plit0600-t

443
Raquel Wandelli Loth VER, PENSAR E ESCREVER COM(O) UM ANIMAL: DEVIRES DO INUMANO NA ARTE/LITERATURA Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutor em Literatura. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Luiz Rodrigues Medeiros Florianópolis 2014

Upload: jussara-rauen-ribas

Post on 18-Aug-2015

306 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

S

TRANSCRIPT

Raquel Wandelli Loth VER, PENSAR E ESCREVER COM(O) UM ANIMAL: DEVIRES DO INUMANO NA ARTE/LITERATURA TesesubmetidaaoProgramade Ps-GraduaoemLiteraturada UniversidadeFederaldeSanta CatarinaparaaobtenodoGraude Doutor em Literatura. Orientador:Prof.Dr.SrgioLuiz Rodrigues Medeiros Florianpolis 2014 Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor, atravs do Programa de Gerao Automtica da Biblioteca Universitria da UFSC. coruja, Pequena Flor e ao mar Ao ser infinitamente amoroso que te habita, Moacir Aos filhos, Luara e Mait, pelo sonho que sonhamos juntos lvaro e Ondina, pela graa da vida e tudo mais... AGRADECIMENTOS Aos irmos Leonardo, Elisa, Cristiana e lvaro e Tain Wandelli Braga (pela fraternidade filosfica); tia Celina Doin Vieira Ferrari. Simone Curi, Pedro Souza, Alckmar Santos; Liliana Reales, Maria Lcia Camargo, Cludia Lima Costa, Simone Schmidt, Susana Scramin Tnia Regina Ramos e Raul Antelo (pelo apoio e indicaes de pesquisa); JliaGazzola,RezaJafarian,MagdaMendes,AndreiaRozalino, MariadaGraaSocas,CarolinaYoung,AnamleaCamposPinto, Vicente Parcias Figueiredo, Jessica Layne, Vitor Millis Wandelli, Mauro Caponi, Narcisa Amboni e Daniella Zatarian (pela amizade e apoio); SolangeKurpiel,MarinadeMello,VinciusCau,Cludia Generoso,DanielleCrepaldi(amigosdaAssociaodosPesquisadores Brasileiros na Frana); Daniela Germann, Helena Iracy, Giovanna Flores, Marta Scherer, Jaci Rocha, Daniel Izidoro e Josefina Hassmann, amigos da Unisul (pelo apoio); Luciano Bitencourt (pela leitura e substituies em sala de aula), Perry Serval, Delphine Serval, Miriam Grossi, Carmen Rial (pela moradia em Paris); Jediel Gonalves, Catherine Novaes, Carine Valene, Luc Duret, Anne Godard, Fred Mougel, Marianne Staal, Antoine Sausse, Anne Largeand, Ernesto Otth, Nadim Benani (pela amizade em francs). Agradecimentos especiais: JoseaneChagas(pelagenerosarevisometodolgica);Ana Carolina Cernicchiaro (pela herana Axolotl e pela reviso crtica); Dirce Waltrick Amarante e Maria de Lourdes Borges (pela amizade em livros); TeresaQueirozPiacentinieSniaFelipe(pelarevisosolidriada primeiraparte)eDanielPaim(pelainterlocuo);ChristopheDravet, Thiago Mota e Fernando Scheibe (pela ajuda nas tradues e referncias); MaurcioSchultz(pelosecretariado);RussScamfer(pelaamizade virtual); Ilca Pessoa Guerra (em nome da equipe do INSS). LuisPhilippeDaros,orientadornaUniversitdeParisIII,Anne Simon,coordenadoradoProjetAnimot(EHESS/CNRS-Paris)eRon Broglio, professor da Arizona State University (por acreditarem). Agradecimentos mais que especiais: Ao orientador Srgio Medeiros, pela liberdade inestimvel de ver, pensar e escrever. Pelo inumano. infncia-animal desses modos de frase: ...acorda, me, o mar j chegou... Luara, quatro anos ...olha, me, o teu pinto quebou... Mait, trs anos Clarice especial e, neste livro, refora a tua tese, confessando o seu amor incondicional pelas galinhas, que, injustiadas e incompreendidas, produzem uma verdadeira obra de arte, perfeita e irretocvel: o ovo! Moacir Loth (Dedicatria em Crnicas para jovens: de bichos e pessoas) Nesse sonho fecundo vive um pssaro migrador lvaro Wandelli Filho (Sonho de menino, de A casa da Solido) Mame, posso tocar ela [a liblula] em mim? Henrique, dois anos No mata a minha galinha, no mata a minha galinha! Ondina-menina Por que mataram os ratos? To bonitos eles estavam! V Guilta Virei o rosto para trs e vi (trs) duendes sentados no banco velho do meu fusquinha Srgio Medeiros (De duendes e folhas secas) Somos todos punks com cachorros (Not, em A grande noite) RESUMO Ver,pensareescrever(com)ooutroinumanopostularum pensamento em crise, no qual o homem no mais a origem nem o fim. A literaturaqueevidenciaessacriseeoseudilogocomperspectivas antropolgicas,estticasefilosficasno-antropocntricascompemo campodeanliseprovocadopelaquesto:podeamquinaliterria (Deleuze)deteramquinaantropocntrica(Agamben)? Opercursopor umarededenarradoresdediferentespocasbuscaumtraode animalidadenoolharenaescritaflneur,desdequeRestifdeLa Bretonne props, no sculo XVIII, a associao entre o reprter/narrador e o modo de uma ave noturna de enxergar as zonas de sombra das cidades. Aconstituiodacategoriadonarrador-corujaorientaumacartografia denominadanarrativasdoescuro,quepercorrediversastextualidades comatarefadetestemunharodesaparecimentodospovos humanos/inumanosdiantedosolhosdocontemporneo (Didi-Huberman). A anlise da relao privilegiada entre a escritura e o devir-animal evegetal(Deleuze)sustentaapostulaododesaparecimentodoautor (Barthes,Foucault)edosem-sujeitoderridianocomoumlugar profcuo para a abertura ao outro inumano (Lyotard). Essa experincia observada em uma rede de escrituras que salientam o inumano, sobretudo emClariceLispector,ondeainstauraodoitcomouma pronominalidade neutra se conecta ao sentido de humanidade-todos dos povosamerndios.Oanimalaparecenoscomotemtica,mas principalmentecomomtodo,linguagem,perspectivaeplanode composio.Almdosromancesclssicosdaautora,aanlisebusca narrativasmenosvisitadaspelacrticaliterria,aexemplodocontoA menormulherdomundoedaslendasindgenasbrasileirasreunidase recontadas no livro/calendrio Como nasceram as estrelas. A pesquisa apreciaodesencadeamentodosdeviresinvolutivoseminoritrioseo modo fabular de narrativa, que reenvia para o mito da indiscernibilidade entrehomenseanimais.Tambmestabelecepontosdecontatoentre perspectivismonietzschianoeperspectivismoamerndio,xamanismo, antropofagiaeetnologiadaarteafricananaanlisedoimpactoentre corpos humanos e animais no corpo da escritura. Finalmente, postula, com Lyotard, a construo de uma sintaxe do inumano que opera no esgaramento dos limites da linguagem e a liberta domodofrsicoemqueosujeito,desdesempre,donodoenunciado. Buscandotranspor omutismoinumanoquesecontrapecomosilncio eloquenteaosurdismohumano,essasnarrativasremontamaomitoda indiscernibilidadeentrehomenseanimais.Participam,dessaforma,da postulaodeumaliteraturadoconstrangimentoqueafirma,com BenjamineLvi-Strauss,uminconformismopolticoeestticoem relaoincomunicabilidadeentreossereshumanos,anaturezaeas coisas. Palavras-chave:Inumano.Animalidade.Impessoalidadedaescrita. Escrituradodevir.Mquinaantropocntrica.Perspectivismo.Clarice Lispector. RSUM Voir, penser et crire lautre inhumain, cest postuler une pense en crise, dans laquelle lhomme nest plus lorigine ni la fin. La littrature quitmoignedecettecrise,etledialogueentrelesperspectives anthropologiques, esthtiques et philosophiques non-anthropocentriques composent le champ danalyse induit par cette interrogation: la machine littraire(Deleuze)peut-elledtraquerlamachineanthopocentrique (Agamben)? Leparcourseffectutraversunrseaudenarrateursde diffrentespoquescherchemettreenvidenceunedimension danimalit dans le regard et dans lcriture, commencer par Restif de la Bretonnequipropose, au18mesicle,dassocierlereporter/narrateur loiseaudenuitcapabledevoirlinvisibledansleszonesdombredes villes.Enconstituantlacatgoriedunarrateur-hibouondresseune cartographie des rcits de lobscur, qui parcourt diffrentes textualits en tentantdetmoignerdeladisparitiondespeupleshumains/inhumains sous les yeux du contemporain (Didi-Huberman). Lanalysedelarelationprivilgieentrecritureet devenir-animal et vgtal (Deleuze) soutient le postulat de la disparition de lauteur (Barthes, Foucault) et du sans-sujet (Derrida) comme lieu propice louverture lautre inhumain (Lyotard). Cette exprience est observedansunrseaudcrituresquimettentenrelieflinhumain, notammentchezClariceLispector,chezquilinstaurationduitcomme pronominalit neutre est connecte lide dhumanit interespces des peuples amrindiens. Lethmedelanimalestabordnonseulementcomme thmatique, mais surtout comme mthode, langage, perspective et point de vue. Au-del des romans classiques de cette auteure, lanalyse vise des rcits moins visits par la critique littraire, tel que la nouvelle La plus petitefemmeaumondeetdeslgendesamrindiennesbrsiliennes reluesetracontesdanslelivre-calendrierCommentsontnesles toiles.Larecherchevaluelenchainementdesdevenirsinvolutifset minoritairesainsiquelemodedelafabledanslercitquirenvoieau mythe de lindiscernabilit des hommes et des animaux . Dans ce sens, la recherche tablit galement des points de contact entre le perspectivisme nietzschenetleperspectivismeamrindien,chamanique, lanthropophagieetlethnologiedelartafricainpouranalyserlimpact de la rencontre des corps humains et animaux dans le corps de lcriture. Onvaluefinalementlaconstructiondunesyntaxede linhumain, qui opre dans le dchirement des limites du langage et dans la libration par rapport au mode phrastique qui installe le sujet comme centredelaparoleetmatredusignifi.Lasurdithumaineen comparaison avec le mutisme animal, en tant que silence loquent que ces rcitsetlgendesvisenttransposer,participe,avecBenjaminet Lvi-Strauss,aupostulatdunelittraturedelagne,quiaffirmeun non-conformismepolitiqueetesthtiqueenrelationavec lincommunicabilit entre lhomme, la nature et les choses. Mots-cls: Inhumain. Animalit. Limpersonnalit de lcriture. Ecriture dudevenir.Machinelittraireetmachineanthropocentrique. Perspectivisme. Clarice Lispector. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Restif de la Bretonne, ilustrao de Moreau de Jeune para a primeira edio de Les nuits de Paris, 1788. .............................. 47 Figura 2: Cabeas fisiognomnicas inspiradas por uma coruja, ilustrao de Charles Le Brun, 1670 ..................................................... 63 Figura 3: Sinal fechado para Camila, de Paulo Franken .................. 158 Figura 4: O encantador de cavalos, de Jos Doval .......................... 159 Figura 5: Sem ttulo, de Antoine dAgata. Phnom Penh, 2009. .......... 173 Figura 6: Sem ttulo, de Antoine dAgata. Manouvres, 2012. ............. 174 Figura 7: Sem ttulo, de Antoine dAgata. Tokyo, 2008. .................... 176 Figura 8: Dia e noite ........................................................................ 198 Figura 9: Menor e menor ................................................................. 199 Figura 10: Plano Cheio II ................................................................ 199 Figura 11: Encontro ......................................................................... 200 Figura 12: Vida imvel com espelho esfrico ................................. 200 SUMRIO 1INTRODUO .............................................................................. 19 1.1DEVIRES DO INUMANO NA ARTE/LITERATURA ............... 19 2VER, PENSAR E ESCREVER COM(O) UM ANIMAL ........... 41 2.1NARRADORES-CORUJA:APOTNCIAINUMANAE IMPESSOAL DA FLNERIE............................................................... 41 2.1.1O selvagem e a rua ................................................................... 60 2.1.2O desejo do incgnito ............................................................... 67 2.1.3O trao animal do andarilho ................................................... 78 2.1.4Experincia do escuro: literatura e luminescncia ............... 87 2.1.5Essa fome insacivel de no-eu... ............................................ 99 2.1.6O flneur e os povos humanos/inumanos que morrem ....... 110 2.1.7Sobrevivncia dos narradores-coruja .................................. 122 2.1.8O flneur do sculo XXI vai ao zoolgico ............................ 142 2.1.9Percorrendo a zona maldita da cidade ................................. 164 3VER, PENSAR E ESCREVER COM(O) UM ANIMAL ......... 181 3.1O JOGO DO ESTRANHAMENTO NA LITERATURA ........... 181 3.2PERSPECTIVASDOINUMANONOMITO,NAARTEE NA LITERATURA ............................................................................. 194 3.2.1Perspectivismo amerndio e literatura: composies .......... 206 3.2.2Corpos e pontos de vista circulantes entre espcies ............ 210 3.2.3O cruzamento do olhar animal ............................................. 217 3.2.4As lendas indgenas e os devires minoritrios ..................... 230 3.2.5Silncio eloquente: a literatura do constrangimento .......... 237 3.2.6Uma humanidade pronominal .............................................. 249 3.2.7Esculturismo africano: o enigma das mscaras .................. 255 3.2.8O ovo e a urina: fugas canibais ............................................. 262 3.2.9Devir-pigmeia: a potncia contempornea da floresta ....... 272 3.2.10Subjetividade e corporalidade do inorgnico ...................... 293 3.2.11As feridas narcsicas da espcie ............................................ 302 3.2.12Animal-arlequim: o monstruoso das composies .............. 308 3.2.13Atrs daestrutura, atrs dopensamento,noinfinitoda literatura ............................................................................................ 315 4VER, PENSAR E ESCREVER COM(O) UM ANIMAL ......... 321 4.1MORRE O AUTOR, NASCE A BARATA ............................... 321 4.2A POTNCIA INUMANA DA ESCRITURA ........................... 335 4.3O EMBATE DAS MQUINAS: ESTADO DE EXCEO E ESTADO DE GRAA .................................................................... 362 4.3.1Um modo de frasar inumano ................................................ 371 4.3.2A resistncia do mundo mudo .............................................. 379 4.3.3O inumano como mtodo ...................................................... 389 4.4LITERATURASEMESTADO,DEVIRSEM BIOPOLTICA ................................................................................... 392 5ACAUDADOANIMALESCRITO(PARAEFEITO ANFISBENA) .................................................................................... 405 REFERNCIAS ................................................................................ 417 19 1INTRODUO 1.1DEVIRES DO INUMANO NA ARTE/LITERATURA Tudo que humano me foi estranho. Hilda Hilst (2003, p. 73) Humanosmetamorfoseadoseminsetos,sereshbridos, polimorfos, esposas vegetais, pssaros que fogem da alma, cavalos que se debatemnumpeitodemulher...ndio-ona,menino-centauro, guerreiro-lua,guaviva,homens-pergaminho,narradores-coruja, cogumelo-moa,texto-animal...Ser-ovo,grvidodetodos,terrveis irmosdeventre...Paraaliteraturaeasartes,avidanoseesgotano enjaulamento do sujeito ou no rosto antropocntrico das subjetividades. Formassedesfazem,seressedistanciamdasmoldurasidentitrias,se evadem das prises do indivduo para seguir a experincia delirante das fronteiras,daszonasdeindiferenciaoeindiscernibilidadeentreas espcieseosreinos.Limitessoforados,esgaradosnoterritrioda literatura... O vivente abraa possibilidades imprevisveis... Na literatura, a vida experimenta existncias hbridas, muitas vezes imperceptveis: um ser toma a forma de outro, sem parar esse trnsito de devires,poisaexperinciadooutroprescindedoseuaspectoobjetal. Metamorfosesliterriasso,comonavida,desencadeadaspor deslocamentosinteriores,mnimos,informes,queproduzemuma transformao imanente, incessante... Sorver o inumano, testemunh-lo, lan-lo para a vida requer um movimento para o fora e ao mesmo tempo um profundo mergulho na animalidade peonhenta que habita o interior do prprio armrio. Habitam o mundo seres com vontade de poder diferir no s do outro, mas de si mesmos. Uma precipitao para a graa da vida, para a velocidade do outro, ativaapotnciareprimidanadicotomia...O(in)mundo,invisibilizado pela separao do humano e do inumano, arrebenta as grades do controle dosujeito...enocessadepremquestoovciodeorigemdo pensamentoantropocntricoquefundaadistinodohomemcomo espcie superior e pressuposto do seu amor prprio, segundoo que nos fez ver Lvi-Strauss (1973, p. 49-50). Como a arte-literatura provoca esse acesso ao inumano, ao ponto de encontrar no seu trao os rastros de uma animalidade?Comoosterritriosquenelaseconfiguramese desconfiguram abrem caminho para o acontecimento inumano? 20 Estabelecendo a razo e a linguagem como distines categricas entre o homem e os demais seres, desprovidos de alma e racionalidade, o cartesianismoconsolidouocortemodernoqueseparaoanimalda antiguidade. Plato e Aristteles reconheciam a existncia de uma alma sensitiva(adoanimal),umaalmaracional(adohomem)eumaalma vegetativa (a das plantas). Um sculo aps o advento do racionalismo, o juristaJeremyBentham,famosotambmporsuaelaboraosobreo modelo panptico de vigilncia das instituies modernas, vai confrontar Descartessegundooqualoanimalnopodeserconsideradosujeito porquenotemalma.AforadarespostadeBenthamaDescartes atravessaastemporalidades.Calca-senoargumentodequeosanimais sentem dor, tm um sistema nervoso com terminaes que so portadoras deestmulodoloroso,emoutraspalavras,queelessofremcomoos humanose nadamaisinteressa.Eu nopossosaberse osanimaistm inteligncia,seosanimaistmalma,maspossosaberseosanimais sofrem. Isso o essencial da questo (BENTHAM apud FERRY, 2009, p. 77). O que nessa concesso da ternura cientfica nos impressiona ainda hoje?porqueelanosofereceumimperativocategricoaomesmo tempo afetivo e racional para desistir da busca irrelevante pela afirmao dasfronteiras.Eu,cientista,desistodadiferenaquenoposso provar em relao ao outro e acolho como verdade cientfica a semelhana que eletrazinscritanocorpo.Daqueaotratardocarterdemonacodo homem como sendo o nico que maltrata por maltratar, Shopenhauer vai dizer que no se trata apenas de libertar o animal da submisso ao homem, mas de uma libertao do sofrimento diga-se dos que o impingem e dos que a ele so submetidos. Trata-se ento da libertao da dor e tambm da libertao da crueldade, diz Benedito Nunes (2011, p. 16). Ecomoahistrianofeitadeumaprogressolinear,masde buracos, hiatos, linhas paralelas, convergentes e divergentes, de avanos e de recuos, podemos sempre retornar a esse pensamento, embora ele no tenhareverberadoosuficienteparaimpediraaceleraodamquina antropocntricadasdicotomias.tambmnoacenderdasluzesdo iluminismo de Bentham que se separam de forma mais definitria cultura e natureza, corpo e alma, cincia e religio, filosofia e arte e, portanto, o humano do animal, como mostra Maciel (2011), na obra Pensar/Escrever o Animal. Desde que o homem escreve o animal e se inscreve nele, d a ler uma ordem do fascnio, do medo e da violncia, num jogo contraditrio entredominaoeencantamento.Nuncapoderemosafirmarquandoo outro do homem nasceu. Mais legtimo pensar que desde os primeiros 21 rabiscos,desdeosprimeirosdesenhosdobisocravadodeflechasnas cavernas de Lascaux a escritura testemunha ao mesmo tempo um mtodo de abate e um processo de encantamento com o animal. Narupturacomopaganismo,amitologiagrega zooantropomrfica e a tradio clssica, as exploraes das ambiguidades e hibridismos saem de evidncia: o animal assume um lugar definitrio ao ladodasforasinferiores.Sobodomniodateoriamecanicistaque prevaleceunossculosXVIIeXVIII,aimagemdoanimal,comoum corpo sem alma, uma mquina a servio do homem, adentra o fosso sem fundo do outro mais outro, o mais estranho, oposto objetal e exterior ao serhumano.Passandoasimbolizarocontraexemplodomododevida menoselevado,maisinstintivo,rsticoeviolento,servedearqutipo contra o qual a civilizao moderna se constitui. Essa averso promovida pelo imprio da racionalidade contradiz mesmo as figuras messinicas de herana medieval crist que impregnam o mundo clssico romano, onde sev,porexemplo,arepresentaodosevangelistascomoanimais (Marcos o leo; Lucas, o boi; Joo, a guia). Paraaarqueologiapictogrfica,quantomaisantropocntricoo desenho,maiorgraudecivilidadeatesta.Figurashbridasepolimorfas referendam,napaleontologia,osmodosmaisprimitivosdevida,as crenas pantestas e as prticas culturais menos complexas. medida que asfigurasantropozoomrficasehbridasdesaparecememfavorde imagenspuramentehumanas,acinciaatestaacondiodeevoluo culturaleespiritual.Eoqueessanoodeevoluoanosero progresso como sinnimo de purificao e especificao? Enquanto as cincias, a poltica e as organizaes sociais foram se estruturandodeacordocomaperspectivaantropocntricado cartesianismo e do iluminismo, a literatura no parou de desestabilizar os limites entre os diferentes reinos. Em vez de estabelecer seu fundamento nadicotomiaentrenaturezahumanaeinumana,essaliteratura produziu-seaprofundandooquestionamentodessarelaodesde sempreproblemticaecontraditria.Nohpretensodefazerum rastreio cronolgico ou arqueolgico dessas experincias, o que exigiria muito mais amplitude de pesquisa. Interessa mais apreciar a escritura no sentidomaisamplo,comorastrodosernomundo,acionandouma paradoxalmquinadeguerra:aomesmotempoodispositivoondese inscreve a separao homem/animal e o lugar onde ela no cessar de ser subvertida, sabotada, profanada, questionada, conjurada ou radicalmente abolida. Potencialmente,paraaarteoslimitesentrehumanoenatureza nunca chegaram a se fixar por completo ou no haveria condio para o 22 acontecimentodoartstico.1Aartemodernacontribuinessesentido, aprofundandoogestodetiraroeudaposiodesenhordoespaode representaopictrica.ComumMonetouumCzanne,lembraa psicanalistaTniaRivera(2013),oeunoencontrarmais,naarte,a posio central que lhe era dada, desde o Renascimento, na construo de umespaoderepresentaoilusionista.Notraoquelocalizaaarte moderna, as linhas que demarcam reinos de natureza distinta se apagam em favor de um descentramento de foco, de um ponto de vista holstico, difano, indefinido. EmCzanne,oselementosqueseparamamontanhadeSaint Victoire do cu, do mar e da terra foram se esvaindo, a ponto de restar na paisagemapenasa nuvemdeumtodoheterogneo, umtrao-pincelada que perpassa elementos de naturezas diversas. A montanha, o rochedo, o valesotambmacasa,arvore,ocho,oalto.Visvelreintegrao esttica das coisas do mundo nas recriaes de As banhistas ao longo da histria da arte. Figuras humanas, antes to destacadas e delimitadas, vo sediluindonapaisagem,reinoseformasvoperdendoosseuslimites paraquerestemapenaslinhas,paradaravercorpossemrgos, mulheres-heras, rvores rebolantes, caminhantes na relva... Dos estudos de Czanne, brotam formas que a bem da verdade no so mais mulheres, nemapenasrvores,maslinhasabstratasqueinsinuamvolumese enlouquecem o conjunto. DepoisdetodasasferidasnarcsicasqueFreudrelacionouao descentramentodosujeito,comCoprnico(aTerranoocentrodo universo)eDarwin(ohomemnoocentrodacriao,poisest submetidosmesmasleisdasobrevivnciaqueregemosanimais),a psicanliseanunciaqueoeunomaissenhornememsuaprpria casa.2Terceirogolpenoamorprpriodohomem,adescobertadeum

1WilliamBlakecriouseuprpriosistemamitolgico,frustrandoempleno Classicismoarepresentaoantropocntrica,tantonaliteraturaquantona gravura. E seria preciso ainda citar O Jardim das delcias terrenas, de H. Bosch e a ruptura com o real e a realidade da linguagem em Jaguadarte, de Lewis Carrol. 2Notranscorrerdossculos,oingnuoamor-prpriodoshomenstevede submeter-se a dois grandes golpes desferidos pela cincia. O primeiro foi quando souberamqueanossaTerranoeraocentrodouniverso,masodiminuto fragmentodeumsistemacsmicodeumavastidoquemalsepodeimaginar. Isto estabelece conexo, em nossas mentes, com o nome de Coprnico, embora algo semelhante j tivesse sido afirmado pela cincia de Alexandria. O segundo golpefoidadoquandoainvestigaobiolgicadestruiuolugarsupostamente privilegiado do homem na criao, e provou sua descendncia do reino animal e suainextirpvelnaturezaanimal.Estanovaavaliaofoirealizadaemnossos 23 inconsciente selvagem, de pulses sexuais incontrolveis, vem mostrar o carter ilusrio do sujeito coeso e dono de suas aes que se baseava em uma improvvel centralidade da conscincia. Em um sentido mais grave, o eu s se afirma no esquecimento da condio estranha e artificial do sujeito. E se h algum lugar onde ele possa se conhecer no estrangeiro de si mesmo. BestialidadescompartilhamnaIdadeMdiaoimaginrioda zoomitologiaclssicaepovoamacinciafisionmicaeuropeia, popularizada por Lavater, no sculo XVIII. Transbordam de um universo paraoutro,dapoesiaparaanarrativa,dapinturaparaapsicologiae vice-versa. A bestializao foi, segundo Flora Sussekind (1999), um dos recursosfundamentaisdefiguraodospersonagensnafico oitocentista brasileira em um momento que ela considera de formao de identidades. Na literatura contempornea, o zoomorfismo retorna sem o antigoterrorsuspensodoslimitesentreonaturaleo sobrenatural,o real e o fantstico, como mostra a terica. Composies monstruosas, bestirios e hibridizaes entre homem e natureza, assim como entre homem e tecnologia criadas pela literatura contempornea parecem no evocar mais o perigo da perda da essncia, mas reengendrar o ser na dissoluo de fronteiras perturbada at o mago porquestesticaseontolgicas.Aproximaesdeimpactoentre organismosdiferentesmenosseapresentamparacaracterizaro temperamentomonstruosodepersonagens, doquepara desestabilizara centralidade do homem, provocando reflexes agudas sobre sua forma de se colocar no mundo em relao diversidade de seres. diferena dos bestiriosdeextraofantstica,osbestiriosrealistasso,emsua maioria, tentativas de compreenso da alteridade radical que os animais representam para a razo humana, analisa Maria Esther Maciel (2006, p. 54). Enfocando outras formas de vida, a literatura busca um saber sobre o mundo e a humanidade. Mesmo as fices e fbulas zoofbicas ou tecnofbicas perfazem linhasdefugaparaaexistnciadeseresmodificadosdesdesua constituiopelaconvivnciacomoutros.Ficescientficasdelonga data, marcadas pela expresso do medo do contgio, da perda da natureza

dias por Darwin, Wallace e seus predecessores, embora no sem a mais violenta oposiocontempornea.Mas amegalomaniahumanatersofrido seuterceiro golpe,omaisviolento,apartirdapesquisapsicolgicadapocaatual,que procuraprovaraoegoqueelenosenhornemmesmoemsuaprpriacasa, devendo, porm, contentar-se com escassas informaes acerca do que acontece inconscientemente em sua mente. (1976, p. 336). 24 oudaidentidade,permitemfalartambmsobreosrecalques,anseiose desejos que habitam o imaginrio coletivo em relao a tudo o que escapa aocontroleedomniodoconceitoedaexperinciatradicionaldeuma cultura soberana separada de todos os outros reinos. Osmundoserguidostextualmentepelaforadasrealizaes fabulatriasnoseprendemsregrasestabelecidasparaaexperincia humana, mas propem e agenciam outras configuraes para a realidade, qualnooferecemoposio,maspossibilidades.Enquantoespaode desestabilizaoeafastamentodoeuemfavordeindividuaes mltiplas,literaturaterritrio-refgioparaaexperinciadeumavida inclassificvel,irredutvel.Literaturavidaquefazoserrecuarat gaguejarumainfncia,umanimal,umagraa,umavoz.Mquinade guerra contra a ordem das identidades (DELEUZE; GUATTARI, 1997), mquinaderetrocessonotempo,deinstauraodono-tempoou ausncia de tempo (BLANCHOT, 1987). Mundo in, i-mundo que coloca o imaginrio a operar como fora de realidade, literatura esgaramento das grades que promovem a separao das espcies e o esquecimento do inumano. questoantigadeBentham,recuperadadoesquecimento, assoma-seoutraternuracontraasseparaes,aindamaisavassaladora, porque no se concentra na dor, no sofrimento, mas no afeto. Entre dois corposdiferentes,nosdizDeleuze,existeodevir.Contrariamenteao progresso,devirinvoluirparaavelocidadedeumcorpominoritrio porque o vir a ser tem a graa de nunca se mover em direo ao que j se estabilizou(DELEUZE;GUATTARI,1997).Oquepretendeserarte representandoumarealidadepreexistente,umaessnciaanteriordo humano,nosecolocadiantedodevirnemdiantedastransformaes verdadeirasquealiteraturapodeencenarcomovidainsurgente.Pois aquilo que se fixa representao parte de uma existncia presumvel, de um modelo que esgota as possibilidades de vida, enquanto a arte leva os seres a se esgotarem de viver, seguindo a lio de Nietzsche que Deleuze (2013) recuperou em A imagem-tempo. Dimenso do devir, o cinema, a literatura, a arte, enfim, abolem a distinoentreessnciaeaparncia,falsoeverdadeiroelanamoser paraesseforadarepresentaoedaidentidade.Doaveroque Nietzschehaviamostradoqueoidealdaverdadeeraaficomais profunda, no mago do real (DELEUZE, 2005, p. 182). Potencialmente, aartecolocaoinconscienteadelirarcomofbricadeproduode realidades, entregue ao delrio e sade do imaginrio, no da doena da representao. Eoinconscienteproduz.Noparade produzir[...]Eo contrrio da viso psicanaltica do inconsciente como teatro, onde sempre 25 se agita um Hamlet, ou um Edipo, ao infinito, grita o mesmo Deleuze em D de Desejo de Abecedrio (1996, traduo nossa).3 Opensamentotensionadopelaexistnciaradicalmenteoutrado animalmarcaossculosXXeXXIcomotributriosdeumlongo processoepistemolgicodequestionamentodoprpriodohomem. Percursos desviantes da arte, da filosofia e da antropologia se encontram nessabuscaquenoseacomodacentralidadedohomem.Uma comunidade trans-histrica e transcontinental inscreve o ser na abertura dos devires, onde no reinam hierarquias. Todasessasconflunciasproduzemdesdobramentosimportantes paraumateoriadaalteridade(Foucault,Lvinas,Kristeva,Nancy)que vai expor mais um corte na subjetividade: a exterioridade do outro no umaoposioobjetalaoeu,masasuamaisprofundaeinconsciente interioridade.Demodomaisoumenoscontundente,maisoumenos radical,oconceitoclssicodehumanoproduzidopelamquina4 antropocntricafoiquestionadoporfilsofoscomoNietzsche, Heidegger, Agamben, Lyotard, Derrida, Deleuze todos, a sua maneira, colocandoemcriseopensamentocalcadonasoberaniaapriorsticado homemenaperspectivahumanista.SnosculoXX,emais especificamente neste sculo, quando as fronteiras entre animal, humano e mquina foram mais explicitamente tensionadas, a filosofia abraou um campo de exploraes sobre a multiplicidade do homem em sua relao com outras vidas. E desse caminho s avessas mais intudo pela arte do quepelacinciacomeou-seavislumbrarumreencontrodohomem consigo mesmo, dito com sua animalidade e vegetalidade. Emummovimentoparatrs,dereconquistadaproximidade perdidaentrehomemeanimaldesdeaantiguidade, o outrodadocomo diferenteabsolutotendeaservistocomoumtrnsitodoserparao reencontro de si mesmo. Esse hspede estranho que nos habita e a quem

3LAbcdaire de Gilles Deleuze compe uma srie de entrevistas com o filsofo conduzidasporClaireParnetetransmitidasnaintegridadepelocanal franco-alemo TVA. 4AquinomaisnosentidoconstrutivoquelhedDeleuze,masnosentido negativado que Agamben atribui mquina no ensaio O que um dispositivo?, emalusoaosdispositivosdodiscursodeFoucault,quetmporfinalidade orientar,determinar,interceptar,modelarcontrolaregarantirosgestos,as condutas e os discursos dos seres viventes. Foucault assim mostrou como, numa sociedade disciplinar, os dispositivos visam, atravs de uma srie de prticas e de discursos, de saberes e de exerccios, criao de corpos dceis, mas livres, que assumem a sua identidade e a sua liberdade de sujeitos no prprio processo de assujeitamento. (AGAMBEN, 2009b, p. 46). 26 devemos acolhida cruza as linhas com nossa infncia e inumanidade. Em Derrida (2012) h sobretudo continuidade e semelhana na relao com o animalquenosantecedeequeseguimossendo,continuidadequea separao mais drstica no foi capaz de apagar. Se animal e homem compartilham afetos, a diferena de natureza entreambosnoapagaassemelhanasemicrofissurasqueemvezde determinarbinarismosestanques,produzemoqueDeleuzeeGuattari (1996) chamam de linhas micromolares e segmentaridades no duras. Em vezdareificaodoprprio,comofazamquinaantropocntrica, Deleuzeenfatizaodevir,mododecontgioetrnsitoondeoscorpos, atradoseafetadosporsuasproximidades-distncias,projetam possibilidadespolticasepoticasdeexistnciashbridasnaescritura. Derrida (2002a) mostra que a repetio da especificidade do homem, por exemplo,dependedaafirmaodeumadiferenaparaimporamesma coisa(acoisasemelhantequenooutra). Naherana dovitalismode Nietzsche(2008,p.351),avida,comovontadedepotncia,enoa hiprboledascriaesdedomniohumanoprojetadasnaessnciadas coisas, constitui a essncia mais ntima do ser, o princpio de tudo e o critrio de valorizao, como o filsofo prope em A vontade de poder. Natentativadedesmancharasfronteirasqueoperamhtantos sculosopensamento,ergue-seumalutaparaescaparaesselugardo mesmo, como um resduo de centro, uma perspectiva que volta sempre supremaciadopontodepartidahumano.Dualidaderesistentequecada vezmaisdesafiaafilosofianapostulaodeumpensamentoforada centralidade humana. Ou fazendo coro com Derrida (2002b), no se trata mais de pensar como o filsofo academicamente formado v o gato, mas comquaispossibilidadesogatovepensaohumanoeoprovocaa repensar todo o resto. no fracasso constante desse esforo de linguagem e pensamento, para esgar-los alm dos seus limites, alm das fronteiras queoseparamdeumno-pensamentoedeumalnguamenor,como propemDeleuzeeGuattari(1977),quealiteraturaeafilosofiase deixam atravessar pelo inumano. Procura-se pensar, aqui, como a literatura procede a abertura para o inumano,atuandonadesobstruodedevires.Comoesselugar privilegiadodeproduodoimaginrioedeurdidurademundos possveis,desejos,perspectivas,frustraesabreasportasparaoutro tempoondeosdeviresseprecipitam.Essabuscaapreciaamatria literriaemconflunciacomoutrasarteseintensidadestericasno campofilosfico,antropolgicoepsicolgico,principalmente,para compreenderofuncionamentodaescritaenquantomquinade desinveno do eu, de desapossamento de si e de desorganizao do ser a 27 partir de trs modos fundamentais de postular a vida literria: ver, pensar e escrever. Ver, pensar e escrever o outro inumano postular um pensamento em crise no qual o homem no mais a origem e o fim. contaminar-se comperspectivasdiferentesdaocidental,comooperspectivismo amerndioouaetnologiaafricana,quesecolocamemdilogocom projetosliterriosdereinvenodohumano.Pensaradimensodo inumano, admiti-la no como um alm-do-homem ou como sua negao, mas como uma imanncia sem a qual nenhuma transcendncia devm. embarcarnavidaforadoantagonismoquereduzumatensodeordem mltipla a uma polaridade evolucionista. Se a cincia sustentou atravs dos tempos a supremacia do homem pautada por um paradigma antropocntrico, a escrita, enquanto mquina deguerra(DELEUZE;GUATTARI,2005)quecolocaadiferenaa produzirrelaes,potencializaorecuodoeu.Escritura,emBarthes (1984): lugar de destruio de toda a voz e de toda origem. Um sujeito em desapossamento de si precipita o fim da demarcao da posse da prpria escritura,poisaoengendr-la,ohomemlanou-anopurodevirdo mundo.Aconsequnciamaisgravedasuainvenoparaohomemfoi descentrar-sedesimesmo,trabalholiterrioqueClariceLispector radicalizounainvenodeumpronomeneutroeantropofgicoparaa escritura, o it. Il, on, it, ndices de ausncia de sujeito: massa branca de barata (LISPECTOR, 1998b, p. 166), zona do neutro onde a literatura opera esse desfazimento de formas e subjetividades em favor da instaurao de uma autoria coletiva ou hipertextual. Morre-se o autor-homem para nascer-se umamultiplicidade, um sergrvido de mundo, capaz de devir qualquer coisa, menos o prprio escritor (DELEUZE, 1997, p. 17), no sentido que aescrituranuncaproliferanadireodasuaorigemoudoseucriador. Porque opera uma suspenso de toda ordem de centralidade do eu, ela sepotencializacomoforadesenraizadoraedesterritorializantedo sujeito, instauradora dos devires. Literatura devir, na medida em que seinstaladescobrindosobasaparentespessoasa potnciadeumimpessoal,quedemodoalgum generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau:umhomem,umamulher,umanimal,um ventre, uma criana... (DELEUZE, 1997, p. 13). Cadaimpessoalidadeconcretatraduzumahecceidade,uma singularidadedoimprprioquealiteraturacapturaemsuavocaode 28 falar do indefinido das coisas em sua imediata conexo com o universal. Conceitoquerasgaporumcrescimentorizomticotodaaverticalidade do humano, devir no nomeia qualquer modo de relao entre figuras: umconceitorigorosoparaumtipodeagenciamentoquenoadmite modelos,cpias,hierarquias,idealizaes.Nosetraduzporuma mmese do tipo imitao ou metfora do tipo substituio. Devir arrasta corposqueseexpandemeseconectampelomeio,oupeloentremeio. Corpos projetados em devir se entregam a uma dupla captura, como um ato de npcias antinatureza: Avespaeaorqudeadooexemplo.Aorqudea parece formar uma imagem da vespa,mas de fato humdevir-vespadaorqudeaeum devir-orqudea da vespa. A vespa torna-se parte do aparelho reprodutor da orqudea ao mesmo tempo queaorqudeatorna-sergosexualdavespa. (DELEUZE; PARNET, 1977, p. 8-9). Se a vespa e a orqudea fazem mimese, no porque uma imite a outra,masporquesecontagiam,entramemrelaoecapturam mutuamenteosseusdevires.Tornar-se-animal,tornar-se-vegetal, tornar-se-inumano,enfim,noresultadeumprocessodeimitaoou assimilaodascaractersticasdeoutroindivduoretidoemsuaforma cristalizvel,masdaprospecomtuadedoisseresqueseprecipitam em sua zona de vizinhana. O conceito de devir que Deleuze e Guattari reelaboram descortina um novo modo de ver os acontecimentos de outridade no campo da arte e davidadosquaisanooderepresentaomimticanodconta.Ao mesmotempo,perturbaecomplexificaoentendimentodemimese, libertando-o do modelo de dualidade que coloca a obra em uma relao de semelhanaediferenacomoimagem-espelhodeummundodado.A literaturadodevirfazagenciamentocomumforasemimagem, representao ousubjetividade.Nosetemmaisumatripartioentre um campo de realidade, o mundo, um campo de representao, o livro, e um campo de subjetividade, o autor. (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 34). Relaesdealteridadenavidaounaartenoseesgotamna atuao de um indivduo que repete a identidade do outro, ainda que se trate de um sujeito fraturado, como argumentou Lima (2000). Devires nuncareproduzemmodelos,sejanocampodaliteraturaoudaatuao artstica. No se trata de um escritor que se faz de cachorro. Nem de um 29 atorimitandoumcaranguejo,comonasequnciadofilmeTaxiDriver (1976), vivida por Robert de Niro e citada por Deleuze e Guattari (1997, p.66-7).antesumatorarrancadodesuafisicalidadecompondouma novaexpressocomavelocidadedaimagemdoanimal.Ecomesse exemplodocinemanosdamoscontadequeosanimaisconstroem posturasdecorposingulares,queseusaparelhoscorpreosproduzem umaescritura.Seresafetadospelodevirpartemdesdesempredeuma diferena e de um deslocamento de si mesmos para criar uma existncia imprevisvel. Para controlar a intensidade e a abertura dos devires, a instituio dohumanismocriaumapolticadedevires-animaisquebusca correspondncias simblicas, domesticadas e familiarizadas dos homens com outros seres (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 30). Alianas com devires inumanos se elaboram a partir de agenciamentos diferentes, que no so os da famlia, da religio ou do Estado, mas justamente ocorrem narupturacomessasinstituiescentrais.Emaranhandoaslinhas molaresdosregimesdeidentidadeeaslinhasdefugaede desterritorializao, a arte abraa as possibilidades do devir. Nas intensidades literrias inumanas, a potncia do devir coloca o serafabular,libertando-odomodelodeverdadeedeidentidadequeo penetra (DELEUZE, 2013, p. 182). A elas interessam as duplas capturas, asconstrueshbridas,metamorfosesdotrnsitohumano-animal- natureza-mquina-coisa. Por elas acontecem a contaminao e o contgio deexistnciaspluralizadasquandoreenviadasssuasinfinitas possibilidadesdetransformao:Umdevir,umairredutvel multiplicidade,aspersonagensouasformasvalemagoraapenascomo transformao umas das outras (DELEUZE, 2013, p. 177). Facilmente o hbito humano domestica o animal do devir em uma identidadeprevisvel,feitoomeubichinhofamiliarefamilial, reconstituindodicotomias,modelosecpias.Realodevir,enquanto fora de transformao e desestabilizao, mas irreal o termo ou a forma estvelquedeleresultaria.Deviresreaisoperamaproximaespor alianasecontgios,nocorrespondnciasidentitriasporfiliao.O devirnoproduzoutracoisasenoeleprprio.(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 18). Todaatranscendnciadoseracontecenoplanodeimanncia,a partirdooutroquedesdesempreatravessaoeu.Comoooutromais radical,oinumanotraduzfundamentalmenteaexperinciaderomper com o ser que habita uma tradio, uma cultura. Naquela proposio de Benjaminsobreoconceitodehistria,inumanoooutroquetenta irromperoser,ointempestivoquerompeomesmo.Enquanto 30 experincia de alteridade por excelncia, a literatura fortalece o humano como multiplicidade e devir. Pelo experimentar de uma ruptura ou de um esgaramento do ser, pela potencializao da alteridade com o inumano, a literaturapossibilitaaohomemconquistarnovosregistrosde sensibilidade,detornar-semaispluraleheteroglxico,fazendovalera hiptesedeNietzscheemAvontadedepoder(2011,p.263),anica possvel acerca do eu: o sujeito como multiplicidade. Nesse sentido, o outro inumano para o ser humano, a heterotopia do pleno devir-se. Comoinumano,oanimalseinscrevenatradio,namedidaem quecompareceaumarelaodecontinuidadeeafetividadecomo homem.Mastendosidoconstitudocomooutroabsoluto,dentrodo processo trans-histrico de hominizao que forja a oposio necessria para que a inveno do homem se destaque, o animal pura irrupo do devir, da diferena e da disrupo. Continuidade e ruptura se conjugam e setensionampermanentementenasontologiasquesebaseiamnas relaes entre homens e animais. A fora de afecto, capaz de destruir essa separao,estsempreaptaadespertarcomofascniopelamatilha, segundoDeleuzeeGuattari(1997,p.20):Fascniodofora?Oua multiplicidade que habita dentro de ns? Ela no encontra barreiras na naturezadapaixo:deviresnaliteraturaacontecemmuitasvezesem condiesdelutaindmita,deescolhainimiga,comoo devir-baleiade Ahab, em Moby Dick, ou o devir-abutre, nas galerias de Kafka, ou ainda o devir-barata,emApaixosegundoG.H.ouodevir-onano perspectivismo amerndio. Inumanoassimocorpoquenotemprprio,queno cessade indicar um lugar de esfacelamento da identidade, do sujeito e do prprio corpo. O corpo se coloca como exterioridade do que h de mais interior doserapontodetornarirrelevanteeindistinguvelaoposioentreo dentroeofora,entrehumanoeinumano.entoocorpohbridoe imprprioqueseproduznasmetamorfoseskafkianas,etambmna secreta relao entre a mulher e o mar, ou a mulher e o cavalo, nos contos de Clarice Lispector. Gesto que constri para si um mundo, a literatura tem a potncia de multiplicar relaes e sintonizar corpos diferentes, conectando-os por um tipodegestualidade,velocidade,vibrao,calor,intensidade (DELEUZE; GUATTARI,1997,p.47).Sendomquina doimaginrio, ela prope um campo de textualizao de trocas orgnicas. Mais do que afirmao de identidade, os corpos podem vivenciar, com a suspenso do eueaforadasclivagens,apotnciadaalteridade.Aoengendraras existncias nesse estremecimento de fronteiras, a literatura e a arte abrem divisasparanovasexperincias.Lugaresdefabulaoeprojeode 31 mundosex-possveis,ondeasgradesinvisveisdoprocessode hominizao podem se abrir. Em Capitalismo e Esquizofrenia, Deleuze e Guattari j afirmavam aideiadeuminconscientemaquniconosubmetidoaoregimedas identidades, referente a um processo de agenciamento entre indivduos. E Rolnik(2000),emumaanalogiaentreaesquizoanliseeoManifesto Modernista, agregou a ideia do corpo sem rgos noo de canibalismo cultural no termo inconsciente maqunico antropofgico.A expresso buscaamalgamardoismodossimilaresdedeglutiodesubjetividades alheias para construir uma individuao nova e heterognea. Na proposta antropofgica, uma fora de heterognese, no caso do Brasil,caracterizadapelabiodiversidadehumana,defaunaedeflora, desestabiliza as identidades e a tendncia emergente homogeneizao. Tantonamiscigenaobrasileira,quantonoprocessodeglobalizao, haveriaummovimentocoexistentedeidentidadestransnacionaise cambiantes,masaindafixadasnomododereificaodasidentidades (ROLNIK,2000,p.10).Acentuandomaisosfluxos,asconexeseos processos, o modo de dessubjetivao da esquizoanlise se diferencia por tomarasfigurasdasubjetividadecomoefmerasenecessariamente produzidas por agenciamentos coletivos e impessoais. O inconsciente maqunico antropofgico apoia-se na ideia de que a subjetividade, longe de ser dada, objeto de umaincansvel produo que transborda o indivduo para todos os lados. Propugna a liberdade de criao de novas mscaras, que so processos de individuao provisrios instauradosnessefluxodeconexes,eaconfiguraodeterritriosde existnciamarcadospelahibridaodeuniversosdiferentes.Processos nosquaisoindivduoeseucontornoseriamapenasumaresultante (ROLNIK, 2000, p. 453). s produes do inconsciente maqunico antropofgico conecta-se uminconscientemaqunicoinumanoqueseagenciacomosrestosdo processo de humanizao. Relaes animlicas que habitam as camadas psquicas mais secretas do homem so trazidas superfcie pela loucura, pelodelrio,pelasartes.Oinconscienteinumanocarregaotraode indeterminao de uma infncia da humanidade que resiste e coexiste na vidaadultacomocamadaescondida,obliteradapelalinguagemepela representaodopapeldehumano,nosentidopropostoporLyotard (1990). Produesdelirantesdesseinconscienteemergemnobestirio sculoXX,deescritores-feiticeirosquefazemalinguagemrasgaros 32 limites da animalidade, como Kafka, Clarice Lispector, Guimares Rosa, Astrid Cabral, Cortzar,5para citar apenas alguns. E tambm no cinema do inumano de Corao indmito (Michael Powel), homenagem alma selvagemnodevir-mulher-raposaeSanguedepantera(ValLewton), entre muitos outros, e nas experincias recentes do cinema animado.6 Nas artes plsticas, o inconsciente inumano reenvia a Gricault e Eugne Delacroix, entre os pintores do animalismo, e aos Caprichos de Goya, no sculo XVIII, em torno dos quais, alis, se produziu a clebre sentena-bumeranguesobreumhumanismoquecolocouoprojetodo homemacimadaprpriavidacomojustificativaparaainstalaodo horror e da guerra: O sono da razo produz monstros. Se a gente desce maisfundoprocuradeumaorigemmticaquedesdejseanuncia perdida,7o inumano remonta cultura oriental, cultura grega (ou vinda sabe-se-l de que barca), religiosidade pag. J h muito conhecido do perspectivismo amerndio, o inumano a matriamaispreciosaslendasindgenas,ondedesfilamguerreiros camufladosemformadelua,noivasmetamorfoseadasemnenfares, homens conquistadores com devir-boto, mestios com devir-ndio, ndio comdevir-ona.Transformaomise-en-abymepelaforaconstanteda diferena, que tambm semelhana, ou diferOna, termo proposto por Eduardo Viveiros de Castro, em sntese antropofgica do conto Meu tio, oiauaret,deGuimaresRosa,eoconceitodediffrance,de Jacques Derrida.8 l,nessaorigemperdida,queClariceLispector(1987)fez proliferaraproduoimaginriadoinumano,aoescreverComo

5Sobre o inumano e o perspectivismo amerndio em Cortzar ver Cernicchiaro (2013). 6Sobreosdeviresinumanosnaanimaocontempornea,SimoneCuri desenvolveu pesquisa de ps-doutoramento no Programa de Ps-Graduao em Literatura da UFSC. 7LembraroalertadeDeleuzesobreanaturezadosmitos,avessaao estabelecimentodeorigensehierarquiasdoscontosefantasias:Apesardas aparncias e das confuses possveis, os mitos no tm a nem terreno de origem nempontodeaplicao.Socontos,ounarrativaseenunciadosdedevir. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 23). 8Devir-animalestedeumndioqueantes,etambm,odevir-ndiodeum mestio, sua retransfigurao tnica por via de uma metamorfose, uma alterao que promoveaomesmotempoa desalienaometafsicaeaaboliofsicado personagem[...].Chamoaesseduploesombriomovimento,essaalterao divergente,dediferOna,fazendoassimumahomenagemantroporfgicaao clebre conceito de Derrida. (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 128). 33 nasceramasestrelas:dozelendasbrasileiras,umlivro-calendrioque perfazociclode12meses,umalendaparacadams.Personagens inscritosnaindeterminaohumano/inumanodesfilamnesseretorno literrioseletivoaofolclorebrasileiro:PedroMalazarte,Curupira, Saci-Perer,NegrinhodoPastoreio,YaraSereia,oUirapuru.Reunidas com o propsito de iniciar as crianas no universo da mitologia indgena brasileira,asfbulasreescrevemoschamadosmitosdeorigememsua vertiginosa produo espiral. O mito contm uma verdade universal ao pensamento amerndio: a dequenaorigemdetudo,nostemposdoeraumavez,humanose bichos viviam em indiferenciao. Convocado a responder o que mito, Lvi-Strauss(apudVIVEIROSDECASTRO,2011,p.354)oferecea definio que lhe parece mais profunda. Se voc perguntasse a um ndio americano,muitoprovvelqueelerespondesse:umahistriado tempoemqueoshomenseosanimaisaindanosedistinguiam.A investigaomaisgravedosentidodeinumanosednesseconfluir rizomticodaslinhasdaliteraturacomaslinhasdaantropologiaeda filosofia. EmImagem-tempo,Deleuze(2013)reinventaoconceitode fabulaoemfavordeumaperspectivaliterriaquepermitaderivara anlise da narrativa em sua dimenso mtica, fora do regime de verdades. Motivado pela tenso entre verdade e mentira em Nietzsche e reelaborando suatradiobergsoniana,ofilsoforetoma,sobreoutrascategorias,a formulao de potncia do falso. Emerge dessa reconfigurao o conceito de fabulao, em oposio ideia de fico, que se coloca, nesses termos especficos, como anttese de um modelo real. Operandocomoumamquinaplugadanoambientesocial, poltico,cultural,institucional,afabulaoefetuaaexperimentaodo real atravs de acontecimentos, de memrias, de lendas, de documentos. Sobretudo experimenta articulando-se com o no dito, com aquilo que de algumaformaseapagououseesqueceu.Desterritorilizaodalngua, desvio da norma, a fabulao faz com que um povo se reconhea naquilo que no representao, mas existe e to real que vibra. A metodologia que se busca armar aqui procura, no espao-tempo fora da dicotomia e do cronos, possibilidades de encenar o inumano. Inspira-se e encoraja-se no conceito deleuziano de fabulao, na nfase de Agamben em um mundo por vir em que a natureza tem voz e, ainda, por esse modo fabulatrio e encantatrio da narrativa de Clarice. Confabulaes mltiplas em torno da escrita do devir trazem tona um processo de dessubjetivao e desterritorializao que faz emergir a noodecomunidadeelaboradaporumarededeautores,entreeles 34 Jean-LucNancyeAgamben.Comunidadequesearmanoestadodo contemporneocomoalgoqueestsempreporfazer,queestnoque resta e no que vem. No mais o idealismo oitocentista que projeta uma viso de uma nova sociedade comunista, cujo ideal libertar-se das falhas doindividualismo,masorumoconstituiodeumacomunidade solidria sem fronteiras, sem pressupostos e sem sujeitos. Figura de uma singularidade,umlimiarentreumdentroeforaquepermitefazera referncia ao outro sem sair de si mesmo. Filsofos,etlogos,antroplogos,escritores,artistasque produzemumalinguagemembuscadoinumanoformamuma comunidadecomosseresemintenodequemelesescrevem.Muito antes de ser uma inveno de posse antropocntrica, o imaginrio coloca emrelaoosatoresdavida.Eelespassamaformarcomunidadesem trnsito,trans-histricas,transterritoriais,transnacionais,trans-espcies, comunidadessolidriaseinvisveis,porfim,queserenemnavida poltica e potica das artes. A comunidade s pode ser instituda a partir de uma paixo, uma ternura em comum, que no intrnseca ou inata (como nas relaes por parentesco).Elasearmanosarranjosinvisveisdeumaagremiao solidria que produz de uma existncia heterognea algo intil e abstrato, quase um nada, para compartilhar, a exemplo das famlias rizomticas ou matilhas,propostasporDeleuzeeGuattari.9Famlias-redesnose abrigam por semelhanas verticalizadas, mas por interseces cruzadas. Nelasodeviroperaumdesdobramento,umavano,nodaordemda dependncia ou filiao, mas sempre da ordem da aliana subversiva aos organogramas normatizados da instituio do eu. Ter desfeito o eu para estar enfim sozinho, e encontrar o verdadeiro duplo no outro extremo da linha.Encontraropassageiroclandestinodeumaviagemimvel. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 70). Comunidades colocam a operar agremiaes heterogneas que no seorientamporsimilaridadesintraespcies.Oprprioconceitode espciereverberaemsiumabiopolticaquearticulacaractersticas biolgicas com questes polticas para fundar um regime de exceo no

9Ao discorrer sobre um verdadeiro devir-animal, Deleuze e Guattari (1997, p. 22-24)opemaepidemiafiliao,opovoamentoporcontgio hereditariedade, a propagao reproduo sexuada. Tomam como referncia a reproduo dos vampiros, dos bandos humanos e animais. Eles se proliferam em temposdeepidemias,guerrasecatstrofes,quandoosdevires-animais transgridem pela fora das circunstncias os regimes de filiao do tipo familiar, estatal, religioso ou institucional. 35 qualoidealdehomemdeclarasuasuperioridadeegerenciaseus privilgios. Mas a literatura, enquanto lugar de minoridade e resistncia, derecuoefreiodoprogresso,tropeanoscacosdahumanidadee deixar-se interpelar pelas sobras que escapam ao conceito de homem e ao conceito de histria. So as perturbadoras runas da humanidade o motor daproduoemergentedebibliografiasqueexpressamopensamento contemporneomultidisciplinaremtornodasuperaodo antropocentrismo. Umaforadopensamentoheterogneoseinscrevenoencontro doschamadosEstudosAnimaiscomoscursosdguadafilosofia, teologia,teorialiterria,artes,etologia,biologia,arqueologia, antropologia, zoologia, biopoltica, biotica, estudos de gnero. Partindo dessas leituras e linguagens diferenciadas essas comunidades, essas redes deconscinciatrabalhamnaperspectivadeumaticadoinumanoque postula a superao do especismo e do antropocentrismo valorativo. Mais interessaaquivaler-sedoentremeiodessetrabalhointelectualdoque aderiraosredutosclassificatriosdessasinquietaesdepesquisaque tambmpodemreconfiguraroutrotipodeespecismo(zooliteratura, zoopoticaecongneres),sobpenadeseconstruremnovascercasem torno de um objeto do qual se quer o movimento, o devir, o trnsito. Pois comolembraDeleuze,referindo-seacertastendnciasareificaras figuraes animais do bestirio de Nietzsche em Assim falava Zaratustra, apotnciadavidafrgilefcilpetrificarasmetamorfoses, tornando-as formas j feitas (DELEUZE, 2013, p. 179). Ver,pensareescreveroanimal.Umaquestoticaepoltica norteiaessastrsoperaesdapercepodoinumano:arelaode embate entre a mquina antropocntrica e a mquina de guerra da escrita. medidaqueohumanoestsemprepressuposto,amquina antropocntricaproduzumaespciedeestadodeexceo.Seu mecanismo funciona excluindo o homem como animal mesmo quando o inclui enquanto a espcie que inicia a escalada evolucionista.10Segundo lembra Agamben (2007, p. 72-73), homem e animal tm a mesma origem pr-lingustica e, no entanto, as narrativas cientficas e histricas sobre o aparecimentodohumanoexcluemooutrodesseprocessooudessa conquista.

10ParaAgamben(2006,p.74),amquinaantropolgicasedefinepela contradiodequeaproduodohumanosedmedianteaoposioentreo animal e o inumano. Opera-se a uma excluso que uma captura e uma incluso que sempre uma excluso. 36 O filsofo denuncia e desarma essa contradio quando examina a coincidnciadaorigemdohomemedalinguagem,particularmentena obra do linguista Heymann Steinthal. Reafirmando a tese de Darwinde que o homem se origina do animal, Steinthal acrescenta que a origem do homemamesmadalinguagem(ouquesomenteohomemestna origemdalinguagem).Poresseartifciodediscurso,elaaparececomo umacapacidadeinataaohumano,emboraoobjetivodacinciaseja, supostamente, mostr-la como um invento que leva evoluo. O mesmo mecanismoideolgicodeesquecimentodesselapsonodiscursoda coincidnciaoriginriahomem-linguagemopera,segundoAgamben (2006c), o esquema de exceo da mquina antropocntrica: ela exclui o animal mesmo quando o inclui. Ao atribuir ao homem um modelo ou um estatutojsemprepressuposto,inquestionvel,essemecanismovai estabelecertambmofuncionamentodeumforadentrodaprpria categoria de humano. Criam-se ento outras oposies que vo reproduzir essa lgica e constituir animais humanos. Aocontrriodamquinaantropocntrica,aliteratura,quando opera como mquina de guerra, trabalha para dissolver toda origem, todo pressuposto e toda exceo. Ela faz recuar em direo a uma origem que no um marco cronolgico, mas um entre da histria onde se projetam asuspensodoslimitesclassificatriosedesuascontradies.Sea literaturaeasartesestovocacionadasaexporasfraturas estabelecidas,adestruiroregimedeidentidadese,principalmente,a colocarprovatodasortedecontradio,podeamquinaliterria inumana emperrar a mquina antropocntrica? Se a tarefa da escritura fazer o ser recuar ao ponto de a linguagem ouvir apenas o balbuciar de umavozhumano-animal,apontodeinvoluirparaumagagueira,como querDeleuze,elapode,caminhandoparatrsatchegaraumperodo mesozoico ou proterozoico, levar o eu a ter a sanha da vida do mundo? Ela pode lev-lo, num trnsito imvel, num deslocamento imperceptvel, a despir-se das estratificaes subjetivas para se conceber como matria vivente, como desejou a obra de Clarice Lispector? A barata e eu somos infernalmente livres porque a nossamatriavivamaiorquens,somos infernalmentelivresporqueminhaprpriavida topoucocabveldentrodomeucorpoqueno consigo us-la. Minha vida mais usada pela terra do que por mim, sou to maior do que aquilo que eu chamava de eu que, somente tendo a vida do mundo, eu me teria. (LISPECTOR, 1998b, p. 123). 37 Eporquefinalmenteoinumano?Nopiedade,no compaixo pelo outro ou por si prprio, ainda que Nancy (2006b, p.12) nosmostrecomagudezaaforadacom-paixoemummundoque precisamosviverassumindoacondiodeser-uns-com-os-outros. Aindaqueelenosmostrecomodesejvelasacudidadabrutal contiguidadecomosanimaisqueacompaixoprovocanohomem, inclusivedeacord-loparasuasresponsabilidadesticasperanteas outrasespcies.Sendoumsentimentomodificadopelohomem, nenhuma segurana h de que a compaixo pode ser compartilhada com osanimais.Oquesepodecompartilharcomcertezadeigualdadee reciprocidade entre todos os viventes o corpo, o impacto e a afeco do corpo,essemododefuncionamentonico,baldevelocidadese repousosqueconstituemohabitusdossereseosdiferenciameonde podem se entrecruzar os pontos de vista. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dosorganismos, h esse plano central que o corpo como feixe de afeces e capacidades, e que a origemdasperspectivas,dizViveirosdeCastro(2011,p.380), ecoando Deleuze e Leibniz. Conceito de Spinoza retomado por Deleuze, afeco a mudana de estado de um corpo afetado pela ao de outro corpo externo, que mesmo ausente se torna presente pela manifestao de sua ideia. Sentir os raios do sol, afeio no corpo, ao do corpo do solsobreele,quetemcomoefeitoocontato,amescladecorpos. (CURI, 2001, p. 153). Feixe de afectos, do corpo brota um amorimpessoal. No sentido emqueemoodeumanaturezadesconhecida,oamornopodeser confundidocomumsentimentopessoal,comojpropunhaaideiado amoremDeleuzeeGuattari.Afectosexplodemaspartculasdoamor manifestando a efetuao de uma potncia de matilha, que subleva e faz vacilaroeu(DELEUZE;GUATTARI1997,p.21).Semdeterminar como e quando, o afecto arranca o eu da pele humana para experimentar a violncia dos rizomas ou das sequncias animais e o faz acordar os olhos amarelos de um felino ou esgaravatar o po como um roedor. Afetar-sepelavida,esgotar-sedeviver.Nosentimento, emoo.Amarassimimplicaquerermaisoritualdavidadoqueasi mesmo. Amor it, afecto inumano, forma utpica de atingir a apoteose do neutro em que a to valorizada diferena ganha o seio da indiferena, para escrever com Clarice Lispector (1998b, p. 121). Perder-se no atonal doprpriosentirdaescrita,sentircomsofreguidoinfernaloeueo ns, devor-los: 38 E tudo isso oh horror meu tudo isso se passava aolargoseiodaindiferena[...]Tudoissose perdendo a si mesmo num destino em espiral, e este noseperdeasimesmo.Nessedestinoinfinito, feito s de cruel atualidade, eu, como uma larva naminhamaisprofundainumanidade,poisoque atentomehaviaescapadoforaaminhareal inumanidadeeuenscomolarvasnos devoramos em carne mole. No minsculo e infinito ensaio de Ideia da prosa, de Agamben, o amorpassaporessadistncia,noconvviontimocomosilncioea ilegibilidadedeumestranho.Todaaproximaosvaleparamantero estranhamentoeainaparnciadesernico,poisoamornuncaser conhecido na condio de uma aparente pessoa. O amor encontra o outro nolugarparadoxalmenteabertoeinatingvel,deondeirradiaaluz inesgotvelnaqualessesernico,essacoisa,permaneceparasempre exposta e murada. (AGAMBEN, 1999, p. 51). Finalmente, preciso falar sobre os mltiplos funcionamentos dos modosdefraseque afetameinterrogamestapesquisadoinumano,ora enfatizando o ver, ora o pensar, ora o escrever, mas sempre acentuando a zona de indiscernibilidade entre eles. Nessa composio frasal aparecem trs verbos no infinitivo operando uma sintaxe de suspenso do sujeito: Ver,pensareescrevercom(o)umanimal.Deincio,temeu-sequea conjuno como inscrevesse o sentido em uma comparao ou analogia com o animal, o que fortaleceria a dualidade incoerente com a proposta do devir. Mas a percepo de que o dispositivo como opera de formas diferentes no mesmo encadeamento sinttico e que assinala sobretudo um mododefuncionamentocorpreo,encontrouapoionareleiturade Deleuze e Guattari (1997, p. 66), a nos dizerem sobre o sentido tambm funcional dessa conjuno: Interpretarapalavracomomaneiradeuma metfora,ouproporumaanalogiaestruturalde relaes[...]nocompreendernadado devir.A palavracomofazpartedessaspalavrasque mudamsingularmentedesentidoapartirdo momentoemqueasremetemosahecceidades,e noestadossignificadosnemrelaes significantes. 39 Um animal, portanto, no opera aqui como nmero, mas como ndice de indefinio e tambm naquela perspectiva fabular da linguagem em que os seres no esto delimitados pela fratura que separa humanos e no humanos. Ver, pensar e escrever do modo, portanto, como o faria um ser no domesticado ou no condicionado pelo humanismo. Ver, pensar e escrever como um animal: vestir as penas, garras, patas, antenas, faris, cornos, asas, nadadeiras, rabo, trompa, enfim, animalizar o corpo como o fazemosxamsquandousammscarasparasedeslocarpelocosmos. Enfeit-lo com as partes alheias que inscrevem no corpo a diversidade da natureza e ressaltam o fundo animista de humanidade entre todos os seres, noperspectivismoamerndioestudadopeloantroplogoEduardo Viveiros de Castro (2011, p. 394). Ativar os poderes de um corpo outro: O que se pretende ao vestir um escafandro poder funcionar como um peixe, respirando sob a gua, e no se esconder sob uma forma estranha. Emfavordessemltiploagenciamentodesentidosqueatuao isolamentodaltimaletrapeloparntesisparaquedessadobra significante devenham duas novas leituras. Primeiramente um ver, pensar e escrever com o animal, na perspectiva do ser-com de Nancy (2006b, p.29)edetodooimpactoqueessacoexistnciaimplicaparao pensamentoeparaasartesnapostulaodeumseraomesmotempo singular e plural, que s pode se afirmar como ser-uns-com-os-outros. Em segundo lugar, a hiptese em que os trs verbos no infinitivo operam deformatransitivadiretacomoartigoparaevidenciarapresenado animalnaperspectivadedissolvimentodosujeitoedoobjetoemuma indefinio.Nestanovasintaxe,oanimal,comoexponnciadeuma inumanidade,podeseraomesmotemposujeitoeobjetodaescritura, novamente em favor de uma sada para a dicotomia no modo transitivo de Ver,pensareescrever umanimal. Animalidade em nome de quema linguagem torna-se um esforo humano, para reverenciar mais uma vez Lispector (1998b, p. 176). Umaltimadobraoperanapolissemiadocomo:trata-se,no logos do animal autobiogrfico proposto por Derrida (2002b, p. 89), em relaoescrituradesidovivente,deVer,pensareescrever enquantoanimais que somos ou seguimos sendo. E muito tarde para neg-lose,comodizofilsofo,eleterestadoaantesdemim,que estoudepoisdele.Restituindoaessemododefrasesuaintegridadee multiplicidade,tem-seVer,pensareescrevercom o animal,como o animal ou o animal que, na perspectiva do inumano, implica engajar um pensamento 40 do que quer dizer viver, falar, morrer, ser e mundo como ser-no-mundo ou ser-ao-mundo, ou ser-com, ser-diante,ser-atrs,ser-depois,sereseguir,ser seguido ou estar seguindo, londe eu estou, de uma maneiraoudeoutra,masirrecusavelmente,perto doquechamamoanimal.(DERRIDA,2002b, 28-29). Restafinalmentecomentarumdesafiometodolgico:iniciar lanando uma proposio de escrita hipertextual no princpio mais radical e concreto desse conceito. Isso significa no apenas remeter-se a outros textos, como um conjunto de ns e links, mas efetuar um apagamento da propriedadeautoralemfavordainstauraodeumaleituracoletiva. ComeandoportomardeemprstimoomtododeViveirosdeCastro (1998, p.192) na construo de uma organizao da escrita que seja posta para derivar, variar e desorganizar a autoria:enlouquecer as aspas, em umcertosentido.Odesejodealcanarumpensamentoinformee monstruoso,talcomopostulaDeleuze,11vibranavozdanarradorade guaViva(LISPECTOR,1998a,p.90):Overdadeiropensamento parece sem autor.

11Monstro tem um segundo sentido: alguma coisa ou qualquer um cuja extrema determinaodeixaplenamentesubsistiroindeterminado(porexemplo,um monstroaoestilodeGoya).Nessesentido,opensamentoummonstro. (DELEUZE, In: VILLANI, 1999, p. 129, traduo nossa). 41 2VER, PENSAR E ESCREVER COM(O) UM ANIMAL 2.1NARRADORES-CORUJA: A POTNCIA INUMANA E IMPESSOAL DA FLNERIE Sous les ifs noirs qui les abritent les hiboux se tiennent rangs ainsi que des dieux trangers dardant leur oeil rouge. Ils mditent. Sans remuer ils se tiendront jusqu lheure mlancolique o, poussant le soleil oblique, les tnbres stabliront. Leur attitude au sage enseigne quil faut en ce monde quil craigne le tumulte et le mouvement; lhomme ivre dune ombre qui passe porte toujours le chtiment davoir voulu changer de place. Charles Baudelaire (2006, p. 257)12 NasproximidadesdaponteOrientaledelleSaint-Louis,uma figura altiva e solitria se afasta para espreitar a fantasmagoria da cidade sob a luz tremulante da lua. O cavalheiro caminhante enlaa o manto na altura do peito, cobrindo o corpo inteiro de negro e de meia invisibilidade. Deesgueira,observaoespetculodassombrasemumanuvemde mistrio e melancolia, como deve ser o olhar dos justiceiros urbanos para oespritodanoitequenascequandooespritododia dorme.Noturnos soseusolhos,noturnooespetculo,noturnoomeio.Estehomem habita a noite. Uma coruja volta do sobrevoo pelo firmamento urbano e pousa-lhe na cabea, sobre o chapu tambm negro e de abas largas. A ave grande, mas no se distingue do conjunto, como se trao cinza sobre fundo negro.

12Sob os negros eixos que habitam,/ Alinham-se os mochos em fila./ Como a dosdeuses,apupila/Lhesardeemfogo.Elesmeditam./Eimveis permanecero/ At o momento agonizante/ Em que, tangendo o sol rasante,/ As trevas tudo engolfaro./ Sua atitude aos sbios ensina/ Queaqui lhe cabe como sina/Temerocaoseomovimento;/Bbadodeumasombraftil,/Ohomem maldizoatrevimento/Dehaverousadoumpassointil.(Traduo:Leda Tenrio da Motta). 42 Sombrio o homem, sombrio o pssaro. Perfeitamente acoplados, um embaixo do outro, humano e bicho compem um poste totmico de vigia sobreopetit-pav.Decostasparaofluxodoshabitantes,mantmuma distncia estratgica, para poder espiar de esgueira, sem serem notados, as cenas que se armam nos becos sombrios da Paris pr-guilhotina. Ao olhar para a moldura, notamos que o poste guarda um ngulo privilegiadodeobservao,deondeasruelasagitadasseabremparao espectador-totem e para ns que contemplamos o quadro, na condio de vigias e vigiados. Em um canto se distinguem as silhuetas femininas de jovens raptadas pela guarda de homens que chegam a cavalo. Enquanto isso, em cena paralela no beco ao lado, outro grupo arma o arrombamento de um sobrado. Assistindo ao devir dos acontecimentos, homem e pssaro formam uma presena to nica que j no sabemos se quem espreita a noite o homem ou a ave e qual dos dois vai nos contar o que se passou. E logo, na mesma imagem, em um plano simultneo, j so os dois em um s corpo de coruja sobrevoando a cidade nos intervalos de guerra. E a duplaquegrita,emumasvozmeiohumana,meioanimal:Quede choses voir, lorsque tous les yeux sont ferms!.13 Perdidaentreaspginasamareladasdoprimeirotomode16 volumes publicados a partir de 1788, a exclamao entre aspas abre um dirioderelatossobremileumanoitesdavidacotidiananacidadede ParissvsperasdaRevoluoFrancesa.Porelachegamosecosdos contos-reportagensquenascemdapenabisbilhoteiradeumflneur francs,conhecidopelacrticaespecializada,masannimoparaas multides-protagonistas que ele e seus sucessores buscaram retratar.14Se abstrairmosocontexto,adataeolocaldessafalaedessavoz,melhor reverbera o sentido contemporneo que ela carrega atravs dos tempos.

13Quantacoisaparaverquandotodososolhosestofechados!(Traduo nossa).ExcertodaapresentaodeLenuitsdeParis,conjuntodetextosde Bretonnepublicadoentre1788e1793attulodecomporummosaicodos subterrneos da vida noturna da metrpole parisiense. Foram reunidos emParis le Jour, Paris la nuit (BRETONNE, 1990), junto com a obra de outro escritor e jornalistaflneur:LouisSbastienMercier,queescreveTableaudeParis (1990b),publicadoem1781,eLeNouveauParis(1990a),comnarrativas produzidas em flanries diurnas. Todos os volumes compem umabrochura da coleo Bouquins, dirigida por Guy Schoeller e publicada pelas Edies Robert Laffont em 1990. Ver a propsito o artigo Notas sobre o mito literrio de Paris: de Restif aos surrealistas, de Flvia Nascimento (2002). 14Aqui a palavra retrato tem o sentido de estudo dos tipos humanos que lhe d Benjamin(1994e,p.91-107)emPequenaHistriadaFotografiaetambm Didi-Huberman (2012)em Peuples exposs, peuples figurants. 43 essesentidoqueperseguimosemummovimentoarqueolgico,mas sobretudo cartogrficodoolharflneur de diferentespocasapartirdo tropeo no artefato humano-animal inventado por Bretonne. Aimagendoreprter-corujaoperacomoumgatilhodeorigem, ensejandoaconstruodacategoriadenarrador-corujaaquichamada tambmdenarradordoescuro.Homenagemaumaliteratura cartogrfica que pousa sobre as coisas do esquecimento e os lugares de passagem(DELEUZE,1997,p.89).Percorridosnomodorizoma,os textosliterriosejornalsticosquemostramapermannciaou persistncia do artefato encontrado so convocados para anlise mais por interconectividadedoqueporumaescavaocronolgica.Assim participam da busca de um rastro inumano na narrativa andarilha apoiada naquela proposio benjaminiana de encontrar no presente as fagulhas de muitosagorasnuncadefinitivamenteperdidosparaumaescritada histria a contrapelo (BENJAMIN, 1994c, p. 232). Da voz perplexa emana um duplo sentimento: insatisfao quanto aummododevisibilidadequedeixaenormesregiesadescobertoeo desejo de olhar o que est sombra. Se todos os olhos esto fechados, h umacegueiracoletivaquetemtambmumduplosentido:oshomens fecham os olhos quando dormem,mas tambm quando no querem ver outmsuaacuidadeobliteradaediminuda.Aocontrrio,osentidoda noiteparaaliteraturaseinstalanosacordesdeumacegueiraluminosa que pura coragem de ver-dade. Uma vontade de potncia, a potncia de agir com o olhar exclama para o mundo sua utopia e esperana: Quantas coisas para ver []! Mas a voz da coruja carrega tambm um lamento, um diagnstico apocalptico ou distpico do mundo, abandonado pelas multides que dormem enquanto oflneurcaminha:todososolhosestofechados!Deumlado,uma multido que anda s cegas, pois delegou para o controle ocularcntrico e para o progresso que tudo vigia a posse do seu olhar. Cegueira dessa ordem produz invisibilidade, desmemria, perda, desaparecimento, morte simblica. Povos no vistos so povos expostos extino, ameaados de morte,avisaDidi-Huberman(2012)emPeuplesexposs,peuples figurants. O presente da histria um oceano de povos que no cessam de desaparecer diante dos olhos do narrador, como navios que esperam ser olhadosparapoderafundar-setranquilos,tomando-sedeemprstimoa imagem de Frederico Garca Lorca.15De outro lado, o nascimento, o novo,

15Meucoraoteriaaformadeumsapatosecadaaldeiativesseuma sereia./Mas a noite interminvel quando se apoia nos enfermos/ e h barcos que buscam ser olhados para poder afundar-se tranquilos. (LORCA, 1989, p. 473). 44 aesperana:verdesvelar,tirarumvu,masprincipalmentever-see revelar-se diante do outro que se expe. Ver viver e dar vida: dar vida ver o rosto singular do outro e ser visto por ele. Quem flana pelas ruas e viaja pelo mundo tende a reconhecer o rosto dos povos. O grito da coruja anuncia, sem o saber, uma morte: do que ainda palpitanoescuro.NonopassadomticodeAtlanta,ounosvestgios longnquosdepovosincasemaias,masnopresentedospovosque habitamoescurodacontemporaneidade.Ecoadeumasociedadeque paradoxalmenteemergenoSculodasLuzes,quandotudovisto exausto; quando os instrumentos ticos avanam as reas no mapeadas pelaviso;bisbilhoteiamevasculhamosinterioresdosorganismos, trazendoaspartculasmnimas,ostomos,osmicrbiosaoalcancedo olhohumano.Reaproximemospororaessavozaoseucorpo,aoseu cenrio e ao seu tempo. o reprter-coruja das ruas da florescente Paris, onde tudo ainda est por se desvelar. o personagem-escritor de Restif de La Bretonne, quecaminhaparacombateraescuridoeaanorexiadeverdasnovas multides.Quantascoisasparaverquandotodososolhosesto fechados! (BRETONNE, 1990, p. 619). Assim o narrador-hibou de Les nuits de Paris ou Le spectateur nocturne comea a descrever sua saga de mil e uma noites pelos becos, pelas esquinas, delegacias, igrejas, praas, prostbulos,sales,enfim,portodocantodecidade,todoespao,toda fascadeinstantesobameia-luzdeumlampio.Narrandoum acontecimentopornoiteedeixandooseueternodesdobrarparao amanh, moda Scherazade. Emsuaflnerienoturna,Bretonneeraacompanhadono contraturno por um andarilho da espcie diurna: Louis Sbastien Mercier, que escreveu os volumes de Tableau de Paris e Le Nouveau Paris com narrativas produzidas em suas andanas luz do dia. Ainda no traduzida noBrasil,aobradosdoisjornalistas-escritorestrazdosculoXVIIIo hibridismoqueintersectadesdesempreliteraturaejornalismo.Obra emblemtica no sentido de mostrar a vertente de uma literatura que parte daprticadaobservaodofaitdiversparaproduziroimaginriodo cenriourbano.Seojornalismoabasesocialdaflnerie,segundo afirmaBenjamin (1994a, p. 225), a flnerie tambm abase criativa e ontolgicadojornalismo,comomostramaduplaBretonneeMercier (1990).Elessedestacamentreumamltiplagamadeflneursqueos sucedemnaParisps-revolucionria,eufricosouhorrorizadoscoma barbriedoprogressoemcurso,aderidosaessasviolentas transformaes ou deriva delas. 45 Andarilhodanoiteeandarilhododiaajudaramaconsolidara prticadareportagemque,dessaforma,nasceuimbricadanarrativa literria.EmpreendendosuacruzadaappelaParisqueBenjamin (1994a, p.186) consagrou como o bero da flnerie, cunharam o termo reportagemantesqueelafossereconhecida econsolidadacomognero jornalstico, o que s ocorreu em 1853, quando o primeiro correspondente deguerra,oirlandsWilliamHowardRussel,foienviadooficialmente pelojornalinglsTheTimesparacobriraGuerradaCrimeia.Mercier teriainauguradooempregodotermoreprterentreosfranceses, conforme afirma Delon (1990a), que assina o prefcio e a introduo de Parislejour,Parislanuit.Nessenemtonovomododenarrar,16a experinciafsicadeobservaoeotestemunhonoseseparamda escrita.Adescobertademandouainvenodeumvocabulrioa serviodosquecaminhamcomaincumbnciadereportar sistematicamente as cenas do cotidiano. Quando as sombras da noite comearam a cair que levanta voo o pssaro de Minerva,17anuncia Hegel (1997, p. 39), no prefcio obra

16SeanfasebenjaminianadizqueParisoberodaflnerie,areportagem hibridizada literatura no pode ser circunscrita cultura francesa. Nos primeiros anos do sculo XVI, o ingls Samuel Pepys comea a executar o projeto do seu TheDiaryofSamuelPepys,umacombinaodenarrativaedocumentalin progress. Escrito durante nove anos, O Dirio no se limitou a relatar fatos, mas construiu um grande painel da vida da alta burguesia inglesa do seu tempo. Na obra, o testemunho ocular de grandes eventos, como a Grande Praga e o Grande IncndiodeLondres,mescla-seconfissodeinfidelidadesmatrimoniais, pequenasfraquezasevaidadesdoautor,passagenspitorescasdepequenos incidentes da vida cotidiana entre sales e camarotes de teatro, cafs populares e bordisdoporto.Empreendendoprojetosemelhante,nosculoXVII,Daniel DefoelevaracaboAjornalofthePlagueYear,umromancedememriase observaes de acontecimentos marcantes no mbito pblico e privado, ocorridos em Londres durante a epidemia que matou aproximadamente 20% da populao. Publicadoem1722,57anosdepoisdoataquedaPraga,olivrofazacrnica diria do caos, intercalando informaes, estatsticas sobre a progresso do vrus com fofocas, boatos, testemunhos e histrias fictcias. Em 1776, Thomas Paine, um imigrante ingls nas Treze Colnias, publica Common Sense, livro annimo produzidoapartirdareuniodepanfletosedetcnicasclandestinasde reportagem.NessepioneirotratadodaRevoluoAmericana,opensador britnicoadvogaaIndependnciadosEUAque,importantelembrar,vai contagiar inegavelmente a Revoluo Francesa. 17 H diferenas interessantes na nova traduo direta do original em alemo de Paulo Menezes, pela Unisinos: Quando a Filosofia pinta seu cinza sobre cinza, entoumafiguradevidasetornouvelhae,comcinzasobrecinza,elanose 46 LinhasfundamentaisdaFilosofiadoDireito.Comaimagemdovoo noturnoetardio,Hegelpretendeafirmarqueafilosofiascapazde apreenderomundonasuasubstnciaefazeroseutrabalhode reconhecimentoquandoarealidadejefetuouecompletouoprocesso desuaformao(HEGEL,1997,p.39).Emtermoshegelianos,a filosofia espera que a histria se faa para compreend-la, mas Deleuze, aludindodiferenaentredevirehistriapropostaporNietzsche,vai objetaremnomedeumadensanuvemquenosesedimentacomo histria:Oqueahistriacaptadoacontecimentosuaefetuaoem estadodecoisa,enquanto o acontecimentoemdevirescapahistria. (DELEUZE,1992,p.214).Forjadonaimpacincia,nocontinuumdo presenteedaocasio,onarrador-corujatambmsvoaaoentardecer, masparaexaminarosacontecimentosemcursonocontraturnoda histria. E se eu me perguntasse o que um animal?, diz Deleuze (1996) no verbete A de animal, de LAbcdaire, para responder com exatido: um ser fundamentalmente espreita. Um animal jamais faz nada sem estar espreita. Nunca est tranquilo. Observe as suas orelhas: enquanto come, ele deve vigiar se no h algum em suas costas, se acontece algo atrsdeleouaoseulado[...]Escrituraefilosofia,territriosondeo homemcolocaalinguagemeopensamentoaoperaroslimitesda animalidade.Noolharvigilanteepivotantedacorujaseprenunciao devir-animalqueassociaaimagemdofilsofoadoescritor.Coruja, escritor,filsofo:seresdeumaterrvelexistnciaespreita (DELEUZE, 1996). Derivaraspossibilidadesdesentidodessarelaosecretaentre esses trs seres provocada por Bretonne. Dobr-la e redobr-la a ponto de costurar entre as pregas uma categoria de narrador noturno inspirada no flneur coruja. No se examinar a flnerie como gnero ou formato, mas comopotnciaecartografia,ouaindacomotraoanimalnaescrita. Ignorada pelos comentaristas de Bretonne, a imagem da coruja diz mais sobreummododenarrarcaminhandoevendoacidadedoquetodoo conjuntodaobraemseparado.Bretonneencarnavacominsistnciaa imagemdoandarilhodasilentecoruja,comonestagravurafamosa (Figura1),emqueJean-MichelMoreauilustraacapadaprimeira impressodeLesnuitsdeParis(1788),seguindoasprescriesdo prprio escritor.

deixarejuvenescer,pormapenasconhecer;acorujadeMinervasomente comea seu voo com a irrupo do crepsculo. (HEGEL, 2010, p. 44). (Minha leitura transita entre as duas tradues). 47 Figura1:RestifdelaBretonne,ilustraodeMoreaudeJeuneparaa primeira edio de Les nuits de Paris, 1788. Fonte: Societ Rtif de La Bretonne (2013) 48 Muito dessa imagem diz como nela o narrador v a si prprio. Se para Jacques Lacan o real o que resiste linguagem, a imagem que o sujeito faz de si mesmo , na releitura de Didi-Huberman (2002), o que deleresta.Produodoinconscientenumprocessodeidentificao imaginria, a imagem de si, apresenta, nesse sentido, o que resiste ao curso normal de representao, na tentativa dos seres se exporem em sua especficapresena(DIDI-HUBERMAN,1998,p.61).Portadorada imagemquenonarradorresistedesimesmoemseudevir-pssaro,a coruja liberta-o do processo arbitrrio de representao. Uma ave noturna que simboliza o conhecimento acorda a percepo noturna de um filsofo do escrutnio das ruas, esse narrador do imperceptvel, sempre espreita dos acontecimentos. O homem tomando emprestado do bicho a acuidade que ele perdeu... Arrebatado por esse desejo de devir, Bretonne se apresenta como o narradorcapazdeapontaroqueasfamliaseosdistradospassantes humanosnoveemnametrpoledoalvorecerdarevoluoemseu movimentoparadoxaldeacolhereexpulsarashordasdecamponeses desembestadosdostemposdoimprio.Nobreveprlogo,espciede modo de ler que antecede a longa mirade de narrativas encaixilhadas, eleseapresentaemterceirapessoacomooHibou-Spectateurque descrevesomenteoqueviu(BRETONNE,1990,p.620).O Espectador-Coruja explica aos leitores que durante vinte anos, a partir de 1767, observou por mil e uma noites o que se passa nas ruas de Paris e recolheuhistriasqueinstruirodeespanto.18Ento,passandoanarrar naprimeirapessoa,elemostra,aomododessebarrocotardio,no paradoxo da cautela e do excesso, o instante em que a obra vem luz e ganha vida no acontecimento da escrita: Iltaitonzeheuresdusoir:jerraisseuldansles tnbres,enmerappelanttoutcequejavaisvu depuis trente ans. Tout coup une ide me frappe []Danscedsordredides,javance,je moublie;etjemetrouvelapointeorientalede lleSant-Louis.Cestunbaumesalutaire,quun lieu chri! Il me sembla que je renaissais: mes ides seclaircirent;jemassissurlapierre,etla

18Onvouspresenteavecconfiancecestableauxnocturnes,concitoyens! Commelespluscurieuxquiaientjamaisexist:ilsinstruiront,entonnant. Apresentamos com confiana estes quadros noturnos, concidados! Como os maiscuriososquejamaisexistiram:elesinstruirosurpreendendo. (BRETONNE, 1990, p. 619, Traduo nossa). 49 tremblante lumire de la lune, jcrivis rapidement. (BRETONNE, 1990, p. 619).19 E das trevas, dirigindo-se coruja que o habita como se fora um leitorintudo,oherimoderno,erranteesolitrioquetrafegapelas sombrasparadesvelarasprofundezasdocoraohumanoquando todos esto dormindo ou, mesmo acordados, parecem dormir, inicia, sem interromperofluxometalingusticoanterior,orelatoqueanunciapelo ttulo: Premire Nuit. Plan.20Ouamos o pio do Espectador-Coruja quevoanastrevascomsuadicobarroca,amantedoscontrastesde luzes e sombras, desconstruindo o perspectivismo dado e substituindo o quadro natural pelo engenho enigmtico e artificioso (PERNIOLA, 2009, p. 143). Ouamos o pssaro, fora do jugo dicotmico da essncia sobre a aparncia, ali onde interior e exterior se reencontram no olhar. Esse olhar eessavozqueafirmamafnossentidosoutrorapecaminosos,masao mesmo tempo questionam a sua humana despotencializao: Hibou!Combiendefoistescrisfnebresne mont-ilspasfaittressaillir,danslombredela nuit! Triste et solitaire, comme toi, jerrais seul, au milieu des tnbres, dans cette capitale immense: la luer des rverbres, tranchant avec les ombres, ne lesdtruitpas,ellelerendplussaillants:cestle clair-obscur des grands peintres! Jerrais seul, pour connatre lhomme... Que de choses voir, lorsque tous les yeux sont ferms! (BRETONNE, 1990, p. 619-620).21

19Era onze horas da noite: eu vagava sozinho nas trevas, recordando de tudo o que havia visto nos ltimos trinta anos. De repente, uma ideia me arrebata. Nessa desordem de ideias, eu avano, me perco; e me encontro na ponta oriental da ilha Saint-Louis.umblsamoda cura,que queridolugar!Parece-mequerenasci: minhas ideias comearam a clarear; sentei-me sobre a pedra, e, luz tremulante da lua, escrevi rapidamente: (Traduo nossa). 20Primeira noite. Plano (Traduo nossa). 21Coruja! Quantas vezes teus gritos fnebres me fizeram tremer nas sombras da noite! Triste e solitrio, como tu, eu vago s, em meio s trevas, nesta capital imensa; o brilho das luzes pblicas, em contraste com as sombras, no as destri, eleastornamaissalientes:oclaro-escurodosgrandespintores!Errantee sozinho, saio para conhecer o homem [...] Quantas coisas para ver quando todos os olhos esto fechados! (Traduo nossa ). 50 Avesdehbitonoturno,ascorujascaamaoescurecer,quando tmsuamelhorpotnciadevisoesuaspresasemgeraldormemou poucoenxergam.Umgritosinistroprenunciaperigofnebrequandoa corujapianassombrassilenciosasdacidade.Anunciandoosltimos desaparecimentosnosescombrosdanoite,proclamaseuprprio apocalipse.Quandoafilosofiachegacomasualuzcrepuscularaum mundo j a anoitecer, quando uma manifestao de vida est prestes a findar, escreve Hegel (1997, p. 39). Mistrio dessa sabedoria de pssaro a ensinar viso e ao pensamento que o claro est mergulhado no escuro. A coruja um quase-invisvel. * * * Paris,NovaYork,Londres,RiodeJaneiro,SoPaulo... Metrpolessocenriosrecorrentesdemudanasabismaise desorganizadoras,dechoquedevaloresedeprojetospoltico-sociais. Gnero hbrido entre jornalismo e literatura, a escrita flneur emerge no intervalo entre tradies e modernidades em eterno movimento de ruptura econtinuidade.Trazaexperinciadeumnarradordeambulanteque testemunhanacarnedeseucorpo-cidadeasinscriesviolentasdo progresso. De Restif de La Bretonne e Sbastien Mercier, passando por Baudelaire,EdgarAllanPoe,JoodoRio,MriodeAndradeouGay Talese,oflneursealimentadosembatesentremercantilismoe capitalismo;ImprioeRepblica;provnciaemetrpole;tradioe modernidade,rua-viaduto.Perodos-passagensquenuncaperdemo trnsito em favor de uma sntese acabada so a mola-propulsora de uma espcieanacrnicadenarradorquenoaderenemaopassadonemao presente. Espcieandarilhaeurbana,cujaapariocoincidecompocas marcadas por crise de valores, o flneur vive em uma suspenso do seu tempo.Suapocasefazde intervalos,demudanassociaisacarretadas poracontecimentoscontguos:expansodascidades,crescimento demogrfico, inchamento do espao urbano, industrializao, instaurao violenta da Repblica e do capitalismo. Eternos movimentos de embate de uma modernidade contnua contra uma tambm lquida tradio. Momentos de crise compem o entretempo privilegiado para o agir dosreprteres-coruja,queperseguemnamanchaescuradoolhara narrativa do contemporneo. No conceito de poca de Agamben (2009), o que h de mais precioso no exame do contemporneo a possibilidade de nosernempassado,nempresente,nemfuturo,masproduziratenso entre o tempo presente, o aqui agora, e a histria. Noo que Agamben vai 51 buscar no conceito de histria de Walter Benjamin para faz-la operar em aluso aos perigos do presente. Nela, o contemporneo o que fica, o que se atualiza eternamente. Umcontemporneoquessemostranadefasagemeno anacronismo nosso fio condutor neste rastreio arqueolgico da flnerie como um objeto que guarda a centelha de uma potica de olhar capaz de reincidir sobre o presente. Viso intramuros do tempo eda histria que permite espreitar o ponto cego em que a narrativa do escuro se atualiza como conceito de um modo de se colocar e de agir no mundo sombrio. Contemporneo aquele que mantm fixo o olhar noseutempo,parapercebernoasluzes,maso escuro.Todosostemposso,paraquemdeles experimentacontemporaneidade,obscuros.[...] Contemporneo , justamente, aquele que sabe ver essaobscuridade,quecapazdeescrever mergulhando a pena nas trevas do presente. [...] O contemporneoaquelequepercebeoescurodo seu tempo como algo que lhe concerne e no cessa de interpret-lo. (AGAMBEN, 2009, p. 62-64). Umacidadeacolhedoraeperigosa,queseconstrinointervalo entre o dia e a noite, a luz e a sombra, faz-se territrio desse personagem de hbitos noturnos. Eternamente espia do que se encontra ameaado, o narrador-corujacapazdeenxergarnascaladasosescombros,os cadveres que o progresso vai deixando pela cidade. A cidade o lugar dos possveis, do futuro, mas o progresso faz dela tambm um tmulo dos devires, onde s se pode conceber o nascimento da nova metrpole pelos ferrosquedestroemopassado.Aomesmotempoemquereclamam contraosarcasmos,MerciereBretonnetememqueParissetorneum campo de runas, como as antigas cidades gregas. Escrevem assim sob o signodadestruioedamortequevaicaracterizaramodernidadeem Baudelaire.Laruinelesobsdecommeunrappelquetoutnestque poussireetqueleprogresspasseparlamort,anotaDelon(1990a, p.16),22no Prface Gnrale obra Paris le jour, Paris la nuit. Empenhado em ser os olhos da multido, Bretonne v e escreve a cidadecomoumhorizonteinterceptadopormalditos,annimos, despercebidos.Bbados,prostitutas,cegos,lavadeiras,sapateiros, sobretudonovosepequenoscomerciantesqueseengendramna

22A runa os obseda como uma lembrana de que tudo no mais do que uma poeira e que o progresso passa pela morte. (Traduo nossa). 52 configuraodascidades,vigaristasdetodaasorte,vigiasnoturnos, violadoresdesepulturas,leiloeirosetrapeirosquesetornariamum emblema da modernidade na literatura de Baudelaire. Desde Bretonne, o narrador noturno tem preferncia literria pelos povosurbanosvira-latas,escolhaquerecaisempresobreumaParis popular,regadaaaguardentebarata,conformeanotaFlvia Nascimento(2002).UmaPariscompletamentedesprezvelparao mundodasBelasArtesedacultura.Cidadeemrunasqueelebusca salvar do desaparecimento, assim como certos cenrios, certos detalhes, certos gestos da cultura que subsistem na invisibilidade, em uma preciosa reconstituio historiogrfica de comportamentos, costumes e sabedorias de seu tempo. Seus esforos para edificar os 16 volumes integrantes do compndiocomahistriaaomesmotempocomumeextraordinriada vidaurbanaparecemadvirdaiminnciadessadesaparioprovocada pelo estado de efemeridade das mudanas modernas. La sensibilit modern lurbain est ainsi faite de la dcouvertequelaculturenestpassimple accumulation, que la pierre est elle-mme fugitive. Ilnestdeprogressquesurlemodedela dvorationdelacampagneparlaville,dela destructiondesmaisonsmdivalespouren reconstruire de neuves. (DELON, 1990a, p. 16).23 NaperspectivadesseobservadordeambulantequeBaudelaire chamou de flneur, os cidados urbanos aparecem como umalegio de homensofuscadospelaproliferaodesignosepropagandas. Decididos a escapar da cegueira coletiva, solitrios reprteres avanam dispostos a enxergar a alma das ruas justamente quando algo precioso est prestes a desaparecer do campo de visibilidade. A cidade atravessa a madrugadasemningumalmdosreprteresdoescuropara testemunh-la pela escrita. E o que a rua para o flneur? A rua para o homem urbano o que a estrada foi para o homem social, diz Joo do Rio (2008a, p. 44) em A alma encantadora das ruas. Nesse sentido, a rua o meio principal do contemporneo, a vitrine onde desaguam todas as construes de poder e

23Asensibilidademodernaaourbanoassimfeitadadescobertadequea cultura no simples acumulao, que a pedra ela mesma efmera. O progresso ssefazpelomododedevoramentodocampopelacidade,dadestruiodas casas medievais para da reconstruir novas. (Traduo nossa). 53 contrapoderemtornodosregimesdeidentidade.Caminhoparauma cidadequeestsemprenocaminho,aruafazumapeloirresistvelde lanamento ao incgnito para o homem que flanando narra. Lugar de se perder classificaes identitrias, a rua o rio que atravessa esta poca: a rua o que fica, como assinala o prprio Joo do Rio na clebre abertura de sua declarao de amor a esse rio de impessoalidade que atravessa as gentes: Euamoarua.Essesentimentodenaturezatoda ntimanovosseriareveladopormimseno julgasse, e razes no tivesse para julgar, que este amorassimabsolutoeassimexagerado partilhadoportodosvs.Nssomosirmos,ns nossentimosparecidoseiguais;nascidades,nas aldeias, nos povoados, no porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polcia, mas porque nosune,nivelaeagremiaoamordarua.este mesmo o sentimento imperturbvel e indissolvel, o nico que, como a prpria vida, resiste s idades e s pocas. Tudo se transforma, tudo varia o amor, odio,oegosmo.[]Ossculospassam, deslizam,levandoascoisasfteiseos acontecimentos notveis. S persiste e fica, legado das geraes cada vez maior, o amor da rua. (RIO,