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religião

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Page 1: Planeta Dos Mortos - Carlos Orsi
Page 2: Planeta Dos Mortos - Carlos Orsi

Planeta dos mortos

Carlos Orsi

primeira edição

editora draco

são paulo

2012

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Carlos OrsiEscritor e jornalista, com seus 41 anos é autor dos romances Guerra Justa (2010), Nômade (2011) e do livro-reportagem O Livro dos Milagres (2011).Seus contos de terror, fantasia, ficção científica e mistério já foram publicados em livros e revistas no Brasil e no exterior. Atualmente, mantém o blogcarlosorsi.blogspot.com, onde discute ciência, política, mitologia, religião e, de vez em quando, até um pouco de literatura fantástica. Vive em Jundiaí(SP).

© 2012 by Carlos Orsi

Todos os direitos reservados à Editora Draco

Publisher: Erick Santos CardosoProdução editorial: Janaina ChervezanCapa e editoração digital: Ericksama

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Ana Lúcia Merege 4667/CRB7

Orsi, CarlosPlaneta dos mortos / Carlos Orsi – São Paulo: Draco, 2012

1. Contos brasileiros 2. Literatura Brasileira I. Título

CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

Editora DracoR. José Cerqueira Bastos, 298Jd. Esther Yolanda – São Paulo – SPCEP 05373-090editoradraco@gmail.comwww.editoradraco.comwww.facebook.com/editoradracoTwitter: @editoradraco

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ÍndiceCapaFolha de rostoCréditosPlaneta dos mortos – Carlos Orsi

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Planeta dos mortos – Carlos Orsi

There was no hand to hold me back

That night I found the ancient track

H.P. Lovecraft, “The Ancient Track”

A caixa preta na base de meu crânio informa que recuperei a consciência há exatos setenta e três ponto quatro-

dois-um segundos. Ela diz isso e, em seguida, tenta me entupir com um oceano de dados a respeito de meu

estado físico geral, que simplesmente ignoro. Sem tempo. Sei que estou preso, sei onde dói. Por enquanto, é toda

a informação de que preciso.

Passei os últimos setenta e seis ponto zero-cinco-dois segundos testando, da maneira mais sutil possível, as

amarras em meus pulsos e tornozelos. Tudo o que consegui foi fazer com que os laços se apertassem ainda mais

– agora, mal sou capaz de sentir os pés. O que quer que tenham usado para me prender é forte e viscoso, e

quente. Parece pulsar num ritmo preguiçoso, lento.

Aos oitenta ponto nove-meia-oito segundos de consciência recobrada, desisto de esperar que a caixa preta me dê

algum tipo de análise inteligível do que está acontecendo ao redor e resolvo parar de fingir. Abro os olhos.

E, por mais que tente, por mais que queira, sei que não conseguirei voltar a fechá-los.

* * *

Eu estava no outro continente de Vênus, Afrodite, quando o acidente aconteceu. Tinha acabado de concluir meu

ciclo de Treinamento e Condicionamento (ou T&C, como chamam) básico – as cirurgias tinham todas

terminado; a casca grossa, ou blindagem epidérmica, estava um pouco inchada, mas já dava sinais de melhora.

Os plugues neurais de conexão bíon-balística, no antebraço direito, ainda doíam, principalmente na hora de ligar

a arma, mas isso não era surpresa: de acordo com os veteranos, a dor nunca some, de fato. Você apenas se

habitua a ela.

O médico da Base Tétis tinha recomendado que eu dormisse no acumulador de orgônio por mais quatro dias,

pelo menos, para terminar a impregnação dos implantes organometálicos com bioforça. Mas essas coisas não

passavam de detalhes e burocracia. Para todos os efeitos, eu já era um soldado pleno,comissionado para o

Segundo Batalhão de Batedores de Floresta, Esquadrão de Caça.

Quando a Tétis perdeu contato com o Reator de Orgônio número três, no continente selvagem de Ishtar, alguém

no comando achou que a inspeção de rotina, no meio do mato, seria um bom batismo para o novo recruta de

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selva, recém saído do T&C. Afinal, a região do Reator Três é selvagem, sim, mas infinitamente menos que,

digamos, o arquipélago de Têmis, onde fica a Colônia Penal de Amtor (“fuja e vire refeição”, é o que dizem aos

presos).

Assim, além do tenente Mendes, do sargento Gurgel, do piloto Tavares e da doutora Cláudia – por alguma

razão, ela insistia em ser tratada pelo primeiro nome – lá fui eu. Todos esperávamos uma missão rápida e

simples, reparos no equipamento de comunicação, talvez, ou a equipe de manutenção o reator, todas as quinze

almas, embriagada por vazamento de bioforça.

Nenhum de nós estava preparado para o que iríamos encontrar.

Antes da decolagem do nosso VEM – um acrônimo engraçado para “Veículo Eletromagnético”; sempre achei que

alguém tinha de sar um jeito de mudar a sigla para VAI, ou abandoná-la de vez, já que Vênus nem tem um

campo magnético digno do nome e o aparelho funciona, na verdade, por repulsão gravitacional – nós, os três

militares, passamos por um “briefing” a respeito do reator. Vimos plantas dos três andares, mais dois subsolos, e

fomos informados da função exata do aparelho. Uma coisa que me disseram no T&C foi que o Controle Civil

sempre trata os militares como uns débeis mentais, pressupondo que não sabemos, e nem queremos saber, de

nada além de charutos, veículos, armas e garotas. Uma coisa que aprendi sozinho, no T&C, é que o Controle Civil

raramente está errado, nesse aspecto.

Assim, além do “briefing” tático propriamente dito, ouvimos também uma palestra sobre a terraformação de

Vênus, levada a cabo por reatores de orgônio que bombeavam – e ainda bombeiam – bíons na atmosfera do

planeta; sobre como os bíons são as menores unidades existentes, os quanta, do orgônio, ou bioforça: a energia

que torna a vida possível, assim como o fóton é a unidade mínima do eletromagnetismo.

Deram-nos até um resumo histórico a respeito do descrédito com que a Teoria do Campo Orgônico tinha sido

recebida no século XX. E da reabilitação, no início do século XXII, como parte da neoquântica. Mas isso era

conversa antiga.

Falaram-nos, ainda, sobre como os bíons existem na fronteira entre orgânico e inorgânico, animado e

inanimado; sobre como sua presença é essencial para o grande salto quântico entre o que é meramente

orgânico, como as moléculas de álcool, gordura e ureia, e o realmente vivo. Por um instante, achei que iam falar

sobre o suposto poder antientrópico do orgônio e sua aplicação nos modelos teóricos de viagens no tempo (sim,

eu leio as revistas científicas), mas a palestra terminou antes de chegarem nesse ponto.

A palestrante tinha sido a própria doutora Cláudia. Uma mulher muito bonita – o que para mim,

principalmente, com o corpo saturado de bíons, era bem difícil deixar de notar. Imaginei como seria na floresta,

quando estaríamos todos usando nossos TFIs, os trajes de fluxo isolante: quando ponho o meu e ele termina de

se ajustar, consigo contar as dobras nas juntas dos dedos e, se parar diante de um espelho, posso ver cada um

dos cabelos do peito.

– Bem, senhores – disse ela, encerrando a preleção – é possível que um vazamento do reator tenha

sobrecarregado a equipe de manutenção. A exposição moderada ao feixe de bíons faz bem à saúde; uma

exposição excessiva, no entanto, leva a estados de euforia... e irresponsabilidade. Se isso aconteceu, nossos

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quinze colegas podem ter decidido largar tudo e fazer um alegre piquenique na floresta. E como não sabemos

exatamente o que há na floresta... – a doutora deixou a frase morrer solta, no ar. Encolheu os ombros.

Decidi que, se ela tivesse todas as curvas que eu imaginava, o melhor a fazer seria me concentrar em seus olhos.

Eram bonitos, mas comuns – castanhos, levemente puxados, de cílios compridos. Se der tempo, pensei, vou até

o estande de tiro para descarregar um pouco de orgônio num exercício com o rifle bíon-balístico.

Nada feito, no entanto. Enquanto eu lutava para manter minha energia sob controle, a doutora Cláudia havia e

se retirado, após nos brindar com um sorriso e uma leve mesura, sendo substituída, no pódio, pelo capitão

Gomes. Ele disse:

– O VEM parte dentro de vinte e cinco minutos, homens. Dispensados.

* * *

Não há muito o que dizer sobre a viagem entre Afrodite e Ishtar. A paisagem é exatamente a mesma que a gente

vê nos simuladores – florestas, pântanos, florestas. Sobrevoamos também um trecho do Mar de Níobe e

contornamos a Cordilheira de Maxwell, sempre uma vista imponente.

Os demais membros da equipe ficaram calados quase o tempo todo. A única pessoa a quem eu poderia dirigir a

palavra livremente, sem cometer uma quebra tácita de hierarquia ou protocolo, era Tavares, o piloto. Mas ele

estava bem ocupado com o manche e os instrumentos.

De vez em quando, o tenente e o sargento comentavam algo entre si. Ambos eram veteranos do Esquadrão de

Caça e, como dava para ver no relevo dos TFIs que usavam, tinham mais do que a cota regulamentar de

cicatrizes para prová-lo. Os Esquadrões haviam sido criados para limpar o planeta das formas de vida mais

aberrantes – e perigosas – surgidas a partir da interação entre os bíons de terraformação e o meio ambiente

venusiano original. Era um trabalho duro. Um trabalho sujo. Trabalho de profissionais.

Cláudia também já estava no TFI, e pude ver que não havia me enganado quanto às curvas. Ou aos volumes. Ou

ao resto.

Mentalmente, dediquei-me a torturar e matar, das maneiras mais exóticas, o médico que tinha recomendado

minha permanência nos acumuladores de orgônio. Na presença da mulher, a bioenergia em excesso me subia e

descia pela espinha como se fosse pura eletricidade.

Posso jurar que tentei não ficar olhando, mas creio que meu próprio TFI me traiu porque, de repente, a doutora

desapareceu! Em dois segundos, entendi o que havia acontecido: ela ativara a camuflagem da roupa, e as cores e

contornos de seu corpo tinham se confundido com o interior cinzento da aeronave.

Gurgel explodiu em gargalhadas.

– Ei, rapaz! – ele disse, olhando para mim – Você não está muito acostumado com esses trajes de combate, não

é?

– Acho que o médico da base socou mais bíons na cabeça dele do que os engenheiros enfiaram neste planeta

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inteiro – disse o tenente Mendes. – Estou certo?

– Sim, senhor – respondi, tentando não soar muito embaraçado. – Recebi meus implantes há menos de duas

semanas.

– Este é seu batismo de fogo, então? – ele perguntou, e eu soube que era só para me fazer relaxar. Era claro que

o tenente sabia tudo sobre mim: minha ficha deveria constar do resumo da missão. – A primeira caçada?

– Exatamente, senhor.

– Nessas horas, uma carga extra não faz mal a ninguém, eu garanto – disse o sargento Gurgel, sorrindo. –

Adrenalina é uma coisa boa, moleque. Manter um bom pico de onda é fundamental. Mas não se esqueça da caixa

preta.

Bastou ouvir as duas palavras – “caixa preta” – para, numa espécie de reflexo, eu acessar o aparelho.

Instantaneamente, fui inundado por dados, primeiro sobre mim mesmo: pressão arterial, tônus muscular, taxa

hormonal, superávit bioenergético; depois, táticos: latitude, longitude, velocidade, altitude, intensidade do

campo magnético; por fim, sensoriais: luz um pouco além do espectro normal, som um pouco mais claro, um

pouco mais intenso; odores mais nítidos.

E me lembrei de outra coisa a respeito caixa. Alguns de meus instrutores haviam dito que ela poderia ser usada

para filtrar certas disfunções da onda bioenergética; coisas como medo, ódio, pânico, histeria. Sobre como

soldados veteranos eram capazes de, graças a ela, manter a mente num estado de quase-meditação, e em plena

carnificina – mas sem perder um décimo de milésimo de eficiência, muito pelo contrário.

Eu não era um mestre das artes marciais – embora tivesse esperanças de chegar lá – mas tentei algo parecido.

Usei minha força de vontade para direcionar meu fluxo de bíons através da caixa e pedi a ela que redesenhasse a

frequência da onda. Demorou um pouco, mas finalmente senti meu TFI se acomodando, assumindo uma forma

mais discreta.

– Obrigada – disse a doutora Cláudia, tornando-se plenamente visível mais uma vez. Era impressão minha ou

ela estava com um sorriso maroto? – E, também, obrigada.

O duplo agradecimento me deixou meio perplexo, mas não tive tempo de ponderar a respeito:

– Uau! Que droga, cara! – O grito vinha da dianteira do veículo. Era Tavares.

E em seguida:

– Veja só isso, gente! Que porcaria aconteceu lá embaixo?

De acordo com minha caixa preta, estávamos a três quilômetros do reator que íamos inspecionar. Eu já estava

me virando para olhar pela vigia à minha direita quando todo o interior do VEM ficou escuro, e uma reprodução

holográfica da paisagem sob nós surgiu no piso da aeronave.

Era a floresta ishtariana, em toda a sua exuberância. Mas não a floresta que esperávamos: não havia nada de

verde, vermelho, roxo, amarelo ou azul por lá. A cor predominante era o cinza – o mesmo cinza dos velhos

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filmes preto-e-branco. A impressão subjetiva era a de estar diante da imagem perfeita da ausência de vida, de

cor.

E o que não era cinza, era marrom. Não o marrom saudável da madeira, mas o marrom doentio, purulento, de

lodo infecto e água contaminada.

Estávamos sobrevoando a área em alta velocidade, e portanto a definição do holograma não era a ideal. Mesmo

assim, também pude perceber algo de errado nas formas, e não só nas cores: folhas, flores e troncos que

pareciam mais carne retalhada, em vias de decomposição, do que matéria vegetal.

– Piloto! – disse o tenente Mendes. – Você consegue projetar uma imagem do reator para onde estamos indo?

Consegue captar alguma coisa?

– Holo à la carte saindo, chefia – ele respondeu, a frieza da voz negando a jovialidade das palavras.

O reator ficava dentro de um prédio de três andares e dois subsolos; e, para além do perímetro de segurança – a

quinze metros das próprias paredes do edifício – a construção estava toda cercada pela floresta. A única exceção

seria trilha que levava dali à pequena colônia onde viviam as famílias dos quinze funcionários.

Foi o que tínhamos visto no nosso “briefing”.

Mas a imagem que Tavares projetou no piso da nave era a de um buraco escuro no chão, cercado por uma

mancha negra de terra arrasada.

* * *

A doutora Cláudia retirou alguns instrumentos da mochila pousada a seu lado no banco do VEM, apertou

botões, contemplou leituras. Deu de ombros.

– Não dá pra dizer nada – informou. – Temos de descer.

O tenente se dirigiu à dianteira da nave, onde conversou um pouco com Tavares, aos sussurros. Ao voltar,

anunciou que iríamos pousar no vilarejo dos funcionários, um quilômetro e meio ao norte, e não na terra

arrasada. Ninguém mencionou o fato de que a vila também estaria dentro da área de mata cinzenta. De acordo

com os hologramas projetados dentro do VEM, a descoloração estava centrada no terreno do reator e se

expandia, como uma mancha, por um raio médio de três quilômetros, em todas as direções.

Descemos, sem qualquer problema, na praça central, ao lado da fonte e da inevitável estátua de Wilhelm Reich.

Por ordem do tenente Mendes, Gurgel e eu descemos da nave armados – com os rifles bíon-balísticos já

conectados à interface neural do antebraço – e camuflados. Parados, em posição de alerta, seríamos

perfeitamente invisíveis. Gurgel cobria a área à direita e atrás; eu, à esquerda e à frente.

Já o tenente, a cientista e o piloto desceram com os TFIs em estado de refração normal, neutro, e com as cabeças

descobertas. Cláudia trazia a mochila pendurada por uma alça ao ombro direito; o tenente Mendes mantinha seu

rifle aderido ao peito e Tavares, a pistola no coldre.

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O vilarejo era composto pela praça e mais uns dez sobrados, arrumados ao redor da área pública. Desses, pelo

menos seis ofereciam algum tipo de comércio ou serviço: corte de cabelo, locação de holos e biblioteca,

assistência técnica para aparelhos domésticos, essas coisas. Era provável que os serviços de saúde, comunicação

e segurança estivessem – ou tivessem estado – concentrados no próprio edifício do reator, assim como a

administração geral.

Logo que o som de nossos passos morreu e a poeira levantada pela aterrissagem do VEM assentou, o silêncio

tornou-se esmagador. O único som na atmosfera era o da água jorrando da fonte – e, bem, havia algo de errado

nisso: o murmúrio que ouvíamos não era, de maneira alguma, o tilintar suave, cheio de vivacidade, próprio da

água cristalina; embora o que víssemos fosse água límpida e brilhante, a música que fazia não era música

nenhuma, em absoluto, e sim um som grosseiro, irritante, desagradável. Desarticulado.

Morto.

– Não entendo – disse a doutora Cláudia, checando seus instrumentos. – Essas leituras... Não fazem sentido.

Mesmo. É como se...

– Como se, o quê? – perguntou o tenente, enquanto Tavares dava a volta na praça.

– Pelo que os mostradores dizem – ela explicou – a leitura de orgônio, em toda a área ao redor, é negativa.

Senti meu estômago encolher. Pelo que eu sabia, o que os instrumentos diziam à doutora era impossível – uma

verdadeira impossibilidade física, como uma temperatura negativa em graus Kelvin. Mesmo rochas, ou múmias

de milhares de anos, sempre têm um nível residual de orgônio. Sondas espaciais já mostraram que há bíons, até,

no vácuo interestelar.

– E o que isso quer dizer? – perguntou o tenente.

– Nada – ela respondeu. – Isso não quer dizer nada. Não tem significado algum. A menos... menos que...

Não posso dizer, realmente, que não tenha visto o pássaro se aproximar. Mas eu estava invisível – não apenas

dentro do espectro comum, mas no infravermelho e, ainda, em boa parte do ultravioleta. O TFI também

escondia meu cheiro e as batidas de meu coração. Não havia motivos para imaginar que a ave estivesse se

movendo deliberadamente em minha direção. Que estivesse se preparando, mergulhando para atacar.

E, de repente, já era tarde demais.

Garras e bico cortaram através do TFI e da blindagem epidérmica como se as duas camadas de proteção não

fossem nada melhores que manteiga e margarina. Senti as esporas rasgando os músculos de meu abdômen, e a

faca do bico iniciar seu mergulho rumo à jugular. Caí de costas; gritei.

A primeira pessoa a reagir foi o piloto, Tavares; meu campo de invisibilidade tinha entrado em colapso, e ele

conseguia ver o suficiente para mirar com segurança.

Ao menos, gosto de imaginar que tenha sido assim.

O primeiro tiro arrancou uma asa da ave, e o animal simplesmente não se abalou; o segundo fez explodir a

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cabeça da criatura, que relaxou o ataque com as esporas por um instante – o suficiente para que eu conseguisse

arrancá-la de mim.

Mas, caído no chão, o corpo sem cabeça logo voltou a esporear e retrair as garras. Notando que não havia mais

carne a dilacerar, a criatura pôs-se em pé, e teria alçado voo – não fosse pela ausência de uma das asas.

Nesse instante, reduzi a carcaça a um breve jorro de sangue, com uma rajada curta do bíon-balístico.

O TFI sobre meu tórax estava todo retalhado, e o sangue escorria em profusão, pingando sobre o pavimento que

– posso jurar – sorvia tudo avidamente.

* * *

Eu estava dentro do VEM, com a doutora Cláudia ao meu lado. Éramos apenas os dois ali. O tenente e o sargento

tinham partido em patrulha, procurando pistas ou pessoas nas casas, e Tavares havia ficado de guarda na praça.

A ideia de ficar na nave, sendo paparicado, não me agradava muito. Mesmo levando em consideração o fato de

que ser deixado a sós com a doutora não configurasse exatamente uma forma de tortura – embora fosse um

bocado embaraçoso –, eu estava lá, num vilarejo perdido no meio da selva ishtariana, para cumprir meu dever

de soldado, não para flertar.

Só que ordens são ordens, certo?

O tenente queria saber exatamente como a criatura havia rasgado o TFI e a minha casca grossa de soldado. Essas

eram, de fato, duas boas perguntas – perguntas a que a doutora estava tentando responder com bastante

trabalho duro.

Usando os comandos de seu próprio TFI, ela havia feito o tecido refluir até expor o seio esquerdo – branco e

rosado, nem muito grande, nem muito pequeno, um pouco enrijecido pela temperatura baixa mantida dentro do

VEM – e, erguendo-o, puxara um cabo de seu monitor cardíaco, implantado logo ali, abaixo das costelas. Esse

cabo ela havia conectado ao plugue da minha caixa preta, que fica atrás da orelha direita.

– Meu implante não é tão sofisticado quanto essas caixas pretas que vocês militares usam, mas pelo menos

assim vou saber exatamente quais as leituras que seu equipamento está fazendo – ela explicou.

Assenti com a cabeça. Eu estava reclinado num banco, cercado pelos instrumentos que a doutora Cláudia havia

tirado de sua mochila. Todos ocupadíssimos com suas leituras, luzes e blips. Reconheci um ou dois deles,

incluindo o analisador comparativo, que contrasta os dados colhidos em campo com toda a literatura científica

disponível. Terabytes, terabytes e ainda mais terabytes, na palma da mão. O sonho de consumo de todo amador

curioso, como eu.

Alguns dos aparelhos também monitoravam a asa do pássaro que me havia atacado. Tínhamos recolhido o

pedaço amputado do chão lá fora, antes de voltarmos à nave. Pousada sobre um dos bancos do VEM, a coisa

tremulava – era como se ainda estivesse viva, e quisesse alçar voo sozinha.

– Você embarcou com uma bela sobrecarga orgônica, não foi? – perguntou a doutora.

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– Eu tinha recebido a casca grossa... isso é gíria nossa para a pele especial, blindada... poucos dias antes. O

médico me botou numa rotina diária de visitas ao acumulador. Como resultado...

– Bem, dê-se por feliz – ela sorriu. Mesmo profissional e comedido, era um sorriso lindo. – Sua taxa está caindo

tanto que, se não fosse a sobrecarga...

– Caindo? Como assim? Meu orgônio está escoando? Para onde? Sei que perdi um pouco de sangue lá fora,

mas...

– Seus bíons não estão indo embora – disse ela. – Também não estão sendo assimilados por parasitas, nem se

desintegrando em fótons e grávitons. Até onde posso dizer, eles estão mudando de polaridade.

Acho que fiquei quieto quase um minuto depois disso. Por fim, disse:

– Não sabia que bíons tinham polaridade.

– Até agora, ninguém sabia. Pra falar a verdade, ninguém sabe. É só uma teoria que inventei para... tentar

explicar... Bom, lembra-se do que eu falei lá fora? Sobre taxas de orgônio negativas?

– Mas isso é impossível, certo?

– Não se houver um bíon negativo na natureza. Porque, se meus instrumentos não estão todos defeituosos ao

mesmo tempo, e todos com o mesmo tipo de defeito, é exatamente nisso que estamos imersos... nós, esta vila,

provavelmente todo o trecho de selva cinzenta ao nosso redor: num ambiente saturado de antiorgônio, antivida,

se você preferir. Seja lá o que isso for.

Difícil saber exatamente o que eu iria responder àquela altura. Meu interesse pessoal em bioenergética era

grande, mas meus estudos, embora intensos, tinham sido poucos e esparsos.

No instante seguinte, porém, todas as luzes se apagaram. E, a partir daquele momento, eu não teria mais tempo

para pensar em muita coisa além de sobreviver.

* * *

Era a mesma escuridão que tínhamos experimentado durante nosso voo até ali, quando o piso do VEM se

convertera numa tela holográfica. Agora, no entanto, não se tratava apenas do piso: todo o espaço ao nosso redor

se encheu de imagens.

E sons: tiros. Gritos. A luz da projeção era fraca, difusa. Antes mesmo que meus olhos se acostumassem direito

à penumbra, vi um jorro de sangue voando em minha direção, como um lençol vermelho, molhado, jogado sobre

meu rosto. Não houve impacto: ele passou através de mim como se eu fosse um fantasma e foi explodir, numa

névoa rosada, sobre uma superfície qualquer, invisível, às minhas costas.

Claro. Não era sangue se verdade. Só fótons reproduzindo morte de alguém.

– Caiam fora! – o grito ressoou dentro da nave. – Chamem Tavares e, se ainda não for tarde demais, caiam fora

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daqui!

Reconheci a voz num instante: era o sargento Gurgel. Numa breve explosão de luz, pude ver que estava com o

dedo no gatilho do rifle bíon-balístico, e que os cabos que ligavam arma aos plugues do antebraço estavam

intumescidos – sinal claro de que muitos tiros já haviam sido disparados.

O sargento estava transmitindo um audiovisual tático diretamente para o holo-receptor do VEM. Esse recurso

normalmente é usado para que os comandantes possam acompanhar as manobras de seus subordinados.

Mas tudo o que o holograma ao redor nos mostrava era uma escuridão densa, claustrofóbica e tingida de sangue,

como se estivéssemos dentro de um porão escuro, apertado, e aonde toda a luz viesse filtrada por um vitral

vermelho. Quando Gurgel ativava o rifle, a explosão branca produzida pela arma iluminava o ambiente um

pouco melhor. Mas o que conseguíamos ver nesses breves intervalos era ainda mais confuso que a escuridão

vermelha.

Torsos. Tiro! Cabeças. Tiro! Membros. Não pessoas, mas partes – movendo-se (ou seria apenas o jogo da luz?).

Bocas sangrentas. Olhos sangrentos. Tiro! Unhas. Órbitas vazias.

Tiro!

Coágulos. Vísceras, coleando como serpentes.

Tiro!

Escuridão.

– Se vocês estão me ouvindo, saiam daí agora! Voltem para Tétis e avisem... Avisem que... Tenente? Tenente, é o

senho...

Estática. Nada.

A luz normal voltou.

* * *

Desci correndo a rampa do VEM. Minha primeira preocupação era encontrar Tavares e, com a ajuda dele, tentar

resgatar o sargento. Com a ajuda da caixa preta, eu havia conseguido extrair dos computadores da nave a direção

e a distância da fonte da transmissão holográfica.

O piloto estava caído no chão, as costas para cima, provavelmente inconsciente. A pistola encontrava-se a alguns

passos de distância. Um animal estranho, mais ou menos do tamanho de um gato adulto, mas com a aparência

aproximada de um apatossauro em miniatura, sentava-se sobre ele.

Num movimento ritmado, o sáurio de tempos em tempos enfiava a cabeça nas costas de meu amigo e, a cada

operação, arrancava-lhe um naco de carne, limpando-lhe sistematicamente as costelas.

Eu estava com o rifle pronto, e armado, e não hesitei. O bíon-balístico é um verdadeiro prolongamento do corpo

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do usuário: o fluxo constante de orgônio entre arma e corpo faz com que a interação seja realmente orgânica:

fazer mira é como apontar o dedo. Atirar é piscar.

O bíon-balístico também já foi chamado de laser de matéria: ele dispara um feixe coerente de partículas

microscópicas, cada uma delas rija e afiada como um espinho de diamante. As velocidades são inacreditáveis; as

energias envolvidas, idem. O atrito das partículas com o ar produz um facho súbito de luz, no instante do

disparo.

Atingido, o sauriozinho virou uma névoa úmida, carmesim. O que os veteranos dos Esquadrões chamam de

“vapor”.

Os ossos nas costas de Tavares brilhavam, brancos, sob o sol. A criatura tinha aberto um fosso raso, vermelho,

na camada de músculo um pouco abaixo dos ombros, e as vértebras apareciam ali.

Mesmo com a audição aguçada pela caixa preta, não consegui ouvir o coração do piloto bater.

Não obstante, ele vivia: seus dedos traçavam desenhos frenéticos, espasmódicos, na poeira do chão; e havia um

leve gorgolejar no fundo de sua garganta, como uma tosse sutil. Era preciso tirá-lo dali, claro. Mas como mover

um homem com um ferimento daqueles? Havia macas de flutuação dentro da nave. Pensando nisso, me voltei

na direção da rampa de desembarque.

Tavares me acertou.

Por sorte ele não usou os dentes, ou as mãos nuas que, pelo que sei agora, teriam atravessado o TFI e a casca

grossa com a mesma facilidade das garras e do bico do pássaro: em vez disso, golpeou minha nuca com uma

pedra. O impacto me fez perder o passo, mas não os sentidos. Virei-me para enfrentar o piloto face-a-face, e num

instante ele já estava sobre mim.

Ele havia mudado de mais maneiras do que eu seria capaz de descrever. A pele assumira uma tonalidade

acinzentada, e tinha perdido toda a elasticidade: meus dedos deixavam marcas nítidas em seus pulsos e pescoço;

meus golpes produziam grandes hematomas flácidos e esfoladuras.

Os dentes eram muito amarelos, e os lábios e as gengivas – que durante a luta muitas vezes chegaram

perigosamente perto de minha garganta – , estavam com aquele vermelho arroxeado, quase negro, de carne

ruim. As unhas tinham a mesa cor dos dentes.

Em sua investida, o piloto me atingiu em cheio com um soco no rim, ao mesmo tempo em que seus dentes

cortaram um dos cabos que ligavam o rifle ao meu braço. Mais que da dor, lembro-me de ter sentido o cheiro

forte da mistura de sangue e fluido organometálico, que vazava em profusão.

No instante seguinte ele pressionava os polegares sobre minhas pálpebras, tentando corta-las com as unhas e,

enquanto caíamos, cravava os incisivos no flanco de meu abdômen, à altura do fígado.

Naquele segundo eu tive certeza de que ele queria escavar minha carne, rasgar o músculo e devorar o órgão.

Todos os órgãos. O TFI não era proteção. A casca grossa não era proteção.

O impacto de encontro ao solo o obrigou a diminuir a intensidade do ataque, e aproveitei para reagir. Usando o

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rifle como borduna, golpeei-o, com força, na têmpora. Senti o osso do crânio ceder, e ele rolou de cima de mim.

Levantamos frente a frente.

Meus olhos doíam por causa da pressão que tinham sofrido e do sangue que escorria por ali, mas a visão clareou

rápido. Apontei o rifle e atirei.

Errei feio.

A arma ainda não tinha compensado a perda do primeiro cabo. Eu ia precisar de mais tempo.

Tempo!

Tavares, ou a coisa que tinha sido Tavares, já estava atacando de novo. Mais uma vez usando o rifle como um

bastão, colhi-o, com toda força, a meio caminho. Ele caiu e se levantou como se fosse um ginasta experiente e o

chão, uma cama elástica.

Ainda assim, consegui manter um perímetro. No que dependesse de mim, não haveria mais luta fechada, com

mordidas, cabeçadas, arranhões. Mantendo a distância, trocamos socos – da minha parte, pauladas de rifle – e

chutes.

Tenho absoluta certeza de que, enquanto durou o combate, eu lhe quebrei pelo menos uma costela, a

mandíbula, e causei algum dano sério ao esterno. Um de meus chutes lhe causou uma ruptura grave do

peritônio.

Ele não deu mostras de sentir nada.

De repente, tive um formigamento no braço: sinal de que a conexão do bíon-balístico estava plenamente

restabelecida. Não sei dizer o que aconteceu a seguir – talvez a certeza de ter a vitória à mão tenha me distraído

por um mero momento – mas, no instante em que ergui a arma para atirar, Tavares já estava dentro de minha

guarda, lançando a mão, os dedos rijos em forma de garra, na direção de meu pescoço. Dentro de menos de um

segundo ele cravaria as unhas em minha garganta, provavelmente iria arrancar a traqueia, e não tinha nada que

eu pudesse fazer para detê-lo.

Então um estalo, como o de um chicote, e o antebraço do piloto caiu no chão, fumegante, cortado um pouco

abaixo do cotovelo.

Olhei de esguelha para a rampa do VEM, e Cláudia estava lá, com uma pistola de lança térmica na mão. Não sei

onde ela achou a arma – talvez no kit de sobrevivência, dentro da nave.

Tavares também a vira; em dois saltos, estava sobre ela!

Girei o corpo, pronto para atirar, mas antes que pudesse puxar o gatilho alguma coisa me cobriu o rosto,

bloqueando a visão, tapando a boca e o nariz.

Senti unhas cravando-se em minha testa e nas maçãs do rosto, e durante cinco ou seis segundos lutei, tanto

contra a coisa em si como contra a consciência de o quê, exatamente, aquilo era.

Page 16: Planeta Dos Mortos - Carlos Orsi

Finalmente, consegui arrancar a mão de Tavares de meu rosto e lançar o antebraço amputado ao chão. O

membro caiu, firme e equilibrado, sobre os cinco dedos, como uma aranha cairia sobre as oito patas. Não

precisei ser um gênio para saber que a coisa pretendia saltar sobre mim novamente.

Um disparo do rifle reduziu a aberração a menos que fumaça.

Ouvi Cláudia gritar.

A doutora estava caída na rampa, com Tavares agachado sobre ela. A cabeça do monstro tocava-lhe o tronco.

Ele saltou para dentro da nave no mesmo instante em que atirei. O disparo não o acertou em cheio – não, ao

menos, de forma a vaporizá-lo. Em vez disso, partiu-o ao meio, pouco acima da linha da cintura. Cabeça, braços e

tórax caíram nave adentro. As pernas e parte do abdômen, os intestinos expostos agitando-se como tentáculos –

uma cena que de tão grotesca eu, sob outras circunstâncias, consideraria cômica – se voltaram para mim e

correram, em óbvia disposição de luta, na minha direção.

Mais um tiro. Mais vapor.

Cláudia não havia se levantado. Corri para ver como ela estava.

E então mordi o lábio, mordi forte, para não gritar. Ainda assim, não consegui reprimir todas as lágrimas. Duas

ou três escaparam. Sei disso porque o sal fez arder as feridas abertas em meu rosto.

O seio esquerdo simplesmente não estava mais lá.

No lugar da pele delicada, da carne tenra que eu tinha visto há menos de uma hora, uma fenda oval, muito

vermelha. Parecia profunda – provável que o músculo peitoral não estivesse mais lá, também. Se não fosse pelo

sangue, tanto sangue, acho que eu poderia ter visto uma ou duas costelas. Talvez o próprio coração, batendo.

Essa era apenas a maior, a mais evidente das feridas no corpo da doutora. A despeito disso, ela estava consciente

– uma ferocidade incomum brilhava em seus olhos.

– Destrua – ela disse, agarrando meu braço esquerdo com força. – Incinere!

– Eu vou atrás dele – respondi. – Não se preocupe. Ele vai pagar.

– Não! – o sussurro soou para mim como quase um grito – Digo... Sim. Ele. É. Sim. Ele também. Mas...

incinere... a mim. Destrua... me. Entende? Dados... computador... História. Pittsburgh. Terra. Novecentos...

sessenta e oito. Deixei... gravação. Situação... quase... Fogo. Fogo destrói. Use... destrua... me. Não quero... não...

voltar...

Depois disso, senti a pressão em meu braço arrefecer. Cláudia relaxou o corpo todo de uma vez, e eu a baixei na

rampa o melhor que pude. Inconsciente? Não.

Morta.

Eu deveria ter vaporizado o corpo ali, de pronto e sem a menor hesitação. A asa do pássaro, o braço de Tavares –

o próprio Tavares, por falar nisso – eram pistas mais do que suficientes para que até um recruta xucro como eu

Page 17: Planeta Dos Mortos - Carlos Orsi

entendesse o que estava acontecendo com toda a carne morta, naquela região.

Em vez disso, fiz uma rápida prece, baixei as pálpebras do cadáver e entrei na nave, tremendo de raiva e pronto

para encarar a outra metade do piloto morto-vivo.

* * *

Imaginei que iria encontrá-lo logo à porta – afinal, com que velocidade um torso humano, propelido por um

único braço, deve ser capaz de se mover? Supus que muito pouca.

Enganei-me.

O que restava de Tavares debruçava-se sobre o painel de controle da nave. Ele havia se erguido até aquela

posição usando, imagino, o único braço e o queixo; a massa do que lhe restava de corpo era relativamente

pequena, o que deve ter facilitado a operação.

Sangue negro e pedaços de pulmão pingavam no piso.

Aproximei-me.

Ele olhou para mim. Sorriu.

A boca estava cheia de pedaços de plástico, fios e metal triturado, além de fragmentos dos dentes que Tavares

certamente havia quebrado em seu esforço de sabotagem. A testa da criatura era uma polpa achatada, de onde

um pedaço de osso se projetava direto em frente, como uma aba de boné. O nariz também tinha se esmigalhado.

Mas, em meio àquilo tudo, os olhos ainda brilhavam.

E ele sorria e mastigava. Mastigava e sorria.

Vaporizei-o.

Assim que a névoa baixou, corri em direção ao painel. A história era clara: Tavares havia usado a própria caixa

craniana como marreta para quebrar o máximo possível de instrumentos, e a mandíbula para completar o

serviço.

Fiquei parado ali por alguns segundos, sentindo a galáxia girar ao meu redor.

O VEM era uma nave de transporte de tropas. Cada uma de suas partes tinha sido projetada e construída para

suportar diversos tipos de agressão, incluindo pousos forçados e um ou dois impactos diretos de mísseis.

Como...?

Sendo o piloto, Tavares sabia exatamente aonde e o quê acertar. Certo.

E, estando morto, ele não sentia dor: talvez fosse isso. Muito provavelmente, sua cabeça tinha se partido bem

antes do painel, e ele apenas continuara a bater.

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E a velocidade e a força dessas criaturas eram inacreditáveis.

Tentei ignorar o seio mascado e macerado, caído no chão.

Conferi o estado do equipamento: nada de comunicação. Nada de controle de voo. Naquelas condições, o VEM

não passava de uma caverna de metal.

Os circuitos de comunicação do meu TFI também estavam sem condições de funcionamento. Aliás, as

propriedades do TFI vinham mudando gradativamente: ele ainda era bom para absorver impactos, mas não

conseguia mais se regenerar. Nem usando de toda a minha força de vontade eu era capaz de fazê-lo fluir por

meu corpo, ou mudar de cor.

Claro, pensei. A tecnologia do TFI, assim como a casca grossa, é baseada em fluxo de bíons. E tudo que depende

de fluxo de bíons fica maluco neste lugar. Incluindo a vida humana.

Principalmente a vida humana.

Voltei, cambaleando, para a área de passageiros. A primeira coisa que notei foi que o kit de sobrevivência tinha

sido arrancado da parede; o conteúdo estava espalhado pelo chão. Isso me fez pensar em Cláudia. Quase sorri.

Fui olhar mais de perto: o comunicador do kit tinha sido destruído. Esmagado, provavelmente com um murro.

Tavares, Tavares...

Meus pensamentos logo se voltaram, mais uma vez, para Cláudia. Lembrei-me, então, do que ela havia dito,

antes de morrer, sobre “Pittsburgh”, “gravação” e “história”. Corri até a sacola onde ela guardava os

instrumentos. Revirei tudo: caixas, painéis, telas, processadores. Será que, nos primeiros minutos de minha luta

com Tavares, ela havia achado uma explicação?

Quando finalmente me deparei com o registro, vi que ela não havia encontrado exatamente uma explicação, mas

uma espécie de precedente histórico. A coisa toda era pouco mais que uma nota de rodapé na história da

engenharia bioenergética, tendo ocorrido depois da morte de Reich e séculos antes das descobertas da

neoquântica. Era quase um milagre que os programadores do analisador comparativo da doutora tivessem

jogado esse pedaço de informação na memória.

Resumindo, era o seguinte: em 1968, nos arredores da cidade norte-americana de Pittsburgh, os mortos de um

determinado cemitério tinham voltado à vida. De acordo com análises dos cientistas da época, a causa da súbita

ressurreição tinha sido uma “radiação misteriosa”, inadvertidamente transmitida à Terra pela antena de uma

sonda em órbita de Vênus. A tal radiação estaria “reativado o cérebro” dos cadáveres ainda frescos.

Um cientista italiano, Fulci, e um colega americano, Carpenter, sugeriram que essa radiação poderia ser

composta por um novo tipo de partícula, que chamaram, por razões óbvias, de “nécron”. Mas ninguém os levou

muito a sério.

Com a sonda destruída e os mortos reanimados cremados, o problema desapareceu e o caso, por bizarro e

inacreditável, acabou caindo no esquecimento.

Page 19: Planeta Dos Mortos - Carlos Orsi

Virou nota de rodapé.

E agora, séculos depois, sendo o bíon um fato científico comprovado e presença humana estabelecida em Vênus,

o que pensar do nécron?

Eu era um amador, não um cientista. Com todo meu treinamento militar, nunca me senti tão desamparado: eu

era como um rifle carregado, sem ninguém para me dizer em que direção atirar, ou para onde ir.

Mas era impossível evitar fazer conjecturas. Se o nécron existe, e é uma “polaridade oposta” do bíon, isso

poderia explicar o ataque da ave contra mim: eu estava sobrecarregado de bioenergia “positiva”, e se o pássaro

estava saturado de nécrons, ele simplesmente teria sido atraído para mim – estando eu visível ou não – assim

como os polos opostos de um ímã, ou cargas elétricas opostas.

Talvez por isso os mortos atacassem os vivos.

Mas, qualquer que fosse a resposta, concluí, ela só poderia estar no reator – ou no que havia restado dele. A

terra arrasada era, afinal, o centro geométrico da área cinzenta. E o maldito lugar era um reator de bíons. Se

alguma coisa estava poluindo a bioenergia, era de se esperar que a fonte, fosse qual fosse, estivesse lá. E eu

podia não ser a pessoa mais indicada para tentar identificá-la, mas não havia mais ninguém por perto.

Pensando nisso, decidi me pôr a caminho.

* * *

Peguei o máximo de víveres e equipamento que pude. Talvez desse para construir um comunicador rudimentar,

canibalizando peças dos instrumentos da doutora; pensando nisso, desmontei cada um deles – incluindo o

analisador – e separei tudo o que achei que poderia ser útil.

Assim que cheguei à rampa, vi a arma de lança térmica que Cláudia tinha usado caída lá.

Mas, da doutora, nem sinal.

Olhei ao redor: dez casas. Numa delas – e eu poderia facilmente saber qual, bastaria consultar de novo a caixa

preta – o tenente Mendes e o sargento Gurgel tinham sido retalhados por monstros.

Dez casas. Quinze funcionários, mais suas famílias. Quantas pessoas ao todo, então? Sessenta? Setenta?

Quantas ali na vila? Quantas espalhadas pela floresta? Quantas na área do reator?

Era bem provável que numa das casas, ou em várias delas, houvesse veículos, víveres ou meios de comunicação.

O procedimento-padrão exigiria que eu as revistasse.

Mas Mendes e Gurgel tinham estado em procedimento-padrão. Ambos tinham sido guerreiros melhores, e mais

experientes, do que eu.

Olhei para a lança térmica, pousada em minha mão esquerda. Como todo soldado, eu tinha sido treinado e

programado – neurologicamente – para ser ambidestro. Não que atear fogo à vila fosse exigir muito em termos

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de perícia. Era só escolher o primeiro alvo e puxar gatilho.

Imaginei se, assustadas pelo fogo, as criaturas não sairiam todas correndo ao mesmo tempo, em minha direção.

Por algum motivo, o perigo não me preocupava, desde que eu pudesse, ao menos, enfrentá-lo em campo aberto.

Claustrofobia?

Dando de ombros, iniciei a purificação.

Quando o incêndio já ia alto, alguns mortos-vivos – quinze – realmente se precipitaram, verdadeiras tochas

humanas, rumo à praça central. Talvez quisessem chegar à fonte e mergulhar na água, quem sabe?

Um deles não tinha cabeça, e ainda assim corria no rumo certo; outro estava com os ossos do torso totalmente

expostos, e pude ver as labaredas que consumiam seus órgãos internos. Os restantes pareciam perfeitamente

normais; podiam até ser pessoas comuns fugindo de um incêndio, não fosse por um único detalhe: o silêncio.

Ninguém gritava. Mesmo com fogo nos cabelos, nas roupas, na pele, ninguém gritava. Ou chorava.

Nada.

O único som era uma espécie de arfar intermitente, produzido pela mistura de chamas ao vento com a rápida

sucessão de passos da corrida. Das corridas.

Cuidei para que nenhum deles realmente chegasse à fonte. E foi só quando o vapor vermelho já encobria o sol,

que ainda levaria cinquenta dias para se pôr, que finalmente deixei a vila.

* * *

Eles me pegaram no meio do caminho.

A trilha, ao que tudo indicava, tinha sido usada tanto por pedestres (a caminhada até o reator não duraria mais

que quinze, vinte minutos) quanto por VEMs individuais, de flutuação baixa e próprios para terreno irregular.

No meio do caminho havia um pequeno posto automatizado de serviço, que provavelmente também fazia a

vigilância dos arredores, avisando quando algum animal maior ou mais perigoso cruzava a pista. O lugar era

pouco mais que um banheiro, um radar de segurança, um robô funileiro e uma máquina de vender doces.

O que me chamou a atenção foi o radar: com ele, e mais as peças que eu havia trazido da nave, talvez fosse

possível enviar alguma informação de volta à Base Tétis. Era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, o comando

enviasse uma equipe de resgate atrás de nós, mas seria melhor se eles soubessem o que iriam enfrentar.

Trabalhei ali por pouco mais de uma hora. Acho que parte de mim sabia que o lugar era uma armadilha, mas o

que me restava?

Ainda faltava um bocado de trabalho para eu conseguir converter o radar em um farol para transmitir o pulso de

emergência máxima (hologramas? Nem pensar). Eu tinha saído do prédio do posto – pouco mais que um chalé

de madeira, ligado por fios a uma torre muito alta e com uma garagem ao fundo – para pegar mais algumas

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ferramentas com o robô, quando vi a movimentação na floresta.

As árvores ao redor eram todas cinzentas, com folhas brancas ou marrons. De perto, o lenho das árvores

confirmava a impressão que eu tinha tido da vista aérea – uma consistência esponjosa, de poros enormes, e a

aparência geral de tecido retalhado. Apenas a madeira do chalé mantinha um certo aspecto saudável, o que

paradoxalmente talvez se devesse ao fato de ser madeira morta, tratada com produtos químicos.

Um cadáver mais vivo que os vivos. Onde eu já tinha visto isso antes?

O movimento na selva começou ao longe – algo percebido, a princípio, mais pela caixa preta que por mim

mesmo. Como se a mata não passasse de uma camada de musgo sobre um lago, e um grande peixe decidisse se

mover por baixo.

Em poucos instantes, porém, a enorme onda chegou até o posto: em toda a volta as árvores se inclinaram, para a

frente e para trás, subiram e desceram, erguidas pelo pulsar da camada espessa de húmus, dilataram-se,

incharam, explodiram – e, sem produzir som algum, a mata cuspiu suas legiões de mortos sobre mim.

* * *

Não apenas homens e mulheres. Não apenas Gurgel e Mendes, o sargento sem pescoço, a cabeça pendurada no

arco da coluna cervical como uma rosa desabrochada no cabo muito fino, o tenente sem um quarto da cabeça,

uma massa cinzenta e fumegante no lugar da mandíbula esquerda; não apenas os outros moradores da vila, os

que haviam corrido silenciosamente em direção à mata em vez de procurarem a fonte, onde eu os esperava, cada

um marcado pelo fogo e pela morte à sua maneira. Não só Cláudia, nua da cintura para cima, o umbigo que uma

hora atrás eu teria dado um braço para beijar assim exposto, o coração parado, flácido, por baixo das costelas

amareladas, um sorriso lindo, ainda não de todo podre, na face.

Mas também, e principalmente, as baratas. Milhares delas. E os cupins? Milhões. Formigas, sim. Grilos. Moscas,

mosquitos. Borboletas. Larvas. Centopeias, vermes, minhocas, gafanhotos, besouros, abelhas, vespas e libélulas

incontáveis, e dezenas de animais um pouco maiores, toupeiras, ratos, cobras, salamandras e lagartos. E

fragmentos: mão, dedos, vísceras a rastejar, olhos arrastando feixes de nervo, parecendo espermatozoides

gigantes.

E as feras? As feras esperavam ao longe. Talvez tivessem medo de mim: afinal, eu era do Esquadrão de Caça.

A última coisa que vejo é uma névoa carmesim, úmida, delicada, a descer dos céus.

* * *

Consciente a oitenta ponto nove-sete-sete segundos, finalmente percebo que estou morto.

Não são amarras em meus pulsos e tornozelos: trata-se apenas do abraço carinhoso da árvore sobre a qual eu –

meu corpo – caí.

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A madeira me sente relaxar, e deixa ir.

Uma névoa carmesim paira sobre minha cabeça e ao meu redor.

A parte de mim que ainda mantém algum tipo relacionamento racional com o Universo – parte que se esvai, e

que não há de deixar saudades – se sente meio idiota por não ter pensado nisso: se dedos, olhos e tripas podem

voltar à “vida”, por que não células soltas, neurônios explodidos, genes solitários, gotículas de sangue?

Eis a névoa.

Feita dos fragmentos de tantas consciências, de tantas vidas encerradas, ela lamenta, assim como eu, que

tenhamos demorado a nos entender. Lamenta o comportamento destrutivo de seus emissários anteriores.

Lamenta, acima de tudo, a destruição do VEM, já que a nave nos poderia ter levado a outros lugares. Mas

naquela época – há poucas horas – ela era selvagem e faminta e sem sentido, regida apenas pelo imperativo da

polaridade reversa.

Que se manifestava como ódio puro e fome pura, sem inteligência ou direção. Até que minhas ações, e as de

Mendes e Gurgel, lhe permitiram atingir massa crítica.

Consciência.

Ela agradece, aliás.

Não há de quê, respondo.

Parte da nova consciência da névoa reproduz o conteúdo das mentes dos cientistas que trabalhavam no reator.

Esse fragmento fala da descoberta de uma fonte natural de bíons degenerados – nécrons, corrijo-o – e da

tentativa de alterar o estado de energia deles para convertê-los em bíons normais, e vice-versa. Subestimamos o

potencial energético da reação, explica.

A névoa aponta para o chalé onde eu tinha estado trabalhando num farol de código. E sugere que complete o

trabalho – só que usando um código diferente. Emergência máxima é um pouco de exagero, não?

Sou obrigado a concordar. Que outros venham, é importante que venham, mas que cheguem sem medo.

Gurgel, Mendes e Cláudia estão junto a mim. Abelhas se abrigam em meus ouvidos, e sinto besouros passeando

em meu estômago. Ratos e lagartos lambem minhas mãos e, enquanto ando, mordem os dedos de meus pés.

Lacraias e aranhas desabrocham no coração de Cláudia.

Não há mais sargento, doutor, tenente, ou recruta. Não há mais homem ou animal.

Na morte, somos todos iguais.

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