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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA RAFAEL GIARDINI LENZI NARRATIVAS DE CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA ANTIGUIDADE E ATUALIDADE EM BHAGAVAD-GITA E RAMAYAN 3392 AD SÃO PAULO 2014

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  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

    EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

    RAFAEL GIARDINI LENZI

    NARRATIVAS DE CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

    NA ANTIGUIDADE E ATUALIDADE EM

    BHAGAVAD-GITA E RAMAYAN 3392 AD

    SÃO PAULO

    2014

  • RAFAEL GIARDINI LENZI

    NARRATIVAS DE CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

    NA ANTIGUIDADE E ATUALIDADE EM

    BHAGAVAD-GITA E RAMAYAN 3392 AD

    Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do grau de Doutor em Comunicação e Semiótica. Orientadora: Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

    SÃO PAULO

    2014

  • FOLHA DE APROVAÇÃO

    AUTOR: RAFAEL GIARDINI LENZI

    NARRATIVAS DE CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA ANTIGUIDADE E

    ATUALIDADE EM BHAGAVAD-GITA E RAMAYAN 3392 AD

    Tese submetida ao corpo docente do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e aprovada em ___ de _________ de 2014.

    ___________________________________________________________________ Presidente da Banca: Professora Doutora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    Banca Examinadora:

    ___________________________________________________________________

    Professora Doutora Larissa Zanin, Universidade Federal do Espírito Santo.

    ___________________________________________________________________

    Professor Doutor Roberto Elísio dos Santos, Universidade Municipal de São

    Caetano do Sul.

    ___________________________________________________________________

    Professora Doutora Simone Bueno, Centro de Pesquisas Sociossemióticas.

    ___________________________________________________________________

    Professor Doutor Waldomiro Vergueiro, Universidade de São Paulo.

  • AGRADECIMENTOS

    À FAPESP pela viabilização da pesquisa.

    À Ana Claudia de Oliveira por todo o apoio e orientação, mas principalmente pelos conselhos

    “fraturas”, que possibilitaram a expansão da pesquisa em níveis inesperados.

    À Isabella Pezzini pelo acolhimento na Università di Roma, La Sapienza, e pela orientação.

    À família, especialmente Lívia e Janaína.

    Aos amigos da PUC e da Sapienza, especialmente Simone Bueno, pelo companheirismo.

    Também a todos os antissujeitos e eventos polêmicos da narrativa que constituiu a elaboração

    da tese, cuja manifestação exerce papel fundamental na constituição de uma história própria

    atribuída a este trabalho.

  • RESUMO

    A partir do conflito existencial definido como Eu vs Falso ego, conforme enunciado pela

    mitologia da antiguidade, este trabalho investiga a possibilidade de interpretação desta

    dualidade em textos midiáticos da atualidade. Desta forma, examina-se nestes dois contextos

    temporais o confronto entre o elemento homem, ou mesmo sua alma, frequentemente

    denominado Eu, e seu falso ego, ou falsa percepção de si mesmo. Parte-se da análise de uma

    fonte literária da antiguidade cuja narrativa apresenta explicitamente este tópico, o Bhagavad-

    Gita, e em seguida toma-se como objeto um texto midiático verbi-visual-espacial atual, a

    história em quadrinhos Ramayan 3392 AD. Explorando esta questão na primeira obra, busca-

    se identificá-la na história em quadrinhos, abordando assim a continuidade do tema, que de

    acordo com este ponto de vista surge na antiguidade e se mantém nas mitologias e mídias

    atuais. Procura-se então provar a possibilidade dessa interpretação nos textos midiáticos,

    provar como esta oposição pode ser considerada uma conexão entre as diferentes mitologias;

    e analisar como a dualidade é estruturada na atualidade, por meio da pesquisa sobre histórias

    em quadrinhos. Como ponto importante são consideradas as alterações que ocorrem no valor

    sacralizador, cujo investimento é presente na mitologia antiga ligada à religiosidade, mas não

    nas histórias em quadrinhos em sua generalidade, ao menos não de forma explícita. Como

    base teórica para as análises dessa problemática nos objetos do corpus de estudo é utilizado o

    referencial da semiótica discursiva de Greimas e o seu desenvolvimento na sociossemiótica de

    Landowski, enquanto para observações referentes a mitologias, além dos estudos desses e de

    outros semioticistas, é tomada a abordagem desta questão por Cassirer, principalmente. Pode-

    se apontar que há a dissolução do valor sagrado, representado na mitologia antiga pelo

    enfoque e detalhamento do tema místico e religioso, enquanto é mantida a caracterização do

    sujeito herói por um dever, de forma que o dever místico religioso passa a ser um dever ético

    no texto atual, sendo em ambos os textos a modalização por dever mantida como invariável.

    Além disso, os textos midiáticos trazem um apelo diferenciado à experiência sensível, por

    meio dos componentes plásticos, que junto ao plano verbal conferem outra dimensão de

    significação à narrativa; significação esta que é considerada também a partir da prescrição do

    texto antigo em relação ao conflito existencial abordado, levando à formação de uma

    esquematização cromática ligada a essa oposição. Como conclusões obtém-se uma

    interpretação possível dos sujeitos eufóricos como ligados às instâncias cognitivas, e do

    sujeito disfórico como associado à instância actancial somática propriamente, em um conjunto

    constituidor de um macrossujeito único. A principal alteração que emerge do mito na mídia é

    a passagem da revelação direta do sagrado ao destacamento da sensibilidade estésica como

    peça chave na constituição do sujeito. Esse mecanismo possibilita a percepção da

    sensibilidade como responsável por fazer sentir a nova proposição do confronto existencial

    que é incontestavelmente de todos os tempos.

    Palavras-chave: livro sagrado (Bhagavad-Gita), história em quadrinhos (RAMAYAN 3392

    AD), mitologias antigas e atuais, confronto existencial, semiótica discursiva.

  • ABSTRACT

    From the existential conflict between I vs False ego, as enunciated by ancient mythology, this

    work investigates the interpretation’s possibility of this duality nowadays. This way it is

    examined on these two temporal contexts the conflict between the man element, or even his

    soul, often designed as I, and his false ego, or false perception of himself. It starts with the

    analysis of an antiquity’s literary source whose narrative explicitly shows this topic, the

    Bhagavad-Gita, and sequentially it is taken as object a mediatic verbal-visual-spatial text of

    the present time, the graphic novel Ramayan 3392 AD. By exploring this question on the first

    text it is aimed to identify it in the graphic novel, therefore examining the theme’s continuity,

    which according to this point of view is originated in antiquity and kept in nowadays’ media.

    Thus it is looked forward to prove this interpretation’s possibility in mediatic texts, to prove

    how this opposition can be considered a connection between different mythologies; and to

    analyze how the duality is structured at the present times, through comic books’ research. As

    important points are considered the changes that occur in the value of sacred, whose

    investment is existent in the ancient mythology connected to religiosity, but not in comic

    books’ generality, not explicitly at least. As theoretical basis to this problematic’s analysis on

    the study corpus, it is used the referential of Greimas’ discursive semiotics and its

    development on Landowski’s socio-semiotics, while for observations regarding mythologies,

    beyond these semioticists’ works and others’, it is mainly taken this question’s approach by

    Cassirer. It can be pointed that there is dissolution of the value of sacred, represented in

    ancient mythology by emphasis and detailing of the mystical and religious theme, while the

    subject hero’s characterization by a duty is kept, in a way that the mystical religious value

    becomes an ethical value in the nowadays’ text, being kept in both texts the modalization by

    should as invariable. Furthermore, mediatic texts bring a differentiated appeal to sensible

    experience, through plastic components, which alongside with the verbal plane add another

    meaning’s dimension to the narrative; a meaning that is also considered from the ancient

    text’s prescription concerning the existential conflict examined, leading to the formation of a

    chromatic schematization connected to this opposition. As conclusions it is obtained a

    possible interpretation of the euphoric subjects as attached to cognitive instances, and of the

    dysphoric subject as associated to the somatic actancial instance precisely, in an assemblage

    constitutive of a single macro-subject. From myth to media rises the main change which is the

    passage from the direct holy’s revelation to the detachment of aesthesic sensibility as key

    piece on the subject’s formation. This mechanism allows the sensibility’s perception as

    responsible for making feel the new proposition of the existential conflict that is undeniably

    of all times.

    Keywords: holy book (Bhagavad-Gita), graphic novel (Ramayan 3392 AD), ancient and

    nowadays mythologies, existential conflict, discursive semiotics.

  • SUMÁRIO

    1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................... . .. 07

    2 O CONFLITO DUAL NO BHAGAVAD-GITA ................................................ . .. 16

    2.1 Estrutura geral ........................................................................................................ . .. 17

    2.2 Estruturação da dualidade Eu vs Falso ego ............................................................. .. 51

    2.3 Acerca do sujeito e do objeto valor no discurso místico - religioso ...................... . .. 55

    3 O CONFLITO DUAL EM RAMAYAN 3392 AD .............................................. . .. 61

    3.1 Volume I, Estrutura geral ........................................................................................ .. 63

    3.1.1 Organização visual geral ....................................................................................... . .. 159

    3.2 Volume II, estrutura geral ....................................................................................... .. 160

    3.3 Percurso gerativo de sentido .................................................................................. . .. 214

    4 COMPARAÇÃO ENTRE OS CONFLITOS EXISTENCIAIS ....................... .. 220

    4.1 O dever e o querer ................................................................................................... .. 221

    4.2 Destinadores e instâncias do sujeito ....................................................................... .. 228

    5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. . .. 232

    REFERÊNCIAS ................................................................................................... . .. 240

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ...................................................................... .. 245

    ANEXOS ............................................................................................................... .. 247

  • 7

    1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

    Muitos fenômenos culturais da antiguidade se mantêm ou são traduzidos no e para

    o tempo atual. Os exemplos disso se encontram em praticamente todas as formas de expressão

    social: a música, o teatro, a religiosidade, a literatura, etc. Diversas questões de investigação

    podem ser levantadas a partir disto, como a razão deste acontecimento, o que leva ao estudo

    de cada acontecimento, de suas características e propriedades, e o que os faz perdurar. Dentro

    do domínio da literatura, por exemplo, mas não se limitando a ela, Algirdas Julien Greimas

    (1976), a partir da pesquisa de Wladimir Propp (1928, trad. para inglês em 1958; consulta

    2006) sobre o conto fantástico russo, marcado por uma cultura e época específicas, estendeu a

    mesma base teórica para textos de qualquer cultura ou época, evidenciando as invariáveis dos

    textos independente de seus contextos.

    Nesta pesquisa trata-se de um tema muito vinculado a textos literários da

    antiguidade, e também abordado cientificamente na atualidade. Em especial refere-se ao

    confronto temático existencial entre “o homem e seu falso ego”, denominado assim

    notadamente no Bhagavad-Gita (PRABHUPADA, 1995), também podendo ser formulado

    como “eu e não-eu” de acordo com a investigação de Ernst Cassirer (2004), sobre fontes

    mitológicas diversas. Nesta pesquisa este tema é observado em um texto da antiguidade e em

    um texto midiático da atualidade. Esta cisão entre o passado e o presente se justifica na

    própria história, pois este tema aparecia manifestado nos textos antigos em uma axiologia

    mesclada de literatura e religiosidade, conforme é observável em grande parte dos épicos: A

    epopeia de Gilgamesh (2001), Odisseia (HOMERO, 2004), Mahabharata (BUCK, 1973),

    Ramaiana (VALMIQUI, 1993), Eneida (VIRGÍLIO, 2005), etc., e aparentemente, depois do

    período dos grandes épicos o tema não voltaria a aparecer fora dos domínios religioso,

    filosófico ou psicológico. Entretanto, outros textos semelhantes aos épicos de outrora

    continuaram surgindo e ainda continuam, sem a mesma “carga religiosa” ou “valor

    sacralizador”, como por exemplo: Batman: cavaleiro das trevas (DC COMICS, 2011);

    Conan, o cimério (HOWARD, 2006); V de vingança (MOORE, LLOYD, 2006). Assumimos

    que este tema constitui o da subjetividade, tanto presente na mitologia quanto nas mídias

    atuais. Aborda-se a relação de subjetividade do sujeito com o mundo (MARSCIANI, 2013)

    por um viés semiótico, independentemente de como se nomeie essa relação – de acordo com a

    mitologia da antiguidade, por exemplo, ela figura como sagrada, suas outras abordagens serão

    dadas pela análise da história em quadrinhos.

  • 8

    Apesar de estes termos conflitantes já terem sido investigados por diversos

    campos de pesquisa e apresentarem definições próprias, este trabalho segue a metodologia da

    teoria semiótica discursiva, segundo a qual se encontra no texto, ou objeto de pesquisa, a

    construção de seu sentido que pode ser reoperada pela análise para o desenvolvimento de seu

    estudo. Assim, tanto o elemento homem, ou “Eu”, quanto o elemento falso ego, ou “Não-eu”,

    são enfocados e tomados aqui a partir de suas definições fornecidas pelos próprios textos em

    que se inserem, que por sua vez fazem parte do objeto desta pesquisa. Contudo outros textos

    que tratam do tema dentro do domínio mítico são adotados aqui para iluminar, sobretudo,

    estes conceitos em sua conexão com o mítico e suas reverberações. Logo, tem-se em Cassirer

    (2004), uma ampla abordagem sobre o assunto apreciada nesta pesquisa. Destaca-se a

    constatação de que tanto a questão “eu vs não-eu” permeia o pensamento mítico, quanto de

    que esta encontra-se submetida às particularidades do mito que é observado:

    [...] a partir dessas ponderações sistemáticas gerais, poderemos então conjeturar,

    com relação ao mito, que ele não parte de um conceito pronto de eu ou de alma,

    tampouco de uma imagem pronta do ser e do acontecer objetivos, mas que tem

    primeiramente de conquista-los, configurá-los a partir de si mesmo. (CASSIRER,

    2004, p. 267)

    Portanto, de acordo com o texto mitológico adotado e com a abordagem

    semiótica, pode-se observar especificamente no texto Bhagavad-Gita, que constitui uma fonte

    mitológica da antiguidade que enfoca nestes polos opostos, a definição do “falso ego” como: a

    consciência de si mesmo com base nos elementos sensórios (KRISHNA, 2006, p. 27–28),

    enquanto o “Eu” é tomado como a essência que habita além dos sentidos e da mente

    (KRISHNA, 2006, p. 23). Em termos semióticos, o primeiro constitui-se em um elemento do

    plano da manifestação, condicionado pelas dimensões cognitiva e estésica; e o segundo é um

    elemento do plano da imanência, situando-se além das mesmas dimensões. Assim estes polos

    se diferenciam por um situar-se no polo do “ser” e o outro no polo do “parecer”, de acordo

    com a categoria da veridicção estabelecida por Greimas e Courtès (1979, p. 487-488). Outra

    questão relevante é que o confronto não se resume a um evento de conjunção ou união com o

    Eu, pois é iterativo e não pontual; de acordo com Cassirer (2004, p. 267-268), o conceito de

    alma é caracterizado como fim e como começo do pensamento mítico, em constante

    transformação.

    Observando alguns textos outros, científicos ou não, de épocas diferentes como

    por exemplo Castaneda (1974), Montaigne (1961) que apresentam este conflito, tem-se que ao

    mesmo tempo em que estes mantêm a temática conflitante entre o Eu e o falso ego no nível

  • 9

    fundamental do discurso, apresentam variações em outros elementos textuais, nos níveis

    discursivo e narrativo. Estas variações, por sua vez, ocorrem no âmbito axiológico, no que se

    denomina “valor sagrado”. A definição adotada para este valor sagrado ou sacralizador parte

    daquela exposta por Eliade (2001, p. 17) ao definir o sagrado:

    O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como

    algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato da manifestação

    do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo [...] exprime apenas o que

    está implicado no seu conteúdo etimológico, [...] que algo de sagrado se nos revela.

    Prosseguindo mais adiante:

    Encontramo-nos [em todo caso de hierofania] diante do mesmo ato misterioso: a

    manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao

    nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo “natural”,

    “profano”.

    Consequentemente, considera-se aqui o valor sacralizador como o contrato

    fiduciário de crença, relativo à existência destas hierofanias, proposto pelo enunciador ao

    enunciatário destes textos. Exposto isto, retoma-se a diferença proposta, entre os textos

    mitológicos antigos e atuais, como residindo na existência ou não da hierofania no contrato

    fiduciário, ou seja: as mitologias antigas explicitam e propõem um contrato, ao qual o

    enunciatário se fida ou não, a respeito das hierofanias. O mesmo não ocorre no que se refere

    às mitologias da atualidade; no caso de textos que traduzem narrativas religiosas do passado,

    o contrato fiduciário se baseia na hierofania que não se encontra aí, mas alhures, na versão

    original – separando o produto proveniente de um destinador sagrado do conteúdo de um livro

    sagrado por si só. Por outro lado, alguns textos atuais trazem actantes dotados de

    potencialidades super-humanas próximas do que outrora seria classificado como divindade,

    mas sem uma isotopia religiosa.

    Existem, entretanto, alterações que ocorrem neste contrato fiduciário de crença na

    tradução atual da axiologia fundamental do mito antigo, ou seja, se a principal alteração nas

    mitologias, da antiguidade para a atualidade, encontra-se na alteração ou desvanecimento

    deste valor sagrado, que se constitui por sua vez como o veículo do qual a axiologia

    fundamental depende para ser acatada pelo enunciatário, a presença do conflito Eu vs Falso

    ego nas mitologias atuais como uma oposição de base fundamental, que originalmente é uma

    oposição entre um eu sagrado e um eu profano, atrai a atenção. A partir destas constatações

  • 10

    emerge a principal questão que se busca responder neste trabalho, a de como o sagrado e o

    profano fundamentam a busca ancestral de construção do sujeito.

    Abordagens a respeito do sujeito e sua alma sempre estiveram presentes em

    estudos sobre mitologia, na concepção animista, étnico-psicológica ou pré-animista.

    Entretanto, de acordo com Cassirer (2004, p. 267) este enfoque deve ser feito não a partir de

    um conceito dado a respeito do sujeito e de sua alma, mas estes conceitos devem ser vistos

    como variáveis a serem desenvolvidas nos próprios textos míticos. Da mesma forma opera a

    investigação por meio da semiótica discursiva. Mas o que interessa para esta pesquisa é,

    sobretudo, a variação destes conceitos através do tempo: como varia a significação de sagrado

    (ligado à alma) e do profano (ligado ao próprio sujeito); principalmente após a perda do valor

    sacralizador ou carga religiosa antigamente intrincada nas literaturas. Especialmente porque

    estes textos mitológicos (seja da mitologia antiga ou da atual) efetuam uma modalização por

    dever sobre o enunciatário, exercendo papel na própria construção do sujeito. Acredita-se que

    a perduração deste tema na atualidade sugere uma necessidade humana de propagar e estar

    conectado a valores, ditos sagrados, que são passados pelos textos, por mais que estejam

    velados, como se observa por meio dos veículos midiáticos, como as histórias em quadrinhos,

    por exemplo.

    Assume-se, nesta linha de pensamento, que a dualidade Eu vs Falso ego aparece

    ofuscada em alguns textos midiáticos dentro da dualidade bem vs mal. Assim tem-se nos

    textos midiáticos o padrão dual bem vs mal, o qual é originário de textos arcaicos que expõem

    esta dualidade como sendo formada pelos elementos Eu vs falso ego, respectivamente. Nota-

    se assim que esta dualidade perdura a partir dos mitos diversos do passado e alcança os textos

    midiáticos, o que indica uma sequencialidade nesta forma de produção midiática e uma

    manutenção, com possível alteração, destes valores originários da antiguidade. Pressupõe-se

    que a vinda à tona deste confronto nestes textos midiáticos se nos apresenta como um grande

    esclarecimento no modo de ver os mitos, bem como um conector importante entre as

    mitologias mundiais, antigas e atuais.

    Acredita-se que a relevância deste estudo para a Área de Comunicação encontra-

    se em princípio na persistência deste tema da antiguidade em um produto cultural atual,

    indicando uma reiteração, ou mesmo uma manifestação latente que ocorre independentemente

    da distância temporal ou cultural. De forma que a observação nos meios de comunicação de

    um tema típico de outros campos de estudo leva a indagações próprias da área de

    comunicação, a serem abordadas de acordo com suas metodologias. Na Área da Comunicação

  • 11

    esta pesquisa pode ser posicionada, conforme a categorização de Santaella (2002, p. 88), no

    território do contexto comunicacional das mensagens. Segundo a autora:

    [...] cabem nesse campo as pesquisas sobre aquilo a que as mensagens se referem, o

    que elas indicam, designam e representam, como representam, a que interesses

    ideológicos e poderes sociais atendem, enfim, cabem aqui os variados tipos de

    relações da mensagem com seu contexto representativo, [...] ou aquilo que, de

    maneira menos técnica, costuma ser chamado de conteúdo.

    Além disso, conforme a taxinomia proposta por Vergueiro e Santos (2010, p.196-

    7) para a fundamentação metodológica das pesquisas sobre histórias em quadrinhos, esta

    pesquisa pode ser classificada como tendo enfoque no produto cultural, com foco na

    mensagem e seguindo o método semiótico de análise. Ressaltando-se que, mesmo na

    distinção entre a semiótica e a comunicação, aborda-se aqui um de seus pontos de

    convergência, segundo Landowski (2008, p. 55):

    [...] porque tendências gerais da episteme guiam as disciplinas distintas em direções

    comuns, são caminhos que conduzem rumo a um tema em torno do qual as reflexões

    mais avançadas no âmbito da Semiótica e no campo da Comunicação nos parecem

    convergir. Esse tema é o da interação.

    Uma interação que aqui se observa na relação do destinador ao destinatário, em

    primeiro lugar, e em seguida internamente a este último enquanto desdobramento do sujeito

    da narrativa, entre suas instâncias constitutivas, utilizando-se de mecanismos que permitem

    “ultrapassar o descrever, o mapear e chegar às generalizações do universo de valores e de

    visões de mundo, de coerções sociais, de tipos de comportamento, de modos de presença, de

    estilos de vida [...], enfim, modelos para se dar conta das formas de vida” (OLIVEIRA, 2008,

    p. 30). Ainda em termos semióticos essa pesquisa possibilitará o exame de mecanismos de

    tradução intersemiótica, dado que os objetos de estudo são produtos de arranjos de linguagens

    diferentes e o seu estudo permite a análise dos modos de tradução de temas e figuras em cada

    uma das linguagens, em especial, pelo sincretismo de linguagens na história em quadrinhos.

    A partir disto estabelece-se como objetivo provar que o que geralmente se observa

    nos mitos e textos midiáticos como a dualidade clássica bem vs mal, representados

    respectivamente como herói e vilão, permite outra interpretação, de forma que o Eu pode ser

    representado pelo bem e seu oposto pelo mal, a menos que estes elementos estejam inseridos

    de forma peculiar. Em relação a isto acredita-se que, mesmo que com diferente roupagem,

    este confronto é um elemento invariante presente tanto nas mitologias quanto nas mídias.

  • 12

    Pretende-se também provar, a partir disso, que a busca por vencer o ego, seja

    velada como nos quadrinhos, ou explícita como nos textos antigos, especificamente no

    Bhagavad-Gita (KRISHNA, 2006; PRABHUPADA, 1995), é uma constante. Além disso,

    visto que este confronto é colocado por tais obras como um dos primeiros passos em uma

    evolução espiritual, objetiva-se esclarecer a forma como este conflito possa estar mascarado

    nos mitos, possivelmente constituindo-se uma prova qualificante proposta ao enunciatário

    leitor. Pretende-se assim por meio de análise semiótica extrair a categoria universalizante

    destes textos; além de extrair a isotopia do dito confronto dos mitos e mídias em que isto está

    ofuscado, para detectar se constitui ou não uma prova qualificante proposta ao enunciatário.

    Para isto tem-se como hipótese que este confronto encontra-se aberto ou velado de acordo

    com estas mesmas roupagens, que constituem elementos das próprias culturas em que os

    mitos são produzidos. Quando está velado, é uma prova qualificante ao leitor, que precisa ir

    “além do sentido” para compreender.

    Por fim, pretende-se analisar o retorno deste confronto na atualidade, e tanto a

    presença quanto a ausência do investimento de valor sacralizador. Acredita-se que a

    permanência deste tema na atualidade expõe uma necessidade humana filosófica, que se

    manifesta também envolta na cultura da atualidade, mesmo que não explicitamente, o que

    justifica a ausência do investimento de valor sacralizador mesmo havendo a presença do tema.

    Para solucionar o problema de investigação e alcançar os objetivos propostos,

    foram selecionados como objetos de pesquisa um texto da antiguidade e outro da atualidade.

    O texto da antiguidade é a obra hindu Bhagavad-Gita, que apresenta, em alguns pontos de

    forma explícita e em outros pontos de forma oculta, o confronto entre o homem e seu falso

    ego como um dos primeiros passos em uma evolução espiritual. No mesmo texto este

    confronto ainda é definido por outras palavras, como: Eu divino vs Ego finito, Eu vs Não-eu,

    entre outros. Este texto é parte constituinte do épico Mahabharata (BUCK, 1973), e

    corresponde ao trecho em que o sujeito Arjuna recebe doação de conhecimento do sujeito

    Krishna, que é caracterizado como divindade, ou enunciador, no texto. Os fatores

    determinantes na seleção deste texto são a temporalidade, primeiramente, devido ao texto ser

    pertencente à idade antiga, e a forma que o desenvolvimento espiritual do sujeito vem

    exposto, com detalhes a respeito do sagrado e profano e do conflito interno do sujeito, na

    forma de uma revelação. Além disso, é relevante como este texto se apresenta imbuído de

    valor sacralizador. Esta forma aberta e detalhada de expressão constitui-se um fator chave

    para a análise das variações isotópicas que ocorrem no texto atual.

  • 13

    Sequencialmente, o outro objeto de estudo para esta pesquisa é constituído por um

    representante destes textos midiáticos em que o confronto homem vs falso ego manifesta-se

    desta forma diversa. Como objeto de estudo midiático foca-se sobre as histórias em

    quadrinhos, por sua relação mais estreita no que concerne às narrativas ficcionais com os

    textos míticos de forma geral, uma semelhança de ordem isotópica. Nesta semelhança

    isotópica se percebe a possibilidade da existência de uma herança deste confronto Eu vs Falso

    ego, mas que se encontra implícito ou ofuscado. Por meio da semiótica discursiva, extrai-se a

    isotopia deste confronto básico, especificamente nas oposições entre herói e vilão ou falsário,

    evidente no texto midiático. Acredita-se que nessas oposições se concentram a base da

    estratégia de ofuscação da dualidade Eu vs Falso ego, que conforme é presumido, se mantém

    nos textos midiáticos. Nesta etapa também é abordada a reoperação do valor sacralizador: de

    um texto sacro da antiguidade para um texto não-sacro da atualidade. Portanto com as

    informações obtidas com a análise do texto hindu torna-se possível investigar nestes

    parâmetros as mídias da atualidade, que ao apresentarem este confronto, conforme se

    pressupõe, utilizam estratégias de ofuscação.

    O objeto de estudo midiático tomado é a história em quadrinhos Ramayan 3392

    AD, que conforme seus autores corresponde a uma re-imaginação do Ramaiana1, épico hindu

    da antiguidade, ou em termos semióticos uma tradução intertextual, que varia entre paráfrase

    e estilização do texto original (DISCINI, 2009). O texto foi produzido nos Estados Unidos da

    América majoritariamente por hindus, escrito originalmente em inglês. Nesta versão existem

    diversas alterações nos elementos do texto, que retiram a sacralidade do épico original e

    propõem um novo sentido, sendo que temáticas originalmente ligadas à divindade são

    substituídas por temas tecnológicos. Desta forma o texto midiático realiza uma apropriação e

    tradução mitológica, já explorada anteriormente (LENZI, 2007), por meio do texto A Espada

    Selvagem de Conan, o bárbaro. Especificamente, a escolha se apoia na alteração que ocorre

    no decorrer da narrativa, já verificada como reiteração comum em análises prévias, em que o

    investimento de valor passa de um objeto qualquer para o conhecimento, que acaba se

    revelando como um conhecimento “cósmico” essencial em termos da narrativa. Isto vai de

    encontro a alguns elementos da axiologia presente nas primeiras análises do Bhagavad-Gita.

    Assume-se esta característica como um indício da instauração do conflito Eu vs Falso ego de

    forma oculta, pois que não é explícito e remove o valor do objeto inicial, seja a vitória sobre o

    antagonista ou qualquer outro objeto. Acredita-se que nesta tradução, pelos motivos

    1 Devido ao foco desta pesquisa no conflito existencial mencionado, o objeto da antiguidade é selecionado por

    sua enunciação direta do processo prescrito de constituição do sujeito, o que não ocorre no Ramaiana original.

  • 14

    elencados, é possível encontrar o ponto de ligação entre o sacro e o profano, e assim detectar

    como se dão essas manifestações. Além disso, sendo o objeto de estudo uma nova versão de

    um épico clássico, sem a presença da sacralidade original, ele deixa aberta a questão do

    sentido sagrado do texto, sem perder o sentido geral e permitindo a inserção dessa narrativa

    nas mídias atuais, de quaisquer localidades e realidades culturais. A partir dessa abertura

    torna-se possível investigar como opera a abordagem da referência ao sagrado, ou seja, a

    vinculação entre o épico sagrado e texto atual é mantida, podendo-se assim dizer que este

    texto atual, por sua vez, consiste em um elemento intermediário entre o texto sagrado e o

    texto destacado completamente do sagrado.

    Considerando a articulação verbi-visual das histórias em quadrinhos que se

    manifesta na superfície espacial da página impressa da revista (OLIVEIRA, 2009), a análise

    por meio da semiótica discursiva torna-se essencial, devido ao método estrutural desenvolvido

    por esta teoria para a abordagem de objetos de estudo, definidos enquanto totalidades de

    sentido, que incluem textos sincréticos que muitas vezes abarcam a visualidade e a

    espacialidade, com a distribuição dos quadros na topologia das páginas, além da própria

    relação intertextos, por meio da qual se torna possível referenciar também o que se mostra

    relevante, em relação aos objetivos propostos, nas relações entre a história em quadrinhos e o

    Ramaiana original.

    São tomados assim, em síntese, objetos de estudo relevantes nesta temática, que

    trazem como axiologia no nível fundamental o embate Eu vs Falso ego, e o valor sagrado (ou

    sua ausência) nos níveis discursivo e narrativo. Colocando lado a lado as obras: Bhagavad-

    Gita, e Ramayan 3392 AD, Tem-se a princípio que o primeiro é investido de um valor

    sacralizador, e o segundo pode ser investido deste mesmo valor dependendo do enunciatário,

    podendo também ser desprovido deste valor para o enunciatário “estrangeiro”. Acredita-se

    que neste investimento ou não do valor “sagrado” repousa a necessidade ou não da ofuscação

    do confronto mencionado. Desta forma a escolha dos objetos de pesquisa se fundamenta na

    forma de operação sobre o valor sagrado, que parte de uma revelação explícita, no texto

    antigo, a um desdobramento deste valor pelo enunciatário no texto atual, o que se deve à

    consistência estésica da história em quadrinhos que faz o enunciatário entrar em contato

    sensível, estésico, no sentido sentido.

    Em relação à bibliografia fundamental, além do referencial da semiótica

    discursiva desenvolvido por Greimas, aborda-se outros textos de autores que tratam de

    mitologias, como Cassirer e Eliade; textos de semiótica que trabalham com mitologias, como

    Certeau, Panier e o próprio Greimas, e textos de semiótica discursiva que trabalham com

  • 15

    histórias em quadrinhos e com a visualidade e sincretismo de linguagens, como Barbieri,

    Floch e Oliveira. Essas relações também são observadas pelo viés de obras que se aprofundam

    em temas semelhantes tratando a questão do sensível nos mecanismos de construção do

    sentido, como Do inteligível ao sensível (LANDOWSKI; OLIVEIRA, 1995), Da Imperfeição

    (GREIMAS, 2002) Passion sans nom (LANDOWSKI, 2004) e Les interactions risquées

    (LANDOWSKI, 2005).

    Pretende-se assim verificar em que medida estes esquemas do nível fundamental

    estão presentes nas mídias tomadas, e que papéis desempenham devido principalmente à

    ausência de sacralidade dos textos midiáticos, em comparação com as mitologias. Em síntese,

    com um estudo inicial acerca da dualidade Eu vs Falso ego no texto hindu, seguido de análise

    dos textos midiáticos, em que é observada a questão da dessacralização, pretende-se por meio

    de análise semiótica discursiva responder aos objetivos da pesquisa; sobre a grande difusão do

    tópico, a estratégia da ofuscação do confronto e o confronto na atualidade investido e

    desprovido do valor sacralizador, de acordo com o fazer interpretativo do enunciatário – nos

    textos midiáticos das história em quadrinhos.

    Com a obtenção dos resultados pertinentes aos objetivos propostos, buscar-se-á

    identificar como a mesma questão pode estar presente de formas tão diferentes em suas

    diversas presentificações. Sendo provada a forte perseverança deste tópico, acredita-se que se

    encontra ao menos um dos significados das mitologias presente nesta prescrição ao

    desenvolvimento espiritual. O ressurgimento deste tópico na atualidade por meio dos textos

    midiáticos apresenta por sua vez a intemporalidade do mesmo confronto. Acredita-se que a

    permanência deste assunto e sua grande repercussão (principalmente com obras esotéricas)

    fazem dele algo fortemente vinculado a uma condição filosófica e espiritual humana, e que

    este estudo contribui para o entendimento dessa condição na sociedade atual.

  • 16

    2 O CONFLITO DUAL NO BHAGAVAD-GITA

    Como corpus para a observação do tema homem vs falso ego na antiguidade

    toma-se o texto mítico hindu Bhagavad-Gita. Este texto é parte integrante do épico

    Mahabharata, que narra a disputa entre dois ramos familiares pelo reinado da Índia de então.

    As razões para a escolha deste texto como objeto compreendem primeiramente o fato do tema

    homem vs falso ego ser discutido de maneira explícita. Em segundo lugar e consequentemente

    destaca-se a antiguidade do texto, constando entre os primeiros épicos da humanidade; como

    menciona Piantelli (2007) a respeito da coletânea de todo material escrito em uma obra única:

    “o processo já estava avançado entre os séculos VIII e IV A.C.” 2. Em terceiro lugar

    acrescenta-se a presença no texto do valor sagrado, ou seja, é uma história integrada a

    religiões indianas, e os sujeitos caracterizados como deuses no decorrer da obra são assim

    consideradas pelos religiosos. Por fim adiciona-se a exemplaridade que o Mahabharata

    exerceu sobre outros mitos e histórias, inclusive ocidentais. Conforme se observa em

    Piantelli, (2007, p.108) referências ao texto indiano podem ser encontradas em textos míticos

    ou religiosos escandinavos, gregos e iranianos, entre outros. A versão adotada para a análise

    de base é a de Prabhupada (1995), por trazer juntamente as traduções literais do texto em

    sânscrito. Consistindo este o texto de referência, os trechos transcritos no decorrer do capítulo

    indicam os versos e páginas sempre desta obra. Também é utilizada a versão traduzida por

    Rohden (KRISHNA, 2006) como apoio, em algumas passagens específicas e referidas.

    Da mesma forma que ocorre nos épicos da antiguidade ocidental, a narrativa do

    Mahabharata apresenta como actantes diversas divindades, semideuses e demônios. Assim

    como a tRama geral deste texto serviu de base para a elaboração de muitos épicos ocidentais,

    acredita-se que o mesmo ocorreu com o sentido imanente, presente no nível fundamental. A

    partir dos desenvolvimentos deste capítulo, o material levantado será colocado em relação às

    histórias em quadrinhos da atualidade, o Ramayan 3392 AD, cujo formato, a princípio

    desapossado deste valor, pode exibi-lo ou não dependendo da sanção do enunciatário sobre o

    objeto investido deste valor.

    A narrativa do Mahabharata trata de um conflito estabelecido entre dois ramos

    familiares em busca do reinado da Índia. Com o desenrolar dos acontecimentos, chega-se a

    uma situação em que o combate direto deve ser travado. Cada ramo familiar, os Pandavas

    (eufóricos) e os Kauravas (disfóricos), conta com um exército, de forma que este combate é

    2 “Il processo era già avanzato fra l’VIII e il IV secolo a.C.”. Tradução livre.

  • 17

    caracterizado como uma guerra de grandes proporções. O ramo eufórico conta com auxílio do

    actante Krishna, que representa a divindade encarnada. Neste ponto, que pode ser

    figurativizado como a prova decisiva do ramo Pandava, ocorre uma hesitação por parte do

    actante Arjuna (membro dos Pandavas). Arjuna hesita em lutar por reconhecer amigos e

    familiares entre os combatentes de ambos os lados. Inicia-se então um diálogo entre Arjuna e

    Krishna, e este diálogo constitui o Bhagavad-Gita, ou em português a Sublime Canção,

    conforme tradução de Rohden (KRISHNA, 2006)3.

    No decorrer do Bhagavad-Gita há diversas passagens que evidenciam a existência

    de um conflito entre o homem e o falso ego. Este tema é exposto em meio a diversos outros,

    que definem a realidade material e espiritual, as qualidades das ações humanas, entre outros.

    Embora se exponha aqui uma análise do conteúdo da obra Bhagavad-Gita que apresenta o

    confronto Homem vs Falso ego, é necessário observar como é estruturado o conteúdo geral da

    obra, pois o tema Homem vs Falso ego está enredado por um universo de classificações cuja

    compreensão é necessária para o aprofundamento neste tópico específico. Vê-se então como

    primeira obrigação definir os termos básicos utilizados pela obra no decorrer da análise do

    tópico seguinte, visto que estabelece uma estrutura particular de realidade.

    2.1 Estrutura geral

    O texto é escrito em versos e segmentado em capítulos, e por meio dessa divisão

    podem-se depreender basicamente os diversos temas tratados. O primeiro capítulo

    corresponde, no nível discursivo, a uma transição entre o Mahabharata e a nova tipologia

    enunciva que é instaurada a partir deste ponto, a do diálogo referente ao Bhagavad-Gita. Pelo

    nível narrativo, descreve a passagem modal de Arjuna de um querer-fazer a um não-querer-

    fazer (combater).

    Os capítulos seguintes constituem já o diálogo, ou ensinamento passado a Arjuna.

    A princípio pode-se definir este ensinamento como parte de um contrato, pois visa modificar

    o fazer do sujeito Arjuna. Simultaneamente, o actante Krishna espera que Arjuna combata,

    sendo esta ação a parte oposta do contrato. O estabelecimento deste contrato se inicia a partir

    de Arjuna, ao enunciar: “Agora, estou confuso quanto ao meu dever [...] estou te pedindo que

    me digas com certeza o que é melhor para mim. [...] Por favor, instrui-me” (1995, p.79, verso

    3 A palavra Gita relaciona-se tanto ao conceito de canção quanto ao conceito de canção ou poema sagrado, ou

    ainda a “doutrinas religiosas declamadas em forma métrica por um sábio inspirado” (MONIER-WILLIAMS).

  • 18

    7, cap.2). O que ocorre durante esta passagem de saber é uma circulação de valor entre

    diferentes objetos, como será abordado na sequência.

    Os primeiros conceitos abordados são os de alma e corpo. O conceito de alma é o

    mesmo daquele de Eu, de forma que diferentes traduções adotam o termo Eu ou alma como

    variantes do mesmo significado. A alma é caracterizada por uma série de termos:

    Habita o corpo inteiro (corporificada), sendo indestrutível e imperecível;

    Após a morte do corpo migra para outro corpo;

    Não é nascida, é sempre-existente e por isso não pode morrer;

    Invisível, inconcebível, indissolúvel e imutável.

    Quanto ao corpo esse é caracterizado por: aquilo que não permanece sendo

    destrutível e perecível. A partir dos seguintes versos:

    “Ó Partha, como pode uma pessoa que sabe que a alma é indestrutível, eterna, não-nascida e

    imutável matar alguém ou fazer com que outrem mate?”(cap. 2, v.21, p. 99);

    “[...] aquele que mora no corpo nunca pode ser morto [...]” (cap. 2, v. 30, p. 110);

    “[...] O eu não mata nem é morto [...].” (cap. 2, verso 19, p. 96).

    Vê-se que as palavras “alguém”, “aquele” e “eu” são associadas majoritariamente

    à alma e não ao corpo. De forma que aquele que tem o conhecimento que o ser (alma ou Eu)

    de outro não pode ser destruído, igualmente não pode matar, portanto o assassinato se torna

    impossível. Ocorre por meio disso a assunção de uma realidade outra, na qual estes sujeitos

    almas, enquanto partes enfatizadas dos próprios sujeitos, são indestrutíveis.

    O texto parte então, no enunciado de Krishna, a explicar a atividade do trabalho

    sem resultados fruitivos, enquanto libertadora “do cativeiro decorrente das ações”. São citados

    três modos da natureza material, cuja explanação vem mais adiante na narrativa. A instrução

    dada ao actante é a de tornar-se transcendental a esses três modos, libertando-se das

    dualidades e anseios provenientes da busca de ganho e segurança, assim como: “estabelece-te

    no eu” (cap.2, v. 45, p. 127). É dada então uma prescrição; embora Arjuna tenha o direito de

    executar seu dever, não pode exigir os frutos da ação, bem como considerar-se a causa do

    resultado de suas atividades.

    No verso 48 do segundo capítulo vê-se que desempenhar o dever com equilíbrio,

    abandonando o apego a sucesso ou fracasso, é denominado yoga. Nos capítulos seguintes é

  • 19

    dado o ensinamento deste yoga a Arjuna, e pode-se dizer que este ensinamento é uma

    competência adquirida necessária para o desenvolvimento das provas decisiva e glorificante.

    Sequencialmente o termo “serviço devocional” (p. 132-3) é também utilizado para denominar

    a execução de uma atividade cujos frutos são oferecidos à causa original Krishna,

    consequentemente auxiliando a fazer o sujeito tornar-se desapegado de resultados, o que é

    completamente disforizado no texto. Em termos semióticos, esta atividade corresponde à

    execução de um programa narrativo em que não há inserção de valor semântico diretamente

    no objeto visado, ou pelo menos, neste programa narrativo os valores que potencialmente

    seriam utilizados em benefício do actante são disforizados e renegados. Neste ato de renegar,

    o sujeito actante livra-se de “tanto das boas quanto das más ações [...]” (p. 133), transmitindo

    ao Destinador inatingível o valor destas ações; de forma que seja um valor potencialmente

    disfórico ou eufórico, quando repassado ao Destinador se torna afórico.

    A sequência seguinte, ainda no segundo capítulo, descreve a pessoa que seguiu

    essas regras propostas. Ocorre a constituição de um sujeito que pode ser considerado como

    objeto de valor modal (querer-ser) pelo actante/enunciatário que opta por seguir este percurso,

    em um programa narrativo de uso. A carga semântica eufórica é inserida nos objetos

    valorizados por este sujeito-objeto valor. De forma que o sujeito/objeto é colocado como uma

    espécie de modelo. Esta sequência encontra-se entre os versos 55 e 72, sendo o último trecho

    do segundo capítulo. Pode-se dizer que os versos de 49 a 54 constituem já uma prévia do que

    é abordado sequencialmente, apresentando uma prescrição direta ao actante Arjuna sobre

    como agir. A partir do discurso trazido na sequencia final pode-se elaborar o percurso

    narrativo do yogui, ou praticante da yoga conforme já definida. A princípio, de acordo com o

    verso 55, pode-se colocar como objeto-valor “encontrar satisfação apenas no eu”. O processo

    de conjunção com este objeto se inicia com o seguinte programa narrativo disjuntivo, que

    considera como objeto o “desejo de gozo dos sentidos”:

    PN = F satisfazer-se com o eu [S1 (S2 U O)]

    Em que S1 = S2.

    Percebe-se que o programa narrativo é baseado em uma exclusão, de forma que a

    busca é a de disjunção com o desejo de gozo dos sentidos, que por sua vez surgem da

    invenção mental; isto ocasiona a conjunção com a satisfação com o eu. Por sua vez, isto

    implica que haja oposição entre desejo de gozo dos sentidos e satisfação com o eu. Assim este

    primeiro programa homologa-se em:

  • 20

    PN = F [S1 (S2 ∩ Ov)]

    Em que Ov = consciência transcendental pura, e S1 e S2 representam o sujeito

    satisfeito com o eu; ou modalizado por um não-querer o gozo dos sentidos. Os versos

    seguintes prosseguem reiterando este percurso, e por vezes inserindo outros elementos nesta

    composição. Assim tem-se que:

    S1, quando: não deixa a mente se perturbar com as três classes de misérias; está livre de

    apego, medo e ira; não se deixa afetar por bem ou mal a que se sujeita, não os louva nem

    despreza; retira seus sentidos dos objetos dos sentidos; mantém os sentidos sob completo

    controle, fixando a consciência na causa suprema;

    Caracteriza-se: em conjunção com uma mente estável; fixo em conhecimento perfeito; fixo

    em consciência perfeita; de inteligência estável.

    Em seguida é transmitido o programa narrativo do anti-sujeito, com objeto

    disfórico:

    PN= F [S1 (S2 ∩ O)]

    Em que O = contemplação dos objetos dos sentidos. Segundo o texto, a conjunção

    com esse objeto primeiro faz com que outros objetos disforizados derivados também se

    juntem ao sujeito sequencialmente, da seguinte forma:

    O1:: apego aos objetos dos sentidos:: luxúria:: ira:: completa ilusão:: confusão da memória::

    perda da inteligência:: queda no poço material.

    Além disso, o texto possibilita uma classificação geral dos elementos constituintes

    deste objeto. Assim, eles podem ser inseridos nos subgrupos ou da felicidade ou da aflição:

    “Felicidade e aflição são transitórios, e surgem da percepção sensorial. O homem que não se

    perturba por estes está qualificado para alcançar a liberação” (cap.2, v.14, p.90). Quando o

    tema é retomado no quinto capítulo, tem-se o seguinte verso: “A pessoa inteligente não

    participa das fontes de misérias, que se devem ao contato com os sentidos materiais. [...] esses

    prazeres têm um começo e um fim, e por isso o sábio não se delicia com eles” (v. 22, p. 285).

    Em que se percebe como felicidade e aflição constituem duas faces de um mesmo objeto.

  • 21

    Nota-se que estes objetos pertencem sempre à dimensão sensível-cognitiva, sendo

    alguns deles estados patêmicos e outros deles estados complexos que não se enquadram na

    patemização, como “completa ilusão” ou “queda no poço material”. Com isso, necessita-se de

    mecanismos que abranjam as relações estésicas no âmbito semiótico, como a teoria

    sociossemiótica de Landowski. De forma que a competência exigida para entrar-se em junção,

    ou união, com objetos sensíveis, é aquela da estesia, ou seja, da disposição do sujeito para

    sentir.

    Da mesma forma que se notam estes objetos investidos semanticamente de valor

    disfórico, pode-se depreender em uma escala, a partir dos versos 65 e 66 (p.149-150), a

    homologação de objetos eufóricos do sujeito, os quais também podem ser, em alguns casos,

    qualificados como objetos estésicos:

    Liberdade sobre apego e aversão:: controle dos sentidos:: misericórdia da causa suprema

    Sujeito em união com o supremo:: S ∩ Ov inteligência transcendental e mente estável:: paz::

    felicidade

    De forma que a narrativa abrange tanto objetos estésicos puros quanto cognitivos;

    e outros que requerem do sujeito simultaneamente uma capacidade modal e uma competência

    estésica. Particularmente, deve-se definir dois termos que se assemelham em suas definições,

    e que podem inclusive ser considerados sinônimos em alguns casos, mas que nesta passagem

    são constituídos por diferentes “ser” enquanto modalidades: a mente e a inteligência. Tem-se

    as definições dos termos de acordo com Houaiss e Villar (2009); para a mente: “1 Parte

    incorpórea, inteligente ou sensível do ser humano; espírito, pensamento, entendimento [...] 2

    Faculdade, ato ou modo de compreender algo ou de criar na imaginação [...], percepção”; e

    quanto à inteligência: “faculdade de conhecer, compreender e aprender 2 capacidade de

    compreende e resolver novos problemas e conflitos [...] 3 conjunto de funções psíquicas e

    psicofisiológicas que contribuem para o conhecimento [...]. Assim, assumindo a primeira

    definição para a mente, os termos se diferenciam pela inteligência estar ligado à capacidade

    do sujeito, a fazeres modais e em essência somáticos, se considerada a parte biológica

    cerebral, enquanto a mente ocupa-se de algo que pode, de acordo com Houaiss e Villar, ser

    colocado como além da dimensão cognitiva, mais ligado a um ser modal. Consequentemente,

    a “inteligência transcendental” é aquela que em seu fazer percebe aquilo a que não está

    capacitada, aproximando-se da e possibilitando a condição da “mente estável”.

  • 22

    Ao final do segundo capítulo, o verso 71 (PRABHUPADA, 1995, p. 153)

    confirma a caracterização de todo este conjunto de qualidades disfóricas como “falso ego”:

    “Aquele que abandonou todos os desejos de gozo dos sentidos, [...] que abandonou todo o

    sentimento de propriedade e não tem falso ego – só ele pode conseguir a paz verdadeira”. A

    partir disto é ratificada a definição do “falso ego” como a consciência de si mesmo com base

    nos elementos sensórios (KRISHNA, 2006, p. 27). Em outras palavras, é o sujeito em

    conjunção com as estesias e cognições e suas consequências provenientes dos sentidos e de

    suas interações com o mundo exterior. Ao passo que o Eu mantém-se como esta mesma

    consciência liberta do domínio das mesmas estesias e cognições, conforme observado.

    Prosseguindo com a análise, dos versos 1 a 32 do terceiro capítulo tem-se a

    separação entre dois tipos de ações; aquela comum, em que há o prazer proveniente dos

    sentidos, e aquela que é euforizada no texto, em que o fruto da atividade é oferecido às

    divindades, em sacrifício. Com isto percebe-se que o sujeito que busca seguir este caminho

    pode realizar qualquer atividade que seja, desde que o fruto dela, especificamente o prazer

    proveniente dos sentidos que surge a partir da realização da atividade, seja renegado pelo

    sujeito e passado a outro sujeito, de natureza diferente da humana.

    É particularmente interessante para esta análise o verso seis (p. 162): “Aquele que

    impede os sentidos de agir, mas não afasta sua mente dos objetos dos sentidos, decerto ilude a

    si mesmo e não passa de um impostor”. Com este verso pode ser notado como o discurso

    abrange tanto a inteligibilidade quanto a estesia, estabelecendo as duas capacidades como

    complementares. Outro verso interessante neste trecho inicial é o 27 (p. 186), que inaugura o

    tema dos três modos da natureza material: “Confusa, a alma espiritual que está sob a

    influência do falso ego julga-se autora das atividades que, de fato, são executadas pelos três

    modos da natureza material”. Estes mesmos três modos conferem ao sujeito uma natureza

    particular, conforme exposto pelo verso 33 (p. 191-2). Este tema é retomado detalhadamente

    no décimo quarto capítulo, e deste trecho ao fim do capítulo é abordada a luxúria enquanto

    parte de um destes três modos, a paixão.

    A luxúria é instaurada no texto como um actante, como um anti-sujeito que se

    opõe à realização do programa narrativo de base que o discurso constitui, seja ao actante

    Arjuna, seja enunciativamente ao leitor. Em Krishna (2006, p. 35-6) o mesmo termo, kamah,

    é definido como “desejo oriundo do amor à posse”, ou “desejos objetivos”.

    Esquematicamente, pode-se descrever este actante conforme os versos 37 a 41 (p. 196-201):

    Nasce do contato com o modo material da paixão;

  • 23

    Consequentemente se transforma em ira;

    Cobre o ser vivo em graus diferentes;

    Opõe-se à “consciência pura da eternidade”, se depositando sobre ela;

    Impele alguém a atos pecaminosos mesmo contra sua vontade;

    Tudo devora neste mundo, nunca se satisfaz;

    Assenta-se sobre os sentidos, a mente e a inteligência;

    Por meio destes, confunde o ser vivo e obscurece seu verdadeiro conhecimento

    (conhecimento do Eu); destrói o conhecimento e a auto-realização.

    Tem-se assim este anti-sujeito que age de forma manipulativa cognitiva e

    sensivelmente, colocando-se entre o sujeito e o objeto de valor, ou objeto de consistência

    estésica, que o texto caracteriza euforicamente, a busca pelo conhecimento do Eu, ou da alma.

    Logo em seguida o enunciado emitido por Krishna doa a competência necessária para o

    sucesso neste confronto: refrear a luxúria desde o começo por meio da regulação dos sentidos

    (cap. 3, verso 41, p. 201).

    No fim do terceiro capítulo é feita uma classificação da constituição estésico-

    inteligível humana. Este arranjo hierárquico é feito da seguinte forma, crescente (v. 42, p.

    202):

    Matéria bruta – sentidos funcionais – mente – inteligência – alma (eu)

    Este discurso também faz parte do conhecimento necessário (saber-fazer) para

    derrotar o antissujeito luxúria, ou desejo oriundo do amor à posse, ou ainda desejos objetivos.

    De forma que saber que o Eu transcende os sentidos, a mente e a inteligência materiais

    capacita o sujeito a um dever, conforme o texto: “[...] a pessoa deve equilibrar a mente por

    meio [da consciência de Krishna, a causa superiora] e assim – pela força espiritual – vencer

    [a] luxúria (v. 43, p. 204)”.

    O capítulo seguinte trata da yoga, denominada “ciência da relação com o

    supremo” (1995, p. 209). Há uma auto-definição parcial do actante destinador Krishna, em

    que este se associa ao próprio Eu de cada sujeito. Como destinador final, descreve que as

    recompensas que oferece aos actantes que o buscam são proporcionais ao grau de rendição do

    sujeito à causa sustentadora. Krishna coloca que os sujeitos que buscam a conjunção com

    algum objeto do mundo material, por esta mesma razão adoram seres definidos como

    “semideuses” (v. 12, p. 225), e que assim obtêm o que procuram. O texto mantém-se na

  • 24

    descrição de “ação e inação”, que abrangem os conceitos já mencionados a respeito da

    atividade que visa resultados, a não-atividade e a atividade cujo resultado é oferecido à causa

    sustentadora em sacrifício. Aborda também definições parciais a respeito da causa

    sustentadora, o Krishna, que serão retomadas de acordo com o prosseguimento da análise.

    O tema da ação, inação e atividade realizada em sacrifício continua a ser tratado

    no quinto capítulo, algumas vezes com recorrências de discursos semelhantes e outras vezes

    trazendo detalhes adicionais. Assim tem-se a colocação de que nesta atividade de sacrifício o

    sujeito não deve nem odiar e nem desejar os frutos de seus trabalhos, se libertando assim de

    “todas as dualidades” (v. 3, p. 265). Há uma comparação deste tipo de atividade com o

    “estudo analítico do mundo material” (v. 4, p. 266), em que estas duas atividades são

    equiparadas.

    Logo em seguida tem-se o discurso que estabelece que o sujeito que “tem

    consciência divina” sabe “dentro de si” que quando realiza qualquer ação básica humana,

    como ver, ouvir, etc., na verdade não faz nada, pois sabe que “só os sentidos materiais estão

    ocupados com seus objetos ao passo que ele é distinto de tudo” (v. 8-9, p. 270). O texto

    prossegue afirmando que o sujeito que “controla sua natureza” e renuncia mentalmente a

    “todas as ações”, reside feliz no seu corpo material (v.13, p. 274). Mais uma vez abordando os

    “modos da natureza material”, o discurso caracteriza estes modos como criadores de

    quaisquer atividades que o sujeito possa executar, além de serem criadores do impulso de agir

    e dos frutos das atividades (v. 14, p. 276) (2006, p. 46). Desta forma o sujeito é totalmente

    responsável por seus atos, e não algum outro destinador. O discurso atribui ao sujeito que

    supera estes obstáculos, e que situa a mente em igualdade, uma transcendência à matéria e

    uma perfeição. Além disso, segue definindo este sujeito glorificado, que “controlando a

    mente, os sentidos e a inteligência, [...] livra-se do desejo, do medo e da ira” (v.27-28, p. 290)

    e alcança assim a liberação na causa suprema, libertando-se de aflições materiais.

    Já no sexto capítulo, o actante destinador Krishna equipara o termo renúncia à

    yoga, ou união com a causa suprema, referindo-se à renúncia ao desejo pelo prazer dos

    sentidos. É instaurado um novo actante, a mente. Esta é caracterizada como ou um auxiliar ou

    um opositor do actante no percurso proposto por Krishna, dependendo de o sujeito ter ou não

    conquistado a mente (p. 300-302). A performance de conquistar a mente é relacionada à de

    alcançar a Superalma, a própria causa superior, Paramatma no original (p. 326); devido à

    união com a tranquilidade e à visão de qualquer coisa como a mesma. Este actante é

    plenamente “satisfeito em virtude do conhecimento e percepção adquiridos”, “está

  • 25

    estabelecido em auto-realização” (v. 8, p. 303), sendo transcendental e possuindo

    autocontrole.

    A partir deste ponto, estando as modalidades do sujeito buscador relativamente

    caracterizadas, por: renunciar aos frutos em qualquer atividade, renunciar ao prazer dos

    sentidos, libertar-se de desejos e dominar a mente, para obter um ponto de vista equânime

    sobre todas as coisas e seres; o discurso de Krishna prossegue fornecendo alguns detalhes

    para a prática da yoga, que é justamente todo este processo de renúncia, e a forma de

    aquisição, ou de criar a possibilidade de unir-se, aos objetos mencionados acima. São muitos

    detalhes práticos que têm em comum a meditação sobre a causa suprema e a visão desta causa

    como último objetivo na vida (p. 308), além de a moderação em seus hábitos diários.

    É descrito então o estado de perfeição, o transe que o praticante da yoga pode

    atingir (p. 317). Neste estado ocorre a suspensão do trabalho da mente sobre atividades

    mentais materiais, e o actante pode ver, sentir e apreciar o eu. Pode-se dizer, a partir das

    informações levantadas, que este é um estado de união do sujeito consigo mesmo, ou em

    outras palavras, um estado em que o falso ego não existe. Sendo este falso ego constituído

    pela relação entre o sujeito (eu) com o mundo material, este estado é então constituído pelo

    sujeito subtraído desta relação com o mundo material patêmico-inteligível. De acordo com o

    texto o sujeito percebe, através de sentidos transcendentais, uma felicidade transcendental.

    Dá-se assim a instauração de uma outra dimensão, além da patêmica e da inteligível, que o

    texto define como transcendental, caracterizando o sujeito neste estado como em conjunção

    com a verdade e inabalável frente a dificuldades. Alcançar este estado, o desapego e todos os

    objetos de valor ou estésicos descritos previamente, forma o conjunto que no texto é definido

    como o bem, em detrimento de todo o resto (p. 337). Uma última observação relevante que é

    possibilitada por este capítulo é aquela que coloca o yogui, ou transcendentalista, como

    capacitado a perceber em todos os seres e objetos a própria causa suprema, a Paramatma (v.

    29, p. 324). Com isso tem-se que o estado de transe, que ocasiona a subtração dos elementos

    constituintes do sujeito, também possibilita a percepção de qualquer sujeito ou objeto

    subtraído dos próprios elementos constituintes. Além disto, há referências às reencarnações

    dos sujeitos, que são interconectadas entre si, ratificando a constatação anterior sobre a

    impossibilidade da morte.

    No sétimo capítulo os discursos se baseiam sobre a natureza desta causa suprema,

    o destinador Krishna. O discurso que inicia esta descrição indica os elementos que formam as

    energias materiais do destinador: “terra, água, fogo, ar, éter, mente, inteligência e falso ego”

    (v. 4, p. 355). Neste trecho vê-se que o falso ego, constituído pelas impressões baseadas na

  • 26

    relação do actante com o mundo material, também é parte integrante da Superalma, o

    Paramatma. O verso seguinte insere outro elemento como uma dessas energias, a energia

    superior da Superalma, que por sua vez é formada pelas próprias entidades vivas. Percebe-se

    assim que o destinador causa suprema não é considerado algo distinto de seus destinatários,

    pois estes compõem materialmente o destinador, junto com os elementos anteriormente

    citados. São instituídas duas naturezas como fonte de quaisquer coisas e seres; a material e a

    espiritual, que por sua vez têm sua origem e dissolução na causa superiora. A sequência do

    discurso relaciona a causa superiora a todas as principais qualidades de cada ser ou objeto,

    como “o calor no fogo”, “a habilidade no homem”, etc..

    Há uma retomada do tema dos três modos ou estados de existência: bondade,

    paixão e ignorância, como ocultadores da causa suprema. O discurso também condiciona as

    manifestações destes modos à energia da causa suprema, mas ao mesmo tempo individualiza

    esta última, pois estes modos localizam-se dentro dela. A forma de superar estes modos e

    revelar a causa suprema também é dada, e consiste na rendição a este destinador. Dá-se então,

    do verso 15 a 24, a instauração de diversas classes de actantes relacionadas a específicos

    destinadores, da seguinte forma:

    Canalhas – têm conhecimento extraído pela ilusão – compartilham da natureza ateísta dos

    demônios;

    Aqueles cuja inteligência é roubada pelos desejos materiais – rendem-se a semideuses;

    Classes de homens piedosos que buscam a causa suprema: o aflito, o que deseja riquezas, o

    inquisitivo e o que busca conhecimento sobre o Absoluto.

    Dentre estes últimos, o Destinador ainda separa como melhor aquele “que tem

    conhecimento pleno” (p. 375) e que realiza sempre atividades nas quais oferece ao Destinador

    a fruição das mesmas, o que não diferencia um tipo de actante dentre os outros nesta

    classificação. Este tipo de actante é considerado por Krishna “tal qual ele mesmo” (p. 376). O

    tipo intermediário também é euforizado pelo Destinador, conforme indica o verso 21 (p. 380),

    e em relação a este actante o Destinador causa suprema atua como um Destinador enquanto

    um segredo, conforme o esquema semiótico das modalidades veridictórias (GREIMAS;

    COURTÉS, 1979, p. 487-488). Este tipo diferencia-se do último por estar disjunto do objeto

    inteligência e por obter, em decorrência de adotar um destinador existente apenas no plano da

    manifestação, frutos limitados e temporários (p. 383). Já o primeiro tipo de actante é

    totalmente disfórico na axiologia do texto.

  • 27

    Algumas constatações podem ser feitas a partir destes diversos actantes, como a

    instauração da ilusão e das causas materiais como anti-sujeitos manipuladores, os sujeitos

    como depositantes de valor semântico em objetos cognitivos e a própria busca de um

    destinador, que é no que consiste este programa narrativo. Assim, os actantes aliam-se a

    destinadores de naturezas semelhantes a eles mesmos, da mesma forma que após a morte

    corporal alcançam os planetas de seus respectivos destinadores (p. 383). Além disso, percebe-

    se que entre o primeiro e o segundo tipo de actantes, reside uma diferença nos objetos

    disjuntos de cada grupo de sujeitos. De forma que se é feita uma comparação entre o

    conhecimento, do primeiro grupo, e a inteligência, do segundo grupo, depreende-se que a

    inteligência é a produtora do conhecimento. Ao mesmo tempo, a escolha do destinador por

    parte do actante é baseada em seus próprios processos estésico-inteligíveis a partir de suas

    relações com o mundo, ou de acordo com o texto, de suas relações com os três modos

    materiais. Então o actante que, após entrar em disjunção com algum conhecimento, se alia a

    algum anti-destinador que se opõe ao conhecimento, transforma-se no “canalha”. De forma

    análoga, o actante que está em conjunção com o conhecimento, mas em disjunção com a

    capacidade de produzi-lo atém-se ao plano da manifestação, e desta maneira não tem a

    competência necessária para compreender o segredo, de que o destinador adotado por ele é o

    próprio destinador Krishna. Já a última classe de actante possui esta capacidade e pode

    alcançar o plano da imanência, assumindo a causa suprema como Destinador.

    No último trecho deste capítulo novamente são expostas informações a respeito

    do Destinador. Este se coloca como o impulso inerente aos actantes na busca e definição de

    um destinador, mesmo que estes actantes não ultrapassem o plano da manifestação e adotem

    um destinador que não seja a causa suprema. Pois conforme o discurso anterior, qualquer

    destinador semideus é a própria causa suprema no plano imanente, embora diferente no plano

    da manifestação. Há o estabelecimento de uma competência necessária ao actante que

    pretende perceber esta causa suprema: “Eu nunca me manifesto aos tolos e aos ininteligentes.

    Para eles, Eu estou coberto por Minha potência interna [...]” (v. 25, p. 388). Define-se assim o

    querer-saber e o saber, como modalidades necessárias para a conjunção com uma

    manifestação, requisitada para uma possível união, com este destinador. Porém, deve-se

    observar que neste verso há uma divergência de traduções quanto ao lexema “potência

    interna”, yoga-maya no original. Em Krishna (2006, p. 60) é adotado para o mesmo termo:

    “esplendor de minhas próprias manifestações”, ambos correspondendo ao objeto que

    possibilita ao actante Krishna sua manifestação enquanto um segredo. No primeiro caso, o

    termo relaciona-se às potencialidades do Destinador, e no segundo corresponde ao resultado

  • 28

    das ações do mesmo. Nota-se então que o mesmo termo yoga-maya é traduzido, no primeiro

    caso representando uma aspectualidade incoativa, e no segundo uma aspectualidade

    terminativa. Estas possibilidades de interpretação do termo ligam-se às próprias características

    do Destinador, como “o começo, o fim e também o meio” (v. 32, p. 517). São atribuídas

    outras competências ao destinador por ele mesmo, como: infalível, não nascido, imperecível e

    supremo, onisciência atemporal, onipresença, incognoscibilidade e o “princípio governante da

    manifestação material” (p. 394).

    Por fim, o tema da dualidade inerente ao homem é retomado, em: “[...] todas as

    entidades vivas nascem em ilusão, confundidas pelas dualidades surgidas do desejo e do ódio”

    (v. 27, p. 391) e a possibilidade de libertar-se desta ilusão “manifesta sob a forma de

    dualidades” (v. 28, p. 392) com o serviço determinado em favor da causa suprema. Do último

    verso (p. 394) depreende-se a aspectualidade pontual da compreensão desta causa suprema:

    mesmo ao momento da morte do sujeito; a partir da atividade de aspectualidade durativa de

    ter plena consciência desta causa original.

    Com o andamento da análise, já é possível notar que o texto apresenta muitas

    variações nos subtemas tratados, nunca os abordando por completo, mas parcialmente em

    cada trecho, retomando alguns subtemas em partes diversas. Alguns pontos de mudança de

    subtema são identificáveis pelos questionamentos do interlocutor de Krishna, Arjuna, embora

    dentro dos discursos de seu destinador haja também variações e retomadas de subtemas. Com

    isso nota-se que os discursos presentes no texto formam uma espécie de pulsação, que pode

    ser associada ao dia e à noite de Brahma. Estes conceitos abrangem o estado manifesto e

    imanifesto dos seres vivos, respectivamente (p. 416-8); a existência e aniquilamento destes

    seres, ou em outras palavras um estado em que os seres derivados podem diferenciar-se desta

    causa original e outro em que se encontram fundidos a ela.

    São esses conceitos que permeiam o oitavo capítulo. Já no início há a instauração

    de um novo actante, que consiste em uma variação do actante destinador Krishna enquanto

    imanifesto, denominado Brahman. Este actante por sua vez apresenta como “natureza eterna

    [o] adhyatma, o eu” (v. 3, p. 400). Neste mesmo período é estabelecido o karma, ou ação

    (KRISHNA, p. 63) como aquilo que ocasiona o desenvolvimento dos corpos materiais.

    Percebe-se aqui como o texto coloca a passagem da dimensão espiritual para a material, por

    meio de actantes delegados por um mesmo destinador, ou partes dele. No discurso essas

    instâncias não são definidas nem como objetos nem como sujeitos, embora algumas delas

    possuam um fazer modal. Outras instâncias semelhantes são: natureza física (mutável) –

    adhibhuta; forma universal do Senhor, ou da causa original – adhidaiva; a causa original

  • 29

    enquanto Superalma, presente em todos os sujeitos – adhiyajña (p. 401). Com o conjunto

    destas instâncias podem ser formados os esquemas seguintes, baseados no que o texto fornece

    até este ponto.

    Variações da causa original suprema: Imanifesta Em forma universal Enquanto Superalma Corporificada

    Brahman Adhidaiva Adhiyajña Krishna

    E o processo que ocasiona a criação da dimensão material estésico-cognitiva: Eu (natureza de Brahman) Força que ocasiona o

    desenvolvimento material

    Natureza física

    Adhyatma Karma Adhibuta

    Em que as diversas instâncias deste destinador são instauradas, bem como sua

    performance criadora. Com os discursos do final do Bhagavad-Gita são instauradas relações

    entre estas formas do destinador. Tem-se assim uma causa original que fecunda Brahman (p.

    653), dando origem à forma universal. Por outro lado, a Superalma, essencialmente espiritual,

    habita a forma universal nesta dimensão paralela. Concomitantemente e paradoxalmente a

    tudo isso existe essa forma corporificada, cuja existência não é aspectualmente pontual,

    conforme esta passagem: “Homens sem inteligência, que não Me conhecem perfeitamente,

    pensam que Eu, a Suprema Personalidade de Deus, Krsna, era impessoal e depois assumi esta

    personalidade.”; mas sim durativa: “Devido a seu conhecimento escasso, eles não conhecem

    Minha natureza superior, que é imperecível e suprema (p. 385)”. Além disso, o fato de a

    natureza da causa original enquanto imanifesta ser definida como “Eu” pode ser associada ao

    tema mais pertinente nesta análise, de forma que analogamente à causa original, que enquanto

    subtraída de quaisquer elementos é chamada de Eu, o sujeito que adota este Destinador deve

    subtrair-se de quaisquer elementos para libertar-se do Falso ego e aproximar-se do Eu

    subjetal, ou reflexivo. No prosseguimento tem-se a colocação de que o destinatário deve ver e

    pensar neste Destinador como uma entidade paradoxal, com o nono verso (p. 406), em que o

    enunciado do destinador constitui em:

    Deve-se meditar na Pessoa Suprema [corporificada] como aquele que sabe tudo,

    como aquele que [...] é o menor do que o menor, [...] que está além de toda a

    concepção material, que é inconcebível e que é sempre uma pessoa. Ele é [...]

    transcendental, situado além desta natureza material.

    Pode-se depreender a partir disto que o sujeito é modalizado por um dever-ver o

    Destinador enquanto um paradoxo, simultaneamente como um semelhante, na forma pessoal,

    e como o maior e o menor. Devido à propriedade da inconcebilidade, o sujeito sabe que

  • 30

    qualquer concepção que faça deste destinador é incapaz de abranger sua imanência. Este

    paradoxo remete às dualidades do mundo material, as quais não se aplicam ao Destinador.

    Segundo a definição de paradoxo por Houaiss e Vieira:

    1 Pensamento, proposição ou argumento que contraria os princípios básicos e gerais

    que costumam orientar o pensamento humano, ou desafia a opinião consabida, a

    crença ordinária e compartilhada pela maioria 2 aparente falta de nexo ou de lógica;

    contradição [...]. (2009, p. 1430)

    Pois que se exibir simultaneamente dois polos de uma ou mais dualidades

    constitui um paradoxo, portanto impossível, ou aparentemente impossível, é desta

    impossibilidade que é formada a inconcebilidade do Destinador.

    Na segunda metade do capítulo são descritas diferentes espacialidades, que podem

    ser alcançadas pelos actantes. Estas são definidas como planetas ou moradas

    (PRABHUPADA, p. 415) ou mundos (KRISHNA, p. 65), e também são classificadas

    hierarquicamente. Estas espacialidades são alcançáveis pelos actantes após suas mortes, e se

    subdividem em planetas do mundo material, sendo todos âmbitos de miséria pelos quais os

    actantes circulam em indefinidos nascimentos e mortes, e no mundo espiritual do Destinador.

    Alcançar este mundo espiritual transcendental significa não retornar aos planetas materiais.

    Este mundo do Destinador é definido como de uma “[...] natureza imanifesta, eterna e

    transcendental a esta matéria manifesta e imanifesta. Ela é suprema e jamais é aniquilada [...]”

    (v. 20, p. 419), nem durante a noite de Brahma. Portanto o mundo deste Destinador é

    inconcebível nesta realidade material, assim como ele. Para o observador do mundo material

    essa realidade é imanifesta, embora imanente. Além disso, mantendo a iteração paradoxal

    deste Destinador, ele encontra-se em seu mundo concomitantemente a que é “onipenetrante, e

    tudo está situado dentro d’Ele” (v. 22, p. 420). O que retoma a questão da imanência e da

    manifestação, em que a imanência deste Destinador assim como de seu mundo, residem no

    polo do segredo no esquema semiótico das modalidades veridictórias. Apenas a manifestação

    deste Destinador e de seu planeta pode ser concebida. De forma semelhante, alguns subtemas

    são introduzidos com afirmações enfáticas de que são segredos (p. 431). Os versos finais

    deste capítulo tratam de detalhes sobre a passagem de um mundo a outro, a existência de um

    caminho de luz e outro de escuridão, respectivamente um do qual não se volta e outro do qual

    se volta. Entretanto, o discurso ratifica a questão do serviço devocional, por meio do qual o

    actante não se diferencia de um praticante de rituais religiosos e “não se confunde” (v. 27, p.

    425) durante esta transição, podendo transcender à dimensão do Destinador.

  • 31

    No nono capítulo é transmitido um conhecimento que concede “a perfeição direta

    do eu [...]” (v. 2, p. 431) e que deve ser praticado. A necessidade recorrente de praticar-se um

    conhecimento conecta o saber a um fazer, que é a atividade ofertada à divindade, cuja

    consequência é a liberação do sujeito da sucessão de nascimentos e mortes (p. 436). Ocorrem

    neste trecho outros detalhamentos sobre a natureza do Destinador em sua forma imanifesta,

    Brahman; nesta configuração o destinador não está nos sujeitos, dá-se o oposto. Isto se opõe

    ao que ocorre quando o Destinador encontra-se em sua forma Superalma. Entretanto,

    enquanto nesta forma imanifesta, os elementos, que pertencem à dimensão material, não

    fazem parte do Destinador. Isto leva a concluir que os sujeitos que fazem parte do destinador

    encontram-se também fora da dimensão material. Caracterizado como o originador e aquele

    que mantém todos os sujeitos, onipresente, por este mesmo motivo de ser um criador, a causa

    original não faz parte desta espacialidade e de seus integrantes (p. 440). Porém, a força

    criadora em si, o karma, conforme visto anteriormente, não é parte do Destinador, estando

    este neutro (p. 445-6).

    Há então uma retomada do discurso classificador de sujeitos; a não aderência de

    um sujeito a este sistema paradoxal leva à aderência a uma ilusão que remove o

    conhecimento, constituindo o sujeito “canalha” (v. 12, p. 450). A prática devocional no

    cultivo de conhecimento indica a adesão ao Destinador enquanto forma universal, Adhidaiva

    (p. 455-6) que, porém é a forma em que o Destinador é simultaneamente todo sujeito e objeto.

    O sujeito superior na escala é o que não se ilude, consciente da condição paradoxal do

    Destinador, o assumindo como um sujeito-destinador-destinatário transcendental (p. 452-3),

    libertando-se de pecados e sendo assim capacitado a deslocar-se consequentemente ao âmbito

    deste Destinador (p. 472-7). Já o sujeito que não tem a competência de perceber este

    Destinador como sendo um segredo, adotando outras divindades como destinadores, alcança

    uma elevação hierárquica temporária, em seu hiper-ciclo de nascimentos e mortes (p. 460-1).

    O décimo capítulo concentra-se em descrições de manifestações e capacidades do

    Destinador, sendo originador, mantenedor e finalizador da realidade material. Os versos cuja

    observação é pertinente para esta análise descrevem as competências estésico-cognitivas

    originadas diretamente do destinador e sancionadas positivamente:

    Inteligência, conhecimento, estar livre da dúvida e da ilusão, clemência, veracidade,

    controle dos sentidos, controle da mente, felicidade e aflição, nascimento, morte,

    medo, destemor, não-violência, equanimidade, satisfação, austeridade, caridade,

    fama e infâmia [...]. (v. 4 e 5, p. 486-7)

  • 32

    Percebe-se então que algumas dualidades opostas encontram-se nestas

    qualificações: felicidade e aflição, nascimento e morte, medo e destemor, fama e infâmia.

    Pode-se classificar estas dualidades como originárias da relação do sujeito com o ambiente e

    com outros sujeitos. Embora individualmente se oponham, e a manifestação simultânea de

    dois polos em um mesmo sujeito aparentemente seja paradoxal, devido a suas próprias

    condições originárias, a relação entre sujeitos e objetos, torna-se possível que algumas delas

    apareçam simultaneamente. Em outras palavras, o sujeito nasce e morre, é feliz e aflito, pode

    apresentar temor e destemor, fama e infâmia em um intervalo de tempo. No caso das três

    últimas oposições, podem existir simultaneamente em um mesmo sujeito a partir do ponto de

    vista de outro sujeito em relação, ou a partir do ponto de vista do próprio sujeito em relação a

    diferentes sujeitos e objetos. Assim, em algumas situações, o sujeito pode tornar-se

    relativamente paradoxal como o Destinador.

    Na continuidade, o Destinador coloca-se como doador de conhecimento àquele

    sujeito que age em seu favor (p. 496-7), fora o caso particular do texto, que enquanto na

    forma pessoal o Destinador realiza essa mesma ação. A partir deste ponto o discurso segue

    trazendo diversas manifestações preeminentes deste Destinador enquanto Superalma, dentre

    as quais se posiciona como a principal qualidade de cada manifestação, como: o sol entre as

    luzes, a mente dos sentidos, a consciência dos seres vivos, a água do oceano, o maior entre os

    semideuses, entre os sábios e entre os demônios, o silêncio das coisas secretas, etc., além de

    partes que formam a completude de fenômenos, como o começo, o fim e o meio de todas as

    criações, ou a morte e o gerador. Essas constatações ratificam a posição do Destinador como

    um paradoxo.

    É descrita no décimo primeiro capítulo a manifestação de Krishna a Arjuna em

    sua “forma cósmica, [como] ilimitado Eu universal” (v. 4, p. 532). Este acontecimento é

    condicionado pela doação de “olhos divinos” (v. 8, p. 535) ao sujeito, pelo próprio

    Destinador. A partir daqui o enunciador narrador Sañjaya descreve essa visão do Destinador,

    que dentre diversas características, as mais reiteradas são: ilimitado e em constante expansão,

    primordial, contendo o universo em si mesmo, portanto novamente paradoxal. Outro discurso,

    enunciado pelo próprio Destinador, coloca a impossibilidade, exceto por sua vontade, de esta

    causa suprema ser vista sob sua forma universal no mundo material (v. 48, p. 568-9), o que

    leva a concluir que este Destinador situa-se além de paradoxos, menos do que se constitua em

    um.

    Caracterizando-se como o tempo destruidor, sob cujo jugo os soldados da guerra

    do Mahabharata, exc