poesia mário de andrade

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Mário de Andrade - Poesia Eu Sou Trezentos... Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras! Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro! Abraço no meu leito as milhores palavras, E os suspiros que dou são violinos alheios; Eu piso a terra como quem descobre a furto Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos! Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, Mas um dia afinal eu toparei comigo... Tenhamos paciência, andorinhas curtas, Só o esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de abrigo. Descobrimento Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De supetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus! muito longe de mim Na escuridão ativa da noite que caiu Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu. Lundu do Escritor Difícil Eu sou um escritor difícil Que a muita gente enquizila, Porém essa culpa é fácil De se acabar duma vez: É só tirar a cortina Que entra luz nesta escurez. Cortina de brim caipora, Com teia caranguejeira

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Brasil, cidade e floresta, seringueiro

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Mrio de Andrade -PoesiaEu Sou Trezentos...Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,As sensaes renascem de si mesmas sem repouso,h espelhos, h! Pirineus! h caiaras!Si um deus morrer, irei no Piau buscar outro!Abrao no meu leito as milhores palavras,E os suspiros que dou so violinos alheios;Eu piso a terra como quem descobre a furtoNasesquinas, nos txis, nas camarinhas seus prprios beijos!Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,Mas um dia afinal eu toparei comigo...Tenhamos pacincia, andorinhas curtas,S o esquecimento que condensa,E ento minha alma servir de abrigo.DescobrimentoAbancado escrivaninha emSo PauloNa minha casa da rua Lopes ChavesDe supeto senti um frime por dentro.Fiquei trmulo, muito comovidoCom o livro palerma olhando pra mim.No v que me lembrei que l no Norte, meu Deus!muito longede mimNa escurido ativa da noite que caiuUm homem plido magro de cabelo escorrendo nos olhos,Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,Faz pouco se deitou, est dormindo.Esse homem brasileiro que nem eu.Lundu do Escritor DifcilEu sou um escritor difcilQue a muita gente enquizila,Porm essa culpa fcilDe se acabar duma vez: s tirar a cortinaQue entra luz nesta escurez.Cortina de brim caipora,Com teia caranguejeiraE enfeite ruim de caipira,Fale fala brasileiraQue voc enxerga bonitoTanta luz nesta capoeiraTal-e-qual numa gupiara.

Mas gacho maranhenseQue pra no Mato Grosso,Bate este angu de carooVer sopa de caruru;A vida mesmo um buraco,Bobo quem no tatu!Eu sou um escritor difcil,Porm culpa de quem !...Todo difcil fcil,Abasta a gente saber.Baj, pix, chu, h "xavi"De to fcil virou fssil,O difcil aprender!Virtude de urubutingaDe enxergar tudo de longe!No carece vestir tangaPra penetrar meu caanje!Voc sabe o francs "singe"Mas no sabe o que guariba? Pois macaco, seu mano,Que s sabe o que da estranja.Tiet

Era uma vez um rio...Porm os Borbas-Gatos dos ultra-nacionais esperiamente!

Havia nas manhs cheias de Sol do entusiasmoas mones da ambio...E as gignteas!As embarcaes singravam rumo do abismal Descaminho...

Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...Ritmos de Brecheret!... E a santificao da morte!...Foram-se os ouros!... E o hoje das turmalinas!...

- Nadador! vamos partir pela via dum Mato-Grosso?- Io! Mai!... (Mais dez braadas.Quina Migone.Hat Stores.Meia de seda.)Vado a pranzare com la Ruth.O Domador

Alturas da Avenida. Bonde 3.Asfaltos. Vastos, altos repuxos de poeirasob o arlequinal do cu oiro-rosa-verde...As sujidades implexas do urbanismo.Fils de manuelino. Calvcies de Pensilvnia.Gritos de goticismo.

Na frente o tram da irrigao,onde um Sol bruxo se dispersanum triunfo persa de esmeraldas, topzios e rubis...Lnguidos boticellis a ler Henry Bordeauxnas clausuras sem drages dos torrees...

Mrio, paga os duzentos ris.So cinco no banco: um branco,um noite, um oiro,um cinzento de tsica e Mrio...Solicitudes! Solicitudes!

Mas... olhai, oh meus olhos saudosos dos ontensesse espetculo encantado da Avenida!Revivei, oh gachos paulistas ancestremente!e oh cavalos de clera sangnea!

Laranja da China, laranja da China, laranja da China!Abacate, cambuc e tangerina!Guarda-te! Aos aplausos do esfuziante clown,herico sucessor da raa heril dos bandeirantes,loiramente domando um automvel!Ode ao BurgusEu insulto o burgus! O burgus-nquel,o burgus-burgus!A digesto bem feita de So Paulo!O homem-curva! o homem-ndegas!O homem que sendo francs, brasileiro, italiano, sempre um cauteloso pouco-a-pouco!Eu insulto as aristocracias cautelosas!os bares lampies! os condes Joes! os duques zurros!que vivem dentro de muros sem pulos,e gemem sangues de alguns mil-ris fracospara dizerem que as filhas da senhora falam o francse tocam os "Printemps" com as unhas!Eu insulto o burgus-funesto!O indigesto feijo com toucinho, dono das tradies!Fora os que algarismam os amanhs!Olha a vida dos nossos setembros!Far Sol? Chover? Arlequinal!Mas chuva dos rosaiso xtase far sempre Sol!Morte gordura!Morte s adiposidades cerebraisMorte ao burgus-mensal!ao burgus-cinema! ao burgus-tlburi!Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!"_ Ai, filha, que te darei pelos teus anos?_ Um colar... _ Conto e quinhentos!!!Mas ns morremos de fome!"Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!Oh! pure de batatas morais!Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!dio aos temperamentos regulares!dio aos relgios musculares! Morte infmia!dio soma! dio aos secos e molhados!dio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,sempiternamente as mesmices convencionais!De mos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!Dois a dois! Primeira posio! Marcha!Todos para a Central do meu rancor inebriante!dio e insulto! dio e raiva! dio e mais dio!Morte ao burgus de giolhos,cheirando religio e que no cr em Deus!dio vermelho! dio fecundo! dio cclico!dio fundamento, sem perdo!Fora! Fu! Fora o bom burgus!...Paisagem N. 1

Minha Londres das neblinas finas!Pleno vero. Os dez mil milhes de rosas paulistanas.H neve de perfumes no ar.Faz frio, muito frio...E a ironia das pernas das costureirinhasparecidas com bailarinas...O vento como uma navalhanas mos dum espanhol. Arlequinal!...H duas horas queimou Sol.Daqui a duas horas queima Sol.

Passa um So Bobo, cantando, sob os pltanos,um trall... A guarda-cvica! Priso!Necessidade a prisopara que haja civilizao?Meu corao sente-se muito triste...Enquanto o cinzento das ruas arrepiadasdialoga um lamento com o vento...

Meu corao sente-se muito alegre!Este friozinho arrebitadod uma vontade de sorrir!

E sigo. E vou sentindo, inquieta alacridade da invernia,como um gosto de lgrimas na boca...Paisagem N. 3Chove?Sorri uma garoa de cinza,Muito triste, como um tristemente longo...A Casa Kosmos no tem impermeveis em liquidao...Mas neste Largo do ArouchePosso abrir o meu guarda-chuva paradoxal,Este lrico pltano de rendas mar...Ali em frente... - Mrio, pe a mscara!-Tens razo, minha Loucura, tens razo.O rei de Tule jogou a taa ao mar...Os homens passam encharcados...Os reflexos dos vultos curtosMancham o petit-pav...As rolas da NormalEsvoaam entre os dedos da garoa...(E si pusesse um verso de CrisfalNo De Profundis?...)De repenteUm raio de Sol ariscoRisca o chuvisco ao meio.Garoa do Meu So PauloGaroa do meu So Paulo,-Timbre triste de martrios-Um negro vem vindo, branco!S bem perto fica negro,Passa e torna a ficar branco.Meu So Paulo da garoa,-Londres das neblinas finas-Um pobre vem vindo, rico!S bem perto fica pobre,Passa e torna a ficar rico.Garoa do meu So Paulo,-Costureira de malditos-Vem um rico, vem um branco,So sempre brancos e ricos...Garoa, sai dos meus olhos.InspiraoOnde at na fora do vero haviatempestades de ventos e frios decrudelssimo inverno.Fr. Lus de SousaSo Paulo! Comoo de minha vida...Os meus amores so flores feitas de original...Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...Luz e bruma... Forno e inverno morno...Elegncias sutis sem escndalos, sem cimes...Perfumes de Paris... Arys!Bofetadas lricas no Trianon... Algodoal!...So Paulo! Comoo de minha vida...Galicismo a berrar nos desertos da Amrica!