pontifÍcia universidade catÓlica do paranÁ centro de … · 2020. 3. 10. · segundo joachim...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS MESTRADO EM TEOLOGIA JONAS SILVA FARIA JESUS DE NAZARÉ: SUA RELAÇÃO COM DEUS PAI EM JOACHIM JEREMIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS CURITIBA 2012

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Page 1: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2020. 3. 10. · segundo Joachim Jeremias. Para isso, realizamos o estudo do Jesus histórico e seu contexto social,

PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DO PARANAacute

CENTRO DE TEOLOGIA E CIEcircNCIAS HUMANAS

MESTRADO EM TEOLOGIA

JONAS SILVA FARIA

JESUS DE NAZAREacute SUA RELACcedilAtildeO COM DEUS PAI EM JOACHIM

JEREMIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

CURITIBA

2012

JONAS SILVA FARIA

JESUS DE NAZAREacute SUA RELACcedilAtildeO COM DEUS PAI EM JOACHIM

JEREMIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teologia da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Teologia

Orientador Prof Dr Vicente Artuso

CURITIBA

2012

Dados da Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute

Sistema Integrado de Bibliotecas ndash SIBIPUCPR

Biblioteca Central

Faria Jonas Silva

F224j Jesus de Nazareacute sua relaccedilatildeo com Deus Pai em Joachim Jeremias e seus 2012 Desdobramentos Jonas Silva Faria orientador Vicente Artuso ndash 2012

151 f 30 cm

Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute

Curitiba 2012

Bibliografia f 146-151

1 Biacuteblia AT - Antiguidades 2 Biacuteblia NT - Histoacuteria de fatos

contemporacircneos 3 Jeremias Joachim 1900- 4 Teologia I Artuso Vicente

1952- II Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Teologia III Tiacutetulo

CDD 20 ed ndash 232908

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo a Deus pela inspiraccedilatildeo e pela vida sem as quais natildeo seria possiacutevel concluir este trabalho

Agradeccedilo a minha esposa Josiane pela compreensatildeo e apoio nas inuacutemeras horas em que me dediquei agrave pesquisa abdicando dos momentos que poderiam ser aproveitados junto da famiacutelia e em especial agrave nossa filha Sofia Gabriela que nasceu durante o periacuteodo da minha pesquisa trazendo luz alegria e motivaccedilatildeo para que essa empreitada fosse concluiacuteda

Agradeccedilo aos meus pais pela educaccedilatildeo a mim proporcionada e em especial a minha tia Eli Kowalski por ter tornado possiacutevel meu sonho de cursar teologia em uma instituiccedilatildeo de ensino superior o qual ampliou meus horizontes para o labor teoloacutegico e por fim abriu o caminho para mais esta conquista

Meu agradecimento especial ao meu orientador Prof Dr Vicente Artuso por ter acreditado na possibilidade desta pesquisa e me fornecido o suporte necessaacuterio para a concretizaccedilatildeo deste trabalho

Agradeccedilo ao corpo docente e ao programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia da PUC-PR pela contribuiccedilatildeo valiosa em minha formaccedilatildeo teoloacutegica durante todo o processo

Agradeccedilo agrave secretaacuteria Maria pela paciecircncia e eficiecircncia nas informaccedilotildees fornecidas desde o primeiro contato com a instituiccedilatildeo

Agradeccedilo a Marta pela disponibilidade e empenho na correccedilatildeo ortograacutefica e gramatical desta dissertaccedilatildeo

Agradeccedilo aos dirigentes do Studium Theologicum de Curitiba por ter permitido a utilizaccedilatildeo da biblioteca na qual encontrei grande parte da bibliografia aqui utilizada e a Flaacutevia pela paciecircncia e disponibilidade no auxiacutelio agraves consultas bibliograacuteficas

RESUMO

O objetivo deste trabalho eacute levar-nos agrave compreensatildeo da relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo Joachim Jeremias Para isso realizamos o estudo do Jesus histoacuterico e seu contexto social poliacutetico e religioso bem como a visatildeo que os povos antigos incluindo o Israel do Antigo Testamento tinham de Deus Por fim visotildees contraacuterias agrave interpretaccedilatildeo de J Jeremias satildeo apresentadas As diversas teorias que os homens tecircm da paternidade divina chamam agrave nossa atenccedilatildeo para a incessante busca da humanidade para identificar-se com o Criador especificamente com a figura de um Deus Pai No entanto nesta pesquisa observamos que mesmo no judaiacutesmo onde natildeo encontramos a antiga imagem de uma deusa matildee observamos a figura de um Deus Pai com afetos e sentimentos maternos Para J Jeremias eacute com Jesus que o relacionamento do humano com o Pai divino atinge seu aacutepice atraveacutes da magna expressatildeo ldquoAbba Pai Segundo este autor Jesus de um balbucio das criancinhas teria tornado o Abba Pai uma expressatildeo sagrada entre os seus disciacutepulos a ponto de posteriormente ela ser absorvida pelas comunidades cristatildes primitivas como a forma de comunicaccedilatildeo do Espiacuterito para testificar no interior do disciacutepulo que este agora eacute tambeacutem filho de Deus A teoria de que o Abba natildeo era apenas um balbucio infantil ou muito menos um termo sagrado eacute contestada por correntes teoloacutegicas judaicas e feministas que veem os argumentos de J Jeremias como infundados ou repletos de exageros No entanto ao final da pesquisa procuramos mostrar que mesmo diante de tais contestaccedilotildees a paternidade divina proclamada por Jesus natildeo eacute natural ou seja uma posse de todos os seres humanos mas exclusividade dele e dos seus disciacutepulos uma vez que a filiaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica do reino de Deus e soacute os filhos do reino eacute quem podem usufruir de tal privileacutegio e dirigir-se a Deus invocando-o como o Abba Pai Jesus de Nazareacute nesta pesquisa eacute o exemplo a ser seguido no tocante agrave humildade e sofrimento numa sociedade profundamente marcada pelo preconceito e desigualdade social Compreendecirc-lo e segui-lo na sua humanidade eacute um grande passo para aproximar-se dele como o Cristo poacutes-pascal onde a revelaccedilatildeo do divino ao humano se concretiza com toda a plenitude Palavras-chave Jesus histoacuterico Paternidade divina

ABSTRACT

This work aims to understand the relationship between Jesus and God the Father according to Joachim Jeremias For this we studied the historical Jesus and his social political and religious context as well the ancient people view of God including the view of Israel from Old Testament Finally views that are opposed to Jeremias are presented The various theories that men have on the fatherhood of God call our attention to the relentless pursuit of humanity to identify with the Creator specifically with a figure of God the Father However in this study we observed that even in Judaism where it cannot find the ancient image of a mother goddess we see a picture of a God Father with affection and maternal feelings For J Jeremias it is in Jesus that the relationship of the human with the divine Father reaches its peak through the magna term Abba Father According to this author Jesus through a babble of little children would have made the Abba Father a sacred expression among his disciples and He subsequently extent it in order to being absorbed by the early Christian communities as a way of communicating of the Spirit to testify within the disciple that he is also the son of God The theory that Abba was not just a babbling child or much less a sacred term is challenged by current theological and Jewish feminists who see the arguments of J Jeremias as unfounded or exaggerated However at the end of the study we sought to show that even in the face of such challenges the fatherhood of God proclaimed by Jesus is not natural ie a possession of all human beings but it is exclusive to Him and his disciples once the sonship is a feature of the kingdom of God and only the children of the kingdom is the one who can enjoy such a privilege and turn to God calling him Abba Father Jesus of Nazareth on this research is the example to be followed regarding the humility and suffering in a society deeply marked by prejudice and social inequality To understand and follow Him in his humanity is a big step to be close to him as the post-Passover Christ where the revelation of the divine to the human is fully realized Key-words Historical Jesus Gods fatherhood

Sumaacuterio

1 INTRODUCcedilAtildeO 7 2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO 19 3 O JESUS HISTOacuteRICO 27 31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO 27 32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO 32 4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE SUA EacutePOCA 40 41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE CONTEMPORAcircNEA DE JESUS 41 42 JESUS O HUMILDE NAZARENO 46 43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES 50 44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS 59 45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS 61 451 OS ESSEcircNIOS 63 452 OS FARISEUS 66 453 OS SADUCEUS 72 454 OS ZELOTAS 74 5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS E SEUS

DESDOBRAMENTOS 79 51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA 79 52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA 85 53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS 91 54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS 100 55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR 102 56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA 110 6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS 122 61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO 122 62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA LEITURA A PARTIR DA

TEOLOGIA FEMINISTA 130 7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 137 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 146

7

1 INTRODUCcedilAtildeO

A ideia de Deus como pai da humanidade sempre esteve presente na mitologia dos

povos antigos Pai eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e na

Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Segundo Joachim Jeremias

(1977 p11-12) muitas tribos e famiacutelias acreditavam que eram procedentes de um

ancestral divino isto eacute de um ldquopairdquo divino Ephraim descreve-nos que a relaccedilatildeo de Deus

como Pai entre os povos antigos era bastante conhecida contudo ele evidencia que o

Abba de Jesus foi a mais iacutentima forma de invocar a Deus propagada entre os homens

atraveacutes dos ensinamentos de Jesus

A palavra Abba (Pai) posta na boca de Jesus eacute como se fosse a uacuteltima tentativa de Deus para ensinar os homens a pronunciarem seu nome Muitas vezes no passado Deus tentou fazer isto atraveacutes de seus servidores os profetas mas Israel natildeo compreendeu ldquoPairdquo eacute um tiacutetulo divino muito antigo encontrado em quase todas as religiotildees do Oriente meacutedio mas no caso ele eacute pai como a terra eacute matildee isto eacute exige na medida em que daacute Eacute o deus tutelar que deve ser adulado pois do contraacuterio ele natildeo outorga as suas graccedilas Eacute um deus que eacute pai do mesmo modo que Zeus era o pai de todos os deuses (Ephraim 1998 p171)

Observa-se que para os povos antigos Deus era um ancestral divino distante de

suas criaturas Aleacutem disso para Israel conforme a tese sustentada por J Jeremias vecirc-

se que no Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai principalmente quando

essa forma de invocar a Deus estaacute relacionada a um indiviacuteduo (Jeremias 2005 p19) Por

outro lado se no Antigo Testamento Deus natildeo eacute invocado como Pai de uma forma

individual como Senhor Ele eacute constantemente invocado a exemplo do salmista (Sl 338)

que menciona Deus como o Senhor que fala e as coisas acontecem conforme as suas

ordenanccedilas (Jeremias 2008 p 269)

Em contraste a essa relaccedilatildeo aparentemente tatildeo distante do Deus Pai com seus

filhos no periacuteodo veterotestamentaacuterio observa-se que a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute

profundamente marcante nos Evangelhos Haacute poreacutem diferentes interpretaccedilotildees com

relaccedilatildeo ao sentido da palavra Pai quando esta era proferida por Jesus J Jeremias

embora natildeo tenha sido o primeiro a tratar dessa questatildeo provavelmente foi o mais

influente quando ele sugere que Jesus ao dirigir-se a Deus invocando-o como o ἀββᾶ

(Abba) estava atribuindo um novo enfoque ao costume judaico de interpelaccedilatildeo a Deus

fazendo uso de uma linguagem cotidiana assim como as crianccedilas dirigiam-se a seus pais

expressando familiaridade e intimidade (cf Goshen-Gottstein 2001 p 493)

O objetivo deste trabalho eacute o estudo do Jesus histoacuterico (humano) com ecircnfase em

seu contexto social culminando no estudo histoacuterico-teoloacutegico da relaccedilatildeo de Jesus com o

8

Pai Este estudo tem como ponto de partida a teologia de Joachim Jeremias concernente

ao Abba proferido por Jesus no Evangelho de Marcos (1436) que diz ldquo[] Abba (Pai)

Tudo eacute possiacutevel para ti afasta de mim este caacutelice poreacutem natildeo o que eu quero mas o que

tu queresrdquo

Para entendermos a relaccedilatildeo de Jesus com o Deus Pai no Novo Testamento e como

ele transformou uma distante relaccedilatildeo entre o Pai ldquoque estaacute nos ceacuteusrdquo e seus filhos eacute

interessante vislumbrar o mundo poliacutetico religioso e cultural no qual ele esteve inserido

comeccedilando pela pequena Nazareacute um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que

vivia em casebres um povoado simples composto de camponeses entre duzentos a

quatrocentos habitantes (Crossan 2007 p 75) ateacute ao Getsecircmani onde Jesus proferiu a

magna expressatildeo Ἀββᾶ ὁ πατὴρ (Abba Pai) que para J Jeremias eacute a mensagem central

do Novo Testamento

No entanto a pesquisa do Jesus histoacuterico eacute complexa visto que os cristatildeos

primitivos preocuparam-se apenas em preservar ditos isolados a respeito de Jesus A

expectativa do retorno iminente do Mestre pode ter sido o motivo principal que levou o

cristianismo primitivo a preferir apenas fatos relacionados ao ministeacuterio de Jesus do que

relatar uma biografia completa do Jesus histoacuterico (Schweitzer 2003 p 11) Apesar de

toda a complexidade em se estudar o Jesus histoacuterico eacute possiacutevel investigar alguns

aspectos relativos a sua existecircncia a partir dos evangelhos e de muitos escritores que ao

longo dos seacuteculos tecircm se empenhado em coletar informaccedilotildees atraveacutes de achados

arqueoloacutegicos e de toda literatura que de uma forma direta ou indireta traz-nos

informaccedilotildees do mundo no qual Jesus estava inserido

Partindo das fontes primaacuterias J Jeremias observa que Jesus tinha uma relaccedilatildeo

iacutentima com Deus pois somente se referia a Ele chamando-o de meu Pai comportamento

este que natildeo era observado entre o povo judeu Assim para uma melhor compreensatildeo

dessa relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute interessante pesquisar como os povos antigos

viam a questatildeo da paternidade divina e desse modo confrontar os modelos antigos com

o modelo de paternidade difundido por Jesus e pelas primeiras comunidades cristatildes

Tendo em vista a complexidade e a diversidade do tema proposto e o profundo

interesse de J Jeremias e de outros pensadores que com ele concordaram ou divergiram

a respeito do assunto esta pesquisa torna-se um desafio empolgante tendo sempre em

vista o crescimento e o amadurecimento em questotildees importantes da teologia

A escolha deste tema eacute motivada pela relevacircncia da produccedilatildeo acadecircmica de J

Jeremias no contexto da Teologia do Novo Testamento mais especificamente sobre a

9

relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai Embora os argumentos de J Jeremias natildeo sejam

unanimidade no contexto dos estudiosos que tecircm escrito sobre tal tema eacute inegaacutevel o

grande impacto que as suas teses tecircm causado na comunidade cientiacutefica ligada ao

assunto que tem se debruccedilado para contestar ou entatildeo para sustentar que Deus natildeo eacute

como um soberano inacessiacutevel mas como um pai que se relaciona com seus filhos e isso

soacute foi enfatizado com propriedade a partir do Abba de Jesus

Essa visatildeo de J Jeremias entra em conflito com as teses de alguns estudiosos

contemporacircneos os quais discutem se realmente houve novidade na forma como Jesus

fez uso da palavra Pai (ipsissima vox) em suas oraccedilotildees ou se esta era um dito autecircntico

(ipsissima verba) Seria Abba realmente a ipsissima vox de Jesus e o centro de sua

mensagem e a afirmaccedilatildeo de sua messianidade conforme afirma J Jeremias ou apenas

uma expressatildeo lituacutergica comum nas comunidades cristatildes do periacuteodo poacutes-pascal da igreja

primitiva (DAngelo 1992b p151) Teria Jesus realmente legado aos seus disciacutepulos a

palavra Abba como um termo sagrado ou Abba tem apenas a conotaccedilatildeo poliacutetica anti-

imperialista (DAngelo 1992a p623)

A partir das questotildees levantadas acima este trabalho tem por objetivo investigar o

Jesus histoacuterico e seu contexto social a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo a

interpretaccedilatildeo dada por J Jeremias bem como alguns desdobramentos deste tema

segundo algumas correntes teoloacutegicas cristatildes e judaicas com as seguintes finalidades

Verificar a visatildeo que os povos antigos (ldquopagatildeosrdquo natildeo judeus) bem como o antigo

Israel tinham de Deus como Pai

Pesquisar a relaccedilatildeo do Jesus histoacuterico no seu contexto familiar e social

Analisar a tese de J Jeremias concernente ao sentido que a palavra Abba tinha

quando proferida por Jesus

Confrontar o pensamento de J Jeremias frente a algumas correntes teoloacutegicas

favoraacuteveis e contraacuterias aos seus argumentos

10

2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS

Neste capiacutetulo seraacute abordado o conceito de paternidade divina entre os povos

antigos com o enfoque sobre a ideia que tais povos tinham de Deus como um ancestral

divino do homem conforme exposto por Jeremias Face agraves inuacutemeras epopeias da

criaccedilatildeo abaixo mencionadas veremos que a criaccedilatildeo do homem a partir do relato do

Gecircnesis eacute bem mais otimista uma vez que o homem do Gecircnesis natildeo eacute um ancestral dos

deuses mas foi criado para ser a imagem do seu proacuteprio Criador

21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS

A ideia mitoloacutegica de um deus como pai da humanidade sempre esteve presente

entre os povos antigos como os sumeacuterios e babilocircnios Segundo J Jeremias tais povos

diziam que suas tribos e famiacutelias procediam de um ancestral divino como se observa por

exemplo no ceacutelebre hino sumeacuterio e acaacutedico de Ur Nesse hino o deus Lua Sin eacute

invocado como o ldquoPai misericordioso em suas disposiccedilotildees que reteacutem em sua matildeo a vida

de todo o paiacutesrdquo Aleacutem de tal hino encontramos na tradiccedilatildeo de tais povos a seguinte

citaccedilatildeo sobre Ea um deus sumeacuterio-babilocircnico ldquoSua coacutelera eacute como o diluacutevio Ele se

reconcilia como um pai misericordiosordquo (Jeremias 1977 p11-12) Complementando essa

ideia Santos Sabugal afirma que a ideia de paternidade divina entre os povos antigos era

largamente atestada na literatura de vaacuterios povos A Aacutefrica a Ameacuterica a China e a Iacutendia

bem como o Egito e tambeacutem os Greco-romanos invocaram a paternidade de Zeus e de

Juacutepiter sobre todos os deuses e homens (Sabugal 1985 p 367-368)

Contudo para J Jeremias as histoacuterias de invocaccedilotildees a Deus como Pai satildeo tatildeo

profundas que sempre se tem a sensaccedilatildeo de que novas e inesperadas galerias sempre

surgem A invocaccedilatildeo a Deus como Pai nos povos antigos desde as suas origens nem

sempre estava relacionada a Deus como um antepassado do rei ou do povo mas podia

ser invocado como um pai misericordioso conforme nos relata J Jeremias

Eacute assombroso verificarmos como jaacute no antigo oriente e com seguranccedila desde o segundo e ainda no terceiro milecircnio aC a divindade era invocada assim Nas oraccedilotildees sumeacuterias muito anteriores a Moiseacutes e os profetas encontramos a invocaccedilatildeo ldquopairdquo e desde laacute esta palavra designava a divindade natildeo apenas como antepassado do rei e do povo ou como o soberano pleno de poder mas tambeacutem como o ldquopai magnacircnimo e misericordioso em cuja matildeo estaacute a vida da naccedilatildeo inteirardquo (Hino de Ur a Sin divindade da lua) A palavra ldquopairdquo na invocaccedilatildeo a Deus implicava pois para os orientais desde os tempos mais antigos algo que pode ser considerado como para noacutes significa a palavra ldquomatildeerdquo (Jeremias 2006 p61)

11

Pai1 portanto para os povos antigos como os assiacuterios babilocircnios egiacutepcios

gregos e outros povos eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e

na Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Aleacutem disso o historiador

das religiotildees Mircea Eliade tambeacutem descreve que satildeo diversas as versotildees sumerianas

sobre a origem divina dos seres humanos e dentre elas consta o poema cosmogocircnico

conhecido como Enuma elish (ldquoQuando no altordquo) que relata as origens do mundo e do

homem buscando exaltar a Marduk um deus nacional da Babilocircnia o qual triunfa sobre

os deuses com ldquovalores demoniacuteacosrdquo dentre eles Tiamat e Kingu

Esse poema traz o mito de que Marduk decidiu criar o homem para que ele sirva

aos deuses Assim a partir do corte das veias de Kingu um deus vencido que foi

sacrificado a humanidade foi criada (Eliade 2010 p79) No entanto com a derrota dos

deuses inimigos de Marduk a criaccedilatildeo do homem inicia-se com um agravante na tradiccedilatildeo

sumeriana mesmo sendo Kingu um dos primeiros deuses ele se tornara o arquidemocircnio

chefe dos monstros e democircnios criados pelo deus Tiamat que tambeacutem foi derrotado por

Marduk Dessa forma sendo o homem constituiacutedo do sangue de Kingu torna-se ele parte

constitutiva de uma mateacuteria demoniacuteaca (Eliade 2010 p 80) Segundo essa vertente

mitoloacutegica sumeriana a uacutenica esperanccedila do homem eacute que ele tenha sido criado por um

grande deus Ea ldquoA partir desse prisma existe uma simetria entre a criaccedilatildeo do homem e

a origem do mundo Em ambos os casos a mateacuteria-prima eacute constituiacuteda pela substacircncia

de uma divindade primordial decaiacuteda demonizada e morta pelos jovens deuses

vitoriososrdquo (Eliade 2010 p 80) Conforme P Grelot ldquoo mito babilocircnico da criaccedilatildeordquo eacute

repleto de violecircncia e sangue (Grelot 1973 p 31)

[] Marduque ouvindo o apelo dos deuses resolveu criar uma obra prima ldquofarei canais de sangue formarei uma ossatura e suscitarei um ser cujo nome seraacute homem Sim vou criar um ser humano um homem Que sobre ele recaia o serviccedilo dos deuses para o bem estar delesrdquo

Ainda com relaccedilatildeo ao mito babilocircnico relata-se que na epopeia de Atra-Hasis (ldquoo

muito inteligenterdquo) cuja coacutepia mais antiga data aproximadamente de 1600 aC o deus Uecirc

1 A relaccedilatildeo de Deus como Pai nas religiotildees do oriente antigo e da Greacutecia e Roma antigas estaacute sempre de

uma forma ligada a ldquoideias miacutesticas de gerar e na descendecircncia fiacutesica e natural de todos os homens a partir de Deus Assim o deus El de Igariteacute eacute chamado o pai da humanidade e o deus da lua na Babilocircnia sin eacute pai e gerador dos homens e dos deusesrdquo No Egito o Faraoacute eacute considerado de modo especial o filho Deus no sentido fiacutesico O nome de pai expressa sobre tudo a absoluta autoridade de deus exigindo a obediecircncia havendo poreacutem ao mesmo tempo seu amor bondade e cuidado misericordiosos (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)

12

eacute morto Entatildeo a deusa matildee (Nintu) e Ea (deus das aacuteguas) fazem um apelo agraves sete

genitoras que ao som de encantamentos maacutegicos se potildeem a amassar a argila A epopeia

narra que a partir de catorze pedaccedilos de argila que satildeo separados metade agrave direita e

metade agrave esquerda pela deusa matildee que apoacutes serem pisados pelas deusas genitoras

estas ldquodatildeo agrave luz sete homens e sete mulheres que imediatamente satildeo dispostos aos

pares e a raccedila humana recebe as leis do seu laborrdquo (Grelot 1973 p 31)

[] Que seja morto um deus e que todos os deuses se purifiquem no seu sangue Que com a sua carne e o seu sangue Nintu (= a deusa matildee) misture argila de modo que deus e homem sejam misturados juntos na argila Que por esta carne de deus haja um espiacuterito Sim Responderam na assembleia os grandes Anunaqui que regem os destinos (Grelot 1973 p 19)

Nesse mito babilocircnico Ea ficou encarregado de consumar o trabalho imolando

Kingu que era o chefe dos deuses revoltosos para que o seu sangue estivesse nas veias

do homem de sorte que este tenha ldquoem suas veias o sangue de um deus decaiacutedordquo

Grelot observa que a partir desses mitos pode-se ver que o homem natildeo eacute apenas um

suacutedito e escravo dos deuses ldquomas tambeacutem eacute um joguete das potecircncias coacutesmicas que

fazem pesar sobre ele uma fatalidade inexoraacutevelrdquo (Grelot 1973 p 31)

[] Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido cortando suas veias Com o seu sangue Eia criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses para libertaacute-los Depois que Eia o saacutebio criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses obra superior a toda inteligecircncia que realizou Nudimude graccedilas aos artifiacutecios de Marduque Marduque rei dos deuses dividiu o conjunto dos Anunaacutequi em deuses de cima e deuses de baixo e encarregou Anu de velar pelas suas ordens nos ceacuteus e na terra ele estabeleceu seiscentos deuses (Vl 1-1031-34)

Pode-se ainda observar a ideia da existecircncia de um ancestral divino entre outros

povos antigos Segundo Campbell tal conceito pode ser visto na cultura da tribo Aranda

da Austraacutelia Central Nessa tribo o rito de transformaccedilatildeo de um menino em adulto

demonstra a forma primitiva com que esse povo se relaciona com a divindade desde a

antiguidade quando um jovem dessa tribo estaacute entre os dez e os doze anos ele e os

outros membros de sua faixa etaacuteria satildeo tomados pelos homens da aldeia e levantados

13

vaacuterias vezes no ar enquanto os homens realizam o ritual de transformaccedilatildeo as mulheres

por sua vez tambeacutem tomam parte do ritual danccedilando em volta agitando os braccedilos e

gritando Em cada menino satildeo entatildeo pintados no peito e nas costas desenhos simples

por um homem relacionado com o grupo social ao qual pertence a sua futura mulher e

enquanto os meninos satildeo pintados os homens cantam ldquoQue ele possa atingir a barriga

do ceacuteu que ele possa crescer ateacute a barriga do ceacuteu que ele possa ir diretamente para

dentro da barriga do ceacuteurdquo (Campbell 1992 p82)

Assim que o ritual eacute finalizado os meninos recebem a instruccedilatildeo que desde que o

ritual foi concluiacutedo cada um deles tem sobre si a insiacutegnia do ancestral mitoloacutegico

particular do qual ele eacute a contraparte viva A partir de entatildeo os meninos passam a ter

algumas responsabilidades e satildeo advertidos de que de agora em diante haacute algumas

restriccedilotildees entre eles e o sexo oposto Eles natildeo poderatildeo mais brincar ou acampar com as

mulheres e meninas mas somente com os homens Das atividades de caccedila de pequenos

animais e procura de raiacutezes eles natildeo tomaratildeo parte visto ser uma atividade realizada

pelas mulheres mas receberatildeo uma responsabilidade maior que eacute acompanhar os

homens na caccedila aos cangurusrdquo (Campbell 1992 p 82) Campbell observa que nessa

tribo eles acreditam que as crianccedilas nascidas de mulheres satildeo reapariccedilotildees de seres que

viveram na era mitoloacutegica no chamado ldquotempo dos sonhosrdquo ou altjeringa (Campbell

1992 p 82) Nesse mundo mitoloacutegico maacutegico dos sonhos o menino da tribo Aranda

passa entatildeo a compreender que ele proacuteprio eacute um ser mitoloacutegico eterno que se

encarnou e da mesma forma seus companheiros tambeacutem satildeo as manifestaccedilotildees das

formas eternas (Campbell 1992 p82)

A ancestralidade divina tambeacutem pode ser constatada entre os gregos como no mito

de Ascleacutepio um deus popular classificado por Homero e Piacutendaro como um heroacutei ou

divindade da cura Ascleacutepio segundo a mitologia grega era filho do deus Apolo com a

humana Corocircnis ele tambeacutem se casou com uma humana com quem teve filhos e filhas

(Koester 2005 vol1 p176)

A relaccedilatildeo entre deuses e humanos tambeacutem pode ser vista nos relatos mitoloacutegicos

dos chamados heroacuteis ou semideuses Segundo a mitologia os heroacuteis pertenciam agrave

espeacutecie dos humanos visto que conheceram a morte e o sofrimento contudo

diferenciavam-se destes pelo fato de que eles viveram numa eacutepoca denominada pelos

gregos como o antigo tempo onde os homens denominados de heroacuteis eram mais belos e

mais fortes do que os homens que conhecemos Esses ancestrais (noacutenymnoy) ou seja

os sem nome fazem parte do passado lendaacuterio da Greacutecia antiga Mesmo sendo homens

eles se aproximam muito dos deuses mais dos que os homens atuais Nessa eacutepoca

14

lendaacuteria segundo a mitologia grega os deuses ainda se misturavam com os mortais na

vida diaacuteria como comer juntos e ateacute em relaccedilotildees sexuais onde os imortais se uniam aos

mortais a fim de gerarem filhos belos Os heroacuteis faziam parte dessa relaccedilatildeo amorosa

entre deuses e humanos como diz Hesiacuteodo ldquoeles formam a raccedila divina dos heroacuteis que

satildeo denominados semideuses conhecidos como os hemitheoiacuterdquo (Vernant 2006 p 47) A

partir desse relato observamos que os humanos realmente acreditavam procederem de

uma raccedila mitologicamente humana e divina ou seja uma mistura das duas

Observamos que ateacute esse ponto temos entre os ancestrais divinos apenas figuras

masculinas A figura masculina de Deus como Pai da humanidade entre os povos antigos

eacute marcante poreacutem natildeo eacute unanimidade Gerald Messadieacute afirma que natildeo existe nenhuma

figura masculina da idade da pedra que evoque o conceito de um deus masculino

(Messadieacute 2001 p44) De fato esse autor observa que os deuses masculinos como Aacutetis

Tamuz Adoacutenis Patilde Silvano Fauno Narciso Jacinto satildeo comparados agrave vegetaccedilatildeo visto

que mesmo sendo deuses heroicos miacuteticos morrem com a chegada do inverno e

renascem com a chegada da primavera assim como ocorre com a vegetaccedilatildeo

No entanto diferentemente do que ocorre no aspecto masculino para o autor

supracitado o princiacutepio feminino da divindade eacute algo permanente Segundo Messadieacute o

culto da Terra-Matildee foi tatildeo fortemente enraizado nas culturas primitivas que seus vestiacutegios

perduraram ateacute tempos recentes (Messadieacute 2001 p44) Nesse sentido pode-se citar as

oraccedilotildees que se faziam agrave deusa-matildee (Zemyna equivalente agrave deusa grega Gaia) na

Lituacircnia entre os seacuteculos XVII e XVIII onde ela era vista como aquela que faz florescer

os bototildees O mais admiraacutevel eacute que em pleno seacuteculo XX em numerosos paiacuteses da

Europa como Escoacutecia Irlanda Lituacircnia Pruacutessia Oriental e Malta ainda era dedicado um

dia (15 de agosto) a Terra-Matildee Messadieacute enfatiza que o dia dedicado agrave deusa-matildee era

uma data tatildeo significativa a ponto de ser transformada no dia da festa catoacutelica da

Assunccedilatildeo data esta que mesmo tendo sentido diferente e ser de outra religiatildeo ainda

assim foi recuperada em benefiacutecio de uma mulher (Messadieacute 2001 p 45)

A deusa-matildee era vista como doadora de tudo quer fosse da vida ou da morte Entre

suas formas mais conhecidas estatildeo Istar Astarte Inana Ciacutebele Ceres e Afrodite A

importacircncia da deusa-matildee como protetora da vida era fundamental em uma sociedade

onde a esperanccedila de vida em geral natildeo ultrapassava quarenta e cinco anos Por isso a

fertilidade das mulheres era vista como essencial para a sobrevivecircncia das sociedades ldquoA

deusa-matildee foi o reflexo de um estado socioeconocircmico que ditava a economia e a religiatildeordquo

(Messadieacute 2001 p47)

15

O culto agrave deusa universal foi duradouro e seu decliacutenio foi tardio e nunca totalmente

consumado em nenhuma religiatildeo ateacute o aparecimento do judaiacutesmo (Messadieacute 2001 p

59) Na Europa a primeira vez que um deus masculino partilhou o poder oficialmente

com a deusa-matildee foi com a revoluccedilatildeo Celta dos oriundos da Iacutendia ramo indo-europeu

dos indo-arianos por volta do seacuteculo VIII aC Os Celtas apesar dessa aparecircncia politeiacutesta

natildeo o eram pode-se dizer que ldquoeram quase monoteiacutestasrdquo (Messadieacute 2001 p72) Seus

deuses mitoloacutegicos estatildeo mais para heroacuteis do que para divindades ldquoOs Celtas como

revelou Juacutelio Ceacutesar satildeo todos filhos de Dis pater O Pai muito simplesmenterdquo (Messadieacute

2001 p69) Continua Messadieacute ldquoos Celtas lanccedilaram no Ocidente as fundaccedilotildees do

Cristianismo antes mesmo deste ter nascido Quase o inventaramrdquo (Messadieacute 2001

p70)

Dentre as muitas teorias acerca da origem dos deuses e suas relaccedilotildees com os

humanos verificamos que segundo Joatildeo Evangelista Martins Terra a palavra Deus tem

sua origem no protoindo-europeu onde era designada como DEIWOS e de onde provecircm

os dois vocaacutebulos latinos para dizer deus (Deus e divus) palavras que derivam do latim

arcaico deivos (Martins Terra 2001 p274) A religiatildeo dos indo-europeus acreditava na

existecircncia de um Ser Supremo conhecido como o Deus celeste tambeacutem chamado de

DEIWOS palavra esta que deriva do radical DEI (iluminar) (Martins Terra 2001 p291)

De acordo com Martins Terra DEIWOS estaacute presente em inuacutemeras religiotildees antigas

Na religiatildeo messaacutepica (populaccedilatildeo indo-europeia proto-histoacuterica da peniacutensula salentina)

religiatildeo dos etruscos dos gregos dos traacutecios dos celtas dos antigos germanos dos

persas dos baacutelticos dos antigos eslavos e das religiotildees indianas (Martins Terra 2001 p

277-286)

O indo-europeu DEIWOS originariamente natildeo designava o ceacuteu fiacutesico (caelum)

visto que as liacutenguas indo-europeias natildeo tecircm um nome comum para designar o ceacuteu fiacutesico

(Martins Terra 2001 p 291) DEIWOS designava um ser pessoal que frequentemente eacute

contraposto ao HOMO um ser pessoal terreno (Martins Terra 2001 p 305)

Na cultura indo-europeia o conceito de pai era muito mais do que genealoacutegico

juriacutedico e socioloacutegico O conceito de pai sempre se referia ao chefe de famiacutelia como

aquele que exercia um poder monaacuterquico com funccedilotildees judiciais e penais sobre os seus

dependentes Para os indo-europeus o deus supremo dyeu-pater (pai) natildeo se refere a

deus pai ldquocomo progenitor mas ao sentido social do adulto que eacute chefe da casa no

sentido do latim pater famiacuteliasrdquo (Martins Terra 2001 p153) Contudo segundo Martins

Terra Porfiacuterio relaciona Zeus como pai dos deuses e coloca o homem como parente de

Deus Para Porfiacuterio uma das finalidades dessa relaccedilatildeo eacute que ldquoo homem respeitaraacute o

16

direito do proacuteximo que tambeacutem tem a Zeus como progenitor [proacutegonos]rdquo (Martins Terra

2001 p351)

Na religiatildeo dos indo-europeus DEIWOS eacute sempre o ser transcendente (celeste) No

entanto essa transcendecircncia estaacute sempre proacutexima do divino como o autor da vida o

Deus Pai Segundo Martins Terra o antigo nome divino em latim era DIESPITER uma

forma primitiva derivada de DEIWOS ou de Dieus ldquonas invocaccedilotildees mais primitivas de

Zeus jaacute encontramos o vocativo Zeu paacuteter Em latim a palavra pater associa-se

intimamente com a palavra Deus e formava ela um soacute nome DIESPITER Iovispater

vocativo Juppiter em uacutembrio Jupater em iliacuterico Deipaturosrdquo (Martins Terra 2001 p337)

Como suporte agrave teoria da invocaccedilatildeo de Zeus partes do hino de Cleantes esclarecem

esse conceito

[]32 ndash Ah Zeus benfeitor universal 33 ndash Salva os homens de sua ignoracircncia funesta 34 ndash Purifica oacute Pai suas almas desta ignoracircncia e concede-lhes atingir 35 ndash O pensamento que te guia para tudo governares com justiccedila Somente Zeus pode salvar o homem de seus pendores funestos E o homem pode com confianccedila invocar a Zeus porque ele eacute Pai e dele com efeito todos noacutes nascemos 1 ndash Oacute o mais glorioso dos imortais sob mil nomes onipotente para sempre 2 ndash Zeus senhor da natureza que com a lei governas todas as coisas 3 ndash Salve Porque eacute a Ti que todos noacutes mortais temos o direito de invocar 4 ndash Visto que de Ti todos noacutes nascemos (Martins Terra2001 p332-333)

Esse hino mostra que Zeus natildeo era invocado apenas como rei senhor governador

mas tambeacutem como um Deus pessoal num relacionamento familiar um Deus Pai2

Conforme Martins Terra invocar a ldquodivindade sob o nome de pai eacute um dos fenocircmenos

primordiais na histoacuteria das religiotildeesrdquo Martins Terra ainda observa que nas liacutenguas indo-

europeias essa forma de invocaccedilatildeo fica mais evidente ainda nas palavras Dyaus pitatilde

Zeugraves pater Deipaturos e Iuppiter (Martins Terra 2001 pg433) Segundo Martins Terra

ldquoem Homero a invocaccedilatildeo de Zeus no vocativo aparece quase sempre unida agrave palavra

pai Zeucirc paacuteterrdquo (Martins Terra 2001 p 435)

Diferentemente dos povos antigos a atividade criadora de Deus no livro do Gecircnesis

eacute sempre cosmoloacutegica onde a ordem e a beleza satildeo os temas centrais Do caos Deus

cria a ordem o universo que culmina com a criaccedilatildeo do homem como o aacutepice da obra da

criaccedilatildeo conforme vemos no Gecircnesis onde ldquoDeus viu que isso era bom (1 10 13 18 21

25)rdquo e ainda segundo o texto sagrado (131) temos a seguinte conclusatildeo ldquoIsso era

2 Segundo Vernant Zeus eacute Pai dos deuses e dos homens natildeo porque tenha gerado ou criado todos os

seres mas porque exerce autoridade absoluta sobre todos como um chefe de famiacutelia sobre seu clatilde (Cf Vernant 2006 p33)

17

muito bomrdquo Segundo P Grelot ldquoa histoacuteria sagrada sacerdotal Gn 1-24ardquo - das origens do

mundo ao tempo em que Israel viveu no deserto - foi escrita no tempo em que o povo

estava no exiacutelio (entre 587 e 538 aC) Babilocircnia eacute o lugar onde se venera o deus Marduk

e de onde provecircm as narrativas mitoloacutegicas de como os deuses criaram o mundo Para

proteger seus irmatildeos dos mitos babilocircnicos o autor sagrado teria escrito a primeira

narraccedilatildeo da criaccedilatildeo Contudo a narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo difere teologicamente dos

mitos babilocircnicos e dos povos antigos conforme relata Grelot

[] O universo eacute de certa forma um templo gigantesco que Deus levanta para a sua gloacuteria Quando o templo estaacute pronto ele coloca nele o homem criado ldquoagrave sua imagem e semelhanccedilardquo (126) Fica assim proibido representar a divindade por meio de imagens porque estas lembrariam o culto prestado a criaturas divinizadas (Ex 20 3-6) essa proibiccedilatildeo natildeo tem paralelo em nenhum povo da antiguidade A uacutenica imagem permitida de Deus eacute o rosto humano Mas se Deus eacute representado agrave imagem de uma pessoa viva de um homem que fala para fazer as coisas existirem (ldquoDeus disserdquo) nem por isso o homem eacute divinizado ldquoimagem de Deusrdquo deve ele voltar-se para aquele cujos traccedilos reflete (Grelot 1973 p 43)

Da mesma forma para Heinrich Krauss e Max Kuumlchler comparar o relato biacuteblico da

criaccedilatildeo do homem com a mitologia sumeacuterio-babilocircnia ou egiacutepcia serve para demonstrar

diferenccedilas importantes entre eles Na mitologia pagatilde o acircmago de toda a criaccedilatildeo estaacute

mais voltada ao nascimento dos deuses (teogonias) Por sua vez a criaccedilatildeo do homem

estaacute ligada a esses relatos apenas por uma linha tecircnue Para Krauss e Kuumlchler somente

num periacuteodo bem posterior ao nascimento dos deuses eacute que o ser humano eacute criado

quase que por um acidente ou entatildeo para servir como trabalhador escravo dos deuses

Em alguns aspectos notamos que haacute semelhanccedilas entre a criaccedilatildeo do homem no relato

do Gecircnesis e as mitologias pagatildes quando observamos que no Gecircnesis a criaccedilatildeo do

homem tambeacutem se daacute por uacuteltimo Contudo conforme Krauss e Kuumlchler diferentemente

dos antigos mitos no Gecircnesis a criaccedilatildeo do homem se daacute por meio de um processo

premeditado Eacute possiacutevel por analogia observarmos que na narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo

tanto o cosmos quanto o homem satildeo criados num ambiente onde o respeito e a

admiraccedilatildeo pelo ser humano satildeo evidentes como podemos observar na poesia do Salmo

8 4-9 que diz

Quando vejo o ceacuteu obra dos teus dedos a lua e as estrelas que fixaste que eacute um mortal para dele te lembrares e um filho de Adatildeo para vires visitaacute-lo E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de gloacuteria e beleza Para que domine as obras de tuas matildeos sob seus peacutes tudo colocaste ovelhas e bois todos e as feras do campo tambeacutem a ave do ceacuteu e os peixes do mar

18

quando percorre ele as ondas dos mares (Krauss e Kuumlchler 2007 p 48-49)

A relaccedilatildeo do homem com os deuses nas mitologias antigas eram caracterizadas

pelas forccedilas da natureza Os diversos deuses exerciam poderes sobre tais forccedilas que por

sua vez determinavam o destino do homem ldquoNa tempestade e na brisa na chuva e na

seca viam-se igualmente manifestaccedilotildees de poderes divinos tal como no amor e no

matrimocircnio na vida e na morte na violecircncia e na guerra no crescimento e na destruiccedilatildeordquo

(Krauss e Kuumlchler 2007 p 61) Todos os acontecimentos da vida dos homens eram

resultados da influecircncia de uma ou mais divindades conforme as suas funccedilotildees dentro do

panteatildeo Alguns deuses eram considerados de boa iacutendole poreacutem outros eram

considerados perversos e maus e por essa razatildeo deveriam ser lisonjeados atraveacutes de

rituais de sacrifiacutecios ou praacuteticas maacutegicas

Krauss e Kuumlchler apesar de descreverem os deuses mitoloacutegicos da antiguidade com

poderes sobrenaturais e sobre-humanos sobre o mundo ressaltam que tais deuses

mesmo o chamado deus criador da mitologia antiga eram limitados agrave esfera deste

mundo ou seja natildeo tinham poder absoluto nem garantido para sempre Por outro lado o

Deus dos relatos biacuteblicos da criaccedilatildeo eacute diferente Ele natildeo faz parte deste mundo mesmo

que aqui esteja presente e sempre atuando Tambeacutem natildeo estaacute sujeito agrave limitaccedilatildeo das

forccedilas da natureza e tem poder para conduzir soberanamente o destino dos seres

humanos O Deus criador do Gecircnesis natildeo sofre oposiccedilatildeo de divindade alguma a natildeo ser

em pequena escala dos seres humanos ldquoA diferenccedila entre o monoteiacutesmo judeu-cristatildeo

ou islacircmico de um lado e o politeiacutesmo de outro natildeo eacute uma questatildeo de nuacutemero (um

uacutenico Deus ou diversos deuses) mas da concepccedilatildeo do que eacute Deusrdquo (Krauss e Kuumlchler

2007 p61)

No tocante agraves narrativas e mitos antigos da criaccedilatildeo Vicente Artuso desenvolve um

trabalho no qual compara o relato da criaccedilatildeo no livro do Gecircnesis com a epopeia de Atra

Asis e os demais mitos antigos da criaccedilatildeo e conclui que o relato da criaccedilatildeo no Gecircnesis eacute

mais otimista em relaccedilatildeo aos mitos antigos Embora por um lado haja algumas

semelhanccedilas na forma da criaccedilatildeo do homem conforme jaacute foi visto acima por outro lado

elas estatildeo muito distantes Artuso observa que nessa epopeia o homem eacute feito a partir

do barro e do sangue de um deus decaiacutedo Na Biacuteblia o homem proveacutem do barro e do

sopro de Deus que eacute a fonte da vida Na epopeia o ser humano eacute criado para livrar os

deuses de seu castigo na Biacuteblia o homem eacute criado por Deus de uma forma totalmente

desinteressada Na epopeia o ser humano participa da divindade assim como na Biacuteblia

Contudo Artuso pontua que mesmo que em ambos os relatos da criaccedilatildeo o homem

participe da divindade na epopeia fica evidente que o homem participa da divindade de

19

um deus decaiacutedo sendo que no relato da criaccedilatildeo da Biacuteblia o homem eacute criado agrave imagem

e semelhanccedila do Criador No Gecircnesis o homem eacute criado pelo Deus uacutenico que do caos

traz todas as coisas a existecircncia cria o homem e o faz participante de sua obra quando

ordena ao ser humano o crescimento a multiplicaccedilatildeo e que o mesmo exerccedila o domiacutenio

sobre todas as coisas criadas (Artuso 2009 p80-81)

22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO

No Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai3 J Jeremias relaciona

que isso ocorre apenas quinze vezes conforme podemos verificar nos seguintes textos

ldquoDt 326 2 Sam 714 (textos paralelos em 1 Cron 1713 22 10 286) Sl 68 6 8927 Is

6316 (duas vezes) 647 Jr 3419 31 9 Mal 1 6 2 10 (Jeremias 2005 p19) Mesmo

esses textos quando relacionados a Deus como Pai indicam que Deus eacute primeiramente

o Senhor como diz o Salmo 33 8 ldquoTema o Senhor todo o mundo e tremam diante dele

todos os habitantes da terra porque ele fala e acontece ele ordena e aiacute estaacuterdquo (Jeremias

2008 p269) Como Senhor Deus tambeacutem se compadece de seus filhos como um Pai

conforme o Salmo 10313 (Jeremias 1977 p13) Aleacutem de Senhor o Pai tambeacutem eacute

honrado como Criador ldquoNatildeo eacute ele porventura teu pai que te fez seu que te formou e te

consolidourdquo (Dt 326) ldquoPorventura natildeo eacute um o Pai de todos noacutes Natildeo eacute um soacute Deus que

nos criourdquo(Ml 2 10) Observa-se que o reduzido uso do conceito de Deus como Pai no

Antigo Testamento pode estar relacionado ao uso abusivo que os povos cananeus faziam

desse termo em seus cultos de fertilidade (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo

Testamento 1998 p 6)

A relaccedilatildeo de Deus como Pai no Antigo Testamento eacute diferente do conceito de

paternidade dos povos antigos As diferenccedilas satildeo fundamentais visto que Deus natildeo eacute um

ancestral da raccedila humana como podemos ver nas palavras de J Jeremias

O fato de que no Antigo Testamento Deus natildeo eacute o ancestral mas o criador natildeo eacute a menor E que o que eacute ainda mais importante no antigo Testamento a paternidade divina atribui-se soacute a Israel e de uma maneira que natildeo encontra nenhum equivalente Eles tecircm uma relaccedilatildeo toda particular com Deus isto eacute um povo escolhido dentre todos os povos para ser o filho primogecircnito de Deus (Jeremias 1977 p13)

3 ldquoO AT emprega a palavra pai () quase que exclusivamente (c De 180 vezes) num sentido secular e soacute

muito ocasionalmente (15 vezes) num sentido religioso Como acontece no AT assim tambeacutem na literatura do judaiacutesmo palestinense podemos notar reserva marcante no emprego da palavra num sentido religioso Soacute mais tarde na literatura do judaiacutesmo da diaacutespora eacute que achamos o emprego mais frequente do nome Pai com referecircncia a Deusrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

20

No contexto biacuteblico a histoacuteria de Israel eacute notoriamente descrita colocando Israel

sempre como o povo eleito e exclusivo de Deus e essa eleiccedilatildeo eacute histoacuterica e concreta A

paternidade divina4 pode ser considerada histoacuterica quando tambeacutem atestamos que o

ecircxodo do Egito a peregrinaccedilatildeo no deserto e a conquista da terra de Canaatilde satildeo tratados

como fatos histoacutericos fatos esses que tornam Israel como o filho primogecircnito conforme a

eleiccedilatildeo divina Alguns textos corroboram esse pensamento entre os quais podemos

destacar ldquoFilhos sois do SENHOR vosso Deusrdquo (Dt 141)

A paternidade divina no Antigo Testamento natildeo eacute privileacutegio do indiviacuteduo mas sempre

privileacutegio da coletividade e juridicamente da figura do rei Com efeito Deus eacute sempre visto

como o ldquoPai do Reirdquo (2 Sam 7 14 Sl 8927) e ldquoPai de Israel como naccedilatildeordquo (Jr 34 3 19

319 Ml 16 Is 6315 657) J Jeremias faz questatildeo de enfatizar a respeito da

paternidade divina que em todo o Antigo Testamento natildeo encontramos nenhuma

passagem na qual Deus seja interpelado como Pai por um indiviacuteduo mas isso eacute sempre

realizado pela coletividade (Jeremias 2008 p115) Quando observamos as expressotildees

ldquoTu eacutes nosso Pairdquo (Is 6316) e ldquoTu eacutes meu Pairdquo (Jr 34) verificamos que as mesmas se

tratam de ldquosentenccedilas afirmativas e natildeo da invocaccedilatildeo de Deus usando o nome de Pai

para elerdquo (Jeremias 2008 p115) Deus natildeo eacute Pai porque gera de forma fiacutesica mas

porque chamou os filhos de Israel para ser um povo constituiacutedo de homens livres eacute Pai

porque ama escolhe e guia seus filhos por um reto caminho segundo a lei Dessa forma

mesmo fazendo pouco uso do termo Pai Israel comeccedilou a realizar o que poderiacuteamos

chamar de a grande revoluccedilatildeo do siacutembolo paterno

Em relaccedilatildeo ao siacutembolo de Deus como Pai Robert Hamerton-Kelly seguindo a

mesma linha de pensamento de J Jeremias concorda que no Antigo Testamento a

designaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rara e as poucas vezes em que isso ocorre natildeo eacute no

sentido literal do termo Hamerton Kelly faz referecircncia a dois tipos de simbolismo que

aparecem na Biacuteblia concernentes agrave figura de Deus como Pai um simbolismo indireto e

outro direto O simbolismo indireto ocorre por meio de uma associaccedilatildeo enquanto que o

simbolismo direto eacute feito por intermeacutedio de uma metaacutefora ou alegoria No modo indireto

Deus eacute mostrado claramente em conexatildeo com os pais humanos Ele eacute o ldquoDeus dos paisrdquo

e a associaccedilatildeo aqui eacute por intermeacutedio da identificaccedilatildeo de Deus como chefe No modo

direto a Biacuteblia usa a alegoria ou a metaacutefora Deus eacute como um pai ou Deus eacute nosso Pai

(Hamerton-Kelly 1979 p20-21)

4 ldquoA descriccedilatildeo de Deus como Pai se refere no AT apenas as Seu relacionamento com o povo de Israel

(Dt326 Is6316 duas vezes 648 Jr319 Ml16 210) ou com o rei de Israel (2Sm 714 par 1 Cr 1713 2210 286 Sl 8926 cf 27) Nunca se refere a qualquer indiviacuteduo () ou a humanidade em geralrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

21

No Antigo Testamento o simbolismo indireto eacute usado na transiccedilatildeo do Pai dos

deuses para o Deus dos pais e do Deus dos pais para o Deus de Moiseacutes (Hamerton-

Kelly 1979 p21-28) Qualquer consideraccedilatildeo sobre o entendimento biacuteblico de Deus no

periacuteodo preacute-mosaico deve ser relacionado aos deuses adorados pela religiatildeo dos

cananeus ancestral da religiatildeo dos hebreus os quais eram denominados em Canaatilde pelo

nome ldquoEl5rdquo o chefe do panteatildeo e tambeacutem progenitor dos deuses na mitologia cananita

(Martins Terra 1987 p11) De acordo com a tradiccedilatildeo Yahweh era ldquoo Deus dos Paisrdquo e

Abraatildeo pode provavelmente ter sido considerado ldquopai dos deusesrdquo como uma descriccedilatildeo

de sua possiacutevel divindade Entre os outros povos existiam vaacuterios deuses que eram vistos

como figuras paternas como Anu (deus do ceacuteu) Enlil (deus do vento e da tempestade) e

Ea (deus da aacutegua) os quais tinham seu proacuteprio santuaacuterio e eram patronos de suas

respectivas cidades (Hamerton-Kelly 1979 p21-23)

Os compiladores das sagas patriarcais do Gecircnesis acreditavam que os pais

adoravam El como El Elyon El Olam El Roi El Shaddai e El Betel Esses nomes

compostos mostram que a adoraccedilatildeo era estabelecida em um lugar fiacutesico por intermeacutedio

de alguma outra divindade ou seja os lugares de adoraccedilatildeo eram relacionados a um

deus Embora natildeo possa ser encontrada a praacutetica monoteiacutesta entre os patriarcas pode-se

assumir que os deuses distintos estavam associados em algum estaacutegio da tradiccedilatildeo

sendo identificados como manifestaccedilotildees do grande deus El - o pai dos deuses Mesmo

que natildeo seja possiacutevel falar de um preacute-Mosaico ldquoEl-monoteiacutesmordquo 6 eacute possiacutevel falar de um

deus supremo que eacute a fonte e origem de todas as coisas o pai dos deuses e da

humanidade que eacute o ponto de contato com o monoteiacutesmo Javista (Hamerton-Kelly 1979

p24-25)

Outro ponto de contato entre a teologia Preacute-Mosaica e Mosaica pode ser

encontrado no fato que cada um dos grandes patriarcas tinha um deus associado com

eles mesmos o ldquoEl de Abraatildeordquo (Gn 31 42) o ldquoTemor de Isaquerdquo (Gn 31 53) o ldquoForte de

Jacoacuterdquo (Gn 49 24-25) os quais tinham como sinocircnimos o ldquoDeus (El) de meu pairdquo Por fim

5 A palavra El ocorre 238 vezes no Antigo Testamento Eacute uma palavra de origem protossemiacutetico ou

semiacutetico-comum para designar Deus em todas as liacutenguas semiacuteticas Ele eacute o Deus-patriarca criador anciatildeo cujas forccedilas extraordinaacuterias criaram e povoaram o ceacuteu El eacute ldquoum Deus pessoardquo de cada patriarca ele eacute ldquoo Deus dos paisrdquo familiar uacutenico e universal mas tambeacutem eacute o Deus tribal (Cf Martins Terra em Elohim o Deus dos Patriarcas p 19 37 39 51)

6 Surge um problema relacionado a este assunto eacute possiacutevel falar de monoteiacutesmo neste periacuteodo Alguns

pesquisadores acham difiacutecil o conceito de um monoteiacutesmo preacute-mosaico ou mesmo de uma ideia de adoraccedilatildeo exclusiva a Deus mesmo que o texto do livro do Ecircxodo 34 11-26 trate com detalhes este tema ainda assim este pensamento parece ser uma ideia muito complexa uma vez que muitos estudiosos observam que o referido texto pode ter sido redigido em uma eacutepoca tardia ou seja ldquouma espeacutecie de seleccedilatildeo ou resumo a partir de outros textosrdquo (Cruumlsemann 2002 p167-169) Segundo Cruumlsemann o Pentateuco deve ter surgido entre o exiacutelio e o inicio da eacutepoca helenista para ser mais objetivo no periacuteodo Persa (cf Cruumlsemann 2002 p454)

22

vecirc-se que o deus eacute identificado mais pelo seu relacionamento com uma pessoa do que

com um lugar ou um fenocircmeno natural isto eacute muda-se o simbolismo do divino de lugar

para pessoa deixando claro que a Revelaccedilatildeo de Deus estaacute no domiacutenio das relaccedilotildees e

accedilotildees humanas mais especificamente nas relaccedilotildees de familia (Hamerton-Kelly 1979

p25-27)

Aleacutem disso observamos que sob a influecircncia de Moiseacutes as tribos de Israel foram

unificadas em fidelidade ao Deus Yahweh A identidade de Yahweh estaacute fortemente

relacionada com ldquoos paisrdquo como se vecirc na revelaccedilatildeo de Deus a Moiseacutes no monte Horebe

[hellip] Moiseacutes Moiseacutes [hellip] Eu sou o Deus de teus pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute [hellip] Iahweh disse Eu vi Eu vi a miseacuteria do meu povo que estaacute no Egito Ouvi seu grito por causa dos seus opressores pois Eu conheccedilo as suas anguacutestias Por isso desci a fim de libertaacute-lo da matildeo dos egipcios e para fazecirc-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta terra que mana leite e mel [hellip] Disse Deus a Moiseacutes Eu sou aquele que eacute Disse mais Assim diraacutes aos israelitas EU SOU me enviou ateacute voacutes [hellip] Iahweh o Deus o Deus de vossos pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute me enviou ateacute voacutes Eacute o meu nome para sempre e eacute assim que me invocaratildeo de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (Ex 3 1-15)

Iahweh eacute o Deus de Israel isso fica evidente na foacutermula ldquoElohecirc Israelrdquo (Martins

Terra 1987 p 82) O ponto central de toda a teologia do Antigo Testamento eacute que o

Deus de Israel eacute o uacutenico e verdadeiro Quando os autores sagrados comparam Iahweh

com os deuses de outras naccedilotildees (Dt 4 34 Sl 11 3-5) eacute para fortalecer a convicccedilatildeo dos

israelitas de que haacute somente um Deus tanto ldquoem cima no ceacuteurdquo como ldquoembaixo na terrardquo

(Dt 439) Para Martins Terra o ldquoemprego de Elohim7 natildeo pode ser interpretado como

reliacutequia de um antigo politeiacutesmo Israelitardquo ou seja Elohim se converte em sinocircnimo de

Iahweh o Deus uacutenico e verdadeiro

O nome divino de Elohim que se radica na liacutenguagem religiosa de todos os povos semitas do Antigo Oriente Proacuteximo reconhecido e confessado por Israel como o Deus pessoal e uacutenico ajudou o Antigo testamento a entender e proclamar o Deus da histoacuteria da Salvaccedilatildeo como Deus do universo como lemos na primeira linha da Biacuteblia ldquoNo principio Elohim criou os ceacuteus e a terrardquo (Martins Terra 1987 p 85)

Fazendo uma transiccedilatildeo do simbolismo indireto para o simbolismo direto

mostraremos o pai (matildee) como uma alegoria ou metaacutefora para Deus Vale observar que a

figura da matildee faz parte desta anaacutelise uma vez que esse simbolismo natildeo a exclui apenas

7 A palavra Elohim pode ser um desenvolvimento do termo Eloah (Deus) como uma forma de

representaccedilatildeo da pluralidade de pessoas existentes na divindade (Trindade) ou ainda a terminaccedilatildeo plural pode ser descrita como um plural de majestade natildeo com a intencionalidade de ser usado na forma de plural para referir-se a Deus Isto pode ser averiguado quando Elohim eacute usado com o verbo no singular bem como os adjetivos e pronomes tambeacutem no singular (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento 1998 p68-72)

23

inclui sua presenccedila No simbolismo direto os pais satildeo muito mais do que meros sinais da

natureza e presenccedila de Deus O profeta Oseacuteias nos mostra um Deus que ao mesmo

tempo em que eacute Pai tem para com Israel seu filho afetos que satildeo proacuteprios da matildee A

ternura os cuidados e o afeto de Deus em Oseacuteias satildeo comparados agraves caracteriacutesticas

proacuteprias que uma matildee tem por seus filhinhos

Quando Israel era menino eu o amei e do Egito chamei meu filho (hellip) Fui eu contudo quem ensinou Efraim a caminhar eu os tomei pelos braccedilos mas natildeo reconheceram que eu cuidava deles Com viacutenculo de amor eu os atraiacutea com laccedilos de amor eu era para eles como os que levantavam uma criancinha contra o seu rosto eu me inclinava para ele e o alimentava (Os 11 1-4)

Nesse texto vemos a ideia de que Israel era filho de Deus e que essa filiaccedilatildeo eacute

usualmente associada ao periacuteodo do deserto e eacute entendida como uma experiecircncia da

paternidade de Iahweh Contudo observamos no texto que Iahweh inclinava-se para

alimentaacute-los expressatildeo essa que denota uma funccedilatildeo especificamente desempenhada

pela figura materna Aleacutem disso em uma passagem do livro de Nuacutemeros Moiseacutes de

uma forma impliacutecita afirma que Deus eacute como uma matildee para Israel

[] Moiseacutes sentiu-se grandemente desgostoso e disse a Iahweh ldquoPor que fazes mal a teu servo Por que natildeo achei graccedila a teus olhos visto que me impusestes o encargo de todo este povo Fui eu porventura que concebi todo este povo Fui eu que o dei agrave luz para que me digas Leva-o em teu regaccedilo como a ama leva a crianccedila no colo agrave terra que prometi sob juramento a seus pais (Num 1110b-

12)rdquo

Esse texto soacute pode referir-se a Deus visto que Moiseacutes natildeo era a matildee daquele

povo portanto teoricamente natildeo tinha a responsabilidade de ser o protetor e nem o

provedor deles em momentos de crise Na visatildeo de Moiseacutes Deus era o responsaacutevel pelos

cuidados essenciais do povo assim como uma matildee cuida de seus filhos Dessa forma a

figura materna tambeacutem pode ser usada como uma designaccedilatildeo para Deus (Hamerton-

Kelly 1979 p 39-40)

Haacute ainda outros exemplos em que a imagem de Deus pode ser comparada a de

uma mulher que cuida de seus filhos como lemos em Isaiacuteas 4915

Por um acaso uma mulher se esqueceraacute de uma criancinha de peito Natildeo se compadeceraacute ela do filho do seu ventre Ainda que as mulheres se esquecessem

24

eu natildeo me esqueceria de ti

Na simbologia em que Deus exerce as funccedilotildees de provedor protetor e mantenedor

de seu povo encontramos textos em que Ele exerce funccedilotildees ora como Pai e ora Matildee

Segundo Hamerton-Kelly no livro do profeta Isaiacuteas (66 10-13) encontramos uma

imagem de Deus como a de uma matildee bem como em Deuteronocircmio 131 e 85 em que

encontramos em ambos os textos a imagem de Deus que como um homem (pai) educa

os seus filhos pelo caminho correto Portanto numa visatildeo simboacutelica Deus eacute apresentado

ora como pai e ora como matildee do povo (Hamerton-Kelly 1979 p40)

Alegrai-vos com Jerusaleacutem exultai nela todos os que a amais regozijai-vos com ela todos os que por ela estaacuteveis de luto pois sereis amamentados e saciados

pelo seu seio consolador pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo Com efeito assim diz Iahweh Eis que trarei a Paz como um rio e a gloacuteria das naccedilotildees como uma torrente transbordante Sereis amamentados sereis carregados sobre ancas e acariciados sobre os joelhos Como a uma pessoa que a sua matildee consola Assim eu vos consolarei Sim em Jerusaleacutem sereis consolados (Is 66 10-13)

Como tambeacutem no deserto onde vistes que o SENHOR vosso Deus nele vos levou como um homem leva seu filho por todo o caminho que andastes ateacute chegardes a este lugar Deuteronocircmio 131 Sabes pois no teu coraccedilatildeo que como um homem castiga a seu filho assim te castiga o SENHOR teu Deus Deuteronocircmio 85

Mesmo diante de vaacuterios textos em que observamos Deus exercendo figuradamente

as funccedilotildees de pai e matildee natildeo temos um texto em que Deus seja diretamente chamado de

matildee e nem mesmo Jesus jamais invocou a Deus como matildee Segundo Matthias Grenzer

a razatildeo disso encontra-se no fato de Deus ser diversas vezes tratado como o esposo ou

o amado enquanto que Israel eacute descrito como a virgem noiva mulher amada ou ateacute

mesmo como prostituta (cf Jr 2-3 Ez16 Os 2 e Ct) Dentro desse imaginaacuterio a figura de

Deus eacute vista como a parte masculina enquanto que a naccedilatildeo de Israel ocupa a parte

feminina sendo assim essa seria a razatildeo de Deus ldquoser chamado somente de Pai e natildeo

de matildeerdquo (Grenzer 2009 p 182)

Ainda em relaccedilatildeo agrave paternidade de Deus no Antigo Testamento Sabugal observa

que a mesma eacute sempre vista nos seguintes aspectos Deus como o Pai do povo de Israel

(Is 6316) Pai do rei (2 Sam 7 14 Sl 8927) Pai dos justos israelitas (Sab 216) e

tambeacutem como Rei Messiacircnico (2Sm 7 12-16) (Sabugal 1985 p370)

25

Yahveh com efeito eacute o Pai de Israel por haver resgatado ltltdesde sempregtgt (Is 6316b) primeiro do Egito (Jer 34 cf Ez 23 319) e depois da Babilocircnia (cf Jer 319) tambeacutem por haver-lhes criado mediante a alianccedila (Dt 366 Mal 210 cf 317) conduzindo-o pelo deserto e corrigindo-o ltltcomo um pai a seus filhosgtgt (Dt 131 85) provando-o paternalmente (Sab 1110) e paternalmente amando-o (cf Mal 317) pois ele fez o seu povo que o confessa como Pai (Is 6319 647) e como tal deve honrar (Mal 16) Israel eacute consequentemente o filho de Deus seu primogecircnito (Ex 422 Jer 319) e ltlt filho tatildeo amadogtgt (Jer 3120) a quem desde o Ecircxodo elegeu por pai (Nuacutem 1112 Dt 32 518) e modelou (cf Is 647) por ter-lhes amado (Os 111) ltlt com um amor eternogtgt (Jer 313) tornando-se assim mesmo os israelitas a raiz da eleiccedilatildeo divina realizada na alianccedila do Sinai ltlt filhos de Yahvehgtgt (cf Dt 326 Mal 317) como membros de ltltum povo consagrado a seu Deusgtgt (Dt 14 1-2 Sal 7315) E certo que como ltltfilhos rebeldesgtgt (Is 30 19) esqueceram ltlto Deus que os criougtgt (Jer 321 Dt 3218) mas se como ltltfilhos apoacutestatasgtgt ouvirem a exortaccedilatildeo e converterem-se (Jer 3 1422) seratildeo novamente chamados ltlt filhos do deus vivogtgt (Os 21) que mostrando-se ltltindulgente para com eles como um pai com um filho que lhe servegtgt (Mal 317) uma vez mais os salvaraacute Israel segue sendo o ltltfilho amadogtgt e ltltmenino mimadogtgt de Yahveh (Jer 319) (Sabugal 1985 p 371)

Em suma podemos observar que o conceito que os israelitas tinham de Deus como

Pai defendido por J Jeremias fundamenta-se na tese de que a paternidade de Deus

sobre Israel eacute diferente da paternidade divina entre os demais povos antigos De fato o

Deus dos israelitas natildeo eacute um pai por geraccedilatildeo fiacutesica (Sabugal 1985 p371) e nem mesmo

o progenitor dos deuses e dos homens (Sabugal 1985 p368) como criam os demais

povos antigos Contudo observamos que a figura de Deus metaforicamente exerce

funccedilotildees que satildeo em suas origens de ofiacutecio materno e de ofiacutecio paterno

Realmente o Antigo Testamento eacute rico em metaacuteforas para Deus Christopher J H

Wrighth nota que entre as imagens humanas para Deus no Antigo Testamento

encontramos que ele eacute rei juiz e redentor Tambeacutem Yahweh eacute comparado a um pastor

soldado ou a um agricultor Yaweh pode ser chamado tambeacutem de rocha abrigo escudo

esconderijo leatildeo fogo ou uma fonte de aacutegua (Wright 2007 p 22)

Uma outra maneira de se observar a figura de Deus como Pai no Antigo Testamento

eacute atraveacutes dos nomes teofoacutericos Geza Vermes vecirc que a representaccedilatildeo de Deus como Pai

eacute um elemento baacutesico na Teologia do Antigo Testamento Vermes cita trecircs nomes como

exemplo os quais ldquoproclamam uma relaccedilatildeo de parentesco entre Deus e os membros

individuais do povo Judeurdquo 8 Tais nomes como Abiel (Deus eacute meu Pai) Eliab (meu Deus

eacute Pai) Abijah (Yah [Yahweh Jeovaacute eacute meu Pai] segundo Vermes atestam o conceito de

que Deus era invocado como Pai no judaiacutesmo veterotestamentaacuterio (Vermes 2006 p 259)

9 Sobre a imagem de Deus Pai na Biacuteblia Vermes concorda que ela natildeo eacute tatildeo

8 Acredito que com o termo parentesco Vermes natildeo estaacute se referindo a ancestralidade conforme

debatemos acima baseado no pensamento de J Jeremias 9 Matthias Grenzer tambeacutem coloca esses nomes citados por Vermes como uma forma de ver ldquoo

comportamento do Senhor Deusrdquo comparado a atitude de um Pai humano Grenzer ainda menciona o nome do sobrinho de Davi Joab cujo significado eacute ldquoJaveacute (Yahweh) eacute Pairdquo (Cf Grenzer 2009 p 180)

26

abundantemente atestada nas Escrituras contudo a familiaridade dessa imagem eacute

manifesta na ldquovariedade de nomes teofoacutericos que conteacutem o elemento ab (Pai)rdquo Sobre os

nomes teofoacutericos ele diz ainda que

Eles empregam tanto os tiacutetulos divinos do hebraico YH (W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai) ou YoAB (Yo eacute o Pai) Do mesmo modo temos Abbi eL e ELIab (Deus eacute o Pai) em nomes judaicos da era preacute-exiacutelica e do Segundo Templo Abram e Abiram (Pai excelso e Meu Pai eacute exaltado) que podem ser rastreados agrave idade patriarcal representam o mesmo tipo Enquanto as nuances exatas do termo ldquoPairdquo permanecem vagas natildeo pode haver duacutevida de que mesmo em niacutevel individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de famiacutelia Essa antiga atitude subjacente eacute explicitamente expressa principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da naccedilatildeo judaica Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusatildeo a eles como seus filhos (Vermes 1995 p158-159)

Para Christopher Wright a ocorrecircncia desses nomes metafoacutericos no Antigo

Testamento demonstra como a ideia de Deus como Pai era bem aceita nesse periacuteodo

Para esse autor pais que davam nomes aos filhos como Joabe (Yahweh eacute meu pai) ou

Abiel (Deus eacute meu Pai) tinham algum conhecimento metafoacuterico de Deus como Pai

Portanto para Israel o conhecimento de Deus como Pai pode ser mais bem

compreendido sob o ponto de vista que para eles Deus eacute comparado com um pai

humano que disciplina mas ensina seus filhos Como Pai ele tambeacutem se compadece

carrega adota os sem-teto e os oacuterfatildeos enfim ele eacute o Pai em que podemos encontrar

perfeita seguranccedila (Wright 2007 p24-25 38-39)

27

3 O JESUS HISTOacuteRICO

Depois de investigarmos a relaccedilatildeo de Deus como ldquoPairdquo entre os povos antigos

aproximamo-nos do ponto central da pesquisa Jesus de Nazareacute o qual segundo J

Jeremias trouxe-nos uma nova forma ou seja deu um novo enfoque sobre o termo Pai

quando dirigido a Deus Para um melhor embasamento sobre a relaccedilatildeo de Jesus com

Deus Pai buscaremos entender o homem chamado Jesus dentro das pesquisas

modernas sobre ldquoa vida de Jesusrdquo bem como das fontes evangeacutelicas disponiacuteveis no Novo

Testamento Procurar conhecer Jesus partindo do meio social em que ele esteve inserido

com certeza torna a pesquisa sobre o Cristo mais profunda e interessante uma vez que

Jesus antes de ser conhecido e pregado como Cristo foi um cidadatildeo judeu que viveu na

Galileia para ser mais preciso na pequena e humilde Nazareacute

31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO

Jesus de Nazareacute constitui personagem histoacuterico da maior importacircncia a comeccedilar pelo proacuteprio calendaacuterio hoje universal baseado na era cristatilde Uma parte consideraacutevel da humanidade professa a feacute cristatilde e outra parte considera Jesus como um profeta Para aleacutem do Cristianismo e do Islamismo Jesus constitui para outros crentes ou para agnoacutesticos e ateus uma referecircncia fundamental pela diferenccedila contraste ou oposiccedilatildeo No entanto o Jesus da histoacuteria aquele homem galileu que viveu haacute dois mil anos ainda constitui um grande desconhecido O Cristo da feacute dominou por muitos seacuteculos as reflexotildees sobre este homem de singular significaccedilatildeo As paixotildees das discussotildees teoloacutegicas foram muitas mas o homem Jesus foi tocado pelos estudiosos apenas nos uacuteltimos dois seacuteculos

(Funari 2009 p 7 in Chevitarese A L Cornelli G)

A busca pelo Jesus da histoacuteria tem mais de 200 anos No final do seacuteculo XVIII um

pequeno nuacutemero de bravos europeus comeccedilou a aplicar criacutetica literaacuteria a livros histoacutericos

do Novo Testamento Segundo E P Sanders a pesquisa sobre Jesus escrita durante

esse periacuteodo de 200 anos por estudiosos seacuterios e determinados trouxe resultados

bastante diversificados sobre o assunto o que levou muitos a pensar que na realidade

natildeo sabemos nada sobre o Jesus da histoacuteria No entanto essa eacute uma reaccedilatildeo exagerada

uma vez que sabemos muitas coisas O problema consiste em saber conciliar os nossos

conhecimentos com as nossas esperanccedilas e aspiraccedilotildees a respeito da vida e ministeacuterio de

Jesus (Sanders 2005 p21)

A pesquisa sobre a vida de Jesus pode ser dividida em cinco fases conforme as

descrevem Gerd Theissen e Annette Merz A primeira fase tem como principais

representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-

28

1874) 10 Reimarus um professor de liacutenguas orientais de Hamburg teve seus escritos

principais publicados somente apoacutes a sua morte por G E Lessing o qual a partir de

1774 comeccedilou a publicar as partes mais importantes do ensaio sobre ldquoApologia ou

Escritos de Defesa para os adoradores Racionais de Deusrdquo Em 1778 ele tinha publicado

sete fragmentos da obra quando iniciou o tratamento da vida de Jesus em perspectiva

puramente histoacuterica (Theissen amp Merz 2004 p21) Conforme Albert Schweitzer estes

satildeo os tiacutetulos dos fragmentos de Reimarus publicados por Lessing (Schweitzer 2003 p

23)

1 A Toleracircncia dos Deiacutestas

2 A Desmoralizaccedilatildeo da Razatildeo no Puacutelpito

3 A Impossibilidade de uma Revelaccedilatildeo em que todos os homens teriam bons motivos

para acreditar

4 A Passagem dos Israelitas pelo Mar Vermelho

5 Demonstrando que os Livros do Antigo Testamento natildeo foram escritos para revelar

uma religiatildeo

6 Acerca da Histoacuteria da Ressurreiccedilatildeo

7 Os objetivos de Jesus e seus Disciacutepulos

Reimarus de acordo com Theissen defendeu a ideia de que Jesus natildeo fundou

uma nova religiatildeo e tambeacutem nunca teve a intenccedilatildeo de desfazer-se do judaiacutesmo visto que

ele sempre esteve inserido na religiatildeo Judaica A pregaccedilatildeo de Jesus era sempre baseada

na apocaliacuteptica judaica O reino prometido por Jesus segundo Reimarus era um reino

terreno nos mesmos moldes e expectativas do pensamento judaico de sua eacutepoca

Portanto para Reimarus ldquoJesus eacute uma figura judaica profeacutetico-apocaliacutepticardquo ou seja

apenas um judeu enquanto que o cristianismo nada mais era do que uma invenccedilatildeo dos

apoacutestolos (Theissen e Merz 2004 p21) Martins Terra fazendo uma anaacutelise do

pensamento de Reimarus sobre a pessoa de Jesus conclui que para o referido teoacutelogo

ldquoJesus natildeo passou de um poliacutetico ambicioso e seus disciacutepulos foram verdadeiros

falsaacuteriosrdquo Na analogia de Reimarus Jesus e sua pretensatildeo poliacutetica terminaram com o

fracasso e a morte na cruz Sobre a ressurreiccedilatildeo de Jesus ele teria dito que foram os

disciacutepulos roubaram o cadaacutever inventaram a mensagem de sua ressurreiccedilatildeo e da vinda

futura Para concluir o pensamento de Reimarus sobre a imagem que temos de Jesus a

10

Essa fase eacute tambeacutem conhecida como a ldquoold questrdquo Essa fase natildeo eacute movida pelo cientificismo mas tem como caracteriacutesticas a rejeiccedilatildeo aos dogmas da Igreja a diferenciaccedilatildeo entre os sinoacuteticos e Joatildeo como fontes histoacutericas a colocaccedilatildeo de Jesus dentro do contexto escatoloacutegico de seu tempo e a ecircnfase sobre o Evangelho de Marcos como sendo o mais antigo dos Evangelhos (Schiavo 2006 p 15-17)

29

partir dos Evangelhos ele afirma que isso foi apenas criaccedilatildeo e ldquofrauderdquo dos disciacutepulos (cf

Martins Terra 1977 p10-12)

Strauss que foi filoacutesofo e teoacutelogo publicou em 18351836 a obra intitulada Vida de

Jesus Para Schweitzer ele natildeo estaacute entre os grandes teoacutelogos mas foi o mais sincero

(Schweitzer 2003 p85) Strauss aplicou aos Evangelhos o conceito de mito algo que jaacute

era comum nas pesquisas sobre o Antigo Testamento de sua eacutepoca (Theissen e Merz

2004 p22) Para ele mesmo que os Evangelhos (sinoacuteticos) tenham sido escritos num

periacuteodo de aproximadamente 40 anos apoacutes a morte de Jesus isso natildeo impede de que

estejam misturados com o mito Ele deixa sua forma de pensar mais evidente quando diz

que ldquonatildeo eacute preciso que um grande homem esteja morto haacute muito tempo para que a lenda

jaacute se ocupe da sua vidardquo (Schweitzer 2003 p 98) Contudo precisamos entender qual eacute

o verdadeiro sentido do mito religioso conforme nos descreve Schweitzer

[] a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha compreendido o caraacuteter essencial do mito religioso Ele nada mais eacute do que ideias religiosas vestidas em uma forma histoacuterica modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda e corporificado numa personalidade histoacuterica Ateacute por motivos a priori somos quase compelidos a assumir que o Jesus histoacuterico nos encontraraacute com as vestes das ideias messiacircnicas do Antigo Testamento e expectativas do cristianismo primitivo (Schweitzer p98)

Segundo Schweitzer a diferenccedila entre Strauss e os seus predecessores eacute que

para aqueles se aplicassem rigorosamente o conceito de mito agrave vida histoacuterica de Jesus

havia um grande questionamento sobre se restaria alguma coisa do Jesus histoacuterico

enquanto que para este essa questatildeo natildeo apresentava nada que fosse considerado um

terror (Schweitzer 2003 p98) Theissen assim resume Strauss ldquoPara Strauss

hegeliano declarado o cerne da feacute cristatilde natildeo eacute atingido pela abordagem miacutetica pois no

indiviacuteduo histoacuterico Jesus realiza a ideia da humanidade de Deus a mais sublime de todas

as ideias O mito eacute a roupagem legiacutetima de tipo histoacuterico dessa humanidade geralrdquo

(Theissen 2004 p22)

De uma forma sucinta Theissen descreve as demais fases da seguinte forma a

segunda eacute denominada como a fase do ldquootimismo da pesquisa liberal sobre a vida de

Jesusrdquo Essa fase eacute marcada por um florescimento do liberalismo teoloacutegico sobre a vida

de Jesus sob o ponto de vista de pesquisadores na Alemanha onde era esperado que se

chegasse agrave reconstruccedilatildeo histoacuterico-criacutetica da histoacuteria de Jesus e de sua personalidade

Essa escola teve como seu principal representante Heinrich Julius Holtzmann (1832-

1910) Destaca-se nessa fase que enquanto F Chr Baur demonstrou a primazia dos

sinoacuteticos sobre o Evangelho de Joatildeo Holtzmann contribuiu para que a teoria das duas

30

fontes desenvolvida por Christian Gottob Wilke e Christian Hermann Weise tornasse-se

um sucesso duradouro (Theissen e Merz 2004 p23)

A terceira fase eacute definida como ldquoo colapso da pesquisa sobre a vida de Jesusrdquo 11

Trecircs foram os motivos para tal colapso o primeiro fator foi a obra de Schweitzer Histoacuteria

de Investigaccedilatildeo da vida de Jesus que provocou o desvelamento das imagens das Vidas

de Jesus criadas pela teologia liberal que conforme os olhos de cada autor revelava-se a

estrutura de personalidade de Jesus com o ideal eacutetico que cada autor almejava O

segundo motivo estaacute concentrado na pessoa de W Wrede que em 1901 demonstrou ldquoo

caraacuteter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesusrdquo Para

Wrede o Evangelho de Marcos era a expressatildeo dogmaacutetica da comunidade cristatilde

primitiva que projetou sobre Jesus de Nazareacute a messianidade do Jesus poacutes-pascal E

por fim K L Schmidt demonstra o ldquocaraacuteter fragmentaacuterio dos evangelhosrdquo Para Schmidt

o Evangelho de Marcos eacute composto por periacutecopes que foram juntadas cronoloacutegica e

geograficamente somente mais tarde pelo autor Sendo assim desaparece totalmente a

possibilidade de se construir uma personalidade de Jesus visto que a histoacuteria das formas

reconhece que as periacutecopes foram juntadas primeiramente para satisfazer as

necessidades das comunidades e soacute em segundo plano como recordaccedilotildees histoacutericas

(Theissen e Merz 2004 p24)

Diante desses movimentos ceticistas surge uma teologia que ora amortece ora

aguccedila ainda mais os debates em torno das pesquisas sobre as Vidas de Jesus Nesse

sentido Rudolf Bultmann (1884 -1976) expotildee a sua teologia dialeacutetica contrapondo Deus e

o mundo de uma forma tatildeo radical a tal ponto que seria possiacutevel um encontro entre

ambas as partes apenas em um ponto assim ldquocomo uma tangente toca um ciacuterculordquo

(Theissen e Merz 2004 p24) Para Bultmann o fator decisivo natildeo era o que Jesus disse

ou fez mas sim o que Deus disse ou fez na cruz e na ressurreiccedilatildeo Nesse sentido

Bultmann afirma que o ensino de Jesus natildeo eacute relevante para a feacute cristatilde e partindo desse

pensamento Theissen define a teologia de Bultmann nas seguintes palavras ldquoSe D F

Strauss viu a verdade do mito de Cristo na ldquoideiardquo R Bultmann a viu no querigma um

chamado de Deus vindo de forardquo (Theissen e Merz 2004 p24-25)

11

Schiavo define essa fase como a ldquono questrdquo Os principais nomes dessa fase satildeo Wrede Dibelius Schmidt e Bultmann Neste movimento os Evangelhos satildeo considerados como um conjunto de tradiccedilotildees desarticuladas e pequenas (periacutecopes) sem interesses histoacutericos A finalidade principal dos Evangelhos estaacute centrada no fato de transmitir mensagens espirituais catequeacuteticas e lituacutergicas para os cristatildeos da Igreja Primitiva Sendo assim eacute impossiacutevel conhecer o Jesus histoacuterico pois a imagem que temos dele nos Evangelhos eacute querigmaacutetica e centrada no Jesus da feacute (Schiavo 2006 p 17-18)

31

A quarta fase eacute definida por Theissen como ldquoa nova pergunta pelo Jesus histoacutericordquo

12 Essa fase desenvolvida pelos disciacutepulos de Bultmann pergunta ou busca uma relaccedilatildeo

a partir do Jesus querigmaacutetico questionando se ldquosua exaltaccedilatildeo na cruz e na ressurreiccedilatildeo

tem alguma base na pregaccedilatildeo preacute-pascalrdquo Os pressupostos para tal questionamento satildeo

fundamentados nas seguintes pressuposiccedilotildees ldquoO querigma cristoloacutegico compromete-se

com a pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Isso se fundamenta segundo essa escola no fato

de que ldquoa identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado eacute pressuposta em todos os

escritos do cristianismo primitivordquo (Theissen e Merz 2004 p25ndash26) O segundo

pressuposto eacute ldquoa base metodoloacutegica da pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Segundo

Theissen esse pressuposto metodoloacutegico eacute ldquoa confianccedila de que se pode encontrar um

miacutenimo criticamente assegurado de tradiccedilatildeo autecircntica de Jesus quando se exclui o que

pode ser derivado tanto do judaiacutesmo como do cristianismo primitivordquo Entende-se que

nessa quarta fase para os disciacutepulos de Bultmann a busca de um fundamento preacute-pascal

que apoie o querigma de Cristo independe do fato de Jesus ter usado algum tiacutetulo

cristoloacutegico visto que isso jaacute estaacute impliacutecito em seu ministeacuterio e em seu anuacutencio (Theissen

e Merz 2004 p26)

Finalmente surge a quinta fase conforme Theissen denominada de ldquoa third

quest13 pelo Jesus Histoacutericordquo Essa fase predominantemente exposta no mundo de fala

inglesa diferencia-se das anteriores pelos seguintes aspectos o interesse histoacuterico-social

substitui o teoloacutegico a inserccedilatildeo de Jesus no Judaiacutesmo ao inveacutes de separaacute-lo como os

disciacutepulos de Bultmann procura fazecirc-lo e por fim haacute uma abertura para as fontes natildeo

canocircnicas substituindo a preferecircncia apenas por fontes canocircnicas A third quest dividiu a

pesquisa sobre Jesus em diferentes correntes No entanto segundo Theissen essa

variedade de interpretaccedilotildees e figuras de Jesus que pode ser visto tanto como um ciacutenico

judeu ou como um personagem colocado no centro do judaiacutesmo a espera do

restabelecimento de um reino escatoloacutegico daacute a essas correntes um tom de

plausibilidade ou seja ldquoo que eacute plausiacutevel no contexto judaico e torna compreensiacutevel o

12

Conhecida como a ldquoNew questrdquo a New quest caracteriza-se por diferenciar o que eacute proacuteprio do judaiacutesmo com o que eacute tambeacutem proacuteprio do cristianismo primitivo Dessa forma seria possiacutevel chegar ao Jesus da histoacuteria Ernst Kaumlsemann eacute um dos representantes dessa escola Para Schiavo J Jeremias tambeacutem pode ser representado nessa escola Visto que o mesmo com a ajuda da filologia e conhecimentos profundos do aramaico tentou reconstruir os ditos autecircnticos de Jesus (Schiavo 2006 p 18)

13 Schiavo complementa que essa fase que teve iniacutecio a partir da deacutecada de 1980 deixa de ser

exclusividade da academia alematilde e a pesquisa do Jesus histoacuterico passa a fazer parte da academia anglo-americana Este movimento tem como caracteriacutesticas principais os seguintes toacutepicos O interesse histoacuterico-socioloacutegico para com o mundo judaico do seacuteculo I dC a inserccedilatildeo de Jesus dentro do Judaiacutesmo A referecircncia agraves fontes natildeo canocircnicas e a aproximaccedilatildeo da fonte Q com o Evangelho de Tomeacute Dentre os representantes dessa escola encontram-se Crossan Sanders Meyer Vermes Freyne Horsley e Theissen (Schiavo 2006 p 18-19)

32

surgimento do cristianismo primitivo poderia ser histoacutericordquo (Theissen e Merz 2004 p28ndash

29)

32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO

Um dos temas da teologia que tem levantado inuacutemeras questotildees a mais de dois

seacuteculos eacute a busca histoacuterica por Jesus de Nazareacute um humilde judeu que viveu na Galileia

agraves margens do Mediterracircneo Sean Freyne avalia que ldquoas muitas idas e vindas dos

estudos que marcam a busca pelo Jesus histoacuterico tecircm sido uma preocupaccedilatildeo constante

da teologia ocidental por mais de dois seacuteculos e mesmo assim nenhum consenso foi

atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundourdquo (Freyne 2008

p1) Sobre a possibilidade de se buscar pelo Jesus histoacuterico Freyne observa que hoje

natildeo eacute mais suficiente apenas assumir uma posiccedilatildeo numa questatildeo por demais debatida Eacute

necessaacuterio que o pesquisador aleacutem de ter conhecimentos da histoacuteria da antiguidade

tambeacutem possua conhecimentos de arqueologia ciecircncias sociais e particularmente de

antropologia cultural (Freyne 2008 p2) Isso demonstra que haacute necessidade de uma

visatildeo interdisciplinar entre essas ciecircncias e seus pesquisadores

A pergunta sobre o Jesus histoacuterico segundo J Jeremias chega a ser absurda e

sem significaccedilatildeo para a feacute cristatilde apenas para aqueles que natildeo conhecem a questatildeo Ele

ainda pergunta ldquoComo eacute possiacutevel que esta questatildeo seja a questatildeo central de todas as

discussotildees sobre o Novo Testamentordquo (Jeremias 2005 p199) Segundo J Jeremias eacute

hora de questionarmos as teorias de Rudolf Bultmann que propagam que o Jesus

histoacuterico eacute irrelevante para a feacute cristatilde e a teoria que apregoa que o Jesus histoacuterico e o

Cristo proclamado pela Igreja natildeo satildeo as mesmas de Reimarus (Jeremias 2005 p 200)

Partindo das questotildees levantadas por J Jeremias e da forma como Bultmann diverge

desse pensador um diaacutelogo sobre a questatildeo eacute sempre gratificante para darmos pelo

menos um passo agrave frente no que se refere ao Jesus histoacuterico

Tendo em vista a amplitude da questatildeo acima levantada fica evidente que

trabalhar temas relacionados agrave vida do Jesus histoacuterico eacute sempre desafiador Muitos foram

os teoacutelogos e pensadores que a partir do ano de 1778 ano em que nasce o ldquoproblema do

Jesus histoacutericordquo (Jeremias 2005 p 200) esforccedilaram-se nessa tarefa com um espiacuterito

criacutetico e investigativo a fim de encontrar evidecircncias histoacutericas a respeito do homem mais

marcante de toda a histoacuteria da humanidade Tambeacutem natildeo significa que antes de Reimarus

33

o Jesus histoacuterico fosse negligenciado a questatildeo eacute que os teoacutelogos e historiadores desde

a igreja primitiva haviam sustentado que os Evangelhos eram documentos dignos de

absoluto creacutedito acerca da vida e histoacuteria de Jesus por isso tiveram a preocupaccedilatildeo de

apenas parafrasear e harmonizar os Evangelhos uma vez que natildeo viam necessidade de

uma investigaccedilatildeo aleacutem das fontes canocircnicas (Jeremias 2005 p 200) As palavras de Udo

Schnelle assim resumem a teologia do Jesus histoacuterico

A pergunta histoacuterica por Jesus eacute uma filha do iluminismo Para os periacuteodos anteriores era evidente que os Evangelhos transmitiam notiacutecias confiaacuteveis sobre Jesus Antes do Iluminismo a pesquisa neotestamentaacuteria dos Evangelhos limitava-se essencialmente agrave harmonizaccedilatildeo dos quatros Evangelhos Na praacutetica a Exegese do Novo Testamento era uma disciplina auxiliar da Dogmaacutetica (Schnelle 2010 p 70)

Ainda com relaccedilatildeo agrave pesquisa sobre o Jesus histoacuterico Joseacute Antonio Pagola diz

que quando nos referimos ao Jesus histoacuterico ldquoestamos falando do conhecimento de

Jesus que os historiadores podem obter utilizando os meacutetodos cientiacuteficos da moderna

investigaccedilatildeo histoacutericardquo (Pagola 2010 p13)

A magnitude de se escrever sobre o Jesus da Galileia eacute descrita por Schweitzer

com as seguintes palavras ldquo[] natildeo haacute tarefa histoacuterica que revele o verdadeiro interior de

um homem como a de escrever uma Vida de Jesus Nenhuma forccedila vital move o

personagem a natildeo ser que o homem sopre nele todo o oacutedio ou todo o amor de que eacute

capaz Quanto mais intenso o amor ou o oacutedio mais realista eacute a figura produzidardquo

(Schweitzer 2003 p11) Em outras palavras Schweitzer diz que aqueles que buscaram

despir Jesus do sobrenatural acabaram descobrindo fatos que enalteceram ainda mais a

sua histoacuteria Para Schweitzer tanto o oacutedio quanto o amor leva o escritor a investigaccedilotildees

profundas no intuito de provar verdade ou falsidade de um acontecimento histoacuterico Nesse

sentido as maiores produccedilotildees a respeito do Jesus histoacuterico foram escritas com oacutedio e

entre elas segundo Schweitzer estatildeo as de Reimarus e a de Strauss (Schweitzer 2003

p11)

Segundo J Jeremias a tese defendida por Reimarus em que Jesus eacute visto como

um revolucionaacuterio poliacutetico que fracassou na cruz quando exclamou ldquoDeus meu Deus

meu por que me desamparastesrdquo era estuacutepida e artificial visto que Jesus natildeo foi um

revolucionaacuterio poliacutetico e sempre reagiu energicamente contra todas as tendecircncias

nacionalistas dos zelotas Ao fazer uma anaacutelise do momento em que Reimarus escreveu

J Jeremias relata que Reimarus estava fazendo uma investigaccedilatildeo voltada ao homem

Jesus para sua personalidade sua religiatildeo e natildeo voltada para o dogma cristoloacutegico e

34

que a princiacutepio tinha como objetivo libertar-se dos dogmas da igreja (Jeremias 2005 p

201)

O resultado desses trabalhos sobre ltltas vidas de Jesusgtgt nos legaram muitas

imagens de sua personalidade que produzem risos Para os racionalistas Jesus eacute visto

como um pregador de moral para os idealistas a quintessecircncia do humanismo e por fim

para os estetas ele eacute posto como o amigo dos pobres e como um reformador social

Assim satildeo inuacutemeras as imagens que fazem de Jesus um personagem de romance

Jesus portanto eacute modernizado conforme as imagens carregadas de fantasias de cada

autor conforme os seus ideais suas eacutepocas ou suas teologias (Jeremias 2005 p 201)

J Jeremias questiona entatildeo onde estaria o erro E a resposta estaacute no fato de que

esses escritores ltltdas vidas de Jesusgtgt sem ter a plena consciecircncia acabaram

substituindo o dogma cristoloacutegico pela psicologia e pela fantasia Haacute poreacutem um ponto em

comum em todas as obras sobre ltlt as vidas de Jesusgtgt todas elas tratam de desenhar

a personalidade de Jesus com a ajuda dos instrumentos da psicologia e da fantasia Os

padrinhos nesse esforccedilo natildeo satildeo apenas as fontes mas a maior parte pertence agrave

imaginaccedilatildeo criativa a uma construccedilatildeo psicoloacutegica livre de obstaacuteculos (Jeremias 2005 p

201-202)

Conforme J Jeremias Albert Schweitzer de uma forma traacutegica poreacutem com muita

destreza desmascara essas criaccedilotildees repletas de fantasias e depois ele mesmo cairia

em falta fazendo uma construccedilatildeo psicoloacutegica a partir do texto do Evangelho de Mateus

(10 23) declarando que a grande decepccedilatildeo na vida de Jesus foi natildeo ter chegado ao final

causando grandes mudanccedilas em sua vida a ponto de aceitar o sofrimento para forccedilar a

chegada do reino de Deus (Jeremias 2005 p 203)

Pesquisar a vida do Jesus histoacuterico eacute muito mais que contar a histoacuteria de um

grande homem Eacute deparar-se com um personagem vital para a histoacuteria da humanidade

que ldquoveio para reger sobre o mundo Ele o regeu para o bem e para o mal como a histoacuteria

testificardquo (Schweitzer 2003 p8) Jesus revolucionou o mundo de sua eacutepoca mudou o

rumo da histoacuteria inseriu-se nela como protagonista mesmo natildeo sendo essa a sua

intenccedilatildeo A histoacuteria do mundo natildeo poderia mais ser contada sem ele ou seja Jesus

dividiu a histoacuteria em o antes e o depois dele A grandiosidade do homem Jesus fascinou

tanto os que o amaram como aqueles que o odiaram Nesse sentido podemos justificar o

fato de tantos pensadores estudarem a respeito do Jesus histoacuterico com as palavras

atribuiacutedas a Hegel por Bernard Bourgeois ldquoUm grande homem condena os humanos a

explicaacute-lordquo (Bourgeois1995 p 375)

35

Segundo Schweitzer os cristatildeos primitivos preocuparam-se apenas em preservar

ditos isolados a respeito do Jesus histoacuterico A expectativa do retorno iminente do Mestre

pode ter sido o motivo principal que levou o cristianismo primitivo a preferir apenas fatos

relacionados ao ministeacuterio de Jesus a uma biografia completa do Jesus histoacuterico O autor

ainda considera isso como um impulso de autopreservaccedilatildeo visto que a introduccedilatildeo do

Jesus histoacuterico na feacute da comunidade primitiva seria algo novo jaacute que o proacuteprio Jesus natildeo

se preocupou em deixar uma autobiografia Pagola compartilha desse pensamento

dizendo que

os evangelistas natildeo compuseram uma ldquobiografiardquo de Jesus no sentido moderno desta palavra Seus escritos estatildeo impregnados de sua feacute no Cristo ressuscitado satildeo sumamente seletivos foram narrados em funccedilatildeo de problemas e necessidades das primeiras comunidades cristatildes e estatildeo ordenados para objetivos teoloacutegicos e concretos Por isso exigem um estudo criacutetico cuidadoso antes de podermos obter deles informaccedilotildees fidedignas para a investigaccedilatildeo (Pagola 2010 p17)

O fato de Jesus natildeo ter deixado nenhum texto escrito e o texto do apoacutestolo Paulo

na segunda carta aos Coriacutentios capiacutetulo cap 5 verso 16 ldquo[hellip] doravante a ningueacutem

conhecemos segundo a carne Tambeacutem se conhecemos Cristo segundo a carne agora jaacute

natildeo o conhecemos assimrdquo abriu o caminho para diversas interpretaccedilotildees acerca de Jesus

De fato Leonhard Goppelt menciona a interpretaccedilatildeo de Rudolf Bultmann segundo a qual

se infere que para Paulo a accedilatildeo terrena de Jesus natildeo teria tido a miacutenima importacircncia o

que importava era a feacute pascal Natildeo obstante a ldquofeacute pascal bem como a cristologia natildeo satildeo

simplesmente uma transfiguraccedilatildeo miacutetica do terreno Muito antes nelas toma forma o que

no Jesus terreno agia apenas de maneira ocultardquo (Goppelt 2002 p 46)

O pensamento de Bultmann a respeito da importacircncia de se investigar a vida e a

personalidade do Jesus histoacuterico se resume nas seguintes palavras

Natildeo podemos saber praticamente nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus jaacute que as fontes cristatildes natildeo se interessaram por elas sendo ademais bastante fragmentaacuterias e encobertas pela lenda uma vez que natildeo existem outras fontes sobre Jesus O que se estaacute escrevendo haacute mais de um seacuteculo e meio sobre a vida de Jesus sua personalidade seu desenvolvimento interior e coisas semelhantes ndash uma vez que natildeo se trata de investigaccedilotildees criacuteticas ndash natildeo passa de fantasia e romance (Bultmann 2005 p 26)

Dessa forma o logos natildeo se torna verdadeiramente carne mas apenas palavra

(kerygma) Na visatildeo de Bultmann o Jesus histoacuterico natildeo faz parte da teologia do Novo

Testamento pois o objeto da teologia do Novo Testamento eacute o Cristo da feacute (pascal) Em

vista disso um estudo acerca do Jesus histoacuterico fica relegado a uma primeira etapa tal

qual uma primeira premissa no interior de um argumento mais elaborado (Bultmann

36

2004 p 24) J Jeremias enfatiza que para Bultmann a pregaccedilatildeo de Jesus eacute apenas

uma premissa entre muitas outras do Novo Testamento (Jeremias 2005 p 204)

Para J Jeremias Bultmann sofreu influecircncia de Martin Kaumlhler atraveacutes de sua obra

Der sogenannte historische Jesus und der geschichtiche biblische Cristus (O chamado

Jesus histoacuterico e o Cristo existencialmente histoacuterico e biacuteblico) Kaumlhler distinguiu por um

lado entre Jesus e Cristo e por outro entre historische (histoacuterico) e geschichtiche

(existencialmente histoacuterico) Por Jesus Kaumlhler compreendia o homem de Nazareacute tal

como foi descrito pelos que investigaram a vida do Jesus histoacuterico por Cristo ele entendia

como aquele que foi proclamado como o Salvador pela igreja Quanto ao significado do

adjetivo historische (histoacuterico) ele compreendia como uma mera designaccedilatildeo dos fatos do

passado e para geschichtiche (existencialmente histoacuterico) como aquele que tem um

significado permanente Portanto para Kaumlhler toda a tentativa de reconstruir a vida do

Jesus histoacuterico se contrapotildee ao Cristo biacuteblico e existencialmente histoacuterico tal como foi

pregado pelos apoacutestolos e para noacutes conforme Kaumlhler o que importa eacute unicamente o

Cristo da Biacuteblia conforme descrito pelos Evangelhos e natildeo as supostas reconstruccedilotildees

cientiacuteficas a respeito da pessoa de Jesus que chegam ateacute a passar a impressatildeo de uma

plena realidade dos fatos (Jeremias 2005 p 202)

A voz de Kaumlhler se extinguiu no vaacutecuo e natildeo surtiu um efeito pleno ateacute o ecoar da

voz de Bultmann que com coragem irredutiacutevel entrou no campo do inimigo e

abertamente lutou contra uma teologia que por um periacuteodo de aproximadamente cento e

cinquenta anos esforccedilou-se para chegar ao Jesus histoacuterico (Jeremias 2005 p 202)

Concordando com Kaumlhler Bultmann declara que todo o esforccedilo para chegar ao Jesus

histoacuterico foi um empreendimento insoluacutevel e infecundo que retirou a inexpugnaacutevel

fortaleza da proclamaccedilatildeo (kerigma) de Cristo (Jeremias 2005 p 203)

Os argumentos de Bultmann para a renuacutencia da teologia do Jesus histoacuterico

fundamentam-se no princiacutepio de que haacute falta de fontes seguras para a fundamentaccedilatildeo

dessa teologia Tambeacutem leva-se em consideraccedilatildeo que natildeo temos nada escrito pelas

matildeos de Jesus As uacutenicas fontes que temos a respeito de Jesus satildeo os Evangelhos e

esses natildeo satildeo biografias de Jesus mas satildeo apenas testemunhos de feacute secundaacuterios e

recobertos de lendas como no caso dos milagres Os Evangelhos segundo esse

pensamento satildeo a demonstraccedilatildeo de feacute dos evangelistas (Jeremias p 203) Concernente

agrave vida e agrave proclamaccedilatildeo de Jesus Bultmann assim descreve

37

[] Pouco sabemos sobre sua vida e personalidade ndash em compensaccedilatildeo sabemos o suficiente sobre sua proclamaccedilatildeo para pintar um quadro coerente Todavia tambeacutem nesse ponto recomenda-se um cuidado extremo em vista do caraacuteter das fontes que dispomos Pois o que as fontes nos oferecem eacute em primeira linha a proclamaccedilatildeo da comunidade que no entanto remonta em sua maior parte a Jesus Naturalmente isso prova que ele realmente tenha pronunciado todas as palavras que essa comunidade lhe pocircs na boca No caso de muitas palavras eacute possiacutevel demonstrar que soacute vieram a surgir na comunidade ao passo que no caso de outras elas foram reformuladas pela comunidade A investigaccedilatildeo criacutetica mostra que o conjunto da tradiccedilatildeo sobre Jesus ndash disponiacutevel nos trecircs evangelhos sinoacuteticos de Mateus Marcos e Lucas ndash se desmembra em uma seacuterie de camadas que em termos gerais podem ser distinguidas umas das outras com bastante seguranccedila mas cuja separaccedilatildeo em alguns detalhes apresenta dificuldades e levanta duacutevidas (Bultmann 2005 p 29-30)

Contudo essa visatildeo de Bultmann natildeo significa a negaccedilatildeo da existecircncia do homem

chamado Jesus de Nazareacute Segundo esse autor eacute possiacutevel conhecer muito dele atraveacutes

de suas pregaccedilotildees poreacutem na anaacutelise da criacutetica histoacuterica em relaccedilatildeo ao homem Jesus

conclui-se que natildeo haacute nada de importante para a feacute cristatilde (Jeremias 2005 p 203)

Quanto agrave questatildeo da existecircncia de Jesus vejamos o que nos diz Bultmann

[hellip] Eacute verdade que a duacutevida se Jesus realmente existiu eacute infundada e natildeo vale a pena gastar nenhuma palavra para refutaacute-la Eacute evidente que ele eacute o gerador do movimento histoacuterico cujo primeiro estaacutegio constataacutevel eacute representado pela comunidade palestinense mais antiga No entanto outra questatildeo eacute ateacute que ponto a comunidade preservou de modo objetivamente fiel a imagem dele e de sua proclamaccedilatildeo Para aqueles que tecircm interesse na personalidade de Jesus esse estado de coisas eacute inquietante e arrasador para nosso propoacutesito ele natildeo eacute de fundamental importacircncia (Bultmann 2005 p 30-31)

J Jeremias analisa entatildeo que para Bultmann Jesus de Nazareacute foi um profeta

judeu que permaneceu sempre dentro dos marcos do judaiacutesmo O Jesus histoacuterico

segundo Bultmann pode ser interessante para a teologia do Novo Testamento e para

compreender a origem do cristianismo mas natildeo tem significaccedilatildeo alguma para a feacute cristatilde

porque o cristianismo comeccedila com a Paacutescoa (Jeremias 2005 p204) Martins Terra expotildee

que o Jesus histoacuterico para Bultmann realmente eacute um profeta e sem duacutevida o maior

deles contudo profeta pertence ao Antigo Testamento Sendo assim Jesus era apenas

um judeu e natildeo um cristatildeo14 ldquoporque cristatildeo eacute aquele que acredita no Senhor

ressuscitado e natildeo aquele que funda sua feacute sobre uma figura histoacutericardquo (Martins Terra

1977 p21)

14

A resposta dada a Bultmann veio de seu disciacutepulo Ernst Kaumlsemann que observa que tanto Jesus quanto

os apoacutestolos eram judeus E se os apoacutestolos eram judeus natildeo eram eles tambeacutem cristatildeos desde o momento que seguiram a Jesus Kaumlsemann ainda pergunta teria havido algum keacuterygma sem a pregaccedilatildeo de Jesus Kaumlsemann chama a atenccedilatildeo para que Jesus natildeo se torne um pretexto e Cristo uma mera cifra mitoloacutegica (Martins Terra 1977 p 44)

38

Escrever uma biografia sobre o Jesus histoacuterico eacute algo descartado na teologia e isso

eacute visto com justiccedila por J Jeremias quando diz ldquo[] eacute muito correto afirmar que jaacute temos

despertado do sonho de acreditar que podemos escrever uma biografia de Jesusrdquo

(Jeremias 2006 p28) No entanto isso natildeo significa passar com indiferenccedila por essa

teologia eacute preciso voltar ao Jesus de Nazareacute e a sua pregaccedilatildeo As fontes nos

impulsionam a cada versiacuteculo dos Evangelhos a buscar pelo homem Jesus que

historicamente apareceu em Nazareacute e que foi crucificado no governo de Pocircncio Pilatos

(Jeremias 2006 p28) Leonard Swidler diz estar ciente tambeacutem das dificuldades para

se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade sobre o Jesus (Ieshua) histoacuterico

Contudo para ele podemos chegar ao fundamental ou seja podemos sempre lutar para

chegar mais perto Para Swidler a consciecircncia dessa limitaccedilatildeo permite que a pessoa

evite os extremos isto eacute tanto a ingecircnua certeza absoluta quanto o ceticismo total sobre

a possibilidade da busca pelo Jesus histoacuterico (Swidler 1993 p 16-18)

A visatildeo de Bultmann a respeito do Jesus histoacuterico natildeo foi seguida pelo seu

sucessor catedraacutetico em Magburg W G Kuumlmmel Para Kuumlmmel interpretar as palavras

de Paulo15 na letra do texto 2 Cor 516 e concluir que o Jesus terreno natildeo teve

importacircncia para o apoacutestolo eacute uma interpretaccedilatildeo ldquoseguramente errocircneardquo (Kummel 2003

p210) pois mesmo que elas natildeo tenham um papel tatildeo importante nos escritos do

apoacutestolo elas natildeo deixam de ser significantes Errocircneo para Kuumlmmel seria o fato de um

cristatildeo procurar ter uma relaccedilatildeo intraterrena com Jesus ou conhececirc-lo apenas

historicamente o que seria insignificante para um cristatildeo Rochus Zuurmond tambeacutem

define o pensamento do apoacutestolo Paulo sobre o versiacuteculo 16 acima mencionado da

seguinte forma

[hellip] Nessa periacutecope natildeo se trata da distinccedilatildeo entre o Jesus preacute-pascal e o poacutes-pascal mas da diferenccedila entre conhecer Jesus da maneira antiga e conhececirc-lo da maneira nova O Jesus poacutes-pascal ainda pode ser ldquoconhecidordquo da maneira antiga o jovem Paulo mas tambeacutem seus adversaacuterios atuais eacute disso um exemplo Em princiacutepio o Jesus preacute-pascal tambeacutem podia ser conhecido de maneira nova se fosse ldquotirado o veacuteurdquo na leitura do Antigo Testamento (314ss cf Jo 856) Mas na praacutetica isso se verificou impossiacutevel por causa da carne (Zuurmond 1998 p 87)

Conhecer Jesus ldquosegundo a carnerdquo na interpretaccedilatildeo de Zuurmond inclui com

certeza todo o conhecimento que podemos ter do Jesus histoacuterico Para ele Paulo natildeo

15

Kaumlsemann tambeacutem contrapotildee essa tese de Bultmann colocando os seguintes argumentos Se o Apoacutestolo Paulo natildeo levou em consideraccedilatildeo a vida terrena de Jesus e a Igreja jaacute estava realizada com o keacuterygma contido nas cartas paulinas por que entatildeo os Evangelhos tornaram-se necessaacuterios jaacute que foram escritos (os Sinoacuteticos) depois que Paulo jaacute tinha escrito todas as cartas Segundo Kaumlsemann a necessidade dos Evangelhos deu-se principalmente porque havia vaacuterios keacuterygmas e a necessidade do discernimento desses deu-se a princiacutepio pelo Espiacuterito todavia quando o entusiasmo cresceu tornou-se necessaacuterio o criteacuterio da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 44-45)

39

estava referindo-se ao Jesus histoacuterico quando fala ldquose jaacute conhecemos o cristo segundo a

carne agora jaacute natildeo o conhecemos maisrdquo (516) Toda a atividade cientiacutefica eacute carne ou

seja pode ser verificado com os recursos da historiografia moderna A pesquisa sobre o

Jesus histoacuterico eacute possiacutevel desde que ela natildeo tenha a pretensatildeo de ser a verdade absoluta

a respeito de Jesus Para Zuurmond o apoacutestolo estaacute enfatizando que o conhecimento

espiritual estaacute aleacutem do conhecimento cientiacutefico contudo natildeo eacute anticientiacutefico mas apenas

natildeo estaacute submisso a qualquer criteacuterio da ciecircncia Zuurmond conclui que ldquoPaulo tem

pouquiacutessima coisa para dizer sobre o Jesus histoacutericordquo uma vez que o apoacutestolo dos

gentios natildeo teria muito interesse pelo ldquotipo de conhecimento sobre Jesus que daiacute

resultariardquo (Zuurmond 1998 p88)

Voltando aos disciacutepulos de Bultmann ainda podemos mencionar Ernst Kaumlsemann

que tambeacutem contestou os ldquodogmasrdquo de seu mestre Para Kaumlsemann a pergunta pelo

Jesus histoacuterico e pelas palavras de Jesus eacute uma praacutetica e exigecircncia do Novo Testamento

visto que satildeo a base e o criteacuterio do keacuterygma Sem essas perguntas o Cristo da feacute se

tornaria em mera ideologia religiosa A importacircncia dessas questotildees torna relevante a

busca pelo Jesus da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 32)

Como se pode compreender em diferentes eacutepocas pensadores divergiram a

respeito da histoacuteria da pessoa do humilde carpinteiro de Nazareacute As especulaccedilotildees a

respeito da vida do Jesus histoacuterico cresceram tanto pelos seus fieacuteis seguidores quanto

pelos seus mais aacutevidos inimigos pelo menos desde o seacuteculo II dC (tal como se pode ver

na calorosa refutaccedilatildeo de Oriacutegenes contra Celso) Em um periacuteodo mais recente teoacutelogos

e arqueoacutelogos tecircm procurado com maior intensidade dados a respeito do homem Jesus e

do estilo de vida que a comunidade do seu tempo vivia com a finalidade de compreender

melhor o contexto em que Jesus estava socialmente inserido

40

4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE

SUA EacutePOCA O objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar o Jesus da histoacuteria dentro do contexto

dos grupos religiosos de sua eacutepoca a fim de observarmos ateacute que ponto Jesus teve

ou natildeo contato com tais grupos abaixo mencionados A preferecircncia de Jesus por um

determinado grupo poderia determinar o que era o Reino de Deus na visatildeo do jovem

pregador galileu Seria Jesus um adepto da seita dos apocaliacutepticos essecircnios dos

moralistas fariseus dos revolucionaacuterios zelotes ou ainda da ldquocorrompidardquo classe

sacerdotal dos saduceus Nos Evangelhos eacute que encontramos a histoacuteria de Jesus

uma vez que eles satildeo as principais fontes que possuiacutemos para montarmos a figura

do maior homem de todos os tempos Mas surgem algumas perguntas Seriam os

Evangelhos fontes histoacutericas confiaacuteveis na apresentaccedilatildeo do homem Jesus Sendo

Jesus pertencente agrave maioria da populaccedilatildeo ou seja da classe pobre e oprimida

pelos romanos teria ele sofrido alguma influecircncia do mundo helenizado da cidade

de Seacuteforis da qual tatildeo perto ele residia ou teria ele totalmente ignorado a cultura e

o mundo helecircnico-romano

Jesus o nazareno na condiccedilatildeo de Filho de Deus repudia todo o tipo de

opressatildeo uma vez que ele veio para ldquoproclamar a libertaccedilatildeo dos presosrdquo e

ldquoevangelizar os pobresrdquo (Lc 4-18) os quais satildeo felizes porque deles eacute o Reino de

Deus (Lc 620-23) Ao proclamar a bem-aventuranccedila dos pobres ele tambeacutem

proclama ldquomaldiccedilotildeesrdquo sobre os ricos que os oprimem e riem deles visto que chegaraacute

a hora em que os que dessa forma riem conheceratildeo o luto e as laacutegrimas (Lc 6 24-

26) Jesus ao ensinar os seus disciacutepulos a como se prevenir e se comportar diante

de uma sociedade poliacutetica e religiosa completamente desprovida do genuiacuteno amor

ao proacuteximo o Mestre da Galileia ensina os seus seguidores a serem

ldquomisericordiososrdquo como o Pai do Ceacuteu eacute misericordioso (cf Lc 6 36)

41

41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE

CONTEMPORAcircNEA DE JESUS

Segundo J Jeremias Jesus16 era proveniente de uma famiacutelia pobre e isso

pode ser constatado na ocasiatildeo do sacrifiacutecio de purificaccedilatildeo ldquoMaria serviu-se do

privileacutegio dos pobres oferecer duas rolasrdquo (Lc 224 cf Lv 128) (Jeremias 1983

p165) No tocante ao seu modo de vida eram tantas as privaccedilotildees que natildeo tinha

onde repousar a cabeccedila (Mt 820 Lc 958) J Jeremias observa que ele natildeo possuiacutea

dinheiro - a histoacuteria do estaacuteter e do ldquotributo a Cesarrdquo o demonstram (Mt 17 24-27 Cf

Mc 12 13-17 Mt 22 15-22 Lc 20 20-26) - tambeacutem aceitou esmolas (Lc 8 1-3)

Jesus provavelmente foi considerado um escriba (da classe mais humilde

desse grupo) conforme subentende J Jeremias (1983 p 59-165) Bultmann

tambeacutem concorda que Jesus era chamado pela tradiccedilatildeo de Rabi (Mc 95 1051

11121 1445) Para ele o tiacutetulo rabi foi substituiacutedo pelos evangelistas de origem

grega quase que completamente pela forma de tratamento grega Senhor

expressatildeo esta que designa Jesus como pertencente agrave classe dos escribas

(Bultmann 2005 p71) Para esse autor natildeo podemos afirmar se nos dias de Jesus

jaacute era necessaacuteria certa formaccedilatildeo cultural para a funccedilatildeo de escriba17 como foi uma

exigecircncia cem anos mais tarde Contudo natildeo podemos ignorar o fato de Jesus ter

sido considerado um Rabi (Bultmann 2005 p71-72)

Vale ressaltar que a relaccedilatildeo de Jesus com os escribas eacute quase sempre

relatada de forma polecircmica nos Evangelhos Quando estava ensinando sobre o fim

de Jerusaleacutem e do mundo Jesus advertiu seus disciacutepulos a respeito dos escribas

dizendo que eles sempre procuravam a distinccedilatildeo social eram arrogantes e

16

O nome Jesus origina-se do hebraico ldquoYehoshuardquo (o Yoshua biacuteblico) que significa YHWH (que provavelmente era pronunciado Yahweh) O Nome Jesus eacute uma forma latina do grego Iesous que por sua vez eacute uma forma grega do termo hebraico O nome Yehoshua foi abreviado no linguajar coloquial para Yeshua ou ateacute mesmo para Yeshu A raiz etimoloacutegica de Ieshua eacute ldquoYerdquo eacute a forma hebraica abreviada do proacuteprio nome de Deus YHWH enquanto que ldquoshuardquo eacute a palavra hebraica que significa Salvaccedilatildeo (cf Swidler 1993 p7-8)

17 Vermes define os escribas da seguinte forma ldquoo termo eacutescriba (sofer em hebraico safra em

aramaico) eacute usado para designar um estudioso um especialista na Biacuteblia particularmente em direito biacuteblico e tradicional A vida religiosa e secular bem organizada dependia desses homens Eram geralmente respeitados e sem duacutevida amiuacutede tornavam-se presunccedilosos vestiam-se apropriadamente usando uma tuacutenica longa (stole ou talit) e estavam habituados a ser respeitosamente saudados por todos indiscriminadamente Em reconhecimento agrave sua dignidade recebiam os lugares de escolha em locais de adoraccedilatildeo e em banquetes e os evangelistas indicam que eles esperavam receber tal tratamento preferencialrdquo (Vermes 2006 p 89)

42

pretensiosos na oraccedilatildeo Em Marcos os escribas dos fariseus criticam Jesus porque

ele come com os cobradores de impostos e com os pecadores (Mc 216) tambeacutem

os disciacutepulos de Jesus reconhecem que o seu ensinamento natildeo eacute como o dos

escribas sem autoridade (Mc 1 22-28 cf Mt 7 29) e por fim os escribas

questionaram a autoridade de Jesus para perdoar os pecados do paraliacutetico de

Cafarnaum (Mc 2 6 cf Mt 93) Eacute bem verdade que em Mateus 819 1352 2334

os escribas satildeo vistos de uma forma positiva e isso eacute mais evidente ainda em

Marcos 12 28-34 onde Jesus e um escriba concordaram a respeito do maior dos

mandamentos o que faz Jesus concluir que tal escriba natildeo estava longe do Reino

de Deus No entanto a impressatildeo que se obteacutem a partir das Escrituras eacute a que

Jesus possuiacutea um conceito formado a respeito dos escribas conforme o descrito

pelo evangelista Marcos nas seguintes palavras (Saldarini 2005 p 164-172)

[] E dizia no seu ensinamento ldquoGuardai-vos dos escribas que gostam de circular de toga de ser saudados nas praccedilas puacuteblicas e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes mas devoram as casas das viuacutevas e simulam fazer longas preces Esses receberatildeo condenaccedilatildeo mais severardquo (Mc 12 38-40)

Os escribas parecem natildeo ser um grupo muito coeso no oriente proacuteximo dos

dias de Jesus Eles eram provenientes de vaacuterias classes do povo ou entatildeo dos

sacerdotes ou de famiacutelias proeminentes Geralmente eles eram dependentes das

classes dominantes que dirigiam a naccedilatildeo Segundo Saldarini (2005 p 282-283) a

maioria dos escribas havia saiacutedo do campesinato para ser treinado pelo governo ou

por famiacutelias ricas para resguardar os registros coletar impostos servir como

funcionaacuterios e juiacutezes e trabalhar com o serviccedilo de correspondecircncias

Ainda com relaccedilatildeo a esse grupo de indiviacuteduos observa-se que os escribas

considerados socialmente inferiores eram aqueles que faziam parte de um pequeno

povoado que tinham entre outras funccedilotildees a de ensinar jovens a ler e escrever mas

natildeo eram considerados mestres visto que natildeo tinha uma educaccedilatildeo elevada para os

padrotildees da eacutepoca Saldarini observa no entanto que a maioria dos escribas

incluindo os apresentados nos evangelhos era considerada funcionaacuterios de niacutevel

meacutedio que eram dependentes da classe sacerdotal das famiacutelias ricas em

Jerusaleacutem e de Herodes Antipas na Galileia

43

Em todos os casos poreacutem os escribas precisam ser contextualizados entre outros grupos sociais e o poder de influecircncia deles integrado no quadro global da sociedade judaica Eles natildeo devem ser tratados como um grupo autocircnomo com seu proacuteprio poder e agenda contiacutenua Os escribas eram diferentes em suas origens e em suas dependecircncias e eram indiviacuteduos que desempenhavam um papel social em diferentes contextos e natildeo uma forccedila poliacutetica e religiosa unificada (Saldarini 2005 p 284-285)

Com relaccedilatildeo ao grupo dos rabinos segundo J Jeremias observa-se de um

modo geral que ele se situa entre as camadas pobres da populaccedilatildeo (Jeremias

1983 p165-166) Mais ainda as informaccedilotildees tradicionais sobre os escribas nos

dias de Jesus concordam que os escribas ricos natildeo eram numerosos Portanto se

realmente Jesus era considerado um escriba certamente ele fazia parte da classe

pobre dos escribas Crossan problematiza mais a questatildeo quando coloca que a

maioria da populaccedilatildeo Judaica da eacutepoca de Jesus era constituiacuteda de analfabetos18

supotildee-se que Jesus tambeacutem era analfabeto que ele conhecia como a ampla maioria de seus contemporacircneos de uma cultura oral as narrativas fundacionais estoacuterias baacutesicas e expectativas gerais de sua tradiccedilatildeo mas natildeo os textos exatos citaccedilotildees precisas ou argumentaccedilotildees intrincadas de suas elites de escribas (CROSSAN 1995 p41)

Em outro momento Crossan observa que o niacutevel de alfabetizaccedilatildeo na

Palestina estava abaixo de 3 segundo fontes rabiacutenicas o que natildeo era tatildeo baixo

para os padrotildees sociais das sociedades tradicionais do passado Crossan reitera

que Jesus era um camponecircs da Galileia e portanto natildeo haacute duacutevidas que Jesus era

analfabeto ldquopara mim Jesus era analfabeto ateacute que o contraacuterio seja comprovado E

natildeo eacute comprovado mas apenas presumido por Lucas quando ele faz Jesus ler o

profeta Isaiacuteas na sinagoga de Nazareacute em 4 16-20rdquo (Crossan 2004 p 274-275)

18

Diferentemente de Crossan David Flusser defende que Jesus ldquoestava longe de ser um iletradordquo Para ele com algumas justificativas eacute possiacutevel que os disciacutepulos de Jesus fossem homens iletrados e sem posiccedilatildeo social (cf At 413) e isso levou os historiadores a pensar que o proacuteprio Jesus nunca havia estudado Flusser vai mais longe ainda quando observa que Jesus era versado tanto nas Escrituras Sagradas como na tradiccedilatildeo oral ldquoAdemais sua educaccedilatildeo era incomparavelmente superior agrave de Satildeo Paulordquo Flusser vecirc na narrativa de Lucas (2 41-51) a histoacuteria de ldquoum erudito precoce pode-se dizer quase um jovem talmudistardquo A fonte de Flusser para tal argumento eacute Flaacutevio Josefo que se referindo a Jesus disse ldquonesta eacutepoca viveu Jesus um homem saacutebio ndash se eacute que na verdade deveriacuteamos chamaacute-lo de homemrdquo Mesmo que tenha havido algumas alteraccedilotildees por um interpolador cristatildeo eacute provaacutevel que a redaccedilatildeo original natildeo se perdeu totalmente jaacute que o texto de Josefo pode ser confirmado ldquopela suposta redaccedilatildeo original da passagemrdquo (Flusser 2002 p 11-12)

44

Carlos Mesters tambeacutem observa que Jesus mesmo antes de nascer jaacute era

viacutetima do sistema poliacutetico e econocircmico predominantes na eacutepoca Com efeito uma

vez que ele natildeo nasceu de uma famiacutelia sacerdotal como Joatildeo Batista (Lc 15) nem

teve o privileacutegio de estudar como o apoacutestolo Paulo (At 22 3) Jesus teve desde

pequeno que trabalhar como agricultor e ainda aprender a profissatildeo de seu pai (Mt

13 55) e por isso era conhecido como carpinteiro (τέκτων) de Nazareacute (Mc 6 3)

Assim como Crossan Mesters analisa que a vida de Jesus desde a infacircncia ateacute a

vida adulta natildeo foi nada faacutecil Sobre a educaccedilatildeo formal do nazareno Mesters nos

diz que ldquoa escola do Jesus era antes de tudo a vida em casa na famiacutelia na

comunidade Foi laacute que aprendeu a conviver a rezar e a trabalharrdquo (Mesters 2011

p 17-21)

O caos econocircmico e cultural entre a populaccedilatildeo contemporacircnea de Jesus natildeo

eacute fato apenas na Galileia19 J Jeremias descreve que a cidade de Jerusaleacutem nos

tempos de Jesus era um centro de mendicacircncia que geralmente girava em torno

do templo Para ele ldquonatildeo eacute de causar espanto se jaacute naquela eacutepoca houvesse

pessoas que simulavam cegueiras surdez e outras doenccedilas a fim de ganharem

esmolasrdquo (Jeremias 1983 p166) Se Jerusaleacutem que era o centro dos

acontecimentos estava numa situaccedilatildeo caoacutetica natildeo muito distante ficava Nazareacute

que conforme Crossan era um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que

vivia em casebres ldquoum povoado simples composto de camponeses entre duzentos a

quatrocentos habitantesrdquo (Crossan Reed 2007 p 7518) Crossan observa que

Nazareacute nunca foi mencionada pelos rabinos na Mishinaacute nem no Talmude nem por

Flaacutevio Josefo quando esse cita o nome de 45 lugares durante a primeira revolta

judaica em 66-67 dC Nem mesmo o Antigo Testamento a conheceu A relaccedilatildeo das

tribos de Zebulon enumera quinze localidades na Baixa Galileia nas proximidades

de Nazareacute mas natildeo a inclui (Js19 10-15) Crossan eacute taxativo ao afirmar que Nazareacute

ldquoera um lugar absolutamente insignificanterdquo (Crossan Reed 2007 p 64)

19

Apesar da Galileia onde Jesus viveu ter sido um lugar de extrema pobreza geograficamente era ldquouma regiatildeo beliacutessima a planiacutecie o lago as colinas a montanha o verde as suas matas fazem da Galileia um ambiente tranquilo e repousanterdquo A pobreza natildeo estava ligada ao aspecto geograacutefico mas sim agrave dominaccedilatildeo romana atraveacutes dos altos e impiedosos impostos que segundo Marconcini natildeo era menos do que 40 do miacutesero rendimento de cada trabalhador que tambeacutem eram destinadas para o aumento do bem-estar dos ricos conforme vemos nos evangelhos de Mateus 18 23-30 e Lucas 16 1-7 -20 (Cf Marconcini 2009 p 38)

45

Tambeacutem observa-se que Nazareacute era um povoado proacuteximo de Seacuteforis que

permaneceu no anonimato ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo

quando se tornou alvo de peregrinaccedilotildees dos cristatildeos (Crossan Reed 2007 p79)

Eles dependiam de espaccedilo fiacutesico para desempenhar atividades agriacutecolas guardar

ferramentas de uso comunitaacuterio cultivo de jardins e pomares tambeacutem precisavam de

espaccedilo para a criaccedilatildeo de animais domeacutesticos e isso explica o porquecirc de uma baixa

densidade populacional Crossan afirma que a maioria dos galileus ganhava a vida

com os produtos da terra com ferramentas precaacuterias e condiccedilotildees geograacuteficas

desfavoraacuteveis O seu estilo de vida em particular dos nazarenos era simples e o

que eles ganhavam era apenas o suficiente para pagar as diacutevidas e impostos

Quanto agraves tradiccedilotildees eles eram zelosos celebravam a paacutescoa descansavam no

Saacutebado e valorizavam as tradiccedilotildees de Moiseacutes e dos profetas

Gerhard Lenski citado por Crossan faz uma interessante descriccedilatildeo de como

eram as divisotildees das classes sociais pelo impeacuterio romano O simples fato de uma

famiacutelia ou povoado possuir arados de ferro poder usufruir de transportes utilizando-

se da roda e da vela gerava um abismo entre as classes designadas altas e outras

designadas baixas Segundo esse autor as classes eram divididas da seguinte

maneira 1 da populaccedilatildeo era constituiacuteda pelos governantes que eram possuidores

de pelo menos a metade das terras os sacerdotes podiam possuir ateacute 15 da

terra logo apoacutes vinham os arrendataacuterios que iam de generais a burocratas

especializados mercadores que provavelmente ascendiam das classes mais

baixas mas que chegavam a ter consideraacutevel riqueza e algum poder poliacutetico e por

fim os camponeses que eram a maioria da populaccedilatildeo de cuja colheita cerca de

dois terccedilos do total as classes altas eram sustentadas

Os camponeses cujas safras dependiam das colheitas nem sempre eram

bem sucedidos pois se houvesse muita chuva ou seca ou ainda doenccedilas e morte

eram expulsos de suas proacuteprias terras Entatildeo eram forccedilados ao arrendamento ou

ateacute mesmo podiam ser submetidos agraves piores humilhaccedilotildees Existia ainda a classe

dos artesatildeos considerada acima dos camponeses porque em geral eram

recrutados entre seus membros desalojados Abaixo dos camponeses existiam

ainda as classes dos degradados e dispensaacuteveis os quais eram rejeitados e iam de

46

mendigos a foras da lei ladrotildees trabalhadores diaristas e escravos (Crossan 1995

p 41)

De acordo com essa divisatildeo de classes deduz-se que se Jesus era

carpinteiro (τέκτων) entatildeo ele pertencia agrave classe dos artesatildeos que por sua vez

estava perigosamente situada entre os camponeses e os degradados ou

dispensaacuteveis Segundo Crossan a pobreza dos conterracircneos de Jesus natildeo se

limitava apenas a Galileia jaacute que de 95 a 97 da populaccedilatildeo do estado judaico era

constituiacuteda por analfabetos Se essa estatiacutestica for verdadeira possivelmente Jesus

tambeacutem era um analfabeto Quanto ao fato dele ensinar eacute provaacutevel que o seu

aprendizado e ensino tenha sido a partir da educaccedilatildeo da tradiccedilatildeo em forma oral

Conforme Crossan os textos de Lucas 2 41-52 e Lucas 4 1-30 devem ser vistos

como ldquopropaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em

termos de instruccedilatildeo e exegese de escribardquo (Crossan 1995 p 41-42)

42 JESUS O HUMILDE NAZARENO

Jesus viveu em Nazareacute a maior parte de sua vida Segundo Pagola uma

pequena aldeia de ldquoapenas duzentos a quatrocentos habitantesrdquo onde alguns

habitantes viviam ldquoem cavernas escavadas nas encostas a maioria em casas baixas

e primitivas de paredes escuras de adobe ou pedra com telhados confeccionados

com ramos secos e argila e chatildeo de terra batidardquo O quesito conforto e comodidade

natildeo era privileacutegio dos nazarenos uma vez que em geral as casas soacute tinham um

cocircmodo no qual se alojava a famiacutelia toda inclusive os animais (Pagola 2010 p62)

Esse pequeno vilarejo ficava a 4 quilocircmetros ao norte de Seacuteforis 20 a cidade

residencial de Herodes Antipas (Gnilka 2000 p71) Seacuteforis diferentemente de

Nazareacute era uma cidade que crescia cheia de curiosidades21 Jerome Murphy-

20

Koester natildeo especifica a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis mas observa que a distacircncia entre essas duas localidades era de poucos quilocircmetros Seacuteforis foi ampliada por Antipas que como seu Pai (Herodes o grande) era amante do esplendor e da grandeza que muitas vezes era expresso por grandes construccedilotildees Aleacutem de Seacuteforis (a primeira capital) Antipas (Tetrarca da Galileia e da Pereia) ainda construiu uma segunda capital a qual deu o nome de Tibeacuterias (Tiberiacuteades) em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (Cf Koester 205 Vl 1 p 395) Theissen especifica como sendo de 6 km a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis (cf Theissen 2004 p 186) A partir desses dados conclui-se que Seacuteforis e Nazareacute ficavam muito proacuteximas

21 As hipoacuteteses de Murphy-OConnor em relaccedilatildeo agrave Seacuteforis satildeo bem diferentes da visatildeo que Crossan

tinha desta cidade como vimos anteriormente Para Crossan Seacuteforis permaneceu no anonimato

47

OConnor observa que seria um equiacutevoco supor que Jesus natildeo passaria todo o

tempo que pudesse em Seacuteforis junto com os amigos Nesse sentido pode-se

questionar Teria Jesus tido em Seacuteforis contato com a liacutengua grega por morar bem

proacuteximo da elegante cidade Seacuteforis era a cidade das atraccedilotildees tanto para os

adultos como para as crianccedilas fato esse que pode ser constatado com Herodes

Antipas o qual teria aprendido a oferecer espetaacuteculos com seu pai Herodes o

grande e nos poucos anos que passou em Roma teria ficado impressionado com os

espetaacuteculos dados por Augusto (Murphy-OConnor 2008 p38-39)

O teatro de Antipas era a grande atraccedilatildeo da cidade Segundo Murphy-

OConnor-OConnor o grande teatro de 45 mil lugares22 sentados em pedra visto

ateacute hoje foi precedido pelo de Antipas em madeira Mesmo que os judeus tenham

sido advertidos a respeito da origem pagatilde do teatro eacute razoaacutevel que Jesus tenha

visto em torno das imediaccedilotildees do teatro atores subindo e descendo pelas ruas e

praticando suas deixas23 Para Murphy-OConnor foi desse contexto que Jesus

conheceu a palavra grega hypokritecircs (ὑποκριτής) que significa ldquoum orador puacuteblicordquo

ldquoum atorrdquo Jesus usou a mesma palavra poreacutem deu a ela um sentido mais profundo

no que se refere agrave vida religiosa A maacutescara refere-se ao ldquofingidorrdquo ou seja agravequeles

que dizem ou parecem ser uma coisa mas na praacutetica satildeo outra conforme vemos

nos Evangelhos (Mt 75 Mc 76 = Lc 642)

O maior acontecimento que Jesus pode ter visto em Seacuteforis ou ouvido falar

muito a respeito quando tinha aproximadamente seis anos de idade foi o

casamento de Herodes Antipas com a filha do rei nabateu Aretas IV de Petra que

governou entre 9 aC e 40 dC Segundo Murphy-OConnor mesmo que o

casamento tenha acontecido em Petra uma caravana de nobres nabateus

provavelmente teria acompanhado Antipas ateacute a cidade de Seacuteforis onde uma

grande multidatildeo de todas as aldeias proacuteximas agrave cidade o aguardava para saudar o

jovem rei (Murphy-OConnor 2008 p40)

ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo quando segundo Crossan a cidade se tornou alvo de peregrinaccedilotildees cristatildes (cf Crossan Reed 2007 p79)

22 Theissen diz que o teatro comportava 5000 pessoas (ver Theissen 2004 p 187)

23 Koester nota que eacute interessante que cidades como Cesareia Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo constem da

tradiccedilatildeo Contudo cidades heleniacutesticas menos importantes como Cesareia de Felipe e Gadara agraves vezes satildeo mencionadas Para Koester ldquonatildeo se pode concluir que Jesus nunca tenha visitado Terras pagatildesrdquo (Cf Koester Vl 2 p 86)

48

Sobre Jesus podemos dizer que aleacutem de ter vivido na pequena Nazareacute de laacute

saiu para ser batizado por Joatildeo Batista Aleacutem disso conforme Mc 63 em Nazareacute e

adjacecircncias ele exerceu a carpintaria (τεκτων) 24 como profissatildeo atividade essa

exercida por seu pai Joseacute Nessa profissatildeo aleacutem de trabalhar com madeira

tambeacutem trabalhava-se com pedras Dessa forma podemos dizer que Jesus era

tambeacutem um entalhador (Gnilka 2000 p 71-72)

Sobre Jesus aleacutem de algumas hipoacuteteses e relatos concernentes ao lugar de

sua residecircncia e outras suposiccedilotildees relacionadas agrave sua vida enquanto um simples

homem inserido em sua comunidade que na qualidade de profeta da Galileia natildeo foi

bem recebido entre seus conterracircneos De acordo com o evangelista Lucas o

ministeacuterio de Jesus comeccedilou aos 30 anos (Lc 323) Para Gnilka a informaccedilatildeo

obtida a partir desse Evangelho possui tambeacutem uma motivaccedilatildeo teoloacutegica visto que

a idade de Jesus deve estar relacionada com a idade do rei Davi conforme vemos

em 2 Sm 54 ldquoTinha Davi trinta anos quando comeccedilou a reinarrdquo Natildeo obstante agrave

determinaccedilatildeo aproximada da idade cerca de 30 anos Lucas revela-nos um

interesse histoacuterico-cronoloacutegico a respeito da vida e ministeacuterio de Jesus (Gnilka

2000 p73)

Jaacute em pleno exerciacutecio ministerial conforme a narrativa de Marcos (Mc 6 1-6)

Jesus fez uma fracassada visita num dia de saacutebado aos seus conterracircneos Quando

Jesus estava a ensinar na sinagoga seus conterracircneos escandalizam-se dele O

motivo para tal desprezo estava relacionado ao fato de ele ser proveniente de uma

famiacutelia pobre conhecida por todos na pequena Nazareacute A origem humilde de Jesus

provocou em seus conterracircneos um sentimento de rejeiccedilatildeo e desprezo chegando

ao ponto de total descreacutedito agrave sua sabedoria e ao seu poder de realizar milagres

Esses fatos provavelmente natildeo devem ter ocorrido no comeccedilo do ministeacuterio de

Jesus como descreve Lucas (Lc 4 14-30) ateacute porque se todos esses

acontecimentos fossem no iniacutecio de seu ministeacuterio a comunidade de Nazareacute natildeo o

teria rejeitado imediatamente mas teriam ficado na expectativa do sucesso de seu

mais conhecido cidadatildeo (Gnilka 2000 p 122)

24

Eacute possiacutevel que como artesatildeo Jesus tenha tomado parte na construccedilatildeo de Seacuteforis O silecircncio da tradiccedilatildeo de Jesus sobre Seacuteforis nos induz a crer que mesmo que Jesus tenha conhecido essa cidade atuou tatildeo pouco nela como deve ter atuado em Tiberiacuteades Jesus deve ter evitado as grandes cidades porque se identificava mais com o campo onde encontrava maior ressonacircncia (Cf Theissen 2004 p 187)

49

Aleacutem das fontes evangeacutelicas sobre Jesus temos alguns relatos de fontes natildeo

cristatildes sobre o homem chamado Jesus de Nazareacute O relato mais conhecido dos

cristatildeos eacute de Flaacutevio Josefo que por volta do ano 93 dC (eacutepoca em que ele morava

em Roma) ele testemunha a respeito de Jesus com as seguintes palavras

conforme a citaccedilatildeo de Rochus Zuurmond25

Naquele tempo a atividade de Jesus um homem saacutebio se eacute que conveacutem chamaacute-lo de homem Pois fez coisas incriacuteveis e foi mestre dos que gostam de aceitar a verdade Teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos Ele foi o Cristo Depois que Pilatos o condenou agrave morte na Cruz porque preeminentes de nosso meio o haviam acusado natildeo cessou o amor que lhe tinham seus sequazes Revivificado ele lhes apareceu no terceiro dia pois os profetas de Deus haviam a seu respeito anunciado este fato e mil outras coisas espantosas Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)

Zuurmond duvida que essa citaccedilatildeo seja de Josefo uma vez que seria

praticamente impossiacutevel Josefo referir-se a Jesus como Cristo e muito mais difiacutecil

ainda seria ele mencionar a ressurreiccedilatildeo ldquocom apelo aos profetasrdquo Contudo

segundo Zuurmond seria muito difiacutecil que Josefo vivendo naquela eacutepoca natildeo

mencionasse Jesus em seus escritos Partindo desse princiacutepio o mais provaacutevel eacute

que o texto tenha sido ldquoprofundamente revisadordquo por um cristatildeo Para Zuurmond

dentre as vaacuterias tentativas para reproduzir o texto original de Josefo a mais provaacutevel

seria a de que o texto teria a seguinte conotaccedilatildeo

foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus um saacutebio que teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos chamaram-no de Cristo Seus sequazes afirmam que ele revivificado lhes apareceu Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome ainda natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)

O proacuteprio Zuurmond acredita que essa reconstruccedilatildeo eacute muito hipoteacutetica

Segundo ele o mais provaacutevel eacute que o texto tenha sido muito mais reduzido e que

tenha sido totalmente substituiacutedo (cf Zuurmond 1998 p 74)

Aleacutem de Josefo temos ainda outras citaccedilotildees hipoteacuteticas de fontes natildeo

cristatildes como a correspondecircncia de Pliacutenio Juacutenior com Trajano por volta de 115 dC

Pliacutenio refere-se agrave reuniatildeo dos cristatildeos e detalha o fato de que cantam um hino ldquoa

Cristo como Deusrdquo Suetocircnio por volta de 120 dC descreve que o Imperador

25

Essa citaccedilatildeo tambeacutem pode ser conferida em Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 3 p 590

50

Claacuteudio expulsou os judeus de Roma porque causavam problemas ldquopor instigaccedilatildeo

de Crestordquo Ainda por volta de 115 dC Taacutecito em annales XV 44 relata sobre o

incecircndio de Roma e sobre um grupo de Cristatildeos seguidores de ldquoum tal Cristordquo

Segundo Zuurmond estas foram as palavras do historiador romano

A fim de abafar este boato (de que ele mesmo foi responsaacutevel pelo incecircndio de Roma Nero inventou alguns bodes expiatoacuterios e submeteu agraves mais sofisticadas formas de supliacutecio aqueles que costumavam ser chamados de cristatildeos um grupo de gente odiado por todos por causa de seus crimes abominaacuteveis Eles devem o seu nome a um tal Cristo que durante o governo de Tibeacuterio (imperador de 14 a 37) por ordem do procurador Pocircncio Pilatos foi executado Depois de ter sido oprimida durante algum tempo essa supersticcedilatildeo perniciosa irrompeu novamente natildeo apenas na Judeacuteia onde este mal se originou mas tambeacutem em Roma para onde confluem e onde costumam ser assiduamente fomentados costumes horrorosos e vergonhosos de toda a espeacutecie (cf Zuurmond 1998 p75-76)

Essas fontes natildeo cristatildes quase que sempre satildeo vistas com alguma

desconfianccedila por alguns especialistas quanto agrave autenticidade de seus conteuacutedos

No entanto qualquer conjectura sobre o assunto natildeo passaraacute de mera

especulaccedilatildeo O mais importante eacute que a histoacuteria de Jesus eacute tatildeo grande que o mais

aacutevido inimigo jamais poderaacute tornaacute-la como algo insignificante para a humanidade

43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES

Como sabemos Jesus nunca nos deixou nada por escrito no entanto tudo o

que sabemos sobre ele estaacute registrado nos evangelhos especificamente nos

evangelhos canocircnicos considerados pela tradiccedilatildeo cristatilde como os mais confiaacuteveis jaacute

que para a tradiccedilatildeo cristatilde conforme vemos em Duquoc os evangelhos apoacutecrifos26

podem sem duacutevida transmitir autecircnticos dados histoacutericos mas natildeo possuem

autoridade para que a partir dos testemunhos descritos neles possa-se elaborar

uma teologia consistente (Duquoc 1992 p 21)

26

Sanders compartilha da ideia da maioria dos estudiosos de que muito pouco dos evangelhos apoacutecrifos pode situar-se aos dias de Jesus Para ele esses evangelhos satildeo ldquolegendaacuterios e mitoloacutegicosrdquo De todo o material apoacutecrifo segundo Sanders somente alguns ditos do evangelho de Tomeacute merecem consideraccedilatildeo No entanto natildeo significa que seja possiacutevel fazer uma divisatildeo clara colocando os Evangelhos canocircnicos de um lado e os apoacutecrifos de outro uma vez que segundo Sanders haacute material lendaacuterio e criaccedilatildeo posterior nos Evangelhos do Novo Testamento Natildeo obstante eacute nos quatro Evangelhos que devemos buscar traccedilos do Jesus histoacuterico conclui Sanders (Sanders 2005 p 88-89)

51

Leif E Vaage eacute mais radical chegando afirmar que todos os escritos cristatildeos

primitivos que tratam da infacircncia de Jesus satildeo apoacutecrifos Segundo ele inclusive os

Evangelhos canocircnicos (Vaage 2007 p 38) Vaage baseia seu argumento no fato de

que nenhum dos Evangelhos relata realmente como foi a gravidez nascimento e

infacircncia de Jesus Por isso natildeo podem ser considerados historicamente

ldquoautecircnticosrdquo No entanto temos um olhar mais positivo sobre os apoacutecrifos em Jacir

de Freitas Faria Para ele noacutes podemos encontrar nos apoacutecrifos ldquovalores que a

piedade popular conservou como dogma de feacuterdquo (Faria 2007 p9) Na visatildeo de Faria

se natildeo fossem os apoacutecrifos do Novo Testamento natildeo saberiacuteamos os nomes de

pessoas como os avoacutes de Jesus dos reis magos dos dois ladrotildees da cruz e outros

nomes relacionados aos cristatildeos do primeiro seacuteculo

Os evangelhos27 por certo satildeo a histoacuteria do Jesus terreno contudo segundo

Bornkamm vale ressaltar que os Evangelhos satildeo histoacuteria mas natildeo no sentido da

histoacuteria moderna ou seja ldquoos evangelistas natildeo eram historiadores de profissatildeo e a

tradiccedilatildeo popular estaacute sempre sujeita a mudanccedilas no processo de transmissatildeordquo

(Bornkamm 1981 p35) Os evangelhos prossegue Bornkamm ldquonatildeo podem ser

classificados entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos como

Tuciacutedides Poliacutebio e Taacutecito nem entre biografias contemporacircneas como As Vidas

dos Ceacutesares de Suetocircnio [cerca de 70-140 dC] rdquo (1981 p35)

Sanders analisando a natureza do material evangeacutelico considera tal tarefa

como uma das mais desafiadoras a ser realizada pelo pesquisador Ainda que a

opiniatildeo dele sobre as fontes seja positiva ele natildeo deixa de enumerar alguns

aspectos considerados problemaacuteticos ou negativos conforme resumimos abaixo

1) Os primeiros cristatildeos natildeo escreveram uma narrativa (histoacuteria) da vida

de Jesus mas escreveram pequenas passagens sobre as suas

palavras e obras Essas pequenas partes foram mais tarde

organizadas pelos autores dos Evangelhos Isso significa que nunca

poderemos estar tatildeo perto do contexto imediato dos ditos e feitos de

Jesus

27

Conforme Marconcini (2009 p 6) o termo evangelho encontra-se doze vezes nos sinoacuteticos das quais quatro vezes em Mateus (423 9 35 24 14 26 13) em Marcos oito vezes (114-15 835 1029 1310 149 1615) a palavra vem sempre da boca de Jesus com exceccedilatildeo de Marcos 11 Jaacute no Evangelho de Lucas prevalece o verbo evangelizar que aparece dez vezes (119 210 318 41843 722 81 96 1616 201)

52

2) Os primeiros cristatildeos revisaram alguns materiais e criaram outros

3) Os Evangelhos foram escritos de forma anocircnima28

4) O Evangelho de Joatildeo eacute muito diferente dos outros trecircs Evangelhos e eacute

principalmente nesse Evangelho que devemos buscar informaccedilotildees

sobre Jesus

5) Aos Evangelhos faltam muitas caracteriacutesticas para ser uma biografia e

temos que distingui-los das biografias modernas (cf Sanders 2005 p

81-82)

A partir dos dados acima observamos que os Evangelhos realmente natildeo

satildeo histoacuteria no sentido moderno do termo No entanto conforme Martins Terra

devemos aplicar a criteriologia moderna de atestar a autenticidade dos escritos ou

seja aquela que estaacute focada mais nos criteacuterios internos29 do que nos criteacuterios

externos mas sempre tendo como base os testemunhos histoacutericos (Martins Terra

1977 p126)

Segundo Latourelle a criacutetica externa analisa os Evangelhos a partir dos

escritos extra-evangeacutelicos (Cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos) e sobretudo a

partir dos testemunhos das Igrejas poacutes-apostoacutelicas (II e III seacuteculos) enquanto que a

criacutetica interna apoia-se no proacuteprio texto (anaacutelise do tecido literaacuterio estudo do

conteuacutedo) Para esse teoacutelogo a criacutetica externa sempre obteve ecircxito em relaccedilatildeo agrave

critica interna mas nos dias atuais essa situaccedilatildeo tem mudado ou seja a criacutetica

interna tem se sobreposto agrave critica externa No entanto Latourelle prefere ficar em

um meio termo e mesmo que a criacutetica externa esteja em decadecircncia Latourelle vecirc

trecircs pontos importantes que podem ser explorados nela ldquosobre os autores dos

28

Sanders referindo-se a autoria dos Evangelhos diz que natildeo sabemos quem realmente satildeo os autores Mateus e Joatildeo foram disciacutepulos de Jesus Marcos foi seguidor de Paulo e possivelmente tambeacutem de Pedro jaacute Lucas foi um dos convertidos (disciacutepulos) de Paulo Mateus Marcos Lucas e Joatildeo realmente existiram mas natildeo podemos afirmar que eles escreveram os Evangelhos Existem provas que os Evangelhos permaneceram sem tiacutetulo de autoria ateacute a metade do seacuteculo II dC e eram sempre citados anonimamente A nomenclatura segundo Mateus segundo Marcos segundo Lucas segundo Joatildeo apareceram de repente por volta do ano 180 em meio ao grande nuacutemero de evangelhos escritos a Igreja teve que decidir quais deles seriam canocircnicos e diante de diferentes opiniotildees os que pensavam que apenas os quatro citados acima eram os que testemunhavam sobre Jesus com autoridade ganharam a questatildeo (cf Sanders 2005 p 87-88)

29 Segundo Martins Terra ldquoa criacutetica interna procura refazer na medida do possiacutevel a histoacuteria das

tradiccedilotildees [traditionsgeschichte] e separar os elementos redacionais [=dos evangelistas] dos elementos provenientes da tradiccedilatildeo anterior ateacute seus estratos mais primitivos Admite-se pois como vaacutelida a ideia fundamental da histoacuteria das formas (formgeschichte e da histoacuteria da redaccedilatildeo [Redaktionsgeschichte])rdquo (Martins Terra 1977 p 126)

53

Evangelhos sobre a autoridade desses na Igreja dos primeiros seacuteculos e sobre a

atitude da Igreja perante as tendecircncias deformadoras dos apoacutecrifos e dos escritos

gnoacutesticosrdquo (Latourelle 1989 p118)

Latourelle observa que ldquoa tradiccedilatildeo tem a tendecircncia de individualizar os

autores e colocaacute-los em relaccedilatildeo iacutentima com uma autoridade apostoacutelicardquo (Latourelle

p118) Um argumento bem aceito pela criacutetica contemporacircnea eacute de que documentos

- o Cacircnon Muratori os proacutelogos antimarcionistas - e os antigos teoacutelogos da Igreja

(Paacutepias Irineu de Liatildeo) - aceitaram Marcos e Lucas como autores dos Evangelhos

que levam os seus nomes porque eles realmente satildeo os verdadeiros autores O

raciociacutenio para defender essa tese conforme expotildee Latourelle eacute que se os teoacutelogos

da patriacutestica (seacuteculo II) tivessem interesse em ldquofalsificarrdquo a autoria dos Evangelhos

para dar maior credibilidade aos mesmos teriam dado a esses dois nomes de

apoacutestolos que conviveram com Jesus e natildeo de testemunhas indiretas como nos

casos de Marcos e Lucas Partindo desse raciociacutenio Latourelle citando Descamps

conclui ldquose as Igrejas do seacuteculo II mantiveram os nomes de Marcos e Lucas como

autores fizeram-no sem duacutevida sob a pressatildeo dos fatosrdquo (Latourelle 1989 p 18)

Segundo Bornkamm ldquoeacute significativo que os evangelhos satildeo anocircnimos e que

os nomes (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo) foram dados para aleacutem do seacuteculo II O

evangelho de Lucas eacute o que mais se aproxima da historiografiardquo (Bornkamm 1981

p35) Aparentemente os Evangelhos datildeo a impressatildeo de continuidade mas os

textos natildeo oferecem um fundo real de uma histoacuteria reconstituiacutevel (Bornkamm 1981

p37) Um fato importante a se observar satildeo as legendas ou seja a forma como

fatos da vida de Jesus ou de personagens do Novo Testamento foram contados

(Bornkamm 1981 p41) O narrador natildeo estaacute preocupado em escrever histoacuterias

mas com a santidade e a piedade exemplar dessas figuras Em alguns casos

chamamos legenda ou embelezamento Bornkamm acredita que temos boas razotildees

para confiar na memoacuteria simples dos disciacutepulos contudo ldquonatildeo devemos subestimar

a influecircncia da feacute poacutes-pascal mesmo com a tradiccedilatildeo passada de matildeo em matildeosrdquo

(Bornkamm 1981 p 43)

A tradiccedilatildeo como vimos acima esforccedila-se para aproximar os Evangelhos das

testemunhas oculares e supervaloriza a qualidade das testemunhas fazendo de

Marcos um porta-voz de Pedro quando Marcos eacute muito mais um relator fiel da

54

pregaccedilatildeo da comunidade primitiva30 A tradiccedilatildeo tambeacutem atribui o primeiro Evangelho

a Mateus e o uacuteltimo a Joatildeo Poreacutem Bornkamm partindo do princiacutepio da teoria das

duas fontes analisa a origem dos Evangelhos especificamente os sinoacuteticos da

seguinte forma dentre as teorias a respeito da formaccedilatildeo dos Evangelhos a mais

aceita e mais coerente eacute a teoria das duas fontes Segundo essa teoria Marcos eacute o

Evangelho mais antigo ele forma a base dos outros dois Evangelhos ldquomaioresrdquo e

estaacute inserido neles Aleacutem de usarem Marcos tanto Mateus como Lucas fizeram uso

independente de uma segunda fonte isso se pode ver pelos muitos ditos e grupos

de ditos natildeo encontrados em Marcos que eles tecircm em comum (Bornkamm 1981

p31) De acordo com J Jeremias Marcos escreveu em grego mais primitivo e

serviu de base para os outros dois Isso comprova que ele eacute o Evangelho mais

antigo O Evangelho de Mateus eacute um Evangelho de Marcos reelaborado

estilisticamente e acrescido de material novo que daacute mais da metade de Marcos

Seguindo a linha de pesquisa da teoria das duas fontes verificamos que mesmo que

Mateus e Marcos discordem de Lucas na ordem dos acontecimentos ou Lucas e

Marcos estejam em discordacircncia em relaccedilatildeo a Mateus dificilmente Mateus e Lucas

juntos oponham-se a Marcos

Haacute poreacutem algumas hipoacuteteses contraacuterias a teoria das duas fontes e elas se

apoiam no testemunho de Papias bispo de Hieraacutepolis na Friacutegia que compocircs por

volta de 130 uma exegese dos oraacuteculos do Senhor conforme relatado por Euseacutebio

de Cesareia em a ldquoHistoacuteria da Igrejardquo Eis o que dizia o Presbiacutetero

Marcos que era o inteacuterprete de Pedro escreveu com exatidatildeo no entanto sem ordem tudo o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor mais tarde poreacutem como jaacute disse ele acompanhou Pedro Este ministrava seus ensinamentos segundo as necessidades mas sem fazer uma siacutentese das palavras do Senhor Desse modo Marcos natildeo cometeu erro escrevendo como se lembrava Seu uacutenico propoacutesito foi nada omitir do que havia ouvido e em nada enganar no que relatava (Latourelle 1989 p121-122)

30

Martins Terra comentando sobre a tradiccedilatildeo sobre os Evangelhos observa que ldquohoje em dia se insiste mais na inspiraccedilatildeo do livro do que no autorrdquo O problema consiste no fato de os Evangelhos terem sido escritos depois de 30 anos de pregaccedilatildeo da Igreja e da tradiccedilatildeo oral Muitas coisas devem ser levadas em consideraccedilatildeo quando se trata da autoria dos Evangelhos uma vez que haacute vaacuterios niacuteveis de mediaccedilotildees que devem ser levados em consideraccedilatildeo (cf Martins Terra 1977 p 125)

55

Segundo Euseacutebio baseado no testemunho de Papias foi Mateus quem

colocou em ordem os oraacuteculos do Senhor em liacutengua hebraica31 Qualquer que seja a

data e o conhecimento de Papias aquilo que ele de fato escreveu estaacute em nosso

alcance apenas em citaccedilotildees de Euseacutebio Os livros de Papias (logiotilden Kyriakotilden

Exegesis Exegese das Logia do Senhor) sobreviveram ateacute a Idade Meacutedia em

algumas bibliotecas da Europa mas natildeo mais existem (Carson et al 1997 p75)

Dalman (1902 p 87) fazendo uma anaacutelise sobre os testemunhos a favor da

teoria que se refere agrave origem aramaica dos Evangelhos eacute categoacuterico em afirmar

que aleacutem do bem conhecido depoimento de Euseacutebio noacutes natildeo temos nenhum traccedilo

a favor da existecircncia de um Evangelho escrito em liacutengua semiacutetica Ateacute mesmo

Jerocircnimo deve ter se enganado em ter dito que o Evangelho original de Mateus

escrito em hebraico ainda existia em seus dias Para Dalman mesmo os vaacuterios

textos dos Evangelhos em aramaico que satildeo conhecidos hoje e ateacute mesmo o texto

que Jerocircnimo usava em aramaico era derivado dos originais gregos

Temos ainda um segundo testemunho da origem dos Evangelhos dado por

Clemente de Alexandria conforme descrito por Euseacutebio na obra Histoacuteria da Igreja

Segundo Euseacutebio Clemente cita uma tradiccedilatildeo dos Anciatildeos a respeito da ordem dos

Evangelhos Conforme essa teoria os Evangelhos que compreendem as

genealogias foram escritos primeiro (Mateus e Lucas) jaacute o Evangelho de Marcos foi

escrito nas seguintes circunstacircncias O apoacutestolo Pedro pregou em Roma e expocircs

publicamente sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo a doutrina evangeacutelica do

cristianismo primitivo Os numerosos ouvintes de Pedro exortaram a Marcos a

transcrever as palavras do apoacutestolo jaacute que aquele tinha acompanhado Pedro por

muito tempo e por certo tinha vivo em sua mente muito do que o apoacutestolo Pedro

havia dito Todavia segundo Euseacutebio quando Pedro soube disso nada fez por meio

de seus conselhos para impedi-lo disso ou para forccedilaacute-lo a isso32

Esse testemunho como o de Papias referem-se aos Anciatildeos isto eacute a

homens da segunda geraccedilatildeo cristatilde A tradiccedilatildeo posterior natildeo faraacute mais do que

retomar esses argumentos

31

Cf Eusebius the Church History translation and commentary by Paul L Maier 2007 p 114 32

Cf Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p 1690 citaccedilatildeo da Hist Ecl IV 14 5-7

56

Papias e Clemente estatildeo de acordo em atribuir a composiccedilatildeo de um dos evangelhos a Marcos disciacutepulo de Pedro (cf 1Pd 5 13) cuja pregaccedilatildeo ele havia escrito Vindo de duas fontes arcaicas diferentes esta informaccedilatildeo pode ser considerada como certa Conforme Clemente Marcos teria escrito enquanto Pedro ainda vivia uma vez que ele estava por outro lado mais ou menos desinteressado desse empreendimento Papias natildeo nos daacute nenhuma informaccedilatildeo expliacutecita sobre este ponto Seu texto permite ao contraacuterio pensar que Marcos havia escrito depois da morte de Pedro e eacute neste sentido que interpretaratildeo Irineu de Liatildeo e o mais antigo Proacutelogo evangeacutelico que nos chegou (fim do seacuteculo II) Papias natildeo nos diz onde Marcos escreveu o seu Evangelho Clemente precisa que foi em Roma onde Pedro exercia o seu ministeacuterio Este pormenor retomado na tradiccedilatildeo posterior parece exato pois o Evangelho de Marcos conteacutem certo nuacutemero de termos gregos que satildeo apenas transcriccedilatildeo do latim (Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p1690)

Apesar de todo o complexo em torno das fontes atualmente a teoria das

duas fontes eacute a mais aceitaacutevel Para Bornkamn haacute tantos paralelos entre Mateus e

Lucas que podemos confiar que tal fonte existiu O que natildeo podemos saber eacute em

que extensatildeo ela jaacute tinha adquirido uma forma literaacuteria fixa Uma coisa eacute certa ela

deve ter sido bem diferente do Evangelho de Marcos Eacute possiacutevel ter certeza que a

fonte Q natildeo era um Evangelho acabado como o Evangelho de Marcos o eacute O modo

como Q eacute usada em Mateus e Lucas mostra como os dois evangelistas a trataram

com mais liberdade do que fizeram com Marcos Isso eacute verdade tanto com

referecircncia ao teor verbal quanto agrave sequecircncia do material Marcos e Q

absolutamente natildeo exaurem as fontes da tradiccedilatildeo sinoacutetica Mesmo Marcos tem

material proacuteprio Lucas eacute quem possui mais cobrindo tanto o ministeacuterio terreno

como as narrativas pascais bem como o material consideraacutevel que ele inseriu na

moldura criada por Marcos

A noccedilatildeo de autoria natildeo resiste aos dados da criacutetica contemporacircnea Os

Evangelhos de Mateus e Joatildeo natildeo possuem nenhuma evidecircncia interna que possa

atribuir a eles a autoria e da mesma forma Lucas e Joatildeo Segundo Latourelle a

criacutetica duvida que eles tenham sido testemunhas ateacute mesmo de segunda matildeo No

entanto a criacutetica reconhece que o autor do primeiro Evangelho era um judeu de

liacutengua grega profundamente conhecedor do judaiacutesmo de sua eacutepoca A criacutetica

tambeacutem reconhece Lucas como o meacutedico e companheiro de Paulo assim como

reconhece Marcos como companheiro de Paulo e sua influecircncia sobre os

evangelhos de Mateus e de Lucas Quanto agrave influecircncia de Pedro sobre o Evangelho

de Marcos a mesma eacute contestada pela criacutetica visto que Marcos parece ser mais um

57

relator e transmissor da pregaccedilatildeo da Igreja primitiva aleacutem de parecer ter sofrido

mais a influecircncia de Paulo

A contribuiccedilatildeo da patriacutestica testemunhada pelos pais da Igreja jamais pode

ser descartada por mais acriacutetica e ingecircnua que pareccedila ser visto que eles viveram

bem proacuteximos dos acontecimentos registrados nos Evangelhos

A importacircncia dos escritos antigos a respeito dos Evangelhos foi a resposta

da igreja aos hereges e aos evangelhos apoacutecrifos O exagerado embelezamento que

os apoacutecrifos criam para ldquocomplementarrdquo os Evangelhos canocircnicos obrigou a Igreja a

criteriosamente separar os Escritos canocircnicos dos apoacutecrifos Para Bornkamm a

formaccedilatildeo do cacircnon do Novo Testamento sempre foi um processo de separar e

nunca de juntar Conforme esse teoacutelogo seria mais viaacutevel perguntar se um livro

deveria estar no cacircnon do Novo Testamento do que perguntar por que determinado

livro natildeo faz parte dele

A Igreja tambeacutem teve que combater o gnosticismo que estava tentando minar

a veracidade dos Escritos Sagrados principalmente com Marciatildeo que com seu

dualismo ldquoopotildee o Deus bom do Novo Testamento ao Deus justo do Antigo

Testamentordquo (Latourelle 1989 p124) A Igreja entatildeo saiu em defesa do

cristianismo autecircntico levantando o estandarte dos quatro Evangelhos como os

uacutenicos reconhecidos como a ldquoautecircntica mensagem de Cristo reconhecida e

ensinada pela tradiccedilatildeo viva da igreja O criteacuterio decisivo eacute o acordo entre os

Evangelhos e a tradiccedilatildeo apostoacutelica que por sua vez se refere ao Cristo vivordquo

(Latourelle 1989 p125)

Eacute vaacutelido observar que os evangelhos sinoacuteticos33 satildeo compostos de ldquotradiccedilotildees

isoladas chamadas de periacutecopesrdquo Essas periacutecopes geralmente tecircm uma

conotaccedilatildeo teoloacutegica e natildeo necessariamente cronoloacutegica ldquoNa verdade muitas

periacutecopes incluem indicaccedilotildees topograacuteficas (no mar da Galileia em Cafarnaum

etc) mas a maioria delas natildeo eacute bem determinada Outro fato a se observar eacute que

nos sinoacuteticos Jesus se dirige a Jerusaleacutem uma uacutenica vez poreacutem em Joatildeo lsquovemos

Jesus se dirigindo a Jerusaleacutem repetidas vezesrsquordquo Segundo Gnilka o importante natildeo

eacute a exatidatildeo do itineraacuterio mas sim a reflexatildeo teoloacutegica (Gnilka 2000 p 24) No

33

O nome sinoacuteticos foi dado aos trecircs primeiros Evangelhos pelo pesquisador alematildeo J J Griesbach em sua obra Synopsis evangeliorum [Sinopse dos Evangelhos] obra que foi publicada em Halle em 1976 (Cf Marconcini 2009 p 10)

58

entanto conforme Benito Marconcini haacute uma concordacircncia nos sinoacuteticos quanto agrave

sucessatildeo dos fatos no ministeacuterio de Jesus Conforme Marconcini ldquoJesus inicia seu

ministeacuterio na Galileia atravessa a Samaria e chega a Jerusaleacutem onde tem o

encontro com a morterdquo (Marconcini 2009 p 10)

O concilio do Vaticano II reproduziu na constituiccedilatildeo sobre a Revelaccedilatildeo o

resultado das pesquisas modernas sobre a Historicidade dos Evangelhos e sobre o

Jesus Histoacuterico conforme resumimos abaixo

a) Os quatro Evangelhos transmitem fielmente o que Jesus realmente fez e

ensinou para a eterna salvaccedilatildeo dos homens

b) Os Apoacutestolos depois transmitiram o que Jesus havia dito e feito ()

c) Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos selecionando

algumas coisas dentre as muitas que tinham sido transmitidas oralmente ou por

escrito sintetizando outras ou adotando-as agraves situaccedilotildees das igrejas (Martins Terra

1977 p 129)

Seria imprudente buscar nos Evangelhos fatos como se busca numa revista

ou jornal de grande circulaccedilatildeo internacional moderna como New York Times por

exemplo Contudo segundo Swidler devemos olhar os quatro Evangelhos como

uma variedade de fontes orais e escritas que apoacutes um periacuteodo de tempo foram

redigidas conforme as necessidades sentidas pelas comunidades e indiviacuteduos da

eacutepoca No entanto fica claro que essa visatildeo criacutetica (moderna) dos Evangelhos natildeo

invalida o caraacuteter histoacuterico desses escritos Eles retratam com muito maior exatidatildeo

sob o ponto de vista histoacuterico-religioso (teoloacutegico) o que Jesus queria dizer com

certas declaraccedilotildees e accedilotildees relatadas pelas primeiras comunidades da Igreja

Primitiva (cf Swidler 1993 p104-105)

Natildeo podemos menosprezar a capacidade da comunidade cristatilde primitiva de

memorizar os fatos relacionados agrave vida de Jesus mas por outro lado natildeo podemos

negligenciar a limitaccedilatildeo humana em memorizar acontecimentos histoacutericos

Raciocinando dessa forma pode-se deduzir que com certeza muitas dessas

recordaccedilotildees natildeo foram transmitidas e nem registradas Eacute evidente que nem todas as

paraacutebolas foram registradas isso estaacute claro em Marcos 433 onde se lecirc ldquoE com

muitas paraacutebolas como esta anunciava-lhes a palavra segundo podiam entenderrdquo

ldquoPodemos partir do pressuposto de que nos evangelhos ficaram conservadas as

59

paacuteginas da atuaccedilatildeo e dos discursos de Jesus que satildeo de decisiva importacircncia para

a nossa feacuterdquo (Gnilka 2000 p25)

44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS

Jesus segundo Gnilka (2000 p35-36) viveu durante o governo de dois

imperadores romanos ldquoo de Otaviano Augusto (27 aC - 14 dC) e o de Tibeacuterio (14-

37)rdquo Nenhum dos dois esteve nessas paragens orientais do Impeacuterio nenhum dos

dois pisou territoacuterio da Siacuteria ou da Palestinardquo A histoacuteria de Jesus estaacute intimamente

ligada agrave famiacutelia Herodes Jesus nasceu sob o governo de Herodes o Grande filho

de Antiacutepater de origem idumeia Por decisatildeo do senado romano e tambeacutem por

iniciativa dos triuacutenviros Antocircnio e Otaviano e mais tarde Augusto pelo fim do ano 40

aC Herodes foi nomeado rei da Judeia

Apoacutes a morte de Herodes o Grande em 4 aC inicia-se uma disputa entre

seus filhos pela sucessatildeo que culminou na divisatildeo do poder entre os descendentes

de Herodes pelo imperador Historicamente dentre os filhos de Herodes o que mais

nos interessa eacute Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) que ficou como tetrarca da

Galileia Dentre os feitos de Antipas podemos citar a reconstruccedilatildeo da cidade de

Seacuteforis e a fundaccedilatildeo da cidade de Tiberiacuteades agrave margem do lago de Genezareacute

cidade que recebeu esse nome em honra ao Imperador Tibeacuterio Foi essa cidade

construiacuteda sobre um cemiteacuterio que Antipas escolheu para residecircncia oficial

tornando-a impura aos olhos dos Judeus crentes por causa das leis leviacuteticas (Gnilka

2000 p 39)

Herodes Antipas ficou conhecido por mandar matar Joatildeo Batista conforme o

relato nos evangelhos (Mc 617-29 Mt 14 3-12) e tambeacutem por Flaacutevio Josefo34 Os

motivos da morte de Joatildeo Batista nos evangelhos satildeo diferentes dos motivos

expostos por Josefo visto que Josefo coloca questotildees poliacuteticas como a principal

causa da execuccedilatildeo de Joatildeo jaacute que Antipas temia uma revolta poliacutetica a partir do

movimento do Batista Para Jesus Antipas tambeacutem tornou-se perigoso ldquoSegundo

Lc 1331 Jesus eacute aconselhado a sair de seu territoacuterio porque o priacutencipe pretendia

mataacute-lordquo (Gnilka 2000 p 40)

34

Cf Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 5 p 594-597

60

Na Judeia a situaccedilatildeo poliacutetica e religiosa era caoacutetica Arquelau (4 aC ndash 6

dC) filho de Herodes o Grande logo depois de ser instituiacutedo etnarca da Judeia e

Idumeia devido a sua extrema tirania tornou-se insuportaacutevel para os judeus a

ponto de um grupo desses ir ateacute Roma para denunciaacute-lo pela forma tiracircnica de

governar bem como a liberdade que tomou para depor e instituir sacerdotes no

templo em Jerusaleacutem Judeia Samaria e Idumeia passam a ser administradas

diretamente por Roma apoacutes Arquelau ser deposto (Gnilka 2000 p 41-42)

Eacute a partir de toda essa confusatildeo que entra em cena a figura de Pocircncio

Pilatos como governador da Judeia (praefectus Judaeae) Nessa eacutepoca tanto o

poder poliacutetico quanto o religioso eram controlados diretamente por Roma ldquoNo

templo tinha que ser oferecido duas vezes por dia um sacrifiacutecio pelo imperador e

pelo povo romano Sobre a administraccedilatildeo das financcedilas do templo o governador

provavelmente tinha uma espeacutecie de supervisatildeo As nomeaccedilotildees dos sumos

sacerdotes tambeacutem eram feitas pelos romanos fosse atraveacutes do governador da

Siacuteria ou do governador da Judeia Isto foi assim nos anos 6-41 depois de Cristordquo

(Gnilka 2000 p 42-43)

O mais importante dos governadores da Judeia que foi contemporacircneo de

Jesus foi Pilatos que segundo os Evangelhos participou decisivamente na morte

de Jesus ldquoFilon de Alexandria caracteriza Pilatos como um homem de natureza

inflexiacutevel obstinado e duro e acusa-o de corrupccedilatildeo violecircncia roubo maus tratos

ofensas continuadas execuccedilotildees sem julgamento constante e insuportaacutevel

crueldaderdquo (Gnilka 2000 p 44) Os dez anos em que Pilatos governou a Judeia

nos quais Caifaacutes tambeacutem sempre foi o Sumo Sacerdote foram marcados pela

crueldade e imprevisibilidade ateacute que no ano 36 ele foi deposto apoacutes ter feito um

violento massacre de samaritanos enquanto esses escalavam o monte Garizim Pelo

fato de estarem armados Pilatos os interpretou mal e resolveu intervir

massacrando-os Mediante esse fato Pilatos foi chamado a Roma para depor diante

do imperador Tibeacuterio mas com a morte deste ele ldquodesaparece do palco da histoacuteria

Notiacutecias surgidas mais tarde dando conta de que ele teria se suicidado ou que teria

sido executado pelo imperador Nero devem ser creditadas a lenda cristatilderdquo (Gnilka

2000 p 44-45)

61

Abaixo segue um resumo do governo poliacutetico e religioso das regiotildees e

cidades com as quais Jesus conviveu (Gnilka 2000 p 47)

- Os herodianos Herodes o Grande (37-4 aC) Antipas (4 aC-39 dC

GalileiaPereia) Filipe (4 aC -34 dC GaulaniacutetideBataneia Arquelau (4 aC -6 C

JudeiaSamariaIdumeia)

- Os Governadores na JudeiaSamariaIdumeia Copocircnio (6-9) Marcos

Antiacutebulo (circa 9-12) Acircnio Rufo (circa 12-15) Valeacuterio Grato (15-26) Pocircncio Pilatos

(26-36)

- Os sumos sacerdotes em Jerusaleacutem Simatildeo ben Boethos (24-5 aC)

Matias ben Theophilos (5-4) Joseacute bem Ellem (exerceu soacute por uma festa) Joazar ben

Boethos (4 aC) Eleazar ben Boethos (4 aC -) Jesus ben sieuml (tempo de cargo

desconhecido) Joazar ben boethos (no cargo pela segunda vez de -6 d C) Anaacutes

ben Sethi (6-15 d C) Ismael bem Phiabi (15-16) Eleazar ben Kamithos (17-18)

Joseacute Caifaacutes (18-36)

Jerusaleacutem era a cidade onde giravam os grandes acontecimentos da

Palestina era considerada a cidade santa natildeo somente por ser administrada

politicamente por Herodes o grande jaacute que muito antes dele a cidade jaacute havia se

transformado no centro espiritual e religioso do Judaiacutesmo A cidade no tempo dos

gregos e romanos tinha de certa forma uma feiccedilatildeo internacional Jesus entrou na

cidade foi aclamado mas logo rejeitado e entregue para ser morto pelo grupo dos

religiosos encarregados de todos os rituais do Templo (Gnilka 2000 p 49)

45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS

Jesus viveu num contexto muito religioso Foi apresentado no templo

circuncidado ao oitavo dia conforme a tradiccedilatildeo da religiatildeo judaica Sempre houve

uma tendecircncia de separar Jesus do contexto judaico tanto por judeus como por

cristatildeos Swidler pontua que os cristatildeos historicamente natildeo somente procuraram

mostrar que tudo o que Jesus fez era bom como procuraram demonstrar que tudo o

que ele fez foi oposto ao modo de agir dos judeus Por outro lado os judeus

aceitaram a interpretaccedilatildeo cristatilde que via Jesus como um antijudeu Atualmente as

coisas estatildeo mudando judeus tecircm visto Jesus como um autecircntico judeu enquanto

que um grande nuacutemero de estudiosos cristatildeos estatildeo convencidos de que soacute se pode

62

compreender adequadamente Jesus contextualizando-o num ambiente e como um

autecircntico Judeu (Swidler 1993 p108)

O Judeu Geza Vermes (com formaccedilatildeo cristatilde) no proacutelogo de seu livro o

ldquoAutecircntico Evangelho de Jesusrdquo relata que desde o fim da deacutecada de 1960 vem se

dedicando a pesquisar sobre Jesus indiferente agraves tradiccedilotildees cristatildes e judaicas a

respeito da pessoa do nazareno Vermes assim se expressa ldquoatuando como

historiador simpatizante e descartando vieses denominacionais tanto a deificaccedilatildeo

de Jesus pelos cristatildeos como a sua caricatura judaica tradicional como apoacutestata

maacutegico e inimigo do povo de Israel eu apenas tentei tirar a limpo e reconstruir uma

imagem de Yeshua filho de Joseacute do pequeno povoado galileu de Nazareacute (Vermes

2006 p7)

Digno de nota eacute que sendo Jesus judeu da Palestina judaica do primeiro

seacuteculo ldquona divisatildeo temporal feita em torno delerdquo (Vermes 2006 p7) obviamente

Jesus conviveu com os diversos grupos existentes na Palestina Conforme os

Evangelhos as relaccedilotildees de Jesus com os liacutederes dos movimentos religiosos nem

sempre foram amistosos Segundo Gnilka diversos eram os movimentos e grupos

poliacuteticos-religiosos nos dias de Jesus Quase todos provieram dos chassidim (os

piedosos) que haviam apoiado a resistecircncia dos macabeus e tambeacutem resistiram agrave

usurpaccedilatildeo dos asmoneus Desse movimento surgiu a maioria dos grupos religiosos

contemporacircneos de Jesus Esses grupos a maioria citados nos evangelhos satildeo

denominados de essecircnios fariseus saduceus e zelotes (Gnilka 2000 p52-53)

Enumerar esses grupos em relaccedilatildeo ao grau de importacircncia que eles exerciam

na sociedade judaica natildeo eacute uma tarefa faacutecil Diversas satildeo as hipoacuteteses levantadas

pelos pesquisadores a respeito de cada um dos grupos acima mencionados

Saldarini observa o fato de os escribas serem vistos como um grupo coeso apenas

no Novo Testamento sendo que em outras fontes eles satildeo vistos como um grupo

composto por pessoas desde a classe de altos funcionaacuterios ateacute a funccedilatildeo de um

humilde copista Outro fator que o autor observa eacute que para Josefo as trecircs

principais escolas de pensamento judaico dos dias de Jesus eram os fariseus os

saduceus e os essecircnios quando no Novo Testamento os principais oponentes de

Jesus satildeo os fariseus escribas e saduceus (Saldarini 2005 p 15)

63

451 OS ESSEcircNIOS

Dentre os grupos religiosos que temos mencionado os essecircnios satildeo os

menos conhecidos se levarmos em consideraccedilatildeo que a biacuteblia natildeo os menciona

contudo eles tecircm despertado muito interesse desde que foram descobertos os

manuscritos nas cavernas de Qumran em 1947 O jovem Mohammed ed-Dib (= ldquoo

lobordquo) conforme a descriccedilatildeo feita por J Jeremias (Jeremias 2006 p 401-429 cf

Jeremias 1979 p 117-148) tornou-se o grande protagonista talvez da maior

descoberta do seacuteculo concernente agrave literatura religiosa ou por que natildeo dizer

universal J Jeremias nos fornece alguns detalhes sobre a importacircncia das

descobertas de Qumran e o judaiacutesmo contemporacircneo de Jesus Depois que

Mohammed descobriu a primeira gruta outras dez foram descobertas sendo ateacute

hoje numeradas de 1 a 11 O papel dos beduiacutenos foi fundamental nas descobertas

visto que sem a busca incessante deles a maioria dos rolos natildeo teriam sido

descobertos Os manuscritos satildeo em um nuacutemero de aproximadamente 600 Mesmo

que a maioria seja apenas de fragmentos alguns do tamanho de uma unha mas

pelo menos uns dez encontram-se quase que totalmente preservados Eles satildeo

datados do periacuteodo que se compreende do seacuteculo III aC ao seacuteculo I da era cristatilde

Atribui-se a produccedilatildeo dos textos e o armazenamento deles em grutas aos essecircnios

conforme nos descreve J Jeremias citando a ldquoHistoacuteria Natural de Pliacutenio

A margem ocidental (do Mar Morto) fora do alcance da influecircncia nociva (de suas aacuteguas) estatildeo estabelecidos os essecircnios Eacute um agrupamento de solitaacuterios uacutenico no mundo sem mulheres ndash pois renunciam ao amor sexual e sem dinheiro eles vivem na sociedade das palmeiras (Embora se abstenham do casamento) o nuacutemero de seus adeptos se manteacutem e se renova cada dia pela afluecircncia daqueles que cansados de lutar contra as vagas de destino vecircm participar de sua vida Assim coisa incriacutevel eles permanecem atraveacutes de milhares de geraccedilotildees uma raccedila eterna ainda que natildeo existam nascimentos entre eles (V 1713)

Para J Jeremias natildeo haacute duacutevida que Pliacutenio se refere aos essecircnios mesmo

que por engano os tenha chamado de raccedila eterna Os essecircnios surgiram por volta

de 167-154 aC apoacutes Antiacuteoco Epifacircnio profanar o Templo de Jerusaleacutem Em 152

aC apoacutes a guerra com os siacuterios Jocircnatas Macabeus cinge a tiara de sumo

sacerdote mesmo natildeo pertencendo agrave descendecircncia dos sadoquitas que eram os

64

uacutenicos habilitados para exercer tal funccedilatildeo Uma revoluccedilatildeo acontece no coleacutegio

sacerdotal resultando na formaccedilatildeo de um grupo denominado de ldquoKhassyyayardquo os

piedosos que em grego satildeo denominados de ldquoessenoirdquo ou ldquoessaicircoirdquo conhecidos

hoje por essecircnios

Os essecircnios eram apocaliacutepticos esperavam o iminente fim deste mundo que

eles acreditavam estar bem proacuteximo Guardavam o saacutebado a ponto de natildeo ajudar

um animal no parto e nem socorrecirc-lo caso caiacutesse num buraco no dia de saacutebado

(Gnilka 2000 p 55-56) tambeacutem tinham como chefe um homem chamado com toda

reverecircncia nos rolos como o ldquoMestre da Justiccedilardquo ldquoo grande teoacutelogo e exegeta da

seitardquo (cf Jeremias 2006 p 408) Para Sean Freyne o chamado ldquoPapiro da Guerrardquo

(1QM) intitulado como ldquoA Guerra dos filhos da luzrdquo mostra como essa comunidade

apregoava um certo tipo de guerra coacutesmica parecida com a religiatildeo zoroaacutestrica da

Peacutersia onde a ecircnfase do conflito estaacute centrada na ideia de uma guerra do bem e o

mal (Freyne 2008 p26) J Jeremias define a teologia tambeacutem como uma doutrina

baseada em dois espiacuteritos ou seja no espiacuterito de Deus e no espiacuterito de Belial ou

seja no diabo e isso resulta na constante luta entre a Luz e as Trevas que tambeacutem

se desenrolam no interior do ser humano (Jeremias 2006 p 412) De acordo com J

Jeremias o dualismo essecircnio eacute monoteiacutesta conforme podemos ver em IQS 31517-

1925 abaixo reproduzido

Do Deus dos conhecimentos Vem tudo o que eacute tudo o que acontece e antes mesmo que as coisas existissem ele fixara todo o seu plano

Eacute ele quem criou o homem para dominar o mundo e pocircs diante de dois espiacuteritos para que ele ande neles ateacute ao momento fixado por sua divina visita

Satildeo os (dois) espiacuteritos de verdade e de iniquidade Da fonte da luz sai a verdade E da fonte das trevas sai a iniquidade Eacute ele (Deus) quem criou os espiacuteritos da luz e das trevas

65

Observamos acima algumas descriccedilotildees a respeito do grupo dos essecircnios

contudo segundo Freyne (Freyne 2008 p26) natildeo se pode resumir o pensamento

desse grupo com um periacuteodo de aproximadamente 200 anos de histoacuteria apenas em

um ponto de vista Isso pode ser visto por exemplo em 4Q 521 onde o texto

demonstra o anseio dos oprimidos por um messias libertador que venha ldquocurar os

feridos distribuir riquezas entre os necessitados conduzir de volta os exilados e

enriquecer os famintosrdquo ou ainda textos como 4Q 426 onde o ldquoGrande Deusrdquo trava

uma decisiva batalha contra as naccedilotildees e garante a paz definitiva ao seu povo O

que Freyne procura dizer eacute que o pensamento dos essecircnios eacute amplo demais para

ser resumido em poucas palavras contudo como natildeo eacute nosso interesse pesquisar a

fundo essa seita contentamo-nos a princiacutepio com algumas informaccedilotildees sobre

eles35

Ainda sobre os essecircnios sabemos por David Flusser que eles eram ferrenhos

inimigos dos fariseus uma vez que condenavam os feitos farisaicos energicamente

No Rolo de Accedilatildeo de Graccedilas (IQH) 4 6-8 estaacute escrito sobre os fariseus da seguinte

maneira ldquoE conduziram o povo por caminhos desviados ao lhes proferir discursos

macios Falsos mestres levam para maus caminhos e caminham cegamente para a

queda pois suas obras satildeo feitas no logrordquo (cf Flusser 2002 p 46)

Aleacutem do que jaacute foi dito sobre os essecircnios surge uma pergunta Ateacute que ponto

os essecircnios tiveram contato com Jesus ou seria Jesus membro da seita dos

essecircnios Segundo Charlesworth eacute possiacutevel que Jesus tenha encontrado alguns

essecircnios em suas idas e vindas no periacuteodo em que exerceu o seu ministeacuterio ou ateacute

antes disso Contudo natildeo podemos afirmar isso jaacute que os essecircnios natildeo satildeo

mencionados no Novo Testamento e na verdade natildeo temos certeza se eles

exatamente eram conhecidos (Charlesworth 1992 p76) Para Charlesworth o que

fica evidente eacute que os essecircnios e Jesus foram contemporacircneos o que nos leva a

deduzir que eacute muito provaacutevel que Jesus ao menos tenha ouvido falar deles e ateacute

conhecesse a doutrina rituais religiosos e haacutebitos sociais desse grupo

(Charlesworth 1992 p79)

Charlesworth enumera algumas semelhanccedilas e diferenccedilas entre Jesus e os

essecircnios 35

Para mais informaccedilotildees sobre os essecircnios ver (Jeremias 2006 p 401-429 e Charlesworth 1992 p 70-89)

66

a) Jesus partilha com os essecircnios de uma teologia monoteiacutesta

b) Como os essecircnios a teologia de Jesus era categoricamente escatoloacutegica

c) Jesus partilhava com os essecircnios uma total entrega a Deus e a Toraacute (Ele

pode ter se referido aos essecircnios quando elogiou os eunucos por causa do reino de

Deus cf Mt 19 10-12)

d) Jesus conforme o Evangelho de Marcos proibiu o divoacutercio (Mateus tornou-

a casuiacutestica Mt 5 31-32 199) assim como os essecircnios eram totalmente contraacuterios

ao divoacutercio ldquoo rei deve permanecer casado com apenas uma mulherrdquo (cf II Q

Temple 57 17-18)

f) Dos essecircnios Jesus rejeita a riacutegida observacircncia do Saacutebado

g) Jesus ao contraacuterio dos essecircnios aproximou-se de todas as classes

sociais inclusive de prostitutas e cobradores de impostos Aleacutem disso a visatildeo de

Jesus em relaccedilatildeo aos rituais de purificaccedilatildeo judaicos era muito diversa das dos

judeus

h) A atitude liberal de Jesus sobre a purificaccedilatildeo se contrastava com a

paranoia dos essecircnios principalmente em relaccedilatildeo ao afastamento das pessoas que

tinham lepra Em II Q Temple 48 14-15 eacute orientado a que existam cidades proacuteprias

para o isolamento dos leprosos enquanto que Jesus repousou em Betacircnia na casa

de Simatildeo o leproso (Mc 143)

i) Jesus enfatizou o amar uns aos outros (na paraacutebola do bom samaritano)

enquanto que os essecircnios na renovaccedilatildeo anual entoavam maldiccedilotildees sobre os filhos

das trevas especialmente sobre aqueles que natildeo eram essecircnios (1Qs) Jesus pode

ter se dirigido a eles quando se referiu ao dito ldquoamaraacutes o teu proacuteximo e odiaraacutes ao

teu inimigo (Mt 5 43)

Em resumo Charlesworth conclui que o cristianismo natildeo foi fundado com as

bases do essenismo conforme havia dito Renan em sua obra ldquoVida de Jesusrdquo

Jesus foi o fundador do cristianismo que foi fundado em meio agraves vaacuterias correntes

judaicas da eacutepoca sem que se possa mencionar uma uacutenica fonte como a trajetoacuteria

Jesus natildeo era um essecircnio ldquomas pode ter partilhado com os essecircnios mais do que a

mesma naccedilatildeo tempo e lugarrdquo (Charlesworth 1992 p 84-88)

452 OS FARISEUS

67

Os fariseus (pharushim ndash separados) - ldquoum grupo de estudiosos leigos que

apareceram na histoacuteria cerca de um seacuteculo e meio antes do nascimento de Jesus

() e se tornaram autoridades na vida dos judeus durante o reinado da rainha

Alexandra em (76-67 aC)rdquo (Swidler 1993 p 74) - nasceram do grupo dos chassidim

e eram em nuacutemero de seis mil pessoas em Jerusaleacutem nos dias de Jesus (Flusser

2002 p 44) Eles tambeacutem natildeo concordavam com a usurpaccedilatildeo por parte dos

asmoneus Segundo Gnilka a maioria dos escribas pertencia ao grupo dos fariseus

Em relaccedilatildeo aos saduceus os fariseus eram a maioria mas a influecircncia poliacutetica

destes era menor Jaacute o clima entre fariseus e essecircnios era hostil Os essecircnios

consideravam os fariseus com ldquogente que amolece e dissolve a lei e de quem se

pode esperar o logro mentira seduccedilatildeo e errordquo (Gnilka 2000 p57-60) Segundo

Flusser os fariseus eram denominados pelos essecircnios como ldquocaiadosrdquo e Jesus

tambeacutem se referiu a eles no Evangelho de Mateus 23 27-28 dizendo ldquoAi de voacutes

escribas e fariseus hipoacutecritas Sois semelhantes a sepulcros caiados que por fora

parecem bonitos mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidaderdquo

Embora o ataque dos essecircnios fosse em alguns pontos parecidos com a criacutetica que

Jesus fez contra os fariseus a distacircncia entre eles eacute muito grande Os essecircnios

rejeitavam explicitamente a doutrina dos fariseus ao passo que Jesus de uma

forma mais positiva via-os como os ldquoherdeiros contemporacircneos de Moiseacutesrdquo (cf

Flusser 2002 p46-48)

Os fariseus eram muito queridos pela maioria da populaccedilatildeo judaica devido agrave

devoccedilatildeo deles aos rituais religiosos Segundo Sanders no periacuteodo asmoneu os

fariseus tambeacutem exerceram uma influecircncia e forccedila poliacutetica muito importante ainda

que depois perderam tal forccedila No governo de Herodes somente o rei tinha o poder

poliacutetico uma vez que todos os que o ameaccedilassem eram imediatamente executados

Na Galileia o sucessor de Herodes foi seu filho Antipas que tambeacutem natildeo se mostrou

muito disposto assim como seu pai a dar autoridade a algum grupo de piedosos e

mestres religiosos Somente em Jerusaleacutem apoacutes Arquelau (irmatildeo de Antipas) ser

deposto eacute que os saduceus respaldados pelo poder romano puderam como grupo

religioso exercer forccedila poliacutetica Os fariseus mesmo sendo a maioria em relaccedilatildeo aos

saduceus continuaram apenas trabalhando ensinando e exercendo suas funccedilotildees

68

no culto judaico nas sinagogas A popularidade deles provavelmente aumentou

contudo natildeo o poder poliacutetico (cf Sanders 2005 p68)

A visatildeo de Saldarini sobre os fariseus compactua com Sanders a respeito da

popularidade dos fariseus Ele observa que para o evangelista Marcos os fariseus

eram um grupo muito reconhecido na comunidade da Galileia Jesus um jovem

oriundo de uma famiacutelia de artesatildeos considerada uma classe inferior na Palestina

natildeo dispunha da mesma honra dada aos fariseus principalmente em Nazareacute sua

terra natal Mas com o decorrer do tempo Jesus atraveacutes de seu ministeacuterio

conseguiu a simpatia de muitos seguidores em outras cidades da Galileia

contraindo para si o ciuacuteme a ira e a perseguiccedilatildeo dos fariseus O confronto dos

fariseus com Jesus a princiacutepio estava baseado em temas teoloacutegicos a respeito do

Jejum (Mc 218) da observacircncia do saacutebado (Mc 224 32) e sobre o divoacutercio (Mc

102) da purificaccedilatildeo das matildeos (Mc 71) e outros temas relacionados com respeito agrave

conduta de Jesus entre os homens considerados pecadores (Mc 216) etc Para os

fariseus no entanto o que estava em jogo natildeo eram apenas os debates teoloacutegicos

mas principalmente a simpatia e o controle da comunidade (Saldarini 2005 p 162-

164)

Para Saldarini os fariseus juntamente com os escribas eram os principais

opositores de Jesus na Galileia Em Jerusaleacutem os seus adversaacuterios tinham um

poder poliacutetico muito maior jaacute que entre eles estavam os chefes dos sacerdotes os

escribas e os anciatildeos do povo dentre os membros desses grupos principalmente

dos sacerdotes estavam os que entregaram Jesus agrave morte O evangelista Marcos

menciona os fariseus em cinco casos (2 18 224 32 811-15 102) e em todos os

casos eles estatildeo em conflito com Jesus36 Os escribas e fariseus juntos satildeo

mencionados duas vezes em Marcos tambeacutem quando estatildeo em conflito com Jesus

(216 7 1-5) Com os herodianos os fariseus satildeo mencionados duas vezes em

Marcos (36 1213) Para o evangelista Marcos os fariseus satildeo situados sempre na

36

Geza Vermes observa que no Evangelho de Mateus os fariseus natildeo satildeo sempre vistos no aspecto negativo Vermes vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e amor a Deusrdquo eles por outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser seguida

69

Galileia (3 2-6 7 1-5 2 18-24 811 102) A uacutenica exceccedilatildeo no evangelho de

Marcos eacute quando os fariseus e os herodianos satildeo enviados a Jesus a fim de

apanhaacute-lo em Jerusaleacutem (1213) Ao contraacuterio de Josefo que situa os fariseus

sempre em Jerusaleacutem ao lado dos chefes dos judeus Marcos mostra-os sempre

ativos na Galileia (Saldarini 2005 p159-160)

Apesar dos fariseus estarem sempre em confronto com Jesus nos

Evangelhos alguns pesquisadores veem algumas semelhanccedilas entre o movimento

de Jesus e o movimento dos fariseus Swidler lista algumas semelhanccedilas entre os

dois grupos Segundo Swidler Jesus reinterpretou as Escrituras hebraicas de

maneira condizente com o meio social onde se encontrava Jesus tambeacutem participou

de refeiccedilotildees entre amigos do tipo farisaico Tambeacutem segundo Swidler eacute possiacutevel ver

semelhanccedilas na doutrina de Jesus a respeito do amor no Shema oraccedilatildeo do

monoteiacutesmo nas bem aventuranccedilas em questotildees relacionadas agrave ressurreiccedilatildeo

tambeacutem seria ver fortes indiacutecios de um espiacuterito farisaico na vida de Jesus (cf

Swidler 1993 p78)

Para fundamentar essa teoria Swidler busca outros pesquisadores como o

teoacutelogo catoacutelico Pawlikowski que chegou a concluir que natildeo seria errado ldquoconsiderar

o movimento de Jesus como uma parte do movimento farisaico geral embora em

muitos campos tivesse um ponto de vista diferenciadordquo Swidler ainda cita o

estudioso protestante E P Sanders referindo-se a ele como mais cauteloso sobre o

assunto abordado poreacutem natildeo hesita em afirmar tambeacutem que ele faz parte do

nuacutemero sempre crescente de especialistas que duvidam que tenham existido

ldquopontos importantes de oposiccedilatildeo entre Jesus e os fariseusrdquo (Swidler 1993 p78)

A forte tendecircncia de colocar Jesus como um judeu apenas corrobora o que

ele sempre foi um judeu e natildeo um cristatildeo uma vez que o cristianismo soacute veio a

existir apoacutes a morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus Entre os judeus catoacutelicos e

protestantes tecircm surgido renomados defensores da teoria Jesus dentro do

judaiacutesmo Swidler aleacutem de citar um catoacutelico e um protestante como referecircncia cita

ainda um judeu (Geza Vermes) para corroborar esse pensamento Vermes em seu

livro Jesus e o mundo do Judaiacutesmo descreve ldquoJesus era um hasid galileu nisso a

meu ver reside a sua grandeza e tambeacutem o germe de sua trageacutediardquo (Vermes 1996

p20)

70

Para Vermes contudo Jesus natildeo foi muito amado pelos fariseus porque

Jesus segundo a visatildeo e interpretaccedilatildeo biacuteblica dos fariseus desprezava

propositadamente alguns costumes tradicionais como sentar-se agrave mesa com

publicanos e prostitutas No entanto para Vermes natildeo parece que tenha havido

discoacuterdia entre Jesus e os fariseus em temas essenciais da religiatildeo e feacute judaica

Vermes define a relaccedilatildeo de Jesus com os fariseus da seguinte maneira ldquoNatildeo

obstante o conflito entre Jesus da Galileia e os fariseus de sua eacutepoca ter-se-ia

assemelhado em circunstacircncias normais agrave mera luta intestina de facccedilotildees

pertencentes ao mesmo corpo religioso como a que se travou entre caraiacutetas e

rabanitas na Idade Meacutedia ou entre os ramos ortodoxo e progressista do judaiacutesmo na

eacutepoca modernardquo (Vermes 1996 p20)

Vermes observa ainda que no Evangelho de Mateus os fariseus nem

sempre satildeo vistos no aspecto negativo Ele vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a

respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles

tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado

juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento

os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e a mor a Deusrdquo eles por

outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o

assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos

fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles

eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser

seguida (Vermes 2006 p98)

Segundo Swidler tanto os pontos positivos e os negativos foram adotados

diretamente pela Comissatildeo do Vaticano para Relaccedilotildees Religiosas com os Judeus e

indiretamente por outras igrejas O Catecismo da Igreja catoacutelica romana diz que

ldquopode-se tambeacutem frisar que se Jesus se mostra severo para com os fariseus eacute

porque estaacute mais proacuteximo deles que de quaisquer outros grupos judaicos seus

contemporacircneosrdquo (cf Vermes 1996 p79)

Nesse invoacutelucro de pensamentos sobre Jesus e os fariseus Swidler leva em

conta o fato de Vermes ter apontado Jesus como participante do grupo dos

ldquohassideus ou devotosrdquo Dentre as muitas especulaccedilotildees descritas por Swidler (nem

71

todas expostas aqui) eacute digna de nota a conclusatildeo desses apontamentos nas

palavras do proacuteprio autor

Assim talvez a melhor maneira de situar Ieshua no contexto do judaiacutesmo da sua eacutepoca seja como mestre (rabi) viandante e que fazia milagres um saacutebio (hakaham) da Galileia hassid galileu que sob muitos aspectos se assemelhava a Hillel (cujos ensinamentos acabaram mais tarde prevalecendo sobre os Shammai no judaiacutesmo rabiacutenico) que alguns estudiosos iriam considerar como algueacutem que teve um relacionamento muito proacuteximo com os fariseus aos quais poreacutem ele criticava sendo por sua vez criticado por eles Sigal o considerou hassid galileu hakham e proto-rabino o qual como Iohanan ben Zakkai antes e depois do ano 70 dC criticou duramente os pharisaioi os perushim (que Sigal natildeo considerava predecessores do judaiacutesmo rabiacutenico muito embora por vezes um emprego impreciso do termo pharisaioi nos evangelhos e em Josefo pudesse incluir alguns proto-rabinos) Estou convencido de que Sigal nos fornece a mais exata e abrangente descriccedilatildeo do lugar de Ieshua na vida judaica do seu

tempo (Swidler 1993 p 86-87)37

A proximidade de Jesus com os fariseus eacute tambeacutem notada por Flusser Ele

nota que nos Evangelhos sinoacuteticos diferentemente de Joatildeo (cf Jo 18 3) os fariseus

natildeo figuram em nenhuma descriccedilatildeo do julgamento de Jesus Flusser ainda nota

que nos primoacuterdios do cristianismo quando os cristatildeos foram perseguidos pelo

ldquosumo sacerdote saduceu o Raban Gamaliel tomou seu partido e os salvourdquo (At 5

17-42) Da mesma maneira Paulo quando estava perante o Sineacutedrio em Jerusaleacutem

vendo que seria punido severamente apelou para os fariseus e encontrou neles

solidariedade (At 22 30 236-10) jaacute que a outra parte era composta por saduceus

(Flusser 2002 p49)

A possiacutevel afeiccedilatildeo dos fariseus em relaccedilatildeo aos primeiros cristatildeos eacute

mencionada por Flusser sobre ldquoTiago o irmatildeo do Senhor e aparentemente outros

cristatildeosrdquo (cf Antiquities book 20 200-2001 in Josephus 1999 p656) que foram

condenados agrave morte em 62 dC pelo sumo sacerdote saduceu (ilegalmente) mas

foram salvos pelos fariseus quando estes apelaram ao rei que por sua vez acabou

37

Segundo Swidler o rabino Phillip Sigal de Pittsburgh os fariseus dos evangelhos natildeo satildeo os

predecessores dos rabis posteriores a 70 dC responsaacuteveis pelos escritos e tambeacutem sem duacutevida fundadores do judaiacutesmo dos nossos dias Para Sigal os predecessores dos rabis natildeo eram nem hillelistas (da escola de Hillel) nem Shamaiacutetas (da escola de Shamai) e nem pertenciam a nenhuma escola ou ldquocasardquo (bet) propriamente dita Ieshua (Jesus) natildeo era saduceu ou fariseu tampouco hilletita nem shamaiacuteta mas era um protorrabi antecipado da eacutepoca tanaiacutetica A sua maneira de ensinar era baseada na liberdade de interpretaccedilatildeo e autoridade conforme o modelo de ensinar protorrabiacutenico [] Ieshua era hakham (saacutebio filoacutesofo um protorrabi) como um profeta carismaacutetico que pregava sobre assuntos assombrosos e aterradores conforme a halakhah juntamente com sua pregaccedilatildeo hagaacutedica (Swidler 1993 p 86)

72

destituindo tal sumo sacerdote Segundo Flusser os fariseus possivelmente

consideravam a relaccedilatildeo dos saduceus com os romanos como um ato de

ldquodespotismo sacerdotalrdquo e essa poderia ser a causa a partir da leitura dos Sinoacuteticos

da ausecircncia de relatos da presenccedila de fariseus no julgamento e condenaccedilatildeo de

Jesus Flusser pressupotildee que os Sinoacuteticos natildeo mencionam um protesto dos fariseus

a favor de Jesus uma vez que eles jaacute haviam registrado anteriormente um Jesus

ldquoantifarisaicordquo em suas narrativas (Flusser 2002 p50)

453 OS SADUCEUS

Os saduceus que natildeo eram originaacuterios dos chassidim mas dos asmoneus

respeitavam os fariseus porque estes tinham um grande prestiacutegio com a populaccedilatildeo

em geral A classe dos saduceus era composta por gente nobre e rica da sociedade

Eles rejeitavam a doutrina da ressurreiccedilatildeo dos mortos e a existecircncia dos anjos

Tambeacutem soacute aceitavam o Pentateuco como verdade de feacute ldquoOs saduceus possuiacuteam o

poder os fariseus possuiacuteam a influecircncia sobre o povordquo (Gnilka 2000 p 61-62)

Flusser tambeacutem coloca os saduceus como um grupo pequeno menor do que os

fariseus por outro lado ele observa que os saduceus eram poderosos uma vez que

pertenciam a aristocracia sacerdotal do templo Eles natildeo eram revolucionaacuterios como

os fariseus (que se envolveram na guerra civil no periacuteodo macabeu) negavam a

validade da tradiccedilatildeo oral e consideravam toda a crenccedila na vida futura como uma

tolice (Flusser 2002 p45)

Nos Evangelhos sinoacuteticos os saduceus satildeo mencionados mais no Evangelho

de Mateus sendo que em Marcos e Lucas eles satildeo mencionados apenas uma vez

em cada Evangelho (Mc 12 18-27 Lc 20 27-40) No entanto tanto para Mateus e

Marcos como para Josefo os saduceus assim como os fariseus eram muito

conhecidos no primeiro seacuteculo da era cristatilde (Saldarini 2005 p183-184) Os

saduceus satildeo sempre colocados por Josefo ao lado dos fariseus Josefo tambeacutem

situa os saduceus como sendo um grupo pertencente agrave classe dominante Em Atos

dos apoacutestolos os saduceus discutem com os fariseus acerca da ressurreiccedilatildeo por

causa de um discurso de Paulo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (At 23) Em Atos

(41 517) os saduceus tambeacutem satildeo associados aos maiorais do templo ou seja agrave

classe sacerdotal (Saldarini 2005 p308-309)

73

A classe sacerdotal estaacute intimamente relacionada ao julgamento de Jesus

Em Lucas 22 54 lemos ldquoPrenderam-no e levaram-no introduzindo-o na casa do

Sumo Sacerdote Pedro seguia de longerdquo Segundo Flusser o clatilde sacerdotal e o

proacuteprio sumo sacerdote eram saduceus Caifaacutes era o sumo sacerdote e tambeacutem era

a figura mais importante do segundo Templo Foi na casa (palaacutecio) de Caifaacutes que

Jesus passou a noite sob custoacutedia enquanto era escarnecido pelos guardas (Lc 22

63) Os saduceus odiavam a Jesus possivelmente porque o consideravam um

profeta (ldquoFaz uma profecia quem eacute que te bateurdquo Lc 22 64) e sua presenccedila em

Jerusaleacutem podia ser uma clara ameaccedila Segundo Joatildeo os motivos da condenaccedilatildeo

de Jesus pela classe sacerdotal eacute que

[] os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram ldquoQue faremos Esse homem realiza muitos sinais Se o deixarmos assim todos creratildeo nele e os romanos viratildeo destruindo o nosso lugar santo e a naccedilatildeordquo Um deles poreacutem Caifaacutes que era o Sumo Sacerdote naquele ano disse-lhes ldquoVoacutes nada entendeis Natildeo compreendeis que eacute de vosso interesse que um soacute homem morra pelo povo e natildeo pereccedila a naccedilatildeo todardquo Natildeo dizia isso por si mesmo mas sendo sumo Sacerdote naquele ano profetizou que Jesus morreria pela naccedilatildeo ndash e natildeo soacute pela naccedilatildeo mas tambeacutem para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos Entatildeo a partir desse dia resolveram mataacute-lo Jesus por isso natildeo andava em puacuteblico entre os judeus mas retirou-se para a regiatildeo proacutexima do deserto para a cidade chamada Efraim e aiacute permaneceu com seus disciacutepulos (Jo 11 47-54)

A atitude de Caifaacutes em relaccedilatildeo agrave morte substituta de Jesus (ldquoeacute de vosso

interesse que um soacute homem morra pelo povordquo) eacute vista por Flusser mais como uma

justificativa do sumo sacerdote uma vez que a tradiccedilatildeo judaica repudiava o ato de

entregar um cidadatildeo judeu para que fosse morto por estrangeiros era um pecado

imperdoaacutevel segundo a halakaacute38 Flusser cita ainda o Rolo do Templo essecircnico

(64 7-8) que diz ldquoSe um homem calunia Meu povo e entrega Meu povo para uma

naccedilatildeo estrangeira e pratica a iniquidade contra meu povo penduraacute-lo-eis numa

38

Zuurmond define a halakaacute da seguinte maneira ldquoeacute o way of life judaico o conjunto de prescriccedilotildees e proibiccedilotildees que definem a maneira como vivem os judeus Uma questatildeo halaacutequica eacute uma disputa sobre a halakaacute geralmente com base na interpretaccedilatildeo de textos do Antigo Testamento Nem toda a questatildeo halaacutequica eacute de ordem moral As leis de pureza por exemplo formam uma parte importante da halakaacute mas ndash pelo menos segundo nosso modo de falar ndash natildeo tem caraacuteter moralrdquo (Zuurmond 1998 p 77) A raiz halak tambeacutem pode ser definida como a ldquoviardquo a ldquocaminhadardquo ou seja ldquoa regra (de vida) que vai permitir a aplicaccedilatildeo da Torah escrita agraves circunstacircncias reais e mutaacuteveis da vida O plural eacute halakot regras decisotildees e coleccedilotildees de leisrdquo (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

74

aacutervore e ele morreraacuterdquo Ainda havia uma tradiccedilatildeo oral dos saacutebios judeus com o

seguinte teor ldquose haacute um grupo de pessoas e os gentios lhes dizem entregai um de

voacutes para noacutes e o mataremos se natildeo fizerdes mataremos a todos a (regra eacute) deixai

que todos sejam assassinados e natildeo entregueis a eles uma uacutenica alma em Israel

poreacutem se eles o escolherem deixai que o entreguem para que todos natildeo sejam

massacradosrdquo (cf Flusser 2002 p 164-166)

Caifaacutes natildeo se restringiu apenas a entregar Jesus aos romanos Ele sabia que

eles eram implacaacuteveis a qualquer judeu rebelde ou a movimentos profeacuteticos

entusiastas que se levantassem na Palestina No entanto parece que Caifaacutes natildeo

estava preocupado com as tradiccedilotildees de seu povo O viacutenculo dele com os suacuteditos e

representantes de Cesar se estreitava ainda mais quando o vemos em Atos dos

Apoacutestolos (4 1-3 46 5 27-28) juntamente com a classe sacerdotal (os saduceus)

prendendo muitos cristatildeos em Jerusaleacutem pelos mesmos motivos que Jesus foi

entregue aos romanos sem se importar com as tradiccedilotildees judaicas das quais ele

deveria ser o principal observador (Flusser 2002 p 154-166)

454 OS ZELOTAS

Os movimentos de resistecircncia nos dias de Jesus estatildeo ligados ao projeto de

romanizaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo da Galileia por Herodes Antipas (Crossan 2009 p16-

18) O anseio de Antipas em se tornar rei uma vez que ele foi nomeado por Cesar

Augusto como tetrarca da Galileia e Pereia e seu irmatildeo Felipe ficou como tetrarca

da parte do extremo norte do paiacutes Jaacute Arquelau o outro filho de Herodes o Grande

ficou como etnarca da Idumeia Judeia e Samaria o que deixou Antipas muito

desapontado

Segundo Crossan Antipas comeccedilou a trabalhar para ganhar prestiacutegio em

Roma poreacutem agraves custas de um jugo pesado aos habitantes da Galileia Primeiro ele

fortificou Seacuteforis ldquopara ser o ornamento de toda a Galileiardquo e dedicou a Augusto a

sua cidade-capital reconstruiacuteda Apoacutes a morte de Augusto assumiu como Imperador

de Roma Tibeacuterio Antipas logo teve a ideia de substituir a capital Seacuteforis fundando

uma nova cidade a 32 quilocircmetros ao leste na costa ocidental do mar da Galileia e

nomeou-a Tiberiacuteades em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (cf Crossan 2009 p

17-18) O problema de tudo isso era que as construccedilotildees de Antipas provocavam o

75

aumento dos tributos sobre os galileus causando um descontentamento geral

Contudo para Antipas o que mais importava conforme Crossan nos descreve era

passar a Roma uma imagem de um governante lucrativo na questatildeo da arrecadaccedilatildeo

de impostos o que poderia levar o Imperador a pensar ldquoque eacute que natildeo faria ele

como monarca de toda a paacutetria judaicardquo

As construccedilotildees de Antipas poderiam impressionar Roma mas natildeo poderiam

evitar os movimentos de resistecircncia judaica uma vez que segundo Pagola (2010 p

48) ldquoos camponeses experimentaram pela primeira vez a pressatildeo e o controle

proacuteximo dos governos herodianosrdquo A situaccedilatildeo era tatildeo caoacutetica que aumentou

assustadoramente o nuacutemero de indigentes prostitutas e diaristas enfim parece que

Jesus conheceu ao longo de sua vida uma Galileia onde a desigualdade social era

enorme onde se favorecia a minoria privilegiada de Seacuteforis e Tiberiacuteades ao custo da

pobreza e sofrimento e desintegraccedilatildeo de muitas famiacutelias

Crossan (2004 p 275) nota que a construccedilatildeo ou reconstruccedilatildeo das cidades

de Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo afetou apenas os camponeses iletrados ou seja os

trabalhadores mais humildes mas tambeacutem afetou agrave classe dos letrados Assim ele

conclui que ateacute mesmo o movimento de Jesus relacionado ao reino de Deus

comeccedilou como um movimente de resistecircncia a partir dos camponeses ldquomas

abandonou seu caraacuteter localista e regionalista sob a lideranccedila dos letradosrdquo

Dentre os movimentos de Revolta encontramos Judas galileu que apoacutes a

deposiccedilatildeo de Arquelau (6 d c) natildeo aceitava que o pagamento de impostos devia

ser efetuado diretamente a Roma Segundo Theissen (2004 p163-164) a doutrina

de Judas repercutiu muito chegando ao ponto de alguns ldquoherodianosrdquo questionarem

a Jesus a respeito da questatildeo de se era liacutecito ou natildeo pagar impostos ao Imperador

(cf Mc 12 13-17) Horsley defende que o movimento de Judas o Galileu e de

Sadoc o fariseu que Josefo rotula como a quarta filosofia (as outras satildeo os

fariseus os saduceus e os essecircnios) tecircm sido interpretadas de uma forma errada

por vaacuterios especialistas que afirmam que esse movimento pregava a revolta armada

contra Roma De acordo com Horsley Josefo assim descreveu esse movimento em

Ant 18 4-5 23

Mas um certo Judas gaulanita da cidade de Gamala em combinaccedilatildeo com o fariseus Sadoc insistiu fortemente na resistecircncia Eles diziam que tal

76

avaliaccedilatildeo tributaacuteria implicava escravidatildeo pura e simples e pressionavam a naccedilatildeo a exigir sua liberdade [] Judas o Galileu estabeleceu-se como o liacuteder da quarta filosofia Os seus adeptos concordaram com as ideia dos fariseus em tudo exceto em sua indomaacutevel paixatildeo pela liberdade pois consideram Deus o seu uacutenico liacuteder e senhor (cf Horsley 2010 p 72)

Horsley avalia que Judas e Sadoc estivessem mais ligados ao ensino ou

pregaccedilatildeo ldquocontra a avaliaccedilatildeo tributaacuteria ou ateacute mesmo uma resistecircncia organizada

contra os impostos do que um grupo armado e violento conforme tem sido

interpretado a partir dos escritos de Josefordquo (Horsley 2010 p 78-79)

As informaccedilotildees sobre os grupos de resistecircncias nem sempre satildeo unacircnimes

como vimos acima No entanto podemos afirmar que entre os grupos de resistecircncia

encontram-se os Zelotes (Zelotas) talvez os mais conhecidos O termo Zelotas

encontra-se oito vezes registrado no Novo Testamento Esse termo geralmente

aplica-se ldquoaos guerrilheiros da resistecircncia desde Judas Galileu (6 aC) ateacute os

defensores da fortaleza de Masadaacute (74 dC) Eles eram rigorosamente

observadores do saacutebado da circuncisatildeo (exigiam a circuncisatildeo ateacute mesmo dos

antigos) e tinham fortes crenccedilas escatoloacutegicasrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia

do Novo Testamento p 2686) De acordo com Theissen mesmo que os

seguidores de Judas Galileu sejam chamados de Zelotes natildeo eacute possiacutevel afirmar tal

coisa visto que em Josefo eles ldquoaparecem como grupo apenas depois do inicio da

guerra judaica em 66 dC em relaccedilatildeo com o Templordquo (cf Theissen 2004 p164)

contudo haacute um argumento de peso contra essa teoria uma vez que entre os

disciacutepulos de Jesus por volta da metade do seacuteculo I havia um zelole (Simatildeo Zelote

cf Lc 6 15) e Theissen faz uma observaccedilatildeo ldquoaleacutem disso na Galileiardquo

Os zelotas eram originaacuterios dos fariseus e assim como os essecircnios estavam

ligados pela guerra santa e escatoloacutegica Natildeo satildeo citados nos evangelhos como

grupo mas entre os disciacutepulos de Jesus como foi dito acima havia um disciacutepulo

chamado de ldquoSimatildeo o Zeloterdquo (Lc 615 At 113) Eles lutavam pelos direitos do

pobre do oprimido e a esses ldquoprometiam com a chegada do Reino de Deus a

restauraccedilatildeo de seus direitos e uma nova ordem estabelecida por Deusrdquo (Gnilka

2000 p 60) O fato de entre os disciacutepulos ter um zelote natildeo significa que esse

movimento tenha sido endossado por Jesus jaacute que os ensinamentos de Jesus sobre

o tributo a Cesar e sua atitude para com o saacutebado eacute uma forma de repuacutedio a

77

doutrina apregoada pelos zelotas (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo

Testamento p 2686)

Podemos observar portanto que a possiacutevel relaccedilatildeo de Jesus com os Zelotas

como grupo de resistecircncia eacute muito remota ou praticamente inexistente conforme

Crossan (2004 p275) tem observado Ainda na mesma linha de pensamento de

Crossan Sean Freyne tambeacutem considera remota a hipoacutetese do possiacutevel

envolvimento de Jesus com o grupo dos zelotas Para Freyne (2008 p 130) a

pregaccedilatildeo de Jesus natildeo incitava a vinganccedila uma vez que estava mais baseada no

livro do Gecircnesis (criaccedilatildeo) do que no livro do Ecircxodo (libertaccedilatildeo) ou seja Jesus natildeo

via as demais naccedilotildees ou outras origens eacutetnicas como objeto de remoccedilatildeo

aniquilaccedilatildeo conversatildeo ou conquista como viam os heroacuteis do Antigo Testamento

Contudo para Freyne devemos observar que haacute duas formas de

interpretarmos Jesus de Nazareacute Se o olharmos segundo o ponto de vista de

Crossan veremos um Jesus voltado para um entendimento sapiencial e natildeo

apocaliacuteptico ou seja Jesus teria escolhido um modelo de dominaccedilatildeo monaacuterquica

baseado num ldquoreino dos destituiacutedos e Jootildees ningueacutem vigente no aqui e agora um

reino realizado (por meios maacutegicos e materiais) natildeo apenas proclamadordquo Por outro

lado Freyne observa que o pensamento de Horsley sobre Jesus eacute bem diferente

dos de Crossan Jesus segundo Horsley teria sido um revolucionaacuterio ou seja

partindo desse ponto de vista ldquoo siacutembolo do reino de Deus tal como empregado por

Jesus significava a vitoacuteria de Deus sobre as forccedilas do mal uma concepccedilatildeo que se

coadunava com as expectativas apocaliacutepticas judaicas padratildeordquo posiccedilatildeo essa que

segundo Freyne seria mais convincente (Freyne 2008 p 132)

Bruce Malina vecirc o grupo de Jesus como uma religiatildeo politicamente inserida

onde o reino e o governo de Deus satildeo iminentes ou seja seus disciacutepulos devem

orar para que o reino de Deus venha para o julgamento e recompensa e isso

segundo Malina era compreendido sob o ponto de vista poliacutetico por uma pessoa do

primeiro seacuteculo A morte de Jesus natildeo foi o fim desse reinado pois ldquoos seguidores

de Jesus acreditavam que Deus o ressuscitou dos mortos de maneira que o proacuteprio

Jesus em breve surgiria como vice regente do Deus de Israel como Messias de

Israel com poderrdquo (Malina 2004 p 99) Malina conclui esse pensamento afirmando

que

78

o reino de Deus veio para tomar a forma de uma teocracia representativa e pessoal Nestas dimensotildees ele teria tido a mesma estrutura da religiatildeo poliacutetica de Israel durante o tempo de Jesus A questatildeo aberta era Quem seria o agente o substituto concreto para o Deus de Israel Os membros do grupo de Jesus tinham pouca duacutevida de que esse agente fosse Jesus o Messias de Israel Mas Deus tinha em mente mais natildeo apenas Israel (Malina 2004 p 164)

Portanto pertencer ao grupo de Jesus era mais do que esperar por um reino

poliacutetico era ter um novo modo de vida ia aleacutem das fronteiras de Israel natildeo significa

apenas a libertaccedilatildeo de um jugo poliacutetico mas a libertaccedilatildeo do ser humano como um

todo

79

5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS

E SEUS DESDOBRAMENTOS

Conforme vimos no capiacutetulo anterior Jesus apesar de ser visto por alguns

pesquisadores com caracteriacutesticas proacuteximas do grupo dos fariseus natildeo fez parte de

nenhum grupo revolucionaacuterio Contudo isso natildeo significa que ele fosse indiferente

aos problemas sociais que afligiam toda a Palestina Em contraste com os

poderosos da eacutepoca que exploravam os pobres atraveacutes da cobranccedila desmedida de

tributos Jesus oferece-se como um descanso aos cansados e oprimidos porque

somente ele tem um jugo suave e um fardo leve (cf Mt 11 28-30) Esse descanso

soacute ele pode oferecer porque recebeu do Pai a quem ele conhece e por quem

tambeacutem eacute conhecido (cf Mt 1127) Abba eacute a palavra por excelecircncia no quesito

intimidade entre Jesus e Pai dos Ceacuteus conforme a tese defendida por J Jeremias

51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA

Jesus conforme a tradiccedilatildeo cristatilde e os vaacuterios testemunhos das fontes (os

Evangelhos) possui o testemunho intriacutenseco de que eacute o Filho de Deus (cf Mt 1433

Mc 11 311 1539 Lc 2227 Jo 134 1127) O Evangelho de Marcos de uma

forma clara jaacute nos mostra a importacircncia desse pensamento teoloacutegico nas seguintes

palavras ldquoPrinciacutepio do Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deusrdquo (Mc 11) Justino

de Roma tambeacutem prima pela exaltaccedilatildeo de Jesus como o Filho de Deus dizendo que

ldquo[] com razatildeo honramos tambeacutem a Jesus Cristo que foi nosso Mestre nessas

coisas e para isto nasceu o mesmo que foi crucificado sob Pocircncio Pilatos

procurador na Judeia no tempo de Tibeacuterio Ceacutesar Aprendemos que ele eacute o Filho

proacuteprio do Deus verdadeirordquo (Justino 1995 p28) ou ainda conforme a confissatildeo

de feacute de Calcedocircnia (451 dC) ldquoJesus eacute verdadeiramente homem e

verdadeiramente Deusrdquo ( Swidler 1993 p30)

Os Evangelhos da infacircncia (Mateus e Lucas) de uma forma independente

narram alguns acontecimentos relacionados ao nascimento e agrave infacircncia de Jesus

Segundo Duquoc as narrativas do nascimento de Jesus relatadas por Mateus e

Lucas se inserem na tradiccedilatildeo do Antigo Testamento como vemos no nascimento de

Isaac (Gn 21 1-7) de Jacoacute (Gn 25 25-26) de Moiseacutes (Ex 2 1-10) de Sansatildeo (Jz

80

13 1-25) e o de Samuel (1 Sam 1 19-26) As caracteriacutesticas de tais narrativas satildeo

ldquodiscernir na concepccedilatildeo ou no nascimento os sinais antecipadores de um destino

particularmente abenccediloado por Deusrdquo Para Duquoc contudo tratar as narrativas de

Mateus e Lucas como Evangelhos da Infacircncia natildeo eacute a forma mais correta e pode

induzir em erro mesmo que a tradiccedilatildeo assim os mencione Nos textos de Mateus e

Lucas observamos que ali se trata mais do nascimento do que a infacircncia de Jesus

conforme vemos resumido no quadro comparativo abaixo (Duquoc 1992 p22)

Mateus Lucas

Genealogia de Cristo 1 1-17 Anuacutencio da concepccedilatildeo virginal a Joseacute 1 18-24 Nascimento do Salvador 125 Visita dos magos 2 1-12 Fuga para o Egito e massacre dos inocentes 2 13-18 Volta a Nazareacute 2 19-23

Anuacutencio do nascimento de Joatildeo Batista 1 5-25 Anuacutencio a Maria 1 26-28 Visitaccedilatildeo 1 39-56 Nascimento do Salvador 2 1-14 Visita dos Pastores 2 15-20 Circuncisatildeo 2 21 Apresentaccedilatildeo no Templo 2 22-38 Volta a Nazareacute 2 39-40 Reencontro no Templo 2 41-52

Os relatos da infacircncia ou do nascimento conforme menciona Duquoc natildeo

fazem parte do querigma (Keacuterygma) mas estatildeo associados mais ao Antigo

Testamento como vimos acima Contudo eles foram inseridos nos Evangelhos e

devem ser lidos a partir da perspectiva dos evangelistas Eles natildeo satisfazem a

curiosidade como fazem os Apoacutecrifos visto que eles estatildeo relacionados mais agrave feacute da

Igreja primitiva do que aos acontecimentos histoacutericos ldquoMateus e Lucas iluminaram

retrospectivamente as recordaccedilotildees atraveacutes da catequese evangeacutelica e os eventos

decisivos da Paacutescoa Natildeo narram uma histoacuteria Propotildeem apenas uma doutrina em

forma de histoacuteria Seria errocircneo querer iluminar a catequese por meio de narrativas

de nascimento O processo foi inversordquo (Duquoc 1992 p24-25)

81

Observamos que as narrativas da infacircncia levantam questotildees sobre a

autenticidade histoacuterica dos relatos dos evangelistas Para Fitzmyer nas narrativas

da infacircncia eacute difiacutecil constatar o realmente histoacuterico poreacutem eacute inegaacutevel o fato de que

exista um nuacutecleo histoacuterico nesses acontecimentos os quais serviram como base

para que os evangelistas numa tradiccedilatildeo posterior pudessem responder perguntas

sobre ldquoQuem eacute elerdquo ou ldquoDe onde ele veiordquo39 (Fitzmyer 1997 p34-35)

Apesar das diferenccedilas e da independecircncia dos evangelhos (Mateus e Lucas)

Fitzmyer observa que haacute pelo menos doze pontos nas narrativas da infacircncia que satildeo

comuns ou pelo menos haacute concoacuterdia entre os dois evangelistas a respeito do

nascimento do menino Jesus os quais seratildeo transcritos abaixo

1) O nascimento de Jesus relaciona-se com o reinado de Herodes Magno

(Mt 21 Lc 15)

2) Maria sua futura matildee eacute uma virgem noiva de Joseacute mas eles ainda

natildeo coabitaram (Mt 118 Lc 12734 25)

3) Joseacute eacute da casa de Davi (Mt 1 1620 Lc 127 24)

4) Um anjo do ceacuteu anuncia a concepccedilatildeo e o nascimento futuros de Jesus

(Mt1 20-21 Lc 1 28-30)

5) O proacuteprio Jesus eacute reconhecido como filho de Davi (Mt 11 Lc 132)

6) Sua concepccedilatildeo aconteceraacute por intermeacutedio do Espiacuterito santo (Mt 1

1820 Lc 1 35)

7) Joseacute natildeo se envolve na concepccedilatildeo (Mt1 18-25 Lc 134)

8) O nome ldquoJesusrdquo eacute imposto antes de seu nascimento (Mt 1 21 Lc

131)

9) O ceacuteu identifica Jesus como ldquoSalvadorrdquo (Mt 121 Lc 211)

10) Jesus nasce depois que Joseacute e Maria vatildeo viver juntos (Mt 1 24-25 Lc

2 4-7)

11) Jesus nasce em Beleacutem (Mt 21 Lc 2 4-7)

12) Jesus se fixa com Maria e Joseacute em Nazareacute na Galileia (Mt 2 22-23

Lc 239-51)

39

Segundo Fitzmyer as narrativas da infacircncia natildeo se originaram de uma tradiccedilatildeo mais primitiva da Igreja visto que nem Marcos (que eacute considerado o primeiro Evangelho a ser escrito) e nem Joatildeo (que eacute reconhecido como sendo de uma tradiccedilatildeo igualmente primitiva a de Marcos mas independente dos Sinoacuteticos) natildeo conteacutem tais relatos mas inicia-se com o Verbo que se fez carne (1 1-18) ou seja com o Verbo divino e preexistente

82

Nos primoacuterdios da Igreja a questatildeo da divindade e humanidade de Cristo era

o centro de muitas controveacutersias teoloacutegicas que partiam de vertentes judaicas ou

entatildeo de certos movimentos cristatildeos considerados como hereges Face agraves muitas

divergecircncias a respeito do Cristo a Igreja tomou frente a tais controveacutersias e pocircs-se

a refutar as heresias com toda a forccedila possiacutevel Correntes judaizantes e gnoacutesticas

que incansavelmente procuravam por todos os meios possiacuteveis proclamar que Jesus

era apenas um homem que morreu pregado na cruz ou entatildeo um divino que

parecia ser humano procuravam a todo custo abalar a feacute daqueles que foram

alcanccedilados pela feacute cristatilde Os Evangelhos e todo o Novo Testamento foram escritos

para fundamentar a feacute dos primeiros cristatildeos em Jesus Cristo Mediante a tantas

heresias que foram surgindo na Igreja tentando negar a divindade de Jesus os

cristatildeos reagiram com veemecircncia escrevendo muitas histoacuterias sobre Jesus como

forma de demonstrar que desde menino o filho de Joseacute e Maria era detentor de

muitos prodiacutegios nunca antes realizados em Israel nem mesmo pelos grandes

profetas do Antigo Testamento

Estas narrativas foram redigidas e fazem parte do que posteriormente ficou

conhecido como os ldquoEvangelhos Apoacutecrifosrdquo Os Apoacutecrifos satildeo portanto a forma

mais clara que a Igreja usou para se opor as teorias que negavam a divindade de

Jesus Na busca de por em evidecircncia a divindade do Mestre os Apoacutecrifos

apresentam Jesus quase sempre como um menino ou um homem prodigioso capaz

de realizar milagres tatildeo grandes que chegam a ser absurdo

A tradiccedilatildeo cristatilde ainda no intuito de preservar a doutrina da filiaccedilatildeo divina de

Jesus procurou de uma forma cuidadosa defender tal doutrina em seus vaacuterios

credos ao longo da histoacuteria do cristianismo Os mais antigos e conhecidos credos

satildeo Credo Apostoacutelico (Seacuteculo III e IV) Credo de Niceacuteia (325 AD - revisado em

Constantinopla em 381 AD) Credo de Calcedocircnia (451 AD) e o Credo de Atanaacutesio

(seacuteculos IV e V) A relaccedilatildeo de Jesus Cristo com Deus Pai e sua funccedilatildeo na

Santiacutessima Trindade satildeo mencionadas em todas as confissotildees acima citadas

(Grudem 1999 p996) Jaacute no primeiro credo (Credo Apostoacutelico) observamos a

importacircncia de Jesus como o Filho de Deus encarnado

Creio em Deus Pai Todo Poderoso Criador do ceacuteu e da terra E em Jesus Cristo seu Filho unigecircnito nosso Senhor concebido pelo Espiacuterito Santo e nascido da Virgem Maria que padeceu sob Pocircncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos

83

que subiu ao ceacuteu e assentou-se agrave direita do Pai Todo-Poderoso de onde haacute de vir para julgar os vivos e os mortos Creio no Espiacuterito Santo na santa igreja catoacutelica na comunhatildeo dos santos na remissatildeo de pecados na ressurreiccedilatildeo da carne e na vida eterna Ameacutem (Grudem 1999 p996)

O credo segundo Thomas P Rausch (2006 p16) ldquoeacute uma declaraccedilatildeo oficial

da crenccedila da Igreja e tem poder normativo para a feacute da Igrejardquo Rausch observa que

o entatildeo cardeal Ratzinger escolheu o Credo Apostoacutelico como base para a sua

abordagem do livro Introduccedilatildeo ao Cristianismo De acordo com Rausch nessa obra

o cardeal faz uma mediaccedilatildeo entre os extremos relacionados agrave Cristologia da feacute e o

Jesus da histoacuteria Por um lado haacute os que procuram reduzir a Cristologia agrave histoacuteria

enquanto que por outro lado haacute os que buscam o abandono da histoacuteria

considerando-a como algo irrelevante para a feacute40 Abaixo reproduzimos um quadro

resumido dos principais conciacutelios Gerais da igreja onde foram formulados os

principais credos da Igreja (cf Rausch 2006 p261)

Conciacutelio Principais Figuras Temas

Niceia (325) Aacuterio (que natildeo estava presente) ldquohouve um tempo em que ele natildeo erardquo 381 bispos presentes

Rejeitou a opiniatildeo de Aacuterio de que o logos havia sido criado Cristo eacute homoousion41 ao Pai

Constantinopla I (381) Influecircncia Capadoacutecia Afirma a feacute de Niceacuteia Um novo credo afirma a divindade do Espiacuterito Nosso credo eacute uma combinaccedilatildeo de ambos

Eacutefeso I (431) Nestoacuterio conjunccedilatildeo de naturezas Maria eacute christokos42 Joatildeo de

Condena Nestoacuterio Maria eacute theotokos mas Cirilo e Joatildeo de Antioquia e excomungam

40

Nesse tratado escrito no final da deacutecada de 60 Ratzinger procura encontrar um meio termo entre Harnack que purifica a feacute da doutrina e do credo colocando a reconstruccedilatildeo do Jesus histoacuterico como fator determinante para a Cristologia com Bultmann para quem somente a feacute em Cristo tem importacircncia para o cristatildeo (cf Rausch 2006 p16) Vale ressaltar aqui que para o entatildeo cardeal Ratzinger ldquosegundo a feacute da Igreja a filiaccedilatildeo divina de Jesus natildeo se deve ao fato de Jesus natildeo ter um pai humano a doutrina do ser divino de Jesus natildeo sofreria nenhuma restriccedilatildeo se Jesus fosse o fruto de um casamento humano normal porque a filiaccedilatildeo divina que eacute objeto da feacute cristatilde natildeo eacute um fato bioloacutegico e sim ontoloacutegico natildeo eacute um evento no tempo e sim na eternidade de Deus ()rdquo Se considerarmos este texto como a base do pensamento de Ratzinger percebemos que a teologia de Bultmann teve para ele na eacutepoca um peso maior (cf Ratzinger 2006 p 204) 41

Homoi ser ldquosemelhanterdquo semelhante quanto ao ser (cf Rausch 2006 p 249) 42

Significa ldquoPortadora do Cristordquo Matildee de Cristo (cf Rausch 2006 p 249)

84

Conciacutelio Principais Figuras Temas

Antioquia Cirilo de Alexandria uniatildeo hipostaacutetica Maria eacute theotokos43

um ao outro

Eacutefeso II (449) (ldquoConciacutelio do Ladratildeordquo)

Flaviano de Constantinopla ldquoa partir de duas naturezas numa soacute hipoacutestase44 e numa soacute pessoardquo (foacutermula da uniatildeo) Dioacutescoro de Alexandria

Dioacutescoro domina Eacute rejeitada a foacutermula de Flaviano (ldquoa partir de duas naturezas uma soacute pessoardquo) O proacuteprio conciacutelio poreacutem eacute rejeitado

Calcedocircnia (451) 600 bispos Tomus do papa Leatildeo escrito para apoiar Flaviano Legados papais insistem numa nova profissatildeo de feacute

Condena Dioacutescoro aceita o Tomus de Leatildeo Prega duas naturezas numa uacutenica pessoa e numa uacutenica hipoacutestase verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem

Observamos que para a Igreja dos primeiros seacuteculos as verdades teoloacutegicas

a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus com o Pai eram de suma importacircncia para a

formaccedilatildeo e crescimento das comunidades cristatildes Por isso defenderam com

coragem e destemor o que acreditavam ser a essecircncia do Evangelho de Jesus

Cristo No entanto sempre houve aqueles que lutaram de todas as maneiras para

por em descreacutedito tanto o Evangelho como a pessoa de Jesus de Nazareacute Os pais

da Igreja tiveram que lutar contra as heresias e contra os hereges que procuraram

desmoralizar o mais importante homem do vilarejo de Nazareacute No entanto conforme

observa Rausch haacute problemas metodoloacutegicos nos Credos da Igreja Eles sempre

pressupotildeem uma Cristologia de ldquocima para baixordquo por isso a Cristologia necessita

de um fundamento criacutetico Para Rausch a Cristologia precisa ser estabelecida de

ldquobaixo para cimardquo ou seja ela precisa estar baseada nos atos e feitos do Jesus

histoacuterico para que natildeo seja acusada de ser uma feacute helenizada onde o carpinteiro

43

Significa ldquoPortadora de Deusrdquo Matildee de Deus (cf Rausch 2006 p 249) 44

Aquilo que estaacute sob ou daacute suporte a um objeto realizaccedilatildeo um ser concreto que suporta as diversas qualidades ou aparecircncias de uma coisa Ser subsistente realidade que existe por si mesma substacircncia (Exemplo medieval- ldquotransubstanciaccedilatildeordquo (cf Rausch 2006 p 249)

85

de Nazareacute teria sido transformado em um ldquosalvador divinizadordquo conforme o conceito

grego do divino (Rausch 2006 p 17)

52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA

Se para termos sucesso no estudo da Cristologia eacute necessaacuterio partirmos de

baixo para cima ou seja nas palavras de Rogers Haight ldquoseria difiacutecil imaginar

algueacutem interessado pela existecircncia humana de uma perspectiva religiosa que natildeo se

sentisse motivado a saber mais sobre Jesusrdquo uma vez que ldquoa Cristologia comeccedilou

com Jesus de Nazareacute e deve comeccedilar com Jesus hoje em diardquo (Rogers 2003

p75) precisamos analisar as fontes e teorias sobre Jesus desde as canocircnicas ateacute

as mais rejeitadas pela tradiccedilatildeo cristatilde Jaacute observamos acima que a Igreja dos

primeiros seacuteculos priorizou por razotildees apologeacuteticas em propagar e defender a

divindade de Cristo e por outro lado natildeo houve um interesse igual quando o tema

era a humanidade de Jesus No entanto com o passar dos seacuteculos surgiram

inuacutemeras questotildees a respeito do homem chamado Jesus de Nazareacute Para responder

tais questotildees ou pelo menos investigaacute-las faz-se necessaacuterio o estudo da Cristologia

partindo do homem Jesus ao Cristo da feacute

Edward Schillebeeckx nos diz que para uma boa reflexatildeo sobre a Trindade

faz-se necessaacuterio uma interpretaccedilatildeo cristoloacutegica de Jesus ou seja ldquona sua

humanidade Jesus eacute tatildeo intimamente do Pai que eacute exatamente nisso que ele eacute

Filho de Deusrdquo Podemos ver isso nas palavras de Schillebeeckx abaixo

[hellip] natildeo devemos compreender Jesus a partir da Trindade mas vice-versa eacute somente a partir de Jesus que a plenitude da unidade divina (natildeo tanto unitas trinitaris mas trinitas unitaris) se torna acessiacutevel para noacutes de alguma forma somente com base na vida morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus sabemos que a Trindade eacute o modo divino da absoluta unidade da essecircncia divina Somente a partir de Jesus de Nazareacute de sua experiecircncia com o ldquoAbbardquo -fonte e alma de sua mensagem atuaccedilatildeo e morte ndash e de sua ressurreiccedilatildeo eacute que algo cheio de sentido pode ser dito sobre o Pai Filho e Espiacuterito Santo Pois na vivecircncia de Jesus com seu ldquoAbbardquo o importante eacute que esse ldquoestar voltado para o Pairdquo e ldquoprecedidordquo com a absoluta prioridade e internamente sustentado pelo entregar-se do proacuteprio Pai a Jesus de forma uacutenica Ora a mais antiga tradiccedilatildeo cristatilde chama de ldquoPalavraVerbordquo a essa autocomunicacatildeo de Pai base e fonte da proacutepria experiecircncia de Jesus com o ldquoAbbardquo Isso implica que a palavra de Deus eacute a base total de tudo o que apareceu em Jesus ( Schillebeeckx 2008 p663)

86

A Cristologia portanto deve comeccedilar a partir do Jesus humano sem que se

negligencie o Cristo da feacute Jesus foi o nome que mudou a histoacuteria da humanidade

como podemos dizer parafraseando Haight que Jesus de Nazareacute eacute praticamente

um consenso universal na histoacuteria como sendo um judeu que viveu nos primoacuterdios

do seacuteculo I e que posteriormente veio a ser reconhecido como o Messias ou o

Cristo Conforme Haight podemos afirmar ainda que ldquoJesus foi uma figura

concreta na histoacuteria humanardquo e por isso essa histoacuteria natildeo pode ser relegada ao

esquecimento (Haight 2003 p29)

Geza Vermes compocircs um resumo histoacuterico da vida de Jesus a partir do

Evangelho de Marcos sem as narrativas da infacircncia acima esboccediladas (em 51)

Vermes chama essas informaccedilotildees peculiares de ldquoo evangelho fundamental ndash

representado por Marcos (cf Vermes 1990 p 20) que conteacutem as seguintes

informaccedilotildees

Nome Jesus

Nome do Pai Joseacute

Nome da matildee Maria

Lugar do nascimento natildeo mencionado

Data do nascimento natildeo mencionada

Domiciacutelio Nazareacute na Galileia

Estado Civil natildeo mencionado45

Profissatildeo carpinteiro (τέκτων ) mas tambeacutem exorcista e pregador itinerante

O certificado de oacutebito pode ser preenchido de maneira um pouco mais

completa

Lugar do oacutebito Jerusaleacutem

Data da morte ldquoSob Pocircncio Pilatosrdquo entre os anos 26 e 36 dC

Causa da morte crucificaccedilatildeo ordenada pelo governador romano

Lugar do sepultamento Jerusaleacutem

45

Vermes contudo considera que Jesus era celibataacuterio uma vez que nunca haacute menccedilatildeo de qualquer esposa no decorrer do seu ministeacuterio (cf Vermes 1990 p 21)

87

Para falar do Jesus humano eacute preciso contextualizaacute-lo ao tempo e ao espaccedilo

ou seja natildeo podemos menosprezar o periacuteodo em que Jesus viveu entre os homens

Sabendo que a Palestina dos dias de Jesus estava politicamente sob o impeacuterio

romano e religiosamente dominada pelo extremismo e exclusivismo religioso natildeo eacute

difiacutecil de imaginar o quanto Jesus e sua famiacutelia devem ter sofrido preconceito numa

sociedade patriarcal em meio ao caos poliacutetico e religioso

Bruce Chilton examina a questatildeo do Jesus histoacuterico desde os dias em que

Jesus estava com os disciacutepulos ateacute um periacuteodo poacutes-apostoacutelico Segundo ele sempre

houve aqueles que questionaram a filiaccedilatildeo divina de Cristo assim como colocaram

em duacutevida a sua filiaccedilatildeo terrena Vermes um judeu com formaccedilatildeo cristatilde considera

que falar das histoacuterias da infacircncia de Jesus de uma forma ou de outra acabam por

introduzir ldquoum elemento de duacutevida acerca da paternidaderdquo (cf Vermes 1990 p21)

Como foi dito acima eacute muito provaacutevel que Jesus e seus pais tenham sofrido algum

preconceito em relaccedilatildeo agrave paternidade de Joseacute em relaccedilatildeo ao seu filho Jesus

Segundo Chilton existem trecircs teorias a respeito do nascimento de Jesus A

primeira delas eacute a que Jesus foi concebido por obra do Espiacuterito Santo conforme

descrito nos Evangelhos (Mt 118-25 Lc 134-35) A segunda teoria tem a pretensatildeo

de especular que Jesus era filho bioloacutegico de Joseacute tal como se pode compreender

da afirmaccedilatildeo de Filipe achamos a Jesus de Nazareacute ldquofilho de Joseacuterdquo (Jo 145) A

terceira teoria eacute que Jesus era filho de fornicaccedilatildeo conforme uma das interpretaccedilotildees

do evangelho de Joatildeo 841 ldquoVoacutes fazeis as obras de vosso pai Disseram-lhe entatildeo

natildeo nascemos da prostituiccedilatildeo temos soacute um pai Deusrdquo (Charlesworth 2006

p87)46

46

Juan Mateos interpreta o texto de Jo 841 partindo do princiacutepio que Jesus acusa os judeus que nele ldquohaviam cridordquo (o crer aqui pode ser obra do redator uma vez que um pouco agrave frente os mesmos querem matar Jesus cf Brown 1975 p80) de cometerem o pecado da idolatria uma vez que segundo alguns rabinos ser filho de Abraatildeo significava praticar a benevolecircncia a modeacutestia e a humildade Os que tais virtudes natildeo praticavam eram considerados como servo de um outro deus totalmente diferente do Deus de Abraatildeo por isso chamados de idoacutelatras Os judeus entenderam atraveacutes da interpretaccedilatildeo dos profetas que ao serem chamados de idoacutelatras era o mesmo que ser chamado de filhos da prostituiccedilatildeordquo algo que eles negam teoricamente mas como seus pais idoacutelatras que mataram os profetas eles da mesma forma querem matar Jesus que vem da parte de Deus (cf J Mateos 1989 p392-393) Segundo Brown ser descendente de Abraatildeo fisicamente natildeo tem nenhum meacuterito quando esse suposto filho natildeo age como agiu seu pai aqui no caso ldquoAbraatildeo que Creu quando Deus lhe falourdquo eles por outro lado natildeo creem no enviado de Deus (Jesus) por isso satildeo filhos ilegiacutetimos (cf Brown 1975 p80-81)

88

Diante desse contexto Chilton levanta uma questatildeo polecircmica Jesus pode ter

sido considerado um mamzer Algumas condiccedilotildees poderiam ser determinantes para

expor um indiviacuteduo na condiccedilatildeo de mamzer A principal caracteriacutestica que definia

uma pessoa nessa condiccedilatildeo era se tal indiviacuteduo era fruto de uma uniatildeo proibida e

consequentemente um filho proibido de acordo com a Toraacute ldquoNenhum bastardo

entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar

na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo (Dt 233) Conforme a Mishnah47

poderia ser considerado um mamzer aquele filho cuja paternidade natildeo era

conhecida e portanto natildeo havia evidecircncias que tal uniatildeo fosse permitida de acordo

com a Lei Por outro lado na visatildeo do Talmude Babilocircnico48 bastava ser filho de um

natildeo israelita para que o indiviacuteduo fosse considerado um mamzer

A legitimidade da paternidade bioloacutegica de Jesus foi assunto controverso

como indicado mais acima jaacute no segundo seacuteculo da era Cristatilde Alguns autores

como John P Meier (1991 p223) e Bruce Chilton (in Charlesworth 2006 p 85)

mencionam a acusaccedilatildeo feita por Celso jaacute no ano de 178 dC que Jesus era filho de

Maria com um soldado Romano chamado Pantera49

A fonte desta histoacuteria de acordo com Dalman (2002 p152-153) vem do

Talmude Babilocircnico O nome de um certo Jesus eacute comumente mencionado no

Talmude e na literatura talmuacutedica pelas expressotildees Filho de Stada (Satda) e Filho

de Pandera (Pantera) Segundo Dalman a traduccedilatildeo literal do texto talmuacutedico de

Shabat 104b e Sanhedrin 67a tem a seguinte forma

O filho de Stada era o filho de Pandera O Rabi Chisda disse O marido era

Stada o amante Pandera (Outro disse) o marido era Paphos ben Yehudah

Stada era sua matildee (ou) sua matildee era Mirian a cabeleireira de mulheres

como eles diriam em Pumbeditha Stath da (ie Ela era infiel) para o marido

47

A palavra Mishnah vem de Shanah ldquorepetirrdquo significa ldquorepeticcedilatildeordquo ou ldquoestudo atraveacutes da repeticcedilatildeordquo Publicada por volta do ano 200 dC pelo patriarca judeu Judas I a Mishnah eacute uma coletacircnea de leis que se impocircs como coacutedigo oficial do judaiacutesmo Ela resulta de uma compilaccedilatildeo seletiva feita no decurso do seacuteculo II da era cristatilde ndash de tradiccedilotildees normativas ambientes (halakot) Ela estaacute redigida em hebraico (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

48 ldquoTalmudrdquo significa ensinamento estudo Haacute dois Talmuds 1) o Talmud de Jerusaleacutem terminado

pelo fim do seacuteculo IV na Palestina 2) o Talmud da Babilocircnia composto no seacuteculo V em Sura Mesmo na Palestina o Talmud da Babilocircnia o mais completo suplantou o Talmud de Jerusaleacutem quando se fala do ldquoTalmudrdquo sem especificar qual designa-se exclusivamente o da Babilocircnia (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

49 Zuurmond acha que provavelmente Pantera (ou Pandera) ldquoseja uma deformaccedilatildeo acintosa de

parthenos= virgem Deformar de propoacutesito o nome de um inimigo era (e eacute) um uso bastante comum (cf Zuurmond 1998 p77)

89

No entanto uma traduccedilatildeo mais livre do mesmo texto talmuacutedico teria a

seguinte forma segundo Dalman

Ele natildeo era filho de estada mas filho de Pandera Rab Chisda afirma

que o marido da matildee de Jesus era Stada mas o amante dela era Pandera

Outro (diz) que o marido dela era certamente Paphos ben Yeshua que ao

contraacuterio Stada era a matildee dele (Jesus) de acordo com outros sua matildee era

Mirian (Maria em hebraico) a cabeleireira das mulheres A treacuteplica eacute e eu

concordo simplesmente Stada era o apelido dela (Maria) como dito no (ou

na) Pumbeditha Stath da (que significa ldquoela provou ser infielrdquo) ao marido dela

Provavelmente a partir da leitura desses textos eacute que Celso tomou o nome

deste Jesus citado no Talmude e relacionou com o Jesus dos Evangelhos

considerando que ambos os personagens se tratavam da mesma pessoa Desta

forma conforme mencionado por Oriacutegenes Celso acusa Jesus de aleacutem de ter

inventado seu nascimento ter nascido numa cidadezinha da Judeia ser filho de uma

pobre fiandeira ter adquirido poderes maacutegicos no Egito ainda usou esses poderes

para proclamar-se Deus (Oriacutegenes 2004 p68) Embora esse relato tenha sido

retomado tambeacutem por pensadores contemporacircneos como mais um argumento para

contestar a legitimidade do nascimento de Jesus conforme relatado nos Evangelhos

Chilton no entanto considera que esse relato eacute infundado e foi apenas mais uma

ficccedilatildeo que circulou nos primeiros seacuteculos da era cristatilde

Nas comunidades judaicas dos dias de Jesus se uma mulher estivesse

graacutevida antes da consumaccedilatildeo plena do matrimocircnio ela precisaria pela tradiccedilatildeo

apresentar agrave comunidade em que vivia provas de quem era o pai da crianccedila que

estava sendo gerado em seu ventre A casta do filho estava condicionada a quem

era o seu pai ou seja se o filho por ela gerado fosse fruto de uma uniatildeo proibida

obviamente ele seria excluiacutedo da congregaccedilatildeo de Israel conforme estabelecido na

Toraacute especificamente em Deuteronocircmio 233 onde lemos ldquoNenhum bastardo

entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar

na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo

Vale ainda ressaltar que quando um contrato de casamento era firmado a

Mishnah dava o direito ao contratante de anular o mesmo sem uma justificativa

formal caso ele se sentisse injusticcedilado Se a mulher estivesse graacutevida na ocasiatildeo

do rompimento do contrato esse ato do contratante eximia a mulher da acusaccedilatildeo de

90

adulteacuterio e dessa forma o filho natildeo poderia ser considerado formalmente um

mamzer Tal situaccedilatildeo poderia dar margem a um problema de interpretaccedilatildeo da Lei a

saber a mulher uma vez abandonada poderia usar apenas a palavra acerca da

paternidade do fruto de seu ventre Essa palavra seria aceita como verdade tal

como pensavam os rabinos Gamaliel e Eliezer ou rejeitada se natildeo houvesse uma

prova concreta no pensamento do rabino Joshua (Charlesworth 2006 p87)

No primeiro caso a mulher poderia alegar que um determinado cidadatildeo da

sua comunidade era o pai da crianccedila que ela estava esperando Se a palavra dessa

mulher fosse aceita como verdadeira entatildeo pela Toraacute esse homem seria obrigado

a casar com ela e natildeo poderia mandaacute-la embora por toda a vida conforme lemos

em Deuteronocircmio 22 28-29

Se um homem encontra uma jovem virgem que natildeo estaacute prometida e a agarra e se deita com ela e eacute pego em flagrante o homem que se deitou com ela daraacute ao pai da jovem cinquenta ciclos de prata e ela ficaraacute sendo a sua mulher uma vez que abusou dela Ele natildeo poderaacute mandaacute-la embora durante toda a sua vida

Essa interpretaccedilatildeo daria margem para que as mulheres mesmo que

concebessem um filho fruto de uma uniatildeo proibida mas que indicassem um

determinado homem como sendo o pai da crianccedila pudessem tornar o fruto do

ventre em um legiacutetimo judeu aos olhos da comunidade tendo em vista que a mulher

alcanccedilou ecircxito em sua argumentaccedilatildeo o que segundo essa visatildeo natildeo seria difiacutecil

conseguir (Charlesworth 2006 p 87)

Partindo da premissa que a relaccedilatildeo sexual entre pessoas que jaacute haviam

estabelecido o contrato de casamento era toleraacutevel na eacutepoca uma possiacutevel relaccedilatildeo

sexual entre Joseacute e Maria natildeo seria proibida Mas o fato de Joseacute morar em Beleacutem e

Maria em Nazareacute exclui as possibilidades do filho ser dele (Chilton 2002 p13)

Dessa forma Jesus poderia ser considerado um mamzer jaacute que a sua concepccedilatildeo

ocorreu no periacuteodo entre o contrato de casamento e a coabitaccedilatildeo de Joseacute e Maria

Chilton observa que o pensamento de Joseacute em deixar Maria secretamente

conforme lemos em Mateus 119 seria portanto uma forma de natildeo acusar Maria de

fornicaccedilatildeo Natildeo obstante a maravilhosa forma como Joseacute assumiu a paternidade

pode natildeo ter sido suficiente para inibir as mais adversas situaccedilotildees pelas quais Jesus

91

tenha sido alvo desde a infacircncia ateacute a crucificaccedilatildeo proveniente de especulaccedilotildees

sobre a legitimidade de sua paternidade bioloacutegica

Observando as teorias propostas acima a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus

podemos pensar sobre os diferentes conceitos que seus contemporacircneos tinham a

respeito dele Ele era filho de Deus gerado pelo Espiacuterito Santo Ele era filho de Joseacute

ou de um pai desconhecido As palavras ldquoNatildeo nascemos da prostituiccedilatildeordquo (Jo 841)

poderiam ter sido usadas com ironia a fim de colocar em duacutevida sua reputaccedilatildeo em

relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees concernentes agrave paternidade bioloacutegica Por que ele foi

chamado de o ldquocarpinteiro o filho de Mariardquo (Mc 63) e natildeo filho de Joseacute e de Maria

entre os seus conterracircneos

Essas questotildees levantadas acima satildeo passiacuteveis de outras interpretaccedilotildees

quando olhamos o texto do Evangelho de Joatildeo a partir de uma cristologia alta50

Embora seja possiacutevel que os judeus tenham procurado debater com Jesus sobre

sua filiaccedilatildeo humana Jesus no entanto sempre usou tais debates para evidenciar

sua filiaccedilatildeo divina e enfatizar sua relaccedilatildeo com o Pai atraveacutes da palavra Abba que

para J Jeremias eacute a mensagem central do Novo Testamento

53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS

Jesus se relacionava com Deus de uma maneira peculiar a qual eacute evidente

nos evangelhos Segundo Pagola a experiecircncia de vida de Jesus eacute a partir de um

Deus Pai que para Jesus eacute aquele que cuida ateacute mesmo das criaturas fraacutegeis e

insignificantes aos olhos dos homens Esse Pai tambeacutem atende aos pobres e

necessitados traz a cura aos enfermos busca os perdidos enfim Deus Pai se torna

o centro de toda a mensagem e da proacutepria vida de Jesus de Nazareacute (Pagola 2010

p 380-381)

Nos Evangelhos a palavra Pai aparece nos laacutebios de Jesus mais de 170

vezes quando ele se dirige a Deus seja por interpelaccedilatildeo ou por designaccedilatildeo

Segundo J Jeremias eacute preciso distinguir a interpelaccedilatildeo da designaccedilatildeo de Deus

como Pai quando esse termo eacute proferido por Jesus nos evangelhos Em suas

50

A cristologia alta refere-se agrave crenccedila na preexistecircncia e na divindade de Jesus (cf

httpwwwcentroestudosanglicanoscombrbancodetextosbibliahermeneuticaresenhas_brown_julio_cesarpdf acesso em 23102011 as 1225 horas)

92

oraccedilotildees Jesus sempre fez uso da interpelaccedilatildeo Pai para invocar a Deus com

exceccedilatildeo do grito da cruz em Mc 1534 par Mt 2746 ldquoMeu Deus meu Deus por que

me abandonasterdquo interpelaccedilatildeo essa que jaacute estava prefixada pelo Sl 221 Aleacutem da

interpelaccedilatildeo eacute muito comum Jesus referir-se a Deus como ldquoo Pairdquo (ὁ πατὴρ) ldquomeu

Pairdquo (τοῦ πατρός μου) e ldquovosso Pairdquo (ὁ πατὴρ ὑμῶν ) (Jeremias 2005 p43)

De fato Jesus usou essas trecircs formas para designar Deus como Pai A

designaccedilatildeo ldquoo Pairdquo encontra-se em alguns textos dos evangelhos em Marcos (Mc

13 32 = Mt 24 36) em Mateus e Lucas juntos (Mt 11 27 = Lc 10 22) somente em

Lucas (Lc 9 26 1113) somente em Mateus (Mt 28 19) e em Joatildeo setenta e trecircs

vezes Sobre a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo encontramos em Marcos (Mc 11 25)

Mateus e Lucas juntos (Mt 5 48 = Lc 6 36 1230) somente em Lucas (Lc 12 32)

somente em Mateus (Mt 5 16 44 61 81526 7 11 10 20 29 18 14) e em Joatildeo

(Jo 8 42 20 17) Aleacutem disso o termo ldquomeu Pairdquo que se encontra em Marcos (Mc

838 = Mt 16 27) τοῦ πατρὸς αὐτοῦ [de seu Pai] mesmo que em referecircncia ao

Filho do Homem natildeo pode figurar sem reservas entre os testemunhos da foacutermula

Meu Pai) (Jeremias 2005 p43) E por fim conforme J Jeremias a expressatildeo

ldquomeu Pairdquo encontra-se nos seguintes textos dos Evangelhos Mateus e Lucas juntos

(Mt 11 27 ndash Lc 1022) somente em Lucas (Lc 249 22 29 24 49) somente em

Mateus (Mt 7 21 10 32-33 12 50 15 13 16 17 18 10 19 35 20 23 25 34 26

29 53 e em Joatildeo vinte e cinco vezes

Para J Jeremias haacute uma crescente tendecircncia em introduzir a designaccedilatildeo de

Deus como Pai nos evangelhos Excluindo as invocaccedilotildees de Pai por Jesus e

contando os paralelos sinoacuteticos J Jeremias observa que em Marcos aparece

apenas trecircs vezes jaacute em Mateus e Lucas juntos (coleccedilatildeo dos logias) aparece

quatro vezes enquanto que somente em Lucas eacute mencionado quatro vezes Os

ditos que satildeo proacuteprios de Mateus satildeo citados trinta e uma vezes A ecircnfase recai

sobre o Evangelho de Joatildeo escrito mais tarde onde a designaccedilatildeo de Deus como

Pai nas palavras de Jesus aparece cem vezes Segundo J Jeremias haacute uma

evidente progressatildeo do uso da palavra Pai usada por Jesus em Marcos na coleccedilatildeo

dos Logia e nos elementos proacuteprios de Lucas Analisando os textos dos Evangelhos

referentes ao uso da palavra Pai observa-se que todos enfatizam essa relaccedilatildeo

iacutentima de Jesus com o Pai do ceacuteu Desse modo ldquopode-se dizer que Jesus se servia

93

da palavra Pai para designar a Deus somente em certas circunstacircncias Em

Mateus acha-se uma progressatildeo sensiacutevel no uso do termo e em Joatildeo Pai quase

tornou-se sinocircnimo de Deusrdquo (Jeremias 1977 p26-27)

Francisco Reyes Archila nota a frequecircncia do uso da palavra Pai em Joatildeo

mesmo sendo este o Evangelho que ao mesmo tempo em que evidencia a

paternidade divina protagoniza tambeacutem a figura feminina no discipulado

especialmente de Maria Madalena51 Archila analisando essa progressatildeo do uso da

palavra Pai em Joatildeo nos laacutebios de Jesus como tambeacutem jaacute havia sido observada por

J Jeremias vecirc ainda uma tendecircncia maior em Mateus em registrar o termo Pai em

relaccedilatildeo a Deus do que em Marcos e Lucas onde o termo praticamente natildeo aparece

Referindo-se a Joatildeo Archila tambeacutem eacute de acordo que natildeo somente nos

Evangelhos mas tambeacutem nas cartas o termo Pai eacute usado com uma frequecircncia

muito alta Para Archila jaacute que em Mateus a frequecircncia natildeo eacute tatildeo alta e em Marcos

e Lucas ela praticamente natildeo aparece e nem nas cartas de Paulo se usa esse

termo referindo-se a Deus somente na introduccedilatildeo das cartas (Rm 17 1 Co 13

2Cor 13 2Cor 12 1131 Gl 1 1-3 Ef 11 520 Cl 1 2-3 1Ts 11 2Ts 11 1tm 12

2Tm 12 Tt 14 Fm3) Eacute de se suspeitar segundo esse autor52 de que Jesus tenha

realmente dirigido-se a Deus sempre como Pai o mais provaacutevel seria que com o

decorrer do tempo (jaacute que Joatildeo foi escrito posteriormente aos outros Evangelhos) a

Igreja primitiva tenha assumido progressivamente essa expressatildeo devido ao

ldquoespiacuterito patriarcal proacuteprio do ambiente cultural da eacutepocardquo (Archila 2007 p99)

Podemos ver sobre o relevante uso do termo Pai no Evangelho de Joatildeo no

resumo feito por Matthias Grenzer conforme exposto abaixo

1ndash O Pai ama o Filho porque este uacuteltimo daacute a sua vida (Jo 1017)

2- O Pai mostra ao Filho tudo o que ele mesmo faz (Jo 5 20)

51

Hamerton-Kelly esclarece que o fato de Jesus ter escolhido o siacutembolo de ldquopairdquo para referir-se a

Deus foi uma forma de reorganizar a forma de patriarcado da eacutepoca com a finalidade de tornar as pessoas livres das ldquogarras do patriarcadordquo Para Hamerton-Kelly longe de ser um siacutembolo sexista o pai era para Jesus uma arma escolhida para combater o que chamam de sexismo O termo ldquopairdquo tem sido interpretado fora de seu contexto apresentando um ldquodeusrdquo do sexo masculino que tem sido colocado primariamente como macho mas segundo esse autor a situaccedilatildeo poderia ser mudada ldquocomo temos tentado fazerrdquo (cf Hamerton-kelly 1979 p103) Roger Haight estaacute de acordo que Hamerton-Kelly na nota acima segue J Jeremias sobre a forma como Jesus fazia uso do termo ldquopairdquo que em seu contexto significa algo semelhante agrave ldquomatildeerdquo na sociedade moderna desenvolvida (cf Haight 2003 p 128)

52 Archila estaacute citando Lothar Coenen e outros (Diccionaacuterio teoloacutegico del Nuevo Testamento

Salamanca Siacutegueme vol 3 1983 p 244)

94

3- Ao permanecer no Filho o Pai realiza as suas obras (Jo 1410)

4- O Pai vivo enviou o filho e o filho vive atraveacutes do Pai (Jo 6 57)

5- O Filho fala o que o Pai lhe diz (Jo 12 49-50)

6- O Filho por si mesmo nada faz mas realiza soacute aquilo que vecirc o Pai fazer (Jo

519)

7- Com esse relacionamento muacutetuo de maior intensidade o Pai ama o filho (Jo

335 5 20 1017 159) e o Filho ama o Pai (Jo 1431)

8- O Filho permanece no amor do Pai (Jo 1510)

9- O Pai estaacute no Filho e o Filho estaacute no Pai (Jo 1038 1411 1721)

Esse profundo relacionamento do Filho com o Pai pode ser compartilhado com

o ser humano segundo Grenzer desde que o disciacutepulo reconheccedila o Filho no Pai (Jo

1417) pois aquele que conhece o Filho tambeacutem conhece o Pai (Jo 14 7-9)

ldquoAquele que ama o Filho observando os mandamentos dele seraacute amado pelo Pairdquo

(Jo 1421) Ou ao contraacuterio ldquoquem natildeo honra o Filho tambeacutem natildeo honra o Pai que

o enviou (Jo 523)rdquo Portanto a relaccedilatildeo de Jesus (o Filho) com Deus (o Pai) no

Evangelho de Joatildeo eacute de extrema relevacircncia para compreendermos a cristologia e

para aprendermos a perfeita forma de nos relacionarmos com o Pai celeste

(Grenzer 2009 p 184)

Archila (2007 p99) contabiliza que a expressatildeo Pai para nomear Deus no

Novo Testamento ocorre 245 vezes enquanto que a mesma palavra para designar o

pai bioloacutegico ocorre 157 vezes O motivo para tal ecircnfase para o uso dessa

expressatildeo referindo-se a Deus pode ser pela ldquoinfluecircncia da filosofia grega53 na

nomeaccedilatildeo de Deus como Pai Contudo segundo o mesmo autor o mais plausiacutevel

do ponto de vista histoacuterico eacute a possibilidade que Jesus realmente ldquotenha chamado a

Deus como meu pai ou nosso pai ou pai de vocecircs (Mt 69 2629 42 Lc 112)

Inclusive eacute mais provaacutevel que Jesus o tenha nomeado como Abba palavra usada

pelos filhos ao dirigir-se a seus pais e que equivale a papai (Archila 2007 p99-

53

ldquoA ideia da paternidade de Deus recebe uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica em Platatildeo e nos estoicos

Platatildeo na sua elaboraccedilatildeo cosmoloacutegica da ideia do pai ressalta o relacionamento criador de Deus o pai universal para com o cosmos inteiro (Tim 28c 41a e frequentemente) Para os estoicos a autoridade de deus como Pai permeia o universo ele eacute criador pai e sustentador dos homensrdquo (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)

95

100) Essa forma de dirigir-se a Deus como Pai ou seja essa ideia de ser filho de

Deus contrapotildee-se a ideia presente na filosofia grega e tambeacutem da concepccedilatildeo

romana do Imperador como ldquofilho de deusrdquo Por outro lado ainda o Abba de Jesus

assimilado pela Igreja primitiva dava o direito aos considerados apaacutetridas sociais a

terem o direito de ter um pai o que provavelmente deve ter provocado implicaccedilotildees

agrave Igreja jaacute que essas ideias iam contra aos valores da sociedade patriarcal daquela

eacutepoca (Archila 2007 p103-104)

A imagem que Jesus apresentou do Pai do ceacuteu natildeo pode ser associada com o

que a patriarcalizaccedilatildeo que a cristandade ocidental fez de Deus Para Jesus

segundo Archila Deus natildeo eacute um pai superpoderoso dominante prepotente e

distante dos seus filhosrsquo ele eacute por natureza um pai proacuteximo iacutentimo terno e

misericordioso ou seja ele nos mostra a imagem de um Deus Pai bom e justo Em

outras palavras pode-se dizer que Jesus humanizou a imagem de Deus rompendo

com a imagem patriarcal54 androcecircntrica e exclusivista para apresentar a imagem

de Deus como o Pai bom que projeta nos seus filhos um modelo de relacionamento

fraterno entre homens mulheres crianccedilas com a proacutepria natureza e por fim com o

proacuteprio Deus (Archila 2007 p107)

Trabalhando ainda o Abba nos laacutebios de Jesus eacute relevante observarmos que

Santos Sabugal tambeacutem lista as invocaccedilotildees e designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo nos

laacutebios de Jesus como sendo empregado natildeo menos de 184 vezes (Marcos 4 Lucas

17 Mateus 44 Joatildeo 119 = 111 nos laacutebios de Jesus) assim o referido autor resume

o emprego das designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo por Jesus nos Evangelhos

Esse uso eacute portanto limitado em Marcos mas frequente em Lucas e sobre tudo em Mateus para culminar no evangelho de Joatildeo E as estatiacutesticas refletem de alguma forma em cada evangelho a concepccedilatildeo teoloacutegica da paternidade divina Marcos representa o estagio inicial desta concepccedilatildeo desenvolvida pela teologia de Lucas e significativamente ampliada por Mateus atingindo seu pico mais alto em Joatildeo o teoacutelogo por excelecircncia da paternidade de Deus (Sabugal 1985 p381)

54

Segundo Archila o patriarcado eacute definido como ldquouma relaccedilatildeo de poder entendido como dominaccedilatildeo e superioridade que o varatildeo exerce sobre mulheres e crianccedilasrdquo O modelo que o sistema patriarcal pretende representar eacute baseado numa forma hegemocircnica da dominaccedilatildeo do varatildeo sobre a mulher Esse modelo ldquoinclui papeis competecircncias haacutebitos valores formas de pensar e inclusive formas institucionais como leis e normasrdquo (Archila 2007 p 91-92)

96

Para Sabugal portanto nenhum judeu mesmo os mais piedosos invocou a

Deus como o Abba assim como fez Jesus constantemente Ele tinha a

autoconsciecircncia de ser o filho de Deus Essa forma de invocar a Deus tornou-se natildeo

apenas parte integrante e essencial das suas oraccedilotildees como tambeacutem parte

integrante do seu meacutetodo de ensino sobre a oraccedilatildeo (Sabugal 1985 p386)

Joseacute Antonio Pagola tambeacutem eacute de acordo que Jesus como todas as demais

crianccedilas da Galileia em suas primeiras palavras balbuciou os termos immaacute

(mamatildee) e abba (papai) quando se dirigia a Maria e Joseacute seus pais Contudo

segundo Pagola pode ser um exagero limitar o uso do abba apenas agraves criancinhas

visto que ateacute mesmo os adultos parece que usavam tal expressatildeo como forma de

respeito agrave figura paterna dentro de uma estrutura familiar patriarcal (Pagola 2010

p383)

Mas natildeo precisamos exagerar Parece que tambeacutem os adultos empregavam esta palavra expressando seu respeito e obediecircncia ao pai da famiacutelia patriarcal Chamar a Deus de Abbaacute indica carinho intimidade e proximidade mas tambeacutem respeito e submissatildeo Jesus havia conhecido em sua proacutepria casa a importacircncia do pai Joseacute era o centro de toda a famiacutelia Tudo gira em torno dele O pai cuida dos seus e os protege Se ele falta a famiacutelia corre o risco de desintegrar-se e desaparecer Eacute ele quem sustenta e assegura o futuro de todos Haacute dois traccedilos que caracterizam um bom pai O primeiro eacute a solicitude para com os filhos eacute ele quem deve assegurar-lhes o sustento necessaacuterio protegecirc-los e ajudaacute-los em tudo Ao mesmo tempo o pai eacute autoridade da famiacutelia ele daacute as ordens para assegurar o bem de todos Ele instrui os filhos ensina-lhes um oficio se necessaacuterio Os filhos por sua vez satildeo chamados a ser a alegria do pai (Pagola 2010 p 383-384)

Para fundamentar sua tese de que o abba era um linguajar infantil e que

Jesus que ressignificou esse termo J Jeremias recorre aos pais da Igreja

Crisoacutestomo Teodoro de Mopsueacutestia e Teodoreto de Ciro originaacuterios de Antioquia

uma populaccedilatildeo que falava o siriacuteaco ocidental do aramaico Segundo J Jeremias

esses ldquopais da Igrejardquo satildeo de comum acordo de que o termo Abba era a palavra

usada por um filho pequenino quando se dirigia ao seu pai Um outro documento

usado por J Jeremias para dar sustentaccedilatildeo agrave sua pesquisa eacute o relato do Talmude (b

Berakocirct 40a b Sanedriacuten 70b) citado por ele com as seguintes palavras ldquoQuando

uma crianccedila prova o gosto do cereal isto eacute tatildeo logo como o detestam aprende a

dizer Abba e imma (papai e mamatildee) Abba e imma satildeo pois as primeiras palavras

que a crianccedila balbucia Abba era a linguagem infantil uma palavra comum

97

empregada diariamente ningueacutem tinha ousado dirigir-se a Deus desse modordquo (cf

Jeremias 2006 p63)

Deus como Pai para Jesus eacute com frequecircncia um Pai bom Ele ldquofaz nascer

seu sol sobre bons e maus Manda a chuva sobre justos e injustos (Lc 635 Mt

545) Para Pagola Jesus demonstra isso com muita maestria na paraacutebola do ldquofilho

perdidordquo (Lc 15 11-32) Nessa paraacutebola Pagola observa que o pai natildeo eacute um

personagem autoritaacuterio que natildeo respeita as decisotildees dos filhos pelo contraacuterio ele eacute

um pai amoroso e mesmo que o filho o tenha abandonado ele o recebe de braccedilos

abertos assim que este o pede perdatildeo (Pagola 2010 p386)

Embora a teologia do Abba seja defendida como a ipssissima vox de Jesus

por J Jeremias alguns autores contemporacircneos como Udo Schnelle defende que

natildeo haacute novidade na forma de Jesus invocar ou designar a Deus como pai visto que

isso era uma praacutetica comum tanto no judaiacutesmo como no mundo greco-romano

Segundo Schnelle a novidade do Abba nos laacutebios de Jesus estaacute na ecircnfase na

frequecircncia e na simplicidade com que Deus eacute designado como Pai nos Evangelhos

quando esse termo eacute proferido por Jesus (Schnelle 2010 p99-100)

J Jeremias defende que Jesus usou a palavra Pai na maioria das vezes

quando essa relaccedilatildeo era do Filho com o Pai Quanto ao uso da palavra Pai em

relaccedilatildeo a outras pessoas Jesus nunca fez alguma referecircncia a natildeo ser raras vezes

a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo apenas aos seus disciacutepulos e nunca a outros grupos

visto que a paternidade divina era uma exclusividade estendida apenas aos

disciacutepulos Grupos como os escribas e fariseus foram excluiacutedos dessa filiaccedilatildeo pois

o pai deles eacute o diabo conforme Joatildeo 8 42-44 (Jeremias 2008 p271)

Disse-lhes Jesus ldquoSe Deus fosse o vosso pai voacutes me amariacuteeis porque saiacute de Deus e dele venho natildeo venho por mim mesmo mas foi ele que me enviou Por que natildeo reconheceis minha linguagem Eacute porque natildeo podeis escutar minha palavra Voacutes sois do diabo vosso pai e quereis realizar os desejos do vosso pai Ele foi homicida desde o princiacutepio e natildeo permaneceu na verdade quando ele mente fala do que lhe eacute proacuteprio porque eacute mentiroso e pai da mentira

98

A questatildeo da filiaccedilatildeo divina eacute um processo iacutentimo entre o Pai e seu filho J

Jeremias observou que o texto do evangelho de Mateus (Mt 1127) pode ser mais

bem traduzido do seguinte modo ldquocomo soacute um Pai conhece o seu filho assim soacute um

filho conhece o seu pairdquo (Jeremias 1977 p29) Essa relaccedilatildeo de Filho e Pai que

Jesus propagou no Novo Testamento tem no Antigo Testamento o paralelo mais

proacuteximo nas palavras do salmista ldquoComo um pai se compadece dos filhos assim se

apieda o Senhor dos que o tememrdquo (Sl 103 13) Mas para os filhos do Reino o pai

eacute ainda maior Ele aleacutem de bondoso e misericordioso eacute benigno ateacute mesmo com os

ingratos e maus (Lc 635)

Seguindo esse pensamento Joseph A Fitzmyer observa que quando Jesus

instruiu os disciacutepulos a invocar a Deus como Pai Ele estava mostrando que Deus

natildeo era somente o ldquotranscendente Senhor dos ceacuteus mas estaacute perto assim como um

pai com seus filhosrdquo (Fitzmyer 1985 p898) Para Stephen A Missick Abba eacute

contudo um misteacuterio uma revelaccedilatildeo especial que vem somente atraveacutes de Jesus

Cristo Missick assim como J Jeremias observa que o texto de Mateus 1127

poderia ser parafraseado em aramaico ficando da seguinte forma ldquosomente pai e

filho realmente se conhecem Porque apenas um pai e um filho verdadeiramente

conhecem um ao outro portanto um filho pode revelar aos outros os pensamentos

mais iacutentimos de seu pairdquo (Missick 2006 p23) Para Missick o maior exemplo para

demonstrar essa intimidade entre o Filho e o Pai e o poder que o Filho tem de

revelar o Pai estaacute registrado em Joatildeo 148

Filipe lhe diz ldquoSenhor mostra-nos o Pai e isso nos bastardquo Diz-lhe Jesus ldquoHaacute tanto tempo estou convosco e tu natildeo me conheces Filipe Quem me vecirc vecirc o Pai Como podes dizer Mostra-nos o Pai Natildeo crecircs que estou no Pai e que o Pai estaacute em mim As palavras que vos digo natildeo as digo de mim mesmo mas o Pai que permanece em mim realiza suas obras Crede-me eu estou no Pai e o Pai em mim Crede-o ao menos por causa dessas obrasrdquo

O discurso de Jesus sempre foi conflitante com os grupos religiosos de sua

eacutepoca e isto se agravou mais ainda pelo modo como Ele invocava a Deus mediante

a expressatildeo ldquomeu Pairdquo fato que natildeo era comum no Judaiacutesmo Se essa forma de

99

dirigir-se a Deus chamando-o de ldquomeu Pairdquo era incomum muito mais incomum

ainda era o emprego da forma aramaica ldquoAbbardquo (Jeremias 2008 p116) Os Judeus

usavam duas maneiras de tratar o Pai uma que era muito comum e tambeacutem usada

no cotidiano familiar abba e outra que era mais solene e elevada abicirc (אב)

(Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p649) Para um judeu usar a palavra

Abba para dirigir-se a Deus parecia ser um atrevimento pois tal palavra soava como

balbucio Abba estava entre as primeiras palavras que uma crianccedila aprendia a falar

conforme a referecircncia que J Jeremias faz ao Talmude Babilocircnico jaacute citado neste

trabalho55

Jaacute nos dias de Jesus abba jaacute tinha deixado de ser apenas uma linguagem das

criancinhas para tornar-se uma forma como os filhos adultos se dirigiam a seu pai

como podemos ver na paraacutebola do filho proacutedigo (Lc 15 21) Nos laacutebios de Jesus

aleacutem de tornar-se uma forma familiar de invocar e dirigir-se a Deus abba passou a

ser tambeacutem considerada uma palavra lsquosagradarsquo uma vez que um soacute eacute o Pai dos

disciacutepulos a saber o que estaacute nos ceacuteus conforme Mateus 239 (Jeremias 2008

p121) Para Jesus Abba tornou-se uma expressatildeo de honra que somente o Pai

celeste eacute digno Essa maneira simples e iacutentima de Jesus dirigir-se a Deus como

uma criancinha fala a seu pai foi considerado por J Jeremias como a ipsiacutessima vox

de Jesus isto eacute um modo proacuteprio e original de falar usado por Jesus e que natildeo

tinha nenhuma analogia na literatura da eacutepoca (Jeremias 2008 p120)

[] a forma abbaacute suplantou a forma abbi usada no aramaico paletinense ateacute pelo menos o seacutec 2 a C como constatamos pela documentaccedilatildeo Aleacutem disso abbaacute tomou o sentido de ldquomeu pairdquo e de ldquoo pairdquo e ldquonosso pairdquo De tal modo que a palavra natildeo era apenas parte do linguajar das crianccedilas Os jovens de ambos os sexos tambeacutem chamavam o proacuteprio pai de Abbaacute (cf Lc 15 21) natildeo recorrendo agrave palavra ldquoSenhorrdquo (Kyrie) a natildeo ser cerimonioso (cf Mt 21 29-30) Mas apesar destes desenvolvimentos jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil (Jeremias 1977 p 24-25)

Mais tarde Fitzmyer comentando essa tese reconhece que J Jeremias

entendeu que Jesus natildeo se dirigiu a Deus invocando-o como uma criancinha faz

com seu pai Fitzmyer tambeacutem concorda que Abba eacute a ipisissima vox de Jesus para

55

para esclarecer essa tese podemos ver uma versatildeo semelhante a jaacute citada por J Jeremias (2006 p63) em outra obra sua conforme transcrevemos abaixo ldquoSomente quando uma crianccedila experimenta o gosto do trigo (isto eacute quando eacute desmamada) eacute que ela diz aacutebba imma [matildee] ou seja estes satildeo os primeiros balbuciosrdquo (cf Jeremias 2008 p119)

100

expressar o seu relacionamento com Deus mas que Abba por si soacute sem as oraccedilotildees

de louvor registradas pelos evangelistas Mateus e Lucas (Mt 11 25-27 Lc 10 21-

22) natildeo eacute suficiente para subsidiar tal argumento (Fitzmyer 1993 p61) Para

Ephraim o meacuterito de ter levado ao grande puacuteblico o verdadeiro sentido de como

Jesus se dirigia a Deus Pai chamando-o de Abba eacute de J Jeremias

[hellip] Joachim Jeremias levou ao grande puacuteblico toda a beleza do nome Abba tal como Jesus o pronunciava Enfatizou com razatildeo que em nenhuma outra parte do judaiacutesmo se encontra tal familiariadade Mesmo se por vezes Deus era invocado pelo vocaacutebulo Pai ningueacutem ousou antes do Filho primogecircnito dentre um grande nuacutemero de irmatildeos chamaacute-lo de Abba que literalmente quer dizer papai A ousadia amorosa sempre estivera do lado do Pai pois do lado da criatura nunca ningueacutem fora tatildeo longe como Jesus na resposta adesatildeo e entrega ao amor misericordioso (Ephraim 1998 p174)

54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS

Sabendo que os Evangelhos sinoacuteticos contecircm muitos traccedilos que remontam

para uma redaccedilatildeo poacutes-pascal J Jeremias pergunta ldquoseremos capazes de

remontarmos em particular a ipsissima vox de Jesusrdquo Os evangelhos apresentam

o querigma de Jesus ou segundo J Jeremias seria mais exato dizer que eles

apresentam a Didaquecirc (ensino) da Igreja primitiva A pergunta acima pode gerar um

certo ceticismo contudo natildeo tem forccedila para destruir o argumento de que

[] os logia de Jesus apresentam certas particularidades que devemos considerar como suas expressotildees favoritas jaacute que figuram independentemente uma das outras nas diversas narrativas da tradiccedilatildeo Abba e amen satildeo os traccedilos da linguagem mais caracteriacutesticos da ipsissima vox de Jesus (Jeremias 2006 p 137-138)

Haacute uma distinccedilatildeo entre ipsissima vox e ipsissima verba de Jesus Segundo J

Jeremias a presenccedila de um modo de falar preferido de Jesus (ipsissima vox) natildeo

dispensa absolutamente de examinar em cada caso particular se temos um dito

autecircntico (ipsissima verba) (Jeremias 2008 p79) Os apoacutestolos assim

compreenderam e Paulo vai dizer mais tarde que Abba eacute o clamor (ipsissima vox)

dos filhos de Deus daqueles que foram adotados na comunhatildeo do Espiacuterito Santo

Segundo Missick a importacircncia da palavra Abba vem justamente ao encontro dessa

teoria pois segundo ele natildeo haacute duacutevida de que essa foi a palavra exata que Jesus

101

falou ou seja Abba eacute a ipsissima vox a voz original ou a ipsissima verba as

autecircnticas palavras de Jesus (Missick 2006 p 23)

J Jeremias baseando-se em Dalman diz-nos que assim como o Abba a

palavra amen (ἀμήν) quando proferida por Jesus natildeo possui nenhum equivalente

na literatura judaica e nem nos demais escritos do Novo Testamento Nos discursos

judaicos a palavra ameacuten ldquoservia para ratificar reforccedilar e fazer proacuteprias as palavras

de outro (cf Jr 28 6) na tradiccedilatildeo dos logia de Jesus se utiliza sem exceccedilatildeo esse

termo para reforccedilar o proacuteprio discursordquo (cf Jeremias 2006 p 138) Podemos ver

esse pensamento exposto nas palavras do proacuteprio Dalman

Jaacute foi frequumlentemente apontado que o modo como Jesus usa a palavra ameacutem natildeo eacute familiar em toda a literatura judaica Mesmo em Sota II 5 cf Jerus I e II num 522 realmente natildeo pode ser forccedilado a comparaccedilatildeo Nessa passagem a repeticcedilatildeo amen pronunciado pela mulher suspeita de adulteacuterio eacute explicada como um protesto de sua inocecircncia como se ela estivesse a dizer ameacutem [= eu protesto] que eu natildeo me poluiacute ameacutem que eu natildeo vou poluir a mim mesma (cf Dalman 1902 p226)

J Jeremias refere-se agraves foacutermulas ameacuten legocirc hymin (sou) (em verdade vos [te]

digo) nos sinoacuteticos e amen ameacuten legocirc hymin (soi) (em verdade em verdade vos

[te] digo) em Joatildeo Segundo ele o nuacutemero de vezes que tais expressotildees aparecem

nos evangelhos eacute 13 vezes em Marcos 30 em Mateus (+ Mt 18 19 var) 6 em

Lucas e 25 em Joatildeo onde haacute uma reduplicaccedilatildeo Para J Jeremias este amen natildeo

responsivo coloca-nos diante de uma forma totalmente nova e peculiar dos

Evangelhos e principalmente de Jesus (Jeremias 2006 p 138-139)

Sobre a grandeza do Abba como a ipsissima vox de Jesus vejamos o que nos

diz J Jeremias

Natildeo haacute paralelos com esta mensagem de que Jesus quer ocupar-se dos pecadores natildeo dos justos e que desde agora lhes daacute jaacute a participaccedilatildeo em seu reinado Natildeo haacute paralelos com este Jesus que se senta agrave mesa com publicanos e pecadores Natildeo haacute paralelos com a autoridade com que Jesus se atreve a dirigir-se a Deus com a invocaccedilatildeo de Abba Quem reconhece unicamente o fato (e natildeo sei como algueacutem poderia negaacute-lo) de que a palavra ldquoabbardquo eacute ipsissima vox Iesu esse tal se entende bem a palavra e natildeo a desvirtua estaacute diante da pretensatildeo que Jesus tinha de sua proacutepria majestade (Jeremias 2006 p40)

Se para Jesus invocar a Deus como Pai era um direito exclusivo dado aos

disciacutepulos na igreja primitiva isso era privileacutegio apenas dos membros que jaacute

102

estavam integrados na igreja aos neoacutefitos era lhes reservado o direito de aprender a

oraccedilatildeo mas soacute podiam pronunciaacute-la em puacuteblico a partir da primeira Eucaristia logo

apoacutes o batismo conforme Cirilo um sacerdote de Jerusaleacutem que viveu por volta do

ano 350 dC (Jeremias 1979 p10) Segundo J Jeremias essas restriccedilotildees podem

ser vistas ateacute mesmo na divisatildeo dos capiacutetulos da Didaquecirc no seacuteculo I Na Didaquecirc

a oraccedilatildeo e a ceia do Senhor soacute vecircm depois do batismo (Jeremias 1979 p9-10)

Isso demonstra o quanto era sagrado o direito de invocar a Deus Pai chamando-o

de Abba Pai

55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR

Jesus pertencia a uma famiacutelia piedosa judaica (Lc 2 1-52 cf 416) viveu no

meio de um povo que sabia orar por isso eacute bem provaacutevel que desde menino tenha

aprendido em casa com seus pais a exercer a praacutetica da oraccedilatildeo cotidiana

Segundo J Jeremias natildeo eacute possiacutevel saber muita coisa sobre a praacutetica de oraccedilatildeo na

vida de Jesus aleacutem dos trecircs gritos da cruz relacionados nos sinoacuteticos haacute ainda

duas oraccedilotildees ldquoo grito de juacutebilo (Mt 11 25-26) e a oraccedilatildeo do Getsecircmani (Mc 14 36)rdquo

O Evangelho de Joatildeo registra outras trecircs oraccedilotildees de Jesus na ressurreiccedilatildeo de

Laacutezaro (Jo 1 14-42) na esplanada do templo (equivalente joanino da oraccedilatildeo do

Getsecircmani Jo 12 27) e a oraccedilatildeo sacerdotal (Jo 17) Aleacutem disso temos outros

relatos gerais de oraccedilatildeo registrados nos Evangelhos (cf Mc 1 35 646=Mt 14 23

Lc 3 21 5 16 6 12 9 18 28-29 Lc 22 31-32) e a oraccedilatildeo do Pai-nosso

(Jeremias 2006 p123)

Podemos ainda mencionar que com exceccedilatildeo das mulheres dos filhos

pequenos e dos escravos todos os homens de Israel a partir dos treze anos

estavam obrigados a recitar regularmente o Shemaacute56 (ldquoOuve oacute Israel Iahweh nosso

Deus eacute o uacutenico Iahwehrdquo Dt 64) duas vezes ao dia Aleacutem da profissatildeo de feacute judaica o

mandamento divino era logo recitado em seguida (cf Jeremias 2006 p 116)

Portanto amaraacutes a Iahweh teu Deus com todo o seu coraccedilatildeo com toda a tua alma e com toda a tua forccedila Que estas palavras que hoje te ordeno

56

No entanto segundo J Jeremias o shemaacute era ensinado aos filhos desde que esses aprendiam a falar (cf Jeremias 2006 p 116)

103

estejam em teu coraccedilatildeo Tu as inculcaraacutes aos teus filhos e delas falaraacutes sentado em tua casa e andando pelo caminho deitado e de peacute (Dt 6 5-7)

No Novo Testamento a oraccedilatildeo jaacute havia deixado de ser praticada duas vezes

ao dia para concretizar-se em trecircs vezes conforme vemos no livro dos Atos dos

Apoacutestolos (31 10 3-30) e na Didaquecirc (83) Segundo Jeremias isso se deve ao

fato de ter havido uma fusatildeo entre o Shemaacute (apesar dessa natildeo ser propriamente

uma oraccedilatildeo mas uma profissatildeo de feacute) com a Tefilaacute no periacuteodo da manhatilde e da noite

enquanto que na oraccedilatildeo da tarde natildeo se recitava o Shemaacute Para os israelitas esses

momentos de oraccedilatildeo eram muito preciosos jaacute que se assegurava a formaccedilatildeo dos

jovens na praacutetica da oraccedilatildeo (Jeremias 2006 p22)

Jesus com certeza conhecia as oraccedilotildees e as formas lituacutergicas para proferi-las

no entanto ao ser indagado pelo disciacutepulo anocircnimo (Lc 111) com a indagaccedilatildeo

ldquoSenhor ensina-nos a orarrdquo eacute claro que o Mestre sabia que seus disciacutepulos tambeacutem

conheciam as oraccedilotildees tradicionais visto que tambeacutem eram judeus No entanto eacute

muito provaacutevel que o disciacutepulo anocircnimo estaacute pedindo a Jesus um novo modelo de

oraccedilatildeo que os distinguisse como um grupo Jesus ensinou-lhes o Pai-nosso que se

tornaria a oraccedilatildeo oficial da Igreja primitiva e viria a substituir o antigo modelo das

trecircs oraccedilotildees diaacuterias tatildeo conhecidas em Israel conforme pode ser visto na Didaquecirc

(9-10) Surge entatildeo uma nova forma de orar a partir do ensinamento de Jesus

baseado na expressatildeo Abba que era a forma singular de expressatildeo usada por ele

para dirigir-se ao Pai que estaacute nos ceacuteus (Jeremias 2006 p129-131)

A relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai atinge seu aacutepice na Oraccedilatildeo do Pai-nosso

onde Jesus estaacute ensinando seus disciacutepulos orar A pergunta feita pelo disciacutepulo

anocircnimo em Lucas 111 (Senhor ensina-nos a orar) resultou no mais belo

ensinamento de Jesus a respeito da oraccedilatildeo Na oraccedilatildeo do Pai-nosso como exemplo

de humildade e obediecircncia ldquoJesus se entrega agrave vontade de Deus como a crianccedila o

faz em relaccedilatildeo ao Pairdquo (Goppelt 2002 p 216) Para Haight a oraccedilatildeo modelo eacute

composta por uma invocaccedilatildeo dois anseios ou esperanccedilas e trecircs pedidos (cf Haight

2003 p139) 57 O teoacutelogo Leonardo Boff assim resume a essecircncia desse magniacutefico

modelo de oraccedilatildeo

57

A forma apresentada por Lucas da oraccedilatildeo do Pai-nosso consiste de um endereccedilamento (ldquoPairdquo) dois desejos proferidos a Deus e trecircs peticcedilotildees ditas a ele A forma em Mateus apresenta um endereccedilamento expandido trecircs desejos e quatro peticcedilotildees Nesse modo de orar Jesus instrui e

104

Na oraccedilatildeo do Senhor encontramos praticamente a correta relaccedilatildeo entre Deus e o homem o ceacuteu e a Terra o religioso e o poliacutetico mantendo a unidade do mesmo processo A primeira parte diz respeito agrave causa de Deus o Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome seu Reino sua Vontade santa A segunda parte concerne agrave causa do homem o patildeo necessaacuterio o perdatildeo indispensaacutevel a tentaccedilatildeo sempre presente e o mal continuamente ameaccedilador Ambas as partes constituem a mesma e uacutenica oraccedilatildeo de Jesus Deus natildeo soacute se interessa pelo que eacute seu o Nome o Reino a Vontade divina Ele se preocupa tambeacutem pelo que eacute do homem o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo o mal Igualmente o homem natildeo soacute se prende ao que lhe importa o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo e o mal abre-se tambeacutem ao que respeita ao Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome a chegada de seu Reino a realizaccedilatildeo de sua Vontade (Boff 2009 p17-18)

Em seu livro ldquoO Pai-nosso a oraccedilatildeo do Senhorrdquo J Jeremias enfatiza o alto

valor que a referida oraccedilatildeo tinha na liturgia entre os cristatildeos da Igreja primitiva J

Jeremias nos diz que o mais antigo uso dessa oraccedilatildeo era a recitaccedilatildeo da mesma na

24ordf catequese de Cirilo onde o Pai-nosso era recitado antes da comunhatildeo e era

restrito dentro do culto divino apenas aos batizados ou seja aos membros efetivos

da Igreja Essa praacutetica provinha de Jerusaleacutem e vigorava por toda a Igreja Desde os

primeiros passos na feacute os neoacutefitos jaacute aprendiam a recitar de cor a oraccedilatildeo do Pai-

nosso mas soacute tinham o direito de rezaacute-lo com os demais fieacuteis a partir do momento

em que participavam da primeira eucaristia ou seja logo apoacutes o batismo (Jeremias

1979 p 5-6)

O uso regular do Pai-nosso na liturgia da Igreja eacute tambeacutem testemunhado na

Didaquecirc (Doutrina dos Doze Apoacutestolos) que segundo J Jeremias eacute tatildeo antiga que

chega a ser datada no seacutec I dC ou para ser mais preciso segundo Boff ela foi

escrita por volta dos anos 50 a 70 dC (Boff 2009 p36) Para J Jeremias a

importacircncia dada ao Pai-nosso na Didaquecirc pode ser observada na estrutura da

obra

[] O livro comeccedila (cc 1-6) com a doutrina dos dois caminhos o da vida e da morte que evidentemente pertencia agrave instruccedilatildeo dada aos catecuacutemenos Em seguida o c 7 trata do batismo soacute depois disso eacute que vecircm as seccedilotildees de importacircncia para os batizados Jejum e oraccedilatildeo (inclusive o Pai-nosso) no c 8 Ceia do Senhor nos cc 9 e 10 organizaccedilatildeo e disciplina eclesiaacutesticas nos cc 11 a 15 O que nos interessa aqui eacute que oraccedilatildeo e Ceia do Senhor vecircm depois do batismo

autoriza seus disciacutepulos a chamar a Deus como ldquoPairdquo usando o mesmo tiacutetulo que ele mesmo utilizou em sua oraccedilatildeo de louvor Lc 1021 (duas vezes) e utilizaraacute de novo em Lc 22 42 (cf Fitzmyer 1985 p 899)

105

O que J Jeremias conclui eacute que diferentemente de hoje onde o Pai-nosso eacute

acessiacutevel a todos nos primoacuterdios do cristianismo era bem diferente O privileacutegio de

recitar a oraccedilatildeo do Senhor era reservado apenas aos membros que estavam

plenamente integrados agrave Igreja A perda da reverecircncia e do temor pela oraccedilatildeo do

Senhor eacute tratada por J Jeremias com apreensatildeo e o retorno agrave reverecircncia que a

Igreja primitiva dava ao Pai-nosso soacute pode ser reconquistada se atraveacutes da exegese

biacuteblica buscarmos entender qual era o sentido que o proacuteprio Senhor quis dar agraves

palavras dessa sagrada oraccedilatildeo (Jeremias 1979 p 8-12)

Concordando com J Jeremias Ephraim tambeacutem observa que nos primeiros

seacuteculos da era cristatilde os cristatildeos pronunciavam as palavras do Pai-nosso ldquocom

grande temor como que em segredordquo O motivo para tal respeito era o medo de

transpassar os limites da reverecircncia e cair na blasfecircmia ao pronunciar o nome

inefaacutevel de Deus Segundo Ephraim ainda hoje baseado nesse profundo respeito

pela sagrada oraccedilatildeo os cristatildeos bizantinos ainda conservam a seguinte foacutermula

antes de iniciarem a oraccedilatildeo ensinada pelo senhor ldquoE torna-nos dignos Mestre de

ousar com toda a seguranccedila e sem incorrer em condenaccedilatildeo de te chamar de Pai a

ti o Deus do ceacuteu e de te dizer Pai nossordquo Ao observarmos essa foacutermula bizantina

que antecede a oraccedilatildeo do Pai-nosso concluiacutemos com Ephraim que o respeito e o

medo de ser indigno de pronunciar tal oraccedilatildeo fizeram com que a tradiccedilatildeo da

comunidade cristatilde acima mencionada conservasse com muita precauccedilatildeo haacutebitos e

costumes dos primeiros cristatildeos no que diz respeito a como se deve orar o Pai-

nosso (Ephraim 1998 p 174)

Partindo do princiacutepio que por volta do ano 75 dC a oraccedilatildeo do Pai-nosso era

obrigatoacuteria na formaccedilatildeo dos neoacutefitos tanto os cristatildeos de origem judaica quanto os

de origem grega tinham em comum a obrigatoriedade da oraccedilatildeo do Senhor na

formaccedilatildeo dos novos disciacutepulos Quanto agrave questatildeo do por que duas versotildees do Pai-

nosso ou se eacute possiacutevel que um dos disciacutepulos tenha acrescentado ou retirado

palavras da forma original J Jeremias conclui que ambos os disciacutepulos jamais

alterariam algum ponto da oraccedilatildeo do Senhor A forma mais clara para se

compreender a aparente divergecircncia estaacute no fato de que ambos escreveram para

igrejas diferentes locais e situaccedilotildees diferentes por isso cada evangelista optou por

transmitir um texto segundo o seu tempo e sua Igreja (Jeremias 1979 p 16-21)

106

Quando lemos a oraccedilatildeo do Pai-nosso nas duas versotildees ou seja por Mateus

e por Lucas surgem questotildees a respeito da antiguidade dos textos e das variantes

textuais entre os dois Evangelhos J Jeremias em sua obra acima citada trabalha

com esmero essas duas questotildees e outras tambeacutem natildeo menos importantes Antes

de abordamos as questotildees levantadas por J Jeremias segue abaixo os textos dos

Evangelhos bem como o texto de Lucas retraduzido para o aramaico segundo J

Jeremias e uma versatildeo do aramaico recitado por cristatildeos que ainda hoje falam o

aramaico conforme Stephen Missick

Mt 6 9-13 Lc 11 2-4

() Portanto orai desta maneira

Pai nosso que estaacutes nos ceacuteus

Santificado seja o teu Nome

venha o teu Reino

seja feita a tua vontade

na terra como no ceacuteu

o patildeo nosso de cada dia

daacute-nos hoje

E perdoa-nos as nossas diacutevidas

como tambeacutem noacutes perdoamos aos

nossos devedores

E natildeo nos submeta agrave tentaccedilatildeo

mas livra-nos do Maligno

() Respondeu-lhes ldquoQuando orardes

dizei

Pai santificado seja o teu Nome

venha o teu reino

o patildeo nosso cotidiano daacute-nos a cada dia

pois tambeacutem noacutes perdoamos aos nossos

devedores

e natildeo nos deixes cair na tentaccedilatildeordquo

Pai Nosso aramaico segundo J

Jeremias

Pai-nosso em aramaico recitado pelos

cristatildeos em aramaico segundo Missick

abba [pai]

yitqaddash shemak tete malkutak

[santificado seja o teu nome venha teu

reino]

Awoon Dwashmaya

Nethqaddash Shmakh

Tethe malkuthakh

Nehweh sebayanakh

107

lahman delimhar hab lan yoma den [o

patildeo nosso de amanhatilde daacute-nos neste dia]

ushebok lan hobenan kedishebaqnan

lehayyabenan [e perdoa-nos as nossas

diacutevidas (pecados) assim como

perdoamos os nossos devedores

(pecadores)]

wela ta el nnan lenisayon [e natildeo nos

conduza agrave tentaccedilatildeo] (cf Jeremias 2008

p291)

Aykana dwashmayya aph ara

Hab lan lakhma dsunkanan yowmana

Washboq lan hawbayn aykanan dap

hanan shwaqnan l-hayawayn

Wa la talain Inesyona

Ella passan min beesha

Mittol dlakh hee malkoota wa khaylan w

tishbookhta alalam almeen Amen (cf

Missick 2006 p58)

Para J Jeremias para entendermos o sentido do Pai-nosso na redaccedilatildeo de

Mateus eacute preciso ver que Jesus estaacute advertindo seus disciacutepulos a natildeo praticarem as

esmolas oraccedilatildeo e jejum da mesma forma que elas eram praticadas pelos fariseus

visto que estes amavam praticaacute-las desde que fossem vistos e reconhecidos pelos

homens Os disciacutepulos deviam procurar um cocircmodo por menor que fosse e natildeo

imitar os fariseus em hipoacutetese alguma no quesito de sempre ser pegos em uma

aparente surpresa na hora da oraccedilatildeo para que dessa forma pudessem sempre que

possiacutevel orar no meio da multidatildeo com o uacutenico objetivo de serem reconhecidos e

honrados

Em relaccedilatildeo ao texto de Lucas J Jeremias descreve sobre o fato de tanto a

situaccedilatildeo quanto os leitores de Lucas serem diferentes dos de Mateus Em Lucas a

oraccedilatildeo eacute mais breve o sentido do texto eacute o ensinar a perseveranccedila na oraccedilatildeo visto

que a mesma eacute precedida pela paraacutebola do amigo importuno As diferenccedilas entre a

oraccedilatildeo contida em Mateus e a de Lucas eacute devido aos diferentes grupos a quem

essa oraccedilatildeo foi destinada Segundo J Jeremias os leitores para os quais Mateus

deve ter destinado o Evangelho eram homens que desde a infacircncia aprenderam a

orar enquanto que os de Lucas eram antigos convertidos ao cristianismo

Ao nos depararmos com as duas versotildees da oraccedilatildeo do Pai Nosso na Biacuteblia

(Mateus 6 9 -13 e Lucas11 2-4) logo vem agrave mente qual delas se aproxima mais da

versatildeo original de Jesus ou entatildeo em que liacutengua Jesus proferiu essa magniacutefica

oraccedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta J Jeremias responde da seguinte forma

108

[] a formulaccedilatildeo mais curta de Lucas estaacute integralmente contida na redaccedilatildeo longa de Mateus Isto faz com que seja bem provaacutevel que a forma de Mateus seja uma ampliaccedilatildeo pois pelo que sabemos das leis que regem a transmissatildeo dos textos lituacutergicos quando uma redaccedilatildeo mais curta estaacute assim integralmente contida numa longa eacute a mais curta que deve ser considerada como original (J Jeremias 1979 p23)

Contudo J Jeremias conclui que o texto de Lucas eacute o mais antigo quanto agrave

extensatildeo mas em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo oral (verbal) o texto de Mateus eacute o mais antigo

(cf Jeremias 2008 p 291) Complementando o pensamento de J Jeremias a

respeito da versatildeo original do Pai Nosso Boff assim conclui ldquoDestarte Lucas seria

mais originalrdquo (Boff 2009 p36)

Concernente agrave liacutengua materna de Jesus e agrave cultura da Palestina daquela

eacutepoca podemos ainda perguntar era Jesus um poliglota ou falava apenas o

aramaico Antes de tratarmos com mais detalhes a respeito da liacutengua e cultura de

Jesus observamos a princiacutepio que pelo menos trecircs liacutenguas eram faladas na

Palestina nos dia de Jesus (aramaico grego e latim) conforme as informaccedilotildees

contidas no texto de Joatildeo 19 19-20

Segundo Sabugal haacute uma grande probabilidade de que Jesus possuiacutesse

conhecimentos da liacutengua grega pelos contatos registrados entre Jesus e algumas

pessoas de origem helecircnica como o centuriatildeo romano (Mt 5 8-13 cf Lc 7 1-10)

tambeacutem com a mulher sirofeniacutecia aleacutem do disciacutepulo chamado Filipe que

provavelmente conhecia a liacutengua grega conforme podemos interpretar a partir da

leitura de Joatildeo 12 20-2 (Sabugal 1985 p319) No entanto para Sabugal a liacutengua

popular na Palestina dos dias de Jesus era o aramaico galileu58 Tal liacutengua era tatildeo

familiar agraves comunidades a ponto de apoacutes a leitura de um texto sagrado em

hebraico (Toraacute) logo seguia-se uma traduccedilatildeo para o aramaico (Targum) onde o

texto podia ser compreendido por todos Portanto fica evidente que o aramaico foi a

liacutengua materna de Jesus isso fica mais claro ainda quando encontramos nos

evangelhos palavras aramaicas (cf Mc 14 36 Lc 23 34 42 46 Mc 15 34 = Mt

58 Para Geza Vermes a liacutengua original do Pai-nosso era o aramaico mesmo que alguns estudiosos

discordem colocando o hebraico como a liacutengua original (segundo vermes sem convencer) a maioria dos especialistas eacute de acordo com essa teoria Vermes observa que aleacutem das peculiaridades do grego de Mateus o Pai-nosso tem semelhanccedilas com o kadish uma antiga oraccedilatildeo judaica composta em aramaico que era conhecida por Jesus e que ele teria sido influenciado e inspirado por ela (Vermes 2006 p 258)

109

27 46) conservadas pelos evangelistas sem traduccedilatildeo para a liacutengua grega (Sabugal

1985 p321)

Ao se referir sobre a origem do Pai Nosso Sabugal assim exclama ldquoQue

alegria seria se conseguiacutessemos recuperar a ipsissima verba do Pai Nosso ensinado

por Jesus de Nazareacute e reconstruindo seu texto primitivo pudeacutessemos escutar a

ipsissima vox do Mestrerdquo (Sabugal 1985 p317) Para Sabugal natildeo haacute duacutevida que

os vocaacutebulos gregos estatildeo dispostos segundo os usos da gramaacutetica semiacutetica O

autor tambeacutem entende que na oraccedilatildeo do Pai Nosso tanto de Mateus como na de

Lucas teve como fundo doutrinaacuterio e literaacuterio a liacutengua materna de Jesus (aramaico)

Conforme J Jeremias para compreendermos a essecircncia da oraccedilatildeo de Jesus faz-se

necessaacuterio aproximarmo-nos do proacuteprio modo de falar do Mestre e isso soacute eacute

possiacutevel quando chegamos a ipsissima vox de Jesus (Sabugal 1985 p317)

Sabugal (1985 p317) concorda que descobrir a liacutengua materna de Jesus eacute

algo muito importante e extraordinariamente fundamental O referido autor

compartilha com J Jeremias dessa tese haja vista que eacute importante levar em

consideraccedilatildeo o fato de que para ele os escritores dos evangelhos eram verdadeiros

autores literaacuterios e autecircnticos teoacutelogos de suas comunidades cristatildes capazes de

transmitir com fidelidade a essecircncia da mensagem de Jesus59 Aleacutem do mais os

autores biacuteblicos eram divinamente inspirados pelo Espiacuterito Santo conforme os

textos de 2 Tm 316 e 2Pe 121

Por outro lado Leonardo Boff (2009 p36) considera que a oraccedilatildeo de Jesus

natildeo pode ser tratada como uma oraccedilatildeo simples que possa ser retraduzida do grego

para o aramaico primitivo conforme fez J Jeremias no texto que reproduzimos

abaixo

Pai querido Que o teu nome seja santificado Que venha o teu reino Daacute-nos hoje nosso patildeo de amanhatilde E perdoa-nos nossas diacutevidas como noacutes tambeacutem ao dizermos estas palavras estamos perdoando a nossos devedores E natildeo nos deixes sucumbir agrave tentaccedilatildeo (Jeremias 1979 p33)

59

Sobre a autoria e composiccedilatildeo dos Evangelhos ver o capiacutetulo 4 paraacutegrafo 3 deste trabalho

110

Observamos que de acordo com o pensamento de Boff natildeo eacute faacutecil reproduzir

a oraccedilatildeo de Jesus do grego para o aramaico e dessa forma tambeacutem pensa

Sabugal o qual apesar de achar o trabalho de J Jeremias de extrema importacircncia

no entanto assim como Boff pensa que realizar tal tarefa natildeo eacute nada faacutecil uma vez

que envolve estudos linguiacutesticos e literaacuterios concernentes agrave liacutengua materna e ao

texto primitivo do Pai-nosso em sua composiccedilatildeo riacutetmica e literaacuteria bem como a real

motivaccedilatildeo de Jesus ao ensinar essa oraccedilatildeo aos seus disciacutepulos Haja vista o grau

de dificuldade apresentado acima natildeo podemos deixar de observar que quanto

mais nos aproximarmos do Pai-nosso de Jesus na sua originalidade mais

maravilhados ficaremos diante da grandiosidade dessa magniacutefica oraccedilatildeo

56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA

Conforme J Jeremias e a maioria dos estudiosos Abba eacute um termo que faz

parte da liacutengua semiacutetica para ser mais preciso do aramaico Oriacutegenes pertencente

ao periacuteodo da Patriacutestica profundo conhecedor do grego e das liacutenguas semiacuteticas

segundo Fitzmyer (1992 p 48) estranhamente considerou o termo Abba como

sendo uma palavra hebraica Restou a Jerocircnimo esclarecer que o termo Abba era

siacuterio (Syrum est non hebraeum) e natildeo hebraico Lembrando que o que Jerocircnimo

chamava de siacuterio nos dias dele noacutes chamamos de aramaico

Segundo Matthew Black o aramaico foi uma das grandes liacutenguas faladas na

antiguidade por volta do VI e III seacuteculos aC quando o mundo era governado pelos

grandes impeacuterios orientais desde o Eufrates ateacute o Nilo Essa liacutengua tornou-se a

liacutengua dos judeus provavelmente depois do Exiacutelio O aramaico foi suplantado pelo

grego koineacute no mundo civilizado da eacutepoca durante o impeacuterio de Alexandre o

Grande No entanto o grego nunca substituiu por completo o uso do aramaico entre

os judeus tanto da Palestina como da Babilocircnia bem como de alguns povos de

cultura semiacutetica na Siacuteria e Mesopotacircmia (Black 1998 p14)

Entre os judeus podemos encontrar dois dialetos aramaicos na Palestina

conforme a pesquisa apresentada por Dalman Black menciona que segundo a

distinccedilatildeo feita por Dalman os dialetos estatildeo propostos na seguinte forma o primeiro

representado pelo aramaico do Antigo Testamento e o aramaico do Targum para

Pentateuco e para os profetas O segundo composto pelo conjunto de anedotas

111

popular do Talmude Palestino junto com outras partes do comentaacuterio palestinense

do Antigo Testamento dos antigos Midrash60 haggaacutedicos (Black 1998 p19)

No entanto a liacutengua na qual foi escrito o Novo Testamento eacute aceita quase que

por unanimidade pelos eruditos como sendo o grego coineacute ou grego biacuteblico

conforme foi chamado pelos especialistas ateacute o comeccedilo do seacuteculo XX (Koester

2005 vol I p118) Segundo Koester (2005 vol1 p120-121) todos os livros do

Novo Testamento foram escritos originalmente em grego e esse autor eacute mais

enfaacutetico ainda quando afirma que nenhuma obra dos primeiros cristatildeos escrita em

grego pode ser traduccedilatildeo direta do hebraico ou do aramaico De acordo com Koester

eacute fato que existem inuacutemeros hebraiacutesmos e aramaiacutesmos constantes no Novo

Testamento que podem ser citaccedilotildees gregas da Biacuteblia hebraica ou ainda que

podem ser justificadas pelo fato de que o autor estava inserido num ambiente que

propiciava a formulaccedilatildeo de palavras semiacuteticas como no caso dos Evangelhos onde

Jesus e seus disciacutepulos eram falantes nativos do aramaico

Koester observa que as traduccedilotildees do aramaico para o grego devem ter

acontecido num periacuteodo anterior aos escritos dos primeiros cristatildeos quando esses

ainda conservavam na memoacuteria apenas a tradiccedilatildeo oral Essas traduccedilotildees foram

feitas deacutecadas antes da composiccedilatildeo dos Evangelhos e dessa forma no processo

de composiccedilatildeo das fontes dos Evangelhos praticamente todos os aramaiacutesmos

foram substituiacutedos por palavras gregas com exceccedilatildeo do Evangelho de Marcos que

parece ter usado fontes gregas que eram traduccedilotildees diretas dos originais aramaicos

ou ainda os relatos de milagres no Evangelho de Joatildeo que possivelmente tambeacutem

pode ter sido traduccedilatildeo de um original aramaico (Koester 2005 vl 1 p121-122)

Outra observaccedilatildeo de Koester eacute a questatildeo do bilinguismo na Palestina Entre

os primeiros cristatildeos havia uma mescla de seguidores de Jesus que falavam o

aramaico e o grego Esses foram determinantes para que a composiccedilatildeo dos

Evangelhos fosse fortemente influenciada pelo aramaico Para Koester ldquoalguns

desses semitismos satildeo empreacutestimos semacircnticos que derivam do ambiente geral da

liacutengua como θάλασσα natildeo soacute para mar ou oceano mas tambeacutem para lago uma

vez que o aramaico יםאא denota ambosrdquo (Koester 2005 vl1 p122)

60

Etimologicamente essa palavra tem como raiz o termo darash procurar significa pesquisa sobre a Escritura e tem como funccedilatildeo o meacutetodo de estudo das Escrituras com vistas agrave sua atualizaccedilatildeo (cf Vermes 1990 p11)

112

Para trabalhar as questotildees filoloacutegicas e semacircnticas do Abba precisamos

investigar se a liacutengua materna de Jesus era realmente o aramaico Muitas questotildees

tecircm sido levantadas sobre a liacutengua que Jesus falava e tambeacutem questotildees sobre o

niacutevel cultural do Nazareno As liacutenguas oficiais do impeacuterio romano eram o latim e o

grego Para John P Meier questotildees relacionadas ao idioma ou idiomas que Jesus

falava satildeo muito complexas visto que natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz daquele

periacuteodo e as inscriccedilotildees em latim podem apenas ser um sinal para demonstrar a

presenccedila do poderio romano do que ter a finalidade de informar aos judeus sobre

algo que lhes fosse interessante Como para Meier no mundo greco-romano a

maioria da populaccedilatildeo era analfabeta isso obviamente era vaacutelido tambeacutem para a

populaccedilatildeo judaica (Meier 1993 p254)

Meier usa como exemplo uma famosa ldquoinscriccedilatildeo de Pocircncio Pilatosrdquo que foi

descoberta na Cesareia Mariacutetima em 1961 Essa inscriccedilatildeo em latim foi dedicada ao

Imperador Tibeacuterio por Pilatos A questatildeo levantada por Meier eacute ateacute que ponto esta

inscriccedilatildeo alcanccedilou os gentios e judeus que viviam em Cesareia Possivelmente

para esse autor Pilatos estava preocupado em alcanccedilar apenas as elites ou seja

ele se dirigia apenas aos seus ldquoiguaisrdquo aqueles que estavam a serviccedilo do Impeacuterio ou

faziam parte das elites dominantes As inscriccedilotildees mesmo que sejam as oficiais em

preacutedios puacuteblicos ou aquedutos construiacutedos pelo Impeacuterio ou ateacute mesmo as inscriccedilotildees

funeraacuterias natildeo provam em nada que o latim fosse uma liacutengua comum na Palestina

O fato de uma laacutepide tumular estar em latim poderia apenas ser ldquoo desejo de dar

uma impressatildeo de alta culturardquo e nada mais Assim como segundo Meier natildeo se

pode concluir que os catoacutelicos americanos do iniacutecio do seacuteculo XX tinham um idioma

comum apenas observando a frase Requiescat in pace (do latim descanse em Paz)

inscrita em seus tuacutemulos e nem as muitas inscriccedilotildees em latim espalhadas pela

Europa podem refletir as inuacutemeras liacutenguas faladas hoje em dia nesse continente

Meier observa entatildeo que o Latim eacute visto quase que por unanimidade como o

idioma menos falado na Palestina nos dias de Jesus e por isso ldquonatildeo haacute razatildeo para

se pensar que Jesus falou e muito menos leu o latimrdquo (Meier 1993 p 254 ndash 255)

Se o latim natildeo era tatildeo comum na Palestina jaacute o grego segundo Meier era

um caso totalmente diferente O grego era comum em todo o Impeacuterio romano

inclusive em Roma capital do Impeacuterio A Palestina dos dias de Jesus era altamente

113

helenizada haviam cidades e povoados que foram transformados de uma forma

poliacutetica e cultural em cidades gregas61 Segundo Meier o debate atual entre os

estudiosos estaacute concentrado apenas em saber qual era o grau de helenizaccedilatildeo

nessas cidades Mesmo apoacutes o periacuteodo dos Macabeus onde houve um movimento

de resistecircncia agrave liacutengua e a cultura grega natildeo foi possiacutevel extinguir essa cultura da

Palestina porque apoacutes esse periacuteodo (dos Macabeus) a Palestina passou a ser

governada pelos Asmoneus que tiveram como monarca principal por volta do final

do seacuteculo I aC Herodes o Grande Herodes deu continuidade agrave poliacutetica de

helenizaccedilatildeo que tinha comeccedilado com os reis Selecircucidas especificamente por

Antiacuteoco Epiacutefanes IV O processo de helenizaccedilatildeo de Herodes foi desde a construccedilatildeo

do porto da Cesareia Mariacutetima a cidade de Sebaste em Samaria e muitas outras

grandes edificaccedilotildees em Jerusaleacutem Segundo Meier as inscriccedilotildees em Grego em

Jerusaleacutem eram inuacutemeras desde o Templo as sinagogas ateacute ossuaacuterios Meier assim

descreve a influecircncia grega na Palestina

[] Martin Hengel afirma que uma terccedila parte dos epitaacutefios em Jerusaleacutem do periacuteodo do Segundo Templo eram escritos em grego e ele ainda calcula que das 80000 ou 100000 pessoas que residiam na grande Jerusaleacutem entre 8000 e 16000 teriam falado grego Mas natildeo foi soacute em Jerusaleacutem que a liacutengua e a cultura gregas alcanccedilaram os judeus Um grande nuacutemero de judeus vivia nas cidades helenizadas da planiacutecie litoracircnea desde Gaza no sul ateacute Dor ou Ptolomaicas-Acco no norte Em Cesareia a capital romana da Judeia havia quase tantos judeus como gentios As cavernas de Murabaat nos forneceram papiros gregos sobre a vida diaacuteria e ateacute mesmo ndash por ironia ndash coacutepias de cartas em grego do tempo da revolta de Bar Kochba exatamente quando os nacionalistas lutavam e morriam para se libertarem do jugo estrangeiro e da dominaccedilatildeo cultural

Concernente agrave liacutengua grega e suas influecircncias na Palestina Meier observa

que para se chegar a uma conclusatildeo ou aproximaccedilatildeo de algum fato referente agrave que

idioma era falado pelos judeus residentes na Palestina faz-se necessaacuterio ter uma

atenccedilatildeo redobrada ao periacuteodo em questatildeo Por exemplo se atentarmos para os

seacuteculos III e II aC observa-se um eclipsamento do aramaico devido agrave helenizaccedilatildeo

da Palestina pelos reis selecircucidas da Siacuteria Segundo Meier parece que o aramaico

soacute voltou a retomar a prioridade na Palestina apoacutes a revolta dos Macabeus por isso

61

Se levarmos em consideraccedilatildeo os dados de Martin Hengel citados acima por Meier podemos

deduzir que aproximadamente de 10 a 20 da populaccedilatildeo de Jerusaleacutem falava grego Entatildeo eacute difiacutecil considerar a Palestina dos dias de Jesus como sendo altamente helenizada como fez Meier uma vez que nem mesmo na capital havia tantas pessoas que falavam tal liacutengua

114

natildeo eacute possiacutevel determinar qual era a liacutengua mais falada na Palestina dos seacuteculos II e

I aC tomando como exemplo inscriccedilotildees e textos dos seacuteculos III e II aC (Meier

1993 p 255)

A opiniatildeo de Meier eacute que vaacuterios textos de Flaacutevio Josefo levam agrave conclusatildeo de

que a liacutengua grega natildeo era tatildeo conhecida ou tatildeo falada na Palestina do seacuteculo I

pelos judeus Meier analisa que Josefo mesmo apoacutes se gabar de seu alto niacutevel

cultural tanto em relaccedilatildeo agrave lei como agrave prosa e poesia gregas demonstra algumas

dificuldades com a pronuacutencia do grego Meier observa que as dificuldades de Josefo

parecem natildeo ser apenas de pronuacutencia mas seu domiacutenio de escrita tambeacutem natildeo era

ldquoexatamente perfeitordquo Outro fator observado por Meier eacute a forma de comunicaccedilatildeo

que o general romano Tito usou para se comunicar com os judeus Tito que falava

bem o grego segundo Suetocircnio mas para se comunicar com os judeus precisou de

um ldquomensageiro em aramaico (Josefo) para ser compreendido pelos judeus Surge

entatildeo a grande pergunta Jesus falava grego Para Meier se nem mesmo Josefo

que era haacutebil na liacutengua grega natildeo se sentiu agrave vontade para transmitir o recado de

Tito em grego mas em aramaico porque natildeo dominava bem a liacutengua ou porque os

ouvintes natildeo entenderiam deduz-se que ldquoa probabilidade de um camponecircs galileu

ter suficiente conhecimento para se tornar um mestre e pregador bem-sucedido que

proferisse seus discursos em grego parece muito pequenardquo (Meier 1993 p 258-

259)

Ao fazer um trabalho minucioso sobre a liacutengua que Jesus falava Meier

depois de muitos questionamentos levanta a suposiccedilatildeo de que natildeo podemos negar

que Jesus fosse totalmente desconhecedor da liacutengua dos helenos Primeiro porque

Jesus ateacute mesmo por causa de sua profissatildeo e viagens a Jerusaleacutem tinha contato

com pessoas que falavam grego Eacute possiacutevel segundo Meier que Jesus vez ou outra

fizesse algum contrato ou assinasse algum recibo que tivesse sido redigido em

grego62 Mas o fato de assinar recibos ou mesmo ter dialogado com Pilatos pode

apenas presumir que Jesus possuiacutesse alguns conhecimentos da liacutengua grega

62

A hipoacutetese de Meier sobre a possibilidade de Jesus ter assinado pequenos contratos em grego eacute questionaacutevel uma vez que segundo Meier se nem mesmo Josefo era fluente na liacutengua dos helenos muito menos Jesus que era um humilde galileu Outrossim segundo Crossan eram poucas as pessoas alfabetizadas na Palestina (no maacuteximo 3 da populaccedilatildeo) Crossan chega a afirmar que Jesus era analfabeto como a maioria dos seus conterracircneos Se tal hipoacutetese tambeacutem for verdadeira dificilmente Jesus teria condiccedilotildees de assinar pequenos contratos profissionais na liacutengua grega

115

suficientes apenas para um pequeno diaacutelogo composto de frases curtas Meier acha

muito difiacutecil Jesus ter adquirido alfabetizaccedilatildeo para a escrita em grego O referido

autor ainda aprofunda mais as suas desconfianccedilas a respeito do assunto quando

diz ldquoPortanto acompanhando Fitzmyer mantenho minhas duacutevidas se qualquer parte

dos pronunciamentos de Jesus foi feita desde o iniacutecio em grego dispensando a

traduccedilatildeo ao passar para os Evangelhos gregos que conhecemosrdquo (Meier 1993 p

260)

Apoacutes verificarmos as influecircncias do latim e do grego na Palestina nos dias de

Jesus resta-nos verificar as liacutenguas faladas em Israel desde os primoacuterdios da

naccedilatildeo O hebraico era o antigo e sagrado idioma falado em Israel mas desde que

os judeus voltaram do cativeiro babilocircnico o hebraico sofreu um decliacutenio como

liacutengua falada e passou a ser substituiacutedo gradualmente pelo aramaico Essa

influecircncia do aramaico sobre o hebraico jaacute pode ser vista nos livros poacutes-exiacutelicos

mais precisamente sobre ldquoos livros de Esdras e Daniel que contecircm capiacutetulos inteiros

escritos em aramaico sendo que em Daniel eles chegam agrave metade do totalrdquo (Meier

1993 p 260)

Contudo segundo Meier o hebraico continuou sendo uma liacutengua viva em

Israel principalmente em Qumran onde tinha primazia com o aramaico em

segundo lugar e o grego ocupando apenas uma distante terceira colocaccedilatildeo No

entanto o fato do hebraico ser a liacutengua oficial da comunidade de Qumran natildeo

confirma em nada que o hebraico fosse uma liacutengua usada no dia a dia dos demais

israelitas fora dessa restrita comunidade O que parece ser mais evidente era que o

hebraico aleacutem de em Qumran era usado por religiosos e grupos nacionalistas e por

judeus devotos e em algumas regiotildees de Israel ainda se falava e escrevia em

hebraico (Meier 1993 p 261)

Mesmo sendo o hebraico uma liacutengua viva em Israel Jesus segundo Meier

usava o aramaico para comunicar-se com os seus conterracircneos na vida diaacuteria uma

vez que se acredita que ele natildeo pertencia agrave comunidade de Qumran e nem agrave elite

dos religiosos da eacutepoca bem como seus ouvintes que em sua maioria pertenciam

agraves classes sociais mais humildes A maior evidecircncia disso estaacute nos aramaiacutesmos

registrados nos Evangelhos e especificamente no Evangelho de Marcos onde

encontramos a palavra Abba proferida por Jesus (Mc 1436) De acordo com Meier

116

J Jeremias relacionou 26 palavras aramaicas atribuiacutedas a Jesus nos evangelhos

Dessas palavras Meier opina que duas delas Talita cumi e Abba (Mc 5 41 14 36)

satildeo as que mais proacuteximas estatildeo do Jesus histoacuterico Para ele nem todos os

exemplos citados por J Jeremias podem ser comprovados entretanto alguns satildeo

uacuteteis para demonstrar a forma como Jesus instruiacutea os seus disciacutepulos (Meier 1993

p 264)

A questatildeo da liacutengua falada nos dias de Jesus eacute complexa uma vez que o

aramaico eacute uma liacutengua semiacutetica e estaacute intimamente relacionada com o hebraico No

entanto o aramaico natildeo eacute um dialeto do hebraico mas uma liacutengua semiacutetica distinta

De fato se partirmos do pensamento de Black e considerarmos que Jesus era um

Rabi na Galileia entatildeo natildeo podemos descartar a possibilidade de que ele fez uso

tanto do hebraico como do aramaico especialmente em suas disputas formais com

os fariseus (Black 1998 p16) Aleacutem disso ter conhecimento das duas liacutenguas natildeo

era nada anormal visto que segundo Missick em alguns casos as liacutenguas eram tatildeo

similares que existiam palavras usadas em ambas as liacutenguas com o mesmo

significado (Missick 2010 p 4)

Analisando a coexistecircncia das duas liacutenguas na Palestina nos dias de Jesus

observa-se que as origens do aramaico podem ser anotadas a partir do cativeiro

babilocircnico que ocorreu no periacuteodo de 586 a 539 aC antes disso o hebraico era a

liacutengua oficial dos judeus Com o retorno do hebraico como a liacutengua e a identificaccedilatildeo

da cultura e existecircncia do povo judeu o aramaico foi perdendo forccedilas ateacute ser

considerado uma liacutengua morta No entanto segundo Missick ainda existem

comunidades que falam o aramaico nos dias atuais como os cristatildeos assiacuterios63 do

Iratilde e do Iraque Antigos cristatildeos dessas regiotildees preservaram uma importante versatildeo

da Biacuteblia em aramaico que hoje eacute conhecida como a Biacuteblia Peshitta que segundo

Missick eacute muito valiosa porque a partir dela eacute possiacutevel estudar as palavras de

Jesus no aramaico pois acreditam os cristatildeos do oriente que os Evangelhos foram

63

Matthew Black observa que foi encontrado entre os siriacuteacos cristatildeos palestinos o dialeto aramaico

mais proacuteximo do aramaico dos Evangelhos enquanto que para Dalman segundo Black o aramaico que mais se aproxima do falado nos dias de Jesus era o aramaico dos Targuns judaicos para o Pentateuco e os profetas (cf Black 1998 p18-19)

117

primeiro escritos em aramaico e soacute depois traduzidos para o grego (Missick 2010

p5) 64

Para enfatizar a importacircncia do aramaico no Novo Testamento Missick

relaciona as palavras aramaicas compostas de oraccedilotildees tiacutetulos divinos nomes de

pessoas nomes de lugares e outras palavras e frases usadas no Novo Testamento

Abba (Mc 14 36) Eloiacute Eloiacute lemaacute sabachtaacuteni (Mc 15 34 cf Mt 2746) segundo

Missick se Jesus estivesse falando em hebraico ele teria dito Eli Eli lama azabanti

Nesse caso Jesus estaacute citando o Salmo 221 em aramaico Essa traduccedilatildeo do Antigo

Testamento eacute chamada de Targum65 pela tradiccedilatildeo judaica Dentre as palavras

relacionadas por Missick temos tambeacutem Maranatha (1 Co 1622) que

etimologicamente conforme a definiccedilatildeo dada por Missick (2010 p22-26) tem como

prefixo o termo ldquoMarrdquo que significa Senhor ou ldquoMaranrdquo que significa nosso Senhor

donde temos Maranatha que tem como definiccedilatildeo completa o significado de ldquonosso

Senhor vemrdquo (Marana tha) ou ainda ldquonosso Senhor estaacute vindordquo (Maran atha) Em

aramaico temos ainda outra palavra Rabboni (Jo 2016)

Em relaccedilatildeo aos nomes em aramaico mencionados no Novo Testamento

Missick argumenta que essas pessoas natildeo teriam outro motivo para receber nomes

64

Missick (2006 p170) refere-se a dois grupos significantes de cristatildeos que ainda falam o aramaico O primeiro grupo eacute composto por siacuterios Ortodoxos que vivem na Siacuteria O Segundo grupo do oriente (leste) da Siacuteria satildeo chamados de Assiacuterios e satildeo nativos do Iratilde e do Iraque conforme jaacute comentado acima Segundo Missick os cristatildeos mesmo sendo chamados de assiacuterios satildeo totalmente distintos da cultura do antigo Impeacuterio Assiacuterio A avanccedilada e militarista cultura da Assiacuteria antiga desapareceu com o tempo mas seus descendentes satildeo os modernos siacuterios do Oriente chamados de assiacuterios Os antigos assiacuterios falavam o Acadiano liacutengua falada por assiacuterios e babilocircnios que natildeo eacute mais falada na atualidade

Os atuais cristatildeos Siacuterios e Assiacuterios pertencem a denominaccedilotildees diferentes Segundo Missick (2006 p170) os siacuterios do oeste pertencem agrave Igreja Ortodoxa siacuteria e jaacute foram chamados de Jacobitas ou seja porque provinham do bispo Jacob Bardesanes (542-578 dC) Os cristatildeos chamados de assiacuterios eram conhecidos como nestorianos visto que o patriarca deles foi Nestoacuterio de Constantinopla um Patriarca da Igreja Ortodoxa grega (428-431 dC) A igreja no entanto eacute mais apropriadamente chamada de ldquoAntiga Igreja assiacuteria do Orienterdquo

65 Esta palavra eacute de origem natildeo semiacutetica mas foi adotada pelos judeus para designar tradiccedilatildeo (aqui

parece haver um equiacutevoco do comentador uma vez que a palavra Targum vem do hebraico lsquo targucircmimrsquo e significa traduccedilatildeo Cf La Sor 1999 p 670) ldquoOs targuns satildeo as traduccedilotildees aramaicas dos textos biacuteblicos destinados ao uso sinagogal Na sua origem essas traduccedilotildees eram orais e mais ou menos improvisadas e fragmentaacuterias sendo depois progressivamente fixadas por escrito e reunidas em grandes secccedilotildees (targum do Pentateuco targum dos Profetas targum dos Hagioacutegrefos) Mesmo quando eacute literal na aparecircncia o targum conteacutem elementos mais ou menos amplos de paraacutefrase ou de explicaccedilatildeo de atualizaccedilatildeo e ateacute de correccedilotildees Ele integra o midrash sobretudo na sua forma haggaacutedica Eacute possiacutevel que existisse um targum do Pentateuco ndash ou torah aramaica ndash na eacutepoca de Jesus e ateacute antes na Palestina A atividade targuacutemica evoluiacutera no decorrer dos seacuteculos em que foi praticada para a atividade propriamente midraacuteshica (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p11-12)

118

em aramaico se natildeo estivessem inseridos numa determinada comunidade que

falasse aramaico Missick cita como exemplo o prefixo ldquoBarrdquo antes de alguns nomes

que em aramaico tem o sentido de ldquofilho derdquo enquanto que para nomes em hebraico

se usava o prefixo ldquoBenrdquo que tambeacutem tinha o sentido de ldquofilho derdquo (Missick 2010

p26) Os nomes pessoais que segundo Missick tecircm origem no aramaico satildeo

Cephas (Jo 142 1 Co 112 Gl 29) Tomeacute que vem do aramaico ldquoteomardquo cujo

significado eacute gecircmeo (Jo 212) Simatildeo o Zelota (Mc 318) Maria Madalena que era

natural da cidade de Magdala que em aramaico significa Torre66 Tadeu e Lebeu (Mt

103) Tadeu em aramaico significa mamilo e Lebeu significa coraccedilatildeo

A extensa relaccedilatildeo de nomes pode ser assim resumida Tabita (At 936) Marta

(Lc 10 38-41 Jo 11 1-39 122) Bartolomeu (Mt 103) Jesus Barrabaacutes (Mt 2736)

Simatildeo Bar-Jonas (Mt 2716) Joseacute Barsabaacutes (At 123) Elimas Bar-Jesus (At 13 6-8)

Judas Barsabaacutes (At 15 22) Joseacute Barnabas ou Barnabeacute ndash Filho da profecia- (At

436) Aleacutem dos nomes de pessoas e dos tiacutetulos divinos em aramaico ainda

segundo Missick haacute vaacuterios nomes de cidades com origens no aramaico Gaacutebata (Jo

1913) Goacutelgota (Jo 19 17-18 Mc 1522) Betacircnia (Jo 111) Betesda (Jo 5 1-15)

Geena Mt 1028) Resta-nos ainda conforme Missick relacionar palavras e frases

em aramaico usadas no Novo Testamento Effatha (Mc 734) Taliacutetha Kum (Mc 541)

Raca (Mt 5 22) Mamon (Mt 624) Corban (Mc 7 9-13)

Para Missick natildeo haacute duacutevidas que Jesus falou aramaico Um dos argumentos

levantados por esse autor estaacute baseado no relato da morte de Judas conforme

registrou Lucas (At 119) No discurso de Pedro sobre a substituiccedilatildeo de Judas o

lugar onde o corpo de Judas caiu e se arrebentou ao meio conforme o texto

chamava-se Haceacuteldama na proacutepria liacutengua dos moradores de Jerusaleacutem Para

Missick essa palavra eacute aramaica e natildeo hebraica Se a palavra realmente eacute

aramaica entatildeo deduz-se que o idioma falado naqueles dias era o aramaico e natildeo

o hebraico e nem o grego muito menos o latim Missick conclui entatildeo que para se

compreender a mensagem de Jesus que antes de ser escrita foi transmitida

oralmente eacute necessaacuterio compreender as palavras na liacutengua em que Jesus as

66

Missick menciona que ela era conhecida como Madalena porque sua feacute era como uma torre Esse argumento foi defendido por Jerocircnimo contudo segundo Missick o mais provaacutevel eacute que ela tenha adquirido este tiacutetulo por ter vindo da cidade de Magdala (cf Missick p28)

119

proferiu e a melhor forma de alcanccedilar tal objetivo eacute compreender o aramaico

(Missick 2010 p4-35)

Entre os autores que defendem que o aramaico era a liacutengua dos galileus

contemporacircneos de Jesus encontramos tambeacutem Joseacute Pagola Jesus conforme

esse teoacutelogo falava o aramaico em casa assim como todos os galileus Pagola

ainda analisa que ateacute mesmo na Judeia se falava o aramaico no dia a dia Segundo

Pagola as diferenccedilas entre o aramaico da Galileia para o aramaico da Judeia era

apenas de dialeto (sotaque)

Embora o aramaico seja defendido pela maioria dos estudiosos de teologia do

Novo Testamento haacute no entanto autores que defendem que o hebraico natildeo

somente era uma liacutengua viva como era a mais falada nos dias de Jesus Para os

teoacutelogos David Biacutevin e Roy Bliacutezard Jr o hebraico era o idioma mais falado pelos

contemporacircneos de Jesus e dos primeiros cristatildeos Para esses autores um idioma

pode ser definido da seguinte maneira ldquoo idioma eacute uma expressatildeo no uso de uma

liacutenguagem que eacute peculiar a si proacuteprio na construccedilatildeo gramatical ou em ter um

significado que natildeo pode ser derivado como um todo a partir dos significados do

conjunto de seus elementos Na visatildeo deles o ldquohebraico eacute a chave para entender

as palavras de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p 2-4)

Os defensores do hebraico como a liacutengua falada na Palestina dos dias de

Jesus criticam os defensores da inerracircncia das Escrituras quando esses mesmo

depois de ler o texto de Atos 2614 em que Jesus fala em Hebraico com o apoacutestolo

Paulo e tambeacutem o texto de Atos 2140 no qual o mesmo apoacutestolo falou em hebraico

com uma multidatildeo satildeo os mesmos que afirmam que onde se diz hebraico deve-se

entender aramaico Para defender essa teoria eles argumentam que os mais

antigos manuscritos do Novo testamento datam do quarto e quinto seacuteculos da era

cristatilde (Codex Sinaiticus Codex Alexandrinus e Codex Bezae) afirmam que a

inscriccedilatildeo ldquoEste eacute o Rei dos Judeusrdquo estava escrito em grego latim e hebraico

Partindo desses argumentos Bivin e Bliacutezard lanccedilam a seguinte questatildeo

ldquoPorventura natildeo eacute significativo que os manuscritos gregos mais antigos infiram que

o hebraico era mais popular que o aramaico naquele periacuteodordquo (Biacutevin e Bliacutezard

2001 p8)

120

Biacutevin e Bliacutezard argumentam que mesmo a presenccedila de uma palavra aramaica

(Abba) no Evangelho de Marcos (Mc 1436) natildeo prova em nada a existecircncia de

uma liacutengua original falada em aramaico no periacuteodo de Jesus Para esses autores

Abba aparece sempre entre os escritos em hebraico daquele periacuteodo como uma

palavra de empreacutestimo A razatildeo para tal empreacutestimo do aramaico seria pelo fato

dessa palavra ter um ldquosabor especialrdquo quando usado como forma de relacionamento

entre os filhos e seus pais O sentido dessa expressatildeo pode ser relacionado com a

forma como os filhos se dirigem aos seus pais chamando-os de ldquodaddyrdquo (Papai) ou

ldquopapardquo (pai) em Inglecircs Um outro argumento ainda usado como forma de demonstrar

que usar Abba como forma de provar que a liacutengua falada por Jesus natildeo era o

aramaico eacute demonstrar que ainda hoje em Israel onde se fala o hebraico moderno

ldquoas crianccedilas usam Abba na abordagem de seus pais exatamente da mesma

maneira como foi usado no tempo de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p10)

Murphy-OConnor diferentemente de Biacutevin e Bliacutezard comunga da mesma

ideia de Jerocircnimo de que o apoacutestolo Paulo era de origem palestinense conforme os

textos de 2 Co 11 22 e Fl 3 5 onde Paulo identifica-se como ldquoisraelitardquo ldquodo povo de

Israelrdquo e como um ldquohebreurdquo Poreacutem quanto aos textos onde Lucas diz que Paulo

falou com a multidatildeo ldquonuma linguagem hebraicardquo (At 2140 222 2614) Murphy-

OConnor argumenta que a linguagem deveria significar aramaico e natildeo hebraico

Segundo esse autor naquela eacutepoca a maioria dos judeus jaacute natildeo conheciam mais o

hebraico e os textos das Escrituras nas sinagogas eram traduzidos para o aramaico

Outro argumento eacute que as palavras Gaacutebata (Jo 1913 o lugar onde Pilatos

condenou Jesus) e Goacutelgota (Jo 19 17) que satildeo mencionadas como palavras

hebraicas na verdade satildeo palavras aramaicas Sendo assim segundo Murphy-

OConnor a divisatildeo entre os primeiros cristatildeos de Jerusaleacutem (At 61) era permeada

pelos que falavam aramaico e pelos que falavam o grego (Murphy-OConnor 2008

p 29-30)

Matthew Black analisando a liacutengua falada por Jesus observa que alguns

estudiosos defendem o hebraico como a liacutengua vernaacutecula na Palestina dos dias de

Jesus Segundo Black alguns propotildeem que o hebraico natildeo era soacute apenas uma

forma literaacuteria de expressatildeo ou entatildeo apenas uma liacutengua falada nos ciacuterculos

rabiacutenicos mas o hebraico era um veiacuteculo normal de expressatildeo (Black 1998 p 47)

121

Douglas Hamp defende que o hebraico era realmente uma liacutengua muito viva nos

dias de Jesus e natildeo uma liacutengua morta como muitas vezes eacute dito Aleacutem de tudo para

ele o hebraico era a primeira liacutengua na Palestina nos dias de Jesus apesar de

segundo ele Jesus poderia ser triliacutengue ou seja falava hebraico aramaico e grego

e possivelmente ateacute o latim (Hamp 2005 p40) Hamp defende entatildeo que Jesus

provavelmente conhecia o aramaico e o grego e deve ter usado essas liacutenguas em

alguns contextos no entanto com seus disciacutepulos e na comunicaccedilatildeo com as

massas ele falou hebraico (Hamp 2005 p73)

Sobre a posiccedilatildeo daqueles que consideram o hebraico e natildeo o aramaico

como o vernaacuteculo ou seja a liacutengua mais falada nos dias de Jesus Black responde

ldquoesta posiccedilatildeo extrema tem encontrado pouco ou nenhum apoio entre as autoridades

competentes a evidecircncia da ipsissima verba de Jesus nos Evangelhos eacute impossiacutevel

de explicar se o aramaico natildeo era a liacutengua que Jesus falavardquo No entanto para ele eacute

provaacutevel que Jesus sendo um Rabi que comeccedilou seu ministeacuterio na Galileia e muito

bem versado nas Escrituras tenha sido capaz de ensinar com maestria tanto em

hebraico que poderia usar para ocasiotildees solenes como em aramaico com que se

comunicava com as massas (Black 1998 p 48-49)

Considerando as diversas opiniotildees sobre a liacutengua materna de Jesus

observamos que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus falava o aramaico

uma vez que esta foi a liacutengua predominante na Palestina apoacutes o exiacutelio babilocircnico

Contudo natildeo eacute tarefa faacutecil chegar a uma conclusatildeo Como vimos os estudiosos que

defendem o aramaico como a liacutengua materna de Jesus buscam como prova de tal

tese o argumento de que o Novo Testamento conteacutem muitas palavras aramaicas que

deviam ser comuns nos dias de Jesus Possivelmente o aramaico era uma liacutengua

falada pela populaccedilatildeo em geral enquanto que o hebraico reservava-se mais a

escrita de textos religiosos (sacros) e tambeacutem era usado pela classe sacerdotal que

por sua vez era mais elitizada Contudo devido agrave semelhanccedila entre as duas liacutenguas

torna-se difiacutecil delimitar uma linha divisoacuteria entre as mesmas uma vez que natildeo

possuiacutemos textos em aramaico da eacutepoca e natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz

que nos permita concluirmos com precisatildeo

122

6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS

Apoacutes termos apresentado a tese de J Jeremias sobre o Abba e alguns

pesquisadores que com ele concordam eacute oportuno tambeacutem olharmos algumas

teorias e pesquisadores que divergem de suas ideias

61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO

A relaccedilatildeo de paternidade divina no Antigo Testamento eacute refletida na literatura

poacutes-canocircnica do judaiacutesmo No Judaiacutesmo palestinense67 de acordo com J Jeremias

natildeo haacute relatos que em toda a literatura de Qumran que deve ser anterior a 68 a C

(Jeremias 1977 p17) de que Deus tenha sido invocado como Pai Haacute apenas uma

exceccedilatildeo em I QH 9 55 S ldquoEu te agradeccedilo oh Senhor porque natildeo abandonou a

paternidade ou desprezou o pobrerdquo (Vermes 2004 p274) A questatildeo da paternidade

divina era vista pelos rabinos como um direito dado apenas para aqueles que

cumpriam a Lei (Torah) (Jeremias p 1977 p19)

As oraccedilotildees judaicas eram dirigidas geralmente a Deus como nosso Pai

nosso Rei (abinu malkenu) 68 ldquoNosso Pai Nosso Rei Em vista de nossos pais que

creem em ti e a quem ensinas as leis da vida ndash tem piedade de noacutes e ilumina-nosrdquo

(Jeremias 1977 p18) Para J Jeremias mesmo essa oraccedilatildeo sendo antiga

podendo mesmo ser situada na eacutepoca de Jesus haacute algumas coisas que precisam

ser observadas A ecircnfase da oraccedilatildeo estaacute na duplicidade dos termos que se referem

a Deus ou seja ldquoDeus eacute invocado como o pai da comunidaderdquo e a comunidade por

sua vez invoca o Pai que ldquoeacute o rei celestial do povo de Deusrdquo (Jeremias 2008 p116)

Tambeacutem segundo J Jeremias esse texto foi escrito em hebraico que nos dias de

67

ldquo[] no judaiacutesmo palestinense do periacuteodo preacute-cristatildeo eacute rara a descriccedilatildeo de Deus como pai Nos

apoacutecrifos e pseudoepiacutegrafos no que diz respeito aos escritos de origem palestinense acha-se muito raramente (tob 134 Sir 5110 Jub 124-25 28 1929) enquanto os textos de Cunratilde oferecem um uacutenico exemplo isolado (1QH 935-36) No judaiacutesmo rab do seacuteculo I dC o emprego do nome Pai tornou-se mais generalizado mas ainda era muito menos frequente do que outras descriccedilotildees de Deus (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

68 Charlesworth afirma que Jesus invocava a Deus como Abba e natildeo como Abinu Charlesworth

entatildeo pergunta ldquonatildeo seraacute concebiacutevel que tenha chamado Deus de Abba porque tinha uma concepccedilatildeo de Deus que era de algumas maneiras diferente daquela da maioria de seus contemporacircneos (cf Charlesworth 1992 p148)

123

Jesus era uma liacutengua sacra usada com maior frequecircncia nas reuniotildees lituacutergicas e

natildeo como uma praacutetica comum no dia a dia (Jeremias 1977 p19)

Entre os escritos do judaiacutesmo palestinense haacute duas oraccedilotildees em que Deus eacute

invocado como Pai Satildeo invocaccedilotildees muito semelhantes do c 23 de Ben Sira

(Eclesiaacutestico) escrito por volta do comeccedilo do seacuteculo II aC (Jeremias 1977 p19)

Esses dois versiacuteculos (v1 e v4) onde Deus eacute invocado como ldquoPai e dono da minha

vidardquo e como ldquoSenhor Pai e Deus da minha vidardquo (Jeremias 1977 p19) poderiam

ser um preluacutedio do evangelho segundo J Jeremias se por volta da deacutecada de 40

natildeo tivesse sido descoberto uma paraacutefrase em hebraico desse texto que hoje existe

apenas em grego A paraacutefrase desse texto escrito em hebraico natildeo invoca Deus

como ldquoSenhor e Pairdquo mas invoca-o como ldquoDeus de meu Pairdquo Ficam evidentes

entatildeo as diferenccedilas entre o texto que temos em grego e a paraacutefrase em hebraico

Partindo desses raciociacutenios J Jeremias entatildeo conclui que mesmo que no

Judaiacutesmo da diaacutespora haja testemunhos esporaacutedicos da invocaccedilatildeo de Deus como

Pai (Jeremias 2008 p117) eles satildeo apenas ditos isolados nos quais Deus eacute

invocado como (Pater) mas sempre com influecircncia do helenismo e da liacutengua grega

(Jeremias 2008 p115-116) e natildeo se tem notiacutecias de que no judaiacutesmo palestinense

algum indiviacuteduo tenha dirigido-se a Deus chamando-o de meu Pai (Jeremias 1977

p 19-20)

Contudo J Jeremias ainda menciona uma oraccedilatildeo do final do seacuteculo 1 aC

feita por um homem chamado Hanin ha-Nehba conhecido por seu sucesso nas

oraccedilotildees para obter chuva Nessa oraccedilatildeo Deus eacute invocado como papai ou como o

Abba que tem o poder de enviar chuva

Quando o mundo precisava de chuva nossos mestres tinham o costume de lhe mandar crianccedilas das escolas que se agarravam ao seu manto e imploravam Abbaacute Abbaacute habh lan mitra papai papai daacute-nos chuvardquo E ele lhe (a Deus) dizia Senhor do universo concede-nos (a chuva) em vista destes que natildeo satildeo ainda capazes de distinguir entre um abbaacute que tem o poder de dar a chuva e um abbaacute que natildeo tem (Jeremias 1977 p 22)

Por fim o autor supracitado observa que mesmo que as evidecircncias sejam

favoraacuteveis a uma invocaccedilatildeo de Deus como papai (Abbaacute) ainda assim com um olhar

mais criterioso nota-se que a forma como Hanin invoca a Deus eacute tomada com um

tom carregado de humor e Hanin comeccedila a sua oraccedilatildeo dirigindo-se a Deus natildeo

como o Abba mas sim como o Senhor do universo J Jeremias vecirc essa histoacuteria

124

como um preluacutedio das afirmaccedilotildees de Jesus nos Evangelhos onde ele diz que ldquoo Pai

celeste sabe do que precisam os seus filhos (Mt 632) que ele envia a chuva sobre

os justos e os injustos (Mt 5 45) e daacute coisas boas aos seus filhos que lhas pedem

(Mt 711 par Lc 1113) (Jeremias 1977 p 23) Entatildeo J Jeremias tem como

resultado de suma importacircncia de que realmente natildeo existe nenhum testemunho

nas oraccedilotildees judaicas do uso do Abba (papai) em todo o judaiacutesmo Defende esse

autor que o emprego do Abba foi uma caracteriacutestica peculiar de Jesus dirigir-se a

Deus invocando-o como o Abba e isso coloca o abba como sendo a ipsissima vox

de Jesus (Jeremias 1977 p23)

Eis-nos pois autorizados a dizer por que natildeo se usa abbaacute nas oraccedilotildees Judaicas para invocar a Deus seria desrespeitoso e portanto impensaacutevel para uma mentalidade judaica chamar a Deus com um nome tatildeo familiar Foi algo de novo uacutenico e inaudito ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma crianccedila fala ao seu pai com simplicidade intimidade e sem temor Portanto natildeo haacute duacutevida alguma de que a palavra abbaacute utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus revela o proacuteprio fundamento de sua comunhatildeo com ele (Jeremias 1977 p25)

J Jeremias ainda conclui seu pensamento sobre o uso do Abba nas oraccedilotildees

judaicas ldquoUma revisatildeo da rica e abundante literatura oracional judaica ainda pouco

estudada leva-nos a conclusatildeo de que em nenhuma das suas passagens estaacute

atestado o termo abba para invocar a Deusrdquo (Jeremias 2006 p63)

Com um pensamento em alguns pontos diferentes ao de J Jeremias de que

para este Deus nunca foi invocado como pai no judaiacutesmo quer seja no Antigo

Testamento ou no judaiacutesmo palestinense Bultmann afirma que a visatildeo de Deus

como pai no Judaiacutesmo era corriqueira quer seja atraveacutes das oraccedilotildees ou ateacute mesmo

pelo piedoso individualmente Bultmann usa alguns textos como o Eclesiaacutestico 410

para justificar a sua tese ldquoSecirc um pai para os oacuterfatildeos e o substituto do esposo para as

viuacutevas Entatildeo Deus te chamaraacute de filho seraacute gracioso para contigo e te salvaraacute da

perdiccedilatildeordquo (Bultmann 2005 p 191)

A condiccedilatildeo de filho de Deus no judaiacutesmo pode ser tambeacutem escatoloacutegica Para

Bultmann o chamado Salmo de Salomatildeo (1730) trata sobre o regimento do

Messias no tempo do fim com as seguintes palavras ldquoEle os conhece e sabe que

satildeo todos filhos do seu Deusrdquo E para enfatizar ainda mais o seu argumento ele

ainda cita o ldquochamado Livro dos jubileus (1 24-25)rdquo no qual Deus em uma forma

escatoloacutegica promete para os israelitas no tempo da salvaccedilatildeo ldquoEles cumpriratildeo os

125

meus mandamentos e eu serei um pai para eles e eles seratildeo meus filhos E todos

eles se chamaratildeo filhos do Deus vivo e todos os anjos e todos os espiacuteritos os

conheceratildeo e saberatildeo que eles satildeo meus filhos e que eu sou o pai em firmeza e

justiccedila e que eu os amordquo

A ideia que Jesus tem da designaccedilatildeo de Deus como pai segundo Bultmann

natildeo traz nenhuma novidade a respeito do assunto pelo contraacuterio era jaacute uma

caracteriacutestica de muitas religiotildees e cosmovisotildees religiosas e entre elas encontra-se

a visatildeo dos antigos estoicos para os quais a ldquofiliaccedilatildeo divina cabe ao ser humano por

natureza e eacute algo que se aplica a ele na esfera das ideias logo que se situa aleacutem

de sua existecircncia concreta no aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p192-193)

A relaccedilatildeo de pai e filhos no judaiacutesmo ocorre de uma forma diferente da do

estoicismo Bultmann defende que no judaiacutesmo natildeo haacute uma relaccedilatildeo de pai e filhos

de Deus por natureza mas pela livre eleiccedilatildeo de Deus A filiaccedilatildeo divina portanto natildeo

eacute algo natural mas eacute algo miraculoso Quanto agrave possibilidade da filiaccedilatildeo essa natildeo eacute

exclusividade de um grupo pelo contraacuterio eacute aberta a todos pois o pai do ceacuteu provecirc

para todas as pessoas aquilo que necessitam (Mt 6 2632) Da mesma forma a

oportunidade para rogar ao pai do ceacuteu (Mt 7 7-11) eacute uma oportunidade oferecida a

todas as pessoas Dessa forma Bultmann declara que ldquo o ser humano eacute visto de

modo bem diferente ou seja natildeo como aquilo que eacute na esfera das ideias para aleacutem

de sua existecircncia concreta mas justamente como aquilo que eacute em sua existecircncia

na singularidade de seu aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p 193)

O conceito de paternidade no judaiacutesmo eacute tambeacutem discutido por Alon Goshen-

Gottstein em ldquoDeus como Pai no judaiacutesmordquo (Goshen-Gottstein 2001 p475) Para

ele a referecircncia rabiacutenica de Deus como pai no judaiacutesmo tambeacutem eacute uma

peculiaridade de Israel como naccedilatildeo natildeo que indiviacuteduos natildeo possam dirigir-se a Ele

como pai Mas natildeo eacute possiacutevel encontrar nas fontes sobre algueacutem que de forma

especiacutefica e individual tenha dirigido-se a Deus chamando-o de Pai No entanto

para Goshen-Gottstein essa relaccedilatildeo paternal era apenas um sentimento religioso

reciacuteproco de Israel para com Deus isto eacute chamar Deus de Pai era apenas uma das

muitas metaacuteforas que Israel usava para referir-se a Deus (Goshen-Gottstein 2001

p475)

Para Goshen-Gottstein os cristatildeos e judeus divergem muito sobre a questatildeo

da segunda e a terceira pessoas da trindade cristatilde parece que a primeira pessoa da

trindade (o Pai) eacute o elo que une o cristianismo e o judaiacutesmo num fundo teoloacutegico

126

comum Contudo ele pergunta sobre em que extensatildeo a pessoa do Pai eacute um

conceito comum para o judaiacutesmo e para o cristianismo (Goshen-Gottstein 2001

p471) Goshen-Gottstein coloca que o primeiro problema eacute metodoloacutegico visto que

eacute natural que os pesquisadores do Novo Testamento vasculhem a literatura rabiacutenica

agrave procura daquilo que apenas lhes interessa A exemplo disso esse autor observa

que teoacutelogos cristatildeos pentearam a literatura rabiacutenica em busca de exemplos de

expressotildees sobre o ldquoPai celesterdquo que estatildeo no singular ou no plural para dessa

forma avaliar a importacircncia que a expressatildeo ldquoPai celesterdquo tem na literatura rabiacutenica

quando analisada sobre a perspectiva da intimidade e relaccedilatildeo pessoal que o ldquoPai

Celesterdquo tinha para os autores rabiacutenicos Goshen-Gottstein vecirc isso como perda de

tempo pois considera que as fontes rabiacutenicas natildeo podem ser analisadas para fins

especiacuteficos mas devem ser apreciadas a partir da unicidade das suas estruturas

literaacuterias meacutetodos de expressatildeo e convenccedilotildees estiliacutesticas (Goshen-Gottstein 2001

p473)

Referindo-se ao conceito de metaacuteforas atribuiacutedas a Deus Goshen-Gottstein

afirma que descrever Deus como Pai no Judaiacutesmo natildeo eacute essencial ou fundamental

Esse conceito tem uma conotaccedilatildeo religiosa e faz parte de um vocabulaacuterio religioso

Ele eacute apenas uma descriccedilatildeo repleta de imagens e metaacuteforas que faz parte de um

vocabulaacuterio religioso que daacute expressatildeo aos sentimentos do povo e que enchem o

espectro de Israel Portanto para Goshen-Gottstein ldquoPairdquo natildeo eacute uma expressatildeo

privilegiada dentro do judaiacutesmo e tambeacutem ldquonatildeo eacute o nome proacuteprio de Deus Antes eacute

uma das inuacutemeras metaacuteforas atraveacutes das quais Israel se refere a Deusrdquo A

paternidade na literatura rabiacutenica eacute sempre vista em relaccedilatildeo a Israel como naccedilatildeo

Embora Goshen-Gottstein afirme tal expressatildeo ele admite que haja casos em que

indiviacuteduos se dirijam a Deus como Pai inclusive em fontes biacuteblicas No entanto natildeo

se encontra em nenhuma fonte Deus sendo considerado Pai de um indiviacuteduo

somente Sempre Deus eacute visto como sendo o Pai de Israel poreacutem isso natildeo

evidencia que a paternidade de Deus natildeo seja estendida a outros fora de Israel pelo

menos natildeo encontramos na literatura rabiacutenica textos que suponham tal expressatildeo

O que Goshen-Gottstein procura deixar claro eacute que a referecircncia rabiacutenica a Deus

como Pai estaacute fundamentalmente fiel ao uso biacuteblico Isso difere de Filo para quem

Deus o Pai eacute tambeacutem Deus o Criador do mundo Para os rabinos a paternidade

divina se refere somente em relaccedilatildeo a Israel ou seja as fontes referem-se a Deus

127

como Pai somente no contexto do relacionamento especial de Israel com Deus

(Goshen-Gottstein 2001 p475)

A representaccedilatildeo metafoacuterica de Deus como Pai de Israel eacute tambeacutem defendida

por Vermes em Jesus e o mundo do Judaiacutesmo Vermes defende que Deus foi

representado metaforicamente como Pai do povo eleito (Israel) natildeo somente na

literatura biacuteblica mas tambeacutem na literatura apoacutecrifa Entre os textos biacuteblicos por ele

citados encontram-se os seguintes ldquoEu sou pai para Israel e Efraim eacute o meu

primogecircnitordquo (Jr 319) ldquoE no entanto Senhor tu eacutes o nosso Pairdquo [] todos noacutes

somos obras de suas matildeosrdquo (Is 647) ldquoSerei para ele um Pai e ele seraacute para mim

um filho e seraacute chamado filho do Deus vivo (Jub 1 24-25) ldquoFiz a vontade do Abba

que estaacute nos ceacuteusrdquo (Lv R 321) ldquoOacute Senhor Pai Soberano (ou Deus) da minha vidardquo

(Sr 23 14) ldquoA tua providecircncia oacute Pai eacute o seu pilotordquo (Sb 14 3) Vermes apoacutes

analisar os textos das fontes mencionadas acima e outros natildeo reluta em afirmar que

a invocaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rica no judaiacutesmo antigo (Vermes 1996 p53)

Analisando as teses de J Jeremias concernentes ao Abba de Jesus Vermes

observa que elas estatildeo sujeitas a questionamentos J Jeremias defende que Abba

quando dirigido a Deus em forma de invocaccedilatildeo natildeo se encontra na oraccedilatildeo judaica

antiga Vermes contudo soacute concordaria com essa tese se fosse possiacutevel analisar

todas as oraccedilotildees individuais e confirmar que em nenhuma delas algum indiviacuteduo

dirigiu-se a Deus em oraccedilatildeo com a forma invocativa do Abba Para Vermes o

seguinte pensamento de David Flusser resume bem os argumentos acima

apresentados ldquoJ Jeremias natildeo conseguiu encontrar o uso de Abba como vocativo

para Deus na literatura talmuacutedica poreacutem considerando a escassez de material

rabiacutenico sobre a oraccedilatildeo carismaacutetica isso natildeo nos diz muita coisardquo (Vermes 1996

p55)

Goshen-Gottstein fazendo referecircncia a Joseph Heinemann justifica a tese de

Vermes de que eacute preciso distinguir a oraccedilatildeo judaica antiga quando era puacuteblica e

coletiva da oraccedilatildeo de um indiviacuteduo Seguindo esse argumento observa-se que a

oraccedilatildeo puacuteblica recorre a linguagem e padrotildees especiacuteficos enquanto que a oraccedilatildeo

quando efetuada pelo indiviacuteduo eacute mais livre e tambeacutem mais carismaacutetica Nesse

sentido o exemplo por excelecircncia de oraccedilatildeo livre e individual eacute a oraccedilatildeo do Senhor

(Goshen-Gottstein 2001 p487)

Dentre os argumentos contraacuterios a visatildeo de J Jeremias temos ainda a

refutaccedilatildeo de Vermes sobre a tese em que J Jeremias defende que Jesus dirigia-se

128

a Deus chamando-o de ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo Para Vermes essa forma invocativa

realmente era usada pelas criancinhas quando essas se dirigiam aos seus pais

Contudo Vermes natildeo concorda que abba ou imma tenha tido uma uacutenica forma

determinada de uso Para ele na eacutepoca de Jesus abba poderia tambeacutem possuir

simplesmente o significado de ldquomeu pairdquo principalmente quando usadas em

situaccedilotildees solenes que natildeo tinham nada de infantil ldquocomo na altercaccedilatildeo imaginaacuteria

entre os patriarcas Judaacute e Joseacute relatado no Targum Palestino quando o furioso Judaacute

ameaccedila o governador [vizir] do Egito (seu irmatildeo que ele natildeo reconhecera) dizendo

Juro pela vida da cabeccedila de abba (meu pai) tal como tu juras pela cabeccedila do Faraoacute

teu senhor que se tirar a espada da bainha natildeo a devolverei mais enquanto a terra

do Egito natildeo tiver coberta de cadaacuteveresrdquo (Vermes 1996 p55)

James Barr tambeacutem eacute de acordo que abba era uma palavra usada por

adultos embora tambeacutem fosse muito usada por crianccedilas Segundo Barr no grego do

Novo Testamento a palavra ldquopaterrdquo (pai) eacute normalmente usada para referir-se a

figura paterna Contudo ele observa que na liacutengua grega tambeacutem havia uma palavra

em particular no diminutivo pertencente agrave fala das crianccedilas um pouco semelhante agrave

palavra Daddy em Inglecircs (papai) Poreacutem mesmo existindo a palavra em grego natildeo

haacute indiacutecio algum de que tal palavra tenha sido usada no Novo Testamento (Barr

1988 p 36-38)

As teorias com visotildees diferentes das de J Jeremias satildeo muitas como temos

visto Vermes conforme vimos acima eacute enfaacutetico ao contrapor J Jeremias

considerando as teses do professor de Gotinga sobre o Abba como incongruentes e

desprovidas de bases linguiacutesticas

[] J Jeremias compreendia que Jesus dirigia-se a Deus por ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo contudo afora a improbabilidade e incongruecircncia a priori dessa teoria parece natildeo haver bases linguiacutesticas para ela As criancinhas falantes de aramaico dirigiam-se aos seus pais por meio de abba ou imma mas esse natildeo era o uacutenico contexto do uso de abba Na eacutepoca de Jesus a forma determinada do nome abba (- ldquoo pairdquo) tambeacutem significava ldquomeu pairdquo ldquomeu pairdquo se bem que ainda atestado em qumran e no aramaico biacuteblico praticamente jaacute desaparecera como forma idiomaacutetica do dialeto galileu (Vermes 1996 p55)

No apecircndice de seu livro ldquoA Religiatildeo de Jesus o Judeurdquo Geza Vermes posta

um resumo da tese de J Jeremias sobre o Abba de Jesus (The Prayers of Jesus de

1967) baseadas em um artigo ldquoAbba natildeo eacute Papairdquo (Abba isnt Daddy) de James

129

Barr Os argumentos de J Jeremias estatildeo expostos da seguinte maneira conforme

transcritos abaixo

a) O termo aramaico eacute ldquouma expressatildeo puramente exclamatoacuteriardquo como em

Pai e natildeo um aspecto enfaacutetico correspondente em inglecircs a um substantivo

acompanhado do artigo definido (= o pai)

b) A origem do Abba se encontra no balbuciar do ldquofalar infantilrdquo A geminaccedilatildeo

ab-ba (ldquoDadaacuterdquo) tem como modelo o chamado mais frequente do bebecirc agrave Im-ma

(ldquoMamardquo)

c) Essa forma de invocaccedilatildeo eacute de tom tatildeo familiar que sua associaccedilatildeo com a

Deidade chocaria os judeus comuns de liacutengua aramaica como ldquodesrespeitosardquo

d) Seu emprego por Jesus era ldquoalgo de novo e inauditordquo

e) Abba no aramaico da Palestina tornou-se uma expressatildeo polivalente As

diversas expressotildees nos Evangelhos em Grego como ldquoo Pairdquo ldquoPairdquo (vocativo) e

tambeacutem ldquomeuteunosso Pairdquo (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)

podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus

Para Vermes se J Jeremias estiver correto isso pode trazer tantas

implicaccedilotildees porque o estilo de Jesus dirigir-se a Deus seria tatildeo peculiar a ponto de

representar um idiossincrasia Vermes prefere entender que J Jeremias

compreendeu mal o Abba de Jesus e ateacute por uma questatildeo de teimosia persistiu

defendo tal tese Ele ainda reafirma que o Abba natildeo era apenas o linguajar infantil

mas poderia ser usado em momentos solenes ou religiosos Vermes cita uma vez

mais James Barr dizendo que ironicamente esse observa ldquoque a teoria de J

Jeremias vinculando Abba agraves crianccedilas considera uma situaccedilatildeo que antedata Jesus

em alguns milecircniosrdquo Para fechar a analogia de Barr Vermes ainda cita-o ldquoComo

Explanaccedilatildeo de Abba nos tempos do Novo Testamento o balbuciar infantil natildeo faz

sentidordquo

A refutaccedilatildeo de Vermes eacute enfaacutetica ou seja explicitamente ele coloca sua visatildeo

teoloacutegica sobre o Abba de Jesus como uma contestaccedilatildeo a todos os argumentos de

J Jeremias Para finalizar Vermes assim resume seu pensamento sobre a teoria de

J Jeremias ldquo[] a teoria de J Jeremias popular ateacute agora natildeo encontra

fundamento filoloacutegico A conclusatildeo literaacuterio-histoacuterica dessa teoria vale dizer que

antes de Jesus os judeus natildeo se dirigiam a Deus como Abba natildeo eacute apenas

incomprovada como tambeacutem implausiacutevelrdquo (Vermes 1995 p163-167)

130

Apoacutes os diversos argumentos contraacuterios a J Jeremias concluiacutemos com

Swidler que fazendo menccedilatildeo de Georg Schelbert observa que aleacutem do termo

abba natildeo havia nenhuma outra palavra a disposiccedilatildeo de Jesus se ele quisesse falar

de Deus ou a Deus como Pai Se essa era a uacutenica forma de Jesus dirigir-se a Deus

entatildeo ela natildeo poderia ter nada de especial como afirma J Jeremias ateacute porque

como mostra Schelbert a Mishnaacute (que significa ensinamento que eacute recitado

oralmente) mostra um relacionamento iacutentimo com Deus como o Pai do Ceacuteu (Swidler

1993 p73-75) Em relaccedilatildeo ao termo abba Barr conclui que eacute razoaacutevel que abba no

tempo de Jesus pertencia a uma linguagem familiar ou coloquial distinto do uso

formal e cerimonioso mas por outro lado tendo em vista o uso do Targum seria

imprudente comparaacute-la a expressatildeo infantil Daddy (papai) O uso do abba era mais

solene podemos dizer que estava mais relacionado ao uso do adulto para com seu

Pai (Barr 1988 p 46)

62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA

LEITURA A PARTIR DA TEOLOGIA FEMINISTA

A figura feminina sempre foi discriminada pelas sociedades patriarcais ao

longo dos seacuteculos da histoacuteria da humanidade Podemos dizer que o cristianismo um

importante movimento de massa a pregar a liberdade e a igualdade entre os homens

e mulheres ldquoNatildeo haacute judeu nem grego natildeo haacute escravo nem livre natildeo haacute homem

nem mulher pois todos voacutes sois um soacute em Cristo Jesusrdquo (Gl 3 28) 69 Eacute comum

ouvirmos que Jesus libertou as mulheres uma vez que em seu ministeacuterio o mestre

da Galileia teve como disciacutepulas vaacuterias mulheres inclusive como jaacute mencionamos

neste trabalho (53) Maria Madalena (cf Lc 8 2 2410)

Elisabeth Schuumlssler Fiorenza referindo-se a Leonard Swidler vai mais aleacutem

quando afirma que Jesus foi um feminista e isso foi primeiramente atestado por um

estudioso homem e natildeo por uma mulher70 Schuumlssler Fiorenza apela para o fato de

Jesus ter tido disciacutepulas e tambeacutem ter violado as leis de pureza (algo que era

69

Swidler refere-se a esse texto de Paulo como uma contestaccedilatildeo a uma oraccedilatildeo rabiacutenica que diz ldquoLouvado seja Deus por natildeo me ter criado gentio Louvado seja Deus por natildeo ter me criado mulher Louvado seja Deus por natildeo ter me criado ignoranterdquo (Swidler 1993 p 101)

70 Basicamente para Swidler feminista eacute a pessoa a favor da igualdade de homens e mulheres ou

seja a pessoa que trata primeiramente a mulher como uma pessoa assim como os homens satildeo tratados (Swidler 1993 p100)

131

contraacuterio aos rabinos judeus) como argumento para fundamentar a tese de um

Jesus feminista (Schuumlssler Fiorenza 2005 p 37)

Contudo para Swidler a atitude feminista era uma exclusividade de Jesus e

natildeo dos evangelistas e suas fontes Para ele a Igreja primitiva tornou-se

rapidamente antifeminista como pode ser visto em textos como ldquo[] estejam as

mulheres caladas nas assembleias pois natildeo lhes eacute permitido tornar a palavra

Devem ficar submissas como diz tambeacutem a Lei (1Cor 14 34)rdquo Swidler ainda cita

outro texto (1Tm 2 11-12) que diz que ldquodurante a instruccedilatildeo a mulher conserve o

silecircncio com toda a submissatildeo Natildeo permito que a mulher ensine ou domine o

homem Que ela conserve o silecircnciordquo Para Swidler a Igreja natildeo soacute se tornou

antifeminista como tambeacutem se tornou misoacutegina uma vez que aleacutem dos textos acima

mencionados jaacute no II seacuteculo Tertuliano refere-se agraves mulheres com as palavras ldquosois

o portatildeo do diabordquo Natildeo bastasse Tertuliano Oriacutegenes afirma que ldquoaquilo que eacute visto

com os olhos do criador eacute masculino e natildeo feminino pois Deus natildeo se curva para

olhar aquilo que eacute feminino e da carnerdquo (Swidler 1993 p106)

Tal afirmaccedilatildeo (Jesus libertou as mulheres) eacute muito bem aceita entre as

teoacutelogas feministas e por todos que defendem essa teoria Para Schuumlssler Fiorenza

Jesus natildeo somente libertou as mulheres da degradaccedilatildeo imposta pela sociedade

judaica patriarcal da antiguidade (apesar dessa tese ser considerada como

historicamente falsa e antijudaica pelas teoacutelogas feministas judias) como tambeacutem o

proacuteprio Jesus era um feminista (Fiorenza 2005 p110)

Conforme Swidler a condiccedilatildeo das mulheres na sociedade contemporacircnea de

Jesus na Palestina era sem duacutevida de inferioridade em relaccedilatildeo aos homens

Segundo Swidler natildeo obstante o fato de ter havido vaacuterias heroiacutenas nas Escrituras

hebraicas natildeo impediu que nos dias de Jesus e ateacute muito tempo depois natildeo fosse

concedido agraves mulheres a permissatildeo de estudar a Toraacute Swidler citando um texto da

Mishnaacute (Sita 34) refere-se a um rabino do seacuteculo I chamado Eliezer que

pronunciou as seguintes palavras referindo-se agraves mulheres ldquoAs palavras da Toraacute

deveriam antes ser queimadas do que confiadas a uma mulher [] todo aquele que

ensina a Toraacute a sua filha eacute como aquele que lhe ensina a lasciacuteviardquo (Swidler 1993

p100-101)

As mulheres no templo de Jerusaleacutem estavam limitadas agrave parte externa ou

seja ficavam no paacutetio das mulheres que estavam cinco degraus abaixo do paacutetio dos

homens Nas sinagogas aleacutem de ficarem separadas dos homens natildeo tinham

132

permissatildeo para ler em voz alta muito menos assumir alguma funccedilatildeo de lideranccedila

Swidler cita Filon contemporacircneo de Jesus que pensava que as mulheres natildeo

deviam sair de casa a uacutenica exceccedilatildeo era para ir agrave sinagoga e preferencialmente

em horaacuterios em que a maioria das pessoas estivessem em casa De uma maneira

geral as mulheres serviam apenas para ter filhos estavam sempre sob a tutela de

um homem que seria o marido ou no caso de viuvez sob a tutela do irmatildeo do

falecido sem contar com o fato de que tinham que se sujeitar a poligamia (ainda que

natildeo muito praticada nos dias de Jesus) eram facilmente repudiadas com a carta de

divoacutercio poreacutem natildeo tinham permissatildeo para se divorciarem Enfim ldquoa condiccedilatildeo das

mulheres na Palestina era aquela dos inferioresrdquo (cf Swidler 1993 p102-104)

A teologia de J Jeremias referente agrave relaccedilatildeo de Deus como Pai nos laacutebios de

Jesus de Nazareacute71 natildeo eacute aceita em algumas correntes teoloacutegicas como por

exemplo pelos defensores da teologia feminista72 Poreacutem quando falamos do

movimento feminista natildeo significa que exista um uacutenico ponto de vista sobre um

mesmo pensamento teoloacutegico Algumas feministas que adotam o pensamento de

reforma da tradiccedilatildeo o qual implica em conservar o que eacute melhor ao inveacutes de

simplesmente imitar as tradiccedilotildees lutam por uma reforma e uma flexibilidade na

linguagem da igreja quando o assunto se refere agrave pessoa de Deus argumentando

que o uso exclusivo da imagem masculina natildeo faz justiccedila agrave imagem biacuteblica de Deus

mas limita o acesso ao entendimento que temos de Deus Para essa corrente

feminista a imagem de Deus natildeo estaacute relacionada a gecircnero visto que Deus pode

ser visto tanto como pai e como matildee segundo Marianne Thompson para uma parte

dessas feministas e ainda para outras portanto a ideia central natildeo eacute descartar a

71 Elisabeth Schuumlssler Fiorenza observa que os livros e artigos sobre ldquoJesus e as mulheresrdquo se

proliferam contudo ela cita Crossan quando este acusa as feministas pela falta de interesse na busca pelo Jesus histoacuterico Crossan pergunta onde estatildeo elas Schuumlssler responde ldquoCrossan natildeo pode reconhecer as afinidades entre seu proacuteprio modelo de reconstruccedilatildeo histoacuterica e o meu modelo feminista (cf Schuumlssler 2005 p 30)

72 Haight coloca que a teologia feminista eacute por muitos comparada agrave teologia da libertaccedilatildeo uma vez

que compartilham de ideais e estrutura formal comum no que diz respeito agrave libertaccedilatildeo e tambeacutem a maioria dos pobres no mundo eacute constituiacuteda de mulheres ldquo[] No que tange agrave loacutegica hermenecircutica da teologia portanto as teoacutelogas feministas podem referir-se a si mesmas como teoacutelogas da libertaccedilatildeo [] Na medida em que o androcentrismo controla o significado de Jesus cristo a cristologia feminista eacute levada a questionar como uma figura masculina de Salvador pode oferecer a salvaccedilatildeo agraves mulheres Em termos mais amplos contudo a cristologia feminista ocupa-se de toda a forma de opressatildeo e de suas inter-relaccedilotildees O Deus mediado por Jesus Cristo coloca em xeque todo poder de dominaccedilatildeo Natildeo era o sexo mas o gecircnero como categoria cultural que tinha primazia e era parte da ordem das coisas O significado de homem e de mulher era determinado pela posiccedilatildeo na hierarquia social e pelo lugar que se ocupava na sociedade natildeo pela genitaacuteliardquo (cf Haight 2003 p37)

133

linguagem de Deus como Pai mas apenas incluir essa com outra variedade de

imagens de Deus (Thompson 2000 p 3)

Para outras feministas no entanto nenhum acordo sobre a questatildeo da

imagem paterna de Deus pode ser atingido facilmente pois tais questotildees natildeo

podem ser tatildeo facilmente resolvidas e as respostas necessaacuterias satildeo muito radicais

pois trariam uma postura revolucionaacuteria para a tradiccedilatildeo Para elas o uso histoacuterico

que a Igreja tem da linguagem exclusivamente masculina de Deus deve ser

inteiramente refeito73 Em vez de buscar as reformas dentro das estruturas atuais da

igreja ou dentro de construccedilotildees teoloacutegicas tradicionais essas feministas oferecem

uma pauta mais radical o que tem implicaccedilotildees natildeo apenas para a linguagem sobre

Deus mas tambeacutem para o carater baacutesico de toda a teologia e feacute cristatilde Algumas

feministas satildeo mais radicais ainda pois explicitamente rejeitam as tradiccedilotildees da feacute

cristatilde afirmando que os textos cristatildeos e a feacute satildeo inevitavelmente e

intoleravelmente patriarcal elas abandonaram o cristianismo por completo

(Thompson 2000 p 4)

Para Thompsom (2000 p 18) a designaccedilatildeo de Deus como Pai natildeo eacute

invenccedilatildeo de Jesus e nem criaccedilatildeo da Igreja primitiva A designaccedilatildeo de Deus como

Pai faz parte de ambos os Testamentos ou como o Pai que eacute o ancestral que daacute a

vida e lega uma heranccedila aos seus filhos ou como o Pai que ama e cuida dos seus

filhos ou ainda como o Pai que eacute uma figura de autoridade a quem se deve

obediecircncia e honra Thompsom afirma que Jesus dirigiu-se a Deus como Pai em

primeira instacircncia natildeo como um mero testemunho de sua proacutepria experiecircncia de

Deus mas ao inveacutes disso pelas suas proacuteprias convicccedilotildees de Deus como renovador

e restaurador de Israel ou seja isso natildeo era fruto de uma experiecircncia privada mas

assunto de uma missatildeo puacuteblica Essa afirmaccedilatildeo de Thompson natildeo se coaduna com

o pensamento de J Jeremias para quem a relaccedilatildeo de Jesus com o Pai era iacutentima e

pessoal

Nesse sentido Mary Rose DAngelo ao analisar o texto do Evangelho de

Marcos 1436 quando Jesus invocava o Pai (Ἀββᾶ ὁ πατήρ) ela observa que a

73

Elisabeth Schuumlssler Fiorenza em seu livro Jesus e a poliacutetica da interpretaccedilatildeo coloca uma teoria polecircmica ou pelo menos curiosa Segundo Schuumlssler os antropoacutelogos tecircm assinalado que nem todas as culturas e liacutenguas conhecem dois sexosgecircneros e que mesmo em culturas ocidentais isso eacute coisa da modernidade ldquoDurante milhares de anos considerava-se comum que as mulheres tivessem o mesmo sexo e os mesmos oacutergatildeos genitais que os homens estando a diferenccedila no fato de se acharem no interior do corpo ao passo que os dos homens estavam no exterior A vagina era entendida como um pecircnis interior os laacutebios como prepuacutecio o uacutetero como saco escrotal e os ovaacuterios como testiacuteculosrdquo (cf Schuumlssler 2005 p9)

134

oraccedilatildeo contida nesse texto pode ser apenas redacional visto que tal oraccedilatildeo ocorreu

no cenaacuterio do Getsecircmani onde Jesus estava naquele momento sem os seus

disciacutepulos portanto eles natildeo estavam laacute para ouvir e descrever o momento de sua

agonia Ela concorda com a teoria de que a narrativa desse cenaacuterio poderia ser

apenas um soliloacutequio dramaacutetico de Jesus ou entatildeo uma repeticcedilatildeo da oraccedilatildeo de

Joseph (4Q372 1 23-24) onde ele suplica para que Deus natildeo lhe abandone Para

D`Angelo a narrativa de Marcos tende muito para o lado emotivo procurando

dessa forma colocar Jesus como o verdadeiro Filho de Deus e grande maacutertir da

histoacuteria do judaiacutesmo conforme os livros Sabedoria de Salomatildeo e 3 Macabeus (D`

Angelo 1992b p159) Em outro artigo (Abba and ldquoFatherrdquo Imperial Theology and

the Jesus Traditions) D Angelo reafirma seu argumento sobre o cenaacuterio do

Getsecircmani dizendo ldquoEsta eacute uma cena da revelaccedilatildeo entre Jesus e leitor os

disciacutepulos estatildeo laacute para relatar a agonia de Jesus Assim a atribuiccedilatildeo de abba a

Jesus natildeo tem muacuteltipla atestaccedilatildeo Na verdade ocorre apenas em uma cena que

quase certamente deriva da atividade literaacuteria de Marcosrdquo (D` Angelo 1992a p614-

615)

Segundo D Angelo o uso do Abba pela Igreja primitiva natildeo eacute uma heranccedila dos

ensinamentos de Jesus como acreditam alguns teoacutelogos De acordo com essa

autora o uso do Abba na Igreja primitiva era mais uma questatildeo de ecircxtase provocada

por uma accedilatildeo do Espiacuterito Santo do que uma referecircncia agraves palavras ditas por Jesus

Para a autora se o Abba usado nas igrejas tivesse uma ligaccedilatildeo direta com Jesus

entatildeo seriamos obrigados a aceitar que outras palavras de origem aramaica como

Maranatha tambeacutem seriam provenientes dos discursos do mestre (D Angelo 1992a

p 615)

Um outro argumento defendido por D` Angelo eacute que o uso da expressatildeo ldquoAbba

Pairdquo no Evangelho de Marcos eacute anti-imperialista visto que o Imperador de Roma

considerava-se o pai da paacutetria (parens patriae pater patriae) preferindo ser

reconhecido com o tiacutetulo de pai ao tiacutetulo de rei designaccedilatildeo esta que natildeo soava bem

aos ouvidos do povo romano (D` Angelo 1992a p623-630) De fato de acordo com

DAngelo foi concedido a Juacutelio Cesar ainda em vida o tiacutetulo de ldquopaterldquo (pai) o qual

buscava estabelecer uma relaccedilatildeo de devoccedilatildeo (pietas) entre ele e o povo romano

Isso se deve ao fato que o uso de pater subentende o impeacuterio como uma grande

famiacutelia na qual o imperador funciona como um paterfamilias e cuja autoridade eacute

baseada em sua habilidade de reger todo o povo romano como seus clientes Ainda

135

seguindo com essa visatildeo imperialista observa-se que Augusto adquiriu oficialmente

o tiacutetulo pater patriae no ano 2 aC

No intuito de descrever o caraacuteter dos imperadores DAngelo aponta que

Cassius Dio o qual acreditava que os tiacutetulos supracitados representavam mais

afeiccedilatildeo do que autoridade tratou augustus e pater como duas denominaccedilotildees

atraveacutes das quais os imperadores primeiro permitiam a si mesmos serem

distinguidos do resto dos cidadatildeos substituindo o tiacutetulo ldquoreirdquo por tais designaccedilotildees

cujas essecircncias soariam de maneira menos ofensiva aos ouvidos dos romanos De

acordo com Dio o termo pater concorda com a ideia que o Imperador tem a mesma

autoridade que um pai tem sobre seus filhos escravo e outros sujeitos

Por outro lado dois filoacutesofos estoicos do primeiro e segundo seacuteculos nos

ajudam a entender como o tiacutetulo pai concedido ao Imperador poderia sofrer uma

reaccedilatildeo com o pensamento teoloacutegico da eacutepoca Para Dio Crisoacutestomo ldquoDeus como

pai racionaliza o governo imperial e convida-o a adotar um coacutedigo de eacutetica de

clemecircncia e de responsabilidaderdquo ao descrever que o bom rei eacute aquele que prefere a

labuta aos prazeres e as riquezas Tal rei prefere o tiacutetulo ldquopairdquo ao referir-se agrave sua

capacidade de provisatildeo Jaacute Epiacuteteto ldquousa a paternidade de Deus para oferecer uma

dignidade alternativa para aqueles que natildeo tecircm acesso ao poder dentro da ordem

imperialrdquo Esses dois autores satildeo importantes para o cristianismo primitivo e para o

judaiacutesmo natildeo pela influecircncia que exerceram sobre eles mas porque respondem as

mesmas realidades poliacuteticas

Um outro argumento de DAngelo com relaccedilatildeo ao uso de Abba por Jesus eacute

que o mesmo natildeo pode ser explicado apenas como uma relaccedilatildeo afetiva entre pai e

filho mas tambeacutem reflete a praacutetica carismaacutetica da comunidade na qual Marcos

estava inserido assim como ocorreu nas igrejas de origem grega da Galaacutecia e em

Roma (Gl 46 Rm 816) onde o uso da palavra ldquoAbbardquo eacute fruto da accedilatildeo do Espiacuterito

Santo

D`Angelo justifica essa tese a partir do fato que segundo ela J Jeremias

tomou como base em seus estudos apenas os textos provenientes de oraccedilotildees e

ainda excluiu textos em grego os quais ele considerou serem oraccedilotildees feitas pela

comunidade e natildeo como fruto de uma accedilatildeo do indiviacuteduo (D`Angelo 1992b p151)

Para dar suporte a esse argumento D`Angelo faz referecircncia ao texto de 4Q372 1

originalmente escrito em hebraico no qual Joseph invoca a Deus chamando-o de

meu Pai ldquoMeu Pai e meu Deus natildeo me abandone nas matildeos das naccedilotildees faccedila

136

justiccedila por mim o aflito e pobre pereciacutevel Vocecirc natildeo precisa de nenhuma pessoa ou

naccedilatildeo para lhe ajudar seu dedo eacute maior e mais forte do que qualquer coisa no

mundordquo (Vermes 2004 p566) Ela ainda cita outros textos onde Deus eacute invocado

como Pai (3 Mac 6 3-4 78 Sab 143 1 QH 935)

Embora alguns desses textos tenham sido escritos em grego quando lidos no

contexto de 4Q372 1 e 4Q460 5 DAngelo observa os textos hebraicos e gregos

mostram que era uma praacutetica comum tanto da comunidade quanto do indiviacuteduo

dirigir-se a Deus em oraccedilotildees chamando-o de Pai (D`Angelo 1992b p 152) Dessa

forma ela entende que o conceito de Deus como Pai sempre esteve presente no

judaiacutesmo antigo influenciando toda a literatura judaica da eacutepoca (DAngelo 1992a

618)

Face aos argumentos acima expostos D Angelo conclui que a originalidade

do uso do Abba natildeo pode ser atribuiacutedo a Jesus com toda certeza e mais ainda

segundo ela seria menos provaacutevel que Jesus usasse o termo pai numa linguagem

familiar do que em resistecircncia agrave ordem do Impeacuterio romano

Finalmente considerando os argumentos apresentados a partir da

interpretaccedilatildeo feminista Thompson conclui que tanto Jesus como a Igreja primitiva

natildeo deram origem ao conceito de Deus como Pai Aleacutem disso apesar das

caracteriacutesticas do Pai no Israel antigo serem utilizadas para falar de Deus como Pai

elas nunca estiveram ligadas a uma essecircncia masculina de Deus mas servem como

exemplo de feacute misericoacuterdia justiccedila humildade bem como responsabilidade

individual e corporativa e obediecircncia a Deus para a comunidade (Thompson 2000

p 19)

137

7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Naquela noite em sonhos Joseacute teve um aviso O Evangelista natildeo diz em que cidade ou lugar a famiacutelia se encontrava Natildeo devia ser do lado norte e talvez fosse mesmo nas montanhas do sul fora do alcance das batidas policiais de Herodes Suponhamos que fosse na estrada do Heacutebron Com a cabeccedila reclinada sobre uma pedra o carpinteiro adormece E eis que o anjo do Senhor (aquele mesmo que lhe confiara a guarda de Jesus) lhe diz - Levanta-te e toma o menino e sua matildee e foge para o Egito e demora-te laacute ateacute que eu diga porque Herodes haacute de procurar o menino para o matar Joseacute desperta Sobre os montes luzem os primeiros alvores da madrugada Prepara o alforje avisa Maria para que tambeacutem se prepare porque longa eacute a viagem [] Joseacute sela o jumento acomoda Maria e o Menino sobre o animal Toma o bordatildeo E parte A viagem prolonga-se por muitos dias pela Idumeacuteia pelas montanhas de Sin pelo deserto de Sur Uma tarde sobre as colinas a cavaleiro do Nilo avistam as piracircmides de Miquerinos de Queacutefren e de Queops grandiosas e silenciosas no ar trecircmulo de mormaccedilo Junto agrave piracircmide de Miquerinos olhando para o abismo do ceacuteu e para a amplitude do deserto uma cabeccedila gigantesca de pedra tem indefiniacutevel indecifraacutevel expressatildeo Eacute a grande esfinge [] Os egiacutepcios viam naquele rochedo a imagem humana do sol Os gregos viam naquela imagem o monstro proponente de problemas insoluacuteveis (Salgado 1985 p67-69)

Em tom poeacutetico Plinio Salgado narra a histoacuteria da fuga do menino Jesus e

seus pais para o Egito conforme o texto do Evangelho de Mateus que diz ldquo[] eis

que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonhos a Joseacute e lhe disse Levanta-te toma

o menino e sua matildee e foge para o Egitordquo (Mt 213) Salgado usa o mito da esfinge74

para relacionar com o mito de Eacutedipo onde o enigma eacute decifrado pelo personagem

Eacutedipo75 Para Salgado Eacutedipo decifrou a Esfinge mas natildeo decifrou o homem que

continua nas trevas

A pergunta do monstro na estrada de Tebas refere-se ao homem ldquoQual eacute o animal que pela manhatilde anda com quatro pernas ao meio-dia com duas e agrave

74

Segundo Plinio Salgado o mito da Esfinge rezava que enquanto ser vivente misto de leatildeo e de mulher a Esfinge andava pelas estradas de Tebas devorando os viajantes que eram incapazes de responder as suas perguntas enigmaacuteticas Contudo o monstro morreria quando algueacutem decifrasse seu enigma

75 O mito de Eacutedipo pode ser visto com detalhes no claacutessico Antiacutegona de Soacutefocles

138

tarde com trecircsrdquo Eacutedipo responde ldquoEacute o homemrdquo e respondendo revela que toda a preocupaccedilatildeo da Esfinge eacute o gecircnero humano Decifrar a Esfinge eacute a preocupaccedilatildeo do homem Decifrar o homem eacute a preocupaccedilatildeo da Esfinge (Salgado 1985 p67-69)

Conforme Salgado a trageacutedia de Eacutedipo eacute a trageacutedia do homem Somente

Jesus decifraraacute a ldquoEsfinge-Homem e iluminaraacute todo o universordquo

A histoacuteria da humanidade eacute repleta de trageacutedias desde as suas origens Jaacute

nos primeiros capiacutetulos do Gecircnesis vemos Abel sendo viacutetima de seu irmatildeo Caim 76

Diante de tantas cataacutestrofes o homem procura refuacutegio em um ser sobrenatural que

possa amenizar seu sofrimento e dar-lhe alguma explicaccedilatildeo para o porquecirc de tantos

desalentos nesta vida

A relaccedilatildeo do ser humano com o Ser sobrenatural faz parte da cultura de todos

os povos antigos como vimos no primeiro capiacutetulo deste trabalho Isso nos mostra o

anseio do ser humano em busca do seu criador Observamos que para os povos

antigos Deus era visto como um ancestral divino ou seja o homem era visto como

descendente da divindade Essa relaccedilatildeo entre o homem primitivo e a deidade nos

povos antigos era sempre marcada por sangue violecircncia guerra entre os deuses

ateacute o surgimento do homem como vimos no mito sumeacuterio babilocircnico em que o

homem proveacutem do sangue de um deus decaiacutedo chamado Kingu

Em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem na narrativa do Gecircnesis verificamos que o

proacuteprio Deus eacute quem modela e cria o homem a partir do barro (argila) O homem

entatildeo recebe a vida atraveacutes do sopro divino Essa relaccedilatildeo tatildeo proacutexima entre criatura

e criador eacute descrita nas Escrituras de uma forma progressiva desde o Gecircnesis ateacute

os escritos neotestamentaacuterios Agrave medida que Deus se revela ao homem este se

aproxima mais dele Aos patriarcas Deus eacute o El Shaday (Todo Poderoso) mas jaacute a

Moiseacutes ele revela o seu proacuteprio Nome Ele eacute o ldquoEu Sourdquo o Yahweh

Mesmo Yahweh sendo um Deus proacuteximo Ele ainda eacute visto no Antigo

Testamento como figura de um Senhor Criador o Todo Poderoso que luta e peleja

por Israel mas que ao mesmo tempo em que defende seu povo pune-os e os

entrega nas matildeos dos inimigos quando esses se desviam dos seus mandamentos

J Jeremias sabiamente observa que no Antigo Testamento a relaccedilatildeo de Israel com

Deus natildeo eacute vista como o relacionamento de pai para filho principalmente por parte

76

Cf Gn 4 1-16

139

do indiviacuteduo Deus sempre se apresenta como o Pai do rei ou entatildeo como o Pai da

naccedilatildeo Mesmo que Pai seja uma das muitas metaacuteforas para Deus como afirma

Goshen-Gottstein dificilmente podemos contestar a tese de J Jeremias uma vez

que uma clara invocaccedilatildeo de Deus como Pai feita por algum indiviacuteduo no Antigo

Testamento eacute difiacutecil de ser encontrada

Em relaccedilatildeo ao Novo Testamento observamos que Jesus que conviveu em

uma sociedade muito pobre carregada de preconceitos viu na expressatildeo Abba a

forma por excelecircncia para projetar nela o modelo de uma verdadeira e iacutentima

relaccedilatildeo entre filho e pai O fato de Jesus ter sofrido preconceitos como em sua

infacircncia adolescecircncia e ateacute na vida adulta por causa da sua filiaccedilatildeo humana natildeo o

impediu de demonstrar o quanto a sua relaccedilatildeo com o Pai divino era estreita e isso

estava acima de todos os preconceitos concebidos dentro de uma sociedade cheia

de costumes rigidamente observados a ponto de natildeo mais compreenderem o

verdadeiro sentido do amor a Deus e ao proacuteximo conforme era a verdadeira

vontade de Deus expressa nos ensinamentos do mestre da Galileia

Embora Joseacute tenha assumido a paternidade de Jesus isso natildeo foi suficiente

para impedir o preconceito contra ele em relaccedilatildeo a sua filiaccedilatildeo humana Contudo

quando Bruce Chilton potildee a questatildeo relacionada agrave possibilidade de Jesus ter sido

considerado um Mamzer a partir da interpretaccedilatildeo do texto do Evangelho de Joatildeo 8

40-41 onde os Judeus fazem a seguinte afirmaccedilatildeo a Jesus ldquo[] natildeo nascemos da

prostituiccedilatildeo temos um soacute pai Deusrdquo podemos tambeacutem olhar esse texto a partir de

uma interpretaccedilatildeo de uma Cristologia alta ou seja aqui o debate entre Jesus e os

judeus tem como ponto principal a filiaccedilatildeo divina onde Jesus se coloca como o

Verbo divino preexistente Poreacutem eacute bem verdade que isso natildeo anula o pensamento

de Chilton em relaccedilatildeo agrave possiacutevel discriminaccedilatildeo sofrida por Jesus levando em

consideraccedilatildeo o contexto a eacutepoca a cultura e o ambiente social em que Jesus viveu

durante o periacuteodo da infacircncia ateacute a vida adulta

Aleacutem disso podemos dizer com Martins Terra que a vida de Cristo eacute a

Revelaccedilatildeo do Pai que pode ser demonstrada nas palavras no silecircncio e nos

sofrimentos de Jesus Martins Terra observa que essa relaccedilatildeo eacute plena de intimidade

como pode ser visto nas palavras do proacuteprio Mestre ldquoAquele que me viu viu o Pairdquo

(Jo 149) e da mesma forma o Pai tambeacutem pode dizer assim do Filho ldquoEste eacute o

140

meu Filho muito amado ouvi-o (Lc 935)rdquo Notamos aqui que a relaccedilatildeo de Jesus

com o Pai eacute desde a eternidade onde o Verbo divino jaacute estava presente com o Pai

na criaccedilatildeo de todas as coisas (Martins Terra 2009 p283-284)

Para Martins Terra assim como para J Jeremias o Abba de Jesus eacute o

modelo da perfeita relaccedilatildeo dos filhos de Deus com o Pai do ceacuteu Assim como Jesus

relacionou-se com o Pai divino seus disciacutepulos tambeacutem o poderatildeo desde que se

aproximem e ldquoamem a Deus acima de todas as coisas e o proacuteximo como a si

mesmordquo Eacute na oraccedilatildeo do Pai Nosso que Jesus ensina como os disciacutepulos devem

orar em uma estreita ligaccedilatildeo com o Abba conforme nos descreve Martins Terra

[] Os disciacutepulos ficam impressionados com a oraccedilatildeo de Jesus Ele chamava a Deus de Aba (Mc 14 36) que natildeo eacute um termo usado nas oraccedilotildees judaicas Aba eacute um diminutivo aramaico que significa ldquopapairdquo Eacute a expressatildeo de uma crianccedila dirigindo-se a seu progenitor Jesus natildeo pode desde o inicio revelar o misteacuterio da Santiacutessima Trindade e de sua pessoa divina Esse misteacuterio natildeo tinha sido revelado no AT Foi invocando a Deus como Aba ldquomeu Pairdquo que Jesus foi levantando aos poucos o veacuteu que ocultava o misteacuterio da trindade e do seu relacionamento filial uacutenico com o Pai (Martins Terra 2009 p283-284)

Aleacutem disso de acordo com James D G Dunn podemos dizer com confianccedila

que Jesus experimentou uma iacutentima relaccedilatildeo com Deus expressa atraveacutes da oraccedilatildeo

Ele se relacionou com Deus caracteristicamente como Filho e Pai e o sentido dessa

relaccedilatildeo com Deus era tatildeo real tatildeo amorosa e tatildeo atraente que Jesus sempre se

dirigiu a Deus dessa maneira chamando-o de Pai ldquoAbba foi o grito que veio mais

naturalmente aos laacutebios de Jesusrdquo (Dunn 1997 p26)

Segundo J Jeremias para compreendermos o Abba como a ipsissima vox de

Jesus eacute preciso observar a origem de sua liacutengua materna Conforme observamos

no decorrer desta pesquisa haacute alguns pesquisadores que defendem que a liacutengua

corrente nos dias de Jesus era o hebraico e por sinal tambeacutem falada por Jesus

Esse argumento natildeo eacute seguido pela maioria dos especialistas do Novo Testamento

bem como por J Jeremias A liacutengua falada por Jesus era do ldquoramo ocidental da

famiacutelia linguiacutestica aramaicardquo J Jeremias para embasar sua tese menciona

respeitaacuteveis nomes como J Wellhausen Jouumlon Matthew Black e principalmente G

Dalman (Jeremias 2008 p32-33) que ldquoapresentou a prova baacutesica para este fatordquo

Tendo Dalman ainda como referecircncia J Jeremias afirma que natildeo eacute possiacutevel mais

141

duvidar que o aramaico ou para ser mais preciso ldquoo dialeto galileu do aramaico

ocidentalrdquo era a liacutengua materna de Jesus

As evidecircncias aramaicas satildeo evidentes nos ditos de Jesus por outro lado

praticamente natildeo se encontra palavras em hebraico ditas por ele nem mesmo o

ldquoAmenrdquo ou ldquoEliacuterdquo uma vez que essas palavras foram absorvidas pelo aramaico

(Jeremias 2008 p36) J Jeremias admite que em alguns poucos casos

encontramos palavras hebraicas nos laacutebios de Jesus mas sempre em situaccedilotildees

solenes como as palavras proferidas na uacuteltima ceia em liacutengua sacra

A importacircncia do aramaico como a primeira liacutengua de Jesus encontra-se na

possibilidade de nos aproximarmos o quanto possiacutevel do modo de falar do mestre

ou seja voltarmos ldquoagraves caracteriacutesticas da dicccedilatildeo de Jesus que natildeo possuem

nenhuma analogia na literatura da eacutepoca e que por isso podem ser consideradas

como marcas da ipsissima vox de Jesusrdquo (cf Jeremias 2008 p 68-79) Entre as

particularidades de Jesus concernentes agrave fala encontramos as seguintes

peculiaridades conforme J Jeremias

1 - As paraacutebolas de Jesus satildeo exclusividade dele natildeo encontradas em toda a

literatura judaica do Antigo ou do Novo Testamento quer canocircnica ou apoacutecrifa Nas

paraacutebolas de Jesus natildeo se encontra nenhuma faacutebula ou seja ele nunca coloca

uma videira ou figueira para falar Suas paraacutebolas (mesmo contendo metaacuteforas do

Antigo Testamento) tinham por maior finalidade atingir o coraccedilatildeo pulsante do ouvinte

e tratar de assuntos relacionados ao dia-a-dia da vida do ser humano

2 - Os ditos enigmaacuteticos como o proferido sobre Joatildeo Batista ldquoo maior entre

os nascidos de mulher eacute ao mesmo tempo o menor no reino de Deusrdquo (Mt11 11)

eram incomuns nos dias de Jesus seja entre os mestres ou ateacute mesmo dos

primeiros cristatildeos que natildeo inventaram tais ditos mas apenas os tornaram mais

evidentes

3 ndash A expressatildeo ldquoreino de Deusrdquo eacute escassa na literatura judaica antiga

recebendo um aumento apenas na literatura rabiacutenica Contudo nos Evangelhos natildeo

soacute o aumento mas a forma que Jesus usa as expressotildees relacionadas ao reino de

Deus satildeo profundamente marcantes para se caracterizar como a ipsissima vox de

Jesus conforme encontramos em textos como Mateus 519 11 12 Marcos 115

Lucas 112 1231 1721 etc

142

4 ndash O termo Ameacutem como jaacute foi mencionado nesta pesquisa (54) no Antigo

Testamento era usado como foacutermula solene para confirmar ldquouma palavra de benccedilatildeo

maldiccedilatildeo ou desejordquo Nos laacutebios de Jesus o termo eacute usado para testificar as

proacuteprias palavras do falante e natildeo de outrem J Jeremias conclui sobre o ameacutem

com as seguintes palavras ldquoA novidade desse uso linguiacutestico sua estrita restriccedilatildeo

agraves palavras de Jesus e o testemunho unacircnime de todas as camadas da tradiccedilatildeo

evidenciam que nos deparamos com uma inovaccedilatildeo linguiacutestica nos laacutebios de Jesusrdquo

5 ndash E por uacuteltimo temos o Abba proferido por Jesus Abba eacute a mais importante

palavra pronunciada por Jesus quando invocava a Deus com o Pai eacute o modo

preferido de Jesus para referir-se ao Pai Dificilmente poderiacuteamos interpretar o Abba

de Jesus como faz Malina comentando o Abba natildeo eacute paizinho de James Barr

Como tem sido demonstrado por James Barr (1988) a palavra aramaica Abba natildeo significa ldquopaizinhordquo como no hebraico moderno Tanto na traduccedilatildeo do Novo Testamento (Abba = ho pater Mc 14 36 Rm 815 Gl46) quanto de honra No patriarcado ele implica tambeacutem distacircncia Deus natildeo eacute um paizinho mas um patrono Na religiatildeo poliacutetica pregada por Jesus o deus de Israel eacute o patrono de Israel (cf Malina 2004 p145)

Compreende-se portanto que o Abba proferido por Jesus eacute ipsissima vox

Julgar J Jeremias alegando que ele considerou o linguajar de Jesus infantil natildeo eacute

cabiacutevel dentro do contexto de toda a sua teologia J Jeremias defende-se dessa

acusaccedilatildeo que a princiacutepio ateacute poderia ser justa uma vez que ele admite que jaacute

chegou a acreditar que Jesus tenha assumido a linguagem das criancinhas quando

se dirigia a Deus Pai como ele mesmo admite ldquoeu tambeacutem acreditei nissordquo

contudo agora natildeo mais jaacute que nas proacuteprias palavras desse teoacutelogo ele assim

admite ldquoa constataccedilatildeo de que jaacute desde os tempos preacute-cristatildeos os filhos e filhas

adultos se dirigiam a seus pais chamando-os de Abba proiacutebe esta limitaccedilatildeordquo

(Jeremias 2008 p121)

Portanto no Abba de Jesus natildeo haacute espaccedilos para patriarcados exclusivistas

uma vez que o proacuteprio ldquoFilho de Deusrdquo na sua condiccedilatildeo de homem acolheu os

pobres religiosos doentes e marginalizados pela sociedade cobradores de

impostos e tambeacutem acolheu o que a sociedade machista da eacutepoca mais discriminou

as mulheres Talvez seja uma precipitaccedilatildeo eliminar a linguagem metafoacuterica da

palavra Pai ou mesmo deixar de observar nela o conceito anti-imperialista ou ateacute

mesmo a patronagem No entanto natildeo podemos deixar de priorizar que para Jesus

143

Abba era uma palavra sagrada era ldquoa revelaccedilatildeo Deus porque Deus se tinha dado a

conhecer a ele como seu Pairdquo (Mt 11 27) um ldquoPairdquo acolhedor que quis ajuntar os

seus filhos como a galinha ajunta os seus os seus pintos debaixo das suas asas (cf

Lucas 1334)

A paternidade de Deus conforme J Jeremias natildeo eacute algo natural tambeacutem

natildeo eacute uma posse de todos os seres humanos mas reserva-se apenas aos

disciacutepulos uma vez que Jesus nunca dirigiu a expressatildeo ldquovosso Pairdquo a algueacutem que

estivesse fora do rol dos seus seguidores A filiaccedilatildeo faz parte do reino (basileia) de

Deus Uma das exigecircncias para fazer parte de tal reino eacute tornar-se como uma

crianccedila (Mt 183) Essa filiaccedilatildeo eacute escatoloacutegica eacute um dom salviacutefico de Deus (J

Jeremias 2008 p 271-273)

O Pai apresentado por Jesus eacute bom e cuida dos seus lsquopequeninosrsquo jaacute que

ele sabe do que eles realmente precisam (Mt 6 8 32) A invocaccedilatildeo de Deus como

Abba eacute mais forte do que todas as adversidades e anguacutestias mesmo que Satatilde

ldquoqueira peneirar o disciacutepulordquo (Lc 22 31) o Pai do ceacuteu ldquoeacute mais forte do que todos os

problemas enigmas e anguacutestias e sabe do que precisam os filhos do reino (J

Jeremias 2008 p276) O ponto central de toda essa exposiccedilatildeo sobre o Abba

consiste no ldquovoltar a ser como uma crianccedilardquo O significado disso estaacute em tornar-se

dependente do Pai voltar para os braccedilos do Pai (cf Lc 15 11-32) depositar total

confianccedila nele enfim resumimos isso nas palavras de J Jeremias ldquovoltar a ser

crianccedilardquo significa reaprender a dizer Abba (J Jeremias 2008 p 238) como diz J

Jeremias ldquo[] Abba eacute percebido como um grande privileacutegiordquo Ter a coragem de

chamar Deus de Pai proveacutem da conscientizaccedilatildeo da filiaccedilatildeo satildeo os filhos que podem

dizer Abbardquo (J Jeremias 2008 p293)

Jesus de Nazareacute o Filho de Deus o homem que dividiu a histoacuteria em antes e

depois dele mudou os rumos da humanidade para sempre Amado e odiado

apregoado e perseguido mas nunca esquecido Verificamos ao longo deste trabalho

as mais variadas teorias sobre ele ora como um mago um judeu marginal um

profeta um bastardo um judeu praticante ou apenas uma figura lendaacuteria

embelezada por seus seguidores Schuumlssler Fiorenza relata uma histoacuteria rabiacutenica

em que Moiseacutes visita o rabino Akiva Ao ouvir os infindaacuteveis discursos sobre a Toraacute

Moiseacutes teria perguntado ldquoquem escrevera aquelas coisas grandiosas que ele jamais

144

tomara conhecimentordquo Schuumlssler Fiorenza (2005 p1) relacionando a histoacuteria

rabiacutenica sobre a Toraacute com as milhares escritas sobre Jesus ela levanta a seguinte

questatildeo ldquoSe Jesus tal como Moiseacutes voltasse a terra lesse todas as suas biografias

e frequentasse o Jesus Seminar ou fosse agrave reuniatildeo anual da Society of Biblical

Literature tambeacutem se maravilharia e perguntaria tomado de assombro Quem eacute

essa pessoa de quem estatildeo falandordquo

A busca pelo Jesus da histoacuteria levou a tantos extremos mas com certeza

acrescentou inuacutemeros fatos ou ateacute mesmo suposiccedilotildees que enriqueceram o

conhecimento que temos hoje sobre Jesus e os Evangelhos Eacute inegaacutevel o fato de

que os Evangelhos natildeo satildeo histoacuteria no sentido moderno e que os disciacutepulos natildeo

tinham a mesma pretensatildeo ou necessidade de relatar os fatos em detalhes visto

que viveram em um mundo cultura e eacutepoca totalmente diferente da nossa cultura

ocidental Portanto quanto mais perto quisermos chegar do Jesus humano mais

perto devemos nos aproximar da cultura do seacuteculo I

Sobre o divisor de aacuteguas entre J Jeremias e Bultmann ou seja se devemos

buscar pelo Jesus da histoacuteria ou pelo Cristo querigmaacutetico nada melhor do que

concluir com as palavras do proacuteprio J Jeremias

A boa nova sobre Jesus e o testemunho da feacute da igreja primitiva estatildeo indissoluvelmente ligados Natildeo podemos isolar nenhuma dessas magnitudes Pois o evangelho de Jesus se converte em histoacuteria morta sem o testemunho de feacute da igreja (a qual estaacute transmitindo sem cessar esse evangelho e o estaacute confessando e testemunhando sempre novamente) Sem Jesus e seu evangelho a igreja natildeo pregava mais que uma ideia um teorema Quem isola a pregaccedilatildeo de Jesus termina no ebionismo Quem isola o querigma da igreja primitiva termina no docetismo (Jeremias 2006 p 42)

Portanto descrever sobre Jesus realmente natildeo eacute tarefa faacutecil como parece

ser Como afirmar que ele era analfabeto ou entatildeo um rabi letrado da Galileia As

evidecircncias internas como vimos levam-nos a pensar em um homem que escrevia

lia e interpretava as Escrituras Por outro lado como nos mostra Crossan as

evidecircncias externas levam-nos a pensar em um camponecircs sofredor e iletrado como

a maioria dos galileus ou entatildeo dos judeus subjugados ao terriacutevel e impiedoso

Impeacuterio romano principalmente a Galileia diretamente afetada pelo deacutespota

Herodes Antipas

145

O importante eacute que Jesus com ou sem instruccedilatildeo douto ou indouto

conseguiu com a graccedila do Pai dos Ceacuteus deixar aos homens de todas as eacutepocas o

exemplo de um servo sofredor de amor ao proacuteximo de renuacutencia e acima de tudo

de um homem que cumpriu com toda a vontade e propoacutesitos de Deus Pai para a

salvaccedilatildeo da humanidade O apoacutestolo Joatildeo o descreveu como o Verbo o Logos

preexistente que existe antes de todas as coisas uma vez que as mesmas foram

criadas por ele

146

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Page 2: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2020. 3. 10. · segundo Joachim Jeremias. Para isso, realizamos o estudo do Jesus histórico e seu contexto social,

JONAS SILVA FARIA

JESUS DE NAZAREacute SUA RELACcedilAtildeO COM DEUS PAI EM JOACHIM

JEREMIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teologia da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Teologia

Orientador Prof Dr Vicente Artuso

CURITIBA

2012

Dados da Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute

Sistema Integrado de Bibliotecas ndash SIBIPUCPR

Biblioteca Central

Faria Jonas Silva

F224j Jesus de Nazareacute sua relaccedilatildeo com Deus Pai em Joachim Jeremias e seus 2012 Desdobramentos Jonas Silva Faria orientador Vicente Artuso ndash 2012

151 f 30 cm

Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute

Curitiba 2012

Bibliografia f 146-151

1 Biacuteblia AT - Antiguidades 2 Biacuteblia NT - Histoacuteria de fatos

contemporacircneos 3 Jeremias Joachim 1900- 4 Teologia I Artuso Vicente

1952- II Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Teologia III Tiacutetulo

CDD 20 ed ndash 232908

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo a Deus pela inspiraccedilatildeo e pela vida sem as quais natildeo seria possiacutevel concluir este trabalho

Agradeccedilo a minha esposa Josiane pela compreensatildeo e apoio nas inuacutemeras horas em que me dediquei agrave pesquisa abdicando dos momentos que poderiam ser aproveitados junto da famiacutelia e em especial agrave nossa filha Sofia Gabriela que nasceu durante o periacuteodo da minha pesquisa trazendo luz alegria e motivaccedilatildeo para que essa empreitada fosse concluiacuteda

Agradeccedilo aos meus pais pela educaccedilatildeo a mim proporcionada e em especial a minha tia Eli Kowalski por ter tornado possiacutevel meu sonho de cursar teologia em uma instituiccedilatildeo de ensino superior o qual ampliou meus horizontes para o labor teoloacutegico e por fim abriu o caminho para mais esta conquista

Meu agradecimento especial ao meu orientador Prof Dr Vicente Artuso por ter acreditado na possibilidade desta pesquisa e me fornecido o suporte necessaacuterio para a concretizaccedilatildeo deste trabalho

Agradeccedilo ao corpo docente e ao programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia da PUC-PR pela contribuiccedilatildeo valiosa em minha formaccedilatildeo teoloacutegica durante todo o processo

Agradeccedilo agrave secretaacuteria Maria pela paciecircncia e eficiecircncia nas informaccedilotildees fornecidas desde o primeiro contato com a instituiccedilatildeo

Agradeccedilo a Marta pela disponibilidade e empenho na correccedilatildeo ortograacutefica e gramatical desta dissertaccedilatildeo

Agradeccedilo aos dirigentes do Studium Theologicum de Curitiba por ter permitido a utilizaccedilatildeo da biblioteca na qual encontrei grande parte da bibliografia aqui utilizada e a Flaacutevia pela paciecircncia e disponibilidade no auxiacutelio agraves consultas bibliograacuteficas

RESUMO

O objetivo deste trabalho eacute levar-nos agrave compreensatildeo da relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo Joachim Jeremias Para isso realizamos o estudo do Jesus histoacuterico e seu contexto social poliacutetico e religioso bem como a visatildeo que os povos antigos incluindo o Israel do Antigo Testamento tinham de Deus Por fim visotildees contraacuterias agrave interpretaccedilatildeo de J Jeremias satildeo apresentadas As diversas teorias que os homens tecircm da paternidade divina chamam agrave nossa atenccedilatildeo para a incessante busca da humanidade para identificar-se com o Criador especificamente com a figura de um Deus Pai No entanto nesta pesquisa observamos que mesmo no judaiacutesmo onde natildeo encontramos a antiga imagem de uma deusa matildee observamos a figura de um Deus Pai com afetos e sentimentos maternos Para J Jeremias eacute com Jesus que o relacionamento do humano com o Pai divino atinge seu aacutepice atraveacutes da magna expressatildeo ldquoAbba Pai Segundo este autor Jesus de um balbucio das criancinhas teria tornado o Abba Pai uma expressatildeo sagrada entre os seus disciacutepulos a ponto de posteriormente ela ser absorvida pelas comunidades cristatildes primitivas como a forma de comunicaccedilatildeo do Espiacuterito para testificar no interior do disciacutepulo que este agora eacute tambeacutem filho de Deus A teoria de que o Abba natildeo era apenas um balbucio infantil ou muito menos um termo sagrado eacute contestada por correntes teoloacutegicas judaicas e feministas que veem os argumentos de J Jeremias como infundados ou repletos de exageros No entanto ao final da pesquisa procuramos mostrar que mesmo diante de tais contestaccedilotildees a paternidade divina proclamada por Jesus natildeo eacute natural ou seja uma posse de todos os seres humanos mas exclusividade dele e dos seus disciacutepulos uma vez que a filiaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica do reino de Deus e soacute os filhos do reino eacute quem podem usufruir de tal privileacutegio e dirigir-se a Deus invocando-o como o Abba Pai Jesus de Nazareacute nesta pesquisa eacute o exemplo a ser seguido no tocante agrave humildade e sofrimento numa sociedade profundamente marcada pelo preconceito e desigualdade social Compreendecirc-lo e segui-lo na sua humanidade eacute um grande passo para aproximar-se dele como o Cristo poacutes-pascal onde a revelaccedilatildeo do divino ao humano se concretiza com toda a plenitude Palavras-chave Jesus histoacuterico Paternidade divina

ABSTRACT

This work aims to understand the relationship between Jesus and God the Father according to Joachim Jeremias For this we studied the historical Jesus and his social political and religious context as well the ancient people view of God including the view of Israel from Old Testament Finally views that are opposed to Jeremias are presented The various theories that men have on the fatherhood of God call our attention to the relentless pursuit of humanity to identify with the Creator specifically with a figure of God the Father However in this study we observed that even in Judaism where it cannot find the ancient image of a mother goddess we see a picture of a God Father with affection and maternal feelings For J Jeremias it is in Jesus that the relationship of the human with the divine Father reaches its peak through the magna term Abba Father According to this author Jesus through a babble of little children would have made the Abba Father a sacred expression among his disciples and He subsequently extent it in order to being absorbed by the early Christian communities as a way of communicating of the Spirit to testify within the disciple that he is also the son of God The theory that Abba was not just a babbling child or much less a sacred term is challenged by current theological and Jewish feminists who see the arguments of J Jeremias as unfounded or exaggerated However at the end of the study we sought to show that even in the face of such challenges the fatherhood of God proclaimed by Jesus is not natural ie a possession of all human beings but it is exclusive to Him and his disciples once the sonship is a feature of the kingdom of God and only the children of the kingdom is the one who can enjoy such a privilege and turn to God calling him Abba Father Jesus of Nazareth on this research is the example to be followed regarding the humility and suffering in a society deeply marked by prejudice and social inequality To understand and follow Him in his humanity is a big step to be close to him as the post-Passover Christ where the revelation of the divine to the human is fully realized Key-words Historical Jesus Gods fatherhood

Sumaacuterio

1 INTRODUCcedilAtildeO 7 2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO 19 3 O JESUS HISTOacuteRICO 27 31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO 27 32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO 32 4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE SUA EacutePOCA 40 41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE CONTEMPORAcircNEA DE JESUS 41 42 JESUS O HUMILDE NAZARENO 46 43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES 50 44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS 59 45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS 61 451 OS ESSEcircNIOS 63 452 OS FARISEUS 66 453 OS SADUCEUS 72 454 OS ZELOTAS 74 5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS E SEUS

DESDOBRAMENTOS 79 51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA 79 52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA 85 53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS 91 54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS 100 55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR 102 56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA 110 6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS 122 61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO 122 62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA LEITURA A PARTIR DA

TEOLOGIA FEMINISTA 130 7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 137 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 146

7

1 INTRODUCcedilAtildeO

A ideia de Deus como pai da humanidade sempre esteve presente na mitologia dos

povos antigos Pai eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e na

Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Segundo Joachim Jeremias

(1977 p11-12) muitas tribos e famiacutelias acreditavam que eram procedentes de um

ancestral divino isto eacute de um ldquopairdquo divino Ephraim descreve-nos que a relaccedilatildeo de Deus

como Pai entre os povos antigos era bastante conhecida contudo ele evidencia que o

Abba de Jesus foi a mais iacutentima forma de invocar a Deus propagada entre os homens

atraveacutes dos ensinamentos de Jesus

A palavra Abba (Pai) posta na boca de Jesus eacute como se fosse a uacuteltima tentativa de Deus para ensinar os homens a pronunciarem seu nome Muitas vezes no passado Deus tentou fazer isto atraveacutes de seus servidores os profetas mas Israel natildeo compreendeu ldquoPairdquo eacute um tiacutetulo divino muito antigo encontrado em quase todas as religiotildees do Oriente meacutedio mas no caso ele eacute pai como a terra eacute matildee isto eacute exige na medida em que daacute Eacute o deus tutelar que deve ser adulado pois do contraacuterio ele natildeo outorga as suas graccedilas Eacute um deus que eacute pai do mesmo modo que Zeus era o pai de todos os deuses (Ephraim 1998 p171)

Observa-se que para os povos antigos Deus era um ancestral divino distante de

suas criaturas Aleacutem disso para Israel conforme a tese sustentada por J Jeremias vecirc-

se que no Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai principalmente quando

essa forma de invocar a Deus estaacute relacionada a um indiviacuteduo (Jeremias 2005 p19) Por

outro lado se no Antigo Testamento Deus natildeo eacute invocado como Pai de uma forma

individual como Senhor Ele eacute constantemente invocado a exemplo do salmista (Sl 338)

que menciona Deus como o Senhor que fala e as coisas acontecem conforme as suas

ordenanccedilas (Jeremias 2008 p 269)

Em contraste a essa relaccedilatildeo aparentemente tatildeo distante do Deus Pai com seus

filhos no periacuteodo veterotestamentaacuterio observa-se que a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute

profundamente marcante nos Evangelhos Haacute poreacutem diferentes interpretaccedilotildees com

relaccedilatildeo ao sentido da palavra Pai quando esta era proferida por Jesus J Jeremias

embora natildeo tenha sido o primeiro a tratar dessa questatildeo provavelmente foi o mais

influente quando ele sugere que Jesus ao dirigir-se a Deus invocando-o como o ἀββᾶ

(Abba) estava atribuindo um novo enfoque ao costume judaico de interpelaccedilatildeo a Deus

fazendo uso de uma linguagem cotidiana assim como as crianccedilas dirigiam-se a seus pais

expressando familiaridade e intimidade (cf Goshen-Gottstein 2001 p 493)

O objetivo deste trabalho eacute o estudo do Jesus histoacuterico (humano) com ecircnfase em

seu contexto social culminando no estudo histoacuterico-teoloacutegico da relaccedilatildeo de Jesus com o

8

Pai Este estudo tem como ponto de partida a teologia de Joachim Jeremias concernente

ao Abba proferido por Jesus no Evangelho de Marcos (1436) que diz ldquo[] Abba (Pai)

Tudo eacute possiacutevel para ti afasta de mim este caacutelice poreacutem natildeo o que eu quero mas o que

tu queresrdquo

Para entendermos a relaccedilatildeo de Jesus com o Deus Pai no Novo Testamento e como

ele transformou uma distante relaccedilatildeo entre o Pai ldquoque estaacute nos ceacuteusrdquo e seus filhos eacute

interessante vislumbrar o mundo poliacutetico religioso e cultural no qual ele esteve inserido

comeccedilando pela pequena Nazareacute um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que

vivia em casebres um povoado simples composto de camponeses entre duzentos a

quatrocentos habitantes (Crossan 2007 p 75) ateacute ao Getsecircmani onde Jesus proferiu a

magna expressatildeo Ἀββᾶ ὁ πατὴρ (Abba Pai) que para J Jeremias eacute a mensagem central

do Novo Testamento

No entanto a pesquisa do Jesus histoacuterico eacute complexa visto que os cristatildeos

primitivos preocuparam-se apenas em preservar ditos isolados a respeito de Jesus A

expectativa do retorno iminente do Mestre pode ter sido o motivo principal que levou o

cristianismo primitivo a preferir apenas fatos relacionados ao ministeacuterio de Jesus do que

relatar uma biografia completa do Jesus histoacuterico (Schweitzer 2003 p 11) Apesar de

toda a complexidade em se estudar o Jesus histoacuterico eacute possiacutevel investigar alguns

aspectos relativos a sua existecircncia a partir dos evangelhos e de muitos escritores que ao

longo dos seacuteculos tecircm se empenhado em coletar informaccedilotildees atraveacutes de achados

arqueoloacutegicos e de toda literatura que de uma forma direta ou indireta traz-nos

informaccedilotildees do mundo no qual Jesus estava inserido

Partindo das fontes primaacuterias J Jeremias observa que Jesus tinha uma relaccedilatildeo

iacutentima com Deus pois somente se referia a Ele chamando-o de meu Pai comportamento

este que natildeo era observado entre o povo judeu Assim para uma melhor compreensatildeo

dessa relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute interessante pesquisar como os povos antigos

viam a questatildeo da paternidade divina e desse modo confrontar os modelos antigos com

o modelo de paternidade difundido por Jesus e pelas primeiras comunidades cristatildes

Tendo em vista a complexidade e a diversidade do tema proposto e o profundo

interesse de J Jeremias e de outros pensadores que com ele concordaram ou divergiram

a respeito do assunto esta pesquisa torna-se um desafio empolgante tendo sempre em

vista o crescimento e o amadurecimento em questotildees importantes da teologia

A escolha deste tema eacute motivada pela relevacircncia da produccedilatildeo acadecircmica de J

Jeremias no contexto da Teologia do Novo Testamento mais especificamente sobre a

9

relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai Embora os argumentos de J Jeremias natildeo sejam

unanimidade no contexto dos estudiosos que tecircm escrito sobre tal tema eacute inegaacutevel o

grande impacto que as suas teses tecircm causado na comunidade cientiacutefica ligada ao

assunto que tem se debruccedilado para contestar ou entatildeo para sustentar que Deus natildeo eacute

como um soberano inacessiacutevel mas como um pai que se relaciona com seus filhos e isso

soacute foi enfatizado com propriedade a partir do Abba de Jesus

Essa visatildeo de J Jeremias entra em conflito com as teses de alguns estudiosos

contemporacircneos os quais discutem se realmente houve novidade na forma como Jesus

fez uso da palavra Pai (ipsissima vox) em suas oraccedilotildees ou se esta era um dito autecircntico

(ipsissima verba) Seria Abba realmente a ipsissima vox de Jesus e o centro de sua

mensagem e a afirmaccedilatildeo de sua messianidade conforme afirma J Jeremias ou apenas

uma expressatildeo lituacutergica comum nas comunidades cristatildes do periacuteodo poacutes-pascal da igreja

primitiva (DAngelo 1992b p151) Teria Jesus realmente legado aos seus disciacutepulos a

palavra Abba como um termo sagrado ou Abba tem apenas a conotaccedilatildeo poliacutetica anti-

imperialista (DAngelo 1992a p623)

A partir das questotildees levantadas acima este trabalho tem por objetivo investigar o

Jesus histoacuterico e seu contexto social a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo a

interpretaccedilatildeo dada por J Jeremias bem como alguns desdobramentos deste tema

segundo algumas correntes teoloacutegicas cristatildes e judaicas com as seguintes finalidades

Verificar a visatildeo que os povos antigos (ldquopagatildeosrdquo natildeo judeus) bem como o antigo

Israel tinham de Deus como Pai

Pesquisar a relaccedilatildeo do Jesus histoacuterico no seu contexto familiar e social

Analisar a tese de J Jeremias concernente ao sentido que a palavra Abba tinha

quando proferida por Jesus

Confrontar o pensamento de J Jeremias frente a algumas correntes teoloacutegicas

favoraacuteveis e contraacuterias aos seus argumentos

10

2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS

Neste capiacutetulo seraacute abordado o conceito de paternidade divina entre os povos

antigos com o enfoque sobre a ideia que tais povos tinham de Deus como um ancestral

divino do homem conforme exposto por Jeremias Face agraves inuacutemeras epopeias da

criaccedilatildeo abaixo mencionadas veremos que a criaccedilatildeo do homem a partir do relato do

Gecircnesis eacute bem mais otimista uma vez que o homem do Gecircnesis natildeo eacute um ancestral dos

deuses mas foi criado para ser a imagem do seu proacuteprio Criador

21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS

A ideia mitoloacutegica de um deus como pai da humanidade sempre esteve presente

entre os povos antigos como os sumeacuterios e babilocircnios Segundo J Jeremias tais povos

diziam que suas tribos e famiacutelias procediam de um ancestral divino como se observa por

exemplo no ceacutelebre hino sumeacuterio e acaacutedico de Ur Nesse hino o deus Lua Sin eacute

invocado como o ldquoPai misericordioso em suas disposiccedilotildees que reteacutem em sua matildeo a vida

de todo o paiacutesrdquo Aleacutem de tal hino encontramos na tradiccedilatildeo de tais povos a seguinte

citaccedilatildeo sobre Ea um deus sumeacuterio-babilocircnico ldquoSua coacutelera eacute como o diluacutevio Ele se

reconcilia como um pai misericordiosordquo (Jeremias 1977 p11-12) Complementando essa

ideia Santos Sabugal afirma que a ideia de paternidade divina entre os povos antigos era

largamente atestada na literatura de vaacuterios povos A Aacutefrica a Ameacuterica a China e a Iacutendia

bem como o Egito e tambeacutem os Greco-romanos invocaram a paternidade de Zeus e de

Juacutepiter sobre todos os deuses e homens (Sabugal 1985 p 367-368)

Contudo para J Jeremias as histoacuterias de invocaccedilotildees a Deus como Pai satildeo tatildeo

profundas que sempre se tem a sensaccedilatildeo de que novas e inesperadas galerias sempre

surgem A invocaccedilatildeo a Deus como Pai nos povos antigos desde as suas origens nem

sempre estava relacionada a Deus como um antepassado do rei ou do povo mas podia

ser invocado como um pai misericordioso conforme nos relata J Jeremias

Eacute assombroso verificarmos como jaacute no antigo oriente e com seguranccedila desde o segundo e ainda no terceiro milecircnio aC a divindade era invocada assim Nas oraccedilotildees sumeacuterias muito anteriores a Moiseacutes e os profetas encontramos a invocaccedilatildeo ldquopairdquo e desde laacute esta palavra designava a divindade natildeo apenas como antepassado do rei e do povo ou como o soberano pleno de poder mas tambeacutem como o ldquopai magnacircnimo e misericordioso em cuja matildeo estaacute a vida da naccedilatildeo inteirardquo (Hino de Ur a Sin divindade da lua) A palavra ldquopairdquo na invocaccedilatildeo a Deus implicava pois para os orientais desde os tempos mais antigos algo que pode ser considerado como para noacutes significa a palavra ldquomatildeerdquo (Jeremias 2006 p61)

11

Pai1 portanto para os povos antigos como os assiacuterios babilocircnios egiacutepcios

gregos e outros povos eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e

na Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Aleacutem disso o historiador

das religiotildees Mircea Eliade tambeacutem descreve que satildeo diversas as versotildees sumerianas

sobre a origem divina dos seres humanos e dentre elas consta o poema cosmogocircnico

conhecido como Enuma elish (ldquoQuando no altordquo) que relata as origens do mundo e do

homem buscando exaltar a Marduk um deus nacional da Babilocircnia o qual triunfa sobre

os deuses com ldquovalores demoniacuteacosrdquo dentre eles Tiamat e Kingu

Esse poema traz o mito de que Marduk decidiu criar o homem para que ele sirva

aos deuses Assim a partir do corte das veias de Kingu um deus vencido que foi

sacrificado a humanidade foi criada (Eliade 2010 p79) No entanto com a derrota dos

deuses inimigos de Marduk a criaccedilatildeo do homem inicia-se com um agravante na tradiccedilatildeo

sumeriana mesmo sendo Kingu um dos primeiros deuses ele se tornara o arquidemocircnio

chefe dos monstros e democircnios criados pelo deus Tiamat que tambeacutem foi derrotado por

Marduk Dessa forma sendo o homem constituiacutedo do sangue de Kingu torna-se ele parte

constitutiva de uma mateacuteria demoniacuteaca (Eliade 2010 p 80) Segundo essa vertente

mitoloacutegica sumeriana a uacutenica esperanccedila do homem eacute que ele tenha sido criado por um

grande deus Ea ldquoA partir desse prisma existe uma simetria entre a criaccedilatildeo do homem e

a origem do mundo Em ambos os casos a mateacuteria-prima eacute constituiacuteda pela substacircncia

de uma divindade primordial decaiacuteda demonizada e morta pelos jovens deuses

vitoriososrdquo (Eliade 2010 p 80) Conforme P Grelot ldquoo mito babilocircnico da criaccedilatildeordquo eacute

repleto de violecircncia e sangue (Grelot 1973 p 31)

[] Marduque ouvindo o apelo dos deuses resolveu criar uma obra prima ldquofarei canais de sangue formarei uma ossatura e suscitarei um ser cujo nome seraacute homem Sim vou criar um ser humano um homem Que sobre ele recaia o serviccedilo dos deuses para o bem estar delesrdquo

Ainda com relaccedilatildeo ao mito babilocircnico relata-se que na epopeia de Atra-Hasis (ldquoo

muito inteligenterdquo) cuja coacutepia mais antiga data aproximadamente de 1600 aC o deus Uecirc

1 A relaccedilatildeo de Deus como Pai nas religiotildees do oriente antigo e da Greacutecia e Roma antigas estaacute sempre de

uma forma ligada a ldquoideias miacutesticas de gerar e na descendecircncia fiacutesica e natural de todos os homens a partir de Deus Assim o deus El de Igariteacute eacute chamado o pai da humanidade e o deus da lua na Babilocircnia sin eacute pai e gerador dos homens e dos deusesrdquo No Egito o Faraoacute eacute considerado de modo especial o filho Deus no sentido fiacutesico O nome de pai expressa sobre tudo a absoluta autoridade de deus exigindo a obediecircncia havendo poreacutem ao mesmo tempo seu amor bondade e cuidado misericordiosos (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)

12

eacute morto Entatildeo a deusa matildee (Nintu) e Ea (deus das aacuteguas) fazem um apelo agraves sete

genitoras que ao som de encantamentos maacutegicos se potildeem a amassar a argila A epopeia

narra que a partir de catorze pedaccedilos de argila que satildeo separados metade agrave direita e

metade agrave esquerda pela deusa matildee que apoacutes serem pisados pelas deusas genitoras

estas ldquodatildeo agrave luz sete homens e sete mulheres que imediatamente satildeo dispostos aos

pares e a raccedila humana recebe as leis do seu laborrdquo (Grelot 1973 p 31)

[] Que seja morto um deus e que todos os deuses se purifiquem no seu sangue Que com a sua carne e o seu sangue Nintu (= a deusa matildee) misture argila de modo que deus e homem sejam misturados juntos na argila Que por esta carne de deus haja um espiacuterito Sim Responderam na assembleia os grandes Anunaqui que regem os destinos (Grelot 1973 p 19)

Nesse mito babilocircnico Ea ficou encarregado de consumar o trabalho imolando

Kingu que era o chefe dos deuses revoltosos para que o seu sangue estivesse nas veias

do homem de sorte que este tenha ldquoem suas veias o sangue de um deus decaiacutedordquo

Grelot observa que a partir desses mitos pode-se ver que o homem natildeo eacute apenas um

suacutedito e escravo dos deuses ldquomas tambeacutem eacute um joguete das potecircncias coacutesmicas que

fazem pesar sobre ele uma fatalidade inexoraacutevelrdquo (Grelot 1973 p 31)

[] Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido cortando suas veias Com o seu sangue Eia criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses para libertaacute-los Depois que Eia o saacutebio criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses obra superior a toda inteligecircncia que realizou Nudimude graccedilas aos artifiacutecios de Marduque Marduque rei dos deuses dividiu o conjunto dos Anunaacutequi em deuses de cima e deuses de baixo e encarregou Anu de velar pelas suas ordens nos ceacuteus e na terra ele estabeleceu seiscentos deuses (Vl 1-1031-34)

Pode-se ainda observar a ideia da existecircncia de um ancestral divino entre outros

povos antigos Segundo Campbell tal conceito pode ser visto na cultura da tribo Aranda

da Austraacutelia Central Nessa tribo o rito de transformaccedilatildeo de um menino em adulto

demonstra a forma primitiva com que esse povo se relaciona com a divindade desde a

antiguidade quando um jovem dessa tribo estaacute entre os dez e os doze anos ele e os

outros membros de sua faixa etaacuteria satildeo tomados pelos homens da aldeia e levantados

13

vaacuterias vezes no ar enquanto os homens realizam o ritual de transformaccedilatildeo as mulheres

por sua vez tambeacutem tomam parte do ritual danccedilando em volta agitando os braccedilos e

gritando Em cada menino satildeo entatildeo pintados no peito e nas costas desenhos simples

por um homem relacionado com o grupo social ao qual pertence a sua futura mulher e

enquanto os meninos satildeo pintados os homens cantam ldquoQue ele possa atingir a barriga

do ceacuteu que ele possa crescer ateacute a barriga do ceacuteu que ele possa ir diretamente para

dentro da barriga do ceacuteurdquo (Campbell 1992 p82)

Assim que o ritual eacute finalizado os meninos recebem a instruccedilatildeo que desde que o

ritual foi concluiacutedo cada um deles tem sobre si a insiacutegnia do ancestral mitoloacutegico

particular do qual ele eacute a contraparte viva A partir de entatildeo os meninos passam a ter

algumas responsabilidades e satildeo advertidos de que de agora em diante haacute algumas

restriccedilotildees entre eles e o sexo oposto Eles natildeo poderatildeo mais brincar ou acampar com as

mulheres e meninas mas somente com os homens Das atividades de caccedila de pequenos

animais e procura de raiacutezes eles natildeo tomaratildeo parte visto ser uma atividade realizada

pelas mulheres mas receberatildeo uma responsabilidade maior que eacute acompanhar os

homens na caccedila aos cangurusrdquo (Campbell 1992 p 82) Campbell observa que nessa

tribo eles acreditam que as crianccedilas nascidas de mulheres satildeo reapariccedilotildees de seres que

viveram na era mitoloacutegica no chamado ldquotempo dos sonhosrdquo ou altjeringa (Campbell

1992 p 82) Nesse mundo mitoloacutegico maacutegico dos sonhos o menino da tribo Aranda

passa entatildeo a compreender que ele proacuteprio eacute um ser mitoloacutegico eterno que se

encarnou e da mesma forma seus companheiros tambeacutem satildeo as manifestaccedilotildees das

formas eternas (Campbell 1992 p82)

A ancestralidade divina tambeacutem pode ser constatada entre os gregos como no mito

de Ascleacutepio um deus popular classificado por Homero e Piacutendaro como um heroacutei ou

divindade da cura Ascleacutepio segundo a mitologia grega era filho do deus Apolo com a

humana Corocircnis ele tambeacutem se casou com uma humana com quem teve filhos e filhas

(Koester 2005 vol1 p176)

A relaccedilatildeo entre deuses e humanos tambeacutem pode ser vista nos relatos mitoloacutegicos

dos chamados heroacuteis ou semideuses Segundo a mitologia os heroacuteis pertenciam agrave

espeacutecie dos humanos visto que conheceram a morte e o sofrimento contudo

diferenciavam-se destes pelo fato de que eles viveram numa eacutepoca denominada pelos

gregos como o antigo tempo onde os homens denominados de heroacuteis eram mais belos e

mais fortes do que os homens que conhecemos Esses ancestrais (noacutenymnoy) ou seja

os sem nome fazem parte do passado lendaacuterio da Greacutecia antiga Mesmo sendo homens

eles se aproximam muito dos deuses mais dos que os homens atuais Nessa eacutepoca

14

lendaacuteria segundo a mitologia grega os deuses ainda se misturavam com os mortais na

vida diaacuteria como comer juntos e ateacute em relaccedilotildees sexuais onde os imortais se uniam aos

mortais a fim de gerarem filhos belos Os heroacuteis faziam parte dessa relaccedilatildeo amorosa

entre deuses e humanos como diz Hesiacuteodo ldquoeles formam a raccedila divina dos heroacuteis que

satildeo denominados semideuses conhecidos como os hemitheoiacuterdquo (Vernant 2006 p 47) A

partir desse relato observamos que os humanos realmente acreditavam procederem de

uma raccedila mitologicamente humana e divina ou seja uma mistura das duas

Observamos que ateacute esse ponto temos entre os ancestrais divinos apenas figuras

masculinas A figura masculina de Deus como Pai da humanidade entre os povos antigos

eacute marcante poreacutem natildeo eacute unanimidade Gerald Messadieacute afirma que natildeo existe nenhuma

figura masculina da idade da pedra que evoque o conceito de um deus masculino

(Messadieacute 2001 p44) De fato esse autor observa que os deuses masculinos como Aacutetis

Tamuz Adoacutenis Patilde Silvano Fauno Narciso Jacinto satildeo comparados agrave vegetaccedilatildeo visto

que mesmo sendo deuses heroicos miacuteticos morrem com a chegada do inverno e

renascem com a chegada da primavera assim como ocorre com a vegetaccedilatildeo

No entanto diferentemente do que ocorre no aspecto masculino para o autor

supracitado o princiacutepio feminino da divindade eacute algo permanente Segundo Messadieacute o

culto da Terra-Matildee foi tatildeo fortemente enraizado nas culturas primitivas que seus vestiacutegios

perduraram ateacute tempos recentes (Messadieacute 2001 p44) Nesse sentido pode-se citar as

oraccedilotildees que se faziam agrave deusa-matildee (Zemyna equivalente agrave deusa grega Gaia) na

Lituacircnia entre os seacuteculos XVII e XVIII onde ela era vista como aquela que faz florescer

os bototildees O mais admiraacutevel eacute que em pleno seacuteculo XX em numerosos paiacuteses da

Europa como Escoacutecia Irlanda Lituacircnia Pruacutessia Oriental e Malta ainda era dedicado um

dia (15 de agosto) a Terra-Matildee Messadieacute enfatiza que o dia dedicado agrave deusa-matildee era

uma data tatildeo significativa a ponto de ser transformada no dia da festa catoacutelica da

Assunccedilatildeo data esta que mesmo tendo sentido diferente e ser de outra religiatildeo ainda

assim foi recuperada em benefiacutecio de uma mulher (Messadieacute 2001 p 45)

A deusa-matildee era vista como doadora de tudo quer fosse da vida ou da morte Entre

suas formas mais conhecidas estatildeo Istar Astarte Inana Ciacutebele Ceres e Afrodite A

importacircncia da deusa-matildee como protetora da vida era fundamental em uma sociedade

onde a esperanccedila de vida em geral natildeo ultrapassava quarenta e cinco anos Por isso a

fertilidade das mulheres era vista como essencial para a sobrevivecircncia das sociedades ldquoA

deusa-matildee foi o reflexo de um estado socioeconocircmico que ditava a economia e a religiatildeordquo

(Messadieacute 2001 p47)

15

O culto agrave deusa universal foi duradouro e seu decliacutenio foi tardio e nunca totalmente

consumado em nenhuma religiatildeo ateacute o aparecimento do judaiacutesmo (Messadieacute 2001 p

59) Na Europa a primeira vez que um deus masculino partilhou o poder oficialmente

com a deusa-matildee foi com a revoluccedilatildeo Celta dos oriundos da Iacutendia ramo indo-europeu

dos indo-arianos por volta do seacuteculo VIII aC Os Celtas apesar dessa aparecircncia politeiacutesta

natildeo o eram pode-se dizer que ldquoeram quase monoteiacutestasrdquo (Messadieacute 2001 p72) Seus

deuses mitoloacutegicos estatildeo mais para heroacuteis do que para divindades ldquoOs Celtas como

revelou Juacutelio Ceacutesar satildeo todos filhos de Dis pater O Pai muito simplesmenterdquo (Messadieacute

2001 p69) Continua Messadieacute ldquoos Celtas lanccedilaram no Ocidente as fundaccedilotildees do

Cristianismo antes mesmo deste ter nascido Quase o inventaramrdquo (Messadieacute 2001

p70)

Dentre as muitas teorias acerca da origem dos deuses e suas relaccedilotildees com os

humanos verificamos que segundo Joatildeo Evangelista Martins Terra a palavra Deus tem

sua origem no protoindo-europeu onde era designada como DEIWOS e de onde provecircm

os dois vocaacutebulos latinos para dizer deus (Deus e divus) palavras que derivam do latim

arcaico deivos (Martins Terra 2001 p274) A religiatildeo dos indo-europeus acreditava na

existecircncia de um Ser Supremo conhecido como o Deus celeste tambeacutem chamado de

DEIWOS palavra esta que deriva do radical DEI (iluminar) (Martins Terra 2001 p291)

De acordo com Martins Terra DEIWOS estaacute presente em inuacutemeras religiotildees antigas

Na religiatildeo messaacutepica (populaccedilatildeo indo-europeia proto-histoacuterica da peniacutensula salentina)

religiatildeo dos etruscos dos gregos dos traacutecios dos celtas dos antigos germanos dos

persas dos baacutelticos dos antigos eslavos e das religiotildees indianas (Martins Terra 2001 p

277-286)

O indo-europeu DEIWOS originariamente natildeo designava o ceacuteu fiacutesico (caelum)

visto que as liacutenguas indo-europeias natildeo tecircm um nome comum para designar o ceacuteu fiacutesico

(Martins Terra 2001 p 291) DEIWOS designava um ser pessoal que frequentemente eacute

contraposto ao HOMO um ser pessoal terreno (Martins Terra 2001 p 305)

Na cultura indo-europeia o conceito de pai era muito mais do que genealoacutegico

juriacutedico e socioloacutegico O conceito de pai sempre se referia ao chefe de famiacutelia como

aquele que exercia um poder monaacuterquico com funccedilotildees judiciais e penais sobre os seus

dependentes Para os indo-europeus o deus supremo dyeu-pater (pai) natildeo se refere a

deus pai ldquocomo progenitor mas ao sentido social do adulto que eacute chefe da casa no

sentido do latim pater famiacuteliasrdquo (Martins Terra 2001 p153) Contudo segundo Martins

Terra Porfiacuterio relaciona Zeus como pai dos deuses e coloca o homem como parente de

Deus Para Porfiacuterio uma das finalidades dessa relaccedilatildeo eacute que ldquoo homem respeitaraacute o

16

direito do proacuteximo que tambeacutem tem a Zeus como progenitor [proacutegonos]rdquo (Martins Terra

2001 p351)

Na religiatildeo dos indo-europeus DEIWOS eacute sempre o ser transcendente (celeste) No

entanto essa transcendecircncia estaacute sempre proacutexima do divino como o autor da vida o

Deus Pai Segundo Martins Terra o antigo nome divino em latim era DIESPITER uma

forma primitiva derivada de DEIWOS ou de Dieus ldquonas invocaccedilotildees mais primitivas de

Zeus jaacute encontramos o vocativo Zeu paacuteter Em latim a palavra pater associa-se

intimamente com a palavra Deus e formava ela um soacute nome DIESPITER Iovispater

vocativo Juppiter em uacutembrio Jupater em iliacuterico Deipaturosrdquo (Martins Terra 2001 p337)

Como suporte agrave teoria da invocaccedilatildeo de Zeus partes do hino de Cleantes esclarecem

esse conceito

[]32 ndash Ah Zeus benfeitor universal 33 ndash Salva os homens de sua ignoracircncia funesta 34 ndash Purifica oacute Pai suas almas desta ignoracircncia e concede-lhes atingir 35 ndash O pensamento que te guia para tudo governares com justiccedila Somente Zeus pode salvar o homem de seus pendores funestos E o homem pode com confianccedila invocar a Zeus porque ele eacute Pai e dele com efeito todos noacutes nascemos 1 ndash Oacute o mais glorioso dos imortais sob mil nomes onipotente para sempre 2 ndash Zeus senhor da natureza que com a lei governas todas as coisas 3 ndash Salve Porque eacute a Ti que todos noacutes mortais temos o direito de invocar 4 ndash Visto que de Ti todos noacutes nascemos (Martins Terra2001 p332-333)

Esse hino mostra que Zeus natildeo era invocado apenas como rei senhor governador

mas tambeacutem como um Deus pessoal num relacionamento familiar um Deus Pai2

Conforme Martins Terra invocar a ldquodivindade sob o nome de pai eacute um dos fenocircmenos

primordiais na histoacuteria das religiotildeesrdquo Martins Terra ainda observa que nas liacutenguas indo-

europeias essa forma de invocaccedilatildeo fica mais evidente ainda nas palavras Dyaus pitatilde

Zeugraves pater Deipaturos e Iuppiter (Martins Terra 2001 pg433) Segundo Martins Terra

ldquoem Homero a invocaccedilatildeo de Zeus no vocativo aparece quase sempre unida agrave palavra

pai Zeucirc paacuteterrdquo (Martins Terra 2001 p 435)

Diferentemente dos povos antigos a atividade criadora de Deus no livro do Gecircnesis

eacute sempre cosmoloacutegica onde a ordem e a beleza satildeo os temas centrais Do caos Deus

cria a ordem o universo que culmina com a criaccedilatildeo do homem como o aacutepice da obra da

criaccedilatildeo conforme vemos no Gecircnesis onde ldquoDeus viu que isso era bom (1 10 13 18 21

25)rdquo e ainda segundo o texto sagrado (131) temos a seguinte conclusatildeo ldquoIsso era

2 Segundo Vernant Zeus eacute Pai dos deuses e dos homens natildeo porque tenha gerado ou criado todos os

seres mas porque exerce autoridade absoluta sobre todos como um chefe de famiacutelia sobre seu clatilde (Cf Vernant 2006 p33)

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muito bomrdquo Segundo P Grelot ldquoa histoacuteria sagrada sacerdotal Gn 1-24ardquo - das origens do

mundo ao tempo em que Israel viveu no deserto - foi escrita no tempo em que o povo

estava no exiacutelio (entre 587 e 538 aC) Babilocircnia eacute o lugar onde se venera o deus Marduk

e de onde provecircm as narrativas mitoloacutegicas de como os deuses criaram o mundo Para

proteger seus irmatildeos dos mitos babilocircnicos o autor sagrado teria escrito a primeira

narraccedilatildeo da criaccedilatildeo Contudo a narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo difere teologicamente dos

mitos babilocircnicos e dos povos antigos conforme relata Grelot

[] O universo eacute de certa forma um templo gigantesco que Deus levanta para a sua gloacuteria Quando o templo estaacute pronto ele coloca nele o homem criado ldquoagrave sua imagem e semelhanccedilardquo (126) Fica assim proibido representar a divindade por meio de imagens porque estas lembrariam o culto prestado a criaturas divinizadas (Ex 20 3-6) essa proibiccedilatildeo natildeo tem paralelo em nenhum povo da antiguidade A uacutenica imagem permitida de Deus eacute o rosto humano Mas se Deus eacute representado agrave imagem de uma pessoa viva de um homem que fala para fazer as coisas existirem (ldquoDeus disserdquo) nem por isso o homem eacute divinizado ldquoimagem de Deusrdquo deve ele voltar-se para aquele cujos traccedilos reflete (Grelot 1973 p 43)

Da mesma forma para Heinrich Krauss e Max Kuumlchler comparar o relato biacuteblico da

criaccedilatildeo do homem com a mitologia sumeacuterio-babilocircnia ou egiacutepcia serve para demonstrar

diferenccedilas importantes entre eles Na mitologia pagatilde o acircmago de toda a criaccedilatildeo estaacute

mais voltada ao nascimento dos deuses (teogonias) Por sua vez a criaccedilatildeo do homem

estaacute ligada a esses relatos apenas por uma linha tecircnue Para Krauss e Kuumlchler somente

num periacuteodo bem posterior ao nascimento dos deuses eacute que o ser humano eacute criado

quase que por um acidente ou entatildeo para servir como trabalhador escravo dos deuses

Em alguns aspectos notamos que haacute semelhanccedilas entre a criaccedilatildeo do homem no relato

do Gecircnesis e as mitologias pagatildes quando observamos que no Gecircnesis a criaccedilatildeo do

homem tambeacutem se daacute por uacuteltimo Contudo conforme Krauss e Kuumlchler diferentemente

dos antigos mitos no Gecircnesis a criaccedilatildeo do homem se daacute por meio de um processo

premeditado Eacute possiacutevel por analogia observarmos que na narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo

tanto o cosmos quanto o homem satildeo criados num ambiente onde o respeito e a

admiraccedilatildeo pelo ser humano satildeo evidentes como podemos observar na poesia do Salmo

8 4-9 que diz

Quando vejo o ceacuteu obra dos teus dedos a lua e as estrelas que fixaste que eacute um mortal para dele te lembrares e um filho de Adatildeo para vires visitaacute-lo E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de gloacuteria e beleza Para que domine as obras de tuas matildeos sob seus peacutes tudo colocaste ovelhas e bois todos e as feras do campo tambeacutem a ave do ceacuteu e os peixes do mar

18

quando percorre ele as ondas dos mares (Krauss e Kuumlchler 2007 p 48-49)

A relaccedilatildeo do homem com os deuses nas mitologias antigas eram caracterizadas

pelas forccedilas da natureza Os diversos deuses exerciam poderes sobre tais forccedilas que por

sua vez determinavam o destino do homem ldquoNa tempestade e na brisa na chuva e na

seca viam-se igualmente manifestaccedilotildees de poderes divinos tal como no amor e no

matrimocircnio na vida e na morte na violecircncia e na guerra no crescimento e na destruiccedilatildeordquo

(Krauss e Kuumlchler 2007 p 61) Todos os acontecimentos da vida dos homens eram

resultados da influecircncia de uma ou mais divindades conforme as suas funccedilotildees dentro do

panteatildeo Alguns deuses eram considerados de boa iacutendole poreacutem outros eram

considerados perversos e maus e por essa razatildeo deveriam ser lisonjeados atraveacutes de

rituais de sacrifiacutecios ou praacuteticas maacutegicas

Krauss e Kuumlchler apesar de descreverem os deuses mitoloacutegicos da antiguidade com

poderes sobrenaturais e sobre-humanos sobre o mundo ressaltam que tais deuses

mesmo o chamado deus criador da mitologia antiga eram limitados agrave esfera deste

mundo ou seja natildeo tinham poder absoluto nem garantido para sempre Por outro lado o

Deus dos relatos biacuteblicos da criaccedilatildeo eacute diferente Ele natildeo faz parte deste mundo mesmo

que aqui esteja presente e sempre atuando Tambeacutem natildeo estaacute sujeito agrave limitaccedilatildeo das

forccedilas da natureza e tem poder para conduzir soberanamente o destino dos seres

humanos O Deus criador do Gecircnesis natildeo sofre oposiccedilatildeo de divindade alguma a natildeo ser

em pequena escala dos seres humanos ldquoA diferenccedila entre o monoteiacutesmo judeu-cristatildeo

ou islacircmico de um lado e o politeiacutesmo de outro natildeo eacute uma questatildeo de nuacutemero (um

uacutenico Deus ou diversos deuses) mas da concepccedilatildeo do que eacute Deusrdquo (Krauss e Kuumlchler

2007 p61)

No tocante agraves narrativas e mitos antigos da criaccedilatildeo Vicente Artuso desenvolve um

trabalho no qual compara o relato da criaccedilatildeo no livro do Gecircnesis com a epopeia de Atra

Asis e os demais mitos antigos da criaccedilatildeo e conclui que o relato da criaccedilatildeo no Gecircnesis eacute

mais otimista em relaccedilatildeo aos mitos antigos Embora por um lado haja algumas

semelhanccedilas na forma da criaccedilatildeo do homem conforme jaacute foi visto acima por outro lado

elas estatildeo muito distantes Artuso observa que nessa epopeia o homem eacute feito a partir

do barro e do sangue de um deus decaiacutedo Na Biacuteblia o homem proveacutem do barro e do

sopro de Deus que eacute a fonte da vida Na epopeia o ser humano eacute criado para livrar os

deuses de seu castigo na Biacuteblia o homem eacute criado por Deus de uma forma totalmente

desinteressada Na epopeia o ser humano participa da divindade assim como na Biacuteblia

Contudo Artuso pontua que mesmo que em ambos os relatos da criaccedilatildeo o homem

participe da divindade na epopeia fica evidente que o homem participa da divindade de

19

um deus decaiacutedo sendo que no relato da criaccedilatildeo da Biacuteblia o homem eacute criado agrave imagem

e semelhanccedila do Criador No Gecircnesis o homem eacute criado pelo Deus uacutenico que do caos

traz todas as coisas a existecircncia cria o homem e o faz participante de sua obra quando

ordena ao ser humano o crescimento a multiplicaccedilatildeo e que o mesmo exerccedila o domiacutenio

sobre todas as coisas criadas (Artuso 2009 p80-81)

22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO

No Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai3 J Jeremias relaciona

que isso ocorre apenas quinze vezes conforme podemos verificar nos seguintes textos

ldquoDt 326 2 Sam 714 (textos paralelos em 1 Cron 1713 22 10 286) Sl 68 6 8927 Is

6316 (duas vezes) 647 Jr 3419 31 9 Mal 1 6 2 10 (Jeremias 2005 p19) Mesmo

esses textos quando relacionados a Deus como Pai indicam que Deus eacute primeiramente

o Senhor como diz o Salmo 33 8 ldquoTema o Senhor todo o mundo e tremam diante dele

todos os habitantes da terra porque ele fala e acontece ele ordena e aiacute estaacuterdquo (Jeremias

2008 p269) Como Senhor Deus tambeacutem se compadece de seus filhos como um Pai

conforme o Salmo 10313 (Jeremias 1977 p13) Aleacutem de Senhor o Pai tambeacutem eacute

honrado como Criador ldquoNatildeo eacute ele porventura teu pai que te fez seu que te formou e te

consolidourdquo (Dt 326) ldquoPorventura natildeo eacute um o Pai de todos noacutes Natildeo eacute um soacute Deus que

nos criourdquo(Ml 2 10) Observa-se que o reduzido uso do conceito de Deus como Pai no

Antigo Testamento pode estar relacionado ao uso abusivo que os povos cananeus faziam

desse termo em seus cultos de fertilidade (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo

Testamento 1998 p 6)

A relaccedilatildeo de Deus como Pai no Antigo Testamento eacute diferente do conceito de

paternidade dos povos antigos As diferenccedilas satildeo fundamentais visto que Deus natildeo eacute um

ancestral da raccedila humana como podemos ver nas palavras de J Jeremias

O fato de que no Antigo Testamento Deus natildeo eacute o ancestral mas o criador natildeo eacute a menor E que o que eacute ainda mais importante no antigo Testamento a paternidade divina atribui-se soacute a Israel e de uma maneira que natildeo encontra nenhum equivalente Eles tecircm uma relaccedilatildeo toda particular com Deus isto eacute um povo escolhido dentre todos os povos para ser o filho primogecircnito de Deus (Jeremias 1977 p13)

3 ldquoO AT emprega a palavra pai () quase que exclusivamente (c De 180 vezes) num sentido secular e soacute

muito ocasionalmente (15 vezes) num sentido religioso Como acontece no AT assim tambeacutem na literatura do judaiacutesmo palestinense podemos notar reserva marcante no emprego da palavra num sentido religioso Soacute mais tarde na literatura do judaiacutesmo da diaacutespora eacute que achamos o emprego mais frequente do nome Pai com referecircncia a Deusrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

20

No contexto biacuteblico a histoacuteria de Israel eacute notoriamente descrita colocando Israel

sempre como o povo eleito e exclusivo de Deus e essa eleiccedilatildeo eacute histoacuterica e concreta A

paternidade divina4 pode ser considerada histoacuterica quando tambeacutem atestamos que o

ecircxodo do Egito a peregrinaccedilatildeo no deserto e a conquista da terra de Canaatilde satildeo tratados

como fatos histoacutericos fatos esses que tornam Israel como o filho primogecircnito conforme a

eleiccedilatildeo divina Alguns textos corroboram esse pensamento entre os quais podemos

destacar ldquoFilhos sois do SENHOR vosso Deusrdquo (Dt 141)

A paternidade divina no Antigo Testamento natildeo eacute privileacutegio do indiviacuteduo mas sempre

privileacutegio da coletividade e juridicamente da figura do rei Com efeito Deus eacute sempre visto

como o ldquoPai do Reirdquo (2 Sam 7 14 Sl 8927) e ldquoPai de Israel como naccedilatildeordquo (Jr 34 3 19

319 Ml 16 Is 6315 657) J Jeremias faz questatildeo de enfatizar a respeito da

paternidade divina que em todo o Antigo Testamento natildeo encontramos nenhuma

passagem na qual Deus seja interpelado como Pai por um indiviacuteduo mas isso eacute sempre

realizado pela coletividade (Jeremias 2008 p115) Quando observamos as expressotildees

ldquoTu eacutes nosso Pairdquo (Is 6316) e ldquoTu eacutes meu Pairdquo (Jr 34) verificamos que as mesmas se

tratam de ldquosentenccedilas afirmativas e natildeo da invocaccedilatildeo de Deus usando o nome de Pai

para elerdquo (Jeremias 2008 p115) Deus natildeo eacute Pai porque gera de forma fiacutesica mas

porque chamou os filhos de Israel para ser um povo constituiacutedo de homens livres eacute Pai

porque ama escolhe e guia seus filhos por um reto caminho segundo a lei Dessa forma

mesmo fazendo pouco uso do termo Pai Israel comeccedilou a realizar o que poderiacuteamos

chamar de a grande revoluccedilatildeo do siacutembolo paterno

Em relaccedilatildeo ao siacutembolo de Deus como Pai Robert Hamerton-Kelly seguindo a

mesma linha de pensamento de J Jeremias concorda que no Antigo Testamento a

designaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rara e as poucas vezes em que isso ocorre natildeo eacute no

sentido literal do termo Hamerton Kelly faz referecircncia a dois tipos de simbolismo que

aparecem na Biacuteblia concernentes agrave figura de Deus como Pai um simbolismo indireto e

outro direto O simbolismo indireto ocorre por meio de uma associaccedilatildeo enquanto que o

simbolismo direto eacute feito por intermeacutedio de uma metaacutefora ou alegoria No modo indireto

Deus eacute mostrado claramente em conexatildeo com os pais humanos Ele eacute o ldquoDeus dos paisrdquo

e a associaccedilatildeo aqui eacute por intermeacutedio da identificaccedilatildeo de Deus como chefe No modo

direto a Biacuteblia usa a alegoria ou a metaacutefora Deus eacute como um pai ou Deus eacute nosso Pai

(Hamerton-Kelly 1979 p20-21)

4 ldquoA descriccedilatildeo de Deus como Pai se refere no AT apenas as Seu relacionamento com o povo de Israel

(Dt326 Is6316 duas vezes 648 Jr319 Ml16 210) ou com o rei de Israel (2Sm 714 par 1 Cr 1713 2210 286 Sl 8926 cf 27) Nunca se refere a qualquer indiviacuteduo () ou a humanidade em geralrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

21

No Antigo Testamento o simbolismo indireto eacute usado na transiccedilatildeo do Pai dos

deuses para o Deus dos pais e do Deus dos pais para o Deus de Moiseacutes (Hamerton-

Kelly 1979 p21-28) Qualquer consideraccedilatildeo sobre o entendimento biacuteblico de Deus no

periacuteodo preacute-mosaico deve ser relacionado aos deuses adorados pela religiatildeo dos

cananeus ancestral da religiatildeo dos hebreus os quais eram denominados em Canaatilde pelo

nome ldquoEl5rdquo o chefe do panteatildeo e tambeacutem progenitor dos deuses na mitologia cananita

(Martins Terra 1987 p11) De acordo com a tradiccedilatildeo Yahweh era ldquoo Deus dos Paisrdquo e

Abraatildeo pode provavelmente ter sido considerado ldquopai dos deusesrdquo como uma descriccedilatildeo

de sua possiacutevel divindade Entre os outros povos existiam vaacuterios deuses que eram vistos

como figuras paternas como Anu (deus do ceacuteu) Enlil (deus do vento e da tempestade) e

Ea (deus da aacutegua) os quais tinham seu proacuteprio santuaacuterio e eram patronos de suas

respectivas cidades (Hamerton-Kelly 1979 p21-23)

Os compiladores das sagas patriarcais do Gecircnesis acreditavam que os pais

adoravam El como El Elyon El Olam El Roi El Shaddai e El Betel Esses nomes

compostos mostram que a adoraccedilatildeo era estabelecida em um lugar fiacutesico por intermeacutedio

de alguma outra divindade ou seja os lugares de adoraccedilatildeo eram relacionados a um

deus Embora natildeo possa ser encontrada a praacutetica monoteiacutesta entre os patriarcas pode-se

assumir que os deuses distintos estavam associados em algum estaacutegio da tradiccedilatildeo

sendo identificados como manifestaccedilotildees do grande deus El - o pai dos deuses Mesmo

que natildeo seja possiacutevel falar de um preacute-Mosaico ldquoEl-monoteiacutesmordquo 6 eacute possiacutevel falar de um

deus supremo que eacute a fonte e origem de todas as coisas o pai dos deuses e da

humanidade que eacute o ponto de contato com o monoteiacutesmo Javista (Hamerton-Kelly 1979

p24-25)

Outro ponto de contato entre a teologia Preacute-Mosaica e Mosaica pode ser

encontrado no fato que cada um dos grandes patriarcas tinha um deus associado com

eles mesmos o ldquoEl de Abraatildeordquo (Gn 31 42) o ldquoTemor de Isaquerdquo (Gn 31 53) o ldquoForte de

Jacoacuterdquo (Gn 49 24-25) os quais tinham como sinocircnimos o ldquoDeus (El) de meu pairdquo Por fim

5 A palavra El ocorre 238 vezes no Antigo Testamento Eacute uma palavra de origem protossemiacutetico ou

semiacutetico-comum para designar Deus em todas as liacutenguas semiacuteticas Ele eacute o Deus-patriarca criador anciatildeo cujas forccedilas extraordinaacuterias criaram e povoaram o ceacuteu El eacute ldquoum Deus pessoardquo de cada patriarca ele eacute ldquoo Deus dos paisrdquo familiar uacutenico e universal mas tambeacutem eacute o Deus tribal (Cf Martins Terra em Elohim o Deus dos Patriarcas p 19 37 39 51)

6 Surge um problema relacionado a este assunto eacute possiacutevel falar de monoteiacutesmo neste periacuteodo Alguns

pesquisadores acham difiacutecil o conceito de um monoteiacutesmo preacute-mosaico ou mesmo de uma ideia de adoraccedilatildeo exclusiva a Deus mesmo que o texto do livro do Ecircxodo 34 11-26 trate com detalhes este tema ainda assim este pensamento parece ser uma ideia muito complexa uma vez que muitos estudiosos observam que o referido texto pode ter sido redigido em uma eacutepoca tardia ou seja ldquouma espeacutecie de seleccedilatildeo ou resumo a partir de outros textosrdquo (Cruumlsemann 2002 p167-169) Segundo Cruumlsemann o Pentateuco deve ter surgido entre o exiacutelio e o inicio da eacutepoca helenista para ser mais objetivo no periacuteodo Persa (cf Cruumlsemann 2002 p454)

22

vecirc-se que o deus eacute identificado mais pelo seu relacionamento com uma pessoa do que

com um lugar ou um fenocircmeno natural isto eacute muda-se o simbolismo do divino de lugar

para pessoa deixando claro que a Revelaccedilatildeo de Deus estaacute no domiacutenio das relaccedilotildees e

accedilotildees humanas mais especificamente nas relaccedilotildees de familia (Hamerton-Kelly 1979

p25-27)

Aleacutem disso observamos que sob a influecircncia de Moiseacutes as tribos de Israel foram

unificadas em fidelidade ao Deus Yahweh A identidade de Yahweh estaacute fortemente

relacionada com ldquoos paisrdquo como se vecirc na revelaccedilatildeo de Deus a Moiseacutes no monte Horebe

[hellip] Moiseacutes Moiseacutes [hellip] Eu sou o Deus de teus pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute [hellip] Iahweh disse Eu vi Eu vi a miseacuteria do meu povo que estaacute no Egito Ouvi seu grito por causa dos seus opressores pois Eu conheccedilo as suas anguacutestias Por isso desci a fim de libertaacute-lo da matildeo dos egipcios e para fazecirc-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta terra que mana leite e mel [hellip] Disse Deus a Moiseacutes Eu sou aquele que eacute Disse mais Assim diraacutes aos israelitas EU SOU me enviou ateacute voacutes [hellip] Iahweh o Deus o Deus de vossos pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute me enviou ateacute voacutes Eacute o meu nome para sempre e eacute assim que me invocaratildeo de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (Ex 3 1-15)

Iahweh eacute o Deus de Israel isso fica evidente na foacutermula ldquoElohecirc Israelrdquo (Martins

Terra 1987 p 82) O ponto central de toda a teologia do Antigo Testamento eacute que o

Deus de Israel eacute o uacutenico e verdadeiro Quando os autores sagrados comparam Iahweh

com os deuses de outras naccedilotildees (Dt 4 34 Sl 11 3-5) eacute para fortalecer a convicccedilatildeo dos

israelitas de que haacute somente um Deus tanto ldquoem cima no ceacuteurdquo como ldquoembaixo na terrardquo

(Dt 439) Para Martins Terra o ldquoemprego de Elohim7 natildeo pode ser interpretado como

reliacutequia de um antigo politeiacutesmo Israelitardquo ou seja Elohim se converte em sinocircnimo de

Iahweh o Deus uacutenico e verdadeiro

O nome divino de Elohim que se radica na liacutenguagem religiosa de todos os povos semitas do Antigo Oriente Proacuteximo reconhecido e confessado por Israel como o Deus pessoal e uacutenico ajudou o Antigo testamento a entender e proclamar o Deus da histoacuteria da Salvaccedilatildeo como Deus do universo como lemos na primeira linha da Biacuteblia ldquoNo principio Elohim criou os ceacuteus e a terrardquo (Martins Terra 1987 p 85)

Fazendo uma transiccedilatildeo do simbolismo indireto para o simbolismo direto

mostraremos o pai (matildee) como uma alegoria ou metaacutefora para Deus Vale observar que a

figura da matildee faz parte desta anaacutelise uma vez que esse simbolismo natildeo a exclui apenas

7 A palavra Elohim pode ser um desenvolvimento do termo Eloah (Deus) como uma forma de

representaccedilatildeo da pluralidade de pessoas existentes na divindade (Trindade) ou ainda a terminaccedilatildeo plural pode ser descrita como um plural de majestade natildeo com a intencionalidade de ser usado na forma de plural para referir-se a Deus Isto pode ser averiguado quando Elohim eacute usado com o verbo no singular bem como os adjetivos e pronomes tambeacutem no singular (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento 1998 p68-72)

23

inclui sua presenccedila No simbolismo direto os pais satildeo muito mais do que meros sinais da

natureza e presenccedila de Deus O profeta Oseacuteias nos mostra um Deus que ao mesmo

tempo em que eacute Pai tem para com Israel seu filho afetos que satildeo proacuteprios da matildee A

ternura os cuidados e o afeto de Deus em Oseacuteias satildeo comparados agraves caracteriacutesticas

proacuteprias que uma matildee tem por seus filhinhos

Quando Israel era menino eu o amei e do Egito chamei meu filho (hellip) Fui eu contudo quem ensinou Efraim a caminhar eu os tomei pelos braccedilos mas natildeo reconheceram que eu cuidava deles Com viacutenculo de amor eu os atraiacutea com laccedilos de amor eu era para eles como os que levantavam uma criancinha contra o seu rosto eu me inclinava para ele e o alimentava (Os 11 1-4)

Nesse texto vemos a ideia de que Israel era filho de Deus e que essa filiaccedilatildeo eacute

usualmente associada ao periacuteodo do deserto e eacute entendida como uma experiecircncia da

paternidade de Iahweh Contudo observamos no texto que Iahweh inclinava-se para

alimentaacute-los expressatildeo essa que denota uma funccedilatildeo especificamente desempenhada

pela figura materna Aleacutem disso em uma passagem do livro de Nuacutemeros Moiseacutes de

uma forma impliacutecita afirma que Deus eacute como uma matildee para Israel

[] Moiseacutes sentiu-se grandemente desgostoso e disse a Iahweh ldquoPor que fazes mal a teu servo Por que natildeo achei graccedila a teus olhos visto que me impusestes o encargo de todo este povo Fui eu porventura que concebi todo este povo Fui eu que o dei agrave luz para que me digas Leva-o em teu regaccedilo como a ama leva a crianccedila no colo agrave terra que prometi sob juramento a seus pais (Num 1110b-

12)rdquo

Esse texto soacute pode referir-se a Deus visto que Moiseacutes natildeo era a matildee daquele

povo portanto teoricamente natildeo tinha a responsabilidade de ser o protetor e nem o

provedor deles em momentos de crise Na visatildeo de Moiseacutes Deus era o responsaacutevel pelos

cuidados essenciais do povo assim como uma matildee cuida de seus filhos Dessa forma a

figura materna tambeacutem pode ser usada como uma designaccedilatildeo para Deus (Hamerton-

Kelly 1979 p 39-40)

Haacute ainda outros exemplos em que a imagem de Deus pode ser comparada a de

uma mulher que cuida de seus filhos como lemos em Isaiacuteas 4915

Por um acaso uma mulher se esqueceraacute de uma criancinha de peito Natildeo se compadeceraacute ela do filho do seu ventre Ainda que as mulheres se esquecessem

24

eu natildeo me esqueceria de ti

Na simbologia em que Deus exerce as funccedilotildees de provedor protetor e mantenedor

de seu povo encontramos textos em que Ele exerce funccedilotildees ora como Pai e ora Matildee

Segundo Hamerton-Kelly no livro do profeta Isaiacuteas (66 10-13) encontramos uma

imagem de Deus como a de uma matildee bem como em Deuteronocircmio 131 e 85 em que

encontramos em ambos os textos a imagem de Deus que como um homem (pai) educa

os seus filhos pelo caminho correto Portanto numa visatildeo simboacutelica Deus eacute apresentado

ora como pai e ora como matildee do povo (Hamerton-Kelly 1979 p40)

Alegrai-vos com Jerusaleacutem exultai nela todos os que a amais regozijai-vos com ela todos os que por ela estaacuteveis de luto pois sereis amamentados e saciados

pelo seu seio consolador pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo Com efeito assim diz Iahweh Eis que trarei a Paz como um rio e a gloacuteria das naccedilotildees como uma torrente transbordante Sereis amamentados sereis carregados sobre ancas e acariciados sobre os joelhos Como a uma pessoa que a sua matildee consola Assim eu vos consolarei Sim em Jerusaleacutem sereis consolados (Is 66 10-13)

Como tambeacutem no deserto onde vistes que o SENHOR vosso Deus nele vos levou como um homem leva seu filho por todo o caminho que andastes ateacute chegardes a este lugar Deuteronocircmio 131 Sabes pois no teu coraccedilatildeo que como um homem castiga a seu filho assim te castiga o SENHOR teu Deus Deuteronocircmio 85

Mesmo diante de vaacuterios textos em que observamos Deus exercendo figuradamente

as funccedilotildees de pai e matildee natildeo temos um texto em que Deus seja diretamente chamado de

matildee e nem mesmo Jesus jamais invocou a Deus como matildee Segundo Matthias Grenzer

a razatildeo disso encontra-se no fato de Deus ser diversas vezes tratado como o esposo ou

o amado enquanto que Israel eacute descrito como a virgem noiva mulher amada ou ateacute

mesmo como prostituta (cf Jr 2-3 Ez16 Os 2 e Ct) Dentro desse imaginaacuterio a figura de

Deus eacute vista como a parte masculina enquanto que a naccedilatildeo de Israel ocupa a parte

feminina sendo assim essa seria a razatildeo de Deus ldquoser chamado somente de Pai e natildeo

de matildeerdquo (Grenzer 2009 p 182)

Ainda em relaccedilatildeo agrave paternidade de Deus no Antigo Testamento Sabugal observa

que a mesma eacute sempre vista nos seguintes aspectos Deus como o Pai do povo de Israel

(Is 6316) Pai do rei (2 Sam 7 14 Sl 8927) Pai dos justos israelitas (Sab 216) e

tambeacutem como Rei Messiacircnico (2Sm 7 12-16) (Sabugal 1985 p370)

25

Yahveh com efeito eacute o Pai de Israel por haver resgatado ltltdesde sempregtgt (Is 6316b) primeiro do Egito (Jer 34 cf Ez 23 319) e depois da Babilocircnia (cf Jer 319) tambeacutem por haver-lhes criado mediante a alianccedila (Dt 366 Mal 210 cf 317) conduzindo-o pelo deserto e corrigindo-o ltltcomo um pai a seus filhosgtgt (Dt 131 85) provando-o paternalmente (Sab 1110) e paternalmente amando-o (cf Mal 317) pois ele fez o seu povo que o confessa como Pai (Is 6319 647) e como tal deve honrar (Mal 16) Israel eacute consequentemente o filho de Deus seu primogecircnito (Ex 422 Jer 319) e ltlt filho tatildeo amadogtgt (Jer 3120) a quem desde o Ecircxodo elegeu por pai (Nuacutem 1112 Dt 32 518) e modelou (cf Is 647) por ter-lhes amado (Os 111) ltlt com um amor eternogtgt (Jer 313) tornando-se assim mesmo os israelitas a raiz da eleiccedilatildeo divina realizada na alianccedila do Sinai ltlt filhos de Yahvehgtgt (cf Dt 326 Mal 317) como membros de ltltum povo consagrado a seu Deusgtgt (Dt 14 1-2 Sal 7315) E certo que como ltltfilhos rebeldesgtgt (Is 30 19) esqueceram ltlto Deus que os criougtgt (Jer 321 Dt 3218) mas se como ltltfilhos apoacutestatasgtgt ouvirem a exortaccedilatildeo e converterem-se (Jer 3 1422) seratildeo novamente chamados ltlt filhos do deus vivogtgt (Os 21) que mostrando-se ltltindulgente para com eles como um pai com um filho que lhe servegtgt (Mal 317) uma vez mais os salvaraacute Israel segue sendo o ltltfilho amadogtgt e ltltmenino mimadogtgt de Yahveh (Jer 319) (Sabugal 1985 p 371)

Em suma podemos observar que o conceito que os israelitas tinham de Deus como

Pai defendido por J Jeremias fundamenta-se na tese de que a paternidade de Deus

sobre Israel eacute diferente da paternidade divina entre os demais povos antigos De fato o

Deus dos israelitas natildeo eacute um pai por geraccedilatildeo fiacutesica (Sabugal 1985 p371) e nem mesmo

o progenitor dos deuses e dos homens (Sabugal 1985 p368) como criam os demais

povos antigos Contudo observamos que a figura de Deus metaforicamente exerce

funccedilotildees que satildeo em suas origens de ofiacutecio materno e de ofiacutecio paterno

Realmente o Antigo Testamento eacute rico em metaacuteforas para Deus Christopher J H

Wrighth nota que entre as imagens humanas para Deus no Antigo Testamento

encontramos que ele eacute rei juiz e redentor Tambeacutem Yahweh eacute comparado a um pastor

soldado ou a um agricultor Yaweh pode ser chamado tambeacutem de rocha abrigo escudo

esconderijo leatildeo fogo ou uma fonte de aacutegua (Wright 2007 p 22)

Uma outra maneira de se observar a figura de Deus como Pai no Antigo Testamento

eacute atraveacutes dos nomes teofoacutericos Geza Vermes vecirc que a representaccedilatildeo de Deus como Pai

eacute um elemento baacutesico na Teologia do Antigo Testamento Vermes cita trecircs nomes como

exemplo os quais ldquoproclamam uma relaccedilatildeo de parentesco entre Deus e os membros

individuais do povo Judeurdquo 8 Tais nomes como Abiel (Deus eacute meu Pai) Eliab (meu Deus

eacute Pai) Abijah (Yah [Yahweh Jeovaacute eacute meu Pai] segundo Vermes atestam o conceito de

que Deus era invocado como Pai no judaiacutesmo veterotestamentaacuterio (Vermes 2006 p 259)

9 Sobre a imagem de Deus Pai na Biacuteblia Vermes concorda que ela natildeo eacute tatildeo

8 Acredito que com o termo parentesco Vermes natildeo estaacute se referindo a ancestralidade conforme

debatemos acima baseado no pensamento de J Jeremias 9 Matthias Grenzer tambeacutem coloca esses nomes citados por Vermes como uma forma de ver ldquoo

comportamento do Senhor Deusrdquo comparado a atitude de um Pai humano Grenzer ainda menciona o nome do sobrinho de Davi Joab cujo significado eacute ldquoJaveacute (Yahweh) eacute Pairdquo (Cf Grenzer 2009 p 180)

26

abundantemente atestada nas Escrituras contudo a familiaridade dessa imagem eacute

manifesta na ldquovariedade de nomes teofoacutericos que conteacutem o elemento ab (Pai)rdquo Sobre os

nomes teofoacutericos ele diz ainda que

Eles empregam tanto os tiacutetulos divinos do hebraico YH (W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai) ou YoAB (Yo eacute o Pai) Do mesmo modo temos Abbi eL e ELIab (Deus eacute o Pai) em nomes judaicos da era preacute-exiacutelica e do Segundo Templo Abram e Abiram (Pai excelso e Meu Pai eacute exaltado) que podem ser rastreados agrave idade patriarcal representam o mesmo tipo Enquanto as nuances exatas do termo ldquoPairdquo permanecem vagas natildeo pode haver duacutevida de que mesmo em niacutevel individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de famiacutelia Essa antiga atitude subjacente eacute explicitamente expressa principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da naccedilatildeo judaica Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusatildeo a eles como seus filhos (Vermes 1995 p158-159)

Para Christopher Wright a ocorrecircncia desses nomes metafoacutericos no Antigo

Testamento demonstra como a ideia de Deus como Pai era bem aceita nesse periacuteodo

Para esse autor pais que davam nomes aos filhos como Joabe (Yahweh eacute meu pai) ou

Abiel (Deus eacute meu Pai) tinham algum conhecimento metafoacuterico de Deus como Pai

Portanto para Israel o conhecimento de Deus como Pai pode ser mais bem

compreendido sob o ponto de vista que para eles Deus eacute comparado com um pai

humano que disciplina mas ensina seus filhos Como Pai ele tambeacutem se compadece

carrega adota os sem-teto e os oacuterfatildeos enfim ele eacute o Pai em que podemos encontrar

perfeita seguranccedila (Wright 2007 p24-25 38-39)

27

3 O JESUS HISTOacuteRICO

Depois de investigarmos a relaccedilatildeo de Deus como ldquoPairdquo entre os povos antigos

aproximamo-nos do ponto central da pesquisa Jesus de Nazareacute o qual segundo J

Jeremias trouxe-nos uma nova forma ou seja deu um novo enfoque sobre o termo Pai

quando dirigido a Deus Para um melhor embasamento sobre a relaccedilatildeo de Jesus com

Deus Pai buscaremos entender o homem chamado Jesus dentro das pesquisas

modernas sobre ldquoa vida de Jesusrdquo bem como das fontes evangeacutelicas disponiacuteveis no Novo

Testamento Procurar conhecer Jesus partindo do meio social em que ele esteve inserido

com certeza torna a pesquisa sobre o Cristo mais profunda e interessante uma vez que

Jesus antes de ser conhecido e pregado como Cristo foi um cidadatildeo judeu que viveu na

Galileia para ser mais preciso na pequena e humilde Nazareacute

31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO

Jesus de Nazareacute constitui personagem histoacuterico da maior importacircncia a comeccedilar pelo proacuteprio calendaacuterio hoje universal baseado na era cristatilde Uma parte consideraacutevel da humanidade professa a feacute cristatilde e outra parte considera Jesus como um profeta Para aleacutem do Cristianismo e do Islamismo Jesus constitui para outros crentes ou para agnoacutesticos e ateus uma referecircncia fundamental pela diferenccedila contraste ou oposiccedilatildeo No entanto o Jesus da histoacuteria aquele homem galileu que viveu haacute dois mil anos ainda constitui um grande desconhecido O Cristo da feacute dominou por muitos seacuteculos as reflexotildees sobre este homem de singular significaccedilatildeo As paixotildees das discussotildees teoloacutegicas foram muitas mas o homem Jesus foi tocado pelos estudiosos apenas nos uacuteltimos dois seacuteculos

(Funari 2009 p 7 in Chevitarese A L Cornelli G)

A busca pelo Jesus da histoacuteria tem mais de 200 anos No final do seacuteculo XVIII um

pequeno nuacutemero de bravos europeus comeccedilou a aplicar criacutetica literaacuteria a livros histoacutericos

do Novo Testamento Segundo E P Sanders a pesquisa sobre Jesus escrita durante

esse periacuteodo de 200 anos por estudiosos seacuterios e determinados trouxe resultados

bastante diversificados sobre o assunto o que levou muitos a pensar que na realidade

natildeo sabemos nada sobre o Jesus da histoacuteria No entanto essa eacute uma reaccedilatildeo exagerada

uma vez que sabemos muitas coisas O problema consiste em saber conciliar os nossos

conhecimentos com as nossas esperanccedilas e aspiraccedilotildees a respeito da vida e ministeacuterio de

Jesus (Sanders 2005 p21)

A pesquisa sobre a vida de Jesus pode ser dividida em cinco fases conforme as

descrevem Gerd Theissen e Annette Merz A primeira fase tem como principais

representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-

28

1874) 10 Reimarus um professor de liacutenguas orientais de Hamburg teve seus escritos

principais publicados somente apoacutes a sua morte por G E Lessing o qual a partir de

1774 comeccedilou a publicar as partes mais importantes do ensaio sobre ldquoApologia ou

Escritos de Defesa para os adoradores Racionais de Deusrdquo Em 1778 ele tinha publicado

sete fragmentos da obra quando iniciou o tratamento da vida de Jesus em perspectiva

puramente histoacuterica (Theissen amp Merz 2004 p21) Conforme Albert Schweitzer estes

satildeo os tiacutetulos dos fragmentos de Reimarus publicados por Lessing (Schweitzer 2003 p

23)

1 A Toleracircncia dos Deiacutestas

2 A Desmoralizaccedilatildeo da Razatildeo no Puacutelpito

3 A Impossibilidade de uma Revelaccedilatildeo em que todos os homens teriam bons motivos

para acreditar

4 A Passagem dos Israelitas pelo Mar Vermelho

5 Demonstrando que os Livros do Antigo Testamento natildeo foram escritos para revelar

uma religiatildeo

6 Acerca da Histoacuteria da Ressurreiccedilatildeo

7 Os objetivos de Jesus e seus Disciacutepulos

Reimarus de acordo com Theissen defendeu a ideia de que Jesus natildeo fundou

uma nova religiatildeo e tambeacutem nunca teve a intenccedilatildeo de desfazer-se do judaiacutesmo visto que

ele sempre esteve inserido na religiatildeo Judaica A pregaccedilatildeo de Jesus era sempre baseada

na apocaliacuteptica judaica O reino prometido por Jesus segundo Reimarus era um reino

terreno nos mesmos moldes e expectativas do pensamento judaico de sua eacutepoca

Portanto para Reimarus ldquoJesus eacute uma figura judaica profeacutetico-apocaliacutepticardquo ou seja

apenas um judeu enquanto que o cristianismo nada mais era do que uma invenccedilatildeo dos

apoacutestolos (Theissen e Merz 2004 p21) Martins Terra fazendo uma anaacutelise do

pensamento de Reimarus sobre a pessoa de Jesus conclui que para o referido teoacutelogo

ldquoJesus natildeo passou de um poliacutetico ambicioso e seus disciacutepulos foram verdadeiros

falsaacuteriosrdquo Na analogia de Reimarus Jesus e sua pretensatildeo poliacutetica terminaram com o

fracasso e a morte na cruz Sobre a ressurreiccedilatildeo de Jesus ele teria dito que foram os

disciacutepulos roubaram o cadaacutever inventaram a mensagem de sua ressurreiccedilatildeo e da vinda

futura Para concluir o pensamento de Reimarus sobre a imagem que temos de Jesus a

10

Essa fase eacute tambeacutem conhecida como a ldquoold questrdquo Essa fase natildeo eacute movida pelo cientificismo mas tem como caracteriacutesticas a rejeiccedilatildeo aos dogmas da Igreja a diferenciaccedilatildeo entre os sinoacuteticos e Joatildeo como fontes histoacutericas a colocaccedilatildeo de Jesus dentro do contexto escatoloacutegico de seu tempo e a ecircnfase sobre o Evangelho de Marcos como sendo o mais antigo dos Evangelhos (Schiavo 2006 p 15-17)

29

partir dos Evangelhos ele afirma que isso foi apenas criaccedilatildeo e ldquofrauderdquo dos disciacutepulos (cf

Martins Terra 1977 p10-12)

Strauss que foi filoacutesofo e teoacutelogo publicou em 18351836 a obra intitulada Vida de

Jesus Para Schweitzer ele natildeo estaacute entre os grandes teoacutelogos mas foi o mais sincero

(Schweitzer 2003 p85) Strauss aplicou aos Evangelhos o conceito de mito algo que jaacute

era comum nas pesquisas sobre o Antigo Testamento de sua eacutepoca (Theissen e Merz

2004 p22) Para ele mesmo que os Evangelhos (sinoacuteticos) tenham sido escritos num

periacuteodo de aproximadamente 40 anos apoacutes a morte de Jesus isso natildeo impede de que

estejam misturados com o mito Ele deixa sua forma de pensar mais evidente quando diz

que ldquonatildeo eacute preciso que um grande homem esteja morto haacute muito tempo para que a lenda

jaacute se ocupe da sua vidardquo (Schweitzer 2003 p 98) Contudo precisamos entender qual eacute

o verdadeiro sentido do mito religioso conforme nos descreve Schweitzer

[] a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha compreendido o caraacuteter essencial do mito religioso Ele nada mais eacute do que ideias religiosas vestidas em uma forma histoacuterica modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda e corporificado numa personalidade histoacuterica Ateacute por motivos a priori somos quase compelidos a assumir que o Jesus histoacuterico nos encontraraacute com as vestes das ideias messiacircnicas do Antigo Testamento e expectativas do cristianismo primitivo (Schweitzer p98)

Segundo Schweitzer a diferenccedila entre Strauss e os seus predecessores eacute que

para aqueles se aplicassem rigorosamente o conceito de mito agrave vida histoacuterica de Jesus

havia um grande questionamento sobre se restaria alguma coisa do Jesus histoacuterico

enquanto que para este essa questatildeo natildeo apresentava nada que fosse considerado um

terror (Schweitzer 2003 p98) Theissen assim resume Strauss ldquoPara Strauss

hegeliano declarado o cerne da feacute cristatilde natildeo eacute atingido pela abordagem miacutetica pois no

indiviacuteduo histoacuterico Jesus realiza a ideia da humanidade de Deus a mais sublime de todas

as ideias O mito eacute a roupagem legiacutetima de tipo histoacuterico dessa humanidade geralrdquo

(Theissen 2004 p22)

De uma forma sucinta Theissen descreve as demais fases da seguinte forma a

segunda eacute denominada como a fase do ldquootimismo da pesquisa liberal sobre a vida de

Jesusrdquo Essa fase eacute marcada por um florescimento do liberalismo teoloacutegico sobre a vida

de Jesus sob o ponto de vista de pesquisadores na Alemanha onde era esperado que se

chegasse agrave reconstruccedilatildeo histoacuterico-criacutetica da histoacuteria de Jesus e de sua personalidade

Essa escola teve como seu principal representante Heinrich Julius Holtzmann (1832-

1910) Destaca-se nessa fase que enquanto F Chr Baur demonstrou a primazia dos

sinoacuteticos sobre o Evangelho de Joatildeo Holtzmann contribuiu para que a teoria das duas

30

fontes desenvolvida por Christian Gottob Wilke e Christian Hermann Weise tornasse-se

um sucesso duradouro (Theissen e Merz 2004 p23)

A terceira fase eacute definida como ldquoo colapso da pesquisa sobre a vida de Jesusrdquo 11

Trecircs foram os motivos para tal colapso o primeiro fator foi a obra de Schweitzer Histoacuteria

de Investigaccedilatildeo da vida de Jesus que provocou o desvelamento das imagens das Vidas

de Jesus criadas pela teologia liberal que conforme os olhos de cada autor revelava-se a

estrutura de personalidade de Jesus com o ideal eacutetico que cada autor almejava O

segundo motivo estaacute concentrado na pessoa de W Wrede que em 1901 demonstrou ldquoo

caraacuteter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesusrdquo Para

Wrede o Evangelho de Marcos era a expressatildeo dogmaacutetica da comunidade cristatilde

primitiva que projetou sobre Jesus de Nazareacute a messianidade do Jesus poacutes-pascal E

por fim K L Schmidt demonstra o ldquocaraacuteter fragmentaacuterio dos evangelhosrdquo Para Schmidt

o Evangelho de Marcos eacute composto por periacutecopes que foram juntadas cronoloacutegica e

geograficamente somente mais tarde pelo autor Sendo assim desaparece totalmente a

possibilidade de se construir uma personalidade de Jesus visto que a histoacuteria das formas

reconhece que as periacutecopes foram juntadas primeiramente para satisfazer as

necessidades das comunidades e soacute em segundo plano como recordaccedilotildees histoacutericas

(Theissen e Merz 2004 p24)

Diante desses movimentos ceticistas surge uma teologia que ora amortece ora

aguccedila ainda mais os debates em torno das pesquisas sobre as Vidas de Jesus Nesse

sentido Rudolf Bultmann (1884 -1976) expotildee a sua teologia dialeacutetica contrapondo Deus e

o mundo de uma forma tatildeo radical a tal ponto que seria possiacutevel um encontro entre

ambas as partes apenas em um ponto assim ldquocomo uma tangente toca um ciacuterculordquo

(Theissen e Merz 2004 p24) Para Bultmann o fator decisivo natildeo era o que Jesus disse

ou fez mas sim o que Deus disse ou fez na cruz e na ressurreiccedilatildeo Nesse sentido

Bultmann afirma que o ensino de Jesus natildeo eacute relevante para a feacute cristatilde e partindo desse

pensamento Theissen define a teologia de Bultmann nas seguintes palavras ldquoSe D F

Strauss viu a verdade do mito de Cristo na ldquoideiardquo R Bultmann a viu no querigma um

chamado de Deus vindo de forardquo (Theissen e Merz 2004 p24-25)

11

Schiavo define essa fase como a ldquono questrdquo Os principais nomes dessa fase satildeo Wrede Dibelius Schmidt e Bultmann Neste movimento os Evangelhos satildeo considerados como um conjunto de tradiccedilotildees desarticuladas e pequenas (periacutecopes) sem interesses histoacutericos A finalidade principal dos Evangelhos estaacute centrada no fato de transmitir mensagens espirituais catequeacuteticas e lituacutergicas para os cristatildeos da Igreja Primitiva Sendo assim eacute impossiacutevel conhecer o Jesus histoacuterico pois a imagem que temos dele nos Evangelhos eacute querigmaacutetica e centrada no Jesus da feacute (Schiavo 2006 p 17-18)

31

A quarta fase eacute definida por Theissen como ldquoa nova pergunta pelo Jesus histoacutericordquo

12 Essa fase desenvolvida pelos disciacutepulos de Bultmann pergunta ou busca uma relaccedilatildeo

a partir do Jesus querigmaacutetico questionando se ldquosua exaltaccedilatildeo na cruz e na ressurreiccedilatildeo

tem alguma base na pregaccedilatildeo preacute-pascalrdquo Os pressupostos para tal questionamento satildeo

fundamentados nas seguintes pressuposiccedilotildees ldquoO querigma cristoloacutegico compromete-se

com a pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Isso se fundamenta segundo essa escola no fato

de que ldquoa identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado eacute pressuposta em todos os

escritos do cristianismo primitivordquo (Theissen e Merz 2004 p25ndash26) O segundo

pressuposto eacute ldquoa base metodoloacutegica da pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Segundo

Theissen esse pressuposto metodoloacutegico eacute ldquoa confianccedila de que se pode encontrar um

miacutenimo criticamente assegurado de tradiccedilatildeo autecircntica de Jesus quando se exclui o que

pode ser derivado tanto do judaiacutesmo como do cristianismo primitivordquo Entende-se que

nessa quarta fase para os disciacutepulos de Bultmann a busca de um fundamento preacute-pascal

que apoie o querigma de Cristo independe do fato de Jesus ter usado algum tiacutetulo

cristoloacutegico visto que isso jaacute estaacute impliacutecito em seu ministeacuterio e em seu anuacutencio (Theissen

e Merz 2004 p26)

Finalmente surge a quinta fase conforme Theissen denominada de ldquoa third

quest13 pelo Jesus Histoacutericordquo Essa fase predominantemente exposta no mundo de fala

inglesa diferencia-se das anteriores pelos seguintes aspectos o interesse histoacuterico-social

substitui o teoloacutegico a inserccedilatildeo de Jesus no Judaiacutesmo ao inveacutes de separaacute-lo como os

disciacutepulos de Bultmann procura fazecirc-lo e por fim haacute uma abertura para as fontes natildeo

canocircnicas substituindo a preferecircncia apenas por fontes canocircnicas A third quest dividiu a

pesquisa sobre Jesus em diferentes correntes No entanto segundo Theissen essa

variedade de interpretaccedilotildees e figuras de Jesus que pode ser visto tanto como um ciacutenico

judeu ou como um personagem colocado no centro do judaiacutesmo a espera do

restabelecimento de um reino escatoloacutegico daacute a essas correntes um tom de

plausibilidade ou seja ldquoo que eacute plausiacutevel no contexto judaico e torna compreensiacutevel o

12

Conhecida como a ldquoNew questrdquo a New quest caracteriza-se por diferenciar o que eacute proacuteprio do judaiacutesmo com o que eacute tambeacutem proacuteprio do cristianismo primitivo Dessa forma seria possiacutevel chegar ao Jesus da histoacuteria Ernst Kaumlsemann eacute um dos representantes dessa escola Para Schiavo J Jeremias tambeacutem pode ser representado nessa escola Visto que o mesmo com a ajuda da filologia e conhecimentos profundos do aramaico tentou reconstruir os ditos autecircnticos de Jesus (Schiavo 2006 p 18)

13 Schiavo complementa que essa fase que teve iniacutecio a partir da deacutecada de 1980 deixa de ser

exclusividade da academia alematilde e a pesquisa do Jesus histoacuterico passa a fazer parte da academia anglo-americana Este movimento tem como caracteriacutesticas principais os seguintes toacutepicos O interesse histoacuterico-socioloacutegico para com o mundo judaico do seacuteculo I dC a inserccedilatildeo de Jesus dentro do Judaiacutesmo A referecircncia agraves fontes natildeo canocircnicas e a aproximaccedilatildeo da fonte Q com o Evangelho de Tomeacute Dentre os representantes dessa escola encontram-se Crossan Sanders Meyer Vermes Freyne Horsley e Theissen (Schiavo 2006 p 18-19)

32

surgimento do cristianismo primitivo poderia ser histoacutericordquo (Theissen e Merz 2004 p28ndash

29)

32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO

Um dos temas da teologia que tem levantado inuacutemeras questotildees a mais de dois

seacuteculos eacute a busca histoacuterica por Jesus de Nazareacute um humilde judeu que viveu na Galileia

agraves margens do Mediterracircneo Sean Freyne avalia que ldquoas muitas idas e vindas dos

estudos que marcam a busca pelo Jesus histoacuterico tecircm sido uma preocupaccedilatildeo constante

da teologia ocidental por mais de dois seacuteculos e mesmo assim nenhum consenso foi

atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundourdquo (Freyne 2008

p1) Sobre a possibilidade de se buscar pelo Jesus histoacuterico Freyne observa que hoje

natildeo eacute mais suficiente apenas assumir uma posiccedilatildeo numa questatildeo por demais debatida Eacute

necessaacuterio que o pesquisador aleacutem de ter conhecimentos da histoacuteria da antiguidade

tambeacutem possua conhecimentos de arqueologia ciecircncias sociais e particularmente de

antropologia cultural (Freyne 2008 p2) Isso demonstra que haacute necessidade de uma

visatildeo interdisciplinar entre essas ciecircncias e seus pesquisadores

A pergunta sobre o Jesus histoacuterico segundo J Jeremias chega a ser absurda e

sem significaccedilatildeo para a feacute cristatilde apenas para aqueles que natildeo conhecem a questatildeo Ele

ainda pergunta ldquoComo eacute possiacutevel que esta questatildeo seja a questatildeo central de todas as

discussotildees sobre o Novo Testamentordquo (Jeremias 2005 p199) Segundo J Jeremias eacute

hora de questionarmos as teorias de Rudolf Bultmann que propagam que o Jesus

histoacuterico eacute irrelevante para a feacute cristatilde e a teoria que apregoa que o Jesus histoacuterico e o

Cristo proclamado pela Igreja natildeo satildeo as mesmas de Reimarus (Jeremias 2005 p 200)

Partindo das questotildees levantadas por J Jeremias e da forma como Bultmann diverge

desse pensador um diaacutelogo sobre a questatildeo eacute sempre gratificante para darmos pelo

menos um passo agrave frente no que se refere ao Jesus histoacuterico

Tendo em vista a amplitude da questatildeo acima levantada fica evidente que

trabalhar temas relacionados agrave vida do Jesus histoacuterico eacute sempre desafiador Muitos foram

os teoacutelogos e pensadores que a partir do ano de 1778 ano em que nasce o ldquoproblema do

Jesus histoacutericordquo (Jeremias 2005 p 200) esforccedilaram-se nessa tarefa com um espiacuterito

criacutetico e investigativo a fim de encontrar evidecircncias histoacutericas a respeito do homem mais

marcante de toda a histoacuteria da humanidade Tambeacutem natildeo significa que antes de Reimarus

33

o Jesus histoacuterico fosse negligenciado a questatildeo eacute que os teoacutelogos e historiadores desde

a igreja primitiva haviam sustentado que os Evangelhos eram documentos dignos de

absoluto creacutedito acerca da vida e histoacuteria de Jesus por isso tiveram a preocupaccedilatildeo de

apenas parafrasear e harmonizar os Evangelhos uma vez que natildeo viam necessidade de

uma investigaccedilatildeo aleacutem das fontes canocircnicas (Jeremias 2005 p 200) As palavras de Udo

Schnelle assim resumem a teologia do Jesus histoacuterico

A pergunta histoacuterica por Jesus eacute uma filha do iluminismo Para os periacuteodos anteriores era evidente que os Evangelhos transmitiam notiacutecias confiaacuteveis sobre Jesus Antes do Iluminismo a pesquisa neotestamentaacuteria dos Evangelhos limitava-se essencialmente agrave harmonizaccedilatildeo dos quatros Evangelhos Na praacutetica a Exegese do Novo Testamento era uma disciplina auxiliar da Dogmaacutetica (Schnelle 2010 p 70)

Ainda com relaccedilatildeo agrave pesquisa sobre o Jesus histoacuterico Joseacute Antonio Pagola diz

que quando nos referimos ao Jesus histoacuterico ldquoestamos falando do conhecimento de

Jesus que os historiadores podem obter utilizando os meacutetodos cientiacuteficos da moderna

investigaccedilatildeo histoacutericardquo (Pagola 2010 p13)

A magnitude de se escrever sobre o Jesus da Galileia eacute descrita por Schweitzer

com as seguintes palavras ldquo[] natildeo haacute tarefa histoacuterica que revele o verdadeiro interior de

um homem como a de escrever uma Vida de Jesus Nenhuma forccedila vital move o

personagem a natildeo ser que o homem sopre nele todo o oacutedio ou todo o amor de que eacute

capaz Quanto mais intenso o amor ou o oacutedio mais realista eacute a figura produzidardquo

(Schweitzer 2003 p11) Em outras palavras Schweitzer diz que aqueles que buscaram

despir Jesus do sobrenatural acabaram descobrindo fatos que enalteceram ainda mais a

sua histoacuteria Para Schweitzer tanto o oacutedio quanto o amor leva o escritor a investigaccedilotildees

profundas no intuito de provar verdade ou falsidade de um acontecimento histoacuterico Nesse

sentido as maiores produccedilotildees a respeito do Jesus histoacuterico foram escritas com oacutedio e

entre elas segundo Schweitzer estatildeo as de Reimarus e a de Strauss (Schweitzer 2003

p11)

Segundo J Jeremias a tese defendida por Reimarus em que Jesus eacute visto como

um revolucionaacuterio poliacutetico que fracassou na cruz quando exclamou ldquoDeus meu Deus

meu por que me desamparastesrdquo era estuacutepida e artificial visto que Jesus natildeo foi um

revolucionaacuterio poliacutetico e sempre reagiu energicamente contra todas as tendecircncias

nacionalistas dos zelotas Ao fazer uma anaacutelise do momento em que Reimarus escreveu

J Jeremias relata que Reimarus estava fazendo uma investigaccedilatildeo voltada ao homem

Jesus para sua personalidade sua religiatildeo e natildeo voltada para o dogma cristoloacutegico e

34

que a princiacutepio tinha como objetivo libertar-se dos dogmas da igreja (Jeremias 2005 p

201)

O resultado desses trabalhos sobre ltltas vidas de Jesusgtgt nos legaram muitas

imagens de sua personalidade que produzem risos Para os racionalistas Jesus eacute visto

como um pregador de moral para os idealistas a quintessecircncia do humanismo e por fim

para os estetas ele eacute posto como o amigo dos pobres e como um reformador social

Assim satildeo inuacutemeras as imagens que fazem de Jesus um personagem de romance

Jesus portanto eacute modernizado conforme as imagens carregadas de fantasias de cada

autor conforme os seus ideais suas eacutepocas ou suas teologias (Jeremias 2005 p 201)

J Jeremias questiona entatildeo onde estaria o erro E a resposta estaacute no fato de que

esses escritores ltltdas vidas de Jesusgtgt sem ter a plena consciecircncia acabaram

substituindo o dogma cristoloacutegico pela psicologia e pela fantasia Haacute poreacutem um ponto em

comum em todas as obras sobre ltlt as vidas de Jesusgtgt todas elas tratam de desenhar

a personalidade de Jesus com a ajuda dos instrumentos da psicologia e da fantasia Os

padrinhos nesse esforccedilo natildeo satildeo apenas as fontes mas a maior parte pertence agrave

imaginaccedilatildeo criativa a uma construccedilatildeo psicoloacutegica livre de obstaacuteculos (Jeremias 2005 p

201-202)

Conforme J Jeremias Albert Schweitzer de uma forma traacutegica poreacutem com muita

destreza desmascara essas criaccedilotildees repletas de fantasias e depois ele mesmo cairia

em falta fazendo uma construccedilatildeo psicoloacutegica a partir do texto do Evangelho de Mateus

(10 23) declarando que a grande decepccedilatildeo na vida de Jesus foi natildeo ter chegado ao final

causando grandes mudanccedilas em sua vida a ponto de aceitar o sofrimento para forccedilar a

chegada do reino de Deus (Jeremias 2005 p 203)

Pesquisar a vida do Jesus histoacuterico eacute muito mais que contar a histoacuteria de um

grande homem Eacute deparar-se com um personagem vital para a histoacuteria da humanidade

que ldquoveio para reger sobre o mundo Ele o regeu para o bem e para o mal como a histoacuteria

testificardquo (Schweitzer 2003 p8) Jesus revolucionou o mundo de sua eacutepoca mudou o

rumo da histoacuteria inseriu-se nela como protagonista mesmo natildeo sendo essa a sua

intenccedilatildeo A histoacuteria do mundo natildeo poderia mais ser contada sem ele ou seja Jesus

dividiu a histoacuteria em o antes e o depois dele A grandiosidade do homem Jesus fascinou

tanto os que o amaram como aqueles que o odiaram Nesse sentido podemos justificar o

fato de tantos pensadores estudarem a respeito do Jesus histoacuterico com as palavras

atribuiacutedas a Hegel por Bernard Bourgeois ldquoUm grande homem condena os humanos a

explicaacute-lordquo (Bourgeois1995 p 375)

35

Segundo Schweitzer os cristatildeos primitivos preocuparam-se apenas em preservar

ditos isolados a respeito do Jesus histoacuterico A expectativa do retorno iminente do Mestre

pode ter sido o motivo principal que levou o cristianismo primitivo a preferir apenas fatos

relacionados ao ministeacuterio de Jesus a uma biografia completa do Jesus histoacuterico O autor

ainda considera isso como um impulso de autopreservaccedilatildeo visto que a introduccedilatildeo do

Jesus histoacuterico na feacute da comunidade primitiva seria algo novo jaacute que o proacuteprio Jesus natildeo

se preocupou em deixar uma autobiografia Pagola compartilha desse pensamento

dizendo que

os evangelistas natildeo compuseram uma ldquobiografiardquo de Jesus no sentido moderno desta palavra Seus escritos estatildeo impregnados de sua feacute no Cristo ressuscitado satildeo sumamente seletivos foram narrados em funccedilatildeo de problemas e necessidades das primeiras comunidades cristatildes e estatildeo ordenados para objetivos teoloacutegicos e concretos Por isso exigem um estudo criacutetico cuidadoso antes de podermos obter deles informaccedilotildees fidedignas para a investigaccedilatildeo (Pagola 2010 p17)

O fato de Jesus natildeo ter deixado nenhum texto escrito e o texto do apoacutestolo Paulo

na segunda carta aos Coriacutentios capiacutetulo cap 5 verso 16 ldquo[hellip] doravante a ningueacutem

conhecemos segundo a carne Tambeacutem se conhecemos Cristo segundo a carne agora jaacute

natildeo o conhecemos assimrdquo abriu o caminho para diversas interpretaccedilotildees acerca de Jesus

De fato Leonhard Goppelt menciona a interpretaccedilatildeo de Rudolf Bultmann segundo a qual

se infere que para Paulo a accedilatildeo terrena de Jesus natildeo teria tido a miacutenima importacircncia o

que importava era a feacute pascal Natildeo obstante a ldquofeacute pascal bem como a cristologia natildeo satildeo

simplesmente uma transfiguraccedilatildeo miacutetica do terreno Muito antes nelas toma forma o que

no Jesus terreno agia apenas de maneira ocultardquo (Goppelt 2002 p 46)

O pensamento de Bultmann a respeito da importacircncia de se investigar a vida e a

personalidade do Jesus histoacuterico se resume nas seguintes palavras

Natildeo podemos saber praticamente nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus jaacute que as fontes cristatildes natildeo se interessaram por elas sendo ademais bastante fragmentaacuterias e encobertas pela lenda uma vez que natildeo existem outras fontes sobre Jesus O que se estaacute escrevendo haacute mais de um seacuteculo e meio sobre a vida de Jesus sua personalidade seu desenvolvimento interior e coisas semelhantes ndash uma vez que natildeo se trata de investigaccedilotildees criacuteticas ndash natildeo passa de fantasia e romance (Bultmann 2005 p 26)

Dessa forma o logos natildeo se torna verdadeiramente carne mas apenas palavra

(kerygma) Na visatildeo de Bultmann o Jesus histoacuterico natildeo faz parte da teologia do Novo

Testamento pois o objeto da teologia do Novo Testamento eacute o Cristo da feacute (pascal) Em

vista disso um estudo acerca do Jesus histoacuterico fica relegado a uma primeira etapa tal

qual uma primeira premissa no interior de um argumento mais elaborado (Bultmann

36

2004 p 24) J Jeremias enfatiza que para Bultmann a pregaccedilatildeo de Jesus eacute apenas

uma premissa entre muitas outras do Novo Testamento (Jeremias 2005 p 204)

Para J Jeremias Bultmann sofreu influecircncia de Martin Kaumlhler atraveacutes de sua obra

Der sogenannte historische Jesus und der geschichtiche biblische Cristus (O chamado

Jesus histoacuterico e o Cristo existencialmente histoacuterico e biacuteblico) Kaumlhler distinguiu por um

lado entre Jesus e Cristo e por outro entre historische (histoacuterico) e geschichtiche

(existencialmente histoacuterico) Por Jesus Kaumlhler compreendia o homem de Nazareacute tal

como foi descrito pelos que investigaram a vida do Jesus histoacuterico por Cristo ele entendia

como aquele que foi proclamado como o Salvador pela igreja Quanto ao significado do

adjetivo historische (histoacuterico) ele compreendia como uma mera designaccedilatildeo dos fatos do

passado e para geschichtiche (existencialmente histoacuterico) como aquele que tem um

significado permanente Portanto para Kaumlhler toda a tentativa de reconstruir a vida do

Jesus histoacuterico se contrapotildee ao Cristo biacuteblico e existencialmente histoacuterico tal como foi

pregado pelos apoacutestolos e para noacutes conforme Kaumlhler o que importa eacute unicamente o

Cristo da Biacuteblia conforme descrito pelos Evangelhos e natildeo as supostas reconstruccedilotildees

cientiacuteficas a respeito da pessoa de Jesus que chegam ateacute a passar a impressatildeo de uma

plena realidade dos fatos (Jeremias 2005 p 202)

A voz de Kaumlhler se extinguiu no vaacutecuo e natildeo surtiu um efeito pleno ateacute o ecoar da

voz de Bultmann que com coragem irredutiacutevel entrou no campo do inimigo e

abertamente lutou contra uma teologia que por um periacuteodo de aproximadamente cento e

cinquenta anos esforccedilou-se para chegar ao Jesus histoacuterico (Jeremias 2005 p 202)

Concordando com Kaumlhler Bultmann declara que todo o esforccedilo para chegar ao Jesus

histoacuterico foi um empreendimento insoluacutevel e infecundo que retirou a inexpugnaacutevel

fortaleza da proclamaccedilatildeo (kerigma) de Cristo (Jeremias 2005 p 203)

Os argumentos de Bultmann para a renuacutencia da teologia do Jesus histoacuterico

fundamentam-se no princiacutepio de que haacute falta de fontes seguras para a fundamentaccedilatildeo

dessa teologia Tambeacutem leva-se em consideraccedilatildeo que natildeo temos nada escrito pelas

matildeos de Jesus As uacutenicas fontes que temos a respeito de Jesus satildeo os Evangelhos e

esses natildeo satildeo biografias de Jesus mas satildeo apenas testemunhos de feacute secundaacuterios e

recobertos de lendas como no caso dos milagres Os Evangelhos segundo esse

pensamento satildeo a demonstraccedilatildeo de feacute dos evangelistas (Jeremias p 203) Concernente

agrave vida e agrave proclamaccedilatildeo de Jesus Bultmann assim descreve

37

[] Pouco sabemos sobre sua vida e personalidade ndash em compensaccedilatildeo sabemos o suficiente sobre sua proclamaccedilatildeo para pintar um quadro coerente Todavia tambeacutem nesse ponto recomenda-se um cuidado extremo em vista do caraacuteter das fontes que dispomos Pois o que as fontes nos oferecem eacute em primeira linha a proclamaccedilatildeo da comunidade que no entanto remonta em sua maior parte a Jesus Naturalmente isso prova que ele realmente tenha pronunciado todas as palavras que essa comunidade lhe pocircs na boca No caso de muitas palavras eacute possiacutevel demonstrar que soacute vieram a surgir na comunidade ao passo que no caso de outras elas foram reformuladas pela comunidade A investigaccedilatildeo criacutetica mostra que o conjunto da tradiccedilatildeo sobre Jesus ndash disponiacutevel nos trecircs evangelhos sinoacuteticos de Mateus Marcos e Lucas ndash se desmembra em uma seacuterie de camadas que em termos gerais podem ser distinguidas umas das outras com bastante seguranccedila mas cuja separaccedilatildeo em alguns detalhes apresenta dificuldades e levanta duacutevidas (Bultmann 2005 p 29-30)

Contudo essa visatildeo de Bultmann natildeo significa a negaccedilatildeo da existecircncia do homem

chamado Jesus de Nazareacute Segundo esse autor eacute possiacutevel conhecer muito dele atraveacutes

de suas pregaccedilotildees poreacutem na anaacutelise da criacutetica histoacuterica em relaccedilatildeo ao homem Jesus

conclui-se que natildeo haacute nada de importante para a feacute cristatilde (Jeremias 2005 p 203)

Quanto agrave questatildeo da existecircncia de Jesus vejamos o que nos diz Bultmann

[hellip] Eacute verdade que a duacutevida se Jesus realmente existiu eacute infundada e natildeo vale a pena gastar nenhuma palavra para refutaacute-la Eacute evidente que ele eacute o gerador do movimento histoacuterico cujo primeiro estaacutegio constataacutevel eacute representado pela comunidade palestinense mais antiga No entanto outra questatildeo eacute ateacute que ponto a comunidade preservou de modo objetivamente fiel a imagem dele e de sua proclamaccedilatildeo Para aqueles que tecircm interesse na personalidade de Jesus esse estado de coisas eacute inquietante e arrasador para nosso propoacutesito ele natildeo eacute de fundamental importacircncia (Bultmann 2005 p 30-31)

J Jeremias analisa entatildeo que para Bultmann Jesus de Nazareacute foi um profeta

judeu que permaneceu sempre dentro dos marcos do judaiacutesmo O Jesus histoacuterico

segundo Bultmann pode ser interessante para a teologia do Novo Testamento e para

compreender a origem do cristianismo mas natildeo tem significaccedilatildeo alguma para a feacute cristatilde

porque o cristianismo comeccedila com a Paacutescoa (Jeremias 2005 p204) Martins Terra expotildee

que o Jesus histoacuterico para Bultmann realmente eacute um profeta e sem duacutevida o maior

deles contudo profeta pertence ao Antigo Testamento Sendo assim Jesus era apenas

um judeu e natildeo um cristatildeo14 ldquoporque cristatildeo eacute aquele que acredita no Senhor

ressuscitado e natildeo aquele que funda sua feacute sobre uma figura histoacutericardquo (Martins Terra

1977 p21)

14

A resposta dada a Bultmann veio de seu disciacutepulo Ernst Kaumlsemann que observa que tanto Jesus quanto

os apoacutestolos eram judeus E se os apoacutestolos eram judeus natildeo eram eles tambeacutem cristatildeos desde o momento que seguiram a Jesus Kaumlsemann ainda pergunta teria havido algum keacuterygma sem a pregaccedilatildeo de Jesus Kaumlsemann chama a atenccedilatildeo para que Jesus natildeo se torne um pretexto e Cristo uma mera cifra mitoloacutegica (Martins Terra 1977 p 44)

38

Escrever uma biografia sobre o Jesus histoacuterico eacute algo descartado na teologia e isso

eacute visto com justiccedila por J Jeremias quando diz ldquo[] eacute muito correto afirmar que jaacute temos

despertado do sonho de acreditar que podemos escrever uma biografia de Jesusrdquo

(Jeremias 2006 p28) No entanto isso natildeo significa passar com indiferenccedila por essa

teologia eacute preciso voltar ao Jesus de Nazareacute e a sua pregaccedilatildeo As fontes nos

impulsionam a cada versiacuteculo dos Evangelhos a buscar pelo homem Jesus que

historicamente apareceu em Nazareacute e que foi crucificado no governo de Pocircncio Pilatos

(Jeremias 2006 p28) Leonard Swidler diz estar ciente tambeacutem das dificuldades para

se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade sobre o Jesus (Ieshua) histoacuterico

Contudo para ele podemos chegar ao fundamental ou seja podemos sempre lutar para

chegar mais perto Para Swidler a consciecircncia dessa limitaccedilatildeo permite que a pessoa

evite os extremos isto eacute tanto a ingecircnua certeza absoluta quanto o ceticismo total sobre

a possibilidade da busca pelo Jesus histoacuterico (Swidler 1993 p 16-18)

A visatildeo de Bultmann a respeito do Jesus histoacuterico natildeo foi seguida pelo seu

sucessor catedraacutetico em Magburg W G Kuumlmmel Para Kuumlmmel interpretar as palavras

de Paulo15 na letra do texto 2 Cor 516 e concluir que o Jesus terreno natildeo teve

importacircncia para o apoacutestolo eacute uma interpretaccedilatildeo ldquoseguramente errocircneardquo (Kummel 2003

p210) pois mesmo que elas natildeo tenham um papel tatildeo importante nos escritos do

apoacutestolo elas natildeo deixam de ser significantes Errocircneo para Kuumlmmel seria o fato de um

cristatildeo procurar ter uma relaccedilatildeo intraterrena com Jesus ou conhececirc-lo apenas

historicamente o que seria insignificante para um cristatildeo Rochus Zuurmond tambeacutem

define o pensamento do apoacutestolo Paulo sobre o versiacuteculo 16 acima mencionado da

seguinte forma

[hellip] Nessa periacutecope natildeo se trata da distinccedilatildeo entre o Jesus preacute-pascal e o poacutes-pascal mas da diferenccedila entre conhecer Jesus da maneira antiga e conhececirc-lo da maneira nova O Jesus poacutes-pascal ainda pode ser ldquoconhecidordquo da maneira antiga o jovem Paulo mas tambeacutem seus adversaacuterios atuais eacute disso um exemplo Em princiacutepio o Jesus preacute-pascal tambeacutem podia ser conhecido de maneira nova se fosse ldquotirado o veacuteurdquo na leitura do Antigo Testamento (314ss cf Jo 856) Mas na praacutetica isso se verificou impossiacutevel por causa da carne (Zuurmond 1998 p 87)

Conhecer Jesus ldquosegundo a carnerdquo na interpretaccedilatildeo de Zuurmond inclui com

certeza todo o conhecimento que podemos ter do Jesus histoacuterico Para ele Paulo natildeo

15

Kaumlsemann tambeacutem contrapotildee essa tese de Bultmann colocando os seguintes argumentos Se o Apoacutestolo Paulo natildeo levou em consideraccedilatildeo a vida terrena de Jesus e a Igreja jaacute estava realizada com o keacuterygma contido nas cartas paulinas por que entatildeo os Evangelhos tornaram-se necessaacuterios jaacute que foram escritos (os Sinoacuteticos) depois que Paulo jaacute tinha escrito todas as cartas Segundo Kaumlsemann a necessidade dos Evangelhos deu-se principalmente porque havia vaacuterios keacuterygmas e a necessidade do discernimento desses deu-se a princiacutepio pelo Espiacuterito todavia quando o entusiasmo cresceu tornou-se necessaacuterio o criteacuterio da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 44-45)

39

estava referindo-se ao Jesus histoacuterico quando fala ldquose jaacute conhecemos o cristo segundo a

carne agora jaacute natildeo o conhecemos maisrdquo (516) Toda a atividade cientiacutefica eacute carne ou

seja pode ser verificado com os recursos da historiografia moderna A pesquisa sobre o

Jesus histoacuterico eacute possiacutevel desde que ela natildeo tenha a pretensatildeo de ser a verdade absoluta

a respeito de Jesus Para Zuurmond o apoacutestolo estaacute enfatizando que o conhecimento

espiritual estaacute aleacutem do conhecimento cientiacutefico contudo natildeo eacute anticientiacutefico mas apenas

natildeo estaacute submisso a qualquer criteacuterio da ciecircncia Zuurmond conclui que ldquoPaulo tem

pouquiacutessima coisa para dizer sobre o Jesus histoacutericordquo uma vez que o apoacutestolo dos

gentios natildeo teria muito interesse pelo ldquotipo de conhecimento sobre Jesus que daiacute

resultariardquo (Zuurmond 1998 p88)

Voltando aos disciacutepulos de Bultmann ainda podemos mencionar Ernst Kaumlsemann

que tambeacutem contestou os ldquodogmasrdquo de seu mestre Para Kaumlsemann a pergunta pelo

Jesus histoacuterico e pelas palavras de Jesus eacute uma praacutetica e exigecircncia do Novo Testamento

visto que satildeo a base e o criteacuterio do keacuterygma Sem essas perguntas o Cristo da feacute se

tornaria em mera ideologia religiosa A importacircncia dessas questotildees torna relevante a

busca pelo Jesus da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 32)

Como se pode compreender em diferentes eacutepocas pensadores divergiram a

respeito da histoacuteria da pessoa do humilde carpinteiro de Nazareacute As especulaccedilotildees a

respeito da vida do Jesus histoacuterico cresceram tanto pelos seus fieacuteis seguidores quanto

pelos seus mais aacutevidos inimigos pelo menos desde o seacuteculo II dC (tal como se pode ver

na calorosa refutaccedilatildeo de Oriacutegenes contra Celso) Em um periacuteodo mais recente teoacutelogos

e arqueoacutelogos tecircm procurado com maior intensidade dados a respeito do homem Jesus e

do estilo de vida que a comunidade do seu tempo vivia com a finalidade de compreender

melhor o contexto em que Jesus estava socialmente inserido

40

4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE

SUA EacutePOCA O objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar o Jesus da histoacuteria dentro do contexto

dos grupos religiosos de sua eacutepoca a fim de observarmos ateacute que ponto Jesus teve

ou natildeo contato com tais grupos abaixo mencionados A preferecircncia de Jesus por um

determinado grupo poderia determinar o que era o Reino de Deus na visatildeo do jovem

pregador galileu Seria Jesus um adepto da seita dos apocaliacutepticos essecircnios dos

moralistas fariseus dos revolucionaacuterios zelotes ou ainda da ldquocorrompidardquo classe

sacerdotal dos saduceus Nos Evangelhos eacute que encontramos a histoacuteria de Jesus

uma vez que eles satildeo as principais fontes que possuiacutemos para montarmos a figura

do maior homem de todos os tempos Mas surgem algumas perguntas Seriam os

Evangelhos fontes histoacutericas confiaacuteveis na apresentaccedilatildeo do homem Jesus Sendo

Jesus pertencente agrave maioria da populaccedilatildeo ou seja da classe pobre e oprimida

pelos romanos teria ele sofrido alguma influecircncia do mundo helenizado da cidade

de Seacuteforis da qual tatildeo perto ele residia ou teria ele totalmente ignorado a cultura e

o mundo helecircnico-romano

Jesus o nazareno na condiccedilatildeo de Filho de Deus repudia todo o tipo de

opressatildeo uma vez que ele veio para ldquoproclamar a libertaccedilatildeo dos presosrdquo e

ldquoevangelizar os pobresrdquo (Lc 4-18) os quais satildeo felizes porque deles eacute o Reino de

Deus (Lc 620-23) Ao proclamar a bem-aventuranccedila dos pobres ele tambeacutem

proclama ldquomaldiccedilotildeesrdquo sobre os ricos que os oprimem e riem deles visto que chegaraacute

a hora em que os que dessa forma riem conheceratildeo o luto e as laacutegrimas (Lc 6 24-

26) Jesus ao ensinar os seus disciacutepulos a como se prevenir e se comportar diante

de uma sociedade poliacutetica e religiosa completamente desprovida do genuiacuteno amor

ao proacuteximo o Mestre da Galileia ensina os seus seguidores a serem

ldquomisericordiososrdquo como o Pai do Ceacuteu eacute misericordioso (cf Lc 6 36)

41

41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE

CONTEMPORAcircNEA DE JESUS

Segundo J Jeremias Jesus16 era proveniente de uma famiacutelia pobre e isso

pode ser constatado na ocasiatildeo do sacrifiacutecio de purificaccedilatildeo ldquoMaria serviu-se do

privileacutegio dos pobres oferecer duas rolasrdquo (Lc 224 cf Lv 128) (Jeremias 1983

p165) No tocante ao seu modo de vida eram tantas as privaccedilotildees que natildeo tinha

onde repousar a cabeccedila (Mt 820 Lc 958) J Jeremias observa que ele natildeo possuiacutea

dinheiro - a histoacuteria do estaacuteter e do ldquotributo a Cesarrdquo o demonstram (Mt 17 24-27 Cf

Mc 12 13-17 Mt 22 15-22 Lc 20 20-26) - tambeacutem aceitou esmolas (Lc 8 1-3)

Jesus provavelmente foi considerado um escriba (da classe mais humilde

desse grupo) conforme subentende J Jeremias (1983 p 59-165) Bultmann

tambeacutem concorda que Jesus era chamado pela tradiccedilatildeo de Rabi (Mc 95 1051

11121 1445) Para ele o tiacutetulo rabi foi substituiacutedo pelos evangelistas de origem

grega quase que completamente pela forma de tratamento grega Senhor

expressatildeo esta que designa Jesus como pertencente agrave classe dos escribas

(Bultmann 2005 p71) Para esse autor natildeo podemos afirmar se nos dias de Jesus

jaacute era necessaacuteria certa formaccedilatildeo cultural para a funccedilatildeo de escriba17 como foi uma

exigecircncia cem anos mais tarde Contudo natildeo podemos ignorar o fato de Jesus ter

sido considerado um Rabi (Bultmann 2005 p71-72)

Vale ressaltar que a relaccedilatildeo de Jesus com os escribas eacute quase sempre

relatada de forma polecircmica nos Evangelhos Quando estava ensinando sobre o fim

de Jerusaleacutem e do mundo Jesus advertiu seus disciacutepulos a respeito dos escribas

dizendo que eles sempre procuravam a distinccedilatildeo social eram arrogantes e

16

O nome Jesus origina-se do hebraico ldquoYehoshuardquo (o Yoshua biacuteblico) que significa YHWH (que provavelmente era pronunciado Yahweh) O Nome Jesus eacute uma forma latina do grego Iesous que por sua vez eacute uma forma grega do termo hebraico O nome Yehoshua foi abreviado no linguajar coloquial para Yeshua ou ateacute mesmo para Yeshu A raiz etimoloacutegica de Ieshua eacute ldquoYerdquo eacute a forma hebraica abreviada do proacuteprio nome de Deus YHWH enquanto que ldquoshuardquo eacute a palavra hebraica que significa Salvaccedilatildeo (cf Swidler 1993 p7-8)

17 Vermes define os escribas da seguinte forma ldquoo termo eacutescriba (sofer em hebraico safra em

aramaico) eacute usado para designar um estudioso um especialista na Biacuteblia particularmente em direito biacuteblico e tradicional A vida religiosa e secular bem organizada dependia desses homens Eram geralmente respeitados e sem duacutevida amiuacutede tornavam-se presunccedilosos vestiam-se apropriadamente usando uma tuacutenica longa (stole ou talit) e estavam habituados a ser respeitosamente saudados por todos indiscriminadamente Em reconhecimento agrave sua dignidade recebiam os lugares de escolha em locais de adoraccedilatildeo e em banquetes e os evangelistas indicam que eles esperavam receber tal tratamento preferencialrdquo (Vermes 2006 p 89)

42

pretensiosos na oraccedilatildeo Em Marcos os escribas dos fariseus criticam Jesus porque

ele come com os cobradores de impostos e com os pecadores (Mc 216) tambeacutem

os disciacutepulos de Jesus reconhecem que o seu ensinamento natildeo eacute como o dos

escribas sem autoridade (Mc 1 22-28 cf Mt 7 29) e por fim os escribas

questionaram a autoridade de Jesus para perdoar os pecados do paraliacutetico de

Cafarnaum (Mc 2 6 cf Mt 93) Eacute bem verdade que em Mateus 819 1352 2334

os escribas satildeo vistos de uma forma positiva e isso eacute mais evidente ainda em

Marcos 12 28-34 onde Jesus e um escriba concordaram a respeito do maior dos

mandamentos o que faz Jesus concluir que tal escriba natildeo estava longe do Reino

de Deus No entanto a impressatildeo que se obteacutem a partir das Escrituras eacute a que

Jesus possuiacutea um conceito formado a respeito dos escribas conforme o descrito

pelo evangelista Marcos nas seguintes palavras (Saldarini 2005 p 164-172)

[] E dizia no seu ensinamento ldquoGuardai-vos dos escribas que gostam de circular de toga de ser saudados nas praccedilas puacuteblicas e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes mas devoram as casas das viuacutevas e simulam fazer longas preces Esses receberatildeo condenaccedilatildeo mais severardquo (Mc 12 38-40)

Os escribas parecem natildeo ser um grupo muito coeso no oriente proacuteximo dos

dias de Jesus Eles eram provenientes de vaacuterias classes do povo ou entatildeo dos

sacerdotes ou de famiacutelias proeminentes Geralmente eles eram dependentes das

classes dominantes que dirigiam a naccedilatildeo Segundo Saldarini (2005 p 282-283) a

maioria dos escribas havia saiacutedo do campesinato para ser treinado pelo governo ou

por famiacutelias ricas para resguardar os registros coletar impostos servir como

funcionaacuterios e juiacutezes e trabalhar com o serviccedilo de correspondecircncias

Ainda com relaccedilatildeo a esse grupo de indiviacuteduos observa-se que os escribas

considerados socialmente inferiores eram aqueles que faziam parte de um pequeno

povoado que tinham entre outras funccedilotildees a de ensinar jovens a ler e escrever mas

natildeo eram considerados mestres visto que natildeo tinha uma educaccedilatildeo elevada para os

padrotildees da eacutepoca Saldarini observa no entanto que a maioria dos escribas

incluindo os apresentados nos evangelhos era considerada funcionaacuterios de niacutevel

meacutedio que eram dependentes da classe sacerdotal das famiacutelias ricas em

Jerusaleacutem e de Herodes Antipas na Galileia

43

Em todos os casos poreacutem os escribas precisam ser contextualizados entre outros grupos sociais e o poder de influecircncia deles integrado no quadro global da sociedade judaica Eles natildeo devem ser tratados como um grupo autocircnomo com seu proacuteprio poder e agenda contiacutenua Os escribas eram diferentes em suas origens e em suas dependecircncias e eram indiviacuteduos que desempenhavam um papel social em diferentes contextos e natildeo uma forccedila poliacutetica e religiosa unificada (Saldarini 2005 p 284-285)

Com relaccedilatildeo ao grupo dos rabinos segundo J Jeremias observa-se de um

modo geral que ele se situa entre as camadas pobres da populaccedilatildeo (Jeremias

1983 p165-166) Mais ainda as informaccedilotildees tradicionais sobre os escribas nos

dias de Jesus concordam que os escribas ricos natildeo eram numerosos Portanto se

realmente Jesus era considerado um escriba certamente ele fazia parte da classe

pobre dos escribas Crossan problematiza mais a questatildeo quando coloca que a

maioria da populaccedilatildeo Judaica da eacutepoca de Jesus era constituiacuteda de analfabetos18

supotildee-se que Jesus tambeacutem era analfabeto que ele conhecia como a ampla maioria de seus contemporacircneos de uma cultura oral as narrativas fundacionais estoacuterias baacutesicas e expectativas gerais de sua tradiccedilatildeo mas natildeo os textos exatos citaccedilotildees precisas ou argumentaccedilotildees intrincadas de suas elites de escribas (CROSSAN 1995 p41)

Em outro momento Crossan observa que o niacutevel de alfabetizaccedilatildeo na

Palestina estava abaixo de 3 segundo fontes rabiacutenicas o que natildeo era tatildeo baixo

para os padrotildees sociais das sociedades tradicionais do passado Crossan reitera

que Jesus era um camponecircs da Galileia e portanto natildeo haacute duacutevidas que Jesus era

analfabeto ldquopara mim Jesus era analfabeto ateacute que o contraacuterio seja comprovado E

natildeo eacute comprovado mas apenas presumido por Lucas quando ele faz Jesus ler o

profeta Isaiacuteas na sinagoga de Nazareacute em 4 16-20rdquo (Crossan 2004 p 274-275)

18

Diferentemente de Crossan David Flusser defende que Jesus ldquoestava longe de ser um iletradordquo Para ele com algumas justificativas eacute possiacutevel que os disciacutepulos de Jesus fossem homens iletrados e sem posiccedilatildeo social (cf At 413) e isso levou os historiadores a pensar que o proacuteprio Jesus nunca havia estudado Flusser vai mais longe ainda quando observa que Jesus era versado tanto nas Escrituras Sagradas como na tradiccedilatildeo oral ldquoAdemais sua educaccedilatildeo era incomparavelmente superior agrave de Satildeo Paulordquo Flusser vecirc na narrativa de Lucas (2 41-51) a histoacuteria de ldquoum erudito precoce pode-se dizer quase um jovem talmudistardquo A fonte de Flusser para tal argumento eacute Flaacutevio Josefo que se referindo a Jesus disse ldquonesta eacutepoca viveu Jesus um homem saacutebio ndash se eacute que na verdade deveriacuteamos chamaacute-lo de homemrdquo Mesmo que tenha havido algumas alteraccedilotildees por um interpolador cristatildeo eacute provaacutevel que a redaccedilatildeo original natildeo se perdeu totalmente jaacute que o texto de Josefo pode ser confirmado ldquopela suposta redaccedilatildeo original da passagemrdquo (Flusser 2002 p 11-12)

44

Carlos Mesters tambeacutem observa que Jesus mesmo antes de nascer jaacute era

viacutetima do sistema poliacutetico e econocircmico predominantes na eacutepoca Com efeito uma

vez que ele natildeo nasceu de uma famiacutelia sacerdotal como Joatildeo Batista (Lc 15) nem

teve o privileacutegio de estudar como o apoacutestolo Paulo (At 22 3) Jesus teve desde

pequeno que trabalhar como agricultor e ainda aprender a profissatildeo de seu pai (Mt

13 55) e por isso era conhecido como carpinteiro (τέκτων) de Nazareacute (Mc 6 3)

Assim como Crossan Mesters analisa que a vida de Jesus desde a infacircncia ateacute a

vida adulta natildeo foi nada faacutecil Sobre a educaccedilatildeo formal do nazareno Mesters nos

diz que ldquoa escola do Jesus era antes de tudo a vida em casa na famiacutelia na

comunidade Foi laacute que aprendeu a conviver a rezar e a trabalharrdquo (Mesters 2011

p 17-21)

O caos econocircmico e cultural entre a populaccedilatildeo contemporacircnea de Jesus natildeo

eacute fato apenas na Galileia19 J Jeremias descreve que a cidade de Jerusaleacutem nos

tempos de Jesus era um centro de mendicacircncia que geralmente girava em torno

do templo Para ele ldquonatildeo eacute de causar espanto se jaacute naquela eacutepoca houvesse

pessoas que simulavam cegueiras surdez e outras doenccedilas a fim de ganharem

esmolasrdquo (Jeremias 1983 p166) Se Jerusaleacutem que era o centro dos

acontecimentos estava numa situaccedilatildeo caoacutetica natildeo muito distante ficava Nazareacute

que conforme Crossan era um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que

vivia em casebres ldquoum povoado simples composto de camponeses entre duzentos a

quatrocentos habitantesrdquo (Crossan Reed 2007 p 7518) Crossan observa que

Nazareacute nunca foi mencionada pelos rabinos na Mishinaacute nem no Talmude nem por

Flaacutevio Josefo quando esse cita o nome de 45 lugares durante a primeira revolta

judaica em 66-67 dC Nem mesmo o Antigo Testamento a conheceu A relaccedilatildeo das

tribos de Zebulon enumera quinze localidades na Baixa Galileia nas proximidades

de Nazareacute mas natildeo a inclui (Js19 10-15) Crossan eacute taxativo ao afirmar que Nazareacute

ldquoera um lugar absolutamente insignificanterdquo (Crossan Reed 2007 p 64)

19

Apesar da Galileia onde Jesus viveu ter sido um lugar de extrema pobreza geograficamente era ldquouma regiatildeo beliacutessima a planiacutecie o lago as colinas a montanha o verde as suas matas fazem da Galileia um ambiente tranquilo e repousanterdquo A pobreza natildeo estava ligada ao aspecto geograacutefico mas sim agrave dominaccedilatildeo romana atraveacutes dos altos e impiedosos impostos que segundo Marconcini natildeo era menos do que 40 do miacutesero rendimento de cada trabalhador que tambeacutem eram destinadas para o aumento do bem-estar dos ricos conforme vemos nos evangelhos de Mateus 18 23-30 e Lucas 16 1-7 -20 (Cf Marconcini 2009 p 38)

45

Tambeacutem observa-se que Nazareacute era um povoado proacuteximo de Seacuteforis que

permaneceu no anonimato ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo

quando se tornou alvo de peregrinaccedilotildees dos cristatildeos (Crossan Reed 2007 p79)

Eles dependiam de espaccedilo fiacutesico para desempenhar atividades agriacutecolas guardar

ferramentas de uso comunitaacuterio cultivo de jardins e pomares tambeacutem precisavam de

espaccedilo para a criaccedilatildeo de animais domeacutesticos e isso explica o porquecirc de uma baixa

densidade populacional Crossan afirma que a maioria dos galileus ganhava a vida

com os produtos da terra com ferramentas precaacuterias e condiccedilotildees geograacuteficas

desfavoraacuteveis O seu estilo de vida em particular dos nazarenos era simples e o

que eles ganhavam era apenas o suficiente para pagar as diacutevidas e impostos

Quanto agraves tradiccedilotildees eles eram zelosos celebravam a paacutescoa descansavam no

Saacutebado e valorizavam as tradiccedilotildees de Moiseacutes e dos profetas

Gerhard Lenski citado por Crossan faz uma interessante descriccedilatildeo de como

eram as divisotildees das classes sociais pelo impeacuterio romano O simples fato de uma

famiacutelia ou povoado possuir arados de ferro poder usufruir de transportes utilizando-

se da roda e da vela gerava um abismo entre as classes designadas altas e outras

designadas baixas Segundo esse autor as classes eram divididas da seguinte

maneira 1 da populaccedilatildeo era constituiacuteda pelos governantes que eram possuidores

de pelo menos a metade das terras os sacerdotes podiam possuir ateacute 15 da

terra logo apoacutes vinham os arrendataacuterios que iam de generais a burocratas

especializados mercadores que provavelmente ascendiam das classes mais

baixas mas que chegavam a ter consideraacutevel riqueza e algum poder poliacutetico e por

fim os camponeses que eram a maioria da populaccedilatildeo de cuja colheita cerca de

dois terccedilos do total as classes altas eram sustentadas

Os camponeses cujas safras dependiam das colheitas nem sempre eram

bem sucedidos pois se houvesse muita chuva ou seca ou ainda doenccedilas e morte

eram expulsos de suas proacuteprias terras Entatildeo eram forccedilados ao arrendamento ou

ateacute mesmo podiam ser submetidos agraves piores humilhaccedilotildees Existia ainda a classe

dos artesatildeos considerada acima dos camponeses porque em geral eram

recrutados entre seus membros desalojados Abaixo dos camponeses existiam

ainda as classes dos degradados e dispensaacuteveis os quais eram rejeitados e iam de

46

mendigos a foras da lei ladrotildees trabalhadores diaristas e escravos (Crossan 1995

p 41)

De acordo com essa divisatildeo de classes deduz-se que se Jesus era

carpinteiro (τέκτων) entatildeo ele pertencia agrave classe dos artesatildeos que por sua vez

estava perigosamente situada entre os camponeses e os degradados ou

dispensaacuteveis Segundo Crossan a pobreza dos conterracircneos de Jesus natildeo se

limitava apenas a Galileia jaacute que de 95 a 97 da populaccedilatildeo do estado judaico era

constituiacuteda por analfabetos Se essa estatiacutestica for verdadeira possivelmente Jesus

tambeacutem era um analfabeto Quanto ao fato dele ensinar eacute provaacutevel que o seu

aprendizado e ensino tenha sido a partir da educaccedilatildeo da tradiccedilatildeo em forma oral

Conforme Crossan os textos de Lucas 2 41-52 e Lucas 4 1-30 devem ser vistos

como ldquopropaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em

termos de instruccedilatildeo e exegese de escribardquo (Crossan 1995 p 41-42)

42 JESUS O HUMILDE NAZARENO

Jesus viveu em Nazareacute a maior parte de sua vida Segundo Pagola uma

pequena aldeia de ldquoapenas duzentos a quatrocentos habitantesrdquo onde alguns

habitantes viviam ldquoem cavernas escavadas nas encostas a maioria em casas baixas

e primitivas de paredes escuras de adobe ou pedra com telhados confeccionados

com ramos secos e argila e chatildeo de terra batidardquo O quesito conforto e comodidade

natildeo era privileacutegio dos nazarenos uma vez que em geral as casas soacute tinham um

cocircmodo no qual se alojava a famiacutelia toda inclusive os animais (Pagola 2010 p62)

Esse pequeno vilarejo ficava a 4 quilocircmetros ao norte de Seacuteforis 20 a cidade

residencial de Herodes Antipas (Gnilka 2000 p71) Seacuteforis diferentemente de

Nazareacute era uma cidade que crescia cheia de curiosidades21 Jerome Murphy-

20

Koester natildeo especifica a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis mas observa que a distacircncia entre essas duas localidades era de poucos quilocircmetros Seacuteforis foi ampliada por Antipas que como seu Pai (Herodes o grande) era amante do esplendor e da grandeza que muitas vezes era expresso por grandes construccedilotildees Aleacutem de Seacuteforis (a primeira capital) Antipas (Tetrarca da Galileia e da Pereia) ainda construiu uma segunda capital a qual deu o nome de Tibeacuterias (Tiberiacuteades) em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (Cf Koester 205 Vl 1 p 395) Theissen especifica como sendo de 6 km a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis (cf Theissen 2004 p 186) A partir desses dados conclui-se que Seacuteforis e Nazareacute ficavam muito proacuteximas

21 As hipoacuteteses de Murphy-OConnor em relaccedilatildeo agrave Seacuteforis satildeo bem diferentes da visatildeo que Crossan

tinha desta cidade como vimos anteriormente Para Crossan Seacuteforis permaneceu no anonimato

47

OConnor observa que seria um equiacutevoco supor que Jesus natildeo passaria todo o

tempo que pudesse em Seacuteforis junto com os amigos Nesse sentido pode-se

questionar Teria Jesus tido em Seacuteforis contato com a liacutengua grega por morar bem

proacuteximo da elegante cidade Seacuteforis era a cidade das atraccedilotildees tanto para os

adultos como para as crianccedilas fato esse que pode ser constatado com Herodes

Antipas o qual teria aprendido a oferecer espetaacuteculos com seu pai Herodes o

grande e nos poucos anos que passou em Roma teria ficado impressionado com os

espetaacuteculos dados por Augusto (Murphy-OConnor 2008 p38-39)

O teatro de Antipas era a grande atraccedilatildeo da cidade Segundo Murphy-

OConnor-OConnor o grande teatro de 45 mil lugares22 sentados em pedra visto

ateacute hoje foi precedido pelo de Antipas em madeira Mesmo que os judeus tenham

sido advertidos a respeito da origem pagatilde do teatro eacute razoaacutevel que Jesus tenha

visto em torno das imediaccedilotildees do teatro atores subindo e descendo pelas ruas e

praticando suas deixas23 Para Murphy-OConnor foi desse contexto que Jesus

conheceu a palavra grega hypokritecircs (ὑποκριτής) que significa ldquoum orador puacuteblicordquo

ldquoum atorrdquo Jesus usou a mesma palavra poreacutem deu a ela um sentido mais profundo

no que se refere agrave vida religiosa A maacutescara refere-se ao ldquofingidorrdquo ou seja agravequeles

que dizem ou parecem ser uma coisa mas na praacutetica satildeo outra conforme vemos

nos Evangelhos (Mt 75 Mc 76 = Lc 642)

O maior acontecimento que Jesus pode ter visto em Seacuteforis ou ouvido falar

muito a respeito quando tinha aproximadamente seis anos de idade foi o

casamento de Herodes Antipas com a filha do rei nabateu Aretas IV de Petra que

governou entre 9 aC e 40 dC Segundo Murphy-OConnor mesmo que o

casamento tenha acontecido em Petra uma caravana de nobres nabateus

provavelmente teria acompanhado Antipas ateacute a cidade de Seacuteforis onde uma

grande multidatildeo de todas as aldeias proacuteximas agrave cidade o aguardava para saudar o

jovem rei (Murphy-OConnor 2008 p40)

ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo quando segundo Crossan a cidade se tornou alvo de peregrinaccedilotildees cristatildes (cf Crossan Reed 2007 p79)

22 Theissen diz que o teatro comportava 5000 pessoas (ver Theissen 2004 p 187)

23 Koester nota que eacute interessante que cidades como Cesareia Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo constem da

tradiccedilatildeo Contudo cidades heleniacutesticas menos importantes como Cesareia de Felipe e Gadara agraves vezes satildeo mencionadas Para Koester ldquonatildeo se pode concluir que Jesus nunca tenha visitado Terras pagatildesrdquo (Cf Koester Vl 2 p 86)

48

Sobre Jesus podemos dizer que aleacutem de ter vivido na pequena Nazareacute de laacute

saiu para ser batizado por Joatildeo Batista Aleacutem disso conforme Mc 63 em Nazareacute e

adjacecircncias ele exerceu a carpintaria (τεκτων) 24 como profissatildeo atividade essa

exercida por seu pai Joseacute Nessa profissatildeo aleacutem de trabalhar com madeira

tambeacutem trabalhava-se com pedras Dessa forma podemos dizer que Jesus era

tambeacutem um entalhador (Gnilka 2000 p 71-72)

Sobre Jesus aleacutem de algumas hipoacuteteses e relatos concernentes ao lugar de

sua residecircncia e outras suposiccedilotildees relacionadas agrave sua vida enquanto um simples

homem inserido em sua comunidade que na qualidade de profeta da Galileia natildeo foi

bem recebido entre seus conterracircneos De acordo com o evangelista Lucas o

ministeacuterio de Jesus comeccedilou aos 30 anos (Lc 323) Para Gnilka a informaccedilatildeo

obtida a partir desse Evangelho possui tambeacutem uma motivaccedilatildeo teoloacutegica visto que

a idade de Jesus deve estar relacionada com a idade do rei Davi conforme vemos

em 2 Sm 54 ldquoTinha Davi trinta anos quando comeccedilou a reinarrdquo Natildeo obstante agrave

determinaccedilatildeo aproximada da idade cerca de 30 anos Lucas revela-nos um

interesse histoacuterico-cronoloacutegico a respeito da vida e ministeacuterio de Jesus (Gnilka

2000 p73)

Jaacute em pleno exerciacutecio ministerial conforme a narrativa de Marcos (Mc 6 1-6)

Jesus fez uma fracassada visita num dia de saacutebado aos seus conterracircneos Quando

Jesus estava a ensinar na sinagoga seus conterracircneos escandalizam-se dele O

motivo para tal desprezo estava relacionado ao fato de ele ser proveniente de uma

famiacutelia pobre conhecida por todos na pequena Nazareacute A origem humilde de Jesus

provocou em seus conterracircneos um sentimento de rejeiccedilatildeo e desprezo chegando

ao ponto de total descreacutedito agrave sua sabedoria e ao seu poder de realizar milagres

Esses fatos provavelmente natildeo devem ter ocorrido no comeccedilo do ministeacuterio de

Jesus como descreve Lucas (Lc 4 14-30) ateacute porque se todos esses

acontecimentos fossem no iniacutecio de seu ministeacuterio a comunidade de Nazareacute natildeo o

teria rejeitado imediatamente mas teriam ficado na expectativa do sucesso de seu

mais conhecido cidadatildeo (Gnilka 2000 p 122)

24

Eacute possiacutevel que como artesatildeo Jesus tenha tomado parte na construccedilatildeo de Seacuteforis O silecircncio da tradiccedilatildeo de Jesus sobre Seacuteforis nos induz a crer que mesmo que Jesus tenha conhecido essa cidade atuou tatildeo pouco nela como deve ter atuado em Tiberiacuteades Jesus deve ter evitado as grandes cidades porque se identificava mais com o campo onde encontrava maior ressonacircncia (Cf Theissen 2004 p 187)

49

Aleacutem das fontes evangeacutelicas sobre Jesus temos alguns relatos de fontes natildeo

cristatildes sobre o homem chamado Jesus de Nazareacute O relato mais conhecido dos

cristatildeos eacute de Flaacutevio Josefo que por volta do ano 93 dC (eacutepoca em que ele morava

em Roma) ele testemunha a respeito de Jesus com as seguintes palavras

conforme a citaccedilatildeo de Rochus Zuurmond25

Naquele tempo a atividade de Jesus um homem saacutebio se eacute que conveacutem chamaacute-lo de homem Pois fez coisas incriacuteveis e foi mestre dos que gostam de aceitar a verdade Teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos Ele foi o Cristo Depois que Pilatos o condenou agrave morte na Cruz porque preeminentes de nosso meio o haviam acusado natildeo cessou o amor que lhe tinham seus sequazes Revivificado ele lhes apareceu no terceiro dia pois os profetas de Deus haviam a seu respeito anunciado este fato e mil outras coisas espantosas Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)

Zuurmond duvida que essa citaccedilatildeo seja de Josefo uma vez que seria

praticamente impossiacutevel Josefo referir-se a Jesus como Cristo e muito mais difiacutecil

ainda seria ele mencionar a ressurreiccedilatildeo ldquocom apelo aos profetasrdquo Contudo

segundo Zuurmond seria muito difiacutecil que Josefo vivendo naquela eacutepoca natildeo

mencionasse Jesus em seus escritos Partindo desse princiacutepio o mais provaacutevel eacute

que o texto tenha sido ldquoprofundamente revisadordquo por um cristatildeo Para Zuurmond

dentre as vaacuterias tentativas para reproduzir o texto original de Josefo a mais provaacutevel

seria a de que o texto teria a seguinte conotaccedilatildeo

foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus um saacutebio que teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos chamaram-no de Cristo Seus sequazes afirmam que ele revivificado lhes apareceu Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome ainda natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)

O proacuteprio Zuurmond acredita que essa reconstruccedilatildeo eacute muito hipoteacutetica

Segundo ele o mais provaacutevel eacute que o texto tenha sido muito mais reduzido e que

tenha sido totalmente substituiacutedo (cf Zuurmond 1998 p 74)

Aleacutem de Josefo temos ainda outras citaccedilotildees hipoteacuteticas de fontes natildeo

cristatildes como a correspondecircncia de Pliacutenio Juacutenior com Trajano por volta de 115 dC

Pliacutenio refere-se agrave reuniatildeo dos cristatildeos e detalha o fato de que cantam um hino ldquoa

Cristo como Deusrdquo Suetocircnio por volta de 120 dC descreve que o Imperador

25

Essa citaccedilatildeo tambeacutem pode ser conferida em Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 3 p 590

50

Claacuteudio expulsou os judeus de Roma porque causavam problemas ldquopor instigaccedilatildeo

de Crestordquo Ainda por volta de 115 dC Taacutecito em annales XV 44 relata sobre o

incecircndio de Roma e sobre um grupo de Cristatildeos seguidores de ldquoum tal Cristordquo

Segundo Zuurmond estas foram as palavras do historiador romano

A fim de abafar este boato (de que ele mesmo foi responsaacutevel pelo incecircndio de Roma Nero inventou alguns bodes expiatoacuterios e submeteu agraves mais sofisticadas formas de supliacutecio aqueles que costumavam ser chamados de cristatildeos um grupo de gente odiado por todos por causa de seus crimes abominaacuteveis Eles devem o seu nome a um tal Cristo que durante o governo de Tibeacuterio (imperador de 14 a 37) por ordem do procurador Pocircncio Pilatos foi executado Depois de ter sido oprimida durante algum tempo essa supersticcedilatildeo perniciosa irrompeu novamente natildeo apenas na Judeacuteia onde este mal se originou mas tambeacutem em Roma para onde confluem e onde costumam ser assiduamente fomentados costumes horrorosos e vergonhosos de toda a espeacutecie (cf Zuurmond 1998 p75-76)

Essas fontes natildeo cristatildes quase que sempre satildeo vistas com alguma

desconfianccedila por alguns especialistas quanto agrave autenticidade de seus conteuacutedos

No entanto qualquer conjectura sobre o assunto natildeo passaraacute de mera

especulaccedilatildeo O mais importante eacute que a histoacuteria de Jesus eacute tatildeo grande que o mais

aacutevido inimigo jamais poderaacute tornaacute-la como algo insignificante para a humanidade

43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES

Como sabemos Jesus nunca nos deixou nada por escrito no entanto tudo o

que sabemos sobre ele estaacute registrado nos evangelhos especificamente nos

evangelhos canocircnicos considerados pela tradiccedilatildeo cristatilde como os mais confiaacuteveis jaacute

que para a tradiccedilatildeo cristatilde conforme vemos em Duquoc os evangelhos apoacutecrifos26

podem sem duacutevida transmitir autecircnticos dados histoacutericos mas natildeo possuem

autoridade para que a partir dos testemunhos descritos neles possa-se elaborar

uma teologia consistente (Duquoc 1992 p 21)

26

Sanders compartilha da ideia da maioria dos estudiosos de que muito pouco dos evangelhos apoacutecrifos pode situar-se aos dias de Jesus Para ele esses evangelhos satildeo ldquolegendaacuterios e mitoloacutegicosrdquo De todo o material apoacutecrifo segundo Sanders somente alguns ditos do evangelho de Tomeacute merecem consideraccedilatildeo No entanto natildeo significa que seja possiacutevel fazer uma divisatildeo clara colocando os Evangelhos canocircnicos de um lado e os apoacutecrifos de outro uma vez que segundo Sanders haacute material lendaacuterio e criaccedilatildeo posterior nos Evangelhos do Novo Testamento Natildeo obstante eacute nos quatro Evangelhos que devemos buscar traccedilos do Jesus histoacuterico conclui Sanders (Sanders 2005 p 88-89)

51

Leif E Vaage eacute mais radical chegando afirmar que todos os escritos cristatildeos

primitivos que tratam da infacircncia de Jesus satildeo apoacutecrifos Segundo ele inclusive os

Evangelhos canocircnicos (Vaage 2007 p 38) Vaage baseia seu argumento no fato de

que nenhum dos Evangelhos relata realmente como foi a gravidez nascimento e

infacircncia de Jesus Por isso natildeo podem ser considerados historicamente

ldquoautecircnticosrdquo No entanto temos um olhar mais positivo sobre os apoacutecrifos em Jacir

de Freitas Faria Para ele noacutes podemos encontrar nos apoacutecrifos ldquovalores que a

piedade popular conservou como dogma de feacuterdquo (Faria 2007 p9) Na visatildeo de Faria

se natildeo fossem os apoacutecrifos do Novo Testamento natildeo saberiacuteamos os nomes de

pessoas como os avoacutes de Jesus dos reis magos dos dois ladrotildees da cruz e outros

nomes relacionados aos cristatildeos do primeiro seacuteculo

Os evangelhos27 por certo satildeo a histoacuteria do Jesus terreno contudo segundo

Bornkamm vale ressaltar que os Evangelhos satildeo histoacuteria mas natildeo no sentido da

histoacuteria moderna ou seja ldquoos evangelistas natildeo eram historiadores de profissatildeo e a

tradiccedilatildeo popular estaacute sempre sujeita a mudanccedilas no processo de transmissatildeordquo

(Bornkamm 1981 p35) Os evangelhos prossegue Bornkamm ldquonatildeo podem ser

classificados entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos como

Tuciacutedides Poliacutebio e Taacutecito nem entre biografias contemporacircneas como As Vidas

dos Ceacutesares de Suetocircnio [cerca de 70-140 dC] rdquo (1981 p35)

Sanders analisando a natureza do material evangeacutelico considera tal tarefa

como uma das mais desafiadoras a ser realizada pelo pesquisador Ainda que a

opiniatildeo dele sobre as fontes seja positiva ele natildeo deixa de enumerar alguns

aspectos considerados problemaacuteticos ou negativos conforme resumimos abaixo

1) Os primeiros cristatildeos natildeo escreveram uma narrativa (histoacuteria) da vida

de Jesus mas escreveram pequenas passagens sobre as suas

palavras e obras Essas pequenas partes foram mais tarde

organizadas pelos autores dos Evangelhos Isso significa que nunca

poderemos estar tatildeo perto do contexto imediato dos ditos e feitos de

Jesus

27

Conforme Marconcini (2009 p 6) o termo evangelho encontra-se doze vezes nos sinoacuteticos das quais quatro vezes em Mateus (423 9 35 24 14 26 13) em Marcos oito vezes (114-15 835 1029 1310 149 1615) a palavra vem sempre da boca de Jesus com exceccedilatildeo de Marcos 11 Jaacute no Evangelho de Lucas prevalece o verbo evangelizar que aparece dez vezes (119 210 318 41843 722 81 96 1616 201)

52

2) Os primeiros cristatildeos revisaram alguns materiais e criaram outros

3) Os Evangelhos foram escritos de forma anocircnima28

4) O Evangelho de Joatildeo eacute muito diferente dos outros trecircs Evangelhos e eacute

principalmente nesse Evangelho que devemos buscar informaccedilotildees

sobre Jesus

5) Aos Evangelhos faltam muitas caracteriacutesticas para ser uma biografia e

temos que distingui-los das biografias modernas (cf Sanders 2005 p

81-82)

A partir dos dados acima observamos que os Evangelhos realmente natildeo

satildeo histoacuteria no sentido moderno do termo No entanto conforme Martins Terra

devemos aplicar a criteriologia moderna de atestar a autenticidade dos escritos ou

seja aquela que estaacute focada mais nos criteacuterios internos29 do que nos criteacuterios

externos mas sempre tendo como base os testemunhos histoacutericos (Martins Terra

1977 p126)

Segundo Latourelle a criacutetica externa analisa os Evangelhos a partir dos

escritos extra-evangeacutelicos (Cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos) e sobretudo a

partir dos testemunhos das Igrejas poacutes-apostoacutelicas (II e III seacuteculos) enquanto que a

criacutetica interna apoia-se no proacuteprio texto (anaacutelise do tecido literaacuterio estudo do

conteuacutedo) Para esse teoacutelogo a criacutetica externa sempre obteve ecircxito em relaccedilatildeo agrave

critica interna mas nos dias atuais essa situaccedilatildeo tem mudado ou seja a criacutetica

interna tem se sobreposto agrave critica externa No entanto Latourelle prefere ficar em

um meio termo e mesmo que a criacutetica externa esteja em decadecircncia Latourelle vecirc

trecircs pontos importantes que podem ser explorados nela ldquosobre os autores dos

28

Sanders referindo-se a autoria dos Evangelhos diz que natildeo sabemos quem realmente satildeo os autores Mateus e Joatildeo foram disciacutepulos de Jesus Marcos foi seguidor de Paulo e possivelmente tambeacutem de Pedro jaacute Lucas foi um dos convertidos (disciacutepulos) de Paulo Mateus Marcos Lucas e Joatildeo realmente existiram mas natildeo podemos afirmar que eles escreveram os Evangelhos Existem provas que os Evangelhos permaneceram sem tiacutetulo de autoria ateacute a metade do seacuteculo II dC e eram sempre citados anonimamente A nomenclatura segundo Mateus segundo Marcos segundo Lucas segundo Joatildeo apareceram de repente por volta do ano 180 em meio ao grande nuacutemero de evangelhos escritos a Igreja teve que decidir quais deles seriam canocircnicos e diante de diferentes opiniotildees os que pensavam que apenas os quatro citados acima eram os que testemunhavam sobre Jesus com autoridade ganharam a questatildeo (cf Sanders 2005 p 87-88)

29 Segundo Martins Terra ldquoa criacutetica interna procura refazer na medida do possiacutevel a histoacuteria das

tradiccedilotildees [traditionsgeschichte] e separar os elementos redacionais [=dos evangelistas] dos elementos provenientes da tradiccedilatildeo anterior ateacute seus estratos mais primitivos Admite-se pois como vaacutelida a ideia fundamental da histoacuteria das formas (formgeschichte e da histoacuteria da redaccedilatildeo [Redaktionsgeschichte])rdquo (Martins Terra 1977 p 126)

53

Evangelhos sobre a autoridade desses na Igreja dos primeiros seacuteculos e sobre a

atitude da Igreja perante as tendecircncias deformadoras dos apoacutecrifos e dos escritos

gnoacutesticosrdquo (Latourelle 1989 p118)

Latourelle observa que ldquoa tradiccedilatildeo tem a tendecircncia de individualizar os

autores e colocaacute-los em relaccedilatildeo iacutentima com uma autoridade apostoacutelicardquo (Latourelle

p118) Um argumento bem aceito pela criacutetica contemporacircnea eacute de que documentos

- o Cacircnon Muratori os proacutelogos antimarcionistas - e os antigos teoacutelogos da Igreja

(Paacutepias Irineu de Liatildeo) - aceitaram Marcos e Lucas como autores dos Evangelhos

que levam os seus nomes porque eles realmente satildeo os verdadeiros autores O

raciociacutenio para defender essa tese conforme expotildee Latourelle eacute que se os teoacutelogos

da patriacutestica (seacuteculo II) tivessem interesse em ldquofalsificarrdquo a autoria dos Evangelhos

para dar maior credibilidade aos mesmos teriam dado a esses dois nomes de

apoacutestolos que conviveram com Jesus e natildeo de testemunhas indiretas como nos

casos de Marcos e Lucas Partindo desse raciociacutenio Latourelle citando Descamps

conclui ldquose as Igrejas do seacuteculo II mantiveram os nomes de Marcos e Lucas como

autores fizeram-no sem duacutevida sob a pressatildeo dos fatosrdquo (Latourelle 1989 p 18)

Segundo Bornkamm ldquoeacute significativo que os evangelhos satildeo anocircnimos e que

os nomes (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo) foram dados para aleacutem do seacuteculo II O

evangelho de Lucas eacute o que mais se aproxima da historiografiardquo (Bornkamm 1981

p35) Aparentemente os Evangelhos datildeo a impressatildeo de continuidade mas os

textos natildeo oferecem um fundo real de uma histoacuteria reconstituiacutevel (Bornkamm 1981

p37) Um fato importante a se observar satildeo as legendas ou seja a forma como

fatos da vida de Jesus ou de personagens do Novo Testamento foram contados

(Bornkamm 1981 p41) O narrador natildeo estaacute preocupado em escrever histoacuterias

mas com a santidade e a piedade exemplar dessas figuras Em alguns casos

chamamos legenda ou embelezamento Bornkamm acredita que temos boas razotildees

para confiar na memoacuteria simples dos disciacutepulos contudo ldquonatildeo devemos subestimar

a influecircncia da feacute poacutes-pascal mesmo com a tradiccedilatildeo passada de matildeo em matildeosrdquo

(Bornkamm 1981 p 43)

A tradiccedilatildeo como vimos acima esforccedila-se para aproximar os Evangelhos das

testemunhas oculares e supervaloriza a qualidade das testemunhas fazendo de

Marcos um porta-voz de Pedro quando Marcos eacute muito mais um relator fiel da

54

pregaccedilatildeo da comunidade primitiva30 A tradiccedilatildeo tambeacutem atribui o primeiro Evangelho

a Mateus e o uacuteltimo a Joatildeo Poreacutem Bornkamm partindo do princiacutepio da teoria das

duas fontes analisa a origem dos Evangelhos especificamente os sinoacuteticos da

seguinte forma dentre as teorias a respeito da formaccedilatildeo dos Evangelhos a mais

aceita e mais coerente eacute a teoria das duas fontes Segundo essa teoria Marcos eacute o

Evangelho mais antigo ele forma a base dos outros dois Evangelhos ldquomaioresrdquo e

estaacute inserido neles Aleacutem de usarem Marcos tanto Mateus como Lucas fizeram uso

independente de uma segunda fonte isso se pode ver pelos muitos ditos e grupos

de ditos natildeo encontrados em Marcos que eles tecircm em comum (Bornkamm 1981

p31) De acordo com J Jeremias Marcos escreveu em grego mais primitivo e

serviu de base para os outros dois Isso comprova que ele eacute o Evangelho mais

antigo O Evangelho de Mateus eacute um Evangelho de Marcos reelaborado

estilisticamente e acrescido de material novo que daacute mais da metade de Marcos

Seguindo a linha de pesquisa da teoria das duas fontes verificamos que mesmo que

Mateus e Marcos discordem de Lucas na ordem dos acontecimentos ou Lucas e

Marcos estejam em discordacircncia em relaccedilatildeo a Mateus dificilmente Mateus e Lucas

juntos oponham-se a Marcos

Haacute poreacutem algumas hipoacuteteses contraacuterias a teoria das duas fontes e elas se

apoiam no testemunho de Papias bispo de Hieraacutepolis na Friacutegia que compocircs por

volta de 130 uma exegese dos oraacuteculos do Senhor conforme relatado por Euseacutebio

de Cesareia em a ldquoHistoacuteria da Igrejardquo Eis o que dizia o Presbiacutetero

Marcos que era o inteacuterprete de Pedro escreveu com exatidatildeo no entanto sem ordem tudo o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor mais tarde poreacutem como jaacute disse ele acompanhou Pedro Este ministrava seus ensinamentos segundo as necessidades mas sem fazer uma siacutentese das palavras do Senhor Desse modo Marcos natildeo cometeu erro escrevendo como se lembrava Seu uacutenico propoacutesito foi nada omitir do que havia ouvido e em nada enganar no que relatava (Latourelle 1989 p121-122)

30

Martins Terra comentando sobre a tradiccedilatildeo sobre os Evangelhos observa que ldquohoje em dia se insiste mais na inspiraccedilatildeo do livro do que no autorrdquo O problema consiste no fato de os Evangelhos terem sido escritos depois de 30 anos de pregaccedilatildeo da Igreja e da tradiccedilatildeo oral Muitas coisas devem ser levadas em consideraccedilatildeo quando se trata da autoria dos Evangelhos uma vez que haacute vaacuterios niacuteveis de mediaccedilotildees que devem ser levados em consideraccedilatildeo (cf Martins Terra 1977 p 125)

55

Segundo Euseacutebio baseado no testemunho de Papias foi Mateus quem

colocou em ordem os oraacuteculos do Senhor em liacutengua hebraica31 Qualquer que seja a

data e o conhecimento de Papias aquilo que ele de fato escreveu estaacute em nosso

alcance apenas em citaccedilotildees de Euseacutebio Os livros de Papias (logiotilden Kyriakotilden

Exegesis Exegese das Logia do Senhor) sobreviveram ateacute a Idade Meacutedia em

algumas bibliotecas da Europa mas natildeo mais existem (Carson et al 1997 p75)

Dalman (1902 p 87) fazendo uma anaacutelise sobre os testemunhos a favor da

teoria que se refere agrave origem aramaica dos Evangelhos eacute categoacuterico em afirmar

que aleacutem do bem conhecido depoimento de Euseacutebio noacutes natildeo temos nenhum traccedilo

a favor da existecircncia de um Evangelho escrito em liacutengua semiacutetica Ateacute mesmo

Jerocircnimo deve ter se enganado em ter dito que o Evangelho original de Mateus

escrito em hebraico ainda existia em seus dias Para Dalman mesmo os vaacuterios

textos dos Evangelhos em aramaico que satildeo conhecidos hoje e ateacute mesmo o texto

que Jerocircnimo usava em aramaico era derivado dos originais gregos

Temos ainda um segundo testemunho da origem dos Evangelhos dado por

Clemente de Alexandria conforme descrito por Euseacutebio na obra Histoacuteria da Igreja

Segundo Euseacutebio Clemente cita uma tradiccedilatildeo dos Anciatildeos a respeito da ordem dos

Evangelhos Conforme essa teoria os Evangelhos que compreendem as

genealogias foram escritos primeiro (Mateus e Lucas) jaacute o Evangelho de Marcos foi

escrito nas seguintes circunstacircncias O apoacutestolo Pedro pregou em Roma e expocircs

publicamente sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo a doutrina evangeacutelica do

cristianismo primitivo Os numerosos ouvintes de Pedro exortaram a Marcos a

transcrever as palavras do apoacutestolo jaacute que aquele tinha acompanhado Pedro por

muito tempo e por certo tinha vivo em sua mente muito do que o apoacutestolo Pedro

havia dito Todavia segundo Euseacutebio quando Pedro soube disso nada fez por meio

de seus conselhos para impedi-lo disso ou para forccedilaacute-lo a isso32

Esse testemunho como o de Papias referem-se aos Anciatildeos isto eacute a

homens da segunda geraccedilatildeo cristatilde A tradiccedilatildeo posterior natildeo faraacute mais do que

retomar esses argumentos

31

Cf Eusebius the Church History translation and commentary by Paul L Maier 2007 p 114 32

Cf Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p 1690 citaccedilatildeo da Hist Ecl IV 14 5-7

56

Papias e Clemente estatildeo de acordo em atribuir a composiccedilatildeo de um dos evangelhos a Marcos disciacutepulo de Pedro (cf 1Pd 5 13) cuja pregaccedilatildeo ele havia escrito Vindo de duas fontes arcaicas diferentes esta informaccedilatildeo pode ser considerada como certa Conforme Clemente Marcos teria escrito enquanto Pedro ainda vivia uma vez que ele estava por outro lado mais ou menos desinteressado desse empreendimento Papias natildeo nos daacute nenhuma informaccedilatildeo expliacutecita sobre este ponto Seu texto permite ao contraacuterio pensar que Marcos havia escrito depois da morte de Pedro e eacute neste sentido que interpretaratildeo Irineu de Liatildeo e o mais antigo Proacutelogo evangeacutelico que nos chegou (fim do seacuteculo II) Papias natildeo nos diz onde Marcos escreveu o seu Evangelho Clemente precisa que foi em Roma onde Pedro exercia o seu ministeacuterio Este pormenor retomado na tradiccedilatildeo posterior parece exato pois o Evangelho de Marcos conteacutem certo nuacutemero de termos gregos que satildeo apenas transcriccedilatildeo do latim (Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p1690)

Apesar de todo o complexo em torno das fontes atualmente a teoria das

duas fontes eacute a mais aceitaacutevel Para Bornkamn haacute tantos paralelos entre Mateus e

Lucas que podemos confiar que tal fonte existiu O que natildeo podemos saber eacute em

que extensatildeo ela jaacute tinha adquirido uma forma literaacuteria fixa Uma coisa eacute certa ela

deve ter sido bem diferente do Evangelho de Marcos Eacute possiacutevel ter certeza que a

fonte Q natildeo era um Evangelho acabado como o Evangelho de Marcos o eacute O modo

como Q eacute usada em Mateus e Lucas mostra como os dois evangelistas a trataram

com mais liberdade do que fizeram com Marcos Isso eacute verdade tanto com

referecircncia ao teor verbal quanto agrave sequecircncia do material Marcos e Q

absolutamente natildeo exaurem as fontes da tradiccedilatildeo sinoacutetica Mesmo Marcos tem

material proacuteprio Lucas eacute quem possui mais cobrindo tanto o ministeacuterio terreno

como as narrativas pascais bem como o material consideraacutevel que ele inseriu na

moldura criada por Marcos

A noccedilatildeo de autoria natildeo resiste aos dados da criacutetica contemporacircnea Os

Evangelhos de Mateus e Joatildeo natildeo possuem nenhuma evidecircncia interna que possa

atribuir a eles a autoria e da mesma forma Lucas e Joatildeo Segundo Latourelle a

criacutetica duvida que eles tenham sido testemunhas ateacute mesmo de segunda matildeo No

entanto a criacutetica reconhece que o autor do primeiro Evangelho era um judeu de

liacutengua grega profundamente conhecedor do judaiacutesmo de sua eacutepoca A criacutetica

tambeacutem reconhece Lucas como o meacutedico e companheiro de Paulo assim como

reconhece Marcos como companheiro de Paulo e sua influecircncia sobre os

evangelhos de Mateus e de Lucas Quanto agrave influecircncia de Pedro sobre o Evangelho

de Marcos a mesma eacute contestada pela criacutetica visto que Marcos parece ser mais um

57

relator e transmissor da pregaccedilatildeo da Igreja primitiva aleacutem de parecer ter sofrido

mais a influecircncia de Paulo

A contribuiccedilatildeo da patriacutestica testemunhada pelos pais da Igreja jamais pode

ser descartada por mais acriacutetica e ingecircnua que pareccedila ser visto que eles viveram

bem proacuteximos dos acontecimentos registrados nos Evangelhos

A importacircncia dos escritos antigos a respeito dos Evangelhos foi a resposta

da igreja aos hereges e aos evangelhos apoacutecrifos O exagerado embelezamento que

os apoacutecrifos criam para ldquocomplementarrdquo os Evangelhos canocircnicos obrigou a Igreja a

criteriosamente separar os Escritos canocircnicos dos apoacutecrifos Para Bornkamm a

formaccedilatildeo do cacircnon do Novo Testamento sempre foi um processo de separar e

nunca de juntar Conforme esse teoacutelogo seria mais viaacutevel perguntar se um livro

deveria estar no cacircnon do Novo Testamento do que perguntar por que determinado

livro natildeo faz parte dele

A Igreja tambeacutem teve que combater o gnosticismo que estava tentando minar

a veracidade dos Escritos Sagrados principalmente com Marciatildeo que com seu

dualismo ldquoopotildee o Deus bom do Novo Testamento ao Deus justo do Antigo

Testamentordquo (Latourelle 1989 p124) A Igreja entatildeo saiu em defesa do

cristianismo autecircntico levantando o estandarte dos quatro Evangelhos como os

uacutenicos reconhecidos como a ldquoautecircntica mensagem de Cristo reconhecida e

ensinada pela tradiccedilatildeo viva da igreja O criteacuterio decisivo eacute o acordo entre os

Evangelhos e a tradiccedilatildeo apostoacutelica que por sua vez se refere ao Cristo vivordquo

(Latourelle 1989 p125)

Eacute vaacutelido observar que os evangelhos sinoacuteticos33 satildeo compostos de ldquotradiccedilotildees

isoladas chamadas de periacutecopesrdquo Essas periacutecopes geralmente tecircm uma

conotaccedilatildeo teoloacutegica e natildeo necessariamente cronoloacutegica ldquoNa verdade muitas

periacutecopes incluem indicaccedilotildees topograacuteficas (no mar da Galileia em Cafarnaum

etc) mas a maioria delas natildeo eacute bem determinada Outro fato a se observar eacute que

nos sinoacuteticos Jesus se dirige a Jerusaleacutem uma uacutenica vez poreacutem em Joatildeo lsquovemos

Jesus se dirigindo a Jerusaleacutem repetidas vezesrsquordquo Segundo Gnilka o importante natildeo

eacute a exatidatildeo do itineraacuterio mas sim a reflexatildeo teoloacutegica (Gnilka 2000 p 24) No

33

O nome sinoacuteticos foi dado aos trecircs primeiros Evangelhos pelo pesquisador alematildeo J J Griesbach em sua obra Synopsis evangeliorum [Sinopse dos Evangelhos] obra que foi publicada em Halle em 1976 (Cf Marconcini 2009 p 10)

58

entanto conforme Benito Marconcini haacute uma concordacircncia nos sinoacuteticos quanto agrave

sucessatildeo dos fatos no ministeacuterio de Jesus Conforme Marconcini ldquoJesus inicia seu

ministeacuterio na Galileia atravessa a Samaria e chega a Jerusaleacutem onde tem o

encontro com a morterdquo (Marconcini 2009 p 10)

O concilio do Vaticano II reproduziu na constituiccedilatildeo sobre a Revelaccedilatildeo o

resultado das pesquisas modernas sobre a Historicidade dos Evangelhos e sobre o

Jesus Histoacuterico conforme resumimos abaixo

a) Os quatro Evangelhos transmitem fielmente o que Jesus realmente fez e

ensinou para a eterna salvaccedilatildeo dos homens

b) Os Apoacutestolos depois transmitiram o que Jesus havia dito e feito ()

c) Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos selecionando

algumas coisas dentre as muitas que tinham sido transmitidas oralmente ou por

escrito sintetizando outras ou adotando-as agraves situaccedilotildees das igrejas (Martins Terra

1977 p 129)

Seria imprudente buscar nos Evangelhos fatos como se busca numa revista

ou jornal de grande circulaccedilatildeo internacional moderna como New York Times por

exemplo Contudo segundo Swidler devemos olhar os quatro Evangelhos como

uma variedade de fontes orais e escritas que apoacutes um periacuteodo de tempo foram

redigidas conforme as necessidades sentidas pelas comunidades e indiviacuteduos da

eacutepoca No entanto fica claro que essa visatildeo criacutetica (moderna) dos Evangelhos natildeo

invalida o caraacuteter histoacuterico desses escritos Eles retratam com muito maior exatidatildeo

sob o ponto de vista histoacuterico-religioso (teoloacutegico) o que Jesus queria dizer com

certas declaraccedilotildees e accedilotildees relatadas pelas primeiras comunidades da Igreja

Primitiva (cf Swidler 1993 p104-105)

Natildeo podemos menosprezar a capacidade da comunidade cristatilde primitiva de

memorizar os fatos relacionados agrave vida de Jesus mas por outro lado natildeo podemos

negligenciar a limitaccedilatildeo humana em memorizar acontecimentos histoacutericos

Raciocinando dessa forma pode-se deduzir que com certeza muitas dessas

recordaccedilotildees natildeo foram transmitidas e nem registradas Eacute evidente que nem todas as

paraacutebolas foram registradas isso estaacute claro em Marcos 433 onde se lecirc ldquoE com

muitas paraacutebolas como esta anunciava-lhes a palavra segundo podiam entenderrdquo

ldquoPodemos partir do pressuposto de que nos evangelhos ficaram conservadas as

59

paacuteginas da atuaccedilatildeo e dos discursos de Jesus que satildeo de decisiva importacircncia para

a nossa feacuterdquo (Gnilka 2000 p25)

44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS

Jesus segundo Gnilka (2000 p35-36) viveu durante o governo de dois

imperadores romanos ldquoo de Otaviano Augusto (27 aC - 14 dC) e o de Tibeacuterio (14-

37)rdquo Nenhum dos dois esteve nessas paragens orientais do Impeacuterio nenhum dos

dois pisou territoacuterio da Siacuteria ou da Palestinardquo A histoacuteria de Jesus estaacute intimamente

ligada agrave famiacutelia Herodes Jesus nasceu sob o governo de Herodes o Grande filho

de Antiacutepater de origem idumeia Por decisatildeo do senado romano e tambeacutem por

iniciativa dos triuacutenviros Antocircnio e Otaviano e mais tarde Augusto pelo fim do ano 40

aC Herodes foi nomeado rei da Judeia

Apoacutes a morte de Herodes o Grande em 4 aC inicia-se uma disputa entre

seus filhos pela sucessatildeo que culminou na divisatildeo do poder entre os descendentes

de Herodes pelo imperador Historicamente dentre os filhos de Herodes o que mais

nos interessa eacute Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) que ficou como tetrarca da

Galileia Dentre os feitos de Antipas podemos citar a reconstruccedilatildeo da cidade de

Seacuteforis e a fundaccedilatildeo da cidade de Tiberiacuteades agrave margem do lago de Genezareacute

cidade que recebeu esse nome em honra ao Imperador Tibeacuterio Foi essa cidade

construiacuteda sobre um cemiteacuterio que Antipas escolheu para residecircncia oficial

tornando-a impura aos olhos dos Judeus crentes por causa das leis leviacuteticas (Gnilka

2000 p 39)

Herodes Antipas ficou conhecido por mandar matar Joatildeo Batista conforme o

relato nos evangelhos (Mc 617-29 Mt 14 3-12) e tambeacutem por Flaacutevio Josefo34 Os

motivos da morte de Joatildeo Batista nos evangelhos satildeo diferentes dos motivos

expostos por Josefo visto que Josefo coloca questotildees poliacuteticas como a principal

causa da execuccedilatildeo de Joatildeo jaacute que Antipas temia uma revolta poliacutetica a partir do

movimento do Batista Para Jesus Antipas tambeacutem tornou-se perigoso ldquoSegundo

Lc 1331 Jesus eacute aconselhado a sair de seu territoacuterio porque o priacutencipe pretendia

mataacute-lordquo (Gnilka 2000 p 40)

34

Cf Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 5 p 594-597

60

Na Judeia a situaccedilatildeo poliacutetica e religiosa era caoacutetica Arquelau (4 aC ndash 6

dC) filho de Herodes o Grande logo depois de ser instituiacutedo etnarca da Judeia e

Idumeia devido a sua extrema tirania tornou-se insuportaacutevel para os judeus a

ponto de um grupo desses ir ateacute Roma para denunciaacute-lo pela forma tiracircnica de

governar bem como a liberdade que tomou para depor e instituir sacerdotes no

templo em Jerusaleacutem Judeia Samaria e Idumeia passam a ser administradas

diretamente por Roma apoacutes Arquelau ser deposto (Gnilka 2000 p 41-42)

Eacute a partir de toda essa confusatildeo que entra em cena a figura de Pocircncio

Pilatos como governador da Judeia (praefectus Judaeae) Nessa eacutepoca tanto o

poder poliacutetico quanto o religioso eram controlados diretamente por Roma ldquoNo

templo tinha que ser oferecido duas vezes por dia um sacrifiacutecio pelo imperador e

pelo povo romano Sobre a administraccedilatildeo das financcedilas do templo o governador

provavelmente tinha uma espeacutecie de supervisatildeo As nomeaccedilotildees dos sumos

sacerdotes tambeacutem eram feitas pelos romanos fosse atraveacutes do governador da

Siacuteria ou do governador da Judeia Isto foi assim nos anos 6-41 depois de Cristordquo

(Gnilka 2000 p 42-43)

O mais importante dos governadores da Judeia que foi contemporacircneo de

Jesus foi Pilatos que segundo os Evangelhos participou decisivamente na morte

de Jesus ldquoFilon de Alexandria caracteriza Pilatos como um homem de natureza

inflexiacutevel obstinado e duro e acusa-o de corrupccedilatildeo violecircncia roubo maus tratos

ofensas continuadas execuccedilotildees sem julgamento constante e insuportaacutevel

crueldaderdquo (Gnilka 2000 p 44) Os dez anos em que Pilatos governou a Judeia

nos quais Caifaacutes tambeacutem sempre foi o Sumo Sacerdote foram marcados pela

crueldade e imprevisibilidade ateacute que no ano 36 ele foi deposto apoacutes ter feito um

violento massacre de samaritanos enquanto esses escalavam o monte Garizim Pelo

fato de estarem armados Pilatos os interpretou mal e resolveu intervir

massacrando-os Mediante esse fato Pilatos foi chamado a Roma para depor diante

do imperador Tibeacuterio mas com a morte deste ele ldquodesaparece do palco da histoacuteria

Notiacutecias surgidas mais tarde dando conta de que ele teria se suicidado ou que teria

sido executado pelo imperador Nero devem ser creditadas a lenda cristatilderdquo (Gnilka

2000 p 44-45)

61

Abaixo segue um resumo do governo poliacutetico e religioso das regiotildees e

cidades com as quais Jesus conviveu (Gnilka 2000 p 47)

- Os herodianos Herodes o Grande (37-4 aC) Antipas (4 aC-39 dC

GalileiaPereia) Filipe (4 aC -34 dC GaulaniacutetideBataneia Arquelau (4 aC -6 C

JudeiaSamariaIdumeia)

- Os Governadores na JudeiaSamariaIdumeia Copocircnio (6-9) Marcos

Antiacutebulo (circa 9-12) Acircnio Rufo (circa 12-15) Valeacuterio Grato (15-26) Pocircncio Pilatos

(26-36)

- Os sumos sacerdotes em Jerusaleacutem Simatildeo ben Boethos (24-5 aC)

Matias ben Theophilos (5-4) Joseacute bem Ellem (exerceu soacute por uma festa) Joazar ben

Boethos (4 aC) Eleazar ben Boethos (4 aC -) Jesus ben sieuml (tempo de cargo

desconhecido) Joazar ben boethos (no cargo pela segunda vez de -6 d C) Anaacutes

ben Sethi (6-15 d C) Ismael bem Phiabi (15-16) Eleazar ben Kamithos (17-18)

Joseacute Caifaacutes (18-36)

Jerusaleacutem era a cidade onde giravam os grandes acontecimentos da

Palestina era considerada a cidade santa natildeo somente por ser administrada

politicamente por Herodes o grande jaacute que muito antes dele a cidade jaacute havia se

transformado no centro espiritual e religioso do Judaiacutesmo A cidade no tempo dos

gregos e romanos tinha de certa forma uma feiccedilatildeo internacional Jesus entrou na

cidade foi aclamado mas logo rejeitado e entregue para ser morto pelo grupo dos

religiosos encarregados de todos os rituais do Templo (Gnilka 2000 p 49)

45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS

Jesus viveu num contexto muito religioso Foi apresentado no templo

circuncidado ao oitavo dia conforme a tradiccedilatildeo da religiatildeo judaica Sempre houve

uma tendecircncia de separar Jesus do contexto judaico tanto por judeus como por

cristatildeos Swidler pontua que os cristatildeos historicamente natildeo somente procuraram

mostrar que tudo o que Jesus fez era bom como procuraram demonstrar que tudo o

que ele fez foi oposto ao modo de agir dos judeus Por outro lado os judeus

aceitaram a interpretaccedilatildeo cristatilde que via Jesus como um antijudeu Atualmente as

coisas estatildeo mudando judeus tecircm visto Jesus como um autecircntico judeu enquanto

que um grande nuacutemero de estudiosos cristatildeos estatildeo convencidos de que soacute se pode

62

compreender adequadamente Jesus contextualizando-o num ambiente e como um

autecircntico Judeu (Swidler 1993 p108)

O Judeu Geza Vermes (com formaccedilatildeo cristatilde) no proacutelogo de seu livro o

ldquoAutecircntico Evangelho de Jesusrdquo relata que desde o fim da deacutecada de 1960 vem se

dedicando a pesquisar sobre Jesus indiferente agraves tradiccedilotildees cristatildes e judaicas a

respeito da pessoa do nazareno Vermes assim se expressa ldquoatuando como

historiador simpatizante e descartando vieses denominacionais tanto a deificaccedilatildeo

de Jesus pelos cristatildeos como a sua caricatura judaica tradicional como apoacutestata

maacutegico e inimigo do povo de Israel eu apenas tentei tirar a limpo e reconstruir uma

imagem de Yeshua filho de Joseacute do pequeno povoado galileu de Nazareacute (Vermes

2006 p7)

Digno de nota eacute que sendo Jesus judeu da Palestina judaica do primeiro

seacuteculo ldquona divisatildeo temporal feita em torno delerdquo (Vermes 2006 p7) obviamente

Jesus conviveu com os diversos grupos existentes na Palestina Conforme os

Evangelhos as relaccedilotildees de Jesus com os liacutederes dos movimentos religiosos nem

sempre foram amistosos Segundo Gnilka diversos eram os movimentos e grupos

poliacuteticos-religiosos nos dias de Jesus Quase todos provieram dos chassidim (os

piedosos) que haviam apoiado a resistecircncia dos macabeus e tambeacutem resistiram agrave

usurpaccedilatildeo dos asmoneus Desse movimento surgiu a maioria dos grupos religiosos

contemporacircneos de Jesus Esses grupos a maioria citados nos evangelhos satildeo

denominados de essecircnios fariseus saduceus e zelotes (Gnilka 2000 p52-53)

Enumerar esses grupos em relaccedilatildeo ao grau de importacircncia que eles exerciam

na sociedade judaica natildeo eacute uma tarefa faacutecil Diversas satildeo as hipoacuteteses levantadas

pelos pesquisadores a respeito de cada um dos grupos acima mencionados

Saldarini observa o fato de os escribas serem vistos como um grupo coeso apenas

no Novo Testamento sendo que em outras fontes eles satildeo vistos como um grupo

composto por pessoas desde a classe de altos funcionaacuterios ateacute a funccedilatildeo de um

humilde copista Outro fator que o autor observa eacute que para Josefo as trecircs

principais escolas de pensamento judaico dos dias de Jesus eram os fariseus os

saduceus e os essecircnios quando no Novo Testamento os principais oponentes de

Jesus satildeo os fariseus escribas e saduceus (Saldarini 2005 p 15)

63

451 OS ESSEcircNIOS

Dentre os grupos religiosos que temos mencionado os essecircnios satildeo os

menos conhecidos se levarmos em consideraccedilatildeo que a biacuteblia natildeo os menciona

contudo eles tecircm despertado muito interesse desde que foram descobertos os

manuscritos nas cavernas de Qumran em 1947 O jovem Mohammed ed-Dib (= ldquoo

lobordquo) conforme a descriccedilatildeo feita por J Jeremias (Jeremias 2006 p 401-429 cf

Jeremias 1979 p 117-148) tornou-se o grande protagonista talvez da maior

descoberta do seacuteculo concernente agrave literatura religiosa ou por que natildeo dizer

universal J Jeremias nos fornece alguns detalhes sobre a importacircncia das

descobertas de Qumran e o judaiacutesmo contemporacircneo de Jesus Depois que

Mohammed descobriu a primeira gruta outras dez foram descobertas sendo ateacute

hoje numeradas de 1 a 11 O papel dos beduiacutenos foi fundamental nas descobertas

visto que sem a busca incessante deles a maioria dos rolos natildeo teriam sido

descobertos Os manuscritos satildeo em um nuacutemero de aproximadamente 600 Mesmo

que a maioria seja apenas de fragmentos alguns do tamanho de uma unha mas

pelo menos uns dez encontram-se quase que totalmente preservados Eles satildeo

datados do periacuteodo que se compreende do seacuteculo III aC ao seacuteculo I da era cristatilde

Atribui-se a produccedilatildeo dos textos e o armazenamento deles em grutas aos essecircnios

conforme nos descreve J Jeremias citando a ldquoHistoacuteria Natural de Pliacutenio

A margem ocidental (do Mar Morto) fora do alcance da influecircncia nociva (de suas aacuteguas) estatildeo estabelecidos os essecircnios Eacute um agrupamento de solitaacuterios uacutenico no mundo sem mulheres ndash pois renunciam ao amor sexual e sem dinheiro eles vivem na sociedade das palmeiras (Embora se abstenham do casamento) o nuacutemero de seus adeptos se manteacutem e se renova cada dia pela afluecircncia daqueles que cansados de lutar contra as vagas de destino vecircm participar de sua vida Assim coisa incriacutevel eles permanecem atraveacutes de milhares de geraccedilotildees uma raccedila eterna ainda que natildeo existam nascimentos entre eles (V 1713)

Para J Jeremias natildeo haacute duacutevida que Pliacutenio se refere aos essecircnios mesmo

que por engano os tenha chamado de raccedila eterna Os essecircnios surgiram por volta

de 167-154 aC apoacutes Antiacuteoco Epifacircnio profanar o Templo de Jerusaleacutem Em 152

aC apoacutes a guerra com os siacuterios Jocircnatas Macabeus cinge a tiara de sumo

sacerdote mesmo natildeo pertencendo agrave descendecircncia dos sadoquitas que eram os

64

uacutenicos habilitados para exercer tal funccedilatildeo Uma revoluccedilatildeo acontece no coleacutegio

sacerdotal resultando na formaccedilatildeo de um grupo denominado de ldquoKhassyyayardquo os

piedosos que em grego satildeo denominados de ldquoessenoirdquo ou ldquoessaicircoirdquo conhecidos

hoje por essecircnios

Os essecircnios eram apocaliacutepticos esperavam o iminente fim deste mundo que

eles acreditavam estar bem proacuteximo Guardavam o saacutebado a ponto de natildeo ajudar

um animal no parto e nem socorrecirc-lo caso caiacutesse num buraco no dia de saacutebado

(Gnilka 2000 p 55-56) tambeacutem tinham como chefe um homem chamado com toda

reverecircncia nos rolos como o ldquoMestre da Justiccedilardquo ldquoo grande teoacutelogo e exegeta da

seitardquo (cf Jeremias 2006 p 408) Para Sean Freyne o chamado ldquoPapiro da Guerrardquo

(1QM) intitulado como ldquoA Guerra dos filhos da luzrdquo mostra como essa comunidade

apregoava um certo tipo de guerra coacutesmica parecida com a religiatildeo zoroaacutestrica da

Peacutersia onde a ecircnfase do conflito estaacute centrada na ideia de uma guerra do bem e o

mal (Freyne 2008 p26) J Jeremias define a teologia tambeacutem como uma doutrina

baseada em dois espiacuteritos ou seja no espiacuterito de Deus e no espiacuterito de Belial ou

seja no diabo e isso resulta na constante luta entre a Luz e as Trevas que tambeacutem

se desenrolam no interior do ser humano (Jeremias 2006 p 412) De acordo com J

Jeremias o dualismo essecircnio eacute monoteiacutesta conforme podemos ver em IQS 31517-

1925 abaixo reproduzido

Do Deus dos conhecimentos Vem tudo o que eacute tudo o que acontece e antes mesmo que as coisas existissem ele fixara todo o seu plano

Eacute ele quem criou o homem para dominar o mundo e pocircs diante de dois espiacuteritos para que ele ande neles ateacute ao momento fixado por sua divina visita

Satildeo os (dois) espiacuteritos de verdade e de iniquidade Da fonte da luz sai a verdade E da fonte das trevas sai a iniquidade Eacute ele (Deus) quem criou os espiacuteritos da luz e das trevas

65

Observamos acima algumas descriccedilotildees a respeito do grupo dos essecircnios

contudo segundo Freyne (Freyne 2008 p26) natildeo se pode resumir o pensamento

desse grupo com um periacuteodo de aproximadamente 200 anos de histoacuteria apenas em

um ponto de vista Isso pode ser visto por exemplo em 4Q 521 onde o texto

demonstra o anseio dos oprimidos por um messias libertador que venha ldquocurar os

feridos distribuir riquezas entre os necessitados conduzir de volta os exilados e

enriquecer os famintosrdquo ou ainda textos como 4Q 426 onde o ldquoGrande Deusrdquo trava

uma decisiva batalha contra as naccedilotildees e garante a paz definitiva ao seu povo O

que Freyne procura dizer eacute que o pensamento dos essecircnios eacute amplo demais para

ser resumido em poucas palavras contudo como natildeo eacute nosso interesse pesquisar a

fundo essa seita contentamo-nos a princiacutepio com algumas informaccedilotildees sobre

eles35

Ainda sobre os essecircnios sabemos por David Flusser que eles eram ferrenhos

inimigos dos fariseus uma vez que condenavam os feitos farisaicos energicamente

No Rolo de Accedilatildeo de Graccedilas (IQH) 4 6-8 estaacute escrito sobre os fariseus da seguinte

maneira ldquoE conduziram o povo por caminhos desviados ao lhes proferir discursos

macios Falsos mestres levam para maus caminhos e caminham cegamente para a

queda pois suas obras satildeo feitas no logrordquo (cf Flusser 2002 p 46)

Aleacutem do que jaacute foi dito sobre os essecircnios surge uma pergunta Ateacute que ponto

os essecircnios tiveram contato com Jesus ou seria Jesus membro da seita dos

essecircnios Segundo Charlesworth eacute possiacutevel que Jesus tenha encontrado alguns

essecircnios em suas idas e vindas no periacuteodo em que exerceu o seu ministeacuterio ou ateacute

antes disso Contudo natildeo podemos afirmar isso jaacute que os essecircnios natildeo satildeo

mencionados no Novo Testamento e na verdade natildeo temos certeza se eles

exatamente eram conhecidos (Charlesworth 1992 p76) Para Charlesworth o que

fica evidente eacute que os essecircnios e Jesus foram contemporacircneos o que nos leva a

deduzir que eacute muito provaacutevel que Jesus ao menos tenha ouvido falar deles e ateacute

conhecesse a doutrina rituais religiosos e haacutebitos sociais desse grupo

(Charlesworth 1992 p79)

Charlesworth enumera algumas semelhanccedilas e diferenccedilas entre Jesus e os

essecircnios 35

Para mais informaccedilotildees sobre os essecircnios ver (Jeremias 2006 p 401-429 e Charlesworth 1992 p 70-89)

66

a) Jesus partilha com os essecircnios de uma teologia monoteiacutesta

b) Como os essecircnios a teologia de Jesus era categoricamente escatoloacutegica

c) Jesus partilhava com os essecircnios uma total entrega a Deus e a Toraacute (Ele

pode ter se referido aos essecircnios quando elogiou os eunucos por causa do reino de

Deus cf Mt 19 10-12)

d) Jesus conforme o Evangelho de Marcos proibiu o divoacutercio (Mateus tornou-

a casuiacutestica Mt 5 31-32 199) assim como os essecircnios eram totalmente contraacuterios

ao divoacutercio ldquoo rei deve permanecer casado com apenas uma mulherrdquo (cf II Q

Temple 57 17-18)

f) Dos essecircnios Jesus rejeita a riacutegida observacircncia do Saacutebado

g) Jesus ao contraacuterio dos essecircnios aproximou-se de todas as classes

sociais inclusive de prostitutas e cobradores de impostos Aleacutem disso a visatildeo de

Jesus em relaccedilatildeo aos rituais de purificaccedilatildeo judaicos era muito diversa das dos

judeus

h) A atitude liberal de Jesus sobre a purificaccedilatildeo se contrastava com a

paranoia dos essecircnios principalmente em relaccedilatildeo ao afastamento das pessoas que

tinham lepra Em II Q Temple 48 14-15 eacute orientado a que existam cidades proacuteprias

para o isolamento dos leprosos enquanto que Jesus repousou em Betacircnia na casa

de Simatildeo o leproso (Mc 143)

i) Jesus enfatizou o amar uns aos outros (na paraacutebola do bom samaritano)

enquanto que os essecircnios na renovaccedilatildeo anual entoavam maldiccedilotildees sobre os filhos

das trevas especialmente sobre aqueles que natildeo eram essecircnios (1Qs) Jesus pode

ter se dirigido a eles quando se referiu ao dito ldquoamaraacutes o teu proacuteximo e odiaraacutes ao

teu inimigo (Mt 5 43)

Em resumo Charlesworth conclui que o cristianismo natildeo foi fundado com as

bases do essenismo conforme havia dito Renan em sua obra ldquoVida de Jesusrdquo

Jesus foi o fundador do cristianismo que foi fundado em meio agraves vaacuterias correntes

judaicas da eacutepoca sem que se possa mencionar uma uacutenica fonte como a trajetoacuteria

Jesus natildeo era um essecircnio ldquomas pode ter partilhado com os essecircnios mais do que a

mesma naccedilatildeo tempo e lugarrdquo (Charlesworth 1992 p 84-88)

452 OS FARISEUS

67

Os fariseus (pharushim ndash separados) - ldquoum grupo de estudiosos leigos que

apareceram na histoacuteria cerca de um seacuteculo e meio antes do nascimento de Jesus

() e se tornaram autoridades na vida dos judeus durante o reinado da rainha

Alexandra em (76-67 aC)rdquo (Swidler 1993 p 74) - nasceram do grupo dos chassidim

e eram em nuacutemero de seis mil pessoas em Jerusaleacutem nos dias de Jesus (Flusser

2002 p 44) Eles tambeacutem natildeo concordavam com a usurpaccedilatildeo por parte dos

asmoneus Segundo Gnilka a maioria dos escribas pertencia ao grupo dos fariseus

Em relaccedilatildeo aos saduceus os fariseus eram a maioria mas a influecircncia poliacutetica

destes era menor Jaacute o clima entre fariseus e essecircnios era hostil Os essecircnios

consideravam os fariseus com ldquogente que amolece e dissolve a lei e de quem se

pode esperar o logro mentira seduccedilatildeo e errordquo (Gnilka 2000 p57-60) Segundo

Flusser os fariseus eram denominados pelos essecircnios como ldquocaiadosrdquo e Jesus

tambeacutem se referiu a eles no Evangelho de Mateus 23 27-28 dizendo ldquoAi de voacutes

escribas e fariseus hipoacutecritas Sois semelhantes a sepulcros caiados que por fora

parecem bonitos mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidaderdquo

Embora o ataque dos essecircnios fosse em alguns pontos parecidos com a criacutetica que

Jesus fez contra os fariseus a distacircncia entre eles eacute muito grande Os essecircnios

rejeitavam explicitamente a doutrina dos fariseus ao passo que Jesus de uma

forma mais positiva via-os como os ldquoherdeiros contemporacircneos de Moiseacutesrdquo (cf

Flusser 2002 p46-48)

Os fariseus eram muito queridos pela maioria da populaccedilatildeo judaica devido agrave

devoccedilatildeo deles aos rituais religiosos Segundo Sanders no periacuteodo asmoneu os

fariseus tambeacutem exerceram uma influecircncia e forccedila poliacutetica muito importante ainda

que depois perderam tal forccedila No governo de Herodes somente o rei tinha o poder

poliacutetico uma vez que todos os que o ameaccedilassem eram imediatamente executados

Na Galileia o sucessor de Herodes foi seu filho Antipas que tambeacutem natildeo se mostrou

muito disposto assim como seu pai a dar autoridade a algum grupo de piedosos e

mestres religiosos Somente em Jerusaleacutem apoacutes Arquelau (irmatildeo de Antipas) ser

deposto eacute que os saduceus respaldados pelo poder romano puderam como grupo

religioso exercer forccedila poliacutetica Os fariseus mesmo sendo a maioria em relaccedilatildeo aos

saduceus continuaram apenas trabalhando ensinando e exercendo suas funccedilotildees

68

no culto judaico nas sinagogas A popularidade deles provavelmente aumentou

contudo natildeo o poder poliacutetico (cf Sanders 2005 p68)

A visatildeo de Saldarini sobre os fariseus compactua com Sanders a respeito da

popularidade dos fariseus Ele observa que para o evangelista Marcos os fariseus

eram um grupo muito reconhecido na comunidade da Galileia Jesus um jovem

oriundo de uma famiacutelia de artesatildeos considerada uma classe inferior na Palestina

natildeo dispunha da mesma honra dada aos fariseus principalmente em Nazareacute sua

terra natal Mas com o decorrer do tempo Jesus atraveacutes de seu ministeacuterio

conseguiu a simpatia de muitos seguidores em outras cidades da Galileia

contraindo para si o ciuacuteme a ira e a perseguiccedilatildeo dos fariseus O confronto dos

fariseus com Jesus a princiacutepio estava baseado em temas teoloacutegicos a respeito do

Jejum (Mc 218) da observacircncia do saacutebado (Mc 224 32) e sobre o divoacutercio (Mc

102) da purificaccedilatildeo das matildeos (Mc 71) e outros temas relacionados com respeito agrave

conduta de Jesus entre os homens considerados pecadores (Mc 216) etc Para os

fariseus no entanto o que estava em jogo natildeo eram apenas os debates teoloacutegicos

mas principalmente a simpatia e o controle da comunidade (Saldarini 2005 p 162-

164)

Para Saldarini os fariseus juntamente com os escribas eram os principais

opositores de Jesus na Galileia Em Jerusaleacutem os seus adversaacuterios tinham um

poder poliacutetico muito maior jaacute que entre eles estavam os chefes dos sacerdotes os

escribas e os anciatildeos do povo dentre os membros desses grupos principalmente

dos sacerdotes estavam os que entregaram Jesus agrave morte O evangelista Marcos

menciona os fariseus em cinco casos (2 18 224 32 811-15 102) e em todos os

casos eles estatildeo em conflito com Jesus36 Os escribas e fariseus juntos satildeo

mencionados duas vezes em Marcos tambeacutem quando estatildeo em conflito com Jesus

(216 7 1-5) Com os herodianos os fariseus satildeo mencionados duas vezes em

Marcos (36 1213) Para o evangelista Marcos os fariseus satildeo situados sempre na

36

Geza Vermes observa que no Evangelho de Mateus os fariseus natildeo satildeo sempre vistos no aspecto negativo Vermes vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e amor a Deusrdquo eles por outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser seguida

69

Galileia (3 2-6 7 1-5 2 18-24 811 102) A uacutenica exceccedilatildeo no evangelho de

Marcos eacute quando os fariseus e os herodianos satildeo enviados a Jesus a fim de

apanhaacute-lo em Jerusaleacutem (1213) Ao contraacuterio de Josefo que situa os fariseus

sempre em Jerusaleacutem ao lado dos chefes dos judeus Marcos mostra-os sempre

ativos na Galileia (Saldarini 2005 p159-160)

Apesar dos fariseus estarem sempre em confronto com Jesus nos

Evangelhos alguns pesquisadores veem algumas semelhanccedilas entre o movimento

de Jesus e o movimento dos fariseus Swidler lista algumas semelhanccedilas entre os

dois grupos Segundo Swidler Jesus reinterpretou as Escrituras hebraicas de

maneira condizente com o meio social onde se encontrava Jesus tambeacutem participou

de refeiccedilotildees entre amigos do tipo farisaico Tambeacutem segundo Swidler eacute possiacutevel ver

semelhanccedilas na doutrina de Jesus a respeito do amor no Shema oraccedilatildeo do

monoteiacutesmo nas bem aventuranccedilas em questotildees relacionadas agrave ressurreiccedilatildeo

tambeacutem seria ver fortes indiacutecios de um espiacuterito farisaico na vida de Jesus (cf

Swidler 1993 p78)

Para fundamentar essa teoria Swidler busca outros pesquisadores como o

teoacutelogo catoacutelico Pawlikowski que chegou a concluir que natildeo seria errado ldquoconsiderar

o movimento de Jesus como uma parte do movimento farisaico geral embora em

muitos campos tivesse um ponto de vista diferenciadordquo Swidler ainda cita o

estudioso protestante E P Sanders referindo-se a ele como mais cauteloso sobre o

assunto abordado poreacutem natildeo hesita em afirmar tambeacutem que ele faz parte do

nuacutemero sempre crescente de especialistas que duvidam que tenham existido

ldquopontos importantes de oposiccedilatildeo entre Jesus e os fariseusrdquo (Swidler 1993 p78)

A forte tendecircncia de colocar Jesus como um judeu apenas corrobora o que

ele sempre foi um judeu e natildeo um cristatildeo uma vez que o cristianismo soacute veio a

existir apoacutes a morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus Entre os judeus catoacutelicos e

protestantes tecircm surgido renomados defensores da teoria Jesus dentro do

judaiacutesmo Swidler aleacutem de citar um catoacutelico e um protestante como referecircncia cita

ainda um judeu (Geza Vermes) para corroborar esse pensamento Vermes em seu

livro Jesus e o mundo do Judaiacutesmo descreve ldquoJesus era um hasid galileu nisso a

meu ver reside a sua grandeza e tambeacutem o germe de sua trageacutediardquo (Vermes 1996

p20)

70

Para Vermes contudo Jesus natildeo foi muito amado pelos fariseus porque

Jesus segundo a visatildeo e interpretaccedilatildeo biacuteblica dos fariseus desprezava

propositadamente alguns costumes tradicionais como sentar-se agrave mesa com

publicanos e prostitutas No entanto para Vermes natildeo parece que tenha havido

discoacuterdia entre Jesus e os fariseus em temas essenciais da religiatildeo e feacute judaica

Vermes define a relaccedilatildeo de Jesus com os fariseus da seguinte maneira ldquoNatildeo

obstante o conflito entre Jesus da Galileia e os fariseus de sua eacutepoca ter-se-ia

assemelhado em circunstacircncias normais agrave mera luta intestina de facccedilotildees

pertencentes ao mesmo corpo religioso como a que se travou entre caraiacutetas e

rabanitas na Idade Meacutedia ou entre os ramos ortodoxo e progressista do judaiacutesmo na

eacutepoca modernardquo (Vermes 1996 p20)

Vermes observa ainda que no Evangelho de Mateus os fariseus nem

sempre satildeo vistos no aspecto negativo Ele vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a

respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles

tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado

juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento

os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e a mor a Deusrdquo eles por

outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o

assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos

fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles

eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser

seguida (Vermes 2006 p98)

Segundo Swidler tanto os pontos positivos e os negativos foram adotados

diretamente pela Comissatildeo do Vaticano para Relaccedilotildees Religiosas com os Judeus e

indiretamente por outras igrejas O Catecismo da Igreja catoacutelica romana diz que

ldquopode-se tambeacutem frisar que se Jesus se mostra severo para com os fariseus eacute

porque estaacute mais proacuteximo deles que de quaisquer outros grupos judaicos seus

contemporacircneosrdquo (cf Vermes 1996 p79)

Nesse invoacutelucro de pensamentos sobre Jesus e os fariseus Swidler leva em

conta o fato de Vermes ter apontado Jesus como participante do grupo dos

ldquohassideus ou devotosrdquo Dentre as muitas especulaccedilotildees descritas por Swidler (nem

71

todas expostas aqui) eacute digna de nota a conclusatildeo desses apontamentos nas

palavras do proacuteprio autor

Assim talvez a melhor maneira de situar Ieshua no contexto do judaiacutesmo da sua eacutepoca seja como mestre (rabi) viandante e que fazia milagres um saacutebio (hakaham) da Galileia hassid galileu que sob muitos aspectos se assemelhava a Hillel (cujos ensinamentos acabaram mais tarde prevalecendo sobre os Shammai no judaiacutesmo rabiacutenico) que alguns estudiosos iriam considerar como algueacutem que teve um relacionamento muito proacuteximo com os fariseus aos quais poreacutem ele criticava sendo por sua vez criticado por eles Sigal o considerou hassid galileu hakham e proto-rabino o qual como Iohanan ben Zakkai antes e depois do ano 70 dC criticou duramente os pharisaioi os perushim (que Sigal natildeo considerava predecessores do judaiacutesmo rabiacutenico muito embora por vezes um emprego impreciso do termo pharisaioi nos evangelhos e em Josefo pudesse incluir alguns proto-rabinos) Estou convencido de que Sigal nos fornece a mais exata e abrangente descriccedilatildeo do lugar de Ieshua na vida judaica do seu

tempo (Swidler 1993 p 86-87)37

A proximidade de Jesus com os fariseus eacute tambeacutem notada por Flusser Ele

nota que nos Evangelhos sinoacuteticos diferentemente de Joatildeo (cf Jo 18 3) os fariseus

natildeo figuram em nenhuma descriccedilatildeo do julgamento de Jesus Flusser ainda nota

que nos primoacuterdios do cristianismo quando os cristatildeos foram perseguidos pelo

ldquosumo sacerdote saduceu o Raban Gamaliel tomou seu partido e os salvourdquo (At 5

17-42) Da mesma maneira Paulo quando estava perante o Sineacutedrio em Jerusaleacutem

vendo que seria punido severamente apelou para os fariseus e encontrou neles

solidariedade (At 22 30 236-10) jaacute que a outra parte era composta por saduceus

(Flusser 2002 p49)

A possiacutevel afeiccedilatildeo dos fariseus em relaccedilatildeo aos primeiros cristatildeos eacute

mencionada por Flusser sobre ldquoTiago o irmatildeo do Senhor e aparentemente outros

cristatildeosrdquo (cf Antiquities book 20 200-2001 in Josephus 1999 p656) que foram

condenados agrave morte em 62 dC pelo sumo sacerdote saduceu (ilegalmente) mas

foram salvos pelos fariseus quando estes apelaram ao rei que por sua vez acabou

37

Segundo Swidler o rabino Phillip Sigal de Pittsburgh os fariseus dos evangelhos natildeo satildeo os

predecessores dos rabis posteriores a 70 dC responsaacuteveis pelos escritos e tambeacutem sem duacutevida fundadores do judaiacutesmo dos nossos dias Para Sigal os predecessores dos rabis natildeo eram nem hillelistas (da escola de Hillel) nem Shamaiacutetas (da escola de Shamai) e nem pertenciam a nenhuma escola ou ldquocasardquo (bet) propriamente dita Ieshua (Jesus) natildeo era saduceu ou fariseu tampouco hilletita nem shamaiacuteta mas era um protorrabi antecipado da eacutepoca tanaiacutetica A sua maneira de ensinar era baseada na liberdade de interpretaccedilatildeo e autoridade conforme o modelo de ensinar protorrabiacutenico [] Ieshua era hakham (saacutebio filoacutesofo um protorrabi) como um profeta carismaacutetico que pregava sobre assuntos assombrosos e aterradores conforme a halakhah juntamente com sua pregaccedilatildeo hagaacutedica (Swidler 1993 p 86)

72

destituindo tal sumo sacerdote Segundo Flusser os fariseus possivelmente

consideravam a relaccedilatildeo dos saduceus com os romanos como um ato de

ldquodespotismo sacerdotalrdquo e essa poderia ser a causa a partir da leitura dos Sinoacuteticos

da ausecircncia de relatos da presenccedila de fariseus no julgamento e condenaccedilatildeo de

Jesus Flusser pressupotildee que os Sinoacuteticos natildeo mencionam um protesto dos fariseus

a favor de Jesus uma vez que eles jaacute haviam registrado anteriormente um Jesus

ldquoantifarisaicordquo em suas narrativas (Flusser 2002 p50)

453 OS SADUCEUS

Os saduceus que natildeo eram originaacuterios dos chassidim mas dos asmoneus

respeitavam os fariseus porque estes tinham um grande prestiacutegio com a populaccedilatildeo

em geral A classe dos saduceus era composta por gente nobre e rica da sociedade

Eles rejeitavam a doutrina da ressurreiccedilatildeo dos mortos e a existecircncia dos anjos

Tambeacutem soacute aceitavam o Pentateuco como verdade de feacute ldquoOs saduceus possuiacuteam o

poder os fariseus possuiacuteam a influecircncia sobre o povordquo (Gnilka 2000 p 61-62)

Flusser tambeacutem coloca os saduceus como um grupo pequeno menor do que os

fariseus por outro lado ele observa que os saduceus eram poderosos uma vez que

pertenciam a aristocracia sacerdotal do templo Eles natildeo eram revolucionaacuterios como

os fariseus (que se envolveram na guerra civil no periacuteodo macabeu) negavam a

validade da tradiccedilatildeo oral e consideravam toda a crenccedila na vida futura como uma

tolice (Flusser 2002 p45)

Nos Evangelhos sinoacuteticos os saduceus satildeo mencionados mais no Evangelho

de Mateus sendo que em Marcos e Lucas eles satildeo mencionados apenas uma vez

em cada Evangelho (Mc 12 18-27 Lc 20 27-40) No entanto tanto para Mateus e

Marcos como para Josefo os saduceus assim como os fariseus eram muito

conhecidos no primeiro seacuteculo da era cristatilde (Saldarini 2005 p183-184) Os

saduceus satildeo sempre colocados por Josefo ao lado dos fariseus Josefo tambeacutem

situa os saduceus como sendo um grupo pertencente agrave classe dominante Em Atos

dos apoacutestolos os saduceus discutem com os fariseus acerca da ressurreiccedilatildeo por

causa de um discurso de Paulo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (At 23) Em Atos

(41 517) os saduceus tambeacutem satildeo associados aos maiorais do templo ou seja agrave

classe sacerdotal (Saldarini 2005 p308-309)

73

A classe sacerdotal estaacute intimamente relacionada ao julgamento de Jesus

Em Lucas 22 54 lemos ldquoPrenderam-no e levaram-no introduzindo-o na casa do

Sumo Sacerdote Pedro seguia de longerdquo Segundo Flusser o clatilde sacerdotal e o

proacuteprio sumo sacerdote eram saduceus Caifaacutes era o sumo sacerdote e tambeacutem era

a figura mais importante do segundo Templo Foi na casa (palaacutecio) de Caifaacutes que

Jesus passou a noite sob custoacutedia enquanto era escarnecido pelos guardas (Lc 22

63) Os saduceus odiavam a Jesus possivelmente porque o consideravam um

profeta (ldquoFaz uma profecia quem eacute que te bateurdquo Lc 22 64) e sua presenccedila em

Jerusaleacutem podia ser uma clara ameaccedila Segundo Joatildeo os motivos da condenaccedilatildeo

de Jesus pela classe sacerdotal eacute que

[] os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram ldquoQue faremos Esse homem realiza muitos sinais Se o deixarmos assim todos creratildeo nele e os romanos viratildeo destruindo o nosso lugar santo e a naccedilatildeordquo Um deles poreacutem Caifaacutes que era o Sumo Sacerdote naquele ano disse-lhes ldquoVoacutes nada entendeis Natildeo compreendeis que eacute de vosso interesse que um soacute homem morra pelo povo e natildeo pereccedila a naccedilatildeo todardquo Natildeo dizia isso por si mesmo mas sendo sumo Sacerdote naquele ano profetizou que Jesus morreria pela naccedilatildeo ndash e natildeo soacute pela naccedilatildeo mas tambeacutem para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos Entatildeo a partir desse dia resolveram mataacute-lo Jesus por isso natildeo andava em puacuteblico entre os judeus mas retirou-se para a regiatildeo proacutexima do deserto para a cidade chamada Efraim e aiacute permaneceu com seus disciacutepulos (Jo 11 47-54)

A atitude de Caifaacutes em relaccedilatildeo agrave morte substituta de Jesus (ldquoeacute de vosso

interesse que um soacute homem morra pelo povordquo) eacute vista por Flusser mais como uma

justificativa do sumo sacerdote uma vez que a tradiccedilatildeo judaica repudiava o ato de

entregar um cidadatildeo judeu para que fosse morto por estrangeiros era um pecado

imperdoaacutevel segundo a halakaacute38 Flusser cita ainda o Rolo do Templo essecircnico

(64 7-8) que diz ldquoSe um homem calunia Meu povo e entrega Meu povo para uma

naccedilatildeo estrangeira e pratica a iniquidade contra meu povo penduraacute-lo-eis numa

38

Zuurmond define a halakaacute da seguinte maneira ldquoeacute o way of life judaico o conjunto de prescriccedilotildees e proibiccedilotildees que definem a maneira como vivem os judeus Uma questatildeo halaacutequica eacute uma disputa sobre a halakaacute geralmente com base na interpretaccedilatildeo de textos do Antigo Testamento Nem toda a questatildeo halaacutequica eacute de ordem moral As leis de pureza por exemplo formam uma parte importante da halakaacute mas ndash pelo menos segundo nosso modo de falar ndash natildeo tem caraacuteter moralrdquo (Zuurmond 1998 p 77) A raiz halak tambeacutem pode ser definida como a ldquoviardquo a ldquocaminhadardquo ou seja ldquoa regra (de vida) que vai permitir a aplicaccedilatildeo da Torah escrita agraves circunstacircncias reais e mutaacuteveis da vida O plural eacute halakot regras decisotildees e coleccedilotildees de leisrdquo (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

74

aacutervore e ele morreraacuterdquo Ainda havia uma tradiccedilatildeo oral dos saacutebios judeus com o

seguinte teor ldquose haacute um grupo de pessoas e os gentios lhes dizem entregai um de

voacutes para noacutes e o mataremos se natildeo fizerdes mataremos a todos a (regra eacute) deixai

que todos sejam assassinados e natildeo entregueis a eles uma uacutenica alma em Israel

poreacutem se eles o escolherem deixai que o entreguem para que todos natildeo sejam

massacradosrdquo (cf Flusser 2002 p 164-166)

Caifaacutes natildeo se restringiu apenas a entregar Jesus aos romanos Ele sabia que

eles eram implacaacuteveis a qualquer judeu rebelde ou a movimentos profeacuteticos

entusiastas que se levantassem na Palestina No entanto parece que Caifaacutes natildeo

estava preocupado com as tradiccedilotildees de seu povo O viacutenculo dele com os suacuteditos e

representantes de Cesar se estreitava ainda mais quando o vemos em Atos dos

Apoacutestolos (4 1-3 46 5 27-28) juntamente com a classe sacerdotal (os saduceus)

prendendo muitos cristatildeos em Jerusaleacutem pelos mesmos motivos que Jesus foi

entregue aos romanos sem se importar com as tradiccedilotildees judaicas das quais ele

deveria ser o principal observador (Flusser 2002 p 154-166)

454 OS ZELOTAS

Os movimentos de resistecircncia nos dias de Jesus estatildeo ligados ao projeto de

romanizaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo da Galileia por Herodes Antipas (Crossan 2009 p16-

18) O anseio de Antipas em se tornar rei uma vez que ele foi nomeado por Cesar

Augusto como tetrarca da Galileia e Pereia e seu irmatildeo Felipe ficou como tetrarca

da parte do extremo norte do paiacutes Jaacute Arquelau o outro filho de Herodes o Grande

ficou como etnarca da Idumeia Judeia e Samaria o que deixou Antipas muito

desapontado

Segundo Crossan Antipas comeccedilou a trabalhar para ganhar prestiacutegio em

Roma poreacutem agraves custas de um jugo pesado aos habitantes da Galileia Primeiro ele

fortificou Seacuteforis ldquopara ser o ornamento de toda a Galileiardquo e dedicou a Augusto a

sua cidade-capital reconstruiacuteda Apoacutes a morte de Augusto assumiu como Imperador

de Roma Tibeacuterio Antipas logo teve a ideia de substituir a capital Seacuteforis fundando

uma nova cidade a 32 quilocircmetros ao leste na costa ocidental do mar da Galileia e

nomeou-a Tiberiacuteades em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (cf Crossan 2009 p

17-18) O problema de tudo isso era que as construccedilotildees de Antipas provocavam o

75

aumento dos tributos sobre os galileus causando um descontentamento geral

Contudo para Antipas o que mais importava conforme Crossan nos descreve era

passar a Roma uma imagem de um governante lucrativo na questatildeo da arrecadaccedilatildeo

de impostos o que poderia levar o Imperador a pensar ldquoque eacute que natildeo faria ele

como monarca de toda a paacutetria judaicardquo

As construccedilotildees de Antipas poderiam impressionar Roma mas natildeo poderiam

evitar os movimentos de resistecircncia judaica uma vez que segundo Pagola (2010 p

48) ldquoos camponeses experimentaram pela primeira vez a pressatildeo e o controle

proacuteximo dos governos herodianosrdquo A situaccedilatildeo era tatildeo caoacutetica que aumentou

assustadoramente o nuacutemero de indigentes prostitutas e diaristas enfim parece que

Jesus conheceu ao longo de sua vida uma Galileia onde a desigualdade social era

enorme onde se favorecia a minoria privilegiada de Seacuteforis e Tiberiacuteades ao custo da

pobreza e sofrimento e desintegraccedilatildeo de muitas famiacutelias

Crossan (2004 p 275) nota que a construccedilatildeo ou reconstruccedilatildeo das cidades

de Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo afetou apenas os camponeses iletrados ou seja os

trabalhadores mais humildes mas tambeacutem afetou agrave classe dos letrados Assim ele

conclui que ateacute mesmo o movimento de Jesus relacionado ao reino de Deus

comeccedilou como um movimente de resistecircncia a partir dos camponeses ldquomas

abandonou seu caraacuteter localista e regionalista sob a lideranccedila dos letradosrdquo

Dentre os movimentos de Revolta encontramos Judas galileu que apoacutes a

deposiccedilatildeo de Arquelau (6 d c) natildeo aceitava que o pagamento de impostos devia

ser efetuado diretamente a Roma Segundo Theissen (2004 p163-164) a doutrina

de Judas repercutiu muito chegando ao ponto de alguns ldquoherodianosrdquo questionarem

a Jesus a respeito da questatildeo de se era liacutecito ou natildeo pagar impostos ao Imperador

(cf Mc 12 13-17) Horsley defende que o movimento de Judas o Galileu e de

Sadoc o fariseu que Josefo rotula como a quarta filosofia (as outras satildeo os

fariseus os saduceus e os essecircnios) tecircm sido interpretadas de uma forma errada

por vaacuterios especialistas que afirmam que esse movimento pregava a revolta armada

contra Roma De acordo com Horsley Josefo assim descreveu esse movimento em

Ant 18 4-5 23

Mas um certo Judas gaulanita da cidade de Gamala em combinaccedilatildeo com o fariseus Sadoc insistiu fortemente na resistecircncia Eles diziam que tal

76

avaliaccedilatildeo tributaacuteria implicava escravidatildeo pura e simples e pressionavam a naccedilatildeo a exigir sua liberdade [] Judas o Galileu estabeleceu-se como o liacuteder da quarta filosofia Os seus adeptos concordaram com as ideia dos fariseus em tudo exceto em sua indomaacutevel paixatildeo pela liberdade pois consideram Deus o seu uacutenico liacuteder e senhor (cf Horsley 2010 p 72)

Horsley avalia que Judas e Sadoc estivessem mais ligados ao ensino ou

pregaccedilatildeo ldquocontra a avaliaccedilatildeo tributaacuteria ou ateacute mesmo uma resistecircncia organizada

contra os impostos do que um grupo armado e violento conforme tem sido

interpretado a partir dos escritos de Josefordquo (Horsley 2010 p 78-79)

As informaccedilotildees sobre os grupos de resistecircncias nem sempre satildeo unacircnimes

como vimos acima No entanto podemos afirmar que entre os grupos de resistecircncia

encontram-se os Zelotes (Zelotas) talvez os mais conhecidos O termo Zelotas

encontra-se oito vezes registrado no Novo Testamento Esse termo geralmente

aplica-se ldquoaos guerrilheiros da resistecircncia desde Judas Galileu (6 aC) ateacute os

defensores da fortaleza de Masadaacute (74 dC) Eles eram rigorosamente

observadores do saacutebado da circuncisatildeo (exigiam a circuncisatildeo ateacute mesmo dos

antigos) e tinham fortes crenccedilas escatoloacutegicasrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia

do Novo Testamento p 2686) De acordo com Theissen mesmo que os

seguidores de Judas Galileu sejam chamados de Zelotes natildeo eacute possiacutevel afirmar tal

coisa visto que em Josefo eles ldquoaparecem como grupo apenas depois do inicio da

guerra judaica em 66 dC em relaccedilatildeo com o Templordquo (cf Theissen 2004 p164)

contudo haacute um argumento de peso contra essa teoria uma vez que entre os

disciacutepulos de Jesus por volta da metade do seacuteculo I havia um zelole (Simatildeo Zelote

cf Lc 6 15) e Theissen faz uma observaccedilatildeo ldquoaleacutem disso na Galileiardquo

Os zelotas eram originaacuterios dos fariseus e assim como os essecircnios estavam

ligados pela guerra santa e escatoloacutegica Natildeo satildeo citados nos evangelhos como

grupo mas entre os disciacutepulos de Jesus como foi dito acima havia um disciacutepulo

chamado de ldquoSimatildeo o Zeloterdquo (Lc 615 At 113) Eles lutavam pelos direitos do

pobre do oprimido e a esses ldquoprometiam com a chegada do Reino de Deus a

restauraccedilatildeo de seus direitos e uma nova ordem estabelecida por Deusrdquo (Gnilka

2000 p 60) O fato de entre os disciacutepulos ter um zelote natildeo significa que esse

movimento tenha sido endossado por Jesus jaacute que os ensinamentos de Jesus sobre

o tributo a Cesar e sua atitude para com o saacutebado eacute uma forma de repuacutedio a

77

doutrina apregoada pelos zelotas (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo

Testamento p 2686)

Podemos observar portanto que a possiacutevel relaccedilatildeo de Jesus com os Zelotas

como grupo de resistecircncia eacute muito remota ou praticamente inexistente conforme

Crossan (2004 p275) tem observado Ainda na mesma linha de pensamento de

Crossan Sean Freyne tambeacutem considera remota a hipoacutetese do possiacutevel

envolvimento de Jesus com o grupo dos zelotas Para Freyne (2008 p 130) a

pregaccedilatildeo de Jesus natildeo incitava a vinganccedila uma vez que estava mais baseada no

livro do Gecircnesis (criaccedilatildeo) do que no livro do Ecircxodo (libertaccedilatildeo) ou seja Jesus natildeo

via as demais naccedilotildees ou outras origens eacutetnicas como objeto de remoccedilatildeo

aniquilaccedilatildeo conversatildeo ou conquista como viam os heroacuteis do Antigo Testamento

Contudo para Freyne devemos observar que haacute duas formas de

interpretarmos Jesus de Nazareacute Se o olharmos segundo o ponto de vista de

Crossan veremos um Jesus voltado para um entendimento sapiencial e natildeo

apocaliacuteptico ou seja Jesus teria escolhido um modelo de dominaccedilatildeo monaacuterquica

baseado num ldquoreino dos destituiacutedos e Jootildees ningueacutem vigente no aqui e agora um

reino realizado (por meios maacutegicos e materiais) natildeo apenas proclamadordquo Por outro

lado Freyne observa que o pensamento de Horsley sobre Jesus eacute bem diferente

dos de Crossan Jesus segundo Horsley teria sido um revolucionaacuterio ou seja

partindo desse ponto de vista ldquoo siacutembolo do reino de Deus tal como empregado por

Jesus significava a vitoacuteria de Deus sobre as forccedilas do mal uma concepccedilatildeo que se

coadunava com as expectativas apocaliacutepticas judaicas padratildeordquo posiccedilatildeo essa que

segundo Freyne seria mais convincente (Freyne 2008 p 132)

Bruce Malina vecirc o grupo de Jesus como uma religiatildeo politicamente inserida

onde o reino e o governo de Deus satildeo iminentes ou seja seus disciacutepulos devem

orar para que o reino de Deus venha para o julgamento e recompensa e isso

segundo Malina era compreendido sob o ponto de vista poliacutetico por uma pessoa do

primeiro seacuteculo A morte de Jesus natildeo foi o fim desse reinado pois ldquoos seguidores

de Jesus acreditavam que Deus o ressuscitou dos mortos de maneira que o proacuteprio

Jesus em breve surgiria como vice regente do Deus de Israel como Messias de

Israel com poderrdquo (Malina 2004 p 99) Malina conclui esse pensamento afirmando

que

78

o reino de Deus veio para tomar a forma de uma teocracia representativa e pessoal Nestas dimensotildees ele teria tido a mesma estrutura da religiatildeo poliacutetica de Israel durante o tempo de Jesus A questatildeo aberta era Quem seria o agente o substituto concreto para o Deus de Israel Os membros do grupo de Jesus tinham pouca duacutevida de que esse agente fosse Jesus o Messias de Israel Mas Deus tinha em mente mais natildeo apenas Israel (Malina 2004 p 164)

Portanto pertencer ao grupo de Jesus era mais do que esperar por um reino

poliacutetico era ter um novo modo de vida ia aleacutem das fronteiras de Israel natildeo significa

apenas a libertaccedilatildeo de um jugo poliacutetico mas a libertaccedilatildeo do ser humano como um

todo

79

5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS

E SEUS DESDOBRAMENTOS

Conforme vimos no capiacutetulo anterior Jesus apesar de ser visto por alguns

pesquisadores com caracteriacutesticas proacuteximas do grupo dos fariseus natildeo fez parte de

nenhum grupo revolucionaacuterio Contudo isso natildeo significa que ele fosse indiferente

aos problemas sociais que afligiam toda a Palestina Em contraste com os

poderosos da eacutepoca que exploravam os pobres atraveacutes da cobranccedila desmedida de

tributos Jesus oferece-se como um descanso aos cansados e oprimidos porque

somente ele tem um jugo suave e um fardo leve (cf Mt 11 28-30) Esse descanso

soacute ele pode oferecer porque recebeu do Pai a quem ele conhece e por quem

tambeacutem eacute conhecido (cf Mt 1127) Abba eacute a palavra por excelecircncia no quesito

intimidade entre Jesus e Pai dos Ceacuteus conforme a tese defendida por J Jeremias

51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA

Jesus conforme a tradiccedilatildeo cristatilde e os vaacuterios testemunhos das fontes (os

Evangelhos) possui o testemunho intriacutenseco de que eacute o Filho de Deus (cf Mt 1433

Mc 11 311 1539 Lc 2227 Jo 134 1127) O Evangelho de Marcos de uma

forma clara jaacute nos mostra a importacircncia desse pensamento teoloacutegico nas seguintes

palavras ldquoPrinciacutepio do Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deusrdquo (Mc 11) Justino

de Roma tambeacutem prima pela exaltaccedilatildeo de Jesus como o Filho de Deus dizendo que

ldquo[] com razatildeo honramos tambeacutem a Jesus Cristo que foi nosso Mestre nessas

coisas e para isto nasceu o mesmo que foi crucificado sob Pocircncio Pilatos

procurador na Judeia no tempo de Tibeacuterio Ceacutesar Aprendemos que ele eacute o Filho

proacuteprio do Deus verdadeirordquo (Justino 1995 p28) ou ainda conforme a confissatildeo

de feacute de Calcedocircnia (451 dC) ldquoJesus eacute verdadeiramente homem e

verdadeiramente Deusrdquo ( Swidler 1993 p30)

Os Evangelhos da infacircncia (Mateus e Lucas) de uma forma independente

narram alguns acontecimentos relacionados ao nascimento e agrave infacircncia de Jesus

Segundo Duquoc as narrativas do nascimento de Jesus relatadas por Mateus e

Lucas se inserem na tradiccedilatildeo do Antigo Testamento como vemos no nascimento de

Isaac (Gn 21 1-7) de Jacoacute (Gn 25 25-26) de Moiseacutes (Ex 2 1-10) de Sansatildeo (Jz

80

13 1-25) e o de Samuel (1 Sam 1 19-26) As caracteriacutesticas de tais narrativas satildeo

ldquodiscernir na concepccedilatildeo ou no nascimento os sinais antecipadores de um destino

particularmente abenccediloado por Deusrdquo Para Duquoc contudo tratar as narrativas de

Mateus e Lucas como Evangelhos da Infacircncia natildeo eacute a forma mais correta e pode

induzir em erro mesmo que a tradiccedilatildeo assim os mencione Nos textos de Mateus e

Lucas observamos que ali se trata mais do nascimento do que a infacircncia de Jesus

conforme vemos resumido no quadro comparativo abaixo (Duquoc 1992 p22)

Mateus Lucas

Genealogia de Cristo 1 1-17 Anuacutencio da concepccedilatildeo virginal a Joseacute 1 18-24 Nascimento do Salvador 125 Visita dos magos 2 1-12 Fuga para o Egito e massacre dos inocentes 2 13-18 Volta a Nazareacute 2 19-23

Anuacutencio do nascimento de Joatildeo Batista 1 5-25 Anuacutencio a Maria 1 26-28 Visitaccedilatildeo 1 39-56 Nascimento do Salvador 2 1-14 Visita dos Pastores 2 15-20 Circuncisatildeo 2 21 Apresentaccedilatildeo no Templo 2 22-38 Volta a Nazareacute 2 39-40 Reencontro no Templo 2 41-52

Os relatos da infacircncia ou do nascimento conforme menciona Duquoc natildeo

fazem parte do querigma (Keacuterygma) mas estatildeo associados mais ao Antigo

Testamento como vimos acima Contudo eles foram inseridos nos Evangelhos e

devem ser lidos a partir da perspectiva dos evangelistas Eles natildeo satisfazem a

curiosidade como fazem os Apoacutecrifos visto que eles estatildeo relacionados mais agrave feacute da

Igreja primitiva do que aos acontecimentos histoacutericos ldquoMateus e Lucas iluminaram

retrospectivamente as recordaccedilotildees atraveacutes da catequese evangeacutelica e os eventos

decisivos da Paacutescoa Natildeo narram uma histoacuteria Propotildeem apenas uma doutrina em

forma de histoacuteria Seria errocircneo querer iluminar a catequese por meio de narrativas

de nascimento O processo foi inversordquo (Duquoc 1992 p24-25)

81

Observamos que as narrativas da infacircncia levantam questotildees sobre a

autenticidade histoacuterica dos relatos dos evangelistas Para Fitzmyer nas narrativas

da infacircncia eacute difiacutecil constatar o realmente histoacuterico poreacutem eacute inegaacutevel o fato de que

exista um nuacutecleo histoacuterico nesses acontecimentos os quais serviram como base

para que os evangelistas numa tradiccedilatildeo posterior pudessem responder perguntas

sobre ldquoQuem eacute elerdquo ou ldquoDe onde ele veiordquo39 (Fitzmyer 1997 p34-35)

Apesar das diferenccedilas e da independecircncia dos evangelhos (Mateus e Lucas)

Fitzmyer observa que haacute pelo menos doze pontos nas narrativas da infacircncia que satildeo

comuns ou pelo menos haacute concoacuterdia entre os dois evangelistas a respeito do

nascimento do menino Jesus os quais seratildeo transcritos abaixo

1) O nascimento de Jesus relaciona-se com o reinado de Herodes Magno

(Mt 21 Lc 15)

2) Maria sua futura matildee eacute uma virgem noiva de Joseacute mas eles ainda

natildeo coabitaram (Mt 118 Lc 12734 25)

3) Joseacute eacute da casa de Davi (Mt 1 1620 Lc 127 24)

4) Um anjo do ceacuteu anuncia a concepccedilatildeo e o nascimento futuros de Jesus

(Mt1 20-21 Lc 1 28-30)

5) O proacuteprio Jesus eacute reconhecido como filho de Davi (Mt 11 Lc 132)

6) Sua concepccedilatildeo aconteceraacute por intermeacutedio do Espiacuterito santo (Mt 1

1820 Lc 1 35)

7) Joseacute natildeo se envolve na concepccedilatildeo (Mt1 18-25 Lc 134)

8) O nome ldquoJesusrdquo eacute imposto antes de seu nascimento (Mt 1 21 Lc

131)

9) O ceacuteu identifica Jesus como ldquoSalvadorrdquo (Mt 121 Lc 211)

10) Jesus nasce depois que Joseacute e Maria vatildeo viver juntos (Mt 1 24-25 Lc

2 4-7)

11) Jesus nasce em Beleacutem (Mt 21 Lc 2 4-7)

12) Jesus se fixa com Maria e Joseacute em Nazareacute na Galileia (Mt 2 22-23

Lc 239-51)

39

Segundo Fitzmyer as narrativas da infacircncia natildeo se originaram de uma tradiccedilatildeo mais primitiva da Igreja visto que nem Marcos (que eacute considerado o primeiro Evangelho a ser escrito) e nem Joatildeo (que eacute reconhecido como sendo de uma tradiccedilatildeo igualmente primitiva a de Marcos mas independente dos Sinoacuteticos) natildeo conteacutem tais relatos mas inicia-se com o Verbo que se fez carne (1 1-18) ou seja com o Verbo divino e preexistente

82

Nos primoacuterdios da Igreja a questatildeo da divindade e humanidade de Cristo era

o centro de muitas controveacutersias teoloacutegicas que partiam de vertentes judaicas ou

entatildeo de certos movimentos cristatildeos considerados como hereges Face agraves muitas

divergecircncias a respeito do Cristo a Igreja tomou frente a tais controveacutersias e pocircs-se

a refutar as heresias com toda a forccedila possiacutevel Correntes judaizantes e gnoacutesticas

que incansavelmente procuravam por todos os meios possiacuteveis proclamar que Jesus

era apenas um homem que morreu pregado na cruz ou entatildeo um divino que

parecia ser humano procuravam a todo custo abalar a feacute daqueles que foram

alcanccedilados pela feacute cristatilde Os Evangelhos e todo o Novo Testamento foram escritos

para fundamentar a feacute dos primeiros cristatildeos em Jesus Cristo Mediante a tantas

heresias que foram surgindo na Igreja tentando negar a divindade de Jesus os

cristatildeos reagiram com veemecircncia escrevendo muitas histoacuterias sobre Jesus como

forma de demonstrar que desde menino o filho de Joseacute e Maria era detentor de

muitos prodiacutegios nunca antes realizados em Israel nem mesmo pelos grandes

profetas do Antigo Testamento

Estas narrativas foram redigidas e fazem parte do que posteriormente ficou

conhecido como os ldquoEvangelhos Apoacutecrifosrdquo Os Apoacutecrifos satildeo portanto a forma

mais clara que a Igreja usou para se opor as teorias que negavam a divindade de

Jesus Na busca de por em evidecircncia a divindade do Mestre os Apoacutecrifos

apresentam Jesus quase sempre como um menino ou um homem prodigioso capaz

de realizar milagres tatildeo grandes que chegam a ser absurdo

A tradiccedilatildeo cristatilde ainda no intuito de preservar a doutrina da filiaccedilatildeo divina de

Jesus procurou de uma forma cuidadosa defender tal doutrina em seus vaacuterios

credos ao longo da histoacuteria do cristianismo Os mais antigos e conhecidos credos

satildeo Credo Apostoacutelico (Seacuteculo III e IV) Credo de Niceacuteia (325 AD - revisado em

Constantinopla em 381 AD) Credo de Calcedocircnia (451 AD) e o Credo de Atanaacutesio

(seacuteculos IV e V) A relaccedilatildeo de Jesus Cristo com Deus Pai e sua funccedilatildeo na

Santiacutessima Trindade satildeo mencionadas em todas as confissotildees acima citadas

(Grudem 1999 p996) Jaacute no primeiro credo (Credo Apostoacutelico) observamos a

importacircncia de Jesus como o Filho de Deus encarnado

Creio em Deus Pai Todo Poderoso Criador do ceacuteu e da terra E em Jesus Cristo seu Filho unigecircnito nosso Senhor concebido pelo Espiacuterito Santo e nascido da Virgem Maria que padeceu sob Pocircncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos

83

que subiu ao ceacuteu e assentou-se agrave direita do Pai Todo-Poderoso de onde haacute de vir para julgar os vivos e os mortos Creio no Espiacuterito Santo na santa igreja catoacutelica na comunhatildeo dos santos na remissatildeo de pecados na ressurreiccedilatildeo da carne e na vida eterna Ameacutem (Grudem 1999 p996)

O credo segundo Thomas P Rausch (2006 p16) ldquoeacute uma declaraccedilatildeo oficial

da crenccedila da Igreja e tem poder normativo para a feacute da Igrejardquo Rausch observa que

o entatildeo cardeal Ratzinger escolheu o Credo Apostoacutelico como base para a sua

abordagem do livro Introduccedilatildeo ao Cristianismo De acordo com Rausch nessa obra

o cardeal faz uma mediaccedilatildeo entre os extremos relacionados agrave Cristologia da feacute e o

Jesus da histoacuteria Por um lado haacute os que procuram reduzir a Cristologia agrave histoacuteria

enquanto que por outro lado haacute os que buscam o abandono da histoacuteria

considerando-a como algo irrelevante para a feacute40 Abaixo reproduzimos um quadro

resumido dos principais conciacutelios Gerais da igreja onde foram formulados os

principais credos da Igreja (cf Rausch 2006 p261)

Conciacutelio Principais Figuras Temas

Niceia (325) Aacuterio (que natildeo estava presente) ldquohouve um tempo em que ele natildeo erardquo 381 bispos presentes

Rejeitou a opiniatildeo de Aacuterio de que o logos havia sido criado Cristo eacute homoousion41 ao Pai

Constantinopla I (381) Influecircncia Capadoacutecia Afirma a feacute de Niceacuteia Um novo credo afirma a divindade do Espiacuterito Nosso credo eacute uma combinaccedilatildeo de ambos

Eacutefeso I (431) Nestoacuterio conjunccedilatildeo de naturezas Maria eacute christokos42 Joatildeo de

Condena Nestoacuterio Maria eacute theotokos mas Cirilo e Joatildeo de Antioquia e excomungam

40

Nesse tratado escrito no final da deacutecada de 60 Ratzinger procura encontrar um meio termo entre Harnack que purifica a feacute da doutrina e do credo colocando a reconstruccedilatildeo do Jesus histoacuterico como fator determinante para a Cristologia com Bultmann para quem somente a feacute em Cristo tem importacircncia para o cristatildeo (cf Rausch 2006 p16) Vale ressaltar aqui que para o entatildeo cardeal Ratzinger ldquosegundo a feacute da Igreja a filiaccedilatildeo divina de Jesus natildeo se deve ao fato de Jesus natildeo ter um pai humano a doutrina do ser divino de Jesus natildeo sofreria nenhuma restriccedilatildeo se Jesus fosse o fruto de um casamento humano normal porque a filiaccedilatildeo divina que eacute objeto da feacute cristatilde natildeo eacute um fato bioloacutegico e sim ontoloacutegico natildeo eacute um evento no tempo e sim na eternidade de Deus ()rdquo Se considerarmos este texto como a base do pensamento de Ratzinger percebemos que a teologia de Bultmann teve para ele na eacutepoca um peso maior (cf Ratzinger 2006 p 204) 41

Homoi ser ldquosemelhanterdquo semelhante quanto ao ser (cf Rausch 2006 p 249) 42

Significa ldquoPortadora do Cristordquo Matildee de Cristo (cf Rausch 2006 p 249)

84

Conciacutelio Principais Figuras Temas

Antioquia Cirilo de Alexandria uniatildeo hipostaacutetica Maria eacute theotokos43

um ao outro

Eacutefeso II (449) (ldquoConciacutelio do Ladratildeordquo)

Flaviano de Constantinopla ldquoa partir de duas naturezas numa soacute hipoacutestase44 e numa soacute pessoardquo (foacutermula da uniatildeo) Dioacutescoro de Alexandria

Dioacutescoro domina Eacute rejeitada a foacutermula de Flaviano (ldquoa partir de duas naturezas uma soacute pessoardquo) O proacuteprio conciacutelio poreacutem eacute rejeitado

Calcedocircnia (451) 600 bispos Tomus do papa Leatildeo escrito para apoiar Flaviano Legados papais insistem numa nova profissatildeo de feacute

Condena Dioacutescoro aceita o Tomus de Leatildeo Prega duas naturezas numa uacutenica pessoa e numa uacutenica hipoacutestase verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem

Observamos que para a Igreja dos primeiros seacuteculos as verdades teoloacutegicas

a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus com o Pai eram de suma importacircncia para a

formaccedilatildeo e crescimento das comunidades cristatildes Por isso defenderam com

coragem e destemor o que acreditavam ser a essecircncia do Evangelho de Jesus

Cristo No entanto sempre houve aqueles que lutaram de todas as maneiras para

por em descreacutedito tanto o Evangelho como a pessoa de Jesus de Nazareacute Os pais

da Igreja tiveram que lutar contra as heresias e contra os hereges que procuraram

desmoralizar o mais importante homem do vilarejo de Nazareacute No entanto conforme

observa Rausch haacute problemas metodoloacutegicos nos Credos da Igreja Eles sempre

pressupotildeem uma Cristologia de ldquocima para baixordquo por isso a Cristologia necessita

de um fundamento criacutetico Para Rausch a Cristologia precisa ser estabelecida de

ldquobaixo para cimardquo ou seja ela precisa estar baseada nos atos e feitos do Jesus

histoacuterico para que natildeo seja acusada de ser uma feacute helenizada onde o carpinteiro

43

Significa ldquoPortadora de Deusrdquo Matildee de Deus (cf Rausch 2006 p 249) 44

Aquilo que estaacute sob ou daacute suporte a um objeto realizaccedilatildeo um ser concreto que suporta as diversas qualidades ou aparecircncias de uma coisa Ser subsistente realidade que existe por si mesma substacircncia (Exemplo medieval- ldquotransubstanciaccedilatildeordquo (cf Rausch 2006 p 249)

85

de Nazareacute teria sido transformado em um ldquosalvador divinizadordquo conforme o conceito

grego do divino (Rausch 2006 p 17)

52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA

Se para termos sucesso no estudo da Cristologia eacute necessaacuterio partirmos de

baixo para cima ou seja nas palavras de Rogers Haight ldquoseria difiacutecil imaginar

algueacutem interessado pela existecircncia humana de uma perspectiva religiosa que natildeo se

sentisse motivado a saber mais sobre Jesusrdquo uma vez que ldquoa Cristologia comeccedilou

com Jesus de Nazareacute e deve comeccedilar com Jesus hoje em diardquo (Rogers 2003

p75) precisamos analisar as fontes e teorias sobre Jesus desde as canocircnicas ateacute

as mais rejeitadas pela tradiccedilatildeo cristatilde Jaacute observamos acima que a Igreja dos

primeiros seacuteculos priorizou por razotildees apologeacuteticas em propagar e defender a

divindade de Cristo e por outro lado natildeo houve um interesse igual quando o tema

era a humanidade de Jesus No entanto com o passar dos seacuteculos surgiram

inuacutemeras questotildees a respeito do homem chamado Jesus de Nazareacute Para responder

tais questotildees ou pelo menos investigaacute-las faz-se necessaacuterio o estudo da Cristologia

partindo do homem Jesus ao Cristo da feacute

Edward Schillebeeckx nos diz que para uma boa reflexatildeo sobre a Trindade

faz-se necessaacuterio uma interpretaccedilatildeo cristoloacutegica de Jesus ou seja ldquona sua

humanidade Jesus eacute tatildeo intimamente do Pai que eacute exatamente nisso que ele eacute

Filho de Deusrdquo Podemos ver isso nas palavras de Schillebeeckx abaixo

[hellip] natildeo devemos compreender Jesus a partir da Trindade mas vice-versa eacute somente a partir de Jesus que a plenitude da unidade divina (natildeo tanto unitas trinitaris mas trinitas unitaris) se torna acessiacutevel para noacutes de alguma forma somente com base na vida morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus sabemos que a Trindade eacute o modo divino da absoluta unidade da essecircncia divina Somente a partir de Jesus de Nazareacute de sua experiecircncia com o ldquoAbbardquo -fonte e alma de sua mensagem atuaccedilatildeo e morte ndash e de sua ressurreiccedilatildeo eacute que algo cheio de sentido pode ser dito sobre o Pai Filho e Espiacuterito Santo Pois na vivecircncia de Jesus com seu ldquoAbbardquo o importante eacute que esse ldquoestar voltado para o Pairdquo e ldquoprecedidordquo com a absoluta prioridade e internamente sustentado pelo entregar-se do proacuteprio Pai a Jesus de forma uacutenica Ora a mais antiga tradiccedilatildeo cristatilde chama de ldquoPalavraVerbordquo a essa autocomunicacatildeo de Pai base e fonte da proacutepria experiecircncia de Jesus com o ldquoAbbardquo Isso implica que a palavra de Deus eacute a base total de tudo o que apareceu em Jesus ( Schillebeeckx 2008 p663)

86

A Cristologia portanto deve comeccedilar a partir do Jesus humano sem que se

negligencie o Cristo da feacute Jesus foi o nome que mudou a histoacuteria da humanidade

como podemos dizer parafraseando Haight que Jesus de Nazareacute eacute praticamente

um consenso universal na histoacuteria como sendo um judeu que viveu nos primoacuterdios

do seacuteculo I e que posteriormente veio a ser reconhecido como o Messias ou o

Cristo Conforme Haight podemos afirmar ainda que ldquoJesus foi uma figura

concreta na histoacuteria humanardquo e por isso essa histoacuteria natildeo pode ser relegada ao

esquecimento (Haight 2003 p29)

Geza Vermes compocircs um resumo histoacuterico da vida de Jesus a partir do

Evangelho de Marcos sem as narrativas da infacircncia acima esboccediladas (em 51)

Vermes chama essas informaccedilotildees peculiares de ldquoo evangelho fundamental ndash

representado por Marcos (cf Vermes 1990 p 20) que conteacutem as seguintes

informaccedilotildees

Nome Jesus

Nome do Pai Joseacute

Nome da matildee Maria

Lugar do nascimento natildeo mencionado

Data do nascimento natildeo mencionada

Domiciacutelio Nazareacute na Galileia

Estado Civil natildeo mencionado45

Profissatildeo carpinteiro (τέκτων ) mas tambeacutem exorcista e pregador itinerante

O certificado de oacutebito pode ser preenchido de maneira um pouco mais

completa

Lugar do oacutebito Jerusaleacutem

Data da morte ldquoSob Pocircncio Pilatosrdquo entre os anos 26 e 36 dC

Causa da morte crucificaccedilatildeo ordenada pelo governador romano

Lugar do sepultamento Jerusaleacutem

45

Vermes contudo considera que Jesus era celibataacuterio uma vez que nunca haacute menccedilatildeo de qualquer esposa no decorrer do seu ministeacuterio (cf Vermes 1990 p 21)

87

Para falar do Jesus humano eacute preciso contextualizaacute-lo ao tempo e ao espaccedilo

ou seja natildeo podemos menosprezar o periacuteodo em que Jesus viveu entre os homens

Sabendo que a Palestina dos dias de Jesus estava politicamente sob o impeacuterio

romano e religiosamente dominada pelo extremismo e exclusivismo religioso natildeo eacute

difiacutecil de imaginar o quanto Jesus e sua famiacutelia devem ter sofrido preconceito numa

sociedade patriarcal em meio ao caos poliacutetico e religioso

Bruce Chilton examina a questatildeo do Jesus histoacuterico desde os dias em que

Jesus estava com os disciacutepulos ateacute um periacuteodo poacutes-apostoacutelico Segundo ele sempre

houve aqueles que questionaram a filiaccedilatildeo divina de Cristo assim como colocaram

em duacutevida a sua filiaccedilatildeo terrena Vermes um judeu com formaccedilatildeo cristatilde considera

que falar das histoacuterias da infacircncia de Jesus de uma forma ou de outra acabam por

introduzir ldquoum elemento de duacutevida acerca da paternidaderdquo (cf Vermes 1990 p21)

Como foi dito acima eacute muito provaacutevel que Jesus e seus pais tenham sofrido algum

preconceito em relaccedilatildeo agrave paternidade de Joseacute em relaccedilatildeo ao seu filho Jesus

Segundo Chilton existem trecircs teorias a respeito do nascimento de Jesus A

primeira delas eacute a que Jesus foi concebido por obra do Espiacuterito Santo conforme

descrito nos Evangelhos (Mt 118-25 Lc 134-35) A segunda teoria tem a pretensatildeo

de especular que Jesus era filho bioloacutegico de Joseacute tal como se pode compreender

da afirmaccedilatildeo de Filipe achamos a Jesus de Nazareacute ldquofilho de Joseacuterdquo (Jo 145) A

terceira teoria eacute que Jesus era filho de fornicaccedilatildeo conforme uma das interpretaccedilotildees

do evangelho de Joatildeo 841 ldquoVoacutes fazeis as obras de vosso pai Disseram-lhe entatildeo

natildeo nascemos da prostituiccedilatildeo temos soacute um pai Deusrdquo (Charlesworth 2006

p87)46

46

Juan Mateos interpreta o texto de Jo 841 partindo do princiacutepio que Jesus acusa os judeus que nele ldquohaviam cridordquo (o crer aqui pode ser obra do redator uma vez que um pouco agrave frente os mesmos querem matar Jesus cf Brown 1975 p80) de cometerem o pecado da idolatria uma vez que segundo alguns rabinos ser filho de Abraatildeo significava praticar a benevolecircncia a modeacutestia e a humildade Os que tais virtudes natildeo praticavam eram considerados como servo de um outro deus totalmente diferente do Deus de Abraatildeo por isso chamados de idoacutelatras Os judeus entenderam atraveacutes da interpretaccedilatildeo dos profetas que ao serem chamados de idoacutelatras era o mesmo que ser chamado de filhos da prostituiccedilatildeordquo algo que eles negam teoricamente mas como seus pais idoacutelatras que mataram os profetas eles da mesma forma querem matar Jesus que vem da parte de Deus (cf J Mateos 1989 p392-393) Segundo Brown ser descendente de Abraatildeo fisicamente natildeo tem nenhum meacuterito quando esse suposto filho natildeo age como agiu seu pai aqui no caso ldquoAbraatildeo que Creu quando Deus lhe falourdquo eles por outro lado natildeo creem no enviado de Deus (Jesus) por isso satildeo filhos ilegiacutetimos (cf Brown 1975 p80-81)

88

Diante desse contexto Chilton levanta uma questatildeo polecircmica Jesus pode ter

sido considerado um mamzer Algumas condiccedilotildees poderiam ser determinantes para

expor um indiviacuteduo na condiccedilatildeo de mamzer A principal caracteriacutestica que definia

uma pessoa nessa condiccedilatildeo era se tal indiviacuteduo era fruto de uma uniatildeo proibida e

consequentemente um filho proibido de acordo com a Toraacute ldquoNenhum bastardo

entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar

na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo (Dt 233) Conforme a Mishnah47

poderia ser considerado um mamzer aquele filho cuja paternidade natildeo era

conhecida e portanto natildeo havia evidecircncias que tal uniatildeo fosse permitida de acordo

com a Lei Por outro lado na visatildeo do Talmude Babilocircnico48 bastava ser filho de um

natildeo israelita para que o indiviacuteduo fosse considerado um mamzer

A legitimidade da paternidade bioloacutegica de Jesus foi assunto controverso

como indicado mais acima jaacute no segundo seacuteculo da era Cristatilde Alguns autores

como John P Meier (1991 p223) e Bruce Chilton (in Charlesworth 2006 p 85)

mencionam a acusaccedilatildeo feita por Celso jaacute no ano de 178 dC que Jesus era filho de

Maria com um soldado Romano chamado Pantera49

A fonte desta histoacuteria de acordo com Dalman (2002 p152-153) vem do

Talmude Babilocircnico O nome de um certo Jesus eacute comumente mencionado no

Talmude e na literatura talmuacutedica pelas expressotildees Filho de Stada (Satda) e Filho

de Pandera (Pantera) Segundo Dalman a traduccedilatildeo literal do texto talmuacutedico de

Shabat 104b e Sanhedrin 67a tem a seguinte forma

O filho de Stada era o filho de Pandera O Rabi Chisda disse O marido era

Stada o amante Pandera (Outro disse) o marido era Paphos ben Yehudah

Stada era sua matildee (ou) sua matildee era Mirian a cabeleireira de mulheres

como eles diriam em Pumbeditha Stath da (ie Ela era infiel) para o marido

47

A palavra Mishnah vem de Shanah ldquorepetirrdquo significa ldquorepeticcedilatildeordquo ou ldquoestudo atraveacutes da repeticcedilatildeordquo Publicada por volta do ano 200 dC pelo patriarca judeu Judas I a Mishnah eacute uma coletacircnea de leis que se impocircs como coacutedigo oficial do judaiacutesmo Ela resulta de uma compilaccedilatildeo seletiva feita no decurso do seacuteculo II da era cristatilde ndash de tradiccedilotildees normativas ambientes (halakot) Ela estaacute redigida em hebraico (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

48 ldquoTalmudrdquo significa ensinamento estudo Haacute dois Talmuds 1) o Talmud de Jerusaleacutem terminado

pelo fim do seacuteculo IV na Palestina 2) o Talmud da Babilocircnia composto no seacuteculo V em Sura Mesmo na Palestina o Talmud da Babilocircnia o mais completo suplantou o Talmud de Jerusaleacutem quando se fala do ldquoTalmudrdquo sem especificar qual designa-se exclusivamente o da Babilocircnia (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

49 Zuurmond acha que provavelmente Pantera (ou Pandera) ldquoseja uma deformaccedilatildeo acintosa de

parthenos= virgem Deformar de propoacutesito o nome de um inimigo era (e eacute) um uso bastante comum (cf Zuurmond 1998 p77)

89

No entanto uma traduccedilatildeo mais livre do mesmo texto talmuacutedico teria a

seguinte forma segundo Dalman

Ele natildeo era filho de estada mas filho de Pandera Rab Chisda afirma

que o marido da matildee de Jesus era Stada mas o amante dela era Pandera

Outro (diz) que o marido dela era certamente Paphos ben Yeshua que ao

contraacuterio Stada era a matildee dele (Jesus) de acordo com outros sua matildee era

Mirian (Maria em hebraico) a cabeleireira das mulheres A treacuteplica eacute e eu

concordo simplesmente Stada era o apelido dela (Maria) como dito no (ou

na) Pumbeditha Stath da (que significa ldquoela provou ser infielrdquo) ao marido dela

Provavelmente a partir da leitura desses textos eacute que Celso tomou o nome

deste Jesus citado no Talmude e relacionou com o Jesus dos Evangelhos

considerando que ambos os personagens se tratavam da mesma pessoa Desta

forma conforme mencionado por Oriacutegenes Celso acusa Jesus de aleacutem de ter

inventado seu nascimento ter nascido numa cidadezinha da Judeia ser filho de uma

pobre fiandeira ter adquirido poderes maacutegicos no Egito ainda usou esses poderes

para proclamar-se Deus (Oriacutegenes 2004 p68) Embora esse relato tenha sido

retomado tambeacutem por pensadores contemporacircneos como mais um argumento para

contestar a legitimidade do nascimento de Jesus conforme relatado nos Evangelhos

Chilton no entanto considera que esse relato eacute infundado e foi apenas mais uma

ficccedilatildeo que circulou nos primeiros seacuteculos da era cristatilde

Nas comunidades judaicas dos dias de Jesus se uma mulher estivesse

graacutevida antes da consumaccedilatildeo plena do matrimocircnio ela precisaria pela tradiccedilatildeo

apresentar agrave comunidade em que vivia provas de quem era o pai da crianccedila que

estava sendo gerado em seu ventre A casta do filho estava condicionada a quem

era o seu pai ou seja se o filho por ela gerado fosse fruto de uma uniatildeo proibida

obviamente ele seria excluiacutedo da congregaccedilatildeo de Israel conforme estabelecido na

Toraacute especificamente em Deuteronocircmio 233 onde lemos ldquoNenhum bastardo

entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar

na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo

Vale ainda ressaltar que quando um contrato de casamento era firmado a

Mishnah dava o direito ao contratante de anular o mesmo sem uma justificativa

formal caso ele se sentisse injusticcedilado Se a mulher estivesse graacutevida na ocasiatildeo

do rompimento do contrato esse ato do contratante eximia a mulher da acusaccedilatildeo de

90

adulteacuterio e dessa forma o filho natildeo poderia ser considerado formalmente um

mamzer Tal situaccedilatildeo poderia dar margem a um problema de interpretaccedilatildeo da Lei a

saber a mulher uma vez abandonada poderia usar apenas a palavra acerca da

paternidade do fruto de seu ventre Essa palavra seria aceita como verdade tal

como pensavam os rabinos Gamaliel e Eliezer ou rejeitada se natildeo houvesse uma

prova concreta no pensamento do rabino Joshua (Charlesworth 2006 p87)

No primeiro caso a mulher poderia alegar que um determinado cidadatildeo da

sua comunidade era o pai da crianccedila que ela estava esperando Se a palavra dessa

mulher fosse aceita como verdadeira entatildeo pela Toraacute esse homem seria obrigado

a casar com ela e natildeo poderia mandaacute-la embora por toda a vida conforme lemos

em Deuteronocircmio 22 28-29

Se um homem encontra uma jovem virgem que natildeo estaacute prometida e a agarra e se deita com ela e eacute pego em flagrante o homem que se deitou com ela daraacute ao pai da jovem cinquenta ciclos de prata e ela ficaraacute sendo a sua mulher uma vez que abusou dela Ele natildeo poderaacute mandaacute-la embora durante toda a sua vida

Essa interpretaccedilatildeo daria margem para que as mulheres mesmo que

concebessem um filho fruto de uma uniatildeo proibida mas que indicassem um

determinado homem como sendo o pai da crianccedila pudessem tornar o fruto do

ventre em um legiacutetimo judeu aos olhos da comunidade tendo em vista que a mulher

alcanccedilou ecircxito em sua argumentaccedilatildeo o que segundo essa visatildeo natildeo seria difiacutecil

conseguir (Charlesworth 2006 p 87)

Partindo da premissa que a relaccedilatildeo sexual entre pessoas que jaacute haviam

estabelecido o contrato de casamento era toleraacutevel na eacutepoca uma possiacutevel relaccedilatildeo

sexual entre Joseacute e Maria natildeo seria proibida Mas o fato de Joseacute morar em Beleacutem e

Maria em Nazareacute exclui as possibilidades do filho ser dele (Chilton 2002 p13)

Dessa forma Jesus poderia ser considerado um mamzer jaacute que a sua concepccedilatildeo

ocorreu no periacuteodo entre o contrato de casamento e a coabitaccedilatildeo de Joseacute e Maria

Chilton observa que o pensamento de Joseacute em deixar Maria secretamente

conforme lemos em Mateus 119 seria portanto uma forma de natildeo acusar Maria de

fornicaccedilatildeo Natildeo obstante a maravilhosa forma como Joseacute assumiu a paternidade

pode natildeo ter sido suficiente para inibir as mais adversas situaccedilotildees pelas quais Jesus

91

tenha sido alvo desde a infacircncia ateacute a crucificaccedilatildeo proveniente de especulaccedilotildees

sobre a legitimidade de sua paternidade bioloacutegica

Observando as teorias propostas acima a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus

podemos pensar sobre os diferentes conceitos que seus contemporacircneos tinham a

respeito dele Ele era filho de Deus gerado pelo Espiacuterito Santo Ele era filho de Joseacute

ou de um pai desconhecido As palavras ldquoNatildeo nascemos da prostituiccedilatildeordquo (Jo 841)

poderiam ter sido usadas com ironia a fim de colocar em duacutevida sua reputaccedilatildeo em

relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees concernentes agrave paternidade bioloacutegica Por que ele foi

chamado de o ldquocarpinteiro o filho de Mariardquo (Mc 63) e natildeo filho de Joseacute e de Maria

entre os seus conterracircneos

Essas questotildees levantadas acima satildeo passiacuteveis de outras interpretaccedilotildees

quando olhamos o texto do Evangelho de Joatildeo a partir de uma cristologia alta50

Embora seja possiacutevel que os judeus tenham procurado debater com Jesus sobre

sua filiaccedilatildeo humana Jesus no entanto sempre usou tais debates para evidenciar

sua filiaccedilatildeo divina e enfatizar sua relaccedilatildeo com o Pai atraveacutes da palavra Abba que

para J Jeremias eacute a mensagem central do Novo Testamento

53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS

Jesus se relacionava com Deus de uma maneira peculiar a qual eacute evidente

nos evangelhos Segundo Pagola a experiecircncia de vida de Jesus eacute a partir de um

Deus Pai que para Jesus eacute aquele que cuida ateacute mesmo das criaturas fraacutegeis e

insignificantes aos olhos dos homens Esse Pai tambeacutem atende aos pobres e

necessitados traz a cura aos enfermos busca os perdidos enfim Deus Pai se torna

o centro de toda a mensagem e da proacutepria vida de Jesus de Nazareacute (Pagola 2010

p 380-381)

Nos Evangelhos a palavra Pai aparece nos laacutebios de Jesus mais de 170

vezes quando ele se dirige a Deus seja por interpelaccedilatildeo ou por designaccedilatildeo

Segundo J Jeremias eacute preciso distinguir a interpelaccedilatildeo da designaccedilatildeo de Deus

como Pai quando esse termo eacute proferido por Jesus nos evangelhos Em suas

50

A cristologia alta refere-se agrave crenccedila na preexistecircncia e na divindade de Jesus (cf

httpwwwcentroestudosanglicanoscombrbancodetextosbibliahermeneuticaresenhas_brown_julio_cesarpdf acesso em 23102011 as 1225 horas)

92

oraccedilotildees Jesus sempre fez uso da interpelaccedilatildeo Pai para invocar a Deus com

exceccedilatildeo do grito da cruz em Mc 1534 par Mt 2746 ldquoMeu Deus meu Deus por que

me abandonasterdquo interpelaccedilatildeo essa que jaacute estava prefixada pelo Sl 221 Aleacutem da

interpelaccedilatildeo eacute muito comum Jesus referir-se a Deus como ldquoo Pairdquo (ὁ πατὴρ) ldquomeu

Pairdquo (τοῦ πατρός μου) e ldquovosso Pairdquo (ὁ πατὴρ ὑμῶν ) (Jeremias 2005 p43)

De fato Jesus usou essas trecircs formas para designar Deus como Pai A

designaccedilatildeo ldquoo Pairdquo encontra-se em alguns textos dos evangelhos em Marcos (Mc

13 32 = Mt 24 36) em Mateus e Lucas juntos (Mt 11 27 = Lc 10 22) somente em

Lucas (Lc 9 26 1113) somente em Mateus (Mt 28 19) e em Joatildeo setenta e trecircs

vezes Sobre a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo encontramos em Marcos (Mc 11 25)

Mateus e Lucas juntos (Mt 5 48 = Lc 6 36 1230) somente em Lucas (Lc 12 32)

somente em Mateus (Mt 5 16 44 61 81526 7 11 10 20 29 18 14) e em Joatildeo

(Jo 8 42 20 17) Aleacutem disso o termo ldquomeu Pairdquo que se encontra em Marcos (Mc

838 = Mt 16 27) τοῦ πατρὸς αὐτοῦ [de seu Pai] mesmo que em referecircncia ao

Filho do Homem natildeo pode figurar sem reservas entre os testemunhos da foacutermula

Meu Pai) (Jeremias 2005 p43) E por fim conforme J Jeremias a expressatildeo

ldquomeu Pairdquo encontra-se nos seguintes textos dos Evangelhos Mateus e Lucas juntos

(Mt 11 27 ndash Lc 1022) somente em Lucas (Lc 249 22 29 24 49) somente em

Mateus (Mt 7 21 10 32-33 12 50 15 13 16 17 18 10 19 35 20 23 25 34 26

29 53 e em Joatildeo vinte e cinco vezes

Para J Jeremias haacute uma crescente tendecircncia em introduzir a designaccedilatildeo de

Deus como Pai nos evangelhos Excluindo as invocaccedilotildees de Pai por Jesus e

contando os paralelos sinoacuteticos J Jeremias observa que em Marcos aparece

apenas trecircs vezes jaacute em Mateus e Lucas juntos (coleccedilatildeo dos logias) aparece

quatro vezes enquanto que somente em Lucas eacute mencionado quatro vezes Os

ditos que satildeo proacuteprios de Mateus satildeo citados trinta e uma vezes A ecircnfase recai

sobre o Evangelho de Joatildeo escrito mais tarde onde a designaccedilatildeo de Deus como

Pai nas palavras de Jesus aparece cem vezes Segundo J Jeremias haacute uma

evidente progressatildeo do uso da palavra Pai usada por Jesus em Marcos na coleccedilatildeo

dos Logia e nos elementos proacuteprios de Lucas Analisando os textos dos Evangelhos

referentes ao uso da palavra Pai observa-se que todos enfatizam essa relaccedilatildeo

iacutentima de Jesus com o Pai do ceacuteu Desse modo ldquopode-se dizer que Jesus se servia

93

da palavra Pai para designar a Deus somente em certas circunstacircncias Em

Mateus acha-se uma progressatildeo sensiacutevel no uso do termo e em Joatildeo Pai quase

tornou-se sinocircnimo de Deusrdquo (Jeremias 1977 p26-27)

Francisco Reyes Archila nota a frequecircncia do uso da palavra Pai em Joatildeo

mesmo sendo este o Evangelho que ao mesmo tempo em que evidencia a

paternidade divina protagoniza tambeacutem a figura feminina no discipulado

especialmente de Maria Madalena51 Archila analisando essa progressatildeo do uso da

palavra Pai em Joatildeo nos laacutebios de Jesus como tambeacutem jaacute havia sido observada por

J Jeremias vecirc ainda uma tendecircncia maior em Mateus em registrar o termo Pai em

relaccedilatildeo a Deus do que em Marcos e Lucas onde o termo praticamente natildeo aparece

Referindo-se a Joatildeo Archila tambeacutem eacute de acordo que natildeo somente nos

Evangelhos mas tambeacutem nas cartas o termo Pai eacute usado com uma frequecircncia

muito alta Para Archila jaacute que em Mateus a frequecircncia natildeo eacute tatildeo alta e em Marcos

e Lucas ela praticamente natildeo aparece e nem nas cartas de Paulo se usa esse

termo referindo-se a Deus somente na introduccedilatildeo das cartas (Rm 17 1 Co 13

2Cor 13 2Cor 12 1131 Gl 1 1-3 Ef 11 520 Cl 1 2-3 1Ts 11 2Ts 11 1tm 12

2Tm 12 Tt 14 Fm3) Eacute de se suspeitar segundo esse autor52 de que Jesus tenha

realmente dirigido-se a Deus sempre como Pai o mais provaacutevel seria que com o

decorrer do tempo (jaacute que Joatildeo foi escrito posteriormente aos outros Evangelhos) a

Igreja primitiva tenha assumido progressivamente essa expressatildeo devido ao

ldquoespiacuterito patriarcal proacuteprio do ambiente cultural da eacutepocardquo (Archila 2007 p99)

Podemos ver sobre o relevante uso do termo Pai no Evangelho de Joatildeo no

resumo feito por Matthias Grenzer conforme exposto abaixo

1ndash O Pai ama o Filho porque este uacuteltimo daacute a sua vida (Jo 1017)

2- O Pai mostra ao Filho tudo o que ele mesmo faz (Jo 5 20)

51

Hamerton-Kelly esclarece que o fato de Jesus ter escolhido o siacutembolo de ldquopairdquo para referir-se a

Deus foi uma forma de reorganizar a forma de patriarcado da eacutepoca com a finalidade de tornar as pessoas livres das ldquogarras do patriarcadordquo Para Hamerton-Kelly longe de ser um siacutembolo sexista o pai era para Jesus uma arma escolhida para combater o que chamam de sexismo O termo ldquopairdquo tem sido interpretado fora de seu contexto apresentando um ldquodeusrdquo do sexo masculino que tem sido colocado primariamente como macho mas segundo esse autor a situaccedilatildeo poderia ser mudada ldquocomo temos tentado fazerrdquo (cf Hamerton-kelly 1979 p103) Roger Haight estaacute de acordo que Hamerton-Kelly na nota acima segue J Jeremias sobre a forma como Jesus fazia uso do termo ldquopairdquo que em seu contexto significa algo semelhante agrave ldquomatildeerdquo na sociedade moderna desenvolvida (cf Haight 2003 p 128)

52 Archila estaacute citando Lothar Coenen e outros (Diccionaacuterio teoloacutegico del Nuevo Testamento

Salamanca Siacutegueme vol 3 1983 p 244)

94

3- Ao permanecer no Filho o Pai realiza as suas obras (Jo 1410)

4- O Pai vivo enviou o filho e o filho vive atraveacutes do Pai (Jo 6 57)

5- O Filho fala o que o Pai lhe diz (Jo 12 49-50)

6- O Filho por si mesmo nada faz mas realiza soacute aquilo que vecirc o Pai fazer (Jo

519)

7- Com esse relacionamento muacutetuo de maior intensidade o Pai ama o filho (Jo

335 5 20 1017 159) e o Filho ama o Pai (Jo 1431)

8- O Filho permanece no amor do Pai (Jo 1510)

9- O Pai estaacute no Filho e o Filho estaacute no Pai (Jo 1038 1411 1721)

Esse profundo relacionamento do Filho com o Pai pode ser compartilhado com

o ser humano segundo Grenzer desde que o disciacutepulo reconheccedila o Filho no Pai (Jo

1417) pois aquele que conhece o Filho tambeacutem conhece o Pai (Jo 14 7-9)

ldquoAquele que ama o Filho observando os mandamentos dele seraacute amado pelo Pairdquo

(Jo 1421) Ou ao contraacuterio ldquoquem natildeo honra o Filho tambeacutem natildeo honra o Pai que

o enviou (Jo 523)rdquo Portanto a relaccedilatildeo de Jesus (o Filho) com Deus (o Pai) no

Evangelho de Joatildeo eacute de extrema relevacircncia para compreendermos a cristologia e

para aprendermos a perfeita forma de nos relacionarmos com o Pai celeste

(Grenzer 2009 p 184)

Archila (2007 p99) contabiliza que a expressatildeo Pai para nomear Deus no

Novo Testamento ocorre 245 vezes enquanto que a mesma palavra para designar o

pai bioloacutegico ocorre 157 vezes O motivo para tal ecircnfase para o uso dessa

expressatildeo referindo-se a Deus pode ser pela ldquoinfluecircncia da filosofia grega53 na

nomeaccedilatildeo de Deus como Pai Contudo segundo o mesmo autor o mais plausiacutevel

do ponto de vista histoacuterico eacute a possibilidade que Jesus realmente ldquotenha chamado a

Deus como meu pai ou nosso pai ou pai de vocecircs (Mt 69 2629 42 Lc 112)

Inclusive eacute mais provaacutevel que Jesus o tenha nomeado como Abba palavra usada

pelos filhos ao dirigir-se a seus pais e que equivale a papai (Archila 2007 p99-

53

ldquoA ideia da paternidade de Deus recebe uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica em Platatildeo e nos estoicos

Platatildeo na sua elaboraccedilatildeo cosmoloacutegica da ideia do pai ressalta o relacionamento criador de Deus o pai universal para com o cosmos inteiro (Tim 28c 41a e frequentemente) Para os estoicos a autoridade de deus como Pai permeia o universo ele eacute criador pai e sustentador dos homensrdquo (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)

95

100) Essa forma de dirigir-se a Deus como Pai ou seja essa ideia de ser filho de

Deus contrapotildee-se a ideia presente na filosofia grega e tambeacutem da concepccedilatildeo

romana do Imperador como ldquofilho de deusrdquo Por outro lado ainda o Abba de Jesus

assimilado pela Igreja primitiva dava o direito aos considerados apaacutetridas sociais a

terem o direito de ter um pai o que provavelmente deve ter provocado implicaccedilotildees

agrave Igreja jaacute que essas ideias iam contra aos valores da sociedade patriarcal daquela

eacutepoca (Archila 2007 p103-104)

A imagem que Jesus apresentou do Pai do ceacuteu natildeo pode ser associada com o

que a patriarcalizaccedilatildeo que a cristandade ocidental fez de Deus Para Jesus

segundo Archila Deus natildeo eacute um pai superpoderoso dominante prepotente e

distante dos seus filhosrsquo ele eacute por natureza um pai proacuteximo iacutentimo terno e

misericordioso ou seja ele nos mostra a imagem de um Deus Pai bom e justo Em

outras palavras pode-se dizer que Jesus humanizou a imagem de Deus rompendo

com a imagem patriarcal54 androcecircntrica e exclusivista para apresentar a imagem

de Deus como o Pai bom que projeta nos seus filhos um modelo de relacionamento

fraterno entre homens mulheres crianccedilas com a proacutepria natureza e por fim com o

proacuteprio Deus (Archila 2007 p107)

Trabalhando ainda o Abba nos laacutebios de Jesus eacute relevante observarmos que

Santos Sabugal tambeacutem lista as invocaccedilotildees e designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo nos

laacutebios de Jesus como sendo empregado natildeo menos de 184 vezes (Marcos 4 Lucas

17 Mateus 44 Joatildeo 119 = 111 nos laacutebios de Jesus) assim o referido autor resume

o emprego das designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo por Jesus nos Evangelhos

Esse uso eacute portanto limitado em Marcos mas frequente em Lucas e sobre tudo em Mateus para culminar no evangelho de Joatildeo E as estatiacutesticas refletem de alguma forma em cada evangelho a concepccedilatildeo teoloacutegica da paternidade divina Marcos representa o estagio inicial desta concepccedilatildeo desenvolvida pela teologia de Lucas e significativamente ampliada por Mateus atingindo seu pico mais alto em Joatildeo o teoacutelogo por excelecircncia da paternidade de Deus (Sabugal 1985 p381)

54

Segundo Archila o patriarcado eacute definido como ldquouma relaccedilatildeo de poder entendido como dominaccedilatildeo e superioridade que o varatildeo exerce sobre mulheres e crianccedilasrdquo O modelo que o sistema patriarcal pretende representar eacute baseado numa forma hegemocircnica da dominaccedilatildeo do varatildeo sobre a mulher Esse modelo ldquoinclui papeis competecircncias haacutebitos valores formas de pensar e inclusive formas institucionais como leis e normasrdquo (Archila 2007 p 91-92)

96

Para Sabugal portanto nenhum judeu mesmo os mais piedosos invocou a

Deus como o Abba assim como fez Jesus constantemente Ele tinha a

autoconsciecircncia de ser o filho de Deus Essa forma de invocar a Deus tornou-se natildeo

apenas parte integrante e essencial das suas oraccedilotildees como tambeacutem parte

integrante do seu meacutetodo de ensino sobre a oraccedilatildeo (Sabugal 1985 p386)

Joseacute Antonio Pagola tambeacutem eacute de acordo que Jesus como todas as demais

crianccedilas da Galileia em suas primeiras palavras balbuciou os termos immaacute

(mamatildee) e abba (papai) quando se dirigia a Maria e Joseacute seus pais Contudo

segundo Pagola pode ser um exagero limitar o uso do abba apenas agraves criancinhas

visto que ateacute mesmo os adultos parece que usavam tal expressatildeo como forma de

respeito agrave figura paterna dentro de uma estrutura familiar patriarcal (Pagola 2010

p383)

Mas natildeo precisamos exagerar Parece que tambeacutem os adultos empregavam esta palavra expressando seu respeito e obediecircncia ao pai da famiacutelia patriarcal Chamar a Deus de Abbaacute indica carinho intimidade e proximidade mas tambeacutem respeito e submissatildeo Jesus havia conhecido em sua proacutepria casa a importacircncia do pai Joseacute era o centro de toda a famiacutelia Tudo gira em torno dele O pai cuida dos seus e os protege Se ele falta a famiacutelia corre o risco de desintegrar-se e desaparecer Eacute ele quem sustenta e assegura o futuro de todos Haacute dois traccedilos que caracterizam um bom pai O primeiro eacute a solicitude para com os filhos eacute ele quem deve assegurar-lhes o sustento necessaacuterio protegecirc-los e ajudaacute-los em tudo Ao mesmo tempo o pai eacute autoridade da famiacutelia ele daacute as ordens para assegurar o bem de todos Ele instrui os filhos ensina-lhes um oficio se necessaacuterio Os filhos por sua vez satildeo chamados a ser a alegria do pai (Pagola 2010 p 383-384)

Para fundamentar sua tese de que o abba era um linguajar infantil e que

Jesus que ressignificou esse termo J Jeremias recorre aos pais da Igreja

Crisoacutestomo Teodoro de Mopsueacutestia e Teodoreto de Ciro originaacuterios de Antioquia

uma populaccedilatildeo que falava o siriacuteaco ocidental do aramaico Segundo J Jeremias

esses ldquopais da Igrejardquo satildeo de comum acordo de que o termo Abba era a palavra

usada por um filho pequenino quando se dirigia ao seu pai Um outro documento

usado por J Jeremias para dar sustentaccedilatildeo agrave sua pesquisa eacute o relato do Talmude (b

Berakocirct 40a b Sanedriacuten 70b) citado por ele com as seguintes palavras ldquoQuando

uma crianccedila prova o gosto do cereal isto eacute tatildeo logo como o detestam aprende a

dizer Abba e imma (papai e mamatildee) Abba e imma satildeo pois as primeiras palavras

que a crianccedila balbucia Abba era a linguagem infantil uma palavra comum

97

empregada diariamente ningueacutem tinha ousado dirigir-se a Deus desse modordquo (cf

Jeremias 2006 p63)

Deus como Pai para Jesus eacute com frequecircncia um Pai bom Ele ldquofaz nascer

seu sol sobre bons e maus Manda a chuva sobre justos e injustos (Lc 635 Mt

545) Para Pagola Jesus demonstra isso com muita maestria na paraacutebola do ldquofilho

perdidordquo (Lc 15 11-32) Nessa paraacutebola Pagola observa que o pai natildeo eacute um

personagem autoritaacuterio que natildeo respeita as decisotildees dos filhos pelo contraacuterio ele eacute

um pai amoroso e mesmo que o filho o tenha abandonado ele o recebe de braccedilos

abertos assim que este o pede perdatildeo (Pagola 2010 p386)

Embora a teologia do Abba seja defendida como a ipssissima vox de Jesus

por J Jeremias alguns autores contemporacircneos como Udo Schnelle defende que

natildeo haacute novidade na forma de Jesus invocar ou designar a Deus como pai visto que

isso era uma praacutetica comum tanto no judaiacutesmo como no mundo greco-romano

Segundo Schnelle a novidade do Abba nos laacutebios de Jesus estaacute na ecircnfase na

frequecircncia e na simplicidade com que Deus eacute designado como Pai nos Evangelhos

quando esse termo eacute proferido por Jesus (Schnelle 2010 p99-100)

J Jeremias defende que Jesus usou a palavra Pai na maioria das vezes

quando essa relaccedilatildeo era do Filho com o Pai Quanto ao uso da palavra Pai em

relaccedilatildeo a outras pessoas Jesus nunca fez alguma referecircncia a natildeo ser raras vezes

a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo apenas aos seus disciacutepulos e nunca a outros grupos

visto que a paternidade divina era uma exclusividade estendida apenas aos

disciacutepulos Grupos como os escribas e fariseus foram excluiacutedos dessa filiaccedilatildeo pois

o pai deles eacute o diabo conforme Joatildeo 8 42-44 (Jeremias 2008 p271)

Disse-lhes Jesus ldquoSe Deus fosse o vosso pai voacutes me amariacuteeis porque saiacute de Deus e dele venho natildeo venho por mim mesmo mas foi ele que me enviou Por que natildeo reconheceis minha linguagem Eacute porque natildeo podeis escutar minha palavra Voacutes sois do diabo vosso pai e quereis realizar os desejos do vosso pai Ele foi homicida desde o princiacutepio e natildeo permaneceu na verdade quando ele mente fala do que lhe eacute proacuteprio porque eacute mentiroso e pai da mentira

98

A questatildeo da filiaccedilatildeo divina eacute um processo iacutentimo entre o Pai e seu filho J

Jeremias observou que o texto do evangelho de Mateus (Mt 1127) pode ser mais

bem traduzido do seguinte modo ldquocomo soacute um Pai conhece o seu filho assim soacute um

filho conhece o seu pairdquo (Jeremias 1977 p29) Essa relaccedilatildeo de Filho e Pai que

Jesus propagou no Novo Testamento tem no Antigo Testamento o paralelo mais

proacuteximo nas palavras do salmista ldquoComo um pai se compadece dos filhos assim se

apieda o Senhor dos que o tememrdquo (Sl 103 13) Mas para os filhos do Reino o pai

eacute ainda maior Ele aleacutem de bondoso e misericordioso eacute benigno ateacute mesmo com os

ingratos e maus (Lc 635)

Seguindo esse pensamento Joseph A Fitzmyer observa que quando Jesus

instruiu os disciacutepulos a invocar a Deus como Pai Ele estava mostrando que Deus

natildeo era somente o ldquotranscendente Senhor dos ceacuteus mas estaacute perto assim como um

pai com seus filhosrdquo (Fitzmyer 1985 p898) Para Stephen A Missick Abba eacute

contudo um misteacuterio uma revelaccedilatildeo especial que vem somente atraveacutes de Jesus

Cristo Missick assim como J Jeremias observa que o texto de Mateus 1127

poderia ser parafraseado em aramaico ficando da seguinte forma ldquosomente pai e

filho realmente se conhecem Porque apenas um pai e um filho verdadeiramente

conhecem um ao outro portanto um filho pode revelar aos outros os pensamentos

mais iacutentimos de seu pairdquo (Missick 2006 p23) Para Missick o maior exemplo para

demonstrar essa intimidade entre o Filho e o Pai e o poder que o Filho tem de

revelar o Pai estaacute registrado em Joatildeo 148

Filipe lhe diz ldquoSenhor mostra-nos o Pai e isso nos bastardquo Diz-lhe Jesus ldquoHaacute tanto tempo estou convosco e tu natildeo me conheces Filipe Quem me vecirc vecirc o Pai Como podes dizer Mostra-nos o Pai Natildeo crecircs que estou no Pai e que o Pai estaacute em mim As palavras que vos digo natildeo as digo de mim mesmo mas o Pai que permanece em mim realiza suas obras Crede-me eu estou no Pai e o Pai em mim Crede-o ao menos por causa dessas obrasrdquo

O discurso de Jesus sempre foi conflitante com os grupos religiosos de sua

eacutepoca e isto se agravou mais ainda pelo modo como Ele invocava a Deus mediante

a expressatildeo ldquomeu Pairdquo fato que natildeo era comum no Judaiacutesmo Se essa forma de

99

dirigir-se a Deus chamando-o de ldquomeu Pairdquo era incomum muito mais incomum

ainda era o emprego da forma aramaica ldquoAbbardquo (Jeremias 2008 p116) Os Judeus

usavam duas maneiras de tratar o Pai uma que era muito comum e tambeacutem usada

no cotidiano familiar abba e outra que era mais solene e elevada abicirc (אב)

(Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p649) Para um judeu usar a palavra

Abba para dirigir-se a Deus parecia ser um atrevimento pois tal palavra soava como

balbucio Abba estava entre as primeiras palavras que uma crianccedila aprendia a falar

conforme a referecircncia que J Jeremias faz ao Talmude Babilocircnico jaacute citado neste

trabalho55

Jaacute nos dias de Jesus abba jaacute tinha deixado de ser apenas uma linguagem das

criancinhas para tornar-se uma forma como os filhos adultos se dirigiam a seu pai

como podemos ver na paraacutebola do filho proacutedigo (Lc 15 21) Nos laacutebios de Jesus

aleacutem de tornar-se uma forma familiar de invocar e dirigir-se a Deus abba passou a

ser tambeacutem considerada uma palavra lsquosagradarsquo uma vez que um soacute eacute o Pai dos

disciacutepulos a saber o que estaacute nos ceacuteus conforme Mateus 239 (Jeremias 2008

p121) Para Jesus Abba tornou-se uma expressatildeo de honra que somente o Pai

celeste eacute digno Essa maneira simples e iacutentima de Jesus dirigir-se a Deus como

uma criancinha fala a seu pai foi considerado por J Jeremias como a ipsiacutessima vox

de Jesus isto eacute um modo proacuteprio e original de falar usado por Jesus e que natildeo

tinha nenhuma analogia na literatura da eacutepoca (Jeremias 2008 p120)

[] a forma abbaacute suplantou a forma abbi usada no aramaico paletinense ateacute pelo menos o seacutec 2 a C como constatamos pela documentaccedilatildeo Aleacutem disso abbaacute tomou o sentido de ldquomeu pairdquo e de ldquoo pairdquo e ldquonosso pairdquo De tal modo que a palavra natildeo era apenas parte do linguajar das crianccedilas Os jovens de ambos os sexos tambeacutem chamavam o proacuteprio pai de Abbaacute (cf Lc 15 21) natildeo recorrendo agrave palavra ldquoSenhorrdquo (Kyrie) a natildeo ser cerimonioso (cf Mt 21 29-30) Mas apesar destes desenvolvimentos jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil (Jeremias 1977 p 24-25)

Mais tarde Fitzmyer comentando essa tese reconhece que J Jeremias

entendeu que Jesus natildeo se dirigiu a Deus invocando-o como uma criancinha faz

com seu pai Fitzmyer tambeacutem concorda que Abba eacute a ipisissima vox de Jesus para

55

para esclarecer essa tese podemos ver uma versatildeo semelhante a jaacute citada por J Jeremias (2006 p63) em outra obra sua conforme transcrevemos abaixo ldquoSomente quando uma crianccedila experimenta o gosto do trigo (isto eacute quando eacute desmamada) eacute que ela diz aacutebba imma [matildee] ou seja estes satildeo os primeiros balbuciosrdquo (cf Jeremias 2008 p119)

100

expressar o seu relacionamento com Deus mas que Abba por si soacute sem as oraccedilotildees

de louvor registradas pelos evangelistas Mateus e Lucas (Mt 11 25-27 Lc 10 21-

22) natildeo eacute suficiente para subsidiar tal argumento (Fitzmyer 1993 p61) Para

Ephraim o meacuterito de ter levado ao grande puacuteblico o verdadeiro sentido de como

Jesus se dirigia a Deus Pai chamando-o de Abba eacute de J Jeremias

[hellip] Joachim Jeremias levou ao grande puacuteblico toda a beleza do nome Abba tal como Jesus o pronunciava Enfatizou com razatildeo que em nenhuma outra parte do judaiacutesmo se encontra tal familiariadade Mesmo se por vezes Deus era invocado pelo vocaacutebulo Pai ningueacutem ousou antes do Filho primogecircnito dentre um grande nuacutemero de irmatildeos chamaacute-lo de Abba que literalmente quer dizer papai A ousadia amorosa sempre estivera do lado do Pai pois do lado da criatura nunca ningueacutem fora tatildeo longe como Jesus na resposta adesatildeo e entrega ao amor misericordioso (Ephraim 1998 p174)

54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS

Sabendo que os Evangelhos sinoacuteticos contecircm muitos traccedilos que remontam

para uma redaccedilatildeo poacutes-pascal J Jeremias pergunta ldquoseremos capazes de

remontarmos em particular a ipsissima vox de Jesusrdquo Os evangelhos apresentam

o querigma de Jesus ou segundo J Jeremias seria mais exato dizer que eles

apresentam a Didaquecirc (ensino) da Igreja primitiva A pergunta acima pode gerar um

certo ceticismo contudo natildeo tem forccedila para destruir o argumento de que

[] os logia de Jesus apresentam certas particularidades que devemos considerar como suas expressotildees favoritas jaacute que figuram independentemente uma das outras nas diversas narrativas da tradiccedilatildeo Abba e amen satildeo os traccedilos da linguagem mais caracteriacutesticos da ipsissima vox de Jesus (Jeremias 2006 p 137-138)

Haacute uma distinccedilatildeo entre ipsissima vox e ipsissima verba de Jesus Segundo J

Jeremias a presenccedila de um modo de falar preferido de Jesus (ipsissima vox) natildeo

dispensa absolutamente de examinar em cada caso particular se temos um dito

autecircntico (ipsissima verba) (Jeremias 2008 p79) Os apoacutestolos assim

compreenderam e Paulo vai dizer mais tarde que Abba eacute o clamor (ipsissima vox)

dos filhos de Deus daqueles que foram adotados na comunhatildeo do Espiacuterito Santo

Segundo Missick a importacircncia da palavra Abba vem justamente ao encontro dessa

teoria pois segundo ele natildeo haacute duacutevida de que essa foi a palavra exata que Jesus

101

falou ou seja Abba eacute a ipsissima vox a voz original ou a ipsissima verba as

autecircnticas palavras de Jesus (Missick 2006 p 23)

J Jeremias baseando-se em Dalman diz-nos que assim como o Abba a

palavra amen (ἀμήν) quando proferida por Jesus natildeo possui nenhum equivalente

na literatura judaica e nem nos demais escritos do Novo Testamento Nos discursos

judaicos a palavra ameacuten ldquoservia para ratificar reforccedilar e fazer proacuteprias as palavras

de outro (cf Jr 28 6) na tradiccedilatildeo dos logia de Jesus se utiliza sem exceccedilatildeo esse

termo para reforccedilar o proacuteprio discursordquo (cf Jeremias 2006 p 138) Podemos ver

esse pensamento exposto nas palavras do proacuteprio Dalman

Jaacute foi frequumlentemente apontado que o modo como Jesus usa a palavra ameacutem natildeo eacute familiar em toda a literatura judaica Mesmo em Sota II 5 cf Jerus I e II num 522 realmente natildeo pode ser forccedilado a comparaccedilatildeo Nessa passagem a repeticcedilatildeo amen pronunciado pela mulher suspeita de adulteacuterio eacute explicada como um protesto de sua inocecircncia como se ela estivesse a dizer ameacutem [= eu protesto] que eu natildeo me poluiacute ameacutem que eu natildeo vou poluir a mim mesma (cf Dalman 1902 p226)

J Jeremias refere-se agraves foacutermulas ameacuten legocirc hymin (sou) (em verdade vos [te]

digo) nos sinoacuteticos e amen ameacuten legocirc hymin (soi) (em verdade em verdade vos

[te] digo) em Joatildeo Segundo ele o nuacutemero de vezes que tais expressotildees aparecem

nos evangelhos eacute 13 vezes em Marcos 30 em Mateus (+ Mt 18 19 var) 6 em

Lucas e 25 em Joatildeo onde haacute uma reduplicaccedilatildeo Para J Jeremias este amen natildeo

responsivo coloca-nos diante de uma forma totalmente nova e peculiar dos

Evangelhos e principalmente de Jesus (Jeremias 2006 p 138-139)

Sobre a grandeza do Abba como a ipsissima vox de Jesus vejamos o que nos

diz J Jeremias

Natildeo haacute paralelos com esta mensagem de que Jesus quer ocupar-se dos pecadores natildeo dos justos e que desde agora lhes daacute jaacute a participaccedilatildeo em seu reinado Natildeo haacute paralelos com este Jesus que se senta agrave mesa com publicanos e pecadores Natildeo haacute paralelos com a autoridade com que Jesus se atreve a dirigir-se a Deus com a invocaccedilatildeo de Abba Quem reconhece unicamente o fato (e natildeo sei como algueacutem poderia negaacute-lo) de que a palavra ldquoabbardquo eacute ipsissima vox Iesu esse tal se entende bem a palavra e natildeo a desvirtua estaacute diante da pretensatildeo que Jesus tinha de sua proacutepria majestade (Jeremias 2006 p40)

Se para Jesus invocar a Deus como Pai era um direito exclusivo dado aos

disciacutepulos na igreja primitiva isso era privileacutegio apenas dos membros que jaacute

102

estavam integrados na igreja aos neoacutefitos era lhes reservado o direito de aprender a

oraccedilatildeo mas soacute podiam pronunciaacute-la em puacuteblico a partir da primeira Eucaristia logo

apoacutes o batismo conforme Cirilo um sacerdote de Jerusaleacutem que viveu por volta do

ano 350 dC (Jeremias 1979 p10) Segundo J Jeremias essas restriccedilotildees podem

ser vistas ateacute mesmo na divisatildeo dos capiacutetulos da Didaquecirc no seacuteculo I Na Didaquecirc

a oraccedilatildeo e a ceia do Senhor soacute vecircm depois do batismo (Jeremias 1979 p9-10)

Isso demonstra o quanto era sagrado o direito de invocar a Deus Pai chamando-o

de Abba Pai

55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR

Jesus pertencia a uma famiacutelia piedosa judaica (Lc 2 1-52 cf 416) viveu no

meio de um povo que sabia orar por isso eacute bem provaacutevel que desde menino tenha

aprendido em casa com seus pais a exercer a praacutetica da oraccedilatildeo cotidiana

Segundo J Jeremias natildeo eacute possiacutevel saber muita coisa sobre a praacutetica de oraccedilatildeo na

vida de Jesus aleacutem dos trecircs gritos da cruz relacionados nos sinoacuteticos haacute ainda

duas oraccedilotildees ldquoo grito de juacutebilo (Mt 11 25-26) e a oraccedilatildeo do Getsecircmani (Mc 14 36)rdquo

O Evangelho de Joatildeo registra outras trecircs oraccedilotildees de Jesus na ressurreiccedilatildeo de

Laacutezaro (Jo 1 14-42) na esplanada do templo (equivalente joanino da oraccedilatildeo do

Getsecircmani Jo 12 27) e a oraccedilatildeo sacerdotal (Jo 17) Aleacutem disso temos outros

relatos gerais de oraccedilatildeo registrados nos Evangelhos (cf Mc 1 35 646=Mt 14 23

Lc 3 21 5 16 6 12 9 18 28-29 Lc 22 31-32) e a oraccedilatildeo do Pai-nosso

(Jeremias 2006 p123)

Podemos ainda mencionar que com exceccedilatildeo das mulheres dos filhos

pequenos e dos escravos todos os homens de Israel a partir dos treze anos

estavam obrigados a recitar regularmente o Shemaacute56 (ldquoOuve oacute Israel Iahweh nosso

Deus eacute o uacutenico Iahwehrdquo Dt 64) duas vezes ao dia Aleacutem da profissatildeo de feacute judaica o

mandamento divino era logo recitado em seguida (cf Jeremias 2006 p 116)

Portanto amaraacutes a Iahweh teu Deus com todo o seu coraccedilatildeo com toda a tua alma e com toda a tua forccedila Que estas palavras que hoje te ordeno

56

No entanto segundo J Jeremias o shemaacute era ensinado aos filhos desde que esses aprendiam a falar (cf Jeremias 2006 p 116)

103

estejam em teu coraccedilatildeo Tu as inculcaraacutes aos teus filhos e delas falaraacutes sentado em tua casa e andando pelo caminho deitado e de peacute (Dt 6 5-7)

No Novo Testamento a oraccedilatildeo jaacute havia deixado de ser praticada duas vezes

ao dia para concretizar-se em trecircs vezes conforme vemos no livro dos Atos dos

Apoacutestolos (31 10 3-30) e na Didaquecirc (83) Segundo Jeremias isso se deve ao

fato de ter havido uma fusatildeo entre o Shemaacute (apesar dessa natildeo ser propriamente

uma oraccedilatildeo mas uma profissatildeo de feacute) com a Tefilaacute no periacuteodo da manhatilde e da noite

enquanto que na oraccedilatildeo da tarde natildeo se recitava o Shemaacute Para os israelitas esses

momentos de oraccedilatildeo eram muito preciosos jaacute que se assegurava a formaccedilatildeo dos

jovens na praacutetica da oraccedilatildeo (Jeremias 2006 p22)

Jesus com certeza conhecia as oraccedilotildees e as formas lituacutergicas para proferi-las

no entanto ao ser indagado pelo disciacutepulo anocircnimo (Lc 111) com a indagaccedilatildeo

ldquoSenhor ensina-nos a orarrdquo eacute claro que o Mestre sabia que seus disciacutepulos tambeacutem

conheciam as oraccedilotildees tradicionais visto que tambeacutem eram judeus No entanto eacute

muito provaacutevel que o disciacutepulo anocircnimo estaacute pedindo a Jesus um novo modelo de

oraccedilatildeo que os distinguisse como um grupo Jesus ensinou-lhes o Pai-nosso que se

tornaria a oraccedilatildeo oficial da Igreja primitiva e viria a substituir o antigo modelo das

trecircs oraccedilotildees diaacuterias tatildeo conhecidas em Israel conforme pode ser visto na Didaquecirc

(9-10) Surge entatildeo uma nova forma de orar a partir do ensinamento de Jesus

baseado na expressatildeo Abba que era a forma singular de expressatildeo usada por ele

para dirigir-se ao Pai que estaacute nos ceacuteus (Jeremias 2006 p129-131)

A relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai atinge seu aacutepice na Oraccedilatildeo do Pai-nosso

onde Jesus estaacute ensinando seus disciacutepulos orar A pergunta feita pelo disciacutepulo

anocircnimo em Lucas 111 (Senhor ensina-nos a orar) resultou no mais belo

ensinamento de Jesus a respeito da oraccedilatildeo Na oraccedilatildeo do Pai-nosso como exemplo

de humildade e obediecircncia ldquoJesus se entrega agrave vontade de Deus como a crianccedila o

faz em relaccedilatildeo ao Pairdquo (Goppelt 2002 p 216) Para Haight a oraccedilatildeo modelo eacute

composta por uma invocaccedilatildeo dois anseios ou esperanccedilas e trecircs pedidos (cf Haight

2003 p139) 57 O teoacutelogo Leonardo Boff assim resume a essecircncia desse magniacutefico

modelo de oraccedilatildeo

57

A forma apresentada por Lucas da oraccedilatildeo do Pai-nosso consiste de um endereccedilamento (ldquoPairdquo) dois desejos proferidos a Deus e trecircs peticcedilotildees ditas a ele A forma em Mateus apresenta um endereccedilamento expandido trecircs desejos e quatro peticcedilotildees Nesse modo de orar Jesus instrui e

104

Na oraccedilatildeo do Senhor encontramos praticamente a correta relaccedilatildeo entre Deus e o homem o ceacuteu e a Terra o religioso e o poliacutetico mantendo a unidade do mesmo processo A primeira parte diz respeito agrave causa de Deus o Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome seu Reino sua Vontade santa A segunda parte concerne agrave causa do homem o patildeo necessaacuterio o perdatildeo indispensaacutevel a tentaccedilatildeo sempre presente e o mal continuamente ameaccedilador Ambas as partes constituem a mesma e uacutenica oraccedilatildeo de Jesus Deus natildeo soacute se interessa pelo que eacute seu o Nome o Reino a Vontade divina Ele se preocupa tambeacutem pelo que eacute do homem o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo o mal Igualmente o homem natildeo soacute se prende ao que lhe importa o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo e o mal abre-se tambeacutem ao que respeita ao Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome a chegada de seu Reino a realizaccedilatildeo de sua Vontade (Boff 2009 p17-18)

Em seu livro ldquoO Pai-nosso a oraccedilatildeo do Senhorrdquo J Jeremias enfatiza o alto

valor que a referida oraccedilatildeo tinha na liturgia entre os cristatildeos da Igreja primitiva J

Jeremias nos diz que o mais antigo uso dessa oraccedilatildeo era a recitaccedilatildeo da mesma na

24ordf catequese de Cirilo onde o Pai-nosso era recitado antes da comunhatildeo e era

restrito dentro do culto divino apenas aos batizados ou seja aos membros efetivos

da Igreja Essa praacutetica provinha de Jerusaleacutem e vigorava por toda a Igreja Desde os

primeiros passos na feacute os neoacutefitos jaacute aprendiam a recitar de cor a oraccedilatildeo do Pai-

nosso mas soacute tinham o direito de rezaacute-lo com os demais fieacuteis a partir do momento

em que participavam da primeira eucaristia ou seja logo apoacutes o batismo (Jeremias

1979 p 5-6)

O uso regular do Pai-nosso na liturgia da Igreja eacute tambeacutem testemunhado na

Didaquecirc (Doutrina dos Doze Apoacutestolos) que segundo J Jeremias eacute tatildeo antiga que

chega a ser datada no seacutec I dC ou para ser mais preciso segundo Boff ela foi

escrita por volta dos anos 50 a 70 dC (Boff 2009 p36) Para J Jeremias a

importacircncia dada ao Pai-nosso na Didaquecirc pode ser observada na estrutura da

obra

[] O livro comeccedila (cc 1-6) com a doutrina dos dois caminhos o da vida e da morte que evidentemente pertencia agrave instruccedilatildeo dada aos catecuacutemenos Em seguida o c 7 trata do batismo soacute depois disso eacute que vecircm as seccedilotildees de importacircncia para os batizados Jejum e oraccedilatildeo (inclusive o Pai-nosso) no c 8 Ceia do Senhor nos cc 9 e 10 organizaccedilatildeo e disciplina eclesiaacutesticas nos cc 11 a 15 O que nos interessa aqui eacute que oraccedilatildeo e Ceia do Senhor vecircm depois do batismo

autoriza seus disciacutepulos a chamar a Deus como ldquoPairdquo usando o mesmo tiacutetulo que ele mesmo utilizou em sua oraccedilatildeo de louvor Lc 1021 (duas vezes) e utilizaraacute de novo em Lc 22 42 (cf Fitzmyer 1985 p 899)

105

O que J Jeremias conclui eacute que diferentemente de hoje onde o Pai-nosso eacute

acessiacutevel a todos nos primoacuterdios do cristianismo era bem diferente O privileacutegio de

recitar a oraccedilatildeo do Senhor era reservado apenas aos membros que estavam

plenamente integrados agrave Igreja A perda da reverecircncia e do temor pela oraccedilatildeo do

Senhor eacute tratada por J Jeremias com apreensatildeo e o retorno agrave reverecircncia que a

Igreja primitiva dava ao Pai-nosso soacute pode ser reconquistada se atraveacutes da exegese

biacuteblica buscarmos entender qual era o sentido que o proacuteprio Senhor quis dar agraves

palavras dessa sagrada oraccedilatildeo (Jeremias 1979 p 8-12)

Concordando com J Jeremias Ephraim tambeacutem observa que nos primeiros

seacuteculos da era cristatilde os cristatildeos pronunciavam as palavras do Pai-nosso ldquocom

grande temor como que em segredordquo O motivo para tal respeito era o medo de

transpassar os limites da reverecircncia e cair na blasfecircmia ao pronunciar o nome

inefaacutevel de Deus Segundo Ephraim ainda hoje baseado nesse profundo respeito

pela sagrada oraccedilatildeo os cristatildeos bizantinos ainda conservam a seguinte foacutermula

antes de iniciarem a oraccedilatildeo ensinada pelo senhor ldquoE torna-nos dignos Mestre de

ousar com toda a seguranccedila e sem incorrer em condenaccedilatildeo de te chamar de Pai a

ti o Deus do ceacuteu e de te dizer Pai nossordquo Ao observarmos essa foacutermula bizantina

que antecede a oraccedilatildeo do Pai-nosso concluiacutemos com Ephraim que o respeito e o

medo de ser indigno de pronunciar tal oraccedilatildeo fizeram com que a tradiccedilatildeo da

comunidade cristatilde acima mencionada conservasse com muita precauccedilatildeo haacutebitos e

costumes dos primeiros cristatildeos no que diz respeito a como se deve orar o Pai-

nosso (Ephraim 1998 p 174)

Partindo do princiacutepio que por volta do ano 75 dC a oraccedilatildeo do Pai-nosso era

obrigatoacuteria na formaccedilatildeo dos neoacutefitos tanto os cristatildeos de origem judaica quanto os

de origem grega tinham em comum a obrigatoriedade da oraccedilatildeo do Senhor na

formaccedilatildeo dos novos disciacutepulos Quanto agrave questatildeo do por que duas versotildees do Pai-

nosso ou se eacute possiacutevel que um dos disciacutepulos tenha acrescentado ou retirado

palavras da forma original J Jeremias conclui que ambos os disciacutepulos jamais

alterariam algum ponto da oraccedilatildeo do Senhor A forma mais clara para se

compreender a aparente divergecircncia estaacute no fato de que ambos escreveram para

igrejas diferentes locais e situaccedilotildees diferentes por isso cada evangelista optou por

transmitir um texto segundo o seu tempo e sua Igreja (Jeremias 1979 p 16-21)

106

Quando lemos a oraccedilatildeo do Pai-nosso nas duas versotildees ou seja por Mateus

e por Lucas surgem questotildees a respeito da antiguidade dos textos e das variantes

textuais entre os dois Evangelhos J Jeremias em sua obra acima citada trabalha

com esmero essas duas questotildees e outras tambeacutem natildeo menos importantes Antes

de abordamos as questotildees levantadas por J Jeremias segue abaixo os textos dos

Evangelhos bem como o texto de Lucas retraduzido para o aramaico segundo J

Jeremias e uma versatildeo do aramaico recitado por cristatildeos que ainda hoje falam o

aramaico conforme Stephen Missick

Mt 6 9-13 Lc 11 2-4

() Portanto orai desta maneira

Pai nosso que estaacutes nos ceacuteus

Santificado seja o teu Nome

venha o teu Reino

seja feita a tua vontade

na terra como no ceacuteu

o patildeo nosso de cada dia

daacute-nos hoje

E perdoa-nos as nossas diacutevidas

como tambeacutem noacutes perdoamos aos

nossos devedores

E natildeo nos submeta agrave tentaccedilatildeo

mas livra-nos do Maligno

() Respondeu-lhes ldquoQuando orardes

dizei

Pai santificado seja o teu Nome

venha o teu reino

o patildeo nosso cotidiano daacute-nos a cada dia

pois tambeacutem noacutes perdoamos aos nossos

devedores

e natildeo nos deixes cair na tentaccedilatildeordquo

Pai Nosso aramaico segundo J

Jeremias

Pai-nosso em aramaico recitado pelos

cristatildeos em aramaico segundo Missick

abba [pai]

yitqaddash shemak tete malkutak

[santificado seja o teu nome venha teu

reino]

Awoon Dwashmaya

Nethqaddash Shmakh

Tethe malkuthakh

Nehweh sebayanakh

107

lahman delimhar hab lan yoma den [o

patildeo nosso de amanhatilde daacute-nos neste dia]

ushebok lan hobenan kedishebaqnan

lehayyabenan [e perdoa-nos as nossas

diacutevidas (pecados) assim como

perdoamos os nossos devedores

(pecadores)]

wela ta el nnan lenisayon [e natildeo nos

conduza agrave tentaccedilatildeo] (cf Jeremias 2008

p291)

Aykana dwashmayya aph ara

Hab lan lakhma dsunkanan yowmana

Washboq lan hawbayn aykanan dap

hanan shwaqnan l-hayawayn

Wa la talain Inesyona

Ella passan min beesha

Mittol dlakh hee malkoota wa khaylan w

tishbookhta alalam almeen Amen (cf

Missick 2006 p58)

Para J Jeremias para entendermos o sentido do Pai-nosso na redaccedilatildeo de

Mateus eacute preciso ver que Jesus estaacute advertindo seus disciacutepulos a natildeo praticarem as

esmolas oraccedilatildeo e jejum da mesma forma que elas eram praticadas pelos fariseus

visto que estes amavam praticaacute-las desde que fossem vistos e reconhecidos pelos

homens Os disciacutepulos deviam procurar um cocircmodo por menor que fosse e natildeo

imitar os fariseus em hipoacutetese alguma no quesito de sempre ser pegos em uma

aparente surpresa na hora da oraccedilatildeo para que dessa forma pudessem sempre que

possiacutevel orar no meio da multidatildeo com o uacutenico objetivo de serem reconhecidos e

honrados

Em relaccedilatildeo ao texto de Lucas J Jeremias descreve sobre o fato de tanto a

situaccedilatildeo quanto os leitores de Lucas serem diferentes dos de Mateus Em Lucas a

oraccedilatildeo eacute mais breve o sentido do texto eacute o ensinar a perseveranccedila na oraccedilatildeo visto

que a mesma eacute precedida pela paraacutebola do amigo importuno As diferenccedilas entre a

oraccedilatildeo contida em Mateus e a de Lucas eacute devido aos diferentes grupos a quem

essa oraccedilatildeo foi destinada Segundo J Jeremias os leitores para os quais Mateus

deve ter destinado o Evangelho eram homens que desde a infacircncia aprenderam a

orar enquanto que os de Lucas eram antigos convertidos ao cristianismo

Ao nos depararmos com as duas versotildees da oraccedilatildeo do Pai Nosso na Biacuteblia

(Mateus 6 9 -13 e Lucas11 2-4) logo vem agrave mente qual delas se aproxima mais da

versatildeo original de Jesus ou entatildeo em que liacutengua Jesus proferiu essa magniacutefica

oraccedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta J Jeremias responde da seguinte forma

108

[] a formulaccedilatildeo mais curta de Lucas estaacute integralmente contida na redaccedilatildeo longa de Mateus Isto faz com que seja bem provaacutevel que a forma de Mateus seja uma ampliaccedilatildeo pois pelo que sabemos das leis que regem a transmissatildeo dos textos lituacutergicos quando uma redaccedilatildeo mais curta estaacute assim integralmente contida numa longa eacute a mais curta que deve ser considerada como original (J Jeremias 1979 p23)

Contudo J Jeremias conclui que o texto de Lucas eacute o mais antigo quanto agrave

extensatildeo mas em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo oral (verbal) o texto de Mateus eacute o mais antigo

(cf Jeremias 2008 p 291) Complementando o pensamento de J Jeremias a

respeito da versatildeo original do Pai Nosso Boff assim conclui ldquoDestarte Lucas seria

mais originalrdquo (Boff 2009 p36)

Concernente agrave liacutengua materna de Jesus e agrave cultura da Palestina daquela

eacutepoca podemos ainda perguntar era Jesus um poliglota ou falava apenas o

aramaico Antes de tratarmos com mais detalhes a respeito da liacutengua e cultura de

Jesus observamos a princiacutepio que pelo menos trecircs liacutenguas eram faladas na

Palestina nos dia de Jesus (aramaico grego e latim) conforme as informaccedilotildees

contidas no texto de Joatildeo 19 19-20

Segundo Sabugal haacute uma grande probabilidade de que Jesus possuiacutesse

conhecimentos da liacutengua grega pelos contatos registrados entre Jesus e algumas

pessoas de origem helecircnica como o centuriatildeo romano (Mt 5 8-13 cf Lc 7 1-10)

tambeacutem com a mulher sirofeniacutecia aleacutem do disciacutepulo chamado Filipe que

provavelmente conhecia a liacutengua grega conforme podemos interpretar a partir da

leitura de Joatildeo 12 20-2 (Sabugal 1985 p319) No entanto para Sabugal a liacutengua

popular na Palestina dos dias de Jesus era o aramaico galileu58 Tal liacutengua era tatildeo

familiar agraves comunidades a ponto de apoacutes a leitura de um texto sagrado em

hebraico (Toraacute) logo seguia-se uma traduccedilatildeo para o aramaico (Targum) onde o

texto podia ser compreendido por todos Portanto fica evidente que o aramaico foi a

liacutengua materna de Jesus isso fica mais claro ainda quando encontramos nos

evangelhos palavras aramaicas (cf Mc 14 36 Lc 23 34 42 46 Mc 15 34 = Mt

58 Para Geza Vermes a liacutengua original do Pai-nosso era o aramaico mesmo que alguns estudiosos

discordem colocando o hebraico como a liacutengua original (segundo vermes sem convencer) a maioria dos especialistas eacute de acordo com essa teoria Vermes observa que aleacutem das peculiaridades do grego de Mateus o Pai-nosso tem semelhanccedilas com o kadish uma antiga oraccedilatildeo judaica composta em aramaico que era conhecida por Jesus e que ele teria sido influenciado e inspirado por ela (Vermes 2006 p 258)

109

27 46) conservadas pelos evangelistas sem traduccedilatildeo para a liacutengua grega (Sabugal

1985 p321)

Ao se referir sobre a origem do Pai Nosso Sabugal assim exclama ldquoQue

alegria seria se conseguiacutessemos recuperar a ipsissima verba do Pai Nosso ensinado

por Jesus de Nazareacute e reconstruindo seu texto primitivo pudeacutessemos escutar a

ipsissima vox do Mestrerdquo (Sabugal 1985 p317) Para Sabugal natildeo haacute duacutevida que

os vocaacutebulos gregos estatildeo dispostos segundo os usos da gramaacutetica semiacutetica O

autor tambeacutem entende que na oraccedilatildeo do Pai Nosso tanto de Mateus como na de

Lucas teve como fundo doutrinaacuterio e literaacuterio a liacutengua materna de Jesus (aramaico)

Conforme J Jeremias para compreendermos a essecircncia da oraccedilatildeo de Jesus faz-se

necessaacuterio aproximarmo-nos do proacuteprio modo de falar do Mestre e isso soacute eacute

possiacutevel quando chegamos a ipsissima vox de Jesus (Sabugal 1985 p317)

Sabugal (1985 p317) concorda que descobrir a liacutengua materna de Jesus eacute

algo muito importante e extraordinariamente fundamental O referido autor

compartilha com J Jeremias dessa tese haja vista que eacute importante levar em

consideraccedilatildeo o fato de que para ele os escritores dos evangelhos eram verdadeiros

autores literaacuterios e autecircnticos teoacutelogos de suas comunidades cristatildes capazes de

transmitir com fidelidade a essecircncia da mensagem de Jesus59 Aleacutem do mais os

autores biacuteblicos eram divinamente inspirados pelo Espiacuterito Santo conforme os

textos de 2 Tm 316 e 2Pe 121

Por outro lado Leonardo Boff (2009 p36) considera que a oraccedilatildeo de Jesus

natildeo pode ser tratada como uma oraccedilatildeo simples que possa ser retraduzida do grego

para o aramaico primitivo conforme fez J Jeremias no texto que reproduzimos

abaixo

Pai querido Que o teu nome seja santificado Que venha o teu reino Daacute-nos hoje nosso patildeo de amanhatilde E perdoa-nos nossas diacutevidas como noacutes tambeacutem ao dizermos estas palavras estamos perdoando a nossos devedores E natildeo nos deixes sucumbir agrave tentaccedilatildeo (Jeremias 1979 p33)

59

Sobre a autoria e composiccedilatildeo dos Evangelhos ver o capiacutetulo 4 paraacutegrafo 3 deste trabalho

110

Observamos que de acordo com o pensamento de Boff natildeo eacute faacutecil reproduzir

a oraccedilatildeo de Jesus do grego para o aramaico e dessa forma tambeacutem pensa

Sabugal o qual apesar de achar o trabalho de J Jeremias de extrema importacircncia

no entanto assim como Boff pensa que realizar tal tarefa natildeo eacute nada faacutecil uma vez

que envolve estudos linguiacutesticos e literaacuterios concernentes agrave liacutengua materna e ao

texto primitivo do Pai-nosso em sua composiccedilatildeo riacutetmica e literaacuteria bem como a real

motivaccedilatildeo de Jesus ao ensinar essa oraccedilatildeo aos seus disciacutepulos Haja vista o grau

de dificuldade apresentado acima natildeo podemos deixar de observar que quanto

mais nos aproximarmos do Pai-nosso de Jesus na sua originalidade mais

maravilhados ficaremos diante da grandiosidade dessa magniacutefica oraccedilatildeo

56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA

Conforme J Jeremias e a maioria dos estudiosos Abba eacute um termo que faz

parte da liacutengua semiacutetica para ser mais preciso do aramaico Oriacutegenes pertencente

ao periacuteodo da Patriacutestica profundo conhecedor do grego e das liacutenguas semiacuteticas

segundo Fitzmyer (1992 p 48) estranhamente considerou o termo Abba como

sendo uma palavra hebraica Restou a Jerocircnimo esclarecer que o termo Abba era

siacuterio (Syrum est non hebraeum) e natildeo hebraico Lembrando que o que Jerocircnimo

chamava de siacuterio nos dias dele noacutes chamamos de aramaico

Segundo Matthew Black o aramaico foi uma das grandes liacutenguas faladas na

antiguidade por volta do VI e III seacuteculos aC quando o mundo era governado pelos

grandes impeacuterios orientais desde o Eufrates ateacute o Nilo Essa liacutengua tornou-se a

liacutengua dos judeus provavelmente depois do Exiacutelio O aramaico foi suplantado pelo

grego koineacute no mundo civilizado da eacutepoca durante o impeacuterio de Alexandre o

Grande No entanto o grego nunca substituiu por completo o uso do aramaico entre

os judeus tanto da Palestina como da Babilocircnia bem como de alguns povos de

cultura semiacutetica na Siacuteria e Mesopotacircmia (Black 1998 p14)

Entre os judeus podemos encontrar dois dialetos aramaicos na Palestina

conforme a pesquisa apresentada por Dalman Black menciona que segundo a

distinccedilatildeo feita por Dalman os dialetos estatildeo propostos na seguinte forma o primeiro

representado pelo aramaico do Antigo Testamento e o aramaico do Targum para

Pentateuco e para os profetas O segundo composto pelo conjunto de anedotas

111

popular do Talmude Palestino junto com outras partes do comentaacuterio palestinense

do Antigo Testamento dos antigos Midrash60 haggaacutedicos (Black 1998 p19)

No entanto a liacutengua na qual foi escrito o Novo Testamento eacute aceita quase que

por unanimidade pelos eruditos como sendo o grego coineacute ou grego biacuteblico

conforme foi chamado pelos especialistas ateacute o comeccedilo do seacuteculo XX (Koester

2005 vol I p118) Segundo Koester (2005 vol1 p120-121) todos os livros do

Novo Testamento foram escritos originalmente em grego e esse autor eacute mais

enfaacutetico ainda quando afirma que nenhuma obra dos primeiros cristatildeos escrita em

grego pode ser traduccedilatildeo direta do hebraico ou do aramaico De acordo com Koester

eacute fato que existem inuacutemeros hebraiacutesmos e aramaiacutesmos constantes no Novo

Testamento que podem ser citaccedilotildees gregas da Biacuteblia hebraica ou ainda que

podem ser justificadas pelo fato de que o autor estava inserido num ambiente que

propiciava a formulaccedilatildeo de palavras semiacuteticas como no caso dos Evangelhos onde

Jesus e seus disciacutepulos eram falantes nativos do aramaico

Koester observa que as traduccedilotildees do aramaico para o grego devem ter

acontecido num periacuteodo anterior aos escritos dos primeiros cristatildeos quando esses

ainda conservavam na memoacuteria apenas a tradiccedilatildeo oral Essas traduccedilotildees foram

feitas deacutecadas antes da composiccedilatildeo dos Evangelhos e dessa forma no processo

de composiccedilatildeo das fontes dos Evangelhos praticamente todos os aramaiacutesmos

foram substituiacutedos por palavras gregas com exceccedilatildeo do Evangelho de Marcos que

parece ter usado fontes gregas que eram traduccedilotildees diretas dos originais aramaicos

ou ainda os relatos de milagres no Evangelho de Joatildeo que possivelmente tambeacutem

pode ter sido traduccedilatildeo de um original aramaico (Koester 2005 vl 1 p121-122)

Outra observaccedilatildeo de Koester eacute a questatildeo do bilinguismo na Palestina Entre

os primeiros cristatildeos havia uma mescla de seguidores de Jesus que falavam o

aramaico e o grego Esses foram determinantes para que a composiccedilatildeo dos

Evangelhos fosse fortemente influenciada pelo aramaico Para Koester ldquoalguns

desses semitismos satildeo empreacutestimos semacircnticos que derivam do ambiente geral da

liacutengua como θάλασσα natildeo soacute para mar ou oceano mas tambeacutem para lago uma

vez que o aramaico יםאא denota ambosrdquo (Koester 2005 vl1 p122)

60

Etimologicamente essa palavra tem como raiz o termo darash procurar significa pesquisa sobre a Escritura e tem como funccedilatildeo o meacutetodo de estudo das Escrituras com vistas agrave sua atualizaccedilatildeo (cf Vermes 1990 p11)

112

Para trabalhar as questotildees filoloacutegicas e semacircnticas do Abba precisamos

investigar se a liacutengua materna de Jesus era realmente o aramaico Muitas questotildees

tecircm sido levantadas sobre a liacutengua que Jesus falava e tambeacutem questotildees sobre o

niacutevel cultural do Nazareno As liacutenguas oficiais do impeacuterio romano eram o latim e o

grego Para John P Meier questotildees relacionadas ao idioma ou idiomas que Jesus

falava satildeo muito complexas visto que natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz daquele

periacuteodo e as inscriccedilotildees em latim podem apenas ser um sinal para demonstrar a

presenccedila do poderio romano do que ter a finalidade de informar aos judeus sobre

algo que lhes fosse interessante Como para Meier no mundo greco-romano a

maioria da populaccedilatildeo era analfabeta isso obviamente era vaacutelido tambeacutem para a

populaccedilatildeo judaica (Meier 1993 p254)

Meier usa como exemplo uma famosa ldquoinscriccedilatildeo de Pocircncio Pilatosrdquo que foi

descoberta na Cesareia Mariacutetima em 1961 Essa inscriccedilatildeo em latim foi dedicada ao

Imperador Tibeacuterio por Pilatos A questatildeo levantada por Meier eacute ateacute que ponto esta

inscriccedilatildeo alcanccedilou os gentios e judeus que viviam em Cesareia Possivelmente

para esse autor Pilatos estava preocupado em alcanccedilar apenas as elites ou seja

ele se dirigia apenas aos seus ldquoiguaisrdquo aqueles que estavam a serviccedilo do Impeacuterio ou

faziam parte das elites dominantes As inscriccedilotildees mesmo que sejam as oficiais em

preacutedios puacuteblicos ou aquedutos construiacutedos pelo Impeacuterio ou ateacute mesmo as inscriccedilotildees

funeraacuterias natildeo provam em nada que o latim fosse uma liacutengua comum na Palestina

O fato de uma laacutepide tumular estar em latim poderia apenas ser ldquoo desejo de dar

uma impressatildeo de alta culturardquo e nada mais Assim como segundo Meier natildeo se

pode concluir que os catoacutelicos americanos do iniacutecio do seacuteculo XX tinham um idioma

comum apenas observando a frase Requiescat in pace (do latim descanse em Paz)

inscrita em seus tuacutemulos e nem as muitas inscriccedilotildees em latim espalhadas pela

Europa podem refletir as inuacutemeras liacutenguas faladas hoje em dia nesse continente

Meier observa entatildeo que o Latim eacute visto quase que por unanimidade como o

idioma menos falado na Palestina nos dias de Jesus e por isso ldquonatildeo haacute razatildeo para

se pensar que Jesus falou e muito menos leu o latimrdquo (Meier 1993 p 254 ndash 255)

Se o latim natildeo era tatildeo comum na Palestina jaacute o grego segundo Meier era

um caso totalmente diferente O grego era comum em todo o Impeacuterio romano

inclusive em Roma capital do Impeacuterio A Palestina dos dias de Jesus era altamente

113

helenizada haviam cidades e povoados que foram transformados de uma forma

poliacutetica e cultural em cidades gregas61 Segundo Meier o debate atual entre os

estudiosos estaacute concentrado apenas em saber qual era o grau de helenizaccedilatildeo

nessas cidades Mesmo apoacutes o periacuteodo dos Macabeus onde houve um movimento

de resistecircncia agrave liacutengua e a cultura grega natildeo foi possiacutevel extinguir essa cultura da

Palestina porque apoacutes esse periacuteodo (dos Macabeus) a Palestina passou a ser

governada pelos Asmoneus que tiveram como monarca principal por volta do final

do seacuteculo I aC Herodes o Grande Herodes deu continuidade agrave poliacutetica de

helenizaccedilatildeo que tinha comeccedilado com os reis Selecircucidas especificamente por

Antiacuteoco Epiacutefanes IV O processo de helenizaccedilatildeo de Herodes foi desde a construccedilatildeo

do porto da Cesareia Mariacutetima a cidade de Sebaste em Samaria e muitas outras

grandes edificaccedilotildees em Jerusaleacutem Segundo Meier as inscriccedilotildees em Grego em

Jerusaleacutem eram inuacutemeras desde o Templo as sinagogas ateacute ossuaacuterios Meier assim

descreve a influecircncia grega na Palestina

[] Martin Hengel afirma que uma terccedila parte dos epitaacutefios em Jerusaleacutem do periacuteodo do Segundo Templo eram escritos em grego e ele ainda calcula que das 80000 ou 100000 pessoas que residiam na grande Jerusaleacutem entre 8000 e 16000 teriam falado grego Mas natildeo foi soacute em Jerusaleacutem que a liacutengua e a cultura gregas alcanccedilaram os judeus Um grande nuacutemero de judeus vivia nas cidades helenizadas da planiacutecie litoracircnea desde Gaza no sul ateacute Dor ou Ptolomaicas-Acco no norte Em Cesareia a capital romana da Judeia havia quase tantos judeus como gentios As cavernas de Murabaat nos forneceram papiros gregos sobre a vida diaacuteria e ateacute mesmo ndash por ironia ndash coacutepias de cartas em grego do tempo da revolta de Bar Kochba exatamente quando os nacionalistas lutavam e morriam para se libertarem do jugo estrangeiro e da dominaccedilatildeo cultural

Concernente agrave liacutengua grega e suas influecircncias na Palestina Meier observa

que para se chegar a uma conclusatildeo ou aproximaccedilatildeo de algum fato referente agrave que

idioma era falado pelos judeus residentes na Palestina faz-se necessaacuterio ter uma

atenccedilatildeo redobrada ao periacuteodo em questatildeo Por exemplo se atentarmos para os

seacuteculos III e II aC observa-se um eclipsamento do aramaico devido agrave helenizaccedilatildeo

da Palestina pelos reis selecircucidas da Siacuteria Segundo Meier parece que o aramaico

soacute voltou a retomar a prioridade na Palestina apoacutes a revolta dos Macabeus por isso

61

Se levarmos em consideraccedilatildeo os dados de Martin Hengel citados acima por Meier podemos

deduzir que aproximadamente de 10 a 20 da populaccedilatildeo de Jerusaleacutem falava grego Entatildeo eacute difiacutecil considerar a Palestina dos dias de Jesus como sendo altamente helenizada como fez Meier uma vez que nem mesmo na capital havia tantas pessoas que falavam tal liacutengua

114

natildeo eacute possiacutevel determinar qual era a liacutengua mais falada na Palestina dos seacuteculos II e

I aC tomando como exemplo inscriccedilotildees e textos dos seacuteculos III e II aC (Meier

1993 p 255)

A opiniatildeo de Meier eacute que vaacuterios textos de Flaacutevio Josefo levam agrave conclusatildeo de

que a liacutengua grega natildeo era tatildeo conhecida ou tatildeo falada na Palestina do seacuteculo I

pelos judeus Meier analisa que Josefo mesmo apoacutes se gabar de seu alto niacutevel

cultural tanto em relaccedilatildeo agrave lei como agrave prosa e poesia gregas demonstra algumas

dificuldades com a pronuacutencia do grego Meier observa que as dificuldades de Josefo

parecem natildeo ser apenas de pronuacutencia mas seu domiacutenio de escrita tambeacutem natildeo era

ldquoexatamente perfeitordquo Outro fator observado por Meier eacute a forma de comunicaccedilatildeo

que o general romano Tito usou para se comunicar com os judeus Tito que falava

bem o grego segundo Suetocircnio mas para se comunicar com os judeus precisou de

um ldquomensageiro em aramaico (Josefo) para ser compreendido pelos judeus Surge

entatildeo a grande pergunta Jesus falava grego Para Meier se nem mesmo Josefo

que era haacutebil na liacutengua grega natildeo se sentiu agrave vontade para transmitir o recado de

Tito em grego mas em aramaico porque natildeo dominava bem a liacutengua ou porque os

ouvintes natildeo entenderiam deduz-se que ldquoa probabilidade de um camponecircs galileu

ter suficiente conhecimento para se tornar um mestre e pregador bem-sucedido que

proferisse seus discursos em grego parece muito pequenardquo (Meier 1993 p 258-

259)

Ao fazer um trabalho minucioso sobre a liacutengua que Jesus falava Meier

depois de muitos questionamentos levanta a suposiccedilatildeo de que natildeo podemos negar

que Jesus fosse totalmente desconhecedor da liacutengua dos helenos Primeiro porque

Jesus ateacute mesmo por causa de sua profissatildeo e viagens a Jerusaleacutem tinha contato

com pessoas que falavam grego Eacute possiacutevel segundo Meier que Jesus vez ou outra

fizesse algum contrato ou assinasse algum recibo que tivesse sido redigido em

grego62 Mas o fato de assinar recibos ou mesmo ter dialogado com Pilatos pode

apenas presumir que Jesus possuiacutesse alguns conhecimentos da liacutengua grega

62

A hipoacutetese de Meier sobre a possibilidade de Jesus ter assinado pequenos contratos em grego eacute questionaacutevel uma vez que segundo Meier se nem mesmo Josefo era fluente na liacutengua dos helenos muito menos Jesus que era um humilde galileu Outrossim segundo Crossan eram poucas as pessoas alfabetizadas na Palestina (no maacuteximo 3 da populaccedilatildeo) Crossan chega a afirmar que Jesus era analfabeto como a maioria dos seus conterracircneos Se tal hipoacutetese tambeacutem for verdadeira dificilmente Jesus teria condiccedilotildees de assinar pequenos contratos profissionais na liacutengua grega

115

suficientes apenas para um pequeno diaacutelogo composto de frases curtas Meier acha

muito difiacutecil Jesus ter adquirido alfabetizaccedilatildeo para a escrita em grego O referido

autor ainda aprofunda mais as suas desconfianccedilas a respeito do assunto quando

diz ldquoPortanto acompanhando Fitzmyer mantenho minhas duacutevidas se qualquer parte

dos pronunciamentos de Jesus foi feita desde o iniacutecio em grego dispensando a

traduccedilatildeo ao passar para os Evangelhos gregos que conhecemosrdquo (Meier 1993 p

260)

Apoacutes verificarmos as influecircncias do latim e do grego na Palestina nos dias de

Jesus resta-nos verificar as liacutenguas faladas em Israel desde os primoacuterdios da

naccedilatildeo O hebraico era o antigo e sagrado idioma falado em Israel mas desde que

os judeus voltaram do cativeiro babilocircnico o hebraico sofreu um decliacutenio como

liacutengua falada e passou a ser substituiacutedo gradualmente pelo aramaico Essa

influecircncia do aramaico sobre o hebraico jaacute pode ser vista nos livros poacutes-exiacutelicos

mais precisamente sobre ldquoos livros de Esdras e Daniel que contecircm capiacutetulos inteiros

escritos em aramaico sendo que em Daniel eles chegam agrave metade do totalrdquo (Meier

1993 p 260)

Contudo segundo Meier o hebraico continuou sendo uma liacutengua viva em

Israel principalmente em Qumran onde tinha primazia com o aramaico em

segundo lugar e o grego ocupando apenas uma distante terceira colocaccedilatildeo No

entanto o fato do hebraico ser a liacutengua oficial da comunidade de Qumran natildeo

confirma em nada que o hebraico fosse uma liacutengua usada no dia a dia dos demais

israelitas fora dessa restrita comunidade O que parece ser mais evidente era que o

hebraico aleacutem de em Qumran era usado por religiosos e grupos nacionalistas e por

judeus devotos e em algumas regiotildees de Israel ainda se falava e escrevia em

hebraico (Meier 1993 p 261)

Mesmo sendo o hebraico uma liacutengua viva em Israel Jesus segundo Meier

usava o aramaico para comunicar-se com os seus conterracircneos na vida diaacuteria uma

vez que se acredita que ele natildeo pertencia agrave comunidade de Qumran e nem agrave elite

dos religiosos da eacutepoca bem como seus ouvintes que em sua maioria pertenciam

agraves classes sociais mais humildes A maior evidecircncia disso estaacute nos aramaiacutesmos

registrados nos Evangelhos e especificamente no Evangelho de Marcos onde

encontramos a palavra Abba proferida por Jesus (Mc 1436) De acordo com Meier

116

J Jeremias relacionou 26 palavras aramaicas atribuiacutedas a Jesus nos evangelhos

Dessas palavras Meier opina que duas delas Talita cumi e Abba (Mc 5 41 14 36)

satildeo as que mais proacuteximas estatildeo do Jesus histoacuterico Para ele nem todos os

exemplos citados por J Jeremias podem ser comprovados entretanto alguns satildeo

uacuteteis para demonstrar a forma como Jesus instruiacutea os seus disciacutepulos (Meier 1993

p 264)

A questatildeo da liacutengua falada nos dias de Jesus eacute complexa uma vez que o

aramaico eacute uma liacutengua semiacutetica e estaacute intimamente relacionada com o hebraico No

entanto o aramaico natildeo eacute um dialeto do hebraico mas uma liacutengua semiacutetica distinta

De fato se partirmos do pensamento de Black e considerarmos que Jesus era um

Rabi na Galileia entatildeo natildeo podemos descartar a possibilidade de que ele fez uso

tanto do hebraico como do aramaico especialmente em suas disputas formais com

os fariseus (Black 1998 p16) Aleacutem disso ter conhecimento das duas liacutenguas natildeo

era nada anormal visto que segundo Missick em alguns casos as liacutenguas eram tatildeo

similares que existiam palavras usadas em ambas as liacutenguas com o mesmo

significado (Missick 2010 p 4)

Analisando a coexistecircncia das duas liacutenguas na Palestina nos dias de Jesus

observa-se que as origens do aramaico podem ser anotadas a partir do cativeiro

babilocircnico que ocorreu no periacuteodo de 586 a 539 aC antes disso o hebraico era a

liacutengua oficial dos judeus Com o retorno do hebraico como a liacutengua e a identificaccedilatildeo

da cultura e existecircncia do povo judeu o aramaico foi perdendo forccedilas ateacute ser

considerado uma liacutengua morta No entanto segundo Missick ainda existem

comunidades que falam o aramaico nos dias atuais como os cristatildeos assiacuterios63 do

Iratilde e do Iraque Antigos cristatildeos dessas regiotildees preservaram uma importante versatildeo

da Biacuteblia em aramaico que hoje eacute conhecida como a Biacuteblia Peshitta que segundo

Missick eacute muito valiosa porque a partir dela eacute possiacutevel estudar as palavras de

Jesus no aramaico pois acreditam os cristatildeos do oriente que os Evangelhos foram

63

Matthew Black observa que foi encontrado entre os siriacuteacos cristatildeos palestinos o dialeto aramaico

mais proacuteximo do aramaico dos Evangelhos enquanto que para Dalman segundo Black o aramaico que mais se aproxima do falado nos dias de Jesus era o aramaico dos Targuns judaicos para o Pentateuco e os profetas (cf Black 1998 p18-19)

117

primeiro escritos em aramaico e soacute depois traduzidos para o grego (Missick 2010

p5) 64

Para enfatizar a importacircncia do aramaico no Novo Testamento Missick

relaciona as palavras aramaicas compostas de oraccedilotildees tiacutetulos divinos nomes de

pessoas nomes de lugares e outras palavras e frases usadas no Novo Testamento

Abba (Mc 14 36) Eloiacute Eloiacute lemaacute sabachtaacuteni (Mc 15 34 cf Mt 2746) segundo

Missick se Jesus estivesse falando em hebraico ele teria dito Eli Eli lama azabanti

Nesse caso Jesus estaacute citando o Salmo 221 em aramaico Essa traduccedilatildeo do Antigo

Testamento eacute chamada de Targum65 pela tradiccedilatildeo judaica Dentre as palavras

relacionadas por Missick temos tambeacutem Maranatha (1 Co 1622) que

etimologicamente conforme a definiccedilatildeo dada por Missick (2010 p22-26) tem como

prefixo o termo ldquoMarrdquo que significa Senhor ou ldquoMaranrdquo que significa nosso Senhor

donde temos Maranatha que tem como definiccedilatildeo completa o significado de ldquonosso

Senhor vemrdquo (Marana tha) ou ainda ldquonosso Senhor estaacute vindordquo (Maran atha) Em

aramaico temos ainda outra palavra Rabboni (Jo 2016)

Em relaccedilatildeo aos nomes em aramaico mencionados no Novo Testamento

Missick argumenta que essas pessoas natildeo teriam outro motivo para receber nomes

64

Missick (2006 p170) refere-se a dois grupos significantes de cristatildeos que ainda falam o aramaico O primeiro grupo eacute composto por siacuterios Ortodoxos que vivem na Siacuteria O Segundo grupo do oriente (leste) da Siacuteria satildeo chamados de Assiacuterios e satildeo nativos do Iratilde e do Iraque conforme jaacute comentado acima Segundo Missick os cristatildeos mesmo sendo chamados de assiacuterios satildeo totalmente distintos da cultura do antigo Impeacuterio Assiacuterio A avanccedilada e militarista cultura da Assiacuteria antiga desapareceu com o tempo mas seus descendentes satildeo os modernos siacuterios do Oriente chamados de assiacuterios Os antigos assiacuterios falavam o Acadiano liacutengua falada por assiacuterios e babilocircnios que natildeo eacute mais falada na atualidade

Os atuais cristatildeos Siacuterios e Assiacuterios pertencem a denominaccedilotildees diferentes Segundo Missick (2006 p170) os siacuterios do oeste pertencem agrave Igreja Ortodoxa siacuteria e jaacute foram chamados de Jacobitas ou seja porque provinham do bispo Jacob Bardesanes (542-578 dC) Os cristatildeos chamados de assiacuterios eram conhecidos como nestorianos visto que o patriarca deles foi Nestoacuterio de Constantinopla um Patriarca da Igreja Ortodoxa grega (428-431 dC) A igreja no entanto eacute mais apropriadamente chamada de ldquoAntiga Igreja assiacuteria do Orienterdquo

65 Esta palavra eacute de origem natildeo semiacutetica mas foi adotada pelos judeus para designar tradiccedilatildeo (aqui

parece haver um equiacutevoco do comentador uma vez que a palavra Targum vem do hebraico lsquo targucircmimrsquo e significa traduccedilatildeo Cf La Sor 1999 p 670) ldquoOs targuns satildeo as traduccedilotildees aramaicas dos textos biacuteblicos destinados ao uso sinagogal Na sua origem essas traduccedilotildees eram orais e mais ou menos improvisadas e fragmentaacuterias sendo depois progressivamente fixadas por escrito e reunidas em grandes secccedilotildees (targum do Pentateuco targum dos Profetas targum dos Hagioacutegrefos) Mesmo quando eacute literal na aparecircncia o targum conteacutem elementos mais ou menos amplos de paraacutefrase ou de explicaccedilatildeo de atualizaccedilatildeo e ateacute de correccedilotildees Ele integra o midrash sobretudo na sua forma haggaacutedica Eacute possiacutevel que existisse um targum do Pentateuco ndash ou torah aramaica ndash na eacutepoca de Jesus e ateacute antes na Palestina A atividade targuacutemica evoluiacutera no decorrer dos seacuteculos em que foi praticada para a atividade propriamente midraacuteshica (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p11-12)

118

em aramaico se natildeo estivessem inseridos numa determinada comunidade que

falasse aramaico Missick cita como exemplo o prefixo ldquoBarrdquo antes de alguns nomes

que em aramaico tem o sentido de ldquofilho derdquo enquanto que para nomes em hebraico

se usava o prefixo ldquoBenrdquo que tambeacutem tinha o sentido de ldquofilho derdquo (Missick 2010

p26) Os nomes pessoais que segundo Missick tecircm origem no aramaico satildeo

Cephas (Jo 142 1 Co 112 Gl 29) Tomeacute que vem do aramaico ldquoteomardquo cujo

significado eacute gecircmeo (Jo 212) Simatildeo o Zelota (Mc 318) Maria Madalena que era

natural da cidade de Magdala que em aramaico significa Torre66 Tadeu e Lebeu (Mt

103) Tadeu em aramaico significa mamilo e Lebeu significa coraccedilatildeo

A extensa relaccedilatildeo de nomes pode ser assim resumida Tabita (At 936) Marta

(Lc 10 38-41 Jo 11 1-39 122) Bartolomeu (Mt 103) Jesus Barrabaacutes (Mt 2736)

Simatildeo Bar-Jonas (Mt 2716) Joseacute Barsabaacutes (At 123) Elimas Bar-Jesus (At 13 6-8)

Judas Barsabaacutes (At 15 22) Joseacute Barnabas ou Barnabeacute ndash Filho da profecia- (At

436) Aleacutem dos nomes de pessoas e dos tiacutetulos divinos em aramaico ainda

segundo Missick haacute vaacuterios nomes de cidades com origens no aramaico Gaacutebata (Jo

1913) Goacutelgota (Jo 19 17-18 Mc 1522) Betacircnia (Jo 111) Betesda (Jo 5 1-15)

Geena Mt 1028) Resta-nos ainda conforme Missick relacionar palavras e frases

em aramaico usadas no Novo Testamento Effatha (Mc 734) Taliacutetha Kum (Mc 541)

Raca (Mt 5 22) Mamon (Mt 624) Corban (Mc 7 9-13)

Para Missick natildeo haacute duacutevidas que Jesus falou aramaico Um dos argumentos

levantados por esse autor estaacute baseado no relato da morte de Judas conforme

registrou Lucas (At 119) No discurso de Pedro sobre a substituiccedilatildeo de Judas o

lugar onde o corpo de Judas caiu e se arrebentou ao meio conforme o texto

chamava-se Haceacuteldama na proacutepria liacutengua dos moradores de Jerusaleacutem Para

Missick essa palavra eacute aramaica e natildeo hebraica Se a palavra realmente eacute

aramaica entatildeo deduz-se que o idioma falado naqueles dias era o aramaico e natildeo

o hebraico e nem o grego muito menos o latim Missick conclui entatildeo que para se

compreender a mensagem de Jesus que antes de ser escrita foi transmitida

oralmente eacute necessaacuterio compreender as palavras na liacutengua em que Jesus as

66

Missick menciona que ela era conhecida como Madalena porque sua feacute era como uma torre Esse argumento foi defendido por Jerocircnimo contudo segundo Missick o mais provaacutevel eacute que ela tenha adquirido este tiacutetulo por ter vindo da cidade de Magdala (cf Missick p28)

119

proferiu e a melhor forma de alcanccedilar tal objetivo eacute compreender o aramaico

(Missick 2010 p4-35)

Entre os autores que defendem que o aramaico era a liacutengua dos galileus

contemporacircneos de Jesus encontramos tambeacutem Joseacute Pagola Jesus conforme

esse teoacutelogo falava o aramaico em casa assim como todos os galileus Pagola

ainda analisa que ateacute mesmo na Judeia se falava o aramaico no dia a dia Segundo

Pagola as diferenccedilas entre o aramaico da Galileia para o aramaico da Judeia era

apenas de dialeto (sotaque)

Embora o aramaico seja defendido pela maioria dos estudiosos de teologia do

Novo Testamento haacute no entanto autores que defendem que o hebraico natildeo

somente era uma liacutengua viva como era a mais falada nos dias de Jesus Para os

teoacutelogos David Biacutevin e Roy Bliacutezard Jr o hebraico era o idioma mais falado pelos

contemporacircneos de Jesus e dos primeiros cristatildeos Para esses autores um idioma

pode ser definido da seguinte maneira ldquoo idioma eacute uma expressatildeo no uso de uma

liacutenguagem que eacute peculiar a si proacuteprio na construccedilatildeo gramatical ou em ter um

significado que natildeo pode ser derivado como um todo a partir dos significados do

conjunto de seus elementos Na visatildeo deles o ldquohebraico eacute a chave para entender

as palavras de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p 2-4)

Os defensores do hebraico como a liacutengua falada na Palestina dos dias de

Jesus criticam os defensores da inerracircncia das Escrituras quando esses mesmo

depois de ler o texto de Atos 2614 em que Jesus fala em Hebraico com o apoacutestolo

Paulo e tambeacutem o texto de Atos 2140 no qual o mesmo apoacutestolo falou em hebraico

com uma multidatildeo satildeo os mesmos que afirmam que onde se diz hebraico deve-se

entender aramaico Para defender essa teoria eles argumentam que os mais

antigos manuscritos do Novo testamento datam do quarto e quinto seacuteculos da era

cristatilde (Codex Sinaiticus Codex Alexandrinus e Codex Bezae) afirmam que a

inscriccedilatildeo ldquoEste eacute o Rei dos Judeusrdquo estava escrito em grego latim e hebraico

Partindo desses argumentos Bivin e Bliacutezard lanccedilam a seguinte questatildeo

ldquoPorventura natildeo eacute significativo que os manuscritos gregos mais antigos infiram que

o hebraico era mais popular que o aramaico naquele periacuteodordquo (Biacutevin e Bliacutezard

2001 p8)

120

Biacutevin e Bliacutezard argumentam que mesmo a presenccedila de uma palavra aramaica

(Abba) no Evangelho de Marcos (Mc 1436) natildeo prova em nada a existecircncia de

uma liacutengua original falada em aramaico no periacuteodo de Jesus Para esses autores

Abba aparece sempre entre os escritos em hebraico daquele periacuteodo como uma

palavra de empreacutestimo A razatildeo para tal empreacutestimo do aramaico seria pelo fato

dessa palavra ter um ldquosabor especialrdquo quando usado como forma de relacionamento

entre os filhos e seus pais O sentido dessa expressatildeo pode ser relacionado com a

forma como os filhos se dirigem aos seus pais chamando-os de ldquodaddyrdquo (Papai) ou

ldquopapardquo (pai) em Inglecircs Um outro argumento ainda usado como forma de demonstrar

que usar Abba como forma de provar que a liacutengua falada por Jesus natildeo era o

aramaico eacute demonstrar que ainda hoje em Israel onde se fala o hebraico moderno

ldquoas crianccedilas usam Abba na abordagem de seus pais exatamente da mesma

maneira como foi usado no tempo de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p10)

Murphy-OConnor diferentemente de Biacutevin e Bliacutezard comunga da mesma

ideia de Jerocircnimo de que o apoacutestolo Paulo era de origem palestinense conforme os

textos de 2 Co 11 22 e Fl 3 5 onde Paulo identifica-se como ldquoisraelitardquo ldquodo povo de

Israelrdquo e como um ldquohebreurdquo Poreacutem quanto aos textos onde Lucas diz que Paulo

falou com a multidatildeo ldquonuma linguagem hebraicardquo (At 2140 222 2614) Murphy-

OConnor argumenta que a linguagem deveria significar aramaico e natildeo hebraico

Segundo esse autor naquela eacutepoca a maioria dos judeus jaacute natildeo conheciam mais o

hebraico e os textos das Escrituras nas sinagogas eram traduzidos para o aramaico

Outro argumento eacute que as palavras Gaacutebata (Jo 1913 o lugar onde Pilatos

condenou Jesus) e Goacutelgota (Jo 19 17) que satildeo mencionadas como palavras

hebraicas na verdade satildeo palavras aramaicas Sendo assim segundo Murphy-

OConnor a divisatildeo entre os primeiros cristatildeos de Jerusaleacutem (At 61) era permeada

pelos que falavam aramaico e pelos que falavam o grego (Murphy-OConnor 2008

p 29-30)

Matthew Black analisando a liacutengua falada por Jesus observa que alguns

estudiosos defendem o hebraico como a liacutengua vernaacutecula na Palestina dos dias de

Jesus Segundo Black alguns propotildeem que o hebraico natildeo era soacute apenas uma

forma literaacuteria de expressatildeo ou entatildeo apenas uma liacutengua falada nos ciacuterculos

rabiacutenicos mas o hebraico era um veiacuteculo normal de expressatildeo (Black 1998 p 47)

121

Douglas Hamp defende que o hebraico era realmente uma liacutengua muito viva nos

dias de Jesus e natildeo uma liacutengua morta como muitas vezes eacute dito Aleacutem de tudo para

ele o hebraico era a primeira liacutengua na Palestina nos dias de Jesus apesar de

segundo ele Jesus poderia ser triliacutengue ou seja falava hebraico aramaico e grego

e possivelmente ateacute o latim (Hamp 2005 p40) Hamp defende entatildeo que Jesus

provavelmente conhecia o aramaico e o grego e deve ter usado essas liacutenguas em

alguns contextos no entanto com seus disciacutepulos e na comunicaccedilatildeo com as

massas ele falou hebraico (Hamp 2005 p73)

Sobre a posiccedilatildeo daqueles que consideram o hebraico e natildeo o aramaico

como o vernaacuteculo ou seja a liacutengua mais falada nos dias de Jesus Black responde

ldquoesta posiccedilatildeo extrema tem encontrado pouco ou nenhum apoio entre as autoridades

competentes a evidecircncia da ipsissima verba de Jesus nos Evangelhos eacute impossiacutevel

de explicar se o aramaico natildeo era a liacutengua que Jesus falavardquo No entanto para ele eacute

provaacutevel que Jesus sendo um Rabi que comeccedilou seu ministeacuterio na Galileia e muito

bem versado nas Escrituras tenha sido capaz de ensinar com maestria tanto em

hebraico que poderia usar para ocasiotildees solenes como em aramaico com que se

comunicava com as massas (Black 1998 p 48-49)

Considerando as diversas opiniotildees sobre a liacutengua materna de Jesus

observamos que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus falava o aramaico

uma vez que esta foi a liacutengua predominante na Palestina apoacutes o exiacutelio babilocircnico

Contudo natildeo eacute tarefa faacutecil chegar a uma conclusatildeo Como vimos os estudiosos que

defendem o aramaico como a liacutengua materna de Jesus buscam como prova de tal

tese o argumento de que o Novo Testamento conteacutem muitas palavras aramaicas que

deviam ser comuns nos dias de Jesus Possivelmente o aramaico era uma liacutengua

falada pela populaccedilatildeo em geral enquanto que o hebraico reservava-se mais a

escrita de textos religiosos (sacros) e tambeacutem era usado pela classe sacerdotal que

por sua vez era mais elitizada Contudo devido agrave semelhanccedila entre as duas liacutenguas

torna-se difiacutecil delimitar uma linha divisoacuteria entre as mesmas uma vez que natildeo

possuiacutemos textos em aramaico da eacutepoca e natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz

que nos permita concluirmos com precisatildeo

122

6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS

Apoacutes termos apresentado a tese de J Jeremias sobre o Abba e alguns

pesquisadores que com ele concordam eacute oportuno tambeacutem olharmos algumas

teorias e pesquisadores que divergem de suas ideias

61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO

A relaccedilatildeo de paternidade divina no Antigo Testamento eacute refletida na literatura

poacutes-canocircnica do judaiacutesmo No Judaiacutesmo palestinense67 de acordo com J Jeremias

natildeo haacute relatos que em toda a literatura de Qumran que deve ser anterior a 68 a C

(Jeremias 1977 p17) de que Deus tenha sido invocado como Pai Haacute apenas uma

exceccedilatildeo em I QH 9 55 S ldquoEu te agradeccedilo oh Senhor porque natildeo abandonou a

paternidade ou desprezou o pobrerdquo (Vermes 2004 p274) A questatildeo da paternidade

divina era vista pelos rabinos como um direito dado apenas para aqueles que

cumpriam a Lei (Torah) (Jeremias p 1977 p19)

As oraccedilotildees judaicas eram dirigidas geralmente a Deus como nosso Pai

nosso Rei (abinu malkenu) 68 ldquoNosso Pai Nosso Rei Em vista de nossos pais que

creem em ti e a quem ensinas as leis da vida ndash tem piedade de noacutes e ilumina-nosrdquo

(Jeremias 1977 p18) Para J Jeremias mesmo essa oraccedilatildeo sendo antiga

podendo mesmo ser situada na eacutepoca de Jesus haacute algumas coisas que precisam

ser observadas A ecircnfase da oraccedilatildeo estaacute na duplicidade dos termos que se referem

a Deus ou seja ldquoDeus eacute invocado como o pai da comunidaderdquo e a comunidade por

sua vez invoca o Pai que ldquoeacute o rei celestial do povo de Deusrdquo (Jeremias 2008 p116)

Tambeacutem segundo J Jeremias esse texto foi escrito em hebraico que nos dias de

67

ldquo[] no judaiacutesmo palestinense do periacuteodo preacute-cristatildeo eacute rara a descriccedilatildeo de Deus como pai Nos

apoacutecrifos e pseudoepiacutegrafos no que diz respeito aos escritos de origem palestinense acha-se muito raramente (tob 134 Sir 5110 Jub 124-25 28 1929) enquanto os textos de Cunratilde oferecem um uacutenico exemplo isolado (1QH 935-36) No judaiacutesmo rab do seacuteculo I dC o emprego do nome Pai tornou-se mais generalizado mas ainda era muito menos frequente do que outras descriccedilotildees de Deus (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

68 Charlesworth afirma que Jesus invocava a Deus como Abba e natildeo como Abinu Charlesworth

entatildeo pergunta ldquonatildeo seraacute concebiacutevel que tenha chamado Deus de Abba porque tinha uma concepccedilatildeo de Deus que era de algumas maneiras diferente daquela da maioria de seus contemporacircneos (cf Charlesworth 1992 p148)

123

Jesus era uma liacutengua sacra usada com maior frequecircncia nas reuniotildees lituacutergicas e

natildeo como uma praacutetica comum no dia a dia (Jeremias 1977 p19)

Entre os escritos do judaiacutesmo palestinense haacute duas oraccedilotildees em que Deus eacute

invocado como Pai Satildeo invocaccedilotildees muito semelhantes do c 23 de Ben Sira

(Eclesiaacutestico) escrito por volta do comeccedilo do seacuteculo II aC (Jeremias 1977 p19)

Esses dois versiacuteculos (v1 e v4) onde Deus eacute invocado como ldquoPai e dono da minha

vidardquo e como ldquoSenhor Pai e Deus da minha vidardquo (Jeremias 1977 p19) poderiam

ser um preluacutedio do evangelho segundo J Jeremias se por volta da deacutecada de 40

natildeo tivesse sido descoberto uma paraacutefrase em hebraico desse texto que hoje existe

apenas em grego A paraacutefrase desse texto escrito em hebraico natildeo invoca Deus

como ldquoSenhor e Pairdquo mas invoca-o como ldquoDeus de meu Pairdquo Ficam evidentes

entatildeo as diferenccedilas entre o texto que temos em grego e a paraacutefrase em hebraico

Partindo desses raciociacutenios J Jeremias entatildeo conclui que mesmo que no

Judaiacutesmo da diaacutespora haja testemunhos esporaacutedicos da invocaccedilatildeo de Deus como

Pai (Jeremias 2008 p117) eles satildeo apenas ditos isolados nos quais Deus eacute

invocado como (Pater) mas sempre com influecircncia do helenismo e da liacutengua grega

(Jeremias 2008 p115-116) e natildeo se tem notiacutecias de que no judaiacutesmo palestinense

algum indiviacuteduo tenha dirigido-se a Deus chamando-o de meu Pai (Jeremias 1977

p 19-20)

Contudo J Jeremias ainda menciona uma oraccedilatildeo do final do seacuteculo 1 aC

feita por um homem chamado Hanin ha-Nehba conhecido por seu sucesso nas

oraccedilotildees para obter chuva Nessa oraccedilatildeo Deus eacute invocado como papai ou como o

Abba que tem o poder de enviar chuva

Quando o mundo precisava de chuva nossos mestres tinham o costume de lhe mandar crianccedilas das escolas que se agarravam ao seu manto e imploravam Abbaacute Abbaacute habh lan mitra papai papai daacute-nos chuvardquo E ele lhe (a Deus) dizia Senhor do universo concede-nos (a chuva) em vista destes que natildeo satildeo ainda capazes de distinguir entre um abbaacute que tem o poder de dar a chuva e um abbaacute que natildeo tem (Jeremias 1977 p 22)

Por fim o autor supracitado observa que mesmo que as evidecircncias sejam

favoraacuteveis a uma invocaccedilatildeo de Deus como papai (Abbaacute) ainda assim com um olhar

mais criterioso nota-se que a forma como Hanin invoca a Deus eacute tomada com um

tom carregado de humor e Hanin comeccedila a sua oraccedilatildeo dirigindo-se a Deus natildeo

como o Abba mas sim como o Senhor do universo J Jeremias vecirc essa histoacuteria

124

como um preluacutedio das afirmaccedilotildees de Jesus nos Evangelhos onde ele diz que ldquoo Pai

celeste sabe do que precisam os seus filhos (Mt 632) que ele envia a chuva sobre

os justos e os injustos (Mt 5 45) e daacute coisas boas aos seus filhos que lhas pedem

(Mt 711 par Lc 1113) (Jeremias 1977 p 23) Entatildeo J Jeremias tem como

resultado de suma importacircncia de que realmente natildeo existe nenhum testemunho

nas oraccedilotildees judaicas do uso do Abba (papai) em todo o judaiacutesmo Defende esse

autor que o emprego do Abba foi uma caracteriacutestica peculiar de Jesus dirigir-se a

Deus invocando-o como o Abba e isso coloca o abba como sendo a ipsissima vox

de Jesus (Jeremias 1977 p23)

Eis-nos pois autorizados a dizer por que natildeo se usa abbaacute nas oraccedilotildees Judaicas para invocar a Deus seria desrespeitoso e portanto impensaacutevel para uma mentalidade judaica chamar a Deus com um nome tatildeo familiar Foi algo de novo uacutenico e inaudito ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma crianccedila fala ao seu pai com simplicidade intimidade e sem temor Portanto natildeo haacute duacutevida alguma de que a palavra abbaacute utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus revela o proacuteprio fundamento de sua comunhatildeo com ele (Jeremias 1977 p25)

J Jeremias ainda conclui seu pensamento sobre o uso do Abba nas oraccedilotildees

judaicas ldquoUma revisatildeo da rica e abundante literatura oracional judaica ainda pouco

estudada leva-nos a conclusatildeo de que em nenhuma das suas passagens estaacute

atestado o termo abba para invocar a Deusrdquo (Jeremias 2006 p63)

Com um pensamento em alguns pontos diferentes ao de J Jeremias de que

para este Deus nunca foi invocado como pai no judaiacutesmo quer seja no Antigo

Testamento ou no judaiacutesmo palestinense Bultmann afirma que a visatildeo de Deus

como pai no Judaiacutesmo era corriqueira quer seja atraveacutes das oraccedilotildees ou ateacute mesmo

pelo piedoso individualmente Bultmann usa alguns textos como o Eclesiaacutestico 410

para justificar a sua tese ldquoSecirc um pai para os oacuterfatildeos e o substituto do esposo para as

viuacutevas Entatildeo Deus te chamaraacute de filho seraacute gracioso para contigo e te salvaraacute da

perdiccedilatildeordquo (Bultmann 2005 p 191)

A condiccedilatildeo de filho de Deus no judaiacutesmo pode ser tambeacutem escatoloacutegica Para

Bultmann o chamado Salmo de Salomatildeo (1730) trata sobre o regimento do

Messias no tempo do fim com as seguintes palavras ldquoEle os conhece e sabe que

satildeo todos filhos do seu Deusrdquo E para enfatizar ainda mais o seu argumento ele

ainda cita o ldquochamado Livro dos jubileus (1 24-25)rdquo no qual Deus em uma forma

escatoloacutegica promete para os israelitas no tempo da salvaccedilatildeo ldquoEles cumpriratildeo os

125

meus mandamentos e eu serei um pai para eles e eles seratildeo meus filhos E todos

eles se chamaratildeo filhos do Deus vivo e todos os anjos e todos os espiacuteritos os

conheceratildeo e saberatildeo que eles satildeo meus filhos e que eu sou o pai em firmeza e

justiccedila e que eu os amordquo

A ideia que Jesus tem da designaccedilatildeo de Deus como pai segundo Bultmann

natildeo traz nenhuma novidade a respeito do assunto pelo contraacuterio era jaacute uma

caracteriacutestica de muitas religiotildees e cosmovisotildees religiosas e entre elas encontra-se

a visatildeo dos antigos estoicos para os quais a ldquofiliaccedilatildeo divina cabe ao ser humano por

natureza e eacute algo que se aplica a ele na esfera das ideias logo que se situa aleacutem

de sua existecircncia concreta no aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p192-193)

A relaccedilatildeo de pai e filhos no judaiacutesmo ocorre de uma forma diferente da do

estoicismo Bultmann defende que no judaiacutesmo natildeo haacute uma relaccedilatildeo de pai e filhos

de Deus por natureza mas pela livre eleiccedilatildeo de Deus A filiaccedilatildeo divina portanto natildeo

eacute algo natural mas eacute algo miraculoso Quanto agrave possibilidade da filiaccedilatildeo essa natildeo eacute

exclusividade de um grupo pelo contraacuterio eacute aberta a todos pois o pai do ceacuteu provecirc

para todas as pessoas aquilo que necessitam (Mt 6 2632) Da mesma forma a

oportunidade para rogar ao pai do ceacuteu (Mt 7 7-11) eacute uma oportunidade oferecida a

todas as pessoas Dessa forma Bultmann declara que ldquo o ser humano eacute visto de

modo bem diferente ou seja natildeo como aquilo que eacute na esfera das ideias para aleacutem

de sua existecircncia concreta mas justamente como aquilo que eacute em sua existecircncia

na singularidade de seu aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p 193)

O conceito de paternidade no judaiacutesmo eacute tambeacutem discutido por Alon Goshen-

Gottstein em ldquoDeus como Pai no judaiacutesmordquo (Goshen-Gottstein 2001 p475) Para

ele a referecircncia rabiacutenica de Deus como pai no judaiacutesmo tambeacutem eacute uma

peculiaridade de Israel como naccedilatildeo natildeo que indiviacuteduos natildeo possam dirigir-se a Ele

como pai Mas natildeo eacute possiacutevel encontrar nas fontes sobre algueacutem que de forma

especiacutefica e individual tenha dirigido-se a Deus chamando-o de Pai No entanto

para Goshen-Gottstein essa relaccedilatildeo paternal era apenas um sentimento religioso

reciacuteproco de Israel para com Deus isto eacute chamar Deus de Pai era apenas uma das

muitas metaacuteforas que Israel usava para referir-se a Deus (Goshen-Gottstein 2001

p475)

Para Goshen-Gottstein os cristatildeos e judeus divergem muito sobre a questatildeo

da segunda e a terceira pessoas da trindade cristatilde parece que a primeira pessoa da

trindade (o Pai) eacute o elo que une o cristianismo e o judaiacutesmo num fundo teoloacutegico

126

comum Contudo ele pergunta sobre em que extensatildeo a pessoa do Pai eacute um

conceito comum para o judaiacutesmo e para o cristianismo (Goshen-Gottstein 2001

p471) Goshen-Gottstein coloca que o primeiro problema eacute metodoloacutegico visto que

eacute natural que os pesquisadores do Novo Testamento vasculhem a literatura rabiacutenica

agrave procura daquilo que apenas lhes interessa A exemplo disso esse autor observa

que teoacutelogos cristatildeos pentearam a literatura rabiacutenica em busca de exemplos de

expressotildees sobre o ldquoPai celesterdquo que estatildeo no singular ou no plural para dessa

forma avaliar a importacircncia que a expressatildeo ldquoPai celesterdquo tem na literatura rabiacutenica

quando analisada sobre a perspectiva da intimidade e relaccedilatildeo pessoal que o ldquoPai

Celesterdquo tinha para os autores rabiacutenicos Goshen-Gottstein vecirc isso como perda de

tempo pois considera que as fontes rabiacutenicas natildeo podem ser analisadas para fins

especiacuteficos mas devem ser apreciadas a partir da unicidade das suas estruturas

literaacuterias meacutetodos de expressatildeo e convenccedilotildees estiliacutesticas (Goshen-Gottstein 2001

p473)

Referindo-se ao conceito de metaacuteforas atribuiacutedas a Deus Goshen-Gottstein

afirma que descrever Deus como Pai no Judaiacutesmo natildeo eacute essencial ou fundamental

Esse conceito tem uma conotaccedilatildeo religiosa e faz parte de um vocabulaacuterio religioso

Ele eacute apenas uma descriccedilatildeo repleta de imagens e metaacuteforas que faz parte de um

vocabulaacuterio religioso que daacute expressatildeo aos sentimentos do povo e que enchem o

espectro de Israel Portanto para Goshen-Gottstein ldquoPairdquo natildeo eacute uma expressatildeo

privilegiada dentro do judaiacutesmo e tambeacutem ldquonatildeo eacute o nome proacuteprio de Deus Antes eacute

uma das inuacutemeras metaacuteforas atraveacutes das quais Israel se refere a Deusrdquo A

paternidade na literatura rabiacutenica eacute sempre vista em relaccedilatildeo a Israel como naccedilatildeo

Embora Goshen-Gottstein afirme tal expressatildeo ele admite que haja casos em que

indiviacuteduos se dirijam a Deus como Pai inclusive em fontes biacuteblicas No entanto natildeo

se encontra em nenhuma fonte Deus sendo considerado Pai de um indiviacuteduo

somente Sempre Deus eacute visto como sendo o Pai de Israel poreacutem isso natildeo

evidencia que a paternidade de Deus natildeo seja estendida a outros fora de Israel pelo

menos natildeo encontramos na literatura rabiacutenica textos que suponham tal expressatildeo

O que Goshen-Gottstein procura deixar claro eacute que a referecircncia rabiacutenica a Deus

como Pai estaacute fundamentalmente fiel ao uso biacuteblico Isso difere de Filo para quem

Deus o Pai eacute tambeacutem Deus o Criador do mundo Para os rabinos a paternidade

divina se refere somente em relaccedilatildeo a Israel ou seja as fontes referem-se a Deus

127

como Pai somente no contexto do relacionamento especial de Israel com Deus

(Goshen-Gottstein 2001 p475)

A representaccedilatildeo metafoacuterica de Deus como Pai de Israel eacute tambeacutem defendida

por Vermes em Jesus e o mundo do Judaiacutesmo Vermes defende que Deus foi

representado metaforicamente como Pai do povo eleito (Israel) natildeo somente na

literatura biacuteblica mas tambeacutem na literatura apoacutecrifa Entre os textos biacuteblicos por ele

citados encontram-se os seguintes ldquoEu sou pai para Israel e Efraim eacute o meu

primogecircnitordquo (Jr 319) ldquoE no entanto Senhor tu eacutes o nosso Pairdquo [] todos noacutes

somos obras de suas matildeosrdquo (Is 647) ldquoSerei para ele um Pai e ele seraacute para mim

um filho e seraacute chamado filho do Deus vivo (Jub 1 24-25) ldquoFiz a vontade do Abba

que estaacute nos ceacuteusrdquo (Lv R 321) ldquoOacute Senhor Pai Soberano (ou Deus) da minha vidardquo

(Sr 23 14) ldquoA tua providecircncia oacute Pai eacute o seu pilotordquo (Sb 14 3) Vermes apoacutes

analisar os textos das fontes mencionadas acima e outros natildeo reluta em afirmar que

a invocaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rica no judaiacutesmo antigo (Vermes 1996 p53)

Analisando as teses de J Jeremias concernentes ao Abba de Jesus Vermes

observa que elas estatildeo sujeitas a questionamentos J Jeremias defende que Abba

quando dirigido a Deus em forma de invocaccedilatildeo natildeo se encontra na oraccedilatildeo judaica

antiga Vermes contudo soacute concordaria com essa tese se fosse possiacutevel analisar

todas as oraccedilotildees individuais e confirmar que em nenhuma delas algum indiviacuteduo

dirigiu-se a Deus em oraccedilatildeo com a forma invocativa do Abba Para Vermes o

seguinte pensamento de David Flusser resume bem os argumentos acima

apresentados ldquoJ Jeremias natildeo conseguiu encontrar o uso de Abba como vocativo

para Deus na literatura talmuacutedica poreacutem considerando a escassez de material

rabiacutenico sobre a oraccedilatildeo carismaacutetica isso natildeo nos diz muita coisardquo (Vermes 1996

p55)

Goshen-Gottstein fazendo referecircncia a Joseph Heinemann justifica a tese de

Vermes de que eacute preciso distinguir a oraccedilatildeo judaica antiga quando era puacuteblica e

coletiva da oraccedilatildeo de um indiviacuteduo Seguindo esse argumento observa-se que a

oraccedilatildeo puacuteblica recorre a linguagem e padrotildees especiacuteficos enquanto que a oraccedilatildeo

quando efetuada pelo indiviacuteduo eacute mais livre e tambeacutem mais carismaacutetica Nesse

sentido o exemplo por excelecircncia de oraccedilatildeo livre e individual eacute a oraccedilatildeo do Senhor

(Goshen-Gottstein 2001 p487)

Dentre os argumentos contraacuterios a visatildeo de J Jeremias temos ainda a

refutaccedilatildeo de Vermes sobre a tese em que J Jeremias defende que Jesus dirigia-se

128

a Deus chamando-o de ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo Para Vermes essa forma invocativa

realmente era usada pelas criancinhas quando essas se dirigiam aos seus pais

Contudo Vermes natildeo concorda que abba ou imma tenha tido uma uacutenica forma

determinada de uso Para ele na eacutepoca de Jesus abba poderia tambeacutem possuir

simplesmente o significado de ldquomeu pairdquo principalmente quando usadas em

situaccedilotildees solenes que natildeo tinham nada de infantil ldquocomo na altercaccedilatildeo imaginaacuteria

entre os patriarcas Judaacute e Joseacute relatado no Targum Palestino quando o furioso Judaacute

ameaccedila o governador [vizir] do Egito (seu irmatildeo que ele natildeo reconhecera) dizendo

Juro pela vida da cabeccedila de abba (meu pai) tal como tu juras pela cabeccedila do Faraoacute

teu senhor que se tirar a espada da bainha natildeo a devolverei mais enquanto a terra

do Egito natildeo tiver coberta de cadaacuteveresrdquo (Vermes 1996 p55)

James Barr tambeacutem eacute de acordo que abba era uma palavra usada por

adultos embora tambeacutem fosse muito usada por crianccedilas Segundo Barr no grego do

Novo Testamento a palavra ldquopaterrdquo (pai) eacute normalmente usada para referir-se a

figura paterna Contudo ele observa que na liacutengua grega tambeacutem havia uma palavra

em particular no diminutivo pertencente agrave fala das crianccedilas um pouco semelhante agrave

palavra Daddy em Inglecircs (papai) Poreacutem mesmo existindo a palavra em grego natildeo

haacute indiacutecio algum de que tal palavra tenha sido usada no Novo Testamento (Barr

1988 p 36-38)

As teorias com visotildees diferentes das de J Jeremias satildeo muitas como temos

visto Vermes conforme vimos acima eacute enfaacutetico ao contrapor J Jeremias

considerando as teses do professor de Gotinga sobre o Abba como incongruentes e

desprovidas de bases linguiacutesticas

[] J Jeremias compreendia que Jesus dirigia-se a Deus por ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo contudo afora a improbabilidade e incongruecircncia a priori dessa teoria parece natildeo haver bases linguiacutesticas para ela As criancinhas falantes de aramaico dirigiam-se aos seus pais por meio de abba ou imma mas esse natildeo era o uacutenico contexto do uso de abba Na eacutepoca de Jesus a forma determinada do nome abba (- ldquoo pairdquo) tambeacutem significava ldquomeu pairdquo ldquomeu pairdquo se bem que ainda atestado em qumran e no aramaico biacuteblico praticamente jaacute desaparecera como forma idiomaacutetica do dialeto galileu (Vermes 1996 p55)

No apecircndice de seu livro ldquoA Religiatildeo de Jesus o Judeurdquo Geza Vermes posta

um resumo da tese de J Jeremias sobre o Abba de Jesus (The Prayers of Jesus de

1967) baseadas em um artigo ldquoAbba natildeo eacute Papairdquo (Abba isnt Daddy) de James

129

Barr Os argumentos de J Jeremias estatildeo expostos da seguinte maneira conforme

transcritos abaixo

a) O termo aramaico eacute ldquouma expressatildeo puramente exclamatoacuteriardquo como em

Pai e natildeo um aspecto enfaacutetico correspondente em inglecircs a um substantivo

acompanhado do artigo definido (= o pai)

b) A origem do Abba se encontra no balbuciar do ldquofalar infantilrdquo A geminaccedilatildeo

ab-ba (ldquoDadaacuterdquo) tem como modelo o chamado mais frequente do bebecirc agrave Im-ma

(ldquoMamardquo)

c) Essa forma de invocaccedilatildeo eacute de tom tatildeo familiar que sua associaccedilatildeo com a

Deidade chocaria os judeus comuns de liacutengua aramaica como ldquodesrespeitosardquo

d) Seu emprego por Jesus era ldquoalgo de novo e inauditordquo

e) Abba no aramaico da Palestina tornou-se uma expressatildeo polivalente As

diversas expressotildees nos Evangelhos em Grego como ldquoo Pairdquo ldquoPairdquo (vocativo) e

tambeacutem ldquomeuteunosso Pairdquo (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)

podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus

Para Vermes se J Jeremias estiver correto isso pode trazer tantas

implicaccedilotildees porque o estilo de Jesus dirigir-se a Deus seria tatildeo peculiar a ponto de

representar um idiossincrasia Vermes prefere entender que J Jeremias

compreendeu mal o Abba de Jesus e ateacute por uma questatildeo de teimosia persistiu

defendo tal tese Ele ainda reafirma que o Abba natildeo era apenas o linguajar infantil

mas poderia ser usado em momentos solenes ou religiosos Vermes cita uma vez

mais James Barr dizendo que ironicamente esse observa ldquoque a teoria de J

Jeremias vinculando Abba agraves crianccedilas considera uma situaccedilatildeo que antedata Jesus

em alguns milecircniosrdquo Para fechar a analogia de Barr Vermes ainda cita-o ldquoComo

Explanaccedilatildeo de Abba nos tempos do Novo Testamento o balbuciar infantil natildeo faz

sentidordquo

A refutaccedilatildeo de Vermes eacute enfaacutetica ou seja explicitamente ele coloca sua visatildeo

teoloacutegica sobre o Abba de Jesus como uma contestaccedilatildeo a todos os argumentos de

J Jeremias Para finalizar Vermes assim resume seu pensamento sobre a teoria de

J Jeremias ldquo[] a teoria de J Jeremias popular ateacute agora natildeo encontra

fundamento filoloacutegico A conclusatildeo literaacuterio-histoacuterica dessa teoria vale dizer que

antes de Jesus os judeus natildeo se dirigiam a Deus como Abba natildeo eacute apenas

incomprovada como tambeacutem implausiacutevelrdquo (Vermes 1995 p163-167)

130

Apoacutes os diversos argumentos contraacuterios a J Jeremias concluiacutemos com

Swidler que fazendo menccedilatildeo de Georg Schelbert observa que aleacutem do termo

abba natildeo havia nenhuma outra palavra a disposiccedilatildeo de Jesus se ele quisesse falar

de Deus ou a Deus como Pai Se essa era a uacutenica forma de Jesus dirigir-se a Deus

entatildeo ela natildeo poderia ter nada de especial como afirma J Jeremias ateacute porque

como mostra Schelbert a Mishnaacute (que significa ensinamento que eacute recitado

oralmente) mostra um relacionamento iacutentimo com Deus como o Pai do Ceacuteu (Swidler

1993 p73-75) Em relaccedilatildeo ao termo abba Barr conclui que eacute razoaacutevel que abba no

tempo de Jesus pertencia a uma linguagem familiar ou coloquial distinto do uso

formal e cerimonioso mas por outro lado tendo em vista o uso do Targum seria

imprudente comparaacute-la a expressatildeo infantil Daddy (papai) O uso do abba era mais

solene podemos dizer que estava mais relacionado ao uso do adulto para com seu

Pai (Barr 1988 p 46)

62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA

LEITURA A PARTIR DA TEOLOGIA FEMINISTA

A figura feminina sempre foi discriminada pelas sociedades patriarcais ao

longo dos seacuteculos da histoacuteria da humanidade Podemos dizer que o cristianismo um

importante movimento de massa a pregar a liberdade e a igualdade entre os homens

e mulheres ldquoNatildeo haacute judeu nem grego natildeo haacute escravo nem livre natildeo haacute homem

nem mulher pois todos voacutes sois um soacute em Cristo Jesusrdquo (Gl 3 28) 69 Eacute comum

ouvirmos que Jesus libertou as mulheres uma vez que em seu ministeacuterio o mestre

da Galileia teve como disciacutepulas vaacuterias mulheres inclusive como jaacute mencionamos

neste trabalho (53) Maria Madalena (cf Lc 8 2 2410)

Elisabeth Schuumlssler Fiorenza referindo-se a Leonard Swidler vai mais aleacutem

quando afirma que Jesus foi um feminista e isso foi primeiramente atestado por um

estudioso homem e natildeo por uma mulher70 Schuumlssler Fiorenza apela para o fato de

Jesus ter tido disciacutepulas e tambeacutem ter violado as leis de pureza (algo que era

69

Swidler refere-se a esse texto de Paulo como uma contestaccedilatildeo a uma oraccedilatildeo rabiacutenica que diz ldquoLouvado seja Deus por natildeo me ter criado gentio Louvado seja Deus por natildeo ter me criado mulher Louvado seja Deus por natildeo ter me criado ignoranterdquo (Swidler 1993 p 101)

70 Basicamente para Swidler feminista eacute a pessoa a favor da igualdade de homens e mulheres ou

seja a pessoa que trata primeiramente a mulher como uma pessoa assim como os homens satildeo tratados (Swidler 1993 p100)

131

contraacuterio aos rabinos judeus) como argumento para fundamentar a tese de um

Jesus feminista (Schuumlssler Fiorenza 2005 p 37)

Contudo para Swidler a atitude feminista era uma exclusividade de Jesus e

natildeo dos evangelistas e suas fontes Para ele a Igreja primitiva tornou-se

rapidamente antifeminista como pode ser visto em textos como ldquo[] estejam as

mulheres caladas nas assembleias pois natildeo lhes eacute permitido tornar a palavra

Devem ficar submissas como diz tambeacutem a Lei (1Cor 14 34)rdquo Swidler ainda cita

outro texto (1Tm 2 11-12) que diz que ldquodurante a instruccedilatildeo a mulher conserve o

silecircncio com toda a submissatildeo Natildeo permito que a mulher ensine ou domine o

homem Que ela conserve o silecircnciordquo Para Swidler a Igreja natildeo soacute se tornou

antifeminista como tambeacutem se tornou misoacutegina uma vez que aleacutem dos textos acima

mencionados jaacute no II seacuteculo Tertuliano refere-se agraves mulheres com as palavras ldquosois

o portatildeo do diabordquo Natildeo bastasse Tertuliano Oriacutegenes afirma que ldquoaquilo que eacute visto

com os olhos do criador eacute masculino e natildeo feminino pois Deus natildeo se curva para

olhar aquilo que eacute feminino e da carnerdquo (Swidler 1993 p106)

Tal afirmaccedilatildeo (Jesus libertou as mulheres) eacute muito bem aceita entre as

teoacutelogas feministas e por todos que defendem essa teoria Para Schuumlssler Fiorenza

Jesus natildeo somente libertou as mulheres da degradaccedilatildeo imposta pela sociedade

judaica patriarcal da antiguidade (apesar dessa tese ser considerada como

historicamente falsa e antijudaica pelas teoacutelogas feministas judias) como tambeacutem o

proacuteprio Jesus era um feminista (Fiorenza 2005 p110)

Conforme Swidler a condiccedilatildeo das mulheres na sociedade contemporacircnea de

Jesus na Palestina era sem duacutevida de inferioridade em relaccedilatildeo aos homens

Segundo Swidler natildeo obstante o fato de ter havido vaacuterias heroiacutenas nas Escrituras

hebraicas natildeo impediu que nos dias de Jesus e ateacute muito tempo depois natildeo fosse

concedido agraves mulheres a permissatildeo de estudar a Toraacute Swidler citando um texto da

Mishnaacute (Sita 34) refere-se a um rabino do seacuteculo I chamado Eliezer que

pronunciou as seguintes palavras referindo-se agraves mulheres ldquoAs palavras da Toraacute

deveriam antes ser queimadas do que confiadas a uma mulher [] todo aquele que

ensina a Toraacute a sua filha eacute como aquele que lhe ensina a lasciacuteviardquo (Swidler 1993

p100-101)

As mulheres no templo de Jerusaleacutem estavam limitadas agrave parte externa ou

seja ficavam no paacutetio das mulheres que estavam cinco degraus abaixo do paacutetio dos

homens Nas sinagogas aleacutem de ficarem separadas dos homens natildeo tinham

132

permissatildeo para ler em voz alta muito menos assumir alguma funccedilatildeo de lideranccedila

Swidler cita Filon contemporacircneo de Jesus que pensava que as mulheres natildeo

deviam sair de casa a uacutenica exceccedilatildeo era para ir agrave sinagoga e preferencialmente

em horaacuterios em que a maioria das pessoas estivessem em casa De uma maneira

geral as mulheres serviam apenas para ter filhos estavam sempre sob a tutela de

um homem que seria o marido ou no caso de viuvez sob a tutela do irmatildeo do

falecido sem contar com o fato de que tinham que se sujeitar a poligamia (ainda que

natildeo muito praticada nos dias de Jesus) eram facilmente repudiadas com a carta de

divoacutercio poreacutem natildeo tinham permissatildeo para se divorciarem Enfim ldquoa condiccedilatildeo das

mulheres na Palestina era aquela dos inferioresrdquo (cf Swidler 1993 p102-104)

A teologia de J Jeremias referente agrave relaccedilatildeo de Deus como Pai nos laacutebios de

Jesus de Nazareacute71 natildeo eacute aceita em algumas correntes teoloacutegicas como por

exemplo pelos defensores da teologia feminista72 Poreacutem quando falamos do

movimento feminista natildeo significa que exista um uacutenico ponto de vista sobre um

mesmo pensamento teoloacutegico Algumas feministas que adotam o pensamento de

reforma da tradiccedilatildeo o qual implica em conservar o que eacute melhor ao inveacutes de

simplesmente imitar as tradiccedilotildees lutam por uma reforma e uma flexibilidade na

linguagem da igreja quando o assunto se refere agrave pessoa de Deus argumentando

que o uso exclusivo da imagem masculina natildeo faz justiccedila agrave imagem biacuteblica de Deus

mas limita o acesso ao entendimento que temos de Deus Para essa corrente

feminista a imagem de Deus natildeo estaacute relacionada a gecircnero visto que Deus pode

ser visto tanto como pai e como matildee segundo Marianne Thompson para uma parte

dessas feministas e ainda para outras portanto a ideia central natildeo eacute descartar a

71 Elisabeth Schuumlssler Fiorenza observa que os livros e artigos sobre ldquoJesus e as mulheresrdquo se

proliferam contudo ela cita Crossan quando este acusa as feministas pela falta de interesse na busca pelo Jesus histoacuterico Crossan pergunta onde estatildeo elas Schuumlssler responde ldquoCrossan natildeo pode reconhecer as afinidades entre seu proacuteprio modelo de reconstruccedilatildeo histoacuterica e o meu modelo feminista (cf Schuumlssler 2005 p 30)

72 Haight coloca que a teologia feminista eacute por muitos comparada agrave teologia da libertaccedilatildeo uma vez

que compartilham de ideais e estrutura formal comum no que diz respeito agrave libertaccedilatildeo e tambeacutem a maioria dos pobres no mundo eacute constituiacuteda de mulheres ldquo[] No que tange agrave loacutegica hermenecircutica da teologia portanto as teoacutelogas feministas podem referir-se a si mesmas como teoacutelogas da libertaccedilatildeo [] Na medida em que o androcentrismo controla o significado de Jesus cristo a cristologia feminista eacute levada a questionar como uma figura masculina de Salvador pode oferecer a salvaccedilatildeo agraves mulheres Em termos mais amplos contudo a cristologia feminista ocupa-se de toda a forma de opressatildeo e de suas inter-relaccedilotildees O Deus mediado por Jesus Cristo coloca em xeque todo poder de dominaccedilatildeo Natildeo era o sexo mas o gecircnero como categoria cultural que tinha primazia e era parte da ordem das coisas O significado de homem e de mulher era determinado pela posiccedilatildeo na hierarquia social e pelo lugar que se ocupava na sociedade natildeo pela genitaacuteliardquo (cf Haight 2003 p37)

133

linguagem de Deus como Pai mas apenas incluir essa com outra variedade de

imagens de Deus (Thompson 2000 p 3)

Para outras feministas no entanto nenhum acordo sobre a questatildeo da

imagem paterna de Deus pode ser atingido facilmente pois tais questotildees natildeo

podem ser tatildeo facilmente resolvidas e as respostas necessaacuterias satildeo muito radicais

pois trariam uma postura revolucionaacuteria para a tradiccedilatildeo Para elas o uso histoacuterico

que a Igreja tem da linguagem exclusivamente masculina de Deus deve ser

inteiramente refeito73 Em vez de buscar as reformas dentro das estruturas atuais da

igreja ou dentro de construccedilotildees teoloacutegicas tradicionais essas feministas oferecem

uma pauta mais radical o que tem implicaccedilotildees natildeo apenas para a linguagem sobre

Deus mas tambeacutem para o carater baacutesico de toda a teologia e feacute cristatilde Algumas

feministas satildeo mais radicais ainda pois explicitamente rejeitam as tradiccedilotildees da feacute

cristatilde afirmando que os textos cristatildeos e a feacute satildeo inevitavelmente e

intoleravelmente patriarcal elas abandonaram o cristianismo por completo

(Thompson 2000 p 4)

Para Thompsom (2000 p 18) a designaccedilatildeo de Deus como Pai natildeo eacute

invenccedilatildeo de Jesus e nem criaccedilatildeo da Igreja primitiva A designaccedilatildeo de Deus como

Pai faz parte de ambos os Testamentos ou como o Pai que eacute o ancestral que daacute a

vida e lega uma heranccedila aos seus filhos ou como o Pai que ama e cuida dos seus

filhos ou ainda como o Pai que eacute uma figura de autoridade a quem se deve

obediecircncia e honra Thompsom afirma que Jesus dirigiu-se a Deus como Pai em

primeira instacircncia natildeo como um mero testemunho de sua proacutepria experiecircncia de

Deus mas ao inveacutes disso pelas suas proacuteprias convicccedilotildees de Deus como renovador

e restaurador de Israel ou seja isso natildeo era fruto de uma experiecircncia privada mas

assunto de uma missatildeo puacuteblica Essa afirmaccedilatildeo de Thompson natildeo se coaduna com

o pensamento de J Jeremias para quem a relaccedilatildeo de Jesus com o Pai era iacutentima e

pessoal

Nesse sentido Mary Rose DAngelo ao analisar o texto do Evangelho de

Marcos 1436 quando Jesus invocava o Pai (Ἀββᾶ ὁ πατήρ) ela observa que a

73

Elisabeth Schuumlssler Fiorenza em seu livro Jesus e a poliacutetica da interpretaccedilatildeo coloca uma teoria polecircmica ou pelo menos curiosa Segundo Schuumlssler os antropoacutelogos tecircm assinalado que nem todas as culturas e liacutenguas conhecem dois sexosgecircneros e que mesmo em culturas ocidentais isso eacute coisa da modernidade ldquoDurante milhares de anos considerava-se comum que as mulheres tivessem o mesmo sexo e os mesmos oacutergatildeos genitais que os homens estando a diferenccedila no fato de se acharem no interior do corpo ao passo que os dos homens estavam no exterior A vagina era entendida como um pecircnis interior os laacutebios como prepuacutecio o uacutetero como saco escrotal e os ovaacuterios como testiacuteculosrdquo (cf Schuumlssler 2005 p9)

134

oraccedilatildeo contida nesse texto pode ser apenas redacional visto que tal oraccedilatildeo ocorreu

no cenaacuterio do Getsecircmani onde Jesus estava naquele momento sem os seus

disciacutepulos portanto eles natildeo estavam laacute para ouvir e descrever o momento de sua

agonia Ela concorda com a teoria de que a narrativa desse cenaacuterio poderia ser

apenas um soliloacutequio dramaacutetico de Jesus ou entatildeo uma repeticcedilatildeo da oraccedilatildeo de

Joseph (4Q372 1 23-24) onde ele suplica para que Deus natildeo lhe abandone Para

D`Angelo a narrativa de Marcos tende muito para o lado emotivo procurando

dessa forma colocar Jesus como o verdadeiro Filho de Deus e grande maacutertir da

histoacuteria do judaiacutesmo conforme os livros Sabedoria de Salomatildeo e 3 Macabeus (D`

Angelo 1992b p159) Em outro artigo (Abba and ldquoFatherrdquo Imperial Theology and

the Jesus Traditions) D Angelo reafirma seu argumento sobre o cenaacuterio do

Getsecircmani dizendo ldquoEsta eacute uma cena da revelaccedilatildeo entre Jesus e leitor os

disciacutepulos estatildeo laacute para relatar a agonia de Jesus Assim a atribuiccedilatildeo de abba a

Jesus natildeo tem muacuteltipla atestaccedilatildeo Na verdade ocorre apenas em uma cena que

quase certamente deriva da atividade literaacuteria de Marcosrdquo (D` Angelo 1992a p614-

615)

Segundo D Angelo o uso do Abba pela Igreja primitiva natildeo eacute uma heranccedila dos

ensinamentos de Jesus como acreditam alguns teoacutelogos De acordo com essa

autora o uso do Abba na Igreja primitiva era mais uma questatildeo de ecircxtase provocada

por uma accedilatildeo do Espiacuterito Santo do que uma referecircncia agraves palavras ditas por Jesus

Para a autora se o Abba usado nas igrejas tivesse uma ligaccedilatildeo direta com Jesus

entatildeo seriamos obrigados a aceitar que outras palavras de origem aramaica como

Maranatha tambeacutem seriam provenientes dos discursos do mestre (D Angelo 1992a

p 615)

Um outro argumento defendido por D` Angelo eacute que o uso da expressatildeo ldquoAbba

Pairdquo no Evangelho de Marcos eacute anti-imperialista visto que o Imperador de Roma

considerava-se o pai da paacutetria (parens patriae pater patriae) preferindo ser

reconhecido com o tiacutetulo de pai ao tiacutetulo de rei designaccedilatildeo esta que natildeo soava bem

aos ouvidos do povo romano (D` Angelo 1992a p623-630) De fato de acordo com

DAngelo foi concedido a Juacutelio Cesar ainda em vida o tiacutetulo de ldquopaterldquo (pai) o qual

buscava estabelecer uma relaccedilatildeo de devoccedilatildeo (pietas) entre ele e o povo romano

Isso se deve ao fato que o uso de pater subentende o impeacuterio como uma grande

famiacutelia na qual o imperador funciona como um paterfamilias e cuja autoridade eacute

baseada em sua habilidade de reger todo o povo romano como seus clientes Ainda

135

seguindo com essa visatildeo imperialista observa-se que Augusto adquiriu oficialmente

o tiacutetulo pater patriae no ano 2 aC

No intuito de descrever o caraacuteter dos imperadores DAngelo aponta que

Cassius Dio o qual acreditava que os tiacutetulos supracitados representavam mais

afeiccedilatildeo do que autoridade tratou augustus e pater como duas denominaccedilotildees

atraveacutes das quais os imperadores primeiro permitiam a si mesmos serem

distinguidos do resto dos cidadatildeos substituindo o tiacutetulo ldquoreirdquo por tais designaccedilotildees

cujas essecircncias soariam de maneira menos ofensiva aos ouvidos dos romanos De

acordo com Dio o termo pater concorda com a ideia que o Imperador tem a mesma

autoridade que um pai tem sobre seus filhos escravo e outros sujeitos

Por outro lado dois filoacutesofos estoicos do primeiro e segundo seacuteculos nos

ajudam a entender como o tiacutetulo pai concedido ao Imperador poderia sofrer uma

reaccedilatildeo com o pensamento teoloacutegico da eacutepoca Para Dio Crisoacutestomo ldquoDeus como

pai racionaliza o governo imperial e convida-o a adotar um coacutedigo de eacutetica de

clemecircncia e de responsabilidaderdquo ao descrever que o bom rei eacute aquele que prefere a

labuta aos prazeres e as riquezas Tal rei prefere o tiacutetulo ldquopairdquo ao referir-se agrave sua

capacidade de provisatildeo Jaacute Epiacuteteto ldquousa a paternidade de Deus para oferecer uma

dignidade alternativa para aqueles que natildeo tecircm acesso ao poder dentro da ordem

imperialrdquo Esses dois autores satildeo importantes para o cristianismo primitivo e para o

judaiacutesmo natildeo pela influecircncia que exerceram sobre eles mas porque respondem as

mesmas realidades poliacuteticas

Um outro argumento de DAngelo com relaccedilatildeo ao uso de Abba por Jesus eacute

que o mesmo natildeo pode ser explicado apenas como uma relaccedilatildeo afetiva entre pai e

filho mas tambeacutem reflete a praacutetica carismaacutetica da comunidade na qual Marcos

estava inserido assim como ocorreu nas igrejas de origem grega da Galaacutecia e em

Roma (Gl 46 Rm 816) onde o uso da palavra ldquoAbbardquo eacute fruto da accedilatildeo do Espiacuterito

Santo

D`Angelo justifica essa tese a partir do fato que segundo ela J Jeremias

tomou como base em seus estudos apenas os textos provenientes de oraccedilotildees e

ainda excluiu textos em grego os quais ele considerou serem oraccedilotildees feitas pela

comunidade e natildeo como fruto de uma accedilatildeo do indiviacuteduo (D`Angelo 1992b p151)

Para dar suporte a esse argumento D`Angelo faz referecircncia ao texto de 4Q372 1

originalmente escrito em hebraico no qual Joseph invoca a Deus chamando-o de

meu Pai ldquoMeu Pai e meu Deus natildeo me abandone nas matildeos das naccedilotildees faccedila

136

justiccedila por mim o aflito e pobre pereciacutevel Vocecirc natildeo precisa de nenhuma pessoa ou

naccedilatildeo para lhe ajudar seu dedo eacute maior e mais forte do que qualquer coisa no

mundordquo (Vermes 2004 p566) Ela ainda cita outros textos onde Deus eacute invocado

como Pai (3 Mac 6 3-4 78 Sab 143 1 QH 935)

Embora alguns desses textos tenham sido escritos em grego quando lidos no

contexto de 4Q372 1 e 4Q460 5 DAngelo observa os textos hebraicos e gregos

mostram que era uma praacutetica comum tanto da comunidade quanto do indiviacuteduo

dirigir-se a Deus em oraccedilotildees chamando-o de Pai (D`Angelo 1992b p 152) Dessa

forma ela entende que o conceito de Deus como Pai sempre esteve presente no

judaiacutesmo antigo influenciando toda a literatura judaica da eacutepoca (DAngelo 1992a

618)

Face aos argumentos acima expostos D Angelo conclui que a originalidade

do uso do Abba natildeo pode ser atribuiacutedo a Jesus com toda certeza e mais ainda

segundo ela seria menos provaacutevel que Jesus usasse o termo pai numa linguagem

familiar do que em resistecircncia agrave ordem do Impeacuterio romano

Finalmente considerando os argumentos apresentados a partir da

interpretaccedilatildeo feminista Thompson conclui que tanto Jesus como a Igreja primitiva

natildeo deram origem ao conceito de Deus como Pai Aleacutem disso apesar das

caracteriacutesticas do Pai no Israel antigo serem utilizadas para falar de Deus como Pai

elas nunca estiveram ligadas a uma essecircncia masculina de Deus mas servem como

exemplo de feacute misericoacuterdia justiccedila humildade bem como responsabilidade

individual e corporativa e obediecircncia a Deus para a comunidade (Thompson 2000

p 19)

137

7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Naquela noite em sonhos Joseacute teve um aviso O Evangelista natildeo diz em que cidade ou lugar a famiacutelia se encontrava Natildeo devia ser do lado norte e talvez fosse mesmo nas montanhas do sul fora do alcance das batidas policiais de Herodes Suponhamos que fosse na estrada do Heacutebron Com a cabeccedila reclinada sobre uma pedra o carpinteiro adormece E eis que o anjo do Senhor (aquele mesmo que lhe confiara a guarda de Jesus) lhe diz - Levanta-te e toma o menino e sua matildee e foge para o Egito e demora-te laacute ateacute que eu diga porque Herodes haacute de procurar o menino para o matar Joseacute desperta Sobre os montes luzem os primeiros alvores da madrugada Prepara o alforje avisa Maria para que tambeacutem se prepare porque longa eacute a viagem [] Joseacute sela o jumento acomoda Maria e o Menino sobre o animal Toma o bordatildeo E parte A viagem prolonga-se por muitos dias pela Idumeacuteia pelas montanhas de Sin pelo deserto de Sur Uma tarde sobre as colinas a cavaleiro do Nilo avistam as piracircmides de Miquerinos de Queacutefren e de Queops grandiosas e silenciosas no ar trecircmulo de mormaccedilo Junto agrave piracircmide de Miquerinos olhando para o abismo do ceacuteu e para a amplitude do deserto uma cabeccedila gigantesca de pedra tem indefiniacutevel indecifraacutevel expressatildeo Eacute a grande esfinge [] Os egiacutepcios viam naquele rochedo a imagem humana do sol Os gregos viam naquela imagem o monstro proponente de problemas insoluacuteveis (Salgado 1985 p67-69)

Em tom poeacutetico Plinio Salgado narra a histoacuteria da fuga do menino Jesus e

seus pais para o Egito conforme o texto do Evangelho de Mateus que diz ldquo[] eis

que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonhos a Joseacute e lhe disse Levanta-te toma

o menino e sua matildee e foge para o Egitordquo (Mt 213) Salgado usa o mito da esfinge74

para relacionar com o mito de Eacutedipo onde o enigma eacute decifrado pelo personagem

Eacutedipo75 Para Salgado Eacutedipo decifrou a Esfinge mas natildeo decifrou o homem que

continua nas trevas

A pergunta do monstro na estrada de Tebas refere-se ao homem ldquoQual eacute o animal que pela manhatilde anda com quatro pernas ao meio-dia com duas e agrave

74

Segundo Plinio Salgado o mito da Esfinge rezava que enquanto ser vivente misto de leatildeo e de mulher a Esfinge andava pelas estradas de Tebas devorando os viajantes que eram incapazes de responder as suas perguntas enigmaacuteticas Contudo o monstro morreria quando algueacutem decifrasse seu enigma

75 O mito de Eacutedipo pode ser visto com detalhes no claacutessico Antiacutegona de Soacutefocles

138

tarde com trecircsrdquo Eacutedipo responde ldquoEacute o homemrdquo e respondendo revela que toda a preocupaccedilatildeo da Esfinge eacute o gecircnero humano Decifrar a Esfinge eacute a preocupaccedilatildeo do homem Decifrar o homem eacute a preocupaccedilatildeo da Esfinge (Salgado 1985 p67-69)

Conforme Salgado a trageacutedia de Eacutedipo eacute a trageacutedia do homem Somente

Jesus decifraraacute a ldquoEsfinge-Homem e iluminaraacute todo o universordquo

A histoacuteria da humanidade eacute repleta de trageacutedias desde as suas origens Jaacute

nos primeiros capiacutetulos do Gecircnesis vemos Abel sendo viacutetima de seu irmatildeo Caim 76

Diante de tantas cataacutestrofes o homem procura refuacutegio em um ser sobrenatural que

possa amenizar seu sofrimento e dar-lhe alguma explicaccedilatildeo para o porquecirc de tantos

desalentos nesta vida

A relaccedilatildeo do ser humano com o Ser sobrenatural faz parte da cultura de todos

os povos antigos como vimos no primeiro capiacutetulo deste trabalho Isso nos mostra o

anseio do ser humano em busca do seu criador Observamos que para os povos

antigos Deus era visto como um ancestral divino ou seja o homem era visto como

descendente da divindade Essa relaccedilatildeo entre o homem primitivo e a deidade nos

povos antigos era sempre marcada por sangue violecircncia guerra entre os deuses

ateacute o surgimento do homem como vimos no mito sumeacuterio babilocircnico em que o

homem proveacutem do sangue de um deus decaiacutedo chamado Kingu

Em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem na narrativa do Gecircnesis verificamos que o

proacuteprio Deus eacute quem modela e cria o homem a partir do barro (argila) O homem

entatildeo recebe a vida atraveacutes do sopro divino Essa relaccedilatildeo tatildeo proacutexima entre criatura

e criador eacute descrita nas Escrituras de uma forma progressiva desde o Gecircnesis ateacute

os escritos neotestamentaacuterios Agrave medida que Deus se revela ao homem este se

aproxima mais dele Aos patriarcas Deus eacute o El Shaday (Todo Poderoso) mas jaacute a

Moiseacutes ele revela o seu proacuteprio Nome Ele eacute o ldquoEu Sourdquo o Yahweh

Mesmo Yahweh sendo um Deus proacuteximo Ele ainda eacute visto no Antigo

Testamento como figura de um Senhor Criador o Todo Poderoso que luta e peleja

por Israel mas que ao mesmo tempo em que defende seu povo pune-os e os

entrega nas matildeos dos inimigos quando esses se desviam dos seus mandamentos

J Jeremias sabiamente observa que no Antigo Testamento a relaccedilatildeo de Israel com

Deus natildeo eacute vista como o relacionamento de pai para filho principalmente por parte

76

Cf Gn 4 1-16

139

do indiviacuteduo Deus sempre se apresenta como o Pai do rei ou entatildeo como o Pai da

naccedilatildeo Mesmo que Pai seja uma das muitas metaacuteforas para Deus como afirma

Goshen-Gottstein dificilmente podemos contestar a tese de J Jeremias uma vez

que uma clara invocaccedilatildeo de Deus como Pai feita por algum indiviacuteduo no Antigo

Testamento eacute difiacutecil de ser encontrada

Em relaccedilatildeo ao Novo Testamento observamos que Jesus que conviveu em

uma sociedade muito pobre carregada de preconceitos viu na expressatildeo Abba a

forma por excelecircncia para projetar nela o modelo de uma verdadeira e iacutentima

relaccedilatildeo entre filho e pai O fato de Jesus ter sofrido preconceitos como em sua

infacircncia adolescecircncia e ateacute na vida adulta por causa da sua filiaccedilatildeo humana natildeo o

impediu de demonstrar o quanto a sua relaccedilatildeo com o Pai divino era estreita e isso

estava acima de todos os preconceitos concebidos dentro de uma sociedade cheia

de costumes rigidamente observados a ponto de natildeo mais compreenderem o

verdadeiro sentido do amor a Deus e ao proacuteximo conforme era a verdadeira

vontade de Deus expressa nos ensinamentos do mestre da Galileia

Embora Joseacute tenha assumido a paternidade de Jesus isso natildeo foi suficiente

para impedir o preconceito contra ele em relaccedilatildeo a sua filiaccedilatildeo humana Contudo

quando Bruce Chilton potildee a questatildeo relacionada agrave possibilidade de Jesus ter sido

considerado um Mamzer a partir da interpretaccedilatildeo do texto do Evangelho de Joatildeo 8

40-41 onde os Judeus fazem a seguinte afirmaccedilatildeo a Jesus ldquo[] natildeo nascemos da

prostituiccedilatildeo temos um soacute pai Deusrdquo podemos tambeacutem olhar esse texto a partir de

uma interpretaccedilatildeo de uma Cristologia alta ou seja aqui o debate entre Jesus e os

judeus tem como ponto principal a filiaccedilatildeo divina onde Jesus se coloca como o

Verbo divino preexistente Poreacutem eacute bem verdade que isso natildeo anula o pensamento

de Chilton em relaccedilatildeo agrave possiacutevel discriminaccedilatildeo sofrida por Jesus levando em

consideraccedilatildeo o contexto a eacutepoca a cultura e o ambiente social em que Jesus viveu

durante o periacuteodo da infacircncia ateacute a vida adulta

Aleacutem disso podemos dizer com Martins Terra que a vida de Cristo eacute a

Revelaccedilatildeo do Pai que pode ser demonstrada nas palavras no silecircncio e nos

sofrimentos de Jesus Martins Terra observa que essa relaccedilatildeo eacute plena de intimidade

como pode ser visto nas palavras do proacuteprio Mestre ldquoAquele que me viu viu o Pairdquo

(Jo 149) e da mesma forma o Pai tambeacutem pode dizer assim do Filho ldquoEste eacute o

140

meu Filho muito amado ouvi-o (Lc 935)rdquo Notamos aqui que a relaccedilatildeo de Jesus

com o Pai eacute desde a eternidade onde o Verbo divino jaacute estava presente com o Pai

na criaccedilatildeo de todas as coisas (Martins Terra 2009 p283-284)

Para Martins Terra assim como para J Jeremias o Abba de Jesus eacute o

modelo da perfeita relaccedilatildeo dos filhos de Deus com o Pai do ceacuteu Assim como Jesus

relacionou-se com o Pai divino seus disciacutepulos tambeacutem o poderatildeo desde que se

aproximem e ldquoamem a Deus acima de todas as coisas e o proacuteximo como a si

mesmordquo Eacute na oraccedilatildeo do Pai Nosso que Jesus ensina como os disciacutepulos devem

orar em uma estreita ligaccedilatildeo com o Abba conforme nos descreve Martins Terra

[] Os disciacutepulos ficam impressionados com a oraccedilatildeo de Jesus Ele chamava a Deus de Aba (Mc 14 36) que natildeo eacute um termo usado nas oraccedilotildees judaicas Aba eacute um diminutivo aramaico que significa ldquopapairdquo Eacute a expressatildeo de uma crianccedila dirigindo-se a seu progenitor Jesus natildeo pode desde o inicio revelar o misteacuterio da Santiacutessima Trindade e de sua pessoa divina Esse misteacuterio natildeo tinha sido revelado no AT Foi invocando a Deus como Aba ldquomeu Pairdquo que Jesus foi levantando aos poucos o veacuteu que ocultava o misteacuterio da trindade e do seu relacionamento filial uacutenico com o Pai (Martins Terra 2009 p283-284)

Aleacutem disso de acordo com James D G Dunn podemos dizer com confianccedila

que Jesus experimentou uma iacutentima relaccedilatildeo com Deus expressa atraveacutes da oraccedilatildeo

Ele se relacionou com Deus caracteristicamente como Filho e Pai e o sentido dessa

relaccedilatildeo com Deus era tatildeo real tatildeo amorosa e tatildeo atraente que Jesus sempre se

dirigiu a Deus dessa maneira chamando-o de Pai ldquoAbba foi o grito que veio mais

naturalmente aos laacutebios de Jesusrdquo (Dunn 1997 p26)

Segundo J Jeremias para compreendermos o Abba como a ipsissima vox de

Jesus eacute preciso observar a origem de sua liacutengua materna Conforme observamos

no decorrer desta pesquisa haacute alguns pesquisadores que defendem que a liacutengua

corrente nos dias de Jesus era o hebraico e por sinal tambeacutem falada por Jesus

Esse argumento natildeo eacute seguido pela maioria dos especialistas do Novo Testamento

bem como por J Jeremias A liacutengua falada por Jesus era do ldquoramo ocidental da

famiacutelia linguiacutestica aramaicardquo J Jeremias para embasar sua tese menciona

respeitaacuteveis nomes como J Wellhausen Jouumlon Matthew Black e principalmente G

Dalman (Jeremias 2008 p32-33) que ldquoapresentou a prova baacutesica para este fatordquo

Tendo Dalman ainda como referecircncia J Jeremias afirma que natildeo eacute possiacutevel mais

141

duvidar que o aramaico ou para ser mais preciso ldquoo dialeto galileu do aramaico

ocidentalrdquo era a liacutengua materna de Jesus

As evidecircncias aramaicas satildeo evidentes nos ditos de Jesus por outro lado

praticamente natildeo se encontra palavras em hebraico ditas por ele nem mesmo o

ldquoAmenrdquo ou ldquoEliacuterdquo uma vez que essas palavras foram absorvidas pelo aramaico

(Jeremias 2008 p36) J Jeremias admite que em alguns poucos casos

encontramos palavras hebraicas nos laacutebios de Jesus mas sempre em situaccedilotildees

solenes como as palavras proferidas na uacuteltima ceia em liacutengua sacra

A importacircncia do aramaico como a primeira liacutengua de Jesus encontra-se na

possibilidade de nos aproximarmos o quanto possiacutevel do modo de falar do mestre

ou seja voltarmos ldquoagraves caracteriacutesticas da dicccedilatildeo de Jesus que natildeo possuem

nenhuma analogia na literatura da eacutepoca e que por isso podem ser consideradas

como marcas da ipsissima vox de Jesusrdquo (cf Jeremias 2008 p 68-79) Entre as

particularidades de Jesus concernentes agrave fala encontramos as seguintes

peculiaridades conforme J Jeremias

1 - As paraacutebolas de Jesus satildeo exclusividade dele natildeo encontradas em toda a

literatura judaica do Antigo ou do Novo Testamento quer canocircnica ou apoacutecrifa Nas

paraacutebolas de Jesus natildeo se encontra nenhuma faacutebula ou seja ele nunca coloca

uma videira ou figueira para falar Suas paraacutebolas (mesmo contendo metaacuteforas do

Antigo Testamento) tinham por maior finalidade atingir o coraccedilatildeo pulsante do ouvinte

e tratar de assuntos relacionados ao dia-a-dia da vida do ser humano

2 - Os ditos enigmaacuteticos como o proferido sobre Joatildeo Batista ldquoo maior entre

os nascidos de mulher eacute ao mesmo tempo o menor no reino de Deusrdquo (Mt11 11)

eram incomuns nos dias de Jesus seja entre os mestres ou ateacute mesmo dos

primeiros cristatildeos que natildeo inventaram tais ditos mas apenas os tornaram mais

evidentes

3 ndash A expressatildeo ldquoreino de Deusrdquo eacute escassa na literatura judaica antiga

recebendo um aumento apenas na literatura rabiacutenica Contudo nos Evangelhos natildeo

soacute o aumento mas a forma que Jesus usa as expressotildees relacionadas ao reino de

Deus satildeo profundamente marcantes para se caracterizar como a ipsissima vox de

Jesus conforme encontramos em textos como Mateus 519 11 12 Marcos 115

Lucas 112 1231 1721 etc

142

4 ndash O termo Ameacutem como jaacute foi mencionado nesta pesquisa (54) no Antigo

Testamento era usado como foacutermula solene para confirmar ldquouma palavra de benccedilatildeo

maldiccedilatildeo ou desejordquo Nos laacutebios de Jesus o termo eacute usado para testificar as

proacuteprias palavras do falante e natildeo de outrem J Jeremias conclui sobre o ameacutem

com as seguintes palavras ldquoA novidade desse uso linguiacutestico sua estrita restriccedilatildeo

agraves palavras de Jesus e o testemunho unacircnime de todas as camadas da tradiccedilatildeo

evidenciam que nos deparamos com uma inovaccedilatildeo linguiacutestica nos laacutebios de Jesusrdquo

5 ndash E por uacuteltimo temos o Abba proferido por Jesus Abba eacute a mais importante

palavra pronunciada por Jesus quando invocava a Deus com o Pai eacute o modo

preferido de Jesus para referir-se ao Pai Dificilmente poderiacuteamos interpretar o Abba

de Jesus como faz Malina comentando o Abba natildeo eacute paizinho de James Barr

Como tem sido demonstrado por James Barr (1988) a palavra aramaica Abba natildeo significa ldquopaizinhordquo como no hebraico moderno Tanto na traduccedilatildeo do Novo Testamento (Abba = ho pater Mc 14 36 Rm 815 Gl46) quanto de honra No patriarcado ele implica tambeacutem distacircncia Deus natildeo eacute um paizinho mas um patrono Na religiatildeo poliacutetica pregada por Jesus o deus de Israel eacute o patrono de Israel (cf Malina 2004 p145)

Compreende-se portanto que o Abba proferido por Jesus eacute ipsissima vox

Julgar J Jeremias alegando que ele considerou o linguajar de Jesus infantil natildeo eacute

cabiacutevel dentro do contexto de toda a sua teologia J Jeremias defende-se dessa

acusaccedilatildeo que a princiacutepio ateacute poderia ser justa uma vez que ele admite que jaacute

chegou a acreditar que Jesus tenha assumido a linguagem das criancinhas quando

se dirigia a Deus Pai como ele mesmo admite ldquoeu tambeacutem acreditei nissordquo

contudo agora natildeo mais jaacute que nas proacuteprias palavras desse teoacutelogo ele assim

admite ldquoa constataccedilatildeo de que jaacute desde os tempos preacute-cristatildeos os filhos e filhas

adultos se dirigiam a seus pais chamando-os de Abba proiacutebe esta limitaccedilatildeordquo

(Jeremias 2008 p121)

Portanto no Abba de Jesus natildeo haacute espaccedilos para patriarcados exclusivistas

uma vez que o proacuteprio ldquoFilho de Deusrdquo na sua condiccedilatildeo de homem acolheu os

pobres religiosos doentes e marginalizados pela sociedade cobradores de

impostos e tambeacutem acolheu o que a sociedade machista da eacutepoca mais discriminou

as mulheres Talvez seja uma precipitaccedilatildeo eliminar a linguagem metafoacuterica da

palavra Pai ou mesmo deixar de observar nela o conceito anti-imperialista ou ateacute

mesmo a patronagem No entanto natildeo podemos deixar de priorizar que para Jesus

143

Abba era uma palavra sagrada era ldquoa revelaccedilatildeo Deus porque Deus se tinha dado a

conhecer a ele como seu Pairdquo (Mt 11 27) um ldquoPairdquo acolhedor que quis ajuntar os

seus filhos como a galinha ajunta os seus os seus pintos debaixo das suas asas (cf

Lucas 1334)

A paternidade de Deus conforme J Jeremias natildeo eacute algo natural tambeacutem

natildeo eacute uma posse de todos os seres humanos mas reserva-se apenas aos

disciacutepulos uma vez que Jesus nunca dirigiu a expressatildeo ldquovosso Pairdquo a algueacutem que

estivesse fora do rol dos seus seguidores A filiaccedilatildeo faz parte do reino (basileia) de

Deus Uma das exigecircncias para fazer parte de tal reino eacute tornar-se como uma

crianccedila (Mt 183) Essa filiaccedilatildeo eacute escatoloacutegica eacute um dom salviacutefico de Deus (J

Jeremias 2008 p 271-273)

O Pai apresentado por Jesus eacute bom e cuida dos seus lsquopequeninosrsquo jaacute que

ele sabe do que eles realmente precisam (Mt 6 8 32) A invocaccedilatildeo de Deus como

Abba eacute mais forte do que todas as adversidades e anguacutestias mesmo que Satatilde

ldquoqueira peneirar o disciacutepulordquo (Lc 22 31) o Pai do ceacuteu ldquoeacute mais forte do que todos os

problemas enigmas e anguacutestias e sabe do que precisam os filhos do reino (J

Jeremias 2008 p276) O ponto central de toda essa exposiccedilatildeo sobre o Abba

consiste no ldquovoltar a ser como uma crianccedilardquo O significado disso estaacute em tornar-se

dependente do Pai voltar para os braccedilos do Pai (cf Lc 15 11-32) depositar total

confianccedila nele enfim resumimos isso nas palavras de J Jeremias ldquovoltar a ser

crianccedilardquo significa reaprender a dizer Abba (J Jeremias 2008 p 238) como diz J

Jeremias ldquo[] Abba eacute percebido como um grande privileacutegiordquo Ter a coragem de

chamar Deus de Pai proveacutem da conscientizaccedilatildeo da filiaccedilatildeo satildeo os filhos que podem

dizer Abbardquo (J Jeremias 2008 p293)

Jesus de Nazareacute o Filho de Deus o homem que dividiu a histoacuteria em antes e

depois dele mudou os rumos da humanidade para sempre Amado e odiado

apregoado e perseguido mas nunca esquecido Verificamos ao longo deste trabalho

as mais variadas teorias sobre ele ora como um mago um judeu marginal um

profeta um bastardo um judeu praticante ou apenas uma figura lendaacuteria

embelezada por seus seguidores Schuumlssler Fiorenza relata uma histoacuteria rabiacutenica

em que Moiseacutes visita o rabino Akiva Ao ouvir os infindaacuteveis discursos sobre a Toraacute

Moiseacutes teria perguntado ldquoquem escrevera aquelas coisas grandiosas que ele jamais

144

tomara conhecimentordquo Schuumlssler Fiorenza (2005 p1) relacionando a histoacuteria

rabiacutenica sobre a Toraacute com as milhares escritas sobre Jesus ela levanta a seguinte

questatildeo ldquoSe Jesus tal como Moiseacutes voltasse a terra lesse todas as suas biografias

e frequentasse o Jesus Seminar ou fosse agrave reuniatildeo anual da Society of Biblical

Literature tambeacutem se maravilharia e perguntaria tomado de assombro Quem eacute

essa pessoa de quem estatildeo falandordquo

A busca pelo Jesus da histoacuteria levou a tantos extremos mas com certeza

acrescentou inuacutemeros fatos ou ateacute mesmo suposiccedilotildees que enriqueceram o

conhecimento que temos hoje sobre Jesus e os Evangelhos Eacute inegaacutevel o fato de

que os Evangelhos natildeo satildeo histoacuteria no sentido moderno e que os disciacutepulos natildeo

tinham a mesma pretensatildeo ou necessidade de relatar os fatos em detalhes visto

que viveram em um mundo cultura e eacutepoca totalmente diferente da nossa cultura

ocidental Portanto quanto mais perto quisermos chegar do Jesus humano mais

perto devemos nos aproximar da cultura do seacuteculo I

Sobre o divisor de aacuteguas entre J Jeremias e Bultmann ou seja se devemos

buscar pelo Jesus da histoacuteria ou pelo Cristo querigmaacutetico nada melhor do que

concluir com as palavras do proacuteprio J Jeremias

A boa nova sobre Jesus e o testemunho da feacute da igreja primitiva estatildeo indissoluvelmente ligados Natildeo podemos isolar nenhuma dessas magnitudes Pois o evangelho de Jesus se converte em histoacuteria morta sem o testemunho de feacute da igreja (a qual estaacute transmitindo sem cessar esse evangelho e o estaacute confessando e testemunhando sempre novamente) Sem Jesus e seu evangelho a igreja natildeo pregava mais que uma ideia um teorema Quem isola a pregaccedilatildeo de Jesus termina no ebionismo Quem isola o querigma da igreja primitiva termina no docetismo (Jeremias 2006 p 42)

Portanto descrever sobre Jesus realmente natildeo eacute tarefa faacutecil como parece

ser Como afirmar que ele era analfabeto ou entatildeo um rabi letrado da Galileia As

evidecircncias internas como vimos levam-nos a pensar em um homem que escrevia

lia e interpretava as Escrituras Por outro lado como nos mostra Crossan as

evidecircncias externas levam-nos a pensar em um camponecircs sofredor e iletrado como

a maioria dos galileus ou entatildeo dos judeus subjugados ao terriacutevel e impiedoso

Impeacuterio romano principalmente a Galileia diretamente afetada pelo deacutespota

Herodes Antipas

145

O importante eacute que Jesus com ou sem instruccedilatildeo douto ou indouto

conseguiu com a graccedila do Pai dos Ceacuteus deixar aos homens de todas as eacutepocas o

exemplo de um servo sofredor de amor ao proacuteximo de renuacutencia e acima de tudo

de um homem que cumpriu com toda a vontade e propoacutesitos de Deus Pai para a

salvaccedilatildeo da humanidade O apoacutestolo Joatildeo o descreveu como o Verbo o Logos

preexistente que existe antes de todas as coisas uma vez que as mesmas foram

criadas por ele

146

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Page 3: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2020. 3. 10. · segundo Joachim Jeremias. Para isso, realizamos o estudo do Jesus histórico e seu contexto social,

Dados da Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute

Sistema Integrado de Bibliotecas ndash SIBIPUCPR

Biblioteca Central

Faria Jonas Silva

F224j Jesus de Nazareacute sua relaccedilatildeo com Deus Pai em Joachim Jeremias e seus 2012 Desdobramentos Jonas Silva Faria orientador Vicente Artuso ndash 2012

151 f 30 cm

Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute

Curitiba 2012

Bibliografia f 146-151

1 Biacuteblia AT - Antiguidades 2 Biacuteblia NT - Histoacuteria de fatos

contemporacircneos 3 Jeremias Joachim 1900- 4 Teologia I Artuso Vicente

1952- II Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Teologia III Tiacutetulo

CDD 20 ed ndash 232908

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo a Deus pela inspiraccedilatildeo e pela vida sem as quais natildeo seria possiacutevel concluir este trabalho

Agradeccedilo a minha esposa Josiane pela compreensatildeo e apoio nas inuacutemeras horas em que me dediquei agrave pesquisa abdicando dos momentos que poderiam ser aproveitados junto da famiacutelia e em especial agrave nossa filha Sofia Gabriela que nasceu durante o periacuteodo da minha pesquisa trazendo luz alegria e motivaccedilatildeo para que essa empreitada fosse concluiacuteda

Agradeccedilo aos meus pais pela educaccedilatildeo a mim proporcionada e em especial a minha tia Eli Kowalski por ter tornado possiacutevel meu sonho de cursar teologia em uma instituiccedilatildeo de ensino superior o qual ampliou meus horizontes para o labor teoloacutegico e por fim abriu o caminho para mais esta conquista

Meu agradecimento especial ao meu orientador Prof Dr Vicente Artuso por ter acreditado na possibilidade desta pesquisa e me fornecido o suporte necessaacuterio para a concretizaccedilatildeo deste trabalho

Agradeccedilo ao corpo docente e ao programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia da PUC-PR pela contribuiccedilatildeo valiosa em minha formaccedilatildeo teoloacutegica durante todo o processo

Agradeccedilo agrave secretaacuteria Maria pela paciecircncia e eficiecircncia nas informaccedilotildees fornecidas desde o primeiro contato com a instituiccedilatildeo

Agradeccedilo a Marta pela disponibilidade e empenho na correccedilatildeo ortograacutefica e gramatical desta dissertaccedilatildeo

Agradeccedilo aos dirigentes do Studium Theologicum de Curitiba por ter permitido a utilizaccedilatildeo da biblioteca na qual encontrei grande parte da bibliografia aqui utilizada e a Flaacutevia pela paciecircncia e disponibilidade no auxiacutelio agraves consultas bibliograacuteficas

RESUMO

O objetivo deste trabalho eacute levar-nos agrave compreensatildeo da relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo Joachim Jeremias Para isso realizamos o estudo do Jesus histoacuterico e seu contexto social poliacutetico e religioso bem como a visatildeo que os povos antigos incluindo o Israel do Antigo Testamento tinham de Deus Por fim visotildees contraacuterias agrave interpretaccedilatildeo de J Jeremias satildeo apresentadas As diversas teorias que os homens tecircm da paternidade divina chamam agrave nossa atenccedilatildeo para a incessante busca da humanidade para identificar-se com o Criador especificamente com a figura de um Deus Pai No entanto nesta pesquisa observamos que mesmo no judaiacutesmo onde natildeo encontramos a antiga imagem de uma deusa matildee observamos a figura de um Deus Pai com afetos e sentimentos maternos Para J Jeremias eacute com Jesus que o relacionamento do humano com o Pai divino atinge seu aacutepice atraveacutes da magna expressatildeo ldquoAbba Pai Segundo este autor Jesus de um balbucio das criancinhas teria tornado o Abba Pai uma expressatildeo sagrada entre os seus disciacutepulos a ponto de posteriormente ela ser absorvida pelas comunidades cristatildes primitivas como a forma de comunicaccedilatildeo do Espiacuterito para testificar no interior do disciacutepulo que este agora eacute tambeacutem filho de Deus A teoria de que o Abba natildeo era apenas um balbucio infantil ou muito menos um termo sagrado eacute contestada por correntes teoloacutegicas judaicas e feministas que veem os argumentos de J Jeremias como infundados ou repletos de exageros No entanto ao final da pesquisa procuramos mostrar que mesmo diante de tais contestaccedilotildees a paternidade divina proclamada por Jesus natildeo eacute natural ou seja uma posse de todos os seres humanos mas exclusividade dele e dos seus disciacutepulos uma vez que a filiaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica do reino de Deus e soacute os filhos do reino eacute quem podem usufruir de tal privileacutegio e dirigir-se a Deus invocando-o como o Abba Pai Jesus de Nazareacute nesta pesquisa eacute o exemplo a ser seguido no tocante agrave humildade e sofrimento numa sociedade profundamente marcada pelo preconceito e desigualdade social Compreendecirc-lo e segui-lo na sua humanidade eacute um grande passo para aproximar-se dele como o Cristo poacutes-pascal onde a revelaccedilatildeo do divino ao humano se concretiza com toda a plenitude Palavras-chave Jesus histoacuterico Paternidade divina

ABSTRACT

This work aims to understand the relationship between Jesus and God the Father according to Joachim Jeremias For this we studied the historical Jesus and his social political and religious context as well the ancient people view of God including the view of Israel from Old Testament Finally views that are opposed to Jeremias are presented The various theories that men have on the fatherhood of God call our attention to the relentless pursuit of humanity to identify with the Creator specifically with a figure of God the Father However in this study we observed that even in Judaism where it cannot find the ancient image of a mother goddess we see a picture of a God Father with affection and maternal feelings For J Jeremias it is in Jesus that the relationship of the human with the divine Father reaches its peak through the magna term Abba Father According to this author Jesus through a babble of little children would have made the Abba Father a sacred expression among his disciples and He subsequently extent it in order to being absorbed by the early Christian communities as a way of communicating of the Spirit to testify within the disciple that he is also the son of God The theory that Abba was not just a babbling child or much less a sacred term is challenged by current theological and Jewish feminists who see the arguments of J Jeremias as unfounded or exaggerated However at the end of the study we sought to show that even in the face of such challenges the fatherhood of God proclaimed by Jesus is not natural ie a possession of all human beings but it is exclusive to Him and his disciples once the sonship is a feature of the kingdom of God and only the children of the kingdom is the one who can enjoy such a privilege and turn to God calling him Abba Father Jesus of Nazareth on this research is the example to be followed regarding the humility and suffering in a society deeply marked by prejudice and social inequality To understand and follow Him in his humanity is a big step to be close to him as the post-Passover Christ where the revelation of the divine to the human is fully realized Key-words Historical Jesus Gods fatherhood

Sumaacuterio

1 INTRODUCcedilAtildeO 7 2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO 19 3 O JESUS HISTOacuteRICO 27 31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO 27 32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO 32 4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE SUA EacutePOCA 40 41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE CONTEMPORAcircNEA DE JESUS 41 42 JESUS O HUMILDE NAZARENO 46 43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES 50 44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS 59 45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS 61 451 OS ESSEcircNIOS 63 452 OS FARISEUS 66 453 OS SADUCEUS 72 454 OS ZELOTAS 74 5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS E SEUS

DESDOBRAMENTOS 79 51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA 79 52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA 85 53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS 91 54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS 100 55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR 102 56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA 110 6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS 122 61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO 122 62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA LEITURA A PARTIR DA

TEOLOGIA FEMINISTA 130 7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 137 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 146

7

1 INTRODUCcedilAtildeO

A ideia de Deus como pai da humanidade sempre esteve presente na mitologia dos

povos antigos Pai eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e na

Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Segundo Joachim Jeremias

(1977 p11-12) muitas tribos e famiacutelias acreditavam que eram procedentes de um

ancestral divino isto eacute de um ldquopairdquo divino Ephraim descreve-nos que a relaccedilatildeo de Deus

como Pai entre os povos antigos era bastante conhecida contudo ele evidencia que o

Abba de Jesus foi a mais iacutentima forma de invocar a Deus propagada entre os homens

atraveacutes dos ensinamentos de Jesus

A palavra Abba (Pai) posta na boca de Jesus eacute como se fosse a uacuteltima tentativa de Deus para ensinar os homens a pronunciarem seu nome Muitas vezes no passado Deus tentou fazer isto atraveacutes de seus servidores os profetas mas Israel natildeo compreendeu ldquoPairdquo eacute um tiacutetulo divino muito antigo encontrado em quase todas as religiotildees do Oriente meacutedio mas no caso ele eacute pai como a terra eacute matildee isto eacute exige na medida em que daacute Eacute o deus tutelar que deve ser adulado pois do contraacuterio ele natildeo outorga as suas graccedilas Eacute um deus que eacute pai do mesmo modo que Zeus era o pai de todos os deuses (Ephraim 1998 p171)

Observa-se que para os povos antigos Deus era um ancestral divino distante de

suas criaturas Aleacutem disso para Israel conforme a tese sustentada por J Jeremias vecirc-

se que no Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai principalmente quando

essa forma de invocar a Deus estaacute relacionada a um indiviacuteduo (Jeremias 2005 p19) Por

outro lado se no Antigo Testamento Deus natildeo eacute invocado como Pai de uma forma

individual como Senhor Ele eacute constantemente invocado a exemplo do salmista (Sl 338)

que menciona Deus como o Senhor que fala e as coisas acontecem conforme as suas

ordenanccedilas (Jeremias 2008 p 269)

Em contraste a essa relaccedilatildeo aparentemente tatildeo distante do Deus Pai com seus

filhos no periacuteodo veterotestamentaacuterio observa-se que a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute

profundamente marcante nos Evangelhos Haacute poreacutem diferentes interpretaccedilotildees com

relaccedilatildeo ao sentido da palavra Pai quando esta era proferida por Jesus J Jeremias

embora natildeo tenha sido o primeiro a tratar dessa questatildeo provavelmente foi o mais

influente quando ele sugere que Jesus ao dirigir-se a Deus invocando-o como o ἀββᾶ

(Abba) estava atribuindo um novo enfoque ao costume judaico de interpelaccedilatildeo a Deus

fazendo uso de uma linguagem cotidiana assim como as crianccedilas dirigiam-se a seus pais

expressando familiaridade e intimidade (cf Goshen-Gottstein 2001 p 493)

O objetivo deste trabalho eacute o estudo do Jesus histoacuterico (humano) com ecircnfase em

seu contexto social culminando no estudo histoacuterico-teoloacutegico da relaccedilatildeo de Jesus com o

8

Pai Este estudo tem como ponto de partida a teologia de Joachim Jeremias concernente

ao Abba proferido por Jesus no Evangelho de Marcos (1436) que diz ldquo[] Abba (Pai)

Tudo eacute possiacutevel para ti afasta de mim este caacutelice poreacutem natildeo o que eu quero mas o que

tu queresrdquo

Para entendermos a relaccedilatildeo de Jesus com o Deus Pai no Novo Testamento e como

ele transformou uma distante relaccedilatildeo entre o Pai ldquoque estaacute nos ceacuteusrdquo e seus filhos eacute

interessante vislumbrar o mundo poliacutetico religioso e cultural no qual ele esteve inserido

comeccedilando pela pequena Nazareacute um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que

vivia em casebres um povoado simples composto de camponeses entre duzentos a

quatrocentos habitantes (Crossan 2007 p 75) ateacute ao Getsecircmani onde Jesus proferiu a

magna expressatildeo Ἀββᾶ ὁ πατὴρ (Abba Pai) que para J Jeremias eacute a mensagem central

do Novo Testamento

No entanto a pesquisa do Jesus histoacuterico eacute complexa visto que os cristatildeos

primitivos preocuparam-se apenas em preservar ditos isolados a respeito de Jesus A

expectativa do retorno iminente do Mestre pode ter sido o motivo principal que levou o

cristianismo primitivo a preferir apenas fatos relacionados ao ministeacuterio de Jesus do que

relatar uma biografia completa do Jesus histoacuterico (Schweitzer 2003 p 11) Apesar de

toda a complexidade em se estudar o Jesus histoacuterico eacute possiacutevel investigar alguns

aspectos relativos a sua existecircncia a partir dos evangelhos e de muitos escritores que ao

longo dos seacuteculos tecircm se empenhado em coletar informaccedilotildees atraveacutes de achados

arqueoloacutegicos e de toda literatura que de uma forma direta ou indireta traz-nos

informaccedilotildees do mundo no qual Jesus estava inserido

Partindo das fontes primaacuterias J Jeremias observa que Jesus tinha uma relaccedilatildeo

iacutentima com Deus pois somente se referia a Ele chamando-o de meu Pai comportamento

este que natildeo era observado entre o povo judeu Assim para uma melhor compreensatildeo

dessa relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute interessante pesquisar como os povos antigos

viam a questatildeo da paternidade divina e desse modo confrontar os modelos antigos com

o modelo de paternidade difundido por Jesus e pelas primeiras comunidades cristatildes

Tendo em vista a complexidade e a diversidade do tema proposto e o profundo

interesse de J Jeremias e de outros pensadores que com ele concordaram ou divergiram

a respeito do assunto esta pesquisa torna-se um desafio empolgante tendo sempre em

vista o crescimento e o amadurecimento em questotildees importantes da teologia

A escolha deste tema eacute motivada pela relevacircncia da produccedilatildeo acadecircmica de J

Jeremias no contexto da Teologia do Novo Testamento mais especificamente sobre a

9

relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai Embora os argumentos de J Jeremias natildeo sejam

unanimidade no contexto dos estudiosos que tecircm escrito sobre tal tema eacute inegaacutevel o

grande impacto que as suas teses tecircm causado na comunidade cientiacutefica ligada ao

assunto que tem se debruccedilado para contestar ou entatildeo para sustentar que Deus natildeo eacute

como um soberano inacessiacutevel mas como um pai que se relaciona com seus filhos e isso

soacute foi enfatizado com propriedade a partir do Abba de Jesus

Essa visatildeo de J Jeremias entra em conflito com as teses de alguns estudiosos

contemporacircneos os quais discutem se realmente houve novidade na forma como Jesus

fez uso da palavra Pai (ipsissima vox) em suas oraccedilotildees ou se esta era um dito autecircntico

(ipsissima verba) Seria Abba realmente a ipsissima vox de Jesus e o centro de sua

mensagem e a afirmaccedilatildeo de sua messianidade conforme afirma J Jeremias ou apenas

uma expressatildeo lituacutergica comum nas comunidades cristatildes do periacuteodo poacutes-pascal da igreja

primitiva (DAngelo 1992b p151) Teria Jesus realmente legado aos seus disciacutepulos a

palavra Abba como um termo sagrado ou Abba tem apenas a conotaccedilatildeo poliacutetica anti-

imperialista (DAngelo 1992a p623)

A partir das questotildees levantadas acima este trabalho tem por objetivo investigar o

Jesus histoacuterico e seu contexto social a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo a

interpretaccedilatildeo dada por J Jeremias bem como alguns desdobramentos deste tema

segundo algumas correntes teoloacutegicas cristatildes e judaicas com as seguintes finalidades

Verificar a visatildeo que os povos antigos (ldquopagatildeosrdquo natildeo judeus) bem como o antigo

Israel tinham de Deus como Pai

Pesquisar a relaccedilatildeo do Jesus histoacuterico no seu contexto familiar e social

Analisar a tese de J Jeremias concernente ao sentido que a palavra Abba tinha

quando proferida por Jesus

Confrontar o pensamento de J Jeremias frente a algumas correntes teoloacutegicas

favoraacuteveis e contraacuterias aos seus argumentos

10

2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS

Neste capiacutetulo seraacute abordado o conceito de paternidade divina entre os povos

antigos com o enfoque sobre a ideia que tais povos tinham de Deus como um ancestral

divino do homem conforme exposto por Jeremias Face agraves inuacutemeras epopeias da

criaccedilatildeo abaixo mencionadas veremos que a criaccedilatildeo do homem a partir do relato do

Gecircnesis eacute bem mais otimista uma vez que o homem do Gecircnesis natildeo eacute um ancestral dos

deuses mas foi criado para ser a imagem do seu proacuteprio Criador

21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS

A ideia mitoloacutegica de um deus como pai da humanidade sempre esteve presente

entre os povos antigos como os sumeacuterios e babilocircnios Segundo J Jeremias tais povos

diziam que suas tribos e famiacutelias procediam de um ancestral divino como se observa por

exemplo no ceacutelebre hino sumeacuterio e acaacutedico de Ur Nesse hino o deus Lua Sin eacute

invocado como o ldquoPai misericordioso em suas disposiccedilotildees que reteacutem em sua matildeo a vida

de todo o paiacutesrdquo Aleacutem de tal hino encontramos na tradiccedilatildeo de tais povos a seguinte

citaccedilatildeo sobre Ea um deus sumeacuterio-babilocircnico ldquoSua coacutelera eacute como o diluacutevio Ele se

reconcilia como um pai misericordiosordquo (Jeremias 1977 p11-12) Complementando essa

ideia Santos Sabugal afirma que a ideia de paternidade divina entre os povos antigos era

largamente atestada na literatura de vaacuterios povos A Aacutefrica a Ameacuterica a China e a Iacutendia

bem como o Egito e tambeacutem os Greco-romanos invocaram a paternidade de Zeus e de

Juacutepiter sobre todos os deuses e homens (Sabugal 1985 p 367-368)

Contudo para J Jeremias as histoacuterias de invocaccedilotildees a Deus como Pai satildeo tatildeo

profundas que sempre se tem a sensaccedilatildeo de que novas e inesperadas galerias sempre

surgem A invocaccedilatildeo a Deus como Pai nos povos antigos desde as suas origens nem

sempre estava relacionada a Deus como um antepassado do rei ou do povo mas podia

ser invocado como um pai misericordioso conforme nos relata J Jeremias

Eacute assombroso verificarmos como jaacute no antigo oriente e com seguranccedila desde o segundo e ainda no terceiro milecircnio aC a divindade era invocada assim Nas oraccedilotildees sumeacuterias muito anteriores a Moiseacutes e os profetas encontramos a invocaccedilatildeo ldquopairdquo e desde laacute esta palavra designava a divindade natildeo apenas como antepassado do rei e do povo ou como o soberano pleno de poder mas tambeacutem como o ldquopai magnacircnimo e misericordioso em cuja matildeo estaacute a vida da naccedilatildeo inteirardquo (Hino de Ur a Sin divindade da lua) A palavra ldquopairdquo na invocaccedilatildeo a Deus implicava pois para os orientais desde os tempos mais antigos algo que pode ser considerado como para noacutes significa a palavra ldquomatildeerdquo (Jeremias 2006 p61)

11

Pai1 portanto para os povos antigos como os assiacuterios babilocircnios egiacutepcios

gregos e outros povos eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e

na Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Aleacutem disso o historiador

das religiotildees Mircea Eliade tambeacutem descreve que satildeo diversas as versotildees sumerianas

sobre a origem divina dos seres humanos e dentre elas consta o poema cosmogocircnico

conhecido como Enuma elish (ldquoQuando no altordquo) que relata as origens do mundo e do

homem buscando exaltar a Marduk um deus nacional da Babilocircnia o qual triunfa sobre

os deuses com ldquovalores demoniacuteacosrdquo dentre eles Tiamat e Kingu

Esse poema traz o mito de que Marduk decidiu criar o homem para que ele sirva

aos deuses Assim a partir do corte das veias de Kingu um deus vencido que foi

sacrificado a humanidade foi criada (Eliade 2010 p79) No entanto com a derrota dos

deuses inimigos de Marduk a criaccedilatildeo do homem inicia-se com um agravante na tradiccedilatildeo

sumeriana mesmo sendo Kingu um dos primeiros deuses ele se tornara o arquidemocircnio

chefe dos monstros e democircnios criados pelo deus Tiamat que tambeacutem foi derrotado por

Marduk Dessa forma sendo o homem constituiacutedo do sangue de Kingu torna-se ele parte

constitutiva de uma mateacuteria demoniacuteaca (Eliade 2010 p 80) Segundo essa vertente

mitoloacutegica sumeriana a uacutenica esperanccedila do homem eacute que ele tenha sido criado por um

grande deus Ea ldquoA partir desse prisma existe uma simetria entre a criaccedilatildeo do homem e

a origem do mundo Em ambos os casos a mateacuteria-prima eacute constituiacuteda pela substacircncia

de uma divindade primordial decaiacuteda demonizada e morta pelos jovens deuses

vitoriososrdquo (Eliade 2010 p 80) Conforme P Grelot ldquoo mito babilocircnico da criaccedilatildeordquo eacute

repleto de violecircncia e sangue (Grelot 1973 p 31)

[] Marduque ouvindo o apelo dos deuses resolveu criar uma obra prima ldquofarei canais de sangue formarei uma ossatura e suscitarei um ser cujo nome seraacute homem Sim vou criar um ser humano um homem Que sobre ele recaia o serviccedilo dos deuses para o bem estar delesrdquo

Ainda com relaccedilatildeo ao mito babilocircnico relata-se que na epopeia de Atra-Hasis (ldquoo

muito inteligenterdquo) cuja coacutepia mais antiga data aproximadamente de 1600 aC o deus Uecirc

1 A relaccedilatildeo de Deus como Pai nas religiotildees do oriente antigo e da Greacutecia e Roma antigas estaacute sempre de

uma forma ligada a ldquoideias miacutesticas de gerar e na descendecircncia fiacutesica e natural de todos os homens a partir de Deus Assim o deus El de Igariteacute eacute chamado o pai da humanidade e o deus da lua na Babilocircnia sin eacute pai e gerador dos homens e dos deusesrdquo No Egito o Faraoacute eacute considerado de modo especial o filho Deus no sentido fiacutesico O nome de pai expressa sobre tudo a absoluta autoridade de deus exigindo a obediecircncia havendo poreacutem ao mesmo tempo seu amor bondade e cuidado misericordiosos (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)

12

eacute morto Entatildeo a deusa matildee (Nintu) e Ea (deus das aacuteguas) fazem um apelo agraves sete

genitoras que ao som de encantamentos maacutegicos se potildeem a amassar a argila A epopeia

narra que a partir de catorze pedaccedilos de argila que satildeo separados metade agrave direita e

metade agrave esquerda pela deusa matildee que apoacutes serem pisados pelas deusas genitoras

estas ldquodatildeo agrave luz sete homens e sete mulheres que imediatamente satildeo dispostos aos

pares e a raccedila humana recebe as leis do seu laborrdquo (Grelot 1973 p 31)

[] Que seja morto um deus e que todos os deuses se purifiquem no seu sangue Que com a sua carne e o seu sangue Nintu (= a deusa matildee) misture argila de modo que deus e homem sejam misturados juntos na argila Que por esta carne de deus haja um espiacuterito Sim Responderam na assembleia os grandes Anunaqui que regem os destinos (Grelot 1973 p 19)

Nesse mito babilocircnico Ea ficou encarregado de consumar o trabalho imolando

Kingu que era o chefe dos deuses revoltosos para que o seu sangue estivesse nas veias

do homem de sorte que este tenha ldquoem suas veias o sangue de um deus decaiacutedordquo

Grelot observa que a partir desses mitos pode-se ver que o homem natildeo eacute apenas um

suacutedito e escravo dos deuses ldquomas tambeacutem eacute um joguete das potecircncias coacutesmicas que

fazem pesar sobre ele uma fatalidade inexoraacutevelrdquo (Grelot 1973 p 31)

[] Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido cortando suas veias Com o seu sangue Eia criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses para libertaacute-los Depois que Eia o saacutebio criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses obra superior a toda inteligecircncia que realizou Nudimude graccedilas aos artifiacutecios de Marduque Marduque rei dos deuses dividiu o conjunto dos Anunaacutequi em deuses de cima e deuses de baixo e encarregou Anu de velar pelas suas ordens nos ceacuteus e na terra ele estabeleceu seiscentos deuses (Vl 1-1031-34)

Pode-se ainda observar a ideia da existecircncia de um ancestral divino entre outros

povos antigos Segundo Campbell tal conceito pode ser visto na cultura da tribo Aranda

da Austraacutelia Central Nessa tribo o rito de transformaccedilatildeo de um menino em adulto

demonstra a forma primitiva com que esse povo se relaciona com a divindade desde a

antiguidade quando um jovem dessa tribo estaacute entre os dez e os doze anos ele e os

outros membros de sua faixa etaacuteria satildeo tomados pelos homens da aldeia e levantados

13

vaacuterias vezes no ar enquanto os homens realizam o ritual de transformaccedilatildeo as mulheres

por sua vez tambeacutem tomam parte do ritual danccedilando em volta agitando os braccedilos e

gritando Em cada menino satildeo entatildeo pintados no peito e nas costas desenhos simples

por um homem relacionado com o grupo social ao qual pertence a sua futura mulher e

enquanto os meninos satildeo pintados os homens cantam ldquoQue ele possa atingir a barriga

do ceacuteu que ele possa crescer ateacute a barriga do ceacuteu que ele possa ir diretamente para

dentro da barriga do ceacuteurdquo (Campbell 1992 p82)

Assim que o ritual eacute finalizado os meninos recebem a instruccedilatildeo que desde que o

ritual foi concluiacutedo cada um deles tem sobre si a insiacutegnia do ancestral mitoloacutegico

particular do qual ele eacute a contraparte viva A partir de entatildeo os meninos passam a ter

algumas responsabilidades e satildeo advertidos de que de agora em diante haacute algumas

restriccedilotildees entre eles e o sexo oposto Eles natildeo poderatildeo mais brincar ou acampar com as

mulheres e meninas mas somente com os homens Das atividades de caccedila de pequenos

animais e procura de raiacutezes eles natildeo tomaratildeo parte visto ser uma atividade realizada

pelas mulheres mas receberatildeo uma responsabilidade maior que eacute acompanhar os

homens na caccedila aos cangurusrdquo (Campbell 1992 p 82) Campbell observa que nessa

tribo eles acreditam que as crianccedilas nascidas de mulheres satildeo reapariccedilotildees de seres que

viveram na era mitoloacutegica no chamado ldquotempo dos sonhosrdquo ou altjeringa (Campbell

1992 p 82) Nesse mundo mitoloacutegico maacutegico dos sonhos o menino da tribo Aranda

passa entatildeo a compreender que ele proacuteprio eacute um ser mitoloacutegico eterno que se

encarnou e da mesma forma seus companheiros tambeacutem satildeo as manifestaccedilotildees das

formas eternas (Campbell 1992 p82)

A ancestralidade divina tambeacutem pode ser constatada entre os gregos como no mito

de Ascleacutepio um deus popular classificado por Homero e Piacutendaro como um heroacutei ou

divindade da cura Ascleacutepio segundo a mitologia grega era filho do deus Apolo com a

humana Corocircnis ele tambeacutem se casou com uma humana com quem teve filhos e filhas

(Koester 2005 vol1 p176)

A relaccedilatildeo entre deuses e humanos tambeacutem pode ser vista nos relatos mitoloacutegicos

dos chamados heroacuteis ou semideuses Segundo a mitologia os heroacuteis pertenciam agrave

espeacutecie dos humanos visto que conheceram a morte e o sofrimento contudo

diferenciavam-se destes pelo fato de que eles viveram numa eacutepoca denominada pelos

gregos como o antigo tempo onde os homens denominados de heroacuteis eram mais belos e

mais fortes do que os homens que conhecemos Esses ancestrais (noacutenymnoy) ou seja

os sem nome fazem parte do passado lendaacuterio da Greacutecia antiga Mesmo sendo homens

eles se aproximam muito dos deuses mais dos que os homens atuais Nessa eacutepoca

14

lendaacuteria segundo a mitologia grega os deuses ainda se misturavam com os mortais na

vida diaacuteria como comer juntos e ateacute em relaccedilotildees sexuais onde os imortais se uniam aos

mortais a fim de gerarem filhos belos Os heroacuteis faziam parte dessa relaccedilatildeo amorosa

entre deuses e humanos como diz Hesiacuteodo ldquoeles formam a raccedila divina dos heroacuteis que

satildeo denominados semideuses conhecidos como os hemitheoiacuterdquo (Vernant 2006 p 47) A

partir desse relato observamos que os humanos realmente acreditavam procederem de

uma raccedila mitologicamente humana e divina ou seja uma mistura das duas

Observamos que ateacute esse ponto temos entre os ancestrais divinos apenas figuras

masculinas A figura masculina de Deus como Pai da humanidade entre os povos antigos

eacute marcante poreacutem natildeo eacute unanimidade Gerald Messadieacute afirma que natildeo existe nenhuma

figura masculina da idade da pedra que evoque o conceito de um deus masculino

(Messadieacute 2001 p44) De fato esse autor observa que os deuses masculinos como Aacutetis

Tamuz Adoacutenis Patilde Silvano Fauno Narciso Jacinto satildeo comparados agrave vegetaccedilatildeo visto

que mesmo sendo deuses heroicos miacuteticos morrem com a chegada do inverno e

renascem com a chegada da primavera assim como ocorre com a vegetaccedilatildeo

No entanto diferentemente do que ocorre no aspecto masculino para o autor

supracitado o princiacutepio feminino da divindade eacute algo permanente Segundo Messadieacute o

culto da Terra-Matildee foi tatildeo fortemente enraizado nas culturas primitivas que seus vestiacutegios

perduraram ateacute tempos recentes (Messadieacute 2001 p44) Nesse sentido pode-se citar as

oraccedilotildees que se faziam agrave deusa-matildee (Zemyna equivalente agrave deusa grega Gaia) na

Lituacircnia entre os seacuteculos XVII e XVIII onde ela era vista como aquela que faz florescer

os bototildees O mais admiraacutevel eacute que em pleno seacuteculo XX em numerosos paiacuteses da

Europa como Escoacutecia Irlanda Lituacircnia Pruacutessia Oriental e Malta ainda era dedicado um

dia (15 de agosto) a Terra-Matildee Messadieacute enfatiza que o dia dedicado agrave deusa-matildee era

uma data tatildeo significativa a ponto de ser transformada no dia da festa catoacutelica da

Assunccedilatildeo data esta que mesmo tendo sentido diferente e ser de outra religiatildeo ainda

assim foi recuperada em benefiacutecio de uma mulher (Messadieacute 2001 p 45)

A deusa-matildee era vista como doadora de tudo quer fosse da vida ou da morte Entre

suas formas mais conhecidas estatildeo Istar Astarte Inana Ciacutebele Ceres e Afrodite A

importacircncia da deusa-matildee como protetora da vida era fundamental em uma sociedade

onde a esperanccedila de vida em geral natildeo ultrapassava quarenta e cinco anos Por isso a

fertilidade das mulheres era vista como essencial para a sobrevivecircncia das sociedades ldquoA

deusa-matildee foi o reflexo de um estado socioeconocircmico que ditava a economia e a religiatildeordquo

(Messadieacute 2001 p47)

15

O culto agrave deusa universal foi duradouro e seu decliacutenio foi tardio e nunca totalmente

consumado em nenhuma religiatildeo ateacute o aparecimento do judaiacutesmo (Messadieacute 2001 p

59) Na Europa a primeira vez que um deus masculino partilhou o poder oficialmente

com a deusa-matildee foi com a revoluccedilatildeo Celta dos oriundos da Iacutendia ramo indo-europeu

dos indo-arianos por volta do seacuteculo VIII aC Os Celtas apesar dessa aparecircncia politeiacutesta

natildeo o eram pode-se dizer que ldquoeram quase monoteiacutestasrdquo (Messadieacute 2001 p72) Seus

deuses mitoloacutegicos estatildeo mais para heroacuteis do que para divindades ldquoOs Celtas como

revelou Juacutelio Ceacutesar satildeo todos filhos de Dis pater O Pai muito simplesmenterdquo (Messadieacute

2001 p69) Continua Messadieacute ldquoos Celtas lanccedilaram no Ocidente as fundaccedilotildees do

Cristianismo antes mesmo deste ter nascido Quase o inventaramrdquo (Messadieacute 2001

p70)

Dentre as muitas teorias acerca da origem dos deuses e suas relaccedilotildees com os

humanos verificamos que segundo Joatildeo Evangelista Martins Terra a palavra Deus tem

sua origem no protoindo-europeu onde era designada como DEIWOS e de onde provecircm

os dois vocaacutebulos latinos para dizer deus (Deus e divus) palavras que derivam do latim

arcaico deivos (Martins Terra 2001 p274) A religiatildeo dos indo-europeus acreditava na

existecircncia de um Ser Supremo conhecido como o Deus celeste tambeacutem chamado de

DEIWOS palavra esta que deriva do radical DEI (iluminar) (Martins Terra 2001 p291)

De acordo com Martins Terra DEIWOS estaacute presente em inuacutemeras religiotildees antigas

Na religiatildeo messaacutepica (populaccedilatildeo indo-europeia proto-histoacuterica da peniacutensula salentina)

religiatildeo dos etruscos dos gregos dos traacutecios dos celtas dos antigos germanos dos

persas dos baacutelticos dos antigos eslavos e das religiotildees indianas (Martins Terra 2001 p

277-286)

O indo-europeu DEIWOS originariamente natildeo designava o ceacuteu fiacutesico (caelum)

visto que as liacutenguas indo-europeias natildeo tecircm um nome comum para designar o ceacuteu fiacutesico

(Martins Terra 2001 p 291) DEIWOS designava um ser pessoal que frequentemente eacute

contraposto ao HOMO um ser pessoal terreno (Martins Terra 2001 p 305)

Na cultura indo-europeia o conceito de pai era muito mais do que genealoacutegico

juriacutedico e socioloacutegico O conceito de pai sempre se referia ao chefe de famiacutelia como

aquele que exercia um poder monaacuterquico com funccedilotildees judiciais e penais sobre os seus

dependentes Para os indo-europeus o deus supremo dyeu-pater (pai) natildeo se refere a

deus pai ldquocomo progenitor mas ao sentido social do adulto que eacute chefe da casa no

sentido do latim pater famiacuteliasrdquo (Martins Terra 2001 p153) Contudo segundo Martins

Terra Porfiacuterio relaciona Zeus como pai dos deuses e coloca o homem como parente de

Deus Para Porfiacuterio uma das finalidades dessa relaccedilatildeo eacute que ldquoo homem respeitaraacute o

16

direito do proacuteximo que tambeacutem tem a Zeus como progenitor [proacutegonos]rdquo (Martins Terra

2001 p351)

Na religiatildeo dos indo-europeus DEIWOS eacute sempre o ser transcendente (celeste) No

entanto essa transcendecircncia estaacute sempre proacutexima do divino como o autor da vida o

Deus Pai Segundo Martins Terra o antigo nome divino em latim era DIESPITER uma

forma primitiva derivada de DEIWOS ou de Dieus ldquonas invocaccedilotildees mais primitivas de

Zeus jaacute encontramos o vocativo Zeu paacuteter Em latim a palavra pater associa-se

intimamente com a palavra Deus e formava ela um soacute nome DIESPITER Iovispater

vocativo Juppiter em uacutembrio Jupater em iliacuterico Deipaturosrdquo (Martins Terra 2001 p337)

Como suporte agrave teoria da invocaccedilatildeo de Zeus partes do hino de Cleantes esclarecem

esse conceito

[]32 ndash Ah Zeus benfeitor universal 33 ndash Salva os homens de sua ignoracircncia funesta 34 ndash Purifica oacute Pai suas almas desta ignoracircncia e concede-lhes atingir 35 ndash O pensamento que te guia para tudo governares com justiccedila Somente Zeus pode salvar o homem de seus pendores funestos E o homem pode com confianccedila invocar a Zeus porque ele eacute Pai e dele com efeito todos noacutes nascemos 1 ndash Oacute o mais glorioso dos imortais sob mil nomes onipotente para sempre 2 ndash Zeus senhor da natureza que com a lei governas todas as coisas 3 ndash Salve Porque eacute a Ti que todos noacutes mortais temos o direito de invocar 4 ndash Visto que de Ti todos noacutes nascemos (Martins Terra2001 p332-333)

Esse hino mostra que Zeus natildeo era invocado apenas como rei senhor governador

mas tambeacutem como um Deus pessoal num relacionamento familiar um Deus Pai2

Conforme Martins Terra invocar a ldquodivindade sob o nome de pai eacute um dos fenocircmenos

primordiais na histoacuteria das religiotildeesrdquo Martins Terra ainda observa que nas liacutenguas indo-

europeias essa forma de invocaccedilatildeo fica mais evidente ainda nas palavras Dyaus pitatilde

Zeugraves pater Deipaturos e Iuppiter (Martins Terra 2001 pg433) Segundo Martins Terra

ldquoem Homero a invocaccedilatildeo de Zeus no vocativo aparece quase sempre unida agrave palavra

pai Zeucirc paacuteterrdquo (Martins Terra 2001 p 435)

Diferentemente dos povos antigos a atividade criadora de Deus no livro do Gecircnesis

eacute sempre cosmoloacutegica onde a ordem e a beleza satildeo os temas centrais Do caos Deus

cria a ordem o universo que culmina com a criaccedilatildeo do homem como o aacutepice da obra da

criaccedilatildeo conforme vemos no Gecircnesis onde ldquoDeus viu que isso era bom (1 10 13 18 21

25)rdquo e ainda segundo o texto sagrado (131) temos a seguinte conclusatildeo ldquoIsso era

2 Segundo Vernant Zeus eacute Pai dos deuses e dos homens natildeo porque tenha gerado ou criado todos os

seres mas porque exerce autoridade absoluta sobre todos como um chefe de famiacutelia sobre seu clatilde (Cf Vernant 2006 p33)

17

muito bomrdquo Segundo P Grelot ldquoa histoacuteria sagrada sacerdotal Gn 1-24ardquo - das origens do

mundo ao tempo em que Israel viveu no deserto - foi escrita no tempo em que o povo

estava no exiacutelio (entre 587 e 538 aC) Babilocircnia eacute o lugar onde se venera o deus Marduk

e de onde provecircm as narrativas mitoloacutegicas de como os deuses criaram o mundo Para

proteger seus irmatildeos dos mitos babilocircnicos o autor sagrado teria escrito a primeira

narraccedilatildeo da criaccedilatildeo Contudo a narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo difere teologicamente dos

mitos babilocircnicos e dos povos antigos conforme relata Grelot

[] O universo eacute de certa forma um templo gigantesco que Deus levanta para a sua gloacuteria Quando o templo estaacute pronto ele coloca nele o homem criado ldquoagrave sua imagem e semelhanccedilardquo (126) Fica assim proibido representar a divindade por meio de imagens porque estas lembrariam o culto prestado a criaturas divinizadas (Ex 20 3-6) essa proibiccedilatildeo natildeo tem paralelo em nenhum povo da antiguidade A uacutenica imagem permitida de Deus eacute o rosto humano Mas se Deus eacute representado agrave imagem de uma pessoa viva de um homem que fala para fazer as coisas existirem (ldquoDeus disserdquo) nem por isso o homem eacute divinizado ldquoimagem de Deusrdquo deve ele voltar-se para aquele cujos traccedilos reflete (Grelot 1973 p 43)

Da mesma forma para Heinrich Krauss e Max Kuumlchler comparar o relato biacuteblico da

criaccedilatildeo do homem com a mitologia sumeacuterio-babilocircnia ou egiacutepcia serve para demonstrar

diferenccedilas importantes entre eles Na mitologia pagatilde o acircmago de toda a criaccedilatildeo estaacute

mais voltada ao nascimento dos deuses (teogonias) Por sua vez a criaccedilatildeo do homem

estaacute ligada a esses relatos apenas por uma linha tecircnue Para Krauss e Kuumlchler somente

num periacuteodo bem posterior ao nascimento dos deuses eacute que o ser humano eacute criado

quase que por um acidente ou entatildeo para servir como trabalhador escravo dos deuses

Em alguns aspectos notamos que haacute semelhanccedilas entre a criaccedilatildeo do homem no relato

do Gecircnesis e as mitologias pagatildes quando observamos que no Gecircnesis a criaccedilatildeo do

homem tambeacutem se daacute por uacuteltimo Contudo conforme Krauss e Kuumlchler diferentemente

dos antigos mitos no Gecircnesis a criaccedilatildeo do homem se daacute por meio de um processo

premeditado Eacute possiacutevel por analogia observarmos que na narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo

tanto o cosmos quanto o homem satildeo criados num ambiente onde o respeito e a

admiraccedilatildeo pelo ser humano satildeo evidentes como podemos observar na poesia do Salmo

8 4-9 que diz

Quando vejo o ceacuteu obra dos teus dedos a lua e as estrelas que fixaste que eacute um mortal para dele te lembrares e um filho de Adatildeo para vires visitaacute-lo E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de gloacuteria e beleza Para que domine as obras de tuas matildeos sob seus peacutes tudo colocaste ovelhas e bois todos e as feras do campo tambeacutem a ave do ceacuteu e os peixes do mar

18

quando percorre ele as ondas dos mares (Krauss e Kuumlchler 2007 p 48-49)

A relaccedilatildeo do homem com os deuses nas mitologias antigas eram caracterizadas

pelas forccedilas da natureza Os diversos deuses exerciam poderes sobre tais forccedilas que por

sua vez determinavam o destino do homem ldquoNa tempestade e na brisa na chuva e na

seca viam-se igualmente manifestaccedilotildees de poderes divinos tal como no amor e no

matrimocircnio na vida e na morte na violecircncia e na guerra no crescimento e na destruiccedilatildeordquo

(Krauss e Kuumlchler 2007 p 61) Todos os acontecimentos da vida dos homens eram

resultados da influecircncia de uma ou mais divindades conforme as suas funccedilotildees dentro do

panteatildeo Alguns deuses eram considerados de boa iacutendole poreacutem outros eram

considerados perversos e maus e por essa razatildeo deveriam ser lisonjeados atraveacutes de

rituais de sacrifiacutecios ou praacuteticas maacutegicas

Krauss e Kuumlchler apesar de descreverem os deuses mitoloacutegicos da antiguidade com

poderes sobrenaturais e sobre-humanos sobre o mundo ressaltam que tais deuses

mesmo o chamado deus criador da mitologia antiga eram limitados agrave esfera deste

mundo ou seja natildeo tinham poder absoluto nem garantido para sempre Por outro lado o

Deus dos relatos biacuteblicos da criaccedilatildeo eacute diferente Ele natildeo faz parte deste mundo mesmo

que aqui esteja presente e sempre atuando Tambeacutem natildeo estaacute sujeito agrave limitaccedilatildeo das

forccedilas da natureza e tem poder para conduzir soberanamente o destino dos seres

humanos O Deus criador do Gecircnesis natildeo sofre oposiccedilatildeo de divindade alguma a natildeo ser

em pequena escala dos seres humanos ldquoA diferenccedila entre o monoteiacutesmo judeu-cristatildeo

ou islacircmico de um lado e o politeiacutesmo de outro natildeo eacute uma questatildeo de nuacutemero (um

uacutenico Deus ou diversos deuses) mas da concepccedilatildeo do que eacute Deusrdquo (Krauss e Kuumlchler

2007 p61)

No tocante agraves narrativas e mitos antigos da criaccedilatildeo Vicente Artuso desenvolve um

trabalho no qual compara o relato da criaccedilatildeo no livro do Gecircnesis com a epopeia de Atra

Asis e os demais mitos antigos da criaccedilatildeo e conclui que o relato da criaccedilatildeo no Gecircnesis eacute

mais otimista em relaccedilatildeo aos mitos antigos Embora por um lado haja algumas

semelhanccedilas na forma da criaccedilatildeo do homem conforme jaacute foi visto acima por outro lado

elas estatildeo muito distantes Artuso observa que nessa epopeia o homem eacute feito a partir

do barro e do sangue de um deus decaiacutedo Na Biacuteblia o homem proveacutem do barro e do

sopro de Deus que eacute a fonte da vida Na epopeia o ser humano eacute criado para livrar os

deuses de seu castigo na Biacuteblia o homem eacute criado por Deus de uma forma totalmente

desinteressada Na epopeia o ser humano participa da divindade assim como na Biacuteblia

Contudo Artuso pontua que mesmo que em ambos os relatos da criaccedilatildeo o homem

participe da divindade na epopeia fica evidente que o homem participa da divindade de

19

um deus decaiacutedo sendo que no relato da criaccedilatildeo da Biacuteblia o homem eacute criado agrave imagem

e semelhanccedila do Criador No Gecircnesis o homem eacute criado pelo Deus uacutenico que do caos

traz todas as coisas a existecircncia cria o homem e o faz participante de sua obra quando

ordena ao ser humano o crescimento a multiplicaccedilatildeo e que o mesmo exerccedila o domiacutenio

sobre todas as coisas criadas (Artuso 2009 p80-81)

22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO

No Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai3 J Jeremias relaciona

que isso ocorre apenas quinze vezes conforme podemos verificar nos seguintes textos

ldquoDt 326 2 Sam 714 (textos paralelos em 1 Cron 1713 22 10 286) Sl 68 6 8927 Is

6316 (duas vezes) 647 Jr 3419 31 9 Mal 1 6 2 10 (Jeremias 2005 p19) Mesmo

esses textos quando relacionados a Deus como Pai indicam que Deus eacute primeiramente

o Senhor como diz o Salmo 33 8 ldquoTema o Senhor todo o mundo e tremam diante dele

todos os habitantes da terra porque ele fala e acontece ele ordena e aiacute estaacuterdquo (Jeremias

2008 p269) Como Senhor Deus tambeacutem se compadece de seus filhos como um Pai

conforme o Salmo 10313 (Jeremias 1977 p13) Aleacutem de Senhor o Pai tambeacutem eacute

honrado como Criador ldquoNatildeo eacute ele porventura teu pai que te fez seu que te formou e te

consolidourdquo (Dt 326) ldquoPorventura natildeo eacute um o Pai de todos noacutes Natildeo eacute um soacute Deus que

nos criourdquo(Ml 2 10) Observa-se que o reduzido uso do conceito de Deus como Pai no

Antigo Testamento pode estar relacionado ao uso abusivo que os povos cananeus faziam

desse termo em seus cultos de fertilidade (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo

Testamento 1998 p 6)

A relaccedilatildeo de Deus como Pai no Antigo Testamento eacute diferente do conceito de

paternidade dos povos antigos As diferenccedilas satildeo fundamentais visto que Deus natildeo eacute um

ancestral da raccedila humana como podemos ver nas palavras de J Jeremias

O fato de que no Antigo Testamento Deus natildeo eacute o ancestral mas o criador natildeo eacute a menor E que o que eacute ainda mais importante no antigo Testamento a paternidade divina atribui-se soacute a Israel e de uma maneira que natildeo encontra nenhum equivalente Eles tecircm uma relaccedilatildeo toda particular com Deus isto eacute um povo escolhido dentre todos os povos para ser o filho primogecircnito de Deus (Jeremias 1977 p13)

3 ldquoO AT emprega a palavra pai () quase que exclusivamente (c De 180 vezes) num sentido secular e soacute

muito ocasionalmente (15 vezes) num sentido religioso Como acontece no AT assim tambeacutem na literatura do judaiacutesmo palestinense podemos notar reserva marcante no emprego da palavra num sentido religioso Soacute mais tarde na literatura do judaiacutesmo da diaacutespora eacute que achamos o emprego mais frequente do nome Pai com referecircncia a Deusrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

20

No contexto biacuteblico a histoacuteria de Israel eacute notoriamente descrita colocando Israel

sempre como o povo eleito e exclusivo de Deus e essa eleiccedilatildeo eacute histoacuterica e concreta A

paternidade divina4 pode ser considerada histoacuterica quando tambeacutem atestamos que o

ecircxodo do Egito a peregrinaccedilatildeo no deserto e a conquista da terra de Canaatilde satildeo tratados

como fatos histoacutericos fatos esses que tornam Israel como o filho primogecircnito conforme a

eleiccedilatildeo divina Alguns textos corroboram esse pensamento entre os quais podemos

destacar ldquoFilhos sois do SENHOR vosso Deusrdquo (Dt 141)

A paternidade divina no Antigo Testamento natildeo eacute privileacutegio do indiviacuteduo mas sempre

privileacutegio da coletividade e juridicamente da figura do rei Com efeito Deus eacute sempre visto

como o ldquoPai do Reirdquo (2 Sam 7 14 Sl 8927) e ldquoPai de Israel como naccedilatildeordquo (Jr 34 3 19

319 Ml 16 Is 6315 657) J Jeremias faz questatildeo de enfatizar a respeito da

paternidade divina que em todo o Antigo Testamento natildeo encontramos nenhuma

passagem na qual Deus seja interpelado como Pai por um indiviacuteduo mas isso eacute sempre

realizado pela coletividade (Jeremias 2008 p115) Quando observamos as expressotildees

ldquoTu eacutes nosso Pairdquo (Is 6316) e ldquoTu eacutes meu Pairdquo (Jr 34) verificamos que as mesmas se

tratam de ldquosentenccedilas afirmativas e natildeo da invocaccedilatildeo de Deus usando o nome de Pai

para elerdquo (Jeremias 2008 p115) Deus natildeo eacute Pai porque gera de forma fiacutesica mas

porque chamou os filhos de Israel para ser um povo constituiacutedo de homens livres eacute Pai

porque ama escolhe e guia seus filhos por um reto caminho segundo a lei Dessa forma

mesmo fazendo pouco uso do termo Pai Israel comeccedilou a realizar o que poderiacuteamos

chamar de a grande revoluccedilatildeo do siacutembolo paterno

Em relaccedilatildeo ao siacutembolo de Deus como Pai Robert Hamerton-Kelly seguindo a

mesma linha de pensamento de J Jeremias concorda que no Antigo Testamento a

designaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rara e as poucas vezes em que isso ocorre natildeo eacute no

sentido literal do termo Hamerton Kelly faz referecircncia a dois tipos de simbolismo que

aparecem na Biacuteblia concernentes agrave figura de Deus como Pai um simbolismo indireto e

outro direto O simbolismo indireto ocorre por meio de uma associaccedilatildeo enquanto que o

simbolismo direto eacute feito por intermeacutedio de uma metaacutefora ou alegoria No modo indireto

Deus eacute mostrado claramente em conexatildeo com os pais humanos Ele eacute o ldquoDeus dos paisrdquo

e a associaccedilatildeo aqui eacute por intermeacutedio da identificaccedilatildeo de Deus como chefe No modo

direto a Biacuteblia usa a alegoria ou a metaacutefora Deus eacute como um pai ou Deus eacute nosso Pai

(Hamerton-Kelly 1979 p20-21)

4 ldquoA descriccedilatildeo de Deus como Pai se refere no AT apenas as Seu relacionamento com o povo de Israel

(Dt326 Is6316 duas vezes 648 Jr319 Ml16 210) ou com o rei de Israel (2Sm 714 par 1 Cr 1713 2210 286 Sl 8926 cf 27) Nunca se refere a qualquer indiviacuteduo () ou a humanidade em geralrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

21

No Antigo Testamento o simbolismo indireto eacute usado na transiccedilatildeo do Pai dos

deuses para o Deus dos pais e do Deus dos pais para o Deus de Moiseacutes (Hamerton-

Kelly 1979 p21-28) Qualquer consideraccedilatildeo sobre o entendimento biacuteblico de Deus no

periacuteodo preacute-mosaico deve ser relacionado aos deuses adorados pela religiatildeo dos

cananeus ancestral da religiatildeo dos hebreus os quais eram denominados em Canaatilde pelo

nome ldquoEl5rdquo o chefe do panteatildeo e tambeacutem progenitor dos deuses na mitologia cananita

(Martins Terra 1987 p11) De acordo com a tradiccedilatildeo Yahweh era ldquoo Deus dos Paisrdquo e

Abraatildeo pode provavelmente ter sido considerado ldquopai dos deusesrdquo como uma descriccedilatildeo

de sua possiacutevel divindade Entre os outros povos existiam vaacuterios deuses que eram vistos

como figuras paternas como Anu (deus do ceacuteu) Enlil (deus do vento e da tempestade) e

Ea (deus da aacutegua) os quais tinham seu proacuteprio santuaacuterio e eram patronos de suas

respectivas cidades (Hamerton-Kelly 1979 p21-23)

Os compiladores das sagas patriarcais do Gecircnesis acreditavam que os pais

adoravam El como El Elyon El Olam El Roi El Shaddai e El Betel Esses nomes

compostos mostram que a adoraccedilatildeo era estabelecida em um lugar fiacutesico por intermeacutedio

de alguma outra divindade ou seja os lugares de adoraccedilatildeo eram relacionados a um

deus Embora natildeo possa ser encontrada a praacutetica monoteiacutesta entre os patriarcas pode-se

assumir que os deuses distintos estavam associados em algum estaacutegio da tradiccedilatildeo

sendo identificados como manifestaccedilotildees do grande deus El - o pai dos deuses Mesmo

que natildeo seja possiacutevel falar de um preacute-Mosaico ldquoEl-monoteiacutesmordquo 6 eacute possiacutevel falar de um

deus supremo que eacute a fonte e origem de todas as coisas o pai dos deuses e da

humanidade que eacute o ponto de contato com o monoteiacutesmo Javista (Hamerton-Kelly 1979

p24-25)

Outro ponto de contato entre a teologia Preacute-Mosaica e Mosaica pode ser

encontrado no fato que cada um dos grandes patriarcas tinha um deus associado com

eles mesmos o ldquoEl de Abraatildeordquo (Gn 31 42) o ldquoTemor de Isaquerdquo (Gn 31 53) o ldquoForte de

Jacoacuterdquo (Gn 49 24-25) os quais tinham como sinocircnimos o ldquoDeus (El) de meu pairdquo Por fim

5 A palavra El ocorre 238 vezes no Antigo Testamento Eacute uma palavra de origem protossemiacutetico ou

semiacutetico-comum para designar Deus em todas as liacutenguas semiacuteticas Ele eacute o Deus-patriarca criador anciatildeo cujas forccedilas extraordinaacuterias criaram e povoaram o ceacuteu El eacute ldquoum Deus pessoardquo de cada patriarca ele eacute ldquoo Deus dos paisrdquo familiar uacutenico e universal mas tambeacutem eacute o Deus tribal (Cf Martins Terra em Elohim o Deus dos Patriarcas p 19 37 39 51)

6 Surge um problema relacionado a este assunto eacute possiacutevel falar de monoteiacutesmo neste periacuteodo Alguns

pesquisadores acham difiacutecil o conceito de um monoteiacutesmo preacute-mosaico ou mesmo de uma ideia de adoraccedilatildeo exclusiva a Deus mesmo que o texto do livro do Ecircxodo 34 11-26 trate com detalhes este tema ainda assim este pensamento parece ser uma ideia muito complexa uma vez que muitos estudiosos observam que o referido texto pode ter sido redigido em uma eacutepoca tardia ou seja ldquouma espeacutecie de seleccedilatildeo ou resumo a partir de outros textosrdquo (Cruumlsemann 2002 p167-169) Segundo Cruumlsemann o Pentateuco deve ter surgido entre o exiacutelio e o inicio da eacutepoca helenista para ser mais objetivo no periacuteodo Persa (cf Cruumlsemann 2002 p454)

22

vecirc-se que o deus eacute identificado mais pelo seu relacionamento com uma pessoa do que

com um lugar ou um fenocircmeno natural isto eacute muda-se o simbolismo do divino de lugar

para pessoa deixando claro que a Revelaccedilatildeo de Deus estaacute no domiacutenio das relaccedilotildees e

accedilotildees humanas mais especificamente nas relaccedilotildees de familia (Hamerton-Kelly 1979

p25-27)

Aleacutem disso observamos que sob a influecircncia de Moiseacutes as tribos de Israel foram

unificadas em fidelidade ao Deus Yahweh A identidade de Yahweh estaacute fortemente

relacionada com ldquoos paisrdquo como se vecirc na revelaccedilatildeo de Deus a Moiseacutes no monte Horebe

[hellip] Moiseacutes Moiseacutes [hellip] Eu sou o Deus de teus pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute [hellip] Iahweh disse Eu vi Eu vi a miseacuteria do meu povo que estaacute no Egito Ouvi seu grito por causa dos seus opressores pois Eu conheccedilo as suas anguacutestias Por isso desci a fim de libertaacute-lo da matildeo dos egipcios e para fazecirc-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta terra que mana leite e mel [hellip] Disse Deus a Moiseacutes Eu sou aquele que eacute Disse mais Assim diraacutes aos israelitas EU SOU me enviou ateacute voacutes [hellip] Iahweh o Deus o Deus de vossos pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute me enviou ateacute voacutes Eacute o meu nome para sempre e eacute assim que me invocaratildeo de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (Ex 3 1-15)

Iahweh eacute o Deus de Israel isso fica evidente na foacutermula ldquoElohecirc Israelrdquo (Martins

Terra 1987 p 82) O ponto central de toda a teologia do Antigo Testamento eacute que o

Deus de Israel eacute o uacutenico e verdadeiro Quando os autores sagrados comparam Iahweh

com os deuses de outras naccedilotildees (Dt 4 34 Sl 11 3-5) eacute para fortalecer a convicccedilatildeo dos

israelitas de que haacute somente um Deus tanto ldquoem cima no ceacuteurdquo como ldquoembaixo na terrardquo

(Dt 439) Para Martins Terra o ldquoemprego de Elohim7 natildeo pode ser interpretado como

reliacutequia de um antigo politeiacutesmo Israelitardquo ou seja Elohim se converte em sinocircnimo de

Iahweh o Deus uacutenico e verdadeiro

O nome divino de Elohim que se radica na liacutenguagem religiosa de todos os povos semitas do Antigo Oriente Proacuteximo reconhecido e confessado por Israel como o Deus pessoal e uacutenico ajudou o Antigo testamento a entender e proclamar o Deus da histoacuteria da Salvaccedilatildeo como Deus do universo como lemos na primeira linha da Biacuteblia ldquoNo principio Elohim criou os ceacuteus e a terrardquo (Martins Terra 1987 p 85)

Fazendo uma transiccedilatildeo do simbolismo indireto para o simbolismo direto

mostraremos o pai (matildee) como uma alegoria ou metaacutefora para Deus Vale observar que a

figura da matildee faz parte desta anaacutelise uma vez que esse simbolismo natildeo a exclui apenas

7 A palavra Elohim pode ser um desenvolvimento do termo Eloah (Deus) como uma forma de

representaccedilatildeo da pluralidade de pessoas existentes na divindade (Trindade) ou ainda a terminaccedilatildeo plural pode ser descrita como um plural de majestade natildeo com a intencionalidade de ser usado na forma de plural para referir-se a Deus Isto pode ser averiguado quando Elohim eacute usado com o verbo no singular bem como os adjetivos e pronomes tambeacutem no singular (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento 1998 p68-72)

23

inclui sua presenccedila No simbolismo direto os pais satildeo muito mais do que meros sinais da

natureza e presenccedila de Deus O profeta Oseacuteias nos mostra um Deus que ao mesmo

tempo em que eacute Pai tem para com Israel seu filho afetos que satildeo proacuteprios da matildee A

ternura os cuidados e o afeto de Deus em Oseacuteias satildeo comparados agraves caracteriacutesticas

proacuteprias que uma matildee tem por seus filhinhos

Quando Israel era menino eu o amei e do Egito chamei meu filho (hellip) Fui eu contudo quem ensinou Efraim a caminhar eu os tomei pelos braccedilos mas natildeo reconheceram que eu cuidava deles Com viacutenculo de amor eu os atraiacutea com laccedilos de amor eu era para eles como os que levantavam uma criancinha contra o seu rosto eu me inclinava para ele e o alimentava (Os 11 1-4)

Nesse texto vemos a ideia de que Israel era filho de Deus e que essa filiaccedilatildeo eacute

usualmente associada ao periacuteodo do deserto e eacute entendida como uma experiecircncia da

paternidade de Iahweh Contudo observamos no texto que Iahweh inclinava-se para

alimentaacute-los expressatildeo essa que denota uma funccedilatildeo especificamente desempenhada

pela figura materna Aleacutem disso em uma passagem do livro de Nuacutemeros Moiseacutes de

uma forma impliacutecita afirma que Deus eacute como uma matildee para Israel

[] Moiseacutes sentiu-se grandemente desgostoso e disse a Iahweh ldquoPor que fazes mal a teu servo Por que natildeo achei graccedila a teus olhos visto que me impusestes o encargo de todo este povo Fui eu porventura que concebi todo este povo Fui eu que o dei agrave luz para que me digas Leva-o em teu regaccedilo como a ama leva a crianccedila no colo agrave terra que prometi sob juramento a seus pais (Num 1110b-

12)rdquo

Esse texto soacute pode referir-se a Deus visto que Moiseacutes natildeo era a matildee daquele

povo portanto teoricamente natildeo tinha a responsabilidade de ser o protetor e nem o

provedor deles em momentos de crise Na visatildeo de Moiseacutes Deus era o responsaacutevel pelos

cuidados essenciais do povo assim como uma matildee cuida de seus filhos Dessa forma a

figura materna tambeacutem pode ser usada como uma designaccedilatildeo para Deus (Hamerton-

Kelly 1979 p 39-40)

Haacute ainda outros exemplos em que a imagem de Deus pode ser comparada a de

uma mulher que cuida de seus filhos como lemos em Isaiacuteas 4915

Por um acaso uma mulher se esqueceraacute de uma criancinha de peito Natildeo se compadeceraacute ela do filho do seu ventre Ainda que as mulheres se esquecessem

24

eu natildeo me esqueceria de ti

Na simbologia em que Deus exerce as funccedilotildees de provedor protetor e mantenedor

de seu povo encontramos textos em que Ele exerce funccedilotildees ora como Pai e ora Matildee

Segundo Hamerton-Kelly no livro do profeta Isaiacuteas (66 10-13) encontramos uma

imagem de Deus como a de uma matildee bem como em Deuteronocircmio 131 e 85 em que

encontramos em ambos os textos a imagem de Deus que como um homem (pai) educa

os seus filhos pelo caminho correto Portanto numa visatildeo simboacutelica Deus eacute apresentado

ora como pai e ora como matildee do povo (Hamerton-Kelly 1979 p40)

Alegrai-vos com Jerusaleacutem exultai nela todos os que a amais regozijai-vos com ela todos os que por ela estaacuteveis de luto pois sereis amamentados e saciados

pelo seu seio consolador pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo Com efeito assim diz Iahweh Eis que trarei a Paz como um rio e a gloacuteria das naccedilotildees como uma torrente transbordante Sereis amamentados sereis carregados sobre ancas e acariciados sobre os joelhos Como a uma pessoa que a sua matildee consola Assim eu vos consolarei Sim em Jerusaleacutem sereis consolados (Is 66 10-13)

Como tambeacutem no deserto onde vistes que o SENHOR vosso Deus nele vos levou como um homem leva seu filho por todo o caminho que andastes ateacute chegardes a este lugar Deuteronocircmio 131 Sabes pois no teu coraccedilatildeo que como um homem castiga a seu filho assim te castiga o SENHOR teu Deus Deuteronocircmio 85

Mesmo diante de vaacuterios textos em que observamos Deus exercendo figuradamente

as funccedilotildees de pai e matildee natildeo temos um texto em que Deus seja diretamente chamado de

matildee e nem mesmo Jesus jamais invocou a Deus como matildee Segundo Matthias Grenzer

a razatildeo disso encontra-se no fato de Deus ser diversas vezes tratado como o esposo ou

o amado enquanto que Israel eacute descrito como a virgem noiva mulher amada ou ateacute

mesmo como prostituta (cf Jr 2-3 Ez16 Os 2 e Ct) Dentro desse imaginaacuterio a figura de

Deus eacute vista como a parte masculina enquanto que a naccedilatildeo de Israel ocupa a parte

feminina sendo assim essa seria a razatildeo de Deus ldquoser chamado somente de Pai e natildeo

de matildeerdquo (Grenzer 2009 p 182)

Ainda em relaccedilatildeo agrave paternidade de Deus no Antigo Testamento Sabugal observa

que a mesma eacute sempre vista nos seguintes aspectos Deus como o Pai do povo de Israel

(Is 6316) Pai do rei (2 Sam 7 14 Sl 8927) Pai dos justos israelitas (Sab 216) e

tambeacutem como Rei Messiacircnico (2Sm 7 12-16) (Sabugal 1985 p370)

25

Yahveh com efeito eacute o Pai de Israel por haver resgatado ltltdesde sempregtgt (Is 6316b) primeiro do Egito (Jer 34 cf Ez 23 319) e depois da Babilocircnia (cf Jer 319) tambeacutem por haver-lhes criado mediante a alianccedila (Dt 366 Mal 210 cf 317) conduzindo-o pelo deserto e corrigindo-o ltltcomo um pai a seus filhosgtgt (Dt 131 85) provando-o paternalmente (Sab 1110) e paternalmente amando-o (cf Mal 317) pois ele fez o seu povo que o confessa como Pai (Is 6319 647) e como tal deve honrar (Mal 16) Israel eacute consequentemente o filho de Deus seu primogecircnito (Ex 422 Jer 319) e ltlt filho tatildeo amadogtgt (Jer 3120) a quem desde o Ecircxodo elegeu por pai (Nuacutem 1112 Dt 32 518) e modelou (cf Is 647) por ter-lhes amado (Os 111) ltlt com um amor eternogtgt (Jer 313) tornando-se assim mesmo os israelitas a raiz da eleiccedilatildeo divina realizada na alianccedila do Sinai ltlt filhos de Yahvehgtgt (cf Dt 326 Mal 317) como membros de ltltum povo consagrado a seu Deusgtgt (Dt 14 1-2 Sal 7315) E certo que como ltltfilhos rebeldesgtgt (Is 30 19) esqueceram ltlto Deus que os criougtgt (Jer 321 Dt 3218) mas se como ltltfilhos apoacutestatasgtgt ouvirem a exortaccedilatildeo e converterem-se (Jer 3 1422) seratildeo novamente chamados ltlt filhos do deus vivogtgt (Os 21) que mostrando-se ltltindulgente para com eles como um pai com um filho que lhe servegtgt (Mal 317) uma vez mais os salvaraacute Israel segue sendo o ltltfilho amadogtgt e ltltmenino mimadogtgt de Yahveh (Jer 319) (Sabugal 1985 p 371)

Em suma podemos observar que o conceito que os israelitas tinham de Deus como

Pai defendido por J Jeremias fundamenta-se na tese de que a paternidade de Deus

sobre Israel eacute diferente da paternidade divina entre os demais povos antigos De fato o

Deus dos israelitas natildeo eacute um pai por geraccedilatildeo fiacutesica (Sabugal 1985 p371) e nem mesmo

o progenitor dos deuses e dos homens (Sabugal 1985 p368) como criam os demais

povos antigos Contudo observamos que a figura de Deus metaforicamente exerce

funccedilotildees que satildeo em suas origens de ofiacutecio materno e de ofiacutecio paterno

Realmente o Antigo Testamento eacute rico em metaacuteforas para Deus Christopher J H

Wrighth nota que entre as imagens humanas para Deus no Antigo Testamento

encontramos que ele eacute rei juiz e redentor Tambeacutem Yahweh eacute comparado a um pastor

soldado ou a um agricultor Yaweh pode ser chamado tambeacutem de rocha abrigo escudo

esconderijo leatildeo fogo ou uma fonte de aacutegua (Wright 2007 p 22)

Uma outra maneira de se observar a figura de Deus como Pai no Antigo Testamento

eacute atraveacutes dos nomes teofoacutericos Geza Vermes vecirc que a representaccedilatildeo de Deus como Pai

eacute um elemento baacutesico na Teologia do Antigo Testamento Vermes cita trecircs nomes como

exemplo os quais ldquoproclamam uma relaccedilatildeo de parentesco entre Deus e os membros

individuais do povo Judeurdquo 8 Tais nomes como Abiel (Deus eacute meu Pai) Eliab (meu Deus

eacute Pai) Abijah (Yah [Yahweh Jeovaacute eacute meu Pai] segundo Vermes atestam o conceito de

que Deus era invocado como Pai no judaiacutesmo veterotestamentaacuterio (Vermes 2006 p 259)

9 Sobre a imagem de Deus Pai na Biacuteblia Vermes concorda que ela natildeo eacute tatildeo

8 Acredito que com o termo parentesco Vermes natildeo estaacute se referindo a ancestralidade conforme

debatemos acima baseado no pensamento de J Jeremias 9 Matthias Grenzer tambeacutem coloca esses nomes citados por Vermes como uma forma de ver ldquoo

comportamento do Senhor Deusrdquo comparado a atitude de um Pai humano Grenzer ainda menciona o nome do sobrinho de Davi Joab cujo significado eacute ldquoJaveacute (Yahweh) eacute Pairdquo (Cf Grenzer 2009 p 180)

26

abundantemente atestada nas Escrituras contudo a familiaridade dessa imagem eacute

manifesta na ldquovariedade de nomes teofoacutericos que conteacutem o elemento ab (Pai)rdquo Sobre os

nomes teofoacutericos ele diz ainda que

Eles empregam tanto os tiacutetulos divinos do hebraico YH (W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai) ou YoAB (Yo eacute o Pai) Do mesmo modo temos Abbi eL e ELIab (Deus eacute o Pai) em nomes judaicos da era preacute-exiacutelica e do Segundo Templo Abram e Abiram (Pai excelso e Meu Pai eacute exaltado) que podem ser rastreados agrave idade patriarcal representam o mesmo tipo Enquanto as nuances exatas do termo ldquoPairdquo permanecem vagas natildeo pode haver duacutevida de que mesmo em niacutevel individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de famiacutelia Essa antiga atitude subjacente eacute explicitamente expressa principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da naccedilatildeo judaica Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusatildeo a eles como seus filhos (Vermes 1995 p158-159)

Para Christopher Wright a ocorrecircncia desses nomes metafoacutericos no Antigo

Testamento demonstra como a ideia de Deus como Pai era bem aceita nesse periacuteodo

Para esse autor pais que davam nomes aos filhos como Joabe (Yahweh eacute meu pai) ou

Abiel (Deus eacute meu Pai) tinham algum conhecimento metafoacuterico de Deus como Pai

Portanto para Israel o conhecimento de Deus como Pai pode ser mais bem

compreendido sob o ponto de vista que para eles Deus eacute comparado com um pai

humano que disciplina mas ensina seus filhos Como Pai ele tambeacutem se compadece

carrega adota os sem-teto e os oacuterfatildeos enfim ele eacute o Pai em que podemos encontrar

perfeita seguranccedila (Wright 2007 p24-25 38-39)

27

3 O JESUS HISTOacuteRICO

Depois de investigarmos a relaccedilatildeo de Deus como ldquoPairdquo entre os povos antigos

aproximamo-nos do ponto central da pesquisa Jesus de Nazareacute o qual segundo J

Jeremias trouxe-nos uma nova forma ou seja deu um novo enfoque sobre o termo Pai

quando dirigido a Deus Para um melhor embasamento sobre a relaccedilatildeo de Jesus com

Deus Pai buscaremos entender o homem chamado Jesus dentro das pesquisas

modernas sobre ldquoa vida de Jesusrdquo bem como das fontes evangeacutelicas disponiacuteveis no Novo

Testamento Procurar conhecer Jesus partindo do meio social em que ele esteve inserido

com certeza torna a pesquisa sobre o Cristo mais profunda e interessante uma vez que

Jesus antes de ser conhecido e pregado como Cristo foi um cidadatildeo judeu que viveu na

Galileia para ser mais preciso na pequena e humilde Nazareacute

31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO

Jesus de Nazareacute constitui personagem histoacuterico da maior importacircncia a comeccedilar pelo proacuteprio calendaacuterio hoje universal baseado na era cristatilde Uma parte consideraacutevel da humanidade professa a feacute cristatilde e outra parte considera Jesus como um profeta Para aleacutem do Cristianismo e do Islamismo Jesus constitui para outros crentes ou para agnoacutesticos e ateus uma referecircncia fundamental pela diferenccedila contraste ou oposiccedilatildeo No entanto o Jesus da histoacuteria aquele homem galileu que viveu haacute dois mil anos ainda constitui um grande desconhecido O Cristo da feacute dominou por muitos seacuteculos as reflexotildees sobre este homem de singular significaccedilatildeo As paixotildees das discussotildees teoloacutegicas foram muitas mas o homem Jesus foi tocado pelos estudiosos apenas nos uacuteltimos dois seacuteculos

(Funari 2009 p 7 in Chevitarese A L Cornelli G)

A busca pelo Jesus da histoacuteria tem mais de 200 anos No final do seacuteculo XVIII um

pequeno nuacutemero de bravos europeus comeccedilou a aplicar criacutetica literaacuteria a livros histoacutericos

do Novo Testamento Segundo E P Sanders a pesquisa sobre Jesus escrita durante

esse periacuteodo de 200 anos por estudiosos seacuterios e determinados trouxe resultados

bastante diversificados sobre o assunto o que levou muitos a pensar que na realidade

natildeo sabemos nada sobre o Jesus da histoacuteria No entanto essa eacute uma reaccedilatildeo exagerada

uma vez que sabemos muitas coisas O problema consiste em saber conciliar os nossos

conhecimentos com as nossas esperanccedilas e aspiraccedilotildees a respeito da vida e ministeacuterio de

Jesus (Sanders 2005 p21)

A pesquisa sobre a vida de Jesus pode ser dividida em cinco fases conforme as

descrevem Gerd Theissen e Annette Merz A primeira fase tem como principais

representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-

28

1874) 10 Reimarus um professor de liacutenguas orientais de Hamburg teve seus escritos

principais publicados somente apoacutes a sua morte por G E Lessing o qual a partir de

1774 comeccedilou a publicar as partes mais importantes do ensaio sobre ldquoApologia ou

Escritos de Defesa para os adoradores Racionais de Deusrdquo Em 1778 ele tinha publicado

sete fragmentos da obra quando iniciou o tratamento da vida de Jesus em perspectiva

puramente histoacuterica (Theissen amp Merz 2004 p21) Conforme Albert Schweitzer estes

satildeo os tiacutetulos dos fragmentos de Reimarus publicados por Lessing (Schweitzer 2003 p

23)

1 A Toleracircncia dos Deiacutestas

2 A Desmoralizaccedilatildeo da Razatildeo no Puacutelpito

3 A Impossibilidade de uma Revelaccedilatildeo em que todos os homens teriam bons motivos

para acreditar

4 A Passagem dos Israelitas pelo Mar Vermelho

5 Demonstrando que os Livros do Antigo Testamento natildeo foram escritos para revelar

uma religiatildeo

6 Acerca da Histoacuteria da Ressurreiccedilatildeo

7 Os objetivos de Jesus e seus Disciacutepulos

Reimarus de acordo com Theissen defendeu a ideia de que Jesus natildeo fundou

uma nova religiatildeo e tambeacutem nunca teve a intenccedilatildeo de desfazer-se do judaiacutesmo visto que

ele sempre esteve inserido na religiatildeo Judaica A pregaccedilatildeo de Jesus era sempre baseada

na apocaliacuteptica judaica O reino prometido por Jesus segundo Reimarus era um reino

terreno nos mesmos moldes e expectativas do pensamento judaico de sua eacutepoca

Portanto para Reimarus ldquoJesus eacute uma figura judaica profeacutetico-apocaliacutepticardquo ou seja

apenas um judeu enquanto que o cristianismo nada mais era do que uma invenccedilatildeo dos

apoacutestolos (Theissen e Merz 2004 p21) Martins Terra fazendo uma anaacutelise do

pensamento de Reimarus sobre a pessoa de Jesus conclui que para o referido teoacutelogo

ldquoJesus natildeo passou de um poliacutetico ambicioso e seus disciacutepulos foram verdadeiros

falsaacuteriosrdquo Na analogia de Reimarus Jesus e sua pretensatildeo poliacutetica terminaram com o

fracasso e a morte na cruz Sobre a ressurreiccedilatildeo de Jesus ele teria dito que foram os

disciacutepulos roubaram o cadaacutever inventaram a mensagem de sua ressurreiccedilatildeo e da vinda

futura Para concluir o pensamento de Reimarus sobre a imagem que temos de Jesus a

10

Essa fase eacute tambeacutem conhecida como a ldquoold questrdquo Essa fase natildeo eacute movida pelo cientificismo mas tem como caracteriacutesticas a rejeiccedilatildeo aos dogmas da Igreja a diferenciaccedilatildeo entre os sinoacuteticos e Joatildeo como fontes histoacutericas a colocaccedilatildeo de Jesus dentro do contexto escatoloacutegico de seu tempo e a ecircnfase sobre o Evangelho de Marcos como sendo o mais antigo dos Evangelhos (Schiavo 2006 p 15-17)

29

partir dos Evangelhos ele afirma que isso foi apenas criaccedilatildeo e ldquofrauderdquo dos disciacutepulos (cf

Martins Terra 1977 p10-12)

Strauss que foi filoacutesofo e teoacutelogo publicou em 18351836 a obra intitulada Vida de

Jesus Para Schweitzer ele natildeo estaacute entre os grandes teoacutelogos mas foi o mais sincero

(Schweitzer 2003 p85) Strauss aplicou aos Evangelhos o conceito de mito algo que jaacute

era comum nas pesquisas sobre o Antigo Testamento de sua eacutepoca (Theissen e Merz

2004 p22) Para ele mesmo que os Evangelhos (sinoacuteticos) tenham sido escritos num

periacuteodo de aproximadamente 40 anos apoacutes a morte de Jesus isso natildeo impede de que

estejam misturados com o mito Ele deixa sua forma de pensar mais evidente quando diz

que ldquonatildeo eacute preciso que um grande homem esteja morto haacute muito tempo para que a lenda

jaacute se ocupe da sua vidardquo (Schweitzer 2003 p 98) Contudo precisamos entender qual eacute

o verdadeiro sentido do mito religioso conforme nos descreve Schweitzer

[] a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha compreendido o caraacuteter essencial do mito religioso Ele nada mais eacute do que ideias religiosas vestidas em uma forma histoacuterica modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda e corporificado numa personalidade histoacuterica Ateacute por motivos a priori somos quase compelidos a assumir que o Jesus histoacuterico nos encontraraacute com as vestes das ideias messiacircnicas do Antigo Testamento e expectativas do cristianismo primitivo (Schweitzer p98)

Segundo Schweitzer a diferenccedila entre Strauss e os seus predecessores eacute que

para aqueles se aplicassem rigorosamente o conceito de mito agrave vida histoacuterica de Jesus

havia um grande questionamento sobre se restaria alguma coisa do Jesus histoacuterico

enquanto que para este essa questatildeo natildeo apresentava nada que fosse considerado um

terror (Schweitzer 2003 p98) Theissen assim resume Strauss ldquoPara Strauss

hegeliano declarado o cerne da feacute cristatilde natildeo eacute atingido pela abordagem miacutetica pois no

indiviacuteduo histoacuterico Jesus realiza a ideia da humanidade de Deus a mais sublime de todas

as ideias O mito eacute a roupagem legiacutetima de tipo histoacuterico dessa humanidade geralrdquo

(Theissen 2004 p22)

De uma forma sucinta Theissen descreve as demais fases da seguinte forma a

segunda eacute denominada como a fase do ldquootimismo da pesquisa liberal sobre a vida de

Jesusrdquo Essa fase eacute marcada por um florescimento do liberalismo teoloacutegico sobre a vida

de Jesus sob o ponto de vista de pesquisadores na Alemanha onde era esperado que se

chegasse agrave reconstruccedilatildeo histoacuterico-criacutetica da histoacuteria de Jesus e de sua personalidade

Essa escola teve como seu principal representante Heinrich Julius Holtzmann (1832-

1910) Destaca-se nessa fase que enquanto F Chr Baur demonstrou a primazia dos

sinoacuteticos sobre o Evangelho de Joatildeo Holtzmann contribuiu para que a teoria das duas

30

fontes desenvolvida por Christian Gottob Wilke e Christian Hermann Weise tornasse-se

um sucesso duradouro (Theissen e Merz 2004 p23)

A terceira fase eacute definida como ldquoo colapso da pesquisa sobre a vida de Jesusrdquo 11

Trecircs foram os motivos para tal colapso o primeiro fator foi a obra de Schweitzer Histoacuteria

de Investigaccedilatildeo da vida de Jesus que provocou o desvelamento das imagens das Vidas

de Jesus criadas pela teologia liberal que conforme os olhos de cada autor revelava-se a

estrutura de personalidade de Jesus com o ideal eacutetico que cada autor almejava O

segundo motivo estaacute concentrado na pessoa de W Wrede que em 1901 demonstrou ldquoo

caraacuteter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesusrdquo Para

Wrede o Evangelho de Marcos era a expressatildeo dogmaacutetica da comunidade cristatilde

primitiva que projetou sobre Jesus de Nazareacute a messianidade do Jesus poacutes-pascal E

por fim K L Schmidt demonstra o ldquocaraacuteter fragmentaacuterio dos evangelhosrdquo Para Schmidt

o Evangelho de Marcos eacute composto por periacutecopes que foram juntadas cronoloacutegica e

geograficamente somente mais tarde pelo autor Sendo assim desaparece totalmente a

possibilidade de se construir uma personalidade de Jesus visto que a histoacuteria das formas

reconhece que as periacutecopes foram juntadas primeiramente para satisfazer as

necessidades das comunidades e soacute em segundo plano como recordaccedilotildees histoacutericas

(Theissen e Merz 2004 p24)

Diante desses movimentos ceticistas surge uma teologia que ora amortece ora

aguccedila ainda mais os debates em torno das pesquisas sobre as Vidas de Jesus Nesse

sentido Rudolf Bultmann (1884 -1976) expotildee a sua teologia dialeacutetica contrapondo Deus e

o mundo de uma forma tatildeo radical a tal ponto que seria possiacutevel um encontro entre

ambas as partes apenas em um ponto assim ldquocomo uma tangente toca um ciacuterculordquo

(Theissen e Merz 2004 p24) Para Bultmann o fator decisivo natildeo era o que Jesus disse

ou fez mas sim o que Deus disse ou fez na cruz e na ressurreiccedilatildeo Nesse sentido

Bultmann afirma que o ensino de Jesus natildeo eacute relevante para a feacute cristatilde e partindo desse

pensamento Theissen define a teologia de Bultmann nas seguintes palavras ldquoSe D F

Strauss viu a verdade do mito de Cristo na ldquoideiardquo R Bultmann a viu no querigma um

chamado de Deus vindo de forardquo (Theissen e Merz 2004 p24-25)

11

Schiavo define essa fase como a ldquono questrdquo Os principais nomes dessa fase satildeo Wrede Dibelius Schmidt e Bultmann Neste movimento os Evangelhos satildeo considerados como um conjunto de tradiccedilotildees desarticuladas e pequenas (periacutecopes) sem interesses histoacutericos A finalidade principal dos Evangelhos estaacute centrada no fato de transmitir mensagens espirituais catequeacuteticas e lituacutergicas para os cristatildeos da Igreja Primitiva Sendo assim eacute impossiacutevel conhecer o Jesus histoacuterico pois a imagem que temos dele nos Evangelhos eacute querigmaacutetica e centrada no Jesus da feacute (Schiavo 2006 p 17-18)

31

A quarta fase eacute definida por Theissen como ldquoa nova pergunta pelo Jesus histoacutericordquo

12 Essa fase desenvolvida pelos disciacutepulos de Bultmann pergunta ou busca uma relaccedilatildeo

a partir do Jesus querigmaacutetico questionando se ldquosua exaltaccedilatildeo na cruz e na ressurreiccedilatildeo

tem alguma base na pregaccedilatildeo preacute-pascalrdquo Os pressupostos para tal questionamento satildeo

fundamentados nas seguintes pressuposiccedilotildees ldquoO querigma cristoloacutegico compromete-se

com a pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Isso se fundamenta segundo essa escola no fato

de que ldquoa identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado eacute pressuposta em todos os

escritos do cristianismo primitivordquo (Theissen e Merz 2004 p25ndash26) O segundo

pressuposto eacute ldquoa base metodoloacutegica da pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Segundo

Theissen esse pressuposto metodoloacutegico eacute ldquoa confianccedila de que se pode encontrar um

miacutenimo criticamente assegurado de tradiccedilatildeo autecircntica de Jesus quando se exclui o que

pode ser derivado tanto do judaiacutesmo como do cristianismo primitivordquo Entende-se que

nessa quarta fase para os disciacutepulos de Bultmann a busca de um fundamento preacute-pascal

que apoie o querigma de Cristo independe do fato de Jesus ter usado algum tiacutetulo

cristoloacutegico visto que isso jaacute estaacute impliacutecito em seu ministeacuterio e em seu anuacutencio (Theissen

e Merz 2004 p26)

Finalmente surge a quinta fase conforme Theissen denominada de ldquoa third

quest13 pelo Jesus Histoacutericordquo Essa fase predominantemente exposta no mundo de fala

inglesa diferencia-se das anteriores pelos seguintes aspectos o interesse histoacuterico-social

substitui o teoloacutegico a inserccedilatildeo de Jesus no Judaiacutesmo ao inveacutes de separaacute-lo como os

disciacutepulos de Bultmann procura fazecirc-lo e por fim haacute uma abertura para as fontes natildeo

canocircnicas substituindo a preferecircncia apenas por fontes canocircnicas A third quest dividiu a

pesquisa sobre Jesus em diferentes correntes No entanto segundo Theissen essa

variedade de interpretaccedilotildees e figuras de Jesus que pode ser visto tanto como um ciacutenico

judeu ou como um personagem colocado no centro do judaiacutesmo a espera do

restabelecimento de um reino escatoloacutegico daacute a essas correntes um tom de

plausibilidade ou seja ldquoo que eacute plausiacutevel no contexto judaico e torna compreensiacutevel o

12

Conhecida como a ldquoNew questrdquo a New quest caracteriza-se por diferenciar o que eacute proacuteprio do judaiacutesmo com o que eacute tambeacutem proacuteprio do cristianismo primitivo Dessa forma seria possiacutevel chegar ao Jesus da histoacuteria Ernst Kaumlsemann eacute um dos representantes dessa escola Para Schiavo J Jeremias tambeacutem pode ser representado nessa escola Visto que o mesmo com a ajuda da filologia e conhecimentos profundos do aramaico tentou reconstruir os ditos autecircnticos de Jesus (Schiavo 2006 p 18)

13 Schiavo complementa que essa fase que teve iniacutecio a partir da deacutecada de 1980 deixa de ser

exclusividade da academia alematilde e a pesquisa do Jesus histoacuterico passa a fazer parte da academia anglo-americana Este movimento tem como caracteriacutesticas principais os seguintes toacutepicos O interesse histoacuterico-socioloacutegico para com o mundo judaico do seacuteculo I dC a inserccedilatildeo de Jesus dentro do Judaiacutesmo A referecircncia agraves fontes natildeo canocircnicas e a aproximaccedilatildeo da fonte Q com o Evangelho de Tomeacute Dentre os representantes dessa escola encontram-se Crossan Sanders Meyer Vermes Freyne Horsley e Theissen (Schiavo 2006 p 18-19)

32

surgimento do cristianismo primitivo poderia ser histoacutericordquo (Theissen e Merz 2004 p28ndash

29)

32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO

Um dos temas da teologia que tem levantado inuacutemeras questotildees a mais de dois

seacuteculos eacute a busca histoacuterica por Jesus de Nazareacute um humilde judeu que viveu na Galileia

agraves margens do Mediterracircneo Sean Freyne avalia que ldquoas muitas idas e vindas dos

estudos que marcam a busca pelo Jesus histoacuterico tecircm sido uma preocupaccedilatildeo constante

da teologia ocidental por mais de dois seacuteculos e mesmo assim nenhum consenso foi

atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundourdquo (Freyne 2008

p1) Sobre a possibilidade de se buscar pelo Jesus histoacuterico Freyne observa que hoje

natildeo eacute mais suficiente apenas assumir uma posiccedilatildeo numa questatildeo por demais debatida Eacute

necessaacuterio que o pesquisador aleacutem de ter conhecimentos da histoacuteria da antiguidade

tambeacutem possua conhecimentos de arqueologia ciecircncias sociais e particularmente de

antropologia cultural (Freyne 2008 p2) Isso demonstra que haacute necessidade de uma

visatildeo interdisciplinar entre essas ciecircncias e seus pesquisadores

A pergunta sobre o Jesus histoacuterico segundo J Jeremias chega a ser absurda e

sem significaccedilatildeo para a feacute cristatilde apenas para aqueles que natildeo conhecem a questatildeo Ele

ainda pergunta ldquoComo eacute possiacutevel que esta questatildeo seja a questatildeo central de todas as

discussotildees sobre o Novo Testamentordquo (Jeremias 2005 p199) Segundo J Jeremias eacute

hora de questionarmos as teorias de Rudolf Bultmann que propagam que o Jesus

histoacuterico eacute irrelevante para a feacute cristatilde e a teoria que apregoa que o Jesus histoacuterico e o

Cristo proclamado pela Igreja natildeo satildeo as mesmas de Reimarus (Jeremias 2005 p 200)

Partindo das questotildees levantadas por J Jeremias e da forma como Bultmann diverge

desse pensador um diaacutelogo sobre a questatildeo eacute sempre gratificante para darmos pelo

menos um passo agrave frente no que se refere ao Jesus histoacuterico

Tendo em vista a amplitude da questatildeo acima levantada fica evidente que

trabalhar temas relacionados agrave vida do Jesus histoacuterico eacute sempre desafiador Muitos foram

os teoacutelogos e pensadores que a partir do ano de 1778 ano em que nasce o ldquoproblema do

Jesus histoacutericordquo (Jeremias 2005 p 200) esforccedilaram-se nessa tarefa com um espiacuterito

criacutetico e investigativo a fim de encontrar evidecircncias histoacutericas a respeito do homem mais

marcante de toda a histoacuteria da humanidade Tambeacutem natildeo significa que antes de Reimarus

33

o Jesus histoacuterico fosse negligenciado a questatildeo eacute que os teoacutelogos e historiadores desde

a igreja primitiva haviam sustentado que os Evangelhos eram documentos dignos de

absoluto creacutedito acerca da vida e histoacuteria de Jesus por isso tiveram a preocupaccedilatildeo de

apenas parafrasear e harmonizar os Evangelhos uma vez que natildeo viam necessidade de

uma investigaccedilatildeo aleacutem das fontes canocircnicas (Jeremias 2005 p 200) As palavras de Udo

Schnelle assim resumem a teologia do Jesus histoacuterico

A pergunta histoacuterica por Jesus eacute uma filha do iluminismo Para os periacuteodos anteriores era evidente que os Evangelhos transmitiam notiacutecias confiaacuteveis sobre Jesus Antes do Iluminismo a pesquisa neotestamentaacuteria dos Evangelhos limitava-se essencialmente agrave harmonizaccedilatildeo dos quatros Evangelhos Na praacutetica a Exegese do Novo Testamento era uma disciplina auxiliar da Dogmaacutetica (Schnelle 2010 p 70)

Ainda com relaccedilatildeo agrave pesquisa sobre o Jesus histoacuterico Joseacute Antonio Pagola diz

que quando nos referimos ao Jesus histoacuterico ldquoestamos falando do conhecimento de

Jesus que os historiadores podem obter utilizando os meacutetodos cientiacuteficos da moderna

investigaccedilatildeo histoacutericardquo (Pagola 2010 p13)

A magnitude de se escrever sobre o Jesus da Galileia eacute descrita por Schweitzer

com as seguintes palavras ldquo[] natildeo haacute tarefa histoacuterica que revele o verdadeiro interior de

um homem como a de escrever uma Vida de Jesus Nenhuma forccedila vital move o

personagem a natildeo ser que o homem sopre nele todo o oacutedio ou todo o amor de que eacute

capaz Quanto mais intenso o amor ou o oacutedio mais realista eacute a figura produzidardquo

(Schweitzer 2003 p11) Em outras palavras Schweitzer diz que aqueles que buscaram

despir Jesus do sobrenatural acabaram descobrindo fatos que enalteceram ainda mais a

sua histoacuteria Para Schweitzer tanto o oacutedio quanto o amor leva o escritor a investigaccedilotildees

profundas no intuito de provar verdade ou falsidade de um acontecimento histoacuterico Nesse

sentido as maiores produccedilotildees a respeito do Jesus histoacuterico foram escritas com oacutedio e

entre elas segundo Schweitzer estatildeo as de Reimarus e a de Strauss (Schweitzer 2003

p11)

Segundo J Jeremias a tese defendida por Reimarus em que Jesus eacute visto como

um revolucionaacuterio poliacutetico que fracassou na cruz quando exclamou ldquoDeus meu Deus

meu por que me desamparastesrdquo era estuacutepida e artificial visto que Jesus natildeo foi um

revolucionaacuterio poliacutetico e sempre reagiu energicamente contra todas as tendecircncias

nacionalistas dos zelotas Ao fazer uma anaacutelise do momento em que Reimarus escreveu

J Jeremias relata que Reimarus estava fazendo uma investigaccedilatildeo voltada ao homem

Jesus para sua personalidade sua religiatildeo e natildeo voltada para o dogma cristoloacutegico e

34

que a princiacutepio tinha como objetivo libertar-se dos dogmas da igreja (Jeremias 2005 p

201)

O resultado desses trabalhos sobre ltltas vidas de Jesusgtgt nos legaram muitas

imagens de sua personalidade que produzem risos Para os racionalistas Jesus eacute visto

como um pregador de moral para os idealistas a quintessecircncia do humanismo e por fim

para os estetas ele eacute posto como o amigo dos pobres e como um reformador social

Assim satildeo inuacutemeras as imagens que fazem de Jesus um personagem de romance

Jesus portanto eacute modernizado conforme as imagens carregadas de fantasias de cada

autor conforme os seus ideais suas eacutepocas ou suas teologias (Jeremias 2005 p 201)

J Jeremias questiona entatildeo onde estaria o erro E a resposta estaacute no fato de que

esses escritores ltltdas vidas de Jesusgtgt sem ter a plena consciecircncia acabaram

substituindo o dogma cristoloacutegico pela psicologia e pela fantasia Haacute poreacutem um ponto em

comum em todas as obras sobre ltlt as vidas de Jesusgtgt todas elas tratam de desenhar

a personalidade de Jesus com a ajuda dos instrumentos da psicologia e da fantasia Os

padrinhos nesse esforccedilo natildeo satildeo apenas as fontes mas a maior parte pertence agrave

imaginaccedilatildeo criativa a uma construccedilatildeo psicoloacutegica livre de obstaacuteculos (Jeremias 2005 p

201-202)

Conforme J Jeremias Albert Schweitzer de uma forma traacutegica poreacutem com muita

destreza desmascara essas criaccedilotildees repletas de fantasias e depois ele mesmo cairia

em falta fazendo uma construccedilatildeo psicoloacutegica a partir do texto do Evangelho de Mateus

(10 23) declarando que a grande decepccedilatildeo na vida de Jesus foi natildeo ter chegado ao final

causando grandes mudanccedilas em sua vida a ponto de aceitar o sofrimento para forccedilar a

chegada do reino de Deus (Jeremias 2005 p 203)

Pesquisar a vida do Jesus histoacuterico eacute muito mais que contar a histoacuteria de um

grande homem Eacute deparar-se com um personagem vital para a histoacuteria da humanidade

que ldquoveio para reger sobre o mundo Ele o regeu para o bem e para o mal como a histoacuteria

testificardquo (Schweitzer 2003 p8) Jesus revolucionou o mundo de sua eacutepoca mudou o

rumo da histoacuteria inseriu-se nela como protagonista mesmo natildeo sendo essa a sua

intenccedilatildeo A histoacuteria do mundo natildeo poderia mais ser contada sem ele ou seja Jesus

dividiu a histoacuteria em o antes e o depois dele A grandiosidade do homem Jesus fascinou

tanto os que o amaram como aqueles que o odiaram Nesse sentido podemos justificar o

fato de tantos pensadores estudarem a respeito do Jesus histoacuterico com as palavras

atribuiacutedas a Hegel por Bernard Bourgeois ldquoUm grande homem condena os humanos a

explicaacute-lordquo (Bourgeois1995 p 375)

35

Segundo Schweitzer os cristatildeos primitivos preocuparam-se apenas em preservar

ditos isolados a respeito do Jesus histoacuterico A expectativa do retorno iminente do Mestre

pode ter sido o motivo principal que levou o cristianismo primitivo a preferir apenas fatos

relacionados ao ministeacuterio de Jesus a uma biografia completa do Jesus histoacuterico O autor

ainda considera isso como um impulso de autopreservaccedilatildeo visto que a introduccedilatildeo do

Jesus histoacuterico na feacute da comunidade primitiva seria algo novo jaacute que o proacuteprio Jesus natildeo

se preocupou em deixar uma autobiografia Pagola compartilha desse pensamento

dizendo que

os evangelistas natildeo compuseram uma ldquobiografiardquo de Jesus no sentido moderno desta palavra Seus escritos estatildeo impregnados de sua feacute no Cristo ressuscitado satildeo sumamente seletivos foram narrados em funccedilatildeo de problemas e necessidades das primeiras comunidades cristatildes e estatildeo ordenados para objetivos teoloacutegicos e concretos Por isso exigem um estudo criacutetico cuidadoso antes de podermos obter deles informaccedilotildees fidedignas para a investigaccedilatildeo (Pagola 2010 p17)

O fato de Jesus natildeo ter deixado nenhum texto escrito e o texto do apoacutestolo Paulo

na segunda carta aos Coriacutentios capiacutetulo cap 5 verso 16 ldquo[hellip] doravante a ningueacutem

conhecemos segundo a carne Tambeacutem se conhecemos Cristo segundo a carne agora jaacute

natildeo o conhecemos assimrdquo abriu o caminho para diversas interpretaccedilotildees acerca de Jesus

De fato Leonhard Goppelt menciona a interpretaccedilatildeo de Rudolf Bultmann segundo a qual

se infere que para Paulo a accedilatildeo terrena de Jesus natildeo teria tido a miacutenima importacircncia o

que importava era a feacute pascal Natildeo obstante a ldquofeacute pascal bem como a cristologia natildeo satildeo

simplesmente uma transfiguraccedilatildeo miacutetica do terreno Muito antes nelas toma forma o que

no Jesus terreno agia apenas de maneira ocultardquo (Goppelt 2002 p 46)

O pensamento de Bultmann a respeito da importacircncia de se investigar a vida e a

personalidade do Jesus histoacuterico se resume nas seguintes palavras

Natildeo podemos saber praticamente nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus jaacute que as fontes cristatildes natildeo se interessaram por elas sendo ademais bastante fragmentaacuterias e encobertas pela lenda uma vez que natildeo existem outras fontes sobre Jesus O que se estaacute escrevendo haacute mais de um seacuteculo e meio sobre a vida de Jesus sua personalidade seu desenvolvimento interior e coisas semelhantes ndash uma vez que natildeo se trata de investigaccedilotildees criacuteticas ndash natildeo passa de fantasia e romance (Bultmann 2005 p 26)

Dessa forma o logos natildeo se torna verdadeiramente carne mas apenas palavra

(kerygma) Na visatildeo de Bultmann o Jesus histoacuterico natildeo faz parte da teologia do Novo

Testamento pois o objeto da teologia do Novo Testamento eacute o Cristo da feacute (pascal) Em

vista disso um estudo acerca do Jesus histoacuterico fica relegado a uma primeira etapa tal

qual uma primeira premissa no interior de um argumento mais elaborado (Bultmann

36

2004 p 24) J Jeremias enfatiza que para Bultmann a pregaccedilatildeo de Jesus eacute apenas

uma premissa entre muitas outras do Novo Testamento (Jeremias 2005 p 204)

Para J Jeremias Bultmann sofreu influecircncia de Martin Kaumlhler atraveacutes de sua obra

Der sogenannte historische Jesus und der geschichtiche biblische Cristus (O chamado

Jesus histoacuterico e o Cristo existencialmente histoacuterico e biacuteblico) Kaumlhler distinguiu por um

lado entre Jesus e Cristo e por outro entre historische (histoacuterico) e geschichtiche

(existencialmente histoacuterico) Por Jesus Kaumlhler compreendia o homem de Nazareacute tal

como foi descrito pelos que investigaram a vida do Jesus histoacuterico por Cristo ele entendia

como aquele que foi proclamado como o Salvador pela igreja Quanto ao significado do

adjetivo historische (histoacuterico) ele compreendia como uma mera designaccedilatildeo dos fatos do

passado e para geschichtiche (existencialmente histoacuterico) como aquele que tem um

significado permanente Portanto para Kaumlhler toda a tentativa de reconstruir a vida do

Jesus histoacuterico se contrapotildee ao Cristo biacuteblico e existencialmente histoacuterico tal como foi

pregado pelos apoacutestolos e para noacutes conforme Kaumlhler o que importa eacute unicamente o

Cristo da Biacuteblia conforme descrito pelos Evangelhos e natildeo as supostas reconstruccedilotildees

cientiacuteficas a respeito da pessoa de Jesus que chegam ateacute a passar a impressatildeo de uma

plena realidade dos fatos (Jeremias 2005 p 202)

A voz de Kaumlhler se extinguiu no vaacutecuo e natildeo surtiu um efeito pleno ateacute o ecoar da

voz de Bultmann que com coragem irredutiacutevel entrou no campo do inimigo e

abertamente lutou contra uma teologia que por um periacuteodo de aproximadamente cento e

cinquenta anos esforccedilou-se para chegar ao Jesus histoacuterico (Jeremias 2005 p 202)

Concordando com Kaumlhler Bultmann declara que todo o esforccedilo para chegar ao Jesus

histoacuterico foi um empreendimento insoluacutevel e infecundo que retirou a inexpugnaacutevel

fortaleza da proclamaccedilatildeo (kerigma) de Cristo (Jeremias 2005 p 203)

Os argumentos de Bultmann para a renuacutencia da teologia do Jesus histoacuterico

fundamentam-se no princiacutepio de que haacute falta de fontes seguras para a fundamentaccedilatildeo

dessa teologia Tambeacutem leva-se em consideraccedilatildeo que natildeo temos nada escrito pelas

matildeos de Jesus As uacutenicas fontes que temos a respeito de Jesus satildeo os Evangelhos e

esses natildeo satildeo biografias de Jesus mas satildeo apenas testemunhos de feacute secundaacuterios e

recobertos de lendas como no caso dos milagres Os Evangelhos segundo esse

pensamento satildeo a demonstraccedilatildeo de feacute dos evangelistas (Jeremias p 203) Concernente

agrave vida e agrave proclamaccedilatildeo de Jesus Bultmann assim descreve

37

[] Pouco sabemos sobre sua vida e personalidade ndash em compensaccedilatildeo sabemos o suficiente sobre sua proclamaccedilatildeo para pintar um quadro coerente Todavia tambeacutem nesse ponto recomenda-se um cuidado extremo em vista do caraacuteter das fontes que dispomos Pois o que as fontes nos oferecem eacute em primeira linha a proclamaccedilatildeo da comunidade que no entanto remonta em sua maior parte a Jesus Naturalmente isso prova que ele realmente tenha pronunciado todas as palavras que essa comunidade lhe pocircs na boca No caso de muitas palavras eacute possiacutevel demonstrar que soacute vieram a surgir na comunidade ao passo que no caso de outras elas foram reformuladas pela comunidade A investigaccedilatildeo criacutetica mostra que o conjunto da tradiccedilatildeo sobre Jesus ndash disponiacutevel nos trecircs evangelhos sinoacuteticos de Mateus Marcos e Lucas ndash se desmembra em uma seacuterie de camadas que em termos gerais podem ser distinguidas umas das outras com bastante seguranccedila mas cuja separaccedilatildeo em alguns detalhes apresenta dificuldades e levanta duacutevidas (Bultmann 2005 p 29-30)

Contudo essa visatildeo de Bultmann natildeo significa a negaccedilatildeo da existecircncia do homem

chamado Jesus de Nazareacute Segundo esse autor eacute possiacutevel conhecer muito dele atraveacutes

de suas pregaccedilotildees poreacutem na anaacutelise da criacutetica histoacuterica em relaccedilatildeo ao homem Jesus

conclui-se que natildeo haacute nada de importante para a feacute cristatilde (Jeremias 2005 p 203)

Quanto agrave questatildeo da existecircncia de Jesus vejamos o que nos diz Bultmann

[hellip] Eacute verdade que a duacutevida se Jesus realmente existiu eacute infundada e natildeo vale a pena gastar nenhuma palavra para refutaacute-la Eacute evidente que ele eacute o gerador do movimento histoacuterico cujo primeiro estaacutegio constataacutevel eacute representado pela comunidade palestinense mais antiga No entanto outra questatildeo eacute ateacute que ponto a comunidade preservou de modo objetivamente fiel a imagem dele e de sua proclamaccedilatildeo Para aqueles que tecircm interesse na personalidade de Jesus esse estado de coisas eacute inquietante e arrasador para nosso propoacutesito ele natildeo eacute de fundamental importacircncia (Bultmann 2005 p 30-31)

J Jeremias analisa entatildeo que para Bultmann Jesus de Nazareacute foi um profeta

judeu que permaneceu sempre dentro dos marcos do judaiacutesmo O Jesus histoacuterico

segundo Bultmann pode ser interessante para a teologia do Novo Testamento e para

compreender a origem do cristianismo mas natildeo tem significaccedilatildeo alguma para a feacute cristatilde

porque o cristianismo comeccedila com a Paacutescoa (Jeremias 2005 p204) Martins Terra expotildee

que o Jesus histoacuterico para Bultmann realmente eacute um profeta e sem duacutevida o maior

deles contudo profeta pertence ao Antigo Testamento Sendo assim Jesus era apenas

um judeu e natildeo um cristatildeo14 ldquoporque cristatildeo eacute aquele que acredita no Senhor

ressuscitado e natildeo aquele que funda sua feacute sobre uma figura histoacutericardquo (Martins Terra

1977 p21)

14

A resposta dada a Bultmann veio de seu disciacutepulo Ernst Kaumlsemann que observa que tanto Jesus quanto

os apoacutestolos eram judeus E se os apoacutestolos eram judeus natildeo eram eles tambeacutem cristatildeos desde o momento que seguiram a Jesus Kaumlsemann ainda pergunta teria havido algum keacuterygma sem a pregaccedilatildeo de Jesus Kaumlsemann chama a atenccedilatildeo para que Jesus natildeo se torne um pretexto e Cristo uma mera cifra mitoloacutegica (Martins Terra 1977 p 44)

38

Escrever uma biografia sobre o Jesus histoacuterico eacute algo descartado na teologia e isso

eacute visto com justiccedila por J Jeremias quando diz ldquo[] eacute muito correto afirmar que jaacute temos

despertado do sonho de acreditar que podemos escrever uma biografia de Jesusrdquo

(Jeremias 2006 p28) No entanto isso natildeo significa passar com indiferenccedila por essa

teologia eacute preciso voltar ao Jesus de Nazareacute e a sua pregaccedilatildeo As fontes nos

impulsionam a cada versiacuteculo dos Evangelhos a buscar pelo homem Jesus que

historicamente apareceu em Nazareacute e que foi crucificado no governo de Pocircncio Pilatos

(Jeremias 2006 p28) Leonard Swidler diz estar ciente tambeacutem das dificuldades para

se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade sobre o Jesus (Ieshua) histoacuterico

Contudo para ele podemos chegar ao fundamental ou seja podemos sempre lutar para

chegar mais perto Para Swidler a consciecircncia dessa limitaccedilatildeo permite que a pessoa

evite os extremos isto eacute tanto a ingecircnua certeza absoluta quanto o ceticismo total sobre

a possibilidade da busca pelo Jesus histoacuterico (Swidler 1993 p 16-18)

A visatildeo de Bultmann a respeito do Jesus histoacuterico natildeo foi seguida pelo seu

sucessor catedraacutetico em Magburg W G Kuumlmmel Para Kuumlmmel interpretar as palavras

de Paulo15 na letra do texto 2 Cor 516 e concluir que o Jesus terreno natildeo teve

importacircncia para o apoacutestolo eacute uma interpretaccedilatildeo ldquoseguramente errocircneardquo (Kummel 2003

p210) pois mesmo que elas natildeo tenham um papel tatildeo importante nos escritos do

apoacutestolo elas natildeo deixam de ser significantes Errocircneo para Kuumlmmel seria o fato de um

cristatildeo procurar ter uma relaccedilatildeo intraterrena com Jesus ou conhececirc-lo apenas

historicamente o que seria insignificante para um cristatildeo Rochus Zuurmond tambeacutem

define o pensamento do apoacutestolo Paulo sobre o versiacuteculo 16 acima mencionado da

seguinte forma

[hellip] Nessa periacutecope natildeo se trata da distinccedilatildeo entre o Jesus preacute-pascal e o poacutes-pascal mas da diferenccedila entre conhecer Jesus da maneira antiga e conhececirc-lo da maneira nova O Jesus poacutes-pascal ainda pode ser ldquoconhecidordquo da maneira antiga o jovem Paulo mas tambeacutem seus adversaacuterios atuais eacute disso um exemplo Em princiacutepio o Jesus preacute-pascal tambeacutem podia ser conhecido de maneira nova se fosse ldquotirado o veacuteurdquo na leitura do Antigo Testamento (314ss cf Jo 856) Mas na praacutetica isso se verificou impossiacutevel por causa da carne (Zuurmond 1998 p 87)

Conhecer Jesus ldquosegundo a carnerdquo na interpretaccedilatildeo de Zuurmond inclui com

certeza todo o conhecimento que podemos ter do Jesus histoacuterico Para ele Paulo natildeo

15

Kaumlsemann tambeacutem contrapotildee essa tese de Bultmann colocando os seguintes argumentos Se o Apoacutestolo Paulo natildeo levou em consideraccedilatildeo a vida terrena de Jesus e a Igreja jaacute estava realizada com o keacuterygma contido nas cartas paulinas por que entatildeo os Evangelhos tornaram-se necessaacuterios jaacute que foram escritos (os Sinoacuteticos) depois que Paulo jaacute tinha escrito todas as cartas Segundo Kaumlsemann a necessidade dos Evangelhos deu-se principalmente porque havia vaacuterios keacuterygmas e a necessidade do discernimento desses deu-se a princiacutepio pelo Espiacuterito todavia quando o entusiasmo cresceu tornou-se necessaacuterio o criteacuterio da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 44-45)

39

estava referindo-se ao Jesus histoacuterico quando fala ldquose jaacute conhecemos o cristo segundo a

carne agora jaacute natildeo o conhecemos maisrdquo (516) Toda a atividade cientiacutefica eacute carne ou

seja pode ser verificado com os recursos da historiografia moderna A pesquisa sobre o

Jesus histoacuterico eacute possiacutevel desde que ela natildeo tenha a pretensatildeo de ser a verdade absoluta

a respeito de Jesus Para Zuurmond o apoacutestolo estaacute enfatizando que o conhecimento

espiritual estaacute aleacutem do conhecimento cientiacutefico contudo natildeo eacute anticientiacutefico mas apenas

natildeo estaacute submisso a qualquer criteacuterio da ciecircncia Zuurmond conclui que ldquoPaulo tem

pouquiacutessima coisa para dizer sobre o Jesus histoacutericordquo uma vez que o apoacutestolo dos

gentios natildeo teria muito interesse pelo ldquotipo de conhecimento sobre Jesus que daiacute

resultariardquo (Zuurmond 1998 p88)

Voltando aos disciacutepulos de Bultmann ainda podemos mencionar Ernst Kaumlsemann

que tambeacutem contestou os ldquodogmasrdquo de seu mestre Para Kaumlsemann a pergunta pelo

Jesus histoacuterico e pelas palavras de Jesus eacute uma praacutetica e exigecircncia do Novo Testamento

visto que satildeo a base e o criteacuterio do keacuterygma Sem essas perguntas o Cristo da feacute se

tornaria em mera ideologia religiosa A importacircncia dessas questotildees torna relevante a

busca pelo Jesus da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 32)

Como se pode compreender em diferentes eacutepocas pensadores divergiram a

respeito da histoacuteria da pessoa do humilde carpinteiro de Nazareacute As especulaccedilotildees a

respeito da vida do Jesus histoacuterico cresceram tanto pelos seus fieacuteis seguidores quanto

pelos seus mais aacutevidos inimigos pelo menos desde o seacuteculo II dC (tal como se pode ver

na calorosa refutaccedilatildeo de Oriacutegenes contra Celso) Em um periacuteodo mais recente teoacutelogos

e arqueoacutelogos tecircm procurado com maior intensidade dados a respeito do homem Jesus e

do estilo de vida que a comunidade do seu tempo vivia com a finalidade de compreender

melhor o contexto em que Jesus estava socialmente inserido

40

4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE

SUA EacutePOCA O objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar o Jesus da histoacuteria dentro do contexto

dos grupos religiosos de sua eacutepoca a fim de observarmos ateacute que ponto Jesus teve

ou natildeo contato com tais grupos abaixo mencionados A preferecircncia de Jesus por um

determinado grupo poderia determinar o que era o Reino de Deus na visatildeo do jovem

pregador galileu Seria Jesus um adepto da seita dos apocaliacutepticos essecircnios dos

moralistas fariseus dos revolucionaacuterios zelotes ou ainda da ldquocorrompidardquo classe

sacerdotal dos saduceus Nos Evangelhos eacute que encontramos a histoacuteria de Jesus

uma vez que eles satildeo as principais fontes que possuiacutemos para montarmos a figura

do maior homem de todos os tempos Mas surgem algumas perguntas Seriam os

Evangelhos fontes histoacutericas confiaacuteveis na apresentaccedilatildeo do homem Jesus Sendo

Jesus pertencente agrave maioria da populaccedilatildeo ou seja da classe pobre e oprimida

pelos romanos teria ele sofrido alguma influecircncia do mundo helenizado da cidade

de Seacuteforis da qual tatildeo perto ele residia ou teria ele totalmente ignorado a cultura e

o mundo helecircnico-romano

Jesus o nazareno na condiccedilatildeo de Filho de Deus repudia todo o tipo de

opressatildeo uma vez que ele veio para ldquoproclamar a libertaccedilatildeo dos presosrdquo e

ldquoevangelizar os pobresrdquo (Lc 4-18) os quais satildeo felizes porque deles eacute o Reino de

Deus (Lc 620-23) Ao proclamar a bem-aventuranccedila dos pobres ele tambeacutem

proclama ldquomaldiccedilotildeesrdquo sobre os ricos que os oprimem e riem deles visto que chegaraacute

a hora em que os que dessa forma riem conheceratildeo o luto e as laacutegrimas (Lc 6 24-

26) Jesus ao ensinar os seus disciacutepulos a como se prevenir e se comportar diante

de uma sociedade poliacutetica e religiosa completamente desprovida do genuiacuteno amor

ao proacuteximo o Mestre da Galileia ensina os seus seguidores a serem

ldquomisericordiososrdquo como o Pai do Ceacuteu eacute misericordioso (cf Lc 6 36)

41

41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE

CONTEMPORAcircNEA DE JESUS

Segundo J Jeremias Jesus16 era proveniente de uma famiacutelia pobre e isso

pode ser constatado na ocasiatildeo do sacrifiacutecio de purificaccedilatildeo ldquoMaria serviu-se do

privileacutegio dos pobres oferecer duas rolasrdquo (Lc 224 cf Lv 128) (Jeremias 1983

p165) No tocante ao seu modo de vida eram tantas as privaccedilotildees que natildeo tinha

onde repousar a cabeccedila (Mt 820 Lc 958) J Jeremias observa que ele natildeo possuiacutea

dinheiro - a histoacuteria do estaacuteter e do ldquotributo a Cesarrdquo o demonstram (Mt 17 24-27 Cf

Mc 12 13-17 Mt 22 15-22 Lc 20 20-26) - tambeacutem aceitou esmolas (Lc 8 1-3)

Jesus provavelmente foi considerado um escriba (da classe mais humilde

desse grupo) conforme subentende J Jeremias (1983 p 59-165) Bultmann

tambeacutem concorda que Jesus era chamado pela tradiccedilatildeo de Rabi (Mc 95 1051

11121 1445) Para ele o tiacutetulo rabi foi substituiacutedo pelos evangelistas de origem

grega quase que completamente pela forma de tratamento grega Senhor

expressatildeo esta que designa Jesus como pertencente agrave classe dos escribas

(Bultmann 2005 p71) Para esse autor natildeo podemos afirmar se nos dias de Jesus

jaacute era necessaacuteria certa formaccedilatildeo cultural para a funccedilatildeo de escriba17 como foi uma

exigecircncia cem anos mais tarde Contudo natildeo podemos ignorar o fato de Jesus ter

sido considerado um Rabi (Bultmann 2005 p71-72)

Vale ressaltar que a relaccedilatildeo de Jesus com os escribas eacute quase sempre

relatada de forma polecircmica nos Evangelhos Quando estava ensinando sobre o fim

de Jerusaleacutem e do mundo Jesus advertiu seus disciacutepulos a respeito dos escribas

dizendo que eles sempre procuravam a distinccedilatildeo social eram arrogantes e

16

O nome Jesus origina-se do hebraico ldquoYehoshuardquo (o Yoshua biacuteblico) que significa YHWH (que provavelmente era pronunciado Yahweh) O Nome Jesus eacute uma forma latina do grego Iesous que por sua vez eacute uma forma grega do termo hebraico O nome Yehoshua foi abreviado no linguajar coloquial para Yeshua ou ateacute mesmo para Yeshu A raiz etimoloacutegica de Ieshua eacute ldquoYerdquo eacute a forma hebraica abreviada do proacuteprio nome de Deus YHWH enquanto que ldquoshuardquo eacute a palavra hebraica que significa Salvaccedilatildeo (cf Swidler 1993 p7-8)

17 Vermes define os escribas da seguinte forma ldquoo termo eacutescriba (sofer em hebraico safra em

aramaico) eacute usado para designar um estudioso um especialista na Biacuteblia particularmente em direito biacuteblico e tradicional A vida religiosa e secular bem organizada dependia desses homens Eram geralmente respeitados e sem duacutevida amiuacutede tornavam-se presunccedilosos vestiam-se apropriadamente usando uma tuacutenica longa (stole ou talit) e estavam habituados a ser respeitosamente saudados por todos indiscriminadamente Em reconhecimento agrave sua dignidade recebiam os lugares de escolha em locais de adoraccedilatildeo e em banquetes e os evangelistas indicam que eles esperavam receber tal tratamento preferencialrdquo (Vermes 2006 p 89)

42

pretensiosos na oraccedilatildeo Em Marcos os escribas dos fariseus criticam Jesus porque

ele come com os cobradores de impostos e com os pecadores (Mc 216) tambeacutem

os disciacutepulos de Jesus reconhecem que o seu ensinamento natildeo eacute como o dos

escribas sem autoridade (Mc 1 22-28 cf Mt 7 29) e por fim os escribas

questionaram a autoridade de Jesus para perdoar os pecados do paraliacutetico de

Cafarnaum (Mc 2 6 cf Mt 93) Eacute bem verdade que em Mateus 819 1352 2334

os escribas satildeo vistos de uma forma positiva e isso eacute mais evidente ainda em

Marcos 12 28-34 onde Jesus e um escriba concordaram a respeito do maior dos

mandamentos o que faz Jesus concluir que tal escriba natildeo estava longe do Reino

de Deus No entanto a impressatildeo que se obteacutem a partir das Escrituras eacute a que

Jesus possuiacutea um conceito formado a respeito dos escribas conforme o descrito

pelo evangelista Marcos nas seguintes palavras (Saldarini 2005 p 164-172)

[] E dizia no seu ensinamento ldquoGuardai-vos dos escribas que gostam de circular de toga de ser saudados nas praccedilas puacuteblicas e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes mas devoram as casas das viuacutevas e simulam fazer longas preces Esses receberatildeo condenaccedilatildeo mais severardquo (Mc 12 38-40)

Os escribas parecem natildeo ser um grupo muito coeso no oriente proacuteximo dos

dias de Jesus Eles eram provenientes de vaacuterias classes do povo ou entatildeo dos

sacerdotes ou de famiacutelias proeminentes Geralmente eles eram dependentes das

classes dominantes que dirigiam a naccedilatildeo Segundo Saldarini (2005 p 282-283) a

maioria dos escribas havia saiacutedo do campesinato para ser treinado pelo governo ou

por famiacutelias ricas para resguardar os registros coletar impostos servir como

funcionaacuterios e juiacutezes e trabalhar com o serviccedilo de correspondecircncias

Ainda com relaccedilatildeo a esse grupo de indiviacuteduos observa-se que os escribas

considerados socialmente inferiores eram aqueles que faziam parte de um pequeno

povoado que tinham entre outras funccedilotildees a de ensinar jovens a ler e escrever mas

natildeo eram considerados mestres visto que natildeo tinha uma educaccedilatildeo elevada para os

padrotildees da eacutepoca Saldarini observa no entanto que a maioria dos escribas

incluindo os apresentados nos evangelhos era considerada funcionaacuterios de niacutevel

meacutedio que eram dependentes da classe sacerdotal das famiacutelias ricas em

Jerusaleacutem e de Herodes Antipas na Galileia

43

Em todos os casos poreacutem os escribas precisam ser contextualizados entre outros grupos sociais e o poder de influecircncia deles integrado no quadro global da sociedade judaica Eles natildeo devem ser tratados como um grupo autocircnomo com seu proacuteprio poder e agenda contiacutenua Os escribas eram diferentes em suas origens e em suas dependecircncias e eram indiviacuteduos que desempenhavam um papel social em diferentes contextos e natildeo uma forccedila poliacutetica e religiosa unificada (Saldarini 2005 p 284-285)

Com relaccedilatildeo ao grupo dos rabinos segundo J Jeremias observa-se de um

modo geral que ele se situa entre as camadas pobres da populaccedilatildeo (Jeremias

1983 p165-166) Mais ainda as informaccedilotildees tradicionais sobre os escribas nos

dias de Jesus concordam que os escribas ricos natildeo eram numerosos Portanto se

realmente Jesus era considerado um escriba certamente ele fazia parte da classe

pobre dos escribas Crossan problematiza mais a questatildeo quando coloca que a

maioria da populaccedilatildeo Judaica da eacutepoca de Jesus era constituiacuteda de analfabetos18

supotildee-se que Jesus tambeacutem era analfabeto que ele conhecia como a ampla maioria de seus contemporacircneos de uma cultura oral as narrativas fundacionais estoacuterias baacutesicas e expectativas gerais de sua tradiccedilatildeo mas natildeo os textos exatos citaccedilotildees precisas ou argumentaccedilotildees intrincadas de suas elites de escribas (CROSSAN 1995 p41)

Em outro momento Crossan observa que o niacutevel de alfabetizaccedilatildeo na

Palestina estava abaixo de 3 segundo fontes rabiacutenicas o que natildeo era tatildeo baixo

para os padrotildees sociais das sociedades tradicionais do passado Crossan reitera

que Jesus era um camponecircs da Galileia e portanto natildeo haacute duacutevidas que Jesus era

analfabeto ldquopara mim Jesus era analfabeto ateacute que o contraacuterio seja comprovado E

natildeo eacute comprovado mas apenas presumido por Lucas quando ele faz Jesus ler o

profeta Isaiacuteas na sinagoga de Nazareacute em 4 16-20rdquo (Crossan 2004 p 274-275)

18

Diferentemente de Crossan David Flusser defende que Jesus ldquoestava longe de ser um iletradordquo Para ele com algumas justificativas eacute possiacutevel que os disciacutepulos de Jesus fossem homens iletrados e sem posiccedilatildeo social (cf At 413) e isso levou os historiadores a pensar que o proacuteprio Jesus nunca havia estudado Flusser vai mais longe ainda quando observa que Jesus era versado tanto nas Escrituras Sagradas como na tradiccedilatildeo oral ldquoAdemais sua educaccedilatildeo era incomparavelmente superior agrave de Satildeo Paulordquo Flusser vecirc na narrativa de Lucas (2 41-51) a histoacuteria de ldquoum erudito precoce pode-se dizer quase um jovem talmudistardquo A fonte de Flusser para tal argumento eacute Flaacutevio Josefo que se referindo a Jesus disse ldquonesta eacutepoca viveu Jesus um homem saacutebio ndash se eacute que na verdade deveriacuteamos chamaacute-lo de homemrdquo Mesmo que tenha havido algumas alteraccedilotildees por um interpolador cristatildeo eacute provaacutevel que a redaccedilatildeo original natildeo se perdeu totalmente jaacute que o texto de Josefo pode ser confirmado ldquopela suposta redaccedilatildeo original da passagemrdquo (Flusser 2002 p 11-12)

44

Carlos Mesters tambeacutem observa que Jesus mesmo antes de nascer jaacute era

viacutetima do sistema poliacutetico e econocircmico predominantes na eacutepoca Com efeito uma

vez que ele natildeo nasceu de uma famiacutelia sacerdotal como Joatildeo Batista (Lc 15) nem

teve o privileacutegio de estudar como o apoacutestolo Paulo (At 22 3) Jesus teve desde

pequeno que trabalhar como agricultor e ainda aprender a profissatildeo de seu pai (Mt

13 55) e por isso era conhecido como carpinteiro (τέκτων) de Nazareacute (Mc 6 3)

Assim como Crossan Mesters analisa que a vida de Jesus desde a infacircncia ateacute a

vida adulta natildeo foi nada faacutecil Sobre a educaccedilatildeo formal do nazareno Mesters nos

diz que ldquoa escola do Jesus era antes de tudo a vida em casa na famiacutelia na

comunidade Foi laacute que aprendeu a conviver a rezar e a trabalharrdquo (Mesters 2011

p 17-21)

O caos econocircmico e cultural entre a populaccedilatildeo contemporacircnea de Jesus natildeo

eacute fato apenas na Galileia19 J Jeremias descreve que a cidade de Jerusaleacutem nos

tempos de Jesus era um centro de mendicacircncia que geralmente girava em torno

do templo Para ele ldquonatildeo eacute de causar espanto se jaacute naquela eacutepoca houvesse

pessoas que simulavam cegueiras surdez e outras doenccedilas a fim de ganharem

esmolasrdquo (Jeremias 1983 p166) Se Jerusaleacutem que era o centro dos

acontecimentos estava numa situaccedilatildeo caoacutetica natildeo muito distante ficava Nazareacute

que conforme Crossan era um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que

vivia em casebres ldquoum povoado simples composto de camponeses entre duzentos a

quatrocentos habitantesrdquo (Crossan Reed 2007 p 7518) Crossan observa que

Nazareacute nunca foi mencionada pelos rabinos na Mishinaacute nem no Talmude nem por

Flaacutevio Josefo quando esse cita o nome de 45 lugares durante a primeira revolta

judaica em 66-67 dC Nem mesmo o Antigo Testamento a conheceu A relaccedilatildeo das

tribos de Zebulon enumera quinze localidades na Baixa Galileia nas proximidades

de Nazareacute mas natildeo a inclui (Js19 10-15) Crossan eacute taxativo ao afirmar que Nazareacute

ldquoera um lugar absolutamente insignificanterdquo (Crossan Reed 2007 p 64)

19

Apesar da Galileia onde Jesus viveu ter sido um lugar de extrema pobreza geograficamente era ldquouma regiatildeo beliacutessima a planiacutecie o lago as colinas a montanha o verde as suas matas fazem da Galileia um ambiente tranquilo e repousanterdquo A pobreza natildeo estava ligada ao aspecto geograacutefico mas sim agrave dominaccedilatildeo romana atraveacutes dos altos e impiedosos impostos que segundo Marconcini natildeo era menos do que 40 do miacutesero rendimento de cada trabalhador que tambeacutem eram destinadas para o aumento do bem-estar dos ricos conforme vemos nos evangelhos de Mateus 18 23-30 e Lucas 16 1-7 -20 (Cf Marconcini 2009 p 38)

45

Tambeacutem observa-se que Nazareacute era um povoado proacuteximo de Seacuteforis que

permaneceu no anonimato ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo

quando se tornou alvo de peregrinaccedilotildees dos cristatildeos (Crossan Reed 2007 p79)

Eles dependiam de espaccedilo fiacutesico para desempenhar atividades agriacutecolas guardar

ferramentas de uso comunitaacuterio cultivo de jardins e pomares tambeacutem precisavam de

espaccedilo para a criaccedilatildeo de animais domeacutesticos e isso explica o porquecirc de uma baixa

densidade populacional Crossan afirma que a maioria dos galileus ganhava a vida

com os produtos da terra com ferramentas precaacuterias e condiccedilotildees geograacuteficas

desfavoraacuteveis O seu estilo de vida em particular dos nazarenos era simples e o

que eles ganhavam era apenas o suficiente para pagar as diacutevidas e impostos

Quanto agraves tradiccedilotildees eles eram zelosos celebravam a paacutescoa descansavam no

Saacutebado e valorizavam as tradiccedilotildees de Moiseacutes e dos profetas

Gerhard Lenski citado por Crossan faz uma interessante descriccedilatildeo de como

eram as divisotildees das classes sociais pelo impeacuterio romano O simples fato de uma

famiacutelia ou povoado possuir arados de ferro poder usufruir de transportes utilizando-

se da roda e da vela gerava um abismo entre as classes designadas altas e outras

designadas baixas Segundo esse autor as classes eram divididas da seguinte

maneira 1 da populaccedilatildeo era constituiacuteda pelos governantes que eram possuidores

de pelo menos a metade das terras os sacerdotes podiam possuir ateacute 15 da

terra logo apoacutes vinham os arrendataacuterios que iam de generais a burocratas

especializados mercadores que provavelmente ascendiam das classes mais

baixas mas que chegavam a ter consideraacutevel riqueza e algum poder poliacutetico e por

fim os camponeses que eram a maioria da populaccedilatildeo de cuja colheita cerca de

dois terccedilos do total as classes altas eram sustentadas

Os camponeses cujas safras dependiam das colheitas nem sempre eram

bem sucedidos pois se houvesse muita chuva ou seca ou ainda doenccedilas e morte

eram expulsos de suas proacuteprias terras Entatildeo eram forccedilados ao arrendamento ou

ateacute mesmo podiam ser submetidos agraves piores humilhaccedilotildees Existia ainda a classe

dos artesatildeos considerada acima dos camponeses porque em geral eram

recrutados entre seus membros desalojados Abaixo dos camponeses existiam

ainda as classes dos degradados e dispensaacuteveis os quais eram rejeitados e iam de

46

mendigos a foras da lei ladrotildees trabalhadores diaristas e escravos (Crossan 1995

p 41)

De acordo com essa divisatildeo de classes deduz-se que se Jesus era

carpinteiro (τέκτων) entatildeo ele pertencia agrave classe dos artesatildeos que por sua vez

estava perigosamente situada entre os camponeses e os degradados ou

dispensaacuteveis Segundo Crossan a pobreza dos conterracircneos de Jesus natildeo se

limitava apenas a Galileia jaacute que de 95 a 97 da populaccedilatildeo do estado judaico era

constituiacuteda por analfabetos Se essa estatiacutestica for verdadeira possivelmente Jesus

tambeacutem era um analfabeto Quanto ao fato dele ensinar eacute provaacutevel que o seu

aprendizado e ensino tenha sido a partir da educaccedilatildeo da tradiccedilatildeo em forma oral

Conforme Crossan os textos de Lucas 2 41-52 e Lucas 4 1-30 devem ser vistos

como ldquopropaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em

termos de instruccedilatildeo e exegese de escribardquo (Crossan 1995 p 41-42)

42 JESUS O HUMILDE NAZARENO

Jesus viveu em Nazareacute a maior parte de sua vida Segundo Pagola uma

pequena aldeia de ldquoapenas duzentos a quatrocentos habitantesrdquo onde alguns

habitantes viviam ldquoem cavernas escavadas nas encostas a maioria em casas baixas

e primitivas de paredes escuras de adobe ou pedra com telhados confeccionados

com ramos secos e argila e chatildeo de terra batidardquo O quesito conforto e comodidade

natildeo era privileacutegio dos nazarenos uma vez que em geral as casas soacute tinham um

cocircmodo no qual se alojava a famiacutelia toda inclusive os animais (Pagola 2010 p62)

Esse pequeno vilarejo ficava a 4 quilocircmetros ao norte de Seacuteforis 20 a cidade

residencial de Herodes Antipas (Gnilka 2000 p71) Seacuteforis diferentemente de

Nazareacute era uma cidade que crescia cheia de curiosidades21 Jerome Murphy-

20

Koester natildeo especifica a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis mas observa que a distacircncia entre essas duas localidades era de poucos quilocircmetros Seacuteforis foi ampliada por Antipas que como seu Pai (Herodes o grande) era amante do esplendor e da grandeza que muitas vezes era expresso por grandes construccedilotildees Aleacutem de Seacuteforis (a primeira capital) Antipas (Tetrarca da Galileia e da Pereia) ainda construiu uma segunda capital a qual deu o nome de Tibeacuterias (Tiberiacuteades) em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (Cf Koester 205 Vl 1 p 395) Theissen especifica como sendo de 6 km a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis (cf Theissen 2004 p 186) A partir desses dados conclui-se que Seacuteforis e Nazareacute ficavam muito proacuteximas

21 As hipoacuteteses de Murphy-OConnor em relaccedilatildeo agrave Seacuteforis satildeo bem diferentes da visatildeo que Crossan

tinha desta cidade como vimos anteriormente Para Crossan Seacuteforis permaneceu no anonimato

47

OConnor observa que seria um equiacutevoco supor que Jesus natildeo passaria todo o

tempo que pudesse em Seacuteforis junto com os amigos Nesse sentido pode-se

questionar Teria Jesus tido em Seacuteforis contato com a liacutengua grega por morar bem

proacuteximo da elegante cidade Seacuteforis era a cidade das atraccedilotildees tanto para os

adultos como para as crianccedilas fato esse que pode ser constatado com Herodes

Antipas o qual teria aprendido a oferecer espetaacuteculos com seu pai Herodes o

grande e nos poucos anos que passou em Roma teria ficado impressionado com os

espetaacuteculos dados por Augusto (Murphy-OConnor 2008 p38-39)

O teatro de Antipas era a grande atraccedilatildeo da cidade Segundo Murphy-

OConnor-OConnor o grande teatro de 45 mil lugares22 sentados em pedra visto

ateacute hoje foi precedido pelo de Antipas em madeira Mesmo que os judeus tenham

sido advertidos a respeito da origem pagatilde do teatro eacute razoaacutevel que Jesus tenha

visto em torno das imediaccedilotildees do teatro atores subindo e descendo pelas ruas e

praticando suas deixas23 Para Murphy-OConnor foi desse contexto que Jesus

conheceu a palavra grega hypokritecircs (ὑποκριτής) que significa ldquoum orador puacuteblicordquo

ldquoum atorrdquo Jesus usou a mesma palavra poreacutem deu a ela um sentido mais profundo

no que se refere agrave vida religiosa A maacutescara refere-se ao ldquofingidorrdquo ou seja agravequeles

que dizem ou parecem ser uma coisa mas na praacutetica satildeo outra conforme vemos

nos Evangelhos (Mt 75 Mc 76 = Lc 642)

O maior acontecimento que Jesus pode ter visto em Seacuteforis ou ouvido falar

muito a respeito quando tinha aproximadamente seis anos de idade foi o

casamento de Herodes Antipas com a filha do rei nabateu Aretas IV de Petra que

governou entre 9 aC e 40 dC Segundo Murphy-OConnor mesmo que o

casamento tenha acontecido em Petra uma caravana de nobres nabateus

provavelmente teria acompanhado Antipas ateacute a cidade de Seacuteforis onde uma

grande multidatildeo de todas as aldeias proacuteximas agrave cidade o aguardava para saudar o

jovem rei (Murphy-OConnor 2008 p40)

ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo quando segundo Crossan a cidade se tornou alvo de peregrinaccedilotildees cristatildes (cf Crossan Reed 2007 p79)

22 Theissen diz que o teatro comportava 5000 pessoas (ver Theissen 2004 p 187)

23 Koester nota que eacute interessante que cidades como Cesareia Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo constem da

tradiccedilatildeo Contudo cidades heleniacutesticas menos importantes como Cesareia de Felipe e Gadara agraves vezes satildeo mencionadas Para Koester ldquonatildeo se pode concluir que Jesus nunca tenha visitado Terras pagatildesrdquo (Cf Koester Vl 2 p 86)

48

Sobre Jesus podemos dizer que aleacutem de ter vivido na pequena Nazareacute de laacute

saiu para ser batizado por Joatildeo Batista Aleacutem disso conforme Mc 63 em Nazareacute e

adjacecircncias ele exerceu a carpintaria (τεκτων) 24 como profissatildeo atividade essa

exercida por seu pai Joseacute Nessa profissatildeo aleacutem de trabalhar com madeira

tambeacutem trabalhava-se com pedras Dessa forma podemos dizer que Jesus era

tambeacutem um entalhador (Gnilka 2000 p 71-72)

Sobre Jesus aleacutem de algumas hipoacuteteses e relatos concernentes ao lugar de

sua residecircncia e outras suposiccedilotildees relacionadas agrave sua vida enquanto um simples

homem inserido em sua comunidade que na qualidade de profeta da Galileia natildeo foi

bem recebido entre seus conterracircneos De acordo com o evangelista Lucas o

ministeacuterio de Jesus comeccedilou aos 30 anos (Lc 323) Para Gnilka a informaccedilatildeo

obtida a partir desse Evangelho possui tambeacutem uma motivaccedilatildeo teoloacutegica visto que

a idade de Jesus deve estar relacionada com a idade do rei Davi conforme vemos

em 2 Sm 54 ldquoTinha Davi trinta anos quando comeccedilou a reinarrdquo Natildeo obstante agrave

determinaccedilatildeo aproximada da idade cerca de 30 anos Lucas revela-nos um

interesse histoacuterico-cronoloacutegico a respeito da vida e ministeacuterio de Jesus (Gnilka

2000 p73)

Jaacute em pleno exerciacutecio ministerial conforme a narrativa de Marcos (Mc 6 1-6)

Jesus fez uma fracassada visita num dia de saacutebado aos seus conterracircneos Quando

Jesus estava a ensinar na sinagoga seus conterracircneos escandalizam-se dele O

motivo para tal desprezo estava relacionado ao fato de ele ser proveniente de uma

famiacutelia pobre conhecida por todos na pequena Nazareacute A origem humilde de Jesus

provocou em seus conterracircneos um sentimento de rejeiccedilatildeo e desprezo chegando

ao ponto de total descreacutedito agrave sua sabedoria e ao seu poder de realizar milagres

Esses fatos provavelmente natildeo devem ter ocorrido no comeccedilo do ministeacuterio de

Jesus como descreve Lucas (Lc 4 14-30) ateacute porque se todos esses

acontecimentos fossem no iniacutecio de seu ministeacuterio a comunidade de Nazareacute natildeo o

teria rejeitado imediatamente mas teriam ficado na expectativa do sucesso de seu

mais conhecido cidadatildeo (Gnilka 2000 p 122)

24

Eacute possiacutevel que como artesatildeo Jesus tenha tomado parte na construccedilatildeo de Seacuteforis O silecircncio da tradiccedilatildeo de Jesus sobre Seacuteforis nos induz a crer que mesmo que Jesus tenha conhecido essa cidade atuou tatildeo pouco nela como deve ter atuado em Tiberiacuteades Jesus deve ter evitado as grandes cidades porque se identificava mais com o campo onde encontrava maior ressonacircncia (Cf Theissen 2004 p 187)

49

Aleacutem das fontes evangeacutelicas sobre Jesus temos alguns relatos de fontes natildeo

cristatildes sobre o homem chamado Jesus de Nazareacute O relato mais conhecido dos

cristatildeos eacute de Flaacutevio Josefo que por volta do ano 93 dC (eacutepoca em que ele morava

em Roma) ele testemunha a respeito de Jesus com as seguintes palavras

conforme a citaccedilatildeo de Rochus Zuurmond25

Naquele tempo a atividade de Jesus um homem saacutebio se eacute que conveacutem chamaacute-lo de homem Pois fez coisas incriacuteveis e foi mestre dos que gostam de aceitar a verdade Teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos Ele foi o Cristo Depois que Pilatos o condenou agrave morte na Cruz porque preeminentes de nosso meio o haviam acusado natildeo cessou o amor que lhe tinham seus sequazes Revivificado ele lhes apareceu no terceiro dia pois os profetas de Deus haviam a seu respeito anunciado este fato e mil outras coisas espantosas Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)

Zuurmond duvida que essa citaccedilatildeo seja de Josefo uma vez que seria

praticamente impossiacutevel Josefo referir-se a Jesus como Cristo e muito mais difiacutecil

ainda seria ele mencionar a ressurreiccedilatildeo ldquocom apelo aos profetasrdquo Contudo

segundo Zuurmond seria muito difiacutecil que Josefo vivendo naquela eacutepoca natildeo

mencionasse Jesus em seus escritos Partindo desse princiacutepio o mais provaacutevel eacute

que o texto tenha sido ldquoprofundamente revisadordquo por um cristatildeo Para Zuurmond

dentre as vaacuterias tentativas para reproduzir o texto original de Josefo a mais provaacutevel

seria a de que o texto teria a seguinte conotaccedilatildeo

foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus um saacutebio que teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos chamaram-no de Cristo Seus sequazes afirmam que ele revivificado lhes apareceu Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome ainda natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)

O proacuteprio Zuurmond acredita que essa reconstruccedilatildeo eacute muito hipoteacutetica

Segundo ele o mais provaacutevel eacute que o texto tenha sido muito mais reduzido e que

tenha sido totalmente substituiacutedo (cf Zuurmond 1998 p 74)

Aleacutem de Josefo temos ainda outras citaccedilotildees hipoteacuteticas de fontes natildeo

cristatildes como a correspondecircncia de Pliacutenio Juacutenior com Trajano por volta de 115 dC

Pliacutenio refere-se agrave reuniatildeo dos cristatildeos e detalha o fato de que cantam um hino ldquoa

Cristo como Deusrdquo Suetocircnio por volta de 120 dC descreve que o Imperador

25

Essa citaccedilatildeo tambeacutem pode ser conferida em Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 3 p 590

50

Claacuteudio expulsou os judeus de Roma porque causavam problemas ldquopor instigaccedilatildeo

de Crestordquo Ainda por volta de 115 dC Taacutecito em annales XV 44 relata sobre o

incecircndio de Roma e sobre um grupo de Cristatildeos seguidores de ldquoum tal Cristordquo

Segundo Zuurmond estas foram as palavras do historiador romano

A fim de abafar este boato (de que ele mesmo foi responsaacutevel pelo incecircndio de Roma Nero inventou alguns bodes expiatoacuterios e submeteu agraves mais sofisticadas formas de supliacutecio aqueles que costumavam ser chamados de cristatildeos um grupo de gente odiado por todos por causa de seus crimes abominaacuteveis Eles devem o seu nome a um tal Cristo que durante o governo de Tibeacuterio (imperador de 14 a 37) por ordem do procurador Pocircncio Pilatos foi executado Depois de ter sido oprimida durante algum tempo essa supersticcedilatildeo perniciosa irrompeu novamente natildeo apenas na Judeacuteia onde este mal se originou mas tambeacutem em Roma para onde confluem e onde costumam ser assiduamente fomentados costumes horrorosos e vergonhosos de toda a espeacutecie (cf Zuurmond 1998 p75-76)

Essas fontes natildeo cristatildes quase que sempre satildeo vistas com alguma

desconfianccedila por alguns especialistas quanto agrave autenticidade de seus conteuacutedos

No entanto qualquer conjectura sobre o assunto natildeo passaraacute de mera

especulaccedilatildeo O mais importante eacute que a histoacuteria de Jesus eacute tatildeo grande que o mais

aacutevido inimigo jamais poderaacute tornaacute-la como algo insignificante para a humanidade

43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES

Como sabemos Jesus nunca nos deixou nada por escrito no entanto tudo o

que sabemos sobre ele estaacute registrado nos evangelhos especificamente nos

evangelhos canocircnicos considerados pela tradiccedilatildeo cristatilde como os mais confiaacuteveis jaacute

que para a tradiccedilatildeo cristatilde conforme vemos em Duquoc os evangelhos apoacutecrifos26

podem sem duacutevida transmitir autecircnticos dados histoacutericos mas natildeo possuem

autoridade para que a partir dos testemunhos descritos neles possa-se elaborar

uma teologia consistente (Duquoc 1992 p 21)

26

Sanders compartilha da ideia da maioria dos estudiosos de que muito pouco dos evangelhos apoacutecrifos pode situar-se aos dias de Jesus Para ele esses evangelhos satildeo ldquolegendaacuterios e mitoloacutegicosrdquo De todo o material apoacutecrifo segundo Sanders somente alguns ditos do evangelho de Tomeacute merecem consideraccedilatildeo No entanto natildeo significa que seja possiacutevel fazer uma divisatildeo clara colocando os Evangelhos canocircnicos de um lado e os apoacutecrifos de outro uma vez que segundo Sanders haacute material lendaacuterio e criaccedilatildeo posterior nos Evangelhos do Novo Testamento Natildeo obstante eacute nos quatro Evangelhos que devemos buscar traccedilos do Jesus histoacuterico conclui Sanders (Sanders 2005 p 88-89)

51

Leif E Vaage eacute mais radical chegando afirmar que todos os escritos cristatildeos

primitivos que tratam da infacircncia de Jesus satildeo apoacutecrifos Segundo ele inclusive os

Evangelhos canocircnicos (Vaage 2007 p 38) Vaage baseia seu argumento no fato de

que nenhum dos Evangelhos relata realmente como foi a gravidez nascimento e

infacircncia de Jesus Por isso natildeo podem ser considerados historicamente

ldquoautecircnticosrdquo No entanto temos um olhar mais positivo sobre os apoacutecrifos em Jacir

de Freitas Faria Para ele noacutes podemos encontrar nos apoacutecrifos ldquovalores que a

piedade popular conservou como dogma de feacuterdquo (Faria 2007 p9) Na visatildeo de Faria

se natildeo fossem os apoacutecrifos do Novo Testamento natildeo saberiacuteamos os nomes de

pessoas como os avoacutes de Jesus dos reis magos dos dois ladrotildees da cruz e outros

nomes relacionados aos cristatildeos do primeiro seacuteculo

Os evangelhos27 por certo satildeo a histoacuteria do Jesus terreno contudo segundo

Bornkamm vale ressaltar que os Evangelhos satildeo histoacuteria mas natildeo no sentido da

histoacuteria moderna ou seja ldquoos evangelistas natildeo eram historiadores de profissatildeo e a

tradiccedilatildeo popular estaacute sempre sujeita a mudanccedilas no processo de transmissatildeordquo

(Bornkamm 1981 p35) Os evangelhos prossegue Bornkamm ldquonatildeo podem ser

classificados entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos como

Tuciacutedides Poliacutebio e Taacutecito nem entre biografias contemporacircneas como As Vidas

dos Ceacutesares de Suetocircnio [cerca de 70-140 dC] rdquo (1981 p35)

Sanders analisando a natureza do material evangeacutelico considera tal tarefa

como uma das mais desafiadoras a ser realizada pelo pesquisador Ainda que a

opiniatildeo dele sobre as fontes seja positiva ele natildeo deixa de enumerar alguns

aspectos considerados problemaacuteticos ou negativos conforme resumimos abaixo

1) Os primeiros cristatildeos natildeo escreveram uma narrativa (histoacuteria) da vida

de Jesus mas escreveram pequenas passagens sobre as suas

palavras e obras Essas pequenas partes foram mais tarde

organizadas pelos autores dos Evangelhos Isso significa que nunca

poderemos estar tatildeo perto do contexto imediato dos ditos e feitos de

Jesus

27

Conforme Marconcini (2009 p 6) o termo evangelho encontra-se doze vezes nos sinoacuteticos das quais quatro vezes em Mateus (423 9 35 24 14 26 13) em Marcos oito vezes (114-15 835 1029 1310 149 1615) a palavra vem sempre da boca de Jesus com exceccedilatildeo de Marcos 11 Jaacute no Evangelho de Lucas prevalece o verbo evangelizar que aparece dez vezes (119 210 318 41843 722 81 96 1616 201)

52

2) Os primeiros cristatildeos revisaram alguns materiais e criaram outros

3) Os Evangelhos foram escritos de forma anocircnima28

4) O Evangelho de Joatildeo eacute muito diferente dos outros trecircs Evangelhos e eacute

principalmente nesse Evangelho que devemos buscar informaccedilotildees

sobre Jesus

5) Aos Evangelhos faltam muitas caracteriacutesticas para ser uma biografia e

temos que distingui-los das biografias modernas (cf Sanders 2005 p

81-82)

A partir dos dados acima observamos que os Evangelhos realmente natildeo

satildeo histoacuteria no sentido moderno do termo No entanto conforme Martins Terra

devemos aplicar a criteriologia moderna de atestar a autenticidade dos escritos ou

seja aquela que estaacute focada mais nos criteacuterios internos29 do que nos criteacuterios

externos mas sempre tendo como base os testemunhos histoacutericos (Martins Terra

1977 p126)

Segundo Latourelle a criacutetica externa analisa os Evangelhos a partir dos

escritos extra-evangeacutelicos (Cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos) e sobretudo a

partir dos testemunhos das Igrejas poacutes-apostoacutelicas (II e III seacuteculos) enquanto que a

criacutetica interna apoia-se no proacuteprio texto (anaacutelise do tecido literaacuterio estudo do

conteuacutedo) Para esse teoacutelogo a criacutetica externa sempre obteve ecircxito em relaccedilatildeo agrave

critica interna mas nos dias atuais essa situaccedilatildeo tem mudado ou seja a criacutetica

interna tem se sobreposto agrave critica externa No entanto Latourelle prefere ficar em

um meio termo e mesmo que a criacutetica externa esteja em decadecircncia Latourelle vecirc

trecircs pontos importantes que podem ser explorados nela ldquosobre os autores dos

28

Sanders referindo-se a autoria dos Evangelhos diz que natildeo sabemos quem realmente satildeo os autores Mateus e Joatildeo foram disciacutepulos de Jesus Marcos foi seguidor de Paulo e possivelmente tambeacutem de Pedro jaacute Lucas foi um dos convertidos (disciacutepulos) de Paulo Mateus Marcos Lucas e Joatildeo realmente existiram mas natildeo podemos afirmar que eles escreveram os Evangelhos Existem provas que os Evangelhos permaneceram sem tiacutetulo de autoria ateacute a metade do seacuteculo II dC e eram sempre citados anonimamente A nomenclatura segundo Mateus segundo Marcos segundo Lucas segundo Joatildeo apareceram de repente por volta do ano 180 em meio ao grande nuacutemero de evangelhos escritos a Igreja teve que decidir quais deles seriam canocircnicos e diante de diferentes opiniotildees os que pensavam que apenas os quatro citados acima eram os que testemunhavam sobre Jesus com autoridade ganharam a questatildeo (cf Sanders 2005 p 87-88)

29 Segundo Martins Terra ldquoa criacutetica interna procura refazer na medida do possiacutevel a histoacuteria das

tradiccedilotildees [traditionsgeschichte] e separar os elementos redacionais [=dos evangelistas] dos elementos provenientes da tradiccedilatildeo anterior ateacute seus estratos mais primitivos Admite-se pois como vaacutelida a ideia fundamental da histoacuteria das formas (formgeschichte e da histoacuteria da redaccedilatildeo [Redaktionsgeschichte])rdquo (Martins Terra 1977 p 126)

53

Evangelhos sobre a autoridade desses na Igreja dos primeiros seacuteculos e sobre a

atitude da Igreja perante as tendecircncias deformadoras dos apoacutecrifos e dos escritos

gnoacutesticosrdquo (Latourelle 1989 p118)

Latourelle observa que ldquoa tradiccedilatildeo tem a tendecircncia de individualizar os

autores e colocaacute-los em relaccedilatildeo iacutentima com uma autoridade apostoacutelicardquo (Latourelle

p118) Um argumento bem aceito pela criacutetica contemporacircnea eacute de que documentos

- o Cacircnon Muratori os proacutelogos antimarcionistas - e os antigos teoacutelogos da Igreja

(Paacutepias Irineu de Liatildeo) - aceitaram Marcos e Lucas como autores dos Evangelhos

que levam os seus nomes porque eles realmente satildeo os verdadeiros autores O

raciociacutenio para defender essa tese conforme expotildee Latourelle eacute que se os teoacutelogos

da patriacutestica (seacuteculo II) tivessem interesse em ldquofalsificarrdquo a autoria dos Evangelhos

para dar maior credibilidade aos mesmos teriam dado a esses dois nomes de

apoacutestolos que conviveram com Jesus e natildeo de testemunhas indiretas como nos

casos de Marcos e Lucas Partindo desse raciociacutenio Latourelle citando Descamps

conclui ldquose as Igrejas do seacuteculo II mantiveram os nomes de Marcos e Lucas como

autores fizeram-no sem duacutevida sob a pressatildeo dos fatosrdquo (Latourelle 1989 p 18)

Segundo Bornkamm ldquoeacute significativo que os evangelhos satildeo anocircnimos e que

os nomes (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo) foram dados para aleacutem do seacuteculo II O

evangelho de Lucas eacute o que mais se aproxima da historiografiardquo (Bornkamm 1981

p35) Aparentemente os Evangelhos datildeo a impressatildeo de continuidade mas os

textos natildeo oferecem um fundo real de uma histoacuteria reconstituiacutevel (Bornkamm 1981

p37) Um fato importante a se observar satildeo as legendas ou seja a forma como

fatos da vida de Jesus ou de personagens do Novo Testamento foram contados

(Bornkamm 1981 p41) O narrador natildeo estaacute preocupado em escrever histoacuterias

mas com a santidade e a piedade exemplar dessas figuras Em alguns casos

chamamos legenda ou embelezamento Bornkamm acredita que temos boas razotildees

para confiar na memoacuteria simples dos disciacutepulos contudo ldquonatildeo devemos subestimar

a influecircncia da feacute poacutes-pascal mesmo com a tradiccedilatildeo passada de matildeo em matildeosrdquo

(Bornkamm 1981 p 43)

A tradiccedilatildeo como vimos acima esforccedila-se para aproximar os Evangelhos das

testemunhas oculares e supervaloriza a qualidade das testemunhas fazendo de

Marcos um porta-voz de Pedro quando Marcos eacute muito mais um relator fiel da

54

pregaccedilatildeo da comunidade primitiva30 A tradiccedilatildeo tambeacutem atribui o primeiro Evangelho

a Mateus e o uacuteltimo a Joatildeo Poreacutem Bornkamm partindo do princiacutepio da teoria das

duas fontes analisa a origem dos Evangelhos especificamente os sinoacuteticos da

seguinte forma dentre as teorias a respeito da formaccedilatildeo dos Evangelhos a mais

aceita e mais coerente eacute a teoria das duas fontes Segundo essa teoria Marcos eacute o

Evangelho mais antigo ele forma a base dos outros dois Evangelhos ldquomaioresrdquo e

estaacute inserido neles Aleacutem de usarem Marcos tanto Mateus como Lucas fizeram uso

independente de uma segunda fonte isso se pode ver pelos muitos ditos e grupos

de ditos natildeo encontrados em Marcos que eles tecircm em comum (Bornkamm 1981

p31) De acordo com J Jeremias Marcos escreveu em grego mais primitivo e

serviu de base para os outros dois Isso comprova que ele eacute o Evangelho mais

antigo O Evangelho de Mateus eacute um Evangelho de Marcos reelaborado

estilisticamente e acrescido de material novo que daacute mais da metade de Marcos

Seguindo a linha de pesquisa da teoria das duas fontes verificamos que mesmo que

Mateus e Marcos discordem de Lucas na ordem dos acontecimentos ou Lucas e

Marcos estejam em discordacircncia em relaccedilatildeo a Mateus dificilmente Mateus e Lucas

juntos oponham-se a Marcos

Haacute poreacutem algumas hipoacuteteses contraacuterias a teoria das duas fontes e elas se

apoiam no testemunho de Papias bispo de Hieraacutepolis na Friacutegia que compocircs por

volta de 130 uma exegese dos oraacuteculos do Senhor conforme relatado por Euseacutebio

de Cesareia em a ldquoHistoacuteria da Igrejardquo Eis o que dizia o Presbiacutetero

Marcos que era o inteacuterprete de Pedro escreveu com exatidatildeo no entanto sem ordem tudo o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor mais tarde poreacutem como jaacute disse ele acompanhou Pedro Este ministrava seus ensinamentos segundo as necessidades mas sem fazer uma siacutentese das palavras do Senhor Desse modo Marcos natildeo cometeu erro escrevendo como se lembrava Seu uacutenico propoacutesito foi nada omitir do que havia ouvido e em nada enganar no que relatava (Latourelle 1989 p121-122)

30

Martins Terra comentando sobre a tradiccedilatildeo sobre os Evangelhos observa que ldquohoje em dia se insiste mais na inspiraccedilatildeo do livro do que no autorrdquo O problema consiste no fato de os Evangelhos terem sido escritos depois de 30 anos de pregaccedilatildeo da Igreja e da tradiccedilatildeo oral Muitas coisas devem ser levadas em consideraccedilatildeo quando se trata da autoria dos Evangelhos uma vez que haacute vaacuterios niacuteveis de mediaccedilotildees que devem ser levados em consideraccedilatildeo (cf Martins Terra 1977 p 125)

55

Segundo Euseacutebio baseado no testemunho de Papias foi Mateus quem

colocou em ordem os oraacuteculos do Senhor em liacutengua hebraica31 Qualquer que seja a

data e o conhecimento de Papias aquilo que ele de fato escreveu estaacute em nosso

alcance apenas em citaccedilotildees de Euseacutebio Os livros de Papias (logiotilden Kyriakotilden

Exegesis Exegese das Logia do Senhor) sobreviveram ateacute a Idade Meacutedia em

algumas bibliotecas da Europa mas natildeo mais existem (Carson et al 1997 p75)

Dalman (1902 p 87) fazendo uma anaacutelise sobre os testemunhos a favor da

teoria que se refere agrave origem aramaica dos Evangelhos eacute categoacuterico em afirmar

que aleacutem do bem conhecido depoimento de Euseacutebio noacutes natildeo temos nenhum traccedilo

a favor da existecircncia de um Evangelho escrito em liacutengua semiacutetica Ateacute mesmo

Jerocircnimo deve ter se enganado em ter dito que o Evangelho original de Mateus

escrito em hebraico ainda existia em seus dias Para Dalman mesmo os vaacuterios

textos dos Evangelhos em aramaico que satildeo conhecidos hoje e ateacute mesmo o texto

que Jerocircnimo usava em aramaico era derivado dos originais gregos

Temos ainda um segundo testemunho da origem dos Evangelhos dado por

Clemente de Alexandria conforme descrito por Euseacutebio na obra Histoacuteria da Igreja

Segundo Euseacutebio Clemente cita uma tradiccedilatildeo dos Anciatildeos a respeito da ordem dos

Evangelhos Conforme essa teoria os Evangelhos que compreendem as

genealogias foram escritos primeiro (Mateus e Lucas) jaacute o Evangelho de Marcos foi

escrito nas seguintes circunstacircncias O apoacutestolo Pedro pregou em Roma e expocircs

publicamente sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo a doutrina evangeacutelica do

cristianismo primitivo Os numerosos ouvintes de Pedro exortaram a Marcos a

transcrever as palavras do apoacutestolo jaacute que aquele tinha acompanhado Pedro por

muito tempo e por certo tinha vivo em sua mente muito do que o apoacutestolo Pedro

havia dito Todavia segundo Euseacutebio quando Pedro soube disso nada fez por meio

de seus conselhos para impedi-lo disso ou para forccedilaacute-lo a isso32

Esse testemunho como o de Papias referem-se aos Anciatildeos isto eacute a

homens da segunda geraccedilatildeo cristatilde A tradiccedilatildeo posterior natildeo faraacute mais do que

retomar esses argumentos

31

Cf Eusebius the Church History translation and commentary by Paul L Maier 2007 p 114 32

Cf Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p 1690 citaccedilatildeo da Hist Ecl IV 14 5-7

56

Papias e Clemente estatildeo de acordo em atribuir a composiccedilatildeo de um dos evangelhos a Marcos disciacutepulo de Pedro (cf 1Pd 5 13) cuja pregaccedilatildeo ele havia escrito Vindo de duas fontes arcaicas diferentes esta informaccedilatildeo pode ser considerada como certa Conforme Clemente Marcos teria escrito enquanto Pedro ainda vivia uma vez que ele estava por outro lado mais ou menos desinteressado desse empreendimento Papias natildeo nos daacute nenhuma informaccedilatildeo expliacutecita sobre este ponto Seu texto permite ao contraacuterio pensar que Marcos havia escrito depois da morte de Pedro e eacute neste sentido que interpretaratildeo Irineu de Liatildeo e o mais antigo Proacutelogo evangeacutelico que nos chegou (fim do seacuteculo II) Papias natildeo nos diz onde Marcos escreveu o seu Evangelho Clemente precisa que foi em Roma onde Pedro exercia o seu ministeacuterio Este pormenor retomado na tradiccedilatildeo posterior parece exato pois o Evangelho de Marcos conteacutem certo nuacutemero de termos gregos que satildeo apenas transcriccedilatildeo do latim (Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p1690)

Apesar de todo o complexo em torno das fontes atualmente a teoria das

duas fontes eacute a mais aceitaacutevel Para Bornkamn haacute tantos paralelos entre Mateus e

Lucas que podemos confiar que tal fonte existiu O que natildeo podemos saber eacute em

que extensatildeo ela jaacute tinha adquirido uma forma literaacuteria fixa Uma coisa eacute certa ela

deve ter sido bem diferente do Evangelho de Marcos Eacute possiacutevel ter certeza que a

fonte Q natildeo era um Evangelho acabado como o Evangelho de Marcos o eacute O modo

como Q eacute usada em Mateus e Lucas mostra como os dois evangelistas a trataram

com mais liberdade do que fizeram com Marcos Isso eacute verdade tanto com

referecircncia ao teor verbal quanto agrave sequecircncia do material Marcos e Q

absolutamente natildeo exaurem as fontes da tradiccedilatildeo sinoacutetica Mesmo Marcos tem

material proacuteprio Lucas eacute quem possui mais cobrindo tanto o ministeacuterio terreno

como as narrativas pascais bem como o material consideraacutevel que ele inseriu na

moldura criada por Marcos

A noccedilatildeo de autoria natildeo resiste aos dados da criacutetica contemporacircnea Os

Evangelhos de Mateus e Joatildeo natildeo possuem nenhuma evidecircncia interna que possa

atribuir a eles a autoria e da mesma forma Lucas e Joatildeo Segundo Latourelle a

criacutetica duvida que eles tenham sido testemunhas ateacute mesmo de segunda matildeo No

entanto a criacutetica reconhece que o autor do primeiro Evangelho era um judeu de

liacutengua grega profundamente conhecedor do judaiacutesmo de sua eacutepoca A criacutetica

tambeacutem reconhece Lucas como o meacutedico e companheiro de Paulo assim como

reconhece Marcos como companheiro de Paulo e sua influecircncia sobre os

evangelhos de Mateus e de Lucas Quanto agrave influecircncia de Pedro sobre o Evangelho

de Marcos a mesma eacute contestada pela criacutetica visto que Marcos parece ser mais um

57

relator e transmissor da pregaccedilatildeo da Igreja primitiva aleacutem de parecer ter sofrido

mais a influecircncia de Paulo

A contribuiccedilatildeo da patriacutestica testemunhada pelos pais da Igreja jamais pode

ser descartada por mais acriacutetica e ingecircnua que pareccedila ser visto que eles viveram

bem proacuteximos dos acontecimentos registrados nos Evangelhos

A importacircncia dos escritos antigos a respeito dos Evangelhos foi a resposta

da igreja aos hereges e aos evangelhos apoacutecrifos O exagerado embelezamento que

os apoacutecrifos criam para ldquocomplementarrdquo os Evangelhos canocircnicos obrigou a Igreja a

criteriosamente separar os Escritos canocircnicos dos apoacutecrifos Para Bornkamm a

formaccedilatildeo do cacircnon do Novo Testamento sempre foi um processo de separar e

nunca de juntar Conforme esse teoacutelogo seria mais viaacutevel perguntar se um livro

deveria estar no cacircnon do Novo Testamento do que perguntar por que determinado

livro natildeo faz parte dele

A Igreja tambeacutem teve que combater o gnosticismo que estava tentando minar

a veracidade dos Escritos Sagrados principalmente com Marciatildeo que com seu

dualismo ldquoopotildee o Deus bom do Novo Testamento ao Deus justo do Antigo

Testamentordquo (Latourelle 1989 p124) A Igreja entatildeo saiu em defesa do

cristianismo autecircntico levantando o estandarte dos quatro Evangelhos como os

uacutenicos reconhecidos como a ldquoautecircntica mensagem de Cristo reconhecida e

ensinada pela tradiccedilatildeo viva da igreja O criteacuterio decisivo eacute o acordo entre os

Evangelhos e a tradiccedilatildeo apostoacutelica que por sua vez se refere ao Cristo vivordquo

(Latourelle 1989 p125)

Eacute vaacutelido observar que os evangelhos sinoacuteticos33 satildeo compostos de ldquotradiccedilotildees

isoladas chamadas de periacutecopesrdquo Essas periacutecopes geralmente tecircm uma

conotaccedilatildeo teoloacutegica e natildeo necessariamente cronoloacutegica ldquoNa verdade muitas

periacutecopes incluem indicaccedilotildees topograacuteficas (no mar da Galileia em Cafarnaum

etc) mas a maioria delas natildeo eacute bem determinada Outro fato a se observar eacute que

nos sinoacuteticos Jesus se dirige a Jerusaleacutem uma uacutenica vez poreacutem em Joatildeo lsquovemos

Jesus se dirigindo a Jerusaleacutem repetidas vezesrsquordquo Segundo Gnilka o importante natildeo

eacute a exatidatildeo do itineraacuterio mas sim a reflexatildeo teoloacutegica (Gnilka 2000 p 24) No

33

O nome sinoacuteticos foi dado aos trecircs primeiros Evangelhos pelo pesquisador alematildeo J J Griesbach em sua obra Synopsis evangeliorum [Sinopse dos Evangelhos] obra que foi publicada em Halle em 1976 (Cf Marconcini 2009 p 10)

58

entanto conforme Benito Marconcini haacute uma concordacircncia nos sinoacuteticos quanto agrave

sucessatildeo dos fatos no ministeacuterio de Jesus Conforme Marconcini ldquoJesus inicia seu

ministeacuterio na Galileia atravessa a Samaria e chega a Jerusaleacutem onde tem o

encontro com a morterdquo (Marconcini 2009 p 10)

O concilio do Vaticano II reproduziu na constituiccedilatildeo sobre a Revelaccedilatildeo o

resultado das pesquisas modernas sobre a Historicidade dos Evangelhos e sobre o

Jesus Histoacuterico conforme resumimos abaixo

a) Os quatro Evangelhos transmitem fielmente o que Jesus realmente fez e

ensinou para a eterna salvaccedilatildeo dos homens

b) Os Apoacutestolos depois transmitiram o que Jesus havia dito e feito ()

c) Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos selecionando

algumas coisas dentre as muitas que tinham sido transmitidas oralmente ou por

escrito sintetizando outras ou adotando-as agraves situaccedilotildees das igrejas (Martins Terra

1977 p 129)

Seria imprudente buscar nos Evangelhos fatos como se busca numa revista

ou jornal de grande circulaccedilatildeo internacional moderna como New York Times por

exemplo Contudo segundo Swidler devemos olhar os quatro Evangelhos como

uma variedade de fontes orais e escritas que apoacutes um periacuteodo de tempo foram

redigidas conforme as necessidades sentidas pelas comunidades e indiviacuteduos da

eacutepoca No entanto fica claro que essa visatildeo criacutetica (moderna) dos Evangelhos natildeo

invalida o caraacuteter histoacuterico desses escritos Eles retratam com muito maior exatidatildeo

sob o ponto de vista histoacuterico-religioso (teoloacutegico) o que Jesus queria dizer com

certas declaraccedilotildees e accedilotildees relatadas pelas primeiras comunidades da Igreja

Primitiva (cf Swidler 1993 p104-105)

Natildeo podemos menosprezar a capacidade da comunidade cristatilde primitiva de

memorizar os fatos relacionados agrave vida de Jesus mas por outro lado natildeo podemos

negligenciar a limitaccedilatildeo humana em memorizar acontecimentos histoacutericos

Raciocinando dessa forma pode-se deduzir que com certeza muitas dessas

recordaccedilotildees natildeo foram transmitidas e nem registradas Eacute evidente que nem todas as

paraacutebolas foram registradas isso estaacute claro em Marcos 433 onde se lecirc ldquoE com

muitas paraacutebolas como esta anunciava-lhes a palavra segundo podiam entenderrdquo

ldquoPodemos partir do pressuposto de que nos evangelhos ficaram conservadas as

59

paacuteginas da atuaccedilatildeo e dos discursos de Jesus que satildeo de decisiva importacircncia para

a nossa feacuterdquo (Gnilka 2000 p25)

44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS

Jesus segundo Gnilka (2000 p35-36) viveu durante o governo de dois

imperadores romanos ldquoo de Otaviano Augusto (27 aC - 14 dC) e o de Tibeacuterio (14-

37)rdquo Nenhum dos dois esteve nessas paragens orientais do Impeacuterio nenhum dos

dois pisou territoacuterio da Siacuteria ou da Palestinardquo A histoacuteria de Jesus estaacute intimamente

ligada agrave famiacutelia Herodes Jesus nasceu sob o governo de Herodes o Grande filho

de Antiacutepater de origem idumeia Por decisatildeo do senado romano e tambeacutem por

iniciativa dos triuacutenviros Antocircnio e Otaviano e mais tarde Augusto pelo fim do ano 40

aC Herodes foi nomeado rei da Judeia

Apoacutes a morte de Herodes o Grande em 4 aC inicia-se uma disputa entre

seus filhos pela sucessatildeo que culminou na divisatildeo do poder entre os descendentes

de Herodes pelo imperador Historicamente dentre os filhos de Herodes o que mais

nos interessa eacute Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) que ficou como tetrarca da

Galileia Dentre os feitos de Antipas podemos citar a reconstruccedilatildeo da cidade de

Seacuteforis e a fundaccedilatildeo da cidade de Tiberiacuteades agrave margem do lago de Genezareacute

cidade que recebeu esse nome em honra ao Imperador Tibeacuterio Foi essa cidade

construiacuteda sobre um cemiteacuterio que Antipas escolheu para residecircncia oficial

tornando-a impura aos olhos dos Judeus crentes por causa das leis leviacuteticas (Gnilka

2000 p 39)

Herodes Antipas ficou conhecido por mandar matar Joatildeo Batista conforme o

relato nos evangelhos (Mc 617-29 Mt 14 3-12) e tambeacutem por Flaacutevio Josefo34 Os

motivos da morte de Joatildeo Batista nos evangelhos satildeo diferentes dos motivos

expostos por Josefo visto que Josefo coloca questotildees poliacuteticas como a principal

causa da execuccedilatildeo de Joatildeo jaacute que Antipas temia uma revolta poliacutetica a partir do

movimento do Batista Para Jesus Antipas tambeacutem tornou-se perigoso ldquoSegundo

Lc 1331 Jesus eacute aconselhado a sair de seu territoacuterio porque o priacutencipe pretendia

mataacute-lordquo (Gnilka 2000 p 40)

34

Cf Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 5 p 594-597

60

Na Judeia a situaccedilatildeo poliacutetica e religiosa era caoacutetica Arquelau (4 aC ndash 6

dC) filho de Herodes o Grande logo depois de ser instituiacutedo etnarca da Judeia e

Idumeia devido a sua extrema tirania tornou-se insuportaacutevel para os judeus a

ponto de um grupo desses ir ateacute Roma para denunciaacute-lo pela forma tiracircnica de

governar bem como a liberdade que tomou para depor e instituir sacerdotes no

templo em Jerusaleacutem Judeia Samaria e Idumeia passam a ser administradas

diretamente por Roma apoacutes Arquelau ser deposto (Gnilka 2000 p 41-42)

Eacute a partir de toda essa confusatildeo que entra em cena a figura de Pocircncio

Pilatos como governador da Judeia (praefectus Judaeae) Nessa eacutepoca tanto o

poder poliacutetico quanto o religioso eram controlados diretamente por Roma ldquoNo

templo tinha que ser oferecido duas vezes por dia um sacrifiacutecio pelo imperador e

pelo povo romano Sobre a administraccedilatildeo das financcedilas do templo o governador

provavelmente tinha uma espeacutecie de supervisatildeo As nomeaccedilotildees dos sumos

sacerdotes tambeacutem eram feitas pelos romanos fosse atraveacutes do governador da

Siacuteria ou do governador da Judeia Isto foi assim nos anos 6-41 depois de Cristordquo

(Gnilka 2000 p 42-43)

O mais importante dos governadores da Judeia que foi contemporacircneo de

Jesus foi Pilatos que segundo os Evangelhos participou decisivamente na morte

de Jesus ldquoFilon de Alexandria caracteriza Pilatos como um homem de natureza

inflexiacutevel obstinado e duro e acusa-o de corrupccedilatildeo violecircncia roubo maus tratos

ofensas continuadas execuccedilotildees sem julgamento constante e insuportaacutevel

crueldaderdquo (Gnilka 2000 p 44) Os dez anos em que Pilatos governou a Judeia

nos quais Caifaacutes tambeacutem sempre foi o Sumo Sacerdote foram marcados pela

crueldade e imprevisibilidade ateacute que no ano 36 ele foi deposto apoacutes ter feito um

violento massacre de samaritanos enquanto esses escalavam o monte Garizim Pelo

fato de estarem armados Pilatos os interpretou mal e resolveu intervir

massacrando-os Mediante esse fato Pilatos foi chamado a Roma para depor diante

do imperador Tibeacuterio mas com a morte deste ele ldquodesaparece do palco da histoacuteria

Notiacutecias surgidas mais tarde dando conta de que ele teria se suicidado ou que teria

sido executado pelo imperador Nero devem ser creditadas a lenda cristatilderdquo (Gnilka

2000 p 44-45)

61

Abaixo segue um resumo do governo poliacutetico e religioso das regiotildees e

cidades com as quais Jesus conviveu (Gnilka 2000 p 47)

- Os herodianos Herodes o Grande (37-4 aC) Antipas (4 aC-39 dC

GalileiaPereia) Filipe (4 aC -34 dC GaulaniacutetideBataneia Arquelau (4 aC -6 C

JudeiaSamariaIdumeia)

- Os Governadores na JudeiaSamariaIdumeia Copocircnio (6-9) Marcos

Antiacutebulo (circa 9-12) Acircnio Rufo (circa 12-15) Valeacuterio Grato (15-26) Pocircncio Pilatos

(26-36)

- Os sumos sacerdotes em Jerusaleacutem Simatildeo ben Boethos (24-5 aC)

Matias ben Theophilos (5-4) Joseacute bem Ellem (exerceu soacute por uma festa) Joazar ben

Boethos (4 aC) Eleazar ben Boethos (4 aC -) Jesus ben sieuml (tempo de cargo

desconhecido) Joazar ben boethos (no cargo pela segunda vez de -6 d C) Anaacutes

ben Sethi (6-15 d C) Ismael bem Phiabi (15-16) Eleazar ben Kamithos (17-18)

Joseacute Caifaacutes (18-36)

Jerusaleacutem era a cidade onde giravam os grandes acontecimentos da

Palestina era considerada a cidade santa natildeo somente por ser administrada

politicamente por Herodes o grande jaacute que muito antes dele a cidade jaacute havia se

transformado no centro espiritual e religioso do Judaiacutesmo A cidade no tempo dos

gregos e romanos tinha de certa forma uma feiccedilatildeo internacional Jesus entrou na

cidade foi aclamado mas logo rejeitado e entregue para ser morto pelo grupo dos

religiosos encarregados de todos os rituais do Templo (Gnilka 2000 p 49)

45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS

Jesus viveu num contexto muito religioso Foi apresentado no templo

circuncidado ao oitavo dia conforme a tradiccedilatildeo da religiatildeo judaica Sempre houve

uma tendecircncia de separar Jesus do contexto judaico tanto por judeus como por

cristatildeos Swidler pontua que os cristatildeos historicamente natildeo somente procuraram

mostrar que tudo o que Jesus fez era bom como procuraram demonstrar que tudo o

que ele fez foi oposto ao modo de agir dos judeus Por outro lado os judeus

aceitaram a interpretaccedilatildeo cristatilde que via Jesus como um antijudeu Atualmente as

coisas estatildeo mudando judeus tecircm visto Jesus como um autecircntico judeu enquanto

que um grande nuacutemero de estudiosos cristatildeos estatildeo convencidos de que soacute se pode

62

compreender adequadamente Jesus contextualizando-o num ambiente e como um

autecircntico Judeu (Swidler 1993 p108)

O Judeu Geza Vermes (com formaccedilatildeo cristatilde) no proacutelogo de seu livro o

ldquoAutecircntico Evangelho de Jesusrdquo relata que desde o fim da deacutecada de 1960 vem se

dedicando a pesquisar sobre Jesus indiferente agraves tradiccedilotildees cristatildes e judaicas a

respeito da pessoa do nazareno Vermes assim se expressa ldquoatuando como

historiador simpatizante e descartando vieses denominacionais tanto a deificaccedilatildeo

de Jesus pelos cristatildeos como a sua caricatura judaica tradicional como apoacutestata

maacutegico e inimigo do povo de Israel eu apenas tentei tirar a limpo e reconstruir uma

imagem de Yeshua filho de Joseacute do pequeno povoado galileu de Nazareacute (Vermes

2006 p7)

Digno de nota eacute que sendo Jesus judeu da Palestina judaica do primeiro

seacuteculo ldquona divisatildeo temporal feita em torno delerdquo (Vermes 2006 p7) obviamente

Jesus conviveu com os diversos grupos existentes na Palestina Conforme os

Evangelhos as relaccedilotildees de Jesus com os liacutederes dos movimentos religiosos nem

sempre foram amistosos Segundo Gnilka diversos eram os movimentos e grupos

poliacuteticos-religiosos nos dias de Jesus Quase todos provieram dos chassidim (os

piedosos) que haviam apoiado a resistecircncia dos macabeus e tambeacutem resistiram agrave

usurpaccedilatildeo dos asmoneus Desse movimento surgiu a maioria dos grupos religiosos

contemporacircneos de Jesus Esses grupos a maioria citados nos evangelhos satildeo

denominados de essecircnios fariseus saduceus e zelotes (Gnilka 2000 p52-53)

Enumerar esses grupos em relaccedilatildeo ao grau de importacircncia que eles exerciam

na sociedade judaica natildeo eacute uma tarefa faacutecil Diversas satildeo as hipoacuteteses levantadas

pelos pesquisadores a respeito de cada um dos grupos acima mencionados

Saldarini observa o fato de os escribas serem vistos como um grupo coeso apenas

no Novo Testamento sendo que em outras fontes eles satildeo vistos como um grupo

composto por pessoas desde a classe de altos funcionaacuterios ateacute a funccedilatildeo de um

humilde copista Outro fator que o autor observa eacute que para Josefo as trecircs

principais escolas de pensamento judaico dos dias de Jesus eram os fariseus os

saduceus e os essecircnios quando no Novo Testamento os principais oponentes de

Jesus satildeo os fariseus escribas e saduceus (Saldarini 2005 p 15)

63

451 OS ESSEcircNIOS

Dentre os grupos religiosos que temos mencionado os essecircnios satildeo os

menos conhecidos se levarmos em consideraccedilatildeo que a biacuteblia natildeo os menciona

contudo eles tecircm despertado muito interesse desde que foram descobertos os

manuscritos nas cavernas de Qumran em 1947 O jovem Mohammed ed-Dib (= ldquoo

lobordquo) conforme a descriccedilatildeo feita por J Jeremias (Jeremias 2006 p 401-429 cf

Jeremias 1979 p 117-148) tornou-se o grande protagonista talvez da maior

descoberta do seacuteculo concernente agrave literatura religiosa ou por que natildeo dizer

universal J Jeremias nos fornece alguns detalhes sobre a importacircncia das

descobertas de Qumran e o judaiacutesmo contemporacircneo de Jesus Depois que

Mohammed descobriu a primeira gruta outras dez foram descobertas sendo ateacute

hoje numeradas de 1 a 11 O papel dos beduiacutenos foi fundamental nas descobertas

visto que sem a busca incessante deles a maioria dos rolos natildeo teriam sido

descobertos Os manuscritos satildeo em um nuacutemero de aproximadamente 600 Mesmo

que a maioria seja apenas de fragmentos alguns do tamanho de uma unha mas

pelo menos uns dez encontram-se quase que totalmente preservados Eles satildeo

datados do periacuteodo que se compreende do seacuteculo III aC ao seacuteculo I da era cristatilde

Atribui-se a produccedilatildeo dos textos e o armazenamento deles em grutas aos essecircnios

conforme nos descreve J Jeremias citando a ldquoHistoacuteria Natural de Pliacutenio

A margem ocidental (do Mar Morto) fora do alcance da influecircncia nociva (de suas aacuteguas) estatildeo estabelecidos os essecircnios Eacute um agrupamento de solitaacuterios uacutenico no mundo sem mulheres ndash pois renunciam ao amor sexual e sem dinheiro eles vivem na sociedade das palmeiras (Embora se abstenham do casamento) o nuacutemero de seus adeptos se manteacutem e se renova cada dia pela afluecircncia daqueles que cansados de lutar contra as vagas de destino vecircm participar de sua vida Assim coisa incriacutevel eles permanecem atraveacutes de milhares de geraccedilotildees uma raccedila eterna ainda que natildeo existam nascimentos entre eles (V 1713)

Para J Jeremias natildeo haacute duacutevida que Pliacutenio se refere aos essecircnios mesmo

que por engano os tenha chamado de raccedila eterna Os essecircnios surgiram por volta

de 167-154 aC apoacutes Antiacuteoco Epifacircnio profanar o Templo de Jerusaleacutem Em 152

aC apoacutes a guerra com os siacuterios Jocircnatas Macabeus cinge a tiara de sumo

sacerdote mesmo natildeo pertencendo agrave descendecircncia dos sadoquitas que eram os

64

uacutenicos habilitados para exercer tal funccedilatildeo Uma revoluccedilatildeo acontece no coleacutegio

sacerdotal resultando na formaccedilatildeo de um grupo denominado de ldquoKhassyyayardquo os

piedosos que em grego satildeo denominados de ldquoessenoirdquo ou ldquoessaicircoirdquo conhecidos

hoje por essecircnios

Os essecircnios eram apocaliacutepticos esperavam o iminente fim deste mundo que

eles acreditavam estar bem proacuteximo Guardavam o saacutebado a ponto de natildeo ajudar

um animal no parto e nem socorrecirc-lo caso caiacutesse num buraco no dia de saacutebado

(Gnilka 2000 p 55-56) tambeacutem tinham como chefe um homem chamado com toda

reverecircncia nos rolos como o ldquoMestre da Justiccedilardquo ldquoo grande teoacutelogo e exegeta da

seitardquo (cf Jeremias 2006 p 408) Para Sean Freyne o chamado ldquoPapiro da Guerrardquo

(1QM) intitulado como ldquoA Guerra dos filhos da luzrdquo mostra como essa comunidade

apregoava um certo tipo de guerra coacutesmica parecida com a religiatildeo zoroaacutestrica da

Peacutersia onde a ecircnfase do conflito estaacute centrada na ideia de uma guerra do bem e o

mal (Freyne 2008 p26) J Jeremias define a teologia tambeacutem como uma doutrina

baseada em dois espiacuteritos ou seja no espiacuterito de Deus e no espiacuterito de Belial ou

seja no diabo e isso resulta na constante luta entre a Luz e as Trevas que tambeacutem

se desenrolam no interior do ser humano (Jeremias 2006 p 412) De acordo com J

Jeremias o dualismo essecircnio eacute monoteiacutesta conforme podemos ver em IQS 31517-

1925 abaixo reproduzido

Do Deus dos conhecimentos Vem tudo o que eacute tudo o que acontece e antes mesmo que as coisas existissem ele fixara todo o seu plano

Eacute ele quem criou o homem para dominar o mundo e pocircs diante de dois espiacuteritos para que ele ande neles ateacute ao momento fixado por sua divina visita

Satildeo os (dois) espiacuteritos de verdade e de iniquidade Da fonte da luz sai a verdade E da fonte das trevas sai a iniquidade Eacute ele (Deus) quem criou os espiacuteritos da luz e das trevas

65

Observamos acima algumas descriccedilotildees a respeito do grupo dos essecircnios

contudo segundo Freyne (Freyne 2008 p26) natildeo se pode resumir o pensamento

desse grupo com um periacuteodo de aproximadamente 200 anos de histoacuteria apenas em

um ponto de vista Isso pode ser visto por exemplo em 4Q 521 onde o texto

demonstra o anseio dos oprimidos por um messias libertador que venha ldquocurar os

feridos distribuir riquezas entre os necessitados conduzir de volta os exilados e

enriquecer os famintosrdquo ou ainda textos como 4Q 426 onde o ldquoGrande Deusrdquo trava

uma decisiva batalha contra as naccedilotildees e garante a paz definitiva ao seu povo O

que Freyne procura dizer eacute que o pensamento dos essecircnios eacute amplo demais para

ser resumido em poucas palavras contudo como natildeo eacute nosso interesse pesquisar a

fundo essa seita contentamo-nos a princiacutepio com algumas informaccedilotildees sobre

eles35

Ainda sobre os essecircnios sabemos por David Flusser que eles eram ferrenhos

inimigos dos fariseus uma vez que condenavam os feitos farisaicos energicamente

No Rolo de Accedilatildeo de Graccedilas (IQH) 4 6-8 estaacute escrito sobre os fariseus da seguinte

maneira ldquoE conduziram o povo por caminhos desviados ao lhes proferir discursos

macios Falsos mestres levam para maus caminhos e caminham cegamente para a

queda pois suas obras satildeo feitas no logrordquo (cf Flusser 2002 p 46)

Aleacutem do que jaacute foi dito sobre os essecircnios surge uma pergunta Ateacute que ponto

os essecircnios tiveram contato com Jesus ou seria Jesus membro da seita dos

essecircnios Segundo Charlesworth eacute possiacutevel que Jesus tenha encontrado alguns

essecircnios em suas idas e vindas no periacuteodo em que exerceu o seu ministeacuterio ou ateacute

antes disso Contudo natildeo podemos afirmar isso jaacute que os essecircnios natildeo satildeo

mencionados no Novo Testamento e na verdade natildeo temos certeza se eles

exatamente eram conhecidos (Charlesworth 1992 p76) Para Charlesworth o que

fica evidente eacute que os essecircnios e Jesus foram contemporacircneos o que nos leva a

deduzir que eacute muito provaacutevel que Jesus ao menos tenha ouvido falar deles e ateacute

conhecesse a doutrina rituais religiosos e haacutebitos sociais desse grupo

(Charlesworth 1992 p79)

Charlesworth enumera algumas semelhanccedilas e diferenccedilas entre Jesus e os

essecircnios 35

Para mais informaccedilotildees sobre os essecircnios ver (Jeremias 2006 p 401-429 e Charlesworth 1992 p 70-89)

66

a) Jesus partilha com os essecircnios de uma teologia monoteiacutesta

b) Como os essecircnios a teologia de Jesus era categoricamente escatoloacutegica

c) Jesus partilhava com os essecircnios uma total entrega a Deus e a Toraacute (Ele

pode ter se referido aos essecircnios quando elogiou os eunucos por causa do reino de

Deus cf Mt 19 10-12)

d) Jesus conforme o Evangelho de Marcos proibiu o divoacutercio (Mateus tornou-

a casuiacutestica Mt 5 31-32 199) assim como os essecircnios eram totalmente contraacuterios

ao divoacutercio ldquoo rei deve permanecer casado com apenas uma mulherrdquo (cf II Q

Temple 57 17-18)

f) Dos essecircnios Jesus rejeita a riacutegida observacircncia do Saacutebado

g) Jesus ao contraacuterio dos essecircnios aproximou-se de todas as classes

sociais inclusive de prostitutas e cobradores de impostos Aleacutem disso a visatildeo de

Jesus em relaccedilatildeo aos rituais de purificaccedilatildeo judaicos era muito diversa das dos

judeus

h) A atitude liberal de Jesus sobre a purificaccedilatildeo se contrastava com a

paranoia dos essecircnios principalmente em relaccedilatildeo ao afastamento das pessoas que

tinham lepra Em II Q Temple 48 14-15 eacute orientado a que existam cidades proacuteprias

para o isolamento dos leprosos enquanto que Jesus repousou em Betacircnia na casa

de Simatildeo o leproso (Mc 143)

i) Jesus enfatizou o amar uns aos outros (na paraacutebola do bom samaritano)

enquanto que os essecircnios na renovaccedilatildeo anual entoavam maldiccedilotildees sobre os filhos

das trevas especialmente sobre aqueles que natildeo eram essecircnios (1Qs) Jesus pode

ter se dirigido a eles quando se referiu ao dito ldquoamaraacutes o teu proacuteximo e odiaraacutes ao

teu inimigo (Mt 5 43)

Em resumo Charlesworth conclui que o cristianismo natildeo foi fundado com as

bases do essenismo conforme havia dito Renan em sua obra ldquoVida de Jesusrdquo

Jesus foi o fundador do cristianismo que foi fundado em meio agraves vaacuterias correntes

judaicas da eacutepoca sem que se possa mencionar uma uacutenica fonte como a trajetoacuteria

Jesus natildeo era um essecircnio ldquomas pode ter partilhado com os essecircnios mais do que a

mesma naccedilatildeo tempo e lugarrdquo (Charlesworth 1992 p 84-88)

452 OS FARISEUS

67

Os fariseus (pharushim ndash separados) - ldquoum grupo de estudiosos leigos que

apareceram na histoacuteria cerca de um seacuteculo e meio antes do nascimento de Jesus

() e se tornaram autoridades na vida dos judeus durante o reinado da rainha

Alexandra em (76-67 aC)rdquo (Swidler 1993 p 74) - nasceram do grupo dos chassidim

e eram em nuacutemero de seis mil pessoas em Jerusaleacutem nos dias de Jesus (Flusser

2002 p 44) Eles tambeacutem natildeo concordavam com a usurpaccedilatildeo por parte dos

asmoneus Segundo Gnilka a maioria dos escribas pertencia ao grupo dos fariseus

Em relaccedilatildeo aos saduceus os fariseus eram a maioria mas a influecircncia poliacutetica

destes era menor Jaacute o clima entre fariseus e essecircnios era hostil Os essecircnios

consideravam os fariseus com ldquogente que amolece e dissolve a lei e de quem se

pode esperar o logro mentira seduccedilatildeo e errordquo (Gnilka 2000 p57-60) Segundo

Flusser os fariseus eram denominados pelos essecircnios como ldquocaiadosrdquo e Jesus

tambeacutem se referiu a eles no Evangelho de Mateus 23 27-28 dizendo ldquoAi de voacutes

escribas e fariseus hipoacutecritas Sois semelhantes a sepulcros caiados que por fora

parecem bonitos mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidaderdquo

Embora o ataque dos essecircnios fosse em alguns pontos parecidos com a criacutetica que

Jesus fez contra os fariseus a distacircncia entre eles eacute muito grande Os essecircnios

rejeitavam explicitamente a doutrina dos fariseus ao passo que Jesus de uma

forma mais positiva via-os como os ldquoherdeiros contemporacircneos de Moiseacutesrdquo (cf

Flusser 2002 p46-48)

Os fariseus eram muito queridos pela maioria da populaccedilatildeo judaica devido agrave

devoccedilatildeo deles aos rituais religiosos Segundo Sanders no periacuteodo asmoneu os

fariseus tambeacutem exerceram uma influecircncia e forccedila poliacutetica muito importante ainda

que depois perderam tal forccedila No governo de Herodes somente o rei tinha o poder

poliacutetico uma vez que todos os que o ameaccedilassem eram imediatamente executados

Na Galileia o sucessor de Herodes foi seu filho Antipas que tambeacutem natildeo se mostrou

muito disposto assim como seu pai a dar autoridade a algum grupo de piedosos e

mestres religiosos Somente em Jerusaleacutem apoacutes Arquelau (irmatildeo de Antipas) ser

deposto eacute que os saduceus respaldados pelo poder romano puderam como grupo

religioso exercer forccedila poliacutetica Os fariseus mesmo sendo a maioria em relaccedilatildeo aos

saduceus continuaram apenas trabalhando ensinando e exercendo suas funccedilotildees

68

no culto judaico nas sinagogas A popularidade deles provavelmente aumentou

contudo natildeo o poder poliacutetico (cf Sanders 2005 p68)

A visatildeo de Saldarini sobre os fariseus compactua com Sanders a respeito da

popularidade dos fariseus Ele observa que para o evangelista Marcos os fariseus

eram um grupo muito reconhecido na comunidade da Galileia Jesus um jovem

oriundo de uma famiacutelia de artesatildeos considerada uma classe inferior na Palestina

natildeo dispunha da mesma honra dada aos fariseus principalmente em Nazareacute sua

terra natal Mas com o decorrer do tempo Jesus atraveacutes de seu ministeacuterio

conseguiu a simpatia de muitos seguidores em outras cidades da Galileia

contraindo para si o ciuacuteme a ira e a perseguiccedilatildeo dos fariseus O confronto dos

fariseus com Jesus a princiacutepio estava baseado em temas teoloacutegicos a respeito do

Jejum (Mc 218) da observacircncia do saacutebado (Mc 224 32) e sobre o divoacutercio (Mc

102) da purificaccedilatildeo das matildeos (Mc 71) e outros temas relacionados com respeito agrave

conduta de Jesus entre os homens considerados pecadores (Mc 216) etc Para os

fariseus no entanto o que estava em jogo natildeo eram apenas os debates teoloacutegicos

mas principalmente a simpatia e o controle da comunidade (Saldarini 2005 p 162-

164)

Para Saldarini os fariseus juntamente com os escribas eram os principais

opositores de Jesus na Galileia Em Jerusaleacutem os seus adversaacuterios tinham um

poder poliacutetico muito maior jaacute que entre eles estavam os chefes dos sacerdotes os

escribas e os anciatildeos do povo dentre os membros desses grupos principalmente

dos sacerdotes estavam os que entregaram Jesus agrave morte O evangelista Marcos

menciona os fariseus em cinco casos (2 18 224 32 811-15 102) e em todos os

casos eles estatildeo em conflito com Jesus36 Os escribas e fariseus juntos satildeo

mencionados duas vezes em Marcos tambeacutem quando estatildeo em conflito com Jesus

(216 7 1-5) Com os herodianos os fariseus satildeo mencionados duas vezes em

Marcos (36 1213) Para o evangelista Marcos os fariseus satildeo situados sempre na

36

Geza Vermes observa que no Evangelho de Mateus os fariseus natildeo satildeo sempre vistos no aspecto negativo Vermes vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e amor a Deusrdquo eles por outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser seguida

69

Galileia (3 2-6 7 1-5 2 18-24 811 102) A uacutenica exceccedilatildeo no evangelho de

Marcos eacute quando os fariseus e os herodianos satildeo enviados a Jesus a fim de

apanhaacute-lo em Jerusaleacutem (1213) Ao contraacuterio de Josefo que situa os fariseus

sempre em Jerusaleacutem ao lado dos chefes dos judeus Marcos mostra-os sempre

ativos na Galileia (Saldarini 2005 p159-160)

Apesar dos fariseus estarem sempre em confronto com Jesus nos

Evangelhos alguns pesquisadores veem algumas semelhanccedilas entre o movimento

de Jesus e o movimento dos fariseus Swidler lista algumas semelhanccedilas entre os

dois grupos Segundo Swidler Jesus reinterpretou as Escrituras hebraicas de

maneira condizente com o meio social onde se encontrava Jesus tambeacutem participou

de refeiccedilotildees entre amigos do tipo farisaico Tambeacutem segundo Swidler eacute possiacutevel ver

semelhanccedilas na doutrina de Jesus a respeito do amor no Shema oraccedilatildeo do

monoteiacutesmo nas bem aventuranccedilas em questotildees relacionadas agrave ressurreiccedilatildeo

tambeacutem seria ver fortes indiacutecios de um espiacuterito farisaico na vida de Jesus (cf

Swidler 1993 p78)

Para fundamentar essa teoria Swidler busca outros pesquisadores como o

teoacutelogo catoacutelico Pawlikowski que chegou a concluir que natildeo seria errado ldquoconsiderar

o movimento de Jesus como uma parte do movimento farisaico geral embora em

muitos campos tivesse um ponto de vista diferenciadordquo Swidler ainda cita o

estudioso protestante E P Sanders referindo-se a ele como mais cauteloso sobre o

assunto abordado poreacutem natildeo hesita em afirmar tambeacutem que ele faz parte do

nuacutemero sempre crescente de especialistas que duvidam que tenham existido

ldquopontos importantes de oposiccedilatildeo entre Jesus e os fariseusrdquo (Swidler 1993 p78)

A forte tendecircncia de colocar Jesus como um judeu apenas corrobora o que

ele sempre foi um judeu e natildeo um cristatildeo uma vez que o cristianismo soacute veio a

existir apoacutes a morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus Entre os judeus catoacutelicos e

protestantes tecircm surgido renomados defensores da teoria Jesus dentro do

judaiacutesmo Swidler aleacutem de citar um catoacutelico e um protestante como referecircncia cita

ainda um judeu (Geza Vermes) para corroborar esse pensamento Vermes em seu

livro Jesus e o mundo do Judaiacutesmo descreve ldquoJesus era um hasid galileu nisso a

meu ver reside a sua grandeza e tambeacutem o germe de sua trageacutediardquo (Vermes 1996

p20)

70

Para Vermes contudo Jesus natildeo foi muito amado pelos fariseus porque

Jesus segundo a visatildeo e interpretaccedilatildeo biacuteblica dos fariseus desprezava

propositadamente alguns costumes tradicionais como sentar-se agrave mesa com

publicanos e prostitutas No entanto para Vermes natildeo parece que tenha havido

discoacuterdia entre Jesus e os fariseus em temas essenciais da religiatildeo e feacute judaica

Vermes define a relaccedilatildeo de Jesus com os fariseus da seguinte maneira ldquoNatildeo

obstante o conflito entre Jesus da Galileia e os fariseus de sua eacutepoca ter-se-ia

assemelhado em circunstacircncias normais agrave mera luta intestina de facccedilotildees

pertencentes ao mesmo corpo religioso como a que se travou entre caraiacutetas e

rabanitas na Idade Meacutedia ou entre os ramos ortodoxo e progressista do judaiacutesmo na

eacutepoca modernardquo (Vermes 1996 p20)

Vermes observa ainda que no Evangelho de Mateus os fariseus nem

sempre satildeo vistos no aspecto negativo Ele vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a

respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles

tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado

juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento

os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e a mor a Deusrdquo eles por

outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o

assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos

fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles

eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser

seguida (Vermes 2006 p98)

Segundo Swidler tanto os pontos positivos e os negativos foram adotados

diretamente pela Comissatildeo do Vaticano para Relaccedilotildees Religiosas com os Judeus e

indiretamente por outras igrejas O Catecismo da Igreja catoacutelica romana diz que

ldquopode-se tambeacutem frisar que se Jesus se mostra severo para com os fariseus eacute

porque estaacute mais proacuteximo deles que de quaisquer outros grupos judaicos seus

contemporacircneosrdquo (cf Vermes 1996 p79)

Nesse invoacutelucro de pensamentos sobre Jesus e os fariseus Swidler leva em

conta o fato de Vermes ter apontado Jesus como participante do grupo dos

ldquohassideus ou devotosrdquo Dentre as muitas especulaccedilotildees descritas por Swidler (nem

71

todas expostas aqui) eacute digna de nota a conclusatildeo desses apontamentos nas

palavras do proacuteprio autor

Assim talvez a melhor maneira de situar Ieshua no contexto do judaiacutesmo da sua eacutepoca seja como mestre (rabi) viandante e que fazia milagres um saacutebio (hakaham) da Galileia hassid galileu que sob muitos aspectos se assemelhava a Hillel (cujos ensinamentos acabaram mais tarde prevalecendo sobre os Shammai no judaiacutesmo rabiacutenico) que alguns estudiosos iriam considerar como algueacutem que teve um relacionamento muito proacuteximo com os fariseus aos quais poreacutem ele criticava sendo por sua vez criticado por eles Sigal o considerou hassid galileu hakham e proto-rabino o qual como Iohanan ben Zakkai antes e depois do ano 70 dC criticou duramente os pharisaioi os perushim (que Sigal natildeo considerava predecessores do judaiacutesmo rabiacutenico muito embora por vezes um emprego impreciso do termo pharisaioi nos evangelhos e em Josefo pudesse incluir alguns proto-rabinos) Estou convencido de que Sigal nos fornece a mais exata e abrangente descriccedilatildeo do lugar de Ieshua na vida judaica do seu

tempo (Swidler 1993 p 86-87)37

A proximidade de Jesus com os fariseus eacute tambeacutem notada por Flusser Ele

nota que nos Evangelhos sinoacuteticos diferentemente de Joatildeo (cf Jo 18 3) os fariseus

natildeo figuram em nenhuma descriccedilatildeo do julgamento de Jesus Flusser ainda nota

que nos primoacuterdios do cristianismo quando os cristatildeos foram perseguidos pelo

ldquosumo sacerdote saduceu o Raban Gamaliel tomou seu partido e os salvourdquo (At 5

17-42) Da mesma maneira Paulo quando estava perante o Sineacutedrio em Jerusaleacutem

vendo que seria punido severamente apelou para os fariseus e encontrou neles

solidariedade (At 22 30 236-10) jaacute que a outra parte era composta por saduceus

(Flusser 2002 p49)

A possiacutevel afeiccedilatildeo dos fariseus em relaccedilatildeo aos primeiros cristatildeos eacute

mencionada por Flusser sobre ldquoTiago o irmatildeo do Senhor e aparentemente outros

cristatildeosrdquo (cf Antiquities book 20 200-2001 in Josephus 1999 p656) que foram

condenados agrave morte em 62 dC pelo sumo sacerdote saduceu (ilegalmente) mas

foram salvos pelos fariseus quando estes apelaram ao rei que por sua vez acabou

37

Segundo Swidler o rabino Phillip Sigal de Pittsburgh os fariseus dos evangelhos natildeo satildeo os

predecessores dos rabis posteriores a 70 dC responsaacuteveis pelos escritos e tambeacutem sem duacutevida fundadores do judaiacutesmo dos nossos dias Para Sigal os predecessores dos rabis natildeo eram nem hillelistas (da escola de Hillel) nem Shamaiacutetas (da escola de Shamai) e nem pertenciam a nenhuma escola ou ldquocasardquo (bet) propriamente dita Ieshua (Jesus) natildeo era saduceu ou fariseu tampouco hilletita nem shamaiacuteta mas era um protorrabi antecipado da eacutepoca tanaiacutetica A sua maneira de ensinar era baseada na liberdade de interpretaccedilatildeo e autoridade conforme o modelo de ensinar protorrabiacutenico [] Ieshua era hakham (saacutebio filoacutesofo um protorrabi) como um profeta carismaacutetico que pregava sobre assuntos assombrosos e aterradores conforme a halakhah juntamente com sua pregaccedilatildeo hagaacutedica (Swidler 1993 p 86)

72

destituindo tal sumo sacerdote Segundo Flusser os fariseus possivelmente

consideravam a relaccedilatildeo dos saduceus com os romanos como um ato de

ldquodespotismo sacerdotalrdquo e essa poderia ser a causa a partir da leitura dos Sinoacuteticos

da ausecircncia de relatos da presenccedila de fariseus no julgamento e condenaccedilatildeo de

Jesus Flusser pressupotildee que os Sinoacuteticos natildeo mencionam um protesto dos fariseus

a favor de Jesus uma vez que eles jaacute haviam registrado anteriormente um Jesus

ldquoantifarisaicordquo em suas narrativas (Flusser 2002 p50)

453 OS SADUCEUS

Os saduceus que natildeo eram originaacuterios dos chassidim mas dos asmoneus

respeitavam os fariseus porque estes tinham um grande prestiacutegio com a populaccedilatildeo

em geral A classe dos saduceus era composta por gente nobre e rica da sociedade

Eles rejeitavam a doutrina da ressurreiccedilatildeo dos mortos e a existecircncia dos anjos

Tambeacutem soacute aceitavam o Pentateuco como verdade de feacute ldquoOs saduceus possuiacuteam o

poder os fariseus possuiacuteam a influecircncia sobre o povordquo (Gnilka 2000 p 61-62)

Flusser tambeacutem coloca os saduceus como um grupo pequeno menor do que os

fariseus por outro lado ele observa que os saduceus eram poderosos uma vez que

pertenciam a aristocracia sacerdotal do templo Eles natildeo eram revolucionaacuterios como

os fariseus (que se envolveram na guerra civil no periacuteodo macabeu) negavam a

validade da tradiccedilatildeo oral e consideravam toda a crenccedila na vida futura como uma

tolice (Flusser 2002 p45)

Nos Evangelhos sinoacuteticos os saduceus satildeo mencionados mais no Evangelho

de Mateus sendo que em Marcos e Lucas eles satildeo mencionados apenas uma vez

em cada Evangelho (Mc 12 18-27 Lc 20 27-40) No entanto tanto para Mateus e

Marcos como para Josefo os saduceus assim como os fariseus eram muito

conhecidos no primeiro seacuteculo da era cristatilde (Saldarini 2005 p183-184) Os

saduceus satildeo sempre colocados por Josefo ao lado dos fariseus Josefo tambeacutem

situa os saduceus como sendo um grupo pertencente agrave classe dominante Em Atos

dos apoacutestolos os saduceus discutem com os fariseus acerca da ressurreiccedilatildeo por

causa de um discurso de Paulo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (At 23) Em Atos

(41 517) os saduceus tambeacutem satildeo associados aos maiorais do templo ou seja agrave

classe sacerdotal (Saldarini 2005 p308-309)

73

A classe sacerdotal estaacute intimamente relacionada ao julgamento de Jesus

Em Lucas 22 54 lemos ldquoPrenderam-no e levaram-no introduzindo-o na casa do

Sumo Sacerdote Pedro seguia de longerdquo Segundo Flusser o clatilde sacerdotal e o

proacuteprio sumo sacerdote eram saduceus Caifaacutes era o sumo sacerdote e tambeacutem era

a figura mais importante do segundo Templo Foi na casa (palaacutecio) de Caifaacutes que

Jesus passou a noite sob custoacutedia enquanto era escarnecido pelos guardas (Lc 22

63) Os saduceus odiavam a Jesus possivelmente porque o consideravam um

profeta (ldquoFaz uma profecia quem eacute que te bateurdquo Lc 22 64) e sua presenccedila em

Jerusaleacutem podia ser uma clara ameaccedila Segundo Joatildeo os motivos da condenaccedilatildeo

de Jesus pela classe sacerdotal eacute que

[] os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram ldquoQue faremos Esse homem realiza muitos sinais Se o deixarmos assim todos creratildeo nele e os romanos viratildeo destruindo o nosso lugar santo e a naccedilatildeordquo Um deles poreacutem Caifaacutes que era o Sumo Sacerdote naquele ano disse-lhes ldquoVoacutes nada entendeis Natildeo compreendeis que eacute de vosso interesse que um soacute homem morra pelo povo e natildeo pereccedila a naccedilatildeo todardquo Natildeo dizia isso por si mesmo mas sendo sumo Sacerdote naquele ano profetizou que Jesus morreria pela naccedilatildeo ndash e natildeo soacute pela naccedilatildeo mas tambeacutem para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos Entatildeo a partir desse dia resolveram mataacute-lo Jesus por isso natildeo andava em puacuteblico entre os judeus mas retirou-se para a regiatildeo proacutexima do deserto para a cidade chamada Efraim e aiacute permaneceu com seus disciacutepulos (Jo 11 47-54)

A atitude de Caifaacutes em relaccedilatildeo agrave morte substituta de Jesus (ldquoeacute de vosso

interesse que um soacute homem morra pelo povordquo) eacute vista por Flusser mais como uma

justificativa do sumo sacerdote uma vez que a tradiccedilatildeo judaica repudiava o ato de

entregar um cidadatildeo judeu para que fosse morto por estrangeiros era um pecado

imperdoaacutevel segundo a halakaacute38 Flusser cita ainda o Rolo do Templo essecircnico

(64 7-8) que diz ldquoSe um homem calunia Meu povo e entrega Meu povo para uma

naccedilatildeo estrangeira e pratica a iniquidade contra meu povo penduraacute-lo-eis numa

38

Zuurmond define a halakaacute da seguinte maneira ldquoeacute o way of life judaico o conjunto de prescriccedilotildees e proibiccedilotildees que definem a maneira como vivem os judeus Uma questatildeo halaacutequica eacute uma disputa sobre a halakaacute geralmente com base na interpretaccedilatildeo de textos do Antigo Testamento Nem toda a questatildeo halaacutequica eacute de ordem moral As leis de pureza por exemplo formam uma parte importante da halakaacute mas ndash pelo menos segundo nosso modo de falar ndash natildeo tem caraacuteter moralrdquo (Zuurmond 1998 p 77) A raiz halak tambeacutem pode ser definida como a ldquoviardquo a ldquocaminhadardquo ou seja ldquoa regra (de vida) que vai permitir a aplicaccedilatildeo da Torah escrita agraves circunstacircncias reais e mutaacuteveis da vida O plural eacute halakot regras decisotildees e coleccedilotildees de leisrdquo (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

74

aacutervore e ele morreraacuterdquo Ainda havia uma tradiccedilatildeo oral dos saacutebios judeus com o

seguinte teor ldquose haacute um grupo de pessoas e os gentios lhes dizem entregai um de

voacutes para noacutes e o mataremos se natildeo fizerdes mataremos a todos a (regra eacute) deixai

que todos sejam assassinados e natildeo entregueis a eles uma uacutenica alma em Israel

poreacutem se eles o escolherem deixai que o entreguem para que todos natildeo sejam

massacradosrdquo (cf Flusser 2002 p 164-166)

Caifaacutes natildeo se restringiu apenas a entregar Jesus aos romanos Ele sabia que

eles eram implacaacuteveis a qualquer judeu rebelde ou a movimentos profeacuteticos

entusiastas que se levantassem na Palestina No entanto parece que Caifaacutes natildeo

estava preocupado com as tradiccedilotildees de seu povo O viacutenculo dele com os suacuteditos e

representantes de Cesar se estreitava ainda mais quando o vemos em Atos dos

Apoacutestolos (4 1-3 46 5 27-28) juntamente com a classe sacerdotal (os saduceus)

prendendo muitos cristatildeos em Jerusaleacutem pelos mesmos motivos que Jesus foi

entregue aos romanos sem se importar com as tradiccedilotildees judaicas das quais ele

deveria ser o principal observador (Flusser 2002 p 154-166)

454 OS ZELOTAS

Os movimentos de resistecircncia nos dias de Jesus estatildeo ligados ao projeto de

romanizaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo da Galileia por Herodes Antipas (Crossan 2009 p16-

18) O anseio de Antipas em se tornar rei uma vez que ele foi nomeado por Cesar

Augusto como tetrarca da Galileia e Pereia e seu irmatildeo Felipe ficou como tetrarca

da parte do extremo norte do paiacutes Jaacute Arquelau o outro filho de Herodes o Grande

ficou como etnarca da Idumeia Judeia e Samaria o que deixou Antipas muito

desapontado

Segundo Crossan Antipas comeccedilou a trabalhar para ganhar prestiacutegio em

Roma poreacutem agraves custas de um jugo pesado aos habitantes da Galileia Primeiro ele

fortificou Seacuteforis ldquopara ser o ornamento de toda a Galileiardquo e dedicou a Augusto a

sua cidade-capital reconstruiacuteda Apoacutes a morte de Augusto assumiu como Imperador

de Roma Tibeacuterio Antipas logo teve a ideia de substituir a capital Seacuteforis fundando

uma nova cidade a 32 quilocircmetros ao leste na costa ocidental do mar da Galileia e

nomeou-a Tiberiacuteades em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (cf Crossan 2009 p

17-18) O problema de tudo isso era que as construccedilotildees de Antipas provocavam o

75

aumento dos tributos sobre os galileus causando um descontentamento geral

Contudo para Antipas o que mais importava conforme Crossan nos descreve era

passar a Roma uma imagem de um governante lucrativo na questatildeo da arrecadaccedilatildeo

de impostos o que poderia levar o Imperador a pensar ldquoque eacute que natildeo faria ele

como monarca de toda a paacutetria judaicardquo

As construccedilotildees de Antipas poderiam impressionar Roma mas natildeo poderiam

evitar os movimentos de resistecircncia judaica uma vez que segundo Pagola (2010 p

48) ldquoos camponeses experimentaram pela primeira vez a pressatildeo e o controle

proacuteximo dos governos herodianosrdquo A situaccedilatildeo era tatildeo caoacutetica que aumentou

assustadoramente o nuacutemero de indigentes prostitutas e diaristas enfim parece que

Jesus conheceu ao longo de sua vida uma Galileia onde a desigualdade social era

enorme onde se favorecia a minoria privilegiada de Seacuteforis e Tiberiacuteades ao custo da

pobreza e sofrimento e desintegraccedilatildeo de muitas famiacutelias

Crossan (2004 p 275) nota que a construccedilatildeo ou reconstruccedilatildeo das cidades

de Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo afetou apenas os camponeses iletrados ou seja os

trabalhadores mais humildes mas tambeacutem afetou agrave classe dos letrados Assim ele

conclui que ateacute mesmo o movimento de Jesus relacionado ao reino de Deus

comeccedilou como um movimente de resistecircncia a partir dos camponeses ldquomas

abandonou seu caraacuteter localista e regionalista sob a lideranccedila dos letradosrdquo

Dentre os movimentos de Revolta encontramos Judas galileu que apoacutes a

deposiccedilatildeo de Arquelau (6 d c) natildeo aceitava que o pagamento de impostos devia

ser efetuado diretamente a Roma Segundo Theissen (2004 p163-164) a doutrina

de Judas repercutiu muito chegando ao ponto de alguns ldquoherodianosrdquo questionarem

a Jesus a respeito da questatildeo de se era liacutecito ou natildeo pagar impostos ao Imperador

(cf Mc 12 13-17) Horsley defende que o movimento de Judas o Galileu e de

Sadoc o fariseu que Josefo rotula como a quarta filosofia (as outras satildeo os

fariseus os saduceus e os essecircnios) tecircm sido interpretadas de uma forma errada

por vaacuterios especialistas que afirmam que esse movimento pregava a revolta armada

contra Roma De acordo com Horsley Josefo assim descreveu esse movimento em

Ant 18 4-5 23

Mas um certo Judas gaulanita da cidade de Gamala em combinaccedilatildeo com o fariseus Sadoc insistiu fortemente na resistecircncia Eles diziam que tal

76

avaliaccedilatildeo tributaacuteria implicava escravidatildeo pura e simples e pressionavam a naccedilatildeo a exigir sua liberdade [] Judas o Galileu estabeleceu-se como o liacuteder da quarta filosofia Os seus adeptos concordaram com as ideia dos fariseus em tudo exceto em sua indomaacutevel paixatildeo pela liberdade pois consideram Deus o seu uacutenico liacuteder e senhor (cf Horsley 2010 p 72)

Horsley avalia que Judas e Sadoc estivessem mais ligados ao ensino ou

pregaccedilatildeo ldquocontra a avaliaccedilatildeo tributaacuteria ou ateacute mesmo uma resistecircncia organizada

contra os impostos do que um grupo armado e violento conforme tem sido

interpretado a partir dos escritos de Josefordquo (Horsley 2010 p 78-79)

As informaccedilotildees sobre os grupos de resistecircncias nem sempre satildeo unacircnimes

como vimos acima No entanto podemos afirmar que entre os grupos de resistecircncia

encontram-se os Zelotes (Zelotas) talvez os mais conhecidos O termo Zelotas

encontra-se oito vezes registrado no Novo Testamento Esse termo geralmente

aplica-se ldquoaos guerrilheiros da resistecircncia desde Judas Galileu (6 aC) ateacute os

defensores da fortaleza de Masadaacute (74 dC) Eles eram rigorosamente

observadores do saacutebado da circuncisatildeo (exigiam a circuncisatildeo ateacute mesmo dos

antigos) e tinham fortes crenccedilas escatoloacutegicasrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia

do Novo Testamento p 2686) De acordo com Theissen mesmo que os

seguidores de Judas Galileu sejam chamados de Zelotes natildeo eacute possiacutevel afirmar tal

coisa visto que em Josefo eles ldquoaparecem como grupo apenas depois do inicio da

guerra judaica em 66 dC em relaccedilatildeo com o Templordquo (cf Theissen 2004 p164)

contudo haacute um argumento de peso contra essa teoria uma vez que entre os

disciacutepulos de Jesus por volta da metade do seacuteculo I havia um zelole (Simatildeo Zelote

cf Lc 6 15) e Theissen faz uma observaccedilatildeo ldquoaleacutem disso na Galileiardquo

Os zelotas eram originaacuterios dos fariseus e assim como os essecircnios estavam

ligados pela guerra santa e escatoloacutegica Natildeo satildeo citados nos evangelhos como

grupo mas entre os disciacutepulos de Jesus como foi dito acima havia um disciacutepulo

chamado de ldquoSimatildeo o Zeloterdquo (Lc 615 At 113) Eles lutavam pelos direitos do

pobre do oprimido e a esses ldquoprometiam com a chegada do Reino de Deus a

restauraccedilatildeo de seus direitos e uma nova ordem estabelecida por Deusrdquo (Gnilka

2000 p 60) O fato de entre os disciacutepulos ter um zelote natildeo significa que esse

movimento tenha sido endossado por Jesus jaacute que os ensinamentos de Jesus sobre

o tributo a Cesar e sua atitude para com o saacutebado eacute uma forma de repuacutedio a

77

doutrina apregoada pelos zelotas (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo

Testamento p 2686)

Podemos observar portanto que a possiacutevel relaccedilatildeo de Jesus com os Zelotas

como grupo de resistecircncia eacute muito remota ou praticamente inexistente conforme

Crossan (2004 p275) tem observado Ainda na mesma linha de pensamento de

Crossan Sean Freyne tambeacutem considera remota a hipoacutetese do possiacutevel

envolvimento de Jesus com o grupo dos zelotas Para Freyne (2008 p 130) a

pregaccedilatildeo de Jesus natildeo incitava a vinganccedila uma vez que estava mais baseada no

livro do Gecircnesis (criaccedilatildeo) do que no livro do Ecircxodo (libertaccedilatildeo) ou seja Jesus natildeo

via as demais naccedilotildees ou outras origens eacutetnicas como objeto de remoccedilatildeo

aniquilaccedilatildeo conversatildeo ou conquista como viam os heroacuteis do Antigo Testamento

Contudo para Freyne devemos observar que haacute duas formas de

interpretarmos Jesus de Nazareacute Se o olharmos segundo o ponto de vista de

Crossan veremos um Jesus voltado para um entendimento sapiencial e natildeo

apocaliacuteptico ou seja Jesus teria escolhido um modelo de dominaccedilatildeo monaacuterquica

baseado num ldquoreino dos destituiacutedos e Jootildees ningueacutem vigente no aqui e agora um

reino realizado (por meios maacutegicos e materiais) natildeo apenas proclamadordquo Por outro

lado Freyne observa que o pensamento de Horsley sobre Jesus eacute bem diferente

dos de Crossan Jesus segundo Horsley teria sido um revolucionaacuterio ou seja

partindo desse ponto de vista ldquoo siacutembolo do reino de Deus tal como empregado por

Jesus significava a vitoacuteria de Deus sobre as forccedilas do mal uma concepccedilatildeo que se

coadunava com as expectativas apocaliacutepticas judaicas padratildeordquo posiccedilatildeo essa que

segundo Freyne seria mais convincente (Freyne 2008 p 132)

Bruce Malina vecirc o grupo de Jesus como uma religiatildeo politicamente inserida

onde o reino e o governo de Deus satildeo iminentes ou seja seus disciacutepulos devem

orar para que o reino de Deus venha para o julgamento e recompensa e isso

segundo Malina era compreendido sob o ponto de vista poliacutetico por uma pessoa do

primeiro seacuteculo A morte de Jesus natildeo foi o fim desse reinado pois ldquoos seguidores

de Jesus acreditavam que Deus o ressuscitou dos mortos de maneira que o proacuteprio

Jesus em breve surgiria como vice regente do Deus de Israel como Messias de

Israel com poderrdquo (Malina 2004 p 99) Malina conclui esse pensamento afirmando

que

78

o reino de Deus veio para tomar a forma de uma teocracia representativa e pessoal Nestas dimensotildees ele teria tido a mesma estrutura da religiatildeo poliacutetica de Israel durante o tempo de Jesus A questatildeo aberta era Quem seria o agente o substituto concreto para o Deus de Israel Os membros do grupo de Jesus tinham pouca duacutevida de que esse agente fosse Jesus o Messias de Israel Mas Deus tinha em mente mais natildeo apenas Israel (Malina 2004 p 164)

Portanto pertencer ao grupo de Jesus era mais do que esperar por um reino

poliacutetico era ter um novo modo de vida ia aleacutem das fronteiras de Israel natildeo significa

apenas a libertaccedilatildeo de um jugo poliacutetico mas a libertaccedilatildeo do ser humano como um

todo

79

5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS

E SEUS DESDOBRAMENTOS

Conforme vimos no capiacutetulo anterior Jesus apesar de ser visto por alguns

pesquisadores com caracteriacutesticas proacuteximas do grupo dos fariseus natildeo fez parte de

nenhum grupo revolucionaacuterio Contudo isso natildeo significa que ele fosse indiferente

aos problemas sociais que afligiam toda a Palestina Em contraste com os

poderosos da eacutepoca que exploravam os pobres atraveacutes da cobranccedila desmedida de

tributos Jesus oferece-se como um descanso aos cansados e oprimidos porque

somente ele tem um jugo suave e um fardo leve (cf Mt 11 28-30) Esse descanso

soacute ele pode oferecer porque recebeu do Pai a quem ele conhece e por quem

tambeacutem eacute conhecido (cf Mt 1127) Abba eacute a palavra por excelecircncia no quesito

intimidade entre Jesus e Pai dos Ceacuteus conforme a tese defendida por J Jeremias

51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA

Jesus conforme a tradiccedilatildeo cristatilde e os vaacuterios testemunhos das fontes (os

Evangelhos) possui o testemunho intriacutenseco de que eacute o Filho de Deus (cf Mt 1433

Mc 11 311 1539 Lc 2227 Jo 134 1127) O Evangelho de Marcos de uma

forma clara jaacute nos mostra a importacircncia desse pensamento teoloacutegico nas seguintes

palavras ldquoPrinciacutepio do Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deusrdquo (Mc 11) Justino

de Roma tambeacutem prima pela exaltaccedilatildeo de Jesus como o Filho de Deus dizendo que

ldquo[] com razatildeo honramos tambeacutem a Jesus Cristo que foi nosso Mestre nessas

coisas e para isto nasceu o mesmo que foi crucificado sob Pocircncio Pilatos

procurador na Judeia no tempo de Tibeacuterio Ceacutesar Aprendemos que ele eacute o Filho

proacuteprio do Deus verdadeirordquo (Justino 1995 p28) ou ainda conforme a confissatildeo

de feacute de Calcedocircnia (451 dC) ldquoJesus eacute verdadeiramente homem e

verdadeiramente Deusrdquo ( Swidler 1993 p30)

Os Evangelhos da infacircncia (Mateus e Lucas) de uma forma independente

narram alguns acontecimentos relacionados ao nascimento e agrave infacircncia de Jesus

Segundo Duquoc as narrativas do nascimento de Jesus relatadas por Mateus e

Lucas se inserem na tradiccedilatildeo do Antigo Testamento como vemos no nascimento de

Isaac (Gn 21 1-7) de Jacoacute (Gn 25 25-26) de Moiseacutes (Ex 2 1-10) de Sansatildeo (Jz

80

13 1-25) e o de Samuel (1 Sam 1 19-26) As caracteriacutesticas de tais narrativas satildeo

ldquodiscernir na concepccedilatildeo ou no nascimento os sinais antecipadores de um destino

particularmente abenccediloado por Deusrdquo Para Duquoc contudo tratar as narrativas de

Mateus e Lucas como Evangelhos da Infacircncia natildeo eacute a forma mais correta e pode

induzir em erro mesmo que a tradiccedilatildeo assim os mencione Nos textos de Mateus e

Lucas observamos que ali se trata mais do nascimento do que a infacircncia de Jesus

conforme vemos resumido no quadro comparativo abaixo (Duquoc 1992 p22)

Mateus Lucas

Genealogia de Cristo 1 1-17 Anuacutencio da concepccedilatildeo virginal a Joseacute 1 18-24 Nascimento do Salvador 125 Visita dos magos 2 1-12 Fuga para o Egito e massacre dos inocentes 2 13-18 Volta a Nazareacute 2 19-23

Anuacutencio do nascimento de Joatildeo Batista 1 5-25 Anuacutencio a Maria 1 26-28 Visitaccedilatildeo 1 39-56 Nascimento do Salvador 2 1-14 Visita dos Pastores 2 15-20 Circuncisatildeo 2 21 Apresentaccedilatildeo no Templo 2 22-38 Volta a Nazareacute 2 39-40 Reencontro no Templo 2 41-52

Os relatos da infacircncia ou do nascimento conforme menciona Duquoc natildeo

fazem parte do querigma (Keacuterygma) mas estatildeo associados mais ao Antigo

Testamento como vimos acima Contudo eles foram inseridos nos Evangelhos e

devem ser lidos a partir da perspectiva dos evangelistas Eles natildeo satisfazem a

curiosidade como fazem os Apoacutecrifos visto que eles estatildeo relacionados mais agrave feacute da

Igreja primitiva do que aos acontecimentos histoacutericos ldquoMateus e Lucas iluminaram

retrospectivamente as recordaccedilotildees atraveacutes da catequese evangeacutelica e os eventos

decisivos da Paacutescoa Natildeo narram uma histoacuteria Propotildeem apenas uma doutrina em

forma de histoacuteria Seria errocircneo querer iluminar a catequese por meio de narrativas

de nascimento O processo foi inversordquo (Duquoc 1992 p24-25)

81

Observamos que as narrativas da infacircncia levantam questotildees sobre a

autenticidade histoacuterica dos relatos dos evangelistas Para Fitzmyer nas narrativas

da infacircncia eacute difiacutecil constatar o realmente histoacuterico poreacutem eacute inegaacutevel o fato de que

exista um nuacutecleo histoacuterico nesses acontecimentos os quais serviram como base

para que os evangelistas numa tradiccedilatildeo posterior pudessem responder perguntas

sobre ldquoQuem eacute elerdquo ou ldquoDe onde ele veiordquo39 (Fitzmyer 1997 p34-35)

Apesar das diferenccedilas e da independecircncia dos evangelhos (Mateus e Lucas)

Fitzmyer observa que haacute pelo menos doze pontos nas narrativas da infacircncia que satildeo

comuns ou pelo menos haacute concoacuterdia entre os dois evangelistas a respeito do

nascimento do menino Jesus os quais seratildeo transcritos abaixo

1) O nascimento de Jesus relaciona-se com o reinado de Herodes Magno

(Mt 21 Lc 15)

2) Maria sua futura matildee eacute uma virgem noiva de Joseacute mas eles ainda

natildeo coabitaram (Mt 118 Lc 12734 25)

3) Joseacute eacute da casa de Davi (Mt 1 1620 Lc 127 24)

4) Um anjo do ceacuteu anuncia a concepccedilatildeo e o nascimento futuros de Jesus

(Mt1 20-21 Lc 1 28-30)

5) O proacuteprio Jesus eacute reconhecido como filho de Davi (Mt 11 Lc 132)

6) Sua concepccedilatildeo aconteceraacute por intermeacutedio do Espiacuterito santo (Mt 1

1820 Lc 1 35)

7) Joseacute natildeo se envolve na concepccedilatildeo (Mt1 18-25 Lc 134)

8) O nome ldquoJesusrdquo eacute imposto antes de seu nascimento (Mt 1 21 Lc

131)

9) O ceacuteu identifica Jesus como ldquoSalvadorrdquo (Mt 121 Lc 211)

10) Jesus nasce depois que Joseacute e Maria vatildeo viver juntos (Mt 1 24-25 Lc

2 4-7)

11) Jesus nasce em Beleacutem (Mt 21 Lc 2 4-7)

12) Jesus se fixa com Maria e Joseacute em Nazareacute na Galileia (Mt 2 22-23

Lc 239-51)

39

Segundo Fitzmyer as narrativas da infacircncia natildeo se originaram de uma tradiccedilatildeo mais primitiva da Igreja visto que nem Marcos (que eacute considerado o primeiro Evangelho a ser escrito) e nem Joatildeo (que eacute reconhecido como sendo de uma tradiccedilatildeo igualmente primitiva a de Marcos mas independente dos Sinoacuteticos) natildeo conteacutem tais relatos mas inicia-se com o Verbo que se fez carne (1 1-18) ou seja com o Verbo divino e preexistente

82

Nos primoacuterdios da Igreja a questatildeo da divindade e humanidade de Cristo era

o centro de muitas controveacutersias teoloacutegicas que partiam de vertentes judaicas ou

entatildeo de certos movimentos cristatildeos considerados como hereges Face agraves muitas

divergecircncias a respeito do Cristo a Igreja tomou frente a tais controveacutersias e pocircs-se

a refutar as heresias com toda a forccedila possiacutevel Correntes judaizantes e gnoacutesticas

que incansavelmente procuravam por todos os meios possiacuteveis proclamar que Jesus

era apenas um homem que morreu pregado na cruz ou entatildeo um divino que

parecia ser humano procuravam a todo custo abalar a feacute daqueles que foram

alcanccedilados pela feacute cristatilde Os Evangelhos e todo o Novo Testamento foram escritos

para fundamentar a feacute dos primeiros cristatildeos em Jesus Cristo Mediante a tantas

heresias que foram surgindo na Igreja tentando negar a divindade de Jesus os

cristatildeos reagiram com veemecircncia escrevendo muitas histoacuterias sobre Jesus como

forma de demonstrar que desde menino o filho de Joseacute e Maria era detentor de

muitos prodiacutegios nunca antes realizados em Israel nem mesmo pelos grandes

profetas do Antigo Testamento

Estas narrativas foram redigidas e fazem parte do que posteriormente ficou

conhecido como os ldquoEvangelhos Apoacutecrifosrdquo Os Apoacutecrifos satildeo portanto a forma

mais clara que a Igreja usou para se opor as teorias que negavam a divindade de

Jesus Na busca de por em evidecircncia a divindade do Mestre os Apoacutecrifos

apresentam Jesus quase sempre como um menino ou um homem prodigioso capaz

de realizar milagres tatildeo grandes que chegam a ser absurdo

A tradiccedilatildeo cristatilde ainda no intuito de preservar a doutrina da filiaccedilatildeo divina de

Jesus procurou de uma forma cuidadosa defender tal doutrina em seus vaacuterios

credos ao longo da histoacuteria do cristianismo Os mais antigos e conhecidos credos

satildeo Credo Apostoacutelico (Seacuteculo III e IV) Credo de Niceacuteia (325 AD - revisado em

Constantinopla em 381 AD) Credo de Calcedocircnia (451 AD) e o Credo de Atanaacutesio

(seacuteculos IV e V) A relaccedilatildeo de Jesus Cristo com Deus Pai e sua funccedilatildeo na

Santiacutessima Trindade satildeo mencionadas em todas as confissotildees acima citadas

(Grudem 1999 p996) Jaacute no primeiro credo (Credo Apostoacutelico) observamos a

importacircncia de Jesus como o Filho de Deus encarnado

Creio em Deus Pai Todo Poderoso Criador do ceacuteu e da terra E em Jesus Cristo seu Filho unigecircnito nosso Senhor concebido pelo Espiacuterito Santo e nascido da Virgem Maria que padeceu sob Pocircncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos

83

que subiu ao ceacuteu e assentou-se agrave direita do Pai Todo-Poderoso de onde haacute de vir para julgar os vivos e os mortos Creio no Espiacuterito Santo na santa igreja catoacutelica na comunhatildeo dos santos na remissatildeo de pecados na ressurreiccedilatildeo da carne e na vida eterna Ameacutem (Grudem 1999 p996)

O credo segundo Thomas P Rausch (2006 p16) ldquoeacute uma declaraccedilatildeo oficial

da crenccedila da Igreja e tem poder normativo para a feacute da Igrejardquo Rausch observa que

o entatildeo cardeal Ratzinger escolheu o Credo Apostoacutelico como base para a sua

abordagem do livro Introduccedilatildeo ao Cristianismo De acordo com Rausch nessa obra

o cardeal faz uma mediaccedilatildeo entre os extremos relacionados agrave Cristologia da feacute e o

Jesus da histoacuteria Por um lado haacute os que procuram reduzir a Cristologia agrave histoacuteria

enquanto que por outro lado haacute os que buscam o abandono da histoacuteria

considerando-a como algo irrelevante para a feacute40 Abaixo reproduzimos um quadro

resumido dos principais conciacutelios Gerais da igreja onde foram formulados os

principais credos da Igreja (cf Rausch 2006 p261)

Conciacutelio Principais Figuras Temas

Niceia (325) Aacuterio (que natildeo estava presente) ldquohouve um tempo em que ele natildeo erardquo 381 bispos presentes

Rejeitou a opiniatildeo de Aacuterio de que o logos havia sido criado Cristo eacute homoousion41 ao Pai

Constantinopla I (381) Influecircncia Capadoacutecia Afirma a feacute de Niceacuteia Um novo credo afirma a divindade do Espiacuterito Nosso credo eacute uma combinaccedilatildeo de ambos

Eacutefeso I (431) Nestoacuterio conjunccedilatildeo de naturezas Maria eacute christokos42 Joatildeo de

Condena Nestoacuterio Maria eacute theotokos mas Cirilo e Joatildeo de Antioquia e excomungam

40

Nesse tratado escrito no final da deacutecada de 60 Ratzinger procura encontrar um meio termo entre Harnack que purifica a feacute da doutrina e do credo colocando a reconstruccedilatildeo do Jesus histoacuterico como fator determinante para a Cristologia com Bultmann para quem somente a feacute em Cristo tem importacircncia para o cristatildeo (cf Rausch 2006 p16) Vale ressaltar aqui que para o entatildeo cardeal Ratzinger ldquosegundo a feacute da Igreja a filiaccedilatildeo divina de Jesus natildeo se deve ao fato de Jesus natildeo ter um pai humano a doutrina do ser divino de Jesus natildeo sofreria nenhuma restriccedilatildeo se Jesus fosse o fruto de um casamento humano normal porque a filiaccedilatildeo divina que eacute objeto da feacute cristatilde natildeo eacute um fato bioloacutegico e sim ontoloacutegico natildeo eacute um evento no tempo e sim na eternidade de Deus ()rdquo Se considerarmos este texto como a base do pensamento de Ratzinger percebemos que a teologia de Bultmann teve para ele na eacutepoca um peso maior (cf Ratzinger 2006 p 204) 41

Homoi ser ldquosemelhanterdquo semelhante quanto ao ser (cf Rausch 2006 p 249) 42

Significa ldquoPortadora do Cristordquo Matildee de Cristo (cf Rausch 2006 p 249)

84

Conciacutelio Principais Figuras Temas

Antioquia Cirilo de Alexandria uniatildeo hipostaacutetica Maria eacute theotokos43

um ao outro

Eacutefeso II (449) (ldquoConciacutelio do Ladratildeordquo)

Flaviano de Constantinopla ldquoa partir de duas naturezas numa soacute hipoacutestase44 e numa soacute pessoardquo (foacutermula da uniatildeo) Dioacutescoro de Alexandria

Dioacutescoro domina Eacute rejeitada a foacutermula de Flaviano (ldquoa partir de duas naturezas uma soacute pessoardquo) O proacuteprio conciacutelio poreacutem eacute rejeitado

Calcedocircnia (451) 600 bispos Tomus do papa Leatildeo escrito para apoiar Flaviano Legados papais insistem numa nova profissatildeo de feacute

Condena Dioacutescoro aceita o Tomus de Leatildeo Prega duas naturezas numa uacutenica pessoa e numa uacutenica hipoacutestase verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem

Observamos que para a Igreja dos primeiros seacuteculos as verdades teoloacutegicas

a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus com o Pai eram de suma importacircncia para a

formaccedilatildeo e crescimento das comunidades cristatildes Por isso defenderam com

coragem e destemor o que acreditavam ser a essecircncia do Evangelho de Jesus

Cristo No entanto sempre houve aqueles que lutaram de todas as maneiras para

por em descreacutedito tanto o Evangelho como a pessoa de Jesus de Nazareacute Os pais

da Igreja tiveram que lutar contra as heresias e contra os hereges que procuraram

desmoralizar o mais importante homem do vilarejo de Nazareacute No entanto conforme

observa Rausch haacute problemas metodoloacutegicos nos Credos da Igreja Eles sempre

pressupotildeem uma Cristologia de ldquocima para baixordquo por isso a Cristologia necessita

de um fundamento criacutetico Para Rausch a Cristologia precisa ser estabelecida de

ldquobaixo para cimardquo ou seja ela precisa estar baseada nos atos e feitos do Jesus

histoacuterico para que natildeo seja acusada de ser uma feacute helenizada onde o carpinteiro

43

Significa ldquoPortadora de Deusrdquo Matildee de Deus (cf Rausch 2006 p 249) 44

Aquilo que estaacute sob ou daacute suporte a um objeto realizaccedilatildeo um ser concreto que suporta as diversas qualidades ou aparecircncias de uma coisa Ser subsistente realidade que existe por si mesma substacircncia (Exemplo medieval- ldquotransubstanciaccedilatildeordquo (cf Rausch 2006 p 249)

85

de Nazareacute teria sido transformado em um ldquosalvador divinizadordquo conforme o conceito

grego do divino (Rausch 2006 p 17)

52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA

Se para termos sucesso no estudo da Cristologia eacute necessaacuterio partirmos de

baixo para cima ou seja nas palavras de Rogers Haight ldquoseria difiacutecil imaginar

algueacutem interessado pela existecircncia humana de uma perspectiva religiosa que natildeo se

sentisse motivado a saber mais sobre Jesusrdquo uma vez que ldquoa Cristologia comeccedilou

com Jesus de Nazareacute e deve comeccedilar com Jesus hoje em diardquo (Rogers 2003

p75) precisamos analisar as fontes e teorias sobre Jesus desde as canocircnicas ateacute

as mais rejeitadas pela tradiccedilatildeo cristatilde Jaacute observamos acima que a Igreja dos

primeiros seacuteculos priorizou por razotildees apologeacuteticas em propagar e defender a

divindade de Cristo e por outro lado natildeo houve um interesse igual quando o tema

era a humanidade de Jesus No entanto com o passar dos seacuteculos surgiram

inuacutemeras questotildees a respeito do homem chamado Jesus de Nazareacute Para responder

tais questotildees ou pelo menos investigaacute-las faz-se necessaacuterio o estudo da Cristologia

partindo do homem Jesus ao Cristo da feacute

Edward Schillebeeckx nos diz que para uma boa reflexatildeo sobre a Trindade

faz-se necessaacuterio uma interpretaccedilatildeo cristoloacutegica de Jesus ou seja ldquona sua

humanidade Jesus eacute tatildeo intimamente do Pai que eacute exatamente nisso que ele eacute

Filho de Deusrdquo Podemos ver isso nas palavras de Schillebeeckx abaixo

[hellip] natildeo devemos compreender Jesus a partir da Trindade mas vice-versa eacute somente a partir de Jesus que a plenitude da unidade divina (natildeo tanto unitas trinitaris mas trinitas unitaris) se torna acessiacutevel para noacutes de alguma forma somente com base na vida morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus sabemos que a Trindade eacute o modo divino da absoluta unidade da essecircncia divina Somente a partir de Jesus de Nazareacute de sua experiecircncia com o ldquoAbbardquo -fonte e alma de sua mensagem atuaccedilatildeo e morte ndash e de sua ressurreiccedilatildeo eacute que algo cheio de sentido pode ser dito sobre o Pai Filho e Espiacuterito Santo Pois na vivecircncia de Jesus com seu ldquoAbbardquo o importante eacute que esse ldquoestar voltado para o Pairdquo e ldquoprecedidordquo com a absoluta prioridade e internamente sustentado pelo entregar-se do proacuteprio Pai a Jesus de forma uacutenica Ora a mais antiga tradiccedilatildeo cristatilde chama de ldquoPalavraVerbordquo a essa autocomunicacatildeo de Pai base e fonte da proacutepria experiecircncia de Jesus com o ldquoAbbardquo Isso implica que a palavra de Deus eacute a base total de tudo o que apareceu em Jesus ( Schillebeeckx 2008 p663)

86

A Cristologia portanto deve comeccedilar a partir do Jesus humano sem que se

negligencie o Cristo da feacute Jesus foi o nome que mudou a histoacuteria da humanidade

como podemos dizer parafraseando Haight que Jesus de Nazareacute eacute praticamente

um consenso universal na histoacuteria como sendo um judeu que viveu nos primoacuterdios

do seacuteculo I e que posteriormente veio a ser reconhecido como o Messias ou o

Cristo Conforme Haight podemos afirmar ainda que ldquoJesus foi uma figura

concreta na histoacuteria humanardquo e por isso essa histoacuteria natildeo pode ser relegada ao

esquecimento (Haight 2003 p29)

Geza Vermes compocircs um resumo histoacuterico da vida de Jesus a partir do

Evangelho de Marcos sem as narrativas da infacircncia acima esboccediladas (em 51)

Vermes chama essas informaccedilotildees peculiares de ldquoo evangelho fundamental ndash

representado por Marcos (cf Vermes 1990 p 20) que conteacutem as seguintes

informaccedilotildees

Nome Jesus

Nome do Pai Joseacute

Nome da matildee Maria

Lugar do nascimento natildeo mencionado

Data do nascimento natildeo mencionada

Domiciacutelio Nazareacute na Galileia

Estado Civil natildeo mencionado45

Profissatildeo carpinteiro (τέκτων ) mas tambeacutem exorcista e pregador itinerante

O certificado de oacutebito pode ser preenchido de maneira um pouco mais

completa

Lugar do oacutebito Jerusaleacutem

Data da morte ldquoSob Pocircncio Pilatosrdquo entre os anos 26 e 36 dC

Causa da morte crucificaccedilatildeo ordenada pelo governador romano

Lugar do sepultamento Jerusaleacutem

45

Vermes contudo considera que Jesus era celibataacuterio uma vez que nunca haacute menccedilatildeo de qualquer esposa no decorrer do seu ministeacuterio (cf Vermes 1990 p 21)

87

Para falar do Jesus humano eacute preciso contextualizaacute-lo ao tempo e ao espaccedilo

ou seja natildeo podemos menosprezar o periacuteodo em que Jesus viveu entre os homens

Sabendo que a Palestina dos dias de Jesus estava politicamente sob o impeacuterio

romano e religiosamente dominada pelo extremismo e exclusivismo religioso natildeo eacute

difiacutecil de imaginar o quanto Jesus e sua famiacutelia devem ter sofrido preconceito numa

sociedade patriarcal em meio ao caos poliacutetico e religioso

Bruce Chilton examina a questatildeo do Jesus histoacuterico desde os dias em que

Jesus estava com os disciacutepulos ateacute um periacuteodo poacutes-apostoacutelico Segundo ele sempre

houve aqueles que questionaram a filiaccedilatildeo divina de Cristo assim como colocaram

em duacutevida a sua filiaccedilatildeo terrena Vermes um judeu com formaccedilatildeo cristatilde considera

que falar das histoacuterias da infacircncia de Jesus de uma forma ou de outra acabam por

introduzir ldquoum elemento de duacutevida acerca da paternidaderdquo (cf Vermes 1990 p21)

Como foi dito acima eacute muito provaacutevel que Jesus e seus pais tenham sofrido algum

preconceito em relaccedilatildeo agrave paternidade de Joseacute em relaccedilatildeo ao seu filho Jesus

Segundo Chilton existem trecircs teorias a respeito do nascimento de Jesus A

primeira delas eacute a que Jesus foi concebido por obra do Espiacuterito Santo conforme

descrito nos Evangelhos (Mt 118-25 Lc 134-35) A segunda teoria tem a pretensatildeo

de especular que Jesus era filho bioloacutegico de Joseacute tal como se pode compreender

da afirmaccedilatildeo de Filipe achamos a Jesus de Nazareacute ldquofilho de Joseacuterdquo (Jo 145) A

terceira teoria eacute que Jesus era filho de fornicaccedilatildeo conforme uma das interpretaccedilotildees

do evangelho de Joatildeo 841 ldquoVoacutes fazeis as obras de vosso pai Disseram-lhe entatildeo

natildeo nascemos da prostituiccedilatildeo temos soacute um pai Deusrdquo (Charlesworth 2006

p87)46

46

Juan Mateos interpreta o texto de Jo 841 partindo do princiacutepio que Jesus acusa os judeus que nele ldquohaviam cridordquo (o crer aqui pode ser obra do redator uma vez que um pouco agrave frente os mesmos querem matar Jesus cf Brown 1975 p80) de cometerem o pecado da idolatria uma vez que segundo alguns rabinos ser filho de Abraatildeo significava praticar a benevolecircncia a modeacutestia e a humildade Os que tais virtudes natildeo praticavam eram considerados como servo de um outro deus totalmente diferente do Deus de Abraatildeo por isso chamados de idoacutelatras Os judeus entenderam atraveacutes da interpretaccedilatildeo dos profetas que ao serem chamados de idoacutelatras era o mesmo que ser chamado de filhos da prostituiccedilatildeordquo algo que eles negam teoricamente mas como seus pais idoacutelatras que mataram os profetas eles da mesma forma querem matar Jesus que vem da parte de Deus (cf J Mateos 1989 p392-393) Segundo Brown ser descendente de Abraatildeo fisicamente natildeo tem nenhum meacuterito quando esse suposto filho natildeo age como agiu seu pai aqui no caso ldquoAbraatildeo que Creu quando Deus lhe falourdquo eles por outro lado natildeo creem no enviado de Deus (Jesus) por isso satildeo filhos ilegiacutetimos (cf Brown 1975 p80-81)

88

Diante desse contexto Chilton levanta uma questatildeo polecircmica Jesus pode ter

sido considerado um mamzer Algumas condiccedilotildees poderiam ser determinantes para

expor um indiviacuteduo na condiccedilatildeo de mamzer A principal caracteriacutestica que definia

uma pessoa nessa condiccedilatildeo era se tal indiviacuteduo era fruto de uma uniatildeo proibida e

consequentemente um filho proibido de acordo com a Toraacute ldquoNenhum bastardo

entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar

na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo (Dt 233) Conforme a Mishnah47

poderia ser considerado um mamzer aquele filho cuja paternidade natildeo era

conhecida e portanto natildeo havia evidecircncias que tal uniatildeo fosse permitida de acordo

com a Lei Por outro lado na visatildeo do Talmude Babilocircnico48 bastava ser filho de um

natildeo israelita para que o indiviacuteduo fosse considerado um mamzer

A legitimidade da paternidade bioloacutegica de Jesus foi assunto controverso

como indicado mais acima jaacute no segundo seacuteculo da era Cristatilde Alguns autores

como John P Meier (1991 p223) e Bruce Chilton (in Charlesworth 2006 p 85)

mencionam a acusaccedilatildeo feita por Celso jaacute no ano de 178 dC que Jesus era filho de

Maria com um soldado Romano chamado Pantera49

A fonte desta histoacuteria de acordo com Dalman (2002 p152-153) vem do

Talmude Babilocircnico O nome de um certo Jesus eacute comumente mencionado no

Talmude e na literatura talmuacutedica pelas expressotildees Filho de Stada (Satda) e Filho

de Pandera (Pantera) Segundo Dalman a traduccedilatildeo literal do texto talmuacutedico de

Shabat 104b e Sanhedrin 67a tem a seguinte forma

O filho de Stada era o filho de Pandera O Rabi Chisda disse O marido era

Stada o amante Pandera (Outro disse) o marido era Paphos ben Yehudah

Stada era sua matildee (ou) sua matildee era Mirian a cabeleireira de mulheres

como eles diriam em Pumbeditha Stath da (ie Ela era infiel) para o marido

47

A palavra Mishnah vem de Shanah ldquorepetirrdquo significa ldquorepeticcedilatildeordquo ou ldquoestudo atraveacutes da repeticcedilatildeordquo Publicada por volta do ano 200 dC pelo patriarca judeu Judas I a Mishnah eacute uma coletacircnea de leis que se impocircs como coacutedigo oficial do judaiacutesmo Ela resulta de uma compilaccedilatildeo seletiva feita no decurso do seacuteculo II da era cristatilde ndash de tradiccedilotildees normativas ambientes (halakot) Ela estaacute redigida em hebraico (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

48 ldquoTalmudrdquo significa ensinamento estudo Haacute dois Talmuds 1) o Talmud de Jerusaleacutem terminado

pelo fim do seacuteculo IV na Palestina 2) o Talmud da Babilocircnia composto no seacuteculo V em Sura Mesmo na Palestina o Talmud da Babilocircnia o mais completo suplantou o Talmud de Jerusaleacutem quando se fala do ldquoTalmudrdquo sem especificar qual designa-se exclusivamente o da Babilocircnia (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

49 Zuurmond acha que provavelmente Pantera (ou Pandera) ldquoseja uma deformaccedilatildeo acintosa de

parthenos= virgem Deformar de propoacutesito o nome de um inimigo era (e eacute) um uso bastante comum (cf Zuurmond 1998 p77)

89

No entanto uma traduccedilatildeo mais livre do mesmo texto talmuacutedico teria a

seguinte forma segundo Dalman

Ele natildeo era filho de estada mas filho de Pandera Rab Chisda afirma

que o marido da matildee de Jesus era Stada mas o amante dela era Pandera

Outro (diz) que o marido dela era certamente Paphos ben Yeshua que ao

contraacuterio Stada era a matildee dele (Jesus) de acordo com outros sua matildee era

Mirian (Maria em hebraico) a cabeleireira das mulheres A treacuteplica eacute e eu

concordo simplesmente Stada era o apelido dela (Maria) como dito no (ou

na) Pumbeditha Stath da (que significa ldquoela provou ser infielrdquo) ao marido dela

Provavelmente a partir da leitura desses textos eacute que Celso tomou o nome

deste Jesus citado no Talmude e relacionou com o Jesus dos Evangelhos

considerando que ambos os personagens se tratavam da mesma pessoa Desta

forma conforme mencionado por Oriacutegenes Celso acusa Jesus de aleacutem de ter

inventado seu nascimento ter nascido numa cidadezinha da Judeia ser filho de uma

pobre fiandeira ter adquirido poderes maacutegicos no Egito ainda usou esses poderes

para proclamar-se Deus (Oriacutegenes 2004 p68) Embora esse relato tenha sido

retomado tambeacutem por pensadores contemporacircneos como mais um argumento para

contestar a legitimidade do nascimento de Jesus conforme relatado nos Evangelhos

Chilton no entanto considera que esse relato eacute infundado e foi apenas mais uma

ficccedilatildeo que circulou nos primeiros seacuteculos da era cristatilde

Nas comunidades judaicas dos dias de Jesus se uma mulher estivesse

graacutevida antes da consumaccedilatildeo plena do matrimocircnio ela precisaria pela tradiccedilatildeo

apresentar agrave comunidade em que vivia provas de quem era o pai da crianccedila que

estava sendo gerado em seu ventre A casta do filho estava condicionada a quem

era o seu pai ou seja se o filho por ela gerado fosse fruto de uma uniatildeo proibida

obviamente ele seria excluiacutedo da congregaccedilatildeo de Israel conforme estabelecido na

Toraacute especificamente em Deuteronocircmio 233 onde lemos ldquoNenhum bastardo

entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar

na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo

Vale ainda ressaltar que quando um contrato de casamento era firmado a

Mishnah dava o direito ao contratante de anular o mesmo sem uma justificativa

formal caso ele se sentisse injusticcedilado Se a mulher estivesse graacutevida na ocasiatildeo

do rompimento do contrato esse ato do contratante eximia a mulher da acusaccedilatildeo de

90

adulteacuterio e dessa forma o filho natildeo poderia ser considerado formalmente um

mamzer Tal situaccedilatildeo poderia dar margem a um problema de interpretaccedilatildeo da Lei a

saber a mulher uma vez abandonada poderia usar apenas a palavra acerca da

paternidade do fruto de seu ventre Essa palavra seria aceita como verdade tal

como pensavam os rabinos Gamaliel e Eliezer ou rejeitada se natildeo houvesse uma

prova concreta no pensamento do rabino Joshua (Charlesworth 2006 p87)

No primeiro caso a mulher poderia alegar que um determinado cidadatildeo da

sua comunidade era o pai da crianccedila que ela estava esperando Se a palavra dessa

mulher fosse aceita como verdadeira entatildeo pela Toraacute esse homem seria obrigado

a casar com ela e natildeo poderia mandaacute-la embora por toda a vida conforme lemos

em Deuteronocircmio 22 28-29

Se um homem encontra uma jovem virgem que natildeo estaacute prometida e a agarra e se deita com ela e eacute pego em flagrante o homem que se deitou com ela daraacute ao pai da jovem cinquenta ciclos de prata e ela ficaraacute sendo a sua mulher uma vez que abusou dela Ele natildeo poderaacute mandaacute-la embora durante toda a sua vida

Essa interpretaccedilatildeo daria margem para que as mulheres mesmo que

concebessem um filho fruto de uma uniatildeo proibida mas que indicassem um

determinado homem como sendo o pai da crianccedila pudessem tornar o fruto do

ventre em um legiacutetimo judeu aos olhos da comunidade tendo em vista que a mulher

alcanccedilou ecircxito em sua argumentaccedilatildeo o que segundo essa visatildeo natildeo seria difiacutecil

conseguir (Charlesworth 2006 p 87)

Partindo da premissa que a relaccedilatildeo sexual entre pessoas que jaacute haviam

estabelecido o contrato de casamento era toleraacutevel na eacutepoca uma possiacutevel relaccedilatildeo

sexual entre Joseacute e Maria natildeo seria proibida Mas o fato de Joseacute morar em Beleacutem e

Maria em Nazareacute exclui as possibilidades do filho ser dele (Chilton 2002 p13)

Dessa forma Jesus poderia ser considerado um mamzer jaacute que a sua concepccedilatildeo

ocorreu no periacuteodo entre o contrato de casamento e a coabitaccedilatildeo de Joseacute e Maria

Chilton observa que o pensamento de Joseacute em deixar Maria secretamente

conforme lemos em Mateus 119 seria portanto uma forma de natildeo acusar Maria de

fornicaccedilatildeo Natildeo obstante a maravilhosa forma como Joseacute assumiu a paternidade

pode natildeo ter sido suficiente para inibir as mais adversas situaccedilotildees pelas quais Jesus

91

tenha sido alvo desde a infacircncia ateacute a crucificaccedilatildeo proveniente de especulaccedilotildees

sobre a legitimidade de sua paternidade bioloacutegica

Observando as teorias propostas acima a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus

podemos pensar sobre os diferentes conceitos que seus contemporacircneos tinham a

respeito dele Ele era filho de Deus gerado pelo Espiacuterito Santo Ele era filho de Joseacute

ou de um pai desconhecido As palavras ldquoNatildeo nascemos da prostituiccedilatildeordquo (Jo 841)

poderiam ter sido usadas com ironia a fim de colocar em duacutevida sua reputaccedilatildeo em

relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees concernentes agrave paternidade bioloacutegica Por que ele foi

chamado de o ldquocarpinteiro o filho de Mariardquo (Mc 63) e natildeo filho de Joseacute e de Maria

entre os seus conterracircneos

Essas questotildees levantadas acima satildeo passiacuteveis de outras interpretaccedilotildees

quando olhamos o texto do Evangelho de Joatildeo a partir de uma cristologia alta50

Embora seja possiacutevel que os judeus tenham procurado debater com Jesus sobre

sua filiaccedilatildeo humana Jesus no entanto sempre usou tais debates para evidenciar

sua filiaccedilatildeo divina e enfatizar sua relaccedilatildeo com o Pai atraveacutes da palavra Abba que

para J Jeremias eacute a mensagem central do Novo Testamento

53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS

Jesus se relacionava com Deus de uma maneira peculiar a qual eacute evidente

nos evangelhos Segundo Pagola a experiecircncia de vida de Jesus eacute a partir de um

Deus Pai que para Jesus eacute aquele que cuida ateacute mesmo das criaturas fraacutegeis e

insignificantes aos olhos dos homens Esse Pai tambeacutem atende aos pobres e

necessitados traz a cura aos enfermos busca os perdidos enfim Deus Pai se torna

o centro de toda a mensagem e da proacutepria vida de Jesus de Nazareacute (Pagola 2010

p 380-381)

Nos Evangelhos a palavra Pai aparece nos laacutebios de Jesus mais de 170

vezes quando ele se dirige a Deus seja por interpelaccedilatildeo ou por designaccedilatildeo

Segundo J Jeremias eacute preciso distinguir a interpelaccedilatildeo da designaccedilatildeo de Deus

como Pai quando esse termo eacute proferido por Jesus nos evangelhos Em suas

50

A cristologia alta refere-se agrave crenccedila na preexistecircncia e na divindade de Jesus (cf

httpwwwcentroestudosanglicanoscombrbancodetextosbibliahermeneuticaresenhas_brown_julio_cesarpdf acesso em 23102011 as 1225 horas)

92

oraccedilotildees Jesus sempre fez uso da interpelaccedilatildeo Pai para invocar a Deus com

exceccedilatildeo do grito da cruz em Mc 1534 par Mt 2746 ldquoMeu Deus meu Deus por que

me abandonasterdquo interpelaccedilatildeo essa que jaacute estava prefixada pelo Sl 221 Aleacutem da

interpelaccedilatildeo eacute muito comum Jesus referir-se a Deus como ldquoo Pairdquo (ὁ πατὴρ) ldquomeu

Pairdquo (τοῦ πατρός μου) e ldquovosso Pairdquo (ὁ πατὴρ ὑμῶν ) (Jeremias 2005 p43)

De fato Jesus usou essas trecircs formas para designar Deus como Pai A

designaccedilatildeo ldquoo Pairdquo encontra-se em alguns textos dos evangelhos em Marcos (Mc

13 32 = Mt 24 36) em Mateus e Lucas juntos (Mt 11 27 = Lc 10 22) somente em

Lucas (Lc 9 26 1113) somente em Mateus (Mt 28 19) e em Joatildeo setenta e trecircs

vezes Sobre a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo encontramos em Marcos (Mc 11 25)

Mateus e Lucas juntos (Mt 5 48 = Lc 6 36 1230) somente em Lucas (Lc 12 32)

somente em Mateus (Mt 5 16 44 61 81526 7 11 10 20 29 18 14) e em Joatildeo

(Jo 8 42 20 17) Aleacutem disso o termo ldquomeu Pairdquo que se encontra em Marcos (Mc

838 = Mt 16 27) τοῦ πατρὸς αὐτοῦ [de seu Pai] mesmo que em referecircncia ao

Filho do Homem natildeo pode figurar sem reservas entre os testemunhos da foacutermula

Meu Pai) (Jeremias 2005 p43) E por fim conforme J Jeremias a expressatildeo

ldquomeu Pairdquo encontra-se nos seguintes textos dos Evangelhos Mateus e Lucas juntos

(Mt 11 27 ndash Lc 1022) somente em Lucas (Lc 249 22 29 24 49) somente em

Mateus (Mt 7 21 10 32-33 12 50 15 13 16 17 18 10 19 35 20 23 25 34 26

29 53 e em Joatildeo vinte e cinco vezes

Para J Jeremias haacute uma crescente tendecircncia em introduzir a designaccedilatildeo de

Deus como Pai nos evangelhos Excluindo as invocaccedilotildees de Pai por Jesus e

contando os paralelos sinoacuteticos J Jeremias observa que em Marcos aparece

apenas trecircs vezes jaacute em Mateus e Lucas juntos (coleccedilatildeo dos logias) aparece

quatro vezes enquanto que somente em Lucas eacute mencionado quatro vezes Os

ditos que satildeo proacuteprios de Mateus satildeo citados trinta e uma vezes A ecircnfase recai

sobre o Evangelho de Joatildeo escrito mais tarde onde a designaccedilatildeo de Deus como

Pai nas palavras de Jesus aparece cem vezes Segundo J Jeremias haacute uma

evidente progressatildeo do uso da palavra Pai usada por Jesus em Marcos na coleccedilatildeo

dos Logia e nos elementos proacuteprios de Lucas Analisando os textos dos Evangelhos

referentes ao uso da palavra Pai observa-se que todos enfatizam essa relaccedilatildeo

iacutentima de Jesus com o Pai do ceacuteu Desse modo ldquopode-se dizer que Jesus se servia

93

da palavra Pai para designar a Deus somente em certas circunstacircncias Em

Mateus acha-se uma progressatildeo sensiacutevel no uso do termo e em Joatildeo Pai quase

tornou-se sinocircnimo de Deusrdquo (Jeremias 1977 p26-27)

Francisco Reyes Archila nota a frequecircncia do uso da palavra Pai em Joatildeo

mesmo sendo este o Evangelho que ao mesmo tempo em que evidencia a

paternidade divina protagoniza tambeacutem a figura feminina no discipulado

especialmente de Maria Madalena51 Archila analisando essa progressatildeo do uso da

palavra Pai em Joatildeo nos laacutebios de Jesus como tambeacutem jaacute havia sido observada por

J Jeremias vecirc ainda uma tendecircncia maior em Mateus em registrar o termo Pai em

relaccedilatildeo a Deus do que em Marcos e Lucas onde o termo praticamente natildeo aparece

Referindo-se a Joatildeo Archila tambeacutem eacute de acordo que natildeo somente nos

Evangelhos mas tambeacutem nas cartas o termo Pai eacute usado com uma frequecircncia

muito alta Para Archila jaacute que em Mateus a frequecircncia natildeo eacute tatildeo alta e em Marcos

e Lucas ela praticamente natildeo aparece e nem nas cartas de Paulo se usa esse

termo referindo-se a Deus somente na introduccedilatildeo das cartas (Rm 17 1 Co 13

2Cor 13 2Cor 12 1131 Gl 1 1-3 Ef 11 520 Cl 1 2-3 1Ts 11 2Ts 11 1tm 12

2Tm 12 Tt 14 Fm3) Eacute de se suspeitar segundo esse autor52 de que Jesus tenha

realmente dirigido-se a Deus sempre como Pai o mais provaacutevel seria que com o

decorrer do tempo (jaacute que Joatildeo foi escrito posteriormente aos outros Evangelhos) a

Igreja primitiva tenha assumido progressivamente essa expressatildeo devido ao

ldquoespiacuterito patriarcal proacuteprio do ambiente cultural da eacutepocardquo (Archila 2007 p99)

Podemos ver sobre o relevante uso do termo Pai no Evangelho de Joatildeo no

resumo feito por Matthias Grenzer conforme exposto abaixo

1ndash O Pai ama o Filho porque este uacuteltimo daacute a sua vida (Jo 1017)

2- O Pai mostra ao Filho tudo o que ele mesmo faz (Jo 5 20)

51

Hamerton-Kelly esclarece que o fato de Jesus ter escolhido o siacutembolo de ldquopairdquo para referir-se a

Deus foi uma forma de reorganizar a forma de patriarcado da eacutepoca com a finalidade de tornar as pessoas livres das ldquogarras do patriarcadordquo Para Hamerton-Kelly longe de ser um siacutembolo sexista o pai era para Jesus uma arma escolhida para combater o que chamam de sexismo O termo ldquopairdquo tem sido interpretado fora de seu contexto apresentando um ldquodeusrdquo do sexo masculino que tem sido colocado primariamente como macho mas segundo esse autor a situaccedilatildeo poderia ser mudada ldquocomo temos tentado fazerrdquo (cf Hamerton-kelly 1979 p103) Roger Haight estaacute de acordo que Hamerton-Kelly na nota acima segue J Jeremias sobre a forma como Jesus fazia uso do termo ldquopairdquo que em seu contexto significa algo semelhante agrave ldquomatildeerdquo na sociedade moderna desenvolvida (cf Haight 2003 p 128)

52 Archila estaacute citando Lothar Coenen e outros (Diccionaacuterio teoloacutegico del Nuevo Testamento

Salamanca Siacutegueme vol 3 1983 p 244)

94

3- Ao permanecer no Filho o Pai realiza as suas obras (Jo 1410)

4- O Pai vivo enviou o filho e o filho vive atraveacutes do Pai (Jo 6 57)

5- O Filho fala o que o Pai lhe diz (Jo 12 49-50)

6- O Filho por si mesmo nada faz mas realiza soacute aquilo que vecirc o Pai fazer (Jo

519)

7- Com esse relacionamento muacutetuo de maior intensidade o Pai ama o filho (Jo

335 5 20 1017 159) e o Filho ama o Pai (Jo 1431)

8- O Filho permanece no amor do Pai (Jo 1510)

9- O Pai estaacute no Filho e o Filho estaacute no Pai (Jo 1038 1411 1721)

Esse profundo relacionamento do Filho com o Pai pode ser compartilhado com

o ser humano segundo Grenzer desde que o disciacutepulo reconheccedila o Filho no Pai (Jo

1417) pois aquele que conhece o Filho tambeacutem conhece o Pai (Jo 14 7-9)

ldquoAquele que ama o Filho observando os mandamentos dele seraacute amado pelo Pairdquo

(Jo 1421) Ou ao contraacuterio ldquoquem natildeo honra o Filho tambeacutem natildeo honra o Pai que

o enviou (Jo 523)rdquo Portanto a relaccedilatildeo de Jesus (o Filho) com Deus (o Pai) no

Evangelho de Joatildeo eacute de extrema relevacircncia para compreendermos a cristologia e

para aprendermos a perfeita forma de nos relacionarmos com o Pai celeste

(Grenzer 2009 p 184)

Archila (2007 p99) contabiliza que a expressatildeo Pai para nomear Deus no

Novo Testamento ocorre 245 vezes enquanto que a mesma palavra para designar o

pai bioloacutegico ocorre 157 vezes O motivo para tal ecircnfase para o uso dessa

expressatildeo referindo-se a Deus pode ser pela ldquoinfluecircncia da filosofia grega53 na

nomeaccedilatildeo de Deus como Pai Contudo segundo o mesmo autor o mais plausiacutevel

do ponto de vista histoacuterico eacute a possibilidade que Jesus realmente ldquotenha chamado a

Deus como meu pai ou nosso pai ou pai de vocecircs (Mt 69 2629 42 Lc 112)

Inclusive eacute mais provaacutevel que Jesus o tenha nomeado como Abba palavra usada

pelos filhos ao dirigir-se a seus pais e que equivale a papai (Archila 2007 p99-

53

ldquoA ideia da paternidade de Deus recebe uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica em Platatildeo e nos estoicos

Platatildeo na sua elaboraccedilatildeo cosmoloacutegica da ideia do pai ressalta o relacionamento criador de Deus o pai universal para com o cosmos inteiro (Tim 28c 41a e frequentemente) Para os estoicos a autoridade de deus como Pai permeia o universo ele eacute criador pai e sustentador dos homensrdquo (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)

95

100) Essa forma de dirigir-se a Deus como Pai ou seja essa ideia de ser filho de

Deus contrapotildee-se a ideia presente na filosofia grega e tambeacutem da concepccedilatildeo

romana do Imperador como ldquofilho de deusrdquo Por outro lado ainda o Abba de Jesus

assimilado pela Igreja primitiva dava o direito aos considerados apaacutetridas sociais a

terem o direito de ter um pai o que provavelmente deve ter provocado implicaccedilotildees

agrave Igreja jaacute que essas ideias iam contra aos valores da sociedade patriarcal daquela

eacutepoca (Archila 2007 p103-104)

A imagem que Jesus apresentou do Pai do ceacuteu natildeo pode ser associada com o

que a patriarcalizaccedilatildeo que a cristandade ocidental fez de Deus Para Jesus

segundo Archila Deus natildeo eacute um pai superpoderoso dominante prepotente e

distante dos seus filhosrsquo ele eacute por natureza um pai proacuteximo iacutentimo terno e

misericordioso ou seja ele nos mostra a imagem de um Deus Pai bom e justo Em

outras palavras pode-se dizer que Jesus humanizou a imagem de Deus rompendo

com a imagem patriarcal54 androcecircntrica e exclusivista para apresentar a imagem

de Deus como o Pai bom que projeta nos seus filhos um modelo de relacionamento

fraterno entre homens mulheres crianccedilas com a proacutepria natureza e por fim com o

proacuteprio Deus (Archila 2007 p107)

Trabalhando ainda o Abba nos laacutebios de Jesus eacute relevante observarmos que

Santos Sabugal tambeacutem lista as invocaccedilotildees e designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo nos

laacutebios de Jesus como sendo empregado natildeo menos de 184 vezes (Marcos 4 Lucas

17 Mateus 44 Joatildeo 119 = 111 nos laacutebios de Jesus) assim o referido autor resume

o emprego das designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo por Jesus nos Evangelhos

Esse uso eacute portanto limitado em Marcos mas frequente em Lucas e sobre tudo em Mateus para culminar no evangelho de Joatildeo E as estatiacutesticas refletem de alguma forma em cada evangelho a concepccedilatildeo teoloacutegica da paternidade divina Marcos representa o estagio inicial desta concepccedilatildeo desenvolvida pela teologia de Lucas e significativamente ampliada por Mateus atingindo seu pico mais alto em Joatildeo o teoacutelogo por excelecircncia da paternidade de Deus (Sabugal 1985 p381)

54

Segundo Archila o patriarcado eacute definido como ldquouma relaccedilatildeo de poder entendido como dominaccedilatildeo e superioridade que o varatildeo exerce sobre mulheres e crianccedilasrdquo O modelo que o sistema patriarcal pretende representar eacute baseado numa forma hegemocircnica da dominaccedilatildeo do varatildeo sobre a mulher Esse modelo ldquoinclui papeis competecircncias haacutebitos valores formas de pensar e inclusive formas institucionais como leis e normasrdquo (Archila 2007 p 91-92)

96

Para Sabugal portanto nenhum judeu mesmo os mais piedosos invocou a

Deus como o Abba assim como fez Jesus constantemente Ele tinha a

autoconsciecircncia de ser o filho de Deus Essa forma de invocar a Deus tornou-se natildeo

apenas parte integrante e essencial das suas oraccedilotildees como tambeacutem parte

integrante do seu meacutetodo de ensino sobre a oraccedilatildeo (Sabugal 1985 p386)

Joseacute Antonio Pagola tambeacutem eacute de acordo que Jesus como todas as demais

crianccedilas da Galileia em suas primeiras palavras balbuciou os termos immaacute

(mamatildee) e abba (papai) quando se dirigia a Maria e Joseacute seus pais Contudo

segundo Pagola pode ser um exagero limitar o uso do abba apenas agraves criancinhas

visto que ateacute mesmo os adultos parece que usavam tal expressatildeo como forma de

respeito agrave figura paterna dentro de uma estrutura familiar patriarcal (Pagola 2010

p383)

Mas natildeo precisamos exagerar Parece que tambeacutem os adultos empregavam esta palavra expressando seu respeito e obediecircncia ao pai da famiacutelia patriarcal Chamar a Deus de Abbaacute indica carinho intimidade e proximidade mas tambeacutem respeito e submissatildeo Jesus havia conhecido em sua proacutepria casa a importacircncia do pai Joseacute era o centro de toda a famiacutelia Tudo gira em torno dele O pai cuida dos seus e os protege Se ele falta a famiacutelia corre o risco de desintegrar-se e desaparecer Eacute ele quem sustenta e assegura o futuro de todos Haacute dois traccedilos que caracterizam um bom pai O primeiro eacute a solicitude para com os filhos eacute ele quem deve assegurar-lhes o sustento necessaacuterio protegecirc-los e ajudaacute-los em tudo Ao mesmo tempo o pai eacute autoridade da famiacutelia ele daacute as ordens para assegurar o bem de todos Ele instrui os filhos ensina-lhes um oficio se necessaacuterio Os filhos por sua vez satildeo chamados a ser a alegria do pai (Pagola 2010 p 383-384)

Para fundamentar sua tese de que o abba era um linguajar infantil e que

Jesus que ressignificou esse termo J Jeremias recorre aos pais da Igreja

Crisoacutestomo Teodoro de Mopsueacutestia e Teodoreto de Ciro originaacuterios de Antioquia

uma populaccedilatildeo que falava o siriacuteaco ocidental do aramaico Segundo J Jeremias

esses ldquopais da Igrejardquo satildeo de comum acordo de que o termo Abba era a palavra

usada por um filho pequenino quando se dirigia ao seu pai Um outro documento

usado por J Jeremias para dar sustentaccedilatildeo agrave sua pesquisa eacute o relato do Talmude (b

Berakocirct 40a b Sanedriacuten 70b) citado por ele com as seguintes palavras ldquoQuando

uma crianccedila prova o gosto do cereal isto eacute tatildeo logo como o detestam aprende a

dizer Abba e imma (papai e mamatildee) Abba e imma satildeo pois as primeiras palavras

que a crianccedila balbucia Abba era a linguagem infantil uma palavra comum

97

empregada diariamente ningueacutem tinha ousado dirigir-se a Deus desse modordquo (cf

Jeremias 2006 p63)

Deus como Pai para Jesus eacute com frequecircncia um Pai bom Ele ldquofaz nascer

seu sol sobre bons e maus Manda a chuva sobre justos e injustos (Lc 635 Mt

545) Para Pagola Jesus demonstra isso com muita maestria na paraacutebola do ldquofilho

perdidordquo (Lc 15 11-32) Nessa paraacutebola Pagola observa que o pai natildeo eacute um

personagem autoritaacuterio que natildeo respeita as decisotildees dos filhos pelo contraacuterio ele eacute

um pai amoroso e mesmo que o filho o tenha abandonado ele o recebe de braccedilos

abertos assim que este o pede perdatildeo (Pagola 2010 p386)

Embora a teologia do Abba seja defendida como a ipssissima vox de Jesus

por J Jeremias alguns autores contemporacircneos como Udo Schnelle defende que

natildeo haacute novidade na forma de Jesus invocar ou designar a Deus como pai visto que

isso era uma praacutetica comum tanto no judaiacutesmo como no mundo greco-romano

Segundo Schnelle a novidade do Abba nos laacutebios de Jesus estaacute na ecircnfase na

frequecircncia e na simplicidade com que Deus eacute designado como Pai nos Evangelhos

quando esse termo eacute proferido por Jesus (Schnelle 2010 p99-100)

J Jeremias defende que Jesus usou a palavra Pai na maioria das vezes

quando essa relaccedilatildeo era do Filho com o Pai Quanto ao uso da palavra Pai em

relaccedilatildeo a outras pessoas Jesus nunca fez alguma referecircncia a natildeo ser raras vezes

a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo apenas aos seus disciacutepulos e nunca a outros grupos

visto que a paternidade divina era uma exclusividade estendida apenas aos

disciacutepulos Grupos como os escribas e fariseus foram excluiacutedos dessa filiaccedilatildeo pois

o pai deles eacute o diabo conforme Joatildeo 8 42-44 (Jeremias 2008 p271)

Disse-lhes Jesus ldquoSe Deus fosse o vosso pai voacutes me amariacuteeis porque saiacute de Deus e dele venho natildeo venho por mim mesmo mas foi ele que me enviou Por que natildeo reconheceis minha linguagem Eacute porque natildeo podeis escutar minha palavra Voacutes sois do diabo vosso pai e quereis realizar os desejos do vosso pai Ele foi homicida desde o princiacutepio e natildeo permaneceu na verdade quando ele mente fala do que lhe eacute proacuteprio porque eacute mentiroso e pai da mentira

98

A questatildeo da filiaccedilatildeo divina eacute um processo iacutentimo entre o Pai e seu filho J

Jeremias observou que o texto do evangelho de Mateus (Mt 1127) pode ser mais

bem traduzido do seguinte modo ldquocomo soacute um Pai conhece o seu filho assim soacute um

filho conhece o seu pairdquo (Jeremias 1977 p29) Essa relaccedilatildeo de Filho e Pai que

Jesus propagou no Novo Testamento tem no Antigo Testamento o paralelo mais

proacuteximo nas palavras do salmista ldquoComo um pai se compadece dos filhos assim se

apieda o Senhor dos que o tememrdquo (Sl 103 13) Mas para os filhos do Reino o pai

eacute ainda maior Ele aleacutem de bondoso e misericordioso eacute benigno ateacute mesmo com os

ingratos e maus (Lc 635)

Seguindo esse pensamento Joseph A Fitzmyer observa que quando Jesus

instruiu os disciacutepulos a invocar a Deus como Pai Ele estava mostrando que Deus

natildeo era somente o ldquotranscendente Senhor dos ceacuteus mas estaacute perto assim como um

pai com seus filhosrdquo (Fitzmyer 1985 p898) Para Stephen A Missick Abba eacute

contudo um misteacuterio uma revelaccedilatildeo especial que vem somente atraveacutes de Jesus

Cristo Missick assim como J Jeremias observa que o texto de Mateus 1127

poderia ser parafraseado em aramaico ficando da seguinte forma ldquosomente pai e

filho realmente se conhecem Porque apenas um pai e um filho verdadeiramente

conhecem um ao outro portanto um filho pode revelar aos outros os pensamentos

mais iacutentimos de seu pairdquo (Missick 2006 p23) Para Missick o maior exemplo para

demonstrar essa intimidade entre o Filho e o Pai e o poder que o Filho tem de

revelar o Pai estaacute registrado em Joatildeo 148

Filipe lhe diz ldquoSenhor mostra-nos o Pai e isso nos bastardquo Diz-lhe Jesus ldquoHaacute tanto tempo estou convosco e tu natildeo me conheces Filipe Quem me vecirc vecirc o Pai Como podes dizer Mostra-nos o Pai Natildeo crecircs que estou no Pai e que o Pai estaacute em mim As palavras que vos digo natildeo as digo de mim mesmo mas o Pai que permanece em mim realiza suas obras Crede-me eu estou no Pai e o Pai em mim Crede-o ao menos por causa dessas obrasrdquo

O discurso de Jesus sempre foi conflitante com os grupos religiosos de sua

eacutepoca e isto se agravou mais ainda pelo modo como Ele invocava a Deus mediante

a expressatildeo ldquomeu Pairdquo fato que natildeo era comum no Judaiacutesmo Se essa forma de

99

dirigir-se a Deus chamando-o de ldquomeu Pairdquo era incomum muito mais incomum

ainda era o emprego da forma aramaica ldquoAbbardquo (Jeremias 2008 p116) Os Judeus

usavam duas maneiras de tratar o Pai uma que era muito comum e tambeacutem usada

no cotidiano familiar abba e outra que era mais solene e elevada abicirc (אב)

(Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p649) Para um judeu usar a palavra

Abba para dirigir-se a Deus parecia ser um atrevimento pois tal palavra soava como

balbucio Abba estava entre as primeiras palavras que uma crianccedila aprendia a falar

conforme a referecircncia que J Jeremias faz ao Talmude Babilocircnico jaacute citado neste

trabalho55

Jaacute nos dias de Jesus abba jaacute tinha deixado de ser apenas uma linguagem das

criancinhas para tornar-se uma forma como os filhos adultos se dirigiam a seu pai

como podemos ver na paraacutebola do filho proacutedigo (Lc 15 21) Nos laacutebios de Jesus

aleacutem de tornar-se uma forma familiar de invocar e dirigir-se a Deus abba passou a

ser tambeacutem considerada uma palavra lsquosagradarsquo uma vez que um soacute eacute o Pai dos

disciacutepulos a saber o que estaacute nos ceacuteus conforme Mateus 239 (Jeremias 2008

p121) Para Jesus Abba tornou-se uma expressatildeo de honra que somente o Pai

celeste eacute digno Essa maneira simples e iacutentima de Jesus dirigir-se a Deus como

uma criancinha fala a seu pai foi considerado por J Jeremias como a ipsiacutessima vox

de Jesus isto eacute um modo proacuteprio e original de falar usado por Jesus e que natildeo

tinha nenhuma analogia na literatura da eacutepoca (Jeremias 2008 p120)

[] a forma abbaacute suplantou a forma abbi usada no aramaico paletinense ateacute pelo menos o seacutec 2 a C como constatamos pela documentaccedilatildeo Aleacutem disso abbaacute tomou o sentido de ldquomeu pairdquo e de ldquoo pairdquo e ldquonosso pairdquo De tal modo que a palavra natildeo era apenas parte do linguajar das crianccedilas Os jovens de ambos os sexos tambeacutem chamavam o proacuteprio pai de Abbaacute (cf Lc 15 21) natildeo recorrendo agrave palavra ldquoSenhorrdquo (Kyrie) a natildeo ser cerimonioso (cf Mt 21 29-30) Mas apesar destes desenvolvimentos jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil (Jeremias 1977 p 24-25)

Mais tarde Fitzmyer comentando essa tese reconhece que J Jeremias

entendeu que Jesus natildeo se dirigiu a Deus invocando-o como uma criancinha faz

com seu pai Fitzmyer tambeacutem concorda que Abba eacute a ipisissima vox de Jesus para

55

para esclarecer essa tese podemos ver uma versatildeo semelhante a jaacute citada por J Jeremias (2006 p63) em outra obra sua conforme transcrevemos abaixo ldquoSomente quando uma crianccedila experimenta o gosto do trigo (isto eacute quando eacute desmamada) eacute que ela diz aacutebba imma [matildee] ou seja estes satildeo os primeiros balbuciosrdquo (cf Jeremias 2008 p119)

100

expressar o seu relacionamento com Deus mas que Abba por si soacute sem as oraccedilotildees

de louvor registradas pelos evangelistas Mateus e Lucas (Mt 11 25-27 Lc 10 21-

22) natildeo eacute suficiente para subsidiar tal argumento (Fitzmyer 1993 p61) Para

Ephraim o meacuterito de ter levado ao grande puacuteblico o verdadeiro sentido de como

Jesus se dirigia a Deus Pai chamando-o de Abba eacute de J Jeremias

[hellip] Joachim Jeremias levou ao grande puacuteblico toda a beleza do nome Abba tal como Jesus o pronunciava Enfatizou com razatildeo que em nenhuma outra parte do judaiacutesmo se encontra tal familiariadade Mesmo se por vezes Deus era invocado pelo vocaacutebulo Pai ningueacutem ousou antes do Filho primogecircnito dentre um grande nuacutemero de irmatildeos chamaacute-lo de Abba que literalmente quer dizer papai A ousadia amorosa sempre estivera do lado do Pai pois do lado da criatura nunca ningueacutem fora tatildeo longe como Jesus na resposta adesatildeo e entrega ao amor misericordioso (Ephraim 1998 p174)

54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS

Sabendo que os Evangelhos sinoacuteticos contecircm muitos traccedilos que remontam

para uma redaccedilatildeo poacutes-pascal J Jeremias pergunta ldquoseremos capazes de

remontarmos em particular a ipsissima vox de Jesusrdquo Os evangelhos apresentam

o querigma de Jesus ou segundo J Jeremias seria mais exato dizer que eles

apresentam a Didaquecirc (ensino) da Igreja primitiva A pergunta acima pode gerar um

certo ceticismo contudo natildeo tem forccedila para destruir o argumento de que

[] os logia de Jesus apresentam certas particularidades que devemos considerar como suas expressotildees favoritas jaacute que figuram independentemente uma das outras nas diversas narrativas da tradiccedilatildeo Abba e amen satildeo os traccedilos da linguagem mais caracteriacutesticos da ipsissima vox de Jesus (Jeremias 2006 p 137-138)

Haacute uma distinccedilatildeo entre ipsissima vox e ipsissima verba de Jesus Segundo J

Jeremias a presenccedila de um modo de falar preferido de Jesus (ipsissima vox) natildeo

dispensa absolutamente de examinar em cada caso particular se temos um dito

autecircntico (ipsissima verba) (Jeremias 2008 p79) Os apoacutestolos assim

compreenderam e Paulo vai dizer mais tarde que Abba eacute o clamor (ipsissima vox)

dos filhos de Deus daqueles que foram adotados na comunhatildeo do Espiacuterito Santo

Segundo Missick a importacircncia da palavra Abba vem justamente ao encontro dessa

teoria pois segundo ele natildeo haacute duacutevida de que essa foi a palavra exata que Jesus

101

falou ou seja Abba eacute a ipsissima vox a voz original ou a ipsissima verba as

autecircnticas palavras de Jesus (Missick 2006 p 23)

J Jeremias baseando-se em Dalman diz-nos que assim como o Abba a

palavra amen (ἀμήν) quando proferida por Jesus natildeo possui nenhum equivalente

na literatura judaica e nem nos demais escritos do Novo Testamento Nos discursos

judaicos a palavra ameacuten ldquoservia para ratificar reforccedilar e fazer proacuteprias as palavras

de outro (cf Jr 28 6) na tradiccedilatildeo dos logia de Jesus se utiliza sem exceccedilatildeo esse

termo para reforccedilar o proacuteprio discursordquo (cf Jeremias 2006 p 138) Podemos ver

esse pensamento exposto nas palavras do proacuteprio Dalman

Jaacute foi frequumlentemente apontado que o modo como Jesus usa a palavra ameacutem natildeo eacute familiar em toda a literatura judaica Mesmo em Sota II 5 cf Jerus I e II num 522 realmente natildeo pode ser forccedilado a comparaccedilatildeo Nessa passagem a repeticcedilatildeo amen pronunciado pela mulher suspeita de adulteacuterio eacute explicada como um protesto de sua inocecircncia como se ela estivesse a dizer ameacutem [= eu protesto] que eu natildeo me poluiacute ameacutem que eu natildeo vou poluir a mim mesma (cf Dalman 1902 p226)

J Jeremias refere-se agraves foacutermulas ameacuten legocirc hymin (sou) (em verdade vos [te]

digo) nos sinoacuteticos e amen ameacuten legocirc hymin (soi) (em verdade em verdade vos

[te] digo) em Joatildeo Segundo ele o nuacutemero de vezes que tais expressotildees aparecem

nos evangelhos eacute 13 vezes em Marcos 30 em Mateus (+ Mt 18 19 var) 6 em

Lucas e 25 em Joatildeo onde haacute uma reduplicaccedilatildeo Para J Jeremias este amen natildeo

responsivo coloca-nos diante de uma forma totalmente nova e peculiar dos

Evangelhos e principalmente de Jesus (Jeremias 2006 p 138-139)

Sobre a grandeza do Abba como a ipsissima vox de Jesus vejamos o que nos

diz J Jeremias

Natildeo haacute paralelos com esta mensagem de que Jesus quer ocupar-se dos pecadores natildeo dos justos e que desde agora lhes daacute jaacute a participaccedilatildeo em seu reinado Natildeo haacute paralelos com este Jesus que se senta agrave mesa com publicanos e pecadores Natildeo haacute paralelos com a autoridade com que Jesus se atreve a dirigir-se a Deus com a invocaccedilatildeo de Abba Quem reconhece unicamente o fato (e natildeo sei como algueacutem poderia negaacute-lo) de que a palavra ldquoabbardquo eacute ipsissima vox Iesu esse tal se entende bem a palavra e natildeo a desvirtua estaacute diante da pretensatildeo que Jesus tinha de sua proacutepria majestade (Jeremias 2006 p40)

Se para Jesus invocar a Deus como Pai era um direito exclusivo dado aos

disciacutepulos na igreja primitiva isso era privileacutegio apenas dos membros que jaacute

102

estavam integrados na igreja aos neoacutefitos era lhes reservado o direito de aprender a

oraccedilatildeo mas soacute podiam pronunciaacute-la em puacuteblico a partir da primeira Eucaristia logo

apoacutes o batismo conforme Cirilo um sacerdote de Jerusaleacutem que viveu por volta do

ano 350 dC (Jeremias 1979 p10) Segundo J Jeremias essas restriccedilotildees podem

ser vistas ateacute mesmo na divisatildeo dos capiacutetulos da Didaquecirc no seacuteculo I Na Didaquecirc

a oraccedilatildeo e a ceia do Senhor soacute vecircm depois do batismo (Jeremias 1979 p9-10)

Isso demonstra o quanto era sagrado o direito de invocar a Deus Pai chamando-o

de Abba Pai

55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR

Jesus pertencia a uma famiacutelia piedosa judaica (Lc 2 1-52 cf 416) viveu no

meio de um povo que sabia orar por isso eacute bem provaacutevel que desde menino tenha

aprendido em casa com seus pais a exercer a praacutetica da oraccedilatildeo cotidiana

Segundo J Jeremias natildeo eacute possiacutevel saber muita coisa sobre a praacutetica de oraccedilatildeo na

vida de Jesus aleacutem dos trecircs gritos da cruz relacionados nos sinoacuteticos haacute ainda

duas oraccedilotildees ldquoo grito de juacutebilo (Mt 11 25-26) e a oraccedilatildeo do Getsecircmani (Mc 14 36)rdquo

O Evangelho de Joatildeo registra outras trecircs oraccedilotildees de Jesus na ressurreiccedilatildeo de

Laacutezaro (Jo 1 14-42) na esplanada do templo (equivalente joanino da oraccedilatildeo do

Getsecircmani Jo 12 27) e a oraccedilatildeo sacerdotal (Jo 17) Aleacutem disso temos outros

relatos gerais de oraccedilatildeo registrados nos Evangelhos (cf Mc 1 35 646=Mt 14 23

Lc 3 21 5 16 6 12 9 18 28-29 Lc 22 31-32) e a oraccedilatildeo do Pai-nosso

(Jeremias 2006 p123)

Podemos ainda mencionar que com exceccedilatildeo das mulheres dos filhos

pequenos e dos escravos todos os homens de Israel a partir dos treze anos

estavam obrigados a recitar regularmente o Shemaacute56 (ldquoOuve oacute Israel Iahweh nosso

Deus eacute o uacutenico Iahwehrdquo Dt 64) duas vezes ao dia Aleacutem da profissatildeo de feacute judaica o

mandamento divino era logo recitado em seguida (cf Jeremias 2006 p 116)

Portanto amaraacutes a Iahweh teu Deus com todo o seu coraccedilatildeo com toda a tua alma e com toda a tua forccedila Que estas palavras que hoje te ordeno

56

No entanto segundo J Jeremias o shemaacute era ensinado aos filhos desde que esses aprendiam a falar (cf Jeremias 2006 p 116)

103

estejam em teu coraccedilatildeo Tu as inculcaraacutes aos teus filhos e delas falaraacutes sentado em tua casa e andando pelo caminho deitado e de peacute (Dt 6 5-7)

No Novo Testamento a oraccedilatildeo jaacute havia deixado de ser praticada duas vezes

ao dia para concretizar-se em trecircs vezes conforme vemos no livro dos Atos dos

Apoacutestolos (31 10 3-30) e na Didaquecirc (83) Segundo Jeremias isso se deve ao

fato de ter havido uma fusatildeo entre o Shemaacute (apesar dessa natildeo ser propriamente

uma oraccedilatildeo mas uma profissatildeo de feacute) com a Tefilaacute no periacuteodo da manhatilde e da noite

enquanto que na oraccedilatildeo da tarde natildeo se recitava o Shemaacute Para os israelitas esses

momentos de oraccedilatildeo eram muito preciosos jaacute que se assegurava a formaccedilatildeo dos

jovens na praacutetica da oraccedilatildeo (Jeremias 2006 p22)

Jesus com certeza conhecia as oraccedilotildees e as formas lituacutergicas para proferi-las

no entanto ao ser indagado pelo disciacutepulo anocircnimo (Lc 111) com a indagaccedilatildeo

ldquoSenhor ensina-nos a orarrdquo eacute claro que o Mestre sabia que seus disciacutepulos tambeacutem

conheciam as oraccedilotildees tradicionais visto que tambeacutem eram judeus No entanto eacute

muito provaacutevel que o disciacutepulo anocircnimo estaacute pedindo a Jesus um novo modelo de

oraccedilatildeo que os distinguisse como um grupo Jesus ensinou-lhes o Pai-nosso que se

tornaria a oraccedilatildeo oficial da Igreja primitiva e viria a substituir o antigo modelo das

trecircs oraccedilotildees diaacuterias tatildeo conhecidas em Israel conforme pode ser visto na Didaquecirc

(9-10) Surge entatildeo uma nova forma de orar a partir do ensinamento de Jesus

baseado na expressatildeo Abba que era a forma singular de expressatildeo usada por ele

para dirigir-se ao Pai que estaacute nos ceacuteus (Jeremias 2006 p129-131)

A relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai atinge seu aacutepice na Oraccedilatildeo do Pai-nosso

onde Jesus estaacute ensinando seus disciacutepulos orar A pergunta feita pelo disciacutepulo

anocircnimo em Lucas 111 (Senhor ensina-nos a orar) resultou no mais belo

ensinamento de Jesus a respeito da oraccedilatildeo Na oraccedilatildeo do Pai-nosso como exemplo

de humildade e obediecircncia ldquoJesus se entrega agrave vontade de Deus como a crianccedila o

faz em relaccedilatildeo ao Pairdquo (Goppelt 2002 p 216) Para Haight a oraccedilatildeo modelo eacute

composta por uma invocaccedilatildeo dois anseios ou esperanccedilas e trecircs pedidos (cf Haight

2003 p139) 57 O teoacutelogo Leonardo Boff assim resume a essecircncia desse magniacutefico

modelo de oraccedilatildeo

57

A forma apresentada por Lucas da oraccedilatildeo do Pai-nosso consiste de um endereccedilamento (ldquoPairdquo) dois desejos proferidos a Deus e trecircs peticcedilotildees ditas a ele A forma em Mateus apresenta um endereccedilamento expandido trecircs desejos e quatro peticcedilotildees Nesse modo de orar Jesus instrui e

104

Na oraccedilatildeo do Senhor encontramos praticamente a correta relaccedilatildeo entre Deus e o homem o ceacuteu e a Terra o religioso e o poliacutetico mantendo a unidade do mesmo processo A primeira parte diz respeito agrave causa de Deus o Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome seu Reino sua Vontade santa A segunda parte concerne agrave causa do homem o patildeo necessaacuterio o perdatildeo indispensaacutevel a tentaccedilatildeo sempre presente e o mal continuamente ameaccedilador Ambas as partes constituem a mesma e uacutenica oraccedilatildeo de Jesus Deus natildeo soacute se interessa pelo que eacute seu o Nome o Reino a Vontade divina Ele se preocupa tambeacutem pelo que eacute do homem o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo o mal Igualmente o homem natildeo soacute se prende ao que lhe importa o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo e o mal abre-se tambeacutem ao que respeita ao Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome a chegada de seu Reino a realizaccedilatildeo de sua Vontade (Boff 2009 p17-18)

Em seu livro ldquoO Pai-nosso a oraccedilatildeo do Senhorrdquo J Jeremias enfatiza o alto

valor que a referida oraccedilatildeo tinha na liturgia entre os cristatildeos da Igreja primitiva J

Jeremias nos diz que o mais antigo uso dessa oraccedilatildeo era a recitaccedilatildeo da mesma na

24ordf catequese de Cirilo onde o Pai-nosso era recitado antes da comunhatildeo e era

restrito dentro do culto divino apenas aos batizados ou seja aos membros efetivos

da Igreja Essa praacutetica provinha de Jerusaleacutem e vigorava por toda a Igreja Desde os

primeiros passos na feacute os neoacutefitos jaacute aprendiam a recitar de cor a oraccedilatildeo do Pai-

nosso mas soacute tinham o direito de rezaacute-lo com os demais fieacuteis a partir do momento

em que participavam da primeira eucaristia ou seja logo apoacutes o batismo (Jeremias

1979 p 5-6)

O uso regular do Pai-nosso na liturgia da Igreja eacute tambeacutem testemunhado na

Didaquecirc (Doutrina dos Doze Apoacutestolos) que segundo J Jeremias eacute tatildeo antiga que

chega a ser datada no seacutec I dC ou para ser mais preciso segundo Boff ela foi

escrita por volta dos anos 50 a 70 dC (Boff 2009 p36) Para J Jeremias a

importacircncia dada ao Pai-nosso na Didaquecirc pode ser observada na estrutura da

obra

[] O livro comeccedila (cc 1-6) com a doutrina dos dois caminhos o da vida e da morte que evidentemente pertencia agrave instruccedilatildeo dada aos catecuacutemenos Em seguida o c 7 trata do batismo soacute depois disso eacute que vecircm as seccedilotildees de importacircncia para os batizados Jejum e oraccedilatildeo (inclusive o Pai-nosso) no c 8 Ceia do Senhor nos cc 9 e 10 organizaccedilatildeo e disciplina eclesiaacutesticas nos cc 11 a 15 O que nos interessa aqui eacute que oraccedilatildeo e Ceia do Senhor vecircm depois do batismo

autoriza seus disciacutepulos a chamar a Deus como ldquoPairdquo usando o mesmo tiacutetulo que ele mesmo utilizou em sua oraccedilatildeo de louvor Lc 1021 (duas vezes) e utilizaraacute de novo em Lc 22 42 (cf Fitzmyer 1985 p 899)

105

O que J Jeremias conclui eacute que diferentemente de hoje onde o Pai-nosso eacute

acessiacutevel a todos nos primoacuterdios do cristianismo era bem diferente O privileacutegio de

recitar a oraccedilatildeo do Senhor era reservado apenas aos membros que estavam

plenamente integrados agrave Igreja A perda da reverecircncia e do temor pela oraccedilatildeo do

Senhor eacute tratada por J Jeremias com apreensatildeo e o retorno agrave reverecircncia que a

Igreja primitiva dava ao Pai-nosso soacute pode ser reconquistada se atraveacutes da exegese

biacuteblica buscarmos entender qual era o sentido que o proacuteprio Senhor quis dar agraves

palavras dessa sagrada oraccedilatildeo (Jeremias 1979 p 8-12)

Concordando com J Jeremias Ephraim tambeacutem observa que nos primeiros

seacuteculos da era cristatilde os cristatildeos pronunciavam as palavras do Pai-nosso ldquocom

grande temor como que em segredordquo O motivo para tal respeito era o medo de

transpassar os limites da reverecircncia e cair na blasfecircmia ao pronunciar o nome

inefaacutevel de Deus Segundo Ephraim ainda hoje baseado nesse profundo respeito

pela sagrada oraccedilatildeo os cristatildeos bizantinos ainda conservam a seguinte foacutermula

antes de iniciarem a oraccedilatildeo ensinada pelo senhor ldquoE torna-nos dignos Mestre de

ousar com toda a seguranccedila e sem incorrer em condenaccedilatildeo de te chamar de Pai a

ti o Deus do ceacuteu e de te dizer Pai nossordquo Ao observarmos essa foacutermula bizantina

que antecede a oraccedilatildeo do Pai-nosso concluiacutemos com Ephraim que o respeito e o

medo de ser indigno de pronunciar tal oraccedilatildeo fizeram com que a tradiccedilatildeo da

comunidade cristatilde acima mencionada conservasse com muita precauccedilatildeo haacutebitos e

costumes dos primeiros cristatildeos no que diz respeito a como se deve orar o Pai-

nosso (Ephraim 1998 p 174)

Partindo do princiacutepio que por volta do ano 75 dC a oraccedilatildeo do Pai-nosso era

obrigatoacuteria na formaccedilatildeo dos neoacutefitos tanto os cristatildeos de origem judaica quanto os

de origem grega tinham em comum a obrigatoriedade da oraccedilatildeo do Senhor na

formaccedilatildeo dos novos disciacutepulos Quanto agrave questatildeo do por que duas versotildees do Pai-

nosso ou se eacute possiacutevel que um dos disciacutepulos tenha acrescentado ou retirado

palavras da forma original J Jeremias conclui que ambos os disciacutepulos jamais

alterariam algum ponto da oraccedilatildeo do Senhor A forma mais clara para se

compreender a aparente divergecircncia estaacute no fato de que ambos escreveram para

igrejas diferentes locais e situaccedilotildees diferentes por isso cada evangelista optou por

transmitir um texto segundo o seu tempo e sua Igreja (Jeremias 1979 p 16-21)

106

Quando lemos a oraccedilatildeo do Pai-nosso nas duas versotildees ou seja por Mateus

e por Lucas surgem questotildees a respeito da antiguidade dos textos e das variantes

textuais entre os dois Evangelhos J Jeremias em sua obra acima citada trabalha

com esmero essas duas questotildees e outras tambeacutem natildeo menos importantes Antes

de abordamos as questotildees levantadas por J Jeremias segue abaixo os textos dos

Evangelhos bem como o texto de Lucas retraduzido para o aramaico segundo J

Jeremias e uma versatildeo do aramaico recitado por cristatildeos que ainda hoje falam o

aramaico conforme Stephen Missick

Mt 6 9-13 Lc 11 2-4

() Portanto orai desta maneira

Pai nosso que estaacutes nos ceacuteus

Santificado seja o teu Nome

venha o teu Reino

seja feita a tua vontade

na terra como no ceacuteu

o patildeo nosso de cada dia

daacute-nos hoje

E perdoa-nos as nossas diacutevidas

como tambeacutem noacutes perdoamos aos

nossos devedores

E natildeo nos submeta agrave tentaccedilatildeo

mas livra-nos do Maligno

() Respondeu-lhes ldquoQuando orardes

dizei

Pai santificado seja o teu Nome

venha o teu reino

o patildeo nosso cotidiano daacute-nos a cada dia

pois tambeacutem noacutes perdoamos aos nossos

devedores

e natildeo nos deixes cair na tentaccedilatildeordquo

Pai Nosso aramaico segundo J

Jeremias

Pai-nosso em aramaico recitado pelos

cristatildeos em aramaico segundo Missick

abba [pai]

yitqaddash shemak tete malkutak

[santificado seja o teu nome venha teu

reino]

Awoon Dwashmaya

Nethqaddash Shmakh

Tethe malkuthakh

Nehweh sebayanakh

107

lahman delimhar hab lan yoma den [o

patildeo nosso de amanhatilde daacute-nos neste dia]

ushebok lan hobenan kedishebaqnan

lehayyabenan [e perdoa-nos as nossas

diacutevidas (pecados) assim como

perdoamos os nossos devedores

(pecadores)]

wela ta el nnan lenisayon [e natildeo nos

conduza agrave tentaccedilatildeo] (cf Jeremias 2008

p291)

Aykana dwashmayya aph ara

Hab lan lakhma dsunkanan yowmana

Washboq lan hawbayn aykanan dap

hanan shwaqnan l-hayawayn

Wa la talain Inesyona

Ella passan min beesha

Mittol dlakh hee malkoota wa khaylan w

tishbookhta alalam almeen Amen (cf

Missick 2006 p58)

Para J Jeremias para entendermos o sentido do Pai-nosso na redaccedilatildeo de

Mateus eacute preciso ver que Jesus estaacute advertindo seus disciacutepulos a natildeo praticarem as

esmolas oraccedilatildeo e jejum da mesma forma que elas eram praticadas pelos fariseus

visto que estes amavam praticaacute-las desde que fossem vistos e reconhecidos pelos

homens Os disciacutepulos deviam procurar um cocircmodo por menor que fosse e natildeo

imitar os fariseus em hipoacutetese alguma no quesito de sempre ser pegos em uma

aparente surpresa na hora da oraccedilatildeo para que dessa forma pudessem sempre que

possiacutevel orar no meio da multidatildeo com o uacutenico objetivo de serem reconhecidos e

honrados

Em relaccedilatildeo ao texto de Lucas J Jeremias descreve sobre o fato de tanto a

situaccedilatildeo quanto os leitores de Lucas serem diferentes dos de Mateus Em Lucas a

oraccedilatildeo eacute mais breve o sentido do texto eacute o ensinar a perseveranccedila na oraccedilatildeo visto

que a mesma eacute precedida pela paraacutebola do amigo importuno As diferenccedilas entre a

oraccedilatildeo contida em Mateus e a de Lucas eacute devido aos diferentes grupos a quem

essa oraccedilatildeo foi destinada Segundo J Jeremias os leitores para os quais Mateus

deve ter destinado o Evangelho eram homens que desde a infacircncia aprenderam a

orar enquanto que os de Lucas eram antigos convertidos ao cristianismo

Ao nos depararmos com as duas versotildees da oraccedilatildeo do Pai Nosso na Biacuteblia

(Mateus 6 9 -13 e Lucas11 2-4) logo vem agrave mente qual delas se aproxima mais da

versatildeo original de Jesus ou entatildeo em que liacutengua Jesus proferiu essa magniacutefica

oraccedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta J Jeremias responde da seguinte forma

108

[] a formulaccedilatildeo mais curta de Lucas estaacute integralmente contida na redaccedilatildeo longa de Mateus Isto faz com que seja bem provaacutevel que a forma de Mateus seja uma ampliaccedilatildeo pois pelo que sabemos das leis que regem a transmissatildeo dos textos lituacutergicos quando uma redaccedilatildeo mais curta estaacute assim integralmente contida numa longa eacute a mais curta que deve ser considerada como original (J Jeremias 1979 p23)

Contudo J Jeremias conclui que o texto de Lucas eacute o mais antigo quanto agrave

extensatildeo mas em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo oral (verbal) o texto de Mateus eacute o mais antigo

(cf Jeremias 2008 p 291) Complementando o pensamento de J Jeremias a

respeito da versatildeo original do Pai Nosso Boff assim conclui ldquoDestarte Lucas seria

mais originalrdquo (Boff 2009 p36)

Concernente agrave liacutengua materna de Jesus e agrave cultura da Palestina daquela

eacutepoca podemos ainda perguntar era Jesus um poliglota ou falava apenas o

aramaico Antes de tratarmos com mais detalhes a respeito da liacutengua e cultura de

Jesus observamos a princiacutepio que pelo menos trecircs liacutenguas eram faladas na

Palestina nos dia de Jesus (aramaico grego e latim) conforme as informaccedilotildees

contidas no texto de Joatildeo 19 19-20

Segundo Sabugal haacute uma grande probabilidade de que Jesus possuiacutesse

conhecimentos da liacutengua grega pelos contatos registrados entre Jesus e algumas

pessoas de origem helecircnica como o centuriatildeo romano (Mt 5 8-13 cf Lc 7 1-10)

tambeacutem com a mulher sirofeniacutecia aleacutem do disciacutepulo chamado Filipe que

provavelmente conhecia a liacutengua grega conforme podemos interpretar a partir da

leitura de Joatildeo 12 20-2 (Sabugal 1985 p319) No entanto para Sabugal a liacutengua

popular na Palestina dos dias de Jesus era o aramaico galileu58 Tal liacutengua era tatildeo

familiar agraves comunidades a ponto de apoacutes a leitura de um texto sagrado em

hebraico (Toraacute) logo seguia-se uma traduccedilatildeo para o aramaico (Targum) onde o

texto podia ser compreendido por todos Portanto fica evidente que o aramaico foi a

liacutengua materna de Jesus isso fica mais claro ainda quando encontramos nos

evangelhos palavras aramaicas (cf Mc 14 36 Lc 23 34 42 46 Mc 15 34 = Mt

58 Para Geza Vermes a liacutengua original do Pai-nosso era o aramaico mesmo que alguns estudiosos

discordem colocando o hebraico como a liacutengua original (segundo vermes sem convencer) a maioria dos especialistas eacute de acordo com essa teoria Vermes observa que aleacutem das peculiaridades do grego de Mateus o Pai-nosso tem semelhanccedilas com o kadish uma antiga oraccedilatildeo judaica composta em aramaico que era conhecida por Jesus e que ele teria sido influenciado e inspirado por ela (Vermes 2006 p 258)

109

27 46) conservadas pelos evangelistas sem traduccedilatildeo para a liacutengua grega (Sabugal

1985 p321)

Ao se referir sobre a origem do Pai Nosso Sabugal assim exclama ldquoQue

alegria seria se conseguiacutessemos recuperar a ipsissima verba do Pai Nosso ensinado

por Jesus de Nazareacute e reconstruindo seu texto primitivo pudeacutessemos escutar a

ipsissima vox do Mestrerdquo (Sabugal 1985 p317) Para Sabugal natildeo haacute duacutevida que

os vocaacutebulos gregos estatildeo dispostos segundo os usos da gramaacutetica semiacutetica O

autor tambeacutem entende que na oraccedilatildeo do Pai Nosso tanto de Mateus como na de

Lucas teve como fundo doutrinaacuterio e literaacuterio a liacutengua materna de Jesus (aramaico)

Conforme J Jeremias para compreendermos a essecircncia da oraccedilatildeo de Jesus faz-se

necessaacuterio aproximarmo-nos do proacuteprio modo de falar do Mestre e isso soacute eacute

possiacutevel quando chegamos a ipsissima vox de Jesus (Sabugal 1985 p317)

Sabugal (1985 p317) concorda que descobrir a liacutengua materna de Jesus eacute

algo muito importante e extraordinariamente fundamental O referido autor

compartilha com J Jeremias dessa tese haja vista que eacute importante levar em

consideraccedilatildeo o fato de que para ele os escritores dos evangelhos eram verdadeiros

autores literaacuterios e autecircnticos teoacutelogos de suas comunidades cristatildes capazes de

transmitir com fidelidade a essecircncia da mensagem de Jesus59 Aleacutem do mais os

autores biacuteblicos eram divinamente inspirados pelo Espiacuterito Santo conforme os

textos de 2 Tm 316 e 2Pe 121

Por outro lado Leonardo Boff (2009 p36) considera que a oraccedilatildeo de Jesus

natildeo pode ser tratada como uma oraccedilatildeo simples que possa ser retraduzida do grego

para o aramaico primitivo conforme fez J Jeremias no texto que reproduzimos

abaixo

Pai querido Que o teu nome seja santificado Que venha o teu reino Daacute-nos hoje nosso patildeo de amanhatilde E perdoa-nos nossas diacutevidas como noacutes tambeacutem ao dizermos estas palavras estamos perdoando a nossos devedores E natildeo nos deixes sucumbir agrave tentaccedilatildeo (Jeremias 1979 p33)

59

Sobre a autoria e composiccedilatildeo dos Evangelhos ver o capiacutetulo 4 paraacutegrafo 3 deste trabalho

110

Observamos que de acordo com o pensamento de Boff natildeo eacute faacutecil reproduzir

a oraccedilatildeo de Jesus do grego para o aramaico e dessa forma tambeacutem pensa

Sabugal o qual apesar de achar o trabalho de J Jeremias de extrema importacircncia

no entanto assim como Boff pensa que realizar tal tarefa natildeo eacute nada faacutecil uma vez

que envolve estudos linguiacutesticos e literaacuterios concernentes agrave liacutengua materna e ao

texto primitivo do Pai-nosso em sua composiccedilatildeo riacutetmica e literaacuteria bem como a real

motivaccedilatildeo de Jesus ao ensinar essa oraccedilatildeo aos seus disciacutepulos Haja vista o grau

de dificuldade apresentado acima natildeo podemos deixar de observar que quanto

mais nos aproximarmos do Pai-nosso de Jesus na sua originalidade mais

maravilhados ficaremos diante da grandiosidade dessa magniacutefica oraccedilatildeo

56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA

Conforme J Jeremias e a maioria dos estudiosos Abba eacute um termo que faz

parte da liacutengua semiacutetica para ser mais preciso do aramaico Oriacutegenes pertencente

ao periacuteodo da Patriacutestica profundo conhecedor do grego e das liacutenguas semiacuteticas

segundo Fitzmyer (1992 p 48) estranhamente considerou o termo Abba como

sendo uma palavra hebraica Restou a Jerocircnimo esclarecer que o termo Abba era

siacuterio (Syrum est non hebraeum) e natildeo hebraico Lembrando que o que Jerocircnimo

chamava de siacuterio nos dias dele noacutes chamamos de aramaico

Segundo Matthew Black o aramaico foi uma das grandes liacutenguas faladas na

antiguidade por volta do VI e III seacuteculos aC quando o mundo era governado pelos

grandes impeacuterios orientais desde o Eufrates ateacute o Nilo Essa liacutengua tornou-se a

liacutengua dos judeus provavelmente depois do Exiacutelio O aramaico foi suplantado pelo

grego koineacute no mundo civilizado da eacutepoca durante o impeacuterio de Alexandre o

Grande No entanto o grego nunca substituiu por completo o uso do aramaico entre

os judeus tanto da Palestina como da Babilocircnia bem como de alguns povos de

cultura semiacutetica na Siacuteria e Mesopotacircmia (Black 1998 p14)

Entre os judeus podemos encontrar dois dialetos aramaicos na Palestina

conforme a pesquisa apresentada por Dalman Black menciona que segundo a

distinccedilatildeo feita por Dalman os dialetos estatildeo propostos na seguinte forma o primeiro

representado pelo aramaico do Antigo Testamento e o aramaico do Targum para

Pentateuco e para os profetas O segundo composto pelo conjunto de anedotas

111

popular do Talmude Palestino junto com outras partes do comentaacuterio palestinense

do Antigo Testamento dos antigos Midrash60 haggaacutedicos (Black 1998 p19)

No entanto a liacutengua na qual foi escrito o Novo Testamento eacute aceita quase que

por unanimidade pelos eruditos como sendo o grego coineacute ou grego biacuteblico

conforme foi chamado pelos especialistas ateacute o comeccedilo do seacuteculo XX (Koester

2005 vol I p118) Segundo Koester (2005 vol1 p120-121) todos os livros do

Novo Testamento foram escritos originalmente em grego e esse autor eacute mais

enfaacutetico ainda quando afirma que nenhuma obra dos primeiros cristatildeos escrita em

grego pode ser traduccedilatildeo direta do hebraico ou do aramaico De acordo com Koester

eacute fato que existem inuacutemeros hebraiacutesmos e aramaiacutesmos constantes no Novo

Testamento que podem ser citaccedilotildees gregas da Biacuteblia hebraica ou ainda que

podem ser justificadas pelo fato de que o autor estava inserido num ambiente que

propiciava a formulaccedilatildeo de palavras semiacuteticas como no caso dos Evangelhos onde

Jesus e seus disciacutepulos eram falantes nativos do aramaico

Koester observa que as traduccedilotildees do aramaico para o grego devem ter

acontecido num periacuteodo anterior aos escritos dos primeiros cristatildeos quando esses

ainda conservavam na memoacuteria apenas a tradiccedilatildeo oral Essas traduccedilotildees foram

feitas deacutecadas antes da composiccedilatildeo dos Evangelhos e dessa forma no processo

de composiccedilatildeo das fontes dos Evangelhos praticamente todos os aramaiacutesmos

foram substituiacutedos por palavras gregas com exceccedilatildeo do Evangelho de Marcos que

parece ter usado fontes gregas que eram traduccedilotildees diretas dos originais aramaicos

ou ainda os relatos de milagres no Evangelho de Joatildeo que possivelmente tambeacutem

pode ter sido traduccedilatildeo de um original aramaico (Koester 2005 vl 1 p121-122)

Outra observaccedilatildeo de Koester eacute a questatildeo do bilinguismo na Palestina Entre

os primeiros cristatildeos havia uma mescla de seguidores de Jesus que falavam o

aramaico e o grego Esses foram determinantes para que a composiccedilatildeo dos

Evangelhos fosse fortemente influenciada pelo aramaico Para Koester ldquoalguns

desses semitismos satildeo empreacutestimos semacircnticos que derivam do ambiente geral da

liacutengua como θάλασσα natildeo soacute para mar ou oceano mas tambeacutem para lago uma

vez que o aramaico יםאא denota ambosrdquo (Koester 2005 vl1 p122)

60

Etimologicamente essa palavra tem como raiz o termo darash procurar significa pesquisa sobre a Escritura e tem como funccedilatildeo o meacutetodo de estudo das Escrituras com vistas agrave sua atualizaccedilatildeo (cf Vermes 1990 p11)

112

Para trabalhar as questotildees filoloacutegicas e semacircnticas do Abba precisamos

investigar se a liacutengua materna de Jesus era realmente o aramaico Muitas questotildees

tecircm sido levantadas sobre a liacutengua que Jesus falava e tambeacutem questotildees sobre o

niacutevel cultural do Nazareno As liacutenguas oficiais do impeacuterio romano eram o latim e o

grego Para John P Meier questotildees relacionadas ao idioma ou idiomas que Jesus

falava satildeo muito complexas visto que natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz daquele

periacuteodo e as inscriccedilotildees em latim podem apenas ser um sinal para demonstrar a

presenccedila do poderio romano do que ter a finalidade de informar aos judeus sobre

algo que lhes fosse interessante Como para Meier no mundo greco-romano a

maioria da populaccedilatildeo era analfabeta isso obviamente era vaacutelido tambeacutem para a

populaccedilatildeo judaica (Meier 1993 p254)

Meier usa como exemplo uma famosa ldquoinscriccedilatildeo de Pocircncio Pilatosrdquo que foi

descoberta na Cesareia Mariacutetima em 1961 Essa inscriccedilatildeo em latim foi dedicada ao

Imperador Tibeacuterio por Pilatos A questatildeo levantada por Meier eacute ateacute que ponto esta

inscriccedilatildeo alcanccedilou os gentios e judeus que viviam em Cesareia Possivelmente

para esse autor Pilatos estava preocupado em alcanccedilar apenas as elites ou seja

ele se dirigia apenas aos seus ldquoiguaisrdquo aqueles que estavam a serviccedilo do Impeacuterio ou

faziam parte das elites dominantes As inscriccedilotildees mesmo que sejam as oficiais em

preacutedios puacuteblicos ou aquedutos construiacutedos pelo Impeacuterio ou ateacute mesmo as inscriccedilotildees

funeraacuterias natildeo provam em nada que o latim fosse uma liacutengua comum na Palestina

O fato de uma laacutepide tumular estar em latim poderia apenas ser ldquoo desejo de dar

uma impressatildeo de alta culturardquo e nada mais Assim como segundo Meier natildeo se

pode concluir que os catoacutelicos americanos do iniacutecio do seacuteculo XX tinham um idioma

comum apenas observando a frase Requiescat in pace (do latim descanse em Paz)

inscrita em seus tuacutemulos e nem as muitas inscriccedilotildees em latim espalhadas pela

Europa podem refletir as inuacutemeras liacutenguas faladas hoje em dia nesse continente

Meier observa entatildeo que o Latim eacute visto quase que por unanimidade como o

idioma menos falado na Palestina nos dias de Jesus e por isso ldquonatildeo haacute razatildeo para

se pensar que Jesus falou e muito menos leu o latimrdquo (Meier 1993 p 254 ndash 255)

Se o latim natildeo era tatildeo comum na Palestina jaacute o grego segundo Meier era

um caso totalmente diferente O grego era comum em todo o Impeacuterio romano

inclusive em Roma capital do Impeacuterio A Palestina dos dias de Jesus era altamente

113

helenizada haviam cidades e povoados que foram transformados de uma forma

poliacutetica e cultural em cidades gregas61 Segundo Meier o debate atual entre os

estudiosos estaacute concentrado apenas em saber qual era o grau de helenizaccedilatildeo

nessas cidades Mesmo apoacutes o periacuteodo dos Macabeus onde houve um movimento

de resistecircncia agrave liacutengua e a cultura grega natildeo foi possiacutevel extinguir essa cultura da

Palestina porque apoacutes esse periacuteodo (dos Macabeus) a Palestina passou a ser

governada pelos Asmoneus que tiveram como monarca principal por volta do final

do seacuteculo I aC Herodes o Grande Herodes deu continuidade agrave poliacutetica de

helenizaccedilatildeo que tinha comeccedilado com os reis Selecircucidas especificamente por

Antiacuteoco Epiacutefanes IV O processo de helenizaccedilatildeo de Herodes foi desde a construccedilatildeo

do porto da Cesareia Mariacutetima a cidade de Sebaste em Samaria e muitas outras

grandes edificaccedilotildees em Jerusaleacutem Segundo Meier as inscriccedilotildees em Grego em

Jerusaleacutem eram inuacutemeras desde o Templo as sinagogas ateacute ossuaacuterios Meier assim

descreve a influecircncia grega na Palestina

[] Martin Hengel afirma que uma terccedila parte dos epitaacutefios em Jerusaleacutem do periacuteodo do Segundo Templo eram escritos em grego e ele ainda calcula que das 80000 ou 100000 pessoas que residiam na grande Jerusaleacutem entre 8000 e 16000 teriam falado grego Mas natildeo foi soacute em Jerusaleacutem que a liacutengua e a cultura gregas alcanccedilaram os judeus Um grande nuacutemero de judeus vivia nas cidades helenizadas da planiacutecie litoracircnea desde Gaza no sul ateacute Dor ou Ptolomaicas-Acco no norte Em Cesareia a capital romana da Judeia havia quase tantos judeus como gentios As cavernas de Murabaat nos forneceram papiros gregos sobre a vida diaacuteria e ateacute mesmo ndash por ironia ndash coacutepias de cartas em grego do tempo da revolta de Bar Kochba exatamente quando os nacionalistas lutavam e morriam para se libertarem do jugo estrangeiro e da dominaccedilatildeo cultural

Concernente agrave liacutengua grega e suas influecircncias na Palestina Meier observa

que para se chegar a uma conclusatildeo ou aproximaccedilatildeo de algum fato referente agrave que

idioma era falado pelos judeus residentes na Palestina faz-se necessaacuterio ter uma

atenccedilatildeo redobrada ao periacuteodo em questatildeo Por exemplo se atentarmos para os

seacuteculos III e II aC observa-se um eclipsamento do aramaico devido agrave helenizaccedilatildeo

da Palestina pelos reis selecircucidas da Siacuteria Segundo Meier parece que o aramaico

soacute voltou a retomar a prioridade na Palestina apoacutes a revolta dos Macabeus por isso

61

Se levarmos em consideraccedilatildeo os dados de Martin Hengel citados acima por Meier podemos

deduzir que aproximadamente de 10 a 20 da populaccedilatildeo de Jerusaleacutem falava grego Entatildeo eacute difiacutecil considerar a Palestina dos dias de Jesus como sendo altamente helenizada como fez Meier uma vez que nem mesmo na capital havia tantas pessoas que falavam tal liacutengua

114

natildeo eacute possiacutevel determinar qual era a liacutengua mais falada na Palestina dos seacuteculos II e

I aC tomando como exemplo inscriccedilotildees e textos dos seacuteculos III e II aC (Meier

1993 p 255)

A opiniatildeo de Meier eacute que vaacuterios textos de Flaacutevio Josefo levam agrave conclusatildeo de

que a liacutengua grega natildeo era tatildeo conhecida ou tatildeo falada na Palestina do seacuteculo I

pelos judeus Meier analisa que Josefo mesmo apoacutes se gabar de seu alto niacutevel

cultural tanto em relaccedilatildeo agrave lei como agrave prosa e poesia gregas demonstra algumas

dificuldades com a pronuacutencia do grego Meier observa que as dificuldades de Josefo

parecem natildeo ser apenas de pronuacutencia mas seu domiacutenio de escrita tambeacutem natildeo era

ldquoexatamente perfeitordquo Outro fator observado por Meier eacute a forma de comunicaccedilatildeo

que o general romano Tito usou para se comunicar com os judeus Tito que falava

bem o grego segundo Suetocircnio mas para se comunicar com os judeus precisou de

um ldquomensageiro em aramaico (Josefo) para ser compreendido pelos judeus Surge

entatildeo a grande pergunta Jesus falava grego Para Meier se nem mesmo Josefo

que era haacutebil na liacutengua grega natildeo se sentiu agrave vontade para transmitir o recado de

Tito em grego mas em aramaico porque natildeo dominava bem a liacutengua ou porque os

ouvintes natildeo entenderiam deduz-se que ldquoa probabilidade de um camponecircs galileu

ter suficiente conhecimento para se tornar um mestre e pregador bem-sucedido que

proferisse seus discursos em grego parece muito pequenardquo (Meier 1993 p 258-

259)

Ao fazer um trabalho minucioso sobre a liacutengua que Jesus falava Meier

depois de muitos questionamentos levanta a suposiccedilatildeo de que natildeo podemos negar

que Jesus fosse totalmente desconhecedor da liacutengua dos helenos Primeiro porque

Jesus ateacute mesmo por causa de sua profissatildeo e viagens a Jerusaleacutem tinha contato

com pessoas que falavam grego Eacute possiacutevel segundo Meier que Jesus vez ou outra

fizesse algum contrato ou assinasse algum recibo que tivesse sido redigido em

grego62 Mas o fato de assinar recibos ou mesmo ter dialogado com Pilatos pode

apenas presumir que Jesus possuiacutesse alguns conhecimentos da liacutengua grega

62

A hipoacutetese de Meier sobre a possibilidade de Jesus ter assinado pequenos contratos em grego eacute questionaacutevel uma vez que segundo Meier se nem mesmo Josefo era fluente na liacutengua dos helenos muito menos Jesus que era um humilde galileu Outrossim segundo Crossan eram poucas as pessoas alfabetizadas na Palestina (no maacuteximo 3 da populaccedilatildeo) Crossan chega a afirmar que Jesus era analfabeto como a maioria dos seus conterracircneos Se tal hipoacutetese tambeacutem for verdadeira dificilmente Jesus teria condiccedilotildees de assinar pequenos contratos profissionais na liacutengua grega

115

suficientes apenas para um pequeno diaacutelogo composto de frases curtas Meier acha

muito difiacutecil Jesus ter adquirido alfabetizaccedilatildeo para a escrita em grego O referido

autor ainda aprofunda mais as suas desconfianccedilas a respeito do assunto quando

diz ldquoPortanto acompanhando Fitzmyer mantenho minhas duacutevidas se qualquer parte

dos pronunciamentos de Jesus foi feita desde o iniacutecio em grego dispensando a

traduccedilatildeo ao passar para os Evangelhos gregos que conhecemosrdquo (Meier 1993 p

260)

Apoacutes verificarmos as influecircncias do latim e do grego na Palestina nos dias de

Jesus resta-nos verificar as liacutenguas faladas em Israel desde os primoacuterdios da

naccedilatildeo O hebraico era o antigo e sagrado idioma falado em Israel mas desde que

os judeus voltaram do cativeiro babilocircnico o hebraico sofreu um decliacutenio como

liacutengua falada e passou a ser substituiacutedo gradualmente pelo aramaico Essa

influecircncia do aramaico sobre o hebraico jaacute pode ser vista nos livros poacutes-exiacutelicos

mais precisamente sobre ldquoos livros de Esdras e Daniel que contecircm capiacutetulos inteiros

escritos em aramaico sendo que em Daniel eles chegam agrave metade do totalrdquo (Meier

1993 p 260)

Contudo segundo Meier o hebraico continuou sendo uma liacutengua viva em

Israel principalmente em Qumran onde tinha primazia com o aramaico em

segundo lugar e o grego ocupando apenas uma distante terceira colocaccedilatildeo No

entanto o fato do hebraico ser a liacutengua oficial da comunidade de Qumran natildeo

confirma em nada que o hebraico fosse uma liacutengua usada no dia a dia dos demais

israelitas fora dessa restrita comunidade O que parece ser mais evidente era que o

hebraico aleacutem de em Qumran era usado por religiosos e grupos nacionalistas e por

judeus devotos e em algumas regiotildees de Israel ainda se falava e escrevia em

hebraico (Meier 1993 p 261)

Mesmo sendo o hebraico uma liacutengua viva em Israel Jesus segundo Meier

usava o aramaico para comunicar-se com os seus conterracircneos na vida diaacuteria uma

vez que se acredita que ele natildeo pertencia agrave comunidade de Qumran e nem agrave elite

dos religiosos da eacutepoca bem como seus ouvintes que em sua maioria pertenciam

agraves classes sociais mais humildes A maior evidecircncia disso estaacute nos aramaiacutesmos

registrados nos Evangelhos e especificamente no Evangelho de Marcos onde

encontramos a palavra Abba proferida por Jesus (Mc 1436) De acordo com Meier

116

J Jeremias relacionou 26 palavras aramaicas atribuiacutedas a Jesus nos evangelhos

Dessas palavras Meier opina que duas delas Talita cumi e Abba (Mc 5 41 14 36)

satildeo as que mais proacuteximas estatildeo do Jesus histoacuterico Para ele nem todos os

exemplos citados por J Jeremias podem ser comprovados entretanto alguns satildeo

uacuteteis para demonstrar a forma como Jesus instruiacutea os seus disciacutepulos (Meier 1993

p 264)

A questatildeo da liacutengua falada nos dias de Jesus eacute complexa uma vez que o

aramaico eacute uma liacutengua semiacutetica e estaacute intimamente relacionada com o hebraico No

entanto o aramaico natildeo eacute um dialeto do hebraico mas uma liacutengua semiacutetica distinta

De fato se partirmos do pensamento de Black e considerarmos que Jesus era um

Rabi na Galileia entatildeo natildeo podemos descartar a possibilidade de que ele fez uso

tanto do hebraico como do aramaico especialmente em suas disputas formais com

os fariseus (Black 1998 p16) Aleacutem disso ter conhecimento das duas liacutenguas natildeo

era nada anormal visto que segundo Missick em alguns casos as liacutenguas eram tatildeo

similares que existiam palavras usadas em ambas as liacutenguas com o mesmo

significado (Missick 2010 p 4)

Analisando a coexistecircncia das duas liacutenguas na Palestina nos dias de Jesus

observa-se que as origens do aramaico podem ser anotadas a partir do cativeiro

babilocircnico que ocorreu no periacuteodo de 586 a 539 aC antes disso o hebraico era a

liacutengua oficial dos judeus Com o retorno do hebraico como a liacutengua e a identificaccedilatildeo

da cultura e existecircncia do povo judeu o aramaico foi perdendo forccedilas ateacute ser

considerado uma liacutengua morta No entanto segundo Missick ainda existem

comunidades que falam o aramaico nos dias atuais como os cristatildeos assiacuterios63 do

Iratilde e do Iraque Antigos cristatildeos dessas regiotildees preservaram uma importante versatildeo

da Biacuteblia em aramaico que hoje eacute conhecida como a Biacuteblia Peshitta que segundo

Missick eacute muito valiosa porque a partir dela eacute possiacutevel estudar as palavras de

Jesus no aramaico pois acreditam os cristatildeos do oriente que os Evangelhos foram

63

Matthew Black observa que foi encontrado entre os siriacuteacos cristatildeos palestinos o dialeto aramaico

mais proacuteximo do aramaico dos Evangelhos enquanto que para Dalman segundo Black o aramaico que mais se aproxima do falado nos dias de Jesus era o aramaico dos Targuns judaicos para o Pentateuco e os profetas (cf Black 1998 p18-19)

117

primeiro escritos em aramaico e soacute depois traduzidos para o grego (Missick 2010

p5) 64

Para enfatizar a importacircncia do aramaico no Novo Testamento Missick

relaciona as palavras aramaicas compostas de oraccedilotildees tiacutetulos divinos nomes de

pessoas nomes de lugares e outras palavras e frases usadas no Novo Testamento

Abba (Mc 14 36) Eloiacute Eloiacute lemaacute sabachtaacuteni (Mc 15 34 cf Mt 2746) segundo

Missick se Jesus estivesse falando em hebraico ele teria dito Eli Eli lama azabanti

Nesse caso Jesus estaacute citando o Salmo 221 em aramaico Essa traduccedilatildeo do Antigo

Testamento eacute chamada de Targum65 pela tradiccedilatildeo judaica Dentre as palavras

relacionadas por Missick temos tambeacutem Maranatha (1 Co 1622) que

etimologicamente conforme a definiccedilatildeo dada por Missick (2010 p22-26) tem como

prefixo o termo ldquoMarrdquo que significa Senhor ou ldquoMaranrdquo que significa nosso Senhor

donde temos Maranatha que tem como definiccedilatildeo completa o significado de ldquonosso

Senhor vemrdquo (Marana tha) ou ainda ldquonosso Senhor estaacute vindordquo (Maran atha) Em

aramaico temos ainda outra palavra Rabboni (Jo 2016)

Em relaccedilatildeo aos nomes em aramaico mencionados no Novo Testamento

Missick argumenta que essas pessoas natildeo teriam outro motivo para receber nomes

64

Missick (2006 p170) refere-se a dois grupos significantes de cristatildeos que ainda falam o aramaico O primeiro grupo eacute composto por siacuterios Ortodoxos que vivem na Siacuteria O Segundo grupo do oriente (leste) da Siacuteria satildeo chamados de Assiacuterios e satildeo nativos do Iratilde e do Iraque conforme jaacute comentado acima Segundo Missick os cristatildeos mesmo sendo chamados de assiacuterios satildeo totalmente distintos da cultura do antigo Impeacuterio Assiacuterio A avanccedilada e militarista cultura da Assiacuteria antiga desapareceu com o tempo mas seus descendentes satildeo os modernos siacuterios do Oriente chamados de assiacuterios Os antigos assiacuterios falavam o Acadiano liacutengua falada por assiacuterios e babilocircnios que natildeo eacute mais falada na atualidade

Os atuais cristatildeos Siacuterios e Assiacuterios pertencem a denominaccedilotildees diferentes Segundo Missick (2006 p170) os siacuterios do oeste pertencem agrave Igreja Ortodoxa siacuteria e jaacute foram chamados de Jacobitas ou seja porque provinham do bispo Jacob Bardesanes (542-578 dC) Os cristatildeos chamados de assiacuterios eram conhecidos como nestorianos visto que o patriarca deles foi Nestoacuterio de Constantinopla um Patriarca da Igreja Ortodoxa grega (428-431 dC) A igreja no entanto eacute mais apropriadamente chamada de ldquoAntiga Igreja assiacuteria do Orienterdquo

65 Esta palavra eacute de origem natildeo semiacutetica mas foi adotada pelos judeus para designar tradiccedilatildeo (aqui

parece haver um equiacutevoco do comentador uma vez que a palavra Targum vem do hebraico lsquo targucircmimrsquo e significa traduccedilatildeo Cf La Sor 1999 p 670) ldquoOs targuns satildeo as traduccedilotildees aramaicas dos textos biacuteblicos destinados ao uso sinagogal Na sua origem essas traduccedilotildees eram orais e mais ou menos improvisadas e fragmentaacuterias sendo depois progressivamente fixadas por escrito e reunidas em grandes secccedilotildees (targum do Pentateuco targum dos Profetas targum dos Hagioacutegrefos) Mesmo quando eacute literal na aparecircncia o targum conteacutem elementos mais ou menos amplos de paraacutefrase ou de explicaccedilatildeo de atualizaccedilatildeo e ateacute de correccedilotildees Ele integra o midrash sobretudo na sua forma haggaacutedica Eacute possiacutevel que existisse um targum do Pentateuco ndash ou torah aramaica ndash na eacutepoca de Jesus e ateacute antes na Palestina A atividade targuacutemica evoluiacutera no decorrer dos seacuteculos em que foi praticada para a atividade propriamente midraacuteshica (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p11-12)

118

em aramaico se natildeo estivessem inseridos numa determinada comunidade que

falasse aramaico Missick cita como exemplo o prefixo ldquoBarrdquo antes de alguns nomes

que em aramaico tem o sentido de ldquofilho derdquo enquanto que para nomes em hebraico

se usava o prefixo ldquoBenrdquo que tambeacutem tinha o sentido de ldquofilho derdquo (Missick 2010

p26) Os nomes pessoais que segundo Missick tecircm origem no aramaico satildeo

Cephas (Jo 142 1 Co 112 Gl 29) Tomeacute que vem do aramaico ldquoteomardquo cujo

significado eacute gecircmeo (Jo 212) Simatildeo o Zelota (Mc 318) Maria Madalena que era

natural da cidade de Magdala que em aramaico significa Torre66 Tadeu e Lebeu (Mt

103) Tadeu em aramaico significa mamilo e Lebeu significa coraccedilatildeo

A extensa relaccedilatildeo de nomes pode ser assim resumida Tabita (At 936) Marta

(Lc 10 38-41 Jo 11 1-39 122) Bartolomeu (Mt 103) Jesus Barrabaacutes (Mt 2736)

Simatildeo Bar-Jonas (Mt 2716) Joseacute Barsabaacutes (At 123) Elimas Bar-Jesus (At 13 6-8)

Judas Barsabaacutes (At 15 22) Joseacute Barnabas ou Barnabeacute ndash Filho da profecia- (At

436) Aleacutem dos nomes de pessoas e dos tiacutetulos divinos em aramaico ainda

segundo Missick haacute vaacuterios nomes de cidades com origens no aramaico Gaacutebata (Jo

1913) Goacutelgota (Jo 19 17-18 Mc 1522) Betacircnia (Jo 111) Betesda (Jo 5 1-15)

Geena Mt 1028) Resta-nos ainda conforme Missick relacionar palavras e frases

em aramaico usadas no Novo Testamento Effatha (Mc 734) Taliacutetha Kum (Mc 541)

Raca (Mt 5 22) Mamon (Mt 624) Corban (Mc 7 9-13)

Para Missick natildeo haacute duacutevidas que Jesus falou aramaico Um dos argumentos

levantados por esse autor estaacute baseado no relato da morte de Judas conforme

registrou Lucas (At 119) No discurso de Pedro sobre a substituiccedilatildeo de Judas o

lugar onde o corpo de Judas caiu e se arrebentou ao meio conforme o texto

chamava-se Haceacuteldama na proacutepria liacutengua dos moradores de Jerusaleacutem Para

Missick essa palavra eacute aramaica e natildeo hebraica Se a palavra realmente eacute

aramaica entatildeo deduz-se que o idioma falado naqueles dias era o aramaico e natildeo

o hebraico e nem o grego muito menos o latim Missick conclui entatildeo que para se

compreender a mensagem de Jesus que antes de ser escrita foi transmitida

oralmente eacute necessaacuterio compreender as palavras na liacutengua em que Jesus as

66

Missick menciona que ela era conhecida como Madalena porque sua feacute era como uma torre Esse argumento foi defendido por Jerocircnimo contudo segundo Missick o mais provaacutevel eacute que ela tenha adquirido este tiacutetulo por ter vindo da cidade de Magdala (cf Missick p28)

119

proferiu e a melhor forma de alcanccedilar tal objetivo eacute compreender o aramaico

(Missick 2010 p4-35)

Entre os autores que defendem que o aramaico era a liacutengua dos galileus

contemporacircneos de Jesus encontramos tambeacutem Joseacute Pagola Jesus conforme

esse teoacutelogo falava o aramaico em casa assim como todos os galileus Pagola

ainda analisa que ateacute mesmo na Judeia se falava o aramaico no dia a dia Segundo

Pagola as diferenccedilas entre o aramaico da Galileia para o aramaico da Judeia era

apenas de dialeto (sotaque)

Embora o aramaico seja defendido pela maioria dos estudiosos de teologia do

Novo Testamento haacute no entanto autores que defendem que o hebraico natildeo

somente era uma liacutengua viva como era a mais falada nos dias de Jesus Para os

teoacutelogos David Biacutevin e Roy Bliacutezard Jr o hebraico era o idioma mais falado pelos

contemporacircneos de Jesus e dos primeiros cristatildeos Para esses autores um idioma

pode ser definido da seguinte maneira ldquoo idioma eacute uma expressatildeo no uso de uma

liacutenguagem que eacute peculiar a si proacuteprio na construccedilatildeo gramatical ou em ter um

significado que natildeo pode ser derivado como um todo a partir dos significados do

conjunto de seus elementos Na visatildeo deles o ldquohebraico eacute a chave para entender

as palavras de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p 2-4)

Os defensores do hebraico como a liacutengua falada na Palestina dos dias de

Jesus criticam os defensores da inerracircncia das Escrituras quando esses mesmo

depois de ler o texto de Atos 2614 em que Jesus fala em Hebraico com o apoacutestolo

Paulo e tambeacutem o texto de Atos 2140 no qual o mesmo apoacutestolo falou em hebraico

com uma multidatildeo satildeo os mesmos que afirmam que onde se diz hebraico deve-se

entender aramaico Para defender essa teoria eles argumentam que os mais

antigos manuscritos do Novo testamento datam do quarto e quinto seacuteculos da era

cristatilde (Codex Sinaiticus Codex Alexandrinus e Codex Bezae) afirmam que a

inscriccedilatildeo ldquoEste eacute o Rei dos Judeusrdquo estava escrito em grego latim e hebraico

Partindo desses argumentos Bivin e Bliacutezard lanccedilam a seguinte questatildeo

ldquoPorventura natildeo eacute significativo que os manuscritos gregos mais antigos infiram que

o hebraico era mais popular que o aramaico naquele periacuteodordquo (Biacutevin e Bliacutezard

2001 p8)

120

Biacutevin e Bliacutezard argumentam que mesmo a presenccedila de uma palavra aramaica

(Abba) no Evangelho de Marcos (Mc 1436) natildeo prova em nada a existecircncia de

uma liacutengua original falada em aramaico no periacuteodo de Jesus Para esses autores

Abba aparece sempre entre os escritos em hebraico daquele periacuteodo como uma

palavra de empreacutestimo A razatildeo para tal empreacutestimo do aramaico seria pelo fato

dessa palavra ter um ldquosabor especialrdquo quando usado como forma de relacionamento

entre os filhos e seus pais O sentido dessa expressatildeo pode ser relacionado com a

forma como os filhos se dirigem aos seus pais chamando-os de ldquodaddyrdquo (Papai) ou

ldquopapardquo (pai) em Inglecircs Um outro argumento ainda usado como forma de demonstrar

que usar Abba como forma de provar que a liacutengua falada por Jesus natildeo era o

aramaico eacute demonstrar que ainda hoje em Israel onde se fala o hebraico moderno

ldquoas crianccedilas usam Abba na abordagem de seus pais exatamente da mesma

maneira como foi usado no tempo de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p10)

Murphy-OConnor diferentemente de Biacutevin e Bliacutezard comunga da mesma

ideia de Jerocircnimo de que o apoacutestolo Paulo era de origem palestinense conforme os

textos de 2 Co 11 22 e Fl 3 5 onde Paulo identifica-se como ldquoisraelitardquo ldquodo povo de

Israelrdquo e como um ldquohebreurdquo Poreacutem quanto aos textos onde Lucas diz que Paulo

falou com a multidatildeo ldquonuma linguagem hebraicardquo (At 2140 222 2614) Murphy-

OConnor argumenta que a linguagem deveria significar aramaico e natildeo hebraico

Segundo esse autor naquela eacutepoca a maioria dos judeus jaacute natildeo conheciam mais o

hebraico e os textos das Escrituras nas sinagogas eram traduzidos para o aramaico

Outro argumento eacute que as palavras Gaacutebata (Jo 1913 o lugar onde Pilatos

condenou Jesus) e Goacutelgota (Jo 19 17) que satildeo mencionadas como palavras

hebraicas na verdade satildeo palavras aramaicas Sendo assim segundo Murphy-

OConnor a divisatildeo entre os primeiros cristatildeos de Jerusaleacutem (At 61) era permeada

pelos que falavam aramaico e pelos que falavam o grego (Murphy-OConnor 2008

p 29-30)

Matthew Black analisando a liacutengua falada por Jesus observa que alguns

estudiosos defendem o hebraico como a liacutengua vernaacutecula na Palestina dos dias de

Jesus Segundo Black alguns propotildeem que o hebraico natildeo era soacute apenas uma

forma literaacuteria de expressatildeo ou entatildeo apenas uma liacutengua falada nos ciacuterculos

rabiacutenicos mas o hebraico era um veiacuteculo normal de expressatildeo (Black 1998 p 47)

121

Douglas Hamp defende que o hebraico era realmente uma liacutengua muito viva nos

dias de Jesus e natildeo uma liacutengua morta como muitas vezes eacute dito Aleacutem de tudo para

ele o hebraico era a primeira liacutengua na Palestina nos dias de Jesus apesar de

segundo ele Jesus poderia ser triliacutengue ou seja falava hebraico aramaico e grego

e possivelmente ateacute o latim (Hamp 2005 p40) Hamp defende entatildeo que Jesus

provavelmente conhecia o aramaico e o grego e deve ter usado essas liacutenguas em

alguns contextos no entanto com seus disciacutepulos e na comunicaccedilatildeo com as

massas ele falou hebraico (Hamp 2005 p73)

Sobre a posiccedilatildeo daqueles que consideram o hebraico e natildeo o aramaico

como o vernaacuteculo ou seja a liacutengua mais falada nos dias de Jesus Black responde

ldquoesta posiccedilatildeo extrema tem encontrado pouco ou nenhum apoio entre as autoridades

competentes a evidecircncia da ipsissima verba de Jesus nos Evangelhos eacute impossiacutevel

de explicar se o aramaico natildeo era a liacutengua que Jesus falavardquo No entanto para ele eacute

provaacutevel que Jesus sendo um Rabi que comeccedilou seu ministeacuterio na Galileia e muito

bem versado nas Escrituras tenha sido capaz de ensinar com maestria tanto em

hebraico que poderia usar para ocasiotildees solenes como em aramaico com que se

comunicava com as massas (Black 1998 p 48-49)

Considerando as diversas opiniotildees sobre a liacutengua materna de Jesus

observamos que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus falava o aramaico

uma vez que esta foi a liacutengua predominante na Palestina apoacutes o exiacutelio babilocircnico

Contudo natildeo eacute tarefa faacutecil chegar a uma conclusatildeo Como vimos os estudiosos que

defendem o aramaico como a liacutengua materna de Jesus buscam como prova de tal

tese o argumento de que o Novo Testamento conteacutem muitas palavras aramaicas que

deviam ser comuns nos dias de Jesus Possivelmente o aramaico era uma liacutengua

falada pela populaccedilatildeo em geral enquanto que o hebraico reservava-se mais a

escrita de textos religiosos (sacros) e tambeacutem era usado pela classe sacerdotal que

por sua vez era mais elitizada Contudo devido agrave semelhanccedila entre as duas liacutenguas

torna-se difiacutecil delimitar uma linha divisoacuteria entre as mesmas uma vez que natildeo

possuiacutemos textos em aramaico da eacutepoca e natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz

que nos permita concluirmos com precisatildeo

122

6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS

Apoacutes termos apresentado a tese de J Jeremias sobre o Abba e alguns

pesquisadores que com ele concordam eacute oportuno tambeacutem olharmos algumas

teorias e pesquisadores que divergem de suas ideias

61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO

A relaccedilatildeo de paternidade divina no Antigo Testamento eacute refletida na literatura

poacutes-canocircnica do judaiacutesmo No Judaiacutesmo palestinense67 de acordo com J Jeremias

natildeo haacute relatos que em toda a literatura de Qumran que deve ser anterior a 68 a C

(Jeremias 1977 p17) de que Deus tenha sido invocado como Pai Haacute apenas uma

exceccedilatildeo em I QH 9 55 S ldquoEu te agradeccedilo oh Senhor porque natildeo abandonou a

paternidade ou desprezou o pobrerdquo (Vermes 2004 p274) A questatildeo da paternidade

divina era vista pelos rabinos como um direito dado apenas para aqueles que

cumpriam a Lei (Torah) (Jeremias p 1977 p19)

As oraccedilotildees judaicas eram dirigidas geralmente a Deus como nosso Pai

nosso Rei (abinu malkenu) 68 ldquoNosso Pai Nosso Rei Em vista de nossos pais que

creem em ti e a quem ensinas as leis da vida ndash tem piedade de noacutes e ilumina-nosrdquo

(Jeremias 1977 p18) Para J Jeremias mesmo essa oraccedilatildeo sendo antiga

podendo mesmo ser situada na eacutepoca de Jesus haacute algumas coisas que precisam

ser observadas A ecircnfase da oraccedilatildeo estaacute na duplicidade dos termos que se referem

a Deus ou seja ldquoDeus eacute invocado como o pai da comunidaderdquo e a comunidade por

sua vez invoca o Pai que ldquoeacute o rei celestial do povo de Deusrdquo (Jeremias 2008 p116)

Tambeacutem segundo J Jeremias esse texto foi escrito em hebraico que nos dias de

67

ldquo[] no judaiacutesmo palestinense do periacuteodo preacute-cristatildeo eacute rara a descriccedilatildeo de Deus como pai Nos

apoacutecrifos e pseudoepiacutegrafos no que diz respeito aos escritos de origem palestinense acha-se muito raramente (tob 134 Sir 5110 Jub 124-25 28 1929) enquanto os textos de Cunratilde oferecem um uacutenico exemplo isolado (1QH 935-36) No judaiacutesmo rab do seacuteculo I dC o emprego do nome Pai tornou-se mais generalizado mas ainda era muito menos frequente do que outras descriccedilotildees de Deus (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

68 Charlesworth afirma que Jesus invocava a Deus como Abba e natildeo como Abinu Charlesworth

entatildeo pergunta ldquonatildeo seraacute concebiacutevel que tenha chamado Deus de Abba porque tinha uma concepccedilatildeo de Deus que era de algumas maneiras diferente daquela da maioria de seus contemporacircneos (cf Charlesworth 1992 p148)

123

Jesus era uma liacutengua sacra usada com maior frequecircncia nas reuniotildees lituacutergicas e

natildeo como uma praacutetica comum no dia a dia (Jeremias 1977 p19)

Entre os escritos do judaiacutesmo palestinense haacute duas oraccedilotildees em que Deus eacute

invocado como Pai Satildeo invocaccedilotildees muito semelhantes do c 23 de Ben Sira

(Eclesiaacutestico) escrito por volta do comeccedilo do seacuteculo II aC (Jeremias 1977 p19)

Esses dois versiacuteculos (v1 e v4) onde Deus eacute invocado como ldquoPai e dono da minha

vidardquo e como ldquoSenhor Pai e Deus da minha vidardquo (Jeremias 1977 p19) poderiam

ser um preluacutedio do evangelho segundo J Jeremias se por volta da deacutecada de 40

natildeo tivesse sido descoberto uma paraacutefrase em hebraico desse texto que hoje existe

apenas em grego A paraacutefrase desse texto escrito em hebraico natildeo invoca Deus

como ldquoSenhor e Pairdquo mas invoca-o como ldquoDeus de meu Pairdquo Ficam evidentes

entatildeo as diferenccedilas entre o texto que temos em grego e a paraacutefrase em hebraico

Partindo desses raciociacutenios J Jeremias entatildeo conclui que mesmo que no

Judaiacutesmo da diaacutespora haja testemunhos esporaacutedicos da invocaccedilatildeo de Deus como

Pai (Jeremias 2008 p117) eles satildeo apenas ditos isolados nos quais Deus eacute

invocado como (Pater) mas sempre com influecircncia do helenismo e da liacutengua grega

(Jeremias 2008 p115-116) e natildeo se tem notiacutecias de que no judaiacutesmo palestinense

algum indiviacuteduo tenha dirigido-se a Deus chamando-o de meu Pai (Jeremias 1977

p 19-20)

Contudo J Jeremias ainda menciona uma oraccedilatildeo do final do seacuteculo 1 aC

feita por um homem chamado Hanin ha-Nehba conhecido por seu sucesso nas

oraccedilotildees para obter chuva Nessa oraccedilatildeo Deus eacute invocado como papai ou como o

Abba que tem o poder de enviar chuva

Quando o mundo precisava de chuva nossos mestres tinham o costume de lhe mandar crianccedilas das escolas que se agarravam ao seu manto e imploravam Abbaacute Abbaacute habh lan mitra papai papai daacute-nos chuvardquo E ele lhe (a Deus) dizia Senhor do universo concede-nos (a chuva) em vista destes que natildeo satildeo ainda capazes de distinguir entre um abbaacute que tem o poder de dar a chuva e um abbaacute que natildeo tem (Jeremias 1977 p 22)

Por fim o autor supracitado observa que mesmo que as evidecircncias sejam

favoraacuteveis a uma invocaccedilatildeo de Deus como papai (Abbaacute) ainda assim com um olhar

mais criterioso nota-se que a forma como Hanin invoca a Deus eacute tomada com um

tom carregado de humor e Hanin comeccedila a sua oraccedilatildeo dirigindo-se a Deus natildeo

como o Abba mas sim como o Senhor do universo J Jeremias vecirc essa histoacuteria

124

como um preluacutedio das afirmaccedilotildees de Jesus nos Evangelhos onde ele diz que ldquoo Pai

celeste sabe do que precisam os seus filhos (Mt 632) que ele envia a chuva sobre

os justos e os injustos (Mt 5 45) e daacute coisas boas aos seus filhos que lhas pedem

(Mt 711 par Lc 1113) (Jeremias 1977 p 23) Entatildeo J Jeremias tem como

resultado de suma importacircncia de que realmente natildeo existe nenhum testemunho

nas oraccedilotildees judaicas do uso do Abba (papai) em todo o judaiacutesmo Defende esse

autor que o emprego do Abba foi uma caracteriacutestica peculiar de Jesus dirigir-se a

Deus invocando-o como o Abba e isso coloca o abba como sendo a ipsissima vox

de Jesus (Jeremias 1977 p23)

Eis-nos pois autorizados a dizer por que natildeo se usa abbaacute nas oraccedilotildees Judaicas para invocar a Deus seria desrespeitoso e portanto impensaacutevel para uma mentalidade judaica chamar a Deus com um nome tatildeo familiar Foi algo de novo uacutenico e inaudito ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma crianccedila fala ao seu pai com simplicidade intimidade e sem temor Portanto natildeo haacute duacutevida alguma de que a palavra abbaacute utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus revela o proacuteprio fundamento de sua comunhatildeo com ele (Jeremias 1977 p25)

J Jeremias ainda conclui seu pensamento sobre o uso do Abba nas oraccedilotildees

judaicas ldquoUma revisatildeo da rica e abundante literatura oracional judaica ainda pouco

estudada leva-nos a conclusatildeo de que em nenhuma das suas passagens estaacute

atestado o termo abba para invocar a Deusrdquo (Jeremias 2006 p63)

Com um pensamento em alguns pontos diferentes ao de J Jeremias de que

para este Deus nunca foi invocado como pai no judaiacutesmo quer seja no Antigo

Testamento ou no judaiacutesmo palestinense Bultmann afirma que a visatildeo de Deus

como pai no Judaiacutesmo era corriqueira quer seja atraveacutes das oraccedilotildees ou ateacute mesmo

pelo piedoso individualmente Bultmann usa alguns textos como o Eclesiaacutestico 410

para justificar a sua tese ldquoSecirc um pai para os oacuterfatildeos e o substituto do esposo para as

viuacutevas Entatildeo Deus te chamaraacute de filho seraacute gracioso para contigo e te salvaraacute da

perdiccedilatildeordquo (Bultmann 2005 p 191)

A condiccedilatildeo de filho de Deus no judaiacutesmo pode ser tambeacutem escatoloacutegica Para

Bultmann o chamado Salmo de Salomatildeo (1730) trata sobre o regimento do

Messias no tempo do fim com as seguintes palavras ldquoEle os conhece e sabe que

satildeo todos filhos do seu Deusrdquo E para enfatizar ainda mais o seu argumento ele

ainda cita o ldquochamado Livro dos jubileus (1 24-25)rdquo no qual Deus em uma forma

escatoloacutegica promete para os israelitas no tempo da salvaccedilatildeo ldquoEles cumpriratildeo os

125

meus mandamentos e eu serei um pai para eles e eles seratildeo meus filhos E todos

eles se chamaratildeo filhos do Deus vivo e todos os anjos e todos os espiacuteritos os

conheceratildeo e saberatildeo que eles satildeo meus filhos e que eu sou o pai em firmeza e

justiccedila e que eu os amordquo

A ideia que Jesus tem da designaccedilatildeo de Deus como pai segundo Bultmann

natildeo traz nenhuma novidade a respeito do assunto pelo contraacuterio era jaacute uma

caracteriacutestica de muitas religiotildees e cosmovisotildees religiosas e entre elas encontra-se

a visatildeo dos antigos estoicos para os quais a ldquofiliaccedilatildeo divina cabe ao ser humano por

natureza e eacute algo que se aplica a ele na esfera das ideias logo que se situa aleacutem

de sua existecircncia concreta no aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p192-193)

A relaccedilatildeo de pai e filhos no judaiacutesmo ocorre de uma forma diferente da do

estoicismo Bultmann defende que no judaiacutesmo natildeo haacute uma relaccedilatildeo de pai e filhos

de Deus por natureza mas pela livre eleiccedilatildeo de Deus A filiaccedilatildeo divina portanto natildeo

eacute algo natural mas eacute algo miraculoso Quanto agrave possibilidade da filiaccedilatildeo essa natildeo eacute

exclusividade de um grupo pelo contraacuterio eacute aberta a todos pois o pai do ceacuteu provecirc

para todas as pessoas aquilo que necessitam (Mt 6 2632) Da mesma forma a

oportunidade para rogar ao pai do ceacuteu (Mt 7 7-11) eacute uma oportunidade oferecida a

todas as pessoas Dessa forma Bultmann declara que ldquo o ser humano eacute visto de

modo bem diferente ou seja natildeo como aquilo que eacute na esfera das ideias para aleacutem

de sua existecircncia concreta mas justamente como aquilo que eacute em sua existecircncia

na singularidade de seu aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p 193)

O conceito de paternidade no judaiacutesmo eacute tambeacutem discutido por Alon Goshen-

Gottstein em ldquoDeus como Pai no judaiacutesmordquo (Goshen-Gottstein 2001 p475) Para

ele a referecircncia rabiacutenica de Deus como pai no judaiacutesmo tambeacutem eacute uma

peculiaridade de Israel como naccedilatildeo natildeo que indiviacuteduos natildeo possam dirigir-se a Ele

como pai Mas natildeo eacute possiacutevel encontrar nas fontes sobre algueacutem que de forma

especiacutefica e individual tenha dirigido-se a Deus chamando-o de Pai No entanto

para Goshen-Gottstein essa relaccedilatildeo paternal era apenas um sentimento religioso

reciacuteproco de Israel para com Deus isto eacute chamar Deus de Pai era apenas uma das

muitas metaacuteforas que Israel usava para referir-se a Deus (Goshen-Gottstein 2001

p475)

Para Goshen-Gottstein os cristatildeos e judeus divergem muito sobre a questatildeo

da segunda e a terceira pessoas da trindade cristatilde parece que a primeira pessoa da

trindade (o Pai) eacute o elo que une o cristianismo e o judaiacutesmo num fundo teoloacutegico

126

comum Contudo ele pergunta sobre em que extensatildeo a pessoa do Pai eacute um

conceito comum para o judaiacutesmo e para o cristianismo (Goshen-Gottstein 2001

p471) Goshen-Gottstein coloca que o primeiro problema eacute metodoloacutegico visto que

eacute natural que os pesquisadores do Novo Testamento vasculhem a literatura rabiacutenica

agrave procura daquilo que apenas lhes interessa A exemplo disso esse autor observa

que teoacutelogos cristatildeos pentearam a literatura rabiacutenica em busca de exemplos de

expressotildees sobre o ldquoPai celesterdquo que estatildeo no singular ou no plural para dessa

forma avaliar a importacircncia que a expressatildeo ldquoPai celesterdquo tem na literatura rabiacutenica

quando analisada sobre a perspectiva da intimidade e relaccedilatildeo pessoal que o ldquoPai

Celesterdquo tinha para os autores rabiacutenicos Goshen-Gottstein vecirc isso como perda de

tempo pois considera que as fontes rabiacutenicas natildeo podem ser analisadas para fins

especiacuteficos mas devem ser apreciadas a partir da unicidade das suas estruturas

literaacuterias meacutetodos de expressatildeo e convenccedilotildees estiliacutesticas (Goshen-Gottstein 2001

p473)

Referindo-se ao conceito de metaacuteforas atribuiacutedas a Deus Goshen-Gottstein

afirma que descrever Deus como Pai no Judaiacutesmo natildeo eacute essencial ou fundamental

Esse conceito tem uma conotaccedilatildeo religiosa e faz parte de um vocabulaacuterio religioso

Ele eacute apenas uma descriccedilatildeo repleta de imagens e metaacuteforas que faz parte de um

vocabulaacuterio religioso que daacute expressatildeo aos sentimentos do povo e que enchem o

espectro de Israel Portanto para Goshen-Gottstein ldquoPairdquo natildeo eacute uma expressatildeo

privilegiada dentro do judaiacutesmo e tambeacutem ldquonatildeo eacute o nome proacuteprio de Deus Antes eacute

uma das inuacutemeras metaacuteforas atraveacutes das quais Israel se refere a Deusrdquo A

paternidade na literatura rabiacutenica eacute sempre vista em relaccedilatildeo a Israel como naccedilatildeo

Embora Goshen-Gottstein afirme tal expressatildeo ele admite que haja casos em que

indiviacuteduos se dirijam a Deus como Pai inclusive em fontes biacuteblicas No entanto natildeo

se encontra em nenhuma fonte Deus sendo considerado Pai de um indiviacuteduo

somente Sempre Deus eacute visto como sendo o Pai de Israel poreacutem isso natildeo

evidencia que a paternidade de Deus natildeo seja estendida a outros fora de Israel pelo

menos natildeo encontramos na literatura rabiacutenica textos que suponham tal expressatildeo

O que Goshen-Gottstein procura deixar claro eacute que a referecircncia rabiacutenica a Deus

como Pai estaacute fundamentalmente fiel ao uso biacuteblico Isso difere de Filo para quem

Deus o Pai eacute tambeacutem Deus o Criador do mundo Para os rabinos a paternidade

divina se refere somente em relaccedilatildeo a Israel ou seja as fontes referem-se a Deus

127

como Pai somente no contexto do relacionamento especial de Israel com Deus

(Goshen-Gottstein 2001 p475)

A representaccedilatildeo metafoacuterica de Deus como Pai de Israel eacute tambeacutem defendida

por Vermes em Jesus e o mundo do Judaiacutesmo Vermes defende que Deus foi

representado metaforicamente como Pai do povo eleito (Israel) natildeo somente na

literatura biacuteblica mas tambeacutem na literatura apoacutecrifa Entre os textos biacuteblicos por ele

citados encontram-se os seguintes ldquoEu sou pai para Israel e Efraim eacute o meu

primogecircnitordquo (Jr 319) ldquoE no entanto Senhor tu eacutes o nosso Pairdquo [] todos noacutes

somos obras de suas matildeosrdquo (Is 647) ldquoSerei para ele um Pai e ele seraacute para mim

um filho e seraacute chamado filho do Deus vivo (Jub 1 24-25) ldquoFiz a vontade do Abba

que estaacute nos ceacuteusrdquo (Lv R 321) ldquoOacute Senhor Pai Soberano (ou Deus) da minha vidardquo

(Sr 23 14) ldquoA tua providecircncia oacute Pai eacute o seu pilotordquo (Sb 14 3) Vermes apoacutes

analisar os textos das fontes mencionadas acima e outros natildeo reluta em afirmar que

a invocaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rica no judaiacutesmo antigo (Vermes 1996 p53)

Analisando as teses de J Jeremias concernentes ao Abba de Jesus Vermes

observa que elas estatildeo sujeitas a questionamentos J Jeremias defende que Abba

quando dirigido a Deus em forma de invocaccedilatildeo natildeo se encontra na oraccedilatildeo judaica

antiga Vermes contudo soacute concordaria com essa tese se fosse possiacutevel analisar

todas as oraccedilotildees individuais e confirmar que em nenhuma delas algum indiviacuteduo

dirigiu-se a Deus em oraccedilatildeo com a forma invocativa do Abba Para Vermes o

seguinte pensamento de David Flusser resume bem os argumentos acima

apresentados ldquoJ Jeremias natildeo conseguiu encontrar o uso de Abba como vocativo

para Deus na literatura talmuacutedica poreacutem considerando a escassez de material

rabiacutenico sobre a oraccedilatildeo carismaacutetica isso natildeo nos diz muita coisardquo (Vermes 1996

p55)

Goshen-Gottstein fazendo referecircncia a Joseph Heinemann justifica a tese de

Vermes de que eacute preciso distinguir a oraccedilatildeo judaica antiga quando era puacuteblica e

coletiva da oraccedilatildeo de um indiviacuteduo Seguindo esse argumento observa-se que a

oraccedilatildeo puacuteblica recorre a linguagem e padrotildees especiacuteficos enquanto que a oraccedilatildeo

quando efetuada pelo indiviacuteduo eacute mais livre e tambeacutem mais carismaacutetica Nesse

sentido o exemplo por excelecircncia de oraccedilatildeo livre e individual eacute a oraccedilatildeo do Senhor

(Goshen-Gottstein 2001 p487)

Dentre os argumentos contraacuterios a visatildeo de J Jeremias temos ainda a

refutaccedilatildeo de Vermes sobre a tese em que J Jeremias defende que Jesus dirigia-se

128

a Deus chamando-o de ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo Para Vermes essa forma invocativa

realmente era usada pelas criancinhas quando essas se dirigiam aos seus pais

Contudo Vermes natildeo concorda que abba ou imma tenha tido uma uacutenica forma

determinada de uso Para ele na eacutepoca de Jesus abba poderia tambeacutem possuir

simplesmente o significado de ldquomeu pairdquo principalmente quando usadas em

situaccedilotildees solenes que natildeo tinham nada de infantil ldquocomo na altercaccedilatildeo imaginaacuteria

entre os patriarcas Judaacute e Joseacute relatado no Targum Palestino quando o furioso Judaacute

ameaccedila o governador [vizir] do Egito (seu irmatildeo que ele natildeo reconhecera) dizendo

Juro pela vida da cabeccedila de abba (meu pai) tal como tu juras pela cabeccedila do Faraoacute

teu senhor que se tirar a espada da bainha natildeo a devolverei mais enquanto a terra

do Egito natildeo tiver coberta de cadaacuteveresrdquo (Vermes 1996 p55)

James Barr tambeacutem eacute de acordo que abba era uma palavra usada por

adultos embora tambeacutem fosse muito usada por crianccedilas Segundo Barr no grego do

Novo Testamento a palavra ldquopaterrdquo (pai) eacute normalmente usada para referir-se a

figura paterna Contudo ele observa que na liacutengua grega tambeacutem havia uma palavra

em particular no diminutivo pertencente agrave fala das crianccedilas um pouco semelhante agrave

palavra Daddy em Inglecircs (papai) Poreacutem mesmo existindo a palavra em grego natildeo

haacute indiacutecio algum de que tal palavra tenha sido usada no Novo Testamento (Barr

1988 p 36-38)

As teorias com visotildees diferentes das de J Jeremias satildeo muitas como temos

visto Vermes conforme vimos acima eacute enfaacutetico ao contrapor J Jeremias

considerando as teses do professor de Gotinga sobre o Abba como incongruentes e

desprovidas de bases linguiacutesticas

[] J Jeremias compreendia que Jesus dirigia-se a Deus por ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo contudo afora a improbabilidade e incongruecircncia a priori dessa teoria parece natildeo haver bases linguiacutesticas para ela As criancinhas falantes de aramaico dirigiam-se aos seus pais por meio de abba ou imma mas esse natildeo era o uacutenico contexto do uso de abba Na eacutepoca de Jesus a forma determinada do nome abba (- ldquoo pairdquo) tambeacutem significava ldquomeu pairdquo ldquomeu pairdquo se bem que ainda atestado em qumran e no aramaico biacuteblico praticamente jaacute desaparecera como forma idiomaacutetica do dialeto galileu (Vermes 1996 p55)

No apecircndice de seu livro ldquoA Religiatildeo de Jesus o Judeurdquo Geza Vermes posta

um resumo da tese de J Jeremias sobre o Abba de Jesus (The Prayers of Jesus de

1967) baseadas em um artigo ldquoAbba natildeo eacute Papairdquo (Abba isnt Daddy) de James

129

Barr Os argumentos de J Jeremias estatildeo expostos da seguinte maneira conforme

transcritos abaixo

a) O termo aramaico eacute ldquouma expressatildeo puramente exclamatoacuteriardquo como em

Pai e natildeo um aspecto enfaacutetico correspondente em inglecircs a um substantivo

acompanhado do artigo definido (= o pai)

b) A origem do Abba se encontra no balbuciar do ldquofalar infantilrdquo A geminaccedilatildeo

ab-ba (ldquoDadaacuterdquo) tem como modelo o chamado mais frequente do bebecirc agrave Im-ma

(ldquoMamardquo)

c) Essa forma de invocaccedilatildeo eacute de tom tatildeo familiar que sua associaccedilatildeo com a

Deidade chocaria os judeus comuns de liacutengua aramaica como ldquodesrespeitosardquo

d) Seu emprego por Jesus era ldquoalgo de novo e inauditordquo

e) Abba no aramaico da Palestina tornou-se uma expressatildeo polivalente As

diversas expressotildees nos Evangelhos em Grego como ldquoo Pairdquo ldquoPairdquo (vocativo) e

tambeacutem ldquomeuteunosso Pairdquo (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)

podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus

Para Vermes se J Jeremias estiver correto isso pode trazer tantas

implicaccedilotildees porque o estilo de Jesus dirigir-se a Deus seria tatildeo peculiar a ponto de

representar um idiossincrasia Vermes prefere entender que J Jeremias

compreendeu mal o Abba de Jesus e ateacute por uma questatildeo de teimosia persistiu

defendo tal tese Ele ainda reafirma que o Abba natildeo era apenas o linguajar infantil

mas poderia ser usado em momentos solenes ou religiosos Vermes cita uma vez

mais James Barr dizendo que ironicamente esse observa ldquoque a teoria de J

Jeremias vinculando Abba agraves crianccedilas considera uma situaccedilatildeo que antedata Jesus

em alguns milecircniosrdquo Para fechar a analogia de Barr Vermes ainda cita-o ldquoComo

Explanaccedilatildeo de Abba nos tempos do Novo Testamento o balbuciar infantil natildeo faz

sentidordquo

A refutaccedilatildeo de Vermes eacute enfaacutetica ou seja explicitamente ele coloca sua visatildeo

teoloacutegica sobre o Abba de Jesus como uma contestaccedilatildeo a todos os argumentos de

J Jeremias Para finalizar Vermes assim resume seu pensamento sobre a teoria de

J Jeremias ldquo[] a teoria de J Jeremias popular ateacute agora natildeo encontra

fundamento filoloacutegico A conclusatildeo literaacuterio-histoacuterica dessa teoria vale dizer que

antes de Jesus os judeus natildeo se dirigiam a Deus como Abba natildeo eacute apenas

incomprovada como tambeacutem implausiacutevelrdquo (Vermes 1995 p163-167)

130

Apoacutes os diversos argumentos contraacuterios a J Jeremias concluiacutemos com

Swidler que fazendo menccedilatildeo de Georg Schelbert observa que aleacutem do termo

abba natildeo havia nenhuma outra palavra a disposiccedilatildeo de Jesus se ele quisesse falar

de Deus ou a Deus como Pai Se essa era a uacutenica forma de Jesus dirigir-se a Deus

entatildeo ela natildeo poderia ter nada de especial como afirma J Jeremias ateacute porque

como mostra Schelbert a Mishnaacute (que significa ensinamento que eacute recitado

oralmente) mostra um relacionamento iacutentimo com Deus como o Pai do Ceacuteu (Swidler

1993 p73-75) Em relaccedilatildeo ao termo abba Barr conclui que eacute razoaacutevel que abba no

tempo de Jesus pertencia a uma linguagem familiar ou coloquial distinto do uso

formal e cerimonioso mas por outro lado tendo em vista o uso do Targum seria

imprudente comparaacute-la a expressatildeo infantil Daddy (papai) O uso do abba era mais

solene podemos dizer que estava mais relacionado ao uso do adulto para com seu

Pai (Barr 1988 p 46)

62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA

LEITURA A PARTIR DA TEOLOGIA FEMINISTA

A figura feminina sempre foi discriminada pelas sociedades patriarcais ao

longo dos seacuteculos da histoacuteria da humanidade Podemos dizer que o cristianismo um

importante movimento de massa a pregar a liberdade e a igualdade entre os homens

e mulheres ldquoNatildeo haacute judeu nem grego natildeo haacute escravo nem livre natildeo haacute homem

nem mulher pois todos voacutes sois um soacute em Cristo Jesusrdquo (Gl 3 28) 69 Eacute comum

ouvirmos que Jesus libertou as mulheres uma vez que em seu ministeacuterio o mestre

da Galileia teve como disciacutepulas vaacuterias mulheres inclusive como jaacute mencionamos

neste trabalho (53) Maria Madalena (cf Lc 8 2 2410)

Elisabeth Schuumlssler Fiorenza referindo-se a Leonard Swidler vai mais aleacutem

quando afirma que Jesus foi um feminista e isso foi primeiramente atestado por um

estudioso homem e natildeo por uma mulher70 Schuumlssler Fiorenza apela para o fato de

Jesus ter tido disciacutepulas e tambeacutem ter violado as leis de pureza (algo que era

69

Swidler refere-se a esse texto de Paulo como uma contestaccedilatildeo a uma oraccedilatildeo rabiacutenica que diz ldquoLouvado seja Deus por natildeo me ter criado gentio Louvado seja Deus por natildeo ter me criado mulher Louvado seja Deus por natildeo ter me criado ignoranterdquo (Swidler 1993 p 101)

70 Basicamente para Swidler feminista eacute a pessoa a favor da igualdade de homens e mulheres ou

seja a pessoa que trata primeiramente a mulher como uma pessoa assim como os homens satildeo tratados (Swidler 1993 p100)

131

contraacuterio aos rabinos judeus) como argumento para fundamentar a tese de um

Jesus feminista (Schuumlssler Fiorenza 2005 p 37)

Contudo para Swidler a atitude feminista era uma exclusividade de Jesus e

natildeo dos evangelistas e suas fontes Para ele a Igreja primitiva tornou-se

rapidamente antifeminista como pode ser visto em textos como ldquo[] estejam as

mulheres caladas nas assembleias pois natildeo lhes eacute permitido tornar a palavra

Devem ficar submissas como diz tambeacutem a Lei (1Cor 14 34)rdquo Swidler ainda cita

outro texto (1Tm 2 11-12) que diz que ldquodurante a instruccedilatildeo a mulher conserve o

silecircncio com toda a submissatildeo Natildeo permito que a mulher ensine ou domine o

homem Que ela conserve o silecircnciordquo Para Swidler a Igreja natildeo soacute se tornou

antifeminista como tambeacutem se tornou misoacutegina uma vez que aleacutem dos textos acima

mencionados jaacute no II seacuteculo Tertuliano refere-se agraves mulheres com as palavras ldquosois

o portatildeo do diabordquo Natildeo bastasse Tertuliano Oriacutegenes afirma que ldquoaquilo que eacute visto

com os olhos do criador eacute masculino e natildeo feminino pois Deus natildeo se curva para

olhar aquilo que eacute feminino e da carnerdquo (Swidler 1993 p106)

Tal afirmaccedilatildeo (Jesus libertou as mulheres) eacute muito bem aceita entre as

teoacutelogas feministas e por todos que defendem essa teoria Para Schuumlssler Fiorenza

Jesus natildeo somente libertou as mulheres da degradaccedilatildeo imposta pela sociedade

judaica patriarcal da antiguidade (apesar dessa tese ser considerada como

historicamente falsa e antijudaica pelas teoacutelogas feministas judias) como tambeacutem o

proacuteprio Jesus era um feminista (Fiorenza 2005 p110)

Conforme Swidler a condiccedilatildeo das mulheres na sociedade contemporacircnea de

Jesus na Palestina era sem duacutevida de inferioridade em relaccedilatildeo aos homens

Segundo Swidler natildeo obstante o fato de ter havido vaacuterias heroiacutenas nas Escrituras

hebraicas natildeo impediu que nos dias de Jesus e ateacute muito tempo depois natildeo fosse

concedido agraves mulheres a permissatildeo de estudar a Toraacute Swidler citando um texto da

Mishnaacute (Sita 34) refere-se a um rabino do seacuteculo I chamado Eliezer que

pronunciou as seguintes palavras referindo-se agraves mulheres ldquoAs palavras da Toraacute

deveriam antes ser queimadas do que confiadas a uma mulher [] todo aquele que

ensina a Toraacute a sua filha eacute como aquele que lhe ensina a lasciacuteviardquo (Swidler 1993

p100-101)

As mulheres no templo de Jerusaleacutem estavam limitadas agrave parte externa ou

seja ficavam no paacutetio das mulheres que estavam cinco degraus abaixo do paacutetio dos

homens Nas sinagogas aleacutem de ficarem separadas dos homens natildeo tinham

132

permissatildeo para ler em voz alta muito menos assumir alguma funccedilatildeo de lideranccedila

Swidler cita Filon contemporacircneo de Jesus que pensava que as mulheres natildeo

deviam sair de casa a uacutenica exceccedilatildeo era para ir agrave sinagoga e preferencialmente

em horaacuterios em que a maioria das pessoas estivessem em casa De uma maneira

geral as mulheres serviam apenas para ter filhos estavam sempre sob a tutela de

um homem que seria o marido ou no caso de viuvez sob a tutela do irmatildeo do

falecido sem contar com o fato de que tinham que se sujeitar a poligamia (ainda que

natildeo muito praticada nos dias de Jesus) eram facilmente repudiadas com a carta de

divoacutercio poreacutem natildeo tinham permissatildeo para se divorciarem Enfim ldquoa condiccedilatildeo das

mulheres na Palestina era aquela dos inferioresrdquo (cf Swidler 1993 p102-104)

A teologia de J Jeremias referente agrave relaccedilatildeo de Deus como Pai nos laacutebios de

Jesus de Nazareacute71 natildeo eacute aceita em algumas correntes teoloacutegicas como por

exemplo pelos defensores da teologia feminista72 Poreacutem quando falamos do

movimento feminista natildeo significa que exista um uacutenico ponto de vista sobre um

mesmo pensamento teoloacutegico Algumas feministas que adotam o pensamento de

reforma da tradiccedilatildeo o qual implica em conservar o que eacute melhor ao inveacutes de

simplesmente imitar as tradiccedilotildees lutam por uma reforma e uma flexibilidade na

linguagem da igreja quando o assunto se refere agrave pessoa de Deus argumentando

que o uso exclusivo da imagem masculina natildeo faz justiccedila agrave imagem biacuteblica de Deus

mas limita o acesso ao entendimento que temos de Deus Para essa corrente

feminista a imagem de Deus natildeo estaacute relacionada a gecircnero visto que Deus pode

ser visto tanto como pai e como matildee segundo Marianne Thompson para uma parte

dessas feministas e ainda para outras portanto a ideia central natildeo eacute descartar a

71 Elisabeth Schuumlssler Fiorenza observa que os livros e artigos sobre ldquoJesus e as mulheresrdquo se

proliferam contudo ela cita Crossan quando este acusa as feministas pela falta de interesse na busca pelo Jesus histoacuterico Crossan pergunta onde estatildeo elas Schuumlssler responde ldquoCrossan natildeo pode reconhecer as afinidades entre seu proacuteprio modelo de reconstruccedilatildeo histoacuterica e o meu modelo feminista (cf Schuumlssler 2005 p 30)

72 Haight coloca que a teologia feminista eacute por muitos comparada agrave teologia da libertaccedilatildeo uma vez

que compartilham de ideais e estrutura formal comum no que diz respeito agrave libertaccedilatildeo e tambeacutem a maioria dos pobres no mundo eacute constituiacuteda de mulheres ldquo[] No que tange agrave loacutegica hermenecircutica da teologia portanto as teoacutelogas feministas podem referir-se a si mesmas como teoacutelogas da libertaccedilatildeo [] Na medida em que o androcentrismo controla o significado de Jesus cristo a cristologia feminista eacute levada a questionar como uma figura masculina de Salvador pode oferecer a salvaccedilatildeo agraves mulheres Em termos mais amplos contudo a cristologia feminista ocupa-se de toda a forma de opressatildeo e de suas inter-relaccedilotildees O Deus mediado por Jesus Cristo coloca em xeque todo poder de dominaccedilatildeo Natildeo era o sexo mas o gecircnero como categoria cultural que tinha primazia e era parte da ordem das coisas O significado de homem e de mulher era determinado pela posiccedilatildeo na hierarquia social e pelo lugar que se ocupava na sociedade natildeo pela genitaacuteliardquo (cf Haight 2003 p37)

133

linguagem de Deus como Pai mas apenas incluir essa com outra variedade de

imagens de Deus (Thompson 2000 p 3)

Para outras feministas no entanto nenhum acordo sobre a questatildeo da

imagem paterna de Deus pode ser atingido facilmente pois tais questotildees natildeo

podem ser tatildeo facilmente resolvidas e as respostas necessaacuterias satildeo muito radicais

pois trariam uma postura revolucionaacuteria para a tradiccedilatildeo Para elas o uso histoacuterico

que a Igreja tem da linguagem exclusivamente masculina de Deus deve ser

inteiramente refeito73 Em vez de buscar as reformas dentro das estruturas atuais da

igreja ou dentro de construccedilotildees teoloacutegicas tradicionais essas feministas oferecem

uma pauta mais radical o que tem implicaccedilotildees natildeo apenas para a linguagem sobre

Deus mas tambeacutem para o carater baacutesico de toda a teologia e feacute cristatilde Algumas

feministas satildeo mais radicais ainda pois explicitamente rejeitam as tradiccedilotildees da feacute

cristatilde afirmando que os textos cristatildeos e a feacute satildeo inevitavelmente e

intoleravelmente patriarcal elas abandonaram o cristianismo por completo

(Thompson 2000 p 4)

Para Thompsom (2000 p 18) a designaccedilatildeo de Deus como Pai natildeo eacute

invenccedilatildeo de Jesus e nem criaccedilatildeo da Igreja primitiva A designaccedilatildeo de Deus como

Pai faz parte de ambos os Testamentos ou como o Pai que eacute o ancestral que daacute a

vida e lega uma heranccedila aos seus filhos ou como o Pai que ama e cuida dos seus

filhos ou ainda como o Pai que eacute uma figura de autoridade a quem se deve

obediecircncia e honra Thompsom afirma que Jesus dirigiu-se a Deus como Pai em

primeira instacircncia natildeo como um mero testemunho de sua proacutepria experiecircncia de

Deus mas ao inveacutes disso pelas suas proacuteprias convicccedilotildees de Deus como renovador

e restaurador de Israel ou seja isso natildeo era fruto de uma experiecircncia privada mas

assunto de uma missatildeo puacuteblica Essa afirmaccedilatildeo de Thompson natildeo se coaduna com

o pensamento de J Jeremias para quem a relaccedilatildeo de Jesus com o Pai era iacutentima e

pessoal

Nesse sentido Mary Rose DAngelo ao analisar o texto do Evangelho de

Marcos 1436 quando Jesus invocava o Pai (Ἀββᾶ ὁ πατήρ) ela observa que a

73

Elisabeth Schuumlssler Fiorenza em seu livro Jesus e a poliacutetica da interpretaccedilatildeo coloca uma teoria polecircmica ou pelo menos curiosa Segundo Schuumlssler os antropoacutelogos tecircm assinalado que nem todas as culturas e liacutenguas conhecem dois sexosgecircneros e que mesmo em culturas ocidentais isso eacute coisa da modernidade ldquoDurante milhares de anos considerava-se comum que as mulheres tivessem o mesmo sexo e os mesmos oacutergatildeos genitais que os homens estando a diferenccedila no fato de se acharem no interior do corpo ao passo que os dos homens estavam no exterior A vagina era entendida como um pecircnis interior os laacutebios como prepuacutecio o uacutetero como saco escrotal e os ovaacuterios como testiacuteculosrdquo (cf Schuumlssler 2005 p9)

134

oraccedilatildeo contida nesse texto pode ser apenas redacional visto que tal oraccedilatildeo ocorreu

no cenaacuterio do Getsecircmani onde Jesus estava naquele momento sem os seus

disciacutepulos portanto eles natildeo estavam laacute para ouvir e descrever o momento de sua

agonia Ela concorda com a teoria de que a narrativa desse cenaacuterio poderia ser

apenas um soliloacutequio dramaacutetico de Jesus ou entatildeo uma repeticcedilatildeo da oraccedilatildeo de

Joseph (4Q372 1 23-24) onde ele suplica para que Deus natildeo lhe abandone Para

D`Angelo a narrativa de Marcos tende muito para o lado emotivo procurando

dessa forma colocar Jesus como o verdadeiro Filho de Deus e grande maacutertir da

histoacuteria do judaiacutesmo conforme os livros Sabedoria de Salomatildeo e 3 Macabeus (D`

Angelo 1992b p159) Em outro artigo (Abba and ldquoFatherrdquo Imperial Theology and

the Jesus Traditions) D Angelo reafirma seu argumento sobre o cenaacuterio do

Getsecircmani dizendo ldquoEsta eacute uma cena da revelaccedilatildeo entre Jesus e leitor os

disciacutepulos estatildeo laacute para relatar a agonia de Jesus Assim a atribuiccedilatildeo de abba a

Jesus natildeo tem muacuteltipla atestaccedilatildeo Na verdade ocorre apenas em uma cena que

quase certamente deriva da atividade literaacuteria de Marcosrdquo (D` Angelo 1992a p614-

615)

Segundo D Angelo o uso do Abba pela Igreja primitiva natildeo eacute uma heranccedila dos

ensinamentos de Jesus como acreditam alguns teoacutelogos De acordo com essa

autora o uso do Abba na Igreja primitiva era mais uma questatildeo de ecircxtase provocada

por uma accedilatildeo do Espiacuterito Santo do que uma referecircncia agraves palavras ditas por Jesus

Para a autora se o Abba usado nas igrejas tivesse uma ligaccedilatildeo direta com Jesus

entatildeo seriamos obrigados a aceitar que outras palavras de origem aramaica como

Maranatha tambeacutem seriam provenientes dos discursos do mestre (D Angelo 1992a

p 615)

Um outro argumento defendido por D` Angelo eacute que o uso da expressatildeo ldquoAbba

Pairdquo no Evangelho de Marcos eacute anti-imperialista visto que o Imperador de Roma

considerava-se o pai da paacutetria (parens patriae pater patriae) preferindo ser

reconhecido com o tiacutetulo de pai ao tiacutetulo de rei designaccedilatildeo esta que natildeo soava bem

aos ouvidos do povo romano (D` Angelo 1992a p623-630) De fato de acordo com

DAngelo foi concedido a Juacutelio Cesar ainda em vida o tiacutetulo de ldquopaterldquo (pai) o qual

buscava estabelecer uma relaccedilatildeo de devoccedilatildeo (pietas) entre ele e o povo romano

Isso se deve ao fato que o uso de pater subentende o impeacuterio como uma grande

famiacutelia na qual o imperador funciona como um paterfamilias e cuja autoridade eacute

baseada em sua habilidade de reger todo o povo romano como seus clientes Ainda

135

seguindo com essa visatildeo imperialista observa-se que Augusto adquiriu oficialmente

o tiacutetulo pater patriae no ano 2 aC

No intuito de descrever o caraacuteter dos imperadores DAngelo aponta que

Cassius Dio o qual acreditava que os tiacutetulos supracitados representavam mais

afeiccedilatildeo do que autoridade tratou augustus e pater como duas denominaccedilotildees

atraveacutes das quais os imperadores primeiro permitiam a si mesmos serem

distinguidos do resto dos cidadatildeos substituindo o tiacutetulo ldquoreirdquo por tais designaccedilotildees

cujas essecircncias soariam de maneira menos ofensiva aos ouvidos dos romanos De

acordo com Dio o termo pater concorda com a ideia que o Imperador tem a mesma

autoridade que um pai tem sobre seus filhos escravo e outros sujeitos

Por outro lado dois filoacutesofos estoicos do primeiro e segundo seacuteculos nos

ajudam a entender como o tiacutetulo pai concedido ao Imperador poderia sofrer uma

reaccedilatildeo com o pensamento teoloacutegico da eacutepoca Para Dio Crisoacutestomo ldquoDeus como

pai racionaliza o governo imperial e convida-o a adotar um coacutedigo de eacutetica de

clemecircncia e de responsabilidaderdquo ao descrever que o bom rei eacute aquele que prefere a

labuta aos prazeres e as riquezas Tal rei prefere o tiacutetulo ldquopairdquo ao referir-se agrave sua

capacidade de provisatildeo Jaacute Epiacuteteto ldquousa a paternidade de Deus para oferecer uma

dignidade alternativa para aqueles que natildeo tecircm acesso ao poder dentro da ordem

imperialrdquo Esses dois autores satildeo importantes para o cristianismo primitivo e para o

judaiacutesmo natildeo pela influecircncia que exerceram sobre eles mas porque respondem as

mesmas realidades poliacuteticas

Um outro argumento de DAngelo com relaccedilatildeo ao uso de Abba por Jesus eacute

que o mesmo natildeo pode ser explicado apenas como uma relaccedilatildeo afetiva entre pai e

filho mas tambeacutem reflete a praacutetica carismaacutetica da comunidade na qual Marcos

estava inserido assim como ocorreu nas igrejas de origem grega da Galaacutecia e em

Roma (Gl 46 Rm 816) onde o uso da palavra ldquoAbbardquo eacute fruto da accedilatildeo do Espiacuterito

Santo

D`Angelo justifica essa tese a partir do fato que segundo ela J Jeremias

tomou como base em seus estudos apenas os textos provenientes de oraccedilotildees e

ainda excluiu textos em grego os quais ele considerou serem oraccedilotildees feitas pela

comunidade e natildeo como fruto de uma accedilatildeo do indiviacuteduo (D`Angelo 1992b p151)

Para dar suporte a esse argumento D`Angelo faz referecircncia ao texto de 4Q372 1

originalmente escrito em hebraico no qual Joseph invoca a Deus chamando-o de

meu Pai ldquoMeu Pai e meu Deus natildeo me abandone nas matildeos das naccedilotildees faccedila

136

justiccedila por mim o aflito e pobre pereciacutevel Vocecirc natildeo precisa de nenhuma pessoa ou

naccedilatildeo para lhe ajudar seu dedo eacute maior e mais forte do que qualquer coisa no

mundordquo (Vermes 2004 p566) Ela ainda cita outros textos onde Deus eacute invocado

como Pai (3 Mac 6 3-4 78 Sab 143 1 QH 935)

Embora alguns desses textos tenham sido escritos em grego quando lidos no

contexto de 4Q372 1 e 4Q460 5 DAngelo observa os textos hebraicos e gregos

mostram que era uma praacutetica comum tanto da comunidade quanto do indiviacuteduo

dirigir-se a Deus em oraccedilotildees chamando-o de Pai (D`Angelo 1992b p 152) Dessa

forma ela entende que o conceito de Deus como Pai sempre esteve presente no

judaiacutesmo antigo influenciando toda a literatura judaica da eacutepoca (DAngelo 1992a

618)

Face aos argumentos acima expostos D Angelo conclui que a originalidade

do uso do Abba natildeo pode ser atribuiacutedo a Jesus com toda certeza e mais ainda

segundo ela seria menos provaacutevel que Jesus usasse o termo pai numa linguagem

familiar do que em resistecircncia agrave ordem do Impeacuterio romano

Finalmente considerando os argumentos apresentados a partir da

interpretaccedilatildeo feminista Thompson conclui que tanto Jesus como a Igreja primitiva

natildeo deram origem ao conceito de Deus como Pai Aleacutem disso apesar das

caracteriacutesticas do Pai no Israel antigo serem utilizadas para falar de Deus como Pai

elas nunca estiveram ligadas a uma essecircncia masculina de Deus mas servem como

exemplo de feacute misericoacuterdia justiccedila humildade bem como responsabilidade

individual e corporativa e obediecircncia a Deus para a comunidade (Thompson 2000

p 19)

137

7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Naquela noite em sonhos Joseacute teve um aviso O Evangelista natildeo diz em que cidade ou lugar a famiacutelia se encontrava Natildeo devia ser do lado norte e talvez fosse mesmo nas montanhas do sul fora do alcance das batidas policiais de Herodes Suponhamos que fosse na estrada do Heacutebron Com a cabeccedila reclinada sobre uma pedra o carpinteiro adormece E eis que o anjo do Senhor (aquele mesmo que lhe confiara a guarda de Jesus) lhe diz - Levanta-te e toma o menino e sua matildee e foge para o Egito e demora-te laacute ateacute que eu diga porque Herodes haacute de procurar o menino para o matar Joseacute desperta Sobre os montes luzem os primeiros alvores da madrugada Prepara o alforje avisa Maria para que tambeacutem se prepare porque longa eacute a viagem [] Joseacute sela o jumento acomoda Maria e o Menino sobre o animal Toma o bordatildeo E parte A viagem prolonga-se por muitos dias pela Idumeacuteia pelas montanhas de Sin pelo deserto de Sur Uma tarde sobre as colinas a cavaleiro do Nilo avistam as piracircmides de Miquerinos de Queacutefren e de Queops grandiosas e silenciosas no ar trecircmulo de mormaccedilo Junto agrave piracircmide de Miquerinos olhando para o abismo do ceacuteu e para a amplitude do deserto uma cabeccedila gigantesca de pedra tem indefiniacutevel indecifraacutevel expressatildeo Eacute a grande esfinge [] Os egiacutepcios viam naquele rochedo a imagem humana do sol Os gregos viam naquela imagem o monstro proponente de problemas insoluacuteveis (Salgado 1985 p67-69)

Em tom poeacutetico Plinio Salgado narra a histoacuteria da fuga do menino Jesus e

seus pais para o Egito conforme o texto do Evangelho de Mateus que diz ldquo[] eis

que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonhos a Joseacute e lhe disse Levanta-te toma

o menino e sua matildee e foge para o Egitordquo (Mt 213) Salgado usa o mito da esfinge74

para relacionar com o mito de Eacutedipo onde o enigma eacute decifrado pelo personagem

Eacutedipo75 Para Salgado Eacutedipo decifrou a Esfinge mas natildeo decifrou o homem que

continua nas trevas

A pergunta do monstro na estrada de Tebas refere-se ao homem ldquoQual eacute o animal que pela manhatilde anda com quatro pernas ao meio-dia com duas e agrave

74

Segundo Plinio Salgado o mito da Esfinge rezava que enquanto ser vivente misto de leatildeo e de mulher a Esfinge andava pelas estradas de Tebas devorando os viajantes que eram incapazes de responder as suas perguntas enigmaacuteticas Contudo o monstro morreria quando algueacutem decifrasse seu enigma

75 O mito de Eacutedipo pode ser visto com detalhes no claacutessico Antiacutegona de Soacutefocles

138

tarde com trecircsrdquo Eacutedipo responde ldquoEacute o homemrdquo e respondendo revela que toda a preocupaccedilatildeo da Esfinge eacute o gecircnero humano Decifrar a Esfinge eacute a preocupaccedilatildeo do homem Decifrar o homem eacute a preocupaccedilatildeo da Esfinge (Salgado 1985 p67-69)

Conforme Salgado a trageacutedia de Eacutedipo eacute a trageacutedia do homem Somente

Jesus decifraraacute a ldquoEsfinge-Homem e iluminaraacute todo o universordquo

A histoacuteria da humanidade eacute repleta de trageacutedias desde as suas origens Jaacute

nos primeiros capiacutetulos do Gecircnesis vemos Abel sendo viacutetima de seu irmatildeo Caim 76

Diante de tantas cataacutestrofes o homem procura refuacutegio em um ser sobrenatural que

possa amenizar seu sofrimento e dar-lhe alguma explicaccedilatildeo para o porquecirc de tantos

desalentos nesta vida

A relaccedilatildeo do ser humano com o Ser sobrenatural faz parte da cultura de todos

os povos antigos como vimos no primeiro capiacutetulo deste trabalho Isso nos mostra o

anseio do ser humano em busca do seu criador Observamos que para os povos

antigos Deus era visto como um ancestral divino ou seja o homem era visto como

descendente da divindade Essa relaccedilatildeo entre o homem primitivo e a deidade nos

povos antigos era sempre marcada por sangue violecircncia guerra entre os deuses

ateacute o surgimento do homem como vimos no mito sumeacuterio babilocircnico em que o

homem proveacutem do sangue de um deus decaiacutedo chamado Kingu

Em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem na narrativa do Gecircnesis verificamos que o

proacuteprio Deus eacute quem modela e cria o homem a partir do barro (argila) O homem

entatildeo recebe a vida atraveacutes do sopro divino Essa relaccedilatildeo tatildeo proacutexima entre criatura

e criador eacute descrita nas Escrituras de uma forma progressiva desde o Gecircnesis ateacute

os escritos neotestamentaacuterios Agrave medida que Deus se revela ao homem este se

aproxima mais dele Aos patriarcas Deus eacute o El Shaday (Todo Poderoso) mas jaacute a

Moiseacutes ele revela o seu proacuteprio Nome Ele eacute o ldquoEu Sourdquo o Yahweh

Mesmo Yahweh sendo um Deus proacuteximo Ele ainda eacute visto no Antigo

Testamento como figura de um Senhor Criador o Todo Poderoso que luta e peleja

por Israel mas que ao mesmo tempo em que defende seu povo pune-os e os

entrega nas matildeos dos inimigos quando esses se desviam dos seus mandamentos

J Jeremias sabiamente observa que no Antigo Testamento a relaccedilatildeo de Israel com

Deus natildeo eacute vista como o relacionamento de pai para filho principalmente por parte

76

Cf Gn 4 1-16

139

do indiviacuteduo Deus sempre se apresenta como o Pai do rei ou entatildeo como o Pai da

naccedilatildeo Mesmo que Pai seja uma das muitas metaacuteforas para Deus como afirma

Goshen-Gottstein dificilmente podemos contestar a tese de J Jeremias uma vez

que uma clara invocaccedilatildeo de Deus como Pai feita por algum indiviacuteduo no Antigo

Testamento eacute difiacutecil de ser encontrada

Em relaccedilatildeo ao Novo Testamento observamos que Jesus que conviveu em

uma sociedade muito pobre carregada de preconceitos viu na expressatildeo Abba a

forma por excelecircncia para projetar nela o modelo de uma verdadeira e iacutentima

relaccedilatildeo entre filho e pai O fato de Jesus ter sofrido preconceitos como em sua

infacircncia adolescecircncia e ateacute na vida adulta por causa da sua filiaccedilatildeo humana natildeo o

impediu de demonstrar o quanto a sua relaccedilatildeo com o Pai divino era estreita e isso

estava acima de todos os preconceitos concebidos dentro de uma sociedade cheia

de costumes rigidamente observados a ponto de natildeo mais compreenderem o

verdadeiro sentido do amor a Deus e ao proacuteximo conforme era a verdadeira

vontade de Deus expressa nos ensinamentos do mestre da Galileia

Embora Joseacute tenha assumido a paternidade de Jesus isso natildeo foi suficiente

para impedir o preconceito contra ele em relaccedilatildeo a sua filiaccedilatildeo humana Contudo

quando Bruce Chilton potildee a questatildeo relacionada agrave possibilidade de Jesus ter sido

considerado um Mamzer a partir da interpretaccedilatildeo do texto do Evangelho de Joatildeo 8

40-41 onde os Judeus fazem a seguinte afirmaccedilatildeo a Jesus ldquo[] natildeo nascemos da

prostituiccedilatildeo temos um soacute pai Deusrdquo podemos tambeacutem olhar esse texto a partir de

uma interpretaccedilatildeo de uma Cristologia alta ou seja aqui o debate entre Jesus e os

judeus tem como ponto principal a filiaccedilatildeo divina onde Jesus se coloca como o

Verbo divino preexistente Poreacutem eacute bem verdade que isso natildeo anula o pensamento

de Chilton em relaccedilatildeo agrave possiacutevel discriminaccedilatildeo sofrida por Jesus levando em

consideraccedilatildeo o contexto a eacutepoca a cultura e o ambiente social em que Jesus viveu

durante o periacuteodo da infacircncia ateacute a vida adulta

Aleacutem disso podemos dizer com Martins Terra que a vida de Cristo eacute a

Revelaccedilatildeo do Pai que pode ser demonstrada nas palavras no silecircncio e nos

sofrimentos de Jesus Martins Terra observa que essa relaccedilatildeo eacute plena de intimidade

como pode ser visto nas palavras do proacuteprio Mestre ldquoAquele que me viu viu o Pairdquo

(Jo 149) e da mesma forma o Pai tambeacutem pode dizer assim do Filho ldquoEste eacute o

140

meu Filho muito amado ouvi-o (Lc 935)rdquo Notamos aqui que a relaccedilatildeo de Jesus

com o Pai eacute desde a eternidade onde o Verbo divino jaacute estava presente com o Pai

na criaccedilatildeo de todas as coisas (Martins Terra 2009 p283-284)

Para Martins Terra assim como para J Jeremias o Abba de Jesus eacute o

modelo da perfeita relaccedilatildeo dos filhos de Deus com o Pai do ceacuteu Assim como Jesus

relacionou-se com o Pai divino seus disciacutepulos tambeacutem o poderatildeo desde que se

aproximem e ldquoamem a Deus acima de todas as coisas e o proacuteximo como a si

mesmordquo Eacute na oraccedilatildeo do Pai Nosso que Jesus ensina como os disciacutepulos devem

orar em uma estreita ligaccedilatildeo com o Abba conforme nos descreve Martins Terra

[] Os disciacutepulos ficam impressionados com a oraccedilatildeo de Jesus Ele chamava a Deus de Aba (Mc 14 36) que natildeo eacute um termo usado nas oraccedilotildees judaicas Aba eacute um diminutivo aramaico que significa ldquopapairdquo Eacute a expressatildeo de uma crianccedila dirigindo-se a seu progenitor Jesus natildeo pode desde o inicio revelar o misteacuterio da Santiacutessima Trindade e de sua pessoa divina Esse misteacuterio natildeo tinha sido revelado no AT Foi invocando a Deus como Aba ldquomeu Pairdquo que Jesus foi levantando aos poucos o veacuteu que ocultava o misteacuterio da trindade e do seu relacionamento filial uacutenico com o Pai (Martins Terra 2009 p283-284)

Aleacutem disso de acordo com James D G Dunn podemos dizer com confianccedila

que Jesus experimentou uma iacutentima relaccedilatildeo com Deus expressa atraveacutes da oraccedilatildeo

Ele se relacionou com Deus caracteristicamente como Filho e Pai e o sentido dessa

relaccedilatildeo com Deus era tatildeo real tatildeo amorosa e tatildeo atraente que Jesus sempre se

dirigiu a Deus dessa maneira chamando-o de Pai ldquoAbba foi o grito que veio mais

naturalmente aos laacutebios de Jesusrdquo (Dunn 1997 p26)

Segundo J Jeremias para compreendermos o Abba como a ipsissima vox de

Jesus eacute preciso observar a origem de sua liacutengua materna Conforme observamos

no decorrer desta pesquisa haacute alguns pesquisadores que defendem que a liacutengua

corrente nos dias de Jesus era o hebraico e por sinal tambeacutem falada por Jesus

Esse argumento natildeo eacute seguido pela maioria dos especialistas do Novo Testamento

bem como por J Jeremias A liacutengua falada por Jesus era do ldquoramo ocidental da

famiacutelia linguiacutestica aramaicardquo J Jeremias para embasar sua tese menciona

respeitaacuteveis nomes como J Wellhausen Jouumlon Matthew Black e principalmente G

Dalman (Jeremias 2008 p32-33) que ldquoapresentou a prova baacutesica para este fatordquo

Tendo Dalman ainda como referecircncia J Jeremias afirma que natildeo eacute possiacutevel mais

141

duvidar que o aramaico ou para ser mais preciso ldquoo dialeto galileu do aramaico

ocidentalrdquo era a liacutengua materna de Jesus

As evidecircncias aramaicas satildeo evidentes nos ditos de Jesus por outro lado

praticamente natildeo se encontra palavras em hebraico ditas por ele nem mesmo o

ldquoAmenrdquo ou ldquoEliacuterdquo uma vez que essas palavras foram absorvidas pelo aramaico

(Jeremias 2008 p36) J Jeremias admite que em alguns poucos casos

encontramos palavras hebraicas nos laacutebios de Jesus mas sempre em situaccedilotildees

solenes como as palavras proferidas na uacuteltima ceia em liacutengua sacra

A importacircncia do aramaico como a primeira liacutengua de Jesus encontra-se na

possibilidade de nos aproximarmos o quanto possiacutevel do modo de falar do mestre

ou seja voltarmos ldquoagraves caracteriacutesticas da dicccedilatildeo de Jesus que natildeo possuem

nenhuma analogia na literatura da eacutepoca e que por isso podem ser consideradas

como marcas da ipsissima vox de Jesusrdquo (cf Jeremias 2008 p 68-79) Entre as

particularidades de Jesus concernentes agrave fala encontramos as seguintes

peculiaridades conforme J Jeremias

1 - As paraacutebolas de Jesus satildeo exclusividade dele natildeo encontradas em toda a

literatura judaica do Antigo ou do Novo Testamento quer canocircnica ou apoacutecrifa Nas

paraacutebolas de Jesus natildeo se encontra nenhuma faacutebula ou seja ele nunca coloca

uma videira ou figueira para falar Suas paraacutebolas (mesmo contendo metaacuteforas do

Antigo Testamento) tinham por maior finalidade atingir o coraccedilatildeo pulsante do ouvinte

e tratar de assuntos relacionados ao dia-a-dia da vida do ser humano

2 - Os ditos enigmaacuteticos como o proferido sobre Joatildeo Batista ldquoo maior entre

os nascidos de mulher eacute ao mesmo tempo o menor no reino de Deusrdquo (Mt11 11)

eram incomuns nos dias de Jesus seja entre os mestres ou ateacute mesmo dos

primeiros cristatildeos que natildeo inventaram tais ditos mas apenas os tornaram mais

evidentes

3 ndash A expressatildeo ldquoreino de Deusrdquo eacute escassa na literatura judaica antiga

recebendo um aumento apenas na literatura rabiacutenica Contudo nos Evangelhos natildeo

soacute o aumento mas a forma que Jesus usa as expressotildees relacionadas ao reino de

Deus satildeo profundamente marcantes para se caracterizar como a ipsissima vox de

Jesus conforme encontramos em textos como Mateus 519 11 12 Marcos 115

Lucas 112 1231 1721 etc

142

4 ndash O termo Ameacutem como jaacute foi mencionado nesta pesquisa (54) no Antigo

Testamento era usado como foacutermula solene para confirmar ldquouma palavra de benccedilatildeo

maldiccedilatildeo ou desejordquo Nos laacutebios de Jesus o termo eacute usado para testificar as

proacuteprias palavras do falante e natildeo de outrem J Jeremias conclui sobre o ameacutem

com as seguintes palavras ldquoA novidade desse uso linguiacutestico sua estrita restriccedilatildeo

agraves palavras de Jesus e o testemunho unacircnime de todas as camadas da tradiccedilatildeo

evidenciam que nos deparamos com uma inovaccedilatildeo linguiacutestica nos laacutebios de Jesusrdquo

5 ndash E por uacuteltimo temos o Abba proferido por Jesus Abba eacute a mais importante

palavra pronunciada por Jesus quando invocava a Deus com o Pai eacute o modo

preferido de Jesus para referir-se ao Pai Dificilmente poderiacuteamos interpretar o Abba

de Jesus como faz Malina comentando o Abba natildeo eacute paizinho de James Barr

Como tem sido demonstrado por James Barr (1988) a palavra aramaica Abba natildeo significa ldquopaizinhordquo como no hebraico moderno Tanto na traduccedilatildeo do Novo Testamento (Abba = ho pater Mc 14 36 Rm 815 Gl46) quanto de honra No patriarcado ele implica tambeacutem distacircncia Deus natildeo eacute um paizinho mas um patrono Na religiatildeo poliacutetica pregada por Jesus o deus de Israel eacute o patrono de Israel (cf Malina 2004 p145)

Compreende-se portanto que o Abba proferido por Jesus eacute ipsissima vox

Julgar J Jeremias alegando que ele considerou o linguajar de Jesus infantil natildeo eacute

cabiacutevel dentro do contexto de toda a sua teologia J Jeremias defende-se dessa

acusaccedilatildeo que a princiacutepio ateacute poderia ser justa uma vez que ele admite que jaacute

chegou a acreditar que Jesus tenha assumido a linguagem das criancinhas quando

se dirigia a Deus Pai como ele mesmo admite ldquoeu tambeacutem acreditei nissordquo

contudo agora natildeo mais jaacute que nas proacuteprias palavras desse teoacutelogo ele assim

admite ldquoa constataccedilatildeo de que jaacute desde os tempos preacute-cristatildeos os filhos e filhas

adultos se dirigiam a seus pais chamando-os de Abba proiacutebe esta limitaccedilatildeordquo

(Jeremias 2008 p121)

Portanto no Abba de Jesus natildeo haacute espaccedilos para patriarcados exclusivistas

uma vez que o proacuteprio ldquoFilho de Deusrdquo na sua condiccedilatildeo de homem acolheu os

pobres religiosos doentes e marginalizados pela sociedade cobradores de

impostos e tambeacutem acolheu o que a sociedade machista da eacutepoca mais discriminou

as mulheres Talvez seja uma precipitaccedilatildeo eliminar a linguagem metafoacuterica da

palavra Pai ou mesmo deixar de observar nela o conceito anti-imperialista ou ateacute

mesmo a patronagem No entanto natildeo podemos deixar de priorizar que para Jesus

143

Abba era uma palavra sagrada era ldquoa revelaccedilatildeo Deus porque Deus se tinha dado a

conhecer a ele como seu Pairdquo (Mt 11 27) um ldquoPairdquo acolhedor que quis ajuntar os

seus filhos como a galinha ajunta os seus os seus pintos debaixo das suas asas (cf

Lucas 1334)

A paternidade de Deus conforme J Jeremias natildeo eacute algo natural tambeacutem

natildeo eacute uma posse de todos os seres humanos mas reserva-se apenas aos

disciacutepulos uma vez que Jesus nunca dirigiu a expressatildeo ldquovosso Pairdquo a algueacutem que

estivesse fora do rol dos seus seguidores A filiaccedilatildeo faz parte do reino (basileia) de

Deus Uma das exigecircncias para fazer parte de tal reino eacute tornar-se como uma

crianccedila (Mt 183) Essa filiaccedilatildeo eacute escatoloacutegica eacute um dom salviacutefico de Deus (J

Jeremias 2008 p 271-273)

O Pai apresentado por Jesus eacute bom e cuida dos seus lsquopequeninosrsquo jaacute que

ele sabe do que eles realmente precisam (Mt 6 8 32) A invocaccedilatildeo de Deus como

Abba eacute mais forte do que todas as adversidades e anguacutestias mesmo que Satatilde

ldquoqueira peneirar o disciacutepulordquo (Lc 22 31) o Pai do ceacuteu ldquoeacute mais forte do que todos os

problemas enigmas e anguacutestias e sabe do que precisam os filhos do reino (J

Jeremias 2008 p276) O ponto central de toda essa exposiccedilatildeo sobre o Abba

consiste no ldquovoltar a ser como uma crianccedilardquo O significado disso estaacute em tornar-se

dependente do Pai voltar para os braccedilos do Pai (cf Lc 15 11-32) depositar total

confianccedila nele enfim resumimos isso nas palavras de J Jeremias ldquovoltar a ser

crianccedilardquo significa reaprender a dizer Abba (J Jeremias 2008 p 238) como diz J

Jeremias ldquo[] Abba eacute percebido como um grande privileacutegiordquo Ter a coragem de

chamar Deus de Pai proveacutem da conscientizaccedilatildeo da filiaccedilatildeo satildeo os filhos que podem

dizer Abbardquo (J Jeremias 2008 p293)

Jesus de Nazareacute o Filho de Deus o homem que dividiu a histoacuteria em antes e

depois dele mudou os rumos da humanidade para sempre Amado e odiado

apregoado e perseguido mas nunca esquecido Verificamos ao longo deste trabalho

as mais variadas teorias sobre ele ora como um mago um judeu marginal um

profeta um bastardo um judeu praticante ou apenas uma figura lendaacuteria

embelezada por seus seguidores Schuumlssler Fiorenza relata uma histoacuteria rabiacutenica

em que Moiseacutes visita o rabino Akiva Ao ouvir os infindaacuteveis discursos sobre a Toraacute

Moiseacutes teria perguntado ldquoquem escrevera aquelas coisas grandiosas que ele jamais

144

tomara conhecimentordquo Schuumlssler Fiorenza (2005 p1) relacionando a histoacuteria

rabiacutenica sobre a Toraacute com as milhares escritas sobre Jesus ela levanta a seguinte

questatildeo ldquoSe Jesus tal como Moiseacutes voltasse a terra lesse todas as suas biografias

e frequentasse o Jesus Seminar ou fosse agrave reuniatildeo anual da Society of Biblical

Literature tambeacutem se maravilharia e perguntaria tomado de assombro Quem eacute

essa pessoa de quem estatildeo falandordquo

A busca pelo Jesus da histoacuteria levou a tantos extremos mas com certeza

acrescentou inuacutemeros fatos ou ateacute mesmo suposiccedilotildees que enriqueceram o

conhecimento que temos hoje sobre Jesus e os Evangelhos Eacute inegaacutevel o fato de

que os Evangelhos natildeo satildeo histoacuteria no sentido moderno e que os disciacutepulos natildeo

tinham a mesma pretensatildeo ou necessidade de relatar os fatos em detalhes visto

que viveram em um mundo cultura e eacutepoca totalmente diferente da nossa cultura

ocidental Portanto quanto mais perto quisermos chegar do Jesus humano mais

perto devemos nos aproximar da cultura do seacuteculo I

Sobre o divisor de aacuteguas entre J Jeremias e Bultmann ou seja se devemos

buscar pelo Jesus da histoacuteria ou pelo Cristo querigmaacutetico nada melhor do que

concluir com as palavras do proacuteprio J Jeremias

A boa nova sobre Jesus e o testemunho da feacute da igreja primitiva estatildeo indissoluvelmente ligados Natildeo podemos isolar nenhuma dessas magnitudes Pois o evangelho de Jesus se converte em histoacuteria morta sem o testemunho de feacute da igreja (a qual estaacute transmitindo sem cessar esse evangelho e o estaacute confessando e testemunhando sempre novamente) Sem Jesus e seu evangelho a igreja natildeo pregava mais que uma ideia um teorema Quem isola a pregaccedilatildeo de Jesus termina no ebionismo Quem isola o querigma da igreja primitiva termina no docetismo (Jeremias 2006 p 42)

Portanto descrever sobre Jesus realmente natildeo eacute tarefa faacutecil como parece

ser Como afirmar que ele era analfabeto ou entatildeo um rabi letrado da Galileia As

evidecircncias internas como vimos levam-nos a pensar em um homem que escrevia

lia e interpretava as Escrituras Por outro lado como nos mostra Crossan as

evidecircncias externas levam-nos a pensar em um camponecircs sofredor e iletrado como

a maioria dos galileus ou entatildeo dos judeus subjugados ao terriacutevel e impiedoso

Impeacuterio romano principalmente a Galileia diretamente afetada pelo deacutespota

Herodes Antipas

145

O importante eacute que Jesus com ou sem instruccedilatildeo douto ou indouto

conseguiu com a graccedila do Pai dos Ceacuteus deixar aos homens de todas as eacutepocas o

exemplo de um servo sofredor de amor ao proacuteximo de renuacutencia e acima de tudo

de um homem que cumpriu com toda a vontade e propoacutesitos de Deus Pai para a

salvaccedilatildeo da humanidade O apoacutestolo Joatildeo o descreveu como o Verbo o Logos

preexistente que existe antes de todas as coisas uma vez que as mesmas foram

criadas por ele

146

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Page 4: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2020. 3. 10. · segundo Joachim Jeremias. Para isso, realizamos o estudo do Jesus histórico e seu contexto social,

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo a Deus pela inspiraccedilatildeo e pela vida sem as quais natildeo seria possiacutevel concluir este trabalho

Agradeccedilo a minha esposa Josiane pela compreensatildeo e apoio nas inuacutemeras horas em que me dediquei agrave pesquisa abdicando dos momentos que poderiam ser aproveitados junto da famiacutelia e em especial agrave nossa filha Sofia Gabriela que nasceu durante o periacuteodo da minha pesquisa trazendo luz alegria e motivaccedilatildeo para que essa empreitada fosse concluiacuteda

Agradeccedilo aos meus pais pela educaccedilatildeo a mim proporcionada e em especial a minha tia Eli Kowalski por ter tornado possiacutevel meu sonho de cursar teologia em uma instituiccedilatildeo de ensino superior o qual ampliou meus horizontes para o labor teoloacutegico e por fim abriu o caminho para mais esta conquista

Meu agradecimento especial ao meu orientador Prof Dr Vicente Artuso por ter acreditado na possibilidade desta pesquisa e me fornecido o suporte necessaacuterio para a concretizaccedilatildeo deste trabalho

Agradeccedilo ao corpo docente e ao programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Teologia da PUC-PR pela contribuiccedilatildeo valiosa em minha formaccedilatildeo teoloacutegica durante todo o processo

Agradeccedilo agrave secretaacuteria Maria pela paciecircncia e eficiecircncia nas informaccedilotildees fornecidas desde o primeiro contato com a instituiccedilatildeo

Agradeccedilo a Marta pela disponibilidade e empenho na correccedilatildeo ortograacutefica e gramatical desta dissertaccedilatildeo

Agradeccedilo aos dirigentes do Studium Theologicum de Curitiba por ter permitido a utilizaccedilatildeo da biblioteca na qual encontrei grande parte da bibliografia aqui utilizada e a Flaacutevia pela paciecircncia e disponibilidade no auxiacutelio agraves consultas bibliograacuteficas

RESUMO

O objetivo deste trabalho eacute levar-nos agrave compreensatildeo da relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo Joachim Jeremias Para isso realizamos o estudo do Jesus histoacuterico e seu contexto social poliacutetico e religioso bem como a visatildeo que os povos antigos incluindo o Israel do Antigo Testamento tinham de Deus Por fim visotildees contraacuterias agrave interpretaccedilatildeo de J Jeremias satildeo apresentadas As diversas teorias que os homens tecircm da paternidade divina chamam agrave nossa atenccedilatildeo para a incessante busca da humanidade para identificar-se com o Criador especificamente com a figura de um Deus Pai No entanto nesta pesquisa observamos que mesmo no judaiacutesmo onde natildeo encontramos a antiga imagem de uma deusa matildee observamos a figura de um Deus Pai com afetos e sentimentos maternos Para J Jeremias eacute com Jesus que o relacionamento do humano com o Pai divino atinge seu aacutepice atraveacutes da magna expressatildeo ldquoAbba Pai Segundo este autor Jesus de um balbucio das criancinhas teria tornado o Abba Pai uma expressatildeo sagrada entre os seus disciacutepulos a ponto de posteriormente ela ser absorvida pelas comunidades cristatildes primitivas como a forma de comunicaccedilatildeo do Espiacuterito para testificar no interior do disciacutepulo que este agora eacute tambeacutem filho de Deus A teoria de que o Abba natildeo era apenas um balbucio infantil ou muito menos um termo sagrado eacute contestada por correntes teoloacutegicas judaicas e feministas que veem os argumentos de J Jeremias como infundados ou repletos de exageros No entanto ao final da pesquisa procuramos mostrar que mesmo diante de tais contestaccedilotildees a paternidade divina proclamada por Jesus natildeo eacute natural ou seja uma posse de todos os seres humanos mas exclusividade dele e dos seus disciacutepulos uma vez que a filiaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica do reino de Deus e soacute os filhos do reino eacute quem podem usufruir de tal privileacutegio e dirigir-se a Deus invocando-o como o Abba Pai Jesus de Nazareacute nesta pesquisa eacute o exemplo a ser seguido no tocante agrave humildade e sofrimento numa sociedade profundamente marcada pelo preconceito e desigualdade social Compreendecirc-lo e segui-lo na sua humanidade eacute um grande passo para aproximar-se dele como o Cristo poacutes-pascal onde a revelaccedilatildeo do divino ao humano se concretiza com toda a plenitude Palavras-chave Jesus histoacuterico Paternidade divina

ABSTRACT

This work aims to understand the relationship between Jesus and God the Father according to Joachim Jeremias For this we studied the historical Jesus and his social political and religious context as well the ancient people view of God including the view of Israel from Old Testament Finally views that are opposed to Jeremias are presented The various theories that men have on the fatherhood of God call our attention to the relentless pursuit of humanity to identify with the Creator specifically with a figure of God the Father However in this study we observed that even in Judaism where it cannot find the ancient image of a mother goddess we see a picture of a God Father with affection and maternal feelings For J Jeremias it is in Jesus that the relationship of the human with the divine Father reaches its peak through the magna term Abba Father According to this author Jesus through a babble of little children would have made the Abba Father a sacred expression among his disciples and He subsequently extent it in order to being absorbed by the early Christian communities as a way of communicating of the Spirit to testify within the disciple that he is also the son of God The theory that Abba was not just a babbling child or much less a sacred term is challenged by current theological and Jewish feminists who see the arguments of J Jeremias as unfounded or exaggerated However at the end of the study we sought to show that even in the face of such challenges the fatherhood of God proclaimed by Jesus is not natural ie a possession of all human beings but it is exclusive to Him and his disciples once the sonship is a feature of the kingdom of God and only the children of the kingdom is the one who can enjoy such a privilege and turn to God calling him Abba Father Jesus of Nazareth on this research is the example to be followed regarding the humility and suffering in a society deeply marked by prejudice and social inequality To understand and follow Him in his humanity is a big step to be close to him as the post-Passover Christ where the revelation of the divine to the human is fully realized Key-words Historical Jesus Gods fatherhood

Sumaacuterio

1 INTRODUCcedilAtildeO 7 2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO 19 3 O JESUS HISTOacuteRICO 27 31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO 27 32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO 32 4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE SUA EacutePOCA 40 41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE CONTEMPORAcircNEA DE JESUS 41 42 JESUS O HUMILDE NAZARENO 46 43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES 50 44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS 59 45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS 61 451 OS ESSEcircNIOS 63 452 OS FARISEUS 66 453 OS SADUCEUS 72 454 OS ZELOTAS 74 5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS E SEUS

DESDOBRAMENTOS 79 51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA 79 52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA 85 53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS 91 54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS 100 55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR 102 56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA 110 6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS 122 61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO 122 62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA LEITURA A PARTIR DA

TEOLOGIA FEMINISTA 130 7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 137 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 146

7

1 INTRODUCcedilAtildeO

A ideia de Deus como pai da humanidade sempre esteve presente na mitologia dos

povos antigos Pai eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e na

Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Segundo Joachim Jeremias

(1977 p11-12) muitas tribos e famiacutelias acreditavam que eram procedentes de um

ancestral divino isto eacute de um ldquopairdquo divino Ephraim descreve-nos que a relaccedilatildeo de Deus

como Pai entre os povos antigos era bastante conhecida contudo ele evidencia que o

Abba de Jesus foi a mais iacutentima forma de invocar a Deus propagada entre os homens

atraveacutes dos ensinamentos de Jesus

A palavra Abba (Pai) posta na boca de Jesus eacute como se fosse a uacuteltima tentativa de Deus para ensinar os homens a pronunciarem seu nome Muitas vezes no passado Deus tentou fazer isto atraveacutes de seus servidores os profetas mas Israel natildeo compreendeu ldquoPairdquo eacute um tiacutetulo divino muito antigo encontrado em quase todas as religiotildees do Oriente meacutedio mas no caso ele eacute pai como a terra eacute matildee isto eacute exige na medida em que daacute Eacute o deus tutelar que deve ser adulado pois do contraacuterio ele natildeo outorga as suas graccedilas Eacute um deus que eacute pai do mesmo modo que Zeus era o pai de todos os deuses (Ephraim 1998 p171)

Observa-se que para os povos antigos Deus era um ancestral divino distante de

suas criaturas Aleacutem disso para Israel conforme a tese sustentada por J Jeremias vecirc-

se que no Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai principalmente quando

essa forma de invocar a Deus estaacute relacionada a um indiviacuteduo (Jeremias 2005 p19) Por

outro lado se no Antigo Testamento Deus natildeo eacute invocado como Pai de uma forma

individual como Senhor Ele eacute constantemente invocado a exemplo do salmista (Sl 338)

que menciona Deus como o Senhor que fala e as coisas acontecem conforme as suas

ordenanccedilas (Jeremias 2008 p 269)

Em contraste a essa relaccedilatildeo aparentemente tatildeo distante do Deus Pai com seus

filhos no periacuteodo veterotestamentaacuterio observa-se que a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute

profundamente marcante nos Evangelhos Haacute poreacutem diferentes interpretaccedilotildees com

relaccedilatildeo ao sentido da palavra Pai quando esta era proferida por Jesus J Jeremias

embora natildeo tenha sido o primeiro a tratar dessa questatildeo provavelmente foi o mais

influente quando ele sugere que Jesus ao dirigir-se a Deus invocando-o como o ἀββᾶ

(Abba) estava atribuindo um novo enfoque ao costume judaico de interpelaccedilatildeo a Deus

fazendo uso de uma linguagem cotidiana assim como as crianccedilas dirigiam-se a seus pais

expressando familiaridade e intimidade (cf Goshen-Gottstein 2001 p 493)

O objetivo deste trabalho eacute o estudo do Jesus histoacuterico (humano) com ecircnfase em

seu contexto social culminando no estudo histoacuterico-teoloacutegico da relaccedilatildeo de Jesus com o

8

Pai Este estudo tem como ponto de partida a teologia de Joachim Jeremias concernente

ao Abba proferido por Jesus no Evangelho de Marcos (1436) que diz ldquo[] Abba (Pai)

Tudo eacute possiacutevel para ti afasta de mim este caacutelice poreacutem natildeo o que eu quero mas o que

tu queresrdquo

Para entendermos a relaccedilatildeo de Jesus com o Deus Pai no Novo Testamento e como

ele transformou uma distante relaccedilatildeo entre o Pai ldquoque estaacute nos ceacuteusrdquo e seus filhos eacute

interessante vislumbrar o mundo poliacutetico religioso e cultural no qual ele esteve inserido

comeccedilando pela pequena Nazareacute um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que

vivia em casebres um povoado simples composto de camponeses entre duzentos a

quatrocentos habitantes (Crossan 2007 p 75) ateacute ao Getsecircmani onde Jesus proferiu a

magna expressatildeo Ἀββᾶ ὁ πατὴρ (Abba Pai) que para J Jeremias eacute a mensagem central

do Novo Testamento

No entanto a pesquisa do Jesus histoacuterico eacute complexa visto que os cristatildeos

primitivos preocuparam-se apenas em preservar ditos isolados a respeito de Jesus A

expectativa do retorno iminente do Mestre pode ter sido o motivo principal que levou o

cristianismo primitivo a preferir apenas fatos relacionados ao ministeacuterio de Jesus do que

relatar uma biografia completa do Jesus histoacuterico (Schweitzer 2003 p 11) Apesar de

toda a complexidade em se estudar o Jesus histoacuterico eacute possiacutevel investigar alguns

aspectos relativos a sua existecircncia a partir dos evangelhos e de muitos escritores que ao

longo dos seacuteculos tecircm se empenhado em coletar informaccedilotildees atraveacutes de achados

arqueoloacutegicos e de toda literatura que de uma forma direta ou indireta traz-nos

informaccedilotildees do mundo no qual Jesus estava inserido

Partindo das fontes primaacuterias J Jeremias observa que Jesus tinha uma relaccedilatildeo

iacutentima com Deus pois somente se referia a Ele chamando-o de meu Pai comportamento

este que natildeo era observado entre o povo judeu Assim para uma melhor compreensatildeo

dessa relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute interessante pesquisar como os povos antigos

viam a questatildeo da paternidade divina e desse modo confrontar os modelos antigos com

o modelo de paternidade difundido por Jesus e pelas primeiras comunidades cristatildes

Tendo em vista a complexidade e a diversidade do tema proposto e o profundo

interesse de J Jeremias e de outros pensadores que com ele concordaram ou divergiram

a respeito do assunto esta pesquisa torna-se um desafio empolgante tendo sempre em

vista o crescimento e o amadurecimento em questotildees importantes da teologia

A escolha deste tema eacute motivada pela relevacircncia da produccedilatildeo acadecircmica de J

Jeremias no contexto da Teologia do Novo Testamento mais especificamente sobre a

9

relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai Embora os argumentos de J Jeremias natildeo sejam

unanimidade no contexto dos estudiosos que tecircm escrito sobre tal tema eacute inegaacutevel o

grande impacto que as suas teses tecircm causado na comunidade cientiacutefica ligada ao

assunto que tem se debruccedilado para contestar ou entatildeo para sustentar que Deus natildeo eacute

como um soberano inacessiacutevel mas como um pai que se relaciona com seus filhos e isso

soacute foi enfatizado com propriedade a partir do Abba de Jesus

Essa visatildeo de J Jeremias entra em conflito com as teses de alguns estudiosos

contemporacircneos os quais discutem se realmente houve novidade na forma como Jesus

fez uso da palavra Pai (ipsissima vox) em suas oraccedilotildees ou se esta era um dito autecircntico

(ipsissima verba) Seria Abba realmente a ipsissima vox de Jesus e o centro de sua

mensagem e a afirmaccedilatildeo de sua messianidade conforme afirma J Jeremias ou apenas

uma expressatildeo lituacutergica comum nas comunidades cristatildes do periacuteodo poacutes-pascal da igreja

primitiva (DAngelo 1992b p151) Teria Jesus realmente legado aos seus disciacutepulos a

palavra Abba como um termo sagrado ou Abba tem apenas a conotaccedilatildeo poliacutetica anti-

imperialista (DAngelo 1992a p623)

A partir das questotildees levantadas acima este trabalho tem por objetivo investigar o

Jesus histoacuterico e seu contexto social a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo a

interpretaccedilatildeo dada por J Jeremias bem como alguns desdobramentos deste tema

segundo algumas correntes teoloacutegicas cristatildes e judaicas com as seguintes finalidades

Verificar a visatildeo que os povos antigos (ldquopagatildeosrdquo natildeo judeus) bem como o antigo

Israel tinham de Deus como Pai

Pesquisar a relaccedilatildeo do Jesus histoacuterico no seu contexto familiar e social

Analisar a tese de J Jeremias concernente ao sentido que a palavra Abba tinha

quando proferida por Jesus

Confrontar o pensamento de J Jeremias frente a algumas correntes teoloacutegicas

favoraacuteveis e contraacuterias aos seus argumentos

10

2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS

Neste capiacutetulo seraacute abordado o conceito de paternidade divina entre os povos

antigos com o enfoque sobre a ideia que tais povos tinham de Deus como um ancestral

divino do homem conforme exposto por Jeremias Face agraves inuacutemeras epopeias da

criaccedilatildeo abaixo mencionadas veremos que a criaccedilatildeo do homem a partir do relato do

Gecircnesis eacute bem mais otimista uma vez que o homem do Gecircnesis natildeo eacute um ancestral dos

deuses mas foi criado para ser a imagem do seu proacuteprio Criador

21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS

A ideia mitoloacutegica de um deus como pai da humanidade sempre esteve presente

entre os povos antigos como os sumeacuterios e babilocircnios Segundo J Jeremias tais povos

diziam que suas tribos e famiacutelias procediam de um ancestral divino como se observa por

exemplo no ceacutelebre hino sumeacuterio e acaacutedico de Ur Nesse hino o deus Lua Sin eacute

invocado como o ldquoPai misericordioso em suas disposiccedilotildees que reteacutem em sua matildeo a vida

de todo o paiacutesrdquo Aleacutem de tal hino encontramos na tradiccedilatildeo de tais povos a seguinte

citaccedilatildeo sobre Ea um deus sumeacuterio-babilocircnico ldquoSua coacutelera eacute como o diluacutevio Ele se

reconcilia como um pai misericordiosordquo (Jeremias 1977 p11-12) Complementando essa

ideia Santos Sabugal afirma que a ideia de paternidade divina entre os povos antigos era

largamente atestada na literatura de vaacuterios povos A Aacutefrica a Ameacuterica a China e a Iacutendia

bem como o Egito e tambeacutem os Greco-romanos invocaram a paternidade de Zeus e de

Juacutepiter sobre todos os deuses e homens (Sabugal 1985 p 367-368)

Contudo para J Jeremias as histoacuterias de invocaccedilotildees a Deus como Pai satildeo tatildeo

profundas que sempre se tem a sensaccedilatildeo de que novas e inesperadas galerias sempre

surgem A invocaccedilatildeo a Deus como Pai nos povos antigos desde as suas origens nem

sempre estava relacionada a Deus como um antepassado do rei ou do povo mas podia

ser invocado como um pai misericordioso conforme nos relata J Jeremias

Eacute assombroso verificarmos como jaacute no antigo oriente e com seguranccedila desde o segundo e ainda no terceiro milecircnio aC a divindade era invocada assim Nas oraccedilotildees sumeacuterias muito anteriores a Moiseacutes e os profetas encontramos a invocaccedilatildeo ldquopairdquo e desde laacute esta palavra designava a divindade natildeo apenas como antepassado do rei e do povo ou como o soberano pleno de poder mas tambeacutem como o ldquopai magnacircnimo e misericordioso em cuja matildeo estaacute a vida da naccedilatildeo inteirardquo (Hino de Ur a Sin divindade da lua) A palavra ldquopairdquo na invocaccedilatildeo a Deus implicava pois para os orientais desde os tempos mais antigos algo que pode ser considerado como para noacutes significa a palavra ldquomatildeerdquo (Jeremias 2006 p61)

11

Pai1 portanto para os povos antigos como os assiacuterios babilocircnios egiacutepcios

gregos e outros povos eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e

na Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Aleacutem disso o historiador

das religiotildees Mircea Eliade tambeacutem descreve que satildeo diversas as versotildees sumerianas

sobre a origem divina dos seres humanos e dentre elas consta o poema cosmogocircnico

conhecido como Enuma elish (ldquoQuando no altordquo) que relata as origens do mundo e do

homem buscando exaltar a Marduk um deus nacional da Babilocircnia o qual triunfa sobre

os deuses com ldquovalores demoniacuteacosrdquo dentre eles Tiamat e Kingu

Esse poema traz o mito de que Marduk decidiu criar o homem para que ele sirva

aos deuses Assim a partir do corte das veias de Kingu um deus vencido que foi

sacrificado a humanidade foi criada (Eliade 2010 p79) No entanto com a derrota dos

deuses inimigos de Marduk a criaccedilatildeo do homem inicia-se com um agravante na tradiccedilatildeo

sumeriana mesmo sendo Kingu um dos primeiros deuses ele se tornara o arquidemocircnio

chefe dos monstros e democircnios criados pelo deus Tiamat que tambeacutem foi derrotado por

Marduk Dessa forma sendo o homem constituiacutedo do sangue de Kingu torna-se ele parte

constitutiva de uma mateacuteria demoniacuteaca (Eliade 2010 p 80) Segundo essa vertente

mitoloacutegica sumeriana a uacutenica esperanccedila do homem eacute que ele tenha sido criado por um

grande deus Ea ldquoA partir desse prisma existe uma simetria entre a criaccedilatildeo do homem e

a origem do mundo Em ambos os casos a mateacuteria-prima eacute constituiacuteda pela substacircncia

de uma divindade primordial decaiacuteda demonizada e morta pelos jovens deuses

vitoriososrdquo (Eliade 2010 p 80) Conforme P Grelot ldquoo mito babilocircnico da criaccedilatildeordquo eacute

repleto de violecircncia e sangue (Grelot 1973 p 31)

[] Marduque ouvindo o apelo dos deuses resolveu criar uma obra prima ldquofarei canais de sangue formarei uma ossatura e suscitarei um ser cujo nome seraacute homem Sim vou criar um ser humano um homem Que sobre ele recaia o serviccedilo dos deuses para o bem estar delesrdquo

Ainda com relaccedilatildeo ao mito babilocircnico relata-se que na epopeia de Atra-Hasis (ldquoo

muito inteligenterdquo) cuja coacutepia mais antiga data aproximadamente de 1600 aC o deus Uecirc

1 A relaccedilatildeo de Deus como Pai nas religiotildees do oriente antigo e da Greacutecia e Roma antigas estaacute sempre de

uma forma ligada a ldquoideias miacutesticas de gerar e na descendecircncia fiacutesica e natural de todos os homens a partir de Deus Assim o deus El de Igariteacute eacute chamado o pai da humanidade e o deus da lua na Babilocircnia sin eacute pai e gerador dos homens e dos deusesrdquo No Egito o Faraoacute eacute considerado de modo especial o filho Deus no sentido fiacutesico O nome de pai expressa sobre tudo a absoluta autoridade de deus exigindo a obediecircncia havendo poreacutem ao mesmo tempo seu amor bondade e cuidado misericordiosos (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)

12

eacute morto Entatildeo a deusa matildee (Nintu) e Ea (deus das aacuteguas) fazem um apelo agraves sete

genitoras que ao som de encantamentos maacutegicos se potildeem a amassar a argila A epopeia

narra que a partir de catorze pedaccedilos de argila que satildeo separados metade agrave direita e

metade agrave esquerda pela deusa matildee que apoacutes serem pisados pelas deusas genitoras

estas ldquodatildeo agrave luz sete homens e sete mulheres que imediatamente satildeo dispostos aos

pares e a raccedila humana recebe as leis do seu laborrdquo (Grelot 1973 p 31)

[] Que seja morto um deus e que todos os deuses se purifiquem no seu sangue Que com a sua carne e o seu sangue Nintu (= a deusa matildee) misture argila de modo que deus e homem sejam misturados juntos na argila Que por esta carne de deus haja um espiacuterito Sim Responderam na assembleia os grandes Anunaqui que regem os destinos (Grelot 1973 p 19)

Nesse mito babilocircnico Ea ficou encarregado de consumar o trabalho imolando

Kingu que era o chefe dos deuses revoltosos para que o seu sangue estivesse nas veias

do homem de sorte que este tenha ldquoem suas veias o sangue de um deus decaiacutedordquo

Grelot observa que a partir desses mitos pode-se ver que o homem natildeo eacute apenas um

suacutedito e escravo dos deuses ldquomas tambeacutem eacute um joguete das potecircncias coacutesmicas que

fazem pesar sobre ele uma fatalidade inexoraacutevelrdquo (Grelot 1973 p 31)

[] Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido cortando suas veias Com o seu sangue Eia criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses para libertaacute-los Depois que Eia o saacutebio criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses obra superior a toda inteligecircncia que realizou Nudimude graccedilas aos artifiacutecios de Marduque Marduque rei dos deuses dividiu o conjunto dos Anunaacutequi em deuses de cima e deuses de baixo e encarregou Anu de velar pelas suas ordens nos ceacuteus e na terra ele estabeleceu seiscentos deuses (Vl 1-1031-34)

Pode-se ainda observar a ideia da existecircncia de um ancestral divino entre outros

povos antigos Segundo Campbell tal conceito pode ser visto na cultura da tribo Aranda

da Austraacutelia Central Nessa tribo o rito de transformaccedilatildeo de um menino em adulto

demonstra a forma primitiva com que esse povo se relaciona com a divindade desde a

antiguidade quando um jovem dessa tribo estaacute entre os dez e os doze anos ele e os

outros membros de sua faixa etaacuteria satildeo tomados pelos homens da aldeia e levantados

13

vaacuterias vezes no ar enquanto os homens realizam o ritual de transformaccedilatildeo as mulheres

por sua vez tambeacutem tomam parte do ritual danccedilando em volta agitando os braccedilos e

gritando Em cada menino satildeo entatildeo pintados no peito e nas costas desenhos simples

por um homem relacionado com o grupo social ao qual pertence a sua futura mulher e

enquanto os meninos satildeo pintados os homens cantam ldquoQue ele possa atingir a barriga

do ceacuteu que ele possa crescer ateacute a barriga do ceacuteu que ele possa ir diretamente para

dentro da barriga do ceacuteurdquo (Campbell 1992 p82)

Assim que o ritual eacute finalizado os meninos recebem a instruccedilatildeo que desde que o

ritual foi concluiacutedo cada um deles tem sobre si a insiacutegnia do ancestral mitoloacutegico

particular do qual ele eacute a contraparte viva A partir de entatildeo os meninos passam a ter

algumas responsabilidades e satildeo advertidos de que de agora em diante haacute algumas

restriccedilotildees entre eles e o sexo oposto Eles natildeo poderatildeo mais brincar ou acampar com as

mulheres e meninas mas somente com os homens Das atividades de caccedila de pequenos

animais e procura de raiacutezes eles natildeo tomaratildeo parte visto ser uma atividade realizada

pelas mulheres mas receberatildeo uma responsabilidade maior que eacute acompanhar os

homens na caccedila aos cangurusrdquo (Campbell 1992 p 82) Campbell observa que nessa

tribo eles acreditam que as crianccedilas nascidas de mulheres satildeo reapariccedilotildees de seres que

viveram na era mitoloacutegica no chamado ldquotempo dos sonhosrdquo ou altjeringa (Campbell

1992 p 82) Nesse mundo mitoloacutegico maacutegico dos sonhos o menino da tribo Aranda

passa entatildeo a compreender que ele proacuteprio eacute um ser mitoloacutegico eterno que se

encarnou e da mesma forma seus companheiros tambeacutem satildeo as manifestaccedilotildees das

formas eternas (Campbell 1992 p82)

A ancestralidade divina tambeacutem pode ser constatada entre os gregos como no mito

de Ascleacutepio um deus popular classificado por Homero e Piacutendaro como um heroacutei ou

divindade da cura Ascleacutepio segundo a mitologia grega era filho do deus Apolo com a

humana Corocircnis ele tambeacutem se casou com uma humana com quem teve filhos e filhas

(Koester 2005 vol1 p176)

A relaccedilatildeo entre deuses e humanos tambeacutem pode ser vista nos relatos mitoloacutegicos

dos chamados heroacuteis ou semideuses Segundo a mitologia os heroacuteis pertenciam agrave

espeacutecie dos humanos visto que conheceram a morte e o sofrimento contudo

diferenciavam-se destes pelo fato de que eles viveram numa eacutepoca denominada pelos

gregos como o antigo tempo onde os homens denominados de heroacuteis eram mais belos e

mais fortes do que os homens que conhecemos Esses ancestrais (noacutenymnoy) ou seja

os sem nome fazem parte do passado lendaacuterio da Greacutecia antiga Mesmo sendo homens

eles se aproximam muito dos deuses mais dos que os homens atuais Nessa eacutepoca

14

lendaacuteria segundo a mitologia grega os deuses ainda se misturavam com os mortais na

vida diaacuteria como comer juntos e ateacute em relaccedilotildees sexuais onde os imortais se uniam aos

mortais a fim de gerarem filhos belos Os heroacuteis faziam parte dessa relaccedilatildeo amorosa

entre deuses e humanos como diz Hesiacuteodo ldquoeles formam a raccedila divina dos heroacuteis que

satildeo denominados semideuses conhecidos como os hemitheoiacuterdquo (Vernant 2006 p 47) A

partir desse relato observamos que os humanos realmente acreditavam procederem de

uma raccedila mitologicamente humana e divina ou seja uma mistura das duas

Observamos que ateacute esse ponto temos entre os ancestrais divinos apenas figuras

masculinas A figura masculina de Deus como Pai da humanidade entre os povos antigos

eacute marcante poreacutem natildeo eacute unanimidade Gerald Messadieacute afirma que natildeo existe nenhuma

figura masculina da idade da pedra que evoque o conceito de um deus masculino

(Messadieacute 2001 p44) De fato esse autor observa que os deuses masculinos como Aacutetis

Tamuz Adoacutenis Patilde Silvano Fauno Narciso Jacinto satildeo comparados agrave vegetaccedilatildeo visto

que mesmo sendo deuses heroicos miacuteticos morrem com a chegada do inverno e

renascem com a chegada da primavera assim como ocorre com a vegetaccedilatildeo

No entanto diferentemente do que ocorre no aspecto masculino para o autor

supracitado o princiacutepio feminino da divindade eacute algo permanente Segundo Messadieacute o

culto da Terra-Matildee foi tatildeo fortemente enraizado nas culturas primitivas que seus vestiacutegios

perduraram ateacute tempos recentes (Messadieacute 2001 p44) Nesse sentido pode-se citar as

oraccedilotildees que se faziam agrave deusa-matildee (Zemyna equivalente agrave deusa grega Gaia) na

Lituacircnia entre os seacuteculos XVII e XVIII onde ela era vista como aquela que faz florescer

os bototildees O mais admiraacutevel eacute que em pleno seacuteculo XX em numerosos paiacuteses da

Europa como Escoacutecia Irlanda Lituacircnia Pruacutessia Oriental e Malta ainda era dedicado um

dia (15 de agosto) a Terra-Matildee Messadieacute enfatiza que o dia dedicado agrave deusa-matildee era

uma data tatildeo significativa a ponto de ser transformada no dia da festa catoacutelica da

Assunccedilatildeo data esta que mesmo tendo sentido diferente e ser de outra religiatildeo ainda

assim foi recuperada em benefiacutecio de uma mulher (Messadieacute 2001 p 45)

A deusa-matildee era vista como doadora de tudo quer fosse da vida ou da morte Entre

suas formas mais conhecidas estatildeo Istar Astarte Inana Ciacutebele Ceres e Afrodite A

importacircncia da deusa-matildee como protetora da vida era fundamental em uma sociedade

onde a esperanccedila de vida em geral natildeo ultrapassava quarenta e cinco anos Por isso a

fertilidade das mulheres era vista como essencial para a sobrevivecircncia das sociedades ldquoA

deusa-matildee foi o reflexo de um estado socioeconocircmico que ditava a economia e a religiatildeordquo

(Messadieacute 2001 p47)

15

O culto agrave deusa universal foi duradouro e seu decliacutenio foi tardio e nunca totalmente

consumado em nenhuma religiatildeo ateacute o aparecimento do judaiacutesmo (Messadieacute 2001 p

59) Na Europa a primeira vez que um deus masculino partilhou o poder oficialmente

com a deusa-matildee foi com a revoluccedilatildeo Celta dos oriundos da Iacutendia ramo indo-europeu

dos indo-arianos por volta do seacuteculo VIII aC Os Celtas apesar dessa aparecircncia politeiacutesta

natildeo o eram pode-se dizer que ldquoeram quase monoteiacutestasrdquo (Messadieacute 2001 p72) Seus

deuses mitoloacutegicos estatildeo mais para heroacuteis do que para divindades ldquoOs Celtas como

revelou Juacutelio Ceacutesar satildeo todos filhos de Dis pater O Pai muito simplesmenterdquo (Messadieacute

2001 p69) Continua Messadieacute ldquoos Celtas lanccedilaram no Ocidente as fundaccedilotildees do

Cristianismo antes mesmo deste ter nascido Quase o inventaramrdquo (Messadieacute 2001

p70)

Dentre as muitas teorias acerca da origem dos deuses e suas relaccedilotildees com os

humanos verificamos que segundo Joatildeo Evangelista Martins Terra a palavra Deus tem

sua origem no protoindo-europeu onde era designada como DEIWOS e de onde provecircm

os dois vocaacutebulos latinos para dizer deus (Deus e divus) palavras que derivam do latim

arcaico deivos (Martins Terra 2001 p274) A religiatildeo dos indo-europeus acreditava na

existecircncia de um Ser Supremo conhecido como o Deus celeste tambeacutem chamado de

DEIWOS palavra esta que deriva do radical DEI (iluminar) (Martins Terra 2001 p291)

De acordo com Martins Terra DEIWOS estaacute presente em inuacutemeras religiotildees antigas

Na religiatildeo messaacutepica (populaccedilatildeo indo-europeia proto-histoacuterica da peniacutensula salentina)

religiatildeo dos etruscos dos gregos dos traacutecios dos celtas dos antigos germanos dos

persas dos baacutelticos dos antigos eslavos e das religiotildees indianas (Martins Terra 2001 p

277-286)

O indo-europeu DEIWOS originariamente natildeo designava o ceacuteu fiacutesico (caelum)

visto que as liacutenguas indo-europeias natildeo tecircm um nome comum para designar o ceacuteu fiacutesico

(Martins Terra 2001 p 291) DEIWOS designava um ser pessoal que frequentemente eacute

contraposto ao HOMO um ser pessoal terreno (Martins Terra 2001 p 305)

Na cultura indo-europeia o conceito de pai era muito mais do que genealoacutegico

juriacutedico e socioloacutegico O conceito de pai sempre se referia ao chefe de famiacutelia como

aquele que exercia um poder monaacuterquico com funccedilotildees judiciais e penais sobre os seus

dependentes Para os indo-europeus o deus supremo dyeu-pater (pai) natildeo se refere a

deus pai ldquocomo progenitor mas ao sentido social do adulto que eacute chefe da casa no

sentido do latim pater famiacuteliasrdquo (Martins Terra 2001 p153) Contudo segundo Martins

Terra Porfiacuterio relaciona Zeus como pai dos deuses e coloca o homem como parente de

Deus Para Porfiacuterio uma das finalidades dessa relaccedilatildeo eacute que ldquoo homem respeitaraacute o

16

direito do proacuteximo que tambeacutem tem a Zeus como progenitor [proacutegonos]rdquo (Martins Terra

2001 p351)

Na religiatildeo dos indo-europeus DEIWOS eacute sempre o ser transcendente (celeste) No

entanto essa transcendecircncia estaacute sempre proacutexima do divino como o autor da vida o

Deus Pai Segundo Martins Terra o antigo nome divino em latim era DIESPITER uma

forma primitiva derivada de DEIWOS ou de Dieus ldquonas invocaccedilotildees mais primitivas de

Zeus jaacute encontramos o vocativo Zeu paacuteter Em latim a palavra pater associa-se

intimamente com a palavra Deus e formava ela um soacute nome DIESPITER Iovispater

vocativo Juppiter em uacutembrio Jupater em iliacuterico Deipaturosrdquo (Martins Terra 2001 p337)

Como suporte agrave teoria da invocaccedilatildeo de Zeus partes do hino de Cleantes esclarecem

esse conceito

[]32 ndash Ah Zeus benfeitor universal 33 ndash Salva os homens de sua ignoracircncia funesta 34 ndash Purifica oacute Pai suas almas desta ignoracircncia e concede-lhes atingir 35 ndash O pensamento que te guia para tudo governares com justiccedila Somente Zeus pode salvar o homem de seus pendores funestos E o homem pode com confianccedila invocar a Zeus porque ele eacute Pai e dele com efeito todos noacutes nascemos 1 ndash Oacute o mais glorioso dos imortais sob mil nomes onipotente para sempre 2 ndash Zeus senhor da natureza que com a lei governas todas as coisas 3 ndash Salve Porque eacute a Ti que todos noacutes mortais temos o direito de invocar 4 ndash Visto que de Ti todos noacutes nascemos (Martins Terra2001 p332-333)

Esse hino mostra que Zeus natildeo era invocado apenas como rei senhor governador

mas tambeacutem como um Deus pessoal num relacionamento familiar um Deus Pai2

Conforme Martins Terra invocar a ldquodivindade sob o nome de pai eacute um dos fenocircmenos

primordiais na histoacuteria das religiotildeesrdquo Martins Terra ainda observa que nas liacutenguas indo-

europeias essa forma de invocaccedilatildeo fica mais evidente ainda nas palavras Dyaus pitatilde

Zeugraves pater Deipaturos e Iuppiter (Martins Terra 2001 pg433) Segundo Martins Terra

ldquoem Homero a invocaccedilatildeo de Zeus no vocativo aparece quase sempre unida agrave palavra

pai Zeucirc paacuteterrdquo (Martins Terra 2001 p 435)

Diferentemente dos povos antigos a atividade criadora de Deus no livro do Gecircnesis

eacute sempre cosmoloacutegica onde a ordem e a beleza satildeo os temas centrais Do caos Deus

cria a ordem o universo que culmina com a criaccedilatildeo do homem como o aacutepice da obra da

criaccedilatildeo conforme vemos no Gecircnesis onde ldquoDeus viu que isso era bom (1 10 13 18 21

25)rdquo e ainda segundo o texto sagrado (131) temos a seguinte conclusatildeo ldquoIsso era

2 Segundo Vernant Zeus eacute Pai dos deuses e dos homens natildeo porque tenha gerado ou criado todos os

seres mas porque exerce autoridade absoluta sobre todos como um chefe de famiacutelia sobre seu clatilde (Cf Vernant 2006 p33)

17

muito bomrdquo Segundo P Grelot ldquoa histoacuteria sagrada sacerdotal Gn 1-24ardquo - das origens do

mundo ao tempo em que Israel viveu no deserto - foi escrita no tempo em que o povo

estava no exiacutelio (entre 587 e 538 aC) Babilocircnia eacute o lugar onde se venera o deus Marduk

e de onde provecircm as narrativas mitoloacutegicas de como os deuses criaram o mundo Para

proteger seus irmatildeos dos mitos babilocircnicos o autor sagrado teria escrito a primeira

narraccedilatildeo da criaccedilatildeo Contudo a narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo difere teologicamente dos

mitos babilocircnicos e dos povos antigos conforme relata Grelot

[] O universo eacute de certa forma um templo gigantesco que Deus levanta para a sua gloacuteria Quando o templo estaacute pronto ele coloca nele o homem criado ldquoagrave sua imagem e semelhanccedilardquo (126) Fica assim proibido representar a divindade por meio de imagens porque estas lembrariam o culto prestado a criaturas divinizadas (Ex 20 3-6) essa proibiccedilatildeo natildeo tem paralelo em nenhum povo da antiguidade A uacutenica imagem permitida de Deus eacute o rosto humano Mas se Deus eacute representado agrave imagem de uma pessoa viva de um homem que fala para fazer as coisas existirem (ldquoDeus disserdquo) nem por isso o homem eacute divinizado ldquoimagem de Deusrdquo deve ele voltar-se para aquele cujos traccedilos reflete (Grelot 1973 p 43)

Da mesma forma para Heinrich Krauss e Max Kuumlchler comparar o relato biacuteblico da

criaccedilatildeo do homem com a mitologia sumeacuterio-babilocircnia ou egiacutepcia serve para demonstrar

diferenccedilas importantes entre eles Na mitologia pagatilde o acircmago de toda a criaccedilatildeo estaacute

mais voltada ao nascimento dos deuses (teogonias) Por sua vez a criaccedilatildeo do homem

estaacute ligada a esses relatos apenas por uma linha tecircnue Para Krauss e Kuumlchler somente

num periacuteodo bem posterior ao nascimento dos deuses eacute que o ser humano eacute criado

quase que por um acidente ou entatildeo para servir como trabalhador escravo dos deuses

Em alguns aspectos notamos que haacute semelhanccedilas entre a criaccedilatildeo do homem no relato

do Gecircnesis e as mitologias pagatildes quando observamos que no Gecircnesis a criaccedilatildeo do

homem tambeacutem se daacute por uacuteltimo Contudo conforme Krauss e Kuumlchler diferentemente

dos antigos mitos no Gecircnesis a criaccedilatildeo do homem se daacute por meio de um processo

premeditado Eacute possiacutevel por analogia observarmos que na narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo

tanto o cosmos quanto o homem satildeo criados num ambiente onde o respeito e a

admiraccedilatildeo pelo ser humano satildeo evidentes como podemos observar na poesia do Salmo

8 4-9 que diz

Quando vejo o ceacuteu obra dos teus dedos a lua e as estrelas que fixaste que eacute um mortal para dele te lembrares e um filho de Adatildeo para vires visitaacute-lo E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de gloacuteria e beleza Para que domine as obras de tuas matildeos sob seus peacutes tudo colocaste ovelhas e bois todos e as feras do campo tambeacutem a ave do ceacuteu e os peixes do mar

18

quando percorre ele as ondas dos mares (Krauss e Kuumlchler 2007 p 48-49)

A relaccedilatildeo do homem com os deuses nas mitologias antigas eram caracterizadas

pelas forccedilas da natureza Os diversos deuses exerciam poderes sobre tais forccedilas que por

sua vez determinavam o destino do homem ldquoNa tempestade e na brisa na chuva e na

seca viam-se igualmente manifestaccedilotildees de poderes divinos tal como no amor e no

matrimocircnio na vida e na morte na violecircncia e na guerra no crescimento e na destruiccedilatildeordquo

(Krauss e Kuumlchler 2007 p 61) Todos os acontecimentos da vida dos homens eram

resultados da influecircncia de uma ou mais divindades conforme as suas funccedilotildees dentro do

panteatildeo Alguns deuses eram considerados de boa iacutendole poreacutem outros eram

considerados perversos e maus e por essa razatildeo deveriam ser lisonjeados atraveacutes de

rituais de sacrifiacutecios ou praacuteticas maacutegicas

Krauss e Kuumlchler apesar de descreverem os deuses mitoloacutegicos da antiguidade com

poderes sobrenaturais e sobre-humanos sobre o mundo ressaltam que tais deuses

mesmo o chamado deus criador da mitologia antiga eram limitados agrave esfera deste

mundo ou seja natildeo tinham poder absoluto nem garantido para sempre Por outro lado o

Deus dos relatos biacuteblicos da criaccedilatildeo eacute diferente Ele natildeo faz parte deste mundo mesmo

que aqui esteja presente e sempre atuando Tambeacutem natildeo estaacute sujeito agrave limitaccedilatildeo das

forccedilas da natureza e tem poder para conduzir soberanamente o destino dos seres

humanos O Deus criador do Gecircnesis natildeo sofre oposiccedilatildeo de divindade alguma a natildeo ser

em pequena escala dos seres humanos ldquoA diferenccedila entre o monoteiacutesmo judeu-cristatildeo

ou islacircmico de um lado e o politeiacutesmo de outro natildeo eacute uma questatildeo de nuacutemero (um

uacutenico Deus ou diversos deuses) mas da concepccedilatildeo do que eacute Deusrdquo (Krauss e Kuumlchler

2007 p61)

No tocante agraves narrativas e mitos antigos da criaccedilatildeo Vicente Artuso desenvolve um

trabalho no qual compara o relato da criaccedilatildeo no livro do Gecircnesis com a epopeia de Atra

Asis e os demais mitos antigos da criaccedilatildeo e conclui que o relato da criaccedilatildeo no Gecircnesis eacute

mais otimista em relaccedilatildeo aos mitos antigos Embora por um lado haja algumas

semelhanccedilas na forma da criaccedilatildeo do homem conforme jaacute foi visto acima por outro lado

elas estatildeo muito distantes Artuso observa que nessa epopeia o homem eacute feito a partir

do barro e do sangue de um deus decaiacutedo Na Biacuteblia o homem proveacutem do barro e do

sopro de Deus que eacute a fonte da vida Na epopeia o ser humano eacute criado para livrar os

deuses de seu castigo na Biacuteblia o homem eacute criado por Deus de uma forma totalmente

desinteressada Na epopeia o ser humano participa da divindade assim como na Biacuteblia

Contudo Artuso pontua que mesmo que em ambos os relatos da criaccedilatildeo o homem

participe da divindade na epopeia fica evidente que o homem participa da divindade de

19

um deus decaiacutedo sendo que no relato da criaccedilatildeo da Biacuteblia o homem eacute criado agrave imagem

e semelhanccedila do Criador No Gecircnesis o homem eacute criado pelo Deus uacutenico que do caos

traz todas as coisas a existecircncia cria o homem e o faz participante de sua obra quando

ordena ao ser humano o crescimento a multiplicaccedilatildeo e que o mesmo exerccedila o domiacutenio

sobre todas as coisas criadas (Artuso 2009 p80-81)

22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO

No Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai3 J Jeremias relaciona

que isso ocorre apenas quinze vezes conforme podemos verificar nos seguintes textos

ldquoDt 326 2 Sam 714 (textos paralelos em 1 Cron 1713 22 10 286) Sl 68 6 8927 Is

6316 (duas vezes) 647 Jr 3419 31 9 Mal 1 6 2 10 (Jeremias 2005 p19) Mesmo

esses textos quando relacionados a Deus como Pai indicam que Deus eacute primeiramente

o Senhor como diz o Salmo 33 8 ldquoTema o Senhor todo o mundo e tremam diante dele

todos os habitantes da terra porque ele fala e acontece ele ordena e aiacute estaacuterdquo (Jeremias

2008 p269) Como Senhor Deus tambeacutem se compadece de seus filhos como um Pai

conforme o Salmo 10313 (Jeremias 1977 p13) Aleacutem de Senhor o Pai tambeacutem eacute

honrado como Criador ldquoNatildeo eacute ele porventura teu pai que te fez seu que te formou e te

consolidourdquo (Dt 326) ldquoPorventura natildeo eacute um o Pai de todos noacutes Natildeo eacute um soacute Deus que

nos criourdquo(Ml 2 10) Observa-se que o reduzido uso do conceito de Deus como Pai no

Antigo Testamento pode estar relacionado ao uso abusivo que os povos cananeus faziam

desse termo em seus cultos de fertilidade (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo

Testamento 1998 p 6)

A relaccedilatildeo de Deus como Pai no Antigo Testamento eacute diferente do conceito de

paternidade dos povos antigos As diferenccedilas satildeo fundamentais visto que Deus natildeo eacute um

ancestral da raccedila humana como podemos ver nas palavras de J Jeremias

O fato de que no Antigo Testamento Deus natildeo eacute o ancestral mas o criador natildeo eacute a menor E que o que eacute ainda mais importante no antigo Testamento a paternidade divina atribui-se soacute a Israel e de uma maneira que natildeo encontra nenhum equivalente Eles tecircm uma relaccedilatildeo toda particular com Deus isto eacute um povo escolhido dentre todos os povos para ser o filho primogecircnito de Deus (Jeremias 1977 p13)

3 ldquoO AT emprega a palavra pai () quase que exclusivamente (c De 180 vezes) num sentido secular e soacute

muito ocasionalmente (15 vezes) num sentido religioso Como acontece no AT assim tambeacutem na literatura do judaiacutesmo palestinense podemos notar reserva marcante no emprego da palavra num sentido religioso Soacute mais tarde na literatura do judaiacutesmo da diaacutespora eacute que achamos o emprego mais frequente do nome Pai com referecircncia a Deusrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

20

No contexto biacuteblico a histoacuteria de Israel eacute notoriamente descrita colocando Israel

sempre como o povo eleito e exclusivo de Deus e essa eleiccedilatildeo eacute histoacuterica e concreta A

paternidade divina4 pode ser considerada histoacuterica quando tambeacutem atestamos que o

ecircxodo do Egito a peregrinaccedilatildeo no deserto e a conquista da terra de Canaatilde satildeo tratados

como fatos histoacutericos fatos esses que tornam Israel como o filho primogecircnito conforme a

eleiccedilatildeo divina Alguns textos corroboram esse pensamento entre os quais podemos

destacar ldquoFilhos sois do SENHOR vosso Deusrdquo (Dt 141)

A paternidade divina no Antigo Testamento natildeo eacute privileacutegio do indiviacuteduo mas sempre

privileacutegio da coletividade e juridicamente da figura do rei Com efeito Deus eacute sempre visto

como o ldquoPai do Reirdquo (2 Sam 7 14 Sl 8927) e ldquoPai de Israel como naccedilatildeordquo (Jr 34 3 19

319 Ml 16 Is 6315 657) J Jeremias faz questatildeo de enfatizar a respeito da

paternidade divina que em todo o Antigo Testamento natildeo encontramos nenhuma

passagem na qual Deus seja interpelado como Pai por um indiviacuteduo mas isso eacute sempre

realizado pela coletividade (Jeremias 2008 p115) Quando observamos as expressotildees

ldquoTu eacutes nosso Pairdquo (Is 6316) e ldquoTu eacutes meu Pairdquo (Jr 34) verificamos que as mesmas se

tratam de ldquosentenccedilas afirmativas e natildeo da invocaccedilatildeo de Deus usando o nome de Pai

para elerdquo (Jeremias 2008 p115) Deus natildeo eacute Pai porque gera de forma fiacutesica mas

porque chamou os filhos de Israel para ser um povo constituiacutedo de homens livres eacute Pai

porque ama escolhe e guia seus filhos por um reto caminho segundo a lei Dessa forma

mesmo fazendo pouco uso do termo Pai Israel comeccedilou a realizar o que poderiacuteamos

chamar de a grande revoluccedilatildeo do siacutembolo paterno

Em relaccedilatildeo ao siacutembolo de Deus como Pai Robert Hamerton-Kelly seguindo a

mesma linha de pensamento de J Jeremias concorda que no Antigo Testamento a

designaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rara e as poucas vezes em que isso ocorre natildeo eacute no

sentido literal do termo Hamerton Kelly faz referecircncia a dois tipos de simbolismo que

aparecem na Biacuteblia concernentes agrave figura de Deus como Pai um simbolismo indireto e

outro direto O simbolismo indireto ocorre por meio de uma associaccedilatildeo enquanto que o

simbolismo direto eacute feito por intermeacutedio de uma metaacutefora ou alegoria No modo indireto

Deus eacute mostrado claramente em conexatildeo com os pais humanos Ele eacute o ldquoDeus dos paisrdquo

e a associaccedilatildeo aqui eacute por intermeacutedio da identificaccedilatildeo de Deus como chefe No modo

direto a Biacuteblia usa a alegoria ou a metaacutefora Deus eacute como um pai ou Deus eacute nosso Pai

(Hamerton-Kelly 1979 p20-21)

4 ldquoA descriccedilatildeo de Deus como Pai se refere no AT apenas as Seu relacionamento com o povo de Israel

(Dt326 Is6316 duas vezes 648 Jr319 Ml16 210) ou com o rei de Israel (2Sm 714 par 1 Cr 1713 2210 286 Sl 8926 cf 27) Nunca se refere a qualquer indiviacuteduo () ou a humanidade em geralrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

21

No Antigo Testamento o simbolismo indireto eacute usado na transiccedilatildeo do Pai dos

deuses para o Deus dos pais e do Deus dos pais para o Deus de Moiseacutes (Hamerton-

Kelly 1979 p21-28) Qualquer consideraccedilatildeo sobre o entendimento biacuteblico de Deus no

periacuteodo preacute-mosaico deve ser relacionado aos deuses adorados pela religiatildeo dos

cananeus ancestral da religiatildeo dos hebreus os quais eram denominados em Canaatilde pelo

nome ldquoEl5rdquo o chefe do panteatildeo e tambeacutem progenitor dos deuses na mitologia cananita

(Martins Terra 1987 p11) De acordo com a tradiccedilatildeo Yahweh era ldquoo Deus dos Paisrdquo e

Abraatildeo pode provavelmente ter sido considerado ldquopai dos deusesrdquo como uma descriccedilatildeo

de sua possiacutevel divindade Entre os outros povos existiam vaacuterios deuses que eram vistos

como figuras paternas como Anu (deus do ceacuteu) Enlil (deus do vento e da tempestade) e

Ea (deus da aacutegua) os quais tinham seu proacuteprio santuaacuterio e eram patronos de suas

respectivas cidades (Hamerton-Kelly 1979 p21-23)

Os compiladores das sagas patriarcais do Gecircnesis acreditavam que os pais

adoravam El como El Elyon El Olam El Roi El Shaddai e El Betel Esses nomes

compostos mostram que a adoraccedilatildeo era estabelecida em um lugar fiacutesico por intermeacutedio

de alguma outra divindade ou seja os lugares de adoraccedilatildeo eram relacionados a um

deus Embora natildeo possa ser encontrada a praacutetica monoteiacutesta entre os patriarcas pode-se

assumir que os deuses distintos estavam associados em algum estaacutegio da tradiccedilatildeo

sendo identificados como manifestaccedilotildees do grande deus El - o pai dos deuses Mesmo

que natildeo seja possiacutevel falar de um preacute-Mosaico ldquoEl-monoteiacutesmordquo 6 eacute possiacutevel falar de um

deus supremo que eacute a fonte e origem de todas as coisas o pai dos deuses e da

humanidade que eacute o ponto de contato com o monoteiacutesmo Javista (Hamerton-Kelly 1979

p24-25)

Outro ponto de contato entre a teologia Preacute-Mosaica e Mosaica pode ser

encontrado no fato que cada um dos grandes patriarcas tinha um deus associado com

eles mesmos o ldquoEl de Abraatildeordquo (Gn 31 42) o ldquoTemor de Isaquerdquo (Gn 31 53) o ldquoForte de

Jacoacuterdquo (Gn 49 24-25) os quais tinham como sinocircnimos o ldquoDeus (El) de meu pairdquo Por fim

5 A palavra El ocorre 238 vezes no Antigo Testamento Eacute uma palavra de origem protossemiacutetico ou

semiacutetico-comum para designar Deus em todas as liacutenguas semiacuteticas Ele eacute o Deus-patriarca criador anciatildeo cujas forccedilas extraordinaacuterias criaram e povoaram o ceacuteu El eacute ldquoum Deus pessoardquo de cada patriarca ele eacute ldquoo Deus dos paisrdquo familiar uacutenico e universal mas tambeacutem eacute o Deus tribal (Cf Martins Terra em Elohim o Deus dos Patriarcas p 19 37 39 51)

6 Surge um problema relacionado a este assunto eacute possiacutevel falar de monoteiacutesmo neste periacuteodo Alguns

pesquisadores acham difiacutecil o conceito de um monoteiacutesmo preacute-mosaico ou mesmo de uma ideia de adoraccedilatildeo exclusiva a Deus mesmo que o texto do livro do Ecircxodo 34 11-26 trate com detalhes este tema ainda assim este pensamento parece ser uma ideia muito complexa uma vez que muitos estudiosos observam que o referido texto pode ter sido redigido em uma eacutepoca tardia ou seja ldquouma espeacutecie de seleccedilatildeo ou resumo a partir de outros textosrdquo (Cruumlsemann 2002 p167-169) Segundo Cruumlsemann o Pentateuco deve ter surgido entre o exiacutelio e o inicio da eacutepoca helenista para ser mais objetivo no periacuteodo Persa (cf Cruumlsemann 2002 p454)

22

vecirc-se que o deus eacute identificado mais pelo seu relacionamento com uma pessoa do que

com um lugar ou um fenocircmeno natural isto eacute muda-se o simbolismo do divino de lugar

para pessoa deixando claro que a Revelaccedilatildeo de Deus estaacute no domiacutenio das relaccedilotildees e

accedilotildees humanas mais especificamente nas relaccedilotildees de familia (Hamerton-Kelly 1979

p25-27)

Aleacutem disso observamos que sob a influecircncia de Moiseacutes as tribos de Israel foram

unificadas em fidelidade ao Deus Yahweh A identidade de Yahweh estaacute fortemente

relacionada com ldquoos paisrdquo como se vecirc na revelaccedilatildeo de Deus a Moiseacutes no monte Horebe

[hellip] Moiseacutes Moiseacutes [hellip] Eu sou o Deus de teus pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute [hellip] Iahweh disse Eu vi Eu vi a miseacuteria do meu povo que estaacute no Egito Ouvi seu grito por causa dos seus opressores pois Eu conheccedilo as suas anguacutestias Por isso desci a fim de libertaacute-lo da matildeo dos egipcios e para fazecirc-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta terra que mana leite e mel [hellip] Disse Deus a Moiseacutes Eu sou aquele que eacute Disse mais Assim diraacutes aos israelitas EU SOU me enviou ateacute voacutes [hellip] Iahweh o Deus o Deus de vossos pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute me enviou ateacute voacutes Eacute o meu nome para sempre e eacute assim que me invocaratildeo de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (Ex 3 1-15)

Iahweh eacute o Deus de Israel isso fica evidente na foacutermula ldquoElohecirc Israelrdquo (Martins

Terra 1987 p 82) O ponto central de toda a teologia do Antigo Testamento eacute que o

Deus de Israel eacute o uacutenico e verdadeiro Quando os autores sagrados comparam Iahweh

com os deuses de outras naccedilotildees (Dt 4 34 Sl 11 3-5) eacute para fortalecer a convicccedilatildeo dos

israelitas de que haacute somente um Deus tanto ldquoem cima no ceacuteurdquo como ldquoembaixo na terrardquo

(Dt 439) Para Martins Terra o ldquoemprego de Elohim7 natildeo pode ser interpretado como

reliacutequia de um antigo politeiacutesmo Israelitardquo ou seja Elohim se converte em sinocircnimo de

Iahweh o Deus uacutenico e verdadeiro

O nome divino de Elohim que se radica na liacutenguagem religiosa de todos os povos semitas do Antigo Oriente Proacuteximo reconhecido e confessado por Israel como o Deus pessoal e uacutenico ajudou o Antigo testamento a entender e proclamar o Deus da histoacuteria da Salvaccedilatildeo como Deus do universo como lemos na primeira linha da Biacuteblia ldquoNo principio Elohim criou os ceacuteus e a terrardquo (Martins Terra 1987 p 85)

Fazendo uma transiccedilatildeo do simbolismo indireto para o simbolismo direto

mostraremos o pai (matildee) como uma alegoria ou metaacutefora para Deus Vale observar que a

figura da matildee faz parte desta anaacutelise uma vez que esse simbolismo natildeo a exclui apenas

7 A palavra Elohim pode ser um desenvolvimento do termo Eloah (Deus) como uma forma de

representaccedilatildeo da pluralidade de pessoas existentes na divindade (Trindade) ou ainda a terminaccedilatildeo plural pode ser descrita como um plural de majestade natildeo com a intencionalidade de ser usado na forma de plural para referir-se a Deus Isto pode ser averiguado quando Elohim eacute usado com o verbo no singular bem como os adjetivos e pronomes tambeacutem no singular (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento 1998 p68-72)

23

inclui sua presenccedila No simbolismo direto os pais satildeo muito mais do que meros sinais da

natureza e presenccedila de Deus O profeta Oseacuteias nos mostra um Deus que ao mesmo

tempo em que eacute Pai tem para com Israel seu filho afetos que satildeo proacuteprios da matildee A

ternura os cuidados e o afeto de Deus em Oseacuteias satildeo comparados agraves caracteriacutesticas

proacuteprias que uma matildee tem por seus filhinhos

Quando Israel era menino eu o amei e do Egito chamei meu filho (hellip) Fui eu contudo quem ensinou Efraim a caminhar eu os tomei pelos braccedilos mas natildeo reconheceram que eu cuidava deles Com viacutenculo de amor eu os atraiacutea com laccedilos de amor eu era para eles como os que levantavam uma criancinha contra o seu rosto eu me inclinava para ele e o alimentava (Os 11 1-4)

Nesse texto vemos a ideia de que Israel era filho de Deus e que essa filiaccedilatildeo eacute

usualmente associada ao periacuteodo do deserto e eacute entendida como uma experiecircncia da

paternidade de Iahweh Contudo observamos no texto que Iahweh inclinava-se para

alimentaacute-los expressatildeo essa que denota uma funccedilatildeo especificamente desempenhada

pela figura materna Aleacutem disso em uma passagem do livro de Nuacutemeros Moiseacutes de

uma forma impliacutecita afirma que Deus eacute como uma matildee para Israel

[] Moiseacutes sentiu-se grandemente desgostoso e disse a Iahweh ldquoPor que fazes mal a teu servo Por que natildeo achei graccedila a teus olhos visto que me impusestes o encargo de todo este povo Fui eu porventura que concebi todo este povo Fui eu que o dei agrave luz para que me digas Leva-o em teu regaccedilo como a ama leva a crianccedila no colo agrave terra que prometi sob juramento a seus pais (Num 1110b-

12)rdquo

Esse texto soacute pode referir-se a Deus visto que Moiseacutes natildeo era a matildee daquele

povo portanto teoricamente natildeo tinha a responsabilidade de ser o protetor e nem o

provedor deles em momentos de crise Na visatildeo de Moiseacutes Deus era o responsaacutevel pelos

cuidados essenciais do povo assim como uma matildee cuida de seus filhos Dessa forma a

figura materna tambeacutem pode ser usada como uma designaccedilatildeo para Deus (Hamerton-

Kelly 1979 p 39-40)

Haacute ainda outros exemplos em que a imagem de Deus pode ser comparada a de

uma mulher que cuida de seus filhos como lemos em Isaiacuteas 4915

Por um acaso uma mulher se esqueceraacute de uma criancinha de peito Natildeo se compadeceraacute ela do filho do seu ventre Ainda que as mulheres se esquecessem

24

eu natildeo me esqueceria de ti

Na simbologia em que Deus exerce as funccedilotildees de provedor protetor e mantenedor

de seu povo encontramos textos em que Ele exerce funccedilotildees ora como Pai e ora Matildee

Segundo Hamerton-Kelly no livro do profeta Isaiacuteas (66 10-13) encontramos uma

imagem de Deus como a de uma matildee bem como em Deuteronocircmio 131 e 85 em que

encontramos em ambos os textos a imagem de Deus que como um homem (pai) educa

os seus filhos pelo caminho correto Portanto numa visatildeo simboacutelica Deus eacute apresentado

ora como pai e ora como matildee do povo (Hamerton-Kelly 1979 p40)

Alegrai-vos com Jerusaleacutem exultai nela todos os que a amais regozijai-vos com ela todos os que por ela estaacuteveis de luto pois sereis amamentados e saciados

pelo seu seio consolador pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo Com efeito assim diz Iahweh Eis que trarei a Paz como um rio e a gloacuteria das naccedilotildees como uma torrente transbordante Sereis amamentados sereis carregados sobre ancas e acariciados sobre os joelhos Como a uma pessoa que a sua matildee consola Assim eu vos consolarei Sim em Jerusaleacutem sereis consolados (Is 66 10-13)

Como tambeacutem no deserto onde vistes que o SENHOR vosso Deus nele vos levou como um homem leva seu filho por todo o caminho que andastes ateacute chegardes a este lugar Deuteronocircmio 131 Sabes pois no teu coraccedilatildeo que como um homem castiga a seu filho assim te castiga o SENHOR teu Deus Deuteronocircmio 85

Mesmo diante de vaacuterios textos em que observamos Deus exercendo figuradamente

as funccedilotildees de pai e matildee natildeo temos um texto em que Deus seja diretamente chamado de

matildee e nem mesmo Jesus jamais invocou a Deus como matildee Segundo Matthias Grenzer

a razatildeo disso encontra-se no fato de Deus ser diversas vezes tratado como o esposo ou

o amado enquanto que Israel eacute descrito como a virgem noiva mulher amada ou ateacute

mesmo como prostituta (cf Jr 2-3 Ez16 Os 2 e Ct) Dentro desse imaginaacuterio a figura de

Deus eacute vista como a parte masculina enquanto que a naccedilatildeo de Israel ocupa a parte

feminina sendo assim essa seria a razatildeo de Deus ldquoser chamado somente de Pai e natildeo

de matildeerdquo (Grenzer 2009 p 182)

Ainda em relaccedilatildeo agrave paternidade de Deus no Antigo Testamento Sabugal observa

que a mesma eacute sempre vista nos seguintes aspectos Deus como o Pai do povo de Israel

(Is 6316) Pai do rei (2 Sam 7 14 Sl 8927) Pai dos justos israelitas (Sab 216) e

tambeacutem como Rei Messiacircnico (2Sm 7 12-16) (Sabugal 1985 p370)

25

Yahveh com efeito eacute o Pai de Israel por haver resgatado ltltdesde sempregtgt (Is 6316b) primeiro do Egito (Jer 34 cf Ez 23 319) e depois da Babilocircnia (cf Jer 319) tambeacutem por haver-lhes criado mediante a alianccedila (Dt 366 Mal 210 cf 317) conduzindo-o pelo deserto e corrigindo-o ltltcomo um pai a seus filhosgtgt (Dt 131 85) provando-o paternalmente (Sab 1110) e paternalmente amando-o (cf Mal 317) pois ele fez o seu povo que o confessa como Pai (Is 6319 647) e como tal deve honrar (Mal 16) Israel eacute consequentemente o filho de Deus seu primogecircnito (Ex 422 Jer 319) e ltlt filho tatildeo amadogtgt (Jer 3120) a quem desde o Ecircxodo elegeu por pai (Nuacutem 1112 Dt 32 518) e modelou (cf Is 647) por ter-lhes amado (Os 111) ltlt com um amor eternogtgt (Jer 313) tornando-se assim mesmo os israelitas a raiz da eleiccedilatildeo divina realizada na alianccedila do Sinai ltlt filhos de Yahvehgtgt (cf Dt 326 Mal 317) como membros de ltltum povo consagrado a seu Deusgtgt (Dt 14 1-2 Sal 7315) E certo que como ltltfilhos rebeldesgtgt (Is 30 19) esqueceram ltlto Deus que os criougtgt (Jer 321 Dt 3218) mas se como ltltfilhos apoacutestatasgtgt ouvirem a exortaccedilatildeo e converterem-se (Jer 3 1422) seratildeo novamente chamados ltlt filhos do deus vivogtgt (Os 21) que mostrando-se ltltindulgente para com eles como um pai com um filho que lhe servegtgt (Mal 317) uma vez mais os salvaraacute Israel segue sendo o ltltfilho amadogtgt e ltltmenino mimadogtgt de Yahveh (Jer 319) (Sabugal 1985 p 371)

Em suma podemos observar que o conceito que os israelitas tinham de Deus como

Pai defendido por J Jeremias fundamenta-se na tese de que a paternidade de Deus

sobre Israel eacute diferente da paternidade divina entre os demais povos antigos De fato o

Deus dos israelitas natildeo eacute um pai por geraccedilatildeo fiacutesica (Sabugal 1985 p371) e nem mesmo

o progenitor dos deuses e dos homens (Sabugal 1985 p368) como criam os demais

povos antigos Contudo observamos que a figura de Deus metaforicamente exerce

funccedilotildees que satildeo em suas origens de ofiacutecio materno e de ofiacutecio paterno

Realmente o Antigo Testamento eacute rico em metaacuteforas para Deus Christopher J H

Wrighth nota que entre as imagens humanas para Deus no Antigo Testamento

encontramos que ele eacute rei juiz e redentor Tambeacutem Yahweh eacute comparado a um pastor

soldado ou a um agricultor Yaweh pode ser chamado tambeacutem de rocha abrigo escudo

esconderijo leatildeo fogo ou uma fonte de aacutegua (Wright 2007 p 22)

Uma outra maneira de se observar a figura de Deus como Pai no Antigo Testamento

eacute atraveacutes dos nomes teofoacutericos Geza Vermes vecirc que a representaccedilatildeo de Deus como Pai

eacute um elemento baacutesico na Teologia do Antigo Testamento Vermes cita trecircs nomes como

exemplo os quais ldquoproclamam uma relaccedilatildeo de parentesco entre Deus e os membros

individuais do povo Judeurdquo 8 Tais nomes como Abiel (Deus eacute meu Pai) Eliab (meu Deus

eacute Pai) Abijah (Yah [Yahweh Jeovaacute eacute meu Pai] segundo Vermes atestam o conceito de

que Deus era invocado como Pai no judaiacutesmo veterotestamentaacuterio (Vermes 2006 p 259)

9 Sobre a imagem de Deus Pai na Biacuteblia Vermes concorda que ela natildeo eacute tatildeo

8 Acredito que com o termo parentesco Vermes natildeo estaacute se referindo a ancestralidade conforme

debatemos acima baseado no pensamento de J Jeremias 9 Matthias Grenzer tambeacutem coloca esses nomes citados por Vermes como uma forma de ver ldquoo

comportamento do Senhor Deusrdquo comparado a atitude de um Pai humano Grenzer ainda menciona o nome do sobrinho de Davi Joab cujo significado eacute ldquoJaveacute (Yahweh) eacute Pairdquo (Cf Grenzer 2009 p 180)

26

abundantemente atestada nas Escrituras contudo a familiaridade dessa imagem eacute

manifesta na ldquovariedade de nomes teofoacutericos que conteacutem o elemento ab (Pai)rdquo Sobre os

nomes teofoacutericos ele diz ainda que

Eles empregam tanto os tiacutetulos divinos do hebraico YH (W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai) ou YoAB (Yo eacute o Pai) Do mesmo modo temos Abbi eL e ELIab (Deus eacute o Pai) em nomes judaicos da era preacute-exiacutelica e do Segundo Templo Abram e Abiram (Pai excelso e Meu Pai eacute exaltado) que podem ser rastreados agrave idade patriarcal representam o mesmo tipo Enquanto as nuances exatas do termo ldquoPairdquo permanecem vagas natildeo pode haver duacutevida de que mesmo em niacutevel individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de famiacutelia Essa antiga atitude subjacente eacute explicitamente expressa principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da naccedilatildeo judaica Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusatildeo a eles como seus filhos (Vermes 1995 p158-159)

Para Christopher Wright a ocorrecircncia desses nomes metafoacutericos no Antigo

Testamento demonstra como a ideia de Deus como Pai era bem aceita nesse periacuteodo

Para esse autor pais que davam nomes aos filhos como Joabe (Yahweh eacute meu pai) ou

Abiel (Deus eacute meu Pai) tinham algum conhecimento metafoacuterico de Deus como Pai

Portanto para Israel o conhecimento de Deus como Pai pode ser mais bem

compreendido sob o ponto de vista que para eles Deus eacute comparado com um pai

humano que disciplina mas ensina seus filhos Como Pai ele tambeacutem se compadece

carrega adota os sem-teto e os oacuterfatildeos enfim ele eacute o Pai em que podemos encontrar

perfeita seguranccedila (Wright 2007 p24-25 38-39)

27

3 O JESUS HISTOacuteRICO

Depois de investigarmos a relaccedilatildeo de Deus como ldquoPairdquo entre os povos antigos

aproximamo-nos do ponto central da pesquisa Jesus de Nazareacute o qual segundo J

Jeremias trouxe-nos uma nova forma ou seja deu um novo enfoque sobre o termo Pai

quando dirigido a Deus Para um melhor embasamento sobre a relaccedilatildeo de Jesus com

Deus Pai buscaremos entender o homem chamado Jesus dentro das pesquisas

modernas sobre ldquoa vida de Jesusrdquo bem como das fontes evangeacutelicas disponiacuteveis no Novo

Testamento Procurar conhecer Jesus partindo do meio social em que ele esteve inserido

com certeza torna a pesquisa sobre o Cristo mais profunda e interessante uma vez que

Jesus antes de ser conhecido e pregado como Cristo foi um cidadatildeo judeu que viveu na

Galileia para ser mais preciso na pequena e humilde Nazareacute

31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO

Jesus de Nazareacute constitui personagem histoacuterico da maior importacircncia a comeccedilar pelo proacuteprio calendaacuterio hoje universal baseado na era cristatilde Uma parte consideraacutevel da humanidade professa a feacute cristatilde e outra parte considera Jesus como um profeta Para aleacutem do Cristianismo e do Islamismo Jesus constitui para outros crentes ou para agnoacutesticos e ateus uma referecircncia fundamental pela diferenccedila contraste ou oposiccedilatildeo No entanto o Jesus da histoacuteria aquele homem galileu que viveu haacute dois mil anos ainda constitui um grande desconhecido O Cristo da feacute dominou por muitos seacuteculos as reflexotildees sobre este homem de singular significaccedilatildeo As paixotildees das discussotildees teoloacutegicas foram muitas mas o homem Jesus foi tocado pelos estudiosos apenas nos uacuteltimos dois seacuteculos

(Funari 2009 p 7 in Chevitarese A L Cornelli G)

A busca pelo Jesus da histoacuteria tem mais de 200 anos No final do seacuteculo XVIII um

pequeno nuacutemero de bravos europeus comeccedilou a aplicar criacutetica literaacuteria a livros histoacutericos

do Novo Testamento Segundo E P Sanders a pesquisa sobre Jesus escrita durante

esse periacuteodo de 200 anos por estudiosos seacuterios e determinados trouxe resultados

bastante diversificados sobre o assunto o que levou muitos a pensar que na realidade

natildeo sabemos nada sobre o Jesus da histoacuteria No entanto essa eacute uma reaccedilatildeo exagerada

uma vez que sabemos muitas coisas O problema consiste em saber conciliar os nossos

conhecimentos com as nossas esperanccedilas e aspiraccedilotildees a respeito da vida e ministeacuterio de

Jesus (Sanders 2005 p21)

A pesquisa sobre a vida de Jesus pode ser dividida em cinco fases conforme as

descrevem Gerd Theissen e Annette Merz A primeira fase tem como principais

representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-

28

1874) 10 Reimarus um professor de liacutenguas orientais de Hamburg teve seus escritos

principais publicados somente apoacutes a sua morte por G E Lessing o qual a partir de

1774 comeccedilou a publicar as partes mais importantes do ensaio sobre ldquoApologia ou

Escritos de Defesa para os adoradores Racionais de Deusrdquo Em 1778 ele tinha publicado

sete fragmentos da obra quando iniciou o tratamento da vida de Jesus em perspectiva

puramente histoacuterica (Theissen amp Merz 2004 p21) Conforme Albert Schweitzer estes

satildeo os tiacutetulos dos fragmentos de Reimarus publicados por Lessing (Schweitzer 2003 p

23)

1 A Toleracircncia dos Deiacutestas

2 A Desmoralizaccedilatildeo da Razatildeo no Puacutelpito

3 A Impossibilidade de uma Revelaccedilatildeo em que todos os homens teriam bons motivos

para acreditar

4 A Passagem dos Israelitas pelo Mar Vermelho

5 Demonstrando que os Livros do Antigo Testamento natildeo foram escritos para revelar

uma religiatildeo

6 Acerca da Histoacuteria da Ressurreiccedilatildeo

7 Os objetivos de Jesus e seus Disciacutepulos

Reimarus de acordo com Theissen defendeu a ideia de que Jesus natildeo fundou

uma nova religiatildeo e tambeacutem nunca teve a intenccedilatildeo de desfazer-se do judaiacutesmo visto que

ele sempre esteve inserido na religiatildeo Judaica A pregaccedilatildeo de Jesus era sempre baseada

na apocaliacuteptica judaica O reino prometido por Jesus segundo Reimarus era um reino

terreno nos mesmos moldes e expectativas do pensamento judaico de sua eacutepoca

Portanto para Reimarus ldquoJesus eacute uma figura judaica profeacutetico-apocaliacutepticardquo ou seja

apenas um judeu enquanto que o cristianismo nada mais era do que uma invenccedilatildeo dos

apoacutestolos (Theissen e Merz 2004 p21) Martins Terra fazendo uma anaacutelise do

pensamento de Reimarus sobre a pessoa de Jesus conclui que para o referido teoacutelogo

ldquoJesus natildeo passou de um poliacutetico ambicioso e seus disciacutepulos foram verdadeiros

falsaacuteriosrdquo Na analogia de Reimarus Jesus e sua pretensatildeo poliacutetica terminaram com o

fracasso e a morte na cruz Sobre a ressurreiccedilatildeo de Jesus ele teria dito que foram os

disciacutepulos roubaram o cadaacutever inventaram a mensagem de sua ressurreiccedilatildeo e da vinda

futura Para concluir o pensamento de Reimarus sobre a imagem que temos de Jesus a

10

Essa fase eacute tambeacutem conhecida como a ldquoold questrdquo Essa fase natildeo eacute movida pelo cientificismo mas tem como caracteriacutesticas a rejeiccedilatildeo aos dogmas da Igreja a diferenciaccedilatildeo entre os sinoacuteticos e Joatildeo como fontes histoacutericas a colocaccedilatildeo de Jesus dentro do contexto escatoloacutegico de seu tempo e a ecircnfase sobre o Evangelho de Marcos como sendo o mais antigo dos Evangelhos (Schiavo 2006 p 15-17)

29

partir dos Evangelhos ele afirma que isso foi apenas criaccedilatildeo e ldquofrauderdquo dos disciacutepulos (cf

Martins Terra 1977 p10-12)

Strauss que foi filoacutesofo e teoacutelogo publicou em 18351836 a obra intitulada Vida de

Jesus Para Schweitzer ele natildeo estaacute entre os grandes teoacutelogos mas foi o mais sincero

(Schweitzer 2003 p85) Strauss aplicou aos Evangelhos o conceito de mito algo que jaacute

era comum nas pesquisas sobre o Antigo Testamento de sua eacutepoca (Theissen e Merz

2004 p22) Para ele mesmo que os Evangelhos (sinoacuteticos) tenham sido escritos num

periacuteodo de aproximadamente 40 anos apoacutes a morte de Jesus isso natildeo impede de que

estejam misturados com o mito Ele deixa sua forma de pensar mais evidente quando diz

que ldquonatildeo eacute preciso que um grande homem esteja morto haacute muito tempo para que a lenda

jaacute se ocupe da sua vidardquo (Schweitzer 2003 p 98) Contudo precisamos entender qual eacute

o verdadeiro sentido do mito religioso conforme nos descreve Schweitzer

[] a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha compreendido o caraacuteter essencial do mito religioso Ele nada mais eacute do que ideias religiosas vestidas em uma forma histoacuterica modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda e corporificado numa personalidade histoacuterica Ateacute por motivos a priori somos quase compelidos a assumir que o Jesus histoacuterico nos encontraraacute com as vestes das ideias messiacircnicas do Antigo Testamento e expectativas do cristianismo primitivo (Schweitzer p98)

Segundo Schweitzer a diferenccedila entre Strauss e os seus predecessores eacute que

para aqueles se aplicassem rigorosamente o conceito de mito agrave vida histoacuterica de Jesus

havia um grande questionamento sobre se restaria alguma coisa do Jesus histoacuterico

enquanto que para este essa questatildeo natildeo apresentava nada que fosse considerado um

terror (Schweitzer 2003 p98) Theissen assim resume Strauss ldquoPara Strauss

hegeliano declarado o cerne da feacute cristatilde natildeo eacute atingido pela abordagem miacutetica pois no

indiviacuteduo histoacuterico Jesus realiza a ideia da humanidade de Deus a mais sublime de todas

as ideias O mito eacute a roupagem legiacutetima de tipo histoacuterico dessa humanidade geralrdquo

(Theissen 2004 p22)

De uma forma sucinta Theissen descreve as demais fases da seguinte forma a

segunda eacute denominada como a fase do ldquootimismo da pesquisa liberal sobre a vida de

Jesusrdquo Essa fase eacute marcada por um florescimento do liberalismo teoloacutegico sobre a vida

de Jesus sob o ponto de vista de pesquisadores na Alemanha onde era esperado que se

chegasse agrave reconstruccedilatildeo histoacuterico-criacutetica da histoacuteria de Jesus e de sua personalidade

Essa escola teve como seu principal representante Heinrich Julius Holtzmann (1832-

1910) Destaca-se nessa fase que enquanto F Chr Baur demonstrou a primazia dos

sinoacuteticos sobre o Evangelho de Joatildeo Holtzmann contribuiu para que a teoria das duas

30

fontes desenvolvida por Christian Gottob Wilke e Christian Hermann Weise tornasse-se

um sucesso duradouro (Theissen e Merz 2004 p23)

A terceira fase eacute definida como ldquoo colapso da pesquisa sobre a vida de Jesusrdquo 11

Trecircs foram os motivos para tal colapso o primeiro fator foi a obra de Schweitzer Histoacuteria

de Investigaccedilatildeo da vida de Jesus que provocou o desvelamento das imagens das Vidas

de Jesus criadas pela teologia liberal que conforme os olhos de cada autor revelava-se a

estrutura de personalidade de Jesus com o ideal eacutetico que cada autor almejava O

segundo motivo estaacute concentrado na pessoa de W Wrede que em 1901 demonstrou ldquoo

caraacuteter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesusrdquo Para

Wrede o Evangelho de Marcos era a expressatildeo dogmaacutetica da comunidade cristatilde

primitiva que projetou sobre Jesus de Nazareacute a messianidade do Jesus poacutes-pascal E

por fim K L Schmidt demonstra o ldquocaraacuteter fragmentaacuterio dos evangelhosrdquo Para Schmidt

o Evangelho de Marcos eacute composto por periacutecopes que foram juntadas cronoloacutegica e

geograficamente somente mais tarde pelo autor Sendo assim desaparece totalmente a

possibilidade de se construir uma personalidade de Jesus visto que a histoacuteria das formas

reconhece que as periacutecopes foram juntadas primeiramente para satisfazer as

necessidades das comunidades e soacute em segundo plano como recordaccedilotildees histoacutericas

(Theissen e Merz 2004 p24)

Diante desses movimentos ceticistas surge uma teologia que ora amortece ora

aguccedila ainda mais os debates em torno das pesquisas sobre as Vidas de Jesus Nesse

sentido Rudolf Bultmann (1884 -1976) expotildee a sua teologia dialeacutetica contrapondo Deus e

o mundo de uma forma tatildeo radical a tal ponto que seria possiacutevel um encontro entre

ambas as partes apenas em um ponto assim ldquocomo uma tangente toca um ciacuterculordquo

(Theissen e Merz 2004 p24) Para Bultmann o fator decisivo natildeo era o que Jesus disse

ou fez mas sim o que Deus disse ou fez na cruz e na ressurreiccedilatildeo Nesse sentido

Bultmann afirma que o ensino de Jesus natildeo eacute relevante para a feacute cristatilde e partindo desse

pensamento Theissen define a teologia de Bultmann nas seguintes palavras ldquoSe D F

Strauss viu a verdade do mito de Cristo na ldquoideiardquo R Bultmann a viu no querigma um

chamado de Deus vindo de forardquo (Theissen e Merz 2004 p24-25)

11

Schiavo define essa fase como a ldquono questrdquo Os principais nomes dessa fase satildeo Wrede Dibelius Schmidt e Bultmann Neste movimento os Evangelhos satildeo considerados como um conjunto de tradiccedilotildees desarticuladas e pequenas (periacutecopes) sem interesses histoacutericos A finalidade principal dos Evangelhos estaacute centrada no fato de transmitir mensagens espirituais catequeacuteticas e lituacutergicas para os cristatildeos da Igreja Primitiva Sendo assim eacute impossiacutevel conhecer o Jesus histoacuterico pois a imagem que temos dele nos Evangelhos eacute querigmaacutetica e centrada no Jesus da feacute (Schiavo 2006 p 17-18)

31

A quarta fase eacute definida por Theissen como ldquoa nova pergunta pelo Jesus histoacutericordquo

12 Essa fase desenvolvida pelos disciacutepulos de Bultmann pergunta ou busca uma relaccedilatildeo

a partir do Jesus querigmaacutetico questionando se ldquosua exaltaccedilatildeo na cruz e na ressurreiccedilatildeo

tem alguma base na pregaccedilatildeo preacute-pascalrdquo Os pressupostos para tal questionamento satildeo

fundamentados nas seguintes pressuposiccedilotildees ldquoO querigma cristoloacutegico compromete-se

com a pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Isso se fundamenta segundo essa escola no fato

de que ldquoa identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado eacute pressuposta em todos os

escritos do cristianismo primitivordquo (Theissen e Merz 2004 p25ndash26) O segundo

pressuposto eacute ldquoa base metodoloacutegica da pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Segundo

Theissen esse pressuposto metodoloacutegico eacute ldquoa confianccedila de que se pode encontrar um

miacutenimo criticamente assegurado de tradiccedilatildeo autecircntica de Jesus quando se exclui o que

pode ser derivado tanto do judaiacutesmo como do cristianismo primitivordquo Entende-se que

nessa quarta fase para os disciacutepulos de Bultmann a busca de um fundamento preacute-pascal

que apoie o querigma de Cristo independe do fato de Jesus ter usado algum tiacutetulo

cristoloacutegico visto que isso jaacute estaacute impliacutecito em seu ministeacuterio e em seu anuacutencio (Theissen

e Merz 2004 p26)

Finalmente surge a quinta fase conforme Theissen denominada de ldquoa third

quest13 pelo Jesus Histoacutericordquo Essa fase predominantemente exposta no mundo de fala

inglesa diferencia-se das anteriores pelos seguintes aspectos o interesse histoacuterico-social

substitui o teoloacutegico a inserccedilatildeo de Jesus no Judaiacutesmo ao inveacutes de separaacute-lo como os

disciacutepulos de Bultmann procura fazecirc-lo e por fim haacute uma abertura para as fontes natildeo

canocircnicas substituindo a preferecircncia apenas por fontes canocircnicas A third quest dividiu a

pesquisa sobre Jesus em diferentes correntes No entanto segundo Theissen essa

variedade de interpretaccedilotildees e figuras de Jesus que pode ser visto tanto como um ciacutenico

judeu ou como um personagem colocado no centro do judaiacutesmo a espera do

restabelecimento de um reino escatoloacutegico daacute a essas correntes um tom de

plausibilidade ou seja ldquoo que eacute plausiacutevel no contexto judaico e torna compreensiacutevel o

12

Conhecida como a ldquoNew questrdquo a New quest caracteriza-se por diferenciar o que eacute proacuteprio do judaiacutesmo com o que eacute tambeacutem proacuteprio do cristianismo primitivo Dessa forma seria possiacutevel chegar ao Jesus da histoacuteria Ernst Kaumlsemann eacute um dos representantes dessa escola Para Schiavo J Jeremias tambeacutem pode ser representado nessa escola Visto que o mesmo com a ajuda da filologia e conhecimentos profundos do aramaico tentou reconstruir os ditos autecircnticos de Jesus (Schiavo 2006 p 18)

13 Schiavo complementa que essa fase que teve iniacutecio a partir da deacutecada de 1980 deixa de ser

exclusividade da academia alematilde e a pesquisa do Jesus histoacuterico passa a fazer parte da academia anglo-americana Este movimento tem como caracteriacutesticas principais os seguintes toacutepicos O interesse histoacuterico-socioloacutegico para com o mundo judaico do seacuteculo I dC a inserccedilatildeo de Jesus dentro do Judaiacutesmo A referecircncia agraves fontes natildeo canocircnicas e a aproximaccedilatildeo da fonte Q com o Evangelho de Tomeacute Dentre os representantes dessa escola encontram-se Crossan Sanders Meyer Vermes Freyne Horsley e Theissen (Schiavo 2006 p 18-19)

32

surgimento do cristianismo primitivo poderia ser histoacutericordquo (Theissen e Merz 2004 p28ndash

29)

32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO

Um dos temas da teologia que tem levantado inuacutemeras questotildees a mais de dois

seacuteculos eacute a busca histoacuterica por Jesus de Nazareacute um humilde judeu que viveu na Galileia

agraves margens do Mediterracircneo Sean Freyne avalia que ldquoas muitas idas e vindas dos

estudos que marcam a busca pelo Jesus histoacuterico tecircm sido uma preocupaccedilatildeo constante

da teologia ocidental por mais de dois seacuteculos e mesmo assim nenhum consenso foi

atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundourdquo (Freyne 2008

p1) Sobre a possibilidade de se buscar pelo Jesus histoacuterico Freyne observa que hoje

natildeo eacute mais suficiente apenas assumir uma posiccedilatildeo numa questatildeo por demais debatida Eacute

necessaacuterio que o pesquisador aleacutem de ter conhecimentos da histoacuteria da antiguidade

tambeacutem possua conhecimentos de arqueologia ciecircncias sociais e particularmente de

antropologia cultural (Freyne 2008 p2) Isso demonstra que haacute necessidade de uma

visatildeo interdisciplinar entre essas ciecircncias e seus pesquisadores

A pergunta sobre o Jesus histoacuterico segundo J Jeremias chega a ser absurda e

sem significaccedilatildeo para a feacute cristatilde apenas para aqueles que natildeo conhecem a questatildeo Ele

ainda pergunta ldquoComo eacute possiacutevel que esta questatildeo seja a questatildeo central de todas as

discussotildees sobre o Novo Testamentordquo (Jeremias 2005 p199) Segundo J Jeremias eacute

hora de questionarmos as teorias de Rudolf Bultmann que propagam que o Jesus

histoacuterico eacute irrelevante para a feacute cristatilde e a teoria que apregoa que o Jesus histoacuterico e o

Cristo proclamado pela Igreja natildeo satildeo as mesmas de Reimarus (Jeremias 2005 p 200)

Partindo das questotildees levantadas por J Jeremias e da forma como Bultmann diverge

desse pensador um diaacutelogo sobre a questatildeo eacute sempre gratificante para darmos pelo

menos um passo agrave frente no que se refere ao Jesus histoacuterico

Tendo em vista a amplitude da questatildeo acima levantada fica evidente que

trabalhar temas relacionados agrave vida do Jesus histoacuterico eacute sempre desafiador Muitos foram

os teoacutelogos e pensadores que a partir do ano de 1778 ano em que nasce o ldquoproblema do

Jesus histoacutericordquo (Jeremias 2005 p 200) esforccedilaram-se nessa tarefa com um espiacuterito

criacutetico e investigativo a fim de encontrar evidecircncias histoacutericas a respeito do homem mais

marcante de toda a histoacuteria da humanidade Tambeacutem natildeo significa que antes de Reimarus

33

o Jesus histoacuterico fosse negligenciado a questatildeo eacute que os teoacutelogos e historiadores desde

a igreja primitiva haviam sustentado que os Evangelhos eram documentos dignos de

absoluto creacutedito acerca da vida e histoacuteria de Jesus por isso tiveram a preocupaccedilatildeo de

apenas parafrasear e harmonizar os Evangelhos uma vez que natildeo viam necessidade de

uma investigaccedilatildeo aleacutem das fontes canocircnicas (Jeremias 2005 p 200) As palavras de Udo

Schnelle assim resumem a teologia do Jesus histoacuterico

A pergunta histoacuterica por Jesus eacute uma filha do iluminismo Para os periacuteodos anteriores era evidente que os Evangelhos transmitiam notiacutecias confiaacuteveis sobre Jesus Antes do Iluminismo a pesquisa neotestamentaacuteria dos Evangelhos limitava-se essencialmente agrave harmonizaccedilatildeo dos quatros Evangelhos Na praacutetica a Exegese do Novo Testamento era uma disciplina auxiliar da Dogmaacutetica (Schnelle 2010 p 70)

Ainda com relaccedilatildeo agrave pesquisa sobre o Jesus histoacuterico Joseacute Antonio Pagola diz

que quando nos referimos ao Jesus histoacuterico ldquoestamos falando do conhecimento de

Jesus que os historiadores podem obter utilizando os meacutetodos cientiacuteficos da moderna

investigaccedilatildeo histoacutericardquo (Pagola 2010 p13)

A magnitude de se escrever sobre o Jesus da Galileia eacute descrita por Schweitzer

com as seguintes palavras ldquo[] natildeo haacute tarefa histoacuterica que revele o verdadeiro interior de

um homem como a de escrever uma Vida de Jesus Nenhuma forccedila vital move o

personagem a natildeo ser que o homem sopre nele todo o oacutedio ou todo o amor de que eacute

capaz Quanto mais intenso o amor ou o oacutedio mais realista eacute a figura produzidardquo

(Schweitzer 2003 p11) Em outras palavras Schweitzer diz que aqueles que buscaram

despir Jesus do sobrenatural acabaram descobrindo fatos que enalteceram ainda mais a

sua histoacuteria Para Schweitzer tanto o oacutedio quanto o amor leva o escritor a investigaccedilotildees

profundas no intuito de provar verdade ou falsidade de um acontecimento histoacuterico Nesse

sentido as maiores produccedilotildees a respeito do Jesus histoacuterico foram escritas com oacutedio e

entre elas segundo Schweitzer estatildeo as de Reimarus e a de Strauss (Schweitzer 2003

p11)

Segundo J Jeremias a tese defendida por Reimarus em que Jesus eacute visto como

um revolucionaacuterio poliacutetico que fracassou na cruz quando exclamou ldquoDeus meu Deus

meu por que me desamparastesrdquo era estuacutepida e artificial visto que Jesus natildeo foi um

revolucionaacuterio poliacutetico e sempre reagiu energicamente contra todas as tendecircncias

nacionalistas dos zelotas Ao fazer uma anaacutelise do momento em que Reimarus escreveu

J Jeremias relata que Reimarus estava fazendo uma investigaccedilatildeo voltada ao homem

Jesus para sua personalidade sua religiatildeo e natildeo voltada para o dogma cristoloacutegico e

34

que a princiacutepio tinha como objetivo libertar-se dos dogmas da igreja (Jeremias 2005 p

201)

O resultado desses trabalhos sobre ltltas vidas de Jesusgtgt nos legaram muitas

imagens de sua personalidade que produzem risos Para os racionalistas Jesus eacute visto

como um pregador de moral para os idealistas a quintessecircncia do humanismo e por fim

para os estetas ele eacute posto como o amigo dos pobres e como um reformador social

Assim satildeo inuacutemeras as imagens que fazem de Jesus um personagem de romance

Jesus portanto eacute modernizado conforme as imagens carregadas de fantasias de cada

autor conforme os seus ideais suas eacutepocas ou suas teologias (Jeremias 2005 p 201)

J Jeremias questiona entatildeo onde estaria o erro E a resposta estaacute no fato de que

esses escritores ltltdas vidas de Jesusgtgt sem ter a plena consciecircncia acabaram

substituindo o dogma cristoloacutegico pela psicologia e pela fantasia Haacute poreacutem um ponto em

comum em todas as obras sobre ltlt as vidas de Jesusgtgt todas elas tratam de desenhar

a personalidade de Jesus com a ajuda dos instrumentos da psicologia e da fantasia Os

padrinhos nesse esforccedilo natildeo satildeo apenas as fontes mas a maior parte pertence agrave

imaginaccedilatildeo criativa a uma construccedilatildeo psicoloacutegica livre de obstaacuteculos (Jeremias 2005 p

201-202)

Conforme J Jeremias Albert Schweitzer de uma forma traacutegica poreacutem com muita

destreza desmascara essas criaccedilotildees repletas de fantasias e depois ele mesmo cairia

em falta fazendo uma construccedilatildeo psicoloacutegica a partir do texto do Evangelho de Mateus

(10 23) declarando que a grande decepccedilatildeo na vida de Jesus foi natildeo ter chegado ao final

causando grandes mudanccedilas em sua vida a ponto de aceitar o sofrimento para forccedilar a

chegada do reino de Deus (Jeremias 2005 p 203)

Pesquisar a vida do Jesus histoacuterico eacute muito mais que contar a histoacuteria de um

grande homem Eacute deparar-se com um personagem vital para a histoacuteria da humanidade

que ldquoveio para reger sobre o mundo Ele o regeu para o bem e para o mal como a histoacuteria

testificardquo (Schweitzer 2003 p8) Jesus revolucionou o mundo de sua eacutepoca mudou o

rumo da histoacuteria inseriu-se nela como protagonista mesmo natildeo sendo essa a sua

intenccedilatildeo A histoacuteria do mundo natildeo poderia mais ser contada sem ele ou seja Jesus

dividiu a histoacuteria em o antes e o depois dele A grandiosidade do homem Jesus fascinou

tanto os que o amaram como aqueles que o odiaram Nesse sentido podemos justificar o

fato de tantos pensadores estudarem a respeito do Jesus histoacuterico com as palavras

atribuiacutedas a Hegel por Bernard Bourgeois ldquoUm grande homem condena os humanos a

explicaacute-lordquo (Bourgeois1995 p 375)

35

Segundo Schweitzer os cristatildeos primitivos preocuparam-se apenas em preservar

ditos isolados a respeito do Jesus histoacuterico A expectativa do retorno iminente do Mestre

pode ter sido o motivo principal que levou o cristianismo primitivo a preferir apenas fatos

relacionados ao ministeacuterio de Jesus a uma biografia completa do Jesus histoacuterico O autor

ainda considera isso como um impulso de autopreservaccedilatildeo visto que a introduccedilatildeo do

Jesus histoacuterico na feacute da comunidade primitiva seria algo novo jaacute que o proacuteprio Jesus natildeo

se preocupou em deixar uma autobiografia Pagola compartilha desse pensamento

dizendo que

os evangelistas natildeo compuseram uma ldquobiografiardquo de Jesus no sentido moderno desta palavra Seus escritos estatildeo impregnados de sua feacute no Cristo ressuscitado satildeo sumamente seletivos foram narrados em funccedilatildeo de problemas e necessidades das primeiras comunidades cristatildes e estatildeo ordenados para objetivos teoloacutegicos e concretos Por isso exigem um estudo criacutetico cuidadoso antes de podermos obter deles informaccedilotildees fidedignas para a investigaccedilatildeo (Pagola 2010 p17)

O fato de Jesus natildeo ter deixado nenhum texto escrito e o texto do apoacutestolo Paulo

na segunda carta aos Coriacutentios capiacutetulo cap 5 verso 16 ldquo[hellip] doravante a ningueacutem

conhecemos segundo a carne Tambeacutem se conhecemos Cristo segundo a carne agora jaacute

natildeo o conhecemos assimrdquo abriu o caminho para diversas interpretaccedilotildees acerca de Jesus

De fato Leonhard Goppelt menciona a interpretaccedilatildeo de Rudolf Bultmann segundo a qual

se infere que para Paulo a accedilatildeo terrena de Jesus natildeo teria tido a miacutenima importacircncia o

que importava era a feacute pascal Natildeo obstante a ldquofeacute pascal bem como a cristologia natildeo satildeo

simplesmente uma transfiguraccedilatildeo miacutetica do terreno Muito antes nelas toma forma o que

no Jesus terreno agia apenas de maneira ocultardquo (Goppelt 2002 p 46)

O pensamento de Bultmann a respeito da importacircncia de se investigar a vida e a

personalidade do Jesus histoacuterico se resume nas seguintes palavras

Natildeo podemos saber praticamente nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus jaacute que as fontes cristatildes natildeo se interessaram por elas sendo ademais bastante fragmentaacuterias e encobertas pela lenda uma vez que natildeo existem outras fontes sobre Jesus O que se estaacute escrevendo haacute mais de um seacuteculo e meio sobre a vida de Jesus sua personalidade seu desenvolvimento interior e coisas semelhantes ndash uma vez que natildeo se trata de investigaccedilotildees criacuteticas ndash natildeo passa de fantasia e romance (Bultmann 2005 p 26)

Dessa forma o logos natildeo se torna verdadeiramente carne mas apenas palavra

(kerygma) Na visatildeo de Bultmann o Jesus histoacuterico natildeo faz parte da teologia do Novo

Testamento pois o objeto da teologia do Novo Testamento eacute o Cristo da feacute (pascal) Em

vista disso um estudo acerca do Jesus histoacuterico fica relegado a uma primeira etapa tal

qual uma primeira premissa no interior de um argumento mais elaborado (Bultmann

36

2004 p 24) J Jeremias enfatiza que para Bultmann a pregaccedilatildeo de Jesus eacute apenas

uma premissa entre muitas outras do Novo Testamento (Jeremias 2005 p 204)

Para J Jeremias Bultmann sofreu influecircncia de Martin Kaumlhler atraveacutes de sua obra

Der sogenannte historische Jesus und der geschichtiche biblische Cristus (O chamado

Jesus histoacuterico e o Cristo existencialmente histoacuterico e biacuteblico) Kaumlhler distinguiu por um

lado entre Jesus e Cristo e por outro entre historische (histoacuterico) e geschichtiche

(existencialmente histoacuterico) Por Jesus Kaumlhler compreendia o homem de Nazareacute tal

como foi descrito pelos que investigaram a vida do Jesus histoacuterico por Cristo ele entendia

como aquele que foi proclamado como o Salvador pela igreja Quanto ao significado do

adjetivo historische (histoacuterico) ele compreendia como uma mera designaccedilatildeo dos fatos do

passado e para geschichtiche (existencialmente histoacuterico) como aquele que tem um

significado permanente Portanto para Kaumlhler toda a tentativa de reconstruir a vida do

Jesus histoacuterico se contrapotildee ao Cristo biacuteblico e existencialmente histoacuterico tal como foi

pregado pelos apoacutestolos e para noacutes conforme Kaumlhler o que importa eacute unicamente o

Cristo da Biacuteblia conforme descrito pelos Evangelhos e natildeo as supostas reconstruccedilotildees

cientiacuteficas a respeito da pessoa de Jesus que chegam ateacute a passar a impressatildeo de uma

plena realidade dos fatos (Jeremias 2005 p 202)

A voz de Kaumlhler se extinguiu no vaacutecuo e natildeo surtiu um efeito pleno ateacute o ecoar da

voz de Bultmann que com coragem irredutiacutevel entrou no campo do inimigo e

abertamente lutou contra uma teologia que por um periacuteodo de aproximadamente cento e

cinquenta anos esforccedilou-se para chegar ao Jesus histoacuterico (Jeremias 2005 p 202)

Concordando com Kaumlhler Bultmann declara que todo o esforccedilo para chegar ao Jesus

histoacuterico foi um empreendimento insoluacutevel e infecundo que retirou a inexpugnaacutevel

fortaleza da proclamaccedilatildeo (kerigma) de Cristo (Jeremias 2005 p 203)

Os argumentos de Bultmann para a renuacutencia da teologia do Jesus histoacuterico

fundamentam-se no princiacutepio de que haacute falta de fontes seguras para a fundamentaccedilatildeo

dessa teologia Tambeacutem leva-se em consideraccedilatildeo que natildeo temos nada escrito pelas

matildeos de Jesus As uacutenicas fontes que temos a respeito de Jesus satildeo os Evangelhos e

esses natildeo satildeo biografias de Jesus mas satildeo apenas testemunhos de feacute secundaacuterios e

recobertos de lendas como no caso dos milagres Os Evangelhos segundo esse

pensamento satildeo a demonstraccedilatildeo de feacute dos evangelistas (Jeremias p 203) Concernente

agrave vida e agrave proclamaccedilatildeo de Jesus Bultmann assim descreve

37

[] Pouco sabemos sobre sua vida e personalidade ndash em compensaccedilatildeo sabemos o suficiente sobre sua proclamaccedilatildeo para pintar um quadro coerente Todavia tambeacutem nesse ponto recomenda-se um cuidado extremo em vista do caraacuteter das fontes que dispomos Pois o que as fontes nos oferecem eacute em primeira linha a proclamaccedilatildeo da comunidade que no entanto remonta em sua maior parte a Jesus Naturalmente isso prova que ele realmente tenha pronunciado todas as palavras que essa comunidade lhe pocircs na boca No caso de muitas palavras eacute possiacutevel demonstrar que soacute vieram a surgir na comunidade ao passo que no caso de outras elas foram reformuladas pela comunidade A investigaccedilatildeo criacutetica mostra que o conjunto da tradiccedilatildeo sobre Jesus ndash disponiacutevel nos trecircs evangelhos sinoacuteticos de Mateus Marcos e Lucas ndash se desmembra em uma seacuterie de camadas que em termos gerais podem ser distinguidas umas das outras com bastante seguranccedila mas cuja separaccedilatildeo em alguns detalhes apresenta dificuldades e levanta duacutevidas (Bultmann 2005 p 29-30)

Contudo essa visatildeo de Bultmann natildeo significa a negaccedilatildeo da existecircncia do homem

chamado Jesus de Nazareacute Segundo esse autor eacute possiacutevel conhecer muito dele atraveacutes

de suas pregaccedilotildees poreacutem na anaacutelise da criacutetica histoacuterica em relaccedilatildeo ao homem Jesus

conclui-se que natildeo haacute nada de importante para a feacute cristatilde (Jeremias 2005 p 203)

Quanto agrave questatildeo da existecircncia de Jesus vejamos o que nos diz Bultmann

[hellip] Eacute verdade que a duacutevida se Jesus realmente existiu eacute infundada e natildeo vale a pena gastar nenhuma palavra para refutaacute-la Eacute evidente que ele eacute o gerador do movimento histoacuterico cujo primeiro estaacutegio constataacutevel eacute representado pela comunidade palestinense mais antiga No entanto outra questatildeo eacute ateacute que ponto a comunidade preservou de modo objetivamente fiel a imagem dele e de sua proclamaccedilatildeo Para aqueles que tecircm interesse na personalidade de Jesus esse estado de coisas eacute inquietante e arrasador para nosso propoacutesito ele natildeo eacute de fundamental importacircncia (Bultmann 2005 p 30-31)

J Jeremias analisa entatildeo que para Bultmann Jesus de Nazareacute foi um profeta

judeu que permaneceu sempre dentro dos marcos do judaiacutesmo O Jesus histoacuterico

segundo Bultmann pode ser interessante para a teologia do Novo Testamento e para

compreender a origem do cristianismo mas natildeo tem significaccedilatildeo alguma para a feacute cristatilde

porque o cristianismo comeccedila com a Paacutescoa (Jeremias 2005 p204) Martins Terra expotildee

que o Jesus histoacuterico para Bultmann realmente eacute um profeta e sem duacutevida o maior

deles contudo profeta pertence ao Antigo Testamento Sendo assim Jesus era apenas

um judeu e natildeo um cristatildeo14 ldquoporque cristatildeo eacute aquele que acredita no Senhor

ressuscitado e natildeo aquele que funda sua feacute sobre uma figura histoacutericardquo (Martins Terra

1977 p21)

14

A resposta dada a Bultmann veio de seu disciacutepulo Ernst Kaumlsemann que observa que tanto Jesus quanto

os apoacutestolos eram judeus E se os apoacutestolos eram judeus natildeo eram eles tambeacutem cristatildeos desde o momento que seguiram a Jesus Kaumlsemann ainda pergunta teria havido algum keacuterygma sem a pregaccedilatildeo de Jesus Kaumlsemann chama a atenccedilatildeo para que Jesus natildeo se torne um pretexto e Cristo uma mera cifra mitoloacutegica (Martins Terra 1977 p 44)

38

Escrever uma biografia sobre o Jesus histoacuterico eacute algo descartado na teologia e isso

eacute visto com justiccedila por J Jeremias quando diz ldquo[] eacute muito correto afirmar que jaacute temos

despertado do sonho de acreditar que podemos escrever uma biografia de Jesusrdquo

(Jeremias 2006 p28) No entanto isso natildeo significa passar com indiferenccedila por essa

teologia eacute preciso voltar ao Jesus de Nazareacute e a sua pregaccedilatildeo As fontes nos

impulsionam a cada versiacuteculo dos Evangelhos a buscar pelo homem Jesus que

historicamente apareceu em Nazareacute e que foi crucificado no governo de Pocircncio Pilatos

(Jeremias 2006 p28) Leonard Swidler diz estar ciente tambeacutem das dificuldades para

se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade sobre o Jesus (Ieshua) histoacuterico

Contudo para ele podemos chegar ao fundamental ou seja podemos sempre lutar para

chegar mais perto Para Swidler a consciecircncia dessa limitaccedilatildeo permite que a pessoa

evite os extremos isto eacute tanto a ingecircnua certeza absoluta quanto o ceticismo total sobre

a possibilidade da busca pelo Jesus histoacuterico (Swidler 1993 p 16-18)

A visatildeo de Bultmann a respeito do Jesus histoacuterico natildeo foi seguida pelo seu

sucessor catedraacutetico em Magburg W G Kuumlmmel Para Kuumlmmel interpretar as palavras

de Paulo15 na letra do texto 2 Cor 516 e concluir que o Jesus terreno natildeo teve

importacircncia para o apoacutestolo eacute uma interpretaccedilatildeo ldquoseguramente errocircneardquo (Kummel 2003

p210) pois mesmo que elas natildeo tenham um papel tatildeo importante nos escritos do

apoacutestolo elas natildeo deixam de ser significantes Errocircneo para Kuumlmmel seria o fato de um

cristatildeo procurar ter uma relaccedilatildeo intraterrena com Jesus ou conhececirc-lo apenas

historicamente o que seria insignificante para um cristatildeo Rochus Zuurmond tambeacutem

define o pensamento do apoacutestolo Paulo sobre o versiacuteculo 16 acima mencionado da

seguinte forma

[hellip] Nessa periacutecope natildeo se trata da distinccedilatildeo entre o Jesus preacute-pascal e o poacutes-pascal mas da diferenccedila entre conhecer Jesus da maneira antiga e conhececirc-lo da maneira nova O Jesus poacutes-pascal ainda pode ser ldquoconhecidordquo da maneira antiga o jovem Paulo mas tambeacutem seus adversaacuterios atuais eacute disso um exemplo Em princiacutepio o Jesus preacute-pascal tambeacutem podia ser conhecido de maneira nova se fosse ldquotirado o veacuteurdquo na leitura do Antigo Testamento (314ss cf Jo 856) Mas na praacutetica isso se verificou impossiacutevel por causa da carne (Zuurmond 1998 p 87)

Conhecer Jesus ldquosegundo a carnerdquo na interpretaccedilatildeo de Zuurmond inclui com

certeza todo o conhecimento que podemos ter do Jesus histoacuterico Para ele Paulo natildeo

15

Kaumlsemann tambeacutem contrapotildee essa tese de Bultmann colocando os seguintes argumentos Se o Apoacutestolo Paulo natildeo levou em consideraccedilatildeo a vida terrena de Jesus e a Igreja jaacute estava realizada com o keacuterygma contido nas cartas paulinas por que entatildeo os Evangelhos tornaram-se necessaacuterios jaacute que foram escritos (os Sinoacuteticos) depois que Paulo jaacute tinha escrito todas as cartas Segundo Kaumlsemann a necessidade dos Evangelhos deu-se principalmente porque havia vaacuterios keacuterygmas e a necessidade do discernimento desses deu-se a princiacutepio pelo Espiacuterito todavia quando o entusiasmo cresceu tornou-se necessaacuterio o criteacuterio da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 44-45)

39

estava referindo-se ao Jesus histoacuterico quando fala ldquose jaacute conhecemos o cristo segundo a

carne agora jaacute natildeo o conhecemos maisrdquo (516) Toda a atividade cientiacutefica eacute carne ou

seja pode ser verificado com os recursos da historiografia moderna A pesquisa sobre o

Jesus histoacuterico eacute possiacutevel desde que ela natildeo tenha a pretensatildeo de ser a verdade absoluta

a respeito de Jesus Para Zuurmond o apoacutestolo estaacute enfatizando que o conhecimento

espiritual estaacute aleacutem do conhecimento cientiacutefico contudo natildeo eacute anticientiacutefico mas apenas

natildeo estaacute submisso a qualquer criteacuterio da ciecircncia Zuurmond conclui que ldquoPaulo tem

pouquiacutessima coisa para dizer sobre o Jesus histoacutericordquo uma vez que o apoacutestolo dos

gentios natildeo teria muito interesse pelo ldquotipo de conhecimento sobre Jesus que daiacute

resultariardquo (Zuurmond 1998 p88)

Voltando aos disciacutepulos de Bultmann ainda podemos mencionar Ernst Kaumlsemann

que tambeacutem contestou os ldquodogmasrdquo de seu mestre Para Kaumlsemann a pergunta pelo

Jesus histoacuterico e pelas palavras de Jesus eacute uma praacutetica e exigecircncia do Novo Testamento

visto que satildeo a base e o criteacuterio do keacuterygma Sem essas perguntas o Cristo da feacute se

tornaria em mera ideologia religiosa A importacircncia dessas questotildees torna relevante a

busca pelo Jesus da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 32)

Como se pode compreender em diferentes eacutepocas pensadores divergiram a

respeito da histoacuteria da pessoa do humilde carpinteiro de Nazareacute As especulaccedilotildees a

respeito da vida do Jesus histoacuterico cresceram tanto pelos seus fieacuteis seguidores quanto

pelos seus mais aacutevidos inimigos pelo menos desde o seacuteculo II dC (tal como se pode ver

na calorosa refutaccedilatildeo de Oriacutegenes contra Celso) Em um periacuteodo mais recente teoacutelogos

e arqueoacutelogos tecircm procurado com maior intensidade dados a respeito do homem Jesus e

do estilo de vida que a comunidade do seu tempo vivia com a finalidade de compreender

melhor o contexto em que Jesus estava socialmente inserido

40

4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE

SUA EacutePOCA O objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar o Jesus da histoacuteria dentro do contexto

dos grupos religiosos de sua eacutepoca a fim de observarmos ateacute que ponto Jesus teve

ou natildeo contato com tais grupos abaixo mencionados A preferecircncia de Jesus por um

determinado grupo poderia determinar o que era o Reino de Deus na visatildeo do jovem

pregador galileu Seria Jesus um adepto da seita dos apocaliacutepticos essecircnios dos

moralistas fariseus dos revolucionaacuterios zelotes ou ainda da ldquocorrompidardquo classe

sacerdotal dos saduceus Nos Evangelhos eacute que encontramos a histoacuteria de Jesus

uma vez que eles satildeo as principais fontes que possuiacutemos para montarmos a figura

do maior homem de todos os tempos Mas surgem algumas perguntas Seriam os

Evangelhos fontes histoacutericas confiaacuteveis na apresentaccedilatildeo do homem Jesus Sendo

Jesus pertencente agrave maioria da populaccedilatildeo ou seja da classe pobre e oprimida

pelos romanos teria ele sofrido alguma influecircncia do mundo helenizado da cidade

de Seacuteforis da qual tatildeo perto ele residia ou teria ele totalmente ignorado a cultura e

o mundo helecircnico-romano

Jesus o nazareno na condiccedilatildeo de Filho de Deus repudia todo o tipo de

opressatildeo uma vez que ele veio para ldquoproclamar a libertaccedilatildeo dos presosrdquo e

ldquoevangelizar os pobresrdquo (Lc 4-18) os quais satildeo felizes porque deles eacute o Reino de

Deus (Lc 620-23) Ao proclamar a bem-aventuranccedila dos pobres ele tambeacutem

proclama ldquomaldiccedilotildeesrdquo sobre os ricos que os oprimem e riem deles visto que chegaraacute

a hora em que os que dessa forma riem conheceratildeo o luto e as laacutegrimas (Lc 6 24-

26) Jesus ao ensinar os seus disciacutepulos a como se prevenir e se comportar diante

de uma sociedade poliacutetica e religiosa completamente desprovida do genuiacuteno amor

ao proacuteximo o Mestre da Galileia ensina os seus seguidores a serem

ldquomisericordiososrdquo como o Pai do Ceacuteu eacute misericordioso (cf Lc 6 36)

41

41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE

CONTEMPORAcircNEA DE JESUS

Segundo J Jeremias Jesus16 era proveniente de uma famiacutelia pobre e isso

pode ser constatado na ocasiatildeo do sacrifiacutecio de purificaccedilatildeo ldquoMaria serviu-se do

privileacutegio dos pobres oferecer duas rolasrdquo (Lc 224 cf Lv 128) (Jeremias 1983

p165) No tocante ao seu modo de vida eram tantas as privaccedilotildees que natildeo tinha

onde repousar a cabeccedila (Mt 820 Lc 958) J Jeremias observa que ele natildeo possuiacutea

dinheiro - a histoacuteria do estaacuteter e do ldquotributo a Cesarrdquo o demonstram (Mt 17 24-27 Cf

Mc 12 13-17 Mt 22 15-22 Lc 20 20-26) - tambeacutem aceitou esmolas (Lc 8 1-3)

Jesus provavelmente foi considerado um escriba (da classe mais humilde

desse grupo) conforme subentende J Jeremias (1983 p 59-165) Bultmann

tambeacutem concorda que Jesus era chamado pela tradiccedilatildeo de Rabi (Mc 95 1051

11121 1445) Para ele o tiacutetulo rabi foi substituiacutedo pelos evangelistas de origem

grega quase que completamente pela forma de tratamento grega Senhor

expressatildeo esta que designa Jesus como pertencente agrave classe dos escribas

(Bultmann 2005 p71) Para esse autor natildeo podemos afirmar se nos dias de Jesus

jaacute era necessaacuteria certa formaccedilatildeo cultural para a funccedilatildeo de escriba17 como foi uma

exigecircncia cem anos mais tarde Contudo natildeo podemos ignorar o fato de Jesus ter

sido considerado um Rabi (Bultmann 2005 p71-72)

Vale ressaltar que a relaccedilatildeo de Jesus com os escribas eacute quase sempre

relatada de forma polecircmica nos Evangelhos Quando estava ensinando sobre o fim

de Jerusaleacutem e do mundo Jesus advertiu seus disciacutepulos a respeito dos escribas

dizendo que eles sempre procuravam a distinccedilatildeo social eram arrogantes e

16

O nome Jesus origina-se do hebraico ldquoYehoshuardquo (o Yoshua biacuteblico) que significa YHWH (que provavelmente era pronunciado Yahweh) O Nome Jesus eacute uma forma latina do grego Iesous que por sua vez eacute uma forma grega do termo hebraico O nome Yehoshua foi abreviado no linguajar coloquial para Yeshua ou ateacute mesmo para Yeshu A raiz etimoloacutegica de Ieshua eacute ldquoYerdquo eacute a forma hebraica abreviada do proacuteprio nome de Deus YHWH enquanto que ldquoshuardquo eacute a palavra hebraica que significa Salvaccedilatildeo (cf Swidler 1993 p7-8)

17 Vermes define os escribas da seguinte forma ldquoo termo eacutescriba (sofer em hebraico safra em

aramaico) eacute usado para designar um estudioso um especialista na Biacuteblia particularmente em direito biacuteblico e tradicional A vida religiosa e secular bem organizada dependia desses homens Eram geralmente respeitados e sem duacutevida amiuacutede tornavam-se presunccedilosos vestiam-se apropriadamente usando uma tuacutenica longa (stole ou talit) e estavam habituados a ser respeitosamente saudados por todos indiscriminadamente Em reconhecimento agrave sua dignidade recebiam os lugares de escolha em locais de adoraccedilatildeo e em banquetes e os evangelistas indicam que eles esperavam receber tal tratamento preferencialrdquo (Vermes 2006 p 89)

42

pretensiosos na oraccedilatildeo Em Marcos os escribas dos fariseus criticam Jesus porque

ele come com os cobradores de impostos e com os pecadores (Mc 216) tambeacutem

os disciacutepulos de Jesus reconhecem que o seu ensinamento natildeo eacute como o dos

escribas sem autoridade (Mc 1 22-28 cf Mt 7 29) e por fim os escribas

questionaram a autoridade de Jesus para perdoar os pecados do paraliacutetico de

Cafarnaum (Mc 2 6 cf Mt 93) Eacute bem verdade que em Mateus 819 1352 2334

os escribas satildeo vistos de uma forma positiva e isso eacute mais evidente ainda em

Marcos 12 28-34 onde Jesus e um escriba concordaram a respeito do maior dos

mandamentos o que faz Jesus concluir que tal escriba natildeo estava longe do Reino

de Deus No entanto a impressatildeo que se obteacutem a partir das Escrituras eacute a que

Jesus possuiacutea um conceito formado a respeito dos escribas conforme o descrito

pelo evangelista Marcos nas seguintes palavras (Saldarini 2005 p 164-172)

[] E dizia no seu ensinamento ldquoGuardai-vos dos escribas que gostam de circular de toga de ser saudados nas praccedilas puacuteblicas e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes mas devoram as casas das viuacutevas e simulam fazer longas preces Esses receberatildeo condenaccedilatildeo mais severardquo (Mc 12 38-40)

Os escribas parecem natildeo ser um grupo muito coeso no oriente proacuteximo dos

dias de Jesus Eles eram provenientes de vaacuterias classes do povo ou entatildeo dos

sacerdotes ou de famiacutelias proeminentes Geralmente eles eram dependentes das

classes dominantes que dirigiam a naccedilatildeo Segundo Saldarini (2005 p 282-283) a

maioria dos escribas havia saiacutedo do campesinato para ser treinado pelo governo ou

por famiacutelias ricas para resguardar os registros coletar impostos servir como

funcionaacuterios e juiacutezes e trabalhar com o serviccedilo de correspondecircncias

Ainda com relaccedilatildeo a esse grupo de indiviacuteduos observa-se que os escribas

considerados socialmente inferiores eram aqueles que faziam parte de um pequeno

povoado que tinham entre outras funccedilotildees a de ensinar jovens a ler e escrever mas

natildeo eram considerados mestres visto que natildeo tinha uma educaccedilatildeo elevada para os

padrotildees da eacutepoca Saldarini observa no entanto que a maioria dos escribas

incluindo os apresentados nos evangelhos era considerada funcionaacuterios de niacutevel

meacutedio que eram dependentes da classe sacerdotal das famiacutelias ricas em

Jerusaleacutem e de Herodes Antipas na Galileia

43

Em todos os casos poreacutem os escribas precisam ser contextualizados entre outros grupos sociais e o poder de influecircncia deles integrado no quadro global da sociedade judaica Eles natildeo devem ser tratados como um grupo autocircnomo com seu proacuteprio poder e agenda contiacutenua Os escribas eram diferentes em suas origens e em suas dependecircncias e eram indiviacuteduos que desempenhavam um papel social em diferentes contextos e natildeo uma forccedila poliacutetica e religiosa unificada (Saldarini 2005 p 284-285)

Com relaccedilatildeo ao grupo dos rabinos segundo J Jeremias observa-se de um

modo geral que ele se situa entre as camadas pobres da populaccedilatildeo (Jeremias

1983 p165-166) Mais ainda as informaccedilotildees tradicionais sobre os escribas nos

dias de Jesus concordam que os escribas ricos natildeo eram numerosos Portanto se

realmente Jesus era considerado um escriba certamente ele fazia parte da classe

pobre dos escribas Crossan problematiza mais a questatildeo quando coloca que a

maioria da populaccedilatildeo Judaica da eacutepoca de Jesus era constituiacuteda de analfabetos18

supotildee-se que Jesus tambeacutem era analfabeto que ele conhecia como a ampla maioria de seus contemporacircneos de uma cultura oral as narrativas fundacionais estoacuterias baacutesicas e expectativas gerais de sua tradiccedilatildeo mas natildeo os textos exatos citaccedilotildees precisas ou argumentaccedilotildees intrincadas de suas elites de escribas (CROSSAN 1995 p41)

Em outro momento Crossan observa que o niacutevel de alfabetizaccedilatildeo na

Palestina estava abaixo de 3 segundo fontes rabiacutenicas o que natildeo era tatildeo baixo

para os padrotildees sociais das sociedades tradicionais do passado Crossan reitera

que Jesus era um camponecircs da Galileia e portanto natildeo haacute duacutevidas que Jesus era

analfabeto ldquopara mim Jesus era analfabeto ateacute que o contraacuterio seja comprovado E

natildeo eacute comprovado mas apenas presumido por Lucas quando ele faz Jesus ler o

profeta Isaiacuteas na sinagoga de Nazareacute em 4 16-20rdquo (Crossan 2004 p 274-275)

18

Diferentemente de Crossan David Flusser defende que Jesus ldquoestava longe de ser um iletradordquo Para ele com algumas justificativas eacute possiacutevel que os disciacutepulos de Jesus fossem homens iletrados e sem posiccedilatildeo social (cf At 413) e isso levou os historiadores a pensar que o proacuteprio Jesus nunca havia estudado Flusser vai mais longe ainda quando observa que Jesus era versado tanto nas Escrituras Sagradas como na tradiccedilatildeo oral ldquoAdemais sua educaccedilatildeo era incomparavelmente superior agrave de Satildeo Paulordquo Flusser vecirc na narrativa de Lucas (2 41-51) a histoacuteria de ldquoum erudito precoce pode-se dizer quase um jovem talmudistardquo A fonte de Flusser para tal argumento eacute Flaacutevio Josefo que se referindo a Jesus disse ldquonesta eacutepoca viveu Jesus um homem saacutebio ndash se eacute que na verdade deveriacuteamos chamaacute-lo de homemrdquo Mesmo que tenha havido algumas alteraccedilotildees por um interpolador cristatildeo eacute provaacutevel que a redaccedilatildeo original natildeo se perdeu totalmente jaacute que o texto de Josefo pode ser confirmado ldquopela suposta redaccedilatildeo original da passagemrdquo (Flusser 2002 p 11-12)

44

Carlos Mesters tambeacutem observa que Jesus mesmo antes de nascer jaacute era

viacutetima do sistema poliacutetico e econocircmico predominantes na eacutepoca Com efeito uma

vez que ele natildeo nasceu de uma famiacutelia sacerdotal como Joatildeo Batista (Lc 15) nem

teve o privileacutegio de estudar como o apoacutestolo Paulo (At 22 3) Jesus teve desde

pequeno que trabalhar como agricultor e ainda aprender a profissatildeo de seu pai (Mt

13 55) e por isso era conhecido como carpinteiro (τέκτων) de Nazareacute (Mc 6 3)

Assim como Crossan Mesters analisa que a vida de Jesus desde a infacircncia ateacute a

vida adulta natildeo foi nada faacutecil Sobre a educaccedilatildeo formal do nazareno Mesters nos

diz que ldquoa escola do Jesus era antes de tudo a vida em casa na famiacutelia na

comunidade Foi laacute que aprendeu a conviver a rezar e a trabalharrdquo (Mesters 2011

p 17-21)

O caos econocircmico e cultural entre a populaccedilatildeo contemporacircnea de Jesus natildeo

eacute fato apenas na Galileia19 J Jeremias descreve que a cidade de Jerusaleacutem nos

tempos de Jesus era um centro de mendicacircncia que geralmente girava em torno

do templo Para ele ldquonatildeo eacute de causar espanto se jaacute naquela eacutepoca houvesse

pessoas que simulavam cegueiras surdez e outras doenccedilas a fim de ganharem

esmolasrdquo (Jeremias 1983 p166) Se Jerusaleacutem que era o centro dos

acontecimentos estava numa situaccedilatildeo caoacutetica natildeo muito distante ficava Nazareacute

que conforme Crossan era um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que

vivia em casebres ldquoum povoado simples composto de camponeses entre duzentos a

quatrocentos habitantesrdquo (Crossan Reed 2007 p 7518) Crossan observa que

Nazareacute nunca foi mencionada pelos rabinos na Mishinaacute nem no Talmude nem por

Flaacutevio Josefo quando esse cita o nome de 45 lugares durante a primeira revolta

judaica em 66-67 dC Nem mesmo o Antigo Testamento a conheceu A relaccedilatildeo das

tribos de Zebulon enumera quinze localidades na Baixa Galileia nas proximidades

de Nazareacute mas natildeo a inclui (Js19 10-15) Crossan eacute taxativo ao afirmar que Nazareacute

ldquoera um lugar absolutamente insignificanterdquo (Crossan Reed 2007 p 64)

19

Apesar da Galileia onde Jesus viveu ter sido um lugar de extrema pobreza geograficamente era ldquouma regiatildeo beliacutessima a planiacutecie o lago as colinas a montanha o verde as suas matas fazem da Galileia um ambiente tranquilo e repousanterdquo A pobreza natildeo estava ligada ao aspecto geograacutefico mas sim agrave dominaccedilatildeo romana atraveacutes dos altos e impiedosos impostos que segundo Marconcini natildeo era menos do que 40 do miacutesero rendimento de cada trabalhador que tambeacutem eram destinadas para o aumento do bem-estar dos ricos conforme vemos nos evangelhos de Mateus 18 23-30 e Lucas 16 1-7 -20 (Cf Marconcini 2009 p 38)

45

Tambeacutem observa-se que Nazareacute era um povoado proacuteximo de Seacuteforis que

permaneceu no anonimato ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo

quando se tornou alvo de peregrinaccedilotildees dos cristatildeos (Crossan Reed 2007 p79)

Eles dependiam de espaccedilo fiacutesico para desempenhar atividades agriacutecolas guardar

ferramentas de uso comunitaacuterio cultivo de jardins e pomares tambeacutem precisavam de

espaccedilo para a criaccedilatildeo de animais domeacutesticos e isso explica o porquecirc de uma baixa

densidade populacional Crossan afirma que a maioria dos galileus ganhava a vida

com os produtos da terra com ferramentas precaacuterias e condiccedilotildees geograacuteficas

desfavoraacuteveis O seu estilo de vida em particular dos nazarenos era simples e o

que eles ganhavam era apenas o suficiente para pagar as diacutevidas e impostos

Quanto agraves tradiccedilotildees eles eram zelosos celebravam a paacutescoa descansavam no

Saacutebado e valorizavam as tradiccedilotildees de Moiseacutes e dos profetas

Gerhard Lenski citado por Crossan faz uma interessante descriccedilatildeo de como

eram as divisotildees das classes sociais pelo impeacuterio romano O simples fato de uma

famiacutelia ou povoado possuir arados de ferro poder usufruir de transportes utilizando-

se da roda e da vela gerava um abismo entre as classes designadas altas e outras

designadas baixas Segundo esse autor as classes eram divididas da seguinte

maneira 1 da populaccedilatildeo era constituiacuteda pelos governantes que eram possuidores

de pelo menos a metade das terras os sacerdotes podiam possuir ateacute 15 da

terra logo apoacutes vinham os arrendataacuterios que iam de generais a burocratas

especializados mercadores que provavelmente ascendiam das classes mais

baixas mas que chegavam a ter consideraacutevel riqueza e algum poder poliacutetico e por

fim os camponeses que eram a maioria da populaccedilatildeo de cuja colheita cerca de

dois terccedilos do total as classes altas eram sustentadas

Os camponeses cujas safras dependiam das colheitas nem sempre eram

bem sucedidos pois se houvesse muita chuva ou seca ou ainda doenccedilas e morte

eram expulsos de suas proacuteprias terras Entatildeo eram forccedilados ao arrendamento ou

ateacute mesmo podiam ser submetidos agraves piores humilhaccedilotildees Existia ainda a classe

dos artesatildeos considerada acima dos camponeses porque em geral eram

recrutados entre seus membros desalojados Abaixo dos camponeses existiam

ainda as classes dos degradados e dispensaacuteveis os quais eram rejeitados e iam de

46

mendigos a foras da lei ladrotildees trabalhadores diaristas e escravos (Crossan 1995

p 41)

De acordo com essa divisatildeo de classes deduz-se que se Jesus era

carpinteiro (τέκτων) entatildeo ele pertencia agrave classe dos artesatildeos que por sua vez

estava perigosamente situada entre os camponeses e os degradados ou

dispensaacuteveis Segundo Crossan a pobreza dos conterracircneos de Jesus natildeo se

limitava apenas a Galileia jaacute que de 95 a 97 da populaccedilatildeo do estado judaico era

constituiacuteda por analfabetos Se essa estatiacutestica for verdadeira possivelmente Jesus

tambeacutem era um analfabeto Quanto ao fato dele ensinar eacute provaacutevel que o seu

aprendizado e ensino tenha sido a partir da educaccedilatildeo da tradiccedilatildeo em forma oral

Conforme Crossan os textos de Lucas 2 41-52 e Lucas 4 1-30 devem ser vistos

como ldquopropaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em

termos de instruccedilatildeo e exegese de escribardquo (Crossan 1995 p 41-42)

42 JESUS O HUMILDE NAZARENO

Jesus viveu em Nazareacute a maior parte de sua vida Segundo Pagola uma

pequena aldeia de ldquoapenas duzentos a quatrocentos habitantesrdquo onde alguns

habitantes viviam ldquoem cavernas escavadas nas encostas a maioria em casas baixas

e primitivas de paredes escuras de adobe ou pedra com telhados confeccionados

com ramos secos e argila e chatildeo de terra batidardquo O quesito conforto e comodidade

natildeo era privileacutegio dos nazarenos uma vez que em geral as casas soacute tinham um

cocircmodo no qual se alojava a famiacutelia toda inclusive os animais (Pagola 2010 p62)

Esse pequeno vilarejo ficava a 4 quilocircmetros ao norte de Seacuteforis 20 a cidade

residencial de Herodes Antipas (Gnilka 2000 p71) Seacuteforis diferentemente de

Nazareacute era uma cidade que crescia cheia de curiosidades21 Jerome Murphy-

20

Koester natildeo especifica a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis mas observa que a distacircncia entre essas duas localidades era de poucos quilocircmetros Seacuteforis foi ampliada por Antipas que como seu Pai (Herodes o grande) era amante do esplendor e da grandeza que muitas vezes era expresso por grandes construccedilotildees Aleacutem de Seacuteforis (a primeira capital) Antipas (Tetrarca da Galileia e da Pereia) ainda construiu uma segunda capital a qual deu o nome de Tibeacuterias (Tiberiacuteades) em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (Cf Koester 205 Vl 1 p 395) Theissen especifica como sendo de 6 km a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis (cf Theissen 2004 p 186) A partir desses dados conclui-se que Seacuteforis e Nazareacute ficavam muito proacuteximas

21 As hipoacuteteses de Murphy-OConnor em relaccedilatildeo agrave Seacuteforis satildeo bem diferentes da visatildeo que Crossan

tinha desta cidade como vimos anteriormente Para Crossan Seacuteforis permaneceu no anonimato

47

OConnor observa que seria um equiacutevoco supor que Jesus natildeo passaria todo o

tempo que pudesse em Seacuteforis junto com os amigos Nesse sentido pode-se

questionar Teria Jesus tido em Seacuteforis contato com a liacutengua grega por morar bem

proacuteximo da elegante cidade Seacuteforis era a cidade das atraccedilotildees tanto para os

adultos como para as crianccedilas fato esse que pode ser constatado com Herodes

Antipas o qual teria aprendido a oferecer espetaacuteculos com seu pai Herodes o

grande e nos poucos anos que passou em Roma teria ficado impressionado com os

espetaacuteculos dados por Augusto (Murphy-OConnor 2008 p38-39)

O teatro de Antipas era a grande atraccedilatildeo da cidade Segundo Murphy-

OConnor-OConnor o grande teatro de 45 mil lugares22 sentados em pedra visto

ateacute hoje foi precedido pelo de Antipas em madeira Mesmo que os judeus tenham

sido advertidos a respeito da origem pagatilde do teatro eacute razoaacutevel que Jesus tenha

visto em torno das imediaccedilotildees do teatro atores subindo e descendo pelas ruas e

praticando suas deixas23 Para Murphy-OConnor foi desse contexto que Jesus

conheceu a palavra grega hypokritecircs (ὑποκριτής) que significa ldquoum orador puacuteblicordquo

ldquoum atorrdquo Jesus usou a mesma palavra poreacutem deu a ela um sentido mais profundo

no que se refere agrave vida religiosa A maacutescara refere-se ao ldquofingidorrdquo ou seja agravequeles

que dizem ou parecem ser uma coisa mas na praacutetica satildeo outra conforme vemos

nos Evangelhos (Mt 75 Mc 76 = Lc 642)

O maior acontecimento que Jesus pode ter visto em Seacuteforis ou ouvido falar

muito a respeito quando tinha aproximadamente seis anos de idade foi o

casamento de Herodes Antipas com a filha do rei nabateu Aretas IV de Petra que

governou entre 9 aC e 40 dC Segundo Murphy-OConnor mesmo que o

casamento tenha acontecido em Petra uma caravana de nobres nabateus

provavelmente teria acompanhado Antipas ateacute a cidade de Seacuteforis onde uma

grande multidatildeo de todas as aldeias proacuteximas agrave cidade o aguardava para saudar o

jovem rei (Murphy-OConnor 2008 p40)

ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo quando segundo Crossan a cidade se tornou alvo de peregrinaccedilotildees cristatildes (cf Crossan Reed 2007 p79)

22 Theissen diz que o teatro comportava 5000 pessoas (ver Theissen 2004 p 187)

23 Koester nota que eacute interessante que cidades como Cesareia Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo constem da

tradiccedilatildeo Contudo cidades heleniacutesticas menos importantes como Cesareia de Felipe e Gadara agraves vezes satildeo mencionadas Para Koester ldquonatildeo se pode concluir que Jesus nunca tenha visitado Terras pagatildesrdquo (Cf Koester Vl 2 p 86)

48

Sobre Jesus podemos dizer que aleacutem de ter vivido na pequena Nazareacute de laacute

saiu para ser batizado por Joatildeo Batista Aleacutem disso conforme Mc 63 em Nazareacute e

adjacecircncias ele exerceu a carpintaria (τεκτων) 24 como profissatildeo atividade essa

exercida por seu pai Joseacute Nessa profissatildeo aleacutem de trabalhar com madeira

tambeacutem trabalhava-se com pedras Dessa forma podemos dizer que Jesus era

tambeacutem um entalhador (Gnilka 2000 p 71-72)

Sobre Jesus aleacutem de algumas hipoacuteteses e relatos concernentes ao lugar de

sua residecircncia e outras suposiccedilotildees relacionadas agrave sua vida enquanto um simples

homem inserido em sua comunidade que na qualidade de profeta da Galileia natildeo foi

bem recebido entre seus conterracircneos De acordo com o evangelista Lucas o

ministeacuterio de Jesus comeccedilou aos 30 anos (Lc 323) Para Gnilka a informaccedilatildeo

obtida a partir desse Evangelho possui tambeacutem uma motivaccedilatildeo teoloacutegica visto que

a idade de Jesus deve estar relacionada com a idade do rei Davi conforme vemos

em 2 Sm 54 ldquoTinha Davi trinta anos quando comeccedilou a reinarrdquo Natildeo obstante agrave

determinaccedilatildeo aproximada da idade cerca de 30 anos Lucas revela-nos um

interesse histoacuterico-cronoloacutegico a respeito da vida e ministeacuterio de Jesus (Gnilka

2000 p73)

Jaacute em pleno exerciacutecio ministerial conforme a narrativa de Marcos (Mc 6 1-6)

Jesus fez uma fracassada visita num dia de saacutebado aos seus conterracircneos Quando

Jesus estava a ensinar na sinagoga seus conterracircneos escandalizam-se dele O

motivo para tal desprezo estava relacionado ao fato de ele ser proveniente de uma

famiacutelia pobre conhecida por todos na pequena Nazareacute A origem humilde de Jesus

provocou em seus conterracircneos um sentimento de rejeiccedilatildeo e desprezo chegando

ao ponto de total descreacutedito agrave sua sabedoria e ao seu poder de realizar milagres

Esses fatos provavelmente natildeo devem ter ocorrido no comeccedilo do ministeacuterio de

Jesus como descreve Lucas (Lc 4 14-30) ateacute porque se todos esses

acontecimentos fossem no iniacutecio de seu ministeacuterio a comunidade de Nazareacute natildeo o

teria rejeitado imediatamente mas teriam ficado na expectativa do sucesso de seu

mais conhecido cidadatildeo (Gnilka 2000 p 122)

24

Eacute possiacutevel que como artesatildeo Jesus tenha tomado parte na construccedilatildeo de Seacuteforis O silecircncio da tradiccedilatildeo de Jesus sobre Seacuteforis nos induz a crer que mesmo que Jesus tenha conhecido essa cidade atuou tatildeo pouco nela como deve ter atuado em Tiberiacuteades Jesus deve ter evitado as grandes cidades porque se identificava mais com o campo onde encontrava maior ressonacircncia (Cf Theissen 2004 p 187)

49

Aleacutem das fontes evangeacutelicas sobre Jesus temos alguns relatos de fontes natildeo

cristatildes sobre o homem chamado Jesus de Nazareacute O relato mais conhecido dos

cristatildeos eacute de Flaacutevio Josefo que por volta do ano 93 dC (eacutepoca em que ele morava

em Roma) ele testemunha a respeito de Jesus com as seguintes palavras

conforme a citaccedilatildeo de Rochus Zuurmond25

Naquele tempo a atividade de Jesus um homem saacutebio se eacute que conveacutem chamaacute-lo de homem Pois fez coisas incriacuteveis e foi mestre dos que gostam de aceitar a verdade Teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos Ele foi o Cristo Depois que Pilatos o condenou agrave morte na Cruz porque preeminentes de nosso meio o haviam acusado natildeo cessou o amor que lhe tinham seus sequazes Revivificado ele lhes apareceu no terceiro dia pois os profetas de Deus haviam a seu respeito anunciado este fato e mil outras coisas espantosas Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)

Zuurmond duvida que essa citaccedilatildeo seja de Josefo uma vez que seria

praticamente impossiacutevel Josefo referir-se a Jesus como Cristo e muito mais difiacutecil

ainda seria ele mencionar a ressurreiccedilatildeo ldquocom apelo aos profetasrdquo Contudo

segundo Zuurmond seria muito difiacutecil que Josefo vivendo naquela eacutepoca natildeo

mencionasse Jesus em seus escritos Partindo desse princiacutepio o mais provaacutevel eacute

que o texto tenha sido ldquoprofundamente revisadordquo por um cristatildeo Para Zuurmond

dentre as vaacuterias tentativas para reproduzir o texto original de Josefo a mais provaacutevel

seria a de que o texto teria a seguinte conotaccedilatildeo

foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus um saacutebio que teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos chamaram-no de Cristo Seus sequazes afirmam que ele revivificado lhes apareceu Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome ainda natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)

O proacuteprio Zuurmond acredita que essa reconstruccedilatildeo eacute muito hipoteacutetica

Segundo ele o mais provaacutevel eacute que o texto tenha sido muito mais reduzido e que

tenha sido totalmente substituiacutedo (cf Zuurmond 1998 p 74)

Aleacutem de Josefo temos ainda outras citaccedilotildees hipoteacuteticas de fontes natildeo

cristatildes como a correspondecircncia de Pliacutenio Juacutenior com Trajano por volta de 115 dC

Pliacutenio refere-se agrave reuniatildeo dos cristatildeos e detalha o fato de que cantam um hino ldquoa

Cristo como Deusrdquo Suetocircnio por volta de 120 dC descreve que o Imperador

25

Essa citaccedilatildeo tambeacutem pode ser conferida em Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 3 p 590

50

Claacuteudio expulsou os judeus de Roma porque causavam problemas ldquopor instigaccedilatildeo

de Crestordquo Ainda por volta de 115 dC Taacutecito em annales XV 44 relata sobre o

incecircndio de Roma e sobre um grupo de Cristatildeos seguidores de ldquoum tal Cristordquo

Segundo Zuurmond estas foram as palavras do historiador romano

A fim de abafar este boato (de que ele mesmo foi responsaacutevel pelo incecircndio de Roma Nero inventou alguns bodes expiatoacuterios e submeteu agraves mais sofisticadas formas de supliacutecio aqueles que costumavam ser chamados de cristatildeos um grupo de gente odiado por todos por causa de seus crimes abominaacuteveis Eles devem o seu nome a um tal Cristo que durante o governo de Tibeacuterio (imperador de 14 a 37) por ordem do procurador Pocircncio Pilatos foi executado Depois de ter sido oprimida durante algum tempo essa supersticcedilatildeo perniciosa irrompeu novamente natildeo apenas na Judeacuteia onde este mal se originou mas tambeacutem em Roma para onde confluem e onde costumam ser assiduamente fomentados costumes horrorosos e vergonhosos de toda a espeacutecie (cf Zuurmond 1998 p75-76)

Essas fontes natildeo cristatildes quase que sempre satildeo vistas com alguma

desconfianccedila por alguns especialistas quanto agrave autenticidade de seus conteuacutedos

No entanto qualquer conjectura sobre o assunto natildeo passaraacute de mera

especulaccedilatildeo O mais importante eacute que a histoacuteria de Jesus eacute tatildeo grande que o mais

aacutevido inimigo jamais poderaacute tornaacute-la como algo insignificante para a humanidade

43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES

Como sabemos Jesus nunca nos deixou nada por escrito no entanto tudo o

que sabemos sobre ele estaacute registrado nos evangelhos especificamente nos

evangelhos canocircnicos considerados pela tradiccedilatildeo cristatilde como os mais confiaacuteveis jaacute

que para a tradiccedilatildeo cristatilde conforme vemos em Duquoc os evangelhos apoacutecrifos26

podem sem duacutevida transmitir autecircnticos dados histoacutericos mas natildeo possuem

autoridade para que a partir dos testemunhos descritos neles possa-se elaborar

uma teologia consistente (Duquoc 1992 p 21)

26

Sanders compartilha da ideia da maioria dos estudiosos de que muito pouco dos evangelhos apoacutecrifos pode situar-se aos dias de Jesus Para ele esses evangelhos satildeo ldquolegendaacuterios e mitoloacutegicosrdquo De todo o material apoacutecrifo segundo Sanders somente alguns ditos do evangelho de Tomeacute merecem consideraccedilatildeo No entanto natildeo significa que seja possiacutevel fazer uma divisatildeo clara colocando os Evangelhos canocircnicos de um lado e os apoacutecrifos de outro uma vez que segundo Sanders haacute material lendaacuterio e criaccedilatildeo posterior nos Evangelhos do Novo Testamento Natildeo obstante eacute nos quatro Evangelhos que devemos buscar traccedilos do Jesus histoacuterico conclui Sanders (Sanders 2005 p 88-89)

51

Leif E Vaage eacute mais radical chegando afirmar que todos os escritos cristatildeos

primitivos que tratam da infacircncia de Jesus satildeo apoacutecrifos Segundo ele inclusive os

Evangelhos canocircnicos (Vaage 2007 p 38) Vaage baseia seu argumento no fato de

que nenhum dos Evangelhos relata realmente como foi a gravidez nascimento e

infacircncia de Jesus Por isso natildeo podem ser considerados historicamente

ldquoautecircnticosrdquo No entanto temos um olhar mais positivo sobre os apoacutecrifos em Jacir

de Freitas Faria Para ele noacutes podemos encontrar nos apoacutecrifos ldquovalores que a

piedade popular conservou como dogma de feacuterdquo (Faria 2007 p9) Na visatildeo de Faria

se natildeo fossem os apoacutecrifos do Novo Testamento natildeo saberiacuteamos os nomes de

pessoas como os avoacutes de Jesus dos reis magos dos dois ladrotildees da cruz e outros

nomes relacionados aos cristatildeos do primeiro seacuteculo

Os evangelhos27 por certo satildeo a histoacuteria do Jesus terreno contudo segundo

Bornkamm vale ressaltar que os Evangelhos satildeo histoacuteria mas natildeo no sentido da

histoacuteria moderna ou seja ldquoos evangelistas natildeo eram historiadores de profissatildeo e a

tradiccedilatildeo popular estaacute sempre sujeita a mudanccedilas no processo de transmissatildeordquo

(Bornkamm 1981 p35) Os evangelhos prossegue Bornkamm ldquonatildeo podem ser

classificados entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos como

Tuciacutedides Poliacutebio e Taacutecito nem entre biografias contemporacircneas como As Vidas

dos Ceacutesares de Suetocircnio [cerca de 70-140 dC] rdquo (1981 p35)

Sanders analisando a natureza do material evangeacutelico considera tal tarefa

como uma das mais desafiadoras a ser realizada pelo pesquisador Ainda que a

opiniatildeo dele sobre as fontes seja positiva ele natildeo deixa de enumerar alguns

aspectos considerados problemaacuteticos ou negativos conforme resumimos abaixo

1) Os primeiros cristatildeos natildeo escreveram uma narrativa (histoacuteria) da vida

de Jesus mas escreveram pequenas passagens sobre as suas

palavras e obras Essas pequenas partes foram mais tarde

organizadas pelos autores dos Evangelhos Isso significa que nunca

poderemos estar tatildeo perto do contexto imediato dos ditos e feitos de

Jesus

27

Conforme Marconcini (2009 p 6) o termo evangelho encontra-se doze vezes nos sinoacuteticos das quais quatro vezes em Mateus (423 9 35 24 14 26 13) em Marcos oito vezes (114-15 835 1029 1310 149 1615) a palavra vem sempre da boca de Jesus com exceccedilatildeo de Marcos 11 Jaacute no Evangelho de Lucas prevalece o verbo evangelizar que aparece dez vezes (119 210 318 41843 722 81 96 1616 201)

52

2) Os primeiros cristatildeos revisaram alguns materiais e criaram outros

3) Os Evangelhos foram escritos de forma anocircnima28

4) O Evangelho de Joatildeo eacute muito diferente dos outros trecircs Evangelhos e eacute

principalmente nesse Evangelho que devemos buscar informaccedilotildees

sobre Jesus

5) Aos Evangelhos faltam muitas caracteriacutesticas para ser uma biografia e

temos que distingui-los das biografias modernas (cf Sanders 2005 p

81-82)

A partir dos dados acima observamos que os Evangelhos realmente natildeo

satildeo histoacuteria no sentido moderno do termo No entanto conforme Martins Terra

devemos aplicar a criteriologia moderna de atestar a autenticidade dos escritos ou

seja aquela que estaacute focada mais nos criteacuterios internos29 do que nos criteacuterios

externos mas sempre tendo como base os testemunhos histoacutericos (Martins Terra

1977 p126)

Segundo Latourelle a criacutetica externa analisa os Evangelhos a partir dos

escritos extra-evangeacutelicos (Cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos) e sobretudo a

partir dos testemunhos das Igrejas poacutes-apostoacutelicas (II e III seacuteculos) enquanto que a

criacutetica interna apoia-se no proacuteprio texto (anaacutelise do tecido literaacuterio estudo do

conteuacutedo) Para esse teoacutelogo a criacutetica externa sempre obteve ecircxito em relaccedilatildeo agrave

critica interna mas nos dias atuais essa situaccedilatildeo tem mudado ou seja a criacutetica

interna tem se sobreposto agrave critica externa No entanto Latourelle prefere ficar em

um meio termo e mesmo que a criacutetica externa esteja em decadecircncia Latourelle vecirc

trecircs pontos importantes que podem ser explorados nela ldquosobre os autores dos

28

Sanders referindo-se a autoria dos Evangelhos diz que natildeo sabemos quem realmente satildeo os autores Mateus e Joatildeo foram disciacutepulos de Jesus Marcos foi seguidor de Paulo e possivelmente tambeacutem de Pedro jaacute Lucas foi um dos convertidos (disciacutepulos) de Paulo Mateus Marcos Lucas e Joatildeo realmente existiram mas natildeo podemos afirmar que eles escreveram os Evangelhos Existem provas que os Evangelhos permaneceram sem tiacutetulo de autoria ateacute a metade do seacuteculo II dC e eram sempre citados anonimamente A nomenclatura segundo Mateus segundo Marcos segundo Lucas segundo Joatildeo apareceram de repente por volta do ano 180 em meio ao grande nuacutemero de evangelhos escritos a Igreja teve que decidir quais deles seriam canocircnicos e diante de diferentes opiniotildees os que pensavam que apenas os quatro citados acima eram os que testemunhavam sobre Jesus com autoridade ganharam a questatildeo (cf Sanders 2005 p 87-88)

29 Segundo Martins Terra ldquoa criacutetica interna procura refazer na medida do possiacutevel a histoacuteria das

tradiccedilotildees [traditionsgeschichte] e separar os elementos redacionais [=dos evangelistas] dos elementos provenientes da tradiccedilatildeo anterior ateacute seus estratos mais primitivos Admite-se pois como vaacutelida a ideia fundamental da histoacuteria das formas (formgeschichte e da histoacuteria da redaccedilatildeo [Redaktionsgeschichte])rdquo (Martins Terra 1977 p 126)

53

Evangelhos sobre a autoridade desses na Igreja dos primeiros seacuteculos e sobre a

atitude da Igreja perante as tendecircncias deformadoras dos apoacutecrifos e dos escritos

gnoacutesticosrdquo (Latourelle 1989 p118)

Latourelle observa que ldquoa tradiccedilatildeo tem a tendecircncia de individualizar os

autores e colocaacute-los em relaccedilatildeo iacutentima com uma autoridade apostoacutelicardquo (Latourelle

p118) Um argumento bem aceito pela criacutetica contemporacircnea eacute de que documentos

- o Cacircnon Muratori os proacutelogos antimarcionistas - e os antigos teoacutelogos da Igreja

(Paacutepias Irineu de Liatildeo) - aceitaram Marcos e Lucas como autores dos Evangelhos

que levam os seus nomes porque eles realmente satildeo os verdadeiros autores O

raciociacutenio para defender essa tese conforme expotildee Latourelle eacute que se os teoacutelogos

da patriacutestica (seacuteculo II) tivessem interesse em ldquofalsificarrdquo a autoria dos Evangelhos

para dar maior credibilidade aos mesmos teriam dado a esses dois nomes de

apoacutestolos que conviveram com Jesus e natildeo de testemunhas indiretas como nos

casos de Marcos e Lucas Partindo desse raciociacutenio Latourelle citando Descamps

conclui ldquose as Igrejas do seacuteculo II mantiveram os nomes de Marcos e Lucas como

autores fizeram-no sem duacutevida sob a pressatildeo dos fatosrdquo (Latourelle 1989 p 18)

Segundo Bornkamm ldquoeacute significativo que os evangelhos satildeo anocircnimos e que

os nomes (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo) foram dados para aleacutem do seacuteculo II O

evangelho de Lucas eacute o que mais se aproxima da historiografiardquo (Bornkamm 1981

p35) Aparentemente os Evangelhos datildeo a impressatildeo de continuidade mas os

textos natildeo oferecem um fundo real de uma histoacuteria reconstituiacutevel (Bornkamm 1981

p37) Um fato importante a se observar satildeo as legendas ou seja a forma como

fatos da vida de Jesus ou de personagens do Novo Testamento foram contados

(Bornkamm 1981 p41) O narrador natildeo estaacute preocupado em escrever histoacuterias

mas com a santidade e a piedade exemplar dessas figuras Em alguns casos

chamamos legenda ou embelezamento Bornkamm acredita que temos boas razotildees

para confiar na memoacuteria simples dos disciacutepulos contudo ldquonatildeo devemos subestimar

a influecircncia da feacute poacutes-pascal mesmo com a tradiccedilatildeo passada de matildeo em matildeosrdquo

(Bornkamm 1981 p 43)

A tradiccedilatildeo como vimos acima esforccedila-se para aproximar os Evangelhos das

testemunhas oculares e supervaloriza a qualidade das testemunhas fazendo de

Marcos um porta-voz de Pedro quando Marcos eacute muito mais um relator fiel da

54

pregaccedilatildeo da comunidade primitiva30 A tradiccedilatildeo tambeacutem atribui o primeiro Evangelho

a Mateus e o uacuteltimo a Joatildeo Poreacutem Bornkamm partindo do princiacutepio da teoria das

duas fontes analisa a origem dos Evangelhos especificamente os sinoacuteticos da

seguinte forma dentre as teorias a respeito da formaccedilatildeo dos Evangelhos a mais

aceita e mais coerente eacute a teoria das duas fontes Segundo essa teoria Marcos eacute o

Evangelho mais antigo ele forma a base dos outros dois Evangelhos ldquomaioresrdquo e

estaacute inserido neles Aleacutem de usarem Marcos tanto Mateus como Lucas fizeram uso

independente de uma segunda fonte isso se pode ver pelos muitos ditos e grupos

de ditos natildeo encontrados em Marcos que eles tecircm em comum (Bornkamm 1981

p31) De acordo com J Jeremias Marcos escreveu em grego mais primitivo e

serviu de base para os outros dois Isso comprova que ele eacute o Evangelho mais

antigo O Evangelho de Mateus eacute um Evangelho de Marcos reelaborado

estilisticamente e acrescido de material novo que daacute mais da metade de Marcos

Seguindo a linha de pesquisa da teoria das duas fontes verificamos que mesmo que

Mateus e Marcos discordem de Lucas na ordem dos acontecimentos ou Lucas e

Marcos estejam em discordacircncia em relaccedilatildeo a Mateus dificilmente Mateus e Lucas

juntos oponham-se a Marcos

Haacute poreacutem algumas hipoacuteteses contraacuterias a teoria das duas fontes e elas se

apoiam no testemunho de Papias bispo de Hieraacutepolis na Friacutegia que compocircs por

volta de 130 uma exegese dos oraacuteculos do Senhor conforme relatado por Euseacutebio

de Cesareia em a ldquoHistoacuteria da Igrejardquo Eis o que dizia o Presbiacutetero

Marcos que era o inteacuterprete de Pedro escreveu com exatidatildeo no entanto sem ordem tudo o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor mais tarde poreacutem como jaacute disse ele acompanhou Pedro Este ministrava seus ensinamentos segundo as necessidades mas sem fazer uma siacutentese das palavras do Senhor Desse modo Marcos natildeo cometeu erro escrevendo como se lembrava Seu uacutenico propoacutesito foi nada omitir do que havia ouvido e em nada enganar no que relatava (Latourelle 1989 p121-122)

30

Martins Terra comentando sobre a tradiccedilatildeo sobre os Evangelhos observa que ldquohoje em dia se insiste mais na inspiraccedilatildeo do livro do que no autorrdquo O problema consiste no fato de os Evangelhos terem sido escritos depois de 30 anos de pregaccedilatildeo da Igreja e da tradiccedilatildeo oral Muitas coisas devem ser levadas em consideraccedilatildeo quando se trata da autoria dos Evangelhos uma vez que haacute vaacuterios niacuteveis de mediaccedilotildees que devem ser levados em consideraccedilatildeo (cf Martins Terra 1977 p 125)

55

Segundo Euseacutebio baseado no testemunho de Papias foi Mateus quem

colocou em ordem os oraacuteculos do Senhor em liacutengua hebraica31 Qualquer que seja a

data e o conhecimento de Papias aquilo que ele de fato escreveu estaacute em nosso

alcance apenas em citaccedilotildees de Euseacutebio Os livros de Papias (logiotilden Kyriakotilden

Exegesis Exegese das Logia do Senhor) sobreviveram ateacute a Idade Meacutedia em

algumas bibliotecas da Europa mas natildeo mais existem (Carson et al 1997 p75)

Dalman (1902 p 87) fazendo uma anaacutelise sobre os testemunhos a favor da

teoria que se refere agrave origem aramaica dos Evangelhos eacute categoacuterico em afirmar

que aleacutem do bem conhecido depoimento de Euseacutebio noacutes natildeo temos nenhum traccedilo

a favor da existecircncia de um Evangelho escrito em liacutengua semiacutetica Ateacute mesmo

Jerocircnimo deve ter se enganado em ter dito que o Evangelho original de Mateus

escrito em hebraico ainda existia em seus dias Para Dalman mesmo os vaacuterios

textos dos Evangelhos em aramaico que satildeo conhecidos hoje e ateacute mesmo o texto

que Jerocircnimo usava em aramaico era derivado dos originais gregos

Temos ainda um segundo testemunho da origem dos Evangelhos dado por

Clemente de Alexandria conforme descrito por Euseacutebio na obra Histoacuteria da Igreja

Segundo Euseacutebio Clemente cita uma tradiccedilatildeo dos Anciatildeos a respeito da ordem dos

Evangelhos Conforme essa teoria os Evangelhos que compreendem as

genealogias foram escritos primeiro (Mateus e Lucas) jaacute o Evangelho de Marcos foi

escrito nas seguintes circunstacircncias O apoacutestolo Pedro pregou em Roma e expocircs

publicamente sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo a doutrina evangeacutelica do

cristianismo primitivo Os numerosos ouvintes de Pedro exortaram a Marcos a

transcrever as palavras do apoacutestolo jaacute que aquele tinha acompanhado Pedro por

muito tempo e por certo tinha vivo em sua mente muito do que o apoacutestolo Pedro

havia dito Todavia segundo Euseacutebio quando Pedro soube disso nada fez por meio

de seus conselhos para impedi-lo disso ou para forccedilaacute-lo a isso32

Esse testemunho como o de Papias referem-se aos Anciatildeos isto eacute a

homens da segunda geraccedilatildeo cristatilde A tradiccedilatildeo posterior natildeo faraacute mais do que

retomar esses argumentos

31

Cf Eusebius the Church History translation and commentary by Paul L Maier 2007 p 114 32

Cf Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p 1690 citaccedilatildeo da Hist Ecl IV 14 5-7

56

Papias e Clemente estatildeo de acordo em atribuir a composiccedilatildeo de um dos evangelhos a Marcos disciacutepulo de Pedro (cf 1Pd 5 13) cuja pregaccedilatildeo ele havia escrito Vindo de duas fontes arcaicas diferentes esta informaccedilatildeo pode ser considerada como certa Conforme Clemente Marcos teria escrito enquanto Pedro ainda vivia uma vez que ele estava por outro lado mais ou menos desinteressado desse empreendimento Papias natildeo nos daacute nenhuma informaccedilatildeo expliacutecita sobre este ponto Seu texto permite ao contraacuterio pensar que Marcos havia escrito depois da morte de Pedro e eacute neste sentido que interpretaratildeo Irineu de Liatildeo e o mais antigo Proacutelogo evangeacutelico que nos chegou (fim do seacuteculo II) Papias natildeo nos diz onde Marcos escreveu o seu Evangelho Clemente precisa que foi em Roma onde Pedro exercia o seu ministeacuterio Este pormenor retomado na tradiccedilatildeo posterior parece exato pois o Evangelho de Marcos conteacutem certo nuacutemero de termos gregos que satildeo apenas transcriccedilatildeo do latim (Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p1690)

Apesar de todo o complexo em torno das fontes atualmente a teoria das

duas fontes eacute a mais aceitaacutevel Para Bornkamn haacute tantos paralelos entre Mateus e

Lucas que podemos confiar que tal fonte existiu O que natildeo podemos saber eacute em

que extensatildeo ela jaacute tinha adquirido uma forma literaacuteria fixa Uma coisa eacute certa ela

deve ter sido bem diferente do Evangelho de Marcos Eacute possiacutevel ter certeza que a

fonte Q natildeo era um Evangelho acabado como o Evangelho de Marcos o eacute O modo

como Q eacute usada em Mateus e Lucas mostra como os dois evangelistas a trataram

com mais liberdade do que fizeram com Marcos Isso eacute verdade tanto com

referecircncia ao teor verbal quanto agrave sequecircncia do material Marcos e Q

absolutamente natildeo exaurem as fontes da tradiccedilatildeo sinoacutetica Mesmo Marcos tem

material proacuteprio Lucas eacute quem possui mais cobrindo tanto o ministeacuterio terreno

como as narrativas pascais bem como o material consideraacutevel que ele inseriu na

moldura criada por Marcos

A noccedilatildeo de autoria natildeo resiste aos dados da criacutetica contemporacircnea Os

Evangelhos de Mateus e Joatildeo natildeo possuem nenhuma evidecircncia interna que possa

atribuir a eles a autoria e da mesma forma Lucas e Joatildeo Segundo Latourelle a

criacutetica duvida que eles tenham sido testemunhas ateacute mesmo de segunda matildeo No

entanto a criacutetica reconhece que o autor do primeiro Evangelho era um judeu de

liacutengua grega profundamente conhecedor do judaiacutesmo de sua eacutepoca A criacutetica

tambeacutem reconhece Lucas como o meacutedico e companheiro de Paulo assim como

reconhece Marcos como companheiro de Paulo e sua influecircncia sobre os

evangelhos de Mateus e de Lucas Quanto agrave influecircncia de Pedro sobre o Evangelho

de Marcos a mesma eacute contestada pela criacutetica visto que Marcos parece ser mais um

57

relator e transmissor da pregaccedilatildeo da Igreja primitiva aleacutem de parecer ter sofrido

mais a influecircncia de Paulo

A contribuiccedilatildeo da patriacutestica testemunhada pelos pais da Igreja jamais pode

ser descartada por mais acriacutetica e ingecircnua que pareccedila ser visto que eles viveram

bem proacuteximos dos acontecimentos registrados nos Evangelhos

A importacircncia dos escritos antigos a respeito dos Evangelhos foi a resposta

da igreja aos hereges e aos evangelhos apoacutecrifos O exagerado embelezamento que

os apoacutecrifos criam para ldquocomplementarrdquo os Evangelhos canocircnicos obrigou a Igreja a

criteriosamente separar os Escritos canocircnicos dos apoacutecrifos Para Bornkamm a

formaccedilatildeo do cacircnon do Novo Testamento sempre foi um processo de separar e

nunca de juntar Conforme esse teoacutelogo seria mais viaacutevel perguntar se um livro

deveria estar no cacircnon do Novo Testamento do que perguntar por que determinado

livro natildeo faz parte dele

A Igreja tambeacutem teve que combater o gnosticismo que estava tentando minar

a veracidade dos Escritos Sagrados principalmente com Marciatildeo que com seu

dualismo ldquoopotildee o Deus bom do Novo Testamento ao Deus justo do Antigo

Testamentordquo (Latourelle 1989 p124) A Igreja entatildeo saiu em defesa do

cristianismo autecircntico levantando o estandarte dos quatro Evangelhos como os

uacutenicos reconhecidos como a ldquoautecircntica mensagem de Cristo reconhecida e

ensinada pela tradiccedilatildeo viva da igreja O criteacuterio decisivo eacute o acordo entre os

Evangelhos e a tradiccedilatildeo apostoacutelica que por sua vez se refere ao Cristo vivordquo

(Latourelle 1989 p125)

Eacute vaacutelido observar que os evangelhos sinoacuteticos33 satildeo compostos de ldquotradiccedilotildees

isoladas chamadas de periacutecopesrdquo Essas periacutecopes geralmente tecircm uma

conotaccedilatildeo teoloacutegica e natildeo necessariamente cronoloacutegica ldquoNa verdade muitas

periacutecopes incluem indicaccedilotildees topograacuteficas (no mar da Galileia em Cafarnaum

etc) mas a maioria delas natildeo eacute bem determinada Outro fato a se observar eacute que

nos sinoacuteticos Jesus se dirige a Jerusaleacutem uma uacutenica vez poreacutem em Joatildeo lsquovemos

Jesus se dirigindo a Jerusaleacutem repetidas vezesrsquordquo Segundo Gnilka o importante natildeo

eacute a exatidatildeo do itineraacuterio mas sim a reflexatildeo teoloacutegica (Gnilka 2000 p 24) No

33

O nome sinoacuteticos foi dado aos trecircs primeiros Evangelhos pelo pesquisador alematildeo J J Griesbach em sua obra Synopsis evangeliorum [Sinopse dos Evangelhos] obra que foi publicada em Halle em 1976 (Cf Marconcini 2009 p 10)

58

entanto conforme Benito Marconcini haacute uma concordacircncia nos sinoacuteticos quanto agrave

sucessatildeo dos fatos no ministeacuterio de Jesus Conforme Marconcini ldquoJesus inicia seu

ministeacuterio na Galileia atravessa a Samaria e chega a Jerusaleacutem onde tem o

encontro com a morterdquo (Marconcini 2009 p 10)

O concilio do Vaticano II reproduziu na constituiccedilatildeo sobre a Revelaccedilatildeo o

resultado das pesquisas modernas sobre a Historicidade dos Evangelhos e sobre o

Jesus Histoacuterico conforme resumimos abaixo

a) Os quatro Evangelhos transmitem fielmente o que Jesus realmente fez e

ensinou para a eterna salvaccedilatildeo dos homens

b) Os Apoacutestolos depois transmitiram o que Jesus havia dito e feito ()

c) Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos selecionando

algumas coisas dentre as muitas que tinham sido transmitidas oralmente ou por

escrito sintetizando outras ou adotando-as agraves situaccedilotildees das igrejas (Martins Terra

1977 p 129)

Seria imprudente buscar nos Evangelhos fatos como se busca numa revista

ou jornal de grande circulaccedilatildeo internacional moderna como New York Times por

exemplo Contudo segundo Swidler devemos olhar os quatro Evangelhos como

uma variedade de fontes orais e escritas que apoacutes um periacuteodo de tempo foram

redigidas conforme as necessidades sentidas pelas comunidades e indiviacuteduos da

eacutepoca No entanto fica claro que essa visatildeo criacutetica (moderna) dos Evangelhos natildeo

invalida o caraacuteter histoacuterico desses escritos Eles retratam com muito maior exatidatildeo

sob o ponto de vista histoacuterico-religioso (teoloacutegico) o que Jesus queria dizer com

certas declaraccedilotildees e accedilotildees relatadas pelas primeiras comunidades da Igreja

Primitiva (cf Swidler 1993 p104-105)

Natildeo podemos menosprezar a capacidade da comunidade cristatilde primitiva de

memorizar os fatos relacionados agrave vida de Jesus mas por outro lado natildeo podemos

negligenciar a limitaccedilatildeo humana em memorizar acontecimentos histoacutericos

Raciocinando dessa forma pode-se deduzir que com certeza muitas dessas

recordaccedilotildees natildeo foram transmitidas e nem registradas Eacute evidente que nem todas as

paraacutebolas foram registradas isso estaacute claro em Marcos 433 onde se lecirc ldquoE com

muitas paraacutebolas como esta anunciava-lhes a palavra segundo podiam entenderrdquo

ldquoPodemos partir do pressuposto de que nos evangelhos ficaram conservadas as

59

paacuteginas da atuaccedilatildeo e dos discursos de Jesus que satildeo de decisiva importacircncia para

a nossa feacuterdquo (Gnilka 2000 p25)

44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS

Jesus segundo Gnilka (2000 p35-36) viveu durante o governo de dois

imperadores romanos ldquoo de Otaviano Augusto (27 aC - 14 dC) e o de Tibeacuterio (14-

37)rdquo Nenhum dos dois esteve nessas paragens orientais do Impeacuterio nenhum dos

dois pisou territoacuterio da Siacuteria ou da Palestinardquo A histoacuteria de Jesus estaacute intimamente

ligada agrave famiacutelia Herodes Jesus nasceu sob o governo de Herodes o Grande filho

de Antiacutepater de origem idumeia Por decisatildeo do senado romano e tambeacutem por

iniciativa dos triuacutenviros Antocircnio e Otaviano e mais tarde Augusto pelo fim do ano 40

aC Herodes foi nomeado rei da Judeia

Apoacutes a morte de Herodes o Grande em 4 aC inicia-se uma disputa entre

seus filhos pela sucessatildeo que culminou na divisatildeo do poder entre os descendentes

de Herodes pelo imperador Historicamente dentre os filhos de Herodes o que mais

nos interessa eacute Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) que ficou como tetrarca da

Galileia Dentre os feitos de Antipas podemos citar a reconstruccedilatildeo da cidade de

Seacuteforis e a fundaccedilatildeo da cidade de Tiberiacuteades agrave margem do lago de Genezareacute

cidade que recebeu esse nome em honra ao Imperador Tibeacuterio Foi essa cidade

construiacuteda sobre um cemiteacuterio que Antipas escolheu para residecircncia oficial

tornando-a impura aos olhos dos Judeus crentes por causa das leis leviacuteticas (Gnilka

2000 p 39)

Herodes Antipas ficou conhecido por mandar matar Joatildeo Batista conforme o

relato nos evangelhos (Mc 617-29 Mt 14 3-12) e tambeacutem por Flaacutevio Josefo34 Os

motivos da morte de Joatildeo Batista nos evangelhos satildeo diferentes dos motivos

expostos por Josefo visto que Josefo coloca questotildees poliacuteticas como a principal

causa da execuccedilatildeo de Joatildeo jaacute que Antipas temia uma revolta poliacutetica a partir do

movimento do Batista Para Jesus Antipas tambeacutem tornou-se perigoso ldquoSegundo

Lc 1331 Jesus eacute aconselhado a sair de seu territoacuterio porque o priacutencipe pretendia

mataacute-lordquo (Gnilka 2000 p 40)

34

Cf Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 5 p 594-597

60

Na Judeia a situaccedilatildeo poliacutetica e religiosa era caoacutetica Arquelau (4 aC ndash 6

dC) filho de Herodes o Grande logo depois de ser instituiacutedo etnarca da Judeia e

Idumeia devido a sua extrema tirania tornou-se insuportaacutevel para os judeus a

ponto de um grupo desses ir ateacute Roma para denunciaacute-lo pela forma tiracircnica de

governar bem como a liberdade que tomou para depor e instituir sacerdotes no

templo em Jerusaleacutem Judeia Samaria e Idumeia passam a ser administradas

diretamente por Roma apoacutes Arquelau ser deposto (Gnilka 2000 p 41-42)

Eacute a partir de toda essa confusatildeo que entra em cena a figura de Pocircncio

Pilatos como governador da Judeia (praefectus Judaeae) Nessa eacutepoca tanto o

poder poliacutetico quanto o religioso eram controlados diretamente por Roma ldquoNo

templo tinha que ser oferecido duas vezes por dia um sacrifiacutecio pelo imperador e

pelo povo romano Sobre a administraccedilatildeo das financcedilas do templo o governador

provavelmente tinha uma espeacutecie de supervisatildeo As nomeaccedilotildees dos sumos

sacerdotes tambeacutem eram feitas pelos romanos fosse atraveacutes do governador da

Siacuteria ou do governador da Judeia Isto foi assim nos anos 6-41 depois de Cristordquo

(Gnilka 2000 p 42-43)

O mais importante dos governadores da Judeia que foi contemporacircneo de

Jesus foi Pilatos que segundo os Evangelhos participou decisivamente na morte

de Jesus ldquoFilon de Alexandria caracteriza Pilatos como um homem de natureza

inflexiacutevel obstinado e duro e acusa-o de corrupccedilatildeo violecircncia roubo maus tratos

ofensas continuadas execuccedilotildees sem julgamento constante e insuportaacutevel

crueldaderdquo (Gnilka 2000 p 44) Os dez anos em que Pilatos governou a Judeia

nos quais Caifaacutes tambeacutem sempre foi o Sumo Sacerdote foram marcados pela

crueldade e imprevisibilidade ateacute que no ano 36 ele foi deposto apoacutes ter feito um

violento massacre de samaritanos enquanto esses escalavam o monte Garizim Pelo

fato de estarem armados Pilatos os interpretou mal e resolveu intervir

massacrando-os Mediante esse fato Pilatos foi chamado a Roma para depor diante

do imperador Tibeacuterio mas com a morte deste ele ldquodesaparece do palco da histoacuteria

Notiacutecias surgidas mais tarde dando conta de que ele teria se suicidado ou que teria

sido executado pelo imperador Nero devem ser creditadas a lenda cristatilderdquo (Gnilka

2000 p 44-45)

61

Abaixo segue um resumo do governo poliacutetico e religioso das regiotildees e

cidades com as quais Jesus conviveu (Gnilka 2000 p 47)

- Os herodianos Herodes o Grande (37-4 aC) Antipas (4 aC-39 dC

GalileiaPereia) Filipe (4 aC -34 dC GaulaniacutetideBataneia Arquelau (4 aC -6 C

JudeiaSamariaIdumeia)

- Os Governadores na JudeiaSamariaIdumeia Copocircnio (6-9) Marcos

Antiacutebulo (circa 9-12) Acircnio Rufo (circa 12-15) Valeacuterio Grato (15-26) Pocircncio Pilatos

(26-36)

- Os sumos sacerdotes em Jerusaleacutem Simatildeo ben Boethos (24-5 aC)

Matias ben Theophilos (5-4) Joseacute bem Ellem (exerceu soacute por uma festa) Joazar ben

Boethos (4 aC) Eleazar ben Boethos (4 aC -) Jesus ben sieuml (tempo de cargo

desconhecido) Joazar ben boethos (no cargo pela segunda vez de -6 d C) Anaacutes

ben Sethi (6-15 d C) Ismael bem Phiabi (15-16) Eleazar ben Kamithos (17-18)

Joseacute Caifaacutes (18-36)

Jerusaleacutem era a cidade onde giravam os grandes acontecimentos da

Palestina era considerada a cidade santa natildeo somente por ser administrada

politicamente por Herodes o grande jaacute que muito antes dele a cidade jaacute havia se

transformado no centro espiritual e religioso do Judaiacutesmo A cidade no tempo dos

gregos e romanos tinha de certa forma uma feiccedilatildeo internacional Jesus entrou na

cidade foi aclamado mas logo rejeitado e entregue para ser morto pelo grupo dos

religiosos encarregados de todos os rituais do Templo (Gnilka 2000 p 49)

45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS

Jesus viveu num contexto muito religioso Foi apresentado no templo

circuncidado ao oitavo dia conforme a tradiccedilatildeo da religiatildeo judaica Sempre houve

uma tendecircncia de separar Jesus do contexto judaico tanto por judeus como por

cristatildeos Swidler pontua que os cristatildeos historicamente natildeo somente procuraram

mostrar que tudo o que Jesus fez era bom como procuraram demonstrar que tudo o

que ele fez foi oposto ao modo de agir dos judeus Por outro lado os judeus

aceitaram a interpretaccedilatildeo cristatilde que via Jesus como um antijudeu Atualmente as

coisas estatildeo mudando judeus tecircm visto Jesus como um autecircntico judeu enquanto

que um grande nuacutemero de estudiosos cristatildeos estatildeo convencidos de que soacute se pode

62

compreender adequadamente Jesus contextualizando-o num ambiente e como um

autecircntico Judeu (Swidler 1993 p108)

O Judeu Geza Vermes (com formaccedilatildeo cristatilde) no proacutelogo de seu livro o

ldquoAutecircntico Evangelho de Jesusrdquo relata que desde o fim da deacutecada de 1960 vem se

dedicando a pesquisar sobre Jesus indiferente agraves tradiccedilotildees cristatildes e judaicas a

respeito da pessoa do nazareno Vermes assim se expressa ldquoatuando como

historiador simpatizante e descartando vieses denominacionais tanto a deificaccedilatildeo

de Jesus pelos cristatildeos como a sua caricatura judaica tradicional como apoacutestata

maacutegico e inimigo do povo de Israel eu apenas tentei tirar a limpo e reconstruir uma

imagem de Yeshua filho de Joseacute do pequeno povoado galileu de Nazareacute (Vermes

2006 p7)

Digno de nota eacute que sendo Jesus judeu da Palestina judaica do primeiro

seacuteculo ldquona divisatildeo temporal feita em torno delerdquo (Vermes 2006 p7) obviamente

Jesus conviveu com os diversos grupos existentes na Palestina Conforme os

Evangelhos as relaccedilotildees de Jesus com os liacutederes dos movimentos religiosos nem

sempre foram amistosos Segundo Gnilka diversos eram os movimentos e grupos

poliacuteticos-religiosos nos dias de Jesus Quase todos provieram dos chassidim (os

piedosos) que haviam apoiado a resistecircncia dos macabeus e tambeacutem resistiram agrave

usurpaccedilatildeo dos asmoneus Desse movimento surgiu a maioria dos grupos religiosos

contemporacircneos de Jesus Esses grupos a maioria citados nos evangelhos satildeo

denominados de essecircnios fariseus saduceus e zelotes (Gnilka 2000 p52-53)

Enumerar esses grupos em relaccedilatildeo ao grau de importacircncia que eles exerciam

na sociedade judaica natildeo eacute uma tarefa faacutecil Diversas satildeo as hipoacuteteses levantadas

pelos pesquisadores a respeito de cada um dos grupos acima mencionados

Saldarini observa o fato de os escribas serem vistos como um grupo coeso apenas

no Novo Testamento sendo que em outras fontes eles satildeo vistos como um grupo

composto por pessoas desde a classe de altos funcionaacuterios ateacute a funccedilatildeo de um

humilde copista Outro fator que o autor observa eacute que para Josefo as trecircs

principais escolas de pensamento judaico dos dias de Jesus eram os fariseus os

saduceus e os essecircnios quando no Novo Testamento os principais oponentes de

Jesus satildeo os fariseus escribas e saduceus (Saldarini 2005 p 15)

63

451 OS ESSEcircNIOS

Dentre os grupos religiosos que temos mencionado os essecircnios satildeo os

menos conhecidos se levarmos em consideraccedilatildeo que a biacuteblia natildeo os menciona

contudo eles tecircm despertado muito interesse desde que foram descobertos os

manuscritos nas cavernas de Qumran em 1947 O jovem Mohammed ed-Dib (= ldquoo

lobordquo) conforme a descriccedilatildeo feita por J Jeremias (Jeremias 2006 p 401-429 cf

Jeremias 1979 p 117-148) tornou-se o grande protagonista talvez da maior

descoberta do seacuteculo concernente agrave literatura religiosa ou por que natildeo dizer

universal J Jeremias nos fornece alguns detalhes sobre a importacircncia das

descobertas de Qumran e o judaiacutesmo contemporacircneo de Jesus Depois que

Mohammed descobriu a primeira gruta outras dez foram descobertas sendo ateacute

hoje numeradas de 1 a 11 O papel dos beduiacutenos foi fundamental nas descobertas

visto que sem a busca incessante deles a maioria dos rolos natildeo teriam sido

descobertos Os manuscritos satildeo em um nuacutemero de aproximadamente 600 Mesmo

que a maioria seja apenas de fragmentos alguns do tamanho de uma unha mas

pelo menos uns dez encontram-se quase que totalmente preservados Eles satildeo

datados do periacuteodo que se compreende do seacuteculo III aC ao seacuteculo I da era cristatilde

Atribui-se a produccedilatildeo dos textos e o armazenamento deles em grutas aos essecircnios

conforme nos descreve J Jeremias citando a ldquoHistoacuteria Natural de Pliacutenio

A margem ocidental (do Mar Morto) fora do alcance da influecircncia nociva (de suas aacuteguas) estatildeo estabelecidos os essecircnios Eacute um agrupamento de solitaacuterios uacutenico no mundo sem mulheres ndash pois renunciam ao amor sexual e sem dinheiro eles vivem na sociedade das palmeiras (Embora se abstenham do casamento) o nuacutemero de seus adeptos se manteacutem e se renova cada dia pela afluecircncia daqueles que cansados de lutar contra as vagas de destino vecircm participar de sua vida Assim coisa incriacutevel eles permanecem atraveacutes de milhares de geraccedilotildees uma raccedila eterna ainda que natildeo existam nascimentos entre eles (V 1713)

Para J Jeremias natildeo haacute duacutevida que Pliacutenio se refere aos essecircnios mesmo

que por engano os tenha chamado de raccedila eterna Os essecircnios surgiram por volta

de 167-154 aC apoacutes Antiacuteoco Epifacircnio profanar o Templo de Jerusaleacutem Em 152

aC apoacutes a guerra com os siacuterios Jocircnatas Macabeus cinge a tiara de sumo

sacerdote mesmo natildeo pertencendo agrave descendecircncia dos sadoquitas que eram os

64

uacutenicos habilitados para exercer tal funccedilatildeo Uma revoluccedilatildeo acontece no coleacutegio

sacerdotal resultando na formaccedilatildeo de um grupo denominado de ldquoKhassyyayardquo os

piedosos que em grego satildeo denominados de ldquoessenoirdquo ou ldquoessaicircoirdquo conhecidos

hoje por essecircnios

Os essecircnios eram apocaliacutepticos esperavam o iminente fim deste mundo que

eles acreditavam estar bem proacuteximo Guardavam o saacutebado a ponto de natildeo ajudar

um animal no parto e nem socorrecirc-lo caso caiacutesse num buraco no dia de saacutebado

(Gnilka 2000 p 55-56) tambeacutem tinham como chefe um homem chamado com toda

reverecircncia nos rolos como o ldquoMestre da Justiccedilardquo ldquoo grande teoacutelogo e exegeta da

seitardquo (cf Jeremias 2006 p 408) Para Sean Freyne o chamado ldquoPapiro da Guerrardquo

(1QM) intitulado como ldquoA Guerra dos filhos da luzrdquo mostra como essa comunidade

apregoava um certo tipo de guerra coacutesmica parecida com a religiatildeo zoroaacutestrica da

Peacutersia onde a ecircnfase do conflito estaacute centrada na ideia de uma guerra do bem e o

mal (Freyne 2008 p26) J Jeremias define a teologia tambeacutem como uma doutrina

baseada em dois espiacuteritos ou seja no espiacuterito de Deus e no espiacuterito de Belial ou

seja no diabo e isso resulta na constante luta entre a Luz e as Trevas que tambeacutem

se desenrolam no interior do ser humano (Jeremias 2006 p 412) De acordo com J

Jeremias o dualismo essecircnio eacute monoteiacutesta conforme podemos ver em IQS 31517-

1925 abaixo reproduzido

Do Deus dos conhecimentos Vem tudo o que eacute tudo o que acontece e antes mesmo que as coisas existissem ele fixara todo o seu plano

Eacute ele quem criou o homem para dominar o mundo e pocircs diante de dois espiacuteritos para que ele ande neles ateacute ao momento fixado por sua divina visita

Satildeo os (dois) espiacuteritos de verdade e de iniquidade Da fonte da luz sai a verdade E da fonte das trevas sai a iniquidade Eacute ele (Deus) quem criou os espiacuteritos da luz e das trevas

65

Observamos acima algumas descriccedilotildees a respeito do grupo dos essecircnios

contudo segundo Freyne (Freyne 2008 p26) natildeo se pode resumir o pensamento

desse grupo com um periacuteodo de aproximadamente 200 anos de histoacuteria apenas em

um ponto de vista Isso pode ser visto por exemplo em 4Q 521 onde o texto

demonstra o anseio dos oprimidos por um messias libertador que venha ldquocurar os

feridos distribuir riquezas entre os necessitados conduzir de volta os exilados e

enriquecer os famintosrdquo ou ainda textos como 4Q 426 onde o ldquoGrande Deusrdquo trava

uma decisiva batalha contra as naccedilotildees e garante a paz definitiva ao seu povo O

que Freyne procura dizer eacute que o pensamento dos essecircnios eacute amplo demais para

ser resumido em poucas palavras contudo como natildeo eacute nosso interesse pesquisar a

fundo essa seita contentamo-nos a princiacutepio com algumas informaccedilotildees sobre

eles35

Ainda sobre os essecircnios sabemos por David Flusser que eles eram ferrenhos

inimigos dos fariseus uma vez que condenavam os feitos farisaicos energicamente

No Rolo de Accedilatildeo de Graccedilas (IQH) 4 6-8 estaacute escrito sobre os fariseus da seguinte

maneira ldquoE conduziram o povo por caminhos desviados ao lhes proferir discursos

macios Falsos mestres levam para maus caminhos e caminham cegamente para a

queda pois suas obras satildeo feitas no logrordquo (cf Flusser 2002 p 46)

Aleacutem do que jaacute foi dito sobre os essecircnios surge uma pergunta Ateacute que ponto

os essecircnios tiveram contato com Jesus ou seria Jesus membro da seita dos

essecircnios Segundo Charlesworth eacute possiacutevel que Jesus tenha encontrado alguns

essecircnios em suas idas e vindas no periacuteodo em que exerceu o seu ministeacuterio ou ateacute

antes disso Contudo natildeo podemos afirmar isso jaacute que os essecircnios natildeo satildeo

mencionados no Novo Testamento e na verdade natildeo temos certeza se eles

exatamente eram conhecidos (Charlesworth 1992 p76) Para Charlesworth o que

fica evidente eacute que os essecircnios e Jesus foram contemporacircneos o que nos leva a

deduzir que eacute muito provaacutevel que Jesus ao menos tenha ouvido falar deles e ateacute

conhecesse a doutrina rituais religiosos e haacutebitos sociais desse grupo

(Charlesworth 1992 p79)

Charlesworth enumera algumas semelhanccedilas e diferenccedilas entre Jesus e os

essecircnios 35

Para mais informaccedilotildees sobre os essecircnios ver (Jeremias 2006 p 401-429 e Charlesworth 1992 p 70-89)

66

a) Jesus partilha com os essecircnios de uma teologia monoteiacutesta

b) Como os essecircnios a teologia de Jesus era categoricamente escatoloacutegica

c) Jesus partilhava com os essecircnios uma total entrega a Deus e a Toraacute (Ele

pode ter se referido aos essecircnios quando elogiou os eunucos por causa do reino de

Deus cf Mt 19 10-12)

d) Jesus conforme o Evangelho de Marcos proibiu o divoacutercio (Mateus tornou-

a casuiacutestica Mt 5 31-32 199) assim como os essecircnios eram totalmente contraacuterios

ao divoacutercio ldquoo rei deve permanecer casado com apenas uma mulherrdquo (cf II Q

Temple 57 17-18)

f) Dos essecircnios Jesus rejeita a riacutegida observacircncia do Saacutebado

g) Jesus ao contraacuterio dos essecircnios aproximou-se de todas as classes

sociais inclusive de prostitutas e cobradores de impostos Aleacutem disso a visatildeo de

Jesus em relaccedilatildeo aos rituais de purificaccedilatildeo judaicos era muito diversa das dos

judeus

h) A atitude liberal de Jesus sobre a purificaccedilatildeo se contrastava com a

paranoia dos essecircnios principalmente em relaccedilatildeo ao afastamento das pessoas que

tinham lepra Em II Q Temple 48 14-15 eacute orientado a que existam cidades proacuteprias

para o isolamento dos leprosos enquanto que Jesus repousou em Betacircnia na casa

de Simatildeo o leproso (Mc 143)

i) Jesus enfatizou o amar uns aos outros (na paraacutebola do bom samaritano)

enquanto que os essecircnios na renovaccedilatildeo anual entoavam maldiccedilotildees sobre os filhos

das trevas especialmente sobre aqueles que natildeo eram essecircnios (1Qs) Jesus pode

ter se dirigido a eles quando se referiu ao dito ldquoamaraacutes o teu proacuteximo e odiaraacutes ao

teu inimigo (Mt 5 43)

Em resumo Charlesworth conclui que o cristianismo natildeo foi fundado com as

bases do essenismo conforme havia dito Renan em sua obra ldquoVida de Jesusrdquo

Jesus foi o fundador do cristianismo que foi fundado em meio agraves vaacuterias correntes

judaicas da eacutepoca sem que se possa mencionar uma uacutenica fonte como a trajetoacuteria

Jesus natildeo era um essecircnio ldquomas pode ter partilhado com os essecircnios mais do que a

mesma naccedilatildeo tempo e lugarrdquo (Charlesworth 1992 p 84-88)

452 OS FARISEUS

67

Os fariseus (pharushim ndash separados) - ldquoum grupo de estudiosos leigos que

apareceram na histoacuteria cerca de um seacuteculo e meio antes do nascimento de Jesus

() e se tornaram autoridades na vida dos judeus durante o reinado da rainha

Alexandra em (76-67 aC)rdquo (Swidler 1993 p 74) - nasceram do grupo dos chassidim

e eram em nuacutemero de seis mil pessoas em Jerusaleacutem nos dias de Jesus (Flusser

2002 p 44) Eles tambeacutem natildeo concordavam com a usurpaccedilatildeo por parte dos

asmoneus Segundo Gnilka a maioria dos escribas pertencia ao grupo dos fariseus

Em relaccedilatildeo aos saduceus os fariseus eram a maioria mas a influecircncia poliacutetica

destes era menor Jaacute o clima entre fariseus e essecircnios era hostil Os essecircnios

consideravam os fariseus com ldquogente que amolece e dissolve a lei e de quem se

pode esperar o logro mentira seduccedilatildeo e errordquo (Gnilka 2000 p57-60) Segundo

Flusser os fariseus eram denominados pelos essecircnios como ldquocaiadosrdquo e Jesus

tambeacutem se referiu a eles no Evangelho de Mateus 23 27-28 dizendo ldquoAi de voacutes

escribas e fariseus hipoacutecritas Sois semelhantes a sepulcros caiados que por fora

parecem bonitos mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidaderdquo

Embora o ataque dos essecircnios fosse em alguns pontos parecidos com a criacutetica que

Jesus fez contra os fariseus a distacircncia entre eles eacute muito grande Os essecircnios

rejeitavam explicitamente a doutrina dos fariseus ao passo que Jesus de uma

forma mais positiva via-os como os ldquoherdeiros contemporacircneos de Moiseacutesrdquo (cf

Flusser 2002 p46-48)

Os fariseus eram muito queridos pela maioria da populaccedilatildeo judaica devido agrave

devoccedilatildeo deles aos rituais religiosos Segundo Sanders no periacuteodo asmoneu os

fariseus tambeacutem exerceram uma influecircncia e forccedila poliacutetica muito importante ainda

que depois perderam tal forccedila No governo de Herodes somente o rei tinha o poder

poliacutetico uma vez que todos os que o ameaccedilassem eram imediatamente executados

Na Galileia o sucessor de Herodes foi seu filho Antipas que tambeacutem natildeo se mostrou

muito disposto assim como seu pai a dar autoridade a algum grupo de piedosos e

mestres religiosos Somente em Jerusaleacutem apoacutes Arquelau (irmatildeo de Antipas) ser

deposto eacute que os saduceus respaldados pelo poder romano puderam como grupo

religioso exercer forccedila poliacutetica Os fariseus mesmo sendo a maioria em relaccedilatildeo aos

saduceus continuaram apenas trabalhando ensinando e exercendo suas funccedilotildees

68

no culto judaico nas sinagogas A popularidade deles provavelmente aumentou

contudo natildeo o poder poliacutetico (cf Sanders 2005 p68)

A visatildeo de Saldarini sobre os fariseus compactua com Sanders a respeito da

popularidade dos fariseus Ele observa que para o evangelista Marcos os fariseus

eram um grupo muito reconhecido na comunidade da Galileia Jesus um jovem

oriundo de uma famiacutelia de artesatildeos considerada uma classe inferior na Palestina

natildeo dispunha da mesma honra dada aos fariseus principalmente em Nazareacute sua

terra natal Mas com o decorrer do tempo Jesus atraveacutes de seu ministeacuterio

conseguiu a simpatia de muitos seguidores em outras cidades da Galileia

contraindo para si o ciuacuteme a ira e a perseguiccedilatildeo dos fariseus O confronto dos

fariseus com Jesus a princiacutepio estava baseado em temas teoloacutegicos a respeito do

Jejum (Mc 218) da observacircncia do saacutebado (Mc 224 32) e sobre o divoacutercio (Mc

102) da purificaccedilatildeo das matildeos (Mc 71) e outros temas relacionados com respeito agrave

conduta de Jesus entre os homens considerados pecadores (Mc 216) etc Para os

fariseus no entanto o que estava em jogo natildeo eram apenas os debates teoloacutegicos

mas principalmente a simpatia e o controle da comunidade (Saldarini 2005 p 162-

164)

Para Saldarini os fariseus juntamente com os escribas eram os principais

opositores de Jesus na Galileia Em Jerusaleacutem os seus adversaacuterios tinham um

poder poliacutetico muito maior jaacute que entre eles estavam os chefes dos sacerdotes os

escribas e os anciatildeos do povo dentre os membros desses grupos principalmente

dos sacerdotes estavam os que entregaram Jesus agrave morte O evangelista Marcos

menciona os fariseus em cinco casos (2 18 224 32 811-15 102) e em todos os

casos eles estatildeo em conflito com Jesus36 Os escribas e fariseus juntos satildeo

mencionados duas vezes em Marcos tambeacutem quando estatildeo em conflito com Jesus

(216 7 1-5) Com os herodianos os fariseus satildeo mencionados duas vezes em

Marcos (36 1213) Para o evangelista Marcos os fariseus satildeo situados sempre na

36

Geza Vermes observa que no Evangelho de Mateus os fariseus natildeo satildeo sempre vistos no aspecto negativo Vermes vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e amor a Deusrdquo eles por outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser seguida

69

Galileia (3 2-6 7 1-5 2 18-24 811 102) A uacutenica exceccedilatildeo no evangelho de

Marcos eacute quando os fariseus e os herodianos satildeo enviados a Jesus a fim de

apanhaacute-lo em Jerusaleacutem (1213) Ao contraacuterio de Josefo que situa os fariseus

sempre em Jerusaleacutem ao lado dos chefes dos judeus Marcos mostra-os sempre

ativos na Galileia (Saldarini 2005 p159-160)

Apesar dos fariseus estarem sempre em confronto com Jesus nos

Evangelhos alguns pesquisadores veem algumas semelhanccedilas entre o movimento

de Jesus e o movimento dos fariseus Swidler lista algumas semelhanccedilas entre os

dois grupos Segundo Swidler Jesus reinterpretou as Escrituras hebraicas de

maneira condizente com o meio social onde se encontrava Jesus tambeacutem participou

de refeiccedilotildees entre amigos do tipo farisaico Tambeacutem segundo Swidler eacute possiacutevel ver

semelhanccedilas na doutrina de Jesus a respeito do amor no Shema oraccedilatildeo do

monoteiacutesmo nas bem aventuranccedilas em questotildees relacionadas agrave ressurreiccedilatildeo

tambeacutem seria ver fortes indiacutecios de um espiacuterito farisaico na vida de Jesus (cf

Swidler 1993 p78)

Para fundamentar essa teoria Swidler busca outros pesquisadores como o

teoacutelogo catoacutelico Pawlikowski que chegou a concluir que natildeo seria errado ldquoconsiderar

o movimento de Jesus como uma parte do movimento farisaico geral embora em

muitos campos tivesse um ponto de vista diferenciadordquo Swidler ainda cita o

estudioso protestante E P Sanders referindo-se a ele como mais cauteloso sobre o

assunto abordado poreacutem natildeo hesita em afirmar tambeacutem que ele faz parte do

nuacutemero sempre crescente de especialistas que duvidam que tenham existido

ldquopontos importantes de oposiccedilatildeo entre Jesus e os fariseusrdquo (Swidler 1993 p78)

A forte tendecircncia de colocar Jesus como um judeu apenas corrobora o que

ele sempre foi um judeu e natildeo um cristatildeo uma vez que o cristianismo soacute veio a

existir apoacutes a morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus Entre os judeus catoacutelicos e

protestantes tecircm surgido renomados defensores da teoria Jesus dentro do

judaiacutesmo Swidler aleacutem de citar um catoacutelico e um protestante como referecircncia cita

ainda um judeu (Geza Vermes) para corroborar esse pensamento Vermes em seu

livro Jesus e o mundo do Judaiacutesmo descreve ldquoJesus era um hasid galileu nisso a

meu ver reside a sua grandeza e tambeacutem o germe de sua trageacutediardquo (Vermes 1996

p20)

70

Para Vermes contudo Jesus natildeo foi muito amado pelos fariseus porque

Jesus segundo a visatildeo e interpretaccedilatildeo biacuteblica dos fariseus desprezava

propositadamente alguns costumes tradicionais como sentar-se agrave mesa com

publicanos e prostitutas No entanto para Vermes natildeo parece que tenha havido

discoacuterdia entre Jesus e os fariseus em temas essenciais da religiatildeo e feacute judaica

Vermes define a relaccedilatildeo de Jesus com os fariseus da seguinte maneira ldquoNatildeo

obstante o conflito entre Jesus da Galileia e os fariseus de sua eacutepoca ter-se-ia

assemelhado em circunstacircncias normais agrave mera luta intestina de facccedilotildees

pertencentes ao mesmo corpo religioso como a que se travou entre caraiacutetas e

rabanitas na Idade Meacutedia ou entre os ramos ortodoxo e progressista do judaiacutesmo na

eacutepoca modernardquo (Vermes 1996 p20)

Vermes observa ainda que no Evangelho de Mateus os fariseus nem

sempre satildeo vistos no aspecto negativo Ele vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a

respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles

tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado

juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento

os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e a mor a Deusrdquo eles por

outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o

assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos

fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles

eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser

seguida (Vermes 2006 p98)

Segundo Swidler tanto os pontos positivos e os negativos foram adotados

diretamente pela Comissatildeo do Vaticano para Relaccedilotildees Religiosas com os Judeus e

indiretamente por outras igrejas O Catecismo da Igreja catoacutelica romana diz que

ldquopode-se tambeacutem frisar que se Jesus se mostra severo para com os fariseus eacute

porque estaacute mais proacuteximo deles que de quaisquer outros grupos judaicos seus

contemporacircneosrdquo (cf Vermes 1996 p79)

Nesse invoacutelucro de pensamentos sobre Jesus e os fariseus Swidler leva em

conta o fato de Vermes ter apontado Jesus como participante do grupo dos

ldquohassideus ou devotosrdquo Dentre as muitas especulaccedilotildees descritas por Swidler (nem

71

todas expostas aqui) eacute digna de nota a conclusatildeo desses apontamentos nas

palavras do proacuteprio autor

Assim talvez a melhor maneira de situar Ieshua no contexto do judaiacutesmo da sua eacutepoca seja como mestre (rabi) viandante e que fazia milagres um saacutebio (hakaham) da Galileia hassid galileu que sob muitos aspectos se assemelhava a Hillel (cujos ensinamentos acabaram mais tarde prevalecendo sobre os Shammai no judaiacutesmo rabiacutenico) que alguns estudiosos iriam considerar como algueacutem que teve um relacionamento muito proacuteximo com os fariseus aos quais poreacutem ele criticava sendo por sua vez criticado por eles Sigal o considerou hassid galileu hakham e proto-rabino o qual como Iohanan ben Zakkai antes e depois do ano 70 dC criticou duramente os pharisaioi os perushim (que Sigal natildeo considerava predecessores do judaiacutesmo rabiacutenico muito embora por vezes um emprego impreciso do termo pharisaioi nos evangelhos e em Josefo pudesse incluir alguns proto-rabinos) Estou convencido de que Sigal nos fornece a mais exata e abrangente descriccedilatildeo do lugar de Ieshua na vida judaica do seu

tempo (Swidler 1993 p 86-87)37

A proximidade de Jesus com os fariseus eacute tambeacutem notada por Flusser Ele

nota que nos Evangelhos sinoacuteticos diferentemente de Joatildeo (cf Jo 18 3) os fariseus

natildeo figuram em nenhuma descriccedilatildeo do julgamento de Jesus Flusser ainda nota

que nos primoacuterdios do cristianismo quando os cristatildeos foram perseguidos pelo

ldquosumo sacerdote saduceu o Raban Gamaliel tomou seu partido e os salvourdquo (At 5

17-42) Da mesma maneira Paulo quando estava perante o Sineacutedrio em Jerusaleacutem

vendo que seria punido severamente apelou para os fariseus e encontrou neles

solidariedade (At 22 30 236-10) jaacute que a outra parte era composta por saduceus

(Flusser 2002 p49)

A possiacutevel afeiccedilatildeo dos fariseus em relaccedilatildeo aos primeiros cristatildeos eacute

mencionada por Flusser sobre ldquoTiago o irmatildeo do Senhor e aparentemente outros

cristatildeosrdquo (cf Antiquities book 20 200-2001 in Josephus 1999 p656) que foram

condenados agrave morte em 62 dC pelo sumo sacerdote saduceu (ilegalmente) mas

foram salvos pelos fariseus quando estes apelaram ao rei que por sua vez acabou

37

Segundo Swidler o rabino Phillip Sigal de Pittsburgh os fariseus dos evangelhos natildeo satildeo os

predecessores dos rabis posteriores a 70 dC responsaacuteveis pelos escritos e tambeacutem sem duacutevida fundadores do judaiacutesmo dos nossos dias Para Sigal os predecessores dos rabis natildeo eram nem hillelistas (da escola de Hillel) nem Shamaiacutetas (da escola de Shamai) e nem pertenciam a nenhuma escola ou ldquocasardquo (bet) propriamente dita Ieshua (Jesus) natildeo era saduceu ou fariseu tampouco hilletita nem shamaiacuteta mas era um protorrabi antecipado da eacutepoca tanaiacutetica A sua maneira de ensinar era baseada na liberdade de interpretaccedilatildeo e autoridade conforme o modelo de ensinar protorrabiacutenico [] Ieshua era hakham (saacutebio filoacutesofo um protorrabi) como um profeta carismaacutetico que pregava sobre assuntos assombrosos e aterradores conforme a halakhah juntamente com sua pregaccedilatildeo hagaacutedica (Swidler 1993 p 86)

72

destituindo tal sumo sacerdote Segundo Flusser os fariseus possivelmente

consideravam a relaccedilatildeo dos saduceus com os romanos como um ato de

ldquodespotismo sacerdotalrdquo e essa poderia ser a causa a partir da leitura dos Sinoacuteticos

da ausecircncia de relatos da presenccedila de fariseus no julgamento e condenaccedilatildeo de

Jesus Flusser pressupotildee que os Sinoacuteticos natildeo mencionam um protesto dos fariseus

a favor de Jesus uma vez que eles jaacute haviam registrado anteriormente um Jesus

ldquoantifarisaicordquo em suas narrativas (Flusser 2002 p50)

453 OS SADUCEUS

Os saduceus que natildeo eram originaacuterios dos chassidim mas dos asmoneus

respeitavam os fariseus porque estes tinham um grande prestiacutegio com a populaccedilatildeo

em geral A classe dos saduceus era composta por gente nobre e rica da sociedade

Eles rejeitavam a doutrina da ressurreiccedilatildeo dos mortos e a existecircncia dos anjos

Tambeacutem soacute aceitavam o Pentateuco como verdade de feacute ldquoOs saduceus possuiacuteam o

poder os fariseus possuiacuteam a influecircncia sobre o povordquo (Gnilka 2000 p 61-62)

Flusser tambeacutem coloca os saduceus como um grupo pequeno menor do que os

fariseus por outro lado ele observa que os saduceus eram poderosos uma vez que

pertenciam a aristocracia sacerdotal do templo Eles natildeo eram revolucionaacuterios como

os fariseus (que se envolveram na guerra civil no periacuteodo macabeu) negavam a

validade da tradiccedilatildeo oral e consideravam toda a crenccedila na vida futura como uma

tolice (Flusser 2002 p45)

Nos Evangelhos sinoacuteticos os saduceus satildeo mencionados mais no Evangelho

de Mateus sendo que em Marcos e Lucas eles satildeo mencionados apenas uma vez

em cada Evangelho (Mc 12 18-27 Lc 20 27-40) No entanto tanto para Mateus e

Marcos como para Josefo os saduceus assim como os fariseus eram muito

conhecidos no primeiro seacuteculo da era cristatilde (Saldarini 2005 p183-184) Os

saduceus satildeo sempre colocados por Josefo ao lado dos fariseus Josefo tambeacutem

situa os saduceus como sendo um grupo pertencente agrave classe dominante Em Atos

dos apoacutestolos os saduceus discutem com os fariseus acerca da ressurreiccedilatildeo por

causa de um discurso de Paulo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (At 23) Em Atos

(41 517) os saduceus tambeacutem satildeo associados aos maiorais do templo ou seja agrave

classe sacerdotal (Saldarini 2005 p308-309)

73

A classe sacerdotal estaacute intimamente relacionada ao julgamento de Jesus

Em Lucas 22 54 lemos ldquoPrenderam-no e levaram-no introduzindo-o na casa do

Sumo Sacerdote Pedro seguia de longerdquo Segundo Flusser o clatilde sacerdotal e o

proacuteprio sumo sacerdote eram saduceus Caifaacutes era o sumo sacerdote e tambeacutem era

a figura mais importante do segundo Templo Foi na casa (palaacutecio) de Caifaacutes que

Jesus passou a noite sob custoacutedia enquanto era escarnecido pelos guardas (Lc 22

63) Os saduceus odiavam a Jesus possivelmente porque o consideravam um

profeta (ldquoFaz uma profecia quem eacute que te bateurdquo Lc 22 64) e sua presenccedila em

Jerusaleacutem podia ser uma clara ameaccedila Segundo Joatildeo os motivos da condenaccedilatildeo

de Jesus pela classe sacerdotal eacute que

[] os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram ldquoQue faremos Esse homem realiza muitos sinais Se o deixarmos assim todos creratildeo nele e os romanos viratildeo destruindo o nosso lugar santo e a naccedilatildeordquo Um deles poreacutem Caifaacutes que era o Sumo Sacerdote naquele ano disse-lhes ldquoVoacutes nada entendeis Natildeo compreendeis que eacute de vosso interesse que um soacute homem morra pelo povo e natildeo pereccedila a naccedilatildeo todardquo Natildeo dizia isso por si mesmo mas sendo sumo Sacerdote naquele ano profetizou que Jesus morreria pela naccedilatildeo ndash e natildeo soacute pela naccedilatildeo mas tambeacutem para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos Entatildeo a partir desse dia resolveram mataacute-lo Jesus por isso natildeo andava em puacuteblico entre os judeus mas retirou-se para a regiatildeo proacutexima do deserto para a cidade chamada Efraim e aiacute permaneceu com seus disciacutepulos (Jo 11 47-54)

A atitude de Caifaacutes em relaccedilatildeo agrave morte substituta de Jesus (ldquoeacute de vosso

interesse que um soacute homem morra pelo povordquo) eacute vista por Flusser mais como uma

justificativa do sumo sacerdote uma vez que a tradiccedilatildeo judaica repudiava o ato de

entregar um cidadatildeo judeu para que fosse morto por estrangeiros era um pecado

imperdoaacutevel segundo a halakaacute38 Flusser cita ainda o Rolo do Templo essecircnico

(64 7-8) que diz ldquoSe um homem calunia Meu povo e entrega Meu povo para uma

naccedilatildeo estrangeira e pratica a iniquidade contra meu povo penduraacute-lo-eis numa

38

Zuurmond define a halakaacute da seguinte maneira ldquoeacute o way of life judaico o conjunto de prescriccedilotildees e proibiccedilotildees que definem a maneira como vivem os judeus Uma questatildeo halaacutequica eacute uma disputa sobre a halakaacute geralmente com base na interpretaccedilatildeo de textos do Antigo Testamento Nem toda a questatildeo halaacutequica eacute de ordem moral As leis de pureza por exemplo formam uma parte importante da halakaacute mas ndash pelo menos segundo nosso modo de falar ndash natildeo tem caraacuteter moralrdquo (Zuurmond 1998 p 77) A raiz halak tambeacutem pode ser definida como a ldquoviardquo a ldquocaminhadardquo ou seja ldquoa regra (de vida) que vai permitir a aplicaccedilatildeo da Torah escrita agraves circunstacircncias reais e mutaacuteveis da vida O plural eacute halakot regras decisotildees e coleccedilotildees de leisrdquo (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

74

aacutervore e ele morreraacuterdquo Ainda havia uma tradiccedilatildeo oral dos saacutebios judeus com o

seguinte teor ldquose haacute um grupo de pessoas e os gentios lhes dizem entregai um de

voacutes para noacutes e o mataremos se natildeo fizerdes mataremos a todos a (regra eacute) deixai

que todos sejam assassinados e natildeo entregueis a eles uma uacutenica alma em Israel

poreacutem se eles o escolherem deixai que o entreguem para que todos natildeo sejam

massacradosrdquo (cf Flusser 2002 p 164-166)

Caifaacutes natildeo se restringiu apenas a entregar Jesus aos romanos Ele sabia que

eles eram implacaacuteveis a qualquer judeu rebelde ou a movimentos profeacuteticos

entusiastas que se levantassem na Palestina No entanto parece que Caifaacutes natildeo

estava preocupado com as tradiccedilotildees de seu povo O viacutenculo dele com os suacuteditos e

representantes de Cesar se estreitava ainda mais quando o vemos em Atos dos

Apoacutestolos (4 1-3 46 5 27-28) juntamente com a classe sacerdotal (os saduceus)

prendendo muitos cristatildeos em Jerusaleacutem pelos mesmos motivos que Jesus foi

entregue aos romanos sem se importar com as tradiccedilotildees judaicas das quais ele

deveria ser o principal observador (Flusser 2002 p 154-166)

454 OS ZELOTAS

Os movimentos de resistecircncia nos dias de Jesus estatildeo ligados ao projeto de

romanizaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo da Galileia por Herodes Antipas (Crossan 2009 p16-

18) O anseio de Antipas em se tornar rei uma vez que ele foi nomeado por Cesar

Augusto como tetrarca da Galileia e Pereia e seu irmatildeo Felipe ficou como tetrarca

da parte do extremo norte do paiacutes Jaacute Arquelau o outro filho de Herodes o Grande

ficou como etnarca da Idumeia Judeia e Samaria o que deixou Antipas muito

desapontado

Segundo Crossan Antipas comeccedilou a trabalhar para ganhar prestiacutegio em

Roma poreacutem agraves custas de um jugo pesado aos habitantes da Galileia Primeiro ele

fortificou Seacuteforis ldquopara ser o ornamento de toda a Galileiardquo e dedicou a Augusto a

sua cidade-capital reconstruiacuteda Apoacutes a morte de Augusto assumiu como Imperador

de Roma Tibeacuterio Antipas logo teve a ideia de substituir a capital Seacuteforis fundando

uma nova cidade a 32 quilocircmetros ao leste na costa ocidental do mar da Galileia e

nomeou-a Tiberiacuteades em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (cf Crossan 2009 p

17-18) O problema de tudo isso era que as construccedilotildees de Antipas provocavam o

75

aumento dos tributos sobre os galileus causando um descontentamento geral

Contudo para Antipas o que mais importava conforme Crossan nos descreve era

passar a Roma uma imagem de um governante lucrativo na questatildeo da arrecadaccedilatildeo

de impostos o que poderia levar o Imperador a pensar ldquoque eacute que natildeo faria ele

como monarca de toda a paacutetria judaicardquo

As construccedilotildees de Antipas poderiam impressionar Roma mas natildeo poderiam

evitar os movimentos de resistecircncia judaica uma vez que segundo Pagola (2010 p

48) ldquoos camponeses experimentaram pela primeira vez a pressatildeo e o controle

proacuteximo dos governos herodianosrdquo A situaccedilatildeo era tatildeo caoacutetica que aumentou

assustadoramente o nuacutemero de indigentes prostitutas e diaristas enfim parece que

Jesus conheceu ao longo de sua vida uma Galileia onde a desigualdade social era

enorme onde se favorecia a minoria privilegiada de Seacuteforis e Tiberiacuteades ao custo da

pobreza e sofrimento e desintegraccedilatildeo de muitas famiacutelias

Crossan (2004 p 275) nota que a construccedilatildeo ou reconstruccedilatildeo das cidades

de Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo afetou apenas os camponeses iletrados ou seja os

trabalhadores mais humildes mas tambeacutem afetou agrave classe dos letrados Assim ele

conclui que ateacute mesmo o movimento de Jesus relacionado ao reino de Deus

comeccedilou como um movimente de resistecircncia a partir dos camponeses ldquomas

abandonou seu caraacuteter localista e regionalista sob a lideranccedila dos letradosrdquo

Dentre os movimentos de Revolta encontramos Judas galileu que apoacutes a

deposiccedilatildeo de Arquelau (6 d c) natildeo aceitava que o pagamento de impostos devia

ser efetuado diretamente a Roma Segundo Theissen (2004 p163-164) a doutrina

de Judas repercutiu muito chegando ao ponto de alguns ldquoherodianosrdquo questionarem

a Jesus a respeito da questatildeo de se era liacutecito ou natildeo pagar impostos ao Imperador

(cf Mc 12 13-17) Horsley defende que o movimento de Judas o Galileu e de

Sadoc o fariseu que Josefo rotula como a quarta filosofia (as outras satildeo os

fariseus os saduceus e os essecircnios) tecircm sido interpretadas de uma forma errada

por vaacuterios especialistas que afirmam que esse movimento pregava a revolta armada

contra Roma De acordo com Horsley Josefo assim descreveu esse movimento em

Ant 18 4-5 23

Mas um certo Judas gaulanita da cidade de Gamala em combinaccedilatildeo com o fariseus Sadoc insistiu fortemente na resistecircncia Eles diziam que tal

76

avaliaccedilatildeo tributaacuteria implicava escravidatildeo pura e simples e pressionavam a naccedilatildeo a exigir sua liberdade [] Judas o Galileu estabeleceu-se como o liacuteder da quarta filosofia Os seus adeptos concordaram com as ideia dos fariseus em tudo exceto em sua indomaacutevel paixatildeo pela liberdade pois consideram Deus o seu uacutenico liacuteder e senhor (cf Horsley 2010 p 72)

Horsley avalia que Judas e Sadoc estivessem mais ligados ao ensino ou

pregaccedilatildeo ldquocontra a avaliaccedilatildeo tributaacuteria ou ateacute mesmo uma resistecircncia organizada

contra os impostos do que um grupo armado e violento conforme tem sido

interpretado a partir dos escritos de Josefordquo (Horsley 2010 p 78-79)

As informaccedilotildees sobre os grupos de resistecircncias nem sempre satildeo unacircnimes

como vimos acima No entanto podemos afirmar que entre os grupos de resistecircncia

encontram-se os Zelotes (Zelotas) talvez os mais conhecidos O termo Zelotas

encontra-se oito vezes registrado no Novo Testamento Esse termo geralmente

aplica-se ldquoaos guerrilheiros da resistecircncia desde Judas Galileu (6 aC) ateacute os

defensores da fortaleza de Masadaacute (74 dC) Eles eram rigorosamente

observadores do saacutebado da circuncisatildeo (exigiam a circuncisatildeo ateacute mesmo dos

antigos) e tinham fortes crenccedilas escatoloacutegicasrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia

do Novo Testamento p 2686) De acordo com Theissen mesmo que os

seguidores de Judas Galileu sejam chamados de Zelotes natildeo eacute possiacutevel afirmar tal

coisa visto que em Josefo eles ldquoaparecem como grupo apenas depois do inicio da

guerra judaica em 66 dC em relaccedilatildeo com o Templordquo (cf Theissen 2004 p164)

contudo haacute um argumento de peso contra essa teoria uma vez que entre os

disciacutepulos de Jesus por volta da metade do seacuteculo I havia um zelole (Simatildeo Zelote

cf Lc 6 15) e Theissen faz uma observaccedilatildeo ldquoaleacutem disso na Galileiardquo

Os zelotas eram originaacuterios dos fariseus e assim como os essecircnios estavam

ligados pela guerra santa e escatoloacutegica Natildeo satildeo citados nos evangelhos como

grupo mas entre os disciacutepulos de Jesus como foi dito acima havia um disciacutepulo

chamado de ldquoSimatildeo o Zeloterdquo (Lc 615 At 113) Eles lutavam pelos direitos do

pobre do oprimido e a esses ldquoprometiam com a chegada do Reino de Deus a

restauraccedilatildeo de seus direitos e uma nova ordem estabelecida por Deusrdquo (Gnilka

2000 p 60) O fato de entre os disciacutepulos ter um zelote natildeo significa que esse

movimento tenha sido endossado por Jesus jaacute que os ensinamentos de Jesus sobre

o tributo a Cesar e sua atitude para com o saacutebado eacute uma forma de repuacutedio a

77

doutrina apregoada pelos zelotas (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo

Testamento p 2686)

Podemos observar portanto que a possiacutevel relaccedilatildeo de Jesus com os Zelotas

como grupo de resistecircncia eacute muito remota ou praticamente inexistente conforme

Crossan (2004 p275) tem observado Ainda na mesma linha de pensamento de

Crossan Sean Freyne tambeacutem considera remota a hipoacutetese do possiacutevel

envolvimento de Jesus com o grupo dos zelotas Para Freyne (2008 p 130) a

pregaccedilatildeo de Jesus natildeo incitava a vinganccedila uma vez que estava mais baseada no

livro do Gecircnesis (criaccedilatildeo) do que no livro do Ecircxodo (libertaccedilatildeo) ou seja Jesus natildeo

via as demais naccedilotildees ou outras origens eacutetnicas como objeto de remoccedilatildeo

aniquilaccedilatildeo conversatildeo ou conquista como viam os heroacuteis do Antigo Testamento

Contudo para Freyne devemos observar que haacute duas formas de

interpretarmos Jesus de Nazareacute Se o olharmos segundo o ponto de vista de

Crossan veremos um Jesus voltado para um entendimento sapiencial e natildeo

apocaliacuteptico ou seja Jesus teria escolhido um modelo de dominaccedilatildeo monaacuterquica

baseado num ldquoreino dos destituiacutedos e Jootildees ningueacutem vigente no aqui e agora um

reino realizado (por meios maacutegicos e materiais) natildeo apenas proclamadordquo Por outro

lado Freyne observa que o pensamento de Horsley sobre Jesus eacute bem diferente

dos de Crossan Jesus segundo Horsley teria sido um revolucionaacuterio ou seja

partindo desse ponto de vista ldquoo siacutembolo do reino de Deus tal como empregado por

Jesus significava a vitoacuteria de Deus sobre as forccedilas do mal uma concepccedilatildeo que se

coadunava com as expectativas apocaliacutepticas judaicas padratildeordquo posiccedilatildeo essa que

segundo Freyne seria mais convincente (Freyne 2008 p 132)

Bruce Malina vecirc o grupo de Jesus como uma religiatildeo politicamente inserida

onde o reino e o governo de Deus satildeo iminentes ou seja seus disciacutepulos devem

orar para que o reino de Deus venha para o julgamento e recompensa e isso

segundo Malina era compreendido sob o ponto de vista poliacutetico por uma pessoa do

primeiro seacuteculo A morte de Jesus natildeo foi o fim desse reinado pois ldquoos seguidores

de Jesus acreditavam que Deus o ressuscitou dos mortos de maneira que o proacuteprio

Jesus em breve surgiria como vice regente do Deus de Israel como Messias de

Israel com poderrdquo (Malina 2004 p 99) Malina conclui esse pensamento afirmando

que

78

o reino de Deus veio para tomar a forma de uma teocracia representativa e pessoal Nestas dimensotildees ele teria tido a mesma estrutura da religiatildeo poliacutetica de Israel durante o tempo de Jesus A questatildeo aberta era Quem seria o agente o substituto concreto para o Deus de Israel Os membros do grupo de Jesus tinham pouca duacutevida de que esse agente fosse Jesus o Messias de Israel Mas Deus tinha em mente mais natildeo apenas Israel (Malina 2004 p 164)

Portanto pertencer ao grupo de Jesus era mais do que esperar por um reino

poliacutetico era ter um novo modo de vida ia aleacutem das fronteiras de Israel natildeo significa

apenas a libertaccedilatildeo de um jugo poliacutetico mas a libertaccedilatildeo do ser humano como um

todo

79

5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS

E SEUS DESDOBRAMENTOS

Conforme vimos no capiacutetulo anterior Jesus apesar de ser visto por alguns

pesquisadores com caracteriacutesticas proacuteximas do grupo dos fariseus natildeo fez parte de

nenhum grupo revolucionaacuterio Contudo isso natildeo significa que ele fosse indiferente

aos problemas sociais que afligiam toda a Palestina Em contraste com os

poderosos da eacutepoca que exploravam os pobres atraveacutes da cobranccedila desmedida de

tributos Jesus oferece-se como um descanso aos cansados e oprimidos porque

somente ele tem um jugo suave e um fardo leve (cf Mt 11 28-30) Esse descanso

soacute ele pode oferecer porque recebeu do Pai a quem ele conhece e por quem

tambeacutem eacute conhecido (cf Mt 1127) Abba eacute a palavra por excelecircncia no quesito

intimidade entre Jesus e Pai dos Ceacuteus conforme a tese defendida por J Jeremias

51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA

Jesus conforme a tradiccedilatildeo cristatilde e os vaacuterios testemunhos das fontes (os

Evangelhos) possui o testemunho intriacutenseco de que eacute o Filho de Deus (cf Mt 1433

Mc 11 311 1539 Lc 2227 Jo 134 1127) O Evangelho de Marcos de uma

forma clara jaacute nos mostra a importacircncia desse pensamento teoloacutegico nas seguintes

palavras ldquoPrinciacutepio do Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deusrdquo (Mc 11) Justino

de Roma tambeacutem prima pela exaltaccedilatildeo de Jesus como o Filho de Deus dizendo que

ldquo[] com razatildeo honramos tambeacutem a Jesus Cristo que foi nosso Mestre nessas

coisas e para isto nasceu o mesmo que foi crucificado sob Pocircncio Pilatos

procurador na Judeia no tempo de Tibeacuterio Ceacutesar Aprendemos que ele eacute o Filho

proacuteprio do Deus verdadeirordquo (Justino 1995 p28) ou ainda conforme a confissatildeo

de feacute de Calcedocircnia (451 dC) ldquoJesus eacute verdadeiramente homem e

verdadeiramente Deusrdquo ( Swidler 1993 p30)

Os Evangelhos da infacircncia (Mateus e Lucas) de uma forma independente

narram alguns acontecimentos relacionados ao nascimento e agrave infacircncia de Jesus

Segundo Duquoc as narrativas do nascimento de Jesus relatadas por Mateus e

Lucas se inserem na tradiccedilatildeo do Antigo Testamento como vemos no nascimento de

Isaac (Gn 21 1-7) de Jacoacute (Gn 25 25-26) de Moiseacutes (Ex 2 1-10) de Sansatildeo (Jz

80

13 1-25) e o de Samuel (1 Sam 1 19-26) As caracteriacutesticas de tais narrativas satildeo

ldquodiscernir na concepccedilatildeo ou no nascimento os sinais antecipadores de um destino

particularmente abenccediloado por Deusrdquo Para Duquoc contudo tratar as narrativas de

Mateus e Lucas como Evangelhos da Infacircncia natildeo eacute a forma mais correta e pode

induzir em erro mesmo que a tradiccedilatildeo assim os mencione Nos textos de Mateus e

Lucas observamos que ali se trata mais do nascimento do que a infacircncia de Jesus

conforme vemos resumido no quadro comparativo abaixo (Duquoc 1992 p22)

Mateus Lucas

Genealogia de Cristo 1 1-17 Anuacutencio da concepccedilatildeo virginal a Joseacute 1 18-24 Nascimento do Salvador 125 Visita dos magos 2 1-12 Fuga para o Egito e massacre dos inocentes 2 13-18 Volta a Nazareacute 2 19-23

Anuacutencio do nascimento de Joatildeo Batista 1 5-25 Anuacutencio a Maria 1 26-28 Visitaccedilatildeo 1 39-56 Nascimento do Salvador 2 1-14 Visita dos Pastores 2 15-20 Circuncisatildeo 2 21 Apresentaccedilatildeo no Templo 2 22-38 Volta a Nazareacute 2 39-40 Reencontro no Templo 2 41-52

Os relatos da infacircncia ou do nascimento conforme menciona Duquoc natildeo

fazem parte do querigma (Keacuterygma) mas estatildeo associados mais ao Antigo

Testamento como vimos acima Contudo eles foram inseridos nos Evangelhos e

devem ser lidos a partir da perspectiva dos evangelistas Eles natildeo satisfazem a

curiosidade como fazem os Apoacutecrifos visto que eles estatildeo relacionados mais agrave feacute da

Igreja primitiva do que aos acontecimentos histoacutericos ldquoMateus e Lucas iluminaram

retrospectivamente as recordaccedilotildees atraveacutes da catequese evangeacutelica e os eventos

decisivos da Paacutescoa Natildeo narram uma histoacuteria Propotildeem apenas uma doutrina em

forma de histoacuteria Seria errocircneo querer iluminar a catequese por meio de narrativas

de nascimento O processo foi inversordquo (Duquoc 1992 p24-25)

81

Observamos que as narrativas da infacircncia levantam questotildees sobre a

autenticidade histoacuterica dos relatos dos evangelistas Para Fitzmyer nas narrativas

da infacircncia eacute difiacutecil constatar o realmente histoacuterico poreacutem eacute inegaacutevel o fato de que

exista um nuacutecleo histoacuterico nesses acontecimentos os quais serviram como base

para que os evangelistas numa tradiccedilatildeo posterior pudessem responder perguntas

sobre ldquoQuem eacute elerdquo ou ldquoDe onde ele veiordquo39 (Fitzmyer 1997 p34-35)

Apesar das diferenccedilas e da independecircncia dos evangelhos (Mateus e Lucas)

Fitzmyer observa que haacute pelo menos doze pontos nas narrativas da infacircncia que satildeo

comuns ou pelo menos haacute concoacuterdia entre os dois evangelistas a respeito do

nascimento do menino Jesus os quais seratildeo transcritos abaixo

1) O nascimento de Jesus relaciona-se com o reinado de Herodes Magno

(Mt 21 Lc 15)

2) Maria sua futura matildee eacute uma virgem noiva de Joseacute mas eles ainda

natildeo coabitaram (Mt 118 Lc 12734 25)

3) Joseacute eacute da casa de Davi (Mt 1 1620 Lc 127 24)

4) Um anjo do ceacuteu anuncia a concepccedilatildeo e o nascimento futuros de Jesus

(Mt1 20-21 Lc 1 28-30)

5) O proacuteprio Jesus eacute reconhecido como filho de Davi (Mt 11 Lc 132)

6) Sua concepccedilatildeo aconteceraacute por intermeacutedio do Espiacuterito santo (Mt 1

1820 Lc 1 35)

7) Joseacute natildeo se envolve na concepccedilatildeo (Mt1 18-25 Lc 134)

8) O nome ldquoJesusrdquo eacute imposto antes de seu nascimento (Mt 1 21 Lc

131)

9) O ceacuteu identifica Jesus como ldquoSalvadorrdquo (Mt 121 Lc 211)

10) Jesus nasce depois que Joseacute e Maria vatildeo viver juntos (Mt 1 24-25 Lc

2 4-7)

11) Jesus nasce em Beleacutem (Mt 21 Lc 2 4-7)

12) Jesus se fixa com Maria e Joseacute em Nazareacute na Galileia (Mt 2 22-23

Lc 239-51)

39

Segundo Fitzmyer as narrativas da infacircncia natildeo se originaram de uma tradiccedilatildeo mais primitiva da Igreja visto que nem Marcos (que eacute considerado o primeiro Evangelho a ser escrito) e nem Joatildeo (que eacute reconhecido como sendo de uma tradiccedilatildeo igualmente primitiva a de Marcos mas independente dos Sinoacuteticos) natildeo conteacutem tais relatos mas inicia-se com o Verbo que se fez carne (1 1-18) ou seja com o Verbo divino e preexistente

82

Nos primoacuterdios da Igreja a questatildeo da divindade e humanidade de Cristo era

o centro de muitas controveacutersias teoloacutegicas que partiam de vertentes judaicas ou

entatildeo de certos movimentos cristatildeos considerados como hereges Face agraves muitas

divergecircncias a respeito do Cristo a Igreja tomou frente a tais controveacutersias e pocircs-se

a refutar as heresias com toda a forccedila possiacutevel Correntes judaizantes e gnoacutesticas

que incansavelmente procuravam por todos os meios possiacuteveis proclamar que Jesus

era apenas um homem que morreu pregado na cruz ou entatildeo um divino que

parecia ser humano procuravam a todo custo abalar a feacute daqueles que foram

alcanccedilados pela feacute cristatilde Os Evangelhos e todo o Novo Testamento foram escritos

para fundamentar a feacute dos primeiros cristatildeos em Jesus Cristo Mediante a tantas

heresias que foram surgindo na Igreja tentando negar a divindade de Jesus os

cristatildeos reagiram com veemecircncia escrevendo muitas histoacuterias sobre Jesus como

forma de demonstrar que desde menino o filho de Joseacute e Maria era detentor de

muitos prodiacutegios nunca antes realizados em Israel nem mesmo pelos grandes

profetas do Antigo Testamento

Estas narrativas foram redigidas e fazem parte do que posteriormente ficou

conhecido como os ldquoEvangelhos Apoacutecrifosrdquo Os Apoacutecrifos satildeo portanto a forma

mais clara que a Igreja usou para se opor as teorias que negavam a divindade de

Jesus Na busca de por em evidecircncia a divindade do Mestre os Apoacutecrifos

apresentam Jesus quase sempre como um menino ou um homem prodigioso capaz

de realizar milagres tatildeo grandes que chegam a ser absurdo

A tradiccedilatildeo cristatilde ainda no intuito de preservar a doutrina da filiaccedilatildeo divina de

Jesus procurou de uma forma cuidadosa defender tal doutrina em seus vaacuterios

credos ao longo da histoacuteria do cristianismo Os mais antigos e conhecidos credos

satildeo Credo Apostoacutelico (Seacuteculo III e IV) Credo de Niceacuteia (325 AD - revisado em

Constantinopla em 381 AD) Credo de Calcedocircnia (451 AD) e o Credo de Atanaacutesio

(seacuteculos IV e V) A relaccedilatildeo de Jesus Cristo com Deus Pai e sua funccedilatildeo na

Santiacutessima Trindade satildeo mencionadas em todas as confissotildees acima citadas

(Grudem 1999 p996) Jaacute no primeiro credo (Credo Apostoacutelico) observamos a

importacircncia de Jesus como o Filho de Deus encarnado

Creio em Deus Pai Todo Poderoso Criador do ceacuteu e da terra E em Jesus Cristo seu Filho unigecircnito nosso Senhor concebido pelo Espiacuterito Santo e nascido da Virgem Maria que padeceu sob Pocircncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos

83

que subiu ao ceacuteu e assentou-se agrave direita do Pai Todo-Poderoso de onde haacute de vir para julgar os vivos e os mortos Creio no Espiacuterito Santo na santa igreja catoacutelica na comunhatildeo dos santos na remissatildeo de pecados na ressurreiccedilatildeo da carne e na vida eterna Ameacutem (Grudem 1999 p996)

O credo segundo Thomas P Rausch (2006 p16) ldquoeacute uma declaraccedilatildeo oficial

da crenccedila da Igreja e tem poder normativo para a feacute da Igrejardquo Rausch observa que

o entatildeo cardeal Ratzinger escolheu o Credo Apostoacutelico como base para a sua

abordagem do livro Introduccedilatildeo ao Cristianismo De acordo com Rausch nessa obra

o cardeal faz uma mediaccedilatildeo entre os extremos relacionados agrave Cristologia da feacute e o

Jesus da histoacuteria Por um lado haacute os que procuram reduzir a Cristologia agrave histoacuteria

enquanto que por outro lado haacute os que buscam o abandono da histoacuteria

considerando-a como algo irrelevante para a feacute40 Abaixo reproduzimos um quadro

resumido dos principais conciacutelios Gerais da igreja onde foram formulados os

principais credos da Igreja (cf Rausch 2006 p261)

Conciacutelio Principais Figuras Temas

Niceia (325) Aacuterio (que natildeo estava presente) ldquohouve um tempo em que ele natildeo erardquo 381 bispos presentes

Rejeitou a opiniatildeo de Aacuterio de que o logos havia sido criado Cristo eacute homoousion41 ao Pai

Constantinopla I (381) Influecircncia Capadoacutecia Afirma a feacute de Niceacuteia Um novo credo afirma a divindade do Espiacuterito Nosso credo eacute uma combinaccedilatildeo de ambos

Eacutefeso I (431) Nestoacuterio conjunccedilatildeo de naturezas Maria eacute christokos42 Joatildeo de

Condena Nestoacuterio Maria eacute theotokos mas Cirilo e Joatildeo de Antioquia e excomungam

40

Nesse tratado escrito no final da deacutecada de 60 Ratzinger procura encontrar um meio termo entre Harnack que purifica a feacute da doutrina e do credo colocando a reconstruccedilatildeo do Jesus histoacuterico como fator determinante para a Cristologia com Bultmann para quem somente a feacute em Cristo tem importacircncia para o cristatildeo (cf Rausch 2006 p16) Vale ressaltar aqui que para o entatildeo cardeal Ratzinger ldquosegundo a feacute da Igreja a filiaccedilatildeo divina de Jesus natildeo se deve ao fato de Jesus natildeo ter um pai humano a doutrina do ser divino de Jesus natildeo sofreria nenhuma restriccedilatildeo se Jesus fosse o fruto de um casamento humano normal porque a filiaccedilatildeo divina que eacute objeto da feacute cristatilde natildeo eacute um fato bioloacutegico e sim ontoloacutegico natildeo eacute um evento no tempo e sim na eternidade de Deus ()rdquo Se considerarmos este texto como a base do pensamento de Ratzinger percebemos que a teologia de Bultmann teve para ele na eacutepoca um peso maior (cf Ratzinger 2006 p 204) 41

Homoi ser ldquosemelhanterdquo semelhante quanto ao ser (cf Rausch 2006 p 249) 42

Significa ldquoPortadora do Cristordquo Matildee de Cristo (cf Rausch 2006 p 249)

84

Conciacutelio Principais Figuras Temas

Antioquia Cirilo de Alexandria uniatildeo hipostaacutetica Maria eacute theotokos43

um ao outro

Eacutefeso II (449) (ldquoConciacutelio do Ladratildeordquo)

Flaviano de Constantinopla ldquoa partir de duas naturezas numa soacute hipoacutestase44 e numa soacute pessoardquo (foacutermula da uniatildeo) Dioacutescoro de Alexandria

Dioacutescoro domina Eacute rejeitada a foacutermula de Flaviano (ldquoa partir de duas naturezas uma soacute pessoardquo) O proacuteprio conciacutelio poreacutem eacute rejeitado

Calcedocircnia (451) 600 bispos Tomus do papa Leatildeo escrito para apoiar Flaviano Legados papais insistem numa nova profissatildeo de feacute

Condena Dioacutescoro aceita o Tomus de Leatildeo Prega duas naturezas numa uacutenica pessoa e numa uacutenica hipoacutestase verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem

Observamos que para a Igreja dos primeiros seacuteculos as verdades teoloacutegicas

a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus com o Pai eram de suma importacircncia para a

formaccedilatildeo e crescimento das comunidades cristatildes Por isso defenderam com

coragem e destemor o que acreditavam ser a essecircncia do Evangelho de Jesus

Cristo No entanto sempre houve aqueles que lutaram de todas as maneiras para

por em descreacutedito tanto o Evangelho como a pessoa de Jesus de Nazareacute Os pais

da Igreja tiveram que lutar contra as heresias e contra os hereges que procuraram

desmoralizar o mais importante homem do vilarejo de Nazareacute No entanto conforme

observa Rausch haacute problemas metodoloacutegicos nos Credos da Igreja Eles sempre

pressupotildeem uma Cristologia de ldquocima para baixordquo por isso a Cristologia necessita

de um fundamento criacutetico Para Rausch a Cristologia precisa ser estabelecida de

ldquobaixo para cimardquo ou seja ela precisa estar baseada nos atos e feitos do Jesus

histoacuterico para que natildeo seja acusada de ser uma feacute helenizada onde o carpinteiro

43

Significa ldquoPortadora de Deusrdquo Matildee de Deus (cf Rausch 2006 p 249) 44

Aquilo que estaacute sob ou daacute suporte a um objeto realizaccedilatildeo um ser concreto que suporta as diversas qualidades ou aparecircncias de uma coisa Ser subsistente realidade que existe por si mesma substacircncia (Exemplo medieval- ldquotransubstanciaccedilatildeordquo (cf Rausch 2006 p 249)

85

de Nazareacute teria sido transformado em um ldquosalvador divinizadordquo conforme o conceito

grego do divino (Rausch 2006 p 17)

52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA

Se para termos sucesso no estudo da Cristologia eacute necessaacuterio partirmos de

baixo para cima ou seja nas palavras de Rogers Haight ldquoseria difiacutecil imaginar

algueacutem interessado pela existecircncia humana de uma perspectiva religiosa que natildeo se

sentisse motivado a saber mais sobre Jesusrdquo uma vez que ldquoa Cristologia comeccedilou

com Jesus de Nazareacute e deve comeccedilar com Jesus hoje em diardquo (Rogers 2003

p75) precisamos analisar as fontes e teorias sobre Jesus desde as canocircnicas ateacute

as mais rejeitadas pela tradiccedilatildeo cristatilde Jaacute observamos acima que a Igreja dos

primeiros seacuteculos priorizou por razotildees apologeacuteticas em propagar e defender a

divindade de Cristo e por outro lado natildeo houve um interesse igual quando o tema

era a humanidade de Jesus No entanto com o passar dos seacuteculos surgiram

inuacutemeras questotildees a respeito do homem chamado Jesus de Nazareacute Para responder

tais questotildees ou pelo menos investigaacute-las faz-se necessaacuterio o estudo da Cristologia

partindo do homem Jesus ao Cristo da feacute

Edward Schillebeeckx nos diz que para uma boa reflexatildeo sobre a Trindade

faz-se necessaacuterio uma interpretaccedilatildeo cristoloacutegica de Jesus ou seja ldquona sua

humanidade Jesus eacute tatildeo intimamente do Pai que eacute exatamente nisso que ele eacute

Filho de Deusrdquo Podemos ver isso nas palavras de Schillebeeckx abaixo

[hellip] natildeo devemos compreender Jesus a partir da Trindade mas vice-versa eacute somente a partir de Jesus que a plenitude da unidade divina (natildeo tanto unitas trinitaris mas trinitas unitaris) se torna acessiacutevel para noacutes de alguma forma somente com base na vida morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus sabemos que a Trindade eacute o modo divino da absoluta unidade da essecircncia divina Somente a partir de Jesus de Nazareacute de sua experiecircncia com o ldquoAbbardquo -fonte e alma de sua mensagem atuaccedilatildeo e morte ndash e de sua ressurreiccedilatildeo eacute que algo cheio de sentido pode ser dito sobre o Pai Filho e Espiacuterito Santo Pois na vivecircncia de Jesus com seu ldquoAbbardquo o importante eacute que esse ldquoestar voltado para o Pairdquo e ldquoprecedidordquo com a absoluta prioridade e internamente sustentado pelo entregar-se do proacuteprio Pai a Jesus de forma uacutenica Ora a mais antiga tradiccedilatildeo cristatilde chama de ldquoPalavraVerbordquo a essa autocomunicacatildeo de Pai base e fonte da proacutepria experiecircncia de Jesus com o ldquoAbbardquo Isso implica que a palavra de Deus eacute a base total de tudo o que apareceu em Jesus ( Schillebeeckx 2008 p663)

86

A Cristologia portanto deve comeccedilar a partir do Jesus humano sem que se

negligencie o Cristo da feacute Jesus foi o nome que mudou a histoacuteria da humanidade

como podemos dizer parafraseando Haight que Jesus de Nazareacute eacute praticamente

um consenso universal na histoacuteria como sendo um judeu que viveu nos primoacuterdios

do seacuteculo I e que posteriormente veio a ser reconhecido como o Messias ou o

Cristo Conforme Haight podemos afirmar ainda que ldquoJesus foi uma figura

concreta na histoacuteria humanardquo e por isso essa histoacuteria natildeo pode ser relegada ao

esquecimento (Haight 2003 p29)

Geza Vermes compocircs um resumo histoacuterico da vida de Jesus a partir do

Evangelho de Marcos sem as narrativas da infacircncia acima esboccediladas (em 51)

Vermes chama essas informaccedilotildees peculiares de ldquoo evangelho fundamental ndash

representado por Marcos (cf Vermes 1990 p 20) que conteacutem as seguintes

informaccedilotildees

Nome Jesus

Nome do Pai Joseacute

Nome da matildee Maria

Lugar do nascimento natildeo mencionado

Data do nascimento natildeo mencionada

Domiciacutelio Nazareacute na Galileia

Estado Civil natildeo mencionado45

Profissatildeo carpinteiro (τέκτων ) mas tambeacutem exorcista e pregador itinerante

O certificado de oacutebito pode ser preenchido de maneira um pouco mais

completa

Lugar do oacutebito Jerusaleacutem

Data da morte ldquoSob Pocircncio Pilatosrdquo entre os anos 26 e 36 dC

Causa da morte crucificaccedilatildeo ordenada pelo governador romano

Lugar do sepultamento Jerusaleacutem

45

Vermes contudo considera que Jesus era celibataacuterio uma vez que nunca haacute menccedilatildeo de qualquer esposa no decorrer do seu ministeacuterio (cf Vermes 1990 p 21)

87

Para falar do Jesus humano eacute preciso contextualizaacute-lo ao tempo e ao espaccedilo

ou seja natildeo podemos menosprezar o periacuteodo em que Jesus viveu entre os homens

Sabendo que a Palestina dos dias de Jesus estava politicamente sob o impeacuterio

romano e religiosamente dominada pelo extremismo e exclusivismo religioso natildeo eacute

difiacutecil de imaginar o quanto Jesus e sua famiacutelia devem ter sofrido preconceito numa

sociedade patriarcal em meio ao caos poliacutetico e religioso

Bruce Chilton examina a questatildeo do Jesus histoacuterico desde os dias em que

Jesus estava com os disciacutepulos ateacute um periacuteodo poacutes-apostoacutelico Segundo ele sempre

houve aqueles que questionaram a filiaccedilatildeo divina de Cristo assim como colocaram

em duacutevida a sua filiaccedilatildeo terrena Vermes um judeu com formaccedilatildeo cristatilde considera

que falar das histoacuterias da infacircncia de Jesus de uma forma ou de outra acabam por

introduzir ldquoum elemento de duacutevida acerca da paternidaderdquo (cf Vermes 1990 p21)

Como foi dito acima eacute muito provaacutevel que Jesus e seus pais tenham sofrido algum

preconceito em relaccedilatildeo agrave paternidade de Joseacute em relaccedilatildeo ao seu filho Jesus

Segundo Chilton existem trecircs teorias a respeito do nascimento de Jesus A

primeira delas eacute a que Jesus foi concebido por obra do Espiacuterito Santo conforme

descrito nos Evangelhos (Mt 118-25 Lc 134-35) A segunda teoria tem a pretensatildeo

de especular que Jesus era filho bioloacutegico de Joseacute tal como se pode compreender

da afirmaccedilatildeo de Filipe achamos a Jesus de Nazareacute ldquofilho de Joseacuterdquo (Jo 145) A

terceira teoria eacute que Jesus era filho de fornicaccedilatildeo conforme uma das interpretaccedilotildees

do evangelho de Joatildeo 841 ldquoVoacutes fazeis as obras de vosso pai Disseram-lhe entatildeo

natildeo nascemos da prostituiccedilatildeo temos soacute um pai Deusrdquo (Charlesworth 2006

p87)46

46

Juan Mateos interpreta o texto de Jo 841 partindo do princiacutepio que Jesus acusa os judeus que nele ldquohaviam cridordquo (o crer aqui pode ser obra do redator uma vez que um pouco agrave frente os mesmos querem matar Jesus cf Brown 1975 p80) de cometerem o pecado da idolatria uma vez que segundo alguns rabinos ser filho de Abraatildeo significava praticar a benevolecircncia a modeacutestia e a humildade Os que tais virtudes natildeo praticavam eram considerados como servo de um outro deus totalmente diferente do Deus de Abraatildeo por isso chamados de idoacutelatras Os judeus entenderam atraveacutes da interpretaccedilatildeo dos profetas que ao serem chamados de idoacutelatras era o mesmo que ser chamado de filhos da prostituiccedilatildeordquo algo que eles negam teoricamente mas como seus pais idoacutelatras que mataram os profetas eles da mesma forma querem matar Jesus que vem da parte de Deus (cf J Mateos 1989 p392-393) Segundo Brown ser descendente de Abraatildeo fisicamente natildeo tem nenhum meacuterito quando esse suposto filho natildeo age como agiu seu pai aqui no caso ldquoAbraatildeo que Creu quando Deus lhe falourdquo eles por outro lado natildeo creem no enviado de Deus (Jesus) por isso satildeo filhos ilegiacutetimos (cf Brown 1975 p80-81)

88

Diante desse contexto Chilton levanta uma questatildeo polecircmica Jesus pode ter

sido considerado um mamzer Algumas condiccedilotildees poderiam ser determinantes para

expor um indiviacuteduo na condiccedilatildeo de mamzer A principal caracteriacutestica que definia

uma pessoa nessa condiccedilatildeo era se tal indiviacuteduo era fruto de uma uniatildeo proibida e

consequentemente um filho proibido de acordo com a Toraacute ldquoNenhum bastardo

entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar

na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo (Dt 233) Conforme a Mishnah47

poderia ser considerado um mamzer aquele filho cuja paternidade natildeo era

conhecida e portanto natildeo havia evidecircncias que tal uniatildeo fosse permitida de acordo

com a Lei Por outro lado na visatildeo do Talmude Babilocircnico48 bastava ser filho de um

natildeo israelita para que o indiviacuteduo fosse considerado um mamzer

A legitimidade da paternidade bioloacutegica de Jesus foi assunto controverso

como indicado mais acima jaacute no segundo seacuteculo da era Cristatilde Alguns autores

como John P Meier (1991 p223) e Bruce Chilton (in Charlesworth 2006 p 85)

mencionam a acusaccedilatildeo feita por Celso jaacute no ano de 178 dC que Jesus era filho de

Maria com um soldado Romano chamado Pantera49

A fonte desta histoacuteria de acordo com Dalman (2002 p152-153) vem do

Talmude Babilocircnico O nome de um certo Jesus eacute comumente mencionado no

Talmude e na literatura talmuacutedica pelas expressotildees Filho de Stada (Satda) e Filho

de Pandera (Pantera) Segundo Dalman a traduccedilatildeo literal do texto talmuacutedico de

Shabat 104b e Sanhedrin 67a tem a seguinte forma

O filho de Stada era o filho de Pandera O Rabi Chisda disse O marido era

Stada o amante Pandera (Outro disse) o marido era Paphos ben Yehudah

Stada era sua matildee (ou) sua matildee era Mirian a cabeleireira de mulheres

como eles diriam em Pumbeditha Stath da (ie Ela era infiel) para o marido

47

A palavra Mishnah vem de Shanah ldquorepetirrdquo significa ldquorepeticcedilatildeordquo ou ldquoestudo atraveacutes da repeticcedilatildeordquo Publicada por volta do ano 200 dC pelo patriarca judeu Judas I a Mishnah eacute uma coletacircnea de leis que se impocircs como coacutedigo oficial do judaiacutesmo Ela resulta de uma compilaccedilatildeo seletiva feita no decurso do seacuteculo II da era cristatilde ndash de tradiccedilotildees normativas ambientes (halakot) Ela estaacute redigida em hebraico (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

48 ldquoTalmudrdquo significa ensinamento estudo Haacute dois Talmuds 1) o Talmud de Jerusaleacutem terminado

pelo fim do seacuteculo IV na Palestina 2) o Talmud da Babilocircnia composto no seacuteculo V em Sura Mesmo na Palestina o Talmud da Babilocircnia o mais completo suplantou o Talmud de Jerusaleacutem quando se fala do ldquoTalmudrdquo sem especificar qual designa-se exclusivamente o da Babilocircnia (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

49 Zuurmond acha que provavelmente Pantera (ou Pandera) ldquoseja uma deformaccedilatildeo acintosa de

parthenos= virgem Deformar de propoacutesito o nome de um inimigo era (e eacute) um uso bastante comum (cf Zuurmond 1998 p77)

89

No entanto uma traduccedilatildeo mais livre do mesmo texto talmuacutedico teria a

seguinte forma segundo Dalman

Ele natildeo era filho de estada mas filho de Pandera Rab Chisda afirma

que o marido da matildee de Jesus era Stada mas o amante dela era Pandera

Outro (diz) que o marido dela era certamente Paphos ben Yeshua que ao

contraacuterio Stada era a matildee dele (Jesus) de acordo com outros sua matildee era

Mirian (Maria em hebraico) a cabeleireira das mulheres A treacuteplica eacute e eu

concordo simplesmente Stada era o apelido dela (Maria) como dito no (ou

na) Pumbeditha Stath da (que significa ldquoela provou ser infielrdquo) ao marido dela

Provavelmente a partir da leitura desses textos eacute que Celso tomou o nome

deste Jesus citado no Talmude e relacionou com o Jesus dos Evangelhos

considerando que ambos os personagens se tratavam da mesma pessoa Desta

forma conforme mencionado por Oriacutegenes Celso acusa Jesus de aleacutem de ter

inventado seu nascimento ter nascido numa cidadezinha da Judeia ser filho de uma

pobre fiandeira ter adquirido poderes maacutegicos no Egito ainda usou esses poderes

para proclamar-se Deus (Oriacutegenes 2004 p68) Embora esse relato tenha sido

retomado tambeacutem por pensadores contemporacircneos como mais um argumento para

contestar a legitimidade do nascimento de Jesus conforme relatado nos Evangelhos

Chilton no entanto considera que esse relato eacute infundado e foi apenas mais uma

ficccedilatildeo que circulou nos primeiros seacuteculos da era cristatilde

Nas comunidades judaicas dos dias de Jesus se uma mulher estivesse

graacutevida antes da consumaccedilatildeo plena do matrimocircnio ela precisaria pela tradiccedilatildeo

apresentar agrave comunidade em que vivia provas de quem era o pai da crianccedila que

estava sendo gerado em seu ventre A casta do filho estava condicionada a quem

era o seu pai ou seja se o filho por ela gerado fosse fruto de uma uniatildeo proibida

obviamente ele seria excluiacutedo da congregaccedilatildeo de Israel conforme estabelecido na

Toraacute especificamente em Deuteronocircmio 233 onde lemos ldquoNenhum bastardo

entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar

na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo

Vale ainda ressaltar que quando um contrato de casamento era firmado a

Mishnah dava o direito ao contratante de anular o mesmo sem uma justificativa

formal caso ele se sentisse injusticcedilado Se a mulher estivesse graacutevida na ocasiatildeo

do rompimento do contrato esse ato do contratante eximia a mulher da acusaccedilatildeo de

90

adulteacuterio e dessa forma o filho natildeo poderia ser considerado formalmente um

mamzer Tal situaccedilatildeo poderia dar margem a um problema de interpretaccedilatildeo da Lei a

saber a mulher uma vez abandonada poderia usar apenas a palavra acerca da

paternidade do fruto de seu ventre Essa palavra seria aceita como verdade tal

como pensavam os rabinos Gamaliel e Eliezer ou rejeitada se natildeo houvesse uma

prova concreta no pensamento do rabino Joshua (Charlesworth 2006 p87)

No primeiro caso a mulher poderia alegar que um determinado cidadatildeo da

sua comunidade era o pai da crianccedila que ela estava esperando Se a palavra dessa

mulher fosse aceita como verdadeira entatildeo pela Toraacute esse homem seria obrigado

a casar com ela e natildeo poderia mandaacute-la embora por toda a vida conforme lemos

em Deuteronocircmio 22 28-29

Se um homem encontra uma jovem virgem que natildeo estaacute prometida e a agarra e se deita com ela e eacute pego em flagrante o homem que se deitou com ela daraacute ao pai da jovem cinquenta ciclos de prata e ela ficaraacute sendo a sua mulher uma vez que abusou dela Ele natildeo poderaacute mandaacute-la embora durante toda a sua vida

Essa interpretaccedilatildeo daria margem para que as mulheres mesmo que

concebessem um filho fruto de uma uniatildeo proibida mas que indicassem um

determinado homem como sendo o pai da crianccedila pudessem tornar o fruto do

ventre em um legiacutetimo judeu aos olhos da comunidade tendo em vista que a mulher

alcanccedilou ecircxito em sua argumentaccedilatildeo o que segundo essa visatildeo natildeo seria difiacutecil

conseguir (Charlesworth 2006 p 87)

Partindo da premissa que a relaccedilatildeo sexual entre pessoas que jaacute haviam

estabelecido o contrato de casamento era toleraacutevel na eacutepoca uma possiacutevel relaccedilatildeo

sexual entre Joseacute e Maria natildeo seria proibida Mas o fato de Joseacute morar em Beleacutem e

Maria em Nazareacute exclui as possibilidades do filho ser dele (Chilton 2002 p13)

Dessa forma Jesus poderia ser considerado um mamzer jaacute que a sua concepccedilatildeo

ocorreu no periacuteodo entre o contrato de casamento e a coabitaccedilatildeo de Joseacute e Maria

Chilton observa que o pensamento de Joseacute em deixar Maria secretamente

conforme lemos em Mateus 119 seria portanto uma forma de natildeo acusar Maria de

fornicaccedilatildeo Natildeo obstante a maravilhosa forma como Joseacute assumiu a paternidade

pode natildeo ter sido suficiente para inibir as mais adversas situaccedilotildees pelas quais Jesus

91

tenha sido alvo desde a infacircncia ateacute a crucificaccedilatildeo proveniente de especulaccedilotildees

sobre a legitimidade de sua paternidade bioloacutegica

Observando as teorias propostas acima a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus

podemos pensar sobre os diferentes conceitos que seus contemporacircneos tinham a

respeito dele Ele era filho de Deus gerado pelo Espiacuterito Santo Ele era filho de Joseacute

ou de um pai desconhecido As palavras ldquoNatildeo nascemos da prostituiccedilatildeordquo (Jo 841)

poderiam ter sido usadas com ironia a fim de colocar em duacutevida sua reputaccedilatildeo em

relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees concernentes agrave paternidade bioloacutegica Por que ele foi

chamado de o ldquocarpinteiro o filho de Mariardquo (Mc 63) e natildeo filho de Joseacute e de Maria

entre os seus conterracircneos

Essas questotildees levantadas acima satildeo passiacuteveis de outras interpretaccedilotildees

quando olhamos o texto do Evangelho de Joatildeo a partir de uma cristologia alta50

Embora seja possiacutevel que os judeus tenham procurado debater com Jesus sobre

sua filiaccedilatildeo humana Jesus no entanto sempre usou tais debates para evidenciar

sua filiaccedilatildeo divina e enfatizar sua relaccedilatildeo com o Pai atraveacutes da palavra Abba que

para J Jeremias eacute a mensagem central do Novo Testamento

53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS

Jesus se relacionava com Deus de uma maneira peculiar a qual eacute evidente

nos evangelhos Segundo Pagola a experiecircncia de vida de Jesus eacute a partir de um

Deus Pai que para Jesus eacute aquele que cuida ateacute mesmo das criaturas fraacutegeis e

insignificantes aos olhos dos homens Esse Pai tambeacutem atende aos pobres e

necessitados traz a cura aos enfermos busca os perdidos enfim Deus Pai se torna

o centro de toda a mensagem e da proacutepria vida de Jesus de Nazareacute (Pagola 2010

p 380-381)

Nos Evangelhos a palavra Pai aparece nos laacutebios de Jesus mais de 170

vezes quando ele se dirige a Deus seja por interpelaccedilatildeo ou por designaccedilatildeo

Segundo J Jeremias eacute preciso distinguir a interpelaccedilatildeo da designaccedilatildeo de Deus

como Pai quando esse termo eacute proferido por Jesus nos evangelhos Em suas

50

A cristologia alta refere-se agrave crenccedila na preexistecircncia e na divindade de Jesus (cf

httpwwwcentroestudosanglicanoscombrbancodetextosbibliahermeneuticaresenhas_brown_julio_cesarpdf acesso em 23102011 as 1225 horas)

92

oraccedilotildees Jesus sempre fez uso da interpelaccedilatildeo Pai para invocar a Deus com

exceccedilatildeo do grito da cruz em Mc 1534 par Mt 2746 ldquoMeu Deus meu Deus por que

me abandonasterdquo interpelaccedilatildeo essa que jaacute estava prefixada pelo Sl 221 Aleacutem da

interpelaccedilatildeo eacute muito comum Jesus referir-se a Deus como ldquoo Pairdquo (ὁ πατὴρ) ldquomeu

Pairdquo (τοῦ πατρός μου) e ldquovosso Pairdquo (ὁ πατὴρ ὑμῶν ) (Jeremias 2005 p43)

De fato Jesus usou essas trecircs formas para designar Deus como Pai A

designaccedilatildeo ldquoo Pairdquo encontra-se em alguns textos dos evangelhos em Marcos (Mc

13 32 = Mt 24 36) em Mateus e Lucas juntos (Mt 11 27 = Lc 10 22) somente em

Lucas (Lc 9 26 1113) somente em Mateus (Mt 28 19) e em Joatildeo setenta e trecircs

vezes Sobre a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo encontramos em Marcos (Mc 11 25)

Mateus e Lucas juntos (Mt 5 48 = Lc 6 36 1230) somente em Lucas (Lc 12 32)

somente em Mateus (Mt 5 16 44 61 81526 7 11 10 20 29 18 14) e em Joatildeo

(Jo 8 42 20 17) Aleacutem disso o termo ldquomeu Pairdquo que se encontra em Marcos (Mc

838 = Mt 16 27) τοῦ πατρὸς αὐτοῦ [de seu Pai] mesmo que em referecircncia ao

Filho do Homem natildeo pode figurar sem reservas entre os testemunhos da foacutermula

Meu Pai) (Jeremias 2005 p43) E por fim conforme J Jeremias a expressatildeo

ldquomeu Pairdquo encontra-se nos seguintes textos dos Evangelhos Mateus e Lucas juntos

(Mt 11 27 ndash Lc 1022) somente em Lucas (Lc 249 22 29 24 49) somente em

Mateus (Mt 7 21 10 32-33 12 50 15 13 16 17 18 10 19 35 20 23 25 34 26

29 53 e em Joatildeo vinte e cinco vezes

Para J Jeremias haacute uma crescente tendecircncia em introduzir a designaccedilatildeo de

Deus como Pai nos evangelhos Excluindo as invocaccedilotildees de Pai por Jesus e

contando os paralelos sinoacuteticos J Jeremias observa que em Marcos aparece

apenas trecircs vezes jaacute em Mateus e Lucas juntos (coleccedilatildeo dos logias) aparece

quatro vezes enquanto que somente em Lucas eacute mencionado quatro vezes Os

ditos que satildeo proacuteprios de Mateus satildeo citados trinta e uma vezes A ecircnfase recai

sobre o Evangelho de Joatildeo escrito mais tarde onde a designaccedilatildeo de Deus como

Pai nas palavras de Jesus aparece cem vezes Segundo J Jeremias haacute uma

evidente progressatildeo do uso da palavra Pai usada por Jesus em Marcos na coleccedilatildeo

dos Logia e nos elementos proacuteprios de Lucas Analisando os textos dos Evangelhos

referentes ao uso da palavra Pai observa-se que todos enfatizam essa relaccedilatildeo

iacutentima de Jesus com o Pai do ceacuteu Desse modo ldquopode-se dizer que Jesus se servia

93

da palavra Pai para designar a Deus somente em certas circunstacircncias Em

Mateus acha-se uma progressatildeo sensiacutevel no uso do termo e em Joatildeo Pai quase

tornou-se sinocircnimo de Deusrdquo (Jeremias 1977 p26-27)

Francisco Reyes Archila nota a frequecircncia do uso da palavra Pai em Joatildeo

mesmo sendo este o Evangelho que ao mesmo tempo em que evidencia a

paternidade divina protagoniza tambeacutem a figura feminina no discipulado

especialmente de Maria Madalena51 Archila analisando essa progressatildeo do uso da

palavra Pai em Joatildeo nos laacutebios de Jesus como tambeacutem jaacute havia sido observada por

J Jeremias vecirc ainda uma tendecircncia maior em Mateus em registrar o termo Pai em

relaccedilatildeo a Deus do que em Marcos e Lucas onde o termo praticamente natildeo aparece

Referindo-se a Joatildeo Archila tambeacutem eacute de acordo que natildeo somente nos

Evangelhos mas tambeacutem nas cartas o termo Pai eacute usado com uma frequecircncia

muito alta Para Archila jaacute que em Mateus a frequecircncia natildeo eacute tatildeo alta e em Marcos

e Lucas ela praticamente natildeo aparece e nem nas cartas de Paulo se usa esse

termo referindo-se a Deus somente na introduccedilatildeo das cartas (Rm 17 1 Co 13

2Cor 13 2Cor 12 1131 Gl 1 1-3 Ef 11 520 Cl 1 2-3 1Ts 11 2Ts 11 1tm 12

2Tm 12 Tt 14 Fm3) Eacute de se suspeitar segundo esse autor52 de que Jesus tenha

realmente dirigido-se a Deus sempre como Pai o mais provaacutevel seria que com o

decorrer do tempo (jaacute que Joatildeo foi escrito posteriormente aos outros Evangelhos) a

Igreja primitiva tenha assumido progressivamente essa expressatildeo devido ao

ldquoespiacuterito patriarcal proacuteprio do ambiente cultural da eacutepocardquo (Archila 2007 p99)

Podemos ver sobre o relevante uso do termo Pai no Evangelho de Joatildeo no

resumo feito por Matthias Grenzer conforme exposto abaixo

1ndash O Pai ama o Filho porque este uacuteltimo daacute a sua vida (Jo 1017)

2- O Pai mostra ao Filho tudo o que ele mesmo faz (Jo 5 20)

51

Hamerton-Kelly esclarece que o fato de Jesus ter escolhido o siacutembolo de ldquopairdquo para referir-se a

Deus foi uma forma de reorganizar a forma de patriarcado da eacutepoca com a finalidade de tornar as pessoas livres das ldquogarras do patriarcadordquo Para Hamerton-Kelly longe de ser um siacutembolo sexista o pai era para Jesus uma arma escolhida para combater o que chamam de sexismo O termo ldquopairdquo tem sido interpretado fora de seu contexto apresentando um ldquodeusrdquo do sexo masculino que tem sido colocado primariamente como macho mas segundo esse autor a situaccedilatildeo poderia ser mudada ldquocomo temos tentado fazerrdquo (cf Hamerton-kelly 1979 p103) Roger Haight estaacute de acordo que Hamerton-Kelly na nota acima segue J Jeremias sobre a forma como Jesus fazia uso do termo ldquopairdquo que em seu contexto significa algo semelhante agrave ldquomatildeerdquo na sociedade moderna desenvolvida (cf Haight 2003 p 128)

52 Archila estaacute citando Lothar Coenen e outros (Diccionaacuterio teoloacutegico del Nuevo Testamento

Salamanca Siacutegueme vol 3 1983 p 244)

94

3- Ao permanecer no Filho o Pai realiza as suas obras (Jo 1410)

4- O Pai vivo enviou o filho e o filho vive atraveacutes do Pai (Jo 6 57)

5- O Filho fala o que o Pai lhe diz (Jo 12 49-50)

6- O Filho por si mesmo nada faz mas realiza soacute aquilo que vecirc o Pai fazer (Jo

519)

7- Com esse relacionamento muacutetuo de maior intensidade o Pai ama o filho (Jo

335 5 20 1017 159) e o Filho ama o Pai (Jo 1431)

8- O Filho permanece no amor do Pai (Jo 1510)

9- O Pai estaacute no Filho e o Filho estaacute no Pai (Jo 1038 1411 1721)

Esse profundo relacionamento do Filho com o Pai pode ser compartilhado com

o ser humano segundo Grenzer desde que o disciacutepulo reconheccedila o Filho no Pai (Jo

1417) pois aquele que conhece o Filho tambeacutem conhece o Pai (Jo 14 7-9)

ldquoAquele que ama o Filho observando os mandamentos dele seraacute amado pelo Pairdquo

(Jo 1421) Ou ao contraacuterio ldquoquem natildeo honra o Filho tambeacutem natildeo honra o Pai que

o enviou (Jo 523)rdquo Portanto a relaccedilatildeo de Jesus (o Filho) com Deus (o Pai) no

Evangelho de Joatildeo eacute de extrema relevacircncia para compreendermos a cristologia e

para aprendermos a perfeita forma de nos relacionarmos com o Pai celeste

(Grenzer 2009 p 184)

Archila (2007 p99) contabiliza que a expressatildeo Pai para nomear Deus no

Novo Testamento ocorre 245 vezes enquanto que a mesma palavra para designar o

pai bioloacutegico ocorre 157 vezes O motivo para tal ecircnfase para o uso dessa

expressatildeo referindo-se a Deus pode ser pela ldquoinfluecircncia da filosofia grega53 na

nomeaccedilatildeo de Deus como Pai Contudo segundo o mesmo autor o mais plausiacutevel

do ponto de vista histoacuterico eacute a possibilidade que Jesus realmente ldquotenha chamado a

Deus como meu pai ou nosso pai ou pai de vocecircs (Mt 69 2629 42 Lc 112)

Inclusive eacute mais provaacutevel que Jesus o tenha nomeado como Abba palavra usada

pelos filhos ao dirigir-se a seus pais e que equivale a papai (Archila 2007 p99-

53

ldquoA ideia da paternidade de Deus recebe uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica em Platatildeo e nos estoicos

Platatildeo na sua elaboraccedilatildeo cosmoloacutegica da ideia do pai ressalta o relacionamento criador de Deus o pai universal para com o cosmos inteiro (Tim 28c 41a e frequentemente) Para os estoicos a autoridade de deus como Pai permeia o universo ele eacute criador pai e sustentador dos homensrdquo (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)

95

100) Essa forma de dirigir-se a Deus como Pai ou seja essa ideia de ser filho de

Deus contrapotildee-se a ideia presente na filosofia grega e tambeacutem da concepccedilatildeo

romana do Imperador como ldquofilho de deusrdquo Por outro lado ainda o Abba de Jesus

assimilado pela Igreja primitiva dava o direito aos considerados apaacutetridas sociais a

terem o direito de ter um pai o que provavelmente deve ter provocado implicaccedilotildees

agrave Igreja jaacute que essas ideias iam contra aos valores da sociedade patriarcal daquela

eacutepoca (Archila 2007 p103-104)

A imagem que Jesus apresentou do Pai do ceacuteu natildeo pode ser associada com o

que a patriarcalizaccedilatildeo que a cristandade ocidental fez de Deus Para Jesus

segundo Archila Deus natildeo eacute um pai superpoderoso dominante prepotente e

distante dos seus filhosrsquo ele eacute por natureza um pai proacuteximo iacutentimo terno e

misericordioso ou seja ele nos mostra a imagem de um Deus Pai bom e justo Em

outras palavras pode-se dizer que Jesus humanizou a imagem de Deus rompendo

com a imagem patriarcal54 androcecircntrica e exclusivista para apresentar a imagem

de Deus como o Pai bom que projeta nos seus filhos um modelo de relacionamento

fraterno entre homens mulheres crianccedilas com a proacutepria natureza e por fim com o

proacuteprio Deus (Archila 2007 p107)

Trabalhando ainda o Abba nos laacutebios de Jesus eacute relevante observarmos que

Santos Sabugal tambeacutem lista as invocaccedilotildees e designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo nos

laacutebios de Jesus como sendo empregado natildeo menos de 184 vezes (Marcos 4 Lucas

17 Mateus 44 Joatildeo 119 = 111 nos laacutebios de Jesus) assim o referido autor resume

o emprego das designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo por Jesus nos Evangelhos

Esse uso eacute portanto limitado em Marcos mas frequente em Lucas e sobre tudo em Mateus para culminar no evangelho de Joatildeo E as estatiacutesticas refletem de alguma forma em cada evangelho a concepccedilatildeo teoloacutegica da paternidade divina Marcos representa o estagio inicial desta concepccedilatildeo desenvolvida pela teologia de Lucas e significativamente ampliada por Mateus atingindo seu pico mais alto em Joatildeo o teoacutelogo por excelecircncia da paternidade de Deus (Sabugal 1985 p381)

54

Segundo Archila o patriarcado eacute definido como ldquouma relaccedilatildeo de poder entendido como dominaccedilatildeo e superioridade que o varatildeo exerce sobre mulheres e crianccedilasrdquo O modelo que o sistema patriarcal pretende representar eacute baseado numa forma hegemocircnica da dominaccedilatildeo do varatildeo sobre a mulher Esse modelo ldquoinclui papeis competecircncias haacutebitos valores formas de pensar e inclusive formas institucionais como leis e normasrdquo (Archila 2007 p 91-92)

96

Para Sabugal portanto nenhum judeu mesmo os mais piedosos invocou a

Deus como o Abba assim como fez Jesus constantemente Ele tinha a

autoconsciecircncia de ser o filho de Deus Essa forma de invocar a Deus tornou-se natildeo

apenas parte integrante e essencial das suas oraccedilotildees como tambeacutem parte

integrante do seu meacutetodo de ensino sobre a oraccedilatildeo (Sabugal 1985 p386)

Joseacute Antonio Pagola tambeacutem eacute de acordo que Jesus como todas as demais

crianccedilas da Galileia em suas primeiras palavras balbuciou os termos immaacute

(mamatildee) e abba (papai) quando se dirigia a Maria e Joseacute seus pais Contudo

segundo Pagola pode ser um exagero limitar o uso do abba apenas agraves criancinhas

visto que ateacute mesmo os adultos parece que usavam tal expressatildeo como forma de

respeito agrave figura paterna dentro de uma estrutura familiar patriarcal (Pagola 2010

p383)

Mas natildeo precisamos exagerar Parece que tambeacutem os adultos empregavam esta palavra expressando seu respeito e obediecircncia ao pai da famiacutelia patriarcal Chamar a Deus de Abbaacute indica carinho intimidade e proximidade mas tambeacutem respeito e submissatildeo Jesus havia conhecido em sua proacutepria casa a importacircncia do pai Joseacute era o centro de toda a famiacutelia Tudo gira em torno dele O pai cuida dos seus e os protege Se ele falta a famiacutelia corre o risco de desintegrar-se e desaparecer Eacute ele quem sustenta e assegura o futuro de todos Haacute dois traccedilos que caracterizam um bom pai O primeiro eacute a solicitude para com os filhos eacute ele quem deve assegurar-lhes o sustento necessaacuterio protegecirc-los e ajudaacute-los em tudo Ao mesmo tempo o pai eacute autoridade da famiacutelia ele daacute as ordens para assegurar o bem de todos Ele instrui os filhos ensina-lhes um oficio se necessaacuterio Os filhos por sua vez satildeo chamados a ser a alegria do pai (Pagola 2010 p 383-384)

Para fundamentar sua tese de que o abba era um linguajar infantil e que

Jesus que ressignificou esse termo J Jeremias recorre aos pais da Igreja

Crisoacutestomo Teodoro de Mopsueacutestia e Teodoreto de Ciro originaacuterios de Antioquia

uma populaccedilatildeo que falava o siriacuteaco ocidental do aramaico Segundo J Jeremias

esses ldquopais da Igrejardquo satildeo de comum acordo de que o termo Abba era a palavra

usada por um filho pequenino quando se dirigia ao seu pai Um outro documento

usado por J Jeremias para dar sustentaccedilatildeo agrave sua pesquisa eacute o relato do Talmude (b

Berakocirct 40a b Sanedriacuten 70b) citado por ele com as seguintes palavras ldquoQuando

uma crianccedila prova o gosto do cereal isto eacute tatildeo logo como o detestam aprende a

dizer Abba e imma (papai e mamatildee) Abba e imma satildeo pois as primeiras palavras

que a crianccedila balbucia Abba era a linguagem infantil uma palavra comum

97

empregada diariamente ningueacutem tinha ousado dirigir-se a Deus desse modordquo (cf

Jeremias 2006 p63)

Deus como Pai para Jesus eacute com frequecircncia um Pai bom Ele ldquofaz nascer

seu sol sobre bons e maus Manda a chuva sobre justos e injustos (Lc 635 Mt

545) Para Pagola Jesus demonstra isso com muita maestria na paraacutebola do ldquofilho

perdidordquo (Lc 15 11-32) Nessa paraacutebola Pagola observa que o pai natildeo eacute um

personagem autoritaacuterio que natildeo respeita as decisotildees dos filhos pelo contraacuterio ele eacute

um pai amoroso e mesmo que o filho o tenha abandonado ele o recebe de braccedilos

abertos assim que este o pede perdatildeo (Pagola 2010 p386)

Embora a teologia do Abba seja defendida como a ipssissima vox de Jesus

por J Jeremias alguns autores contemporacircneos como Udo Schnelle defende que

natildeo haacute novidade na forma de Jesus invocar ou designar a Deus como pai visto que

isso era uma praacutetica comum tanto no judaiacutesmo como no mundo greco-romano

Segundo Schnelle a novidade do Abba nos laacutebios de Jesus estaacute na ecircnfase na

frequecircncia e na simplicidade com que Deus eacute designado como Pai nos Evangelhos

quando esse termo eacute proferido por Jesus (Schnelle 2010 p99-100)

J Jeremias defende que Jesus usou a palavra Pai na maioria das vezes

quando essa relaccedilatildeo era do Filho com o Pai Quanto ao uso da palavra Pai em

relaccedilatildeo a outras pessoas Jesus nunca fez alguma referecircncia a natildeo ser raras vezes

a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo apenas aos seus disciacutepulos e nunca a outros grupos

visto que a paternidade divina era uma exclusividade estendida apenas aos

disciacutepulos Grupos como os escribas e fariseus foram excluiacutedos dessa filiaccedilatildeo pois

o pai deles eacute o diabo conforme Joatildeo 8 42-44 (Jeremias 2008 p271)

Disse-lhes Jesus ldquoSe Deus fosse o vosso pai voacutes me amariacuteeis porque saiacute de Deus e dele venho natildeo venho por mim mesmo mas foi ele que me enviou Por que natildeo reconheceis minha linguagem Eacute porque natildeo podeis escutar minha palavra Voacutes sois do diabo vosso pai e quereis realizar os desejos do vosso pai Ele foi homicida desde o princiacutepio e natildeo permaneceu na verdade quando ele mente fala do que lhe eacute proacuteprio porque eacute mentiroso e pai da mentira

98

A questatildeo da filiaccedilatildeo divina eacute um processo iacutentimo entre o Pai e seu filho J

Jeremias observou que o texto do evangelho de Mateus (Mt 1127) pode ser mais

bem traduzido do seguinte modo ldquocomo soacute um Pai conhece o seu filho assim soacute um

filho conhece o seu pairdquo (Jeremias 1977 p29) Essa relaccedilatildeo de Filho e Pai que

Jesus propagou no Novo Testamento tem no Antigo Testamento o paralelo mais

proacuteximo nas palavras do salmista ldquoComo um pai se compadece dos filhos assim se

apieda o Senhor dos que o tememrdquo (Sl 103 13) Mas para os filhos do Reino o pai

eacute ainda maior Ele aleacutem de bondoso e misericordioso eacute benigno ateacute mesmo com os

ingratos e maus (Lc 635)

Seguindo esse pensamento Joseph A Fitzmyer observa que quando Jesus

instruiu os disciacutepulos a invocar a Deus como Pai Ele estava mostrando que Deus

natildeo era somente o ldquotranscendente Senhor dos ceacuteus mas estaacute perto assim como um

pai com seus filhosrdquo (Fitzmyer 1985 p898) Para Stephen A Missick Abba eacute

contudo um misteacuterio uma revelaccedilatildeo especial que vem somente atraveacutes de Jesus

Cristo Missick assim como J Jeremias observa que o texto de Mateus 1127

poderia ser parafraseado em aramaico ficando da seguinte forma ldquosomente pai e

filho realmente se conhecem Porque apenas um pai e um filho verdadeiramente

conhecem um ao outro portanto um filho pode revelar aos outros os pensamentos

mais iacutentimos de seu pairdquo (Missick 2006 p23) Para Missick o maior exemplo para

demonstrar essa intimidade entre o Filho e o Pai e o poder que o Filho tem de

revelar o Pai estaacute registrado em Joatildeo 148

Filipe lhe diz ldquoSenhor mostra-nos o Pai e isso nos bastardquo Diz-lhe Jesus ldquoHaacute tanto tempo estou convosco e tu natildeo me conheces Filipe Quem me vecirc vecirc o Pai Como podes dizer Mostra-nos o Pai Natildeo crecircs que estou no Pai e que o Pai estaacute em mim As palavras que vos digo natildeo as digo de mim mesmo mas o Pai que permanece em mim realiza suas obras Crede-me eu estou no Pai e o Pai em mim Crede-o ao menos por causa dessas obrasrdquo

O discurso de Jesus sempre foi conflitante com os grupos religiosos de sua

eacutepoca e isto se agravou mais ainda pelo modo como Ele invocava a Deus mediante

a expressatildeo ldquomeu Pairdquo fato que natildeo era comum no Judaiacutesmo Se essa forma de

99

dirigir-se a Deus chamando-o de ldquomeu Pairdquo era incomum muito mais incomum

ainda era o emprego da forma aramaica ldquoAbbardquo (Jeremias 2008 p116) Os Judeus

usavam duas maneiras de tratar o Pai uma que era muito comum e tambeacutem usada

no cotidiano familiar abba e outra que era mais solene e elevada abicirc (אב)

(Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p649) Para um judeu usar a palavra

Abba para dirigir-se a Deus parecia ser um atrevimento pois tal palavra soava como

balbucio Abba estava entre as primeiras palavras que uma crianccedila aprendia a falar

conforme a referecircncia que J Jeremias faz ao Talmude Babilocircnico jaacute citado neste

trabalho55

Jaacute nos dias de Jesus abba jaacute tinha deixado de ser apenas uma linguagem das

criancinhas para tornar-se uma forma como os filhos adultos se dirigiam a seu pai

como podemos ver na paraacutebola do filho proacutedigo (Lc 15 21) Nos laacutebios de Jesus

aleacutem de tornar-se uma forma familiar de invocar e dirigir-se a Deus abba passou a

ser tambeacutem considerada uma palavra lsquosagradarsquo uma vez que um soacute eacute o Pai dos

disciacutepulos a saber o que estaacute nos ceacuteus conforme Mateus 239 (Jeremias 2008

p121) Para Jesus Abba tornou-se uma expressatildeo de honra que somente o Pai

celeste eacute digno Essa maneira simples e iacutentima de Jesus dirigir-se a Deus como

uma criancinha fala a seu pai foi considerado por J Jeremias como a ipsiacutessima vox

de Jesus isto eacute um modo proacuteprio e original de falar usado por Jesus e que natildeo

tinha nenhuma analogia na literatura da eacutepoca (Jeremias 2008 p120)

[] a forma abbaacute suplantou a forma abbi usada no aramaico paletinense ateacute pelo menos o seacutec 2 a C como constatamos pela documentaccedilatildeo Aleacutem disso abbaacute tomou o sentido de ldquomeu pairdquo e de ldquoo pairdquo e ldquonosso pairdquo De tal modo que a palavra natildeo era apenas parte do linguajar das crianccedilas Os jovens de ambos os sexos tambeacutem chamavam o proacuteprio pai de Abbaacute (cf Lc 15 21) natildeo recorrendo agrave palavra ldquoSenhorrdquo (Kyrie) a natildeo ser cerimonioso (cf Mt 21 29-30) Mas apesar destes desenvolvimentos jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil (Jeremias 1977 p 24-25)

Mais tarde Fitzmyer comentando essa tese reconhece que J Jeremias

entendeu que Jesus natildeo se dirigiu a Deus invocando-o como uma criancinha faz

com seu pai Fitzmyer tambeacutem concorda que Abba eacute a ipisissima vox de Jesus para

55

para esclarecer essa tese podemos ver uma versatildeo semelhante a jaacute citada por J Jeremias (2006 p63) em outra obra sua conforme transcrevemos abaixo ldquoSomente quando uma crianccedila experimenta o gosto do trigo (isto eacute quando eacute desmamada) eacute que ela diz aacutebba imma [matildee] ou seja estes satildeo os primeiros balbuciosrdquo (cf Jeremias 2008 p119)

100

expressar o seu relacionamento com Deus mas que Abba por si soacute sem as oraccedilotildees

de louvor registradas pelos evangelistas Mateus e Lucas (Mt 11 25-27 Lc 10 21-

22) natildeo eacute suficiente para subsidiar tal argumento (Fitzmyer 1993 p61) Para

Ephraim o meacuterito de ter levado ao grande puacuteblico o verdadeiro sentido de como

Jesus se dirigia a Deus Pai chamando-o de Abba eacute de J Jeremias

[hellip] Joachim Jeremias levou ao grande puacuteblico toda a beleza do nome Abba tal como Jesus o pronunciava Enfatizou com razatildeo que em nenhuma outra parte do judaiacutesmo se encontra tal familiariadade Mesmo se por vezes Deus era invocado pelo vocaacutebulo Pai ningueacutem ousou antes do Filho primogecircnito dentre um grande nuacutemero de irmatildeos chamaacute-lo de Abba que literalmente quer dizer papai A ousadia amorosa sempre estivera do lado do Pai pois do lado da criatura nunca ningueacutem fora tatildeo longe como Jesus na resposta adesatildeo e entrega ao amor misericordioso (Ephraim 1998 p174)

54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS

Sabendo que os Evangelhos sinoacuteticos contecircm muitos traccedilos que remontam

para uma redaccedilatildeo poacutes-pascal J Jeremias pergunta ldquoseremos capazes de

remontarmos em particular a ipsissima vox de Jesusrdquo Os evangelhos apresentam

o querigma de Jesus ou segundo J Jeremias seria mais exato dizer que eles

apresentam a Didaquecirc (ensino) da Igreja primitiva A pergunta acima pode gerar um

certo ceticismo contudo natildeo tem forccedila para destruir o argumento de que

[] os logia de Jesus apresentam certas particularidades que devemos considerar como suas expressotildees favoritas jaacute que figuram independentemente uma das outras nas diversas narrativas da tradiccedilatildeo Abba e amen satildeo os traccedilos da linguagem mais caracteriacutesticos da ipsissima vox de Jesus (Jeremias 2006 p 137-138)

Haacute uma distinccedilatildeo entre ipsissima vox e ipsissima verba de Jesus Segundo J

Jeremias a presenccedila de um modo de falar preferido de Jesus (ipsissima vox) natildeo

dispensa absolutamente de examinar em cada caso particular se temos um dito

autecircntico (ipsissima verba) (Jeremias 2008 p79) Os apoacutestolos assim

compreenderam e Paulo vai dizer mais tarde que Abba eacute o clamor (ipsissima vox)

dos filhos de Deus daqueles que foram adotados na comunhatildeo do Espiacuterito Santo

Segundo Missick a importacircncia da palavra Abba vem justamente ao encontro dessa

teoria pois segundo ele natildeo haacute duacutevida de que essa foi a palavra exata que Jesus

101

falou ou seja Abba eacute a ipsissima vox a voz original ou a ipsissima verba as

autecircnticas palavras de Jesus (Missick 2006 p 23)

J Jeremias baseando-se em Dalman diz-nos que assim como o Abba a

palavra amen (ἀμήν) quando proferida por Jesus natildeo possui nenhum equivalente

na literatura judaica e nem nos demais escritos do Novo Testamento Nos discursos

judaicos a palavra ameacuten ldquoservia para ratificar reforccedilar e fazer proacuteprias as palavras

de outro (cf Jr 28 6) na tradiccedilatildeo dos logia de Jesus se utiliza sem exceccedilatildeo esse

termo para reforccedilar o proacuteprio discursordquo (cf Jeremias 2006 p 138) Podemos ver

esse pensamento exposto nas palavras do proacuteprio Dalman

Jaacute foi frequumlentemente apontado que o modo como Jesus usa a palavra ameacutem natildeo eacute familiar em toda a literatura judaica Mesmo em Sota II 5 cf Jerus I e II num 522 realmente natildeo pode ser forccedilado a comparaccedilatildeo Nessa passagem a repeticcedilatildeo amen pronunciado pela mulher suspeita de adulteacuterio eacute explicada como um protesto de sua inocecircncia como se ela estivesse a dizer ameacutem [= eu protesto] que eu natildeo me poluiacute ameacutem que eu natildeo vou poluir a mim mesma (cf Dalman 1902 p226)

J Jeremias refere-se agraves foacutermulas ameacuten legocirc hymin (sou) (em verdade vos [te]

digo) nos sinoacuteticos e amen ameacuten legocirc hymin (soi) (em verdade em verdade vos

[te] digo) em Joatildeo Segundo ele o nuacutemero de vezes que tais expressotildees aparecem

nos evangelhos eacute 13 vezes em Marcos 30 em Mateus (+ Mt 18 19 var) 6 em

Lucas e 25 em Joatildeo onde haacute uma reduplicaccedilatildeo Para J Jeremias este amen natildeo

responsivo coloca-nos diante de uma forma totalmente nova e peculiar dos

Evangelhos e principalmente de Jesus (Jeremias 2006 p 138-139)

Sobre a grandeza do Abba como a ipsissima vox de Jesus vejamos o que nos

diz J Jeremias

Natildeo haacute paralelos com esta mensagem de que Jesus quer ocupar-se dos pecadores natildeo dos justos e que desde agora lhes daacute jaacute a participaccedilatildeo em seu reinado Natildeo haacute paralelos com este Jesus que se senta agrave mesa com publicanos e pecadores Natildeo haacute paralelos com a autoridade com que Jesus se atreve a dirigir-se a Deus com a invocaccedilatildeo de Abba Quem reconhece unicamente o fato (e natildeo sei como algueacutem poderia negaacute-lo) de que a palavra ldquoabbardquo eacute ipsissima vox Iesu esse tal se entende bem a palavra e natildeo a desvirtua estaacute diante da pretensatildeo que Jesus tinha de sua proacutepria majestade (Jeremias 2006 p40)

Se para Jesus invocar a Deus como Pai era um direito exclusivo dado aos

disciacutepulos na igreja primitiva isso era privileacutegio apenas dos membros que jaacute

102

estavam integrados na igreja aos neoacutefitos era lhes reservado o direito de aprender a

oraccedilatildeo mas soacute podiam pronunciaacute-la em puacuteblico a partir da primeira Eucaristia logo

apoacutes o batismo conforme Cirilo um sacerdote de Jerusaleacutem que viveu por volta do

ano 350 dC (Jeremias 1979 p10) Segundo J Jeremias essas restriccedilotildees podem

ser vistas ateacute mesmo na divisatildeo dos capiacutetulos da Didaquecirc no seacuteculo I Na Didaquecirc

a oraccedilatildeo e a ceia do Senhor soacute vecircm depois do batismo (Jeremias 1979 p9-10)

Isso demonstra o quanto era sagrado o direito de invocar a Deus Pai chamando-o

de Abba Pai

55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR

Jesus pertencia a uma famiacutelia piedosa judaica (Lc 2 1-52 cf 416) viveu no

meio de um povo que sabia orar por isso eacute bem provaacutevel que desde menino tenha

aprendido em casa com seus pais a exercer a praacutetica da oraccedilatildeo cotidiana

Segundo J Jeremias natildeo eacute possiacutevel saber muita coisa sobre a praacutetica de oraccedilatildeo na

vida de Jesus aleacutem dos trecircs gritos da cruz relacionados nos sinoacuteticos haacute ainda

duas oraccedilotildees ldquoo grito de juacutebilo (Mt 11 25-26) e a oraccedilatildeo do Getsecircmani (Mc 14 36)rdquo

O Evangelho de Joatildeo registra outras trecircs oraccedilotildees de Jesus na ressurreiccedilatildeo de

Laacutezaro (Jo 1 14-42) na esplanada do templo (equivalente joanino da oraccedilatildeo do

Getsecircmani Jo 12 27) e a oraccedilatildeo sacerdotal (Jo 17) Aleacutem disso temos outros

relatos gerais de oraccedilatildeo registrados nos Evangelhos (cf Mc 1 35 646=Mt 14 23

Lc 3 21 5 16 6 12 9 18 28-29 Lc 22 31-32) e a oraccedilatildeo do Pai-nosso

(Jeremias 2006 p123)

Podemos ainda mencionar que com exceccedilatildeo das mulheres dos filhos

pequenos e dos escravos todos os homens de Israel a partir dos treze anos

estavam obrigados a recitar regularmente o Shemaacute56 (ldquoOuve oacute Israel Iahweh nosso

Deus eacute o uacutenico Iahwehrdquo Dt 64) duas vezes ao dia Aleacutem da profissatildeo de feacute judaica o

mandamento divino era logo recitado em seguida (cf Jeremias 2006 p 116)

Portanto amaraacutes a Iahweh teu Deus com todo o seu coraccedilatildeo com toda a tua alma e com toda a tua forccedila Que estas palavras que hoje te ordeno

56

No entanto segundo J Jeremias o shemaacute era ensinado aos filhos desde que esses aprendiam a falar (cf Jeremias 2006 p 116)

103

estejam em teu coraccedilatildeo Tu as inculcaraacutes aos teus filhos e delas falaraacutes sentado em tua casa e andando pelo caminho deitado e de peacute (Dt 6 5-7)

No Novo Testamento a oraccedilatildeo jaacute havia deixado de ser praticada duas vezes

ao dia para concretizar-se em trecircs vezes conforme vemos no livro dos Atos dos

Apoacutestolos (31 10 3-30) e na Didaquecirc (83) Segundo Jeremias isso se deve ao

fato de ter havido uma fusatildeo entre o Shemaacute (apesar dessa natildeo ser propriamente

uma oraccedilatildeo mas uma profissatildeo de feacute) com a Tefilaacute no periacuteodo da manhatilde e da noite

enquanto que na oraccedilatildeo da tarde natildeo se recitava o Shemaacute Para os israelitas esses

momentos de oraccedilatildeo eram muito preciosos jaacute que se assegurava a formaccedilatildeo dos

jovens na praacutetica da oraccedilatildeo (Jeremias 2006 p22)

Jesus com certeza conhecia as oraccedilotildees e as formas lituacutergicas para proferi-las

no entanto ao ser indagado pelo disciacutepulo anocircnimo (Lc 111) com a indagaccedilatildeo

ldquoSenhor ensina-nos a orarrdquo eacute claro que o Mestre sabia que seus disciacutepulos tambeacutem

conheciam as oraccedilotildees tradicionais visto que tambeacutem eram judeus No entanto eacute

muito provaacutevel que o disciacutepulo anocircnimo estaacute pedindo a Jesus um novo modelo de

oraccedilatildeo que os distinguisse como um grupo Jesus ensinou-lhes o Pai-nosso que se

tornaria a oraccedilatildeo oficial da Igreja primitiva e viria a substituir o antigo modelo das

trecircs oraccedilotildees diaacuterias tatildeo conhecidas em Israel conforme pode ser visto na Didaquecirc

(9-10) Surge entatildeo uma nova forma de orar a partir do ensinamento de Jesus

baseado na expressatildeo Abba que era a forma singular de expressatildeo usada por ele

para dirigir-se ao Pai que estaacute nos ceacuteus (Jeremias 2006 p129-131)

A relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai atinge seu aacutepice na Oraccedilatildeo do Pai-nosso

onde Jesus estaacute ensinando seus disciacutepulos orar A pergunta feita pelo disciacutepulo

anocircnimo em Lucas 111 (Senhor ensina-nos a orar) resultou no mais belo

ensinamento de Jesus a respeito da oraccedilatildeo Na oraccedilatildeo do Pai-nosso como exemplo

de humildade e obediecircncia ldquoJesus se entrega agrave vontade de Deus como a crianccedila o

faz em relaccedilatildeo ao Pairdquo (Goppelt 2002 p 216) Para Haight a oraccedilatildeo modelo eacute

composta por uma invocaccedilatildeo dois anseios ou esperanccedilas e trecircs pedidos (cf Haight

2003 p139) 57 O teoacutelogo Leonardo Boff assim resume a essecircncia desse magniacutefico

modelo de oraccedilatildeo

57

A forma apresentada por Lucas da oraccedilatildeo do Pai-nosso consiste de um endereccedilamento (ldquoPairdquo) dois desejos proferidos a Deus e trecircs peticcedilotildees ditas a ele A forma em Mateus apresenta um endereccedilamento expandido trecircs desejos e quatro peticcedilotildees Nesse modo de orar Jesus instrui e

104

Na oraccedilatildeo do Senhor encontramos praticamente a correta relaccedilatildeo entre Deus e o homem o ceacuteu e a Terra o religioso e o poliacutetico mantendo a unidade do mesmo processo A primeira parte diz respeito agrave causa de Deus o Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome seu Reino sua Vontade santa A segunda parte concerne agrave causa do homem o patildeo necessaacuterio o perdatildeo indispensaacutevel a tentaccedilatildeo sempre presente e o mal continuamente ameaccedilador Ambas as partes constituem a mesma e uacutenica oraccedilatildeo de Jesus Deus natildeo soacute se interessa pelo que eacute seu o Nome o Reino a Vontade divina Ele se preocupa tambeacutem pelo que eacute do homem o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo o mal Igualmente o homem natildeo soacute se prende ao que lhe importa o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo e o mal abre-se tambeacutem ao que respeita ao Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome a chegada de seu Reino a realizaccedilatildeo de sua Vontade (Boff 2009 p17-18)

Em seu livro ldquoO Pai-nosso a oraccedilatildeo do Senhorrdquo J Jeremias enfatiza o alto

valor que a referida oraccedilatildeo tinha na liturgia entre os cristatildeos da Igreja primitiva J

Jeremias nos diz que o mais antigo uso dessa oraccedilatildeo era a recitaccedilatildeo da mesma na

24ordf catequese de Cirilo onde o Pai-nosso era recitado antes da comunhatildeo e era

restrito dentro do culto divino apenas aos batizados ou seja aos membros efetivos

da Igreja Essa praacutetica provinha de Jerusaleacutem e vigorava por toda a Igreja Desde os

primeiros passos na feacute os neoacutefitos jaacute aprendiam a recitar de cor a oraccedilatildeo do Pai-

nosso mas soacute tinham o direito de rezaacute-lo com os demais fieacuteis a partir do momento

em que participavam da primeira eucaristia ou seja logo apoacutes o batismo (Jeremias

1979 p 5-6)

O uso regular do Pai-nosso na liturgia da Igreja eacute tambeacutem testemunhado na

Didaquecirc (Doutrina dos Doze Apoacutestolos) que segundo J Jeremias eacute tatildeo antiga que

chega a ser datada no seacutec I dC ou para ser mais preciso segundo Boff ela foi

escrita por volta dos anos 50 a 70 dC (Boff 2009 p36) Para J Jeremias a

importacircncia dada ao Pai-nosso na Didaquecirc pode ser observada na estrutura da

obra

[] O livro comeccedila (cc 1-6) com a doutrina dos dois caminhos o da vida e da morte que evidentemente pertencia agrave instruccedilatildeo dada aos catecuacutemenos Em seguida o c 7 trata do batismo soacute depois disso eacute que vecircm as seccedilotildees de importacircncia para os batizados Jejum e oraccedilatildeo (inclusive o Pai-nosso) no c 8 Ceia do Senhor nos cc 9 e 10 organizaccedilatildeo e disciplina eclesiaacutesticas nos cc 11 a 15 O que nos interessa aqui eacute que oraccedilatildeo e Ceia do Senhor vecircm depois do batismo

autoriza seus disciacutepulos a chamar a Deus como ldquoPairdquo usando o mesmo tiacutetulo que ele mesmo utilizou em sua oraccedilatildeo de louvor Lc 1021 (duas vezes) e utilizaraacute de novo em Lc 22 42 (cf Fitzmyer 1985 p 899)

105

O que J Jeremias conclui eacute que diferentemente de hoje onde o Pai-nosso eacute

acessiacutevel a todos nos primoacuterdios do cristianismo era bem diferente O privileacutegio de

recitar a oraccedilatildeo do Senhor era reservado apenas aos membros que estavam

plenamente integrados agrave Igreja A perda da reverecircncia e do temor pela oraccedilatildeo do

Senhor eacute tratada por J Jeremias com apreensatildeo e o retorno agrave reverecircncia que a

Igreja primitiva dava ao Pai-nosso soacute pode ser reconquistada se atraveacutes da exegese

biacuteblica buscarmos entender qual era o sentido que o proacuteprio Senhor quis dar agraves

palavras dessa sagrada oraccedilatildeo (Jeremias 1979 p 8-12)

Concordando com J Jeremias Ephraim tambeacutem observa que nos primeiros

seacuteculos da era cristatilde os cristatildeos pronunciavam as palavras do Pai-nosso ldquocom

grande temor como que em segredordquo O motivo para tal respeito era o medo de

transpassar os limites da reverecircncia e cair na blasfecircmia ao pronunciar o nome

inefaacutevel de Deus Segundo Ephraim ainda hoje baseado nesse profundo respeito

pela sagrada oraccedilatildeo os cristatildeos bizantinos ainda conservam a seguinte foacutermula

antes de iniciarem a oraccedilatildeo ensinada pelo senhor ldquoE torna-nos dignos Mestre de

ousar com toda a seguranccedila e sem incorrer em condenaccedilatildeo de te chamar de Pai a

ti o Deus do ceacuteu e de te dizer Pai nossordquo Ao observarmos essa foacutermula bizantina

que antecede a oraccedilatildeo do Pai-nosso concluiacutemos com Ephraim que o respeito e o

medo de ser indigno de pronunciar tal oraccedilatildeo fizeram com que a tradiccedilatildeo da

comunidade cristatilde acima mencionada conservasse com muita precauccedilatildeo haacutebitos e

costumes dos primeiros cristatildeos no que diz respeito a como se deve orar o Pai-

nosso (Ephraim 1998 p 174)

Partindo do princiacutepio que por volta do ano 75 dC a oraccedilatildeo do Pai-nosso era

obrigatoacuteria na formaccedilatildeo dos neoacutefitos tanto os cristatildeos de origem judaica quanto os

de origem grega tinham em comum a obrigatoriedade da oraccedilatildeo do Senhor na

formaccedilatildeo dos novos disciacutepulos Quanto agrave questatildeo do por que duas versotildees do Pai-

nosso ou se eacute possiacutevel que um dos disciacutepulos tenha acrescentado ou retirado

palavras da forma original J Jeremias conclui que ambos os disciacutepulos jamais

alterariam algum ponto da oraccedilatildeo do Senhor A forma mais clara para se

compreender a aparente divergecircncia estaacute no fato de que ambos escreveram para

igrejas diferentes locais e situaccedilotildees diferentes por isso cada evangelista optou por

transmitir um texto segundo o seu tempo e sua Igreja (Jeremias 1979 p 16-21)

106

Quando lemos a oraccedilatildeo do Pai-nosso nas duas versotildees ou seja por Mateus

e por Lucas surgem questotildees a respeito da antiguidade dos textos e das variantes

textuais entre os dois Evangelhos J Jeremias em sua obra acima citada trabalha

com esmero essas duas questotildees e outras tambeacutem natildeo menos importantes Antes

de abordamos as questotildees levantadas por J Jeremias segue abaixo os textos dos

Evangelhos bem como o texto de Lucas retraduzido para o aramaico segundo J

Jeremias e uma versatildeo do aramaico recitado por cristatildeos que ainda hoje falam o

aramaico conforme Stephen Missick

Mt 6 9-13 Lc 11 2-4

() Portanto orai desta maneira

Pai nosso que estaacutes nos ceacuteus

Santificado seja o teu Nome

venha o teu Reino

seja feita a tua vontade

na terra como no ceacuteu

o patildeo nosso de cada dia

daacute-nos hoje

E perdoa-nos as nossas diacutevidas

como tambeacutem noacutes perdoamos aos

nossos devedores

E natildeo nos submeta agrave tentaccedilatildeo

mas livra-nos do Maligno

() Respondeu-lhes ldquoQuando orardes

dizei

Pai santificado seja o teu Nome

venha o teu reino

o patildeo nosso cotidiano daacute-nos a cada dia

pois tambeacutem noacutes perdoamos aos nossos

devedores

e natildeo nos deixes cair na tentaccedilatildeordquo

Pai Nosso aramaico segundo J

Jeremias

Pai-nosso em aramaico recitado pelos

cristatildeos em aramaico segundo Missick

abba [pai]

yitqaddash shemak tete malkutak

[santificado seja o teu nome venha teu

reino]

Awoon Dwashmaya

Nethqaddash Shmakh

Tethe malkuthakh

Nehweh sebayanakh

107

lahman delimhar hab lan yoma den [o

patildeo nosso de amanhatilde daacute-nos neste dia]

ushebok lan hobenan kedishebaqnan

lehayyabenan [e perdoa-nos as nossas

diacutevidas (pecados) assim como

perdoamos os nossos devedores

(pecadores)]

wela ta el nnan lenisayon [e natildeo nos

conduza agrave tentaccedilatildeo] (cf Jeremias 2008

p291)

Aykana dwashmayya aph ara

Hab lan lakhma dsunkanan yowmana

Washboq lan hawbayn aykanan dap

hanan shwaqnan l-hayawayn

Wa la talain Inesyona

Ella passan min beesha

Mittol dlakh hee malkoota wa khaylan w

tishbookhta alalam almeen Amen (cf

Missick 2006 p58)

Para J Jeremias para entendermos o sentido do Pai-nosso na redaccedilatildeo de

Mateus eacute preciso ver que Jesus estaacute advertindo seus disciacutepulos a natildeo praticarem as

esmolas oraccedilatildeo e jejum da mesma forma que elas eram praticadas pelos fariseus

visto que estes amavam praticaacute-las desde que fossem vistos e reconhecidos pelos

homens Os disciacutepulos deviam procurar um cocircmodo por menor que fosse e natildeo

imitar os fariseus em hipoacutetese alguma no quesito de sempre ser pegos em uma

aparente surpresa na hora da oraccedilatildeo para que dessa forma pudessem sempre que

possiacutevel orar no meio da multidatildeo com o uacutenico objetivo de serem reconhecidos e

honrados

Em relaccedilatildeo ao texto de Lucas J Jeremias descreve sobre o fato de tanto a

situaccedilatildeo quanto os leitores de Lucas serem diferentes dos de Mateus Em Lucas a

oraccedilatildeo eacute mais breve o sentido do texto eacute o ensinar a perseveranccedila na oraccedilatildeo visto

que a mesma eacute precedida pela paraacutebola do amigo importuno As diferenccedilas entre a

oraccedilatildeo contida em Mateus e a de Lucas eacute devido aos diferentes grupos a quem

essa oraccedilatildeo foi destinada Segundo J Jeremias os leitores para os quais Mateus

deve ter destinado o Evangelho eram homens que desde a infacircncia aprenderam a

orar enquanto que os de Lucas eram antigos convertidos ao cristianismo

Ao nos depararmos com as duas versotildees da oraccedilatildeo do Pai Nosso na Biacuteblia

(Mateus 6 9 -13 e Lucas11 2-4) logo vem agrave mente qual delas se aproxima mais da

versatildeo original de Jesus ou entatildeo em que liacutengua Jesus proferiu essa magniacutefica

oraccedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta J Jeremias responde da seguinte forma

108

[] a formulaccedilatildeo mais curta de Lucas estaacute integralmente contida na redaccedilatildeo longa de Mateus Isto faz com que seja bem provaacutevel que a forma de Mateus seja uma ampliaccedilatildeo pois pelo que sabemos das leis que regem a transmissatildeo dos textos lituacutergicos quando uma redaccedilatildeo mais curta estaacute assim integralmente contida numa longa eacute a mais curta que deve ser considerada como original (J Jeremias 1979 p23)

Contudo J Jeremias conclui que o texto de Lucas eacute o mais antigo quanto agrave

extensatildeo mas em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo oral (verbal) o texto de Mateus eacute o mais antigo

(cf Jeremias 2008 p 291) Complementando o pensamento de J Jeremias a

respeito da versatildeo original do Pai Nosso Boff assim conclui ldquoDestarte Lucas seria

mais originalrdquo (Boff 2009 p36)

Concernente agrave liacutengua materna de Jesus e agrave cultura da Palestina daquela

eacutepoca podemos ainda perguntar era Jesus um poliglota ou falava apenas o

aramaico Antes de tratarmos com mais detalhes a respeito da liacutengua e cultura de

Jesus observamos a princiacutepio que pelo menos trecircs liacutenguas eram faladas na

Palestina nos dia de Jesus (aramaico grego e latim) conforme as informaccedilotildees

contidas no texto de Joatildeo 19 19-20

Segundo Sabugal haacute uma grande probabilidade de que Jesus possuiacutesse

conhecimentos da liacutengua grega pelos contatos registrados entre Jesus e algumas

pessoas de origem helecircnica como o centuriatildeo romano (Mt 5 8-13 cf Lc 7 1-10)

tambeacutem com a mulher sirofeniacutecia aleacutem do disciacutepulo chamado Filipe que

provavelmente conhecia a liacutengua grega conforme podemos interpretar a partir da

leitura de Joatildeo 12 20-2 (Sabugal 1985 p319) No entanto para Sabugal a liacutengua

popular na Palestina dos dias de Jesus era o aramaico galileu58 Tal liacutengua era tatildeo

familiar agraves comunidades a ponto de apoacutes a leitura de um texto sagrado em

hebraico (Toraacute) logo seguia-se uma traduccedilatildeo para o aramaico (Targum) onde o

texto podia ser compreendido por todos Portanto fica evidente que o aramaico foi a

liacutengua materna de Jesus isso fica mais claro ainda quando encontramos nos

evangelhos palavras aramaicas (cf Mc 14 36 Lc 23 34 42 46 Mc 15 34 = Mt

58 Para Geza Vermes a liacutengua original do Pai-nosso era o aramaico mesmo que alguns estudiosos

discordem colocando o hebraico como a liacutengua original (segundo vermes sem convencer) a maioria dos especialistas eacute de acordo com essa teoria Vermes observa que aleacutem das peculiaridades do grego de Mateus o Pai-nosso tem semelhanccedilas com o kadish uma antiga oraccedilatildeo judaica composta em aramaico que era conhecida por Jesus e que ele teria sido influenciado e inspirado por ela (Vermes 2006 p 258)

109

27 46) conservadas pelos evangelistas sem traduccedilatildeo para a liacutengua grega (Sabugal

1985 p321)

Ao se referir sobre a origem do Pai Nosso Sabugal assim exclama ldquoQue

alegria seria se conseguiacutessemos recuperar a ipsissima verba do Pai Nosso ensinado

por Jesus de Nazareacute e reconstruindo seu texto primitivo pudeacutessemos escutar a

ipsissima vox do Mestrerdquo (Sabugal 1985 p317) Para Sabugal natildeo haacute duacutevida que

os vocaacutebulos gregos estatildeo dispostos segundo os usos da gramaacutetica semiacutetica O

autor tambeacutem entende que na oraccedilatildeo do Pai Nosso tanto de Mateus como na de

Lucas teve como fundo doutrinaacuterio e literaacuterio a liacutengua materna de Jesus (aramaico)

Conforme J Jeremias para compreendermos a essecircncia da oraccedilatildeo de Jesus faz-se

necessaacuterio aproximarmo-nos do proacuteprio modo de falar do Mestre e isso soacute eacute

possiacutevel quando chegamos a ipsissima vox de Jesus (Sabugal 1985 p317)

Sabugal (1985 p317) concorda que descobrir a liacutengua materna de Jesus eacute

algo muito importante e extraordinariamente fundamental O referido autor

compartilha com J Jeremias dessa tese haja vista que eacute importante levar em

consideraccedilatildeo o fato de que para ele os escritores dos evangelhos eram verdadeiros

autores literaacuterios e autecircnticos teoacutelogos de suas comunidades cristatildes capazes de

transmitir com fidelidade a essecircncia da mensagem de Jesus59 Aleacutem do mais os

autores biacuteblicos eram divinamente inspirados pelo Espiacuterito Santo conforme os

textos de 2 Tm 316 e 2Pe 121

Por outro lado Leonardo Boff (2009 p36) considera que a oraccedilatildeo de Jesus

natildeo pode ser tratada como uma oraccedilatildeo simples que possa ser retraduzida do grego

para o aramaico primitivo conforme fez J Jeremias no texto que reproduzimos

abaixo

Pai querido Que o teu nome seja santificado Que venha o teu reino Daacute-nos hoje nosso patildeo de amanhatilde E perdoa-nos nossas diacutevidas como noacutes tambeacutem ao dizermos estas palavras estamos perdoando a nossos devedores E natildeo nos deixes sucumbir agrave tentaccedilatildeo (Jeremias 1979 p33)

59

Sobre a autoria e composiccedilatildeo dos Evangelhos ver o capiacutetulo 4 paraacutegrafo 3 deste trabalho

110

Observamos que de acordo com o pensamento de Boff natildeo eacute faacutecil reproduzir

a oraccedilatildeo de Jesus do grego para o aramaico e dessa forma tambeacutem pensa

Sabugal o qual apesar de achar o trabalho de J Jeremias de extrema importacircncia

no entanto assim como Boff pensa que realizar tal tarefa natildeo eacute nada faacutecil uma vez

que envolve estudos linguiacutesticos e literaacuterios concernentes agrave liacutengua materna e ao

texto primitivo do Pai-nosso em sua composiccedilatildeo riacutetmica e literaacuteria bem como a real

motivaccedilatildeo de Jesus ao ensinar essa oraccedilatildeo aos seus disciacutepulos Haja vista o grau

de dificuldade apresentado acima natildeo podemos deixar de observar que quanto

mais nos aproximarmos do Pai-nosso de Jesus na sua originalidade mais

maravilhados ficaremos diante da grandiosidade dessa magniacutefica oraccedilatildeo

56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA

Conforme J Jeremias e a maioria dos estudiosos Abba eacute um termo que faz

parte da liacutengua semiacutetica para ser mais preciso do aramaico Oriacutegenes pertencente

ao periacuteodo da Patriacutestica profundo conhecedor do grego e das liacutenguas semiacuteticas

segundo Fitzmyer (1992 p 48) estranhamente considerou o termo Abba como

sendo uma palavra hebraica Restou a Jerocircnimo esclarecer que o termo Abba era

siacuterio (Syrum est non hebraeum) e natildeo hebraico Lembrando que o que Jerocircnimo

chamava de siacuterio nos dias dele noacutes chamamos de aramaico

Segundo Matthew Black o aramaico foi uma das grandes liacutenguas faladas na

antiguidade por volta do VI e III seacuteculos aC quando o mundo era governado pelos

grandes impeacuterios orientais desde o Eufrates ateacute o Nilo Essa liacutengua tornou-se a

liacutengua dos judeus provavelmente depois do Exiacutelio O aramaico foi suplantado pelo

grego koineacute no mundo civilizado da eacutepoca durante o impeacuterio de Alexandre o

Grande No entanto o grego nunca substituiu por completo o uso do aramaico entre

os judeus tanto da Palestina como da Babilocircnia bem como de alguns povos de

cultura semiacutetica na Siacuteria e Mesopotacircmia (Black 1998 p14)

Entre os judeus podemos encontrar dois dialetos aramaicos na Palestina

conforme a pesquisa apresentada por Dalman Black menciona que segundo a

distinccedilatildeo feita por Dalman os dialetos estatildeo propostos na seguinte forma o primeiro

representado pelo aramaico do Antigo Testamento e o aramaico do Targum para

Pentateuco e para os profetas O segundo composto pelo conjunto de anedotas

111

popular do Talmude Palestino junto com outras partes do comentaacuterio palestinense

do Antigo Testamento dos antigos Midrash60 haggaacutedicos (Black 1998 p19)

No entanto a liacutengua na qual foi escrito o Novo Testamento eacute aceita quase que

por unanimidade pelos eruditos como sendo o grego coineacute ou grego biacuteblico

conforme foi chamado pelos especialistas ateacute o comeccedilo do seacuteculo XX (Koester

2005 vol I p118) Segundo Koester (2005 vol1 p120-121) todos os livros do

Novo Testamento foram escritos originalmente em grego e esse autor eacute mais

enfaacutetico ainda quando afirma que nenhuma obra dos primeiros cristatildeos escrita em

grego pode ser traduccedilatildeo direta do hebraico ou do aramaico De acordo com Koester

eacute fato que existem inuacutemeros hebraiacutesmos e aramaiacutesmos constantes no Novo

Testamento que podem ser citaccedilotildees gregas da Biacuteblia hebraica ou ainda que

podem ser justificadas pelo fato de que o autor estava inserido num ambiente que

propiciava a formulaccedilatildeo de palavras semiacuteticas como no caso dos Evangelhos onde

Jesus e seus disciacutepulos eram falantes nativos do aramaico

Koester observa que as traduccedilotildees do aramaico para o grego devem ter

acontecido num periacuteodo anterior aos escritos dos primeiros cristatildeos quando esses

ainda conservavam na memoacuteria apenas a tradiccedilatildeo oral Essas traduccedilotildees foram

feitas deacutecadas antes da composiccedilatildeo dos Evangelhos e dessa forma no processo

de composiccedilatildeo das fontes dos Evangelhos praticamente todos os aramaiacutesmos

foram substituiacutedos por palavras gregas com exceccedilatildeo do Evangelho de Marcos que

parece ter usado fontes gregas que eram traduccedilotildees diretas dos originais aramaicos

ou ainda os relatos de milagres no Evangelho de Joatildeo que possivelmente tambeacutem

pode ter sido traduccedilatildeo de um original aramaico (Koester 2005 vl 1 p121-122)

Outra observaccedilatildeo de Koester eacute a questatildeo do bilinguismo na Palestina Entre

os primeiros cristatildeos havia uma mescla de seguidores de Jesus que falavam o

aramaico e o grego Esses foram determinantes para que a composiccedilatildeo dos

Evangelhos fosse fortemente influenciada pelo aramaico Para Koester ldquoalguns

desses semitismos satildeo empreacutestimos semacircnticos que derivam do ambiente geral da

liacutengua como θάλασσα natildeo soacute para mar ou oceano mas tambeacutem para lago uma

vez que o aramaico יםאא denota ambosrdquo (Koester 2005 vl1 p122)

60

Etimologicamente essa palavra tem como raiz o termo darash procurar significa pesquisa sobre a Escritura e tem como funccedilatildeo o meacutetodo de estudo das Escrituras com vistas agrave sua atualizaccedilatildeo (cf Vermes 1990 p11)

112

Para trabalhar as questotildees filoloacutegicas e semacircnticas do Abba precisamos

investigar se a liacutengua materna de Jesus era realmente o aramaico Muitas questotildees

tecircm sido levantadas sobre a liacutengua que Jesus falava e tambeacutem questotildees sobre o

niacutevel cultural do Nazareno As liacutenguas oficiais do impeacuterio romano eram o latim e o

grego Para John P Meier questotildees relacionadas ao idioma ou idiomas que Jesus

falava satildeo muito complexas visto que natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz daquele

periacuteodo e as inscriccedilotildees em latim podem apenas ser um sinal para demonstrar a

presenccedila do poderio romano do que ter a finalidade de informar aos judeus sobre

algo que lhes fosse interessante Como para Meier no mundo greco-romano a

maioria da populaccedilatildeo era analfabeta isso obviamente era vaacutelido tambeacutem para a

populaccedilatildeo judaica (Meier 1993 p254)

Meier usa como exemplo uma famosa ldquoinscriccedilatildeo de Pocircncio Pilatosrdquo que foi

descoberta na Cesareia Mariacutetima em 1961 Essa inscriccedilatildeo em latim foi dedicada ao

Imperador Tibeacuterio por Pilatos A questatildeo levantada por Meier eacute ateacute que ponto esta

inscriccedilatildeo alcanccedilou os gentios e judeus que viviam em Cesareia Possivelmente

para esse autor Pilatos estava preocupado em alcanccedilar apenas as elites ou seja

ele se dirigia apenas aos seus ldquoiguaisrdquo aqueles que estavam a serviccedilo do Impeacuterio ou

faziam parte das elites dominantes As inscriccedilotildees mesmo que sejam as oficiais em

preacutedios puacuteblicos ou aquedutos construiacutedos pelo Impeacuterio ou ateacute mesmo as inscriccedilotildees

funeraacuterias natildeo provam em nada que o latim fosse uma liacutengua comum na Palestina

O fato de uma laacutepide tumular estar em latim poderia apenas ser ldquoo desejo de dar

uma impressatildeo de alta culturardquo e nada mais Assim como segundo Meier natildeo se

pode concluir que os catoacutelicos americanos do iniacutecio do seacuteculo XX tinham um idioma

comum apenas observando a frase Requiescat in pace (do latim descanse em Paz)

inscrita em seus tuacutemulos e nem as muitas inscriccedilotildees em latim espalhadas pela

Europa podem refletir as inuacutemeras liacutenguas faladas hoje em dia nesse continente

Meier observa entatildeo que o Latim eacute visto quase que por unanimidade como o

idioma menos falado na Palestina nos dias de Jesus e por isso ldquonatildeo haacute razatildeo para

se pensar que Jesus falou e muito menos leu o latimrdquo (Meier 1993 p 254 ndash 255)

Se o latim natildeo era tatildeo comum na Palestina jaacute o grego segundo Meier era

um caso totalmente diferente O grego era comum em todo o Impeacuterio romano

inclusive em Roma capital do Impeacuterio A Palestina dos dias de Jesus era altamente

113

helenizada haviam cidades e povoados que foram transformados de uma forma

poliacutetica e cultural em cidades gregas61 Segundo Meier o debate atual entre os

estudiosos estaacute concentrado apenas em saber qual era o grau de helenizaccedilatildeo

nessas cidades Mesmo apoacutes o periacuteodo dos Macabeus onde houve um movimento

de resistecircncia agrave liacutengua e a cultura grega natildeo foi possiacutevel extinguir essa cultura da

Palestina porque apoacutes esse periacuteodo (dos Macabeus) a Palestina passou a ser

governada pelos Asmoneus que tiveram como monarca principal por volta do final

do seacuteculo I aC Herodes o Grande Herodes deu continuidade agrave poliacutetica de

helenizaccedilatildeo que tinha comeccedilado com os reis Selecircucidas especificamente por

Antiacuteoco Epiacutefanes IV O processo de helenizaccedilatildeo de Herodes foi desde a construccedilatildeo

do porto da Cesareia Mariacutetima a cidade de Sebaste em Samaria e muitas outras

grandes edificaccedilotildees em Jerusaleacutem Segundo Meier as inscriccedilotildees em Grego em

Jerusaleacutem eram inuacutemeras desde o Templo as sinagogas ateacute ossuaacuterios Meier assim

descreve a influecircncia grega na Palestina

[] Martin Hengel afirma que uma terccedila parte dos epitaacutefios em Jerusaleacutem do periacuteodo do Segundo Templo eram escritos em grego e ele ainda calcula que das 80000 ou 100000 pessoas que residiam na grande Jerusaleacutem entre 8000 e 16000 teriam falado grego Mas natildeo foi soacute em Jerusaleacutem que a liacutengua e a cultura gregas alcanccedilaram os judeus Um grande nuacutemero de judeus vivia nas cidades helenizadas da planiacutecie litoracircnea desde Gaza no sul ateacute Dor ou Ptolomaicas-Acco no norte Em Cesareia a capital romana da Judeia havia quase tantos judeus como gentios As cavernas de Murabaat nos forneceram papiros gregos sobre a vida diaacuteria e ateacute mesmo ndash por ironia ndash coacutepias de cartas em grego do tempo da revolta de Bar Kochba exatamente quando os nacionalistas lutavam e morriam para se libertarem do jugo estrangeiro e da dominaccedilatildeo cultural

Concernente agrave liacutengua grega e suas influecircncias na Palestina Meier observa

que para se chegar a uma conclusatildeo ou aproximaccedilatildeo de algum fato referente agrave que

idioma era falado pelos judeus residentes na Palestina faz-se necessaacuterio ter uma

atenccedilatildeo redobrada ao periacuteodo em questatildeo Por exemplo se atentarmos para os

seacuteculos III e II aC observa-se um eclipsamento do aramaico devido agrave helenizaccedilatildeo

da Palestina pelos reis selecircucidas da Siacuteria Segundo Meier parece que o aramaico

soacute voltou a retomar a prioridade na Palestina apoacutes a revolta dos Macabeus por isso

61

Se levarmos em consideraccedilatildeo os dados de Martin Hengel citados acima por Meier podemos

deduzir que aproximadamente de 10 a 20 da populaccedilatildeo de Jerusaleacutem falava grego Entatildeo eacute difiacutecil considerar a Palestina dos dias de Jesus como sendo altamente helenizada como fez Meier uma vez que nem mesmo na capital havia tantas pessoas que falavam tal liacutengua

114

natildeo eacute possiacutevel determinar qual era a liacutengua mais falada na Palestina dos seacuteculos II e

I aC tomando como exemplo inscriccedilotildees e textos dos seacuteculos III e II aC (Meier

1993 p 255)

A opiniatildeo de Meier eacute que vaacuterios textos de Flaacutevio Josefo levam agrave conclusatildeo de

que a liacutengua grega natildeo era tatildeo conhecida ou tatildeo falada na Palestina do seacuteculo I

pelos judeus Meier analisa que Josefo mesmo apoacutes se gabar de seu alto niacutevel

cultural tanto em relaccedilatildeo agrave lei como agrave prosa e poesia gregas demonstra algumas

dificuldades com a pronuacutencia do grego Meier observa que as dificuldades de Josefo

parecem natildeo ser apenas de pronuacutencia mas seu domiacutenio de escrita tambeacutem natildeo era

ldquoexatamente perfeitordquo Outro fator observado por Meier eacute a forma de comunicaccedilatildeo

que o general romano Tito usou para se comunicar com os judeus Tito que falava

bem o grego segundo Suetocircnio mas para se comunicar com os judeus precisou de

um ldquomensageiro em aramaico (Josefo) para ser compreendido pelos judeus Surge

entatildeo a grande pergunta Jesus falava grego Para Meier se nem mesmo Josefo

que era haacutebil na liacutengua grega natildeo se sentiu agrave vontade para transmitir o recado de

Tito em grego mas em aramaico porque natildeo dominava bem a liacutengua ou porque os

ouvintes natildeo entenderiam deduz-se que ldquoa probabilidade de um camponecircs galileu

ter suficiente conhecimento para se tornar um mestre e pregador bem-sucedido que

proferisse seus discursos em grego parece muito pequenardquo (Meier 1993 p 258-

259)

Ao fazer um trabalho minucioso sobre a liacutengua que Jesus falava Meier

depois de muitos questionamentos levanta a suposiccedilatildeo de que natildeo podemos negar

que Jesus fosse totalmente desconhecedor da liacutengua dos helenos Primeiro porque

Jesus ateacute mesmo por causa de sua profissatildeo e viagens a Jerusaleacutem tinha contato

com pessoas que falavam grego Eacute possiacutevel segundo Meier que Jesus vez ou outra

fizesse algum contrato ou assinasse algum recibo que tivesse sido redigido em

grego62 Mas o fato de assinar recibos ou mesmo ter dialogado com Pilatos pode

apenas presumir que Jesus possuiacutesse alguns conhecimentos da liacutengua grega

62

A hipoacutetese de Meier sobre a possibilidade de Jesus ter assinado pequenos contratos em grego eacute questionaacutevel uma vez que segundo Meier se nem mesmo Josefo era fluente na liacutengua dos helenos muito menos Jesus que era um humilde galileu Outrossim segundo Crossan eram poucas as pessoas alfabetizadas na Palestina (no maacuteximo 3 da populaccedilatildeo) Crossan chega a afirmar que Jesus era analfabeto como a maioria dos seus conterracircneos Se tal hipoacutetese tambeacutem for verdadeira dificilmente Jesus teria condiccedilotildees de assinar pequenos contratos profissionais na liacutengua grega

115

suficientes apenas para um pequeno diaacutelogo composto de frases curtas Meier acha

muito difiacutecil Jesus ter adquirido alfabetizaccedilatildeo para a escrita em grego O referido

autor ainda aprofunda mais as suas desconfianccedilas a respeito do assunto quando

diz ldquoPortanto acompanhando Fitzmyer mantenho minhas duacutevidas se qualquer parte

dos pronunciamentos de Jesus foi feita desde o iniacutecio em grego dispensando a

traduccedilatildeo ao passar para os Evangelhos gregos que conhecemosrdquo (Meier 1993 p

260)

Apoacutes verificarmos as influecircncias do latim e do grego na Palestina nos dias de

Jesus resta-nos verificar as liacutenguas faladas em Israel desde os primoacuterdios da

naccedilatildeo O hebraico era o antigo e sagrado idioma falado em Israel mas desde que

os judeus voltaram do cativeiro babilocircnico o hebraico sofreu um decliacutenio como

liacutengua falada e passou a ser substituiacutedo gradualmente pelo aramaico Essa

influecircncia do aramaico sobre o hebraico jaacute pode ser vista nos livros poacutes-exiacutelicos

mais precisamente sobre ldquoos livros de Esdras e Daniel que contecircm capiacutetulos inteiros

escritos em aramaico sendo que em Daniel eles chegam agrave metade do totalrdquo (Meier

1993 p 260)

Contudo segundo Meier o hebraico continuou sendo uma liacutengua viva em

Israel principalmente em Qumran onde tinha primazia com o aramaico em

segundo lugar e o grego ocupando apenas uma distante terceira colocaccedilatildeo No

entanto o fato do hebraico ser a liacutengua oficial da comunidade de Qumran natildeo

confirma em nada que o hebraico fosse uma liacutengua usada no dia a dia dos demais

israelitas fora dessa restrita comunidade O que parece ser mais evidente era que o

hebraico aleacutem de em Qumran era usado por religiosos e grupos nacionalistas e por

judeus devotos e em algumas regiotildees de Israel ainda se falava e escrevia em

hebraico (Meier 1993 p 261)

Mesmo sendo o hebraico uma liacutengua viva em Israel Jesus segundo Meier

usava o aramaico para comunicar-se com os seus conterracircneos na vida diaacuteria uma

vez que se acredita que ele natildeo pertencia agrave comunidade de Qumran e nem agrave elite

dos religiosos da eacutepoca bem como seus ouvintes que em sua maioria pertenciam

agraves classes sociais mais humildes A maior evidecircncia disso estaacute nos aramaiacutesmos

registrados nos Evangelhos e especificamente no Evangelho de Marcos onde

encontramos a palavra Abba proferida por Jesus (Mc 1436) De acordo com Meier

116

J Jeremias relacionou 26 palavras aramaicas atribuiacutedas a Jesus nos evangelhos

Dessas palavras Meier opina que duas delas Talita cumi e Abba (Mc 5 41 14 36)

satildeo as que mais proacuteximas estatildeo do Jesus histoacuterico Para ele nem todos os

exemplos citados por J Jeremias podem ser comprovados entretanto alguns satildeo

uacuteteis para demonstrar a forma como Jesus instruiacutea os seus disciacutepulos (Meier 1993

p 264)

A questatildeo da liacutengua falada nos dias de Jesus eacute complexa uma vez que o

aramaico eacute uma liacutengua semiacutetica e estaacute intimamente relacionada com o hebraico No

entanto o aramaico natildeo eacute um dialeto do hebraico mas uma liacutengua semiacutetica distinta

De fato se partirmos do pensamento de Black e considerarmos que Jesus era um

Rabi na Galileia entatildeo natildeo podemos descartar a possibilidade de que ele fez uso

tanto do hebraico como do aramaico especialmente em suas disputas formais com

os fariseus (Black 1998 p16) Aleacutem disso ter conhecimento das duas liacutenguas natildeo

era nada anormal visto que segundo Missick em alguns casos as liacutenguas eram tatildeo

similares que existiam palavras usadas em ambas as liacutenguas com o mesmo

significado (Missick 2010 p 4)

Analisando a coexistecircncia das duas liacutenguas na Palestina nos dias de Jesus

observa-se que as origens do aramaico podem ser anotadas a partir do cativeiro

babilocircnico que ocorreu no periacuteodo de 586 a 539 aC antes disso o hebraico era a

liacutengua oficial dos judeus Com o retorno do hebraico como a liacutengua e a identificaccedilatildeo

da cultura e existecircncia do povo judeu o aramaico foi perdendo forccedilas ateacute ser

considerado uma liacutengua morta No entanto segundo Missick ainda existem

comunidades que falam o aramaico nos dias atuais como os cristatildeos assiacuterios63 do

Iratilde e do Iraque Antigos cristatildeos dessas regiotildees preservaram uma importante versatildeo

da Biacuteblia em aramaico que hoje eacute conhecida como a Biacuteblia Peshitta que segundo

Missick eacute muito valiosa porque a partir dela eacute possiacutevel estudar as palavras de

Jesus no aramaico pois acreditam os cristatildeos do oriente que os Evangelhos foram

63

Matthew Black observa que foi encontrado entre os siriacuteacos cristatildeos palestinos o dialeto aramaico

mais proacuteximo do aramaico dos Evangelhos enquanto que para Dalman segundo Black o aramaico que mais se aproxima do falado nos dias de Jesus era o aramaico dos Targuns judaicos para o Pentateuco e os profetas (cf Black 1998 p18-19)

117

primeiro escritos em aramaico e soacute depois traduzidos para o grego (Missick 2010

p5) 64

Para enfatizar a importacircncia do aramaico no Novo Testamento Missick

relaciona as palavras aramaicas compostas de oraccedilotildees tiacutetulos divinos nomes de

pessoas nomes de lugares e outras palavras e frases usadas no Novo Testamento

Abba (Mc 14 36) Eloiacute Eloiacute lemaacute sabachtaacuteni (Mc 15 34 cf Mt 2746) segundo

Missick se Jesus estivesse falando em hebraico ele teria dito Eli Eli lama azabanti

Nesse caso Jesus estaacute citando o Salmo 221 em aramaico Essa traduccedilatildeo do Antigo

Testamento eacute chamada de Targum65 pela tradiccedilatildeo judaica Dentre as palavras

relacionadas por Missick temos tambeacutem Maranatha (1 Co 1622) que

etimologicamente conforme a definiccedilatildeo dada por Missick (2010 p22-26) tem como

prefixo o termo ldquoMarrdquo que significa Senhor ou ldquoMaranrdquo que significa nosso Senhor

donde temos Maranatha que tem como definiccedilatildeo completa o significado de ldquonosso

Senhor vemrdquo (Marana tha) ou ainda ldquonosso Senhor estaacute vindordquo (Maran atha) Em

aramaico temos ainda outra palavra Rabboni (Jo 2016)

Em relaccedilatildeo aos nomes em aramaico mencionados no Novo Testamento

Missick argumenta que essas pessoas natildeo teriam outro motivo para receber nomes

64

Missick (2006 p170) refere-se a dois grupos significantes de cristatildeos que ainda falam o aramaico O primeiro grupo eacute composto por siacuterios Ortodoxos que vivem na Siacuteria O Segundo grupo do oriente (leste) da Siacuteria satildeo chamados de Assiacuterios e satildeo nativos do Iratilde e do Iraque conforme jaacute comentado acima Segundo Missick os cristatildeos mesmo sendo chamados de assiacuterios satildeo totalmente distintos da cultura do antigo Impeacuterio Assiacuterio A avanccedilada e militarista cultura da Assiacuteria antiga desapareceu com o tempo mas seus descendentes satildeo os modernos siacuterios do Oriente chamados de assiacuterios Os antigos assiacuterios falavam o Acadiano liacutengua falada por assiacuterios e babilocircnios que natildeo eacute mais falada na atualidade

Os atuais cristatildeos Siacuterios e Assiacuterios pertencem a denominaccedilotildees diferentes Segundo Missick (2006 p170) os siacuterios do oeste pertencem agrave Igreja Ortodoxa siacuteria e jaacute foram chamados de Jacobitas ou seja porque provinham do bispo Jacob Bardesanes (542-578 dC) Os cristatildeos chamados de assiacuterios eram conhecidos como nestorianos visto que o patriarca deles foi Nestoacuterio de Constantinopla um Patriarca da Igreja Ortodoxa grega (428-431 dC) A igreja no entanto eacute mais apropriadamente chamada de ldquoAntiga Igreja assiacuteria do Orienterdquo

65 Esta palavra eacute de origem natildeo semiacutetica mas foi adotada pelos judeus para designar tradiccedilatildeo (aqui

parece haver um equiacutevoco do comentador uma vez que a palavra Targum vem do hebraico lsquo targucircmimrsquo e significa traduccedilatildeo Cf La Sor 1999 p 670) ldquoOs targuns satildeo as traduccedilotildees aramaicas dos textos biacuteblicos destinados ao uso sinagogal Na sua origem essas traduccedilotildees eram orais e mais ou menos improvisadas e fragmentaacuterias sendo depois progressivamente fixadas por escrito e reunidas em grandes secccedilotildees (targum do Pentateuco targum dos Profetas targum dos Hagioacutegrefos) Mesmo quando eacute literal na aparecircncia o targum conteacutem elementos mais ou menos amplos de paraacutefrase ou de explicaccedilatildeo de atualizaccedilatildeo e ateacute de correccedilotildees Ele integra o midrash sobretudo na sua forma haggaacutedica Eacute possiacutevel que existisse um targum do Pentateuco ndash ou torah aramaica ndash na eacutepoca de Jesus e ateacute antes na Palestina A atividade targuacutemica evoluiacutera no decorrer dos seacuteculos em que foi praticada para a atividade propriamente midraacuteshica (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p11-12)

118

em aramaico se natildeo estivessem inseridos numa determinada comunidade que

falasse aramaico Missick cita como exemplo o prefixo ldquoBarrdquo antes de alguns nomes

que em aramaico tem o sentido de ldquofilho derdquo enquanto que para nomes em hebraico

se usava o prefixo ldquoBenrdquo que tambeacutem tinha o sentido de ldquofilho derdquo (Missick 2010

p26) Os nomes pessoais que segundo Missick tecircm origem no aramaico satildeo

Cephas (Jo 142 1 Co 112 Gl 29) Tomeacute que vem do aramaico ldquoteomardquo cujo

significado eacute gecircmeo (Jo 212) Simatildeo o Zelota (Mc 318) Maria Madalena que era

natural da cidade de Magdala que em aramaico significa Torre66 Tadeu e Lebeu (Mt

103) Tadeu em aramaico significa mamilo e Lebeu significa coraccedilatildeo

A extensa relaccedilatildeo de nomes pode ser assim resumida Tabita (At 936) Marta

(Lc 10 38-41 Jo 11 1-39 122) Bartolomeu (Mt 103) Jesus Barrabaacutes (Mt 2736)

Simatildeo Bar-Jonas (Mt 2716) Joseacute Barsabaacutes (At 123) Elimas Bar-Jesus (At 13 6-8)

Judas Barsabaacutes (At 15 22) Joseacute Barnabas ou Barnabeacute ndash Filho da profecia- (At

436) Aleacutem dos nomes de pessoas e dos tiacutetulos divinos em aramaico ainda

segundo Missick haacute vaacuterios nomes de cidades com origens no aramaico Gaacutebata (Jo

1913) Goacutelgota (Jo 19 17-18 Mc 1522) Betacircnia (Jo 111) Betesda (Jo 5 1-15)

Geena Mt 1028) Resta-nos ainda conforme Missick relacionar palavras e frases

em aramaico usadas no Novo Testamento Effatha (Mc 734) Taliacutetha Kum (Mc 541)

Raca (Mt 5 22) Mamon (Mt 624) Corban (Mc 7 9-13)

Para Missick natildeo haacute duacutevidas que Jesus falou aramaico Um dos argumentos

levantados por esse autor estaacute baseado no relato da morte de Judas conforme

registrou Lucas (At 119) No discurso de Pedro sobre a substituiccedilatildeo de Judas o

lugar onde o corpo de Judas caiu e se arrebentou ao meio conforme o texto

chamava-se Haceacuteldama na proacutepria liacutengua dos moradores de Jerusaleacutem Para

Missick essa palavra eacute aramaica e natildeo hebraica Se a palavra realmente eacute

aramaica entatildeo deduz-se que o idioma falado naqueles dias era o aramaico e natildeo

o hebraico e nem o grego muito menos o latim Missick conclui entatildeo que para se

compreender a mensagem de Jesus que antes de ser escrita foi transmitida

oralmente eacute necessaacuterio compreender as palavras na liacutengua em que Jesus as

66

Missick menciona que ela era conhecida como Madalena porque sua feacute era como uma torre Esse argumento foi defendido por Jerocircnimo contudo segundo Missick o mais provaacutevel eacute que ela tenha adquirido este tiacutetulo por ter vindo da cidade de Magdala (cf Missick p28)

119

proferiu e a melhor forma de alcanccedilar tal objetivo eacute compreender o aramaico

(Missick 2010 p4-35)

Entre os autores que defendem que o aramaico era a liacutengua dos galileus

contemporacircneos de Jesus encontramos tambeacutem Joseacute Pagola Jesus conforme

esse teoacutelogo falava o aramaico em casa assim como todos os galileus Pagola

ainda analisa que ateacute mesmo na Judeia se falava o aramaico no dia a dia Segundo

Pagola as diferenccedilas entre o aramaico da Galileia para o aramaico da Judeia era

apenas de dialeto (sotaque)

Embora o aramaico seja defendido pela maioria dos estudiosos de teologia do

Novo Testamento haacute no entanto autores que defendem que o hebraico natildeo

somente era uma liacutengua viva como era a mais falada nos dias de Jesus Para os

teoacutelogos David Biacutevin e Roy Bliacutezard Jr o hebraico era o idioma mais falado pelos

contemporacircneos de Jesus e dos primeiros cristatildeos Para esses autores um idioma

pode ser definido da seguinte maneira ldquoo idioma eacute uma expressatildeo no uso de uma

liacutenguagem que eacute peculiar a si proacuteprio na construccedilatildeo gramatical ou em ter um

significado que natildeo pode ser derivado como um todo a partir dos significados do

conjunto de seus elementos Na visatildeo deles o ldquohebraico eacute a chave para entender

as palavras de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p 2-4)

Os defensores do hebraico como a liacutengua falada na Palestina dos dias de

Jesus criticam os defensores da inerracircncia das Escrituras quando esses mesmo

depois de ler o texto de Atos 2614 em que Jesus fala em Hebraico com o apoacutestolo

Paulo e tambeacutem o texto de Atos 2140 no qual o mesmo apoacutestolo falou em hebraico

com uma multidatildeo satildeo os mesmos que afirmam que onde se diz hebraico deve-se

entender aramaico Para defender essa teoria eles argumentam que os mais

antigos manuscritos do Novo testamento datam do quarto e quinto seacuteculos da era

cristatilde (Codex Sinaiticus Codex Alexandrinus e Codex Bezae) afirmam que a

inscriccedilatildeo ldquoEste eacute o Rei dos Judeusrdquo estava escrito em grego latim e hebraico

Partindo desses argumentos Bivin e Bliacutezard lanccedilam a seguinte questatildeo

ldquoPorventura natildeo eacute significativo que os manuscritos gregos mais antigos infiram que

o hebraico era mais popular que o aramaico naquele periacuteodordquo (Biacutevin e Bliacutezard

2001 p8)

120

Biacutevin e Bliacutezard argumentam que mesmo a presenccedila de uma palavra aramaica

(Abba) no Evangelho de Marcos (Mc 1436) natildeo prova em nada a existecircncia de

uma liacutengua original falada em aramaico no periacuteodo de Jesus Para esses autores

Abba aparece sempre entre os escritos em hebraico daquele periacuteodo como uma

palavra de empreacutestimo A razatildeo para tal empreacutestimo do aramaico seria pelo fato

dessa palavra ter um ldquosabor especialrdquo quando usado como forma de relacionamento

entre os filhos e seus pais O sentido dessa expressatildeo pode ser relacionado com a

forma como os filhos se dirigem aos seus pais chamando-os de ldquodaddyrdquo (Papai) ou

ldquopapardquo (pai) em Inglecircs Um outro argumento ainda usado como forma de demonstrar

que usar Abba como forma de provar que a liacutengua falada por Jesus natildeo era o

aramaico eacute demonstrar que ainda hoje em Israel onde se fala o hebraico moderno

ldquoas crianccedilas usam Abba na abordagem de seus pais exatamente da mesma

maneira como foi usado no tempo de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p10)

Murphy-OConnor diferentemente de Biacutevin e Bliacutezard comunga da mesma

ideia de Jerocircnimo de que o apoacutestolo Paulo era de origem palestinense conforme os

textos de 2 Co 11 22 e Fl 3 5 onde Paulo identifica-se como ldquoisraelitardquo ldquodo povo de

Israelrdquo e como um ldquohebreurdquo Poreacutem quanto aos textos onde Lucas diz que Paulo

falou com a multidatildeo ldquonuma linguagem hebraicardquo (At 2140 222 2614) Murphy-

OConnor argumenta que a linguagem deveria significar aramaico e natildeo hebraico

Segundo esse autor naquela eacutepoca a maioria dos judeus jaacute natildeo conheciam mais o

hebraico e os textos das Escrituras nas sinagogas eram traduzidos para o aramaico

Outro argumento eacute que as palavras Gaacutebata (Jo 1913 o lugar onde Pilatos

condenou Jesus) e Goacutelgota (Jo 19 17) que satildeo mencionadas como palavras

hebraicas na verdade satildeo palavras aramaicas Sendo assim segundo Murphy-

OConnor a divisatildeo entre os primeiros cristatildeos de Jerusaleacutem (At 61) era permeada

pelos que falavam aramaico e pelos que falavam o grego (Murphy-OConnor 2008

p 29-30)

Matthew Black analisando a liacutengua falada por Jesus observa que alguns

estudiosos defendem o hebraico como a liacutengua vernaacutecula na Palestina dos dias de

Jesus Segundo Black alguns propotildeem que o hebraico natildeo era soacute apenas uma

forma literaacuteria de expressatildeo ou entatildeo apenas uma liacutengua falada nos ciacuterculos

rabiacutenicos mas o hebraico era um veiacuteculo normal de expressatildeo (Black 1998 p 47)

121

Douglas Hamp defende que o hebraico era realmente uma liacutengua muito viva nos

dias de Jesus e natildeo uma liacutengua morta como muitas vezes eacute dito Aleacutem de tudo para

ele o hebraico era a primeira liacutengua na Palestina nos dias de Jesus apesar de

segundo ele Jesus poderia ser triliacutengue ou seja falava hebraico aramaico e grego

e possivelmente ateacute o latim (Hamp 2005 p40) Hamp defende entatildeo que Jesus

provavelmente conhecia o aramaico e o grego e deve ter usado essas liacutenguas em

alguns contextos no entanto com seus disciacutepulos e na comunicaccedilatildeo com as

massas ele falou hebraico (Hamp 2005 p73)

Sobre a posiccedilatildeo daqueles que consideram o hebraico e natildeo o aramaico

como o vernaacuteculo ou seja a liacutengua mais falada nos dias de Jesus Black responde

ldquoesta posiccedilatildeo extrema tem encontrado pouco ou nenhum apoio entre as autoridades

competentes a evidecircncia da ipsissima verba de Jesus nos Evangelhos eacute impossiacutevel

de explicar se o aramaico natildeo era a liacutengua que Jesus falavardquo No entanto para ele eacute

provaacutevel que Jesus sendo um Rabi que comeccedilou seu ministeacuterio na Galileia e muito

bem versado nas Escrituras tenha sido capaz de ensinar com maestria tanto em

hebraico que poderia usar para ocasiotildees solenes como em aramaico com que se

comunicava com as massas (Black 1998 p 48-49)

Considerando as diversas opiniotildees sobre a liacutengua materna de Jesus

observamos que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus falava o aramaico

uma vez que esta foi a liacutengua predominante na Palestina apoacutes o exiacutelio babilocircnico

Contudo natildeo eacute tarefa faacutecil chegar a uma conclusatildeo Como vimos os estudiosos que

defendem o aramaico como a liacutengua materna de Jesus buscam como prova de tal

tese o argumento de que o Novo Testamento conteacutem muitas palavras aramaicas que

deviam ser comuns nos dias de Jesus Possivelmente o aramaico era uma liacutengua

falada pela populaccedilatildeo em geral enquanto que o hebraico reservava-se mais a

escrita de textos religiosos (sacros) e tambeacutem era usado pela classe sacerdotal que

por sua vez era mais elitizada Contudo devido agrave semelhanccedila entre as duas liacutenguas

torna-se difiacutecil delimitar uma linha divisoacuteria entre as mesmas uma vez que natildeo

possuiacutemos textos em aramaico da eacutepoca e natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz

que nos permita concluirmos com precisatildeo

122

6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS

Apoacutes termos apresentado a tese de J Jeremias sobre o Abba e alguns

pesquisadores que com ele concordam eacute oportuno tambeacutem olharmos algumas

teorias e pesquisadores que divergem de suas ideias

61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO

A relaccedilatildeo de paternidade divina no Antigo Testamento eacute refletida na literatura

poacutes-canocircnica do judaiacutesmo No Judaiacutesmo palestinense67 de acordo com J Jeremias

natildeo haacute relatos que em toda a literatura de Qumran que deve ser anterior a 68 a C

(Jeremias 1977 p17) de que Deus tenha sido invocado como Pai Haacute apenas uma

exceccedilatildeo em I QH 9 55 S ldquoEu te agradeccedilo oh Senhor porque natildeo abandonou a

paternidade ou desprezou o pobrerdquo (Vermes 2004 p274) A questatildeo da paternidade

divina era vista pelos rabinos como um direito dado apenas para aqueles que

cumpriam a Lei (Torah) (Jeremias p 1977 p19)

As oraccedilotildees judaicas eram dirigidas geralmente a Deus como nosso Pai

nosso Rei (abinu malkenu) 68 ldquoNosso Pai Nosso Rei Em vista de nossos pais que

creem em ti e a quem ensinas as leis da vida ndash tem piedade de noacutes e ilumina-nosrdquo

(Jeremias 1977 p18) Para J Jeremias mesmo essa oraccedilatildeo sendo antiga

podendo mesmo ser situada na eacutepoca de Jesus haacute algumas coisas que precisam

ser observadas A ecircnfase da oraccedilatildeo estaacute na duplicidade dos termos que se referem

a Deus ou seja ldquoDeus eacute invocado como o pai da comunidaderdquo e a comunidade por

sua vez invoca o Pai que ldquoeacute o rei celestial do povo de Deusrdquo (Jeremias 2008 p116)

Tambeacutem segundo J Jeremias esse texto foi escrito em hebraico que nos dias de

67

ldquo[] no judaiacutesmo palestinense do periacuteodo preacute-cristatildeo eacute rara a descriccedilatildeo de Deus como pai Nos

apoacutecrifos e pseudoepiacutegrafos no que diz respeito aos escritos de origem palestinense acha-se muito raramente (tob 134 Sir 5110 Jub 124-25 28 1929) enquanto os textos de Cunratilde oferecem um uacutenico exemplo isolado (1QH 935-36) No judaiacutesmo rab do seacuteculo I dC o emprego do nome Pai tornou-se mais generalizado mas ainda era muito menos frequente do que outras descriccedilotildees de Deus (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

68 Charlesworth afirma que Jesus invocava a Deus como Abba e natildeo como Abinu Charlesworth

entatildeo pergunta ldquonatildeo seraacute concebiacutevel que tenha chamado Deus de Abba porque tinha uma concepccedilatildeo de Deus que era de algumas maneiras diferente daquela da maioria de seus contemporacircneos (cf Charlesworth 1992 p148)

123

Jesus era uma liacutengua sacra usada com maior frequecircncia nas reuniotildees lituacutergicas e

natildeo como uma praacutetica comum no dia a dia (Jeremias 1977 p19)

Entre os escritos do judaiacutesmo palestinense haacute duas oraccedilotildees em que Deus eacute

invocado como Pai Satildeo invocaccedilotildees muito semelhantes do c 23 de Ben Sira

(Eclesiaacutestico) escrito por volta do comeccedilo do seacuteculo II aC (Jeremias 1977 p19)

Esses dois versiacuteculos (v1 e v4) onde Deus eacute invocado como ldquoPai e dono da minha

vidardquo e como ldquoSenhor Pai e Deus da minha vidardquo (Jeremias 1977 p19) poderiam

ser um preluacutedio do evangelho segundo J Jeremias se por volta da deacutecada de 40

natildeo tivesse sido descoberto uma paraacutefrase em hebraico desse texto que hoje existe

apenas em grego A paraacutefrase desse texto escrito em hebraico natildeo invoca Deus

como ldquoSenhor e Pairdquo mas invoca-o como ldquoDeus de meu Pairdquo Ficam evidentes

entatildeo as diferenccedilas entre o texto que temos em grego e a paraacutefrase em hebraico

Partindo desses raciociacutenios J Jeremias entatildeo conclui que mesmo que no

Judaiacutesmo da diaacutespora haja testemunhos esporaacutedicos da invocaccedilatildeo de Deus como

Pai (Jeremias 2008 p117) eles satildeo apenas ditos isolados nos quais Deus eacute

invocado como (Pater) mas sempre com influecircncia do helenismo e da liacutengua grega

(Jeremias 2008 p115-116) e natildeo se tem notiacutecias de que no judaiacutesmo palestinense

algum indiviacuteduo tenha dirigido-se a Deus chamando-o de meu Pai (Jeremias 1977

p 19-20)

Contudo J Jeremias ainda menciona uma oraccedilatildeo do final do seacuteculo 1 aC

feita por um homem chamado Hanin ha-Nehba conhecido por seu sucesso nas

oraccedilotildees para obter chuva Nessa oraccedilatildeo Deus eacute invocado como papai ou como o

Abba que tem o poder de enviar chuva

Quando o mundo precisava de chuva nossos mestres tinham o costume de lhe mandar crianccedilas das escolas que se agarravam ao seu manto e imploravam Abbaacute Abbaacute habh lan mitra papai papai daacute-nos chuvardquo E ele lhe (a Deus) dizia Senhor do universo concede-nos (a chuva) em vista destes que natildeo satildeo ainda capazes de distinguir entre um abbaacute que tem o poder de dar a chuva e um abbaacute que natildeo tem (Jeremias 1977 p 22)

Por fim o autor supracitado observa que mesmo que as evidecircncias sejam

favoraacuteveis a uma invocaccedilatildeo de Deus como papai (Abbaacute) ainda assim com um olhar

mais criterioso nota-se que a forma como Hanin invoca a Deus eacute tomada com um

tom carregado de humor e Hanin comeccedila a sua oraccedilatildeo dirigindo-se a Deus natildeo

como o Abba mas sim como o Senhor do universo J Jeremias vecirc essa histoacuteria

124

como um preluacutedio das afirmaccedilotildees de Jesus nos Evangelhos onde ele diz que ldquoo Pai

celeste sabe do que precisam os seus filhos (Mt 632) que ele envia a chuva sobre

os justos e os injustos (Mt 5 45) e daacute coisas boas aos seus filhos que lhas pedem

(Mt 711 par Lc 1113) (Jeremias 1977 p 23) Entatildeo J Jeremias tem como

resultado de suma importacircncia de que realmente natildeo existe nenhum testemunho

nas oraccedilotildees judaicas do uso do Abba (papai) em todo o judaiacutesmo Defende esse

autor que o emprego do Abba foi uma caracteriacutestica peculiar de Jesus dirigir-se a

Deus invocando-o como o Abba e isso coloca o abba como sendo a ipsissima vox

de Jesus (Jeremias 1977 p23)

Eis-nos pois autorizados a dizer por que natildeo se usa abbaacute nas oraccedilotildees Judaicas para invocar a Deus seria desrespeitoso e portanto impensaacutevel para uma mentalidade judaica chamar a Deus com um nome tatildeo familiar Foi algo de novo uacutenico e inaudito ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma crianccedila fala ao seu pai com simplicidade intimidade e sem temor Portanto natildeo haacute duacutevida alguma de que a palavra abbaacute utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus revela o proacuteprio fundamento de sua comunhatildeo com ele (Jeremias 1977 p25)

J Jeremias ainda conclui seu pensamento sobre o uso do Abba nas oraccedilotildees

judaicas ldquoUma revisatildeo da rica e abundante literatura oracional judaica ainda pouco

estudada leva-nos a conclusatildeo de que em nenhuma das suas passagens estaacute

atestado o termo abba para invocar a Deusrdquo (Jeremias 2006 p63)

Com um pensamento em alguns pontos diferentes ao de J Jeremias de que

para este Deus nunca foi invocado como pai no judaiacutesmo quer seja no Antigo

Testamento ou no judaiacutesmo palestinense Bultmann afirma que a visatildeo de Deus

como pai no Judaiacutesmo era corriqueira quer seja atraveacutes das oraccedilotildees ou ateacute mesmo

pelo piedoso individualmente Bultmann usa alguns textos como o Eclesiaacutestico 410

para justificar a sua tese ldquoSecirc um pai para os oacuterfatildeos e o substituto do esposo para as

viuacutevas Entatildeo Deus te chamaraacute de filho seraacute gracioso para contigo e te salvaraacute da

perdiccedilatildeordquo (Bultmann 2005 p 191)

A condiccedilatildeo de filho de Deus no judaiacutesmo pode ser tambeacutem escatoloacutegica Para

Bultmann o chamado Salmo de Salomatildeo (1730) trata sobre o regimento do

Messias no tempo do fim com as seguintes palavras ldquoEle os conhece e sabe que

satildeo todos filhos do seu Deusrdquo E para enfatizar ainda mais o seu argumento ele

ainda cita o ldquochamado Livro dos jubileus (1 24-25)rdquo no qual Deus em uma forma

escatoloacutegica promete para os israelitas no tempo da salvaccedilatildeo ldquoEles cumpriratildeo os

125

meus mandamentos e eu serei um pai para eles e eles seratildeo meus filhos E todos

eles se chamaratildeo filhos do Deus vivo e todos os anjos e todos os espiacuteritos os

conheceratildeo e saberatildeo que eles satildeo meus filhos e que eu sou o pai em firmeza e

justiccedila e que eu os amordquo

A ideia que Jesus tem da designaccedilatildeo de Deus como pai segundo Bultmann

natildeo traz nenhuma novidade a respeito do assunto pelo contraacuterio era jaacute uma

caracteriacutestica de muitas religiotildees e cosmovisotildees religiosas e entre elas encontra-se

a visatildeo dos antigos estoicos para os quais a ldquofiliaccedilatildeo divina cabe ao ser humano por

natureza e eacute algo que se aplica a ele na esfera das ideias logo que se situa aleacutem

de sua existecircncia concreta no aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p192-193)

A relaccedilatildeo de pai e filhos no judaiacutesmo ocorre de uma forma diferente da do

estoicismo Bultmann defende que no judaiacutesmo natildeo haacute uma relaccedilatildeo de pai e filhos

de Deus por natureza mas pela livre eleiccedilatildeo de Deus A filiaccedilatildeo divina portanto natildeo

eacute algo natural mas eacute algo miraculoso Quanto agrave possibilidade da filiaccedilatildeo essa natildeo eacute

exclusividade de um grupo pelo contraacuterio eacute aberta a todos pois o pai do ceacuteu provecirc

para todas as pessoas aquilo que necessitam (Mt 6 2632) Da mesma forma a

oportunidade para rogar ao pai do ceacuteu (Mt 7 7-11) eacute uma oportunidade oferecida a

todas as pessoas Dessa forma Bultmann declara que ldquo o ser humano eacute visto de

modo bem diferente ou seja natildeo como aquilo que eacute na esfera das ideias para aleacutem

de sua existecircncia concreta mas justamente como aquilo que eacute em sua existecircncia

na singularidade de seu aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p 193)

O conceito de paternidade no judaiacutesmo eacute tambeacutem discutido por Alon Goshen-

Gottstein em ldquoDeus como Pai no judaiacutesmordquo (Goshen-Gottstein 2001 p475) Para

ele a referecircncia rabiacutenica de Deus como pai no judaiacutesmo tambeacutem eacute uma

peculiaridade de Israel como naccedilatildeo natildeo que indiviacuteduos natildeo possam dirigir-se a Ele

como pai Mas natildeo eacute possiacutevel encontrar nas fontes sobre algueacutem que de forma

especiacutefica e individual tenha dirigido-se a Deus chamando-o de Pai No entanto

para Goshen-Gottstein essa relaccedilatildeo paternal era apenas um sentimento religioso

reciacuteproco de Israel para com Deus isto eacute chamar Deus de Pai era apenas uma das

muitas metaacuteforas que Israel usava para referir-se a Deus (Goshen-Gottstein 2001

p475)

Para Goshen-Gottstein os cristatildeos e judeus divergem muito sobre a questatildeo

da segunda e a terceira pessoas da trindade cristatilde parece que a primeira pessoa da

trindade (o Pai) eacute o elo que une o cristianismo e o judaiacutesmo num fundo teoloacutegico

126

comum Contudo ele pergunta sobre em que extensatildeo a pessoa do Pai eacute um

conceito comum para o judaiacutesmo e para o cristianismo (Goshen-Gottstein 2001

p471) Goshen-Gottstein coloca que o primeiro problema eacute metodoloacutegico visto que

eacute natural que os pesquisadores do Novo Testamento vasculhem a literatura rabiacutenica

agrave procura daquilo que apenas lhes interessa A exemplo disso esse autor observa

que teoacutelogos cristatildeos pentearam a literatura rabiacutenica em busca de exemplos de

expressotildees sobre o ldquoPai celesterdquo que estatildeo no singular ou no plural para dessa

forma avaliar a importacircncia que a expressatildeo ldquoPai celesterdquo tem na literatura rabiacutenica

quando analisada sobre a perspectiva da intimidade e relaccedilatildeo pessoal que o ldquoPai

Celesterdquo tinha para os autores rabiacutenicos Goshen-Gottstein vecirc isso como perda de

tempo pois considera que as fontes rabiacutenicas natildeo podem ser analisadas para fins

especiacuteficos mas devem ser apreciadas a partir da unicidade das suas estruturas

literaacuterias meacutetodos de expressatildeo e convenccedilotildees estiliacutesticas (Goshen-Gottstein 2001

p473)

Referindo-se ao conceito de metaacuteforas atribuiacutedas a Deus Goshen-Gottstein

afirma que descrever Deus como Pai no Judaiacutesmo natildeo eacute essencial ou fundamental

Esse conceito tem uma conotaccedilatildeo religiosa e faz parte de um vocabulaacuterio religioso

Ele eacute apenas uma descriccedilatildeo repleta de imagens e metaacuteforas que faz parte de um

vocabulaacuterio religioso que daacute expressatildeo aos sentimentos do povo e que enchem o

espectro de Israel Portanto para Goshen-Gottstein ldquoPairdquo natildeo eacute uma expressatildeo

privilegiada dentro do judaiacutesmo e tambeacutem ldquonatildeo eacute o nome proacuteprio de Deus Antes eacute

uma das inuacutemeras metaacuteforas atraveacutes das quais Israel se refere a Deusrdquo A

paternidade na literatura rabiacutenica eacute sempre vista em relaccedilatildeo a Israel como naccedilatildeo

Embora Goshen-Gottstein afirme tal expressatildeo ele admite que haja casos em que

indiviacuteduos se dirijam a Deus como Pai inclusive em fontes biacuteblicas No entanto natildeo

se encontra em nenhuma fonte Deus sendo considerado Pai de um indiviacuteduo

somente Sempre Deus eacute visto como sendo o Pai de Israel poreacutem isso natildeo

evidencia que a paternidade de Deus natildeo seja estendida a outros fora de Israel pelo

menos natildeo encontramos na literatura rabiacutenica textos que suponham tal expressatildeo

O que Goshen-Gottstein procura deixar claro eacute que a referecircncia rabiacutenica a Deus

como Pai estaacute fundamentalmente fiel ao uso biacuteblico Isso difere de Filo para quem

Deus o Pai eacute tambeacutem Deus o Criador do mundo Para os rabinos a paternidade

divina se refere somente em relaccedilatildeo a Israel ou seja as fontes referem-se a Deus

127

como Pai somente no contexto do relacionamento especial de Israel com Deus

(Goshen-Gottstein 2001 p475)

A representaccedilatildeo metafoacuterica de Deus como Pai de Israel eacute tambeacutem defendida

por Vermes em Jesus e o mundo do Judaiacutesmo Vermes defende que Deus foi

representado metaforicamente como Pai do povo eleito (Israel) natildeo somente na

literatura biacuteblica mas tambeacutem na literatura apoacutecrifa Entre os textos biacuteblicos por ele

citados encontram-se os seguintes ldquoEu sou pai para Israel e Efraim eacute o meu

primogecircnitordquo (Jr 319) ldquoE no entanto Senhor tu eacutes o nosso Pairdquo [] todos noacutes

somos obras de suas matildeosrdquo (Is 647) ldquoSerei para ele um Pai e ele seraacute para mim

um filho e seraacute chamado filho do Deus vivo (Jub 1 24-25) ldquoFiz a vontade do Abba

que estaacute nos ceacuteusrdquo (Lv R 321) ldquoOacute Senhor Pai Soberano (ou Deus) da minha vidardquo

(Sr 23 14) ldquoA tua providecircncia oacute Pai eacute o seu pilotordquo (Sb 14 3) Vermes apoacutes

analisar os textos das fontes mencionadas acima e outros natildeo reluta em afirmar que

a invocaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rica no judaiacutesmo antigo (Vermes 1996 p53)

Analisando as teses de J Jeremias concernentes ao Abba de Jesus Vermes

observa que elas estatildeo sujeitas a questionamentos J Jeremias defende que Abba

quando dirigido a Deus em forma de invocaccedilatildeo natildeo se encontra na oraccedilatildeo judaica

antiga Vermes contudo soacute concordaria com essa tese se fosse possiacutevel analisar

todas as oraccedilotildees individuais e confirmar que em nenhuma delas algum indiviacuteduo

dirigiu-se a Deus em oraccedilatildeo com a forma invocativa do Abba Para Vermes o

seguinte pensamento de David Flusser resume bem os argumentos acima

apresentados ldquoJ Jeremias natildeo conseguiu encontrar o uso de Abba como vocativo

para Deus na literatura talmuacutedica poreacutem considerando a escassez de material

rabiacutenico sobre a oraccedilatildeo carismaacutetica isso natildeo nos diz muita coisardquo (Vermes 1996

p55)

Goshen-Gottstein fazendo referecircncia a Joseph Heinemann justifica a tese de

Vermes de que eacute preciso distinguir a oraccedilatildeo judaica antiga quando era puacuteblica e

coletiva da oraccedilatildeo de um indiviacuteduo Seguindo esse argumento observa-se que a

oraccedilatildeo puacuteblica recorre a linguagem e padrotildees especiacuteficos enquanto que a oraccedilatildeo

quando efetuada pelo indiviacuteduo eacute mais livre e tambeacutem mais carismaacutetica Nesse

sentido o exemplo por excelecircncia de oraccedilatildeo livre e individual eacute a oraccedilatildeo do Senhor

(Goshen-Gottstein 2001 p487)

Dentre os argumentos contraacuterios a visatildeo de J Jeremias temos ainda a

refutaccedilatildeo de Vermes sobre a tese em que J Jeremias defende que Jesus dirigia-se

128

a Deus chamando-o de ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo Para Vermes essa forma invocativa

realmente era usada pelas criancinhas quando essas se dirigiam aos seus pais

Contudo Vermes natildeo concorda que abba ou imma tenha tido uma uacutenica forma

determinada de uso Para ele na eacutepoca de Jesus abba poderia tambeacutem possuir

simplesmente o significado de ldquomeu pairdquo principalmente quando usadas em

situaccedilotildees solenes que natildeo tinham nada de infantil ldquocomo na altercaccedilatildeo imaginaacuteria

entre os patriarcas Judaacute e Joseacute relatado no Targum Palestino quando o furioso Judaacute

ameaccedila o governador [vizir] do Egito (seu irmatildeo que ele natildeo reconhecera) dizendo

Juro pela vida da cabeccedila de abba (meu pai) tal como tu juras pela cabeccedila do Faraoacute

teu senhor que se tirar a espada da bainha natildeo a devolverei mais enquanto a terra

do Egito natildeo tiver coberta de cadaacuteveresrdquo (Vermes 1996 p55)

James Barr tambeacutem eacute de acordo que abba era uma palavra usada por

adultos embora tambeacutem fosse muito usada por crianccedilas Segundo Barr no grego do

Novo Testamento a palavra ldquopaterrdquo (pai) eacute normalmente usada para referir-se a

figura paterna Contudo ele observa que na liacutengua grega tambeacutem havia uma palavra

em particular no diminutivo pertencente agrave fala das crianccedilas um pouco semelhante agrave

palavra Daddy em Inglecircs (papai) Poreacutem mesmo existindo a palavra em grego natildeo

haacute indiacutecio algum de que tal palavra tenha sido usada no Novo Testamento (Barr

1988 p 36-38)

As teorias com visotildees diferentes das de J Jeremias satildeo muitas como temos

visto Vermes conforme vimos acima eacute enfaacutetico ao contrapor J Jeremias

considerando as teses do professor de Gotinga sobre o Abba como incongruentes e

desprovidas de bases linguiacutesticas

[] J Jeremias compreendia que Jesus dirigia-se a Deus por ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo contudo afora a improbabilidade e incongruecircncia a priori dessa teoria parece natildeo haver bases linguiacutesticas para ela As criancinhas falantes de aramaico dirigiam-se aos seus pais por meio de abba ou imma mas esse natildeo era o uacutenico contexto do uso de abba Na eacutepoca de Jesus a forma determinada do nome abba (- ldquoo pairdquo) tambeacutem significava ldquomeu pairdquo ldquomeu pairdquo se bem que ainda atestado em qumran e no aramaico biacuteblico praticamente jaacute desaparecera como forma idiomaacutetica do dialeto galileu (Vermes 1996 p55)

No apecircndice de seu livro ldquoA Religiatildeo de Jesus o Judeurdquo Geza Vermes posta

um resumo da tese de J Jeremias sobre o Abba de Jesus (The Prayers of Jesus de

1967) baseadas em um artigo ldquoAbba natildeo eacute Papairdquo (Abba isnt Daddy) de James

129

Barr Os argumentos de J Jeremias estatildeo expostos da seguinte maneira conforme

transcritos abaixo

a) O termo aramaico eacute ldquouma expressatildeo puramente exclamatoacuteriardquo como em

Pai e natildeo um aspecto enfaacutetico correspondente em inglecircs a um substantivo

acompanhado do artigo definido (= o pai)

b) A origem do Abba se encontra no balbuciar do ldquofalar infantilrdquo A geminaccedilatildeo

ab-ba (ldquoDadaacuterdquo) tem como modelo o chamado mais frequente do bebecirc agrave Im-ma

(ldquoMamardquo)

c) Essa forma de invocaccedilatildeo eacute de tom tatildeo familiar que sua associaccedilatildeo com a

Deidade chocaria os judeus comuns de liacutengua aramaica como ldquodesrespeitosardquo

d) Seu emprego por Jesus era ldquoalgo de novo e inauditordquo

e) Abba no aramaico da Palestina tornou-se uma expressatildeo polivalente As

diversas expressotildees nos Evangelhos em Grego como ldquoo Pairdquo ldquoPairdquo (vocativo) e

tambeacutem ldquomeuteunosso Pairdquo (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)

podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus

Para Vermes se J Jeremias estiver correto isso pode trazer tantas

implicaccedilotildees porque o estilo de Jesus dirigir-se a Deus seria tatildeo peculiar a ponto de

representar um idiossincrasia Vermes prefere entender que J Jeremias

compreendeu mal o Abba de Jesus e ateacute por uma questatildeo de teimosia persistiu

defendo tal tese Ele ainda reafirma que o Abba natildeo era apenas o linguajar infantil

mas poderia ser usado em momentos solenes ou religiosos Vermes cita uma vez

mais James Barr dizendo que ironicamente esse observa ldquoque a teoria de J

Jeremias vinculando Abba agraves crianccedilas considera uma situaccedilatildeo que antedata Jesus

em alguns milecircniosrdquo Para fechar a analogia de Barr Vermes ainda cita-o ldquoComo

Explanaccedilatildeo de Abba nos tempos do Novo Testamento o balbuciar infantil natildeo faz

sentidordquo

A refutaccedilatildeo de Vermes eacute enfaacutetica ou seja explicitamente ele coloca sua visatildeo

teoloacutegica sobre o Abba de Jesus como uma contestaccedilatildeo a todos os argumentos de

J Jeremias Para finalizar Vermes assim resume seu pensamento sobre a teoria de

J Jeremias ldquo[] a teoria de J Jeremias popular ateacute agora natildeo encontra

fundamento filoloacutegico A conclusatildeo literaacuterio-histoacuterica dessa teoria vale dizer que

antes de Jesus os judeus natildeo se dirigiam a Deus como Abba natildeo eacute apenas

incomprovada como tambeacutem implausiacutevelrdquo (Vermes 1995 p163-167)

130

Apoacutes os diversos argumentos contraacuterios a J Jeremias concluiacutemos com

Swidler que fazendo menccedilatildeo de Georg Schelbert observa que aleacutem do termo

abba natildeo havia nenhuma outra palavra a disposiccedilatildeo de Jesus se ele quisesse falar

de Deus ou a Deus como Pai Se essa era a uacutenica forma de Jesus dirigir-se a Deus

entatildeo ela natildeo poderia ter nada de especial como afirma J Jeremias ateacute porque

como mostra Schelbert a Mishnaacute (que significa ensinamento que eacute recitado

oralmente) mostra um relacionamento iacutentimo com Deus como o Pai do Ceacuteu (Swidler

1993 p73-75) Em relaccedilatildeo ao termo abba Barr conclui que eacute razoaacutevel que abba no

tempo de Jesus pertencia a uma linguagem familiar ou coloquial distinto do uso

formal e cerimonioso mas por outro lado tendo em vista o uso do Targum seria

imprudente comparaacute-la a expressatildeo infantil Daddy (papai) O uso do abba era mais

solene podemos dizer que estava mais relacionado ao uso do adulto para com seu

Pai (Barr 1988 p 46)

62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA

LEITURA A PARTIR DA TEOLOGIA FEMINISTA

A figura feminina sempre foi discriminada pelas sociedades patriarcais ao

longo dos seacuteculos da histoacuteria da humanidade Podemos dizer que o cristianismo um

importante movimento de massa a pregar a liberdade e a igualdade entre os homens

e mulheres ldquoNatildeo haacute judeu nem grego natildeo haacute escravo nem livre natildeo haacute homem

nem mulher pois todos voacutes sois um soacute em Cristo Jesusrdquo (Gl 3 28) 69 Eacute comum

ouvirmos que Jesus libertou as mulheres uma vez que em seu ministeacuterio o mestre

da Galileia teve como disciacutepulas vaacuterias mulheres inclusive como jaacute mencionamos

neste trabalho (53) Maria Madalena (cf Lc 8 2 2410)

Elisabeth Schuumlssler Fiorenza referindo-se a Leonard Swidler vai mais aleacutem

quando afirma que Jesus foi um feminista e isso foi primeiramente atestado por um

estudioso homem e natildeo por uma mulher70 Schuumlssler Fiorenza apela para o fato de

Jesus ter tido disciacutepulas e tambeacutem ter violado as leis de pureza (algo que era

69

Swidler refere-se a esse texto de Paulo como uma contestaccedilatildeo a uma oraccedilatildeo rabiacutenica que diz ldquoLouvado seja Deus por natildeo me ter criado gentio Louvado seja Deus por natildeo ter me criado mulher Louvado seja Deus por natildeo ter me criado ignoranterdquo (Swidler 1993 p 101)

70 Basicamente para Swidler feminista eacute a pessoa a favor da igualdade de homens e mulheres ou

seja a pessoa que trata primeiramente a mulher como uma pessoa assim como os homens satildeo tratados (Swidler 1993 p100)

131

contraacuterio aos rabinos judeus) como argumento para fundamentar a tese de um

Jesus feminista (Schuumlssler Fiorenza 2005 p 37)

Contudo para Swidler a atitude feminista era uma exclusividade de Jesus e

natildeo dos evangelistas e suas fontes Para ele a Igreja primitiva tornou-se

rapidamente antifeminista como pode ser visto em textos como ldquo[] estejam as

mulheres caladas nas assembleias pois natildeo lhes eacute permitido tornar a palavra

Devem ficar submissas como diz tambeacutem a Lei (1Cor 14 34)rdquo Swidler ainda cita

outro texto (1Tm 2 11-12) que diz que ldquodurante a instruccedilatildeo a mulher conserve o

silecircncio com toda a submissatildeo Natildeo permito que a mulher ensine ou domine o

homem Que ela conserve o silecircnciordquo Para Swidler a Igreja natildeo soacute se tornou

antifeminista como tambeacutem se tornou misoacutegina uma vez que aleacutem dos textos acima

mencionados jaacute no II seacuteculo Tertuliano refere-se agraves mulheres com as palavras ldquosois

o portatildeo do diabordquo Natildeo bastasse Tertuliano Oriacutegenes afirma que ldquoaquilo que eacute visto

com os olhos do criador eacute masculino e natildeo feminino pois Deus natildeo se curva para

olhar aquilo que eacute feminino e da carnerdquo (Swidler 1993 p106)

Tal afirmaccedilatildeo (Jesus libertou as mulheres) eacute muito bem aceita entre as

teoacutelogas feministas e por todos que defendem essa teoria Para Schuumlssler Fiorenza

Jesus natildeo somente libertou as mulheres da degradaccedilatildeo imposta pela sociedade

judaica patriarcal da antiguidade (apesar dessa tese ser considerada como

historicamente falsa e antijudaica pelas teoacutelogas feministas judias) como tambeacutem o

proacuteprio Jesus era um feminista (Fiorenza 2005 p110)

Conforme Swidler a condiccedilatildeo das mulheres na sociedade contemporacircnea de

Jesus na Palestina era sem duacutevida de inferioridade em relaccedilatildeo aos homens

Segundo Swidler natildeo obstante o fato de ter havido vaacuterias heroiacutenas nas Escrituras

hebraicas natildeo impediu que nos dias de Jesus e ateacute muito tempo depois natildeo fosse

concedido agraves mulheres a permissatildeo de estudar a Toraacute Swidler citando um texto da

Mishnaacute (Sita 34) refere-se a um rabino do seacuteculo I chamado Eliezer que

pronunciou as seguintes palavras referindo-se agraves mulheres ldquoAs palavras da Toraacute

deveriam antes ser queimadas do que confiadas a uma mulher [] todo aquele que

ensina a Toraacute a sua filha eacute como aquele que lhe ensina a lasciacuteviardquo (Swidler 1993

p100-101)

As mulheres no templo de Jerusaleacutem estavam limitadas agrave parte externa ou

seja ficavam no paacutetio das mulheres que estavam cinco degraus abaixo do paacutetio dos

homens Nas sinagogas aleacutem de ficarem separadas dos homens natildeo tinham

132

permissatildeo para ler em voz alta muito menos assumir alguma funccedilatildeo de lideranccedila

Swidler cita Filon contemporacircneo de Jesus que pensava que as mulheres natildeo

deviam sair de casa a uacutenica exceccedilatildeo era para ir agrave sinagoga e preferencialmente

em horaacuterios em que a maioria das pessoas estivessem em casa De uma maneira

geral as mulheres serviam apenas para ter filhos estavam sempre sob a tutela de

um homem que seria o marido ou no caso de viuvez sob a tutela do irmatildeo do

falecido sem contar com o fato de que tinham que se sujeitar a poligamia (ainda que

natildeo muito praticada nos dias de Jesus) eram facilmente repudiadas com a carta de

divoacutercio poreacutem natildeo tinham permissatildeo para se divorciarem Enfim ldquoa condiccedilatildeo das

mulheres na Palestina era aquela dos inferioresrdquo (cf Swidler 1993 p102-104)

A teologia de J Jeremias referente agrave relaccedilatildeo de Deus como Pai nos laacutebios de

Jesus de Nazareacute71 natildeo eacute aceita em algumas correntes teoloacutegicas como por

exemplo pelos defensores da teologia feminista72 Poreacutem quando falamos do

movimento feminista natildeo significa que exista um uacutenico ponto de vista sobre um

mesmo pensamento teoloacutegico Algumas feministas que adotam o pensamento de

reforma da tradiccedilatildeo o qual implica em conservar o que eacute melhor ao inveacutes de

simplesmente imitar as tradiccedilotildees lutam por uma reforma e uma flexibilidade na

linguagem da igreja quando o assunto se refere agrave pessoa de Deus argumentando

que o uso exclusivo da imagem masculina natildeo faz justiccedila agrave imagem biacuteblica de Deus

mas limita o acesso ao entendimento que temos de Deus Para essa corrente

feminista a imagem de Deus natildeo estaacute relacionada a gecircnero visto que Deus pode

ser visto tanto como pai e como matildee segundo Marianne Thompson para uma parte

dessas feministas e ainda para outras portanto a ideia central natildeo eacute descartar a

71 Elisabeth Schuumlssler Fiorenza observa que os livros e artigos sobre ldquoJesus e as mulheresrdquo se

proliferam contudo ela cita Crossan quando este acusa as feministas pela falta de interesse na busca pelo Jesus histoacuterico Crossan pergunta onde estatildeo elas Schuumlssler responde ldquoCrossan natildeo pode reconhecer as afinidades entre seu proacuteprio modelo de reconstruccedilatildeo histoacuterica e o meu modelo feminista (cf Schuumlssler 2005 p 30)

72 Haight coloca que a teologia feminista eacute por muitos comparada agrave teologia da libertaccedilatildeo uma vez

que compartilham de ideais e estrutura formal comum no que diz respeito agrave libertaccedilatildeo e tambeacutem a maioria dos pobres no mundo eacute constituiacuteda de mulheres ldquo[] No que tange agrave loacutegica hermenecircutica da teologia portanto as teoacutelogas feministas podem referir-se a si mesmas como teoacutelogas da libertaccedilatildeo [] Na medida em que o androcentrismo controla o significado de Jesus cristo a cristologia feminista eacute levada a questionar como uma figura masculina de Salvador pode oferecer a salvaccedilatildeo agraves mulheres Em termos mais amplos contudo a cristologia feminista ocupa-se de toda a forma de opressatildeo e de suas inter-relaccedilotildees O Deus mediado por Jesus Cristo coloca em xeque todo poder de dominaccedilatildeo Natildeo era o sexo mas o gecircnero como categoria cultural que tinha primazia e era parte da ordem das coisas O significado de homem e de mulher era determinado pela posiccedilatildeo na hierarquia social e pelo lugar que se ocupava na sociedade natildeo pela genitaacuteliardquo (cf Haight 2003 p37)

133

linguagem de Deus como Pai mas apenas incluir essa com outra variedade de

imagens de Deus (Thompson 2000 p 3)

Para outras feministas no entanto nenhum acordo sobre a questatildeo da

imagem paterna de Deus pode ser atingido facilmente pois tais questotildees natildeo

podem ser tatildeo facilmente resolvidas e as respostas necessaacuterias satildeo muito radicais

pois trariam uma postura revolucionaacuteria para a tradiccedilatildeo Para elas o uso histoacuterico

que a Igreja tem da linguagem exclusivamente masculina de Deus deve ser

inteiramente refeito73 Em vez de buscar as reformas dentro das estruturas atuais da

igreja ou dentro de construccedilotildees teoloacutegicas tradicionais essas feministas oferecem

uma pauta mais radical o que tem implicaccedilotildees natildeo apenas para a linguagem sobre

Deus mas tambeacutem para o carater baacutesico de toda a teologia e feacute cristatilde Algumas

feministas satildeo mais radicais ainda pois explicitamente rejeitam as tradiccedilotildees da feacute

cristatilde afirmando que os textos cristatildeos e a feacute satildeo inevitavelmente e

intoleravelmente patriarcal elas abandonaram o cristianismo por completo

(Thompson 2000 p 4)

Para Thompsom (2000 p 18) a designaccedilatildeo de Deus como Pai natildeo eacute

invenccedilatildeo de Jesus e nem criaccedilatildeo da Igreja primitiva A designaccedilatildeo de Deus como

Pai faz parte de ambos os Testamentos ou como o Pai que eacute o ancestral que daacute a

vida e lega uma heranccedila aos seus filhos ou como o Pai que ama e cuida dos seus

filhos ou ainda como o Pai que eacute uma figura de autoridade a quem se deve

obediecircncia e honra Thompsom afirma que Jesus dirigiu-se a Deus como Pai em

primeira instacircncia natildeo como um mero testemunho de sua proacutepria experiecircncia de

Deus mas ao inveacutes disso pelas suas proacuteprias convicccedilotildees de Deus como renovador

e restaurador de Israel ou seja isso natildeo era fruto de uma experiecircncia privada mas

assunto de uma missatildeo puacuteblica Essa afirmaccedilatildeo de Thompson natildeo se coaduna com

o pensamento de J Jeremias para quem a relaccedilatildeo de Jesus com o Pai era iacutentima e

pessoal

Nesse sentido Mary Rose DAngelo ao analisar o texto do Evangelho de

Marcos 1436 quando Jesus invocava o Pai (Ἀββᾶ ὁ πατήρ) ela observa que a

73

Elisabeth Schuumlssler Fiorenza em seu livro Jesus e a poliacutetica da interpretaccedilatildeo coloca uma teoria polecircmica ou pelo menos curiosa Segundo Schuumlssler os antropoacutelogos tecircm assinalado que nem todas as culturas e liacutenguas conhecem dois sexosgecircneros e que mesmo em culturas ocidentais isso eacute coisa da modernidade ldquoDurante milhares de anos considerava-se comum que as mulheres tivessem o mesmo sexo e os mesmos oacutergatildeos genitais que os homens estando a diferenccedila no fato de se acharem no interior do corpo ao passo que os dos homens estavam no exterior A vagina era entendida como um pecircnis interior os laacutebios como prepuacutecio o uacutetero como saco escrotal e os ovaacuterios como testiacuteculosrdquo (cf Schuumlssler 2005 p9)

134

oraccedilatildeo contida nesse texto pode ser apenas redacional visto que tal oraccedilatildeo ocorreu

no cenaacuterio do Getsecircmani onde Jesus estava naquele momento sem os seus

disciacutepulos portanto eles natildeo estavam laacute para ouvir e descrever o momento de sua

agonia Ela concorda com a teoria de que a narrativa desse cenaacuterio poderia ser

apenas um soliloacutequio dramaacutetico de Jesus ou entatildeo uma repeticcedilatildeo da oraccedilatildeo de

Joseph (4Q372 1 23-24) onde ele suplica para que Deus natildeo lhe abandone Para

D`Angelo a narrativa de Marcos tende muito para o lado emotivo procurando

dessa forma colocar Jesus como o verdadeiro Filho de Deus e grande maacutertir da

histoacuteria do judaiacutesmo conforme os livros Sabedoria de Salomatildeo e 3 Macabeus (D`

Angelo 1992b p159) Em outro artigo (Abba and ldquoFatherrdquo Imperial Theology and

the Jesus Traditions) D Angelo reafirma seu argumento sobre o cenaacuterio do

Getsecircmani dizendo ldquoEsta eacute uma cena da revelaccedilatildeo entre Jesus e leitor os

disciacutepulos estatildeo laacute para relatar a agonia de Jesus Assim a atribuiccedilatildeo de abba a

Jesus natildeo tem muacuteltipla atestaccedilatildeo Na verdade ocorre apenas em uma cena que

quase certamente deriva da atividade literaacuteria de Marcosrdquo (D` Angelo 1992a p614-

615)

Segundo D Angelo o uso do Abba pela Igreja primitiva natildeo eacute uma heranccedila dos

ensinamentos de Jesus como acreditam alguns teoacutelogos De acordo com essa

autora o uso do Abba na Igreja primitiva era mais uma questatildeo de ecircxtase provocada

por uma accedilatildeo do Espiacuterito Santo do que uma referecircncia agraves palavras ditas por Jesus

Para a autora se o Abba usado nas igrejas tivesse uma ligaccedilatildeo direta com Jesus

entatildeo seriamos obrigados a aceitar que outras palavras de origem aramaica como

Maranatha tambeacutem seriam provenientes dos discursos do mestre (D Angelo 1992a

p 615)

Um outro argumento defendido por D` Angelo eacute que o uso da expressatildeo ldquoAbba

Pairdquo no Evangelho de Marcos eacute anti-imperialista visto que o Imperador de Roma

considerava-se o pai da paacutetria (parens patriae pater patriae) preferindo ser

reconhecido com o tiacutetulo de pai ao tiacutetulo de rei designaccedilatildeo esta que natildeo soava bem

aos ouvidos do povo romano (D` Angelo 1992a p623-630) De fato de acordo com

DAngelo foi concedido a Juacutelio Cesar ainda em vida o tiacutetulo de ldquopaterldquo (pai) o qual

buscava estabelecer uma relaccedilatildeo de devoccedilatildeo (pietas) entre ele e o povo romano

Isso se deve ao fato que o uso de pater subentende o impeacuterio como uma grande

famiacutelia na qual o imperador funciona como um paterfamilias e cuja autoridade eacute

baseada em sua habilidade de reger todo o povo romano como seus clientes Ainda

135

seguindo com essa visatildeo imperialista observa-se que Augusto adquiriu oficialmente

o tiacutetulo pater patriae no ano 2 aC

No intuito de descrever o caraacuteter dos imperadores DAngelo aponta que

Cassius Dio o qual acreditava que os tiacutetulos supracitados representavam mais

afeiccedilatildeo do que autoridade tratou augustus e pater como duas denominaccedilotildees

atraveacutes das quais os imperadores primeiro permitiam a si mesmos serem

distinguidos do resto dos cidadatildeos substituindo o tiacutetulo ldquoreirdquo por tais designaccedilotildees

cujas essecircncias soariam de maneira menos ofensiva aos ouvidos dos romanos De

acordo com Dio o termo pater concorda com a ideia que o Imperador tem a mesma

autoridade que um pai tem sobre seus filhos escravo e outros sujeitos

Por outro lado dois filoacutesofos estoicos do primeiro e segundo seacuteculos nos

ajudam a entender como o tiacutetulo pai concedido ao Imperador poderia sofrer uma

reaccedilatildeo com o pensamento teoloacutegico da eacutepoca Para Dio Crisoacutestomo ldquoDeus como

pai racionaliza o governo imperial e convida-o a adotar um coacutedigo de eacutetica de

clemecircncia e de responsabilidaderdquo ao descrever que o bom rei eacute aquele que prefere a

labuta aos prazeres e as riquezas Tal rei prefere o tiacutetulo ldquopairdquo ao referir-se agrave sua

capacidade de provisatildeo Jaacute Epiacuteteto ldquousa a paternidade de Deus para oferecer uma

dignidade alternativa para aqueles que natildeo tecircm acesso ao poder dentro da ordem

imperialrdquo Esses dois autores satildeo importantes para o cristianismo primitivo e para o

judaiacutesmo natildeo pela influecircncia que exerceram sobre eles mas porque respondem as

mesmas realidades poliacuteticas

Um outro argumento de DAngelo com relaccedilatildeo ao uso de Abba por Jesus eacute

que o mesmo natildeo pode ser explicado apenas como uma relaccedilatildeo afetiva entre pai e

filho mas tambeacutem reflete a praacutetica carismaacutetica da comunidade na qual Marcos

estava inserido assim como ocorreu nas igrejas de origem grega da Galaacutecia e em

Roma (Gl 46 Rm 816) onde o uso da palavra ldquoAbbardquo eacute fruto da accedilatildeo do Espiacuterito

Santo

D`Angelo justifica essa tese a partir do fato que segundo ela J Jeremias

tomou como base em seus estudos apenas os textos provenientes de oraccedilotildees e

ainda excluiu textos em grego os quais ele considerou serem oraccedilotildees feitas pela

comunidade e natildeo como fruto de uma accedilatildeo do indiviacuteduo (D`Angelo 1992b p151)

Para dar suporte a esse argumento D`Angelo faz referecircncia ao texto de 4Q372 1

originalmente escrito em hebraico no qual Joseph invoca a Deus chamando-o de

meu Pai ldquoMeu Pai e meu Deus natildeo me abandone nas matildeos das naccedilotildees faccedila

136

justiccedila por mim o aflito e pobre pereciacutevel Vocecirc natildeo precisa de nenhuma pessoa ou

naccedilatildeo para lhe ajudar seu dedo eacute maior e mais forte do que qualquer coisa no

mundordquo (Vermes 2004 p566) Ela ainda cita outros textos onde Deus eacute invocado

como Pai (3 Mac 6 3-4 78 Sab 143 1 QH 935)

Embora alguns desses textos tenham sido escritos em grego quando lidos no

contexto de 4Q372 1 e 4Q460 5 DAngelo observa os textos hebraicos e gregos

mostram que era uma praacutetica comum tanto da comunidade quanto do indiviacuteduo

dirigir-se a Deus em oraccedilotildees chamando-o de Pai (D`Angelo 1992b p 152) Dessa

forma ela entende que o conceito de Deus como Pai sempre esteve presente no

judaiacutesmo antigo influenciando toda a literatura judaica da eacutepoca (DAngelo 1992a

618)

Face aos argumentos acima expostos D Angelo conclui que a originalidade

do uso do Abba natildeo pode ser atribuiacutedo a Jesus com toda certeza e mais ainda

segundo ela seria menos provaacutevel que Jesus usasse o termo pai numa linguagem

familiar do que em resistecircncia agrave ordem do Impeacuterio romano

Finalmente considerando os argumentos apresentados a partir da

interpretaccedilatildeo feminista Thompson conclui que tanto Jesus como a Igreja primitiva

natildeo deram origem ao conceito de Deus como Pai Aleacutem disso apesar das

caracteriacutesticas do Pai no Israel antigo serem utilizadas para falar de Deus como Pai

elas nunca estiveram ligadas a uma essecircncia masculina de Deus mas servem como

exemplo de feacute misericoacuterdia justiccedila humildade bem como responsabilidade

individual e corporativa e obediecircncia a Deus para a comunidade (Thompson 2000

p 19)

137

7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Naquela noite em sonhos Joseacute teve um aviso O Evangelista natildeo diz em que cidade ou lugar a famiacutelia se encontrava Natildeo devia ser do lado norte e talvez fosse mesmo nas montanhas do sul fora do alcance das batidas policiais de Herodes Suponhamos que fosse na estrada do Heacutebron Com a cabeccedila reclinada sobre uma pedra o carpinteiro adormece E eis que o anjo do Senhor (aquele mesmo que lhe confiara a guarda de Jesus) lhe diz - Levanta-te e toma o menino e sua matildee e foge para o Egito e demora-te laacute ateacute que eu diga porque Herodes haacute de procurar o menino para o matar Joseacute desperta Sobre os montes luzem os primeiros alvores da madrugada Prepara o alforje avisa Maria para que tambeacutem se prepare porque longa eacute a viagem [] Joseacute sela o jumento acomoda Maria e o Menino sobre o animal Toma o bordatildeo E parte A viagem prolonga-se por muitos dias pela Idumeacuteia pelas montanhas de Sin pelo deserto de Sur Uma tarde sobre as colinas a cavaleiro do Nilo avistam as piracircmides de Miquerinos de Queacutefren e de Queops grandiosas e silenciosas no ar trecircmulo de mormaccedilo Junto agrave piracircmide de Miquerinos olhando para o abismo do ceacuteu e para a amplitude do deserto uma cabeccedila gigantesca de pedra tem indefiniacutevel indecifraacutevel expressatildeo Eacute a grande esfinge [] Os egiacutepcios viam naquele rochedo a imagem humana do sol Os gregos viam naquela imagem o monstro proponente de problemas insoluacuteveis (Salgado 1985 p67-69)

Em tom poeacutetico Plinio Salgado narra a histoacuteria da fuga do menino Jesus e

seus pais para o Egito conforme o texto do Evangelho de Mateus que diz ldquo[] eis

que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonhos a Joseacute e lhe disse Levanta-te toma

o menino e sua matildee e foge para o Egitordquo (Mt 213) Salgado usa o mito da esfinge74

para relacionar com o mito de Eacutedipo onde o enigma eacute decifrado pelo personagem

Eacutedipo75 Para Salgado Eacutedipo decifrou a Esfinge mas natildeo decifrou o homem que

continua nas trevas

A pergunta do monstro na estrada de Tebas refere-se ao homem ldquoQual eacute o animal que pela manhatilde anda com quatro pernas ao meio-dia com duas e agrave

74

Segundo Plinio Salgado o mito da Esfinge rezava que enquanto ser vivente misto de leatildeo e de mulher a Esfinge andava pelas estradas de Tebas devorando os viajantes que eram incapazes de responder as suas perguntas enigmaacuteticas Contudo o monstro morreria quando algueacutem decifrasse seu enigma

75 O mito de Eacutedipo pode ser visto com detalhes no claacutessico Antiacutegona de Soacutefocles

138

tarde com trecircsrdquo Eacutedipo responde ldquoEacute o homemrdquo e respondendo revela que toda a preocupaccedilatildeo da Esfinge eacute o gecircnero humano Decifrar a Esfinge eacute a preocupaccedilatildeo do homem Decifrar o homem eacute a preocupaccedilatildeo da Esfinge (Salgado 1985 p67-69)

Conforme Salgado a trageacutedia de Eacutedipo eacute a trageacutedia do homem Somente

Jesus decifraraacute a ldquoEsfinge-Homem e iluminaraacute todo o universordquo

A histoacuteria da humanidade eacute repleta de trageacutedias desde as suas origens Jaacute

nos primeiros capiacutetulos do Gecircnesis vemos Abel sendo viacutetima de seu irmatildeo Caim 76

Diante de tantas cataacutestrofes o homem procura refuacutegio em um ser sobrenatural que

possa amenizar seu sofrimento e dar-lhe alguma explicaccedilatildeo para o porquecirc de tantos

desalentos nesta vida

A relaccedilatildeo do ser humano com o Ser sobrenatural faz parte da cultura de todos

os povos antigos como vimos no primeiro capiacutetulo deste trabalho Isso nos mostra o

anseio do ser humano em busca do seu criador Observamos que para os povos

antigos Deus era visto como um ancestral divino ou seja o homem era visto como

descendente da divindade Essa relaccedilatildeo entre o homem primitivo e a deidade nos

povos antigos era sempre marcada por sangue violecircncia guerra entre os deuses

ateacute o surgimento do homem como vimos no mito sumeacuterio babilocircnico em que o

homem proveacutem do sangue de um deus decaiacutedo chamado Kingu

Em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem na narrativa do Gecircnesis verificamos que o

proacuteprio Deus eacute quem modela e cria o homem a partir do barro (argila) O homem

entatildeo recebe a vida atraveacutes do sopro divino Essa relaccedilatildeo tatildeo proacutexima entre criatura

e criador eacute descrita nas Escrituras de uma forma progressiva desde o Gecircnesis ateacute

os escritos neotestamentaacuterios Agrave medida que Deus se revela ao homem este se

aproxima mais dele Aos patriarcas Deus eacute o El Shaday (Todo Poderoso) mas jaacute a

Moiseacutes ele revela o seu proacuteprio Nome Ele eacute o ldquoEu Sourdquo o Yahweh

Mesmo Yahweh sendo um Deus proacuteximo Ele ainda eacute visto no Antigo

Testamento como figura de um Senhor Criador o Todo Poderoso que luta e peleja

por Israel mas que ao mesmo tempo em que defende seu povo pune-os e os

entrega nas matildeos dos inimigos quando esses se desviam dos seus mandamentos

J Jeremias sabiamente observa que no Antigo Testamento a relaccedilatildeo de Israel com

Deus natildeo eacute vista como o relacionamento de pai para filho principalmente por parte

76

Cf Gn 4 1-16

139

do indiviacuteduo Deus sempre se apresenta como o Pai do rei ou entatildeo como o Pai da

naccedilatildeo Mesmo que Pai seja uma das muitas metaacuteforas para Deus como afirma

Goshen-Gottstein dificilmente podemos contestar a tese de J Jeremias uma vez

que uma clara invocaccedilatildeo de Deus como Pai feita por algum indiviacuteduo no Antigo

Testamento eacute difiacutecil de ser encontrada

Em relaccedilatildeo ao Novo Testamento observamos que Jesus que conviveu em

uma sociedade muito pobre carregada de preconceitos viu na expressatildeo Abba a

forma por excelecircncia para projetar nela o modelo de uma verdadeira e iacutentima

relaccedilatildeo entre filho e pai O fato de Jesus ter sofrido preconceitos como em sua

infacircncia adolescecircncia e ateacute na vida adulta por causa da sua filiaccedilatildeo humana natildeo o

impediu de demonstrar o quanto a sua relaccedilatildeo com o Pai divino era estreita e isso

estava acima de todos os preconceitos concebidos dentro de uma sociedade cheia

de costumes rigidamente observados a ponto de natildeo mais compreenderem o

verdadeiro sentido do amor a Deus e ao proacuteximo conforme era a verdadeira

vontade de Deus expressa nos ensinamentos do mestre da Galileia

Embora Joseacute tenha assumido a paternidade de Jesus isso natildeo foi suficiente

para impedir o preconceito contra ele em relaccedilatildeo a sua filiaccedilatildeo humana Contudo

quando Bruce Chilton potildee a questatildeo relacionada agrave possibilidade de Jesus ter sido

considerado um Mamzer a partir da interpretaccedilatildeo do texto do Evangelho de Joatildeo 8

40-41 onde os Judeus fazem a seguinte afirmaccedilatildeo a Jesus ldquo[] natildeo nascemos da

prostituiccedilatildeo temos um soacute pai Deusrdquo podemos tambeacutem olhar esse texto a partir de

uma interpretaccedilatildeo de uma Cristologia alta ou seja aqui o debate entre Jesus e os

judeus tem como ponto principal a filiaccedilatildeo divina onde Jesus se coloca como o

Verbo divino preexistente Poreacutem eacute bem verdade que isso natildeo anula o pensamento

de Chilton em relaccedilatildeo agrave possiacutevel discriminaccedilatildeo sofrida por Jesus levando em

consideraccedilatildeo o contexto a eacutepoca a cultura e o ambiente social em que Jesus viveu

durante o periacuteodo da infacircncia ateacute a vida adulta

Aleacutem disso podemos dizer com Martins Terra que a vida de Cristo eacute a

Revelaccedilatildeo do Pai que pode ser demonstrada nas palavras no silecircncio e nos

sofrimentos de Jesus Martins Terra observa que essa relaccedilatildeo eacute plena de intimidade

como pode ser visto nas palavras do proacuteprio Mestre ldquoAquele que me viu viu o Pairdquo

(Jo 149) e da mesma forma o Pai tambeacutem pode dizer assim do Filho ldquoEste eacute o

140

meu Filho muito amado ouvi-o (Lc 935)rdquo Notamos aqui que a relaccedilatildeo de Jesus

com o Pai eacute desde a eternidade onde o Verbo divino jaacute estava presente com o Pai

na criaccedilatildeo de todas as coisas (Martins Terra 2009 p283-284)

Para Martins Terra assim como para J Jeremias o Abba de Jesus eacute o

modelo da perfeita relaccedilatildeo dos filhos de Deus com o Pai do ceacuteu Assim como Jesus

relacionou-se com o Pai divino seus disciacutepulos tambeacutem o poderatildeo desde que se

aproximem e ldquoamem a Deus acima de todas as coisas e o proacuteximo como a si

mesmordquo Eacute na oraccedilatildeo do Pai Nosso que Jesus ensina como os disciacutepulos devem

orar em uma estreita ligaccedilatildeo com o Abba conforme nos descreve Martins Terra

[] Os disciacutepulos ficam impressionados com a oraccedilatildeo de Jesus Ele chamava a Deus de Aba (Mc 14 36) que natildeo eacute um termo usado nas oraccedilotildees judaicas Aba eacute um diminutivo aramaico que significa ldquopapairdquo Eacute a expressatildeo de uma crianccedila dirigindo-se a seu progenitor Jesus natildeo pode desde o inicio revelar o misteacuterio da Santiacutessima Trindade e de sua pessoa divina Esse misteacuterio natildeo tinha sido revelado no AT Foi invocando a Deus como Aba ldquomeu Pairdquo que Jesus foi levantando aos poucos o veacuteu que ocultava o misteacuterio da trindade e do seu relacionamento filial uacutenico com o Pai (Martins Terra 2009 p283-284)

Aleacutem disso de acordo com James D G Dunn podemos dizer com confianccedila

que Jesus experimentou uma iacutentima relaccedilatildeo com Deus expressa atraveacutes da oraccedilatildeo

Ele se relacionou com Deus caracteristicamente como Filho e Pai e o sentido dessa

relaccedilatildeo com Deus era tatildeo real tatildeo amorosa e tatildeo atraente que Jesus sempre se

dirigiu a Deus dessa maneira chamando-o de Pai ldquoAbba foi o grito que veio mais

naturalmente aos laacutebios de Jesusrdquo (Dunn 1997 p26)

Segundo J Jeremias para compreendermos o Abba como a ipsissima vox de

Jesus eacute preciso observar a origem de sua liacutengua materna Conforme observamos

no decorrer desta pesquisa haacute alguns pesquisadores que defendem que a liacutengua

corrente nos dias de Jesus era o hebraico e por sinal tambeacutem falada por Jesus

Esse argumento natildeo eacute seguido pela maioria dos especialistas do Novo Testamento

bem como por J Jeremias A liacutengua falada por Jesus era do ldquoramo ocidental da

famiacutelia linguiacutestica aramaicardquo J Jeremias para embasar sua tese menciona

respeitaacuteveis nomes como J Wellhausen Jouumlon Matthew Black e principalmente G

Dalman (Jeremias 2008 p32-33) que ldquoapresentou a prova baacutesica para este fatordquo

Tendo Dalman ainda como referecircncia J Jeremias afirma que natildeo eacute possiacutevel mais

141

duvidar que o aramaico ou para ser mais preciso ldquoo dialeto galileu do aramaico

ocidentalrdquo era a liacutengua materna de Jesus

As evidecircncias aramaicas satildeo evidentes nos ditos de Jesus por outro lado

praticamente natildeo se encontra palavras em hebraico ditas por ele nem mesmo o

ldquoAmenrdquo ou ldquoEliacuterdquo uma vez que essas palavras foram absorvidas pelo aramaico

(Jeremias 2008 p36) J Jeremias admite que em alguns poucos casos

encontramos palavras hebraicas nos laacutebios de Jesus mas sempre em situaccedilotildees

solenes como as palavras proferidas na uacuteltima ceia em liacutengua sacra

A importacircncia do aramaico como a primeira liacutengua de Jesus encontra-se na

possibilidade de nos aproximarmos o quanto possiacutevel do modo de falar do mestre

ou seja voltarmos ldquoagraves caracteriacutesticas da dicccedilatildeo de Jesus que natildeo possuem

nenhuma analogia na literatura da eacutepoca e que por isso podem ser consideradas

como marcas da ipsissima vox de Jesusrdquo (cf Jeremias 2008 p 68-79) Entre as

particularidades de Jesus concernentes agrave fala encontramos as seguintes

peculiaridades conforme J Jeremias

1 - As paraacutebolas de Jesus satildeo exclusividade dele natildeo encontradas em toda a

literatura judaica do Antigo ou do Novo Testamento quer canocircnica ou apoacutecrifa Nas

paraacutebolas de Jesus natildeo se encontra nenhuma faacutebula ou seja ele nunca coloca

uma videira ou figueira para falar Suas paraacutebolas (mesmo contendo metaacuteforas do

Antigo Testamento) tinham por maior finalidade atingir o coraccedilatildeo pulsante do ouvinte

e tratar de assuntos relacionados ao dia-a-dia da vida do ser humano

2 - Os ditos enigmaacuteticos como o proferido sobre Joatildeo Batista ldquoo maior entre

os nascidos de mulher eacute ao mesmo tempo o menor no reino de Deusrdquo (Mt11 11)

eram incomuns nos dias de Jesus seja entre os mestres ou ateacute mesmo dos

primeiros cristatildeos que natildeo inventaram tais ditos mas apenas os tornaram mais

evidentes

3 ndash A expressatildeo ldquoreino de Deusrdquo eacute escassa na literatura judaica antiga

recebendo um aumento apenas na literatura rabiacutenica Contudo nos Evangelhos natildeo

soacute o aumento mas a forma que Jesus usa as expressotildees relacionadas ao reino de

Deus satildeo profundamente marcantes para se caracterizar como a ipsissima vox de

Jesus conforme encontramos em textos como Mateus 519 11 12 Marcos 115

Lucas 112 1231 1721 etc

142

4 ndash O termo Ameacutem como jaacute foi mencionado nesta pesquisa (54) no Antigo

Testamento era usado como foacutermula solene para confirmar ldquouma palavra de benccedilatildeo

maldiccedilatildeo ou desejordquo Nos laacutebios de Jesus o termo eacute usado para testificar as

proacuteprias palavras do falante e natildeo de outrem J Jeremias conclui sobre o ameacutem

com as seguintes palavras ldquoA novidade desse uso linguiacutestico sua estrita restriccedilatildeo

agraves palavras de Jesus e o testemunho unacircnime de todas as camadas da tradiccedilatildeo

evidenciam que nos deparamos com uma inovaccedilatildeo linguiacutestica nos laacutebios de Jesusrdquo

5 ndash E por uacuteltimo temos o Abba proferido por Jesus Abba eacute a mais importante

palavra pronunciada por Jesus quando invocava a Deus com o Pai eacute o modo

preferido de Jesus para referir-se ao Pai Dificilmente poderiacuteamos interpretar o Abba

de Jesus como faz Malina comentando o Abba natildeo eacute paizinho de James Barr

Como tem sido demonstrado por James Barr (1988) a palavra aramaica Abba natildeo significa ldquopaizinhordquo como no hebraico moderno Tanto na traduccedilatildeo do Novo Testamento (Abba = ho pater Mc 14 36 Rm 815 Gl46) quanto de honra No patriarcado ele implica tambeacutem distacircncia Deus natildeo eacute um paizinho mas um patrono Na religiatildeo poliacutetica pregada por Jesus o deus de Israel eacute o patrono de Israel (cf Malina 2004 p145)

Compreende-se portanto que o Abba proferido por Jesus eacute ipsissima vox

Julgar J Jeremias alegando que ele considerou o linguajar de Jesus infantil natildeo eacute

cabiacutevel dentro do contexto de toda a sua teologia J Jeremias defende-se dessa

acusaccedilatildeo que a princiacutepio ateacute poderia ser justa uma vez que ele admite que jaacute

chegou a acreditar que Jesus tenha assumido a linguagem das criancinhas quando

se dirigia a Deus Pai como ele mesmo admite ldquoeu tambeacutem acreditei nissordquo

contudo agora natildeo mais jaacute que nas proacuteprias palavras desse teoacutelogo ele assim

admite ldquoa constataccedilatildeo de que jaacute desde os tempos preacute-cristatildeos os filhos e filhas

adultos se dirigiam a seus pais chamando-os de Abba proiacutebe esta limitaccedilatildeordquo

(Jeremias 2008 p121)

Portanto no Abba de Jesus natildeo haacute espaccedilos para patriarcados exclusivistas

uma vez que o proacuteprio ldquoFilho de Deusrdquo na sua condiccedilatildeo de homem acolheu os

pobres religiosos doentes e marginalizados pela sociedade cobradores de

impostos e tambeacutem acolheu o que a sociedade machista da eacutepoca mais discriminou

as mulheres Talvez seja uma precipitaccedilatildeo eliminar a linguagem metafoacuterica da

palavra Pai ou mesmo deixar de observar nela o conceito anti-imperialista ou ateacute

mesmo a patronagem No entanto natildeo podemos deixar de priorizar que para Jesus

143

Abba era uma palavra sagrada era ldquoa revelaccedilatildeo Deus porque Deus se tinha dado a

conhecer a ele como seu Pairdquo (Mt 11 27) um ldquoPairdquo acolhedor que quis ajuntar os

seus filhos como a galinha ajunta os seus os seus pintos debaixo das suas asas (cf

Lucas 1334)

A paternidade de Deus conforme J Jeremias natildeo eacute algo natural tambeacutem

natildeo eacute uma posse de todos os seres humanos mas reserva-se apenas aos

disciacutepulos uma vez que Jesus nunca dirigiu a expressatildeo ldquovosso Pairdquo a algueacutem que

estivesse fora do rol dos seus seguidores A filiaccedilatildeo faz parte do reino (basileia) de

Deus Uma das exigecircncias para fazer parte de tal reino eacute tornar-se como uma

crianccedila (Mt 183) Essa filiaccedilatildeo eacute escatoloacutegica eacute um dom salviacutefico de Deus (J

Jeremias 2008 p 271-273)

O Pai apresentado por Jesus eacute bom e cuida dos seus lsquopequeninosrsquo jaacute que

ele sabe do que eles realmente precisam (Mt 6 8 32) A invocaccedilatildeo de Deus como

Abba eacute mais forte do que todas as adversidades e anguacutestias mesmo que Satatilde

ldquoqueira peneirar o disciacutepulordquo (Lc 22 31) o Pai do ceacuteu ldquoeacute mais forte do que todos os

problemas enigmas e anguacutestias e sabe do que precisam os filhos do reino (J

Jeremias 2008 p276) O ponto central de toda essa exposiccedilatildeo sobre o Abba

consiste no ldquovoltar a ser como uma crianccedilardquo O significado disso estaacute em tornar-se

dependente do Pai voltar para os braccedilos do Pai (cf Lc 15 11-32) depositar total

confianccedila nele enfim resumimos isso nas palavras de J Jeremias ldquovoltar a ser

crianccedilardquo significa reaprender a dizer Abba (J Jeremias 2008 p 238) como diz J

Jeremias ldquo[] Abba eacute percebido como um grande privileacutegiordquo Ter a coragem de

chamar Deus de Pai proveacutem da conscientizaccedilatildeo da filiaccedilatildeo satildeo os filhos que podem

dizer Abbardquo (J Jeremias 2008 p293)

Jesus de Nazareacute o Filho de Deus o homem que dividiu a histoacuteria em antes e

depois dele mudou os rumos da humanidade para sempre Amado e odiado

apregoado e perseguido mas nunca esquecido Verificamos ao longo deste trabalho

as mais variadas teorias sobre ele ora como um mago um judeu marginal um

profeta um bastardo um judeu praticante ou apenas uma figura lendaacuteria

embelezada por seus seguidores Schuumlssler Fiorenza relata uma histoacuteria rabiacutenica

em que Moiseacutes visita o rabino Akiva Ao ouvir os infindaacuteveis discursos sobre a Toraacute

Moiseacutes teria perguntado ldquoquem escrevera aquelas coisas grandiosas que ele jamais

144

tomara conhecimentordquo Schuumlssler Fiorenza (2005 p1) relacionando a histoacuteria

rabiacutenica sobre a Toraacute com as milhares escritas sobre Jesus ela levanta a seguinte

questatildeo ldquoSe Jesus tal como Moiseacutes voltasse a terra lesse todas as suas biografias

e frequentasse o Jesus Seminar ou fosse agrave reuniatildeo anual da Society of Biblical

Literature tambeacutem se maravilharia e perguntaria tomado de assombro Quem eacute

essa pessoa de quem estatildeo falandordquo

A busca pelo Jesus da histoacuteria levou a tantos extremos mas com certeza

acrescentou inuacutemeros fatos ou ateacute mesmo suposiccedilotildees que enriqueceram o

conhecimento que temos hoje sobre Jesus e os Evangelhos Eacute inegaacutevel o fato de

que os Evangelhos natildeo satildeo histoacuteria no sentido moderno e que os disciacutepulos natildeo

tinham a mesma pretensatildeo ou necessidade de relatar os fatos em detalhes visto

que viveram em um mundo cultura e eacutepoca totalmente diferente da nossa cultura

ocidental Portanto quanto mais perto quisermos chegar do Jesus humano mais

perto devemos nos aproximar da cultura do seacuteculo I

Sobre o divisor de aacuteguas entre J Jeremias e Bultmann ou seja se devemos

buscar pelo Jesus da histoacuteria ou pelo Cristo querigmaacutetico nada melhor do que

concluir com as palavras do proacuteprio J Jeremias

A boa nova sobre Jesus e o testemunho da feacute da igreja primitiva estatildeo indissoluvelmente ligados Natildeo podemos isolar nenhuma dessas magnitudes Pois o evangelho de Jesus se converte em histoacuteria morta sem o testemunho de feacute da igreja (a qual estaacute transmitindo sem cessar esse evangelho e o estaacute confessando e testemunhando sempre novamente) Sem Jesus e seu evangelho a igreja natildeo pregava mais que uma ideia um teorema Quem isola a pregaccedilatildeo de Jesus termina no ebionismo Quem isola o querigma da igreja primitiva termina no docetismo (Jeremias 2006 p 42)

Portanto descrever sobre Jesus realmente natildeo eacute tarefa faacutecil como parece

ser Como afirmar que ele era analfabeto ou entatildeo um rabi letrado da Galileia As

evidecircncias internas como vimos levam-nos a pensar em um homem que escrevia

lia e interpretava as Escrituras Por outro lado como nos mostra Crossan as

evidecircncias externas levam-nos a pensar em um camponecircs sofredor e iletrado como

a maioria dos galileus ou entatildeo dos judeus subjugados ao terriacutevel e impiedoso

Impeacuterio romano principalmente a Galileia diretamente afetada pelo deacutespota

Herodes Antipas

145

O importante eacute que Jesus com ou sem instruccedilatildeo douto ou indouto

conseguiu com a graccedila do Pai dos Ceacuteus deixar aos homens de todas as eacutepocas o

exemplo de um servo sofredor de amor ao proacuteximo de renuacutencia e acima de tudo

de um homem que cumpriu com toda a vontade e propoacutesitos de Deus Pai para a

salvaccedilatildeo da humanidade O apoacutestolo Joatildeo o descreveu como o Verbo o Logos

preexistente que existe antes de todas as coisas uma vez que as mesmas foram

criadas por ele

146

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Page 5: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2020. 3. 10. · segundo Joachim Jeremias. Para isso, realizamos o estudo do Jesus histórico e seu contexto social,

RESUMO

O objetivo deste trabalho eacute levar-nos agrave compreensatildeo da relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo Joachim Jeremias Para isso realizamos o estudo do Jesus histoacuterico e seu contexto social poliacutetico e religioso bem como a visatildeo que os povos antigos incluindo o Israel do Antigo Testamento tinham de Deus Por fim visotildees contraacuterias agrave interpretaccedilatildeo de J Jeremias satildeo apresentadas As diversas teorias que os homens tecircm da paternidade divina chamam agrave nossa atenccedilatildeo para a incessante busca da humanidade para identificar-se com o Criador especificamente com a figura de um Deus Pai No entanto nesta pesquisa observamos que mesmo no judaiacutesmo onde natildeo encontramos a antiga imagem de uma deusa matildee observamos a figura de um Deus Pai com afetos e sentimentos maternos Para J Jeremias eacute com Jesus que o relacionamento do humano com o Pai divino atinge seu aacutepice atraveacutes da magna expressatildeo ldquoAbba Pai Segundo este autor Jesus de um balbucio das criancinhas teria tornado o Abba Pai uma expressatildeo sagrada entre os seus disciacutepulos a ponto de posteriormente ela ser absorvida pelas comunidades cristatildes primitivas como a forma de comunicaccedilatildeo do Espiacuterito para testificar no interior do disciacutepulo que este agora eacute tambeacutem filho de Deus A teoria de que o Abba natildeo era apenas um balbucio infantil ou muito menos um termo sagrado eacute contestada por correntes teoloacutegicas judaicas e feministas que veem os argumentos de J Jeremias como infundados ou repletos de exageros No entanto ao final da pesquisa procuramos mostrar que mesmo diante de tais contestaccedilotildees a paternidade divina proclamada por Jesus natildeo eacute natural ou seja uma posse de todos os seres humanos mas exclusividade dele e dos seus disciacutepulos uma vez que a filiaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica do reino de Deus e soacute os filhos do reino eacute quem podem usufruir de tal privileacutegio e dirigir-se a Deus invocando-o como o Abba Pai Jesus de Nazareacute nesta pesquisa eacute o exemplo a ser seguido no tocante agrave humildade e sofrimento numa sociedade profundamente marcada pelo preconceito e desigualdade social Compreendecirc-lo e segui-lo na sua humanidade eacute um grande passo para aproximar-se dele como o Cristo poacutes-pascal onde a revelaccedilatildeo do divino ao humano se concretiza com toda a plenitude Palavras-chave Jesus histoacuterico Paternidade divina

ABSTRACT

This work aims to understand the relationship between Jesus and God the Father according to Joachim Jeremias For this we studied the historical Jesus and his social political and religious context as well the ancient people view of God including the view of Israel from Old Testament Finally views that are opposed to Jeremias are presented The various theories that men have on the fatherhood of God call our attention to the relentless pursuit of humanity to identify with the Creator specifically with a figure of God the Father However in this study we observed that even in Judaism where it cannot find the ancient image of a mother goddess we see a picture of a God Father with affection and maternal feelings For J Jeremias it is in Jesus that the relationship of the human with the divine Father reaches its peak through the magna term Abba Father According to this author Jesus through a babble of little children would have made the Abba Father a sacred expression among his disciples and He subsequently extent it in order to being absorbed by the early Christian communities as a way of communicating of the Spirit to testify within the disciple that he is also the son of God The theory that Abba was not just a babbling child or much less a sacred term is challenged by current theological and Jewish feminists who see the arguments of J Jeremias as unfounded or exaggerated However at the end of the study we sought to show that even in the face of such challenges the fatherhood of God proclaimed by Jesus is not natural ie a possession of all human beings but it is exclusive to Him and his disciples once the sonship is a feature of the kingdom of God and only the children of the kingdom is the one who can enjoy such a privilege and turn to God calling him Abba Father Jesus of Nazareth on this research is the example to be followed regarding the humility and suffering in a society deeply marked by prejudice and social inequality To understand and follow Him in his humanity is a big step to be close to him as the post-Passover Christ where the revelation of the divine to the human is fully realized Key-words Historical Jesus Gods fatherhood

Sumaacuterio

1 INTRODUCcedilAtildeO 7 2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS 10 22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO 19 3 O JESUS HISTOacuteRICO 27 31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO 27 32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO 32 4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE SUA EacutePOCA 40 41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE CONTEMPORAcircNEA DE JESUS 41 42 JESUS O HUMILDE NAZARENO 46 43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES 50 44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS 59 45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS 61 451 OS ESSEcircNIOS 63 452 OS FARISEUS 66 453 OS SADUCEUS 72 454 OS ZELOTAS 74 5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS E SEUS

DESDOBRAMENTOS 79 51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA 79 52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA 85 53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS 91 54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS 100 55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR 102 56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA 110 6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS 122 61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO 122 62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA LEITURA A PARTIR DA

TEOLOGIA FEMINISTA 130 7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 137 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 146

7

1 INTRODUCcedilAtildeO

A ideia de Deus como pai da humanidade sempre esteve presente na mitologia dos

povos antigos Pai eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e na

Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Segundo Joachim Jeremias

(1977 p11-12) muitas tribos e famiacutelias acreditavam que eram procedentes de um

ancestral divino isto eacute de um ldquopairdquo divino Ephraim descreve-nos que a relaccedilatildeo de Deus

como Pai entre os povos antigos era bastante conhecida contudo ele evidencia que o

Abba de Jesus foi a mais iacutentima forma de invocar a Deus propagada entre os homens

atraveacutes dos ensinamentos de Jesus

A palavra Abba (Pai) posta na boca de Jesus eacute como se fosse a uacuteltima tentativa de Deus para ensinar os homens a pronunciarem seu nome Muitas vezes no passado Deus tentou fazer isto atraveacutes de seus servidores os profetas mas Israel natildeo compreendeu ldquoPairdquo eacute um tiacutetulo divino muito antigo encontrado em quase todas as religiotildees do Oriente meacutedio mas no caso ele eacute pai como a terra eacute matildee isto eacute exige na medida em que daacute Eacute o deus tutelar que deve ser adulado pois do contraacuterio ele natildeo outorga as suas graccedilas Eacute um deus que eacute pai do mesmo modo que Zeus era o pai de todos os deuses (Ephraim 1998 p171)

Observa-se que para os povos antigos Deus era um ancestral divino distante de

suas criaturas Aleacutem disso para Israel conforme a tese sustentada por J Jeremias vecirc-

se que no Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai principalmente quando

essa forma de invocar a Deus estaacute relacionada a um indiviacuteduo (Jeremias 2005 p19) Por

outro lado se no Antigo Testamento Deus natildeo eacute invocado como Pai de uma forma

individual como Senhor Ele eacute constantemente invocado a exemplo do salmista (Sl 338)

que menciona Deus como o Senhor que fala e as coisas acontecem conforme as suas

ordenanccedilas (Jeremias 2008 p 269)

Em contraste a essa relaccedilatildeo aparentemente tatildeo distante do Deus Pai com seus

filhos no periacuteodo veterotestamentaacuterio observa-se que a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute

profundamente marcante nos Evangelhos Haacute poreacutem diferentes interpretaccedilotildees com

relaccedilatildeo ao sentido da palavra Pai quando esta era proferida por Jesus J Jeremias

embora natildeo tenha sido o primeiro a tratar dessa questatildeo provavelmente foi o mais

influente quando ele sugere que Jesus ao dirigir-se a Deus invocando-o como o ἀββᾶ

(Abba) estava atribuindo um novo enfoque ao costume judaico de interpelaccedilatildeo a Deus

fazendo uso de uma linguagem cotidiana assim como as crianccedilas dirigiam-se a seus pais

expressando familiaridade e intimidade (cf Goshen-Gottstein 2001 p 493)

O objetivo deste trabalho eacute o estudo do Jesus histoacuterico (humano) com ecircnfase em

seu contexto social culminando no estudo histoacuterico-teoloacutegico da relaccedilatildeo de Jesus com o

8

Pai Este estudo tem como ponto de partida a teologia de Joachim Jeremias concernente

ao Abba proferido por Jesus no Evangelho de Marcos (1436) que diz ldquo[] Abba (Pai)

Tudo eacute possiacutevel para ti afasta de mim este caacutelice poreacutem natildeo o que eu quero mas o que

tu queresrdquo

Para entendermos a relaccedilatildeo de Jesus com o Deus Pai no Novo Testamento e como

ele transformou uma distante relaccedilatildeo entre o Pai ldquoque estaacute nos ceacuteusrdquo e seus filhos eacute

interessante vislumbrar o mundo poliacutetico religioso e cultural no qual ele esteve inserido

comeccedilando pela pequena Nazareacute um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que

vivia em casebres um povoado simples composto de camponeses entre duzentos a

quatrocentos habitantes (Crossan 2007 p 75) ateacute ao Getsecircmani onde Jesus proferiu a

magna expressatildeo Ἀββᾶ ὁ πατὴρ (Abba Pai) que para J Jeremias eacute a mensagem central

do Novo Testamento

No entanto a pesquisa do Jesus histoacuterico eacute complexa visto que os cristatildeos

primitivos preocuparam-se apenas em preservar ditos isolados a respeito de Jesus A

expectativa do retorno iminente do Mestre pode ter sido o motivo principal que levou o

cristianismo primitivo a preferir apenas fatos relacionados ao ministeacuterio de Jesus do que

relatar uma biografia completa do Jesus histoacuterico (Schweitzer 2003 p 11) Apesar de

toda a complexidade em se estudar o Jesus histoacuterico eacute possiacutevel investigar alguns

aspectos relativos a sua existecircncia a partir dos evangelhos e de muitos escritores que ao

longo dos seacuteculos tecircm se empenhado em coletar informaccedilotildees atraveacutes de achados

arqueoloacutegicos e de toda literatura que de uma forma direta ou indireta traz-nos

informaccedilotildees do mundo no qual Jesus estava inserido

Partindo das fontes primaacuterias J Jeremias observa que Jesus tinha uma relaccedilatildeo

iacutentima com Deus pois somente se referia a Ele chamando-o de meu Pai comportamento

este que natildeo era observado entre o povo judeu Assim para uma melhor compreensatildeo

dessa relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai eacute interessante pesquisar como os povos antigos

viam a questatildeo da paternidade divina e desse modo confrontar os modelos antigos com

o modelo de paternidade difundido por Jesus e pelas primeiras comunidades cristatildes

Tendo em vista a complexidade e a diversidade do tema proposto e o profundo

interesse de J Jeremias e de outros pensadores que com ele concordaram ou divergiram

a respeito do assunto esta pesquisa torna-se um desafio empolgante tendo sempre em

vista o crescimento e o amadurecimento em questotildees importantes da teologia

A escolha deste tema eacute motivada pela relevacircncia da produccedilatildeo acadecircmica de J

Jeremias no contexto da Teologia do Novo Testamento mais especificamente sobre a

9

relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai Embora os argumentos de J Jeremias natildeo sejam

unanimidade no contexto dos estudiosos que tecircm escrito sobre tal tema eacute inegaacutevel o

grande impacto que as suas teses tecircm causado na comunidade cientiacutefica ligada ao

assunto que tem se debruccedilado para contestar ou entatildeo para sustentar que Deus natildeo eacute

como um soberano inacessiacutevel mas como um pai que se relaciona com seus filhos e isso

soacute foi enfatizado com propriedade a partir do Abba de Jesus

Essa visatildeo de J Jeremias entra em conflito com as teses de alguns estudiosos

contemporacircneos os quais discutem se realmente houve novidade na forma como Jesus

fez uso da palavra Pai (ipsissima vox) em suas oraccedilotildees ou se esta era um dito autecircntico

(ipsissima verba) Seria Abba realmente a ipsissima vox de Jesus e o centro de sua

mensagem e a afirmaccedilatildeo de sua messianidade conforme afirma J Jeremias ou apenas

uma expressatildeo lituacutergica comum nas comunidades cristatildes do periacuteodo poacutes-pascal da igreja

primitiva (DAngelo 1992b p151) Teria Jesus realmente legado aos seus disciacutepulos a

palavra Abba como um termo sagrado ou Abba tem apenas a conotaccedilatildeo poliacutetica anti-

imperialista (DAngelo 1992a p623)

A partir das questotildees levantadas acima este trabalho tem por objetivo investigar o

Jesus histoacuterico e seu contexto social a relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai segundo a

interpretaccedilatildeo dada por J Jeremias bem como alguns desdobramentos deste tema

segundo algumas correntes teoloacutegicas cristatildes e judaicas com as seguintes finalidades

Verificar a visatildeo que os povos antigos (ldquopagatildeosrdquo natildeo judeus) bem como o antigo

Israel tinham de Deus como Pai

Pesquisar a relaccedilatildeo do Jesus histoacuterico no seu contexto familiar e social

Analisar a tese de J Jeremias concernente ao sentido que a palavra Abba tinha

quando proferida por Jesus

Confrontar o pensamento de J Jeremias frente a algumas correntes teoloacutegicas

favoraacuteveis e contraacuterias aos seus argumentos

10

2 O CONCEITO DE DEUS ENTRE OS POVOS ANTIGOS

Neste capiacutetulo seraacute abordado o conceito de paternidade divina entre os povos

antigos com o enfoque sobre a ideia que tais povos tinham de Deus como um ancestral

divino do homem conforme exposto por Jeremias Face agraves inuacutemeras epopeias da

criaccedilatildeo abaixo mencionadas veremos que a criaccedilatildeo do homem a partir do relato do

Gecircnesis eacute bem mais otimista uma vez que o homem do Gecircnesis natildeo eacute um ancestral dos

deuses mas foi criado para ser a imagem do seu proacuteprio Criador

21 DEUS COMO ANCESTRAL ENTRE OS POVOS ANTIGOS

A ideia mitoloacutegica de um deus como pai da humanidade sempre esteve presente

entre os povos antigos como os sumeacuterios e babilocircnios Segundo J Jeremias tais povos

diziam que suas tribos e famiacutelias procediam de um ancestral divino como se observa por

exemplo no ceacutelebre hino sumeacuterio e acaacutedico de Ur Nesse hino o deus Lua Sin eacute

invocado como o ldquoPai misericordioso em suas disposiccedilotildees que reteacutem em sua matildeo a vida

de todo o paiacutesrdquo Aleacutem de tal hino encontramos na tradiccedilatildeo de tais povos a seguinte

citaccedilatildeo sobre Ea um deus sumeacuterio-babilocircnico ldquoSua coacutelera eacute como o diluacutevio Ele se

reconcilia como um pai misericordiosordquo (Jeremias 1977 p11-12) Complementando essa

ideia Santos Sabugal afirma que a ideia de paternidade divina entre os povos antigos era

largamente atestada na literatura de vaacuterios povos A Aacutefrica a Ameacuterica a China e a Iacutendia

bem como o Egito e tambeacutem os Greco-romanos invocaram a paternidade de Zeus e de

Juacutepiter sobre todos os deuses e homens (Sabugal 1985 p 367-368)

Contudo para J Jeremias as histoacuterias de invocaccedilotildees a Deus como Pai satildeo tatildeo

profundas que sempre se tem a sensaccedilatildeo de que novas e inesperadas galerias sempre

surgem A invocaccedilatildeo a Deus como Pai nos povos antigos desde as suas origens nem

sempre estava relacionada a Deus como um antepassado do rei ou do povo mas podia

ser invocado como um pai misericordioso conforme nos relata J Jeremias

Eacute assombroso verificarmos como jaacute no antigo oriente e com seguranccedila desde o segundo e ainda no terceiro milecircnio aC a divindade era invocada assim Nas oraccedilotildees sumeacuterias muito anteriores a Moiseacutes e os profetas encontramos a invocaccedilatildeo ldquopairdquo e desde laacute esta palavra designava a divindade natildeo apenas como antepassado do rei e do povo ou como o soberano pleno de poder mas tambeacutem como o ldquopai magnacircnimo e misericordioso em cuja matildeo estaacute a vida da naccedilatildeo inteirardquo (Hino de Ur a Sin divindade da lua) A palavra ldquopairdquo na invocaccedilatildeo a Deus implicava pois para os orientais desde os tempos mais antigos algo que pode ser considerado como para noacutes significa a palavra ldquomatildeerdquo (Jeremias 2006 p61)

11

Pai1 portanto para os povos antigos como os assiacuterios babilocircnios egiacutepcios

gregos e outros povos eacute o nome dado a muitos deuses na Aacutesia na Ameacuterica na Aacutefrica e

na Oceania (Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p 646) Aleacutem disso o historiador

das religiotildees Mircea Eliade tambeacutem descreve que satildeo diversas as versotildees sumerianas

sobre a origem divina dos seres humanos e dentre elas consta o poema cosmogocircnico

conhecido como Enuma elish (ldquoQuando no altordquo) que relata as origens do mundo e do

homem buscando exaltar a Marduk um deus nacional da Babilocircnia o qual triunfa sobre

os deuses com ldquovalores demoniacuteacosrdquo dentre eles Tiamat e Kingu

Esse poema traz o mito de que Marduk decidiu criar o homem para que ele sirva

aos deuses Assim a partir do corte das veias de Kingu um deus vencido que foi

sacrificado a humanidade foi criada (Eliade 2010 p79) No entanto com a derrota dos

deuses inimigos de Marduk a criaccedilatildeo do homem inicia-se com um agravante na tradiccedilatildeo

sumeriana mesmo sendo Kingu um dos primeiros deuses ele se tornara o arquidemocircnio

chefe dos monstros e democircnios criados pelo deus Tiamat que tambeacutem foi derrotado por

Marduk Dessa forma sendo o homem constituiacutedo do sangue de Kingu torna-se ele parte

constitutiva de uma mateacuteria demoniacuteaca (Eliade 2010 p 80) Segundo essa vertente

mitoloacutegica sumeriana a uacutenica esperanccedila do homem eacute que ele tenha sido criado por um

grande deus Ea ldquoA partir desse prisma existe uma simetria entre a criaccedilatildeo do homem e

a origem do mundo Em ambos os casos a mateacuteria-prima eacute constituiacuteda pela substacircncia

de uma divindade primordial decaiacuteda demonizada e morta pelos jovens deuses

vitoriososrdquo (Eliade 2010 p 80) Conforme P Grelot ldquoo mito babilocircnico da criaccedilatildeordquo eacute

repleto de violecircncia e sangue (Grelot 1973 p 31)

[] Marduque ouvindo o apelo dos deuses resolveu criar uma obra prima ldquofarei canais de sangue formarei uma ossatura e suscitarei um ser cujo nome seraacute homem Sim vou criar um ser humano um homem Que sobre ele recaia o serviccedilo dos deuses para o bem estar delesrdquo

Ainda com relaccedilatildeo ao mito babilocircnico relata-se que na epopeia de Atra-Hasis (ldquoo

muito inteligenterdquo) cuja coacutepia mais antiga data aproximadamente de 1600 aC o deus Uecirc

1 A relaccedilatildeo de Deus como Pai nas religiotildees do oriente antigo e da Greacutecia e Roma antigas estaacute sempre de

uma forma ligada a ldquoideias miacutesticas de gerar e na descendecircncia fiacutesica e natural de todos os homens a partir de Deus Assim o deus El de Igariteacute eacute chamado o pai da humanidade e o deus da lua na Babilocircnia sin eacute pai e gerador dos homens e dos deusesrdquo No Egito o Faraoacute eacute considerado de modo especial o filho Deus no sentido fiacutesico O nome de pai expressa sobre tudo a absoluta autoridade de deus exigindo a obediecircncia havendo poreacutem ao mesmo tempo seu amor bondade e cuidado misericordiosos (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)

12

eacute morto Entatildeo a deusa matildee (Nintu) e Ea (deus das aacuteguas) fazem um apelo agraves sete

genitoras que ao som de encantamentos maacutegicos se potildeem a amassar a argila A epopeia

narra que a partir de catorze pedaccedilos de argila que satildeo separados metade agrave direita e

metade agrave esquerda pela deusa matildee que apoacutes serem pisados pelas deusas genitoras

estas ldquodatildeo agrave luz sete homens e sete mulheres que imediatamente satildeo dispostos aos

pares e a raccedila humana recebe as leis do seu laborrdquo (Grelot 1973 p 31)

[] Que seja morto um deus e que todos os deuses se purifiquem no seu sangue Que com a sua carne e o seu sangue Nintu (= a deusa matildee) misture argila de modo que deus e homem sejam misturados juntos na argila Que por esta carne de deus haja um espiacuterito Sim Responderam na assembleia os grandes Anunaqui que regem os destinos (Grelot 1973 p 19)

Nesse mito babilocircnico Ea ficou encarregado de consumar o trabalho imolando

Kingu que era o chefe dos deuses revoltosos para que o seu sangue estivesse nas veias

do homem de sorte que este tenha ldquoem suas veias o sangue de um deus decaiacutedordquo

Grelot observa que a partir desses mitos pode-se ver que o homem natildeo eacute apenas um

suacutedito e escravo dos deuses ldquomas tambeacutem eacute um joguete das potecircncias coacutesmicas que

fazem pesar sobre ele uma fatalidade inexoraacutevelrdquo (Grelot 1973 p 31)

[] Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido cortando suas veias Com o seu sangue Eia criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses para libertaacute-los Depois que Eia o saacutebio criou a humanidade e lhe impocircs o serviccedilo dos deuses obra superior a toda inteligecircncia que realizou Nudimude graccedilas aos artifiacutecios de Marduque Marduque rei dos deuses dividiu o conjunto dos Anunaacutequi em deuses de cima e deuses de baixo e encarregou Anu de velar pelas suas ordens nos ceacuteus e na terra ele estabeleceu seiscentos deuses (Vl 1-1031-34)

Pode-se ainda observar a ideia da existecircncia de um ancestral divino entre outros

povos antigos Segundo Campbell tal conceito pode ser visto na cultura da tribo Aranda

da Austraacutelia Central Nessa tribo o rito de transformaccedilatildeo de um menino em adulto

demonstra a forma primitiva com que esse povo se relaciona com a divindade desde a

antiguidade quando um jovem dessa tribo estaacute entre os dez e os doze anos ele e os

outros membros de sua faixa etaacuteria satildeo tomados pelos homens da aldeia e levantados

13

vaacuterias vezes no ar enquanto os homens realizam o ritual de transformaccedilatildeo as mulheres

por sua vez tambeacutem tomam parte do ritual danccedilando em volta agitando os braccedilos e

gritando Em cada menino satildeo entatildeo pintados no peito e nas costas desenhos simples

por um homem relacionado com o grupo social ao qual pertence a sua futura mulher e

enquanto os meninos satildeo pintados os homens cantam ldquoQue ele possa atingir a barriga

do ceacuteu que ele possa crescer ateacute a barriga do ceacuteu que ele possa ir diretamente para

dentro da barriga do ceacuteurdquo (Campbell 1992 p82)

Assim que o ritual eacute finalizado os meninos recebem a instruccedilatildeo que desde que o

ritual foi concluiacutedo cada um deles tem sobre si a insiacutegnia do ancestral mitoloacutegico

particular do qual ele eacute a contraparte viva A partir de entatildeo os meninos passam a ter

algumas responsabilidades e satildeo advertidos de que de agora em diante haacute algumas

restriccedilotildees entre eles e o sexo oposto Eles natildeo poderatildeo mais brincar ou acampar com as

mulheres e meninas mas somente com os homens Das atividades de caccedila de pequenos

animais e procura de raiacutezes eles natildeo tomaratildeo parte visto ser uma atividade realizada

pelas mulheres mas receberatildeo uma responsabilidade maior que eacute acompanhar os

homens na caccedila aos cangurusrdquo (Campbell 1992 p 82) Campbell observa que nessa

tribo eles acreditam que as crianccedilas nascidas de mulheres satildeo reapariccedilotildees de seres que

viveram na era mitoloacutegica no chamado ldquotempo dos sonhosrdquo ou altjeringa (Campbell

1992 p 82) Nesse mundo mitoloacutegico maacutegico dos sonhos o menino da tribo Aranda

passa entatildeo a compreender que ele proacuteprio eacute um ser mitoloacutegico eterno que se

encarnou e da mesma forma seus companheiros tambeacutem satildeo as manifestaccedilotildees das

formas eternas (Campbell 1992 p82)

A ancestralidade divina tambeacutem pode ser constatada entre os gregos como no mito

de Ascleacutepio um deus popular classificado por Homero e Piacutendaro como um heroacutei ou

divindade da cura Ascleacutepio segundo a mitologia grega era filho do deus Apolo com a

humana Corocircnis ele tambeacutem se casou com uma humana com quem teve filhos e filhas

(Koester 2005 vol1 p176)

A relaccedilatildeo entre deuses e humanos tambeacutem pode ser vista nos relatos mitoloacutegicos

dos chamados heroacuteis ou semideuses Segundo a mitologia os heroacuteis pertenciam agrave

espeacutecie dos humanos visto que conheceram a morte e o sofrimento contudo

diferenciavam-se destes pelo fato de que eles viveram numa eacutepoca denominada pelos

gregos como o antigo tempo onde os homens denominados de heroacuteis eram mais belos e

mais fortes do que os homens que conhecemos Esses ancestrais (noacutenymnoy) ou seja

os sem nome fazem parte do passado lendaacuterio da Greacutecia antiga Mesmo sendo homens

eles se aproximam muito dos deuses mais dos que os homens atuais Nessa eacutepoca

14

lendaacuteria segundo a mitologia grega os deuses ainda se misturavam com os mortais na

vida diaacuteria como comer juntos e ateacute em relaccedilotildees sexuais onde os imortais se uniam aos

mortais a fim de gerarem filhos belos Os heroacuteis faziam parte dessa relaccedilatildeo amorosa

entre deuses e humanos como diz Hesiacuteodo ldquoeles formam a raccedila divina dos heroacuteis que

satildeo denominados semideuses conhecidos como os hemitheoiacuterdquo (Vernant 2006 p 47) A

partir desse relato observamos que os humanos realmente acreditavam procederem de

uma raccedila mitologicamente humana e divina ou seja uma mistura das duas

Observamos que ateacute esse ponto temos entre os ancestrais divinos apenas figuras

masculinas A figura masculina de Deus como Pai da humanidade entre os povos antigos

eacute marcante poreacutem natildeo eacute unanimidade Gerald Messadieacute afirma que natildeo existe nenhuma

figura masculina da idade da pedra que evoque o conceito de um deus masculino

(Messadieacute 2001 p44) De fato esse autor observa que os deuses masculinos como Aacutetis

Tamuz Adoacutenis Patilde Silvano Fauno Narciso Jacinto satildeo comparados agrave vegetaccedilatildeo visto

que mesmo sendo deuses heroicos miacuteticos morrem com a chegada do inverno e

renascem com a chegada da primavera assim como ocorre com a vegetaccedilatildeo

No entanto diferentemente do que ocorre no aspecto masculino para o autor

supracitado o princiacutepio feminino da divindade eacute algo permanente Segundo Messadieacute o

culto da Terra-Matildee foi tatildeo fortemente enraizado nas culturas primitivas que seus vestiacutegios

perduraram ateacute tempos recentes (Messadieacute 2001 p44) Nesse sentido pode-se citar as

oraccedilotildees que se faziam agrave deusa-matildee (Zemyna equivalente agrave deusa grega Gaia) na

Lituacircnia entre os seacuteculos XVII e XVIII onde ela era vista como aquela que faz florescer

os bototildees O mais admiraacutevel eacute que em pleno seacuteculo XX em numerosos paiacuteses da

Europa como Escoacutecia Irlanda Lituacircnia Pruacutessia Oriental e Malta ainda era dedicado um

dia (15 de agosto) a Terra-Matildee Messadieacute enfatiza que o dia dedicado agrave deusa-matildee era

uma data tatildeo significativa a ponto de ser transformada no dia da festa catoacutelica da

Assunccedilatildeo data esta que mesmo tendo sentido diferente e ser de outra religiatildeo ainda

assim foi recuperada em benefiacutecio de uma mulher (Messadieacute 2001 p 45)

A deusa-matildee era vista como doadora de tudo quer fosse da vida ou da morte Entre

suas formas mais conhecidas estatildeo Istar Astarte Inana Ciacutebele Ceres e Afrodite A

importacircncia da deusa-matildee como protetora da vida era fundamental em uma sociedade

onde a esperanccedila de vida em geral natildeo ultrapassava quarenta e cinco anos Por isso a

fertilidade das mulheres era vista como essencial para a sobrevivecircncia das sociedades ldquoA

deusa-matildee foi o reflexo de um estado socioeconocircmico que ditava a economia e a religiatildeordquo

(Messadieacute 2001 p47)

15

O culto agrave deusa universal foi duradouro e seu decliacutenio foi tardio e nunca totalmente

consumado em nenhuma religiatildeo ateacute o aparecimento do judaiacutesmo (Messadieacute 2001 p

59) Na Europa a primeira vez que um deus masculino partilhou o poder oficialmente

com a deusa-matildee foi com a revoluccedilatildeo Celta dos oriundos da Iacutendia ramo indo-europeu

dos indo-arianos por volta do seacuteculo VIII aC Os Celtas apesar dessa aparecircncia politeiacutesta

natildeo o eram pode-se dizer que ldquoeram quase monoteiacutestasrdquo (Messadieacute 2001 p72) Seus

deuses mitoloacutegicos estatildeo mais para heroacuteis do que para divindades ldquoOs Celtas como

revelou Juacutelio Ceacutesar satildeo todos filhos de Dis pater O Pai muito simplesmenterdquo (Messadieacute

2001 p69) Continua Messadieacute ldquoos Celtas lanccedilaram no Ocidente as fundaccedilotildees do

Cristianismo antes mesmo deste ter nascido Quase o inventaramrdquo (Messadieacute 2001

p70)

Dentre as muitas teorias acerca da origem dos deuses e suas relaccedilotildees com os

humanos verificamos que segundo Joatildeo Evangelista Martins Terra a palavra Deus tem

sua origem no protoindo-europeu onde era designada como DEIWOS e de onde provecircm

os dois vocaacutebulos latinos para dizer deus (Deus e divus) palavras que derivam do latim

arcaico deivos (Martins Terra 2001 p274) A religiatildeo dos indo-europeus acreditava na

existecircncia de um Ser Supremo conhecido como o Deus celeste tambeacutem chamado de

DEIWOS palavra esta que deriva do radical DEI (iluminar) (Martins Terra 2001 p291)

De acordo com Martins Terra DEIWOS estaacute presente em inuacutemeras religiotildees antigas

Na religiatildeo messaacutepica (populaccedilatildeo indo-europeia proto-histoacuterica da peniacutensula salentina)

religiatildeo dos etruscos dos gregos dos traacutecios dos celtas dos antigos germanos dos

persas dos baacutelticos dos antigos eslavos e das religiotildees indianas (Martins Terra 2001 p

277-286)

O indo-europeu DEIWOS originariamente natildeo designava o ceacuteu fiacutesico (caelum)

visto que as liacutenguas indo-europeias natildeo tecircm um nome comum para designar o ceacuteu fiacutesico

(Martins Terra 2001 p 291) DEIWOS designava um ser pessoal que frequentemente eacute

contraposto ao HOMO um ser pessoal terreno (Martins Terra 2001 p 305)

Na cultura indo-europeia o conceito de pai era muito mais do que genealoacutegico

juriacutedico e socioloacutegico O conceito de pai sempre se referia ao chefe de famiacutelia como

aquele que exercia um poder monaacuterquico com funccedilotildees judiciais e penais sobre os seus

dependentes Para os indo-europeus o deus supremo dyeu-pater (pai) natildeo se refere a

deus pai ldquocomo progenitor mas ao sentido social do adulto que eacute chefe da casa no

sentido do latim pater famiacuteliasrdquo (Martins Terra 2001 p153) Contudo segundo Martins

Terra Porfiacuterio relaciona Zeus como pai dos deuses e coloca o homem como parente de

Deus Para Porfiacuterio uma das finalidades dessa relaccedilatildeo eacute que ldquoo homem respeitaraacute o

16

direito do proacuteximo que tambeacutem tem a Zeus como progenitor [proacutegonos]rdquo (Martins Terra

2001 p351)

Na religiatildeo dos indo-europeus DEIWOS eacute sempre o ser transcendente (celeste) No

entanto essa transcendecircncia estaacute sempre proacutexima do divino como o autor da vida o

Deus Pai Segundo Martins Terra o antigo nome divino em latim era DIESPITER uma

forma primitiva derivada de DEIWOS ou de Dieus ldquonas invocaccedilotildees mais primitivas de

Zeus jaacute encontramos o vocativo Zeu paacuteter Em latim a palavra pater associa-se

intimamente com a palavra Deus e formava ela um soacute nome DIESPITER Iovispater

vocativo Juppiter em uacutembrio Jupater em iliacuterico Deipaturosrdquo (Martins Terra 2001 p337)

Como suporte agrave teoria da invocaccedilatildeo de Zeus partes do hino de Cleantes esclarecem

esse conceito

[]32 ndash Ah Zeus benfeitor universal 33 ndash Salva os homens de sua ignoracircncia funesta 34 ndash Purifica oacute Pai suas almas desta ignoracircncia e concede-lhes atingir 35 ndash O pensamento que te guia para tudo governares com justiccedila Somente Zeus pode salvar o homem de seus pendores funestos E o homem pode com confianccedila invocar a Zeus porque ele eacute Pai e dele com efeito todos noacutes nascemos 1 ndash Oacute o mais glorioso dos imortais sob mil nomes onipotente para sempre 2 ndash Zeus senhor da natureza que com a lei governas todas as coisas 3 ndash Salve Porque eacute a Ti que todos noacutes mortais temos o direito de invocar 4 ndash Visto que de Ti todos noacutes nascemos (Martins Terra2001 p332-333)

Esse hino mostra que Zeus natildeo era invocado apenas como rei senhor governador

mas tambeacutem como um Deus pessoal num relacionamento familiar um Deus Pai2

Conforme Martins Terra invocar a ldquodivindade sob o nome de pai eacute um dos fenocircmenos

primordiais na histoacuteria das religiotildeesrdquo Martins Terra ainda observa que nas liacutenguas indo-

europeias essa forma de invocaccedilatildeo fica mais evidente ainda nas palavras Dyaus pitatilde

Zeugraves pater Deipaturos e Iuppiter (Martins Terra 2001 pg433) Segundo Martins Terra

ldquoem Homero a invocaccedilatildeo de Zeus no vocativo aparece quase sempre unida agrave palavra

pai Zeucirc paacuteterrdquo (Martins Terra 2001 p 435)

Diferentemente dos povos antigos a atividade criadora de Deus no livro do Gecircnesis

eacute sempre cosmoloacutegica onde a ordem e a beleza satildeo os temas centrais Do caos Deus

cria a ordem o universo que culmina com a criaccedilatildeo do homem como o aacutepice da obra da

criaccedilatildeo conforme vemos no Gecircnesis onde ldquoDeus viu que isso era bom (1 10 13 18 21

25)rdquo e ainda segundo o texto sagrado (131) temos a seguinte conclusatildeo ldquoIsso era

2 Segundo Vernant Zeus eacute Pai dos deuses e dos homens natildeo porque tenha gerado ou criado todos os

seres mas porque exerce autoridade absoluta sobre todos como um chefe de famiacutelia sobre seu clatilde (Cf Vernant 2006 p33)

17

muito bomrdquo Segundo P Grelot ldquoa histoacuteria sagrada sacerdotal Gn 1-24ardquo - das origens do

mundo ao tempo em que Israel viveu no deserto - foi escrita no tempo em que o povo

estava no exiacutelio (entre 587 e 538 aC) Babilocircnia eacute o lugar onde se venera o deus Marduk

e de onde provecircm as narrativas mitoloacutegicas de como os deuses criaram o mundo Para

proteger seus irmatildeos dos mitos babilocircnicos o autor sagrado teria escrito a primeira

narraccedilatildeo da criaccedilatildeo Contudo a narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo difere teologicamente dos

mitos babilocircnicos e dos povos antigos conforme relata Grelot

[] O universo eacute de certa forma um templo gigantesco que Deus levanta para a sua gloacuteria Quando o templo estaacute pronto ele coloca nele o homem criado ldquoagrave sua imagem e semelhanccedilardquo (126) Fica assim proibido representar a divindade por meio de imagens porque estas lembrariam o culto prestado a criaturas divinizadas (Ex 20 3-6) essa proibiccedilatildeo natildeo tem paralelo em nenhum povo da antiguidade A uacutenica imagem permitida de Deus eacute o rosto humano Mas se Deus eacute representado agrave imagem de uma pessoa viva de um homem que fala para fazer as coisas existirem (ldquoDeus disserdquo) nem por isso o homem eacute divinizado ldquoimagem de Deusrdquo deve ele voltar-se para aquele cujos traccedilos reflete (Grelot 1973 p 43)

Da mesma forma para Heinrich Krauss e Max Kuumlchler comparar o relato biacuteblico da

criaccedilatildeo do homem com a mitologia sumeacuterio-babilocircnia ou egiacutepcia serve para demonstrar

diferenccedilas importantes entre eles Na mitologia pagatilde o acircmago de toda a criaccedilatildeo estaacute

mais voltada ao nascimento dos deuses (teogonias) Por sua vez a criaccedilatildeo do homem

estaacute ligada a esses relatos apenas por uma linha tecircnue Para Krauss e Kuumlchler somente

num periacuteodo bem posterior ao nascimento dos deuses eacute que o ser humano eacute criado

quase que por um acidente ou entatildeo para servir como trabalhador escravo dos deuses

Em alguns aspectos notamos que haacute semelhanccedilas entre a criaccedilatildeo do homem no relato

do Gecircnesis e as mitologias pagatildes quando observamos que no Gecircnesis a criaccedilatildeo do

homem tambeacutem se daacute por uacuteltimo Contudo conforme Krauss e Kuumlchler diferentemente

dos antigos mitos no Gecircnesis a criaccedilatildeo do homem se daacute por meio de um processo

premeditado Eacute possiacutevel por analogia observarmos que na narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo

tanto o cosmos quanto o homem satildeo criados num ambiente onde o respeito e a

admiraccedilatildeo pelo ser humano satildeo evidentes como podemos observar na poesia do Salmo

8 4-9 que diz

Quando vejo o ceacuteu obra dos teus dedos a lua e as estrelas que fixaste que eacute um mortal para dele te lembrares e um filho de Adatildeo para vires visitaacute-lo E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de gloacuteria e beleza Para que domine as obras de tuas matildeos sob seus peacutes tudo colocaste ovelhas e bois todos e as feras do campo tambeacutem a ave do ceacuteu e os peixes do mar

18

quando percorre ele as ondas dos mares (Krauss e Kuumlchler 2007 p 48-49)

A relaccedilatildeo do homem com os deuses nas mitologias antigas eram caracterizadas

pelas forccedilas da natureza Os diversos deuses exerciam poderes sobre tais forccedilas que por

sua vez determinavam o destino do homem ldquoNa tempestade e na brisa na chuva e na

seca viam-se igualmente manifestaccedilotildees de poderes divinos tal como no amor e no

matrimocircnio na vida e na morte na violecircncia e na guerra no crescimento e na destruiccedilatildeordquo

(Krauss e Kuumlchler 2007 p 61) Todos os acontecimentos da vida dos homens eram

resultados da influecircncia de uma ou mais divindades conforme as suas funccedilotildees dentro do

panteatildeo Alguns deuses eram considerados de boa iacutendole poreacutem outros eram

considerados perversos e maus e por essa razatildeo deveriam ser lisonjeados atraveacutes de

rituais de sacrifiacutecios ou praacuteticas maacutegicas

Krauss e Kuumlchler apesar de descreverem os deuses mitoloacutegicos da antiguidade com

poderes sobrenaturais e sobre-humanos sobre o mundo ressaltam que tais deuses

mesmo o chamado deus criador da mitologia antiga eram limitados agrave esfera deste

mundo ou seja natildeo tinham poder absoluto nem garantido para sempre Por outro lado o

Deus dos relatos biacuteblicos da criaccedilatildeo eacute diferente Ele natildeo faz parte deste mundo mesmo

que aqui esteja presente e sempre atuando Tambeacutem natildeo estaacute sujeito agrave limitaccedilatildeo das

forccedilas da natureza e tem poder para conduzir soberanamente o destino dos seres

humanos O Deus criador do Gecircnesis natildeo sofre oposiccedilatildeo de divindade alguma a natildeo ser

em pequena escala dos seres humanos ldquoA diferenccedila entre o monoteiacutesmo judeu-cristatildeo

ou islacircmico de um lado e o politeiacutesmo de outro natildeo eacute uma questatildeo de nuacutemero (um

uacutenico Deus ou diversos deuses) mas da concepccedilatildeo do que eacute Deusrdquo (Krauss e Kuumlchler

2007 p61)

No tocante agraves narrativas e mitos antigos da criaccedilatildeo Vicente Artuso desenvolve um

trabalho no qual compara o relato da criaccedilatildeo no livro do Gecircnesis com a epopeia de Atra

Asis e os demais mitos antigos da criaccedilatildeo e conclui que o relato da criaccedilatildeo no Gecircnesis eacute

mais otimista em relaccedilatildeo aos mitos antigos Embora por um lado haja algumas

semelhanccedilas na forma da criaccedilatildeo do homem conforme jaacute foi visto acima por outro lado

elas estatildeo muito distantes Artuso observa que nessa epopeia o homem eacute feito a partir

do barro e do sangue de um deus decaiacutedo Na Biacuteblia o homem proveacutem do barro e do

sopro de Deus que eacute a fonte da vida Na epopeia o ser humano eacute criado para livrar os

deuses de seu castigo na Biacuteblia o homem eacute criado por Deus de uma forma totalmente

desinteressada Na epopeia o ser humano participa da divindade assim como na Biacuteblia

Contudo Artuso pontua que mesmo que em ambos os relatos da criaccedilatildeo o homem

participe da divindade na epopeia fica evidente que o homem participa da divindade de

19

um deus decaiacutedo sendo que no relato da criaccedilatildeo da Biacuteblia o homem eacute criado agrave imagem

e semelhanccedila do Criador No Gecircnesis o homem eacute criado pelo Deus uacutenico que do caos

traz todas as coisas a existecircncia cria o homem e o faz participante de sua obra quando

ordena ao ser humano o crescimento a multiplicaccedilatildeo e que o mesmo exerccedila o domiacutenio

sobre todas as coisas criadas (Artuso 2009 p80-81)

22 DEUS COMO PAI NO ANTIGO TESTAMENTO

No Antigo Testamento Deus eacute raramente chamado de Pai3 J Jeremias relaciona

que isso ocorre apenas quinze vezes conforme podemos verificar nos seguintes textos

ldquoDt 326 2 Sam 714 (textos paralelos em 1 Cron 1713 22 10 286) Sl 68 6 8927 Is

6316 (duas vezes) 647 Jr 3419 31 9 Mal 1 6 2 10 (Jeremias 2005 p19) Mesmo

esses textos quando relacionados a Deus como Pai indicam que Deus eacute primeiramente

o Senhor como diz o Salmo 33 8 ldquoTema o Senhor todo o mundo e tremam diante dele

todos os habitantes da terra porque ele fala e acontece ele ordena e aiacute estaacuterdquo (Jeremias

2008 p269) Como Senhor Deus tambeacutem se compadece de seus filhos como um Pai

conforme o Salmo 10313 (Jeremias 1977 p13) Aleacutem de Senhor o Pai tambeacutem eacute

honrado como Criador ldquoNatildeo eacute ele porventura teu pai que te fez seu que te formou e te

consolidourdquo (Dt 326) ldquoPorventura natildeo eacute um o Pai de todos noacutes Natildeo eacute um soacute Deus que

nos criourdquo(Ml 2 10) Observa-se que o reduzido uso do conceito de Deus como Pai no

Antigo Testamento pode estar relacionado ao uso abusivo que os povos cananeus faziam

desse termo em seus cultos de fertilidade (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo

Testamento 1998 p 6)

A relaccedilatildeo de Deus como Pai no Antigo Testamento eacute diferente do conceito de

paternidade dos povos antigos As diferenccedilas satildeo fundamentais visto que Deus natildeo eacute um

ancestral da raccedila humana como podemos ver nas palavras de J Jeremias

O fato de que no Antigo Testamento Deus natildeo eacute o ancestral mas o criador natildeo eacute a menor E que o que eacute ainda mais importante no antigo Testamento a paternidade divina atribui-se soacute a Israel e de uma maneira que natildeo encontra nenhum equivalente Eles tecircm uma relaccedilatildeo toda particular com Deus isto eacute um povo escolhido dentre todos os povos para ser o filho primogecircnito de Deus (Jeremias 1977 p13)

3 ldquoO AT emprega a palavra pai () quase que exclusivamente (c De 180 vezes) num sentido secular e soacute

muito ocasionalmente (15 vezes) num sentido religioso Como acontece no AT assim tambeacutem na literatura do judaiacutesmo palestinense podemos notar reserva marcante no emprego da palavra num sentido religioso Soacute mais tarde na literatura do judaiacutesmo da diaacutespora eacute que achamos o emprego mais frequente do nome Pai com referecircncia a Deusrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

20

No contexto biacuteblico a histoacuteria de Israel eacute notoriamente descrita colocando Israel

sempre como o povo eleito e exclusivo de Deus e essa eleiccedilatildeo eacute histoacuterica e concreta A

paternidade divina4 pode ser considerada histoacuterica quando tambeacutem atestamos que o

ecircxodo do Egito a peregrinaccedilatildeo no deserto e a conquista da terra de Canaatilde satildeo tratados

como fatos histoacutericos fatos esses que tornam Israel como o filho primogecircnito conforme a

eleiccedilatildeo divina Alguns textos corroboram esse pensamento entre os quais podemos

destacar ldquoFilhos sois do SENHOR vosso Deusrdquo (Dt 141)

A paternidade divina no Antigo Testamento natildeo eacute privileacutegio do indiviacuteduo mas sempre

privileacutegio da coletividade e juridicamente da figura do rei Com efeito Deus eacute sempre visto

como o ldquoPai do Reirdquo (2 Sam 7 14 Sl 8927) e ldquoPai de Israel como naccedilatildeordquo (Jr 34 3 19

319 Ml 16 Is 6315 657) J Jeremias faz questatildeo de enfatizar a respeito da

paternidade divina que em todo o Antigo Testamento natildeo encontramos nenhuma

passagem na qual Deus seja interpelado como Pai por um indiviacuteduo mas isso eacute sempre

realizado pela coletividade (Jeremias 2008 p115) Quando observamos as expressotildees

ldquoTu eacutes nosso Pairdquo (Is 6316) e ldquoTu eacutes meu Pairdquo (Jr 34) verificamos que as mesmas se

tratam de ldquosentenccedilas afirmativas e natildeo da invocaccedilatildeo de Deus usando o nome de Pai

para elerdquo (Jeremias 2008 p115) Deus natildeo eacute Pai porque gera de forma fiacutesica mas

porque chamou os filhos de Israel para ser um povo constituiacutedo de homens livres eacute Pai

porque ama escolhe e guia seus filhos por um reto caminho segundo a lei Dessa forma

mesmo fazendo pouco uso do termo Pai Israel comeccedilou a realizar o que poderiacuteamos

chamar de a grande revoluccedilatildeo do siacutembolo paterno

Em relaccedilatildeo ao siacutembolo de Deus como Pai Robert Hamerton-Kelly seguindo a

mesma linha de pensamento de J Jeremias concorda que no Antigo Testamento a

designaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rara e as poucas vezes em que isso ocorre natildeo eacute no

sentido literal do termo Hamerton Kelly faz referecircncia a dois tipos de simbolismo que

aparecem na Biacuteblia concernentes agrave figura de Deus como Pai um simbolismo indireto e

outro direto O simbolismo indireto ocorre por meio de uma associaccedilatildeo enquanto que o

simbolismo direto eacute feito por intermeacutedio de uma metaacutefora ou alegoria No modo indireto

Deus eacute mostrado claramente em conexatildeo com os pais humanos Ele eacute o ldquoDeus dos paisrdquo

e a associaccedilatildeo aqui eacute por intermeacutedio da identificaccedilatildeo de Deus como chefe No modo

direto a Biacuteblia usa a alegoria ou a metaacutefora Deus eacute como um pai ou Deus eacute nosso Pai

(Hamerton-Kelly 1979 p20-21)

4 ldquoA descriccedilatildeo de Deus como Pai se refere no AT apenas as Seu relacionamento com o povo de Israel

(Dt326 Is6316 duas vezes 648 Jr319 Ml16 210) ou com o rei de Israel (2Sm 714 par 1 Cr 1713 2210 286 Sl 8926 cf 27) Nunca se refere a qualquer indiviacuteduo () ou a humanidade em geralrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

21

No Antigo Testamento o simbolismo indireto eacute usado na transiccedilatildeo do Pai dos

deuses para o Deus dos pais e do Deus dos pais para o Deus de Moiseacutes (Hamerton-

Kelly 1979 p21-28) Qualquer consideraccedilatildeo sobre o entendimento biacuteblico de Deus no

periacuteodo preacute-mosaico deve ser relacionado aos deuses adorados pela religiatildeo dos

cananeus ancestral da religiatildeo dos hebreus os quais eram denominados em Canaatilde pelo

nome ldquoEl5rdquo o chefe do panteatildeo e tambeacutem progenitor dos deuses na mitologia cananita

(Martins Terra 1987 p11) De acordo com a tradiccedilatildeo Yahweh era ldquoo Deus dos Paisrdquo e

Abraatildeo pode provavelmente ter sido considerado ldquopai dos deusesrdquo como uma descriccedilatildeo

de sua possiacutevel divindade Entre os outros povos existiam vaacuterios deuses que eram vistos

como figuras paternas como Anu (deus do ceacuteu) Enlil (deus do vento e da tempestade) e

Ea (deus da aacutegua) os quais tinham seu proacuteprio santuaacuterio e eram patronos de suas

respectivas cidades (Hamerton-Kelly 1979 p21-23)

Os compiladores das sagas patriarcais do Gecircnesis acreditavam que os pais

adoravam El como El Elyon El Olam El Roi El Shaddai e El Betel Esses nomes

compostos mostram que a adoraccedilatildeo era estabelecida em um lugar fiacutesico por intermeacutedio

de alguma outra divindade ou seja os lugares de adoraccedilatildeo eram relacionados a um

deus Embora natildeo possa ser encontrada a praacutetica monoteiacutesta entre os patriarcas pode-se

assumir que os deuses distintos estavam associados em algum estaacutegio da tradiccedilatildeo

sendo identificados como manifestaccedilotildees do grande deus El - o pai dos deuses Mesmo

que natildeo seja possiacutevel falar de um preacute-Mosaico ldquoEl-monoteiacutesmordquo 6 eacute possiacutevel falar de um

deus supremo que eacute a fonte e origem de todas as coisas o pai dos deuses e da

humanidade que eacute o ponto de contato com o monoteiacutesmo Javista (Hamerton-Kelly 1979

p24-25)

Outro ponto de contato entre a teologia Preacute-Mosaica e Mosaica pode ser

encontrado no fato que cada um dos grandes patriarcas tinha um deus associado com

eles mesmos o ldquoEl de Abraatildeordquo (Gn 31 42) o ldquoTemor de Isaquerdquo (Gn 31 53) o ldquoForte de

Jacoacuterdquo (Gn 49 24-25) os quais tinham como sinocircnimos o ldquoDeus (El) de meu pairdquo Por fim

5 A palavra El ocorre 238 vezes no Antigo Testamento Eacute uma palavra de origem protossemiacutetico ou

semiacutetico-comum para designar Deus em todas as liacutenguas semiacuteticas Ele eacute o Deus-patriarca criador anciatildeo cujas forccedilas extraordinaacuterias criaram e povoaram o ceacuteu El eacute ldquoum Deus pessoardquo de cada patriarca ele eacute ldquoo Deus dos paisrdquo familiar uacutenico e universal mas tambeacutem eacute o Deus tribal (Cf Martins Terra em Elohim o Deus dos Patriarcas p 19 37 39 51)

6 Surge um problema relacionado a este assunto eacute possiacutevel falar de monoteiacutesmo neste periacuteodo Alguns

pesquisadores acham difiacutecil o conceito de um monoteiacutesmo preacute-mosaico ou mesmo de uma ideia de adoraccedilatildeo exclusiva a Deus mesmo que o texto do livro do Ecircxodo 34 11-26 trate com detalhes este tema ainda assim este pensamento parece ser uma ideia muito complexa uma vez que muitos estudiosos observam que o referido texto pode ter sido redigido em uma eacutepoca tardia ou seja ldquouma espeacutecie de seleccedilatildeo ou resumo a partir de outros textosrdquo (Cruumlsemann 2002 p167-169) Segundo Cruumlsemann o Pentateuco deve ter surgido entre o exiacutelio e o inicio da eacutepoca helenista para ser mais objetivo no periacuteodo Persa (cf Cruumlsemann 2002 p454)

22

vecirc-se que o deus eacute identificado mais pelo seu relacionamento com uma pessoa do que

com um lugar ou um fenocircmeno natural isto eacute muda-se o simbolismo do divino de lugar

para pessoa deixando claro que a Revelaccedilatildeo de Deus estaacute no domiacutenio das relaccedilotildees e

accedilotildees humanas mais especificamente nas relaccedilotildees de familia (Hamerton-Kelly 1979

p25-27)

Aleacutem disso observamos que sob a influecircncia de Moiseacutes as tribos de Israel foram

unificadas em fidelidade ao Deus Yahweh A identidade de Yahweh estaacute fortemente

relacionada com ldquoos paisrdquo como se vecirc na revelaccedilatildeo de Deus a Moiseacutes no monte Horebe

[hellip] Moiseacutes Moiseacutes [hellip] Eu sou o Deus de teus pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute [hellip] Iahweh disse Eu vi Eu vi a miseacuteria do meu povo que estaacute no Egito Ouvi seu grito por causa dos seus opressores pois Eu conheccedilo as suas anguacutestias Por isso desci a fim de libertaacute-lo da matildeo dos egipcios e para fazecirc-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta terra que mana leite e mel [hellip] Disse Deus a Moiseacutes Eu sou aquele que eacute Disse mais Assim diraacutes aos israelitas EU SOU me enviou ateacute voacutes [hellip] Iahweh o Deus o Deus de vossos pais o Deus de Abraatildeo o Deus de Isaac e o Deus de Jacoacute me enviou ateacute voacutes Eacute o meu nome para sempre e eacute assim que me invocaratildeo de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (Ex 3 1-15)

Iahweh eacute o Deus de Israel isso fica evidente na foacutermula ldquoElohecirc Israelrdquo (Martins

Terra 1987 p 82) O ponto central de toda a teologia do Antigo Testamento eacute que o

Deus de Israel eacute o uacutenico e verdadeiro Quando os autores sagrados comparam Iahweh

com os deuses de outras naccedilotildees (Dt 4 34 Sl 11 3-5) eacute para fortalecer a convicccedilatildeo dos

israelitas de que haacute somente um Deus tanto ldquoem cima no ceacuteurdquo como ldquoembaixo na terrardquo

(Dt 439) Para Martins Terra o ldquoemprego de Elohim7 natildeo pode ser interpretado como

reliacutequia de um antigo politeiacutesmo Israelitardquo ou seja Elohim se converte em sinocircnimo de

Iahweh o Deus uacutenico e verdadeiro

O nome divino de Elohim que se radica na liacutenguagem religiosa de todos os povos semitas do Antigo Oriente Proacuteximo reconhecido e confessado por Israel como o Deus pessoal e uacutenico ajudou o Antigo testamento a entender e proclamar o Deus da histoacuteria da Salvaccedilatildeo como Deus do universo como lemos na primeira linha da Biacuteblia ldquoNo principio Elohim criou os ceacuteus e a terrardquo (Martins Terra 1987 p 85)

Fazendo uma transiccedilatildeo do simbolismo indireto para o simbolismo direto

mostraremos o pai (matildee) como uma alegoria ou metaacutefora para Deus Vale observar que a

figura da matildee faz parte desta anaacutelise uma vez que esse simbolismo natildeo a exclui apenas

7 A palavra Elohim pode ser um desenvolvimento do termo Eloah (Deus) como uma forma de

representaccedilatildeo da pluralidade de pessoas existentes na divindade (Trindade) ou ainda a terminaccedilatildeo plural pode ser descrita como um plural de majestade natildeo com a intencionalidade de ser usado na forma de plural para referir-se a Deus Isto pode ser averiguado quando Elohim eacute usado com o verbo no singular bem como os adjetivos e pronomes tambeacutem no singular (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento 1998 p68-72)

23

inclui sua presenccedila No simbolismo direto os pais satildeo muito mais do que meros sinais da

natureza e presenccedila de Deus O profeta Oseacuteias nos mostra um Deus que ao mesmo

tempo em que eacute Pai tem para com Israel seu filho afetos que satildeo proacuteprios da matildee A

ternura os cuidados e o afeto de Deus em Oseacuteias satildeo comparados agraves caracteriacutesticas

proacuteprias que uma matildee tem por seus filhinhos

Quando Israel era menino eu o amei e do Egito chamei meu filho (hellip) Fui eu contudo quem ensinou Efraim a caminhar eu os tomei pelos braccedilos mas natildeo reconheceram que eu cuidava deles Com viacutenculo de amor eu os atraiacutea com laccedilos de amor eu era para eles como os que levantavam uma criancinha contra o seu rosto eu me inclinava para ele e o alimentava (Os 11 1-4)

Nesse texto vemos a ideia de que Israel era filho de Deus e que essa filiaccedilatildeo eacute

usualmente associada ao periacuteodo do deserto e eacute entendida como uma experiecircncia da

paternidade de Iahweh Contudo observamos no texto que Iahweh inclinava-se para

alimentaacute-los expressatildeo essa que denota uma funccedilatildeo especificamente desempenhada

pela figura materna Aleacutem disso em uma passagem do livro de Nuacutemeros Moiseacutes de

uma forma impliacutecita afirma que Deus eacute como uma matildee para Israel

[] Moiseacutes sentiu-se grandemente desgostoso e disse a Iahweh ldquoPor que fazes mal a teu servo Por que natildeo achei graccedila a teus olhos visto que me impusestes o encargo de todo este povo Fui eu porventura que concebi todo este povo Fui eu que o dei agrave luz para que me digas Leva-o em teu regaccedilo como a ama leva a crianccedila no colo agrave terra que prometi sob juramento a seus pais (Num 1110b-

12)rdquo

Esse texto soacute pode referir-se a Deus visto que Moiseacutes natildeo era a matildee daquele

povo portanto teoricamente natildeo tinha a responsabilidade de ser o protetor e nem o

provedor deles em momentos de crise Na visatildeo de Moiseacutes Deus era o responsaacutevel pelos

cuidados essenciais do povo assim como uma matildee cuida de seus filhos Dessa forma a

figura materna tambeacutem pode ser usada como uma designaccedilatildeo para Deus (Hamerton-

Kelly 1979 p 39-40)

Haacute ainda outros exemplos em que a imagem de Deus pode ser comparada a de

uma mulher que cuida de seus filhos como lemos em Isaiacuteas 4915

Por um acaso uma mulher se esqueceraacute de uma criancinha de peito Natildeo se compadeceraacute ela do filho do seu ventre Ainda que as mulheres se esquecessem

24

eu natildeo me esqueceria de ti

Na simbologia em que Deus exerce as funccedilotildees de provedor protetor e mantenedor

de seu povo encontramos textos em que Ele exerce funccedilotildees ora como Pai e ora Matildee

Segundo Hamerton-Kelly no livro do profeta Isaiacuteas (66 10-13) encontramos uma

imagem de Deus como a de uma matildee bem como em Deuteronocircmio 131 e 85 em que

encontramos em ambos os textos a imagem de Deus que como um homem (pai) educa

os seus filhos pelo caminho correto Portanto numa visatildeo simboacutelica Deus eacute apresentado

ora como pai e ora como matildee do povo (Hamerton-Kelly 1979 p40)

Alegrai-vos com Jerusaleacutem exultai nela todos os que a amais regozijai-vos com ela todos os que por ela estaacuteveis de luto pois sereis amamentados e saciados

pelo seu seio consolador pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo Com efeito assim diz Iahweh Eis que trarei a Paz como um rio e a gloacuteria das naccedilotildees como uma torrente transbordante Sereis amamentados sereis carregados sobre ancas e acariciados sobre os joelhos Como a uma pessoa que a sua matildee consola Assim eu vos consolarei Sim em Jerusaleacutem sereis consolados (Is 66 10-13)

Como tambeacutem no deserto onde vistes que o SENHOR vosso Deus nele vos levou como um homem leva seu filho por todo o caminho que andastes ateacute chegardes a este lugar Deuteronocircmio 131 Sabes pois no teu coraccedilatildeo que como um homem castiga a seu filho assim te castiga o SENHOR teu Deus Deuteronocircmio 85

Mesmo diante de vaacuterios textos em que observamos Deus exercendo figuradamente

as funccedilotildees de pai e matildee natildeo temos um texto em que Deus seja diretamente chamado de

matildee e nem mesmo Jesus jamais invocou a Deus como matildee Segundo Matthias Grenzer

a razatildeo disso encontra-se no fato de Deus ser diversas vezes tratado como o esposo ou

o amado enquanto que Israel eacute descrito como a virgem noiva mulher amada ou ateacute

mesmo como prostituta (cf Jr 2-3 Ez16 Os 2 e Ct) Dentro desse imaginaacuterio a figura de

Deus eacute vista como a parte masculina enquanto que a naccedilatildeo de Israel ocupa a parte

feminina sendo assim essa seria a razatildeo de Deus ldquoser chamado somente de Pai e natildeo

de matildeerdquo (Grenzer 2009 p 182)

Ainda em relaccedilatildeo agrave paternidade de Deus no Antigo Testamento Sabugal observa

que a mesma eacute sempre vista nos seguintes aspectos Deus como o Pai do povo de Israel

(Is 6316) Pai do rei (2 Sam 7 14 Sl 8927) Pai dos justos israelitas (Sab 216) e

tambeacutem como Rei Messiacircnico (2Sm 7 12-16) (Sabugal 1985 p370)

25

Yahveh com efeito eacute o Pai de Israel por haver resgatado ltltdesde sempregtgt (Is 6316b) primeiro do Egito (Jer 34 cf Ez 23 319) e depois da Babilocircnia (cf Jer 319) tambeacutem por haver-lhes criado mediante a alianccedila (Dt 366 Mal 210 cf 317) conduzindo-o pelo deserto e corrigindo-o ltltcomo um pai a seus filhosgtgt (Dt 131 85) provando-o paternalmente (Sab 1110) e paternalmente amando-o (cf Mal 317) pois ele fez o seu povo que o confessa como Pai (Is 6319 647) e como tal deve honrar (Mal 16) Israel eacute consequentemente o filho de Deus seu primogecircnito (Ex 422 Jer 319) e ltlt filho tatildeo amadogtgt (Jer 3120) a quem desde o Ecircxodo elegeu por pai (Nuacutem 1112 Dt 32 518) e modelou (cf Is 647) por ter-lhes amado (Os 111) ltlt com um amor eternogtgt (Jer 313) tornando-se assim mesmo os israelitas a raiz da eleiccedilatildeo divina realizada na alianccedila do Sinai ltlt filhos de Yahvehgtgt (cf Dt 326 Mal 317) como membros de ltltum povo consagrado a seu Deusgtgt (Dt 14 1-2 Sal 7315) E certo que como ltltfilhos rebeldesgtgt (Is 30 19) esqueceram ltlto Deus que os criougtgt (Jer 321 Dt 3218) mas se como ltltfilhos apoacutestatasgtgt ouvirem a exortaccedilatildeo e converterem-se (Jer 3 1422) seratildeo novamente chamados ltlt filhos do deus vivogtgt (Os 21) que mostrando-se ltltindulgente para com eles como um pai com um filho que lhe servegtgt (Mal 317) uma vez mais os salvaraacute Israel segue sendo o ltltfilho amadogtgt e ltltmenino mimadogtgt de Yahveh (Jer 319) (Sabugal 1985 p 371)

Em suma podemos observar que o conceito que os israelitas tinham de Deus como

Pai defendido por J Jeremias fundamenta-se na tese de que a paternidade de Deus

sobre Israel eacute diferente da paternidade divina entre os demais povos antigos De fato o

Deus dos israelitas natildeo eacute um pai por geraccedilatildeo fiacutesica (Sabugal 1985 p371) e nem mesmo

o progenitor dos deuses e dos homens (Sabugal 1985 p368) como criam os demais

povos antigos Contudo observamos que a figura de Deus metaforicamente exerce

funccedilotildees que satildeo em suas origens de ofiacutecio materno e de ofiacutecio paterno

Realmente o Antigo Testamento eacute rico em metaacuteforas para Deus Christopher J H

Wrighth nota que entre as imagens humanas para Deus no Antigo Testamento

encontramos que ele eacute rei juiz e redentor Tambeacutem Yahweh eacute comparado a um pastor

soldado ou a um agricultor Yaweh pode ser chamado tambeacutem de rocha abrigo escudo

esconderijo leatildeo fogo ou uma fonte de aacutegua (Wright 2007 p 22)

Uma outra maneira de se observar a figura de Deus como Pai no Antigo Testamento

eacute atraveacutes dos nomes teofoacutericos Geza Vermes vecirc que a representaccedilatildeo de Deus como Pai

eacute um elemento baacutesico na Teologia do Antigo Testamento Vermes cita trecircs nomes como

exemplo os quais ldquoproclamam uma relaccedilatildeo de parentesco entre Deus e os membros

individuais do povo Judeurdquo 8 Tais nomes como Abiel (Deus eacute meu Pai) Eliab (meu Deus

eacute Pai) Abijah (Yah [Yahweh Jeovaacute eacute meu Pai] segundo Vermes atestam o conceito de

que Deus era invocado como Pai no judaiacutesmo veterotestamentaacuterio (Vermes 2006 p 259)

9 Sobre a imagem de Deus Pai na Biacuteblia Vermes concorda que ela natildeo eacute tatildeo

8 Acredito que com o termo parentesco Vermes natildeo estaacute se referindo a ancestralidade conforme

debatemos acima baseado no pensamento de J Jeremias 9 Matthias Grenzer tambeacutem coloca esses nomes citados por Vermes como uma forma de ver ldquoo

comportamento do Senhor Deusrdquo comparado a atitude de um Pai humano Grenzer ainda menciona o nome do sobrinho de Davi Joab cujo significado eacute ldquoJaveacute (Yahweh) eacute Pairdquo (Cf Grenzer 2009 p 180)

26

abundantemente atestada nas Escrituras contudo a familiaridade dessa imagem eacute

manifesta na ldquovariedade de nomes teofoacutericos que conteacutem o elemento ab (Pai)rdquo Sobre os

nomes teofoacutericos ele diz ainda que

Eles empregam tanto os tiacutetulos divinos do hebraico YH (W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai) ou YoAB (Yo eacute o Pai) Do mesmo modo temos Abbi eL e ELIab (Deus eacute o Pai) em nomes judaicos da era preacute-exiacutelica e do Segundo Templo Abram e Abiram (Pai excelso e Meu Pai eacute exaltado) que podem ser rastreados agrave idade patriarcal representam o mesmo tipo Enquanto as nuances exatas do termo ldquoPairdquo permanecem vagas natildeo pode haver duacutevida de que mesmo em niacutevel individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de famiacutelia Essa antiga atitude subjacente eacute explicitamente expressa principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da naccedilatildeo judaica Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusatildeo a eles como seus filhos (Vermes 1995 p158-159)

Para Christopher Wright a ocorrecircncia desses nomes metafoacutericos no Antigo

Testamento demonstra como a ideia de Deus como Pai era bem aceita nesse periacuteodo

Para esse autor pais que davam nomes aos filhos como Joabe (Yahweh eacute meu pai) ou

Abiel (Deus eacute meu Pai) tinham algum conhecimento metafoacuterico de Deus como Pai

Portanto para Israel o conhecimento de Deus como Pai pode ser mais bem

compreendido sob o ponto de vista que para eles Deus eacute comparado com um pai

humano que disciplina mas ensina seus filhos Como Pai ele tambeacutem se compadece

carrega adota os sem-teto e os oacuterfatildeos enfim ele eacute o Pai em que podemos encontrar

perfeita seguranccedila (Wright 2007 p24-25 38-39)

27

3 O JESUS HISTOacuteRICO

Depois de investigarmos a relaccedilatildeo de Deus como ldquoPairdquo entre os povos antigos

aproximamo-nos do ponto central da pesquisa Jesus de Nazareacute o qual segundo J

Jeremias trouxe-nos uma nova forma ou seja deu um novo enfoque sobre o termo Pai

quando dirigido a Deus Para um melhor embasamento sobre a relaccedilatildeo de Jesus com

Deus Pai buscaremos entender o homem chamado Jesus dentro das pesquisas

modernas sobre ldquoa vida de Jesusrdquo bem como das fontes evangeacutelicas disponiacuteveis no Novo

Testamento Procurar conhecer Jesus partindo do meio social em que ele esteve inserido

com certeza torna a pesquisa sobre o Cristo mais profunda e interessante uma vez que

Jesus antes de ser conhecido e pregado como Cristo foi um cidadatildeo judeu que viveu na

Galileia para ser mais preciso na pequena e humilde Nazareacute

31 Eacute POSSIacuteVEL BUSCAR POR UM JESUS HISTOacuteRICO

Jesus de Nazareacute constitui personagem histoacuterico da maior importacircncia a comeccedilar pelo proacuteprio calendaacuterio hoje universal baseado na era cristatilde Uma parte consideraacutevel da humanidade professa a feacute cristatilde e outra parte considera Jesus como um profeta Para aleacutem do Cristianismo e do Islamismo Jesus constitui para outros crentes ou para agnoacutesticos e ateus uma referecircncia fundamental pela diferenccedila contraste ou oposiccedilatildeo No entanto o Jesus da histoacuteria aquele homem galileu que viveu haacute dois mil anos ainda constitui um grande desconhecido O Cristo da feacute dominou por muitos seacuteculos as reflexotildees sobre este homem de singular significaccedilatildeo As paixotildees das discussotildees teoloacutegicas foram muitas mas o homem Jesus foi tocado pelos estudiosos apenas nos uacuteltimos dois seacuteculos

(Funari 2009 p 7 in Chevitarese A L Cornelli G)

A busca pelo Jesus da histoacuteria tem mais de 200 anos No final do seacuteculo XVIII um

pequeno nuacutemero de bravos europeus comeccedilou a aplicar criacutetica literaacuteria a livros histoacutericos

do Novo Testamento Segundo E P Sanders a pesquisa sobre Jesus escrita durante

esse periacuteodo de 200 anos por estudiosos seacuterios e determinados trouxe resultados

bastante diversificados sobre o assunto o que levou muitos a pensar que na realidade

natildeo sabemos nada sobre o Jesus da histoacuteria No entanto essa eacute uma reaccedilatildeo exagerada

uma vez que sabemos muitas coisas O problema consiste em saber conciliar os nossos

conhecimentos com as nossas esperanccedilas e aspiraccedilotildees a respeito da vida e ministeacuterio de

Jesus (Sanders 2005 p21)

A pesquisa sobre a vida de Jesus pode ser dividida em cinco fases conforme as

descrevem Gerd Theissen e Annette Merz A primeira fase tem como principais

representantes Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-

28

1874) 10 Reimarus um professor de liacutenguas orientais de Hamburg teve seus escritos

principais publicados somente apoacutes a sua morte por G E Lessing o qual a partir de

1774 comeccedilou a publicar as partes mais importantes do ensaio sobre ldquoApologia ou

Escritos de Defesa para os adoradores Racionais de Deusrdquo Em 1778 ele tinha publicado

sete fragmentos da obra quando iniciou o tratamento da vida de Jesus em perspectiva

puramente histoacuterica (Theissen amp Merz 2004 p21) Conforme Albert Schweitzer estes

satildeo os tiacutetulos dos fragmentos de Reimarus publicados por Lessing (Schweitzer 2003 p

23)

1 A Toleracircncia dos Deiacutestas

2 A Desmoralizaccedilatildeo da Razatildeo no Puacutelpito

3 A Impossibilidade de uma Revelaccedilatildeo em que todos os homens teriam bons motivos

para acreditar

4 A Passagem dos Israelitas pelo Mar Vermelho

5 Demonstrando que os Livros do Antigo Testamento natildeo foram escritos para revelar

uma religiatildeo

6 Acerca da Histoacuteria da Ressurreiccedilatildeo

7 Os objetivos de Jesus e seus Disciacutepulos

Reimarus de acordo com Theissen defendeu a ideia de que Jesus natildeo fundou

uma nova religiatildeo e tambeacutem nunca teve a intenccedilatildeo de desfazer-se do judaiacutesmo visto que

ele sempre esteve inserido na religiatildeo Judaica A pregaccedilatildeo de Jesus era sempre baseada

na apocaliacuteptica judaica O reino prometido por Jesus segundo Reimarus era um reino

terreno nos mesmos moldes e expectativas do pensamento judaico de sua eacutepoca

Portanto para Reimarus ldquoJesus eacute uma figura judaica profeacutetico-apocaliacutepticardquo ou seja

apenas um judeu enquanto que o cristianismo nada mais era do que uma invenccedilatildeo dos

apoacutestolos (Theissen e Merz 2004 p21) Martins Terra fazendo uma anaacutelise do

pensamento de Reimarus sobre a pessoa de Jesus conclui que para o referido teoacutelogo

ldquoJesus natildeo passou de um poliacutetico ambicioso e seus disciacutepulos foram verdadeiros

falsaacuteriosrdquo Na analogia de Reimarus Jesus e sua pretensatildeo poliacutetica terminaram com o

fracasso e a morte na cruz Sobre a ressurreiccedilatildeo de Jesus ele teria dito que foram os

disciacutepulos roubaram o cadaacutever inventaram a mensagem de sua ressurreiccedilatildeo e da vinda

futura Para concluir o pensamento de Reimarus sobre a imagem que temos de Jesus a

10

Essa fase eacute tambeacutem conhecida como a ldquoold questrdquo Essa fase natildeo eacute movida pelo cientificismo mas tem como caracteriacutesticas a rejeiccedilatildeo aos dogmas da Igreja a diferenciaccedilatildeo entre os sinoacuteticos e Joatildeo como fontes histoacutericas a colocaccedilatildeo de Jesus dentro do contexto escatoloacutegico de seu tempo e a ecircnfase sobre o Evangelho de Marcos como sendo o mais antigo dos Evangelhos (Schiavo 2006 p 15-17)

29

partir dos Evangelhos ele afirma que isso foi apenas criaccedilatildeo e ldquofrauderdquo dos disciacutepulos (cf

Martins Terra 1977 p10-12)

Strauss que foi filoacutesofo e teoacutelogo publicou em 18351836 a obra intitulada Vida de

Jesus Para Schweitzer ele natildeo estaacute entre os grandes teoacutelogos mas foi o mais sincero

(Schweitzer 2003 p85) Strauss aplicou aos Evangelhos o conceito de mito algo que jaacute

era comum nas pesquisas sobre o Antigo Testamento de sua eacutepoca (Theissen e Merz

2004 p22) Para ele mesmo que os Evangelhos (sinoacuteticos) tenham sido escritos num

periacuteodo de aproximadamente 40 anos apoacutes a morte de Jesus isso natildeo impede de que

estejam misturados com o mito Ele deixa sua forma de pensar mais evidente quando diz

que ldquonatildeo eacute preciso que um grande homem esteja morto haacute muito tempo para que a lenda

jaacute se ocupe da sua vidardquo (Schweitzer 2003 p 98) Contudo precisamos entender qual eacute

o verdadeiro sentido do mito religioso conforme nos descreve Schweitzer

[] a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha compreendido o caraacuteter essencial do mito religioso Ele nada mais eacute do que ideias religiosas vestidas em uma forma histoacuterica modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda e corporificado numa personalidade histoacuterica Ateacute por motivos a priori somos quase compelidos a assumir que o Jesus histoacuterico nos encontraraacute com as vestes das ideias messiacircnicas do Antigo Testamento e expectativas do cristianismo primitivo (Schweitzer p98)

Segundo Schweitzer a diferenccedila entre Strauss e os seus predecessores eacute que

para aqueles se aplicassem rigorosamente o conceito de mito agrave vida histoacuterica de Jesus

havia um grande questionamento sobre se restaria alguma coisa do Jesus histoacuterico

enquanto que para este essa questatildeo natildeo apresentava nada que fosse considerado um

terror (Schweitzer 2003 p98) Theissen assim resume Strauss ldquoPara Strauss

hegeliano declarado o cerne da feacute cristatilde natildeo eacute atingido pela abordagem miacutetica pois no

indiviacuteduo histoacuterico Jesus realiza a ideia da humanidade de Deus a mais sublime de todas

as ideias O mito eacute a roupagem legiacutetima de tipo histoacuterico dessa humanidade geralrdquo

(Theissen 2004 p22)

De uma forma sucinta Theissen descreve as demais fases da seguinte forma a

segunda eacute denominada como a fase do ldquootimismo da pesquisa liberal sobre a vida de

Jesusrdquo Essa fase eacute marcada por um florescimento do liberalismo teoloacutegico sobre a vida

de Jesus sob o ponto de vista de pesquisadores na Alemanha onde era esperado que se

chegasse agrave reconstruccedilatildeo histoacuterico-criacutetica da histoacuteria de Jesus e de sua personalidade

Essa escola teve como seu principal representante Heinrich Julius Holtzmann (1832-

1910) Destaca-se nessa fase que enquanto F Chr Baur demonstrou a primazia dos

sinoacuteticos sobre o Evangelho de Joatildeo Holtzmann contribuiu para que a teoria das duas

30

fontes desenvolvida por Christian Gottob Wilke e Christian Hermann Weise tornasse-se

um sucesso duradouro (Theissen e Merz 2004 p23)

A terceira fase eacute definida como ldquoo colapso da pesquisa sobre a vida de Jesusrdquo 11

Trecircs foram os motivos para tal colapso o primeiro fator foi a obra de Schweitzer Histoacuteria

de Investigaccedilatildeo da vida de Jesus que provocou o desvelamento das imagens das Vidas

de Jesus criadas pela teologia liberal que conforme os olhos de cada autor revelava-se a

estrutura de personalidade de Jesus com o ideal eacutetico que cada autor almejava O

segundo motivo estaacute concentrado na pessoa de W Wrede que em 1901 demonstrou ldquoo

caraacuteter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesusrdquo Para

Wrede o Evangelho de Marcos era a expressatildeo dogmaacutetica da comunidade cristatilde

primitiva que projetou sobre Jesus de Nazareacute a messianidade do Jesus poacutes-pascal E

por fim K L Schmidt demonstra o ldquocaraacuteter fragmentaacuterio dos evangelhosrdquo Para Schmidt

o Evangelho de Marcos eacute composto por periacutecopes que foram juntadas cronoloacutegica e

geograficamente somente mais tarde pelo autor Sendo assim desaparece totalmente a

possibilidade de se construir uma personalidade de Jesus visto que a histoacuteria das formas

reconhece que as periacutecopes foram juntadas primeiramente para satisfazer as

necessidades das comunidades e soacute em segundo plano como recordaccedilotildees histoacutericas

(Theissen e Merz 2004 p24)

Diante desses movimentos ceticistas surge uma teologia que ora amortece ora

aguccedila ainda mais os debates em torno das pesquisas sobre as Vidas de Jesus Nesse

sentido Rudolf Bultmann (1884 -1976) expotildee a sua teologia dialeacutetica contrapondo Deus e

o mundo de uma forma tatildeo radical a tal ponto que seria possiacutevel um encontro entre

ambas as partes apenas em um ponto assim ldquocomo uma tangente toca um ciacuterculordquo

(Theissen e Merz 2004 p24) Para Bultmann o fator decisivo natildeo era o que Jesus disse

ou fez mas sim o que Deus disse ou fez na cruz e na ressurreiccedilatildeo Nesse sentido

Bultmann afirma que o ensino de Jesus natildeo eacute relevante para a feacute cristatilde e partindo desse

pensamento Theissen define a teologia de Bultmann nas seguintes palavras ldquoSe D F

Strauss viu a verdade do mito de Cristo na ldquoideiardquo R Bultmann a viu no querigma um

chamado de Deus vindo de forardquo (Theissen e Merz 2004 p24-25)

11

Schiavo define essa fase como a ldquono questrdquo Os principais nomes dessa fase satildeo Wrede Dibelius Schmidt e Bultmann Neste movimento os Evangelhos satildeo considerados como um conjunto de tradiccedilotildees desarticuladas e pequenas (periacutecopes) sem interesses histoacutericos A finalidade principal dos Evangelhos estaacute centrada no fato de transmitir mensagens espirituais catequeacuteticas e lituacutergicas para os cristatildeos da Igreja Primitiva Sendo assim eacute impossiacutevel conhecer o Jesus histoacuterico pois a imagem que temos dele nos Evangelhos eacute querigmaacutetica e centrada no Jesus da feacute (Schiavo 2006 p 17-18)

31

A quarta fase eacute definida por Theissen como ldquoa nova pergunta pelo Jesus histoacutericordquo

12 Essa fase desenvolvida pelos disciacutepulos de Bultmann pergunta ou busca uma relaccedilatildeo

a partir do Jesus querigmaacutetico questionando se ldquosua exaltaccedilatildeo na cruz e na ressurreiccedilatildeo

tem alguma base na pregaccedilatildeo preacute-pascalrdquo Os pressupostos para tal questionamento satildeo

fundamentados nas seguintes pressuposiccedilotildees ldquoO querigma cristoloacutegico compromete-se

com a pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Isso se fundamenta segundo essa escola no fato

de que ldquoa identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado eacute pressuposta em todos os

escritos do cristianismo primitivordquo (Theissen e Merz 2004 p25ndash26) O segundo

pressuposto eacute ldquoa base metodoloacutegica da pergunta pelo Jesus histoacutericordquo Segundo

Theissen esse pressuposto metodoloacutegico eacute ldquoa confianccedila de que se pode encontrar um

miacutenimo criticamente assegurado de tradiccedilatildeo autecircntica de Jesus quando se exclui o que

pode ser derivado tanto do judaiacutesmo como do cristianismo primitivordquo Entende-se que

nessa quarta fase para os disciacutepulos de Bultmann a busca de um fundamento preacute-pascal

que apoie o querigma de Cristo independe do fato de Jesus ter usado algum tiacutetulo

cristoloacutegico visto que isso jaacute estaacute impliacutecito em seu ministeacuterio e em seu anuacutencio (Theissen

e Merz 2004 p26)

Finalmente surge a quinta fase conforme Theissen denominada de ldquoa third

quest13 pelo Jesus Histoacutericordquo Essa fase predominantemente exposta no mundo de fala

inglesa diferencia-se das anteriores pelos seguintes aspectos o interesse histoacuterico-social

substitui o teoloacutegico a inserccedilatildeo de Jesus no Judaiacutesmo ao inveacutes de separaacute-lo como os

disciacutepulos de Bultmann procura fazecirc-lo e por fim haacute uma abertura para as fontes natildeo

canocircnicas substituindo a preferecircncia apenas por fontes canocircnicas A third quest dividiu a

pesquisa sobre Jesus em diferentes correntes No entanto segundo Theissen essa

variedade de interpretaccedilotildees e figuras de Jesus que pode ser visto tanto como um ciacutenico

judeu ou como um personagem colocado no centro do judaiacutesmo a espera do

restabelecimento de um reino escatoloacutegico daacute a essas correntes um tom de

plausibilidade ou seja ldquoo que eacute plausiacutevel no contexto judaico e torna compreensiacutevel o

12

Conhecida como a ldquoNew questrdquo a New quest caracteriza-se por diferenciar o que eacute proacuteprio do judaiacutesmo com o que eacute tambeacutem proacuteprio do cristianismo primitivo Dessa forma seria possiacutevel chegar ao Jesus da histoacuteria Ernst Kaumlsemann eacute um dos representantes dessa escola Para Schiavo J Jeremias tambeacutem pode ser representado nessa escola Visto que o mesmo com a ajuda da filologia e conhecimentos profundos do aramaico tentou reconstruir os ditos autecircnticos de Jesus (Schiavo 2006 p 18)

13 Schiavo complementa que essa fase que teve iniacutecio a partir da deacutecada de 1980 deixa de ser

exclusividade da academia alematilde e a pesquisa do Jesus histoacuterico passa a fazer parte da academia anglo-americana Este movimento tem como caracteriacutesticas principais os seguintes toacutepicos O interesse histoacuterico-socioloacutegico para com o mundo judaico do seacuteculo I dC a inserccedilatildeo de Jesus dentro do Judaiacutesmo A referecircncia agraves fontes natildeo canocircnicas e a aproximaccedilatildeo da fonte Q com o Evangelho de Tomeacute Dentre os representantes dessa escola encontram-se Crossan Sanders Meyer Vermes Freyne Horsley e Theissen (Schiavo 2006 p 18-19)

32

surgimento do cristianismo primitivo poderia ser histoacutericordquo (Theissen e Merz 2004 p28ndash

29)

32 A BUSCA PELO JESUS HISTOacuteRICO

Um dos temas da teologia que tem levantado inuacutemeras questotildees a mais de dois

seacuteculos eacute a busca histoacuterica por Jesus de Nazareacute um humilde judeu que viveu na Galileia

agraves margens do Mediterracircneo Sean Freyne avalia que ldquoas muitas idas e vindas dos

estudos que marcam a busca pelo Jesus histoacuterico tecircm sido uma preocupaccedilatildeo constante

da teologia ocidental por mais de dois seacuteculos e mesmo assim nenhum consenso foi

atingido a respeito da identidade de Jesus e do movimento que ele fundourdquo (Freyne 2008

p1) Sobre a possibilidade de se buscar pelo Jesus histoacuterico Freyne observa que hoje

natildeo eacute mais suficiente apenas assumir uma posiccedilatildeo numa questatildeo por demais debatida Eacute

necessaacuterio que o pesquisador aleacutem de ter conhecimentos da histoacuteria da antiguidade

tambeacutem possua conhecimentos de arqueologia ciecircncias sociais e particularmente de

antropologia cultural (Freyne 2008 p2) Isso demonstra que haacute necessidade de uma

visatildeo interdisciplinar entre essas ciecircncias e seus pesquisadores

A pergunta sobre o Jesus histoacuterico segundo J Jeremias chega a ser absurda e

sem significaccedilatildeo para a feacute cristatilde apenas para aqueles que natildeo conhecem a questatildeo Ele

ainda pergunta ldquoComo eacute possiacutevel que esta questatildeo seja a questatildeo central de todas as

discussotildees sobre o Novo Testamentordquo (Jeremias 2005 p199) Segundo J Jeremias eacute

hora de questionarmos as teorias de Rudolf Bultmann que propagam que o Jesus

histoacuterico eacute irrelevante para a feacute cristatilde e a teoria que apregoa que o Jesus histoacuterico e o

Cristo proclamado pela Igreja natildeo satildeo as mesmas de Reimarus (Jeremias 2005 p 200)

Partindo das questotildees levantadas por J Jeremias e da forma como Bultmann diverge

desse pensador um diaacutelogo sobre a questatildeo eacute sempre gratificante para darmos pelo

menos um passo agrave frente no que se refere ao Jesus histoacuterico

Tendo em vista a amplitude da questatildeo acima levantada fica evidente que

trabalhar temas relacionados agrave vida do Jesus histoacuterico eacute sempre desafiador Muitos foram

os teoacutelogos e pensadores que a partir do ano de 1778 ano em que nasce o ldquoproblema do

Jesus histoacutericordquo (Jeremias 2005 p 200) esforccedilaram-se nessa tarefa com um espiacuterito

criacutetico e investigativo a fim de encontrar evidecircncias histoacutericas a respeito do homem mais

marcante de toda a histoacuteria da humanidade Tambeacutem natildeo significa que antes de Reimarus

33

o Jesus histoacuterico fosse negligenciado a questatildeo eacute que os teoacutelogos e historiadores desde

a igreja primitiva haviam sustentado que os Evangelhos eram documentos dignos de

absoluto creacutedito acerca da vida e histoacuteria de Jesus por isso tiveram a preocupaccedilatildeo de

apenas parafrasear e harmonizar os Evangelhos uma vez que natildeo viam necessidade de

uma investigaccedilatildeo aleacutem das fontes canocircnicas (Jeremias 2005 p 200) As palavras de Udo

Schnelle assim resumem a teologia do Jesus histoacuterico

A pergunta histoacuterica por Jesus eacute uma filha do iluminismo Para os periacuteodos anteriores era evidente que os Evangelhos transmitiam notiacutecias confiaacuteveis sobre Jesus Antes do Iluminismo a pesquisa neotestamentaacuteria dos Evangelhos limitava-se essencialmente agrave harmonizaccedilatildeo dos quatros Evangelhos Na praacutetica a Exegese do Novo Testamento era uma disciplina auxiliar da Dogmaacutetica (Schnelle 2010 p 70)

Ainda com relaccedilatildeo agrave pesquisa sobre o Jesus histoacuterico Joseacute Antonio Pagola diz

que quando nos referimos ao Jesus histoacuterico ldquoestamos falando do conhecimento de

Jesus que os historiadores podem obter utilizando os meacutetodos cientiacuteficos da moderna

investigaccedilatildeo histoacutericardquo (Pagola 2010 p13)

A magnitude de se escrever sobre o Jesus da Galileia eacute descrita por Schweitzer

com as seguintes palavras ldquo[] natildeo haacute tarefa histoacuterica que revele o verdadeiro interior de

um homem como a de escrever uma Vida de Jesus Nenhuma forccedila vital move o

personagem a natildeo ser que o homem sopre nele todo o oacutedio ou todo o amor de que eacute

capaz Quanto mais intenso o amor ou o oacutedio mais realista eacute a figura produzidardquo

(Schweitzer 2003 p11) Em outras palavras Schweitzer diz que aqueles que buscaram

despir Jesus do sobrenatural acabaram descobrindo fatos que enalteceram ainda mais a

sua histoacuteria Para Schweitzer tanto o oacutedio quanto o amor leva o escritor a investigaccedilotildees

profundas no intuito de provar verdade ou falsidade de um acontecimento histoacuterico Nesse

sentido as maiores produccedilotildees a respeito do Jesus histoacuterico foram escritas com oacutedio e

entre elas segundo Schweitzer estatildeo as de Reimarus e a de Strauss (Schweitzer 2003

p11)

Segundo J Jeremias a tese defendida por Reimarus em que Jesus eacute visto como

um revolucionaacuterio poliacutetico que fracassou na cruz quando exclamou ldquoDeus meu Deus

meu por que me desamparastesrdquo era estuacutepida e artificial visto que Jesus natildeo foi um

revolucionaacuterio poliacutetico e sempre reagiu energicamente contra todas as tendecircncias

nacionalistas dos zelotas Ao fazer uma anaacutelise do momento em que Reimarus escreveu

J Jeremias relata que Reimarus estava fazendo uma investigaccedilatildeo voltada ao homem

Jesus para sua personalidade sua religiatildeo e natildeo voltada para o dogma cristoloacutegico e

34

que a princiacutepio tinha como objetivo libertar-se dos dogmas da igreja (Jeremias 2005 p

201)

O resultado desses trabalhos sobre ltltas vidas de Jesusgtgt nos legaram muitas

imagens de sua personalidade que produzem risos Para os racionalistas Jesus eacute visto

como um pregador de moral para os idealistas a quintessecircncia do humanismo e por fim

para os estetas ele eacute posto como o amigo dos pobres e como um reformador social

Assim satildeo inuacutemeras as imagens que fazem de Jesus um personagem de romance

Jesus portanto eacute modernizado conforme as imagens carregadas de fantasias de cada

autor conforme os seus ideais suas eacutepocas ou suas teologias (Jeremias 2005 p 201)

J Jeremias questiona entatildeo onde estaria o erro E a resposta estaacute no fato de que

esses escritores ltltdas vidas de Jesusgtgt sem ter a plena consciecircncia acabaram

substituindo o dogma cristoloacutegico pela psicologia e pela fantasia Haacute poreacutem um ponto em

comum em todas as obras sobre ltlt as vidas de Jesusgtgt todas elas tratam de desenhar

a personalidade de Jesus com a ajuda dos instrumentos da psicologia e da fantasia Os

padrinhos nesse esforccedilo natildeo satildeo apenas as fontes mas a maior parte pertence agrave

imaginaccedilatildeo criativa a uma construccedilatildeo psicoloacutegica livre de obstaacuteculos (Jeremias 2005 p

201-202)

Conforme J Jeremias Albert Schweitzer de uma forma traacutegica poreacutem com muita

destreza desmascara essas criaccedilotildees repletas de fantasias e depois ele mesmo cairia

em falta fazendo uma construccedilatildeo psicoloacutegica a partir do texto do Evangelho de Mateus

(10 23) declarando que a grande decepccedilatildeo na vida de Jesus foi natildeo ter chegado ao final

causando grandes mudanccedilas em sua vida a ponto de aceitar o sofrimento para forccedilar a

chegada do reino de Deus (Jeremias 2005 p 203)

Pesquisar a vida do Jesus histoacuterico eacute muito mais que contar a histoacuteria de um

grande homem Eacute deparar-se com um personagem vital para a histoacuteria da humanidade

que ldquoveio para reger sobre o mundo Ele o regeu para o bem e para o mal como a histoacuteria

testificardquo (Schweitzer 2003 p8) Jesus revolucionou o mundo de sua eacutepoca mudou o

rumo da histoacuteria inseriu-se nela como protagonista mesmo natildeo sendo essa a sua

intenccedilatildeo A histoacuteria do mundo natildeo poderia mais ser contada sem ele ou seja Jesus

dividiu a histoacuteria em o antes e o depois dele A grandiosidade do homem Jesus fascinou

tanto os que o amaram como aqueles que o odiaram Nesse sentido podemos justificar o

fato de tantos pensadores estudarem a respeito do Jesus histoacuterico com as palavras

atribuiacutedas a Hegel por Bernard Bourgeois ldquoUm grande homem condena os humanos a

explicaacute-lordquo (Bourgeois1995 p 375)

35

Segundo Schweitzer os cristatildeos primitivos preocuparam-se apenas em preservar

ditos isolados a respeito do Jesus histoacuterico A expectativa do retorno iminente do Mestre

pode ter sido o motivo principal que levou o cristianismo primitivo a preferir apenas fatos

relacionados ao ministeacuterio de Jesus a uma biografia completa do Jesus histoacuterico O autor

ainda considera isso como um impulso de autopreservaccedilatildeo visto que a introduccedilatildeo do

Jesus histoacuterico na feacute da comunidade primitiva seria algo novo jaacute que o proacuteprio Jesus natildeo

se preocupou em deixar uma autobiografia Pagola compartilha desse pensamento

dizendo que

os evangelistas natildeo compuseram uma ldquobiografiardquo de Jesus no sentido moderno desta palavra Seus escritos estatildeo impregnados de sua feacute no Cristo ressuscitado satildeo sumamente seletivos foram narrados em funccedilatildeo de problemas e necessidades das primeiras comunidades cristatildes e estatildeo ordenados para objetivos teoloacutegicos e concretos Por isso exigem um estudo criacutetico cuidadoso antes de podermos obter deles informaccedilotildees fidedignas para a investigaccedilatildeo (Pagola 2010 p17)

O fato de Jesus natildeo ter deixado nenhum texto escrito e o texto do apoacutestolo Paulo

na segunda carta aos Coriacutentios capiacutetulo cap 5 verso 16 ldquo[hellip] doravante a ningueacutem

conhecemos segundo a carne Tambeacutem se conhecemos Cristo segundo a carne agora jaacute

natildeo o conhecemos assimrdquo abriu o caminho para diversas interpretaccedilotildees acerca de Jesus

De fato Leonhard Goppelt menciona a interpretaccedilatildeo de Rudolf Bultmann segundo a qual

se infere que para Paulo a accedilatildeo terrena de Jesus natildeo teria tido a miacutenima importacircncia o

que importava era a feacute pascal Natildeo obstante a ldquofeacute pascal bem como a cristologia natildeo satildeo

simplesmente uma transfiguraccedilatildeo miacutetica do terreno Muito antes nelas toma forma o que

no Jesus terreno agia apenas de maneira ocultardquo (Goppelt 2002 p 46)

O pensamento de Bultmann a respeito da importacircncia de se investigar a vida e a

personalidade do Jesus histoacuterico se resume nas seguintes palavras

Natildeo podemos saber praticamente nada a respeito da vida e da personalidade de Jesus jaacute que as fontes cristatildes natildeo se interessaram por elas sendo ademais bastante fragmentaacuterias e encobertas pela lenda uma vez que natildeo existem outras fontes sobre Jesus O que se estaacute escrevendo haacute mais de um seacuteculo e meio sobre a vida de Jesus sua personalidade seu desenvolvimento interior e coisas semelhantes ndash uma vez que natildeo se trata de investigaccedilotildees criacuteticas ndash natildeo passa de fantasia e romance (Bultmann 2005 p 26)

Dessa forma o logos natildeo se torna verdadeiramente carne mas apenas palavra

(kerygma) Na visatildeo de Bultmann o Jesus histoacuterico natildeo faz parte da teologia do Novo

Testamento pois o objeto da teologia do Novo Testamento eacute o Cristo da feacute (pascal) Em

vista disso um estudo acerca do Jesus histoacuterico fica relegado a uma primeira etapa tal

qual uma primeira premissa no interior de um argumento mais elaborado (Bultmann

36

2004 p 24) J Jeremias enfatiza que para Bultmann a pregaccedilatildeo de Jesus eacute apenas

uma premissa entre muitas outras do Novo Testamento (Jeremias 2005 p 204)

Para J Jeremias Bultmann sofreu influecircncia de Martin Kaumlhler atraveacutes de sua obra

Der sogenannte historische Jesus und der geschichtiche biblische Cristus (O chamado

Jesus histoacuterico e o Cristo existencialmente histoacuterico e biacuteblico) Kaumlhler distinguiu por um

lado entre Jesus e Cristo e por outro entre historische (histoacuterico) e geschichtiche

(existencialmente histoacuterico) Por Jesus Kaumlhler compreendia o homem de Nazareacute tal

como foi descrito pelos que investigaram a vida do Jesus histoacuterico por Cristo ele entendia

como aquele que foi proclamado como o Salvador pela igreja Quanto ao significado do

adjetivo historische (histoacuterico) ele compreendia como uma mera designaccedilatildeo dos fatos do

passado e para geschichtiche (existencialmente histoacuterico) como aquele que tem um

significado permanente Portanto para Kaumlhler toda a tentativa de reconstruir a vida do

Jesus histoacuterico se contrapotildee ao Cristo biacuteblico e existencialmente histoacuterico tal como foi

pregado pelos apoacutestolos e para noacutes conforme Kaumlhler o que importa eacute unicamente o

Cristo da Biacuteblia conforme descrito pelos Evangelhos e natildeo as supostas reconstruccedilotildees

cientiacuteficas a respeito da pessoa de Jesus que chegam ateacute a passar a impressatildeo de uma

plena realidade dos fatos (Jeremias 2005 p 202)

A voz de Kaumlhler se extinguiu no vaacutecuo e natildeo surtiu um efeito pleno ateacute o ecoar da

voz de Bultmann que com coragem irredutiacutevel entrou no campo do inimigo e

abertamente lutou contra uma teologia que por um periacuteodo de aproximadamente cento e

cinquenta anos esforccedilou-se para chegar ao Jesus histoacuterico (Jeremias 2005 p 202)

Concordando com Kaumlhler Bultmann declara que todo o esforccedilo para chegar ao Jesus

histoacuterico foi um empreendimento insoluacutevel e infecundo que retirou a inexpugnaacutevel

fortaleza da proclamaccedilatildeo (kerigma) de Cristo (Jeremias 2005 p 203)

Os argumentos de Bultmann para a renuacutencia da teologia do Jesus histoacuterico

fundamentam-se no princiacutepio de que haacute falta de fontes seguras para a fundamentaccedilatildeo

dessa teologia Tambeacutem leva-se em consideraccedilatildeo que natildeo temos nada escrito pelas

matildeos de Jesus As uacutenicas fontes que temos a respeito de Jesus satildeo os Evangelhos e

esses natildeo satildeo biografias de Jesus mas satildeo apenas testemunhos de feacute secundaacuterios e

recobertos de lendas como no caso dos milagres Os Evangelhos segundo esse

pensamento satildeo a demonstraccedilatildeo de feacute dos evangelistas (Jeremias p 203) Concernente

agrave vida e agrave proclamaccedilatildeo de Jesus Bultmann assim descreve

37

[] Pouco sabemos sobre sua vida e personalidade ndash em compensaccedilatildeo sabemos o suficiente sobre sua proclamaccedilatildeo para pintar um quadro coerente Todavia tambeacutem nesse ponto recomenda-se um cuidado extremo em vista do caraacuteter das fontes que dispomos Pois o que as fontes nos oferecem eacute em primeira linha a proclamaccedilatildeo da comunidade que no entanto remonta em sua maior parte a Jesus Naturalmente isso prova que ele realmente tenha pronunciado todas as palavras que essa comunidade lhe pocircs na boca No caso de muitas palavras eacute possiacutevel demonstrar que soacute vieram a surgir na comunidade ao passo que no caso de outras elas foram reformuladas pela comunidade A investigaccedilatildeo criacutetica mostra que o conjunto da tradiccedilatildeo sobre Jesus ndash disponiacutevel nos trecircs evangelhos sinoacuteticos de Mateus Marcos e Lucas ndash se desmembra em uma seacuterie de camadas que em termos gerais podem ser distinguidas umas das outras com bastante seguranccedila mas cuja separaccedilatildeo em alguns detalhes apresenta dificuldades e levanta duacutevidas (Bultmann 2005 p 29-30)

Contudo essa visatildeo de Bultmann natildeo significa a negaccedilatildeo da existecircncia do homem

chamado Jesus de Nazareacute Segundo esse autor eacute possiacutevel conhecer muito dele atraveacutes

de suas pregaccedilotildees poreacutem na anaacutelise da criacutetica histoacuterica em relaccedilatildeo ao homem Jesus

conclui-se que natildeo haacute nada de importante para a feacute cristatilde (Jeremias 2005 p 203)

Quanto agrave questatildeo da existecircncia de Jesus vejamos o que nos diz Bultmann

[hellip] Eacute verdade que a duacutevida se Jesus realmente existiu eacute infundada e natildeo vale a pena gastar nenhuma palavra para refutaacute-la Eacute evidente que ele eacute o gerador do movimento histoacuterico cujo primeiro estaacutegio constataacutevel eacute representado pela comunidade palestinense mais antiga No entanto outra questatildeo eacute ateacute que ponto a comunidade preservou de modo objetivamente fiel a imagem dele e de sua proclamaccedilatildeo Para aqueles que tecircm interesse na personalidade de Jesus esse estado de coisas eacute inquietante e arrasador para nosso propoacutesito ele natildeo eacute de fundamental importacircncia (Bultmann 2005 p 30-31)

J Jeremias analisa entatildeo que para Bultmann Jesus de Nazareacute foi um profeta

judeu que permaneceu sempre dentro dos marcos do judaiacutesmo O Jesus histoacuterico

segundo Bultmann pode ser interessante para a teologia do Novo Testamento e para

compreender a origem do cristianismo mas natildeo tem significaccedilatildeo alguma para a feacute cristatilde

porque o cristianismo comeccedila com a Paacutescoa (Jeremias 2005 p204) Martins Terra expotildee

que o Jesus histoacuterico para Bultmann realmente eacute um profeta e sem duacutevida o maior

deles contudo profeta pertence ao Antigo Testamento Sendo assim Jesus era apenas

um judeu e natildeo um cristatildeo14 ldquoporque cristatildeo eacute aquele que acredita no Senhor

ressuscitado e natildeo aquele que funda sua feacute sobre uma figura histoacutericardquo (Martins Terra

1977 p21)

14

A resposta dada a Bultmann veio de seu disciacutepulo Ernst Kaumlsemann que observa que tanto Jesus quanto

os apoacutestolos eram judeus E se os apoacutestolos eram judeus natildeo eram eles tambeacutem cristatildeos desde o momento que seguiram a Jesus Kaumlsemann ainda pergunta teria havido algum keacuterygma sem a pregaccedilatildeo de Jesus Kaumlsemann chama a atenccedilatildeo para que Jesus natildeo se torne um pretexto e Cristo uma mera cifra mitoloacutegica (Martins Terra 1977 p 44)

38

Escrever uma biografia sobre o Jesus histoacuterico eacute algo descartado na teologia e isso

eacute visto com justiccedila por J Jeremias quando diz ldquo[] eacute muito correto afirmar que jaacute temos

despertado do sonho de acreditar que podemos escrever uma biografia de Jesusrdquo

(Jeremias 2006 p28) No entanto isso natildeo significa passar com indiferenccedila por essa

teologia eacute preciso voltar ao Jesus de Nazareacute e a sua pregaccedilatildeo As fontes nos

impulsionam a cada versiacuteculo dos Evangelhos a buscar pelo homem Jesus que

historicamente apareceu em Nazareacute e que foi crucificado no governo de Pocircncio Pilatos

(Jeremias 2006 p28) Leonard Swidler diz estar ciente tambeacutem das dificuldades para

se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade sobre o Jesus (Ieshua) histoacuterico

Contudo para ele podemos chegar ao fundamental ou seja podemos sempre lutar para

chegar mais perto Para Swidler a consciecircncia dessa limitaccedilatildeo permite que a pessoa

evite os extremos isto eacute tanto a ingecircnua certeza absoluta quanto o ceticismo total sobre

a possibilidade da busca pelo Jesus histoacuterico (Swidler 1993 p 16-18)

A visatildeo de Bultmann a respeito do Jesus histoacuterico natildeo foi seguida pelo seu

sucessor catedraacutetico em Magburg W G Kuumlmmel Para Kuumlmmel interpretar as palavras

de Paulo15 na letra do texto 2 Cor 516 e concluir que o Jesus terreno natildeo teve

importacircncia para o apoacutestolo eacute uma interpretaccedilatildeo ldquoseguramente errocircneardquo (Kummel 2003

p210) pois mesmo que elas natildeo tenham um papel tatildeo importante nos escritos do

apoacutestolo elas natildeo deixam de ser significantes Errocircneo para Kuumlmmel seria o fato de um

cristatildeo procurar ter uma relaccedilatildeo intraterrena com Jesus ou conhececirc-lo apenas

historicamente o que seria insignificante para um cristatildeo Rochus Zuurmond tambeacutem

define o pensamento do apoacutestolo Paulo sobre o versiacuteculo 16 acima mencionado da

seguinte forma

[hellip] Nessa periacutecope natildeo se trata da distinccedilatildeo entre o Jesus preacute-pascal e o poacutes-pascal mas da diferenccedila entre conhecer Jesus da maneira antiga e conhececirc-lo da maneira nova O Jesus poacutes-pascal ainda pode ser ldquoconhecidordquo da maneira antiga o jovem Paulo mas tambeacutem seus adversaacuterios atuais eacute disso um exemplo Em princiacutepio o Jesus preacute-pascal tambeacutem podia ser conhecido de maneira nova se fosse ldquotirado o veacuteurdquo na leitura do Antigo Testamento (314ss cf Jo 856) Mas na praacutetica isso se verificou impossiacutevel por causa da carne (Zuurmond 1998 p 87)

Conhecer Jesus ldquosegundo a carnerdquo na interpretaccedilatildeo de Zuurmond inclui com

certeza todo o conhecimento que podemos ter do Jesus histoacuterico Para ele Paulo natildeo

15

Kaumlsemann tambeacutem contrapotildee essa tese de Bultmann colocando os seguintes argumentos Se o Apoacutestolo Paulo natildeo levou em consideraccedilatildeo a vida terrena de Jesus e a Igreja jaacute estava realizada com o keacuterygma contido nas cartas paulinas por que entatildeo os Evangelhos tornaram-se necessaacuterios jaacute que foram escritos (os Sinoacuteticos) depois que Paulo jaacute tinha escrito todas as cartas Segundo Kaumlsemann a necessidade dos Evangelhos deu-se principalmente porque havia vaacuterios keacuterygmas e a necessidade do discernimento desses deu-se a princiacutepio pelo Espiacuterito todavia quando o entusiasmo cresceu tornou-se necessaacuterio o criteacuterio da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 44-45)

39

estava referindo-se ao Jesus histoacuterico quando fala ldquose jaacute conhecemos o cristo segundo a

carne agora jaacute natildeo o conhecemos maisrdquo (516) Toda a atividade cientiacutefica eacute carne ou

seja pode ser verificado com os recursos da historiografia moderna A pesquisa sobre o

Jesus histoacuterico eacute possiacutevel desde que ela natildeo tenha a pretensatildeo de ser a verdade absoluta

a respeito de Jesus Para Zuurmond o apoacutestolo estaacute enfatizando que o conhecimento

espiritual estaacute aleacutem do conhecimento cientiacutefico contudo natildeo eacute anticientiacutefico mas apenas

natildeo estaacute submisso a qualquer criteacuterio da ciecircncia Zuurmond conclui que ldquoPaulo tem

pouquiacutessima coisa para dizer sobre o Jesus histoacutericordquo uma vez que o apoacutestolo dos

gentios natildeo teria muito interesse pelo ldquotipo de conhecimento sobre Jesus que daiacute

resultariardquo (Zuurmond 1998 p88)

Voltando aos disciacutepulos de Bultmann ainda podemos mencionar Ernst Kaumlsemann

que tambeacutem contestou os ldquodogmasrdquo de seu mestre Para Kaumlsemann a pergunta pelo

Jesus histoacuterico e pelas palavras de Jesus eacute uma praacutetica e exigecircncia do Novo Testamento

visto que satildeo a base e o criteacuterio do keacuterygma Sem essas perguntas o Cristo da feacute se

tornaria em mera ideologia religiosa A importacircncia dessas questotildees torna relevante a

busca pelo Jesus da histoacuteria (cf Martins Terra 1977 p 32)

Como se pode compreender em diferentes eacutepocas pensadores divergiram a

respeito da histoacuteria da pessoa do humilde carpinteiro de Nazareacute As especulaccedilotildees a

respeito da vida do Jesus histoacuterico cresceram tanto pelos seus fieacuteis seguidores quanto

pelos seus mais aacutevidos inimigos pelo menos desde o seacuteculo II dC (tal como se pode ver

na calorosa refutaccedilatildeo de Oriacutegenes contra Celso) Em um periacuteodo mais recente teoacutelogos

e arqueoacutelogos tecircm procurado com maior intensidade dados a respeito do homem Jesus e

do estilo de vida que a comunidade do seu tempo vivia com a finalidade de compreender

melhor o contexto em que Jesus estava socialmente inserido

40

4 JESUS E SUA RELACcedilAtildeO COM OS DIVERSOS GRUPOS DE

SUA EacutePOCA O objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar o Jesus da histoacuteria dentro do contexto

dos grupos religiosos de sua eacutepoca a fim de observarmos ateacute que ponto Jesus teve

ou natildeo contato com tais grupos abaixo mencionados A preferecircncia de Jesus por um

determinado grupo poderia determinar o que era o Reino de Deus na visatildeo do jovem

pregador galileu Seria Jesus um adepto da seita dos apocaliacutepticos essecircnios dos

moralistas fariseus dos revolucionaacuterios zelotes ou ainda da ldquocorrompidardquo classe

sacerdotal dos saduceus Nos Evangelhos eacute que encontramos a histoacuteria de Jesus

uma vez que eles satildeo as principais fontes que possuiacutemos para montarmos a figura

do maior homem de todos os tempos Mas surgem algumas perguntas Seriam os

Evangelhos fontes histoacutericas confiaacuteveis na apresentaccedilatildeo do homem Jesus Sendo

Jesus pertencente agrave maioria da populaccedilatildeo ou seja da classe pobre e oprimida

pelos romanos teria ele sofrido alguma influecircncia do mundo helenizado da cidade

de Seacuteforis da qual tatildeo perto ele residia ou teria ele totalmente ignorado a cultura e

o mundo helecircnico-romano

Jesus o nazareno na condiccedilatildeo de Filho de Deus repudia todo o tipo de

opressatildeo uma vez que ele veio para ldquoproclamar a libertaccedilatildeo dos presosrdquo e

ldquoevangelizar os pobresrdquo (Lc 4-18) os quais satildeo felizes porque deles eacute o Reino de

Deus (Lc 620-23) Ao proclamar a bem-aventuranccedila dos pobres ele tambeacutem

proclama ldquomaldiccedilotildeesrdquo sobre os ricos que os oprimem e riem deles visto que chegaraacute

a hora em que os que dessa forma riem conheceratildeo o luto e as laacutegrimas (Lc 6 24-

26) Jesus ao ensinar os seus disciacutepulos a como se prevenir e se comportar diante

de uma sociedade poliacutetica e religiosa completamente desprovida do genuiacuteno amor

ao proacuteximo o Mestre da Galileia ensina os seus seguidores a serem

ldquomisericordiososrdquo como o Pai do Ceacuteu eacute misericordioso (cf Lc 6 36)

41

41 AS CONDICcedilOtildeES SOCIOECONOcircMICAS DA COMUNIDADE

CONTEMPORAcircNEA DE JESUS

Segundo J Jeremias Jesus16 era proveniente de uma famiacutelia pobre e isso

pode ser constatado na ocasiatildeo do sacrifiacutecio de purificaccedilatildeo ldquoMaria serviu-se do

privileacutegio dos pobres oferecer duas rolasrdquo (Lc 224 cf Lv 128) (Jeremias 1983

p165) No tocante ao seu modo de vida eram tantas as privaccedilotildees que natildeo tinha

onde repousar a cabeccedila (Mt 820 Lc 958) J Jeremias observa que ele natildeo possuiacutea

dinheiro - a histoacuteria do estaacuteter e do ldquotributo a Cesarrdquo o demonstram (Mt 17 24-27 Cf

Mc 12 13-17 Mt 22 15-22 Lc 20 20-26) - tambeacutem aceitou esmolas (Lc 8 1-3)

Jesus provavelmente foi considerado um escriba (da classe mais humilde

desse grupo) conforme subentende J Jeremias (1983 p 59-165) Bultmann

tambeacutem concorda que Jesus era chamado pela tradiccedilatildeo de Rabi (Mc 95 1051

11121 1445) Para ele o tiacutetulo rabi foi substituiacutedo pelos evangelistas de origem

grega quase que completamente pela forma de tratamento grega Senhor

expressatildeo esta que designa Jesus como pertencente agrave classe dos escribas

(Bultmann 2005 p71) Para esse autor natildeo podemos afirmar se nos dias de Jesus

jaacute era necessaacuteria certa formaccedilatildeo cultural para a funccedilatildeo de escriba17 como foi uma

exigecircncia cem anos mais tarde Contudo natildeo podemos ignorar o fato de Jesus ter

sido considerado um Rabi (Bultmann 2005 p71-72)

Vale ressaltar que a relaccedilatildeo de Jesus com os escribas eacute quase sempre

relatada de forma polecircmica nos Evangelhos Quando estava ensinando sobre o fim

de Jerusaleacutem e do mundo Jesus advertiu seus disciacutepulos a respeito dos escribas

dizendo que eles sempre procuravam a distinccedilatildeo social eram arrogantes e

16

O nome Jesus origina-se do hebraico ldquoYehoshuardquo (o Yoshua biacuteblico) que significa YHWH (que provavelmente era pronunciado Yahweh) O Nome Jesus eacute uma forma latina do grego Iesous que por sua vez eacute uma forma grega do termo hebraico O nome Yehoshua foi abreviado no linguajar coloquial para Yeshua ou ateacute mesmo para Yeshu A raiz etimoloacutegica de Ieshua eacute ldquoYerdquo eacute a forma hebraica abreviada do proacuteprio nome de Deus YHWH enquanto que ldquoshuardquo eacute a palavra hebraica que significa Salvaccedilatildeo (cf Swidler 1993 p7-8)

17 Vermes define os escribas da seguinte forma ldquoo termo eacutescriba (sofer em hebraico safra em

aramaico) eacute usado para designar um estudioso um especialista na Biacuteblia particularmente em direito biacuteblico e tradicional A vida religiosa e secular bem organizada dependia desses homens Eram geralmente respeitados e sem duacutevida amiuacutede tornavam-se presunccedilosos vestiam-se apropriadamente usando uma tuacutenica longa (stole ou talit) e estavam habituados a ser respeitosamente saudados por todos indiscriminadamente Em reconhecimento agrave sua dignidade recebiam os lugares de escolha em locais de adoraccedilatildeo e em banquetes e os evangelistas indicam que eles esperavam receber tal tratamento preferencialrdquo (Vermes 2006 p 89)

42

pretensiosos na oraccedilatildeo Em Marcos os escribas dos fariseus criticam Jesus porque

ele come com os cobradores de impostos e com os pecadores (Mc 216) tambeacutem

os disciacutepulos de Jesus reconhecem que o seu ensinamento natildeo eacute como o dos

escribas sem autoridade (Mc 1 22-28 cf Mt 7 29) e por fim os escribas

questionaram a autoridade de Jesus para perdoar os pecados do paraliacutetico de

Cafarnaum (Mc 2 6 cf Mt 93) Eacute bem verdade que em Mateus 819 1352 2334

os escribas satildeo vistos de uma forma positiva e isso eacute mais evidente ainda em

Marcos 12 28-34 onde Jesus e um escriba concordaram a respeito do maior dos

mandamentos o que faz Jesus concluir que tal escriba natildeo estava longe do Reino

de Deus No entanto a impressatildeo que se obteacutem a partir das Escrituras eacute a que

Jesus possuiacutea um conceito formado a respeito dos escribas conforme o descrito

pelo evangelista Marcos nas seguintes palavras (Saldarini 2005 p 164-172)

[] E dizia no seu ensinamento ldquoGuardai-vos dos escribas que gostam de circular de toga de ser saudados nas praccedilas puacuteblicas e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os lugares de honra nos banquetes mas devoram as casas das viuacutevas e simulam fazer longas preces Esses receberatildeo condenaccedilatildeo mais severardquo (Mc 12 38-40)

Os escribas parecem natildeo ser um grupo muito coeso no oriente proacuteximo dos

dias de Jesus Eles eram provenientes de vaacuterias classes do povo ou entatildeo dos

sacerdotes ou de famiacutelias proeminentes Geralmente eles eram dependentes das

classes dominantes que dirigiam a naccedilatildeo Segundo Saldarini (2005 p 282-283) a

maioria dos escribas havia saiacutedo do campesinato para ser treinado pelo governo ou

por famiacutelias ricas para resguardar os registros coletar impostos servir como

funcionaacuterios e juiacutezes e trabalhar com o serviccedilo de correspondecircncias

Ainda com relaccedilatildeo a esse grupo de indiviacuteduos observa-se que os escribas

considerados socialmente inferiores eram aqueles que faziam parte de um pequeno

povoado que tinham entre outras funccedilotildees a de ensinar jovens a ler e escrever mas

natildeo eram considerados mestres visto que natildeo tinha uma educaccedilatildeo elevada para os

padrotildees da eacutepoca Saldarini observa no entanto que a maioria dos escribas

incluindo os apresentados nos evangelhos era considerada funcionaacuterios de niacutevel

meacutedio que eram dependentes da classe sacerdotal das famiacutelias ricas em

Jerusaleacutem e de Herodes Antipas na Galileia

43

Em todos os casos poreacutem os escribas precisam ser contextualizados entre outros grupos sociais e o poder de influecircncia deles integrado no quadro global da sociedade judaica Eles natildeo devem ser tratados como um grupo autocircnomo com seu proacuteprio poder e agenda contiacutenua Os escribas eram diferentes em suas origens e em suas dependecircncias e eram indiviacuteduos que desempenhavam um papel social em diferentes contextos e natildeo uma forccedila poliacutetica e religiosa unificada (Saldarini 2005 p 284-285)

Com relaccedilatildeo ao grupo dos rabinos segundo J Jeremias observa-se de um

modo geral que ele se situa entre as camadas pobres da populaccedilatildeo (Jeremias

1983 p165-166) Mais ainda as informaccedilotildees tradicionais sobre os escribas nos

dias de Jesus concordam que os escribas ricos natildeo eram numerosos Portanto se

realmente Jesus era considerado um escriba certamente ele fazia parte da classe

pobre dos escribas Crossan problematiza mais a questatildeo quando coloca que a

maioria da populaccedilatildeo Judaica da eacutepoca de Jesus era constituiacuteda de analfabetos18

supotildee-se que Jesus tambeacutem era analfabeto que ele conhecia como a ampla maioria de seus contemporacircneos de uma cultura oral as narrativas fundacionais estoacuterias baacutesicas e expectativas gerais de sua tradiccedilatildeo mas natildeo os textos exatos citaccedilotildees precisas ou argumentaccedilotildees intrincadas de suas elites de escribas (CROSSAN 1995 p41)

Em outro momento Crossan observa que o niacutevel de alfabetizaccedilatildeo na

Palestina estava abaixo de 3 segundo fontes rabiacutenicas o que natildeo era tatildeo baixo

para os padrotildees sociais das sociedades tradicionais do passado Crossan reitera

que Jesus era um camponecircs da Galileia e portanto natildeo haacute duacutevidas que Jesus era

analfabeto ldquopara mim Jesus era analfabeto ateacute que o contraacuterio seja comprovado E

natildeo eacute comprovado mas apenas presumido por Lucas quando ele faz Jesus ler o

profeta Isaiacuteas na sinagoga de Nazareacute em 4 16-20rdquo (Crossan 2004 p 274-275)

18

Diferentemente de Crossan David Flusser defende que Jesus ldquoestava longe de ser um iletradordquo Para ele com algumas justificativas eacute possiacutevel que os disciacutepulos de Jesus fossem homens iletrados e sem posiccedilatildeo social (cf At 413) e isso levou os historiadores a pensar que o proacuteprio Jesus nunca havia estudado Flusser vai mais longe ainda quando observa que Jesus era versado tanto nas Escrituras Sagradas como na tradiccedilatildeo oral ldquoAdemais sua educaccedilatildeo era incomparavelmente superior agrave de Satildeo Paulordquo Flusser vecirc na narrativa de Lucas (2 41-51) a histoacuteria de ldquoum erudito precoce pode-se dizer quase um jovem talmudistardquo A fonte de Flusser para tal argumento eacute Flaacutevio Josefo que se referindo a Jesus disse ldquonesta eacutepoca viveu Jesus um homem saacutebio ndash se eacute que na verdade deveriacuteamos chamaacute-lo de homemrdquo Mesmo que tenha havido algumas alteraccedilotildees por um interpolador cristatildeo eacute provaacutevel que a redaccedilatildeo original natildeo se perdeu totalmente jaacute que o texto de Josefo pode ser confirmado ldquopela suposta redaccedilatildeo original da passagemrdquo (Flusser 2002 p 11-12)

44

Carlos Mesters tambeacutem observa que Jesus mesmo antes de nascer jaacute era

viacutetima do sistema poliacutetico e econocircmico predominantes na eacutepoca Com efeito uma

vez que ele natildeo nasceu de uma famiacutelia sacerdotal como Joatildeo Batista (Lc 15) nem

teve o privileacutegio de estudar como o apoacutestolo Paulo (At 22 3) Jesus teve desde

pequeno que trabalhar como agricultor e ainda aprender a profissatildeo de seu pai (Mt

13 55) e por isso era conhecido como carpinteiro (τέκτων) de Nazareacute (Mc 6 3)

Assim como Crossan Mesters analisa que a vida de Jesus desde a infacircncia ateacute a

vida adulta natildeo foi nada faacutecil Sobre a educaccedilatildeo formal do nazareno Mesters nos

diz que ldquoa escola do Jesus era antes de tudo a vida em casa na famiacutelia na

comunidade Foi laacute que aprendeu a conviver a rezar e a trabalharrdquo (Mesters 2011

p 17-21)

O caos econocircmico e cultural entre a populaccedilatildeo contemporacircnea de Jesus natildeo

eacute fato apenas na Galileia19 J Jeremias descreve que a cidade de Jerusaleacutem nos

tempos de Jesus era um centro de mendicacircncia que geralmente girava em torno

do templo Para ele ldquonatildeo eacute de causar espanto se jaacute naquela eacutepoca houvesse

pessoas que simulavam cegueiras surdez e outras doenccedilas a fim de ganharem

esmolasrdquo (Jeremias 1983 p166) Se Jerusaleacutem que era o centro dos

acontecimentos estava numa situaccedilatildeo caoacutetica natildeo muito distante ficava Nazareacute

que conforme Crossan era um vilarejo constituiacutedo por uma populaccedilatildeo rural que

vivia em casebres ldquoum povoado simples composto de camponeses entre duzentos a

quatrocentos habitantesrdquo (Crossan Reed 2007 p 7518) Crossan observa que

Nazareacute nunca foi mencionada pelos rabinos na Mishinaacute nem no Talmude nem por

Flaacutevio Josefo quando esse cita o nome de 45 lugares durante a primeira revolta

judaica em 66-67 dC Nem mesmo o Antigo Testamento a conheceu A relaccedilatildeo das

tribos de Zebulon enumera quinze localidades na Baixa Galileia nas proximidades

de Nazareacute mas natildeo a inclui (Js19 10-15) Crossan eacute taxativo ao afirmar que Nazareacute

ldquoera um lugar absolutamente insignificanterdquo (Crossan Reed 2007 p 64)

19

Apesar da Galileia onde Jesus viveu ter sido um lugar de extrema pobreza geograficamente era ldquouma regiatildeo beliacutessima a planiacutecie o lago as colinas a montanha o verde as suas matas fazem da Galileia um ambiente tranquilo e repousanterdquo A pobreza natildeo estava ligada ao aspecto geograacutefico mas sim agrave dominaccedilatildeo romana atraveacutes dos altos e impiedosos impostos que segundo Marconcini natildeo era menos do que 40 do miacutesero rendimento de cada trabalhador que tambeacutem eram destinadas para o aumento do bem-estar dos ricos conforme vemos nos evangelhos de Mateus 18 23-30 e Lucas 16 1-7 -20 (Cf Marconcini 2009 p 38)

45

Tambeacutem observa-se que Nazareacute era um povoado proacuteximo de Seacuteforis que

permaneceu no anonimato ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo

quando se tornou alvo de peregrinaccedilotildees dos cristatildeos (Crossan Reed 2007 p79)

Eles dependiam de espaccedilo fiacutesico para desempenhar atividades agriacutecolas guardar

ferramentas de uso comunitaacuterio cultivo de jardins e pomares tambeacutem precisavam de

espaccedilo para a criaccedilatildeo de animais domeacutesticos e isso explica o porquecirc de uma baixa

densidade populacional Crossan afirma que a maioria dos galileus ganhava a vida

com os produtos da terra com ferramentas precaacuterias e condiccedilotildees geograacuteficas

desfavoraacuteveis O seu estilo de vida em particular dos nazarenos era simples e o

que eles ganhavam era apenas o suficiente para pagar as diacutevidas e impostos

Quanto agraves tradiccedilotildees eles eram zelosos celebravam a paacutescoa descansavam no

Saacutebado e valorizavam as tradiccedilotildees de Moiseacutes e dos profetas

Gerhard Lenski citado por Crossan faz uma interessante descriccedilatildeo de como

eram as divisotildees das classes sociais pelo impeacuterio romano O simples fato de uma

famiacutelia ou povoado possuir arados de ferro poder usufruir de transportes utilizando-

se da roda e da vela gerava um abismo entre as classes designadas altas e outras

designadas baixas Segundo esse autor as classes eram divididas da seguinte

maneira 1 da populaccedilatildeo era constituiacuteda pelos governantes que eram possuidores

de pelo menos a metade das terras os sacerdotes podiam possuir ateacute 15 da

terra logo apoacutes vinham os arrendataacuterios que iam de generais a burocratas

especializados mercadores que provavelmente ascendiam das classes mais

baixas mas que chegavam a ter consideraacutevel riqueza e algum poder poliacutetico e por

fim os camponeses que eram a maioria da populaccedilatildeo de cuja colheita cerca de

dois terccedilos do total as classes altas eram sustentadas

Os camponeses cujas safras dependiam das colheitas nem sempre eram

bem sucedidos pois se houvesse muita chuva ou seca ou ainda doenccedilas e morte

eram expulsos de suas proacuteprias terras Entatildeo eram forccedilados ao arrendamento ou

ateacute mesmo podiam ser submetidos agraves piores humilhaccedilotildees Existia ainda a classe

dos artesatildeos considerada acima dos camponeses porque em geral eram

recrutados entre seus membros desalojados Abaixo dos camponeses existiam

ainda as classes dos degradados e dispensaacuteveis os quais eram rejeitados e iam de

46

mendigos a foras da lei ladrotildees trabalhadores diaristas e escravos (Crossan 1995

p 41)

De acordo com essa divisatildeo de classes deduz-se que se Jesus era

carpinteiro (τέκτων) entatildeo ele pertencia agrave classe dos artesatildeos que por sua vez

estava perigosamente situada entre os camponeses e os degradados ou

dispensaacuteveis Segundo Crossan a pobreza dos conterracircneos de Jesus natildeo se

limitava apenas a Galileia jaacute que de 95 a 97 da populaccedilatildeo do estado judaico era

constituiacuteda por analfabetos Se essa estatiacutestica for verdadeira possivelmente Jesus

tambeacutem era um analfabeto Quanto ao fato dele ensinar eacute provaacutevel que o seu

aprendizado e ensino tenha sido a partir da educaccedilatildeo da tradiccedilatildeo em forma oral

Conforme Crossan os textos de Lucas 2 41-52 e Lucas 4 1-30 devem ser vistos

como ldquopropaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em

termos de instruccedilatildeo e exegese de escribardquo (Crossan 1995 p 41-42)

42 JESUS O HUMILDE NAZARENO

Jesus viveu em Nazareacute a maior parte de sua vida Segundo Pagola uma

pequena aldeia de ldquoapenas duzentos a quatrocentos habitantesrdquo onde alguns

habitantes viviam ldquoem cavernas escavadas nas encostas a maioria em casas baixas

e primitivas de paredes escuras de adobe ou pedra com telhados confeccionados

com ramos secos e argila e chatildeo de terra batidardquo O quesito conforto e comodidade

natildeo era privileacutegio dos nazarenos uma vez que em geral as casas soacute tinham um

cocircmodo no qual se alojava a famiacutelia toda inclusive os animais (Pagola 2010 p62)

Esse pequeno vilarejo ficava a 4 quilocircmetros ao norte de Seacuteforis 20 a cidade

residencial de Herodes Antipas (Gnilka 2000 p71) Seacuteforis diferentemente de

Nazareacute era uma cidade que crescia cheia de curiosidades21 Jerome Murphy-

20

Koester natildeo especifica a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis mas observa que a distacircncia entre essas duas localidades era de poucos quilocircmetros Seacuteforis foi ampliada por Antipas que como seu Pai (Herodes o grande) era amante do esplendor e da grandeza que muitas vezes era expresso por grandes construccedilotildees Aleacutem de Seacuteforis (a primeira capital) Antipas (Tetrarca da Galileia e da Pereia) ainda construiu uma segunda capital a qual deu o nome de Tibeacuterias (Tiberiacuteades) em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (Cf Koester 205 Vl 1 p 395) Theissen especifica como sendo de 6 km a distacircncia entre Nazareacute e Seacuteforis (cf Theissen 2004 p 186) A partir desses dados conclui-se que Seacuteforis e Nazareacute ficavam muito proacuteximas

21 As hipoacuteteses de Murphy-OConnor em relaccedilatildeo agrave Seacuteforis satildeo bem diferentes da visatildeo que Crossan

tinha desta cidade como vimos anteriormente Para Crossan Seacuteforis permaneceu no anonimato

47

OConnor observa que seria um equiacutevoco supor que Jesus natildeo passaria todo o

tempo que pudesse em Seacuteforis junto com os amigos Nesse sentido pode-se

questionar Teria Jesus tido em Seacuteforis contato com a liacutengua grega por morar bem

proacuteximo da elegante cidade Seacuteforis era a cidade das atraccedilotildees tanto para os

adultos como para as crianccedilas fato esse que pode ser constatado com Herodes

Antipas o qual teria aprendido a oferecer espetaacuteculos com seu pai Herodes o

grande e nos poucos anos que passou em Roma teria ficado impressionado com os

espetaacuteculos dados por Augusto (Murphy-OConnor 2008 p38-39)

O teatro de Antipas era a grande atraccedilatildeo da cidade Segundo Murphy-

OConnor-OConnor o grande teatro de 45 mil lugares22 sentados em pedra visto

ateacute hoje foi precedido pelo de Antipas em madeira Mesmo que os judeus tenham

sido advertidos a respeito da origem pagatilde do teatro eacute razoaacutevel que Jesus tenha

visto em torno das imediaccedilotildees do teatro atores subindo e descendo pelas ruas e

praticando suas deixas23 Para Murphy-OConnor foi desse contexto que Jesus

conheceu a palavra grega hypokritecircs (ὑποκριτής) que significa ldquoum orador puacuteblicordquo

ldquoum atorrdquo Jesus usou a mesma palavra poreacutem deu a ela um sentido mais profundo

no que se refere agrave vida religiosa A maacutescara refere-se ao ldquofingidorrdquo ou seja agravequeles

que dizem ou parecem ser uma coisa mas na praacutetica satildeo outra conforme vemos

nos Evangelhos (Mt 75 Mc 76 = Lc 642)

O maior acontecimento que Jesus pode ter visto em Seacuteforis ou ouvido falar

muito a respeito quando tinha aproximadamente seis anos de idade foi o

casamento de Herodes Antipas com a filha do rei nabateu Aretas IV de Petra que

governou entre 9 aC e 40 dC Segundo Murphy-OConnor mesmo que o

casamento tenha acontecido em Petra uma caravana de nobres nabateus

provavelmente teria acompanhado Antipas ateacute a cidade de Seacuteforis onde uma

grande multidatildeo de todas as aldeias proacuteximas agrave cidade o aguardava para saudar o

jovem rei (Murphy-OConnor 2008 p40)

ateacute a conversatildeo do Impeacuterio Romano ao cristianismo quando segundo Crossan a cidade se tornou alvo de peregrinaccedilotildees cristatildes (cf Crossan Reed 2007 p79)

22 Theissen diz que o teatro comportava 5000 pessoas (ver Theissen 2004 p 187)

23 Koester nota que eacute interessante que cidades como Cesareia Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo constem da

tradiccedilatildeo Contudo cidades heleniacutesticas menos importantes como Cesareia de Felipe e Gadara agraves vezes satildeo mencionadas Para Koester ldquonatildeo se pode concluir que Jesus nunca tenha visitado Terras pagatildesrdquo (Cf Koester Vl 2 p 86)

48

Sobre Jesus podemos dizer que aleacutem de ter vivido na pequena Nazareacute de laacute

saiu para ser batizado por Joatildeo Batista Aleacutem disso conforme Mc 63 em Nazareacute e

adjacecircncias ele exerceu a carpintaria (τεκτων) 24 como profissatildeo atividade essa

exercida por seu pai Joseacute Nessa profissatildeo aleacutem de trabalhar com madeira

tambeacutem trabalhava-se com pedras Dessa forma podemos dizer que Jesus era

tambeacutem um entalhador (Gnilka 2000 p 71-72)

Sobre Jesus aleacutem de algumas hipoacuteteses e relatos concernentes ao lugar de

sua residecircncia e outras suposiccedilotildees relacionadas agrave sua vida enquanto um simples

homem inserido em sua comunidade que na qualidade de profeta da Galileia natildeo foi

bem recebido entre seus conterracircneos De acordo com o evangelista Lucas o

ministeacuterio de Jesus comeccedilou aos 30 anos (Lc 323) Para Gnilka a informaccedilatildeo

obtida a partir desse Evangelho possui tambeacutem uma motivaccedilatildeo teoloacutegica visto que

a idade de Jesus deve estar relacionada com a idade do rei Davi conforme vemos

em 2 Sm 54 ldquoTinha Davi trinta anos quando comeccedilou a reinarrdquo Natildeo obstante agrave

determinaccedilatildeo aproximada da idade cerca de 30 anos Lucas revela-nos um

interesse histoacuterico-cronoloacutegico a respeito da vida e ministeacuterio de Jesus (Gnilka

2000 p73)

Jaacute em pleno exerciacutecio ministerial conforme a narrativa de Marcos (Mc 6 1-6)

Jesus fez uma fracassada visita num dia de saacutebado aos seus conterracircneos Quando

Jesus estava a ensinar na sinagoga seus conterracircneos escandalizam-se dele O

motivo para tal desprezo estava relacionado ao fato de ele ser proveniente de uma

famiacutelia pobre conhecida por todos na pequena Nazareacute A origem humilde de Jesus

provocou em seus conterracircneos um sentimento de rejeiccedilatildeo e desprezo chegando

ao ponto de total descreacutedito agrave sua sabedoria e ao seu poder de realizar milagres

Esses fatos provavelmente natildeo devem ter ocorrido no comeccedilo do ministeacuterio de

Jesus como descreve Lucas (Lc 4 14-30) ateacute porque se todos esses

acontecimentos fossem no iniacutecio de seu ministeacuterio a comunidade de Nazareacute natildeo o

teria rejeitado imediatamente mas teriam ficado na expectativa do sucesso de seu

mais conhecido cidadatildeo (Gnilka 2000 p 122)

24

Eacute possiacutevel que como artesatildeo Jesus tenha tomado parte na construccedilatildeo de Seacuteforis O silecircncio da tradiccedilatildeo de Jesus sobre Seacuteforis nos induz a crer que mesmo que Jesus tenha conhecido essa cidade atuou tatildeo pouco nela como deve ter atuado em Tiberiacuteades Jesus deve ter evitado as grandes cidades porque se identificava mais com o campo onde encontrava maior ressonacircncia (Cf Theissen 2004 p 187)

49

Aleacutem das fontes evangeacutelicas sobre Jesus temos alguns relatos de fontes natildeo

cristatildes sobre o homem chamado Jesus de Nazareacute O relato mais conhecido dos

cristatildeos eacute de Flaacutevio Josefo que por volta do ano 93 dC (eacutepoca em que ele morava

em Roma) ele testemunha a respeito de Jesus com as seguintes palavras

conforme a citaccedilatildeo de Rochus Zuurmond25

Naquele tempo a atividade de Jesus um homem saacutebio se eacute que conveacutem chamaacute-lo de homem Pois fez coisas incriacuteveis e foi mestre dos que gostam de aceitar a verdade Teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos Ele foi o Cristo Depois que Pilatos o condenou agrave morte na Cruz porque preeminentes de nosso meio o haviam acusado natildeo cessou o amor que lhe tinham seus sequazes Revivificado ele lhes apareceu no terceiro dia pois os profetas de Deus haviam a seu respeito anunciado este fato e mil outras coisas espantosas Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)

Zuurmond duvida que essa citaccedilatildeo seja de Josefo uma vez que seria

praticamente impossiacutevel Josefo referir-se a Jesus como Cristo e muito mais difiacutecil

ainda seria ele mencionar a ressurreiccedilatildeo ldquocom apelo aos profetasrdquo Contudo

segundo Zuurmond seria muito difiacutecil que Josefo vivendo naquela eacutepoca natildeo

mencionasse Jesus em seus escritos Partindo desse princiacutepio o mais provaacutevel eacute

que o texto tenha sido ldquoprofundamente revisadordquo por um cristatildeo Para Zuurmond

dentre as vaacuterias tentativas para reproduzir o texto original de Josefo a mais provaacutevel

seria a de que o texto teria a seguinte conotaccedilatildeo

foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus um saacutebio que teve muitos adeptos tanto entre os judeus como entre os gregos chamaram-no de Cristo Seus sequazes afirmam que ele revivificado lhes apareceu Ateacute hoje a tribo dos cristatildeos dos que adotaram seu nome ainda natildeo deixou de existir (cf Zuurmond 1998 p 74)

O proacuteprio Zuurmond acredita que essa reconstruccedilatildeo eacute muito hipoteacutetica

Segundo ele o mais provaacutevel eacute que o texto tenha sido muito mais reduzido e que

tenha sido totalmente substituiacutedo (cf Zuurmond 1998 p 74)

Aleacutem de Josefo temos ainda outras citaccedilotildees hipoteacuteticas de fontes natildeo

cristatildes como a correspondecircncia de Pliacutenio Juacutenior com Trajano por volta de 115 dC

Pliacutenio refere-se agrave reuniatildeo dos cristatildeos e detalha o fato de que cantam um hino ldquoa

Cristo como Deusrdquo Suetocircnio por volta de 120 dC descreve que o Imperador

25

Essa citaccedilatildeo tambeacutem pode ser conferida em Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 3 p 590

50

Claacuteudio expulsou os judeus de Roma porque causavam problemas ldquopor instigaccedilatildeo

de Crestordquo Ainda por volta de 115 dC Taacutecito em annales XV 44 relata sobre o

incecircndio de Roma e sobre um grupo de Cristatildeos seguidores de ldquoum tal Cristordquo

Segundo Zuurmond estas foram as palavras do historiador romano

A fim de abafar este boato (de que ele mesmo foi responsaacutevel pelo incecircndio de Roma Nero inventou alguns bodes expiatoacuterios e submeteu agraves mais sofisticadas formas de supliacutecio aqueles que costumavam ser chamados de cristatildeos um grupo de gente odiado por todos por causa de seus crimes abominaacuteveis Eles devem o seu nome a um tal Cristo que durante o governo de Tibeacuterio (imperador de 14 a 37) por ordem do procurador Pocircncio Pilatos foi executado Depois de ter sido oprimida durante algum tempo essa supersticcedilatildeo perniciosa irrompeu novamente natildeo apenas na Judeacuteia onde este mal se originou mas tambeacutem em Roma para onde confluem e onde costumam ser assiduamente fomentados costumes horrorosos e vergonhosos de toda a espeacutecie (cf Zuurmond 1998 p75-76)

Essas fontes natildeo cristatildes quase que sempre satildeo vistas com alguma

desconfianccedila por alguns especialistas quanto agrave autenticidade de seus conteuacutedos

No entanto qualquer conjectura sobre o assunto natildeo passaraacute de mera

especulaccedilatildeo O mais importante eacute que a histoacuteria de Jesus eacute tatildeo grande que o mais

aacutevido inimigo jamais poderaacute tornaacute-la como algo insignificante para a humanidade

43 JESUS OS EVANGELHOS E A TEORIA DAS DUAS FONTES

Como sabemos Jesus nunca nos deixou nada por escrito no entanto tudo o

que sabemos sobre ele estaacute registrado nos evangelhos especificamente nos

evangelhos canocircnicos considerados pela tradiccedilatildeo cristatilde como os mais confiaacuteveis jaacute

que para a tradiccedilatildeo cristatilde conforme vemos em Duquoc os evangelhos apoacutecrifos26

podem sem duacutevida transmitir autecircnticos dados histoacutericos mas natildeo possuem

autoridade para que a partir dos testemunhos descritos neles possa-se elaborar

uma teologia consistente (Duquoc 1992 p 21)

26

Sanders compartilha da ideia da maioria dos estudiosos de que muito pouco dos evangelhos apoacutecrifos pode situar-se aos dias de Jesus Para ele esses evangelhos satildeo ldquolegendaacuterios e mitoloacutegicosrdquo De todo o material apoacutecrifo segundo Sanders somente alguns ditos do evangelho de Tomeacute merecem consideraccedilatildeo No entanto natildeo significa que seja possiacutevel fazer uma divisatildeo clara colocando os Evangelhos canocircnicos de um lado e os apoacutecrifos de outro uma vez que segundo Sanders haacute material lendaacuterio e criaccedilatildeo posterior nos Evangelhos do Novo Testamento Natildeo obstante eacute nos quatro Evangelhos que devemos buscar traccedilos do Jesus histoacuterico conclui Sanders (Sanders 2005 p 88-89)

51

Leif E Vaage eacute mais radical chegando afirmar que todos os escritos cristatildeos

primitivos que tratam da infacircncia de Jesus satildeo apoacutecrifos Segundo ele inclusive os

Evangelhos canocircnicos (Vaage 2007 p 38) Vaage baseia seu argumento no fato de

que nenhum dos Evangelhos relata realmente como foi a gravidez nascimento e

infacircncia de Jesus Por isso natildeo podem ser considerados historicamente

ldquoautecircnticosrdquo No entanto temos um olhar mais positivo sobre os apoacutecrifos em Jacir

de Freitas Faria Para ele noacutes podemos encontrar nos apoacutecrifos ldquovalores que a

piedade popular conservou como dogma de feacuterdquo (Faria 2007 p9) Na visatildeo de Faria

se natildeo fossem os apoacutecrifos do Novo Testamento natildeo saberiacuteamos os nomes de

pessoas como os avoacutes de Jesus dos reis magos dos dois ladrotildees da cruz e outros

nomes relacionados aos cristatildeos do primeiro seacuteculo

Os evangelhos27 por certo satildeo a histoacuteria do Jesus terreno contudo segundo

Bornkamm vale ressaltar que os Evangelhos satildeo histoacuteria mas natildeo no sentido da

histoacuteria moderna ou seja ldquoos evangelistas natildeo eram historiadores de profissatildeo e a

tradiccedilatildeo popular estaacute sempre sujeita a mudanccedilas no processo de transmissatildeordquo

(Bornkamm 1981 p35) Os evangelhos prossegue Bornkamm ldquonatildeo podem ser

classificados entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos como

Tuciacutedides Poliacutebio e Taacutecito nem entre biografias contemporacircneas como As Vidas

dos Ceacutesares de Suetocircnio [cerca de 70-140 dC] rdquo (1981 p35)

Sanders analisando a natureza do material evangeacutelico considera tal tarefa

como uma das mais desafiadoras a ser realizada pelo pesquisador Ainda que a

opiniatildeo dele sobre as fontes seja positiva ele natildeo deixa de enumerar alguns

aspectos considerados problemaacuteticos ou negativos conforme resumimos abaixo

1) Os primeiros cristatildeos natildeo escreveram uma narrativa (histoacuteria) da vida

de Jesus mas escreveram pequenas passagens sobre as suas

palavras e obras Essas pequenas partes foram mais tarde

organizadas pelos autores dos Evangelhos Isso significa que nunca

poderemos estar tatildeo perto do contexto imediato dos ditos e feitos de

Jesus

27

Conforme Marconcini (2009 p 6) o termo evangelho encontra-se doze vezes nos sinoacuteticos das quais quatro vezes em Mateus (423 9 35 24 14 26 13) em Marcos oito vezes (114-15 835 1029 1310 149 1615) a palavra vem sempre da boca de Jesus com exceccedilatildeo de Marcos 11 Jaacute no Evangelho de Lucas prevalece o verbo evangelizar que aparece dez vezes (119 210 318 41843 722 81 96 1616 201)

52

2) Os primeiros cristatildeos revisaram alguns materiais e criaram outros

3) Os Evangelhos foram escritos de forma anocircnima28

4) O Evangelho de Joatildeo eacute muito diferente dos outros trecircs Evangelhos e eacute

principalmente nesse Evangelho que devemos buscar informaccedilotildees

sobre Jesus

5) Aos Evangelhos faltam muitas caracteriacutesticas para ser uma biografia e

temos que distingui-los das biografias modernas (cf Sanders 2005 p

81-82)

A partir dos dados acima observamos que os Evangelhos realmente natildeo

satildeo histoacuteria no sentido moderno do termo No entanto conforme Martins Terra

devemos aplicar a criteriologia moderna de atestar a autenticidade dos escritos ou

seja aquela que estaacute focada mais nos criteacuterios internos29 do que nos criteacuterios

externos mas sempre tendo como base os testemunhos histoacutericos (Martins Terra

1977 p126)

Segundo Latourelle a criacutetica externa analisa os Evangelhos a partir dos

escritos extra-evangeacutelicos (Cartas de Paulo Atos dos Apoacutestolos) e sobretudo a

partir dos testemunhos das Igrejas poacutes-apostoacutelicas (II e III seacuteculos) enquanto que a

criacutetica interna apoia-se no proacuteprio texto (anaacutelise do tecido literaacuterio estudo do

conteuacutedo) Para esse teoacutelogo a criacutetica externa sempre obteve ecircxito em relaccedilatildeo agrave

critica interna mas nos dias atuais essa situaccedilatildeo tem mudado ou seja a criacutetica

interna tem se sobreposto agrave critica externa No entanto Latourelle prefere ficar em

um meio termo e mesmo que a criacutetica externa esteja em decadecircncia Latourelle vecirc

trecircs pontos importantes que podem ser explorados nela ldquosobre os autores dos

28

Sanders referindo-se a autoria dos Evangelhos diz que natildeo sabemos quem realmente satildeo os autores Mateus e Joatildeo foram disciacutepulos de Jesus Marcos foi seguidor de Paulo e possivelmente tambeacutem de Pedro jaacute Lucas foi um dos convertidos (disciacutepulos) de Paulo Mateus Marcos Lucas e Joatildeo realmente existiram mas natildeo podemos afirmar que eles escreveram os Evangelhos Existem provas que os Evangelhos permaneceram sem tiacutetulo de autoria ateacute a metade do seacuteculo II dC e eram sempre citados anonimamente A nomenclatura segundo Mateus segundo Marcos segundo Lucas segundo Joatildeo apareceram de repente por volta do ano 180 em meio ao grande nuacutemero de evangelhos escritos a Igreja teve que decidir quais deles seriam canocircnicos e diante de diferentes opiniotildees os que pensavam que apenas os quatro citados acima eram os que testemunhavam sobre Jesus com autoridade ganharam a questatildeo (cf Sanders 2005 p 87-88)

29 Segundo Martins Terra ldquoa criacutetica interna procura refazer na medida do possiacutevel a histoacuteria das

tradiccedilotildees [traditionsgeschichte] e separar os elementos redacionais [=dos evangelistas] dos elementos provenientes da tradiccedilatildeo anterior ateacute seus estratos mais primitivos Admite-se pois como vaacutelida a ideia fundamental da histoacuteria das formas (formgeschichte e da histoacuteria da redaccedilatildeo [Redaktionsgeschichte])rdquo (Martins Terra 1977 p 126)

53

Evangelhos sobre a autoridade desses na Igreja dos primeiros seacuteculos e sobre a

atitude da Igreja perante as tendecircncias deformadoras dos apoacutecrifos e dos escritos

gnoacutesticosrdquo (Latourelle 1989 p118)

Latourelle observa que ldquoa tradiccedilatildeo tem a tendecircncia de individualizar os

autores e colocaacute-los em relaccedilatildeo iacutentima com uma autoridade apostoacutelicardquo (Latourelle

p118) Um argumento bem aceito pela criacutetica contemporacircnea eacute de que documentos

- o Cacircnon Muratori os proacutelogos antimarcionistas - e os antigos teoacutelogos da Igreja

(Paacutepias Irineu de Liatildeo) - aceitaram Marcos e Lucas como autores dos Evangelhos

que levam os seus nomes porque eles realmente satildeo os verdadeiros autores O

raciociacutenio para defender essa tese conforme expotildee Latourelle eacute que se os teoacutelogos

da patriacutestica (seacuteculo II) tivessem interesse em ldquofalsificarrdquo a autoria dos Evangelhos

para dar maior credibilidade aos mesmos teriam dado a esses dois nomes de

apoacutestolos que conviveram com Jesus e natildeo de testemunhas indiretas como nos

casos de Marcos e Lucas Partindo desse raciociacutenio Latourelle citando Descamps

conclui ldquose as Igrejas do seacuteculo II mantiveram os nomes de Marcos e Lucas como

autores fizeram-no sem duacutevida sob a pressatildeo dos fatosrdquo (Latourelle 1989 p 18)

Segundo Bornkamm ldquoeacute significativo que os evangelhos satildeo anocircnimos e que

os nomes (Mateus Marcos Lucas e Joatildeo) foram dados para aleacutem do seacuteculo II O

evangelho de Lucas eacute o que mais se aproxima da historiografiardquo (Bornkamm 1981

p35) Aparentemente os Evangelhos datildeo a impressatildeo de continuidade mas os

textos natildeo oferecem um fundo real de uma histoacuteria reconstituiacutevel (Bornkamm 1981

p37) Um fato importante a se observar satildeo as legendas ou seja a forma como

fatos da vida de Jesus ou de personagens do Novo Testamento foram contados

(Bornkamm 1981 p41) O narrador natildeo estaacute preocupado em escrever histoacuterias

mas com a santidade e a piedade exemplar dessas figuras Em alguns casos

chamamos legenda ou embelezamento Bornkamm acredita que temos boas razotildees

para confiar na memoacuteria simples dos disciacutepulos contudo ldquonatildeo devemos subestimar

a influecircncia da feacute poacutes-pascal mesmo com a tradiccedilatildeo passada de matildeo em matildeosrdquo

(Bornkamm 1981 p 43)

A tradiccedilatildeo como vimos acima esforccedila-se para aproximar os Evangelhos das

testemunhas oculares e supervaloriza a qualidade das testemunhas fazendo de

Marcos um porta-voz de Pedro quando Marcos eacute muito mais um relator fiel da

54

pregaccedilatildeo da comunidade primitiva30 A tradiccedilatildeo tambeacutem atribui o primeiro Evangelho

a Mateus e o uacuteltimo a Joatildeo Poreacutem Bornkamm partindo do princiacutepio da teoria das

duas fontes analisa a origem dos Evangelhos especificamente os sinoacuteticos da

seguinte forma dentre as teorias a respeito da formaccedilatildeo dos Evangelhos a mais

aceita e mais coerente eacute a teoria das duas fontes Segundo essa teoria Marcos eacute o

Evangelho mais antigo ele forma a base dos outros dois Evangelhos ldquomaioresrdquo e

estaacute inserido neles Aleacutem de usarem Marcos tanto Mateus como Lucas fizeram uso

independente de uma segunda fonte isso se pode ver pelos muitos ditos e grupos

de ditos natildeo encontrados em Marcos que eles tecircm em comum (Bornkamm 1981

p31) De acordo com J Jeremias Marcos escreveu em grego mais primitivo e

serviu de base para os outros dois Isso comprova que ele eacute o Evangelho mais

antigo O Evangelho de Mateus eacute um Evangelho de Marcos reelaborado

estilisticamente e acrescido de material novo que daacute mais da metade de Marcos

Seguindo a linha de pesquisa da teoria das duas fontes verificamos que mesmo que

Mateus e Marcos discordem de Lucas na ordem dos acontecimentos ou Lucas e

Marcos estejam em discordacircncia em relaccedilatildeo a Mateus dificilmente Mateus e Lucas

juntos oponham-se a Marcos

Haacute poreacutem algumas hipoacuteteses contraacuterias a teoria das duas fontes e elas se

apoiam no testemunho de Papias bispo de Hieraacutepolis na Friacutegia que compocircs por

volta de 130 uma exegese dos oraacuteculos do Senhor conforme relatado por Euseacutebio

de Cesareia em a ldquoHistoacuteria da Igrejardquo Eis o que dizia o Presbiacutetero

Marcos que era o inteacuterprete de Pedro escreveu com exatidatildeo no entanto sem ordem tudo o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor mais tarde poreacutem como jaacute disse ele acompanhou Pedro Este ministrava seus ensinamentos segundo as necessidades mas sem fazer uma siacutentese das palavras do Senhor Desse modo Marcos natildeo cometeu erro escrevendo como se lembrava Seu uacutenico propoacutesito foi nada omitir do que havia ouvido e em nada enganar no que relatava (Latourelle 1989 p121-122)

30

Martins Terra comentando sobre a tradiccedilatildeo sobre os Evangelhos observa que ldquohoje em dia se insiste mais na inspiraccedilatildeo do livro do que no autorrdquo O problema consiste no fato de os Evangelhos terem sido escritos depois de 30 anos de pregaccedilatildeo da Igreja e da tradiccedilatildeo oral Muitas coisas devem ser levadas em consideraccedilatildeo quando se trata da autoria dos Evangelhos uma vez que haacute vaacuterios niacuteveis de mediaccedilotildees que devem ser levados em consideraccedilatildeo (cf Martins Terra 1977 p 125)

55

Segundo Euseacutebio baseado no testemunho de Papias foi Mateus quem

colocou em ordem os oraacuteculos do Senhor em liacutengua hebraica31 Qualquer que seja a

data e o conhecimento de Papias aquilo que ele de fato escreveu estaacute em nosso

alcance apenas em citaccedilotildees de Euseacutebio Os livros de Papias (logiotilden Kyriakotilden

Exegesis Exegese das Logia do Senhor) sobreviveram ateacute a Idade Meacutedia em

algumas bibliotecas da Europa mas natildeo mais existem (Carson et al 1997 p75)

Dalman (1902 p 87) fazendo uma anaacutelise sobre os testemunhos a favor da

teoria que se refere agrave origem aramaica dos Evangelhos eacute categoacuterico em afirmar

que aleacutem do bem conhecido depoimento de Euseacutebio noacutes natildeo temos nenhum traccedilo

a favor da existecircncia de um Evangelho escrito em liacutengua semiacutetica Ateacute mesmo

Jerocircnimo deve ter se enganado em ter dito que o Evangelho original de Mateus

escrito em hebraico ainda existia em seus dias Para Dalman mesmo os vaacuterios

textos dos Evangelhos em aramaico que satildeo conhecidos hoje e ateacute mesmo o texto

que Jerocircnimo usava em aramaico era derivado dos originais gregos

Temos ainda um segundo testemunho da origem dos Evangelhos dado por

Clemente de Alexandria conforme descrito por Euseacutebio na obra Histoacuteria da Igreja

Segundo Euseacutebio Clemente cita uma tradiccedilatildeo dos Anciatildeos a respeito da ordem dos

Evangelhos Conforme essa teoria os Evangelhos que compreendem as

genealogias foram escritos primeiro (Mateus e Lucas) jaacute o Evangelho de Marcos foi

escrito nas seguintes circunstacircncias O apoacutestolo Pedro pregou em Roma e expocircs

publicamente sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo a doutrina evangeacutelica do

cristianismo primitivo Os numerosos ouvintes de Pedro exortaram a Marcos a

transcrever as palavras do apoacutestolo jaacute que aquele tinha acompanhado Pedro por

muito tempo e por certo tinha vivo em sua mente muito do que o apoacutestolo Pedro

havia dito Todavia segundo Euseacutebio quando Pedro soube disso nada fez por meio

de seus conselhos para impedi-lo disso ou para forccedilaacute-lo a isso32

Esse testemunho como o de Papias referem-se aos Anciatildeos isto eacute a

homens da segunda geraccedilatildeo cristatilde A tradiccedilatildeo posterior natildeo faraacute mais do que

retomar esses argumentos

31

Cf Eusebius the Church History translation and commentary by Paul L Maier 2007 p 114 32

Cf Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p 1690 citaccedilatildeo da Hist Ecl IV 14 5-7

56

Papias e Clemente estatildeo de acordo em atribuir a composiccedilatildeo de um dos evangelhos a Marcos disciacutepulo de Pedro (cf 1Pd 5 13) cuja pregaccedilatildeo ele havia escrito Vindo de duas fontes arcaicas diferentes esta informaccedilatildeo pode ser considerada como certa Conforme Clemente Marcos teria escrito enquanto Pedro ainda vivia uma vez que ele estava por outro lado mais ou menos desinteressado desse empreendimento Papias natildeo nos daacute nenhuma informaccedilatildeo expliacutecita sobre este ponto Seu texto permite ao contraacuterio pensar que Marcos havia escrito depois da morte de Pedro e eacute neste sentido que interpretaratildeo Irineu de Liatildeo e o mais antigo Proacutelogo evangeacutelico que nos chegou (fim do seacuteculo II) Papias natildeo nos diz onde Marcos escreveu o seu Evangelho Clemente precisa que foi em Roma onde Pedro exercia o seu ministeacuterio Este pormenor retomado na tradiccedilatildeo posterior parece exato pois o Evangelho de Marcos conteacutem certo nuacutemero de termos gregos que satildeo apenas transcriccedilatildeo do latim (Biacuteblia de Jerusaleacutem 2002 p1690)

Apesar de todo o complexo em torno das fontes atualmente a teoria das

duas fontes eacute a mais aceitaacutevel Para Bornkamn haacute tantos paralelos entre Mateus e

Lucas que podemos confiar que tal fonte existiu O que natildeo podemos saber eacute em

que extensatildeo ela jaacute tinha adquirido uma forma literaacuteria fixa Uma coisa eacute certa ela

deve ter sido bem diferente do Evangelho de Marcos Eacute possiacutevel ter certeza que a

fonte Q natildeo era um Evangelho acabado como o Evangelho de Marcos o eacute O modo

como Q eacute usada em Mateus e Lucas mostra como os dois evangelistas a trataram

com mais liberdade do que fizeram com Marcos Isso eacute verdade tanto com

referecircncia ao teor verbal quanto agrave sequecircncia do material Marcos e Q

absolutamente natildeo exaurem as fontes da tradiccedilatildeo sinoacutetica Mesmo Marcos tem

material proacuteprio Lucas eacute quem possui mais cobrindo tanto o ministeacuterio terreno

como as narrativas pascais bem como o material consideraacutevel que ele inseriu na

moldura criada por Marcos

A noccedilatildeo de autoria natildeo resiste aos dados da criacutetica contemporacircnea Os

Evangelhos de Mateus e Joatildeo natildeo possuem nenhuma evidecircncia interna que possa

atribuir a eles a autoria e da mesma forma Lucas e Joatildeo Segundo Latourelle a

criacutetica duvida que eles tenham sido testemunhas ateacute mesmo de segunda matildeo No

entanto a criacutetica reconhece que o autor do primeiro Evangelho era um judeu de

liacutengua grega profundamente conhecedor do judaiacutesmo de sua eacutepoca A criacutetica

tambeacutem reconhece Lucas como o meacutedico e companheiro de Paulo assim como

reconhece Marcos como companheiro de Paulo e sua influecircncia sobre os

evangelhos de Mateus e de Lucas Quanto agrave influecircncia de Pedro sobre o Evangelho

de Marcos a mesma eacute contestada pela criacutetica visto que Marcos parece ser mais um

57

relator e transmissor da pregaccedilatildeo da Igreja primitiva aleacutem de parecer ter sofrido

mais a influecircncia de Paulo

A contribuiccedilatildeo da patriacutestica testemunhada pelos pais da Igreja jamais pode

ser descartada por mais acriacutetica e ingecircnua que pareccedila ser visto que eles viveram

bem proacuteximos dos acontecimentos registrados nos Evangelhos

A importacircncia dos escritos antigos a respeito dos Evangelhos foi a resposta

da igreja aos hereges e aos evangelhos apoacutecrifos O exagerado embelezamento que

os apoacutecrifos criam para ldquocomplementarrdquo os Evangelhos canocircnicos obrigou a Igreja a

criteriosamente separar os Escritos canocircnicos dos apoacutecrifos Para Bornkamm a

formaccedilatildeo do cacircnon do Novo Testamento sempre foi um processo de separar e

nunca de juntar Conforme esse teoacutelogo seria mais viaacutevel perguntar se um livro

deveria estar no cacircnon do Novo Testamento do que perguntar por que determinado

livro natildeo faz parte dele

A Igreja tambeacutem teve que combater o gnosticismo que estava tentando minar

a veracidade dos Escritos Sagrados principalmente com Marciatildeo que com seu

dualismo ldquoopotildee o Deus bom do Novo Testamento ao Deus justo do Antigo

Testamentordquo (Latourelle 1989 p124) A Igreja entatildeo saiu em defesa do

cristianismo autecircntico levantando o estandarte dos quatro Evangelhos como os

uacutenicos reconhecidos como a ldquoautecircntica mensagem de Cristo reconhecida e

ensinada pela tradiccedilatildeo viva da igreja O criteacuterio decisivo eacute o acordo entre os

Evangelhos e a tradiccedilatildeo apostoacutelica que por sua vez se refere ao Cristo vivordquo

(Latourelle 1989 p125)

Eacute vaacutelido observar que os evangelhos sinoacuteticos33 satildeo compostos de ldquotradiccedilotildees

isoladas chamadas de periacutecopesrdquo Essas periacutecopes geralmente tecircm uma

conotaccedilatildeo teoloacutegica e natildeo necessariamente cronoloacutegica ldquoNa verdade muitas

periacutecopes incluem indicaccedilotildees topograacuteficas (no mar da Galileia em Cafarnaum

etc) mas a maioria delas natildeo eacute bem determinada Outro fato a se observar eacute que

nos sinoacuteticos Jesus se dirige a Jerusaleacutem uma uacutenica vez poreacutem em Joatildeo lsquovemos

Jesus se dirigindo a Jerusaleacutem repetidas vezesrsquordquo Segundo Gnilka o importante natildeo

eacute a exatidatildeo do itineraacuterio mas sim a reflexatildeo teoloacutegica (Gnilka 2000 p 24) No

33

O nome sinoacuteticos foi dado aos trecircs primeiros Evangelhos pelo pesquisador alematildeo J J Griesbach em sua obra Synopsis evangeliorum [Sinopse dos Evangelhos] obra que foi publicada em Halle em 1976 (Cf Marconcini 2009 p 10)

58

entanto conforme Benito Marconcini haacute uma concordacircncia nos sinoacuteticos quanto agrave

sucessatildeo dos fatos no ministeacuterio de Jesus Conforme Marconcini ldquoJesus inicia seu

ministeacuterio na Galileia atravessa a Samaria e chega a Jerusaleacutem onde tem o

encontro com a morterdquo (Marconcini 2009 p 10)

O concilio do Vaticano II reproduziu na constituiccedilatildeo sobre a Revelaccedilatildeo o

resultado das pesquisas modernas sobre a Historicidade dos Evangelhos e sobre o

Jesus Histoacuterico conforme resumimos abaixo

a) Os quatro Evangelhos transmitem fielmente o que Jesus realmente fez e

ensinou para a eterna salvaccedilatildeo dos homens

b) Os Apoacutestolos depois transmitiram o que Jesus havia dito e feito ()

c) Os autores sagrados escreveram os quatro Evangelhos selecionando

algumas coisas dentre as muitas que tinham sido transmitidas oralmente ou por

escrito sintetizando outras ou adotando-as agraves situaccedilotildees das igrejas (Martins Terra

1977 p 129)

Seria imprudente buscar nos Evangelhos fatos como se busca numa revista

ou jornal de grande circulaccedilatildeo internacional moderna como New York Times por

exemplo Contudo segundo Swidler devemos olhar os quatro Evangelhos como

uma variedade de fontes orais e escritas que apoacutes um periacuteodo de tempo foram

redigidas conforme as necessidades sentidas pelas comunidades e indiviacuteduos da

eacutepoca No entanto fica claro que essa visatildeo criacutetica (moderna) dos Evangelhos natildeo

invalida o caraacuteter histoacuterico desses escritos Eles retratam com muito maior exatidatildeo

sob o ponto de vista histoacuterico-religioso (teoloacutegico) o que Jesus queria dizer com

certas declaraccedilotildees e accedilotildees relatadas pelas primeiras comunidades da Igreja

Primitiva (cf Swidler 1993 p104-105)

Natildeo podemos menosprezar a capacidade da comunidade cristatilde primitiva de

memorizar os fatos relacionados agrave vida de Jesus mas por outro lado natildeo podemos

negligenciar a limitaccedilatildeo humana em memorizar acontecimentos histoacutericos

Raciocinando dessa forma pode-se deduzir que com certeza muitas dessas

recordaccedilotildees natildeo foram transmitidas e nem registradas Eacute evidente que nem todas as

paraacutebolas foram registradas isso estaacute claro em Marcos 433 onde se lecirc ldquoE com

muitas paraacutebolas como esta anunciava-lhes a palavra segundo podiam entenderrdquo

ldquoPodemos partir do pressuposto de que nos evangelhos ficaram conservadas as

59

paacuteginas da atuaccedilatildeo e dos discursos de Jesus que satildeo de decisiva importacircncia para

a nossa feacuterdquo (Gnilka 2000 p25)

44 O IMPEacuteRIO ROMANO NOS TEMPOS DE JESUS

Jesus segundo Gnilka (2000 p35-36) viveu durante o governo de dois

imperadores romanos ldquoo de Otaviano Augusto (27 aC - 14 dC) e o de Tibeacuterio (14-

37)rdquo Nenhum dos dois esteve nessas paragens orientais do Impeacuterio nenhum dos

dois pisou territoacuterio da Siacuteria ou da Palestinardquo A histoacuteria de Jesus estaacute intimamente

ligada agrave famiacutelia Herodes Jesus nasceu sob o governo de Herodes o Grande filho

de Antiacutepater de origem idumeia Por decisatildeo do senado romano e tambeacutem por

iniciativa dos triuacutenviros Antocircnio e Otaviano e mais tarde Augusto pelo fim do ano 40

aC Herodes foi nomeado rei da Judeia

Apoacutes a morte de Herodes o Grande em 4 aC inicia-se uma disputa entre

seus filhos pela sucessatildeo que culminou na divisatildeo do poder entre os descendentes

de Herodes pelo imperador Historicamente dentre os filhos de Herodes o que mais

nos interessa eacute Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) que ficou como tetrarca da

Galileia Dentre os feitos de Antipas podemos citar a reconstruccedilatildeo da cidade de

Seacuteforis e a fundaccedilatildeo da cidade de Tiberiacuteades agrave margem do lago de Genezareacute

cidade que recebeu esse nome em honra ao Imperador Tibeacuterio Foi essa cidade

construiacuteda sobre um cemiteacuterio que Antipas escolheu para residecircncia oficial

tornando-a impura aos olhos dos Judeus crentes por causa das leis leviacuteticas (Gnilka

2000 p 39)

Herodes Antipas ficou conhecido por mandar matar Joatildeo Batista conforme o

relato nos evangelhos (Mc 617-29 Mt 14 3-12) e tambeacutem por Flaacutevio Josefo34 Os

motivos da morte de Joatildeo Batista nos evangelhos satildeo diferentes dos motivos

expostos por Josefo visto que Josefo coloca questotildees poliacuteticas como a principal

causa da execuccedilatildeo de Joatildeo jaacute que Antipas temia uma revolta poliacutetica a partir do

movimento do Batista Para Jesus Antipas tambeacutem tornou-se perigoso ldquoSegundo

Lc 1331 Jesus eacute aconselhado a sair de seu territoacuterio porque o priacutencipe pretendia

mataacute-lordquo (Gnilka 2000 p 40)

34

Cf Josephus 1999 Jewish Antiquities Book 18 chapter 5 p 594-597

60

Na Judeia a situaccedilatildeo poliacutetica e religiosa era caoacutetica Arquelau (4 aC ndash 6

dC) filho de Herodes o Grande logo depois de ser instituiacutedo etnarca da Judeia e

Idumeia devido a sua extrema tirania tornou-se insuportaacutevel para os judeus a

ponto de um grupo desses ir ateacute Roma para denunciaacute-lo pela forma tiracircnica de

governar bem como a liberdade que tomou para depor e instituir sacerdotes no

templo em Jerusaleacutem Judeia Samaria e Idumeia passam a ser administradas

diretamente por Roma apoacutes Arquelau ser deposto (Gnilka 2000 p 41-42)

Eacute a partir de toda essa confusatildeo que entra em cena a figura de Pocircncio

Pilatos como governador da Judeia (praefectus Judaeae) Nessa eacutepoca tanto o

poder poliacutetico quanto o religioso eram controlados diretamente por Roma ldquoNo

templo tinha que ser oferecido duas vezes por dia um sacrifiacutecio pelo imperador e

pelo povo romano Sobre a administraccedilatildeo das financcedilas do templo o governador

provavelmente tinha uma espeacutecie de supervisatildeo As nomeaccedilotildees dos sumos

sacerdotes tambeacutem eram feitas pelos romanos fosse atraveacutes do governador da

Siacuteria ou do governador da Judeia Isto foi assim nos anos 6-41 depois de Cristordquo

(Gnilka 2000 p 42-43)

O mais importante dos governadores da Judeia que foi contemporacircneo de

Jesus foi Pilatos que segundo os Evangelhos participou decisivamente na morte

de Jesus ldquoFilon de Alexandria caracteriza Pilatos como um homem de natureza

inflexiacutevel obstinado e duro e acusa-o de corrupccedilatildeo violecircncia roubo maus tratos

ofensas continuadas execuccedilotildees sem julgamento constante e insuportaacutevel

crueldaderdquo (Gnilka 2000 p 44) Os dez anos em que Pilatos governou a Judeia

nos quais Caifaacutes tambeacutem sempre foi o Sumo Sacerdote foram marcados pela

crueldade e imprevisibilidade ateacute que no ano 36 ele foi deposto apoacutes ter feito um

violento massacre de samaritanos enquanto esses escalavam o monte Garizim Pelo

fato de estarem armados Pilatos os interpretou mal e resolveu intervir

massacrando-os Mediante esse fato Pilatos foi chamado a Roma para depor diante

do imperador Tibeacuterio mas com a morte deste ele ldquodesaparece do palco da histoacuteria

Notiacutecias surgidas mais tarde dando conta de que ele teria se suicidado ou que teria

sido executado pelo imperador Nero devem ser creditadas a lenda cristatilderdquo (Gnilka

2000 p 44-45)

61

Abaixo segue um resumo do governo poliacutetico e religioso das regiotildees e

cidades com as quais Jesus conviveu (Gnilka 2000 p 47)

- Os herodianos Herodes o Grande (37-4 aC) Antipas (4 aC-39 dC

GalileiaPereia) Filipe (4 aC -34 dC GaulaniacutetideBataneia Arquelau (4 aC -6 C

JudeiaSamariaIdumeia)

- Os Governadores na JudeiaSamariaIdumeia Copocircnio (6-9) Marcos

Antiacutebulo (circa 9-12) Acircnio Rufo (circa 12-15) Valeacuterio Grato (15-26) Pocircncio Pilatos

(26-36)

- Os sumos sacerdotes em Jerusaleacutem Simatildeo ben Boethos (24-5 aC)

Matias ben Theophilos (5-4) Joseacute bem Ellem (exerceu soacute por uma festa) Joazar ben

Boethos (4 aC) Eleazar ben Boethos (4 aC -) Jesus ben sieuml (tempo de cargo

desconhecido) Joazar ben boethos (no cargo pela segunda vez de -6 d C) Anaacutes

ben Sethi (6-15 d C) Ismael bem Phiabi (15-16) Eleazar ben Kamithos (17-18)

Joseacute Caifaacutes (18-36)

Jerusaleacutem era a cidade onde giravam os grandes acontecimentos da

Palestina era considerada a cidade santa natildeo somente por ser administrada

politicamente por Herodes o grande jaacute que muito antes dele a cidade jaacute havia se

transformado no centro espiritual e religioso do Judaiacutesmo A cidade no tempo dos

gregos e romanos tinha de certa forma uma feiccedilatildeo internacional Jesus entrou na

cidade foi aclamado mas logo rejeitado e entregue para ser morto pelo grupo dos

religiosos encarregados de todos os rituais do Templo (Gnilka 2000 p 49)

45 JESUS E OS GRUPOS RELIGIOSOS

Jesus viveu num contexto muito religioso Foi apresentado no templo

circuncidado ao oitavo dia conforme a tradiccedilatildeo da religiatildeo judaica Sempre houve

uma tendecircncia de separar Jesus do contexto judaico tanto por judeus como por

cristatildeos Swidler pontua que os cristatildeos historicamente natildeo somente procuraram

mostrar que tudo o que Jesus fez era bom como procuraram demonstrar que tudo o

que ele fez foi oposto ao modo de agir dos judeus Por outro lado os judeus

aceitaram a interpretaccedilatildeo cristatilde que via Jesus como um antijudeu Atualmente as

coisas estatildeo mudando judeus tecircm visto Jesus como um autecircntico judeu enquanto

que um grande nuacutemero de estudiosos cristatildeos estatildeo convencidos de que soacute se pode

62

compreender adequadamente Jesus contextualizando-o num ambiente e como um

autecircntico Judeu (Swidler 1993 p108)

O Judeu Geza Vermes (com formaccedilatildeo cristatilde) no proacutelogo de seu livro o

ldquoAutecircntico Evangelho de Jesusrdquo relata que desde o fim da deacutecada de 1960 vem se

dedicando a pesquisar sobre Jesus indiferente agraves tradiccedilotildees cristatildes e judaicas a

respeito da pessoa do nazareno Vermes assim se expressa ldquoatuando como

historiador simpatizante e descartando vieses denominacionais tanto a deificaccedilatildeo

de Jesus pelos cristatildeos como a sua caricatura judaica tradicional como apoacutestata

maacutegico e inimigo do povo de Israel eu apenas tentei tirar a limpo e reconstruir uma

imagem de Yeshua filho de Joseacute do pequeno povoado galileu de Nazareacute (Vermes

2006 p7)

Digno de nota eacute que sendo Jesus judeu da Palestina judaica do primeiro

seacuteculo ldquona divisatildeo temporal feita em torno delerdquo (Vermes 2006 p7) obviamente

Jesus conviveu com os diversos grupos existentes na Palestina Conforme os

Evangelhos as relaccedilotildees de Jesus com os liacutederes dos movimentos religiosos nem

sempre foram amistosos Segundo Gnilka diversos eram os movimentos e grupos

poliacuteticos-religiosos nos dias de Jesus Quase todos provieram dos chassidim (os

piedosos) que haviam apoiado a resistecircncia dos macabeus e tambeacutem resistiram agrave

usurpaccedilatildeo dos asmoneus Desse movimento surgiu a maioria dos grupos religiosos

contemporacircneos de Jesus Esses grupos a maioria citados nos evangelhos satildeo

denominados de essecircnios fariseus saduceus e zelotes (Gnilka 2000 p52-53)

Enumerar esses grupos em relaccedilatildeo ao grau de importacircncia que eles exerciam

na sociedade judaica natildeo eacute uma tarefa faacutecil Diversas satildeo as hipoacuteteses levantadas

pelos pesquisadores a respeito de cada um dos grupos acima mencionados

Saldarini observa o fato de os escribas serem vistos como um grupo coeso apenas

no Novo Testamento sendo que em outras fontes eles satildeo vistos como um grupo

composto por pessoas desde a classe de altos funcionaacuterios ateacute a funccedilatildeo de um

humilde copista Outro fator que o autor observa eacute que para Josefo as trecircs

principais escolas de pensamento judaico dos dias de Jesus eram os fariseus os

saduceus e os essecircnios quando no Novo Testamento os principais oponentes de

Jesus satildeo os fariseus escribas e saduceus (Saldarini 2005 p 15)

63

451 OS ESSEcircNIOS

Dentre os grupos religiosos que temos mencionado os essecircnios satildeo os

menos conhecidos se levarmos em consideraccedilatildeo que a biacuteblia natildeo os menciona

contudo eles tecircm despertado muito interesse desde que foram descobertos os

manuscritos nas cavernas de Qumran em 1947 O jovem Mohammed ed-Dib (= ldquoo

lobordquo) conforme a descriccedilatildeo feita por J Jeremias (Jeremias 2006 p 401-429 cf

Jeremias 1979 p 117-148) tornou-se o grande protagonista talvez da maior

descoberta do seacuteculo concernente agrave literatura religiosa ou por que natildeo dizer

universal J Jeremias nos fornece alguns detalhes sobre a importacircncia das

descobertas de Qumran e o judaiacutesmo contemporacircneo de Jesus Depois que

Mohammed descobriu a primeira gruta outras dez foram descobertas sendo ateacute

hoje numeradas de 1 a 11 O papel dos beduiacutenos foi fundamental nas descobertas

visto que sem a busca incessante deles a maioria dos rolos natildeo teriam sido

descobertos Os manuscritos satildeo em um nuacutemero de aproximadamente 600 Mesmo

que a maioria seja apenas de fragmentos alguns do tamanho de uma unha mas

pelo menos uns dez encontram-se quase que totalmente preservados Eles satildeo

datados do periacuteodo que se compreende do seacuteculo III aC ao seacuteculo I da era cristatilde

Atribui-se a produccedilatildeo dos textos e o armazenamento deles em grutas aos essecircnios

conforme nos descreve J Jeremias citando a ldquoHistoacuteria Natural de Pliacutenio

A margem ocidental (do Mar Morto) fora do alcance da influecircncia nociva (de suas aacuteguas) estatildeo estabelecidos os essecircnios Eacute um agrupamento de solitaacuterios uacutenico no mundo sem mulheres ndash pois renunciam ao amor sexual e sem dinheiro eles vivem na sociedade das palmeiras (Embora se abstenham do casamento) o nuacutemero de seus adeptos se manteacutem e se renova cada dia pela afluecircncia daqueles que cansados de lutar contra as vagas de destino vecircm participar de sua vida Assim coisa incriacutevel eles permanecem atraveacutes de milhares de geraccedilotildees uma raccedila eterna ainda que natildeo existam nascimentos entre eles (V 1713)

Para J Jeremias natildeo haacute duacutevida que Pliacutenio se refere aos essecircnios mesmo

que por engano os tenha chamado de raccedila eterna Os essecircnios surgiram por volta

de 167-154 aC apoacutes Antiacuteoco Epifacircnio profanar o Templo de Jerusaleacutem Em 152

aC apoacutes a guerra com os siacuterios Jocircnatas Macabeus cinge a tiara de sumo

sacerdote mesmo natildeo pertencendo agrave descendecircncia dos sadoquitas que eram os

64

uacutenicos habilitados para exercer tal funccedilatildeo Uma revoluccedilatildeo acontece no coleacutegio

sacerdotal resultando na formaccedilatildeo de um grupo denominado de ldquoKhassyyayardquo os

piedosos que em grego satildeo denominados de ldquoessenoirdquo ou ldquoessaicircoirdquo conhecidos

hoje por essecircnios

Os essecircnios eram apocaliacutepticos esperavam o iminente fim deste mundo que

eles acreditavam estar bem proacuteximo Guardavam o saacutebado a ponto de natildeo ajudar

um animal no parto e nem socorrecirc-lo caso caiacutesse num buraco no dia de saacutebado

(Gnilka 2000 p 55-56) tambeacutem tinham como chefe um homem chamado com toda

reverecircncia nos rolos como o ldquoMestre da Justiccedilardquo ldquoo grande teoacutelogo e exegeta da

seitardquo (cf Jeremias 2006 p 408) Para Sean Freyne o chamado ldquoPapiro da Guerrardquo

(1QM) intitulado como ldquoA Guerra dos filhos da luzrdquo mostra como essa comunidade

apregoava um certo tipo de guerra coacutesmica parecida com a religiatildeo zoroaacutestrica da

Peacutersia onde a ecircnfase do conflito estaacute centrada na ideia de uma guerra do bem e o

mal (Freyne 2008 p26) J Jeremias define a teologia tambeacutem como uma doutrina

baseada em dois espiacuteritos ou seja no espiacuterito de Deus e no espiacuterito de Belial ou

seja no diabo e isso resulta na constante luta entre a Luz e as Trevas que tambeacutem

se desenrolam no interior do ser humano (Jeremias 2006 p 412) De acordo com J

Jeremias o dualismo essecircnio eacute monoteiacutesta conforme podemos ver em IQS 31517-

1925 abaixo reproduzido

Do Deus dos conhecimentos Vem tudo o que eacute tudo o que acontece e antes mesmo que as coisas existissem ele fixara todo o seu plano

Eacute ele quem criou o homem para dominar o mundo e pocircs diante de dois espiacuteritos para que ele ande neles ateacute ao momento fixado por sua divina visita

Satildeo os (dois) espiacuteritos de verdade e de iniquidade Da fonte da luz sai a verdade E da fonte das trevas sai a iniquidade Eacute ele (Deus) quem criou os espiacuteritos da luz e das trevas

65

Observamos acima algumas descriccedilotildees a respeito do grupo dos essecircnios

contudo segundo Freyne (Freyne 2008 p26) natildeo se pode resumir o pensamento

desse grupo com um periacuteodo de aproximadamente 200 anos de histoacuteria apenas em

um ponto de vista Isso pode ser visto por exemplo em 4Q 521 onde o texto

demonstra o anseio dos oprimidos por um messias libertador que venha ldquocurar os

feridos distribuir riquezas entre os necessitados conduzir de volta os exilados e

enriquecer os famintosrdquo ou ainda textos como 4Q 426 onde o ldquoGrande Deusrdquo trava

uma decisiva batalha contra as naccedilotildees e garante a paz definitiva ao seu povo O

que Freyne procura dizer eacute que o pensamento dos essecircnios eacute amplo demais para

ser resumido em poucas palavras contudo como natildeo eacute nosso interesse pesquisar a

fundo essa seita contentamo-nos a princiacutepio com algumas informaccedilotildees sobre

eles35

Ainda sobre os essecircnios sabemos por David Flusser que eles eram ferrenhos

inimigos dos fariseus uma vez que condenavam os feitos farisaicos energicamente

No Rolo de Accedilatildeo de Graccedilas (IQH) 4 6-8 estaacute escrito sobre os fariseus da seguinte

maneira ldquoE conduziram o povo por caminhos desviados ao lhes proferir discursos

macios Falsos mestres levam para maus caminhos e caminham cegamente para a

queda pois suas obras satildeo feitas no logrordquo (cf Flusser 2002 p 46)

Aleacutem do que jaacute foi dito sobre os essecircnios surge uma pergunta Ateacute que ponto

os essecircnios tiveram contato com Jesus ou seria Jesus membro da seita dos

essecircnios Segundo Charlesworth eacute possiacutevel que Jesus tenha encontrado alguns

essecircnios em suas idas e vindas no periacuteodo em que exerceu o seu ministeacuterio ou ateacute

antes disso Contudo natildeo podemos afirmar isso jaacute que os essecircnios natildeo satildeo

mencionados no Novo Testamento e na verdade natildeo temos certeza se eles

exatamente eram conhecidos (Charlesworth 1992 p76) Para Charlesworth o que

fica evidente eacute que os essecircnios e Jesus foram contemporacircneos o que nos leva a

deduzir que eacute muito provaacutevel que Jesus ao menos tenha ouvido falar deles e ateacute

conhecesse a doutrina rituais religiosos e haacutebitos sociais desse grupo

(Charlesworth 1992 p79)

Charlesworth enumera algumas semelhanccedilas e diferenccedilas entre Jesus e os

essecircnios 35

Para mais informaccedilotildees sobre os essecircnios ver (Jeremias 2006 p 401-429 e Charlesworth 1992 p 70-89)

66

a) Jesus partilha com os essecircnios de uma teologia monoteiacutesta

b) Como os essecircnios a teologia de Jesus era categoricamente escatoloacutegica

c) Jesus partilhava com os essecircnios uma total entrega a Deus e a Toraacute (Ele

pode ter se referido aos essecircnios quando elogiou os eunucos por causa do reino de

Deus cf Mt 19 10-12)

d) Jesus conforme o Evangelho de Marcos proibiu o divoacutercio (Mateus tornou-

a casuiacutestica Mt 5 31-32 199) assim como os essecircnios eram totalmente contraacuterios

ao divoacutercio ldquoo rei deve permanecer casado com apenas uma mulherrdquo (cf II Q

Temple 57 17-18)

f) Dos essecircnios Jesus rejeita a riacutegida observacircncia do Saacutebado

g) Jesus ao contraacuterio dos essecircnios aproximou-se de todas as classes

sociais inclusive de prostitutas e cobradores de impostos Aleacutem disso a visatildeo de

Jesus em relaccedilatildeo aos rituais de purificaccedilatildeo judaicos era muito diversa das dos

judeus

h) A atitude liberal de Jesus sobre a purificaccedilatildeo se contrastava com a

paranoia dos essecircnios principalmente em relaccedilatildeo ao afastamento das pessoas que

tinham lepra Em II Q Temple 48 14-15 eacute orientado a que existam cidades proacuteprias

para o isolamento dos leprosos enquanto que Jesus repousou em Betacircnia na casa

de Simatildeo o leproso (Mc 143)

i) Jesus enfatizou o amar uns aos outros (na paraacutebola do bom samaritano)

enquanto que os essecircnios na renovaccedilatildeo anual entoavam maldiccedilotildees sobre os filhos

das trevas especialmente sobre aqueles que natildeo eram essecircnios (1Qs) Jesus pode

ter se dirigido a eles quando se referiu ao dito ldquoamaraacutes o teu proacuteximo e odiaraacutes ao

teu inimigo (Mt 5 43)

Em resumo Charlesworth conclui que o cristianismo natildeo foi fundado com as

bases do essenismo conforme havia dito Renan em sua obra ldquoVida de Jesusrdquo

Jesus foi o fundador do cristianismo que foi fundado em meio agraves vaacuterias correntes

judaicas da eacutepoca sem que se possa mencionar uma uacutenica fonte como a trajetoacuteria

Jesus natildeo era um essecircnio ldquomas pode ter partilhado com os essecircnios mais do que a

mesma naccedilatildeo tempo e lugarrdquo (Charlesworth 1992 p 84-88)

452 OS FARISEUS

67

Os fariseus (pharushim ndash separados) - ldquoum grupo de estudiosos leigos que

apareceram na histoacuteria cerca de um seacuteculo e meio antes do nascimento de Jesus

() e se tornaram autoridades na vida dos judeus durante o reinado da rainha

Alexandra em (76-67 aC)rdquo (Swidler 1993 p 74) - nasceram do grupo dos chassidim

e eram em nuacutemero de seis mil pessoas em Jerusaleacutem nos dias de Jesus (Flusser

2002 p 44) Eles tambeacutem natildeo concordavam com a usurpaccedilatildeo por parte dos

asmoneus Segundo Gnilka a maioria dos escribas pertencia ao grupo dos fariseus

Em relaccedilatildeo aos saduceus os fariseus eram a maioria mas a influecircncia poliacutetica

destes era menor Jaacute o clima entre fariseus e essecircnios era hostil Os essecircnios

consideravam os fariseus com ldquogente que amolece e dissolve a lei e de quem se

pode esperar o logro mentira seduccedilatildeo e errordquo (Gnilka 2000 p57-60) Segundo

Flusser os fariseus eram denominados pelos essecircnios como ldquocaiadosrdquo e Jesus

tambeacutem se referiu a eles no Evangelho de Mateus 23 27-28 dizendo ldquoAi de voacutes

escribas e fariseus hipoacutecritas Sois semelhantes a sepulcros caiados que por fora

parecem bonitos mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidaderdquo

Embora o ataque dos essecircnios fosse em alguns pontos parecidos com a criacutetica que

Jesus fez contra os fariseus a distacircncia entre eles eacute muito grande Os essecircnios

rejeitavam explicitamente a doutrina dos fariseus ao passo que Jesus de uma

forma mais positiva via-os como os ldquoherdeiros contemporacircneos de Moiseacutesrdquo (cf

Flusser 2002 p46-48)

Os fariseus eram muito queridos pela maioria da populaccedilatildeo judaica devido agrave

devoccedilatildeo deles aos rituais religiosos Segundo Sanders no periacuteodo asmoneu os

fariseus tambeacutem exerceram uma influecircncia e forccedila poliacutetica muito importante ainda

que depois perderam tal forccedila No governo de Herodes somente o rei tinha o poder

poliacutetico uma vez que todos os que o ameaccedilassem eram imediatamente executados

Na Galileia o sucessor de Herodes foi seu filho Antipas que tambeacutem natildeo se mostrou

muito disposto assim como seu pai a dar autoridade a algum grupo de piedosos e

mestres religiosos Somente em Jerusaleacutem apoacutes Arquelau (irmatildeo de Antipas) ser

deposto eacute que os saduceus respaldados pelo poder romano puderam como grupo

religioso exercer forccedila poliacutetica Os fariseus mesmo sendo a maioria em relaccedilatildeo aos

saduceus continuaram apenas trabalhando ensinando e exercendo suas funccedilotildees

68

no culto judaico nas sinagogas A popularidade deles provavelmente aumentou

contudo natildeo o poder poliacutetico (cf Sanders 2005 p68)

A visatildeo de Saldarini sobre os fariseus compactua com Sanders a respeito da

popularidade dos fariseus Ele observa que para o evangelista Marcos os fariseus

eram um grupo muito reconhecido na comunidade da Galileia Jesus um jovem

oriundo de uma famiacutelia de artesatildeos considerada uma classe inferior na Palestina

natildeo dispunha da mesma honra dada aos fariseus principalmente em Nazareacute sua

terra natal Mas com o decorrer do tempo Jesus atraveacutes de seu ministeacuterio

conseguiu a simpatia de muitos seguidores em outras cidades da Galileia

contraindo para si o ciuacuteme a ira e a perseguiccedilatildeo dos fariseus O confronto dos

fariseus com Jesus a princiacutepio estava baseado em temas teoloacutegicos a respeito do

Jejum (Mc 218) da observacircncia do saacutebado (Mc 224 32) e sobre o divoacutercio (Mc

102) da purificaccedilatildeo das matildeos (Mc 71) e outros temas relacionados com respeito agrave

conduta de Jesus entre os homens considerados pecadores (Mc 216) etc Para os

fariseus no entanto o que estava em jogo natildeo eram apenas os debates teoloacutegicos

mas principalmente a simpatia e o controle da comunidade (Saldarini 2005 p 162-

164)

Para Saldarini os fariseus juntamente com os escribas eram os principais

opositores de Jesus na Galileia Em Jerusaleacutem os seus adversaacuterios tinham um

poder poliacutetico muito maior jaacute que entre eles estavam os chefes dos sacerdotes os

escribas e os anciatildeos do povo dentre os membros desses grupos principalmente

dos sacerdotes estavam os que entregaram Jesus agrave morte O evangelista Marcos

menciona os fariseus em cinco casos (2 18 224 32 811-15 102) e em todos os

casos eles estatildeo em conflito com Jesus36 Os escribas e fariseus juntos satildeo

mencionados duas vezes em Marcos tambeacutem quando estatildeo em conflito com Jesus

(216 7 1-5) Com os herodianos os fariseus satildeo mencionados duas vezes em

Marcos (36 1213) Para o evangelista Marcos os fariseus satildeo situados sempre na

36

Geza Vermes observa que no Evangelho de Mateus os fariseus natildeo satildeo sempre vistos no aspecto negativo Vermes vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e amor a Deusrdquo eles por outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser seguida

69

Galileia (3 2-6 7 1-5 2 18-24 811 102) A uacutenica exceccedilatildeo no evangelho de

Marcos eacute quando os fariseus e os herodianos satildeo enviados a Jesus a fim de

apanhaacute-lo em Jerusaleacutem (1213) Ao contraacuterio de Josefo que situa os fariseus

sempre em Jerusaleacutem ao lado dos chefes dos judeus Marcos mostra-os sempre

ativos na Galileia (Saldarini 2005 p159-160)

Apesar dos fariseus estarem sempre em confronto com Jesus nos

Evangelhos alguns pesquisadores veem algumas semelhanccedilas entre o movimento

de Jesus e o movimento dos fariseus Swidler lista algumas semelhanccedilas entre os

dois grupos Segundo Swidler Jesus reinterpretou as Escrituras hebraicas de

maneira condizente com o meio social onde se encontrava Jesus tambeacutem participou

de refeiccedilotildees entre amigos do tipo farisaico Tambeacutem segundo Swidler eacute possiacutevel ver

semelhanccedilas na doutrina de Jesus a respeito do amor no Shema oraccedilatildeo do

monoteiacutesmo nas bem aventuranccedilas em questotildees relacionadas agrave ressurreiccedilatildeo

tambeacutem seria ver fortes indiacutecios de um espiacuterito farisaico na vida de Jesus (cf

Swidler 1993 p78)

Para fundamentar essa teoria Swidler busca outros pesquisadores como o

teoacutelogo catoacutelico Pawlikowski que chegou a concluir que natildeo seria errado ldquoconsiderar

o movimento de Jesus como uma parte do movimento farisaico geral embora em

muitos campos tivesse um ponto de vista diferenciadordquo Swidler ainda cita o

estudioso protestante E P Sanders referindo-se a ele como mais cauteloso sobre o

assunto abordado poreacutem natildeo hesita em afirmar tambeacutem que ele faz parte do

nuacutemero sempre crescente de especialistas que duvidam que tenham existido

ldquopontos importantes de oposiccedilatildeo entre Jesus e os fariseusrdquo (Swidler 1993 p78)

A forte tendecircncia de colocar Jesus como um judeu apenas corrobora o que

ele sempre foi um judeu e natildeo um cristatildeo uma vez que o cristianismo soacute veio a

existir apoacutes a morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus Entre os judeus catoacutelicos e

protestantes tecircm surgido renomados defensores da teoria Jesus dentro do

judaiacutesmo Swidler aleacutem de citar um catoacutelico e um protestante como referecircncia cita

ainda um judeu (Geza Vermes) para corroborar esse pensamento Vermes em seu

livro Jesus e o mundo do Judaiacutesmo descreve ldquoJesus era um hasid galileu nisso a

meu ver reside a sua grandeza e tambeacutem o germe de sua trageacutediardquo (Vermes 1996

p20)

70

Para Vermes contudo Jesus natildeo foi muito amado pelos fariseus porque

Jesus segundo a visatildeo e interpretaccedilatildeo biacuteblica dos fariseus desprezava

propositadamente alguns costumes tradicionais como sentar-se agrave mesa com

publicanos e prostitutas No entanto para Vermes natildeo parece que tenha havido

discoacuterdia entre Jesus e os fariseus em temas essenciais da religiatildeo e feacute judaica

Vermes define a relaccedilatildeo de Jesus com os fariseus da seguinte maneira ldquoNatildeo

obstante o conflito entre Jesus da Galileia e os fariseus de sua eacutepoca ter-se-ia

assemelhado em circunstacircncias normais agrave mera luta intestina de facccedilotildees

pertencentes ao mesmo corpo religioso como a que se travou entre caraiacutetas e

rabanitas na Idade Meacutedia ou entre os ramos ortodoxo e progressista do judaiacutesmo na

eacutepoca modernardquo (Vermes 1996 p20)

Vermes observa ainda que no Evangelho de Mateus os fariseus nem

sempre satildeo vistos no aspecto negativo Ele vecirc a apreciaccedilatildeo que Mateus faz a

respeito dos fariseus (Mt 23 1-36) como altamente positiva mesmo que eles

tenham sido acusados de terem ldquofechado a porta do Reino dos Ceacuteus anulado

juramentos legiacutetimos e especialmente de que negligenciavam em seu ensinamento

os valores essenciais de religiatildeo justiccedila misericoacuterdia feacute e a mor a Deusrdquo eles por

outro lado satildeo os ocupantes legiacutetimos da caacutetedra de Moiseacutes isto eacute eles ocupam o

assento presidencial na sinagoga Um outro aspecto positivo eacute atribuiacutedo aos

fariseus segundo a visatildeo de Vermes pelo fato de Jesus declarar que o ensino deles

eacute vaacutelido (Mt 23 2-3) mesmo que a conduta deles natildeo seja exemplar e digna de ser

seguida (Vermes 2006 p98)

Segundo Swidler tanto os pontos positivos e os negativos foram adotados

diretamente pela Comissatildeo do Vaticano para Relaccedilotildees Religiosas com os Judeus e

indiretamente por outras igrejas O Catecismo da Igreja catoacutelica romana diz que

ldquopode-se tambeacutem frisar que se Jesus se mostra severo para com os fariseus eacute

porque estaacute mais proacuteximo deles que de quaisquer outros grupos judaicos seus

contemporacircneosrdquo (cf Vermes 1996 p79)

Nesse invoacutelucro de pensamentos sobre Jesus e os fariseus Swidler leva em

conta o fato de Vermes ter apontado Jesus como participante do grupo dos

ldquohassideus ou devotosrdquo Dentre as muitas especulaccedilotildees descritas por Swidler (nem

71

todas expostas aqui) eacute digna de nota a conclusatildeo desses apontamentos nas

palavras do proacuteprio autor

Assim talvez a melhor maneira de situar Ieshua no contexto do judaiacutesmo da sua eacutepoca seja como mestre (rabi) viandante e que fazia milagres um saacutebio (hakaham) da Galileia hassid galileu que sob muitos aspectos se assemelhava a Hillel (cujos ensinamentos acabaram mais tarde prevalecendo sobre os Shammai no judaiacutesmo rabiacutenico) que alguns estudiosos iriam considerar como algueacutem que teve um relacionamento muito proacuteximo com os fariseus aos quais poreacutem ele criticava sendo por sua vez criticado por eles Sigal o considerou hassid galileu hakham e proto-rabino o qual como Iohanan ben Zakkai antes e depois do ano 70 dC criticou duramente os pharisaioi os perushim (que Sigal natildeo considerava predecessores do judaiacutesmo rabiacutenico muito embora por vezes um emprego impreciso do termo pharisaioi nos evangelhos e em Josefo pudesse incluir alguns proto-rabinos) Estou convencido de que Sigal nos fornece a mais exata e abrangente descriccedilatildeo do lugar de Ieshua na vida judaica do seu

tempo (Swidler 1993 p 86-87)37

A proximidade de Jesus com os fariseus eacute tambeacutem notada por Flusser Ele

nota que nos Evangelhos sinoacuteticos diferentemente de Joatildeo (cf Jo 18 3) os fariseus

natildeo figuram em nenhuma descriccedilatildeo do julgamento de Jesus Flusser ainda nota

que nos primoacuterdios do cristianismo quando os cristatildeos foram perseguidos pelo

ldquosumo sacerdote saduceu o Raban Gamaliel tomou seu partido e os salvourdquo (At 5

17-42) Da mesma maneira Paulo quando estava perante o Sineacutedrio em Jerusaleacutem

vendo que seria punido severamente apelou para os fariseus e encontrou neles

solidariedade (At 22 30 236-10) jaacute que a outra parte era composta por saduceus

(Flusser 2002 p49)

A possiacutevel afeiccedilatildeo dos fariseus em relaccedilatildeo aos primeiros cristatildeos eacute

mencionada por Flusser sobre ldquoTiago o irmatildeo do Senhor e aparentemente outros

cristatildeosrdquo (cf Antiquities book 20 200-2001 in Josephus 1999 p656) que foram

condenados agrave morte em 62 dC pelo sumo sacerdote saduceu (ilegalmente) mas

foram salvos pelos fariseus quando estes apelaram ao rei que por sua vez acabou

37

Segundo Swidler o rabino Phillip Sigal de Pittsburgh os fariseus dos evangelhos natildeo satildeo os

predecessores dos rabis posteriores a 70 dC responsaacuteveis pelos escritos e tambeacutem sem duacutevida fundadores do judaiacutesmo dos nossos dias Para Sigal os predecessores dos rabis natildeo eram nem hillelistas (da escola de Hillel) nem Shamaiacutetas (da escola de Shamai) e nem pertenciam a nenhuma escola ou ldquocasardquo (bet) propriamente dita Ieshua (Jesus) natildeo era saduceu ou fariseu tampouco hilletita nem shamaiacuteta mas era um protorrabi antecipado da eacutepoca tanaiacutetica A sua maneira de ensinar era baseada na liberdade de interpretaccedilatildeo e autoridade conforme o modelo de ensinar protorrabiacutenico [] Ieshua era hakham (saacutebio filoacutesofo um protorrabi) como um profeta carismaacutetico que pregava sobre assuntos assombrosos e aterradores conforme a halakhah juntamente com sua pregaccedilatildeo hagaacutedica (Swidler 1993 p 86)

72

destituindo tal sumo sacerdote Segundo Flusser os fariseus possivelmente

consideravam a relaccedilatildeo dos saduceus com os romanos como um ato de

ldquodespotismo sacerdotalrdquo e essa poderia ser a causa a partir da leitura dos Sinoacuteticos

da ausecircncia de relatos da presenccedila de fariseus no julgamento e condenaccedilatildeo de

Jesus Flusser pressupotildee que os Sinoacuteticos natildeo mencionam um protesto dos fariseus

a favor de Jesus uma vez que eles jaacute haviam registrado anteriormente um Jesus

ldquoantifarisaicordquo em suas narrativas (Flusser 2002 p50)

453 OS SADUCEUS

Os saduceus que natildeo eram originaacuterios dos chassidim mas dos asmoneus

respeitavam os fariseus porque estes tinham um grande prestiacutegio com a populaccedilatildeo

em geral A classe dos saduceus era composta por gente nobre e rica da sociedade

Eles rejeitavam a doutrina da ressurreiccedilatildeo dos mortos e a existecircncia dos anjos

Tambeacutem soacute aceitavam o Pentateuco como verdade de feacute ldquoOs saduceus possuiacuteam o

poder os fariseus possuiacuteam a influecircncia sobre o povordquo (Gnilka 2000 p 61-62)

Flusser tambeacutem coloca os saduceus como um grupo pequeno menor do que os

fariseus por outro lado ele observa que os saduceus eram poderosos uma vez que

pertenciam a aristocracia sacerdotal do templo Eles natildeo eram revolucionaacuterios como

os fariseus (que se envolveram na guerra civil no periacuteodo macabeu) negavam a

validade da tradiccedilatildeo oral e consideravam toda a crenccedila na vida futura como uma

tolice (Flusser 2002 p45)

Nos Evangelhos sinoacuteticos os saduceus satildeo mencionados mais no Evangelho

de Mateus sendo que em Marcos e Lucas eles satildeo mencionados apenas uma vez

em cada Evangelho (Mc 12 18-27 Lc 20 27-40) No entanto tanto para Mateus e

Marcos como para Josefo os saduceus assim como os fariseus eram muito

conhecidos no primeiro seacuteculo da era cristatilde (Saldarini 2005 p183-184) Os

saduceus satildeo sempre colocados por Josefo ao lado dos fariseus Josefo tambeacutem

situa os saduceus como sendo um grupo pertencente agrave classe dominante Em Atos

dos apoacutestolos os saduceus discutem com os fariseus acerca da ressurreiccedilatildeo por

causa de um discurso de Paulo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (At 23) Em Atos

(41 517) os saduceus tambeacutem satildeo associados aos maiorais do templo ou seja agrave

classe sacerdotal (Saldarini 2005 p308-309)

73

A classe sacerdotal estaacute intimamente relacionada ao julgamento de Jesus

Em Lucas 22 54 lemos ldquoPrenderam-no e levaram-no introduzindo-o na casa do

Sumo Sacerdote Pedro seguia de longerdquo Segundo Flusser o clatilde sacerdotal e o

proacuteprio sumo sacerdote eram saduceus Caifaacutes era o sumo sacerdote e tambeacutem era

a figura mais importante do segundo Templo Foi na casa (palaacutecio) de Caifaacutes que

Jesus passou a noite sob custoacutedia enquanto era escarnecido pelos guardas (Lc 22

63) Os saduceus odiavam a Jesus possivelmente porque o consideravam um

profeta (ldquoFaz uma profecia quem eacute que te bateurdquo Lc 22 64) e sua presenccedila em

Jerusaleacutem podia ser uma clara ameaccedila Segundo Joatildeo os motivos da condenaccedilatildeo

de Jesus pela classe sacerdotal eacute que

[] os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram ldquoQue faremos Esse homem realiza muitos sinais Se o deixarmos assim todos creratildeo nele e os romanos viratildeo destruindo o nosso lugar santo e a naccedilatildeordquo Um deles poreacutem Caifaacutes que era o Sumo Sacerdote naquele ano disse-lhes ldquoVoacutes nada entendeis Natildeo compreendeis que eacute de vosso interesse que um soacute homem morra pelo povo e natildeo pereccedila a naccedilatildeo todardquo Natildeo dizia isso por si mesmo mas sendo sumo Sacerdote naquele ano profetizou que Jesus morreria pela naccedilatildeo ndash e natildeo soacute pela naccedilatildeo mas tambeacutem para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos Entatildeo a partir desse dia resolveram mataacute-lo Jesus por isso natildeo andava em puacuteblico entre os judeus mas retirou-se para a regiatildeo proacutexima do deserto para a cidade chamada Efraim e aiacute permaneceu com seus disciacutepulos (Jo 11 47-54)

A atitude de Caifaacutes em relaccedilatildeo agrave morte substituta de Jesus (ldquoeacute de vosso

interesse que um soacute homem morra pelo povordquo) eacute vista por Flusser mais como uma

justificativa do sumo sacerdote uma vez que a tradiccedilatildeo judaica repudiava o ato de

entregar um cidadatildeo judeu para que fosse morto por estrangeiros era um pecado

imperdoaacutevel segundo a halakaacute38 Flusser cita ainda o Rolo do Templo essecircnico

(64 7-8) que diz ldquoSe um homem calunia Meu povo e entrega Meu povo para uma

naccedilatildeo estrangeira e pratica a iniquidade contra meu povo penduraacute-lo-eis numa

38

Zuurmond define a halakaacute da seguinte maneira ldquoeacute o way of life judaico o conjunto de prescriccedilotildees e proibiccedilotildees que definem a maneira como vivem os judeus Uma questatildeo halaacutequica eacute uma disputa sobre a halakaacute geralmente com base na interpretaccedilatildeo de textos do Antigo Testamento Nem toda a questatildeo halaacutequica eacute de ordem moral As leis de pureza por exemplo formam uma parte importante da halakaacute mas ndash pelo menos segundo nosso modo de falar ndash natildeo tem caraacuteter moralrdquo (Zuurmond 1998 p 77) A raiz halak tambeacutem pode ser definida como a ldquoviardquo a ldquocaminhadardquo ou seja ldquoa regra (de vida) que vai permitir a aplicaccedilatildeo da Torah escrita agraves circunstacircncias reais e mutaacuteveis da vida O plural eacute halakot regras decisotildees e coleccedilotildees de leisrdquo (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

74

aacutervore e ele morreraacuterdquo Ainda havia uma tradiccedilatildeo oral dos saacutebios judeus com o

seguinte teor ldquose haacute um grupo de pessoas e os gentios lhes dizem entregai um de

voacutes para noacutes e o mataremos se natildeo fizerdes mataremos a todos a (regra eacute) deixai

que todos sejam assassinados e natildeo entregueis a eles uma uacutenica alma em Israel

poreacutem se eles o escolherem deixai que o entreguem para que todos natildeo sejam

massacradosrdquo (cf Flusser 2002 p 164-166)

Caifaacutes natildeo se restringiu apenas a entregar Jesus aos romanos Ele sabia que

eles eram implacaacuteveis a qualquer judeu rebelde ou a movimentos profeacuteticos

entusiastas que se levantassem na Palestina No entanto parece que Caifaacutes natildeo

estava preocupado com as tradiccedilotildees de seu povo O viacutenculo dele com os suacuteditos e

representantes de Cesar se estreitava ainda mais quando o vemos em Atos dos

Apoacutestolos (4 1-3 46 5 27-28) juntamente com a classe sacerdotal (os saduceus)

prendendo muitos cristatildeos em Jerusaleacutem pelos mesmos motivos que Jesus foi

entregue aos romanos sem se importar com as tradiccedilotildees judaicas das quais ele

deveria ser o principal observador (Flusser 2002 p 154-166)

454 OS ZELOTAS

Os movimentos de resistecircncia nos dias de Jesus estatildeo ligados ao projeto de

romanizaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo da Galileia por Herodes Antipas (Crossan 2009 p16-

18) O anseio de Antipas em se tornar rei uma vez que ele foi nomeado por Cesar

Augusto como tetrarca da Galileia e Pereia e seu irmatildeo Felipe ficou como tetrarca

da parte do extremo norte do paiacutes Jaacute Arquelau o outro filho de Herodes o Grande

ficou como etnarca da Idumeia Judeia e Samaria o que deixou Antipas muito

desapontado

Segundo Crossan Antipas comeccedilou a trabalhar para ganhar prestiacutegio em

Roma poreacutem agraves custas de um jugo pesado aos habitantes da Galileia Primeiro ele

fortificou Seacuteforis ldquopara ser o ornamento de toda a Galileiardquo e dedicou a Augusto a

sua cidade-capital reconstruiacuteda Apoacutes a morte de Augusto assumiu como Imperador

de Roma Tibeacuterio Antipas logo teve a ideia de substituir a capital Seacuteforis fundando

uma nova cidade a 32 quilocircmetros ao leste na costa ocidental do mar da Galileia e

nomeou-a Tiberiacuteades em homenagem ao Imperador Tibeacuterio (cf Crossan 2009 p

17-18) O problema de tudo isso era que as construccedilotildees de Antipas provocavam o

75

aumento dos tributos sobre os galileus causando um descontentamento geral

Contudo para Antipas o que mais importava conforme Crossan nos descreve era

passar a Roma uma imagem de um governante lucrativo na questatildeo da arrecadaccedilatildeo

de impostos o que poderia levar o Imperador a pensar ldquoque eacute que natildeo faria ele

como monarca de toda a paacutetria judaicardquo

As construccedilotildees de Antipas poderiam impressionar Roma mas natildeo poderiam

evitar os movimentos de resistecircncia judaica uma vez que segundo Pagola (2010 p

48) ldquoos camponeses experimentaram pela primeira vez a pressatildeo e o controle

proacuteximo dos governos herodianosrdquo A situaccedilatildeo era tatildeo caoacutetica que aumentou

assustadoramente o nuacutemero de indigentes prostitutas e diaristas enfim parece que

Jesus conheceu ao longo de sua vida uma Galileia onde a desigualdade social era

enorme onde se favorecia a minoria privilegiada de Seacuteforis e Tiberiacuteades ao custo da

pobreza e sofrimento e desintegraccedilatildeo de muitas famiacutelias

Crossan (2004 p 275) nota que a construccedilatildeo ou reconstruccedilatildeo das cidades

de Seacuteforis e Tiberiacuteades natildeo afetou apenas os camponeses iletrados ou seja os

trabalhadores mais humildes mas tambeacutem afetou agrave classe dos letrados Assim ele

conclui que ateacute mesmo o movimento de Jesus relacionado ao reino de Deus

comeccedilou como um movimente de resistecircncia a partir dos camponeses ldquomas

abandonou seu caraacuteter localista e regionalista sob a lideranccedila dos letradosrdquo

Dentre os movimentos de Revolta encontramos Judas galileu que apoacutes a

deposiccedilatildeo de Arquelau (6 d c) natildeo aceitava que o pagamento de impostos devia

ser efetuado diretamente a Roma Segundo Theissen (2004 p163-164) a doutrina

de Judas repercutiu muito chegando ao ponto de alguns ldquoherodianosrdquo questionarem

a Jesus a respeito da questatildeo de se era liacutecito ou natildeo pagar impostos ao Imperador

(cf Mc 12 13-17) Horsley defende que o movimento de Judas o Galileu e de

Sadoc o fariseu que Josefo rotula como a quarta filosofia (as outras satildeo os

fariseus os saduceus e os essecircnios) tecircm sido interpretadas de uma forma errada

por vaacuterios especialistas que afirmam que esse movimento pregava a revolta armada

contra Roma De acordo com Horsley Josefo assim descreveu esse movimento em

Ant 18 4-5 23

Mas um certo Judas gaulanita da cidade de Gamala em combinaccedilatildeo com o fariseus Sadoc insistiu fortemente na resistecircncia Eles diziam que tal

76

avaliaccedilatildeo tributaacuteria implicava escravidatildeo pura e simples e pressionavam a naccedilatildeo a exigir sua liberdade [] Judas o Galileu estabeleceu-se como o liacuteder da quarta filosofia Os seus adeptos concordaram com as ideia dos fariseus em tudo exceto em sua indomaacutevel paixatildeo pela liberdade pois consideram Deus o seu uacutenico liacuteder e senhor (cf Horsley 2010 p 72)

Horsley avalia que Judas e Sadoc estivessem mais ligados ao ensino ou

pregaccedilatildeo ldquocontra a avaliaccedilatildeo tributaacuteria ou ateacute mesmo uma resistecircncia organizada

contra os impostos do que um grupo armado e violento conforme tem sido

interpretado a partir dos escritos de Josefordquo (Horsley 2010 p 78-79)

As informaccedilotildees sobre os grupos de resistecircncias nem sempre satildeo unacircnimes

como vimos acima No entanto podemos afirmar que entre os grupos de resistecircncia

encontram-se os Zelotes (Zelotas) talvez os mais conhecidos O termo Zelotas

encontra-se oito vezes registrado no Novo Testamento Esse termo geralmente

aplica-se ldquoaos guerrilheiros da resistecircncia desde Judas Galileu (6 aC) ateacute os

defensores da fortaleza de Masadaacute (74 dC) Eles eram rigorosamente

observadores do saacutebado da circuncisatildeo (exigiam a circuncisatildeo ateacute mesmo dos

antigos) e tinham fortes crenccedilas escatoloacutegicasrdquo (Dicionaacuterio Internacional de Teologia

do Novo Testamento p 2686) De acordo com Theissen mesmo que os

seguidores de Judas Galileu sejam chamados de Zelotes natildeo eacute possiacutevel afirmar tal

coisa visto que em Josefo eles ldquoaparecem como grupo apenas depois do inicio da

guerra judaica em 66 dC em relaccedilatildeo com o Templordquo (cf Theissen 2004 p164)

contudo haacute um argumento de peso contra essa teoria uma vez que entre os

disciacutepulos de Jesus por volta da metade do seacuteculo I havia um zelole (Simatildeo Zelote

cf Lc 6 15) e Theissen faz uma observaccedilatildeo ldquoaleacutem disso na Galileiardquo

Os zelotas eram originaacuterios dos fariseus e assim como os essecircnios estavam

ligados pela guerra santa e escatoloacutegica Natildeo satildeo citados nos evangelhos como

grupo mas entre os disciacutepulos de Jesus como foi dito acima havia um disciacutepulo

chamado de ldquoSimatildeo o Zeloterdquo (Lc 615 At 113) Eles lutavam pelos direitos do

pobre do oprimido e a esses ldquoprometiam com a chegada do Reino de Deus a

restauraccedilatildeo de seus direitos e uma nova ordem estabelecida por Deusrdquo (Gnilka

2000 p 60) O fato de entre os disciacutepulos ter um zelote natildeo significa que esse

movimento tenha sido endossado por Jesus jaacute que os ensinamentos de Jesus sobre

o tributo a Cesar e sua atitude para com o saacutebado eacute uma forma de repuacutedio a

77

doutrina apregoada pelos zelotas (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo

Testamento p 2686)

Podemos observar portanto que a possiacutevel relaccedilatildeo de Jesus com os Zelotas

como grupo de resistecircncia eacute muito remota ou praticamente inexistente conforme

Crossan (2004 p275) tem observado Ainda na mesma linha de pensamento de

Crossan Sean Freyne tambeacutem considera remota a hipoacutetese do possiacutevel

envolvimento de Jesus com o grupo dos zelotas Para Freyne (2008 p 130) a

pregaccedilatildeo de Jesus natildeo incitava a vinganccedila uma vez que estava mais baseada no

livro do Gecircnesis (criaccedilatildeo) do que no livro do Ecircxodo (libertaccedilatildeo) ou seja Jesus natildeo

via as demais naccedilotildees ou outras origens eacutetnicas como objeto de remoccedilatildeo

aniquilaccedilatildeo conversatildeo ou conquista como viam os heroacuteis do Antigo Testamento

Contudo para Freyne devemos observar que haacute duas formas de

interpretarmos Jesus de Nazareacute Se o olharmos segundo o ponto de vista de

Crossan veremos um Jesus voltado para um entendimento sapiencial e natildeo

apocaliacuteptico ou seja Jesus teria escolhido um modelo de dominaccedilatildeo monaacuterquica

baseado num ldquoreino dos destituiacutedos e Jootildees ningueacutem vigente no aqui e agora um

reino realizado (por meios maacutegicos e materiais) natildeo apenas proclamadordquo Por outro

lado Freyne observa que o pensamento de Horsley sobre Jesus eacute bem diferente

dos de Crossan Jesus segundo Horsley teria sido um revolucionaacuterio ou seja

partindo desse ponto de vista ldquoo siacutembolo do reino de Deus tal como empregado por

Jesus significava a vitoacuteria de Deus sobre as forccedilas do mal uma concepccedilatildeo que se

coadunava com as expectativas apocaliacutepticas judaicas padratildeordquo posiccedilatildeo essa que

segundo Freyne seria mais convincente (Freyne 2008 p 132)

Bruce Malina vecirc o grupo de Jesus como uma religiatildeo politicamente inserida

onde o reino e o governo de Deus satildeo iminentes ou seja seus disciacutepulos devem

orar para que o reino de Deus venha para o julgamento e recompensa e isso

segundo Malina era compreendido sob o ponto de vista poliacutetico por uma pessoa do

primeiro seacuteculo A morte de Jesus natildeo foi o fim desse reinado pois ldquoos seguidores

de Jesus acreditavam que Deus o ressuscitou dos mortos de maneira que o proacuteprio

Jesus em breve surgiria como vice regente do Deus de Israel como Messias de

Israel com poderrdquo (Malina 2004 p 99) Malina conclui esse pensamento afirmando

que

78

o reino de Deus veio para tomar a forma de uma teocracia representativa e pessoal Nestas dimensotildees ele teria tido a mesma estrutura da religiatildeo poliacutetica de Israel durante o tempo de Jesus A questatildeo aberta era Quem seria o agente o substituto concreto para o Deus de Israel Os membros do grupo de Jesus tinham pouca duacutevida de que esse agente fosse Jesus o Messias de Israel Mas Deus tinha em mente mais natildeo apenas Israel (Malina 2004 p 164)

Portanto pertencer ao grupo de Jesus era mais do que esperar por um reino

poliacutetico era ter um novo modo de vida ia aleacutem das fronteiras de Israel natildeo significa

apenas a libertaccedilatildeo de um jugo poliacutetico mas a libertaccedilatildeo do ser humano como um

todo

79

5 A QUESTAtildeO DA PALAVRA ABBA EM JOACHIM J JEREMIAS

E SEUS DESDOBRAMENTOS

Conforme vimos no capiacutetulo anterior Jesus apesar de ser visto por alguns

pesquisadores com caracteriacutesticas proacuteximas do grupo dos fariseus natildeo fez parte de

nenhum grupo revolucionaacuterio Contudo isso natildeo significa que ele fosse indiferente

aos problemas sociais que afligiam toda a Palestina Em contraste com os

poderosos da eacutepoca que exploravam os pobres atraveacutes da cobranccedila desmedida de

tributos Jesus oferece-se como um descanso aos cansados e oprimidos porque

somente ele tem um jugo suave e um fardo leve (cf Mt 11 28-30) Esse descanso

soacute ele pode oferecer porque recebeu do Pai a quem ele conhece e por quem

tambeacutem eacute conhecido (cf Mt 1127) Abba eacute a palavra por excelecircncia no quesito

intimidade entre Jesus e Pai dos Ceacuteus conforme a tese defendida por J Jeremias

51 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO DIVINA

Jesus conforme a tradiccedilatildeo cristatilde e os vaacuterios testemunhos das fontes (os

Evangelhos) possui o testemunho intriacutenseco de que eacute o Filho de Deus (cf Mt 1433

Mc 11 311 1539 Lc 2227 Jo 134 1127) O Evangelho de Marcos de uma

forma clara jaacute nos mostra a importacircncia desse pensamento teoloacutegico nas seguintes

palavras ldquoPrinciacutepio do Evangelho de Jesus Cristo Filho de Deusrdquo (Mc 11) Justino

de Roma tambeacutem prima pela exaltaccedilatildeo de Jesus como o Filho de Deus dizendo que

ldquo[] com razatildeo honramos tambeacutem a Jesus Cristo que foi nosso Mestre nessas

coisas e para isto nasceu o mesmo que foi crucificado sob Pocircncio Pilatos

procurador na Judeia no tempo de Tibeacuterio Ceacutesar Aprendemos que ele eacute o Filho

proacuteprio do Deus verdadeirordquo (Justino 1995 p28) ou ainda conforme a confissatildeo

de feacute de Calcedocircnia (451 dC) ldquoJesus eacute verdadeiramente homem e

verdadeiramente Deusrdquo ( Swidler 1993 p30)

Os Evangelhos da infacircncia (Mateus e Lucas) de uma forma independente

narram alguns acontecimentos relacionados ao nascimento e agrave infacircncia de Jesus

Segundo Duquoc as narrativas do nascimento de Jesus relatadas por Mateus e

Lucas se inserem na tradiccedilatildeo do Antigo Testamento como vemos no nascimento de

Isaac (Gn 21 1-7) de Jacoacute (Gn 25 25-26) de Moiseacutes (Ex 2 1-10) de Sansatildeo (Jz

80

13 1-25) e o de Samuel (1 Sam 1 19-26) As caracteriacutesticas de tais narrativas satildeo

ldquodiscernir na concepccedilatildeo ou no nascimento os sinais antecipadores de um destino

particularmente abenccediloado por Deusrdquo Para Duquoc contudo tratar as narrativas de

Mateus e Lucas como Evangelhos da Infacircncia natildeo eacute a forma mais correta e pode

induzir em erro mesmo que a tradiccedilatildeo assim os mencione Nos textos de Mateus e

Lucas observamos que ali se trata mais do nascimento do que a infacircncia de Jesus

conforme vemos resumido no quadro comparativo abaixo (Duquoc 1992 p22)

Mateus Lucas

Genealogia de Cristo 1 1-17 Anuacutencio da concepccedilatildeo virginal a Joseacute 1 18-24 Nascimento do Salvador 125 Visita dos magos 2 1-12 Fuga para o Egito e massacre dos inocentes 2 13-18 Volta a Nazareacute 2 19-23

Anuacutencio do nascimento de Joatildeo Batista 1 5-25 Anuacutencio a Maria 1 26-28 Visitaccedilatildeo 1 39-56 Nascimento do Salvador 2 1-14 Visita dos Pastores 2 15-20 Circuncisatildeo 2 21 Apresentaccedilatildeo no Templo 2 22-38 Volta a Nazareacute 2 39-40 Reencontro no Templo 2 41-52

Os relatos da infacircncia ou do nascimento conforme menciona Duquoc natildeo

fazem parte do querigma (Keacuterygma) mas estatildeo associados mais ao Antigo

Testamento como vimos acima Contudo eles foram inseridos nos Evangelhos e

devem ser lidos a partir da perspectiva dos evangelistas Eles natildeo satisfazem a

curiosidade como fazem os Apoacutecrifos visto que eles estatildeo relacionados mais agrave feacute da

Igreja primitiva do que aos acontecimentos histoacutericos ldquoMateus e Lucas iluminaram

retrospectivamente as recordaccedilotildees atraveacutes da catequese evangeacutelica e os eventos

decisivos da Paacutescoa Natildeo narram uma histoacuteria Propotildeem apenas uma doutrina em

forma de histoacuteria Seria errocircneo querer iluminar a catequese por meio de narrativas

de nascimento O processo foi inversordquo (Duquoc 1992 p24-25)

81

Observamos que as narrativas da infacircncia levantam questotildees sobre a

autenticidade histoacuterica dos relatos dos evangelistas Para Fitzmyer nas narrativas

da infacircncia eacute difiacutecil constatar o realmente histoacuterico poreacutem eacute inegaacutevel o fato de que

exista um nuacutecleo histoacuterico nesses acontecimentos os quais serviram como base

para que os evangelistas numa tradiccedilatildeo posterior pudessem responder perguntas

sobre ldquoQuem eacute elerdquo ou ldquoDe onde ele veiordquo39 (Fitzmyer 1997 p34-35)

Apesar das diferenccedilas e da independecircncia dos evangelhos (Mateus e Lucas)

Fitzmyer observa que haacute pelo menos doze pontos nas narrativas da infacircncia que satildeo

comuns ou pelo menos haacute concoacuterdia entre os dois evangelistas a respeito do

nascimento do menino Jesus os quais seratildeo transcritos abaixo

1) O nascimento de Jesus relaciona-se com o reinado de Herodes Magno

(Mt 21 Lc 15)

2) Maria sua futura matildee eacute uma virgem noiva de Joseacute mas eles ainda

natildeo coabitaram (Mt 118 Lc 12734 25)

3) Joseacute eacute da casa de Davi (Mt 1 1620 Lc 127 24)

4) Um anjo do ceacuteu anuncia a concepccedilatildeo e o nascimento futuros de Jesus

(Mt1 20-21 Lc 1 28-30)

5) O proacuteprio Jesus eacute reconhecido como filho de Davi (Mt 11 Lc 132)

6) Sua concepccedilatildeo aconteceraacute por intermeacutedio do Espiacuterito santo (Mt 1

1820 Lc 1 35)

7) Joseacute natildeo se envolve na concepccedilatildeo (Mt1 18-25 Lc 134)

8) O nome ldquoJesusrdquo eacute imposto antes de seu nascimento (Mt 1 21 Lc

131)

9) O ceacuteu identifica Jesus como ldquoSalvadorrdquo (Mt 121 Lc 211)

10) Jesus nasce depois que Joseacute e Maria vatildeo viver juntos (Mt 1 24-25 Lc

2 4-7)

11) Jesus nasce em Beleacutem (Mt 21 Lc 2 4-7)

12) Jesus se fixa com Maria e Joseacute em Nazareacute na Galileia (Mt 2 22-23

Lc 239-51)

39

Segundo Fitzmyer as narrativas da infacircncia natildeo se originaram de uma tradiccedilatildeo mais primitiva da Igreja visto que nem Marcos (que eacute considerado o primeiro Evangelho a ser escrito) e nem Joatildeo (que eacute reconhecido como sendo de uma tradiccedilatildeo igualmente primitiva a de Marcos mas independente dos Sinoacuteticos) natildeo conteacutem tais relatos mas inicia-se com o Verbo que se fez carne (1 1-18) ou seja com o Verbo divino e preexistente

82

Nos primoacuterdios da Igreja a questatildeo da divindade e humanidade de Cristo era

o centro de muitas controveacutersias teoloacutegicas que partiam de vertentes judaicas ou

entatildeo de certos movimentos cristatildeos considerados como hereges Face agraves muitas

divergecircncias a respeito do Cristo a Igreja tomou frente a tais controveacutersias e pocircs-se

a refutar as heresias com toda a forccedila possiacutevel Correntes judaizantes e gnoacutesticas

que incansavelmente procuravam por todos os meios possiacuteveis proclamar que Jesus

era apenas um homem que morreu pregado na cruz ou entatildeo um divino que

parecia ser humano procuravam a todo custo abalar a feacute daqueles que foram

alcanccedilados pela feacute cristatilde Os Evangelhos e todo o Novo Testamento foram escritos

para fundamentar a feacute dos primeiros cristatildeos em Jesus Cristo Mediante a tantas

heresias que foram surgindo na Igreja tentando negar a divindade de Jesus os

cristatildeos reagiram com veemecircncia escrevendo muitas histoacuterias sobre Jesus como

forma de demonstrar que desde menino o filho de Joseacute e Maria era detentor de

muitos prodiacutegios nunca antes realizados em Israel nem mesmo pelos grandes

profetas do Antigo Testamento

Estas narrativas foram redigidas e fazem parte do que posteriormente ficou

conhecido como os ldquoEvangelhos Apoacutecrifosrdquo Os Apoacutecrifos satildeo portanto a forma

mais clara que a Igreja usou para se opor as teorias que negavam a divindade de

Jesus Na busca de por em evidecircncia a divindade do Mestre os Apoacutecrifos

apresentam Jesus quase sempre como um menino ou um homem prodigioso capaz

de realizar milagres tatildeo grandes que chegam a ser absurdo

A tradiccedilatildeo cristatilde ainda no intuito de preservar a doutrina da filiaccedilatildeo divina de

Jesus procurou de uma forma cuidadosa defender tal doutrina em seus vaacuterios

credos ao longo da histoacuteria do cristianismo Os mais antigos e conhecidos credos

satildeo Credo Apostoacutelico (Seacuteculo III e IV) Credo de Niceacuteia (325 AD - revisado em

Constantinopla em 381 AD) Credo de Calcedocircnia (451 AD) e o Credo de Atanaacutesio

(seacuteculos IV e V) A relaccedilatildeo de Jesus Cristo com Deus Pai e sua funccedilatildeo na

Santiacutessima Trindade satildeo mencionadas em todas as confissotildees acima citadas

(Grudem 1999 p996) Jaacute no primeiro credo (Credo Apostoacutelico) observamos a

importacircncia de Jesus como o Filho de Deus encarnado

Creio em Deus Pai Todo Poderoso Criador do ceacuteu e da terra E em Jesus Cristo seu Filho unigecircnito nosso Senhor concebido pelo Espiacuterito Santo e nascido da Virgem Maria que padeceu sob Pocircncio Pilatos foi crucificado morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos

83

que subiu ao ceacuteu e assentou-se agrave direita do Pai Todo-Poderoso de onde haacute de vir para julgar os vivos e os mortos Creio no Espiacuterito Santo na santa igreja catoacutelica na comunhatildeo dos santos na remissatildeo de pecados na ressurreiccedilatildeo da carne e na vida eterna Ameacutem (Grudem 1999 p996)

O credo segundo Thomas P Rausch (2006 p16) ldquoeacute uma declaraccedilatildeo oficial

da crenccedila da Igreja e tem poder normativo para a feacute da Igrejardquo Rausch observa que

o entatildeo cardeal Ratzinger escolheu o Credo Apostoacutelico como base para a sua

abordagem do livro Introduccedilatildeo ao Cristianismo De acordo com Rausch nessa obra

o cardeal faz uma mediaccedilatildeo entre os extremos relacionados agrave Cristologia da feacute e o

Jesus da histoacuteria Por um lado haacute os que procuram reduzir a Cristologia agrave histoacuteria

enquanto que por outro lado haacute os que buscam o abandono da histoacuteria

considerando-a como algo irrelevante para a feacute40 Abaixo reproduzimos um quadro

resumido dos principais conciacutelios Gerais da igreja onde foram formulados os

principais credos da Igreja (cf Rausch 2006 p261)

Conciacutelio Principais Figuras Temas

Niceia (325) Aacuterio (que natildeo estava presente) ldquohouve um tempo em que ele natildeo erardquo 381 bispos presentes

Rejeitou a opiniatildeo de Aacuterio de que o logos havia sido criado Cristo eacute homoousion41 ao Pai

Constantinopla I (381) Influecircncia Capadoacutecia Afirma a feacute de Niceacuteia Um novo credo afirma a divindade do Espiacuterito Nosso credo eacute uma combinaccedilatildeo de ambos

Eacutefeso I (431) Nestoacuterio conjunccedilatildeo de naturezas Maria eacute christokos42 Joatildeo de

Condena Nestoacuterio Maria eacute theotokos mas Cirilo e Joatildeo de Antioquia e excomungam

40

Nesse tratado escrito no final da deacutecada de 60 Ratzinger procura encontrar um meio termo entre Harnack que purifica a feacute da doutrina e do credo colocando a reconstruccedilatildeo do Jesus histoacuterico como fator determinante para a Cristologia com Bultmann para quem somente a feacute em Cristo tem importacircncia para o cristatildeo (cf Rausch 2006 p16) Vale ressaltar aqui que para o entatildeo cardeal Ratzinger ldquosegundo a feacute da Igreja a filiaccedilatildeo divina de Jesus natildeo se deve ao fato de Jesus natildeo ter um pai humano a doutrina do ser divino de Jesus natildeo sofreria nenhuma restriccedilatildeo se Jesus fosse o fruto de um casamento humano normal porque a filiaccedilatildeo divina que eacute objeto da feacute cristatilde natildeo eacute um fato bioloacutegico e sim ontoloacutegico natildeo eacute um evento no tempo e sim na eternidade de Deus ()rdquo Se considerarmos este texto como a base do pensamento de Ratzinger percebemos que a teologia de Bultmann teve para ele na eacutepoca um peso maior (cf Ratzinger 2006 p 204) 41

Homoi ser ldquosemelhanterdquo semelhante quanto ao ser (cf Rausch 2006 p 249) 42

Significa ldquoPortadora do Cristordquo Matildee de Cristo (cf Rausch 2006 p 249)

84

Conciacutelio Principais Figuras Temas

Antioquia Cirilo de Alexandria uniatildeo hipostaacutetica Maria eacute theotokos43

um ao outro

Eacutefeso II (449) (ldquoConciacutelio do Ladratildeordquo)

Flaviano de Constantinopla ldquoa partir de duas naturezas numa soacute hipoacutestase44 e numa soacute pessoardquo (foacutermula da uniatildeo) Dioacutescoro de Alexandria

Dioacutescoro domina Eacute rejeitada a foacutermula de Flaviano (ldquoa partir de duas naturezas uma soacute pessoardquo) O proacuteprio conciacutelio poreacutem eacute rejeitado

Calcedocircnia (451) 600 bispos Tomus do papa Leatildeo escrito para apoiar Flaviano Legados papais insistem numa nova profissatildeo de feacute

Condena Dioacutescoro aceita o Tomus de Leatildeo Prega duas naturezas numa uacutenica pessoa e numa uacutenica hipoacutestase verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem

Observamos que para a Igreja dos primeiros seacuteculos as verdades teoloacutegicas

a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus com o Pai eram de suma importacircncia para a

formaccedilatildeo e crescimento das comunidades cristatildes Por isso defenderam com

coragem e destemor o que acreditavam ser a essecircncia do Evangelho de Jesus

Cristo No entanto sempre houve aqueles que lutaram de todas as maneiras para

por em descreacutedito tanto o Evangelho como a pessoa de Jesus de Nazareacute Os pais

da Igreja tiveram que lutar contra as heresias e contra os hereges que procuraram

desmoralizar o mais importante homem do vilarejo de Nazareacute No entanto conforme

observa Rausch haacute problemas metodoloacutegicos nos Credos da Igreja Eles sempre

pressupotildeem uma Cristologia de ldquocima para baixordquo por isso a Cristologia necessita

de um fundamento criacutetico Para Rausch a Cristologia precisa ser estabelecida de

ldquobaixo para cimardquo ou seja ela precisa estar baseada nos atos e feitos do Jesus

histoacuterico para que natildeo seja acusada de ser uma feacute helenizada onde o carpinteiro

43

Significa ldquoPortadora de Deusrdquo Matildee de Deus (cf Rausch 2006 p 249) 44

Aquilo que estaacute sob ou daacute suporte a um objeto realizaccedilatildeo um ser concreto que suporta as diversas qualidades ou aparecircncias de uma coisa Ser subsistente realidade que existe por si mesma substacircncia (Exemplo medieval- ldquotransubstanciaccedilatildeordquo (cf Rausch 2006 p 249)

85

de Nazareacute teria sido transformado em um ldquosalvador divinizadordquo conforme o conceito

grego do divino (Rausch 2006 p 17)

52 JESUS E SUA FILIACcedilAtildeO HUMANA

Se para termos sucesso no estudo da Cristologia eacute necessaacuterio partirmos de

baixo para cima ou seja nas palavras de Rogers Haight ldquoseria difiacutecil imaginar

algueacutem interessado pela existecircncia humana de uma perspectiva religiosa que natildeo se

sentisse motivado a saber mais sobre Jesusrdquo uma vez que ldquoa Cristologia comeccedilou

com Jesus de Nazareacute e deve comeccedilar com Jesus hoje em diardquo (Rogers 2003

p75) precisamos analisar as fontes e teorias sobre Jesus desde as canocircnicas ateacute

as mais rejeitadas pela tradiccedilatildeo cristatilde Jaacute observamos acima que a Igreja dos

primeiros seacuteculos priorizou por razotildees apologeacuteticas em propagar e defender a

divindade de Cristo e por outro lado natildeo houve um interesse igual quando o tema

era a humanidade de Jesus No entanto com o passar dos seacuteculos surgiram

inuacutemeras questotildees a respeito do homem chamado Jesus de Nazareacute Para responder

tais questotildees ou pelo menos investigaacute-las faz-se necessaacuterio o estudo da Cristologia

partindo do homem Jesus ao Cristo da feacute

Edward Schillebeeckx nos diz que para uma boa reflexatildeo sobre a Trindade

faz-se necessaacuterio uma interpretaccedilatildeo cristoloacutegica de Jesus ou seja ldquona sua

humanidade Jesus eacute tatildeo intimamente do Pai que eacute exatamente nisso que ele eacute

Filho de Deusrdquo Podemos ver isso nas palavras de Schillebeeckx abaixo

[hellip] natildeo devemos compreender Jesus a partir da Trindade mas vice-versa eacute somente a partir de Jesus que a plenitude da unidade divina (natildeo tanto unitas trinitaris mas trinitas unitaris) se torna acessiacutevel para noacutes de alguma forma somente com base na vida morte e ressurreiccedilatildeo de Jesus sabemos que a Trindade eacute o modo divino da absoluta unidade da essecircncia divina Somente a partir de Jesus de Nazareacute de sua experiecircncia com o ldquoAbbardquo -fonte e alma de sua mensagem atuaccedilatildeo e morte ndash e de sua ressurreiccedilatildeo eacute que algo cheio de sentido pode ser dito sobre o Pai Filho e Espiacuterito Santo Pois na vivecircncia de Jesus com seu ldquoAbbardquo o importante eacute que esse ldquoestar voltado para o Pairdquo e ldquoprecedidordquo com a absoluta prioridade e internamente sustentado pelo entregar-se do proacuteprio Pai a Jesus de forma uacutenica Ora a mais antiga tradiccedilatildeo cristatilde chama de ldquoPalavraVerbordquo a essa autocomunicacatildeo de Pai base e fonte da proacutepria experiecircncia de Jesus com o ldquoAbbardquo Isso implica que a palavra de Deus eacute a base total de tudo o que apareceu em Jesus ( Schillebeeckx 2008 p663)

86

A Cristologia portanto deve comeccedilar a partir do Jesus humano sem que se

negligencie o Cristo da feacute Jesus foi o nome que mudou a histoacuteria da humanidade

como podemos dizer parafraseando Haight que Jesus de Nazareacute eacute praticamente

um consenso universal na histoacuteria como sendo um judeu que viveu nos primoacuterdios

do seacuteculo I e que posteriormente veio a ser reconhecido como o Messias ou o

Cristo Conforme Haight podemos afirmar ainda que ldquoJesus foi uma figura

concreta na histoacuteria humanardquo e por isso essa histoacuteria natildeo pode ser relegada ao

esquecimento (Haight 2003 p29)

Geza Vermes compocircs um resumo histoacuterico da vida de Jesus a partir do

Evangelho de Marcos sem as narrativas da infacircncia acima esboccediladas (em 51)

Vermes chama essas informaccedilotildees peculiares de ldquoo evangelho fundamental ndash

representado por Marcos (cf Vermes 1990 p 20) que conteacutem as seguintes

informaccedilotildees

Nome Jesus

Nome do Pai Joseacute

Nome da matildee Maria

Lugar do nascimento natildeo mencionado

Data do nascimento natildeo mencionada

Domiciacutelio Nazareacute na Galileia

Estado Civil natildeo mencionado45

Profissatildeo carpinteiro (τέκτων ) mas tambeacutem exorcista e pregador itinerante

O certificado de oacutebito pode ser preenchido de maneira um pouco mais

completa

Lugar do oacutebito Jerusaleacutem

Data da morte ldquoSob Pocircncio Pilatosrdquo entre os anos 26 e 36 dC

Causa da morte crucificaccedilatildeo ordenada pelo governador romano

Lugar do sepultamento Jerusaleacutem

45

Vermes contudo considera que Jesus era celibataacuterio uma vez que nunca haacute menccedilatildeo de qualquer esposa no decorrer do seu ministeacuterio (cf Vermes 1990 p 21)

87

Para falar do Jesus humano eacute preciso contextualizaacute-lo ao tempo e ao espaccedilo

ou seja natildeo podemos menosprezar o periacuteodo em que Jesus viveu entre os homens

Sabendo que a Palestina dos dias de Jesus estava politicamente sob o impeacuterio

romano e religiosamente dominada pelo extremismo e exclusivismo religioso natildeo eacute

difiacutecil de imaginar o quanto Jesus e sua famiacutelia devem ter sofrido preconceito numa

sociedade patriarcal em meio ao caos poliacutetico e religioso

Bruce Chilton examina a questatildeo do Jesus histoacuterico desde os dias em que

Jesus estava com os disciacutepulos ateacute um periacuteodo poacutes-apostoacutelico Segundo ele sempre

houve aqueles que questionaram a filiaccedilatildeo divina de Cristo assim como colocaram

em duacutevida a sua filiaccedilatildeo terrena Vermes um judeu com formaccedilatildeo cristatilde considera

que falar das histoacuterias da infacircncia de Jesus de uma forma ou de outra acabam por

introduzir ldquoum elemento de duacutevida acerca da paternidaderdquo (cf Vermes 1990 p21)

Como foi dito acima eacute muito provaacutevel que Jesus e seus pais tenham sofrido algum

preconceito em relaccedilatildeo agrave paternidade de Joseacute em relaccedilatildeo ao seu filho Jesus

Segundo Chilton existem trecircs teorias a respeito do nascimento de Jesus A

primeira delas eacute a que Jesus foi concebido por obra do Espiacuterito Santo conforme

descrito nos Evangelhos (Mt 118-25 Lc 134-35) A segunda teoria tem a pretensatildeo

de especular que Jesus era filho bioloacutegico de Joseacute tal como se pode compreender

da afirmaccedilatildeo de Filipe achamos a Jesus de Nazareacute ldquofilho de Joseacuterdquo (Jo 145) A

terceira teoria eacute que Jesus era filho de fornicaccedilatildeo conforme uma das interpretaccedilotildees

do evangelho de Joatildeo 841 ldquoVoacutes fazeis as obras de vosso pai Disseram-lhe entatildeo

natildeo nascemos da prostituiccedilatildeo temos soacute um pai Deusrdquo (Charlesworth 2006

p87)46

46

Juan Mateos interpreta o texto de Jo 841 partindo do princiacutepio que Jesus acusa os judeus que nele ldquohaviam cridordquo (o crer aqui pode ser obra do redator uma vez que um pouco agrave frente os mesmos querem matar Jesus cf Brown 1975 p80) de cometerem o pecado da idolatria uma vez que segundo alguns rabinos ser filho de Abraatildeo significava praticar a benevolecircncia a modeacutestia e a humildade Os que tais virtudes natildeo praticavam eram considerados como servo de um outro deus totalmente diferente do Deus de Abraatildeo por isso chamados de idoacutelatras Os judeus entenderam atraveacutes da interpretaccedilatildeo dos profetas que ao serem chamados de idoacutelatras era o mesmo que ser chamado de filhos da prostituiccedilatildeordquo algo que eles negam teoricamente mas como seus pais idoacutelatras que mataram os profetas eles da mesma forma querem matar Jesus que vem da parte de Deus (cf J Mateos 1989 p392-393) Segundo Brown ser descendente de Abraatildeo fisicamente natildeo tem nenhum meacuterito quando esse suposto filho natildeo age como agiu seu pai aqui no caso ldquoAbraatildeo que Creu quando Deus lhe falourdquo eles por outro lado natildeo creem no enviado de Deus (Jesus) por isso satildeo filhos ilegiacutetimos (cf Brown 1975 p80-81)

88

Diante desse contexto Chilton levanta uma questatildeo polecircmica Jesus pode ter

sido considerado um mamzer Algumas condiccedilotildees poderiam ser determinantes para

expor um indiviacuteduo na condiccedilatildeo de mamzer A principal caracteriacutestica que definia

uma pessoa nessa condiccedilatildeo era se tal indiviacuteduo era fruto de uma uniatildeo proibida e

consequentemente um filho proibido de acordo com a Toraacute ldquoNenhum bastardo

entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar

na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo (Dt 233) Conforme a Mishnah47

poderia ser considerado um mamzer aquele filho cuja paternidade natildeo era

conhecida e portanto natildeo havia evidecircncias que tal uniatildeo fosse permitida de acordo

com a Lei Por outro lado na visatildeo do Talmude Babilocircnico48 bastava ser filho de um

natildeo israelita para que o indiviacuteduo fosse considerado um mamzer

A legitimidade da paternidade bioloacutegica de Jesus foi assunto controverso

como indicado mais acima jaacute no segundo seacuteculo da era Cristatilde Alguns autores

como John P Meier (1991 p223) e Bruce Chilton (in Charlesworth 2006 p 85)

mencionam a acusaccedilatildeo feita por Celso jaacute no ano de 178 dC que Jesus era filho de

Maria com um soldado Romano chamado Pantera49

A fonte desta histoacuteria de acordo com Dalman (2002 p152-153) vem do

Talmude Babilocircnico O nome de um certo Jesus eacute comumente mencionado no

Talmude e na literatura talmuacutedica pelas expressotildees Filho de Stada (Satda) e Filho

de Pandera (Pantera) Segundo Dalman a traduccedilatildeo literal do texto talmuacutedico de

Shabat 104b e Sanhedrin 67a tem a seguinte forma

O filho de Stada era o filho de Pandera O Rabi Chisda disse O marido era

Stada o amante Pandera (Outro disse) o marido era Paphos ben Yehudah

Stada era sua matildee (ou) sua matildee era Mirian a cabeleireira de mulheres

como eles diriam em Pumbeditha Stath da (ie Ela era infiel) para o marido

47

A palavra Mishnah vem de Shanah ldquorepetirrdquo significa ldquorepeticcedilatildeordquo ou ldquoestudo atraveacutes da repeticcedilatildeordquo Publicada por volta do ano 200 dC pelo patriarca judeu Judas I a Mishnah eacute uma coletacircnea de leis que se impocircs como coacutedigo oficial do judaiacutesmo Ela resulta de uma compilaccedilatildeo seletiva feita no decurso do seacuteculo II da era cristatilde ndash de tradiccedilotildees normativas ambientes (halakot) Ela estaacute redigida em hebraico (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

48 ldquoTalmudrdquo significa ensinamento estudo Haacute dois Talmuds 1) o Talmud de Jerusaleacutem terminado

pelo fim do seacuteculo IV na Palestina 2) o Talmud da Babilocircnia composto no seacuteculo V em Sura Mesmo na Palestina o Talmud da Babilocircnia o mais completo suplantou o Talmud de Jerusaleacutem quando se fala do ldquoTalmudrdquo sem especificar qual designa-se exclusivamente o da Babilocircnia (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p 10)

49 Zuurmond acha que provavelmente Pantera (ou Pandera) ldquoseja uma deformaccedilatildeo acintosa de

parthenos= virgem Deformar de propoacutesito o nome de um inimigo era (e eacute) um uso bastante comum (cf Zuurmond 1998 p77)

89

No entanto uma traduccedilatildeo mais livre do mesmo texto talmuacutedico teria a

seguinte forma segundo Dalman

Ele natildeo era filho de estada mas filho de Pandera Rab Chisda afirma

que o marido da matildee de Jesus era Stada mas o amante dela era Pandera

Outro (diz) que o marido dela era certamente Paphos ben Yeshua que ao

contraacuterio Stada era a matildee dele (Jesus) de acordo com outros sua matildee era

Mirian (Maria em hebraico) a cabeleireira das mulheres A treacuteplica eacute e eu

concordo simplesmente Stada era o apelido dela (Maria) como dito no (ou

na) Pumbeditha Stath da (que significa ldquoela provou ser infielrdquo) ao marido dela

Provavelmente a partir da leitura desses textos eacute que Celso tomou o nome

deste Jesus citado no Talmude e relacionou com o Jesus dos Evangelhos

considerando que ambos os personagens se tratavam da mesma pessoa Desta

forma conforme mencionado por Oriacutegenes Celso acusa Jesus de aleacutem de ter

inventado seu nascimento ter nascido numa cidadezinha da Judeia ser filho de uma

pobre fiandeira ter adquirido poderes maacutegicos no Egito ainda usou esses poderes

para proclamar-se Deus (Oriacutegenes 2004 p68) Embora esse relato tenha sido

retomado tambeacutem por pensadores contemporacircneos como mais um argumento para

contestar a legitimidade do nascimento de Jesus conforme relatado nos Evangelhos

Chilton no entanto considera que esse relato eacute infundado e foi apenas mais uma

ficccedilatildeo que circulou nos primeiros seacuteculos da era cristatilde

Nas comunidades judaicas dos dias de Jesus se uma mulher estivesse

graacutevida antes da consumaccedilatildeo plena do matrimocircnio ela precisaria pela tradiccedilatildeo

apresentar agrave comunidade em que vivia provas de quem era o pai da crianccedila que

estava sendo gerado em seu ventre A casta do filho estava condicionada a quem

era o seu pai ou seja se o filho por ela gerado fosse fruto de uma uniatildeo proibida

obviamente ele seria excluiacutedo da congregaccedilatildeo de Israel conforme estabelecido na

Toraacute especificamente em Deuteronocircmio 233 onde lemos ldquoNenhum bastardo

entraraacute na assembleia de Iahweh e seus descendentes tambeacutem natildeo poderatildeo entrar

na assembleia de Iahweh ateacute a deacutecima geraccedilatildeordquo

Vale ainda ressaltar que quando um contrato de casamento era firmado a

Mishnah dava o direito ao contratante de anular o mesmo sem uma justificativa

formal caso ele se sentisse injusticcedilado Se a mulher estivesse graacutevida na ocasiatildeo

do rompimento do contrato esse ato do contratante eximia a mulher da acusaccedilatildeo de

90

adulteacuterio e dessa forma o filho natildeo poderia ser considerado formalmente um

mamzer Tal situaccedilatildeo poderia dar margem a um problema de interpretaccedilatildeo da Lei a

saber a mulher uma vez abandonada poderia usar apenas a palavra acerca da

paternidade do fruto de seu ventre Essa palavra seria aceita como verdade tal

como pensavam os rabinos Gamaliel e Eliezer ou rejeitada se natildeo houvesse uma

prova concreta no pensamento do rabino Joshua (Charlesworth 2006 p87)

No primeiro caso a mulher poderia alegar que um determinado cidadatildeo da

sua comunidade era o pai da crianccedila que ela estava esperando Se a palavra dessa

mulher fosse aceita como verdadeira entatildeo pela Toraacute esse homem seria obrigado

a casar com ela e natildeo poderia mandaacute-la embora por toda a vida conforme lemos

em Deuteronocircmio 22 28-29

Se um homem encontra uma jovem virgem que natildeo estaacute prometida e a agarra e se deita com ela e eacute pego em flagrante o homem que se deitou com ela daraacute ao pai da jovem cinquenta ciclos de prata e ela ficaraacute sendo a sua mulher uma vez que abusou dela Ele natildeo poderaacute mandaacute-la embora durante toda a sua vida

Essa interpretaccedilatildeo daria margem para que as mulheres mesmo que

concebessem um filho fruto de uma uniatildeo proibida mas que indicassem um

determinado homem como sendo o pai da crianccedila pudessem tornar o fruto do

ventre em um legiacutetimo judeu aos olhos da comunidade tendo em vista que a mulher

alcanccedilou ecircxito em sua argumentaccedilatildeo o que segundo essa visatildeo natildeo seria difiacutecil

conseguir (Charlesworth 2006 p 87)

Partindo da premissa que a relaccedilatildeo sexual entre pessoas que jaacute haviam

estabelecido o contrato de casamento era toleraacutevel na eacutepoca uma possiacutevel relaccedilatildeo

sexual entre Joseacute e Maria natildeo seria proibida Mas o fato de Joseacute morar em Beleacutem e

Maria em Nazareacute exclui as possibilidades do filho ser dele (Chilton 2002 p13)

Dessa forma Jesus poderia ser considerado um mamzer jaacute que a sua concepccedilatildeo

ocorreu no periacuteodo entre o contrato de casamento e a coabitaccedilatildeo de Joseacute e Maria

Chilton observa que o pensamento de Joseacute em deixar Maria secretamente

conforme lemos em Mateus 119 seria portanto uma forma de natildeo acusar Maria de

fornicaccedilatildeo Natildeo obstante a maravilhosa forma como Joseacute assumiu a paternidade

pode natildeo ter sido suficiente para inibir as mais adversas situaccedilotildees pelas quais Jesus

91

tenha sido alvo desde a infacircncia ateacute a crucificaccedilatildeo proveniente de especulaccedilotildees

sobre a legitimidade de sua paternidade bioloacutegica

Observando as teorias propostas acima a respeito da filiaccedilatildeo de Jesus

podemos pensar sobre os diferentes conceitos que seus contemporacircneos tinham a

respeito dele Ele era filho de Deus gerado pelo Espiacuterito Santo Ele era filho de Joseacute

ou de um pai desconhecido As palavras ldquoNatildeo nascemos da prostituiccedilatildeordquo (Jo 841)

poderiam ter sido usadas com ironia a fim de colocar em duacutevida sua reputaccedilatildeo em

relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees concernentes agrave paternidade bioloacutegica Por que ele foi

chamado de o ldquocarpinteiro o filho de Mariardquo (Mc 63) e natildeo filho de Joseacute e de Maria

entre os seus conterracircneos

Essas questotildees levantadas acima satildeo passiacuteveis de outras interpretaccedilotildees

quando olhamos o texto do Evangelho de Joatildeo a partir de uma cristologia alta50

Embora seja possiacutevel que os judeus tenham procurado debater com Jesus sobre

sua filiaccedilatildeo humana Jesus no entanto sempre usou tais debates para evidenciar

sua filiaccedilatildeo divina e enfatizar sua relaccedilatildeo com o Pai atraveacutes da palavra Abba que

para J Jeremias eacute a mensagem central do Novo Testamento

53 O ABBA NOS LAacuteBIOS DE JESUS

Jesus se relacionava com Deus de uma maneira peculiar a qual eacute evidente

nos evangelhos Segundo Pagola a experiecircncia de vida de Jesus eacute a partir de um

Deus Pai que para Jesus eacute aquele que cuida ateacute mesmo das criaturas fraacutegeis e

insignificantes aos olhos dos homens Esse Pai tambeacutem atende aos pobres e

necessitados traz a cura aos enfermos busca os perdidos enfim Deus Pai se torna

o centro de toda a mensagem e da proacutepria vida de Jesus de Nazareacute (Pagola 2010

p 380-381)

Nos Evangelhos a palavra Pai aparece nos laacutebios de Jesus mais de 170

vezes quando ele se dirige a Deus seja por interpelaccedilatildeo ou por designaccedilatildeo

Segundo J Jeremias eacute preciso distinguir a interpelaccedilatildeo da designaccedilatildeo de Deus

como Pai quando esse termo eacute proferido por Jesus nos evangelhos Em suas

50

A cristologia alta refere-se agrave crenccedila na preexistecircncia e na divindade de Jesus (cf

httpwwwcentroestudosanglicanoscombrbancodetextosbibliahermeneuticaresenhas_brown_julio_cesarpdf acesso em 23102011 as 1225 horas)

92

oraccedilotildees Jesus sempre fez uso da interpelaccedilatildeo Pai para invocar a Deus com

exceccedilatildeo do grito da cruz em Mc 1534 par Mt 2746 ldquoMeu Deus meu Deus por que

me abandonasterdquo interpelaccedilatildeo essa que jaacute estava prefixada pelo Sl 221 Aleacutem da

interpelaccedilatildeo eacute muito comum Jesus referir-se a Deus como ldquoo Pairdquo (ὁ πατὴρ) ldquomeu

Pairdquo (τοῦ πατρός μου) e ldquovosso Pairdquo (ὁ πατὴρ ὑμῶν ) (Jeremias 2005 p43)

De fato Jesus usou essas trecircs formas para designar Deus como Pai A

designaccedilatildeo ldquoo Pairdquo encontra-se em alguns textos dos evangelhos em Marcos (Mc

13 32 = Mt 24 36) em Mateus e Lucas juntos (Mt 11 27 = Lc 10 22) somente em

Lucas (Lc 9 26 1113) somente em Mateus (Mt 28 19) e em Joatildeo setenta e trecircs

vezes Sobre a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo encontramos em Marcos (Mc 11 25)

Mateus e Lucas juntos (Mt 5 48 = Lc 6 36 1230) somente em Lucas (Lc 12 32)

somente em Mateus (Mt 5 16 44 61 81526 7 11 10 20 29 18 14) e em Joatildeo

(Jo 8 42 20 17) Aleacutem disso o termo ldquomeu Pairdquo que se encontra em Marcos (Mc

838 = Mt 16 27) τοῦ πατρὸς αὐτοῦ [de seu Pai] mesmo que em referecircncia ao

Filho do Homem natildeo pode figurar sem reservas entre os testemunhos da foacutermula

Meu Pai) (Jeremias 2005 p43) E por fim conforme J Jeremias a expressatildeo

ldquomeu Pairdquo encontra-se nos seguintes textos dos Evangelhos Mateus e Lucas juntos

(Mt 11 27 ndash Lc 1022) somente em Lucas (Lc 249 22 29 24 49) somente em

Mateus (Mt 7 21 10 32-33 12 50 15 13 16 17 18 10 19 35 20 23 25 34 26

29 53 e em Joatildeo vinte e cinco vezes

Para J Jeremias haacute uma crescente tendecircncia em introduzir a designaccedilatildeo de

Deus como Pai nos evangelhos Excluindo as invocaccedilotildees de Pai por Jesus e

contando os paralelos sinoacuteticos J Jeremias observa que em Marcos aparece

apenas trecircs vezes jaacute em Mateus e Lucas juntos (coleccedilatildeo dos logias) aparece

quatro vezes enquanto que somente em Lucas eacute mencionado quatro vezes Os

ditos que satildeo proacuteprios de Mateus satildeo citados trinta e uma vezes A ecircnfase recai

sobre o Evangelho de Joatildeo escrito mais tarde onde a designaccedilatildeo de Deus como

Pai nas palavras de Jesus aparece cem vezes Segundo J Jeremias haacute uma

evidente progressatildeo do uso da palavra Pai usada por Jesus em Marcos na coleccedilatildeo

dos Logia e nos elementos proacuteprios de Lucas Analisando os textos dos Evangelhos

referentes ao uso da palavra Pai observa-se que todos enfatizam essa relaccedilatildeo

iacutentima de Jesus com o Pai do ceacuteu Desse modo ldquopode-se dizer que Jesus se servia

93

da palavra Pai para designar a Deus somente em certas circunstacircncias Em

Mateus acha-se uma progressatildeo sensiacutevel no uso do termo e em Joatildeo Pai quase

tornou-se sinocircnimo de Deusrdquo (Jeremias 1977 p26-27)

Francisco Reyes Archila nota a frequecircncia do uso da palavra Pai em Joatildeo

mesmo sendo este o Evangelho que ao mesmo tempo em que evidencia a

paternidade divina protagoniza tambeacutem a figura feminina no discipulado

especialmente de Maria Madalena51 Archila analisando essa progressatildeo do uso da

palavra Pai em Joatildeo nos laacutebios de Jesus como tambeacutem jaacute havia sido observada por

J Jeremias vecirc ainda uma tendecircncia maior em Mateus em registrar o termo Pai em

relaccedilatildeo a Deus do que em Marcos e Lucas onde o termo praticamente natildeo aparece

Referindo-se a Joatildeo Archila tambeacutem eacute de acordo que natildeo somente nos

Evangelhos mas tambeacutem nas cartas o termo Pai eacute usado com uma frequecircncia

muito alta Para Archila jaacute que em Mateus a frequecircncia natildeo eacute tatildeo alta e em Marcos

e Lucas ela praticamente natildeo aparece e nem nas cartas de Paulo se usa esse

termo referindo-se a Deus somente na introduccedilatildeo das cartas (Rm 17 1 Co 13

2Cor 13 2Cor 12 1131 Gl 1 1-3 Ef 11 520 Cl 1 2-3 1Ts 11 2Ts 11 1tm 12

2Tm 12 Tt 14 Fm3) Eacute de se suspeitar segundo esse autor52 de que Jesus tenha

realmente dirigido-se a Deus sempre como Pai o mais provaacutevel seria que com o

decorrer do tempo (jaacute que Joatildeo foi escrito posteriormente aos outros Evangelhos) a

Igreja primitiva tenha assumido progressivamente essa expressatildeo devido ao

ldquoespiacuterito patriarcal proacuteprio do ambiente cultural da eacutepocardquo (Archila 2007 p99)

Podemos ver sobre o relevante uso do termo Pai no Evangelho de Joatildeo no

resumo feito por Matthias Grenzer conforme exposto abaixo

1ndash O Pai ama o Filho porque este uacuteltimo daacute a sua vida (Jo 1017)

2- O Pai mostra ao Filho tudo o que ele mesmo faz (Jo 5 20)

51

Hamerton-Kelly esclarece que o fato de Jesus ter escolhido o siacutembolo de ldquopairdquo para referir-se a

Deus foi uma forma de reorganizar a forma de patriarcado da eacutepoca com a finalidade de tornar as pessoas livres das ldquogarras do patriarcadordquo Para Hamerton-Kelly longe de ser um siacutembolo sexista o pai era para Jesus uma arma escolhida para combater o que chamam de sexismo O termo ldquopairdquo tem sido interpretado fora de seu contexto apresentando um ldquodeusrdquo do sexo masculino que tem sido colocado primariamente como macho mas segundo esse autor a situaccedilatildeo poderia ser mudada ldquocomo temos tentado fazerrdquo (cf Hamerton-kelly 1979 p103) Roger Haight estaacute de acordo que Hamerton-Kelly na nota acima segue J Jeremias sobre a forma como Jesus fazia uso do termo ldquopairdquo que em seu contexto significa algo semelhante agrave ldquomatildeerdquo na sociedade moderna desenvolvida (cf Haight 2003 p 128)

52 Archila estaacute citando Lothar Coenen e outros (Diccionaacuterio teoloacutegico del Nuevo Testamento

Salamanca Siacutegueme vol 3 1983 p 244)

94

3- Ao permanecer no Filho o Pai realiza as suas obras (Jo 1410)

4- O Pai vivo enviou o filho e o filho vive atraveacutes do Pai (Jo 6 57)

5- O Filho fala o que o Pai lhe diz (Jo 12 49-50)

6- O Filho por si mesmo nada faz mas realiza soacute aquilo que vecirc o Pai fazer (Jo

519)

7- Com esse relacionamento muacutetuo de maior intensidade o Pai ama o filho (Jo

335 5 20 1017 159) e o Filho ama o Pai (Jo 1431)

8- O Filho permanece no amor do Pai (Jo 1510)

9- O Pai estaacute no Filho e o Filho estaacute no Pai (Jo 1038 1411 1721)

Esse profundo relacionamento do Filho com o Pai pode ser compartilhado com

o ser humano segundo Grenzer desde que o disciacutepulo reconheccedila o Filho no Pai (Jo

1417) pois aquele que conhece o Filho tambeacutem conhece o Pai (Jo 14 7-9)

ldquoAquele que ama o Filho observando os mandamentos dele seraacute amado pelo Pairdquo

(Jo 1421) Ou ao contraacuterio ldquoquem natildeo honra o Filho tambeacutem natildeo honra o Pai que

o enviou (Jo 523)rdquo Portanto a relaccedilatildeo de Jesus (o Filho) com Deus (o Pai) no

Evangelho de Joatildeo eacute de extrema relevacircncia para compreendermos a cristologia e

para aprendermos a perfeita forma de nos relacionarmos com o Pai celeste

(Grenzer 2009 p 184)

Archila (2007 p99) contabiliza que a expressatildeo Pai para nomear Deus no

Novo Testamento ocorre 245 vezes enquanto que a mesma palavra para designar o

pai bioloacutegico ocorre 157 vezes O motivo para tal ecircnfase para o uso dessa

expressatildeo referindo-se a Deus pode ser pela ldquoinfluecircncia da filosofia grega53 na

nomeaccedilatildeo de Deus como Pai Contudo segundo o mesmo autor o mais plausiacutevel

do ponto de vista histoacuterico eacute a possibilidade que Jesus realmente ldquotenha chamado a

Deus como meu pai ou nosso pai ou pai de vocecircs (Mt 69 2629 42 Lc 112)

Inclusive eacute mais provaacutevel que Jesus o tenha nomeado como Abba palavra usada

pelos filhos ao dirigir-se a seus pais e que equivale a papai (Archila 2007 p99-

53

ldquoA ideia da paternidade de Deus recebe uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica em Platatildeo e nos estoicos

Platatildeo na sua elaboraccedilatildeo cosmoloacutegica da ideia do pai ressalta o relacionamento criador de Deus o pai universal para com o cosmos inteiro (Tim 28c 41a e frequentemente) Para os estoicos a autoridade de deus como Pai permeia o universo ele eacute criador pai e sustentador dos homensrdquo (cf Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1502)

95

100) Essa forma de dirigir-se a Deus como Pai ou seja essa ideia de ser filho de

Deus contrapotildee-se a ideia presente na filosofia grega e tambeacutem da concepccedilatildeo

romana do Imperador como ldquofilho de deusrdquo Por outro lado ainda o Abba de Jesus

assimilado pela Igreja primitiva dava o direito aos considerados apaacutetridas sociais a

terem o direito de ter um pai o que provavelmente deve ter provocado implicaccedilotildees

agrave Igreja jaacute que essas ideias iam contra aos valores da sociedade patriarcal daquela

eacutepoca (Archila 2007 p103-104)

A imagem que Jesus apresentou do Pai do ceacuteu natildeo pode ser associada com o

que a patriarcalizaccedilatildeo que a cristandade ocidental fez de Deus Para Jesus

segundo Archila Deus natildeo eacute um pai superpoderoso dominante prepotente e

distante dos seus filhosrsquo ele eacute por natureza um pai proacuteximo iacutentimo terno e

misericordioso ou seja ele nos mostra a imagem de um Deus Pai bom e justo Em

outras palavras pode-se dizer que Jesus humanizou a imagem de Deus rompendo

com a imagem patriarcal54 androcecircntrica e exclusivista para apresentar a imagem

de Deus como o Pai bom que projeta nos seus filhos um modelo de relacionamento

fraterno entre homens mulheres crianccedilas com a proacutepria natureza e por fim com o

proacuteprio Deus (Archila 2007 p107)

Trabalhando ainda o Abba nos laacutebios de Jesus eacute relevante observarmos que

Santos Sabugal tambeacutem lista as invocaccedilotildees e designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo nos

laacutebios de Jesus como sendo empregado natildeo menos de 184 vezes (Marcos 4 Lucas

17 Mateus 44 Joatildeo 119 = 111 nos laacutebios de Jesus) assim o referido autor resume

o emprego das designaccedilotildees da palavra ldquopairdquo por Jesus nos Evangelhos

Esse uso eacute portanto limitado em Marcos mas frequente em Lucas e sobre tudo em Mateus para culminar no evangelho de Joatildeo E as estatiacutesticas refletem de alguma forma em cada evangelho a concepccedilatildeo teoloacutegica da paternidade divina Marcos representa o estagio inicial desta concepccedilatildeo desenvolvida pela teologia de Lucas e significativamente ampliada por Mateus atingindo seu pico mais alto em Joatildeo o teoacutelogo por excelecircncia da paternidade de Deus (Sabugal 1985 p381)

54

Segundo Archila o patriarcado eacute definido como ldquouma relaccedilatildeo de poder entendido como dominaccedilatildeo e superioridade que o varatildeo exerce sobre mulheres e crianccedilasrdquo O modelo que o sistema patriarcal pretende representar eacute baseado numa forma hegemocircnica da dominaccedilatildeo do varatildeo sobre a mulher Esse modelo ldquoinclui papeis competecircncias haacutebitos valores formas de pensar e inclusive formas institucionais como leis e normasrdquo (Archila 2007 p 91-92)

96

Para Sabugal portanto nenhum judeu mesmo os mais piedosos invocou a

Deus como o Abba assim como fez Jesus constantemente Ele tinha a

autoconsciecircncia de ser o filho de Deus Essa forma de invocar a Deus tornou-se natildeo

apenas parte integrante e essencial das suas oraccedilotildees como tambeacutem parte

integrante do seu meacutetodo de ensino sobre a oraccedilatildeo (Sabugal 1985 p386)

Joseacute Antonio Pagola tambeacutem eacute de acordo que Jesus como todas as demais

crianccedilas da Galileia em suas primeiras palavras balbuciou os termos immaacute

(mamatildee) e abba (papai) quando se dirigia a Maria e Joseacute seus pais Contudo

segundo Pagola pode ser um exagero limitar o uso do abba apenas agraves criancinhas

visto que ateacute mesmo os adultos parece que usavam tal expressatildeo como forma de

respeito agrave figura paterna dentro de uma estrutura familiar patriarcal (Pagola 2010

p383)

Mas natildeo precisamos exagerar Parece que tambeacutem os adultos empregavam esta palavra expressando seu respeito e obediecircncia ao pai da famiacutelia patriarcal Chamar a Deus de Abbaacute indica carinho intimidade e proximidade mas tambeacutem respeito e submissatildeo Jesus havia conhecido em sua proacutepria casa a importacircncia do pai Joseacute era o centro de toda a famiacutelia Tudo gira em torno dele O pai cuida dos seus e os protege Se ele falta a famiacutelia corre o risco de desintegrar-se e desaparecer Eacute ele quem sustenta e assegura o futuro de todos Haacute dois traccedilos que caracterizam um bom pai O primeiro eacute a solicitude para com os filhos eacute ele quem deve assegurar-lhes o sustento necessaacuterio protegecirc-los e ajudaacute-los em tudo Ao mesmo tempo o pai eacute autoridade da famiacutelia ele daacute as ordens para assegurar o bem de todos Ele instrui os filhos ensina-lhes um oficio se necessaacuterio Os filhos por sua vez satildeo chamados a ser a alegria do pai (Pagola 2010 p 383-384)

Para fundamentar sua tese de que o abba era um linguajar infantil e que

Jesus que ressignificou esse termo J Jeremias recorre aos pais da Igreja

Crisoacutestomo Teodoro de Mopsueacutestia e Teodoreto de Ciro originaacuterios de Antioquia

uma populaccedilatildeo que falava o siriacuteaco ocidental do aramaico Segundo J Jeremias

esses ldquopais da Igrejardquo satildeo de comum acordo de que o termo Abba era a palavra

usada por um filho pequenino quando se dirigia ao seu pai Um outro documento

usado por J Jeremias para dar sustentaccedilatildeo agrave sua pesquisa eacute o relato do Talmude (b

Berakocirct 40a b Sanedriacuten 70b) citado por ele com as seguintes palavras ldquoQuando

uma crianccedila prova o gosto do cereal isto eacute tatildeo logo como o detestam aprende a

dizer Abba e imma (papai e mamatildee) Abba e imma satildeo pois as primeiras palavras

que a crianccedila balbucia Abba era a linguagem infantil uma palavra comum

97

empregada diariamente ningueacutem tinha ousado dirigir-se a Deus desse modordquo (cf

Jeremias 2006 p63)

Deus como Pai para Jesus eacute com frequecircncia um Pai bom Ele ldquofaz nascer

seu sol sobre bons e maus Manda a chuva sobre justos e injustos (Lc 635 Mt

545) Para Pagola Jesus demonstra isso com muita maestria na paraacutebola do ldquofilho

perdidordquo (Lc 15 11-32) Nessa paraacutebola Pagola observa que o pai natildeo eacute um

personagem autoritaacuterio que natildeo respeita as decisotildees dos filhos pelo contraacuterio ele eacute

um pai amoroso e mesmo que o filho o tenha abandonado ele o recebe de braccedilos

abertos assim que este o pede perdatildeo (Pagola 2010 p386)

Embora a teologia do Abba seja defendida como a ipssissima vox de Jesus

por J Jeremias alguns autores contemporacircneos como Udo Schnelle defende que

natildeo haacute novidade na forma de Jesus invocar ou designar a Deus como pai visto que

isso era uma praacutetica comum tanto no judaiacutesmo como no mundo greco-romano

Segundo Schnelle a novidade do Abba nos laacutebios de Jesus estaacute na ecircnfase na

frequecircncia e na simplicidade com que Deus eacute designado como Pai nos Evangelhos

quando esse termo eacute proferido por Jesus (Schnelle 2010 p99-100)

J Jeremias defende que Jesus usou a palavra Pai na maioria das vezes

quando essa relaccedilatildeo era do Filho com o Pai Quanto ao uso da palavra Pai em

relaccedilatildeo a outras pessoas Jesus nunca fez alguma referecircncia a natildeo ser raras vezes

a designaccedilatildeo ldquovosso Pairdquo apenas aos seus disciacutepulos e nunca a outros grupos

visto que a paternidade divina era uma exclusividade estendida apenas aos

disciacutepulos Grupos como os escribas e fariseus foram excluiacutedos dessa filiaccedilatildeo pois

o pai deles eacute o diabo conforme Joatildeo 8 42-44 (Jeremias 2008 p271)

Disse-lhes Jesus ldquoSe Deus fosse o vosso pai voacutes me amariacuteeis porque saiacute de Deus e dele venho natildeo venho por mim mesmo mas foi ele que me enviou Por que natildeo reconheceis minha linguagem Eacute porque natildeo podeis escutar minha palavra Voacutes sois do diabo vosso pai e quereis realizar os desejos do vosso pai Ele foi homicida desde o princiacutepio e natildeo permaneceu na verdade quando ele mente fala do que lhe eacute proacuteprio porque eacute mentiroso e pai da mentira

98

A questatildeo da filiaccedilatildeo divina eacute um processo iacutentimo entre o Pai e seu filho J

Jeremias observou que o texto do evangelho de Mateus (Mt 1127) pode ser mais

bem traduzido do seguinte modo ldquocomo soacute um Pai conhece o seu filho assim soacute um

filho conhece o seu pairdquo (Jeremias 1977 p29) Essa relaccedilatildeo de Filho e Pai que

Jesus propagou no Novo Testamento tem no Antigo Testamento o paralelo mais

proacuteximo nas palavras do salmista ldquoComo um pai se compadece dos filhos assim se

apieda o Senhor dos que o tememrdquo (Sl 103 13) Mas para os filhos do Reino o pai

eacute ainda maior Ele aleacutem de bondoso e misericordioso eacute benigno ateacute mesmo com os

ingratos e maus (Lc 635)

Seguindo esse pensamento Joseph A Fitzmyer observa que quando Jesus

instruiu os disciacutepulos a invocar a Deus como Pai Ele estava mostrando que Deus

natildeo era somente o ldquotranscendente Senhor dos ceacuteus mas estaacute perto assim como um

pai com seus filhosrdquo (Fitzmyer 1985 p898) Para Stephen A Missick Abba eacute

contudo um misteacuterio uma revelaccedilatildeo especial que vem somente atraveacutes de Jesus

Cristo Missick assim como J Jeremias observa que o texto de Mateus 1127

poderia ser parafraseado em aramaico ficando da seguinte forma ldquosomente pai e

filho realmente se conhecem Porque apenas um pai e um filho verdadeiramente

conhecem um ao outro portanto um filho pode revelar aos outros os pensamentos

mais iacutentimos de seu pairdquo (Missick 2006 p23) Para Missick o maior exemplo para

demonstrar essa intimidade entre o Filho e o Pai e o poder que o Filho tem de

revelar o Pai estaacute registrado em Joatildeo 148

Filipe lhe diz ldquoSenhor mostra-nos o Pai e isso nos bastardquo Diz-lhe Jesus ldquoHaacute tanto tempo estou convosco e tu natildeo me conheces Filipe Quem me vecirc vecirc o Pai Como podes dizer Mostra-nos o Pai Natildeo crecircs que estou no Pai e que o Pai estaacute em mim As palavras que vos digo natildeo as digo de mim mesmo mas o Pai que permanece em mim realiza suas obras Crede-me eu estou no Pai e o Pai em mim Crede-o ao menos por causa dessas obrasrdquo

O discurso de Jesus sempre foi conflitante com os grupos religiosos de sua

eacutepoca e isto se agravou mais ainda pelo modo como Ele invocava a Deus mediante

a expressatildeo ldquomeu Pairdquo fato que natildeo era comum no Judaiacutesmo Se essa forma de

99

dirigir-se a Deus chamando-o de ldquomeu Pairdquo era incomum muito mais incomum

ainda era o emprego da forma aramaica ldquoAbbardquo (Jeremias 2008 p116) Os Judeus

usavam duas maneiras de tratar o Pai uma que era muito comum e tambeacutem usada

no cotidiano familiar abba e outra que era mais solene e elevada abicirc (אב)

(Dicionaacuterio Teoloacutegico o Deus Cristatildeo 1998 p649) Para um judeu usar a palavra

Abba para dirigir-se a Deus parecia ser um atrevimento pois tal palavra soava como

balbucio Abba estava entre as primeiras palavras que uma crianccedila aprendia a falar

conforme a referecircncia que J Jeremias faz ao Talmude Babilocircnico jaacute citado neste

trabalho55

Jaacute nos dias de Jesus abba jaacute tinha deixado de ser apenas uma linguagem das

criancinhas para tornar-se uma forma como os filhos adultos se dirigiam a seu pai

como podemos ver na paraacutebola do filho proacutedigo (Lc 15 21) Nos laacutebios de Jesus

aleacutem de tornar-se uma forma familiar de invocar e dirigir-se a Deus abba passou a

ser tambeacutem considerada uma palavra lsquosagradarsquo uma vez que um soacute eacute o Pai dos

disciacutepulos a saber o que estaacute nos ceacuteus conforme Mateus 239 (Jeremias 2008

p121) Para Jesus Abba tornou-se uma expressatildeo de honra que somente o Pai

celeste eacute digno Essa maneira simples e iacutentima de Jesus dirigir-se a Deus como

uma criancinha fala a seu pai foi considerado por J Jeremias como a ipsiacutessima vox

de Jesus isto eacute um modo proacuteprio e original de falar usado por Jesus e que natildeo

tinha nenhuma analogia na literatura da eacutepoca (Jeremias 2008 p120)

[] a forma abbaacute suplantou a forma abbi usada no aramaico paletinense ateacute pelo menos o seacutec 2 a C como constatamos pela documentaccedilatildeo Aleacutem disso abbaacute tomou o sentido de ldquomeu pairdquo e de ldquoo pairdquo e ldquonosso pairdquo De tal modo que a palavra natildeo era apenas parte do linguajar das crianccedilas Os jovens de ambos os sexos tambeacutem chamavam o proacuteprio pai de Abbaacute (cf Lc 15 21) natildeo recorrendo agrave palavra ldquoSenhorrdquo (Kyrie) a natildeo ser cerimonioso (cf Mt 21 29-30) Mas apesar destes desenvolvimentos jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil (Jeremias 1977 p 24-25)

Mais tarde Fitzmyer comentando essa tese reconhece que J Jeremias

entendeu que Jesus natildeo se dirigiu a Deus invocando-o como uma criancinha faz

com seu pai Fitzmyer tambeacutem concorda que Abba eacute a ipisissima vox de Jesus para

55

para esclarecer essa tese podemos ver uma versatildeo semelhante a jaacute citada por J Jeremias (2006 p63) em outra obra sua conforme transcrevemos abaixo ldquoSomente quando uma crianccedila experimenta o gosto do trigo (isto eacute quando eacute desmamada) eacute que ela diz aacutebba imma [matildee] ou seja estes satildeo os primeiros balbuciosrdquo (cf Jeremias 2008 p119)

100

expressar o seu relacionamento com Deus mas que Abba por si soacute sem as oraccedilotildees

de louvor registradas pelos evangelistas Mateus e Lucas (Mt 11 25-27 Lc 10 21-

22) natildeo eacute suficiente para subsidiar tal argumento (Fitzmyer 1993 p61) Para

Ephraim o meacuterito de ter levado ao grande puacuteblico o verdadeiro sentido de como

Jesus se dirigia a Deus Pai chamando-o de Abba eacute de J Jeremias

[hellip] Joachim Jeremias levou ao grande puacuteblico toda a beleza do nome Abba tal como Jesus o pronunciava Enfatizou com razatildeo que em nenhuma outra parte do judaiacutesmo se encontra tal familiariadade Mesmo se por vezes Deus era invocado pelo vocaacutebulo Pai ningueacutem ousou antes do Filho primogecircnito dentre um grande nuacutemero de irmatildeos chamaacute-lo de Abba que literalmente quer dizer papai A ousadia amorosa sempre estivera do lado do Pai pois do lado da criatura nunca ningueacutem fora tatildeo longe como Jesus na resposta adesatildeo e entrega ao amor misericordioso (Ephraim 1998 p174)

54 ABBA IPSISSIMA VOX DE JESUS

Sabendo que os Evangelhos sinoacuteticos contecircm muitos traccedilos que remontam

para uma redaccedilatildeo poacutes-pascal J Jeremias pergunta ldquoseremos capazes de

remontarmos em particular a ipsissima vox de Jesusrdquo Os evangelhos apresentam

o querigma de Jesus ou segundo J Jeremias seria mais exato dizer que eles

apresentam a Didaquecirc (ensino) da Igreja primitiva A pergunta acima pode gerar um

certo ceticismo contudo natildeo tem forccedila para destruir o argumento de que

[] os logia de Jesus apresentam certas particularidades que devemos considerar como suas expressotildees favoritas jaacute que figuram independentemente uma das outras nas diversas narrativas da tradiccedilatildeo Abba e amen satildeo os traccedilos da linguagem mais caracteriacutesticos da ipsissima vox de Jesus (Jeremias 2006 p 137-138)

Haacute uma distinccedilatildeo entre ipsissima vox e ipsissima verba de Jesus Segundo J

Jeremias a presenccedila de um modo de falar preferido de Jesus (ipsissima vox) natildeo

dispensa absolutamente de examinar em cada caso particular se temos um dito

autecircntico (ipsissima verba) (Jeremias 2008 p79) Os apoacutestolos assim

compreenderam e Paulo vai dizer mais tarde que Abba eacute o clamor (ipsissima vox)

dos filhos de Deus daqueles que foram adotados na comunhatildeo do Espiacuterito Santo

Segundo Missick a importacircncia da palavra Abba vem justamente ao encontro dessa

teoria pois segundo ele natildeo haacute duacutevida de que essa foi a palavra exata que Jesus

101

falou ou seja Abba eacute a ipsissima vox a voz original ou a ipsissima verba as

autecircnticas palavras de Jesus (Missick 2006 p 23)

J Jeremias baseando-se em Dalman diz-nos que assim como o Abba a

palavra amen (ἀμήν) quando proferida por Jesus natildeo possui nenhum equivalente

na literatura judaica e nem nos demais escritos do Novo Testamento Nos discursos

judaicos a palavra ameacuten ldquoservia para ratificar reforccedilar e fazer proacuteprias as palavras

de outro (cf Jr 28 6) na tradiccedilatildeo dos logia de Jesus se utiliza sem exceccedilatildeo esse

termo para reforccedilar o proacuteprio discursordquo (cf Jeremias 2006 p 138) Podemos ver

esse pensamento exposto nas palavras do proacuteprio Dalman

Jaacute foi frequumlentemente apontado que o modo como Jesus usa a palavra ameacutem natildeo eacute familiar em toda a literatura judaica Mesmo em Sota II 5 cf Jerus I e II num 522 realmente natildeo pode ser forccedilado a comparaccedilatildeo Nessa passagem a repeticcedilatildeo amen pronunciado pela mulher suspeita de adulteacuterio eacute explicada como um protesto de sua inocecircncia como se ela estivesse a dizer ameacutem [= eu protesto] que eu natildeo me poluiacute ameacutem que eu natildeo vou poluir a mim mesma (cf Dalman 1902 p226)

J Jeremias refere-se agraves foacutermulas ameacuten legocirc hymin (sou) (em verdade vos [te]

digo) nos sinoacuteticos e amen ameacuten legocirc hymin (soi) (em verdade em verdade vos

[te] digo) em Joatildeo Segundo ele o nuacutemero de vezes que tais expressotildees aparecem

nos evangelhos eacute 13 vezes em Marcos 30 em Mateus (+ Mt 18 19 var) 6 em

Lucas e 25 em Joatildeo onde haacute uma reduplicaccedilatildeo Para J Jeremias este amen natildeo

responsivo coloca-nos diante de uma forma totalmente nova e peculiar dos

Evangelhos e principalmente de Jesus (Jeremias 2006 p 138-139)

Sobre a grandeza do Abba como a ipsissima vox de Jesus vejamos o que nos

diz J Jeremias

Natildeo haacute paralelos com esta mensagem de que Jesus quer ocupar-se dos pecadores natildeo dos justos e que desde agora lhes daacute jaacute a participaccedilatildeo em seu reinado Natildeo haacute paralelos com este Jesus que se senta agrave mesa com publicanos e pecadores Natildeo haacute paralelos com a autoridade com que Jesus se atreve a dirigir-se a Deus com a invocaccedilatildeo de Abba Quem reconhece unicamente o fato (e natildeo sei como algueacutem poderia negaacute-lo) de que a palavra ldquoabbardquo eacute ipsissima vox Iesu esse tal se entende bem a palavra e natildeo a desvirtua estaacute diante da pretensatildeo que Jesus tinha de sua proacutepria majestade (Jeremias 2006 p40)

Se para Jesus invocar a Deus como Pai era um direito exclusivo dado aos

disciacutepulos na igreja primitiva isso era privileacutegio apenas dos membros que jaacute

102

estavam integrados na igreja aos neoacutefitos era lhes reservado o direito de aprender a

oraccedilatildeo mas soacute podiam pronunciaacute-la em puacuteblico a partir da primeira Eucaristia logo

apoacutes o batismo conforme Cirilo um sacerdote de Jerusaleacutem que viveu por volta do

ano 350 dC (Jeremias 1979 p10) Segundo J Jeremias essas restriccedilotildees podem

ser vistas ateacute mesmo na divisatildeo dos capiacutetulos da Didaquecirc no seacuteculo I Na Didaquecirc

a oraccedilatildeo e a ceia do Senhor soacute vecircm depois do batismo (Jeremias 1979 p9-10)

Isso demonstra o quanto era sagrado o direito de invocar a Deus Pai chamando-o

de Abba Pai

55 ABBA NA ORACcedilAtildeO DO SENHOR

Jesus pertencia a uma famiacutelia piedosa judaica (Lc 2 1-52 cf 416) viveu no

meio de um povo que sabia orar por isso eacute bem provaacutevel que desde menino tenha

aprendido em casa com seus pais a exercer a praacutetica da oraccedilatildeo cotidiana

Segundo J Jeremias natildeo eacute possiacutevel saber muita coisa sobre a praacutetica de oraccedilatildeo na

vida de Jesus aleacutem dos trecircs gritos da cruz relacionados nos sinoacuteticos haacute ainda

duas oraccedilotildees ldquoo grito de juacutebilo (Mt 11 25-26) e a oraccedilatildeo do Getsecircmani (Mc 14 36)rdquo

O Evangelho de Joatildeo registra outras trecircs oraccedilotildees de Jesus na ressurreiccedilatildeo de

Laacutezaro (Jo 1 14-42) na esplanada do templo (equivalente joanino da oraccedilatildeo do

Getsecircmani Jo 12 27) e a oraccedilatildeo sacerdotal (Jo 17) Aleacutem disso temos outros

relatos gerais de oraccedilatildeo registrados nos Evangelhos (cf Mc 1 35 646=Mt 14 23

Lc 3 21 5 16 6 12 9 18 28-29 Lc 22 31-32) e a oraccedilatildeo do Pai-nosso

(Jeremias 2006 p123)

Podemos ainda mencionar que com exceccedilatildeo das mulheres dos filhos

pequenos e dos escravos todos os homens de Israel a partir dos treze anos

estavam obrigados a recitar regularmente o Shemaacute56 (ldquoOuve oacute Israel Iahweh nosso

Deus eacute o uacutenico Iahwehrdquo Dt 64) duas vezes ao dia Aleacutem da profissatildeo de feacute judaica o

mandamento divino era logo recitado em seguida (cf Jeremias 2006 p 116)

Portanto amaraacutes a Iahweh teu Deus com todo o seu coraccedilatildeo com toda a tua alma e com toda a tua forccedila Que estas palavras que hoje te ordeno

56

No entanto segundo J Jeremias o shemaacute era ensinado aos filhos desde que esses aprendiam a falar (cf Jeremias 2006 p 116)

103

estejam em teu coraccedilatildeo Tu as inculcaraacutes aos teus filhos e delas falaraacutes sentado em tua casa e andando pelo caminho deitado e de peacute (Dt 6 5-7)

No Novo Testamento a oraccedilatildeo jaacute havia deixado de ser praticada duas vezes

ao dia para concretizar-se em trecircs vezes conforme vemos no livro dos Atos dos

Apoacutestolos (31 10 3-30) e na Didaquecirc (83) Segundo Jeremias isso se deve ao

fato de ter havido uma fusatildeo entre o Shemaacute (apesar dessa natildeo ser propriamente

uma oraccedilatildeo mas uma profissatildeo de feacute) com a Tefilaacute no periacuteodo da manhatilde e da noite

enquanto que na oraccedilatildeo da tarde natildeo se recitava o Shemaacute Para os israelitas esses

momentos de oraccedilatildeo eram muito preciosos jaacute que se assegurava a formaccedilatildeo dos

jovens na praacutetica da oraccedilatildeo (Jeremias 2006 p22)

Jesus com certeza conhecia as oraccedilotildees e as formas lituacutergicas para proferi-las

no entanto ao ser indagado pelo disciacutepulo anocircnimo (Lc 111) com a indagaccedilatildeo

ldquoSenhor ensina-nos a orarrdquo eacute claro que o Mestre sabia que seus disciacutepulos tambeacutem

conheciam as oraccedilotildees tradicionais visto que tambeacutem eram judeus No entanto eacute

muito provaacutevel que o disciacutepulo anocircnimo estaacute pedindo a Jesus um novo modelo de

oraccedilatildeo que os distinguisse como um grupo Jesus ensinou-lhes o Pai-nosso que se

tornaria a oraccedilatildeo oficial da Igreja primitiva e viria a substituir o antigo modelo das

trecircs oraccedilotildees diaacuterias tatildeo conhecidas em Israel conforme pode ser visto na Didaquecirc

(9-10) Surge entatildeo uma nova forma de orar a partir do ensinamento de Jesus

baseado na expressatildeo Abba que era a forma singular de expressatildeo usada por ele

para dirigir-se ao Pai que estaacute nos ceacuteus (Jeremias 2006 p129-131)

A relaccedilatildeo de Jesus com Deus Pai atinge seu aacutepice na Oraccedilatildeo do Pai-nosso

onde Jesus estaacute ensinando seus disciacutepulos orar A pergunta feita pelo disciacutepulo

anocircnimo em Lucas 111 (Senhor ensina-nos a orar) resultou no mais belo

ensinamento de Jesus a respeito da oraccedilatildeo Na oraccedilatildeo do Pai-nosso como exemplo

de humildade e obediecircncia ldquoJesus se entrega agrave vontade de Deus como a crianccedila o

faz em relaccedilatildeo ao Pairdquo (Goppelt 2002 p 216) Para Haight a oraccedilatildeo modelo eacute

composta por uma invocaccedilatildeo dois anseios ou esperanccedilas e trecircs pedidos (cf Haight

2003 p139) 57 O teoacutelogo Leonardo Boff assim resume a essecircncia desse magniacutefico

modelo de oraccedilatildeo

57

A forma apresentada por Lucas da oraccedilatildeo do Pai-nosso consiste de um endereccedilamento (ldquoPairdquo) dois desejos proferidos a Deus e trecircs peticcedilotildees ditas a ele A forma em Mateus apresenta um endereccedilamento expandido trecircs desejos e quatro peticcedilotildees Nesse modo de orar Jesus instrui e

104

Na oraccedilatildeo do Senhor encontramos praticamente a correta relaccedilatildeo entre Deus e o homem o ceacuteu e a Terra o religioso e o poliacutetico mantendo a unidade do mesmo processo A primeira parte diz respeito agrave causa de Deus o Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome seu Reino sua Vontade santa A segunda parte concerne agrave causa do homem o patildeo necessaacuterio o perdatildeo indispensaacutevel a tentaccedilatildeo sempre presente e o mal continuamente ameaccedilador Ambas as partes constituem a mesma e uacutenica oraccedilatildeo de Jesus Deus natildeo soacute se interessa pelo que eacute seu o Nome o Reino a Vontade divina Ele se preocupa tambeacutem pelo que eacute do homem o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo o mal Igualmente o homem natildeo soacute se prende ao que lhe importa o patildeo o perdatildeo a tentaccedilatildeo e o mal abre-se tambeacutem ao que respeita ao Pai a santificaccedilatildeo de seu Nome a chegada de seu Reino a realizaccedilatildeo de sua Vontade (Boff 2009 p17-18)

Em seu livro ldquoO Pai-nosso a oraccedilatildeo do Senhorrdquo J Jeremias enfatiza o alto

valor que a referida oraccedilatildeo tinha na liturgia entre os cristatildeos da Igreja primitiva J

Jeremias nos diz que o mais antigo uso dessa oraccedilatildeo era a recitaccedilatildeo da mesma na

24ordf catequese de Cirilo onde o Pai-nosso era recitado antes da comunhatildeo e era

restrito dentro do culto divino apenas aos batizados ou seja aos membros efetivos

da Igreja Essa praacutetica provinha de Jerusaleacutem e vigorava por toda a Igreja Desde os

primeiros passos na feacute os neoacutefitos jaacute aprendiam a recitar de cor a oraccedilatildeo do Pai-

nosso mas soacute tinham o direito de rezaacute-lo com os demais fieacuteis a partir do momento

em que participavam da primeira eucaristia ou seja logo apoacutes o batismo (Jeremias

1979 p 5-6)

O uso regular do Pai-nosso na liturgia da Igreja eacute tambeacutem testemunhado na

Didaquecirc (Doutrina dos Doze Apoacutestolos) que segundo J Jeremias eacute tatildeo antiga que

chega a ser datada no seacutec I dC ou para ser mais preciso segundo Boff ela foi

escrita por volta dos anos 50 a 70 dC (Boff 2009 p36) Para J Jeremias a

importacircncia dada ao Pai-nosso na Didaquecirc pode ser observada na estrutura da

obra

[] O livro comeccedila (cc 1-6) com a doutrina dos dois caminhos o da vida e da morte que evidentemente pertencia agrave instruccedilatildeo dada aos catecuacutemenos Em seguida o c 7 trata do batismo soacute depois disso eacute que vecircm as seccedilotildees de importacircncia para os batizados Jejum e oraccedilatildeo (inclusive o Pai-nosso) no c 8 Ceia do Senhor nos cc 9 e 10 organizaccedilatildeo e disciplina eclesiaacutesticas nos cc 11 a 15 O que nos interessa aqui eacute que oraccedilatildeo e Ceia do Senhor vecircm depois do batismo

autoriza seus disciacutepulos a chamar a Deus como ldquoPairdquo usando o mesmo tiacutetulo que ele mesmo utilizou em sua oraccedilatildeo de louvor Lc 1021 (duas vezes) e utilizaraacute de novo em Lc 22 42 (cf Fitzmyer 1985 p 899)

105

O que J Jeremias conclui eacute que diferentemente de hoje onde o Pai-nosso eacute

acessiacutevel a todos nos primoacuterdios do cristianismo era bem diferente O privileacutegio de

recitar a oraccedilatildeo do Senhor era reservado apenas aos membros que estavam

plenamente integrados agrave Igreja A perda da reverecircncia e do temor pela oraccedilatildeo do

Senhor eacute tratada por J Jeremias com apreensatildeo e o retorno agrave reverecircncia que a

Igreja primitiva dava ao Pai-nosso soacute pode ser reconquistada se atraveacutes da exegese

biacuteblica buscarmos entender qual era o sentido que o proacuteprio Senhor quis dar agraves

palavras dessa sagrada oraccedilatildeo (Jeremias 1979 p 8-12)

Concordando com J Jeremias Ephraim tambeacutem observa que nos primeiros

seacuteculos da era cristatilde os cristatildeos pronunciavam as palavras do Pai-nosso ldquocom

grande temor como que em segredordquo O motivo para tal respeito era o medo de

transpassar os limites da reverecircncia e cair na blasfecircmia ao pronunciar o nome

inefaacutevel de Deus Segundo Ephraim ainda hoje baseado nesse profundo respeito

pela sagrada oraccedilatildeo os cristatildeos bizantinos ainda conservam a seguinte foacutermula

antes de iniciarem a oraccedilatildeo ensinada pelo senhor ldquoE torna-nos dignos Mestre de

ousar com toda a seguranccedila e sem incorrer em condenaccedilatildeo de te chamar de Pai a

ti o Deus do ceacuteu e de te dizer Pai nossordquo Ao observarmos essa foacutermula bizantina

que antecede a oraccedilatildeo do Pai-nosso concluiacutemos com Ephraim que o respeito e o

medo de ser indigno de pronunciar tal oraccedilatildeo fizeram com que a tradiccedilatildeo da

comunidade cristatilde acima mencionada conservasse com muita precauccedilatildeo haacutebitos e

costumes dos primeiros cristatildeos no que diz respeito a como se deve orar o Pai-

nosso (Ephraim 1998 p 174)

Partindo do princiacutepio que por volta do ano 75 dC a oraccedilatildeo do Pai-nosso era

obrigatoacuteria na formaccedilatildeo dos neoacutefitos tanto os cristatildeos de origem judaica quanto os

de origem grega tinham em comum a obrigatoriedade da oraccedilatildeo do Senhor na

formaccedilatildeo dos novos disciacutepulos Quanto agrave questatildeo do por que duas versotildees do Pai-

nosso ou se eacute possiacutevel que um dos disciacutepulos tenha acrescentado ou retirado

palavras da forma original J Jeremias conclui que ambos os disciacutepulos jamais

alterariam algum ponto da oraccedilatildeo do Senhor A forma mais clara para se

compreender a aparente divergecircncia estaacute no fato de que ambos escreveram para

igrejas diferentes locais e situaccedilotildees diferentes por isso cada evangelista optou por

transmitir um texto segundo o seu tempo e sua Igreja (Jeremias 1979 p 16-21)

106

Quando lemos a oraccedilatildeo do Pai-nosso nas duas versotildees ou seja por Mateus

e por Lucas surgem questotildees a respeito da antiguidade dos textos e das variantes

textuais entre os dois Evangelhos J Jeremias em sua obra acima citada trabalha

com esmero essas duas questotildees e outras tambeacutem natildeo menos importantes Antes

de abordamos as questotildees levantadas por J Jeremias segue abaixo os textos dos

Evangelhos bem como o texto de Lucas retraduzido para o aramaico segundo J

Jeremias e uma versatildeo do aramaico recitado por cristatildeos que ainda hoje falam o

aramaico conforme Stephen Missick

Mt 6 9-13 Lc 11 2-4

() Portanto orai desta maneira

Pai nosso que estaacutes nos ceacuteus

Santificado seja o teu Nome

venha o teu Reino

seja feita a tua vontade

na terra como no ceacuteu

o patildeo nosso de cada dia

daacute-nos hoje

E perdoa-nos as nossas diacutevidas

como tambeacutem noacutes perdoamos aos

nossos devedores

E natildeo nos submeta agrave tentaccedilatildeo

mas livra-nos do Maligno

() Respondeu-lhes ldquoQuando orardes

dizei

Pai santificado seja o teu Nome

venha o teu reino

o patildeo nosso cotidiano daacute-nos a cada dia

pois tambeacutem noacutes perdoamos aos nossos

devedores

e natildeo nos deixes cair na tentaccedilatildeordquo

Pai Nosso aramaico segundo J

Jeremias

Pai-nosso em aramaico recitado pelos

cristatildeos em aramaico segundo Missick

abba [pai]

yitqaddash shemak tete malkutak

[santificado seja o teu nome venha teu

reino]

Awoon Dwashmaya

Nethqaddash Shmakh

Tethe malkuthakh

Nehweh sebayanakh

107

lahman delimhar hab lan yoma den [o

patildeo nosso de amanhatilde daacute-nos neste dia]

ushebok lan hobenan kedishebaqnan

lehayyabenan [e perdoa-nos as nossas

diacutevidas (pecados) assim como

perdoamos os nossos devedores

(pecadores)]

wela ta el nnan lenisayon [e natildeo nos

conduza agrave tentaccedilatildeo] (cf Jeremias 2008

p291)

Aykana dwashmayya aph ara

Hab lan lakhma dsunkanan yowmana

Washboq lan hawbayn aykanan dap

hanan shwaqnan l-hayawayn

Wa la talain Inesyona

Ella passan min beesha

Mittol dlakh hee malkoota wa khaylan w

tishbookhta alalam almeen Amen (cf

Missick 2006 p58)

Para J Jeremias para entendermos o sentido do Pai-nosso na redaccedilatildeo de

Mateus eacute preciso ver que Jesus estaacute advertindo seus disciacutepulos a natildeo praticarem as

esmolas oraccedilatildeo e jejum da mesma forma que elas eram praticadas pelos fariseus

visto que estes amavam praticaacute-las desde que fossem vistos e reconhecidos pelos

homens Os disciacutepulos deviam procurar um cocircmodo por menor que fosse e natildeo

imitar os fariseus em hipoacutetese alguma no quesito de sempre ser pegos em uma

aparente surpresa na hora da oraccedilatildeo para que dessa forma pudessem sempre que

possiacutevel orar no meio da multidatildeo com o uacutenico objetivo de serem reconhecidos e

honrados

Em relaccedilatildeo ao texto de Lucas J Jeremias descreve sobre o fato de tanto a

situaccedilatildeo quanto os leitores de Lucas serem diferentes dos de Mateus Em Lucas a

oraccedilatildeo eacute mais breve o sentido do texto eacute o ensinar a perseveranccedila na oraccedilatildeo visto

que a mesma eacute precedida pela paraacutebola do amigo importuno As diferenccedilas entre a

oraccedilatildeo contida em Mateus e a de Lucas eacute devido aos diferentes grupos a quem

essa oraccedilatildeo foi destinada Segundo J Jeremias os leitores para os quais Mateus

deve ter destinado o Evangelho eram homens que desde a infacircncia aprenderam a

orar enquanto que os de Lucas eram antigos convertidos ao cristianismo

Ao nos depararmos com as duas versotildees da oraccedilatildeo do Pai Nosso na Biacuteblia

(Mateus 6 9 -13 e Lucas11 2-4) logo vem agrave mente qual delas se aproxima mais da

versatildeo original de Jesus ou entatildeo em que liacutengua Jesus proferiu essa magniacutefica

oraccedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave primeira pergunta J Jeremias responde da seguinte forma

108

[] a formulaccedilatildeo mais curta de Lucas estaacute integralmente contida na redaccedilatildeo longa de Mateus Isto faz com que seja bem provaacutevel que a forma de Mateus seja uma ampliaccedilatildeo pois pelo que sabemos das leis que regem a transmissatildeo dos textos lituacutergicos quando uma redaccedilatildeo mais curta estaacute assim integralmente contida numa longa eacute a mais curta que deve ser considerada como original (J Jeremias 1979 p23)

Contudo J Jeremias conclui que o texto de Lucas eacute o mais antigo quanto agrave

extensatildeo mas em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo oral (verbal) o texto de Mateus eacute o mais antigo

(cf Jeremias 2008 p 291) Complementando o pensamento de J Jeremias a

respeito da versatildeo original do Pai Nosso Boff assim conclui ldquoDestarte Lucas seria

mais originalrdquo (Boff 2009 p36)

Concernente agrave liacutengua materna de Jesus e agrave cultura da Palestina daquela

eacutepoca podemos ainda perguntar era Jesus um poliglota ou falava apenas o

aramaico Antes de tratarmos com mais detalhes a respeito da liacutengua e cultura de

Jesus observamos a princiacutepio que pelo menos trecircs liacutenguas eram faladas na

Palestina nos dia de Jesus (aramaico grego e latim) conforme as informaccedilotildees

contidas no texto de Joatildeo 19 19-20

Segundo Sabugal haacute uma grande probabilidade de que Jesus possuiacutesse

conhecimentos da liacutengua grega pelos contatos registrados entre Jesus e algumas

pessoas de origem helecircnica como o centuriatildeo romano (Mt 5 8-13 cf Lc 7 1-10)

tambeacutem com a mulher sirofeniacutecia aleacutem do disciacutepulo chamado Filipe que

provavelmente conhecia a liacutengua grega conforme podemos interpretar a partir da

leitura de Joatildeo 12 20-2 (Sabugal 1985 p319) No entanto para Sabugal a liacutengua

popular na Palestina dos dias de Jesus era o aramaico galileu58 Tal liacutengua era tatildeo

familiar agraves comunidades a ponto de apoacutes a leitura de um texto sagrado em

hebraico (Toraacute) logo seguia-se uma traduccedilatildeo para o aramaico (Targum) onde o

texto podia ser compreendido por todos Portanto fica evidente que o aramaico foi a

liacutengua materna de Jesus isso fica mais claro ainda quando encontramos nos

evangelhos palavras aramaicas (cf Mc 14 36 Lc 23 34 42 46 Mc 15 34 = Mt

58 Para Geza Vermes a liacutengua original do Pai-nosso era o aramaico mesmo que alguns estudiosos

discordem colocando o hebraico como a liacutengua original (segundo vermes sem convencer) a maioria dos especialistas eacute de acordo com essa teoria Vermes observa que aleacutem das peculiaridades do grego de Mateus o Pai-nosso tem semelhanccedilas com o kadish uma antiga oraccedilatildeo judaica composta em aramaico que era conhecida por Jesus e que ele teria sido influenciado e inspirado por ela (Vermes 2006 p 258)

109

27 46) conservadas pelos evangelistas sem traduccedilatildeo para a liacutengua grega (Sabugal

1985 p321)

Ao se referir sobre a origem do Pai Nosso Sabugal assim exclama ldquoQue

alegria seria se conseguiacutessemos recuperar a ipsissima verba do Pai Nosso ensinado

por Jesus de Nazareacute e reconstruindo seu texto primitivo pudeacutessemos escutar a

ipsissima vox do Mestrerdquo (Sabugal 1985 p317) Para Sabugal natildeo haacute duacutevida que

os vocaacutebulos gregos estatildeo dispostos segundo os usos da gramaacutetica semiacutetica O

autor tambeacutem entende que na oraccedilatildeo do Pai Nosso tanto de Mateus como na de

Lucas teve como fundo doutrinaacuterio e literaacuterio a liacutengua materna de Jesus (aramaico)

Conforme J Jeremias para compreendermos a essecircncia da oraccedilatildeo de Jesus faz-se

necessaacuterio aproximarmo-nos do proacuteprio modo de falar do Mestre e isso soacute eacute

possiacutevel quando chegamos a ipsissima vox de Jesus (Sabugal 1985 p317)

Sabugal (1985 p317) concorda que descobrir a liacutengua materna de Jesus eacute

algo muito importante e extraordinariamente fundamental O referido autor

compartilha com J Jeremias dessa tese haja vista que eacute importante levar em

consideraccedilatildeo o fato de que para ele os escritores dos evangelhos eram verdadeiros

autores literaacuterios e autecircnticos teoacutelogos de suas comunidades cristatildes capazes de

transmitir com fidelidade a essecircncia da mensagem de Jesus59 Aleacutem do mais os

autores biacuteblicos eram divinamente inspirados pelo Espiacuterito Santo conforme os

textos de 2 Tm 316 e 2Pe 121

Por outro lado Leonardo Boff (2009 p36) considera que a oraccedilatildeo de Jesus

natildeo pode ser tratada como uma oraccedilatildeo simples que possa ser retraduzida do grego

para o aramaico primitivo conforme fez J Jeremias no texto que reproduzimos

abaixo

Pai querido Que o teu nome seja santificado Que venha o teu reino Daacute-nos hoje nosso patildeo de amanhatilde E perdoa-nos nossas diacutevidas como noacutes tambeacutem ao dizermos estas palavras estamos perdoando a nossos devedores E natildeo nos deixes sucumbir agrave tentaccedilatildeo (Jeremias 1979 p33)

59

Sobre a autoria e composiccedilatildeo dos Evangelhos ver o capiacutetulo 4 paraacutegrafo 3 deste trabalho

110

Observamos que de acordo com o pensamento de Boff natildeo eacute faacutecil reproduzir

a oraccedilatildeo de Jesus do grego para o aramaico e dessa forma tambeacutem pensa

Sabugal o qual apesar de achar o trabalho de J Jeremias de extrema importacircncia

no entanto assim como Boff pensa que realizar tal tarefa natildeo eacute nada faacutecil uma vez

que envolve estudos linguiacutesticos e literaacuterios concernentes agrave liacutengua materna e ao

texto primitivo do Pai-nosso em sua composiccedilatildeo riacutetmica e literaacuteria bem como a real

motivaccedilatildeo de Jesus ao ensinar essa oraccedilatildeo aos seus disciacutepulos Haja vista o grau

de dificuldade apresentado acima natildeo podemos deixar de observar que quanto

mais nos aproximarmos do Pai-nosso de Jesus na sua originalidade mais

maravilhados ficaremos diante da grandiosidade dessa magniacutefica oraccedilatildeo

56 QUESTOtildeES FILOLOacuteGICAS E SEMAcircNTICAS ACERCA DO ABBA

Conforme J Jeremias e a maioria dos estudiosos Abba eacute um termo que faz

parte da liacutengua semiacutetica para ser mais preciso do aramaico Oriacutegenes pertencente

ao periacuteodo da Patriacutestica profundo conhecedor do grego e das liacutenguas semiacuteticas

segundo Fitzmyer (1992 p 48) estranhamente considerou o termo Abba como

sendo uma palavra hebraica Restou a Jerocircnimo esclarecer que o termo Abba era

siacuterio (Syrum est non hebraeum) e natildeo hebraico Lembrando que o que Jerocircnimo

chamava de siacuterio nos dias dele noacutes chamamos de aramaico

Segundo Matthew Black o aramaico foi uma das grandes liacutenguas faladas na

antiguidade por volta do VI e III seacuteculos aC quando o mundo era governado pelos

grandes impeacuterios orientais desde o Eufrates ateacute o Nilo Essa liacutengua tornou-se a

liacutengua dos judeus provavelmente depois do Exiacutelio O aramaico foi suplantado pelo

grego koineacute no mundo civilizado da eacutepoca durante o impeacuterio de Alexandre o

Grande No entanto o grego nunca substituiu por completo o uso do aramaico entre

os judeus tanto da Palestina como da Babilocircnia bem como de alguns povos de

cultura semiacutetica na Siacuteria e Mesopotacircmia (Black 1998 p14)

Entre os judeus podemos encontrar dois dialetos aramaicos na Palestina

conforme a pesquisa apresentada por Dalman Black menciona que segundo a

distinccedilatildeo feita por Dalman os dialetos estatildeo propostos na seguinte forma o primeiro

representado pelo aramaico do Antigo Testamento e o aramaico do Targum para

Pentateuco e para os profetas O segundo composto pelo conjunto de anedotas

111

popular do Talmude Palestino junto com outras partes do comentaacuterio palestinense

do Antigo Testamento dos antigos Midrash60 haggaacutedicos (Black 1998 p19)

No entanto a liacutengua na qual foi escrito o Novo Testamento eacute aceita quase que

por unanimidade pelos eruditos como sendo o grego coineacute ou grego biacuteblico

conforme foi chamado pelos especialistas ateacute o comeccedilo do seacuteculo XX (Koester

2005 vol I p118) Segundo Koester (2005 vol1 p120-121) todos os livros do

Novo Testamento foram escritos originalmente em grego e esse autor eacute mais

enfaacutetico ainda quando afirma que nenhuma obra dos primeiros cristatildeos escrita em

grego pode ser traduccedilatildeo direta do hebraico ou do aramaico De acordo com Koester

eacute fato que existem inuacutemeros hebraiacutesmos e aramaiacutesmos constantes no Novo

Testamento que podem ser citaccedilotildees gregas da Biacuteblia hebraica ou ainda que

podem ser justificadas pelo fato de que o autor estava inserido num ambiente que

propiciava a formulaccedilatildeo de palavras semiacuteticas como no caso dos Evangelhos onde

Jesus e seus disciacutepulos eram falantes nativos do aramaico

Koester observa que as traduccedilotildees do aramaico para o grego devem ter

acontecido num periacuteodo anterior aos escritos dos primeiros cristatildeos quando esses

ainda conservavam na memoacuteria apenas a tradiccedilatildeo oral Essas traduccedilotildees foram

feitas deacutecadas antes da composiccedilatildeo dos Evangelhos e dessa forma no processo

de composiccedilatildeo das fontes dos Evangelhos praticamente todos os aramaiacutesmos

foram substituiacutedos por palavras gregas com exceccedilatildeo do Evangelho de Marcos que

parece ter usado fontes gregas que eram traduccedilotildees diretas dos originais aramaicos

ou ainda os relatos de milagres no Evangelho de Joatildeo que possivelmente tambeacutem

pode ter sido traduccedilatildeo de um original aramaico (Koester 2005 vl 1 p121-122)

Outra observaccedilatildeo de Koester eacute a questatildeo do bilinguismo na Palestina Entre

os primeiros cristatildeos havia uma mescla de seguidores de Jesus que falavam o

aramaico e o grego Esses foram determinantes para que a composiccedilatildeo dos

Evangelhos fosse fortemente influenciada pelo aramaico Para Koester ldquoalguns

desses semitismos satildeo empreacutestimos semacircnticos que derivam do ambiente geral da

liacutengua como θάλασσα natildeo soacute para mar ou oceano mas tambeacutem para lago uma

vez que o aramaico יםאא denota ambosrdquo (Koester 2005 vl1 p122)

60

Etimologicamente essa palavra tem como raiz o termo darash procurar significa pesquisa sobre a Escritura e tem como funccedilatildeo o meacutetodo de estudo das Escrituras com vistas agrave sua atualizaccedilatildeo (cf Vermes 1990 p11)

112

Para trabalhar as questotildees filoloacutegicas e semacircnticas do Abba precisamos

investigar se a liacutengua materna de Jesus era realmente o aramaico Muitas questotildees

tecircm sido levantadas sobre a liacutengua que Jesus falava e tambeacutem questotildees sobre o

niacutevel cultural do Nazareno As liacutenguas oficiais do impeacuterio romano eram o latim e o

grego Para John P Meier questotildees relacionadas ao idioma ou idiomas que Jesus

falava satildeo muito complexas visto que natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz daquele

periacuteodo e as inscriccedilotildees em latim podem apenas ser um sinal para demonstrar a

presenccedila do poderio romano do que ter a finalidade de informar aos judeus sobre

algo que lhes fosse interessante Como para Meier no mundo greco-romano a

maioria da populaccedilatildeo era analfabeta isso obviamente era vaacutelido tambeacutem para a

populaccedilatildeo judaica (Meier 1993 p254)

Meier usa como exemplo uma famosa ldquoinscriccedilatildeo de Pocircncio Pilatosrdquo que foi

descoberta na Cesareia Mariacutetima em 1961 Essa inscriccedilatildeo em latim foi dedicada ao

Imperador Tibeacuterio por Pilatos A questatildeo levantada por Meier eacute ateacute que ponto esta

inscriccedilatildeo alcanccedilou os gentios e judeus que viviam em Cesareia Possivelmente

para esse autor Pilatos estava preocupado em alcanccedilar apenas as elites ou seja

ele se dirigia apenas aos seus ldquoiguaisrdquo aqueles que estavam a serviccedilo do Impeacuterio ou

faziam parte das elites dominantes As inscriccedilotildees mesmo que sejam as oficiais em

preacutedios puacuteblicos ou aquedutos construiacutedos pelo Impeacuterio ou ateacute mesmo as inscriccedilotildees

funeraacuterias natildeo provam em nada que o latim fosse uma liacutengua comum na Palestina

O fato de uma laacutepide tumular estar em latim poderia apenas ser ldquoo desejo de dar

uma impressatildeo de alta culturardquo e nada mais Assim como segundo Meier natildeo se

pode concluir que os catoacutelicos americanos do iniacutecio do seacuteculo XX tinham um idioma

comum apenas observando a frase Requiescat in pace (do latim descanse em Paz)

inscrita em seus tuacutemulos e nem as muitas inscriccedilotildees em latim espalhadas pela

Europa podem refletir as inuacutemeras liacutenguas faladas hoje em dia nesse continente

Meier observa entatildeo que o Latim eacute visto quase que por unanimidade como o

idioma menos falado na Palestina nos dias de Jesus e por isso ldquonatildeo haacute razatildeo para

se pensar que Jesus falou e muito menos leu o latimrdquo (Meier 1993 p 254 ndash 255)

Se o latim natildeo era tatildeo comum na Palestina jaacute o grego segundo Meier era

um caso totalmente diferente O grego era comum em todo o Impeacuterio romano

inclusive em Roma capital do Impeacuterio A Palestina dos dias de Jesus era altamente

113

helenizada haviam cidades e povoados que foram transformados de uma forma

poliacutetica e cultural em cidades gregas61 Segundo Meier o debate atual entre os

estudiosos estaacute concentrado apenas em saber qual era o grau de helenizaccedilatildeo

nessas cidades Mesmo apoacutes o periacuteodo dos Macabeus onde houve um movimento

de resistecircncia agrave liacutengua e a cultura grega natildeo foi possiacutevel extinguir essa cultura da

Palestina porque apoacutes esse periacuteodo (dos Macabeus) a Palestina passou a ser

governada pelos Asmoneus que tiveram como monarca principal por volta do final

do seacuteculo I aC Herodes o Grande Herodes deu continuidade agrave poliacutetica de

helenizaccedilatildeo que tinha comeccedilado com os reis Selecircucidas especificamente por

Antiacuteoco Epiacutefanes IV O processo de helenizaccedilatildeo de Herodes foi desde a construccedilatildeo

do porto da Cesareia Mariacutetima a cidade de Sebaste em Samaria e muitas outras

grandes edificaccedilotildees em Jerusaleacutem Segundo Meier as inscriccedilotildees em Grego em

Jerusaleacutem eram inuacutemeras desde o Templo as sinagogas ateacute ossuaacuterios Meier assim

descreve a influecircncia grega na Palestina

[] Martin Hengel afirma que uma terccedila parte dos epitaacutefios em Jerusaleacutem do periacuteodo do Segundo Templo eram escritos em grego e ele ainda calcula que das 80000 ou 100000 pessoas que residiam na grande Jerusaleacutem entre 8000 e 16000 teriam falado grego Mas natildeo foi soacute em Jerusaleacutem que a liacutengua e a cultura gregas alcanccedilaram os judeus Um grande nuacutemero de judeus vivia nas cidades helenizadas da planiacutecie litoracircnea desde Gaza no sul ateacute Dor ou Ptolomaicas-Acco no norte Em Cesareia a capital romana da Judeia havia quase tantos judeus como gentios As cavernas de Murabaat nos forneceram papiros gregos sobre a vida diaacuteria e ateacute mesmo ndash por ironia ndash coacutepias de cartas em grego do tempo da revolta de Bar Kochba exatamente quando os nacionalistas lutavam e morriam para se libertarem do jugo estrangeiro e da dominaccedilatildeo cultural

Concernente agrave liacutengua grega e suas influecircncias na Palestina Meier observa

que para se chegar a uma conclusatildeo ou aproximaccedilatildeo de algum fato referente agrave que

idioma era falado pelos judeus residentes na Palestina faz-se necessaacuterio ter uma

atenccedilatildeo redobrada ao periacuteodo em questatildeo Por exemplo se atentarmos para os

seacuteculos III e II aC observa-se um eclipsamento do aramaico devido agrave helenizaccedilatildeo

da Palestina pelos reis selecircucidas da Siacuteria Segundo Meier parece que o aramaico

soacute voltou a retomar a prioridade na Palestina apoacutes a revolta dos Macabeus por isso

61

Se levarmos em consideraccedilatildeo os dados de Martin Hengel citados acima por Meier podemos

deduzir que aproximadamente de 10 a 20 da populaccedilatildeo de Jerusaleacutem falava grego Entatildeo eacute difiacutecil considerar a Palestina dos dias de Jesus como sendo altamente helenizada como fez Meier uma vez que nem mesmo na capital havia tantas pessoas que falavam tal liacutengua

114

natildeo eacute possiacutevel determinar qual era a liacutengua mais falada na Palestina dos seacuteculos II e

I aC tomando como exemplo inscriccedilotildees e textos dos seacuteculos III e II aC (Meier

1993 p 255)

A opiniatildeo de Meier eacute que vaacuterios textos de Flaacutevio Josefo levam agrave conclusatildeo de

que a liacutengua grega natildeo era tatildeo conhecida ou tatildeo falada na Palestina do seacuteculo I

pelos judeus Meier analisa que Josefo mesmo apoacutes se gabar de seu alto niacutevel

cultural tanto em relaccedilatildeo agrave lei como agrave prosa e poesia gregas demonstra algumas

dificuldades com a pronuacutencia do grego Meier observa que as dificuldades de Josefo

parecem natildeo ser apenas de pronuacutencia mas seu domiacutenio de escrita tambeacutem natildeo era

ldquoexatamente perfeitordquo Outro fator observado por Meier eacute a forma de comunicaccedilatildeo

que o general romano Tito usou para se comunicar com os judeus Tito que falava

bem o grego segundo Suetocircnio mas para se comunicar com os judeus precisou de

um ldquomensageiro em aramaico (Josefo) para ser compreendido pelos judeus Surge

entatildeo a grande pergunta Jesus falava grego Para Meier se nem mesmo Josefo

que era haacutebil na liacutengua grega natildeo se sentiu agrave vontade para transmitir o recado de

Tito em grego mas em aramaico porque natildeo dominava bem a liacutengua ou porque os

ouvintes natildeo entenderiam deduz-se que ldquoa probabilidade de um camponecircs galileu

ter suficiente conhecimento para se tornar um mestre e pregador bem-sucedido que

proferisse seus discursos em grego parece muito pequenardquo (Meier 1993 p 258-

259)

Ao fazer um trabalho minucioso sobre a liacutengua que Jesus falava Meier

depois de muitos questionamentos levanta a suposiccedilatildeo de que natildeo podemos negar

que Jesus fosse totalmente desconhecedor da liacutengua dos helenos Primeiro porque

Jesus ateacute mesmo por causa de sua profissatildeo e viagens a Jerusaleacutem tinha contato

com pessoas que falavam grego Eacute possiacutevel segundo Meier que Jesus vez ou outra

fizesse algum contrato ou assinasse algum recibo que tivesse sido redigido em

grego62 Mas o fato de assinar recibos ou mesmo ter dialogado com Pilatos pode

apenas presumir que Jesus possuiacutesse alguns conhecimentos da liacutengua grega

62

A hipoacutetese de Meier sobre a possibilidade de Jesus ter assinado pequenos contratos em grego eacute questionaacutevel uma vez que segundo Meier se nem mesmo Josefo era fluente na liacutengua dos helenos muito menos Jesus que era um humilde galileu Outrossim segundo Crossan eram poucas as pessoas alfabetizadas na Palestina (no maacuteximo 3 da populaccedilatildeo) Crossan chega a afirmar que Jesus era analfabeto como a maioria dos seus conterracircneos Se tal hipoacutetese tambeacutem for verdadeira dificilmente Jesus teria condiccedilotildees de assinar pequenos contratos profissionais na liacutengua grega

115

suficientes apenas para um pequeno diaacutelogo composto de frases curtas Meier acha

muito difiacutecil Jesus ter adquirido alfabetizaccedilatildeo para a escrita em grego O referido

autor ainda aprofunda mais as suas desconfianccedilas a respeito do assunto quando

diz ldquoPortanto acompanhando Fitzmyer mantenho minhas duacutevidas se qualquer parte

dos pronunciamentos de Jesus foi feita desde o iniacutecio em grego dispensando a

traduccedilatildeo ao passar para os Evangelhos gregos que conhecemosrdquo (Meier 1993 p

260)

Apoacutes verificarmos as influecircncias do latim e do grego na Palestina nos dias de

Jesus resta-nos verificar as liacutenguas faladas em Israel desde os primoacuterdios da

naccedilatildeo O hebraico era o antigo e sagrado idioma falado em Israel mas desde que

os judeus voltaram do cativeiro babilocircnico o hebraico sofreu um decliacutenio como

liacutengua falada e passou a ser substituiacutedo gradualmente pelo aramaico Essa

influecircncia do aramaico sobre o hebraico jaacute pode ser vista nos livros poacutes-exiacutelicos

mais precisamente sobre ldquoos livros de Esdras e Daniel que contecircm capiacutetulos inteiros

escritos em aramaico sendo que em Daniel eles chegam agrave metade do totalrdquo (Meier

1993 p 260)

Contudo segundo Meier o hebraico continuou sendo uma liacutengua viva em

Israel principalmente em Qumran onde tinha primazia com o aramaico em

segundo lugar e o grego ocupando apenas uma distante terceira colocaccedilatildeo No

entanto o fato do hebraico ser a liacutengua oficial da comunidade de Qumran natildeo

confirma em nada que o hebraico fosse uma liacutengua usada no dia a dia dos demais

israelitas fora dessa restrita comunidade O que parece ser mais evidente era que o

hebraico aleacutem de em Qumran era usado por religiosos e grupos nacionalistas e por

judeus devotos e em algumas regiotildees de Israel ainda se falava e escrevia em

hebraico (Meier 1993 p 261)

Mesmo sendo o hebraico uma liacutengua viva em Israel Jesus segundo Meier

usava o aramaico para comunicar-se com os seus conterracircneos na vida diaacuteria uma

vez que se acredita que ele natildeo pertencia agrave comunidade de Qumran e nem agrave elite

dos religiosos da eacutepoca bem como seus ouvintes que em sua maioria pertenciam

agraves classes sociais mais humildes A maior evidecircncia disso estaacute nos aramaiacutesmos

registrados nos Evangelhos e especificamente no Evangelho de Marcos onde

encontramos a palavra Abba proferida por Jesus (Mc 1436) De acordo com Meier

116

J Jeremias relacionou 26 palavras aramaicas atribuiacutedas a Jesus nos evangelhos

Dessas palavras Meier opina que duas delas Talita cumi e Abba (Mc 5 41 14 36)

satildeo as que mais proacuteximas estatildeo do Jesus histoacuterico Para ele nem todos os

exemplos citados por J Jeremias podem ser comprovados entretanto alguns satildeo

uacuteteis para demonstrar a forma como Jesus instruiacutea os seus disciacutepulos (Meier 1993

p 264)

A questatildeo da liacutengua falada nos dias de Jesus eacute complexa uma vez que o

aramaico eacute uma liacutengua semiacutetica e estaacute intimamente relacionada com o hebraico No

entanto o aramaico natildeo eacute um dialeto do hebraico mas uma liacutengua semiacutetica distinta

De fato se partirmos do pensamento de Black e considerarmos que Jesus era um

Rabi na Galileia entatildeo natildeo podemos descartar a possibilidade de que ele fez uso

tanto do hebraico como do aramaico especialmente em suas disputas formais com

os fariseus (Black 1998 p16) Aleacutem disso ter conhecimento das duas liacutenguas natildeo

era nada anormal visto que segundo Missick em alguns casos as liacutenguas eram tatildeo

similares que existiam palavras usadas em ambas as liacutenguas com o mesmo

significado (Missick 2010 p 4)

Analisando a coexistecircncia das duas liacutenguas na Palestina nos dias de Jesus

observa-se que as origens do aramaico podem ser anotadas a partir do cativeiro

babilocircnico que ocorreu no periacuteodo de 586 a 539 aC antes disso o hebraico era a

liacutengua oficial dos judeus Com o retorno do hebraico como a liacutengua e a identificaccedilatildeo

da cultura e existecircncia do povo judeu o aramaico foi perdendo forccedilas ateacute ser

considerado uma liacutengua morta No entanto segundo Missick ainda existem

comunidades que falam o aramaico nos dias atuais como os cristatildeos assiacuterios63 do

Iratilde e do Iraque Antigos cristatildeos dessas regiotildees preservaram uma importante versatildeo

da Biacuteblia em aramaico que hoje eacute conhecida como a Biacuteblia Peshitta que segundo

Missick eacute muito valiosa porque a partir dela eacute possiacutevel estudar as palavras de

Jesus no aramaico pois acreditam os cristatildeos do oriente que os Evangelhos foram

63

Matthew Black observa que foi encontrado entre os siriacuteacos cristatildeos palestinos o dialeto aramaico

mais proacuteximo do aramaico dos Evangelhos enquanto que para Dalman segundo Black o aramaico que mais se aproxima do falado nos dias de Jesus era o aramaico dos Targuns judaicos para o Pentateuco e os profetas (cf Black 1998 p18-19)

117

primeiro escritos em aramaico e soacute depois traduzidos para o grego (Missick 2010

p5) 64

Para enfatizar a importacircncia do aramaico no Novo Testamento Missick

relaciona as palavras aramaicas compostas de oraccedilotildees tiacutetulos divinos nomes de

pessoas nomes de lugares e outras palavras e frases usadas no Novo Testamento

Abba (Mc 14 36) Eloiacute Eloiacute lemaacute sabachtaacuteni (Mc 15 34 cf Mt 2746) segundo

Missick se Jesus estivesse falando em hebraico ele teria dito Eli Eli lama azabanti

Nesse caso Jesus estaacute citando o Salmo 221 em aramaico Essa traduccedilatildeo do Antigo

Testamento eacute chamada de Targum65 pela tradiccedilatildeo judaica Dentre as palavras

relacionadas por Missick temos tambeacutem Maranatha (1 Co 1622) que

etimologicamente conforme a definiccedilatildeo dada por Missick (2010 p22-26) tem como

prefixo o termo ldquoMarrdquo que significa Senhor ou ldquoMaranrdquo que significa nosso Senhor

donde temos Maranatha que tem como definiccedilatildeo completa o significado de ldquonosso

Senhor vemrdquo (Marana tha) ou ainda ldquonosso Senhor estaacute vindordquo (Maran atha) Em

aramaico temos ainda outra palavra Rabboni (Jo 2016)

Em relaccedilatildeo aos nomes em aramaico mencionados no Novo Testamento

Missick argumenta que essas pessoas natildeo teriam outro motivo para receber nomes

64

Missick (2006 p170) refere-se a dois grupos significantes de cristatildeos que ainda falam o aramaico O primeiro grupo eacute composto por siacuterios Ortodoxos que vivem na Siacuteria O Segundo grupo do oriente (leste) da Siacuteria satildeo chamados de Assiacuterios e satildeo nativos do Iratilde e do Iraque conforme jaacute comentado acima Segundo Missick os cristatildeos mesmo sendo chamados de assiacuterios satildeo totalmente distintos da cultura do antigo Impeacuterio Assiacuterio A avanccedilada e militarista cultura da Assiacuteria antiga desapareceu com o tempo mas seus descendentes satildeo os modernos siacuterios do Oriente chamados de assiacuterios Os antigos assiacuterios falavam o Acadiano liacutengua falada por assiacuterios e babilocircnios que natildeo eacute mais falada na atualidade

Os atuais cristatildeos Siacuterios e Assiacuterios pertencem a denominaccedilotildees diferentes Segundo Missick (2006 p170) os siacuterios do oeste pertencem agrave Igreja Ortodoxa siacuteria e jaacute foram chamados de Jacobitas ou seja porque provinham do bispo Jacob Bardesanes (542-578 dC) Os cristatildeos chamados de assiacuterios eram conhecidos como nestorianos visto que o patriarca deles foi Nestoacuterio de Constantinopla um Patriarca da Igreja Ortodoxa grega (428-431 dC) A igreja no entanto eacute mais apropriadamente chamada de ldquoAntiga Igreja assiacuteria do Orienterdquo

65 Esta palavra eacute de origem natildeo semiacutetica mas foi adotada pelos judeus para designar tradiccedilatildeo (aqui

parece haver um equiacutevoco do comentador uma vez que a palavra Targum vem do hebraico lsquo targucircmimrsquo e significa traduccedilatildeo Cf La Sor 1999 p 670) ldquoOs targuns satildeo as traduccedilotildees aramaicas dos textos biacuteblicos destinados ao uso sinagogal Na sua origem essas traduccedilotildees eram orais e mais ou menos improvisadas e fragmentaacuterias sendo depois progressivamente fixadas por escrito e reunidas em grandes secccedilotildees (targum do Pentateuco targum dos Profetas targum dos Hagioacutegrefos) Mesmo quando eacute literal na aparecircncia o targum conteacutem elementos mais ou menos amplos de paraacutefrase ou de explicaccedilatildeo de atualizaccedilatildeo e ateacute de correccedilotildees Ele integra o midrash sobretudo na sua forma haggaacutedica Eacute possiacutevel que existisse um targum do Pentateuco ndash ou torah aramaica ndash na eacutepoca de Jesus e ateacute antes na Palestina A atividade targuacutemica evoluiacutera no decorrer dos seacuteculos em que foi praticada para a atividade propriamente midraacuteshica (cf Guia explicativo por Andreacute Paul in Vermes 1990 p11-12)

118

em aramaico se natildeo estivessem inseridos numa determinada comunidade que

falasse aramaico Missick cita como exemplo o prefixo ldquoBarrdquo antes de alguns nomes

que em aramaico tem o sentido de ldquofilho derdquo enquanto que para nomes em hebraico

se usava o prefixo ldquoBenrdquo que tambeacutem tinha o sentido de ldquofilho derdquo (Missick 2010

p26) Os nomes pessoais que segundo Missick tecircm origem no aramaico satildeo

Cephas (Jo 142 1 Co 112 Gl 29) Tomeacute que vem do aramaico ldquoteomardquo cujo

significado eacute gecircmeo (Jo 212) Simatildeo o Zelota (Mc 318) Maria Madalena que era

natural da cidade de Magdala que em aramaico significa Torre66 Tadeu e Lebeu (Mt

103) Tadeu em aramaico significa mamilo e Lebeu significa coraccedilatildeo

A extensa relaccedilatildeo de nomes pode ser assim resumida Tabita (At 936) Marta

(Lc 10 38-41 Jo 11 1-39 122) Bartolomeu (Mt 103) Jesus Barrabaacutes (Mt 2736)

Simatildeo Bar-Jonas (Mt 2716) Joseacute Barsabaacutes (At 123) Elimas Bar-Jesus (At 13 6-8)

Judas Barsabaacutes (At 15 22) Joseacute Barnabas ou Barnabeacute ndash Filho da profecia- (At

436) Aleacutem dos nomes de pessoas e dos tiacutetulos divinos em aramaico ainda

segundo Missick haacute vaacuterios nomes de cidades com origens no aramaico Gaacutebata (Jo

1913) Goacutelgota (Jo 19 17-18 Mc 1522) Betacircnia (Jo 111) Betesda (Jo 5 1-15)

Geena Mt 1028) Resta-nos ainda conforme Missick relacionar palavras e frases

em aramaico usadas no Novo Testamento Effatha (Mc 734) Taliacutetha Kum (Mc 541)

Raca (Mt 5 22) Mamon (Mt 624) Corban (Mc 7 9-13)

Para Missick natildeo haacute duacutevidas que Jesus falou aramaico Um dos argumentos

levantados por esse autor estaacute baseado no relato da morte de Judas conforme

registrou Lucas (At 119) No discurso de Pedro sobre a substituiccedilatildeo de Judas o

lugar onde o corpo de Judas caiu e se arrebentou ao meio conforme o texto

chamava-se Haceacuteldama na proacutepria liacutengua dos moradores de Jerusaleacutem Para

Missick essa palavra eacute aramaica e natildeo hebraica Se a palavra realmente eacute

aramaica entatildeo deduz-se que o idioma falado naqueles dias era o aramaico e natildeo

o hebraico e nem o grego muito menos o latim Missick conclui entatildeo que para se

compreender a mensagem de Jesus que antes de ser escrita foi transmitida

oralmente eacute necessaacuterio compreender as palavras na liacutengua em que Jesus as

66

Missick menciona que ela era conhecida como Madalena porque sua feacute era como uma torre Esse argumento foi defendido por Jerocircnimo contudo segundo Missick o mais provaacutevel eacute que ela tenha adquirido este tiacutetulo por ter vindo da cidade de Magdala (cf Missick p28)

119

proferiu e a melhor forma de alcanccedilar tal objetivo eacute compreender o aramaico

(Missick 2010 p4-35)

Entre os autores que defendem que o aramaico era a liacutengua dos galileus

contemporacircneos de Jesus encontramos tambeacutem Joseacute Pagola Jesus conforme

esse teoacutelogo falava o aramaico em casa assim como todos os galileus Pagola

ainda analisa que ateacute mesmo na Judeia se falava o aramaico no dia a dia Segundo

Pagola as diferenccedilas entre o aramaico da Galileia para o aramaico da Judeia era

apenas de dialeto (sotaque)

Embora o aramaico seja defendido pela maioria dos estudiosos de teologia do

Novo Testamento haacute no entanto autores que defendem que o hebraico natildeo

somente era uma liacutengua viva como era a mais falada nos dias de Jesus Para os

teoacutelogos David Biacutevin e Roy Bliacutezard Jr o hebraico era o idioma mais falado pelos

contemporacircneos de Jesus e dos primeiros cristatildeos Para esses autores um idioma

pode ser definido da seguinte maneira ldquoo idioma eacute uma expressatildeo no uso de uma

liacutenguagem que eacute peculiar a si proacuteprio na construccedilatildeo gramatical ou em ter um

significado que natildeo pode ser derivado como um todo a partir dos significados do

conjunto de seus elementos Na visatildeo deles o ldquohebraico eacute a chave para entender

as palavras de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p 2-4)

Os defensores do hebraico como a liacutengua falada na Palestina dos dias de

Jesus criticam os defensores da inerracircncia das Escrituras quando esses mesmo

depois de ler o texto de Atos 2614 em que Jesus fala em Hebraico com o apoacutestolo

Paulo e tambeacutem o texto de Atos 2140 no qual o mesmo apoacutestolo falou em hebraico

com uma multidatildeo satildeo os mesmos que afirmam que onde se diz hebraico deve-se

entender aramaico Para defender essa teoria eles argumentam que os mais

antigos manuscritos do Novo testamento datam do quarto e quinto seacuteculos da era

cristatilde (Codex Sinaiticus Codex Alexandrinus e Codex Bezae) afirmam que a

inscriccedilatildeo ldquoEste eacute o Rei dos Judeusrdquo estava escrito em grego latim e hebraico

Partindo desses argumentos Bivin e Bliacutezard lanccedilam a seguinte questatildeo

ldquoPorventura natildeo eacute significativo que os manuscritos gregos mais antigos infiram que

o hebraico era mais popular que o aramaico naquele periacuteodordquo (Biacutevin e Bliacutezard

2001 p8)

120

Biacutevin e Bliacutezard argumentam que mesmo a presenccedila de uma palavra aramaica

(Abba) no Evangelho de Marcos (Mc 1436) natildeo prova em nada a existecircncia de

uma liacutengua original falada em aramaico no periacuteodo de Jesus Para esses autores

Abba aparece sempre entre os escritos em hebraico daquele periacuteodo como uma

palavra de empreacutestimo A razatildeo para tal empreacutestimo do aramaico seria pelo fato

dessa palavra ter um ldquosabor especialrdquo quando usado como forma de relacionamento

entre os filhos e seus pais O sentido dessa expressatildeo pode ser relacionado com a

forma como os filhos se dirigem aos seus pais chamando-os de ldquodaddyrdquo (Papai) ou

ldquopapardquo (pai) em Inglecircs Um outro argumento ainda usado como forma de demonstrar

que usar Abba como forma de provar que a liacutengua falada por Jesus natildeo era o

aramaico eacute demonstrar que ainda hoje em Israel onde se fala o hebraico moderno

ldquoas crianccedilas usam Abba na abordagem de seus pais exatamente da mesma

maneira como foi usado no tempo de Jesusrdquo (Biacutevin e Bliacutezard 2001 p10)

Murphy-OConnor diferentemente de Biacutevin e Bliacutezard comunga da mesma

ideia de Jerocircnimo de que o apoacutestolo Paulo era de origem palestinense conforme os

textos de 2 Co 11 22 e Fl 3 5 onde Paulo identifica-se como ldquoisraelitardquo ldquodo povo de

Israelrdquo e como um ldquohebreurdquo Poreacutem quanto aos textos onde Lucas diz que Paulo

falou com a multidatildeo ldquonuma linguagem hebraicardquo (At 2140 222 2614) Murphy-

OConnor argumenta que a linguagem deveria significar aramaico e natildeo hebraico

Segundo esse autor naquela eacutepoca a maioria dos judeus jaacute natildeo conheciam mais o

hebraico e os textos das Escrituras nas sinagogas eram traduzidos para o aramaico

Outro argumento eacute que as palavras Gaacutebata (Jo 1913 o lugar onde Pilatos

condenou Jesus) e Goacutelgota (Jo 19 17) que satildeo mencionadas como palavras

hebraicas na verdade satildeo palavras aramaicas Sendo assim segundo Murphy-

OConnor a divisatildeo entre os primeiros cristatildeos de Jerusaleacutem (At 61) era permeada

pelos que falavam aramaico e pelos que falavam o grego (Murphy-OConnor 2008

p 29-30)

Matthew Black analisando a liacutengua falada por Jesus observa que alguns

estudiosos defendem o hebraico como a liacutengua vernaacutecula na Palestina dos dias de

Jesus Segundo Black alguns propotildeem que o hebraico natildeo era soacute apenas uma

forma literaacuteria de expressatildeo ou entatildeo apenas uma liacutengua falada nos ciacuterculos

rabiacutenicos mas o hebraico era um veiacuteculo normal de expressatildeo (Black 1998 p 47)

121

Douglas Hamp defende que o hebraico era realmente uma liacutengua muito viva nos

dias de Jesus e natildeo uma liacutengua morta como muitas vezes eacute dito Aleacutem de tudo para

ele o hebraico era a primeira liacutengua na Palestina nos dias de Jesus apesar de

segundo ele Jesus poderia ser triliacutengue ou seja falava hebraico aramaico e grego

e possivelmente ateacute o latim (Hamp 2005 p40) Hamp defende entatildeo que Jesus

provavelmente conhecia o aramaico e o grego e deve ter usado essas liacutenguas em

alguns contextos no entanto com seus disciacutepulos e na comunicaccedilatildeo com as

massas ele falou hebraico (Hamp 2005 p73)

Sobre a posiccedilatildeo daqueles que consideram o hebraico e natildeo o aramaico

como o vernaacuteculo ou seja a liacutengua mais falada nos dias de Jesus Black responde

ldquoesta posiccedilatildeo extrema tem encontrado pouco ou nenhum apoio entre as autoridades

competentes a evidecircncia da ipsissima verba de Jesus nos Evangelhos eacute impossiacutevel

de explicar se o aramaico natildeo era a liacutengua que Jesus falavardquo No entanto para ele eacute

provaacutevel que Jesus sendo um Rabi que comeccedilou seu ministeacuterio na Galileia e muito

bem versado nas Escrituras tenha sido capaz de ensinar com maestria tanto em

hebraico que poderia usar para ocasiotildees solenes como em aramaico com que se

comunicava com as massas (Black 1998 p 48-49)

Considerando as diversas opiniotildees sobre a liacutengua materna de Jesus

observamos que a maioria dos estudiosos acredita que Jesus falava o aramaico

uma vez que esta foi a liacutengua predominante na Palestina apoacutes o exiacutelio babilocircnico

Contudo natildeo eacute tarefa faacutecil chegar a uma conclusatildeo Como vimos os estudiosos que

defendem o aramaico como a liacutengua materna de Jesus buscam como prova de tal

tese o argumento de que o Novo Testamento conteacutem muitas palavras aramaicas que

deviam ser comuns nos dias de Jesus Possivelmente o aramaico era uma liacutengua

falada pela populaccedilatildeo em geral enquanto que o hebraico reservava-se mais a

escrita de textos religiosos (sacros) e tambeacutem era usado pela classe sacerdotal que

por sua vez era mais elitizada Contudo devido agrave semelhanccedila entre as duas liacutenguas

torna-se difiacutecil delimitar uma linha divisoacuteria entre as mesmas uma vez que natildeo

possuiacutemos textos em aramaico da eacutepoca e natildeo temos nenhuma gravaccedilatildeo de voz

que nos permita concluirmos com precisatildeo

122

6 ARGUMENTOS CONTRAacuteRIOS Agrave INTERPRETACcedilAtildeO DE JOACHIM JEREMIAS

Apoacutes termos apresentado a tese de J Jeremias sobre o Abba e alguns

pesquisadores que com ele concordam eacute oportuno tambeacutem olharmos algumas

teorias e pesquisadores que divergem de suas ideias

61 A VISAtildeO JUDAICA DO ABBA DEUS COMO PAI NO JUDAIacuteSMO POacuteS-CANOcircNICO

A relaccedilatildeo de paternidade divina no Antigo Testamento eacute refletida na literatura

poacutes-canocircnica do judaiacutesmo No Judaiacutesmo palestinense67 de acordo com J Jeremias

natildeo haacute relatos que em toda a literatura de Qumran que deve ser anterior a 68 a C

(Jeremias 1977 p17) de que Deus tenha sido invocado como Pai Haacute apenas uma

exceccedilatildeo em I QH 9 55 S ldquoEu te agradeccedilo oh Senhor porque natildeo abandonou a

paternidade ou desprezou o pobrerdquo (Vermes 2004 p274) A questatildeo da paternidade

divina era vista pelos rabinos como um direito dado apenas para aqueles que

cumpriam a Lei (Torah) (Jeremias p 1977 p19)

As oraccedilotildees judaicas eram dirigidas geralmente a Deus como nosso Pai

nosso Rei (abinu malkenu) 68 ldquoNosso Pai Nosso Rei Em vista de nossos pais que

creem em ti e a quem ensinas as leis da vida ndash tem piedade de noacutes e ilumina-nosrdquo

(Jeremias 1977 p18) Para J Jeremias mesmo essa oraccedilatildeo sendo antiga

podendo mesmo ser situada na eacutepoca de Jesus haacute algumas coisas que precisam

ser observadas A ecircnfase da oraccedilatildeo estaacute na duplicidade dos termos que se referem

a Deus ou seja ldquoDeus eacute invocado como o pai da comunidaderdquo e a comunidade por

sua vez invoca o Pai que ldquoeacute o rei celestial do povo de Deusrdquo (Jeremias 2008 p116)

Tambeacutem segundo J Jeremias esse texto foi escrito em hebraico que nos dias de

67

ldquo[] no judaiacutesmo palestinense do periacuteodo preacute-cristatildeo eacute rara a descriccedilatildeo de Deus como pai Nos

apoacutecrifos e pseudoepiacutegrafos no que diz respeito aos escritos de origem palestinense acha-se muito raramente (tob 134 Sir 5110 Jub 124-25 28 1929) enquanto os textos de Cunratilde oferecem um uacutenico exemplo isolado (1QH 935-36) No judaiacutesmo rab do seacuteculo I dC o emprego do nome Pai tornou-se mais generalizado mas ainda era muito menos frequente do que outras descriccedilotildees de Deus (Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento COENEN L BROWN C Vol 2 2000 p 1503)

68 Charlesworth afirma que Jesus invocava a Deus como Abba e natildeo como Abinu Charlesworth

entatildeo pergunta ldquonatildeo seraacute concebiacutevel que tenha chamado Deus de Abba porque tinha uma concepccedilatildeo de Deus que era de algumas maneiras diferente daquela da maioria de seus contemporacircneos (cf Charlesworth 1992 p148)

123

Jesus era uma liacutengua sacra usada com maior frequecircncia nas reuniotildees lituacutergicas e

natildeo como uma praacutetica comum no dia a dia (Jeremias 1977 p19)

Entre os escritos do judaiacutesmo palestinense haacute duas oraccedilotildees em que Deus eacute

invocado como Pai Satildeo invocaccedilotildees muito semelhantes do c 23 de Ben Sira

(Eclesiaacutestico) escrito por volta do comeccedilo do seacuteculo II aC (Jeremias 1977 p19)

Esses dois versiacuteculos (v1 e v4) onde Deus eacute invocado como ldquoPai e dono da minha

vidardquo e como ldquoSenhor Pai e Deus da minha vidardquo (Jeremias 1977 p19) poderiam

ser um preluacutedio do evangelho segundo J Jeremias se por volta da deacutecada de 40

natildeo tivesse sido descoberto uma paraacutefrase em hebraico desse texto que hoje existe

apenas em grego A paraacutefrase desse texto escrito em hebraico natildeo invoca Deus

como ldquoSenhor e Pairdquo mas invoca-o como ldquoDeus de meu Pairdquo Ficam evidentes

entatildeo as diferenccedilas entre o texto que temos em grego e a paraacutefrase em hebraico

Partindo desses raciociacutenios J Jeremias entatildeo conclui que mesmo que no

Judaiacutesmo da diaacutespora haja testemunhos esporaacutedicos da invocaccedilatildeo de Deus como

Pai (Jeremias 2008 p117) eles satildeo apenas ditos isolados nos quais Deus eacute

invocado como (Pater) mas sempre com influecircncia do helenismo e da liacutengua grega

(Jeremias 2008 p115-116) e natildeo se tem notiacutecias de que no judaiacutesmo palestinense

algum indiviacuteduo tenha dirigido-se a Deus chamando-o de meu Pai (Jeremias 1977

p 19-20)

Contudo J Jeremias ainda menciona uma oraccedilatildeo do final do seacuteculo 1 aC

feita por um homem chamado Hanin ha-Nehba conhecido por seu sucesso nas

oraccedilotildees para obter chuva Nessa oraccedilatildeo Deus eacute invocado como papai ou como o

Abba que tem o poder de enviar chuva

Quando o mundo precisava de chuva nossos mestres tinham o costume de lhe mandar crianccedilas das escolas que se agarravam ao seu manto e imploravam Abbaacute Abbaacute habh lan mitra papai papai daacute-nos chuvardquo E ele lhe (a Deus) dizia Senhor do universo concede-nos (a chuva) em vista destes que natildeo satildeo ainda capazes de distinguir entre um abbaacute que tem o poder de dar a chuva e um abbaacute que natildeo tem (Jeremias 1977 p 22)

Por fim o autor supracitado observa que mesmo que as evidecircncias sejam

favoraacuteveis a uma invocaccedilatildeo de Deus como papai (Abbaacute) ainda assim com um olhar

mais criterioso nota-se que a forma como Hanin invoca a Deus eacute tomada com um

tom carregado de humor e Hanin comeccedila a sua oraccedilatildeo dirigindo-se a Deus natildeo

como o Abba mas sim como o Senhor do universo J Jeremias vecirc essa histoacuteria

124

como um preluacutedio das afirmaccedilotildees de Jesus nos Evangelhos onde ele diz que ldquoo Pai

celeste sabe do que precisam os seus filhos (Mt 632) que ele envia a chuva sobre

os justos e os injustos (Mt 5 45) e daacute coisas boas aos seus filhos que lhas pedem

(Mt 711 par Lc 1113) (Jeremias 1977 p 23) Entatildeo J Jeremias tem como

resultado de suma importacircncia de que realmente natildeo existe nenhum testemunho

nas oraccedilotildees judaicas do uso do Abba (papai) em todo o judaiacutesmo Defende esse

autor que o emprego do Abba foi uma caracteriacutestica peculiar de Jesus dirigir-se a

Deus invocando-o como o Abba e isso coloca o abba como sendo a ipsissima vox

de Jesus (Jeremias 1977 p23)

Eis-nos pois autorizados a dizer por que natildeo se usa abbaacute nas oraccedilotildees Judaicas para invocar a Deus seria desrespeitoso e portanto impensaacutevel para uma mentalidade judaica chamar a Deus com um nome tatildeo familiar Foi algo de novo uacutenico e inaudito ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma crianccedila fala ao seu pai com simplicidade intimidade e sem temor Portanto natildeo haacute duacutevida alguma de que a palavra abbaacute utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus revela o proacuteprio fundamento de sua comunhatildeo com ele (Jeremias 1977 p25)

J Jeremias ainda conclui seu pensamento sobre o uso do Abba nas oraccedilotildees

judaicas ldquoUma revisatildeo da rica e abundante literatura oracional judaica ainda pouco

estudada leva-nos a conclusatildeo de que em nenhuma das suas passagens estaacute

atestado o termo abba para invocar a Deusrdquo (Jeremias 2006 p63)

Com um pensamento em alguns pontos diferentes ao de J Jeremias de que

para este Deus nunca foi invocado como pai no judaiacutesmo quer seja no Antigo

Testamento ou no judaiacutesmo palestinense Bultmann afirma que a visatildeo de Deus

como pai no Judaiacutesmo era corriqueira quer seja atraveacutes das oraccedilotildees ou ateacute mesmo

pelo piedoso individualmente Bultmann usa alguns textos como o Eclesiaacutestico 410

para justificar a sua tese ldquoSecirc um pai para os oacuterfatildeos e o substituto do esposo para as

viuacutevas Entatildeo Deus te chamaraacute de filho seraacute gracioso para contigo e te salvaraacute da

perdiccedilatildeordquo (Bultmann 2005 p 191)

A condiccedilatildeo de filho de Deus no judaiacutesmo pode ser tambeacutem escatoloacutegica Para

Bultmann o chamado Salmo de Salomatildeo (1730) trata sobre o regimento do

Messias no tempo do fim com as seguintes palavras ldquoEle os conhece e sabe que

satildeo todos filhos do seu Deusrdquo E para enfatizar ainda mais o seu argumento ele

ainda cita o ldquochamado Livro dos jubileus (1 24-25)rdquo no qual Deus em uma forma

escatoloacutegica promete para os israelitas no tempo da salvaccedilatildeo ldquoEles cumpriratildeo os

125

meus mandamentos e eu serei um pai para eles e eles seratildeo meus filhos E todos

eles se chamaratildeo filhos do Deus vivo e todos os anjos e todos os espiacuteritos os

conheceratildeo e saberatildeo que eles satildeo meus filhos e que eu sou o pai em firmeza e

justiccedila e que eu os amordquo

A ideia que Jesus tem da designaccedilatildeo de Deus como pai segundo Bultmann

natildeo traz nenhuma novidade a respeito do assunto pelo contraacuterio era jaacute uma

caracteriacutestica de muitas religiotildees e cosmovisotildees religiosas e entre elas encontra-se

a visatildeo dos antigos estoicos para os quais a ldquofiliaccedilatildeo divina cabe ao ser humano por

natureza e eacute algo que se aplica a ele na esfera das ideias logo que se situa aleacutem

de sua existecircncia concreta no aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p192-193)

A relaccedilatildeo de pai e filhos no judaiacutesmo ocorre de uma forma diferente da do

estoicismo Bultmann defende que no judaiacutesmo natildeo haacute uma relaccedilatildeo de pai e filhos

de Deus por natureza mas pela livre eleiccedilatildeo de Deus A filiaccedilatildeo divina portanto natildeo

eacute algo natural mas eacute algo miraculoso Quanto agrave possibilidade da filiaccedilatildeo essa natildeo eacute

exclusividade de um grupo pelo contraacuterio eacute aberta a todos pois o pai do ceacuteu provecirc

para todas as pessoas aquilo que necessitam (Mt 6 2632) Da mesma forma a

oportunidade para rogar ao pai do ceacuteu (Mt 7 7-11) eacute uma oportunidade oferecida a

todas as pessoas Dessa forma Bultmann declara que ldquo o ser humano eacute visto de

modo bem diferente ou seja natildeo como aquilo que eacute na esfera das ideias para aleacutem

de sua existecircncia concreta mas justamente como aquilo que eacute em sua existecircncia

na singularidade de seu aqui e agorardquo (Bultmann 2005 p 193)

O conceito de paternidade no judaiacutesmo eacute tambeacutem discutido por Alon Goshen-

Gottstein em ldquoDeus como Pai no judaiacutesmordquo (Goshen-Gottstein 2001 p475) Para

ele a referecircncia rabiacutenica de Deus como pai no judaiacutesmo tambeacutem eacute uma

peculiaridade de Israel como naccedilatildeo natildeo que indiviacuteduos natildeo possam dirigir-se a Ele

como pai Mas natildeo eacute possiacutevel encontrar nas fontes sobre algueacutem que de forma

especiacutefica e individual tenha dirigido-se a Deus chamando-o de Pai No entanto

para Goshen-Gottstein essa relaccedilatildeo paternal era apenas um sentimento religioso

reciacuteproco de Israel para com Deus isto eacute chamar Deus de Pai era apenas uma das

muitas metaacuteforas que Israel usava para referir-se a Deus (Goshen-Gottstein 2001

p475)

Para Goshen-Gottstein os cristatildeos e judeus divergem muito sobre a questatildeo

da segunda e a terceira pessoas da trindade cristatilde parece que a primeira pessoa da

trindade (o Pai) eacute o elo que une o cristianismo e o judaiacutesmo num fundo teoloacutegico

126

comum Contudo ele pergunta sobre em que extensatildeo a pessoa do Pai eacute um

conceito comum para o judaiacutesmo e para o cristianismo (Goshen-Gottstein 2001

p471) Goshen-Gottstein coloca que o primeiro problema eacute metodoloacutegico visto que

eacute natural que os pesquisadores do Novo Testamento vasculhem a literatura rabiacutenica

agrave procura daquilo que apenas lhes interessa A exemplo disso esse autor observa

que teoacutelogos cristatildeos pentearam a literatura rabiacutenica em busca de exemplos de

expressotildees sobre o ldquoPai celesterdquo que estatildeo no singular ou no plural para dessa

forma avaliar a importacircncia que a expressatildeo ldquoPai celesterdquo tem na literatura rabiacutenica

quando analisada sobre a perspectiva da intimidade e relaccedilatildeo pessoal que o ldquoPai

Celesterdquo tinha para os autores rabiacutenicos Goshen-Gottstein vecirc isso como perda de

tempo pois considera que as fontes rabiacutenicas natildeo podem ser analisadas para fins

especiacuteficos mas devem ser apreciadas a partir da unicidade das suas estruturas

literaacuterias meacutetodos de expressatildeo e convenccedilotildees estiliacutesticas (Goshen-Gottstein 2001

p473)

Referindo-se ao conceito de metaacuteforas atribuiacutedas a Deus Goshen-Gottstein

afirma que descrever Deus como Pai no Judaiacutesmo natildeo eacute essencial ou fundamental

Esse conceito tem uma conotaccedilatildeo religiosa e faz parte de um vocabulaacuterio religioso

Ele eacute apenas uma descriccedilatildeo repleta de imagens e metaacuteforas que faz parte de um

vocabulaacuterio religioso que daacute expressatildeo aos sentimentos do povo e que enchem o

espectro de Israel Portanto para Goshen-Gottstein ldquoPairdquo natildeo eacute uma expressatildeo

privilegiada dentro do judaiacutesmo e tambeacutem ldquonatildeo eacute o nome proacuteprio de Deus Antes eacute

uma das inuacutemeras metaacuteforas atraveacutes das quais Israel se refere a Deusrdquo A

paternidade na literatura rabiacutenica eacute sempre vista em relaccedilatildeo a Israel como naccedilatildeo

Embora Goshen-Gottstein afirme tal expressatildeo ele admite que haja casos em que

indiviacuteduos se dirijam a Deus como Pai inclusive em fontes biacuteblicas No entanto natildeo

se encontra em nenhuma fonte Deus sendo considerado Pai de um indiviacuteduo

somente Sempre Deus eacute visto como sendo o Pai de Israel poreacutem isso natildeo

evidencia que a paternidade de Deus natildeo seja estendida a outros fora de Israel pelo

menos natildeo encontramos na literatura rabiacutenica textos que suponham tal expressatildeo

O que Goshen-Gottstein procura deixar claro eacute que a referecircncia rabiacutenica a Deus

como Pai estaacute fundamentalmente fiel ao uso biacuteblico Isso difere de Filo para quem

Deus o Pai eacute tambeacutem Deus o Criador do mundo Para os rabinos a paternidade

divina se refere somente em relaccedilatildeo a Israel ou seja as fontes referem-se a Deus

127

como Pai somente no contexto do relacionamento especial de Israel com Deus

(Goshen-Gottstein 2001 p475)

A representaccedilatildeo metafoacuterica de Deus como Pai de Israel eacute tambeacutem defendida

por Vermes em Jesus e o mundo do Judaiacutesmo Vermes defende que Deus foi

representado metaforicamente como Pai do povo eleito (Israel) natildeo somente na

literatura biacuteblica mas tambeacutem na literatura apoacutecrifa Entre os textos biacuteblicos por ele

citados encontram-se os seguintes ldquoEu sou pai para Israel e Efraim eacute o meu

primogecircnitordquo (Jr 319) ldquoE no entanto Senhor tu eacutes o nosso Pairdquo [] todos noacutes

somos obras de suas matildeosrdquo (Is 647) ldquoSerei para ele um Pai e ele seraacute para mim

um filho e seraacute chamado filho do Deus vivo (Jub 1 24-25) ldquoFiz a vontade do Abba

que estaacute nos ceacuteusrdquo (Lv R 321) ldquoOacute Senhor Pai Soberano (ou Deus) da minha vidardquo

(Sr 23 14) ldquoA tua providecircncia oacute Pai eacute o seu pilotordquo (Sb 14 3) Vermes apoacutes

analisar os textos das fontes mencionadas acima e outros natildeo reluta em afirmar que

a invocaccedilatildeo de Deus como Pai eacute rica no judaiacutesmo antigo (Vermes 1996 p53)

Analisando as teses de J Jeremias concernentes ao Abba de Jesus Vermes

observa que elas estatildeo sujeitas a questionamentos J Jeremias defende que Abba

quando dirigido a Deus em forma de invocaccedilatildeo natildeo se encontra na oraccedilatildeo judaica

antiga Vermes contudo soacute concordaria com essa tese se fosse possiacutevel analisar

todas as oraccedilotildees individuais e confirmar que em nenhuma delas algum indiviacuteduo

dirigiu-se a Deus em oraccedilatildeo com a forma invocativa do Abba Para Vermes o

seguinte pensamento de David Flusser resume bem os argumentos acima

apresentados ldquoJ Jeremias natildeo conseguiu encontrar o uso de Abba como vocativo

para Deus na literatura talmuacutedica poreacutem considerando a escassez de material

rabiacutenico sobre a oraccedilatildeo carismaacutetica isso natildeo nos diz muita coisardquo (Vermes 1996

p55)

Goshen-Gottstein fazendo referecircncia a Joseph Heinemann justifica a tese de

Vermes de que eacute preciso distinguir a oraccedilatildeo judaica antiga quando era puacuteblica e

coletiva da oraccedilatildeo de um indiviacuteduo Seguindo esse argumento observa-se que a

oraccedilatildeo puacuteblica recorre a linguagem e padrotildees especiacuteficos enquanto que a oraccedilatildeo

quando efetuada pelo indiviacuteduo eacute mais livre e tambeacutem mais carismaacutetica Nesse

sentido o exemplo por excelecircncia de oraccedilatildeo livre e individual eacute a oraccedilatildeo do Senhor

(Goshen-Gottstein 2001 p487)

Dentre os argumentos contraacuterios a visatildeo de J Jeremias temos ainda a

refutaccedilatildeo de Vermes sobre a tese em que J Jeremias defende que Jesus dirigia-se

128

a Deus chamando-o de ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo Para Vermes essa forma invocativa

realmente era usada pelas criancinhas quando essas se dirigiam aos seus pais

Contudo Vermes natildeo concorda que abba ou imma tenha tido uma uacutenica forma

determinada de uso Para ele na eacutepoca de Jesus abba poderia tambeacutem possuir

simplesmente o significado de ldquomeu pairdquo principalmente quando usadas em

situaccedilotildees solenes que natildeo tinham nada de infantil ldquocomo na altercaccedilatildeo imaginaacuteria

entre os patriarcas Judaacute e Joseacute relatado no Targum Palestino quando o furioso Judaacute

ameaccedila o governador [vizir] do Egito (seu irmatildeo que ele natildeo reconhecera) dizendo

Juro pela vida da cabeccedila de abba (meu pai) tal como tu juras pela cabeccedila do Faraoacute

teu senhor que se tirar a espada da bainha natildeo a devolverei mais enquanto a terra

do Egito natildeo tiver coberta de cadaacuteveresrdquo (Vermes 1996 p55)

James Barr tambeacutem eacute de acordo que abba era uma palavra usada por

adultos embora tambeacutem fosse muito usada por crianccedilas Segundo Barr no grego do

Novo Testamento a palavra ldquopaterrdquo (pai) eacute normalmente usada para referir-se a

figura paterna Contudo ele observa que na liacutengua grega tambeacutem havia uma palavra

em particular no diminutivo pertencente agrave fala das crianccedilas um pouco semelhante agrave

palavra Daddy em Inglecircs (papai) Poreacutem mesmo existindo a palavra em grego natildeo

haacute indiacutecio algum de que tal palavra tenha sido usada no Novo Testamento (Barr

1988 p 36-38)

As teorias com visotildees diferentes das de J Jeremias satildeo muitas como temos

visto Vermes conforme vimos acima eacute enfaacutetico ao contrapor J Jeremias

considerando as teses do professor de Gotinga sobre o Abba como incongruentes e

desprovidas de bases linguiacutesticas

[] J Jeremias compreendia que Jesus dirigia-se a Deus por ldquopapairdquo ou ldquopapaizinhordquo contudo afora a improbabilidade e incongruecircncia a priori dessa teoria parece natildeo haver bases linguiacutesticas para ela As criancinhas falantes de aramaico dirigiam-se aos seus pais por meio de abba ou imma mas esse natildeo era o uacutenico contexto do uso de abba Na eacutepoca de Jesus a forma determinada do nome abba (- ldquoo pairdquo) tambeacutem significava ldquomeu pairdquo ldquomeu pairdquo se bem que ainda atestado em qumran e no aramaico biacuteblico praticamente jaacute desaparecera como forma idiomaacutetica do dialeto galileu (Vermes 1996 p55)

No apecircndice de seu livro ldquoA Religiatildeo de Jesus o Judeurdquo Geza Vermes posta

um resumo da tese de J Jeremias sobre o Abba de Jesus (The Prayers of Jesus de

1967) baseadas em um artigo ldquoAbba natildeo eacute Papairdquo (Abba isnt Daddy) de James

129

Barr Os argumentos de J Jeremias estatildeo expostos da seguinte maneira conforme

transcritos abaixo

a) O termo aramaico eacute ldquouma expressatildeo puramente exclamatoacuteriardquo como em

Pai e natildeo um aspecto enfaacutetico correspondente em inglecircs a um substantivo

acompanhado do artigo definido (= o pai)

b) A origem do Abba se encontra no balbuciar do ldquofalar infantilrdquo A geminaccedilatildeo

ab-ba (ldquoDadaacuterdquo) tem como modelo o chamado mais frequente do bebecirc agrave Im-ma

(ldquoMamardquo)

c) Essa forma de invocaccedilatildeo eacute de tom tatildeo familiar que sua associaccedilatildeo com a

Deidade chocaria os judeus comuns de liacutengua aramaica como ldquodesrespeitosardquo

d) Seu emprego por Jesus era ldquoalgo de novo e inauditordquo

e) Abba no aramaico da Palestina tornou-se uma expressatildeo polivalente As

diversas expressotildees nos Evangelhos em Grego como ldquoo Pairdquo ldquoPairdquo (vocativo) e

tambeacutem ldquomeuteunosso Pairdquo (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)

podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus

Para Vermes se J Jeremias estiver correto isso pode trazer tantas

implicaccedilotildees porque o estilo de Jesus dirigir-se a Deus seria tatildeo peculiar a ponto de

representar um idiossincrasia Vermes prefere entender que J Jeremias

compreendeu mal o Abba de Jesus e ateacute por uma questatildeo de teimosia persistiu

defendo tal tese Ele ainda reafirma que o Abba natildeo era apenas o linguajar infantil

mas poderia ser usado em momentos solenes ou religiosos Vermes cita uma vez

mais James Barr dizendo que ironicamente esse observa ldquoque a teoria de J

Jeremias vinculando Abba agraves crianccedilas considera uma situaccedilatildeo que antedata Jesus

em alguns milecircniosrdquo Para fechar a analogia de Barr Vermes ainda cita-o ldquoComo

Explanaccedilatildeo de Abba nos tempos do Novo Testamento o balbuciar infantil natildeo faz

sentidordquo

A refutaccedilatildeo de Vermes eacute enfaacutetica ou seja explicitamente ele coloca sua visatildeo

teoloacutegica sobre o Abba de Jesus como uma contestaccedilatildeo a todos os argumentos de

J Jeremias Para finalizar Vermes assim resume seu pensamento sobre a teoria de

J Jeremias ldquo[] a teoria de J Jeremias popular ateacute agora natildeo encontra

fundamento filoloacutegico A conclusatildeo literaacuterio-histoacuterica dessa teoria vale dizer que

antes de Jesus os judeus natildeo se dirigiam a Deus como Abba natildeo eacute apenas

incomprovada como tambeacutem implausiacutevelrdquo (Vermes 1995 p163-167)

130

Apoacutes os diversos argumentos contraacuterios a J Jeremias concluiacutemos com

Swidler que fazendo menccedilatildeo de Georg Schelbert observa que aleacutem do termo

abba natildeo havia nenhuma outra palavra a disposiccedilatildeo de Jesus se ele quisesse falar

de Deus ou a Deus como Pai Se essa era a uacutenica forma de Jesus dirigir-se a Deus

entatildeo ela natildeo poderia ter nada de especial como afirma J Jeremias ateacute porque

como mostra Schelbert a Mishnaacute (que significa ensinamento que eacute recitado

oralmente) mostra um relacionamento iacutentimo com Deus como o Pai do Ceacuteu (Swidler

1993 p73-75) Em relaccedilatildeo ao termo abba Barr conclui que eacute razoaacutevel que abba no

tempo de Jesus pertencia a uma linguagem familiar ou coloquial distinto do uso

formal e cerimonioso mas por outro lado tendo em vista o uso do Targum seria

imprudente comparaacute-la a expressatildeo infantil Daddy (papai) O uso do abba era mais

solene podemos dizer que estava mais relacionado ao uso do adulto para com seu

Pai (Barr 1988 p 46)

62 ABBA UMA PRAacuteTICA DA COMUNIDADE CRISTAtilde PRIMITIVA - UMA

LEITURA A PARTIR DA TEOLOGIA FEMINISTA

A figura feminina sempre foi discriminada pelas sociedades patriarcais ao

longo dos seacuteculos da histoacuteria da humanidade Podemos dizer que o cristianismo um

importante movimento de massa a pregar a liberdade e a igualdade entre os homens

e mulheres ldquoNatildeo haacute judeu nem grego natildeo haacute escravo nem livre natildeo haacute homem

nem mulher pois todos voacutes sois um soacute em Cristo Jesusrdquo (Gl 3 28) 69 Eacute comum

ouvirmos que Jesus libertou as mulheres uma vez que em seu ministeacuterio o mestre

da Galileia teve como disciacutepulas vaacuterias mulheres inclusive como jaacute mencionamos

neste trabalho (53) Maria Madalena (cf Lc 8 2 2410)

Elisabeth Schuumlssler Fiorenza referindo-se a Leonard Swidler vai mais aleacutem

quando afirma que Jesus foi um feminista e isso foi primeiramente atestado por um

estudioso homem e natildeo por uma mulher70 Schuumlssler Fiorenza apela para o fato de

Jesus ter tido disciacutepulas e tambeacutem ter violado as leis de pureza (algo que era

69

Swidler refere-se a esse texto de Paulo como uma contestaccedilatildeo a uma oraccedilatildeo rabiacutenica que diz ldquoLouvado seja Deus por natildeo me ter criado gentio Louvado seja Deus por natildeo ter me criado mulher Louvado seja Deus por natildeo ter me criado ignoranterdquo (Swidler 1993 p 101)

70 Basicamente para Swidler feminista eacute a pessoa a favor da igualdade de homens e mulheres ou

seja a pessoa que trata primeiramente a mulher como uma pessoa assim como os homens satildeo tratados (Swidler 1993 p100)

131

contraacuterio aos rabinos judeus) como argumento para fundamentar a tese de um

Jesus feminista (Schuumlssler Fiorenza 2005 p 37)

Contudo para Swidler a atitude feminista era uma exclusividade de Jesus e

natildeo dos evangelistas e suas fontes Para ele a Igreja primitiva tornou-se

rapidamente antifeminista como pode ser visto em textos como ldquo[] estejam as

mulheres caladas nas assembleias pois natildeo lhes eacute permitido tornar a palavra

Devem ficar submissas como diz tambeacutem a Lei (1Cor 14 34)rdquo Swidler ainda cita

outro texto (1Tm 2 11-12) que diz que ldquodurante a instruccedilatildeo a mulher conserve o

silecircncio com toda a submissatildeo Natildeo permito que a mulher ensine ou domine o

homem Que ela conserve o silecircnciordquo Para Swidler a Igreja natildeo soacute se tornou

antifeminista como tambeacutem se tornou misoacutegina uma vez que aleacutem dos textos acima

mencionados jaacute no II seacuteculo Tertuliano refere-se agraves mulheres com as palavras ldquosois

o portatildeo do diabordquo Natildeo bastasse Tertuliano Oriacutegenes afirma que ldquoaquilo que eacute visto

com os olhos do criador eacute masculino e natildeo feminino pois Deus natildeo se curva para

olhar aquilo que eacute feminino e da carnerdquo (Swidler 1993 p106)

Tal afirmaccedilatildeo (Jesus libertou as mulheres) eacute muito bem aceita entre as

teoacutelogas feministas e por todos que defendem essa teoria Para Schuumlssler Fiorenza

Jesus natildeo somente libertou as mulheres da degradaccedilatildeo imposta pela sociedade

judaica patriarcal da antiguidade (apesar dessa tese ser considerada como

historicamente falsa e antijudaica pelas teoacutelogas feministas judias) como tambeacutem o

proacuteprio Jesus era um feminista (Fiorenza 2005 p110)

Conforme Swidler a condiccedilatildeo das mulheres na sociedade contemporacircnea de

Jesus na Palestina era sem duacutevida de inferioridade em relaccedilatildeo aos homens

Segundo Swidler natildeo obstante o fato de ter havido vaacuterias heroiacutenas nas Escrituras

hebraicas natildeo impediu que nos dias de Jesus e ateacute muito tempo depois natildeo fosse

concedido agraves mulheres a permissatildeo de estudar a Toraacute Swidler citando um texto da

Mishnaacute (Sita 34) refere-se a um rabino do seacuteculo I chamado Eliezer que

pronunciou as seguintes palavras referindo-se agraves mulheres ldquoAs palavras da Toraacute

deveriam antes ser queimadas do que confiadas a uma mulher [] todo aquele que

ensina a Toraacute a sua filha eacute como aquele que lhe ensina a lasciacuteviardquo (Swidler 1993

p100-101)

As mulheres no templo de Jerusaleacutem estavam limitadas agrave parte externa ou

seja ficavam no paacutetio das mulheres que estavam cinco degraus abaixo do paacutetio dos

homens Nas sinagogas aleacutem de ficarem separadas dos homens natildeo tinham

132

permissatildeo para ler em voz alta muito menos assumir alguma funccedilatildeo de lideranccedila

Swidler cita Filon contemporacircneo de Jesus que pensava que as mulheres natildeo

deviam sair de casa a uacutenica exceccedilatildeo era para ir agrave sinagoga e preferencialmente

em horaacuterios em que a maioria das pessoas estivessem em casa De uma maneira

geral as mulheres serviam apenas para ter filhos estavam sempre sob a tutela de

um homem que seria o marido ou no caso de viuvez sob a tutela do irmatildeo do

falecido sem contar com o fato de que tinham que se sujeitar a poligamia (ainda que

natildeo muito praticada nos dias de Jesus) eram facilmente repudiadas com a carta de

divoacutercio poreacutem natildeo tinham permissatildeo para se divorciarem Enfim ldquoa condiccedilatildeo das

mulheres na Palestina era aquela dos inferioresrdquo (cf Swidler 1993 p102-104)

A teologia de J Jeremias referente agrave relaccedilatildeo de Deus como Pai nos laacutebios de

Jesus de Nazareacute71 natildeo eacute aceita em algumas correntes teoloacutegicas como por

exemplo pelos defensores da teologia feminista72 Poreacutem quando falamos do

movimento feminista natildeo significa que exista um uacutenico ponto de vista sobre um

mesmo pensamento teoloacutegico Algumas feministas que adotam o pensamento de

reforma da tradiccedilatildeo o qual implica em conservar o que eacute melhor ao inveacutes de

simplesmente imitar as tradiccedilotildees lutam por uma reforma e uma flexibilidade na

linguagem da igreja quando o assunto se refere agrave pessoa de Deus argumentando

que o uso exclusivo da imagem masculina natildeo faz justiccedila agrave imagem biacuteblica de Deus

mas limita o acesso ao entendimento que temos de Deus Para essa corrente

feminista a imagem de Deus natildeo estaacute relacionada a gecircnero visto que Deus pode

ser visto tanto como pai e como matildee segundo Marianne Thompson para uma parte

dessas feministas e ainda para outras portanto a ideia central natildeo eacute descartar a

71 Elisabeth Schuumlssler Fiorenza observa que os livros e artigos sobre ldquoJesus e as mulheresrdquo se

proliferam contudo ela cita Crossan quando este acusa as feministas pela falta de interesse na busca pelo Jesus histoacuterico Crossan pergunta onde estatildeo elas Schuumlssler responde ldquoCrossan natildeo pode reconhecer as afinidades entre seu proacuteprio modelo de reconstruccedilatildeo histoacuterica e o meu modelo feminista (cf Schuumlssler 2005 p 30)

72 Haight coloca que a teologia feminista eacute por muitos comparada agrave teologia da libertaccedilatildeo uma vez

que compartilham de ideais e estrutura formal comum no que diz respeito agrave libertaccedilatildeo e tambeacutem a maioria dos pobres no mundo eacute constituiacuteda de mulheres ldquo[] No que tange agrave loacutegica hermenecircutica da teologia portanto as teoacutelogas feministas podem referir-se a si mesmas como teoacutelogas da libertaccedilatildeo [] Na medida em que o androcentrismo controla o significado de Jesus cristo a cristologia feminista eacute levada a questionar como uma figura masculina de Salvador pode oferecer a salvaccedilatildeo agraves mulheres Em termos mais amplos contudo a cristologia feminista ocupa-se de toda a forma de opressatildeo e de suas inter-relaccedilotildees O Deus mediado por Jesus Cristo coloca em xeque todo poder de dominaccedilatildeo Natildeo era o sexo mas o gecircnero como categoria cultural que tinha primazia e era parte da ordem das coisas O significado de homem e de mulher era determinado pela posiccedilatildeo na hierarquia social e pelo lugar que se ocupava na sociedade natildeo pela genitaacuteliardquo (cf Haight 2003 p37)

133

linguagem de Deus como Pai mas apenas incluir essa com outra variedade de

imagens de Deus (Thompson 2000 p 3)

Para outras feministas no entanto nenhum acordo sobre a questatildeo da

imagem paterna de Deus pode ser atingido facilmente pois tais questotildees natildeo

podem ser tatildeo facilmente resolvidas e as respostas necessaacuterias satildeo muito radicais

pois trariam uma postura revolucionaacuteria para a tradiccedilatildeo Para elas o uso histoacuterico

que a Igreja tem da linguagem exclusivamente masculina de Deus deve ser

inteiramente refeito73 Em vez de buscar as reformas dentro das estruturas atuais da

igreja ou dentro de construccedilotildees teoloacutegicas tradicionais essas feministas oferecem

uma pauta mais radical o que tem implicaccedilotildees natildeo apenas para a linguagem sobre

Deus mas tambeacutem para o carater baacutesico de toda a teologia e feacute cristatilde Algumas

feministas satildeo mais radicais ainda pois explicitamente rejeitam as tradiccedilotildees da feacute

cristatilde afirmando que os textos cristatildeos e a feacute satildeo inevitavelmente e

intoleravelmente patriarcal elas abandonaram o cristianismo por completo

(Thompson 2000 p 4)

Para Thompsom (2000 p 18) a designaccedilatildeo de Deus como Pai natildeo eacute

invenccedilatildeo de Jesus e nem criaccedilatildeo da Igreja primitiva A designaccedilatildeo de Deus como

Pai faz parte de ambos os Testamentos ou como o Pai que eacute o ancestral que daacute a

vida e lega uma heranccedila aos seus filhos ou como o Pai que ama e cuida dos seus

filhos ou ainda como o Pai que eacute uma figura de autoridade a quem se deve

obediecircncia e honra Thompsom afirma que Jesus dirigiu-se a Deus como Pai em

primeira instacircncia natildeo como um mero testemunho de sua proacutepria experiecircncia de

Deus mas ao inveacutes disso pelas suas proacuteprias convicccedilotildees de Deus como renovador

e restaurador de Israel ou seja isso natildeo era fruto de uma experiecircncia privada mas

assunto de uma missatildeo puacuteblica Essa afirmaccedilatildeo de Thompson natildeo se coaduna com

o pensamento de J Jeremias para quem a relaccedilatildeo de Jesus com o Pai era iacutentima e

pessoal

Nesse sentido Mary Rose DAngelo ao analisar o texto do Evangelho de

Marcos 1436 quando Jesus invocava o Pai (Ἀββᾶ ὁ πατήρ) ela observa que a

73

Elisabeth Schuumlssler Fiorenza em seu livro Jesus e a poliacutetica da interpretaccedilatildeo coloca uma teoria polecircmica ou pelo menos curiosa Segundo Schuumlssler os antropoacutelogos tecircm assinalado que nem todas as culturas e liacutenguas conhecem dois sexosgecircneros e que mesmo em culturas ocidentais isso eacute coisa da modernidade ldquoDurante milhares de anos considerava-se comum que as mulheres tivessem o mesmo sexo e os mesmos oacutergatildeos genitais que os homens estando a diferenccedila no fato de se acharem no interior do corpo ao passo que os dos homens estavam no exterior A vagina era entendida como um pecircnis interior os laacutebios como prepuacutecio o uacutetero como saco escrotal e os ovaacuterios como testiacuteculosrdquo (cf Schuumlssler 2005 p9)

134

oraccedilatildeo contida nesse texto pode ser apenas redacional visto que tal oraccedilatildeo ocorreu

no cenaacuterio do Getsecircmani onde Jesus estava naquele momento sem os seus

disciacutepulos portanto eles natildeo estavam laacute para ouvir e descrever o momento de sua

agonia Ela concorda com a teoria de que a narrativa desse cenaacuterio poderia ser

apenas um soliloacutequio dramaacutetico de Jesus ou entatildeo uma repeticcedilatildeo da oraccedilatildeo de

Joseph (4Q372 1 23-24) onde ele suplica para que Deus natildeo lhe abandone Para

D`Angelo a narrativa de Marcos tende muito para o lado emotivo procurando

dessa forma colocar Jesus como o verdadeiro Filho de Deus e grande maacutertir da

histoacuteria do judaiacutesmo conforme os livros Sabedoria de Salomatildeo e 3 Macabeus (D`

Angelo 1992b p159) Em outro artigo (Abba and ldquoFatherrdquo Imperial Theology and

the Jesus Traditions) D Angelo reafirma seu argumento sobre o cenaacuterio do

Getsecircmani dizendo ldquoEsta eacute uma cena da revelaccedilatildeo entre Jesus e leitor os

disciacutepulos estatildeo laacute para relatar a agonia de Jesus Assim a atribuiccedilatildeo de abba a

Jesus natildeo tem muacuteltipla atestaccedilatildeo Na verdade ocorre apenas em uma cena que

quase certamente deriva da atividade literaacuteria de Marcosrdquo (D` Angelo 1992a p614-

615)

Segundo D Angelo o uso do Abba pela Igreja primitiva natildeo eacute uma heranccedila dos

ensinamentos de Jesus como acreditam alguns teoacutelogos De acordo com essa

autora o uso do Abba na Igreja primitiva era mais uma questatildeo de ecircxtase provocada

por uma accedilatildeo do Espiacuterito Santo do que uma referecircncia agraves palavras ditas por Jesus

Para a autora se o Abba usado nas igrejas tivesse uma ligaccedilatildeo direta com Jesus

entatildeo seriamos obrigados a aceitar que outras palavras de origem aramaica como

Maranatha tambeacutem seriam provenientes dos discursos do mestre (D Angelo 1992a

p 615)

Um outro argumento defendido por D` Angelo eacute que o uso da expressatildeo ldquoAbba

Pairdquo no Evangelho de Marcos eacute anti-imperialista visto que o Imperador de Roma

considerava-se o pai da paacutetria (parens patriae pater patriae) preferindo ser

reconhecido com o tiacutetulo de pai ao tiacutetulo de rei designaccedilatildeo esta que natildeo soava bem

aos ouvidos do povo romano (D` Angelo 1992a p623-630) De fato de acordo com

DAngelo foi concedido a Juacutelio Cesar ainda em vida o tiacutetulo de ldquopaterldquo (pai) o qual

buscava estabelecer uma relaccedilatildeo de devoccedilatildeo (pietas) entre ele e o povo romano

Isso se deve ao fato que o uso de pater subentende o impeacuterio como uma grande

famiacutelia na qual o imperador funciona como um paterfamilias e cuja autoridade eacute

baseada em sua habilidade de reger todo o povo romano como seus clientes Ainda

135

seguindo com essa visatildeo imperialista observa-se que Augusto adquiriu oficialmente

o tiacutetulo pater patriae no ano 2 aC

No intuito de descrever o caraacuteter dos imperadores DAngelo aponta que

Cassius Dio o qual acreditava que os tiacutetulos supracitados representavam mais

afeiccedilatildeo do que autoridade tratou augustus e pater como duas denominaccedilotildees

atraveacutes das quais os imperadores primeiro permitiam a si mesmos serem

distinguidos do resto dos cidadatildeos substituindo o tiacutetulo ldquoreirdquo por tais designaccedilotildees

cujas essecircncias soariam de maneira menos ofensiva aos ouvidos dos romanos De

acordo com Dio o termo pater concorda com a ideia que o Imperador tem a mesma

autoridade que um pai tem sobre seus filhos escravo e outros sujeitos

Por outro lado dois filoacutesofos estoicos do primeiro e segundo seacuteculos nos

ajudam a entender como o tiacutetulo pai concedido ao Imperador poderia sofrer uma

reaccedilatildeo com o pensamento teoloacutegico da eacutepoca Para Dio Crisoacutestomo ldquoDeus como

pai racionaliza o governo imperial e convida-o a adotar um coacutedigo de eacutetica de

clemecircncia e de responsabilidaderdquo ao descrever que o bom rei eacute aquele que prefere a

labuta aos prazeres e as riquezas Tal rei prefere o tiacutetulo ldquopairdquo ao referir-se agrave sua

capacidade de provisatildeo Jaacute Epiacuteteto ldquousa a paternidade de Deus para oferecer uma

dignidade alternativa para aqueles que natildeo tecircm acesso ao poder dentro da ordem

imperialrdquo Esses dois autores satildeo importantes para o cristianismo primitivo e para o

judaiacutesmo natildeo pela influecircncia que exerceram sobre eles mas porque respondem as

mesmas realidades poliacuteticas

Um outro argumento de DAngelo com relaccedilatildeo ao uso de Abba por Jesus eacute

que o mesmo natildeo pode ser explicado apenas como uma relaccedilatildeo afetiva entre pai e

filho mas tambeacutem reflete a praacutetica carismaacutetica da comunidade na qual Marcos

estava inserido assim como ocorreu nas igrejas de origem grega da Galaacutecia e em

Roma (Gl 46 Rm 816) onde o uso da palavra ldquoAbbardquo eacute fruto da accedilatildeo do Espiacuterito

Santo

D`Angelo justifica essa tese a partir do fato que segundo ela J Jeremias

tomou como base em seus estudos apenas os textos provenientes de oraccedilotildees e

ainda excluiu textos em grego os quais ele considerou serem oraccedilotildees feitas pela

comunidade e natildeo como fruto de uma accedilatildeo do indiviacuteduo (D`Angelo 1992b p151)

Para dar suporte a esse argumento D`Angelo faz referecircncia ao texto de 4Q372 1

originalmente escrito em hebraico no qual Joseph invoca a Deus chamando-o de

meu Pai ldquoMeu Pai e meu Deus natildeo me abandone nas matildeos das naccedilotildees faccedila

136

justiccedila por mim o aflito e pobre pereciacutevel Vocecirc natildeo precisa de nenhuma pessoa ou

naccedilatildeo para lhe ajudar seu dedo eacute maior e mais forte do que qualquer coisa no

mundordquo (Vermes 2004 p566) Ela ainda cita outros textos onde Deus eacute invocado

como Pai (3 Mac 6 3-4 78 Sab 143 1 QH 935)

Embora alguns desses textos tenham sido escritos em grego quando lidos no

contexto de 4Q372 1 e 4Q460 5 DAngelo observa os textos hebraicos e gregos

mostram que era uma praacutetica comum tanto da comunidade quanto do indiviacuteduo

dirigir-se a Deus em oraccedilotildees chamando-o de Pai (D`Angelo 1992b p 152) Dessa

forma ela entende que o conceito de Deus como Pai sempre esteve presente no

judaiacutesmo antigo influenciando toda a literatura judaica da eacutepoca (DAngelo 1992a

618)

Face aos argumentos acima expostos D Angelo conclui que a originalidade

do uso do Abba natildeo pode ser atribuiacutedo a Jesus com toda certeza e mais ainda

segundo ela seria menos provaacutevel que Jesus usasse o termo pai numa linguagem

familiar do que em resistecircncia agrave ordem do Impeacuterio romano

Finalmente considerando os argumentos apresentados a partir da

interpretaccedilatildeo feminista Thompson conclui que tanto Jesus como a Igreja primitiva

natildeo deram origem ao conceito de Deus como Pai Aleacutem disso apesar das

caracteriacutesticas do Pai no Israel antigo serem utilizadas para falar de Deus como Pai

elas nunca estiveram ligadas a uma essecircncia masculina de Deus mas servem como

exemplo de feacute misericoacuterdia justiccedila humildade bem como responsabilidade

individual e corporativa e obediecircncia a Deus para a comunidade (Thompson 2000

p 19)

137

7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Naquela noite em sonhos Joseacute teve um aviso O Evangelista natildeo diz em que cidade ou lugar a famiacutelia se encontrava Natildeo devia ser do lado norte e talvez fosse mesmo nas montanhas do sul fora do alcance das batidas policiais de Herodes Suponhamos que fosse na estrada do Heacutebron Com a cabeccedila reclinada sobre uma pedra o carpinteiro adormece E eis que o anjo do Senhor (aquele mesmo que lhe confiara a guarda de Jesus) lhe diz - Levanta-te e toma o menino e sua matildee e foge para o Egito e demora-te laacute ateacute que eu diga porque Herodes haacute de procurar o menino para o matar Joseacute desperta Sobre os montes luzem os primeiros alvores da madrugada Prepara o alforje avisa Maria para que tambeacutem se prepare porque longa eacute a viagem [] Joseacute sela o jumento acomoda Maria e o Menino sobre o animal Toma o bordatildeo E parte A viagem prolonga-se por muitos dias pela Idumeacuteia pelas montanhas de Sin pelo deserto de Sur Uma tarde sobre as colinas a cavaleiro do Nilo avistam as piracircmides de Miquerinos de Queacutefren e de Queops grandiosas e silenciosas no ar trecircmulo de mormaccedilo Junto agrave piracircmide de Miquerinos olhando para o abismo do ceacuteu e para a amplitude do deserto uma cabeccedila gigantesca de pedra tem indefiniacutevel indecifraacutevel expressatildeo Eacute a grande esfinge [] Os egiacutepcios viam naquele rochedo a imagem humana do sol Os gregos viam naquela imagem o monstro proponente de problemas insoluacuteveis (Salgado 1985 p67-69)

Em tom poeacutetico Plinio Salgado narra a histoacuteria da fuga do menino Jesus e

seus pais para o Egito conforme o texto do Evangelho de Mateus que diz ldquo[] eis

que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonhos a Joseacute e lhe disse Levanta-te toma

o menino e sua matildee e foge para o Egitordquo (Mt 213) Salgado usa o mito da esfinge74

para relacionar com o mito de Eacutedipo onde o enigma eacute decifrado pelo personagem

Eacutedipo75 Para Salgado Eacutedipo decifrou a Esfinge mas natildeo decifrou o homem que

continua nas trevas

A pergunta do monstro na estrada de Tebas refere-se ao homem ldquoQual eacute o animal que pela manhatilde anda com quatro pernas ao meio-dia com duas e agrave

74

Segundo Plinio Salgado o mito da Esfinge rezava que enquanto ser vivente misto de leatildeo e de mulher a Esfinge andava pelas estradas de Tebas devorando os viajantes que eram incapazes de responder as suas perguntas enigmaacuteticas Contudo o monstro morreria quando algueacutem decifrasse seu enigma

75 O mito de Eacutedipo pode ser visto com detalhes no claacutessico Antiacutegona de Soacutefocles

138

tarde com trecircsrdquo Eacutedipo responde ldquoEacute o homemrdquo e respondendo revela que toda a preocupaccedilatildeo da Esfinge eacute o gecircnero humano Decifrar a Esfinge eacute a preocupaccedilatildeo do homem Decifrar o homem eacute a preocupaccedilatildeo da Esfinge (Salgado 1985 p67-69)

Conforme Salgado a trageacutedia de Eacutedipo eacute a trageacutedia do homem Somente

Jesus decifraraacute a ldquoEsfinge-Homem e iluminaraacute todo o universordquo

A histoacuteria da humanidade eacute repleta de trageacutedias desde as suas origens Jaacute

nos primeiros capiacutetulos do Gecircnesis vemos Abel sendo viacutetima de seu irmatildeo Caim 76

Diante de tantas cataacutestrofes o homem procura refuacutegio em um ser sobrenatural que

possa amenizar seu sofrimento e dar-lhe alguma explicaccedilatildeo para o porquecirc de tantos

desalentos nesta vida

A relaccedilatildeo do ser humano com o Ser sobrenatural faz parte da cultura de todos

os povos antigos como vimos no primeiro capiacutetulo deste trabalho Isso nos mostra o

anseio do ser humano em busca do seu criador Observamos que para os povos

antigos Deus era visto como um ancestral divino ou seja o homem era visto como

descendente da divindade Essa relaccedilatildeo entre o homem primitivo e a deidade nos

povos antigos era sempre marcada por sangue violecircncia guerra entre os deuses

ateacute o surgimento do homem como vimos no mito sumeacuterio babilocircnico em que o

homem proveacutem do sangue de um deus decaiacutedo chamado Kingu

Em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem na narrativa do Gecircnesis verificamos que o

proacuteprio Deus eacute quem modela e cria o homem a partir do barro (argila) O homem

entatildeo recebe a vida atraveacutes do sopro divino Essa relaccedilatildeo tatildeo proacutexima entre criatura

e criador eacute descrita nas Escrituras de uma forma progressiva desde o Gecircnesis ateacute

os escritos neotestamentaacuterios Agrave medida que Deus se revela ao homem este se

aproxima mais dele Aos patriarcas Deus eacute o El Shaday (Todo Poderoso) mas jaacute a

Moiseacutes ele revela o seu proacuteprio Nome Ele eacute o ldquoEu Sourdquo o Yahweh

Mesmo Yahweh sendo um Deus proacuteximo Ele ainda eacute visto no Antigo

Testamento como figura de um Senhor Criador o Todo Poderoso que luta e peleja

por Israel mas que ao mesmo tempo em que defende seu povo pune-os e os

entrega nas matildeos dos inimigos quando esses se desviam dos seus mandamentos

J Jeremias sabiamente observa que no Antigo Testamento a relaccedilatildeo de Israel com

Deus natildeo eacute vista como o relacionamento de pai para filho principalmente por parte

76

Cf Gn 4 1-16

139

do indiviacuteduo Deus sempre se apresenta como o Pai do rei ou entatildeo como o Pai da

naccedilatildeo Mesmo que Pai seja uma das muitas metaacuteforas para Deus como afirma

Goshen-Gottstein dificilmente podemos contestar a tese de J Jeremias uma vez

que uma clara invocaccedilatildeo de Deus como Pai feita por algum indiviacuteduo no Antigo

Testamento eacute difiacutecil de ser encontrada

Em relaccedilatildeo ao Novo Testamento observamos que Jesus que conviveu em

uma sociedade muito pobre carregada de preconceitos viu na expressatildeo Abba a

forma por excelecircncia para projetar nela o modelo de uma verdadeira e iacutentima

relaccedilatildeo entre filho e pai O fato de Jesus ter sofrido preconceitos como em sua

infacircncia adolescecircncia e ateacute na vida adulta por causa da sua filiaccedilatildeo humana natildeo o

impediu de demonstrar o quanto a sua relaccedilatildeo com o Pai divino era estreita e isso

estava acima de todos os preconceitos concebidos dentro de uma sociedade cheia

de costumes rigidamente observados a ponto de natildeo mais compreenderem o

verdadeiro sentido do amor a Deus e ao proacuteximo conforme era a verdadeira

vontade de Deus expressa nos ensinamentos do mestre da Galileia

Embora Joseacute tenha assumido a paternidade de Jesus isso natildeo foi suficiente

para impedir o preconceito contra ele em relaccedilatildeo a sua filiaccedilatildeo humana Contudo

quando Bruce Chilton potildee a questatildeo relacionada agrave possibilidade de Jesus ter sido

considerado um Mamzer a partir da interpretaccedilatildeo do texto do Evangelho de Joatildeo 8

40-41 onde os Judeus fazem a seguinte afirmaccedilatildeo a Jesus ldquo[] natildeo nascemos da

prostituiccedilatildeo temos um soacute pai Deusrdquo podemos tambeacutem olhar esse texto a partir de

uma interpretaccedilatildeo de uma Cristologia alta ou seja aqui o debate entre Jesus e os

judeus tem como ponto principal a filiaccedilatildeo divina onde Jesus se coloca como o

Verbo divino preexistente Poreacutem eacute bem verdade que isso natildeo anula o pensamento

de Chilton em relaccedilatildeo agrave possiacutevel discriminaccedilatildeo sofrida por Jesus levando em

consideraccedilatildeo o contexto a eacutepoca a cultura e o ambiente social em que Jesus viveu

durante o periacuteodo da infacircncia ateacute a vida adulta

Aleacutem disso podemos dizer com Martins Terra que a vida de Cristo eacute a

Revelaccedilatildeo do Pai que pode ser demonstrada nas palavras no silecircncio e nos

sofrimentos de Jesus Martins Terra observa que essa relaccedilatildeo eacute plena de intimidade

como pode ser visto nas palavras do proacuteprio Mestre ldquoAquele que me viu viu o Pairdquo

(Jo 149) e da mesma forma o Pai tambeacutem pode dizer assim do Filho ldquoEste eacute o

140

meu Filho muito amado ouvi-o (Lc 935)rdquo Notamos aqui que a relaccedilatildeo de Jesus

com o Pai eacute desde a eternidade onde o Verbo divino jaacute estava presente com o Pai

na criaccedilatildeo de todas as coisas (Martins Terra 2009 p283-284)

Para Martins Terra assim como para J Jeremias o Abba de Jesus eacute o

modelo da perfeita relaccedilatildeo dos filhos de Deus com o Pai do ceacuteu Assim como Jesus

relacionou-se com o Pai divino seus disciacutepulos tambeacutem o poderatildeo desde que se

aproximem e ldquoamem a Deus acima de todas as coisas e o proacuteximo como a si

mesmordquo Eacute na oraccedilatildeo do Pai Nosso que Jesus ensina como os disciacutepulos devem

orar em uma estreita ligaccedilatildeo com o Abba conforme nos descreve Martins Terra

[] Os disciacutepulos ficam impressionados com a oraccedilatildeo de Jesus Ele chamava a Deus de Aba (Mc 14 36) que natildeo eacute um termo usado nas oraccedilotildees judaicas Aba eacute um diminutivo aramaico que significa ldquopapairdquo Eacute a expressatildeo de uma crianccedila dirigindo-se a seu progenitor Jesus natildeo pode desde o inicio revelar o misteacuterio da Santiacutessima Trindade e de sua pessoa divina Esse misteacuterio natildeo tinha sido revelado no AT Foi invocando a Deus como Aba ldquomeu Pairdquo que Jesus foi levantando aos poucos o veacuteu que ocultava o misteacuterio da trindade e do seu relacionamento filial uacutenico com o Pai (Martins Terra 2009 p283-284)

Aleacutem disso de acordo com James D G Dunn podemos dizer com confianccedila

que Jesus experimentou uma iacutentima relaccedilatildeo com Deus expressa atraveacutes da oraccedilatildeo

Ele se relacionou com Deus caracteristicamente como Filho e Pai e o sentido dessa

relaccedilatildeo com Deus era tatildeo real tatildeo amorosa e tatildeo atraente que Jesus sempre se

dirigiu a Deus dessa maneira chamando-o de Pai ldquoAbba foi o grito que veio mais

naturalmente aos laacutebios de Jesusrdquo (Dunn 1997 p26)

Segundo J Jeremias para compreendermos o Abba como a ipsissima vox de

Jesus eacute preciso observar a origem de sua liacutengua materna Conforme observamos

no decorrer desta pesquisa haacute alguns pesquisadores que defendem que a liacutengua

corrente nos dias de Jesus era o hebraico e por sinal tambeacutem falada por Jesus

Esse argumento natildeo eacute seguido pela maioria dos especialistas do Novo Testamento

bem como por J Jeremias A liacutengua falada por Jesus era do ldquoramo ocidental da

famiacutelia linguiacutestica aramaicardquo J Jeremias para embasar sua tese menciona

respeitaacuteveis nomes como J Wellhausen Jouumlon Matthew Black e principalmente G

Dalman (Jeremias 2008 p32-33) que ldquoapresentou a prova baacutesica para este fatordquo

Tendo Dalman ainda como referecircncia J Jeremias afirma que natildeo eacute possiacutevel mais

141

duvidar que o aramaico ou para ser mais preciso ldquoo dialeto galileu do aramaico

ocidentalrdquo era a liacutengua materna de Jesus

As evidecircncias aramaicas satildeo evidentes nos ditos de Jesus por outro lado

praticamente natildeo se encontra palavras em hebraico ditas por ele nem mesmo o

ldquoAmenrdquo ou ldquoEliacuterdquo uma vez que essas palavras foram absorvidas pelo aramaico

(Jeremias 2008 p36) J Jeremias admite que em alguns poucos casos

encontramos palavras hebraicas nos laacutebios de Jesus mas sempre em situaccedilotildees

solenes como as palavras proferidas na uacuteltima ceia em liacutengua sacra

A importacircncia do aramaico como a primeira liacutengua de Jesus encontra-se na

possibilidade de nos aproximarmos o quanto possiacutevel do modo de falar do mestre

ou seja voltarmos ldquoagraves caracteriacutesticas da dicccedilatildeo de Jesus que natildeo possuem

nenhuma analogia na literatura da eacutepoca e que por isso podem ser consideradas

como marcas da ipsissima vox de Jesusrdquo (cf Jeremias 2008 p 68-79) Entre as

particularidades de Jesus concernentes agrave fala encontramos as seguintes

peculiaridades conforme J Jeremias

1 - As paraacutebolas de Jesus satildeo exclusividade dele natildeo encontradas em toda a

literatura judaica do Antigo ou do Novo Testamento quer canocircnica ou apoacutecrifa Nas

paraacutebolas de Jesus natildeo se encontra nenhuma faacutebula ou seja ele nunca coloca

uma videira ou figueira para falar Suas paraacutebolas (mesmo contendo metaacuteforas do

Antigo Testamento) tinham por maior finalidade atingir o coraccedilatildeo pulsante do ouvinte

e tratar de assuntos relacionados ao dia-a-dia da vida do ser humano

2 - Os ditos enigmaacuteticos como o proferido sobre Joatildeo Batista ldquoo maior entre

os nascidos de mulher eacute ao mesmo tempo o menor no reino de Deusrdquo (Mt11 11)

eram incomuns nos dias de Jesus seja entre os mestres ou ateacute mesmo dos

primeiros cristatildeos que natildeo inventaram tais ditos mas apenas os tornaram mais

evidentes

3 ndash A expressatildeo ldquoreino de Deusrdquo eacute escassa na literatura judaica antiga

recebendo um aumento apenas na literatura rabiacutenica Contudo nos Evangelhos natildeo

soacute o aumento mas a forma que Jesus usa as expressotildees relacionadas ao reino de

Deus satildeo profundamente marcantes para se caracterizar como a ipsissima vox de

Jesus conforme encontramos em textos como Mateus 519 11 12 Marcos 115

Lucas 112 1231 1721 etc

142

4 ndash O termo Ameacutem como jaacute foi mencionado nesta pesquisa (54) no Antigo

Testamento era usado como foacutermula solene para confirmar ldquouma palavra de benccedilatildeo

maldiccedilatildeo ou desejordquo Nos laacutebios de Jesus o termo eacute usado para testificar as

proacuteprias palavras do falante e natildeo de outrem J Jeremias conclui sobre o ameacutem

com as seguintes palavras ldquoA novidade desse uso linguiacutestico sua estrita restriccedilatildeo

agraves palavras de Jesus e o testemunho unacircnime de todas as camadas da tradiccedilatildeo

evidenciam que nos deparamos com uma inovaccedilatildeo linguiacutestica nos laacutebios de Jesusrdquo

5 ndash E por uacuteltimo temos o Abba proferido por Jesus Abba eacute a mais importante

palavra pronunciada por Jesus quando invocava a Deus com o Pai eacute o modo

preferido de Jesus para referir-se ao Pai Dificilmente poderiacuteamos interpretar o Abba

de Jesus como faz Malina comentando o Abba natildeo eacute paizinho de James Barr

Como tem sido demonstrado por James Barr (1988) a palavra aramaica Abba natildeo significa ldquopaizinhordquo como no hebraico moderno Tanto na traduccedilatildeo do Novo Testamento (Abba = ho pater Mc 14 36 Rm 815 Gl46) quanto de honra No patriarcado ele implica tambeacutem distacircncia Deus natildeo eacute um paizinho mas um patrono Na religiatildeo poliacutetica pregada por Jesus o deus de Israel eacute o patrono de Israel (cf Malina 2004 p145)

Compreende-se portanto que o Abba proferido por Jesus eacute ipsissima vox

Julgar J Jeremias alegando que ele considerou o linguajar de Jesus infantil natildeo eacute

cabiacutevel dentro do contexto de toda a sua teologia J Jeremias defende-se dessa

acusaccedilatildeo que a princiacutepio ateacute poderia ser justa uma vez que ele admite que jaacute

chegou a acreditar que Jesus tenha assumido a linguagem das criancinhas quando

se dirigia a Deus Pai como ele mesmo admite ldquoeu tambeacutem acreditei nissordquo

contudo agora natildeo mais jaacute que nas proacuteprias palavras desse teoacutelogo ele assim

admite ldquoa constataccedilatildeo de que jaacute desde os tempos preacute-cristatildeos os filhos e filhas

adultos se dirigiam a seus pais chamando-os de Abba proiacutebe esta limitaccedilatildeordquo

(Jeremias 2008 p121)

Portanto no Abba de Jesus natildeo haacute espaccedilos para patriarcados exclusivistas

uma vez que o proacuteprio ldquoFilho de Deusrdquo na sua condiccedilatildeo de homem acolheu os

pobres religiosos doentes e marginalizados pela sociedade cobradores de

impostos e tambeacutem acolheu o que a sociedade machista da eacutepoca mais discriminou

as mulheres Talvez seja uma precipitaccedilatildeo eliminar a linguagem metafoacuterica da

palavra Pai ou mesmo deixar de observar nela o conceito anti-imperialista ou ateacute

mesmo a patronagem No entanto natildeo podemos deixar de priorizar que para Jesus

143

Abba era uma palavra sagrada era ldquoa revelaccedilatildeo Deus porque Deus se tinha dado a

conhecer a ele como seu Pairdquo (Mt 11 27) um ldquoPairdquo acolhedor que quis ajuntar os

seus filhos como a galinha ajunta os seus os seus pintos debaixo das suas asas (cf

Lucas 1334)

A paternidade de Deus conforme J Jeremias natildeo eacute algo natural tambeacutem

natildeo eacute uma posse de todos os seres humanos mas reserva-se apenas aos

disciacutepulos uma vez que Jesus nunca dirigiu a expressatildeo ldquovosso Pairdquo a algueacutem que

estivesse fora do rol dos seus seguidores A filiaccedilatildeo faz parte do reino (basileia) de

Deus Uma das exigecircncias para fazer parte de tal reino eacute tornar-se como uma

crianccedila (Mt 183) Essa filiaccedilatildeo eacute escatoloacutegica eacute um dom salviacutefico de Deus (J

Jeremias 2008 p 271-273)

O Pai apresentado por Jesus eacute bom e cuida dos seus lsquopequeninosrsquo jaacute que

ele sabe do que eles realmente precisam (Mt 6 8 32) A invocaccedilatildeo de Deus como

Abba eacute mais forte do que todas as adversidades e anguacutestias mesmo que Satatilde

ldquoqueira peneirar o disciacutepulordquo (Lc 22 31) o Pai do ceacuteu ldquoeacute mais forte do que todos os

problemas enigmas e anguacutestias e sabe do que precisam os filhos do reino (J

Jeremias 2008 p276) O ponto central de toda essa exposiccedilatildeo sobre o Abba

consiste no ldquovoltar a ser como uma crianccedilardquo O significado disso estaacute em tornar-se

dependente do Pai voltar para os braccedilos do Pai (cf Lc 15 11-32) depositar total

confianccedila nele enfim resumimos isso nas palavras de J Jeremias ldquovoltar a ser

crianccedilardquo significa reaprender a dizer Abba (J Jeremias 2008 p 238) como diz J

Jeremias ldquo[] Abba eacute percebido como um grande privileacutegiordquo Ter a coragem de

chamar Deus de Pai proveacutem da conscientizaccedilatildeo da filiaccedilatildeo satildeo os filhos que podem

dizer Abbardquo (J Jeremias 2008 p293)

Jesus de Nazareacute o Filho de Deus o homem que dividiu a histoacuteria em antes e

depois dele mudou os rumos da humanidade para sempre Amado e odiado

apregoado e perseguido mas nunca esquecido Verificamos ao longo deste trabalho

as mais variadas teorias sobre ele ora como um mago um judeu marginal um

profeta um bastardo um judeu praticante ou apenas uma figura lendaacuteria

embelezada por seus seguidores Schuumlssler Fiorenza relata uma histoacuteria rabiacutenica

em que Moiseacutes visita o rabino Akiva Ao ouvir os infindaacuteveis discursos sobre a Toraacute

Moiseacutes teria perguntado ldquoquem escrevera aquelas coisas grandiosas que ele jamais

144

tomara conhecimentordquo Schuumlssler Fiorenza (2005 p1) relacionando a histoacuteria

rabiacutenica sobre a Toraacute com as milhares escritas sobre Jesus ela levanta a seguinte

questatildeo ldquoSe Jesus tal como Moiseacutes voltasse a terra lesse todas as suas biografias

e frequentasse o Jesus Seminar ou fosse agrave reuniatildeo anual da Society of Biblical

Literature tambeacutem se maravilharia e perguntaria tomado de assombro Quem eacute

essa pessoa de quem estatildeo falandordquo

A busca pelo Jesus da histoacuteria levou a tantos extremos mas com certeza

acrescentou inuacutemeros fatos ou ateacute mesmo suposiccedilotildees que enriqueceram o

conhecimento que temos hoje sobre Jesus e os Evangelhos Eacute inegaacutevel o fato de

que os Evangelhos natildeo satildeo histoacuteria no sentido moderno e que os disciacutepulos natildeo

tinham a mesma pretensatildeo ou necessidade de relatar os fatos em detalhes visto

que viveram em um mundo cultura e eacutepoca totalmente diferente da nossa cultura

ocidental Portanto quanto mais perto quisermos chegar do Jesus humano mais

perto devemos nos aproximar da cultura do seacuteculo I

Sobre o divisor de aacuteguas entre J Jeremias e Bultmann ou seja se devemos

buscar pelo Jesus da histoacuteria ou pelo Cristo querigmaacutetico nada melhor do que

concluir com as palavras do proacuteprio J Jeremias

A boa nova sobre Jesus e o testemunho da feacute da igreja primitiva estatildeo indissoluvelmente ligados Natildeo podemos isolar nenhuma dessas magnitudes Pois o evangelho de Jesus se converte em histoacuteria morta sem o testemunho de feacute da igreja (a qual estaacute transmitindo sem cessar esse evangelho e o estaacute confessando e testemunhando sempre novamente) Sem Jesus e seu evangelho a igreja natildeo pregava mais que uma ideia um teorema Quem isola a pregaccedilatildeo de Jesus termina no ebionismo Quem isola o querigma da igreja primitiva termina no docetismo (Jeremias 2006 p 42)

Portanto descrever sobre Jesus realmente natildeo eacute tarefa faacutecil como parece

ser Como afirmar que ele era analfabeto ou entatildeo um rabi letrado da Galileia As

evidecircncias internas como vimos levam-nos a pensar em um homem que escrevia

lia e interpretava as Escrituras Por outro lado como nos mostra Crossan as

evidecircncias externas levam-nos a pensar em um camponecircs sofredor e iletrado como

a maioria dos galileus ou entatildeo dos judeus subjugados ao terriacutevel e impiedoso

Impeacuterio romano principalmente a Galileia diretamente afetada pelo deacutespota

Herodes Antipas

145

O importante eacute que Jesus com ou sem instruccedilatildeo douto ou indouto

conseguiu com a graccedila do Pai dos Ceacuteus deixar aos homens de todas as eacutepocas o

exemplo de um servo sofredor de amor ao proacuteximo de renuacutencia e acima de tudo

de um homem que cumpriu com toda a vontade e propoacutesitos de Deus Pai para a

salvaccedilatildeo da humanidade O apoacutestolo Joatildeo o descreveu como o Verbo o Logos

preexistente que existe antes de todas as coisas uma vez que as mesmas foram

criadas por ele

146

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