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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Carolina Callegari Barbisan Mulheres advogadas: atuação na cidade de São Paulo MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais, sob a orientação da Professora Dra. Mariza Martins Furquim Werneck. SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Carolina Callegari Barbisan

Mulheres advogadas: atuação na cidade de São Paulo

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para a obtenção do título de

MESTRE em Ciências Sociais, sob a

orientação da Professora Dra. Mariza

Martins Furquim Werneck.

SÃO PAULO

2015

2

BANCA EXAMINADORA:

_______________________________

_______________________________

________________________________

3

AGRADECIMENTOS

Este trabalho é devedor de pessoas e instituições. Sou grata:

À professora Dra. Mariza Martins Furquim Werneck, que me recebeu na PUC

de braços abertos, e acompanhou cuidadosamente cada etapa desse trabalho. Obrigada

pelo amadurecimento intelectual que me proporcionou, e pela orientação cuidadosa e

compreensiva.

À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)

pela bolsa concedida.

À PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) pela oportunidade de

ser uma de suas alunas.

À professora Dra. Olga Brites, e à professora Dra. Ana Lúcia de Castro, por

participarem do meu exame de qualificação, e por terem contribuído com ótimas críticas

e sugestões.

À professora Dra. Silvia Pimentel, que aceitou participar da pesquisa, e dividir

comigo a sua experiência na luta pelos direitos das mulheres.

À toda equipe da Comissão da Mulher Advogada de São Paulo, que me

receberam atenciosamente, e se disponibilizaram para contribuir com a pesquisa.

Aos meus pais, João e Daisy, que sempre me incentivaram, e nunca me

deixaram desanimar, mesmo nos momentos difíceis. Muito obrigada por tornar essa

realização possível.

Às minhas irmãs, Cinthia e Camila, pelo constante carinho e apoio.

Ao meu namorado, Wilian, pelo companheirismo em todos os momentos.

Obrigada por tornar essa trajetória mais leve e mais feliz.

Aos meus avós, João, Guiomar, e Nilce, por serem fontes infinitas de amparo e

cuidado.

E por fim, agradeço à todas as advogadas entrevistadas, que possibilitaram que

essa pesquisa fosse realizada e concluída.

4

RESUMO

A dissertação de mestrado tem como objetivo central analisar a atuação das mulheres na

advocacia na cidade de São Paulo, observando quais são as principais dificuldades de

atuação e ascensão na carreira, relatadas pelas advogadas. A proposta é estudar como as

mulheres estão inseridas no cenário atual da advocacia, que é marcado pela expansão

das sociedades de advogados e pela prática da advocacia em dimensão empresarial. O

objetivo dessa dissertação é realizar um estudo comparativo entre as mulheres que

atuam nas grandes sociedades de advogados, com as que atuam nos pequenos

escritórios de advocacia, tentando apreender como os obstáculos relacionados ao gênero

são percebidos em cada contexto.

Palavras-chave: Mulheres- Advocacia- Gênero- Profissão.

5

ABSTRACT

The dissertation principally aims to analyze the role of women in law firms in the city

of São Paulo, observing the main action difficulties and career enhancement, reported

by female lawyers. The proposal is to study how women are embedded in today's law

firm, which is marked by the expansion of law firms and the practice of law in business

dimension. The objective of this dissertation is to conduct a comparative study among

women who work in large law firms, with those who work in small law firms, trying to

grasp how gender-related obstacles are perceived in each context.

Keywords: Women - Law- Gender – Profession.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Distribuição dos sócios dos escritórios de advocacia do estado de São Paulo,

filiados ao CESA, segundo o gênero e o tamanho do escritório.

Tabela 2. Distribuição dos associados dos escritórios de advocacia do estado de São

Paulo, filiados ao CESA, segundo o gênero e o tamanho do escritório.

Tabela 3. Distribuição dos sócios dos escritórios de advocacia do estado de São Paulo,

filiados ao CESA, segundo o gênero e a formação acadêmica.

Tabela 4. Distribuição dos associados dos escritórios de advocacia do estado de São Paulo,

filiados ao CESA, segundo o gênero e a formação acadêmica.

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LISTA DE SIGLAS

CESA- Centro de Estudos das Sociedades de Advogados

IOAB- Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil

OAB- Ordem dos Advogados do Brasil

ONU- Organização das Nações Unidas

PUC- Pontifícia Universidade Católica

UNICAMP- Universidade Estadual de Campinas

USP- Universidade de São Paulo

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SUMÁRIO

Introdução, 9

I. BREVE ANÁLISE DA SUBORDINAÇÃO FEMININA E DAS

PERSPECTIVAS DE GÊNERO, 13

1. As precursoras dos estudos de gênero, 13

2. A construção do conceito de gênero através das teorias feministas, 19

3. O ingresso das mulheres no espaço público, 24

II. MULHERES ADVOGADAS, 29

1. O ingresso das mulheres na advocacia, 29

2. Dificuldades de atuação e ascensão na carreira, 33

3. O “telhado de vidro” e as sociedades de advogados, 37

III. ENTREVISTAS E ANÁLISE DOS RESULTADOS OBTIDOS, 42

1. Nota metodológica, 44

2. As mulheres e a articulação entre a vida profissional e familiar, 46

3. A atuação das mulheres nas diversas áreas da advocacia, 51

4. As mulheres nas sociedades de advogados e nos escritórios pequenos, 55

Considerações finais, 60

Bibliografia, 63

Anexo, 66

9

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo principal analisar a atuação das mulheres na

advocacia na cidade de São Paulo. A pesquisa pretende fazer um estudo comparativo

entre as mulheres que atuam nas grandes sociedades de advogados, com as que atuam

nos pequenos escritórios de advocacia, tentando apreender como a questão de gênero é

percebida em cada contexto.

Pretende-se levar em consideração os trabalhos que analisam a feminização das

carreiras jurídicas, assim como os que refletem sobre a nova configuração que o direito

adquiriu nos últimos tempos. A proposta é a de tentar compreender a forma de inserção

da mulher em este novo contexto profissional.

Nas últimas décadas observou-se um aumento expressivo da participação das

mulheres, tanto na esfera acadêmica quanto no mercado de trabalho. As mulheres

passaram a frequentar mais a universidade, e consequentemente, ampliaram sua

participação no mercado profissional. Na advocacia este fenômeno também se

confirmou com o aumento dos registros profissionais das mulheres.

A advocacia brasileira ainda é marcada por uma maioria masculina.

Aproximadamente 44% dos 648.753 inscritos na OAB (Ordem dos

Advogados do Brasil) são mulheres. Em São Paulo, a participação

feminina também é menor do que a dos homens. As 102.217 advogadas

paulistas somam 45% do total computado pela entidade de classe. A

tendência, no entanto, é que esse número seja invertido em favor das

mulheres daqui a alguns anos. Em 2006, por exemplo, o número de

novas inscritas na OAB-SP superou o de homens. Dos 10.032 novos

advogados do Estado naquele ano, 51% eram mulheres. (Notícia

publicada no site oficial da OAB, em 08/03/2009).1

Além dessa notável feminização do mundo profissional, ocorreram outras

mudanças que conferiram um novo perfil à área jurídica. A intensificação das

privatizações das empresas públicas, ocorridas na década de 1990, foi responsável pela

expansão da área do direito empresarial. O crescimento do movimento de terceirização

dos serviços também foi uma característica dessa década, e teve um grande impacto na

1 Disponível em < http://www.oab.org.br/util/print/16099?print=Noticia> Acesso realizado em

06/04/2014.

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advocacia, pois as grandes empresas passaram a fechar seus departamentos jurídicos,

contratando escritórios de advocacia somente quando necessário.

De acordo com o artigo O profissionalismo e a construção do gênero na

advocacia paulista (2008) de Rennê Martins Barbalho e Maria da Glória Bonelli, todas

essas transformações, juntamente com o aumento da demanda de questões empresariais,

levaram os profissionais da área do direito a se organizarem de nova maneira. Até a

década de 1990, os advogados se agrupavam em escritórios de pequeno e médio porte, e

estavam no exercício tipicamente liberal da profissão.

A partir desse momento, passaram a surgir as grandes sociedades de advogados,

onde existe uma divisão interna entre sócios e associados, no qual os sócios têm

participação nos resultados, e nas principais decisões dessas sociedades, enquanto que

os associados recebem remuneração mensal, e estão abaixo dos sócios nessa hierarquia.

Esse período também ficou marcado por um grande crescimento na demanda de

advogados, especialmente aqueles que atuam na área do direito empresarial. Essa alta

demanda de operadores jurídicos coincidiu com a entrada maciça das mulheres no

mercado de trabalho, trazendo assim uma intensificação da divisão social e sexual do

trabalho.

A prática liberal tradicional do tipo solo ou em escritórios de pequeno

porte, voltados especialmente a clientes individuais, tem que lidar com

essa nova realidade, que passa a ser a referência predominante no

mercado profissional. A passagem de uma forma de organização para a

outra foi facilitada pelo forte ingresso de mulheres na advocacia e sua

inserção na posição de associada. (Barbalho; Bonelli, 2008, p. 276).

A proposta é entender como é a atuação das mulheres nesse novo cenário

profissional, e identificar quais são as principais dificuldades de atuação e ascensão na

carreira que elas encontram na advocacia.

O trabalho pretende responder as seguintes questões: Quais são os principais

obstáculos de atuação na carreira que as mulheres encontram atualmente? A questão do

gênero ainda é relevante quando se trata de ascensão profissional? Qual é a diferença da

percepção das barreiras de gênero entre as profissionais que atuam nas grandes

sociedades de advogados com as que atuam nos pequenos escritórios? E a área de

atuação na advocacia, interfere no relato das advogadas?

Para responder essas questões, foram realizadas catorze entrevistas com

11

advogadas que atuam na cidade de São Paulo. A amostra foi pensada, a princípio, com

seis mulheres que trabalham em escritórios de pequeno e médio porte, e seis em grandes

sociedades de advogados. O objetivo foi tentar entender como as mulheres percebem a

questão do gênero na advocacia, e como lidam com as dificuldades encontradas na

profissão.

O critério para distinguir os „pequenos escritórios‟ das „sociedade de advogados‟

se baseou no artigo Sociedades de advogados e tendências profissionais (2007) de

Luciana Gross Cunha, que define o escritório pequeno como aquele que tem até 9

advogados, o médio tem de 10 à 49 advogados, e, o grande, é de 50 advogados para

cima. Partindo dessa definição, um escritório com mais de nove integrantes já pode ser

considerado um escritório médio, e, portanto, quantitativamente já é uma sociedade de

advogados.

Porém, o que realmente distingue o „escritório pequeno‟ da „sociedade de

advogados‟ é o perfil de advocacia realizada por cada um deles. Enquanto o pequeno

escritório atende às necessidades de clientes individuais, a sociedade de advogados

prioriza clientes empresariais. A organização de cada um deles também é diferente. O

„pequeno escritório‟ é formado, em sua maioria, por familiares e colegas, que atuam

como uma equipe. Já a „sociedade de advogados‟ possui uma organização empresarial, e

apresenta uma divisão de cargos mais rígida.

O tipo de prestação jurisdicional das sociedades de advogados também

muda, enfatizando-se o atendimento das necessidades em torno dos

negócios dos clientes empresariais, o que com frequência dispensa a ida

para litigar no Fórum, como costumava ser a prática característica da

profissão. (Cunha, 2007, p.44).

Além dessas entrevistas, tive a oportunidade de conhecer a Comissão da mulher

advogada de São Paulo, e de estabelecer contato com a Dra. Gislaine Caresia, presidente

da Comissão, que me recebeu gentilmente em seu escritório, e me falou sobre as

perspectivas de ascensão feminina na advocacia. Também entrevistei a Dra. Silvia

Pimentel, professora titular do curso de direito da PUC-SP, que é uma referência na luta

pelos direitos das mulheres. Essas duas entrevistas foram incorporadas à pesquisa, e

completaram a amostra de catorze advogadas.

Também considerei fundamental pesquisar dados atuais sobre a realidade da

mulher na advocacia. O acesso a esses dados se deu através do site da OAB, do site do

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CESA (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados), e do contato com a Comissão

da Mulher Advogada de São Paulo.

Para dar corpo teórico à pesquisa foram trabalhadas tanto teorias clássicas sobre

a questão de gênero quanto teorias específicas sobre as mulheres advogadas. Sendo

assim, o trabalho procura contrastar os dados obtidos por meio do estudo empírico, com

as teorias atuais sobre o tema. A dissertação de mestrado foi estruturada em três

capítulos.

O primeiro capítulo consiste em uma análise sobre a subordinação feminina.

Teorias como as de Simone de Beauvoir (1908-1986), Margaret Mead (1901-1978),

Pierre Bourdieu (1930-2002), e Michelle Perrot (1928) garantem ao trabalho uma

perspectiva histórica sobre essa questão. São teorias que abrem a possibilidade de

inserir a pesquisa em um contexto social mais amplo, que abarca também as

dificuldades das mulheres em várias esferas do espaço público.

Beauvoir e Mead, partindo de perspectivas diferentes, aproximam-se em suas

conclusões. Embora suas obras estejam bem distantes no tempo, em relação ao trabalho

de pesquisa aqui relatado, elas forneceram a iniciação necessária para que eu

caminhasse com segurança no percurso realizado.

O segundo capítulo trata de estudos recentes sobre a atuação das mulheres na

advocacia. O objetivo é analisar os principais obstáculos de atuação e ascensão na

carreira, encontrados pelas advogadas. Para isso, trabalhos específicos sobre o tema,

como os de Eliane Botelho Junqueira e os de Rennê Martins Barbalho, possibilitam uma

análise detalhada da questão.

Por fim, o terceiro capítulo consiste na análise das entrevistas realizadas com as

advogadas. O objetivo é apreender as dificuldades relatadas pelas profissionais,

observando as diferenças existentes- ou não- entre os pequenos escritórios e as grandes

sociedades de advogados. Também procuro analisar a posição das advogadas sobre as

dificuldades encontradas em cada área de atuação da advocacia. Outro aspecto

observado na fala das entrevistadas é a questão do casamento e da maternidade, bem

como das consequências que as responsabilidades da vida pessoal acarretam na vida

profissional da mulher.

13

1. BREVE ANÁLISE DA SUBORDINAÇÃO FEMININA E DAS

PERSPECTIVAS DE GÊNERO

Para que se possa realizar uma análise crítica a respeito das questões levantadas pela

pesquisa foi necessário, antes, uma boa compreensão do conceito de gênero e suas

várias interpretações. Por isso, selecionei autores que forneceram a base teórica para a

reflexão sobre o assunto e que, de alguma forma, ajudaram a esclarecer questões

fundamentais do trabalho.

1.1 AS PRECURSSORAS DOS ESTUDOS DE GÊNERO

Simone de Beauvoir (1908-1986) foi uma filósofa existencialista francesa e uma das

principais expoentes do feminismo de seu século. Em sua obra O segundo sexo (1949),

a autora procura entender os diversos fatores que levaram a mulher a uma posição de

submissão em relação ao homem, e também explicar porque as mulheres tiveram tanta

dificuldade em questionar essa condição. Para isso, Beauvoir faz um inventário das

diferentes análises já realizadas sobre o tema.

Primeiro, ela questiona as teorias que justificam a dominação masculina a partir

de fatores puramente biológicos. As teorias, que se apoiam na biologia, alegam que a

submissão da mulher pode ser explicada devido à sua fragilidade física (entre outras

coisas, menor força muscular, capacidade respiratória inferior, estrutura óssea mais

frágil), à sua instabilidade hormonal, e ao papel central que ocupa na reprodução.

Outra visão criticada pela autora é a defendida pelo materialismo histórico, que

associa a subordinação da mulher ao surgimento da propriedade privada. De acordo

com essa teoria, que tem como um dos principais expoentes o filósofo alemão Friedrich

Engels (1820-1895), na época em que a terra era um bem comum a todos, a agricultura

era limitada, rudimentar, e não exigia muita força física. Por isso, nesse momento, o seu

cultivo também era realizado pelas mulheres, e havia uma relativa igualdade entre os

sexos.

Já com o desenvolvimento de utensílios mais sofisticados, e com a expansão da

atividade agrícola, os homens passaram a dominar essa técnica, que passou a exigir cada

vez mais disposição física, e cada vez mais mão de obra masculina. “É nesse momento

histórico que a propriedade privada aparece: senhor dos escravos e da terra, o homem

torna-se também proprietário da mulher.” (Beauvoir, 1980, p. 74).

14

Para a autora, a perspectiva do materialismo histórico não é suficiente para

explicar o problema, pois essa teoria reduz a análise a um viés puramente econômico, e

encara a oposição entre os sexos como um conflito de classes. A proposta de Beauvoir é

mostrar que a questão de gênero está muito mais inserida no âmbito histórico e cultural

do que na esfera biológica e psicológica. A relação entre os sexos faz parte de uma

realidade social, que foi construída historicamente. Isso quer dizer que nenhuma mulher

nasceu submissa ou é inferior por natureza. Ela só assume posição de inferioridade

devido a determinadas relações sociais.

A autora enfatiza também que não existe um momento histórico que dá início à

subordinação das mulheres. Diferentemente dos negros, dos operários ou dos judeus,

não se encontra na história um acontecimento específico que tenha desencadeado essa

opressão.

Não têm passado, não têm história, nem religião própria. Não têm, como

os proletários, uma solidariedade de trabalho e interesses; não há

sequer entre elas essa promiscuidade espacial que faz dos negros dos

EUA, dos judeus dos guetos, dos operários de Saint-Denis ou das

fábricas da Renault uma comunidade. (Beauvoir, 1980, p. 13).

Em vista disso, Beauvoir busca uma possível explicação na trajetória mítica, que

sempre reforça a posição de inferioridade da mulher. A filósofa faz uma análise de

diversos mitos clássicos que evidenciam a mulher como o Outro. Ou seja, a mulher

nunca é o sujeito do mito, ela é sempre a figura passiva e subordinada da narrativa.

Beauvoir enfatiza que todos os mitos de criação expressam a superioridade

masculina. O próprio mito do Gênese que, por meio do cristianismo, se perpetuou na

civilização ocidental, é um claro exemplo disso. Eva não foi criada ao mesmo tempo em

que Adão, e nem surgiu do mesmo material que ele. Eva foi criada a partir da costela de

um homem. Ou seja, seu nascimento não foi autônomo e teve como único fim satisfazer

Adão. O que significa que a mulher já nasceu destinada ao homem. É no esposo que ela

encontra sua origem, e seu fim.

A autora também afirma que todo mito implica um sujeito. E nesses casos, o

sujeito é sempre um homem, que representa uma visão de mundo masculina. No destino

de heróis como Hércules, Prometeu ou Parsifal, a mulher tem sempre um papel

secundário.

Apesar disso, a representação feminina nos mitos não se constitui de forma

15

única. Pelo contrário, a mulher é sempre uma figura ambígua, que oscila entre o bem e o

mal, o amor e o ódio, a vida e a morte, a criação e a destruição. Beauvoir enfatiza que a

representação da mulher varia entre dois extremos. Por um lado, a Virgem Maria, que

carrega consigo a bondade, a pureza e a passividade feminina. De outro, Eva, que

representa a tentação, o pecado, e o perigo que a mulher pode encarnar.

Beauvoir afirma ainda que todas as questões tipicamente femininas são dotadas

de ambivalência. É o caso, por exemplo, da menstruação, da virgindade e da

maternidade. Em todas as sociedades essas questões são vistas como tabu e cercadas de

rituais ambíguos.

Outra autora que, assim como Beauvoir, também foi precursora nos estudos de

gênero é a antropóloga cultural Margaret Mead (1901-1978), que nasceu nos Estados

Unidos e foi professora da Universidade de Columbia. Seu livro Sexo e temperamento

(1935) serviu de referência e inspiração para o movimento de libertação feminina nos

Estados Unidos, por enfatizar o caráter social da padronização do comportamento

sexual.

Em sua obra Sexo e temperamento, a autora se dedica à análise do

condicionamento do temperamento sexual em três sociedades primitivas distintas. A

partir da observação da formação da personalidade de homens e mulheres nessas três

sociedades, a antropóloga conclui que o papel sexual está muito mais ligado a fatores

culturais do que a fatores biológicos.

Para comprovar sua teoria, Mead faz um relato detalhado de como três tribos

diferentes da Nova Guiné constroem os papéis sexuais de forma diversa. O primeiro

povo estudado são os Arapesh, que ocupam um território em forma de cunha, que se

estende desde a costa, através de sinuosas montanhas, até as planícies da bacia do Sepik.

Os Arapesh que habitam o litoral vivem em grandes aldeias, constroem casas

espaçosas, e cultivam suas hortas diariamente. Já os Arapesh das montanhas se agrupam

em pequenos povoados e sofrem com a falta de terras férteis. Com a escassez de

alimentos, são obrigados a buscar seu sustento em plantações distantes. O transporte

desses alimentos geralmente é realizado pelas mulheres, pois os Arapesh acreditam que

a cabeça feminina é dotada de maior resistência e força.

De acordo com Mead, essa sociedade é caracterizada pela cooperação e pelo

trabalho comunal. Nessa tribo, homens e mulheres realizam a maior parte do trabalho

juntos. Ambos estão empenhados no cultivo da terra, nos cuidados com a casa, e na

criação dos filhos.

16

Outra particularidade dessa sociedade é a ausência de guerras, conflitos e

competição. Entre os Arapesh, o uso da violência é reprimido, e tanto homens quanto

mulheres são orientados a adotar um comportamento pacífico e harmonioso com o seu

grupo. Sendo assim, para nossa sociedade, esse padrão de comportamento seria

considerado tipicamente feminino.

A antropóloga observa que até existem algumas diferenças no convívio social de

homens e mulheres. Os rituais de iniciação, por exemplo, são diferentes para meninos e

para meninas. Em atividades festivas e em cultos religiosos também prevalece uma

clara divisão sexual das tarefas. Porém essa divisão é apenas uma forma de organização

das atividades do cotidiano dos Arapesh.

Para a autora, essa sociedade estimula o mesmo papel social tanto para homens

quanto para mulheres. “Foram desencorajados de quaisquer hábitos de agressividade

para com os outros; ensinaram-lhes a tratar com respeito e consideração a propriedade,

o sono, e os sentimentos alheios”. (Mead, 2003, p. 81).

O segundo povo estudado pela antropóloga são os caçadores Mundugumor, que

habitam um território localizado na bacia do Sepik. Essa região é atravessada pelo rio

Yuat, que divide a tribo em dois grupos distintos.

Os Mundugumor se organizam através de grandes famílias poligínicas, onde um

homem tem, em média, de oito a dez esposas. Nessas famílias há uma divisão interna

entre o grupo composto do pai e das suas filhas, e entre o grupo composto da mãe e dos

seus filhos. Entre esses grupos prevalece o sentimento de hostilidade e de desconfiança.

Mead enfatiza que esse comportamento hostil está presente não só entre os

grupos familiares, mas também entre pais e filhos, entre irmãos, e entre meios-irmãos.

Ao contrário dos Arapesh, essa sociedade valoriza o poder e a riqueza, e por isso,

estimula a competição e o conflito.

Os Mundugumor são ensinados desde a infância a adotar uma postura de

independência em relação ao grupo. As crianças dessa tribo não são protegidas e nem

cuidadas como as crianças Arapesh. Tanto meninas quanto meninos são constrangidos

quando choram ou quando demonstram medo.

Por isso, os Mundugumor se habituam desde cedo a serem corajosos e

independentes. Eles se acostumam a não contarem com o apoio dos pais e nem com a

proteção dos mais velhos. Nesse caso, o padrão de comportamento dessa tribo se

assemelha mais ao comportamento que é considerado masculino para a nossa sociedade.

Além de observar o comportamento dos Arapesh e dos Mundugumor, Mead

17

também observou a tribo dos Tchambuli. Essa população vive em um lago, ligado por

duas vias navegáveis ao rio Sepik. Esse lago está localizado em uma região pantanosa, e

possui pequenas colinas pontiagudas.

Os Tchambuli constituem uma sociedade de estrutura poligínica a e patrilinear, e

possuem como atividade principal a arte. Todos os habitantes da tribo possuem pelo

menos uma habilidade artística, como a pintura, a dança, a escultura, ou o trançado. A

principal fonte de alimentação dessa população é a pesca, que serve tanto para o

consumo do grupo, quanto meio de troca para a obtenção de outros alimentos.

Mead enfatiza que a pesca, principal meio de subsistência da tribo, é uma

atividade exclusivamente feminina. Assim como a manufatura e as trocas de alimentos

também são responsabilidades das mulheres.

Por isso, a autora relata que apesar da organização patrilinear, as mulheres são as

verdadeiras autoridades dessa sociedade. São elas as encarregadas da pesca, da caça, e

das transações comerciais. Sendo assim, os homens estabelecem uma relação de

dependência (tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista psicológico)

com as mulheres de sua tribo.

Nesse caso, os papéis sexuais são condicionados de forma oposta ao que a nossa

sociedade está habituada. Os homens acabam incorporando as características que são

tidas como femininas, enquanto que as mulheres adotam uma postura considerada

masculina no nosso contexto.

Em síntese, a antropóloga relata exemplos distintos de como três sociedades

condicionam de forma diferente o comportamento social de homens e mulheres. Esses

três exemplos reiteram o argumento de Mead, que estabelece que o papel sexual é

condicionado socialmente. Ou seja, cada sociedade estimula um padrão de

comportamento específico para homens e mulheres.

Entre os Arapesh, homens e mulheres são pacíficos e dóceis. Ambos adotam um

comportamento que seria considerado feminino na nossa sociedade. Os Mundugumor

possuem traços competitivos e violentos, homens e mulheres adotam características

tipicamente masculinas. Já entre os Tchambuli, as mulheres são caçadoras,

comerciantes, e independentes, enquanto que os homens dependem economicamente e

emocionalmente dessas mulheres.

Sendo assim, Mead conclui que a natureza humana é flexível, e pode ser

moldada de acordo com as circunstâncias culturais impostas. Portanto, não se pode

18

afirmar que existam traços de personalidade naturalmente femininos ou naturalmente

masculinos.

Neste assunto, os povos primitivos parecem ser, superficialmente, mais

sofisticados do que nós. Assim como sabem que os deuses, os hábitos

alimentares e os costumes de casamento da tribo vizinha diferem dos

seus, e não afirmam que uma forma é verdadeira ou natural enquanto a

outra é falsa ou inatural, também sabem amiúde que as tendências

temperamentais que consideram naturais nos homens ou nas mulheres

diferem dos temperamentos naturais masculinos e femininos entre seus

vizinhos. (Mead, 2003, p.26).

19

1.2 A CONSTRUÇAO DO CONCEITO DE GÊNERO ATRAVÉS DAS TEORIAS

FEMINISTAS

Para atingirmos os objetivos propostos, faz-se necessário também analisar a

forma como o conceito de „gênero‟ foi desenvolvido e usado entre os teóricos dessa

área. Adriana Piscitelli é doutora em antropologia e coordenadora associada do Núcleo

de Estudos de Gênero-Pagu da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Em

seu artigo Re-criando a (categoria) mulher? (2002), a antropóloga faz uma síntese a

respeito da evolução das teorias de gênero, mostrando os diferentes significados que

esse conceito adquiriu ao longo do tempo.

Piscitelli relata que no século XIX, a ideia de direitos iguais, que pressupunha

também a igualdade entre homens e mulheres, impulsionou importantes mobilizações

feministas no Continente Europeu e nos Estados Unidos. Entre as décadas de 1920 e

1930, devido a essas mobilizações, houve a conquista de direitos femininos

fundamentais, como por exemplo, o direito ao voto e o acesso à educação.

Já a partir da década de 1960, sobretudo após a disseminação das ideias de

Beauvoir e Mead, os estudos feministas se caracterizam pela denúncia da posição

subordinada das mulheres em relação aos homens, bem como a constatação de que essa

subordinação não é natural. Essa geração ressalta que a dominação masculina é

construída culturalmente, e que ela possui caráter universal, estando presente em todos

os períodos históricos conhecidos.

A antropóloga também enfatiza que, no início das discussões de gênero, o

patriarcado se tornou o conceito chave da análise do problema. Nesse momento, o

objetivo principal, tanto entre as intelectuais quanto entre as ativistas, era transformar as

mulheres em um sujeito político coletivo. Ou seja, a ideia era dar às mulheres a

consciência de uma identidade comum. Além disso, o patriarcado inseria a relação entre

homens e mulheres no âmbito político. Nesse sentido, a política passava a envolver

qualquer relação de poder, independentemente de estar ou não relacionada com a esfera

pública.

A conhecida ideia “o pessoal é político” foi implementada para mapear

um sistema de dominação que operava no nível da relação mais íntima

de cada homem com cada mulher. Esses relacionamentos eram

considerados, sobretudo, políticos, na medida em que político é

essencialmente definido como poder. (Piscitelli, 2002, p. 5).

20

A utilização do patriarcado como categoria de análise teve grande repercussão

em termos de mobilização política, mas se tornou insuficiente por não apreender a

historicidade da condição feminina. As teorias que se basearam nesse conceito foram

alvo de muitas críticas, por não levarem em conta o contexto histórico em que esse

sistema se desenvolveu. Com o objetivo de superar os problemas metodológicos

apresentados pelo uso do conceito de „patriarcado‟, os teóricos da área passaram a

utilizar o conceito de „gênero‟, que foi amplamente difundido entre os estudos

feministas, especialmente no final da década de 1970.

A primeira teoria relevante no desenvolvimento desse novo instrumento de

análise foi O tráfico de mulheres: Notas sobre a economia política do sexo (1975),

publicado pela antropóloga Gayle Rubin (1949). A obra de Rubin faz uma crítica às

teorias que enfatizam apenas o caráter econômico, como é o caso das análises de Marx e

Engels, por acreditar que a opressão das mulheres é uma questão muito mais ampla, que

envolve principalmente a dimensão cultural.

Para fundamentar seu argumento, a autora se baseia na análise do sistema de

parentesco desenvolvida por Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que estabelece que as

posições de parentesco, socialmente definidas, têm precedência sobre o parentesco

biológico.

O antropólogo e filósofo francês é o fundador da antropologia estruturalista.

Essa corrente do pensamento antropológico se baseia em métodos de estudo da

linguística, e defende que os indivíduos orientam suas ações a partir de um sistema de

significação específico.

Para Lévi-Strauss, a noção de estrutura social não se refere à realidade empírica,

mas aos modelos construídos em conformidade com esta. Para merecer o nome de

estrutura, esse modelo deve possuir um caráter de sistema, ou seja, ele deve conter

elementos tais que uma modificação qualquer de um deles acarreta uma modificação de

todos os outros. De acordo com o autor, a estrutura social pode se configurar parar os

indivíduos tanto de forma consciente quanto de forma inconsciente.

Assim, a análise estrutural se choca com uma situação paradoxal, bem

conhecida pelo linguista: quanto mais nítida é a estrutura aparente, mais

difícil torna-se apreender a estrutura profunda, por causa dos modelos

conscientes e deformados que se interpõem como obstáculos entre o

observador e seu objeto. (Strauss, 1975, p. 318).

21

Isso quer dizer que para o etnólogo quanto mais obvia é a estrutura social, mais

difícil é analisá-la. É a partir desse conceito que Lévi-Strauss desenvolve sua teoria

sobre o sistema de parentesco. A análise do autor na obra As estruturas elementares do

parentesco (1976) parte principalmente da ideia da proibição do incesto, que de acordo

com sua visão, é considerado um fenômeno universal.

Por estar presente em todas as sociedades, essa proibição acaba se configurando

como um fato natural, e sendo assim, não é questionada. O autor desenvolve sua teoria

„desnaturalizando‟ a questão do incesto, relatando que toda sociedade adota meios de

proibir essa prática.

Para ele, a proibição do incesto possui uma explicação puramente social. É essa

proibição que leva à exogamia, e sendo assim, é ela que obriga as famílias a fazerem

alianças e a manterem desse modo a coesão e a unidade do grupo social.

Cada casamento dá lugar ao nascimento de uma nova família, é a

família, ou melhor, são antes as famílias que produzem o casamento,

principal meio socialmente aprovado de que dispõem para se aliarem

umas às outras. Como se costuma dizer na Nova Guiné, o casamento tem

menos por objetivo a procura de uma esposa do que o de obter

cunhados. Desde que foi reconhecido que o casamento une mais os

grupos que os indivíduos, muitos costumes ficaram esclarecidos. (Strauss,

1983, p. 80)

É a partir dessas ideias de Lévi-Strauss que a antropóloga Gayle Rubin escreve

seu trabalho. Ambos os autores partilham da ideia que o sistema de parentesco é um

imperativo da organização cultural. Rubin também enfatiza que cada sociedade possui

um sistema sexo/gênero específico, e, por isso mesmo, a questão da subordinação da

mulher deve ser estudada de forma particular nos diferentes contextos sociais.

Para a autora, o sistema sexo/gênero consiste basicamente no conjunto de

arranjos por meio dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em

normas culturais. Ou seja, para ela, o sistema sexo/gênero é o mecanismo pelo qual a

sociedade modela a questão da sexualidade e da reprodução.

Partindo dessa definição, Rubin reitera que a construção da diferença sexual é

muito mais influenciada por fatores culturais do que por fatores biológicos. De acordo

com sua teoria, a opressão das mulheres é produto do sistema social, e no que se refere à

22

diferença sexual, a cultura se sobrepõe à natureza.

A antropóloga considera que o parentesco está na base do desenvolvimento do

sistema sexo/gênero. De acordo com sua teoria, o parentesco instaura a diferença,

exacerbando no plano da cultura, as diferenças biológicas entre os sexos. O sistema de

parentesco envolve a criação de dois gêneros dicotômicos, a partir da diferença

biológica, provocando assim a interdependência entre homens e mulheres.

De acordo com a análise de Piscitelli, a antropóloga Gayle Rubin foi pioneira na

abordagem sobre o conceito de gênero, que se difundiu rapidamente entre os estudos

feministas, especialmente no final da década de 1970. Piscitelli relata que essa categoria

de análise se caracterizou pela distinção sexo/gênero, em que „sexo‟ é entendido como o

conjunto de fatores biológicos, e „gênero‟ como o conjunto de fatores sociais e culturais.

Posteriormente, as teorias que se basearam nesse conceito acabaram recebendo grandes

críticas devido à rigidez da distinção sexo/gênero.

Outra autora central no debate a respeito do conceito de gênero é a historiadora

Joan Scott, nascida em 1941, nos Estados Unidos. Atualmente Scott é professora da

Escola de Ciências Sociais do Instituto de Altos Estudos de Princeton, na Nova Jersey, e

é considerada uma das principais teóricas da literatura de gênero. Sua preocupação

central foi analisar o uso do termo „gênero‟ e entender os diferentes significados com

que ele foi empregado.

De acordo com sua teoria, as feministas dos Estados Unidos foram as primeiras

a aderirem o uso do conceito de gênero, com o objetivo de enfatizar o caráter social das

distinções baseadas no sexo. O uso do termo demonstrava uma clara rejeição ao

determinismo biológico, que estava implícito no uso de palavras como „sexo‟ e

„diferença sexual‟.

Além disso, o conceito de gênero também foi usado para reiterar a reciprocidade

da relação entre homens e mulheres. De acordo com essa perspectiva, uma análise

crítica sobre a história das mulheres só é possível quando se estuda conjuntamente a

história dos homens. Sendo assim, é impossível realizar um estudo relevante que leve

em consideração só os homens ou só as mulheres.

Scott também relata que, muitas vezes, o termo „gênero‟ foi usado como

sinônimo de „mulheres‟, principalmente no meio acadêmico. Para a autora, a adesão do

conceito de gênero se deu principalmente com as feministas dos anos 1980, que

buscavam legitimidade para os seus estudos.

23

Nessas circunstâncias, o uso do termo „gênero‟ visa indicar a erudição e

a seriedade de um trabalho porque „gênero‟ tem uma conotação mais

objetiva e mais neutra do que „mulheres‟. O gênero parece integrar-se

na terminologia científica das ciências sociais e, por consequência,

dissociar-se da política do feminismo. (Scott, 1991, p. 6).

Em síntese, tanto Scott quanto Rubin procuram mostrar que o uso do termo

„gênero‟ foi usado para reforçar o caráter social da divisão de papéis sexuais. O seu uso

é uma forma de enfatizar que a identidade de homens e mulheres é construída

socialmente.

Além disso, Scott relata que os teóricos do conceito de gênero buscavam não só

o desenvolver enquanto categoria de análise, mas também dar uma nova perspectiva aos

estudos e às pesquisas da área. De acordo com a autora, o „gênero‟ era um termo usado

por intelectuais que defendiam a resignificação do papel da mulher na história.

24

1.3 O INGRESSO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO

Para entender a atuação das mulheres na advocacia, é preciso, antes, entender a

atuação das mulheres no mercado de trabalho. Diferentemente dos homens, as mulheres

encontraram muitas dificuldades para ingressar em qualquer esfera do espaço público,

que sempre se caracterizou como território exclusivamente masculino.

Michele Perrot é uma historiadora francesa, nascida em 1928, e professora

emérita da Universidade de Paris. Suas obras procuram analisar os fatores que

contribuíram para o ingresso feminino no mercado de trabalho. A partir de uma

perspectiva histórica, a autora discorre na obra Minha história das mulheres (2006), a

respeito do processo vivido pelas mulheres para conseguirem frequentar o espaço

público.

O ponto de partida de sua análise é a influência religiosa na diferenciação de

papéis sexuais, que associa sempre o homem ao domínio público, e a mulher, ao

domínio privado. Além disso, as religiões monoteístas, a saber, o cristianismo, o

judaísmo, e o islamismo naturalizam a subordinação feminina. Ou seja, estabelecem que

a superioridade masculina é fruto da vontade divina.

Até o século XVI somente os homens podiam ter acesso ao latim e ao

conhecimento. O saber era considerado sagrado, e, por isso, era exclusividade

masculina. Só a partir da Reforma Protestante é que as mulheres passaram a frequentar

escolas.

A Reforma existiu para as mulheres? Sim, principalmente para a

instrução. O livre acesso à Bíblia supunha que também as meninas

soubessem ler. A Europa protestante as alfabetizou através de uma rede

de escolas, e o contraste entre os países setentrionais e mediterrâneos se

acentuou por muito tempo sob esse aspecto. (Perrot, 2007, p.86).

Michele Perrot relata que, na Europa, as mulheres passaram a frequentar o

ensino primário nos anos 1880, e o ensino secundário em torno de 1900. Já o ingresso

na universidade se deu entre as duas guerras, principalmente a partir de 1950.

Apesar do acesso à instrução, as mulheres encontraram muitos obstáculos para

se afirmarem enquanto pensadoras. Apesar de estudarem e escreverem suas próprias

teorias, elas não podiam publicar ou mesmo serem reconhecidas como escritoras. Só a

partir do século XIX, as mulheres conseguem espaço na literatura, especialmente como

romancistas.

25

Evidentemente, a irrupção de uma presença e de uma fala femininas em

locais que lhes eram até então proibidos, ou pouco familiares, é uma

inovação do século XIX que muda o horizonte sonoro. Subsistem, no

entanto, muitas zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano

de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da memória, e ainda

mais, da história, este relato que, por muito tempo, esqueceu as

mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução,

elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento.

(Perrot, 2005, p. 9).

Por isso, a historiadora escreveu um trabalho sobre isso que resultou na obra As

mulheres ou os silêncios da história (1998), que trata especificamente da questão da

ausência de uma memória feminina comum. Nesse trabalho, a autora relata que parte

dessa dificuldade se deve ao fato de que as mulheres eram associadas à capacidade de

reprodução. Já as capacidades de criação e de abstração eram consideradas qualidades

tipicamente masculinas.

De acordo com sua perspectiva, as mulheres encontram dificuldades em

estabelecer uma narrativa histórica comum, pois elas aparecem menos no espaço

público, objeto maior da observação e da narrativa histórica. Além disso, os

historiadores e intelectuais da época eram homens, e na maioria das vezes, partiam da

ideia de um masculino universal.

Para Perrot, a dificuldade de escrever a história das mulheres deve-se ao

apagamento de seus traços na narrativa histórica tradicional, justamente por ela

privilegiar a vida pública (como a política e as guerras), onde as mulheres aparecem

pouco.

Por isso, nessa obra, a autora procura resgatar memórias femininas pessoais,

como por exemplo, correspondências familiares, diários íntimos, cartas de amor,

recordações. Sendo assim, Perrot conclui que os registros das mulheres estão ligados à

sua condição na família e na sociedade. Ou seja, a memória das mulheres é uma

memória do privado, voltada para a família e para o íntimo, ao qual elas estão de certa

forma, relegadas por convenção e posição.

Outro aspecto que a autora analisa é a questão do trabalho feminino. Para ela, as

mulheres sempre trabalharam. Porém, seu trabalho pertencia à esfera doméstica, e não

era nem valorizado nem remunerado. Perrot relata que, durante muito tempo, as

26

mulheres estiveram ligadas ao trabalho rural, especialmente no período que precede à

Segunda Guerra Mundial. Nessa época, praticamente metade das mulheres francesas

eram camponesas.

A vida das mulheres camponesas era marcada pela hierarquia patriarcal e por

uma rígida divisão de papéis e tarefas. Enquanto o homem era responsável pelo trabalho

da terra e pelas transações do mercado, as mulheres eram responsáveis pelo cuidado da

casa, pelo cultivo da horta e pela criação de animais.

A partir da Revolução industrial, principalmente após a Primeira Guerra

Mundial, as mulheres começaram a trabalhar no espaço urbano. Antes desse período, as

mulheres só encontravam emprego em casas de família, onde trabalhavam como

empregadas domésticas, e raramente eram assalariadas. No geral, recebiam retribuições,

como moradia e alimentação, e tinham uma jornada de trabalho ilimitada, sem nenhum

direito ou garantia.

Após a guerra de 1914, as mulheres passaram a ser numerosas nos hospitais

laicos e nas fábricas. A princípio, as mulheres se concentraram nas indústrias têxteis,

posteriormente, conseguiram espaço nas indústrias alimentares, químicas, e

eletromecânicas.

Por influência do mercado e das comunicações. Pela industrialização.

Pelo êxodo rural. Pela ação das guerras, principalmente a de 1914-

1918, que esvaziou o campo de seus jovens e transferiu uma parte de

suas tarefas e de seus poderes para as mulheres: elas aprenderam a

lavrar a terra, gesto viril, e a gerenciar seu negócio. Esses fatores

acumulados modificaram o equilíbrio das famílias e as relações entre os

sexos e mudaram a vida das mulheres. (Perrot, 2007, p. 113).

Perrot enfatiza que a revolução industrial, o êxodo rural, e as duas grandes

guerras mundiais foram determinantes para a entrada das mulheres no mercado de

trabalho, e consequentemente, no espaço público.

Além disso, a autora também relata a dificuldade de se estudar a história das

mulheres e de identificar um período que delimite a introdução da mulher na

historiografia. Para Perrot, os próprios acontecimentos históricos são contraditórios.

A Revolução Francesa é um exemplo claro dessa contradição. O universalismo e

a igualdade pregados por ela não dizia respeito às mulheres, que estavam desprovidas de

qualquer participação política. Embora a Revolução concedesse direitos civis às

27

mulheres, não lhes concedia nenhum direito político.

Outro trabalho que também possui uma perspectiva histórica sobre a questão de

gênero é o de Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês, que se consagrou como

um dos grandes intelectuais da modernidade. A preocupação central de sua teoria é

explicar os mecanismos de reprodução social que legitimam as diversas formas de

dominação na sociedade moderna.

Embora não seja sua principal área de estudo, Bourdieu faz uma análise

específica a respeito das várias causas que legitimaram a dominação masculina ao longo

do tempo. Sua proposta na obra A dominação masculina (1999) é abandonar as visões

que encaram as relações entre os sexos sob uma vertente essencialista e naturalista, e

adotar uma perspectiva de caráter histórico. Sua ideia consiste em entender os

mecanismos que foram responsáveis pela eternização desse tipo de divisão sexual.

Em primeiro lugar, o autor relata que as estruturas sexuais são totalmente

independentes das estruturas econômicas. Pois em todas as sociedades, independente do

sistema econômico e cultural adotado por elas, existe uma divisão sexual bem

estabelecida. O autor enfatiza que essa questão também ultrapassa os limites do tempo,

e pode ser observada ao longo dos séculos.

Para Bourdieu, a permanência e a reprodução da distinção entre homens e

mulheres se devem a dois fatores: à atuação dos próprios indivíduos, que consentem e

difundem essa relação, e também às instituições fundamentais da sociedade, que

garantem a legitimação da dominação masculina.

Entre essas instituições, o autor destaca a Igreja, a Escola, e principalmente a

Família. São elas as responsáveis por reproduzir as estruturas objetivas e subjetivas da

separação tradicional de gênero. Para Bourdieu, essas instituições têm o poder de

instituir determinados padrões de comportamento, e fazer com que o indivíduo

interiorize desde cedo certos valores. São instituições que possuem a capacidade de

atingir inclusive as estruturas inconscientes dos indivíduos.

Bourdieu relata que embora a lógica do modelo tradicional de gênero ainda

continue se reproduzindo, as várias mudanças sociais ocorridas nas ultimas décadas

conseguiram alterar de forma significativa esse padrão. Entre essas mudanças, o

sociólogo destaca o maior acesso das mulheres à escola e à universidade, a expressiva

entrada feminina no mercado de trabalho, o surgimento de técnicas anticoncepcionais, o

aumento da taxa de divórcios, a redução do tamanho das famílias, e assim por diante.

O autor ressalta que, antes dessas inovações, o espaço feminino na sociedade se

28

restringia basicamente à esfera doméstica e familiar. Posteriormente, as mulheres

passaram a ter a oportunidade de participar também da esfera pública, que, até então,

era considerada território masculino. É importante lembrar que essa mudança não

significa necessariamente que as mulheres passaram a dividir igualmente essa esfera do

espaço social.

Exemplo disso é a questão da entrada das mulheres no mercado de trabalho.

Embora estejam se preparando tanto quanto os homens, elas ainda encontram

dificuldades em ocupar cargos de autoridade e de liderança em praticamente todas as

profissões. Por isso, Bourdieu afirma que o número de mulheres diminui à medida que

se sobe na hierarquia profissional. Além disso, elas acabam sendo mais afetadas pelo

desemprego, são relegadas com mais facilidade a trabalhos de tempo parcial, e no geral,

recebem salários mais baixos que os homens.·.

Qualquer que seja sua posição no espaço social, as mulheres têm em

comum o fato de estarem separadas dos homens por um coeficiente

simbólico negativo que, tal como a cor da pele para os negros, ou

qualquer outro sinal de pertencer a um grupo social estigmatizado, afeta

negativamente tudo que elas são e fazem. (Bourdieu, 1999, p. 111)

Após explicitar todos esses fatos, o autor conclui que, apesar das várias

conquistas obtidas pelas mulheres nas últimas décadas, a sociedade ainda se organiza

através do modelo tradicional de gênero. A hegemonia desse modelo pode ser explicada

pela existência do que Bourdieu chama de habitus. Esse conceito remete aos valores,

que são internalizados pelos indivíduos através da socialização, e que funciona como

uma espécie de orientação para vida em sociedade.

29

2. MULHERES ADVOGADAS

Após analisar trabalhos sobre a subordinação feminina e sobre a entrada da

mulher no mercado de trabalho, torna-se necessário uma análise mais específica sobre o

ingresso das mulheres na advocacia. É fundamental também analisar a atuação das

mulheres advogadas na atualidade, observando quais são os principais obstáculos de

atuação e ascensão na carreira. Para isso, trabalhos específicos sobre o tema, como os de

Eliane Botelho Junqueira e os de Rennê Martins Barbalho, servirão de base para um

estudo mais aprofundado.

2.1 O INGRESSO DAS MULHERES NA ADVOCACIA

De acordo com Perrot, a primeira mulher advogada foi a francesa Jeanne

Chauvin, que concluiu o curso em 1899. Para que ela pudesse exercer a profissão, foi

necessária a criação de uma lei que permitia a sua atuação como advogada. Perrot

acrescenta ainda que as mulheres tardaram para conquistar espaço na advocacia. Para

exemplificar sua ideia, ela relata que entre 1900 e 1917 formaram-se apenas dezoito

advogadas na França.

No Brasil, a entrada das mulheres na advocacia também foi tardia. De acordo

com Lucia Maria Paschoal Guimarães e Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira,

a primeira mulher a exercer a advocacia no Brasil foi Myrthes Gomes de Campos.

No artigo Myrthes Gomes de Campos: pioneirismo na luta pelo exercício da

advocacia e defesa da emancipação feminina (2009), as autoras relatam que a advogada

concluiu a graduação em 1898, na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do

Rio de Janeiro. Anteriormente, na Faculdade do Recife, três mulheres já haviam

concluído o curso de Direito em 1888. Nenhuma delas, porém, chegou a exercer o

ofício.

Segundo as autoras, Myrthes Gomes de Campos encontrou diversos obstáculos

para conseguir atuar como advogada. Primeiramente, encontrou resistência do Tribunal

da Relação do Rio de Janeiro, ao tentar reconhecer o seu diploma de bacharel. Após

muita controvérsia, conseguiu autenticá-lo no Tribunal. Depois disso, teve que lidar

com a dificuldade em conseguir o registro da Corte de Apelação do Distrito Federal.

Para isso, a advogada precisou vencer a resistência do presidente da Corte, o

desembargador José Joaquim Rodrigues.

30

Obtido, afinal, o registro na Corte de Apelação, restava ainda um último

obstáculo a transpor: legitimar-se profissionalmente. Isto só poderia

ocorrer por meio da filiação ao Instituto da Ordem dos Advogados

Brasileiros, o que constituía um fato inédito no país. Desde a sua

fundação, em 1843, nenhuma mulher havia pleiteado o ingresso na

corporação dos bacharéis, outro espaço masculino por excelência.

(Guimarães; Ferreira, 2009, p.141).

Sua atuação profissional só foi legitimada em 1906, quando o Instituto da Ordem

dos Advogados do Brasil (IOAB) aprovou o seu ingresso na carreira. Mesmo sem o

registro na IOAB, a advogada estabeleceu seu escritório no centro do Rio de Janeiro, e

conseguiu inclusive permissão do juiz Viveiros de Castro para atuar no Tribunal do Júri.

Em 1899, anunciou-se a estreia de Myrthes Gomes de Campos na tribuna, onde até

então somente homens haviam pedido a absolvição dos réus. A notícia da sua estreia

mobilizou a imprensa e causou grande interesse público. Todos os jornais da época

noticiaram o acontecimento, e no dia do julgamento, havia mais de quinhentas pessoas

disputando lugar no Tribunal.

O certo é que as colunas dos jornais abriram-se para comentar a

performance pioneira de Myrthes Campos. Naquela ocasião, somente em

alguns estados da Federação norte-americana permitia-se às mulheres o

direito de defesa nos tribunais. Na França, em 1897, a Corte de

Apelação negara autorização a bacharel Jeanne Chauvin para o

exercício da profissão de advogada, a pretexto de que não existia

nenhum dispositivo legal que facultava esse direito às mulheres. A

demanda fora levada ao parlamento e só se resolveria com a

promulgação de uma lei, votada em 1900. (Guimarães; Ferreira, 2009,

p.141).

A comoção pública, causada pela estreia da advogada no Tribunal, demonstra o

quanto a advocacia era considerada uma profissão masculina na época. Essa questão do

espaço público enquanto esfera masculina é enfatizada também pela historiadora

Margareth Rago, que atualmente é professora titular da UNICAMP. Em seu artigo

Trabalho feminino e sexualidade (1997), a historiadora analisa as inúmeras dificuldades

que as mulheres de todas as condições sociais enfrentaram para ingressar no mundo do

31

trabalho. Embora o foco do seu artigo seja o trabalho das mulheres operárias, Rago não

deixa de observar que as mulheres se depararam com diversos obstáculos em todas as

esferas do mundo profissional.

As barreiras enfrentadas pelas mulheres para participar do mundo dos

negócios eram sempre muito grandes, independentemente da classe

social a que pertencessem. Da variação salarial à intimidação física, da

desqualificação intelectual ao assédio sexual, elas tiveram sempre de

lutar contra inúmeros obstáculos para ingressar em um campo definido-

pelos homens- como naturalmente masculino. Esses obstáculos não se

limitavam ao processo de produção; começavam pela própria

hostilidade com que o trabalho feminino era tratado no interior da

família. (Rago, 1997, p.581).

De acordo com sua análise, as elites intelectuais e políticas do início do século

XX procuraram redefinir o lugar das mulheres na sociedade, justamente no momento

em que a crescente urbanização e a industrialização abriam a elas novas possibilidades

de trabalho. Muitos teóricos, médicos, juristas e economistas da época acreditavam que

o trabalho da mulher fora de casa desestruturaria o lar e abalaria os laços familiares.

Nesse contexto, em que as mulheres estavam sendo incorporadas ao mercado de

trabalho, passou a ser amplamente discutido o trabalho feminino, e assim, o espaço

público passou a ser visto como ameaçador para a moralidade das mulheres. Em

contrapartida, o lar era visto como o ninho sagrado que abrigava a família.

Sendo assim, fica explícito que as mulheres encontraram resistência em todas as

áreas da esfera profissional, e no caso da advocacia, não é diferente. As primeiras

advogadas mulheres tiveram que lidar tanto com barreiras profissionais quanto com

barreiras culturais.

Na cidade de São Paulo, a primeira mulher bacharel em Direito foi Maria

Augusta Saraiva, que ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em

1897. Ela teve de se empenhar para ser admitida na Faculdade, e concluiu o curso em

1902, superando preconceitos de gênero e recebendo uma viagem à Europa como

32

prêmio por se destacar no curso.2 Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

(PUC-SP), o curso foi ofertado pela primeira vez em 1946. A primeira turma contou

com o ingresso de setenta e um homens, e nove mulheres.

Apesar do ingresso tardio na profissão, é importante ressaltar que atualmente o

número de mulheres advogadas cresce progressivamente a cada ano. De acordo com o

os dados divulgados em 2012, pelo Conselho Federal da OAB, do total de 696.864

advogados em atividade no Brasil, 384.152 são homens e 312.712 são mulheres, quase

45 % do total.

Para Rennê Martins Barbalho, advogada e doutora em sociologia, a presença

feminina é cada vez maior na advocacia brasileira. Para exemplificar sua ideia,

Barbalho relata que em São Paulo, no ano de 2006, o número de mulheres inscritas na

OAB-SP superou o número de homens. Nesse ano, 52% dos inscritos eram mulheres.

No Rio de Janeiro, esse fenômeno também foi constatado por Eliane Botelho

Junqueira. A advogada, que é doutora em direito, relatou no artigo Mulheres

advogadas: espaços ocupados (2001), que apesar dos preconceitos existentes, o número

de mulheres advogadas cresce a cada ano. Junqueira constata que em 1975, a OAB do

Rio de Janeiro tinha 34,3% de inscrições de mulheres, enquanto que em 1995, este

número subiu para 54,6%.

Apesar dos dados indicarem um crescente aumento da presença feminina na

advocacia, as mulheres ainda encontram resistência e dificuldades em várias esferas

desse espaço profissional. Por meio da análise de trabalhos específicos sobre o tema, é

fundamental pontuar quais são essas dificuldades e por que elas ocorrem.

2 Notícia publicada por Marcos da Costa, presidente em exercício da OAB-SP, no site oficial da OAB, em

23/10/2012. Disponível em <http://www.oabsp.org.br/palavra_presidente/2012/174/> Acesso

realizado em 10/04/2014.

33

2.2 DIFICULDADES DE ATUAÇÃO E ASCENSÃO NA CARREIRA

Apesar das estatísticas apontarem o processo de „feminização‟ das carreiras

jurídicas, elas também apontam a dificuldade feminina em chegar ao topo da carreira.

Tanto os dados coletados, quanto as entrevistas realizadas, demonstram uma série de

obstáculos encontrados pelas mulheres na profissão.

De acordo com Barbalho, embora o número de mulheres com ensino superior já

tenha ultrapassado o número de homens, se observa uma grande concentração de

mulheres em ocupações femininas tradicionais, como as áreas da educação, das artes, da

saúde e do bem estar social. Mesmo quando ingressam em áreas de maior prestigio, as

mulheres enfrentam:

Dificuldades de ingresso a posições mais elevadas dentro da carreira

ocupada, o que é denominado „telhado de vidro‟, glass ceiling,

(Mossman, 2006) uma referência à barreira invisível que dá uma

enganosa aparência de igualdade de oportunidades de ascensão na

carreira, mas que inibe o acesso delas aos cargos mais elevados na

hierarquia profissional. (Barbalho, 2008, p. 15).

De acordo com seu trabalho, o chamado „telhado de vidro‟ está presente em

todas as profissões. Na advocacia, por exemplo, o „telhado de vidro‟ representa a

dificuldade feminina em ascender profissionalmente. Também há uma incidência maior

de mulheres atuando nas áreas do direito familiar e trabalhista, que são áreas ligadas à

questão do cuidado e da mediação de conflitos.

Já na Magistratura, a maior concentração de juízas se dá nos Juizados Especiais,

onde o objetivo principal é a conciliação entre as partes. Para Barbalho, é como se a

vida profissional da mulher fosse encarada como uma extensão da vida doméstica, ou

seja, as habilidades desenvolvidas no espaço doméstico são trazidas para o ambiente

profissional.

De acordo com Barbalho, as advogadas ainda enfrentam desigualdade de

remuneração e estagnação nos cargos ocupados. Mesmo que as profissionais invistam

tanto na carreira quanto seus colegas, o período de estagnação é maior para elas. Por

isso, a carreira pública aparece como uma das saídas para as mulheres conquistarem

estabilidade e segurança financeira.

34

Como equacionar os conflitos emocionais e as incertezas de uma

carreira liberal demanda muito mais energia delas, o cargo público pode

surgir como opção de realização profissional e pessoal, pois pode

significar estabilidade no emprego, renda, e principalmente, do horário.

(Barbalho, 2008, p. 16).

A autora enfatiza que a vantagem do cargo público é a estabilidade de renda e a

flexibilidade de horários. Sendo assim, a mulher consegue conciliar melhor a vida

profissional e pessoal. Isso não quer dizer que a carreira pública esteja isenta de

preconceito e dificuldades em relação ao gênero. A magistratura, por exemplo, por ser

um cargo público oferece o mesmo padrão de rendimentos para homes e mulheres.

Nesse caso, o „telhado de vidro‟ se manifesta no acentuado desnível nas instâncias

superiores.

Outro aspecto enfatizado por Barbalho é que o chamado „telhado de vidro‟ é um

fenômeno internacional no mundo jurídico, e pode ser observado em outros países

ocidentais como Canadá e Estados Unidos (Mossman, 2006) e também na França

(Feuvre; Lapeyere, 2005).

Mary Jane Mossman observa que a partir dos anos 1970, houve um expressivo

crescimento do número de mulheres advogadas nos Estados Unidos e no Canadá.

Porém, esse crescimento quantitativo não correspondeu a um avanço qualitativo na

carreira. De acordo com seu trabalho As primeiras mulheres advogadas: um estudo

comparativo de gênero, direito, e profissões jurídicas (2006), embora as mulheres

obtenham sucesso individual na advocacia, dificilmente atingem o topo da carreira, que

é predominantemente masculino.

Assim como Mossman, Nicky Le Feuvre e Nathalie Lapeyere observaram esse

mesmo fenômeno na França. De acordo com as autoras de Os scripts sexuais das

carreiras jurídicas na França (2005), existe igualdade de homens e mulheres somente

na base da carreira jurídica. Quando se trata dos cargos de liderança, há desequilíbrio na

distribuição por gênero. Essa pesquisa sugere ser necessário analisar a organização da

vida familiar, pois para as autoras, o principal obstáculo de ascensão na carreira é a

dificuldade das mulheres em conciliar a vida profissional e pessoal.

Outra autora fundamental no estudo do processo de feminização das carreiras

jurídicas é Eliane Botelho Junqueira. Enquanto Barbalho se baseia na observação dos

escritórios de advocacia do estado de São Paulo, Junqueira parte da análise dos

35

escritórios do Rio de Janeiro, e ambas chegam a conclusões semelhantes.

Junqueira conclui que a maior discriminação com as mulheres advogadas não

está nas carreiras públicas (magistratura, ministério público, procuradorias e

defensorias), e sim nos próprios escritórios de advocacia. Isso quer dizer que mesmo as

mulheres se especializando tanto quanto os homens, elas dificilmente chegam aos

cargos mais altos do escritório.

O mercado é fechado para ela como advogada. São raros os grandes

escritórios, as grandes empresas de advocacia, que têm mulheres no

topo da lista de advogados. É muito raro. Elas não alcançam, quer dizer,

não se permite que elas alcancem. Independente de serem mais capazes,

mais conscientes, mais responsáveis com as suas tarefas. (Junqueira,

2001, p. 187).

Para Junqueira, a advocacia é uma profissão competitiva, que exige dedicação

integral à carreira. Para as mulheres, que se dedicam mais do que os homens à vida

pessoal e familiar, isso acaba sendo um obstáculo. A autora acrescenta ainda, que

mesmo quando as profissionais fazem a opção de se dedicarem integralmente à

advocacia, sofrem com esse estereótipo de gênero, que associa as mulheres aos cuidados

domésticos.

A advogada também relata que apesar da facilidade do ingresso das mulheres na

advocacia, ainda existem áreas que são restritas para elas, como a área do direito penal.

De acordo com Junqueira, o direito penal é associado ao „mundo do crime‟, e por isso é

considerado inapropriado para mulheres. Sendo assim, as advogadas que atuam nessa

área encontram maior resistência do que as que atuam em outras áreas da advocacia.

Junqueira constata que além das profissionais não ascenderem aos cargos mais

altos, elas também ficam sujeitas a uma divisão sexual do trabalho, que as delega às

funções mais simples, triviais e rotineiras. Além disso, as mulheres ainda enfrentam

discriminação por parte dos clientes que, muitas vezes, preferem advogados homens

atuando em sua defesa.

Por isso, Junqueira enfatiza que a carreira pública aparece como uma

possibilidade profissional para as mulheres, devido à estabilidade que ela proporciona.

Ainda que, em longo prazo, a advocacia ofereça maiores rendimentos, o sucesso como

profissional liberal é mais difícil para as mulheres, em razão da maior competitividade

na profissão.

36

Em seu artigo A mulher juíza e a juíza mulher (1998), Junqueira analisa a

escolha profissional das mulheres que optaram pela carreira pública, especialmente a

magistratura. Apesar das juízas entrevistadas pela advogada, reclamarem do volume

excessivo de trabalho, elas enaltecem que a magistratura permite uma flexibilidade de

horário extremamente importante para a mulher que precisa conciliar os papéis de

profissional, mãe, e esposa.

Apesar do grande volume de trabalho a que são submetidos os juízes, os

magistrados gozam da liberdade de realizar parte de suas tarefas em

casa, até por falta de condições de infraestrutura dos cartórios, onde são

obrigados a atender advogados e não possuem muitas vezes

computadores próprios, livros de doutrina e jurisprudência. É em suas

casas que, efetivamente os juízes elaboram suas sentenças e despachos

mais complexos. (Junqueira, 1998, p. 147).

Essa flexibilidade de horários exposta por Junqueira permite que as mulheres

consigam maior conciliação entre as atividades profissionais e familiares. Apesar disso,

as mulheres juízas relatam inúmeras dificuldades no exercício da profissão,

principalmente devido ao excesso de trabalho, e ao fato da magistratura obrigar a

atuação em outras cidades, o que acaba tendo um peso negativo na relação com o

marido e com os filhos.

37

2.3 O “TELHADO DE VIDRO” E AS SOCIEDADES DE ADVOGADOS

De acordo com o artigo de Luciana Gross Cunha, Sociedades de Advogados e

tendências profissionais (2007), a advocacia atualmente é marcada pela expansão das

sociedades de advogados, que se caracterizam principalmente pela organização

empresarial. Nessas sociedades os profissionais se dividem em equipes, e cada equipe

atua em uma área específica da advocacia.

Outra característica dessas sociedades é a divisão dos advogados entre „sócios‟ e

„associados‟. Os sócios são os profissionais que possuem maior poder econômico e

político, são aqueles que têm participação nos resultados e nas principais decisões do

escritório. Já os associados recebem remuneração mensal, e na maioria das vezes, não

tem acesso aos lucros do escritório. Sendo assim, essa hierarquia entre sócios e

associados possibilita uma análise sobre a divisão de homens e mulheres nos escritórios

de advocacia.

A partir de uma análise quantitativa, realizada em um trabalho anterior a esse,

pude observar a distribuição desigual de homens e mulheres nos principais escritórios

de advocacia do estado de São Paulo. Por meio da coleta de dados, disponibilizados no

site do CESA (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados), pude constatar,

durante o meu trabalho de conclusão de curso, que a maioria dos sócios desses

escritórios são homens.

Fundado em 1983, o CESA é uma associação civil, sem fins lucrativos,

constituída por sociedades de advogados regularmente inscritas na Ordem dos

Advogados do Brasil. Inicialmente contando com associadas de São Paulo, o CESA foi

aos poucos se expandindo, e atualmente, conta com mais de mil sociedades inscritas.3

Apesar de ser um centro formalmente sem fins lucrativos, para se associar ao

CESA, as sociedades participam com o pagamento de taxas semestrais que obedecem a

uma lógica de quanto maior o número de membros da sociedade de advogados, maior é

a taxa semestral a ser quitada.

No site do CESA estão cadastradas as principais sociedades de advogados do

Brasil. Os escritórios estão divididos por estado, e através do site é possível verificar

informações de cada sociedade cadastrada, como as áreas de atuação na advocacia e a

divisão interna do escritório. Por meio dos dados disponibilizados nesse site foi possível

3 Disponível em <http://www.cesa.org.br/> Acesso realizado em 24/04/2014.

38

construir as tabelas abaixo, que tornam visível a ordenação desigual de homens e

mulheres nas principais sociedades de advogados de São Paulo.

Tabela 1. Distribuição dos sócios dos escritórios de advocacia do estado de São Paulo, filiados

ao CESA, segundo o gênero e o tamanho do escritório.

Sócios

Sociedades Homens Mulheres Total

1 a 9 73 (83%) 15 (17%) 88

10 a 49 389 (71%) 162 (29%) 551

50 ou mais 163 (72%) 62 (28%) 225

TOTAL 625 (72%) 239 (28%) 864

Fonte: Site do CESA, 2011.

Tabela 2. Distribuição dos associados dos escritórios de advocacia do estado de São Paulo,

filiados ao CESA, segundo o gênero e o tamanho do escritório.

Associados

Sociedades Homens Mulheres Total

1 a 9 84 (48%) 91 (52%) 175

10 a 49 675 (46%) 798 (54%) 1473

50 ou mais 354 (44%) 455 (56%) 809

TOTAL 1113 (45%) 1344 (55%) 2457

Fonte: Site do CESA, 2011.

A observação das tabelas nos mostra que o topo da carreira na advocacia é

predominantemente masculino. Isso quer dizer que, embora os escritórios de advocacia

tenham em média um número equilibrado de homens e mulheres, elas ainda encontram

dificuldade em ocupar os cargos de liderança.

Uma possível explicação para isso poderia ser o grau de escolaridade. Os

homens poderiam estar ocupando os cargos mais altos dos escritórios por estarem mais

qualificados. Por isso, considerei fundamental analisar o nível de qualificação dos

advogados que fazem parte das grandes sociedades de advogados de São Paulo. A

39

tabela abaixo torna possível observar a escolaridade desses profissionais, segundo o

gênero e a posição ocupada no escritório.

Tabela 3. Distribuição dos sócios dos escritórios de advocacia do estado de São Paulo, filiados

ao CESA, segundo o gênero e a formação acadêmica.

Sócios

Escolaridade Homens Mulheres Total

Bacharel 166 (27%) 53 (22%) 219 (25%)

Mestre 108 (17%) 30 (13%) 138 (16%)

Doutor 63 (10%) 7 (3%) 70 (8%)

Pós graduado 211 (34%) 108 (45%) 319 (37%)

Sem informação 77 (12%) 41 (17%) 118 (14%)

Total 625 239 864

Fonte: Site do CESA, 2011.

Tabela 4. Distribuição dos associados dos escritórios de advocacia do estado de São Paulo,

filiados ao CESA, segundo o gênero e a formação acadêmica.

Associados

Escolaridade Homens Mulheres Total

Bacharel 361 (32%) 420 (31%) 781 (32%)

Mestre 107 (10%) 84 (6%) 191 (8%)

Doutor 14 (1%) 5 (0%) 19 (1%)

Pós graduado 460 (41%) 613 (46%) 1073 (44%)

Sem informação 171 (15%) 222 (17%) 393 (16%)

Total 1113 1344 2457

Fonte: Site do CESA, 2011.

Observando as tabelas 3 e 4, podemos concluir que no geral não há grandes

discrepâncias na formação dos homens e mulheres dos escritórios observados. Existe

sim um número maior de homens com pós-graduação stricto sensu (mestrado e

doutorado), ao passo que também há uma concentração maior de mulheres que fizeram

pós-graduação lato sensu. Embora exista essa pequena variação, podemos concluir que

40

a escolaridade não é uma variável explicativa para a posição ocupada dentro do

escritório. Isso quer dizer que a escolaridade não justifica a dificuldade feminina em

chegar ao topo da carreira.

Maria Inês Bergoglio, que é doutora em ciência política e professora da

Universidade Nacional de Córdoba, realizou um trabalho sobre a segmentação por

gênero nas grandes sociedades de advogados. No artigo A mobilidade profissional nos

grandes escritórios de advocacia: análises de gênero (2007), Bergoglio analisa a

exclusão das mulheres nos cargos de „sócios‟ em vários países observados por ela,

como a Argentina, o Brasil, a Austrália, e os Estados Unidos.

A análise de Bergoglio reforça a ideia de que o „telhado de vidro‟ é uma

realidade enfrentada pelas mulheres na advocacia. Assim como as outras autoras

citadas nesse capítulo, Bergoglio enfatiza que a ascensão na carreira não depende

somente da competência e do empenho dos profissionais. Existem outros fatores que

facilitam ou dificultam o sucesso na advocacia.

De acordo com seu trabalho, as mulheres priorizam mais a vida pessoal do que

os homens, e por isso, raramente possuem especialização fora do país ou experiência no

exterior. Por estarem mais envolvidas com a vida pessoal, as mulheres também

encontram mais dificuldades em estabelecerem redes de networkings.

Mônica Mancini, que é doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, enfatiza que

o „telhado de vidro‟, ou seja, essa barreira invisível que dificulta a ascensão profissional

das mulheres está presente em todas as esferas do mercado profissional. De acordo com

sua tese Mulheres profissionais bem sucedidas: um estudo exploratório no contexto

organizacional brasileiro (2005), apesar das mesmas conquistas educacionais, os

homens progridem muito mais rapidamente na carreira do que as mulheres.

Para ela, o „telhado de vidro‟ fica visível quando se observa a diferença de

gênero que existe nos cargos mais altos de qualquer profissão. “Os homens têm mais

oportunidades de promoção do que as mulheres porque suas carreiras são mais

estimuladas. Sendo assim, o total de promoções entre ambos é diferente, o que provoca

diferenças salariais em que as mulheres ganham salários inferiores a dos homens em

cargos equivalentes.” (Mancini, 2005, p.89).

Essa dificuldade também é apontada no trabalho de Eliane Botelho Junqueira, já

citado acima, que afirma que as mulheres estão mais sobrecarregadas com a vida

doméstica e familiar, e por isso, possuem menos tempo de frequentar espaços de

41

sociabilidade (como clubes e atividades esportivas) que poderiam facilitar a atuação na

carreira.

Além da desconfiança em relação à capacidade de trabalho das

mulheres, os problemas na advocacia decorrem de outros fatores, tais

como da necessidade de dedicarem-se, mais do que os homens, à vida

privada tornando-as mais vulneráveis em suas carreiras. As mulheres

têm também maior dificuldade em participar das estratégias e das redes

de relações masculinas utilizadas principalmente na advocacia

empresarial para atrair os clientes, ou seja, da função de networking,

conforme é denominado nos Estados Unidos. (Junqueira, 1998, p. 147).

Essa divisão de cargos que está presente nas sociedades de advogados torna mais

visível a segmentação por gênero. Isso não significa que nos pequenos escritórios essa

segmentação não aconteça, ela apenas não pode ser apreendida a partir de análises

quantitativas. Por isso, o terceiro capítulo trata de entrevistas com advogadas que

trabalham tanto em escritórios pequenos quanto em grandes sociedades de advogados. É

a partir do contato com as advogadas que se dá a percepção do gênero nos diferentes

perfis de escritórios.

42

3. ENTREVISTAS E ANÁLISE DOS RESULTADOS OBTIDOS

As entrevistas com as advogadas é parte fundamental do trabalho, pois

possibilita o contato com a realidade da atuação profissional dessas mulheres. A

pesquisa de campo torna possível adentrar esse campo profissional específico,

observando quais são as reais dificuldades de atuação e ascensão na carreira relatadas

pelas advogadas.

A amostra foi pensada, a princípio, com seis advogadas que trabalham em

escritórios de pequeno porte, e seis em grandes sociedades de advogados. O objetivo foi

tentar entender como as mulheres percebem a questão do gênero em cada perfil de

escritório, e como lidam com as dificuldades encontradas na profissão.

O critério para distinguir os „pequenos escritórios‟ das „sociedade de advogados‟

se baseou no artigo Sociedades de advogados e tendências profissionais, de Luciana

Gross Cunha. Esse artigo, que já foi citado na introdução dessa dissertação, reforça que

o critério principal para distinguir um escritório tradicional da sociedade de advogados é

o perfil da advocacia praticada por ele.

Enquanto o escritório tradicional atende às necessidades de clientes individuais,

a sociedade de advogados prioriza clientes empresariais. O „pequeno escritório‟ é

formado, em sua maioria, por familiares e colegas, que atuam como uma equipe. Já a

„sociedade de advogados‟ possui organização empresarial, e representa o novo perfil da

advocacia.

Além dessas entrevistas, também tive oportunidade de conhecer a Comissão da

mulher advogada de São Paulo, e de ter contato com a Dra. Gislaine Caresia, presidente

da Comissão, que me relatou a sua visão em relação às perspectivas de ascensão

feminina na advocacia.

Outro contato fundamental para o trabalho foi com a Dra. Silvia Pimentel,

professora titular do curso de Direito da PUC-SP, que sempre esteve engajada na luta

pela emancipação feminina. Durante a entrevista, a advogada falou sobre a sua trajetória

na luta pelos direitos das mulheres, e sobre a sua atuação como presidente no Comitê

sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres.

O Comitê faz parte de um dos sete Comitês de Direitos Humanos da

Organização das Nações Unidas (ONU), e é responsável pela implementação da

Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres.

43

Essa Convenção consiste no primeiro tratado internacional que trata especificamente

sobre os direitos humanos da mulher.

A „Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação

contra as Mulheres‟ é a grande Carta Magna dos direitos das mulheres e

simboliza o resultado de inúmeros avanços principiológicos, normativos

e políticos construídos nas últimas décadas, em um grande esforço

global de edificação de uma ordem internacional de respeito à dignidade

de todo e qualquer ser humano. (Professora Dra. Silvia Pimentel).

A advogada explica que a Convenção vai além das garantias de igualdade e igual

proteção viabilizadas por instrumentos legais, estipulando medidas para a obtenção da

igualdade entre homens e mulheres em todos os aspectos da vida política, econômica,

social, e cultural.

No ano de 2004, a advogada Silvia Pimentel foi indicada pelo governo brasileiro

como candidata à presidência desse Comitê, e foi eleita em uma plenária que reunia

cento e oitenta e sete países, que ratificaram a Convenção. Posteriormente, foi reeleita

por duas vezes, e atualmente está no seu terceiro mandato, que teve início em janeiro de

2013.

Durante a entrevista, a advogada relatou que a sua preocupação central é

combater qualquer tipo de discriminação contra as mulheres e garantir assim os direitos

femininos na busca de promover a igualdade de gênero. Sendo assim, Silvia Pimentel

enfatiza que a sua preocupação engloba as mulheres de diversos países, de todas as

classes sociais, e especialmente as mulheres em situação de maior vulnerabilidade social

(como as mulheres rurais, indígenas, minorias político-culturais, afrodescendentes,

idosas, mulheres com deficiência, e mulheres em zonas de conflito armado).

Em síntese, ao final da pesquisa, foram realizadas catorze entrevistas. Em doze

delas o nome das entrevistadas permanecerá anônimo, e, em duas, as advogadas serão

nomeadas. As identidades da professora Dra. Silvia Pimentel e da Dra. Gislaine Caresia,

foram mencionadas devido à posição de destaque que essas advogadas ocupam na luta

pelos direitos das mulheres.

44

3.1 NOTA METODOLÓGICA

O contato com as advogadas se deu primeiramente por telefone ou e-mail, obtidos

através dos sites dos escritórios. No e-mail era explicada a proposta da pesquisa e

realizado o convite para participação no trabalho. Posteriormente, a entrevista era

agendada e realizada nos próprios escritórios de advocacia.

As entrevistas tiveram duração variável de trinta minutos a uma hora e meia, e

foram gravadas somente com a autorização das entrevistadas. O nome das advogadas,

bem como dos escritórios em que elas atuam não serão revelados na dissertação, com o

objetivo de preservar a identidade das entrevistadas. Por isso, todos os nomes citados

abaixo são fictícios, com exceção da presidente da Comissão da Mulher advogada de

São Paulo, e da professora Dra. Silvia Pimentel, que por serem pessoas públicas,

autorizaram a exposição de suas falas e de seus nomes.

Para compor o corpus qualitativo dessa pesquisa, busquei mulheres de diferentes

áreas da advocacia, e também procurei diversificar as gerações das profissionais

entrevistadas. Sendo assim, entrevistei advogadas com idade entre vinte e quatro anos a

setenta anos.

As entrevistas se direcionaram no sentido da pesquisa qualitativa do tipo semi-

estruturada com um único respondente, denominada por George Gaskell de entrevistas

em profundidade. No artigo Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual

prático (2002), Gaskell reitera que as entrevistas em profundidade consistem em uma

metodologia de coleta de dados amplamente empregada nas ciências sociais, pois é o

ponto de partida para o pesquisador entrar em contato com a realidade que deseja

estudar.

A pesquisa qualitativa semi-estruturada parte de um „tópico guia‟, elaborado

pelo pesquisador, que tem a função de direcionar a entrevista. O „tópico guia‟ não tem a

pretensão de esgotar o assunto, pois durante o contato com os entrevistados, novas

questões acabam surgindo. Ele funciona apenas como um roteiro para orientar a

entrevista.

O „tópico guia‟ dessa pesquisa foi elaborado a partir da leitura de trabalhos que

tratam do tema estudado, bem como da leitura de entrevistas que abordam a questão de

gênero na área jurídica. Além disso, durante o contato com as advogadas, novas

questões foram acrescentadas à pesquisa.

Para Gaskell, o objetivo principal das entrevistas em profundidade é explorar o

45

espectro de opiniões, as diferentes representações sobre o assunto em questão. Para o

autor, as entrevistas devem ser realizadas até atingirem o „ponto de saturação‟, ou seja,

até existirem semelhanças entre as opiniões relatadas. Por isso, ele considera que na

pesquisa qualitativa não existe um número mínimo ou máximo de entrevistas. O ideal é

que o pesquisador busque o contato com os entrevistados até que seja possível perceber

semelhanças e estabelecer conclusões.

As primeiras entrevistas são cheias de surpresas, contudo, temas comuns

começam a aparecer, e progressivamente sente-se uma confiança

crescente na compreensão emergente do fenômeno. A certa altura, o

pesquisador se dá conta que não aparecerão novas surpresas ou

percepções. Neste ponto de saturação do sentido, o pesquisador pode

deixar seu tópico guia para conferir sua compreensão, e se a avaliação

do fenômeno é corroborada, é um sinal de que é tempo de parar.

(Gaskell, 2002, p. 71).

Durante as entrevistas realizadas pude perceber diversas semelhanças na fala das

entrevistadas. Todas as advogadas relataram pelo menos uma dificuldade em relação ao

gênero, e as dificuldades citadas por elas coincidiram inúmeras vezes. Foi a partir

desses discursos repetidos que pude identificar os principais obstáculos de atuação e

ascensão na carreira.

46

3.2 AS MULHERES E A ARTICULAÇÃO ENTRE A VIDA PROFISSIONAL E

FAMILIAR

Ao longo do contato com as advogadas, pude perceber que uma das dificuldades

mais enfatizadas por elas foi a respeito da conciliação entre vida profissional e vida

pessoal. O principal obstáculo pontuado pelas profissionais foi a dificuldade em

articular a carreira com a maternidade.

De acordo com Barbalho, é fundamental analisar as perspectivas na carreira

tendo em vista a organização familiar em que essas profissionais estão inseridas. Para a

autora, embora as mulheres estejam tão presentes quanto os homens na esfera

profissional, as atividades domésticas e os cuidados com os filhos ainda são vistos como

responsabilidades femininas.

Essa ideia fica explícita nas falas das entrevistadas, como no relato da advogada

Ana, que tem cinquenta e um anos, é casada, mãe de duas filhas, e atua na área do

direito empresarial. A entrevistada, que é sócia de um grande escritório na cidade de

São Paulo, enfatiza o conflito emocional gerado pelo acúmulo de tarefas.

É muito mais difícil para a mulher essa questão. Mesmo que você tenha

um companheiro que te ajude, acaba sendo mais complicado. Eu lembro

quando as meninas eram pequenas, mesmo eu trabalhando tanto, ou até

mais que meu marido, eu me sentia mais responsável. Sentia que eu

devia estar mais presente. E ai ficava aquele conflito emocional... Se eu

ficava até tarde no escritório, me sentia culpada por não estar com as

minhas filhas, se acontecia de eu ficar mais com as meninas, sentia que

eu não estava me dedicando o suficiente ao trabalho, e ai vinha a

insegurança de não ser tão boa, de não estar à altura do cargo. (Ana)

Além disso, a advogada também aponta outra dificuldade no exercício da

advocacia, como a desconfiança que percebe por parte de alguns clientes e alguns

colegas. Ana relata que as mulheres precisam constantemente provar que são capazes.

Para ela, é como se não fosse „natural‟ a mulher ocupar um cargo de liderança, e por

isso, as pessoas ainda demonstram certo estranhamento quando ela se diz sócia de um

grande escritório.

Assim como Ana, outras advogadas também apontam conflitos por estarem

ocupando a posição de sócias. É o caso da profissional Renata, que tem quarenta anos, e

47

está à frente de um escritório trabalhista altamente renomado. A advogada conta que

sofreu pressão da família por se dedicar muito à carreira, e por não ter se casado e nem

tido filhos. Apesar de ter priorizado a carreira por escolha própria, isso não foi bem

visto pela família, e a advogada relata que ouve constantemente de familiares que é

“ambiciosa demais para uma mulher”. Durante a entrevista, Renata afirma que existe

certa desvantagem em ser mulher.

Acredito que existe desvantagem sim. Não por conta de preconceito,

porque se você for uma profissional competente, as pessoas te respeitam,

mas por conta daquele papel que as pessoas associam à mulher. Então,

acontece assim... Eu sou muito respeitada no ambiente de trabalho.

Meus clientes me respeitam, minha equipe me respeita...O problema é

fora desse ambiente. Então por exemplo, minha família sempre falou que

eu era ambiciosa demais para uma mulher, eles falavam “ desse jeito

você não vai casar, os homens não gostam de mulheres ambiciosas, que

só pensam na carreira”, mas ninguém me perguntava se era meu

objetivo casar e ter filhos...as pessoas já entendiam que isso era o

objetivo principal por eu ser mulher...e não era. (Renata)

Apesar de ser solteira, e não ter filhos, a entrevistada considera que a articulação

entre a vida profissional e a vida pessoal é mais problemática para as mulheres, que

acabam diminuindo as perspectivas de ascensão na carreira em função das

responsabilidades familiares. Assim como outras profissionais, a advogada também

observa o conflito emocional vivido pelas mulheres.

Eu observo que tem mulheres que a princípio tem a ambição de estar no

topo, mas a vida pessoal acaba se tornando prioridade. A mulher acaba

percebendo o quanto é difícil conciliar a família e o trabalho. Então ela

sabe que se quiser ser mãe, vai ter que desacelerar o ritmo de trabalho.

Isso eu vi muito na minha equipe. Mulheres que eram altamente

qualificadas, e que diziam não querer um cargo alto, por causa do

conflito emocional que isso cria. É uma situação que só a mulher vive...

O homem não tem esse conflito, quando ele tem a oportunidade de

crescer, ele cresce, independente de ser casado e ter família. (Renata)

48

Essa questão também foi reforçada pela presidente da Comissão da mulher

advogada de São Paulo, Dra. Gislaine Caresia, que considera que a dupla jornada de

trabalho atribuída às mulheres é um dos principais obstáculos na ascensão da carreira.

Embora hoje a mulher seja maioria entre os inscritos da OAB SP, isso

ainda não se reflete em termos de representação nos cargos diretivos.

Atribuo essa realidade, em parte, ao fato de que as mulheres têm outras

prioridades com uma dupla jornada de trabalho buscando conciliar

trabalho e família. (Gislaine Caresia, atual presidente da Comissão da

mulher advogada de São Paulo).

Por isso, a advogada explica que o papel da Comissão da mulher advogada é

incentivar a participação das mulheres na representação da entidade, e eliminar qualquer

discriminação no exercício profissional da advocacia. A proposta é valorizar a mulher

advogada, buscando ampliar o mercado de trabalho com remuneração condigna.

Para atingir esse objetivo, a presidente da Comissão procura organizar palestras

de conscientização, promover debates, e agendar reuniões constantemente. Desde que

assumiu a presidência, Dra Gislaine Caresia se preocupa em manter ativo o debate sobre

a importância da mulher na advocacia.

Além disso, a Comissão da mulher advogada também se preocupa em debater as

diversas questões jurídicas que envolvem as mulheres, como a violência doméstica, o

assédio sexual, o aborto, a desigualdade salarial, e o tráfico de pessoas. Sendo assim, a

advogada enfatiza que a Comissão da mulher advogada também é uma entidade voltada

para a sociedade civil.

Apesar de pontuar os diversos obstáculos que as mulheres enfrentam na área

jurídica, a advogada demonstra uma visão positiva em relação ao futuro profissional das

mulheres. De acordo com seu relato, as advogadas estão se preparando cada vez mais

para competirem no mercado de trabalho, e estão se empenhando para ascenderem

profissionalmente. Gislaine Caresia enfatiza que atualmente as mulheres estão presentes

em todas as áreas da advocacia, inclusive no direto penal. Para ela, a tendência é as

mulheres ampliarem a sua participação em todas as áreas do direito.

A difícil articulação entre a vida profissional e familiar, relatada por várias

entrevistadas, não é exclusividade das advogadas. De acordo com o artigo A Mulher

juíza e a juíza mulher (1998) de Eliane Botelho Junqueira, as mulheres que optam pela

carreira pública, como a magistratura, por exemplo, também sofrem com a dupla

49

jornada de trabalho. Mesmo quando essas profissionais se dedicam mais ao trabalho do

que os companheiros, os cuidados com a casa e com os filhos ainda são atribuídos

somente a elas.

Por meio da análise da atuação das mulheres na magistratura do estado do Rio

de Janeiro, Junqueira conclui que, enquanto para o homem é legítimo sacrificar a

família pela carreira, para a mulher essa opção é considerada inaceitável. Por isso, a

autora conclui que quando a mulher se torna juíza, ela precisa assumir o ônus de lidar

com a dupla jornada de trabalho e com os conflitos familiares que surgem a partir desse

novo arranjo familiar.

Educada para assumir as tarefas do lar e convivendo com homens

socializados a partir de uma visão tradicional da vida familiar, nem o

ingresso na magistratura, nem a necessidade de se ausentar de casa

durante vários dias da semana, nem mesmo o fato de financeiramente,

contribuir mais do que o marido para as despesas de casa, são fatores

que conseguem romper com a divisão de trabalhos domésticos já

existentes antes da decisão de tentar o concurso público. (Junqueira,

1998, p. 141).

Em vista disso, Junqueira conclui que a dupla jornada de trabalho é um entrave

para a ascensão na carreira em todas as áreas jurídicas. Nas carreiras públicas a

flexibilidade de horários ainda é maior do que na advocacia. Apesar disso, as mulheres

que exercem essas carreiras relatam dificuldades em se responsabilizarem pela maior

parte do cuidado com a casa e com os filhos.

É fundamental ressaltar também que a dificuldade em conciliar a esfera

profissional com a esfera doméstica é a realidade da maioria das profissionais

brasileiras. De acordo com o artigo Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos

(2007) da socióloga Maria Cristina Aranha Bruschini, as mulheres se dedicam mais ao

trabalho doméstico do que os homens. Com base em dados levantados pela PNAD

(Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), entre os anos de 1992 a 2002, as

mulheres relataram que gastam em média vinte e sete horas semanais com os afazeres

domésticos, enquanto que os homens gastam pouco mais de dez horas semanais nesse

tipo de atividade.

A autora também relata que por meio dessa pesquisa realizada pelo IBGE

(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), é possível afirmar que o cuidado com os

50

filhos é uma das atividades que mais consome o tempo de trabalho doméstico das

mulheres. As mães dedicam a estas atividades quase trinta e duas horas do seu tempo

semanal, um número muito superior ao da média feminina geral.

Da mesma forma, os filhos pequenos são aqueles que consomem o maior

número de horas de dedicação à esfera reprodutiva. Bruschini constata que as mães

dedicam trinta e cinco horas semanais aos afazeres domésticos quando os filhos têm

menos de dois anos, e pouco mais de trinta e duas horas quando estes estão na idade de

dois a quatro anos.

Sendo assim, a socióloga conclui que as pesquisas sobre o trabalho feminino

precisam levar em consideração a articulação entre o espaço produtivo e o espaço

familiar. Pois, para as mulheres, a vivência do trabalho implica sempre a combinação

dessas duas esferas, seja pela articulação, seja pela superposição.

51

3.3 A ATUAÇÃO DAS MULHERES NAS DIVERSAS ÁREAS DA ADVOCACIA

Ao longo do contato com as advogadas, pude perceber que a área de atuação das

advogadas influenciava no relato dado por elas. Para a maioria das entrevistadas, a área

de atuação na advocacia está diretamente ligada à questão do gênero. Isso quer dizer

que existem sim áreas da advocacia que são consideradas mais masculinas ou mais

femininas.

A advogada Ana, que já foi citada no item acima, foi a primeira a expor essa

questão. Para a profissional, que atua em um grande escritório na área do direito

empresarial, há áreas que concentram mais mulheres e áreas que concentram mais

homens.

O que acontece é que tem áreas que as mulheres são mais bem vindas do

que outras. Como por exemplo, direito civil, direito do trabalho,

questões de família. Todas essas áreas estão mais abertas paras as

mulheres. Agora mais complicado é direito penal, direito tributário,

direito empresarial também é um pouco. (Ana)

Assim como Ana, outras entrevistadas também apontaram que a área trabalhista

e área de família são consideradas mais femininas. Nessas áreas além de ter uma maior

concentração de mulheres, as profissionais também relatam encontrar menos resistência

do que em outras áreas da advocacia.

A advogada Luciana, que tem cinquenta e oito anos, é divorciada, e tem uma

filha enfatizou essa questão durante a entrevista. A profissional, que é sócia fundadora

de um escritório criminal considerado pequeno, explica que o direito civil e o direito

trabalhista são áreas com mais mulheres, enquanto que o direito penal é uma área

considerada masculina, e por isso, as mulheres se deparam com maiores dificuldades.

Em vista disso, a advogada explica:

A área pesa sim. Direito trabalhista, por exemplo, é uma área mais

feminina, acho que porque a mulher é muito associada aquele papel de

esposa, de mãe, de conciliadora. Questões de família, então, nem se fala!

Todo mundo vai achar que a advogada mulher leva vantagem na área de

família. Agora com o direito penal já acontece o oposto. Apesar de cada

vez mais você ter mulheres fazendo essa área, ainda existe um pouco de

preconceito. Mas na verdade não é só a área. Direito penal é

52

complicado para a mulher, ser sócia de um escritório é complicado, ser

mulher e estar em um cargo de chefia também é... Tudo que foge daquele

perfil de mulher subalterna causa desconforto. As pessoas associam a

mulher a uma figura apaziguadora. Então o ambiente do direito penal

acaba fugindo disso, porque é uma área de conflito, de violência.

(Luciana)

A advogada aborda a questão das áreas de atuação levando em consideração a

imagem que as pessoas têm do que é considerado feminino e do que é considerado

masculino. Algumas características que são tidas como femininas, como a compreensão

e a sensibilidade, são vistas positivamente quando se trata do direito civil e do direito

trabalhista. Ao mesmo tempo, essas características são tidas como negativas quando se

trata da área do direito penal.

Mônica Mancini, que é doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, desenvolveu

uma análise a respeito das mulheres no mercado profissional. Em sua tese de doutorado,

Mulheres profissionais bem sucedidas: um estudo exploratório no contexto

organizacional brasileiro (2005), Mancini trabalha a questão das mulheres advogadas, e

enfatiza que a área de atuação na advocacia é um fator relevante.

De acordo com sua análise, o direito penal é a área em que as mulheres

encontram maior resistência de atuação. Por estar associado ao „mundo do crime‟, esse

ramo é considerado o „porão‟ da advocacia, por causa de preconceitos culturais e sociais

e pelo próprio machismo no Brasil. Por isso, Mancini enfatiza:

No caso das mulheres, a luta para exercer esse outro lado do direito é

muito maior devido á própria especialidade (a sociedade considera esse

lugar inapropriado para elas), pelo controle social (historicamente

coube sempre ao homem manter a ordem no sistema social), e por ser

mulher (os advogados bem-sucedidos desestimulam a participação das

mulheres). (Mancini, 2005, p. 122).

As mulheres são vistas como apaziguadoras e como mediadoras de conflitos, o

que é considerado o oposto do ambiente criminal. Esse fato é exposto pelas

entrevistadas diversas vezes, como é o caso da advogada Mariana, que atua na área do

direito civil em um escritório pequeno. A entrevistada, que tem trinta e dois anos, é

53

casada, e tem uma filha, deixa claro o recorte de gênero que existe nas áreas da

advocacia.

Geralmente os homens, principalmente os mais velhos, preferem

advogados, porque eles acham que as mulheres não vão brigar pela

causa deles, não vão discutir como um advogado homem discutiria.

Agora as clientes mulheres, quando se trata de questões de família,

preferem uma advogada mulher. Eu vejo que elas se sentem mais à

vontade com uma advogada. Eu tenho clientes que chegam ao escritório

muito fragilizadas. Então elas querem não só que você defenda a causa

delas, mas também que entenda a situação delas, que dê apoio, que

mostre solidariedade. (Mariana)

Apesar de haver um consenso entre a maioria das entrevistadas quanto a essa

questão, também houve o relato de uma advogada que não concorda com esses

estereótipos de gênero. A profissional Renata, que já foi citada no item acima, e que é

sócia de um grande escritório trabalhista, explica que não concorda inteiramente com

essa visão.

Acredito que exista essa ideia entre os profissionais, até entre os clientes

talvez. A área em que eu atuo mesmo tem muito isso. As pessoas

comentam “Ah você é sócia de um escritório porque é um escritório

trabalhista, porque mulher leva vantagem em direito trabalhista, porque

a mulher é conciliadora, e não sei mais o que”. Eu particularmente não

gosto disso, desses estereótipos. Eu sou sócia porque eu me esforcei para

isso, porque trabalhei para estar nesse cargo, não tem nada a ver isso de

falar que a mulher tem „jeitinho‟, que a mulher é „conciliadora‟. Mas as

pessoas têm essa visão. (Renata)

Sendo assim, fica evidente que enquanto algumas características consideradas

femininas são valorizadas em algumas áreas, em outras áreas são consideradas

empecilhos. A sensibilidade e a compreensão, que são tidas como femininas, são

colocadas como vantagens quando se trata de questões trabalhistas e questões de

família. Já a virilidade e a frieza, que culturalmente são consideradas masculinas,

acabam sendo valorizadas em questões penais.

De acordo com Barbalho, o que acontece nas diversas áreas da advocacia é uma

54

segmentação por gênero. Isso quer dizer que características que são construídas

historicamente e culturalmente como femininas ou masculinas são trazidas para a

profissão.

Ao trazer as características femininas ao exercício da carreira, numa

atividade tipicamente vista como masculina, ela apenas transporta a

esfera privada para o espaço público da profissão, reproduzindo deste

modo, os estereótipos do gênero que contribuem para a manutenção da

subalternidade das relações sociais entre os gêneros. (Barbalho, 2008, p.

112).

De acordo com sua tese, é como se a vida profissional da mulher fosse encarada

como uma extensão da vida doméstica. Ou seja, as habilidades desenvolvidas no espaço

privado são trazidas para o ambiente profissional, e acarretam assim em uma

segmentação por gênero nas diversas áreas de atuação da advocacia.

55

3.4 AS MULHERES NAS SOCIEDADES DE ADVOGADOS E NOS

ESCRITÓRIOS PEQUENOS

Foi parte fundamental do trabalho analisar a atuação das advogadas em cada

perfil de escritório, com o fim de estabelecer um paralelo entre as mulheres que atuam

nas sociedades de advogados com as que atuam nos escritórios pequenos. A diferença

básica entre os escritórios pequenos e as sociedades de advogados é que os primeiros

são menos especializados, e atendem os interesses de clientes individuais. Já as grandes

sociedades de advogados trabalham com clientes empresariais, e possuem uma divisão

interna bem definida.

Por meio do relato das entrevistadas, o que ficou evidente é que as advogadas

que atuam na advocacia tradicional enfatizam menos a questão do preconceito do que as

que atuam nesse novo perfil de escritório. Nos escritórios menores, a questão do

preconceito é menos citada, principalmente nos escritórios familiares.

O que fica evidente é que a questão de gênero está presente, sim, nesses

escritórios, mas está mascarada por laços familiares e afetivos. É o caso, por exemplo,

da advogada Júlia, que tem trinta e dois anos, é solteira, e trabalha em um escritório

considerado pequeno, no qual o pai é o sócio fundador. O pai, advogado criminalista,

desestimulou Júlia a atuar nessa área, por acreditar que ela encontraria grande

resistência por ser mulher. Sendo assim, a advogada explica porque não está atuando na

mesma área do pai.

Eu sempre gostei dessa área, mas meu pai falou que direito criminal não

era para mim. Ele tem muita experiência, então sabe que tem

preconceito mesmo. As mulheres acabam ficando mais expostas, mais

vulneráveis... Quando é crime de menor potencial ofensivo nem tanto,

mas, nas questões maiores, é mais complicado. Por isso, ele me orientou

a fazer direito civil, então atualmente eu faço essa parte aqui no

escritório. Mas futuramente, eu quero me especializar em direito penal.

Ai eu já vou ter mais experiência, mais idade....isso conta também.

(Júlia).

Além disso, a advogada relata que, no escritório do pai, acaba lidando com as

questões civis menores, por ter menos experiência. Júlia também conta que é a única

advogada mulher do escritório, e é valorizada por seus colegas por ser mais disciplinada

56

e organizada. De acordo com sua visão, as mulheres são mais disciplinadas que os

homens, e para ela, isso é considerado uma vantagem na profissão.

Outro relato similar a esse é o da advogada Carina, que tem quarenta e três anos,

é casada, mãe, e trabalha em um escritório considerado pequeno. A profissional atua na

área civil e imobiliária, juntamente com seu marido e mais três colegas de faculdade.

Durante a entrevista, Carina relata que não acredita que atualmente exista preconceito

na advocacia. Apesar disso, a advogada enfatiza que as mulheres encontram mais

dificuldades na profissão por causa das tarefas domésticas e dos cuidados com os filhos.

Atualmente eu não acredito que exista preconceito na advocacia ou no

mercado de trabalho em geral. O que acontece é que a mulher tem mais

dificuldade em se dedicar à profissão por causa da maternidade. Eu, por

exemplo, fiquei dois anos longe do escritório quando meu filho nasceu. E

mesmo hoje, sou eu que cuido mais, então é natural que eu tenha menos

clientes que meu marido ou meus colegas de trabalho, que são homens.

Mas não é por preconceito, e sim porque a mulher ainda assume esse

papel de esposa e mãe. Eu percebo que as mulheres mais jovens já

adiam muito a maternidade, ou nem querem ter filhos por isso... porque

querem priorizar a carreira. Mas a minha geração é mais tradicional

nesse ponto. (Carina).

Assim como os relatos de Júlia e Carina, observei ao longo do contato com as

advogadas que essas situações são comuns nos escritórios formados por famílias, por

colegas, e por cônjuges. Esses relatos me remeteram à teoria de Pierre Bourdieu, que

identifica a família como a principal instituição de reprodução dos papéis de gênero.

É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da

dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a

experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação

legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem.

(Bourdieu, 1999, p. 103).

Apesar das entrevistadas negarem que a dificuldade de ascensão na carreira está

diretamente ligada ao fato de serem mulheres, isso fica evidente através da fala das

advogadas. Por meio do relato das profissionais fica visível que também há um recorte

de gênero nos escritórios menores, mas ele não é tão perceptível quanto nas grandes

57

sociedades de advogados, porque, nesse caso, as relações profissionais também

envolvem questões familiares e a afetivas.

Já as advogadas das grandes sociedades de advogados demonstram unanimidade

no reconhecimento da existência da barreira de gênero na profissão. Nesse caso, a

questão da diferença está mais visível pelo fato desses escritórios apresentarem uma

organização mais formal e uma hierarquia mais fixa. Sendo assim, as profissionais

acabam tendo uma percepção maior da dificuldade que as mulheres encontram em

atingirem os cargos mais altos.

As sócias são inclusive as mais enfáticas nesses relatos, como demonstra a

advogada Renata, já mencionada acima. A entrevistada, que é sócia de um grande

escritório trabalhista, juntamente com outra advogada, explica que existe certo

estranhamento no fato de o escritório ser comandado por duas mulheres.

É claro que existe certo estranhamento. Aqui no escritório mesmo, nós

somos duas sócias mulheres, então tem aquelas gracinhas com o pessoal

da equipe. Fazem piadinha que o associado trabalha em um escritório

com sócia mulher... É como se fosse uma desqualificação para o homem

ter uma chefe mulher. Isso a gente percebe muito aqui. (Renata)

A questão levantada por Renata, também é enfatizada por outras advogadas

sócias, que percebem a dificuldade que é alcançar essa posição dentro do escritório, e se

manter nela. As entrevistadas concordam que as mulheres precisam se qualificar muito

mais para ocuparem os mesmos cargos que os homens.

A entrevistada Dra. Silvia Pimentel, professora titular do curso de direito da

PUC-SP, também abordou essa questão durante nosso contato. De acordo com a

advogada, as mulheres ainda sofrem discriminação no mundo do trabalho,

principalmente quando ocupam cargos mais altos e de maior prestígio.

No nosso trabalho no Comitê da ONU, nós chamamos muito a atenção

sobre a discriminação que existe com as mulheres no mundo do

trabalho, e em todas as áreas, mas muito especialmente nas instâncias

mais altas da pirâmide. Em uma pirâmide em que definimos a parte mais

alta pelo prestígio, pelo status, e pelo valor efetivo do ganho. Isso se

deve em muito pelo nosso diferente papel na sociedade, como somos nós

que somos mães, se deve haver um tratamento diferente em relação à

58

mulher. Homens e mulheres então, a sociedade em geral é que devia

arcar com o ônus da maternidade. Você pode ver que mulheres que

trabalham em escritórios grandes adiam muito a maternidade, morrem

de medo de ficarem grávidas, têm algumas ex-alunas que tiveram filho e

depois de duas semanas estavam no escritório, com medo de perder o

cargo. (Professora Dra. Silvia Pimentel).

A advogada também ressaltou que no mundo inteiro as mulheres encontram

dificuldades para ocuparem os cargos mais altos. Ou seja, inclusive nos países mais

desenvolvidos, existe uma barreira de gênero que dificulta a ascensão das mulheres aos

cargos mais altos.

Além disso, as sócias relatam que precisam estar sempre preocupadas em

mostrarem-se competentes para o cargo, assim como pontua a advogada Beatriz, que

tem trinta e oito anos, é casada, e é sócia em um escritório que atua na área do direito

tributário, societário, e comercial.

Então, a gente que é mulher tem que ter mais cuidado com a postura.

Além de demonstrar confiança, tem que saber se impor, senão não ganha

a confiança do cliente, e nem mesmo dos colegas. Outra coisa é o

cuidado com a aparência. Eu, por exemplo, não uso brinco para ir ao

tribunal, não uso maquiagem forte, não fico sorrindo ou mexendo no

cabelo. Parece bobeira, mas esse cuidado é importante. (Beatriz).

A entrevistada também enfatiza a dificuldade em administrar a carreira com a

maternidade. Para ela, a advocacia é uma profissão desgastante para as mulheres, pois

exige dedicação integral à carreira, principalmente em grandes sociedades de

advogados, onde a competitividade é maior.

Outro fator relevante nessa análise é a questão da idade das entrevistadas. As

advogadas que estão na faixa dos vinte e cinco a trinta e cinco anos percebem as

barreiras de gênero, mas acreditam que é possível driblar essas dificuldades por meio da

qualificação profissional. No relato das advogadas mais jovens, é possível observar a

carreira como prioridade na vida dessas profissionais.

Apesar disso, observamos, por meio dos dados levantados, que a qualificação

profissional nem sempre é suficiente para erradicar as barreiras de gênero, e assim

garantir a ascensão profissional.

59

As advogadas mais jovens sentem as barreiras de gênero, mas não se

identificam com elas, atribuindo às dificuldades profissionais à própria

conjuntura do mercado jurídico. É uma geração educada por meio do

discurso da não discriminação, mas que na prática continua a ser

responsável por equacionar os conflitos emocionais para administrar

família e trabalho (Barbalho, 2008, p.15).

Em síntese, é possível concluir que apesar das sociedades de advogados

representarem o novo perfil da advocacia, ainda apresentam uma clara segmentação por

gênero. Isso quer dizer que, mesmo nos escritórios que representam a prática atual da

advocacia, as mulheres encontram barreiras de gênero tanto na atuação quanto na

ascensão profissional.

60

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o desenvolvimento do trabalho, pude constatar diversas dificuldades de

atuação e ascensão na carreira, enfrentadas pelas advogadas. Por meio dos dados

levantados, através do site do CESA (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados)

e do site da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), juntamente com as entrevistas

realizadas, ficou evidente que as mulheres encontram inúmeros obstáculos na profissão

relacionados ao gênero.

Entre esses obstáculos relatados, se destaca a dificuldade das mulheres em

conciliar a esfera profissional com a esfera familiar. Tanto nos pequenos escritórios

quanto nas grandes sociedades de advogados, essa questão fica evidente na fala das

profissionais.

De acordo com o artigo de Eliane Botelho Junqueira Mulheres advogadas:

espaços ocupados (2001), a advocacia é uma profissão altamente competitiva, que exige

dedicação integral à carreira. Para as mulheres, que se dedicam mais do que os homens

à vida pessoal e familiar, isso acaba sendo um obstáculo.

Além da desconfiança em relação à capacidade de trabalho das

mulheres, os problemas na advocacia decorrem de outros fatores, tais

como da necessidade de dedicarem-se, mais do que os homens, à vida

privada tornando-as mais vulneráveis em suas carreiras. As mulheres

têm também maior dificuldade em participar das estratégias e das redes

de relações masculinas utilizadas principalmente na advocacia

empresarial para atrair os clientes, ou seja, da função de networking,

conforme é denominado nos Estados Unidos. (Junqueira, 1998, p. 147).

A autora acrescenta ainda, que mesmo quando as profissionais fazem a opção de

se dedicarem integralmente à advocacia, sofrem com esse estereótipo de gênero, que

associa as mulheres aos cuidados domésticos.

Outro obstáculo enfatizado pelas entrevistadas foi a dificuldade feminina em

ascender profissionalmente, ou seja, a dificuldade das profissionais em ocuparem os

cargos mais altos dos escritórios. Por meio dos dados levantados, pude constatar que as

grandes sociedades de advogados da cidade de São Paulo apresentam uma maioria de

sócios homens. A dificuldade das mulheres em se tornarem sócias pode ser observada

tanto através dos dados quantitativos, quanto através das entrevistas qualitativas.

61

Além da dificuldade de ascensão na carreira, as mulheres também enfrentam

desigualdade de remuneração e estagnação nos cargos ocupados. Mesmo que as

profissionais invistam tanto na carreira quanto seus colegas, o período de estagnação é

maior para elas.

Ao longo do contato com as advogadas, pude perceber que a área de atuação na

advocacia é um fator relevante na análise. Para a maioria das entrevistadas, a área de

atuação está diretamente ligada à questão do gênero. Isso quer dizer que as profissionais

consideram que existem áreas da advocacia que são consideradas mais femininas, como

é o caso da área trabalhista e da área de família, e também áreas que são consideradas

mais masculinas, como é o caso do direito penal.

Nesse caso, o que se observa é que características construídas historicamente e

culturalmente como femininas ou masculinas são trazidas para o ambiente profissional,

e afetam, assim, as áreas de atuação na advocacia.

Ao trazer as características femininas ao exercício da carreira, numa

atividade tipicamente vista como masculina, ela apenas transporta a

esfera privada para o espaço público da profissão, reproduzindo deste

modo, os estereótipos do gênero que contribuem para a manutenção da

subalternidade das relações sociais entre os gêneros. (Barbalho, 2008, p.

112).

De acordo com Barbalho, é como se a vida profissional da mulher fosse

encarada como uma extensão da vida doméstica. Ou seja, as habilidades desenvolvidas

no espaço privado são trazidas para o ambiente profissional, e criam assim estereótipos

de gênero em relação às áreas da advocacia.

Em relação aos diferentes perfis de escritórios, o que ficou evidente foi que a

segmentação por gênero é mais visível nas grandes sociedades de advogados. Nesses

escritórios, onde existe uma divisão interna fixa, as mulheres percebem mais a

dificuldade em ascenderem profissionalmente.

Embora as sociedades de advogados apresentem um número equilibrado de

homens e mulheres, os cargos mais altos são ocupados em sua maioria por homens.

Nesse perfil de escritório, as advogadas demonstram unanimidade no reconhecimento

da existência da barreira de gênero na profissão, sendo as advogadas sócias as mais

enfáticas nesses relatos.

Já nos escritórios pequenos, a hierarquia é menos rígida, e por isso, a

62

segmentação por gênero não se dá de forma explícita. Nesse modelo de escritório, as

mulheres relatam sim dificuldades de atuação e ascensão na carreira, mas esse relato se

encontra mascarado por laços familiares e afetivos.

Sendo assim, pude concluir que apesar das inúmeras mudanças que ocorreram

nas últimas décadas no mercado profissional, as mulheres não conseguiram erradicar as

barreiras que subalternizam o trabalho feminino em relação ao masculino, mesmo em

uma profissão de alta escolaridade como a advocacia.

Embora as mulheres tenham conquistado o seu lugar na esfera profissional,

sofrem com o acúmulo de atividades decorrente da dupla jornada de trabalho, e

enfrentam dificuldades de ascensão na carreira devido ao estereótipo de gênero que

associa as mulheres à valores tradicionais.

63

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66

ANEXO

Questionário:

Foi usado para orientar e direcionar as entrevistas com as advogadas. Porém, ao longo

do contato com as entrevistadas, novas questões eram realizadas, conforme o

andamento da entrevista.

Questões:

1) Perfil da entrevistada: Idade, estado civil, instituição em que concluiu o curso, área

de atuação na advocacia, perfil do escritório em que trabalha, e se tem filhos ou não.

2) Qual é a sua área de atuação na advocacia?

3) Como é a organização do escritório onde trabalha?

4) Existe a divisão interna entre sócios e associados?

5) São quantos homens e quantas mulheres no seu escritório?

6) Como é ser mulher na profissão? Nota alguma vantagem ou desvantagem?

7) Você já sofreu algum tipo de preconceito na profissão por ser mulher? Se sim,

poderia relatar o ocorrido?

8) Você acredita que existem áreas do direito que são consideradas mais „femininas‟ ou

mais „masculinas‟?

9) Você acredita que homens e mulheres buscam as mesmas coisas na carreira? Ambos

têm a mesma perspectiva?

10) Você considera que para as mulheres é mais difícil conciliar vida profissional e vida

pessoal?