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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Edevaldo Rocha A releitura da apokatástasis na teologia contemporânea a partir do pensamento de Andrés Torres Queiruga Mestrado em Teologia São Paulo 2019

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Edevaldo Rocha

A releitura da apokatástasis na teologia contemporânea a partir do

pensamento de Andrés Torres Queiruga

Mestrado em Teologia

São Paulo

2019

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Pontifícia Universidade Católica De São Paulo

PUC-SP

Edevaldo Rocha

A releitura da apokatástasis na teologia contemporânea a partir do

pensamento de Andrés Torres Queiruga

Mestrado em Teologia

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo como exigência

parcial para a obtenção do título de

MESTRE em Teologia Pastoral, sob a

orientação do Prof. Dr. Antonio

Manzatto

São Paulo

2019

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Edevaldo Rocha

A releitura da apokatástasis na teologia contemporânea a partir do

pensamento de Andrés Torres Queiruga

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo como exigência

parcial para a obtenção do título de

MESTRE em Teologia Pastoral, sob a

orientação do Prof. Dr. Antonio Manzatto

Aprovado em: __/__/____

BANCA EXAMINADORA _____________________________________________

_____________________________________________

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AGRADECIMENTOS

A Deus, minha rocha, onde encontro o meu

refúgio, meu escudo, força de minha

salvação (Sl 17,3).

Agradeço a toda minha familia. Com seu

apoio e incentivo favoreceram a conclusão

desta etapa de minha carreira acadêmica.

Agradeço também à ADVENIAT pelo

incentivo em forma de desconto durante

toda a jornada deste curso.

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RESUMO

A doutrina da apokatástasis é um tema da teologia patrística que permanece presente nos debates teológicos nos dias atuais. Orígenes de Alexandria, homem de extrema erudição, é considerado o grande protagonista no desenvolvimento sobre o conceito de apokatástasis devido a ressignificação atualizada para o seu contexto histórico. O objeto desta dissertação é a apokatástasis, conceito que era linguagem corrente da antiguidade, sobretudo no mundo grego, seja nos ambientes profano, filosófico e teológico. Esta polissemia referente a apokatástasis será relevante na análise em todos ambientes citados, especialmente entre alguns Padres da igreja que usavam como comunicação da mensagem salvífica o idioma grego, neste contexto insere-se Orígenes (sec. III), filósofo e exegeta que possui o intuito pastoral de comunicar a mensagem cristã conforme a ortodoxia na sua comunidade, sobretudo entre os intelectuais que pendiam para as argumentações das correntes gnósticas da época. Nesta circunstância vê-se um dado fundamental para a releitura da apokatástasis, por estar vinculado a prática de fé, ou seja, teologia e vida de mãos dadas, uma situação que é viva na Igreja contemporânea graças ao impulso dado pelo Concílio Vaticano II. A teologia de Andrés Torres de Queiruga corresponde a proposta conciliar, devido sua reflexão teológica ser assumidamente uma teologia “a partir de baixo”, encarnada na realidade. Este é o ponto crucial da teologia queiruguiana para a releitura da apokatástasis, que tem uma proposta universal e dialogal diante de uma sociedade plural e movida pela crítica a-religiosa. O itinerário para essa releitura perpassa pela dialética de um Deus que é amor e a autonomia da criação, praticamente os mesmos pressupostos da teologia origeniana. Neste itinerário entre a teologia da apokatástasis origeniana até a queiruguiana, cabe nesse trabalho, identificar o processo contínuo da Revelação, que sempre se atualiza em favor da salvação humana. Seja no âmbito histórico ou transcendente, evidentemente sem rejeitar a liberdade humana, sendo capaz de apontar uma teologia prática que diante desafios do mundo pós-moderno possa por meio da esperança em Cristo ser estímulo a todo ser humano realizar-se plenamente na superação do mal e, com isso, alcançar salvação universal tão querida por Deus.

Palavras-chave: Apokatástasis; salvação; releitura; autonomia; mal.

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ABSTRACT

The doctrine of apokatastasis is a theme of patristic theology that is present in today's theological debates. Origins of Alexandria, man of extreme erudition, is considered the great protagonist in the development on the concept of Apokatástasis due to a resignification for its history. The object of this dissertation is an apokatastasis, a concept that is a common language of antiquity, especially in the Greek world, in the profane, philosophical and theological environments. This polysemy about apokatástasis is relevant in an analysis in any environment in a text, especially between some Padron’s of the world communicating to message salvific in the language, which context in the species (sec. III), philosopher and exegete that has the pastoral intention of communicating a Christian message according to the orthodoxy of his community, especially among the intellectuals who appear as arguments of the Gnostic currents of the time. This is found in the fundamental of a relegation of apokatastasis, by be linked to the practice of faith, that is, theology and life of hands given, a situation that is alive in the contemporary conveillance along the concordance of the Vatican Council II. A theology of Andrés Torres de Queiruga corresponds to a proposal from below, embodied. This is the point of the fundamental the dialogue of a plural society and moved by the religious critic. The itinerary for this rereading pervades the dialectics of a God who is love and an autonomy of creation, since the presuppositions of the original theology. This itinerary between the vocabulary of apokatastasis origeniana to the Queiruguiana, enchanting, the identifier continuous, and the software monitoring, that always the updates of the human monitoring. Whether it is in the historical or transcendent scope, evidently without rejecting human freedom, being able to mark a theology that is faced with the postmodern world, it may be through hope in Christ that a human being is fully realized in overcoming evil and, thereby exposing universal so dear to God.

Keywords: Apokatastasis; salvation; rereading; autonomy; evil.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 09

1. A COMPREENSÃO DE APOKATÁSTASIS ................................................. 16

1.1. Introdução ................................................................................................. 16

1.2. Fenômeno intercultural e a inculturação da fé nos primórdios do

cristianismo .............................................................................................. 17

1.2.1. A linguagem no processo de inculturação da fé cristã no mundo

helênico ...................................................................................................... 20

1.2.1.1. A hermenêutica do termo apokatástasis no ambiente profano ..............22

1.2.1.2. Apokatástasis no estoicismo ................................................................ 24

1.2.1.3. A apokatástasis no meio estóico como processo metafísico ................ 27

1.2.2. A apokatástasis no versículo bíblico At 3,21 ............................................... 29

1.2.2.1. O termo apokatástasis no Antigo Testamento ..................................... 32

1.3. A compreensão da apokatástasis em alguns Padres da

Igreja .......................................................................................................... 33

1.3.1. Inácio de Antioquia e a apokatástasis ......................................................... 34

1.3.2. Justino e a aposkatástasis .......................................................................... 36

1.3.3. A apokatástasis em Teófilo de Antioquia .................................................... 38

1.3.4. A apokatástasis em Irineu de Lião .............................................................. 39

1.3.5. Apokatástasis em Clemente de Alexandria ................................................ 41

1.3.5.1. A gnose clementina ............................................................................. 43

1.3.5.2. Etapa histórica da apokatástasis ......................................................... 48

1.3.5.3. Etapa escatológica da apokatástasis ................................................... 50

1.4. Conclusão ................................................................................................ 52

2. APOKATÁSTASIS: PERSCPECTIVA A LUZ DE

ORÍGENES .................................................................................................. 54

2.1. Introdução ................................................................................................. 54

2.2. O perfil teológico de Orígens ................................................................... 55

2.3. As correntes gnósticas mais influentes no período histórico de

Orígenes .................................................................................................... 58

2.3.1. O Marcionismo e o anti-judaísmo ............................................................... 59

2.3.2. A escola Valentiniana ................................................................................. 60

2.3.3. Basíledes ................................................................................................... 61

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2.4. Orígenes, soluções viáveis na obra Tratado sobre os príncípos para as

questões gnósticas .................................................................................. 62

2.4.1. Refutação ao Marcionismo ......................................................................... 63

2.4.2. O método alegórido como método de refutação contra Valentim e

Basílides ..................................................................................................... 64

2.5. O vocábulo apokatástasis como expressão de linguagem na reflexão

teólogica de Orígenes .............................................................................. 66

2.6. Orígenes e a perspectiva Cristológica da apokatástasis ...................... 69

2.6.1. A teologia origeniana da encarnação como processo apokatástico .......... 72

2.7. A perspectiva antropológica da apokatástasis em Orígenes

fundamentado em sua noção de preexistência ..................................... 74

2.8. O conceito tricotômico antropológico de Orígenes no processo

apokatástico ............................................................................................. 76

2.8.1. O Espírito ................................................................................................... 78

2.8.2. A Alma ........................................................................................................ 78

2.8.3. A Corporalidade ......................................................................................... 80

2.9. A perspectiva soteriologica na apokatástasis em Orígenes ................. 82

2.9.1. A purificação humana pelo fogo divino como processo apokatástico ......... 85

2.9.2. Apokatástasis como conceito de salvação universal: uma proposta de

esperança em Orígenes ............................................................................. 88

2.10. Conclusão ................................................................................................. 91

3. A RELEITURA DA APOKATÁSTASIS EM ANDRÉS TORRES DE

QUEIRUGA .................................................................................................. 94

3.1. Introdução ................................................................................................. 94

3.2. O perfil teológico de Andrés Torres de Queiruga .................................. 95

3.3. Apokatástasis em Queiruga .................................................................... 99

3.3.1. A releitura da apokatástasis em Queiruga ................................................ 102

3.4. Atributos contemporâneos da apokatástasis na teologia de Queiruga

.................................................................................................................. 104

3.4.1. Deus cria por amor .................................................................................. 106

3.4.2. A Revelação divina queiruguiana ............................................................ 111

3.4.2.1. A Revelação a partir da maiêutica histórica ........................................ 113

3.4.2.2. A ultimidade da Revelação ............................................................... 115

3.4.3. A soteriologia queiruguiana ..................................................................... 117

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3.5. Conclusão ............................................................................................... 126

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 129

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 134

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INTRODUÇÃO

Para se tratar sobre a teologia da apokatástasis é incontestável a referência

à Origenes sobre esse discurso teológico. Vale ressaltar que Orígenes não foi o

primeiro e nem o ultimo a tratar deste tema, evidentemente a relevância dele sobre a

apokatástasis se dá pela sua genialidade intelectual que culminou na sua grande

obra , que devido uma sistematização eficiente e inédita na teologia ,“O Tratado sobre

os princípios”, tratou extensivamente sobre a apokatástasis, porém de forma

especulativa sem se impôr como uma verdade irredutível. Neste contexto pode ser

somado o destaque de Orígenes diante deste assunto a sua condenação póstuma,

que nunca impediu do tema apokatástasis voltar aos debates teológicos.

Outro ponto a ser levado em consideração referente a Orígenes diante de sua

abordadagem sobre a doutrina da apokatástais é a sua preocupação pastoral que

envolvia os desvios da fé transmitida pelos apóstolos: “Ora, uma vez que há muitos

desacordos entre aqueles que professam a fé em Cristo”.1 É neste cenário da vida

cristã, no periodo histórico origeniano, na qual Luigi Padovese destaca o papel dos

padres na patrística que desenvolveram uma teologia orgânica em vista de manter

firme a essência da mensagem cristã e a primordialidade de tornar essa mensagem o

mais próxima possivel de todas as pessoas. Isso demonstra que o discurso teológico

na patrística é de cunho pastoral, ou seja, é um serviço prestado a comunidade de

acordo com as exigências de seu tempo. Portanto a atividade pastoral sacerdotal

neste período estava pautado no ministério do anúncio.2

Neste contexto de uma teologia atrelada a vida de fé em contraposição a uma

teologia que posteriormente será mais teórica, Clodovis Boff confirma a concepção de

Luisi Padovese, quando diz que entre os Padres da Igreja da era patrística havia uma

unidade simples na sua teologia. Mesmo que houvesse vários temas a serem

tratados, era tudo realizado numa profunda unidade, a essência desta teologia estava

na “visão cristã do mundo”, denominado por Doctrina Christiana.3

1 ORÍGENES. O tratado sobre os princípios. Trad. João Eduardo Basto Lupi. São Paulo: Paulus, 2012, Pref. 2. 2 PADOVESE, Luigi. Introdução à teologia patrística. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 38-39. 3 BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 610.

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A reflexão sobre a fé é dinâmica por estar inserida na história humana e dentro

desta perspectiva o Concílio Vaticano II é fundamental. Andrés Torres de Queiruga

afirma na sua análise sobre Concílio após 50 anos que o vê como o mais universal

devido sua consciência da historicidade da revelação e de suas interpretações, por

isso ressalta dois aspectos fundamentais que estão implicados um ao outro, sendo o

primeiro a valorização que o Concílio deu sobre o sentido histórico, que ao seguir as

pegadas do Papa João XXIII no desejo de um aggiornamento, avistou a possibilidade

desta realização devido a própria necessidade que a história exigia. O outro aspecto

é universalização que esta ligado a cultura, a convivência humana e inclusive a

aproximação com as demais religiões.4

Nesta dialética entre patrística e Concílio Vaticano II fica evidenciado a

unidade entre teologia e vida, ou seja, o segundo evento histórico aqui demonstrado

resgatou a unidade teologica que havia nos primórdios. Clodovis Boff confirma esta

ação conciliar do Vaticano II na retomada do compromisso social no discurso

teológico, promovendo a vinculação entre fé-vida, mas agora a partir de uma

sociedade já modernizada que reconhece a sua própria autonomia.5

Ao considerar que teologia e vida estão intimamente unidas cabe visibilizar,

no contexto da vida atual, os desafios desta teologia, ou seja, a difícil missão da igreja

de proclamar a salvação que Deus nos oferece em Cristo, porém com uma linguagem

dialogal sem prescindir dos seus valores de fé, portanto, com a capacidade de

comunicar a ação salvífica sem nenhum tipo de acepção de pessoas já que diante de

Deus somos todos iguais.

O papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelli Gaudium, dedica um

capítulo inteiro com o intuito de animar a comunidade de fé aos desafios na ação

evangelizadora.6 Isso envolve estar vigilante sobre os sinais dos tempos, e cuidar para

que não haja precipitação em soluções desumanizadoras, o que requer sempre

4 QUEIRUGA, Andrés Torres de. A teologia e a Igreja depois do Vaticano II. In: BRIGHENTI, Agenor; HERMANO, Rosario (orgs.). A Teologia da Libertação em prospectiva: Congresso Continental de Teologia, Conferências e Painéis. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013. 5 BOFF, 2015, p. 614. 6 O Capítulo II da Evangelli Gaudium com cinquenta e nove parágrafos é dedicado aos desafios da evangelização seja ad intra ou ad extra eclesial.

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discernimento e, também, a opção por aquilo que é bom, para capacitar os fiéis a

fazerem as escolhas que condizem com o projeto do Reino de Deus.7

Enumerar os grande desafios na sociedade hodierna alongaria muito este

trabalho, mas, dentro daquilo que é a preocupação da Igreja como adversidade no

mundo atual, pode-se resumir nos males que ferem a dignidade humana, a injustiça

social e econômica que afeta milhões de pessoas, a intolerância seja ela racial, de

gênero ou religiosa assim como sistemas opressores seja ele econômico, político ou

tecnológico. Evidentimente outro desafio é o cuidado da casa comum, que está sendo

desrespeitada com uma exploração massante e sem nenhum pudor.

Estes fatos da vida moderna apontam para os desafios e novos horizontes

para a Igreja de hoje. Nestas circunstância a teologia contemporânea tem papel

fundamental em desenvolver uma linguagem teológica que conste o desejo do

Concílio Vaticano II, ou seja, que leve em consideração o sentido histórico, isso

equivale reconhecer a autonomia do sujeito e a autonomia do mundo e suas leis,

questões marcantes da modernidade, pode-se acrescentar também o desejo de uma

comunicação da mensagem salvífica de Deus de modo mais universal que aponta

para a aproximação e diálogo distintivamente do modelo apololgético, afirmando

aquilo que é próprio da a essência cristã que é a comunhão. Esse método de

linguagem teológica facilita a harmonização com as outras religiões e com os não

crentes.

O teólogo galego Andrés Torres de Queiruga aborveu e compreendeu muito

bem a ideia conciliar. O fato deste concílio ter aberto as janelas e as portas da igreja

para o exterior favoreu o desbloqueio e a recuperação de um caminho em que a Igreja

estava muita atrasada e longe da caminhada atual. Acrescenta, também, que a atual

conjuntura da sociadade moderna possui uma dinamicidade muito veloz que produz

uma mutação sociocultural frenética.

Esse desafio frente ao que é novo com certeza é pertubador e gera medo,

mas isso é inerente a toda novidade. Essa tarefa desafiadora ele nomeia de “tarefa

supersaturada”, que cabe agora a partir da fé e com o respeito as autonomias da

criação se apresentar diante do mundo unido no diálogo, no amor e na esperança.

7 EG, 51.

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Todo esse aparato proposto por Andrés Torres de Queiruga é abundante na sua

linguagem teologica.8

Diante da novidade ele – nos grandes temas da reflexão teológica – desafia

a repensar, a recuperar, não para jogar forar um passado histórico da fé cristã, mas

para ajudar a Igreja caminhar junto com a sociedade moderna e, a partir de uma

proposta teológica coerente de um Deus que é ato puro de amor e que por isso

respeita a liberdade da sua criatura, responder ao seus dilemas.

O eixo norteador deste trabalho é hermenêutico, e o objetivo específico é

compreender a apokatástasis, que perpassa por uma multiplicidade de dados

fazendo-se necessário uma releitura.

O primeiro dado sobre a releitura da apokatástasis tem origem na

preocupação do Concílio Vaticano II de buscar um aggiornamento enquanto Igreja,

mas tendo como instrumento as fontes do cristianismo, ou seja, a partir dos “Padres

da Igreja”. Assim, portanto, se obter a inspiração de reformar-se, dado que “a reflexão

de fé dos padres é marcadamente bíblica, litúrgica, crístico-eclesial, inculturada e

plural”.9

Outro dado importante é a polissemia do termo oriundo de um ambiente

helenista, visto que a origem da fé cristã se deu dentro da cultura semítica,

possibilitando a formação de uma comunidade judaico-cristã em seu primeiro

momento eclesial. Como foi dito acima a questão da inculturação será fundamental

para a compreensão deste vocábulo.

Acrescenta-se outro dado para o objetivo da pesquisa sobre a apokatástasis

por meio do novo sentindo que Orígenes vai empregar para o termo, praticamente

formulando uma doutrina, todavia com carater apenas especulativo. Ele parte de uma

teologia orgânica que era próprio da patrística (cosmogonia, cristologia e soteriologia)

com intuito de responder aos cristãos intelectuais de seu tempo que estavam se

desviando do ensino apostólico.

8 QUEIRUGA, In: BRIGHENTI; HERMANO (orgs.), 2013. 9 LIBANIO, J. B.; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. 5.ed. São Paulo:

Loyola, 2005, p.118.

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Ao constatar-se a incompreensão posterior sobre a reflexão teológica de

Orígenes no que se refere a apokatástasis gerou-se-lhe uma futura condenação e, de

certa maneira, possibilitou-se uma polaridade entre os Padres sobre sua teologia.

Aqueles que simpatizaram com a ideia não deixaram-na cair no ostracismo e, como

foi dito, ao Concílio Vaticano II ao ativar o interesse sobre a teologia dos padres da

Igreja, Orígenes foi um dos escritores cristãos da patrística cuja teologia voltou a ser

analisada, inclusive a apokatástasis.

Mais um dado importante é o fato de Orígenes entender a apokatástasis como

o fim da criação em Deus, já que teve origem nele mesmo, porém toda a diversidade

existente na criação é fruto do livre-arbítrio. Portanto, a dialética bondade divina e

livre-arbítrio é presente no discurso teológico origeniano e, pelo fato de ser um

discurso especulativo, faz crer que essa noção de apokatástasis para Orígenes não

era uma questão infalível, senão apenas uma esperança.

Todos esses dados auxiliam na justificativa da escolha de Andrés Torres de

Queiruga na releitura da apokatástasis, visto que tem uma linha teológica “a partir de

baixo”, da realidade concreta da história. Pois, enxerga no mundo religioso uma crise

frente a crítica a-religiosa, ainda impregnada de mitologismos e de uma heteronomia

que, numa sociedade pós-moderna em que prevalece a autonomia do indivíduo, gera

forte oposição. Em meio a esse panorama da consciência religiosa atual, a gênese

teológica de Andrés Torres de Queriruga de um Deus que é amor e da autonomia da

sua criação é o lugar para uma releitura ou uma hermenêutica da apokatástasis.

Na metodologia a ser seguida será conveniente, no primeiro capítulo,

compreender a evolução semântica do termo apokatástasis a partir do fenômeno da

inculturação, que devido a expansão do cristianismo para o ambiente helenista – em

que a lingua predominante era o grego – não irá se abster-se de neologismo para

comunicar a mensagem salvífica contida na pregação cristã.

Será importante a identificação do vocábulo apokatástasis no ambiente

profano e filosófico, já que principalmente na filosofia deu-se o ponto crucial da

aproximação do cristianismo com o mundo helênico. Ainda considerando o avanço do

cristianismo no mundo helenizado, já havia a tradução veterotestamentária nesse

ambiente– a denominada Septuaginta– ponto de referência para análise do termo. O

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vocábulo também será averiguado no novo testamento, que já nasce com a escrita

grega, onde o termo aparece explicitamente num contexto único, ligado à perspectiva

profético-escatológico em Atos 3,21.

Tendo como fundamento o ambiente grego e o uso da Escritura no mesmo

idioma, será pertinente a análise de alguns padres que fizeram uso do grego no

desenvolvimento de sua reflexão de fé, verificando a renovação semântica e a

diferenciação do sentindo da expressão apokatástasis entre eles.

O segundo capítulo será dedicato todo à teologia de Orígenes, devido ser ele

o ponto emblemático para o debate sobre a apokatástasis. Será preciso entender a

sua historicidade individual e o momento adverso que vive a comunidade cristã,

sobretudo com o avanço das heresias provindas da própria eclesialidade de seu

tempo absorvida pelo gnosticismo. Dentro desta perspectiva certamente será

compreendido com mais clareza o seu discurso teológico. A obra “O tratado sobre os

principios” será o alicerce para analisar os procedimentos próprios e a linguagem na

compreensão origeniana sobre a apokatástasis, no qual permitirá visualizar as

diferentes perspectivas teológicas sobre o tema, sendo elas: cristológica,

antropológica e soteriológica.

No terceiro capitulo a releitura da apokatástasis diante de uma sociedade pós-

moderna – em que o grau de criticidade é elevado devido a sua autoconsciência de

liberdade e que rejeita a religião muitas vezes marcada pelo seu carater fanático,

fundamentalista, intransigente e heterônoma– Andrés Torres de Queiruga, um teólogo

que tem em sua metodologia um compromisso hermenêutico, preocupa-se com uma

linguagem teológica sempre contextualizada e universal que não está direcionada

apenas aos cristãos, mas também para as outras religiões e para os não crentes. O

seu princípio hermeneutico é a história da salvação, da qual tem-se a participação de

um Deus que é amor e por isso quer salvar a sua criação respeitando suas leis e

autonomia. Esta é a chave para releitura da apokatástasis.

Por fim, será necessário percorrer alguns eixos teológicos fundamentais da

teologia queiruguiana que são a Criação, a Revelação e a Salvação e elucidar sua

dinâmica hermenêutica de estar sempre repensando, recuperando e aprofundando

os dados da fé. No íntimo dessas categorias teológicas queiruguianas veremos a

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sua preocupação com uma linguagem teológica mais universal com intuido de

aproximar-se de crentes e não crentes. Neste contexto da teologia de Andrés Torres

de Queiruga está incorporado a releitura da apokatástasis, que ao afirmar que o

desejo de Deus em plenificar toda sua criação sem prescindir da sua liberdade

aproxima-se da apokatastasis origineana, na qual o maior ponto de encontro entre as

duas teologias é a esperança, fato presente na preocupação do Papa Francisco: “O

meu objetivo é humilde: fazer ressoar uma vez o chamado `santidade, procurando

encarná-la no contexto atual, com seus riscos, desafios e oportunidades”.10

10 GE 2.

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1. A COMPREENSÃO DE APOKATÁSTASIS

1.1. Introdução

A análise do termo apokatastásis, do ponto de vista da história da palavra,

deve ter como pressuposto a missão cristã que progride num universo helenista com

um contexto cultural já bem desenvolvido, vinculado com uso cotidiano do vocábulo

em diversas esferas culturais no meio profano. O uso consciente do termo entre os

padres da patrística semanticamente vai se transformando no decorrer da história.

Essa adaptação da linguagem cristã assinala o processo de inculturação da fé nos

primórdios da Igreja (sec. I – III), resultado do encontro da fé cristã e a sociedade

greco-romana. Este processo, por ser dinâmico, afetou as relações sociais e a cultura

ambiente de modo que o cristianismo assumiu categorias da cultura helênica – tal

como a filosofia – como expressão da reflexão da fé numa aproximação mais

eloquente junto aos helenistas, seja aqueles da camada popular mas sobretudo os

mais cultos de seu tempo. É dentro deste contexto, que a linguagem teológica assumiu

os termos e expressões helênicas.

Visto este universo, o passo seguinte é analisar a apokatástasis como objeto

linguístico-conceitual, e apontar o sentido em que a expressão é interpretada no

ambiente helenístico profano, especialmente na linguagem filosófica estóica, matriz

da transformação semântica do termo entre os padres, especialmente os alexandrinos

Clemente e Orígenes.

Diante dessas bases culturais do encontro entre o cristianismo e a cultura

grega, a Sagrada Escritura não ficou isenta da influência cultural helênica, a exemplo

disso a LXX – uma tradução grega do Antigo Testamento usada pelos judeus da

diáspora – que foi amplamente utilizada no meio cristão. Esse fato deve ser

considerado neste capítulo, que ao analisar o vocábulo na LXX, onde se tem como

princípio a raiz hebraica “sūb” que tanto no contexto profano quanto religioso

apresenta diversos significados. Da mesma forma no Novo Testamento, que nasce

totalmente absorto na cultura grega, o termo aparece como substantivo uma única

vez, somente em At 3, 21, critério para que seja a única passagem a ser analisada.

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Será de suma importância a abordagem do termo entre os padres da Igreja,

seguindo um critério cronológico e especialmente entre os escritores gregos. Como

trata-se de uma evolução semântica da expressão apokatástasis, o uso do vocábulo

pelos pensadores cristãos que carregam uma bagagem cultural helênica não apenas

assumem os elementos linguísticos gregos como também dão um novo significado,

que posteriormente torna-se um termo técnico na linguagem teológica, carregado de

significado e muito ligado às questões escatológicas.

Alexandria, um dos grandes polos helênicos do conhecimento na época, terá

papel preponderante na evolução semântica do vocábulo apokatástasis na linguagem

teológica. Clemente, um dos protagonistas da escola de Alexandria, precisa ser

analisado mais aproximadamente, já que sua linguagem teológica traz novas

ressignificações ao termo apokatástasis. Devido sua profunda experiência mística,

entende a apokatástasis a partir do amor divino, que age na vida humana como um

processo de desenvolvimento que inicia-se no tempo presente e transcende para

esfera ultraterrena.

1.2. Fenômeno intercultural e a inculturação da fé nos primórdios do

cristianismo

A cultura possibilita uma hermenêutica da vida em sociedade a partir dos

costumes, linguagem, arte, economia, moral e crença. Esses fatores exprimem a

identidade e a estrutura de um ambiente de relações humanas de uma determinada

época e local, que também podem ser considerados fruto de um processo de

desenvolvimento social. O Concílio Ecumênico Vaticano II afirma que a “cultura’

indica, em geral, todas as coisas por meio das quais o homem apura e desenvolve as

múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo (GS, 53)”. Denota-se daí o

caráter dinâmico intrínseco a cultura em conjunto com o reconhecimento da

particularidade de um povo de onde resulta o aspecto plural.

Num universo de pluralidade cultural é inevitável o encontro entre culturas,

que devido as relações humanas não permitem a incomunicabilidade das experiências

e nesse intercâmbio há a adaptação e assimilação de uma nova forma de pensar,

crer, comportar e conviver, configurando uma nova identidade. Esse processo vivo é

sublinhado por M. F. Miranda:

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“Pois a cultura constitui um processo vivo sempre a produzir, utilizar e transformar os modelos em questão. Portanto faz-se mister estudar a interrelação dinâmica entre símbolos e práticas para entender a vida social cotidiana, econômica ou religiosa”.11

Essa definição da cultura como processo vivo colabora na análise no encontro

do helenismo com o cristianismo nos primeiros séculos da era cristã. Esta confluência

é resultado da expansão do anúncio do Evangelho, que ultrapassa o ambiente judaico

e chega ao universo cultural helênico.

Esta penetração do cristianismo na civilização grega não está desprovida de

implicações na vida social, e relacionar esse fenômeno como um choque

intercultural12 não é um tarefa simples devido ao fato de ser um encontro entre religião

e cultura. Nesse caso o cristianismo não está limitado a uma cultura justamente por

seu anúncio perpassar a experiência, uma situação vivencial que não está desconexa

de um contexto histórico e de um grupo social, isso em razão de que a história da

salvação acontece na história.

Se tomarmos como referência o cristianismo como cultura cristã, poderíamos

estar falando de uma cultura que se aproxima do helenismo com seus valores e

conceitos. Esta aproximação pode ser vista como fenômeno intercultural, até porque

a cultura helênica possui seus valores e conceitos, mas vale salientar que o

cristianismo não é uma cultura concreta. Assim afirma Suess:

“Mas a “cultura cristã” não é uma cultura concreta. Ela só pode ser imaginada como conjunto de valores e referenciais evangélicos que inspiram os cristãos no diálogo com os povos e/ou grupo sociais e suas respectivas culturas”.13

A partir desta perspectiva o panorama cultural da evangelização segue

outros moldes e, por isso, não pode ser entendido como um padrão cultural, mas,

retomando o que já foi dito anteriormente, pelo fato da cultura ser um processo

dinâmico, há uma perfilhação entre cultura local – mundo helênico - e o cristianismo,

11 MIRANDA, Mário F. Inculturação da fé: Uma abordagem teológica. São Paulo: Loyola, 2001, p. 45. 12 Mario Miranda define a interculturação como: “O fato de a fé cristã se encontrar sempre já inculturada leva alguns teólogos a falar de um diálogo entre a cultura cristã do missionário e a não cristã dos povos a serem evangelizado. Também poderíamos mencionar entre diversas culturas cristãs no interior da Igreja universal. Daí nasceu o termo interculturação, que pode ser considerado duplamente. Num sentido diacrônico implica um diálogo retrospectivo com as culturas que gestaram a atual forma de fé cristã. Num sentido sincrônico significa não só uma interação entre as várias Igrejas particulares, mas também entre grupos culturais distintos no interior da Igreja Local”. Ibidem, p. 39. 13 SUESS, Paulo. Introdução à teologia da missão: convocar e enviar: servos e testemunhas do Reino. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 157.

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de modo que ambos são afetados. Nesse caso a cultura helênica não fica isenta do

acolhimento da Boa Nova, e a religião cristã, ao assumir elementos desta cultura,

corrobora para que projeto salvífico de Deus se torne realidade concreta. Todo esse

encadeamento é desdobrado na compreensão de uma nova expressão, que é a

inculturação da fé. Miranda formula muito bem este processo:

“Inculturação da fé [...] não significa primordialmente manifestar a fé cristã com novas expressões e práticas, e próprias de outra cultura. Trata-se mais propriamente de ver e viver (cultura) de um modo novo (cristão). Este evento progressivo tanto acarreta transformações na cultura como oferece novos insights para a fé. A interação afeta os dois componentes da expressão. De um lado, símbolos e costumes de tradição cultural adquirem novos sentidos; de outro, o cristianismo descobre em si mesmo novos aspectos até implícitos e tácitos”.14

Podemos assegurar a inculturação da fé como evento fenomenológico na

medida em que o cristianismo extrapola as fronteiras judaicas e entra em contato com

a tradição grega. Este fenômeno, que é resultado da identidade missionária cristã,

está presente desde a era apostólica, em que o uso da linguagem grega nos escritos

do Novo Testamento atestava a influência helênica; e na medida em que o

cristianismo se propaga na geração pós-apostólica que não só faz o uso da linguagem

grega, mas conceitos e categorias helênicas são herdadas, formando o pensamento

cristão. Segundo Jaerge,15 essa evolução acelerada acontece pelo fato da

comunidade judaica da diáspora, já helenizada, ser o elo entre cristãos e helênicos no

primeiro instante do anúncio da Palavra de Deus.

Nesta síntese entre o helenismo e o cristianismo está implicado uma

cosmovisão de gênese filosófica, própria da cultura grega, que é assimilada pelo

pensamento cristão, cuja compreensão de cosmogonia, escatologia e moral, está

primariamente e profundamente marcada pelas categorias judaicas-palestinas – neste

aspecto vale observar o judaísmo helênico como fio condutor para cosmovisão grega .

Esta releitura da cosmovisão, a partir dos dados filosóficos, não deixa imune o

ensinamento transmitido pelos apóstolos que diacronicamente se expande. Correntes

mais dependentes da filosofia grega não ficarão livres do desvio da doutrina

transmitida pelos apóstolos, assim, vale salientar que esse ambiente favorece

14 MIRANDA, 2001, p. 58. 15 WERNER, Jaeger. Cristianismo Primitivo e paideia grega. Trad. Daniel da Costa. Santo André: Editora Academia Cristã, 2014, p. 13.

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múltiplas interpretações no campo teológico. Dom Figueiredo esclarece muito bem

este contexto:

As circunstâncias favorecem a coexistência duma grande diversidade de opiniões para questões de grande importância […]. Isso não é porque não tivessem um patrimônio de verdades consideradas essenciais, mas sim porque expô-las se gozava de uma grande liberdade teológica. A preocupação de defini-las e de chegar a uma estrita uniformidade só se manifestará progressivamente e em relação a um número relativamente restrito de doutrinas que eram objeto de discussão.16

Libanio J. também afirma o amplo campo hermenêutico a partir das

categorias filosóficas que contribuem para o desenvolvimento da reflexão teológica

posteriormente sem negar que esse movimento inculturado pelo cristianismo não

estará isento de erros.17

Não há dúvidas que a cultura helênica foi absorvida pelo cristianismo, mesmo

que algumas correntes cristãs helênicas envolvidas com filosofia grega tenham se

distanciado da ortodoxia, o movimento cristão oposto que também recorre ao uso da

filosofia com proveito em seu favor na defesa da fé. Este aspecto filosófico, seja

aquele usado por aqueles que futuramente serão conhecidos como heréticos ou por

aqueles que defendem a ortodoxia, será significativo como metodologia teológica no

seu aspecto epistemológico no futuro.

1.2.1. A linguagem no processo de inculturação da fé cristã no mundo helênico

Dado que o cristianismo implanta-se no meio cultural helênico, ocorre a

assimilação de novas formas de linguagem e de cultura, circunstância que promove o

uso e o desenvolvimento do conjunto de elementos da filosofia. Esta influência

inevitável é considerável no século II junto aos Padres da Igreja, que traduzirão os

dados da Revelação para a realidade cultural helênica, moldando novos rostos e

mentalidades, mantendo o “fermento evangélico nos aspectos existencial, práxico e

intelectivo”.18

16 FIGUEIREDO, Dom Fernando Antônio, Curso de Teologia Patrística I: A vida da Igreja primitiva (séculos I e II). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 18. 17 LIBANIO; MURAD, 2005, p. 123. 18 Ibid., p.116.

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No âmbito intelectivo é necessário analisar que na medida em que acontecia

a difusão da religião cristã no meio social greco-romano os cristãos tornavam-se um

grupo social heterogêneo devido sua postura religiosa ser divergente da religião

tradicional, causando preocupação nas autoridades estatais e no meio popular.

Lezenwerger, na sua análise histórica da fé cristã no início do período apologético,

constata a depreciação e críticas aos seguidores de Cristo.

“A difamação social, moral e intelectual caracteriza, pois, os espectros da propaganda cristã contra os sequazes do cristianismo, essa querela no curso do século II transpõe as meras opiniões para o âmbito literário suscitando defensores da fé (apologistas) que refutarão através da atividade literária filosófica contra os autores pagãos, do alto de sua consciência helenista (paideia)”.19

Sobre o conceito de paideia, W. Jaerger considera que, no encontro entre o

mundo helenista e o cristianismo, a tradição filosófica vivida culturalmente pelos

primeiros é assimilada nos primórdios da literatura cristã de modo que esta atitude

dos escritores cristãos, além de estimular o diálogo com a paideia grega, cooperava

na compreensão de que a paideia clássica estava sendo convertida na paideia de

Cristo.20

Neste universo intelectual de formação literária e cultural, entre cristãos e

pagãos, devemos considerar uma adaptação da expressão de linguagem grega –

componente dos elementos culturais greco-romanos – para linguagem teológica,

tendo em vista a solução de questões eclesiais que, segundo Libanio, é uma

experiência bem-sucedida de inculturação teológica.21

Suess descreve a ambivalência da linguagem escrita, no processo de

inculturação da fé, tanto no encontro da religião cristã com a cultura grega quanto para

os dias atuais, absorvidos de uma multiplicidade cultural. Essa ambivalência é fruto

da própria complexidade da linguagem, que parte, neste caso, da experiencia

religiosa. Portanto, evento vivido concretamente, característica própria da

contingência, que ao passar para uma linguagem mais conceitual, erudita, acadêmica

afasta-se da sua origem contingencial.

19 LENZENWEGER, Josef et al. História da Igreja católica. Trad. Fredericus Stein. São Paulo: Loyola, 2006, p. 26-27. 20 WERNER, 2014, p. 22. 21 LIBANIO; MURAD, 2005, p. 123.

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Evidenciar a complexidade da linguagem no processo de inculturação da fé

no mundo helênico ajuda na compreensão histórica da evolução semântica das

palavras, o que não deixou de ser fator de preocupação dos escritores cristãos diante

da elite intelectual grega, que buscava por meio da filosofia as respostas para as

questões existenciais do homem. Essa preocupação estava ligada a necessidade de

salvaguardar a ortodoxia e manter a unidade eclesial, pois, mesmo havendo o caráter

intelectual e formal, a ação desses escritores cristãos era de cunho pastoral.

Diante desse modelo de ação pastoral, não podemos esquecer de que o uso

das categorias filosóficas no diálogo com a paideia grega não isenta a literatura cristã

de utilizar termos próprio da linguagem filosófica - suas formas e significados –, fruto

de uma convivência social originada da inculturação do Evangelho. Porém, alguns

termos ou conceitos que vão sendo assumidos pelos escritores cristãos, no decorrer

histórico, vão sofrendo transformações que, no ambiente da reflexão teológica, são

ressignificados com a intenção de observar a fidelidade a ortodoxia.

O termo apokatástasis, expressão que nas linhas vindouras será analisada, é

um termo próprio da linguagem cultural helênica e que, no processo de inculturação

da fé no ambiente grego, não estará livre de uma hermenêutica condicionada ao

ambiente intelectual da reflexão teológica. Isso demonstra que o uso da expressão

também está vinculado a outros ambientes do saber, tal como a astronomia, medicina

e filosofia.

1.2.1.1. A hermenêutica do termo apokatástasis no ambiente profano

O ponto de partida para a reflexão sobre o termo apokatástasis deve ser

visualiza-lo no âmbito profano, fora do contexto filosófico e teológico. Porém não é

uma análise etimológica pormenorizada, mas para auxiliar numa compreensão do uso

regular deste vocábulo na escrita grega e confirmar que a linguagem (oral ou escrita)

– seja ela na cultura grega ou em qualquer outra, a semântica de uma palavra – sofre

ressignificações conforme o tempo e o local.

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No campo linguístico profano o termo apokatástasis objetivamente limita-se

ao sentindo de um retorno a um estado original (restauração)22, faz parte da

linguagem ordinária e se aplica em um grande número de casos, seja no âmbito

médico, jurídico, político e astronômico.

André Mehat,23 ao analisar o vocábulo apokatástasis, leva em consideração

que o significado de uma palavra sempre está mudando, que a ideia própria do

significado de cada palavra não é constante. Ao referir-se ao uso corrente do termo,

ele dá um exemplo de uso médico, "se eu tiver um membro deslocado o médico tenta

fazer a apokatástasis da articulação", ou seja, o deslocamento de qualquer membro

do corpo e o retorno ao seu local original. O uso do vocábulo apokatástasis dá a ideia

deste retorno, ou mesmo restauração ao estado anterior.

Ainda dentro no ambiente médico sobre o termo apokatástasis, Ilaria Ramelli

expõe o comentário de Apolônio de Citium24 referente De Articulis (Articulações) de

Hipócrates, "é necessário fazer a restauração (apokatástasis) dos membros acima

mencionados da seguinte maneira", e no mesmo comentário, "a tensão na direção

certa produz a restauração (apokatástasis) dos membros para seu lugar original”.

Outro exemplo, citado por A. Mehat, é o de alguém que "tenha sido exilado justa ou

injustamente de sua terra natal e recebe a permissão legal para retornar ele é

reintegrado por apokatástasis em sua terra natal", novamente o uso do termo dá a

ideia de restabelecimento, reintegração a um estado anterior e, para finalizar, outra

demonstração do uso do termo no cotidiano profano, dá-se no âmbito militar, numa

situação de um soldado que foi expulso de seu posto e depois é reintegrado por

apokatástasis. Ilaria Ramelli testifica também no ambiente militar o uso do termo com

22 Em alguns dicionários o verbete ‘apokatástasis’ ao que se refere no campo linguístico profano, fazem uma referência objetiva sem detalhamento, limitam-se em afirmar que o vocábulo aparece no âmbito médico, jurídico, político e astronômico, essa definição sucinta varia de dicionário para dicionário

conforme o enfoque estabelecido. Ver, BERNADINO. Angelo di (Org.). “apokatástasis”. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulus, 2002, p.128; e, BAUER. Johannes B., MARBOCK. J., WOSCHITZ. Karl M. “apokatástasis” Dicionário Bíblico Teológico. São Paulo, SP: Loyola, 2000, p. 22. 23 André Méhat, utiliza o texto das homilias de Orígenes sobre o profeta Jeremias (Jer. hom. 14,18) que dispõe a exemplificação do uso do vocábulo apokatástasis no ambiente profano. MÉHAT. André, “apokatástasis “Origen, Clemente de Alexandria, At 3:21”, in Vigiliae Christianae, Vol. X, 1956, p.196-214 – disponível em: <http://www.rivtsion.org/f/index.php?sujet_id=1552>. Acesso em: 07 out. 2017. 24 Apolônio de Citium ao Articulações, provavelmente um médico da seita empírica do século I a.C. que já intitulava Hipócrates “o divino”. REBOLLO. Regina A., O legado hipocrático e sua fortuna no período greco-romano: de Cós a Galeno. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662006000100003>. Acessado em: 07 out. 2017. p. 45-82.

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significado como o retorno à disposição original25. Diante destes exemplos fica

esclarecido que ninguém é trazido de volta pela apokatástasis, de um lugar que nunca

esteve.

1.2.1.2. Apokatástasis no estoicismo

No universo filosófico, sobretudo no período helenístico do fim do século III

a.C., grandes sistemas filosóficos já estavam disseminados no ambiente cultural

greco-romano, dentre eles o estoicismo, cuja influência será intensa no pensamento

cristão, será fundamental para a interpretação do termo apokatástasis. Bertrand

Russell salienta que o estoicismo primitivo, que tem Zenão (século III a.C.) como

fundador, possui uma doutrina materialista inspirada no cinismo e em Heráclito. Já

modificado no século II d.C., o estoicismo de Sêneca, Marco Aurélio está mais

afastado do materialismo devido a influência platônica e, por isso, dá mais valor a

doutrina ética que não é tão diferente dos primórdios e, inclusive, o que se preservou

foram os escritos do estoicismo tardio dificultando a compreensão da raiz do

pensamento estóico.26

O materialismo presente no estoicismo primitivo vem do modelo cosmológico

da antiguidade, entendido como um mundo único, ou seja, o planeta que habitamos e

todos os elementos do firmamento – planetas e astros – se harmonizam em uma

atividade contínua dentro de um todo, o ser Uno. Segundo Reale esta forma

materialista monista e panteísta dos estóicos caracteriza-se da seguinte forma:

O monismo da Estoá27 pode ser compreendido melhor se considerarmos a doutrina das assim chamadas “razões seminais”. O Mundo e as coisas do mundo nascem de uma única matéria-substrato qualificado, através do logos imanente que em si, é uno, mas é capaz de diferenciar-se nas infinitas coisas. O logos é como o sêmen de todas as coisas, é como um sêmen que

25 Ilaria Ramelli neste exemplo do uso da apokatástasis no sentido militar dá como referência de sua

pesquisa Asclepiodotus 10, 6; Aelianus Tactica 32,7 e Arrianus Tactica 25,12. RAMELLI, Ilaria. The

Christhian doctrine of Apokatástasis: a critical assessment from the New Testament to Eurigena. Leiden:

Brill, 2013, p. 5. 26 RUSSEL, Bertrand. História da filosofia ocidental – Livro 1: A filosofia antiga. Trad. Hugo Langone.

2. ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 234; 27 “Como Zenão não era cidadão ateniense, não tinha o direito de adquirir um prédio; por isso ministrava

as aulas num pórtico que fora pintado pelo pintor Polinhoto. Em grego, “pórtico” diz-se stoa. Por essa

razão, a nova escola teve o nome de “Estoá” ou “Pórtico” e seus seguidores foram chamados “os da

Estoá”, “os do Pórtico” ou simplesmente “estoicos”. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da

filosofia Antiguidade e Idade Média, vol. 1. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1990, p. 252.

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contém muitos sêmens, que os latinos traduziriam como rationes seminales (razões seminais). Uma fonte antiga diz: “Os estoicos afirmam que Deus é inteligente, fogo artífice, que metodicamente procede a geração do cosmos e que inclui em si todas as razões seminais, segundo as quais as coisas são geradas segundo o fado, Deus é [...] a razão seminal do cosmos.28

Apoiado nesse fundamento denota-se o duplo princípio da fundação do

Universo, a matéria e o Logos, sendo o segundo o princípio animador ,inteligível ,

imutável e incriado, que tudo ordena, a autêntica Alma do Universo, que não é etérea

nem espiritualizada e identificado como o verdadeiro fogo eterno, concebido como

um dos elementos do cosmos. Daí provém a materialidade do Logos, ser e corpo

idênticos, formam o Uno, portanto, se Deus é inseparável da matéria ele está em tudo,

tudo é Ele.29 Esta “Inteligência ordenadora e ao mesmo tempo energia produtora, é

ao mesmo tempo Razão Universal e Ser conhecedor, necessidade e liberdade, lei do

mundo e providência.30” Desta ação providencial do Logos, que decorre uma crença

de cunho determinista, em que se o fogo artífice é capaz de criar, existe outro aspecto,

o incinera para purificar e, segundo os estóicos, essa realidade é cíclica. Vejamos a

citação esclarecedora de Cícero sobre esta crença estóica feita por Gabriela Baião:31

O Universo, porém, não é eterno, a sua existência está ligada a ciclos cósmicos no decurso dos quais o mundo se forma e se dissolve. No término de um ciclo, ele reúne-se novamente e todos os seres, reconduzidos aos elementos, retornam ao fogo primitivo. A conflagração (“ekpýrosis") constitui um ponto fundamental neste sistema do Mundo: o mundo inteiro incendiar-se-á quando, esgotados os vapores, não puder mais ser alimentado pela terra e quando, esgotada a água, o ar não puder mais voltar a constituir-se. Desta forma, apenas o fogo restará, mas, por seu meio, operar-se-á infinitamente a renovação do mundo (palingénesis). O Universo viverá outros ciclos absolutamente idênticos, porque este fogo é eterno e invariável na sua essência.32

Ilaria Ramelli, na sua análise do termo apokatástasis, diz que este vocábulo

é utilizado no meio cristão para referir-se a cosmologia estoica do Grande Ano, que

é determinada por conflagrações (“ekpýrosis) periódicas, ou seja, a purificação e/ou

28 Ibid., p.257. 29 Ibid. 30 SESBOUÉ, Bernard. et alli. História dos Dogmas: O homem e sua salvação (séculos V – XVIII), v. 2. São Paulo: Loyola, 2003, p. 427. 31 Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1988), Mestre em Filosofia da Natureza e do Ambiente pela mesma Universidade, com tese sobre o estoicismo antigo (2006). Desenvolve o seu trabalho na área da Filosofia Antiga, dedicando-se em particular à investigação sobre as filosofias helenísticas (o estoicismo, o epicurismo, o cepticismo). Disponível em: <http://lisboa.academia.edu/GabrielaBai%C3%A3o>. Acessado em: 19 set. 2018. 32 BAIÃO, Gabriela. Teorias cosmológicas no estoicismo antigo. Apud. V. CÍCERO, de Natura Deorum,

II, 12, 32. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/dissertatio/article/view/8788>. Acessado em: 19 mai. 2018.

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a restauração pelo fogo em que todo o Cosmos está submetido, dando início a um

novo ciclo (palingénesis). Esta constatação pode ser encontrada nos escritos de

Euzébio de Cesaréia (sec. III-IV d.C.) e Nemesius (sec. IV-V d.C.).33

Pode-se concluir que dentro de um longo período, que inicia-se no século III

a.C. e adentra os primeiros séculos da era cristã, o vocábulo vétero-estóico

“palingénesis”, fruto de uma ação providencial do Uno por meio da conflagração

(ekpýrosis), passa a ser compreendido e mencionado como “apokatástasis”

praticamente entre os pensadores cristãos, ocorrendo uma evolução semântica da

palavra. É importante salientar que mesmo os pensadores cristãos, ao utilizar este

termo a partir da doutrina estóica, não estão de acordo com esta crença, questão que

veremos mais adiante.

A hermenêutica aplicada na expressão apokatástasis no meio estóico, fruto

de uma ligação entre ideia e linguagem, abre uma nova perspectiva na compreensão

do termo em que não fica limitado apenas na ordem material, mas passa a conter um

significado que faz parte do sistema metafísico. Partindo deste princípio, a

aproximação da inspiração do uso do termo na patrística será mais eficaz

principalmente no pensamento de Orígenes, que sempre remete-se ao vocábulo neste

âmbito.

33 RAMELLI, 2013, p.7.

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27

1.2.1.3. A apokatástasis no meio estóico como processo metafísico

É nesse aspecto que Carlos Andrés Blanch,34 no seu estudo sobre “A

apokatástasis, como processo diacrônico e metafísico em Clemente de Alexandria”,35

afirma que este é um tema ainda muito debatido e que entre os especialistas que

investigaram minuciosamente o vocábulo não houve unanimidade referente ao

entendimento semântico. Porém, ele não apenas considera como divergência de

interpretações, mas complemento de uma sobre a outra.

Neste artigo Carlos Andrés Blanch apresenta a argumentação de André

Méhat sobre a hermenêutica da expressão apokatástasis, fundamentada, sobre tudo,

na obra literária de Clemente de Alexandria, na sua análise fica evidente a ausência

de qualquer conotação de cunho transcendente ou metafisico, devido sua concepção

de interpretação e tradução vislumbrar sempre o restabelecimento de um local, o

cancelamento de uma dívida, êxito militar, restituição de um objeto ou liquidação de

uma conta. Desta característica presente no autor, Blanch afirma:

O problema com a interpretação de Méhat está na limitação semântica a que o termo restringe, que é totalmente injustificada. [...] Como é claro, para Méhat e aqueles que compartilham suas idéias, o significado de que apocatastasis não implica um processo estendido ao longo de um certo tempo, mas indica um evento que é consumido em um determinado momento e que, além disso, carece de significado metafísico.36

No que se refere a interpretação do conteito de apokatástasis a partir da

historicidade, avançando até o plano escatológico e metafísico, Blanch segue as

34 Investigador no Centro de Filologia Clássica e Moderna -Instituto A.P. de Ciências Humanas – Universidade Nacional de Vila Maria (ad honorem). Mestre em Ciências da Humanidade pela Universidade. Participou em grupo de pesquisa sobre: El rol de la Filología en la traducción e interpretación de textos patrísticos. La intertextualidad griega - latina en San Agustín, Gregorio de Nisa, Máximo Confesor, Dionisio Areopagita y Juan Escoto Eriúgena. Integrante del equipo de investigación dirigido por el Dr. Alfredo Fraschini. Possui Livros publicados em colaboração: El rol de la Filología en la traducción e interpretación de textos patrísticos. La intertextualidad griega - latina en San Agustín, Gregorio de Nisa, Máximo Confesor, Dionisio Areopagita y Juan Escoto Eriúgena. Integrante del equipo de investigación dirigido por el Dr. Alfredo Fraschini. Claudio Vittore (co-director), Carlos Blanch, Lidia Moreira, Juan Pablo Abraham, Cristian Cabrera. Ediciones del I.A.P.C.H., Universidad Nacional de Villa María, 2016, ISBN 978- 987-33-9574-1. / El desarrollo del concepto de apocatástasis en el pensamiento de los Padres griegos entre los siglos II al IV, Carlos Blanch, tesis de Maestría, Ediciones del I.A.P.C.H., Centro de Filología Clásica y Moderna, Universidad Nacional de Villa María, 2013, ISBN 978-987-33-4406-0. 35 BLANCH, Carlos Andrés. La apocatástasis como proceso diacrónico y metafísico en Clemente de Alejandría. Anales de Filología Clásica. Buenos Aires v. 27 n.1. p. 19-34. nov. 2014. Instituto de Filologia Clássica - Philo: UBA . Disponível em: <http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/afc/article/view/1766>. Acesso em: 23 mar. 2018. 36 Ibid., p.21

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argumentações de Paulo Siniscalco, que apreende termo apokatástasis conforme a

concepção particular de Clemente de Alexandria.

Esta sigularidade do teológo alexandrino (que não exclui a restauração ou

retorno a um estado original) está na ênfase no caráter extraterreno e escatológico

do termo porque segundo Paulo Siniscalco a preocupação de Clemente de Alexandria

é estritamente de caráter espiritual.

Siniscalco acrescenta um aspecto importante a sua análise de que Méhat não atribui importância ao elemento transcendente do conceito, segundo sua pesquisa, a apokatástasis “Expressa um conceito em que, mais do que outros, assume importância a ideia de uma instalação em uma nova condição, de uma libertação [...]”Embora ,em alguns pontos condizentes com a interpretação oferecida por Méhat, neste tópico em particular as ideias de Siniscalco se opõem fortemente àquelas do primeiro, destacando seu pleno significado metafísico A afirmação encontra seu apoio em um trabalho exegético que atenda não apenas ao significado imediato de um termo, mas também à sua contextualização.37

Ao fazer essa estratégia argumentativa de comparação sobre a hermenêutica

da palavra apokatástasis em André Méhat e P., Siniscalco esclarece a diferença entre

as duas interpretações sendo que, o primeiro destaca a carga semântica como um

fato pontual em que na maioria das vezes fica limitado a um instante determinado e

não ao restabelecimento a um estado original, desta forma fica excluído qualquer

entendimento de perspectiva de evolução metafisica e escatológica defendida pelo

segundo.

Carlos Andrés Blanch, na sua conclusão é a favor de Siniscalco, pois, considera que:

As razões que nos permitem afirmar essa qualidade de processo com a qual tanto antigos como os modernos carregaram no termo apokatástasis baseiam-se nas seguintes considerações. Como dissemos, um processo é um evento que reconhece uma extensão diacrônica na qual se desenvolve. Este desenvolvimento é possível pela ação de certos elementos que fazem parte do mesmo processo e dão o dinamismo necessário para a sua consumação. Assim, estudiosos como Daniélou e Siniscalco reconheceram vários elementos38 comuns através dos diferentes contextos em que esta palavra foi usada. Além disso, as transformações semânticas estavam sofrendo e o aumento progressivo dos seus elementos tanto em número e profundidade fatores são impossíveis para um fato cuja consumação é instantânea; logicamente, então, é razoável reconhecer que quando os antigos, pagãos ou cristãos, usavam o termo apokatástasis, eles tinham em

mente a ideia de um processo dinâmico.39

37 Ibid., p.23 39 Ibid., p.24

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Tendo como base essa análise critica de Carlos Andrés Blanch, é de suma

importância a interpretação do vocábulo com base na conotação metafísica e nas

modificações que experimenta ao longo da história. Todo esse processo não estava

isento do pensamento dos escritores gregos e, principalmente, dos escritores cristãos

que usaram como ferramenta metodológica e sistemática a filosofia, que na verdade

é puxada pela força motriz bíblica. Afinal, a Sagrada Escritura sempre foi a fonte da

práxis e espiritualidade deles. Neste contexto, não há como descartar do termo

apokatástasis o sentido atemporal.

1.2.2. A apokatástasis no versículo bíblico At 3,21

Como foi mencionado anteriormente, a interpretação do vocábulo analisado

no ambito filosófico vislumbra a restauração como um evento cíclico, restabelecendo

a forma original que foi deformada e, com isso, iniciando uma nova era. Esta

concepção, ao ser colocada a partir do horizonte bíblico, é amplamente debatida

devido a evolução do significado da palavra cambiar entre o helenismo e o judaísmo,

desembocando na concepção cristã.

O vocábulo aparece na forma verbal apokathistemi, 8 vezes no Novo

Testamento, sobretudo nos Evangelhos Sinóticos,40 e aparece uma vez como

substantivo “apokatástasis” no discurso de Pedro no livro do Atos dos Apóstolos

(3,21), numa perspectiva profético-escatológico de restauração de todas as coisas.

Uma renovação universal da terra,41 na qual Ilaria Ramelli confirma que o uso do

vocábulo em Atos 3, 21 é no sentido de restauração universal.

De fato em At 3,21 Pedro está dirigindo um discurso para os judeus de Jerusalém, quando ele anuncia os tempos da restaução universal, e a referência é para At 1,6 em que os discípulos, depois da ressurreição de Jesus, pergunta a ele quando “restaurá Israel”. Ambas as passagens devem ser lidas no contexto das expectativas judaicas de uma restauração escatológica.42

40 αποκατάσταση. In: COENEN, Lothar, BROWN Colin. Dicionário Internacional de Teologia do NovoTestamento. Trad. Gordon Crown; revisão técnica Júlio Paulo Tavares Zabatiero. 2. ed. São Paulo: Vida nova, 2000, p. 1944. 41 Apokatástasis. In: BAUER; MARBOCK; WOSCHOTZ, 2000, p. 22-23. 42 RAMELLI, 2013, p. 36.

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Von Balthasar também concorda que esta seja a unica passagem na Bíblia

que é mencionado o vocábulo na forma de substantivo, porém, destaca duas

possibilidades de tradução: a primeira, no sentido cíclico oriunda da compreensão

profana-filosófica, “até atingirem os tempos da restauração de tudo o que Deus tem

falado”, esta tradução de apokastástasis coincide fundamentalmente com o sentido

da palavra no grego profano. A segunda possibilidade de tradução, “até que ele atinja

a restauração de tudo o que Deus falou por meio dos profetas”, o teólogo suiço afirma

ser mais apropriado, devido ajustar melhor o discurso de Pedro na linha do discurso

dos profetas, matriz judaica da compreensão da apokatástasis.43 Mesmo sendo esta

passagem enigmática, conforme afirma André Mehat,44 a tentaviva de solução

realizada por Von Balthazar, a partir da ambiguidade hermenêutica, visa esclarecer

qual é a ideia que o termo carrega consigo neste versículo de Atos. Uma compreensão

cíclica que tem como base o retorno ao estado de origem ou linear temporal que

propõre a realização e plenitude humana oriunda da promessa divina?

A segunda tradução da citação dos Atos dos Apostólos parece mais adequada, uma vez que expressa melhor o sentido do discurso “Deus assim cumpriu o que tinha predito pelos profetas. O que o seu Cristo havia de padecer” (v.18), portanto, “arrependei-vos” (v.19). “Assim vêm tempos os tempos de refrigério da parte do Senhor, que enviará de novo o Jesus, o Messias que estava destinado (v.20) “O céu deve segura-lo até que chegue o momento em que tudo será restaurado (αποκαταστασις παντων), como Deus anunciou pela boca dos santos profetas”(v.21). Depois segue em primeiro lugar, o grande anúncio do Messias por Moisés (vs. 22 e 23). Então por todos os profetas até Samuel (v. 24) e, finalmente, a fala da aliança com Abraão. Em tudo se aprecia uma ideia linear, a linha do tempo deste o princípio, de Abraão, Moisés, Samuel e todos os profetas até Jesus, com a esperança certa do reino messiânico, com a culminação e a chegada dos “tempos de refrigério” e o cumprimento de todas as promessas feitas. Mas olhando bem, essa interpretação linear-histórico não pode diferenciar-se sem

a justaposição com a primeira, a cíclica.45

Nesta citação de Von Balthasar ficou esclarecido que a segunda tradução é

a mais adequada pelo seu perfil profético corresponder a uma sucessão linear dos

fatos, mas deve ser observado que o autor não descarta a compreensão do termo no

âmbito cíclico mesmo na Escritura, pois deve ser levado em consideração que mesmo

havendo uma concepção linear, não deixa de estar revestido de uma reflexão sobre a

volta a restauração e a busca das origens.46

43 BALTHASAR, Von. Tratado sobre el infierno compendio. 2. ed. Valência: Edicep, 2000, p. 177. 44 MÉHAT, 1956, p. 196-214. 45 BALTHASAR, 2000, p.177. 46 Ibid.

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A sugestão desta dupla interpretação do termo em Ato 3,21, mencionada por

Von Balthasar, não corresponde a compreensão de A. Mehat, que é mais radical e

não enxerga a concepção cíclica que terá seu ápice na interpretação de Orígenes,

que carrega consigo uma influência filosófica que afeta sua linguagem teológica e que,

por meio de uma metodologia original, busca argumentar as objeções dos seus

adversários.47 Portanto, a sugestão de André Mehat é de interpretar o termo em Atos

3,21 no sentido linear-histórico assimilando-se a Clemente de Alexandria.

A reaproximação com as fórmulas de Clemente de Alexandria, sugere para ouvir o texto de Atos: "a conclusão de tudo o que Deus falou pela boca dos santos profetas". Se, no entanto, devemos admitir qualquer influência do conteúdo das profecias sobre a palavra, o que implica sua realização, não devemos pensar principalmente em um retorno às origens. Na canção de Zacarias (Lc 1, 70) as profecias são evocadas pela mesma fórmula do discurso de Pedro. Mas o contexto fala da redenção do povo, da salvação, da misericórdia, da aliança, do culto prestado em pureza e justiça. O tema da libertação prevalece sobre o da restauração como em quase todos os textos que estudamos até agora. A presença da palavra apocatastasis em Atos 3:21 não muda a perspectiva. Em vez de se referir à renovação universal e aos textos que a pressupõem (1 Coríntios 15: 22-28, Romanos 8: 19-25), a palavra apokatástasis deve recordar as idéias de realização e plenitude comum que são freqüentes Novo Testamento (Mt 5, 17, Ef 1, 10, 4, 14 etc.).48

Nesta análise de At 3,21, em que o termo está explicito, não tem como deixar

de atribuir divergências na sua interpretação. Isso devido a concepção cíclica ou/e a

linear-histórica estar presente em diversas passagens da Sagrada Escritura e que

fazem conexão com o trecho. Detectar essas variações numa releitura atual só é

possivel em virtude do processo diacrônico que passa pela história e se estende ao

plano escatológico e metafísico.

Levando em consideração esta constante evolução da palavra, que se

estende para o plano escatológico, o Antigo Testamento é um grande celeiro de

mensagens que sugerem categorias interpretativas sobre a salvação escatológica,

principalmente na ação concreta de Iahweh no evento do exílio babilônico, que

culmina com o retorno de Israel cuja a ideia de apokatástasis é patente, sobretudo

entre os profetas.

47 ORÍGENES, 2012. p. 29. 48 MÉHAT, 1956, p. 196-214.

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1.2.2.1. O termo apokatástasis no Antigo Testamento

O destaque do termo “apokatástasis” em At 3, 21 como expressão de cunho

profético-escatológico parte da perspectiva da experiência social humana e fé do povo

de Deus no Antigo Testamento, da qual a constatação se faz de situações de injustiça,

opressão e exploração. Deste panorama emerge a ação libertadora e salvífica de

Deus, visto que a linguagem profética diante deste cenário é a portadora de uma

mensagem de esperança. Neste contexto o vocábulo “apokatástasis” ocorre algumas

vezes, porém somente na condição verbal “apokathistemi”. Evidente que ao referir o

vocábulo no grego trata-se do uso na LXX, que traduz do hebraico a raiz “sūb”,49 que

se desdobra em diversos significados do qual pode-se assinalar o contexto da Aliança

com Deus, que ao ser quebrada pelos israelitas, estes devem retornar a Iahweh por

meio do arrependimento, quadro muito frequente em Jeremias e em algumas ocasiões

em Isaías.

A volta do exílio também pode ser associada não apenas ao retorno físico

para a Palestina, mas a volta a Aliança com Iahweh. Neste contexto, “sūb” é utilizado

em Esdras 2,1 e Neemias 7,6, onde este movimento da comunidade judaica é bem

caracterizado como uma restauração de uma Aliança perdida por ocasião do pecado,

esta dinâmica constitui numa dialética em que Deus livremente, por sua misericórdia,

acolhe o pecador que conscientemente arrependido renuncia ao pecado. A LXX, ao

traduzir “sūb” para apokathistemi, não deixa dúvidas da concepção desse radical

hebraico no contexto da restauração de um estado anterior. Do mesmo modo o

significado teológico da salvação no âmbito escatológico transcendente está

presente.50

Carlos Andrés Blanch, diante do grande número de textos no Antigo

Testamento que insinuam o sentido transcendente, menciona a passagem do profeta

Jeremias 16, 15, “Mas o Senhor vive, que trouxe a casa de Israel da terra do norte, e

de todas as regiões onde os joguei, e os devolverei (apokatástasis) à sua terra, que

eu dei a seus pais”. Nesta passagem o retorno de Israel à sua terra pode ser entendido

sob aspecto escatológico, porque há a alusão de retorno a “terra dos seus pais”, que

49 αποκατάσταση. In: COENEN; BROWN, 2000, p. 1943. 50 Shūb. In: HARRIS, R.LAird; JR,Gleason L. Archer; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. Trad. Márcio Loureiro Redondo; Luiz A. T. Sayão; Carlos Osvaldo C. Pinto. São Paulo: Vida Nova, p. 1532-1534.

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não implica apenas no sentido físico, mas o retorno à origem, o fim da dispersão. “É

precisamente o seu contexto profético que nos autoriza a considerá-lo como ligado à

escatologia e, por causa de sua mensagem de restauração, de natureza espiritual”.51

A literatura profética ao enfatizar a restauração não limita-se apenas ao

regresso à propriedade, ao lar, a terra, mas a uma situação anterior, no sentido de

superação do tempo de adversidades e isso exige um modo de ser que perpassa pela

conversão, mudança de mentalidade e agir, para chegar ao bem-estar a paz. Esta

restauração é de forma definitiva (Am 9, 11-15). O tema da Nova Aliança (Jr 31, 31-

34) na perspectiva da apokatástasis é um conceito que não pode ser interpretado

apenas no sentido de uma restauração ligada a experiência histórica, mas

transcendente a história. É um novo que não continua o estado anterior, é o realmente

novo, o definitivo, a “nova terra”. Esta mensagem profética não visa o desligamento

das circunstancias históricas, mas introduz a dimensão escatológica da comunhão

dom Deus.52

Ao analisar estas passagens com ênfase na interpretação teológica da

apokatástasis, foi observado os diversos aspectos de forma característica e

representativa do vocábulo, que não possui uma forma unívoca de compreensão

devido seu carater complexo e abrangente, pois traz consigo uma ideia que no

decorrer histórico sofre transformações. Essa ocorrência está conexa com a

comunidade que adere a esta ideia e, a partir disso, caminha em direção a uma

interpretação particular. No entanto, o fundamentos estabelecidos até aqui promovem

um melhor esclarecimento no sentindo do vocábulo na literatura dos Padres da Igreja,

que foi amplamente debatido.

1.3. A compreensão da apokatástasis em alguns Padres da Igreja

No quadro linguístico na qual a Igreja antiga absorve e desenvolve o processo

de evangelização, o uso da língua corrente, “o grego Koiné”, deriva da influência da

Septuaginta, e a forma de expressão literária adquire uma bagagem cultural

51 BLANCH, 2014, p. 19-34. 52 Apokatástasis. In: BAUER; MARBOCK; WOSCHOTZ, 2000, p. 22-23.

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helenica.53 Esse desenvolvimento presente na missão da primeira fonte

evangelizadora da Igreja pode ser caracterizado como revolução linguística, força

motriz de uma revolução espiritual:

“os primórdios do idioma dos cristãos foram realmente revolucionários: renovação do vocabulário, tanto do técnico como do geral, introdução de um grande número de termos tomado de empréstimo, mudanças de significado, introdução de poleissemia, tendências vulgares, diferenciação sintática, enfim, todos os âmbitos da língua foram submetidos a modificações aos elementos essenciais no decurso de algumas gerações, é o teste mais eloquente da revolução espiritual produzida pelo cristianismo no mundo antigo. Nenhuma seita, nenhuma religião oriental jamais realizou uma

diferenciação tão profunda”.54

No que concerne ao do uso do termo apokatástasis na literatura dos Padres

da Igreja que desde a primeira geração – início na primeira metade do primeiro século

à meados do seculo segundo –, denominada como a geração dos Padres

Apostólicos,55 a palavra é usada dentro do contexto próprio da cultura helênica sem o

carater semântico, que irá atingir posteriormente sobretudo em Orígenes. Estes

Padres da geração apostólica são identificados como os dirigentes das comunidades

cristãs, e sua preocupação pastoral e litúrgica tem como aspiração manter a

organização e a comunhão. Como pastores exortam e ensinam por meio de uma

literatura de formato espistolar.56

1.3.1. Inácio de Antioquia e a apokatástasis

Entre os Padres apostólicos, segundo Dom F. A. Figueiredo, Inácio de

Antioquia57 redige suas cartas paras as comunidade saudando-as em tom de

agradecimento e recomendando-as na preservação e comunhão entre elas,

expressando desta forma a catolicidade da Igreja.58 Deve ser destacado em sua obra

53 PADOVESE, 2004, p. 177. 54 Ibid., p.178 apud MOHRMANN C., p. 65. 55 LIÉBAERT, Jacques. Os Padres da Igreja (séculos I – IV), v.1. Trad. Nady de Salles Penteado. São Paulo: Loyola. 2000, p. 21. 56 SESBOUÉ, Bernard.; WOLINSK. J. História dos Dogmas: O Deus da salvação, v.1. (I – VIII). São Paulo: Loyola, 2004, p. 43. 57 Inácio tornou-se célebre por sua peregrinação forçada, em cadeias, de Antioquia a Roma, por volta dos anos 107-110. Nas paradas que fazia para descanso, escrevia às comunidades que o tinham recebido ou que lhe enviara uma embaixada com saudações. Cf. Inácio de Antioquia, In: Padres Apostólicos. Trad. Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin. São Paulo: Paulus, 1995. p. 48. 58 FIGUEIREDO, 1986, p. 51.

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literária (Inácio) a originalidade e a espontaneidade que o identifica como um homem

místico, uma vez que expressa o teor sentimental e instintivo de sua experiência de

fé. Seu escrito não possui uma sistematização da doutrina, mas sublinha um conteúdo

de caráter circunstancial, fruto das necessedades das Igrejas a qual destinou suas

cartas.59 O fato de pertencer a Antioquia da Síria, considerada na época a terceira

cidade do Império Romano, em vista disso esta cidade constituia-se como um grande

pólo intelectual helenístico. Considerando esse ambiente o estilo literário de Inácio de

Antioquia – sem prescindir do valores bíblicos próprio do judaísmo – possui a

sensibilidade e o pensamento da cultura grega e por isso faz uso do gênero literário

que abarca as categorias filosóficas do helenismo.60

Na carta à Igreja de Esmirna, que foi escrita quando estava em Troade, existe

a preocupação dos fiéis manterem-se firmes na ortoxia. Os elementos significativos

desta recomendação perpassam pela afirmação de uma cristologia que parte da

historicidade da encarnação (Smyrn 1,1,2), inclui-se a dimensão eucarística vivida

pela Igreja (Smyrn 7,1) e também o acento sobre a unidade eclesial em torno do Bispo

(Smyn 8,1).61 Todo esse conjunto de exortações identifica Inácio como um Bispo de

expressão marcadamente eclesiológica. Esse conteúdo presente na carta aos

esmirnenses está expresso numa linguangem conforme as influências culturais

helênicas presentes em Inácio. Partindo dessa realidade deve ser destacado o uso

do vocábulo apokatástasis, expressão própria da linguagem usual helênica que

aparece uma única vez nesta carta:

E para que a vossa obra seja perfeita na terra e no céu, convém que a vossa Igreja, para a glória de Deus, eleja um enviado de Deus para ir até à Síria se congratular com aqueles fiéis, porque reconquistaram a paz e restabeleceram a sua grandeza, (Smirn. 11,2).

O uso do vocábulo nesta recomendação de Inácio a Igreja de Esmirna exprime

a ideia de um retorno a uma condição melhor.62 Esta paz restabelecida63 pode estar

ligada a cessação da perseguição aos cristãos de Antioquia pelo Imperador Trajano,

mas, devido a imprecisão cronológica no relato de Eusébio de Cesaréia, não é

59 LOPES, Geraldo, Patrística pré-nicena. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 76. 60 HAMMAM, Adalbert -G. Os Padres da Igreja.Trad. Isabel Fontes Leal Ferreira. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 16. 61 LOPES, 2014, p. 73. 62 “Inácio de Antioquia”. In: BERNADINO, 2002, p.129. 63 Inácio de Antioquia, Introdução, in Patrística, 2 - Padres Apostólicos, p.49.

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possível afirmar categoricamente que tanto o motivo da prisão de Inácio quanto o

tempo de paz restabelecido pelos cristãos antioquenos seja de fato causa da

perseguição romana.64 Independente de qual ocasião os fiéis “reconquistaram a paz

e restabeleceram a sua grandeza” (Smirn. 11,2), a noção desta expressão nesse caso

de Inácio é apenas expressão de uso corrente da linguagem grega, não possui o

mesmo significado dos escritores cristãos posteriores cujo pensamento é mais

abrangente, no qual fazem uso da palavra num sentindo espiritual, transcendente.

1.3.2. Justino e a aposkatástasis

A figura de Justino na literatura cristã desponta como um dos mais importantes

Padres apologistas do século II. No quadro histórico do século mencionado, Justino

apresenta na sua apologia as justificações da fé cristã perante a hostilidade do

judaísmo e da elite helenista, os pagãos.65 Segundo A. Hamman dois fatores

promovem essa agressividade para com os cristãos. A primeira é a adesão do público

culto que simpatizam com a proposta cristã e pedem o batismo e, por conseguinte,

diante da expansão da fé cristã surgem criticas, gracejos entre os intelectuais pagãos

e, no ambito popular, diversas acusações caluniosas.66 Justino adere à fé cristã já

adulto e, por isso, já possuia uma profunda formação filosófica, dado que sua

conversão tem inspiração no testemunho dos mártires da comunidade cristã primitiva.

64 ‘Questão mais debatida é a razão para sua prisão e condenação às feras. Por muito tempo a historiografia seguiu a tradição antiga de que Inácio teria sido preso durante uma perseguição aos cristãos de Antioquia. Dessa forma, quando o bispo escreve de Trôade dizendo-se aliviado com a notícia da “paz” que os membros de sua igreja finalmente desfrutavam (Filadelfienses 10,1; Esmirniotas 11,2; Policarpo 7,1), este termo se referiria a uma cessação das perseguições. A partir da década de 30, contudo, dúvidas passaram a ser lançadas sobre a historicidade de tal tradição. A partir de uma série de análises minuciosas sobre os termos e as construções de frases feitas por Inácio, P. N. Harrison deu voz à tese de que a prisão de Inácio seria consequência de conflitos internos à igreja de Antioquia que teriam alcançado o âmbito público (SCHOEDEL, 1985, pp. 10-11; ROBINSON, 2009, pp. 165-171)8. Mais recentemente, Allen Brent deu seguimento a essa tese, sugerindo que a razão maior para tal divisão na igreja de Antioquia teria sido a tentativa de Inácio de impor uma hierarquia na qual o episcopado possuiria um papel proeminente (BRENT, 2009, pp. 14-43). Segundo esta outra perspectiva, a “paz” em Antioquia seria nada menos que a resolução do conflito interno, talvez com um compromisso entre as diferentes facções. Cf. O JUDAÍSMO NA PERSPECTIVA DE INÁCIO DE ANTIOQUIA. (PIZA, Pedro Luiz Toledo Doutorando em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisador vinculado ao Laboratório de Estudos do Império Romano e do Mediterrâneo Antigo da mesma universidade). In: Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 9/2, 2014. Disponível em: <https://periodicos.ufrn.br/aletheia/article/view/6679>. acessado em: 26 fev. 2018. 65 FIGUEIREDO, 1986, p.116. 66 HAMMAM, 1985, p. 28.

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Mesmo recebendo o batismo Justino não abandona a filosofia,67 a consequência disso

é que sua atividade literária será fecunda, sendo o “primeiro escritor cristão fazer uma

ponte, um nexo, entre o cristianismo e a filosofia pagã.68 Segundo Eusébio, Justino

redigiu diversas obras, porém somente três chegaram até nós: duas Apologias e o

Diálogo com Trifão.69

O temas contidos na sua obra apologética aos pagãos perpassa pela

apresentação da Bíblia como fonte de toda a sabedoria, e que o conhecimento

filosófico advém desta sabedoria. Isso ficou claro ao mostrar a dependência de Platão

à Moisés ( I Apol. 44,8), com um argumento profético anuncia que Jesus é o Filho de

Deus enviado para restaurar a humanidade (I Apol. 34-39), e em face ao mundo

judaico, ele desenvolve uma cristologia que expõe as profecias sobre o Messias (Dial

89) mencionando o Salmo 22 sobre o Messias sofredor na cruz (Diál 98-106).70

Considerando que Justino é um apologéta da primeira metade do século II,

inserido no mundo helenistico cuja a língua e linguagem é expressa em grego, que

está presente tanto no ambiente greco-romano como no mundo judaico-helenista, os

escrito deste apologéta é redigido em grego.71 A palavra apokatástasis aparece na

sua obra Diálogo com Trifão (134,4):72

Com efeito, assim como Noé deu como servo de dois de seus filhos a descendência do terceiro, agora chegou Cristo para o restabelecimento (apokatástasis) de ambos, dos livres e dos que dentre eles são escravos, concedendo os mesmos privilégios a todos os que guardarem os seus mandamentos, de modo que os filhos que Jacó teve com as escravas e as livres fossem todos filhos de igual honra. Contudo, segundo a ordem e a presciência, foi predito como será cada um (Diál 134, 4).

Esse trecho da apologia de Justino perante os judeus em que faz o

paralelismo entre Jacó e o Cristo, cuja intenção é apresentar as prefigurações do

Cristo no Antigo Testamento, estabelecendo como fonte comum entre cristãos e

judeus e legitimando a fé cristã o uso do vocábulo apresentado neste trecho

pressupõe uma noção cristã, na qual Cristo redime de forma universal, “livres e dos

que dentre eles são escravos”, portanto, não há a ideia básica da corrente profana

67 LOPES, 2014, p. 126. 68 Ibid., p. 127. 69 FIGUEIREDO, 1986, p. 117. 70 Ibid., p. 119. 71 “Justino”. In: BERNADINO, 2002, p. 831. 72 Ibid., p. 126.

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que geralmente utiliza o termo no sentido do restabelecimento há um estado anterior,

mas a de uma conclusão, uma realização73 ocasionada pela redenção de Cristo.

1.3.3. A apokatástasis em Teófilo de Antioquia

Outro padre apologista do século II, Teófilo de Antioquia, segundo Eusébio

foi o sexto Bispo de Antioquia. Converteu-se já adulto à fé cristã, e como legado a

obra A Autólico dividido em três livros, sua intenção é apresentar que os cristãos

possuem conceitos sobre Deus, a salvação e sobre o homem a partir das Escrituras,

deixando claro que estas noções são efetivamente muito mais sólidas que a dos

gregos.74 A. Mehat, na análise do termo apokatástasis em Teófilo, cita a passagem do

livro III a Autólico:

"O rei do Egito no início (αρχηθεν) escravizou os judeus, uma linha legítima daqueles heróis de piedade e santidade, Abraão, Isaque, Jacó. Mas Deus se lembrou desses personagens santos. Ele realizou incríveis milagres e maravilhas através do ministério de Moisés, libertou os hebreus, trouxe-os para fora do Egito e os guiou através do que é chamado deserto. Então ele os estabelece (αποκατεστησεν) na terra de Canaã". (Ad Autol. 3, 9).

A.Mehat utiliza esta citação de Teófilo, no seu debate sobre a ideia do termo,

com a finalidade de fundamentar aquilo que refere-se a evolução do significado desta

palavra. Sengundo ele o autor de A Autolico não menciona esse termo segundo a

ideia de restauração, que até poderia haver no pensamento do Bispo, porém de modo

secundário, mas a menção neste contexto é de um estabelecimento definitivo. Nesse

comentário de Teófilo sobre a narrativa da libertação dos hebreus da escravidão

egípícia e a chegada na terra de Canaã, a terra prometida desde Abraão, uso do termo

traz a conotação de cumprimento da promessa, e a consequência desta ação divina

é de uma realização de uma condição de vida muito melhor. Sem o subjugo da

escravidão o povo de Deus tem, a partir do estabelecimento em Canaã, uma vida mais

humana, porém com a condição de não afastar-se da Aliança com Iahweh.

73 MÉHAT, A. “apokatástasis “Origen, Clemente de Alexandria, At: 3,21” em Vigilliae christianae, Vol. X, 1956, p. 196-214. 74 MORESCHINI C., NORELLI, E. História da literatura cristã antiga grega latina. Trad. Marcos Bagno.

São Paulo: Loyola, 2000, p. 288-290.

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1.3.4. A apokatástasis em Irineu de Lião

Diferentemente de Justino e Teófilo de Antioquia, Irineu de Lião foi um

apologista oriundo do meio cristianizado, isso possibilitou-o adquirir uma concepção

cristã bem mais fundamentada. Essa característica na sua formação cristã

proporcionou o desenvolvimento de uma teologia sistematizada, sendo considerado o

primeiro teólogo, devido uso metodologico aplicado na sua reflexão teológica.75 Irineu

que originalmente viveu em Esmirna na Ásia Menor, segundo Euzébio (HE V, 20,6),

fora discípulo de Policarpo, exerceu episcopado em Lião no Ocidente em 177 quando

sucede Potino, primeiro Bispo de Lião, vítima de perseguição.76

Irineu, devido suas preocupações pastorais foi levado a compor suas obras,

sendo a mais importante delas a famosa ‘Contra heresias’, da qual combate o

gnosticismo,77 que devido a uma crise de fé vivida por seus membros diante das

perseguições desanimavam e perdiam a esperança, por isso tendiam ao seguimento

de movimentos que pregavam uma espiritualidade que consistia garantir a salvação

por meio do conhecimento destinado somente aos escolhidos. Essa concepção

excluia a mediação de Cristo Ressuscitado. Frente a isso era necessário reforçar a fé

dos batizados na Ressurreição e demonstrar a fragilidade dos ensinamentos

gnósticos.78

A reflexão teológica de Irineu sobre a Ressurreição não dá ênfase ao evento

histórico, mas prefere falar do Ressuscitado. Pensar a ressurreição corporal de Cristo

é pensar na ressurreição de todos os mortos. Esse ponto de vista das reflexões de

Irineu abarca o valor universal da salvação implícitada na ressurreição, um

contraposto ao gnosticismo,79 que desprezava o poder resssuscitador de Deus:

Desprezam o poder de Deus e não prestam atenção à verdade os que olham para a fraqueza da carne e não consideram o poder daquele que o ressuscita da morte. Com efeito, se ele não vivificasse o que é mortal e não levasse à incorruptibilidade o que é corruptível deixaria de ser poderoso. Mas devemos constatar que ele é poderoso em todas estas coisas e a nossa origem não deve dar a compreender: pois foi tomando um pouco de lodo da terra que Deus modelou o homem. Ora, é muito mais difícil e incrível que tenha feito

75 LIÉBAERT, 2013, p.53. 76 SINGLES, Donna. A glória de deus é o homem vivo: a profissão de fé de santo Irineu. Trad. Tiago José Risi Leme. São Paulo: Paulus, 2010, p. 15. 77 LIÉBAERT, 2013, p. 56. 78 SINGLES, 2010, p. 19, 20. 79 Ibid., p. 108, 109.

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existir do nada ossos, nervos e veias, e todos os elementos que constituem o organismo humano, dando-lhe o ser, criando-o animal vivo e racional do que reconstituí-lo, (apokatástasis) quando, depois de criado, se tenha decomposto na terra, pelos motivos apresentados acima, se bem que tenha acabado naqueles elementos dos quais foi feito no princípio, quando nada era feito. De fato, aquele que no princípio e quando quis fez o que não existia, com maior razão, querendo, pode ressuscitar os que já tiveram a vida

concedida por ele.80

Nessa discussão sobre a ressurreição, Irineu utiliza o termo apokatástasis

com uma conotação longe da concepção cíclica presente no meio gnóstico. Essa

reconstituição, restabelecimento, restauração é obra do poder de Deus que

demonstrou ao criar o ser humano do nada e na ressurreição dada por si e por amor

estabelecendo a vida definitiva. Em outro momento Irineu usa o vocábulo ao referir-

se as obras da carne em tensão com as obras do espírito. Neste caso a ideia não é a

de um retorno a um estado primitivo, mas a noção de um ponto de chegada, de

realização.

Como a carne é capaz de corrupção assim o é de incorrupção; como é capaz de morte o é também de vida. Estas coisas se excluem mutuamente e não ficam juntas no mesmo indivíduo, mas uma afasta a outra, e onde há uma não há outra. Por isso, se a morte, apoderando-se do homem, afasta-lhe a vida e faz dele morto, com maior razão a vida, apoderando-se do homem, afasta-lhe a morte e o restituirá (apokatástasis) vivo a Deus. Se a morte fez morrer o homem, por que a vida, ao sobrevir, não o vivificaria? Como diz o profeta Isaías: “No seu poder a morte devorou”; e ainda: “Deus enxugará

todas as lágrimas de todos os rostos”.81

Von Balthasar segue o mesmo caminho no exame do vocábulo apokatástasis,

citando a ideia irineica de restauração oposta a compreensão gnóstica cristã que

vislumbra o retorno do homem ao estado original perdida após a queda no mundo no

momento em que assume a matéria, sendo o Cristo Redentor que reconduz o homem

caído ao seu estado original. A reação de Irineu frente a esta concepção cíclica do

gnosticismo foi afirmar o plano salvífico no horizonte histórico linear. O homem é

reconstituído por Cristo, e que a queda do homem faz parte de uma ação pedagógica

divina para atingir a maturidade, a realização e a plenitude humana. Esse caminho em

direção a perfeição passa pelo seguimento de Cristo e a Eucaristia.82

Neste resumo do percurso da atividade literária desenvolvida em ambiente

greco-romano dos Padres da Igreja, Apostólicos e Apologistas – final século I e

80 CESARÉIA, Euzébio, História Eclesiástica. Trad. de Wolfgang Fischer. São Paulo: Novo Século, 2002. Livro V, 3, 2. 81 Ibid., V, 12, 1. 82 BALTHASAR, 2000, p. 183.

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praticamente em todo o século II – que em um processo de interação com a cultura

local absorveu e ressignificou o uso da palavra apokatástasis, imprimiu-se uma ideia

de cumprimento, realização, chegada a uma condição melhor, restauração de uma

condição original. Mesmo diante de toda esta interação sociocultural e religiosa, a

ideia deste conceito ainda não alcançou o significado que terá entre pensadores

cristãos posteriores, sobretudo entre os Padres Alexandrinos, que por meio de uma

sistematização teológica-filosófica mais influenciada pela gnose, relacionarão o termo

ao contexto escatológico, tendo como centro desta reflexão escatológica a noção de

redenção ou salvação universal.

1.3.5. Apokatástasis em Clemente de Alexandria

O aspecto missionário vivido pelos Padres dos séculos I e II, pautado na

integração com o mundo helênico, que foi plenamente demonstrado nos seus escritos,

formaram um corpo documental importante para a compreensão da fé cristã nos seus

primórdios. Esse movimento de inculturação da fé, objetivamente, teve a preocupação

em diferenciar-se do mundo pagão do que assemelhar-se, o que significa uma

adequação aos seus leitores no empenho de explicar a fé cristã. Esta tensão entre

mundo pagão e mundo cristão não descarta a aproximação cada vez mais da

realidade urbana, e o uso do latim e grego exigiu dos cristãos a conversão e a

necessidade de conhecê-las, sendo inegável a formação de uma polaridade entre

cristãos cultos e incultos.83

Ao passo em que a intelectualidade passa a ter grande importância, os

grandes centros urbanos tornam-se habitat natural para quem empreende-se neste

espírito, e Alexandria84 era o mercado mundial das ideias, a encruzilhada de

83 PADOVESE, 2004, p. 164, 165. 84 “Fundada em 331 a.C., por Alexandre Magno, e feita pelos Ptolomeus a mais importante metrópole do mundo antigo, passa a ser o grande centro comercial e cultural em que acorriam para lá poetas, artistas e filósofos , que para acolher este desejo de cultura levantou a casa das Musas, Museum e uma grande biblioteca para seus intelectuais, transformando-se depois de Atenas no grande polo helenístico alexandrino. Nos anos 20 a.C. abrigava uma grande comunidade Judaica, que já helenizada traduziram a Bíblia hebraica para o grego, a Septuaginta, e Filon já era contado entre os sábios, tendo a Bíblia como ponto de partida adota o método alegórico, oriundo da filosofia grega que permanecerá como característica exegética da futura escola cristã alexandrina”. LOPES, 2014, p. 234.

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sistemas,85 lugar propício para o surgimento de um centro de estudos da fé cristã. Por

volta do fim do século II floresce um movimento cristão de alto nível intelectual e de

orientação ortodoxa, no qual, Panteno é o primeiro mestre desta escola alexandrina

cristã e Clemente é seu discípulo.86

Tito Flavio Clemente, um grego nascido em Atenas aproximadamente 150

d.C., que converteu-se a religião cristã já adulto, possuía uma sólida formação

filosófica. Convertido e no desejo de aprimorar sua formação embrenha-se a procura

de um mestre. Passa pela Itália, Síria e Palestina até encontrar, por volta do ano 180

d.C. em Alexandria, Panteno,87 e por lá se fixa. De discípulo torna-se mestre, porém

mais mestre que escritor, um verdadeiro pedagogo segundo A. Hamman:

A imagem de pedagogo que aplica a Cristo, guardadas as devidas proporções, serve também para ele. É um educador nato, lúcido, observador [..] discerne a inanidade ontológica da gula, da vaidade, do luxo e do dinheiro. Sua preocupação constante é a de converter, de educar, de conduzir os homens a perfeição.88

Nesse período de permanência de Clemente em Alexandria o ambiente

cristão era plural. Havia várias correntes cristãs, dentre as quais uma corrente oriunda

dos centros de pensamento gnóstico que já estava bastante encorpada, devido a

propagação feita pelos discípulos de Basíledes e Valentim. Em tal quadro, teólogos

destas correntes assediavam cristãos de camadas sociais elitizadas, porém de

formação cristã básica. É neste universo que surge a escola catequética de

Alexandria, a “Didascália”, que acolhe esta ala de cristãos de categoria social mais

elevada. No processo de formação cristã desta escola provavelmente havia dois

grupos distintos, um de preparação aos catecúmenos com um tipo de formação básica

organizado pelo bispo, e outro grupo mais avançado com ensinos privados de filosofia

e teologia com os mestres.89 Panteno90 provavelmente foi o primeiro a dirigir esta

escola de ensino mais avançado, sendo sucedido por Clemente (H.E. VI,6).

85 HAMMAM.1985, p. 79. 86 FIGUEIREDO, Dom Fernando A. Curso de Teologia Patrística II. A vida da Igreja Primitiva (século III). Petrópolis: Vozes, 1984. p. 76. 87 Ibid., p. 80. 88 HAMMAM. A. Padres da Igreja, p. 81 89 MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 340, 341. 90 De Panteno não se sabe quase nada: segundo Eusébio (H.E. V, 10), vindo do estoicismo, depois convertido ao cristianismo, dedicara-se à evangelização da Índia, onde fora precedido pelo apóstolo Bartolomeu, que lhe havia deixado o evangelho de Mateus. Trata-se, como se vê, de notícias já lendárias. Mais confiável é o testemunho de Clemente de Alexandria, que o teve como mestre; mas afora isso, não sabemos nada dele, e não parece que tenha composto escritos [...]Clemente apresenta-

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Muito do que foi revelado sobre a personalidade de Clemente de Alexandria

adveio dos seus escritos, “sua obra é variada, original, brilhante, redigida em estilo

elegante e puro. O autor é simpático em razão do espírito aberto, entusiasta e muito

religioso”,91 deixou como legado literário, uma trilogia92 considerada a principal obra,

cujo núcleo de reflexão é o Logos.

Protréptico ou exortação aos gregos é a primeira. Faz uma descrição do

Logos e tenta convencer os gregos à conversão sem rejeitar o caminho por eles

percorrido através da filosofia para chegar a verdade, pois enxerga sinais da

Revelação na tradição grega. Quanto ao escrito denominado Pedagogo é a

continuidade da anterior, também dirigida aos pagãos na qual constitui um verdadeiro

tratado moral. O Logos é o pedagogo que nos conduz ao crescimento da fé. Por último

Stromata, escrito em oito livros, não possui uma sistematização e sua linguagem é

simbólica. Nisso há uma clara intenção de ser um escrito feito para aqueles que

podem ser capazes de acessar os mistérios divinos por meio do conhecimento. Estes

se destacam-se dos simples fiéis.93

1.3.5.1. A gnose clementina

Como mencionado anteriormente, em Alexandria já havia correntes de

tradição gnóstica. Quanto a origem desse movimento ainda é muito discutido. Durante

muito tempo tudo o que se sabia sobre o gnosticismo era de fontes cristãs,

principalmente em Irineu de Lião, que diante das teses de Valentim apresentadas com

traços e fundamentos do gnosticismo. Portanto a identidade do sistema gnóstico era

conhecido a partir do ponto de vista cristão, mas, no século XX com a descoberta dos

manuscritos de Nag Hamandi em 1945 e em 1947 os manuscritos de Qumran, esse

fenômeno religioso da gnose pode ser compreendido a partir de fontes não cristãs.94

o como um membro da corrente das tradições secretas herdadas dos apóstolos, e é possível, portanto que já Panteno sustentasse a ideia, tão cara a Clemente, da tradição esotérica. Ibid., p. 341. 91 LIÉBAERT, 2013, p. 88. 92 Sobre este ponto específico da intenção de Clemente redigir uma trilogia, ler MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 339-363. 93 FIGUEIREDO, 1984, p. 81-82. 94 SESBOUÉ; WOLINSK, 2004, p. 38.

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Este alargamento da compreensão histórica do movimento gnóstico permitiu que o

debate, a pesquisa e nova conclusões ainda permanecessem em abertos.

O sistema gnóstico é complexo, seja a compreensão do seu desenvolvimento

histórico ou como a sua definição. Existem delimitações que devem ser abordadas,

por exemplo, a distinção entre gnose e gnosticismo. Ao distinguirem-se essas

concepções possibilita-se um melhor entendimento sobre esse movimento e,

principalmente, qual é a influência sobre Clemente de Alexandria.

“Gnose”: designa uma tendência constante do espirito humano que busca o sentido da vida no conhecimento; gnosticismo é o movimento histórico que se desenvolveu nos séculos II e III e que nos ocupa até aqui. O gnosticismo, portanto, é a manifestação histórica da gnose, cujo nome (gnósis) significa conhecimento. É um vasto movimento religioso cujo desenvolvimento é contemporâneo das origens do cristianismo”.95

Mesmo distinguindo gnose como uma inclinação do ser humano na busca do

conhecimento e gnosticismo como movimento histórico. De uma forma ou de outra é

evidente um movimento religioso de corrente gnóstica. Devido a complexidade destes

grupos religiosos é necessário verificar a hipótese se de fato a gnose era um puro

movimento exclusivista de caráter salvacionista ou um movimento místico relacionado

a grupos sectários voltado para a filosofia. Januário T. Ferreira depois traçar as

influências do pensamento judaico-gnóstico, cristãos e filosóficos ele conclui que:

[...] somos levados timidamente a pensar que a gnose, ainda que de caráter salvacionista, foi uma de muitas tentativas para solucionar os problemas então controvertidos, pela formulação duma via de conhecimento imediato que superasse as objeções próprias dos autores gregos no terreno da argumentação racional e as dos autores cristãos nas dificuldades inerentes

atingência dos dados da fé.96

O que se delineou até aqui foi que os gnósticos na tentativa de solucionar as

questões existências no âmbito cosmológico e antropológico perante a visão dualista

que tinham do mundo, fez-se necessário o uso de argumentações de matrizes

religiosas e filosóficas como caminho imediato. Neste cenário a gnose, serviu de

inspiração e avivamento que no plano ético está ligado a uma ascese que consisti na

ruptura com o mundo material garantido dessa forma a salvação, ideal nostálgico

vinculado ao retorno para o mundo divino.

95 Ibid., p. 38 96 FERREIRA, Januário Torgal. O significado do gnosticismo: uma tentativa de interpretação filosófica.,

p. 266. disponível em: <http://hdl.handle.net/10216/13730>. Acesso em: 24 mai. 2018.

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A literatura judaico-alexandrina herdeira da cultura filosófica assume a gnose

como argumentação das questões existenciais. Nesta corrente, Filon se estabelece97

como o grande nome do judaísmo-gnóstico e, a exemplo dele, Clemente colocou a

serviço da compreensão bíblica o uso dos sistemas gnóstico existentes na atmosfera

de Alexandria,98 as influências culturais grega e o judaísmo alexandrino com seu

universo gnóstico presente em seus escritos deixando claro seu contato com a obra

de Filon.99 Porém, essa atitude do padre alexandrino que demonstra sua preocupação

em dar ao dado da fé cientificidade, possibilitando o diálogo com a corrente intelectual

contemporânea, é uma demonstração científica das verdades reveladas. Vê-se que

para Clemente a gnose é a contemplação e o raciocínio teológico. Clemente mostra

como o gnóstico, superando todas as criaturas, chega ao criador”.100 Moreschini C. e

Norelli E., também demonstram a justificação de Clemente sobre a inteligibilidade da

fé a partir da gnose, porém, com um ingrediente substancial, o uso da Escritura:

O gnóstico deve captar o sentido oculto da revelação, lá onde é mais perfeita, na Bíblia; a gnose é também inteligência espiritual das Escrituras proféticas (Strom., II, 54,1), e em particular do Evangelho, que manifestou o significado do Antigo Testamento (por exemplo Strom., IV, 134,3-135,1). O gnóstico compreende as Escrituras “segundo o cânon clássico” (VI, 125, 2-3), isto é, segundo a harmonia da Lei e dos profetas com a revelação trazida por Cristo: a determinação desse critério representa uma delimitação de fronteiras em relação à gnose dos grupos gnósticos.101

O fato do Evangelho dar significado ao Antigo Testamento corresponde

claramente à pessoa do Cristo, questão comum entre os padres apologistas, que se

preocupavam em demonstrar que a relação entre o Antigo Testamento e Cristo não

era de ruptura, mas que havia implicação entre ambos sem prescindir da centralidade

cristológica. É a partir desta centralidade que Clemente estabelece Cristo como a

verdadeira gnose:

Conhecendo Cristo, que é verdade, sabedoria e poder de Deus, conhece também o Pai (Strom. II, 11). Sob a guia do Salvador, o gnóstico supera o mundo visível e inteligível e se reconcilia através dele à Deus transcendente. Este reconhecimento espiritual corresponde num título honroso e perfeito, não por próprio mérito, mas pela apropriação de Cristo.102

97 Na confluência das tendências gnósticas gregas e judaicas, é preciso assinalar Filon de Alexandria

(20 a.C./40 d.C.) SESBOUÉ; WOLINSK, 2004, p. 39. 98 FIGUEIREDO, 1984, p. 78. 99 Ibid., p.79 100 ETCHEVERRÍA TREVIJANO, Ramon. Patrologia. Madri: Biblioteca de Autores Cristãos, 1998. p. 172. 101 MORESCHINI; NORELLI, 2000. p. 356. 102 ETCHEVERRÍA TREVIJANO, 1998. p. 172.

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Clemente, influenciado pela corrente gnóstica, entende que a reconciliação ao

Pai dá-se pela superação do cristão ao mundo visível. Januário T. Ferreira, ao

descrever a concepção das correntes gnósticas de superação ao mundo visível,

relata que no âmbito ontológico, os gnósticos entendem que a Entidade divina e o

mundo estão vinculados pelas esferas cósmicas, constituindo a dualidade entre o

mundo superior e o mundo inferior. Ontologicamente o homem é diferente do mundo

inferior devido sua alma ter origem divina, ou seja, possui parentesco com o mundo

superior. Nesta ambiguidade entre mundo superior e mundo inferior é que o homem,

pela capacidade gnosiológica, afasta-se do mundo inferior indo ao encontro da

entidade divina.

Do não mundo que é, o homem tornar-se o mundo que projeta ser. A partir da

perspectiva gnosiológica o homem é capaz de superar as limitações do mundo pela

ilimitação do pensamento. A dimensão ontológica do homem revela a partir da

vivência existencial a sua capacidade gnosiológica, sendo esta capacidade

essencialmente uma dimensão ética. Ao discorrer sobre a dimensão ontológica do ser

do mundo e do homem e a capacidade de conhecimento deste último, Januário

destaca a ambiguidade entre o mundo e o homem, e fundamenta que a perspectiva

ontológica é alicerce da concepção antropológica.103

Anteriormente, quando foi descrito por Clemente que o cristão gnóstico é

aquele que supera as realidades do mundo visível para unir-se a Deus, dá-se a

entender que sua concepção antropológica concorda em tudo com as concepção

ontológica e gnosiológica das correntes gnósticas contemporâneas, mas há diferença

entre as concepções. Em Clemente a materialidade do corpo não é má, porém a alma

é mais digna do que o corpo:

A composição do homem, corpo e alma, normalmente é dada como ponto pacífico. O corpo do pó da terra, é irracional e tende para a terra, pois dela provém. Más não é mau por natureza, pois foi criado por Deus. E mais, sua própria figura é expressão de sua dignidade. Além disso, é suscetível de ser santificado. A alma e o corpo são sem dúvidas, diferentes, o que não significa que sejam contrários. A alma deve dominar o corpo, afetado pelas paixões. A primeira é sem dúvida de maior dignidade do que o segundo, a melhor parte

do homem, mas sem ser, entretanto, boa por natureza.104

103 FERREIRA, p. 262-265. 104 SESBOUÉ, 2003, p. 97.

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Por mais complexo que seja a concepção antropológica de Clemente, deve

ser levado em consideração que é da filosofia e das Escrituras que a antropologia

clementina foi desenvolvida. Dom Fernando, a partir do texto de Clemente

“Pedagogo”, também compreende que a materialidade do corpo para o padre

alexandrino não é má e o dado que ele coloca:

No Pedagogo ele (Clemente) traça o quadro da vida cristã assinalando, com precisão, a partir de textos bíblicos, o “modus vivendi” do cristão, como por exemplo sua alimentação, seu vestir, seu beber. A este respeito ele descreve os efeitos negativos do vinho para os jovens, ao mesmo tempo que permite aos adultos e anciãos toma-los moderadamente, pois o vinho é também uma medicina. O que move a fazer tais recomendações não é uma visão negativa do corpo e o que se liga a ele. É a ideia, presente na filosofia da época,

sobretudo no estoicismo [..].105

Essa dessemelhança entre alma e corpo em dignidade no conceito

antropológico de Clemente resulta da sua formação na escola de Alexandria, que tem

na alma como a melhor parte do homem, entretanto, Clemente compreende que a

alma é mais digna porque é imortal e incorruptível. Esta condição da alma não é fruto

de um acaso na criação, mas é dom de Deus, lugar de sua da presença.106 A

relevância desta visão antropológica de Clemente dá-se primeiro pelo fato de não

colocar em oposição corpo e alma. Ambos possuem dignidade, mesmo que não seja

de maneira igual e, também, por corroborar para o entendimento do sentido de

apokatástasis desenvolvido por ele.

O sentido da apokatástasis a partir de Clemente será interpretado de modo

inédito, segundo Ilaria Ramelli é com o padre alexandrino que apokatástasis ganha o

significado de realização da perfeição e da beatitude.107 André Mehat afirma que em

Clemente a ideia de apokatástasis é de descanso eterno, o auge do que é esperado,

portanto, o significado do vocábulo adquire status escatológico.108 Esse alargamento

no conceito de apokatástasis é fruto de sua formação filosófica pautada no médio

platonismo.

105 FIGUEIREDO, 1984, p. 86. 106 SESBOUÉ, 2003, p. 360. 107 RAMELLI, 2013, p. 6-7. 108 MÉHAT, 1956, p. 196-214.

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1.3.5.2. Etapa histórica da apokatástasis

A concepção do vocábulo apokatástasis em Clemente tem como pressuposto

o seu pensamento sobre condição antropológica que, segundo Carlos Andrés Blanch,

a antropologia clementina está pautada na doutrina da imagem de Deus, na qual o ser

humano, por ser modelado pelas mãos de Deus, o Criador, possui essencialmente em

sua natureza a imagem divina e, por isso, ocupa uma condição superior na criação;

“o Senhor soprou neste belo instrumento que é o homem e modelou de acordo com

sua imagem”(Protréptico 1.54),109 “por conseguinte, essa imagem se vê na alma

racional (nous),”110 que assimila mediante a sua inteligência o Verbo, Imagem perfeita

de Deus, que o capacita, a partir dos aspectos gnosiológicos e éticos, a alcançar a

semelhança de Deus.111 A dignidade mais elevada da alma é a parte do ser humano

que o Espírito de Deus age mais perfeitamente conduzindo-o ao caminho da

deificação pelas boas obras.112 Esse processo gnosiológico em direção ao alcance da

Imagem perfeita do Verbo difere das demais correntes gnósticas pelo fato de ser a fé

a geradora das virtudes, segundo Clemente fé e gnose estão estreitamente ligadas.113

Esse caminho de perfeição do ser humano, na ideia clementina, jamais

prescinde da liberdade, apoiando-se na fé inteligível o caráter de livre decisão humana

na restauração da imagem Divina, é para Clemente um processo apokatástico

orientado para a plenitude da apokatástasis escatológica.

A condição do gnóstico parece implicar duas fases: ela já é tal nesta vida, onde porém está em continuo progresso, e estará completa na dimensão escatológica. Mas desde agora é antecipação da perfeição escatológica: implica ascensão da alma rumo à contemplação de Deus (Strom. IV, 116-17), fruição do mundo inteligível (por exemplo Strom., IV 56,3-57,1).114

Carlos Andrés Blanch, no exame do pensamento clementino sobre

desenvolvimento apocatástico, também entende que tem origem na existência atual e

vincula esse movimento de restauração por meio da gnose ao ascetismo que, neste

caso, não significa um desprendimento do mundo no sentido de privação física, mas

109 BLANCH, 2014, p. 25. 110 SESBOUÉ, 2003. p. 98. 111 MORESCHINI ; NORELLI, 2000, p. 356. 112 SESBOUÉ, 2003, p. 97. 113 Ibid., p. 355. 114 Ibid.

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através da disciplina espiritual, que consiste em defender a natureza humana das

irracionalidades.115

[...] é por isso que é necessário se tornar homem adulto de maneira gnóstica e tendem à perfeição, tanto quanto possível, mesmo se permanecermos no carne, e a partir de uma concordância perfeita, nós aspiramos a concordar com a vontade de Deus na restauração realmente perfeita da nobreza e afinidade pela 'plenitude de Cristo', perfeitamente nossa reconciliação. (Carlos Blanch apud Strom IV, 21.132.1).

Clemente demonstra que tornar-se adulto é uma ideia processual de

crescimento, que já começa nesta existência ao mencionar a permanecia na carne

cuja a meta é a restauração perfeita. Dom Fernando, ao esboçar a visão de Clemente

de progressão do homem rumo a deificação, afirma diretamente que é o amor que dá

vigor ao gnóstico seu ideal almejado.116 Vale ressaltar a menção de Clemente de que

este amor consiste na extinção dos vícios do coração humano, sendo um deles o do

acúmulo.

A exortação de Jesus a vender os próprios bens não é interpretada, segundo Clemente, no sentido literal de desfazer-se dos bens (o que muitos fizeram antes da vinda de Cristo), mas no de extirpar a paixão pelas riquezas (11,2) a exegese “espiritual” toma a dianteira. Antes, possuir riquezas é um bem, seja para não sofrer, seja para ajudar quem necessita: aos preceitos de Cristo de saciar quem tem sede, alimentar quem tem fome etc., só se pode obedecer tendo riquezas (13-1,7). O rico que dificilmente entrará no reino dos céus é aquele que faz depender a sua vida das riquezas, é o rico de paixões (19,3). A esmola dada a todos os necessitados, sem distinção, é um “belo comércio extraordinário, divino mercado” (32,1) porque permite, com dinheiro, adquirir a incorruptibilidade.117

A menção desta homília de Clemente, com o título “Qual é o rico que se

salva?”, antes de fazer uma análise que seja distorcida do padre alexandrino e culpa-

lo de defender a riqueza, Moreschini e Morelli, apontam para o contexto social de

Clemente, cujo público de instruídos por ele faz parte da aristocracia. Como o

cristianismo não estabelece fronteiras, nesta reflexão clementina sobre a perícope do

Jovem rico (Mc 10,17,31) e a expressão do desejo de salvação a todos, todavia,

Clemente inclui os ricos na meta da perfeição cristã, conscientizando-os de que a

posse das riquezas só terá valor se estiver a serviço do outro.118

115 BLANCH, 2014, p. 25. 116 FIEGUEIREDO, 1984, p. 87. 117 Segundo Moreschini, Morelli, esta homilia de Mc 10,17-31, foi composta na redação dos últimos Estrômatos e a citação faz parte da bibliografia de: Nardi, C. Clemente Alexandrino. Quale rico si salva? Il Cristiano e l’economia, Borla, Roma 1991. MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 358. 118 Ibid.

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A ideia clementina sobre a apokatástasis histórica, incitada pela fé, que

conduz o ser humano por meio de um progresso gnosiológico e ascético a perfeição

é entendida como antecipação da apokatástasis escatológica.

Esta antecipação parte da noção antropológica de Clemente que tem como

pressuposto a crença na imortalidade e incorruptibilidade da alma devido possuir a

presença do Espírito dom de Deus.

O corpo não é excluído desta perfeição, pois também participa da

incorruptibilidade por meio da ressurreição de Cristo que se encarnou para salvar o

ser humano integralmente, o seu corpo ressuscitado é pressuposto para ressurreição

do corpo de todo ser humano.119

1.3.5.3. Etapa escatológica da apokatástasis

A apokatástasis ultraterrestre tem como ponto fundamental o Amor de Deus

incondicional, sem exclusão de nenhuma pessoa. Carlos Blanch atesta esse

entendimento da noção de salvação universal em Clemente: “A aceitação do povo de

Deus não reside no tempo, mas é eterna, pois sua beneficência nunca teve

começo, nem está limitada a lugar algum ou a determinadas pessoas”.120 É notável

que o ser humano, independente da condição que está, é chamado por Deus no

processo de restauração. Se na esfera histórica ímpios e incrédulos negaram a Deus,

no âmbito ultraterreno a misericórdia de Deus continua a mesma, porque não está

limitada a um local ou espaço. Portanto, pode haver o arrependimento mesmo na

condição atemporal.

Mas é o arrependimento o ponto fundamental para o início do processo

apokatástico na condição ultraterrestre. JOHN R. SACHS afirma que Clemente pensa

esse processo de purificação pelo fogo (catarsis) – “ Não é como o fogo devorador da

vida cotidiana, destinado a destruir o pecador, mas uma "chama discernente" ou

"racional" que serve para santificar as almas pecaminosas que devem passar por ele

119 SESBOUÉ, 2003, p. 360. 120 BLANCH, 2014, p. 28.

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( Strom. VII 6.34.4) –. Este processo é doloroso, mas possui função pedagógica de

punir e instruir.121 O tempo desta purificação não é o mesmo para todos, deve ser

levado em consideração o grau de impureza de cada um. Essa concepção de

Clemente do fogo restaurador não é originalmente sua, advém da crença na

conflagração dos estóicos.122 Considerando, também, que esta perspectiva no

processo salvífico clementino posteriormente será desenvolvida e representada como

a doutrina do purgatório,123 que para Clemente a ideia não é como justiça retributiva

para os que foram são salvos sem atingirem a plena perfeição, mas como processo

pedagógico de purificação e aperfeiçoamento de todos os homens.124

Este processo apokatástico que envolve todos os seres humanos, mesmo

aqueles que rejeitaram a verdade e quiseram permanecer no pecado, segundo

Blanch, a ênfase de Clemente é o amor de Deus e a sua onisciência. “Deus, ele diz,

não foi pego de surpresa pela queda do homem” (Strom. 2.13.56.2.), ainda, segundo

o mesmo autor, este é o ponto característico da ideia de apokatástasis de Clemente,

cujo o fundamento também está na filosofia estóica denominada de ἀκολουθία, que

significa ordem, organização. Ou seja, para os estóicos há todo um ordenamento no

universo que é fruto da Providência, entretanto, com a ocorrência da queda do homem

como prevista por Deus, Clemente acredita que a apokatástasis é providência divina

para permitir de modo ordenado, processual o alcance da perfeição do ser humano

em diversas etapas. Isto é, a apokatástasis é uma progressão espiritual originada na

bondade de Deus.125

É por isso que os mandamentos também [...] estabeleceram que a alma que estava sempre melhorando no profundo conhecimento da virtude e no progresso da justiça, obtivesse uma posição melhor na classificação, lançando, de acordo com cada progresso, o estado de impassibilidade até alcança o homem perfeito, a eminência da gnósis e ao mesmo tempo da herança. Esses progressos salvadores são diferentes na ordem de transformação de acordo com os tempos, lugares, honras, conhecimento, herança e ministérios; cada um tem seu próprio grau, até [alcançar] a mais alta contemplação superior e mediata do Senhor na eternidade. (Carlos Blanch apud Strom. VII, 2.10.1-2).

121 SACHS, John R. Apocatástasis in Patristic theology. Theological Studics, 54 (1993) p. 618-620. disponível em: <http://cdn.theologicalstudies.net/54/54.4/54.4.1.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2018. 122 Ibid., p. 29. 123 SESBOUÉ, 2003, p. 360. 124 SACHS, 1993, nota 107. 125 BLANCH, 2014, p. 32.

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Portanto, a apokatástasis em Clemente demonstrada conforme a

cientificidade de seu tempo – filosofia-teologia –, o processo de desenvolvimento

gradual de perfeição do ser humano, envolvendo as etapas nesta existência e a

ultraterrena, tendo como ponto constituinte o amor de Deus pelo ser humano, que

jamais o abandonou, mesmo no pecado, e que a salvação é fruto da sua graça e sua

providência. É desta concepção pautada na supremacia do amor divino que Orígenes

desenvolverá sistematicamente a ideia de apokatástasis como salvação universal.

1.4. Conclusão

Certamente, ao final deste capítulo, pode-se ser destacado a apokatástasis

como resultado da inculturação da fé. Na medida em que a mensagem cristã é aceita

no mundo helênico, é inevitável a adequação da linguagem teológica com a linguagem

grega e com todos os seus conceitos e categorias. Esta configuração favorece a

expressão do conteúdo salvífico para um público de espírito intelectual helênico, mas

que simpatizava com a mesangem evangélica.

Ao passo que o movimento cristão também absorve os elementos culturais

helênicos, sobretudo a literatura, e agora transformada em literatura cristã, esta

atividade literária dos cristãos dos primeiros séculos articula-se entre a filosofia e a

Sagrada Escritura. Esse dinamismo cultural, presente no pensamento teológico,

assimila o conceito de apokatástasis do estoicismo, que possui dois pontos

fundamentais: a concepção cíclica e metafísica, que terá influência nos pensadores

cristãos, porém não de forma semelhante.

A Sagrada Escritura no ambiente helênico não poderia estar excluida do uso

do termo e de sua definição, porém não há uma interpretação unívoca, seja no Antigo

ou no Novo Testamento. Geralmente é compreendido no ambito histórico geográfico,

que pode ser o retorno de volta ao local de origem, ou sob o contexto ético sublinhado

no retorno da aliança com Iahweh, ou no campo profético-escatológico que foi bem

demonstrado no Novo Testamento especialmente em Atos 3,21.

Foi constatado que entre os Padres da Igreja que usavam a linguagem grega

para o anúncio da mensagem cristã, seja ela de forma pastoral ou apologética, fizeram

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o uso do conceito apokatástasis transmitindo uma ideia de cumprimento, realização,

chegada a uma condição melhor, restauração de uma condição original. Porém,

Clemente de Alexandria, que provém de um círculo helenista mais acadêmico e

visando dar para sua linguagem teológica uma roupagem mais científica, ressignifica

o termo apokatástasis a partir de sua visão de gnose cristã, como processo gradual

de evolução. Entretanto, esse desenvolvimento engloba a realidade histórica e

escatológica. Na verdade o autor quer salvaguardar a sua experiencia de fé em um

Deus que é amor e que deseja salvar todos seres humanos, portanto a apokatástasis

para Clemente faz parte da providência divina para a salvação humana.

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2. APOKATÁSTASIS: PERSCPECTIVA A LUZ DE ORÍGENES

2.1. Introdução

Como foi demonstrado no capítulo anterior, a polissemia sobre o vocábulo

grego apokatástasis na maioria das vezes o seu significado remeteu-se ao retorno ao

estado original, foi essa ideia que a palavra permeou entre os primeiros pensadores

cristãos.

A influência gnóstica, fruto da inculturação helênica no cristianismo, se

desenvolverá de modo intenso nos ambientes eruditos de Alexandria, local da

formação religiosa e intelectual de Orígenes.

O gnosticismo que contém um dualismo cósmico como essência e cujo

conhecimento e a salvação é estranha a esse mundo,126 será um fenômeno no

pensamento cristão causando, na maioria das vezes, o desvio da ortodoxia. É nesse

contexto que Orígenes estabelecerá a autoridade de seu ensino, através do uso do

sistema filosófico corrente e da Sagrada Escritura, para instruir e responder as

questões dos cristãos intelectuais.

A apropriação do termo apokatástasis por Orígenes partirá da sua

preocupação com a ortodoxia. Ele sempre foi um homem da Igreja e, por isso, ao fazer

a reflexão teológica sobre a apokatástasis seu interesse primordial será pastoral,

razão pela qual, ele desenvolve um brilhante trabalho que parte de uma hermenêutica

alegórica bíblica que é bem sistematizada na sua obra: O Tratado sobre os princípios

“O Peri Archon”.

Esta síntese do autor alexandrino traz um novo significado à apokatástasis,

porém não é um resultado, devido a intenção do autor não ter sido a afirmação de

uma verdade infalível, a sua preocupação teológica foi responder os questionamentos

de seu tempo e a abordagem sobre a apokatástasis foi totalmente especulativa.

Portanto, será oportuno expor neste capítulo a formação e crescimento

intelectual de Orígenes, isso envolve a sua compreensão filosófica e teológica.

126 LIÉBAERT, 2013, p. 58.

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Entender o contexto histórico de sua época muito marcado com as heresias gnósticas

é o percurso para o entendimento do seu discurso sobre a apokatástasis envolve os

pontos de vista cristológico, antropológico e soteriológico.

2.2. O perfil teológico de Orígenes

No meio cristão, Orígenes (185 – 254 d.C.) é marcado pela tensão entre gênio

intelectual cristão e sua heterodoxia. Estes atributos são sublinhados pela audácia da

sua reflexão teológica no contexto do século III d.C., cujo pensamento cientifífico está

influenciado pela filosofia platônica, sobretudo o médio-platonismo, o estoicismo e o

gnosticismo que, diante das questões existenciais (Deus, Cosmos e Salvação) em

algumas condições, desviavam muitos cristãos da ortodoxia apostólica. No esforço

origeniano de encontrar respostas para as objeções de seu tempo, e tormamos como

fundamento a noção sobre o discurso cientifico de Thomas Kuh na modernidade que

descreve a linguagem científica como uma contínua quebra de paradigmas, temos o

mesmo pressuposto para o mestre da escola de Alexandria que olhando para os

mesmos pontos já discutidos na teologia rompe com paradigmas que foram capazes

de gerar crises na concepção de fé vigente de seus contemporâneos, essas crises

podem ser denominadas como uma revolução científica de seu tempo, visto que

Orígenes faz o uso de observações inovadoras com os instrumentos disponíveis de

seu ambiente intelectual, tal qual o platonismo e a exegese alegórica.127

O pressuposto de que Orígenes é um teológo paradgmático está na

configuração assegurada de sua múltipla formação que envolvia gramática, a filosofia

grega e a educação cristã centrada nas escrituras. Segundo Euzébio, o talento de

Orígenes elevava sua reputação, inclusive no ambiente dos filósofos gregos. Ele cita

uma narrativa de Porfírio que tentava denegrir a imagem do jovem prodígio, mas no

fundo não passava de uma demonstração de seu fascínio pela sua sabedoria e

127 Sobre este ponto do avanço científico a partir da quebra de paradigmas como forma de aprimoramento da ciência Cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Nelson Boeira. 13 ed. São Paulo: Perspectiva, 2018, p. 147-173.

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formação qualificada nas ciências gregas, que dentre os ouvintes do grande mestre,

Amônio Saca,128 foi o que mais se destacou.129

Sobre a opinião de Porfírio a respeito de Orígenes, Jaeger salienta que

mesmo o alexandrino sendo cristão, mantinha a ótica helênica sobre todos aspectos

da vida humana, até mesmo de Deus. Este ponto de vista filosófico foi estimulado pela

leitura constante de Platão. Jaerger acrescenta outra crítica positiva feita por Gregório

o Taumaturgo – discípulo de Orígenes –, que por não confiar nas interpretações

filosóficas de seus contemporâneos, sobretudo as de caráter sofístico, incentivava

seus discípulos ao estudo dos filósofos mais importantes na sua fonte origninal, ou

seja, seu método investigativo estava pautado na literatura platônica e pitagórica da

geração anterior. Essa metodologia de fixar nos filosofos de grande prestígio do

passado era práxi das escolas de filosofia grega de seu tempo,visto que também nos

escritos de Plotino esse método era evidente.130

O grau de intelectualidade elevado em Orígenes é corroborado por seu

cosmopolismo geográfico. Não foi um homem reduzido em um espaço geográfico,

muito pelo contrário, foi um homem viajado. Segundo Euzébio de Cesaréia, esteve na

Árabia, Palestina, Capadócia Grécia e, inclusive, Roma,131 sendo as duas últimas

cidades detentoras de um vasto comospolitismo cultural. Essa realidade itinerante de

Orígenes terá grande influência na sua reflexão teológica, dando um caráter mais

sofisticado, crítico, avançado e, consequentemente, o aumento do seu prestígio.

A notoriedade da fecunda sabedoria intelectual do mestre alexandrino não

rompe com a sua experiência mística, ou seja, não pode ser criado uma dicotomia

entre o conhecimento científico, especulador e investigativo com a experiência de fé

de Orígenes. É o que demonstra Euzébio de Cesaréia, ao descrever sua conduta

na juventude em meio a perseguição ocasionada por Sétimio Severo. Segundo o

historiador a causa de tanta admiração pelo catequista de alexandria se dava pelo

seu modo de acolhimento, prestatividade e coragem perante todas as pessoas sem

128 Amônio Sacas foi mestre da escola filosófica de Alexandria entre os séculos II e III. A princípio era cristão, mas voltou-se para a religião pagã. Não deixou nenhuma obra escrita, porém seu método de investigação acurada atraiu célebres discípulos tal como Orígenes e Plotino, o pai do neoplatonismo. Cf. REALE; ANTISERI, 1990, p. 338. 129 CESARÉIA, 2000, Livro VI XIX 1-12. 130 WERNER, 2014, p. 67-68. 131 CESARÉIA, 2000, Livro VI.

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fazer distinção alguma, levando em consideração todo ambiente de hostilidade

contra os cristãos, além do seu desprendimento perante os bens materiais. Esse

modo de ser de Orígenes arrebanhava cada vez mais discípulos, sendo que muitos

destes tornaram-se verdadeiros mártires.132 Dom Fernando exalta esse estilo de

vida do alexandrino ao dizer que “o ponto alto de sua mística é sem dúvida o

conhecimento, mas um conhecimento no amor”.133

A partir da análise deste desenvolvimento pessoal de Orígenes fica evidente

a profunda relação da sua vida mística com a sua reflexão teológica. Inclusive essa

característica presente em sua teologia terá muita influência na tradição posterior de

teólogos orientais que adquiriram um “ideal de conhecimento de natureza

mística”.134

Inerente ao estilo de vida pautada na experiência do amor, a Palavra da

Revelação ecoa como fonte fundamental no conhecimento teológico de Orígenes,

que desde a tenra infância foi instruido por seu pai ao estudo aprofundado das

Escrituras, antes mesmo dos saberes gregos. Desta forma, a sua capacidade de

interpretação da Palavra sempre visou ir além dos sentido literal, principalmente nas

passagens mais difíceis. Este apreço pela Palavra de Deus fará de Orígenes um

grande exegeta, que na ânsia de uma hermenêutica coerente com a ortodoxia fará

uso de diversas traduções existentes da Escritura, tal qual a escrita na língua

hebraica, a tradução dos LXX e outras traduções do existentes (Áquila, Símaco e

Teodocião).135

No tocante a ortodoxia, Orígenes foi contestado ainda em vida. Sua obra o

Tratado sobre os Princípios (Peri Archôn) lhe rendeu muitos adversários. Questões

sobre a preexistência das almas, apokatástasis, a possível salvação do Diabo e o

subentendido subordinacionismo do Verbo deram ao alexandrino o adjetivo de

herético. As controvérsias posteriores motivadas por esses temas fará um grande

estrago para a memória póstuma de Orígenes. O infortúnio será tão grave, que suas

teses serão condenadas pelo V Concíclio ecumênico de Contantinopla II, em 553,

132 CESARÉIA, 2000, Livro VI II 1-14. 133 FIGUEIREDO, 1984. 134 CROUZEL, Henri. Un teólogo controvertido. Trad. Espanhola realizada por las monjas benedictinas de la abadía Santa Escolástica de Victória. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2015. p. 171. 135 CESARÉIA, 2000, Livro VI.

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que fora convocado por Justiniano. Vale salientar que o Concílio condena o

origenismo que já havia corrompido as ideias origenianas.136

Mesmo sob as acusações de heresias perante Orígenes deve ser levado em

consideração o seu desejo de esclarecer a fé para muitos cristãos de seu tempo,

que estavam em desacordo com a profissão de fé em Cristo e que, portanto, se

afastavam dos ensinamentos dos apóstolos. Esse pressuposto para Orígenes foi o

motor para escrever o Tratado sobre os Principios como resposta aos problemas de

fé vigentes, entretanto, Orígenes sublinha que sua preocupação é manter-se sob a

tradição apostólica que detém o reto ensinamento recebido de Cristo e que haviam

pontos deste ensinamento que os apóstolos silenciaram, porém cabia a posteridade

eclesiástica elucidar para chegar à Verdade que é Cristo. Esses pontos para serem

respondidos correspondiam a realidade do Verbo, sua encarnação, o Pai, o Espírito

Santo, questões sobre a alma, a criação visível e invisível, e serviço investigativo,

que Orígenes toma pra si, mas que em algumas especulações ele não desenvolve

uma resposta fechada, chegando propôr mais de uma hipótese e, assim, deixando

claro que é o leitor que deve descidir qual solução pode acatar.137

Orígenes, teólogo paradigmático, filósofo e exegeta, homem itinerante e

pluricultural, profundamente místico e zelador implacável da ortodoxia, todas essas

características fazem parte da sua capacidade genial. A gênese do

desenvolvimento teologógico do grande teólogo alexandrino não pode ser

desvinculado das referências acima analisadas.

2.3. As correntes gnósticas mais influentes no período histórico de

Orígenes

Na passagem do século II para o século III as comunidades cristãs já estão

consolidadas, e estão muito mais aplicadas na defesa da ortodoxia. Esse

rebustecimento aplica-se por dois fatores, a estruturação do episcopado monárquico

e a propagação de uma fórmula do símbolo apostólico mais padronizado. Todo esse

empenho dá-se por uma Igreja que já ocupa todo território romano e adquiri um rosto

136 LIÉBAERT, 2013, p. 94. 137 ORÍGENES, 2012, p. 49-56.

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pluricultural, que alcança todas as camadas da sociedade, sendo que, cada vez mais

os cristãos elitizados vão compondo as comunidades. Neste instante, a Igreja não tem

apenas o objetivo de defender-se contra o paganismo, mas sua preocupação é

também salvaguardar a fé no âmbito ad-intra, pois várias correntes influenciam os

cristãos. Em vista disso, as heresias passam a pulular por toda parte.

Neste universo religioso os escritos são inúmeros e o canôn biblico não está

definido oficialmente, porém as comunidades já possuem uma fé amadurecida capaz

de distinguir os textos sagrados autênticos dos textos apócrifos, sendo estes últimos

produzidos em quantidade muito menor do que nos séculos anteriores, no entanto

com um conteúdo profundamente gnóstico.138

Toda agitação existente em relação aos escritos tem como princípio

fundamental responder questões dos dados de fé, recebidas na Revelação, que eram

difíceis de compreender. Por isso, temas como a Trindade ,o Verbo, a encarnação, o

livre arbítrio e a providência divina, eram o amplo cenário para a reflexão teológica.

Na prática, as influências culturais presentes nas comunidades cristãs promoveram o

desenvolvimento da mais diversas correntes, tal qual as de tradições judaicas que

podemos denominar como os judeus-cristãos, que faziam interpretações mais literais

da Escritura; haviam cristãos convertidos do paganismo com forte influência filosófica

e os oriundos do gnosticismo que traziam no bojo uma hermenêutica alegórica. Deve

ser ressaltado que este grupo é resultado de confluências entre a heterodoxia judaica

e as tendências gnósticas gregas. Filon de Alexandria é o protagonista deste

movimento.139

2.3.1. O Marcionismo e o anti-judaísmo

As escolas gnósticas da tríade Marcião-Valentim-Basílides são as mais

conhecidas, devido sua ampla influência no meio cristão decorrente de um discurso

teológico eloquente e suficiente. Sesboué, depois de analizar a pesquisa de diversos

138 PIERINI, Franco. A idade antiga. Curso de História da Igreja. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 1998, p. 95-96. 139 SESBOUÉ, 2004, p. 39.

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estudiosos católicos e protestantes, indica um ponto comum entre os gnósticos, do

qual foram os primeiros intelectuais cristãos com muito talento, que mesmo

posteriormente serem conhecidos como heterodoxos, o ponto paradoxal decorre de

alguns pontos de sua teologia serem mais adequados do que teólogos cristãos

contemporâneos. Eles foram aqueles que primeiramente, melhor apresentaram, de

forma sistematizada uma teologia da criação e da salvação, mas, por outro lado,

afirmar que suas teorias foram as primeiras a representar a teólogia cristã constitui

um grave erro.140

Desta tríade, Marcião é o menos gnóstico. Sua tendência fortemente

antijudaica tem o objetivo de suplantar o cristianismo diante do judaísmo por meio de

uma exegese que interpretava literalmente os textos do Antigo Testamento ao ponto

de rejeitá-lo, pois distingue o Pai amoroso e bondoso de Jesus do Evangelho com o

Deus justo e vingativo do veterotestamento. Segundo C. Moreschini e E. Norelli, o que

diferencia da maioria dos gnósticos é a ausência de um ponto essencial da gnose,

que correponde “a substancialidade dos salvos com a divindade suprema; eles

pertencem na verdade inteiramente ao Criador, não tem em si nada que provenha do

Pai de Jesus”.141

2.3.2. A escola Valentiniana

De origem alexandrina e fundador de escolas no ocidente e oriente Valentim,

teólogo do pleroma (locus da totalidade do mundo divino), terá a sua teoria entre as

mais citadas pelos Padres da Igreja. Com base nos escritos do Antigo e Novo

Testamento faz uso do método alegórico em sua exegese, acrescido ao

desenvolvimento de suas formulações utiliza-se de representações mitológicas. Entre

outras características está a visão dualistica do mundo, de modo que a matéria,

composição do mundo visível, é constituinte da corruptibilidade e do mau. Este ponto

de vista implicará na elaboração de sua cristologia, que para salvaguardar a

transcendência e a incorruptibilidade do Verbo, negará a sua humanidade integral, já

140 SESBOUÉ, 2004, p. 41-42. 141 MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 247-248.

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que se o corpo constituído de corruptibilidade não pode ser assumido. Portanto, toda

a ação terrena do Cristo é mera aparência (docetismo).142

A antropologia valentiniana é profundamente desigual e marcada por um

determinismo soteriologico definido em função de sua origem, ferindo totalmente o

lívre-arbítrio humano no processo de salvação. Esse conceito culmina na divisão da

humanidade em três categorias: os verdadeiros cristãos, consubstanciais aos seres

divinos por possuirem a matéria totalmente possuida pelo Espírito de Deus e que

serão salvos; denominados por pneumáticos ou os espirituais, os de natureza psíquica

que podem obter a salvação de forma inferior por meio de sua conduta; e os hílicos

(materiais ou carnais), por pertencerem ao Príncipe deste mundo (Demiurgo) são

excluídos da salvação.143

2.3.3. Basíledes

Dentre as três escolas gnósticas, os escritos de Basíledes são os mais difíceis

de provar sua originalidade. A partir do relato de Irineu, há uma descrição da noção

teológica de Basíledes de forma hierarquizada. Essa metodologia busca sistematizar

a cosmogonia, a cristologia e a soteriologia tanto debatida naquele tempo. Nessa

hierarquia é evidente o antagonismo entre Espírito e matéria, sendo que, na primeira

escala há o céu superior, invisível e perfeitíssimo do Pai ingênito, do qual nasce o

Nous primogênito denominado Cristo. Numa escala abaixo, o céu inferior semelhante

ao primeiro porém visível, habitado pelos Anjos e liderados pelo Deus dos judeus –

nesse caso também considerado anjo – criadores do mundo visível no qual o chefe

de todos os Anjos quis submeter a outras nações ao seu povo originando o embate

com outras postestades que derrotarão seu povo. Dessa formulação depreende-se

uma cristologia excêntrica, da qual o Pai envia o Nous chamado Cristo para salvar,

fez todo o bem nesse mundo mas na paixão e crucificação trocou de lugar com Simão

de Cirene, por isso crer no crucificado é um erro porque na cruz não era o Cristo, o

verdadeiro Logos, que é incorpóreo, transfigurou-se quando quis e subiu ao céu.

142 SESBOUÉ, 2004, p. 40. 143 ORÍGENES, 2012, p. 29.

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Somente os possuidores desse conhecimento, além de guardar essa gnose em

segredo, são os que serão libertados dos criadores desse mundo e salvarão apenas

sua alma, pois o corpo é corruptível por natureza. Aqui o aspecto soteriológico é bem

rigorista, pois somente uns poucos serão salvos, “um por mil , dois por dez mil”.144

2.4. Orígenes, soluções viáveis na obra Tratado sobre os príncípos para as

questões gnósticas

Perante a trilogia herética Marcião-Valentim-Basílides, consideradas as

mais influentes no contexto histórico de Orígenes, muitos cristãos estavam trilhando

caminhos incompatíveis com a fé. Questões fundamentais como a profissão de fé

trinitária estavam abaladas por uma linguagem cheia de mitos e antropomorfismos.

Para evitar o influxo de uma sistematização dos príncípios e de uma gnose salvadora

dos autores gnósticos, Orígenes predispõe-se a dar respostas sobre temas ligados

aos Princípios:145 Deus, as criaturas racionais e o mundo a partir da autêntica

autoridade da Escritura, porém sem prescindir da linguagem filosófica. Essa

metodologia revela o Orígenes teólogo, que sabe transpor uma linguagem mais

simples usada nos seus sermões, para uma linguagem mais elevada diante de um

público mais exigente.

Esta forma literária mais erudita de Orígenes segue os modelos de discussão

filosófica da literatura grega de seu tempo, com um conteúdo mais científico de

profunda investigação, este estilo sistmatizado e mais sóbrio. É evidente na obra “O

Tratado sobre os princípios” (Peri Archôn), que diante de um adversário ameaçador,

como o gnosticismo da triáde Marcião-Valentim-Basílides, representa um material

eficiente capaz de satisfazer os apetites gnósticos de seus contemporâneos e fazer

frente as teses bem elaboradas dos hereges.138

144 IRINEU DE LIÃO, Contra as Heresias. Livro I 24, 1-6. 145 RIUS-CAMPS em “Los diversos estratos redaccionales del Peri Archon de Orígenes” na análise semântica do termo “Principio” em Orígenes faz menção ao grande numero de obras no âmbito filosófico, eclesiástico e gnóstico no período contemporâneo de Orígenes sobre o tema dos Princípios e que Clemente de Alexandria havia proposto uma obra - inclusive como o mesmo o mesmo título “Tratado sobre os princípios” utilizado posteriormente por Orígenes - mas não concretizou. Cf. p. 8-9.

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2.4.1. Refutação ao Marcionismo

Contra o marcionismo, no “O Tratado sobre os princípios”, o gênio alexandrino

insiste na identidade do Pai Criador com o Pai de Jesus Cristo:

“Mas, uma vez que alguns se pertubaram porque os líderes dessa heresia parecem ter separado o justo do bom, declarando que o justo é uma coisa e que o bom é outra, e também aplicaram essa distinção à divindade, afirmando que o Deus Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo é bom e que o Deus da Lei e dos profetas é justo mas não é bom, creio que é preciso responder a essa questão o mais brevemente que puder.146

Essa dupla identidade do Pai, vislumbrada por Marcião, é fruto de uma

interpretação literal e antropomórfica das ações de crueldade e vingativas do Deus

justo no Antigo Testamento e, pode-se acrescentar, que o desejo de salvar a

impassibilidade do Pai promove o antagonismo entre o Deus justo do primeiro

testamento ao Deus bom dos Evangelhos. Contra esse argumento Orígenes fará uso

de sua exegese alegórica para salvar o Antigo Testamento e demonstrar a pessoa

única do Pai e que somente por uma compreensão espiritual podemos entender as

mudanças de comportamentos em Deus. Segundo Crouzel, o fato dos marcionitas

fazerem uso do absurdo sentido literal da escritura faz com que Orígenes se dirija a

eles acusando-os de ignorância do sentido espirtual.147

É importante sublinhar que a exegése espiritual de Orígenes é herança do

ambiente cultural helênico. Crouzel constata o uso da exegese alegórica no meio

filosófico da tradição pagã, que tem como objetivo a defesa de trechos difíceis e

imorais dos filósofos da antiguidade: Homero e Hesíodo. Segundo essa tradição,

essas passagens difíceis contém símbolos de verdades filosóficas. Da mesma

maneira, Platão em muitas vezes emprega uma linguagem alegórica quando não pode

expressar-se com firmeza na explicação de um mito, contudo, esse método de

investigação filosófica pagã compõe a exegese de Orígenes.148

O teólogo alexandrino possui uma visão de mundo análoga a visão platônica,

que cambia entre o mundo divino dos mistérios, princípio incriado e incorpóreo,

146 ORÍGENES, 2012, II, 5-1. 147 CROUZEL, 2015, p. 93. 148 Ibid., p. 114.

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modelo perfeito de santidade similar ao mundo das ideias de Platão, e o mundo

material como imagem dos mistérios, marcado pela participação humana com seu

livre arbítrio como sujeito do conhecimento místico.149

Em vista disso, a exegese alegórica ou espiritual em Orígenes se apresenta

como relevante no processo de participação da realidade divina, ou melhor, de

santificação. Esta atitude apresenta o sentido espiritual como critério de superação do

sentido literal, principalmente em passagens incompatíveis com a dignidade das

escrituras. Porém, não significa uma minimização do sentido literal, que segundo o

pensamento origeniano, também faz parte da providência divina no desejo de

salvação do homem. “Assim como o homem é composto de corpo, de alma e de

espírito, assim é a Escritura que, na sua providência, Deus deu para a salvação dos

homens”.150 Essa analogia da Escritura com a sua antropologia tricotômica, que ao

ser analisada parte por parte, o corpo corresponde ao sentido literal que está ligado

aos homens comuns, a alma está ligada ao sentido moral sinal de progressão e o

espírito relacionado ao sentido espiritual, que nos introduz nos mistérios divinos.151

2.4.2. O método alegórido como método de refutação contra Valentim e Basílides

Se contra o marcionismo Orígenes fez a refutação de suas teorias literalistas

por meio da exegese alegórica, a metodologia para contestar as outras correntes

gnósticas será a mesma, porém com um diferencial. Tanto o gnosticismo da escola

de Basíledes como de Valentim também fazem uso do alegorismo para o

desenvolvimento de seus argumentos.

“Por interpretações alegóricas das palavras de Jesus, encontravam nelas uma série de alusões a do contexto do drama gnóstico de queda e redenção. Tal método exegético é em si mesmo menos distante do que possa parecer do praticados na “grande Igreja”, onde pela interpretação alegórica se adaptava o Antigo Testamento às novas exigências criadas pela fé em Jesus”.152

149 Ibid., p. 144. 150 ORÍGENES, 2012, IV, 2,4. 151 CROUZEL, 2015, p. 115. 152 MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 249.

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As correntes gnósticas citadas acima, por meio da alegorização,

sistematizaram uma reflexão teológica sobre as diversidades existentes no mundo,

oriunda de uma eleição pré-cósmica que determinou as diferenças entre judeus ou

gregos, feios e bonitos, fortes e fracos, ricos e pobres, bons e maus. Esse tipo de

variedade estava relacionada às suas naturezas, sejam aquelas que foram criadas

más ou aquelas que já foram destinadas a serem boas. Este argumento afeta

plenamente livre arbítrio humano, tal como a providência divina.153 Em oposição ao

argumento em questão, Orígenes principiará a sua refutação da condição original

igual entre todos os seres racionais na preexistência, e que a diversidade é resultado

dos méritos de cada ser. Esta justificativa tem como preocupação de fundo

salvaguardar a bondade, a providência e a justiça de Deus, assim como o livre-arbítrio

dos seres racionais.

“Na opinião desses hereges, quando ainda não tinham sido criados e que não tinham feito ainda nem o bem nem o mal e, como aqueles pensam, a fim de que mantivesse a decisão e propósito de Deus, uns foram feitos seres celestes, outros, terrestres, e outros, infernais, não em consequência das suas obras, mas pela vontade daquele que os chamou. [...] se repararmos que essa diversidade não é o estado inicial da criatura, mas que devido as causas antecedentes, o Criador prepara cada um uma função e um serviço diferente conforme a dignidade do seu mérito: isso decorre certamente do fato de que cada um, porque foi criado por Deus como inteligência ou como espírito racional, adquiriu para si mais ou menos méritos em razão das ações da inteligência e dos sentimentos espirituais, e assim tornou amável ou odiável para Deus”.154

O Cenário por trás de toda controvérsia postulada pelos gnósticos está a

origem do mal. Para eles o mundo é um exílio, ao que Orígenes pensa similarmente.

Na busca de solução para essa indagação, os gnósticos sistematizaram com base em

esquemas teológico-filosóficos que perpassam toda história. Partem de uma

concepção de cosmogonia que está atrelada à uma condição pré-cósmica.

Incorporado a esse aspecto surgem teorias sobre o Criador, que para livrá-lo da

materialidade má por natureza, imprimem a ideia do Demiurgo. Esse mesmo conceito

é aplicado ao Verbo, a ponto de negar sua encarnação, também em vista de preservá-

lo da materialidade.

Do ponto de vista antropológico existe a argumentação da queda do ser

humano na matéria, que desemboca numa soteriologia predestinada usurpadora do

153 ORÍGENES, 2012, II, 9, 5. 154 Ibid., II, 9, 7.

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livre-arbítrio e que fere a providência divina, na qual só os verdadeiros gnósticos,

aqueles que são consubstanciais aos seres divinos, se salvarão. Esta salvação

consiste em uma gnose do estado original e com isso a busca a este retorno, a

apokatástasis.

Este conteúdo gnóstico, que perpassa toda a história, será o modelo de

sistematização e refutação de Orígenes, que preocupado em conservar a ortodoxia

apostólica, desenvolverá uma reflexão teológica que percorrerá toda história desde a

pré-existência ao seu fim último, a apokatástasis, o Alfa e o Omega. A centralidade

de todo esse esforço do teólogo alexandrino está na bondade divina e a liberdade

humana.

2.5. O vocábulo apokatástasis como expressão de linguagem na reflexão

teólogica de Orígenes

O vocábulo apokatástasis, no século III d.C., era comum na cultura grega, de

uso cotidiano como expressão da linguagem vulgar, assim como no meio científico,

ou seja, o meio filosófico como termo técnico a fim de esclarecer aspectos

escatológicos da religiosidade pagã. No primeiro capítulo foi abordado as

transformações semânticas do termo e também a imersão do cristianismo na cultura

grega que, ao absorver a linguagem corrente, toma, no âmbito literário, a palavra

apokatástasis como empréstimo, renovando o seu significado. Um autêntico

neologismo semântico.

Nos dias atuais, a menção do termo apokatástasis na linguagem teológica

remete a Orígenes, especialmente sobre sua condenação póstuma de heresia. Este

vínculo causa a identificação do escritor Alexandrino como o pai da apokatástasis, um

teólogo herético que formulou a doutrina sobre a salvação universal. Segundo

Crouzel, essa atribuição é fruto de um mal-entendido: “A causa dos mal-entendidos

pelos quais Orígenes foi acusado de heresias múltiplas, muitas vezes contraditórias,

pode ser reduzida em grande parte à ignorância de seus detratores”155 tal como Teófilo

de Alexandria (+ 412 d.C. ) e Jerônimo (+420 d.C.) influenciados pelo origenismo.

155 CROUZEL, 2015, p. 240.

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É inegável que a genialidade de Orígenes o capacita à inovação na reflexão

teológica. Foi capaz de causar quebras de paradigmas sem prescindir do terreno da

polêmica no intento de defender a ortodoxia frente as heresias de seu tempo, recorreu

ao uso de neologismo ao assumir o vocábulo apokatástasis como termo técnico na

linguagem teológica, fato que elevou a qualidade de sua teologia. A partir deste

contexto, que A. Mehat considera Orígenes foi o pioneiro dentro da Grande Igreja de

fazer uso do vocábulo apokatástasis como doutrina da restauração ao estado original:

É Orígenes quem, primeiro, pelo menos dentro da grande Igreja e da tradição alexandrina, ligou-a à doutrina da restauração ao estado original. Ele fez isso com muito rigor aparente, imprimiu com tal caráter de necessidade que a palavra permaneceu marcada e que hoje é difícil livrar-se dela. É o efeito do gênio para recriar palavras. Isso é um perigo. Pertenceu a Orígenes anexar a este às suas ideias mais ousadas para tornar uma palavra bíblica um título no capítulo da história das heresias.156

Tendo em vista que Orígenes é o primeiro a dar o sentido de restauração ao

estado original ao vocábulo apokatástasis, pressupõe-se que, até então, o uso do

termo dentro da tradição cristã possuía outra significação. Exemplo disso está o

sentido profético-escatológico em At 3, 21 assim como o sentido de crescimento

gradual de perfeição do ser humano, que inicia-se nesta existência e que este

processa também se dá na vida ultraterrena. Crouzel, igualmente, entende que

Orígenes faz uso do vocábulo que já achava-se na tradição eclesiástica, ao fazer a

menção de uma passagem do primeiro livro do Comentário de João (I, 16, 91):

No primeiro livro do Comentário de João se menciona “o que é chamado a apokatástasis” definido pela situação indicada por Paulo em 1Cor 15, 25.157 Essa expressão "o que é chamado" mostra que Orígenes não é o inventor da apokatástasis mas havia encontrado antes dele, em relação ao verso paulino.158

O conceito de Orígenes sobre apokatástasis ocasionou-lhe resultados

desfavoráveis, devido interpretações distorcidas pelos origenistas dos secúlos IV e

V. Foi anatematizado no V Concílio ecumênico de Constantinopla II sob a rege de

Justiniano.159 Não foi levado em consideração que o método teológico de Orígenes

156 MÉHAT, 1956, p. 196-214. 157 Esta passagem do texto paulino faz claramente referência a condição final de salvação universal, o fim de todo o mal está expresso na destruição da morte, enfim, a reconciliação definitiva de todos com Deus, “em que Deus será tudo em todos”, condição perdida pela queda na origem. RAMELLI, 2013, p. 5. 158 CROUZEL, 2015, p. 362. 159 Ibid., p. 251.

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teve como fundamento a investigação e que levantou hipóteses para que pudessem

ser discutidas, não houve a intenção de sua parte formular uma doutrina fechada.

Pois, se está acostumado a estas questões, tudo lhe parecerá vão e supérfluo; mas se já chegar com o ânimo cheio de preconceitos e de prevenção baseado em outras doutrinas vai julgar que são coisas heréticas, contrárias a fé da Igreja; mas o que o levará a isso não será tanto a sua razão quanto a prevenção do seu ânimo. Dizemos isso com muito receio e cautela, antes de mais como algo a questionar e discutir do que como algo certo e definido.160

Diante desta simpatia de Orígenes pela hipótese teológica da apokatástasis,

Daley161 ressalta que por mais que os escritos cristãos do século II o sentido da

palavra estivesse relacionada com “alcance” ou “realização” de um propósito, para

Orígenes a concepção possui dimensão prospectiva e retrospectiva. Este

entendimento está vinculado ao restabelecimento à uma condição original de união a

Deus que foi perdida, na qual o contexto está numa regra largamente manifestada por

Orígenes: “fim é semelhante ao começo”.162 Segundo Crouzel, Paulo é a gênese

dessa regra “Deus será tudo em todos” (1 Cor 15, 28), porém com uma ressalva, que

a semelhança entre fim e começo está apenas na submissão a Deus, mas que entre

um e outro Orígenes não descarta a possibilidade de crescimento gradativo. A partir

dessa hipótese, o autor do Tratado sobre os princípios, menciona diversas vezes

mundos sucessivos e distintos, do qual o primeiro mundo é o das inteligências

preexistentes, o mundo atual e, por último, o mundo da ressurreição. Vale reiterar que

Orígenes propõe essas ideias apenas como pressupostos para uma eventual

discussão.163

A argumentação teológica-filosófica de Orígenes sobre a sucessão de

mundos compostos pelas as três dimensões acima descritas, está incutido a

articulação entre elementos da teologia vigente no seu tempo, tal como a cosmogonia

160 ORÍGENES, 2012, I,6,1. 161 DALEY, Brian E. Origens da escatologia cristã: a esperança da Igreja primitiva. São Paulo: Paulus 1994, p. 93. 162 ALMEIDA, Rogério M., LETENSKI, Irineu. Orígenes: um pensador paradoxo? – disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/prometeus/article/view/4432>. Argumentam que o conceito de apokatástasis no pensamento origeniano possui elementos do estoicismo, sobretudo a definição de Crisipo que assumi a ideia platônica: “para quem não se pode pensar uma coisa sem, ao mesmo tempo, pensar o seu oposto, por exemplo, a saúde e a doença, a justiça e a injustiça, a sabedoria e a ignorância”, este elemento do estoicismo é presente em Orígenes quando faz referência as almas quando “elas “convergem para formarem a completude e a perfeição de um único mundo, no sentido de que a variedade das almas tende para um fim, que é a perfeição”. 163 CROUZEL, 2015, p. 287-288.

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e a soteriologia, o princípio e o fim de todas as coisas ( apokatástasis), de modo que,

para formular um discurso sobre o último, é indissociável uma articulação teológica

sobre o princípio, cuja a preocupação fundamental é preservar dos argumentos

gnósticos a bondade e a justiça essenciais a providência divina e o livre arbítrio de

todos seres racionais. Orígenes entende que a tradição eclesiástica identificou e

discutiu a origem da Criação assim como o seu fim, porém não há em seu tempo uma

linguagem teológica explícita, ou melhor, bem articulada sobre este conteúdo. Além

do seu desejo de propor uma articulação teológica suficiente, há o desejo de

permanecer fiel ortodoxia.

“Há outro ponto da pregação eclesiástica: que este mundo foi criado e começou num tempo determinado , e que está destinado a desaparecer, em razão de sua corruptibilidade. Quanto a saber o que havia antes deste mundo, e o que haverá depois deste mundo, são poucos até agora os que chegaram a ter sobre isso uma ideia clara, porque a esse propósito não há uma doutrina explícita na pregação eclesiástica.164

2.6. Orígenes e a perspectiva Cristológica da apokatástasis

A influência da filosofia grega na formação intelectual de Orígenes confere-

lhe um ponto de vista sobre universo marcadamente platônico, em que a estrutura

consiste em dois mundos, o primeiro sensível e o outro inteligível, e que há uma

progressão do mundo sensível para o inteligível, sendo que este mesmo processo

está presente no seu entendimento sobre interpretação da Sagrada Escritura. É

necessário esforçar-se por meio do sentido literal para alcançar o sentido espiritual,

este último método de interpretação, também denominado alegórico, torna-se

privilegiado por Orígenes, e seu fundamento está na tradição apostólica e tem como

objetivo de alcançar a sabedoria escondida nos mistérios divinos: “em todas as coisas,

conforme o mandamento apostólico, é preciso procurar a sabedoria escondida no

mistério, aquela que Deus predestinou antes de todos os séculos para a glória dos

justos, aquela que nenhum dos dirigentes deste mundo conheceu”.165

Como se vê, o discurso teológico do exegeta e escritor Orígenes, está

entrelaçado com o platonismo e o sentido alegórico de forma mais relevante, com

164 ORÍGENES, 2012, Pref. 7. 165 Ibid., IV, 2, 6.

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intento de atingir a sabedoria ou a verdadeira gnose, como era de praxe das correntes

gnósticas a dedicação na investigação sobre os princípios. Ou seja, a origem do

mundo sensível e dos seus seres, remetia em primeira ordem ao estudo de Deus, o

Logos ou ser Uno que precisamente englobava o princípio de tudo. Orígenes, para

enfrentar a problemática criada pelas argumentações gnóstica, desenvolve um

sistema teológico – O Tratado sobre os princípios – para elucidar os princípios a partir

do Logos, mediador da esfera divina com o mundo sensível. Este pressuposto foi

necessário para desenvolver sistematicamente, com elementos platônicos e

linguagem alegórica, sua noção sobre apokatástasis.

Anteriormente foi dito que Orígenes pensa o fim de todas as coisas

(apokatástasis) totalmente indissociável do princípio, por isso o ponto de partida do

seu esquema teológico é o Logos, principio de tudo e sabedoria personificada: Por

isso ele é chamado primogênito pelo apóstolo Paulo. Contudo, primogênito é por

natureza a Sabedoria, sem distinção, uma coisa só.166 Haight entende que esta

definição do Logos-Sabedoria origeniano é o “arcabouço geral de toda a criação, da

queda das almas racionais, da criação do mundo, como região da qual devem

esforçar-se por retornar a Deus e alcançar a salvação”, por esse contexto pautado no

ponto de vista do discurso cristológico do mestre alexandrino, sobretudo na doutrina

do Cristo Logos-Sabedoria uma questão é fundamental: a mediação do Logos em

duas perspectivas, no âmbito divino e humano. Haight elucida sem muitos rodeios

este ponto do pensamento de Orígenes sobre o papel do Logos Mediador:

Nesse esquema, Jesus Cristo, que é idêntico ao Filho,à sabedoria ou ao Verbo desde sempre gerado, constitui-se como mediador. É antes de tudo princípio que une a realidade criada a Deus, porque Deus cria por seu Verbo ou sabedoria. Após a queda, no entando, o Filho é mediador de uma segunda forma, como salvador encarnado. Todas as coisas retornarão a Deus pela mediação salvífica da sabedoria, do Verbo ou do Filho encarnado na alma e na carne humana de Jesus.167

Tem-se, portanto, que no pensamento origeniano a realidade mistérica sobre

o princípio de tudo está na pessoa do Filho. O Logos-Sabedoria, subsistente por si

mesmo, é mediador e intermediário entre Deus e a criação, que é animada e participa

166 ORÍGENES, 2012, I, 2, 1. 167 HAIGHT, Roger. Jesus símbolo de Deus. São Paulo: Paulina. 2ª ed. 2005, p. 296.

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dele, “pelo fato de conter e pré-formar em si as espécies e as razões seminais168 de

toda a criação”.169

Frente ao único princípio, que é a Sabedoria, o mundo criado (corporal e

espiritual) possui características antagônicas, devido conter multiplicidade e

diversidade de naturezas racionais qualificadas pelo grau maior ou menor de

participação na vida divina. Os marcionistas e valentinianos argumentavam que entre

as diferenças, aquilo que é mal é próprio da natureza, ou seja, Deus havia criado os

seres maus por natureza. Considerando que Orígenes para salvaguardar os atributos

de Deus– tal como: criador, benfeitor e providente – argumenta que toda diversidade

existente nas criaturas racionais provém de uma condição meritória adquirida pelo

livre arbítrio, fruto de um comportamento de afastamento (uns mais outros menos) da

divindade ainda na preexistência, portanto faz parte do julgamento da providência

de Deus a diversidade dos seres que ao se originarem participando de uma mesma

natureza, diversificaram-se e distinguiram-se entre seres celestes, terrestres e dos

infernos, devido comportamento negligente. De acordo com esse argumento,

Orígenes afirma categoricamente que Deus nunca deixou de ser criador, benévolo e

providente.

Sendo a preexistência argumento teórico para assegurar o livre arbítrio dos

seres racionais, Haight enfatiza que a cristologia de Orígenes “tem uma noção mais

abrangente da humanidade de Jesus: sua união com Deus e o fato de ser o Cristo

envolvem a liberdade humana,”170 portanto, a encarnação faz parte da dinâmica

providencial e pedagógica de Deus perante aos que se afastaram por livre vontade do

Logos. Decaíram e como consequência ficaram ligados a um corpo, assim sendo, a

corporeidade humana é decorrente da queda na preexistência.

“o gênero humano teve necessidade não somente dessa ajuda e de defensores semelhantes a ele, mas reclamou pelo socorro do próprio Criador e autor para restaurar a disciplina corrompida e profanada: nuns a da obediência, noutros a da autoridade. Por isso é que o Filho Único de Deus, Palavra e Sabedoria do Pai, quando se encontrava junto do Pai na glória que tinha antes da existência do mundo, se aniquilou a si mesmo, e, tomando a forma de escravo, fez-se obediente até a morte, para ensinar a obediência àqueles que não podiam obter salvação a não ser pela obediência, para

168 Tem-se aqui a influência estoica na cosmogonia de Orígenes, essa menção das razões seminais remonta a ideia monista do logos que como sêmen da origem a tudo, ou como um sêmen que contém todos os sêmens. 169 ORÍGENES, 2012, I, 2,3. 170 HAIGHT, 2005, p. 299.

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restaurar assim as leis corrompidas da arte de governar e de reinar, submetendo todos os inimigos a seus pés”.171

Nesse processo que perpassa pela condição original preexistente dos seres

racionais, realidade que abrange participação na vida divina, e que por negligência

ocorreu a queda, a encarnação assume papel providencial e pedagógico para uma

restauração da condição original perdida, deve ser ressaltado que Orígenes fala de

uma restauração da disciplina corrompida, desse modo reconduzir a humanidade por

meio de um processo educativo à obediência.

2.6.1. A teologia origeniana da encarnação como processo apokatástico

Ainda dentro do aspecto cristológico da encarnação do Logos em Orígenes,

a solução hipotética172 que ele produz frente a visão negativa dos gnósticos sobre a

corporalidade, tal qual o adocionismo marcionita e o docetismo valentianiano, a

refutação de Orígenes é de que o Logos assumiu plenamente a corporalidade:

“àquele homem que surgiu na Judéia, e que a Sabedoria divina tenha entrado no ventre de uma mulher, tenha nascido tão pequeno e emitido vagidos como qualquer recém-nascido ao chorar; depois tenha sido tão perturbado pela morte, como ser se relata e ele mesmo reconhece: “minha alma tem sido levado à morte” (Mt 26,38), e que finalmente tenha sido levado à morte considerada mais indigna, mesmo que tenha ressuscitado três dias depois”.173

Na verdade, Orígenes não vê a materialidade como um mal em si, mas

entende que a natureza corporal sensível foi assumida como consequência da queda

na preexistência. Nessa condição o corpo terrestre detém a alma humana em

permanente tentação, além de ser o lugar da correção devido a gravidade da queda

na preexitência ter sido menos grave que a do diabo por exemplo.174

171 ORÍGENES, 2012, III, 5, 6. 172 Hipotética porque Orígenes deixa claro que a sua apresentação não é uma afirmação, simplesmente suposições que faz parte do desenvolvimento do seu raciocínio lógico. Ibid., II,6,2. 173 Ibid. 174 CROUZEL, 2015, p. 130.

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Para argumentar sobre a encarnação do Logos, a união ao corporal se dá

pela alma de Cristo,175 que possui a mesma natureza de todas as almas mas que foi

assumida por ele. Devido a perfeita união dessa alma com Logos, não há a

possibilidade de subsistir nele a pecabilidade, portanto, para Orígenes, esta alma

serviu de intermediário entre Deus e a carne, de modo “que sendo essa substância

uma intermediária, pois para ela não era contra a natureza assumir um corpo. E

também não era contra a natureza que essa alma, substancial e racional, pudesse

contemplar Deus”.176

Esta teologia origeniana da encarnação remete ao processo apokatástico em

que no fim tudo será submetido a Cristo. Para isso, há o pressuposto de um caminho

dos seres racionais rumo à perfeição, portanto, deve-se ter como pressuposto que a

alma de Cristo, unida perfeitamente ao Verbo, pode ser tomada como modelo

exemplar rumo a perfeição:

“Por isso é que Cristo é apresentado como exemplo para todos os crentes, porque como ele sempre, e antes mesmo de conhecer o mal, por mínimo que fosse, escolheu o bem, amou a justiça e odiou a iniquidade, por essa razão foi ungido por Deus com óleo da alegria; assim aquele que pecou ou errou purifique-se das suas manchas segundo o exemplo proposto, e que, tendo-o como guia do seu caminho, avance no duro caminho da virtude para que talvez assim, na medida do possível, sejamos feitos, ao imitá-lo”.177

Diante do exposto sobre a encarnação do Verbo está nítida a intenção de

Orígenes em preservar diante da argumentação gnóstica a providência divina e a

liberdade humana. Segundo Haigth, a cristologia de Orígenes é paradigmática e irá

favorecer o desenvolvimento das cristologias posteriores. O mesmo autor ressalta que

a teoria origeniana da encarnação, ao apresentar Jesus como modelo a ser imitado,

destaca a humanidade verdadeira de Jesus Cristo como revelador do Pai e “guia do

regresso humano a Deus” e, somado a essa realidade, está a ênfase na racionalidade

e liberdade humana.178 Portanto, o abaixamento do Logos à condição humana é um

quadro fundamental na teologia de Orígenes e está intimamente lignado a providência

175 Sesboué não vê positivamente o fato de que na preexistência a Alma de Cristo por amor ao Verbo ter unido a carne e por merecimento ser preservada do pecado, para ele a primeira questão está na precedência do mérito frente a encarnação e por conseguinte Sesboué afirma que a encarnação é um dom absolutamente gratuito de Deus, porém o que foi positivo é que Orígenes ajuda a desenvolver a partir desta reflexão sobre o “como da união” o futuro tema da “comunicação do idiomas”. Cf. SESBOUÉ, 2004, p. 197-198. 176 ORÍGENES, 2012, II,6,3-4. 177 Ibid., IV, 4,4. 178 HAIGHT, 2005, p. 299.

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divina de beneficiar ao ser humano – prezando sua liberdade –, um movimento de

crescimento rumo a perfeição que se dará na apokatástasis.

2.7. A perspectiva antropológica da apokatástasis em Orígenes

fundamentado em sua noção de preexistência

O desafio enfrentado por Orígenes era estabelecer uma teologia coerente e

sem desvios da tradição apostólica frente as correntes gnósticas que distorciam a

concepção sobre a bondade divina, na intenção de solucionar o problema das

diversidades existentes no mundo sensível, que originaram novos impasses de ordem

cosmológica, soteriológica e antropológica. De fato, este foi o quadro vivido por

Orígenes para argumentar a partir de suas convicções teológicas-filosóficas, porém

sempre com a intenção de produzir um debate aberto para novas discussões, tendo

como meta a defesa da justiça e bondade, atributos essenciais da Providência divina.

Esse aparato dá ao seu discurso teológico uma sistematização a partir da visão

singular da doutrina da Criação e da consumação de todos as coisas, “o fim é sempre

semelhante ao começo”, formula repetida diversas vezes no “Tratado sobre os

Princípios”. A partir desta metodologia, a antropologia de Orígenes torna-se uma

categoria predominante no desenvolvimento de sua reflexão teológica.

A teoria origeniana sobre os princípios envolve o estado preexistente, situação

em que todos os seres racionais possuem a mesma condição de beatitude, que por

negligência se afastaram deste estado originando a diversidade dos seres racionais.

Tal movimento, considerado como queda na preexistência, contribui para o

desenvolvimento antropológico de Orígenes, em que o ser humano tido como ser

racional idêntico ao outros seres racionais, tais como os celestes e os infernais, mas

que pela ação voluntária de afastamento da beatitude, porém menos grave que a dos

seres racionais infernais, tem como consequência a obtenção da condição corporal.

Este estado de seres terrestres ou corporais, primeiramente, é resultante dos méritos

e, consequentemente, pela ação providencial divina, que possibilita a todos a partir

do livre-arbítrio a atitude de progressão e, de modo consequente, a restauração a

condição original perdida na queda.

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O fato de Orígenes pertencer a uma geração de cristãos do fim do século II e

início do século III, ou seja, numa situação precedente aos Concílios dogmáticos, a

sua reflexão teológica, sobretudo no Tratado sobre os Princípios, obra considerada

pioneira na teologia sistemática, e que a investigação sobre a teoria da preexistência

de modo competente foi bem detalhada. Mesmo esse tema sendo confrontado,

refutado e considerado herético a partir do século IV na crise origenista, resta buscar

entender qual é o princípio metodológico de Orígenes para a composição do seu

pensamento sobre a preexistência.

Segundo Crouzel, a hipótese origeniana sobre a preexistência advém do

platonismo, porém com uma intenção puramente cristã, que decorre de sua busca de

solução das polêmicas existentes entre os valentinianos e marcionistas. A diferença

da teoria de Orígenes diante da concepção platônica da preexistência é descrita pelo

teológo jesuíta francês, da seguinte forma:

“não parece que a preexistência em Orígenes obedeça as mesmas razões em Platão. A obra de Orígenes não faz alusão clara sobre a contemplação das ideias na existência e a reminiscência que permitiria ao homem no transcurso de sua existência terrena encontrar-se novamente com as ideias através dos seres sensíveis que participam delas [...] se trata de uma instrução de Deus antes de assumir a condição terrestre, uma instrução que a alma revestida desse corpo terrestre recorda; mas não é uma questão de reconhecer nos seres sensíveis as ideias das quais eles participam, mas de serem instruídas nas coisas divinas; tudo isso é expresso mais como uma questão do que como uma afirmação clara e pode ser também uma consequência da doutrina da imagem de Deus”.179

Ao considerar o uso dos fundamentos da filosofia platônica por Orígenes no

desenvolvimento de sua teoria da preexistência, pode-se admitir que esta ideia

causou estranhamento e mal-entendidos entre a tradição eclesiástica posterior, que

devido a experiência vivida pelo episódio do arianismo e ao vínculo ao Estado romano,

obteve um ponto de vista negativo sobre tudo que vinha do mundo pagão, isso incluía

a filosofia.180

179 CROUZEL, 2015, p. 289-290. 180 Vale salientar sobre a questão da tradição eclesiástica pós-nicena que aderiu a uma ótica negativa sobre a filosofia o argumento feito por Crouzel de que a tradição eclesiástica da geração de Orígenes não via problema no uso da filosofia na linguagem teológica, fazia parte do processo de inculturação entre o mundo grego e a fé cristã, o teólogo francês acrescenta que padres da tradição pós-nicena tais como Jerônimo, Epifâneo, Metódio e Teófilo de Alexandria por mais que não fossem ignorantes em filosofia, quando lêem a obra de Orígenes mantem uma atitude que corresponde a realidade contemporânea que é a de contrapor e questionar tudo o que advém do mundo pagão. Cf. Ibid., p.239-241.

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A complexidade do termo preexistência na linguagem teológica de Orígenes

evidência no meio teológico ulterior interpretações equivocadas. Segundo Patrícia

Ciner, no seu artigo “El legado de Orígenes a la teología Cristiana Contemporânea”,

a preexistência para Orígenes não tem a conotação de um passado que está

desconectado do presente, mas uma presença que é garantida pela participação de

todas as criaturas espirituais na Sabedoria do Filho.

A proposta do professor alexandrino visa mostrar que esta eternidade do princípio coexiste com a dimensão material, que é sujeito ao tempo e espaço. Em outras palavras: as criaturas espirituais nunca perdem o contato direto com o divino, independentemente do estado transitório que elas assumem quando fazem uso de sua liberdade (anjo, homem ou demônio). Isso implica que "a passagem de volta ao seio divino "está inscrita na natureza profunda da alma humana e que neste tipo de" código genético espiritual "se tem a possibilidade de participar da Sabedoria divina, que é o que dá sentido à vida humana.181

Baseando-se nessa premissa, denota-se a preocupação de Orígenes em

enfatizar a liberdade humana na progressão ao bem. O fato de considerar essa atitude

humana como um código genético espiritual, significa que não são apenas alguns

indivíduos que podem alcançar a perfeição querida por Deus, mas que todos os seres

humanos estão orientados a perfeição que é manifesta na imagem do Filho de Deus

que se encarnou, porém sem jamais prescindir do livre-arbítrio. Em Orígenes a sua

antropologia jamais se desvincula da cristologia.

2.8. O conceito tricotômico antropológico de Orígenes no processo

apokatástico

O contato com a literatura platônica tem influência na compreensão

antropológica de Orígenes, isso pode ser observado na grande importância que ele

dá para a alma, mas não significa uma total absorção da concepção platônica. Existe

similaridade com a tricotomia da alma platônica, mas o mestre de Alexandria vê esta

concepção fora do testemunho da Escritura:

181 CINER, Patricia Andrea. “El legado de Orígenes a la teología cristiana contemporánea” [en línea]. Jornadas Diálogos: Literatura, Estética y Teología. La libertad del Espíritu, V, 17-19 septiembre 2013. Universidad Católica Argentina. Facultad de Filosofía y Letras, Buenos Aires. Disponível em: <http://bibliotecadigital.uca.edu.ar/repositorio/ponencias/legado-origenes-teologia-cristiana.pdf> acesso em: 01 fev. 2019.

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“será que a nossa alma, uma pela substância, é composta de vários elementos, uma parte racional, e outra irracional, sendo essa parte irracional dividida também em duas tendências: a da culpidez e a da cólera [...] Dessas como dissemos, não vejo que se possa confirmar pelo testemunho da divina Escritura...”.182

No entanto, a similaridade com o platonismo está na tricotomia, mas com uma

diferença categórica, visto que para Platão a tricotomia está na alma, para Orígenes

está no homem integral. Essa visão é descrita explicitamente quando frente a

interpretação literalista dos judeus e da corrente marcionistas defende uma

interpretação mística que ultrapassa a realidade da letra, e faz analogia desse tipo de

interpretação com sua visão antropológica: “Assim como o homem é composto de

corpo, de alma e de espírito, assim é a Escritura que, na sua providência, Deus deu

para a salvação dos homens”.183

No contexto histórico origeniano em que as correntes gnósticas, sobretudo a

corrente valentiniana, com postura radical de suas convicções doutrinais que os

afastavam da ortodoxia apostólica, de modo que sua compreensão antropológica que

abarcava as três naturezas da alma, sendo a primeira entendida como almas

pneumáticas ou espirituais por serem consubstanciais a divindade já estarem salvas,

num degrau inferior as almas de categoria psíquica que mesmo esforçando-se por

manter uma boa conduta possuiriam apenas uma salvação intermediária, no terceiro

degrau estão as almas hílicas (material), que por estarem totalmente ligadas a matéria

já estariam destinadas a morte, não havia salvação para essa categoria. Frente esse

determinismo que Orígenes para salvaguardar o livre-arbítrio desenvolve sua noção

de diversidade de condições questão inerente a sua visão antropológica.

Dizem-nos, pois: se, ao nascer, há uma variedade de condições tão variadas e diversas, nas quais a faculdade do livre-arbítrio não intervém, pois ninguém escolhe por si mesmo onde vai nascer, nem entre quem, nem em que condições, se portanto, dizem eles, isso não é causado pela diversidade da natureza das almas, isto é, pelo fato de que uma alma de natureza má seja destinada a nascer num povo de natureza má, e as boas, nos bons, que nos resta senão atribuir essas coisas ao imprevisível e ao acaso? Se aceitamos essa solução, o mundo não terá sido feito por Deus, e não será preciso acreditar que ele é regido pela Providência184.

Para solucionar esta espinhosa questão, Orígenes irá justamente acentuar o

caráter dinâmico de sua composição tricotômica do ser humano, sempre preocupado

182 ORÍGENES, 2012, III, 4, 1. 183 Ibid., IV, 2, 4. 184 Ibid., II, 9, 5.

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em ter como fundamento, a Escritura. Para expor sua reflexão teológica o seu

entendimento antropológico segue o modelo Paulino (1Ts 5,23), mas vinculado a esta

noção está a ideia da preexistência, portanto o homem tripartido possui essa condição

desde a sua origem, desta forma sistematizará seu ponto de vista antropológico que,

segundo Crouzel, em um contexto mais moral e ascético do que propriamente

místico.185

2.8.1. O Espírito

Dentre os três elementos presentes no homem, o espírito é compreendido por

Orígenes em dois aspectos. Conforme Dom Fernando, o primeiro: “é o componente

mais elevado e nobre no ser humano” e por conseguinte “Ele já é, por sua natureza,

participação do Espírito divino”,186 ou seja, a natureza humana não é santa

substancialmente, mas é pela participação no Espírito Santo que é santificada. Essa

realidade corresponde a progressão espiritual, portanto o espírito por ser dom de Deus

estendido a toda humanidade, não significa exatamente fazer parte da personalidade

humana, porque está relacionado com a sua abertura à graça divina, isto é, depende

do livre-arbítrio já que o dom de Deus, o Espírito doado não assume a

responsabilidade dos pecados de cada indivíduo, porém tem o encargo de agir como

o pedagogo da alma e conduzi-la a semelhança divina.187

2.8.2. A alma

Já a alma, é o elemento da composição humana em Orígenes com maior

relevância, considerada o arcabouço do livre-arbítrio, particularidade que difere da

concepção gnóstica, pois estabelece que a diversidade existente no mundo é de

origem voluntária de cada ser, ou seja, a condição original de todos seres racionais

eram idênticas. Essa especificidade de Orígenes sobre a alma o leva a crer que a

185 CROUZEL, 2015, p. 132. 186 FIGUEIREDO, 1984, p. 108. 187 CROUZEL, 2015, p.126.

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alma foi criada antes desta realidade terrestre, no estado de preexistência, portanto

todas as atitudes da alma desde este estado serão o fundamento para a relação alma

e corpo.

Orígenes é favorável a duas tendências na alma,188 uma superior e mais nobre

ligada ao espírito e outra inferior voltada para o corpo. Essa ótica origeniana tem

fundamento na Escritura e, certamente, é um recurso que torna relevante o seu

entendimento antropológico. Sesboué faz uma síntese bem adequada do fundamento

Bíblico de Orígenes desse movimento da alma:

Entre a criação de Gn 1,26 – a alma superior feito segundo a imagem de Deus – e a de Gn 2,7 – a modelagem do corpo - , intervém precisamente a queda original. Consequência desse pecado, o homem, tal como é, constitui-se, foi formado da alma superior preexistente, da alma inferior e do corpo, resultando esses dois últimos a queda. [...] Segundo a concepção origeniana da imagem de Deus no homem, ela está circunscrita à alma superior. O corpo não participa dessa dignidade.189

Percebe-se que Orígenes compõe uma ordem no seu entendimento sobre a

alma que, necessariamente, perpassa pela preexistência, conceito mais filosófico que

propriamente bíblico. Mas este método demonstra o seu interesse de ressaltar a

liberdade dos seres racionais, causa do movimento entre a criação e a queda da alma,

sendo esta última, a solução para as diversidades de condições das almas no mundo,

sejam elas boas ou más. Mas o fato da alma carregar em sim uma tendência para o

mal, existe a preocupação em Origenes em dizer se a alma “é imperfeita porque

decaiu da perfeição, ou se Deus a fez assim como é?”.190

Para esta indagação Orígenes tem como pressuposto o primeiro estágio da

alma, que é a sua criação a imagem de Deus e que denomina como mente “nous’, e

que por negligência se afasta do amor do Criador e, por isso, se esfria da caridade

divina, torna-se fria. Inclusive, ele faz uma referência etimológica das palavras no

grego alma “psych�̃�”com outra a palavra frio “psychros”, afirmando que o termo

“psych�̃�” faz menção ao seu esfriamento devido sua perda de fervor. “Isso parece

188 Orígenes ao desenvolver sua argumentação sobre a natureza da alma, tem como ponto de partida a concepção das duas almas, mas também expõe se a tendência para a maldade é em função da atração do corpo sobre a alma já que o corpo está voltado para os desejos carnais ou mesmo a própria e única alma está dividida em duas tendências, ele deixa claro que apenas expõe essas opiniões e fica por conta do leitor escolher a solução mais razoável . Cf. ORÍGENES, 2012, III, 4. 189 SESBOUÉ, 2003, p. 99. 190 ORÍGENES, 2012, II, 8, 2.

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mostrar a todos que a mente, afastando-se do seu estado e da sua dignidade, tornou-

se alma e assim é chamada; se ela se recuperar e se corrigir volta a ser mente[...] ”.191

Tendo em vista a criação das almas dos seres racionais como imagem de

Deus, a queda é o fruto resultado de um esfriamento por livre vontade. Orígenes,

apoiado nas Escrituras, crê que as almas agora imperfeitas podem ser restauradas

por meio da participação voluntária na perfeita e única imagem do Pai, que é o Verbo,

e adquirirem novamente a sua condição original. Porém, essa participação não é

estática, existe um processo de crescimento que para Orígenes tem continuidade

mesmo depois deste estágio de vida terrestre, culminando com a perfeição da

semelhança, já que para Orígenes imagem está vinculado a beatitude da criação e

semelhança ao fim último, a apokatástasis.192

Conforme foi demonstrado na análise sobre a concepção de alma para

Orígenes, observou-se que para ele é o elemento preponderante de sua antropologia,

tanto que considera “a alma algo intermediário entre a carne enferma e o espírito

pronto”.193

2.8.3. A corporalidade

A carne (sarx) e o corpo (soma), para Orígenes, são de naturezas diferentes.

A derivação desse entendimento está na tensão entre alma superior e alma inferior,

de modo que a primeira é boa e foi posta por Deus, a seguinte foi semeada “junto com

o corpo a partir do sêmen corporal”. O fato de ser alma inferior indica racionalidade e

movimento, ou seja, sabedoria da carne, por estar junto ao corpo atrai a vontade

humana aos desejos corporais, é uma espécie de espirito material.194

Assim sendo, nãos há dúvidas de que o desenvolvimento do pensamento de

Orígenes sobre a realidade corporal é complexo. Crouzel afirma que é ambíguo a

noção de Orígenes a respeito do Corpo, até porque o alexandrino entende a Trindade

191 ORÍGENES, 2012, II, 8, 3. 192 SESBOUÉ, 2003, p. 100. 193 ORÍGENES, 2012, II, 8, 4. 194 Ibid., III, 4, 2.

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totalmente incorporal, um ser de natureza simples, invisível, mas que entre os seres

criados há os visíveis e invisíveis, sendo que estes últimos constituídos de corpos com

qualidades superiores mesmo não sendo corporais. Observa-se que, para Orígenes,

o termo incorporalidade possui sentidos diferentes, seja de gênero filosófico ou

relativo a uma corporalidade sutil.195

No entanto, a condição da natureza corporal humana tem como causa o

comportamento de esfriamento no estado preexistente, ou seja, a causa dessa

natureza corporal é anterior ao nascimento, porém, é uma situação corporal menos

grave que a dos seres infernais e inferior aos seres celestes. Essa diferença acontece

pela condição meritória, ou seja, ato de negligência dos seres racionais dispôs a

diversidade entre eles e, por meio da Providência e justiça divina, a humanidade

assumiu a corporalidade terrena.

Além da incorportalidade e corporalidade, Crouzel expõe um terceiro sentido

do pensamento origeniano sobre a natureza corporal que é de ordem moral, ou seja,

aqueles que nesta existência terrestre superam os desejos inferiores do corpo

corruptível assemelham-se aqueles que já vivem a bem-aventurança, isto significa

que, neste corpo terreno se encontra uma razão seminal que germinará para um corpo

espiritual.196

Diante desta constatação, é inegável a visão positiva de Orígenes sobre a

corporalidade, claro que esse seu entendimento ressoa como resposta para as

correntes gnósticas que possuíam um ponto de vista negativo sobre a corporalidade.

Sem sombra de dúvida que a ideia origeniana compreende a alma como instância

superior na vida humana, até porque é a alma que possui o livre-arbítrio e participa da

imagem de Deus, mas a corporalidade mesmo não participando diretamente, recebe

da alma toda a dignidade, é esta natureza corporal que como um sacrário contêm a

imagem. Porém, Orígenes sabe que essa dignidade contida no corpo é fruto de um

caminho de progressão da alma que, unida ao espírito, se afasta dos desejos da carne

integrando o homem na sua totalidade de modo que o corpo é assumido e

transformado sendo elevado ao espírito.

195 CROUZEL, 2015, p.129. 196 Ibid., p. 129-131.

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“Não há dúvida de que a natureza desse corpo que é nosso, pela vontade de Deus que assim o fez, poderá chegar pela ação do Criador a essa qualidade de corpo mais sutil, puríssimo e muito resplandecente, conforme o estado das coisas o exigir e os méritos da natureza racional o pedirem”.197

Navegando contra o fluxo conceitual sobre a natureza do corpo das correntes

gnósticas, Orígenes não deixa de atribuir o valor da corporalidade no processo de

progressão espiritual, para isso ele demonstrou em seus argumentos, que o corpo

humano é um elemento criado por Deus198 para que a unidade perdida na queda

pudesse ser restabelecida.

“Deus, que conhecia com anterioridade as variações futuras das almas, ou das potências espirituais, necessariamente criou a natureza corporal capaz de se transformar segundo a vontade do criador, pelas mutações das suas qualidades, em todos os estados que as situações exigem”.199

É nítido que o conceito antropológico de Orígenes, que vislumbra a tricotomia,

perpassa cada estado da existência, ou seja, preexistência, queda e apokatástasis. O

desenvolvimento de sua reflexão teológica apresenta a sua preocupação em afirmar

a todos que aderiram a fé cristã o conhecimento de sua origem para que, desta forma,

impulsiona-los ao fim último que é a união perfeita com Deus. A apokatástasis no

âmbito antropológico realça o valor da humanidade na sua totalidade, e que a

salvação é querida pela Trindade ao homem inteiro. Orígenes sabia que suas

especulações poderiam causar mal-entendidos, mas nele a esperança de salvação é

maior, ele insiste na bondade divina, que em nenhum momento da existência humana

deixa de querer a sua amizade e comunhão com o ser humano na sua integralidade.

2.9. A perspectiva soteriologica na apokatástasis em Orígenes

O compreensão de Orígenes sobre a realidade escatológica é pastoral, por

isso não exclui a vida terrestre, pelo contrário, é uma visão global de toda a existência.

Daley afirma que para Orígenes o processo escatológico já está presente e acontece

197 ORÍGENES, 2012, III, 6, 4. 198 No meio filosófico é inconcebível a teoria que a divindade incorruptível e imortal pudesse criar a matéria o seu oposto, esse é o papel do Demiurgo, esse modelo é assumido pela ideia marcionistas que atribui ao Deus do Antigo testamento os atributos do Demiurgo, portanto as circunstâncias históricas contribuem na aplicação de Orígenes de demonstrar que Deus é criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, seria para ele um erro atribuir à natureza da corporalidade um valor maléfico sem a capacidade de transformação, a matéria não é má em si mesma, mas por acidente. 199 Ibid., IV, 4,8.

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gradualmente nesta existência, havendo uma tensão entre a santidade de cada

individuo, adquirida pela vivência da virtude com a totalidade do Corpo de Cristo na

consumação escatológia, lembrando que Cristo é o revelador desta virtude. Esta

santidade vivida em conjunto significa que o Reino de Deus já presente, mas que o

Reino só poderá atingir sua consumação final quando cada ser humano alcançar esta

santidade.200

A santidade em Orígenes tem plena relação com tornar-se semelhante a

Deus, condição já imprimida em cada ser racional desde sua origem. O ser humano

recebe a dignidade da imagem, porém a semelhança é o grau de perfeição a ser

atingido na consumação, portanto esta semelhança é querida por Deus a todo ser

humano desde a sua origem, mesmo antes da queda na preexitência tornar-se

semelhante a Deus já fazia parte da providência divina que em nenhum momento

excluia o livre-arbítrio dos seres racionais.

A possibilidade dessa perfeição, que lhe fora dado no início pela excelência da imagem, devia no final realiza-la ele mesmo na perfeita semelhança ao cumprir sua obras. [..] a semelhança que esperamos ter com Deus, e que será dada segundo a perfeição dos méritos.[...] Parece que aqui a semelhança sempre será por assim dizer progressiva, e que semelhante, se fará, porque, sem dúvida, na consumação ou fim, Deus será tudo em todos.201

Na análise anterior, sobre a antropologia de Orígenes, constatou-se a sua

visão positiva sobre a natureza corporal. A corporalidade humana está orientada para

um processo de educação e progressão até atingir, nos fins últimos, a semelhança ao

Verbo, tendo em vista que Orígenes não considera o mundo terrestre e mundo celeste

antagônicos, mas que ambos são marcados concomitantemente pela presença divina.

É nesse contexto que Orígenes desenvolve sua concepção de esperança pela

ressurreição. Somado a isso existe o intento de responder aqueles cristãos que foram

seduzidos pela crença no milenarismo,202 que fomentavam diante dos intelectuais

pagãos a depreciação da fé cristã na ressurreição.

200 DALEY, 1994, p. 80. 201 ORÍGENES, 2012, III, 6, 1. de milenarismo (ou quiliasta) o conjunto de crenças relativa a um futuro reino terrestre de Cristo e de seus eleitos; esse reino – e esse reinado – teria a duração estimada de mil anos (entendidos quer literalmente, quer simbolicamente); o acontecimento situa-se entre a primeira e a segunda ressurreição (a dos eleitos já mortos) e a uma segunda (a dos maus, em vista do julgamento e da condenação).[...] O ponto de partida dessa doutrina é a afirmação do Apocalipse de João (20, 1-6), que fala de um reino de mil anos dos justos com Cristo na terra após uma primeira ressurreição”. SESBOUÉ, 2003, p. 352.

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No entanto, sendo a corporalidade condição da criatura, Orígenes entende

que a ressurreição não é isenta da condição corporal, ele tem como fundamento a

visão paulina de ressurreição em que o corpo corruptível será transformado em corpo

incorruptível (1 Cor 15, 51), pois o corpo material possui a razão seminal203 do corpo

que será ressuscitado.204 Por trás desse entendimento sobre ressurreição do corpo

origeniano está a bondade divina impressa na sua criação, já que o corpo foi criado

por Deus não pode conter ontológicamente o mal, por isso a corporalidade material é

restaurada pela vontade divina em um corpo espiritual com suas qualidades

respectivas:

Não há dúvida de que a natureza desse corpo que é nosso, pela vontade de Deus que assim o fez, poderá chegar pela ação do Criador a essa qualidade de corpo muito sutil, puríssimo e muito resplandecente, conforme o estado das coisas o exigir e o méritos da natureza racional o pedirem.205

Considerando essa hipótese sobre a ressurreição corporal de Orígenes, não

significa que a sua compreensão nesse quesito não possua uma certa complexidade.

Daley menciona uma passagem no Tratado sobre os Princípios (II, 3,7), em que

propõe três possibilidades de ressurreição, sendo que uma delas foi citada acima, a

outra é de que as natureza racionais formarão um só espírito quando tudo for

submetido a Cristo e de Cristo a Deus. Nesse caso, a condição da ressurreição é

incorpórea,206 e a terceira hipótese é a de que este mundo depois de passar pela

purificação da corruptibilidade repousará em algum espaço do universo num estado

perfeito e estável, a verdadeira herança do reino dos céus. Daley afirma que esta

terceira hipótese é a preferida de Orígenes, e que outras obras, tal como o Tratado

sobre a Ressurreição, demonstram esta simpatia.207

Essas possibilidades descritas sobre o corpo ressurreto colocam em

evidência o caráter especulador de Orígenes, ele não possui uma definição clara

203 A imagem Paulina de que no corpo terrestre há uma razão, uma força de crescimento em direção ao corpo glorioso não difere da ideia estóica sobre o logos espermático, que é definida como uma força racional de crescimento que se desenvolve em cada sujeito. Cf. CROUZEL, 2015, p. 357. 204 ORÍGENES, 2012, II,10, 2. 205 Ibid., III, 6, 4. 206 Jerônimo foi um dos acusadores de Orígenes pela da apokatástasis incorpórea, segundo Crouzel em a noção de incorporeidade final está baseado em razões filosóficas, porém Orígenes não afirma categoricamente essa realidade, mas propõe o discernimento, o autor francês é enfático em dizer que não se pode afirmar com veemência que Orígenes pensava a apokatástasis de forma incorpórea, há apenas uma discussão na obra Tratado sobre os Princípios mas apenas como hipótese já que também é discutido na mesma obra a apokatástasis corpórea. 206 CROUZEL, 2015, p. 363-366 207 DALEY, 1994, p. 87.

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sobre a apokatástasis e por entender que a condição corporal é próprio da criatura e

que somente Deus é incorpóreo, ele não possui uma simples solução para a sua

noção de consumação final, em que Deus será tudo em todos. Porém, como foi dito

anteriormente, em Orígenes a alma é predominante na sua antropologia e não é

desprovida de corporalidade que depois da queda do livre-arbítrio adquire condição

impura e corruptível. Assim como está vinculado a condição moral na queda que

maculou a imagem de Deus incutida no homem, é esta condição moral que pela luz

da razão e do entendimento faz o ser humano fazer o caminho de retorno a Deus e

tornar-se semelhante e um só com Ele. Está, também, no querer humano este retorno,

entretanto, com o auxilio da graça divina.

2.9.1. A purificação humana pelo fogo divino como processo apokatástico

A ressurreição da natureza corporal como etapa do processo apocatástico

imbrica numa outra questão ligada a purificação que, segundo Daley, não é

exatamente nítido para Orígenes, já que em alguns escritos ele aprova a posição da

pregação da Igreja tradicional sobre punição eterna para todos aqueles que se

afastaram por vontade própria do amor de Deus. Mas, há muitas outras passagens

em que o alexandrino assume posição diferente desta pregação tradicional. Este olhar

diferenciado propõe uma explicação da purificação por meio do fogo como uma

compreensão psicológica ou moral do pecador”.208 Essa segunda proposição

origeniana é constatada no Tratado sobre os Princípios, que traz como instância

fundamental e decisiva da ação providencial divina, a lógica catártica de cunho

medicinal e educativo que possibilita as almas humanas a condição de restauração.

“cada um dos pecadores acende para si mesmo a chama de um fogo que lhe é própria [...] A alimentação e matéria desse fogo são os próprios pecados que o apóstolo Paulo chama de lenha, feno e palha (1 Cor 3,12). [...] quando a inteligência ou consciência, lembrando-se, pelo poder divino de todos os atos cuja as marcas e forma se imprimiram nela quando pecava [...]verá, assim, de algum modo, exposta diante dos seus olhos a história de cada um de seus crimes.(II, 10,4)

208 DALEY, 1994, p. 89-90.

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Está evidente nesta ótica origeniana que o fogo purificador de todas as

paixões humanas e de todos os pecados vergonhosos é produzido pelo próprio

pecador. São os pecados o verdadeiro combustível deste fogo que age purificando a

pessoa inteira, ou seja, a alma e corpo, porém, Crouzel destaca que em diversos

textos de Orígenes é Deus mesmo o fogo devorador.

“Segundo a Homilia I,15, Deus faz mais do que destruir a construção do diabo, aniquila-a, enviando a palha e o joio a um fogo inextinguível. Mas desde que o suplício do fogo eterno não aniquile as pessoas, o que Deus aniquila através do fogo parece ser a construção do diabo no homem, e então teremos o caráter medicinal novamente”.209

Nesta passagem os castigos e suplícios por meio do fogo divino em Orígenes

não possui um caráter de maldição ou vingança de Deus perante os ímpios que

preferiram a ignorância, o que o alexandrino ressalta é o caráter medicinal e curativo

da ação divina. Esse argumento demonstra outra preocupação de Orígenes, que visa

responder aos hereges de seu tempo que o mal existente nos seres racionais não é

da própria natureza, pelo contrário, é acidental, já que cada ser racional possui a

mesma igualdade de condição. Portanto, faz parte da providência divina a purificação

escatológica pelo fogo,210 para que desta forma, de modo equitativo, cada ser racional

participe da sua divindade.

“Deus, provê a tudo nos menores detalhes, pelo poder da sua Sabedoria que discerne tudo o quanto governa pelo juízo, dispôs todas as coisas segundo uma distribuição muito equitativa, a fim de que cada um seja socorrido, e que haja sobre ele um cuidado vigilante. Aqui se manifesta seguramente o ponto de vista da equidade, porque a desigualdade das condições respeita a justa distribuição segundo os mérito.211

De fato, o discurso escatológico de Orígenes, que é desenvolvido como

processo catártico e medicinal, na verdade revela o processo gradual e educativo do

ser humano rumo a plena participação na vida divina, ou melhor, ao ponto culminante

de tornar-se imagem e semelhança de Deus. Quando entendido de maneira integral,

coloca outros dois elementos em evidência, que são o livre-arbítrio que permite que

alguns progredirem no bem e outros regredirem, porém Orígenes não nega que todos

209 CROUZEL, 2015, p. 342. 210 Sesboué destaca outro aspecto do pensamento escatológico de Orígenes sobre o fogo purificador e que tem muita semelhança com a noção tradicional da visão de purgatório contemporâneo que é o batismo de fogo interpretado a partir do texto paulino 1Cor 3, 11-15, em que é o próprio Deus o fogo que purifica queimando tudo o que é perecível, ou seja, as obras más representadas como a palha e a lenha, e o que é imperecível tal como o ouro e a prata permanecerá, equivale as boas obras. SESBOUÉ, 2003, p. 362. 211 ORÍGENES, 2012, II, 9, 8.

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os seres humanos tem incutido por Deus “um desejo que lhe é próprio e natural de

conhecer a verdade divina e as causas das coisas”(II, 11,4) e, o segundo elemento,

que efetivamente abarca o primeiro. A providência divina, que é o movimento amoroso

de Deus de salvar a humanidade em toda a sua existência que em Orígenes envolve

o universo da preexistência, a história terrena e a culminação do tempos, a

apokatástasis.

A hipótese de Orígenes sobre o castigo após a morte como aspecto medicinal

o seu entendimento sobre a duração deste tempo de punição é bastante discutível,

isso porque o alexandrino tem extrema preocupação em manter-se fiel a ortodoxia

eclesial, que entendia a condenação aos castigos após a morte como eterna.

Sesboué destaca essa concepção de sentença eterna para os pecadores em Irineu,

que defende enfaticamente que não é por iniciativa de Deus, e sim por livre escolha

da criatura de permanecer no mal, consequentemente sofre as penas dos castigos

eternos pela ausência do bem.212

O dilema da teoria da purificação pelo fogo em Orígenes é descrito por Daley

pelo fato de não haver uma opinião uniforme nos seus diversos escritos, isso porque

não há convicção firme sobre a eternidade de punições.213 Crouzel também menciona

a diversidade de opinião sobre a duração dos castigos eternos origenianos. Este

contraste, inclusive, é visto numa mesma obra, a exemplo disso são as Homilias sobre

Jeremias. Todavia, Crouzel põe em relevo que o fogo que espera todas as criaturas é

denominado por Orígenes como pyr aiônion (fogo eterno), o adjetivo aiônion (eterno)

é ambíguo, uma vez que o exegeta de Alexandria não atribui essa expressão apenas

com o sentido de uma duração sem fim, mas também como longo e finito período de

tempo.214

Conforme foi analisado, fogo escatológico em Orígenes, posto como acendido

pela acusação da consciência do pecador ou Deus mesmo como fogo devorador. Em

ambas hipóteses o fogo não possui a mesma conotação que temos de um fogo visível

que aniquila, que torna cinzas um ente qualquer, mas um fogo invisível que purifica,

cura, restaura. A condição medicinal deste fogo pode ser contado como um

212 SESBOUÉ, 2003, p. 357. 213 DALEY, 1994, p. 90. 214 CROUZEL, 2015, p. 341-342.

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pressuposto limitado, ou seja, um etapa para chegar a beatitude, condição que todos

os seres foram criados mas por voluntariedade negligente alguns se afastaram.

“Para nos fazer compreender que Deus age para com aqueles que caíram e pecaram da mesma maneira que os médicos aplicam remédios aos enfermos para que recupere a saúde [...] É preciso compreender que a fúria e a vingança divina aproveita a purificação das almas. Isaias ensina também que o castigo infligido pelo fogo deve ser entendido como remédio que se aplica”.215

É nítido a ênfase que Origenes faz da ação de Deus sobre os pecadores,

afinal, são eles que estão doentes e precisam de um remédio doloroso (o fogo

purificador). Este discurso está profundamente marcado com a ideia da salvação

universal, mesmo que seja uma discussão de caráter especulativo, não deixa de ser

uma compreensão ousada da obra salvífica divina, tanto que irá causar mal-

entendidos posteriormente à Orígenes.

2.9.2. Apokatástasis como conceito de salvação universal: uma proposta de

esperança em Orígenes

A interpretação do texto paulino 1Cor, 23-28 é quebra de paradigma em

Orígenes sobre a salvação universal (apokatástasis). O seu intento é elucidar o que

ainda não estava claro sobre a totalidade da história humana na pregação da Igreja,

isso incluía a preexistência (a origem da história humana) e apokatástasis

(consumação da história). O alexandrino desenvolve uma bem articulada teologia da

história.216

Sobre a salvação de todos o seres humanos, Orígenes na maioria das vezes

deixa claro essa esperança,217 mas como mantém uma posição no seu escrito Tratado

sobre os princípios de que todos os seres racionais participavam de uma mesma

215 ORÍGENES, 2012, II, 10, 6. 216 Ibid., Pref. 7. 217 Um das passagens em que Orígenes esboça uma expressão de condenação eterna para o pecador, está no Tratado sobre os Princípios no capítulo sobre a ressurreição ao comentar sobre a passagem de Lc 12, 46 : diz que uma das partes do infiel, o espírito ou dom do espírito recebido pela graça ou no batismo é separado da alma superior por ser de natureza divina, e por esta alma encontrar-se em unidade a sua parte inferior, ou seja, a matéria corporal contrariando o propósito da natureza de ser criado para a beatitude, será atirada para o mesmo destino do infiéis. (II, 10,7).

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natureza em sua origem, abre espaços para conjecturas sobre a salvação do diabo,

já que a salvação é universal.

Orígenes, na sua aprimorada obra Tratado sobre os princípios, indaga sobre

a possibilidade do diabo e seus anjos se converterem. Essa questão levantada por ele

não é uma afirmação, tanto que deixa para o leitor a decisão de julgar a possibilidade

ou não dessa mudança.

“Por outro lado, será que algumas dessas ordens que agem sob o domínio do diabo e obedecem à sua maldade poderão alguma vez no futuro voltar à bondade, por se mantém nelas a faculdade do livre-arbítrio? [...] Tu, que estás lendo, se julga se é possível que, de alguma maneira, seja no das realidades invisíveis e eternas, essa parte da criação ficará separada da unidade e da concórdia final”.218

Deve ser levado em consideração que Orígenes escreve o Tratado sobre os

princípios como refutação das ideias gnósticas que mantinham o conceito de dupla

predestinação, ou seja, os seres racionais teriam sido criados substancialmente bons

e outros maus, negando-lhes o livre-arbítrio, contrapondo à bondade divina. Este fato

incide na controvertida ideia origeniana dos seres racionais criados por Deus

participando de uma mesma natureza, e que a diversidade existente foi consequência

do livre-arbítrio, por isso o mal existente nas criaturas não é ontológico, e muito menos

foi criado por Deus. Esta condição abre a possibilidade dos seres racionais

escolherem livremente a salvação, seguindo esse raciocínio a viabilidade do diabo

ser salvo na apokatástasis é inegável. Na mesma obra descrita há outra passagem

de Orígenes que supõe a salvação do Diabo.

“É por isso que, mesmo o último inimigo chamado morte se diz que será destruído de tal maneira que não haverá mais nada funesto onde a morte já não existirá, nem diferente, por que não haverá mais inimigo. É preciso compreender essa destruição do último inimigo não no sentido de que a sua substância feita por Deus vai perecer, mas que o seu propósito e a sua vontade de inimizade, que não provêm de Deus, mas dele mesmo, desaparecerão”

Sobre essa passagem, Crouzel argumenta que não está evidente que a

morte, o último inimigo a ser destruído é o Diabo. Orígenes refere-se a morte como

substância, isto indica um determinado ser, dando a entender que seja o Diabo. A

incerteza de que o mestre alexandrino esteja falando realmente do Diabo dá-se pelo

fato de outras obras referir-se a morte como pecado com ausência de substancia.219

218 ORÍGENES, 2012, I, 6, 3. 219 CROUZEL, 2015, p. 369.

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Essa ambiguidade origeniana sobre a morte como o último inimigo a ser destruído na

consumação dos tempos resultou na acusação, mesmo em vida, de ser

condescendente com o Diabo, tanto que numa carta que Orígenes faz em sua defesa,

quando ainda estava em Alexandria (Carta aos amigos de Alexandria), rejeita

substancialmente ter ensinado sobre a salvação do Diabo.220

Orígenes, ao tratar sobre a salvação universal dos homens, tem como

pressuposto a alma imortal: “considerando a imortalidade da alma e a eternidade sem

fim, não receber imediatamente o auxílio da salvação, mas de lá serem conduzidos

mais lentamente”221. Este ponto de vista demonstra o amor e a paciência divina pela

sua criatura e que a salvação é um processo de educação, demora longos períodos.

Para Orígenes antes da apokatástasis haverá uma série limitada de eras.222

“Não se julgue que tudo isso se realizará de repente: será pouco e por partes numa sucessão de séculos intermináveis e imensos, quando gradualmente a reforma e a correção se cumprirem em cada um[...] através da quantidade de degraus inumeráveis, constituídos por aqueles que progridem e se reconciliam com Deus, eles que antes eram inimigos, se chega ao último inimigo chamado morte e à sua destruição, para que não seja mais inimigo”.223

Este esquema escatológico de Orígenes privilegia a ação providente de Deus,

que propicia aos seres humanos um processo pedagógico de crescimento, evidencia

o desejo da Trindade de levar sempre em consideração a liberdade humana para

escolher livremente a salvação: “Portanto, ele sempre teve beneficiários de seus

produtos e das suas criações, e na sua benfeitoria, distribui os benefícios de modo

ordenado e segundo os méritos de sua providência”.224 Segundo Orígenes, há uma

articulação divina para que a história humana possa ser reconciliada e unida a ela.

A criatura não pode ser aniquilada pelo mal existente nela, pois o mal é de

forma acidental, foi adquirido não é ontológico, isso levando em consideração também

220 Ibid., p. 369. 221 ORÍGENES, 2012, III,1, 13. 222 Ilaria Ramelli argumenta que a compreensão de Orígenes sobre um número sucessivo de eras é semelhante a doutrina estoica da apokatástasis. Os estóicos postulavam uma sucessão infinita de eras e que em cada era tudo aconteceria de forma idêntica, Orígenes refuta a primeira ideia com sua esperança na apokatástasis como consumação final e a segunda hipótese contesta veementemente (“Com efeito, se nós representamos um mundo perfeitamente semelhante a outro, será de tal modo Adão e Eva farão de novo o que já fizeram [...] (Tratado sobre os Princípios II, 3,4). RAMELLI, 2013, p. 5. 223 ORÍGENES, 2012, III, 6, 6. 224 Ibid., I, 4, 3.

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por ter sido criada a imagem e semelhança do seu criador, portanto é somente Deus

que pode tirar a maldade na criatura. Para Orígenes esta ação divina é puramente

graça : “é evidente que não está em nós o afastar a maldade; e se não somos nós que

agimos para colocar em nós um coração de carne, mas se é obra de Deus, não

depende de nós virtuosamente, mas será inteiramente uma graça de Deus”.225

É nesse panorama da ação divina como graça para libertar os seres racionais

da maldade que Orígenes compreende a encarnação como forma de restaurar a

disciplina perdida na queda por desobediência.

O Verbo encarnado pela sua obediência até a morte ensina aos pecadores

como reconciliar-se ao Pai.226 Esta instrução do Verbo permitirá a extinção do mal em

cada ser vivente, sem a presença do mal Deus poderá ser tudo em cada ser,

restaurando a condição original; “Não haverá mais discernimento do mal e do bem

porque já não haverá mal; pois que Deus é tudo para ele, e nele o mal não existe.227

Nesse sentido, essa educação e progressão paulatina que engloba a vida

temporal e atemporal e que em um determinado tempo, somente conhecido por Deus,

terá um fim (apokatástasis). Segundo Crouzel, se Orígenes levasse em consideração

a salvação universal de modo dogmático, estaria em oposição à liberdade humana,

pois é livremente que o homem se submeterá ao Verbo e este se submeterá ao Pai

na apokatástasis. Portanto, para Orígenes a salvação universal é uma esperança e

não uma certeza, e o fundamento desta esperança é a bondade de Deus que ama a

sua Criação e respeita a sua liberdade.228

2.10. Conclusão

Indiscutivelmente, compreender a Apokatástasis em Orígenes precisa ser

levado em consideração a sua formação filosófica e teológica, regida pela cultura

grega do seu tempo. Nesse ambiente o termo “apokatástasis” já era corrente no

helenismo e no cristianismo, na medida em que vai sendo helenizado, o termo aparece

225 ORÍGENES, 2012, III, 1, 15. 226 Ibid., III, 5, 6. 227 Ibid., III, 6, 3 228 CROUZEL, 2015, p. 372.

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no meio dos pensadores cristãos. Portanto, fazer atribuição a Orígenes como o

pioneiro da doutrina apokatástasis é sustentar esse discurso teológico do autor de

forma isolada.

Sendo termo corrente, Orígenes, que é homem da Igreja, tem uma

preocupação estritamente pastoral com sua noção de apokatástasis. A tentativa de

esclarecer o tema não como afirmações dogmáticas mas com o propósito de levantar

soluções, ratifica o seu desejo de fazer a defesa da fé diante daqueles que, por

influência helênica, distorcem a concepção do que é Deus, o mundo e o homem e a

salvação, por isso as escrituras são o lugar da fundamentação de um significado mais

profundo para a concepção do princípio e finalidade da Criação.

As questões sobre a negação da materialidade e a soteriologia determinista

gnóstica, impulsiona Orígenes em sua investigação e argumentação sobre a

apokatástasis, visto que ele teve dúvidas e, por isso, apresentou várias vezes mais de

uma solução para os problemas levantados. Contudo, dá ao leitor a opção de escolher

qual a solução lhe fosse mais viável.

Foi apresentado que os sentidos da apokatástasis estavam vinculados ao

restabelecimento ou retorno de uma condição perdida, podendo ser este de ordem

física ou mesmo num sentido escatológico. Este último imprimia um sentido mais

profundo associado ao alcance ou realização de um propósito.

A novidade sobre a noção da apokatástasis em Orígenes vem de sua

interpretação de texto paulino “Deus será tudo em todos” (1Cor 15, 28), a partir deste

o fundamento, a dimensão prospectiva e retrospectiva – o fim é semelhante ao

começo – será o itinerário do seu discurso teológico sobre a apokatástasis. Portanto,

a sua obra “O tratado sobre os princípios” que abarca os princípios da existência e o

seu fim em Deus, é um tratado muito bem sistematizado que parte de uma

metodologia que incute o uso da metafísica filosófica, sem prescindir dos dados da

Revelação divina na Sagrada Escritura. Com enfoque nos aspectos cosmológicos,

antropológicos e soteriológicos, todo esse aparato teológico servirá de refutação as

ideias das correntes gnósticas vigentes de seu tempo, e servirá de instrução para os

cristãos de sua comunidade. Neste propósito está implícito o desejo do teólogo

alexandrino manter-se fiel a ortodoxia.

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Como foi dito, o eixo norteador da noção de apokatástasis origeniana está em

que “Deus será tudo em todos”, essa noção parte dois dados cristológicos: à

preexistência do Verbo, nele está o princípio de toda a criação, “Nessa existência da

Sabedoria subsistente por si mesma estava presente, pois em poder e figura, toda

futura criação”,229 e submissão do Cristo ao Pai, “submissão do Filho ao Pai é afirmada

a perfeita restauração de toda a criação,”230 ou seja a salvação nele.

Na análise da apokatástasis em Orígenes, partindo desses pressupostos

cristológicos, é evidenciado na encarnação do Verbo o modelo de obediência ao Pai

que pode ser apresentado como papel providencial divino na instrução dos seres

humanos caídos para chegar à reconciliação ao Pai, isto é, a salvação.

Cristo como modelo implica na liberdade humana, o seguimento deve partir

do livre arbítrio e isso envolve o ser humano na sua integralidade, já que para

Orígenes o homem é salvo inteiro, por isso a restauração que envolve a alma e o

espírito não descarta a corporalidade, que também será restaurada na ressurreição

como corpo incorruptível, porém este processo envolve uma purificação catártica , um

remédio doloroso que tem o objetivo a curar de toda maldade.

A categoria soteriológica no processo de apokatástasis em Orígenes faz parte

de sua compreensão de que o mal no ser humano não é substancial, e que pode ser

superado a partir do livre-arbítrio, por isso todos os seres racionais têm a possibilidade

de serem salvos. Isso envolve uma progressão na instrução dada pelo Verbo

encarnado, tanto no âmbito terrestre quanto na realidade ultraterrena, porém essa

noção de salvação universal, apresentada no esquema escatológico origeniano, é

uma especulação do autor, ele não dogmatiza essa ideia. Pode-se concluir que essa

noção da apokatástasis origeniana tem como panorama uma dinamicidade que é

representa na dialética entre a bondade infinita de Deus e a liberdade humana, e que

na busca de conciliar a fidelidade aos ensinamentos dos apóstolos, ou seja, a

Tradição, a aspiração de uma salvação universal é apenas uma hipótese mas não

deixa de ser um projeto de grande esperança ao padre alexandrino.

229 ORÍGENES, 2012, I, 2, 3. 230 Ibid., III, 5, 7.

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3. A RELEITURA DA APOKATÁSTASIS EM ANDRÉS TORRES DE QUEIRUGA

3.1. Introdução

A ideia origeniana sobre apokatástasis foi, e continua sendo, emblemática no

discurso teológico. Mesmo depois da condenação dessa doutrina pelo V Concíclio

ecumênico de Contantinopla II em 553, nunca deixou de haver simpatizantes por esta

ideia.

Refletir sobre esse tema na teologia contemporânea deve ser destacado a

sua complexidade e o esforço de uma hermenêutica que alcance uma convergência

com a reflexão teológica atual e a experiência de fé, devido na atualidade a praxis ser

uma exigência, a custa de uma persistente resistência da esfera secular da sociedade

frente a religiosidade.

Primeiramente pela própria condição histórica da fé cristã que ainda não foi

superada devido a cristandade a Igreja ter sido uma instituição controladora, por isso

fazer a releitura da apokatástasis a partir da teologia de Andrés Torres de Queiruga é

pertinente, devido sua preocupação em responder aos dilemas atuais da existência

humana com uma linguagem teológica eficiente afim de esclarecer a fé comum sem

abster-se da aproximação e diálogo com crentes e não crentes.

Para uma releitura da apokatástasis na teologia queiruguiana, ter-se-á como

base a sua metodologia teológica a partir de baixo, ou seja, ele leva em consideração

o contexto antropológico cultural que envolve as relações humanas e com uma chave

hermenêutica pautada em Deus, que é ato de puro amor e a liberdade humana.

Tendo como pressuposto esse panorama, os critérios a seguir para a releitura

da apokatástasis serão os eixos fundamentais da teologia queiruguiana que perpassa

pela Criação, Revelação e Salvação, identificando a ação amorosa divina a partir da

realidade concreta do mundo com sua finitude, porém sem deformação de suas leis

naturais, incluindo a autonomia do ser humano.

Dentro desse processo dialético Deus/Criação, será essencial expor o

discurso teológico de um Deus que sustenta, auto comunica-se, em vista da

realização plena de sua criação, elevando-a, potencializando-a, conduzindo-a ao

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cume, que é a superação de sua finitude e, consequentemente, do mal. Esta

esperança coerente é comum com o discurso da fé religiosa em todas crenças e não

crentes, sendo capaz de contribuir com a necessidade atual marcada por uma

desigualdade humana, desembocando na centralidade da missão de Jesus o Reino

de Deus, esta esperança está encharcada na esperança origeniana da apokatástasis.

3.2. O Perfil teológico de Andrés Torres de Queiruga

O teólogo e filósofo galego, Andrés Torres de Queiruga, é um dos grandes

expoentes na teologia contemporânea. Essa refefência não levam em conta apenas

a sua extensa bibliografia e o grande numero de artigos publicados, mas a

originalidade de seu pensamento, que se traduz numa linguagem empenhada no

dialógo entre crentes e não crentes.

O grande desafio de André Torres de Queiruga que ao vivenciar a inércia no

crescimento da fé meio cristão católico, que por rotina mantêm-se no

convencionalismo. A origem desse imobilismo está entranhada na glória e no peso

histórico do cristianismo. A Glória provém da profunda e fecunda experiência de fé,

mas o peso está ligado a experiência de fé fixada no contexto cultural de onde

habitam. Esta limitação causou no cristianismo hodierno, mesmo num contexto de

interação com a modernidade, um aspeto antiquado, ou seja, as experiência de fé que

o ancoram mesmo traduzidas em novas formas culturais ainda dão a aparência de um

cristianismo inteiramente caduco. Evidentemente esse panorama abala a transmissão

dos elementos fundamentais da fé, de modo que passa ser uma exigência no campo

teológico uma retradução global do cristianismo, ou seja, o desafio de fato é enfrentar

a dura crise vivida pelo cristianismo contemporâneo a partir de uma linguagem que

repense e recupere a experiência de fé cristã.231

Em se tratantando de crise, Andrés Torres Queiruga compreende-a de

maneira ambigua, já que desta pode sair decadência total ou a plena salvação.

Portanto, a crise é uma ocasião de discernimento, se for mais a fundo na compreensão

sobre crise, se evidenciam as crenças. Em vista disso, as ideias que muitas vezes são

231 QUEIRUGA, Andrés Torres. Recuperar a Criação: Por uma religião humanizadora. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1999a, p. 15-17.

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manipuladas por conceitos pré-concebidos são extremecidas pelas convicções

profundas que surgem da consciência das crenças. Nisso há o desmoronamento de

convicções superficiais e ficam expostos os fundamentos que sustentam os princípios

da fé. Diante deste dinamismo existente na crise, que Andrés Torres de Queiruga

afirma que no campo da teologia as coisas não acontecem diferente. Isso porque a

Palavra de Deus na história é entregue ao ser humano, e o fato dela ser viva e real,

sempre dinâmica e ativa, ela não se detém em uma época ou lugar, de modo contrário,

essa Palavra atravessa épocas e gerações configurando-se e encarnando-se no

mundo cotidiano. É desta forma que ela se manifesta ao ser humano, que pode

configurá-la de forma aberta mas, ao mesmo tempo, pode ser de modo fechado.

Andrés Torres de Queiruga alerta que esse aspecto da Palavra de Deus,

sempre dinâmica e viva, que tem como lugar a consciência religiosa. Daí decorre o

processo de autocrítica em vista de superaração de um contexto de crise atual de

pareceres críticos, objeções e ataques a-religiosos. Este quadro de tensão entre

religiosidade e não crentes, mesmo aparentando um choque ou um enfrentamento de

ideias, no fundo são o mesmo terreno de ideias em que todos seres humanos, crentes

e não crentes descem em suas crenças para superar o momento de crise.232

Toda esta explanação feita por Andrés Torres de Queiruga sobre a

consicência da historicidade e a compreensão da experiência de fé, no decorrer da

história da experiência de fé cristã é plenamente atestada por Libanio ao referir-se

sobre a tarefa hermenêutica:

A teologia sempre foi hermêneutica da fé. Faz parte de seu próprio conceito e identidade. Reinterpreta e organiza os dados revelados vividos e compreendidos na/ pela comunidade eclesial, em diferentes contextos socioculturais e histórico. Caso não exerça essa missão, as formulações de fé se tornam anacrônicas, reduzindo-se, com o tempo, à recitação de fórmulas de pouca e insignificante inteligibilidade.233

Os problemas hermenêuticos para Andrés Torres de Queiruga possuem suma

importância. Ele entende que a fé, para não cair na caducidade, no imobilismo, na

infantilidade, deve ser viva e para isso deve estar em contínua atualização,

232 QUEIRUGA, 1999b, p. 11-13. 233 LIBANIO; MURAD, 2005, p. 336.

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convertendo-se em uma experiência efetiva, abstraindo-se do risco ser apenas uma

teoria abstrata ou uma doutrina sem vivacidade.

No momento atual em que o cristianismo vive é impossível não visualisar os

grandes dilemas que os cristãos estão vivenciando com a esfera secular, juntamente

com a pluralidade religiosa. É neste cenário que Afonso Maria Ligório Soares,234 no

prefácio da obra “Repensar a Ressurreição” do teólogo galego, sustenta o esforço do

autor num processo de contínua atualização da fé a nececissade de quebra de

paradigmas na reflexão teológica, e o primor dessa preocupação está a liberdade de

tentativas teológicas para esclarecer a fé comum e promover o diálogo com as demais

religiões. Afonso Maria Ligório Soares destaca, também, o projeto teológico, ou seja,

a atenção especial de Andrés Torres de Queiruga que intitula algumas de suas obras

de maior destaque com os verbos repensar ou recuperar. Esse intuito está

extremamente ligado ao despertar em seus leitores o frescor do primeiro amor já que

os conduzem para um contato direto com a experiência originária da fé.235

A contemporaneidade teológica de Queiruga pode ser demonstrada em sua

reflexão teológica a partir dos principais aspectos do Concílio Vaticano II e pós

Concílio Vaticano II, que tem como pressuposto o contexto antropológico e cultural

por entender o ser humano “que por sua própria natureza, é um ser social, que não

pode viver nem desenvolver as suas qualidades sem entrar em relação com os

outros”.236 Portanto, dado que o ser humano – neste contexto se insere o cristão – é

um ser de relação, isso envolve o diálogo não somente entre aqueles de mesma

crença, mas com os de seguimento de crenças diferentes e até mesmo os não

crentes. Andrés Torres de Queiruga preocupa-se demasiadamente com uma

linguagem teológica que possa dialogar com todas essas esferas da sociedade

moderna.

Como foi demonstrado acima, a importância fundamenal do Concílio Vaticano

II na qual a Igreja se predispôs ao diálogo com a modernidade, pode-se fazer juízo

do segmento teológico de Andrés torres de Queiruga, a partir dos teológos que de

234 Foi Professor Associado do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP e também um grande estudioso do pensamento de Andrés Torres de Queiruga, e tradutor de várias de suas obras. 235 QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a ressureição: a diferença cristã na continuidade das religiões e da cultura. Trad. Afonso Maria Ligório Soares, Anoar Jarbas Provenzi. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2010a, p. 13-14. 236 GS, 12.

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sobremaneira foram fundamentais e contribuiram com ideias inovadoras para o

Concílio, tais como Henry de Lubac, Marie-Dominique Chenu, e outros que vinham da

linha de pensamento sobre a volta as fontes e a aplicação do método histórico-crítico

da escola francesa de teologia a “NouvelleTheologie”. Assomando-se a esses

citados, outros grandes nomes da teologia com iniciativa inovadoras, Teilhard de

Chardin, Karl Rahner, Eduard Schillebeeckx e muitos outros.237 Em suma, o discurso

teológico queiruguiano que percorre as linhas do diálogo, da pluralidade, da análise

crítica que consequentemente implica numa quebra de paradigma no pensar

teológico, tem como herança, segundo as próprias palavras de Andrés Torres de

Queiruga no prólogo da obra Repensar a Revelação o teólogo e filósofo espanhol,

Angel María Amor Ruibal, inspiração para a sua tese doutoral em teologia a respeito

da constituição e evolução do dogma.238

Finalmente, para entender o perfil de Andrés Torres de Queiruga, é

fundamental contextualizá-lo como teólogo da contemporaneidade devido sua

profunda preocupação de querer demonstrar que o núcleo do projeto do Concilio

Vaticano II está na exigência de ser essencialmente universal permitindo que a

reflexão teológica esteja inserida na cultura, nas relações humanas e sociais e no

diálogo com as demais religiões.

Porém, a questão fundamental desse trabalho que é a releitura da

apokatástasis na contemporaneidade com bases nos fundamentos teológicos de

Andrés Torres de Queiruga não deverá prescindir de uma chave hermenêutica

apoiada em Deus, como puro ato de amor. Pois, em diversos de seus trabalhos o seu

esforço de produzir uma teologia mais universal, com uma linguagem teológica

abrangente, apresentando Deus como amor sem medida, segundo ele essa chave

hermenêutica liberta e descontamina os próprios cristãos de um cristianismo que tem

Deus como rival e está situada no centro vital do cristianismo.239 Este amor

incondicional de Deus apresenta de fato que o desejo de Deus é salvação, a

realização e a plena felicidade de todos os seres humanos, aspecto fundamental do

termo apokatástasis usado pelos padres da Igreja.

237 LIBANIO; MURAD, 2005, p. 145-147. 238 QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a revelação: a revelação divina na realização humana. Trad. Afonso Maria Ligorio Soares. 2010b, p.17. 239 QUEIRUGA, Andrés Torres. Recuperar a Salvação. 1999b, p. 14-16.

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3.3. Apokatástasis em Queiruga

O grande ícone da apokatástasis na teologia patrística é Orígenes. No

capítulo anterior foi reconhecida a sua grande capacidade intelectual com base na sua

reflexão teológica bem sistematizada que demonstrou seu profundo conhecimento

filosófico e exegético, que foram instrumentos de extrema importância no seu serviço

investigativo. Esse empenho do alexandrino na especulação sobre os dados da

Revelação proporcionou-lhe quebrar paradigmas na teologia de seu tempo e, por

tratar-se de uma investigação especulativa, Orígenes jamais quis dogmatizar suas

reflexões inéditas, porém inovadoras. A apokatástasis de Orígenes está neste

panorama original de seu pensamento e mesmo depois de ter sido condenada

oficialmente pela Igreja nunca caiu no ostracismo, pois diversos teólogos continuaram

o movimento de reflexão sobre a doutrina da apokatástasis.

Tratando-se de Andrés Torres de Queiruga, sobre a apokatástasis, deve-se

levar em consideração o seu compromisso com a tarefa hermenêutica, cuja sua

preocupação sempre foi uma linguagem de fé responsável e contextualizada e, por

isso, suas produções teológicas são dinâmicas, sua teologia sempre se refaz. Sobre

a doutrina da apokatástasis não será diferente, sua opinião não permaneceu imóvel e

muito menos limitada. Segundo Andrés Torres de Queiruga, numa objeção feita pelo

por Juan Luiz Ruiz de la Penha, referente ao inferno como morte eterna ou perda

eterna de possibilidades, este teólogo afirma categoricamente que Andrés Torres de

Queiruga se afastou da ideia da apokatástasis, sinal que o teólogo galego a princípio

comungava da ideia origeniana.240 O próprio, sobre a proposta de Orígenes referente

a apokatástasis, diz que “desde a sua defesa por Orígenes, estive presente em muitos

teólogos e não dos pequenos”,241 e cita uma lista de teólogos desde patrística até aos

contemporâneos que simpatizaram com a apokatástasis.

Cabe agora entender este afastamento, ou seja, questões que foram

suscitadas por Andrés Torres de Queiruga sobre a doutrina origeniana da

apokatástasis. Para isso, deve-se entender dois princípios hermenêuticos: O amor de

Deus e a autonomia da criatura. Referindo-se ao primeiro princípio, “Deus entra na

240 QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar o mal: da ponerologia à teodicéia. Trad. Afonso Maria Ligorio Soares. São Paulo: Paulina, 2011, p.286. nota 160. 241 Ibid., p. 287.

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história do ser humano como pura salvação”,242 mas não de forma intervencionista,

concepção que ainda continua presente, seja na linguagem popular que herda essa

noção da transmissão histórica e mesmo na linguagem teológica essa ideia

intervencionista de Deus continua persistente. Segundo o teólogo galego a ação

transcendente de Deus só visibiliza-se, ou seja, torna-se imanente a partir da ação

mundana da criatura, esta dialética entre transcendência e imanência é constitutiva

da ação salvadora de Deus.243Andrés Torres de Queiruga demonstra a sua total

preocupação em preservar a relação Divina na obra da salvação porém respeitando

a autonomia e liberdade da criatura.

Com referência às criaturas, Deus não faz alguma coisa ao lado delas, para completá-las, nem em seu lugar, para supri-las. De outra forma, falar, do exemplo, da ação de Deus em nós poder-se-ia perceber como roubo de nossa própria ação ou anulação de nossa autonomia. E, ao contrário, falar de nossa ação daria a impressão de que Deus nada faz. Precisamente porque Criador, a ação de Deus nas criaturas é fazer com que elas façam. Deus “faz” de verdade, mas em sentido único e singularíssimo, enquanto dele estão continuamente se recebendo a si mesmas as criaturas tanto em seu ser como em sua capacidade de agir. Mas, pela mesma razão, nada falta a sua ação de criaturas: este ser e esta capacidade são-lhes realmente entregues, de sorte que são elas mesmas que “fazem” suas ações, que verdadeiramente são suas”.244

É extremamente significativo a ação Divina marcada pelo amor que resulta no

segundo fundamento hermenêutico, a autonomia da criatura no seu processo de

salvação. Partindo desse pressuposto, Andrés Torres de Queiruga questionará a

apokatástasis. Na sua obra que trata sobre o inferno, “O que queremos dizer quando

dizemos “inferno”?”, logo nas primeiras páginas o autor demonstra a preocupação de

argumentar sobre o tema inferno dentro da realidade humana. Deixa evidente que a

compreensão tem como único meio a experiencia humana, e o lugar desta experiência

está na Sagrada Escritura e na Tradição, porém requer uma tarefa hermenêutica

principalmente pelo que já foi afirmado pelos “antepassados na fé”. Certamente o

242 QUEIRUGA, 1999b, p.69. 243 QUEIRUGA, 1999a, p.125. 244 QUEIRUGA, 1999a, p.127.

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esforço do autor em garantir coerência no seu trabalho procura enfatizar uma

linguagem245 que ele resume como “a partir de baixo”.246

Andrés Torres de Queiruga reconhece como ainda é vigorosa essa noção

sobre a doutrina da apokatástasis, da qual sua raiz foi plantada na era patrística, e

salienta a persistência desse vigor pelo fato de estar arraigada sempre está

florescendo, isto por estar sobre a ótica do poder da graça de Deus e seu desejo

incondicional de salvar. Esta doutrina tem outro fundamento que é pautado na

Escritura pelo fato de várias passagens sugestionarem uma reconciliação total nos

fins dos tempos, e a crítica do teólogo galeno à apokatástasis tem dois pontos cruciais.

Conforme André Torres de Queiruga o primeiro ponto entra em choque com

a sua perspectiva hermenêutica que tem ênfase numa teologia “a partir de baixo”.

Segundo ele há um verticalismo teocêntrico excessivo e coloca o problema onde não

está, ou seja, na parte de cima, significando que o raciocínio sobre este tema parte da

ação de Deus, que na verdade sempre vai agir e fazer o possível para salvar o ser

humano, isso porque ele é um Deus de amor. Efetivamente a questão está na

liberdade humana, visto que Andrés Torres de Queiruga jamais prescinde da

autonomia da criatura, mesmo entre os teólogos mais atuais, como Karl Barth, Hans

Urs von Baltasar e o filósofo da religião John Hick, considera o argumento deles muito

artificial e propõe que mesmo partindo da ação salvadora de Deus as argumentações

sobre a doutrina da apokatástasis deve ter como pressuposto a possibilidade do

sujeito. Portanto, o ponto de partida é a limitada liberdade da criatura, e explorar como

possiblidade de salvá-la o que ela permite já que todo ser humano sempre possui algo

de bondade.247

Outra proposta de Andrés Torres de Queiruga para superar o raciocínio frágil

sobre a apokatástasis foi o apoio ao argumento de John Hick, que busca sua

245 Mesmo o autor confessando sentir uma certa limitação pessoal sobre o tema nesta obra O que queremos dizer quando dizemos “inferno”?, no seu livro Repensar o mal, Andrés Torres de Queiruga a partir de novas referências de linguagem aplica-se no desenvolvimento do tema sobre o inferno a partir da teodiceia. Cf. QUEIRUGA, 2011, p. 276-293. 246 QUEIRUGA, Andrés Torres. O que queremos dizer quando dizemos “inferno”?. Trad. Paulo Bazaglia. São Paulo: Paulus, 1996, p. 6-7. 247 Deve ser posto em evidência que Andrés Torres de Queiruga partindo do pressuposto da liberdade da criatura e do desejo incansável do amor divino em salvar o sujeito, Deus salvaria apenas aquilo quanto pode, ou seja, aquilo que a liberdade finita lhe permite, isto para preservar o aniquilamento da criatura devido sua natureza ser boa, jamais poderia cair na inexistência, além de ir contra a condenação ou morte definitiva e a autocondenação. Cf. QUEIRUGA, 1996, p. 58-70.

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fundamentação com mais rigor na tradição oriental que possui uma corrente de

discurso pautado na possibilidade de mesmo depois da morte o sujeito constituído da

sua plena liberdade poder fazer exercício dela e converter-se, ou seja, permitir que

Deus o salve plenamente.

O segundo ponto fraco que Andrés Torres Queiruga questiona é a

apokatástasis como restauração ao estado original, e com isso todas as criaturas

participam da mesma condição de beatitude. Isso afetaria a liberdade tornando-a

disforme e esvaziaria e tornaria sem sentido o antagonismo entre salvação e

condenação, já que Andrés Torres de Queiruga possui ainda a noção de condenação,

ou inferno como não-salvação. Neste argumento sobre a restauração final o teólogo

galego diz que também há um verticalismo exagerado, já que a questão antropológica

é deixada de lado frente a perspectiva de que Deus pode salvar apenas aquilo que a

liberdade humana lhe permite. Neste caso, o fato do sujeito pela sua liberdade se

fechar para ação salvadora de Deus cairá numa perda eterna e irreparável.248

3.3.1. A releitura da apokatástasis em Queiruga

Na conclusão final da obra Repensar a ressurreição, Andrés Torres Queiruga

afirma contra aqueles que o qualificam como excessivamente racionalista e que sua

teologia parte de dentro da fé, contraponto a simples critica racionalista que se situam

do lado de fora do trabalho teológico em matéria de teologia e fé. Essa defesa do

teólogo espanhol é apresentada pela sua preocupação em ter maior precisão na

“crítica dos conceitos teológicos, mas com propósito de alcançar uma melhor, mais

significativa e mais atualizada compreensão da fé”.249

Entramos novamente no terreno da hermenêutica na teologia, e cabe neste

momento apresentar a ótica de Clodovis Boff sobre a questão hermenêutica, que

sobre o tema apresenta duas propostas, sentido estrito e a segunda no sentido largo.

Referente a primeira, Clodovis Boff afirma ser uma hermenêutica teológica

248 QUEIRUGA, 1996, p. 82-86. 249 QUEIRUGA, 2010a, p.281.

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preocupada em interpretar de forma correta a Palavra de Deus, por isso é mais estrita,

porque busca nos textos bíblicos, nos Padres da Igreja e no Magistério a verdade

contida nos oráculos proféticos e na mediação da Revelação. A segunda proposta da

questão hermenêutica abarca o sentido largo, efetivamente leva em consideração a

interpretação dos textos da Revelação na Tradição viva da fé, já que está inserida na

história viva.250

Para a pragmática da linguagem teológica, seria útil reservar o conceito “hermenêutica” para seu uso técnico e estrito, ou seja, para o momento interpretativo dos grandes textos da teologia, principalmente os textos bíblicos. Para a interpretação mais larga da grande Tradição da fé e, mais ainda, da realidade concreta em que a fé revelada é percebida e vivida, conviria falar simplesmente em teologia ou um discurso, teoria, analítica se ou razão teológica, embora não deva escapar ninguém que a natureza epistemológica da racionalidade teológica é de típico nitidamente hermenêutico.251

Partindo dessa argumentação sobre a questão hermenêutica produzida por

Clodovis Boff, Orígenes na sua investigação teológica sobre a apokatástasis faz uso

de uma hermenêutica teológica em sentido estrido, já que sua base de interpretação

parte direto do texto bíblico. Neste sentido, o discurso teológico de André Torres de

Queiruga entra na linha da segunda proposta de Clodovis Boff, já que parte da

Tradição viva da Igreja, pois o autor sempre é enfático ao afirmar que sua

preocupação teológica é adequar o pensamento da fé no contexto cultural vigente,

evitando, desta forma, a fossilização ou a imobilidade da racionalidade da fé.

Os conceitos teológicos são constructos que, sem deixar de serem verdadeiros, nunca o são de maneira adequada, e por isso precisam estar em contínua revisão, sobretudo quando as mudanças culturais trazem à tona a sua inadequação dentro de um novo contexto.252

Foi apurado anteriormente a posição crítica sobre a apokatástasis de Andrés

Torres de Queiruga, e sua objeção estava ligada ao verticalismo excessivo sobre esta

doutrina. Ficou demonstrado que sua maior preocupação está na questão

antropológica, já que as construções teológicas sobre apokatástasis por ele

analisadas partem de cima para baixo, a autonomia da criatura frente ao processo de

salvação contido na apokatástasis ficou praticamente anulada.

250 BOFF, 2015, p. 87-88. 251 Ibid., p. 88-89. 252 QUEIRUGA, 2010a, p. 282.

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Desse modo, sabendo que o eixo fundamental da teologia de Andrés Torres

de Queiruga é uma teologia encarnada, ou seja, parte da realidade histórica humana,

pode-se denominar uma teologia a partir debaixo, porém com base na chave

hermenêutica: Deus, como ato puro de amor e a autonomia da criatura. Portanto, a

releitura da apokatástasis no seu discurso teológico partirá deste propósito, que de

forma similar a Orígenes, que em contraposição a corrente cristã gnosticista fez um

esforço racional a partir de uma nova hermenêutica de ordem cosmológica,

soteriológica e antropológica afim manter-se sem desvios da tradição apostólica e dar

uma solução que não ferisse a ação providente de Deus e o livre-arbítrio dos seres

racionais.

Com efeito, a releitura da apokatástasis em André Torres de Queiruga deverá

levar em conta o seu grande desafio de responder a sociedade pós-moderna marcada

pela cientificidade que conduz há uma crítica mais intensiva a religiosidade e a

transcendência, somado a isso uma desconstrução da consciência social originada

pelo individualismo, e que também está presente uma pluralidade religiosa que deve

ser respeitada e valorizada com base na aproximação por meio do diálogo religioso,

ou seja, no propósito do teólogo galego de responder a sociedade atual com uma

linguagem teológica adequada, a releitura da apokatástasis perpassará os

fundamentos de seus conceitos teológicos em uma hermenêutica no sentido largo, e

amoldar a doutrina da apokatástasis no contexto contemporâneo.

3.4. Atributos contemporâneos da apokatástasis na teologia de Queiruga

No contexto atual em que a sociedade vive uma crise de identidade, desejo

de superação aliado ao anseio pela felicidade, as questões existenciais ainda

persistem, até porque implicam diretamente na vida concreta humana e no seu destino

último, por isso a busca de entendimento sobre a Deus (transcendência), o universo

e a vida na sua integralidade (isso envolve nascimento e morte), dimensões da vida

humana que historicamente nunca ficaram desvinculadas do desejo do conhecimento

humano.

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Vale destacar que Gesché, no seu discurso teológico referente a questão

sobre Deus destaca, um marco importante na tradição judaico-cristã como

revolucionário perante as outras religiões.

É um dos traços mais impressionantes de nossa tradição judaico-cristã. A Criação, a Revelação, a Encarnação, a Redenção e a Parusia, esses karoi (eventos) maiores de nosso Deus, manifestam uma relação entre Deus e o homem na qual Deus toma iniciativa do encontro. [...] É nesse contexto que devemos entender o que há de mais revolucionário na famosa afirmação joanina. “Deus é amor”. [...] É uma definição vigorosa e “metafisica” de Deus [...] não por meio de uma dedução lógica (que pudesse levar até ela) mas por experiência.253

Andrés Torres de Queiruga comunga do mesmo discurso teológico de Gesché

e afirma que se Deus é amor, inevitavelmente intuiremos que é o amor a chave para

encontrar o sentido da vida. Inclusive o teólogo galego também cita João para

demonstrar que o apostolo teve acesso ao amor por meio de uma experiencia de

convivência íntima com Cristo. “Nele está iniciado tudo: o amor, origem da realidade,

motivo da salvação, meio de comunhão, fonte da atividade, critério da vida...”.254

A chave hermenêutica para a releitura da apokatástasis em Andrés Torres de

Queiruga será o amor de Deus, sem prescindir da autonomia humana. Este amor

potencializa o ser humano, o plenifica, benefício que está presente plenamente na

doutrina da apokatástasis.

“Mas, uma vez, que Deus toma a iniciativa de se identificar absolutamente

com o ser humano, para elevá-lo e potencializá-lo “fraternalmente” – a partir de dentro – a responsabilidade se faz, afinal, corresponsabilidade, e a angústia da liberdade é assumida na gozosa confiança na redenção”.255

Nos eixos teológicos fundamentais em que Andrés Torres de Queiruga de

forma lógica e adequada a realidade atual desempenha sua tarefa teológica, tal qual

a Criação, a Revelação e a Salvação. Será extremamente conveniente decodificar o

processo apokatástico que abrange em seu panorama a bondade, ou melhor o Amor

de Deus, que por amor quer salvar a sua criação, mas sempre respeitando sua

autonomia.

253 GESCHÉ, Adolphe. O cosmos. Trad. Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 92-93. 254 QUEIRUGA, 1999b, p. 27-28. 255 Ibid., p. 53C.

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3.4.1. Deus cria por amor

Andrés Torres de Queiruga, na sua proposta teológica sobre a Criação

mantém o fundamento de seu discurso teológico, “Deus é amor”, esta linguagem

teológica de enfatizar um “Deus que ama está diretamente implicado na Criação, num

Deus que nos cria – que está em criando e sustentando – por amor. Porque então

compreendemos que o esquema muda totalmente. Deus não está separado de

nós”,256 e vale enriquecer esse raciocínio do teólogo galego com a afirmação de

Gesché, que a “teologia da criação é um só e único discurso sobre Deus e sobre o

homem”,257 já que a autonomia criatural é outro eixo fundante do pensamento

teológico de Andrés Torres de Queiruga.

A ênfase em um Deus que cria por amor põe em evidência a salvação,

portanto, Criação e salvação não estão desconexas. Esta linguagem teológica adquiri

grande importância porque não fica submetido apenas à lógica cristã de criação-

salvação, mas alcança outras religiões.

“O mesmo cabe afirmar do diálogo das religiões, enquanto todas elas são também episódios na ação criadora-salvadora de Deus sobre toda a humanidade. Eu mesmo tentei acolher esta perspectiva em uma obra de certa amplitude: Recuperar a criação. Obra que, de modo mais significativo e sem sequer pretendê-lo, mas sensivelmente conduzida pela lógica interna da nova visão, se inscreve com naturalidade, aprofundando-a, na anterior Recuperar a Salvação.258

O percurso para essa concepção abrangente da criação-salvação desdobra-

se a partir do anseio de responder as deformações que afetaram a vivência religiosa

e a teologia por meio das considerações filosóficas, tal qual na antiguidade o discurso

dualista matéria e transcendência e a questão levantada na modernidade sobre a

compreensão metafísica criatio ex nihilo. Esta fatalidade histórica acabou deixando às

margens a experiencia humana sobre o valor religioso.259

Superar essa realidade supõe deixar de insistir na dicotomia sagrado/profano,

ideia presente em correntes filosóficas. Andrés Torres de Queiruga não visibiliza essa

256 QUEIRUGA, 2010a, p. 98. 257 GESCHÉ, 2004, p. 31. 258 QUEIRUGA, Andrés Torres. A esperança apesar do mal: ressureição como horizonte. Trad. Pedro Lima Vasconcellos. São Paulo: Paulina, 2007, p. 92. 259 Ibid., p. 93.

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dicotomia somente na linguagem filosófica mas que muitas vezes também alcança a

vivencia religiosa, mas para não cair apenas na abstração o autor procura inserir essa

realidade na vivência afetiva e cotidiana.

Mesmo na filosofia a Criação é posta em seu antagonismo com o Criador de

modo que a criatura saída do nada só pode ser a partir da escuta, ou seja, de uma

ordem. Nada é a partir de si mesmo, a criatura só é a partir do seu criador, porém

Andrés Torres de Queiruga não descarta essa diferença criador e criatura, pelo

contrário é o primeiro aspecto ontológico dessa relação. Segundo ele em primeiro

lugar o que não pode haver é uma contraposição radical entre Deus e a criatura, ou

seja, o que um é o outro não é, até mesmo na vivência religiosa expressada muitas

vezes na própria experiencia bíblica apresenta essa dicotomia e, por conseguinte,

não pode haver também o inverso, de modo que há uma unidade e uma identificação

tão profunda que promova uma identidade total entre criador e criatura: “o panteísmo”.

Nem uma identidade total entre a relação Deus-criatura, tampouco a

competição entre ela, tal como uma no local onde uma está outra não pode estar, a

solução é compreender que quanto mais o Criador se faz presença na criatura, muito

mais essa se realiza por essa força criadora. “Significa estar sendo trazida a

existência”, essa noção de participação da criatura no ser Divino não é demonstrado

apenas pela vivência religiosa, mas, outras correntes filosóficas também expressaram

a mesma ideia. Esta dialética na relação Deus-criatura é sempre dinâmica, não está

estagnada lá no princípio da Criação, já que é o próprio Deus que continuamente abre

espaço e sustenta a criatura para a sua existência.260

Outro dilema que surge dessa relação Deus-criatura é a imutabilidade divina,

de fato Deus pode ser afetado pela criação? Gesché propõe que o eixo fundamental

para essa compreensão deve ser levado em conta o regime de gratuidade261 e que

Deus ele é o outro, ou seja, tem seu lugar, segundo Gesché:

“Deus é Deus” (ou ele não é). Portanto, ele não pode ter necessidade de nada para ser, para “se tornar”. Ele é completo. A esse respeito, digamos bem claramente e ao contrário de todos os dicionários que identificam Deus como Criador, que o termo “criador” não define e não é seu nome próprio (se há um nome conhecido de Deu, é o de Pai). Deus “é” criador no sentido gramatical e lógico do verbo ser, porque efetivamente criou; mas ele não é criador no

260 QUEIRUGA, 1999a, p. 39-47. 261 GESCHÉ, 2004, p. 35.

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sentido ontológico do verbo “ser” e no qual o termo criador receberia sua definição, sua natureza, seu ser. A criação é um ato (livre) de Deus, não o que o constitui, e o fato de ser criador o qualifica, porém não o expressa de nenhum modo”.262

Deus sendo Deus mesmo e sua ação ser plena gratuidade em relação a sua

criação, André Torres de Queiruga não nega que a tal onipotência é abstrata, afinal

não há uma visibilidade clara desse agir amoroso de Deus. Na maioria das vezes nem

damos conta de agir do seu amor gratuito, mas este véu que encobre esse agir divino

está ligado ao funcionamento correto e concreto da realidade.

“Não damos conta de que por sua parte limites existem, evidentemente: em si mesma e em abstrato, sua onipotência pode tudo; mas em seu funcionamento concreto, a onipotência diz em relação ao outro, e o outro necessariamente tem limites: o círculo não pode, sem desaparecer, fazer-se quadrado , e a liberdade finita não pode, sem anular-se, ser forçada a fazer sempre o bem. Deus, pelo que lhe diz respeito, “pode” tudo e quer o melhor para todos nós; mas nem tudo “é possível” em si mesmo. O amor de Deus consiste em “estar sempre trabalhando” (cf. Jo 5,17), contra toda inércia e resistência por nós e por nossa salvação”.263

Andrés Torres de Queiruga preocupado com os questionamentos da

modernidade frente a realidade religiosa que muitas vezes é impregnada por

ingredientes mitológicos, sabe que deve haver no meio religioso por meio da reflexão

teológica uma mudança de paradigma afim de romper com velhos conceitos e

esquemas que diante dos questionamentos da modernidade acabam sendo

incoerentes.264

Sua proposta é quebrar o esquema antigo que descreve, no âmbito da

salvação, a sequência “paraíso-queda-castigo-redenção-tempo da Igreja – Gloria”.

Segundo ele, este esquema perverte a imagem de Deus e obscurece a sua clareza

luminosa e salvadora.265

A chave hermenêutica para se desvencilhar do antigo esquema é partir da

ideia da criação por amor, ou seja, a criatura humana desde o primeiro momento de

sua existência é envolvida pela graça de Deus, que a sustenta e a promove.

Considerando o processo natural da existência de nascer, crescer e realizar-se, este

ponto de vista abandona o antigo esquema, para que de modo mais objetivo e

262 Ibid., p. 33. 263 QUEIRUGA, 1999a, p. 117. 264 QUEIRUGA, 2007, p. 73. 265 Ibid., p. 74-75.

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concreto possa evidenciar a gratuidade da criação e a autonomia da criatura: “criação-

crescimento histórico culminação em Cristo – tempo da Igreja-Gloria”.266

O mundo dentro do primeiro esquema queda/redenção produz uma visão

negativa da criação, segundo Andrés Torres de Queiruga, inconscientemente

“criação” se converte em “criação caída”, e tende a ser identificada como o “mundo”

mau do qual nos liberta a redenção267.

Reconfigurar essa ideia de uma criação que possui dois momentos históricos

diferentes, um antes da queda e outro pós-queda, passa também pela noção de

mundo criado conforme a perspectiva de Gesché, que entende o cosmo como lugar

da salvação, é de fato o lugar da humanidade, o habitat, a casa dele, é neste lugar

que que a humanidade encontra o sentido de alteridade, é no cosmo o lugar da

preocupação ética, mesmo que forças alienantes (cultura, economia, política e

questões morais) possam impedi-lo de evoluir, mas é o lugar em que a humanidade

possa “praticar o direito, proclamar a justiça, e tratar o outro como fim e não como

meio”.268

Essa exigência ética oriunda do habitat, ou seja, do lugar onde é a casa

comum de todos, que tem por trás as relações humanas, segundo Andrés Torres de

Queiruga, não tira do Criador a sua intenção originária de que o processo de

realização humana se dá no processo histórico, e o fato de quebrar o paradigma

queda/redenção não exclui a verdade sobre o pecado original, que é visto como

causador de uma ruptura histórica, mas apresenta de modo concreto uma

humanidade que foi criada por amor.

Sem prescindir da liberdade e finitude, limitação da humanidade, estes são

atributos que possibilitam no ser humano o mal, levando-o a falta de alteridade e a

quebra da ética, [..] a liberdade infinita, saída inocente das mãos do Criador, é

impotente de passar ao ato histórico com pureza total e sem contaminar nunca a sua

inocência”.269

266 Ibid., p. 77-78. 267 Ibid., p. 86. 268 GESCHÉ, 2004, p. 36-38. 269 QUEIRUGA, 2007, p. 89.

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Esta exigência ética que só pode ser exercida no habitat da criatura, deve

situar-se na dialética Deus-criatura, na qual ética irrompe como resposta da criatura a

Deus, e partindo desta dinâmica André Torres de Queiruga, de expor a ação de Deus

por meio da criatura e a criatura que na sua liberdade tem seu agir em Deus porque é

sustentada por ele.

Esse movimento entre ação divina e ação criatural André Torres de Queiruga

evidência a ação de Deus, mas desvinculando do imaginário de um agir divino

intervencionista, em que Deus do seu lugar resolve em certos momentos da história

coletiva ou individual agir, de modo que se for considerado um agir divino a partir

desse horizonte a autonomia humana praticamente fica anulada. Andrés Torres de

Queiruga dentro do seu conceito teológico, em que também envolve a liberdade

humana, afirma que a ação divina é fazer com que as criaturas o façam, sem romper

com a autonomia delas, ou seja, a ação é sempre dela, é deste agir criatural em Deus

que torna-se visível e real a ação divina, mas convém não fazer uma concorrência

entre Deus e o ser humano cada qual no seu agir, mas perceber que há uma unidade

na ação, ou seja, uma co-realização, o ser humano e Deus agindo cada qual no seu

plano em prol do amor.270

“Deus age na mesma ação da criatura, e essa age sustentada pela ação divina, a qual é de ordem transcendente e só toma corpo empírico agindo através daquela, que por sua vez só existe enquanto apoiada na divina: agimos porque Deus age (ordem transcendente); e Deus age de maneira eficaz no mundo porque agimos nós (ordem categorial).271

Contudo, vislumbrar-se a co-realização entre Deus e a criatura tomando o

ponto de vista criatural, na qual supõe a sua liberdade que não deixa de estar

condicionada as leis naturais e a finitude criatural. Diferentemente de outras criaturas

que respondem a Deus por necessidade, o ser humano em razão própria de sua

liberdade só pode respondê-lo por meio da obediência, então Deus solicita a liberdade

humana sem forçar, mas porque a sustenta ele a impulsiona internamente a esta

resposta humana livre e espontânea, promovendo o dinamismo evolutivo dentro de

uma realidade de amor à sua realização plena.272

270 QUEIRUGA, 1999a, p. 124-130. 271 Ibid., p. 131. 272 Ibid., p. 131-136.

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Essa ação de co-realização dinâmica do amor entre Deus-criatura no ponto

de vista religioso e, principalmente, a partir da confissão de fé cristã, não é estranho

ao pensamento de um crente, mas entender essa resposta a partir da liberdade de

um não crente ainda causa estranhamento, por ser difícil enxergar a relação Deus-

criatura. Andrés Torres de Queiruga busca a solução a partir de Deus, que por amor

sustenta desde o princípio e impulsiona todas as criaturas a realização, é muito feliz

em dizer que o ser humano não é só cérebro, é um ser integral e que muitas de suas

ações também são expressões do divino, por isso já são respostas ao seu chamado

fundamental. Portanto o que deve prevalecer é a honestidade autêntica, e que tal

autenticidade dever corresponder tanto no âmbito da fé religiosa quanto no âmbito

não crente.273

3.4.2. A Revelação divina queiruguiana

Fazer um discurso teológico sobre a Revelação no contexto atual é um

trabalho árduo, isso porque, segundo Libanio, a modernidade diante da ineficiência

das organizações governamentais e as situações de injustiça em diversos segmentos

da sociedade que torna a realidade totalmente injusta e a aparente conivência do

cristianismo com esta situação a Revelação perde a credibilidade.274 É diante deste

contexto de limitações e obscuridades da vida concreta que Andrés Torres de

Queiruga busca fundamentar a Revelação Divina, ou seja, a “é preciso “partir de

baixo”: tentar descobrir a experiência de base e ir reconstruindo a partir dela a

compreensão”.275

Revelação e salvação estão implicadas porque trata-se da presença ativa e

salvífica de Deus, porém Schillebeeckx faz uma alerta, que esta realidade da

Revelação não pode estar reduzida apenas na consciência ou na experiência religiosa

cristã, já que a História da Salvação não se reduz apenas à história das religiões, mas

273 Ibid., p. 181-185. 274 LIBANIO, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade. 7. ed. São Paulo: Loyola. 2014, p. 24-25. 275 QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a Revelação: A Revelação divina na realização humana. 2010b, p.17.

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o lugar da revelação desse Deus que se Revela é a chamada história profana, é no

mundo, na história da humanidade que Deus quer elevar a humanidade a realização

plena, ou seja, a sua salvação, a história profana é a realidade salvífica que Deus quer

sustentar, agir e elevar sua criatura.276

Schillebeeckx, ao referir-se a história profana, cabe aqui uma compreensão

honesta da participação no plano salvífico divino de toda a humanidade seja ela crente

ou não crente e, portanto, Andrés Torres de Queiruga ao tratar do tema Revelação

divina a sua pretensão não é fazer uma apologia a percepção cristã da Revelação,

que foi alimentada no decorrer da história com uma pregação pautada numa teologia

impregnada de obrigações, tornando a religião cristã pesada: “fatalmente, uma

espécie de círculo vicioso: selecionamos na revelação, sem que percebamos, aqueles

dados ou expressões que confirmam a atual situação, e nos cegamos[...]”.277

Portanto, a reflexão da Revelação queiruguiana no meio cristão não é algo

que está fora de nós, muito pelo contrário, ele afirma que é a partir de dentro, partindo

da fé e da experiência na comunidade, que para ele é entendida como uma força

persuasiva da própria revelação, essa hermenêutica da Revelação já elimina o caráter

apologético e pode aproximar-se da realidade do não crente por meio de suas

indagações existenciais.

Olhando para dentro de si mesmo e pela experiência da realidade pode

chegar ao diálogo, pois ambos os lados – crente e não crentes – devem ter como

ponto de partida a própria realidade cultural e concreta imersa na presença do mal,

para que possam compreender “esse mistério magnifico que interpretamos como

revelação de Deus: isso que nos atrevemos a chamar sua palavra”.278

A Revelação não pode ser ponto de discórdia entre crentes e não crentes, ao

invés de debates agressivos o ideal é o diálogo, este esforço condiz com a proposta

da revelação, que é tornar o ser humanos mais realizado, Schillebeeckx comunga

deste conceito de Revelação:

“Homens crentes contemplam na história da libertação humana o rosto de Deus. Incrédulos não o fazem, com efeito, mas, no nível da libertação

276 SCHILLEBEECKX, Edward. História Humana: Revelação de Deus. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1994, p. 29. 277 QUEIRUGA, 1999b, p. 31. 278 QUEIRUGA, 2010b. p. 20.

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humana (no nível do material da revelação de Deus), podem falar, quer crentes quer não-crentes, uma linguagem comum sobre este processo. É possível haver acordo aí, assim como também cooperação. Decisivo não é, portanto, o expresso reconhecimento de Deus, mas a pergunta: por que lado eu decido na luta entre o bem e o mal, entre opressores e oprimidos?279

Por meio de uma linguagem comum entre crentes e não crentes na luta contra

o mal, Andrés Torres de Queiruga entende que mesmo o mundo contendo a presença

do mal, ainda vale a pena, apesar do mal, Deus se revela como amor ao dar a

existência a este mundo. Esta iniciativa de Deus a partir do amor não acontece fora

do mundo, mas a partir dele, ou seja, da própria história, Deus quer a sua definitiva e

plena realização, que consiste na vitória do bem sobre o mal.280

3.4.2.1. A Revelação a partir da maiêutica281 histórica

Na obra Repensar a Revelação de Andrés Torres de Queiruga, segundo o

autor a maiêutica histórica é o centro do seu discurso sobre a Revelação, além de

querer expor uma síntese entre transcendência e imanência, há também dois motivos

principais que o influenciaram a tal argumentação: o diálogo com as outras religiões

assim como os não crentes. Portanto, a partir dessas motivações a maiêutica abarca

com tal força a gratuidade da revelação sem prescindir de um aparato crítico282 e vale

expor as próprias palavras do autor ao remeter a Revelação bíblica como maiêutica:

“Definir a revelação bíblica como maiêutica quer indicar que, em última instância, também ele é “auto informativa”. Porque a palavra bíblica informa e ilumina, porém não remete a si mesma nem a quem a pronúncia, mas faz as vezes de “parteira” para que o ouvinte perceba por si mesmo a realidade que ela põe a descoberto.283

É fato a maiêutica ser um tema central na revelação divina em Andrés Torres

de Queiruga, de tal forma que ele dedicou um capítulo inteiro sobre o tema, creio que

uma síntese feita por Libanio sobre a maiêutica queiruguiana é efetiva e

279 SCHILLEBEECKX, 1994, p. 24. 280 QUEIRUGA, 2011, p. 190. 281 “A significação básica da “maiêutica” está expressa no Teeteto (148a-151e) com o estilo inigualável do diálogo socrático. Sócrates, filho de parteira (maia), afirma praticar a mesma arte de sua mãe: a maiêutica (maieutiké techne). Mediante sua palavra tira para luz – “ajuda a dar à luz” – o que estava dentro do interlecutor. Como no caso famoso de Menon (80d-86d), em que o escravo, graças às perguntas de Sócrates, consegue “descobrir a geometria”, a maiêutica faz o interlocutor descobrir, engendrar ou dar à luz a verdade que leva em si mesmo. QUEIRUGA, 2010b, p. 119. 282 Ibid., p. 105-106. 283 Ibid., p. 106.

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esclarecedora, já que expõe os pontos principais deste conceito da revelação em

Andrés Torres de Queiruga.

É exibido primeiramente o profeta como o mediador inspirado pelo fato de já

que foi iluminado pela revelação e assumiu inteiramente e ao transmitir os receptores

reconhecem como ato revelado por Deus. Esse processo é amplo, significa que outras

religiões passam pelo mesmo processo de autoconsciência da presença do divino na

sua existência factual, ou seja, no seu meio de convivência social.

A escritura é o lugar da constatação desta revelação divina, indicando que

Israel não se isentou deste mesmo processo, e interpretou nos seus acontecimentos

históricos a iniciativa e a gratuidade da presença iluminadora de Iahweh e, por isso,

aceitou esse chamado possibilitando-os ir além de suas possibilidades. Mesmo no

Novo Testamento, não há a ruptura dessa presença reveladora de Iahweh, pois Jesus

de Nazaré, o Verbo encarnado, dá continuidade de maneira mais íntima e profunda a

ação salvadora de Iahweh.

Nisto vemos o caráter dinâmico que a concepção da Palavra de Deus como

sendo auto afirmativa mesmo trazendo à tona informações de mistérios externos e

remotos, traz a luz uma nova realidade muito mais íntima e profunda. Essa iniciativa

gratuita e iluminadora de Deus nos acontecimentos e apreendida pela inteligência, o

agente primário, ou seja, o mediador inspirado tem sua vida iluminada e apoiado na

sua interpretação da revelação e a transmite, os outros que recebem a experiência da

revelação e captam pela própria história que os clarifica, mas não há unanimidade

nessa captação da revelação.284

“O ponto de partida da intelecção da revelação não é a busca de uma ponte entre Deus e o homem, mas pelo contrário, é a união radicalíssima, anterior a tudo e mais profunda que tudo, da criatura com Deus, que está a criá-la, sustenta-la. O Deus da revelação não tem de entrar na vida do homem, já que está aí presente, sustentando o homem no ser, na liberdade, na história”.285

Este fluxo entre o divino e o humano desembaraçado na própria história,

constitui a história da salvação. “Mas de um Deus e homem que têm uma unidade

radical anterior a qualquer evento histórico”,286 essa concepção maiêutica supera todo

284 LIBANIO, 2014, p. 303-304. 285 Ibid., p. 306. 286 Ibid., p. 307.

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fixismo dogmático que traz à tona a ideia de verdades sempre imutáveis, mas também

não pode haver o descuido de deixar cair num relativismo que abdica de qualquer

verdade ou valor.287

3.4.2.2. A ultimidade da Revelação

Do ponto de vista cristão a ultimidade da revelação como culminação e da

realização humana tem como ponto fundamental o evento da revelação em Jesus

Cristo. Sem abster-se desta revelação divina de experiência cristã, a teologia

queiruguiana sobre a revelação a princípio tem como cerne o fato concreto, a

realidade histórica, isso porque a fundamentação de sua reflexão parte da realidade

antropológica e também de sua preocupação em demonstrar a inteligibilidade diante

dos questionamentos críticos e de caráter empírico da modernidade que, portanto,

necessariamente é preciso demonstrar o caráter real e factual da revelação na história

humana, mas o autor galego sabe da importância de outra categoria da revelação que

é a dimensão sobrenatural.

Andrés Torres de Queiruga reconhece a dificuldade de lidar com o tema

devido estudos anteriores, sobretudo na neoescolástica, que absorveu uma ideia

dualista sobre natureza e o sobrenatural (a graça). Sendo a primeira já acabada e

concluída para depois ser elevada à condição sobrenatural, o que está por trás deste

dilema desta a questão na gratuidade adequando-a no intrinsequíssimo da graça.

A saída para esta questão foi superar a visão natureza-espiritual de Henri de

Lubac em que o homem é dotado de um desejo natural da visão de Deus, que para

André Torres de Queiruga é pensada a partir de Deus.

A sua proposta é entender a revelação a partir de baixo, aproximando-o da

categoria rahneriana de “existencial sobrenatural”, em que a primeira expressão

“existencial” está ligada ao intrinsecismo da graça e, por conseguinte, o termo

“sobrenatural” ligado a gratuidade, que para Andrés Torres de Queiruga ainda não é

287 Ibid., p. 307.

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uma solução satisfatória, devido ser considerada uma terceira categoria entre graça e

natureza,288

Já que não se pode pensar graça sem natureza, e natureza sem graça o

teólogo galego para chegar numa concepção ativa de desenvolvimento entre natureza

e graça (sobrenatural) se apoiará nas ideias de von Balthasar e Juan Alfaro, afirmando

que há uma “ordenação dinâmica” para a compreensão da revelação na dimensão

real e histórica e a dimensão transcendente e real.

Não se trata de uma sobreposição, senão de uma ordenação dinâmica, que pode ajudar compreender o lugar autêntico da revelação e transcendência na vida real. Juan Alfaro assinala como o espírito finito está dotado de um dinamismo ilimitado, que tende a desenvolver-se em etapas concretas; mas que só existe para ele uma “única plenitude definitiva possível: a comunhão com Deus. E von Balthasar cimenta tudo isso assinalando que o sentido teológico de “natureza” tem de ser entendido “como um sentido provisório em relação ao único e definitivo sentido final que existe de fato, como num momento que entra na síntese querida por Deus, síntese que não seria possível sem uma relativa autonomia do mesmo, o qual, não obstante, alcança a última justificação de sua existência nesta ordenação e sobrelevação (em relação a si mesmo).289

A auto comunicação na graça, que é dom de Deus, sempre irá respeitar a

autonomia do sujeito que pode aceitar ou rejeitar esse dom. A sua grandeza estará

determinada mesmo nas situações históricas humanas, sejam elas culturais e demais

esferas, pela capacidade de pela liberdade compreender que todas as realidades

históricas estão apontadas para uma culminância, uma definição de realização última.

O sujeito que, pela luz da própria liberdade, assumir esta consciência da ação

reveladora de Deus, conseguirá definir que a última e autêntica realização como

pessoa de forma concreta real está na realização humana que se realiza na revelação.

Andrés Torres de Queiruga afirma que esta realização autêntica da criatura na

ultimidade apesar da sua condição de finitude pela sua própria liberdade, a decisão

de acolher a revelação divina como chamado a corrigir o mal em si mesmo pode

elevar, e potencializar na sua realização, esta prática torna o sujeito capaz de acolher

a ultimidade revelação divina.290

Este chamado a ultimidade da revelação, para Andrés Torres de Queiruga,

ultrapassa o fenômeno religioso, pois está implicado a consciência e liberdade do

288 QUEIRUGA, 2010b. p. 234-237. 289 Ibid., p. 238. 290 Ibid., p. 238-241.

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sujeito. Por isso, não cabe somente analisar a culminância da realização humana na

revelação levando em consideração somente a denominação religiosa, mas a pessoa

em si. Desta maneira, perante também a questão da revelação, a teologia

queiruguiana utiliza o termo autenticidade como ponto comum entre pessoa humana

religiosa e pessoa humana não religiosa. Esta questão da autenticidade aponta para

a realização honesta da vida humana na luta contra o mal para que possa alcançar

nela a plenitude da revelação divina.

“Teríamos então o “homem autêntico não religioso”, onde indica a realização honesta e não banalizada nem fechada, da emergência humana; e não religioso, por sua vez, mostra que essa autenticidade não se realiza com referência a Deus. Caberia assim contrapor a ele (como legítima interpretação do crente pelo não crente) o “homem autêntico religioso”. Ambas denominações podem expressar ou qualificações que sejam necessárias [...] subsumindo o gênero na espécie, poder-se-ia simplificar – e seria talvez o mais correto – desse modo: “homem autêntico agnóstico, cético, ateu...”” homem autêntico religioso budista, judeu...”.291

Portanto, ao referir-se sobre a revelação promovendo uma ruptura com o

caráter transcendente que está implícito seria um equívoco, já que a partir da categoria

histórica desta revelação, elementos desse mundo estão apontados para a

transcendência, e o sujeito que é livre, autônomo pode chegar a ultimidade da

revelação plenamente transformado. Sem a presença do mal, dentro deste ponto de

vista teológico, podemos ver a factual sobre naturalidade da revelação.

3.4.3. A soteriologia queiruguiana

A questão sobre o conceito de salvação é um tema central e de suma

importância na teologia cristã e, tomando como base, o longo período histórico do

cristianismo, segundo Haight,292 jamais houve na Igreja uma formulação conciliar

definitiva sobre a salvação. Ou seja, a Igreja não outorgou nenhuma concepção

universal a respeito, conforme o mesmo autor. Isso não causou danos ou trouxe

malefícios, contrariamente, possibilitou o desenvolvimento de um pluralismo sobre a

conceitualização de salvação. Este pressuposto é favorável à teologia de Andrés

291 Ibid., p. 246. 292 HAIGHT, 2005, p. 387.

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Torres de Queiruga, que absorve uma hermenêutica teológica do repensar, recuperar

os conceitos fundamentais deste dado da fé.

Por isso, a reflexão queiruguiana sobre a salvação procura ter como elemento

basilar “Deus é amor”, que o próprio autor vê nesta chave hermenêutica uma

capacidade de sozinha manter a esperança no mundo.293

Porém, no realismo atual, em que o mundo está submergido numa cultura

polarizada, que de um lado temos uma sociedade que emerge de um mundo rumo a

progressão do mal, sendo cada vez mais individualista, na busca imediata de suprir

suas necessidades, de tal forma que sobressaem a ganância e o poder como forma

de vida plena e realizada, além de boa parte de um cristianismo com perfil de

neocristandade e, do outro lado – mais fragilizado –, pobres, idosos, refugiados,

negros, índios, homossexuais, etc., que impotentes diante da realidade concreta, é

mais fácil ver Deus como um rival do que um “Deus Amor”.

Pode-se a partir dessa realidade do mundo atual seguir uma reconfiguração

da salvação em Andrés Torres de Queiruga e assumir a sua proposta dialética do

indicativo-imperativo, que compreende da seguinte forma:

“Deus, porque quer, desde a absoluta iniciativa de seu amor, salva o ser humano, que se encontra assim com o fato – indicativo – de ser “alguém salvo”. Mas Deus, porque quer realmente salvar, respeitando a irrenunciável liberdade do que foi salvo, não força o ser humano, mas antes o chama – imperativo – para essa salvação que já é sua, embora somente possa florescer nas responsabilidades de sua resposta.294

O teólogo galego quer salvaguardar nesta dialética indicativo-imperativo a

autonomia da criatura e, naquilo que se estabelece como imperativo, nada mais é que

o cristão ser chamado a ser o que é, porém sem lhe tirar a liberdade. Mas é a iniciativa

divina na sua ação amorosa a partir de dentro elevando-a, potencializando-a

identificando-a com ele, demonstrando, portanto, nessa comunhão a capacidade do

sujeito a ser ele mesmo, identificando nessa dialética a sua própria norma, pode-se

dizer a superação da heteronomia pela autonomia.295

293 QUEIRUGA, 1999b, p. 27. 294 Ibid., p. 48. 295 Ibid., p. 52-53.

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A partir desta ótica, Andrés Torres de Queiruga que supera a noção imatura

de fé muitas vezes medida somente do ponto de vista doutrinal, ou como apenas um

encargo de obediência uma fé vinda de fora, porém ele qualifica esta fé como:

“a máxima realização do conhecimento, precisamente no nível mais denso e profundo da realidade [...] isso se sucede justamente porque nela se nos abre uma profundidade pessoal infinita, estendida para nós como intimidade salvadora como comunhão, sem limite e sem fronteira”.296

A coerência deste ponto de vista da fé se firma pelo fato de ser uma

experiência realizada na história, na vida concreta e real, em que o mal ainda se faz

presente. Portanto, não é negada a realidade do mal no mundo, é bem verdade que

a questão do mal coloca em xeque a fé em Deus.

O problema do mal é uma questão que André Torres de Queiruga cambia

entre a ponerologia e a pisteodicéia.297 A primeira que em sua essência é interrogação

universal – dilema de Epicuro – sobre o mal, visando dar uma solução religiosa,

advém de um período em que a fé trazia forte legitimidade para as soluções

existenciais – uma solução proposta era a de um mundo sem mal – porém, a própria

raiz da fé religiosa de um Deus onipotente e bom, mas que não evitava ou porque não

podia acabar com a presença do mal vai na contramão da fé nesse Deus.

O período da modernidade pode iluminar essa questão, porque além de

superar os fundamentalismos religiosos, entendeu a lógica do mundo e exigiu uma

nova postura, reconhecendo a autonomia deste mundo negando a intervenção divina

em suas leis.

Andrés Torres de Queiruga na sua interpretação sobre o mal, crê que a

pisteodicéia é um argumento mais favorável às questões da racionalidade lógica, pois,

mesmo partindo de um ponto de vista religioso, não assume a possibilidade de um

296 Ibid., p. 61. 297 “A ponerologia (do grego ponerós, “mal”) deve construir um tratado do mal em si e por si mesmo, com procedência estrutural a toda opção religiosa ou não religiosa. Numa cultura autônoma, esse é o procedimento normal diante de todo o problema humano fundamental, como a liberdade, a consciência ou a culpa. A pisteodicéia (do grego pistis,fé, aqui no sentido amplo, filosófico e relativo à cosmovisão, de configuração da própria existência). Não indica um tratado concreto, mas antes uma mediação necessária, na medida em que esclarece a necessidade comum de uma mediação metódica para “justificar” a resposta da “cosmovisão” que, de modo explícito e meditado, todos nós adotamos perante a realidade do mal”. QUEIRUGA, 2011, p. 33.

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mundo sem mal e entende-o como autônomo. Isso porque o questionamento parte do

ponto de vista filosófico e religioso. Dessa forma, a compreensão de um mundo sem

mal é o mesmo que pensar em um círculo-quadrado, isso porque é inerente a própria

existência do mundo, a finitude. Está aí a condição do mal presente nele, e a coerência

da pisteodicéia, agora cristã, apoia-se na profissão de fé em um Deus que é amor,

mas que o mal presente no mundo não é porque ele quer ou permita, mas porque não

é um problema Seu, mas sim, da condição própria de finitude da criatura. Porém, essa

condição é do ente e não do ser de sua criação. No entanto, esse Deus que cria por

amor é um Deus Antimal, porque não abandona a sua criação, ele sempre está com

ela, sustentando-a contra o mal, e a grande manifestação desse Deus que é amor e

Antimal, para os cristãos é historicamente realizado na cruz e ressurreição de Cristo

dando a todos que nele creem, a esperança da vitória sobre todo mal.298

Ao falar do crucificado e do ressuscitado não há como contrapor-se à teologia

da redenção que foi desenvolvida em vista da própria compreensão do mistério da

paixão. Jesus não poderia fracassar, ele é Deus, e a ressurreição é o reconhecimento

dado pelo Pai, por sua morte cruenta “justo que sofre”. Todo esse panorama foi fonte

para uma teologia posterior em que vê a morte de Jesus como oferenda, expiação,

sacrifício ou preço pelos pecados, a reconciliação entre Deus e o ser humano

acontecia pela morte de Cristo na cruz, esta é a obra de Deus para a salvação.

A quebra de paradigma quanto essa teologia da redenção, em Andrés Torres

de Queiruga, está no olhar global sobre a vida e obra de Jesus, e abandonando o

caráter jurídico do plano de salvação de modo que Cristo na sua situação humana e

de impotência frente ao mal, com sua morte-ressurreição transforma o ser humano,

transformando-o em uma nova criatura, potencializando-o a partir de dentro, da

realidade humana.

O enfoque sobre a redenção muda, há uma transformação ontológica radical

e realista, pois Cristo homem verdadeiro submetido a todas as realidades do pecado

é, ao mesmo, tempo Deus verdadeiro, fazendo eclodir a partir da impotência humana,

própria de sua condição, a possibilidade de uma realização infinita. É nesta

compressão de salvação que devemos nos empenhar em absorver.299 “A salvação:

298 QUEIRUGA, 2007, p.b121-143. 299 QUEIRUGA, 1999b, p. 171-173.

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romper uma impotência e não negar uma dívida; potencializar em vista da plena

realização e não retirar um castigo”.300

Sob o prisma da morte da cruz em Cristo, Andrés Torres de Queiruga rompe

com os padrões já existentes referente a teologia cruz-ressurreição já que a morte do

Cristo na cruz é o último limite de sua existência terrestre, identificando-o com a morte

de todo ser humano.

É no extremo da vida nesse mundo, diante da injustiça vivida por Cristo na

morte de cruz, está a revelação da presença e ação salvadora e ressuscitadora de

Deus/Abbá confirmando a ressurreição já como vida plena e glorificada. Isso supera

uma visão da vida que muitas vezes tende a ser inerte, mas que na verdade a vida é

um processo de construção e a morte na cruz é nada mais do que a realidade palpável

da culminação desse processo de avanço e progressão, originando uma nova

situação nunca experimentada até então.301

O autor galego avança mais na sua reflexão ao vislumbrar na cruz, a mudança

radical dos seus discípulos, que superam o caráter negativo da cruz e a convertem

em rocha firme da fé. A lógica dessa radical mudança de mentalidade estava em que

Deus estava agindo na história sem quebrar suas leis, mesmo não descendo Jesus

da Cruz, o Abbá continuava com ele sustentando-o com seu amor. Portanto, aquela

noção da salvação intervencionista apocalíptica de Deus da qual estavam esperando

que rompia a história, vê-se compreendida na ação de Deus que respeita a história

transcendendo-a, superando-a e destruindo todo o poder da morte mediante a

ressurreição.302

Na teologia queiruguiana, a vinculação da ressurreição de Jesus com a

ressurreição de cada ser humano, supera a visão da ressurreição de Jesus a partir do

enfoque cronológico adquirida na teologia posterior. Ou seja, como só a partir de

Jesus houvesse começado a ressureição, a primazia da sua ressurreição somente

sob este ponto de vista cronológico, não havia a exclusão de que este acontecimento

salvífico da ressurreição já não fosse vista como ação libertadora de Deus defronte à

300 Ibid., p. 173. 301 QUEIRUGA, 2010a, p. 166. 302 Ibid., p. 168.

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morte. Porém, a ideia de ressurreição ainda não era plena, já que havia o problema

do destino do cadáver e a questão temporal (os três dias antes da aparição). Com

uma hermenêutica paradigmática o pensamento teológico queiruguiano sobre

ressurreição de Jesus, afirma que a primazia da ressurreição de Jesus serve de

exemplo para a nossa ressurreição, e isso não isenta de que esse processo da

ressurreição já não fosse dessa forma com todos aqueles que morreram antes dele,

devido essa primazia estar sustentada no seu modo específico, na sua excelência,

em uma prioridade de dignidade.

“A primazia de Jesus como “pioneiro da fé” e “primogênito dos mortos era

rebaixada à primazia empírica, interpretada como mera anterioridade no tempo físico.

Isso aparentemente ressaltava a grandeza de Jesus e exaltava a ação de Deus; mas

na realidade, não conseguia nem um nem outro. Por um lado, isolava Jesus, tornando-

o um estanho na história humana. Por outro, diminuía a ação de Deus, que só a partir

dos anos 30 de nossa era começaria a ser um “Deus dos vivos”, ocultando assim que

ele é o Pai que desde sempre ressuscita seus filhos e filhas, e não o Deus que durante

milhares de anos os deixou entregues ao poder da morte”.303

Essa interpretação inovadora da ressurreição reflete sobre outro conceito

teológico que é a parúsia, que traz em si um caráter real de espera da plena realização

escatológica, definitiva e universal. Mas, para Andrés Torres de Queiruga, é

necessário superar o problema acerca do estado intermediário, ou seja, desse

“tempo/não tempo” em que a “alma” estaria esperando pela ressurreição dos “corpos”

no fim do mundo”.304 Andrés Torres de Queiruga não nega este estado de

incompletude nesse modo de ser na ressurreição, mas em vista de suprimir esquemas

místicos impregnados na história e na teologia sobre a ressurreição ligado a parúsia,

o autor galego nesse o sentido da parúsia salienta a ótica da comunhão e

solidariedade de todos os seres humanos, sejam eles os ainda presente nessa

realidade terrestre, sejam aqueles que já estão na eternidade. Essa solidariedade está

estabelecida em Cristo que, segundo Paulo (cf. Gl 3,38), passado e futuro estão

condicionados a si. A morte não rompeu essa realidade, vemos que originando-se na

vida eterna uma comunidade que em termos de salvação não está plenamente

303 Ibid., p. 187. 304 Ibid., p. 195.

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acabada, porque a sua realização plena acontecerá quando os outros que ainda estão

a caminho, e estiverem livres da presença do mal possam formar a comunhão dos

santos que ainda incompleta, se tornará plena. André Torres de Queiruga fundamenta

este discurso teológico na expressão paulina sobre a “salvação da esperança”, em

que a morte, último inimigo a ser destruído, torna-se caminho onde todos iremos entrar

rumo ao desejo de Deus, cujo fim é que “Deus seja tudo em todos” (1Cor, 15, 28).305

Esta solidariedade em que envolve a comunidade dos já ressuscitados na

glória com os indivíduos que caminham na história terrestres na esperança da

plenitude da glória, do triunfo sobre a morte pela ressurreição, formarão a única e

universal Igreja de Cristo, segundo Andrés Torres de Queiruga, “esse futuro só é

concebível em sua união indissolúvel com passado, que através da memória aviva o

fundamento da esperança e, sobretudo, com o presente”.306

A preocupação do teólogo galego é um discurso teológico sobre a

ressurreição sem desassociar a realidade concreta da história da vida eterna, evitando

cair num reducionismo soteriológico de um simples prêmio pós vida terrena. Essa

preocupação é demonstrada também quando ao referir-se a esperança prática que

esta fundada no realismo histórico, para fugir dos riscos de cair, por exemplo, na ideia

de ressurreição utópica, que foi pregada por muitos pensadores com conceitos

apocalípticos em que imaginavam um paraíso ainda aqui na terra, isso inclui também

os milenarista, ou mergulhar numa onda de desesperança, porque o realismo histórico

mesmo após a ressurreição de Cristo ainda se vê a presença do mal no mundo. Mas,

faz parte de uma vida cristã de fé coerente e realista mostrar que a ressurreição é a

esperança do destino salvífico envolvido plenamente no amor infinito de Deus capaz

de derrotar o mal.307

Dentro desta preocupação queiruguiana de uma concepção de vida eterna

desconectada da vida histórica presente, o objetivo cristão é sermos como Cristo

ressuscitado, e para alcançar esse objetivo a vida histórica e concreta de Jesus de

Nazaré é a grande evidência. Portanto, o seguimento que pressupõe a liberdade e

autonomia do sujeito o fará ressuscitado como ele. Isso significa que o seguimento de

305 Ibid., p. 195-196. 306 QUEIRUGA, 2007, p. 156. 307 Ibid., p. 154-155.

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Jesus nos dá esperança da nossa realização plena e transcendente que é a

ressurreição:

“Nisso enraíza a força do chamado de Jesus ao seguimento. Sua ressurreição, ao mostrá-lo como tendo alcançado a plenitude da realização humana, mostra que o caminho de sua vida é o verdadeiro para qualquer homem e mulher: não desvia da meta levando à morte, mas dirige pela via reta rumo à vida em plenitude. Vivendo como ele, ressuscitaremos como ele. Por isso Jesus é o verdadeiro caminho (cf. Jo 16,6). [...] A confiança amorosa e reconciliada no Abbá, Pai/Mãe, como atitude religiosa fundamental; o amor e o serviço aos irmãos, como práxis de vida; a esperança no Reino, como salvação definitiva: esse é o estilo da vida verdadeira, que não será aniquilada pela morte, mas realiazar-se-á plenamente como vida ressuscitada”.308

A solidariedade humana no processo salvífico que num plano universal

envolve os que ainda peregrinam por esse mundo cheio das belezas de Deus, porém

ainda com a presença do mal devido sua finitude, com aqueles que já gozam da

plenitude da ressurreição, na qual Andrés Torres de Queiruga em seu discurso sobre

o tema não deixa de lado a realidade mistérica da ressurreição, e isso envolve não

somente a salvação da pessoa humana mas inclui no “mistério da ressureição em

seu alcance integral como o resgate definitivo de toda a realidade”.309 Ou seja, isso

demonstra a preocupação queiruguiana do cosmo no processo de ressurreição, já que

o fim da história humana não é o “nada” e sim Deus. Portanto, da mesma forma o

cosmo no seu final também encontrará Deus ao invés do nada, visto que a história

humana está inserida no cosmo, seria um equívoco negar uma íntima solidariedade

da vida humana com o mundo.

Andrés Torres de Queiruga sabe que a revelação não dá detalhes de como

se dará esse processo. Ao abordar o processo salvífico humano a partir do mundo e

não de fora dele, ou seja, a sua potencialização máxima, essa interdependência entre

o indivíduo e o cosmo na realidade salvífica tem como pressuposto o evolucionismo

cósmico e biológico que no passado soou como uma humilhação para o ser humano.

Nos moldes da cosmovisão pós-moderna serve de confirmação da participação do

cosmo no processo salvífico divino, pois, o pensamento evolucionista tem como

centralidade a realidade humana, que num processo de crescimento e evolução tende

a chegar ao seu cume. “Por isso afirmar que a salvação do cosmo se realiza na

308 QUEIRUGA, 2010a, p. 227-228. 309 Ibid., p. 240.

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salvação humana não constitui uma metáfora superficial nem uma depreciação dele,

mas a sua mais profunda e autêntica realização”.310

Neste panorama de esperança na ressurreição como processo de superação

da realidade última da vida a “morte”, e reconhecida também como potencialização e

plenitude da realidade humana, Andrés Torres de Queiruga não isenta as outras

tradições religiosas na participação da realidade salvífica de Deus. Ele parte de um

elemento comum entre as tradições religiosas, que é a crença na imortalidade, e a

ressurreição não cristã diferencia-se da ideia de imortalidade, porém tem seu modo

específico de tematizá-la e vive-la, já que a centralidade está na experiência cristica.

Portanto, mesmo tendo como ponto de vista a ressurreição de Jesus com relação a

imortalidade ou a vida transcendente a esta, mostra a compreensão de uma revelação

de um “Deus dos vivos”. Essa realidade ultrapassa épocas, pessoas e tradições

religiosas, ou seja, a ressurreição não pode ser interpretada de forma isolada ou

exclusivista.311

“A ressurreição bíblica não renuncia à própria riqueza, mas oferece como contribuição à busca comum. E, ao mesmo tempo, compreende que existem aspectos nos quais também ela pode enriquecer-se com a contribuição

especifica das demais religiões”.312

Essa visão queiruguiana da salvação plena que envolve a ressurreição tendo

como precaução a aproximação no diálogo com as outras religiões apresentam a sua

responsabilidade como teólogo cristão que se esforça em manter uma linguagem

teológica concreta e humanizadora, porque entende que a humanidade inteira é

originada em Deus. Portanto, continua sendo Senhor de todos e seu amor é

dispensado para todos, o que importa é que “Deus é amor e que só quer e busca por

todos os meios a nossa salvação; que o faz com respeito, delicado e absoluto, à nossa

liberdade”.313

310 Ibid., p. 239. 311 Ibid., p. 275-276. 312 Ibid., p. 276. 313 QUEIRUGA, 1996, p. 88.

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3.5. Conclusão

“Deus quer de verdade para o ser humano: sua salvação, sua realização

plena, sua felicidade total”.314 Esta afirmação de Andrés Torres de Queiruga coincide

com a ideia origeniana da apokatástasis para que “Deus seja tudo em todos” (Cf.1Cor

15,28). “Não haverá mais discernimento do mal e do bem porque já não haverá mais

mal; pois Deus é tudo para ele, e nele o mal não existe”,315 sendo esta consumação e

restauração alcançada pela progressão humana num processo de instrução pautado

em Cristo, na qual submeterá o Reino ao Pai,316 em ambos discursos a aproximação

acontece a partir do Amor de Deus e a autonomia humana.

Diante da análise feita por Andrés Torres de Queiruga na qual sua posição

crítica sobre a apokatástasis de Orígenes é o verticalismo em excesso, e sabendo que

o seu discurso teológico parte da realidade histórica, ou seja, a partir de baixo – que

seja bem claro que o teólogo galego não descarta a realidade transcendente –

simplesmente por tratar-se de uma esperança e por não haver uma compreensão

plena da vida na Glória, apenas lampejos que a revelação na história nos dá rumo

para esta realidade eterna, que pode ser tratada como uma novidade enxertada na

vida humana. No entanto, o melhor caminho a seguir é identificar na realidade histórica

o amor infinito de Deus no qual todos seres humanos estão inseridos.317

Entender a salvação a partir de baixo envolve a finitude e autonomia da

criatura e, portanto, a possibilidade do mal é realidade, tanto que está presente. Mas,

Andrés Torres de Queiruga, baseado numa teodiceia atualizada, apresenta um Deus

que diante de um ardoroso processo histórico se revela ao lado do ser humano na luta

contra o mal, ou seja, um Deus como o Antimal.318

“Fê-lo a partir de baixo e com os de baixo: com os pobres, os humilhados e os ofendidos. Por isso pôs no frontispício de seu chamado: “bem-aventurados os pobres”; bem-aventurados – ele, o primeiro -, porque nessa proclamação paradoxal, nesse oximoro desafiante, anuncia que Deus que ele prega e pratica não quer o sofrimento nem está de acordo com a injustiça, a intolerância e a opressão, senão a justa e decididamente ao lado dos que

padecem tudo isso”.319

314 QUEIRUGA, 1999b, p. 213. 315 ORÍGENES, 2012, III, 6, 3. 316 ORÍGENES, 2012, III, 6, 9. 317 QUEIRUGA, 1999b, p. 214. 318 QUEIRUGA, 2011, p. 288. 319 Ibid., p. 289.

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Em Cristo temos a certeza de que Deus é Antimal, e conta com o nosso

esforço e luta contra o mal, ele age a partir do agir humano, para o alcance do seu

desejo, a plena realização humana.

Nesta releitura da apokatástasis queiruguiana foi apresentado a preocupação

da universalidade da salvação humana, de forma atualizada e eficaz e sensível a

realidade concreta, expressa de forma crítica e desapegada de uma religiosidade

convencional. Esta universalidade da salvação, do ponto de vista de Andrés Torres

de Queiruga, é demonstrada com a sua preocupação de uma linguagem teológica de

aproximação dos crentes de outras religiões e daqueles que não creem. Isso ficou

evidenciado ao afirmar que Deus por meio da sua criatura age, porém somente a partir

da resposta livre da criatura, e a universalidade é pautada pela exigência ética vivida

a partir de uma honesta autenticidade. Este modo de ser na criatura humana revela a

oposição de Deus frente ao mal e que a culminância da realização humana não está

apenas dentro da fé cristã, devido ao Criador não considerar apenas a vivência

religiosa, mas a pessoa em si.

O aspecto transcendente da salvação é visibilizado na ressurreição de Cristo.

Vemos nela a infatização da criatura que supera o mal fruto da sua finitude, porém a

ressurreição de Jesus não está desvinculada da vida humana, porque vem da sua

humanidade, por isso não fica somente restrita a fé cristã, mas alcança todas as outras

crenças.

“A fé descobriu e proclamou que não foi a morte o destino derradeiro, senão que foi a vida plena e realizada quem teve a palavra definitiva. Tem-na para todos e para todas. Porque em Cristo culmina a revelação, de algum modo presente em todas as religiões da humanidade, de que Deus não nos deixa – não nos deixou nunca – cair no nada da morte, esse resumo culminante do mal, esse “último inimigo” a ser vencido (1Cor 15,26)”.320

Para os Cristãos a ressurreição de Jesus está implicada diretamente na

história, já que para viver Cristo é viver como ressuscitados e isto requer a resposta a

partir da liberdade do indivíduo, que consiste no seguimento de Jesus, o verdadeiro

exemplo e revelador da bondade do Pai. Portanto, viver como ressuscitados é crer no

320 Ibid., p. 292.

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Abbá de Cristo, em vista disso, requer o reconhecimento de uma verdadeira filiação e

o reconhecimento dos demais irmãos.321

Viver a autenticidade ética e viver como ressuscitados é romper com a

presença do mal e, desta forma, chegar ao cume que é a realização plena, mas sem

deixar de lado a realidade concreta para não cair numa utopia de um mundo

plenamente bom. Porém, a ressurreição assegura a derrota do mal porque o amor de

Deus foi capaz de destruí-lo, e, portanto, a humanidade poderá alcançar o desejo de

Paulo que foi assumido por Orígenes de “Deus ser tudo em todos”. O fim da história

não é o nada e sim Deus.

321 Ibid., p. 288.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas diversas linhas transcorridas nesta dissertação a análise da

apokatástasis apresentou a diversidade de concepções sobre o tema. A partir do seu

desenvolvimento no ambiente filosófico, pudemos acompanhar o desenvolvimento

deste assunto na patrística, sobretudo em Orígenes, e a noção desse enunciado na

linguagem teológica de Andrés Torres de Queiruga. Porém, o que pôde-se elucidar

de todas essas diversidades de reflexões sobre a apokatástasis foi uma linha comum

que transitou em todos discursos: a de um caminho a ser percorrido com o objetivo

de realização final plena e perfeita.

Entre todas as épocas, situações e pensadores cristãos que foram analisados,

todos referiram-se ao assunto desta perfeição final não desassociando a realidade

histórica da realidade futura transcendente. O caminho para essa perfeição final não

isenta a história presente rumo a este propósito, porém a realização plena da perfeição

acontecerá fora do mundo sensível, ou seja, numa realidade ultraterrestre. Isto é, a

essência da ideia sobre a apokatástasis é a esperança de a partir desta vida suplantar

a imperfeição que ocorrerá plenamente na vida vindoura. “Em última instância, o

problema da esperança coincide com o problema da existência humana”.322

O próprio Andrés Torres de Queiruga reitera que é uma ação ingênua o ser

humano descartar a esperança transcendente para sustentar-se apenas no que se

refere ao progresso humano terrestre, ou mesmo na evolução cósmica como

realização humana, e que a própria história mostrou que tal esperança é frágil e

ineficiente, devido a própria impotência humana, mesmo com todo seu aparato de

avanços tecnológicos, vê ainda progredindo a violência, a injustiça, a opressão e a

destruição do próprio habitat, ou melhor, o meio ambiente.323

Partindo da mesma premissa de que a realização plena humana se não dá

apenas nesta vida terrena, segundo Rubens Alves, o futuro se apresenta como uma

ameaça, já que existe a realidade da morte. O contexto da esperança não pode

esbarrar-se apenas na plenitude terrestre, deve ir além. Pois, a fé no amor é capaz de

322 QUEIRUGA, 2007, p. 13. 323 Ibid., p. 36.

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transfigurar o futuro, retirando dele a realidade ameaçadora da morte e

transformando-o numa alegre antecipação de um tempo em que a perfeição chegará,

e com isso o determinismo da morte é superada pelo poder da ressurreição, dá a vida

e a existência plenitude a cada indivíduo, esta é a possibilidade que esperança nos

dá.324

Na apokatástasis origeniana tem-se a esperança como essência, pois como

alguns cristãos gnósticos pregavam que a salvação já era predestinada para alguns,

para os outros acabavam-se as esperanças, daí a refutação de Orígenes, que elabora

sua reflexão sobre apokatástasis com objetivo prático, por mais que fizesse o uso de

um sistema filosófico, a Escritura foi a base para os fundamentos desse tema. A

prática da esperança foi demonstrada a partir da sua opinião de um início comum de

todos os seres racionais, na qual a diversidade entre bons e maus aconteceu devido

ao livre-arbítrio. Apesar disso, o desejo de Deus é no fim – na apokatástasis – sua

criação tornar-se realizada plenamente quando estiver unida a ele como estava no

início.

Essa esperança origeniana na apokatástasis está pautada em dois princípios

fundamentais: a bondade infinita de Deus, que deseja salvar sua criação

potencializando-a, planificando-a de forma progressiva, educando-a. Vale ressaltar

que Orígenes entende essa progressão a partir da historicidade humana e que há

continuidade dessa progressão na realidade transcendente e, para isso, pressupõe-

se outro princípio, que é o livre arbítrio. O desejo do ser racional querer ser salvo.

Potencializar, realizar, superar, ser salvo. De que? Tanto Orígenes quanto

Andrés Torres de Queiruga sabem que todas essas ações referidas partem do desejo

de Deus, que é amor, remover da criatura o mal que é resultado de sua finitude.

Inclusive, o último teólogo citado vai mais longe quando questiona o porquê de Deus

já não ter na Criação impedido esse mal, sofrimento, pecado e já criá-lo salvo, na

glória, divinizado? A resposta queiruguiana é muito eficiente, corresponde ao

pensamento de Orígenes. Cabe aqui colocar essa resposta nas suas próprias

palavras:

324 ALVES, Rubem. Da esperança; tradução. João-Frencisco Duarte Jr. Campinas: Papirus, 1987, p. 189.

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[...]porque isso equivaleria anular a criatura. Creio que agora é mais fácil de compreendê-lo. Precisamente pela imensa grandeza da salvação, que exige essa dialética essencial que descobríamos no início deste parágrafo: novidade radical, mas em continuidade com a vida. Se a imensa grandeza da glória, sua inaudita novidade, fosse dada ao ser humano sem mais nem menos, este acabaria ficando totalmente anulado: não seria ele.”325

A providência divina e a autonomia criatural estão aqui evidenciados nas

palavras de Andrés Torres de Queiruga, a mesma preocupação origeniana que busca

na teologia da apokatástasis responder em seu tempo com a mesma solução dada

pelo teólogo galego.

Fantástico vislumbrar essa dialética entre Deus que é amor e, por isso, quer

a realização da sua criação respeitando a autonomia do ser humano, que pode

responder a esse desejo de Deus a partir da realidade histórica, que podemos traduzir

como luta, combate contra o mal.

A esperança da apokatástasis como esperança de salvação universal em que

Orígenes compreendeu a partir da encarnação do Verbo que veio para nossa história

nos ensinar a unirmos ao Pai pela obediência,326 coaduna com o discurso teológico

de Andrés Torres de Queiruga, que tem como pressuposto uma teologia “a partir de

baixo”. “Cristo, contudo, espera de que em todos nós se realize também o que nele já

teve lugar.”327 Vê-se uma teologia que além de uma preocupação com uma linguagem

esclarecedora sobre a compreensão dá fé um elo com a vida e prática, que ao fazer

uma aproximação maior com a vida hodierna é legítimo que encontremos no Papa

Francisco, com seu entusiasmo e clareza, a exposição dessa realidade prática

pastoral de realização do ser humano que contribui para um discurso prático da

apokatástasis.

A proposta do chamado à santidade em que o Papa Francisco expõe na

Gaudete et Exsultate, em que afirma “A Santidade é o rosto mais belo da Igreja”.328

Porém, ele não limita o chamado de maneira ad intra, reconhece que todos somos

chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas

ocupações de cada dia, onde cada um se encontra.329 Isso corresponde com sua

325 QUEIRUGA, 1999b, p. 217. 326 ORÍGENES, 2012, III, 5, 6. 327 QUEIRUGA, 1999b, p. 215. 328 GE, 9. 329 GE,14.

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preocupação de tornar esse chamado à santidade, encarnada no contexto atual, com

seus riscos, desafios e oportunidades.330 Esse chamado à santidade ele traduz na

Evangelli Gaudium como o Reino que nos chama e espera uma resposta de cada ser

humano dada no amor, e que na “medida que Ele consegue reinar entre nós, a vida

social será o espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos.331

Portanto, existe uma conexão íntima entre evangelização e promoção humana, aquele

que atende essa resposta reage sempre fazendo o bem aos outros.332 Nisso fica

demonstrado o critério de totalidade que o Evangelho possui, que visa fecundar e

curar todas as dimensões humanas e uní-los em torno da mesa do reino,333 a

realidade do Reino inevitavelmente alheia ao desenvolvimento pleno da vida humana

e, para isso o Papa Francisco, escolhe duas questões fundamentais no compromisso

da fé com a vida que são a inclusão social dos pobres e o diálogo social.334

Segundo Francisco, “está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez

pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza”.335 Por isso desejo uma Igreja

pobre para os pobres”.336 Aqui vemos de forma mais direcionada ao cristianismo o

compromisso de fé e vida para promover a realização humana e, de modo mais

universal, o Bispo de Roma identifica no diálogo social a universalidade do chamado

à santidade e reconhece que os cristãos católicos podem aprender mais com o

intercâmbio com os cristãos de outra denominações,337 e que a Igreja pode

enriquecer-se e aceitar mais os outros que pensam e se expressam de forma diferente

a sua fé. Isso envolve o diálogo inter-religioso, tal qual o Judaísmo com seus valores

já que Deus ainda continua operando sobre eles, assim como o diálogo fraterno e de

compromisso comum com os islâmicos.338

Quanto aos não crentes, o diálogo e a aproximação podem ocorrer a partir

fidelidade a consciência, que por iniciativa e gratuidade de Deus podem viver

justificados em Deus, já que o Espírito suscita em toda a criação a sabedoria.

330 GE, 2. 331 EG, 180. 332 EG, 178. 333 EG 237. 334 EG 185. 335 Esta é uma citação que o Papa Francisco faz sobre o discurso feito por Bento XVI na inauguração da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe em Aparecida do Norte, SP. 336 EG 198. 337 EG 246. 338 EG 247-253.

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Podemos como cristãos também tirar proveito e enriquecer nossa fé a partir desta

proposta de diálogo com os não crentes.

Esses caminhos propostos nos dão a dimensão de uma fé encarnada, longe

de mitologismos e fundamentalismos. Claro isso exige a dialética da escuta Deus e

da prática do seu amor como resposta, fato presente em todo ser humano. Todo o

itinerário está implícito no discurso da apokatástasis que se atualiza até os dias de

hoje com total absorção da proposta de Jesus:

Começamos a encontrar-nos com Jesus quando começamos a confiar em Deus como ele confiava, quando cremos no amor como ele cria, quando nos aproximamos dos que sofrem como ele se aproximava, quando defendemos a vida como ele defendia , quando olhamos as pessoas como ele as olhava, quando enfrentamos a vida e a morte com a esperança com que ele as enfrentou, quando transmitimos a boa nova como ele transmitia.339

Fixar-se na apokatástasis somente como salvação universal, ou seja,

somente numa realidade transcendente seria um equívoco, porque ainda é um

mistério do qual podemos esperar uma acolhida potencializada e glorificada por Deus,

porém é na esperança e na práxis os instrumentos de realização humana. Isso

equivale para todas as esferas da vida social, portanto a apokatástasis não renuncia

a vida presente, porque é nela que se oferece a esperança de uma vida plena em

comunhão face a face com Deus, a verdadeira concretização “Deus tudo em todos”.

339 PAGOLA, José Antonio. Jesus aproximação histórica.Trad. Gentil Avelino Titton. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 28.

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