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I. INTRODUÇÃO As cores surgidas durante o século XIX (pig- mentos e corantes sintéticos), os novos suportes (cartões leves, portáteis, de pequenas dimensões e, talvez, económicos), os tubos de tinta colapsá- veis (Ayres 1985; Bomford et al. 1990) e a possibi- lidade da utilização da fotograia para o registo imediato de cenas que eram depois transferidas para as obras (Calado 1993), foram inovações que facilitaram o desenvolvimento da pintura ao ar livre, nas últimas décadas do século XIX. Tendo feito parte da sua formação em Paris (na Academia Julian) (Oliveira 2006), o principal centro artístico europeu de então, até que ponto a pintora portuguesa Aurélia de Sousa (1866-1922) foi inluenciada por estas inovações e o que inte- grou nas obras que executou? Que uso fez destas novas cores e de que forma o fez? Como utilizou os suportes de cartão, surgidos nesta ocasião, que permitiram aos pintores trabalhar fora dos ateliers com mais facilidade, substituindo as telas menos versáteis, mais pesadas e mais susceptíveis de so- frer danos durante a manipulação? E o emprego de suportes desse tipo denota a aquisição de um ma- terial recente, especiicamente, produzido para os pintores ou a apropriação de um cartão sem essa inalidade? É possível estabelecer relação entre a escolha destes suportes, os materiais empregues e as técnicas de execução seguidas, por um lado, e, por outro lado, o resultado inal, ou seja, a obra ar- tística e o seu tema? Estas são algumas das questões a que se pro- curou responder, começando pelo estudo de um conjunto de cinco pinturas sobre cartão, represen- tando paisagens e motivos lorais (Figs. 1 a 5). Trata-se de obras de pequena dimensão com forma rectangular, quase quadrada, com altura e largura que variam entre 14 e 30 cm e entre 18 e 43 cm, respectivamente. Os cartões têm espessura entre 0,3 e 0,7 cm, a qual em três obras é de 0,5 cm. As pinturas pertencem à Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio (Porto) e não estão datadas. PINTURA EM CARTÃO NO INÍCIO DO SÉC. XX EM PORTUGAL:AURÉLIA DE SOUSA, UMA ARTISTA ESQUECIDA NUM TEMPO DE MUDANÇAS TÉCNICAS P AINTING ON CARDBOARD IN THE BEGINNING OF THE XX CENTURY , IN PORTUGAL:AURÉLIA DE SOUSA, A FORGOTTEN ARTIST ON A TIME OF TECHNICAL CHANGES Maria Cunha Matos Lopes Pinto Leão Aguiar (1, 2) / António João Cruz (2, 3) / Ana Maria Calvo Manuel (1, 2) / Jorgelina Carballo Martinez (1, 2) (1) Escola das Artes, Universidade Católica Portuguesa (2) Centro de Investigação em Ciências e Tecnologias das Artes (CITAR), Universidade Católica Portuguesa (3) Departamento de Arte, Conservação e Restauro, Instituto Politécnico de Tomar RESUMO: Aurélia de Sousa foi uma pintora portuguesa (1866-1922) que viveu num período de grandes mudan- ças artísticas, nomeadamente a respeito dos materiais. A caracterização da sua obra é iniciada aqui com o estudo de cinco pinturas sobre cartão. SUMMARY: Aurélia de Sousa was a Portuguese painter (1866-1922) that lived on period of great artistic changes, namely about materials. The characterization of her work is initiated with the study of ive paintings on cardbo- ard. P ALAVRAS-CHAVE: Materiais de pintura, técnica de pintura, cartões, pigmentos. KEY WORDS: Painting materials, painting techniques, cardboards, pigments. 113 VIII CIA - Sesión Pigmentos

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Page 1: PINTURA EM CARTÃO NO INÍCIO DO SÉC. XX EM PORTUGAL ... · MariaCunhaMatosLopesPintoLeãoAguiar/ AntónioJoãoCruz/ AnaMariaCalvoManuel/ JorgelinaCarballoMartinez VIII CIA - Sesión

I. INTRODUÇÃOAs cores surgidas durante o século XIX (pig-mentos e corantes sintéticos), os novos suportes(cartões leves, portáteis, de pequenas dimensõese, talvez, económicos), os tubos de tinta colapsá-veis (Ayres 1985; Bomford et al. 1990) e a possibi-lidade da utilização da fotogradia para o registoimediato de cenas que eram depois transferidaspara as obras (Calado 1993), foram inovações quefacilitaram o desenvolvimento da pintura ao arlivre, nas últimas décadas do século XIX.Tendo feito parte da sua formação em Paris(na Academia Julian) (Oliveira 2006), o principalcentro artístico europeu de então, até que ponto apintora portuguesa Aurélia de Sousa (1866-1922)foi indluenciada por estas inovações e o que inte-grou nas obras que executou? Que uso fez destasnovas cores e de que forma o fez? Como utilizou ossuportes de cartão, surgidos nesta ocasião, quepermitiram aos pintores trabalhar fora dos atelierscom mais facilidade, substituindo as telas menos

versáteis, mais pesadas e mais susceptíveis de so-frer danos durante a manipulação? E o emprego desuportes desse tipo denota a aquisição de um ma-terial recente, especidicamente, produzido para ospintores ou a apropriação de um cartão sem essadinalidade? É possível estabelecer relação entre aescolha destes suportes, os materiais empregues eas técnicas de execução seguidas, por um lado, e,por outro lado, o resultado dinal, ou seja, a obra ar-tística e o seu tema?Estas são algumas das questões a que se pro-curou responder, começando pelo estudo de umconjunto de cinco pinturas sobre cartão, represen-tando paisagens e motivos dlorais (Figs. 1 a 5).Trata-se de obras de pequena dimensão com formarectangular, quase quadrada, com altura e larguraque variam entre 14 e 30 cm e entre 18 e 43 cm,respectivamente. Os cartões têm espessura entre0,3 e 0,7 cm, a qual em três obras é de 0,5 cm. Aspinturas pertencem à Casa-Museu Marta OrtigãoSampaio (Porto) e não estão datadas.

PINTURA EM CARTÃO NO INÍCIO DO SÉC. XX EM PORTUGAL: AURÉLIA DESOUSA, UMA ARTISTA ESQUECIDA NUM TEMPO DE MUDANÇAS TÉCNICAS

PAINTING ON CARDBOARD IN THE BEGINNING OF THE XX CENTURY, IN PORTUGAL: AURÉLIA DESOUSA, A FORGOTTEN ARTIST ON A TIME OF TECHNICAL CHANGES

Maria Cunha Matos Lopes Pinto Leão Aguiar (1, 2) / António João Cruz (2, 3) / Ana Maria Calvo Manuel (1, 2) /Jorgelina Carballo Martinez (1, 2)(1) Escola das Artes, Universidade Católica Portuguesa(2) Centro de Investigação em Ciências e Tecnologias das Artes (CITAR), Universidade Católica Portuguesa(3) Departamento de Arte, Conservação e Restauro, Instituto Politécnico de Tomar

RESUMO: Aurélia de Sousa foi uma pintora portuguesa (1866-1922) que viveu num período de grandes mudan-ças artísticas, nomeadamente a respeito dos materiais. A caracterização da sua obra é iniciada aqui com o estudode cinco pinturas sobre cartão.

SUMMARY: Aurélia de Sousa was a Portuguese painter (1866-1922) that lived on period of great artistic changes,namely about materials. The characterization of her work is initiated with the study of Jive paintings on cardbo-ard.

PALAVRAS-CHAVE: Materiais de pintura, técnica de pintura, cartões, pigmentos.

KEY WORDS: Painting materials, painting techniques, cardboards, pigments.

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II. MÉTODOS DE EXAME E ANÁLISEOs suportes em cartão foram caracterizadosmediante microscopia óptica (OM). Os materiaisde pintura (pigmentos e cargas) foram identidica-dos por espectrometria de dluorescência de raiosX dispersiva de energia (EDXRF), tendo sido usadoum equipamento portátil não invasivo constituído

por tubo de raios X com ânodo de prata; detectorSi-PIN da AMPTEK termoelectricamente refrige-rado, com 7 mm2 de área efectiva, janela de Be com7 mm de diâmetro e 25 µm de espessura e resolu-ção de 180 eV (FWHM); e sistema multicanal MCAPocket 8000A da AMPTEK. Todas as zonas foramanalisadas nas seguintes condições: tensão de 25kV; intensidade de corrente de 9 microamperes;tempo de aquisição de 100 s. Com o mesmo objec-tivo da identidicação de pigmentos e cargas foi tam-bém usada a OM. A OM e a EDXRF são doismétodos frequentemente usados para a identidica-ção de pigmentos e cargas utilizados em pintura ea sua combinação é especialmente vantajosa (Ce-sareo et al. 2008; Doménech Carbó et al. 2006; Gar-

Fig. 1. BalaustradanaQuintadaChina (18,2 cm x 38,9 cm x 0,5 cm).

Fig. 2. Flores ao ar livre (18,2 cm x 22,2 cm x 0,6 cm).

Fig. 3. Rio (31,6 cm x 43,0 cm x 0,5 cm).

Fig. 4. Pôr-do-sol (14,0 cm x 18,5 cm x 0,3 cm).

Fig. 5. Tarde no campo (30,5 cm x 43,0 cm x 0,5 cm).

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Fig. 6. Sobreposição de camadas de dibras dispostas, aleato-riamente (OM, ampliação de 40x).

Fig. 7. Fibras de reserva (OM, amplia-ção de 200x).

cía et al. 2008; Pinna et al. 2009; Stuart 2007; Szo-kefalvi-Nagy et al. 2004).A estrutura das obras, nomeadamente a se-quência das camadas cromáticas, foi estudadaatravés de radiogradias (Hassell 2005, Pinna et al.2009) realizadas com ampola portátil da marcaSMART, modelo 160E/0.4, com tensões entre 35 e40 kV; intensidades de corrente de 6 mA e temposde exposição entre 20 e 45 s. De uma forma maispontual, essa sequência foi estudada através da ob-servação de amostras estratigrádicas, montadas emresina, através de microscópio binocular OLYM-PUS, modelo BX41, com óptica corrigida ao indinitoerro do micrómetro ocular de 10 µm para a am-pliação de 100x e 5 µm para a ampliação de 200x.Essas imagens foram registadas com câmara digi-tal OLYMPUS, C-4040 Zoom.

A técnica pictórica, como é habitual (Bertani2006; Faries 2005; González Mozo et al. 2005; Mai-ringer 2000a, 2000b), também foi investigada como recurso a documentação fotográdica no espectrovisível (luz directa e luz rasante), fotogradia de dluo-rescência de ultravioleta, fotogradia digital de in-fravermelho obtida com diltro IR B+W 093 esistema de detecção sensível até 1100 nm, e re-dlectogradia de infravermelho obtida com equipa-mento portátil constituído por câmara C2741-03NT com controlador CC2741-03CC e tubo vi-dicon de infravermelho, da Hamamatsu.III. MATERIAISSuporteOs cartões, de coloração amarela, são todosdo mesmo tipo e têm uma estrutura laminar. Mi-croscopicamente observa-se a sobreposição de ca-madas com dibras que estão dispostas de formaaleatória e não seguem uma direcção preferencial(Figura 6). Mantêm-se unidas através de um ade-sivo. As dibras são de origem vegetal, havendo mis-turas de dibras de algodão (escassas) e,provavelmente, juta e esparto (Catling e Grayson1982). A mistura de vários tipos de dibra ―de re-serva, de transporte de seiva e de sustentação―sem selecção das mesmas antes da preparação docartão, denota um material de qualidade inferior(Figs. 7, 8 e 9). Um cartão de boa qualidade, só teriadibras de sustentação na sua composição, o que nãoacontece nestes casos.

Fig. 8. Fibras de transporte de seiva(OM, ampliação de 200x). Fig. 9. Fibras de sustentação (OM, am-pliação de 200x).

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Fig. 11. Espectro de EDXRF obtido na zona onde foi recolhidaa amostra da Fig. 10.

Fig. 10. Corte estratigrádico na zona de dlor vermelha sobrefolha verde e fundo azul da obra Balaustrada da Quinta daChina (OM, ampliação de 200x). A camada de preparação estáassinalada com a letra P.

Fig. 12. Corte estratigrádico na zona de nuvem sobre céu azulna obra Tarde no Campo (OM, ampliação de 200x). A camadade preparação está assinalada com a letra P.Fig. 13. Espectro de EDXRF obtido na zona onde foi recolhidaa amostra da Fig. 12.Na obra Balaustrada na Quinta da China (Fi-gura 1), através da observação à vista desarmadada secção transversal, veridicou-se que o cartãoestá impregnado, na face pintada, por um materialnão identidicado. Embora não possa ser excluída apossibilidade de absorção do óleo da camada pre-paratória ou da primeira camada cromática pelocartão, parece mais provável essa impregnação re-sultar da aplicação de camada de encolagem ou depelícula de isolamento.Não é possível adirmar se os cartões eramdestinados a uso artístico ou se a pintora aprovei-tou cartões fabricados para outros usos. De qual-quer modo, há uniformidade de suportes quedenota preferência por um determinado tipo.

Camada de preparaçãoDas cinco obras estudadas, apenas três apre-sentam camada de preparação, visível à vista des-

armada nas lacunas e estalados existentes. Sãoelas: Balaustrada da Quinta da China, Tarde noCampo (Figura 5) e Rio (Figura 3). As amostras re-colhidas mostram que a camada tem uma espes-sura irregular em qualquer uma destas obras.Além disso, a preparação não cobre toda a super-dície da primeira, estando o cartão à vista, nalgu-mas áreas.Relativamente à composição, a observaçãopor OM revela que na obra Balaustrada da Quintada China a preparação é constituída por dois tiposde partículas brancas misturadas, umas de maio-res dimensões, irregulares e translúcidas, outrasmais dinas e opacas (Figura 10). Em Tarde noCampo e Rio a composição é mais uniforme, sendoas partículas dinas e translúcidas (Figs. 12 e 14).

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Fig. 14. Corte estratigrádico na zona de montanha na obra Rio(OM, ampliação de 200x). A camada de preparação está assi-nalada com a letra P. Fig. 15. Espectro de EDXRF de zona próxima do local, com se-melhantes características cromáticas e estratigrádicas, ondefoi recolhida a amostra da Fig. 14.Em todos os locais analisados das três obras, os es-pectros de EDXRF contêm picos devidos ao Pb e aoZn. Os do Pb são geralmente intensos, pelo que dãoconta do uso de pigmentos de Pb (nomeadamentebranco de chumbo) na camada superdicial, mas osdo Zn são pouco intensos e, por isso, devem cor-responder a um material da camada de prepara-ção. Atendendo a estes resultados e à opacidadedos pigmentos, as partículas translúcidas devemcorresponder a branco de zinco e as opacas abranco de chumbo. Assim, na preparação da obraBalaustrada da Quinta da China foi usada uma mis-tura de branco de chumbo e branco de zinco e nasduas outras obras, apenas branco de zinco.Nas obras Pôr-do-sol (Figura 4) e Flores ao arlivre (Figura 2) não foi detectada camada de prepa-ração. Na primeira, o suporte foi deixado à vista, in-tencionalmente, tendo a artista aproveitado a suacor quente, para o efeito dinal da obra. Em Flores aoar livre, embora não tenha sido detectada uma ca-mada uniforme de preparação, localmente foramaplicadas várias camadas de tinta, algumas dasquais se observam à superdície, as quais são res-ponsáveis pela mancha clara, traduzindo opacidadeaos raios X, observada na radiogradia (Figura 16).Não sendo constante a aplicação da camadade preparação, seja pela sua ausência, seja pelairregularidade da sua espessura, parece pouco pro-vável que os suportes, caso se destinassem a usoartístico, fossem comercializados já com essa ca-

mada. É mais provável que a mesma tenha sido co-locada pela pintora.Apenas uma das pinturas, Balaustrada daQuinta da China, apresenta o que parece ser um dilmede isolamento (encolagem), visível na secção trans-versal. Nas outras duas obras com camada de pre-paração não foi detectada camada de encolagem, aocontrário do que é habitual na pintura sobre tela.Camadas cromáticas

BrancoA paleta da pintora é, em geral, clara, recor-rendo, abundantemente, ao branco, quer comotom puro, quer para clarear as outras cores. Este

Fig. 16. Radiogradia da obra Flores ao livre.

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Fig. 17. Radiogradia da obra Rio com indicação da zona (A)onde foi recolhida a amostra estratigrádica da Fig. 18. Fig. 18. Corte estratigrádico de amostra recolhida na zona decor branca da obra Rio (OM, ampliação de 200x). A camadacromática composta por branco de chumbo está assinaladacom a letra C.

Fig. 19. Espectro de EDXRF obtido na zona onde foi recolhidaa amostra da Fig. 18.gosto pela claridade é visível no uso das prepara-ções brancas que contribuem para a luminosidadedas camadas cromáticas sobrejacentes. A excepçãoobservada na pintura Pôr-do-sol, em que aprovei-tou a cor amarelada do cartão pode explicar-sepelo próprio tema.Como se disse, de acordo com espectros deEDXRF, o pigmento branco usado é o branco dechumbo. As observações de OM suportam essa in-terpretação.

AzuisSalvo na obra Pôr-do-sol, não foram detecta-dos por EDXRF elementos que possam ser relacio-nados com pigmentos azuis, pelo que essa cor serádevida a materiais como o azul ultramarino ou o

índigo, constituídos por elementos não detectáveisnas condições em que foram obtidos os espectros,ou seja, elementos com reduzido número atómico.A observação, com lupa binocular, de partículasazuis na superdície das pinturas leva a excluir a hi-pótese do índigo ou de outro corante e sugere tra-tar-se de azul ultramarino. As observações de OM(Figura 12) apontam no mesmo sentido e, alémdisso, devido à uniformidade do tamanho das par-tículas azuis, sugerem que foi usada a variedade ar-tidicial do azul ultramarino, tal como seriaprevisível na época de Aurélia de Sousa.Na obra Pôr-do-sol, considerando a detecçãode Co por EDXRF (Figura 21), as partículas azuisgrandes, angulosas e com tamanho irregular, ob-servadas por OM, e o facto de o esmalte já não serusado em dinais do século XIX, foi empregue azulde cobalto. Na zona de cor roxa, de acordo com osespectros de EDXRF, este pigmento foi misturadocom vermelhão (Figura 20).VerdesEm todas as áreas verdes analisadas porEDXRF, excepto na obra Pôr-do-sol, foi detectadaconcentração signidicativa de Fe que sugere o usode terra verde, o que é apoiado pelas partículasverdes pequenas e uniformes observadas por OM.A não detecção por EDXRF de outros elementosdeste pigmento, nomeadamente, Mg e Al, está deacordo com as condições de análise.

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Fig. 20. Pormenor da zona de cor roxa, da obra Pôr-do-sol,composta pela mistura de azul e vermelho (OM, ampliação de32x).

Fig. 21. Espectro de EDXRF obtido na zona roxa da Fig. 20.

Na obra Pôr-do-sol, não obstante o mesmotom verde sombrio, foi usado um pigmento de cró-mio, como é evidenciado pelos picos de Cr no es-pectro de EDXRF obtido (Figura 24). A corobservada por OM e a reduzida absorção da radia-ção infravermelha observada na fotogradia de in-fravermelho (Figura 22) sugerem que se trata deverde de óxido de crómio, Cr2O3.AmarelosA observação directa das pinturas permitedistinguir dois pigmentos amarelos. As zonas decoloração mais intensa originaram espectros deEDXRF que mostram a presença de Cr, têm elevadaopacidade aos raios X e exibem dluorescência de ul-travioleta de cor verde acastanhada. Isto permiteconcluir que nessas zonas foi usado amarelo decrómio. As zonas de cor amarela menos intensa sãomenos opacas aos raios X e contêm um materialcom Fe. Neste caso trata-se do ocre amarelo.VermelhosA detecção de Hg por EDXRF, nas zonas ver-melhas, além dos resultados obtidos pelos outrosmétodos, permite concluir que o pigmento ver-melho usado é o vermelhão. Na obra Balaustrada

da Quinta da China foi observado um outro tom

vermelho, mais escuro, que corresponde a zonasde reduzida opacidade na radiogradia e transpa-rentes ao infravermelho. Nas amostras estudadaspor OM não foram observadas partículas indivi-dualizadas e, por outro lado, nos espectros deEDXRF não foi detectado qualquer elemento ca-racterístico de pigmentos vermelhos. Neste caso, éprovável, que o vermelho corresponda a uma laca.CastanhosNas áreas castanhas foi sempre detectado Fepor EDXRF, o que, conjugado com as partículas cas-tanhas arredondadas de dimensões heterogéneas,observadas por OM, permite concluir que foi usadoo ocre castanho.

IV. TÉCNICA DE EXECUÇÃONas pinturas são visíveis escassos traços dedesenho subjacente feito com um material negropouco coeso e mate (provavelmente, carvão ou gra-dite). Alguns dos traços apenas se observam atravésde fotogradia e redlectogradia de infravermelho, masoutros não foram cobertos por tinta e permanecemà vista e integrados na própria composição (Figuras25 e 26). O desenho correspondente a esses traçosnão parece ter sido usado para dedinir pormenores,mas apenas para delimitar determinadas áreas (Fi-gura 22), de uma forma muito geral. Noutras zonas,no entanto, semelhante delimitação foi feita comtinta, nomeadamente através de mudança de tom eaplicação de empastes. O gosto pelos efeitos plásti-cos obtidos com esta conjugação de desenho e pin-tura parece sobrepor-se à preocupação pela perícia

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Fig. 22. Fotogradia de infravermelho da obra Pôr-do-sol.

Fig. 24. Espectro de EDXRF obtido na zona onde foi recolhidaa amostra da Fig. 23.

Fig. 23. Corte estratigrádico de amostra da zona de cor verderosada, da obra Pôr-do-sol, composta por partículas verdes,azuis e vermelhas (OM, ampliação de 200x), recolhida na zonaassinalada com a letra A na Fig. 22.

e minúcia do desenho e ao uso deste como basepara posterior aplicação da cor.A cor foi obtida, sobretudo, pela mistura detons na paleta e na superdície da pintura e não,através da sobreposição de camadas de tinta. Ascores, portanto, raramente são puras. Por exemplo,os céus, ainda que pintados sobre uma camadapreparatória branca, de uma forma geral, apresen-tam mistura de pigmentos azuis e pigmentos bran-cos, com predominância de um ou do outroconforme o tom. Na obra Pôr-do-sol, que não temcamada de preparação, a tonalidade mais quentedo céu foi obtida com uma mistura de pigmentosazuis, brancos e vermelhos.No entanto, o número de camadas de tintaaplicadas em algumas áreas é signidicativo, atin-gindo cinco estratos, ainda que noutras zonas ape-

nas exista um. Essa sobreposição, porém, de umaforma geral, não parece estar relacionada com oprocesso de obtenção da cor, já que não é signidi-cativa a transparência dessas camadas, mas pareceantes resultar da espontaneidade do processo pic-tórico, a que provavelmente não será alheia a apa-rente ausência de desenho detalhado.O processo pictórico parece caracterizar-setambém pelo uso impressionista da forma de ma-nipulação e aplicação das tintas. Assim, por exem-plo, não parece ter havido preocupação em obtermisturas uniformes dos tons que surgem nummesmo estrato, notando-se com frequência que acor da mescla, gradualmente, se altera na superdícieda pintura, em resultado de uma rápida e incom-pleta mistura na paleta. Para a obtenção de umacerta tonalidade, o pincel não parece ter permane-cido muito tempo na paleta, antes transportandonuma mesma passagem cores puras e mistura dasmesmas, numa amálgama que só atingiu o seu es-tado dinal à medida que foi sendo aplicada. Além douso impressionista dos materiais, este procedi-mento denota igualmente uma execução rápida.De forma semelhante se pode interpretar assignidicativas variações da espessura dos estratospictóricos e da camada de preparação e o recursofrequente aos empastes para dedinir pormenores econtornos dos elementos da composição. Esta formade representar com relevo detalhes de dlores, nuvens

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ou folhagens das árvores, por exemplo, imprime umefeito vibratório às obras, para o qual também con-tribui a textura da camada de preparação.V. CONCLUSÃOAs cinco obras estudadas foram executadassobre cartão que, provavelmente, não era desti-nado a uso artístico, mas que, tendo um outro dim,foi aproveitado e preparado por Aurélia de Sousa.Os temas, todos de exterior, a partir de um escassodesenho, foram desenvolvidos com uma técnica rá-pida de pintura, envolvendo um uso impressionistada cor e da pincelada, adaptando-se, tal como o su-porte e o desenho, às condicionantes do espaço emque as obras foram executadas.

No que diz respeito à cor, a paleta é coloridae viva, envolvendo em simultâneo pigmentos tradi-cionais, como o branco de chumbo, o vermelhão, aterra verde, os ocres amarelo e castanho e pigmen-tos modernos, como o azul ultramarino artidicial, oazul de cobalto, o verde de óxido de crómio e o ama-relo de crómio, pigmentos estes que apenas no sé-culo XIX começaram a ser usados, especialmente nasegunda metade da centúria. Na camada de prepa-ração empregou o branco de zinco.De uma forma geral, os diversos pigmentosforam detectados nas cinco obras, mas o verde deóxido de crómio e o azul de cobalto parecem tersido usados apenas na pintura Pôr-do-sol, a qualtambém se distingue das restantes pelo facto deapresentar o suporte à vista, tendo a artista apro-veitado a sua cor para o efeito dinal.

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Fig. 25. Pormenor da obra Pôr-do-sol (25x). Fig. 26. Pormenor da obra Balaustrada da Quinta da China(25x).

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REFERÊNCIASAYRES, J. 1985: The artist's craft. A history of tools, techniques

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Pintura em cartão no início do séc. XX em Portugal: Aurélia de Sousa, uma artista esquecida num tempo de mudanças técnicas

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