políticas de ampliação do acesso ao ensino superior no brasil as opções dos esxluídos
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POLÍTICAS DE AMPLIAÇÃO DO ACESSO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL:
AS OPÇÕES DOS EXCLUÍDOS
Marcelo Batista Gomes1
Guiomar de Oliveira Passos2
RESUMO: Este texto, parte dos resultados apresentados na dissertação, analisa as ações do Estado
brasileiro para favorecer o acesso de segmentos excluídos do ensino superior. As ações empreendidas
ampliaram o acesso? A intenção é caracterizá-las, analisando sua contribuição à democratização do
ensino superior, tendo por base dados qualitativos e quantitativos colhidos em pesquisa documental e
estatísticas, disponibilizadas pelo Inep e SisproUni, e submetidos à análise de conteúdo e estatística.
Constatou-se que as ações inicialmente se voltavam para favorecer o acesso ao ensino privado via
financiamento – FIES – e renúncia fiscal – PROUNI – depois, com a reserva de vagas, as chamadas
cotas. Esta, originada em iniciativas das instituições públicas de ensino superior, adquiriu formatos
diversos, ora vinculando-se à raça, etnia e sexo, ora à condição socioeconômica e escolaridade,
objetivando romper a exclusão de determinados segmentos da universidade pública e diversificando
seus usuários. Conclui-se que estas ações têm favorecido o ingresso de setores antes excluídos
inclusive em cursos prestigiosos, todavia, este não foi acompanhado de medidas voltadas para a
permanência e, por conseguinte, precisou encontrar agentes dispostos a dele usufruir; alunos e
cidadãos superselecionados não apenas pela prolongada escolarização, mas também por terem o ethos
requerido para permanecer no ensino superior e concluir o curso.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Superior. Política de acesso ao ensino superior. Cotas. Reserva de
Vagas.
INTRODUÇÃO
O acesso ao ensino superior no Brasil, principalmente em universidades públicas, tem
sido, historicamente, um privilégio de poucos, em que as classes privilegiadas ficam com as
melhores vagas e nas melhores instituições. Segundo Pinto (2004), o modelo de expansão
adotado desde a Reforma Universitária de 1968 (Lei n. 5.540/68) resultou em “uma grande
elitização do perfil dos alunos, em especial nos cursos mais concorridos e nas instituições
privadas, onde é muito pequena a presença de afrodescendentes e de pobres” (PINTO, 2004,
p. 727). Isso porque, primeiro, como mostram os dados do IBGE (2010), há dificuldade de
1 Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí e professor do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – IFPI. e-mail: [email protected] 2 Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília e professora da Universidade Federal do Piauí no
Departamento de Serviço Social e no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (Mestrado e
Doutorado). e-mail: [email protected]
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acesso ao ensino médio: a taxa de escolarização líquida, analisada pelos quintos do
rendimento mensal familiar per capita, revela que, enquanto no primeiro quinto (os 20% mais
pobres), somente 32% dos adolescentes de 15 a 17 anos de idade estavam no ensino médio,
no último quinto (20% mais ricos), essa oportunidade atingia quase 78%.
Outro fator, evidenciado em estudo do Observatório Universitário da Universidade
Cândido Mendes, citado por Ristoff e Pacheco (2004, p. 9), é a carência: “25% dos potenciais
alunos universitários são tão carentes que não têm condições de entrar no ensino superior,
mesmo se ele for gratuito”. O percentual destacado, segundo Ristoff e Pacheco (2004),
representava, naquela ocasião, 2,1 milhões de estudantes que necessitavam, para serem
incluídos no sistema de ensino superior, mais do que da gratuidade, ações que garantissem
bolsas de estudo, de trabalho, de monitoria, de extensão, de pesquisa, de restaurantes
universitários subsidiados, de moradia estudantil, ou de outras formas que, combinadas a
essas, tornassem viável sua permanência na instituição.
Este texto é parte dos resultados apresentados na dissertação de mestrado intitulada
“As Cotas na Universidade Federal do Piauí: instituição e resultados” que analisou a
institucionalização e os resultados das cotas na Universidade Federal do Piauí. Desta feita,
expõem-se a análise sobre as ações do Estado brasileiro para favorecer o acesso de segmentos
tradicionalmente excluídos do ensino superior: negros, índios e egressos da escola pública.
As ações empreendidas ampliaram o acesso? Quais seus resultados em termos de
democratização do acesso, compreendido, nos termos de Sousa (1968) e Pascueiro (2009)
tanto pelas condições de acesso quanto de permanência e formação?
OBJETIVOS
Analisar as contribuições das medidas adotadas pelo Estado brasileiro para a
democratização do ensino superior.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Os dados aqui expostos são de natureza qualitativa e quantitativa colhidos em pesquisa
documental – leis, decretos, e normas relacionadas aos programas e ações estatais voltados
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para a ampliação do acesso e estatísticas disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP e pelo SisproUni. Para analisá-los, recorreu-
se à análise de conteúdo e estatística.
RESULTADOS
A oferta de cursos e vagas no ensino superior brasileiro, depois de um período de
estagnação, cresceu desde os anos de 1990 e, principalmente, na última década. Conforme o
INEP (2011; 2012), o número total de instituições de ensino superior passa de 1.391, em
2001, para 2.314, em 2009, um aumento de 66%. São 186 universidades, 127 centros
universitários, 1.966 faculdades e 35 institutos federais ou centros federais de educação
tecnológica. A grande maioria das instituições, 89%, todavia, é privada, sendo os 11% do
setor público formados por “4% estaduais, 4% federais e 3% municipais” (INEP, 2012, p. 30).
Os cursos, conforme essa fonte (INEP, 2012), eram, nesse ano, 27.827, sendo 8.228
(30%), no setor público, e 19.599 (70%), no setor privado. A maior parte (13.865), em
universidades e faculdades (9.897), e uma minoria, em centros universitários (3.580) e nos
institutos federais ou centros federais de educação tecnológica (485). As vagas, por seu turno,
totalizavam 5.115.896, sendo 1.351.168, no setor público, e 3.764.728, no setor privado.
Eram, assim, 26%, no primeiro, e 74%, no segundo.
Desejaram ingressar, no ensino superior, 3.164.679 candidatos, 1,96 por vaga. Desses,
1.511.388 ingressaram, significando que 1.653.291 vagas (52,7%) ficaram ociosas, ainda que
houvesse candidatos pleiteando ingresso. Setenta e seis por cento (76%) dos candidatos não
conseguiram aprovação. Isso ocorreu tanto em instituições públicas, quanto em privadas,
ainda que naquelas menos do que nestas. Nas primeiras, 10% das vagas, sendo nas federais
(0,9%), estaduais (7,9%) e municipais (48,7%). Nas instituições privadas, 58,2% das vagas
ficaram ociosas, mais da metade — 1.613.740 das 2.770.797 disponibilizadas.
O fato é que o problema da educação superior no Brasil não é mais a falta de vagas e
tampouco a falta de candidatos potencialmente aptos (com ensino médio) e interessados nesse
grau de ensino, ainda que 48% daqueles na faixa de 18 a 24 anos, segundo Andrade (2012),
não tenham concluído o ensino fundamental ou médio. Tem-se, então, um paradoxo, sobram
vagas e candidatos.
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Os excluídos, segundo dados da PNAD de 2009 (IBGE, 2010), são, em grande parte,
oriundos das camadas sociais mais pobres, situados entre o 1º e o 2º quintos de renda. Nessas
camadas, a taxa líquida de escolarização era, respectivamente, de 31,1% e 41,6%, enquanto, nos
dois últimos quintos, era 59,9% e 72,5%. Na região Nordeste, nos dois primeiros, o percentual ainda
era menor, 29,2% e 38,3%, já, nos dois últimos, a situação era praticamente a mesma: 59,8% e 71%.
A dificuldade de acesso à educação superior no Brasil, portanto, tem relação com a
renda familiar dos estudantes, pois enquanto as famílias com maiores rendimentos conseguem
manter os filhos no sistema de ensino, da educação básica ao ensino superior, as de baixa
renda reduzem o tempo de permanência na escola ou o tempo de escolaridade.
Outro fator de exclusão é o tipo de escola. Aqueles que estudaram em escola pública, quase
sempre, mas não necessariamente, pertencentes aos estratos de menor renda, são também sub-
representados. Segundo Ristoff (2008, p. 47), em 2004, “nas Ifes e nas IES privadas sua
representação é de 43%, isto é, inferior à metade dos 87% que representa no ensino médio” e, nos
cursos de Odontologia e Medicina, respectivamente, 18 e 34% (RISTOFF, 2008, p. 47).
A problemática tem sido objeto de atenção do Estado brasileiro com três tipos de
ações: 1) as inovações introduzidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional —
Lei nº 9.394/1996; 2) a expansão e reestruturação das instituições federais de ensino superior
e 3) as ações voltadas, especificamente, para aqueles historicamente excluídos — egressos das
escolas públicas, negros e índios. Dentre estas, face ao escopo, destacam-se: o Programa
Universidade Para Todos (ProUni) e o Programa Diversidade na Universidade.
O ProUni favorece o acesso ao ensino superior privado: dos que cursaram o ensino
médio, completa ou parcialmente, na rede pública ou em instituição privada com bolsa
integral, dos portadores de deficiência e dos
professores da rede pública de ensino, no efetivo exercício do magistério da educação
básica e integrando o quadro de pessoal permanente de instituição pública e concorrer a
bolsas exclusivamente nos cursos de licenciatura, normal superior ou pedagogia (BRASIL,
PROUNI, 2012).
Criado em 2005, pela Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005, o Programa concede
bolsas de estudo integrais e parciais em instituições privadas de educação superior a
estudantes de cursos de graduação e de cursos sequenciais de formação específica,
concedendo às instituições isenções de tributos.
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Conforme Saraiva e Nunes (2011, p. 948), “o governo federal implementou o Prouni com
a finalidade de ampliação das vagas no ensino superior, gerando maior acessibilidade da
população carente a esse nível de ensino”. Até 2011, atendeu 919 mil estudantes, dos quais 197
mil já haviam concluído (BRASIL, 2012, p. 53), e disponibilizou, em 2012, 284.622 bolsas,
aumentando, em relação a 2005, a oferta em 153,5%. Para elas, conforme a tabela abaixo, tem
acorrido um número crescente de candidatos: eram 422.531, em 2005, uma relação de 3,8 por
vaga, passando para 1.665.371, em 2012, quase 6 candidatos por vaga, tendo chegado, em 2011, a
7,8, vez que as mesmas vagas foram disputadas por 1.990.044 inscritos.
Tabela 6: Bolsas oferecidas e candidatos inscritos no PROUNI, entre 2005-2º/2012
Ano Total Geral
Bolsas Oferecidas Candidatos Inscritos Inscritos/Bolsas
2005 112.275 422.531 3,8
2006 138.668 994.405 7,2
2007 163.854 668.561 4,1
2008 225.005 1.063.915 4,7
2009 247.643 989.078 4,0
2010 241.273 1.410.266 5,8
2011 254.598 1.990.044 7,8
2012 284.622 1.665.371 5,9
Total 1.667.938 9.204.171 5,5
Fonte: Sisprouni (2012).
O ProUni, então, tem possibilitado o acesso ao ensino superior a 1.667.938 egressos
da escola pública. Todavia, cruzando-se os dados da oferta, concorrência e ocupação das
bolsas do ProUni, tem-se 571.616 (34,3%) vagas ociosas. Apesar do número de candidatos
ser mais de 5 vezes o total delas, nem todas foram preenchidas (BRASIL, PROUNI, 2012).
O Programa Diversidade na Universidade foi instituído pela Lei nº 10.558, de 13 de
novembro de 2002, com “a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção
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do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos,
especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros” (BRASIL, 2002). Conforme
a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o Programa conta com
recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e tem, entre suas ações, o apoio
à oferta “de cursos pré-vestibulares gratuitos e concessão de bolsas de estudos para que
negros e índios tenham mais chance de ingressar na universidade”, concedendo, inclusive,
conforme complementa, prêmio em dinheiro àqueles que ingressam no ensino superior,
“como forma de ter a permanência incentivada” (BRASIL, SEPPIR, 2005).
Com os incentivos do Programa Diversidade na Universidade, foram criados diversos
cursos pré-vestibulares para estudantes carentes, egressos da escola pública ou
afrodescendentes. “São exemplos o Projeto Vestibular Cidadão, da Universidade Federal de
Pernambuco — UFPE, e o Programa Professores do Terceiro Milênio” (VASCONCELOS;
SILVA, 2005, p. 455). Estes programas, segundo os autores, “apesar de possuírem estruturas
funcionais distintas, têm em comum o fato de não cobrarem mensalidade ou material didático.
Além disso, realizam periodicamente atividades complementares, como simulados e revisões”
(VASCONCELOS; SILVA, 2005, p. 456). Para eles, essas são iniciativas válidas, apesar de
não resolverem por si sós os problemas do acesso ao ensino superior no Brasil; servem mais
como paliativo na redução das desigualdades, isso se observa no crescente número de
inscrição no programa. “Somente no Recife, os programas pré-vestibulares gratuitos
combinados totalizaram dezenas de milhares de inscritos para o ano letivo de 2004”
(VASCONCELOS; SILVA, 2005, p. 456).
Tais medidas, se por um lado, não têm sido suficientes para resolver a problemática do
acesso ao ensino superior, pelo menos nos níveis preconizados no Plano Nacional de
Educação 2001/2011, por outro, evidenciam como esta figura na agenda do Estado brasileiro
na atualidade e, principalmente, que a ampliação das vagas não foi suficiente para tornar o
ensino superior acessível a uma parte da população, ainda que esta o deseje.
Nesse contexto, surge a reservas de vagas, as chamadas cotas, em que o governo e/ou
as próprias instituições de ensino adotam medidas no intuito de favorecer o acesso dos grupos
sociais desprivilegiados: os egressos da escola pública básica, os pobres, negros e índios.
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A reserva de vagas para aqueles que, por possuírem condições (sociais, étnicas, físicas,
educacionais) desfavoráveis, enfrentam desigualmente os sistemas de ampla concorrência são, nos
termos de Bittar e Almeida (2006, p. 144), “um ‘projeto de reparações’”, pois têm em vista inserir
tradicionais excluídos em determinados contextos. Esse é o sentido do inciso VIII do art. 37 da
Constituição de 1988, depois regulamentado pela Lei nº. 8.112/90, ao estabelecer reserva “de
cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência” (BRASIL, 1990).
No ensino superior, a reserva de vagas é inaugurada, no Brasil, pelo estado do Rio de
Janeiro, em 2000, com a aprovação da Lei Estadual nº. 3.524/2000, de 28 de dezembro de
2000. Aí, estabelecia-se a reserva de 50% das vagas das universidades do estado do Rio de
Janeiro para estudantes das redes pública municipal e estadual. Em 2001, “a lei estadual nº.
3.708 determinou a reserva de 40% do total de vagas dessas duas universidades para quem se
declara negro ou pardo” (BRANDÃO, 2005, p. 62).
Essas iniciativas desencadearam outras semelhantes na Universidade do Estado da
Bahia (UNEB) e na UnB. Na primeira, estabeleceu-se, em 2002, a reserva de “40% das vagas
de cada um de seus cursos para candidatos negros” (BRANDÃO, 2005, p. 61), a segunda,
“com suas características de vanguarda, foi a primeira instituição federal a adotar o pleito,
destinando 20% das vagas dos cursos de graduação para os candidatos que se declarassem
negros” (CUNHA, 2006, p. 10). O sistema de cotas, na UnB, passou a vigorar a partir do
segundo semestre de 2004, baseado na autodeclaração dos candidatos (CUNHA, 2006).
Nas instituições estaduais, a medida era adotada tendo por base leis estaduais. Nas
universidades federais, seguindo determinação dos Conselhos Superiores ou baseadas nas
próprias leis instituidoras, como a Universidade Federal do ABC (UFABC), criada pela Lei
nº. 11.145, de 26 de junho de 2005, e a Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB),
criada a partir da Lei nº. 11.151, de 29 de julho de 2005.
As tentativas de regulamentação foram diversas. Projetos de Lei — nº. 73/1999, nº.
3.198/2000 e 3.913/2008, o Estatuto da Igualdade Racial — foram apresentados, objetivando
instituir o sistema nas instituições federais de educação profissional, tecnológica e superior,
mas todos foram arquivados. Isso implicou diferentes experiências, ainda que todas motivadas
a tornar o ensino superior acessível a setores da população que, em face de problemas raciais,
étnicos ou socioeconômicos, eram eliminados ou tinham entrada dificultada nos
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estabelecimentos de ensino superior. Isto é, essas experiências desejavam impedir que os
processos seletivos tivessem por base unicamente as capacidades intelectuais do candidato.
A medida, especialmente quando o critério é racial, tem gerado polêmica. Para os
contrários, fere o princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos, fundamento essencial
da República e um dos alicerces da Constituição e, no caso das raciais, introduziria o racismo
no país, institucionalizando direitos a partir da cor da pele, ou a desvalorização da diversidade
como processo integrador da humanidade.
Para os que são favoráveis, as cotas possibilitam, primeiro, cumprir o dispositivo
constitucional de erradicação da pobreza e de redução das desigualdades sociais e regionais e,
depois, saldar a enorme dívida social da nação para com pobres, negros, pardos e índios.
Além disso, com elas, aumenta o número de negros e pardos nas universidades,
principalmente em cursos mais concorridos.
A população apoiou a medida: 65%, quando as cotas são raciais, e 87%, quando
socioeconômicas ― segundo dados do Instituto Data Folha, citados por Queiroz e Santos
(2006, p. 718). Nos julgamentos de ações impetradas contra sua implementação em
instituições federais de ensino, também o Supremo Tribunal Federal manifestou-se favorável.
No primeiro julgamento, na ação ― Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) nº 186 ― movida pelo Partido Democratas (DEM) contra a reserva de
vagas na Universidade de Brasília para negros ou pardos, o Tribunal decidiu, em 26 de abril
de 2012, pela improcedência da ação, considerando-a não apenas uma “providência
adequada”, como proporcional, pois, conforme o relator, o Ministro Ricardo Lewandowski, “a
política de ação afirmativa adotada pela Universidade de Brasília não se mostra
desproporcional ou irrazoável, afigurando-se também sob esse ângulo compatível com os
valores e princípios da Constituição" (BRASIL, STF, 2012). O então presidente da Corte,
Ministro Ayres Britto, por seu turno, ao encerrar o julgamento, disse: “a Constituição
legitimou todas as políticas públicas que buscam promover setores sociais desfavorecidos pela
história. São políticas afirmativas do direito de todos os seres humanos a um tratamento
igualitário e respeitoso. Assim é que se constrói uma nação", concluiu. (BRASIL, STF, 2012).
O segundo julgamento era uma ação contra o sistema vigente na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) ― Recurso Extraordinário (RE 597285) ― impetrada por um
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estudante que, conforme nota publicada na página do Supremo Tribunal Federal, questionava os
critérios adotados pela UFRGS para reserva de vagas. “A universidade destina 30% das 160 vagas
a candidatos egressos de escola pública e a negros que também tenham estudado em escolas
públicas (sendo 15% para cada), além de 10 vagas para candidatos indígenas” (BRASIL, STF,
2012). Para o estudante, o sistema não é razoável e traz um “sentimento gritante de injustiça”,
pois, explica, as cotas diminuem as vagas disponíveis para aqueles que estão preparados para
ocupá-las, restringindo as suas possibilidades de sucesso. Em seu argumento diz:
que prestou o vestibular para o curso de administração em 2008, primeiro ano da aplicação
do sistema de cotas, e foi classificado em 132º lugar. Segundo sua defesa, se o vestibular
tivesse ocorrido no ano anterior ele teria garantido vaga, mas no novo modelo concorreu a
apenas às 112 vagas restantes (BRASIL, STF, 2012).
Esse estudante argumentou, ainda, que, para a implementação desse sistema, a
universidade necessitaria dispor de uma lei formal que autorizasse a criação da reserva de vagas,
argumento também rechaçado pelo ministro Ricardo Lewandowski, relator do processo, que diz:
“a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96) deixou para as universidades o
estabelecimento dos critérios que devem ser utilizados na seleção dos estudantes, tendo em vista a
repercussão desses critérios sobre o ensino médio” (BRASIL, STF, 2012). Esta Lei, argumenta
ainda Lewandowski, “tem amparo no artigo 207 da Constituição Federal que garante às
universidades autonomia didático-científica” (BRASIL, STF, 2012).
O ministro enfatizou, ainda, que cada universidade procura “atender as metas
estabelecidas na Constituição no que diz respeito ao atingimento de uma sociedade mais justa,
mais fraterna e mais solidária” (BRASIL, STF, 2012). Portanto, também neste caso, o
Plenário do Supremo Tribunal Federal confirmou, por maioria de votos, a constitucionalidade
do sistema de cotas adotado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
mantendo a decisão anterior. O Tribunal entendeu que os critérios adotados estão em
conformidade com o que já havia sido decidido na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental – ADPF 186, em que o Plenário confirmou a constitucionalidade do sistema
adotado pela Universidade de Brasília – UnB (BRASIL, STF, 2012).
Apesar das controvérsias que essas medidas provocavam, as reservas de vagas ou
acréscimos de bônus à nota final de determinados segmentos sociais continuaram a se
expandir nas universidades públicas. Até 2012, segundo estudo da ONG Educafro (2012),
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mais de 180 instituições de ensino superior no Brasil adotavam reserva de vagas ou sistema
de bônus em seus processos seletivos, sendo 105 estaduais, 82 federais e 2 municipais. As
ações afirmativas, todas baseadas em autodeclaração, eram, em 60 instituições, de adição de
bônus à nota final de estudantes egressos da escola pública ou negros; 52 instituições
combinavam cota racial e social na forma de reserva de vagas, outras 55 só tinham cotas
sociais e 20 destinavam vagas somente para estudantes negros. Havia ainda uma, a
Universidade Federal de Alagoas, que destinava percentual de vagas para mulheres negras.
Nesse contexto, a aprovação da Lei nº. 12.711, em 29 de agosto de 2012, pode não pôr
fim à celeuma, todavia estabelece um padrão comum entre as diversas instituições federais, ao
determinar, no art. 1º, a reserva de, “em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de
graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para
estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” (BRASIL,
2012). Para o preenchimento das vagas de que trata este artigo, 50% (cinquenta por cento)
deverão ser reservadas aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5
salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.
O Art. 3º estabelece que:
em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o desta Lei serão
preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção
no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação
onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) (BRASIL, 2012).
No caso de não preenchimento das vagas, segundo os critérios estabelecidos, a referida
lei estabelece, no parágrafo único do Art. 3º, que essas vagas “deverão ser completadas por
estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” (BRASIL,
2012). As instituições, conforme o estabelecido no Art. 8º, “terão o prazo máximo de 4
(quatro) anos, a partir da data de sua publicação, para o cumprimento integral do disposto
nesta Lei” (BRASIL, 2012).
A Universidade Federal do Piauí instituiu a reserva de vagas em 2006, pela Resolução
093/06-CEPEX, destinando 5% das vagas, em todos os cursos, aos candidatos que realizaram
a Educação Básica (Ensino Fundamental e Ensino Médio) integralmente em escola pública.
Em 2008, pela Resolução 138/08-CEPEX, este percentual foi alterado para 20%. É um
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sistema, portanto, cujo único e exclusivo critério é a realização da educação básica
integralmente em escola pública, por conseguinte, não adota critérios étnicos, raciais ou
socioeconômicos. Desse modo, é uma política pública que integra os dois níveis da educação
oferecidos pelo Estado — o básico e o sistema de ensino superior.
CONCLUSÕES
Este estudo abordou as ações empreendidas pelo Estado brasileiro para favorecer o
acesso dos setores excluídos do ensino superior no Brasil. Verificou-se que as medidas foram
instituídas no momento em que a ampliação do acesso, iniciada nos anos de 1990 e
aprofundada no setor público a partir de 2005 com o REUNI, deparava-se, ao mesmo tempo,
com crescente ociosidade de vagas e número cada vez maior de excluídos. Tinha-se, então,
um paradoxo, sobravam vagas e candidatos.
A ação do Estado inicialmente se voltou para favorecer o acesso ao ensino privado via
financiamento – FIES – e renúncia fiscal – PROUNI – depois, com a reserva de vagas, as
chamadas cotas. Esta, originada em iniciativas das instituições públicas de ensino superior no
escopo de sua autonomia, adquiriu formatos diversos, ora vinculando-se à raça, etnia e sexo,
ora à condição socioeconômica e escolaridade. Fundamentalmente, buscavam romper a
exclusão de determinados segmentos da universidade pública brasileira, diversificando seus
usuários, isto é, quebrando o ciclo de seletividade social, que beneficiava os já beneficiados.
São, por conseguinte, ações afirmativas, dado que têm o sentido de reparar, compensar ou
corrigir a situação desses segmentos no ensino superior.
Conclui-se as ações empreendidas têm favorecido o ingresso de setores antes
excluídos inclusive em cursos prestigiosos. Todavia, favoreceram apenas o ingresso, pois este
não foi acompanhado de medidas voltadas para a permanência e, por conseguinte, precisaram
encontrar agentes dispostos a dele usufruir; alunos e cidadãos superselecionados não apenas
pela prolongada escolarização, mas também por terem o ethos requerido para permanecer no
ensino superior e concluir o curso.
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REFERÊNCIAS
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