poética do teatro - reunião de terra, corpo e mundo

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    POÉTICA DO TEATRO: REUNIÃO DE TERRA, CORPO E MUNDO1 Fábio Santana Pessanha2

    Neste breve ensaio, propomo-nos a pensar o teatro. Isto significa que mais do que se posicionar sobre a dramaturgia, mais do que estabelecer uma conduta epistemológica em quedepreenderíamos uma relação entre sujeito e objeto; pensar o teatro é deixá-lo viger no que éenquanto manifestação do atuar. Este atuar é o diálogo do ator com a obra teatral e com o seulugar de atuação, ou seja, com o palco. Mas o que é este ator? O que é este palco? Diferentedo esperado, este texto não compactuará com os jargões do ambiente dramático, tampouco sedará como mais um manual em cujos“corretos procedimentos da representação” se fariam presentes. Não. Este texto é um ensaio que se envereda numa escuta poético-ontológica, portanto, que procura o inaugural do pensamento no que se refere ao teatro. Então, aqui sedesenvolverá o caminho do pensar, cujo único compromisso é o percurso que se revelaráenquanto nos movermos imersos no questionamento.

    Acima, perguntamos o que é o ator e o que é o palco. Contudo, este não é um perguntar que se satisfaz com uma adequada resposta, é um querer saber mais. Em outras palavras, é uma transgressão à acomodação proporcionada pela lógica dos conceitos.Pensaremos, aqui, o ator enquanto corpo, o palco enquanto terra e o teatro enquanto reunião

    na vigência de um mundo. Dito isto, iniciaremos nosso percurso com o que é mais recorrentena imagem conceitual do teatro: a representação.

    Qual é a percepção mais comum que se tem do teatro? Qual a primeira referência queobservamos ser corrente no senso comum ao se imaginar a atuação?

    Sem esforço algum, a maioria das pessoas concebe: teatro é representação. Ou aindanum afastamento maior, o teatro é o lugar onde a representação ocorre pelas mãos do artistaque presenteia o público com o esquecimento do seu ser através de um personagem. Esta

    última asserção não é de todo desprezível, pois carrega uma ambiguidade que merece ademora do pensamento.

    A primeira coisa a ser pensada é a representação. Então, o que é a representação paraalém do que se pergunta?

    1 PESSANHA, Fábio Santana. “Poética do teatro – reunião de terra, corpo e mundo”. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n. 171, pp. 101-113, 2007.

    2 Doutorando em Ciência da Literatura e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Coeditor do Dicionário de Poética e Pensamento (www.dicpoetica.letras.ufrj.br ). Membro do NIEP – Núcleo Interdisciplinar de Estudos de

    Poética.

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    Ao atentarmos no que a palavra “representar” é em si, p odemos pensar em tal verbocomo um trazer consigo, como o caminho que se revela numa referência a uma coisa.Portanto, o representar é um movimento inaugural na medida em que algo é representado no principiar de cada instante. A origem é referenciada no percurso do mostrar-se, uma vez quere-ferência nos diz aquilo que conduz à fonte das fontes; logo, encaminha-nos ao originário.Então, se representar é um movimento que não se extingue em sua inércia, qual é a questão darepresentação? Como podemos articular a representação como o esquecimento do ser?

    Pensar a questão da representação e do esquecimento do ser é, praticamente, se ater àmesma discussão, haja vista uma imbricação evidente em que a razão e o pensamentoocidental elevam a dicotomia como principal ou única via de ação. Portanto, se há dicotomia,há um posicionamento mediante um contexto binário, onde só um dos lados é tido comocorreto. Neste sentido, se representar é uma tentativa de trazer uma ausência à presença, o problema se dá quando a dimensão d’o que é não é extrapolada. Ou seja, aquilo que é serepresenta no tamanho do seu mostrar-se. Assim, quando o ser é, deixa o abrigo silencioso dorecolhimento a fim de se manifestar naquilo em que se apresentar. Por isso, a representação sereduz à aparência docomo é quando medida pela limitação de um mensurar racional ouepistemológico. O ser enquanto possibilidade originária de um mostrar incessante e inauguralé esquecido em detrimento da necessidade de uma configuração estática. Representa-se

    apenas um símbolo, cujo sentido já se mostra obliterado do seu dizer originário. Seetimologicamente a palavra símbolo vem do grego symbállein, em que sym- se origina do prefixo grego syn (junto, que reúne) e -bolo, do verbo gregobállein, significando: pôr, jogar,lançar; símbolo é aquilo que se lança junto na diversidade do que é único: ente-ser comoreunião. Esta reunião se atenua num posicionamento que não dá conta do sentido pleno dereunir, uma vez que o símbolo passa a ser uma presença abstrata. Ou seja, o diálogo entre aorigem e o originário é cortado, impossibilitando o acontecimento do reunir.

    Com o que foi dito acima, fica-nos claro que o teatro – não como espaço destinado aespetáculos, mas como reunião originária do homem – é visto normalmente em suasuperficialidade. O importante, neste sentido, seria uma representação que almeja oentretenimento. Por isso tocamos na questão do esquecimento do ser, uma vez que, em umarepresentação com fins de entretenimento, o ser não é pensado. Ou seja, apenas se pergunta pelo como é. E o como é figura na dimensão da entidade, na funcionalização de um personagem vazio que se propõe a falar num intervalo temporal que não conduz ao

    pensamento, ao questionamento.

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    Se o teatro é reunião, significa que há partes a serem reunidas. Então, que partes sãoestas? Pensar em “partes” é sinônimo de pensar n um retalhamento de um todo em pedaços aserem re-encaixados?

    Quanto a estas últimas perguntas, a primeira nos remete ao homem que se move poeticamente na terra que o acolhe como filho. A terra doa o homem e o resguarda na pro-cura originária de sua vida/morte. É neste ciclo que da terra surge o homem como o corpomoldado por Cura, tendo em vista o mito de origem egípcia narrado por Higino que trata dacriação do homem. Assim, não nos aprofundando muito, o mito em poucas palavras nos dizque: fingido do barro, Cura lhe moldou o corpo; Júpiter (Zeus) lhe deu o espírito e, ficandocomo árbitro, Saturno (Cronos) deliberou sobre a controvérsia do nome que tal figura telúricateria. Já que Cura, Júpiter e Terra (Tellus) queriam se encarregar de tal ação, ficou decididoque teria o nome de Homem, por parecer ter sido feito do“húmus” .

    É nesta constituição tríplice (terra/corpo, espírito e nome), porém não tri-partida, que ohomem se dá como corpo pleno. Sua plenitude vige na não separação dos três elementoscitados. Entretanto, embora tenhamos chamado de “elementos”, estes não são objetificáveis.Entendemos como sentido de união o que se funda na relação da identidade das diferenças dotodo de cada parte na conformação da unidade.

    Retomando a segunda pergunta acima feita, questionamos sobre o todo como

    somatório das partes. O homem é o todo também em cada parte, não é umacomplementaridade de características ímpares que só se fundam em sua realocação lógica. Adiversidade e a diferença habitam o homem enquanto unidade estabelecida na multiplicidade.Por isso, a totalidade de cada parte é em si um universo que desdenha do estabelecimento do pensamento moderno que prevê o homem geometricamente conformado. Isto é, tomando por base a dimensão mais exterior do pensamento matemático-científico, o homem seriaracionalmente constituído como configuração orgânica adequado à funcionalização do

    raciocínio. É geometricamente proporcionado como produto ou somatório do meio a que pertence, daí que se Geometria nos diz, corriqueiramente, amedida da terra, duas coisasdeveriam ser investigadas: saber que medida seria esta e saber o que é terra para além de umestabelecimento físico. Pois, certamente, o homem geometricamente conformado não sereduziria à contenção do metro como referencial de uma medida estabelecida pela abstraçãode espaços reunidos no que se arbitra ser uma escala. Aqui já teríamos, no mínimo, dois problemas: A) Posto que seja segmentado num intervalo contido no espaço arbitrado entre

    quilômetro e milímetro, qual é o princípio do metro quando extrapolada a escala na qual se

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    insere? B) O que é o medir quando este é decomposto da abstração métrica do somatório e pensado junto com sua origem etimológica:métron? Portanto, o que é isto -métron?

    A Geometria é uma via de pensamento que põe o homem em diálogo com o mundo.Logo, é mais uma realização do real manifestada na multiplicidade e ambiguidade do viver, jáque nos conduz a pensar qual é a medida(-metria = métron) do habitar do homem na terra(geo- = terra). Não cabe à Geometria meramente a afirmação de uma função enquantoferramenta que serve ao homem na compreensão das coisas. Ela é em si um mundo que se dáno agir humano enquanto pro-cura originária, isto é, é mais um caminho que afirma o homemna tensão do questionamento, é mais uma possibilidade dentre a infinitude de caminhos queabarca o homem no seu viver. E viver é a radicalização de todos os fins, é a eclosão múltiplade caminhos não-lineares, é a desierarquização do homem como personagem historiográficoque tem por meta apenas a obediência à cronologia metafisicamente estabelecida pelasociedade. Portanto, o homem não é um conjunto retalhado em partes que se totaliza no re-encaixamento das mesmas, mas é a totalidade do todo abrigada em qualquer parte do homem-humano.

    A questão da Geometria é pertinente à nossa discussão quando escutamos sua proveniência etimológica: Geo-metria.Geo- nos diz Gaia: mãe-terra, surgimento incessantede vida. Mas que vida? A bio-lógica? Sim, também. Entretanto,bíos enquanto vida de

    proveniência genética se funda emdzoé: a vida originária. Dzoé vem do verbo grego dzén e significa o próprio surgir e abrir-se para o aberto (CASTRO, 2004: 62). Temos, então, anascividade, o mostrar-se constante e excessivo que se abre na abertura do aberto,inaugurando a vida (bíos) enquanto novidade sempre a acontecer (dzoé). Dessa maneira, Gaiaé doadora do homem, é a terra que o afaga em seu habitar, antecedendo-o para, enfim,reconfortá-lo na culminância de seu tempo metafísico, de sua idade expirada em morte para oassombro da vida como acontecimento poético. Este desdobramento zoogônico do homem

    nos faz pensar em sua atuação telúrica, portanto, o homem como corpo que atua na terra, umavez que esta é palco.

    O homem é um corpo que se apresenta e, nesta apresentação, atua no palco enquantoterra. A partir do momento em que se propõe a dar vida a uma obra dramática, dá-se porinteiro quando, em vez de fazer uma escolha subjetiva, atende à convocação da arte e seentrega ao operacionalizar de determinada obra: é o atuar na vigência do atendimento aosincero chamado do desconhecido, do que está por se revelar. O homem/ator não é uma

    entidade que perambula um texto, que torna em falácias os diálogos de determinada obra ouque gesticula sem se dar conta do “fazer vir” habitante do gesto, quando experienciado em sua

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    radical densidade. Uma obra dramática re-vivida é o renascimento do corpo no canto, nadança, no gesto. Renascido e acolhido no diálogo com a linguagem, o corpo dialogará consigoe com o outro a um só tempo, sem qualquer permissão cronológica, ou seja, acontecerá osagrado, o ritual do corpo que nasce e renasce a cada instante grávido de instantes. O pacto poético terá vigência na possessão do homem pelo espanto. Admirado, poeticamenteinaugurado, o homem age e este agir é o atuar, é a escuta do ser.

    Transbordante de luminosidade, o homem atuará. Este atuar é a eclosão do excessivono homem, é a humanidade aflorando violentamente na dinâmica de recolhimento tensionadano gesto, posto que:

    Ao pensarmos o gesto como o recolhimento do trazer, somos

    instigados a olhar o corpo que tece e que é tecido, fazendo destaleitura a escrita que desenha no movimento o atravessar de caminhos,que reúne em si a força, na unidade que se funde no espaço e notempo. A ação de tecer surge como presença, é o fazer da experiênciao lugar do acontecimento originário, da fala, do ser; logo, dalinguagem como produção de sentido. (CALFA, 2006: 71)

    Pensando o trecho acima, o corpo é a fusão do tempo e do espaço no acontecimento do

    recolher, ou seja, é a cisão do comum, o desprendimento da retórica cotidiana de uma vidasurda; de uma vida que não vive, que não habita a travessia do estar vivendo, posto queapenas se repete no paradigma de uma vivência alheia. Uma vida surda é aquela que emudeceseus ouvidos à escuta do apropriar-se. Portanto, uma vida que não busca seu próprio não vive,reprisa-se.

    Ao tecer, o corpo se presentifica. Este presentificar reúne no atuar a ambivalênciaentre fala e escuta e constrói um tecido poético do qual retira sua vestimenta. Em outras

    palavras, o ator sensível trabalha a dinâmica do entre-atuar quando se abre ao céu num gestualde preenchimento dado na escuta à fala do ser, enfim, à linguagem. Ao mesmo tempo, permite-se ao abraçar telúrico que o resguardará no silêncio da terra, uma vez que o ator só poderá falar se antes estiver entregue ao silêncio. Este é o movimento circular-poético que permite o teatro acontecer originariamente, ou seja, é na sinceridade e na sensibilidade dohomem enquanto humano que o atuar se propõe a elevar da ausência a sua aparição.

    O corpo-ator tece e é tecido a cada movimento que transcende a rotina da

    mecanicidade do corpo-estrutura. Este, por sua vez, é trancafiado no molde da representaçãoenquanto entretenimento, calando-se num infinito escuro, na cegueira guiada pela luz

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    racional. O racional apenas dá voltas, isto é, no seu conduzir não há a abertura para o saltoque transformará o círculo vicioso do representar moderno no círculo poético que rompequalquer tipo de enquadramento estilístico. Assim, o corpo se mostra como um organismocarente da manutenção alheia que fixará a rota a ser percorrida. De outro modo, esteorganismo-estrutura apenas cumprirá o traçado que lhe foi determinado, num percursoinsosso, por estar desprovido do sabor da experiência poética do viver.

    Se no início deste ensaio falamos no esquecimento do ser quando, na atuação, se primao representar como personificação do“como é” calado do diálogo com“o que é”, podemosagora pensar em outra dimensão: a lembrança do ser enquanto memória. Ao pensarmos emmemória, as primeiras referências que nos vêm são: recordação, reminiscência, enfim,lembrar de algo que já passou. Certamente, a memória não exclui tais ocorrências. Entretanto,esta é uma faceta bem comum e superficial que não dá conta da complexidade da memóriaquando dialogamos com a concretude dos mitos gregos. Assim sendo, memória é Mnemósine,filha de Céu (Uranos) e Terra (Gaia) e, de sua união com Zeus, nasceram as Musas. Nestesentido, temos na memória o sentido de unidade quando ela se principia na relação entre céu eterra, retrospectivamente, e é doadora da correspondência entre homem e linguagem nohorizonte do ser, prospectivamente (Cf. JARDIM, 2005: 126).

    A unidade se configurando realidade é a atuação se dando mais do que uma

    representação metafísica, é toda a complexidade da articulação homem-entre-ente-ser. Isto é,se complexidade éaquilo que se dobra ou flexiona com, então é um desdobramento do ser emcada ente, da obra em cada operacionalizar. Deste modo, da tensão entre céu e terra, ohomem-ator cumpre o apropriar-se de seu destino ao ser ungido e iluminado pelo ser, dando-se completamente ao atuar na liberdade da clareira que tanto se ilumina quanto se obscurece, posto queiluminar é conduzir algo para o livre, é conceder vigência (HEIDEGGER, 2006a:244). Neste sentido, temos um ator sensível, isto é, aquele que se abre às experienciações de

    possessões divinas; aquele que escuta a obra, dialogando com sua complexidade e sedeixando habitar na clareira. Mas, afinal, que clareira é esta? Um espaço aberto na multidãodos espaços? Uma fenda que se alarga na escuridão do “já sabido” enquanto símbolo do

    raciocínio moderno ocidental?A cada passo dado, o breu do desconhecido se abre ao caminhar poético do ator. Com

    isso, vemos que não é um mero somatório de passos transcorridos, mas uma andançavislumbrada no horizonte do ser. Ou seja, se o andar é um mover do poético, então é, antes de

    mais nada, a “poiesis” se dando enquanto agir do ser do homem no percurso dainaugurabilidade humana. E isto quer dizer que, encharcado pela luz do ser, o homem-

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    humano-corpo entre-vive tanto quanto entre-morre. Viver é um morrer contínuo que se alargana dimensão do agir e o agir é o morrer deixando a vida acontecer na existência do homem.Daí que, se existir é o ser se doando no que é enquanto homem, temos a manifestação presencial do homem que é posto em cena. Entretanto, o movimento de“pôr em cena” sóacontece mediante a disponibilidade de um viver. De outro modo, retomando a andança dohomem-ator, à medida que este avança, o avançar eclode um aparecer do que está à sua frente,um iluminar momentâneo que tem a duração do espanto possibilitador do andar (eis a disputaentre terra e mundo, contudo, suspenderemos esta discussão por enquanto). Ao mesmo tempo,o avançar recolhe a escuridão do que se mostra e a devolve ao silêncio do que está prestes aeclodir. Portanto, o avançar é o caminhar entre o que se mostra e o que se obscurece a um sótempo. Só nesta dinâmica experienciada noentre do desvelar e do retrair é que o ator se põeem cena.

    O pôr-em-cena é o habitar da clareira no atuar do ator, haja vista ser a clareira não olugar onde se dá a sucessão da luz e da sombra, mas é o próprio iluminar da luz enquantorecolhimento ao silêncio-escuridão do nada, explodindo no empenho de viver-atuar. Destaforma: “Viver é deixar -se libertar para e na poiesis, no agir que dá sentido a toda ação deviver, pois viver é sempre um empenho de ser” (CASTRO, 2006: 10). O emp enho de ser dáao homem a dimensão doentre quando o mesmo se vislumbra na clareira. Tal

    vislumbramento é o espanto que retira e dá a luminosidade do atuar, ou seja, a clareira é o quedisponibiliza tanto o atuar quanto a cena. Pois é nela que há a convergência de todas asdivergências, posto que não seja um estabelecimento racional.

    Espantado, o homem-ator dialoga consigo, com a obra e com a linguagem: canta edança. O canto e a dança não são modalidades artísticas representativas de alguém que faz daarte fonte de renda para sobrevivência, até porque a arte, neste contexto, nada tem a ver com amanifestação da verdade noentre do velamento e desvelamento, mas com a instituição de

    fonte empregatícia. Logo, a arte, ainda neste contexto referente ao senso comum, seria ageneralização das atividades manufaturadas ou industrializadas que têm por fim o lucrofinanceiro necessário ao sustento de qualquer trabalhador. Por esta via, o canto e a dançaseriam apenas duas das diversas modalidades que congregam o mercado de trabalho.Contudo, este não é o foco de nossa discussão. Deixaremos a representação da arte, do canto eda dança como algo circunstancial ou conjuntural e procuraremos, então, nos encaminhar àessência da arte ao dialogarmos com o cantar e o dançar enquanto o agir do homem.

    Se a essência do agir é o ser, o homem é uma doação do ser, por isso, por mais quenunca o saiba completamente, o terá sempre consigo. É nesta dinâmica de manifestação

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    que, em paralelo com reunião, o teatro seja enquanto doador de uma fisionomia. Em outras palavras, é o que viabiliza a conjunção do que se propõe a reunir no vigor do que se diferencia por traços singulares.

    A fisionomia nos informa o nomear da physis no incessante presentear da atuação, posto que a excessividade poética do real em realidades desdobradas no aparecer do atorvislumbra o não-visto na visibilidade presencial do estar em cena. Mas, o que nos é ofertadoneste aparecer? O que é que na presença se oculta para se recolher no mistério do não-encenado?

    Possivelmente, este movimento do que se oculta na presença configura a geratriz doque no gestual do ator se desdobra o diálogo com o sagrado, o ritual de consagração do corpofísico em poético, uma vez que acontece o agir profundo e originário da physis. Este é oinstante sublime de decomposição da materialidade metafísica no movimento inaugural daatuação. O homem se manifesta na fronteira genético-poética, isto é, insurge no limiar dofísico para uma viagem catabática à sua essência. Neste instante inefável, há a demora do princípio como constituição de um principiar que, em seu percurso, conduz o homem à suahumanidade. Eis a dinâmica da escuta ao silêncio da terra: o palco se abre no vazio para ailuminação do atuar, na medida em que este atuar se dá na encruzilhada entre a experiência primeira de um nascimento e o atravessamento da morte enquanto consumação poético-

    apropriante.Uma peça de teatro enquanto realização de um operar nada tem a ver com a

    propaganda disseminada pelas vias midiáticas, mas sim com a sacralização do homem-humano em correspondência com o ser da obra. No percurso em que tal homem pergunta porsua essência e se lança na pro-cura de sua cura, acontece a consumação. Então, regido pela poesia enquanto agir originário(poiesis), o ator se movimenta e age poeticamente, isto é,avulta a ressonância das vozes que o tomam numa ruptura com toda a logicidade racional. Dá-

    se o homem-ator destinalmente na alegria do vir-a-ser incessante, na possessão peloentusiasmo: otaumadzein.

    A Poética do teatro retira do teatral a simploriedade da sequência mecânica de ações para se lançar na profundidade do incomensurável. Assim sendo, dá ao teatro o seu próprio na proporção poética do não-agir, do não-visível, do não-ser. Meditar a Poética do teatro érepousar no desassossego do que nunca se estagna, pois Poética diz respeito às questões queantecedem e atravessam o homem da mesma maneira que ela mesma enquanto questão é

    originariamente uma tomada de postura não realizada pelo homem, mas em correspondênciacom ele. Assim, não é mais uma configuração conceitual em que se estabelece um paradigma

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    de pensamento, mas a ruptura da marcha do caracterizável, do definível circunscrito numaárea delimitada por sua fronteira. Demorar-se na Poética em diálogo com o teatro é deixar viro acontecimento do paradoxo, na medida em que, na permanência do convívio com asdiversas áreas artísticas, o teatro se funda original e originariamente.

    O teatro pensado poeticamente se manifesta no deixar-se tomar pelo vigor da poiesis,dando-se como experienciação única do acontecer do teatral e da via intersticial deconsumação do humano do homem. Dissemosintersticial exatamente porque a Poética doteatro é a vigência do paradoxo no habitar do questionamento que desvanece a estaticidade daatribuição conceitual enquanto paradigma estabelecido. Assim, é somente com esta atençãoque poderemos auscultar o teatro na dinâmica de seu operar como o que reúne e faz ver com ocorpo em plenitude de sentido.

    O palco enquanto terra é o resguardo do corpo e da própria disputa terra-mundo que pede o silêncio. Um silêncio diferente de um calar-se, de um emudecimento criativo. Pelocontrário, pede-se o silêncio grávido de todas as vozes, de todo cantar. Um silêncio que indicao repouso não como movimento que cessa, mas como auge de todo um movimentar que, porsua excessividade, tende à quietude originária. O silêncio do corpo que dança e, por isso,mundifica-se. Afinal, o humano é mundo e eclode no abrir-se à luz da verdade. O homem édança e por isso se movimenta, podendo atuar. O teatro é o humano, é o mundo mundificando

    enquanto arte. Daí questionamos: o que é isto, a arte? Eis um questionamento que nos lançano horizonte de nossa questão maior: o que somos enquanto entre-ser no indizível da arte?

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