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IX ENCONTRO DA ABCP Teoria Política DIGNIDADE DE PICO A KANT: DA PAX PHILOSOPHICA À PAZ PERPÉTUA Lara Cruz Correa IESP/UERJ Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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IX ENCONTRO DA ABCP

Teoria Política

DIGNIDADE DE PICO A KANT: DA PAX PHILOSOPHICA À PAZ PERPÉTUA

Lara Cruz Correa IESP/UERJ

Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

DIGNIDADE DE PICO A KANT: DA PAX PHILOSOPHICA À PAZ PERPÉTUA Lara Cruz Correa

IESP/UERJ Resumo do trabalho: O atual debate sobre os Direitos Humanos, não obstante as diversas disputas teóricas que o caracterizam, parece padecer de uma curiosa opacidade conceitual: ao mesmo tempo que há certo consenso tácito de que sua ideia nuclear seja aquela da dignidade da pessoa humana, é ainda obscuro o modo como se compreende os vínculos valorativos que tal noção de dignidade guarda com outras ideias caras às sociedades democráticas, tais como a igualdade, a autonomia e o respeito. Neste artigo, pretendemos explorar a noção de dignidade em duas tradições de pensamento, a saber, aquela formulada por Pico della Mirandola no contexto do humanismo renascentista e aquela presente no pensamento moderno, na obra crítica e política de Kant. Supomos que a noção de dignidade que hoje informa a discussão sobre os Direitos Humanos seja desdobramento de uma polêmica que articulou, em distintos momentos históricos e tradições intelectuais, questões de cunho teológico, epistemológico, moral e, finalmente, político, e que pode ser compreendida enquanto espécie de fio narrativo que aproxima o antropocentrismo humanista do individualismo moderno. Palavras-chave: filosofia política; dignidade; Pico della Mirandola; Kant

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Dignidade de Pico a Kant: da Pax Philosophica à Paz Perpétua

Lara Cruz Correa*

Pico della Mirandola: a pax philosophica e a ética da dignidade

É talvez surpreendente o quanto a triste figura do homem decaído, cativo de suas

paixões e movido pelos ímpetos das necessidades corpóreas, tenha estado presente

precisamente no período histórico a que associamos a ideia de sua redenção. A dignidade

do homem é, afinal, um notório estribilho do humanismo renascentista, repetido à exaustão,

em graus variados de aprofundamento filosófico e floreios retóricos. Mas não é menos

verdadeiro que a exaltação do homem naquele período que se convencionou chamar

Renascimento tenha estado em aberta disputa com sua caracterização enquanto criatura

miserável, vil, ainda algo próximo de um mero “produtor de lêndeas, piolhos, vermes, urina e

fezes”, como dele havia dito Lotario Segni, no século XIII, em seu “De miseria humanae

conditionis” (apud VALVERDE, 2009:465). A este ser bruto a que se referia aquele que viria

a se tornar o Papa Inocêncio III, poucas esperanças restavam quanto às possibilidades de

salvação no que dependesse de seu próprio agir, sendo o homem, na ausência do

favorecimento da graça de Deus, impotente para a elevação do lugar rasteiro que ocupava.

O mais destacado papel nesse longo e intrincado processo de transmutação do lugar

e do valor do homem no pensamento renascentista é o de Giovanni Pico della Mirandola

(1463-96), autor da célebre Oratio de Hominis Dignitate1, libelo que adquiriu notoriedade

como o principal tratado filosófico humanista acerca dos temas da natureza humana e da

liberdade. Uma breve investigação sobre o itinerário da produção e publicação da obra

revela, entretanto, uma série de polêmicas doutrinárias das quais o Discurso de Pico parece

ser o epicentro. A princípio, chama atenção o fato de que o manifesto teve seu título original

- Oratio ad laudes philosophiae (Discurso em louvor à Filosofia) - alterado em favor da

versão que hoje conhecemos, incidente que desde logo fomentou entre os intérpretes da

obra piquiana uma acirrada discussão acerca de seus verdadeiros propósitos, do real núcleo

de sua investigação e da conexão que guardaria com o restante do empreendimento

filosófico de Pico. Em segundo lugar, e em íntima relação com tais controvérsias, está o fato

de que o texto que ganhou aclamação e que fez de Pico um personagem central da história

do pensamento renascentista tenha sido, na verdade, composto como uma introdução, um

preâmbulo explicatório a uma obra anterior que lhe rendeu, mais do que celebridade nos

* Doutoranda em Ciência Política no IESP-UERJ. Pesquisa realizada com auxílio financeiro do CNPq. 1 A partir daqui, referido por “Discurso”.

2

círculos intelectuais da época, também a excomunhão e o cárcere. Peça de defesa em uma

disputa que teve lugar em Roma, no seio da Igreja, o Discurso só pode ser compreendido,

portanto, no contexto daquilo que ali estava em jogo: a posição ontológica do homem na

hierarquia da Criação e o que isso significava em termos de sua liberdade e suas

potencialidades.

Já em 1487, o jovem Pico havia sido pronunciado herege em ocasião da

apresentação ao conselho papal de suas “Novecentas Teses” (Conclusiones Nongentae).

Mais do que uma peça filosófica voltada à discussão de um ponto específico, as Teses

encerravam um projeto monumental e excêntrico: Pico tinha como pretensão nada menos

do que oferecer uma suma, isto é, abarcar em seu manifesto todas as principais questões

teológico-filosóficas, das mais diversas tradições, em um compêndio que afirmava a

interconexão dentre os mais longínquos sistemas de pensamento formulados pelo homem e

entre estes e o conteúdo da revelação cristã. Para além de um exercício megalomaníaco de

erudição, o que orientava o grandioso esforço intelectual de Pico em tratar de “tudo que se

podia conhecer” (de omni scibili) era a suposição de que o compartilhamento de certas

proposições fundamentais conciliava paradigmas doutrinários os mais conflitivos em uma

“concatenação oculta” (occulta concatenatio): teorias particulares dariam testemunho,

parcial e múltiplo, de uma verdade absoluta e totalizante e cada exemplar isolado poderia

ser unido em pacífica concórdia com os demais2.

Do ponto de vista metodológico, Pico havia se preocupado em seguir modelos

medievais estabelecidos de debate como aqueles da quaestio disputata e das sententiae,

em que trechos coletados de uma série de fontes de autoridade reconhecida eram

organizados topicamente e então comentados pelo autor, para que fossem posteriormente

submetidos a uma discussão entre pares (DOUGHERTY, 2011:143). O fator propriamente

original de seu empreendimento residia, de fato, na amplitude de premissas filosóficas

abarcadas e, especialmente, na variedade originária destas: Pico não discriminava entre

fontes teológicas e não teológicas e supunha que sistemas filosóficos tais como o

platonismo, o aristotelismo e demais textos pagãos (aí inclusos desde fábulas e poemas da

tradição greco-latina a incursões pelas chamadas “ciências ocultas”) eram confirmatórios da

fé cristã, e que mesmo doutrinas heréticas, como aquela da Cabala hebraica, guardavam

uma analogia secreta e concorde ao cristianismo, sendo então também partícipes da

Verdade revelada3.

2 Muitas vezes referido como Conde da Concórdia, Pico era de fato detentor do título de nobreza relativo àquela região e, como alguns de seus contemporâneos, via nessa coincidência uma confirmação divina de sua vocação conciliatória, de modo que a alcunha assim se popularizou (FARMER, 1998:01, n.2). 3 Ao todo, o tratado é constituído por 400 teses retiradas de fontes de autoridade, as chamadas “teses

3

Essa dilatação das fontes abarcadas e a abordagem apologética a que Pico as

submeteu foram explicadas por alguns estudiosos de sua obra pela noção de

“cristossincretismo”, um modo de leitura e interpretação das obras pagãs centrado na

categoria do “mistério”, em que o significado oculto dos textos emergia quando

subordinados a uma apreciação simbólica e alegórica (SUDDUTH, 2011:85;94). Ou, ainda,

em termos de uma noção de “reciprocidade cósmica”, de acordo com a qual conclusões

paradoxais e em aparente litígio eram compreendidas como pertencentes a distintos níveis

hierárquicos de proximidade à Verdade, que se interpenetravam mutuamente, dando

testemunho de “simetrias cosmológicas e históricas” as quais aproximavam tradições

distantes entre si - dentre as quais as conclusões pessoais do próprio Pico – e que podiam

ser, finalmente, reconciliadas e unificadas (FARMER, 1998:36).

Outros estudiosos da obra, conquanto acatem a tese de que a defesa da filosofia

realizada por Pico se deu através de uma apologia cristã, enfatizam que a concatenação

oculta que o autor identificou entre princípios doutrinários conflitantes teria emergido não

tanto de um sincretismo eclético, mas mais propriamente de uma interpretação

dialética.Essa perspectiva acentua que a assim chamada pax philosophica idealizada por

Pico (também chamada philosophia nova) resultava não da mera fusão intercultural de

sistemas teológico-filosóficos díspares, mas de uma atenção especial àqueles

deslizamentos de sentido observáveis na comparação entre distintos pensadores e

tradições. Pico teria, então, se concentrado em empregar toda sua erudição filológica,

linguística, poética, filosófica e teológica para, tomando como ponto de partida aquelas

opiniões de autoridade, tal qual ditava a metodologia escolástica, sujeitá-las repetidamente a

camadas de interpretações metafóricas, buscando extrair do sentido literal das palavras

empregadas em um determinado contexto (verba) um significado e substância (sensus et

res) que lhes fosse essencial, superior e independente (DOUGHERTY, 2011:153-55).

Nessa perspectiva, a busca de Pico pela paz doutrinal revelaria um interesse

premente pelo movimento histórico das questões teológicas e filosóficas e pelo modo como

essas se relacionavam a um determinado princípio de unidade, mais do que um

compromisso rígido com a preservação dogmática. Como esclarece Cassirer, para Pico, “[..]

even in this field, even in religious dogma, there is no real infallibility or 'immobility'. Faith too,

like knowledge, has its history, and only in the totality of this history can its inner truth

históricas”, apresentadas em ordem cronologicamente invertida, dentre as quais 115 tomadas de filósofos escolásticos latinos, 82 de pensadores árabes, 29 dos peripatéticos gregos, 99 dos platonistas (todas estas organizadas de acordo com pensadores individuais identificados como “líderes” de cada tradição) e 77 dos “sábios antigos”, um conjunto composto por matemáticos pitagóricos, teólogos caldeus, “sábios cabalistas”, dentre os quais Pico não discernia líderes individuais; e outras 500 teses de autoria do próprio Pico, incluindo 72 de conteúdo cabalístico (FARMER, 1998:204-05).

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emerge”(CASSIRER, 1942:325). A prisca theologia de Pico estabelecia, portanto, as ideias

de tempo e movimento nas questões de fé e de conhecimento, através da noção de uma

cadeia ininterrupta que articulava as expressões concretas e parciais da verdade a um

sentimento religioso constitutivo da experiência humana, e a um princípio abstrato universal

(SIRGADO GANHO, 2008: xxvi-xxix).

Assim, embasada por tal princípio metafísico de compreensão da verdade, núcleo da

atividade intelectual de Pico, a Filosofia tinha sua legitimidade afirmada ao mesmo tempo

que seu objetivo final era determinado: buscar algo que a religião já possuía (SUDDUTH,

2011:82), encontrar na ratio philosophica, em suas variantes históricas, uma harmoniosa

complementaridade à ratio theologica (LOIA, 2008: x). Mas a disputa pública pretendida por

Pico jamais chegou a acontecer. O tratado foi rechaçado pelo conselho papal de Inocêncio

VIII. Primeira obra universalmente banida pela Igreja, as Teses passaram a encabeçar o

indices librorum proihibitorum (DOUGHERTY, 2011:146; FARMER, 1998:16) e, em um

desses desenlaces do acaso que acabam por determinar a recepção de um filósofo pelas

gerações seguintes e o destino de seu legado, o Discurso em Louvor à Filosofia, derradeira

tentativa de elucidação de seu projeto sistemático prévio, chegou a nós traduzido em um

libelo em defesa da dignidade do homem4.

Postumamente publicado, por iniciativa de um sobrinho de Pico, o Discurso, em sua

forma, em nada remete ao empreendimento grandiloquente das Teses. Não visava ser

objeto de debate, mas uma abertura e uma apologia, uma justificativa de sua meditação

filosófica anterior, que fosse retoricamente envolvente a ponto de capturar os ouvidos e

corações da audiência eclesiástica e persuadi-la das intenções pias de seu autor. O tópico

da filosofia é retomado, mas precedido por uma reflexão sobre a natureza humana, em um

indicativo do vínculo que Pico percebia entre aquelas questões. A opção metodológica

conciliatória das Teses fica explícita desde as primeiras linhas do manifesto, quando o tema

do valor do homem é abordado através da comparação de tradições longínquas:

Li nos escritos dos Árebes, venerandos Padres, que, interrogando Abdala Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espetáculo mais maravilhoso neste cenário do mundo, teria respondido que nada via de mais admirável que o homem. Com esta sentença concorda aquela famosa de Hermes: 'Grande milagre, ó Asclépio, é o homem'

4 FARMER (1998:18-9) afirma que “Oratio ad laudes philosophiae” é mencionado como título pretendido em uma correspondência de Pico datada próxima à sua morte e atribui a primeira aparição do título “De hominis dignitate” a uma edição da obra “completa” de Pico publicada em 1504, mas destaca que tal compilação não incluía as Teses, tomando o Discurso como texto autônomo e contribuindo, assim, para o que considera uma interpretação distorcida do argumento. Na opinião desse autor, aparentemente acatada por certa parcela de estudiosos contemporâneos da obra piquiana (Cf. DOUGHERTY, 2011), esse incidente perpetuou uma leitura específica do Discurso, que erronemanete atribuía centralidade ao tema da dignidade do homem no pensamento de Pico e caracterizava o texto como um documento exclusivamente humanista. Somos, aqui, por constrangimentos de ordem teórica e prática, cautelosos na abordagem dessa polêmica, mas acreditamos poder sustentar o argumento de que a dignidade, indevidamente ou não declarada núcleo da filosofia de Pico, só pode ser compreendida em relação ao argumento teológico-filosófico das Teses.

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(Discurso:53).

A partir daí, é a antropologia original de Pico que se revela, quando salta da

recuperação das tradições árabe e hermética à sua peculiar exegese da narração bíblica:

consumada a Criação, o Demiurgo teria desejado “alguém capaz de compreender a razão

de uma obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse sua grandeza”. Esse ser dotado

de capacidade racional, habilitado à contemplação e apreciação, teria chegado, pois,

tardiamente, quando “dos arquétipos […] não ficara nenhum sobre o qual modelar a nova

criatura”, “tudo já estava ocupado” (Discurso:55). Assim Pico reconta o mito adâmico:

Estabeleceu, portanto, o óptimo artífice que, àquele a quem nada de especificamente próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: 'Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio […]. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu próprio ânimo' (Discurso:57).

No contexto renascentista, o tópico da dignidade do homem já havia sido objeto de

meditação de pensadores como Giannozzo Manetti que, algumas décadas antes de Pico,

respondeu ao tratado de Segni sobre a miséria humana com seu “De dignitate et excellentia

homini”, e foi também tema da reflexão de Nicolau de Cusa e Marsílio Ficcino - este,

expoente na Academia neoplatônica de Florença com que Pico teve contato na juventude e

durante o exílio pós-excomunhão. Embora não se possa afirmar uma filiação intelectual

rígida de Pico ao círculo neoplatônico, há um compartilhamento de preocupações filosóficas

e teológicas que os aproxima: também os florentinos buscavam aspectos conciliatórios entre

o platonismo e o cristianismo e se dedicavam a pensar a articulação entre elementos

doutrinários cosmológicos e seus desdobramentos práticos. A singularidade da obra de Pico

quando contrastada àquele grupo mais amplo de pensadores humanistas repousa, no

entanto, no apelo retórico de seu texto, na nitidez com que aspectos metafísicos de sua

teorização se conectam a um enunciado de conteúdo ético e no tipo peculiar de

distanciamento que estabelece em relação a certas concepções medievais acerca da

constituição do homem.

No Discurso, o status ontológico do homem é definido pela capacidade de determinar

a si mesmo seu lugar na hierarquia dos seres, condição esta que o aparta e o torna superior

às demais criaturas. A ordem natural não é, para ele, simples constrição e imposição, mas

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um enigma penetrável, racionalmente acessível, que ao mesmo tempo revela a vontade

divina, decodifica a lógica das coisas mundanas e habilita sua capacidade de escolha e

automodelação (SUDDUTH, 2011:91). Diferentemente do antropocentrismo de Ficino que,

em sintonia com a metafísica medieval, havia adscrito ao homem um valor específico por

estar firmemente fixado no centro da Ordem cósmica -um ponto médio entre as criaturas

bestiais no pé da cadeia e os anjos em seu topo - Pico permitiu ao homem subir e descer

livremente por aquele eixo de acordo com seu arbítrio.

[…] se virmos alguém dedicado ao ventre rastejar por terra como serpente, não é homem o que se vê, mas planta; se alguém cego, como Calipso, por vãs miragens da fantasia, seduzido por sensuais engodos, escravo dos sentidos, é uma besta o que vemos, não é um homem. Se é um filósofo que discerne com recta razão todas as coisas, venerá-lo-emos, é animal celeste, não terreno. Se é um puro contemplante, ignaro do corpo, todo embrenhado no âmago da mente, este não é animal terreno, nem mesmo celeste, é um espírito mais elevado, revestido de carne humana (Discurso:59-61).

A confiança de Pico nos poderes desveladores da razão e na potencialidade humana

de, compreendendo os elementos da natureza, operar sobre ela, é comumente considerada

um exemplo pré-moderno, tipicamente renascentista, do que viria a se tornar a noção de

ciência como técnica de predição e intervenção no mundo. Entretanto, para Pico, o

misterioso, o oculto, o místico não eram excluídos dessa ordem racional natural, mas

integrados enquanto componentes de sua Unidade. Assim como evoca a imagem do filósofo

que, “pela agudeza dos sentidos, pelo poder indagador da razão e pela luz do intelecto”,

interpreta a natureza (Discurso:53), Pico descreve o homem também como um mago e

exalta a magia como “contemplação mais alta das coisas mais secretas” (Discurso:105)“o

conhecimento das coisas divinas, que os reis persas ensinaram a seus filhos para que

aprendessem a governar a sua República, segundo o exemplo da ordem do mundo”

(Discurso:103). Para Pico, Deus escreveu por metáforas, nas palavras do texto sagrado

assim como nas criaturas da natureza, e a alma humana é também uma “tradução” da alma

das coisas. Como sugere Garin: “The soul of the human being speaks to things, speaks to

the soul of things, and makes itself understood; it finds in the intimate part of things the

rational and numerical root. The magic operation is natural, not miraculous” (GARIN,

2008:319). Distintos modos de penetração na ordem da natureza são apresentados como

caminhos alternativos de uma mesma “filosofia natural”, que se cruzam e levam ao mesmo

destino, a consciência divina, e daí acessam aquelas orientações sobre os princípios que

devem reger nossas ações.

Mas é importante notar que, se há uma boa magia, que é amistada à Filosofia e que

aproxima o homem de Deus, Pico preocupa-se em discerni-la de uma ramificação maligna

do conhecimento mágico. Muito embora nas Teses Pico tenha se mostrado receptivo a

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contribuições da Astrologia, não tardam suas primeiras polêmicas com os astrólogos e, no

Discurso, pronuncia-se contra aquilo que chama “coisa execrável e monstruosa”

(Discurso:101), “entre todas as artes a mais fraudulenta”,“condenada não só pela religião

cristã, mas por todas as leis, por qualquer Estado bem organizado” (Discurso:103). Pico

repudia a ideia de causalidade astrológica tal qual defendida pela astrologia divinatória, de

acordo com a qual o movimento dos astros guardaria relação direta com fenômenos

sublunares (GARIN,2008:321). Sem romper com a concepção de que a contemplação de

coisas celestes revela certos princípios cosmológicos gerais, Pico opera um deslocamento

de ênfase, repudiando a ideia de uma sobredeterminação cósmica, em favor da afirmação

da autodeterminação da atividade humana que viria a se tornar o centro de sua filosofia do

homem (FARMER, 1998:145). De modo que se, em seus aspectos gerais, a filosofia de Pico

acolhe o passado através de uma abordagem sincrética/dialética da tradição - de modo que

seria imprudente tomá-lo como suporte para o argumento de uma pretensa “ruptura” do

pensamento renascentista com a mentalidade medieval – é em sua rejeição à Astrologia que

se percebe o germe de originalidade de sua teoria ética (CASSIRER, 2000:115).

No Discurso, além de contemplar a Criação, decifrar as correlações que se revelam

entre o mundo celeste e o terreno, o homem, acima de tudo mais, cria: o artifício é o dom

primordial compartilhado pelo Criador com sua criatura favorita, o potencial de determinar

algo, estabelecer por si mesmo os contornos, isto é, só se constranger por linhas que ele

mesmo traçou. Essa potencialidade peculiar lhe confere uma ontologia específica, moral. Se

os outros seres são ainda descritos nos termos da concepção medieval de elos fixos, pré-

determinados e limitados, dispostos em uma cadeia estática, o homem de Pico transgride

essa ordem,pois é a única criatura cujo lugar não está dado, mas a ser adquirido

(DOUGHERTY, 2012:161-162). O homem é na medida exata da sua liberdade, da sua

autonomia e do seu voluntarismo.

[…] a partir do momento em que nascemos na condição de sermos o que quisermos, que nosso dever é preocuparmo-nos sobretudo com isto […] De tal modo que, abusando da indulgíssima liberalidade do Pai, não tornemos nociva, em vez de salutar, a livre escolha que ele nos concedeu. Que a nossa alma seja invadida por uma sagrada ambição de não nos contentarmos com as coisas medíocres, mas de anelarmos às mais altas, de nos esforçarmos por atingi-las, com todas as nossas energias, desde o momento em que, querendo-o, isso é possível (Discurso:61).

É então como se Pico operasse, em diálogo com a tradição platônica, uma

reinterpretação e radicalização da noção do homem enquanto microcosmo (CASSIRER,

1942:319-201; LOIA, 2008:xliv), na medida em que atribuía ao homem, segundo sua

capacidade de acesso à mente divina e seu empenho criativo, uma participação particular,

circunscrita, no conjunto das coisas que forma o Universal – ser um elo na cadeia. Percebe-

se no Discurso, em um percurso argumentativo distinto mas complementar e logicamente

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afinado àquele desenvolvido nas Teses, o quão pervasiva na obra de Pico é a ideia de uma

analogia cósmica, de uma similaridade total, que une e correlaciona tudo aquilo que é

particular, sem liquidar a diversidade e sem desintegrar o todo. É essa tensão entre

particular e universal que dá o núcleo da nova filosofia do homem elaborada por Pico: é a

concepção metafísica que articula, no âmbito da filosofia, a historicidade e multiplicidade de

perspectivas das tradições de pensamento em relação à unicidade da Verdade e, no âmbito

ético, a relação entre o arbítrio individual e a regra universal expressa pela lei divina.

No Discurso, o argumento da não-fixidez da alma surge como uma articulação entre

as potencialidades cognitivas do homem (descritas, como visto, em ordem ascendente,

enquanto faculdades vegetativa, sensitiva, racional e intelectual) e suas potencialidades

morais. Do nível vegetativo ao angélico, há uma “jornada cognitiva”, uma progressão

contínua em que a prática filosófica é uma etapa para a conclusão teológica (STILL,

2011:232) e que corresponde, paralelamente, a um percurso de aperfeiçoamento moral, de

modo que a perfectibilidade humana, tal qual descrita por Pico, repousa nesse elo entre

conhecimento e vontade. A dignidade do homem que aqui surge é, portanto, uma noção

ontológica, mas também cognitivo-moral, que emerge em meio a uma ampla polêmica

filosófica, produto de dissensos sobre a Grande Cadeia do Ser e a possibilidade de

deificação humana, mas também sobre aquilo a que o conhecimento humano poderia ter

acesso e sobre os princípios da agência moral. No sentido que aqui é inaugurado, a

dignidade é, pois, não apenas a afirmação de um status, de uma propriedade do ser, mas a

descrição de um vínculo, lógico e prático, entre as partes e o todo.

A dignidade moderna em Kant

Na modernidade, se há um ponto comum que une as distintas correntes do

pensamento iluminista, impondo-lhe um traço generalizável não obstante suas

idiossincrasias nacionais, pode-se localizá-lo em uma peculiar configuração da teoria do

conhecimento, que vai estabelecer como questão de primeira ordem a reflexão da razão

sobre si mesma, isto é, a consideração da lógica de suas próprias operações (CASSIRER,

1950: 112-113). Tal perspectiva implica que, antes de voltar-se à investigação da natureza

de objetos que lhe são externos, o pensamento deve atuar de forma autorreflexiva,

indagando primeiramente de que forma específica o acesso ao conhecimento lhe é dado em

virtude de sua própria estrutura constitutiva.

Com Kant, o problema será posto de forma original, movido pela ambição de superar

tanto as limitações do empirismo quanto do racionalismo dogmáticos. Contra as convicções

do dogmatismo empiricista, Kant sustenta a experiência como incapaz de levar, por si só, ao

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conhecimento, uma vez que a multiplicidade de percepções só adquire inteligibilidade

quando estas são articuladas entre si, dispostas de forma coerente no quadro de categorias

do intelecto. Tais categorias equivaleriam a formas a priori da razão especulativa,

simultaneamente anteriores a e condições para quaisquer experiências, sem as quais estas

permaneceriam disformes e desconectadas. Incapaz de transitar do particular ao geral,

presa ao imediatismo, a experiência só poderia oferecer proposições contingentes; tão

somente a razão permitiria transpor o meramente acidental e conduzir ao necessário. Não

obstante, a resistência de Kant à absolutização da experiência, que o faz afirmar que

“intuições sem conceitos são cegas”, se conjuga à noção de que “pensamentos sem

conteúdos são vazios” (CRP:57)5. Ao empirismo Kant concede, portanto, que, ainda que não

seja autossuficiente na condução ao conhecimento, é necessariamente na experiência que

este se inicia, sendo assim vetado à razão o acesso a qualquer realidade suprassensível.

Trata-se de uma antinomia fundamental à teorização kantiana, que aparta os mundos

fenomênico (capturável pela percepção sensível) e numenal (a intocável essência das

coisas), e que circunscreve o conhecimento ao domínio do primeiro, ainda que não interdite

a reflexão acerca do segundo. Neste ponto, é a própria noção kantiana de crítica que se

manifesta: coloca-se a questão da determinação que a razão deve estabelecer acerca de

seus próprios limites6.

No percurso da Crítica da Razão Pura à Fundamentação da Metafísica dos

Costumes e, finalmente, à Crítica da Razão Prática, o problema extrapola o campo cognitivo

e se desdobra em uma teoria moral: do exame da razão especulativa enquanto exploração

das categorias a priori do espírito que conformam a faculdade de conhecimento, Kant

procede à investigação da razão enquanto princípio prático que orienta nossas ações. As

razões pura e prática são descritas, então, não como antagônias, mas antes distintas

dimensões de uma mesma razão a priorística7. De fato, só há sentido na busca de uma

“metafísica dos costumes” se é possível supor a existência de categorias a priori da razão

capazes de fornecer os princípios nos quais a moralidade encontra alicerce. É precisamente

essa analogia entre os planos especulativo e prático que justifica a busca por um princípio

5 As obras citadas de Kant seguem as seguintes referências: CRP (Crítica da Razão Pura, 1983), PCRP (Prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura, 1985), FMC (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 1964), HU (Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, 1986), REL (A Religião nos Limites da Simples Razão, 1984), TP (Sobre a expressão corrente: Isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática, 2013), PP (A Paz Perpétua: um Projeto Filosófico, 2013).

6 “[…] é um apelo à razão para atacar de novo a mais dificultosa de todas as suas incumbências, isto é, a do conhecimento de si mesma, e para instituir um tribunal capaz de asseguar suas reivindicações justas, mas também de repelir todas as pretensões infundadas, não com decisões arbitrárias, mas de acordo com suas leis eternas e imutáveis; e este tribunal não é outro senão a própria Crítica da Razão Pura” (PCRP:14).

7 “[...] reputo imprescindível que se mostre ao mesmo tempo a unidade da razão prática e da razão especulativa num princípio comum; pois que em última instância só pode haver uma e a mesma razão, e só na aplicação desta há lugar para distinções” (FMC:50).

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transcendental do agir existente em nossa consciência moral. Deriva-se dessa analogia um

ponto fundamental: tal como no caso das categorias a priori da razão especulativa, também

o ato moral ditado pela razão prática será definido por sua independência em relação à

esfera do sensível; para Kant, aquela mesma antinomia que isolava as categorias a priori da

razão pura em relação à esfera da experiência, em matéria cognitiva, se manifesta na cisão

entre a razão prática e a influência dos impulsos sensíveis, em âmbito moral.

Kant definirá seu indivíduo, assim, sempre como subjetividade no interior da qual se

dá um embate entre essas duas tendências opostas, e sua realização enquanto sujeito

moral dependerá precisamente da capacidade de agir contra toda inclinação exteriormente

determinada e tão somente em nome do que lhe é auto-imposto por sua vontade racional. A

vontade racional, ou boa vontade, é aquela definida como única vontade que é

incondicionalmente boa, não por virtude dos objetivos aos quais visa, mas somente em

razão do próprio princípio que a orienta: este não é outro senão a vontade de agir por dever.

Delineia-se, assim, o caráter específico do agente moral kantiano: trata-se da determinação

de um sujeito que é livre por princípio, conquanto subordinado à imposição de um mandato.

Não é abusivo dizer, com Charles Taylor, que a definição de uma subjetividade moral

radicalmente livre é o âmago da filosofia moral de Kant, a partir da qual se pode afirmar que

“a vida moral é equivalente à liberdade, no sentido radical de autodeterminação pela

vontade moral” (TAYLOR, 2005:15). A moralidade kantiana, portanto, remete à

incondicionalidade do agir em relação a toda e qualquer determinação senão o próprio

dever, expresso na forma de um imperativo categórico - “Procede apenas segundo aquela

máxima em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se torne em lei universal”

(FMC:83) -, um mandamento que impõe ao sujeito a necessidade absoluta de uma ação8.

A vontade racional constitui para Kant, então, o elemento que distingue o homem e

lhe confere valor absoluto, em contraste com o valor meramente relativo que possuem as

demais coisas e criaturas – a estas, somente o homem pode conferir valor, enquanto a

existência de algo dotado de valor absoluto é necessária à própria existência do imperativo

categórico (PASCAL,2008: 131). Este, por sua vez, encontra nova expressão: “Procede de

maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros,

sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro meio” (FMC:92). Kant assim delinea

a descrição do homem como fim em si, de valor intrínseco e absoluto, precisamente o que

irá se encerrar na noção kantiana de dignidade humana, quando afirma: “Uma coisa que

tem um preço pode ser substituída por qualquer outra coisa equivalente; pelo contrário, o

8 “O conteúdo dos imperativos hipotéticos depende do fim que se pretende alcançar e é determinado por esse fim; o do imperativo categórico não depende senão da pura forma da lei” (FMC:153, nota 111).

11

que está acima de todo preço e, por conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem

uma dignidade”(FMC:98, grifos no original).

Uma tensão permanece, todavia, em sua teoria moral: a liberdade radical

corresponde antes à esfera numenal do ser racional do que à esfera fenomênica do

indivíduo empírico. Este é sujeito às leis de causalidade da natureza e não pode escapar à

influência extrínseca das inclinações egoístas. A “luta perpétua” que se realiza no interior do

indivíduo kantiano faz com que aspire a uma condição de santidade - isto é, “uma condição

na qual a própria possibilidade de um desejo não mais surgisse” (TAYLOR, 2005:16)- que

lhe permanece, no entanto, inalcançável. A solução só pode estar, portanto, na suposição de

que, se há um sujeito dotado de perfectibilidade, este não pode ser aquele sujeito individual

empírico, preso à determinação heteronômica e à mortalidade, mas tão somente a espécie

humana. Em sua terceira formulação, o imperativo prático estabelece a necessidade de agir

somente segundo uma máxima tal “que a vontade possa, mercê sua máxima, considerar-se

promulgadora, ao mesmo tempo, de uma legislação universal” (FMC:97). A ideia de

realização de uma ordem legal universal aqui expressa remete a algo capaz de vincular os

homens entre si em um plano comunitário, do mesmo modo que a noção de dignidade já

enunciava um princípio que deveria reger não somente a relação entre homens e coisas,

mas o próprio modo de organização das relações dos homens uns com os outros.

Daqui brota uma união sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, ou seja, um reino o qual atendendo a que tais leis têm precisamente por escopo a relação mútua entre todos os seres, como fins e como meios, pode ser denominado reino dos fins […] (FMC, 96-97).

Se prosseguimos na citação, nos deparamos com a complementação de Kant: “[....]

reino dos fins (o que, na verdade, é apenas um ideal)”. Seria então o reino dos fins uma

fábula retórica, vazia e impotente? Será unicamente por meio da filosofia da história

kantiana, de caráter teleológico, que a problemática da validação factual daqueles

pressupostos teóricos encontrará solução. Será somente no horizonte do progresso histórico

e na suposição do caminhar de uma comunidade de seres racionais que a teoria kantiana

poderá fazer convergir o ideal e o factíve,l e só então será possível traçar a linha que

interliga, a partir do núcleo de sua definição kantiana da natureza humana, suas teorias

cognitiva, moral e, finalmente, política.

O trato que a filosofia do século XVIII dispensa à reflexão histórica revela-se afim a

seu modo de abordagem da ciência natural e da teoria do conhecimento, na medida em

que, também nessa disciplina, recorre-se à aplicação metodológica da razão enquanto

instrumento capaz de conferir unidade e generalidade àquilo que em um primeiro momento

se apresenta como particular e múltiplo (Cf.CASSIRER, 1950). Em Kant, é precisamente a

perspectiva da razão que lhe permite ultrapassar o âmbito da contingência histórica e

12

interrogar-se acerca da história enquanto Weltgeschichte, noção que supõe a existência de

uma lógica do devir, um sentido a priori para além de um mero apanhado de manifestações

empíricas aleatoriamente distribuídas na linha temporal. Trata-se, portanto, de voltar-se ao

mundo histórico a partir da ideia de como seria o fio da história se orientado a uma finalidade

racional (TERRA,1986:44).

“O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as

disposições é o antagonismo das mesmas na sociedade, na medida em que se torna ao fim

a causa de uma ordem regulada por leis desta sociedade”(HU:13)– nos diz Kant . Por

antagonismo o autor refere-se precisamente à inescapável duplicidade que caracteriza o

homem e da qual se deriva sua “insociável sociabilidade”, isto é, a interminável contenda

que se realiza em seu interior entre suas inclinações particularistas de ser apetitivo e

autorreferido e a racionalidade pura que lhe comanda agir de acordo com as leis

vinculatórias da moralidade. Atuam sobre o indivíduo, portanto, forças opostas que lhe

conferem tanto uma propensão à anti-sociabilidade quanto uma igualmente intensa

tendência à associação. Mas, tal qual a citação prévia indica, as forças não se cancelam,

simplesmente, levando ao imobilismo. Por intermédio de um mecanismo oculto, mesmo as

mais disassociativas inclinações são dirigidas a um fim harmônico: o egoísmo, a propensão

do indivíduo em utilizar-se dos demais como meios para sua vontade arbitrária, servirá como

estímulo à instituição de uma ordem jurídica que lhe ofereça resistência:

Agradeçamos, pois, a natureza pela intratabilidade, pela vaidade que produz a inveja competitiva, pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também de dominar! Sem eles todas as excelentes disposições naturais da humanidade permaneceriam em sono eterno. O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe o que é melhor para a espécie: ela quer a discórdia (HU:14).

Mas certas problemáticas teóricas persistem ainda, mesmo no âmbito deste “arranjo

harmonioso”. A princípio, o já referido paradoxo de uma teoria ética centrada na vontade

pura do sujeito individual só encontrar resolução do ponto de vista do desenvolvimento da

espécie humana, coletivamente considerada9. Aliada a esta problemática, emerge ainda

outra: como pensar a conciliação entre a livre agência moral e o determinismo de um “plano

da natureza”, que nos destina ao reino dos fins? O problema, tal qual apontado por Ricardo

Terra, é que o progresso, nesta perspectiva, passa a depender “mais daquilo que a natureza

humana forçará os homens a fazer do que de sua ação consciente”(TERRA, 1986:61). Se a

própria perspectiva de uma filosofia da história, fundamentada na suposição de uma

finalidade a priori, leva a uma reconsideração da ação moral, na medida que esta passa a

9 Já na segunda proposição à “Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita”, Kant havia anunciado: “No homem (única criatura racional sobre a Terra) aquelas disposições naturais que estão voltadas para o uso de sua razão devem desenvolver-se completamente apenas na espécie e não no indivíduo” (HU:11).

13

ser determinada por sua adequação à possibilidade de instituição de uma comunidade

ética10, vemos, aqui, que a concepção de progresso enquanto ardil da natureza coloca em

questão o próprio compromisso do sujeito com a lei moral. Na avaliação de Hannah Arendt,

trata-se de uma contradição inerente à ideia de progresso em si, na medida em que esta,

por seu caráter mecanicista, “contradiz a noção kantiana da dignidade do homem”(ARENDT,

1993:99), uma vez que dissolve aquelas categorias centrais da moralidade - a liberdade e a

autonomia.

Para a investigação de uma possível solução a essa controvérsia no interior da teoria

kantiana, propomos retornar às considerações relativas à natureza humana. Até aqui, a

vimos conceituada como antagônica, híbrida, e foi precisamente a partir desta dualidade

intrínseca que vimos operar a astúcia da natureza, convertendo as inclinações negativas

(anti-sociais) em material para o desenvolvimento das disposições positivas (sociais). Seria

então legítimo dizer que a natureza humana não pode ser dita boa ou má, mas que somos,

de fato, levados a afirmá-la como tanto uma coisa quanto outra? Kant não aceitará tal

solução de compromisso. Inicialmente, reconhece que coexistem em nossa natureza tanto

uma “disposição original para o bem” quanto “uma propensão ao mal”. O fundamental é que,

se a disposição ao bem não basta para caracterizar o homem como bom, a existência da

propensão maligna é suficiente à afirmação do homem enquanto mau por natureza

(REL:279). O autor esclarece:

A proposição: o homem é mau não pode querer dizer outra coisa senão: ele tem consciência da lei moral e admitiu em sua máxima o afastamento (ocasional) da mesma. Ele é mau por natureza significa que isto vale pra ele considerado em sua espécie […] (REL:282).

Percebe-se que o mal radical atribuído à natureza humana não é remetido por Kant

ao seu elemento apetitivo. Não se trata de dirigir vituperações à sensibilidade. Pelo

contrário: esta é acolhida por Kant, segundo o argumento de que as inclinações não têm

uma relação direta com o mal, mas antes dão ocasião para o exercício da virtude (REL:283).

Tampouco se pode culpar uma “perversão da razão legisladora”, uma vez que é impossível

a esta contradizer a autoridade da própria lei que impõe sobre si. Não sendo localizado,

portanto, nem na sensibilidade nem na razão, o mal é antes definido em termos de uma

perversão hierárquica: não são os apetites naturais em si que fazem o homem mau, mas

sua decisão arbitrária de inverter a subordinação da inclinação à lei moral, corrompendo

assim a máxima de seu agir. O homem, enquanto espécie, é mau por natureza porque sua

natureza encerra a possibilidade de realizar uma escolha pela não conformidade à lei moral,

em privilégio de suas paixões apetitivas. Mas em lugar central está posta a liberdade, o

10 Referimo-nos especificamente à terceira formulação do imperativo categórico.

14

arbítrio, condição necessária a qualquer ação que se pretenda moral: a espécie humana é

vítima de um mal radical, inato; está sujeita ao arbítrio do homem enquanto indivíduo,

entretanto, a decisão de re-estabelecer ou não a disposição original para o bem.

O que o homem é ou deve vir a ser moralmente, bom ou mau, deve fazê-lo por si mesmo. [...] Quando se diz: ele foi criado bom, isto não pode querer significar mais do que: ele foi criado para o bem e a disposição original no homem é boa; mas o próprio homem não o é ainda senão depois de ter aceito ou não em sua máxima os motivos contidos por esta disposição (o que deve ser totalmente deixado à sua livre escolha); é ele mesmo que faz com que se torne bom ou mau (REL:290).

O mal é inerente e inextinguível, mas o indivíduo deve esforçar-se em dominá-lo,

convertendo-se assim em sujeito moralmente bom. E, dado que “o dever que nos ordena sê-

lo, não nos ordena, porém, nada que não seja praticável”(REL:292), tudo se encerra em sua

intenção de tomar para si como máxima o respeito puro à lei moral e dedicar-se

resolutamente ao esforço de moldar-se a si próprio, ainda que o processo seja lento e

gradual – isto é, ainda que só se possa dar ao longo do tempo histórico, atravessando

gerações, extrapolando o indivíduo empírico. Trata-se de um imperativo de automodelação

que, conquanto não consiga jamais garantir uma conformação plena à santidade, mantém o

sujeito na busca constante por tal ideal de perfeição moral.

Perceba-se que inexiste, aqui, qualquer noção de uma intervenção divina que

transforme o homem por meio de concessão de uma graça: a tarefa é de auto-

aperfeiçoamento, isto é, exclusivamente sua própria (PASCAL, 2008:191). A teologia,

entretanto, tem papel fundamental na formulação11. Na interpretação de Gérard Lebrun

(1986), o horizonte da Criação é apontado como essencial à consideração do reino dos fins

enquanto união sistemática de seres racionais mediante leis comuns, mas em uma

perspectiva que recupera o sentido latente da noções de dignidade e autonomia, contra a

suposição de que um determinismo natural ou providencial se imporia sobre a possibilidade

da agência moral. Para Lebrun, a terceira formulação do imperativo – agir como uma

vontade que institui, por suas máximas, uma legislação universal - permite pensar a ação

por dever de forma essencialmente distinta daquela derivada de suas formulações

anteriores, especialmente em razão de a ideia de autonomia então adquirir o sentido, para a

subjetividade, de cumprimento da função de legislador a qual a natureza lhe havia

destinado. Nesse ponto, “torna a ideia da comunidade de direito dos seres racionais

constitutiva da representação do imperativo”(LEBRUN, 1986:79). A ação moral, nessa

11 A ideia da existência de Deus já havia sido definida por Kant como ideia necessária da razão especulativa na primeira Crítica. N’A Religião..., estabelece: “A moral conduz infalivelmente à religião, estendendo-se assim até a ideia de um legislador moral poderoso e exterior ao homem, em cuja vontade o fim (da criação do mundo) é aquilo mesmo que pode e deve ser igualmente o fim último do ser humano” (apud PASCAL,2008:188).

15

perspectiva, coaduna-se com a ação de um sujeito que é chamado a ascender moralmente

mediante sua atuação enquanto legislador universal, instituidor de um mundo de seres

racionais vinculados entre si.

Considerados desse ponto de vista, “reino do fins” e “liberdade” não se contradizem,

portanto, como se poderia derivar da ideia de filosofia da história teleologicamente orientada,

atuando ardilosamente por meio de nossas disposições antagônicas. Pelo contrário, Kant

nos diz, o esquema teleológico, considerado da perspectiva da ação, não remete ao

necessário e incondicionado, mas a uma possibilidade em aberto, a algo de realizável.

A teleologia considera a natureza como um reino dos fins; a moral considera um reino possível dos fins como um reino da natureza. Ali, o reino dos fins é uma ideia teórica, destinada a explicar aquilo que é dado. Aqui, é uma ideia prática, que serve para cumprir o que não foi dado, mas que pode tornar-se real pelo nosso modo de agir, e isso de acordo com essa mesma ideia (FMC:100, em nota).

A noção de fim último, ao contrário de levar à evasão do indivíduo quanto à ação

moral, revela-se imprescindível para a persistência do sujeito no exercício do dever

(LEBRUN, 1986:86). Reproduzimos as palavras de Kant:

Mas isso não constitui uma razão para permitir-se ao homem que permaneça inativo nesse negócio (a instituição de um povo moral de Deus) e deixe agir a Providência, como se cada qual pudesse cuidar unicamente de seu interesse moral particular e abandonar por completo, a uma sabedoria superior, os interesses do gênero humano. Ao contrário: cada um deve proceder como se tudo dependesse dele (als ob alles auf ihn ankomme) e é somente sob tal condição que ele pode ter a esperança de que uma sabedoria superior se digne a consumar o seu esforço bem intencionado (apud LEBRUN, 1986:84).

Desdobramentos políticos da ética da dignidade kantiana: a paz perpétua A ideia de reino dos fins, vimos, propicia um elo para pensarmos a afinidade entre

moral e política: o comando moral que ordena agir como legislador que promulga uma união

sistemática entre seres racionais supõe o estabelecimento de relações entre uma

comunidade de legisladores, o que remete à necessidade de um sistema de princípios que

organize tais relações. No entanto, à diferença da moral, que se volta à esfera da

interioridade e que, por definição, é imune a qualquer constrangimento que não o

mandamento da vontade pura, a legalidade será definida enquanto regulamentação das

relações externas que, distintamente daquela, admite a utilização de mecanismos

coercitivos. Novamente, somos remetidos à noção de um arranjo artificial que se estabelece

a despeito das consciências individuais e que se encarrega de propiciar a harmonização do

conjunto: “O direito é a limitação da liberdade de cada um à condição de sua consonância

com a liberdade de todos, enquanto esta é possível segundo uma lei universal; e o direito

público é o conjunto das lei exteriores que tornam possível semelhante acordo universal”

(TP:78, grifos no original). A teoria política de Kant assim recupera o tema teleológico de

16

uma ordenação providencial que emerge a despeito de – melhor diríamos, em função de –

nossas disposições anti-sociais. N' A Paz Perpétua, o ponto é estabelecido de modo

incisivo:

[…] vem então a natureza em ajuda […] de modo que dependa só de uma boa organização do Estado (a qual efectivamente reside no poder do homem) a orientação das suas forças, de modo que umas detenham as outras nos seus efeitos destruidores ou os eliminem: o resultado para a razão é como se essas tendência não existissem e assim o homem está obrigado a ser um bom cidadão, embora não seja obrigado a ser moralmente um homem bom. O problema do estabelecimento do Estado, por mais áspero que soe, tem solução, inclusive para um povo de demónios (contanto que tenham entendimento) (PP:158).

Aqui, subsumida à admissão de uma sociedade de “demônios dotados de

entendimento”, a radicalidade dos preceitos morais kantianos aparenta ter sido atingida em

seu núcleo. De fato, na obra em questão, a tese do estabelecimento de uma paz perpétua

entre as nações pode ser lida como a manifestação da mesma metáfora bélica que,

previamente, havia tido como arena de conflito a própria interioridade do homem, e que teria

contado com uma astúcia da natureza para uma resolução feliz. Na esfera da organização

de cada Estado, e da relação entre seus membros individuais, vemos que a lógica

permanece a mesma, e em tudo se assemelha a um golpe desferido contra a moralidade.

Hannah Arendt, em sua interpretação da filosofia política kantiana, investiga a forma

como Kant logra reeditar tal noção, de inspiração aristotélica, de que “um homem mau pode

ser um bom cidadão em um bom Estado” baseando-se na premissa de que “em política,

distintamente da moral, tudo depende da conduta pública” (ARENDT, 1993:26). A partir de

sua leitura, acreditamos poder vislumbrar uma saída possível – ou, ao menos, a

possibilidade de uma interpretação mais sensível aos matizes da formulação de Kant - para

o dilema do insulamento da moral em relação à política. Arendt, na realidade, não parte dos

textos políticos, sequer da segunda Crítica, mas da terceira: voltando-se à Crítica do Juízo, e

em especial à Analítica do Belo, afirma a sociabilidade como condição imprescindível à

possibilidade de julgar. Diferentemente de teorias que estabelecem a interdependência entre

os indivíduos enquanto conseqüência da necessidade de suprir carências físicas, trata-se

aqui de uma necessidade ligada às próprias faculdades do espírito. O juízo, grosso modo, é,

de acordo com Kant, a faculdade que permite remontar do particular ao universal. Segundo

enfatiza Arendt, a possibilidade de pensar o particular depende precisamente da capacidade

de submetê-lo à generalidade. A realização desse movimento depende, por sua vez, de um

“alargamento da mentalidade”, isto é, da abstração das condições e circunstâncias

singulares em direção a uma universalidade que, por definição, remete à imparcialidade. No

que tange aos juízos estéticos, aqueles relativos ao gosto, a imparcialidade é definida em

contraste com a utilidade: o belo não é meio para qualquer outro fim senão o mero prazer

17

contemplativo, desinteressado, desvinculado de qualquer uso particular. O gosto, portanto,

enquanto sentimento pelo belo, só tem valor na medida em que pode ser comunicado – e

sua comunicabilidade depende, precisamente, da capacidade de transitar do idiossincrático

ao geral.

O ‘isto me agrada ou desagrada’ que, na qualidade de sentimento, parece ser totalmente privado e incomunicável, está na verdade enraizado nesse senso comunitário e, portanto, aberto à comunicação uma vez que tenha sido transformado pela reflexão, que leva em consideração todos os outros e seus sentimentos. Esses juízos nunca têm a validade das proposições cognitivas ou científicas [...]; podemos apenas ‘cotejar’ ou ‘pretender’ a concordância de todos. E nessa atividade persuasiva apelamos, na verdade, para o ‘senso comunitário’. Em outras palavras, quando julgamos, julgamos como membros de uma comunidade (ARENDT,1993:93).

Somos então levados a considerar a significação política latente das categorias da

imparcialidade e da comunicabilidade, na medida em que estas se revelam, no âmbito da

filosofia política de Kant, associadas ao tema central da publicidade. Na definição do

conceito transcendental do direito, a noção se estabelece de forma definitiva. Dirá Kant:

Se no direito público prescindo, como habitualmente o concebem os juristas, de toda a matéria (segundo as diferentes relações empiricamente dadas dos homens no Estado, ou também dos Estados entre si), ainda me resta a forma da publicidade, cuja possibilidade está contida em toda a pretensão jurídica, porque sem ela não haveria justiça alguma (que só pode pensar-se como publicamente manifesta), por conseguinte, também não haveria nenhum direito, que só se outorga a partir da justiça (PP:177-8, grifos no original).

Contra a perspectiva de que as fontes do direito possam ser extraídas da

experiência, são antes remetidas a um critério formal de legitimação. Não se trata , portanto,

de voltar-se ao direito positivo, estatuário, mas de remontar àquele princípio jurídico de

caráter absolutamente necessário, independente de referencial empírico. Reencontramos

aqui os pressupostos das Críticas: tal princípio absoluto não pode provir de outra origem

senão a própria razão pura, que legisla a priori. O atributo da publicidade emerge, assim,

como o correlato necessário ao critério de universalidade suposto na própria definição da lei.

“Maus pensamentos são secretos por definição”, dirá Arendt (1993:27): uma máxima que

não pode ser publicamente comunicada não pode reivindicar legalidade. A capacidade de

publicização encerra o teste de validade universal do preceito, isto é, de sua qualidade legal,

que lhe garante a independência de particularismos em favor de seu caráter puramente

abstrato.

Os fundamentos filosóficos da organização política remontem, pois, a uma

“metafísica da lei”(REISS, 1970:20). Tal ordenamento legal, não obstante, é definido

enquanto ordem coercitiva: há necessidade de estabelecimento de um modelo

constitucional de constrangimento externo que imponha limites às vontades individuais

dispersas e conflitantes, impondo-lhes a obediência a uma vontade que tenha valor

universal. Mas a capacidade da teoria política kantiana de manter-se firme a esse preceito,

18

sem com isso, entretanto, sacrificar a liberdade, depende da definição peculiar que oferece

ao termo: livre é então o indivíduo que não é submetido a qualquer outra forma de coação

externa senão a imposição da lei, e esta depende, por sua vez, de uma fusão das vontades

particulares. Fusão, aqui, evidentemente, não se refere a um simples somatório, mas

precisamente à possibilidade de transição do particularismo ao universalismo, tal qual

estabelecido pelo critério da publicidade. Assim sendo, “[…] a constituição civil é uma

relação de homens livres, que (sem dano de sua liberdade no todo da sua religação com os

outros) se encontram sujeitos a leis coercitivas [...]” (TP:78-79).

As afinidades com o aspecto restritivo do imperativo categórico revelam-se bastante

óbvias. Tanto quanto o mandamento da razão prática, o aparato jurídico de Kant é uma

coação exercida pelos sujeitos sobre si mesmos: no primeiro caso, uma imposição interna,

que a subjetividade extrai de e aplica sobre si própria; no segundo, um constrangimento

externo, instituído pela vontade coletiva dos mesmos sujeitos que a ela se subordinam. Em

comum, o traço de a legislação ter, consistentemente, sua origem idêntica a seu destino. Em

ambos os casos, abre-se ocasião para a alegação de que os preceitos kantianos estariam

restritos ao aspecto puramente formal. Em matéria moral, no que tange ao imperativo, tanto

quanto em âmbito político, no que se refere ao modelo constitucional proposto, a prescrição

da forma estaria sobreposta à determinação do conteúdo.

De fato, de acordo com o afirmado por Kant, uma constituição concebida em

conformidade com o princípio universal do direito seria necessariamente republicana em sua

forma.12 Mas insistimos que o aparelho jurídico-coercitivo de Kant pode ser compreendido

em seu aspecto fundamental – isto é, quanto ao caráter universal da lei cujas vontades

particulares reunidas proclamam para o governo de si próprias – apenas quando tomado em

referência àquela categoria nuclear de sua filosofia moral, a liberdade radical que

caracteriza o sujeito descrito em termos de sua dignidade. Não é outra a ideia de um reino

dos fins, vimos, senão a atuação de todos os seus membros enquanto vontades

legisladoras vinculadas, incondicionadas em relação a qualquer determinação que não

aquela derivada exclusivamente de sua própria razão. Por esse prisma, entende-se que a

acusação de vacuidade formal dirigida a Kant sustenta-se tão somente caso se

desconsidere que o conteúdo a ser realizado desde o princípio – tanto em sua obra crítica,

quanto em sua filosofia da história e, finalmente, em seu pensamento político – não era

12 A determinação de quem exerce o poder é aqui subordinada ao modo específico como o poder é exercido: republicana, nesse sentido, em contraste com despótica, é a constituição que garante a separação entre os poderes executivo e legislativo, condição sem a qual a vontade do povo somente se efetivaria quando refletisse a vontade arbitrária do governante, ferindo, assim, o princípio da universalidade. A constituição republicana define-se, ainda, por sua fundamentação em três princípios: a liberdade de todos os seus membros, enquanto homens; a dependência de todos em relação ao uma legislação comum, enquanto súditos; e sua igualdade legal, enquanto cidadãos (TP:79).

19

outro senão a própria subjetividade autônoma, isto é, o próprio homem descrito em termos

de sua dignidade. O apelo à universalidade da lei, fundamentada não em um mero contrato

de subordinação, mas antes na fusão das vontades particulares em uma vontade geral, é o

que garante a legitimidade da ordem política, não somente na condição de um arranjo

institucional voltado a consecução de determinados fins, mas no sentido de cumprimento de

uma tarefa ética que é um fim em si própria.

Considerações finais: dois momentos da dignidade

Pensar a projeção histórica da ideia de dignidade revela um interessante arco

narrativo, que aproxima os debates teológico-filosóficos do humanismo renascentista à

tradição do individualismo moderno. Aqui analisada em dois momentos de sua elaboração

teórica, vimos a dignidade revelar-se noção complexa, aglutinadora de uma variedade de

concepções de ordem teológico-metafísica, cognitiva, moral e, enfim, política. Destacamos

como pontos de aproximação entre as formulações de Pico e Kant: 1) a dignidade vinculada

a uma noção de natureza humana que define qualitativamente o indivíduo como fim em si,

de caráter e valor único e intrínseco; 2) a consideração da natureza humana em termos das

condições e limites de sua perfectibilidade e maleabilidade; 3) a dignidade remetida ao

sentido radical de liberdade enquanto automodelação, autodeterminação e autogoverno: o

que distingue o homem não é a mera qualidade de ser racional mas a capacidade de aplicar

a razão à realização de escolhas morais autônomas; 4) a dignidade associada ao tema da

harmonia e da concórdia, expressa quer do ponto de vista da interioridade cindida dos

sujeitos individuais - na qual a razão deve lutar por conter os apetites- quer do ponto de vista

coletivo - em que a “concórdia epistemológica” da pax philosophica de Pico une a

humanidade em comunhão fraterna através da pacífica harmonização dos litígios doutrinais,

de maneira análoga à administração da discórdia segundo o ordenamento político-jurídico

da paz perpétua de Kant. Quando hoje pensamos a dignidade em um emaranhado

polissêmico com as noções de igualdade e direitos, tendemos a interpretá-la como um

determinado atributo, isto é, simples caractere que adere ao sujeito individual que dele

detém posse. Com Pico e Kant, a noção de dignidade se estabelece não como algo que se

possa possuir, mas sempre como um termo relacional e mediador, isto é, fundamento lógico

de uma determinada relação vinculante entre particular e universal.

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