políticas de drogas no brasil- a mudança já começou

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Políticas de Drogas no Brasil: a mudança já começou Coordenação e Edição: Ilona Szabó de Carvalho e Ana Paula Pellegrino MARÇO 2015 ARTIGO ESTRATÉGICO 16

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  • Polticas de Drogas no Brasil: a mudana j comeouCoordenao e Edio: Ilona Szab de Carvalho e Ana Paula Pellegrino

    MARO 2015

    ARTIGO ESTRATGICO

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  • Poltica de Drogas no Brasil: a mudana j comeou

    Sumrio

    Introduo GlossrioAs experincias

    Sade: abordagens integraisRede de Atendimento de Sade Mental (Prefeitura de So Bernardo do Campo, SP) Programa De Braos Abertos (Prefeitura de So Paulo, SP)Atitude (Governo do Estado de Pernambuco)Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas (Universidade Federal da Bahia)

    Preveno e reduo de danosCentro de Convivncia de Lei (ONG, So Paulo, SP) ResPire (ONG C.C. de Lei, So Paulo, SP) Segunda Chance (ONG AfroReggae, Rio de Janeiro e So Paulo) Informao, debate e polticas pblicas Programa Crack, lcool e Outras Drogas (Fiocruz, Brasil)Comisso Global de Polticas Sobre Drogas (Internacional) Rede Pense Livre por uma poltica de drogas que funcione (Brasil)

    Polticas de drogas no Brasil: a mudana j comeouPara saber mais

    Outras publicaes do Instituto Igarap

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    Introduo

    1 Os termos marcados em negrito ao longo do texto encontram-se melhor definidos no Glossrio.2 Como etapa preliminar dessa pesquisa, foi feito um mapeamento de projetos e programas sendo implementados no Brasil. Deste primeiro levantamento, foram selecionadas as experincias que constam nesse artigo, baseado em critrios de acesso informao e documentao, bem como a adoo de estruturas de gesto mais consolidadas.3 Para maiores informaes sobre outras experincias, confira a lista de bibliografia sugerida.4 Todas as palavras no texto destacadas em negrito esto listadas no Glossrio5 Szab de Carvalho, Ilona. O despertar da Amrica Latina: uma reviso do novo debate sobre poltica de drogas. Nota Estra-tgica 14, fev. 2014. Disponvel em < http://igarape.org.br/o-despertar-da-america-latina-uma-revisao-do-novo-debate-sobre--politica-de-drogas-final/>.

    Esta publicao resulta de uma descoberta surpreendente: o Brasil, na prtica, j est implementando iniciativas inovadoras em termos de polticas de drogas, em sintonia com experincias internacionais consideradas avanadas e que vem atraindo ateno de todo o mundo, em alguns casos com estratgias absolutamente pioneiras.

    Ao realizar um levantamento sobre iniciativas contemporneas que lidam com a preveno, a reduo de danos,1 o tratamento, a reinsero social ou a articulao poltica em torno do debate e mudanas na legislao sobre drogas ilcitas no Brasil, o Instituto Igarap constatou que existem, neste momento, mais de duas dezenas de iniciativas2 que seguem conceitos da vanguarda, destacando a sade e a qualidade de vida do cidado, e escolhendo caminhos mais seguros e sustentveis para a sociedade.

    Apesar de ainda no contar com uma poltica nacional que rompa claramente com o velho paradigma da proibio e da represso como estratgia prioritria, o que vem ocorrendo em pases nas Amricas e na Europa com resultados

    importantes,3 o Brasil j conta com insumos, a partir das experincias aqui elencadas, para subsidiar um debate pragmtico sobre os novos rumos que devemos buscar. Este o caminho para superarmos tanto os problemas decorrentes do uso e do abuso de drogas ilcitas no pas, quanto os problemas gerados pelos impactos negativos de nossa poltica de drogas atual.

    A abordagem de Reduo de Danos,4 cujo conceito original traz a perspectiva da sade para o foco central da questo das drogas, destaca-se entre as estratgias que vm sendo praticadas. A reduo de danos stricto sensu lida com a aceitao do fato de que existem pessoas que no querem ou no podem abandonar o uso da droga. A partir desta compreenso, parte-se para aes que visam reduzir os danos deste uso tanto para o indivduo quanto para a sociedade. No contexto da Amrica Latina, o conceito de reduo de danos precisa ser mais amplo e englobar a necessidade urgente de reduzir a violncia causada pela guerra s drogas.5

    As polticas repressivas vm causando, nas ltimas dcadas, muito mais mortes

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    violentas e consequncias negativas do que o consumo das drogas em si. Pases de nossa regio como a Colmbia, o Mxico, e tambm o Brasil, tm um enorme custo social e econmico6 decorrente da violncia associada ao combate ao trfico de drogas. Alm disso, a estratgia focada na represso acarreta no aumento da corrupo, da marginalizao da juventude das periferias, na violao de muitos direitos, e no crescimento da populao carcerria de baixo potencial ofensivo, responsvel por um dramtico ciclo de estragos sociais.

    O Brasil campeo mundial em nmeros absolutos de homicdios por ano so mais de 56.000 mortes violentas,7 das quais se estima que 50% sejam relacionadas guerra s drogas.8 O pas tambm o terceiro maior encarcerador de pessoas no mundo, e cerca de 30% das prises so tambm relacionadas s drogas.9 E como prova de que a represso no a melhor estratgia para se lidar com o tema, o consumo de algumas drogas vm crescendo no Brasil. por esta razo que se faz urgente construir novas polticas baseadas no conceito ampliado da reduo de danos: precisamos de polticas menos danosas para lidar com as drogas, que sejam boas para as pessoas individualmente (sade preservada), para a sociedade (segurana cidad e direitos garantidos), e para o

    pas (eficcia dos gastos pblicos: tratar o dependente e oferecer penas alternativas para rus primrios no violentos muito mais barato e menos danoso que prender, por exemplo).

    Dez pistas de que no estamos parados, nem andando para trsSe, no plano federal, os programas que abordam o tema das drogas de forma integral ainda so tmidos com algumas estratgias desatualizadas, ainda que pontualmente avancem em questes especficas10 existem pelo pas projetos e programas descentralizados que testam, em escalas mdias, pequenas ou mnimas, propostas realmente inovadoras e que vem apresentando resultados animadores.

    So aes de governos municipais e estaduais, de organizaes da sociedade civil e de instituies acadmicas e de pesquisa cuja abordagem vai desde a

    6 Roxo, Sergio. O Globo. Estudo mostra que custo da violncia no Brasil j chega a 5,4% do PIB. 10 nov. 2014. Disponvel em . 7 Dado referente ao ano de 2012. Waiselfisz, Julio Jacobo. Mapa da Violncia 2014: os jovens do Brasil < http://www.mapada-violencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf>. 8 Primeira Hora Notcias. 56,12% dos homicdios no Brasil tm ligao direta com o trfico. Centro Oste Campeo na Crimi-nalidade. 13 set. 2011. Disponvel em: . 9 Gallucci, Maringela. Estado. Brasil tem o terceiro maior nmero de presos do mundo. 28 set. 2010. Disponvel em .10 H, a nvel federal, o programa Crack, Possvel Vencer.

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    produo e promoo de conhecimento, a articulao de debates e estratgias de presso poltica, passando por aes educativas e de preveno, pelo tratamento direto de usurios e dependentes, at a incluso social de populaes em situao de extrema vulnerabilidade, como pessoas em situao de rua e egressos do sistema penitencirio.

    O mapeamento inicial dos projetos e programas foi feito a partir de informaes disponveis e acessadas atravs de canais mltiplos, como eventos acadmicos, publicaes especializadas, veculos de mdia e mesmo contatos pessoais com representantes de entidades, estudiosos ou polticos vinculados ao tema. Isso significa que no foi um trabalho exaustivo e sistemtico. Tampouco foi feita uma avaliao dessas experincias, mas sim uma compilao de dados mais visveis e acessveis, que, portanto, esto longe de fazer jus ao todo.

    Inicialmente, foram identificados 25 programas que atendiam aos critrios que nos guiaram nesta seleo: uma abordagem, ainda que indireta, do problema das drogas que contribua para a reduo amplificada de danos; uma viso multidisciplinar que admita a complexidade de um tema multifacetado; uma experincia ativa, que esteja em prtica neste momento; uma ao que envolva ao menos uma instituio, no sendo, portanto, uma iniciativa individual, e que possa ser analisada a partir de um mnimo de dados estruturados, que permitam sua replicao (de preferncia em escalas maiores e aps processos de avaliao de seus impactos) no futuro.

    O ltimo critrio acima, que trata da disponibilidade de informaes estruturadas, inviabilizou a incluso de algumas das experincias elencadas inicialmente neste artigo. Ou seja, muitas outras prticas interessantes podem estar sendo testadas, mas elas ainda no possuem visibilidade ou sua estrutura ainda no atingiu um nvel de organizao que permita o levantamento de dados sistematizados. Mesmo entre os dez programas que apresentaremos a seguir, este tpico precisa ser desenvolvido e melhorado. So poucos, por exemplo, os que dispem de um processo de monitoramento e avaliao constante, o que crucial para uma ampliao futura em termos de escala, e para a desejada ascenso destas apostas corajosas a polticas pblicas inovadoras.

    O importante que, com base nestes exemplos, j podemos dizer que o Brasil est mudando. O objetivo desta publicao mostrar onde e como esta mudana est acontecendo. O fato de serem projetos e polticas contemporneas de especial relevncia: significa que podem ser visitados e analisados neste exato momento, contribuindo assim para a reflexo propositiva, o debate construtivo e a necessria reviso de nossos preconceitos, diretrizes e bases no que tange as polticas de drogas brasileiras.

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    Glossrio menores relacionadas a drogas. A posse permanece sendo uma infrao sujeita a sanes civis ou administrativas;

    Desinstitucionalizao movimento antimanicomial na rea da psiquiatria, que promoveu uma crtica radical ao manicmio. Levou criao das redes de ateno substitutiva. Usado para referir-se a pessoas, descreve o processo de sada da internao e sua reintegrao social efetiva, o que depende do desenvolvimento de outras formas de assistncia sade mental;

    Equipamentos estabelecimentos para prestao de servios, como o acolhimento de pessoas em situao de risco;

    Fissura vontade muito forte de usar alguma droga. Pode ser desencadeada por uma srie de gatilhos, como passar por determinada experincia ou simplesmente ver algum usando drogas;

    Guerra s drogas - estratgia de represso com enfoque militar, com o intuito de reduzir a produo, o comrcio e o uso de drogas ilegais;

    Legalizao processo que pe fim proibio e torna legal a produo, a distribuio e o uso de drogas para fins no medicinais ou cientficos, passo necessrio para a regulao;

    Ao Civil Pblica instrumento processual que pode ser usado pelo Ministrio Pblico e outras entidades para defender interesses difusos, coletivos ou individuais homogneos ou seja, interesses pblicos, no privados;

    Ateno substitutiva rede de equipamentos de cuidado em sade mental, pautada pela lgica antimanicomial, cujos servios, alm do tratamento, buscam recuperar a cidadania e promover a reinsero social dos pacientes;

    Atores Instituies ou indivduos que tm interesse em determinada pauta ou desempenham um papel ativo dentro do tema;

    Consultrio de/na Rua equipes multidisciplinares de sade, mveis, que assistem a populaes em situao de rua e uso problemtico de substncias com a abordagem de reduo de danos. Trabalham de maneira integrada a redes maiores, que incluem Unidades Bsicas de Sade, Centros de Atendimento Psicossocial, Servios de Urgncia, Emergncia e outros;

    Descriminalizao no-aplicao de penas criminais para uso ou posse de drogas ou parafernlia para uso pessoal, s vezes tambm usado para referir-se a outras infraes

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    Matriciamento suporte prestado por equipe multidisciplinar a profissionais de diversas reas para que ampliem seu escopo de atuao. Visa integrar e criar dilogo entre diferentes especialidades e profisses que atuam em conjunto;

    Proibio estabelecimento de sanes criminais para a produo, distribuio e posse de certas drogas (para fins no medicinais ou cientficos), termo usado para referir-se ao regime internacional de controle de drogas (Tratados da ONU de 1961, 1971 e 1988) e legislao domstica brasileira (lei 11.343/2006);

    Projeto de Lei proposta normativa submetida apreciao de rgo legislativo, sob os cabveis trmites nacionais. Cabe, no Brasil, veto do poder executivo antes que a lei proposta entre em vigor;

    Reduo de Danos polticas, programas e prticas que visam mitigar consequncias econmicas, sociais e de sade negativas causadas pelo uso de drogas psicoativas legais ou ilegais, sem ter a abstinncia como pr-requisito. Por isso, costuma-se dizer que tais iniciativas so de baixa exigncia;

    Regulao conjunto de regras legalmente aplicveis que governam o mercado de um produto, por exemplo, uma droga sua produo, disponibilidade e marketing, bem como os prprios artigos (preo, potncia, embalagem). Diferentes mecanismos de controle podem ser usados, inclusive proporcionais aos riscos das drogas e necessidades locais;

    Sugesto/ideia Legislativa discusso iniciada por iniciativa popular, organizada pelo Portal e-Cidadania (http://www12.senado.leg.br/ecidadania). Qualquer cidado pode propor uma ideia legislativa, que ento precisa de 20 mil assinaturas para que seja apreciada pela Comisso de Direitos Humanos e Cidadania do Senado Federal, que em ltima instncia decidir sobre o processo de abertura de audincias pblicas e indicar, depois de apreciado um relatrio, se deve ser proposto um projeto de lei sobre o tema;

    Testagem de substncias prtica de examinar substncias para averiguar composio, qualidade e posologia de drogas. Atualmente existem diversos kits para identificao de substncias j conhecidas. Especialmente til para evitar overdoses e ingesto de elementos txicos ou desconhecidos, que podem estar presentes na mistura de drogas sintticas ou nas Novas Substncias Psicoativas (NSPs). Comuns na Europa, seu uso ainda no disseminado no Brasil;

    Transversalizao abordagem multidisciplinar aplicada a polticas, programas ou aes em geral.

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    Experincias

    Rede de Atendimento de Sade MentalSo Bernardo do CampoSo Paulo

    Quem: Prefeitura Municipal de So Bernardo do Campo

    Atividade: Acompanhamento psicossocial

    Contato: Stellamaris Pinheiro , Coordenadora da Rede de Sade Mental (11) 4126-9800 / 96194-5572

    Com cerca de 800 mil habitantes, a cidade de So Bernardo do Campo, na regio conhecida como Grande So Paulo, passou por uma reforma ampla em seu sistema de sade a partir de 2009 e possui atualmente uma das redes de ateno sade mental mais estruturadas do estado, tornando-se referncia entre os municpios vizinhos. Muito mais do que nmeros expressivos de equipamentos disponveis, So Bernardo se destaca por inserir a perspectiva da sade mental em todos os servios de Sade, do programa Sade da Famlia, passando pelo Servio de Atendimento Mvel de Urgncia o SAMU, at as Unidades Bsicas de Sade (UBS).

    A transversalizao da ateno sade mental permite que todos os profissionais estejam preparados para atendimentos de transtornos psquicos leves, o que inclui casos de uso problemtico de drogas. O atendimento da sade mental na cidade prioriza a reintegrao social de indivduos em situao de extrema vulnerabilidade, buscando o restabelecimento de vnculos familiares dos pacientes, a recuperao da autonomia e, sobretudo, a garantia de direitos bsicos.

    As equipes da Ateno Bsica contam com profissionais de sade mental matriciadores, psiclogos e psiquiatras.

    Sade: abordagens integrais

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    comunidade s pessoas em situao de moradia no Hospital Psiquitrico sediado na cidade. O municpio, desde abril de 2013, vem prescindindo de hospitais psiquitricos, acolhendo e acompanhando os usurios na rede de ateno substitutiva.

    As Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) so referncia para o cuidado de pessoas em situao de intoxicao por abuso de substncias psicoativas ou em sndrome de abstinncia. Completando a estratgia, as Unidades de Acolhimento, conhecidas como Repblicas, so um recurso teraputico vinculado aos CAPS AD, oferecendo moradia transitria para o usurio em cujo Projeto Teraputico conste o exerccio do habitarcomo eixo do cuidado.

    O investimento na formao continuada dos profissionais e o acompanhamento contnuo dos casos atendidos so detalhadamente relatados em reunies interdisciplinares onde profissionais das reas da sade, educao, artes e assistncia social trocam impresses e buscam solues para os casos da Rede.

    Participando efetivamente desta experincia encontram-se atores oriundos da primeira experincia de poltica de desinstitucionalizao e reduo de danos no pas, que ocorreu na cidade de Santos ao final dos anos 80. Aquela gesto, responsvel por plantar as sementes de uma ampla reforma no setor de sade mental no pas, gerou um acmulo de aprendizados que se refletem na Rede de Sade Mental de So Bernardo. A intensa troca entre profissionais veteranos e novatos proporciona uma circulao horizontal de saberes que se faz notar nos resultados do programa.

    Ao todo, so33 Unidades Bsicas de Sade (UBS) com psiclogos preparados para o atendimento, 10 delas com psiquiatras em turnos de 24 horas. Alm disso, a rede conta com apoiadores com experincia em gesto pblica, cuja misso garantir a qualidade no atendimento e dar suporte s equipes da rede de sade.

    Outro trao marcante da Rede o matriciamento, dispositivo de interveno pedaggica que muda a lgica tradicional dos encaminhamentos hierrquicos, de transferncia de responsabilidade atravs de pareceres e formulrios escritos, e adota recursos voltados para uma assistncia compartilhada, onde diferentes equipes interagem horizontalmente. Na Rede, esse processo acontece de vrias formas: com interconsultas, discusses de casos, atendimentos conjuntos, capacitao, visitas domiciliares, entre outras dinmicas de compartilhamento.

    Atualmente a Rede composta por oito Centros de Atendimento Psicossocial (CAPs) - dos quaistrs so especficos para lcool e drogas (CAPs AD), sendo um destes voltados para o pblico infanto-juvenil (CAPs ADI). Tambm compem a rede: seis Residncias Teraputicas, duas Unidades de Acolhimento, um Ncleo de gerao de Renda, um Pronto Atendimento, e uma equipe de Consultrio na Rua. A descentralizao (e regionalizao) dos CAPs, caracterstica importante da estratgia, se baseia num mapeamento que teve como critrio a origem dos pacientes, entre os quais aqueles com histrico de internao psiquitrica, associada demanda de atendimento psiquitrico nos prontos-socorros e na rede bsica. As Residncias Teraputicas possibilitaram que o municpio garantisse o direito de viver em

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    Desafios:Manter a qualidade do trabalho est relacionado a manter as equipes envolvidas e motivadas. A capacitao constante e a prtica diria dos profissionais fazem toda diferena ao longo do tempo. Mas comum a interrupo de programas, mesmo quando bem sucedidos, e troca de equipes em postos estratgicos a cada mudana de mandato.

    Lies aprendidas: - A posio privilegiada da administrao municipal para identificar demandas e traar estratgias de ao sob medida para o contexto local;

    - A interdisciplinaridade como aspecto central da consolidao de uma rede de sade mental;

    - A participao social e a escuta contnua entre equipes e usurios para a elaborao de procedimentos de tratamento, bem como de aes estratgicas mais amplas;

    - A horizontalidade na gesto das equipes, com fluxos contnuos de trocas entre funcionrios;

    - A aproximao entre as agendas da sade mental e dos direitos humanos.

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    Programa de Braos AbertosSo PauloSo Paulo

    Quem: Prefeitura Municipal de So Paulo

    Atividade:Cuidado, acolhimento, moradia e tratamento de usurios de drogas, assistncia mdica, assistncia social, projetos de empregabilidade, formao e qualificao.

    Contato:[email protected] (11) 3120-4004

    O Programa De Braos Abertos, lanado em janeiro de 2014 e atualmente com 453 beneficiados na regio da Luz, destaca-se pela perspectiva da reduo de danos, pela interdisciplinaridade e integrao entre diversas secretarias municipais, como a de Sade, a de Segurana Urbana, a de Governo, Direitos Humanos e Cidadania; Trabalho e Empreendedorismo; Assistncia e Desenvolvimento Social, entre outras.

    As atividades visam promover um pacote de direitos (moradia, alimentao, trabalho e renda) para uma populao em situao extrema de excluso, frequentadora ou moradora da regio da Luz, localizada no centro de So Paulo, mais conhecida como a cracolndia. O objetivo proporcionar, atravs de uma rede de servios articulados, um projeto de

    Sade: abordagens integrais

    autonomia para cada indivduo, para alm da sua experincia com a droga. Embora a iniciativa esteja vinculada ao Programa Federal Crack, Possvel Vencer, os gestores esclarecem que a iniciativa no voltada somente para usurios de drogas, mas sim para pessoas que se encontram em estado de alta vulnerabilidade social.

    Alm da estrutura de ateno psicossocial e de sade, o programa articula iniciativas de outras reas, como Assistncia Social, Direitos Humanos, Trabalho e Urbanismo, num sistema onde o beneficirio acompanhado desde seu ingresso at a sua sada definitiva. Por exemplo, o programa conta com atividades de revitalizao urbana onde os prprios usurios oferecem seu trabalho e criatividade para a configurao de um

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    36.000,00 que movimentaram o comrcio local. Comerciantes relataram a diminuio de pequenos furtos e, aparentemente, novas relaes comerciais foram estabelecidas entre os frequentadores, os moradores, os comerciantes e os agentes pblicos - ao todo, mais de 200 funcionrios da Prefeitura vinculados ao programa atuam no territrio.

    Embora o programa ainda no tenha dados estatsticos de reduo do consumo de drogas, gestores e agentes da ponta afirmam que os efeitos positivos so sensveis a olhos nus. Relatos dos prprios beneficirios e percepo de mudanas geradas em suas vidas so reportados constantemente por todos os agentes envolvidos no trabalho de campo.

    Ao contrrio de aes verticalizadas da Prefeitura para a regio, o Programa De Braos Abertos construdo a partir de processo de escuta contnua entre os gestores e os frequentadores da rea. Por estar diretamente atrelada a um processo de dilogo com os beneficirios, a dinmica gerencial altamente orgnica, seguindo um ritmo intenso em que as equipes de rua de diversas especialidades retornam para os gestores cotidianamente com desafios e sugestes. nessa troca (quase) diria que o programa vai sendo remodelado continuamente.

    O investimento em capacitaes para lidar com problemas de sade mental e uso abusivo de drogas tambm constante, inclusive contando com profissionais vindos do exterior para ministrar os cursos. Mesmo antes de completar um ano de atividades no campo, os funcionrios j receberam uma reciclagem para aprimorar e atualizar seus mtodos de trabalho. Outros cursos de reciclagem esto sendo programados.

    novo espao pblico. Arte, jardinagem, grafites e intervenes urbanas so vinculados Secretaria de direitos Humanos e Cidadania. Projetos de iluminao local, recapeamento, entre outros, so trabalhados pela secretaria de servios do municpio.

    Atravs de um contrato social assinado com um mnimo de exigncias, no Programa Operao Trabalho, os inscritos recebem bolsas mensais no valor de R$ 1.086,00, sendo que 480,00 so para o pagamento da moradia nos 7 hotis da regio conveniados com a Prefeitura, 181,00 para a alimentao e 425,00 pago diretamente ao beneficirio para suas despesas pessoais. Nos hotis, eles passam a ter um local para dormir, um lugar para guardar seus pertences e acesso a banheiros. As bolsas podem ter at dois anos de durao.

    A relao contratual entre beneficirios e a prefeitura um dos pontos altos do programa, gerando uma relao de confiana mtua cujo resultado tem sido a maior permanncia dos participantes. A baixa formalizao e nvel de exigncia para participar, em vez de produzir desistncias, produz laos mais fortes de comprometimento e responsabilidade. A presena das equipes da Prefeitura no campo estratgica, pois no contato rotineiro que os funcionrios passam a conhecer os beneficirios e ouvir suas demandas. Pedidos como ter sua vaga reservada no hotel e no programa caso sejam detidos pela Polcia Militar, por exemplo, so encaminhados e podem ser atendidos.

    Na primeira semana, quando 316 pessoas aderiram aps uma operao de remoo de barracos na regio, foram injetados R$

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    O programa, que passa por uma avaliao aps seu primeiro ano em funcionamento, acompanhado pelo Grupo Executivo Municipal GEM, composto por 8 Secretarias municipais, representantes da Sociedade Civil e centros de estudos e pesquisas cuja funo primordial planejar a Poltica Municipal de Crack, lcool e outras drogas. A viso mais ampla que um programa de reduo de danos, e mesmo que um programa da rea da Sade. Nas palavras dos gestores, trata-se de um programa de promoo da cidadania.

    A estrutura dos servios articulados se distribui entre os seguintes equipamentos:

    - 2 Consultrios de Rua articulados com 80 CAPs da Rede de Ateno Psicossocial do municpio de So Paulo;

    - 1 Ponto de Apoio (base construda ao lado da cena de uso, para ampliao do vnculo de confiana entre os moradores da regio e agentes de sade, mdicos, enfermeiros e outros tcnicos dos dois Consultrios na Rua);

    - 24 Residncias Teraputicas (RT) para pacientes crnicos em tratamento em hospitais psiquitricos;

    - 16 Unidades de Acolhimento (UAs), moradias transitrias para pessoas com dependncia de substncias psicoativas que esto organizando suas vidas.

    Pilares conceituais do Programa11 de Braos Abertos:

    Primeira moradia: conceito j testado e avaliado em vrias partes do mundo - o de Housing First, que oferece moradia para indivduos em situao de rua h muito tempo e usurios crnicos de lcool e outras drogas. A moradia no est condicionada a abstinncia do uso de qualquer droga. Algumas avaliaes internacionais12 apontaram diminuio no consumo de lcool e outras drogas, da violncia, e sobretudo, da suposta percepo de desordem urbana devido ao excesso de conflitos nas ruas.

    Baixa Exigncia: conceito que contrasta com a maioria dos programas governamentais que tentam impor a abstinncia para a permanncia. A vontade manifesta e o comprometimento podem ser os nicos requisitos para participao, independente do uso ou no de drogas. O objetivo principal construir uma relao de confiana entre os agentes do estado e os usurios, promovendo vnculos e, em alguns casos, desencadeando anseio por mudanas no estilo de vida dos usurios.

    O foco no o combate ao uso de drogas: Parte-se do pressuposto de que o uso de drogas mais um entre vrios elementos presentes em um contexto extremo de excluso e vulnerabilidade social.

    11 LANCETTI, Antonio. Braos Abertos (2014) No prelo12 Housing First, Consumer Choice, and Harm Reduction for HomeTirarless Individuals With a Dual Diagnosis , Sam Tsem-beris, PhD et al. In American Journal of Public Health, April 2004, vol 94, N 4, pag 651 a 656.

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    Pacote de direitos: moradia, alimentao, trabalho e renda so direitos que devem ser minimamente garantidos.

    Desterritorializao da rua como casa: A configurao de uma nova relao com o espao urbano proporciona novas interaes sociais. A oferta de moradia em hotis aos usurios que desejam mudanas, por exemplo, rompe com o ciclo contnuo da rua e favorece a construo de novas redes sociais, para alm da droga.

    Contratualidade. O contrato de trabalho rompe a lgica caracterstica do uso da droga e da fissura, aumentando consideravelmente o tempo entre um momento de consumo e o prximo. O trabalho cria uma nova temporalidade na vida do beneficirio do programa, que passa a ter outras fontes de satisfao no seu cotidiano, alm de novas perspectivas de futuro.

    Reinveno cotidiana - A participao social intensa e a troca com os beneficirios desde a fase de formulao da proposta imprimem novas dinmicas, aproximam os gestores da realidade local e permitem a adequao constante do programa aos desafios concretos do dia-a-dia.

    Desafios:- A gesto do programa um desafio destacado, seja pela dificuldade de um entendimento amplo dos conceitos adotados por parte de gestores e tcnicos de todas as secretarias envolvidas, seja pelas diferenas de abordagem entre Governo do estado e Prefeitura, que atuam simultaneamente na regio da Luz;

    - A urgncia de interveno estatal na regio da Luz dificultou o planejamento dos processos de monitoramento e avaliao. preciso aprimorar indicadores e ferramentas, de modo a permitir ajustes constantes visando continuidade, escala e replicabilidade em regies de contexto similar.

    Lies aprendidas:- Ao contrrio de aes que concentram esforos na represso, na desarticulao e no deslocamento da populao de usurios de drogas, o De Braos Abertos apostou na estratgia de reduo de danos e vem transformando uma regio depredada e alvo de operaes violentas em um plo de ofertas de servios e direitos para os mesmos indivduos que, antes, eram considerados ameaas;

    - A gesto municipal de So Paulo inova ao mover o foco e a abordagem do problema do crack na regio da Luz. A oferta de acolhimento, trabalho e tratamento aos usurios, alm de mais eficaz, se mostrou muito mais barata do que a represso policial e encaminhamento ao sistema prisional;

    - O programa gera um alto padro de comprometimento nas duas pontas: entre equipes de funcionrios e entre beneficirios. De um lado, a interdisciplinaridade e a gesto participativa atraem e fidelizam os colaboradores internos; de outro, a baixa exigncia e o reconhecimento da vulnerabilidade e dos direitos dos usurios geram confiana e passam credibilidade aos participantes.

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    Atitude

    Atitude o nome do projeto criado pelo governo do Estado de Pernambuco em 2011 para acolher e proteger usurios de drogas expostos violncia. Implementado pela gerncia geral de polticas de drogas da Secretaria estadual de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSDH),13 o Atitude nasceu da convico do governo do Estado de que, antes de pensar em abstinncia, era preciso manter as pessoas vivas. A estratgia centrada em graus progressivos de vnculo com usurios para afast-los das drogas e da violncia associada ao trfico e ao combate ao mesmo. O pblico alvo so pessoas em situao de extrema excluso, a quem o projeto ajuda tentando restabelecer qualquer tipo de vnculo social.

    Recife e outros seis municpiosPernanbuco

    Quem: Governo do Estado de Pernambuco

    Atividade:Cuidado, acolhimento, reduo de danos, tratamento e proteo de usurios de drogas, assistncia social.

    Contato:Rafael West (Gerente Geral de Polticas sobre Drogas)(81) 8494-1287 / 3183-6957

    Presente em sete municpios do estado, cinco na regio metropolitana de Recife, um no Serto (Caruaru) e um no Agreste pernambucano (Floresta), o Atitude integra o Pacto pela Vida, programa mais amplo criado em 2007 para diminuir o nmero de homicdios no Estado, a partir da integrao de servios de sade, sociais e de segurana. Entre 2000 e 2011, Pernambuco teve uma mdia de 50,4 homicdios por 100 mil habitantes quase o dobro da mdia nacional, que no perodo variou entre 26 e 29 homicdios por 100 mil habitantes.

    O programa foi estruturado em quatro estgios progressivos de formao de vnculo e de acolhimento. A entrada dos usurios em cada etapa sempre voluntria. A primeira o Atitude nas Ruas, cujas 15 equipes, cada

    13 A Secretaria ir mudar de nome para Secretaria de Desenvolvimento Social, Criana e Juventude.

    Sade: abordagens integrais

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    com mdicos de CAPs-AD. Eles no podem consumir nenhuma droga alm de caf e tabaco, e saem apenas para compromissos de reinsero scio-produtiva encontros com familiares ou entrevistas de emprego, por exemplo. Eles mesmos mantm a casa limpa e organizada, recebem um plano individual de acompanhamento para reconstruir sua histria pessoal e tambm contam com ajuda para refazer documentos que a maioria perde ao deixar como garantia de pagamento de drogas.

    A ltima etapa de reintegrao dos dependentes vida em sociedade facilitada pelo Aluguel social. Os usurios que saem dos Centros de acolhimento intensivo que esto com vnculos familiares rompidos e no tm onde morar recebem uma ajuda de custo para residncia, podendo morar sozinhos ou com at trs colegas. Ao mesmo tempo, continuam recebendo suporte mdico e psicolgico, e apoio para conseguir emprego e aos poucos assumir as despesas e cuidar de sua prpria vida. Atualmente o projeto possui recursos para a manuteno de 40 residncias.

    Em 30 meses de atividade, entre setembro de 2011 e maio de 2014, o Atitude usou recursos de R$ 12 milhes anuais para atender 6148 pessoas. Desse total, 82% eram dependentes de crack, 43% viviam na rua e 37% j foram ameaados de morte. Sua capacidade de acolher usurios e afast-los de ameaas de morte considerada uma contribuio importante para o sucesso do Pacto pela Vida, que entre 2006 e 2013 ajudou a reduzir as taxas de homicdio em 39% no Estado e em 60% no Recife14.

    uma composta por trs redutores de danos incluindo o motorista fazem visitas peridicas s cenas de uso. O objetivo oferecer gua, camisinhas e, principalmente, um ouvido amigo. A postura de no julg-los em hiptese alguma, considerado que eles j vivem uma experincia de excluso muito forte, ajuda na criao de uma relao de confiana. Os redutores de danos conhecem os usurios pelo nome, suas histrias, suas relaes familiares fragmentadas. Para muitos usurios, essa relao se torna um de seus poucos vnculos com a sociedade. este o ponto de partida para se aprofundar o vnculo, que os leva prxima etapa.

    Os Centros de acolhimento e apoio funcionam como casas de passagem para pessoas que estejam em situao mais vulnervel. Eles entram por livre e espontnea vontade e podem tomar banho, almoar, descansar nas camas disponveis, jogar domin, ver televiso. A ideia oferecer um espao de acolhimento e tentar sensibiliz-los para que tenham cuidados consigo. As pessoas mais vulnerveis geralmente casos de tuberculose ou ameaa de morte - tm direito a passar a noite no local e recebem acompanhamento mdico e psicolgico regular.

    Conforme surgem vagas, os dependentes mais vulnerveis que frequentam estas casas de passagem podem optar pela progresso para os Centros de Acolhimento Intensivo, onde eles podem ficar por at 6 meses acompanhados de uma equipe de assistentes e tcnicos sociais que trabalham em parceria

    14 Ratton, Jos Luiz. Galvo, Clarissa. Fernandez, Michelle. O Pacto Pela Vida e a reduo de homicdios em Pernambuco. Artigo Estratgico 8. Ago. 2014, p. 11. Disponvel em: .

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    Alm disso, o programa desenvolve um exerccio de monitoramento e avaliao de processos atravs de um colegiado de coordenadores, como tambm na Cmara Intersetorial de Polticas sobre Drogas, analisando as metas de atendimento e correlacionando com os indicadores de violncia. Atualmente, a equipe est comeando uma avaliao mais aprofundada do projeto, com apoio da Open Society Foundation, mas ainda sem previso de concluso.

    Desafios:- Consolidao do Programa e sua replicabilidade tcnica, principalmente por conta do foco na reduo de danos da violncia, alm das drogas. Em geral, os servios oferecidos mantm nfase na abstinncia e evitam lidar com o tema da violncia, muitas vezes encarado como assunto exclusivo da polcia.

    Lies aprendidas:- As estratgias de reduo de danos precisam ser adaptadas s situaes vivenciadas na Amrica Latina, onde a questo da violncia parte do cotidiano e precisa ser incorporada aos servios de atendimento, numa lgica de reduo de riscos sociais.

    Quero sair daqui firme e forte. difcil, porque quem vai dar emprego para uma pessoa com a ficha suja? Por isso essa ponte que eles fazem to importante.

    Leandro*, 30 anos, h 4 meses em um dos Centros de Acolhimento Intensivo no bairro da Aldeia, no municpio de Camaragibe.

    * Nomes fictcios.

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    Na Praa das Mos, em Salvador, h dois Pontos de Cidadania. Cada Ponto um container com uma latrina, um chuveiro e uma pequena sala para conversas individuais. Parece pouco, mas quem no tem casa e consequentemente no tem nem um banheiro acessvel quando precisa, valoriza, e muito.

    O Ponto de Cidadania apenas uma de muitas iniciativas que resultam do acmulo de experincias do CETAD, Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas da Bahia, fundando em 1985 dentro da Universidade Federal da Bahia UFBA, sob a direo do mdico e psicanalista Antnio Nery Filho. Durante uma especializao na Frana, aps tomar contato com um programa de distribuio de seringas para prostitutas em Paris, Nery

    decidiu propor Faculdade de Medicina da UFBA a criao de um ambulatrio que trabalhasse na mesma perspectiva, buscando uma prtica de atendimento de usurios de drogas mais humana, focada em suas necessidades e singularidades. Assim nasceu o CETAD.

    Na dcada seguinte, surgiram duas aes pioneiras do CETAD no Brasil. O projeto Pontos Mveis, que visitava cenas de uso de drogas injetveis para trocar seringas usadas por novas, e o Consultrio de Rua, criado em 1999 com grupos de redutores de danos que oferecem assistncia a crianas e jovens usurios de drogas em situao de rua. Em 2010, com o apoio da Secretaria Nacional de Drogas, os Consultrios de Rua se tornaram uma poltica nacional, e seus profissionais

    Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas da BahiaSalvador Bahia

    Quem: Universidade Federal da Bahia

    Atividade:Diversas.

    Contato:[email protected](71) 3283-7180 / 7181

    Sade: abordagens integrais

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    criaram e publicaram um roteiro para implementao do servio considerando a diversidade sociocultural brasileira.

    Alm destes, o CETAD criou e implementou diversos outros programas de preveno, de acolhimento e tratamento sob a mesma perspectiva. O coletivo Balance fez reduo de danos em festas rave, difundindo informao entre usurios de drogas e oferecendo testes de pureza de substncias durante os eventos. O Vida no Trnsito sensibilizou motoristas sobre os riscos da associao entre lcool e volante em postos de combustvel.

    O Centro realizou e ainda realiza diversos cursos de conscientizao sobre uso de drogas em escolas, de formao para profissionais da rea de sade e de capacitao em reduo de danos. Atualmente, desenvolve tambm um projeto de incentivo sade no Sistema Prisional da Bahia.

    Atualmente, o projeto conta com dois pontos de cidadania na capital baiana um na regio do Pela Porco e outro na Praa das Mos, no bairro do Comrcio. Cada container conta com uma equipe de seis profissionais: trs tcnicos redutores de danos, e dois profissionais com nvel superior, entre psiclogos, enfermeiros e pedagogos; alm de um funcionrio de limpeza. No perodo da noite, h ainda um segurana.

    O pblico alvo das iniciativas do CETAD a populao de rua em geral, para quem fornecem kits de higiene e camisinhas, deixam a porta aberta para conversas e ajudam no encaminhamento para servios de assistncia social e de sade. Recebem financiamento da Secretaria de

    Estado de Justia, Cidadania e Direitos Humanos. A abordagem social (e no farmacolgica) do tratamento do usurio de drogas, adotada desde o princpio, tem sido uma marca registrada do trabalho do CETAD, que se tornou uma referncia nacional, influenciando a ao de outros centros no Brasil.

    Desafios:- A grande dificuldade dar continuidade s aes, por causa da ausncia de financiamentos contnuos a maioria dos projetos recebe financiamentos de 1 ano e a cada troca de mandato nos governos preciso lutar para estabelecer novos convnios. Nota-se uma ausncia de investimentos nesta perspectiva de abordagem das drogas em que o CETAD atua, de acolhimento e reduo de danos. De modo geral, o Estado ainda investe mais na perspectiva penal;

    - Os Pontos de Cidadania, uma iniciativa recente do CETAD, demandam ainda mais investimentos por estarem em fase de experimentao, validao da metodologia e anlise do custo-benefcio.

    Lies aprendidas:As lies vm nas palavras do Prof. Antonio Nery Filho, MD, PHD. Fundador e Coordenador geral do CETAD Faculdade de Medicina da Bahia/UFBA.

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    Uma Histria

    Anselmo tinha apenas 6 anos quando seu pai se separou de sua me e o levou de Salvador para So Paulo. Seu pai foi morar num lugar, sua irm em outro, e o menino foi morar com um homem que tinha outros dez filhos. Longe de pai e me, foi posto para trabalhar num bar, onde comeou a beber aos 9 anos. Quando um dos jovens da casa tentou violent-lo, ele fugiu e morou na rua por seis meses. Seu pai o encontrou depois de seis meses e o levou para morar com uma tia. Iniciado nas drogas, fugiu de novo. Era preso, apanhava... Eu me sentia muito mal de dar tanto sofrimento para aquelas pessoas, que no eram nem a minha famlia, diz. Aos 19, voltou para a casa da tia e enfim para Salvador. Sua me tinha se mudado para So Paulo atrs dos filhos e, quando soube que o filho reapareceu, voltou. Os dois se reencontraram depois de 13 anos afastados, mas ela estava doente e morreu poucos meses depois. Ao longo da vida, Anselmo usou todo tipo de drogas at chegar ao crack. Numa de suas passagens por um CAPS-AD, sua vida comeou a mudar. Senti um acolhimento que se parecia com o de uma famlia. No fim do tratamento, capacitou-se como redutor de danos. Livre das pedras h oito anos, ele tem um filho de 9 anos e o sustenta trabalhando em projetos do Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia, o CETAD, atendendo usurios em situao de rua. Depois de tudo que sofri, tento fazer de tudo para que eles no passem pelo mesmo.

    Estava convencido, e ainda estou 30 anos depois, de que de que o consumo de drogas quase sempre um sintoma, e no a causa dos problemas das pessoas. Pode ser sintoma de uma pessoa particular ou um sintoma social, como o uso de tranquilizantes na nossa sociedade. O mais importante so os humanos e suas vicissitudes, e as drogas que eles encontram dependem das circunstncias e da sua histria de vida. O crack no uma droga monstruosa, em si. uma droga monstruosa para aqueles que tm uma vida monstruosa. a droga dos excludos dos excludos. Nenhuma outra tem fora para aplacar o sofrimento que essas pessoas vivem. Ento se quisermos resolver os problemas, temos que investigar e cuidar das verdadeiras causas do uso de drogas.

    No a droga que o importante, e sim as pessoas que usam drogas. Porque as drogas no tomam as pessoas, so as pessoas que tomam as drogas. Isso marca minha posio poltica. Importante so os homens e mulheres que fracassam, que amam, que sofrem, e que no trajeto de suas existncias vo encontrar diferentes coisas. Alguns vo encontrar as drogas. Sempre digo, nesse sentido, que as drogas no me interessam. E sim as pessoas. E, quando se conversa com elas, entendemos que suas maiores urgncias so tomar um banho e ter algum com quem conversar.

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    O Centro de Convivncia de Lei uma experincia pioneira da sociedade civil no mbito da reduo de danos no Brasil. Considerado o primeiro centro de convivncia para usurios de drogas no Brasil, eles funcionam desde 1998 em uma pequena sala com mezanino no ltimo andar da Galeria Presidente no centro da cidade de So Paulo, a poucos metros da Galeria do Rock. nesse pequeno espao que muitas das iniciativas promovidas pela ONG se concentram, como oficinas, exibies de filmes, conversas sobre temas srios e aquelas mais descontradas.

    Mas no apenas em torno da mesa redonda ou nos computadores da sala do fundo que os coordenadores e redutores de danos do de Lei ficam. Boa parte do trabalho da ONG tambm feito no campo, indo at usurios, seja em pontos de uso na cidade de So Paulo ou em festas de msica eletrnica por todo o Estado e algumas outras cidades brasileiras.

    Centro de Convivncia de Lei So PauloSo Paulo

    Quem: ONG Centro de Convivncia de Lei

    Atividade:Diversas

    Contato:Bruno Gomes - [email protected] [email protected]

    Preveno e reduo de danos

    O Centro de Convivncia de Lei tem como valores norteadores o desenvolvimento da cidadania e a defesa dos Direitos Humanos, especialmente daqueles que usam drogas ou esto em contexto de vulnerabilidade. Como parte de sua misso, acolhem, orientam e encaminham usurios e pessoas vulnerveis ao Centro de Convivncia (como conhecida a sala na Galeria Presidente), seguindo a premissa da baixa exigncia, em sintonia com a abordagem da reduo de danos, e desenvolvendo estratgias preventivas, como a distribuio de material educativo.

    No incio, o pblico alvo principal eram usurios de drogas injetveis que frequentavam a cena roqueira paulistana, por isso a localizao prxima ao principal ponto de encontro desses jovens. Era uma populao especialmente vulnervel a contrair AIDS, hepatites e outras doenas transmissveis, devido ao compartilhamento

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    de seringas e outros comportamentos de risco adotados. A abordagem de reduo de danos permitiu, poca, diminuir esses riscos, com recursos captados junto ao Ministrio da Sade em editais que visavam combater a AIDS e outras DSTs. O trabalho era basicamente de educao e distribuio de material descartvel, de maneira a minimizar os riscos envolvidos com o uso das drogas.

    Ao longo dos anos, entretanto, o perfil dos usurios e das drogas que eles usavam mudou e o de Lei precisou reformular-se diante das novas demandas e dos novos desafios encontrados. Hoje a ONG estrutura-se em cinco ncleos, com diversos programas dentro de cada um. H o ncleo de campo, cuja iniciativa ResPire ser abordada a seguir; o de ensino, pesquisa e articulao poltica; o de cultura; o de comunicao; e o ncleo administrativo-financeiro.

    Dentre as diversas iniciativas do de Lei, o Ponto de Cultura, do ncleo de Cultura, destaca-se pela abordagem inovadora, com oficinas que utilizam diferentes tipos de mdia, como fotografia, audiovisual e o desenho em quadrinhos, com o objetivo de formar produtores culturais capazes de desenhar projetos e execut-los, manuseando as ferramentas e botando a mo na massa. Ao contrrio de aes que trabalham questes individuais dos usurios atravs da expresso artstica, a proposta do de Lei neste caso inseri-los de forma produtiva no meio cultural.15

    Eventualmente, o tema do consumo da droga e outros relacionados realidade dos conviventes, muitos deles pessoas em situao de rua, aparecem no produto final, mas no so o mote nico da produo cultural realizada, e esto longe de ser o foco da maioria dos trabalhos. Um curta-metragem, por exemplo, foi criado a partir da pergunta o que eu faria com uma mala de um milho de dlares?. Algumas produes j repercutiram e geraram diversos desdobramentos, como a experincia que gerou o documentrio de dentro e de fora, fruto de uma parceria com o fotografo francs JR., autor do projeto internacional Inside Out. Em uma interveno urbana, redutores de danos e conviventes do de Lei foram s ruas de So Paulo e pregaram suas fotos, impressas em preto e branco em papis de grande formato, pelos muros e paredes. A experincia gerou debates e exposies, alm de reflexes positivas entre os prprios conviventes, e inspirou novas colaboraes com outros artistas.

    Ao estimular a produo criativa e colaborativa, o projeto est ampliando a autonomia dos participantes e mudando sua relao com o espao que ocupam, tanto na sociedade quanto fisicamente, na cidade. Aos poucos, surgem projetos culturais dos prprios conviventes, que passaram a ser desenvolvidos por todo o grupo, fruto direto do investimento na autonomia dos usurios.

    15 Para mais reflexes sobre o impacto da produo artstica na auto percepo dos participantes, ver Isabela Umbuzeiro Valent.Revelar olhares: dispositivos fotogrficos e processos de subjetivao. Incio: 2012. Dissertao (Mestrado em Progra-ma Interunidades em Esttica e Historia da Arte - PGEHA) - Universidade de So Paulo.

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    Lies aprendidas:- O investimento na autonomia como meta e como parte da estratgia do trabalho, onde os beneficirios exercitam a liberdade de escolha dentro das atividades propostas, um dos pontos altos da organizao;

    - A flexibilizao da abordagem, inclusive como mtodo para alcanar financiamento atravs de editais com objetivos especficos, mostra como possvel tratar a reduo de danos como ferramenta dentro de propostas diversas, inserindo sua prtica transversalmente.

    Desafios:- O financiamento o principal desafio do Centro de Convivncia de Lei. Editais pblicos como os de incentivo ao combate a DSTs e AIDS ou os de produo cultural ajudam a viabilizar projetos especficos, em geral de curta durao, mas alm de no favorecerem o planejamento de mdio e longo prazos, no suprem todas as necessidades institucionais e no so direcionados especificamente prtica da reduo de danos;

    - A alta rotatividade de pessoas envolvidas tanto conviventes, pela vulnerabilidade social, quanto redutores e coordenadores, devido aos salrios baixos e instabilidade do trabalho, constitui um desafio para o planejamento e o desenvolvimento das atividades. O fato tambm resulta da falta de polticas pblicas que incentivem e financiem abordagens deste tipo.

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    ResPire uma iniciativa do ncleo de campo do Centro de Convivncia de Lei, que consiste em levar a mensagem e a prtica da reduo de danos para festas de msica eletrnica, onde costuma ocorrer o uso de substncias ilcitas, bem como o abuso de substncias lcitas que podem causar danos sade e dependncia, como o lcool.

    O projeto fruto da constatao de que faltava aos frequentadores destes eventos informaes sobre o que estavam consumindo e sobre o efeito das misturas que faziam, alm de um espao onde aqueles que no necessitassem de atendimento mdico poderiam se recuperar de uma bad trip (termo em ingls empregado pelos usurios que significa viagem ruim). A falta de informao, resultado direto da cultura proibicionista, transforma o tema em um tabu, o que s agrava o problema.

    A abordagem comea com a negociao entre a equipe, formada por profissionais de diversas reas que recebem o treinamento especfico da ONG, e os produtores das festas conhecidas como raves, principalmente as do estilo Trance. Embora muitos relutem em permitir a presena do projeto temendo que isso denuncie o consumo de drogas nos eventos, desde 2011, quando o projeto foi criado, cerca de duas dezenas de intervenes j foram feitas. As festas devem contar com um ambulatrio, que complementar ao trabalho do ResPire, e condies para a remoo de casos mais graves para hospitais prximos.

    A estratgia do grupo envolve a oferta de gua gratuita no espao ResPire, montado nas festas, que funciona como atrativo, j que o lquido vendido a preos altos nas raves. A tenda, decorada com mandalas e muitas cores, de acordo com a esttica caracterstica do Trance (o prprio logo do projeto reflete esta linguagem visual),

    Respire So PauloSo Paulo

    Quem: Centro de Convivncia de Lei

    Atividade:Reduo de danos em cenas de uso

    Contato:Maria Paula Souza [email protected]

    Preveno e reduo de danos

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    oferece almofadas e pufes convidativos e neste ambiente so exibidos cartazes e folhetos informativos. Os membros da equipe conversam com quem se aproxima sobre diversos assuntos, procurando informar sobre a substncia que est sendo consumida e estimular o autocuidado. A equipe j participou de vrios perfis de festa que contam com desde 800 a 15 mil participantes, e estimam que cerca de 30% do pblico passe pela tenda.

    Alm do trabalho de informao, o espao do ResPire funciona tambm como um ponto de triagem para detectar usurios que precisam de atendimento mdico. Aqueles que apresentam alteraes em seus sinais vitais so encaminhados ao posto de sade, enquanto os demais so acompanhados pela equipe, que oferece apoio at que o efeito adverso passe. O objetivo fazer companhia para que o usurio no se sinta sozinho, explicar o que est acontecendo e qual ser a progresso de seu quadro.

    Um dos indicadores de que o ResPire percebido como um espao de referncia que transmite segurana o fato de se tornar frequentemente um ponto de encontro onde muitos procuram ajuda para localizar seus amigos. Outro indcio de sucesso que no raro aparecem usurios interessados em fazer a formao do de Lei para atuarem nas equipes do projeto. Alguns se deslocam de outras cidades para frequentar o curso, visando criar seus prprios ncleos.

    A Equipe do ResPire, que atualmente conta com dois coordenadores, monitora rotineiramente o impacto de suas aes. O monitoramento feito a partir do

    preenchimento de planilhas sobre a distribuio de insumos, acolhimento e registro das intervenes. Esse material levado para reunio de equipe e discutido para que possam pensar em qualificaes necessrias para aprimorar o projeto.

    Enquanto o projeto era financiado pelo Ministrio da Sade atravs do programa de combate ao HIV/AIDS (2011-2012), o ResPire recebeu prmio da Associao Brasileira Multidisciplinar sobre Drogas em 2011, na categoria Projeto Inovador. O reconhecimento importante para combater o preconceito que ainda comum, inclusive da parte de mdicos que atuam em postos de sade nas prprias festas. Enquanto alguns entendem o trabalho e agradecem a triagem feita pela equipe do ResPire, outros condenam a atuao como sendo um incentivo ao consumo de drogas, discordando da abordagem da reduo de danos.

    Alm do preconceito, a equipe enfrenta dificuldades relacionadas questo legal, como a impossibilidade de fazer um controle de qualidade das substncias que esto sendo consumidas. Como a venda e o consumo so proibidos, o Brasil no possui kits de testagem, e a importao dos equipamentos enfrenta barreiras na Receita Federal. Com um teste simples, seria possvel evitar muitas ocorrncias mdicas e at mesmo bitos nas festas, decorrentes do consumo de substncias impuras ou com dosagens mal calculadas.

    Apesar dos entraves, o ResPire segue atuando na cena eletrnica e se adaptando s circunstncias, levando a informao e o cuidado at as festas que costumam ocorrer em locais remotos, stios em cidades do interior ou campos

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    isolados nas metrpoles. A recompensa vem quando recebem o agradecimento daqueles que foram atendidos e percebem sua disposio para compartilhar o que aprenderam sobre as substncias que usaram, multiplicando a educao preventiva.

    Desafios:- O preconceito em relao ao pblico alvo e aos locais onde o projeto executado se converte num desafio principalmente para a captao de recursos financeiros, pblicos ou privados. Os potenciais doadores relutam em reconhecer a situao de vulnerabilidade entre os jovens com alto poder aquisitivo que costumam frequentar as festas rave;

    - A no regulamentao da profisso de redutor de danos dificulta a possibilidade de pleitear maiores salrios. O no reconhecimento da importncia do trabalho dificulta a captao de recursos, principalmente de empresas privadas. Por causa desses fatores difcil manter a equipe, pois a rotatividade tornou-se grande.

    Lies aprendidas:- importante que existam postos mdicos nos eventos, desta maneira no necessrio remover todos os casos, j que os mais simples podem ser encaminhados no local;

    - fundamental, tambm, a presena de ambulncia nas festas, pois muitas vezes necessrio fazer a remoo, por exemplo em episdios psicticos ou de coma alcolico.

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    O Grupo Cultural AfroReggae atua desde 1992 na cidade do Rio de Janeiro promovendo a incluso atravs da cultura afro-brasileira e da educao, e buscando levantar a autoestima de jovens das camadas populares. Com a agncia de empregos Segunda Chance, criada h pouco mais de seis anos, eles promovem a insero social de um grupo ainda mais marginalizado do que os jovens negros e pobres da cidade: os egressos do sistema penitencirio.

    A equipe, toda formada por pessoas que j passaram pelo sistema penitencirio brasileiro e sentiram na pele o estigma que se projeta sobre elas, faz muito mais do que simplesmente oferecer um cadastro de vagas. O esforo duplo: preciso preparar o candidato e ao mesmo tempo firmar parcerias com empresas dispostas a inclu-los em seus processos de seleo.

    Ao receber o ex detento pela primeira vez (a maior parte dos atendidos pelo programa so homens), a equipe analisa seu currculo e faz uma entrevista. Antes de indicar uma vaga que se encaixe no perfil do candidato, h um esforo conjunto que envolve desde os coordenadores at a rea de assistncia social e jurdica do projeto. Toda a documentao pessoal precisa ser regularizada uma tarefa que pode custar caro, pois a emisso da segunda via da maior parte dos documentos no gratuita. Alguns egressos que passaram vrios anos privados de liberdade precisam tirar documentos pela primeira vez na vida. A equipe tambm os orienta sobre como se vestir e como portar-se durante uma entrevista de emprego, alm de financiar o transporte at o local.

    A meta do projeto poder oferecer bolsas para que os egressos passem um tempo sem trabalhar, fazendo cursos tcnicos, e

    Segunda Chance Rio de Janeiro, Rio de JaneiroSo Paulo, So Paulo

    Quem: ONG Grupo Cultural AfroReggae

    Atividade:Agncia de empregos, capacitao

    Contato:Joo Paulo Garcia dos Santos (Coordenador) (21) 3095-7252

    Preveno e reduo de danos

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    depois possam ser encaminhados a vagas mais especializadas, mas isso raramente ocorre por falta de recursos financeiros.

    O Segunda Chance funciona no Rio de Janeiro e em So Paulo, e possui mais de 50 empresas parceiras, que empregam egressos em regime de CLT, com todos os direitos garantidos. Em contrapartida, os coordenadores acompanham o candidato encaminhado durante os primeiros meses de trabalho, que quando aparecem as principais dificuldades.

    A preferncia declarada dos empregadores por candidatos que foram condenados por crimes no-violentos, como trfico de drogas simples, que tambm so maioria entre os que procuram pelo servio da agncia. Desde 2012, quando comearam a contabilizar seus resultados, conseguiram empregar 1500 egressos, com uma mdia de 300 atendimentos por ms. O emprego garante a estas pessoas mais do que o acesso a uma renda fixa, pois desenvolve responsabilidade e rotina, entre outros elementos fundamentais da vida em sociedade.

    Mesmo sem financiamento exclusivo, o Segunda Chance do Rio de Janeiro hoje tem uma sede fsica na Rua da Lapa e conta com uma equipe de cerca de 10 funcionrios. O investimento alto em pessoal d resultado: os funcionrios se desdobram em vrias frentes e acompanham todo o percurso dos egressos que os procuram. A percepo de que o apoio familiar era determinante no xito de toda a operao, levou oferta de assistncia s famlias, no s dos que acabaram de sair da priso, mas tambm daqueles que acabaram de ser presos, como uma forma de preparao para a reinsero futura.

    A prpria equipe uma prova do sucesso do projeto, e cada funcionrio um exemplo real a ser seguido pelos novos atendidos. Os coordenadores deixam bem claro para os que decidem entrar no escritrio e procurar uma vaga: no h terceira chance. Cada candidato encaminhado carrega consigo o dever de ser ainda mais correto que todos os outros funcionrios da empresa onde vai trabalhar, para conseguir vencer o estigma. No pode atrasar, relaxar ou fazer corpo mole.

    Embora a orientao do Segunda Chance seja de que ningum no trabalho precisa saber que o novo colega passou pelo sistema penitencirio, s vezes os funcionrios descobrem e passam a estigmatizar o egresso. Quando isso ocorre e a situao se agrava, os coordenadores vo at o local de trabalho para fazer uma mediao. Em alguns casos, basta uma conversa para que os companheiros de trabalho entendam a situao do encaminhado. Em outros, preciso negociar com o empregador uma transferncia.

    A agncia trabalha com egressos em diferentes situaes, como liberdade condicional, monitorada, e regime aberto. Pessoas em regime semiaberto no so atendidas por causa da burocracia envolvida no processo, um dos principais desafios enfrentados pela agncia. Os que esto em regime aberto precisam de autorizao especial para cumprirem uma escala de seis dias seguidos no trabalho, por exemplo, o que no simples de se conseguir. De todos os documentos, entretanto, o mais difcil de regularizar o ttulo de eleitor, que fica suspenso quando a pessoa privada de liberdade, e que as empresas precisam exigir por conta do voto obrigatrio.

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    Lies aprendidas:- A formao da equipe como um espelho do que o projeto espera que acontea com seus beneficirios um acerto, pois desde o primeiro contato com a agncia os egressos j podem ver na prtica que possvel conquistar a autonomia e se reinserir socialmente;

    - A estratgia de envolver a famlia desde o incio da jornada, quando o indivduo entra no sistema prisional, um componente fundamental para que esse apoio esteja consolidado no momento da reinsero.

    Desafios:- A burocracia para retirada e atualizao de documentos de egressos do sistema prisional um exemplo de como a sua reinsero na sociedade encontra dificuldades de diversos nveis, inclusive institucionais. No h, no Brasil, polticas pblicas ou orientaes formais para que os cartrios realizem esses procedimentos de maneira clere e uniformizada, por exemplo. O Segunda Chance no tem parcerias especficas firmadas com governos, seja a nvel federal, estadual ou municipal, para este fim;

    - O estigma que marca um ex presidirio um fator de difcil reverso. A prpria famlia, muitas vezes, desacredita de sua capacidade de reabilitao. Empresas dispostas a oferecer esta segunda chance tambm so poucas, e mesmo aquelas que se posicionam de forma favorvel ainda precisam conquistar o apoio de seus funcionrios e trabalhar internamente uma cultura de incluso;

    - A dificuldade de conseguir financiamento para a formao dos egressos em reas qualificadas de atuao impede a conquista de vagas com maior retorno financeiro e estabilidade.

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    Centro de excelncia em pesquisa, h mais de 100 anos dedicada ao desenvolvimento de tecnologia e construo de conhecimento na rea de sade pblica no Brasil, a Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz) tem em seus quadros especialistas que atuam em diversas reas, como psiclogos, mdicos, epidemiologistas, enfermeiros e cientistas sociais, entre outros, que juntos formam um corpo de conhecimento rico e abrangente. As pesquisas sobre a temtica das drogas no escapam ao interesse destes estudiosos. Um dos mais

    importantes trabalhos cientficos sobre o crack no Brasil, por exemplo, de l.16 Porm, em meio enorme produo da casa, faltava uma sistematizao das iniciativas com este foco, e espaos para a troca de conhecimentos entre os responsveis.

    No incio de 2014, a presidncia da Fiocruz reuniu os pesquisadores da casa interessados em assuntos relacionados questo do consumo de lcool e outras drogas. Assim nasceu o Programa

    Programa Crack, lcool e outras Drogas, da Fundao Oswaldo CruzRio de JaneiroRio de Janeiro

    Quem: Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz)

    Atividade:Apoio a pesquisa e eventos cientficos, articulao entre pesquisadores e demais atores

    Contato:Vice-presidncia de Ambiente, Ateno e Promoo da Sade (VPAAPS/Fiocruz) (21) 3885-1838 | [email protected]

    Informao, debate e polticas pblicas

    16 Ver Bastos, Francisco Incio; Bertoni, Neilane (orgs) Pesquisa nacional sobre o uso de crack. Editora ICICT/FIOCRUZ, 2014.

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    Institucional lcool, Crack e Outras Drogas, que une sob um mesmo guarda-chuva as mais diversas iniciativas relacionadas ao tema dentro da Fundao. Com isso, os respectivos projetos passaram a receber mais apoio institucional, com o intuito de promover articulaes e possibilitar maior visibilidade.

    A partir de uma primeira fase de identificao das pesquisas existentes, foi constitudo um Grupo de Trabalho com mais de 15 membros que realizam oficinas e encontros entre si. Nele esto presentes funcionrios provenientes da rea da sade mental, epidemiologistas, estudiosos da AIDS e outras DSTs, especialistas em reduo de danos, profissionais especializados em trabalho com populao de rua, entre outras disciplinas.

    Em menos de um ano foram realizadas 4 oficinas, e da sinergia entre os participantes surgiram algumas diretrizes e propostas de atividades subsequentes, que contribuem para a prpria definio estrutural do programa, com a elaborao de um plano de ao e metas. Apoiar eventos relacionados pesquisa cientfica no tema; promover publicaes geradas tanto por pesquisas quanto pela prtica do Consultrio de Rua e outros centros de atendimento ao pblico; e participar do debate pblico sobre polticas de lcool, crack e outras drogas, esto entre os objetivos traados.

    A Fiocruz, cujos valores centrais so o direito sade e cidadania, tem se engajado na formulao de polticas pblicas de sade ao longo de toda sua histria, muitas vezes inovando e

    quebrando paradigmas foi pioneira, por exemplo, na erradicao de doenas infectocontagiosas no Rio de Janeiro e no Brasil no incio do sculo XX. Portanto, no surpreende que busque assumir um posicionamento ativo diante da questo das drogas no cenrio atual. O prprio ttulo do programa, que reflete seu desenho institucional, est alinhado com uma abordagem contempornea do tema, uma vez que ele contempla tanto o lcool, uma droga lcita, quanto o crack e outras drogas ilcitas.

    As bases conceituais do programa so claramente orientadas pelo desejo de transpor o paradigma de represso, entendendo o abuso de substncias como resultado de questes biopsicossociais e defendendo prticas de cuidado e respeito ao direito de usurios de substncias psicoativas, seja o uso prejudicial ou no. Para isso, reconhecem que faz-se necessrio intervir no s em questes de sade, mas tambm de segurana pblica, legislao e desenvolvimento. O Programa Institucional visa dar especial nfase a trs dimenses de pesquisa: uma tcnico-assistencial com foco em servios; uma jurdico-poltica, visando a elaborao de legislao especfica e promovendo o debate entre sociedade civil e formuladores de polticas pblicas; e a dimenso terico-conceitual, que busca contextualizar o papel das drogas e os diferentes tipos de uso na nossa sociedade.

    Apesar de seu forte carter interno, por se tratar de um instrumento de apoio a pesquisas da prpria Fundao, o programa prev uma atuao interinstitucional. A colaborao e cooperao com outras instituies fora

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    da rede da Fiocruz, sejam pblicas de nvel municipal, estadual ou federal; ou provenientes da sociedade civil, est prevista e ser incentivada.

    Os participantes do programa esto cientes de que tm frente o desafio ser pioneiros na rea de sade pblica e liderar o resto do setor numa mudana que vai alm dos procedimentos. Trata-se, de fato, de uma mudana de pensamento. Neste sentido, valorizam especialmente o impacto que iniciativas da Fiocruz costumam ter sobre o Sistema nico de Sade (SUS). Uma das estratgias ser priorizar a divulgao de informaes e sua disseminao pelo SUS, de maneira a realmente influenciar a prtica e as tecnologias usadas no dia-a-dia de atendimento bsico de sade em todo o pas.

    Desafios:- Promover a articulao real entre atores diversos e no deixar que o carter institucional da iniciativa se torne uma limitao para seu alcance e escala;

    - Disseminar as informaes de modo a conseguir impactar as polticas pblicas e as prticas do Sistema nico de Sade (SUS).

    Lies aprendidas:- Reconhecimento de que a pesquisa cientfica pode e deve ser o primeiro passo (ou um dos primeiros) para a reformulao de polticas pblicas e para a adoo de polticas inovadoras indicador de uma mudana estrutural importante na forma como o pas escolhe suas diretrizes bsicas.

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    A Comisso Global sobre Poltica de Drogas (CGPD) foi criada em 2011 para internacionalizar uma discusso que j vinha ocorrendo em esferas nacionais e regionais, principalmente na Amrica Latina, na Comisso Latino-Americana sobre Drogas e Democracia. Fundada por personalidades como os ex-mandatrios Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Csar Gaviria (Colmbia) e Ernesto Zedillo (Mxico), a CGPD tem a misso de trazer ao plano internacional um debate qualificado, baseado em evidncias cientficas, sobre abordagens mais humanas e eficientes para reduzir danos causados pelas drogas a pessoas e sociedades. Em outras palavras, ajudar a quebrar o tabu sobre o assunto.

    Os quatro relatrios apresentados pela Comisso Global desde sua criao foram basilares para a abertura de todo um processo de discusso e realinhamento das polticas sobre drogas que hoje est em curso no plano internacional. O primeiro relatrio, chamado Guerras Drogasfoi lanado em Junho de 2011, trazendo 11 recomendaes para uma poltica de drogas mais humana e eficaz. A principal delas era reconhecer o fracasso desta guerra e seu impacto desastroso sobre direitos humanos, violncia e corrupo. O relatrio tambm recomenda substituir a criminalizao e punio de usurios de drogas pela oferta de servios de sade e tratamento, e encoraja governos a experimentar diferentes modelos legislativos de

    Informao, debate e polticas pblicas

    Comisso Global sobre Poltica de DrogasInternacional

    Quem: 22 membros, entre os quais 8 ex-presidentes, o ex-secretrio geral das Naes Unidas Kofi Annan, e o empresrio Richard Branson. O Instituto Igarap responsvel pelo secretariado desta iniciativa global.

    Atividade:Pesquisa, diplomacia estratgica, comunicao e proposio de novas diretrizes para a poltica de drogas global.

    Contato:[email protected]

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    regulao, de maneira a minar o poder do crime organizado, protegendo a sade e a segurana da sociedade. A cannabis foi apontada como experincia inicial ideal neste processo de busca de alternativas.

    O segundo relatrio, lanado em junho de 2012, traz uma discusso sobre a relao entre a guerra s drogas e a epidemia de HIV/AIDS, exacerbada pela primeira. O terceiro, de maio de 2013, retoma o mesmo ponto, mas dessa vez sobre a Hepatite C. O quarto relatrio da Comisso foi lanado em setembro de 2014, com proposta mais ousada: a regulao responsvel de todas as drogas como caminho para colocar governos no controle da situao. Mais avanada e propositiva do que as outras que a antecederam, essa publicao marca definitivamente a entrada da Comisso na preparao para a Sesso Especial da Assembleia Geral das Naes Unidas (UNGASS) sobre drogas, que ocorrer em 2016.

    A prpria Assembleia (UNGASS) sobre drogas tambm resultado direto da mobilizao de lderes latino-americanos, que, aps a VI Cpula das Amricas ter tratado do tema, levaram suas reivindicaes para o mbito das Naes Unidas na reunio da Assemblia Geral de 2012. Na ocasio, diversos presidentes de pases da regio pediram que a ONU iniciasse um debate srio para considerar alternativas ao fracassado modelo da guerra s drogas. A preparao para a mobilizao internacional em torno da UNGASS um dos grandes desafios da CGPB.

    Alm da produo de relatrios, para atingir seus objetivos, a Comisso mantm uma agenda repleta de reunies, conversas diplomticas e aparies pblicas de alto-

    escalo, aproveitando a estatura de seus membros para contornar a sensibilidade poltica do tema. Entre iniciativas de comunicao, alm de desenvolver algumas campanhas de impacto de opinio pblica, como a Vamos falar sobre drogas?, e de sua presena constante na internet, seja por meio de seu site ou redes sociais, a CGPD lanou ano passado a animao Drugo. Em poucos minutos, o vdeo conta a histria de um drago - Drugo - que quanto mais se combatia, maior ficava - e mais violento. uma metfora para o atual momento da poltica de drogas, onde vivemos uma situao de danos e violncia desnecessrios, produzida antes pelo combate do que pelo consumo das substncias em si. Na animao, a sociedade s passou a ter uma relao saudvel com Drugo quando deixou de banir a convivncia com o drago, passando a informar cidados sobre o risco no lugar de simplesmente proibir o contato.

    A CGPD atualmente composta por 22 comissrios, entre ex-presidentes e primeiro ministros, ex-secretrios gerais de organizaes internacionais, empresrios e especialistas expoentes em suas respectivas reas que se interessam ou trabalham com o tema. So diversas personalidades que vem nesse trabalho a chance de criar um real impacto sobre o mundo, admitindo que a atual abordagem dada questo falhou. Alm dos comissrios, a CGPB ainda composta de seu secretariado, responsvel por executar todas as iniciativas, dentre as reas de comunicao, advocacy e produo de material. O secretariado baseado no Rio de Janeiro, no Instituto Igarap, com representao tambm na Cidade do Mxico e em Genebra.

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    Desafios:Se por um lado a Comisso dialoga muito bem com a Amrica Latina e Europa, por outro ainda tem dificuldades em conseguir fazer sua mensagem chegar frica, Oriente Mdio e sia de maneira geral. Encontrar parceiros com atuao nacional dentro de pases-chave um dos caminhos que a CGPD tem adotado para superar essa barreira. O desafio agora chegar em 2016 (quando ocorrer a assembleia da UNGASS) com uma configurao poltica favorvel, de modo que modelos alternativos de reduo de danos e regulao de algumas drogas, como os que vem sendo desenvolvidos em pases da Europa e das Amricas, mais especificamente no Uruguai e alguns estados dos Estados Unidos, no sejam punidos ou proibidos.

    Lies aprendidas:O trabalho de diplomacia de alto nvel, de produo e disseminao de evidncias cientficas e experincias exitosas, aliado estratgia de reunir atores no estatais como ONGs, prefeitos, comunidade cientfica, empresrios, artistas e lderes espirituais de diferentes culturas, na defesa de princpios e recomendaes comuns, foi capaz de quebrar o tabu e colocar em movimento um processo de mudana nas polticas de drogas global, regional, nacional e local.

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    A Pense Livre uma iniciativa coordenada pelo Instituto Igarap, que surgiu em 2012 para impulsionar um debate amplo por uma poltica nacional de drogas que funcione. A rede composta por mais de 70 jovens lideranas, que atuam em diversas reas profissionais e resolveram ceder seu tempo e sua voz para falar sobre o tema. Completamente apartidria e plural, a rede se uniu em torno da ideia de que a poltica de drogas uma questo central para o desenvolvimento humano, social e econmico do Brasil.

    A Rede adota como princpios a promoo de um debate pblico respeitoso, pautado pelo livre dilogo. O grupo defende que preciso buscar inovaes e melhores prticas que atuem de forma integral e responsvel, com nfase na reduo de danos individuais e coletivos. Baseia-se sempre em dados cientficos e em

    experincias exitosas realizadas dentro e fora do pas.

    Para avanar o debate, a Pense Livre adotou uma agenda positiva que sugere os primeiros passos para mudanas na poltica de drogas do pas. O documento foi construdo em conjunto, por meio de um processo de formao de consenso entre membros to plurais entre si. Os integrantes acordaram quatro pontos em torno dos quais se organizame pautam sua atuao:

    Os quatro pontos da agenda positiva Pense Livre:

    Descriminalizar o consumo de todas as drogase investir em uma abordagem de sade pblica.

    Rede Pense LivreBrasil

    Quem: Grupo formado por 70 novas lideranas de diversos setores e estados do Brasil. O Instituto Igarap fundou e coordena a Rede.

    Atividade:Produo e disseminao de informao, comunicao e articulao poltica sobre polticas de drogas.

    Contato:Ana Paula Pellegrino [email protected]

    Informao, debate e polticas pblicas

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    Regular o uso medicinal e o auto cultivo da cannabis para consumo pessoal.

    Investir em programas para a juventude em risco e oferecerpenas alternativas para rus primrios no violentos.

    Viabilizar pesquisas mdicas e cientficas com todas as drogas ilegais.

    A Rede funciona atravs de interaes constantes entre seus membros em dois principais eixos: comunicao e articulao poltica. Acompanha-se diariamente o que sai nos principais veculos de notcias do pas, assim como as atividades tanto do legislativo, quanto do executivo e do judicirio, sobre ospontos de sua agenda. Em sintonia com os fatos mais relevantes, a equipe da rede oferece informao de qualidade para jornalistas e disponibiliza o contato de seus membros para dar entrevistas e participar de eventos sobre o tema, de maneira a aprimorar o debate com conhecimento de ponta sobre os diversos aspectos envolvidos na formulao de umanova poltica de drogas.

    O trabalho envolve ainda a publicao de documentos que visam desbancar mitos que ainda fazem parte do senso comum quando o assunto poltica de drogas, artigos de opinio dos membros e notas de posicionamento. A Pense Livre tambm mantm um blog com textos de seus integrantes e uma coluna no Brasil Post brao brasileiro online da publicao norte-americana Huffington Post.

    Em trs anos de atuao, a Pense Livre conseguiu modificar e atrasar a aprovao de projetos de lei ultrapassados,

    conquistou e pautou novos aliados no Congresso Nacional e nos poderes Executivo e Judicirio. Mobilizou novas lideranas, movimentos sociais e conselhos nacionais, como o CONJUVE, em prol de uma discusso honesta e informada sobre o tema. Em 2014, a Rede apoiou seus membros e parceiros em aes que resultaram no primeiro passo na direo da regulao do uso medicinal da maconha no Brasil a reclassificao do CBD para crianas com epilepsia grave.

    A Rede Pense Livre tambm atuou como porta-voz brasileira da Comisso Global sobre Poltica de Drogas na campanhaVamos falar sobre drogas! lanada em 2014, e desenvolveu tambm campanhas prprias, como durante as eleies do mesmo ano, quando foram elaborados quadros comparativo das propostas dos presidenciveissobre o tema e um kit de debate para as eleies composto de 10 propostas para uma poltica de drogas e uma agenda detalhada sobre o tema. Este kit foi amplamente distribudo entre polticos e candidatos, alm de outros atores chave, e atravs das redes sociais, onde a Pense Livre mantm presena constante.

    Alguns de seus membros so fundadores de uma nova iniciativa que ser lanada em 2015 A Plataforma Brasileira de Polticas sobre Drogas.

    Desafios:Um dos desafios que aRede enfrenta desde seuincio o estigma que se criou em torno do tema no Brasil e no mundo. A Pense Livre ainda encontra resistncia em alguns veculos de comunicao e

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    alguns setores polticos brasileiros, mas seu objetivo engajar-se em debates respeitosos mesmo com aqueles que discordam de sua opinio.

    Lies aprendidas:- A pluralidade de sua composio tem sido importante para que a Rede possa superar qualquer tipo deesteretipo ou preconceito que seja atrelado sua atuao e insero no debate;

    - O trabalho de articulao poltica junto aos trs poderes executivo, legislativo e judicirio aliado a produo e disseminao de informao de qualidade e experincias exitosas na mdia, tem rendido bons frutos no sentido de ampliar o interesse da opinio pblica e pautar a imprensa, alm de contribuir para a entrada estratgica de seus membros no debate pblico.

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    Polticas de Drogas no Brasil: a mudana j comeou

    2014, em especial, foi um ano em que o debate avanou, consolidando um trabalho que vem sendo articulado pela sociedade civil de maneira mais enftica desde 2012. Diversos grupos tomaram a linha de frente - organizados pelo vis da sade, pela luta por liberdade de uso, ou pela tica da violncia e se aliaram em torno de um movimento pela reforma da poltica de drogas nacional. Seus esforos voltam-se majoritariamente para a mudana no arcabouo jurdico nacional, que subscreve guerra s drogas. Utilizam, em seu discurso, uma abordagem de direitos humanos e recorrem a dados cientficos para desfazer barreiras ideolgicas e normativas, em um debate antes muito pautado em moralismos.

    Encontros entre especialistas, sociedade civil, movimentos sociais e agentes estatais ocuparam a agenda dos principais atores do cenrio nacional nesse perodo. Foram centenas de artigos de opinio, eventos acadmicos e de ativistas, reunies com representantes dos trs poderes e diversas audincias pblicas no Congresso Nacional, discutindo pautas especficas de projetos de lei que tramitavam ou ainda tramitam pela casa, ou sugerindo a criao de novos.17 A presena em massa

    Revimos, ao longo deste artigo,dez experincias que se relacionam com poltica de drogas a partir de uma perspectiva multidisciplinar, seja por meio da tica da reduo de danos, pela promoo de pesquisa, por polticas voltadas juventude, ou por redes de articulao poltica. Todas elas so brasileiras - nascidas e desenvolvidas por brasileiros, mesmo a que tem um foco internacional. Refletem, dessa maneira, nossas necessidades e nossa criatividade para solucionar problemas do cotidiano.

    Acima de tudo, cada uma delas demonstra que possvel sim mudar a poltica de drogas, deixando para trs a abordagem focada exclusivamente na supresso da oferta e proibio do uso. Em vez de medirem sucesso em quilos de substncias apreendidas, esses programas se baseiam em atendimentos mdicos, empregos gerados, novos tratamentos descobertos e novas frentes de debate destravadas.Apresentam-se como caminhos para o fim da guerra s drogas.

    Nos ltimos anos, nosso pas trilhou um longo caminho em direo transformao da sua poltica de drogas.

    17 Agncia Senado. Em novo encontro no Senado, especialistas defendem uso medicinal da maconha no Brasil. Brasil Post. 25 ago. 2014. Disponvel em .

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    de cidados nas reunies de comisses no Congresso despertou mais curiosidade acerca do tema. A TV Senado renovou sua audincia.

    O esforo coletivo tem gerado frutos. Os mais visveis so na rea da maconha medicinal. Nos primeiros dias de 2015, a Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa) decidiu pela reclassificao do canabidiol (CBD), que passa a ser parte da lista C1, de substncias controladas, porm permitidas, no Brasil.18 Pacientes ainda precisaro importar medicamentos base de CBD, mas possvel que os altos preos dos remdios estrangeiros incentive, em breve, o desenvolvimento de produo nacional, o que ainda carece de regulamentao da Anvisa. Cabe lembrar que a produo de medicamentos a partir de substncias consideradas ilcitas j permitida pela Lei 11.434/2006, no Pargrafo nico do art. 2o.

    No mesmo movimento, o Conselho Federal de Medicina, em dezembro de2014, regulamentou a receita do CBD para crianas que sofrem de determinados quadros epilticos,19 seguindo os passos do Conselho Regional de So Paulo, que o fizeraalguns meses antes.20 Dezembro tambm foi marcado pela criao da AMA-ME, uma associao de pais e pacientes que utilizam maconha medicinal.21 A campanha Repense e

    o lanamento do documentrio Ilegal, que geraram comoo nacional em torno do tema, foram essenciais para a constituio desses pais e pacientes como movimento organizado, capaz de levar suas reivindicaes polticas s mais altas instancias em Braslia.

    Uma ao civil pblica do Ministrio Pblico do Distrito Federal (MP/DF) contra a Anvisa e o Ministrio da Sade vai alm dos tmidos avanos conquistados e prope regularoutros canabinides, no s o CBD; desenvolver o autocultivopara fins teraputicos e considerar a importao de sementes. O MP/DF adota, desta maneira, uma abordagem holstica sobre o potencial medicinal da cannabis. Proposta no final de 2014, a ao ainda deve demorar para dar frutos concretos, mas abre importantes precedentes legais no tema.

    No quesito programas para juventude, o ano de 2014 tambm foi importante. Em primeiro lugar, publicou-se um volume do Mapa da Violnciacom temtica especial sobre juventude,22 dentro do escopo do programa do Governo Federal Juventude Viva.23 Esse programa, lanado como resposta mobilizao, desde 2005, do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve) em torno da questo do genocdio da juventude negra, adota uma abordagem interdisciplinar ao tema da violncia, impactando os nveis estaduais

    18 Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria. Canabidiol reclassificado como substncia controlada. Disponvel em http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/anvisa+portal/anvisa/sala+de+imprensa/menu+-+noticias+anos/2015/canabidiol+e+reclassificado+como+substancia+controlada>.19 Conselho Federal de Medicina. CFM regulamenta o uso compassivo do canabidiol para crianas e adolescentes com epilepsias refratrias aos tratamentos convencionais. Disponvel em .20 Conselho Federal de Medicina do Estado de So Paulo. Legislao: Resoluo Cremesp no268. 16 dez. 2014. Disponvel em .21 Ribeiro, Sidarta. Tfoli, Lus Fernando. Maronna, Cristiano. Folha de So Paulo. Maconha tambm remdio. 14 jan. 2015. Disponvel em .22 Waiselfisz, Julio J. Mapa da Violncia 2014: os jovens do Brasil. Braslia: 2014. Disponvel em .23 Para mais informaes, veja o site do programa: http://juventude.gov.br/juventudeviva.

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    e municipais,para incentivar a reduo da vulnerabilidade dessa populao, prezando por sua autonomia e incluso social. Apesar do programa j existir h alguns anos, foi somente a partir da organizao de um Congresso sobre Poltica de Drogas com apoio de membros da Rede Pense Livre que o Conjuve entrou no debate do tema, qualificando sua viso sobre o programa Juventude Viva a partir da necessidade de reformar o paradigma de guerra s drogas.24 Essa apropriao do tema pelo Conjuve pode ser decisiva, uma vez que o Conselho representa canal de acesso estratgico para movimentos sociais discutirem suas pautas com membros do Governo.

    Apesar desse avano conceitualjunto aos movimento sociais,25 o debate ainda precisa ser destravado no primeiro escalo do governo federal e no legislativo. No judicirio, apesar das decises favorveis importao de CBD em casos especficos, ainda so raras as iniciativas de aplicao de