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j • A Classe Operária no Brasil - Paulo S. Pinheiro/Michael Hall • A Estratégia da Recusa - Análise das greves de maio/78 _ Amnéris Maroni • Arqueologia da Violência - En.sa,io de Antropologia Política _ Pierre Clastres • Caos - Crônicas políticas - Pier Paolo Pasolini • Direitos Civis no Brasil, Existem? - Hélio Bicudo • Discurso da Servidão Voluntária - Etienne de La Boétie • O Massacre dos Posseiros - Ricardo Kotscho • Violência Brasileira - Diversos autores Coleção Primeiros Passos • O que é Direito - Roberto Lyra Filho • O que são Direitos da Pessoa - Dalmo de Abreu Dallari • O que é Ideologia - Marilena Chauí • O que é Poder - Gérard Lebrun • O que é Violência - Nilo Odália • O que é Violência Urbana - Régis de Morais Coleção Tudo é História • Londres e Paris no séc. XIX - M. Stella M. Bresciani • Militarismo na América Latina - Clóvis Rossi Os Crimes da Paixão - Mariza Corrêa .i i I !' Paulo Sérgio Pinheiro (org.) Crime, Violência e Poder j0083 40 anos de bons livros

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j a~[I]~ • A Classe Operária no Brasil - Paulo S. Pinheiro/Michael Hall • A Estratégia da Recusa - Análise das greves de maio/78 _

Amnéris Maroni

• Arqueologia da Violência - En.sa,io de Antropologia Política _ Pierre Clastres

• Caos - Crônicas políticas - Pier Paolo Pasolini • Direitos Civis no Brasil, Existem? - Hélio Bicudo • Discurso da Servidão Voluntária - Etienne de La Boétie • O Massacre dos Posseiros - Ricardo Kotscho • Violência Brasileira - Diversos autores

Coleção Primeiros Passos

• O que é Direito - Roberto Lyra Filho • O que são Direitos da Pessoa - Dalmo de Abreu Dallari • O que é Ideologia - Marilena Chauí • O que é Poder - Gérard Lebrun • O que é Violência - Nilo Odália • O que é Violência Urbana - Régis de Morais

Coleção Tudo é História

• Londres e Paris no séc. XIX - M. Stella M. Bresciani • Militarismo na América Latina - Clóvis Rossi • Os Crimes da Paixão - Mariza Corrêa

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Paulo Sérgio Pinheiro (org.)

Crime, Violência e Poder

j0083 40 anos de bons livros

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Condomínio do diabo: f

as classes populares urbanas e a lógica do "ferro" e do fumo

ALBA ZALUAR*

A violência urbana está nas ruas e nos jornais diários. Está no rádio, na televisão e nas. nossas preocupações cotidianas. No "­entanto, não somos atingidos por essas diferentes fontes de infor­mação sobre a violência da mesma maneira e isso se reflete nas nossas concepções acerca dela. A classe social a que pertencemos, o local onde moramos, o jornal que lemos, o programa a que assisti­mos, bem como a imagem que estes nos dão de nossa classe social e do lo~al onde moramos, constituem e compõem o modo como vivenciamos e pensamos essa violência. Foi exatamente este aspecto· da questão que mais me chamou a atenção à medida em que pro­curava entrar num bairro que não é habitado por pessoas de minha condição· social e que, provavelmente por isso mesmo, é conside­rado um antro de banditismo. Seu nom'e esteve diariamente estam­pado nas manchetes dos jornais e seus habitantes eram acusados da maior parte dos crimes cometidos na Zona Sul do Rio de Janeiro e numa vasta região em volta, esta sim habitada por pessoas que tinham acumulado suficientes riquezas para levar ao paroxismo o medo de perdê-las. Aos primeiros foi reservado o estigma de crimi­nosos indiscriminadamente aplicado a todos os que morassem em

• Professora de Antropologia do Departamento de Ciências Sociais da UNICAMP.

252 PAULO SÉRGIO PINHEIRO (ORG.)

tal lugar, aos segundos o medo pânico dos seus pobres moradores. Ironicamente, seu local de moradia é chamado Cidade de Deus. "

Este artigo é, portanto, o resultado da experiência que vivi em contato com a população de uma aãs áreas consideradas mais peri~ gosas neste mal afamado conjunto habitacional da Zona Sul do Rio de Janeiro. Não é um estudo estatístico para provar a maior ou menor incidência 'de 'Crimes no Rio de Janeiro, nem tampouco a correlação entre criminalidade e pobreza. A abordagém não é nem quantitativa nem patologizante. Não lido com estatísticas e sim com oimpacto da criminalidade na vida social local, ou seja, como os moradores percebem e definem a criminal idade, o banditismo, a violência t::. quais são, de fato, as categorias verbais que empregam para expressar tais fenômenos. E o modo como circunscrevem estes fenômenos e a que eles se opõem no pensamento que procurei regis­trar. Tampouco avalio o caráter anti-social ou "Iumpenizador" das práticas consideradas, seja juridicamente, seja nas concepções sociais locais, como criminosas. Ao invés de categorizá-Ias de fora, -'-­procuro perceber como estas práticas se misturam e constituem, com outras, a vida social local. E como que· o contato com membros de classes sociais privilegiadas, ou no trabalho ou em atividades extrat~abalho, vem a ser a matéria-prima do processo que leva ao molde social destas práticas e da reflexão sobre elas. Mas, sem dúvida nenhuma, não entenderia esse processo se não ""­considerasse o impacto da presença física da polícia no local, da sua vigilância constante e acintosamente opressora. É este o orga­nismo do aparelho de Estado que tem ação mais imediata e mais efetiva nas práticas sociais que aqui abordaremos.

A pesquisa que iniciei neste conjunto habitacional não tinha por finalidade o estudo do banditismo local. No entanto, no decorrer do ano que por lá fiquei, fui juntando um razoável mate­rial acerca do problema. Na verdade, a meu ver, para estudar as quadrilhas internamente, ganhando a confiança de seus partici­pantes, seria necessário ficar por lá muito mais tempo, o que não fazia parte dos meus planos. Entrevistei poucos bandidos assu­midos, isto é, aqueles que andam de revólver na cintura e que são reconhecidos como tais pela população local. Botar o revólver na --:. cintura tem, entre eles, o sentido de declarar publicamente uma opção de vida, e de passar a ter com a população local relações marcadas pela ambigüidade. Ser bandido é pertencer a esta catego· ria de pessoas que carregam um estigma e uma indiscutível fonte de poder: a arma de fogo. Sua presença, mesmo quando ausentes fisi·

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CRIME, VIOLÊNCIA E PODER 253

camente do local, nos acontecimentos diários desta população é constante. Assim, recolhi muitos testemunhos de terceiros acerca de seu modo de vida e de seus dramas pessoais e pude reconstituir, através das estórias variadas e das lendas cristalizadas acerca dos poucos que adquiriram uma dimensão heróica no local, o processo através do qual se faz a sua reputação. Além disso, como qualquer ser humano por mais silenciado e esquecido que seja, o pobre habi­tante desta localidade pensa acerca de suas condições de vida e tenta explicar por que de repente todos se viram envolvidos numa guerra, fossem bandidos ou não. Juntos, reconstroem a sua histó- f:.?!VD. f'

ria, marcando mudanças, assinalando passagens, criando persona- 'f~' gens importantes. Essa etno-h/stória é material imprescindível para quem quer que se disponha a entender a questão da violência urbana no Rio de Janeiro.

A associação entre criminalidade e pobreza é evidente quando penetramos nas ruas internas de qualquer dos conjuntos. habitacio­nais "reservados" à população pobre desta cidade. Mas não é exatamente a sugerida pelos números das séries estatí~ticas. Nestas ruas, as marcas do que denominamos criminalidade aparecem lado a lado com claros sinais de miséria social e moral. Ruas esbura­cadas, cheias de lama e de dejetos fétidos dos esgotos já arreben­tados, encaminham os pássõ~' de quem por elas anda. Nelas cruzam-se sempre trabalhadores a caminho do trabalho, bêbados, mulheres loucas andando sem destino, donas-de-casa quase sempre ocupadas nos seus eternos afazeres e um número cada vez maior de desocupados e desempregados, enquanto nas esquinas estratégicas permanecem atentos e vigilantes os olheiros, os aviões ou o vapor. De vez em quando este quadro cotidiano é agitado por uma briga mais violenta à vista de todos ou uma "troca" de tiros entre bandidos e a polícia. Muitos morrem esburacados por ali mesmo. Suas mortes são presenciadas e comentadas por muito tempo se o morto era famoso no local. Ant~s. mais do que agora, neste ano que v.aLse __ caracterizando por uma extrema repressão policial. aos pequenos traficantes locais. O número de mortos já é tão grande *'" que uma clara indiferença é a reação atual às suas mortes.

{:;,., É nesse cenário opressor, nesse espaço de segregação moral, X nesse campo definido de fora como o campo da criminalidade, que os trabalhadores urbanos de baixa qualificação arrumam e enfeitam suas casas, e.ducam seus filhos, inventam estratégias de sobreviyên­cia, montam organizações vicinais.para reivindicar melhorias no bai~ro e para tornar alegre o seu lazer. A convivência com os que x

254 PAULO SÉRGIO PINHE~O (ORG.)

optaram pela vida criminosa é inevitável, mas a expenencia da violência é diária e constante e vai muito além daquilo que se deli­mita como o mundo do crime. Ela pe~pa_s~a hábitos diários da vida familiar, está presente nas rotinas óa--opressão de classe, seja pela presença do aparato policial que se comporta de maneira caracte­risticamente repressiva diante da população pobre, seja pelo quadro de miséria que desfHa sempre pelas ruas e casas de seu bairro, seja pela imagem construída por certa imprensa do crimi­noso e do crime vinculando-o sempre a esta população pobre.

Com a polícia, a população local mantém uma relação ao mesmo tempo de medo e hostilidade disfarçada, desconfIança e bajuhição, reação à postura- repre-ssiva 'adotada por aquela. Esta postura se expressa no próprio andar do policial, na maneira de olhar para os moradores, no modo de dirigir-se aos que se encon­tram naquilo que os policiais definem, quase que por exclusiva autodefinição, como seu campo de intervenção, bem como na fama que já adquiriram por ali de torturadores, matadores etc. "Quem faz o bandido é a polícia", ouvi de muitos jovens vivendo a crise

q"Ueantecede a opção entre a vida de trabalhador e a vida crimi­nosa. Esta afirmação nunca me foi desenvolvida por nenhum deles, mas o sentido dela me era indicado pelo processo da repressão­medo-revolta do qual vi espocarem inúmeros exemplos diante dos meus próprios olhos. Uma simples festa local, em que um destaca­mento da polícia militar participou exibindo seus cães amestrados, serve de ilustração para isso. Nela, os cães pastores adestrados pela PM obedeciam imediatamente às ordens que seus instrutores lhes passavam de atacar "i!ldiylduos slJ~p.eito..s" (representados na ocasião por jovens de aparência desleixada, cabeludos ou vestidos pobremente) para descobrir-lhes, pelo olfato, os pacotes de tóxico e imobilizá-los com os dentes até que os policiais os prendessem. A lição tinha endereço certo e isso ficava patente nos olhares amedrontados dos jovens que assistiam à exibição. A representação de criminoso como um pobre é suficientemente indicativa por si. Mas isso não é tudo. O posto policial local não se preocupa em esconder que usa a tortura e a violência física sobre os presos, culpados ou não. Ao contrário, este fato bem sabido por todos faz parte da imagem do policial poderoso. É isso que garante o grande medo que inspiram. E o nenhum respeito conquistado na base da moral, que nunca chegam a conseguir.

Não é por coincidência que o alvo dessa técnica de amedron­tamento, que decerto não podemos chamar de educadora, é o

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jovem morador. Pois sabe-se por lá que o recrutamento para a "vida de bandido" se dá na faixa de idade que começa por volta dos 10 anos, quando os garotos já iniciaram a carreira fazendo mandados para os traficantes, e termina por volta dos 25 anos, quando a maioria dos bandidos pobres desta cidade já dessangrou com algum tiro no corpo. O processo através do qual o jovem opta ~ pela vida de trabalhador ou pela vida de bandido ainda não tem um ;" :r quadro completo na história trágica das famílias de trabalhadores, urbanos pobres. Do que registrei de histórias de vida e de entrevistas com jovens, posso repetir pedaços de entendimento recolhidos deles próprios, embora esse entendimento se revelasse muitas vezes contraditório. Mas é certo que estamos diante de um personagem --"­novo - obandido - C}ue é bem diferente do malandro que outrora '.---- . ----, - r ' mandava nestas paragens, e que o aparecimento desse novo perso-nage_m não sedéveexdusivamente à falta de emprego provocada

" pela crise econômica. É na faixa de idade dos 10 aos 25 anos que o jovem começa a

se inserir no mercado de trabalho e que dificuldades de várias ordens passam a surgir. A existência de centros profissionalizantes no conjunto habitacional não é suficiente para anular o efeito de uma aprendizagem paralela e muito mais aprofundada que é feita por qualquer garoto na complementação da renda familiar: o bis­cate. "Esta é uma experiência intransponível. Não é mais possível" para as famílias de trabalhadores urbanos de baixa qualificação, sejam famílias completas ou famílias incompletas chefiadas por mulheres, prescindir da ajuda de seus filhos menores na formação da renda familiar. E isso os leva a sair do controle materno e pro­curar meios de renda em biscates pela cidade junto com muitas outras crianças.

----- Mesmo os jovens que conseguem freqüentar escolas e cursos profissionalizantes têm que en frentar mais tarde a inadeq uação destes à realidade da maquinaria usada nas fábricas de tecnologia avançada existentes hoje no país, bem como as barreiras colocadas pela atual legislação ao trabalho do menor e ao candidato ao ser­viço militar. Como a lei proíbe despedir aquele que vai servir as Forças Armadas, os patrões preferem não contratar j,Ovens menores de 18 anos, e servir à pátria acaba tornando-se um pesado ônus para a família pobre, que perde um ganha-pão e ainda tem que arcar com as pequenas despesas do jovem soldado que não ganha nenhum soldo. Para completar o quadro de dificuldades de acesso ao emprego, as barreiras sociais do preconceito e da imagem

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negativa dos moradores de tais locais, dos muitos pobres e dos pretos, não são menos fortes. Os membros das classes populares, desse modo, deixam de tornar-se trabalhadores porque sua própria condição de pobres ameaça e amedronta os que lhes poderiam fornecer emprego. Em outras palavras, eles são perigosos antes de efetivamente o serem ao optar pela vida criminosa. E a própria consciência que têm dessa barreira torna-se um fator a mais na sua inclinação para o crime. Um círculo vicioso que opera como um obstáculo efetivo à obtenção de emprego e como um mecanismo psicológico poderoso na construção de sua identidade.

Ajunta-se a esse clima de discriminação o fato de que os laços pessoais que ligavam merpbros dessas classes com a classe superior esvaneceram-se, o que deixa mais livre o caminho do preconceito. Daí recorrerem cada vez mais ao biscate, que os leva a contar cada vez mais com a ajuda de seus pares. Da porta do supermercado e da feira para uma eventual participação em quadrilha de traficantes de tóxicos, o passo não é grande. Começa-se prestando um serviço ou um mandado e daí continua-se ou não na espiral de envolvimento que culmina com o porte de arma de fogo.

" porque vê os outros andar de revolvinho prá cá, muitos garotinhos vê os outros aí fica até brincando com revolvinho de pau, quando crescer mais tarde vai ser o que? Deus que me perdoe, eles tem o pensamento já disso, conforme eles vê os outros andar de revolvinho dando tiro prá lá, tiro prá cá, então eles vê isso e aí procura uma intimidade com eles, uma amizade nisso, já vai fazen­do um mandado, já vai comprar isso".

(ex-avião)

/ í Não menos importante é a associação feita pelos jovens entre

o trabalho e a 'escravidão'), Formou-se entre eles, a partir de suas próprias experiências e da observação da vida dura dos seus pais, uma visão negativa do trabalh-o:-Se-r-e-SCrãvo~'t~abalhar de segunda a segúnda- poi- irrisórlossalários durante quase todo o tempo em que se está desperto. Ser escravo é também submeter-se a um patrão autoritário que humilha o trabalhador com ordens ríspidas, que não o ouve nunca, que o vigia sempre. Não é à toa, conside­rando os valores cedo aprendidos do machismo, que chamem de otário quem trabalha muito para ganhar pouco e se recusem-a este papel humilhante para um homem:

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"Eu não gosto de ser mandado. Porque tem muitos encarre­gado de obra que acha que tá mandando um filho dele, não sabe mandar a pessoa, acha que a pessoa mal terminou um serviço e já outro serviço prá você fazer, que é obrigatório fazer aquilo, acha que ainda existe escravidão. Éntão eu acho que a escravidão acabou e eu não gosto de ser mandado daquela maneira que eles mandam."

(ex-pedreiro, vapor no local)

Ao contrário do esforço extremamente desgastante do traba­Ihador, sempre em precisão, o comérciO de entorpecentes oferece a possibilidade de ganhar dinh~ir~ fácil, tanto mais quanto maior for a posição na hierarquia do tráfico. Em linhas gerais, este funciona da seguinte forma: o traficante é aquele que tem capital para com­prar grandes quantidades da droga, seja diretamente do produtor, seja de seus grandes distribuidores. Andam sempre armados e montam quadrilhas tanto para defender suas áreas de comércio quanto para cobrar dos seus vapores e aviões a droga entregue por consignação. Como o tráfico é ilegal, não há nenhum meio jurídico de realizar a cobrança e a lealdade pessoal não é suficiente para garantir o cumprimento do contrato. Quem o garante no final das contas é o revólver, usado sem contemplação em cima dos traido­res. O vapor é aquele que recebe a droga no local e espera os fre­gueses. Ele é o "homem de confiança" do traficante e deve prestar conta a ele do que for vendido e dos gastos para manter a neutrali­dade policial. O avião é o que vai até o freguês, ou melhor, o que "aponta o freguês" para o vapor e, ao mesmo tempo, vigia a polí­cia. Dele, portanto, depende o vapor para avisá-lo da chegada de um freguês,ou da polícia. Dele, uma traição pode ser fatal para o vapor. Sobre ele, o vapor mantém o poder também através do revólver no final das contas. A dependência vital entre os elos dessa hierarquia e a conseqüente possibilidade de traição e engano, tanto no que diz respeito à neutralidade policial, quanto ao pagamento' neste rendoso comércio, tornam necessária a coerção pela força das armas'.

Isto nos remete à questão da ética existente entre bandidos e da visão moral que os moradores deles têm. Embora tanto o ban­dido quanto o policial tenham imagens carregadas de ambigüidades, é a polícia que aparece quase sempre caracterizada pela completa ausência de moral. No discurso dos bandidos a polícia aparece sempre com um sinal negativo: engana":seapolícia, esconde-se da

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polícia, mente-se à polícia. Nenhuma relação de lealdade parece prendê-los mesmo àqueles policiais com os quais os bandidos esta­belecem uma relação de troca: dinheiro correndo numa direção, não-interferência ou "proteção" na outra. Compra-se a impuni­dade do crime que perde a sua legitimidade enquanto uma catego­ria moral. Comete "crimes" quem não pode pagar por esta impunidade jurídica. Não é de espantar, portanto, que a associação feita pelos moradores de tais locais com o aparelho jurídico da nação, através de seu mais direto representante no local - a polícia militar -, seja com a injustiça. Ouvi histórias trágicas de mães que tentaram "salvar" seus filhos das malhas da lei, o que muitas vezes significa salvá-los da morte. A impunidade comprada por preços altíssimos, quando se considera o nível de vida dessas populações pobres, pode evitar que os bandidos pobres sejam mortos pelas ruas do conjunto. Porque a polícia mata e matou muitos enquanto est!~<:_por Já. E, na visão dos moradores, sempre matou covarde­mente, pelas costas, sem avisar, por motivos que nunca se esclare­ceram. Isto provoca revolta especialmente no caso de morte dos bandidos que, segundo a classifícação local, são respeitadores ou mesmo protetores do local. A polícia mata indiscriminada e injus­tificadamente aos seus olhos.

A() contrário, o bandido mata para se vingar de alguma trai­ção ou defender sua honra e seu espaço. Estes atos violentos são julgados dentro de uma concepção de lealdade pessoal, honra e respeito e, portanto, permitem que se faça uma avaliação moral dos participantes. Entre bandidos, mesmo os que pertencem a bandos opostos, parece haver, no limite, uma avaliação moral da coragem do parceiro e um conjunto de regras regendo a troca de tiros. Se um bandido para ter fama precisa "ser um matador" ou "ter disposição para matar", ter morte nas costas, além das eventuais complicações jurídicas, implica o risco de ter sua imagem pública analisada segundo as justificativas do seu ato e de envolvê­lo num circuito de dívidas de sangue, aumentando o número de vin­gadores. É pela capacidade de jogar com a morte alheia sem que sua fama como homem corajoso e temido seja manchada, mas sem que perca o apoio ou pelo menos a neutralidade da população local, que um bandido é julgado localmente e colocado numa das várias categorias existentes. El!1 princípio, bandido e trabalhador não se misturam nem se intrometem nos negócios respectivos:

" o otário é aquele que não se envolve com a vida deles.

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Então vai se atrasar comigo pra que? Vai me dar um tiro, vai querer me roubar, se eu não tenho nada o que ek roubar. Então ele vai em cima de quem tem. Mas aqui dentro eles não fazem iss,o não ... "

" Ele vai matar a mim ou a você? Pra que? Pra pegar um crime sem necessidade nenhuma? A bala que ele vai gastar comigo ou contigo, que não deve nada a ele, vai gastar com um vagabundo que deve a ele, que se ele encontrar vai matar ele ... "

(presidente de terreiro de umbanda)

Se um bandido para ter fama precisa "ser um matador" ou "ter disposição para matar", tife morte nas costas muda a imagem e a situação jurídica da pessoa, ou no dizer deles mesmos, "faz a pessoa se atrasar". Os bandidos formados, isto é, aqueles que já têm experiência e conhecem as regras do jogo, sabem disso e não trocam tiros com qualquer um nem à toa. Matar quem não está na guerra é considerado perversidade e trocar tiros pode ter di ferentes significados. Entre bandidos da mesma área, o tiro pode ser usado como advertência ou castigo aos que infringiram as regras e consti­tui uma demonstração da força e da superioridade de um bandido sobre outro na hierarquia existente dentro do mesmo pedaço ou área. Isto ocorre ~ando, por exemplo, um pivete rouba ou pro­voca trabalhadores e comerciantes de sua própria área. Esses titos não resultam ern morte a não ser no caso de luta pela posse de uma boca de fumo, base da hierarquia entre eles. Entre bandidos de áreas· diferentes, a troca de tiros tem o sentido de demarcar as fron­teiras das áreas controladas por cada quadrilha, bem como a posse das boceJ\' de fumo. Mas essa troca se dá entre iguais, isto é, um traficante famoso não vai gastar um tiro seu com um avião de outra área. Se por acaso isso acontece, o avião, quando sobrevive, pode se gabar e adquirir fama através desse fato.

Mas as imagens dos bandidos junto à população local são muito contraditórias. Na classificação dos moradores, existem diferentes tipos de bandidos. E um mesmo aspecto da atividade ou do modo de vida dos bandidos pode ter avaliações positivas e nega­tivas.

O bandido ora é apresentado como um vingador do seu povo, do seu pedaÇ.o, ora como quem arrasta outros jovens para o condo­mínio do diabo. Aquele que segue as regras para a boa convivência local é descrito como quem vinga as ofensas sofridas pelos mora-

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dores de sua área, assim como garante a inviolabilidade de seu território, isto é, impede que outros bandidos invadam o espaço geográfico definido como o nosso pedaço, e que passa a ser identi­ficado com a própria figura do bandido-herói:

" eles respeitam a gente ... Qualquer coisa que me aconte­cer, um menino passou ou um vagabundo pegar, não será eu que vou pegar um revólver prá dar tiro, eles aí: 'deixa com a gente porque aí a gente mata o cara, porque a gente já é perdido mesmo, mais um crime nas costas não faz diferença', entende? É aquele negócio, tudo em qualquer área, em qualquer lugar é sempre assim, sempre tem uma rapaziada local. .. "

" ... Ele não tinha medo, enfrentava eles rodinho e não tinha medo, então ele era um cara que tem o nome na história, então a vila ficou famosa como vila do Manoel Galinha, embora ele já . esteja no mundo espiritual..."

" ... Só o nome do Manoel Galinha nessa vila aqui continua ... Todo mundo quer ganhar essa vila aqui, mas não ganha porque a molecada não deixa. Não ganha, quer entrar aqui dentro qu~ é prá sujar o nome do Mané Galinha".

(presidente de terreiro e seu filho)

Mas a arma deste mesmo bandido benquisto é uma armadilha para a coragem dos jovens desafiados ou humilhados pelos outros. Se um bandido de outra área provoca um pacífico morador, traba­lhador ou jogador de futebol, o jovem se vê tentado a tomar arma emprestada e cair no circuito de. trocas (de tiros) implacável nas suas regras de reciprocidade. É.5.s.e_ é. o p~iIT1~iro P.é!sso par'!. entrar numa engrenagem que eles não controlam: a engrenagem das qua­diífiúls' ire traficantes de tóxicos e da polída, que t"orna cada vez mais a feição de crime organizado. A razão' inicial pode ser roubo ou humilhação sofridos por um jovem a caminho do trabalho e que tem a desventura de topar com um bandido de outro território. Ou uma briga por causa de mulher. Ou ainda pode ter sido espanca­mento, tortura é prisão injustos sofridos nas mãos da polícia. A partir daí, o jovem revoltado tem que se juntar a uma das quadri­lhas que dividem entre si o lucrativo comércio e o controle sobre um território.

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"Arma emprestada é condomínio do diabo ... É quando aqui na vila, principalmente aqui na vila, não viu o Manelzinho? come­çou a vender fumo, hoje é um neguinho marcado por andar com um oitão na mão aí, andar com uns caras aí... e agora é obrigado a trocar tiro, condomínio do diabo que eu tô falando ... aquela arma o Caludinho deu pra ele, vai eu, chegar o cara me pega lá embaixo, me dá coronhada, me dá tapa, com raiva aí eu pego a arma que o cara me dá na mão, eu vou lá, não dá certo de pegar o cara por que aqui. .. não vai dar tempo de eu ir pra um lugar porque não dá pra mim pegar o cara, aí eu vou trocar com o cara de longe, o cara sai vivo ... Foi só empréstimo de arma, aí eu dô a arma pra ele de novo, aí eu desço pra trabalhar, eu vou descer lá prá baixo, o cara vai lá e me fe.cha, isso é o que? não é C;ondomínio do diabo?"

Uovem trabalhador)

As estórias de lutas entre bandidos podem ter lances heróicos, atitudes dignas, reconhecimento da coragem do adversário, lado a lado a acusações de traição, intriga, covardia. Existe, portanto, um código moral que permite fazer-se avaliações, impor sanções e de algum modo controlar a violência produzida. É claro que estas estórias vêm marcadas pelo profundo sentido de localidade que parece ser um elemento fundamental na formação das identidades sociais no Brasil e que aqui aparece ainda mais acentuado pela guerra de quadrilhas. O bandido do nosso pedaço é sempre mais valente, leal e corajoso que o dos outros pedaços, especialmente os

. nossos rivais. Os estigmas veiculados pelos jornais sobre o conjunto como um todo - o de antro de marginais, maconheiros, bandidos, assaltantes etc. - aplicam-se aos outros pedaços, mas não ao nosso, onde predominam trabalhadores honestos e bandidos, porque os há, que "são gente", não se metem com "trabalhador", "defendem a área", "nos respeitam". Um modo de se livrar dos estigmas cotidianamente lançados sobre eles por certa imprensa. Um meio de se livrar da nódoa do espelho que certa imprensa lhes montou.

Mas os bandidos do próprio pedaço não têm imagem uni­forme nem recebem a mesma classificação. Mesmo nas avaliações mais gerais, as que dizem respeito ao tipo de pessoa que cai nessa vida, as ambigüidades aparecem claramente. Num primeiro mo­mento o bandido é gente como todos nós e isso, como veremos

262 PAULO SÉRGIO PINHEIRO (ORG.)

mais adiante, pode ser levado ao extremo da identificação geral de pobres, todos iguais:

" '" é bandido, tá na vida dura, mas a gente tem aquela ami­zade por eles, porque eles respeitam a gente, eles não têm culpªga infelicidade deles ser o que for. .. Aí muita gente diz: 'você vive no meio de bandido'. Não, eu vivo no meio de gente. Eles são gente também, cada um tem uma estória pra contar e ninguém vira ban­dido porque quer, mas aquele negócio, eles respeitam a gente, chamam a gente de senhor" .

(diretor do conselho fiscal do bloco)

No momento seguinte, o bandido é o homem atraído pelo dinheiro fácil, que não quer trabalhar, que tem maus hábitos etc., especialmente quando a referência para a comparação é a própria pessoa que está falando ou alguém de sua família:

" ele faz biscate, ele vai ali, ele conserta uma bicicleta, arrumava oitocentos cruzeiros. Quando ele não tem o que fazer, ele sai junto com um amigo dele com um carrinho de mão, vai lá embaixo apanhar jaca, que lá tem muita jaca, bota pra feira e vende a cem cruzeiros cada uma na feira. Ontem ele fez Cr$ 450. Ele tá sempre em movimento ... Se fosse outro, tava aí com o revól­ver na mão roubando, não tava? Então eu disse o seguinte: quando a pessoa quer trabalhar, tem trabalho ... O camarada quando tem o mau vício de roubar os outro, de assaltar os outro, não é por causa do serviço coisa nenhuma. É um pouco de vergonha na cara, sabe ... "

(presidente de terreiro falando de seu filho)

O conflito parece ser, assim, entre uma ética de trabalho ainda valorizada, e que permite ao trabalhador sentir-se e aparecer publicamente como moralmente superior aos bandidos, e a contes­tação dos que a associam à escravidão. O que antes era dito como sina, como conseqüência das condições de vida do pobre, ou como circunstância trágica na vida de qualquer um ("ninguém é bandido porque quer"), desaparece para dar espaço à liberdade de escolha individual e que diferencia moralmente os pobres entre os que gostam de trabalhar e os que não gostam, entre os trabalhadores e

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os vagabundos. A liberdade individual aparece como uma opção entre seguir ou não uma ética de trabalho que consiste em não negar trabalho que pode gerar mais renda para a família da qual se faz parte.

Mas entre bandidos também existem diferenciações morais. O bandido formado se diferencia do bandido sanguinário, do per­verso, do bicho solto, do bandido porco, do pivete etc. Basicamente a diferenciação se prende à socialização do bandido com respeito às regras de convivência entre bandidos e moradores locais que garan­tem o respeito e a proteção mútuos. Um bandido formado não deve mexer com o trabalhador de sua área, mas respeitá-lo e defendê-lo contra-os ban-didos das outras fireas: É prec'isamente isto que cria a simbiose __ entre bandidos e trabalhadores, esse estranho casamento infeliz mas necessário:

..... ele defendia a área dele e respeitava aqueles molequinhos, quando queria desrespeitar os morador, ele vinha e o (estalo com as mãos) batia neles e 'respeitava os morador'. Agora, na área aqui de cima ele pegava ... "

(presidente do bloco)

Bandido formado, bandido-herói, bandido que não tem medo de ninguém mas que respeita o trabalhador é definido por oposição ao pivete e ao bandido porco. O pivete faz um uso inde-

~vlcI~_prepotente, descontrolado de sua arma de fogo. Humj1ha, mata, provoca o trabalhador· por qualquer motivo, apenas para afirmar seu poder. O band{do porco rouba seus vizinhos, os traba­lhadores que moram na sua área. Ambos correm risco _.ele serem linchados pela população local caso não sejam antes advertidos, castigados ou eliminados pelos bandidos formados do local, prote­tores da população e os que, paradoxalmente, garantem a ordem social no local, na ausência da proteção policial justificada.

"Pivete é mais perigoso que o bandido formado, porque o bandido formado já é um bandido formado, então ele já sabe dis­tinguir o bom do ruim, então 'Eu não vou matar, eu vou atirar em fulano prá que? Um homem casado, pai de família, não me inte­ressa. Meu negócio é com os outros' /0 pivete não, o pivete quer aparecer, então o bandido pra poder se formar, el~ tem que ter uma morte nas costas, uma ou duas, então o pivete mata um pai de

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família aí pra depois 'ó, o pivete derrubou fulano de tal' então ele já está nos anais da polícia como assassino."

(presidente de terreiro de umbanda)

"Minha arma aqui sabe como é? Qualquer coisa eu junto a mulher com os filhos todinho, cada um pega um pedaço de pau, vagabundo que se meter a besta vai ficar esfarrapado de cacetada ... Porque o negócio é linchar, é linchar vagabundo, arma pra que? O linchamento quando existe paulada, pedrada, mas quando o cadá­ver aparece com tiro já tem bandido ou polícia no meio ... Mesmo se ele for da área, se ele começar a assaltar, roubar dentro da área, fazer porcaria dentro da área, o povo lincha ele."

(um trabalhador)

"Quando entraram lá em casa, que bandido porco, levou o liquidificador da minha mãe, levou um rádio. Não levou mais coisa porque não deu no ônibus (risos). Depois sumiu, não pode nem aparecer aí. Aquele quando que se sentiu que foi ele, desapareceu, nem botou mais os pés aí. Se ele bota ... Isso é que é bandido? Minha mãe suou prá comprar esses negocinhos pra dentro de casa prá dar uma alegria pras crianças. Bandido prá mim é aquele que vai lá no banco mesmo, pega o grande."

(um jovem desempregado entre outros joven~) ,

Esse é um ponto fundamental na moral social dos trabalha­dores que lhes serve de medida para avaliar o desempenho dos bandidos que andam por lá e construir-lhes uma reputação. Infrin­gir a regra de não roubar trabalhador, não mexer com o trabalha­dor ou alguém de sua família e, principalmente, respeitar o traba­lhador da área em que mora, é arriscar-se a ser justiçado ou por outros bandidos ou pelas próprias mãos do povo. A ambigüidade cede lugar ao ódio; Q.J:.espeito e·o medo, que andam misturados, são substituídos pela fúria, e o resultado é o que se vê estampado nos jornais da cidade.

Mas a raiz da ambivalência na representação do bandido parece estar justamente no que constitui a fonte do seu poder: sua arma de fogo. Quando a referência na fala dos moradores é ao poder dos bandidos contraposto a outros poderes, então as nuanças

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na classificação daqueles desaparecem. Resta apenas o covarde que usa a arma de fogo para impor sua vontade, para mandar. Fortes símbolos visíveis do poder, estas armas tornam-se fetiches na cintura de adolescentes franzinos e gatilhos mortí feros nos seus dedos. Provocam medo e induzem facilmente à obediência. Mas esta é uma obediência que não passa pelo consentimento, pelo reco­nhecimento da autoridade, pela moral. É a obediência produzida pela força bruta. Por isso mesmo, a principal oposição no pensa­mento local sobre o poder está entre vencer na moral e vencer na força (ou na covardia, como dizem máiscórriumente):

"Eu acho que a disposiçã~ pra dar tiro é o seguinte: eu acho que o bandido é um eterno covarde."

(diretor de bateria do bloco)

"Sugestão no modo deles dizer é uma ordem. 'Bota no chão que eu vou levar' ou puxa o relógio ou tira uma bolsa, com a arma apontada prá você. Vai fazer o quê? Agora manda eles vim fazer isso na mão, com toda a minha magreza~ Entendeu como é que é? Eles não vem. Porque o bandido é o eterno covarde."

(diretor do conselho fiscal)

"Eles não dão respeito aqui, é porque a gente não é desse negócio, porque a gente fala de boca, eles não respeitam, mas se a gente usasse como esses garotos aí usa, andar de revolvinho prá lá, revolvinho prá cá, andar de revólver na cintura., mas como a gente fala de boca, não dá-lhe um tiro, então não respeita ... Eu tenho meu pensamento, minha cabeça, outros não tem, já chega aqui quer barbarizar, a gente diz: 'O rapaz sai daqui porque não pode fazer isso'. 'Ah, que nada, rapaz, tu não manda nisso'''.

(responsável pelo bar do bloco, ex-avião)

Não surpreende, assim, que o principal corte que fazem na história do banditismo urbano no Rio de Janeiro seja o antes e o depois da introdução da arma de fogo entre os bandidos. Até mes­mo a categoria que se opõe ao trabalhador não é a mesma num e noutro período. Bandido é o termo usado agora para quem tem arma de fogo e está na guerra, arriscando-se a morrer cedo furado

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de bala. E que usa esta arma para espalhar o temor e defender seu rendoso comércio. A segunda diferenciação feita por eles, aliás, refere-se a esta nova atividade dos bandidos atuais: o tráfico de tóxicos. Malandro é o termo usado para os que antigamente se recusavam a trabalhar e que usavam diversas habilidades pessoais para sobreviver, fosse explorando mulheres, enganando os olários com a sua lábia, livrando-se da polícia ou furtando. Não usavam arma de fogo, quando muito a navalha, e eram admirados pela sua elegância no vestir:

" ... as vez eu ia prá Lapa vê aqueles malandro. Então eu via aqueles cara de camisa de seda, chinelo charloque. Hoje em dia não" existe mais. Chinelo charloque, chapéu de veludo. Mas são uns camarada que aqueles, que aqueles, o nome deles era, eles eram gigolô, cafetão, sabe como é que é? Então é uns camarada que eu vi eles brigando ali, na mão. Botava a mão no chão, o pé subia, o corpo caía, o criolo jogava o pé, assim, o cara virava o pé com cabeça. Era tudo na pernada, no tapa. Não se via revólver. Naquele tempo não existia revólver. Quem usava revólver antigamente era a Polícia Militar... E era aquele revólver-defensor que quebrava assim pra colocar a bala. Hoje em dia, depois que fizeram o revól­ver, inventaram a arma, o revólver automático qualquer moleque desse aí dá sugestão. Dá uma sugestão ne mim, eu sou obrigado a dar sugestão nele. Eles me matam, eles me matam".

(presidente do terreiro de umbanda)

"A nossa arma naquela época era a navalha, cortava o pes­coço, deixava era degolado logo. Era difícil você ver um crime. A malandragem era mais sustentada no jogo de ronda, tóxico não era explorado conforme é, era di fícil você ver".

" ... Era o malandro respeitado. O cara vivia de jogo carteado e só de mulheres de baixo meretrício. Elas saíam pra luta pra arru­mar pro cara. Mas o cara era respeitado. Na localidade que ele morava, além dele ser respeitado a família dos outros também era respeitada. Porque não tinha, não tinha mesmo a garotada de hoje que tem aí usando revólver. .. Eu era daquela época, eu podia sim guardar, ia pro jogo, ficava na esquina tomando conta. A polícia naquela época era Socorro urgente, guarda municipal, não tinha polícia civil. Fracasso foi depois que acabou muitas coisas, aí

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CRIME, VIOLÊNCIA E PODER 267

depois que apareceu a polícia civil, a malandragem começou a piorar. Aí começou a entrar o tóxico. De 50 prá cá começou a se falar muito em maconha ... Quer dizer, vê agora, um garotinho assim. Não é medo dele, que eles não são de nada, é o medo de você falar uma palavra e eles te dar um tiro. É isso".

(presidente do bloco, ex-malandro)

Uma certa idealização do passado é evidente nessas frases às vezes contraditórias. No entanto elas apontam para importantes transformações reais que iluminam o panorama tenebroso do banditismo urbano no Rio de Janeiro hoje. Uma revolução técnica do capitalismo tornou mais efícazes as armas de fogo e deixou mais

t barata a sua produção. A comercialização dessas armas virou um rendoso empreendimento para as indústrias de armamento que a expandiram na população. A fácil aquisição de armas de fogo, por sua vez, provoca uma reviravolta nas relações de poder no interior da população, especialmente as antes regidas pela hierarquia entre as gerações. A autoridade dos homens adultos sofre um duro golpe nas novas formas de contestação dos jovens revoltados, isto é, de armas na cintura. Outros meios de controle têm que ser buscados em meio à perplexidade dos que assistem, impotentes para contê-la, a essa avalanche de violência que não se gera ali, aos que lamentam a queda da moral e a ascensão do ferro, da máquina, nomes locais da arma de fogo. Além disso, o próprio aparato do Estado encarre­gado de restringir as ações criminosas das classes potencialmente perigosas, isto é, das classes de trabalhadores urbanos pobres, também se modifica. E sobre isso pouco sabemos. Mas o universo simbólico desses pobres não permite que eles componham o conhe­cimento dessa realidade da maneira aqui tentada. Não culpam a expansão do comércio de armamentos nesta fase do crescimento econômico do país, mas o aparecimento da arma de fogo ou a invenção do revólver automático I • Nem relacionam o atual clima de quase guerra em que vivem ao fortalecimento e impunidade do aparato repressivo do Estado. Os vilões ficam sendo a polícia

I A indústria de armamentos leves no Brasil é uma das mais bem sucedidas em lucros e inovações tecnológicas, tendo recebido sucessivos elogios na imprensa. Inclusive dos técnicos e cientistas ligados às diversas agências estatais de Ciência e Tecnologia. As conseqüências sociais desse desenvolvimento, no entanto, carecem

análise.

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corrompida pelo tráfico de entorpecentes e os pivetes. Mas sua pista .~ode levar mais longe esse conhecimento limitado de agora.

;Mas a ambivalência na construção social da imagem do ban­dido não anula completamente as tentativas simpáticas de tentar entender as razões de sua escolha como pessoa livre ou de sua sina de seguir este caminho perigoso e trágico no mundo que se nega ao trabalho honesto,! De início é preciso dizer que poucas vezes ouvi as categorias crime ou criminoso serem empregadas para se referirem a esse mundo e as pessoas que o ocupam. Esse mundo é o negativo do mundo do trabalho honesto, pois deste se afasta quem por ele opta, mas a opção, quando vista assim, é chamada de atraso, mar-

. cação, condomínio do diabo e também erro. Quando quem fala é parente ou amigo de bandido ou simplesmente alguém que se iden­tifica com ele como oprimido, pobre, humilhado e ofendido, a palavra usada é revolta. Atraso, marcação, condomínio do diabo remetem ao fato de que a pessoa que usa arma de fogo, sua ou emprestada, e troca tiro com bandido fica marcada, ou seja, presa no círculo das leis da vingança pessoal que regem as relações entre bandidos e entre quadrilhas. Revolta conota atos de injustiça perpetrados contra os revoltados e baseia-se numa concepção de justiça social e de honra masculina. A injustiça pode vir pelas mãos de um bandido sanguinário, da polícia ou de um mundo em.que o pobre não encontra mais justiça. O sinal da revolta é o mesmo que de um homem marcado: o revólver na cintura.

Há, portanto, um duplo movimento neste pensar. No pri­meiro, o mecanismo é o da discriminação. O bandido pertence a uma outra categoria de pessoa, que tem "crime nas costas", "nome nos anais da polícia", "oitão na cintura". Ele é marcado porque é diferente. Infringiu as leis do país, o seu nome está na polícia e pode ser preso. Está sempre fugindo das malhas dessas leis. Mas ele também é marcado porque passa a dever a alguém ou ter que cobrar uma dívida de sangue de quem lhe deve. No primeiro caso ele é visto mais como alguém que carrega um estigma consigo do que alguem que cometeu um crime. A ação de roubar ou de matar não é julgada abstratamente como ruim, negativa, crimi­nosa. No segundo caso, ele será julgado moralmente segundo as regras locais de reciprocidade e justiça. E não é a ação em si de roubar ou matar que é julgada moralmente má, e sim sobre quem e como ela se exerceu. Se o bandido não se meteu com trabalhador do local ou não envolveu "quem não tem nada com esta guerra", isto é, quem não está nesta trama de vinganças pessoais ou dívidas

CRIME. VIOLÊNCIA E PODER 269

ressarcidas com troca de tiros, seus atos não serão julgados como maus, perversos ou covardes. Ali o que conta é a dívida ou rixa entre duas pessoas ou grupos. A ofensa é sempre pessoal e deve ser ressarcida enquanto tal. Os outros, a não ser que tenham dívidas de lealdade pessoal com o ofendido ou que se sintam também atingi­dos em sua honra, não se metem. Isso se aplica sobretudo às rixas entre bandidos. Quando tem trabalhador envolvido, no entanto, é o bandido, um homem marcado, que pode ressarcir a dívida de sangue ou a honra masculina do trabalhador justamente porque é marcado.

O segundo movimento neste pensar tem como mecanismo uma identificação de todos como pobres, como subalternos . Pessoas que vivem nas mesmar condições materiais de privação e que sofrem as mesmas experiências de submissão e de humilhação de quem tem que se submeter a superiores ou a patrões para garan­tir a sobrevivência. O bandido é do pedaço. O bandido é pobre. O bandido é gente como todos. O bandido é igual. Nem pior, nem melhor:

"Aqui todo mundo já limpou pinico de madame. Ninguém é melhor que o outro. Qualquer um pode roubar para ajudar o bloco. "

(secretária do bloco às vésperas do carnaval)

O roubo eventual é bastante generalizado entre os jovens e muitos falam disso abertamente. Ouvi vários relatos gloriosos de roubos praticados em supermercados e de pequenos furtos em pessoas ricas. Mas isso só ocorreu no final da minha pesquisa, depois que já os tinha ouvido dizer incansavelmente que não tinham "mau vício" , que sua mãe lhes ensinara a não roubar etc. O respeito à propriedade privada pode ser ainda um elemento impor­tante na imagem pública do pobre respeitável, principalmente quando na presença de um membro da classe dominante. Mas não é um valor importante para eles quando conversam entre si, a não ser quando se trata do respeito aos bens materiais de um trabalhador pobre, de sua casa e de sua família. E nesses relatos, que não foram &ravados, ressaltava-se a sensação de poder sobre quem era roubado. E essa sensação constituía uma inversão da

270 PAULO SÉRGIO PINHEIRO (ORG.)

'--.j posição de submissã02• Do mesmo modo que a visão negativa do

trabalho, essa percepção do roubo e o ato de praticá-lo parecem estar vinculados a uma forma de contestação da sociedade, mas que é logo rotulada de crime pelas autoridades públicas porque quem a pratica é pobre e, portanto, perigoso.

A completa desvinculação com os bandidos locais e o uso dos termos crime e criminoso para referir-se a eles vinham apenas dos diretores das associações de moradores existentes no Conjunto. Nas suas conversas comigo e nos seus discursos públicos, repetiam a visão das autoridades públicas que trabalhavam nos órgãos do Estado no local. Mudar a imagem negativa do conjunto, comba­tendo o crime e fomentando as atividades de lazer, positivas, que iriam ocupar o menor nas suas horas ociosas. Orientar o menor, já que o problema é de má orientação, para encaminhá-lo ao trabalho e ao lazer saudável. No entanto, como qualquer morador comum, também os diretores conheciam pessoalmente os bandidos e solici­tavam sua ajuda quando eram perturbados por pivetes do local. Mas só de alguns deles ouvi abertamente a alternativa de denunciar bandidos à polícia como meio de livrar-se deles.

Como encaixar, do ponto de vista da teoria social, esses fatos aqui narrados? Tratar-se-ia de um movimento social de contesta­ção? De crime organizado? De um braço de organização nos moldes da Máfia? Ou de um confuso panorama de revolta, ambição pessoal, uso de formas coercitivas de poder?

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,O';> / .:" De início, é preciso dizer que a violência não é alguma coisa ): (~,\l-. 'peculiar à nossa época ou à· nossa sociedade. Em todas as socieda­.t--~(j ..;;' des, em todas as épocas, ocorrem ações que se podem caracterizar . ,\~~.) como violentas já que apelam para o uso da força bruta, seja

através de que instrumento for, ao invés de apelar para o consenti­mento. O que varia são as suas formas de manifestação e as regras sociais que as controlam. Nas sociedades em que a violência pri­vada é essencial ao funcionamento da vida diária, essas regras são

2 Havia nítidas diferenças entre gerações nesses relatos, bem como de idade. Nunca ouvi de nenhum pai de família estórias de seus roubos. Eram seus filhos jovens e solteiros que contavam para mim seus pequenos furtos. Algumas vezes referiam-se a situações presenciadas em supermercados onde viram donas-de-casa do local levando mercadorias. A não ser como figura de retórica, quando me expunham as causas da violência, também não me falaram sobre pais de família jovens que tivessem se revoltado para alimentar os filhos. Dos seus relatos sobre bandidos conhecidos. a revolta surgia quando a privação vinha acompanhada pela humi­lhação infringida ou por outros bandidos ou pela polícia.

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conscientes (Hobsbawm, 1982). Quando a violência é controlada, . >-',

ela só atinge os que participam das rixas e não envolve terceiros ou \\ inocentes.

"T. não era sangumano. T. é formado. Na área dele lá na treze, ele defendia a área dele. Tanto que pessoas da treze, conhecido meu, dizia que ele defendia a área da treze lá e respei­tava morador. Aqueles molequinhos quando queria desrespei­tar os morador, ele vinha e ó batia neles e: 'respeita os morador'. Agora, na área aqui em cima ele pegava. Mas ele entrava por dentro dessa área aqui e se tivesse pessoa sentada. aqui ele não mexia com ninguém. Quantas[vezes eu vi o T. encostado ali, espe­rando pra pegar o Mané! Ali eu vi ele daqui. Eu não vou dizer ao Mané que ele tá ali. Olhava pra ele daqui, assim e continuava no mesmo lugar. Ele me olhava, assim. Eu no mesmo lugar. Então ele sentia que eu tê vendo ele. Sou da área do Mané, mas eu não avisar o cara. Porque se eu aviso o cara o cara vai querer pegar ele, amanhã eu encontro com ele lá fora ele me dá um tiro: 'vou dá um tiro, tu fala demais' ... "

Há um profundo senso de justiça e de equilíbrio nas relações entre os que se consideram como iguais. A violência começa a criar o clima de terror e desespero quando este controle desaparece junto com as distinções inocente/culpado, justo/injusto,trabalhador/ bandido. Por isso são tão diferentes a reação ao bandido formado que segue as regras, e não ultrapassa os limites de seu poder, e a reação aos pivetes de um lado e à polícia de outroJ

• É que no pri-meiro caso a violência ainda é controlada e pode ser compreendida '> dentro da concepção popular de justiça, ao passo que no segundo\\>~,~' . ca~o ela não é. E.é.o pânico gerado por esta falta de controle da,---\.~\.~ '.tV violência e as profundas feridas que causa no senso de justiça do ' ,.) 'J': ; povo que geram os linchamentos cada vez mais freqüentes no país. ~'!

Todavia, não cabe romantizar ainda mais do que os mora-' dores da área de um bandido-protetor ou bandido-herói e concluir

J Ao lado das notícias de linchamento sumário de pivete', ou supostos criminosos que ferem o senso liberal de justiça, vê-se o tipo de notícia oposto: "Favelados pedem liberdade para matador que os protegia" (O Globo, 12/10/81). "Moradores criam ·polícias'. há até um pistoleiro-protetor" (Folha de S. Paulo, 13/06/82) e as repetidas alegações dos bandidos presos de que "apenas defendo minha área" (Jornal do Brasil, 18/07/80). Ou as declarações de moradores recolhidas em grarl'tle número por mim, das quais estas citadas são apenas exemplos.

272 PAULO SÉRGIO PINHEIRO (ORG.)

que estamos diante de heróis românticos de um movimento social. Apesar de todas as conotações com a injustiça que os termos revolta e revoltado trazem à tona, a atividade principal está num' rendoso comércio - o tráfico de tóxicos - e o seu estilo de vida

. está longe de ser contestatório. . Embora haja claras diferenças na concepção dos trabalha­

dores por um lado e dos bandidos ou candidatos ao banditismo por outro quanto ao valor moral do trabalho e, portanto, sobre o que leva um jovem a optar pelo modo de vida do bandido, há um acordo sobre este modo de vida. Seja concebendo esta opção como "sina", algo que "já está na pessoa", "coisas de mulher", drama pessoal ou um espaço de liberdade que resta aos sujeitos nestas condições de vida, ou seja como uma escolha pessoal, todos con­cordam que o que atrai nesta opção é a fama, poder e dinheiro fácil que ela traz. Se são poucos os que na realidade conseguiram isso, a imagem ou o sonho é a de que traficante fica rico e acaba morando numa casa descrita a mim como uma casa de bicheiro rico 4

• Mesmo os aviões e vapores que são vistos como os pobres do tráfico, ao serem comparados com os demais moradores, enriquecem e são apontados como os que têm mais dinheiro para gastar.

Como consumidores, os bandidos não desenvolvem um estilo próprio de vida em bandos de fora-da-lei, mas almejam os bens que a sociedade de consumo lhes oferece. Para distinguir-se dos demais moradores, cujo nível de renda não lhes permite isso, vestem-se com roupas Adidas, as mais caras do comércio e de produtos espor­tivos. Nem tampouco têm "um programa de defesa ou restauração da ordem tradicional das coisas tal como deveriam ser", como supostamente teriam os bandidos sociais ou os camponeses fora­da-lei (Hobsbawm, 1969). Não são reformistas, nem revolucioná­rios. Não lutam por relações mais justas entre ricos e pobres, fortes e fracos. Suas ações podem ser interpretadas como uma mistura de resistência à sociedade capitalista sob a forma de recusa ao trabalho

4 Na época em que lá estive, os chefes de quadrilha ou os traficantes na hierarquia do tráfico de tóxicos já não moravam mais no local. Apenas os aviões e vapores lá permaneciam. De todas as estórias que eu ouvi sobre bandidos, apenas a de um terminava em riqueza, casa de subúrbio com piscina, mulher que se vestia em butique de Ipanema e freqüentava "cabeleireiros de madame". Mas este era o modelo para os outros. Havia, porém, o modelo alternativo: o bandido-herói, que defendia os moradores, era generoso e justo. Era o bandido do pedaço, com o qual estes se identificavam - "a vila do Mané Galinha", e já estava morto,

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CRIME, VIOLÊNCIA E PODER 273

destinado à população pobre e a participação num dos mais rendo­sos comércios de que se tem notícia na sociedade capitalistas. Mas de pobres revoltados a membros menores de uma gigantesca rede de crime organizado, estes bandidos pobres ainda têm longo per­curso a fazer e repetem em si mesmos todas as ambigüidades do bandido anotadas por Hobsbawm6

Por deterem meios de coerção física poderosos, ou seja, as armas de fogo, e por enriquecerem, os bandidos acabam virando uma força política e montando um sistema de poder no local. Muitos de seus métodos se assemelham ao do Estado moderno: seu poder está baseado em última instância na capacidade de fogo de suas, armas e, com base nisto,.às vezes cobram pedágio em pontes, taxas de proteção a comerciarites etc. Mas não gozam da legitimi­dade do Estado e, se ganham a aceitação dos moradores locais como protetores e justiceiros, suas relações com estes trazem a marca da ambivalência. Tanto mais quando alguns deles abusam das técnicas repressivas aprendidas na sua experiência como membro das classes subalternas diante do aparato repressivo do Estado e acabam empregando sempre meios violentos para manter seu poder. Reproduzem o que aprenderam da relação dominador­dominado sobre os que passam momentaneamente a seu domínio, um domínio construído na base do uso ou da ameaça do uso de sua

5 Numa série de reportagens sobre o tráfico de entorpecentes, o Jornal da Tarde comparava o faturamento das sete maiores empresas multinacionais de petróleo no ano passado (16 bilhões de dólares) com os 32 bilhões de dólares do tráfico de cocaína, agora controlados pela Máfia nos Estados Unidos (JT, 17 e 18/05/1982). É claro que o tráfico da maconha não deve ser tão rendoso, especialmente para os traficantes pobres que ocupam os últimos lugares na hierarquia do tráfico. Estes são muito mais os parceiros pobres e bodes expiatórios dessa gigantesca rede organizad~(Zaluar, 1981).

6 "For the crucial fact about the bandit's social situation is its ambiguity. He is an outsider and a rebel, a poor man who refuses to accept the normal rules of poverty, and establishes his freedom by means of the only resources within reach of the poor: strenght, cunning and determinations. This draws him closely to the poor: he is one of them. 11 sets him in oppositionto the hierarchy of power, wealth and influence: he is not'"OileOlTh-em~-'NC;íh-i~'g"will make a peasant brigand into a "gentleman", for in the societies in wich bandits flourish then'obili't'y a'nd gentry are not recruited from the ranks, At the same time the bandit is, inevitably, drawn into the web of wealth and power. He is 'one of us' who is constantly in the process of becomíng associated with them. The more sucessful is a bandit, the more he is bOlh a representative and a champion of the poor and a part of the system of the rich." (Hobsbawm, 1969.)

274 PAULO SÉRG[O P[NHE[RO (ORG.)

arma. Esta é, aliás, a característica dos assaltos que mais ressalta­vam: a sensação de completo controle sobre o outro, o da ordem que tem que ser obedecida, o da "sugestão" acatada e sem resposta.

Mas essa forma incipiente de governo jamais atingiu o nível de organização ou as conexões com o Estado e com a classe domi­nante que a Máfia do sul da Itália atingiu (BIock, 1975). Por isso mesmo, ao contrário dos mafiosi que apenas a usam quando alguém sai da linha por eles limitada, os bandidos estão sempre tendo que usara violência de modo direto sobre moradores, traba­lhadores e bandidos rivais. As lutas constantes entre quadrilhas rivais, as "guerras" como eles as denominam, indicam que ainda não ocorreu uma centralização desse. crime organizado e conse­qüente divisão de espaços pelos seus membros que a Máfia conse­guiu. Suas bases locais de poder não são tampouco garantidas por uma cadeia de relações clientelísticas confiáveis, protetoras e de longa duração, como é o caso do poder local dos mafiosi (Block, 1975). Se sua base local de poder tem algo semelhante à da Máfia, sua atividade principal - o tráfico - os leva a serem tragados pela extensa e ainda confusa rede de crime organizado no país, da qual são os últimos e menosprezados braços. Os ricos traficantes não lhes dão nenhuma proteção. Os bandidos sabem que contam apenas com a lealdade de sua quadrilha e é por isso que a traição constitui, entre eles, a pior e a mais duramente castigada das ofensas.

Por fim, resta-nu:, o paradoxo também apontado por meus informantes nas reflexões que faziam comigo sobre a violência neste conjunto habitacional e nos demais bairros de pobres. É o estigma que todos carregam, sejam trabalhadores ou não, de per­tencerem ao antro dos vagabundos, malandros e bandidos. Se entre eles essa distinção é tão importante a ponto de ser em torno dela que se constroem as regras de convivência mútua, nas representa­ções de alguns setores da sociedade mais ampla ela desaparece e dá lugar a uma noção que Louis Chevalier chamou de classes peri­gosas (Chevalier, 1978). A começar pela própria ação policial que engloba todos os populares que não tenham carteira assinada na categoria de criminoso e como talos trata. Tal medida repressiva é tanto mais absurda aos olhos desses populares quanto mais perce­bem que as dificuldades criadas pelo desemprego crescente não são de sua responsabilidade nem podem ser resolvidas por eles. E esse fato toma proporções dramáticas e alarmantes quando nos lembra­mos que o desemprego e o subemprego também afasta o trabalha-

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CR[ME, V[OLÊNC[A E PODER 275

dor de qualquer tipo de assistência social do Estado. Além de desassistidos, tratados como criminosos, antes de sê-los.

Uma das expressões da dominação é a construção da identi­dade do dominado pelo dominador. E uma das técnicas repressivas é a estigmatização de quem se quer reprimir. O espelho que se cons­trói agora no Brasil é este: pObre,_ c:riminoso, perigoso. Pela prisão por vadiagem de trabalhadores sem carteira de trabalho assinada. Pelas constantes narrativas de crimes e da morte de criminosos nos bairros pobres da cidade que toda a imprensa diária fornece, mas que toma conta quase que inteiramente dos jornais que são lidos pelos próprios membros das classes populares urbanas. Pela recusa de emprego feita pelo patrão lbu empregador ao candidato pobre quando toma conhecimento do local onde este mora. O espelho não é bonito, ao contrário. E corre o risco de estar sendo levado ao pé~-aa-Ietra por um número cada vez maior de jovens, apesar dos esforços de muitas pessoas ligadas às organizações populares no sentido de mudá-lo com a construção de uma identidade positiva feita por eles mesnios.

A semelhança com o que se passou em outras cidades euro­péias no século XIX é muito próxima para que se deixe de mencio­nar. Em Paris, no século passado, as condições materiais, morais e biológicas de vida dos pobres trabalhadores urbanos, bem como as opiniões emitidas por outros setores da sociedade através da imprensa, da literatura e da repressão policial, compunham o quadro da criminalidade e lhe davam o sentid07

• O resultado disto

7 "En premier lieu, I'accroissemenl el le remaniemenl dérnographiques de la popu­lalion de Paris se sonl accompli~ I'une lelle maniere el à un lei rYlhme qu'une partie importante de la populalion ouvriere se trouve reléguée, par I'inadequation de la ville aux effectifs nouveaux, sinon dans la condition criminelle. du moins aux confins de I'économie, de la société el presque del'existence, dans une condition matérielle, morale et fondamenta[ement biologique qui est favorable à la crimi­nalité et dont la criminalité cst une possible consequence. En marge de la ville et pour ainsi dire aux frontieres de la condition criminelle, cette population I'est dans le5 faits; mais elle I'est aussi, d'autre part, dans I'opinion concernant ces faits et qui est elle-même un fai!. Telles sont enfin les raisons pour lesque/les eette population adapte à 10115 égards, dans son genre de vie, dans ses aI/ilUdes politiques ou religieuses, dons son exislenee privée ou publique, un comportement qui correspond à I'opinion qu 'on en a, à ee qu 'on veul qu 'il SOil, à ce que/le acceple e/le-même qu 'il soit, volunlairemenl ou passivement, par la force de cel/e opinion colleclive, par la soumission à celle universetle condamnalion ". (Cheva­lier, p. 430, [978.) (Grifos meus.)

276 PAULO SÉRGIO PINHEIRO (ORG.)

era colocá-los sempre nas fronteiras da criminalidade. Outra condi­ção do ser pobre: a recusa constante de suas pretensões ao valor moral positivo, à respeitabilidade que sempre o leva às margens do socialmente aceitável e reconhecido e o faz entrar, às vezes, como membro assumido das classes perigosas. Um círculo vicioso que manteve o fluxo das classes trabalhadoras para as classes perigosas constante e caudaloso na Paris do século XIX.

Eica-nos a pergunta: por que esse intenso e incansável inte­resse pela violência e suas manifestações nas classes populares urbanas por parte dos meios de comunicação de massas? Ou por que a noção das classes perigosas suplantou em certos setores da opinião pública a noção de classes trabalhador~s justamente agora quando o processo político do país passa a ser caracterizado por uma abertura? A meu ver, a abertura política e essa visão das cl~sses populares-urba~a~ -estão -intimamente ligadas:Ourante o período caracterizado como ditatorial, e que antecedeu a este, as técnicas repressivas empregadas contra os setores insatisfeitos da população, que incluía estas classes atingidas pelo arrocho salarial no seu padrão de vida, eram diretas, silenciosas e não precisavam de uma justificativa na grande imprensa. A crise ec().nQmica que.se seguiu ao milagre aumentou os índices de desemprego e ainda mais a insatisfação popular. Mas a abertura política abriu um espaço para a discussão dos direitos das classes populares urbanas a melhor assistência estatal, a segurança no emprego, a melhores condições de vida ou, em termos ainda mais gerais, a abertura polí­tica colocou em pauta a questão dos direitos de cidadania dessas classes. Para conter esse movimento ascendente das classes popu­lares urbanas, novas técnicas repressivas tiveram que ser postas em prática, desta vez passando pela justificativa pública. O espelho pobre-criminoso-perigoso veio a calhar. Por meio dele cria-se a ilusão do irrecuperável, do inútil, do nocivo socialmente, que tem que ser contido através da manutenção de um aparato policial sempre presente, vigilante, rápido e implacável na reafirmação dos limites rígidos e fechados impostos às classes populares urbanas no Brasil de hoje.

Bibliografia

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