podem as pedagogias criticas sustar as politicas de direita

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    107Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002Cadernos de Pesquisa, n. 116, p. 107-142, julho/ 2002

    PODEM AS PEDAGOGIAS CRTICAS

    SUSTAR AS POLTICAS DE DIREITA?

    MICHAEL W. APPLEUniversidade de Wisconsin Madison

    [email protected]

    Traduo: Maria Lcia Mendes Gomes,Regina Thompson e Vera Luiza Visockis Macedo*

    RESUMOGrande parte da literatura sobre pedagogias crticas tem sido poltica e teoricamente im-

    portante e nos ajudou a avanar em vrias frentes. Com muita freqncia, no entanto, elano tem sido relacionada o bastante com os modos pelos quais o atual movimento emdireo ao que pode ser mais bem chamado de modernizao conservadora alterou osenso comum e transformou as condies materiais e ideolgicas que cercam o ensino.Desse modo, ela s vezes torna-se uma forma do que pode ser mais bem chamado deretrica do romantismo das possibilidades, na qual a linguagem da possibilidade substituiuma anlise habilidosa e consistente do que realmente o equilbrio de foras e o que necessrio para mudar as polticas neoliberais e neoconservadoras na alfabetizao e emtoda a esfera da educao. Examino os modos pelos quais o terreno social e cultural da

    poltica e do discurso educacionais tem sido alterado in loco, por assim dizer. Afirmo que

    precisamos estabelecer conexes mais prximas entre nossos discursos tericos e crticos,de um lado, e as transformaes reais que esto atualmente deslocando polticas e prticaseducacionais para direes fundamentalmente de direita, de outro. Desse modo, parte daminha discusso conceitual e poltica; mas parte dela precisar ser de natureza emprica

    para que eu possa ordenar o que se conhece sobre os efeitos reais e materiais do desloca-mento para a direita na educao.POLTICAS PBLICAS CURRCULO CULTURA

    Este artigo baseia-se em uma anlise muito mais extensa, encontrada em Michael W. Apple, 2001.

    * As tradutoras deste artigo so membros da Cooperativa de Profissionais em Traduo Unitrad ([email protected]).

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    ABSTRACT

    CAN CRITICAL PEDAGOGIES INTERRUPT RIGHTIST POLICIES? Much of the literatureon critical pedagogies has been politically and theoretically important and has helped usmake a number of gains. However, it too often has not been sufficiently connected to the

    ways in which the current movement toward what might best be called conservativemodernization both has altered common-sense and has transformed the material andideological conditions surrounding schooling. It, thereby, sometimes becomes a form of whatbest be called romantic possibilitarian rhetoric, in which the language of possibility substitutesfor a consistent tactical analysis of what the balance of forces actually is and what is necessaryto change neo-liberal and neo-conservative policies in literacy and in the entire sphere ofeducation. I examine the ways in which the social and cultural terrain of educational policyand discourse has been altered on the ground so to speak. I argue that we need to makecloser connections between our theoretical and critical discourses on the one hand and the

    real transformations that are currently shifting educational policies and practices in fundamentallyrightist directions on the other. Thus, part of my discussion is conceptual and political; butpart of it will appropriately need to be empirical in order for me to pull together what isknown about the real and material effects of the shift to the right in education.PUBLIC POLICIES CURRICULUM CULTURE

    MATERIALIDADES TERRENAS

    Grande parte da literatura sobre pedagogias crticas tem sido poltica e teo-ricamente importante e nos ajudou a avanar em vrias frentes. Com muita fre-qncia, no entanto, ela no tem sido suficientemente associada aos modos pelosquais o atual movimento em direo ao que pode ser chamado de modernizaoconservadora alterou o senso comum e transformou as condies materiais e ideo-lgicas que cercam o ensino. Assim sendo, essa literatura s vezes se torna umaexpresso da retrica do romantismo das possibilidades, na qual a linguagem da

    possibilidade substitui uma anlise consistente do que realmente o equilbrio deforas e o que necessrio para mud-lo (Whitty, 1974).Neste artigo, examino os modos pelos quais o terreno social e cultural da

    poltica e do discurso educacionais tem sido alterado in loco, por assim dizer. Afirmoque precisamos estabelecer conexes mais prximas entre nossos discursos teri-cos e crticos, de um lado, e as transformaes reais que esto atualmente deslo-cando polticas e prticas educacionais para direes fundamentalmente de direita,de outro. Desse modo, parte da minha discusso precisar ser conceitual; mas partedela precisar ser de natureza emprica, para que eu possa ordenar o que se conhecesobre os efeitos reais e materiais do deslocamento para a direita na educao.

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    Meu enfoque nas materialidades terrenas desses efeitos no pretende me-nosprezar a importncia das intervenes tericas. Tampouco pretende sugerir queos discursos dominantes no devam ser constantemente interrompidos pelos avan-os alcanados por vrias comunidades neomarxistas, ps-modernas, ps-estrutu-

    rais, ps-coloniais, de homossexuais e outras. De fato, pedagogias crticas e revolu-cionrias exigema interrupo fundamental do senso comum. No entanto, emboraa elaborao de novas teorias e vises utpicas seja importante, igualmente crucialbasear essas teorias e vises em uma avaliao no romntica do espao material ediscursivo existente hoje. O senso comum j est sendo radicalmente alterado, masno em direes que ns da esquerda consideraramos satisfatrias. Sem uma an-lise dessas transformaes e do equilbrio de foras que criou essas alteraes inc-modas, sem uma anlise das tenses, das relaes diferenciais de poder e das con-

    tradies inerentes a elas, tudo o que nos resta so novas formulaes tericas,cada vez mais refinadas, mas com uma compreenso menos do que refinada docampo de poder social no qual elas operam (Bourdieu, 1984).

    GUINADA PARA A DIREITA

    Em seu influente histrico de debates sobre currculos, Herbert Kliebard

    documentou que as questes educacionais normalmente envolveram grandes con-flitos e concesses entre grupos com vises divergentes sobre o conhecimentolegtimo, sobre o que considerado bom ensino e aprendizado e sobre o queseja uma sociedade justa (Kliebard, 1995). Trabalhos recentes, ainda mais crticos,ratificam que esses conflitos tm razes profundas em vises conflitantes sobre justi-a racial, de classe e gnero na educao e na sociedade como um todo (Rury,Mirel, 1997; Teitelbaum, 1996; Selden, 1999). Essas vises conflitantes nunca tive-ram uma influncia uniforme na imaginao dos educadores ou dos cidados comoum grupo, tampouco, jamais tiveram poder uniforme para serem efetivadas. Porcausa disso, nenhuma anlise sobre a educao pode ser totalmente sria sem co-locar em seu mago mais profundo uma sensibilidade para com as batalhas queconstantemente modelam o terreno no qual opera a educao.

    Hoje no diferente do passado. Formaram-se um novo conjunto de com-promissos, uma nova aliana e um novo bloco de poder com crescente influnciana educao e em todas as questes sociais. Esse bloco de poder combina mltiplas

    fraes de capital comprometidas com solues neoliberais mercantilizadas paraproblemas educacionais; intelectuais neoconservadores que desejam um retornoa padres mais elevados e a uma cultura comum; fundamentalistas religiosos

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    populistas e autoritrios profundamente preocupados com a secularidade e a pre-servao de suas prprias tradies; e determinadas fraes de profissionais da novaclasse mdia comprometidas com a ideologia e as tcnicas de accountability *, ava-liao e gerenciamento. Embora existam tenses e conflitos evidentes no seio

    dessa aliana, de modo geral seus objetivos como um todo so os de fornecer ascondies educacionais tidas como necessrias tanto para aumentar acompetitividade, o lucro e a disciplina internacionais quanto para nos levar de voltaa um passado romantizado da casa, da famlia e da escola ideais (Apple, 1996,2000).

    Em essncia, a nova aliana integrou a educao a um conjunto mais amplode compromissos ideolgicos. Os objetivos na educao so os mesmos que guiamseus objetivos de bem-estar econmico e social. Eles incluem a dramtica expansodaquela fico eloqente, o livre mercado; a drstica reduo da responsabilidadegovernamental para com as necessidades sociais; o fortalecimento de estruturasaltamente competitivas de mobilidade tanto dentro quanto fora da escola; o rebai-

    xamento das expectativas das pessoas quanto segurana econmica; odisciplinamento da cultura e do corpo; e a popularizao do que claramenteuma forma de pensamento social darwinista, como indica, de modo bvio e angus-

    tiante, a recente popularidade de The Bell Curve(Herrnstein, Murray, 1994; ver

    tambm Kincheloe, Steinberg, Greeson, 1997).O discurso aparentemente contraditrio sobre concorrncia, mercados e

    escolhas, de um lado, e prestao de contas, objetivos de desempenho, padres,exames e currculos nacionais, de outro, criou tamanha gritaria que difcil conse-guir ouvir qualquer outra coisa. Como mostrei em Cultural politics and education(1996), essas tendncias, na verdade, estranhamente reforam-se umas s outras eajudam a consolidar posies educacionais conservadoras nas nossas vidas dirias.

    Embora lamentveis, as mudanas que esto ocorrendo apresentam opor-tunidade excepcional para uma sria reflexo crtica. Em uma poca de mudanassociais e educacionais radicais, fundamental documentar os processos e efeitosdos vrios e, algumas vezes, contraditrios elementos da restaurao conservadorae dos modos pelos quais eles so mediados, resolvidos, aceitos, utilizados de ma-neiras diferentes por grupos diferentes para seus propsitos, e/ou combatidos nas

    * Entende-se, pelo termo, a prestao de contas feita populao, referente a um servio reali-zado ou delegado pelo poder pblico. Ela tem o intuito de tornar transparente aos interessadoso modo como so empregados os recursos provenientes de suas contribuies (N. da E.).

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    polticas e prticas do cotidiano educacional das pessoas. (Ranson, 1995). Nesteartigo, gostaria de dar uma idia de como isso pode ocorrer em reformas atuais,como a mercantilizao da educao, os currculos e os exames nacionais. Paraaqueles interessados em polticas e prticas educacionais crticas, deixar de fazer isso

    significa agir sem compreender as relaes do deslocamento de poder que estoconstruindo e reconstruindo o campo social do poder. Embora a frase de Gramsci,Pessimismo da inteligncia, otimismo da vontade, tenha uma poderosa repercus-so e seja til para a mobilizao e para no perdermos a esperana, seria tolicesubstituir uma anlise mais profunda, sem dvida necessria se quisermos ser bem-sucedidos, porslogansretricos.

    NOVOS MERCADOS, VELHAS TRADIESPor trs de grande parte do conjunto discursivo da nova direita havia uma

    posio que enfatizava uma construo culturalista da nao como um refgio (amea-ado) para as tradies e valores brancos (cristos), no dizer de Gillborn (1997,p. 2). Isso envolveu a construo de um passado nacional imaginrio que pelomenos parcialmente mitificado, e depois empregado para criticar o presente. GaryMcCulloch afirma que a natureza das imagens histricas da educao mudou. O

    imaginrio dominante da educao como sendo segura, domesticada e progressis-ta (isto , como se essa educao conduzisse ao progresso e ao aperfeioamentosocial/pessoal) foi alterado para uma educao ameaadora, alienada e retrgrada(1997, p. 80). O passado no mais fonte de estabilidade, mas marca de fracasso,desapontamento e perda. Isso pode ser observado de maneira mais vvida nosataques ortodoxia progressista que supostamente hoje reina suprema nas salasde aula de muitos pases (Hirsch, 1996).

    Por exemplo, na Inglaterra embora o mesmo discurso ecoe em grandeparte nos Estados Unidos, na Austrlia e em outros lugares Michael Jones, o editorde poltica do The Sunday Times,recorda-se da escola primria de seu tempo.

    A escola primria foi uma poca feliz para mim. ramos cerca de 40 alunos, senta-dos em mesas fixas de madeira, com tinteiros, e de l samos somente com permis-so relutante. A professora sentava-se em uma mesa mais alta, defronte a ns, emovimentava-se somente at a lousa. Ela cheirava a perfume e inspirava respeito.(McCulloch, 1997, p. 78)

    A mistura de metforas que invocam disciplina, perfume (visceral e quasenatural) e respeito fascinante. Mas ele continua, lamentando os ltimos 30 anos

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    de reforma que transformaram as escolas primrias. Falando da experincia deseus filhos, Jones diz:

    Meus filhos passaram seus primeiros anos escolares em uma escola espetacularonde tinham autorizao para vaguear vontade, desenvolver sua individualidadereal e esquivarem-se dos 3Rs [em ingls, rights, responsibility, respect: direitos,responsabilidade, respeito]. Tudo isso era para o melhor, nos asseguravam. Mas no

    foi. (Apud McCulloch, 1997, p. 78)

    Para Jones, a ortodoxia dogmtica da educao progressista levou direta-mente ao declnio educacional e social. Somente as reformas de direita institudasnas dcadas de 1980 e 1990 poderiam deter e depois reverter esse declnio. So-

    mente assim o passado imaginado poderia retornar.O cenrio mais ou menos o mesmo deste lado do Atlntico. Esses senti-mentos ecoam nos pronunciamentos pblicos de figuras como Bennett, Hirsch eoutros; todos eles parecem acreditar que o progressivismo atualmente a posiodominante na poltica e prtica educacionais e destruiu um passado valoroso. Todoseles acreditam que somente intensificando o controle sobre os currculos e o ensino(e sobre os alunos, claro), restaurando nossas tradies perdidas, tornando aeducao mais disciplinada e competitiva como esto certos de que ela era no

    passado , somente assim poderemos ter escolas eficazes. A essas pessoas juntam-se outras que tm crticas similares, mas que, ao contrrio, voltam-se para um pas-sado diferente com vistas a um futuro diferente. Seu passado no tanto aquele doperfume, do respeito e da autoridade, mas um passado de liberdade de mercado.Para eles, nada pode ser realizado nem mesmo a restaurao do respeito e daautoridade sem a implantao da livre expresso do mercado nas escolas, demodo a garantir que apenas as boas sobrevivam.

    Devemos entender que essas polticas so transformaes radicais. Se tives-sem vindo do outro lado do espectro poltico, teriam sido ridicularizadas de diversasmaneiras, dadas as tendncias ideolgicas das nossas naes. Alm do mais, taispolticas baseiam-se em um passado buclico romantizado, e as reformas no se

    tm destacado por estar fundamentadas em resultados de pesquisas. De fato, quan-do utilizada, essa pesquisa quase sempre serviu como uma retrica de justificaopara crenas preconcebidas sobre a suposta eficcia dos mercados ou de regimes

    de estrita responsabilizao dos agentes educacionais ou baseou-se em estudosbastante falhos, como no caso do trabalho de Chubb e Moe (1990) sobre a intro-duo da lgica de mercado nas escolas (Ver tambm Whytty, 1997).

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    No entanto, no importa o quo radicais sejam algumas dessas propostas dereformas, e no importa o quo fraca seja sua base emprica de sustentao, elasredefiniram o terreno do debate sobre tudo o que seja educacional. Depois deanos de ataques e mobilizaes conservadoras, ficou claro que idias antes tidas

    como imaginativas, impraticveis ou simplesmente extremas esto hoje cada vezmais sendo vistas como senso comum (Gillborn, 1997a, p. 357).

    Do ponto de vista ttico, o avano alcanado na reconstruo do senso co-mum provou ser extremamente eficaz. Por exemplo, h estratgias claramentediscursivas sendo empregadas aqui, as que se caracterizam por falar com clareza eusar uma linguagem que todos possam entender. (No desejo ser totalmentenegativo a respeito. A importncia dessas coisas algo que muitos educadores pro-gressistas, inclusive muitos autores da pedagogia crtica, ainda tm de entender; ver

    Apple, 1999 e 1998). Essas estratgias envolvem no apenas a apresentao deposies pessoais como senso comum, como tambm em geral significam, tacita-mente, que h uma certa conspirao entre os oponentes de uma posio paranegar a verdade ou para dizer somente aquilo que est na moda, como observaGillborn:

    Trata-se de uma tcnica poderosa. Primeiro, ela assume que no h argumentos

    genunoscontra a posio escolhida; quaisquer vises contrrias so desse modoposicionadas como falsas, insinceras ou autocentradas. Segundo, a tcnica apresentao orador como algum corajoso ou honesto o suficiente para falar o (antes) indiz-

    vel. A partir da, assume-se a superioridade moral, e os adversrios so ainda maisdenegridos. (1997a, p. 353)

    difcil deixar de ver essas caractersticas em algumas publicaes da literatu-ra conservadora, como as de Herrnstein e Murray (1994), da verdade impensvel

    sobre a gentica e a inteligncia ou a discusso inflexvel mais recente de Hirsch(1996) sobre a destruio do ensino srio por educadores progressistas.

    MERCADOS E DESEMPENHO

    Vamos tomar um elemento da modernizao conservadora como exemplodas maneiras como tudo isso opera a afirmao neoliberal que a mo invisvel domercado resultar inexoravelmente em escolas melhores. Como nos lembra Roger

    Dale, o mercado atua como uma metfora mais do que como um guia explcitopara a ao. Ele no denotativo, mas sim conotativo. Assim, o prprio mercado

    tem de ser vendido para aqueles que nele existiro e vivero com seus efeitos. Os

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    mercados so transformados em mercadoria, so legitimados por uma estratgiadespolitizante. So tidos como naturais e neutros e governados pelo esforo e pelomrito. E aqueles que se opem a eles opem-se tambm, por definio e a partirda, ao esforo e ao mrito. Os mercados, do mesmo modo, esto supostamente

    menos sujeitos interferncia poltica e ao peso dos procedimentos burocrticos.Alm disso, baseiam-se nas escolhas racionais dos atores individuais (apud Mentoret al., 1997, p. 27). Assim, os mercados e a garantia de recompensas pelo esforoe pelo mrito devem ser combinados para produzir resultados neutros, pormpositivos. Os mecanismos, a partir da, tm de ser colocados em ao de modo adar provas de eficincia e de eficcia empresariais. Essa unio dos mercados e dosmecanismos para a gerao de evidncias de desempenho exatamente o queocorreu. Se funciona ou no, est aberto para ser questionado.

    Em uma das anlises crticas mais abrangentes de todas as evidncias damercantilizao da educao, Geoff Whitty nos alerta para no confundirmos a re-

    trica com a realidade. Aps analisar pesquisas realizadas em vrios pases, Whittyargumenta que, embora os defensores dos planos de escolha mercantilizadosassumam que a concorrncia aumentar a eficincia e a receptividade das escolas,assim como dar s crianas desfavorecidas oportunidades que elas atualmente nopossuem, isso pode ser uma falsa esperana. Essas esperanas no esto sendo

    realizadas e improvvel que o sejam no futuro, no contexto de polticas maisamplas que no fazem nada para questionar desigualdades sociais e culturais maisprofundas. Assim ele continua: A tomada de deciso atomizada em uma socieda-de altamente estratificada pode dar a falsa iluso de que d oportunidades iguais a

    todos; mas transferir a responsabilidade da tomada de deciso da esfera pblicapara a privada pode, na verdade, reduzir o escopo da ao coletiva na busca deuma educao de melhor qualidade para todos. Quando se relaciona isso ao fato

    de que, na prtica, as polticas neoliberais que envolvem solues de mercadopodem, na verdade, servir para reproduzir no para subverter as hierarquiastradicionais de classe e raa, isso deve ser suficiente para nos fazer parar (Whitty,1997, p. 58; ver tambm Whitty, Edwards, Gewirtz, 1993).

    Desse modo, em vez de aceitar as afirmaes neoliberais exatamente comoelas se apresentam, sem question-las, devemos indagar sobre seus efeitos ocultosque, com muita freqncia, ficam invisveis na retrica e nas metforas de seusdefensores. Diante das limitaes do que se pode dizer em um artigo deste porte,selecionarei umas poucas questes que tm recebido menos ateno do que me-recem, mas sobre as quais h hoje um nmero expressivo de pesquisas.

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    A experincia inglesa apropriada neste caso, em especial porque os defen-sores do mercado, como Chubb e Moe (1990), dependem substancialmente delae tambm porque na Inglaterra em que essas tendncias esto mais avanadas. ALei de Educao inglesa, de 1993, instrui sobre o compromisso de mercantilizao

    do Estado. rgos governamentais de educao das localidades receberam o man-dato para considerar formalmente a necessidade de irem para o mercado (isto ,de desistirem do controle do sistema escolar local e entrarem no mercado compe-

    titivo) a cada ano (Power, Halpin, Fitz, 1994, p. 27). Assim, nesse caso, a pressoem direo s reformas neoliberais foi exercida pelo Estado1. No entanto, ao invsde resultar em uma abertura e diversificao dos currculos, o mercado competitivono criou muita coisa diferente dos modelos tradicionais to firmemente enraizadosnas escolas de hoje (Power, Halpin, Fitz, 1994; Gillborn, Youdell, 2000). Nem alte-rou de modo radical as relaes de desigualdade que caracterizam o ensino.

    Em suas anlises detalhadas sobre os efeitos na vida real das reformas queintroduzem a lgica de mercado na educao, Ball e seus colaboradores indicamalgumas das razes pelas quais precisamos ser bastante cautelosos nesse ponto.Como documentam, nessas situaes os princpios e valores educacionais termi-nam quase sempre comprometidos pelas questes comerciais, que ganham maiorimportncia na elaborao dos currculos e na alocao de recursos (Ball, Bowe,

    Gewirtz, 1994, p. 39). Por exemplo, a juno da perspectiva de mercado com ademanda e a publicao de indicadores de desempenho na forma de rankingdeescolas2, na Inglaterra, levou as escolas a procurarem cada vez mais maneiras deatrair pais motivados, com filhos capazes. Nesse caso, as escolas podem apri-morar sua posio relativa nos sistemas locais de concorrncia. Isso representa umdeslocamento sutil, mas crucial, na nfase das necessidades do alunopara o desem-

    penho do alunoe na importncia do que a escola faz para o aluno para a importn-

    cia do que o aluno faz pela escola, o que no discutido abertamente com a fre-

    1. Se est havendo mudanas significativas a esse respeito, considerando-se a vitria do NovoTrabalhismo sobre os conservadores na ltima eleio, algo sujeito a questionamentos.Alguns aspectos das polticas neoliberais e neoconservadoras j foram aceitos pelo PartidoTrabalhista, como a aceitao de controles rigorosos de custos sobre os gastos realizadospelo anterior governo conservador e um enfoque agressivo sobre a elevao de padresjuntamente com rigorosos indicadores de desempenho.

    2. A classificao oficial das escolas segundo o rendimento dos alunos, que permite a sua com-parao e orienta a atribuio de recursos pelo poder pblico, pode ocasionar a diminuiode subsdios para aquelas que apresentam piores resultados.

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    qncia que deveria ser. Isso tambm acompanhado, com uma freqncia inquie-tante, por um deslocamento de recursos destinados a alunos rotulados como espe-ciais ou com dificuldades de aprendizagem, para marketinge relaes pblicas. Alu-nos com necessidades especiais no s significam altos custos, como tambm

    significam reduo nas pontuaes obtidas nos testes daquela to importante classi-ficao das escolas.

    Isso no apenas dificulta administrar as impresses do pblico, como tam-bm dificulta atrair os melhores e mais talentosos professores em termos acad-micos (Ball, Bowe, Gewirtz, 1994, p. 17-19). No entanto, todo o empreendimen-

    to, de fato, estabelece uma nova mtrica e um novo conjunto de objetivos, combase em uma competio constante para ganhar o jogo do mercado. importanteo que isso significa, no apenas em termos dos seus efeitos no dia-a-dia da escola,como tambm no modo como se altera o que considerado uma boa sociedade eum cidado responsvel. Permitam-me dizer algo sobre isso.

    Observei anteriormente que por trs de todas as propostas educacionaisesto vises de uma sociedade justa e de um bom aluno. As reformas neoliberaisque tenho discutido constroem isso de um modo particular. Embora a caractersticadefinidora do neoliberalismo esteja em grande parte baseada nos princpios centraisdo liberalismo clssico, em particular do liberalismo econmico clssico, existem

    diferenas cruciais entre o liberalismo clssico e o neoliberalismo. Essas diferenasso absolutamente essenciais para compreender a poltica da educao e as trans-

    formaes pelas quais a educao est atualmente passando. Mark Olssen detalhaclaramente essas diferenas no trecho a seguir. Vale a pena cit-lo na ntegra.

    Considerando-se que o liberalismo clssico representa uma concepo negativa dopoder do Estado, no sentido em que o indivduo era tido como um objeto a serlibertado das intervenes do Estado, o neoliberalismo surgiu para representar umaconcepo positiva do papel do Estado na criao do mercado apropriado, ao ofe-recer as condies, as leis e as instituies necessrias para sua operao. No libera-lismo clssico, o indivduo caracterizado como tendo uma natureza humana aut-noma e pode praticar a liberdade. No neoliberalismo, o Estado procura criar umindivduo que seja um empreendedor audacioso e competitivo. No modelo clssi-co, o objetivo terico do Estado era o de limitar e minimizar seu papel com base empostulados que incluam o egosmo universal (o indivduo interessado em si pr-prio); a teoria da mo invisvel que ditou que os interesses do indivduo tambm

    eram os interesses da sociedade como um todo; e a mxima poltica do laissez-faire.Na mudana do liberalismo clssico para o neoliberalismo, acrescenta-se mais umelemento, pois tal mudana envolve uma alterao na posio do sujeito de homo

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    economicus, que naturalmente se comporta a partir de seu interesse pessoal e relativamente distanciado do Estado, para o homem manipulvel, criado pelo Es-

    tado e constantemente encorajado a ser eternamente responsivo. Isso no signifi-ca que a concepo do sujeito interessado em si prprio seja substituda ou elimina-da pelos novos ideais do neoliberalismo; mas que, em uma era de bem-estar

    universal, as possibilidades entendidas como indolncia preguiosa criam necessida-des de novas formas de vigilncia, fiscalizao, avaliao do desempenho e outras

    formas de controle de modo geral. Nesse modelo, o Estado decidiu manter todosdentro de determinados padres de qualidade. O Estado tomar as medidas paraque cada um faa de si prprio uma empresa contnua... no que parece ser umprocesso de governar sem governar. (1996, p. 340)

    Os resultados da pesquisa de Ball e seus colegas documentam como o Esta-

    do faz isso de fato, realando aquela combinao peculiar de controle e individualis-mo mercantilizado, e por meio da avaliao pblica constante e comparativa. Oranking das escolas, amplamente divulgado, determina o valor relativo das pessoasno mercado educacional. Somente aquelas escolas com indicadores de desempe-nho cada vez mais altos so respeitveis. E somente aqueles alunos capazes defazer uma empresa constante de si prprios podem manter tais escolas na direocorreta. No entanto, embora essas questes sejam importantes, elas no conse-

    guem iluminar completamente alguns dos outros mecanismos pelos quais efeitosdiferenciaisso produzidos pelas reformas neoliberais. Aqui, as questes de classe

    vm tona, como deixam claro Ball, Bowe e Gewirtz.Os pais da classe mdia so, sem dvida, os que mais se beneficiam desse

    tipo de montagem cultural, e no apenas, como vimos, porque as escolas os procu-ram. De modo geral, os pais da classe mdia tornaram-se bastante habilidosos paraexplorar os mecanismos de mercado na educao e neles aplicar seu capital social,econmico e cultural. Os pais da classe mdia tm maior probabilidade de ter oconhecimento, as habilidades e os contatos para decodificar e manipular o que sosistemas cada vez mais complexos e desregulamentados de escolha e recrutamen-

    to. Quanto mais desregulamentao, maior a possibilidade de procedimentos infor-mais serem empregados. A classe mdia tambm, como um todo, mais capaz demovimentar seus filhos ao redor do sistema (Ball, Bowe, Gewirtz, 1994, p. 19). O

    fato de que classe e raa cruzam-se e interagem de maneiras complexas significaque os resultados diferenciais sero naturalmente raciais e tambm de classe

    embora precise ficar claro que sistemas de mercado na educao quase sempretm sua razo de ser, consciente e inconsciente, no medo do Outro e quasesempre so expresses ocultas de uma racializao da poltica educacional (Omi,

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    Winant, 1994; McCarthy, Crichlow, 1994; McCarthy, 1998). O capital econmicoe social pode ser convertido em capital cultural de vrias maneiras. Em planosmercantilizados, pais com maior poder aquisitivo quase sempre tm horrios mais

    flexveis e podem visitar vrias escolas. Eles possuem automveis quase sempre

    mais do que um e podem arcar com os custos de levar seus filhos de carro parafreqentar uma escola melhor. Podem tambm fornecer os recursos culturaisimplcitos em acampamentos e programas para depois da escola (dana, msica,aulas de informtica etc.), que proporcionem a seus filhos um bem-estar, umestilo que parece natural e funciona como um conjunto de recursos culturais.Sua proviso anterior de capital social e cultural as pessoas que conhecem, o fatode que ficam vontade em encontros sociais com funcionrios da rea da educa-o uma mina invisvel de recursos, porm poderosa. Assim, pais mais prspe-ros tm maior probabilidade de ter o conhecimento e a habilidade informais oque Bourdieu (1984) chamaria de habitus para serem capazes de decodificar eutilizar formas mercantilizadas em seu prprio benefcio. Essa percepo do quepode ser chamado de segurana que em si o resultado de escolhas passadasque tacitamente (mas no com menos poder) dependeram dos recursos econmi-cos que lhes asseguraram de fato a capacidade de fazer escolhas econmicas ocapital invisvel que respalda a capacidade de negociar formas mercantilizadas e tra-

    balhar o sistema por meio de conjuntos de regras culturais informais (Ball, Bowe,Gewirtz, 1994, p. 20-22).

    claro, preciso ser dito que a classe trabalhadora, os pais pobres e/ouimigrantes no so, de nenhum modo, menos habilidosos nesse aspecto. Afinal, necessrio enorme habilidade, coragem e recursos sociais e culturais para sobrevi-

    ver em condies materiais de explorao e depresso. Assim, aqui, laos coletivos,redes e contatos informais e a habilidade para trabalhar o sistema so desenvolvidos

    de maneiras bastante matizadas, inteligentes e quase sempre impressionantes, con-forme Fine e Weis, 1998 e Dunier, 1999. No entanto, a combinao entre ohabitushistoricamente enraizado que esperado nas escolas e em seus atores e naquelesdos pais mais prsperos e os recursos materiais disponveis a pais mais prsperosnormalmente leva a uma converso bem-sucedida do capital econmico e social nocapital cultural (Bourdieu, 1996; Swartz, 1997). E isso exatamente o que estocorrendo na Inglaterra.

    Essas afirmaes sobre o que est acontecendo no interior das escolas, assimcomo sobre conjuntos mais amplos de relaes de poder, so respaldadas por an-lises recentes ainda mais sintticas dos resultados totais dos modelos mercantilizados.

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    Pesquisa sobre os efeitos da combinao tensa, mas ainda eficaz, de polticasneoliberais e neoconservadoras examina tendncias internacionais, comparando oque aconteceu em vrios pases por exemplo, nos Estados Unidos, na Inglaterra eno Pas de Gales, na Austrlia e na Nova Zelndia nos quais essa combinao tem

    sido cada vez mais intensa. Os resultados confirmam as afirmaes feitas neste tra-balho. Permitam-me enumerar algumas das descobertas mais significativas e inquie-

    tantes dessa pesquisa.Infelizmente, bastante comum que as medidas mais amplamente utilizadas

    do sucesso das reformas educacionais sejam o resultado de testes de desempe-nho padronizados. Isso simplesmente no funciona. Precisamos perguntar constan-

    temente o que as reformas fazem para as escolas como um todo e para cada um deseus participantes, incluindo professores, alunos, administradores, membros da co-munidade, ativistas locais e assim por diante. Para tomarmos um conjunto de exem-plos, medida que as escolas mercantilizadas auto-administradas crescem emmuitos pases, o papel do diretor da escola radicalmente transformado. Mais po-der realmente concentrado no seio da estrutura administrativa. Mais tempo eenergia so despendidos na manuteno ou aprimoramento da imagem pblica deuma boa escola e menos tempo e energia so despendidos na essncia pedaggi-ca e curricular. Ao mesmo tempo, os professores parecem experimentar no o

    aumento da autonomia e do profissionalismo, mas sua intensificao (Apple, 1988,p. 113-136). E, estranhamente, como observado antes, as prprias escolas tor-nam-se mais similares e mais comprometidas com mtodos padronizados e tradi-cionais de ensino, que abordam a classe como um todo, bem como com um curr-culo padro e tradicional, quase sempre monocultural. Dirigir nossa ateno apenaspara resultados de testes faria com que deixssemos de perceber algumas transfor-maes realmente profundas, muitas das quais podemos considerar inquietantes.

    Uma das razes de esses efeitos serem produzidos com tanta freqncia que, em muitos pases, as vises neoliberais de quase-mercados so normalmenteacompanhadas de presses neoconservadoras para regular o contedo e o com-portamento por meio de instrumentos como currculos nacionais, padres nacio-nais e sistemas nacionais de avaliao. A combinao historicamente casual; isto ,no absolutamente necessrio que as duas nfases sejam combinadas. Mas exis-

    tem caractersticas do neoliberalismo que fazem com que seja mais provvel queuma nfase no Estado fraco e uma crena nos mercados seja mais coerente comuma nfase no Estado forte e no compromisso de regular o conhecimento, os

    valores e o corpo.

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    Isso ocorre em parte devido ao poder cada vez maior do Estado avaliador,o que inicialmente pode ser visto como resultado de tendncias contraditrias. Aomesmo tempo em que o Estado parece estar transferindo poder para os indivduose para as instituies autnomas, e elas prprias cada vez mais concorrendo em um

    mercado, o Estado permanece forte nas reas essenciais. Como j afirmei, uma dasprincipais diferenas entre o liberalismo clssico, e sua crena em indivduos em-preendedores e no mercado, e as atuais formas de neoliberalismo o compromis-so deste ltimo com um Estado regulador. O neoliberalismo realmente exige aconstante produo de evidncias de que as pessoas esto de fato fazendo umaempresa de si prprias (Olssen, 1996). Assim, sob essas condies, no apenas aeducao torna-se uma mercadoria vendvel, como po e carros, na qual os valo-res, procedimentos e metforas comerciais dominam, como tambm seus resulta-dos tm de ser redutveis a indicadores de desempenho padronizados (Clark,Newman, 1997). Isso se encaixa de modo ideal tarefa de fornecer um mecanis-mo para as tentativas neoconservadoras de especificar quais conhecimentos, valo-res e comportamentos devem ser padronizados e oficialmente definidos como le-gtimos, um aspecto no qual me estenderei na prxima seo.

    Em essncia, estamos testemunhando um processo no qual o Estado trans-fere a culpa pelas desigualdades, bastante evidentes no acesso e nos resultados que

    prometeu reduzir, de si para as escolas, pais e filhos. Isso, claro, tambm faz partede um processo mais amplo no qual os grupos econmicos dominantes transferempara o Estado a culpa pelos efeitos macios e desiguais de suas prprias decisesequivocadas. O Estado, ento, defronta-se com uma crise bastante real de sua legi-

    timidade. Considerando isso, no devemos de modo algum nos surpreender que oEstado, ento, procure exportar essa crise para fora de si (Apple, 1995).

    Com certeza, o Estado no apenas classista, mas inerentemente sexista e

    racista (Omi, Winant, 1994; Epstein, Johnson, 1998; Middleton, 1998). Isso ficaclaro nos argumentos de Whitty, Power e Halpin. Eles apontam para a naturezasexista dos modos pelos quais a administrao das escolas pensada, como mode-los comerciais masculinistas tornam-se cada vez mais dominantes (Whitty, Power,Halpin, 1998). Embora haja o perigo de essas afirmaes degenerarem em argu-mentos reducionistas e essencializantes, h uma boa dose de acuidade nessas colo-caes. Elas so coerentes com o trabalho de outros acadmicos, da educao e deoutras reas, que reconhecem que os modos pelos quais nossas prprias definiesde pblico e privado, de qual conhecimento tem mais valor e de como as institui-es devem ser pensadas e administradas, esto completamente comprometidos

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    com a natureza de gnero dessa sociedade (Entre os melhores trabalhos sobre otema, consulte-se Fraser, 1989 e 1997). Esses efeitos ideolgicos amplos possibi-litando, por exemplo, a formao de uma coalizo entre neoliberais eneoconservadores, a masculinizao de teorias, polticas e assuntos administrati-

    vos so de considervel importncia e dificultam mudar o senso comum em dire-es mais crticas.

    Outros efeitos mais imediatos dentro das escolas tambm chamam a aten-o. Por exemplo, embora os diretores paream deter maior poder local nas esco-las supostamente descentralizadas, a cristalizao das polticas neoconservadoras

    faz com que eles sejam cada vez mais forados a assumir uma posio em que tmde demonstrar um desempenho coerente com currculos determinados pelo cen-

    tro, em um contexto sobre o qual tm cada vez menos poder. Tanto os diretoresquanto os professores vem-se sobrecarregados de trabalho, alm de serem obri-gados a assumir cada vez mais responsabilidades, a comparecer a um nmero sem

    fim de reunies e, em muitos casos, a enfrentar uma carncia cada vez maior derecursos emocionais e fsicos (Whitty, Power, Halpin, 1998).

    Alm disso, assim como ocorreu na Inglaterra, em quase todos os pasesestudados o mercado no estimulou a diversidade no currculo, na pedagogia, naorganizao, na clientela ou at mesmo na imagem. Pelo contrrio, desvalorizou

    sistematicamente as alternativas, ampliando o poder dos modelos dominantes.Igualmente, exacerbou sistematicamente as diferenas no acesso e nos resulta-dos, com base na raa, grupo tnico e classe3, como demonstram Gillborn e

    Youdell (2000).O retorno ao tradicionalismo gerou uma srie de conseqncias.

    Deslegitimou modelos mais crticos de ensino e aprendizagem, um ponto crucial aser considerado em qualquer tentativa de avaliao das possibilidades de lutas cultu-

    rais e implantao de pedagogia crtica nas escolas. Reintroduziu a reestratificaodentro da escola e diminuiu a possibilidade de ocorrerem desvios. Deu-se maiornfase a crianas dotadas e classes que aprendem rpido, enquanto os alunosconsiderados menos capazes do ponto de vista acadmico foram vistos como me-nos interessantes. Na Inglaterra as conseqncias se fizeram sentir, mais do queem qualquer outro aspecto, no alarmante ndice de alunos excludos da escola. Isso

    3. importante salientar aqui que isso tem ocorrido constantemente, mesmo diante de tenta-tivas evidentes de se usarem essas polticas para mudar as desigualdades existentes.

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    ocorreu em grande parte devido intensa presso para se demonstrar continua-mente ndices mais elevados de desempenho, principalmente em contextosmercantilizados, nos quais a principal fora motriz parecia ser de carter comercialem lugar de educacional (Whitty, Power, Halpin, 1998).

    Na anlise que fizeram sobre esses resultados inquietantes e mais mascara-dos, Whitty, Power, e Halpin e outros demonstram que, dentre os perigosos efeitosde uma situao de quase-mercado, situam-se as formas pelas quais as escolas quedesejam manter ou ampliar sua posio no mercado peneiram para garantir quedeterminados tipos de alunos, com caractersticas especficas, sejam aceitos, en-quanto outros tipos de alunos so considerados insuficientes. Em algumas escolas,os esteretipos foram reproduzidos de forma que as meninas fossem vistas comomais valiosas, assim como alunos de certas comunidades asiticas. Crianas afro-caribenhas quase sempre eram consideradas fracassadas nessa situao (Gillborn,

    Youdell, 2000; Gewirtz, Ball, Bowe, 1995).At agora, concentrei-me basicamente no caso da Inglaterra. No entanto,

    como mencionei na introduo, esses movimentos so, na verdade, globais. Sualgica disseminou-se rapidamente por vrias naes, com resultados que tendem arefletir aqueles analisados at o presente. O caso da Nova Zelndia cabe bem aqui,principalmente se considerarmos que uma grande porcentagem da populao do

    pas multitnica e que a nao tem uma histria de tenses e desigualdades raciais.Alm disso, a mudana para polticas da nova direita ocorreu mais rapidamente queem qualquer outro lugar. Basicamente, a Nova Zelndia tornou-se o laboratriopara diversas das polticas aqui analisadas. Em seu excepcional estudo, baseado emgrande parte em um mecanismo conceitual influenciado por Pierre Bourdieu, Laudere Hughes comprovaram que os mercados da educao parecem provocar umareduo geral nos padres educacionais. Paradoxalmente, esses mercados exer-

    cem um efeito negativo, e no positivo, sobre o desempenho de escolas com gran-des populaes de classes trabalhadoras e minorias. Em essncia, transferem asoportunidades de crianas menos privilegiadas para aquelas que j so privilegiadas(Lauder, Hughes, 1999, p. 2). A combinao das polticas neoliberais demercantilizao e a nfase neoconservadora em padres mais rgidos, sobre osquais discorrerei na prxima seo, criam um conjunto de condies ainda maisperigosas. A anlise dos autores confirma os argumentos conceituais e empricos deBall, Phil Brown e outros, de que os mercados de educao no se referem somen-

    te reao do capital para reduzir tanto a esfera do Estado quanto o controle pbli-co. Os mercados fazem parte tambm da tentativa da classe mdia de alterar as

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    regras da competitividade na educao, em vista da maior insegurana que seusfilhos enfrentam. Ao mudar o processo de seleo para ingresso nas escolas, ospais da classe mdia conseguem aumentar o interesse na criao de mecanismosmais fortes de excluso da classe trabalhadora e comunidades ps-coloniais em sua

    luta por igualdade de oportunidades (Brown, 1997, p. 29).Os resultados observados na Nova Zelndia no s refletem aquilo que foi

    observado em outros lugares, como tambm demonstram que quanto mais a pr-tica segue a lgica da ao personificada nos princpios de mercantilizao, pior asituao tende a se tornar. Os mercados sistematicamente privilegiam as famlias denvel socioeconmico mais elevado, por meio de seu conhecimento e recursosmateriais. Essas so as famlias que tm mais probabilidade de fazer escolhas. Emlugar de permitir que a grande quantidade de alunos provenientes da classe traba-lhadora, pobres ou de cor deixe a escola, na sua grande maioria so as famlias denvel socioeconmico mais elevado que deixam as escolas pblicas e escolas compopulaes mistas. Por sua vez, em uma situao de maior competitividade, issogera uma espiral de declnio que faz com que as escolas freqentadas por alunosmais pobres e alunos de cor sejam sistematicamente prejudicadas, enquanto asescolas com uma maior populao de nvel socioeconmico mais elevado e maiorpopulao de brancos conseguem se isolar dos efeitos da competitividade do mer-

    cado. A debandada dos brancos intensifica, ento, o statusrelativo daquelas esco-las j privilegiadas por foras econmicas mais fortes; a educao para o Outro

    torna-se ainda mais polarizada e d continuidade espiral descendente (Lauder,Hughes, 1999, p. 101-132).

    Ao dizer isso, porm, precisamos ser cuidadosos para no ignorar asespecificidades histricas. Os movimentos sociais, as formaes ideolgicas vigen-

    tes, assim como as instituies da sociedade civil e o Estado podem oferecer alguma

    base para o equilbrio. Em alguns casos, nos pases que tm uma histria mais slidae mais abrangente de polticas de social-democracia e uma viso positiva de liberda-de coletiva, a nfase neoliberal no mercado foi significativamente mediada. Por essarazo, conforme demonstrado por Petter Aasen, na Noruega e Sucia, por exem-plo, as iniciativas de privatizao na educao tiveram de enfrentar um compromis-so coletivo maior que, digamos, nos Estados Unidos, Inglaterra e Nova Zelndia(Aasen, 1998). Contudo, esses compromissos, que repousam parcialmente nasrelaes de classe, so enfraquecidos quando a dinmica racial entra em cena. As-sim, por exemplo, a idia de serem todos iguais e, conseqentemente, estarem

    todos sujeitos a sentimentos coletivos similares desafiada pelo crescimento de

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    populaes de imigrantes provenientes da frica, sia e do Oriente Mdio. poss-vel que as formas mercantilizadas de educao obtenham maior apoio quando aspremissas comumente aceitas do que significa ser, digamos, noruegus ou sueco

    forem abaladas por populaes de cor que passem a exigir o statusde cidadania

    nacional. Por esse motivo, pode ser que os sentimentos coletivos que defendempolticas menos voltadas para o mercado se baseiem em um contrato racial noexplcito, que justifica as bases ideolgicas de uma comunidade imaginria nacio-nal4. Isso, por sua vez, pode tambm gerar apoio para as polticas neoconservadoras,no devido ao compromisso neoliberal para com uma receptividade eterna, mas,ao contrrio, como uma forma de restaurao cultural, como uma maneira de res-

    tabelecer um passado imaginrio quando ramos todos iguais. Por isso, impor-tante que qualquer anlise dos atuais jogos de fora que circundam a modernizaoconservadora leve em conta o fato de que esses movimentos esto em constanteevoluo; preciso lembrar, uma vez mais, que esses jogos tm diversas dinmicasque se cruzam, so contraditrias e que dizem respeito no somente classe, como

    tambm raa e ao gnero5.A maior parte dos dados coletados por mim provm de escolas localizadas

    fora dos Estados Unidos, embora esses dados devessem nos fazer interromperimediatamente a rotina para pensar seriamente se desejamos adotar polticas simila-

    res aqui. Ainda assim, os Estados Unidos ainda ocupam o centro de grande parte dadiscusso sobre o assunto. Por exemplo, as charter schools(escolas pblicas inde-pendentes estruturadas e operadas por educadores, lderes comunitrios, pais eempresrios da educao) e suas equivalentes nos Estados Unidos e na Inglaterra

    tambm esto sujeitas a uma anlise crtica. Em ambos os pases, essas escolas ten-dem a atrair pais que vivem e trabalham em comunidades relativamente privilegia-das. Nesse caso tambm parece que quaisquer novas oportunidades esto sendo

    ocupadas por aqueles j privilegiados, e no pelos perdedores identificados porChubb and Moe (Whitty, Power, Halpin, 1998; Wells et al., 1999).

    4. Para saber mais sobre o contrato racial que justifica quase todos os acordos sociais em nossotipo de sociedade, consulte Mills (1997). Estou recorrendo tambm posio de Benedict,de que as prprias naes baseiam-se em comunidades imaginadas (Anderson, 1991).

    5. Veja, por exemplo, a anlise sobre a dinmica do gnero que cerca as polticas neoliberais emArnot, David e Weiner (1999). As formas pelas quais as polticas neoconservadoras atuam,sobre e por meio de polticas de sexualidade e do corpo, encontram-se tambm descritasem Epstein e Johnson (1998).

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    O estudo sugere que existem semelhanas camufladas entre os defensoresda pesquisa sobre a escola efetiva e aqueles comprometidos com reformasneoliberais. Ambos tendem a ignorar o fato de que caractersticas externas s esco-las, tais como a pobreza, o poder poltico e econmico entre outras, so invariavel-

    mente responsveis por uma parcela muito maior nas diferenas de desempenhoescolar do que os aspectos organizacionais ou as caractersticas que supostamentegarantiriam uma escola eficiente (Whitty, Power, Halpin, 1998, p. 112-113).

    No geral, as concluses so claras. [Nas] circunstncias atuais, a escolha deescola tende a reforar hierarquias, assim como ampliar as oportunidades educacio-nais e a qualidade da educao como um todo (p.14). Como argumentam osautores acima, contra aqueles que acreditam que o que estamos testemunhandocom o surgimento dos programas de escolha a celebrao ps-moderna dasdiferenas:

    Existe um conjunto cada vez maior de indcios empricos de que, em lugar de bene-ficiar os desfavorecidos, a nfase na escolha dos pais e a autonomia da escola estprejudicando ainda mais aqueles alunos menos capazes de concorrer no mercado.Para a maioria dos grupos de desprivilegiados, ao contrrio do que acontece com ospoucos indivduos que conseguem escapar das escolas na base da hierarquia destatus, os novos planos parecem ser somente uma maneira sofisticada de reproduziras diferenas tradicionais entre diferentes tipos de escolas e os alunos que as fre-qentam. (p. 42)

    Tudo isso nos d razo suficiente para concordar com o argumento criteriosode Henig de que a triste ironia do atual movimento da reforma educacional que,devido nfase excessiva na identificao com propostas de escolha de escola ba-seadas em idias de mercado, o saudvel impulso de se levar em considerao

    reformas radicais para abranger problemas sociais pode ser canalizado para iniciati-vas que desgastem ainda mais o potencial que levaria deliberao e resposta cole-tivas (Henig, 1994, p. 222).

    Esta convico no pretende rejeitar a possibilidade nem a necessidade dereforma educacional. No entanto, preciso considerar seriamente a probabilidadede que somente se concentrando nas caractersticas socioeconmicas externas eno simplesmente em aspectos organizacionais de escolas bem-sucedidas, todasas escolas podero prosperar. Eliminar a pobreza por meio de maior equiparao

    de renda, estabelecer programas eficientes e equiparveis de assistncia mdica emoradia, e, definitivamente, recusar-se a dar continuidade s polticas camufladas es no to camufladas de excluso e degradao racial, que inequivocamente ainda

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    caracterizam a vida de muitas naes6, somente enfrentando esses aspectos emconjunto poderemos avanar substancialmente. A menos que os debates sobre apedagogia crtica se baseiem no reconhecimento dessas realidades, eles prpriospodem cair vtimas da armadilha de supor que as escolas podem prescindir de ajuda

    para superar a excluso.Esses achados empricos tornam-se mais compreensveis quando examina-

    dos luz da anlise de Pierre Bourdieu, sobre o peso relativo dado ao capital cultu-ral como parte das atuais estratgias de mobilidade (Bourdieu, 1996). O aumentoda importncia do capital cultural infiltra-se em todas as instituies, de tal forma queexiste um movimento relativo de deslocamento da reproduo diretados privil-gios de classe (em que o poder transmitido em grande parte dentro das famliaspor meio da propriedade econmica) para formas de privilgios de classe mediadas

    pela escola. Aqui, a legao do privilgio simultaneamente efetuada e transfigura-da por meio da intercesso das instituies de ensino (Wacquant, Prefcio paraBourdieu, 1996, p. XIII). No se trata de conspirao; no algo consciente da

    forma como normalmente usamos esse conceito. Pelo contrrio, trata-se do resul-tado de uma longa cadeia de conexes relativamente independentes entre capitaleconmico, social e cultural acumulado diferencialmente, e que opera na esfera doseventos dirios, inclusive como vimos no contexto de escolha de escola.

    Dessa maneira, embora no assuma uma posio obstinadamente determi-nista, Bourdieu alega que um habitusde classe tende a reproduzir inconsciente-mente as condies para sua prpria reproduo. E o faz produzindo um conjuntorelativamente coerente e sistematicamente caractersticode estratgias aparente-mente naturais e inconscientes em essncia, formas de compreender e atuar nomundo que funcionam como formas de capital cultural que podem ser, e so, em-pregadas para proteger e ampliar o statusde uma pessoa em uma esfera social de

    poder. Com talento, o autor compara a semelhana de habitusdos agentes sociaiscom a caligrafia.

    Assim como a capacidade adquirida a que chamamos caligrafia, uma forma deter-minada de formar letras, que sempre produz a mesma escrita ou seja, traadosgrficos que, a despeito das diferenas em tamanho, material e cor da superfcieusada para a escrita (folha de papel ou lousa) e o instrumento utilizado (lpis, canetaou giz), isto , apesar das diferenas dos meios usados para a ao de escrever,

    6. Nestas, os planos de introduo da lgica de mercado na educao precisam ser vistos comoparte da estrutura para evitar o corpo e a cultura do Outro.

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    apresentam uma similaridade de estilo imediatamente reconhecvel ou semelhanafamiliar as prticas de um nico agente, ou, mais amplamente, as prticas de todosos agentes dotados de habitussemelhantes, possuem a similaridade de estilo que

    transforma cada um em uma metfora para os outros, em relao ao fato de queso produtos da implementao, em diferentes campos, do mesmo esquema de

    percepo, pensamento e ao. (Bourdieu, 1996, p. 273)

    Essa prpria conexo de habitusem vrios campos de poder a facilidade detrazer os recursos econmicos, sociais e culturais de uma pessoa para relacionar-secom os mercados permite a satisfao entre os mercados e o indivduo quecaracteriza, no caso, o agente de classe mdia. Isto produz constantemente efeitosdiferenciais que no so neutros, no importa o que digam os defensores do

    neoliberalismo. Pelo contrrio, so eles prprios resultado de uma determinadamoralidade. Diferentemente das circunstncias daquilo que pode ser mais bem cha-mado de moralidade densa, em que os princpios do bem comum constituem abase tica para julgar polticas e prticas, os mercados baseiam-se em princpiosagregativos, constitudos pela soma de bens e escolhas individuais. Com base nosdireitos individuais e de propriedade que permitem que os cidados lidem comproblemas de interdependncia mediante a troca, oferecem um excelente exem-plo de moralidade tnue, ao gerar tanto a hierarquia quanto a diviso baseadas noindividualismo competitivo (Ball, Bowe, Gewirtz, 1994, p. 24). E, nessa competi-o, o perfil geral dos vencedores e dos perdedores foi identificado empiricamente.

    CURRCULOS NACIONAIS E EXAMES NACIONAIS

    J demonstrei que existem conexes entre, no mnimo, duas dinmicas queoperam nas reformas neoliberais: os mercados livres e a vigilncia ampliada. Isso

    pode ser observado pelo fato de que, em diversos contextos, a mercantilizao acompanhada por um conjunto de determinadas polticas para os produtores,para os profissionais que trabalham com educao. Essas polticas tm sido rigoro-samente reguladoras e bastante teis na reconstituio do senso comum. Assimcomo no caso da conexo entre os exames nacionais e os indicadores de desempe-nho publicados na forma do rankingde escolas, essas polticas foram elaboradas

    tendo em vista a preocupao quanto superviso, regulao e avaliao externasde desempenho e tm sido cada vez mais influenciadas por pais que possuem aqui-lo que visto como um capital econmico, social e cultural apropriado (Mentor etal., 1997, p.8). Essa preocupao com a superviso e a regulao externas no se

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    deve somente a uma forte desconfiana que paira sobre os produtores (por exem-plo os professores) e necessidade de garantir que as pessoas continuamente to-mem iniciativas prprias. Est tambm nitidamente ligada tanto ao sentidoneoconservador da necessidade de um retorno a um passado perdido, de pa-

    dres elevados, disciplina, reverncia e conhecimento real, como prpria capa-cidade da classe mdia profissional de estabelecer uma esfera de autoridade dentrodo Estado para defender seu prprio compromisso com tcnicas e eficincia degesto. O enfoque em eficincia da gesto desempenha importante papel aqui,considerado til por muitos neoliberais e neoconservadores.

    Ocorreu uma mudana na relao entre o Estado e os profissionais. Emessncia, a mudana em direo a um pequeno Estado forte, cada vez mais orien-

    tado pelas necessidades do mercado, parece trazer inevitavelmente consigo umareduo no poder e no statusprofissional (p. 57). O gerencialismo que desempe-nha aqui um papel central em grande parte responsvel por realizar a transforma-o cultural que muda as identidades profissionais para torn-las mais sensveis snecessidades do cliente e ao julgamento externo. Tem como objetivo justificar e

    fazer com que as pessoas internalizem alteraes importantes nas prticas profissio-nais. Tanto aproveita a energia quanto desestimula a dissidncia (p. 9).

    No h necessariamente contradio entre um conjunto global de interesses

    e processos de mercantilizao e desregulao tais como os planos de emprsti-mo e escolha e um conjunto ampliado de processos reguladores tais como osplanos de currculo nacional e exame nacional. A forma de regulao permite que oEstado fique no comando no que diz respeito aos objetivos e processos da educa-o a partir do mecanismo de mercado (p. 24). Esse comando quase sempreaparece na forma de padres nacionais, currculos nacionais e exames nacionais.

    Atualmente, essas formas esto avanando nos Estados Unidos e so objeto de

    considervel controvrsia; algumas ultrapassam linhas ideolgicas e exibem algumasdas tenses existentes entre os diversos elementos contidos sob o guarda-chuva damodernizao conservadora.

    Tenho afirmado que, paradoxalmente, um currculo nacional e principalmen-te um programa de exame nacional constituem os primeiros e mais importantespassos em direo a maior mercantilizao da educao. Na verdade, fornecem osmecanismos de dados comparativos que os consumidores precisam para fazercom que os mercados funcionem como tal (Apple, 1996, p. 23). Na falta dessesmecanismos, no h base comparativa de informaes para se fazer a escolha.No entanto, no precisamos demonstrar essas formas de regulao no vcuo. As-

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    sim como os mercados neoliberais que analisei na seo anterior, essas formas tam-bm foram institudas na Inglaterra e existe suficiente material de pesquisa que podee deve nos ajudar a ter a devida cautela para assumir esse caminho.

    possvel que se queira defender que um conjunto nacional de padres,

    currculos nacionais e exames nacionais possam fornecer as condies para umamoralidade densa. Afinal, essas reformas reguladoras supostamente baseiam-seem valores e sentimentos comuns que tambm criam espaos sociais em que asquestes de preocupao comuns a todos possam ser debatidas e submetidas aquestionamento moral (Ball, Bowe, Gewirtz, 1994, p. 23). No entanto, o que con-

    ta como sendo o comum, e de que forma e por quem isso na verdade determi-nado, mais tnue do que denso.

    o caso da Inglaterra e do Pas de Gales, onde, embora o currculo nacionalhoje to solidamente implantado seja claramente prescritivo, ele no conseguiu sersempre a camisa-de-fora que se alegava muitas vezes que seria. Como algunspesquisadores documentaram, no s possvel que as polticas e a legislao sejaminterpretados e adaptados, como tambm isso parece inevitvel. Dessa forma, ocurrculo nacional no est tanto sendo implementado nas escolas quanto sendorecriado, nem tanto reproduzido quanto produzido (Power, Halpin, Fitz, 1994,p. 38).

    Em termos gerais, quase um trusmo afirmar que no existe um modelolinear simplista de formao, distribuio e implementao de polticas. Cada etapado processo contm sempre mediaes complexas. Existe uma complexa polticaacontecendo dentro de cada grupo e entre esses grupos e as foras externas naelaborao das polticas, na sua redao como mandato legislativo, na sua distribui-o e na sua recepo no que diz respeito prtica (Ranson, 1995). Dessa forma,o Estado pode determinar mudanas no currculo, no sistema de avaliao ou nas

    polticas (mudanas essas realizadas por meio de conflitos, compromissos e mano-bras polticas), mas os redatores das polticas e dos currculos podem ser incapazesde controlar os significados e implementaes de seus textos. Todos os textos sodocumentos que vazam, sujeitos a recontextualizao em cada etapa do pro-cesso (Kim Cho, Apple, 1998, p. 269-290).

    Contudo, este princpio geral pode ser um pouco romntico demais. Nadadisso acontece em um campo uniforme. Assim como acontece com os planos demercadologia, existem diferenas bastante reais em jogo na habilidade que umapessoa tem de influenciar, mediar, transformar ou rejeitar uma norma ou um pro-cesso regulador. Isso posto, importante reconhecer que um modelo de controle

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    estatal com a suposta linearidade de cima para baixo por demais simplista eque existe sempre a possibilidade de interveno e influncia humanas. Porm, issono significa que tal interveno e influncia tenham poder (Ranson, 1995, p. 437).

    O caso do currculo nacional e do exame nacional na Inglaterra e no Pas de

    Gales reflete as tenses existentes nesses dois aspectos. Na verdade, o currculonacional original e imposto nesses pases foi objeto de contenda. Sua primeira ver-so era detalhada e especfica demais, e, por isso, sofreu alteraes importantes nombito da nao, da comunidade, da escola e, por fim, da sala de aula. Embora ocurrculo nacional tenha sido objeto de conflito, de mediao e de algumas altera-es em seu contedo, em sua organizao e nas suas formas invasivas e morosasde avaliao, seu poder total demonstrado por meio da reconfigurao radical doprprio processo de seleo, organizao e avaliao do conhecimento. Ele alterouradicalmente o terreno da educao como um todo. Suas divises por tpicos for-necem mais limites que escopos para liberdade de ao. Os objetivos-padro deresultados obrigatrios consolidam esses limites. A imposio do exame nacionalimpe o currculo nacional como a estrutura dominante do trabalho dos professo-res, a despeito de quaisquer oportunidades que possam ter de burlar ou reformularo currculo (Hatcher, Troyna apud Ranson, 1995, p. 438).

    Portanto, no basta afirmar que o mundo da educao complexo e sofre

    inmeras influncias. O objetivo de qualquer anlise que se pretende sria ir almdessas concluses genricas. Em vez disso, precisamos discriminar nveis de in-

    fluncia no mundo, para avaliar a eficcia relativa dos fatores envolvidos. Conse-qentemente, embora seja claro que enquanto o currculo nacional e os examesnacionais que atualmente existem na Inglaterra e no Pas de Wales tenham surgidodevido a uma complexa interao de foras e influncias, fica igualmente claro queo controle do Estado tem a palavra final (Ranson, 1995, p. 438).

    Os currculos nacionais e os exames nacionais sem dvida geraram conflitosobre os assuntos tratados. Em parte, criaram espaos sociais para as questes morais(logicamente, essas questes morais sempre foram levantadas por gruposdesprivilegiados). Desta maneira, ficou claro para muitas pessoas que a criao deexames obrigatrios e redutivos, que davam nfase memria e abstraodescontextualizada, puxou o currculo nacional para uma determinada direo ade estimular um mercado educacional seletivo em que alunos de elite e escolas deelite, com uma ampla gama de recursos, seriam bem servidos (ainda que limitada-mente). Diversos grupos alegaram que esses exames simplistas, redutivos e deta-lhados, feitos com papel e caneta, tinham o potencial de causar danos enormes,

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    situao tornada ainda pior pelo fato de os exames serem onerosos em termos dotempo consumido e dos registros. Os professores conseguiram um apoio substan-cial quando, em grupo e em um memorvel ato pblico de protesto, decidiramboicotar a aplicao das provas. Isso tambm provocou um srio questionamento

    sobre a arbitrariedade, a inflexibilidade e o carter exageradamente prescritivo docurrculo nacional. Embora o currculo continue a ser inerentemente problemticoe o sistema de avaliao ainda contenha diversos elementos perigosos e onerosos,as atividades organizadas contra eles sem dvida causaram um impacto.

    No entanto, infelizmente, a histria no termina aqui. Em meados da dcadade 90, embora o governo tenha retrocedido parcialmente nas formas reguladorasdo seu programa de exame constante e redutivo, ficou mais claro que o desenvol-

    vimento do exame e a especificao do contedo haviam sido seqestrados porpessoas ideologicamente comprometidas com pegadogias tradicionais e com a idiade uma seleo mais rigorosa. Os efeitos residuais so tanto materiais quanto ideo-lgicos. Incluem uma nfase contnua na tentativa de imprimir um rigor [que] faltana prtica da maioria dos professores,... julgando o progresso somente por aquiloque pode ser verificado por meio de provas desse tipo e o desenvolvimento deuma viso muito hostil quanto responsabilidade dos professores, viso esta enten-dida como parte de uma investida mais ampla da poltica para se tirar o controle dos

    servios pblicos pelos seus profissionais e estabelecer um controle exercido peloconsumidor, por meio de uma estrutura de mercado (OHear, 1994, p. 55-68).

    Os autores de uma anlise extremamente minuciosa dos sistemas de avalia-o recentemente institudos na Inglaterra e no Pas de Gales fornecem um resumodo que ocorreu. Gipps e Murphy alegam que se tornou cada vez mais bvio que oprograma nacional de avaliao conectado ao currculo nacional est cada vez maisdominado pelos modelos tradicionais de exames e pelas suposies sobre ensino e

    aprendizagem subjacentes a eles. Ao mesmo tempo, as questes referentes eqi-dade esto se tornando muito menos visveis. No clculo dos valores agora vigentesno Estado regulador, a eficincia, a velocidade e o controle de custos substituempreocupaes mais importantes sobre justia social e educacional. A presso paraimplementar rapidamente esse tipo de avaliao tem significado que a velocidadedo desenvolvimento das provas to grande, e as mudanas no currculo e naavaliao to uniformes, que [existe] pouco tempo para realizar anlises detalhadase submeter as provas a testes para garantir que sejam, tanto quanto possvel, as mais

    justas para todos os grupos (Gipps, Murphy, 1994, p. 204). As condies demoralidade tnue nas quais domina o indivduo competitivo do mercado, e a

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    justia social cuida, de alguma forma, de si prpria esto aqui reproduzidas. Acombinao do mercado neoliberal com o Estado regulador, ento, realmente fun-ciona. Porm, funciona de maneira que as metforas do livre mercado, do mrito edo esforo camuflam a realidade diferencial produzida. Se por um lado isso torna

    ainda mais fundamental a adoo de uma pedagogia social e culturalmente crtica, faztambm com que ela seja muito mais difcil de realmente ser colocada em prtica.

    Para compreender como isso ocorre, recomendvel ler a anlise de BasilBernstein (1990, 1996) sobre os princpios gerais pelos quais o conhecimento e aspolticas (textos) passam de uma arena a outra. Como Bernstein nos faz lembrar,quando se fala sobre mudanas educacionais existem trs campos com os quaisdevemos nos preocupar. Cada um deles tem suas prprias regras de acesso,regulao, privilgios e interesses especficos: 1) o campo da produo no qual seconstri o novo conhecimento; 2) o campo da reproduo no qual a pedagogia eo currculo so realmente colocados em ao nas escolas; e, entre esses dois ou-

    tros, 3) o campo da recontextualizao, no qual os discursos do campo da produ-o so apropriados e, em seguida, transformados em discurso e recomendaespedaggicas. Essa apropriao e recontextualizao do conhecimento para fins edu-cacionais se autogoverna por meio de dois conjuntos de princpios. O primeiro,deslocao, indica que existe sempre uma apropriao seletivado conhecimento e

    do discurso do campo da produo. O segundo, relocao, aponta para o fato deque quando o conhecimento e o discurso do campo da produo so trazidos parao campo da recontextualizao, ficam sujeitos s transformaes ideolgicas devidoaos diversos interesses especializados e/ou polticos cujos conflitos estruturam ocampo da recontextualizao (Evans, Penney, 1995; Wong, Apple, no prelo).

    Um bom exemplo disso, e que corrobora a anlise de Gipps e Murphy so-bre a dinmica dos currculos nacionais e dos exames nacionais durante suas mais

    recentes iteraes, pode ser encontrado no processo pelo qual o contedo e aorganizao do currculo nacional obrigatrio em educao fsica foi objeto de con-tenda e, por fim, institudo na Inglaterra. Nesse caso, formou-se um grupo de traba-lho constitudo de acadmicos, tanto de dentro como de fora da rea da educao

    fsica, diretores de escolas particulares e pblicas, atletas renomados e lderes em-presariais (mas no-professores).

    As primeiras polticas de currculo sugeridas pelos grupos foram relativamen-te mistas, do ponto de vista educacional e ideolgico, levando-se em conta o cam-po da produo do conhecimento dentro da educao fsica. Isto , continham

    tanto elementos crticos e progressistas quanto elementos da restaurao conserva-

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    dora, assim como perspectivas acadmicas nos campos especializados da universi-dade. Porm, medida que esses especialistas terminavam de discorrer para emseguida fazer recomendaes de ao, passavam a se aproximar cada vez mais dosprincpios da restaurao. A nfase sobre a eficincia, habilidades bsicas e teste de

    desempenho, sobre o controle social do corpo e sobre normas competitivas, porfim, venceu. Da mesma forma que a captura do mercado pela classe mdia, tampoucose tratava nesse caso de conspirao. Pelo contrrio, era resultado de um processode sobredeterminao. Isto , no se devia a uma imposio dessas normas, massim a uma combinao de interesses no campo da recontextualizao: um contextoeconmico em que os gastos pblicos estavam sob rgida vigilncia e que exigiareduo de despesas em todas as reas; funcionrios do governo que se opunhamaos suprfluos e intervinham constantemente para instituir somente uma seleodas recomendaes (conservadoras, que preferivelmente notivessem partido dosacadmicos profissionais); ataques ideolgicos a abordagens crticas, progressistasou voltadas para a educao fsica infantil, e um discurso dominante sobre ser prag-mtico. Esses aspectos apareceram em conjunto no campo da recontextualizaoe ajudaram a garantir, na prtica, que os princpios conservadores fossem reinscritosnas polticas e na legislao, e que as formas crticas fossem vistas como ideolgicasdemais, por demais onerosas ou carecendo de praticidade (Evans, Penney, 1995).

    Os padres foram mantidos; crticas foram ouvidas, mas basicamente sem causarefeito substancial; as normas do desempenho competitivo passaram a ocupar posi-o central e foram empregadas como dispositivos reguladores, os quais servirampara privilegiar grupos especficos, assim como os mercados o fizeram. Desse modo

    funciona a democracia na educao.

    PENSAMENTO ESTRATGICO

    Neste artigo, por enquanto, levantei srias questes acerca dos esforos re-lativos atual reforma educacional em andamento em vrias naes. Utilizei de

    forma abundante, mas no exclusiva, pesquisas sobre a(s) experincia(s) dos ingle-ses com vistas a documentar alguns dos efeitos diferenciais ocultos de duas estrat-gias relacionadas entre si propostas de mercado de inspirao neoliberal e pro-postas de regulao de inspirao neoliberal, neoconservadora e gerencial da classemdia. Tendo por base a anlise histrica de Herbert Kliebard, descrevi como inte-

    resses diferentes, com vises sociais e educacionais diferentes, competem pelodomnio no campo social do poder circunjacente poltica e prtica educacionais.

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    Nesse processo, documentei algumas das complexidades e desequilbrios nessecampo do poder. Essas complexidades e desequilbrios resultam em uma moralidadetnue, em lugar de uma moralidade densa, e na reproduo tanto das ideologiase formas pedaggicas e curriculares dominantes como dos privilgios sociais que as

    acompanham. Sugeri que o vigor retrico dos discursos da pedagogia crtica precisacombater essas condies ideolgicas e materiais em transformao. A pedagogiacrtica no pode ocorrer e no ocorrer no vcuo. A no ser que realmente enfren-

    temos essas profundas transformaes de direita e pensemos a ttica contra elas,obteremos pouco resultado na criao de um senso comum contra a hegemoniaou na construo de uma aliana contra essa hegemonia. O crescimento dessaestranha combinao de lgica de mercado e Estado regulador, o movimento emdireo a um ensino e currculos acadmicos tradicionais, a habilidade dos gruposdominantes de exercer a liderana nessa luta e as mudanas no senso comum queas acompanham no se pode apenas almejar que tudo isso simplesmente desapa-rea. Ao contrrio, preciso encarar isso de frente e fazer uma anlise crtica de nsmesmos.

    Isso posto, gostaria, no entanto, de apontar um paradoxo oculto na minhaanlise. Embora grande parte da pesquisa realizada recentemente por mim e poroutros tenha sido sobre os processos e efeitos da modernizao conservadora, h

    perigos nesse enfoque sobre os quais deveramos estar conscientes. A pesquisasobre a histria, as polticas e as prticas das reformas e movimentos educacionaise sociais de direita permitiu-nos mostrar as contradies e os efeitos desiguais de

    tais polticas e prticas. Possibilitou a rearticulao das reivindicaes de justia socialcom base em uma evidncia slida. Tudo isso muito bom. Todavia, no processo,um dos efeitos latentes foi a estruturao gradual das questes educacionais, emgrande parte, nos termos da agenda conservadora. As prprias categorias merca-

    dos, escolha, currculos nacionais, exames nacionais, padres trazem o debatepara a arena estabelecida pelos neoliberais e neoconservadores. A anlise de o que levou a negligenciar-se o que deveria ser. Assim, houve uma diminuio dediscusses substantivas em larga escala sobre alternativas possveis para a maneirade ver as polticas e as prticas neoliberais e neoconservadoras, discusses essasque avanariam para muito alm delas (Seddon, 1997).

    Por esse motivo, pelo menos parte de nossa tarefa pode ser poltica econceitualmente complexa, mas pode ser expressa com simplicidade. A longo pra-zo, precisamos desenvolver um projeto poltico que seja ao mesmo tempo local epassvel de generalizao, sistemtico sem fazer reivindicaes masculinistas e

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    eurocntricas quanto s verdades essenciais e universais sobre os seres humanos(Luke, 1995). Outra parte de nossa tarefa, no entanto, tem de ser e mais imedia-

    ta, de cunho mais educacional. preciso elaborar e tornar amplamente disponveispolticas e prticas alternativas crticas, progressistas, defensveis, articuladas e sli-

    das sobre currculo, ensino e avaliao. Mas isso tambm deve ser feito com odevido reconhecimento da natureza mutvel do campo social do poder e da im-portncia de se pensar de forma ttica e estratgica. Permitam-me especificar.

    Por exemplo, nos Estados Unidos a revista Rethinking Schools, cada vez maispopular, tem sido um frum importante para a crtica social e educacional, bemcomo para descries de prticas educacionais crticas em escolas e comunidades.

    s vezes influenciados diretamente pelo trabalho de Paulo Freire e por outros edu-cadores que o elaboraram e ampliaram, e outras vezes por diversas tradies edu-cacionais radicais originrias dos EUA, Rethinking Schoolse organizaes nacionaisemergentes7construram em conjunto espaos para educadores crticos, ativistaspolticos e culturais, estudiosos radicais etc. ensinarem uns aos outros, ofereceremcrtica construtiva aos trabalhos uns dos outros e formularem um conjunto de res-postas mais coletivas s polticas educacionais e sociais destrutivas advindas da res-

    taurao conservadora.Ao usar a frase respostas coletivas, no entanto, preciso enfatizar que ela

    no significa nada parecido com centralismo democrtico em que um pequenogrupo ou um quadro de um partido fala pela maioria e estabelece a posio ade-quada. Dado o fato de haver diversos movimentos emancipatrios cujas vozes soouvidas em publicaes como Rethinking Schools e em organizaes semelhantes National Coalition of Educational Activists posies anti-racistas e ps-coloniais,

    formas radicais de multiculturalismo, homossexuais e lsbicas, mltiplas vozes femi-nistas, neomarxistas e socialistas democratas, verdes etc. uma maneira mais

    apropriada de olhar o que est acontecendo cham-la de unidade descentrada.Mltiplos projetos progressistas, mltiplas pedagogias crticas so articuladas. Comoem Freire, cada uma delas relaciona-se com as lutas reais, em instituies reais, emcomunidades reais. Evidentemente, no devemos ser romnticos a esse respeito.Existem diferenas muito reais polticas, epistemolgicas, e/ou educacionais nes-sas diversas vozes. Mesmo assim, elas esto unidas em sua oposio s foras en-

    volvidas na nova aliana hegemnica conservadora. Existem tenses, mas a unidade

    7. Tais como a National Coalition of Educational Activists [Coalizo Nacional de Ativistas Educa-cionais].

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    descentrada permaneceu forte o suficiente para que cada grupo constituinte apieas lutas dos outros.

    E isso no tudo. Ao mesmo tempo em que esses movimentos esto sendoestruturados, educadores crticos procuram tambm ocupar os espaos oferecidos

    pelos distribuidores das publicaes existentes sobre a corrente principal parapublicar livros que oferecem respostas crticaspara as perguntas dos professores do

    tipo O que fao na segunda-feira? em uma era conservadora. Esse espao foi pormuito tempo ignorado por muitos tericos da pedagogia crtica. Algumas dessas

    tentativas obtiveram enorme xito. Vou dar um exemplo. Uma organizao quecongrega um nmero considervel de profissionais nos Estados Unidos a

    Association for Supervision and Curriculum Development [Associao para Super-viso e Desenvolvimento de Currculo] ASCD publica livros que so distribudosa cada ano para seus mais de 150 mil membros, a maioria constituda de professo-res ou dirigentes de escolas de ensino fundamental e mdio. A ASCD no tem semostrado uma organizao muito progressista, preferindo publicar material predo-minantemente tcnico e abertamente despolitizado. No entanto, tem-se preocu-pado com o fato de suas publicaes no representarem os educadores que fazemcrtica social e cultural. Por isso, a editora tem procurado formas de estender sualegitimidade para uma esfera mais ampla de educadores. Devido a esse problema

    de legitimidade e em vista do grande nmero de associados, tornou-se claro, paraalgumas pessoas que pertenciam s tradies educacionais crticas nos Estados Uni-dos, que talvez fosse possvel convencer a ASCD a publicar e fazer circular ampla-mente material que demonstrasse os sucessosprticos reais de modelos crticos decurrculo, ensino e avaliao na soluo de problemas reais nas escolas e comunida-des, especialmente com a classe trabalhadora, crianas pobres e crianas de cor.

    Depois de intensas negociaes que garantiram a ausncia de censura, um

    colega e eu resolvemos publicar um livro (Apple, Beane, 1995) que traria exemplosprticos do poder das abordagens crticas freirianas e similares, operando em salasde aula e comunidades. O livro no apenas foi distribudo para os 150 mil membrosda organizao, como tambm vendeu 100 mil cpias adicionais. Dessa forma,perto de 250 mil cpias de um volume que conta as estrias prticas de lutas bem-sucedidas de educadores que seguem a teoria crtica em escolas reais esto agoranas mos de educadores que todo dia enfrentam problemas semelhantes8. Trata-se

    8. Tradues deste volume foram ou devero ser publicadas, entre outros pases, no Brasil eem Portugal.

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    de uma interveno importante. Embora no haja garantia de que os professoressero sempre progressistas (nem h qualquer garantia de que aqueles que so pro-gressistas em questes de classe e sindicato sejam igualmente progressistas em ques-

    tes de gnero, sexualidade e raa), muitos professores tm intuies social e peda-

    gogicamente crticas. No entanto, quase nunca sabem como colocar essas intuiesna prtica, porque no conseguem imagin-las em operao nas situaes do dia-a-dia. Por causa disso, percepes terico-crticas e polticas no tm onde se encai-

    xar, em termos de sua corporificao, em situaes pedaggicas concretas, nas quaisas polticas de currculo e ensino tm de ser aplicadas. Essa uma lacuna trgica, epreench-la de forma estratgica sem dvida fundamental. Assim, precisamosusar e ampliar os espaos em que as histrias pedaggicas crticas possam ser colo-cadas disposio para que no permaneam apenas no plano terico ou retrico.

    A publicao e ampla distribuio de Democratic Schools ilustram uma maneira dese usar e ampliar tais espaos de forma que as posies educacionais crticas freirianase similares paream passveis de ser implementadas nas instituies normais taiscomo escolas e comunidades locais.

    Embora crucial, isso no suficiente para desconstruir as polticas de restau-rao na educao. A direita mostrou como as mudanas do senso comum soimportantes na luta pela educao. nossa tarefa ajudar a reconstru-la coletiva-

    mente, restabelecendo o sentimento de que uma tica densa e uma democraciadensa so verdadeiramente possveis na atualidade.

    Isso no pode ser feito sem darmos maior ateno a duas coisas. A primei-ra as transformaes materiais e ideolgicas que a direita efetuou , constituramum tpico central deste artigo. No entanto, h um outro elemento ao qual se devedar nfase a estruturao em larga escala de movimentos contra a hegemonia queligam as lutas educacionais quelas em outras frentes e tambm auxiliam na criao

    de novas lutas e na defesa das j existentes, dentro das prprias instituies educa-cionais. No contexto conservador atual h, contudo, caractersticas de alguns dosmateriais sobre pedagogia crtica que tornam essa ao mais difcil ainda.

    No passado, adverti para o fato de a poltica estilstica de alguns de nossostrabalhos mais avanados obrigar o leitor a fazer todo o trabalho (Apple, 1998,1999). Neologismo aps neologismo, reinam absolutos. Como Dennis Carlson eeu (1998) argumentamos em outro contexto, o discurso da pedagogia crtica nas

    formas freirianas e feministas vem sendo influenciado de forma crescente pelas teo-rias ps-modernas. Embora tenha sido muito til na reconceituao do campo esuas polticas, isso tambm exps o discurso crtica de ter-se tornado muito teri-

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    co, abstrato, esotrico e sem ligao com os conflitos e lutas em que professores,estudantes e ativistas atuam. Henry Giroux (1992) e outros defenderam tais discur-sos como necessrios na pedagogia crtica, pois para se reconstruir o mundo deve-se primeiro aprender a falar uma nova linguagem e novas idias requerem novos

    termos. Sem dvida isso correto. Na verdade, essa foi a posio que consciente-mente adotei quando apresentei as teorias de Gramsci e Habermas pela primeira

    vez na educao, no incio da dcada de 1970.No entanto, uma vez reconhecido isso, devido ao sucesso real da estratgia

    de falar com clareza adotada pelos neoliberais e neoconservadores, algumas dascrticas feitas ao material sobre a pedagogia crtica so convincentes. Embora grandeparte desse material seja rico e provocativo, parte dele conceitual e politicamenteconfuso, e provoca confuso. Parte dele est distanciado das materialidades terrenasdas lutas educacionais/culturais, polticas e econmicas do dia-a-dia. Parte dele ro-mantizao aspecto cultural custa de tradies igualmente poderosas de anlisesque se baseiam na economia e no Estado. E parte dele coloca tantanfase no psque se esquece das realidades estruturais que impem limites a pessoas reais, eminstituies reais, no dia-a-dia.

    Dessa forma, como muitos analistas tm afirmado repetidamente, neces-srio um esforo muito maior para enraizar o discurso da pedagogia crtica nas lutas

    concretas de grupos diversos e identificveis. Grande parte desse material precisadesqualificar bem menos as tradies anteriores teoria crtica que, com razo,continuam a influenciar ativistas educacionais e culturais. Igualmente importante,como observei h pouco, a necessidade de tornar muito mais visvel do que

    temos sido capazes de faz-lo aquilo em que as pedagogias crticas se assemelhamna realidade, quando colocadas em prtica no apenas em suas elaboraes te-ricas. Infelizmente, conquanto no se possa dizer que as mobilizaes de direita

    obtiveram pouco sucesso na criao de um senso comum reacionrio sobre educa-o (e at mesmo entre muitos educadores), temos de admitir que os estiloslingsticos de grande parte dos trabalhos da teoria crtica so rotulados de arrogan-

    tes (algumas vezes com propriedade) e isolam-se a si mesmos dos muitos profes-sores e ativistas radicais que desejariam apoi-los.

    tarefa rdua a de no ser descuidado. tarefa rdua escrever de forma queas nuanas polticas e tericas no sejam sacrificadas no altar do senso comum, mas

    tambm de forma que o trabalho rduo da leitura possa realmente valer a penapara quem l. E uma tarefa rdua e demorada escrever em mltiplos nveis. Masse no o fizermos, os neoliberais e neoconservadores o faro. E ficaremos numa

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