poesias de guimarães rosa

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Poesias de Guimarães Rosa A Iara Pág-16 Bem abaixo das colinas de ondas verdes, onde o sol se refrata em agulhas frias, descem todas as sereias dos mares e dos rios, irreais e lentas , como espectros de vidro, para os palácios de madrépora de Anfitrite, em vale côncavo, transparente e verde, num recanto abissal, como uma taça cheia, entre bosques e sargaços, espumosos, e rígidos jardins geométricos de coral... Por entre os delfins , sentinelas de Possêidon, afundam, suspensas , soltas, como grandes algas, carregando os jovens afogados: Ondinas das praias , flexosas, Nixes da água furtacor do Elba , Havefrus do Sund e Russalkas do Don ... Loreley traz no esmalte doce dos olhos duas gotas do Reno... E danaides Laboriosas se desviam dos cardumes De Nereidas, que imergem, ondulando as caudas palhetadas dos seus vestidos justos de lamé... Pág-18 Mas a Iara não veio!... Mas a Iara não vem!...

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Coletânea de Poesias de Guimarães Rosa

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  • Poesias de Guimares Rosa A Iara

    Pg-16

    Bem abaixo das colinas de ondas verdes,

    onde o sol se refrata em agulhas frias,

    descem todas as sereias dos mares e dos rios,

    irreais e lentas , como espectros de vidro,

    para os palcios de madrpora de Anfitrite,

    em vale cncavo, transparente e verde,

    num recanto abissal, como uma taa cheia,

    entre bosques e sargaos, espumosos,

    e rgidos jardins geomtricos de coral...

    Por entre os delfins , sentinelas de Possidon,

    afundam, suspensas , soltas, como grandes algas,

    carregando os jovens afogados:

    Ondinas das praias , flexosas,

    Nixes da gua furtacor do Elba ,

    Havefrus do Sund e Russalkas do Don ...

    Loreley traz no esmalte doce dos olhos

    duas gotas do Reno...

    E danaides Laboriosas se desviam dos cardumes

    De Nereidas,

    que imergem, ondulando as caudas palhetadas

    dos seus vestidos justos de lam...

    Pg-18

    Mas a Iara no veio!...

    Mas a Iara no vem!...

  • Porque Iara tem sangue,

    porque a Iara tem carne,

    sangue de mulher moa da terra vermelha,

    carne de peixe da gua gorda do rio...

    Iara de olhos verdes de muiraquit,

    cintura pra cima de cunhant

    cintura pra baixo de tucunar...

    que veio, dormindo , Purus abaixo,

    filha do filho do rei dos peixes

    como uma ndia branca cuchinau...

    L bem pra trs da boca aberta do rio,

    onde solta seus diabos

    o bicho feroz da pororoca,

    ela ficou, cheia de medo,

    brasiliana , tapuia , morena,

    To orgulhosa,

    Que no quer ser desprezada pelas outras...

    E a Iara preguiosa,

    to preguiosa,

    que no canta mais as trovas lentas

    Pg-19.

    em nhheengatu :

    -- Iqu , ian retama icu,

    Paran inhana tumassaua quit...

    Nem mais se esfora em seduzir

    o canoeiro mura ou o seringueiro,

    meio vestida com gaze das guas ,

    na renda tranada dos igaraps...

    E eu tenho de chorar:

  • -- Enfeitia-me Iara,

    que eu vim aqui pra me deixar vencer...

    Mas custa-me encontr-la,

    e s noite sem bordas dessas terras grandes,

    quando a lua e as ninfias desabrocham soltas,

    posso beij-la ,

    nua ,

    dormida,

    esguia,

    bronzeada,

    oleosa,

    na concha carmesim de uma vitria-rgia ,

    tomando o banho longo

    de perfume e luar...

    Joo Guimares Rosa (Magma-Editora Nova Fronteira)

    Conscincia Csmica

    J no preciso de rir.

    Os dedos longos do medo

    largaram minha fronte.

    E as vagas do sofrimento me arrastaram

    para o centro do remoinho da grande fora,

    que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

    J no tenho medo de escalar os cimos

    onde o ar limpo e fino pesa para fora,

    e nem deixar escorrer a fora dos meus msculos,

    e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

    Deixo que o inevitvel dance, ao meu redor,

    a dana das espadas de todos os momentos.

    e deveria rir, se me retasse o riso,

    das tormentas que poupam as furnas da minha alma,

  • dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...

    Joo Guimares Rosa (Magma- Editora Nova Fronteira)

    Luar

    De brejo em brejo,

    os sapos avisam:

    --A lua surgiu!...

    No alto da noite as estrelinhas piscam,

    puxando fios,

    e danam nos fios

    cachos de poetas.

    A lua madura

    Rola,desprendida,

    por entre os musgos

    das nuvens brancas...

    Quem a colheu,

    quem a arrancou

    do caule longo

    da via-lctea?...

    Desliza solta...

    Se lhe estenderes

    tuas mos brancas,

    ela cair...

    Joo Guimares Rosa (Magma-Editora Nova Fronteira)

    No Araguaia I

  • Nestas praias sem cercas e sem dono do velho Araguaia, achei um amigo, escuro, de cara pintada a jenipapo e urucum: o caraj Araticum uassu Seus msculos so cobras grossas que incham sobre o couro moreno; suas narinas tm sete faros; e nos seus ouvidos h cordas sutis, onde ressoa o pio curto e triste, que, mais de um quilometro distante, solta o patativo borrageiro. Quando o rio ensolado enruga, em qualquer ponto, a lmina lisa de nquel molhado, ele traduz , na esteira da mareta, com o binculo faiscante dos olhos, o tamanho e a raa do peixe navega escondido. E a flechada vai arpoar, certeira , debaixo dgua, o pacam ou o pirarucu. A mata no lhe d mais surpresas (tem vinte presas ona preta no colar), nem o rio lhe conta mais novidades (ele capaz de flutuar , at dormindo, correnteza abaixo, como um pau de pita). Hoje eu lhe perguntei: --Como foi feito o mundo, meu patrcio Araticum Uassu?... Ele riu, deu um mergulho no rio, e emergiu, com a cabeleira em gotas, sem precisar de falar... Bem, mas o que mesmo a vida, meu irmo moreno?... Araticum-uassu riu com mais gosto ainda, e saiu a remar, com esforo simulado, tangendo a piroga corredeira acima... --Muito bem, amigo, quero saber, agora,

  • o que pensas do amor... Desta vez ele no riu --- franziu o rosto, e jogando fora o remo de taquara, deitou-se na canoa, indiferente, com olhos fechados, braos cruzados, e deixando-se levar pela corrente, -toa, sumiu na curva,atrs do saranzal... Joo Guimares Rosa (Magma Editora Nova Fronteira)

    O Caboclo dgua No lombo de pedra da cachoeira clara as guas se ensaboam antes de saltar. E l embaixo, piratingas, pacus e dourados do pulos de prata, de ouro e de cobre, querendo voltar, com medo do poo da quarta volta do rio, largo, tranqilo, to chato e brilhante, deitado a meio bote como uma boipeva branca. Na gua parada, entre as moitas de sars e canaranas, o puraqu tem pensamentos de dois mil volts. sombra dos mangues, que despetalam placas vermelhas, dois botos zarpam, resfolengando, com quatro jorros, a todo vapor. E os jacars cumpridos, de olhos esbugalhados, soltam latidos , e vo fugindo, estabanados, s rabanadas, espadanando, porque do fundo

  • do grande remanso, onde ningum acha o fundo, vem um rugido , vem um gemido, to rouco e feio, que as ariranhas pegam no choro, como meninos. O canoeiro que vem no remo, desprevenido, ouve o gemido e fica a tremer. o caboclo dgua, todo peludo, todo oleoso, que vem subindo l das profundas, e a mo enorme,preta e palmada, de garras longas, pega o rebordo da canoinha quase a virar. E o canoeiro, de faco pronto, fica parado, rezando baixo, sempre a tremer Crescendo dgua ,l vem a mscara, negra e medonha, de um gorila de olhar humano, o Caboclo dgua ameaador. E o canoeiro j no tem medo, porque o Caboclo o olhou de frente, todo molhado, com olhos tristonhos,rosto choroso, quase falando, quase perguntando pela ingrata Iara, que, j faz tempo, se foi embora, que h tantos anos o abandonou... Joo Guimares Rosa (Magma-Editora Nova Fronteira)

    Reportagem

  • Pg-68

    O trem estacou, na manh fria,

    num lugar deserto, sem casa de estao:

    a parada do Leprosrio...

    Um homem saltou, sem despedidas,

    deixou o ba beira da linha,

    e foi andando. Ningum lhe acenou...

    Todos os passageiros olharam ao redor,

    com medo de que o homem que saltara

    tivesse viajado ao lado deles...

    Gravado no dorso do bauzinho humilde,

    no havia nome ou etiqueta de hotel:

    s uma estampa de Nossa Senhora do Perptuo Socorro...

    O trem se ps logo em marcha apressada,

    e no apito rouco da locomotiva

    gritava o impudor de uma nota de alvio...

    Pg-69

    Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,

    mas ele ia j longe, sem se voltar nunca,

    como quem no tem frente, como quem s tem costas...

    Joo Guimares Rosa (Magma- Editora Nova Fronteira)