poder despótico e poder político

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PODER DESPTICO E PODER POLTICO MINOGUE, K. Poltica. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Diz a lenda que Harum al-Rachid, califa de Bagd, disfarava-se de mendigo para descobrir o que seus sditos pensavam. A histria uma famosa imagem do despotismo, sistema de ordem criado pela conquista, baseado no medo e que resulta em capricho. (p.9)Num sistema desptico de governo, o princpio ltimo de ordem decorre das prprias inclinaes do dspota. Mas o despotismo no um sistema em que a justia esteja inteiramente ausente: em geral ela funciona em sociedades altamente conservadoras onde o costume a lei e os padres de justia dominantes so aceitos como parte da ordem natural das coisas. Tudo depende da sabedoria do governante. (p.9)No sculo XI a.C, enfrentando problemas com os filisteus, os israelitas foram ao profeta Samuel, seu lder, e pediram para ter um rei ao mesmo tempo juiz e comandante na batalha. Samuel alertou-os contra essa mudana, avisando que tal rei acabaria por se apoderar de suas propriedades e escravizar suas foras...Naquele contexto do Oriente Mdio, rei significava um governante que os trataria de forma desptica, bem diferente dos governantes constitucionais da Europa...Saul, Davi e Salomo deram alguma glria internacional. A soluo dada por Salomo ao problema das duas mulheres que disputavam o beb apenas o mais famoso exemplo de sua legendria sabedoria. Mas mesmo esses monarcas se revelaram opressores e, no final, a carga de ter que pagar pelos grandiosos projetos salomnicos dividiu Israel.Despotismo uma categoria onde cabe toda sorte de trastes, com uma ampla variedade. (pp.9-10)Por vezes os europeus foram iludidos por algum despotismo envolto nas formas sedutoras de um ideal, como nos casos de Hitler e Stalin. Isso deve recordar-nos que a possibilidade do despotismo no remota nem no tempo nem no espao. (p.10)Hoje definimos o despotismo (e a ditadura, o totalitarismo) como uma forma de governo. Isso teria horrorizado os gregos antigos, cuja prpria identidade (e senso de superioridade em relao a outros povos) baseava-se na distino que faziam entre seu sistema de governo e o despotismo suportado pelos vizinhos orientais. O que esse contraste revela que a poltica est to no centro da nossa civilizao que seu significado se modifica a cada mudana cultural e de circunstncias. (p.11)A essncia do despotismo que no h apelao, prtica ou legal, contra o poder irrestrito do senhor. O nico objetivo dos sditos deve ser o de agradar. No h parlamento, oposio, imprensa livre, judicirio independente, propriedade privada protegida pela lei...em uma palavra, nenhuma voz pblica exceto a do dspota. (p.12)Uma vez que a poltica em parte um teatro de iluso, novos nomes e conceitos so fceis de inventar e no sculo XX verses totalitrias do sonho desptico construram vasto laboratrio poltico em que diferentes verses do projeto de criar uma sociedade perfeita foram colocados prova. O fato que fracassaram comumente reconhecido por todos; (URSS, p.ex.)...Entender de poltica supe, portanto, o estudo dos sinais que podem nos dizer o que est acontecendo sob a superfcie dessa e de outras linhas de falha da nossa civilizao. (p.13)Uma chave amplamente reconhecida o estado atual da distino entre vida privada e mundo pblico. O mundo privado o da famlia e o da conscincia individual na medida em que cada um tem suas prprias crenas e interesses.Como disse Pricles no famoso discurso pelos atenienses mortos no primeiro ano da Guerra do Peloponeso: Somos livres e tolerantes em nossas vidas privadas, mas em assuntos pblicos nos atemos lei.Nos despotismos clssicos, tudo na sociedade era propriedade privada do dspota, mas no mundo moderno essa distino bsica passou por sria eroso do outro lado: reas cada vez mais amplas da vida privada passaram a ser publicamente reguladas...ento nada est fora do controle governamental. (pp.13-14)Este argumento no universalmente aceito, mas foi a premissa bsica do totalitarismo do sculo XX, cuja consequncia evidente trancar o indivduo dentro de um sistema nico de controle, destruindo o legado dos papis distintos e independentes (econmicos, religiosos, culturais, sociais e legais) de que at recentemente desfrutaram os Estados modernos.Dizem que o preo da liberdade a vigilncia e uma importante forma de vigilncia prestar ateno retrica poltica, que muitas vezes revela como esto indo as coisas. (pp.14-15)O comeo da sabedoria poltica a ateno aos sinais de mudana. Como num teatro de iluso, a poltica no revela seus significados ao olho descuidado. A realidade e a iluso so categorias centrais do estudo poltico. (p.15)A poltica costumava referir-se meramente s aes de monarcas, parlamentos e ministros e s atividades dos engajados politicamente que ajudavam ou bloqueavam seu acesso autoridade. Tudo o mais era vida privada ou social. (p.16)Com a expanso do poder dos governos, quase tudo passou a ser definido, de uma maneira ou de outra, como poltico. (p.16)Quem escreve sobre poltica deve portanto se acautelar contra os perigos da parcialidade de seu prprio tempo, o que no certamente menos necessrio hoje do que ontem. Esse perigo amplamente reconhecido a razo pela qual o estudo da poltica esteve sempre no centro da educao liberal. (p.17)Os aristocratas gregos e romanos estudavam leis, filosofia e a arte da oratria para realizar a vocao poltica decidida de bero. A poltica podia ser a base da educao porque bem cedo se tornara uma atividade consciente que provocava reflexo. (pp.17-18)