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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Thamirez Lutaif Lopes Vegetarianismos: devir-animal e resistências Mestrado em Ciências Sociais São Paulo 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Thamirez Lutaif Lopes

Vegetarianismos: devir-animal e resistências

Mestrado em Ciências Sociais

São Paulo

2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Thamirez Lutaif Lopes

Vegetarianismos: devir-animal e resistências

Mestrado em Ciências Sociais

São Paulo

2018

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestra em Ciências Sociais, sob orientação da Profa. Dra. Silvana Tótora.

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Banca Examinadora

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Agradecimentos

Edélcio, a companhia desde a minha graduação.

A iniciação científica, o trabalho de conclusão de curso.

São Francisco de Assis, resistências. Água.

Veganismo.

Silvana, o cabelo curto, o batom vermelho.

Medicina, Ciências Sociais. Comunismo, ditadura.

O fôlego para dar aulas. Corpo sem órgãos. O que pode um corpo?

Desencarcerar os pensamentos. Desfazer o corpo da mulher criado para servir ao

homem.

A velhice. Os planos destinados ao fracasso.

A vida como obra de arte. Ritornelo. A potência dos encontros.

Mônadas abertas, porosidade. Afectos.

Mãe, sempre fazer o melhor que pode – e o que não pode – por mim. Mãe-pai.

As caronas, os livros. O amor incondicional.

Vó, o café quente pela manhã, a comida pronta no almoço.

A roupa passada quentinha. A dedicação.

Energia, força. O amor puro.

Dionísio, as patinhas, os latidos.

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Dédi, a pele clara, a beleza, a sinceridade. Oxum.

Os sonhos. Intuição.

Os búzios, os trabalhos, os banhos. Corpo, chave. Chave. Chave.

Algodão, arroz, mel. Velas e contas brancas.

Felippe, a pele morena, a bochecha rosada, os óculos. Ayrá.

A magia das folhas. Defumação, limpeza.

Família, diferenças, respeito.

Renovação.

Rafael. Sementes das estrelas. Entrega, impulso. Fogo, fusão.

O colar de pauzinho. Os processos. Espaço para respirar.

Encontro, desencontro. Ata, desata.

Pó?

Nós.

A família. Natal. Scheila, os olhares, as conversas, os presentes.

Rogério, o jeito tímido de me demonstrar afeto, os filmes à tarde, o fogão à

lenha, os aipins.

Gabrielli. Marcos. As risadas espalhafatosas, as brincadeiras, os jogos.

Lembranças.

Coração.

Brenda. Leandro. Jéssica. Marildo. Amizade, veganismo. Amor.

Permacultura, agrofloresta, bioconstrução, ecovila.

As viagens. Os planos, as linhas tortas.

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Saudade, coração apertado.

Seis. Família.

Endrigo. A coragem da verdade. Prática, resistência. Percepção.

Sete.

Kátia. Rafael. Os telefonemas, as perguntas, os papéis.

Carmen, os olhos azuis, a franja, a mão pequena e delicada. Sagitário, aventura.

Os kamayurá, os cinta-larga. Tacumã. Farinha de beiju.

Os mitos.

As aulas, as histórias, as risadas.

As conversas, as trocas, os presentes. Rapadura.

Amizade, carinho sincero.

Coragem, inspiração.

Liberdade.

Michel, os cabelos compridos, a blusa roxa cintilante.

As borras de café.

Constelação familiar.

Henrique, a pele branca, a barba escura.

Café, cafés. Pizza, bolo de chocolate.

Companhia, conversas.

Cláudia, a pele branca, as bochechas rosadas, o cabelo curto. Áries, fogo.

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As bordadeiras, teia de aranha.

Cartografia sentimental.

Bruno, as costeletas, o óculos redondo.

Bispo do Rosário. Aura azul e branca.

Arte, performance.

Loucura.

Gabriela, os cabelos encaracolados, os olhos verdes, as sardas.

O jeito que fala “oi thami, tudo jóia?” com sotaque mineiro.

A casa, a dívida, os ciganos.

Os búzios, a dança africana, o Candomblé.

Marcelo, o cabelo alto, os óculos retangulares.

Henry Miller. Escrever com o corpo inteiro.

Arte, vida.

Tamara, a franja, as sardas, o pauzinho no septo.

Amizade, parceria.

Os yanomami. O Kaká.

O cacho de banana de casa.

Gustavo, os cabelos e os cílios compridos.

A música.

As palavras compostas, as frases engraçadas.

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O cachimbo.

André, os cabelos pretos e compridos, os olhos amendoados, o óculos redondo,

a pele branca e macia. Touro, libra. Vênus.

A voz doce com sotaque do interior.

As pulseiras que encontrou com os catadores.

Os filhos únicos. As crias de mãe e vó.

Aconchego em meio ao caos do mundo.

Respeito, cuidado, carinho. Construção.

A sensibilidade, o toque. Pele.

Os beijos em minhas mãos, os afetos demorados, a reciprocidade.

O amor.

Vida.

A arte dos encontros.

Amor fati, e nada querer diferente.

Agradeço à Comissão de Bolsas e à CAPES pela bolsa concedida.

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Resumo

Esta dissertação de mestrado teve por objetivo analisar até que ponto o

vegetarianismo pode ser considerado um movimento de resistência em relação

ao antropocentrismo tendo como referência a perspectiva de Nietzsche acerca do

filósofo do futuro – que é médico, legislador e artista. Assim, esta pesquisa

possui três movimentos: sintomatologia, genealogia e tipologia. Na

sintomatologia, exploro o vegetarianismo sob a visão do filósofo médico,

detectando os fenômenos nos quais os discursos vegetarianos se fundamentam.

Na genealogia, exploro o vegetarianismo sob a visão do filósofo legislador,

identificando as condutas que originam os fenômenos e as contracondutas

correspondentes. Na tipologia, exploro o vegetarianismo sob a visão do filósofo

artista, a fim de pensar e escrever o vegetarianismo como uma forma de fazer da

própria vida uma obra de arte e uma estética da existência por meio do devir-

animal. A metodologia utilizada é voltada para a pesquisa qualitativa e revisão

bibliográfica.

Palavras-chave: vegetarianismo; veganismo; especismo; carnismo; movimento

de contraconduta; devir-animal.

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Abstract

This dissertation aimed at analyzing the extent to which vegetarianism can be

considered a resistance movement in relation to anthropocentrism having as a

reference the Nietzschean future philosopher's that is a doctor, a legislator, and

an artist. Thus, this research has three movements: symptomatology, genealogy

and typology. In symptomatology, I explore vegetarianism under the view of the

medical philosopher, detecting the phenomena on which vegetarian discourses

are based on. In genealogy, I explore vegetarianism under the view of the

legislator philosopher, identifying the conducts that originate the phenomena

and the corresponding counter-conducts. In typology, I explore vegetarianism

under the philosopher artist's vision in order to think and write vegetarianism as

a way of making someone's own life a work of art and an aesthetics of existence

through becoming-animal. The methodology used is focused on qualitative

research and bibliographic review.

Key-words: vegetarianism; veganism; speciesism; carnism; counter-conduct;

becoming-animal.

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Sumário

Apresentação....................................................................................................................................12Sintomatologia.................................................................................................................................15

Sintomas de Gaia......................................................................................................................................16Sintomas dos não humanos.....................................................................................................................28Sintomas dos humanos............................................................................................................................38

Genealogia........................................................................................................................................43Governamentalidade................................................................................................................................47

Especismo...................................................................................................................................................................50Carnismo.....................................................................................................................................................................56

Movimentos de contraconduta...............................................................................................................63Vegetarianismos não vegetarianos....................................................................................................................67Veganismo..................................................................................................................................................................71Vegetarianismos crus.............................................................................................................................................82

Tipologia...........................................................................................................................................85Por um vegetarianismo fora do eixo.....................................................................................................86O vegetarianismo como obra de arte....................................................................................................90O vegetarianismo como estética da existência....................................................................................96Amor Fati................................................................................................................................................102Animais não humanos pensam, falam ou criam?...........................................................................105Vegetarianismos e devir-animal.........................................................................................................110

Referências....................................................................................................................................116

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Apresentação

Escolhi o vegetarianismo como objeto de pesquisa pois é algo que

atravessa o meu corpo há cerca de cinco anos: tornei-me ovolactovegetariana há

cinco anos e, vegana há quatro. Deixei de comer animais não humanos porque

meu corpo não conseguia mais digeri-los, e o mesmo aconteceu com leite e ovos

um ano depois. Assim, a metodologia desta pesquisa diz respeito, mais que à

pesquisa qualitativa e revisão bibliográfica, à relação entre o meu corpo e o

vegetarianismo.

O objetivo geral desta pesquisa é analisar até que ponto o vegetarianismo

pode ser considerado um movimento de resistência em relação ao

antropocentrismo sob a visão do filósofo do futuro nietzschiano. O filósofo do

futuro é médico, legislador e artista: médico por diagnosticar e interpretar os

sintomas, legislador por construir a genealogia e artista por modelar os tipos.

Apenas uma ciência ativa – sintomatologista, genealogista e tipologista – pode

reconhecer as forças ativas e reativas e interpretar suas relações. Assim, a

sintomatologia corresponde à interpretação dos fenômenos, tratados como

sintomas; a genealogia corresponde à análise da proveniência das forças que

produzem os fenômenos; a tipologia corresponde à modelação destas forças

(DELEUZE, 1976, p. 62).

Esta pesquisa possui três movimentos: sintomatologia, genealogia e

tipologia. No primeiro movimento, exploro o vegetarianismo sob a visão do

filósofo médico, detectando os fenômenos nos quais os discursos vegetarianos

se fundamentam. Assim, apresento o discurso vegetariano em relação à Gaia,

aos animais não humanos e aos animais humanos.

No segundo movimento, exploro o vegetarianismo sob a visão do filósofo

legislador, identificando as condutas que originam os fenômenos e as

contracondutas correspondentes. No que concerne à conduta, analiso até que

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ponto as noções de especismo e carnismo se enquadram na governamentalidade

foucaultiana. No que tange a contraconduta, analiso até que ponto a

multiplicidade de vegetarianismos pode ser considerada um movimento de

contraconduta a partir de suas práticas de sabotagem baseadas em objeção da

consciência, desobediência civil, boicote ativo ou ação direta, boicote passivo e

freeganismo.

No terceiro movimento, exploro o vegetarianismo sob a visão do filósofo

artista, a fim de pensar e escrever o vegetarianismo como resposta à algumas

inquietações pessoais. Começo por investigar possíveis fissuras nos discursos de

resistência do veganismo quando situados na lógica capitalista que reduz as

potências de vida. Assim, aponto para um vegetarianismo fora do eixo baseado

na objeção do crescimento a partir da fábula do sapo e do escorpião no sentido

de reinventar novos modos de consumo que rompam com o modelo neoliberal

de produção. Isso talvez também responda ao seguinte questionamento: o que

pode este movimento enquanto resistência às biopolíticas antropocêntricas?

Depois, relaciono as noções de vida como obra de arte e ética enquanto estética

da existência ao vegetarianismo a fim de pensar de que modo a alimentação

pode criar modos de vida e subjetividades singulares. Em seguida, parto da

questão da linguagem entre os não humanos para questionar: o que representa a

vida dos que não pensam, não falam, não criam? Eles realmente não pensam,

falam ou criam? Depois, também questiono: quanto os animais não humanos

existem? Todo o mundo é humano? Por fim, a relação entre o devir-animal e o

vegetarianismo busca responder tais perguntas: Como os animais humanos

podem se compor com os animais não humanos? De que porosidade os humanos

precisam para se deixarem misturar com os não humanos? Como fazer fugir o

antropocentrismo? Que alianças o vegetarianismo traça? Como reinventar uma

militância e uma experimentação poético-política a partir do vegetarianismo?

Como transformar o luto pela redução e interrupção das potências de vida em

suas multiplicidades – animais ou vegetais – em luta? A intenção deste último

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movimento foi, menos que esgotar os temas propostos, de lançar algumas

sementes de reflexão.

Foucault pensou na estranha eficácia de travar o mecanismo dos discursos

que não eram sustentados por nenhuma sistematização de conjuntos. Isso, aliado

às críticas – descontínuas, locais e particulares – voltadas para as práticas e os

discursos, provocou uma fragilidade dos atos humanos cotidianos. A

característica local da crítica aponta para o que o autor chama de uma produção

teórica autônoma e não centralizada, que independe de um regime comum para

sua validade (FOUCAULT, 2005, p. 11).

O discurso científico é envolto por uma aura de poder e verdade. Porém,

os saberes e discursos minoritários são desqualificados em nome da ciência.

Neste sentido, proponho a reativação dos discursos e saberes locais e menores

relacionados ao vegetarianismo para além de suas supostas validades científicas.

Assim, o intuito desta dissertação é trazer à superfície discursos minoritários e

discursos de resistência vegetarianos. Não se trata de comprovar se tais

discursos possuem validade científica, mas apenas dar voz a eles.

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Sintomatologia

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Sintomas de Gaia

De acordo com James Lovelock, o conceito de Gaia é uma metáfora para

a Terra viva resgatado da filosofia grega. A partir deste conceito, a biosfera é

considerada um sistema fisiológico que autorregula seu clima e sua química a

fim de manter a Terra em homeostase. “Seus objetivos não são pontos fixos,

mas ajustáveis a qualquer meio ambiente atual e adaptáveis às formas de vida

que mantenha” (LOVELOCK, 2006, p. 27). Gaia é composta pela casca fina de

terra e água entre o interior incandescente da Terra e a atmosfera e pelos

organismos vivos que a habitam há mais de quatro bilhões de anos.

A metáfora é importante pois, para lidarmos com a mudança climática

global, precisamos reconhecer a Terra como um planeta vivo que reage às

nossas intervenções. Gaia sempre se defenderá e para isso poderá expulsar as

intervenções ou os causadores das intervenções: os humanos. “O que está em

risco é a civilização. Como animais individuais, não somos tão especiais assim,

e em certos aspectos a espécie humana é como uma doença planetária” (Ibidem,

p. 23).

O desenvolvimento sustentável – aliança entre bem-estar social,

crescimento econômico e proteção ambiental – e o laissez-faire são umas das

causas da doença de Gaia. “Ambas as medidas negam a existência da doença da

Terra, a febre acarretada por uma praga humana” (Ibidem, p. 17). Quando Gaia

era jovem e forte, resistia às intervenções e às falhas em sua regulação de

temperatura; mas agora ela pode estar, além de doente, idosa e fraca.

Não pretendo explicar os fenômenos da crise ambiental – sintomas da

doença de Gaia – a partir da criação intensiva de animais não humanos para

consumo humano, nem convencer que Gaia seria salva caso a criação intensiva

parasse. Também não pretendo rebater a realidade com a análise das estatísticas,

mas sim tentar ir além dos dados e da militância da tristeza. Pretendo apresentar

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a lógica capitalista que gerencia a produção de alimentos, seja a criação

intensiva de animais ou a plantação de monoculturas e transgênicos. Entretanto,

é inegável que a criação intensiva de animais é uma das principais causas da

crise ambiental e apoia o aquecimento global.

O capitalismo financeiro ultraliberal se aliou ao capitalismo produtivo,

que gerencia a produção de alimentos de origem vegetal e animal. A crise

ambiental, por sua vez, está vinculada à crise econômica e consequente aumento

no preço dos alimentos. Logo, é necessário questionar a capacidade do

desenvolvimento de lidar com os problemas ambientais que ele mesmo criou. A

solução não é desenvolver produtos “eco”, nem exigir um decrescimento da

produção de alimentos de origem animal, mas talvez um boicote em relação à

própria produção capitalista, que explora as múltiplas formas de vida, sejam

humanas, animais ou vegetais. Nesse sentido, as mobilizações populares e

resistências pessoais em relação a esse modo de produção e aos que nos

garantem que podemos confiar no desenvolvimento são fundamentais

(STENGERS, 2015).

A teoria de Gaia reafirma que passamos da era da natureza que apenas

deveria ser protegida contra os danos causados pelos humanos em direção a uma

natureza que pode incomodar a vida dos próprios humanos. Questões como a

desigualdade social apontam para o fracasso de ideias como crescimento,

desenvolvimento e progresso. A globalização, por sua vez, também passou a ser

uma globalização das ameaças ambientais que se aproximam. Estas ameaças

engolem o consumidor que supostamente deveria confiar no crescimento

econômico desenfreado, mas que, agora, tende a medir sua pegada ecológica –

reflexo dos seus hábitos de consumo egoístas e irresponsáveis (Ibidem, p. 11).

O Brasil está entre os maiores produtores e exportadores de carne do

planeta. Entre os anos de 2010 e 2012, produziu por volta de 3.3 bilhões de

quilos de carne suína, 9.4 bilhões de quilos de carne bovina e 13.6 bilhões de

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quilos de carne avícola. O país está atrás somente dos Estados Unidos da

América e da China. Além disso, o Brasil exportou aproximadamente 6.01

bilhões de quilos de carne em 2011 (FAO).

O Brasil é sede de três das maiores indústrias internacionais de carne: a

BRF, a JBS e a Marfrig. A JBS é a maior produtora de carne bovina e de ave de

todo o planeta e faturou 12,4 bilhões de reais em 2014. Ela possui por volta de

300 unidades no Brasil e em diversos países e exporta sua produção para mais

de 150 países. De um lado, a JBS concentra seu poder por meio da aquisições de

outras empresas, como a Seara Brasil, a seção de produção de carne de ave e

suína da Marfrig e a seção de produção de carne da empresa norte-americana

Smithfield. De outro lado, os pequenos produtores de carne lutam para coexistir

no mercado com esta multinacional.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) – principal

órgão de financiamentos e investimentos do Governo Federal – contribuiu para

que a JBS fosse a maior produtora de carne do mundo a partir da sua política

dos “campeões nacionais” em 2007. Atualmente, o BNDES possui em torno de

24% da JBS. A JBS e os outros frigoríficos multinacionais brasileiros arrecadam

montantes enormes de capital anualmente. Porém, o meio ambiente sofre com a

criação intensiva de animais não humanos para consumo humano.

Apesar do crescimento econômico, o século está marcado pela crise

ambiental relacionada ao modo pelo qual o humano lida consigo mesmo e com

os demais seres vivos. Hoje, acontece a sexta extinção em massa do planeta

Terra – a primeira causada exclusivamente pelo impacto do ser humano sobre o

meio ambiente. Assim, pontuo a seguir algumas das consequências da criação e

consumo de animais não humanos sobre a Terra tendo em vista a água, a terra e

o ar.

A água é um elemento essencial à vida no planeta Terra: 70% da

superfície do planeta é água, assim como 70% do corpo humano. O Brasil abriga

aproximadamente 13,7% da água doce superficial da Terra, e mais de 73% desta

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água está na Bacia Amazônica. O país também abriga 70% do maior

reservatório de água subterrânea do planeta – o Sistema Aquífero Guarani

(MMA). Ainda assim, cerca de 17,7% dos brasileiros não têm acesso à água

(TRATA BRASIL). Este fato não está relacionado à escassez de água no Brasil,

mas sim à questionável distribuição deste recurso natural.

Apenas 10% da água do Brasil é destinada ao consumo humano

diretamente. A agricultura e a criação de animais não humanos para consumo

humano são atividades que demandam quantidades de água gigantescas. Por

volta de 75% da água é destinada à agricultura, 9% é destinada à criação de

animais não humanos e os 6% restantes são destinados à indústria (ANA).

Embora a agricultura seja a atividade que demanda mais água, a maior parte da

produção deste setor é destinada à criação de animais não humanos, conforme o

que relatarei adiante.

Um quilo de carne bovina requer aproximadamente 15.400 litros de água

para ser produzido, caracterizando a comida que mais pede por água. Em

seguida, um quilo de carne suína demanda 6 mil litros de água; um quilo de

manteiga demanda 5.500 litros; um quilo de queijo, 5 mil litros; um quilo de

carne de ave, 4.300 litros; um quilo de grãos, 4 mil litros; um quilo de ovo de

galinha, 3.300 litros; um quilo de óleo, 2.400 litros; um quilo de cereais, 1.600

litros; um quilo de frutas e de leite de vaca, mil litros; um quilo de raízes, 400

litros; e, por fim, um quilo de vegetais, 300 litros (HOEKSTRA; MEKONNEN,

2012). Portanto, com exceção do ovo de galinha e do leite de vaca, as demais

comidas de origem animal são as que mais requerem água, enquanto os

alimentos vegetais, com exceção dos grãos, são os que menos requerem água.

Além disso, a criação de animais não humanos para consumo humano

demanda uma grande quantidade de água no processo de matança dos animais.

São gastos cerca de 12 litros para cada ave morta, 1.200 litros para cada suíno e

2.500 litros para cada bovino. Logo, a matança de suínos demanda cerca de 120

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milhões de litros por dia, a de frangos demanda 192 milhões e a de bovinos, 203

milhões de litros (RIBEIRO; SCHUCK, 2015).

Ao passo que um humano onívoro consome aproximadamente 3.600 litros

de água por dia, um ovolactovegetariano 2.300 litros por dia e um vegano 1.500

(HOEKSTRA; MEKONNEN, 2012). Portanto, a dieta onívora necessita de mais

de mil litros de água a mais que a dieta ovolactovegetariana e mais que o dobro

que a dieta vegetariana estrita1.

Além da gigantesca demanda por água, a agricultura e a criação de

animais não humanos para consumo humano são atividades que também

requerem grandes quantidades de terra, considerando que a maior parte da terra

modificada pelo ser humano no Brasil é referente a tais atividades. Entretanto, a

criação de animais é uma potencial devastadora do meio ambiente, estando

atrelada ao desmatamento, à perda de biodiversidade e à desertificação e

contaminação do solo devido ao uso de agrotóxicos e fertilizantes.

Aproximadamente 65% da terra do Brasil é de vegetação nativa e 35% da

terra foi modificada pelo ser humano. Desta parcela modificada, 23% são

destinados unicamente à criação de animais – mais especificamente à pastos –,

7% são destinados à agricultura e os 5% restantes são destinados à outras

atividades, como a industrialização e urbanização (REDEAGRO).

Ainda que 30% das terras modificadas pelo ser humano no Brasil sejam

destinadas à produção de comida, cerca de 52 milhões de brasileiros sofrem de

algum grau de Insegurança Alimentar (IA) devido à falta de recursos para

conseguir alimentação (PNAD). O Brasil possui a capacidade de alimentar onze

seres humanos por hectare com seu sistema de produção agrícola, mas a maior

porção de terras modificadas é usada para a criação de animais não humanos

(CASSIDY, 2013). Contudo, somente cinco humanos são de fato alimentados

1 A multiplicidade de vegetarianismos – ovolactovegetarianismo, ovovegetarianismo, lactovegetarianismo, vegetarianismo estrito e vegetarianismo cru – foi explicada no item Movimentos de contraconduta desta dissertação.

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por hectare – menos que a metade da capacidade do Brasil. Logo, a Insegurança

Alimentar não está relacionada a uma escassa produção alimentícia no Brasil,

mas, assim como no caso da água, a uma questionável distribuição desta

produção. A quantidade de alimentos produzidos no Brasil é mais que o

suficiente para que os 52 milhões de brasileiros que sofrem de Insegurança

Alimentar sejam alimentados.

Os bovinos se alimentam de pasto, mas na criação intensiva, eles são

obrigados a comer alimentos que não correspondem à sua natureza, tais como

milho, soja e trigo para crescerem mais rápido e produzirem maiores

quantidades de carne e leite. Aproximadamente 45% das calorias totais

produzidas pela agricultura brasileira são destinadas diretamente ao consumo

humano e 41% são destinadas à criação de animais não humano. Quase a mesma

quantidade das calorias é destinada aos animais humanos e não humanos. No

que diz respeito às proteínas, 79% delas são destinadas à criação de animais não

humanos e apenas 16% são destinadas diretamente ao consumo humano. Neste

caso, o degrau entre as porcentagens é alarmante, sendo que por volta de cinco

vezes mais proteínas são destinadas aos animais não humanos. Embora a

quantidade de alimentos vegetais produzida no Brasil seja mais que suficiente

para alimentar os 52 milhões de brasileiros que sofrem de IA, uma parcela

gigantesca desta produção é destinada à criação de animais não humanos na

forma de ração, além da destinada à exportação. Por fim, 14% das calorias e 5%

das proteínas são destinadas a usos diversos, como biodiesel e indústria

(Ibidem).

Embora uma porção das calorias e proteínas destinadas à criação de

animais não humanos seja revertida em comida para os seres humanos, o

consumo de animais seria ineficiente do ponto de vista energético. A eficiência

energética das comidas é medida por meio da razão entre as calorias produzidas

e as consumidas no processo de criação de animais ou no cultivo de vegetais.

Das calorias usadas para alimentar os ovinos, 1% são recuperadas e 99% são

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desperdiçadas; das calorias usadas para os marinhos e suínos, 4% são

recuperadas e 99% são desperdiçadas; das usadas para os bovinos, 6% são

recuperadas e 96% são desperdiçadas; das usadas para as galinhas, 11% são

recuperadas no ovo e 89%, desperdiçadas; das usadas para os frangos, 18% são

recuperadas e 82%, desperdiçadas; das usadas para as vacas, 21% são

recuperadas no leite e 79%, desperdiçadas (Eshel, 2005). Em suma, toda comida

animal é ineficiente do ponto de vista energético, considerando que a maior

parte das calorias usadas no processo de criação dos animais não humanos não é

recuperada no produto final. A maioria das calorias é desperdiçada pois é usada

como combustível para os processos metabólicos do animal e os humanos não

consideram algumas partes do animal como comestíveis.

Por outro lado, os alimentos vegetais são altamente eficientes do ponto de

vista energético, considerando que a quantidade de calorias obtida no produto

final excede a que foi usada para sua produção. Nenhuma caloria usada na

produção da maçã é desperdiçada e são obtidos 10% de calorias extras;

nenhuma caloria usada na produção da batata é desperdiçada e são obtidos 23%

de calorias extras; nenhuma caloria usada na produção de milho é desperdiçada

e são obtidos 150% de calorias extras; e, por fim, nenhuma caloria usada na

produção de soja é desperdiçada e são obtidos 315% de calorias extras (Ibidem).

A criação de animais não humanos demanda uma quantidade de terra

muito maior que o cultivo de vegetais. Um hectare de terra porta a capacidade

de produzir somente 60 quilos de carne bovina, caracterizando a comida que

mais pede por terra. Por outro lado, um hectare também porta a capacidade de

produzir mil quilos de café e feijão – alimentos vegetais de menor rendimento –,

cerca de 16 vezes mais que a quantidade de carne bovina. Depois, um hectare

porta a capacidade de produzir dois mil quilos de aveia e trigo; três mil quilos de

amendoim e soja; seis mil quilos de milho e arroz; 15 mil quilos de mandioca;

24 mil quilos de laranja; 25 mil quilos de cebola; 29 mil quilos de batata; e, por

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fim, 74 mil quilos de cana-de-açucar – alimento vegetal de maior rendimento –,

cerca de 1.200 vezes mais que a quantidade de carne bovina (ABIEC/IBGE).

A legislação brasileira permite que 20% da Amazônia Legal, 65% do

Cerrado e 80% dos demais biomas do Brasil sejam desmatados. O Brasil abriga

60% da Floresta Amazônica – maior floresta tropical do mundo – em seu

território. Ela comporta aproximadamente 10% da biodiversidade do planeta

Terra, sendo um dos biomas mais essenciais à vida. Entretanto, 16% da

Amazônia Legal foi desmatada. Por volta de 70% da área desmatada da

Amazônia é destinado à pastos e 25% é destinado à agricultura. Os 5% restantes

são destinados à usos diversos (BUTLER, 2014). Portanto, a criação de animais

não humanos para consumo humano é a maior responsável pelo desmatamento

da Amazônia, além de que a maior parte da produção agrícola é destinada à

criação dos animais.

O Cerrado, por sua vez, é o segundo maior bioma do Brasil. Ele é

conhecido como a caixa d’água do país, pois abriga diversas nascentes de bacias

hidrográficas, além de seus planaltos o tornarem um produtor potencial de

energia hidrelétrica. Em 2016, 90% da agricultura do Cerrado foi ocupada pela

soja, além de que 52% de toda a soja brasileira foi cultivada neste bioma

(INPUT). O Brasil é o segundo maior produtor de soja do mundo, depois dos

EUA, e o Mato Grosso é o estado que conta com as maiores áreas plantadas de

soja – por volta de 9.3 milhões de hectares (CONAB). Até o ano de 2014, 45%

do Cerrado foi desmatado: 30% destinado à pastagem plantada; 12%, à

agricultura; os outros 3%, à usos diversos (INPUT). Assim como na Amazônia,

a criação de animais não humanos é a maior responsável pelo desmatamento do

Cerrado.

O cultivo de soja no Brasil está fundamentalmente atrelado ao

agronegócio global – rede de multinacionais que controlam todas as etapas da

produção. Quatro destas multinacionais – ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus –

compram dois terços de toda a soja produzida no Brasil.

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Estas mesmas empresas oferecem financiamento ao produtor para o plantio da soja. As empresas financiam diretamente ou através de intermediação todo o plantio, dos insumos ao maquinário, utilizando-se de mecanismos como o da “soja verde”, através do qual o produtor vende a soja antecipadamente em troca de sementes, fertilizantes químicos e pesticidas. Contratos como estes terminam por aprisionar o produtor, já que, ao final da colheita, sua pequena margem de lucro não permite mais do que a subsistência. Assim, ele se vê forçado a assinar um novo contrato que lhe permita seguir sobrevivendo. Ainda como consequência desta modalidade de contrato de financiamento, os produtores compram das empresas um pacote tecnológico fechado, que determina o maquinário e os insumos a serem utilizados. É aí que entram em cena outras grandes multinacionais, que dominam os diversos segmentos da cadeia produtiva do agronegócio, cada vez mais concentrado em mãos de um pequeno número de empresas (STIFTUNG, 2016, p. 16).

Além disso, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo,

adotando agrotóxicos proibidos nos EUA e na Europa, sendo que 45% do uso

destes químicos é usado na produção da soja. Entre as empresas que vendem

cerca de 75% dos agrotóxicos do Brasil estão: Basf, Dupont, Monsanto e

Syngenta. Entre as empresas que vendem cerca de 90% dos fertilizantes

químicos do Brasil estão: Fosfertil, Mosaic e Yara. As empresas Basf, Dupont,

Monsanto e Syngenta são responsáveis pela venda de sementes transgênicas. E,

por fim, as empresas AGCO, John Deere e Case New-Holland são responsáveis

pela venda dos maquinários agrícolas.

Estas empresas que dominam a cadeia produtiva da soja, juntamente com um pequeno número de grandes produtores rurais, se apropriam da maior parte da renda gerada pela atividade. Concentrando a propriedade da terra e agredindo o meio ambiente, a expansão da soja tem como virtude única a obtenção de divisas com exportações, enquanto acumula uma crescente dívida social e ambiental (Idem, p. 17).

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Os organismos geneticamente modificados (OGM) invadiram as

Américas e a Ásia mediante o incentivo das indústrias de sementes, sofrendo

alguma resistência para invadir a Europa. Eles estão longe de suprir sua

pretensão inicial de acabar com a fome no mundo e, ao contrário, investem na

produção de biocombustíveis. Por outro lado, os biólogos constataram que os

inseticidas dos OGM propiciam o surgimento de insetos mais resistentes. Assim,

a Monsanto se beneficia das chamadas superweeds – superervas daninhas – que

são resistentes a herbicidas e pesticidas, necessitando de quantidades muito

maiores destes produtos – até vinte vezes mais (STENGERS, 2015).

Em suma, os OGM são uma forma de apropriação da agricultura por meio

do registro de patente. Eles acarretam na extinção de sementes tradicionais e dos

pequenos agricultores, bem como na dependência da seleção de sementes,

fertilizantes, herbicidas e pesticidas caros e poluentes. “Em primeiro lugar,

mentir, em seguida afirmar que é tarde demais, e encobrir tudo com uma moral

inelutável, ‘o progresso não pode parar’, eis o que pede a liberdade de inovar”

(Ibidem, p. 33).

Além disso, a Monsanto encoraja os litígios privados a partir da delação

dos suspeitos de cultivarem as sementes de OGM sem pagar por elas.

Entretanto, muitos dos agricultores familiares e orgânicos querem fugir dos

OGM, mas têm suas terras contaminadas por eles e ainda sofrem processos por

estarem usufruindo das sementes sem a autorização necessária. Além disso, os

OGM deveriam continuar a seleção de sementes, mas tal continuidade não passa

de um discurso reacionário de homogeneização das espécies vegetais (Ibidem).

Enquanto um humano onívoro necessita de aproximadamente 7 mil

metros quadrados de terra por ano para a produção de seus alimentos, um

ovolactovegetariano necessita de 2 mil metros quadrados e um vegano de apenas

1.600 (LANG, 2007). Portanto, a dieta onívora necessita de mais que o triplo

que a dieta ovolactovegetariana para produzir alimentos, e mais que o quádruplo

que a dieta vegetariana estrita.

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A agricultura e a criação de animais não humanos para consumo humano

são setores que emitem gigantescas quantidades de gases de efeito estufa (GEE).

Tais setores representam diretamente aproximadamente 27% das emissões de

GEE totais do Brasil. A mudança de uso da terra representa 35% das emissões

totais do país; o setor da energia representa 29%; o setor da indústria, 6%; por

fim, o setor dos resíduos, 3% (ICLEI).

Contudo, a mudança do uso de terra está inteiramente ligada à agricultura

e criação de animais não humanos e, portanto, representa mais que os 27%

divulgados. A criação de animais não humanos representa ao todo 49% dos GEE

emitidos no Brasil. A agricultura, por sua vez, representa 13% dos GEE

emitidos (Ibidem).

Ainda que muitas das campanhas governamentais de incentivo à redução

de emissão de GEE apelem para o subsetor do transporte, este subsetor é

responsável pela segunda menor quantidade de emissões de GEE do país quando

comparado com os outros subsetores, representando cerca de 14% das emissões.

A agricultura, quase ao lado do transporte, representa 13% das emissões,

lembrando que a maior parte da produção deste setor é destinada à criação de

animais não humanos, conforme o que relatei previamente. Depois, a indústria é

responsável por 20% das emissões e a criação de animais, por sua vez,

representa a metade de todas as emissões do Brasil. Os 3% restantes

representam subsetores diversos (Ibidem).

Dentre as emissões de GEE do setor da agricultura e criação de animais

não humanos, a maior parte delas provém da fermentação entérica2 dos animais,

representando por volta de 57% das emissões totais. Em seguida, a terra agrícola

é responsável por 36% das emissões; o manejo de dejetos é responsável por 4%;

o cultivo de arroz é responsável por 2%; e, por fim, a queima de resíduos, por

1% (SEEG).

2 Processo digestivo que ocorre no rúmen de herbívoros ruminantes que tem como subproduto gás metano.

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O cultivo de um quilo de vegetais emite cerca de 17 quilos de GEE, o que

é considerado pouco quando comparado ao peso das emissões de GEE das

comidas animais. A produção de um quilo de carne de ave – comida animal que

emite o menor peso de GEE – emite 30 quilos de GEE. Em seguida, a produção

de um quilo de ovo emite 42 quilos de GEE; um quilo de leite emite 43 quilos

de GEE; um quilo de carne suína emite 55 quilos; um quilo de queijo, 68 quilos;

um quilo de carne bovina produzida de modo intensivo emite 210 quilos; um

quilo de carne bovina produzida de modo extensivo, 643 quilos; e, por fim, um

quilo de carne de carneiro e cordeiro, 750 quilos (NIJDAM, 2012). A produção

de carne bovina de modo intensivo emite menor peso de GEE quando

comparada com a produção extensiva, sendo o único caso em que a produção

extensiva é mais nociva ao meio ambiente quando comparada com a produção

intensiva. Isso acontece, sobretudo, devido à maior quantidade de terra que a

produção extensiva demanda. Além disso, quando a carne é produzida em áreas

desmatadas, emite em torno de 700 quilos de GEE por cada quilo de carne

(CEDERBERG, 2011).

Por fim, ao passo que um humano onívoro emite aproximadamente oito

quilos de gases de efeito estufa por dia, um ovolactovegetariano emite quatro

quilos e um vegetariano estrito, três. Logo, um onívoro emite o dobro de GEE

que um ovolactovegetariano e quase o triplo que um vegetariano estrito.

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Sintomas dos não humanos

Os animais não humanos são submetidos a uma série de sofrimentos na

criação intensiva para consumo humano; na produção de objetos compostos por

couro, pele e lã; nas pesquisas baseadas em dissecção, vivissecção e testes

animais; nas atividades de lazer, tais como circo, zoológico, tourada, farra do

boi e rodeio; na criação de animais de estimação. A criação intensiva para

consumo humano, por sua vez, é a atividade que mais mata animais: no Brasil,

cerca de 82 mil bovinos, 118 mil suínos e 16 milhões de frangos são mortos por

ano na criação de animais não humanos para consumo humano, além do

gigantesco número de animais marinhos (IBGE, 2017).

O ambiente natural do bovino é o pasto, no qual passeia livremente de

modo a escolher qual grama é mais apetitosa para alimentar-se, qual relevo é

mais confortável para deitar-se e qual é o melhor abrigo para proteger-se das

intempéries. Nestas circunstâncias, possui uma expectativa de vida de

aproximadamente vinte anos. Entretanto, quando submetido à criação intensiva,

o bovino é preso num curral de engorda superlotado à céu aberto, cercado de

urina e esterco, no qual mal pode andar ou deitar-se, e é alimentado com grãos e

cereais para que engorde mais rapidamente. Assim, sua vidas variam de seis

meses à cinco anos.

O processo de criação intensiva de bovinos começa com a retirada forçada

do sêmen do touro por meio de dois processos distintos. Em um processo,

reúnem a vaca no cio e o touro num mesmo espaço até que o touro suba na vaca.

Antes que o boi ejacule, seu sêmen é coletado para que um zootecnista o analise

em laboratório. No outro processo, reúnem algumas vacas e um touro num

mesmo espaço, somente para que o touro identifique instintivamente quais vacas

estão no cio. Assim que o touro tenta copular com a vaca no cio, é impedido: ou

seu pênis é imobilizado com pinos de aço e dutos de plástico, o que lhe causa

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dor e infecções; ou seu pênis é amputado; ou lhe é feita uma cirurgia para que a

posição natural do pênis seja desviada (FELIPE, 2012, p. 50).

Depois, a vaca é estuprada – eufemisticamente, é inseminada

artificialmente – para que engravide e produza leite. Os filhotes das vacas

grávidas, quando fêmeas, acabam com o mesmo destino da mãe: são reduzidas à

maquinas de leite, e, quando machos, podem acabar em três destinos distintos:

quando nascem muito fracos ou mortos, são destinados à indústria de ração para

animais de estimação; quando nascem fortes, são destinados aos currais de

engorda; por fim, quando não nascem nem fortes nem muito fracos, são

destinados à indústria de carne de vitelo a partir do segundo dia do nascimento.

No segundo dia de vida, os bezerros são separados da mãe – a qual muge

ininterruptamente durante semanas por sua cria ter sido roubada. Depois, as

vacas são levadas às instalações de concreto na qual ficarão presas pelos

próximos três meses, sendo bombardeadas por hormônios para que aumentem a

produção de leite. Assim que o ubre da vaca fica cheio de leite, elas vão à

ordenha mecanizada rodeada de metais e cabos. Quando a vaca cessa a produção

de leite, é estuprada novamente e o ciclo é reiniciado, até o momento em que

estão demasiadamente exaustas e não conseguem mais engravidar ou produzir

leite e são levadas ao matadouro.

Os bezerros destinados à serem carne de vitelo são descornados, marcados

a ferro quente e castrados, sem anestesia. Eles são privados do contato e leite

maternos.

Mamar, segundo John Robbins, é um dos movimentos mais compulsivos do bezerro, pois é o que lhe garante o suprimento de nutrientes. Compelido a sugar o que estiver ao seu alcance, o vitelo tenta suprir sua carência fisiológica, psicológica e nutricional sugando as barras do caixote no qual está preso. Mas a indústria, interessada em vender a carne anêmica, providencia para que nenhum material

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contendo minerais seja usado na construção delas (Ibidem, p. 46).

Os bezerros são aprisionados em celas de aproximadamente um metro

quadrado, para que não possam se mexer e, consequentemente, não ganhem

músculos nem cartilagens e sua carne seja macia. As paredes das celas são

pintadas de preto para que não tenham contato com a luz solar e permaneçam

quietos. Nestas condições, muitos dos bezerros ficam cegos e morrem por

exaustão antes mesmo de serem destinados ao matadouro. A cor clara da carne

de vitelo se dá pela anemia que sofrem, sobretudo devido à ausência de ferro na

sua dieta. Entretanto, a anemia lhes causa uma série de doenças, como

pneumonia.

Antes, a carne de vitelo era produzida de um modo diferente: os bezerros

eram mortos logo após o nascimento para que sua carne fosse o mais macia.

Porém, o peso deles não passaria de 70 quilos. Assim, a indústria de criação

intensiva criou um método para agregar mais peso à carne do vitelo,

aprisionando-o por quatro meses nas celas até atingirem quase 200 quilos. Se

possível, a indústria manteria os bezerros presos por mais tempo para que

ficassem mais pesados, mas a anemia que sofrem é tão grave que morreriam nas

celas caso ficassem mais tempo presos (Ibidem).

O suíno, por sua vez, é um animal que pode viver em diversos ambientes,

mas gosta de passear em beiras de lagos e rios e sua expectativa de vida é de

aproximadamente oito anos. Porém, quando submetidos à criação intensiva, o

suíno é preso numa cela de concreto superlotada, cercado de urina e

excrementos, assim como no caso dos bovinos, no qual mal pode andar ou deitar

e sem água ou lama para brincar. As porcas são acorrentadas em celas do

tamanho de seus corpos, lhes restando apenas permanecer em pé. Nestas

circunstâncias, suas vidas variam entre três meses e cinco anos.

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A prisão estressa muito os suínos e por isso passam a morder

ininterruptamente os rabos uns dos outros – prática que não acontece no seu

ambiente natural. Logo, a indústria de criação intensiva toma uma atitude

simples: corta o rabo de todos os porcos, sem anestesia. A cela minúscula em

que as porcas são acorrentadas também lhes estressa, de modo que mordem as

correntes que lhes aprisionam. Os suínos, assim como os bezerros, sofrem de

doenças respiratórias devido ao ambiente rico em amônia no qual vivem, além

de uma série de infecções e úlceras.

As porcas são obrigadas a conceber duas crias por ano e, assim como no

caso das vacas e dos bezerros, elas são separadas de seus filhotes logo na

primeira semana depois que nasceram, apesar do desmame natural acontecer

após três meses. No ambiente natural, as porcas grávidas afastam-se do ninho

comunitário e constroem um ninho próprio para parir em segurança e somente

depois de algumas semanas voltam ao bando.

Depois da vida toda em confinamento, os suínos são transportados em

caminhões em direção ao matadouro para enfim serem depilados vivos em

tanques de água fervente e mortos, quando não tentam fugir do caminhão antes:

Seu voo em direção ao solo e à liberdade é a única forma de nos fazer ver que tem sensibilidade, consciência da ameaça à sua vida e emoções tão fortes de pânico que não as consegue conter. Lembra-me nitidamente os humanos que se atiraram do Edifício Joelma em chamas em 1974, um incêndio que matou 191 pessoas. Lembra-me também das 200 pessoas que se atiraram das duas torres em chamas, após a colisão dos aviões em 11 de setembro de 2011, em Nova Iorque. Só animais sencientes podem fazer isto: tentar escapar da morte, desesperadamente, atirando-se pelo ar, quando não há meio algum de serem resgatados pela mão humana ou divina. Essa porca tentou manter-se viva, arriscando-se perigosamente. Foi recapturada pelo motorista do caminhão. Levada para a câmara de sangria, depilada em um tanque de água fervente e esquartejada, hoje ou amanhã terá pedaços de seu cadáver compondo sanduíches à mesa de humanos que se acham superiores a ela, humanos que

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dizem amar os animais, mas escolhem para estima apenas cães e gatos, nessa moral especista eletiva que parece não ter fim (Idem, 2014, p. 73).

A criação intensiva de aves envolve sobretudo galinhas, mas também

codornas, gansos, faisões, patos, perus e pombos. Assim como no caso do

bovinos e suínos, as aves são privadas de seu ambiente natural e são presos em

gaiolas minúsculas superlotadas com cerca de dez de sua espécie, nas quais mal

podem bater as asas e nem escolher o quê e quando comer. As galinhas

poedeiras – reduzidas à máquinas de ovos – vivem em gaiolas de piso inclinado

para facilitar o recolhimento dos ovos. A expectativa de vida das galinhas é de

aproximadamente sete anos, mas, na criação intensiva, sua vida varia entre um

mês e dois anos.

Tais circunstâncias estressam as aves, que passam a praticar bicagem de

penas e canibalismo – o que não acontecem em seu ambiente natural.

Novamente, a indústria de criação intensiva toma uma atitude simples: corta o

bico de todas as galinhas com alicates ou máquinas próprias, sem anestesia.

Além disso, o piso inclinado em que as galinhas poedeiras vivem não permite

que fiquem em pé, causando-lhes deficiências nas pernas e pés.

A indústria da criação intensiva interessa-se mais pelas galinhas, pois elas

põem ovos e engordam mais rápido que os frangos. Assim, todos os pintinhos

machos são mortos no mesmo dia em que nascem de três maneiras distintas: ou

os pintinhos machos recém-nascidos são jogados em latas de lixo para que eles

morram sufocados ou esmagados; ou eles são jogados em sacos de lixo para que

sejam esmagados por um trator; ou eles são triturados vivos para que sirvam de

comida para as galinhas.

Os animais não humanos são apropriados como objetos principalmente

mediante três indústrias: a do couro, da pele e da lã. Embora a maioria das

pessoas acredite que estes objetos são apenas resíduos da criação intensiva de

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animais para consumo humano, muitas das espécies usadas para fabricá-los não

são comidas pelos humanos. A indústria do couro usa o couro da vaca, mas

também usa o de outros animais como bisões, cabras, carneiros, cavalos,

cangurus, cobras, enguias, porcos, porcos-do-mato, tubarões, veados e zebras. A

indústria da lã usa sobretudo o carneiro merino que possui a pele enrugada – a

qual aumenta a quantidade de lã obtida (SUSIN; ZAMPIERI, 2015).

Animais como chinchilas, guaxinins, minks, linces e raposas são criados

na indústria da pele – eufemisticamente denominada por fazenda de pele. O

mink transitaria num espaço de aproximadamente quatro quilômetros em seu

ambiente natural e fica a maior parte do tempo na água. Entretanto, na indústria

da pele, os minks são presos em jaulas com cerca de oito de sua espécie, o que

lhes causa muito estresse. O produtor da pele de mink assegura-se de que a sua

pele não seja danificada e por isso os mata de três modos distintos: ou quebra-

lhes o pescoço; ou asfixia-os com dióxido ou monóxido de carbono; ou

eletrocuta-os pelo ânus. Além do campo da indústria, estes animais também são

caçados na floresta, ficando presos em armadilhas que lhes causa tamanho

estresse que chegam a amputar as pernas a fim de libertarem-se (Ibidem).

Outros animais – como cordeiros, focas, cães e gatos – também são

usados na indústria da pele. Os cordeiros persas são assassinados recém-

nascidos ou antes de nascerem – assassinando a mãe grávida – para a fabricação

de casacos na América e na Europa. A fabricação de um casaco destes requer a

pele de cerca de sessenta cordeiros persas filhotes e, por isso, são assassinados

milhões de cordeiros persas anualmente. Acontece uma matança massiva de

focas – à porretadas – no Canadá e na Groenlândia, a fim de conseguir suas

peles e pênis, visto que carne de foca tem gosto ruim e seu pênis é tido como

dotado de poder afrodisíaco. “A matança e a retirada da pele enquanto o animal

está agonizando é algo deprimente e mais deprimente ainda quando se trata de

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focas bebês totalmente à mercê de seus algozes” (Ibidem, p. 45). A pele de cães

é gatos é usada majoritariamente na China.

Os animais não humanos são usados no campo da ciência sobretudo em

três casos: dissecção, vivissecção e testes. Dentre os animais não humanos mais

usados estão ratos, coelhos, gatos, rãs, pombos, cavalos, peixes, porcos e

macacos. Os pesquisadores defendem que o avanço da ciência depende do uso

de animais não humanos e quem resiste a isso está contra o progresso. “E os

defensores do uso do modelo animal são sempre muito ‘humanos’ e defendem o

bem-estar dos animais, afirmando, em seus estatutos, o uso responsável, isto é,

sem proporcionar sofrimentos adicionais e desnecessários” (Ibidem, p. 37).

O uso de animais não humanos tanto no caso da dissecção como na

vivissecção foi normatizado sob o pretexto de que este é o único método de

ensino de matéria como anatomia e fisiologia. Entretanto, a dissecção e a

vivissecção não alcançam nenhum novo conhecimento no caso da educação.

Além disso, a tecnologia permite que o uso de animais não humanos seja

substituído por softwares de educação. Luiz Susin e Gilmar Zampieri comentam

que “Se isso for verdadeiro, então as práticas da dissecção e da vivissecção,

onde não forem de extrema necessidade, têm de ser abolidas, definitivamente,

por um dever ético” (Ibidem, p. 38 – 39).

Os testes mais conhecidos que usam animais não humanos são o Draize e

o LD50. O Draize tem por objetivo observar quais os efeitos oculares e

perioculares causados pela substância em questão. Os animais não humanos

mais usados para este teste são os coelhos albinos, os quais tem olhos grandes e

temperamento manso. Os coelhos são presos em caixas, imobilizados pelo

pescoço e têm suas pálpebras presas com grampos para que os olhos fiquem

abertos ininterruptamente. Depois, substâncias são aplicadas em seus olhos, sem

anestesia, por até dezoito dias. Outro objetivo do Draize, embora menos usado,

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é observar a sensibilidade cutânea de determinada substância. Assim, os animais

têm sua pele raspada até o sangramento e as substâncias são aplicadas.

O LD50 significa Lethal Dose 50 Percent e tem por objetivo descobrir

qual a dose da substância em questão que é capaz de matar metade dos animais

não humanos usados no teste num tempo pré-determinado. Os animais são

obrigados a ingerir, inalar ou inocular doses letais de diversos produtos, como

drogas, cosméticos, pesticidas e produtos de limpeza doméstica. Metade dos

animais morre para assegurar a dose e a outra metade é morta depois de

convulsões, diarreias e hemorragias.

O LD50 é considerado ineficiente sobretudo por dois motivos: a dose da

substância usada no teste é extremamente maior do que a realmente usada pelos

seres humanos; alguns testes não causam efeitos colaterais em animais não

humanos, mas os causam em humanos (Ibidem, p. 41).

Os animais não humanos são usados como forma de lazer em alguns

casos: circo, zoológico, tourada, farra do boi e rodeio. Tanto os animais de circo

como os de zoológico não possuem as condições mínimas de vida que teriam

livres na natureza, considerando que são retirados de seus ambientes naturais,

colocados em espaços limitados e impossibilitados de socialização com outros

da mesma espécie. Os animais de circo são adestrados às custas de dor perpétua:

sofrem descargas elétricas e são espancados com chicotes, porretes, aço e

madeira durante o adestramento, além de terem seus dentes e suas garras

arrancadas sem anestesia (Ibidem).

A tourada ibérica é um espetáculo em que um touro é torturado até a

morte. O touro é levado à arena depois de uma série de tormentos a qual é

submetido: colocam fibras em seu nariz para que não consiga respirar e agonize,

dance e pule, bem como vaselina em seus olhos para que não consiga enxergar e

corra desorientado; cortam seus chifres; espetam agulhas em seu pênis para que

sinta uma dor inimaginável. Assim, quando entra na arena, o que lhe resta para

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seus últimos momentos de vida são golpes que o matarão. Tudo para a alegria

mórbida da plateia que se deleita ao ver o sofrimento do animal que conseguem

dominar (Ibidem, p. 34).

A farra do boi também é um espetáculo em que um boi é torturado até a

morte, mas, desta vez, com a participação ativa da plateia. As pessoas de idades

e sexos variados se armam com madeiras, pedras, facas e outros utensílios e

perseguem o boi até que ele esteja morto. Começam quebrando seus chifres,

depois perfuram seus olhos, quebram seus ossos e, por fim, arrancam sua carne

para comer (Ibidem).

O rodeio acontece por meio de quatro práticas que causam sofrimento e

morte dos bois: o primeiro é a laçada do bezerro; o segundo é o laço em dupla; o

terceiro, o bulldog; e o quarto, a montaria. A laçada do bezerro consiste num

humano que laça o pescoço do bezerro – que tem menos de dois meses de vida –

e amarra suas pernas, o que pode romper a medula espinhal do bezerro e seus

órgãos internos, causando-lhe paralisia e morte. O laço em dupla é praticado por

dois humanos que encurralam o boi e, enquanto um laça seu pescoço, o outro

laça suas pernas traseiras, de modo que ele fique esticado. O bulldog também é

praticado por dois humanos que encurralam o boi e um deles segura seus

chifres, torce seu pescoço e atira-o no chão. Na montaria, bois ou cavalos são

forçados a pular e escoicear enquanto o humano deve permanecer em cima do

animal o maior tempo possível afim de ganhar uma maior pontuação na prova.

Os bois e cavalos não pulam e escoiceiam somente por causa do humano que

está em suas costas, mas sim por causa de dois instrumentos – o sedém e as

esporar – que os causa dor. O sedém é uma cinta de couro que espreme o

abdômen e a virilha dos animais e as esporas são instrumentos de metal

pontiagudos que potencializam os golpes que os humanos dão em todo o corpo

dos animais (Ibidem, p. 35 – 37).

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O animal de estimação representa uma relação baseada num amor

questionável, principalmente no que diz respeito aos animais silvestres – os

quais são retirados de seus ambientes naturais e vendidos. Uma ave presa numa

gaiola jamais experimentará como seria sua vida em liberdade. Por outro lado,

cães e gatos são, via de regra, animais domesticados que não possuem tanta

expectativa de vida na natureza. Logo, quando abandonados, são destinados ao

sofrimento e à morte enquanto esperam por uma possível adoção. Além disso,

alguns cães de determinadas raças sofrem para que sejam adestrados a fim de

proteger propriedades: têm suas orelhas e rabos cortados e são submetidos ao

processo de desvocalização para que seus latidos não incomodem seus donos.

Do mesmo modo, alguns gatos têm suas unhas arrancadas para que não

arranhem objetos da casa de seus donos. Essas modificações da natureza física

do animal, bem como a mudança forçada do seu ambiente natural para o

artificial, representam um amor no mínimo questionável (Ibidem, p. 30).

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Sintomas dos humanos

De acordo com o médico francês Raphaël Nogier, a maioria das doenças

humanas estão vinculadas à uma má alimentação, composta por grandes

quantidades de carnes e derivados animais e pequenas quantidades de vegetais

integrais. Segundo ele, o leite é um dos alimentos que tem maior propensão de

desencadear uma intolerância alimentar – reação patológica do organismo

perante a ingestão repetida de algum alimento tido como tóxico (NOGIER,

1999, p. 9).

Talvez a intolerância ao leite de vaca seja um eufemismo para o fato de

que o ser humano não é um bezerro e, na maioria dos casos, já passou da fase da

amamentação. O humano é o único animal que bebe leite depois de ter

desmamado de sua mãe, e mais que isso: não bebe leite humano, pois isso seria

estranhíssimo, mas de outro mamífero. O leite humano e o leite de vaca têm

uma composição química diferente, e o bebê humano e o bezerro têm

necessidades diferentes.

A vaca apenas produz leite após a gravidez, a fim de alimentar os seus

filhotes recém-nascidos. Em condições naturais, a vaca produz a quantidade de

leite necessária para que seus filhotes cresçam saudáveis, mas não a quantidade

necessária para amamentar os seus filhotes e também os seres humanos sedentos

de leite bovino. Por isso, na criação intensiva de bovinos, os bezerros são

completamente privados do leite materno e, na criação extensiva, os bezerros

são obrigados a dividir o leite materno com os humanos.

De acordo com Nogier, o leite é a causa da maioria dos cânceres de mama

nas mulheres. As únicas mamíferas nas quais foram detectados casos de câncer

de mama foram a humana, a cadela e a gata domésticas. Tais animais

domésticos, assim como acontece com grande parte dos humanos, são

desmamados precocemente e logo alimentados com leite de vaca. Além disso,

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os países que têm grande consumo de leite de vaca e seus derivados são os

países com maior incidência de câncer de mama sobre as mulheres, enquanto os

países com pequeno consumo de leite e seus derivados são os com menor

incidência de câncer de mama. Nos países da África e da Ásia, onde o consumo

de derivados de leite não passou de 110 quilos por habitante, a incidência de

câncer de mama não passou de 22 casos para 100 mil habitantes. Por outro lado,

em países que o consumo de derivados de leite pode chegar a 446 quilos por

habitante, a incidência de câncer chegou a 86 casos para 100 mil habitantes

(Ibidem, p. 63).

Além do leite, a indústria alimentícia investe em publicidade para que os

seres humanos consumam diversos outros tipos de produtos animais – carnes,

ovos e seus derivados. Entretanto, de acordo com os médicos norte-americanos

Caldwell Esselstyn e Colin Campbell, seguindo a linha de pensamento de

Raphaël Nogier, a maioria das doenças humanas estão relacionadas à dieta, e

não com uma possível herança genética. Segundo eles, doenças cardíacas,

câncer, derrame, diabetes, Mal de Alzheimer e osteoporose são consequência da

nutrição ocidental baseada em comidas processadas e de origem animal. Assim,

sugerem uma nutrição baseada em alimentos vegetais e integrais a fim de

proteger os humanos destas doenças.

Quem irá proteger o público? Não será o nosso governo: o Departamento de Agricultura dos EUA é a voz da nossa indústria alimentícia. A cada cinco anos, ele constrói as diretrizes de nutrição para o público promovendo comidas que garantem má saúde para milhões. Não será a Associação Dietética Americana, que é controlada por corporações alimentícias. Não será a indústria de planos de saúde, que lucra vendendo planos para os doentes. Não será a indústria farmacêutica, que anualmente embolsa bilhões provenientes de doenças crônicas. Não serão os hospitais, cujo sustento depende de nossas doenças. Não será a profissão médica, na qual médicos e enfermeiros praticamente não recebem treinamento algum em nutrição ou modificação comportamental, e são recompensados

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de maneira generosa por administrar remédios e empregar sua especialidade técnica. E, finalmente, não serão nossas instituições de financiamento de pesquisa médica: com frequência, elas se concentram em detalhes biológicos, tais como nutrientes individuais, que podem ser explorados comercialmente para lucro (STONE, 2013, p. IX).

Além das questões que envolvem o consumo de alimentos de origem

animal e as doenças humanas, as condições dos trabalhadores de matadouros

também são péssimas. A mobilização pelo crescimento engole tanto os

trabalhadores – submetidos a níveis de produtividade intoleráveis – como os

desempregados – que são obrigados a aceitar qualquer emprego. Porém, isso é

apenas um fruto do modelo neoliberal de produção:

Agora todos estão familiarizados com o que essas alternativas produzem – “Vocês recusam uma piora no nível de vida e pedem aumento de salario? Vão ganhar a deslocalização de suas empresas”; “Recusam jornadas de trabalho insuportáveis? Outros ficarão contentes em substituí-los...”. Cada situação onde alternativas infernais se impõem, salientávamos, foi “fruto de fabricações pacientes, em pequeníssima escala, de experimentações preventivas”. O que se apresenta como “lógico” foi fabricado por múltiplos processos de reorganizações ditas “racionais”, que visaram antes de tudo, obstinadamente, minar ou aprisionar as capacidades de pensar e resistir daqueles que tinham meios para isso. Daí as alternativas infernais terem afetado, em primeiro lugar, o mundo do trabalho – questões da aposentadoria, da flexibilidade, dos salários, da organização do trabalho (STENGERS, 2015, p. 49).

Os matadores representam o setor de trabalho no qual são encontrados os

maiores índices de acidente de trabalho e altos índices de transtornos de humor

relacionados à violência psicológica devido à elevada demanda de trabalho e

violência na matança de animais não humanos.

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Eles trabalham num ambiente fechado, sem janelas para passar a luz do

sol ou ar fresco, bem como para amenizar o odor sangrento quase insuportável.

Além disso, o ambiente é mantido em temperaturas baixíssimas, as quais

demandam maior esforço do trabalhador para a realização das atividades e

propiciam doenças do aparelho respiratório. O artigo 253 da Consolidação das

Leis do Trabalho (CLT) assegurou as chamadas pausas para recuperação térmica

– intervalos de vinte minutos a cada duas horas e 40 minutos para os

trabalhadores de ambientes resfriados artificialmente –, ainda que grande parte

das empresas não cumpram esta lei.

A jornada de trabalho é exaustiva. A grande quantidade de movimentos

repetitivos num pequeno período de tempo propiciam doenças osteomusculares.

Para desossar uma coxa de frango, por exemplo, os empregados fazem

aproximadamente 120 movimentos repetidos em um minuto. Eles manejam

constantemente instrumentos perfurocortantes – facas e serras –, que provocam

uma série de acidentes de trabalhos gravíssimos, como cortes profundos e

amputação de membros.

Tendo em vista a violência em torno da matança de animais não humanos,

é possível pensar que os matadores sejam sádicos ou psicologicamente

perturbados. Entretanto, os matadores podem ser sensíveis quando começam o

trabalho, mas se acostumam à violência que os perturbava no início devido a um

mecanismo de defesa chamado rotinização: “...executar rotineiramente uma ação

até se tornar insensível ou entorpecido com relação a ela” (JOY, 2014, p. 81).

Infelizmente, quanto mais insensíveis os matadores se tornam, mais

sofrem psicologicamente considerando que a maioria deles não pode encarar

tamanha violência que acontece nos matadouros sem ficar traumatizada por ela.

Além disso, os matadores passam a ser cada vez mais violentos com os animais

não humanos e com os próprios humanos e são constantemente aproximados de

entorpecentes como um meio para fugir do trauma (Ibidem, p. 82).

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Em várias culturas e por toda a história, carniceiros profissionais têm sido vistos como impuros, pois se encarregam da imoralidade de matar animais, dessa maneira protegendo outros da contaminação moral. Com frequência um grupo terá um indivíduo ou indivíduos designados para executar a matança, que serão “moralmente limpos” antes de entrar em contato com outros ou viverão separados do restante da comunidade (Ibidem, p. 84).

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Genealogia

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Segundo Foucault, a genealogia é cinza e trabalha com pergaminhos

embaralhados e riscados. As gêneses lineares não passam de um engano: as

palavras e os desejos foram atravessados por diversas frentes de luta ao longo da

história. Assim, genealogia marca a singularidade dos acontecimentos a partir

daquilo que não é considerado como história – sentimentos, amor, consciência e

instintos. Em suma, ela é oposta à pesquisa da origem (FOUCAULT, 2017, p.

55 – 56).

Nietzsche, enquanto genealogista, também se opõe à pesquisa da origem,

considerando que a pesquisa da origem tem por objetivo apreender a essência da

coisa, anterior a tudo que é acidental, externo e sucessivo. O genealogista escuta

a história em vez de acreditar na metafísica e vê que, atrás das coisas, existe uma

essência construída pouco a pouco ao mero acaso. “O que se encontra no

começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a

discórdia entre as coisas, é o disparate” (Ibidem, p. 59).

Do mesmo modo, a origem não passa de uma extrapolação metafísica de

que a origem das coisas estava organizada em torno de um estado de perfeição.

“A origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e antes

do tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá-la se canta sempre uma

teogonia” (Ibidem). Mas a origem histórica é baixa e o nascimento do homem

não é tão divino assim – está próximo do macaco.

A origem também é tida como o lugar da verdade anterior a todo

conhecimento. “A verdade, espécie de erro que tem a seu favor o fato de não

poder ser refutada, sem dúvida porque o longo cozimento da história a tornou

inalterável” (Ibidem, p. 60).

O termo Herkunft pode ser traduzido por proveniência: o tronco de uma

raça ou o pertencimento a um grupo, seja por sangue, tradição, raça ou tipo

social. A genealogia é a análise da proveniência, ou seja, é a busca dos começos

inumeráveis e dos acontecimentos perdidos. A proveniência é o processo de

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demarcação dos acidentes, desvios ou inversões completas, erros, falhas e maus

cálculos que deram origem a este mundo. Ela atesta que não existe o ser ou a

verdade, mas sim a exterioridade do próprio acidente (Ibidem, p. 61 – 63).

Enfim, a proveniência diz respeito ao corpo. Ela se inscreve no sistema nervoso, no humor, no aparelho digestivo. Má alimentação, má respiração, corpo débil e vergado daqueles cujos ancestrais cometeram erros; que os pais tomem os efeitos por causas, acreditem na realidade do além, ou coloquem o valor eterno, é o corpo das crianças que sofrerá com isso. [...] O corpo – e tudo que diz respeito ao corpo, a alimentação, o clima, o solo – é o lugar da Herkunft: sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de repente se exprimem, mas nele também se desatam, entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito. O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está, portanto, no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo (Idem, p. 64 – 65).

A história propriamente dita reconhece que não existem coordenadas ou

referências originárias, mas apenas acontecimentos perdidos. Ela inverte a

relação entre o próximo e o longínquo conforme foi dada pela história

tradicional alinhada à metafísica. O movimento desta história propriamente dita

é oposto ao da história tradicional: ela não olha para o longínquo, mas sim para

o próximo.

A história “efetiva”, em contrapartida lança os olhares ao que está próximo: o corpo, o sistema nervoso, os alimentos e a digestão, as energias; ela perscruta as decadências; e se afronta outras épocas é com a suspeita – não rancorosa, mas alegre – de

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uma agitação bárbara e inconfessável. [...] O sentido histórico está muito mais próximo da medicina do que da filosofia. “Historicamente e fisiologicamente” costuma dizer Nietzsche. Nada espantoso, uma vez que na idiossincrasia do filósofo se encontra a negação sistemática do corpo e “a falta de sentido histórico, o ódio contra a ideia do devir, o egipcianismo”, a obstinação “em colocar no começo o que vem no fim” e em “situar as coisas últimas antes das primeiras”. A história tem mais a fazer do que ser serva da filosofia e do que narrar o nascimento necessário da verdade e do valor; ela tem que ser o conhecimento diferencial das energias e desfalecimentos, das alturas e desmoronamentos, dos venenos e contravenenos. Ela tem que ser a ciência dos remédios” (Ibidem, p. 75 – 76).

Nos escritos a seguir, pretendo retomar a ideia da genealogia em relação

ao corpo a partir da alimentação.

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Governamentalidade

Foucault, em seu curso Segurança, Território, População (1978),

relaciona o problema da população ao problema do governo mediante a análise

de dispositivos de segurança. Na Idade Média e na Antiguidade greco-romana,

tratados denominados Conselhos ao Príncipe orientavam o modo como os

príncipes deveriam se conduzir, exercer o poder, serem respeitados pelos súditos

e amar e obedecer a Deus. A partir do século XVI, o problema do governo é

intensificado e ramificado em quatro eixos: estoicismo e governo de si; pastoral

católica ou protestante e governo das almas; pedagogia e governo das crianças;

príncipe e governo do Estado (FOUCAULT, 2008, p. 281).

O que é governar e ser governado? O que é o governo do Estado? Como,

por quem e por que objetivo ser governado? Como ser o melhor governante

possível? Todos estes questionamentos brotaram, sobretudo, a partir da

composição de duas linhas de força no século XVI: de um lado, a concentração

estatal mediante a organização dos Estados administrativos, coloniais e

territoriais pós dissolução do feudalismo e, de outro, a dissidência religiosa

mediante o questionamento de como deveria ser feita a condução espiritual a

fim de alcançar a salvação pós Reforma e Contrarreforma. (Ibidem, p. 282).

Segundo Foucault, governo é um meio para se conduzir a conduta dos

humanos. Tal modelo de governo é herdeiro do pastorado cristão:

...um tipo de poder bem específico que se dá como objeto a conduta dos homens – quero dizer, por instrumento os métodos que permitem conduzi-los e por alvo a maneira como eles se conduzem, como eles se comportam [...] o pastorado é um poder que tem de fato por objetivo a conduta dos homens (Ibidem, p. 256).

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Existe uma diferença fundamental entre o governo e a soberania: a

finalidade da soberania está nela mesma e seus instrumentos são leis, e a

finalidade do governo está nas coisas que ele dirige e seus instrumentos são

táticas diversas. Assim, retomando a linha de pensamento dos textos dos séculos

XVII e XVIII escritos por economistas e fisiocratas, as leis não são o

instrumento principal do governo e não é por meio delas que as finalidades do

governo podem ser alcançadas (Ibidem, p. 293 – 294).

Até o século XVI, a arte de governar estava relacionada ao

desenvolvimento das monarquias territoriais, à estatística como principal ciência

do Estado e ao mercantilismo. Contudo, entre os séculos XVI e XVII, ela passou

a se organizar a partir de uma razão de Estado que permaneceu até o século

XVIII, ainda que a arte de governar tenha sido bloqueada por esta razão de

Estado.

O Estado se governa segundo as leis racionais que lhe são próprias, que não se deduzem das únicas leis naturais ou divinas, nem dos únicos preceitos de sabedoria e de prudência. O Estado, tal como a natureza, tem sua própria racionalidade, mesmo se ela é de um tipo diferente. Inversamente, a arte de governar, em vez de ir buscar seus fundamentos nas regras transcendentais em um modelo cosmológico ou em um ideal filosófico e moral, deverá encontrar os princípios de sua racionalidade no que constitui a racionalidade específica do Estado (Ibidem, p. 295).

Nesse contexto, Foucault explica como a arte de governar foi

desbloqueada por meio do problema da população. Segundo Foucault, a

governamentalidade está relacionada a três movimentos. O primeiro movimento

diz respeito à economia política e aos dispositivos de segurança:

Por “governamentalidade”, entendo o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e

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táticas que permitem exercer essa forma bem específica, bem complexa, de poder, que tem como alvo principal a população, como forma mais importante de saber, a economia política, como instrumento técnico essencial, os dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2006, p. 303).

O segundo movimento concerne à primazia do governo em relação à

soberania e à disciplina no Ocidente, o que propiciou o desenvolvimento de

aparelhos específicos de governo e outras espécies de saber:

Em segundo lugar, por “governamentalidade”, entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não cessou de conduzir, e há muitíssimo tempo, em direção à preeminência desse tipo de saber que se pode chamar de “governo” sobre todos os outros: soberania, disciplina. Isto, por um lado, levou ao desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo e, por outro, ao desenvolvimento de toda uma série de saberes (Ibidem).

O terceiro movimento, por fim, tange ao processo de

governamentalização do Estado de Justiça da Idade Média:

Enfim, por “governamentalidade”, acho que se deveria entender o processo, ou melhor, o resultado do processo pelo qual o Estado de Justiça da Idade Média, tornado nos séculos XV e XVI Estado administrativo, encontrou-se, pouco a pouco, “governamentalizado” (Ibidem).

O conceito de governamentalidade, cunhado por Foucault para

caracterizar o governo na contemporaneidade, servirá como referência para a

exposição sobre as relações de poder e suas resistências a seguir.

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Especismo

O termo especismo surgiu a partir da tradução do inglês da palavra

speciesism, criada pelo psicólogo britânico Richard Ryder em 1973. O conceito

de especismo é usado para indicar o modo discriminatório pelo qual os humanos

se relacionam com outras espécies animais, sendo um preconceito baseado em

diferenças biológicas aparentes entre os humanos e os animais não humanos. Os

interesses humanos seriam considerados superiores aos interesses dos animais,

mesmo quando os interesses humanos e animais forem iguais ou quando os

interesses animais forem superiores aos humanos. Assim, os animais não

humanos existiriam apenas para suprir os interesses humanos e, portanto, os

humanos não deveriam considerar os interesses dos animais de outras espécies.

Nesse sentido, o especismo pode ser equiparado ao racismo e ao sexismo, pois

tais preconceitos desconsideram o princípio da igualdade entre os seres

(FELIPE, 2003, p. 83).

Nas exatas palavras de Richard D. Ryder, o termo especismo é usado “... para descrever a discriminação generalizada praticada pelo homem contra outras espécies, e para estabelecer um paralelo com o racismo. Especismo e racismo são formas de preconceito que se baseiam em aparências – se o outro indivíduo tem um aspecto diferente deixa de ser aceito do ponto de vista moral. O racismo é hoje condenado pela maioria das pessoas inteligentes e compassivas e parece simplesmente lógico que tais pessoas estendam também para outras espécies a inquietação que sentem por outras raças. Especismo, racismo (e até mesmo sexismo) não levam em conta ou sobrestimas as semelhanças entre o discriminador e aqueles contra quem este discrimina e ambas as formas de preconceito expressam um desprezo egoísta pelos interesses de outros e por seu sofrimento” (Ibidem, p. 84).

Existem dois tipos de especismo: especismo eletivo e especismo elitista.

O especismo eletivo é aquele em que os humanos elegem algumas espécies de

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animais não humanos para a estima, considerando os interesses somente dos

seres pertencentes a estas espécies e desprezando os interesses de quaisquer

seres de outras espécies. Por exemplo, cães e gatos são animais eleitos para a

estima e que, portanto, têm seus interesses considerados, enquanto vacas, porcos

e galinhas têm seus interesses desconsiderados no manejo da criação intensiva

para consumo humano e nos matadouros. Muitas das pessoas que se intitulam

amantes e protetoras dos animais cuidam apenas de cães e gatos e desprezam

espécies não eleitas para a estima – como baratas, ratos e sapos (FELIPE, 2014,

p. 26).

O especismo elitista, por sua vez, corresponde à visão de inferioridade dos

animais não humanos perante os humanos, devido a capacidades humanas

próprias usadas para tentar justificar a superioridade da espécie. Assim,

quaisquer animais que não possuam as capacidades próprias da espécie tida

como superior – como pensar, falar ou criar artefatos – têm seus interesses

desconsiderados. Por exemplo, vacas, porcos e galinhas que são exploradas e

mortas, possivelmente pelo fato de não falarem, sofrem de especismo elitista

(Ibidem, p. 26 – 27).

Em suma, o especismo é o preconceito ou atitude tendenciosa de um

humano a favor dos interesses dos membros de sua espécie em detrimento dos

membros de outras espécies. Entretanto, humanos de capacidade intelectual

elevada não podem explorar outros humanos com capacidades intelectuais

inferiores, do mesmo modo que humanos não deveriam explorar não humanos

(SINGER, 2013, p. 11).3

Assim como existem diferenças biológicas entre homens e mulheres que

devem resultar em diferenças nos direitos de cada sexo, existem diferenças entre

os humanos e os animais não humanos que devem resultar em diferenças nos

3Eu me baseio principalmente nos estudos de Peter Singer no que diz respeito ao especismo devido ao autor ser a maior referência dos estudos sobre este tema.

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direitos de cada espécie. Por exemplo, o direito ao aborto apenas pode ser

garantido à mulheres, e não aos homens; e o direito ao voto somente pode ser

garantido aos humanos, e não aos animais. O que não se pode perder de vista é

que o reconhecimento destas diferenças não deve estancar a aplicação do

princípio da igualdade aos não humanos, no mínimo no que diz respeito aos

direitos à vida e à liberdade (Ibidem, p. 4 – 5).

Se considerarmos os fundamentos da resistência em relação aos

preconceitos raciais e sexuais, a reivindicação de igualdade em relação às

mulheres, negros e outros grupos de oprimidos e a não reivindicação aos não

humanos é incoerente. As resistências ao racismo e ao sexismo não são baseadas

em igualdades factuais entre os seres (Ibidem, p. 5 – 6).

De acordo com o princípio da igualdade, não existe justificativa moral pra

que o sofrimento de um ser não seja levado em consideração,

independentemente da natureza do ser em questão. Apenas quando um ser não

possui as capacidades de sentir prazer ou de sofrer, seus interesses não precisam

ser considerados, ou seja, a senciência é um pré-requisito para que os interesses

alheios sejam considerados.

Os racistas violam o princípio da igualdade ao conferir mais peso aos interesses de membros de sua etnia quando há um conflito entre os próprios interesses e os daqueles que pertencem a outras etnias. Os sexistas violam o princípio da igualdade ao favorecer os interesses do próprio sexo. Analogamente, os especistas permitem que os interesses de sua espécie se sobreponham aos interesses maiores de membros de outras espécies. O padrão é idêntico em todos os casos (Idem, p. 15).

A igualdade entre os seres é uma ideia moral, e não um fato. “O princípio

da igualdade dos seres humanos não é a descrição de uma suposta igualdade de

fato existente entre seres humanos: é a prescrição de como devemos tratar os

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seres humanos” (Ibidem, p. 9). A afirmação de que todos os humanos são iguais

– independentemente de sexo ou raça – não depende de uma igualdade factual

entre eles.

Gostemos disso ou não, temos de encarar o fato de que os seres humanos têm diferentes feitios e tamanhos, diferentes capacidades morais e intelectuais, diferentes intensidades de sentimentos benevolentes e sensibilidade em relação às necessidades dos outros, diferentes capacidades de se comunicar de modo eficaz e diferentes capacidades de experimentar prazer e dor (Idem, p. 6).

A partir do princípio da igualdade, a consideração dos interesses alheios

não deve depender da aparência ou das capacidades do ser em questão. O que

pode variar é nossa atitude de acordo com as necessidades daqueles que são

afetados (Ibidem, p. 9).

Mas o elemento básico – levar em conta os interesses de um ser, sejam quais forem esses interesses – deve, de acordo com o princípio da igualdade, ser estendido a todos os seres, negros ou brancos, do sexo masculino ou feminino, humanos ou não humanos (Idem, p. 10).

A defesa das práticas especistas está baseada no argumento de que os

humanos não são culpados por desconsiderar os interesses dos não humanos

pois estes não seriam capazes de sofrer e, portanto, não teriam interesses.

Sabemos da nossa capacidade de sofrer pela experiência direta e podemos

presumir que outros seres a possuem pela observação de suas expressões em

circunstâncias que nós sofreríamos. Entretanto, a expressão de sofrimento dos

humanos também pode ser observada em outras espécies, sobretudo nos

mamíferos e nas aves. “Os sinais comportamentais incluem contorções,

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contrações do rosto, gemidos, ganidos ou outras formas de apelos, tentativas de

evitar a fonte da dor, demonstrações de medo diante da perspectiva de repetição

e assim por diante” (Ibidem, p. 18).

O Comitê sobre a Crueldade com Animais Selvagens, criado em 1951 no

Reino Unido, admitiu que os animais não humanos possuem a capacidade de

sofrer física e psicologicamente (Ibidem, p. 21). A Declaração de Cambridge

sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos, publicada em 2012

no Reino Unido, por sua vez, admitiu que os não humanos possuem a

capacidade de experimentar estados afetivos.

A capacidade de sofrer de um ser é baseada em dois indicadores: “...o

comportamento do ser – se ele se contorce, emite gritos, tenta fugir da fonte da

dor e assim por diante – e a semelhança do seu sistema nervoso com o nosso”

(Ibidem, p. 252). É mais difícil comprovar a capacidade de sofrer em animais

que se enquadram numa escala evolutiva menor que a dos mamíferos e aves.

Peixes e répteis possuem um sistema nervoso diferente do nosso, ainda que a

estrutura das vias nervosas centrais seja semelhante.

Peixes e répteis têm praticamente o mesmo comportamento dos mamíferos no momento da dor. Na maioria das espécies há, inclusive, vocalização, embora inaudível para nossos ouvidos. Os peixes, por exemplo, emitem sons vibratórios. Diferentes “chamados” foram constatados pelos pesquisadores, inclusive sons indicando estado de “alarme” e de “exasperação”. Os peixes também exibem sinais de aflição quando são retirados da água e deixados pulando na rede ou no chão seco até morrer. Com certeza, é apenas porque o peixe não pode gemer ou se lamentar de maneira audível que pessoas – bastante civilizadas em outros aspectos – consideram agradável passar a tarde sentadas à beira da água, lançando anzóis, enquanto o peixe recém-fisgado agoniza lentamente ao seu lado (Idem, p. 252 – 253).

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A Sociedade Real para a Prevenção da Crueldade com os Animais

(RSPCA), criada no Reino Unido, admitiu que os peixes possuem a capacidade

de sofrer assim como os animais vertebrados. John Baker, zoólogo da

Universidade de Oxford, constatou que crustáceos também possuem a

capacidade de sofrer. Ainda que os crustáceos possuam um sistema nervoso

muito diferente do nosso, seus sistemas nervosos e órgãos sensoriais são bem

desenvolvidos. Quanto aos moluscos, apenas foi comprovado que os polvos

possuem a capacidade de sofrer.

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Carnismo

“O que pode fazer toda uma sociedade de pessoas abrir mão de sua

capacidade de reflexão – sem nem ao menos perceber que está fazendo isso?

Embora a questão seja bastante complexa, a resposta é bastante simples: o

carnismo” (JOY, 2014, p. 30).

Os humanos comem animais não humanos sobretudo porque é o que

sempre fizeram e porque gostam do sabor. O hábito de comer carne é uma opção

assim como o hábito de não comê-la, embora muitos o vejam como algo natural:

as coisas sempre foram e sempre serão assim. Entretanto, um sistema de crenças

invisível chamado carnismo condiciona os humanos a comerem algumas

espécies animais e a invisibilidade do carnismo faz com que opções não

pareçam realmente opções. A maioria dos humanos não come carne porque

precisa, mas sim porque é uma opção baseada em crenças (Ibidem, p. 31 – 32).

Ideologia, um dos conceitos mais controversos das Ciências Sociais, pode

ser considerado um conjunto compartilhado de crenças e das práticas que

remetem a tais crenças. O estilo de vida dominante não é um reflexo de valores

universais, mas sim apenas a crença da maioria.

Curiosamente, a ideologia do vegetarianismo foi identificada há mais de 2.500 anos; os que optavam por não comer carne eram chamados de “pitagóricos”, porque seguiam a filosofia alimentar de Pitágoras, o antigo filósofo e matemático grego. Mais tarde, no século XIX, foi cunhado o termo “vegetariano”. Mas só agora, séculos após a rotulação dos que não comem carne, a ideologia da ingestão de carne ganhou seu nome. (Ibidem, p. 34)

As ideologias que não se enquadram na corrente dominante são mais

facilmente reconhecidas e, por isso, é possível entender o motivo do

vegetarianismo ter sido conceituado antes do carnismo. Do mesmo modo, a

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invisibilidade de uma ideologia é a principal maneira dela continuar dominante:

se não a conceituamos, não podemos falar sobre ela e, portanto, não podemos

questiona-la (Ibidem).

O carnismo é uma ideologia violenta, considerando que é mantido a partir

da violência física. Logo, se a violência fosse banida do sistema carnista, ou

seja, se a matança dos animais fosse banida, ele deixaria de existir. Assim, o

sistema carnista é baseado não somente nas invisibilidades social e psicológica,

mas também na invisibilidade física: apesar dos números gigantescos de animais

que são criados e mortos pelo sistema, a maioria das pessoas nunca viu nenhuma

parte do processo de produção de carne e outros produtos de origem animal

(Ibidem, p. 35).

Além disso, existe uma espécie de mitologia da carne que justifica o

carnismo. Ela está relacionada à três justificativas denominadas como Três Ns

por Melanie Joy: comer carne é normal, comer carne é natural e comer carne é

necessário.

Os Três Ns têm sido invocados para justificar todos os sistemas exploradores, da escravidão africana ao holocausto nazista. Quando uma ideologia está em seu início, esses mitos raramente são submetidos a exame. Contudo, quando o sistema finalmente desmorona, os Três Ns são reconhecidos como absurdos. (Ibidem, p. 95)

As pessoas devem ser constantemente condicionadas a romper com a

empatia para com os não humanos e, para isso, existem alguns criadores de

mitos – instituições importantes na sociedade, que vão desde a educação à

medicina. Via de regra, médicos, professores, ministros da igreja e instituições

eleitas não encorajam as pessoas a questionar se comer carne é normal, natural e

necessário. “Quem melhor para nos influenciar que as instituições vigentes e os

profissionais em quem aprendemos a depositar confiança?” (Ibidem, p. 96).

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De um lado, os profissionais cooperam com a sustentação do carnismo

por meio de suas políticas e recomendações, que forjam a política e a opinião

pública. De outro lado, os executivos do agronegócio sustentam o carnismo

influenciando as instituições e os profissionais. Assim, o papel de tais criadores

de mitos não é propriamente o de criar mitos, mas sim de assegurar que os mitos

existentes perpetuem.

Muitos de nossos mitos relativos à carne foram herdados, transmitidos de geração a geração; como os sistemas são maiores que a soma de suas partes, eles não morrem uma morte natural, mas sobrevivem indefinidamente. Sistemas são como colmeias: embora cada abelha morra, o enxame persiste. Os criadores de mitos, portanto, reciclam os mitos da carne, alternando-os, quando necessário, para ajustá-los à tendência do momento. (Ibidem, p. 98)

Em suma, o objetivo dos mitos é legitimar a ideologia para que ela passe a

dominar todos os campos da sociedade. Nesse sentido, o sistema legal e a mídia

desempenham um papel fundamental. A legalização dos princípios do carnismo

impõe uma conformidade à ideologia e assegura a produção contínua de carne e

produtos de origem animal. A mídia – principal fonte de informação – é o canal

direto entre o carnismo e os consumidores e mantém a invisibilidade do sistema

de produção e as justificativas para as pessoas continuarem comendo animais.

Às vezes, contudo, a produção de carne chega realmente a conseguir a atenção da mídia. Mas quando isso acontece, o problema geralmente é apresentado como se fosse uma aberração, não a norma. [...] E os médicos e nutricionistas que aparecem na mídia praticamente sempre defendem o carnismo, adotando com frequência uma postura “moderada e sensata” ao recomendar, por exemplo, que os espectadores substituam carnes gordas por carnes mais magras. (Ibidem, p. 102)

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Além disso, o carnismo envolve um trio cognitivo que distorce a nossa

percepção da realidade: objetivação, desindividualização e dicotomização. A

objetivação é processo de encarar um ser vivo como uma coisa, ou seja, como

algo inanimado. Os animais não humanos são objetivados sobretudo por meio

da linguagem, mas também pela legislação e pelas instituições e políticas

públicas. A desindividualização é o processo de encarar os indivíduos somente

como membros de um grupo e incapacidade de atestar a individualidade das

partes que compõe o todo.

Reações negativas à ideia de consumir (ou preparar a carne de) um animal familiar são comuns pelo mundo afora e podem ser muito poderosas. Por exemplo, as mulheres índias da área de Quito, no Equador, ligam-se às suas galinhas como os americanos se ligam a seus cachorros e gatos. Quando as circunstâncias forçam essas mulheres a vender as aves para o abate, elas o fazem com lágrimas e gritos estridentes. (Ibidem, p. 116)

Por fim, a dicotomização é o processo de enquadrar mentalmente os

outros em duas categorias opostas baseadas em crenças a respeito deles, o que

provoca afetos diferentes em relação aos membros de cada grupo.

Quando se trata da carne, as duas categorias principais que temos para os animais são comestíveis e não comestíveis. E dentro da dicotomia comestível/não comestível, temos uma série de outros pares de categorias. Por exemplo, comemos antes animais domésticos que animais selvagens, e herbívoros antes que onívoros ou carnívoros. A maioria das pessoas não comerá animais que consideramos inteligentes (golfinhos), mas consome regularmente os que acreditam não serem tão espertos (vacas e frangos). Muitos americanos evitam comer animais que julgam engraçadinhos (coelhos), preferindo comer animais que consideram menos atraentes (perus) (Ibidem, p. 118).

* * *

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Segundo Foucault, a população é tida como o fim último da

governamentalidade, pois a função desse regime deve ser, sobretudo, melhorar a

vida da população e não apenas o ato de governar. Nesse sentido, o governo atua

a partir de dispositivos próprios do âmbito da população, diretamente – por meio

de campanhas –, e indiretamente – por meio de técnicas que conduzem a

população sem que ela perceba. Em suma:

A população aparece então, mais do que como a potência do soberano, como a finalidade e o instrumento do governo. A população aparecerá como sujeito das necessidades, de aspirações, mas também como objeto entre as mãos do governo, consciente diante do governo, do que ela quer, e inconsciente, também, do que lhe fazem fazer. (FOUCAULT, 2003, p. 300)

As governamentalidades especista e carnista atuam sobre a população,

tanto no caso das campanhas como no caso das técnicas que conduzem a

população sem que ela se dê conta disso. O consumo do leite de vaca é um

exemplo que elucida estas duas situações. Em ambas, o ser humano pode

ignorar o autoquestionamento e o poder de se conduzir a si mesmo, surgindo a

importância da contraconduta.

O especismo e o carnismo também se enquadram na definição de

governamentalidade dada no ano de 1979 – forma por meio da qual se conduz a

conduta dos seres humanos – visto que eles agem por trás do incentivo ao

consumo de animais não humanos, conduzindo a população a ingerir enormes

quantidades de carne e produtos de origem animal. Entretanto, a constituição

biológica do ser humano é de um animal frugívoro – que se alimenta de frutas,

castanhas, legumes, grãos e tubérculos – e, apesar de consumir leite de vaca, ele

não é um bezerro e já passou da fase da amamentação (OBEROM, p. 43).

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Mas a ciência atual insiste em definir que a classificação alimentar do ser humano é a onívora. Simplesmente calcada num único ponto: nós, humanos, temos no sistema digestório uma substância chamada pepsina, capaz de digerir o colágeno encontrado nos tecidos animais. Isso não quer dizer que, quando não o ingerimos o organismo fica prejudicado – nós produzimos colágeno – mas por conseguirmos digeri-lo, alega-se que a carne é o alimento natural do homem. Porém, a pepsina não serve apenas para digerir colágeno, ela é a principal enzima para a digestão das proteínas, além do que bois e porcos também a têm. Assim, ignoramos todas as demais evidências para justificar fisiologicamente que nosso corpo foi preparado para digerir animais. Mesmo com todas as provas coletadas pela própria ciência de que alimentos de origem animal nos fazem mal. (Ibidem, p. 44)

Apesar disso, as governamentalidades especista e carnista insistem nas

campanhas e propagandas de condução da população ao consumo de leite de

vaca, com o principal pretexto de que, se ela deixar de fazer isso, sofrerá de

osteoporose. Assim, surge a racionalidade médica como um governo das

condutas da população a partir do biopoder, e como efeito, a produção de corpos

sujeitados produtores e reprodutores de políticas e discursos conformados a essa

racionalidade de gestão das vidas.

Além disso, as governamentalidades especista e carnista atuam por meio

de técnicas de condução da população, na medida em que a maioria dos seres

humanos, que talvez não optaram por conduzir suas vidas a partir do próprio

autoquestionamento, consome o leite de vaca sem ao menos se questionar se o

leite é da própria espécie. A indústria da criação intensiva de animais insiste nas

propagandas com animais felizes, com vacas exageradamente risonhas por nos

conceder sua carne e muito caridosas por nos doar seu leite, ainda que isso

implique em seu sofrimento, morte e no fato de que suas crias não serão

alimentadas por ele, uma vez que humanos e adultos o desejam ardentemente.

Esta indústria se esforça para que os humanos continuem a acreditar que existe

algum tipo de abate humanitário, ainda que o termo “humanitário” derive da

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palavra humano e que ninguém abateria um humano, ainda que

humanitariamente. Isso é típico das governamentalidades especista e carnista:

criar e aplicar condições para os animais não humanos que jamais aplicaria para

a própria espécie.

Em seguida, assim como no caso do especismo e do carnismo, a questão

dos interesses emerge na gestão da população.

O interesse, como consciência de cada um dos indivíduos constituindo a população, e o interesse como interesse da população, quaisquer que sejam os interesses e as aspirações individuais dos que a compõem, é isto que será o alvo e o instrumento fundamental do governo das populações (FOUCAULT, 2003, p. 300).

Portanto, podemos considerar que o especismo e o carnismo também

atuam a partir de certo regime de governamentalidade na medida em que ele

sobrepõe os interesses dos seres humanos sobre os não humanos. A criação

intensiva de animais não humanos para consumo humano implica na

desconsideração dos interesses dos animais.

Os discursos de combate à governamentalidade atual, de gestão e

condução das condutas são confrontados pelos movimentos de contraconduta

descritos a seguir.

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Movimentos de contraconduta

Michel Foucault, em seu curso Segurança, Território, População (1978),

discorre sobre o pastorado a fim de explicitar que não existe uma moral

propriamente judaico-cristã e que a relação entre religião e política nas

sociedades ocidentais da época não passavam pelo jogo entre Igreja e Estado,

mas sim pelo jogo entre pastorado e governo. Logo, o problema não seria o papa

ou o imperador em particular, mas sim a figura do ministro, que é uma espécie

de fusão entre papa e imperador e dispõe da relação entre religião e política a

partir do jogo entre pastorado e governo (FOUCAULT, 2008, p. 253).

O padre grego Gregório de Nazianzo denominou economia das almas

(oikonomía psykhôn) o conjunto de técnicas e procedimentos que constituíam o

pastorado. Com o advento do pastorado4, a noção aristotélica de economia, que

abrigava apenas a gestão particular da família (gestão dos bens; das riquezas; da

mulher; dos filhos; dos escravos), passa a abrigar toda a cristandade. Portanto, a

economia das almas é o conjunto de técnicas e procedimentos que atuam sobre a

comunidade cristã como um grupo e sobre cada cristão em particular. “Mudança

de dimensão, mudança de referências também, pois vai se tratar não apenas da

prosperidade e da riqueza da família ou da casa, mas da salvação das almas”

(Ibidem, p. 254).

Foucault comenta que economia não é a melhor palavra para traduzir a

oikonomía psykhôn, mas que a palavra conduta é interessante para tanto. Ela

possui dois significados: condução ou atividade que consiste em conduzir;

maneira como se deixa conduzir, como se é conduzido ou como se comporta

submetido a uma conduta. Assim, a noção de conduta é “...um dos elementos

fundamentais introduzidos pelo pastorado cristão na sociedade ocidental”

(Ibidem, p. 255).

4 Este conceito foi pormenorizado no item Governamentalidade desta dissertação.

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Após esclarecer a relação entre pastorado, economia das almas e conduta,

Foucault discorre sobre a crise do pastorado e como as questões do governo e da

governamentalidade foram colocadas diante do pastorado. Neste sentido, o autor

pesquisa resistências e movimentos de ataque e contra-ataque que brotaram no

campo do pastorado. Em suma, o poder pastoral tem por objetivo a conduta dos

humanos; e, avessos à conduta imposta, brotam movimentos caracterizados por

insubmissões, resistências e revoltas de conduta.

São movimentos que têm como objetivo outra conduta, isto é: querer ser conduzido de outro modo, por outros condutores e por outros pastores, para outros objetivos e para outras formas de salvação, por meio de outros procedimentos e de outros métodos. São movimentos que também procuram, eventualmente em todo caso, escapar da conduta dos outros, que procuram definir para cada um a maneira de se conduzir (Ibidem, p. 257).

De fato, existe uma conexão inerente entre a conduta e a contraconduta,

mas talvez não se possa supor que o pastorado antecedeu as revoltas de conduta,

pois isso seria retomar os fenômenos negativa ou reativamente. O pastorado

mesmo foi constituído contra uma desordem dos movimentos religiosos do

Oriente Médio entre os séculos II e IV. “Tudo o que se pode chamar

retrospectivamente de desordem, foi contra isso que o pastorado cristão, no

Oriente e no Ocidente, se desenvolveu” (Ibidem, p. 258).

As revoltas de conduta diferem das revoltas econômicas e políticas na

forma e no objetivo: diferem das revoltas políticas uma vez que o poder exerce

uma soberania e, das revoltas econômicas na medida em que o poder garante

uma exploração. Apesar desta diferença, as revoltas de conduta nunca são

autônomas, mas são vinculadas à outros conflitos. Na Idade Média, elas estavam

ligadas à: brigas entre burguesia e feudalismo; distanciamento entre economia

urbana e rural; estatuto das mulheres; desnivelamento cultural. As revoltas de

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conduta giram em torno da seguinte questão: “Por quem aceitamos ser

conduzidos? Como queremos ser conduzidos? Em direção ao que queremos ser

conduzidos?” (Ibidem, p. 260).

Até o fim do século XVII, as revoltas de conduta religiosas estavam

conectadas ao pastorado e, a partir do século XVIII, as revoltas de conduta

adquirem uma nova forma e diminuem de quantidade e intensidade. Nesta

época, o poder pastoral foi retomado mediante técnicas de governamentalidade,

uma vez que o governo era encarregado da conduta dos humanos. Logo, as

revoltas de conduta não estavam mais conectadas somente à instituição religiosa

do pastorado, mas também à instituição política (Ibidem, p. 261).

Três possíveis resistências de conduta da instituição política são: recusa

de fazer guerra; sociedades secretas; recusa da medicina. Ser soldado e fazer

guerra era uma profissão relativamente voluntária, o que propiciava deserções,

recusas e resistências por parte dos que eram convocados pelo recrutamento

militar. Entretanto, quando fazer guerra passou a ser uma conduta política e

moral e uma ética do bom cidadão que se sacrifica em prol da salvação comum

sob a direção de uma autoridade pública, a recusa a fazer guerra passou a ser

uma contraconduta.

... essa recusa a empunhar as armas aparece como uma conduta ou uma contraconduta moral, como uma recusa da educação cívica, como uma recusa dos valores apresentados pela sociedade, como uma recusa, igualmente, de certa relação considerada obrigatória com a nação e com a salvação da nação, como certa recusa do sistema político efetivo dessa nação, como uma recusa da relação com a morte dos outros ou da relação com sua própria morte (Ibidem, p. 261 – 262).

A franco-maçonaria é um exemplo das sociedades secretas que foram

criadas, a partir do século XVIII, ligadas à discordância religiosa. “Elas têm [...]

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seus dogmas, seus ritos, sua hierarquia, suas posturas, cerimonias, sua forma de

comunidade” (Ibidem, p. 262). A partir do século XIX, estas sociedades

adquirem um caráter político, movimentando revoluções políticas e sociais a fim

de alcançarem uma nova conduta, “...ser conduzido de outro modo, por outros

homens, na direção de outros objetivos que não o proposto pela

governamentalidade oficial, aparente e visível na sociedade” (Ibidem). Portanto,

a clandestinidade é um pré-requisito deste ato político, que é uma outra conduta

frente à conduta governamental e que conta com outras autoridades e formas de

obediência.

Nas sociedades contemporâneas, existem duas espécies de partidos

políticos: os que são meios para o exercício do poder e têm acesso à funções e

responsabilidades; os que deixaram de ser clandestinos e têm seu nome ligado

ao antigo projeto de criar uma nova ordem social, ainda que este projeto tenha

sido abandonado. Sobre a segunda espécie de partido político:

E, por conseguinte, ele tem necessariamente de funcionar, até certo ponto, como uma contra-sociedade, uma outra sociedade, mesmo que não faça mais que reproduzir a que existe; e, por conseguinte, ele se apresenta, ele funciona internamente como uma espécie de outro pastorado, de outra governamentalidade, com seus líderes, suas regras, sua moral, seus princípios de obediência, e, nessa medida, ele detém [...] uma enorme força para se apresentar ao mesmo tempo como uma outra sociedade, uma outra forma de conduta, e para canalizar as revoltas de conduta, para tomar o lugar delas e dirigi-las (Ibidem, p. 263).

A recusa da medicina que começou no século XVIII também caracteriza

uma revolta de conduta:

... que vai [da] recusa de certas medicações, de certas prevenções, como a vacinação, à recusa de certo tipo de racionalidade médica: o esforço para constituir espécies de

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heresias médicas em torno de práticas de medicação que utilizam a eletricidade, o magnetismo, as ervas, a medicina tradicional; [a] recusa da medicina, pura e simplesmente, tão frequente em certo número de grupos religiosos (Ibidem).

Por fim, Foucault coloca um problema de vocabulário quanto às palavras

recusa, revolta e resistência, considerando que a teia de resistências tratadas

acima não são avessas ao poder que exerce soberania ou explora, mas sim ao

poder que conduz. Por isso, ele sugere a palavra contraconduta, que remete

diretamente à palavra conduta e comporta as resistências às técnicas de

condução dos humanos.

O conceito de contraconduta cunhado por Foucault servirá como

referência para analisar as categorias dos vegetarianismos a seguir.

Vegetarianismos não vegetarianos

O termo vegetarianismo foi disseminado após a criação da Sociedade

Vegetariana em 1847 no Reino Unido. A Sociedade permitia que seus membros

consumissem produtos de origem animal – como leite e ovos –, embora

proibisse o consumo de carnes. Assim, o vegetarianismo tradicional ficou

conhecido por incluir os produtos de origem animal na dieta, ainda que a

epistemologia da palavra vegetarianismo pressuponha apenas o consumo de

alimentos de origem vegetal. Existem três classificações destes vegetarianismos

não vegetarianos: ovolactovegetarianismo; lactovegetarianismo e

ovovegetarianismo.

O ovolactovegetarianismo é uma dieta em que o ser humano não consome

de nenhuma carne, mas sim alimentos de origem animal – como leite e ovos,

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bem como os produtos deles oriundos. O lactovegetarianismo, por sua vez, é

uma dieta em que o ser humano não se alimenta de nenhuma carne ou ovos, mas

consome leite e seus derivados. O ovovegetarianismo, por fim, é uma dieta em

que o ser humano não se alimenta de nenhuma carne ou leite, mas consome ovos

e seus derivados.

O ovolactovegetarianismo, o lactovegetarianismo e o ovovegetarianismo

possuem um aspecto em comum: a exclusão da carne da dieta. Existem diversos

argumentos legitimadores desta exclusão, desde a religião até o simples cuidado

para com a vida dos animais. O Hinduísmo – terceira religião com mais adeptos

no mundo, depois do Cristianismo e Islamismo – pede por uma dieta

lactovegetariana e o Adventismo do Sétimo Dia, por uma ovolactovegetariana.

O Hinduísmo é uma religião baseada em quatro livros sagrados

denominados Vedas e recomenda a seus adeptos a dieta lactovegetariana. O

Hinduísmo pede por zelo em relação aos animais não humanos, particularmente

em relação à vaca. A vaca é um tipo de mãe que amamenta o povo: bebem seu

leite e dele fazem queijo, iogurte, manteiga e ghee. Suas fezes são fertilizantes

para o solo do qual brotarão outros alimentos, combustível para o fogo e

matéria-prima para incensos. Para os indianos rurais que viviam às margens do

Rio Ganges antes mesmo da consolidação do Hinduísmo, a vaca era sinônimo

de sobrevivência. A relação próxima que estes seres humanos mantinham com a

vaca os fez perceber suas virtudes e, por isso, fizeram dela um ser sagrado.

O carinho entre os seres humanos e as vacas foi estendido aos outros

animais. Assim, o crime mais grave da cultura védica seria roubar a vida de um

animal. O Hinduísmo prevê alguns yajnas – rituais diários que têm por objetivo

manter a compaixão acesa no coração do devoto. O Bhuta Yajna é um ritual no

qual o hindu prepara uma oferenda de alimento ao reino animal a fim de reforçar

o dever de cuidado para com os mais fracos, sobretudo os animais não humanos.

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O Yoga, apesar de não ser uma religião, também pede por uma dieta

lactovegetariana. Ele prevê regras de conduta denominadas yamas e niyamas,

que orientam o modo como o praticante deve se relacionar com os outros e

consigo mesmo. O yama mitahara versa especificamente sobre a alimentação do

praticante de Yoga, que deve ser lactovegetariana, a fim de não provocar

sofrimento aos animais de qualquer espécie.

Nos escritos de Svatmarama encontramos os yamas da seguinte forma: ahimsa, não violência; satya, veracidade; asteya, não roubar; brahmacharya, continência; kshama, paciência; dhrti, perseverança; daya, compaixão; arjava, retidão; mitahara, dieta vegetariana moderada e saucha, pureza. Nos niyamas encontramos: tapas, autossuperação; santosha, contentamento; astikya, confiança; dana, caridade; ishvarapujana, entrega e devoção a Deus; siddhantashravana, ouvir os ensinamentos espirituais; hri, humildade ou modéstia; mati, inteligência ou vontade espiritual; japa, meditação em um mantra; e hutam, autossacrifício (OBEROM, p. 148).

Além disso, o Yoga descreve três espécies de energia que estão presentes

no universo, bem como nos alimentos. “São elas: sattva, o princípio da bondade,

do equilíbrio, luz e leveza; rajas, o princípio da paixão, do dinamismo, da

instabilidade; tamas, o princípio da ignorância, da inércia e da obscuridade”

(Ibidem, p. 146). O praticante de Yoga, por sua vez, deve consumir os alimentos

de qualidade sattva, que contêm a energia da vida e trazem felicidade, tais como

frutas e verduras frescas e oleaginosas. Os alimentos da qualidade rajas e tamas

devem ser evitados pelo praticante. Rajas representa os alimentos ácidos,

picantes e salgados e são tidos como causadores de doenças e agitação. Tamas

representa os alimentos mantidos em conserva, velhos e estragados, tais como

carnes, que contêm a energia da morte e do medo e trazem preguiça.

A Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) recomenda a seus adeptos a

dieta ovolactovegetariana, com predominância de alimentos de origem vegetal.

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O Ministério da Saúde da Igreja Adventista do Sétimo dia pede que os alimentos

consumidos pelos devotos enquadrem-se em três pressupostos: sejam saudáveis,

saborosos e atraentes. A alimentação ovolactovegetariana é considerada a mais

saudável para o corpo humano – templo do Espírito Santo.

O livro Conselhos Sobre Regime Alimentar da IASD reúne argumentos a

favor de uma dieta simples e saudável e contra o consumo de carne. A dieta

baseada em carne seria um pecado, considerando que Deus proíbe o humano de

roubar a vida de outras criaturas. Assim, a fim de purificar a humanidade de sua

mácula vinculada ao consumo de carne, Deus provocou o dilúvio. A única

situação em que Deus permitiu que o humano comesse animais foi depois do

dilúvio, quando todos os alimentos vegetais foram destruídos, e ele autorizou

que Noé comesse os animais mais limpos que levou em sua arca. Entretanto, os

humanos continuaram consumindo carne: “E permitiu Ele que aquela raça de

gente longeva comesse alimento animal, a fim de abreviar sua vida pecaminosa.

Logo após o dilúvio o gênero humano começou a decrescer rapidamente em

tamanho, e na extensão dos anos” (WHITE, 2007, p. 317).

A IASD considera o sofrimento pelo qual os animais não humanos

passam na criação intensiva. Eles são retirados de seus ambientes naturais e,

consequentemente, privados de luz, ar puro, água e alimentos frescos. Depois,

são presos em ambientes superlotados e sujos até o dia em que serão

transportados ao matadouro. Os animais – enfermos e exaustos – são torturados

e mortos.

Alguns animais levados ao matadouro parecem entender, pelo instinto, o que vai acontecer, e tornam-se furiosos, literalmente loucos. São mortos enquanto se acham nesse estado, e sua carne é preparada para o mercado. [...] Seu sangue acha-se altamente inflamado, e os que se alimentam de sua carne, ingerem veneno (Ibidem, p. 329).

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Uma profecia da IASD, datada de 1899, ditou que os humanos

abandonariam o consumo de alimentos animais – desde a carne até o leite –,

considerando o aumento das enfermidades disseminadas entre os animais. A

IASD defende que o consumo de carne de animais enfermos corrompe o

organismo humano, aumentando doenças da humanidade – como os tumores – e

diminuindo a clareza mental. Além disso, a carne seria um estimulante às

paixões humanas inferiores, tornando o sangue febril e os nervos irritados. Por

isso, alguns sentiriam fraqueza ao abandonar o consumo de carne, e não por ser

um elemento essencial à uma boa saúde.

Em suma, a IASD recomenda uma dieta ovolactovegetariana como uma

forma de se afastar do pecado e retornar à dieta original. O abandono do

consumo de carne facilitaria a manutenção da sanidade física e mental dos seres

humanos e, partindo do pressuposto de que o estado mental do humano está

relacionado à saúde física – em especial dos órgãos digestivos –, a dieta

ovolactovegetariana seria a mais correta. A abundância de frutas da qual os

humanos podem usufruir os manteria saudáveis e longe das possíveis doenças

que provém do consumo de carne de animais enfermos. A dieta original é

baseada em produtos naturais da terra: “Verduras, frutas e cereais devem

constituir nosso regime. Nem um grama de carne deve entrar em nosso

estômago. O comer carne não é natural. Devemos voltar ao desígnio original de

Deus ao criar o homem” (Ibidem, p. 324).

Veganismo

O termo veganismo surgiu a partir da tradução do inglês da palavra vegan,

criada pela The Vegan Society em 1944 no Reino Unido. O veganismo baseia-se

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na ética, na justiça e na compaixão e tem por objetivo findar o sofrimento

animal, por meio da sabotagem de qualquer atividade, produto ou alimento que

envolva o sofrimento ou a morte dos animais, independentemente da espécie.

Ele é uma prática universal baseada em princípios éticos e pode ser praticada

por qualquer pessoa, independentemente de gênero, religião ou cultura.

(OBEROM, 2015, p. 33 – 34)

O veganismo enquadra-se no vegetarianismo estrito, alimentação que

exclui carnes, ovos, laticínios e derivados, bem como qualquer outro alimento

de origem animal, tais como mel e corantes. Entretanto, o veganismo vai além

da alimentação e se estende à sabotagem de qualquer atividade ou produto que

envolva o sofrimento ou a morte de animais, conforme mencionado

anteriormente. Portanto, o veganismo pressupõe a sabotagem ao consumo de

objetos compostos por couro, pele e lã, bem como produtos testados em

animais; à atividades que envolvam sofrimento e morte dos animais, tais como

circo, farra do boi, rodeio, tourada e zoológico; à compra de animais de

estimação, sejam domesticados ou silvestres. “Não existe ‘ser vegano’ pela

saúde, reduzindo-o a uma dieta, o veganismo busca antes de qualquer coisa a

libertação animal. E esta não é uma consequência de uma opção mais sadia ao

corpo” (Ibidem, p. 34). Assim, o veganismo enquadra-se no abolicionismo

animal, que diz respeito à sabotagem de qualquer prática que envolva o uso de

animais não humanos para fins humanos.5

A sabotagem ao consumo de produtos testados em animais tem por

objetivo que as empresas adotem testes que não envolvam animais. Enquanto os

humanos continuarem comprando os produtos testados em animais, as empresas

continuarão os usando para os testes.

5 Eu me baseio exclusivamente nos estudos de Sônia Felipe no que diz respeito às práticas de resistência do veganismo enquanto abolicionismo animal devido a autora ser a maior referência dos estudos sobre veganismo no Brasil.

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Se abolirmos o consumo de cosméticos testados em animais, as empresas logo adotarão testagens não animalizadas para cada um desses produtos: Mas, enquanto houver consumidora comprando inconscientemente tudo isso, as empresas continuarão a fazer corpo mole na busca de métodos substitutivos ao uso de animais para testagens desses produtos. Pare a compra. As empresas se moverão. Continue comprando. As empresas se acomodarão (FELIPE, 2014, p. 138).

Uma alternativa aos testes em animais seria que eles fossem feitos em

pessoa por pessoa e que cada loja possuísse uma amostra de cada um de seus

produtos à disposição para teste. Assim, nenhum animal teria sua vida e sua

liberdade restringidas em laboratórios e caso alguém tivesse uma reação alérgica

devido a algum produto, apenas não o compraria (Ibidem, p. 137). Além de que,

as chances de reação alérgica destes produtos são grandes pois são usadas

substâncias tóxicas, as quais seriam diminuídas caso as empresas usassem

matérias-primas orgânicas.

A sabotagem é uma prática central no abolicionismo animal e no

veganismo. Assim como no caso da sabotagem do consumo produtos testados

em animais, a sabotagem ao consumo de alimentos de origem animal almeja

findar este comércio. A sabotagem ao consumo de produtos compostos por

couro, pele e lã, às atividades como circo, farra do boi, rodeio, tourada e

zoológico e à compra de animais também almejam findar qualquer sofrimento

animal.

O bem-estarismo animal, por sua vez, diz respeito ao uso de animais não

humanos para fins humanos com a aparência de que o bem-estar deles é mantido

durante o processo. Entretanto, ele não é uma defesa verdadeira dos interesses

dos animais, mas sim um pretexto para que os humanos defendam seus próprios

interesses. A defesa verdadeira dos interesses animais está vinculada ao

abolicionismo animal, que pede pelo fim dos privilégios que têm às custas do

sofrimento animal e da supressão de seus interesses. Observar a experiência dos

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animais na matança é o suficiente para admitir que o bem-estarismo animal é

hipócrita (Ibidem, p. 133).

Os animais não humanos não esperam o amor dos humanos, mas sim

respeito, para que possam viver suas vidas em liberdade. O respeito seria um ato

de continência do que se pode e se tem força para fazer e, no caso dos animais

não humanos, respeita-los seria se conter de roubar-lhes a vida ou a liberdade.

Assim, não importa se amamos ou não os animais não humanos, mas basta que

respeitemos suas vidas (Ibidem, p. 134).

Ainda que os produtos com selo de sem crueldade ou cruelty free pareçam

veganos ou abolicionistas, eles são bem-estaristas e podem conter derivados

animais, bem como podem ser testados em animais. O termo crueldade esconde

uma perspicácia, pois ele diz respeito ao prazer em causar dor a qualquer animal

e não ao sofrimento do animal. Logo, quase todos os produtos de origem animal

ou testados em animais são produzidos sem crueldade, pois o termo não está

vinculado ao animal vítima do sofrimento, mas sim ao ser humano causador do

sofrimento. Sem crueldade humana não é sinônimo de sem sofrimento animal.

Portanto, os selos não deveriam informar se o produto é sem crueldade ou não,

pois é uma informação vazia que pode confundir os consumidores, mas sim

informar se o produto é vegano (Ibidem, p. 149).

Em suma, o veganismo pode ser enquadrado em um movimento de

contraconduta, pois, assim como as revoltas de conduta, ele difere das revoltas

políticas e econômicas, considerando que não tem por objetivo resistir à

soberania ou à exploração, mas apenas estabelecer uma nova forma de

condução. Alinhado às sociedades secretas criadas no século XVIII, ele é um

movimento clandestino que confronta a governamentalidade oficial que legaliza

práticas antropocêntricas, especistas e carnistas: direitos aos humanos e proteção

aos não humanos.

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O ordenamento jurídico brasileiro equipara as crianças e os animais não

humanos, considerando que ambos estão na posição de vulneráveis. Contudo,

esta equiparação implica que os animais sejam tutelados sob uma proteção,

ainda que seja impossível garantir a proteção de todos os animais contra a

violência humana. O rebaixamento dos animais não humanos perante os não

humanos é aliado à uma espécie de somatofobia – agressão doméstica à

crianças, idosos, mulheres, seres humanos doentes e animais não humanos.

Há que criar práticas institucionais de responsabilização da pessoa pelas agressões que pratica, não porque há quem tutele os animais e se sinta magoado com o sofrimento causado a eles, mas porque ninguém tem o direito de tirar deles o bem que é próprio deles, muito menos a vida que é deles só. (FELIPE, 2014, p. 154).

Assim como as veganas que são contra a escravidão dos animais, as que

eram contra a escravidão dos africanos na América foram chamadas de

contrárias à corrente e agressivas. “Todo mundo quer ficar no conformo e bem-

estarismo dessa dieta imposta como saudável, pois isso interessa realmente às

vendas de carne, leite e ovos e seus derivados. Os animais estão, há séculos,

sofrendo o abate” (Ibidem, p. 108). As que eram contra a escravidão dos

africanos também incomodaram os senhores e outros humanos que viviam no

bem-estar de ter escravos que realizavam todos os tipos de trabalhos domésticos

e comerciais.

A escravização dos africanos foi abolida em 1888. De lá para cá, começamos uma nova etapa, a da abolição do direito humano de escravizar animais. Passamos pelas mesmas experiências morais e emocionais pelas quais passaram os abolicionistas que nos antecederam e lutaram pelos afrodescendentes escravizados. Somos acusados de andar contra o progresso, de seguir contra a corrente. Somos acuados de andar contra o progresso, de seguir

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contra a corrente. Não queremos progresso a não ser o que resultar do nosso esforço. E, com certeza, não seguimos mesmo a correnteza, pois ela arrasta para a morte bilhões de animais para consumo humano (Ibidem, p. 109).

Existem cinco práticas principais de resistência relacionadas ao

veganismo: objeção de consciência, desobediência civil, boicote ativo ou ação

direta, boicote passivo e freeganismo.

Objeção de consciência

A objeção de consciência é um direito individual previsto no Artigo 5o,

inciso VIII, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “Ninguém será

privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou

política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e

recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.”. De acordo com esta

reserva legal, o cidadão brasileiro tem suas expressões culturais, filosóficas,

políticas e religiosas protegidas quando “... chocam com os conceitos gerais do

mercado, supostamente compartilhados por todas as pessoas, quando, de fato,

não o são” (FELIPE, 2014, p. 110).

A partir da objeção de consciência, uma vegana pode, por exemplo, se

isentar de aulas de vivissecção em cursos universitários. Mas, até que ponto a

objeção de consciência se enquadra num movimento de contraconduta uma vez

que ela traça uma aliança com a governamentalidade oficial se valendo de uma

reserva legal? Ela não é uma contraconduta: não tem por objetivo alcançar uma

outra conduta, ser conduzida de outra forma, por outras pessoas, em direção à

outros objetivos que não os da governamentalidade oficial; ela não é

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clandestina, mas compõe com a conduta governamental e é capturada pelos

dispositivos das relações de poder.

Desobediência civil

A desobediência civil diz respeito à recusa de cumprir um dever legal que

todas as pessoas cumprem, não para benefício pessoal como no caso da objeção

da consciência, mas para benefício do grupo de pessoas que é alvo de uma lei.

Assim, a desobediência civil tem por objetivo informar a sociedade que uma

prática tida como legal fere os princípios constitucionais. Porém, ela deve ser

praticada por alguém respeitado pela sociedade, considerando que a pessoa pode

ser presa por descumprir a lei e precisaria do apoio de um grande número de

pessoas para pressionar o Estado a fim de ser solta.

A desobediência civil deve vir acompanhada de outros atos de esclarecimento e educação, todos assegurados como direito pela Constituição, atos esses que devem dar visibilidade à injustiça em questão e mobilizar a sociedade para o debate e a revisão de tal prática discriminatória e injusta até que ela seja abolida. Pode levar décadas até as desobediências civis surtirem o efeito desejado (Ibidem, p. 113).

O primeiro caso conhecido de desobediência civil foi praticado por Henry

David Thoreau (1817 – 1862). Thoreau se recusou a pagar os impostos norte-

americanos, considerando que eles bancavam a escravidão nos EUA e, ainda

que a Bill of Rights decretasse que todos os homens eram iguais, os negros não

eram considerados da espécie humana. Thoreau foi preso, mas era um autor

respeitado que tinha amigos importantes e logo foi solto.

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Uma vegana pode usar da desobediência civil para informar que, por

exemplo:

... o desmatamento de uma área de preservação para cultivo de grãos e cereais para sustentar animais que serão mortos para consumo humano, não combina com o restante dos princípios apregoados pela Constituição democrática, de defesa tanto dos animais quanto dos ecossistemas naturais. (Ibidem, p. 110)

A desobediência civil se enquadra num movimento de contraconduta

quanto à sua forma, mas não quanto ao seu objetivo. A desobediência civil é

uma contraconduta quanto à sua forma uma vez que ela diz respeito à recusa de

cumprir um dever legal, rompendo com a governamentalidade oficial e

compondo um tom clandestino. Entretanto, na medida em que ela tem por

objetivo informar que uma prática legal fere os princípios constitucionais a fim

de que a legislação em vigor seja reformulada, ela compõe com a conduta

governamental e também é capturada pelos dispositivos de poder.

Boicote ativo ou ação direta

O boicote ativo ou a ação direta, assim como a desobediência civil, tem

por objetivo conscientizar a sociedade de que uma prática tida como legal fere

os princípios constitucionais. Entretanto, a ação direta não tem por objetivo

abolir a prática totalmente, considerando que a atividade que é alvo dela é

institucionalizada pela sociedade em questão, mas sim acabar com uma prática

pontualmente. Ela apenas acaba com uma prática naquele espaço e naquele

tempo em que acontecem, e não com todas as práticas similares que

acontecerem em outro espaço-tempo.

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Por exemplo, pessoas que optam pela ação direta invadem matadouros

para resgatar os animais que seriam mortos; fábricas de couro, pele e lã para

resgatar os animais que teriam seus órgãos roubados; laboratórios para resgatar

os animais que seriam submetidos à testes; farras do boi, rodeios e touradas para

resgatar os animais que seriam torturados e mortos; circos e zoológicos para

resgatar os animais que seriam aprisionados; locais de reprodução de animais,

como canis, para resgatas as cadelas que seriam engravidadas ininterruptamente.

São duas as principais consequências da ação direta, resgate daqueles

animais e midiatização da intervenção:

Quem antes nunca havia pensado no assunto, agora pensa. Ou critica, ou apoia. Esse é o resultado mais palpável da ação direta. Esse é o poder dela. Se a grande imprensa se mostra indiferente a determinado assunto, se é imprensa chapa branca, só divulgando a mesmice que não interessa, a não ser a quem obtém lucros com a inércia moral da sociedade de consumo, uma Ação Direta dá uma chacoalhada na desatenção jornalística para com os problemas éticos do nosso tempo. E se ela não carreia violência, pouco a pouco o tema que ela põe na pauta de discussões passa a ser tratado com seriedade. Então, sim, se pode começar a construir um novo modo de ver aquele conceito, e a prática institucional terá que ser revista e abolida (Ibidem, p. 115).

Algumas das práticas foram abolidas em decorrência da ação direta

dirigida por animalistas: fabricação e consumo de produtos feitos a partir do

marfim – substância presente nas presas de elefantes que são assassinados para

sua extração – na Bélgica em 2014 e caça de baleias no Japão também em 2014

(Ibidem, p. 114 – 115).

O boicote ativo se enquadra em um movimento de contraconduta uma vez

que ele é baseado no resgate de animais que seriam torturados ou mortos,

acabando com aquela prática naquele espaço-tempo. O boicote ativo é

clandestino e rompe com a governamentalidade oficial. Entretanto, se um dos

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objetivos dele for a midiatização do acontecido conforme o que aponta Sônia

Felipe, ele deixa de ser uma contraconduta, pois passa a compor com um tipo

dominante. Mas a questão principal seria a falta de uma análise das mídias na

sociedade atual e das relações de poder que atravessam os meios de

comunicação.

Boicote passivo

O boicote passivo consiste na recusa de consumir algo que é fruto de uma

maneira de produção da qual se discorda. “Mas o boicote pouco mexe com o

sistema que institucionaliza tais práticas, a menos que ele seja uma ação

coletiva. Daí, sim, tem uma força descomunal, porque parando o consumo, para

a matança” (Ibidem, p. 114).

Uma vegana que opta pelo boicote passivo não come carnes, ovos,

laticínios, mel, corantes ou outros produtos de origem animal, pois discorda do

aprisionamento, da exploração e da matança de animais para suprir interesses

humanos; não compra produtos compostos por couro, pele e lã, pois discorda de

que animais tenham suas peles e pelos arrancadas enquanto estão vivos; não

compra produtos testados em animais, pois discorda de que animais sejam

aprisionados e torturados para analisar a reação substâncias tóxicas em seus

corpos; não vai ao circo, rodeio, zoológico, à farra do boi e tourada, pois

discorda de entretenimentos sádicos em que as pessoas sentem prazer por

assistir à tortura e morte de animais; não compra animais de estimação, pois

discorda da comercialização de vidas. Além disso, também discorda das

explorações do meio ambiente feita a partir da criação de animais não humanos

para consumo humano e dos trabalhadores dos matadouros.

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O boicote passivo, assim como o boicote ativo, se enquadra em um

movimento de contraconduta na medida em que ele é fundamentado na recusa

de consumir qualquer produto material ou imaterial que envolva o sofrimento e

a morte de animais não humanos. O boicote passivo é clandestino: rompe com a

condução da governamentalidade oficial, antropocêntrica, especista e carnista.

Ele é um chamado à outra forma de condução da vida e composição com os

animais.

Freeganismo

O termo freegan surgiu a partir da composição entre as palavras free –

livre ou gratuito – e vegan. Os freegans reconhecem que toda produção baseada

na lógica capitalista, tanto de produtos animais como vegetais, está relacionada à

exploração de animais humanos, não humanos, da água e da terra. Por isso, além

de não consumirem nenhum produto que envolva o sofrimento e a morte de

animais não humanos diretamente, eles evitam ao máximo qualquer tipo de

consumo que seja.

O freeganismo traça alianças com uma espécie de anarco-primitivismo

que defende o fim do industrialismo e o retorno à ecologia profunda. Na prática,

os freegans vivem a partir do desperdício alimentar das pessoas, compondo uma

existência marginal que tem por objetivo a independência dos meios de

produção dominantes. Eles recuperam alimentos do lixo ou compram alimentos

que seriam descartados por feiras e mercados por preços mínimos.

O reaproveitamento de alimentos e objetos descartados no lixo seria a curto prazo a melhor forma de combater o desperdício gerado pelos padrões de alta rotatividade de mercadorias da

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sociedade de consumo. No entanto, o modelo de subsistência prezado pelo movimento a longo prazo não é o de simples “coletor”, mas o de “produtor” de seus próprios meios de sobrevivência (LINHARES, 2009, p. 10).

Talvez o freeganismo seja a resistência que mais se aproxima de um

movimento de contraconduta, em relação às outras formas de boicote que mencionei

previamente. Romper apenas com a lógica de produção capitalista no que tange a

exploração da vida dos animais não humanos não é o suficiente: é preciso romper com

toda a lógica capitalista, que suga as potências de vida para obtenção de lucro a

qualquer custo. O freeganismo tem por objetivo uma outra forma de condução da

existência, clandestina e às margens da sociedade de consumo. Ele rompe com as

governamentalidades antropocêntrica, especista, carnista e com o próprio Estado

capitalista.

Vegetarianismos crus

Existem três classificações dos vegetarianismos crus: o crudivorismo, o

frugivorismo e o frutarianismo. O crudivorismo é uma dieta em que o ser

humano consome somente alimentos crus, sejam eles de origem vegetal ou de

origem animal. Os crudivoristas defendem que consumir alimentos crus faz

parte da natureza alimentar humana, e por isso exclui qualquer alimento alterado

quimicamente mediante o cozimento. Quanto maior a temperatura e maior o

tempo em que se cozinha um alimento, menos nutritivo ele seria. Eduardo

Corassa – precursor do crudivorismo no Brasil – comenta: “Alguém consegue

imaginar que queimar um alimento cru, o qual é o produto final da natureza

pode melhorar ou produzir algo mais nutritivo? Será que podemos ou

deveríamos melhorar a criação da natureza?” (CORASSA, 2012, p. 37).

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Os crudivoristas também argumentam que o cozimento é um processo

recente na história humana, considerando que a espécie humana habita a Terra

entre seis e oito milhões de anos e cozinha o alimento há dez mil anos.6 O

cozimento da maior parte dos alimentos consumidos pelo humano foi

intensificada pela teoria dos germes criada pelo químico francês Louis Pasteur

em 1878. A teoria dos germes alegava que germes e bactérias eram os maiores

causadores das doenças humanas e, portanto, todos os alimentos deveriam ser

cozidos. Contudo, os crudivoristas defendem que o cozimento está relacionado

às enfermidades humanas:

O animal selvagem vive durante toda sua vida com alimentos crus. E verificamos que apenas animais domesticados pelo homem, com vidas semelhantes a dos donos, sedentárias e com comida cozida, sofrem das mesmas doenças degenerativas que o homem moderno (Ibidem, p. 38).

O frugivorismo é uma dieta em que o ser humano consome somente frutas

e vegetais, sejam crus ou cozidos, embora o mais comum seja consumi-los crus.

O frutarianismo, por fim, é uma dieta em que o ser humano consome

somente frutas, ainda que não exista nenhuma espécie do reino animal que

sobreviva apenas de frutas. Os frutarianos optam por não comer vegetais que

foram colhidos a fim de não causar dor ou morte à planta e por não comer

sementes e nozes a fim de não cessar a potência de vida de uma futura árvore.

A Terapia Gerson é um método de prevenção e tratamento de doenças

crônicas e terminais que se enquadra no vegetarianismo estrito cru. Ela foi

sistematizada pelo médico alemão e judeu Max Gerson como uma recusa à

6 Apesar do discurso crudivorista estar baseado na ideia de que os humanos cozinham seus alimentos há apenas dez mil anos, um estudo de Francesco Berna, publicado no Departamento de Arqueologia da Universidade de Boston, apresentou evidências do uso de fogo há cerca de um milhão de anos na caverna de Wonderwerk na provincial do Cabo na África do Sul (MURRIETA; NEVES; RANGEL, 2015, p. 187).

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medicina tradicional ligada à vacinas e antibióticos. A Terapia é baseada em

desintoxicação, nutrição e suplementação mediante um enorme consumo diário

de vegetais crus, com o objetivo de dar espaço para que os mecanismos de cura

do próprio corpo atuem. Entretanto, a Terapia recusa tratamentos como

quimioterapia e radioterapia e é desprestigiada pela racionalidade médica

dominante, e Max Gerson foi expulso da Alemanha e dos EUA.

Os vegetarianismos crus, alinhados ao veganismo, são considerados

movimentos de contraconduta, pois visam uma nova forma de condução em

relação à alimentação. A Terapia Gerson, enquanto recusa à medicina

tradicional e ao uso de vacinas, antibióticos, quimioterapia e radioterapia no

tratamento de doentes, também é uma forma de contraconduta, se aproximando

da recusa da medicina do início do século XVIII.

* * *

Na análise de Foucault acerca dos movimentos de contraconduta, não

cabia um juízo sobre a conduta ética e as escolhas desses movimentos nas suas

resistências ao poder pastoral sobre o corpo de seus fiéis. Os movimentos de

contraconduta dos vegetarianismos resistem à governamentalidade, aos

dispositivos de governo sobre a conduta da população, sua vida, saúde,

alimentação, etc. Eles também impactaram as relações de poder econômicas da

sociedade capitalista baseadas no agronegócio. Argumentos de saúde, direitos

dos animais, defesa do meio ambiente e questionamento do antropocentrismo

são algumas das linhas de contracondutas às governamentalidades pública e

privada.

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Tipologia

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Por um vegetarianismo fora do eixo

Um vegetarianismo fora do eixo talvez seja apenas uma reflexão baseada

no fato de que as multiplicidades de vegetarianismos descritos no movimento

anterior da pesquisa talvez não sejam o suficiente para responder à pergunta “o

que podemos fazer?”. Qualquer movimento de contraconduta que possua uma

identidade muito marcada será mais facilmente capturado pelo mercado. Um

vegetarianismo fora do eixo vai além do decrescimento apenas dos produtos de

origem animal em direção ao boicote da produção capitalista como um todo.

Se estamos em suspenso, alguns já estão engajados em experimentações que buscam criar, a partir de agora, a possibilidade de um futuro que não seja bárbaro – aqueles e aquelas que optaram por desertar, por fugir dessa “guerra suja” econômica, mas que, “fugindo, procuraram uma arma”, como dizia Gilles Deleuze. E, aqui, “procurar” quer dizer, antes de tudo criar, criar uma vida “depois do crescimento econômico”, uma vida que explora conexões com novas potências de agir, sentir, imaginar e pensar. Estes já escolheram modificar sua maneira, de viver, efetiva mas também politicamente: eles não agem em nome de uma preocupação culpada por “sua pegada ecológica”, mas experimentam o que significada trair o papel de consumidores confiante que nos é atribuído. Ou seja, o que significa entrar em guerra contra o que atribui esse papel e aprender, concretamente, a reinventar modos de produção e de cooperação que escapem às evidências do crescimento e da competição (STENGERS, 2015, p. 14 – 15).

O movimento slow food7, a permacultura8, a agrofloresta9 e as redes de

reabilitação e troca de sementes tradicionais também são uma forma de resistir

7 O slow food diz respeito a um movimento que preza pelo tempo para saborear os alimentos com calma, além da busca de produtos artesanais que respeitem tanto o meio ambiente como os próprios produtores.

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ao crescimento. Do mesmo modo, são uma forma de resistir aos transgênicos –

fundamentalmente vinculados à criação de animais não humanos para consumo

humano – e ao discurso reacionário de seleção de sementes a partir da

homogeneização das espécies vegetais.

Um vegetarianismo fora do eixo aumenta sua potência quando traça

alianças com o movimento de objeção do crescimento. Ele é clandestino e não

espera medidas políticas para dar uma resposta à crise ambiental e às demais

ameaças que se aproximam. Ele também não espera o aviso dos responsáveis

pela sociedade que não é mais possível produzir carne pois não há mais água o

suficiente para tanto.

Se, por outro lado, o vegetarianismo traçar alianças com o capitalismo, ele

será como o sapo da fábula do sapo e do escorpião:

Um sapo e um escorpião estavam parados à margem de um rio e o

escorpião pede que o sapo o carregue em suas costas para que os dois

atravessem o rio juntos. O sapo nega pois sabe que o escorpião é traiçoeiro e

que, se o levasse em suas costas, ele o aferroaria e o levaria à morte. Entretanto,

o escorpião argumenta que não faria isso pois, se o fizesse, os dois afogariam e

morreriam. Por isso, o sapo confia no escorpião e os dois vão atravessando o rio.

Na metade do caminho, o sapo sente uma aferroada do escorpião e fica

inconformado! O sapo pergunta ao escorpião porquê ele fez aquilo, já que os

dois iriam morrer. O escorpião responde: é a minha natureza, sapo, eu não posso

evitá-la (Ibidem).

Assim como é da natureza do escorpião aferroar, é da natureza do

capitalismo explorar as oportunidades – eles não podem evitar. Logo, um

8 A permacultura é tida como um movimento socioambiental baseado na aliança entre os conhecimentos científicos e tradicional que tem por objetivo a manutenção da vida humana no planeta a partir do cuidado com a terra, com as pessoas e com o futuro. 9 A agrofloresta é um sistema ancestral de uso da terra baseado no consórcio de espécies vegetais.

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vegetarianismo aliado ao escorpião capitalista pode apenas levar em conta as

consequências da crise ambiental – em grande parte causada pela criação

intensiva de animais não humanos para consumo humano – na medida em que

isso gere novas formas de lucro. Assim, compor-se com o capitalismo, ainda que

no âmbito do vegetarianismo, não tem sentido. É preciso romper drasticamente

com o capitalismo e com o modelo neoliberal de produção e reinventar novos

modos de consumo.

Nesse sentido, proponho a invenção de um vegetarianismo fora do eixo

que atue a partir das circunstâncias móveis, sem nenhum modelo pré-

determinado a ser seguido, mas com o único pressuposto de atuar no sentido de

aumentar as potências de vida. A partir dele, é preciso traçar alianças com lutas

sociais e outras formas de resistência. “Por exemplo, com os objetores do

crescimento e os inventores do movimento slow, que recusam o que o

capitalismo apresenta como ‘racionalização’ e procuram se reapropriar do que

significa se alimentar, viajar, aprender juntos” (Ibidem, p. 52).

Um vegetarianismo fora do eixo vai além do desespero causado pela crise

ambiental – que pode, facilmente, cair numa reação defensiva paralisante. Ele

também vai além dos discursos do “as coisas são assim mesmo” e do “não

temos escolha”. Ele obriga a pensar a partir do que acontece de fato.

Por exemplo, o quão válido é deixar de consumir mel por ser vegano, mas

consumir açúcar refinado? Via de regra, o açúcar refinado é fruto de

monoculturas baseadas em fertilizantes químicos, herbicidas e pesticidas. Logo,

ele contribui mais para a degradação ambiental e até mesmo para a extinção e

sofrimento de espécies animais do que o mel oriundo de produção orgânica ou

agroflorestal. Por isso a importância de um vegetarianismo fora do eixo que atue

a partir das circunstâncias móveis para além de qualquer princípio, seja ele de

uma conduta ou de uma contraconduta.

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Mais que um movimento de contraconduta, um vegetarianismo fora do

eixo é uma anticonduta. Uma anticonduta é uma resistência que não está inscrita

na relação entre condutas e contracondutas. Portanto, ela não é uma nova forma

de ser conduzido ou governado, mas sim um nova forma de vida que rompe com

as relações de poder – oficiais ou clandestinas – a partir da vida e de sua

potência ou da vida artista (TÓTORA, 2017, p. 252).

Um vegetarianismo fora do eixo também vai além das tecnologias de

governo que conduzem a conduta de cada indivíduo em particular e da

população em geral. Tais tecnologias atuam, de um lado, a partir do Estado e, de

outro, a partir de empresas privadas, como as mídias. Além disso, os saberes da

máquina social tecnológica são armazenados em bancos de dados e funcionam

como dispositivos de marketing. Os dados são vendidos para as empresas que

estimulam o consumo no sentido de hábitos de vida, como nos casos da

alimentação e da saúde (Ibidem, p. 248).

As multiplicidades de relações – de forças, de potências e de afetos – que atravessam o corpo de cada um ou de uma coletividade são postas sob a direção de um governo externo. Cada um e todos atrelados à política ativa dos governos de Estado e empresas privadas que dirigem a conduta de cada um e de todos para o mercado de produção e consumo não somente de bens matérias, mas dos imateriais, dentre outros: bem-estar, felicidade, bom humor... (Ibidem, p. 249).

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O vegetarianismo como obra de arte

Nietzche comenta sobre o momento em que a magia de Dionísio refaz os

laços entre as pessoas e reconcilia a natureza com seu o filho perdido – o

humano. Neste estado de alegria e harmonia universal, o escravo se faz homem

livre e cada humano está fundido com o seu próximo. A natureza sobrenatural

do humano foi despertada: ele se fez um deus que canta e dança como nos

sonhos. E a própria vida se fez obra de arte: “O homem não é mais artista,

tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa

satisfação do Uno-primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez”

(NIETZSCHE, 1992, p. 31).

A ciência estética e o desenvolvimento da arte estão vinculados à

duplicidade do apolíneo e do dionisíaco. Os dois deuses gregos da arte

intermediam esta aliança: de um lado, Apolo cuida da arte da figura plástica e,

de outro, Dionísio cuida da arte não-figurada da música. O apolíneo diz respeito

ao ser humano enquanto artista e o dionisíaco, enquanto a própria obra de arte.

Os impulsos destes deuses caminham emparelhados numa discórdia aberta que

permite a composição da tragédia ática enquanto obra de arte (Ibidem, p. 27).

Diante da bela aparência do sonho, o humano se fez um artista consumado

que permite toda forma de arte plástica – poesias. Ainda que a aparência do

sonho seja a mais real possível, o humano de natureza filosófica sente a sua

aparência translúcida, assim como sente a premonição de que existe uma outra

realidade oculta que coexiste com a realidade em que os humanos são e estão,

que também é somente uma aparência. O sonho dança entre o céu e o inferno,

entre imagens alegres e tristes; o humano vive e joga entre o prazer e o

sofrimento: divina comédia – ou tragédia – da vida. “... são fatos que prestam

testemunho preciso de que o nosso ser mais íntimo, o fundo comum a todos nós,

colhe no sonho uma experiência de profundo prazer e jubilosa necessidade”

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(Ibidem, 29). Assim como o sonho é uma necessidade, a arte também o é: a arte

é um estímulo à vida.

Apolo traduz a necessidade dos sonhos, na qualidade de deus divinatório,

deus da luz e da aparência das imagens oníricas interiores.

A verdade superior, a perfeição desses estados, na sua contraposição com a realidade cotidiana tão lacunarmente inteligível, seguida da profunda consciência da natureza reparadora e sanadora do sono e do sonho, é simultaneamente o análogo simbólico da aptidão divinatória e mesmo das artes, mercê das quais a vida se torna possível e digna de ser vivida. Mas tampouco deve faltar à imagem de Apolo aquela linha delicada que a imagem onírica não pode ultrapassar, a fim de não atuar de um modo patológico, pois do contrário a aparência nos enganaria como realidade grosseira: isto é, aquela limitação mensurada, aquela liberdade em face das emoções mais selvagens, aquela sapiente tranquilidade do deus plasmador (Ibidem).

Em meio ao caos do mundo, o princípio de individuação – princípio de

criação do indivíduo – é o que permite ao humano a possibilidade de cantar e

dançar sobre as ruínas. Mas quando a razão foge ao humano, ele é tomado por

terror:

Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela analogia da embriaguez (Ibidem, p. 30).

Assim, a arte é uma domesticação satírica do sublime: ir além do terrível

e do incomensurável da vida, mas continuar vivendo.

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Em suma, a meta dos escritos de Nietzsche acerca do nascimento da

tragédia grega concerne ao entendimento intuitivo da relação entre o artista e

suas obras de arte. Nesse sentido, a estética deve ser o suficiente para resolver a

questão de como o poeta lírico pode se fazer artista. O poeta lírico, enquanto

compartilha seus desejos por meio do “eu”, passa a ser o próprio artista

subjetivo que abre portas à tragédia. Ele vai além da imagem – visão – e beira a

música – outros sentidos (Ibidem, p. 43).

Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco, totalmente um só com o Uno-primordial, com sua dor e contradição, e produz a réplica desse Uno-primordial em forma de música, ainda que esta seja, de outro modo, denominada com justiça de repetição de mundo e de segunda moldagem deste: agora porém esta música se lhe torna visível, como numa imagem similiforme do sonho, sob a influência apolínea do sonho. Aquele reflexo afigural e aconceitual da dor primordial na música, com sua redenção na aparência, gera agora um segundo espelhamento, como símile ou exemplo isolado. O artista já renunciou à sua subjetividade no processo dionisíaco: a imagem, que lhe mostra a sua unidade com o coração do mundo, é uma cena de sonho, que torna sensível aquela contradição e aquela dor primordiais, juntamente com o prazer primigênio da aparência. O “eu” do lírico soa portanto a partir do abismo do ser: sua “subjetividade”, no sentido dos estetas modernos, é uma ilusão (Ibidem, p. 44).

Enquanto o artista apolíneo – plástico e épico – está vinculado à

contemplação da imagem, o músico dionisíaco está desvinculado de qualquer

imagem, fazendo dele a própria dor e o próprio eco primordiais. Enquanto o

artista apolíneo vive no meio de imagens que lhe causam satisfação apenas

devido à contemplação amorosa, o artista lírico vive no meio de imagens dele

mesmo que são uma espécie de objetivações distintas de si (Ibidem, p. 45).

A lírica nada mais é que um devir:

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Quem poderá deixar de reconhecer nessa descrição que a lírica é aí caracterizada como uma arte jamais perfeitamente realidade, como que sempre em salto e raramente chegando à meta, sim, como uma semi-arte, cuja essência consistiria em que o querer e a pura contemplação, isto é, o estado inestético e o estético, estivessem estranhamente misturados? (Ibidem, p. 47).

A aliança apolíneo-dionisíaco somente pode ser operada a partir da

mediação do artista humano. “Mas, na medida em que o sujeito é um artista, ele

já está liberado de sua vontade individual e tornou-se, por assim dizer, um

medium através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra a sua

redenção na aparência” (Ibidem). E a aparência também é uma necessidade da

vida humana.

Portanto, todo o nosso saber artístico é no fundo inteiramente ilusório, porque nós, como sabedores, não formamos uma só e idêntica coisa com aquele ser que, na qualidade de único criador e espectador dessa comédia da arte, prepara para si mesmo um eterno desfrute. Somente na medida em que o gênio, no ato da procriação artística, se funde com o artista primordial do mundo, é que ele sabe algo a respeito da perene essência da arte, pois naquele estado assemelha-se, miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de revirar os olhos e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto, ao mesmo tempo poeta, ator e espectador (Ibidem, p. 47 – 48).

Para o criador deste mundo, os humanos nada mais são que obras de arte -

imagens e projeções artísticas. Nesse sentido, a tese de Nietzsche é que o mundo

e suas multiplicidades de existência apenas podem ser justificados eternamente

enquanto fenômenos estéticos, assim como os guerreiros pintados numa tela de

uma batalha.

Nietzsche ensina que é necessário aprender, com os artistas, o sentido da

vida como obra de arte a partir da comparação entre a arte e a medicina. Assim

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como os médicos são capazes de atenuar o gosto de certo remédio, os artistas

enfatizam e suprimem o que bem lhes interessa em suas pinturas. “Pois neles

esta sutil capacidade termina, normalmente, onde termina a arte e começa a

vida; nós, no entanto, queremos ser os poetas-autores de nossas vidas,

principiando pelas coisas mínimas e cotidianas” (NIETZSCHE, 2012, p. 180).

Nietzsche sustenta o pensamento de que a filosofia é para ser vivida nas

trivialidades que passam desapercebidas na rotina, sugerindo uma produção

experimental da própria vida como obra de arte. Pensar, escrever, pintar, cantar

e dançar com o corpo todo. Enquanto Nietzsche jovem se considerava

entrelaçado e, de certa forma, aprisionado pelo pensamento de outros autores,

Nietzsche velho encontrou o seu próprio modo de escreveu: encontrou o seu

estilo.

A vida não deve ser aprisionada em nenhuma moralidade, nem mesmo a

médica, somente para manter a segurança dos valores tradicionais, mas sim deve

ser vivida artisticamente. Apenas assim o humano consegue ir além de sua

dimensão corpórea que produz obras de arte e passa a ser a obra de arte em si

mesma.

Se a vida se faz obra de arte nas trivialidades que passam desapercebidas

na rotina, a alimentação e os modos de alimentação são uma produção

experimental da vida como obra de arte: o vegetarianismo como obra de arte.

Por que não, além de pensar, escrever, pintar, cantar e dançar com o corpo todo,

também não se alimentar com o corpo todo? Ir além da moralidade médica e dos

valores tradicionais da alimentação: encontrar a sua própria alimentação para

viver artisticamente.

Os escritos de Nietzsche levantam o seguinte questionamento: como fazer

da própria vida uma obra de arte? Segundo Deleuze, a constituição dos modos

de existência ou dos estilos de vida é o que Foucault chama de ética - oposto da

moral. Enquanto a moral é um conjunto de regras que julgam os atos humanos a

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partir de valores metafísicos, a ética é um grupo de regras facultativas que

somente analisam os atos humanos de acordo com os modos de existência

correspondentes (DELEUZE, 2013, p.129 – 130).

Assim, a ética faz brotar uma estética voltada para os estilos de vida. O

estilo nada mais é que a criação de outras possibilidades de vida: a estética da

vida; a vida como obra de arte. Isto se aproxima do interesse que Nietzsche e

Foucault tinham pela filosofia como ato de pensamento: Nietzsche o chamava

de inatual ou intempestivo e Foucault o chamava de atualidade (Ibidem).

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O vegetarianismo como estética da existência

Foucault traça a história difusa das estéticas da existência – também

chamadas de artes da existência, técnicas de si e tecnologias de si – no contexto

da cultura grega e greco-latina. Tais práticas foram de grande importância nestas

sociedades, mas perderam força de acordo com o crescimento do poder pastoral

no cristianismo, bem como as práticas educativas, médicas e psicológicas. O

autor resume a estética da existência na seguinte passagem:

Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo (FOUCAULT, 1984, p. 14).

As questões da dietética e do regime eram centrais na cultura grega

conforme indicam os escritos de Hipócrates e Platão. “O regime físico deve-se

ordenar ao princípio de uma estética geral da existência, onde o equilíbrio

corporal será uma das condições da justa hierarquia da alma...” (Ibidem, p. 94).

Para Hipócrates, o regime, mais que uma prática complementar à

medicina, era essencial à ela. Segundo ele, os animais humanos e os animais não

humanos foram separados devido a uma diferenciação quanto às suas dietas. No

início, tanto os humanos como os não humanos se alimentavam de vegetais e

carnes cruas e, depois, os humanos procuraram um regime mais alinhado à sua

fisiologia. Com esta nova dieta, as doenças humanas passaram a ser menos

mortais e descobriram que o regime dos saudáveis não deveria ser o mesmo que

o dos doentes – cada um precisaria de alimentos específicos.

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A medicina teria então se formado como ‘dieta’ própria aos doentes e a partir de uma interrogação sobre o regime específico que lhes convém. Nessa narrativa sobre a origem é a dietética que aparece como inicial: ela dá lugar à medicina enquanto uma de suas aplicações particulares (Ibidem, p. 90 – 91).

Platão, por outro lado, desconfiava da dietética pois pensava que esta

prática havia surgido a partir da modificação das práticas médicas. Em outras

palavras, a dietética teria surgido como uma aliada da medicina apenas no

momento em que o regime – modo de se alimentar e se exercitar – seguido pelos

seres humanos não estava mais alinhado à sua fisiologia.

Nessa perspectiva, a dietética foi, efetivamente, uma inflexão da medicina; mas ela só se tornou esse prolongamento da arte de curar a partir do momento em que o regime, como maneira de viver, separou-se da natureza; e se ela constitui sempre o acompanhamento necessário da medicina, é na medida em que não se poderia cuidar de quem quer seja sem retificar o modo de vida que o tornou efetivamente doente (Ibidem, p. 91).

Independentemente dos conceitos atribuídos à dietética e ao regime, o que

importa é que ambos estão ligados à conduta humana:

... ela caracteriza a maneira pela qual se conduz a própria existência, e permite fixar um conjunto de regras para a conduta: um modo de problematização do comportamento que se faz em função de uma natureza que é preciso preservar e à qual convém conformar-se (Ibidem, p. 91 – 92).

Tendo em vista que o regime físico está ligado ao princípio geral de uma

estética da existência, a alimentação – um dos componentes do regime –, seja

vegetariana ou outra, é inerente à noção de estética da existência. Além disso,

tanto o regime como a dietética estão vinculados à conduta humana, ou seja, ao

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modo segundo o qual se conduz a própria conduta e ao conjunto de regras que

derivam disto.

O regime é composto, sobretudo, por cinco hábitos que devem ser

seguidos: comidas, bebidas, exercícios, sonos e relações sexuais. “O regime é

toda uma arte de viver” (Ibidem, p. 92). O regime alimentar – comidas e bebidas

– compete à natureza e à quantidade dos alimentos, bem como ao estado do

corpo humano e o clima. As evacuações, por outro lado, tem função de corrigir

eventuais desvios da alimentação. Neste sentido, o regime tem a ver com o

corpo e com um modo de viver único de acordo com escolhas e variáveis que

visão o cuidado do corpo.

A medida do regime é de ordem corporal e ética. Os seguidores de

Pitágoras entendiam o regime como uma aliança entre os cuidados do corpo e os

cuidados da alma. Eles usavam da medicina para a purificação do corpo e, da

música para purificação da alma. Os interditos alimentares que recomendavam

tinham justificativas culturais e religiosas. Do mesmo modo, as quantidades

recomendadas das comidas e bebidas são de ordem ética e têm por objetivo a

manutenção da saúde. Somente deveria ser evitado o perigo moral e político que

o regime contém de se cuidar excessivamente do corpo, em duas vias: excesso

atlético e excesso valetudinário – vigilância em relação à saúde e à doença do

corpo físico (Ibidem, p. 93 – 94).

O objetivo da dieta nada mais é que tornar a vida do sujeito mais feliz de

acordo com as regras escolhidas, e não apenas fazer com que a vida dure o

maior tempo possível ou que os indivíduos alcancem a maior produtividade

possível.

Ela também não deve propor-se a fixar de uma vez por todas as condições de uma existência. Um regime que só permita viver num único lugar e com um único tipo de alimento, sem que se possa ficar exposto a algum tipo de mudança, não é bom. A

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utilidade do regime está, precisamente, na possibilidade que dá aos indivíduos de poderem enfrentar situações diferentes (Ibidem, p. 95).

Isso também remete ao vegetarianismo fora do eixo, que tem por objetivo

dar ao indivíduo a possibilidade de enfrentar situações diferentes, cumprindo a

própria utilidade do regime. É um modo de ir além do vegetarianismo como

contraconduta e alcançar um vitalismo não antropocêntrico que responda a

situações móveis a fim de expandir as potências de vida em suas

multiplicidades.

Mas é preciso reconhecer nele a preocupação – aliás comum à moral e à medicina – de armar o indivíduo para a multiplicidade de circunstâncias possíveis. Não se pode e não se deve pedir ao regime que contorne a fatalidade ou dobre a natureza. O que se espera dele é que permita reagir, sem ser às cegas, aos acontecimentos imprevistos tais como se apresentam. A ética é uma arte estratégica no sentido de que ela deve permitir responder, de uma forma que seja razoável, e portanto útil, às circunstâncias (Ibidem, p. 95 – 96).

Porém, a dieta requer duas formas de atenção do indivíduo: atenção serial

e atenção circunstancial. A atenção serial diz respeito a uma sequência, ou seja,

as comidas e as bebidas não são boas ou más em si mesmas, mas dependem dos

atos praticados pelo indivíduo antes e depois de se alimentar. A atenção

circunstancial, por sua vez, é aquela voltada para as sensações do mundo

exterior: tempo, clima, estação do ano, calor e frio, umidade e secura, vento,

hora do dia e todas as características peculiares de determinada região (Ibidem,

p. 96).

O regime prescrito por Hipócrates deveria tipificar uma maneira de viver

em função de todas as variáveis descritas acima:

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O regime não é para ser considerado como um corpo de regras universais e uniformes, é, antes de mais nada, uma espécie de manual para reagir às situações diversas nas quais é possível encontrar-se; um tratado para ajustar o comportamento de acordo com as circunstâncias (Ibidem).

Em suma, a dietética se faz uma estética da existência na medida em que

ela não prescreve um regime universal a um sujeito passivo, tampouco pede por

uma obediência passiva: ela é uma prática de reflexão sobre o corpo por parte do

sujeito. Portanto, além da dieta levar em conta aquelas variáveis, ela deve ser

uma prática de reflexão (Ibidem).

Nesse sentido, Platão comenta sobre duas espécies de médicos: os

médicos dos escravos e os médicos dos homens livres. Os médicos dos escravos

prescreviam receitas sem dar explicações. Os médicos dos livres não

prescreviam receitas apenas, mas também dialogavam com o doente. Esta última

espécie de médicos também persuadia os doentes à prática do cuidado da saúde

baseada na observação de si: anotar que comidas e que bebidas seus corpos

recebiam melhor a fim de manter a melhor saúde possível. O melhor médico

para escolher o que é saudável ou não para um indivíduo é o indivíduo mesmo.

Para que a boa gestão do corpo venha a ser uma arte da existência, ela deve passar por uma colocação na escrita, efetuada pelo sujeito a propósito de si mesmo; através da escrita ele poderá adquirir sua autonomia e escolher com conhecimento da causa o que é bom e o que é mal para ele... (Ibidem, p. 97).

O regime se faz estética da existência, não mediante uma série de

prescrições que tem por objetivo evitar ou curar doenças, mas sim a partir de um

modo que o sujeito pode constituir a si mesmo tendo em vista um cuidado com o

corpo que envolve reflexões e anotações.

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Cuidado que atravessa a vida cotidiana, que faz das atividades maiores ou rotineiras de existência uma questão ao mesmo tempo de saúde e de moral; que define entre o corpo e os elementos que o envolvem uma estratégia circunstancial; e que, enfim, visa armar o próprio indivíduo com uma conduta racional (Ibidem, p. 97 – 98).

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Amor Fati

Tomar a própria vida como obra de arte ou fazer a sua própria ética

enquanto estética da existência, seja por meio da alimentação ou dieta como no

caso do vegetarianismo ou por outros meios, nada mais é que amor fati. “Minha

fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para

trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade” (NIETZSCHE, 2008, p. 49).

Ou seja, o necessário da vida não deve ser ocultado, mas sim suportado e até

mesmo amado.

Nietzsche comenta que é grato à sua vida inteira. O seu maior privilégio

teria sido dizer um grande sim à vida, quase um pé além da vida. A grande

sensatez seria tomar a si mesmo um fado e não querer ser diferente do que se é.

O fatalismo russo é um exemplo desta sensatez:

Contra isso o doente tem apenas um grande remédio – eu o chamo de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta, com o qual o soldado russo para quem a campanha torna-se muito dura finalmente deita-se na neve. Absolutamente nada mais em si aceitar, acolher, engolir – não mais reagir absolutamente. A grande sensatez desse fatalismo, que nem sempre é apenas coragem para a morte, mas conservação da vida nas circunstâncias vitais mais perigosas, é a diminuição do metabolismo, seu retardamento, uma espécie de vontade de hibernação. Alguns passos adiante nesta lógica e temos o faquir que durante semanas dorme em um túmulo... Porque nos consumiríamos muito rapidamente se reagíssemos, não reagimos mais: esta é a lógica (Ibidem, p. 28).

Essas reflexões de Nietzsche apontam para a seguinte questão: como

alguém se torna o que é? A resposta tem a ver com o amor de si – arte da

preservação de si – e ignorar a natureza do quê se é, tendo em vista apenas o quê

faz alguém se tornar o que se é. “Desse ponto de vista possuem sentido e valor

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próprios até os desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias secundárias,

os adiamentos, as “modéstias”, a seriedade desperdiçada em tarefas que ficam

além da tarefa” (Ibidem, p. 46). Neste sentido, a ética vai além do

autoconhecimento em direção à autocriação.

Nisto se manifesta uma grande prudência, até mesmo a mais alta prudência: quando o nosce te ipsum [conhece-te a ti mesmo] seria a fórmula para a destruição, esquecer-se, mal entender-se, empequenecer, estreitar, mediocrizar-se torna-se a própria sensatez.

A autocriação, por sua vez, se volta para o que Nietzsche chama de

casuísticas do egoísmo – alimentação, lugar, clima e distração – que são mais

relevantes do que as construções que a humanidade tomou como importantes. O

autor sobrepõe a questão da alimentação e de como uma pessoa deve se

alimentar para atingir a sua mais alta potência de força às questões de

curiosidade teológica. Em seguida, comenta sobre algumas de suas preferências,

tais como água em vez de bebidas tidas como espirituosas. “Cada qual possui

nisso a sua medida, como frequência entre os limites mais estreitos e delicados”

(Ibidem, p. 36). Cada qual também sabe o tamanho do próprio estômago e o que

faz uma boa ou uma má digestão.

O modo de alimentação – vegetariano ou outro –, enquanto mera

casuística do egoísmo, faz parte da autocriação traduzida pelo amor fati e, logo,

pela vida como obra de arte e pela estética da existência. Cada um deve

encontrar o seu estilo singular de se alimentar a fim de alcançar sua mais alta

potência de força vital, bem como sentir o tamanho do seu estômago e o que ele

pode ou não digerir – desde alimentos até afetos.

Do mesmo modo, a autocriação remete à escolha dos remédios certos

contra as doenças, ou seja, tomar a si mesmo em suas próprias mãos e curar a si

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mesmo. Apenas assim a vida pode vingar no corpo – amor fati. O corpo de um

humano que vingou em si a vida é agradável aos sentidos.

Só encontra sabor no que lhe é salutar; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do salutar é ultrapassada. Inventa meios de cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece. De tudo o que vê, ouve e vive forma instintivamente sua soma: ele é um princípio seletivo, muito deixa de lado (Ibidem, p. 22).

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Animais não humanos pensam, falam ou criam?

Conforme mencionado anteriormente10, o especismo é um preconceito

que usa a incapacidade de falar dos animais não humanos como pretexto para a

desconsideração de seus interesses; e o princípio da igualdade é a prescrição de

como devemos tratar os humanos, que não depende da igualdade factual entre

eles. Ou seja, os interesses de cada ser afetado por um ato deve ser levado em

consideração assim como os interesses similares de qualquer outro ser. Nesse

sentido, Jeremy Bentham afirma que “Cada um conta como um e ninguém como

mais de um” (SINGER, 2010, p. 9) e Henry Sidgwick, que “O bem de qualquer

indivíduo não tem importância, do ponto de vista (se assim se pode dizer) do

Universo, do que o bem de qualquer outro” (Ibidem). Porém, poucos filósofos

admitiram que o princípio da igualdade deveria ser aplicado a membros de

outras espécies, como o foi no caso de Bentham:

Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são motivos igualmente insuficientes para abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, de uma semana, ou até mesmo de um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é “Eles são capazes de raciocinar?”, nem “São capazes de falar?”, mas sim: “Eles são capazes de sofrer?” (Ibidem, p. 12).

10 O conceito foi pormenorizado no item Especismo desta dissertação.

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Embora Bentham use a palavra direito, se refere à igualdade. O filósofo

tratava dos direitos morais como as proteções que os animais humanos e não

humanos deveriam possuir. Entretanto, a moral não deveria ser fundamentada

no direito, mas sim nas capacidades de sofrer e de sentir prazer (Ibidem, p. 13).

A simbiose mantida entre os animais humanos e os animais não humanos

está predominantemente baseada no pensamento cartesiano de que os não

humanos não possuem a capacidade de sofrer. No século XVII, René Descartes

propôs que os animais eram autômatos, ainda que a maioria das pessoas

percebesse que eles podiam sentir dor. Descartes, dentre outros filósofos,

acreditava ser fundamental a capacidade de falar sobre a experiência da dor – o

que, porém, somente é possível entre os humanos. Mas a capacidade de sofrer

não é exclusiva da espécie humana, conforme argumentei anteriormente.

(Ibidem, p. 16).

Bentham, ao contrário de Descartes, afirmou que a capacidade de falar

não deveria interferir no modo como um ser vivo é tratado, ao menos que isto

estivesse ligado à capacidade de sofrer.

A capacidade de sofrer e de sentir prazer é um pré-requisito para um ser ter algum interesse, uma condição que precisa ser satisfeita antes que possamos falar de interesse de maneira compreensível. [...] A capacidade de sofrer e de sentir prazer, entretanto, não apenas é necessária, mas também suficiente para que possamos assegurar que um ser possui interesses – no mínimo, o interesse de não sofrer (Ibidem, p. 13).

É fato que os humanos são sencientes e que grande parte dos animais não

humanos também o são, independentemente da capacidade de falar sobre a

experiência da dor. Mas os não humanos realmente não falam? Segundo Brian

Massumi, a brincadeira animal propicia as condições necessárias para um modo

de linguagem. A característica metacomunicativa da brincadeira animal – que

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diz “isto é uma brincadeira” – faz brotar a função metalinguística da linguagem

humana que a distingue de um simples código. A lógica intrínseca à brincadeira

animal – pré-humana e pré-verbal – é paralela à linguagem. “Por que não

considerar a linguagem humana uma reprise da brincadeira animal, elevada a

uma potência mais alta? Ou dizer que, na realidade, é na linguagem que o

humano atinge o mais alto grau de animalidade?” (MASSUMI, 2017, p. 22). O

continuum animal perpassa as mais diversas multiplicidades de vida e suas

capacidades, desde os instintos básicos, as capacidades lúdicas e abstratas até a

linguagem humana.

A brincadeira também possui uma característica estética marcada por sua

inutilidade quando realocada na dimensão do continuum animal. Ela é marcada

por uma diferença estilística que marca os limites entre praticar um ato de fato

ou somente encena-lo.

Um gesto exerce uma função lúdica na exata medida em que não cumpre sua função análoga, a qual o gesto lúdico coloca em suspenso em prol da própria representância que dela faz. Se o valor expressivo da representância não é pronunciado o bastante; se a diferença correspondente à –esquidade do ato é mínima demais; se a lacuna entre a arena da brincadeira e sua arena análoga é demasiado estreita; se, em suma, o rendimento estético é insignificante, então a atividade lúdica também pode facilmente se transformar em seu análogo. Muito rapidamente a mordida denota aquilo que ela denota, e não mais o que iria denotar. É guerra. Pode haver sangue (Ibidem, p. 26).

Nesse sentido, podemos considerar que tanto os animais humanos como

os animais não humanos falam por meio da brincadeira. Mas os não humanos

criam? Segundo Massumi, a criatividade também está ligada à noção de

brincadeira e ao próprio instinto. “A ação instintiva joga a própria criatividade

natural contra as condições limitantes do meio externo” (Ibidem, p. 43). A

característica lúdica do instinto dá uma brecha às formas de brincadeira entre os

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indivíduos ou entre os indivíduos e o meio externo. Portanto, a adaptabilidade e

a criatividade convergem no processo de evolução do ser, sugerindo até mesmo

uma espontaneidade dos atos.

O quê os animais pensam talvez nunca um humano possa dizer

assertivamente, mas apenas intuir ou prever o que eles pensam mediante a

empatia. Porém, é fato que muitas espécies animais possuem o sistema nervoso

similar ao humano, principalmente no caso dos mamíferos.

Essa discussão também levanta os seguintes questionamentos

cosmopolíticos em meio à falência do antropocentrismo: quanto os não humanos

existem? Todo o mundo é humano? Quanto os não humanos dependem dos

humanos para serem instaurados?

Para que um ser, coisa, pessoa, obra, conquiste existência, não apenas exista, é preciso que ele seja instaurado. A instauração não é um ato solene, cerimonial, institucional, como quer a linguagem comum, mas um processo que eleva o existente a um patamar de realidade e esplendor próprios – “patuidade”, diziam os medievais. Instaurar significa menos criar pela primeira vez do que estabelecer “espiritualmente” uma coisa, garantir-lhe uma “realidade” em seu gênero próprio (PELBART, 2014, p. 250).

Tanto a arte como a filosofia têm por objetivo instaurar seres cujas

existências se legitimariam por si mesmas. Mas para isso é preciso uma espécie

de advogado que defenda o direito à existência destes seres por vir, bem como

para ser testemunhas destes novos modos de existência. Logo, o trajeto da

existência depende dos encontros (Ibidem, p. 251).

Qual o papel da comercialização das formas de vida nesse sentido? Pode-

se dizer que as seres viventes comercializados não foram instaurados enquanto

sujeitos de direito e por isso são comercializados? Talvez o não reconhecimento

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da individualidade dos animais não humanos e a visão de que eles são apenas

membros de um grupo seja a causa desta comercialização, assim como o foi

com os negros comercializados que não eram considerados pessoas. Por isso a

necessidade desta espécie de advogado que defenda a legitimidade de existência

dos não humanos.

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Vegetarianismos e devir-animal

Os vegetarianismos têm a ver com o devir-animal na medida em que este

opera contágios e composições. O devir-animal talvez seja uma resposta ao

“Como os animais humanos podem se compor com os animais não humanos?”.

Segundo Deleuze e Guattari, existem devires-animais muito especiais que

atravessam o humanos e que afetam os animais não humanos tanto quanto os

humanos. Nos estudos de Levi-Strauss sobre os mitos, por sua vez, estão

presentes atos em que os humanos tornam-se animais e os animais tornam-se

uma outra coisa. Entretanto, os feiticeiros possuem uma capacidade maior de

registrar tais devires a partir dos contos, e não mais dos mitos ou dos ritos

(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 17 – 18).

Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última instancia, uma identificação. Toda a crítica estruturalista da série parece inevitável. Devir não é progredir nem regredir segundo uma série. E sobretudo devir não se faz na imaginação, mesmo quando a imaginação atinge o nível cósmico ou dinâmico mais elevado, como em Jung ou Bachelard. Os devires-animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois se o devir-animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna “realmente” animal, como tampouco o animal se torna “realmente” outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos (Ibidem, p. 18).

Nesse sentido, os autores distinguem três espécies de animais. A primeira

diz respeito aos animais individuados, considerados como familiais e

sentimentais. A segunda concerne aos animais de classificação ou de Estado de

acordo com os mitos divinos. A terceira, por sua vez, aos animais tidos como

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mais demoníacos – de matilhas, afectos, multiplicidades, devires, populações e

contos. Vale ressaltar que a distinção das três espécies de animais não exclui a

possibilidade de todos os animais pertencerem a todas estas categorias

simultaneamente.

Haverá sempre a possibilidade de um animal qualquer, piolho, leopardo ou elefante, ser tratado como um animal familiar, meu bichinho. E, no outro extremo, também todo animal pode ser tratado ao modo da matilha e da proliferação, que convém a nós, feiticeiros (Ibidem, p. 22).

O devir-animal do vegetarianismo, portanto, não toma os animais como

familiais e sentimentais e vai além dos mitos divinos: ele tem a ver com os

animais de afectos. Afinal, o que é o afecto senão o próprio devir? Este

movimento que permite as multiplicidades de composições nos corpos –

humanos e não humanos.

Não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto é, quais são seus afectos, como eles podem ou não compor-se com outros afectos, com os afectos de um outro corpo, seja para destruí-lo ou ser destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja para compor com ele um corpo mais potente (Ibidem, p. 43).

O contágio – zona de relação entre os humanos e não humanos – não tem

a ver com uma propagação por filiação ou hereditariedade, mas sim com um

jogo de partes heterogêneas: “... por exemplo, um homem, um animal e uma

bactéria, um vírus, uma molécula, um microorganismo” (Ibidem, p. 23). O

contágio é uma combinação inter-reinos, que mostra como a Natureza procede

contra si mesma e apenas contra si mesma: ele é propriamente uma anti-

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natureza. Em suma, o contágio é, ao mesmo tempo, povoamento animal e

propagação deste povoamento animal do humano.

A composição, por sua vez, é um plano em que dançam elementos e

materiais que apenas se distinguem pelas suas velocidades de conexões e

relações de movimento. Ela vai além da simples questão da organização e

abraça as teias de movimento-repouso e velocidade-lentidão. Assim, o fracasso

das conexões se dá apenas aos elementos e materiais que não chegam a tempo

na composição, sendo que os próprios fracassos fazem parte do plano (Ibidem,

p. 41).

As composições e relações são todas dimensões de multiplicidades,

aproximando os devires de rizomas.

A rua compõe-se com o cavalo, como o rato que agoniza compõe-se com o ar, e o bicho e a lua cheia se compõem juntos. [...] O clima, o vento, a estação, a hora não são de uma natureza diferente das coisas, dos bichos ou das pessoas que os povoam, os seguem, dormem neles ou neles acordam. [...] as relações, as determinações espaço-temporais não são predicados da coisa, mas dimensões de multiplicidades. (Ibidem, p. 50).

Em suma, o devir-animal do vegetarianismo não se trata de imitar os

animais não humanos que mais sofrem de especismo e carnismo. O devir-animal

do vegetarianismo percorre o devir-vaca, devir-galinha, devir-porca... Mas não

se trata de imitar a vaca, a galinha ou a porca e nem mesmo de sentir empatia ou

piedade por estes animais. O devir-animal do vegetarianismo é uma composição

de afectos e velocidades que fazem devir-vaca, devir-galinha e devir-porca.

O devir-vaca, devir-galinha e devir-porca opera uma composição

mediante a qual a vaca, a galinha e a porca se tornam pensamentos intensos nos

humanos e faz com que todos sigam no mesmo sentido para além da linguagem

das palavras. O devir-animal do vegetarianismo também não se trata de uma

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analogia de relações. Ele lança o corpo humano nas teias de relações de

velocidade-lentidão que o fazem se tornar vaca, galinha e porca ao mesmo

tempo que a vaca, a galinha e a porca se tornem elas mesmas outras coisas.

No devir-animal, o humano doma suas forças instintivas e o animal lhe

transmite forças contraídas. O devir-animal é um caso entre outros devires:

devir-mulher, devir-negro, devir-criança, devir-vegetal. Todos os devires

percorrem o devir-mulher e não pode existir um devir-homem. “É talvez até a

situação particular da mulher em relação ao padrão-homem que faz com que

todos os devires, sendo minoritários, passem por um devir-mulher” (Ibidem, p.

88). O devir é necessariamente de grupos minoritários, e o homem representa o

próprio grupo majoritário.

O devir-mulher não é imitar ou tomar a forma feminina, mas entrar na

relação de movimento e repouso próprias da mulher. O devir-criança também

está intimamente ligado ao devir-animal, somente pela maneira como as

crianças interagem com os animais e se comovem com isso, traçando uma lista

de afectos.

Todo devir-mulher e todo devir-criança atravessam a música, tanto em

relação à voz como em relação ao ritornelo e às brincadeiras de criança. O

ritornelo diz respeito à três dimensões de uma mesma coisa: na primeira

dimensão, os seres estão no caos – buraco negro – e se esforçam para criar nele

um ponto que será dado como um centro frágil; na segunda dimensão, os seres

se esforçam para traçar um círculo em torno do centro frágil que será

considerado uma espécie de casa; na terceira dimensão, os seres rompem o

círculo, ou para sair da casa ou para deixar alguém entrar. O ritornelo é a chave

das relações, sejam interpessoais ou multiespécie. Ele tem a ver com fender as

mônadas e se compor com os outros – humanos e não humanos – para criar

zonas de potência: apenas existimos nas relações, nas diferenças. O ritornelo

nada mais é que uma forma de afectar e ser afectado pelos outros – puro devir.

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Isso também remete à questão da linguagem entre os não humanos: para

além da brincadeira, a linguagem é um modo de delinear territórios a partir do

agenciamento criado pelo ritornelo. Por exemplo, o canto de um pássaro marca

assim o seu território, reclamando sua propriedade aos outros de sua espécie de

acordo com uma relação singular. O canto tem um ritmo complexo e cumpre,

antes de tudo, uma função estética (Ibidem).

Mas a chave dos devires é o coração. O devir não é imitar, identificar-se,

estabelecer relações formais... Fazer devir é, a partir do corpo que se tem, dos

órgãos que se tem, do coração que se tem, criar uma relação de movimento e

repouso, de velocidade e lentidão, que seja o mais próxima possível daquilo que

estamos prestes a nos tornar. Ninguém fará um devir-vaca mugindo, a não ser

que isso seja feito com todo o seu coração. O devir-animal somente acontece se

feito com todo o coração, e o ritornelo é o próprio coração capaz de ouvir o

grande canto da Terra.

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