pobres e nojentas - número 2

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Pobres & Nojentas - Julho de 2006 1

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Revista de Reportagem produzida por um grupo de jornalistas em Florianópolis/SC

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Pobres & Nojentas - Julho de 2006 1

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Pobres & Nojentas - Julho de 2006 3

Foi uma surpresa. Derepente, de lugaresnão imaginados fo-ram surgindo mulhe-

res e pedidos. O que era in-tuído ficou explícito. As “po-bres e nojentas” vivem emtodos os rincões deste Bra-sil, conquistando seus espa-ços, fazendo arte, provocan-do rebeliões, existindo, in-ventando, criando. E o queera para ser só uma revistaparoquial criou asas, dispa-rou, rompeu céus e barrei-ras, alcançando, inclusive, ocoração dos homens.

Agora, aqui estamos nodesafio da revista númerodois. Nela, incluímos aindaoutros seres, tão especiais

quanto homens ou mulheres:os bichos. Porque a vida quevive é o que temos de reve-renciar, sempre na busca daEko Porã, vida boa e bonitapara todos. Para todos mes-mo. Porque sonhamos como dia em que os oprimidoslibertarão os opressores, porobra e graça da luta renhi-da. Porque aos empobreci-dos ninguém dá nada. Tudoé conquistado, inclusive anova sociedade que construi-remos.

Esta edição que agoraentregamos às gentes detodo o Brasil fala de mulhe-res do ontem e do hoje, falados povos originários que in-sistem em resistir, de ho-

mens que lutam, do povo semterra, mas com esperança,dos animais que comparti-lham a vida conosco, emcomunhão. A P&N se es-praia, divide poemas, acolheas palavras de outros e ou-tras “compas” que se apres-saram em enviar seus tex-tos, doidos por se expressar.E assim seguimos, criandoespaços para a palavra não-dita que, agora, aqui, grita.Nestas páginas, vão os mal-ditos. Que por força da ou-sadia se bem-dizem! E as-sim caminham para o gran-de meio-dia...

Elaine TavaresMíriam Santini de AbreuEditoras

F

www.geocities.com/pobresenojentas

Pobres & Nojentas digitalPor Elaine TavaresJá está no ar a página di-

gital da nova publicação ca-tarinense Pobres & Nojentas,lançada no final do mês deabril. A revista, que teve emseu primeiro número uma tira-gem de apenas 500 exempla-res e foi financiada totalmentepela equipe da Companhiados Loucos, veio para mostraraquelas que nunca visitaram ailha de Caras, mas que, comseu trabalho e sua luta, cons-troem o mundo real.

A proposta dos jornalis-tas envolvidos no projeto éjustamente mostrar, numaperspectiva de gênero eclasse, que os empobrecidostambém criam, sonham, re-alizam e propõem. Na vidaque viceja nas estradas se-cundárias, longe dos gabine-tes e do ar-condicionado, asgentes do Brasil têm agoraum espaço para contar suashistórias e para refletir osmotivos de seu empobreci-mento. A desigualdade, que

torna o Brasil uma espéciede campeão mundial nessequesito, não acontece poracaso nem brota misteriosa-mente do chão. Ela é frutode um modelo de reprodu-ção da vida em que para umviver outro precisa morrer.Esses dramas e dilemas sãoos que estão retratados naspáginas da revista. Históriasde mulheres e homens, espé-cimes do gênero humano, quesão o foco do trabalho.

A página digital, desenvol-

vida por Eduardo MustafaVianna, está à disposição da-queles que quiserem se aven-turar a mergulhar na vidamesma, real, profunda, dospobres e nojentos. Ou seja,daqueles que, apesar da suacondição de classe, não sedobram, não se rendem, ecaminham, seguros, na dire-ção do grande meio-dia.

A Pobres & Nojentas di-gital pode ser vista no ende-reço: www.geocities.com/pobresenojentas

eDITORIA

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4 Pobres & Nojentas - Julho de 2006

Carreteiroa rigor

cARTAS

As revistas chegaram!É linda, nem um pouco pobre, mas parece bem nojen-

tinha mesmo! PARABÉNS!!!!Vai ser minha leitura e de minha filha, no fim de sema-

na! E vou repartir com as amigas, as blogueiras, etc, paradivulgar bem! Então vamos em frente!

Ana MariaMacapá/Amapá

Cerca de 140 revistasvendidas foi o resultado dolançamento da primeira edi-ção da revista Pobres &Nojentas, no dia 27 de abril,na sede da Associação dosServidores da UFSC.

A preparação do carre-teiro e das saladas ficou porconta de José de Assis Fi-lho. Muita gente apareceu

porque leu sobre a revistaem jornais de Florianópolise identificou-se com o per-fil da nova publicação.

O destaque foi a jorna-lista do Sindicato dos Ban-cários de Florianópolis, Ja-nice Miranda, que alugouroupas em um brechó e es-tava vestida no melhor esti-lo de “pobres e nojentas”.

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Prezada Raquel:A loucura que vocês

estão propondo é a mes-ma que Erasmo de Rot-terdam elogiou, meio mi-lênio atrás. Loucura egré-gia, vital, oxigenadora dementes. Que a revista te-nha sucesso e vida longa.Loucamente.

Um abraço,

Lúcio Flávio Pinto -jornalista e sociólogo,

editor do Jornal Pessoal

Cara Elaine,

Recebi a revista e gos-tei muito da proposta.Você e seus companheirossão, realmente, guerreirosda palavra. Se numa re-gião rica como a sua exis-tem Jussaras, Darcys, Olí-vias e Idas, imagine naminha, nesse Nordeste detantas injustiças...

Parabéns pela iniciativa!Vou divulgar ao máximo otrabalho.

Lourdinha DantasJoão Pessoa/Paraíba

Acabo de ler no Comu-nique-se a notícia do lan-çamento da revista Pobres& Nojentas. A gente tam-bém acredita na possibili-dade de um mundo quenão se dobra à religião doconsumismo, mas luta porvalores novos, por trans-formação social, pela pos-sibilidade de pensar e dei-xar pensar. Muito sucessocom o projeto!

Suzel TunesSão Paulo

Janice: noclima

da revista

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A cor da pele é vermelha, os olhos são negros e puxados, os cabelos, escurose grossos. Quem chega caminhando pela localidade de Conquista - Barra do Sul/SC, de longe já vê as primeiras crianças à beira da estrada, com roupas bemsimples, artesanato colorido nas mãos. São os Guarani, da aldeia “Tekové Ma-reã”, que na língua originária significa: “que jamais se acabe”.

A comunidade é uma das tantas espalhadas por Santa Catarina e nela vivemcerca de trinta pessoas, a maioria formada por crianças e adolescentes. Estãosempre por ali, brincando, correndo de um lado para outro e conversando emGuarani, sua língua original, costume que o povo faz questão de preservar. Pare-cem estar sempre felizes, apesar das inúmeras dificuldades que enfrentam nodia-a-dia. A principal delas é a falta de alimentos pois muitas das famílias literal-mente não têm o que comer. Sobrevivem apenas do básico: arroz e feijão. Vez

“Que jamaisse acabe”

Por Ricardo Casarini Muzy

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Povo guarani resiste nabusca da terra sem males

Fotos: Ricardo Casarini Muzy

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ou outra conseguem algum vegetal ou frutas.O que segura a fome do povo é o “Budiapé”, um

pão feito só com água e farinha. Muitos dos alimentoschegam através de doações e a outra parte é compra-da com o dinheiro do artesanato, já que muito pouco setem cultivado no lugar. Faltam boa terra, ferramentas,sementes e até força para o trabalho, geralmente porcausa da fome.

As famílias que vivem nessa aldeia vieram de ou-tros lugares: Biguaçu, Morro dos Cavalos, Florianópo-lis. São nativos de Santa Catarina e a maioria é Guaranipuro, ali não se vêem mestiços. A aldeia é nova, existehá mais ou menos seis anos e o povo luta pela demarca-ção e homologação de suas terras, briga igual a que étravada por outras comunidades autóctones do Estado.

Quem lidera o grupo de Tekové Mareã é uma mu-lher, a cacique Arminda, que vive numa pequena casacom filhos e netos. O vice-cacique é Werá-Mirim, Gua-rani genuíno, nativo da ilha de Florianópolis, e que jáfoi cacique em várias aldeias espalhadas pelo Esta-do. Não faz muito tempo que ele e a família chega-ram na Tekové Mareã para firmar a nova morada.Junto à companheira Rose, aos filhos e aos netos elese instalou numa das casinhas da aldeia e, agora as-sociados aos outros moradores, tentam construir umanova comunidade.

Desde criança Werá foi guerreiro, o pai era Kraí(curador ou curandeiro que conhece as ervas medici-nais e tem conexão com o astral) e cacique da aldeiaem que nasceu. Com ele aprendeu muitas coisas, mas,infelizmente, o perdeu muito cedo, tal qual a mãe. Aos12 anos já vivia sozinho e, com a construção da BR-101, começou a trabalhar para os brancos, que maistarde o levaram para estudar e trabalhar na capital.

O garoto Werá nunca se acostumou com a cidade.Sofria. Ele conta que tinha que trabalhar como escra-vo - e ainda apanhava - para se manter na cidade econtinuar freqüentando a escola. Essa situação o le-vou a abandonar os estudos e voltar à aldeia para vi-ver livre no meio dos Guarani, seus irmãos. Na cidadeaprendeu a ler e escrever o português, além de traba-lhar com ferramentas e trator.

Como já tinha o conhecimento ancestral das cons-truções, acabou se tornando um grande construtor nomeio do seu povo. Ele até já perdeu as contas de quan-tas casas construiu. Sempre lutou para conservar as

tradições típicas do povo Guarani, e sua posição críti-ca em relação ao comportamento dos índios e à influ-ência dos brancos em sua cultura já lhe custou entrarem várias confusões e discordâncias com seu povo.Por isso, mudou de aldeia muitas vezes. Nunca acei-tou a posição subalterna dos índios na sociedade.

Werá se diz completamente contra as instituiçõesque trabalham com os índios porque, segundo ele, amaioria delas prestam serviços totalmente assistenci-ais e nada fazem para provocar a verdadeira liberta-ção dos povos indígenas. Guerreiro que é, nunca de-siste e, agora, nessa nova proposta na localidade deConquista, sonha com uma organização Guarani queseja capaz de dar condições dignas para seu povo vi-ver de acordo com suas crenças e tradições. As visi-tas à cidade já lhe proporcionaram amizade com al-guns brancos que reconhecem o valor da cultura Gua-rani e, vira-e-mexe, ele é convidado para dar algumapalestra em fóruns de educação ambiental e universi-dades.

Recentemente, no mês de junho, foi o instrutor numaoficina de etno-construção Guarani, organizada na ci-dade de Itajaí. O “Koty Nhembóe” (ensinamento so-bre casas) reuniu, num fim de semana, várias pessoasdispostas a aprender sobre a cultura desse povo origi-nário. Mas o que deixa o velho índio feliz mesmo sãoas vivências na aldeia. A vida mesma, cotidiana, daTekové Mareã.

O sol ainda nem apareceu e os galos já começam acantar. São muitos, andando de um lado para o outrocom suas penas coloridas. Circulam livremente entreos outros bichos: gatos, cães, pássaros e homens. O

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clima é frio neste início de junho, uma névoa densatoma conta do lugar. Werá se põe de pé e, em silêncio,caminha para acender a fogueira da qual vai brotar ocafé. Rose, as crianças e a maioria dos outros índiostambém despertam bem cedo e, prontamente, come-çam a se ocupar dos afazeres. Uns buscam água, ou-tros se banham para ir à escola, os pequenos come-çam a brincar.

O jogo de futebol é engraçado. É cada um por si, enão existem muitas regras. Vale empurrão, não temsaída de bola e se não dá para tocar a bola com ospés vai com as mãos mesmo. Eles estão mais preo-cupados com a diversão do que em competir. O jogoé sempre uma gritaria e ouvem-se muitas gargalha-das. O calendário Guarani nada tem a ver com o gre-goriano, instituído na maioria do planeta. Eles seguema natureza. Sol, lua, estrelas. Há dias em que elestrabalham, em outros não. Há época de plantio e decolheita. Eles seguem o ritmo do tempo natural, sem-pre interagindo com os outros animais, as plantas etodos os seres da natureza. Os Guarani vivem emsintonia com o todo.

No fim da tarde Werá reúne a família para con-versar e contemplar o pôr-do-sol. Ali eles realizam oritual com “pentenguá”, que é o cachimbo Guarani,onde é queimado o tabaco, outra tradição mantidapor eles. Mas emocionante mesmo é a reza que acon-tece à noite na “Opã”, casa de reza Guarani, uma

hinos que louvam a terra, a água, os animais da flores-ta e principalmente a “Ñanderú”(Deus). Toda anoite a Opã fica tomada por fumaça e uma vibra-ção forte que vem do astral. O calor do fogo aque-ce as almas e os corações do povo reunido emoração. As letras em Guarani evocam as suas ori-gens, e o amor que flui entre todos é o combustí-vel para enfrentarem todos os dias as dificulda-des que sofrem, por serem índios, pobres e exclu-ídos da vida digna deste país.

Os Guarani lá da Conquista, da Tekové Mareã, tale qual tantos outros irmãos perdidos pelo Brasil, nãoquerem muito. Apenas o que lhes pertence por direito:terra para viver, alimentos e dignidade, o sonho coleti-vo da Eko Porã - vida boa e bonita para todos.

construção simples,feita de barro, bambue palha. Nela, todos sereúnem em volta deuma fogueira, e alipassam horas com opetenguá, cantando osseus hinos ancestrais.

Tekové Mareã tam-bém é o nome do coralGuarani formado naaldeia. Os jovens ho-mens tocam os instru-mentos - violão, rabe-ca e maracá - e pu-xam os hinos. As mu-lheres ficam de pé e demãos dadas cantam os

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Por Marcela Cornelli

A força deuma mulher

Perfil

Sabe aquelas pessoas quevocê encontra pela vida e queiluminam tudo por onde pas-sam? Aquelas pessoas quetinham tudo para “dar erra-do” na vida? Que podiam se

tornar seres humanos dealma amargurada devido aosespinhos que sempre estive-ram presentes no seu cami-nho? Mas que - contrariandoa tudo e a todos, a este siste-ma cruel, frio, egoísta, no

qual as portas se abrem paraos que têm posses e dinheiroe se fecham, ou ficam maisdistantes, para os pobres, oshumildes - persistem, lutam,perseveram e vencem. Maisque isso. São plenamente fe-

lizes e amam a vida. Pois éeste tipo de pessoa que esteperfil retrata. Uma mulher,mãe, lutadora, pobre, sim,mas também uma nojenta, da-quelas que não desistem nun-ca e que mostram à vida, aodestino, que o amor e a von-tade de viver fazem a dife-rença num mundo de desi-gualdades e injustiças.

Brunildes Hoefelmann daSilva, ou Bruna, como é cha-mada por todos, é hoje dire-tora de uma escola na qualdesenvolve vários trabalhosque buscam resgatar a iden-tidade e a dignidade de paise alunos de uma comunidade

“Lá estão elas rompendo a estrada.

Deixam distantes dias risonhos.

Já desistiram dos contos de fadas.

Hoje cultivam os seus próprios sonhos.”

Augusto Cacá

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Bruna forjou sonhos com determinação

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humilde no interior da cida-de de Brusque, no Vale doItajaí, em Santa Catarina.Mas para chegar até ondeestá hoje, percorreu um lon-go caminho. Desde a infân-cia pobre, marcada por ce-nas de violência protagoni-zadas pelo pai alcoólatra,passando por diversas difi-culdades, trabalhando desdeos nove anos na lida na roça,como empregada doméstica,lavadeira, até alcançar umsonho de menina: ser profes-sora, ensinar, cuidar de cri-anças especiais, reergueruma escola e fazer da edu-cação um bem para todos.“Sempre dizia aos meus fi-lhos desde pequenos, quan-do os levava a bibliotecas,que dinheiro, riquezas nósnão tínhamos, mas que oconhecimento poderíamosadquirir e que este ninguémtiraria deles”.

Hoje é mãe de quatro fi-lhos. O mais novo, filho deum de seus irmãos, tambémcom problemas com a bebi-da, foi adotado por Brunaquando a mãe faleceu. Bru-na sempre teve pouco, maseste pouco se multiplica di-ante dos pedidos de ajudados irmãos, da família, dosamigos e até de desconhe-cidos. Aos 34 anos, já mãe etrabalhando como lavadeirano Sesi da cidade, tendo so-mente a quarta série do pri-meiro grau completa, ela vol-tou a estudar. Terminou o pri-mário fazendo supletivo ànoite e, ao mesmo tempo,

iniciou o magistério pela ma-nhã. A estrada percorridapor Bruna foi longa. Duasvezes por semana ela faziauma distância de 10 quilôme-tros de bicicleta até a escolaonde cursava magistério. Àtarde, trabalhava e, à noite,cursava o supletivo. Os fi-lhos já adolescentes se vira-vam como podiam na ausên-cia da mãe, muitas vezes nãocompreendida pelo marido.

Da infância pobre na lo-calidade de Rio Branco, in-terior de Brusque, ela lem-bra que nunca brincava. Aju-dava a mãe na roça, no plan-tio de milho, para fazer a fa-rinha de fubá, e da batatadoce, alimentos que ameni-zavam as dificuldades parasaciar a fome dos dez ir-mãos. Vivia numa casa sim-ples, de madeira, que tinhacinco camas de palha, divi-didas por 13 pessoas, Bru-na, os irmãos e irmãs, a mãe,dona de casa, e o pai, o pri-meiro motorista de caminhãoda localidade, que ensinou aquase todos os vizinhos seuofício. “Na casa também ti-nha um fogão a lenha e umguarda-comidas. O guarda-comidas era muito sagradoe valioso para nós, mas namaioria das vezes estavavazio. Num quarto ficavauma gamela onde tomáva-mos banho, com água depoço”.

Aos sete anos, Bruna fre-qüentava uma escolinha dalocalidade. Mas a meninapobre, que ajudava a criar os

irmãos, a capinar na lavou-ra, a limpar a casa, que pro-tegia a mãe da violência dopai, não sabia ler nem escre-ver e nem falava uma sópalavra em português. Aexemplo de muitas famíliasda localidade, na casa deBruna só se falava o alemão.Na época, por volta de 1962,o alemão foi proibido e, na-quela pequena colônia de ale-mães, em Brusque, as crian-ças começaram a aprendero português em sala de aula.

“Meu pai alcoólatra mui-tas vezes chegava do traba-lho bêbado e fazia todos cor-rerem pra fora de casa”.Mas Bruna sempre voltavapara proteger a mãe. Umacena marcou seus oito anos.O pai tentou pôr fogo nacasa com a mãe dentro. Bru-na então disse que primeiroele teria que pôr fogo nelae ameaçou ela mesma ate-ar-se fogo. O pai desistiu.

“Não sei o que é brincar,não tive infância. Recupereia vontade de brincar quan-do nasceram meus filhos.Mesmo nos tempos mais di-fíceis nunca deixei de abra-çá-los, beijá-los e brincarcom eles todo tempo que eupodia”.

Aos nove anos foi traba-lhar como empregada do-méstica para a família maisabastada da região. Daí lar-gou os estudos na quarta sé-rie, só vindo a retomá-losanos mais tarde. O dinheiroque ganhava dava para com-prar o trigo e açúcar do mês.

A infância dura e asdificuldades nunca

impediramBruna de sonhar

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Como empregada, além delimpar a casa e cuidar dascrianças, selava os cavalos,tirava o leite das vacas, capi-nava o terreno, ajudava naroça. Um verdadeiro traba-lho escravo para a menina denove anos que sonhava emser professora. Para que seussonhos fossem atendidos, elarezava no porão de casa, di-ante de um pilar de madeira,pois o pai proibia a mãe e osfilhos de irem à igreja. Reli-giosa, hoje freqüentadora daigreja evangélica luterana,Bruna diz que na sua vida“aconteceram alguns mila-gres”. E ela tem razão.

Dos 11 aos 15 anos, tra-

balhou como empregada do-méstica para outra família,desta vez no centro da cida-de. A escola, a infância, osonho de ser professora, tudoparecia ficar cada vez maisdistante. A casa era de trêsandares. Bruna limpava tudoe ainda tomava conta de umbebê que levava, como as ín-dias, amarrado em suas cos-tas, para que ele não choras-se muito. Aos 14 anos ela di-vidiu o trabalho de domésti-ca com outro emprego comooperária numa empresa decigarros da região.

Aos 17 anos se casou eaos 18 teve o primeiro filho.Mais tarde Bruna adotou seusobrinho. Quando se casou,Bruna e o marido foram serzeladores da Apae da cidadee ali viveram, num quartinhonos fundos da entidade, pormuitos anos. “Éramos felizeslá. O terreno da Apae eragrande, na época tudo eramuito preservado e tínhamosvários bichos no quintal decasa, tartarugas, zurilhos, pa-tos, marrecos”. De zeladorada Apae ela foi trabalharcomo lavadeira no Sesi. Nas-ceram mais dois filhos. A ter-ceira, uma menina. Grávidade dois meses da menina,Bruna descobriu que tinha ru-béola. Os médicos e familia-res aconselharam o aborto.Muitos não aceitavam o fatode a criança poder nascercom problemas. A mãe nãoqueria realizar o aborto e co-meçou aí uma longa batalha.Algo parecia avisar que a cri-

ança viria bem. Quando che-gava ao hospital para fazer oaborto, o médico nunca esta-va. Outro médico, no dia derealizar o aborto, perdeu amãe num acidente de carroe desmarcou. Finalmente umterceiro médico disse para elater o bebê. Contrariando atudo e a todos, ela resolveu nãoabortar e acolher sua filha.Bruna não chorou durante oparto, porque havia prometi-do que não derramaria umalágrima se a criança viessecom saúde. Emocionada, dizque a filha veio não só comsaúde, mas era um lindo bebê.

Já com 34 anos, em 1983,Bruna ainda não havia perdi-do as esperanças de voltar aestudar e melhorar de vida.“Às vezes não tinha dinheiropara dar uma bala aos meusfilhos, mas amor nunca fal-tou. Eu sabia que não podiadesistir, porque senão o bar-co todo afundava comigo”.Mais uma vez, contrariandoquem achava que ela nãopodia ir mais longe, Brunaescreveu num papel: “1986.Sou uma professora forma-da,” e iniciou mais uma jor-nada de superação. Traba-lhando, cuidando dos filhos,fazendo o supletivo paracompletar o primeiro grau eao mesmo tempo iniciar omagistério. Em 86 terminouo supletivo e conseguiu, atra-vés de um professor da redepública, seu primeiro empre-go como professora, auxilian-do as crianças da primeirasérie de uma escolinha do in-

Em 1986, a profeciaestava cumprida:

Bruna era professora

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terior, dando aulas de refor-ço. Como uma profecia cum-prida, em 1986 Bruna era,sim, professora. Em 88 for-mou-se no magistério.

Educadora e sonhadora,Bruna diz que ainda faltamuito a fazer pela educaçãona sua cidade, no bairro daLimeira onde trabalha, nopaís. Mas a resposta, quan-do se busca mais apoio finan-ceiro para investir na escola,é quase sempre a mesma:não tem dinheiro. Ela sabeque o trabalho que faz hojecomo diretora da escola ecom as famílias da comuni-dade – muitos pais jovens de25, 27 anos mal conseguemler e escrever – ainda enga-tinha até porque falta com-promisso do poder público.Mesmo com verbas escas-sas, a escola, que tinha 66alunos quando Bruna assu-miu a direção, hoje já aten-de 178 crianças, desenvolveprogramas de educação am-biental e de alfabetização eaulas de 5ª a 8ª séries paraadultos. Através destes pro-jetos e de outros desenvol-vidos pela escola, Bruna, osprofessores e os funcionári-os vão ajudando a construirum futuro melhor, com maisoportunidades para criançase adolescentes da comunida-de, oferecendo também au-las de teatro, poesia e arte-sanato com material recicla-do na própria escola.

Seria impossível aqui con-tar toda a luta desta mulherque, mesmo com dificulda-

des em casa, separada docompanheiro que muitas ve-zes não compreendeu o ob-jetivo de sua jornada, nuncadesistiu de seus sonhos.Quando assumiu como dire-tora, ela fez graduação e es-pecialização em Pedagogia.Com 51 anos, vaidosa comotoda mulher, desfilou recen-temente como modelo parauma marca de roupa da ci-dade.

Pergunto a ela se istobasta, se está realizada.Olhando orgulhosa as duasmonografias encadernadasem preto com letras doura-das que segura no colo, eladiz: “Não, ainda não. Agorasonho em fazer Psicologia”.E alguém duvida que ela con-siga? “Compramos um ter-reno maior e agora já come-çamos a construir uma novaescola no local, onde quere-mos fazer uma horta e plan-tar árvores frutíferas, para,além de incentivar o cuida-do com o meio ambiente,usar esses alimentos na me-renda dos alunos. Ainda hámuito o que fazer”.

Questiono se ela nuncapensou em desistir, em lar-gar tudo. “Pensei várias ve-zes em desistir. Mas uma for-ça dessas que a gente tiranão sei da onde, creio que dafé e do amor aos filhos, mefez seguir. Muitos dos meusobjetivos foram alcançados.Hoje me realizo principal-mente vendo meus filhos seformando em faculdades,como eu sempre sonhei”.

Foi nas férias de verão que comecei a notar. Amanhã se embalava como numa rede, naquele nada-tudo por fazer. Então chegavam as 11 horas e vinha,dumas casas lá perto do cemitério São Cristóvão, ocanto de um galinho. E desde então eu sei: ele ama-nhece comigo.

O calor passou, foi-se também o outono, e nasmanhãs em que posso sair tarde da cama, eu esperoaquele cocorocóóó singrando o ar para atravessar apracinha e entrar pela minha janela. E sorrio toda vezque isso acontece: o meu galinho não me falha. Eu eele gostamos de acordar tarde, bem tarde.

Madrugada dessas, umas quatro da manhã, o sonosumiu e despertei. Encantada, ouvi o som familiar, sóque rouco, decerto também insone. Passados unsminutos, o silêncio. Às vezes, tenho vontade de des-cer a rua e procurar o dorminhoco. Bater nas portasdas casas e perguntar: - Olá, é aqui que mora umgalo? Mas penso melhor e fico a olhar pela janela, sóescutando. Gosto de pensar que eu e o meu galinhosomos estranhos personagens de um conto de fadasurbano.

MinicrônicaO galinho das onze

Por Míriam de Abreu

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12 Pobres & Nojentas - Julho de 2006

A nave dos inocentesPor Urda Alice Klueger

Crônica

A estrada era de barro ede pedra e de pó, mas tudo issodesaparecia numa baixa nu-vem de bruma, bem rasinhacom o chão, a ponto de a gen-te se esquecer de pensar se osvelhos pneus da Kombi iriamresistir aos pedregulhos pontu-dos ou não – na Kombi velha,que já deveria estar aposenta-da se cá não fosse o mais legí-timo terceiro mundo (e estácheinho de gente que acha queo Sul é diferente, pitéu de pri-meiro mundo), um bando depequenos anjos como que agi-tavam suas tênues asas emforma de sorrisos, e ao olharpara eles, quem é que ainda iapensar em coisas como pneuse pedregulhos?

Ela viajava adiante do car-ro aonde eu estava, a Nave dosInocentes, e apesar de sermais de três horas da madru-gada e da estrada inóspita,cada pequeno anjo daquelessorria e abanava para nós, e aKombi tinha as luzes internasacesas, decerto para que ne-nhum anjinho chegasse a sen-tir medo, e eles eram tantos,mas tantos, que não sei comocabiam todos ali, meninos e me-

ninas de 3, de 4, de 6 anos, tal-vez, anjinhos com carinhas ca-boclas, com carinhas italianas,com carinhas alemãs, verdadei-ros anjinhos brasileiros flutuan-do na névoa dentro daquelaNave que os levava em dire-ção do Futuro, e sua alegria efarra eram coisas impressio-nantes! No carro onde eu via-java alguém lembrou que se tra-tavam de anjinhos que raras ve-zes andavam de carro, que de-certo dali vinha sua alegria – enós abanávamos e eles nos aba-navam e riam, e aquela Navedos Inocentes era como queuma coisa irreal a flutuar na noi-te, como se fosse um sonho lin-do que alguém estivesse tendo,e na verdade, era um Sonho.

Quando eu contar qual erao Sonho, metade dos leitoresnão vai mais querer ler o restoda crônica, mas, vá lá: eu se-guia a Nave dos Inocentes, enos dirigíamos todos, num com-boio que só aumentava, em di-reção de uma das fazendas deterras arrasadas (há fotos paracomprovar o arrasamento dasterras) que fazia parte do mai-or latifúndio do meu Estado,para ocupá-lo. E, diante denós, como numa irrealidade, a

Nave dos Inocentes navega-va em direção ao Sonho e aoFuturo.

Andei quebrando um bra-ço e ele ainda não está bembom; assim, sabia que apesarde estar fazendo parte de umaequipe de apoio, pouco pode-ria ajudar a carregar e fazeroutras coisas para aquelas 500famílias que seguiam para aocupação. Então pensei nosanjinhos que abanavam na ve-lha Kombi – e se, na hora emque a Kombi parasse, seus paisnão estivessem a postos? Qua-tro horas da manhã é um ho-rário muito tardio para meni-nos e meninas tão pequenosestarem naquela farra toda –havia que se pensar no queaconteceria se algum sobras-se na Nave. E já que estavasem muita força física, penseiem usar a força do coração, eficar de guarda para quando aNave dos Inocentes parasse,amparar junto ao peito algumanjinho que começasse a cho-rar. E foi o que fiz.

Assim que chegamos àárea que estava sendo ocupa-da, tratei de sair do carro ondeestava e ir ver o que aconteciana Kombi. Como eu, um ma-

gote de adultos seguiu para amesma porta, e todos eram ca-sais, e muitos tinham bebezi-nhos ao colo, e quase todoseram feios, mal-vestidos, judia-dos pela vida, envelhecidos pre-maturamente, sem nada de seualém daquelas crianças que co-meçaram a sair da Nave. E en-tão eles gritavam coisas assim:

- Segura na mão do Luizi-nho, e tu na mão do Antonio,não se soltem!

E cada casal arrebanhavaalguns anjinhos, às vezes três,às vezes quatro, e os coloca-vam numa enfiada de mãosdadas, preciosos colares de cri-anças que eram as suas jóiasmais preciosas, as únicas jóiasdas suas vidas sofridas. Em coi-sa de um instante a Nave dosInocentes estava vazia – nãosobrara nenhum anjinho paraeu acalentar junto ao coração.E então eu soube que aquelagente jamais sairia dali a não serpor algum acordo feito por umbom juiz; que não haveria sol-dado, cachorro ou canhão queenfrentasse gente que tinhacolares de tais preciosidades,gente determinada a tudo paragarantir as suas jóias.Blumenau, 20 de abril de 2004.

Rumo ao Sonho e ao Futuro

12 Pobres & Nojentas - Julho de 2006

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Pobres & Nojentas - Julho de 2006 13

Era uma festa particular, na cidade de Rio Branco, Acre.Nela, encontrei um homem baixo, de longos cabelos bran-cos e cacheados. Já tínhamos nos visto mais cedo, naquelemesmo dia, numa apresentação musical chamada “Bocade Mulher”, que acontecera no Teatro Plácido de Castro.Lá, ele havia me cumprimentado como se me conhecesse,e eu respondi, sentindo que havia uma certa conexão.

Então, mais tarde, na festa, ele veio até mim e explicouque, no teatro, achou que eu fosse outra pessoa. Mas aí aconversa fluiu e ele começou a contar suas histórias. Disseque era artesão e vendia “trampo” (colares, pulseiras, etc.)para sobreviver, até que teve um sério problema na vistaque o obrigou a abandonar a profissão. Naqueles dias deconfusão, pediu a Deus que o orientasse quanto ao que fa-zer da vida. Como poderia, naquela altura, mudar de profis-são? O que faria? Foi quando veio a “resposta”: ele deveriacompor canções. Esse sentimento soou estranho, pois atéentão não sabia tocar nenhum instrumento musical, apesarde já ter composto belas canções para sua religião. Mas, ofato é que Zé Kleuber, hoje com 56 anos, entendeu a men-sagem, se sustenta como compositor e até já ganhou algunsprêmios em festivais, em diferentes partes do Brasil.

Desde o começo da conversa algo me chamou muito aatenção em Kleuber: o seu colar. Parecia feito com semen-tes de aguaí. Ao longo do papo eu fiquei examinando paraver se realmente eram essas sementes. Então lhe pergun-tei. Ele deu uma risada, tirou o colar e o colocou em minhasmãos, indagando se eu conhecia a história desta semente.

Zé Kluebere a semente

Por Thomas Bisinger

“Castanha elétrica” revela opoder dos frutos da floresta

Compositor seprotege das cobrascom sementes deaguaí amarradasnum cordãode palha

Fotos: Thomas Bisinger

Natur

eza

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Respondi que não, mas que sabia de sua força. Etambém disse que nunca havia visto aquela varieda-de, “mini”, aliás, muito charmosa.

Kleuber seguiu contando sua história. Que nas-ceu em Pernambuco e cresceu no Maranhão. Lá peloano de 1974 saiu a viajar com amigos e foram an-dando desde Rio Branco, no leste do Acre, até Cru-zeiro do Sul, no oeste. Diz ele que, pela estrada, en-contraram uma cobra que fazia movimentos amea-çadores. Na dúvida, a mataram com uma pequenaespingarda que tinham. Foi quando apareceu ummenino.

Eles nem tinham percebido que havia casas alipor perto - era muita mata. As casas eram de serin-gueiros. O menino indicou como chegar numa casa eeles foram até lá, sendo muito bem recebidos. Já ládentro, conversando, contaram que haviam matadouma cobra no caminho e o menino, que fora ver obicho, disse que aquela lá não era venenosa, e sim dotipo que come as venenosas. Kleuber lembra que fi-cou bem mal com isso. Não gostava de matar ani-mais, ainda mais sendo inofensivos. Mas nada haviapara fazer. Almoçaram e continuaram a viagem.

Mais adiante encontraram índios que acampavamno caminho e, numa conversa, Kleuber contou dacobra e do sentimento que o incomodava. Então umaíndia levantou e foi buscar algo. Voltou com uma se-mente de aguaí amarrada num cordão de palha. Dis-se que por conta do feito, as cobras iriam lhe perse-guir e, por isso, deveria usar aquele cordão amarradona cintura, abaixo do umbigo, para proteção. Semdiscutir, ele o fez. Além do quê aquela semente ofazia lembrar da infância, no Maranhão, quando brin-cava com o fruto verde e macio, fincando graveti-nhos em sua carne para imitar animais.

No dia seguinte, estavam andando pela trilha, emfila indiana, quando Kleuber ouviu o ruído de umacobra se aproximando. Vinha na sua direção, mas,de repente, deu meia volta e sumiu na mata. Era osortilégio da índia fazendo efeito.

Tempos depois ele ouviu falar de um certo doutorHenrique Smith que estudou esta semente e seus po-deres, e chegou a escrever um livro chamado Aguaí-Zen. O doutor, ao fazer a foto kirlian (foto da aura)da semente, verificou que ela tinha mesmo uma auramuito poderosa. Aquilo ficou marcado na sua lem-

brança e, então, certo dia, quando encontrou, sob umaárvore, estas mini-sementes de aguaí, conhecidas noAcre como “castanha elétrica”, não hesitou e imedi-atamente fez um colar. Disse que já ouviu históriassobre esse tipo de semente mini, que só aparece acada sete anos, mas ainda não conseguiu comprovar,de fato, qual a história desta variedade. Até hoje sóencontrou uma árvore que as produz assim, destetamanho. O certo é que pouco tempo atrás estavanuma situação onde apareceu outra cobra e ele re-solveu fazer um teste: rodeou a cobra com as “cas-tanhas elétricas”. Diz Kleuber que foi como mágica.A cobra ficou parada com a cabeça erguida até queveio alguém e a recolheu.

Zé Kleuber conta ainda que há várias maneirasde usar a semente, além de servir como espanta-cobra, inclusive utilizando o óleo que tem dentro dire-tamente sobre áreas doloridas do corpo. Mas deve-se tomar cuidado para não ingeri-la, pois o líquido dasemente e do fruto é venenoso. Outra coisa que eledescobriu com o tempo é que, para usar a sementeem contato com o corpo, é melhor que seja em áreasonde não há ossos muito expostos, pois isso pode pro-vocar dor. Foi aí que entendeu porque a índia dissepara usá-la abaixo do umbigo. Esse povo da florestatem mesmo sabedoria. Hoje, Zé Kleuber, assim comomuitos outros que conhecem o poder desta semente,sempre que pode a carrega no bolso ou no pescoço.É muito poder.

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Por AmbersonVieira de AssisCardiologista

O quenos leva aconside-rar que am u l h e rcuida me-nos que o homem do seucoração? A cada ano, nomundo, mais de 8 milhõesde mulheres morrem devi-do a uma doença ou ataquedo coração.

• 8 vezes mais que o nú-mero total de mortes por cân-cer de mama;

• 6 vezes mais que asmortes relacionadas com aAIDS;

• nos países em desenvol-vimento, a metade das mor-tes de mulheres de mais de50 anos se deve a doençasou ataque do coração.

Na verdade as mulherestêm suas doenças cardíacasmenos estudadas e menoscompreendidas. Um estudomostra, que 60% dos médi-cos acreditam que os ho-mens têm mais chances de

Menos estudadas, mais incompreendidas

morrerem subitamente devi-do a um ataque cardíaco,quando na verdade as mu-lheres morrem mais nessa si-tuação. A melhor maneira deprevenir essas doenças (an-gina, infarto) seria identifi-cando aqueles indivíduoscom maior risco de desen-volvê-las. Mudando hábitosde vida, combatendo a obe-sidade, fazendo uma ativi-dade física, deixando de fu-mar e, quando indicado,usando remédios (aspirina,redutores da pressão e docolesterol, etc) podemos di-minuir as possibilidades desofrer um ataque cardíaco.Entretanto, um terço dasmulheres não se beneficiamdas medidas preventivascontra estas doenças.

Cerca de 10% da popu-lação brasileira é portadorade pressão alta. Esta doen-ça é perigosa, porque muitofreqüentemente é silenciosa- não apresenta sintomas. Amanutenção de níveis des-controlados de pressão porlongos períodos pode acar-retar alterações importantes

Saúd

e

Doenças cardíacas nas mulheres são deixadas em segundo

em vasos - artérias - de todoo organismo, podendo levara lesões cardíacas, renais,derrames cerebrais e altera-ções visuais. Outra medidafundamental para o contro-le da pressão é a reduçãodo sal na dieta. Entre ½ a 1colher de chá de sal por diaé uma quantidade suficien-te para as necessidades or-gânicas. No Brasil muitosconsomem até cinco vezesmais do que isso. Por isso,dispense o saleiro de mesa,cozinhe com pouco sal eevite alimentos industrializa-dos salgados. O controle depeso é também uma medidafundamental para o controleda hipertensão.

O diabetes é outra doen-ça crônica que leva a pro-blemas semelhantes, em vá-rios aspectos, aos descritospara a hipertensão. Seu con-trole envolve medidas dieté-ticas; medicações, quandoindicado, e atividade físicaregular. Uma dieta com pou-co açúcar pode diminuir osníveis de glicose - açúcar nosangue - e diminuir os trigli-

cerídeos - um dos tipos degorduras do sangue. Prefiraadoçantes, refrigerantes ealimentos dietéticos.

O colesterol é uma gor-dura presente nos alimentosde origem animal que des-sa forma não deve ser con-sumido em excesso. Masatenção, algumas pessoasproduzem mais colesterolque os demais, mesmo quetenham uma dieta pobre emgorduras.

O tabagismo, uma “autointoxicação” voluntária,com milhares de substânci-as nocivas, tem relação cla-ra com um sem número dedoenças pulmonares; cardí-acas; gastrintestinais; uriná-rias, dentre outras.

Os exercícios físicos re-gulares envolvem disciplina edeterminação. Comprovada-mente trazem grandes bene-fícios ao organismo - princi-palmente ao coração - porémdevem ser orientados, regu-lares e preferencialmenteaeróbicos - caminhadas, ci-clismo, natação, hidroginásti-ca, ciclismo dentre outros.

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Seu nome: Samuel. O en-contramos meio escondidodebaixo de um enorme cami-nhão que carrega papel. Es-tava quase marrom, da mes-ma cor que cobre tudo naperdida cidade de Susques,na puna argentina. Com umpano sujo, tocava aqui e alino coração da máquina, bus-

Rum

o a

o d

eserto

Com Samuel,pelos Andes...

Por Elaine Tavarescando achar o problema queo prendia naquele lugar. Es-tava atrasado e mal-humora-do. Susques é o portal dosAndes, cidade fronteiriçaonde está o posto da alfân-dega, e todos os caminhõesque cruzam a fronteira entreChile e Argentina têm que,obrigatoriamente, parar ali.

Por isso, era ali que tambémestávamos, na busca de umacarona para San Pedro deAtacama. Samuel já era oquarto caminhoneiro a serconsultado sobre a tal caro-na. “Não dá, tô quebrado”, foia resposta seca e incisiva.

Já eram onze da manhã,e a possibilidade de outroscaminhões passarem se es-vaía. O movimento maiorera sempre de manhãzinha.“Até o meio dia ainda podeaparecer alguém”, dizia Fer-nando, um dos fiscais da adu-ana, ansioso por nos ajudar.Mas, nos olhos dele, se per-cebia que as chances erampequenas. Teríamos que fi-car mais um dia em Susquese nosso sonho de chegar aodeserto ficava mais distan-te. Dali não saía ônibus nemnada. A única chance eramesmo um caminhão.

Os viajantes dividiram o pão e asdificuldades na subida ao Atacama

O argentino Horácio fez a foto do grupo: Marcela, Elaine, Samuel e Míriam

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Às onze e meia Samuelapareceu na aduana paraacertar os papéis. Iria arris-car atravessar a cordilheiracom o caminhão ruim. Nãopodia mais ficar ali. Estavaigual a nós. Com pressa dechegar ao Chile. Mas tinhamedo de levar caronas. A coi-sa podia ficar ruim. A cordi-lheira é traiçoeira e havia no-tícias de que estava nevandomais acima. “É arriscado”,balbuciava, enquanto Fernan-do insistia em convencê-lo anos levar. Então, foi vencido.E lá fomos nós, levando a re-boque o argentino Horácio,que voltava para a fronteiracom um galão de gasolina.Seu carro havia ficado lá, semcombustível. Seríamos cincoa subir os Andes no caminhãoavariado.

A intensa fumaça brancaque saia do “possante” deixa-va claro que, sem óleo, nãochegaríamos a lugar nenhum.Poucos quilômetros depois deSusques paramos num posto,o último de toda a travessiada cordilheira. Só havia qua-tro litros de óleo disponíveis.Compramos. Sim, nós, porqueSamuel estava tão quebradoquanto o caminhão. Há diasfora de casa e com o veículoavariado, já não lhe restavaqualquer tostão. Tossindo ecuspindo fumaça lá foi o ca-minhão pelas trilhas das mon-tanhas.

A travessia é solitária. Vezou outra, muito rara, aparecealguém. Geralmente os ca-minhões passam bem cedi-

nho e acaba-se encontran-do pouquíssimos carros depasseio. O trotezito do ca-minhão não saía dos 40, 30quilômetros por hora. Íamosrezando para que o óleo nãoevaporasse todinho. Mas,faltou santo. O barulhinhode pi, pi, pi, no painel davaconta de que era precisoparar. Na estrada, o vazio.Uma chuva forte. Desertototal. Os cinco desolados.Por milagre passou um ca-minhão e compramos maisquatro litros. Volta todomundo para o caminhão etoca a subir. Marcela come-ça a ter dor de dente e ri denervoso. Eu, que não haviacomido nada aquele dia,comecei a passar mal porcausa da altura. Na frente,Míriam seguia, impávida,de papo com Horácio, quecontava sobre Córdoba,sua cidade natal.

A duras penas chega-mos em Paso de Jama, afronteira, e ali deixamos ocompanheiro argentino.Seguimos a subida, o pos-sante cuspindo fumaça.Agora, na estrada de asfal-to, o que nos esperava eraa neve. Começou de repen-te e, num segundo, tudoestava coberto de gelo, in-clusive o caminhão. Bemnessa hora lá veio o baru-lhinho insistente, pi, pi, pi.De novo paramos. No meioda neve. Um frio de rachar.Só um milagre faria passaralguém àquela hora. Pois nãodemorou 10 minutos e logo

apontou um caminhão. Maisquatro litros de óleo. Vibrá-vamos com palmas e gritos.O caminhão seguiria seu rit-mo de completa lentidão.Samuel ria e contava umpouco de sua vida. Em 27anos de estrada, sempre fa-zendo a rota da cordilheira,nunca havia passado poraquele tipo de situação. Ca-sado e com três filhos, que-ria chegar logo em Calama,no Chile, onde esperavampor ele uma comidinha ca-seira e uma cama quente.Achava estranho o fato denós três sermos casadas eviajarmos sozinhas. “Lá noBrasil a gente é moderno”,brincava Míriam. E ele riaum riso que deixava anteverque lá no Chile não era as-sim não.

Como a jornada era lon-ga, dividíamos a pouca co-mida que tínhamos: um pãode sal pequeno que eu com-prara em Susques, cortadoem quatro pedaços, uma bar-ra de cereal, também corta-da em quatro e pedaços degengibre. Foi o que nos sus-tentou até o fim do dia. Nãoimaginávamos que levaría-mos mais de oito horas parafazer duzentos e poucosquilômetros até San Pedro.

Já ia caindo a noite eestávamos a 20 quilôme-tros de San Pedro. Pareciaque tudo iria dar certo. Che-garíamos, enfim. Mas o mal-fadado pi, pi, pi, de novo nosfez parar. Agora, não seriapossível um novo milagre.

O mal fadado pi,pi, pi, de novo nosfez parar. Agoranão seria possívelum novo milagre...

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Era pedir demais para osdeuses da cordilheira. Sa-muel disse que se, por ven-tura passasse alguém, seriamelhor a gente ir com a novacarona. Ele passaria a noiteali. Não aceitamos. Estáva-mos juntos e chegaríamosjuntos. O vento soprava comuma força descomunal. De-víamos estar a mais de qua-tro mil metros acima do ní-vel do mar. Ficamos, os qua-tro, dentro do caminhão, bus-cando nos aquecer com ocalor um do outro.

Então, no meio da ven-tania, como num milagre,assomou um carro branco,de passeio. Samuel des-ceu e pediu para que pa-rasse. Eram dois bolivianosque vinham na direção con-trária. Uma conversa rápi-da e Samuel trouxe a notí-cia. “Ellos van llevar laschicas”. Insistimos que se-ríamos solidárias, ficando,mas Samuel não quis. “Us-

tedes llegan en los carabi-nieri y ellos me ven ayu-dar”. Bom, assim, tudobem. Lá fomos nós com asmochilas para dentro docarro dos bolivianos, en-quanto Samuel ficava naestrada, acenando. Elesconversavam, nervosos.Na verdade, o motorista ti-nha vindo do posto da fron-teira. Tinha sido mandadode volta para a Bolívia por-que trazia um clandestino.Os guardas o obrigaram alevar o outro – que era umprimo – até a fronteira da-quele país. Mas eles havi-am decidido que o garotoficaria ali, no meio do de-serto, naquela ventania, eentraria no Chile a pé, deforma clandestina. “Uste-des no digan nada”, pedi-am, assustados. E nós,concordando, é claro, maisassustadas do que eles.

E foi assim que chega-mos ao Chile. No carro do

boliviano, que já estava en-crencado. A polícia, normal-mente mal-humorada, já nosmarcou. Revista total. Abremala, abre bolsa, abre bol-so. Éramos “suspeitas”. Eu,que trazia um saco de folhade coca no bolso, corri parao banheiro e me livrei detudo. Foi um momento detensão. Mais uma vez, foiSamuel quem nos salvou.Pedimos ao carabinieri quefosse ajudar o companhei-ro, chileno, que estava pa-rado a 20 quilômetros dali.Penso que foi só aí que acre-ditaram que não éramoscúmplices do boliviano.

Mochilas nas costas,entramos a pé em San Pe-dro de Atacama depois deoito horas na estrada. Foio tempo que levamos parafazer pouco mais de 200quilômetros. Ainda estáva-mos um pouco tensas comtoda a aventura. Então, aovirar a esquina do pequenopovoado que era a caradaquelas vilas de seriado deZorro, foi exatamente issoque vimos. Dentro de umônibus que saía da cidade,o próprio Zorro dirigindo,mascarado, a acenar. Caí-mos na gargalhada e entra-mos na Caracoles – ruaprincipal – prontas a vivera mais linda experiência dodeserto chileno. Lá longe,no meio da noite, Samuelrecebia dos carabinierimais quatro litros de óleo,o que lhe garantiria passara noite em casa.

Ficamos, os quatro,dentro do caminhão,

buscando nosaquecer com o calor

um do outro

Fernando (à esquerda)dá dicas para as viajan-

tes chegarem ao deserto

Foto

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Sobre acovardia

Por Rosangela Bion de Assis

Poema

Hoje chorei pela covardia que me domina.Chorar alivia a culpa,e também relembra que ela existe.Covardes choram e separam moedas,roupas velhas,pequenos presentes,e até um almoço.Covardes distribuemo que não lhes faz falta.Aliviam a culpae desafogam os armários.Assim, escrevi sobre a fome no mundo,fotografei a desigualdade,e comprei cadeados.Covardes lêem sobre as barbáries,se emocionam com os excluídos no cinema.E compram roupas novas,planejam a viagem,e abastecem o freezer.“Não podemos resolver tudo!”Covardes tentam aliviar a culpa,comprando a rifa,levando as doaçõese rezando.Diariamente me junto à multidão de covardesque acordam,comem,trabalham,e dormem.Um dia vamos morrer, definitivamente.Sem fazer falta.Sem ter colocadoum tijolo sequer,na construção de uma vida melhor.Que a maioria não sabe como é.nem vai saber,enquanto covardes choramsem que nada lhes alivie a culpa.

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20 Pobres & Nojentas - Julho de 2006

Pioresmomentos...

...de Pobres &Nojentas!

Saia

Jus

ta

• Ganha um bromélia de presente, resolve acariciar as folhas e ficacom os dedos cheios de espinhos. Pior, liga para o hospital da universi-dade para ver se tem perigo de intoxicação.

• Viaja a Buenos Aires com uma faca dentro da bagagem de mão;descoberta no raio-x, se recusa a jogar fora o artefato, gritando: - Épara cortar frutas! Quase fica no Brasil.

• Ainda em Buenos Aires, assustada com o movimento das ruas, es-pera longos minutos a sinaleira, que está vermelha, ficar verde, e só atra-vessa quando, passados outros longos minutos, o vermelho aparece no-vamente no semáforo.

• Compra uma bota linda, de salto alto, em promoção; usa uns dias,tem uma crise de dor nas costas, gasta o que não tem em fisioterapia emanda cortar o salto da bota.

• Chega no quarto do hotel e enche a bolsa com as coisas do frigobar,achando que estava tudo incluído no valor da diária.

• Procura uma bolsa pequena pa0ra sair à noite e quando acha a ditacuja ouve essa da filha: “essa que eu uso pra brincar não! Mãe, essa já tácom a validade vencida.”

• Vai dar palestra em cidade do Nordeste e fica mais de meia hora naporta do quarto do hotel tentando abri-la com um cartão magnético.Tem vergonha de confessar que não conhece essa “novidade”. Mas,como é nojenta, consegue.

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Por Elaine Tavares

Rebelde

Era 1745 na vastidão do Peru.Terra de incas, os filhos do sol.No povoado de Tamburco, emAbancay, departamento de Apu-rimac, nascia Micaela BastidasPuyucahua, uma guria mestiçaque iria marcar com sangue ecoragem a história da gente pe-ruana. O pai, Manuel, tinha san-gue espanhol, mas a mãe, Jose-fa, era inca da gema. Esta mistu-ra fez de Micaela uma linda mu-

lher de traços fortes e cabelos ondulados, uma “zam-ba” que, para as gentes de Abancay, significa al-guém com características distintas das dos andinos,mestiça. Mas, ao logo de sua vida, mostrou que –apesar do sangue espanhol - era verdadeiramenteuma mui digna filha de Tawantisuyo, a grande naçãodo povo dos Andes.

E foi em Tamburco que ela cresceu, um povoadorural, pequeno, pobre, mas rota de passagem dos vi-ajantes que circulavam pelo país em lentas mulas napenosa jornada de carregar mantimentos e produ-ção de um lado para o outro. Foi correndo por aque-les pastos e observando a crescente pobreza das gen-tes que ela desenvolveu o aguçado senso de justiça

Vai ser comoqueria Micaela

que mais tarde iria se transformar em lenda.A história de Micaela se mescla com as grandes

lutas de libertação da América Latina quando, em1760, ainda jovenzinha, casa-se com José GabrielCondorcarqui, cacique de seu povo e descendentedo último inca Tupac Amaru, morto em Cuzco noano de 1572. É ele quem vai incendiar as paragensperuanas na revolução que ficou conhecida como a“revolução de Tupac Amaru II”.

Naqueles anos do final do 700, a exploração dostrabalhadores indígenas era uma coisa insuportável.A colônia fazia seus estragos, rapinava riquezas, es-cravizava os seres. Já tinham passados quase du-zentos anos desde a invasão e os povos origináriosestavam começando a despertar da letargia. Rebe-liões haviam sido feitas ao longo desses anos, mastodas tinham sido esmagadas. A mais recente, em1760, justamente o ano do casório de Gabriel e Mi-caela, fora liderada por José Santos Atahualpa, bus-cando restaurar o reino dos incas. Esta última fezos espanhóis ficarem de cabelo em pé, porque per-ceberam que, nas comunidades indígenas, algo mui-to poderoso começava a se fortalecer: o desejo deliberdade. A parte isso, também os criollos (gentenascida na terra, mas com sangue espanhol) esta-vam insatisfeitos com a coroa por causa dos altos

A filha de Tawantisuyo marcou comsangue e coragem a história da gente peruana

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22 Pobres & Nojentas - Julho de 2006

impostos. Caldo perfeito para mais confusão.Por conta destes dois elementos incendiários, Tu-

pac Amaru acabou liderando uma revolução vinteanos depois, em 1780. Homem letrado, já caciquede seu povoado, o descendente do inca já estavaimpregnado dos ares rebeldes que vinham da Fran-ça, dos Estados Unidos e do Haiti. Seu primeiro atorevolucionário foi acabar com as obrajes, espéciede fábricas onde os índios eram explorados até amorte, ganhando miseráveis salários. Seu propósitoera ir até Cuzco, destruindo todas estas formas deopressão e instaurando um governo indígena. Nãofoi à toa que em poucos dias já tinha juntado mais de10 mil índios no seu exército. E, nessa caminhadaaté o “umbigo do mundo da nação do Tawantisuyo”,ele ia libertando todos os escravos.

Durante o pouco tempo (cinco meses) que duroua revolução de Tupac Amaru, Micaela Bastide este-ve a seu lado. Por várias vezes comandou as tropase não foram poucas as suas ações como chefe degoverno. Seu corpo forte e esguio era visto, manhãcedinho, a cavalgar pelos povoados, arrebanhandogente para a guerra. Ela era quem administrava asprovisões, mobilizava os destacamentos e adminis-trava as terras liberadas pela revolução. Era consi-derada a facção mais radical do movimento. Quan-do Tupac Amaru vacilava no seu avançar sobreCuzco, era Micaela quem o impulsionava, pessoal-mente ou através de cartas que lhes fazia chegaramiúde. Por várias vezes se mostrou mais estrate-gista do que ele como, por exemplo, quando intuiuque a união com os criollos não ia dar em boa coisa.A história comprovou que tinha razão. Esperandopor um levante das gentes de Cuzco, Tupac Amarudemorou a entrar na cidade. Isso fez com que astropas reais se rearticulassem e o derrotassem emmarço de 1781. Cuzco não foi conquistada e tudo seperdeu. Numa de suas cartas a Gabriel, Micaelaescreveria: “Chepe, chepe, mi muy querido: bastan-tes advertencias te dí”. Ela nunca confiara nos bran-cos e tampouco nos criollos. Sempre acreditou que,entrando na cidade, venceriam. Gabriel não lhe deuouvidos.

Assim, vencidos, os líderes rebeldes foram apri-sionados. Entre eles estão Gabriel (Tupac Amaru),

Micaela e seu filho Hipólito. No mês de maio domesmo ano todos são supliciados na Praça Maior dacidade. Micaela, Gabriel e o filho chegam arrasta-dos por cavalos. Irão sofrer todas as torturas possí-veis. O primeiro a morrer na forca é Hipólito, diantedos pais. Mas, antes, lhe arrancam a língua. Micaelaassiste impávida. Depois, vários outros rebeldes vãosendo mortos nas mesmas condições de crueldade,muitos são parentes, amigos. Micaela é a penúltima.Sobe no cadafalso com a mesma altivez que lhe va-lera a formosura. Tem a língua arrancada e depois,como não morre em seguida, os carrascos ainda lheaplicam golpes no estômago e no peito. O filho maisnovo, de nove anos, assiste a tudo. Será levado de-pois, prisioneiro, para a Espanha.

O último a morrer é Tupac Amaru. O caciquerevolucionário é amarrado a quatro cavalos que sãopostos a correr em direções opostas para que o cor-po do índio seja esquartejado. Os cavaleiros esporei-am os bichos, eles arrancam e o cacique não se par-te. Por várias vezes é feito o mesmo procedimento eTupac Amaru não se parte. Os espanhóis desisteme desamarrando-o o esquartejam a golpes de ma-chado, sendo suas partes espalhadas por várias regi-ões do Peru. Dizem que nessa hora sagrada, emque o corpo do inca resistiu, uma chuva grossa caiudo céu.

Talvez seja por isso que até hoje, quando choveno Peru, as gentes originárias se ponham a sorrir.Lembram o tempo em que Tupac Amaru incendioude novo a caminhada para a liberdade, junto comMicaela. Lembram que sempre é possível enfrentara violência, o terror, o medo. Sorriem e seguem, por-que há ainda muita estrada para caminhar. O povode Tawantisuyo ainda não entrou em Cuzco. Vai en-trar, e vai ser como queria Micaela. Isso ainda va-mos ver!!!

Micaela era a alma da rebelião.Comandante altaneira, era

quem empurrava TupacAmaru rumo a Cuzco

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Ueivi era como uma onda de ternura. Abandonadonuma praia do continente, tenro filhote, foi acolhido nacasa de meus pais. Viveu uma vida longa. Brincalhão,irreverente até demais. Na euforia da brincadeira, àsvezes arranhava com suas garras afiadas. Ele tinha, éverdade, um jeito quase canino de ser. Quando uma pes-soa da família chegava em casa, corria para recebê-la,saltitante como um cachorro. Como todo bicho se apegade modo especial a uma pessoa, escolheu meu pai, e o

Cuidadores debichos e outros seresPor Raquel Moysés

Companheiros fiéis na comunidade das gentes

Humanidade

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Os animaisacompanham os

humanos aolongo dos dias e

noites dostempos.

Convivem com asua miséria, suagenerosidade,

suamonstruosidade

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seguia passo a passo. Onde ele estivesse fa-zendo um serviço, no quintal, no telhado, lá es-tava o gato da onda: Wave, Ueivi. Com a línguade fora, postava-se a seus pés enquanto tocavaacordeão, e parecia embevecido, como se fru-ísse a música. Depois, na hora da leitura, deassistir televisão, buscava o colo. Repouso com-partilhado.

Gato abandonado ao sabor das ondas, Ueivi,sujeito de uma vida, viveu uma existência boa ebonita. Bem alimentado, amparado na hora dadoença. Quando as forças começaram a lhe fal-tar e os quadris não suportavam mais o peso deseu corpo de gato brasileiro, daqueles mancha-dinhos como uma jaguatirica, ele foi cuidado comremédios e carinho. Assim foi também na horada boa morte. Quando uma manhã amanheceusangrando, sofrendo muito, os seus cuidadores,coração pesado, chamaram a veterinária paraque aliviasse seu sofrer. E assim ele partiu, dei-xando entre as pessoas uma recordação de ter-nura. Um acalanto felino.

Ueivi viveu entre gente e dela recebeu amore respeito. Sua vida também foi partilhada comuma comunidade de bichos. Outros gatos, vári-os cachorros que, ao longo dos quase 15 anosde sua vida, foram dividindo o quintal, as brin-cadeiras, os saltos do muro, as fugas para a ruae as areias da praia, o retorno ao lar. Da comu-nidade dos bichos, assistimos à morte de unspoucos: Ueivi, Nina, Neige, Dilan, Benin, Tin-tim... Os outros partiram sem deixar sinais. Sim-plesmente sumiram um dia ou uma noite e delesnão ficaram rastros. Como é dito, até entre ve-terinários de uma certa linha, os animais, quan-do pressentem a morte, vão embora.

Assim foi com Newar. Eu o trouxera de lon-ge, da velha Itália dos meus antepassados. Aoretornar dos estudos, depois de quatro anos vi-vendo com ele, não poderia deixar, entregue àprópria sorte, o siamês que se conchegara nomeu colo entre livros e apontamentos. Eu o aco-lhia e ele me oferecia seu calor nas interminá-veis noites de inverno, debruçada sobre livros eescritos de jornalismo, tendo por companhia ocrepitar do fogo da lareira acesa.

Na volta para casa, cumpridos todos os ca-minhos da burocracia humana, ele viajou comi-go entre os passageiros, abrigado na sua bolsade viagem, e entrou em terras brasileiras comvisto de ingresso. Deixou logo de ser estrangei-ro na comunidade de gente e de bichos. Depoisdo primeiro susto com os cães, um dálmata eum pastor, que o puseram a correr pinheiro aci-ma, passou a conviver de forma harmoniosa noquintal junto ao mar. Toda manhã acordava, comum leve toque de cabeça, minha mãe, a quemescolhera como especial desde o primeiro en-contro. Era de uma delicadeza e uma ternuraintangíveis. Tinha uma fala para cada momen-to, e quando erguia os olhos azuis, neles haviaalgo que só podia ser lido como amor. Pareciacarregar a doçura do povo nepalês de quemherdara o nome.

O pinheiro em que subiu amedrontado nãoexiste mais. Newar também foi embora antesde completar 13 anos. Desapareceu uma ma-

Velozes noites, densas trilhas,paragens do mundo,

ruas e ritos: uma lareira e umgato...

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nhã bem cedo e de nada adiantaram as buscase os cartazes espalhados pelas redondezas desua casa. Deixou em nossas vidas um sopro deluz. Para mim, nunca existiu um gato comoNewar. Para alguns, talvez muitos, o que estoudizendo pode parecer um despropósito. Lirismobarato, dirão os descrentes. Mas sei que quemcompartilha da comunidade dos iniciados, cui-dadores de bichos e outros seres, entende o queestou dizendo.

Por pensar assim, quando vi no jornal a ima-gem daquele cachorro com a cabeça traspas-sada por uma faca, e daquela fêmea Pittbull grá-vida esfaqueada por algum desalmado, e soubedos cuidados afetuosos que receberam, é queainda acredito no gênero humano. Por isso,quando tive notícia, pela televisão, da pena al-ternativa a ser cumprida no canil por um jovemque espancou até a morte um outro cão, aindaespero algo da justiça dos homens.

Os animais acompanham os humanos ao lon-go dos dias e noites dos tempos. Convivem coma sua miséria, sua generosidade, sua monstruo-sidade. Compartilham o pão e a água com an-darilhos e recebem túmulos de mármore de ri-cos “donos” que os tratam como sua proprie-dade. Mas o despropósito não está em tratarcom dignidade o ser animal, o absurdo é con-denar o ser humano ao desespero da dor, dafome, do descuido mais desesperador que é oabandono. Só quem é capaz de amar e cuidarcom desvelo de um animal enfermo, sujeito deuma vida, do mesmo modo delicado e compas-sivo que se debruça sobre o leito de morte deum homem, uma mulher ou uma criança, é dig-no de sua humanidade.

Era a primeira vez que Hernán viajava para a Itália.Seu destino era Milão onde ele, jornalista, faria seu dou-torado em Comunicação. Ele era colombiano, da cida-de de Medellín, onde trabalhava no setor de telejorna-lismo de uma universidade. Durante a longa travessiaatlântica, na hora da refeição, pediu um “palillo” (palitode dente, em português). A aeromoça da Alitalia (com-panhia de aviação italiana), que entendia menos espa-nhol do que Hernán entendia italiano, não compreendeubulhufas.

Procurando agradar o passageiro, ela perguntou emitaliano: - O senhor quer lenços de papel? Pão? Açú-car? E assim ia mostrando objetos, num jogo de tentati-va e erro. Numa desesperada busca pelo objeto certo,ela finalmente disse: - “Burro?”

Hernán ficou encabulado, mas nada falou à aero-moça, que desistiu da inútil caça às palavras. O jorna-lista pensou com seus botões: - Mal cheguei à Itália e jáestão me chamando de burro?!

Dias depois, em Milão, descobriu o verdadeiro signi-

Caramba!Me chamamde burro?!

Por Stefano Roberto Moysés Colucci *

ficado de “burro”, emitaliano, e caiu na gar-galhada com duas no-vas amigas, jornalistasbrasileiras. A aeromoçanão o havia chamado depessoa pouco inteligen-te, mas tinha lhe ofere-cido apenas manteiga.

* É estudante da4ª. série do ensino

fundamental,tem 10 anos

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TTTT Tempo LLLL L

ivr

e paraquem tem

pouca grana $$$$$ Por R$3,50 dá para comer um dos melhores cachorros-quen-tes (completos) da cidade. É o Cachorro Louco, na rua geral deCoqueiros, duas quadras depois do supermercado Imperatriz.

A van dos vendedores fica parada na frente do posto de gaso-lina a partir das 19 horas. O comprador pode se sentar em banqui-nhos de plástico enquanto aguarda o preparo do lanche. Vale apena!

$$$$$ Quem tira o dia para passear no centro de Florianópolis temque dar uma parada na livraria Paulus, na Jerônimo Coelho, 119.Os atendentes são informados e atenciosos. O ambiente é tranqüi-lo. Nem precisa comprar. Folhear os livros já é um prazer. Masquem reservou uma grana pode adquirir um de teologia e estudosbíblicos em geral, filosofia, sociologia. Só coisa boa.

$ $ $ $ $ O 24º Festival de Dança de Joinville (SC) começou no dia 19e encerra-se em 29 de julho no Centreventos Cau Hansen. O pre-ço dos ingressos é “salgado”, mas dá para assistir de graça a espe-táculos em locais variados como praças, shoppings, empresas eoutros locais nos chamados Palcos Abertos. Grupos de todo opaís aproveitam esses espaços para apresentar sua arte. Joinville éuma delícia, ainda mais no período do festival.

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A TV de sinal abertotem pouca coisa boa parase ver. Mas tem uma que éótima. O nome: Café Filo-sófico. O programa é trans-mitido aos domingos, às 22h,na TV Cultura. Em julhodeste ano, passou a exibirnovo formato. A atriz Gra-ziella Moretto apresenta asérie O amor é uma coisaque se aprende, com cu-radoria do psicanalista Con-tardo Calligaris.

São séries de palestrasque falam sobre as princi-pais questões do ser huma-no contemporâneo: amor,sexo, os excessos e as ma-neiras de criar ou recriarvínculos. Os temas são dis-cutidos por estudiosos bra-sileiros do comportamentoe das relações humanas –psicanalistas, historiadores,cientistas sociais e filósofos.No dia 30 de julho, o temavai ser “Amar é uma coisaque se aprende e seaprende em casa”.

Não dá para perder. OCafé Filosófico faz a gentepensar, “puxar assunto”com amigos e saber maisdas coisas do mundo. E éde graça.

CaféFilosófico