismo ldquoopotildee o Deus bom do Novo Testamento ao Deus justo do Antigo
Testamentordquo (Latourelle 1989 p124) A Igreja entatildeo saiu em defesa do
cristianismo autecircntico levantando o estandarte dos quatro Evangelhos como os
uacutenicos reconhecidos como a ldquoautecircntica mensagem de Cristo reconhecida e
ensinada pela tradiccedilatildeo viva da igreja O criteacuterio decisivo eacute o acordo entre os
Evangelhos e a tradiccedilatildeo apostoacutelica que por sua vez se refere ao Cristo vivordquo
(Latourelle 1989 p125)
Eacute vaacutelido observar que os evangelhos sinoacuteticos33 satildeo compostos de ldquotradiccedilotildees
isoladas chamadas de periacutecopesrdquo Essas periacutecopes geralmente tecircm uma
conotaccedilatildeo teoloacutegica e natildeo necessariamente cronoloacutegica ldquoNa verdade muitas
periacutecopes incluem indicaccedilotildees topograacuteficas (no mar da Galileia em Cafarnaum
etc) mas a maioria delas natildeo eacute bem determinada Outro fato a se observar eacute que
nos sinoacuteticos Jesus se dirige a Jerusaleacutem uma uacutenica vez poreacutem em Joatildeo lsquovemos
Jesus se dirigindo a Jerusaleacutem repetidas vezesrsquordquo Segundo Gnilka o importante natildeo
eacute a exatidatildeo do itineraacuterio mas sim a reflexatildeo teoloacutegica (Gnilka 2000 p 24) No
33
O nome sinoacuteticos foi dado aos trecircs primeiros Evangelhos pelo pesquisador alematildeo J J Griesbach em sua obra Synopsis evangeliorum [Sinopse dos Evangelhos] obra que foi publicada em Halle em 1976 (Cf Marconcini 2009 p 10)
58
entanto conforme Benito Marconcini haacute uma concordacircncia nos sinoacuteticos quanto agrave
sucessatildeo dos fatos no ministeacuterio de Jesus Conforme Marconcini ldquoJesus inicia seu
ministeacuterio na Galileia atravessa a Samaria e chega a Jerusaleacutem onde tem o
encontro com a morterdquo (Marconcini 2009 p 10)
O concilio do Vaticano II reproduziu na constituiccedilatildeo sobre a Revelaccedilatildeo o
resultado das pesquisas modernas sobre a Historicidade dos Evangelhos e sobre o
Jesus Histoacuterico conforme resumimos abaixo
a) Os quatro Evangelhos transmitem fielmente o que Jesus realmente fez e
ensinou para a eterna salvaccedilatildeo dos homens
b) Os Apoacutestolos depois transmitiram o que Jesus havia dito e feito ()
c) Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos selecionando
algumas coisas dentre as muitas que tinham sido transmitidas oralmente ou por
escrito sintetizando outras ou adotando-as agraves situaccedilotildees das igrejas (Martins Terra
1977 p 129)
Seria imprudente buscar nos Evangelhos fatos como se busca numa revista
ou jornal de grande circulaccedilatildeo internacional moderna como New York Times por
exemplo Contudo segundo Swidler devemos olhar os quatro Evangelhos como
uma variedade de fontes orais e escritas que apoacutes um periacuteodo de tempo foram
redigidas conforme as necessidades sentidas pelas comunidades e indiviacuteduos da
eacutepoca No entanto fica claro que essa visatildeo criacutetica (moderna) dos Evangelhos natildeo
invalida o caraacuteter histoacuterico desses escritos Eles retratam com muito maior exatidatildeo
sob o ponto de vista histoacuterico-religioso (teoloacutegico) o que Jesus queria dizer com
certas declaraccedilotildees e accedilotildees relatadas pelas primeiras comunidades da Igreja
Primitiva (cf Swidler 1993 p104-105)
Natildeo podemos menosprezar a capacidade da comunidade cristatilde primitiva de
memorizar os fatos relacionados agrave vida de Jesus mas por outro lado natildeo podemos
negligenciar a limitaccedilatildeo humana em memorizar acontecimentos histoacutericos
Raciocinando dessa forma pode-se deduzir que com certeza muitas dessas
recordaccedilotildees natildeo foram transmitidas e nem registradas Eacute evidente que nem todas as
paraacutebolas foram registradas isso estaacute claro em Marcos 433 onde se lecirc ldquoE com
muitas paraacutebolas como esta anunciava-lhes a palavra segundo podiam entenderrdquo
ldquoPodemos partir do pressuposto de que nos evangelhos ficaram conservadas as
59
paacuteginas da atuaccedilatildeo e dos discursos de Jesus que satildeo de decisiva importacircncia para
a nossa feacuterdquo (Gnilka 2000 p25)
44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS
Jesus segundo Gnilka (2000 p35-36) viveu durante o governo de dois
imperadores romanos ldquoo de Otaviano Augusto (27 aC - 14 dC) e o de Tibeacuterio (14-
37)rdquo Nenhum dos dois esteve nessas paragens orientais do Impeacuterio nenhum dos
dois pisou territoacuterio da Siacuteria ou da Palestinardquo A histoacuteria de Jesus estaacute intimamente
ligada agrave famiacutelia Herodes Jesus nasceu sob o governo de Herodes o Grande filho
de Antiacutepater de origem idumeia Por decisatildeo do senado romano e tambeacutem por
iniciativa dos triuacutenviros Antocircnio e Otaviano e mais tarde Augusto pelo fim do ano 40
aC Herodes foi nomeado rei da Judeia
Apoacutes a morte de Herodes o Grande em 4 aC inicia-se uma disputa entre
seus filhos pela sucessatildeo que culminou na divisatildeo do poder entre os descendentes
de Herodes pelo imperador Historicamente dentre os filhos de Herodes o que mais
nos interessa eacute Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) que ficou como tetrarca da
Galileia Dentre os feitos de Antipas podemos citar a reconstruccedilatildeo da cidade de
Seacuteforis e a fundaccedilatildeo da cidade de Tiberiacuteades agrave margem do lago de Genezareacute
cidade que recebeu esse nome em honra ao Imperador Tibeacuterio Foi essa cidade
construiacuteda sobre um cemiteacuterio que Antipas escolheu para residecircncia oficial
tornando-a impura aos olhos dos Judeus crentes por causa das leis leviacuteticas (Gnilka
2000 p 39)
Herodes Antipas ficou conhecido por mandar matar Joatildeo Batista conforme o
relato nos evangelhos (Mc 617-29 Mt 14 3-12) e tambeacutem por Flaacutevio Josefo34 Os
motivos da morte de Joatildeo Batista nos evangelhos satildeo diferentes dos motivos
expostos por Josefo visto que Josefo coloca questotildees poliacuteticas como a principal
causa da execuccedilatildeo de Joatildeo jaacute que Antipas temia uma revolta poliacutetica a partir do
movimento do Batista Para Jesus Antipas tambeacutem tornou-se perigoso ldquoSegundo
Lc 1331 Jesus eacute aconselhado a sair de seu territoacuterio porque o priacutencipe pretendia
mataacute-lordquo (Gnilka 2000 p 40)
34
Cf Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 5 p 594-597
60
Na Judeia a situaccedilatildeo poliacutetica e religiosa era caoacutetica Arquelau (4 aC ndash 6
dC) filho de Herodes o Grande logo depois de ser instituiacutedo etnarca da Judeia e
Idumeia devido a sua extrema tirania tornou-se insuportaacutevel para os judeus a
ponto de um grupo desses ir ateacute Roma para denunciaacute-lo pela forma tiracircnica de
governar bem como a liberdade que tomou para depor e instituir sacerdotes no
templo em Jerusaleacutem Judeia Samaria e Idumeia passam a ser administradas
diretamente por Roma apoacutes Arquelau ser deposto (Gnilka 2000 p 41-42)
Eacute a partir de toda essa confusatildeo que entra em cena a figura de Pocircncio
Pilatos como governador da Judeia (praefectus Judaeae) Nessa eacutepoca tanto o
poder poliacutetico quanto o religioso eram controlados diretamente por Roma ldquoNo
templo tinha que ser oferecido duas vezes por dia um sacrifiacutecio pelo imperador e
pelo povo romano Sobre a administraccedilatildeo das financcedilas do templo o governador
provavelmente tinha uma espeacutecie de supervisatildeo As nomeaccedilotildees dos sumos
sacerdotes tambeacutem eram feitas pelos romanos fosse atraveacutes do governador da
Siacuteria ou do governador da Judeia Isto foi assim nos anos 6-41 depois de Cristordquo
(Gnilka 2000 p 42-43)
O mais importante dos governadores da Judeia que foi contemporacircneo de
Jesus foi Pilatos que segundo os Evangelhos participou decisivamente na morte
de Jesus ldquoFilon de Alexandria caracteriza Pilatos como um homem de natureza
inflexiacutevel obstinado e duro e acusa-o de corrupccedilatildeo violecircncia roubo maus tratos
ofensas continuadas execuccedilotildees sem julgamento constante e insuportaacutevel
crueldaderdquo (Gnilka 2000 p 44) Os dez anos em que Pilatos governou a Judeia
nos quais Caifaacutes tambeacutem sempre foi o Sumo Sacerdote foram marcados pela
crueldade e imprevisibilidade ateacute que no ano 36 ele foi deposto apoacutes ter feito um
violento massacre de samaritanos enquanto esses escalavam o monte Garizim Pelo
fato de estarem armados Pilatos os interpretou mal e resolveu intervir
massacrando-os Mediante esse fato Pilatos foi chamado a Roma para depor diante
do imperador Tibeacuterio mas com a morte deste ele ldquodesaparece do palco da histoacuteria
Notiacutecias surgidas mais tarde dando conta de que ele teria se suicidado ou que teria
sido executado pelo imperador Nero devem ser creditadas a lenda cristatilderdquo (Gnilka
2000 p 44-45)
61
Abaixo segue um resumo do governo poliacutetico e religioso das regiotildees e
cidades com as quais Jesus conviveu (Gnilka 2000 p 47)
- Os herodianos Herodes o Grande (37-4 aC) Antipas (4 aC-39 dC
GalileiaPereia) Filipe (4 aC -34 dC GaulaniacutetideBataneia Arquelau (4 aC -6 C
JudeiaSamariaIdumeia)
- Os Governadores na JudeiaSamariaIdumeia Copocircnio (6-9) Marcos
Antiacutebulo (circa 9-12) Acircnio Rufo (circa 12-15) Valeacuterio Grato (15-26) Pocircncio Pilatos
(26-36)
- Os sumos sacerdotes em Jerusaleacutem Simatildeo ben Boethos (24-5 aC)
Matias ben Theophilos (5-4) Joseacute bem Ellem (exerceu soacute por uma festa) Joazar ben
Boethos (4 aC) Eleazar ben Boethos (4 aC -) Jesus ben sieuml (tempo de cargo
desconhecido) Joazar ben boethos (no cargo pela segunda vez de -6 d C) Anaacutes
ben Sethi (6-15 d C) Ismael bem Phiabi (15-16) Eleazar ben Kamithos (17-18)
Joseacute Caifaacutes (18-36)
Jerusaleacutem era a cidade onde giravam os grandes acontecimentos da
Palestina era considerada a cidade santa natildeo somente por ser administrada
politicamente por Herodes o grande jaacute que muito antes dele a cidade jaacute havia se
transformado no centro espiritual e religioso do Judaiacutesmo A cidade no tempo dos
gregos e romanos tinha de certa forma uma feiccedilatildeo internacional Jesus entrou na
cidade foi aclamado mas logo rejeitado e entregue para ser morto pelo grupo dos
religiosos encarregados de todos os rituais do Templo (Gnilka 2000 p 49)
45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS
Jesus viveu num contexto muito religioso Foi apresentado no templo
circuncidado ao oitavo dia conforme a tradiccedilatildeo da religiatildeo judaica Sempre houve
uma tendecircncia de separar Jesus do contexto judaico tanto por judeus como por
cristatildeos Swidler pontua que os cristatildeos historicamente natildeo somente procuraram
mostrar que tudo o que Jesus fez era bom como procuraram demonstrar que tudo o
que ele fez foi oposto ao modo de agir dos judeus Por outro lado os judeus
aceitaram a interpretaccedilatildeo cristatilde que via Jesus como um antijudeu Atualmente as
coisas estatildeo mudando judeus tecircm visto Jesus como um autecircntico judeu enquanto
que um grande nuacutemero de estudiosos cristatildeos estatildeo convencidos de que soacute se pode
62
compreender adequadamente Jesus contextualizando-o num ambiente e como um
autecircntico Judeu (Swidler 1993 p108)
O Judeu Geza Vermes (com formaccedilatildeo cristatilde) no proacutelogo de seu livro o
ldquoAutecircntico Evangelho de Jesusrdquo relata que desde o fim da deacutecada de 1960 vem se
dedicando a pesquisar sobre Jesus indiferente agraves tradiccedilotildees cristatildes e judaicas a
respeito da pessoa do nazareno Vermes assim se expressa ldquoatuando como
historiador simpatizante e descartando vieses denominacionais tanto a deificaccedilatildeo
de Jesus pelos cristatildeos como a sua caricatura judaica tradicional como apoacutestata
maacutegico e inimigo do povo de Israel eu apenas tentei tirar a limpo e reconstruir uma
imagem de Yeshua filho de Joseacute do pequeno povoado galileu de Nazareacute (Vermes
2006 p7)
Digno de nota eacute que sendo Jesus judeu da Palestina judaica do primeiro
seacuteculo ldquona divisatildeo temporal feita em torno delerdquo (Vermes 2006 p7) obviamente
Jesus conviveu com os diversos grupos existentes na Palestina Conforme os
Evangelhos as relaccedilotildees de Jesus com os liacutederes dos movimentos religiosos nem
sempre foram amistosos Segundo Gnilka diversos eram os movimentos e grupos
poliacuteticos-religiosos nos dias de Jesus Quase todos provieram dos chassidim (os
piedosos) que haviam apoiado a resistecircncia dos macabeus e tambeacutem resistiram agrave
usurpaccedilatildeo dos asmoneus Desse movimento surgiu a maioria dos grupos religiosos
contemporacircneos de Jesus Esses grupos a maioria citados nos evangelhos satildeo
denominados de essecircnios fariseus saduceus e zelotes (Gnilka 2000 p52-53)
Enumerar esses grupos em relaccedilatildeo ao grau de importacircncia que eles exerciam
na sociedade judaica natildeo eacute uma tarefa faacutecil Diversas satildeo as hipoacuteteses levantadas
pelos pesquisadores a respeito de cada um dos grupos acima mencionados
Saldarini observa o fato de os escribas serem vistos como um grupo coeso apenas
no Novo Testamento sendo que em outras fontes eles satildeo vistos como um grupo
composto por pessoas desde a classe de altos funcionaacuterios ateacute a funccedilatildeo de um
humilde copista Outro fator que o autor observa eacute que para Josefo as trecircs
principais escolas de pensamento judaico dos dias de Jesus eram os fariseus os
saduceus e os essecircnios quando no Novo Testamento os principais oponentes de
Jesus satildeo os fariseus escribas e saduceus (Saldarini 2005 p 15)
63
451 OS ESSEcircNIOS
Dentre os grupos religiosos que temos mencionado os essecircnios satildeo os
menos conhecidos se levarmos em consideraccedilatildeo que a biacuteblia natildeo os menciona
contudo eles tecircm despertado muito interesse desde que foram descobertos os
manuscritos nas cavernas de Qumran em 1947 O jovem Mohammed ed-Dib (= ldquoo
lobordquo) conforme a descriccedilatildeo feita por J Jeremias (Jeremias 2006 p 401-429 cf
Jeremias 1979 p 117-148) tornou-se o grande protagonista talvez da maior
descoberta do seacuteculo concernente agrave literatura religiosa ou por que natildeo dizer
universal J Jeremias nos fornece alguns detalhes sobre a importacircncia das
descobertas de Qumran e o judaiacutesmo contemporacircneo de Jesus Depois que
Mohammed descobriu a primeira gruta outras dez foram descobertas sendo ateacute
hoje numeradas de 1 a 11 O papel dos beduiacutenos foi fundamental nas descobertas
visto que sem a busca incessante deles a maioria dos rolos natildeo teriam sido
descobertos Os manuscritos satildeo em um nuacutemero de aproximadamente 600 Mesmo
que a maioria seja apenas de fragmentos alguns do tamanho de uma unha mas
pelo menos uns dez encontram-se quase que totalmente preservados Eles satildeo
datados do periacuteodo que se compreende do seacuteculo III aC ao seacuteculo I da era cristatilde
Atribui-se a produccedilatildeo dos textos e o armazenamento deles em grutas aos essecircnios
conforme nos descreve J Jeremias citando a ldquoHistoacuteria Natural de Pliacutenio
A margem ocidental (do Mar Morto) fora do alcance da influecircncia nociva (de suas aacuteguas) estatildeo estabelecidos os essecircnios Eacute um agrupamento de solitaacuterios uacutenico no mundo sem mulheres ndash pois renunciam ao amor sexual e sem dinheiro eles vivem na sociedade das palmeiras (Embora se abstenham do casamento) o nuacutemero de seus adeptos se manteacutem e se renova cada dia pela afluecircncia daqueles que cansados de lutar contra as vagas de destino vecircm participar de sua vida Assim coisa incriacutevel eles permanecem atraveacutes de milhares de geraccedilotildees uma raccedila eterna ainda que natildeo existam nascimentos entre eles (V 1713)
Para J Jeremias natildeo haacute duacutevida que Pliacutenio se refere aos essecircnios mesmo
que por engano os tenha chamado de raccedila eterna Os essecircnios surgiram por volta
de 167-154 aC apoacutes Antiacuteoco Epifacircnio profanar o Templo de Jerusaleacutem Em 152
aC apoacutes a guerra com os siacuterios Jocircnatas Macabeus cinge a tiara de sumo
sacerdote mesmo natildeo pertencendo agrave descendecircncia dos sadoquitas que eram os
64
uacutenicos habilitados para exercer tal funccedilatildeo Uma revoluccedilatildeo acontece no coleacutegio
sacerdotal resultando na formaccedilatildeo de um grupo denominado de ldquoKhassyyayardquo os
piedosos que em grego satildeo denominados de ldquoessenoirdquo ou ldquoessaicircoirdquo conhecidos
hoje por essecircnios
Os essecircnios eram apocaliacutepticos esperavam o iminente fim deste mundo que
eles acreditavam estar bem proacuteximo Guardavam o saacutebado a ponto de natildeo ajudar
um animal no parto e nem socorrecirc-lo caso caiacutesse num buraco no dia de saacutebado
(Gnilka 2000 p 55-56) tambeacutem tinham como chefe um homem chamado com toda
reverecircncia nos rolos como o ldquoMestre da Justiccedilardquo ldquoo grande teoacutelogo e exegeta da
seitardquo (cf Jeremias 2006 p 408) Para Sean Freyne o chamado ldquoPapiro da Guerrardquo
(1QM) intitulado como ldquoA Guerra dos filhos da luzrdquo mostra como essa comunidade
apregoava um certo tipo de guerra coacutesmica parecida com a religiatildeo zoroaacutestrica da
Peacutersia onde a ecircnfase do conflito estaacute centrada na ideia de uma guerra do bem e o
mal (Freyne 2008 p26) J Jeremias define a teologia tambeacutem como uma doutrina
baseada em dois espiacuteritos ou seja no espiacuterito de Deus e no espiacuterito de Belial ou
seja no diabo e isso resulta na constante luta entre a Luz e as Trevas que tambeacutem
se desenrolam no interior do ser humano (Jeremias 2006 p 412) De acordo com J
Jeremias o dualismo essecircnio eacute monoteiacutesta conforme podemos ver em IQS 31517-
1925 abaixo reproduzido
Do Deus dos conhecimentos Vem tudo o que eacute tudo o que acontece e antes mesmo que as coisas existissem ele fixara todo o seu plano
Eacute ele quem criou o homem para dominar o mundo e pocircs diante de dois espiacuteritos para que ele ande neles ateacute ao momento fixado por sua divina visita
Satildeo os (dois) espiacuteritos de verdade e de iniquidade Da fonte da luz sai a verdade E da fonte das trevas sai a iniquidade Eacute ele (Deus) quem criou os espiacuteritos da luz e das trevas
65
Observamos acima algumas descriccedilotildees a respeito do grupo dos essecircnios
contudo segundo Freyne (Freyne 2008 p26) natildeo se pode resumir o pensamento
desse grupo com um periacuteodo de aproximadamente 200 anos de histoacuteria apenas em
um ponto de vista Isso pode ser visto por exemplo em 4Q 521 onde o texto
demonstra o anseio dos oprimidos por um messias libertador que venha ldquocurar os
feridos distribuir riquezas entre os necessitados conduzir de volta os exilados e
enriquecer os famintosrdquo ou ainda textos como 4Q 426 onde o ldquoGrande Deusrdquo trava
uma decisiva batalha contra as naccedilotildees e garante a paz definitiva ao seu povo O
que Freyne procura dizer eacute que o pensamento dos essecircnios eacute amplo demais para
ser resumido em poucas palavras contudo como natildeo eacute nosso interesse pesquisar a
fundo essa seita contentamo-nos a princiacutepio com algumas informaccedilotildees sobre
eles35
Ainda sobre os essecircnios sabemos por David Flusser que eles eram ferrenhos
inimigos dos fariseus uma vez que condenavam os feitos farisaicos energicamente
No Rolo de Accedilatildeo de Graccedilas (IQH) 4 6-8 estaacute escrito sobre os fariseus da seguinte
maneira ldquoE conduziram o povo por caminhos desviados ao lhes proferir discursos
macios Falsos mestres levam para maus caminhos e caminham cegamente para a
queda pois suas obras satildeo feitas no logrordquo (cf Flusser 2002 p 46)
Aleacutem do que jaacute foi dito sobre os essecircnios surge uma pergunta Ateacute que ponto
os essecircnios tiveram contato com Jesus ou seria Jesus membro da seita dos
essecircnios Segundo Charlesworth eacute possiacutevel que Jesus tenha encontrado alguns
essecircnios em suas idas e vindas no periacuteodo em que exerceu o seu ministeacuterio ou ateacute
antes disso Contudo natildeo podemos afirmar isso jaacute que os essecircnios natildeo satildeo
mencionados no Novo Testamento e na verdade natildeo temos certeza se eles
exatamente eram conhecidos (Charlesworth 1992 p76) Para Charlesworth o que
fica evidente eacute que os essecircnios e Jesus foram contemporacircneos o que nos leva a
deduzir que eacute muito provaacutevel que Jesus ao menos tenha ouvido falar deles e ateacute
conhecesse a doutrina rituais religiosos e haacutebitos sociais desse grupo
(Charlesworth 1992 p79)
Charlesworth enumera algumas semelhanccedilas e diferenccedilas entre Jesus e os
essecircnios 35
Para mais informaccedilotildees sobre os essecircnios ver (Jeremias 2006 p 401-429 e Charlesworth 1992 p 70-89)
66
a) Jesus partilha com os essecircnios de uma teologia monoteiacutesta
b) Como os essecircnios a teologia de Jesus era categoricamente escatoloacutegica
c) Jesus partilhava com os essecircnios uma total entrega a Deus e a Toraacute (Ele
pode ter se referido aos essecircnios quando elogiou os eunucos por causa do reino de
Deus cf Mt 19 10-12)
d) Jesus conforme o Evangelho de Marcos proibiu o divoacutercio (Mateus tornou-
a casuiacutestica Mt 5 31-32 199) assim como os essecircnios eram totalmente contraacuterios
ao divoacutercio ldquoo rei deve permanecer casado com apenas uma mulherrdquo (cf II Q
Temple 57 17-18)
f) Dos essecircnios Jesus rejeita a riacutegida observacircncia do Saacutebado
g) Jesus ao contraacuterio dos essecircnios aproximou-se de todas as classes
sociais inclusive de prostitutas e cobradores de impostos Aleacutem disso a visatildeo de
Jesus em relaccedilatildeo aos rituais de purificaccedilatildeo judaicos era muito diversa das dos
judeus
h) A atitude liberal de Jesus sobre a purificaccedilatildeo se contrastava com a
paranoia dos essecircnios principalmente em relaccedilatildeo ao afastamento das pessoas que
tinham lepra Em II Q Temple 48 14-15 eacute orientado a que existam cidades proacuteprias
para o isolamento dos leprosos enquanto que Jesus repousou em Betacircnia na casa
de Simatildeo o leproso (Mc 143)
i) Jesus enfatizou o amar uns aos outros (na paraacutebola do bom samaritano)
enquanto que os essecircnios na renovaccedilatildeo anual entoavam maldiccedilotildees sobre os filhos
das trevas especialmente sobre aqueles que natildeo eram essecircnios (1Qs) Jesus pode
ter se dirigido a eles quando se referiu ao dito ldquoamaraacutes o teu proacuteximo e odiaraacutes ao
teu inimigo (Mt 5 43)
Em resumo Charlesworth conclui que o cristianismo natildeo foi fundado com as
bases do essenismo conforme havia dito Renan em sua obra ldquoVida de Jesusrdquo
Jesus foi o fundador do cristianismo que foi fundado em meio agraves vaacuterias correntes
judaicas da eacutepoca sem que se possa mencionar uma uacutenica fonte como a trajetoacuteria
Jesus natildeo era um essecircnio ldquomas pode ter partilhado com os essecircnios mais do que a
mesma naccedilatildeo tempo e lugarrdquo (Charlesworth 1992 p 84-88)
452 OS FARISEUS
67
Os fariseus (pharushim ndash separados) - ldquoum grupo de estudiosos leigos que
apareceram na histoacuteria cerca de um seacuteculo e meio antes do nascimento de Jesus
() e se tornaram autoridades na vida dos judeus durante o reinado da rainha
Alexandra em (76-67 aC)rdquo (Swidler 1993 p 74) - nasceram do grupo dos chassidim
e eram em nuacutemero de seis mil pessoas em Jerusaleacutem nos dias de Jesus (Flusser
2002 p 44) Eles tambeacutem natildeo concordavam com a usurpaccedilatildeo por parte dos
asmoneus Segundo Gnilka a maioria dos escribas pertencia ao grupo dos fariseus
Em relaccedilatildeo aos saduceus os fariseus eram a maioria mas a influecircncia poliacutetica
destes era menor Jaacute o clima entre fariseus e essecircnios era hostil Os essecircnios
consideravam os fariseus com ldquogente que amolece e dissolve a lei e de quem se
pode esperar o logro mentira seduccedilatildeo e errordquo (Gnilka 2000 p57-60) Segundo
Flusser os fariseus eram denominados pelos essecircnios como ldquocaiadosrdquo e Jesus
tambeacutem se referiu a eles no Evangelho de Mateus 23 27-28 dizendo ldquoAi de voacutes
escribas e fariseus hipoacutecritas Sois semelhantes a sepulcros caiados que por fora
parecem bonitos mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidaderdquo
Embora o ataque dos essecircnios fosse em alguns pontos parecidos com a criacutetica que
Jesus fez contra os fariseus a distacircncia entre eles eacute muito grande Os essecircnios
rejeitavam explicitamente a doutrina dos fariseus ao passo que Jesus de uma
forma mais positiva via-os como os ldquoherdeiros contemporacircneos de Moiseacutesrdquo (cf
Flusser 2002 p46-48)
Os fariseus eram muito queridos pela maioria da populaccedilatildeo judaica devido agrave
devoccedilatildeo deles aos rituais religiosos Segundo Sanders no periacuteodo asmoneu os
fariseus tambeacutem exerceram uma influecircncia e forccedila poliacutetica muito importante ainda
que depois perderam tal forccedila No governo de Herodes somente o rei tinha o poder
poliacutetico uma vez que todos os que o ameaccedilassem eram imediatamente executados
Na Galileia o sucessor de Herodes foi seu filho Antipas que tambeacutem natildeo se mostrou
muito disposto assim como seu pai a dar autoridade a algum grupo de piedosos e
mestres religiosos Somente em Jerusaleacutem apoacutes Arquelau (irmatildeo de Antipas) ser
deposto eacute que os saduceus respaldados pelo poder romano puderam como grupo
religioso exercer forccedila poliacutetica Os fariseus mesmo sendo a maioria em relaccedilatildeo aos
saduceus continuaram apenas trabalhando ensinando e exercendo suas funccedilotildees
68
no culto judaico nas sinagogas A popularidade deles provavelmente aumentou
contudo natildeo o poder poliacutetico (cf Sanders 2005 p68)
A visatildeo de Saldarini sobre os fariseus compactua com Sanders a respeito da
popularidade dos fariseus Ele observa que para o evangelista Marcos os fariseus
eram um grupo muito reconhecido na comunidade da Galileia Jesus um jovem
oriundo de uma famiacutelia de artesatildeos considerada uma classe inferior na Palestina
natildeo dispunha da mesma honra dada aos fariseus principalmente em Nazareacute sua
terra natal Mas com o decorrer do tempo Jesus atraveacutes de seu ministeacuterio
conseguiu a simpatia de muitos seguidores em outras cidades da Galileia
contraindo para si o ciuacuteme a ira e a perseguiccedilatildeo dos fariseus O confronto dos
fariseus com Jesus a princiacutepio estava baseado em temas teoloacutegicos a respeito do
Jejum (Mc 218) da observacircncia do saacutebado (Mc 224 32) e sobre o divoacutercio (Mc
102) da purificaccedilatildeo das matildeos (Mc 71) e outros temas relacionados com respeito agrave
conduta de Jesus entre os homens considerados pecadores (Mc 216) etc Para os
fariseus no entanto o que estava em jogo natildeo eram apenas os debates teoloacutegicos
mas principalmente a simpatia e o controle da comunidade (Saldarini 2005 p 162-
164)
Para Saldarini os fariseus juntamente com os escribas eram os principais
opositores de Jesus na Galileia Em Jerusaleacutem os seus adversaacuterios tinham um
poder poliacutetico muito maior jaacute que entre eles estavam os chefes dos sacerdotes os
escribas e os anciatildeos do povo dentre os membros desses grupos principalmente
dos sacerdotes estavam os que entregaram Jesus agrave morte O evangelista Marcos
menciona os fariseus em cinco casos (2 18 224 32 811-15 102) e em todos os
casos eles estatildeo em conflito com Jesus36 Os escribas e fariseus juntos satildeo
mencionados duas vezes em Marcos tambeacutem quando estatildeo em conflito com Jesus
(216 7 1-5) Com os herodianos os fariseus satildeo mencionados duas vezes em
Marcos (36 1213) Para o evangelista Marcos os fariseus satildeo situados sempre na
36
Geza Vermes observa que no Evangelho de Mateus os fariseus natildeo satildeo sempre vistos no aspecto negativo Vermes vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e amor a Deusrdquo eles por outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser seguida
69
Galileia (3 2-6 7 1-5 2 18-24 811 102) A uacutenica exceccedilatildeo no evangelho de
Marcos eacute quando os fariseus e os herodianos satildeo enviados a Jesus a fim de
apanhaacute-lo em Jerusaleacutem (1213) Ao contraacuterio de Josefo que situa os fariseus
sempre em Jerusaleacutem ao lado dos chefes dos judeus Marcos mostra-os sempre
ativos na Galileia (Saldarini 2005 p159-160)
Apesar dos fariseus estarem sempre em confronto com Jesus nos
Evangelhos alguns pesquisadores veem algumas semelhanccedilas entre o movimento
de Jesus e o movimento dos fariseus Swidler lista algumas semelhanccedilas entre os
dois grupos Segundo Swidler Jesus reinterpretou as Escrituras hebraicas de
maneira condizente com o meio social onde se encontrava Jesus tambeacutem participou
de refeiccedilotildees entre amigos do tipo farisaico Tambeacutem segundo Swidler eacute possiacutevel ver
semelhanccedilas na doutrina de Jesus a respeito do amor no Shema oraccedilatildeo do
monoteiacutesmo nas bem aventuranccedilas em questotildees relacionadas agrave ressurreiccedilatildeo
tambeacutem seria ver fortes indiacutecios de um espiacuterito farisaico na vida de Jesus (cf
Swidler 1993 p78)
Para fundamentar essa teoria Swidler busca outros pesquisadores como o
teoacutelogo catoacutelico Pawlikowski que chegou a concluir que natildeo seria errado ldquoconsiderar
o movimento de Jesus como uma parte do movimento farisaico geral embora em
muitos campos tivesse um ponto de vista diferenciadordquo Swidler ainda cita o
estudioso protestante E P Sanders referindo-se a ele como mais cauteloso sobre o
assunto abordado poreacutem natildeo hesita em afirmar tambeacutem que ele faz parte do
nuacutemero sempre crescente de especialistas que duvidam que tenham existido
ldquopontos importantes de oposiccedilatildeo entre Jesus e os fariseusrdquo (Swidler 1993 p78)
A forte tendecircncia de colocar Jesus como um judeu apenas corrobora o que
ele sempre foi um judeu e natildeo um cristatildeo uma vez que o cristianismo soacute veio a
existir apoacutes a morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus Entre os judeus catoacutelicos e
protestantes tecircm surgido renomados defensores da teoria Jesus dentro do
judaiacutesmo Swidler aleacutem de citar um catoacutelico e um protestante como referecircncia cita
ainda um judeu (Geza Vermes) para corroborar esse pensamento Vermes em seu
livro Jesus e o mundo do Judaiacutesmo descreve ldquoJesus era um hasid galileu nisso a
meu ver reside a sua grandeza e tambeacutem o germe de sua trageacutediardquo (Vermes 1996
p20)
70
Para Vermes contudo Jesus natildeo foi muito amado pelos fariseus porque
Jesus segundo a visatildeo e interpretaccedilatildeo biacuteblica dos fariseus desprezava
propositadamente alguns costumes tradicionais como sentar-se agrave mesa com
publicanos e prostitutas No entanto para Vermes natildeo parece que tenha havido
discoacuterdia entre Jesus e os fariseus em temas essenciais da religiatildeo e feacute judaica
Vermes define a relaccedilatildeo de Jesus com os fariseus da seguinte maneira ldquoNatildeo
obstante o conflito entre Jesus da Galileia e os fariseus de sua eacutepoca ter-se-ia
assemelhado em circunstacircncias normais agrave mera luta intestina de facccedilotildees
pertencentes ao mesmo corpo religioso como a que se travou entre caraiacutetas e
rabanitas na Idade Meacutedia ou entre os ramos ortodoxo e progressista do judaiacutesmo na
eacutepoca modernardquo (Vermes 1996 p20)
Vermes observa ainda que no Evangelho de Mateus os fariseus nem
sempre satildeo vistos no aspecto negativo Ele vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a
respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles
tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado
juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento
os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e a mor a Deusrdquo eles por
outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o
assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos
fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles
eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser
seguida (Vermes 2006 p98)
Segundo Swidler tanto os pontos positivos e os negativos foram adotados
diretamente pela Comissatildeo do Vaticano para Relaccedilotildees Religiosas com os Judeus e
indiretamente por outras igrejas O Catecismo da Igreja catoacutelica romana diz que
ldquopode-se tambeacutem frisar que se Jesus se mostra severo para com os fariseus eacute
porque estaacute mais proacuteximo deles que de quaisquer outros grupos judaicos seus
contemporacircneosrdquo (cf Vermes 1996 p79)
Nesse invoacutelucro de pensamentos sobre Jesus e os fariseus Swidler leva em
conta o fato de Vermes ter apontado Jesus como participante do grupo dos
ldquohassideus ou devotosrdquo Dentre as muitas especulaccedilotildees descritas por Swidler (nem
71
todas expostas aqui) eacute digna de nota a conclusatildeo desses apontamentos nas
palavras do proacuteprio autor
Assim talvez a melhor maneira de situar Ieshua no contexto do judaiacutesmo da sua eacutepoca seja como mestre (rabi) viandante e que fazia milagres um saacutebio (hakaham) da Galileia hassid galileu que sob muitos aspectos se assemelhava a Hillel (cujos ensinamentos acabaram mais tarde prevalecendo sobre os Shammai no judaiacutesmo rabiacutenico) que alguns estudiosos iriam considerar como algueacutem que teve um relacionamento muito proacuteximo com os fariseus aos quais poreacutem ele criticava sendo por sua vez criticado por eles Sigal o considerou hassid galileu hakham e proto-rabino o qual como Iohanan ben Zakkai antes e depois do ano 70 dC criticou duramente os pharisaioi os perushim (que Sigal natildeo considerava predecessores do judaiacutesmo rabiacutenico muito embora por vezes um emprego impreciso do termo pharisaioi nos evangelhos e em Josefo pudesse incluir alguns proto-rabinos) Estou convencido de que Sigal nos fornece a mais exata e abrangente descriccedilatildeo do lugar de Ieshua na vida judaica do seu
tempo (Swidler 1993 p 86-87)37
A proximidade de Jesus com os fariseus eacute tambeacutem notada por Flusser Ele
nota que nos Evangelhos sinoacuteticos diferentemente de Joatildeo (cf Jo 18 3) os fariseus
natildeo figuram em nenhuma descriccedilatildeo do julgamento de Jesus Flusser ainda nota
que nos primoacuterdios do cristianismo quando os cristatildeos foram perseguidos pelo
ldquosumo sacerdote saduceu o Raban Gamaliel tomou seu partido e os salvourdquo (At 5
17-42) Da mesma maneira Paulo quando estava perante o Sineacutedrio em Jerusaleacutem
vendo que seria punido severamente apelou para os fariseus e encontrou neles
solidariedade (At 22 30 236-10) jaacute que a outra parte era composta por saduceus
(Flusser 2002 p49)
A possiacutevel afeiccedilatildeo dos fariseus em relaccedilatildeo aos primeiros cristatildeos eacute
mencionada por Flusser sobre ldquoTiago o irmatildeo do Senhor e aparentemente outros
cristatildeosrdquo (cf Antiquities book 20 200-2001 in Josephus 1999 p656) que foram
condenados agrave morte em 62 dC pelo sumo sacerdote saduceu (ilegalmente) mas
foram salvos pelos fariseus quando estes apelaram ao rei que por sua vez acabou
37
Segundo Swidler o rabino Phillip Sigal de Pittsburgh os fariseus dos evangelhos natildeo satildeo os
predecessores dos rabis posteriores a 70 dC responsaacuteveis pelos escritos e tambeacutem sem duacutevida fundadores do judaiacutesmo dos nossos dias Para Sigal os predecessores dos rabis natildeo eram nem hillelistas (da escola de Hillel) nem Shamaiacutetas (da escola de Shamai) e nem pertenciam a nenhuma escola ou ldquocasardquo (bet) propriamente dita Ieshua (Jesus) natildeo era saduceu ou fariseu tampouco hilletita nem shamaiacuteta mas era um protorrabi antecipado da eacutepoca tanaiacutetica A sua maneira de ensinar era baseada na liberdade de interpretaccedilatildeo e autoridade conforme o modelo de ensinar protorrabiacutenico [] Ieshua era hakham (saacutebio filoacutesofo um protorrabi) como um profeta carismaacutetico que pregava sobre assuntos assombrosos e aterradores conforme a halakhah juntamente com sua pregaccedilatildeo hagaacutedica (Swidler 1993 p 86)
72
destituindo tal sumo sacerdote Segundo Flusser os fariseus possivelmente
consideravam a relaccedilatildeo dos saduceus com os romanos como um ato de
ldquodespotismo sacerdotalrdquo e essa poderia ser a causa a partir da leitura dos Sinoacuteticos
da ausecircncia de relatos da presenccedila de fariseus no julgamento e condenaccedilatildeo de
Jesus Flusser pressupotildee que os Sinoacuteticos natildeo mencionam um protesto dos fariseus
a favor de Jesus uma vez que eles jaacute haviam registrado anteriormente um Jesus
ldquoantifarisaicordquo em suas narrativas (Flusser 2002 p50)
453 OS SADUCEUS
Os saduceus que natildeo eram originaacuterios dos chassidim mas dos asmoneus
respeitavam os fariseus porque estes tinham um grande prestiacutegio com a populaccedilatildeo
em geral A classe dos saduceus era composta por gente nobre e rica da sociedade
Eles rejeitavam a doutrina da ressurreiccedilatildeo dos mortos e a existecircncia dos anjos
Tambeacutem soacute aceitavam o Pentateuco como verdade de feacute ldquoOs saduceus possuiacuteam o
poder os fariseus possuiacuteam a influecircncia sobre o povordquo (Gnilka 2000 p 61-62)
Flusser tambeacutem coloca os saduceus como um grupo pequeno menor do que os
fariseus por outro lado ele observa que os saduceus eram poderosos uma vez que
pertenciam a aristocracia sacerdotal do templo Eles natildeo eram revolucionaacuterios como
os fariseus (que se envolveram na guerra civil no periacuteodo macabeu) negavam a
validade da tradiccedilatildeo oral e consideravam toda a crenccedila na vida futura como uma
tolice (Flusser 2002 p45)
Nos Evangelhos sinoacuteticos os saduceus satildeo mencionados mais no Evangelho
de Mateus sendo que em Marcos e Lucas eles satildeo mencionados apenas uma vez
em cada Evangelho (Mc 12 18-27 Lc 20 27-40) No entanto tanto para Mateus e
Marcos como para Josefo os saduceus assim como os fariseus eram muito
conhecidos no primeiro seacuteculo da era cristatilde (Saldarini 2005 p183-184) Os
saduceus satildeo sempre colocados por Josefo ao lado dos fariseus Josefo tambeacutem
situa os saduceus como sendo um grupo pertencente agrave classe dominante Em Atos
dos apoacutestolos os saduceus discutem com os fariseus acerca da ressurreiccedilatildeo por
causa de um discurso de Paulo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (At 23) Em Atos
(41 517) os saduceus tambeacutem satildeo associados aos maiorais do templo ou seja agrave
classe sacerdotal (Saldarini 2005 p308-309)
73
A classe sacerdotal estaacute intimamente relacionada ao julgamento de Jesus
Em Lucas 22 54 lemos ldquoPrenderam-no e levaram-no introduzindo-o na casa do
Sumo Sacerdote Pedro seguia de longerdquo Segundo Flusser o clatilde sacerdotal e o
proacuteprio sumo sacerdote eram saduceus Caifaacutes era o sumo sacerdote e tambeacutem era
a figura mais importante do segundo Templo Foi na casa (palaacutecio) de Caifaacutes que
Jesus passou a noite sob custoacutedia enquanto era escarnecido pelos guardas (Lc 22
63) Os saduceus odiavam a Jesus possivelmente porque o consideravam um
profeta (ldquoFaz uma profecia quem eacute que te bateurdquo Lc 22 64) e sua presenccedila em
Jerusaleacutem podia ser uma clara ameaccedila Segundo Joatildeo os motivos da condenaccedilatildeo
de Jesus pela classe sacerdotal eacute que
[] os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram ldquoQue faremos Esse homem realiza muitos sinais Se o deixarmos assim todos creratildeo nele e os romanos viratildeo destruindo o nosso lugar santo e a naccedilatildeordquo Um deles poreacutem Caifaacutes que era o Sumo Sacerdote naquele ano disse-lhes ldquoVoacutes nada entendeis Natildeo compreendeis que eacute de vosso interesse que um soacute homem morra pelo povo e natildeo pereccedila a naccedilatildeo todardquo Natildeo dizia isso por si mesmo mas sendo sumo Sacerdote naquele ano profetizou que Jesus morreria pela naccedilatildeo ndash e natildeo soacute pela naccedilatildeo mas tambeacutem para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos Entatildeo a partir desse dia resolveram mataacute-lo Jesus por isso natildeo andava em puacuteblico entre os judeus mas retirou-se para a regiatildeo proacutexima do deserto para a cidade chamada Efraim e aiacute permaneceu com seus disciacutepulos (Jo 11 47-54)
A atitude de Caifaacutes em relaccedilatildeo agrave morte substituta de Jesus (ldquoeacute de vosso
interesse que um soacute homem morra pelo povordquo) eacute vista por Flusser mais como uma
justificativa do sumo sacerdote uma vez que a tradiccedilatildeo judaica repudiava o ato de
entregar um cidadatildeo judeu para que fosse morto por estrangeiros era um pecado
imperdoaacutevel segundo a halakaacute38 Flusser cita ainda o Rolo do Templo essecircnico
(64 7-8) que diz ldquoSe um homem calunia Meu povo e entrega Meu povo para uma
naccedilatildeo estrangeira e pratica a iniquidade contra meu povo penduraacute-lo-eis numa
38
Zuurmond define a halakaacute da seguinte maneira ldquoeacute o way of life judaico o conjunto de prescriccedilotildees e proibiccedilotildees que definem a maneira como vivem os judeus Uma questatildeo halaacutequica eacute uma disputa sobre a halakaacute geralmente com base na interpretaccedilatildeo de textos do Antigo Testamento Nem toda a questatildeo halaacutequica eacute de ordem moral As leis de pureza por exemplo formam uma parte importante da halakaacute mas ndash pelo menos segundo nosso modo de falar ndash natildeo tem caraacuteter moralrdquo (Zuurmond 1998 p 77) A raiz halak tambeacutem pode ser definida como a ldquoviardquo a ldquocaminhadardquo ou seja ldquoa regra (de vida) que vai permitir a aplicaccedilatildeo da Torah escrita agraves circunstacircncias reais e mutaacuteveis da vida O plural eacute halakot regras decisotildees e coleccedilotildees de leisrdquo (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
74
aacutervore e ele morreraacuterdquo Ainda havia uma tradiccedilatildeo oral dos saacutebios judeus com o
seguinte teor ldquose haacute um grupo de pessoas e os gentios lhes dizem entregai um de
voacutes para noacutes e o mataremos se natildeo fizerdes mataremos a todos a (regra eacute) deixai
que todos sejam assassinados e natildeo entregueis a eles uma uacutenica alma em Israel
poreacutem se eles o escolherem deixai que o entreguem para que todos natildeo sejam
massacradosrdquo (cf Flusser 2002 p 164-166)
Caifaacutes natildeo se restringiu apenas a entregar Jesus aos romanos Ele sabia que
eles eram implacaacuteveis a qualquer judeu rebelde ou a movimentos profeacuteticos
entusiastas que se levantassem na Palestina No entanto parece que Caifaacutes natildeo
estava preocupado com as tradiccedilotildees de seu povo O viacutenculo dele com os suacuteditos e
representantes de Cesar se estreitava ainda mais quando o vemos em Atos dos
Apoacutestolos (4 1-3 46 5 27-28) juntamente com a classe sacerdotal (os saduceus)
prendendo muitos cristatildeos em Jerusaleacutem pelos mesmos motivos que Jesus foi
entregue aos romanos sem se importar com as tradiccedilotildees judaicas das quais ele
deveria ser o principal observador (Flusser 2002 p 154-166)
454 OS ZELOTAS
Os movimentos de resistecircncia nos dias de Jesus estatildeo ligados ao projeto de
romanizaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo da Galileia por Herodes Antipas (Crossan 2009 p16-
18) O anseio de Antipas em se tornar rei uma vez que ele foi nomeado por Cesar
Augusto como tetrarca da Galileia e Pereia e seu irmatildeo Felipe ficou como tetrarca
da parte do extremo norte do paiacutes Jaacute Arquelau o outro filho de Herodes o Grande
ficou como etnarca da Idumeia Judeia e Samaria o que deixou Antipas muito
desapontado
Segundo Crossan Antipas comeccedilou a trabalhar para ganhar prestiacutegio em
Roma poreacutem agraves custas de um jugo pesado aos habitantes da Galileia Primeiro ele
fortificou Seacuteforis ldquopara ser o ornamento de toda a Galileiardquo e dedicou a Augusto a
sua cidade-capital reconstruiacuteda Apoacutes a morte de Augusto assumiu como Imperador
de Roma Tibeacuterio Antipas logo teve a ideia de substituir a capital Seacuteforis fundando
uma nova cidade a 32 quilocircmetros ao leste na costa ocidental do mar da Galileia e
nomeou-a Tiberiacuteades em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (cf Crossan 2009 p
17-18) O problema de tudo isso era que as construccedilotildees de Antipas provocavam o
75
aumento dos tributos sobre os galileus causando um descontentamento geral
Contudo para Antipas o que mais importava conforme Crossan nos descreve era
passar a Roma uma imagem de um governante lucrativo na questatildeo da arrecadaccedilatildeo
de impostos o que poderia levar o Imperador a pensar ldquoque eacute que natildeo faria ele
como monarca de toda a paacutetria judaicardquo
As construccedilotildees de Antipas poderiam impressionar Roma mas natildeo poderiam
evitar os movimentos de resistecircncia judaica uma vez que segundo Pagola (2010 p
48) ldquoos camponeses experimentaram pela primeira vez a pressatildeo e o controle
proacuteximo dos governos herodianosrdquo A situaccedilatildeo era tatildeo caoacutetica que aumentou
assustadoramente o nuacutemero de indigentes prostitutas e diaristas enfim parece que
Jesus conheceu ao longo de sua vida uma Galileia onde a desigualdade social era
enorme onde se favorecia a minoria privilegiada de Seacuteforis e Tiberiacuteades ao custo da
pobreza e sofrimento e desintegraccedilatildeo de muitas famiacutelias
Crossan (2004 p 275) nota que a construccedilatildeo ou reconstruccedilatildeo das cidades
de Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo afetou apenas os camponeses iletrados ou seja os
trabalhadores mais humildes mas tambeacutem afetou agrave classe dos letrados Assim ele
conclui que ateacute mesmo o movimento de Jesus relacionado ao reino de Deus
comeccedilou como um movimente de resistecircncia a partir dos camponeses ldquomas
abandonou seu caraacuteter localista e regionalista sob a lideranccedila dos letradosrdquo
Dentre os movimentos de Revolta encontramos Judas galileu que apoacutes a
deposiccedilatildeo de Arquelau (6 d c) natildeo aceitava que o pagamento de impostos devia
ser efetuado diretamente a Roma Segundo Theissen (2004 p163-164) a doutrina
de Judas repercutiu muito chegando ao ponto de alguns ldquoherodianosrdquo questionarem
a Jesus a respeito da questatildeo de se era liacutecito ou natildeo pagar impostos ao Imperador
(cf Mc 12 13-17) Horsley defende que o movimento de Judas o Galileu e de
Sadoc o fariseu que Josefo rotula como a quarta filosofia (as outras satildeo os
fariseus os saduceus e os essecircnios) tecircm sido interpretadas de uma forma errada
por vaacuterios especialistas que afirmam que esse movimento pregava a revolta armada
contra Roma De acordo com Horsley Josefo assim descreveu esse movimento em
Ant 18 4-5 23
Mas um certo Judas gaulanita da cidade de Gamala em combinaccedilatildeo com o fariseus Sadoc insistiu fortemente na resistecircncia Eles diziam que tal
76
avaliaccedilatildeo tributaacuteria implicava escravidatildeo pura e simples e pressionavam a naccedilatildeo a exigir sua liberdade [] Judas o Galileu estabeleceu-se como o liacuteder da quarta filosofia Os seus adeptos concordaram com as ideia dos fariseus em tudo exceto em sua indomaacutevel paixatildeo pela liberdade pois consideram Deus o seu uacutenico liacuteder e senhor (cf Horsley 2010 p 72)
Horsley avalia que Judas e Sadoc estivessem mais ligados ao ensino ou
pregaccedilatildeo ldquocontra a avaliaccedilatildeo tributaacuteria ou ateacute mesmo uma resistecircncia organizada
contra os impostos do que um grupo armado e violento conforme tem sido
interpretado a partir dos escritos de Josefordquo (Horsley 2010 p 78-79)
As informaccedilotildees sobre os grupos de resistecircncias nem sempre satildeo unacircnimes
como vimos acima No entanto podemos afirmar que entre os grupos de resistecircncia
encontram-se os Zelotes (Zelotas) talvez os mais conhecidos O termo Zelotas
encontra-se oito vezes registrado no Novo Testamento Esse termo geralmente
aplica-se ldquoaos guerrilheiros da resistecircncia desde Judas Galileu (6 aC) ateacute os
defensores da fortaleza de Masadaacute (74 dC) Eles eram rigorosamente
observadores do saacutebado da circuncisatildeo (exigiam a circuncisatildeo ateacute mesmo dos
antigos) e tinham fortes crenccedilas escatoloacutegicasrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia
do Novo Testamento p 2686) De acordo com Theissen mesmo que os
seguidores de Judas Galileu sejam chamados de Zelotes natildeo eacute possiacutevel afirmar tal
coisa visto que em Josefo eles ldquoaparecem como grupo apenas depois do inicio da
guerra judaica em 66 dC em relaccedilatildeo com o Templordquo (cf Theissen 2004 p164)
contudo haacute um argumento de peso contra essa teoria uma vez que entre os
disciacutepulos de Jesus por volta da metade do seacuteculo I havia um zelole (Simatildeo Zelote
cf Lc 6 15) e Theissen faz uma observaccedilatildeo ldquoaleacutem disso na Galileiardquo
Os zelotas eram originaacuterios dos fariseus e assim como os essecircnios estavam
ligados pela guerra santa e escatoloacutegica Natildeo satildeo citados nos evangelhos como
grupo mas entre os disciacutepulos de Jesus como foi dito acima havia um disciacutepulo
chamado de ldquoSimatildeo o Zeloterdquo (Lc 615 At 113) Eles lutavam pelos direitos do
pobre do oprimido e a esses ldquoprometiam com a chegada do Reino de Deus a
restauraccedilatildeo de seus direitos e uma nova ordem estabelecida por Deusrdquo (Gnilka
2000 p 60) O fato de entre os disciacutepulos ter um zelote natildeo significa que esse
movimento tenha sido endossado por Jesus jaacute que os ensinamentos de Jesus sobre
o tributo a Cesar e sua atitude para com o saacutebado eacute uma forma de repuacutedio a
77
doutrina apregoada pelos zelotas (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo
Testamento p 2686)
Podemos observar portanto que a possiacutevel relaccedilatildeo de Jesus com os Zelotas
como grupo de resistecircncia eacute muito remota ou praticamente inexistente conforme
Crossan (2004 p275) tem observado Ainda na mesma linha de pensamento de
Crossan Sean Freyne tambeacutem considera remota a hipoacutetese do possiacutevel
envolvimento de Jesus com o grupo dos zelotas Para Freyne (2008 p 130) a
pregaccedilatildeo de Jesus natildeo incitava a vinganccedila uma vez que estava mais baseada no
livro do Gecircnesis (criaccedilatildeo) do que no livro do Ecircxodo (libertaccedilatildeo) ou seja Jesus natildeo
via as demais naccedilotildees ou outras origens eacutetnicas como objeto de remoccedilatildeo
aniquilaccedilatildeo conversatildeo ou conquista como viam os heroacuteis do Antigo Testamento
Contudo para Freyne devemos observar que haacute duas formas de
interpretarmos Jesus de Nazareacute Se o olharmos segundo o ponto de vista de
Crossan veremos um Jesus voltado para um entendimento sapiencial e natildeo
apocaliacuteptico ou seja Jesus teria escolhido um modelo de dominaccedilatildeo monaacuterquica
baseado num ldquoreino dos destituiacutedos e Jootildees ningueacutem vigente no aqui e agora um
reino realizado (por meios maacutegicos e materiais) natildeo apenas proclamadordquo Por outro
lado Freyne observa que o pensamento de Horsley sobre Jesus eacute bem diferente
dos de Crossan Jesus segundo Horsley teria sido um revolucionaacuterio ou seja
partindo desse ponto de vista ldquoo siacutembolo do reino de Deus tal como empregado por
Jesus significava a vitoacuteria de Deus sobre as forccedilas do mal uma concepccedilatildeo que se
coadunava com as expectativas apocaliacutepticas judaicas padratildeordquo posiccedilatildeo essa que
segundo Freyne seria mais convincente (Freyne 2008 p 132)
Bruce Malina vecirc o grupo de Jesus como uma religiatildeo politicamente inserida
onde o reino e o governo de Deus satildeo iminentes ou seja seus disciacutepulos devem
orar para que o reino de Deus venha para o julgamento e recompensa e isso
segundo Malina era compreendido sob o ponto de vista poliacutetico por uma pessoa do
primeiro seacuteculo A morte de Jesus natildeo foi o fim desse reinado pois ldquoos seguidores
de Jesus acreditavam que Deus o ressuscitou dos mortos de maneira que o proacuteprio
Jesus em breve surgiria como vice regente do Deus de Israel como Messias de
Israel com poderrdquo (Malina 2004 p 99) Malina conclui esse pensamento afirmando
que
78
o reino de Deus veio para tomar a forma de uma teocracia representativa e pessoal Nestas dimensotildees ele teria tido a mesma estrutura da religiatildeo poliacutetica de Israel durante o tempo de Jesus A questatildeo aberta era Quem seria o agente o substituto concreto para o Deus de Israel Os membros do grupo de Jesus tinham pouca duacutevida de que esse agente fosse Jesus o Messias de Israel Mas Deus tinha em mente mais natildeo apenas Israel (Malina 2004 p 164)
Portanto pertencer ao grupo de Jesus era mais do que esperar por um reino
poliacutetico era ter um novo modo de vida ia aleacutem das fronteiras de Israel natildeo significa
apenas a libertaccedilatildeo de um jugo poliacutetico mas a libertaccedilatildeo do ser humano como um
todo
79
5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS
E SEUS DESDOBRAMENTOS
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Jesus apesar de ser visto por alguns
pesquisadores com caracteriacutesticas proacuteximas do grupo dos fariseus natildeo fez parte de
nenhum grupo revolucionaacuterio Contudo isso natildeo significa que ele fosse indiferente
aos problemas sociais que afligiam toda a Palestina Em contraste com os
poderosos da eacutepoca que exploravam os pobres atraveacutes da cobranccedila desmedida de
tributos Jesus oferece-se como um descanso aos cansados e oprimidos porque
somente ele tem um jugo suave e um fardo leve (cf Mt 11 28-30) Esse descanso
soacute ele pode oferecer porque recebeu do Pai a quem ele conhece e por quem
tambeacutem eacute conhecido (cf Mt 1127) Abba eacute a palavra por excelecircncia no quesito
intimidade entre Jesus e Pai dos Ceacuteus conforme a tese defendida por J Jeremias
51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA
Jesus conforme a tradiccedilatildeo cristatilde e os vaacuterios testemunhos das fontes (os
Evangelhos) possui o testemunho intriacutenseco de que eacute o Filho de Deus (cf Mt 1433
Mc 11 311 1539 Lc 2227 Jo 134 1127) O Evangelho de Marcos de uma
forma clara jaacute nos mostra a importacircncia desse pensamento teoloacutegico nas seguintes
palavras ldquoPrinciacutepio do Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deusrdquo (Mc 11) Justino
de Roma tambeacutem prima pela exaltaccedilatildeo de Jesus como o Filho de Deus dizendo que
ldquo[] com razatildeo honramos tambeacutem a Jesus Cristo que foi nosso Mestre nessas
coisas e para isto nasceu o mesmo que foi crucificado sob Pocircncio Pilatos
procurador na Judeia no tempo de Tibeacuterio Ceacutesar Aprendemos que ele eacute o Filho
proacuteprio do Deus verdadeirordquo (Justino 1995 p28) ou ainda conforme a confissatildeo
de feacute de Calcedocircnia (451 dC) ldquoJesus eacute verdadeiramente homem e
verdadeiramente Deusrdquo ( Swidler 1993 p30)
Os Evangelhos da infacircncia (Mateus e Lucas) de uma forma independente
narram alguns acontecimentos relacionados ao nascimento e agrave infacircncia de Jesus
Segundo Duquoc as narrativas do nascimento de Jesus relatadas por Mateus e
Lucas se inserem na tradiccedilatildeo do Antigo Testamento como vemos no nascimento de
Isaac (Gn 21 1-7) de Jacoacute (Gn 25 25-26) de Moiseacutes (Ex 2 1-10) de Sansatildeo (Jz
80
13 1-25) e o de Samuel (1 Sam 1 19-26) As caracteriacutesticas de tais narrativas satildeo
ldquodiscernir na concepccedilatildeo ou no nascimento os sinais antecipadores de um destino
particularmente abenccediloado por Deusrdquo Para Duquoc contudo tratar as narrativas de
Mateus e Lucas como Evangelhos da Infacircncia natildeo eacute a forma mais correta e pode
induzir em erro mesmo que a tradiccedilatildeo assim os mencione Nos textos de Mateus e
Lucas observamos que ali se trata mais do nascimento do que a infacircncia de Jesus
conforme vemos resumido no quadro comparativo abaixo (Duquoc 1992 p22)
Mateus Lucas
Genealogia de Cristo 1 1-17 Anuacutencio da concepccedilatildeo virginal a Joseacute 1 18-24 Nascimento do Salvador 125 Visita dos magos 2 1-12 Fuga para o Egito e massacre dos inocentes 2 13-18 Volta a Nazareacute 2 19-23
Anuacutencio do nascimento de Joatildeo Batista 1 5-25 Anuacutencio a Maria 1 26-28 Visitaccedilatildeo 1 39-56 Nascimento do Salvador 2 1-14 Visita dos Pastores 2 15-20 Circuncisatildeo 2 21 Apresentaccedilatildeo no Templo 2 22-38 Volta a Nazareacute 2 39-40 Reencontro no Templo 2 41-52
Os relatos da infacircncia ou do nascimento conforme menciona Duquoc natildeo
fazem parte do querigma (Keacuterygma) mas estatildeo associados mais ao Antigo
Testamento como vimos acima Contudo eles foram inseridos nos Evangelhos e
devem ser lidos a partir da perspectiva dos evangelistas Eles natildeo satisfazem a
curiosidade como fazem os Apoacutecrifos visto que eles estatildeo relacionados mais agrave feacute da
Igreja primitiva do que aos acontecimentos histoacutericos ldquoMateus e Lucas iluminaram
retrospectivamente as recordaccedilotildees atraveacutes da catequese evangeacutelica e os eventos
decisivos da Paacutescoa Natildeo narram uma histoacuteria Propotildeem apenas uma doutrina em
forma de histoacuteria Seria errocircneo querer iluminar a catequese por meio de narrativas
de nascimento O processo foi inversordquo (Duquoc 1992 p24-25)
81
Observamos que as narrativas da infacircncia levantam questotildees sobre a
autenticidade histoacuterica dos relatos dos evangelistas Para Fitzmyer nas narrativas
da infacircncia eacute difiacutecil constatar o realmente histoacuterico poreacutem eacute inegaacutevel o fato de que
exista um nuacutecleo histoacuterico nesses acontecimentos os quais serviram como base
para que os evangelistas numa tradiccedilatildeo posterior pudessem responder perguntas
sobre ldquoQuem eacute elerdquo ou ldquoDe onde ele veiordquo39 (Fitzmyer 1997 p34-35)
Apesar das diferenccedilas e da independecircncia dos evangelhos (Mateus e Lucas)
Fitzmyer observa que haacute pelo menos doze pontos nas narrativas da infacircncia que satildeo
comuns ou pelo menos haacute concoacuterdia entre os dois evangelistas a respeito do
nascimento do menino Jesus os quais seratildeo transcritos abaixo
1) O nascimento de Jesus relaciona-se com o reinado de Herodes Magno
(Mt 21 Lc 15)
2) Maria sua futura matildee eacute uma virgem noiva de Joseacute mas eles ainda
natildeo coabitaram (Mt 118 Lc 12734 25)
3) Joseacute eacute da casa de Davi (Mt 1 1620 Lc 127 24)
4) Um anjo do ceacuteu anuncia a concepccedilatildeo e o nascimento futuros de Jesus
(Mt1 20-21 Lc 1 28-30)
5) O proacuteprio Jesus eacute reconhecido como filho de Davi (Mt 11 Lc 132)
6) Sua concepccedilatildeo aconteceraacute por intermeacutedio do Espiacuterito santo (Mt 1
1820 Lc 1 35)
7) Joseacute natildeo se envolve na concepccedilatildeo (Mt1 18-25 Lc 134)
8) O nome ldquoJesusrdquo eacute imposto antes de seu nascimento (Mt 1 21 Lc
131)
9) O ceacuteu identifica Jesus como ldquoSalvadorrdquo (Mt 121 Lc 211)
10) Jesus nasce depois que Joseacute e Maria vatildeo viver juntos (Mt 1 24-25 Lc
2 4-7)
11) Jesus nasce em Beleacutem (Mt 21 Lc 2 4-7)
12) Jesus se fixa com Maria e Joseacute em Nazareacute na Galileia (Mt 2 22-23
Lc 239-51)
39
Segundo Fitzmyer as narrativas da infacircncia natildeo se originaram de uma tradiccedilatildeo mais primitiva da Igreja visto que nem Marcos (que eacute considerado o primeiro Evangelho a ser escrito) e nem Joatildeo (que eacute reconhecido como sendo de uma tradiccedilatildeo igualmente primitiva a de Marcos mas independente dos Sinoacuteticos) natildeo conteacutem tais relatos mas inicia-se com o Verbo que se fez carne (1 1-18) ou seja com o Verbo divino e preexistente
82
Nos primoacuterdios da Igreja a questatildeo da divindade e humanidade de Cristo era
o centro de muitas controveacutersias teoloacutegicas que partiam de vertentes judaicas ou
entatildeo de certos movimentos cristatildeos considerados como hereges Face agraves muitas
divergecircncias a respeito do Cristo a Igreja tomou frente a tais controveacutersias e pocircs-se
a refutar as heresias com toda a forccedila possiacutevel Correntes judaizantes e gnoacutesticas
que incansavelmente procuravam por todos os meios possiacuteveis proclamar que Jesus
era apenas um homem que morreu pregado na cruz ou entatildeo um divino que
parecia ser humano procuravam a todo custo abalar a feacute daqueles que foram
alcanccedilados pela feacute cristatilde Os Evangelhos e todo o Novo Testamento foram escritos
para fundamentar a feacute dos primeiros cristatildeos em Jesus Cristo Mediante a tantas
heresias que foram surgindo na Igreja tentando negar a divindade de Jesus os
cristatildeos reagiram com veemecircncia escrevendo muitas histoacuterias sobre Jesus como
forma de demonstrar que desde menino o filho de Joseacute e Maria era detentor de
muitos prodiacutegios nunca antes realizados em Israel nem mesmo pelos grandes
profetas do Antigo Testamento
Estas narrativas foram redigidas e fazem parte do que posteriormente ficou
conhecido como os ldquoEvangelhos Apoacutecrifosrdquo Os Apoacutecrifos satildeo portanto a forma
mais clara que a Igreja usou para se opor as teorias que negavam a divindade de
Jesus Na busca de por em evidecircncia a divindade do Mestre os Apoacutecrifos
apresentam Jesus quase sempre como um menino ou um homem prodigioso capaz
de realizar milagres tatildeo grandes que chegam a ser absurdo
A tradiccedilatildeo cristatilde ainda no intuito de preservar a doutrina da filiaccedilatildeo divina de
Jesus procurou de uma forma cuidadosa defender tal doutrina em seus vaacuterios
credos ao longo da histoacuteria do cristianismo Os mais antigos e conhecidos credos
satildeo Credo Apostoacutelico (Seacuteculo III e IV) Credo de Niceacuteia (325 AD - revisado em
Constantinopla em 381 AD) Credo de Calcedocircnia (451 AD) e o Credo de Atanaacutesio
(seacuteculos IV e V) A relaccedilatildeo de Jesus Cristo com Deus Pai e sua funccedilatildeo na
Santiacutessima Trindade satildeo mencionadas em todas as confissotildees acima citadas
(Grudem 1999 p996) Jaacute no primeiro credo (Credo Apostoacutelico) observamos a
importacircncia de Jesus como o Filho de Deus encarnado
Creio em Deus Pai Todo Poderoso Criador do ceacuteu e da terra E em Jesus Cristo seu Filho unigecircnito nosso Senhor concebido pelo Espiacuterito Santo e nascido da Virgem Maria que padeceu sob Pocircncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos
83
que subiu ao ceacuteu e assentou-se agrave direita do Pai Todo-Poderoso de onde haacute de vir para julgar os vivos e os mortos Creio no Espiacuterito Santo na santa igreja catoacutelica na comunhatildeo dos santos na remissatildeo de pecados na ressurreiccedilatildeo da carne e na vida eterna Ameacutem (Grudem 1999 p996)
O credo segundo Thomas P Rausch (2006 p16) ldquoeacute uma declaraccedilatildeo oficial
da crenccedila da Igreja e tem poder normativo para a feacute da Igrejardquo Rausch observa que
o entatildeo cardeal Ratzinger escolheu o Credo Apostoacutelico como base para a sua
abordagem do livro Introduccedilatildeo ao Cristianismo De acordo com Rausch nessa obra
o cardeal faz uma mediaccedilatildeo entre os extremos relacionados agrave Cristologia da feacute e o
Jesus da histoacuteria Por um lado haacute os que procuram reduzir a Cristologia agrave histoacuteria
enquanto que por outro lado haacute os que buscam o abandono da histoacuteria
considerando-a como algo irrelevante para a feacute40 Abaixo reproduzimos um quadro
resumido dos principais conciacutelios Gerais da igreja onde foram formulados os
principais credos da Igreja (cf Rausch 2006 p261)
Conciacutelio Principais Figuras Temas
Niceia (325) Aacuterio (que natildeo estava presente) ldquohouve um tempo em que ele natildeo erardquo 381 bispos presentes
Rejeitou a opiniatildeo de Aacuterio de que o logos havia sido criado Cristo eacute homoousion41 ao Pai
Constantinopla I (381) Influecircncia Capadoacutecia Afirma a feacute de Niceacuteia Um novo credo afirma a divindade do Espiacuterito Nosso credo eacute uma combinaccedilatildeo de ambos
Eacutefeso I (431) Nestoacuterio conjunccedilatildeo de naturezas Maria eacute christokos42 Joatildeo de
Condena Nestoacuterio Maria eacute theotokos mas Cirilo e Joatildeo de Antioquia e excomungam
40
Nesse tratado escrito no final da deacutecada de 60 Ratzinger procura encontrar um meio termo entre Harnack que purifica a feacute da doutrina e do credo colocando a reconstruccedilatildeo do Jesus histoacuterico como fator determinante para a Cristologia com Bultmann para quem somente a feacute em Cristo tem importacircncia para o cristatildeo (cf Rausch 2006 p16) Vale ressaltar aqui que para o entatildeo cardeal Ratzinger ldquosegundo a feacute da Igreja a filiaccedilatildeo divina de Jesus natildeo se deve ao fato de Jesus natildeo ter um pai humano a doutrina do ser divino de Jesus natildeo sofreria nenhuma restriccedilatildeo se Jesus fosse o fruto de um casamento humano normal porque a filiaccedilatildeo divina que eacute objeto da feacute cristatilde natildeo eacute um fato bioloacutegico e sim ontoloacutegico natildeo eacute um evento no tempo e sim na eternidade de Deus ()rdquo Se considerarmos este texto como a base do pensamento de Ratzinger percebemos que a teologia de Bultmann teve para ele na eacutepoca um peso maior (cf Ratzinger 2006 p 204) 41
Homoi ser ldquosemelhanterdquo semelhante quanto ao ser (cf Rausch 2006 p 249) 42
Significa ldquoPortadora do Cristordquo Matildee de Cristo (cf Rausch 2006 p 249)
84
Conciacutelio Principais Figuras Temas
Antioquia Cirilo de Alexandria uniatildeo hipostaacutetica Maria eacute theotokos43
um ao outro
Eacutefeso II (449) (ldquoConciacutelio do Ladratildeordquo)
Flaviano de Constantinopla ldquoa partir de duas naturezas numa soacute hipoacutestase44 e numa soacute pessoardquo (foacutermula da uniatildeo) Dioacutescoro de Alexandria
Dioacutescoro domina Eacute rejeitada a foacutermula de Flaviano (ldquoa partir de duas naturezas uma soacute pessoardquo) O proacuteprio conciacutelio poreacutem eacute rejeitado
Calcedocircnia (451) 600 bispos Tomus do papa Leatildeo escrito para apoiar Flaviano Legados papais insistem numa nova profissatildeo de feacute
Condena Dioacutescoro aceita o Tomus de Leatildeo Prega duas naturezas numa uacutenica pessoa e numa uacutenica hipoacutestase verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem
Observamos que para a Igreja dos primeiros seacuteculos as verdades teoloacutegicas
a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus com o Pai eram de suma importacircncia para a
formaccedilatildeo e crescimento das comunidades cristatildes Por isso defenderam com
coragem e destemor o que acreditavam ser a essecircncia do Evangelho de Jesus
Cristo No entanto sempre houve aqueles que lutaram de todas as maneiras para
por em descreacutedito tanto o Evangelho como a pessoa de Jesus de Nazareacute Os pais
da Igreja tiveram que lutar contra as heresias e contra os hereges que procuraram
desmoralizar o mais importante homem do vilarejo de Nazareacute No entanto conforme
observa Rausch haacute problemas metodoloacutegicos nos Credos da Igreja Eles sempre
pressupotildeem uma Cristologia de ldquocima para baixordquo por isso a Cristologia necessita
de um fundamento criacutetico Para Rausch a Cristologia precisa ser estabelecida de
ldquobaixo para cimardquo ou seja ela precisa estar baseada nos atos e feitos do Jesus
histoacuterico para que natildeo seja acusada de ser uma feacute helenizada onde o carpinteiro
43
Significa ldquoPortadora de Deusrdquo Matildee de Deus (cf Rausch 2006 p 249) 44
Aquilo que estaacute sob ou daacute suporte a um objeto realizaccedilatildeo um ser concreto que suporta as diversas qualidades ou aparecircncias de uma coisa Ser subsistente realidade que existe por si mesma substacircncia (Exemplo medieval- ldquotransubstanciaccedilatildeordquo (cf Rausch 2006 p 249)
85
de Nazareacute teria sido transformado em um ldquosalvador divinizadordquo conforme o conceito
grego do divino (Rausch 2006 p 17)
52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA
Se para termos sucesso no estudo da Cristologia eacute necessaacuterio partirmos de
baixo para cima ou seja nas palavras de Rogers Haight ldquoseria difiacutecil imaginar
algueacutem interessado pela existecircncia humana de uma perspectiva religiosa que natildeo se
sentisse motivado a saber mais sobre Jesusrdquo uma vez que ldquoa Cristologia comeccedilou
com Jesus de Nazareacute e deve comeccedilar com Jesus hoje em diardquo (Rogers 2003
p75) precisamos analisar as fontes e teorias sobre Jesus desde as canocircnicas ateacute
as mais rejeitadas pela tradiccedilatildeo cristatilde Jaacute observamos acima que a Igreja dos
primeiros seacuteculos priorizou por razotildees apologeacuteticas em propagar e defender a
divindade de Cristo e por outro lado natildeo houve um interesse igual quando o tema
era a humanidade de Jesus No entanto com o passar dos seacuteculos surgiram
inuacutemeras questotildees a respeito do homem chamado Jesus de Nazareacute Para responder
tais questotildees ou pelo menos investigaacute-las faz-se necessaacuterio o estudo da Cristologia
partindo do homem Jesus ao Cristo da feacute
Edward Schillebeeckx nos diz que para uma boa reflexatildeo sobre a Trindade
faz-se necessaacuterio uma interpretaccedilatildeo cristoloacutegica de Jesus ou seja ldquona sua
humanidade Jesus eacute tatildeo intimamente do Pai que eacute exatamente nisso que ele eacute
Filho de Deusrdquo Podemos ver isso nas palavras de Schillebeeckx abaixo
[hellip] natildeo devemos compreender Jesus a partir da Trindade mas vice-versa eacute somente a partir de Jesus que a plenitude da unidade divina (natildeo tanto unitas trinitaris mas trinitas unitaris) se torna acessiacutevel para noacutes de alguma forma somente com base na vida morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus sabemos que a Trindade eacute o modo divino da absoluta unidade da essecircncia divina Somente a partir de Jesus de Nazareacute de sua experiecircncia com o ldquoAbbardquo -fonte e alma de sua mensagem atuaccedilatildeo e morte ndash e de sua ressurreiccedilatildeo eacute que algo cheio de sentido pode ser dito sobre o Pai Filho e Espiacuterito Santo Pois na vivecircncia de Jesus com seu ldquoAbbardquo o importante eacute que esse ldquoestar voltado para o Pairdquo e ldquoprecedidordquo com a absoluta prioridade e internamente sustentado pelo entregar-se do proacuteprio Pai a Jesus de forma uacutenica Ora a mais antiga tradiccedilatildeo cristatilde chama de ldquoPalavraVerbordquo a essa autocomunicacatildeo de Pai base e fonte da proacutepria experiecircncia de Jesus com o ldquoAbbardquo Isso implica que a palavra de Deus eacute a base total de tudo o que apareceu em Jesus ( Schillebeeckx 2008 p663)
86
A Cristologia portanto deve comeccedilar a partir do Jesus humano sem que se
negligencie o Cristo da feacute Jesus foi o nome que mudou a histoacuteria da humanidade
como podemos dizer parafraseando Haight que Jesus de Nazareacute eacute praticamente
um consenso universal na histoacuteria como sendo um judeu que viveu nos primoacuterdios
do seacuteculo I e que posteriormente veio a ser reconhecido como o Messias ou o
Cristo Conforme Haight podemos afirmar ainda que ldquoJesus foi uma figura
concreta na histoacuteria humanardquo e por isso essa histoacuteria natildeo pode ser relegada ao
esquecimento (Haight 2003 p29)
Geza Vermes compocircs um resumo histoacuterico da vida de Jesus a partir do
Evangelho de Marcos sem as narrativas da infacircncia acima esboccediladas (em 51)
Vermes chama essas informaccedilotildees peculiares de ldquoo evangelho fundamental ndash
representado por Marcos (cf Vermes 1990 p 20) que conteacutem as seguintes
informaccedilotildees
Nome Jesus
Nome do Pai Joseacute
Nome da matildee Maria
Lugar do nascimento natildeo mencionado
Data do nascimento natildeo mencionada
Domiciacutelio Nazareacute na Galileia
Estado Civil natildeo mencionado45
Profissatildeo carpinteiro (τέκτων ) mas tambeacutem exorcista e pregador itinerante
O certificado de oacutebito pode ser preenchido de maneira um pouco mais
completa
Lugar do oacutebito Jerusaleacutem
Data da morte ldquoSob Pocircncio Pilatosrdquo entre os anos 26 e 36 dC
Causa da morte crucificaccedilatildeo ordenada pelo governador romano
Lugar do sepultamento Jerusaleacutem
45
Vermes contudo considera que Jesus era celibataacuterio uma vez que nunca haacute menccedilatildeo de qualquer esposa no decorrer do seu ministeacuterio (cf Vermes 1990 p 21)
87
Para falar do Jesus humano eacute preciso contextualizaacute-lo ao tempo e ao espaccedilo
ou seja natildeo podemos menosprezar o periacuteodo em que Jesus viveu entre os homens
Sabendo que a Palestina dos dias de Jesus estava politicamente sob o impeacuterio
romano e religiosamente dominada pelo extremismo e exclusivismo religioso natildeo eacute
difiacutecil de imaginar o quanto Jesus e sua famiacutelia devem ter sofrido preconceito numa
sociedade patriarcal em meio ao caos poliacutetico e religioso
Bruce Chilton examina a questatildeo do Jesus histoacuterico desde os dias em que
Jesus estava com os disciacutepulos ateacute um periacuteodo poacutes-apostoacutelico Segundo ele sempre
houve aqueles que questionaram a filiaccedilatildeo divina de Cristo assim como colocaram
em duacutevida a sua filiaccedilatildeo terrena Vermes um judeu com formaccedilatildeo cristatilde considera
que falar das histoacuterias da infacircncia de Jesus de uma forma ou de outra acabam por
introduzir ldquoum elemento de duacutevida acerca da paternidaderdquo (cf Vermes 1990 p21)
Como foi dito acima eacute muito provaacutevel que Jesus e seus pais tenham sofrido algum
preconceito em relaccedilatildeo agrave paternidade de Joseacute em relaccedilatildeo ao seu filho Jesus
Segundo Chilton existem trecircs teorias a respeito do nascimento de Jesus A
primeira delas eacute a que Jesus foi concebido por obra do Espiacuterito Santo conforme
descrito nos Evangelhos (Mt 118-25 Lc 134-35) A segunda teoria tem a pretensatildeo
de especular que Jesus era filho bioloacutegico de Joseacute tal como se pode compreender
da afirmaccedilatildeo de Filipe achamos a Jesus de Nazareacute ldquofilho de Joseacuterdquo (Jo 145) A
terceira teoria eacute que Jesus era filho de fornicaccedilatildeo conforme uma das interpretaccedilotildees
do evangelho de Joatildeo 841 ldquoVoacutes fazeis as obras de vosso pai Disseram-lhe entatildeo
natildeo nascemos da prostituiccedilatildeo temos soacute um pai Deusrdquo (Charlesworth 2006
p87)46
46
Juan Mateos interpreta o texto de Jo 841 partindo do princiacutepio que Jesus acusa os judeus que nele ldquohaviam cridordquo (o crer aqui pode ser obra do redator uma vez que um pouco agrave frente os mesmos querem matar Jesus cf Brown 1975 p80) de cometerem o pecado da idolatria uma vez que segundo alguns rabinos ser filho de Abraatildeo significava praticar a benevolecircncia a modeacutestia e a humildade Os que tais virtudes natildeo praticavam eram considerados como servo de um outro deus totalmente diferente do Deus de Abraatildeo por isso chamados de idoacutelatras Os judeus entenderam atraveacutes da interpretaccedilatildeo dos profetas que ao serem chamados de idoacutelatras era o mesmo que ser chamado de filhos da prostituiccedilatildeordquo algo que eles negam teoricamente mas como seus pais idoacutelatras que mataram os profetas eles da mesma forma querem matar Jesus que vem da parte de Deus (cf J Mateos 1989 p392-393) Segundo Brown ser descendente de Abraatildeo fisicamente natildeo tem nenhum meacuterito quando esse suposto filho natildeo age como agiu seu pai aqui no caso ldquoAbraatildeo que Creu quando Deus lhe falourdquo eles por outro lado natildeo creem no enviado de Deus (Jesus) por isso satildeo filhos ilegiacutetimos (cf Brown 1975 p80-81)
88
Diante desse contexto Chilton levanta uma questatildeo polecircmica Jesus pode ter
sido considerado um mamzer Algumas condiccedilotildees poderiam ser determinantes para
expor um indiviacuteduo na condiccedilatildeo de mamzer A principal caracteriacutestica que definia
uma pessoa nessa condiccedilatildeo era se tal indiviacuteduo era fruto de uma uniatildeo proibida e
consequentemente um filho proibido de acordo com a Toraacute ldquoNenhum bastardo
entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar
na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo (Dt 233) Conforme a Mishnah47
poderia ser considerado um mamzer aquele filho cuja paternidade natildeo era
conhecida e portanto natildeo havia evidecircncias que tal uniatildeo fosse permitida de acordo
com a Lei Por outro lado na visatildeo do Talmude Babilocircnico48 bastava ser filho de um
natildeo israelita para que o indiviacuteduo fosse considerado um mamzer
A legitimidade da paternidade bioloacutegica de Jesus foi assunto controverso
como indicado mais acima jaacute no segundo seacuteculo da era Cristatilde Alguns autores
como John P Meier (1991 p223) e Bruce Chilton (in Charlesworth 2006 p 85)
mencionam a acusaccedilatildeo feita por Celso jaacute no ano de 178 dC que Jesus era filho de
Maria com um soldado Romano chamado Pantera49
A fonte desta histoacuteria de acordo com Dalman (2002 p152-153) vem do
Talmude Babilocircnico O nome de um certo Jesus eacute comumente mencionado no
Talmude e na literatura talmuacutedica pelas expressotildees Filho de Stada (Satda) e Filho
de Pandera (Pantera) Segundo Dalman a traduccedilatildeo literal do texto talmuacutedico de
Shabat 104b e Sanhedrin 67a tem a seguinte forma
O filho de Stada era o filho de Pandera O Rabi Chisda disse O marido era
Stada o amante Pandera (Outro disse) o marido era Paphos ben Yehudah
Stada era sua matildee (ou) sua matildee era Mirian a cabeleireira de mulheres
como eles diriam em Pumbeditha Stath da (ie Ela era infiel) para o marido
47
A palavra Mishnah vem de Shanah ldquorepetirrdquo significa ldquorepeticcedilatildeordquo ou ldquoestudo atraveacutes da repeticcedilatildeordquo Publicada por volta do ano 200 dC pelo patriarca judeu Judas I a Mishnah eacute uma coletacircnea de leis que se impocircs como coacutedigo oficial do judaiacutesmo Ela resulta de uma compilaccedilatildeo seletiva feita no decurso do seacuteculo II da era cristatilde ndash de tradiccedilotildees normativas ambientes (halakot) Ela estaacute redigida em hebraico (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
48 ldquoTalmudrdquo significa ensinamento estudo Haacute dois Talmuds 1) o Talmud de Jerusaleacutem terminado
pelo fim do seacuteculo IV na Palestina 2) o Talmud da Babilocircnia composto no seacuteculo V em Sura Mesmo na Palestina o Talmud da Babilocircnia o mais completo suplantou o Talmud de Jerusaleacutem quando se fala do ldquoTalmudrdquo sem especificar qual designa-se exclusivamente o da Babilocircnia (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)
49 Zuurmond acha que provavelmente Pantera (ou Pandera) ldquoseja uma deformaccedilatildeo acintosa de
parthenos= virgem Deformar de propoacutesito o nome de um inimigo era (e eacute) um uso bastante comum (cf Zuurmond 1998 p77)
89
No entanto uma traduccedilatildeo mais livre do mesmo texto talmuacutedico teria a
seguinte forma segundo Dalman
Ele natildeo era filho de estada mas filho de Pandera Rab Chisda afirma
que o marido da matildee de Jesus era Stada mas o amante dela era Pandera
Outro (diz) que o marido dela era certamente Paphos ben Yeshua que ao
contraacuterio Stada era a matildee dele (Jesus) de acordo com outros sua matildee era
Mirian (Maria em hebraico) a cabeleireira das mulheres A treacuteplica eacute e eu
concordo simplesmente Stada era o apelido dela (Maria) como dito no (ou
na) Pumbeditha Stath da (que significa ldquoela provou ser infielrdquo) ao marido dela
Provavelmente a partir da leitura desses textos eacute que Celso tomou o nome
deste Jesus citado no Talmude e relacionou com o Jesus dos Evangelhos
considerando que ambos os personagens se tratavam da mesma pessoa Desta
forma conforme mencionado por Oriacutegenes Celso acusa Jesus de aleacutem de ter
inventado seu nascimento ter nascido numa cidadezinha da Judeia ser filho de uma
pobre fiandeira ter adquirido poderes maacutegicos no Egito ainda usou esses poderes
para proclamar-se Deus (Oriacutegenes 2004 p68) Embora esse relato tenha sido
retomado tambeacutem por pensadores contemporacircneos como mais um argumento para
contestar a legitimidade do nascimento de Jesus conforme relatado nos Evangelhos
Chilton no entanto considera que esse relato eacute infundado e foi apenas mais uma
ficccedilatildeo que circulou nos primeiros seacuteculos da era cristatilde
Nas comunidades judaicas dos dias de Jesus se uma mulher estivesse
graacutevida antes da consumaccedilatildeo plena do matrimocircnio ela precisaria pela tradiccedilatildeo
apresentar agrave comunidade em que vivia provas de quem era o pai da crianccedila que
estava sendo gerado em seu ventre A casta do filho estava condicionada a quem
era o seu pai ou seja se o filho por ela gerado fosse fruto de uma uniatildeo proibida
obviamente ele seria excluiacutedo da congregaccedilatildeo de Israel conforme estabelecido na
Toraacute especificamente em Deuteronocircmio 233 onde lemos ldquoNenhum bastardo
entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar
na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo
Vale ainda ressaltar que quando um contrato de casamento era firmado a
Mishnah dava o direito ao contratante de anular o mesmo sem uma justificativa
formal caso ele se sentisse injusticcedilado Se a mulher estivesse graacutevida na ocasiatildeo
do rompimento do contrato esse ato do contratante eximia a mulher da acusaccedilatildeo de
90
adulteacuterio e dessa forma o filho natildeo poderia ser considerado formalmente um
mamzer Tal situaccedilatildeo poderia dar margem a um problema de interpretaccedilatildeo da Lei a
saber a mulher uma vez abandonada poderia usar apenas a palavra acerca da
paternidade do fruto de seu ventre Essa palavra seria aceita como verdade tal
como pensavam os rabinos Gamaliel e Eliezer ou rejeitada se natildeo houvesse uma
prova concreta no pensamento do rabino Joshua (Charlesworth 2006 p87)
No primeiro caso a mulher poderia alegar que um determinado cidadatildeo da
sua comunidade era o pai da crianccedila que ela estava esperando Se a palavra dessa
mulher fosse aceita como verdadeira entatildeo pela Toraacute esse homem seria obrigado
a casar com ela e natildeo poderia mandaacute-la embora por toda a vida conforme lemos
em Deuteronocircmio 22 28-29
Se um homem encontra uma jovem virgem que natildeo estaacute prometida e a agarra e se deita com ela e eacute pego em flagrante o homem que se deitou com ela daraacute ao pai da jovem cinquenta ciclos de prata e ela ficaraacute sendo a sua mulher uma vez que abusou dela Ele natildeo poderaacute mandaacute-la embora durante toda a sua vida
Essa interpretaccedilatildeo daria margem para que as mulheres mesmo que
concebessem um filho fruto de uma uniatildeo proibida mas que indicassem um
determinado homem como sendo o pai da crianccedila pudessem tornar o fruto do
ventre em um legiacutetimo judeu aos olhos da comunidade tendo em vista que a mulher
alcanccedilou ecircxito em sua argumentaccedilatildeo o que segundo essa visatildeo natildeo seria difiacutecil
conseguir (Charlesworth 2006 p 87)
Partindo da premissa que a relaccedilatildeo sexual entre pessoas que jaacute haviam
estabelecido o contrato de casamento era toleraacutevel na eacutepoca uma possiacutevel relaccedilatildeo
sexual entre Joseacute e Maria natildeo seria proibida Mas o fato de Joseacute morar em Beleacutem e
Maria em Nazareacute exclui as possibilidades do filho ser dele (Chilton 2002 p13)
Dessa forma Jesus poderia ser considerado um mamzer jaacute que a sua concepccedilatildeo
ocorreu no periacuteodo entre o contrato de casamento e a coabitaccedilatildeo de Joseacute e Maria
Chilton observa que o pensamento de Joseacute em deixar Maria secretamente
conforme lemos em Mateus 119 seria portanto uma forma de natildeo acusar Maria de
fornicaccedilatildeo Natildeo obstante a maravilhosa forma como Joseacute assumiu a paternidade
pode natildeo ter sido suficiente para inibir as mais adversas situaccedilotildees pelas quais Jesus
91
tenha sido alvo desde a infacircncia ateacute a crucificaccedilatildeo proveniente de especulaccedilotildees
sobre a legitimidade de sua paternidade bioloacutegica
Observando as teorias propostas acima a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus
podemos pensar sobre os diferentes conceitos que seus contemporacircneos tinham a
respeito dele Ele era filho de Deus gerado pelo Espiacuterito Santo Ele era filho de Joseacute
ou de um pai desconhecido As palavras ldquoNatildeo nascemos da prostituiccedilatildeordquo (Jo 841)
poderiam ter sido usadas com ironia a fim de colocar em duacutevida sua reputaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees concernentes agrave paternidade bioloacutegica Por que ele foi
chamado de o ldquocarpinteiro o filho de Mariardquo (Mc 63) e natildeo filho de Joseacute e de Maria
entre os seus conterracircneos
Essas questotildees levantadas acima satildeo passiacuteveis de outras interpretaccedilotildees
quando olhamos o texto do Evangelho de Joatildeo a partir de uma cristologia alta50
Embora seja possiacutevel que os judeus tenham procurado debater com Jesus sobre
sua filiaccedilatildeo humana Jesus no entanto sempre usou tais debates para evidenciar
sua filiaccedilatildeo divina e enfatizar sua relaccedilatildeo com o Pai atraveacutes da palavra Abba que
para J Jeremias eacute a mensagem central do Novo Testamento
53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS
Jesus se relacionava com Deus de uma maneira peculiar a qual eacute evidente
nos evangelhos Segundo Pagola a experiecircncia de vida de Jesus eacute a partir de um
Deus Pai que para Jesus eacute aquele que cuida ateacute mesmo das criaturas fraacutegeis e
insignificantes aos olhos dos homens Esse Pai tambeacutem atende aos pobres e
necessitados traz a cura aos enfermos busca os perdidos enfim Deus Pai se torna
o centro de toda a mensagem e da proacutepria vida de Jesus de Nazareacute (Pagola 2010
p 380-381)
Nos Evangelhos a palavra Pai aparece nos laacutebios de Jesus mais de 170
vezes quando ele se dirige a Deus seja por interpelaccedilatildeo ou por designaccedilatildeo
Segundo J Jeremias eacute preciso distinguir a interpelaccedilatildeo da designaccedilatildeo de Deus
como Pai quando esse termo eacute proferido por Jesus nos evangelhos Em suas
50
A cristologia alta refere-se agrave crenccedila na preexistecircncia e na divindade de Jesus (cf
httpwwwcentroestudosanglicanoscombrbancodetextosbibliahermeneuticaresenhas_brown_julio_cesarpdf acesso em 23102011 as 1225 horas)
92
oraccedilotildees Jesus sempre fez uso da interpelaccedilatildeo Pai para invocar a Deus com
exceccedilatildeo do grito da cruz em Mc 1534 par Mt 2746 ldquoMeu Deus meu Deus por que
me abandonasterdquo interpelaccedilatildeo essa que jaacute estava prefixada pelo Sl 221 Aleacutem da
interpelaccedilatildeo eacute muito comum Jesus referir-se a Deus como ldquoo Pairdquo (ὁ πατὴρ) ldquomeu
Pairdquo (τοῦ πατρός μου) e ldquovosso Pairdquo (ὁ πατὴρ ὑμῶν ) (Jeremias 2005 p43)
De fato Jesus usou essas trecircs formas para designar Deus como Pai A
designaccedilatildeo ldquoo Pairdquo encontra-se em alguns textos dos evangelhos em Marcos (Mc
13 32 = Mt 24 36) em Mateus e Lucas juntos (Mt 11 27 = Lc 10 22) somente em
Lucas (Lc 9 26 1113) somente em Mateus (Mt 28 19) e em Joatildeo setenta e trecircs
vezes Sobre a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo encontramos em Marcos (Mc 11 25)
Mateus e Lucas juntos (Mt 5 48 = Lc 6 36 1230) somente em Lucas (Lc 12 32)
somente em Mateus (Mt 5 16 44 61 81526 7 11 10 20 29 18 14) e em Joatildeo
(Jo 8 42 20 17) Aleacutem disso o termo ldquomeu Pairdquo que se encontra em Marcos (Mc
838 = Mt 16 27) τοῦ πατρὸς αὐτοῦ [de seu Pai] mesmo que em referecircncia ao
Filho do Homem natildeo pode figurar sem reservas entre os testemunhos da foacutermula
Meu Pai) (Jeremias 2005 p43) E por fim conforme J Jeremias a expressatildeo
ldquomeu Pairdquo encontra-se nos seguintes textos dos Evangelhos Mateus e Lucas juntos
(Mt 11 27 ndash Lc 1022) somente em Lucas (Lc 249 22 29 24 49) somente em
Mateus (Mt 7 21 10 32-33 12 50 15 13 16 17 18 10 19 35 20 23 25 34 26
29 53 e em Joatildeo vinte e cinco vezes
Para J Jeremias haacute uma crescente tendecircncia em introduzir a designaccedilatildeo de
Deus como Pai nos evangelhos Excluindo as invocaccedilotildees de Pai por Jesus e
contando os paralelos sinoacuteticos J Jeremias observa que em Marcos aparece
apenas trecircs vezes jaacute em Mateus e Lucas juntos (coleccedilatildeo dos logias) aparece
quatro vezes enquanto que somente em Lucas eacute mencionado quatro vezes Os
ditos que satildeo proacuteprios de Mateus satildeo citados trinta e uma vezes A ecircnfase recai
sobre o Evangelho de Joatildeo escrito mais tarde onde a designaccedilatildeo de Deus como
Pai nas palavras de Jesus aparece cem vezes Segundo J Jeremias haacute uma
evidente progressatildeo do uso da palavra Pai usada por Jesus em Marcos na coleccedilatildeo
dos Logia e nos elementos proacuteprios de Lucas Analisando os textos dos Evangelhos
referentes ao uso da palavra Pai observa-se que todos enfatizam essa relaccedilatildeo
iacutentima de Jesus com o Pai do ceacuteu Desse modo ldquopode-se dizer que Jesus se servia
93
da palavra Pai para designar a Deus somente em certas circunstacircncias Em
Mateus acha-se uma progressatildeo sensiacutevel no uso do termo e em Joatildeo Pai quase
tornou-se sinocircnimo de Deusrdquo (Jeremias 1977 p26-27)
Francisco Reyes Archila nota a frequecircncia do uso da palavra Pai em Joatildeo
mesmo sendo este o Evangelho que ao mesmo tempo em que evidencia a
paternidade divina protagoniza tambeacutem a figura feminina no discipulado
especialmente de Maria Madalena51 Archila analisando essa progressatildeo do uso da
palavra Pai em Joatildeo nos laacutebios de Jesus como tambeacutem jaacute havia sido observada por
J Jeremias vecirc ainda uma tendecircncia maior em Mateus em registrar o termo Pai em
relaccedilatildeo a Deus do que em Marcos e Lucas onde o termo praticamente natildeo aparece
Referindo-se a Joatildeo Archila tambeacutem eacute de acordo que natildeo somente nos
Evangelhos mas tambeacutem nas cartas o termo Pai eacute usado com uma frequecircncia
muito alta Para Archila jaacute que em Mateus a frequecircncia natildeo eacute tatildeo alta e em Marcos
e Lucas ela praticamente natildeo aparece e nem nas cartas de Paulo se usa esse
termo referindo-se a Deus somente na introduccedilatildeo das cartas (Rm 17 1 Co 13
2Cor 13 2Cor 12 1131 Gl 1 1-3 Ef 11 520 Cl 1 2-3 1Ts 11 2Ts 11 1tm 12
2Tm 12 Tt 14 Fm3) Eacute de se suspeitar segundo esse autor52 de que Jesus tenha
realmente dirigido-se a Deus sempre como Pai o mais provaacutevel seria que com o
decorrer do tempo (jaacute que Joatildeo foi escrito posteriormente aos outros Evangelhos) a
Igreja primitiva tenha assumido progressivamente essa expressatildeo devido ao
ldquoespiacuterito patriarcal proacuteprio do ambiente cultural da eacutepocardquo (Archila 2007 p99)
Podemos ver sobre o relevante uso do termo Pai no Evangelho de Joatildeo no
resumo feito por Matthias Grenzer conforme exposto abaixo
1ndash O Pai ama o Filho porque este uacuteltimo daacute a sua vida (Jo 1017)
2- O Pai mostra ao Filho tudo o que ele mesmo faz (Jo 5 20)
51
Hamerton-Kelly esclarece que o fato de Jesus ter escolhido o siacutembolo de ldquopairdquo para referir-se a
Deus foi uma forma de reorganizar a forma de patriarcado da eacutepoca com a finalidade de tornar as pessoas livres das ldquogarras do patriarcadordquo Para Hamerton-Kelly longe de ser um siacutembolo sexista o pai era para Jesus uma arma escolhida para combater o que chamam de sexismo O termo ldquopairdquo tem sido interpretado fora de seu contexto apresentando um ldquodeusrdquo do sexo masculino que tem sido colocado primariamente como macho mas segundo esse autor a situaccedilatildeo poderia ser mudada ldquocomo temos tentado fazerrdquo (cf Hamerton-kelly 1979 p103) Roger Haight estaacute de acordo que Hamerton-Kelly na nota acima segue J Jeremias sobre a forma como Jesus fazia uso do termo ldquopairdquo que em seu contexto significa algo semelhante agrave ldquomatildeerdquo na sociedade moderna desenvolvida (cf Haight 2003 p 128)
52 Archila estaacute citando Lothar Coenen e outros (Diccionaacuterio teoloacutegico del Nuevo Testamento
Salamanca Siacutegueme vol 3 1983 p 244)
94
3- Ao permanecer no Filho o Pai realiza as suas obras (Jo 1410)
4- O Pai vivo enviou o filho e o filho vive atraveacutes do Pai (Jo 6 57)
5- O Filho fala o que o Pai lhe diz (Jo 12 49-50)
6- O Filho por si mesmo nada faz mas realiza soacute aquilo que vecirc o Pai fazer (Jo
519)
7- Com esse relacionamento muacutetuo de maior intensidade o Pai ama o filho (Jo
335 5 20 1017 159) e o Filho ama o Pai (Jo 1431)
8- O Filho permanece no amor do Pai (Jo 1510)
9- O Pai estaacute no Filho e o Filho estaacute no Pai (Jo 1038 1411 1721)
Esse profundo relacionamento do Filho com o Pai pode ser compartilhado com
o ser humano segundo Grenzer desde que o disciacutepulo reconheccedila o Filho no Pai (Jo
1417) pois aquele que conhece o Filho tambeacutem conhece o Pai (Jo 14 7-9)
ldquoAquele que ama o Filho observando os mandamentos dele seraacute amado pelo Pairdquo
(Jo 1421) Ou ao contraacuterio ldquoquem natildeo honra o Filho tambeacutem natildeo honra o Pai que
o enviou (Jo 523)rdquo Portanto a relaccedilatildeo de Jesus (o Filho) com Deus (o Pai) no
Evangelho de Joatildeo eacute de extrema relevacircncia para compreendermos a cristologia e
para aprendermos a perfeita forma de nos relacionarmos com o Pai celeste
(Grenzer 2009 p 184)
Archila (2007 p99) contabiliza que a expressatildeo Pai para nomear Deus no
Novo Testamento ocorre 245 vezes enquanto que a mesma palavra para designar o
pai bioloacutegico ocorre 157 vezes O motivo para tal ecircnfase para o uso dessa
expressatildeo referindo-se a Deus pode ser pela ldquoinfluecircncia da filosofia grega53 na
nomeaccedilatildeo de Deus como Pai Contudo segundo o mesmo autor o mais plausiacutevel
do ponto de vista histoacuterico eacute a possibilidade que Jesus realmente ldquotenha chamado a
Deus como meu pai ou nosso pai ou pai de vocecircs (Mt 69 2629 42 Lc 112)
Inclusive eacute mais provaacutevel que Jesus o tenha nomeado como Abba palavra usada
pelos filhos ao dirigir-se a seus pais e que equivale a papai (Archila 2007 p99-
53
ldquoA ideia da paternidade de Deus recebe uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica em Platatildeo e nos estoicos
Platatildeo na sua elaboraccedilatildeo cosmoloacutegica da ideia do pai ressalta o relacionamento criador de Deus o pai universal para com o cosmos inteiro (Tim 28c 41a e frequentemente) Para os estoicos a autoridade de deus como Pai permeia o universo ele eacute criador pai e sustentador dos homensrdquo (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)
95
100) Essa forma de dirigir-se a Deus como Pai ou seja essa ideia de ser filho de
Deus contrapotildee-se a ideia presente na filosofia grega e tambeacutem da concepccedilatildeo
romana do Imperador como ldquofilho de deusrdquo Por outro lado ainda o Abba de Jesus
assimilado pela Igreja primitiva dava o direito aos considerados apaacutetridas sociais a
terem o direito de ter um pai o que provavelmente deve ter provocado implicaccedilotildees
agrave Igreja jaacute que essas ideias iam contra aos valores da sociedade patriarcal daquela
eacutepoca (Archila 2007 p103-104)
A imagem que Jesus apresentou do Pai do ceacuteu natildeo pode ser associada com o
que a patriarcalizaccedilatildeo que a cristandade ocidental fez de Deus Para Jesus
segundo Archila Deus natildeo eacute um pai superpoderoso dominante prepotente e
distante dos seus filhosrsquo ele eacute por natureza um pai proacuteximo iacutentimo terno e
misericordioso ou seja ele nos mostra a imagem de um Deus Pai bom e justo Em
outras palavras pode-se dizer que Jesus humanizou a imagem de Deus rompendo
com a imagem patriarcal54 androcecircntrica e exclusivista para apresentar a imagem
de Deus como o Pai bom que projeta nos seus filhos um modelo de relacionamento
fraterno entre homens mulheres crianccedilas com a proacutepria natureza e por fim com o
proacuteprio Deus (Archila 2007 p107)
Trabalhando ainda o Abba nos laacutebios de Jesus eacute relevante observarmos que
Santos Sabugal tambeacutem lista as invocaccedilotildees e designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo nos
laacutebios de Jesus como sendo empregado natildeo menos de 184 vezes (Marcos 4 Lucas
17 Mateus 44 Joatildeo 119 = 111 nos laacutebios de Jesus) assim o referido autor resume
o emprego das designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo por Jesus nos Evangelhos
Esse uso eacute portanto limitado em Marcos mas frequente em Lucas e sobre tudo em Mateus para culminar no evangelho de Joatildeo E as estatiacutesticas refletem de alguma forma em cada evangelho a concepccedilatildeo teoloacutegica da paternidade divina Marcos representa o estagio inicial desta concepccedilatildeo desenvolvida pela teologia de Lucas e significativamente ampliada por Mateus atingindo seu pico mais alto em Joatildeo o teoacutelogo por excelecircncia da paternidade de Deus (Sabugal 1985 p381)
54
Segundo Archila o patriarcado eacute definido como ldquouma relaccedilatildeo de poder entendido como dominaccedilatildeo e superioridade que o varatildeo exerce sobre mulheres e crianccedilasrdquo O modelo que o sistema patriarcal pretende representar eacute baseado numa forma hegemocircnica da dominaccedilatildeo do varatildeo sobre a mulher Esse modelo ldquoinclui papeis competecircncias haacutebitos valores formas de pensar e inclusive formas institucionais como leis e normasrdquo (Archila 2007 p 91-92)
96
Para Sabugal portanto nenhum judeu mesmo os mais piedosos invocou a
Deus como o Abba assim como fez Jesus constantemente Ele tinha a
autoconsciecircncia de ser o filho de Deus Essa forma de invocar a Deus tornou-se natildeo
apenas parte integrante e essencial das suas oraccedilotildees como tambeacutem parte
integrante do seu meacutetodo de ensino sobre a oraccedilatildeo (Sabugal 1985 p386)
Joseacute Antonio Pagola tambeacutem eacute de acordo que Jesus como todas as demais
crianccedilas da Galileia em suas primeiras palavras balbuciou os termos immaacute
(mamatildee) e abba (papai) quando se dirigia a Maria e Joseacute seus pais Contudo
segundo Pagola pode ser um exagero limitar o uso do abba apenas agraves criancinhas
visto que ateacute mesmo os adultos parece que usavam tal expressatildeo como forma de
respeito agrave figura paterna dentro de uma estrutura familiar patriarcal (Pagola 2010
p383)
Mas natildeo precisamos exagerar Parece que tambeacutem os adultos empregavam esta palavra expressando seu respeito e obediecircncia ao pai da famiacutelia patriarcal Chamar a Deus de Abbaacute indica carinho intimidade e proximidade mas tambeacutem respeito e submissatildeo Jesus havia conhecido em sua proacutepria casa a importacircncia do pai Joseacute era o centro de toda a famiacutelia Tudo gira em torno dele O pai cuida dos seus e os protege Se ele falta a famiacutelia corre o risco de desintegrar-se e desaparecer Eacute ele quem sustenta e assegura o futuro de todos Haacute dois traccedilos que caracterizam um bom pai O primeiro eacute a solicitude para com os filhos eacute ele quem deve assegurar-lhes o sustento necessaacuterio protegecirc-los e ajudaacute-los em tudo Ao mesmo tempo o pai eacute autoridade da famiacutelia ele daacute as ordens para assegurar o bem de todos Ele instrui os filhos ensina-lhes um oficio se necessaacuterio Os filhos por sua vez satildeo chamados a ser a alegria do pai (Pagola 2010 p 383-384)
Para fundamentar sua tese de que o abba era um linguajar infantil e que
Jesus que ressignificou esse termo J Jeremias recorre aos pais da Igreja
Crisoacutestomo Teodoro de Mopsueacutestia e Teodoreto de Ciro originaacuterios de Antioquia
uma populaccedilatildeo que falava o siriacuteaco ocidental do aramaico Segundo J Jeremias
esses ldquopais da Igrejardquo satildeo de comum acordo de que o termo Abba era a palavra
usada por um filho pequenino quando se dirigia ao seu pai Um outro documento
usado por J Jeremias para dar sustentaccedilatildeo agrave sua pesquisa eacute o relato do Talmude (b
Berakocirct 40a b Sanedriacuten 70b) citado por ele com as seguintes palavras ldquoQuando
uma crianccedila prova o gosto do cereal isto eacute tatildeo logo como o detestam aprende a
dizer Abba e imma (papai e mamatildee) Abba e imma satildeo pois as primeiras palavras
que a crianccedila balbucia Abba era a linguagem infantil uma palavra comum
97
empregada diariamente ningueacutem tinha ousado dirigir-se a Deus desse modordquo (cf
Jeremias 2006 p63)
Deus como Pai para Jesus eacute com frequecircncia um Pai bom Ele ldquofaz nascer
seu sol sobre bons e maus Manda a chuva sobre justos e injustos (Lc 635 Mt
545) Para Pagola Jesus demonstra isso com muita maestria na paraacutebola do ldquofilho
perdidordquo (Lc 15 11-32) Nessa paraacutebola Pagola observa que o pai natildeo eacute um
personagem autoritaacuterio que natildeo respeita as decisotildees dos filhos pelo contraacuterio ele eacute
um pai amoroso e mesmo que o filho o tenha abandonado ele o recebe de braccedilos
abertos assim que este o pede perdatildeo (Pagola 2010 p386)
Embora a teologia do Abba seja defendida como a ipssissima vox de Jesus
por J Jeremias alguns autores contemporacircneos como Udo Schnelle defende que
natildeo haacute novidade na forma de Jesus invocar ou designar a Deus como pai visto que
isso era uma praacutetica comum tanto no judaiacutesmo como no mundo greco-romano
Segundo Schnelle a novidade do Abba nos laacutebios de Jesus estaacute na ecircnfase na
frequecircncia e na simplicidade com que Deus eacute designado como Pai nos Evangelhos
quando esse termo eacute proferido por Jesus (Schnelle 2010 p99-100)
J Jeremias defende que Jesus usou a palavra Pai na maioria das vezes
quando essa relaccedilatildeo era do Filho com o Pai Quanto ao uso da palavra Pai em
relaccedilatildeo a outras pessoas Jesus nunca fez alguma referecircncia a natildeo ser raras vezes
a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo apenas aos seus disciacutepulos e nunca a outros grupos
visto que a paternidade divina era uma exclusividade estendida apenas aos
disciacutepulos Grupos como os escribas e fariseus foram excluiacutedos dessa filiaccedilatildeo pois
o pai deles eacute o diabo conforme Joatildeo 8 42-44 (Jeremias 2008 p271)
Disse-lhes Jesus ldquoSe Deus fosse o vosso pai voacutes me amariacuteeis porque saiacute de Deus e dele venho natildeo venho por mim mesmo mas foi ele que me enviou Por que natildeo reconheceis minha linguagem Eacute porque natildeo podeis escutar minha palavra Voacutes sois do diabo vosso pai e quereis realizar os desejos do vosso pai Ele foi homicida desde o princiacutepio e natildeo permaneceu na verdade quando ele mente fala do que lhe eacute proacuteprio porque eacute mentiroso e pai da mentira
98
A questatildeo da filiaccedilatildeo divina eacute um processo iacutentimo entre o Pai e seu filho J
Jeremias observou que o texto do evangelho de Mateus (Mt 1127) pode ser mais
bem traduzido do seguinte modo ldquocomo soacute um Pai conhece o seu filho assim soacute um
filho conhece o seu pairdquo (Jeremias 1977 p29) Essa relaccedilatildeo de Filho e Pai que
Jesus propagou no Novo Testamento tem no Antigo Testamento o paralelo mais
proacuteximo nas palavras do salmista ldquoComo um pai se compadece dos filhos assim se
apieda o Senhor dos que o tememrdquo (Sl 103 13) Mas para os filhos do Reino o pai
eacute ainda maior Ele aleacutem de bondoso e misericordioso eacute benigno ateacute mesmo com os
ingratos e maus (Lc 635)
Seguindo esse pensamento Joseph A Fitzmyer observa que quando Jesus
instruiu os disciacutepulos a invocar a Deus como Pai Ele estava mostrando que Deus
natildeo era somente o ldquotranscendente Senhor dos ceacuteus mas estaacute perto assim como um
pai com seus filhosrdquo (Fitzmyer 1985 p898) Para Stephen A Missick Abba eacute
contudo um misteacuterio uma revelaccedilatildeo especial que vem somente atraveacutes de Jesus
Cristo Missick assim como J Jeremias observa que o texto de Mateus 1127
poderia ser parafraseado em aramaico ficando da seguinte forma ldquosomente pai e
filho realmente se conhecem Porque apenas um pai e um filho verdadeiramente
conhecem um ao outro portanto um filho pode revelar aos outros os pensamentos
mais iacutentimos de seu pairdquo (Missick 2006 p23) Para Missick o maior exemplo para
demonstrar essa intimidade entre o Filho e o Pai e o poder que o Filho tem de
revelar o Pai estaacute registrado em Joatildeo 148
Filipe lhe diz ldquoSenhor mostra-nos o Pai e isso nos bastardquo Diz-lhe Jesus ldquoHaacute tanto tempo estou convosco e tu natildeo me conheces Filipe Quem me vecirc vecirc o Pai Como podes dizer Mostra-nos o Pai Natildeo crecircs que estou no Pai e que o Pai estaacute em mim As palavras que vos digo natildeo as digo de mim mesmo mas o Pai que permanece em mim realiza suas obras Crede-me eu estou no Pai e o Pai em mim Crede-o ao menos por causa dessas obrasrdquo
O discurso de Jesus sempre foi conflitante com os grupos religiosos de sua
eacutepoca e isto se agravou mais ainda pelo modo como Ele invocava a Deus mediante
a expressatildeo ldquomeu Pairdquo fato que natildeo era comum no Judaiacutesmo Se essa forma de
99
dirigir-se a Deus chamando-o de ldquomeu Pairdquo era incomum muito mais incomum
ainda era o emprego da forma aramaica ldquoAbbardquo (Jeremias 2008 p116) Os Judeus
usavam duas maneiras de tratar o Pai uma que era muito comum e tambeacutem usada
no cotidiano familiar abba e outra que era mais solene e elevada abicirc (אב)
(Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p649) Para um judeu usar a palavra
Abba para dirigir-se a Deus parecia ser um atrevimento pois tal palavra soava como
balbucio Abba estava entre as primeiras palavras que uma crianccedila aprendia a falar
conforme a referecircncia que J Jeremias faz ao Talmude Babilocircnico jaacute citado neste
trabalho55
Jaacute nos dias de Jesus abba jaacute tinha deixado de ser apenas uma linguagem das
criancinhas para tornar-se uma forma como os filhos adultos se dirigiam a seu pai
como podemos ver na paraacutebola do filho proacutedigo (Lc 15 21) Nos laacutebios de Jesus
aleacutem de tornar-se uma forma familiar de invocar e dirigir-se a Deus abba passou a
ser tambeacutem considerada uma palavra lsquosagradarsquo uma vez que um soacute eacute o Pai dos
disciacutepulos a saber o que estaacute nos ceacuteus conforme Mateus 239 (Jeremias 2008
p121) Para Jesus Abba tornou-se uma expressatildeo de honra que somente o Pai
celeste eacute digno Essa maneira simples e iacutentima de Jesus dirigir-se a Deus como
uma criancinha fala a seu pai foi considerado por J Jeremias como a ipsiacutessima vox
de Jesus isto eacute um modo proacuteprio e original de falar usado por Jesus e que natildeo
tinha nenhuma analogia na literatura da eacutepoca (Jeremias 2008 p120)
[] a forma abbaacute suplantou a forma abbi usada no aramaico paletinense ateacute pelo menos o seacutec 2 a C como constatamos pela documentaccedilatildeo Aleacutem disso abbaacute tomou o sentido de ldquomeu pairdquo e de ldquoo pairdquo e ldquonosso pairdquo De tal modo que a palavra natildeo era apenas parte do linguajar das crianccedilas Os jovens de ambos os sexos tambeacutem chamavam o proacuteprio pai de Abbaacute (cf Lc 15 21) natildeo recorrendo agrave palavra ldquoSenhorrdquo (Kyrie) a natildeo ser cerimonioso (cf Mt 21 29-30) Mas apesar destes desenvolvimentos jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil (Jeremias 1977 p 24-25)
Mais tarde Fitzmyer comentando essa tese reconhece que J Jeremias
entendeu que Jesus natildeo se dirigiu a Deus invocando-o como uma criancinha faz
com seu pai Fitzmyer tambeacutem concorda que Abba eacute a ipisissima vox de Jesus para
55
para esclarecer essa tese podemos ver uma versatildeo semelhante a jaacute citada por J Jeremias (2006 p63) em outra obra sua conforme transcrevemos abaixo ldquoSomente quando uma crianccedila experimenta o gosto do trigo (isto eacute quando eacute desmamada) eacute que ela diz aacutebba imma [matildee] ou seja estes satildeo os primeiros balbuciosrdquo (cf Jeremias 2008 p119)
100
expressar o seu relacionamento com Deus mas que Abba por si soacute sem as oraccedilotildees
de louvor registradas pelos evangelistas Mateus e Lucas (Mt 11 25-27 Lc 10 21-
22) natildeo eacute suficiente para subsidiar tal argumento (Fitzmyer 1993 p61) Para
Ephraim o meacuterito de ter levado ao grande puacuteblico o verdadeiro sentido de como
Jesus se dirigia a Deus Pai chamando-o de Abba eacute de J Jeremias
[hellip] Joachim Jeremias levou ao grande puacuteblico toda a beleza do nome Abba tal como Jesus o pronunciava Enfatizou com razatildeo que em nenhuma outra parte do judaiacutesmo se encontra tal familiariadade Mesmo se por vezes Deus era invocado pelo vocaacutebulo Pai ningueacutem ousou antes do Filho primogecircnito dentre um grande nuacutemero de irmatildeos chamaacute-lo de Abba que literalmente quer dizer papai A ousadia amorosa sempre estivera do lado do Pai pois do lado da criatura nunca ningueacutem fora tatildeo longe como Jesus na resposta adesatildeo e entrega ao amor misericordioso (Ephraim 1998 p174)
54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS
Sabendo que os Evangelhos sinoacuteticos contecircm muitos traccedilos que remontam
para uma redaccedilatildeo poacutes-pascal J Jeremias pergunta ldquoseremos capazes de
remontarmos em particular a ipsissima vox de Jesusrdquo Os evangelhos apresentam
o querigma de Jesus ou segundo J Jeremias seria mais exato dizer que eles
apresentam a Didaquecirc (ensino) da Igreja primitiva A pergunta acima pode gerar um
certo ceticismo contudo natildeo tem forccedila para destruir o argumento de que
[] os logia de Jesus apresentam certas particularidades que devemos considerar como suas expressotildees favoritas jaacute que figuram independentemente uma das outras nas diversas narrativas da tradiccedilatildeo Abba e amen satildeo os traccedilos da linguagem mais caracteriacutesticos da ipsissima vox de Jesus (Jeremias 2006 p 137-138)
Haacute uma distinccedilatildeo entre ipsissima vox e ipsissima verba de Jesus Segundo J
Jeremias a presenccedila de um modo de falar preferido de Jesus (ipsissima vox) natildeo
dispensa absolutamente de examinar em cada caso particular se temos um dito
autecircntico (ipsissima verba) (Jeremias 2008 p79) Os apoacutestolos assim
compreenderam e Paulo vai dizer mais tarde que Abba eacute o clamor (ipsissima vox)
dos filhos de Deus daqueles que foram adotados na comunhatildeo do Espiacuterito Santo
Segundo Missick a importacircncia da palavra Abba vem justamente ao encontro dessa
teoria pois segundo ele natildeo haacute duacutevida de que essa foi a palavra exata que Jesus
101
falou ou seja Abba eacute a ipsissima vox a voz original ou a ipsissima verba as
autecircnticas palavras de Jesus (Missick 2006 p 23)
J Jeremias baseando-se em Dalman diz-nos que assim como o Abba a
palavra amen (ἀμήν) quando proferida por Jesus natildeo possui nenhum equivalente
na literatura judaica e nem nos demais escritos do Novo Testamento Nos discursos
judaicos a palavra ameacuten ldquoservia para ratificar reforccedilar e fazer proacuteprias as palavras
de outro (cf Jr 28 6) na tradiccedilatildeo dos logia de Jesus se utiliza sem exceccedilatildeo esse
termo para reforccedilar o proacuteprio discursordquo (cf Jeremias 2006 p 138) Podemos ver
esse pensamento exposto nas palavras do proacuteprio Dalman
Jaacute foi frequumlentemente apontado que o modo como Jesus usa a palavra ameacutem natildeo eacute familiar em toda a literatura judaica Mesmo em Sota II 5 cf Jerus I e II num 522 realmente natildeo pode ser forccedilado a comparaccedilatildeo Nessa passagem a repeticcedilatildeo amen pronunciado pela mulher suspeita de adulteacuterio eacute explicada como um protesto de sua inocecircncia como se ela estivesse a dizer ameacutem [= eu protesto] que eu natildeo me poluiacute ameacutem que eu natildeo vou poluir a mim mesma (cf Dalman 1902 p226)
J Jeremias refere-se agraves foacutermulas ameacuten legocirc hymin (sou) (em verdade vos [te]
digo) nos sinoacuteticos e amen ameacuten legocirc hymin (soi) (em verdade em verdade vos
[te] digo) em Joatildeo Segundo ele o nuacutemero de vezes que tais expressotildees aparecem
nos evangelhos eacute 13 vezes em Marcos 30 em Mateus (+ Mt 18 19 var) 6 em
Lucas e 25 em Joatildeo onde haacute uma reduplicaccedilatildeo Para J Jeremias este amen natildeo
responsivo coloca-nos diante de uma forma totalmente nova e peculiar dos
Evangelhos e principalmente de Jesus (Jeremias 2006 p 138-139)
Sobre a grandeza do Abba como a ipsissima vox de Jesus vejamos o que nos
diz J Jeremias
Natildeo haacute paralelos com esta mensagem de que Jesus quer ocupar-se dos pecadores natildeo dos justos e que desde agora lhes daacute jaacute a participaccedilatildeo em seu reinado Natildeo haacute paralelos com este Jesus que se senta agrave mesa com publicanos e pecadores Natildeo haacute paralelos com a autoridade com que Jesus se atreve a dirigir-se a Deus com a invocaccedilatildeo de Abba Quem reconhece unicamente o fato (e natildeo sei como algueacutem poderia negaacute-lo) de que a palavra ldquoabbardquo eacute ipsissima vox Iesu esse tal se entende bem a palavra e natildeo a desvirtua estaacute diante da pretensatildeo que Jesus tinha de sua proacutepria majestade (Jeremias 2006 p40)
Se para Jesus invocar a Deus como Pai era um direito exclusivo dado aos
disciacutepulos na igreja primitiva isso era privileacutegio apenas dos membros que jaacute
102
estavam integrados na igreja aos neoacutefitos era lhes reservado o direito de aprender a
oraccedilatildeo mas soacute podiam pronunciaacute-la em puacuteblico a partir da primeira Eucaristia logo
apoacutes o batismo conforme Cirilo um sacerdote de Jerusaleacutem que viveu por volta do
ano 350 dC (Jeremias 1979 p10) Segundo J Jeremias essas restriccedilotildees podem
ser vistas ateacute mesmo na divisatildeo dos capiacutetulos da Didaquecirc no seacuteculo I Na Didaquecirc
a oraccedilatildeo e a ceia do Senhor soacute vecircm depois do batismo (Jeremias 1979 p9-10)
Isso demonstra o quanto era sagrado o direito de invocar a Deus Pai chamando-o
de Abba Pai
55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR
Jesus pertencia a uma famiacutelia piedosa judaica (Lc 2 1-52 cf 416) viveu no
meio de um povo que sabia orar por isso eacute bem provaacutevel que desde menino tenha
aprendido em casa com seus pais a exercer a praacutetica da oraccedilatildeo cotidiana
Segundo J Jeremias natildeo eacute possiacutevel saber muita coisa sobre a praacutetica de oraccedilatildeo na
vida de Jesus aleacutem dos trecircs gritos da cruz relacionados nos sinoacuteticos haacute ainda
duas oraccedilotildees ldquoo grito de juacutebilo (Mt 11 25-26) e a oraccedilatildeo do Getsecircmani (Mc 14 36)rdquo
O Evangelho de Joatildeo registra outras trecircs oraccedilotildees de Jesus na ressurreiccedilatildeo de
Laacutezaro (Jo 1 14-42) na esplanada do templo (equivalente joanino da oraccedilatildeo do
Getsecircmani Jo 12 27) e a oraccedilatildeo sacerdotal (Jo 17) Aleacutem disso temos outros
relatos gerais de oraccedilatildeo registrados nos Evangelhos (cf Mc 1 35 646=Mt 14 23
Lc 3 21 5 16 6 12 9 18 28-29 Lc 22 31-32) e a oraccedilatildeo do Pai-nosso
(Jeremias 2006 p123)
Podemos ainda mencionar que com exceccedilatildeo das mulheres dos filhos
pequenos e dos escravos todos os homens de Israel a partir dos treze anos
estavam obrigados a recitar regularmente o Shemaacute56 (ldquoOuve oacute Israel Iahweh nosso
Deus eacute o uacutenico Iahwehrdquo Dt 64) duas vezes ao dia Aleacutem da profissatildeo de feacute judaica o
mandamento divino era logo recitado em seguida (cf Jeremias 2006 p 116)
Portanto amaraacutes a Iahweh teu Deus com todo o seu coraccedilatildeo com toda a tua alma e com toda a tua forccedila Que estas palavras que hoje te ordeno
56
No entanto segundo J Jeremias o shemaacute era ensinado aos filhos desde que esses aprendiam a falar (cf Jeremias 2006 p 116)
103
estejam em teu coraccedilatildeo Tu as inculcaraacutes aos teus filhos e delas falaraacutes sentado em tua casa e andando pelo caminho deitado e de peacute (Dt 6 5-7)
No Novo Testamento a oraccedilatildeo jaacute havia deixado de ser praticada duas vezes
ao dia para concretizar-se em trecircs vezes conforme vemos no livro dos Atos dos
Apoacutestolos (31 10 3-30) e na Didaquecirc (83) Segundo Jeremias isso se deve ao
fato de ter havido uma fusatildeo entre o Shemaacute (apesar dessa natildeo ser propriamente
uma oraccedilatildeo mas uma profissatildeo de feacute) com a Tefilaacute no periacuteodo da manhatilde e da noite
enquanto que na oraccedilatildeo da tarde natildeo se recitava o Shemaacute Para os israelitas esses
momentos de oraccedilatildeo eram muito preciosos jaacute que se assegurava a formaccedilatildeo dos
jovens na praacutetica da oraccedilatildeo (Jeremias 2006 p22)
Jesus com certeza conhecia as oraccedilotildees e as formas lituacutergicas para proferi-las
no entanto ao ser indagado pelo disciacutepulo anocircnimo (Lc 111) com a indagaccedilatildeo
ldquoSenhor ensina-nos a orarrdquo eacute claro que o Mestre sabia que seus disciacutepulos tambeacutem
conheciam as oraccedilotildees tradicionais visto que tambeacutem eram judeus No entanto eacute
muito provaacutevel que o disciacutepulo anocircnimo estaacute pedindo a Jesus um novo modelo de
oraccedilatildeo que os distinguisse como um grupo Jesus ensinou-lhes o Pai-nosso que se
tornaria a oraccedilatildeo oficial da Igreja primitiva e viria a substituir o antigo modelo das
trecircs oraccedilotildees diaacuterias tatildeo conhecidas em Israel conforme pode ser visto na Didaquecirc
(9-10) Surge entatildeo uma nova forma de orar a partir do ensinamento de Jesus
baseado na expressatildeo Abba que era a forma singular de expressatildeo usada por ele
para dirigir-se ao Pai que estaacute nos ceacuteus (Jeremias 2006 p129-131)
A relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai atinge seu aacutepice na Oraccedilatildeo do Pai-nosso
onde Jesus estaacute ensinando seus disciacutepulos orar A pergunta feita pelo disciacutepulo
anocircnimo em Lucas 111 (Senhor ensina-nos a orar) resultou no mais belo
ensinamento de Jesus a respeito da oraccedilatildeo Na oraccedilatildeo do Pai-nosso como exemplo
de humildade e obediecircncia ldquoJesus se entrega agrave vontade de Deus como a crianccedila o
faz em relaccedilatildeo ao Pairdquo (Goppelt 2002 p 216) Para Haight a oraccedilatildeo modelo eacute
composta por uma invocaccedilatildeo dois anseios ou esperanccedilas e trecircs pedidos (cf Haight
2003 p139) 57 O teoacutelogo Leonardo Boff assim resume a essecircncia desse magniacutefico
modelo de oraccedilatildeo
57
A forma apresentada por Lucas da oraccedilatildeo do Pai-nosso consiste de um endereccedilamento (ldquoPairdquo) dois desejos proferidos a Deus e trecircs peticcedilotildees ditas a ele A forma em Mateus apresenta um endereccedilamento expandido trecircs desejos e quatro peticcedilotildees Nesse modo de orar Jesus instrui e
104
Na oraccedilatildeo do Senhor encontramos praticamente a correta relaccedilatildeo entre Deus e o homem o ceacuteu e a Terra o religioso e o poliacutetico mantendo a unidade do mesmo processo A primeira parte diz respeito agrave causa de Deus o Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome seu Reino sua Vontade santa A segunda parte concerne agrave causa do homem o patildeo necessaacuterio o perdatildeo indispensaacutevel a tentaccedilatildeo sempre presente e o mal continuamente ameaccedilador Ambas as partes constituem a mesma e uacutenica oraccedilatildeo de Jesus Deus natildeo soacute se interessa pelo que eacute seu o Nome o Reino a Vontade divina Ele se preocupa tambeacutem pelo que eacute do homem o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo o mal Igualmente o homem natildeo soacute se prende ao que lhe importa o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo e o mal abre-se tambeacutem ao que respeita ao Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome a chegada de seu Reino a realizaccedilatildeo de sua Vontade (Boff 2009 p17-18)
Em seu livro ldquoO Pai-nosso a oraccedilatildeo do Senhorrdquo J Jeremias enfatiza o alto
valor que a referida oraccedilatildeo tinha na liturgia entre os cristatildeos da Igreja primitiva J
Jeremias nos diz que o mais antigo uso dessa oraccedilatildeo era a recitaccedilatildeo da mesma na
24ordf catequese de Cirilo onde o Pai-nosso era recitado antes da comunhatildeo e era
restrito dentro do culto divino apenas aos batizados ou seja aos membros efetivos
da Igreja Essa praacutetica provinha de Jerusaleacutem e vigorava por toda a Igreja Desde os
primeiros passos na feacute os neoacutefitos jaacute aprendiam a recitar de cor a oraccedilatildeo do Pai-
nosso mas soacute tinham o direito de rezaacute-lo com os demais fieacuteis a partir do momento
em que participavam da primeira eucaristia ou seja logo apoacutes o batismo (Jeremias
1979 p 5-6)
O uso regular do Pai-nosso na liturgia da Igreja eacute tambeacutem testemunhado na
Didaquecirc (Doutrina dos Doze Apoacutestolos) que segundo J Jeremias eacute tatildeo antiga que
chega a ser datada no seacutec I dC ou para ser mais preciso segundo Boff ela foi
escrita por volta dos anos 50 a 70 dC (Boff 2009 p36) Para J Jeremias a
importacircncia dada ao Pai-nosso na Didaquecirc pode ser observada na estrutura da
obra
[] O livro comeccedila (cc 1-6) com a doutrina dos dois caminhos o da vida e da morte que evidentemente pertencia agrave instruccedilatildeo dada aos catecuacutemenos Em seguida o c 7 trata do batismo soacute depois disso eacute que vecircm as seccedilotildees de importacircncia para os batizados Jejum e oraccedilatildeo (inclusive o Pai-nosso) no c 8 Ceia do Senhor nos cc 9 e 10 organizaccedilatildeo e disciplina eclesiaacutesticas nos cc 11 a 15 O que nos interessa aqui eacute que oraccedilatildeo e Ceia do Senhor vecircm depois do batismo
autoriza seus disciacutepulos a chamar a Deus como ldquoPairdquo usando o mesmo tiacutetulo que ele mesmo utilizou em sua oraccedilatildeo de louvor Lc 1021 (duas vezes) e utilizaraacute de novo em Lc 22 42 (cf Fitzmyer 1985 p 899)
105
O que J Jeremias conclui eacute que diferentemente de hoje onde o Pai-nosso eacute
acessiacutevel a todos nos primoacuterdios do cristianismo era bem diferente O privileacutegio de
recitar a oraccedilatildeo do Senhor era reservado apenas aos membros que estavam
plenamente integrados agrave Igreja A perda da reverecircncia e do temor pela oraccedilatildeo do
Senhor eacute tratada por J Jeremias com apreensatildeo e o retorno agrave reverecircncia que a
Igreja primitiva dava ao Pai-nosso soacute pode ser reconquistada se atraveacutes da exegese
biacuteblica buscarmos entender qual era o sentido que o proacuteprio Senhor quis dar agraves
palavras dessa sagrada oraccedilatildeo (Jeremias 1979 p 8-12)
Concordando com J Jeremias Ephraim tambeacutem observa que nos primeiros
seacuteculos da era cristatilde os cristatildeos pronunciavam as palavras do Pai-nosso ldquocom
grande temor como que em segredordquo O motivo para tal respeito era o medo de
transpassar os limites da reverecircncia e cair na blasfecircmia ao pronunciar o nome
inefaacutevel de Deus Segundo Ephraim ainda hoje baseado nesse profundo respeito
pela sagrada oraccedilatildeo os cristatildeos bizantinos ainda conservam a seguinte foacutermula
antes de iniciarem a oraccedilatildeo ensinada pelo senhor ldquoE torna-nos dignos Mestre de
ousar com toda a seguranccedila e sem incorrer em condenaccedilatildeo de te chamar de Pai a
ti o Deus do ceacuteu e de te dizer Pai nossordquo Ao observarmos essa foacutermula bizantina
que antecede a oraccedilatildeo do Pai-nosso concluiacutemos com Ephraim que o respeito e o
medo de ser indigno de pronunciar tal oraccedilatildeo fizeram com que a tradiccedilatildeo da
comunidade cristatilde acima mencionada conservasse com muita precauccedilatildeo haacutebitos e
costumes dos primeiros cristatildeos no que diz respeito a como se deve orar o Pai-
nosso (Ephraim 1998 p 174)
Partindo do princiacutepio que por volta do ano 75 dC a oraccedilatildeo do Pai-nosso era
obrigatoacuteria na formaccedilatildeo dos neoacutefitos tanto os cristatildeos de origem judaica quanto os
de origem grega tinham em comum a obrigatoriedade da oraccedilatildeo do Senhor na
formaccedilatildeo dos novos disciacutepulos Quanto agrave questatildeo do por que duas versotildees do Pai-
nosso ou se eacute possiacutevel que um dos disciacutepulos tenha acrescentado ou retirado
palavras da forma original J Jeremias conclui que ambos os disciacutepulos jamais
alterariam algum ponto da oraccedilatildeo do Senhor A forma mais clara para se
compreender a aparente divergecircncia estaacute no fato de que ambos escreveram para
igrejas diferentes locais e situaccedilotildees diferentes por isso cada evangelista optou por
transmitir um texto segundo o seu tempo e sua Igreja (Jeremias 1979 p 16-21)
106
Quando lemos a oraccedilatildeo do Pai-nosso nas duas versotildees ou seja por Mateus
e por Lucas surgem questotildees a respeito da antiguidade dos textos e das variantes
textuais entre os dois Evangelhos J Jeremias em sua obra acima citada trabalha
com esmero essas duas questotildees e outras tambeacutem natildeo menos importantes Antes
de abordamos as questotildees levantadas por J Jeremias segue abaixo os textos dos
Evangelhos bem como o texto de Lucas retraduzido para o aramaico segundo J
Jeremias e uma versatildeo do aramaico recitado por cristatildeos que ainda hoje falam o
aramaico conforme Stephen Missick
Mt 6 9-13 Lc 11 2-4
() Portanto orai desta maneira
Pai nosso que estaacutes nos ceacuteus
Santificado seja o teu Nome
venha o teu Reino
seja feita a tua vontade
na terra como no ceacuteu
o patildeo nosso de cada dia
daacute-nos hoje
E perdoa-nos as nossas diacutevidas
como tambeacutem noacutes perdoamos aos
nossos devedores
E natildeo nos submeta agrave tentaccedilatildeo
mas livra-nos do Maligno
() Respondeu-lhes ldquoQuando orardes
dizei
Pai santificado seja o teu Nome
venha o teu reino
o patildeo nosso cotidiano daacute-nos a cada dia
pois tambeacutem noacutes perdoamos aos nossos
devedores
e natildeo nos deixes cair na tentaccedilatildeordquo
Pai Nosso aramaico segundo J
Jeremias
Pai-nosso em aramaico recitado pelos
cristatildeos em aramaico segundo Missick
abba [pai]
yitqaddash shemak tete malkutak
[santificado seja o teu nome venha teu
reino]
Awoon Dwashmaya
Nethqaddash Shmakh
Tethe malkuthakh
Nehweh sebayanakh
107
lahman delimhar hab lan yoma den [o
patildeo nosso de amanhatilde daacute-nos neste dia]
ushebok lan hobenan kedishebaqnan
lehayyabenan [e perdoa-nos as nossas
diacutevidas (pecados) assim como
perdoamos os nossos devedores
(pecadores)]
wela ta el nnan lenisayon [e natildeo nos
conduza agrave tentaccedilatildeo] (cf Jeremias 2008
p291)
Aykana dwashmayya aph ara
Hab lan lakhma dsunkanan yowmana
Washboq lan hawbayn aykanan dap
hanan shwaqnan l-hayawayn
Wa la talain Inesyona
Ella passan min beesha
Mittol dlakh hee malkoota wa khaylan w
tishbookhta alalam almeen Amen (cf
Missick 2006 p58)
Para J Jeremias para entendermos o sentido do Pai-nosso na redaccedilatildeo de
Mateus eacute preciso ver que Jesus estaacute advertindo seus disciacutepulos a natildeo praticarem as
esmolas oraccedilatildeo e jejum da mesma forma que elas eram praticadas pelos fariseus
visto que estes amavam praticaacute-las desde que fossem vistos e reconhecidos pelos
homens Os disciacutepulos deviam procurar um cocircmodo por menor que fosse e natildeo
imitar os fariseus em hipoacutetese alguma no quesito de sempre ser pegos em uma
aparente surpresa na hora da oraccedilatildeo para que dessa forma pudessem sempre que
possiacutevel orar no meio da multidatildeo com o uacutenico objetivo de serem reconhecidos e
honrados
Em relaccedilatildeo ao texto de Lucas J Jeremias descreve sobre o fato de tanto a
situaccedilatildeo quanto os leitores de Lucas serem diferentes dos de Mateus Em Lucas a
oraccedilatildeo eacute mais breve o sentido do texto eacute o ensinar a perseveranccedila na oraccedilatildeo visto
que a mesma eacute precedida pela paraacutebola do amigo importuno As diferenccedilas entre a
oraccedilatildeo contida em Mateus e a de Lucas eacute devido aos diferentes grupos a quem
essa oraccedilatildeo foi destinada Segundo J Jeremias os leitores para os quais Mateus
deve ter destinado o Evangelho eram homens que desde a infacircncia aprenderam a
orar enquanto que os de Lucas eram antigos convertidos ao cristianismo
Ao nos depararmos com as duas versotildees da oraccedilatildeo do Pai Nosso na Biacuteblia
(Mateus 6 9 -13 e Lucas11 2-4) logo vem agrave mente qual delas se aproxima mais da
versatildeo original de Jesus ou entatildeo em que liacutengua Jesus proferiu essa magniacutefica
oraccedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta J Jeremias responde da seguinte forma
108
[] a formulaccedilatildeo mais curta de Lucas estaacute integralmente contida na redaccedilatildeo longa de Mateus Isto faz com que seja bem provaacutevel que a forma de Mateus seja uma ampliaccedilatildeo pois pelo que sabemos das leis que regem a transmissatildeo dos textos lituacutergicos quando uma redaccedilatildeo mais curta estaacute assim integralmente contida numa longa eacute a mais curta que deve ser considerada como original (J Jeremias 1979 p23)
Contudo J Jeremias conclui que o texto de Lucas eacute o mais antigo quanto agrave
extensatildeo mas em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo oral (verbal) o texto de Mateus eacute o mais antigo
(cf Jeremias 2008 p 291) Complementando o pensamento de J Jeremias a
respeito da versatildeo original do Pai Nosso Boff assim conclui ldquoDestarte Lucas seria
mais originalrdquo (Boff 2009 p36)
Concernente agrave liacutengua materna de Jesus e agrave cultura da Palestina daquela
eacutepoca podemos ainda perguntar era Jesus um poliglota ou falava apenas o
aramaico Antes de tratarmos com mais detalhes a respeito da liacutengua e cultura de
Jesus observamos a princiacutepio que pelo menos trecircs liacutenguas eram faladas na
Palestina nos dia de Jesus (aramaico grego e latim) conforme as informaccedilotildees
contidas no texto de Joatildeo 19 19-20
Segundo Sabugal haacute uma grande probabilidade de que Jesus possuiacutesse
conhecimentos da liacutengua grega pelos contatos registrados entre Jesus e algumas
pessoas de origem helecircnica como o centuriatildeo romano (Mt 5 8-13 cf Lc 7 1-10)
tambeacutem com a mulher sirofeniacutecia aleacutem do disciacutepulo chamado Filipe que
provavelmente conhecia a liacutengua grega conforme podemos interpretar a partir da
leitura de Joatildeo 12 20-2 (Sabugal 1985 p319) No entanto para Sabugal a liacutengua
popular na Palestina dos dias de Jesus era o aramaico galileu58 Tal liacutengua era tatildeo
familiar agraves comunidades a ponto de apoacutes a leitura de um texto sagrado em
hebraico (Toraacute) logo seguia-se uma traduccedilatildeo para o aramaico (Targum) onde o
texto podia ser compreendido por todos Portanto fica evidente que o aramaico foi a
liacutengua materna de Jesus isso fica mais claro ainda quando encontramos nos
evangelhos palavras aramaicas (cf Mc 14 36 Lc 23 34 42 46 Mc 15 34 = Mt
58 Para Geza Vermes a liacutengua original do Pai-nosso era o aramaico mesmo que alguns estudiosos
discordem colocando o hebraico como a liacutengua original (segundo vermes sem convencer) a maioria dos especialistas eacute de acordo com essa teoria Vermes observa que aleacutem das peculiaridades do grego de Mateus o Pai-nosso tem semelhanccedilas com o kadish uma antiga oraccedilatildeo judaica composta em aramaico que era conhecida por Jesus e que ele teria sido influenciado e inspirado por ela (Vermes 2006 p 258)
109
27 46) conservadas pelos evangelistas sem traduccedilatildeo para a liacutengua grega (Sabugal
1985 p321)
Ao se referir sobre a origem do Pai Nosso Sabugal assim exclama ldquoQue
alegria seria se conseguiacutessemos recuperar a ipsissima verba do Pai Nosso ensinado
por Jesus de Nazareacute e reconstruindo seu texto primitivo pudeacutessemos escutar a
ipsissima vox do Mestrerdquo (Sabugal 1985 p317) Para Sabugal natildeo haacute duacutevida que
os vocaacutebulos gregos estatildeo dispostos segundo os usos da gramaacutetica semiacutetica O
autor tambeacutem entende que na oraccedilatildeo do Pai Nosso tanto de Mateus como na de
Lucas teve como fundo doutrinaacuterio e literaacuterio a liacutengua materna de Jesus (aramaico)
Conforme J Jeremias para compreendermos a essecircncia da oraccedilatildeo de Jesus faz-se
necessaacuterio aproximarmo-nos do proacuteprio modo de falar do Mestre e isso soacute eacute
possiacutevel quando chegamos a ipsissima vox de Jesus (Sabugal 1985 p317)
Sabugal (1985 p317) concorda que descobrir a liacutengua materna de Jesus eacute
algo muito importante e extraordinariamente fundamental O referido autor
compartilha com J Jeremias dessa tese haja vista que eacute importante levar em
consideraccedilatildeo o fato de que para ele os escritores dos evangelhos eram verdadeiros
autores literaacuterios e autecircnticos teoacutelogos de suas comunidades cristatildes capazes de
transmitir com fidelidade a essecircncia da mensagem de Jesus59 Aleacutem do mais os
autores biacuteblicos eram divinamente inspirados pelo Espiacuterito Santo conforme os
textos de 2 Tm 316 e 2Pe 121
Por outro lado Leonardo Boff (2009 p36) considera que a oraccedilatildeo de Jesus
natildeo pode ser tratada como uma oraccedilatildeo simples que possa ser retraduzida do grego
para o aramaico primitivo conforme fez J Jeremias no texto que reproduzimos
abaixo
Pai querido Que o teu nome seja santificado Que venha o teu reino Daacute-nos hoje nosso patildeo de amanhatilde E perdoa-nos nossas diacutevidas como noacutes tambeacutem ao dizermos estas palavras estamos perdoando a nossos devedores E natildeo nos deixes sucumbir agrave tentaccedilatildeo (Jeremias 1979 p33)
59
Sobre a autoria e composiccedilatildeo dos Evangelhos ver o capiacutetulo 4 paraacutegrafo 3 deste trabalho
110
Observamos que de acordo com o pensamento de Boff natildeo eacute faacutecil reproduzir
a oraccedilatildeo de Jesus do grego para o aramaico e dessa forma tambeacutem pensa
Sabugal o qual apesar de achar o trabalho de J Jeremias de extrema importacircncia
no entanto assim como Boff pensa que realizar tal tarefa natildeo eacute nada faacutecil uma vez
que envolve estudos linguiacutesticos e literaacuterios concernentes agrave liacutengua materna e ao
texto primitivo do Pai-nosso em sua composiccedilatildeo riacutetmica e literaacuteria bem como a real
motivaccedilatildeo de Jesus ao ensinar essa oraccedilatildeo aos seus disciacutepulos Haja vista o grau
de dificuldade apresentado acima natildeo podemos deixar de observar que quanto
mais nos aproximarmos do Pai-nosso de Jesus na sua originalidade mais
maravilhados ficaremos diante da grandiosidade dessa magniacutefica oraccedilatildeo
56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA
Conforme J Jeremias e a maioria dos estudiosos Abba eacute um termo que faz
parte da liacutengua semiacutetica para ser mais preciso do aramaico Oriacutegenes pertencente
ao periacuteodo da Patriacutestica profundo conhecedor do grego e das liacutenguas semiacuteticas
segundo Fitzmyer (1992 p 48) estranhamente considerou o termo Abba como
sendo uma palavra hebraica Restou a Jerocircnimo esclarecer que o termo Abba era
siacuterio (Syrum est non hebraeum) e natildeo hebraico Lembrando que o que Jerocircnimo
chamava de siacuterio nos dias dele noacutes chamamos de aramaico
Segundo Matthew Black o aramaico foi uma das grandes liacutenguas faladas na
antiguidade por volta do VI e III seacuteculos aC quando o mundo era governado pelos
grandes impeacuterios orientais desde o Eufrates ateacute o Nilo Essa liacutengua tornou-se a
liacutengua dos judeus provavelmente depois do Exiacutelio O aramaico foi suplantado pelo
grego koineacute no mundo civilizado da eacutepoca durante o impeacuterio de Alexandre o
Grande No entanto o grego nunca substituiu por completo o uso do aramaico entre
os judeus tanto da Palestina como da Babilocircnia bem como de alguns povos de
cultura semiacutetica na Siacuteria e Mesopotacircmia (Black 1998 p14)
Entre os judeus podemos encontrar dois dialetos aramaicos na Palestina
conforme a pesquisa apresentada por Dalman Black menciona que segundo a
distinccedilatildeo feita por Dalman os dialetos estatildeo propostos na seguinte forma o primeiro
representado pelo aramaico do Antigo Testamento e o aramaico do Targum para
Pentateuco e para os profetas O segundo composto pelo conjunto de anedotas
111
popular do Talmude Palestino junto com outras partes do comentaacuterio palestinense
do Antigo Testamento dos antigos Midrash60 haggaacutedicos (Black 1998 p19)
No entanto a liacutengua na qual foi escrito o Novo Testamento eacute aceita quase que
por unanimidade pelos eruditos como sendo o grego coineacute ou grego biacuteblico
conforme foi chamado pelos especialistas ateacute o comeccedilo do seacuteculo XX (Koester
2005 vol I p118) Segundo Koester (2005 vol1 p120-121) todos os livros do
Novo Testamento foram escritos originalmente em grego e esse autor eacute mais
enfaacutetico ainda quando afirma que nenhuma obra dos primeiros cristatildeos escrita em
grego pode ser traduccedilatildeo direta do hebraico ou do aramaico De acordo com Koester
eacute fato que existem inuacutemeros hebraiacutesmos e aramaiacutesmos constantes no Novo
Testamento que podem ser citaccedilotildees gregas da Biacuteblia hebraica ou ainda que
podem ser justificadas pelo fato de que o autor estava inserido num ambiente que
propiciava a formulaccedilatildeo de palavras semiacuteticas como no caso dos Evangelhos onde
Jesus e seus disciacutepulos eram falantes nativos do aramaico
Koester observa que as traduccedilotildees do aramaico para o grego devem ter
acontecido num periacuteodo anterior aos escritos dos primeiros cristatildeos quando esses
ainda conservavam na memoacuteria apenas a tradiccedilatildeo oral Essas traduccedilotildees foram
feitas deacutecadas antes da composiccedilatildeo dos Evangelhos e dessa forma no processo
de composiccedilatildeo das fontes dos Evangelhos praticamente todos os aramaiacutesmos
foram substituiacutedos por palavras gregas com exceccedilatildeo do Evangelho de Marcos que
parece ter usado fontes gregas que eram traduccedilotildees diretas dos originais aramaicos
ou ainda os relatos de milagres no Evangelho de Joatildeo que possivelmente tambeacutem
pode ter sido traduccedilatildeo de um original aramaico (Koester 2005 vl 1 p121-122)
Outra observaccedilatildeo de Koester eacute a questatildeo do bilinguismo na Palestina Entre
os primeiros cristatildeos havia uma mescla de seguidores de Jesus que falavam o
aramaico e o grego Esses foram determinantes para que a composiccedilatildeo dos
Evangelhos fosse fortemente influenciada pelo aramaico Para Koester ldquoalguns
desses semitismos satildeo empreacutestimos semacircnticos que derivam do ambiente geral da
liacutengua como θάλασσα natildeo soacute para mar ou oceano mas tambeacutem para lago uma
vez que o aramaico יםאא denota ambosrdquo (Koester 2005 vl1 p122)
60
Etimologicamente essa palavra tem como raiz o termo darash procurar significa pesquisa sobre a Escritura e tem como funccedilatildeo o meacutetodo de estudo das Escrituras com vistas agrave sua atualizaccedilatildeo (cf Vermes 1990 p11)
112
Para trabalhar as questotildees filoloacutegicas e semacircnticas do Abba precisamos
investigar se a liacutengua materna de Jesus era realmente o aramaico Muitas questotildees
tecircm sido levantadas sobre a liacutengua que Jesus falava e tambeacutem questotildees sobre o
niacutevel cultural do Nazareno As liacutenguas oficiais do impeacuterio romano eram o latim e o
grego Para John P Meier questotildees relacionadas ao idioma ou idiomas que Jesus
falava satildeo muito complexas visto que natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz daquele
periacuteodo e as inscriccedilotildees em latim podem apenas ser um sinal para demonstrar a
presenccedila do poderio romano do que ter a finalidade de informar aos judeus sobre
algo que lhes fosse interessante Como para Meier no mundo greco-romano a
maioria da populaccedilatildeo era analfabeta isso obviamente era vaacutelido tambeacutem para a
populaccedilatildeo judaica (Meier 1993 p254)
Meier usa como exemplo uma famosa ldquoinscriccedilatildeo de Pocircncio Pilatosrdquo que foi
descoberta na Cesareia Mariacutetima em 1961 Essa inscriccedilatildeo em latim foi dedicada ao
Imperador Tibeacuterio por Pilatos A questatildeo levantada por Meier eacute ateacute que ponto esta
inscriccedilatildeo alcanccedilou os gentios e judeus que viviam em Cesareia Possivelmente
para esse autor Pilatos estava preocupado em alcanccedilar apenas as elites ou seja
ele se dirigia apenas aos seus ldquoiguaisrdquo aqueles que estavam a serviccedilo do Impeacuterio ou
faziam parte das elites dominantes As inscriccedilotildees mesmo que sejam as oficiais em
preacutedios puacuteblicos ou aquedutos construiacutedos pelo Impeacuterio ou ateacute mesmo as inscriccedilotildees
funeraacuterias natildeo provam em nada que o latim fosse uma liacutengua comum na Palestina
O fato de uma laacutepide tumular estar em latim poderia apenas ser ldquoo desejo de dar
uma impressatildeo de alta culturardquo e nada mais Assim como segundo Meier natildeo se
pode concluir que os catoacutelicos americanos do iniacutecio do seacuteculo XX tinham um idioma
comum apenas observando a frase Requiescat in pace (do latim descanse em Paz)
inscrita em seus tuacutemulos e nem as muitas inscriccedilotildees em latim espalhadas pela
Europa podem refletir as inuacutemeras liacutenguas faladas hoje em dia nesse continente
Meier observa entatildeo que o Latim eacute visto quase que por unanimidade como o
idioma menos falado na Palestina nos dias de Jesus e por isso ldquonatildeo haacute razatildeo para
se pensar que Jesus falou e muito menos leu o latimrdquo (Meier 1993 p 254 ndash 255)
Se o latim natildeo era tatildeo comum na Palestina jaacute o grego segundo Meier era
um caso totalmente diferente O grego era comum em todo o Impeacuterio romano
inclusive em Roma capital do Impeacuterio A Palestina dos dias de Jesus era altamente
113
helenizada haviam cidades e povoados que foram transformados de uma forma
poliacutetica e cultural em cidades gregas61 Segundo Meier o debate atual entre os
estudiosos estaacute concentrado apenas em saber qual era o grau de helenizaccedilatildeo
nessas cidades Mesmo apoacutes o periacuteodo dos Macabeus onde houve um movimento
de resistecircncia agrave liacutengua e a cultura grega natildeo foi possiacutevel extinguir essa cultura da
Palestina porque apoacutes esse periacuteodo (dos Macabeus) a Palestina passou a ser
governada pelos Asmoneus que tiveram como monarca principal por volta do final
do seacuteculo I aC Herodes o Grande Herodes deu continuidade agrave poliacutetica de
helenizaccedilatildeo que tinha comeccedilado com os reis Selecircucidas especificamente por
Antiacuteoco Epiacutefanes IV O processo de helenizaccedilatildeo de Herodes foi desde a construccedilatildeo
do porto da Cesareia Mariacutetima a cidade de Sebaste em Samaria e muitas outras
grandes edificaccedilotildees em Jerusaleacutem Segundo Meier as inscriccedilotildees em Grego em
Jerusaleacutem eram inuacutemeras desde o Templo as sinagogas ateacute ossuaacuterios Meier assim
descreve a influecircncia grega na Palestina
[] Martin Hengel afirma que uma terccedila parte dos epitaacutefios em Jerusaleacutem do periacuteodo do Segundo Templo eram escritos em grego e ele ainda calcula que das 80000 ou 100000 pessoas que residiam na grande Jerusaleacutem entre 8000 e 16000 teriam falado grego Mas natildeo foi soacute em Jerusaleacutem que a liacutengua e a cultura gregas alcanccedilaram os judeus Um grande nuacutemero de judeus vivia nas cidades helenizadas da planiacutecie litoracircnea desde Gaza no sul ateacute Dor ou Ptolomaicas-Acco no norte Em Cesareia a capital romana da Judeia havia quase tantos judeus como gentios As cavernas de Murabaat nos forneceram papiros gregos sobre a vida diaacuteria e ateacute mesmo ndash por ironia ndash coacutepias de cartas em grego do tempo da revolta de Bar Kochba exatamente quando os nacionalistas lutavam e morriam para se libertarem do jugo estrangeiro e da dominaccedilatildeo cultural
Concernente agrave liacutengua grega e suas influecircncias na Palestina Meier observa
que para se chegar a uma conclusatildeo ou aproximaccedilatildeo de algum fato referente agrave que
idioma era falado pelos judeus residentes na Palestina faz-se necessaacuterio ter uma
atenccedilatildeo redobrada ao periacuteodo em questatildeo Por exemplo se atentarmos para os
seacuteculos III e II aC observa-se um eclipsamento do aramaico devido agrave helenizaccedilatildeo
da Palestina pelos reis selecircucidas da Siacuteria Segundo Meier parece que o aramaico
soacute voltou a retomar a prioridade na Palestina apoacutes a revolta dos Macabeus por isso
61
Se levarmos em consideraccedilatildeo os dados de Martin Hengel citados acima por Meier podemos
deduzir que aproximadamente de 10 a 20 da populaccedilatildeo de Jerusaleacutem falava grego Entatildeo eacute difiacutecil considerar a Palestina dos dias de Jesus como sendo altamente helenizada como fez Meier uma vez que nem mesmo na capital havia tantas pessoas que falavam tal liacutengua
114
natildeo eacute possiacutevel determinar qual era a liacutengua mais falada na Palestina dos seacuteculos II e
I aC tomando como exemplo inscriccedilotildees e textos dos seacuteculos III e II aC (Meier
1993 p 255)
A opiniatildeo de Meier eacute que vaacuterios textos de Flaacutevio Josefo levam agrave conclusatildeo de
que a liacutengua grega natildeo era tatildeo conhecida ou tatildeo falada na Palestina do seacuteculo I
pelos judeus Meier analisa que Josefo mesmo apoacutes se gabar de seu alto niacutevel
cultural tanto em relaccedilatildeo agrave lei como agrave prosa e poesia gregas demonstra algumas
dificuldades com a pronuacutencia do grego Meier observa que as dificuldades de Josefo
parecem natildeo ser apenas de pronuacutencia mas seu domiacutenio de escrita tambeacutem natildeo era
ldquoexatamente perfeitordquo Outro fator observado por Meier eacute a forma de comunicaccedilatildeo
que o general romano Tito usou para se comunicar com os judeus Tito que falava
bem o grego segundo Suetocircnio mas para se comunicar com os judeus precisou de
um ldquomensageiro em aramaico (Josefo) para ser compreendido pelos judeus Surge
entatildeo a grande pergunta Jesus falava grego Para Meier se nem mesmo Josefo
que era haacutebil na liacutengua grega natildeo se sentiu agrave vontade para transmitir o recado de
Tito em grego mas em aramaico porque natildeo dominava bem a liacutengua ou porque os
ouvintes natildeo entenderiam deduz-se que ldquoa probabilidade de um camponecircs galileu
ter suficiente conhecimento para se tornar um mestre e pregador bem-sucedido que
proferisse seus discursos em grego parece muito pequenardquo (Meier 1993 p 258-
259)
Ao fazer um trabalho minucioso sobre a liacutengua que Jesus falava Meier
depois de muitos questionamentos levanta a suposiccedilatildeo de que natildeo podemos negar
que Jesus fosse totalmente desconhecedor da liacutengua dos helenos Primeiro porque
Jesus ateacute mesmo por causa de sua profissatildeo e viagens a Jerusaleacutem tinha contato
com pessoas que falavam grego Eacute possiacutevel segundo Meier que Jesus vez ou outra
fizesse algum contrato ou assinasse algum recibo que tivesse sido redigido em
grego62 Mas o fato de assinar recibos ou mesmo ter dialogado com Pilatos pode
apenas presumir que Jesus possuiacutesse alguns conhecimentos da liacutengua grega
62
A hipoacutetese de Meier sobre a possibilidade de Jesus ter assinado pequenos contratos em grego eacute questionaacutevel uma vez que segundo Meier se nem mesmo Josefo era fluente na liacutengua dos helenos muito menos Jesus que era um humilde galileu Outrossim segundo Crossan eram poucas as pessoas alfabetizadas na Palestina (no maacuteximo 3 da populaccedilatildeo) Crossan chega a afirmar que Jesus era analfabeto como a maioria dos seus conterracircneos Se tal hipoacutetese tambeacutem for verdadeira dificilmente Jesus teria condiccedilotildees de assinar pequenos contratos profissionais na liacutengua grega
115
suficientes apenas para um pequeno diaacutelogo composto de frases curtas Meier acha
muito difiacutecil Jesus ter adquirido alfabetizaccedilatildeo para a escrita em grego O referido
autor ainda aprofunda mais as suas desconfianccedilas a respeito do assunto quando
diz ldquoPortanto acompanhando Fitzmyer mantenho minhas duacutevidas se qualquer parte
dos pronunciamentos de Jesus foi feita desde o iniacutecio em grego dispensando a
traduccedilatildeo ao passar para os Evangelhos gregos que conhecemosrdquo (Meier 1993 p
260)
Apoacutes verificarmos as influecircncias do latim e do grego na Palestina nos dias de
Jesus resta-nos verificar as liacutenguas faladas em Israel desde os primoacuterdios da
naccedilatildeo O hebraico era o antigo e sagrado idioma falado em Israel mas desde que
os judeus voltaram do cativeiro babilocircnico o hebraico sofreu um decliacutenio como
liacutengua falada e passou a ser substituiacutedo gradualmente pelo aramaico Essa
influecircncia do aramaico sobre o hebraico jaacute pode ser vista nos livros poacutes-exiacutelicos
mais precisamente sobre ldquoos livros de Esdras e Daniel que contecircm capiacutetulos inteiros
escritos em aramaico sendo que em Daniel eles chegam agrave metade do totalrdquo (Meier
1993 p 260)
Contudo segundo Meier o hebraico continuou sendo uma liacutengua viva em
Israel principalmente em Qumran onde tinha primazia com o aramaico em
segundo lugar e o grego ocupando apenas uma distante terceira colocaccedilatildeo No
entanto o fato do hebraico ser a liacutengua oficial da comunidade de Qumran natildeo
confirma em nada que o hebraico fosse uma liacutengua usada no dia a dia dos demais
israelitas fora dessa restrita comunidade O que parece ser mais evidente era que o
hebraico aleacutem de em Qumran era usado por religiosos e grupos nacionalistas e por
judeus devotos e em algumas regiotildees de Israel ainda se falava e escrevia em
hebraico (Meier 1993 p 261)
Mesmo sendo o hebraico uma liacutengua viva em Israel Jesus segundo Meier
usava o aramaico para comunicar-se com os seus conterracircneos na vida diaacuteria uma
vez que se acredita que ele natildeo pertencia agrave comunidade de Qumran e nem agrave elite
dos religiosos da eacutepoca bem como seus ouvintes que em sua maioria pertenciam
agraves classes sociais mais humildes A maior evidecircncia disso estaacute nos aramaiacutesmos
registrados nos Evangelhos e especificamente no Evangelho de Marcos onde
encontramos a palavra Abba proferida por Jesus (Mc 1436) De acordo com Meier
116
J Jeremias relacionou 26 palavras aramaicas atribuiacutedas a Jesus nos evangelhos
Dessas palavras Meier opina que duas delas Talita cumi e Abba (Mc 5 41 14 36)
satildeo as que mais proacuteximas estatildeo do Jesus histoacuterico Para ele nem todos os
exemplos citados por J Jeremias podem ser comprovados entretanto alguns satildeo
uacuteteis para demonstrar a forma como Jesus instruiacutea os seus disciacutepulos (Meier 1993
p 264)
A questatildeo da liacutengua falada nos dias de Jesus eacute complexa uma vez que o
aramaico eacute uma liacutengua semiacutetica e estaacute intimamente relacionada com o hebraico No
entanto o aramaico natildeo eacute um dialeto do hebraico mas uma liacutengua semiacutetica distinta
De fato se partirmos do pensamento de Black e considerarmos que Jesus era um
Rabi na Galileia entatildeo natildeo podemos descartar a possibilidade de que ele fez uso
tanto do hebraico como do aramaico especialmente em suas disputas formais com
os fariseus (Black 1998 p16) Aleacutem disso ter conhecimento das duas liacutenguas natildeo
era nada anormal visto que segundo Missick em alguns casos as liacutenguas eram tatildeo
similares que existiam palavras usadas em ambas as liacutenguas com o mesmo
significado (Missick 2010 p 4)
Analisando a coexistecircncia das duas liacutenguas na Palestina nos dias de Jesus
observa-se que as origens do aramaico podem ser anotadas a partir do cativeiro
babilocircnico que ocorreu no periacuteodo de 586 a 539 aC antes disso o hebraico era a
liacutengua oficial dos judeus Com o retorno do hebraico como a liacutengua e a identificaccedilatildeo
da cultura e existecircncia do povo judeu o aramaico foi perdendo forccedilas ateacute ser
considerado uma liacutengua morta No entanto segundo Missick ainda existem
comunidades que falam o aramaico nos dias atuais como os cristatildeos assiacuterios63 do
Iratilde e do Iraque Antigos cristatildeos dessas regiotildees preservaram uma importante versatildeo
da Biacuteblia em aramaico que hoje eacute conhecida como a Biacuteblia Peshitta que segundo
Missick eacute muito valiosa porque a partir dela eacute possiacutevel estudar as palavras de
Jesus no aramaico pois acreditam os cristatildeos do oriente que os Evangelhos foram
63
Matthew Black observa que foi encontrado entre os siriacuteacos cristatildeos palestinos o dialeto aramaico
mais proacuteximo do aramaico dos Evangelhos enquanto que para Dalman segundo Black o aramaico que mais se aproxima do falado nos dias de Jesus era o aramaico dos Targuns judaicos para o Pentateuco e os profetas (cf Black 1998 p18-19)
117
primeiro escritos em aramaico e soacute depois traduzidos para o grego (Missick 2010
p5) 64
Para enfatizar a importacircncia do aramaico no Novo Testamento Missick
relaciona as palavras aramaicas compostas de oraccedilotildees tiacutetulos divinos nomes de
pessoas nomes de lugares e outras palavras e frases usadas no Novo Testamento
Abba (Mc 14 36) Eloiacute Eloiacute lemaacute sabachtaacuteni (Mc 15 34 cf Mt 2746) segundo
Missick se Jesus estivesse falando em hebraico ele teria dito Eli Eli lama azabanti
Nesse caso Jesus estaacute citando o Salmo 221 em aramaico Essa traduccedilatildeo do Antigo
Testamento eacute chamada de Targum65 pela tradiccedilatildeo judaica Dentre as palavras
relacionadas por Missick temos tambeacutem Maranatha (1 Co 1622) que
etimologicamente conforme a definiccedilatildeo dada por Missick (2010 p22-26) tem como
prefixo o termo ldquoMarrdquo que significa Senhor ou ldquoMaranrdquo que significa nosso Senhor
donde temos Maranatha que tem como definiccedilatildeo completa o significado de ldquonosso
Senhor vemrdquo (Marana tha) ou ainda ldquonosso Senhor estaacute vindordquo (Maran atha) Em
aramaico temos ainda outra palavra Rabboni (Jo 2016)
Em relaccedilatildeo aos nomes em aramaico mencionados no Novo Testamento
Missick argumenta que essas pessoas natildeo teriam outro motivo para receber nomes
64
Missick (2006 p170) refere-se a dois grupos significantes de cristatildeos que ainda falam o aramaico O primeiro grupo eacute composto por siacuterios Ortodoxos que vivem na Siacuteria O Segundo grupo do oriente (leste) da Siacuteria satildeo chamados de Assiacuterios e satildeo nativos do Iratilde e do Iraque conforme jaacute comentado acima Segundo Missick os cristatildeos mesmo sendo chamados de assiacuterios satildeo totalmente distintos da cultura do antigo Impeacuterio Assiacuterio A avanccedilada e militarista cultura da Assiacuteria antiga desapareceu com o tempo mas seus descendentes satildeo os modernos siacuterios do Oriente chamados de assiacuterios Os antigos assiacuterios falavam o Acadiano liacutengua falada por assiacuterios e babilocircnios que natildeo eacute mais falada na atualidade
Os atuais cristatildeos Siacuterios e Assiacuterios pertencem a denominaccedilotildees diferentes Segundo Missick (2006 p170) os siacuterios do oeste pertencem agrave Igreja Ortodoxa siacuteria e jaacute foram chamados de Jacobitas ou seja porque provinham do bispo Jacob Bardesanes (542-578 dC) Os cristatildeos chamados de assiacuterios eram conhecidos como nestorianos visto que o patriarca deles foi Nestoacuterio de Constantinopla um Patriarca da Igreja Ortodoxa grega (428-431 dC) A igreja no entanto eacute mais apropriadamente chamada de ldquoAntiga Igreja assiacuteria do Orienterdquo
65 Esta palavra eacute de origem natildeo semiacutetica mas foi adotada pelos judeus para designar tradiccedilatildeo (aqui
parece haver um equiacutevoco do comentador uma vez que a palavra Targum vem do hebraico lsquo targucircmimrsquo e significa traduccedilatildeo Cf La Sor 1999 p 670) ldquoOs targuns satildeo as traduccedilotildees aramaicas dos textos biacuteblicos destinados ao uso sinagogal Na sua origem essas traduccedilotildees eram orais e mais ou menos improvisadas e fragmentaacuterias sendo depois progressivamente fixadas por escrito e reunidas em grandes secccedilotildees (targum do Pentateuco targum dos Profetas targum dos Hagioacutegrefos) Mesmo quando eacute literal na aparecircncia o targum conteacutem elementos mais ou menos amplos de paraacutefrase ou de explicaccedilatildeo de atualizaccedilatildeo e ateacute de correccedilotildees Ele integra o midrash sobretudo na sua forma haggaacutedica Eacute possiacutevel que existisse um targum do Pentateuco ndash ou torah aramaica ndash na eacutepoca de Jesus e ateacute antes na Palestina A atividade targuacutemica evoluiacutera no decorrer dos seacuteculos em que foi praticada para a atividade propriamente midraacuteshica (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p11-12)
118
em aramaico se natildeo estivessem inseridos numa determinada comunidade que
falasse aramaico Missick cita como exemplo o prefixo ldquoBarrdquo antes de alguns nomes
que em aramaico tem o sentido de ldquofilho derdquo enquanto que para nomes em hebraico
se usava o prefixo ldquoBenrdquo que tambeacutem tinha o sentido de ldquofilho derdquo (Missick 2010
p26) Os nomes pessoais que segundo Missick tecircm origem no aramaico satildeo
Cephas (Jo 142 1 Co 112 Gl 29) Tomeacute que vem do aramaico ldquoteomardquo cujo
significado eacute gecircmeo (Jo 212) Simatildeo o Zelota (Mc 318) Maria Madalena que era
natural da cidade de Magdala que em aramaico significa Torre66 Tadeu e Lebeu (Mt
103) Tadeu em aramaico significa mamilo e Lebeu significa coraccedilatildeo
A extensa relaccedilatildeo de nomes pode ser assim resumida Tabita (At 936) Marta
(Lc 10 38-41 Jo 11 1-39 122) Bartolomeu (Mt 103) Jesus Barrabaacutes (Mt 2736)
Simatildeo Bar-Jonas (Mt 2716) Joseacute Barsabaacutes (At 123) Elimas Bar-Jesus (At 13 6-8)
Judas Barsabaacutes (At 15 22) Joseacute Barnabas ou Barnabeacute ndash Filho da profecia- (At
436) Aleacutem dos nomes de pessoas e dos tiacutetulos divinos em aramaico ainda
segundo Missick haacute vaacuterios nomes de cidades com origens no aramaico Gaacutebata (Jo
1913) Goacutelgota (Jo 19 17-18 Mc 1522) Betacircnia (Jo 111) Betesda (Jo 5 1-15)
Geena Mt 1028) Resta-nos ainda conforme Missick relacionar palavras e frases
em aramaico usadas no Novo Testamento Effatha (Mc 734) Taliacutetha Kum (Mc 541)
Raca (Mt 5 22) Mamon (Mt 624) Corban (Mc 7 9-13)
Para Missick natildeo haacute duacutevidas que Jesus falou aramaico Um dos argumentos
levantados por esse autor estaacute baseado no relato da morte de Judas conforme
registrou Lucas (At 119) No discurso de Pedro sobre a substituiccedilatildeo de Judas o
lugar onde o corpo de Judas caiu e se arrebentou ao meio conforme o texto
chamava-se Haceacuteldama na proacutepria liacutengua dos moradores de Jerusaleacutem Para
Missick essa palavra eacute aramaica e natildeo hebraica Se a palavra realmente eacute
aramaica entatildeo deduz-se que o idioma falado naqueles dias era o aramaico e natildeo
o hebraico e nem o grego muito menos o latim Missick conclui entatildeo que para se
compreender a mensagem de Jesus que antes de ser escrita foi transmitida
oralmente eacute necessaacuterio compreender as palavras na liacutengua em que Jesus as
66
Missick menciona que ela era conhecida como Madalena porque sua feacute era como uma torre Esse argumento foi defendido por Jerocircnimo contudo segundo Missick o mais provaacutevel eacute que ela tenha adquirido este tiacutetulo por ter vindo da cidade de Magdala (cf Missick p28)
119
proferiu e a melhor forma de alcanccedilar tal objetivo eacute compreender o aramaico
(Missick 2010 p4-35)
Entre os autores que defendem que o aramaico era a liacutengua dos galileus
contemporacircneos de Jesus encontramos tambeacutem Joseacute Pagola Jesus conforme
esse teoacutelogo falava o aramaico em casa assim como todos os galileus Pagola
ainda analisa que ateacute mesmo na Judeia se falava o aramaico no dia a dia Segundo
Pagola as diferenccedilas entre o aramaico da Galileia para o aramaico da Judeia era
apenas de dialeto (sotaque)
Embora o aramaico seja defendido pela maioria dos estudiosos de teologia do
Novo Testamento haacute no entanto autores que defendem que o hebraico natildeo
somente era uma liacutengua viva como era a mais falada nos dias de Jesus Para os
teoacutelogos David Biacutevin e Roy Bliacutezard Jr o hebraico era o idioma mais falado pelos
contemporacircneos de Jesus e dos primeiros cristatildeos Para esses autores um idioma
pode ser definido da seguinte maneira ldquoo idioma eacute uma expressatildeo no uso de uma
liacutenguagem que eacute peculiar a si proacuteprio na construccedilatildeo gramatical ou em ter um
significado que natildeo pode ser derivado como um todo a partir dos significados do
conjunto de seus elementos Na visatildeo deles o ldquohebraico eacute a chave para entender
as palavras de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p 2-4)
Os defensores do hebraico como a liacutengua falada na Palestina dos dias de
Jesus criticam os defensores da inerracircncia das Escrituras quando esses mesmo
depois de ler o texto de Atos 2614 em que Jesus fala em Hebraico com o apoacutestolo
Paulo e tambeacutem o texto de Atos 2140 no qual o mesmo apoacutestolo falou em hebraico
com uma multidatildeo satildeo os mesmos que afirmam que onde se diz hebraico deve-se
entender aramaico Para defender essa teoria eles argumentam que os mais
antigos manuscritos do Novo testamento datam do quarto e quinto seacuteculos da era
cristatilde (Codex Sinaiticus Codex Alexandrinus e Codex Bezae) afirmam que a
inscriccedilatildeo ldquoEste eacute o Rei dos Judeusrdquo estava escrito em grego latim e hebraico
Partindo desses argumentos Bivin e Bliacutezard lanccedilam a seguinte questatildeo
ldquoPorventura natildeo eacute significativo que os manuscritos gregos mais antigos infiram que
o hebraico era mais popular que o aramaico naquele periacuteodordquo (Biacutevin e Bliacutezard
2001 p8)
120
Biacutevin e Bliacutezard argumentam que mesmo a presenccedila de uma palavra aramaica
(Abba) no Evangelho de Marcos (Mc 1436) natildeo prova em nada a existecircncia de
uma liacutengua original falada em aramaico no periacuteodo de Jesus Para esses autores
Abba aparece sempre entre os escritos em hebraico daquele periacuteodo como uma
palavra de empreacutestimo A razatildeo para tal empreacutestimo do aramaico seria pelo fato
dessa palavra ter um ldquosabor especialrdquo quando usado como forma de relacionamento
entre os filhos e seus pais O sentido dessa expressatildeo pode ser relacionado com a
forma como os filhos se dirigem aos seus pais chamando-os de ldquodaddyrdquo (Papai) ou
ldquopapardquo (pai) em Inglecircs Um outro argumento ainda usado como forma de demonstrar
que usar Abba como forma de provar que a liacutengua falada por Jesus natildeo era o
aramaico eacute demonstrar que ainda hoje em Israel onde se fala o hebraico moderno
ldquoas crianccedilas usam Abba na abordagem de seus pais exatamente da mesma
maneira como foi usado no tempo de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p10)
Murphy-OConnor diferentemente de Biacutevin e Bliacutezard comunga da mesma
ideia de Jerocircnimo de que o apoacutestolo Paulo era de origem palestinense conforme os
textos de 2 Co 11 22 e Fl 3 5 onde Paulo identifica-se como ldquoisraelitardquo ldquodo povo de
Israelrdquo e como um ldquohebreurdquo Poreacutem quanto aos textos onde Lucas diz que Paulo
falou com a multidatildeo ldquonuma linguagem hebraicardquo (At 2140 222 2614) Murphy-
OConnor argumenta que a linguagem deveria significar aramaico e natildeo hebraico
Segundo esse autor naquela eacutepoca a maioria dos judeus jaacute natildeo conheciam mais o
hebraico e os textos das Escrituras nas sinagogas eram traduzidos para o aramaico
Outro argumento eacute que as palavras Gaacutebata (Jo 1913 o lugar onde Pilatos
condenou Jesus) e Goacutelgota (Jo 19 17) que satildeo mencionadas como palavras
hebraicas na verdade satildeo palavras aramaicas Sendo assim segundo Murphy-
OConnor a divisatildeo entre os primeiros cristatildeos de Jerusaleacutem (At 61) era permeada
pelos que falavam aramaico e pelos que falavam o grego (Murphy-OConnor 2008
p 29-30)
Matthew Black analisando a liacutengua falada por Jesus observa que alguns
estudiosos defendem o hebraico como a liacutengua vernaacutecula na Palestina dos dias de
Jesus Segundo Black alguns propotildeem que o hebraico natildeo era soacute apenas uma
forma literaacuteria de expressatildeo ou entatildeo apenas uma liacutengua falada nos ciacuterculos
rabiacutenicos mas o hebraico era um veiacuteculo normal de expressatildeo (Black 1998 p 47)
121
Douglas Hamp defende que o hebraico era realmente uma liacutengua muito viva nos
dias de Jesus e natildeo uma liacutengua morta como muitas vezes eacute dito Aleacutem de tudo para
ele o hebraico era a primeira liacutengua na Palestina nos dias de Jesus apesar de
segundo ele Jesus poderia ser triliacutengue ou seja falava hebraico aramaico e grego
e possivelmente ateacute o latim (Hamp 2005 p40) Hamp defende entatildeo que Jesus
provavelmente conhecia o aramaico e o grego e deve ter usado essas liacutenguas em
alguns contextos no entanto com seus disciacutepulos e na comunicaccedilatildeo com as
massas ele falou hebraico (Hamp 2005 p73)
Sobre a posiccedilatildeo daqueles que consideram o hebraico e natildeo o aramaico
como o vernaacuteculo ou seja a liacutengua mais falada nos dias de Jesus Black responde
ldquoesta posiccedilatildeo extrema tem encontrado pouco ou nenhum apoio entre as autoridades
competentes a evidecircncia da ipsissima verba de Jesus nos Evangelhos eacute impossiacutevel
de explicar se o aramaico natildeo era a liacutengua que Jesus falavardquo No entanto para ele eacute
provaacutevel que Jesus sendo um Rabi que comeccedilou seu ministeacuterio na Galileia e muito
bem versado nas Escrituras tenha sido capaz de ensinar com maestria tanto em
hebraico que poderia usar para ocasiotildees solenes como em aramaico com que se
comunicava com as massas (Black 1998 p 48-49)
Considerando as diversas opiniotildees sobre a liacutengua materna de Jesus
observamos que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus falava o aramaico
uma vez que esta foi a liacutengua predominante na Palestina apoacutes o exiacutelio babilocircnico
Contudo natildeo eacute tarefa faacutecil chegar a uma conclusatildeo Como vimos os estudiosos que
defendem o aramaico como a liacutengua materna de Jesus buscam como prova de tal
tese o argumento de que o Novo Testamento conteacutem muitas palavras aramaicas que
deviam ser comuns nos dias de Jesus Possivelmente o aramaico era uma liacutengua
falada pela populaccedilatildeo em geral enquanto que o hebraico reservava-se mais a
escrita de textos religiosos (sacros) e tambeacutem era usado pela classe sacerdotal que
por sua vez era mais elitizada Contudo devido agrave semelhanccedila entre as duas liacutenguas
torna-se difiacutecil delimitar uma linha divisoacuteria entre as mesmas uma vez que natildeo
possuiacutemos textos em aramaico da eacutepoca e natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz
que nos permita concluirmos com precisatildeo
122
6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS
Apoacutes termos apresentado a tese de J Jeremias sobre o Abba e alguns
pesquisadores que com ele concordam eacute oportuno tambeacutem olharmos algumas
teorias e pesquisadores que divergem de suas ideias
61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO
A relaccedilatildeo de paternidade divina no Antigo Testamento eacute refletida na literatura
poacutes-canocircnica do judaiacutesmo No Judaiacutesmo palestinense67 de acordo com J Jeremias
natildeo haacute relatos que em toda a literatura de Qumran que deve ser anterior a 68 a C
(Jeremias 1977 p17) de que Deus tenha sido invocado como Pai Haacute apenas uma
exceccedilatildeo em I QH 9 55 S ldquoEu te agradeccedilo oh Senhor porque natildeo abandonou a
paternidade ou desprezou o pobrerdquo (Vermes 2004 p274) A questatildeo da paternidade
divina era vista pelos rabinos como um direito dado apenas para aqueles que
cumpriam a Lei (Torah) (Jeremias p 1977 p19)
As oraccedilotildees judaicas eram dirigidas geralmente a Deus como nosso Pai
nosso Rei (abinu malkenu) 68 ldquoNosso Pai Nosso Rei Em vista de nossos pais que
creem em ti e a quem ensinas as leis da vida ndash tem piedade de noacutes e ilumina-nosrdquo
(Jeremias 1977 p18) Para J Jeremias mesmo essa oraccedilatildeo sendo antiga
podendo mesmo ser situada na eacutepoca de Jesus haacute algumas coisas que precisam
ser observadas A ecircnfase da oraccedilatildeo estaacute na duplicidade dos termos que se referem
a Deus ou seja ldquoDeus eacute invocado como o pai da comunidaderdquo e a comunidade por
sua vez invoca o Pai que ldquoeacute o rei celestial do povo de Deusrdquo (Jeremias 2008 p116)
Tambeacutem segundo J Jeremias esse texto foi escrito em hebraico que nos dias de
67
ldquo[] no judaiacutesmo palestinense do periacuteodo preacute-cristatildeo eacute rara a descriccedilatildeo de Deus como pai Nos
apoacutecrifos e pseudoepiacutegrafos no que diz respeito aos escritos de origem palestinense acha-se muito raramente (tob 134 Sir 5110 Jub 124-25 28 1929) enquanto os textos de Cunratilde oferecem um uacutenico exemplo isolado (1QH 935-36) No judaiacutesmo rab do seacuteculo I dC o emprego do nome Pai tornou-se mais generalizado mas ainda era muito menos frequente do que outras descriccedilotildees de Deus (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)
68 Charlesworth afirma que Jesus invocava a Deus como Abba e natildeo como Abinu Charlesworth
entatildeo pergunta ldquonatildeo seraacute concebiacutevel que tenha chamado Deus de Abba porque tinha uma concepccedilatildeo de Deus que era de algumas maneiras diferente daquela da maioria de seus contemporacircneos (cf Charlesworth 1992 p148)
123
Jesus era uma liacutengua sacra usada com maior frequecircncia nas reuniotildees lituacutergicas e
natildeo como uma praacutetica comum no dia a dia (Jeremias 1977 p19)
Entre os escritos do judaiacutesmo palestinense haacute duas oraccedilotildees em que Deus eacute
invocado como Pai Satildeo invocaccedilotildees muito semelhantes do c 23 de Ben Sira
(Eclesiaacutestico) escrito por volta do comeccedilo do seacuteculo II aC (Jeremias 1977 p19)
Esses dois versiacuteculos (v1 e v4) onde Deus eacute invocado como ldquoPai e dono da minha
vidardquo e como ldquoSenhor Pai e Deus da minha vidardquo (Jeremias 1977 p19) poderiam
ser um preluacutedio do evangelho segundo J Jeremias se por volta da deacutecada de 40
natildeo tivesse sido descoberto uma paraacutefrase em hebraico desse texto que hoje existe
apenas em grego A paraacutefrase desse texto escrito em hebraico natildeo invoca Deus
como ldquoSenhor e Pairdquo mas invoca-o como ldquoDeus de meu Pairdquo Ficam evidentes
entatildeo as diferenccedilas entre o texto que temos em grego e a paraacutefrase em hebraico
Partindo desses raciociacutenios J Jeremias entatildeo conclui que mesmo que no
Judaiacutesmo da diaacutespora haja testemunhos esporaacutedicos da invocaccedilatildeo de Deus como
Pai (Jeremias 2008 p117) eles satildeo apenas ditos isolados nos quais Deus eacute
invocado como (Pater) mas sempre com influecircncia do helenismo e da liacutengua grega
(Jeremias 2008 p115-116) e natildeo se tem notiacutecias de que no judaiacutesmo palestinense
algum indiviacuteduo tenha dirigido-se a Deus chamando-o de meu Pai (Jeremias 1977
p 19-20)
Contudo J Jeremias ainda menciona uma oraccedilatildeo do final do seacuteculo 1 aC
feita por um homem chamado Hanin ha-Nehba conhecido por seu sucesso nas
oraccedilotildees para obter chuva Nessa oraccedilatildeo Deus eacute invocado como papai ou como o
Abba que tem o poder de enviar chuva
Quando o mundo precisava de chuva nossos mestres tinham o costume de lhe mandar crianccedilas das escolas que se agarravam ao seu manto e imploravam Abbaacute Abbaacute habh lan mitra papai papai daacute-nos chuvardquo E ele lhe (a Deus) dizia Senhor do universo concede-nos (a chuva) em vista destes que natildeo satildeo ainda capazes de distinguir entre um abbaacute que tem o poder de dar a chuva e um abbaacute que natildeo tem (Jeremias 1977 p 22)
Por fim o autor supracitado observa que mesmo que as evidecircncias sejam
favoraacuteveis a uma invocaccedilatildeo de Deus como papai (Abbaacute) ainda assim com um olhar
mais criterioso nota-se que a forma como Hanin invoca a Deus eacute tomada com um
tom carregado de humor e Hanin comeccedila a sua oraccedilatildeo dirigindo-se a Deus natildeo
como o Abba mas sim como o Senhor do universo J Jeremias vecirc essa histoacuteria
124
como um preluacutedio das afirmaccedilotildees de Jesus nos Evangelhos onde ele diz que ldquoo Pai
celeste sabe do que precisam os seus filhos (Mt 632) que ele envia a chuva sobre
os justos e os injustos (Mt 5 45) e daacute coisas boas aos seus filhos que lhas pedem
(Mt 711 par Lc 1113) (Jeremias 1977 p 23) Entatildeo J Jeremias tem como
resultado de suma importacircncia de que realmente natildeo existe nenhum testemunho
nas oraccedilotildees judaicas do uso do Abba (papai) em todo o judaiacutesmo Defende esse
autor que o emprego do Abba foi uma caracteriacutestica peculiar de Jesus dirigir-se a
Deus invocando-o como o Abba e isso coloca o abba como sendo a ipsissima vox
de Jesus (Jeremias 1977 p23)
Eis-nos pois autorizados a dizer por que natildeo se usa abbaacute nas oraccedilotildees Judaicas para invocar a Deus seria desrespeitoso e portanto impensaacutevel para uma mentalidade judaica chamar a Deus com um nome tatildeo familiar Foi algo de novo uacutenico e inaudito ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma crianccedila fala ao seu pai com simplicidade intimidade e sem temor Portanto natildeo haacute duacutevida alguma de que a palavra abbaacute utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus revela o proacuteprio fundamento de sua comunhatildeo com ele (Jeremias 1977 p25)
J Jeremias ainda conclui seu pensamento sobre o uso do Abba nas oraccedilotildees
judaicas ldquoUma revisatildeo da rica e abundante literatura oracional judaica ainda pouco
estudada leva-nos a conclusatildeo de que em nenhuma das suas passagens estaacute
atestado o termo abba para invocar a Deusrdquo (Jeremias 2006 p63)
Com um pensamento em alguns pontos diferentes ao de J Jeremias de que
para este Deus nunca foi invocado como pai no judaiacutesmo quer seja no Antigo
Testamento ou no judaiacutesmo palestinense Bultmann afirma que a visatildeo de Deus
como pai no Judaiacutesmo era corriqueira quer seja atraveacutes das oraccedilotildees ou ateacute mesmo
pelo piedoso individualmente Bultmann usa alguns textos como o Eclesiaacutestico 410
para justificar a sua tese ldquoSecirc um pai para os oacuterfatildeos e o substituto do esposo para as
viuacutevas Entatildeo Deus te chamaraacute de filho seraacute gracioso para contigo e te salvaraacute da
perdiccedilatildeordquo (Bultmann 2005 p 191)
A condiccedilatildeo de filho de Deus no judaiacutesmo pode ser tambeacutem escatoloacutegica Para
Bultmann o chamado Salmo de Salomatildeo (1730) trata sobre o regimento do
Messias no tempo do fim com as seguintes palavras ldquoEle os conhece e sabe que
satildeo todos filhos do seu Deusrdquo E para enfatizar ainda mais o seu argumento ele
ainda cita o ldquochamado Livro dos jubileus (1 24-25)rdquo no qual Deus em uma forma
escatoloacutegica promete para os israelitas no tempo da salvaccedilatildeo ldquoEles cumpriratildeo os
125
meus mandamentos e eu serei um pai para eles e eles seratildeo meus filhos E todos
eles se chamaratildeo filhos do Deus vivo e todos os anjos e todos os espiacuteritos os
conheceratildeo e saberatildeo que eles satildeo meus filhos e que eu sou o pai em firmeza e
justiccedila e que eu os amordquo
A ideia que Jesus tem da designaccedilatildeo de Deus como pai segundo Bultmann
natildeo traz nenhuma novidade a respeito do assunto pelo contraacuterio era jaacute uma
caracteriacutestica de muitas religiotildees e cosmovisotildees religiosas e entre elas encontra-se
a visatildeo dos antigos estoicos para os quais a ldquofiliaccedilatildeo divina cabe ao ser humano por
natureza e eacute algo que se aplica a ele na esfera das ideias logo que se situa aleacutem
de sua existecircncia concreta no aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p192-193)
A relaccedilatildeo de pai e filhos no judaiacutesmo ocorre de uma forma diferente da do
estoicismo Bultmann defende que no judaiacutesmo natildeo haacute uma relaccedilatildeo de pai e filhos
de Deus por natureza mas pela livre eleiccedilatildeo de Deus A filiaccedilatildeo divina portanto natildeo
eacute algo natural mas eacute algo miraculoso Quanto agrave possibilidade da filiaccedilatildeo essa natildeo eacute
exclusividade de um grupo pelo contraacuterio eacute aberta a todos pois o pai do ceacuteu provecirc
para todas as pessoas aquilo que necessitam (Mt 6 2632) Da mesma forma a
oportunidade para rogar ao pai do ceacuteu (Mt 7 7-11) eacute uma oportunidade oferecida a
todas as pessoas Dessa forma Bultmann declara que ldquo o ser humano eacute visto de
modo bem diferente ou seja natildeo como aquilo que eacute na esfera das ideias para aleacutem
de sua existecircncia concreta mas justamente como aquilo que eacute em sua existecircncia
na singularidade de seu aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p 193)
O conceito de paternidade no judaiacutesmo eacute tambeacutem discutido por Alon Goshen-
Gottstein em ldquoDeus como Pai no judaiacutesmordquo (Goshen-Gottstein 2001 p475) Para
ele a referecircncia rabiacutenica de Deus como pai no judaiacutesmo tambeacutem eacute uma
peculiaridade de Israel como naccedilatildeo natildeo que indiviacuteduos natildeo possam dirigir-se a Ele
como pai Mas natildeo eacute possiacutevel encontrar nas fontes sobre algueacutem que de forma
especiacutefica e individual tenha dirigido-se a Deus chamando-o de Pai No entanto
para Goshen-Gottstein essa relaccedilatildeo paternal era apenas um sentimento religioso
reciacuteproco de Israel para com Deus isto eacute chamar Deus de Pai era apenas uma das
muitas metaacuteforas que Israel usava para referir-se a Deus (Goshen-Gottstein 2001
p475)
Para Goshen-Gottstein os cristatildeos e judeus divergem muito sobre a questatildeo
da segunda e a terceira pessoas da trindade cristatilde parece que a primeira pessoa da
trindade (o Pai) eacute o elo que une o cristianismo e o judaiacutesmo num fundo teoloacutegico
126
comum Contudo ele pergunta sobre em que extensatildeo a pessoa do Pai eacute um
conceito comum para o judaiacutesmo e para o cristianismo (Goshen-Gottstein 2001
p471) Goshen-Gottstein coloca que o primeiro problema eacute metodoloacutegico visto que
eacute natural que os pesquisadores do Novo Testamento vasculhem a literatura rabiacutenica
agrave procura daquilo que apenas lhes interessa A exemplo disso esse autor observa
que teoacutelogos cristatildeos pentearam a literatura rabiacutenica em busca de exemplos de
expressotildees sobre o ldquoPai celesterdquo que estatildeo no singular ou no plural para dessa
forma avaliar a importacircncia que a expressatildeo ldquoPai celesterdquo tem na literatura rabiacutenica
quando analisada sobre a perspectiva da intimidade e relaccedilatildeo pessoal que o ldquoPai
Celesterdquo tinha para os autores rabiacutenicos Goshen-Gottstein vecirc isso como perda de
tempo pois considera que as fontes rabiacutenicas natildeo podem ser analisadas para fins
especiacuteficos mas devem ser apreciadas a partir da unicidade das suas estruturas
literaacuterias meacutetodos de expressatildeo e convenccedilotildees estiliacutesticas (Goshen-Gottstein 2001
p473)
Referindo-se ao conceito de metaacuteforas atribuiacutedas a Deus Goshen-Gottstein
afirma que descrever Deus como Pai no Judaiacutesmo natildeo eacute essencial ou fundamental
Esse conceito tem uma conotaccedilatildeo religiosa e faz parte de um vocabulaacuterio religioso
Ele eacute apenas uma descriccedilatildeo repleta de imagens e metaacuteforas que faz parte de um
vocabulaacuterio religioso que daacute expressatildeo aos sentimentos do povo e que enchem o
espectro de Israel Portanto para Goshen-Gottstein ldquoPairdquo natildeo eacute uma expressatildeo
privilegiada dentro do judaiacutesmo e tambeacutem ldquonatildeo eacute o nome proacuteprio de Deus Antes eacute
uma das inuacutemeras metaacuteforas atraveacutes das quais Israel se refere a Deusrdquo A
paternidade na literatura rabiacutenica eacute sempre vista em relaccedilatildeo a Israel como naccedilatildeo
Embora Goshen-Gottstein afirme tal expressatildeo ele admite que haja casos em que
indiviacuteduos se dirijam a Deus como Pai inclusive em fontes biacuteblicas No entanto natildeo
se encontra em nenhuma fonte Deus sendo considerado Pai de um indiviacuteduo
somente Sempre Deus eacute visto como sendo o Pai de Israel poreacutem isso natildeo
evidencia que a paternidade de Deus natildeo seja estendida a outros fora de Israel pelo
menos natildeo encontramos na literatura rabiacutenica textos que suponham tal expressatildeo
O que Goshen-Gottstein procura deixar claro eacute que a referecircncia rabiacutenica a Deus
como Pai estaacute fundamentalmente fiel ao uso biacuteblico Isso difere de Filo para quem
Deus o Pai eacute tambeacutem Deus o Criador do mundo Para os rabinos a paternidade
divina se refere somente em relaccedilatildeo a Israel ou seja as fontes referem-se a Deus
127
como Pai somente no contexto do relacionamento especial de Israel com Deus
(Goshen-Gottstein 2001 p475)
A representaccedilatildeo metafoacuterica de Deus como Pai de Israel eacute tambeacutem defendida
por Vermes em Jesus e o mundo do Judaiacutesmo Vermes defende que Deus foi
representado metaforicamente como Pai do povo eleito (Israel) natildeo somente na
literatura biacuteblica mas tambeacutem na literatura apoacutecrifa Entre os textos biacuteblicos por ele
citados encontram-se os seguintes ldquoEu sou pai para Israel e Efraim eacute o meu
primogecircnitordquo (Jr 319) ldquoE no entanto Senhor tu eacutes o nosso Pairdquo [] todos noacutes
somos obras de suas matildeosrdquo (Is 647) ldquoSerei para ele um Pai e ele seraacute para mim
um filho e seraacute chamado filho do Deus vivo (Jub 1 24-25) ldquoFiz a vontade do Abba
que estaacute nos ceacuteusrdquo (Lv R 321) ldquoOacute Senhor Pai Soberano (ou Deus) da minha vidardquo
(Sr 23 14) ldquoA tua providecircncia oacute Pai eacute o seu pilotordquo (Sb 14 3) Vermes apoacutes
analisar os textos das fontes mencionadas acima e outros natildeo reluta em afirmar que
a invocaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rica no judaiacutesmo antigo (Vermes 1996 p53)
Analisando as teses de J Jeremias concernentes ao Abba de Jesus Vermes
observa que elas estatildeo sujeitas a questionamentos J Jeremias defende que Abba
quando dirigido a Deus em forma de invocaccedilatildeo natildeo se encontra na oraccedilatildeo judaica
antiga Vermes contudo soacute concordaria com essa tese se fosse possiacutevel analisar
todas as oraccedilotildees individuais e confirmar que em nenhuma delas algum indiviacuteduo
dirigiu-se a Deus em oraccedilatildeo com a forma invocativa do Abba Para Vermes o
seguinte pensamento de David Flusser resume bem os argumentos acima
apresentados ldquoJ Jeremias natildeo conseguiu encontrar o uso de Abba como vocativo
para Deus na literatura talmuacutedica poreacutem considerando a escassez de material
rabiacutenico sobre a oraccedilatildeo carismaacutetica isso natildeo nos diz muita coisardquo (Vermes 1996
p55)
Goshen-Gottstein fazendo referecircncia a Joseph Heinemann justifica a tese de
Vermes de que eacute preciso distinguir a oraccedilatildeo judaica antiga quando era puacuteblica e
coletiva da oraccedilatildeo de um indiviacuteduo Seguindo esse argumento observa-se que a
oraccedilatildeo puacuteblica recorre a linguagem e padrotildees especiacuteficos enquanto que a oraccedilatildeo
quando efetuada pelo indiviacuteduo eacute mais livre e tambeacutem mais carismaacutetica Nesse
sentido o exemplo por excelecircncia de oraccedilatildeo livre e individual eacute a oraccedilatildeo do Senhor
(Goshen-Gottstein 2001 p487)
Dentre os argumentos contraacuterios a visatildeo de J Jeremias temos ainda a
refutaccedilatildeo de Vermes sobre a tese em que J Jeremias defende que Jesus dirigia-se
128
a Deus chamando-o de ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo Para Vermes essa forma invocativa
realmente era usada pelas criancinhas quando essas se dirigiam aos seus pais
Contudo Vermes natildeo concorda que abba ou imma tenha tido uma uacutenica forma
determinada de uso Para ele na eacutepoca de Jesus abba poderia tambeacutem possuir
simplesmente o significado de ldquomeu pairdquo principalmente quando usadas em
situaccedilotildees solenes que natildeo tinham nada de infantil ldquocomo na altercaccedilatildeo imaginaacuteria
entre os patriarcas Judaacute e Joseacute relatado no Targum Palestino quando o furioso Judaacute
ameaccedila o governador [vizir] do Egito (seu irmatildeo que ele natildeo reconhecera) dizendo
Juro pela vida da cabeccedila de abba (meu pai) tal como tu juras pela cabeccedila do Faraoacute
teu senhor que se tirar a espada da bainha natildeo a devolverei mais enquanto a terra
do Egito natildeo tiver coberta de cadaacuteveresrdquo (Vermes 1996 p55)
James Barr tambeacutem eacute de acordo que abba era uma palavra usada por
adultos embora tambeacutem fosse muito usada por crianccedilas Segundo Barr no grego do
Novo Testamento a palavra ldquopaterrdquo (pai) eacute normalmente usada para referir-se a
figura paterna Contudo ele observa que na liacutengua grega tambeacutem havia uma palavra
em particular no diminutivo pertencente agrave fala das crianccedilas um pouco semelhante agrave
palavra Daddy em Inglecircs (papai) Poreacutem mesmo existindo a palavra em grego natildeo
haacute indiacutecio algum de que tal palavra tenha sido usada no Novo Testamento (Barr
1988 p 36-38)
As teorias com visotildees diferentes das de J Jeremias satildeo muitas como temos
visto Vermes conforme vimos acima eacute enfaacutetico ao contrapor J Jeremias
considerando as teses do professor de Gotinga sobre o Abba como incongruentes e
desprovidas de bases linguiacutesticas
[] J Jeremias compreendia que Jesus dirigia-se a Deus por ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo contudo afora a improbabilidade e incongruecircncia a priori dessa teoria parece natildeo haver bases linguiacutesticas para ela As criancinhas falantes de aramaico dirigiam-se aos seus pais por meio de abba ou imma mas esse natildeo era o uacutenico contexto do uso de abba Na eacutepoca de Jesus a forma determinada do nome abba (- ldquoo pairdquo) tambeacutem significava ldquomeu pairdquo ldquomeu pairdquo se bem que ainda atestado em qumran e no aramaico biacuteblico praticamente jaacute desaparecera como forma idiomaacutetica do dialeto galileu (Vermes 1996 p55)
No apecircndice de seu livro ldquoA Religiatildeo de Jesus o Judeurdquo Geza Vermes posta
um resumo da tese de J Jeremias sobre o Abba de Jesus (The Prayers of Jesus de
1967) baseadas em um artigo ldquoAbba natildeo eacute Papairdquo (Abba isnt Daddy) de James
129
Barr Os argumentos de J Jeremias estatildeo expostos da seguinte maneira conforme
transcritos abaixo
a) O termo aramaico eacute ldquouma expressatildeo puramente exclamatoacuteriardquo como em
Pai e natildeo um aspecto enfaacutetico correspondente em inglecircs a um substantivo
acompanhado do artigo definido (= o pai)
b) A origem do Abba se encontra no balbuciar do ldquofalar infantilrdquo A geminaccedilatildeo
ab-ba (ldquoDadaacuterdquo) tem como modelo o chamado mais frequente do bebecirc agrave Im-ma
(ldquoMamardquo)
c) Essa forma de invocaccedilatildeo eacute de tom tatildeo familiar que sua associaccedilatildeo com a
Deidade chocaria os judeus comuns de liacutengua aramaica como ldquodesrespeitosardquo
d) Seu emprego por Jesus era ldquoalgo de novo e inauditordquo
e) Abba no aramaico da Palestina tornou-se uma expressatildeo polivalente As
diversas expressotildees nos Evangelhos em Grego como ldquoo Pairdquo ldquoPairdquo (vocativo) e
tambeacutem ldquomeuteunosso Pairdquo (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)
podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus
Para Vermes se J Jeremias estiver correto isso pode trazer tantas
implicaccedilotildees porque o estilo de Jesus dirigir-se a Deus seria tatildeo peculiar a ponto de
representar um idiossincrasia Vermes prefere entender que J Jeremias
compreendeu mal o Abba de Jesus e ateacute por uma questatildeo de teimosia persistiu
defendo tal tese Ele ainda reafirma que o Abba natildeo era apenas o linguajar infantil
mas poderia ser usado em momentos solenes ou religiosos Vermes cita uma vez
mais James Barr dizendo que ironicamente esse observa ldquoque a teoria de J
Jeremias vinculando Abba agraves crianccedilas considera uma situaccedilatildeo que antedata Jesus
em alguns milecircniosrdquo Para fechar a analogia de Barr Vermes ainda cita-o ldquoComo
Explanaccedilatildeo de Abba nos tempos do Novo Testamento o balbuciar infantil natildeo faz
sentidordquo
A refutaccedilatildeo de Vermes eacute enfaacutetica ou seja explicitamente ele coloca sua visatildeo
teoloacutegica sobre o Abba de Jesus como uma contestaccedilatildeo a todos os argumentos de
J Jeremias Para finalizar Vermes assim resume seu pensamento sobre a teoria de
J Jeremias ldquo[] a teoria de J Jeremias popular ateacute agora natildeo encontra
fundamento filoloacutegico A conclusatildeo literaacuterio-histoacuterica dessa teoria vale dizer que
antes de Jesus os judeus natildeo se dirigiam a Deus como Abba natildeo eacute apenas
incomprovada como tambeacutem implausiacutevelrdquo (Vermes 1995 p163-167)
130
Apoacutes os diversos argumentos contraacuterios a J Jeremias concluiacutemos com
Swidler que fazendo menccedilatildeo de Georg Schelbert observa que aleacutem do termo
abba natildeo havia nenhuma outra palavra a disposiccedilatildeo de Jesus se ele quisesse falar
de Deus ou a Deus como Pai Se essa era a uacutenica forma de Jesus dirigir-se a Deus
entatildeo ela natildeo poderia ter nada de especial como afirma J Jeremias ateacute porque
como mostra Schelbert a Mishnaacute (que significa ensinamento que eacute recitado
oralmente) mostra um relacionamento iacutentimo com Deus como o Pai do Ceacuteu (Swidler
1993 p73-75) Em relaccedilatildeo ao termo abba Barr conclui que eacute razoaacutevel que abba no
tempo de Jesus pertencia a uma linguagem familiar ou coloquial distinto do uso
formal e cerimonioso mas por outro lado tendo em vista o uso do Targum seria
imprudente comparaacute-la a expressatildeo infantil Daddy (papai) O uso do abba era mais
solene podemos dizer que estava mais relacionado ao uso do adulto para com seu
Pai (Barr 1988 p 46)
62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA
LEITURA A PARTIR DA TEOLOGIA FEMINISTA
A figura feminina sempre foi discriminada pelas sociedades patriarcais ao
longo dos seacuteculos da histoacuteria da humanidade Podemos dizer que o cristianismo um
importante movimento de massa a pregar a liberdade e a igualdade entre os homens
e mulheres ldquoNatildeo haacute judeu nem grego natildeo haacute escravo nem livre natildeo haacute homem
nem mulher pois todos voacutes sois um soacute em Cristo Jesusrdquo (Gl 3 28) 69 Eacute comum
ouvirmos que Jesus libertou as mulheres uma vez que em seu ministeacuterio o mestre
da Galileia teve como disciacutepulas vaacuterias mulheres inclusive como jaacute mencionamos
neste trabalho (53) Maria Madalena (cf Lc 8 2 2410)
Elisabeth Schuumlssler Fiorenza referindo-se a Leonard Swidler vai mais aleacutem
quando afirma que Jesus foi um feminista e isso foi primeiramente atestado por um
estudioso homem e natildeo por uma mulher70 Schuumlssler Fiorenza apela para o fato de
Jesus ter tido disciacutepulas e tambeacutem ter violado as leis de pureza (algo que era
69
Swidler refere-se a esse texto de Paulo como uma contestaccedilatildeo a uma oraccedilatildeo rabiacutenica que diz ldquoLouvado seja Deus por natildeo me ter criado gentio Louvado seja Deus por natildeo ter me criado mulher Louvado seja Deus por natildeo ter me criado ignoranterdquo (Swidler 1993 p 101)
70 Basicamente para Swidler feminista eacute a pessoa a favor da igualdade de homens e mulheres ou
seja a pessoa que trata primeiramente a mulher como uma pessoa assim como os homens satildeo tratados (Swidler 1993 p100)
131
contraacuterio aos rabinos judeus) como argumento para fundamentar a tese de um
Jesus feminista (Schuumlssler Fiorenza 2005 p 37)
Contudo para Swidler a atitude feminista era uma exclusividade de Jesus e
natildeo dos evangelistas e suas fontes Para ele a Igreja primitiva tornou-se
rapidamente antifeminista como pode ser visto em textos como ldquo[] estejam as
mulheres caladas nas assembleias pois natildeo lhes eacute permitido tornar a palavra
Devem ficar submissas como diz tambeacutem a Lei (1Cor 14 34)rdquo Swidler ainda cita
outro texto (1Tm 2 11-12) que diz que ldquodurante a instruccedilatildeo a mulher conserve o
silecircncio com toda a submissatildeo Natildeo permito que a mulher ensine ou domine o
homem Que ela conserve o silecircnciordquo Para Swidler a Igreja natildeo soacute se tornou
antifeminista como tambeacutem se tornou misoacutegina uma vez que aleacutem dos textos acima
mencionados jaacute no II seacuteculo Tertuliano refere-se agraves mulheres com as palavras ldquosois
o portatildeo do diabordquo Natildeo bastasse Tertuliano Oriacutegenes afirma que ldquoaquilo que eacute visto
com os olhos do criador eacute masculino e natildeo feminino pois Deus natildeo se curva para
olhar aquilo que eacute feminino e da carnerdquo (Swidler 1993 p106)
Tal afirmaccedilatildeo (Jesus libertou as mulheres) eacute muito bem aceita entre as
teoacutelogas feministas e por todos que defendem essa teoria Para Schuumlssler Fiorenza
Jesus natildeo somente libertou as mulheres da degradaccedilatildeo imposta pela sociedade
judaica patriarcal da antiguidade (apesar dessa tese ser considerada como
historicamente falsa e antijudaica pelas teoacutelogas feministas judias) como tambeacutem o
proacuteprio Jesus era um feminista (Fiorenza 2005 p110)
Conforme Swidler a condiccedilatildeo das mulheres na sociedade contemporacircnea de
Jesus na Palestina era sem duacutevida de inferioridade em relaccedilatildeo aos homens
Segundo Swidler natildeo obstante o fato de ter havido vaacuterias heroiacutenas nas Escrituras
hebraicas natildeo impediu que nos dias de Jesus e ateacute muito tempo depois natildeo fosse
concedido agraves mulheres a permissatildeo de estudar a Toraacute Swidler citando um texto da
Mishnaacute (Sita 34) refere-se a um rabino do seacuteculo I chamado Eliezer que
pronunciou as seguintes palavras referindo-se agraves mulheres ldquoAs palavras da Toraacute
deveriam antes ser queimadas do que confiadas a uma mulher [] todo aquele que
ensina a Toraacute a sua filha eacute como aquele que lhe ensina a lasciacuteviardquo (Swidler 1993
p100-101)
As mulheres no templo de Jerusaleacutem estavam limitadas agrave parte externa ou
seja ficavam no paacutetio das mulheres que estavam cinco degraus abaixo do paacutetio dos
homens Nas sinagogas aleacutem de ficarem separadas dos homens natildeo tinham
132
permissatildeo para ler em voz alta muito menos assumir alguma funccedilatildeo de lideranccedila
Swidler cita Filon contemporacircneo de Jesus que pensava que as mulheres natildeo
deviam sair de casa a uacutenica exceccedilatildeo era para ir agrave sinagoga e preferencialmente
em horaacuterios em que a maioria das pessoas estivessem em casa De uma maneira
geral as mulheres serviam apenas para ter filhos estavam sempre sob a tutela de
um homem que seria o marido ou no caso de viuvez sob a tutela do irmatildeo do
falecido sem contar com o fato de que tinham que se sujeitar a poligamia (ainda que
natildeo muito praticada nos dias de Jesus) eram facilmente repudiadas com a carta de
divoacutercio poreacutem natildeo tinham permissatildeo para se divorciarem Enfim ldquoa condiccedilatildeo das
mulheres na Palestina era aquela dos inferioresrdquo (cf Swidler 1993 p102-104)
A teologia de J Jeremias referente agrave relaccedilatildeo de Deus como Pai nos laacutebios de
Jesus de Nazareacute71 natildeo eacute aceita em algumas correntes teoloacutegicas como por
exemplo pelos defensores da teologia feminista72 Poreacutem quando falamos do
movimento feminista natildeo significa que exista um uacutenico ponto de vista sobre um
mesmo pensamento teoloacutegico Algumas feministas que adotam o pensamento de
reforma da tradiccedilatildeo o qual implica em conservar o que eacute melhor ao inveacutes de
simplesmente imitar as tradiccedilotildees lutam por uma reforma e uma flexibilidade na
linguagem da igreja quando o assunto se refere agrave pessoa de Deus argumentando
que o uso exclusivo da imagem masculina natildeo faz justiccedila agrave imagem biacuteblica de Deus
mas limita o acesso ao entendimento que temos de Deus Para essa corrente
feminista a imagem de Deus natildeo estaacute relacionada a gecircnero visto que Deus pode
ser visto tanto como pai e como matildee segundo Marianne Thompson para uma parte
dessas feministas e ainda para outras portanto a ideia central natildeo eacute descartar a
71 Elisabeth Schuumlssler Fiorenza observa que os livros e artigos sobre ldquoJesus e as mulheresrdquo se
proliferam contudo ela cita Crossan quando este acusa as feministas pela falta de interesse na busca pelo Jesus histoacuterico Crossan pergunta onde estatildeo elas Schuumlssler responde ldquoCrossan natildeo pode reconhecer as afinidades entre seu proacuteprio modelo de reconstruccedilatildeo histoacuterica e o meu modelo feminista (cf Schuumlssler 2005 p 30)
72 Haight coloca que a teologia feminista eacute por muitos comparada agrave teologia da libertaccedilatildeo uma vez
que compartilham de ideais e estrutura formal comum no que diz respeito agrave libertaccedilatildeo e tambeacutem a maioria dos pobres no mundo eacute constituiacuteda de mulheres ldquo[] No que tange agrave loacutegica hermenecircutica da teologia portanto as teoacutelogas feministas podem referir-se a si mesmas como teoacutelogas da libertaccedilatildeo [] Na medida em que o androcentrismo controla o significado de Jesus cristo a cristologia feminista eacute levada a questionar como uma figura masculina de Salvador pode oferecer a salvaccedilatildeo agraves mulheres Em termos mais amplos contudo a cristologia feminista ocupa-se de toda a forma de opressatildeo e de suas inter-relaccedilotildees O Deus mediado por Jesus Cristo coloca em xeque todo poder de dominaccedilatildeo Natildeo era o sexo mas o gecircnero como categoria cultural que tinha primazia e era parte da ordem das coisas O significado de homem e de mulher era determinado pela posiccedilatildeo na hierarquia social e pelo lugar que se ocupava na sociedade natildeo pela genitaacuteliardquo (cf Haight 2003 p37)
133
linguagem de Deus como Pai mas apenas incluir essa com outra variedade de
imagens de Deus (Thompson 2000 p 3)
Para outras feministas no entanto nenhum acordo sobre a questatildeo da
imagem paterna de Deus pode ser atingido facilmente pois tais questotildees natildeo
podem ser tatildeo facilmente resolvidas e as respostas necessaacuterias satildeo muito radicais
pois trariam uma postura revolucionaacuteria para a tradiccedilatildeo Para elas o uso histoacuterico
que a Igreja tem da linguagem exclusivamente masculina de Deus deve ser
inteiramente refeito73 Em vez de buscar as reformas dentro das estruturas atuais da
igreja ou dentro de construccedilotildees teoloacutegicas tradicionais essas feministas oferecem
uma pauta mais radical o que tem implicaccedilotildees natildeo apenas para a linguagem sobre
Deus mas tambeacutem para o carater baacutesico de toda a teologia e feacute cristatilde Algumas
feministas satildeo mais radicais ainda pois explicitamente rejeitam as tradiccedilotildees da feacute
cristatilde afirmando que os textos cristatildeos e a feacute satildeo inevitavelmente e
intoleravelmente patriarcal elas abandonaram o cristianismo por completo
(Thompson 2000 p 4)
Para Thompsom (2000 p 18) a designaccedilatildeo de Deus como Pai natildeo eacute
invenccedilatildeo de Jesus e nem criaccedilatildeo da Igreja primitiva A designaccedilatildeo de Deus como
Pai faz parte de ambos os Testamentos ou como o Pai que eacute o ancestral que daacute a
vida e lega uma heranccedila aos seus filhos ou como o Pai que ama e cuida dos seus
filhos ou ainda como o Pai que eacute uma figura de autoridade a quem se deve
obediecircncia e honra Thompsom afirma que Jesus dirigiu-se a Deus como Pai em
primeira instacircncia natildeo como um mero testemunho de sua proacutepria experiecircncia de
Deus mas ao inveacutes disso pelas suas proacuteprias convicccedilotildees de Deus como renovador
e restaurador de Israel ou seja isso natildeo era fruto de uma experiecircncia privada mas
assunto de uma missatildeo puacuteblica Essa afirmaccedilatildeo de Thompson natildeo se coaduna com
o pensamento de J Jeremias para quem a relaccedilatildeo de Jesus com o Pai era iacutentima e
pessoal
Nesse sentido Mary Rose DAngelo ao analisar o texto do Evangelho de
Marcos 1436 quando Jesus invocava o Pai (Ἀββᾶ ὁ πατήρ) ela observa que a
73
Elisabeth Schuumlssler Fiorenza em seu livro Jesus e a poliacutetica da interpretaccedilatildeo coloca uma teoria polecircmica ou pelo menos curiosa Segundo Schuumlssler os antropoacutelogos tecircm assinalado que nem todas as culturas e liacutenguas conhecem dois sexosgecircneros e que mesmo em culturas ocidentais isso eacute coisa da modernidade ldquoDurante milhares de anos considerava-se comum que as mulheres tivessem o mesmo sexo e os mesmos oacutergatildeos genitais que os homens estando a diferenccedila no fato de se acharem no interior do corpo ao passo que os dos homens estavam no exterior A vagina era entendida como um pecircnis interior os laacutebios como prepuacutecio o uacutetero como saco escrotal e os ovaacuterios como testiacuteculosrdquo (cf Schuumlssler 2005 p9)
134
oraccedilatildeo contida nesse texto pode ser apenas redacional visto que tal oraccedilatildeo ocorreu
no cenaacuterio do Getsecircmani onde Jesus estava naquele momento sem os seus
disciacutepulos portanto eles natildeo estavam laacute para ouvir e descrever o momento de sua
agonia Ela concorda com a teoria de que a narrativa desse cenaacuterio poderia ser
apenas um soliloacutequio dramaacutetico de Jesus ou entatildeo uma repeticcedilatildeo da oraccedilatildeo de
Joseph (4Q372 1 23-24) onde ele suplica para que Deus natildeo lhe abandone Para
D`Angelo a narrativa de Marcos tende muito para o lado emotivo procurando
dessa forma colocar Jesus como o verdadeiro Filho de Deus e grande maacutertir da
histoacuteria do judaiacutesmo conforme os livros Sabedoria de Salomatildeo e 3 Macabeus (D`
Angelo 1992b p159) Em outro artigo (Abba and ldquoFatherrdquo Imperial Theology and
the Jesus Traditions) D Angelo reafirma seu argumento sobre o cenaacuterio do
Getsecircmani dizendo ldquoEsta eacute uma cena da revelaccedilatildeo entre Jesus e leitor os
disciacutepulos estatildeo laacute para relatar a agonia de Jesus Assim a atribuiccedilatildeo de abba a
Jesus natildeo tem muacuteltipla atestaccedilatildeo Na verdade ocorre apenas em uma cena que
quase certamente deriva da atividade literaacuteria de Marcosrdquo (D` Angelo 1992a p614-
615)
Segundo D Angelo o uso do Abba pela Igreja primitiva natildeo eacute uma heranccedila dos
ensinamentos de Jesus como acreditam alguns teoacutelogos De acordo com essa
autora o uso do Abba na Igreja primitiva era mais uma questatildeo de ecircxtase provocada
por uma accedilatildeo do Espiacuterito Santo do que uma referecircncia agraves palavras ditas por Jesus
Para a autora se o Abba usado nas igrejas tivesse uma ligaccedilatildeo direta com Jesus
entatildeo seriamos obrigados a aceitar que outras palavras de origem aramaica como
Maranatha tambeacutem seriam provenientes dos discursos do mestre (D Angelo 1992a
p 615)
Um outro argumento defendido por D` Angelo eacute que o uso da expressatildeo ldquoAbba
Pairdquo no Evangelho de Marcos eacute anti-imperialista visto que o Imperador de Roma
considerava-se o pai da paacutetria (parens patriae pater patriae) preferindo ser
reconhecido com o tiacutetulo de pai ao tiacutetulo de rei designaccedilatildeo esta que natildeo soava bem
aos ouvidos do povo romano (D` Angelo 1992a p623-630) De fato de acordo com
DAngelo foi concedido a Juacutelio Cesar ainda em vida o tiacutetulo de ldquopaterldquo (pai) o qual
buscava estabelecer uma relaccedilatildeo de devoccedilatildeo (pietas) entre ele e o povo romano
Isso se deve ao fato que o uso de pater subentende o impeacuterio como uma grande
famiacutelia na qual o imperador funciona como um paterfamilias e cuja autoridade eacute
baseada em sua habilidade de reger todo o povo romano como seus clientes Ainda
135
seguindo com essa visatildeo imperialista observa-se que Augusto adquiriu oficialmente
o tiacutetulo pater patriae no ano 2 aC
No intuito de descrever o caraacuteter dos imperadores DAngelo aponta que
Cassius Dio o qual acreditava que os tiacutetulos supracitados representavam mais
afeiccedilatildeo do que autoridade tratou augustus e pater como duas denominaccedilotildees
atraveacutes das quais os imperadores primeiro permitiam a si mesmos serem
distinguidos do resto dos cidadatildeos substituindo o tiacutetulo ldquoreirdquo por tais designaccedilotildees
cujas essecircncias soariam de maneira menos ofensiva aos ouvidos dos romanos De
acordo com Dio o termo pater concorda com a ideia que o Imperador tem a mesma
autoridade que um pai tem sobre seus filhos escravo e outros sujeitos
Por outro lado dois filoacutesofos estoicos do primeiro e segundo seacuteculos nos
ajudam a entender como o tiacutetulo pai concedido ao Imperador poderia sofrer uma
reaccedilatildeo com o pensamento teoloacutegico da eacutepoca Para Dio Crisoacutestomo ldquoDeus como
pai racionaliza o governo imperial e convida-o a adotar um coacutedigo de eacutetica de
clemecircncia e de responsabilidaderdquo ao descrever que o bom rei eacute aquele que prefere a
labuta aos prazeres e as riquezas Tal rei prefere o tiacutetulo ldquopairdquo ao referir-se agrave sua
capacidade de provisatildeo Jaacute Epiacuteteto ldquousa a paternidade de Deus para oferecer uma
dignidade alternativa para aqueles que natildeo tecircm acesso ao poder dentro da ordem
imperialrdquo Esses dois autores satildeo importantes para o cristianismo primitivo e para o
judaiacutesmo natildeo pela influecircncia que exerceram sobre eles mas porque respondem as
mesmas realidades poliacuteticas
Um outro argumento de DAngelo com relaccedilatildeo ao uso de Abba por Jesus eacute
que o mesmo natildeo pode ser explicado apenas como uma relaccedilatildeo afetiva entre pai e
filho mas tambeacutem reflete a praacutetica carismaacutetica da comunidade na qual Marcos
estava inserido assim como ocorreu nas igrejas de origem grega da Galaacutecia e em
Roma (Gl 46 Rm 816) onde o uso da palavra ldquoAbbardquo eacute fruto da accedilatildeo do Espiacuterito
Santo
D`Angelo justifica essa tese a partir do fato que segundo ela J Jeremias
tomou como base em seus estudos apenas os textos provenientes de oraccedilotildees e
ainda excluiu textos em grego os quais ele considerou serem oraccedilotildees feitas pela
comunidade e natildeo como fruto de uma accedilatildeo do indiviacuteduo (D`Angelo 1992b p151)
Para dar suporte a esse argumento D`Angelo faz referecircncia ao texto de 4Q372 1
originalmente escrito em hebraico no qual Joseph invoca a Deus chamando-o de
meu Pai ldquoMeu Pai e meu Deus natildeo me abandone nas matildeos das naccedilotildees faccedila
136
justiccedila por mim o aflito e pobre pereciacutevel Vocecirc natildeo precisa de nenhuma pessoa ou
naccedilatildeo para lhe ajudar seu dedo eacute maior e mais forte do que qualquer coisa no
mundordquo (Vermes 2004 p566) Ela ainda cita outros textos onde Deus eacute invocado
como Pai (3 Mac 6 3-4 78 Sab 143 1 QH 935)
Embora alguns desses textos tenham sido escritos em grego quando lidos no
contexto de 4Q372 1 e 4Q460 5 DAngelo observa os textos hebraicos e gregos
mostram que era uma praacutetica comum tanto da comunidade quanto do indiviacuteduo
dirigir-se a Deus em oraccedilotildees chamando-o de Pai (D`Angelo 1992b p 152) Dessa
forma ela entende que o conceito de Deus como Pai sempre esteve presente no
judaiacutesmo antigo influenciando toda a literatura judaica da eacutepoca (DAngelo 1992a
618)
Face aos argumentos acima expostos D Angelo conclui que a originalidade
do uso do Abba natildeo pode ser atribuiacutedo a Jesus com toda certeza e mais ainda
segundo ela seria menos provaacutevel que Jesus usasse o termo pai numa linguagem
familiar do que em resistecircncia agrave ordem do Impeacuterio romano
Finalmente considerando os argumentos apresentados a partir da
interpretaccedilatildeo feminista Thompson conclui que tanto Jesus como a Igreja primitiva
natildeo deram origem ao conceito de Deus como Pai Aleacutem disso apesar das
caracteriacutesticas do Pai no Israel antigo serem utilizadas para falar de Deus como Pai
elas nunca estiveram ligadas a uma essecircncia masculina de Deus mas servem como
exemplo de feacute misericoacuterdia justiccedila humildade bem como responsabilidade
individual e corporativa e obediecircncia a Deus para a comunidade (Thompson 2000
p 19)
137
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Naquela noite em sonhos Joseacute teve um aviso O Evangelista natildeo diz em que cidade ou lugar a famiacutelia se encontrava Natildeo devia ser do lado norte e talvez fosse mesmo nas montanhas do sul fora do alcance das batidas policiais de Herodes Suponhamos que fosse na estrada do Heacutebron Com a cabeccedila reclinada sobre uma pedra o carpinteiro adormece E eis que o anjo do Senhor (aquele mesmo que lhe confiara a guarda de Jesus) lhe diz - Levanta-te e toma o menino e sua matildee e foge para o Egito e demora-te laacute ateacute que eu diga porque Herodes haacute de procurar o menino para o matar Joseacute desperta Sobre os montes luzem os primeiros alvores da madrugada Prepara o alforje avisa Maria para que tambeacutem se prepare porque longa eacute a viagem [] Joseacute sela o jumento acomoda Maria e o Menino sobre o animal Toma o bordatildeo E parte A viagem prolonga-se por muitos dias pela Idumeacuteia pelas montanhas de Sin pelo deserto de Sur Uma tarde sobre as colinas a cavaleiro do Nilo avistam as piracircmides de Miquerinos de Queacutefren e de Queops grandiosas e silenciosas no ar trecircmulo de mormaccedilo Junto agrave piracircmide de Miquerinos olhando para o abismo do ceacuteu e para a amplitude do deserto uma cabeccedila gigantesca de pedra tem indefiniacutevel indecifraacutevel expressatildeo Eacute a grande esfinge [] Os egiacutepcios viam naquele rochedo a imagem humana do sol Os gregos viam naquela imagem o monstro proponente de problemas insoluacuteveis (Salgado 1985 p67-69)
Em tom poeacutetico Plinio Salgado narra a histoacuteria da fuga do menino Jesus e
seus pais para o Egito conforme o texto do Evangelho de Mateus que diz ldquo[] eis
que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonhos a Joseacute e lhe disse Levanta-te toma
o menino e sua matildee e foge para o Egitordquo (Mt 213) Salgado usa o mito da esfinge74
para relacionar com o mito de Eacutedipo onde o enigma eacute decifrado pelo personagem
Eacutedipo75 Para Salgado Eacutedipo decifrou a Esfinge mas natildeo decifrou o homem que
continua nas trevas
A pergunta do monstro na estrada de Tebas refere-se ao homem ldquoQual eacute o animal que pela manhatilde anda com quatro pernas ao meio-dia com duas e agrave
74
Segundo Plinio Salgado o mito da Esfinge rezava que enquanto ser vivente misto de leatildeo e de mulher a Esfinge andava pelas estradas de Tebas devorando os viajantes que eram incapazes de responder as suas perguntas enigmaacuteticas Contudo o monstro morreria quando algueacutem decifrasse seu enigma
75 O mito de Eacutedipo pode ser visto com detalhes no claacutessico Antiacutegona de Soacutefocles
138
tarde com trecircsrdquo Eacutedipo responde ldquoEacute o homemrdquo e respondendo revela que toda a preocupaccedilatildeo da Esfinge eacute o gecircnero humano Decifrar a Esfinge eacute a preocupaccedilatildeo do homem Decifrar o homem eacute a preocupaccedilatildeo da Esfinge (Salgado 1985 p67-69)
Conforme Salgado a trageacutedia de Eacutedipo eacute a trageacutedia do homem Somente
Jesus decifraraacute a ldquoEsfinge-Homem e iluminaraacute todo o universordquo
A histoacuteria da humanidade eacute repleta de trageacutedias desde as suas origens Jaacute
nos primeiros capiacutetulos do Gecircnesis vemos Abel sendo viacutetima de seu irmatildeo Caim 76
Diante de tantas cataacutestrofes o homem procura refuacutegio em um ser sobrenatural que
possa amenizar seu sofrimento e dar-lhe alguma explicaccedilatildeo para o porquecirc de tantos
desalentos nesta vida
A relaccedilatildeo do ser humano com o Ser sobrenatural faz parte da cultura de todos
os povos antigos como vimos no primeiro capiacutetulo deste trabalho Isso nos mostra o
anseio do ser humano em busca do seu criador Observamos que para os povos
antigos Deus era visto como um ancestral divino ou seja o homem era visto como
descendente da divindade Essa relaccedilatildeo entre o homem primitivo e a deidade nos
povos antigos era sempre marcada por sangue violecircncia guerra entre os deuses
ateacute o surgimento do homem como vimos no mito sumeacuterio babilocircnico em que o
homem proveacutem do sangue de um deus decaiacutedo chamado Kingu
Em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem na narrativa do Gecircnesis verificamos que o
proacuteprio Deus eacute quem modela e cria o homem a partir do barro (argila) O homem
entatildeo recebe a vida atraveacutes do sopro divino Essa relaccedilatildeo tatildeo proacutexima entre criatura
e criador eacute descrita nas Escrituras de uma forma progressiva desde o Gecircnesis ateacute
os escritos neotestamentaacuterios Agrave medida que Deus se revela ao homem este se
aproxima mais dele Aos patriarcas Deus eacute o El Shaday (Todo Poderoso) mas jaacute a
Moiseacutes ele revela o seu proacuteprio Nome Ele eacute o ldquoEu Sourdquo o Yahweh
Mesmo Yahweh sendo um Deus proacuteximo Ele ainda eacute visto no Antigo
Testamento como figura de um Senhor Criador o Todo Poderoso que luta e peleja
por Israel mas que ao mesmo tempo em que defende seu povo pune-os e os
entrega nas matildeos dos inimigos quando esses se desviam dos seus mandamentos
J Jeremias sabiamente observa que no Antigo Testamento a relaccedilatildeo de Israel com
Deus natildeo eacute vista como o relacionamento de pai para filho principalmente por parte
76
Cf Gn 4 1-16
139
do indiviacuteduo Deus sempre se apresenta como o Pai do rei ou entatildeo como o Pai da
naccedilatildeo Mesmo que Pai seja uma das muitas metaacuteforas para Deus como afirma
Goshen-Gottstein dificilmente podemos contestar a tese de J Jeremias uma vez
que uma clara invocaccedilatildeo de Deus como Pai feita por algum indiviacuteduo no Antigo
Testamento eacute difiacutecil de ser encontrada
Em relaccedilatildeo ao Novo Testamento observamos que Jesus que conviveu em
uma sociedade muito pobre carregada de preconceitos viu na expressatildeo Abba a
forma por excelecircncia para projetar nela o modelo de uma verdadeira e iacutentima
relaccedilatildeo entre filho e pai O fato de Jesus ter sofrido preconceitos como em sua
infacircncia adolescecircncia e ateacute na vida adulta por causa da sua filiaccedilatildeo humana natildeo o
impediu de demonstrar o quanto a sua relaccedilatildeo com o Pai divino era estreita e isso
estava acima de todos os preconceitos concebidos dentro de uma sociedade cheia
de costumes rigidamente observados a ponto de natildeo mais compreenderem o
verdadeiro sentido do amor a Deus e ao proacuteximo conforme era a verdadeira
vontade de Deus expressa nos ensinamentos do mestre da Galileia
Embora Joseacute tenha assumido a paternidade de Jesus isso natildeo foi suficiente
para impedir o preconceito contra ele em relaccedilatildeo a sua filiaccedilatildeo humana Contudo
quando Bruce Chilton potildee a questatildeo relacionada agrave possibilidade de Jesus ter sido
considerado um Mamzer a partir da interpretaccedilatildeo do texto do Evangelho de Joatildeo 8
40-41 onde os Judeus fazem a seguinte afirmaccedilatildeo a Jesus ldquo[] natildeo nascemos da
prostituiccedilatildeo temos um soacute pai Deusrdquo podemos tambeacutem olhar esse texto a partir de
uma interpretaccedilatildeo de uma Cristologia alta ou seja aqui o debate entre Jesus e os
judeus tem como ponto principal a filiaccedilatildeo divina onde Jesus se coloca como o
Verbo divino preexistente Poreacutem eacute bem verdade que isso natildeo anula o pensamento
de Chilton em relaccedilatildeo agrave possiacutevel discriminaccedilatildeo sofrida por Jesus levando em
consideraccedilatildeo o contexto a eacutepoca a cultura e o ambiente social em que Jesus viveu
durante o periacuteodo da infacircncia ateacute a vida adulta
Aleacutem disso podemos dizer com Martins Terra que a vida de Cristo eacute a
Revelaccedilatildeo do Pai que pode ser demonstrada nas palavras no silecircncio e nos
sofrimentos de Jesus Martins Terra observa que essa relaccedilatildeo eacute plena de intimidade
como pode ser visto nas palavras do proacuteprio Mestre ldquoAquele que me viu viu o Pairdquo
(Jo 149) e da mesma forma o Pai tambeacutem pode dizer assim do Filho ldquoEste eacute o
140
meu Filho muito amado ouvi-o (Lc 935)rdquo Notamos aqui que a relaccedilatildeo de Jesus
com o Pai eacute desde a eternidade onde o Verbo divino jaacute estava presente com o Pai
na criaccedilatildeo de todas as coisas (Martins Terra 2009 p283-284)
Para Martins Terra assim como para J Jeremias o Abba de Jesus eacute o
modelo da perfeita relaccedilatildeo dos filhos de Deus com o Pai do ceacuteu Assim como Jesus
relacionou-se com o Pai divino seus disciacutepulos tambeacutem o poderatildeo desde que se
aproximem e ldquoamem a Deus acima de todas as coisas e o proacuteximo como a si
mesmordquo Eacute na oraccedilatildeo do Pai Nosso que Jesus ensina como os disciacutepulos devem
orar em uma estreita ligaccedilatildeo com o Abba conforme nos descreve Martins Terra
[] Os disciacutepulos ficam impressionados com a oraccedilatildeo de Jesus Ele chamava a Deus de Aba (Mc 14 36) que natildeo eacute um termo usado nas oraccedilotildees judaicas Aba eacute um diminutivo aramaico que significa ldquopapairdquo Eacute a expressatildeo de uma crianccedila dirigindo-se a seu progenitor Jesus natildeo pode desde o inicio revelar o misteacuterio da Santiacutessima Trindade e de sua pessoa divina Esse misteacuterio natildeo tinha sido revelado no AT Foi invocando a Deus como Aba ldquomeu Pairdquo que Jesus foi levantando aos poucos o veacuteu que ocultava o misteacuterio da trindade e do seu relacionamento filial uacutenico com o Pai (Martins Terra 2009 p283-284)
Aleacutem disso de acordo com James D G Dunn podemos dizer com confianccedila
que Jesus experimentou uma iacutentima relaccedilatildeo com Deus expressa atraveacutes da oraccedilatildeo
Ele se relacionou com Deus caracteristicamente como Filho e Pai e o sentido dessa
relaccedilatildeo com Deus era tatildeo real tatildeo amorosa e tatildeo atraente que Jesus sempre se
dirigiu a Deus dessa maneira chamando-o de Pai ldquoAbba foi o grito que veio mais
naturalmente aos laacutebios de Jesusrdquo (Dunn 1997 p26)
Segundo J Jeremias para compreendermos o Abba como a ipsissima vox de
Jesus eacute preciso observar a origem de sua liacutengua materna Conforme observamos
no decorrer desta pesquisa haacute alguns pesquisadores que defendem que a liacutengua
corrente nos dias de Jesus era o hebraico e por sinal tambeacutem falada por Jesus
Esse argumento natildeo eacute seguido pela maioria dos especialistas do Novo Testamento
bem como por J Jeremias A liacutengua falada por Jesus era do ldquoramo ocidental da
famiacutelia linguiacutestica aramaicardquo J Jeremias para embasar sua tese menciona
respeitaacuteveis nomes como J Wellhausen Jouumlon Matthew Black e principalmente G
Dalman (Jeremias 2008 p32-33) que ldquoapresentou a prova baacutesica para este fatordquo
Tendo Dalman ainda como referecircncia J Jeremias afirma que natildeo eacute possiacutevel mais
141
duvidar que o aramaico ou para ser mais preciso ldquoo dialeto galileu do aramaico
ocidentalrdquo era a liacutengua materna de Jesus
As evidecircncias aramaicas satildeo evidentes nos ditos de Jesus por outro lado
praticamente natildeo se encontra palavras em hebraico ditas por ele nem mesmo o
ldquoAmenrdquo ou ldquoEliacuterdquo uma vez que essas palavras foram absorvidas pelo aramaico
(Jeremias 2008 p36) J Jeremias admite que em alguns poucos casos
encontramos palavras hebraicas nos laacutebios de Jesus mas sempre em situaccedilotildees
solenes como as palavras proferidas na uacuteltima ceia em liacutengua sacra
A importacircncia do aramaico como a primeira liacutengua de Jesus encontra-se na
possibilidade de nos aproximarmos o quanto possiacutevel do modo de falar do mestre
ou seja voltarmos ldquoagraves caracteriacutesticas da dicccedilatildeo de Jesus que natildeo possuem
nenhuma analogia na literatura da eacutepoca e que por isso podem ser consideradas
como marcas da ipsissima vox de Jesusrdquo (cf Jeremias 2008 p 68-79) Entre as
particularidades de Jesus concernentes agrave fala encontramos as seguintes
peculiaridades conforme J Jeremias
1 - As paraacutebolas de Jesus satildeo exclusividade dele natildeo encontradas em toda a
literatura judaica do Antigo ou do Novo Testamento quer canocircnica ou apoacutecrifa Nas
paraacutebolas de Jesus natildeo se encontra nenhuma faacutebula ou seja ele nunca coloca
uma videira ou figueira para falar Suas paraacutebolas (mesmo contendo metaacuteforas do
Antigo Testamento) tinham por maior finalidade atingir o coraccedilatildeo pulsante do ouvinte
e tratar de assuntos relacionados ao dia-a-dia da vida do ser humano
2 - Os ditos enigmaacuteticos como o proferido sobre Joatildeo Batista ldquoo maior entre
os nascidos de mulher eacute ao mesmo tempo o menor no reino de Deusrdquo (Mt11 11)
eram incomuns nos dias de Jesus seja entre os mestres ou ateacute mesmo dos
primeiros cristatildeos que natildeo inventaram tais ditos mas apenas os tornaram mais
evidentes
3 ndash A expressatildeo ldquoreino de Deusrdquo eacute escassa na literatura judaica antiga
recebendo um aumento apenas na literatura rabiacutenica Contudo nos Evangelhos natildeo
soacute o aumento mas a forma que Jesus usa as expressotildees relacionadas ao reino de
Deus satildeo profundamente marcantes para se caracterizar como a ipsissima vox de
Jesus conforme encontramos em textos como Mateus 519 11 12 Marcos 115
Lucas 112 1231 1721 etc
142
4 ndash O termo Ameacutem como jaacute foi mencionado nesta pesquisa (54) no Antigo
Testamento era usado como foacutermula solene para confirmar ldquouma palavra de benccedilatildeo
maldiccedilatildeo ou desejordquo Nos laacutebios de Jesus o termo eacute usado para testificar as
proacuteprias palavras do falante e natildeo de outrem J Jeremias conclui sobre o ameacutem
com as seguintes palavras ldquoA novidade desse uso linguiacutestico sua estrita restriccedilatildeo
agraves palavras de Jesus e o testemunho unacircnime de todas as camadas da tradiccedilatildeo
evidenciam que nos deparamos com uma inovaccedilatildeo linguiacutestica nos laacutebios de Jesusrdquo
5 ndash E por uacuteltimo temos o Abba proferido por Jesus Abba eacute a mais importante
palavra pronunciada por Jesus quando invocava a Deus com o Pai eacute o modo
preferido de Jesus para referir-se ao Pai Dificilmente poderiacuteamos interpretar o Abba
de Jesus como faz Malina comentando o Abba natildeo eacute paizinho de James Barr
Como tem sido demonstrado por James Barr (1988) a palavra aramaica Abba natildeo significa ldquopaizinhordquo como no hebraico moderno Tanto na traduccedilatildeo do Novo Testamento (Abba = ho pater Mc 14 36 Rm 815 Gl46) quanto de honra No patriarcado ele implica tambeacutem distacircncia Deus natildeo eacute um paizinho mas um patrono Na religiatildeo poliacutetica pregada por Jesus o deus de Israel eacute o patrono de Israel (cf Malina 2004 p145)
Compreende-se portanto que o Abba proferido por Jesus eacute ipsissima vox
Julgar J Jeremias alegando que ele considerou o linguajar de Jesus infantil natildeo eacute
cabiacutevel dentro do contexto de toda a sua teologia J Jeremias defende-se dessa
acusaccedilatildeo que a princiacutepio ateacute poderia ser justa uma vez que ele admite que jaacute
chegou a acreditar que Jesus tenha assumido a linguagem das criancinhas quando
se dirigia a Deus Pai como ele mesmo admite ldquoeu tambeacutem acreditei nissordquo
contudo agora natildeo mais jaacute que nas proacuteprias palavras desse teoacutelogo ele assim
admite ldquoa constataccedilatildeo de que jaacute desde os tempos preacute-cristatildeos os filhos e filhas
adultos se dirigiam a seus pais chamando-os de Abba proiacutebe esta limitaccedilatildeordquo
(Jeremias 2008 p121)
Portanto no Abba de Jesus natildeo haacute espaccedilos para patriarcados exclusivistas
uma vez que o proacuteprio ldquoFilho de Deusrdquo na sua condiccedilatildeo de homem acolheu os
pobres religiosos doentes e marginalizados pela sociedade cobradores de
impostos e tambeacutem acolheu o que a sociedade machista da eacutepoca mais discriminou
as mulheres Talvez seja uma precipitaccedilatildeo eliminar a linguagem metafoacuterica da
palavra Pai ou mesmo deixar de observar nela o conceito anti-imperialista ou ateacute
mesmo a patronagem No entanto natildeo podemos deixar de priorizar que para Jesus
143
Abba era uma palavra sagrada era ldquoa revelaccedilatildeo Deus porque Deus se tinha dado a
conhecer a ele como seu Pairdquo (Mt 11 27) um ldquoPairdquo acolhedor que quis ajuntar os
seus filhos como a galinha ajunta os seus os seus pintos debaixo das suas asas (cf
Lucas 1334)
A paternidade de Deus conforme J Jeremias natildeo eacute algo natural tambeacutem
natildeo eacute uma posse de todos os seres humanos mas reserva-se apenas aos
disciacutepulos uma vez que Jesus nunca dirigiu a expressatildeo ldquovosso Pairdquo a algueacutem que
estivesse fora do rol dos seus seguidores A filiaccedilatildeo faz parte do reino (basileia) de
Deus Uma das exigecircncias para fazer parte de tal reino eacute tornar-se como uma
crianccedila (Mt 183) Essa filiaccedilatildeo eacute escatoloacutegica eacute um dom salviacutefico de Deus (J
Jeremias 2008 p 271-273)
O Pai apresentado por Jesus eacute bom e cuida dos seus lsquopequeninosrsquo jaacute que
ele sabe do que eles realmente precisam (Mt 6 8 32) A invocaccedilatildeo de Deus como
Abba eacute mais forte do que todas as adversidades e anguacutestias mesmo que Satatilde
ldquoqueira peneirar o disciacutepulordquo (Lc 22 31) o Pai do ceacuteu ldquoeacute mais forte do que todos os
problemas enigmas e anguacutestias e sabe do que precisam os filhos do reino (J
Jeremias 2008 p276) O ponto central de toda essa exposiccedilatildeo sobre o Abba
consiste no ldquovoltar a ser como uma crianccedilardquo O significado disso estaacute em tornar-se
dependente do Pai voltar para os braccedilos do Pai (cf Lc 15 11-32) depositar total
confianccedila nele enfim resumimos isso nas palavras de J Jeremias ldquovoltar a ser
crianccedilardquo significa reaprender a dizer Abba (J Jeremias 2008 p 238) como diz J
Jeremias ldquo[] Abba eacute percebido como um grande privileacutegiordquo Ter a coragem de
chamar Deus de Pai proveacutem da conscientizaccedilatildeo da filiaccedilatildeo satildeo os filhos que podem
dizer Abbardquo (J Jeremias 2008 p293)
Jesus de Nazareacute o Filho de Deus o homem que dividiu a histoacuteria em antes e
depois dele mudou os rumos da humanidade para sempre Amado e odiado
apregoado e perseguido mas nunca esquecido Verificamos ao longo deste trabalho
as mais variadas teorias sobre ele ora como um mago um judeu marginal um
profeta um bastardo um judeu praticante ou apenas uma figura lendaacuteria
embelezada por seus seguidores Schuumlssler Fiorenza relata uma histoacuteria rabiacutenica
em que Moiseacutes visita o rabino Akiva Ao ouvir os infindaacuteveis discursos sobre a Toraacute
Moiseacutes teria perguntado ldquoquem escrevera aquelas coisas grandiosas que ele jamais
144
tomara conhecimentordquo Schuumlssler Fiorenza (2005 p1) relacionando a histoacuteria
rabiacutenica sobre a Toraacute com as milhares escritas sobre Jesus ela levanta a seguinte
questatildeo ldquoSe Jesus tal como Moiseacutes voltasse a terra lesse todas as suas biografias
e frequentasse o Jesus Seminar ou fosse agrave reuniatildeo anual da Society of Biblical
Literature tambeacutem se maravilharia e perguntaria tomado de assombro Quem eacute
essa pessoa de quem estatildeo falandordquo
A busca pelo Jesus da histoacuteria levou a tantos extremos mas com certeza
acrescentou inuacutemeros fatos ou ateacute mesmo suposiccedilotildees que enriqueceram o
conhecimento que temos hoje sobre Jesus e os Evangelhos Eacute inegaacutevel o fato de
que os Evangelhos natildeo satildeo histoacuteria no sentido moderno e que os disciacutepulos natildeo
tinham a mesma pretensatildeo ou necessidade de relatar os fatos em detalhes visto
que viveram em um mundo cultura e eacutepoca totalmente diferente da nossa cultura
ocidental Portanto quanto mais perto quisermos chegar do Jesus humano mais
perto devemos nos aproximar da cultura do seacuteculo I
Sobre o divisor de aacuteguas entre J Jeremias e Bultmann ou seja se devemos
buscar pelo Jesus da histoacuteria ou pelo Cristo querigmaacutetico nada melhor do que
concluir com as palavras do proacuteprio J Jeremias
A boa nova sobre Jesus e o testemunho da feacute da igreja primitiva estatildeo indissoluvelmente ligados Natildeo podemos isolar nenhuma dessas magnitudes Pois o evangelho de Jesus se converte em histoacuteria morta sem o testemunho de feacute da igreja (a qual estaacute transmitindo sem cessar esse evangelho e o estaacute confessando e testemunhando sempre novamente) Sem Jesus e seu evangelho a igreja natildeo pregava mais que uma ideia um teorema Quem isola a pregaccedilatildeo de Jesus termina no ebionismo Quem isola o querigma da igreja primitiva termina no docetismo (Jeremias 2006 p 42)
Portanto descrever sobre Jesus realmente natildeo eacute tarefa faacutecil como parece
ser Como afirmar que ele era analfabeto ou entatildeo um rabi letrado da Galileia As
evidecircncias internas como vimos levam-nos a pensar em um homem que escrevia
lia e interpretava as Escrituras Por outro lado como nos mostra Crossan as
evidecircncias externas levam-nos a pensar em um camponecircs sofredor e iletrado como
a maioria dos galileus ou entatildeo dos judeus subjugados ao terriacutevel e impiedoso
Impeacuterio romano principalmente a Galileia diretamente afetada pelo deacutespota
Herodes Antipas
145
O importante eacute que Jesus com ou sem instruccedilatildeo douto ou indouto
conseguiu com a graccedila do Pai dos Ceacuteus deixar aos homens de todas as eacutepocas o
exemplo de um servo sofredor de amor ao proacuteximo de renuacutencia e acima de tudo
de um homem que cumpriu com toda a vontade e propoacutesitos de Deus Pai para a
salvaccedilatildeo da humanidade O apoacutestolo Joatildeo o descreveu como o Verbo o Logos
preexistente que existe antes de todas as coisas uma vez que as mesmas foram
criadas por ele
146
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