pico della miràndola – a dignidade do homem

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  • 8/11/2019 Pico Della Mirndola a Dignidade Do Homem

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    Pico Della Mirndola A Dignidade do Homem

    PRIMEIRA PARTE

    Tenho lido, respeitabilssimos senhores, nos livros antigos dos rabes, que Abdala,o Sarraceno, questionado a respeito de que coisa se lhe oferecia vista como maisnotvel sobre o cenrio deste mundo, respondeu nada haver de mais admirvel que o prpio homem. Com essa sentena concorda aquela exclamao de Hermes: Asclpio, que portede milagre o homem.A mim, que excogitava o significado de tais afirmativas, no me haviam persuadidoas tantas razes aduzidas por muitos sobre a excelncia da natureza humana, a saber,que o homem o mensageiro da criao, o parente de seres superiores, o rei das criaturas inferiores, o intrprete da natureza inteira pela agudeza dos sentidos, pelainquirio da mente e pela luz do intelecto; que ainda o trao de ligao entre a etede imvel e o tempo transitrio; ou ento, no dizer dos persas, a cpula; ou melhor, o imeneu de todo o universo; enfim, um pouco menor que os anjos, conforme o testemunho de Davi.Razes essas de peso, sem dvida, mas no as principais, isto , as que lhe conferem debom direito o privilgio ao mximo grau de admirao. Com efeito, por que no admiraraais aos anjos e aos demais beatssimos coros celestes?Por fim, foi me dado entender o motivo de ser ele um ente felicssimo e por isso mesmo merecedor de toda a admirao. Isso acontece em virtude da condio que lhe coube m meio a todo o universo, de sorte a tornar-se alvo de inveja no s para os seres inferiores como at para os astros e mesmo para as inteligncias ultraterrestres. Fat

    o esse incrvel e estupendo! E como no seria assim? O homem, na verdade, reconhecido e consagrado, com plenitude de direitos, por ser, efetivamente, um portentosomilagre.Que condio seja essa, ouvi-a, senhores, com benigna ateno, e queiram vossas condescndncias acolher este nosso empreendimento. J o Supremo Arquiteto e Pai, Deus tinhaconstrudo, com as leis de sua arcana sabedoria, essa moradia terrestre da divindade, esse augustssimo templo que, ora, contemplamos; havia decorado a regio supraceleste com os espritos; fizera habitar nos orbes etreos as almas imortais; povoaraas zonas excretrias e feculentas do mundo inferior com toda espcie de animais.No obstante tudo isso, ao trmino do seu labor, desejava o Artfice que existisse algum capaz de compreender o sentido de to grande obra, que amasse sua beleza e contemplasse a sua grandiosidade. Por conseguinte, ao fim e ao cabo de toda a obra (como, alis, atestam Moiss e Timeu), pensou, por derradeiro, no homem.

    J no existia mais nos arqutipos um modelo por onde copiar alguma nova prognie como ambm se tinham esgotados os tesouros a serem legados ao novel filho como herana, sendo que tambm no se deparava com um lugar sequer em todo o universo, onde este, ocontemplador do cosmo, pudesse tomar assento.Todo o espao estava ocupado; tudo fora distribudo e ordenado em graduaes sumas, medanas e nfimas.No teria sido consentneo com a potncia paterna se, na ltima de suas produes, viesfalhar por exaurimento; no seria, igualmente, adequado sabedoria hesitar por carncia de expediente em momento de necessidade; nem conviria ao Amor prodigalizanteque, quantos o haveriam de louvar por sua divina liberalidade em relao s outras criaturas, bem eles tivessem que lamentar no tocante a si prprios.Decretou o timo Artfice que quele ao qual nada de prprio pudera dar, tivesse como pivativo tudo quanto fora partilhado por cada um dos demais. Tomou ento o homem, e

    ssa obra de tipo indefinido e, tendo-o colocado no centro do universo, falou-lhenestes termos: A ti, Ado, no te temos dado nem uma sede determinada, nem um aspecto peculiar, nem um mnus singular precisamente para que o lugar, a imagem e as tarefas que reclamas para ti, tudo isso tenhas e realizes, mas pelo mrito de tua vontade e livre consentimento.As outras criaturas j foram prefixadas em sua constituio pelas leis por ns estatudTu, porm, no ests coarctado por amarra nenhuma. Antes, pela deciso do arbtrio, em as mos depositei, hs de predeterminar a tua compleio pessoal.Eu te coloquei no centro do mundo, a fim de poderes inspecionar, da, de todos os

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    lados, da maneira mais cmoda, tudo que existe. No te fizemos nem celeste nem terreno, mortal ou imortal, de modo que assim, tu por ti mesmo, qual modelador e escultor da prpria imagem segundo tua preferncia e, por conseguinte, para tua glria, possas retratar a forma que gostarias de ostentar. Poders descer ao nvel dos seres baixos e embrutecidos; poders, ao invs, por livre escolha da tua alma, subir aos patamares superiores, que so divinos. suprema liberalidade de Deus Pai, suma e maravilhosa beatitude do homem! A ele foi dado possuir o que escolhesse; ser o que quisesse. Os animais, desde o nascer, j trazem em si (como diz Luclio), "no ventre materno", o que iro possuir depois.Os espritos superiores, a partir do incio ou logo depois, j eram aquilo que pela eternidade seriam. No homem, todavia, quando este estava por desabrochar, o Pai infundiu todo tipo de sementes, de tal sorte que tivesse toda e qualquer variedadede vida. As que cada um cultivasse, essas cresceriam e produziriam nele os seusfrutos. Se fossem vegetais, plantas; se sensuais, brutos; se racionais, viventes celestes; se intelectuais, um anjo e um filho de Deus. Se, porventura, no se afeioasse pelo destino de criatura alguma, ele se recolheria ao mago da unidade divina, tornando-se assim um s esprito com Deus. Nesse caso ficaria inserido na soledade misteriosa do Pai, que est constitudo sobre todos os seres e sobre todos se avantaja. Quem no admiraria esse novo camaleo? Que outra coisa mais digna de ser admirada? No sem motivo que a ateniense Asclpio afirmara estar o homem prefigurado nosrelatos mticos como um Proteu, dada a sua natureza verstil, a ponto de ser autotransformvel. Da lhe advm aquelas metamorfoses celebradas entre os hebreus e os pitagicos.Eis por que a teologia mais secreta dos hebreus transforma Enoque, ora num anjo

    da divindade e ora chama-o malakh h-chekli-nhi, ora emprega denominaes diferentes. or sua vez, os pitagricos transmudam os homens protervos em irracionais, sendo que para Empdocles eles viram at vegetais. imitao desses tambm Maom costumava ass"Quem se distancia da lei divina acaba em animalidade." E com sobra de razo. Comefeito, o que faz a planta no o crtice e, sim, sua feitura obtusa e insensvel; aojumento, o que o faz no o couro, mas a natureza bruta e sensvel: ao firmamento, noa forma cncava que o constitui e, sim, a ordem harmnica. Da mesma forma o que fazo anjo no a ausncia de corpo, mas a inteligncia espiritual. Por conseguinte, se vier um homem devotado s coisas do ventre, como uma serpente que rasteja sobre o solo, aquilo um cepo e no foi a um ser racional que vistes. Se vires algum envolto nos mltiplos enganos da fantasia, qual outro Calipso, aliciado por sub-reptcia seduoou dominado pelos sentidos, ento trata-se de um ser irracional e no foi ao homem que vistes. Se, em contrapartida, ao filsofo que, com reta razo, discerne todas as

    coisas, se a ele venerares, ento s um ente celeste e no terreno. Se vires um genunocontemplativo que, negligenciando o corpo, refugia-se nos escrnios da mente, aquele no um ser terreno nem mesmo celeste, porque o mais augusto dos numes revestidode carne humana.Quem no admiraria ao homem? Este, com mrito, designado, nas sacras escrituras mosias e crists, por vezes, ora com termos "toda carne", ora com a expresso "toda a criatura", j que ele se forja a si mesmo e transforma-se em imagem de toda a carne,em smbolo que expressa toda corporeidade. Por isso escreve o persa Evantes, na explanao da teologia caldia, que o homem no tem por si e por nascimento uma configurprpria seno muitas outras bem estranhas e adventcias. Da o famoso ditado caldeu: ensh hu shinnujum nekamman tebosth baol haj, isto , "o homem, um animal de naturezamultiforme e cambiante".Em suma, a que vem tudo isto? Para que compreendamos - uma vez nascidos com essa

    possibilidade de ser o que desejarmos - como um dever nosso precaver, com empenho, de modo a no nos aplicarem aquela sentena: "Embora elevado s honrarias, no recoheceu. Agora, est assemelhado aos brutos e aos asnos irracionais." Melhor, ao contrrio, se lhe fosse atribuda a fala do profeta Asaf: "Todos vs sois deuses e filhosdo Altssimo." No suceda, por abuso da indulgentssima liberalidade do Pai, que se torne motivo de condenao o mesmo recurso salvfico que Ele nos galardoou com a liberalidade do arbtrio.Oxal nossa alma se deixe conduzir pela santa ambio de superar a mediocridade e anele por coisas mais sublimes, envidando esforos para consegui-las, dado que, se, realmente, quisermos, haveremos de concretizar. Desdenhemos ento as realidades mate

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    riais, tratemos, com indiferena, as coisas astrais e, enfim, alheios a tudo de mundano, sejamos transportados para a corte supraterrestre, para a vizinhana da augustssima deidade. Ali, como nos advertem os sagrados orculos, os Serafins, os Querubins e os Tronos ocupam os postos mais altos, disputemos com eles a dignidade ea gloria de que desfrutam, dispostos a no retroceder nem a ocupar um luzar secundrio. Se quisermos, no seremos em nada inferiores a eles.De que modo ou com que meios chegaramos l? Ora, basta ver o que eles fazem e que gnero de vida levam. Se tambm ns a vivermos (de fato podemos), j estaremos partilhando de igual ventura.Arde o Serafim no fogo da caridade; o Querubim refulge no esplendor da inteligncia; o Trono permanece na firmeza do julgamento. Se entregues s atividades da vida,soubermos atender, com retido de critrio, ao controle das coisas inferiores, estaremos consolidados na inquebrantvel estabilidade dos Tronos. Se, desprendidos doaf das atividades, nos exercitamos, na quietude da contemplao, considerando, na obra, o Artfice e, no Artfice, a obra, resplandeceremos de todos os lados com a luz querbica. Se nos inflamarmos de amor unicamente pelo Criador, mas desse fogo que devorador, seremos, de um jacto, incendiados semelhana dos Serafins. Acima do Trono, ou seja, do justo juiz, assenta-se Deus, o juiz dos sculos. Sobre o Querubim,isto , o contemplativo, paira Ele como que a nutri-lo com seu calor gerativo. O esprito do Senhor sobrevoa as guas, aquelas l de cima do firmamento, as mesmas que,segundo J, louvam a Deus em hinos matinais. Quem Serafim, ou seja, amante, em Deus est e Deus nele de modo que Deus e ele so um s. Grandioso esse poder dos Tronos que nos dado lograr, quando exercitamos o julgamento; insupervel essa sublimidadedos Serafins que pelo amor alcanaremos!

    De que modo poderia algum julgar ou amar a quanto desconhece? Verdade que Moiss amou a Deus, mas foi a quem viu; e, se como juiz administrou em meio a seu povo, foi porque antes aprendera sobre o monte.Dir-se-ia ento que o Querubim representa o ponto central. Com sua luz e serfico fogo, ele nos prepara como tambm nos ilumina para o juzo dos Tronos. Aqui, est o patamar dos primeiros montes, a ordem paladina que preside a filosofia contemplativa. a isso, antes do mais, que devemos ambicionar, atingir e aprender de sorte a sermos elevados aos fastgios do amor e de l retomarmos para os encargos da vida, bem instrudos e devidamente aparelhados. Na verdade, para tanto h um preo a pagar. Senossa vida deve ser plasmada de acordo com o modelo dos Querubins, cumpre atentar, minuciosamente, para o seu viver e para a qualidade do mesmo bem como para seu modo de agir e de operar. Posto que isso no nos dado conseguir apenas com nosso empenho, por quanto somos carnais e afeitos ao terreno, socorremo-nos ento dos

    antigos mestres que de tudo nos podem fornecer informaes fartas e seguras. Alis, essas coisas eram-lhes at familiares e conaturais.Consultemos o apstolo Paulo, o vaso de eleio. Quando arrebatado ao terceiro cu, quecoisa teria visto fazerem os exrcitos de Querubins? Responder, por certo, por meiode seu intrprete, Dionsio, que, em primeiro lugar, eles se purificam, depois se iluminam para, finalmente, tornarem-se perfeitos. Por conseguinte, ns que almejamos, c na terra, a vida querubina, refreando os mpetos das paixes com a cincia moral,dissipando as trevas da mente com a dialtica, como que a limpar as imundcies da ignorncia e dos vcios, purguemos nossa alma a fim de que nem os afetos imoderados nos embaracem nem, por vezes, nossa mente incauta se entregue a delrios. Venha, ento, a filosofia natural penetrar, com sua luz, o nosso esprito j refeito e purificado para que nos aperfeioemos pelo conhecimento das realidades divinas.Sem preterir os nossos, aconselhemo-nos tambm com o patriarca Jac, cujo semblante

    lampeja em trono esculpido na glria. Seremos ento admoestados por esse pai sapientssimo que, enquanto dormia, neste mundo c embaixo, mantinha-se acordado para o mundo l alto. Ele nos adverte por meio de alegorias (alis, tudo se lhe afigura alegoricamente) sobre as escadas protendidas desde o piso do solo ao mais alto dos cus,contendo uma srie de inumerveis degraus. No cimo est o Senhor, faustosamente assentado, sendo que, pelos degraus, os anjos contemplativos, alternadamente, sobem edescem.Se, pois, a mesma tarefa deve ser realizada por ns, que anelamos por uma vida anglica, quem, ento, pergunto eu, chegaria escada do Senhor, com ps imundos ou com asmos menos limpas? Ao impuro, como exigem os textos sacros, no lcito tocar o que

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    culado. Que ps so aqueles? Que mos so essas? Diria que os ps so a parte mais despcom a qual a alma se apoia na materialidade como em solo prprio, ou seja, a potncia nutritiva e alimentar, essa fome de libido e essa mestra da volupturia indolncia.As mos da alma. Por que diramos serem elas a prpria irascibilidade, que, aliada aosapetites, por eles luta e, sob a poeira e o sol, depreda, rapinando aquilo que,na sonolncia de uma sombra, vai devorar?Essas mos e esses ps, ou seja, a inteira parte sensual do nosso corpo, onde se aninha a seduo, aquela que agrilhoa a alma pelo pescoo, como se diz, haveremos de ablula com a filosofia moral como se esta fosse um rio vivo. Assim no seremos afastados para longe quais seres profanos e poludos.Isso, no entanto, no ser suficiente, se quisermos ser os parceiros dos anjos que percorrem a escada de Jac, a menos que, antes, sejamos bem exercitados para podergalgar, com o devido jeito, degrau por degrau, de modo a nunca sair do traado dosparalelos e executar os passos sucessivos com toda cincia requerida. O que, na verdade, ser aprendido por merc da doutrina sobre os termos e os nmeros, j animados elo, esprito querubino. Filosofando ao longo dos degraus, o que vale dizer, atravsda natureza, indo de um extremo a outro e penetrando em tudo, ora descendo e desvencilhando, com fora titnica, o "uno", como fazia Osride em relao ao "mltiplo",subindo e recolhendo, com vigor apolneo, o "mltiplo" como se fossem os membros deOsride para enfeix-lo no "uno", quando, no seio do Pai, que est no pncaro da escadafinalmente, em repouso, poderemos chegar perfeio, mediante a felicidade proporcionada pelo conhecimento teolgico.Interroguemos, agora, o justo J. Ele fez um pacto com Deus, mesmo antes de ter si

    do gerado para a vida. O que preferiria o supremo Senhor para os milhes de seresque a Ele assistem? Responder que , sem dvida, a paz, de acordo com o que se l no lvro de J: " Ele quem estabelece a paz nas alturas." Dado que os imperativos da ordem superior so interpretados para os ordenamentos inferiores pelos meios ordenantes, que o filsofo Empdocles nos traduza, ento, as palavras do telogo J.Empdocles distingue duas naturezas na alma, sendo que uma nos eleva para as alturas celestes e a outra nos arrasta para os nferos. Por meio do entendimento ou dadiscrdia, ou seja, da guerra ou da paz, como atestam seus versos, em que ele se lamenta, d-nos a entender que o ser humano est dividido por lutas e desavenas qual demente que, prfugo dos deuses, encontra-se abandonado em alto-mar.Inegvel, senhores, que prolifera entre ns a discrdia porquanto so mais graves as luas domsticas que as guerras civis. Se no as queremos, se anelamos por aquela paz que nos eleva s alturas e situa-nos nas proximidades do Senhor, nesse caso somente

    a filosofia nos dominar por completo e aquietar. Em primeiro lugar, a moral. Posto que o homem busque, exclusivamente, a trgua com seus inimigos, ele conter as excurses desenfreadas das contendas ferinas e demais brutalidades bem como os mpetosde fria e de animosidade. Se, depois, dceis a algum conselho sbio, almejarmos a segurana da paz duradoura, esta mesma nos acorrer e preencher, com largueza, nossas aspiraes. Ferida que for mortalmente a besta, qual outra porca sacrificada, ento ser ancionado um pacto inviolvel entre a carne e o esprito em favor da paz sacrossanta. De outro lado, a dialtica por fim nas turbulncias da trepidante razo em meio aos onflitos das palavras e a capciosidade dos silogismos. Por sua vez, a filosofianatural apaziguar as discrdias de opinies que, vez por outra, vexam a alma, partindo-a e dilacerando-a. H de acalm-la de tal maneira, que seremos impelidos a recordar quanto nos lembra Herclito, a saber, que a natureza foi gerada na guerra e, exatamente por isso, foi denominada "luta" por Homero.

    No seria ela (a filosofia) que nos iria propiciar a verdadeira tranquilidade e apaz slida. Isso competncia e privilgio de sua senhora, ou seja, a santssima teolo. Para esta, aquela indicar o caminho, fazendo-se de guia. Assim que avistar de longe que estamos caminhando na sua direo, ento exclamar: "Vinde para mim, vs que ltais; vinde e eu vos aliviarei; vinde a mim e dar-vos-ei a paz que o mundo e a natureza no podem dar.Chamados com tanta blandcie, convidados to benignamente, voemos, com ps alados, quais outros Mercrios terrestres, para os braos da me bem-amada e gozemos da desejadapaz. Daquela paz santssima, no ininterrupto desfrutamento, em amizade unnime, em que todos os espritos no s concordam com a Mente que est acima de qualquer mente, ma

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    ainda, de certo modo, inefvel, logram a mais ntima integrao. Esta aquela amizadee os pitagricos afirmam ser a meta final de toda a filosofia. Esta aquela paz queDeus realiza na sua excelsitude. A mesma tambm que os anjos, ao descerem no mundo, anunciaram para os homens de boa vontades a fim de que os prprios homens, tendo subido aos cus, ficassem iguais aos anjos. Esta a paz que desejamos para os inimigos; a paz que queremos para as casas onde entramos; a mesma que anelamos paranossa alma, que, por merc dela, torna-se casa de Deus. Deste modo, depois de tereliminado as prprias escrias, mediante a moral e a dialtica, bem como se ter adornada com os variegados atavios da filosofia e, assim, ficar trajada principescamente, ornados ainda os frontes das entradas com guirlandas teolgicas, por a desa o Ri da glria, que, acompanhado do Pai, com ela estabelea morada.Tal hspede - posto que ela se fez digna Dele, dada a sua imensa clemncia - agora,engalanada como est com as vestes ureas do manto nupcial, em que a envolve o matizmulticolorido das cincias, ela o recepcionar qual formoso hspede, que j no ser mimples visitante seno esposo de quem nunca mais se separar, mesmo a preo de ser afastada de seu povo e da casa paterna ou, at mesmo, ser olvidada de si mesmo. Ansiar morrer a si mesma para viver no esposo, a cuja vista a morte se afigura preciosa para seus santos. Morte essa, se que assim deva ser chamada a plenitude de vida, em cuja meditao fizeram os sbios consistir o labor da filosofia.Citemos, a propsito, o prprio Moiss. Ele que degusta apenas um pouco menos dessa fonte de plenitude, de onde emana a sacrossanta e inefvel inteligncia de cujo nctar os anjos se inebriam. Ouamos o venerando juiz ao legiferar para ns que habitamos nodeserto da solido corprea: Os que esto contaminados e ainda carentes de moral, permaneam com a plebe do lado de fora do tabernculo, como faziam os sacerdotes de Tes

    slia, para, entrementes, purificarem-se. Aqueles que j ordenaram seus hbitos, recebidos nos santurio, no toquem, por ora, as coisas sacras; antes ainda, pelas tarefas da dialtica, guisa de zelosos levitas, dediquem-se ao ministrio sagrado da filosofia. Depois, assim que admitidos a participar desses ritos, em desempenho ministerial do sacerdcio filosfico, podero contemplar os ornamentos policromticos da core do Deus Mximo, vale dizer, o palcio sideral, como tambm o candelabro distribudo esete braos de lmpadas e os demais objetos forrados de pelia do santurio. Destarte,por merc da teologia sublime, recebidos nos mais secretos do templo, sem interposio de vu algum, gozemos da glria da Divindade.Eis quanto nos ordena Moiss. Ao mandar, admoesta, incita e exorta para que, mediante a filosofia, preparemos, tanto quanto possvel, a via de acesso futura glria dos Cus.Efetivamente, alm dos mistrios em Moiss e no cristianismo, mesmo as teologias dos a

    ntigos nos demonstram os prstimos e a dignidade das artes liberais, em cuja discusso estou empenhado. Que outra coisa, com efeito, querem significar os graus de iniciao observados nos arcanos dos gregos? Aos iniciados, previamente submetidos purgao por meio daquilo que se denomina arte de purificao, isto , a moral e a filoso, era patenteado o acesso aos mistrios. Isso que outra coisa poderia ser seno a interpretao, mediante a filosofia, dos segredos mais recnditos da natureza? Somente quando estavam, em grau adequado, preparados, sobrevinha a tal epoptia, ou seja, aviso das coisas divinas por merc do lume teolgico.Quem no haveria de desejar ser introduzido nesses mistrios sagrados? Quem, na verdade, preterindo todas as coisas mundanas, desprezando os bens da fortuna, negligenciando o prprio corpo, no almejaria, embora ainda habitante neste mundo, ser umcomensal dos deuses e estar embriagado com o nctar da eternidade, sendo que, apesar de simples mortal, pode sobrepujar a mortalidade com o dom da imortalidade? Q

    uem no quereria ser tomado por aqueles xtases socrticos, descritos por Plato em Fedo, e com os movimentos das asas e dos ps ser transportado para fora deste mundo dominado pelo mal e assim arrebatado em velocssimo voo at a Jerusalm celeste? senhores, sejamos, sim, transportados em xtases socrticos. So eles que nos situam lm do intelecto de sorte a colocar a mente e a ns mesmos em Deus.A estaremos, com toda certeza, se, antes, tivermos realizado quanto depende de ns.Se, de fato, por meio da moral, a fora dos apetites for direcionada por freios reguladores, segundo suas exatas medidas, de modo a se harmonizarem entre eles emconsonncia estvel; se ainda, graas dialtica, a razo progredir dentro de sua ordmedida; ento, tangidos pelo forte sentimento das musas, haveremos de absorver, co

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    m os ouvidos de nossa interioridade, a celeste harmonia.Ento, Baco, o regente das musas, revelando-se a ns, os filosofantes, em seus mistrios, isto , desvelando, nos sinais visveis da natureza, os sinais invisveis de Deus,inebriar-nos- com aquela abundncia da casa de Deus. Desde que, a exemplo de Moiss,tivermos sido integralmente fiis, haveremos de estar, com o recurso da teologia,inflamados por duplo entusiasmo. Por um lado, alcandorados at o eminentssimo espelho no qual dado medir, com os parmetros indivisveis da eternidade, as coisas queso, foram e sero, a, ao contemplar a primacial formosura dela, seremos os amantes alados quais apolneos vates. Por outro lado, como que excitados por estros de inefvel amor, quais outros serafins ardentes e atirados para fora de si mesmos, inflados pela divindade, j no seremos mais ns mesmos e, sim, um ser com Ele, que nos criou.Os nomes sagrados de Apolo, se algum se pe a perscrutar os sentidos ocultos e misteriosos deles, fica evidente que aquele deus tanto tem de filsofo quanto de vate.Alis, esse tema tem sido elucidado a contento por Amnio, no havendo, portanto, mister que, agora, eu o trate diferentemente. senhores, vm mente trs preceitos dlficos, por certo indispensveis queles que pm adentrar a sacrossanta e antiqussima cidadela no do falso, mas do verdadeiro Apolo que ilumina todo ser racional vindo a este mundo. Vereis que eles, precisamente, nos exortam a abraar, com todas as foras, aquela mesma trplice filosofia postacomo objeto da presente dissertao. Realmente, aquele "meden agan", isto , "nada emdemasia", prescreve, de maneira correta, a norma e a regra de toda virtude pelocritrio do justo meio de que trata a moral. Depois, aquele "gnosi se auton", isto, "conhece-te a ti mesmo", desperta e exorta para o conhecimento de toda a natur

    eza da qual o ser humano o meio-termo e como que a sntese. Quem a si conhece, emsi tudo o mais conhece, como j escreveram, primeiro, Zoroastro, e, depois, Plato no Alcibades, Finalmente, iluminados por esse conhecimento mediante a filosofia natural, j prximos de Deus, pronunciando a saudao teolgica i, ou seja, "tu s", hade invocar, com familiaridade e nimo feliz ao verdadeiro Apolo.Interroguemos, igualmente, o sapientssimo Pitgoras, verdadeiro sbio porque nunca seconsiderou digno de tal apelativo. Ele preceitua, em primeiro lugar, que "no sedeve assentar sobre o mdio". Isso vale dizer: no percamos por ociosidade e relaxamento a parte racional com que o esprito a tudo mede, julga e examina, mas, orientemo-la assiduamente e exercitemo-la com a prtica dialtica e suas regras. A seguir,duas coisas nos so indicadas para evitar: "no urinar contra o sol" e "no cortar asunhas durante o sacrifcio". Somente quando, pela moral, tivermos expulsado as apetncias lbricas das volpias desordenadas e tivermos podado as pontas das unhas, que

    so as agudas proeminncias da ira e os acleos da alma, ento, finalmente, poderemos assar a compartilhar dos sacros mistrios, isto , aqueles de que fizemos meno ao refrir o nome de Baco, cujo pai e chefe dizem, com propriedade, ser o sol. Ento nosser dado principiar a degustao contemplativa.Por ltimo, aconselha-se "alimentar o galo". O que significa nutrir a parte divinade nosso esprito com o conhecimento das realidades superiores, qual manjar slidoe celeste ambrosia.Este o galo a cuja vista o leo, isto , todo poder terreno, teme e reverencia. Este aquele galo que, segundo se l em J, foi concedido possuir inteligncia. Pois, ao cnto deste galo, o homem errante retorna a si. Este galo, no lusco-fusco matinal,canta o Te Deum laudamus, em concerto com os astros da madrugada, todos os dias. Este galo ainda aquele ao qual Scrates, j prestes a unir a divindade de sua almacom a divindade do mundo superior, declarou dever, por voto a Esculpio, o mdico d

    as almas, muito embora j estivesse a salvo de qualquer enfermidade.Sumariemos tambm os testemunhos dos caldeus. Veremos (se que lhes damos crdito) que, pelos mesmos recursos, abre-se aos mortais o caminho da felicidade. Escrevemos intrpretes caldeus ter Zoroastro afirmado que a alma possua asas; ao desprenderem-se ficaram coladas sobre o corpo; quando elas recresceram, a alma retoma o voo para os deuses.Questionado pelos discpulos por qual meio conseguiriam ter almas volteis, com asasbem emplumadas, respondeu: "Regai-as com as guas da vida." Insistindo, perguntamaonde iriam buscar aquelas guas. Ele lhes replica, segundo seu costume, por parbola: "O paraso de Deus est banhado e irrigado por quatro rios. Dali deveis retirar

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    as guas que vos sero salutares. O nome de um, que vem do setentrio, Prisco, o quegnifica retitude; o que vem do poente, Dicho que significa expiao; o que procede dooriente, Chidekel, que soa luz; o que corre do sul, o Perat, pode ser entendidocomo piedade."Atentai bem e ponde, a, toda ateno, senhores, no alcance destes ensinamentos de Zoroastro. Simplesmente ensinam que devemos purificar as impurezas dos olhos com acincia da moral como se ela fosse as guas rociosas do norte; com a dialtica, tal como um nvel boreal, que untemos as pupilas para a retido.A seguir, mediante a contemplao da filosofia natural, habituemo-nos a suportar a luz ainda tnue da verdade qual primcia do sol nascente de sorte que, no final, pormerc da piedade teolgica e do sacratssimo culto a Deus, possamos enfrentar, estrenuamente, semelhana das guias altaneiras, o fulgentssimo resplendor do sol em seu ze meridional.Estes seriam, qui, aqueles conhecimentos matinais, meridianos e vespertinos cantados, primeiro, por Davi, e que, depois, foram difusamente explanados por Agostinho.Essa aquela luz merdia que inflama os Serafins e que, igualmente, ilumina os Querubins. Essa a regio para a qual o antigo pai Abrao sempre direcionava os passos. aquele lugar onde, segundo ensinavam as doutrinas dos cabalistas e dos mouros, noh lugar para os espritos no purificados.Se for lcito trazer a pblico algum dos mistrios mais secretos, mesmo que em forma de alegoria, j que a repentina queda do paraso condenou a cabea do homem vertigem, endo que a morte, segundo Jeremias, penetrou pela janela e afetou-lhe o fgado e os pulmes, que ento invoquemos Rafael, o mdico celestial para curar-nos com as medic

    inas salutares da moral e da dialtica.Assim, recuperada plenamente a sade, habitar conosco Gabriel, a fora de Deus. Ele nos guiar mediante as maravilhas da natureza e, por toda parte, a fim de mostrar abondade e o poder de Deus e entregar-nos, finalmente, ao sumo sacerdote Miguel.Este galardoar a quantos militam, sob os vexilos da filosofia, o sacerdcio teolgico, simbolizado pela coroa de pedras preciosas.

    SEGUNDA PARTE

    A EXCELNCIA DA FILOSOFIA

    Estas as razes, colendssimos senhores, que a mim no s incentivaram, mas at impelir

    ao estudo da filosofia. Motivos estes que, por certo, no me ocorreriam declinar,se no fosse a contingncia de redarguir a quantos soem vetar o estudo da filosofia,mormente para as pessoas conspcuas e, de modo categrico, para os que vivem em situao mediana. Tudo que tange a especulao metafsica (e nisso consiste a desgraa de s tempos) est votado mais ao desprezo e escrnio que honra e glria. A tal ponto su mente de quase todos essa nefasta e monstruosa convico de que a filosofia s deveia ser cultivada ou por ningum mais ou por alguns poucos apenas. Isso vale dizer:ter diante dos olhos e ao alcance da mente as explicaes mais remotas sobre a causalidade das coisas, as leis da natureza, o sentido do universo, os desgnios de Deus bem como os mistrios dos cus e da terra, tudo isso s importaria se fosse para dase colher alguma vantagem ou auferir algum lucro pessoal. Chegou-se at ao extremo(que vexame!) de no se prezarem como sbios seno os que mercadejam com estudo da sabedoria. Destarte, a pudica Minerva, hspede entre os mortais por merc dos deuses,

    passa a ser vista como uma deusa rejeitada, alijada e ridicularizada. J no h quem aame, quem a acalente a no ser para prostitu-Ia, sendo que o mesquinho provento davirgindade deflorada vai parar no escrnio do amante.Tudo isso externo, mas com profundo pesar e indignao, por certo no contra os mentores autnticos da cultura e, sim, contra aqueles filsofos que pensam e apregoam no valer a pena praticar a filosofia porque para eles no h paga condigna nem remunerao fxa, como se tal bastasse para demonstrar quanto esto eles vazios da vocao filosficaCom efeito, se colocam toda sua vida na ganncia e na ambio, est evidente que jamaiatingiro o conhecimento genuno da verdade.Nesse particular no me furtei, sem pejo algum de elogiar a mim mesmo, porquanto n

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    unca quis filosofar a no ser pela razo do prprio filosofar. Da mesma forma nunca procurei auferir lucro ou proveito algum de meus estudos e elucubraes a no ser o cultivo do esprito e a descoberta da verdade, sempre almejada no mais alto grau.Desta verdade sempre fui de tal modo apegado e mesmo apaixonado que me dediquei,por inteiro, ao lazer da contemplao, transcurando qualquer afazer de ordem privada ou pblica. Dela, calnia alguma dos invejosos, maledicncia alguma dos inimigos dasabedoria, logrou at agora nem lograr, no futuro, afastar-me. Alis, ensinou-me a mesma filosofia e depender mais de minha conscincia e menos dos juzos dos outros como ainda a cuidar sempre no tanto em no cair nas ms lnguas quanto em no proferir ouzer o mal.Evidente, respeitabilssimos senhores, que eu mesmo no poderia ignorar que esta minha dissertao, tanto quanto seria aceita e grata junto a vs todos que favoreceis asboas artes e, de fato, quisestes prestigiar-me com vossa augustssima presena, seria, em contrapartida, onerosa e molesta para muitos outros. Sei, igualmente, no ter faltado quem, de antemo, criticasse este meu empreendimento e ainda o desfaa commltiplos apelativos.Alis, j se tornou usual para uns tantos, seno para muitos, ter na conta de detratores quantos operam pelo bem e pela santidade e no os que perpetram iniquamente e esto propensos aos vcios.Existe, realmente, quem no aprova quer este gnero de disputa, quer essa formalidade de discusses pblicas sobre temas tericos e, por isso, assevera estar tudo isso motivado mais pelo gosto de fomentar a pompa da engenhosidade a par do alarde de erudio e menos para incrementar reais conhecimentos.Tambm h aqueles que, embora no reprovem essa espcie de exercitao, contudo, em se

    ndo de minha pessoa, com esta minha pouca idade, pois tenho apenas vinte e quatro anos, julgam no ser absolutamente tolervel que ousasse propor uma disputa sobreos sublimes mistrios da teologia crist, nem sobre doutrinas desconhecidas e isso,numa cidade celebrssima como esta, tendo por cobertura a anuncia geral de homens doutssimos, vista do senado apostlico.Outros, no entanto, concordam que eu me ponha a disputar, mas incriminam-me o superficialismo e a cobia bem ainda a pretenso de agir alm de minha capacidade ao discorrer sobre as novecentas teses.A estas objees ter-me-ia, de imediato, rendido, se a tanto me aconselhasse a filosofia que professo. Nesta hora, sob sua admoestao, no iria replicar, se, efetivamente, fosse de meu intento travar esta discusso com objetivos de litigar ou de altercar. Longe de mim qualquer propsito de atacar ou de melindrar.Aquele livor que, segundo escreve Plato, h de estar ausente do concerto divino, es

    teja igualmente distante de nosso esprito. Assim, em clima de amizade, detenhamo-nos a ponderar se seria o caso no s de pr-me a disputar como tambm a discorrer a repeito de to numerosas questes.Em primeiro lugar, a quantos caluniam esta prtica dos certames pblicos, no tenho l uito a dizer, porquanto essa culpa, se que tal pode ser denominada, no s nos em cmum partilhada, por mim e por vs, excelentssimos senhores doutores, que com tantafrequncia dela vos tende desincumbido sem perda de sumas lureas e glrias, tal comofizeram Plato e Aristteles, juntamente com todos os famosos e respeitabilssimos filofos de todas as pocas. Tinham eles, por certo, que nada lhes seria mais propcio em vista do conhecimento da verdade procurada quanto o exercitar-se, com constncia, na arte da discusso.Da mesma forma, como as foras fsicas se robustecem pela ginstica, fora de dvida entque, mediante essas palestras literrias, o vigor do esprito ganha maior resistncia

    e vitalidade. A mim me parece que, ao celebrarem os poetas as armas de Palas ouquando os hebreus erigem o barzel, isto , o ferro, como smbolo dos sbios, no quiserm significar outra coisa que bem este gnero de certame, tanto mais nobre quanto necessrio para a aquisio da sabedoria. Razo pela qual, talvez, tambm os caldeus, paa gnese de um futuro filsofo, auspiciavam que Marte lanasse um olhar trgono para Mecrio, como se caso tais encontros e contrastes viessem a faltar, toda a sua filosofia cairia no torpor da sonolncia.Em face daqueles que me julgam sem competncia para semelhante empresa, realmentenada fcil dar-lhes uma resposta altura. Se afirmo ter condies, provavelmente seriatido por imodesto e presunoso; se confesso minha incompetncia, recai sobre mim a p

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    echa de temerrio e de desaconselhado. Vede, por a, em que embarao em encontro, em que posio fui me colocar, uma vez que no posso, sem vexame, prometer o que de minhaparte no poderia, sem afronta, deixar de cumprir.Por ventura poderia at aduzir aquele pensamento de J: Esprito est no homem e com eo ouvir: ningum despreze a tua juventude. No obstante, seria eu mais autntico se dissesse: nada h em ns de grande ou de singular. Embora deva admitir meu pendor para os estudos e afeio pelas boas artes, contudo, o nome de doutor no o assumo nem arrogo. Por conseguinte, se me disponho a ombrear tamanho peso, por certo, no foi por ter subestimado minha fraqueza mas, sim, por saber que esta espcie de lia literria se distingue pelo fato de fazer consistir a vitria em ser vencido. Disso resulta que o menos dotado no s deve se esquivar, mas, por direito, cabe-lhe desejar alutar, pois, aqui, o derrotado recebe do vencedor benefcios em vez de injrias. Pormerc de tal conjuntura, ele retoma para casa mais locupletado, vale dizer, maisdouto e mais preparado para futuros embates. Animado por essa esperana, eu, frgilcombatente, no deixarei de travar a perigosa batalha com os mais fortes e aguerridos de quantos possa haver. Se, portanto, em tal empreendimento tenho sido ousado ou no, na verdade, isso ser julgado, com maior critrio, antes pelo xito da empreiada do que pela minha pouca idade.Resta, pois, em terceiro lugar, responder queles que se consideram ofendidos pelonmero avantajado de teses propostas, como se fossem peso a onerar-lhes os ombrose no labor, por ingente que parea, a ser suportado to s por mim mesmo. Na verdade,nada mais inconveniente e at abominvel querer impor limites ao empenho alheio ou,como afirma Ccero, cercear com a mediocridade aquilo que ser tanto melhor quanto mais grandioso.

    Em suma, perante faanha to desafiadora s me cabia ou sucumbir ou triunfar. Na hiptee do xito, no vejo por que se deva louvar o sucesso sobre dez questes e vituperar oacerto em novecentas. No caso de insucesso, teriam quantos me detestam por ondefazer acusaes: mas, para quem me estima, haver tambm por onde perdoar. Pois, em asunto de tanta responsabilidade e vastido, o fracasso de um adolescente pouco dotado e desprovido de contedo seria antes motivo justo de perdo que de censura. Bem que a propsito diz o poeta: "Se as foras desvanecerem, a audcia ser tua glria; nas sas excelsas, j o querer vale muito.De outro lado, se, na atualidade, muitos, cobertos de aplausos, abalaram-se a propor disputas pblicas, no s em torno de novecentas questes e, sim, sobre qualquer asunto atinente a todas as artes, por que no me seria lcito, sem sofrer presses, discorrer sobre muitos temas, verdade, mas todos eles certos e determinados?Ho de retrucar: isso seria suprfluo e ambicioso. Eu lhes replico: nada de suprfluo

    porque se trata para mim de uma necessidade. De mais a mais, levassem eles em conta o meu mtodo em filosofia, embora constrangidos, iriam reconhecer a plena validade de meu intento.De fato, quem adere a alguma das correntes filosficas mais em voga, como, por exemplo, a tomista ou a escotista, s poderia expor suas doutrinas ao exame de umas poucas questes. Eu, porm, pautei-me por este princpio: sem fazer profisso de f em numa delas, por todos os alinhamentos de filosofia eu me adentrei, perscrutando de cada uma as obras a fim de ficar inteirado do posicionamento de todas as escolas. Aqueles que se filiaram a uma s das correntes filosficas, como a tomista ou aescotista, alis, bastante aceitas, findam limitando a discusso dessas teorias a poucos captulos. Eu tomei por princpio, ao invs de me ater a uma delas, adentrar o pensamento de todos os mestres da filosofia, examinando suas obras e estudando todas as tendncias.

    J que eu estava incumbido de falar de todos, indistintamente, evitando advogar emfavor de algum em particular e assim preterindo os demais, no tive outra sada senocorrer o risco de estar sendo, no conjunto, extenso, mesmo ao apresentar sucintas questes de cada um.Que no me venham, portanto, dizer que l eu me instalo, onde me arremessa ventania.Alis, j era tido pelos antigos como norma: os estudiosos da literatura universalno podem omitir a leitura de nenhum comentrio. Norma esta que Aristteles seguia, rsca, a ponto de ser alcunhado por Plato de anagvstes, isto , leitor. De fato, prpda mente tacanha prender-se a uma s escola, seja ela o Prtico, seja ela a Academia. De mais a mais, no se poderia fazer opo criteriosa por uma delas, sem a prvia co

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    vivncia com a mesma.Por fim, acrescente-se: em cada escola, sempre h algo de peculiar que no se repetenas demais.A comear pelos nossos que so os derradeiros representantes da filosofia, a est um JEscoto com sua estrutura de sutileza: um Toms, slido e equilibrado; um Egdio, terso e slido; um Francisco, incisivo e penetrante; um Alberto, algo arcaico, mas devasto abrangimento; um Henrique, na minha opinio, o impecvel, sublime e venervel. Entre os rabes, h em Averris consistncia inconcussa; em Avempace e em Alfarabi, intrspeco reflexiva; em Avicena, um qu de divino e de platnico.Na Grcia, de modo geral, a filosofia cristalina, prima pela pureza em seus primrdios. J em Suplcio, ela ricamente abundante; em Temtio, elegante e sucinta; em Alexadre, coerente e erudita; em Teofrasto, elaborada com senso de responsabilidade;em Amnio, desenvolta e graciosa. Se atentares para os platnicos, e deles s mencionamos alguns, ento em Porfrio ters o deleite de copioso contedo a par de uma religiosdade policrmica; em Giamblico, poders reverenciar a filosofia secreta e os mistriosbrbaros; em Plotino no sabers a que preferir, porquanto admirvel por inteiro este ue, com sua inteligente versatilidade de linguagem, ao falar, divinamente das coisas divinas e de maneira sobre-humana, das realidades humanas, causa no exgua pena aos platnicos que dele entendem apenas um pouco. Deixo, por fim, de referir osmais recentes como Proclo, em sua luxuriante fecundidade asitica e dos demais quedele dependem tais como Domscio, Olimpiodoro e outros muitos ainda nos quais o elemento divino brilha imarcescvel, qual smbolo caracterstico da filosofia platnicaNo seria demais acrescentar que, se alguma escola contraria os postulados mais firmes e faz pouco, denegrindo os argumentos slidos da razo, isso, ao invs de abalar

    a verdade, confirma-a tal como a chama mortia, que, reanimada pelo vento, no se extingue.Motivado, portanto, por tais razes, pareceu-me bem discorrer sobre as doutrinas,no de uma corrente s (o que, alis, seria do agrado de alguns), mas a respeito de todas, indistintamente, de sorte que, do confronto entre as diversas escolas e dadiscusso entre os mais variados sistemas filosficos, haver de luzir mais esplndido quele fulgor de verdade, lembrado por Plato, em suas cartas, qual sol nascente para as nossas mentes.Como ficaramos, posto que restringssemos a perquirio ao pensamento filosfico latinou seja, a Alberto, Toms, Escoto, Egdio, Francisco ou Henrique, preterindo os filsofos gregos e rabes, quando, na verdade, toda essa sabedoria derivou dos brbaros para os gregos e deles para ns! Alis, nossos pensadores sempre, com empenho, souberam em seu mister de filosofia, seja buscar apoio nas descobertas vindas de fora,

    seja cultivar os sistemas alheios. Que fruto tirar-se-ia em discutir os peripatticos no tocante natureza sem fazer referncia academia dos platnicos, cuja doutrinasobre as realidades divinas sempre foi havida por excelsa dentre todas as filosofias (e santo Agostinho testemunha)? Alm do mais, que eu saiba (digo-o sem vaidade), coube a mim, nesta oportunidade, a iniciativa de traz-la a pblico, aps tantos sulos, para efeito de anlise e de discusso. Que impresso faria eu ainda se, aps dissrtar sobre as opinies de tantos outros, aos convivas deste banquete de intelectualidade, nenhuma contribuio prestasse de mim mesmo na forma de algo criado e elaborado por minha mente? Estava certo Sneca ao advertir-nos que o saber s por citaes io dos incompetentes. Seria o mesmo que pensar tivessem as descobertas dos predecessores obstrudo para ns a via da inventividade como se em ns estivesse esgotada afora da natureza de tal modo que sem vigor para produzir algo de novo, caso no nos fosse dado demonstrar a verdade, nem sequer poderamos acenar de longe para ela.

    Efetivamente, se, no campo, o agricultor detesta a infertilidade tal como o marido em relao a sua esposa, no seria por menos que o esprito divino nela inserido e ssociado deixaria de aborrecer uma mente infecunda, j que dela espera uma prole muitssimo mais nobre.Razo pela qual, insatisfeito por ter acrescentado, alm das tantas teorias e correntes, muitos outros temas extrados da antiqussima teologia de Mercrio Trismegisto bem como numerosas outras doutrinas dos caldeus e de Pitgoras, juntamente com a cincia mais arcana dos hebreus, aduzi ainda outro acervo de proposies a serem discutidas, todas elas de minha criativa elaborao e que versam sobre o mundo natural e divino.

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    Em primeiro lugar, proponho uma concordncia entre Plato e Aristteles, o que, alis, t agora era apenas tido como possvel a muitos, mas por ningum demonstrado de modo satisfatrio. Bocio, dentre os latinos, j prometera realizar tal projeto, no entantono consta que, jamais tenha levado a termo aquele seu eterno intento. Simplcio, que, dentre os gregos, foi quem prometera idntica obra, oxal tambm ele tivesse conseguido tal empenho! Tambm Agostinho escreve no terem faltado outros tantos que, em meio aos acadmicos, tenham tentado comprovar, por sutilssimos argumentos, a mesma empresa, a saber, que a filosofia de Plato e de Aristteles so idnticas entre elas.De sua parte, Joo Gramtico, enquanto afirma que a discordncia entre Plato e Aristts s existe para quem no entendeu o pensamento platnico, tambm relegou para os psteo encargo de demonstr-lo.Adicionei ainda os vrios tpicos nos quais numerosos princpios de Escoto e de Toms, e Averris e de Avicena, tidos por discordantes, so por mim considerados em plena harmonia entre eles.Em segundo lugar, apresento o que pessoalmente penso sobre a filosofia aristotlico-platnica e mais outras setenta e duas novas proposies de fsica e de metafsica quoderiam, dado que se atente para isso, resolver (salvo engano meu) - o que, alis,em breve me ser elucidado - qualquer questo em torno dos problemas naturais e divinos, em nvel bem distante daquele aprendido mediante a filosofia transmitida noscursos escolares e privilegiado pelos doutores de nossos dias.Senhores, no seria o caso de tanto admirar que eu, como alguns insinuam, ainda nesta idade juvenil, a que mal se permite a leitura de comentrios alheios, queira introduzir tanto uma filosofia nova quanto o fato de engrandec-la, se for bem-sucedido ou de desmerec-la, se fracassar. Seja como for, em se tratando de submeter a

    julgamento minhas descobertas e cincia, que no pesem os anos do autor e, sim, o mrito ou os defeitos delas.H, igualmente, parte do que temos referido, outro sistema de filosofar novo, mediante os nmeros; alis, de origem remota e praticado por antigos telogos tais como Pitgoras, Aglaofemo, Filolau, Plato e pelos primeiros platnicos, mas, hoje em dia, como tantas outras especialidades, cado em desuso tal por negligncia dos psteros quedele quase no se encontra trao. Escreve Plato, no Epinomis, que a cincia dos nmerodentre todas as artes liberais e cincias contemplativas, a mais nobre e excelsamente divina. Ao perguntar por qual razo o homem um animal sapientssimo, responde: "Porque sabe lidar com os nmeros." Lance este registrado por Aristteles em Problemas. Consta ainda ter Abumassar atribudo a Avenoar de Babilnia o dito: "Tudo conhecequem sabe fazer contas." Isso tudo no poderia ser verdadeiro, se por arte dos nmeros tivesse ele entendido aquela percia na qual os comerciantes de hoje so expertos

    . Da a advertncia clara de Plato no sentido de no se pensar seja essa divina aritma a mesma daquela dos comerciantes. Por essa aritmtica to dignificada, j que ela meparece, aps diuturnas pesquisas, eficiente estou apto a responder publicamente eassumir o empenho de explicar, pelo mtodo dos nmeros, as setenta e quatro questestidas como as principais em matria de fsica e de teologia.Tambm apresento algumas proposies a respeito da magia, nas quais elucido haver duascategorias de cincia mgica. Uma que consiste em obra e poder demonacos, fato esse,na verdade, execrando e horrendo; a outra nada mais , posto que examinada a fundo, que o pice supremo da filosofia natural.Quando se referiam a uma e outra, os gregos nunca atribuem o nome de magia primeira dessas duas, mas denominam goeteia (feitiaria); segunda outorgam a apelao espeica de "magia", como se a denominassem perfeita e suprema sabedoria. Com efeito,mago, na lngua persa, soa idntico ao que entre ns significa "intrprete e cultor da

    coisas divinas", na opinio de Porfrio. Grandes, senhores, e diria, abismais a diferena e a disparidade entre essas duas artes.A primeira no s condenada e detestada pela religio crist, mas por toda legislaoualquer pas bem evoludo; a segunda, todas as pessoas sbias, todos os povos interessados nas realidades celestes e divinas aprovam e circundam; aquela, a mais fraudulenta dentre as artes; esta, a mais elevada e santa filosofia; aquela, nula e v;esta, firme, fiel e slida; aquela, quem a cultiva, sempre a esconde porque redunda em ignomnia e desonra para seu autor; dessa, desde a antiguidade, quase semprederivou esplendor mximo e glria para o saber; daquela nunca se ocupou filsofo algum ou algum devotado s boas artes; esta, para aprend-la, Pitgoras, Empdocles, Demc

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    e Plato atravessaram os mares e, ao retomarem, dela deram notcia para depois a conservarem como o mais precioso de seus segredos. Aquela, j que no se pode provar com argumentos positivos, tambm no possui paternidade definida; esta, tendo linhagemilustre, possui paternidade nobre, tem, com efeito, dois progenitores de destaque: Zalmxide, a quem imitou baris, o hiperbreo, e Zoroastro, no aquele a quem talvepensais, mas o filho de Oromsio, Se perguntarmos a Plato que magia seja essa de ambos, ele responder, no Alcibiades, que a magia de Zoroastro simplesmente a cinciadas coisas divinas, a mesma que os reis persas ensinavam aos seus filhos a fimde que aprendessem a reger a si prprios como fazem com os negcios de governo. Dir ainda no Carmide que a magia de Zalmxide a medicina da alma porquanto por meio dela se proporciona o equilbrio espiritual, da mesma forma como aqueloutra enseja asade do corpo. Na senda desses, em seguida, deram continuidade Caronda, Darnigero,Apolnio, Ostene e Dardano. Por a, seguiu Homero, do qual demonstraremos, oportunamente, em nossa Teologia Potica, ter simbolizado, pelas andanas de seu Ulisses, apar de todas as demais, tambm esta sabedoria. Seguiram-na Eudoxo e Ermipo e quasetodos que estudaram a fundo os mistrios pitagricos e platnicos.Por fim, entre os mais recentes que prosseguiram por idntico roteiro, encontro trs: o rabe Alquindo, Rogrio Bacon e Guilherme Parisiense, dela fala, igualmente, Plotino, quando demonstra ser o mago um servial e no um artfice da natureza. A esta espcie de magia, ele, homem de grande sabedoria, aprova e assevera que detestava aoutra a tal ponto que, convidado para participar do culto demonaco, disse ser mais razovel viessem eles ao seu encontro em vez de ir at eles. E com sobra de razo.Como aquela, com efeito, toma o homem dependente e escravo dos poderes malignos,da mesma forma esta o faz senhor e dono deles. Aquela, finalmente, no se pode ar

    rogar o nome de alie ou de cincia; esta, imersa em mistrios altssimos, abarca uma contemplao profundssima das realidades mais arcanas, aliada a uma compreenso mais abangente da natureza.Esta, como se extrasse dos penetrais as foras benficas disseminadas e inseridas, por divina liberalidade, no mundo, no s realiza coisas admirandas como ainda assiste, zelosa, a natureza que as concretiza. Esta, adentrando, da maneira mais perscrutadora possvel, a harmonia do universo - o que os gregos significativamente chamam sympteia - vendo, com clareza, a mtua relao entre os elementos da natureza, adeqando a cada coisa os impulsos conaturais alm dos prprios, que se denominam os iugges dos magos, "sortilgios", desvela publicamente, qual artfice, as maravilhas latentes nos recnditos do mundo, no mago da natureza, nos arquivos secretos de Deus.Igual ao agricultor que junge os olmos s vides assim o mago faz o conbio entre a terra e o cu, vale dizer, o mundo inferior s virtudes e s foras daquele outro mundo

    uperior. Da se depreende que tanto aquela comporta de fantasioso e nocivo quantoesta de divino e salutar. Aquela, ao submeter o homem aos inimigos de Deus, afasta-o do prprio Deus; esta o incentiva admirao das obras divinas que tm como sequecertas a inflamada caridade, a f e a esperana.Nada incentiva mais o culto a Deus quanto a assdua contemplao de suas maravilhas que temos apreciado, exaustivamente, por merc desta magia natural, da qual estamosa falar, e que, de maneira mais ardente, anima-nos para o culto e para o amor aoCriador, levando-nos a cantar: "Plenos esto os cus, plena est a terra da majestadede tua glria.Seja tudo isso o bastante a respeito da magia. Alis, a respeito dela eu me prolonguei por saber que muitos, semelhana dos ces que sempre ladram contra os estranhos, tambm havero de condenar e odiar o que no entendem. hora, pois, de abordar aqueles temas que, extrados dos antigos mistrios dos hebreu

    s, eu os aduzi com o propsito de confirmar a sacrossanta f catlica. Alis, esses assntos, para que eles no sejam, porventura, tidos na conta de nugas fictcias ou julgados meras invencionices por quantos os ignoram, quero que todos entendam quaise de que nvel sejam eles, de onde so tirados, com que famosos autores so confirmados, quo autorizveis, divinos e necessrios sejam para todos ns no tocante defesa daligio contra as inoportunas calnias dos judeus.De fato, escrevem, no s clebres doutores dos hebreus como tambm, dentre os nossos, sdras, Hilrio e Orgenes, ter Moiss recebido do alto, sobre o monte, alm da lei que eixou compilada em cinco livros, ainda uma autntica interpretao da lei, mais secreta, porm. Sobre ela pesava um interdito da parte de Deus no sentido de no divulgar

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    entre o povo. Moiss s a teria ento revelado a Josu e aos sucessivos sumos sacerdote, sob a sacra exigncia de absoluto sigilo. Por certo que bastava conhecer, por meio do simples relato histrico, seja a potncia de Deus, seja sua ira contra os mprobos, seja sua clemncia para com os bons e justia para todos, bem ainda ser educado,por meio dos preceitos divinos e salutares, a fim de viver corretamente e de modo feliz, compondo-se, assim, ordenadamente, a verdadeira religio. No entanto, patentear plebe os mistrios mais secretos da altssima divindade, ocultos sob a formalidade da lei e o verbalismo da comunicao, que mais seria seno jogar as coisas santas aos ces e dar prolas aos porcos?Portanto, manter essas coisas distantes do vulgo, com a obrigao de revel-las aos perfeitos, pois entre eles que fala a sabedoria, segundo Paulo, isso nada tem de expediente humano, mas preceito divino. Praxe essa acatada, com rigor, pelos antigos filsofos. Pitgoras quase nada escreveu a no ser umas poucas linhas que, ao morrer, confiou a sua filha Damo. J as efgies esculpidas, nos templos egpcios, advertiam para o seguinte: que os dogmas egpcios fossem custodiados pelas chaves dos enigmas, ficando assim inviolveis para a multido dos profanos. Plato, escrevendo a Dionio sobre os modos supremos de ser, dizia: "Por enigmas tenho que me expressar afim de que, caso essa correspondncia caia em mos estranhas, no seja entendida por outros quanto te escrevo." Aristteles, a respeito dos livros de metafsica, nos quais trata de assuntos ultraterrestres, afirma haver os editados e os fora de edio. Eque mais? Assevera Orgenes que Jesus Cristo, mestre da vida, revelou muitas coisas a seus discpulos, os quais no as quiseram escrever para no torn-las conhecidas dtodos. O que confirma, de modo exmio, Dionsio Areopagita ao sustentar terem sidotransmitidos por seus fundadores os assuntos mais reservados da nossa religio: ek

    nou eis noun dia mesov logov, isto , "de mente para mente, sem escrita", s atravsda comunicao oral. Dado que, precisamente por tal maneira, segundo ordem de Deus,era revelada a verdadeira interpretao da lei divina comunicada a Moiss, chamou-se aela cabala, o que significa para os hebreus o mesmo que entre ns "recebimento".E precisamente pelo seguinte: pelo fato de um receber do outro, como que por direito de herana, aquela doutrina, no por meio de documentos escritos, mas pelo processo das sucessivas revelaes.Quando os hebreus foram repatriados do cativeiro babilnico por Ciro e j restauradoo templo sob o governo de Zorobabel, tiveram nimo para restaurar seu sistema legislativo. Esdras, ento preposto para assuntos de religio, depois de corrigir o livro de Moiss, tendo plena conscincia de que no era mais vivel, por causa dos exliosatanas, fugas e escravido do povo israelita, manter o costume fixado pelos antepassados de transmitir a doutrina oralmente, tambm porque iria acontecer que os arca

    nos de celeste doutrina, a ele confiados de modo sobrenatural, tudo seria perdido j que, sem a interpretao dos textos escritos, a lembrana deles no teria longa duresolveu que, convocados os mestres sobreviventes, cada qual fizesse uma exposio de tudo quanto havia conservado de memria a respeito dos mistrios da lei e, por meio de amanuenses, o acervo fosse recolhido em setenta volumes (tantos quantos eram aproximadamente os sbios do sindrio).Para que a propsito no tenhais vs, senhores, de dar crdito s a mim, ouvi o prprioas que declara: "Ao fim dos quarenta dias, o Altssimo falou e disse: As primeirascoisas que escrevestes dai-as de pblico, leiam-nas os dignos e indignos; mas os ltimos setenta livros conservai-os para serem confiados aos mestres do povo: pois, a est a veia da inteleco e a fonte da sabedoria e a correnteza da cincia. E assioi feito. Essas as palavras de Esdras. Esses so os livros da cincia cabalstica. Neles, proclama Esdras, em voz alta, esto contidos a veia da inteleco, isto , a inefv

    teologia sobre a supersubstancialidade de Deus, a fonte da sabedoria, isto , a precisa metafsica das formas intelectivas e anglicas. Enfim, o rio da cincia, isto , filosofia solidssima da natureza.Esses livros o Pontfice Mximo Sisto IV, o antecessor imediato de Inocncio VIII, sobo qual vivemos felizes, empenhou-se, com mxima diligncia, no sentido de public-losem lngua latina para a utilidade de nossa f, sendo que trs dentre eles j estavam taduzidos, quando de sua morte.Esses livros, hoje, entre os hebreus, so venerados com tal respeito de religiosidade que no permitido ter acesso a eles seno quem j contemplou quarenta anos de idae.

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    Esses livros, tendo-os eu adquirido por preo elevado e lido de ponta a ponta, comcuidado e sem poupar fadiga, a encontrei - Deus me testemunha - no s a religio ma quanto a crist. De fato, a, o mistrio da Trindade, a encarnao original, a redenCristo, a Jerusalm celeste, a queda dos anjos, a hierarquia angelical, o purgatrioe as penas do inferno. Coisas, alis, idnticas, ns as lemos, diariamente, em Paulo,em Dionsio, em Jernimo e Agostinho; no atinente filosofia, ouvirs nem mais nem meos Pitgoras e Plato, cujos princpios so de tal consonncia com a f crist que o nostinho rende sumas graas a Deus por lhe ter cado, nas mos, os livros dos platnicos.Em suma, no h tema de controvrsia, entre ns e os hebreus, sobre os quais no possames ser redarguidos e mesmo levados verdade pelos mesmos livros cabalsticos de talforma que no fica ngulo algum para refgio.Para tanto eu me apoio no testemunho validssimo de Antnio Crnico, homem de rara erudio, o qual, estando eu em sua casa durante um banquete, tive oportunidade de ouvir diretamente a Dlito, hebreu perito nessa cincia, quando se rendia, por inteiro,ao dogma da Trindade, conforme a doutrina crist.Retomando ao exame dos temas de nossa disputa, apresento tambm meu mtodo pessoal para interpretar os cnticos de Orfeu e de Zoroastro. De Orfeu l-se quase tudo na Grcia; Zoroastro, porm, menos lido, mas, na Caldia, bem mais conhecido. Seja como fo, ambos so tidos como os pais e mestres da antiga sabedoria.Omitindo maior destaque para Zoroastro, alis, sempre recordado pelos platnicos, com frequncia e muita estima, lembro ter Giamblico Calcdeo escrito que Pitgoras apreciava a tal ponto a teologia rfica que dela fez o modelo para plasmar a prpria filosofia.Em decorrncia, disso, as sentenas de Pitgoras passam a ser chamadas sacras na medid

    a em que so derivadas dos esquemas rficos. Da, qual fonte originria, emanou a doutrna oculta dos nmeros e tudo o mais que de grandioso e sublime apresentou a filosofia grega. Segundo o costume dos antigos gregos, tambm Orfeu revestiu os mistriosdogmticos com o invlucro das fbulas e ocultou-os no aparato potico de sorte a dar aleitor a impresso de que seus livros nada mais eram que meras fbulas e nugas engenhosas.Fao tal meno para que se conhea o trabalho dificultoso em extrair desses artifciosigmticos, verdadeiros esconderijos, em formato de aplogos, o sentido latente daquela filosofia hermtica. Ainda mais quando nessa tarefa to rdua, recndita e inexploraa, no se dispe da ajuda de bibliografia ou de recurso por parte de outros intrpretes.Entrementes, meus contestadores, quais ces, vociferam dizendo que eu, simplesmente, acumulei quinquilharias e futilidades para dar a impresso de pompa como se eu,

    ao invs, no tivesse apresentado todas aquelas questes que so precisamente as mais mbguas e controvertidas, em torno das quais polemizam as maiores academias; comose eu no tivesse aduzido nada de peso ou de ainda ignoto e nunca avanado por aqueles mesmos que esto a menosprezar este meu empreendimento e, por isso, creem-se prncipes do saber.Na verdade, a acusao no me atinge, pois cuidei de restringir ao mnimo os captulos ta disputa. Por certo que se fosse de meu agrado (como si acontecer com outros) dividi-la-ia em tantos segmentos possveis. Assim ficaria subdividida e aumentada indefinidamente. Para no falar de outras coisas, h quem no saiba que uma nica proposdessas novecentas - como aquela sobre a harmonia entre Plato e Aristteles - eu a poderia subdividir, mesmo sem o exagero de acrscimo artificioso, em outras seiscentas teses, para no dizer mais. Para tanto bastaria enumerar, singularmente, todosos itens sobre os quais para um h discordncia e, para outro, plena equivalncia.

    A verdade - di-la-ei ainda que no seja modstia de minha parte e, por isso mesmo faa contragosto - digo, repito, por causa dos invejosos que me distratam: a verdade que eu quis, nesta disputa, demonstrar menos quanto sei e mais quanto muitosignoram.Para que isso acontea, colendissimos senhores, e seja, publicamente, manifesto, sem que este meu discurso retarde, por mais tempo, a curiosidade destes nobilssimos doutores, que, aqui, contemplo, com gudio mximo, dispostos e atilados a esperarpela contenda, augurando xito faustoso e feliz. Pois bem, ao som desta trombeta de guerra, vamos ao combate!Fim da orao de Giovanni Pico della Mirndola, sobre A Dignidade do Homem.

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    Dezembro de 1486.