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Acerca do pensamento de Giovanni Pico Della Mirandola A Oratio de Giovanni Pico della Mirandola, Conte di Concordia e della Mirandola, é talvez o mais famoso e conhecido texto do primeiro momento do Renascimento. O seu autor, figura verdadeiramente ex- cepcional, considerado em Itália como o humanista mais sábio, mais rico, jovem e belo do seu tempo e), tem sido visto, de facto, como um dos mais notáveis representantes do Humanismo Renascentista. Com efeito, a sua figura aparece-nos envolta num halo, misto de mistério e de admiração, de reverência e de veneração. Para tal contribuiu certamente um conjunto de circunstâncias de que podemos relevar a sua perso- nalidade fascinante, o seu «charme», aliado a um génio polifacetado, e uma vida curta e trágica, mas preenchida, interrompida por uma morte prematura aos 31 anos. e) Cf.José Vitorino de Pina Martins,jean Pie de la Mirandole. Un portrait inconnu de l'humaniste. Une édition três rare de ses conc/usions. Paris, P.V.F., 1976, p. 16.

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Page 1: Acercadopensamento de GiovanniPicoDellaMirandola · A Oratio de Giovanni Pico della Mirandola, Conte di Concordia e della Mirandola, é talvez o mais famoso e conhecido texto do primeiro

Acerca do pensamento deGiovanni Pico Della Mirandola

A Oratio de Giovanni Pico della Mirandola, Contedi Concordia e della Mirandola, é talvez o maisfamoso e conhecido texto do primeiro momento doRenascimento. O seu autor, figura verdadeiramente ex-cepcional, considerado em Itália como o humanista maissábio, mais rico, jovem e belo do seu tempo e), tem sidovisto, de facto, como um dos mais notáveis representantesdo Humanismo Renascentista.

Com efeito, a sua figura aparece-nos envolta num halo,misto de mistério e de admiração, de reverência e deveneração. Para tal contribuiu certamente um conjuntode circunstâncias de que podemos relevar a sua perso-nalidade fascinante, o seu «charme», aliado a um géniopolifacetado, e uma vida curta e trágica, mas preenchida,interrompida por uma morte prematura aos 31 anos.

e) Cf.José Vitorino de Pina Martins,jean Pie de la Mirandole. Unportrait inconnu de l'humaniste. Une édition três rare de ses conc/usions.Paris, P.V.F., 1976, p. 16.

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VIII GIOVANNI PICO DELLA MIRANDO LA

Giovanni Pico foi um dos homens a quem os vindourosreconheceram a marca do génio, devido à profundidadedas suas intuições e às circunstâncias de que colheu osbons e os maus frutos. Tudo isto, no entanto, concorreupara uma consolidação de uma sua imagem um poucofantástica, trabalhada pela fantasia do tempo. Porém,se esta é uma visão que se impôs, forjada na lenda ena tradição factual, a que não escapa a efeméride deuma cena de amor, envolvendo rapto e fuga seguidade arrependimento e vida austera, não deixa de serverdadeira e mais real, decerto para os que se abeiramda sua obra, a sua imagem de homem extraordinário,devido à sua precocidade, dedicado ao estudo, pensadorprofundo e exigente, seguro quanto aos seus pontos devista acerca da filosofia e disposto a defendê-los median-te uma argumentação clara e franca. Muito claramenteassume-se, tal como Marsilio Ficino, filósofo de profissão,para quem a verdade filosófica é, sem dúvida, um valora salvaguardar.

Numa leitura atenta dos textos, encontramo-nos peran-te uma dupla imagem de Pico, onde não há contradiçãoou exclusão, mas complementaridade: com efeito, é sóaparente a oposição entre uma sua faceta de homemapostando numa filosofia da acção e uma atitude que oenquadra na mística, enquanto homem da contemplação.Se o homem na sua dimensão terrena é dignificado ese a busca da felicidade é o horizonte do seu agir, nãoé menos verdade que dessa felicidade terrena faz partea relação do homem com Deus, e esta sua preocupaçãoresolve-se muitas vezes, no seu próprio itinerário, numaadesão a uma mística da luz.

Não é nossa intenção apresentar aqui um ensaio acercado seu pensamento, mas tão-só apontar aqueles aspectosda sua reflexão, da sua biografia, por vezes do ambientee da época em que viveu, que podem ajudar a uma me-

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lhor compreensão da Oratio, de que damos a traduçãoda sua redacção. Hoje, com os nossos olhos de homenscontemporâneos, preocupados em êompreender a reali-dade factual e espiritual das épocas que nos precederam,tão aproximativamente quanto possível, encontramo-nosperante este texto que em 1486 se constituía como umdesafio para a sua época e que nos aparece, em muitosaspectos, de plena actualidade.

Giovanni Pico della Mirandola é uma figura exemplardo Humanismo renascentista e este seu discurso, que maistarde passou a ser conhecido com o título de De HominisDignitate, é sem dúvida alguma um dos textos fundamentaispara uma compreensão, quer do seu pensamento, querda época em que viveu. Se com P. Kristellerí") podemosdizer que o Renascimento foi mais uma época de fermen-tos que de sínteses, então, a Oratio surge-nos como umaobra em que esses fermentos estão paradigmaticamentepatentes. Como refere Eugenio Garin, esta obra é o ma-nifesto do Renascimento í") mas, além disso, é também,em nosso entender, e de um ponto de vista filosófico, umelegante discurso e elogio da filosofia, enquanto esta éum discurso da razão, apontando, no seu estatuto, paracerta autonomia, se bem que sempre a filosofia estejadependente da teologia, porque se abre a uma realida-de que a supera no plano das fundamentações últimas.Relativamente à teologia, a filosofia é propedêutica, masjá não é ancilla.

(2) Cf. Paul Oskar Kristeller, Concetti rinascimentali dell'uomo edaltri saggi. Florença. La Nuova ltalia, 1978, p. 132.e) C. Eugenio Garin, Opere. De hominis dignitate. Hectaplus. Deente et uno. Adversus astrologiam divinatricem. Florença. Vallecchi,1942, vol. I1I, p. 23.

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x GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA

Neste texto, Giovanni Pico alude bastas vezes a umaratio philosophica, a par de uma ratio theologica, sem queentre elas se estabeleça uma relação de dependência,de subordinação uma à outra, mas antes de coopera-ção, de harmo,nia, para usar a terminologia do autor de«concórdia». E clara a preocupação em reivindicar umlugar próprio para a filosofia, sendo esta um investigaras causas dos processos da natureza, a razão do universoe do homem, os conselhos de Deus, enfim, os mistériosdo céu e da terra. Tal tematização está ligada ao novolugar conferido ao homem no universo, está ligada àdignidade do homem, diferente da concepção de homemna Idade Média, de que se distancia conscientemente,embora possua, assumidas ou não, muitas raízes dessemundo medieval.

A Oratio situa-se, contudo, de modo inequívoco nohorizonte da modernidade, embora nela esteja implica-do muito de conservador, a par de aspectos claramenteinovadores, no contexto do que foi a riqueza transbor-dan~e da sua época, isto é, um aspecto não se podendodeshg~r do outro senão por um processo lógico, ou seja,exclusivamenu- analítico. Assim sendo, a sua meditaçãofilosófic~ aparece-nos como um reflexo exemplar doHumamsmo Renascentista, não um Humanismo apenaspreoc~pado com o cultivo das humanidades enquantoestas sao consideradas disciplinarmente, mas envolvendotambém o conceito de humanismo como valorização epromoção dos valores do homem. Giovanni Pico não é umhumanista apenas preocupado com questões filológicas,mas sobretudo com questões filosóficas; daí a sua polémi-ca anti-retórica, mantida com Ermolao Barbaro e à qualf~remos adiante uma breve referência, para sublinhar adiferença que o nosso filósofo estabelece entre sapiênciae eloquê~cia, criticando num certo humanismo, de queBarbaro e um dos representantes, o gosto excessivo pelo

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ornamento em detrimento de questões mais fundamentaisque a filosofia com toda a simplicidade coloca.

Do mesmo modo que o Humanismo Renascentista podeser considerado um processo complexo, de aspectos muitasvezes contraditórios, difícil de reconduzir a um momentolinear de explicação, também a problemática filosóficaque o nosso autor nos apresenta é complexa, trabalhadaa partir de uma multiplicidade de vias, de explorações,que só em parte, no entanto, explicam o seu itineráriofilosófico. Seguindo Cesare Vasoli, somos levados a dizerque a unidade da época em que viveu reside na pertençaa uma única grande experiência cultural, muito variadae até mesmo contraditória nas suas saídas, quanto rica deinfluências decisivas para a história comum da civilizaçãoeuropeiaf"). Tal consideração aplica-se bastante aproxima-tivamente à figura do Conde della Mirandola, de quemapresentamos em seguida breves traços biográficos.

Traços biográficos

Giovanni Pico della Mirandola, Conte di Concordia,nasce em Mirandola, Itália setentrional, em 24 de Feve-reiro de 1463, e morre em Florença, em 17 de Novembrode 1496(5).

Representante da nobreza do Norte da Itália, a suaformação de humanista não é toscana, mas desenvolve-

(4) Cf. Cesare Vasoli, Imagini umanistiche. Nápoles, Morano,1983, p. 5. .

(5) Cf. Eugenio Garin, Ritratti di umanisti. Florença, Sansom,1967,pp. 185-217,onde o autor nos apresenta a figura de GiovanniPico della Mirandola. Deste estudo colhemos alguns dados paraelaborar e traçar a sua biografia.

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XII GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA

-se nos grandes centros da região em que nasceu: Bo-lonha, Pádua, Ferrara, Mântua, Pavia, só mais tarde seestendendo a Paris e Florença.

De condição nobre, sua mãe, senhora muito piedosae muito ligada a este filho, destina-o à vida eclesiástica enesse sentido, segundo o costume da época, proporciona--lhe a formação necessária à obtenção de um alto cargona Igreja. Assim, com catorze anos, em 1477, é enviadopara Bolonha a fim de aí estudar Direito Canónico. Édesta estada bolonhesa e, após dois anos de estudo comvista à sua preparação para jurista, que descobre queo seu caminho não é esse. Antes se sente atraído pelafilosofia, enquanto saber universal, fundamentador efundante, que propicia a obtenção de um conhecimentomais aprofundado acerca da realidade humana e acercadas coisas do mundo.

Tal entusiasmo pela filosofia leva-o a abandonar Bolo-nha - centro universitário escolástico de grande tradiçãono domínio das leis - e a dirigir-se a outros centros quelhe permitissem adquirir certa formação neste seu outroe novo interesse.

Encontramos Giovanni Pico em 1479, em Ferrara, ondedurante dois anos, sob a orientação de Battista Guarino,grande humanista, lê os autores gregos e latinos. Ferraraera, nesta altura, uma cidade prestigiada pelo seu laborendereçado para o estudo das humanidades. Nela seveiculava o interesse por uma nova forma de cultura. Nasaulas de grego e de latim, entre muitos outros autoresantigos, liam-se os originais de Platão e Aristóteles. BattistaGuarino foi um dos que influíram efectivamente na reno-vação do saber em Ferrara, mas tendo também, em termosda Europa da época, contribuído para a constituição daescola, tal como o Quattrocento italiano a concebeu, istoé, diferente da escola medieval, porque não profissionale não técnica. Guarino aparece-nos essencialmente como

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o exemplo de uma cultura laica, que despontava agora,que não punha em questão a cultura religiosa, mas a pardesta desenvolvia outras áreas de interesses (6).

Entre 1480 e 1482, encontramo-lo em Pádua, ondeestuda filosofia e teologia e onde entra em contactocom o pensamento escolástico - São Tomás de Aquino,Escoto, etc. Aqui, num ambiente aristotélico contactacom Nicoletto Vernia, peripatético averroísta, facto queserá importante para a sua posterior actuação filosófica.A escola de Pádua, que se mantém fiel a Aristóteles, inter-pretado segundo a tradição averroísta, sente, no entanto,a necessidade de recuperar este filósofo, numa leitura jánão medieval mas humanista e como forma de contrapo-sição ao cada vez maior impacto que a filosofia de Platãovinha a adquirir nos círculos doutos da época.

Esta atitude é assumida, por exemplo, por ErmolaoBarbaro, que o nosso filósofo não encontra em Páduanesta sua estada, mas de quem foi discípulo e amigo ecom o qual manteve relações de concórdia-discórdia,não obstante a mútua admiração. Nesta cidade conhe-ce um outro humanista, Elia del Medigo, também seumestre e amigo, douto hebreu, tradutor e comentadorde Averróis e que presidia à Escola Talmúdica de Itá-lia, homem profundamente religioso, que traduziu ecompendiou textos filosóficos para Pico, fornecendo--lhe preciosos elementos acerca da filosofia da Cabala.É este, verdadeiramente, o momento de iniciação donosso autor na mística de Averróis, portanto, de apro-fundamento do pensamento árabe. Foi também esta a

(6) Acerca da figura de Battista Guarino cf. Idem, ibidem.pp.69-106.

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altura em que mais se dedicou a um conhecimento dafilosofia hebraica.

Ferrara primeiro, Pádua em seguida, são os itineráriosda sua primeira formação humanística e do seu conhe-cimento do pensamento escolástico.

Em 1484, dirige-se a Florença e entra em contactocom o círculo platónico que tem como seu mecenasLourenço, o Magnífico, um Medici, patrono de artistascomo Miguel Ângelo e de intelectuais como MarsilioFicino, Angelo Poliziano e amigo e defensor incansáveldo próprio Conde della Mirandola. Encontra, então,Marsilio Ficino, neoplatónico, e tal acontecimento serádeterminante na sua conversão ao platonismo florentino.Reencontra Angelo Poliziano, conhecimento e amizadenascidos numa sua breve estada em Mântua. Polizianoera na altura, em Florença, preceptor dos filhos de Lou-renço de Medici. A amizade entre os dois foi constantee durou até à sua morte.

A Academia, de que Marsilio Ficino é a alma, suscita asua reflexão sobre Platão e leva-oa intuir algo que será umdos tópicos centrais da sua meditação filosófica, ou seja, oacordo, ao limite, entre Platão e Aristóteles, aspecto que éo vestíbulo de uma sua tese central, a saber: a questão so-bre a concórdia. Além disso, a sua frequência da Academiadespertou-o para toda a problemática acerca dos mistériosplatónicos e herméticos, de que Marsilio Ficino era otenaz. estudioso. Tais temas atraíram-no de tal modo quedaqui resultou a sua convicção de que a verdade se ocultapor trás dos véus dos enigmas. É desta estada florentina aredacção, em 1485, da célebre Carta a Ermolao Barbaro, degenere dicendi philosophorum, onde defende os filósofos ea filosofia escolásticos.

Ermolao Barbaro, humanista de orientação aristotélica,professor na universidade de Pádua, subtil jurista e filólo-go, isto é, defensor das belas letras e, portanto, interessado

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em veicular um estilo elegante e leve por oposição ao estilopesado e um pouco rude, no seu entender, dos filósofosbárbaros, é uma referência obrigatória do itinerário filosó-fico do nosso autor. Porém, nem sempre entre os dois semanteve a concórdia. Pico, em nome da filosofia, sente anecessidade de se distanciar do humanismo do professorpaduano, demasiadamente centrado no domínio do filo-lógico, depreciativo no que respeita ao discurso filosófico,privilegiando a mera erudição e eloquência, procu-rando mais a convicção mediante a arte da palavra doque a obtenção da verdade. Ora, a possibilidade de umademarcação do nosso filósofo relativamente a Barbaro é-lhe proporcionada por este último, ao escrever-lhe umacarta na qual afirma: «Duos agnosco dominos, Christum etlitteras». E com esta acção quer vincar a relevância e asupremacia da elegância estilística, considerando-a quasecomo um fim em si mesma, facto que o leva também adizer que não é homem quem não é literato.

A esta carta Giovanni Pico responde com a referidaCarta a Ermolao Barbaro, onde, se bem que afirme nãodesprezar as letras, antes pelo contrário, coloca-as noentanto ao serviço de algo mais fundamental e que iden-tifica com a verdade, cabendo essa procura da verdadeà filosofia, numa atitude de acordo com os dogmas doCristianismo. Nesta Carta, a sua preocupação consiste,na essência, em fazer uma defesa do estatuto da filosofiae da dignidade do filósofo. Esta sua resposta, em 1485,provoca o esfriamento e um pouco de tensão entre osdois homens.

De 1485 a 1486, encontra-se em Paris e aí confirmadecididamente a sua vocação filosófica,já há tanto tempoentrevista em Bolonha e que o levou a desistir dos seusestudos como jurista e atinentes à carreira eclesiástica.

Bolonha, Ferrara, Pádua, Florença, Paris, são os mo-mentos necessários para a emergência, ao nível explicativo,

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do seu filosofar, são os itinerários de uma formação apu-rada que, para além de lhe proporcionarem um conhe-cimento do mundo da escola, lhe vão desvelar tambémo mundo do novo saber que se está a constituir, ou seja,o conhecimento veiculado pela cultura humanística que,como por exemplo em Florença, se desenvolvia e cresciaà margem da Universidade.

O Conde della Mirandola finalmente é um huma-nista, estudou grego, hebraico, árabe, é um defensor dosautores clássicos, sendo significativa no seu pensamentoa evocação dos autores antigos gregos e romanos, assimcomo é relevante ter possuído uma das maiores biblio-tecas do seu século, aspecto nitidamente renascentista,conservando-se ainda duas cópias do seu inventário,uma na Biblioteca Vaticana, outra no Arquivo de Mode-na. Mas, se bem que receptivo relativamente ao novo,preocupou-se em recuperar não só esse passado grego eromano como também o medieval. Tal facto justifica-sea partir do seu convívio com os autores medievais que,como refere a Ermolao Barbaro, na sua carta, durou seisdos seus melhores anos, tendo estudado Tomás, Escoto,Alberto e Averróis, entre outros.

Cerrou-se assim o ciclo de uma formação excepcional.Adepto do orientale lumen, mas, simultaneamente, preocu-pado em salvar as conquistas do passado próximo, porquea verdade nenhuma filosofia ou escola a possui, possuiuou possuirá, constituindo-se cada uma como um ponto devista sobre a verdade. Daí a necessidade de nada deixarde fora, tudo analisar, tudo procurar compreender, nesseesforço permanente de aproximação a uma verdade queonticamente se dá ao homem como parcelar, porquemetafisicamente transcendente.

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM XVII

A redacção da Oratio

Vindo de Paris, de volta à Itália, em 1486, em Fratta,perto de Peruggia, Giovanni Pico della Mirandola redigea sua obra mais original, se tivermos em consideração oscontextos complexos da época em que viveu, e isto devidoà sua concepção. Em tal trabalho, propõe-se reunir todosos conhecimentos que até então tinha adquirido. Estamosperante uma espécie de relatório, redigido segundo ométodo escolástico parisiense, portanto, organizado emteses, justificativo do seu labor filosófico, e onde se ex-prime mais um aspecto característico do Renascimento,ou seja, a preocupação em veicular um conhecimentoenciclopédico. Deste modo, em novecentas teses, tambémchamadas conclusões, apresenta quer o seu pensamentopessoal, quer o pensamento dos que antes dele deramum contributo para a filosofia.

Nas primeiras quatrocentas teses, que possuem umcarácter histórico-crítico, refere-se à filosofia dos pensa-dores que o precederam, como, por exemplo, Pitágoras,Platão, Aristóteles, Duns Escoto, São Tomás de Aquino,Alexandre de Afrodísia, Averróis, Avicena, os Cabalistas,Mercúrio Trimegisto. As outras quinhentas teses expri-mem o seu pensamentot").

(') Giovanni di Napoli, Giovanni Pico delta Mirandola e laproblematica dottrinale dei suo tempo. Roma, Ed. Ponteficci, 1955.Neste estudo, di Napoli chama a atenção de um modo muitointeressante para o facto de verdadeiramente não se poder falar emfontes acerca do pensamento do nosso filósofo, na medida em que,a ter de se considerar as fontes, estas seriam todos os documentosque constituíam a biblioteca do seu tempo. Isto não significa quePico não preferisse certos filósofos em detrimento de outros, masem geral estimava todos com certa reserva declarada relativamenteaos representantes da astrologia judiciária que considerava nãofilósofos, mas charlatães.

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Ora, estas novecentas teses foram escritas com a in-tenção de promover, em Roma, em 1487, uma discussãofilosófica pública, tão alargada quanto possível, que deviareunir os filósofos de todas as tendências, unidos numesforço comum de aproximação à verdade e de promoçãoda concórdia entre todas as doutrinas. Pico propunha-sediscutir acerca de tudo, isto é, de omni scibili.

Tal propósito suscitou imediatamente opositores, queviam num projecto como este um gesto extravagante, ouum sinal de orgulho desmedido, por parte de alguémque era ainda muito jovem para poder sustentar umadisputa destas. Porém, as críticas mais contundentes e quedeterminaram a sorte da disputa que nunca se chegou arealizar, foram as que apontaram como estando eivadasde heresia algumas das suas teses. De facto, algum saborheterodoxo estava contido em concepções como aquelasem que fazia referência à defesa de Orígenes ou à negaçãoda eternidade das penas do Inferno. Desagrado suscitoutambém a sua defesa da magia e da Cabala.

Ermolao Barbaro, nesta oposição à disputa romana, assu-me um papel de contraditor moderado, considerando-o umsofista e comparando-o a Górgias, pronunciando-se contraeste estilo de discussões públicas, inúteis e vãs, porque nãoconduzem a uma obtenção da verdade e apenas visam aobtenção de prestígio e de honras.

A Oratio, como se pode verificar, foi concebida, nãocomo uma obra autónoma, mas como a introdução ne-cessária à abertura da disputa romana e tendo já presentealgumas das críticas apontadas às conclusões.

Primeiramente, treze teses da segunda parte, portanto,teses em que Giovanni Pico exprimia as suas opiniões, sãoconsideradas heréticas. Em sua defesa, escreve a Apologia(1487), onde retoma temas presentes na Oratio e quededica a Lourenço de Medici, seu amigo e fiel protec-toroCom a publicação desta obra, escrita num estado de

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espírito exaltado e nervoso, Inocêncio VIII condena embloco as novecentas teses. Devidoa este facto, o Condede Concórdia foge para França, onde temporariamentepermanece prisioneiro, regressando em 1488 a Itália,sob a protecção de Lourenço, o Magnífico. Alexandre IV,o papa que sucedeu a Inocêncio VIII, concede-lhe, em1493, a absolvição por heresia.

Desde 1488, até ao momento da sua morte em 1496,em Florença, talvez por influência do seu grande amigoSavonarola, que em 1489 foi chamado a Florença porLourenço de Medici, por seu conselho, Giovanni Pico de-dica-se a uma vida austera, meditando e alargando os seusconhecimentos religiosos. Já não é o homem impetuosoe irrequieto, suscitador de polémicas, as suas exigênciasreligiosas e morais provocam uma reflexão mais profunda,embora não lhe tivessem apagado a insaciável ãnsia desaber. Em 1496, morre em Florença. Nesse mesmo ano,a Oratio é publicada pelo seu sobrinho Gian Francescodella Mirandola, postumamente, e precedida de umbreve prólogo de apresentação onde procura reabilitara figura do tio.

o sentido da Oratio

Quando nos aproximamos do pensamento de umfilósofo como o do Conde della Mirandola, se queremosdetectar qual o seu contributo para a história da filosofia,é necessário atendermos à génese do seu pensamento.Nesse sentido, o estudo da sua formação, que sumaria-mente foi apresentada nos traços biográficos, constituium elemento que ajuda à compreensão do seu filosofar.Porém, e como é evidente, isso não basta e é necessárioir mais além. O que agora nos interessa salientar, numaanálise que se queira filosófica, é o ritmo próprio epeculiar da sua aproximação filosófica, isto é, procurar

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a intuição que deu origem à sua meditação, ou entãoprocurar determinar os centros da sua reflexão.

Eugenio Garin, com muita acuidade, chama a atençãopara o erro hermenêutico de se procurar fornecer visõesunificantes da filosofia de Pico, deformando gravementeo seu pensamento. Tomar como aglutinador de todas asoutras problemáticas um só tema é forçar e até mesmoreduzir a complexidade do seu pensamento, cortar a suariqueza (8) .

Assim sendo, talvez não interesse tanto procurar aintuição original, ou seja, o ponto de partida da suareflexão, porque tal metodologia não reflecte o ritmodo seu filosofar, quanto interrogarmo-nos acerca doscentros da sua meditação, a fim de acedermos ao seureal processo de filosofar.

Tais centros de reflexão encontram-se na Oratio, nãode um modo totalmente desenvolvido ou tematizado ,mas pelo menos acenados. Assim, não é tanto o jogo deinfluências que constitui um problema filosófico a deba-ter quanto, numa atitude hermenêutica, colhida numalição dos textos, a determinação dos temas que permitemorganizar o seu pensamento.

Em Giovanni Pico, o recurso a todo o aparato crítico eerudito que a época propiciava, especialmente uma plenautilização do retorno aos filósofos antigos e) , constituíaum pretexto para uma outra visão do mundo, assentesobretudo numa interiorização do já dito ou do já feito,uma espécie de experiência interior da filosofia, isto é,

(8) Cf. Eugenio Garin, L'opera e il pensiero di Giovannni Pico deltaMirandola, Florença, Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento,1964.

(9) Acerca da questão do retorno dos filósofos antigos, cf. Euge-nio Garin, Il ritorno dei filosofi antichi. Nápoles, Bibliopolis, 1983.

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM XXI

uma concepção filosófica passada pelo crivo da sua ati-tude crítica, que se propunha não jurar nas palavras deninguém e, simultaneamente, superar o «saber apenasde reflexo dos livros».

Será, então, tendo presente este seu ponto de vista,que procuraremos referenciar os centros da reflexãopresentes na Oratio. De um modo muito claro, esta estádividida em duas partes, uma primeira que diz respeitoà dignidade do homem, uma segunda, que tematiza aquestão da paz filosófica ou concórdia.

A dignidade do homem

o problema da dignidade do homem é perspectivadoem função do lugar central que este ocupa no universo,ponto de referência de toda a realidade. Daí podermosfalar em antropocentrismo.

Esta preocupação por uma valorização do homem nasua condição terrestre, se bem que encontre no nossoautor a sua máxima expressão, não é nova na época,pois já tinha encontrado algumas formas de expressãoem autores humanistas, especialmente a tematização deGianozzo Manetti, discípulo de Ambrogio Traversari, quecelebrou o homem e a sua dignidade, ao acentuar o valorda actividade humana, mas só na medida em que estalhe é conferida pelo Criador. Gianozzo não entrevê, noentanto, o alcance ontológico, metafísico e ético destatese. Tal intuição está reservada a Giovanni Pico dellaMirandola.

De facto, no Conte di Concordia, esta questão surgecomo uma tematização muito mais elaborada, podendodetectar-se na temática da dignidade do homem a arti-culação de três níveis de inteligibilidade: um problemada razão; um problema da liberdade humana; e um

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problema de ser. Dialéctica, ética e metafísica estão aquiimplicadas.

Com efeito, neste seu texto, surge inequivocamen-te uma afirmação da razão e do seu poder indagador,enquanto envolve uma possibilidade de compreender,sendo o filósofo o ser privilegiado por ter como atributoo discernir «com recta razão», e sendo a filosofia carac-terizada como um discurso dessa mesma razão.

Ora, é precisamente esta capacidade racional quepermite ao homem tomar consciência da sua dimensãocomo ser livre. A tematização do antropocentrismo pi-qui ano vem dada essencialmente a partir da consideraçãoda liberdade humana, virada, sem dúvida, para a acçãoética, portanto, com alcance prático, mas articulando umnível ontológico. O homem é o ser mais digno da Criaçãode Deus, porque foi colocado no centro do universo eporque de tudo quanto foi criado ele possui as sementes.Ser ontologicamente de natureza indeterminada, distin-gue-se, por tal facto, tanto do mundo natural como domundo angélico, de que é o mediador, distingue-se aindadevido a ser o artífice de si mesmo, de tal modo que oproblema da sua natureza não se pode pôr a priori, mastão-só a posteriori. Enquanto o animal, devido à naturezaque lhe é dada à partida, só pode ser animal e o anjo sópode ser anjo, o homem tem quase o poder divino de seconstituir segundo aquilo que quiser ser: pode degeneraraté aos brutos e pode regenerar-se até aos anjos, mas apossibilidade de viver como os animais ou como os seresespirituais depende inteiramente de si mesmo, isto é, dasua escolha. Esta tese, para a época, é verdadeiramentenotável e peculiar, o homem, ser de natureza indefinida,com a possibilidade de ser tudo, está condenado a escolher,está condenado à liberdade, por parte de Deus. E porquetem de escolher, o homem é fautor do seu destino. Eiso grande milagre.

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XXIII

Acentua-se assim o predomínio da vontade sobre osaber abstracto, sugestão certamente colhida nas suas lei-turas de autores medievais de raiz augustiniana. Tal facto,determina, sem dúvida, que o nosso autor considere queesta vontade, que é livre, e que como tal postula a escolhalivre, se se quiser realizar numa dimensão de facto huma-na, tem de estar orientada para o bem. O homem não sedeve contentar com as coisas medíocres, mas deve aspiraràs mais altas. Há aqui como que um compromisso éticodiferente do dado ontológico. Encontramo-nos peranteuma ética do poder ser, em que o homem, orientado pelarazão e desde que isso seja possível (questão dos limiteshumanos da acção), age com vista à obtenção dos maisaltos valores espirituais. Esta é uma outra forma de asua superioridade se expressar relativamente a todos osoutros seres criados.

Mas esta questão da dignidade do homem tem tambémum alcance ontológico. O facto de o homem se constituircomo um ser de natureza indefinida não apon ta para umapobreza ontológica, mas para uma riqueza. Porque em siestão colocadas todas as sementes dos seres criados, háno homem uma superabundância que lhe é conferidaà partida e que lhe compete, mediante a escolha, fazerfrutificar. Como refere Sante Pignagnoli (10), esta inde-finição ôntica, numa linguagem actual, funciona comoum pré-reflexivo, um pré-categorial, que tem de serdeterminado a partir da acção. O homem possui, então,o poder de se autodeterminar e deste modo coloca-seacima do mundo físico-biológico. Inscreve-se aqui oproblema da responsabilidade moral. De facto, pode-

(lO) Cf. Giovanni Pico delIa Mirandola. La dignità dell'uomo.Introduzione di Fabio Sante Pignagnoli. 2: ed., Bolonha, Patron,1970, p. 36.

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mos dizer que há na sua filosofia um predomínio dafilosofia moral, na medida em que esta possui um valorterapêutico para o homem. A recondução do homema Deus dá-se por via ética e a sua liberdade dá-se comoimago Dei: o homem acaba por aparecer como um deusterreno (11), necessariamente imperfeito, porque é ape-nas reflexo e imagem, isto é, ser à semelhança de Deusque, no entanto, sempre lhe permanece transcendente.Eis uma perspectiva metafísica.

Retomando esta questão da dignidade, parece-nosútil relacioná-la com outros dois problemas que a Oratioaponta e que são relevantes na economia do seu pensa-mento: são eles a magia e a condenação da astrologia,que deu mais tarde origem à polémica antiastrológica.O primeiro problema prolonga a questão da dignidade,o segundo articula-se com o da liberdade.

Referindo-se à magia, o nosso autor distingue uma«boa» magia de uma «má» magia, isto é, estabelece adiferença entre uma magia natural, que está ao alcancedo homem e que é considerada louvável, símbolo da suadignidade, porque é o fruto do poder do homem, e umamagia de origem diabólica, reprovável, que só é praticadasecretamente, porque não dignifica os seus cultores, antesos submete aos seus poderes maléficos (12).

A boa magia identifica-se com um conhecimento danatureza que pressupõe a compreensão dos seus segredose do desfrutar das suas possibilidades escondidas, isto é,dos sem; poderes. Tal questão inscreve-se na dignidadedo homem, enquanto ser capaz de encontrar, pela razão,a íntima harmonia do universo, dominando o seu poder,

(11) Cf. Idem, ibidem. p. 39.(12) Cf. Frances Yates, Giovanni Pico delta Mirandola and magic,

«Relazioni», Florença, 1965, p. 134.

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM xxv

colocando-o ao seu serviço e desvendando os seus maisarcanos segredos. Tal concepção de magia seria a ante-cessora da ciência experimental moderna e da ciênciatecnológica contemporânea. Daí algumas referênciasa Pico antecipando intuitivamente a concepção de umhomem tecnológico, enquanto defensor de uma ciênciade domínio da natureza.

A sua condenação da astrologia, tese a que sempre semanteve fiel, inscreve-se, por um lado, numa problemáti-ca muito característica do Renascimento, por outro, noenraizamento da liberdade: se se aceitar a tese de que osastros influenciam a vida humana e determinam o dia a diado homem, então, o problema da liberdade humana nãoteria sentido. Assim, desejoso de a salvaguardar, o nossofilósofo opõe-se a todas as fórmulas de ocultismo ou deastrologia, porque estas teorias acabavam por apontar paraum necessitarismo e determinismo do agir humano, quea sua concepção ética não podia aceitar. O nosso filósofonão nega que exista uma harmonia entre todos os seresdo universo, portanto, não recusa a tese de que entre omundo dos astros e o mundo humano haja uma relação,o que nega efectivamente é que os astros ten~am de umaforma directa o poder de influir nos acontecnnentos hu-manos. Com esta sua concepção, opõe-se, quer a MarsilioFicino, extremamente sensível e defensor da astrologia,quer a todo um ambiente característico do Rena~ci~ento,como bem demonstra Cesare Vasoli na sua obra intituladaI Miti e gli Astri, onde evidencia precisamente o papelcentral que a astrologia tinha adquirido neste épocar").Por tudo isto, de salientar também a posição inovadoradeste pensador, que coloca a questãodando-Ihe uma outra

(13) Cf. Cesare Vasoli, I miti e gli astri; Nápoles, Cuida Ed., 1977.

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dimensão a partir da consideração de que a liberdade éco-essencial ao homem, mas que os astros não o são. Estasua concepção dá origem à redacção, em 1493, da obraDisputationes Adversus AstrologiamDivinatricem, que envolveo seu autor em mais uma polémica, obrigando-o, paradefender a sua tese, a colocar de uma maneira muitoclara a relação entre o homem e a natureza.

Concórdia

A Concórdia ou paz filosófica é também um temacentral de Oratio e podemos considerá-la como umdos centros da sua reflexão, talvez aquele que melhorcorresponde à intenção e aos propósitos desta obra.

O tema da concórdia pode ter diferentes leituras, oudiferentes níveis de interpretação, no entanto, numprimeiro momento, ela é suscitada por um problemafilosófico que constitui uma antiga preocupação deGiovanni Pico, ou seja, o acordo, ao limite, entre todosos pensadores, mesmo dos que à partida parecem maisse opor. Este acordo foi inicialmente intuído acerca dafilosofia de Platão e de Aristóteles, mas que, emboraacenado na Oratio, só mais tarde encontrará a sua plenatematização com a redacção da obra De Ente et Uno, em1490. Esta sua secreta convicção estendeu-se a todos osfilósofos, a todas as correntes, e a Disputa Romana seriaprecisamente o lugar privilegiado, no entender do nos-so autor, para demonstrar esta tese. Pico acalentava aideia de, num gigantesco esforço conciliador, promovera concórdia universal entre todos os filósofos. Ora, talconcepção pode ser compreendida a partir de váriasinstâncias: a de prisca theologia, a de unidade da religiãono Cristianismo, a de unidade do pensamento humanoe, por fim, a de unidade da verdade.

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM XXVII

A noção de prisca theologia, cuja introdução tem a suaorigem em Marsilio Ficino, que a ~escobriu e valorizou,trabalha a favor da unidade, na medida em que comela se quer significar que há uma tradição religiosaininterrupta que liga as religiões mais antigas - recu-ando assim ao seu início com Zoroastro e Trimegisto_ à religião cristã, tal como ela se apresentava na épocade Marsilio Ficino. Como elos desta cadeia, teríamos,dentro de uma tradição e de um esquema apoiado nasteses neoplatónicas, sucedendo aos primeiro, isto é, aZoroastro e a Hermes Trimegisto, Aglaofemo, Pitágoras,Platão, Plotino, ]âmblico, Proclo e todos os medievaisplatonizantes. Marsilio Ficino considerava-se o últimoanel desta cadeia. Deste modo se teria transmitido aarcana sabedoria dos Egípcios e dos Caldeus aos Gregos,que por sua vez a transmitiram aos vindouros (14).

Ora, esta concepção de prisca theologia é reelaboradapor Giovanni Pico della Mirandola à luz da sua con-cepção filosófica, integrando nesta cadeia ininterruptaoutros filósofos e sobretudo a Cabala, que, segundo asua convicção, se harmoniza com o essencial da verdadeque o Cristianismo afirma. Porém, este seu interesse pelaCabala, mais do que uma tomada de posição a seu favor,é sobretudo uma estratégia conducente à elaboraçãode uma tese apologética da verdade que o Cristianismoveicula.

O problema da unidade do pensamento, no Condedella Mirandola, liga-se ao tema da unidade da verdade.Para o nosso filósofo, a verdade é imutável e universal e,se assim é, então todas as filosofias se constituem como

(14) Marsilio Ficino, Opera omnia, Turim, Botega d'Erasmo,1962, 2 voll. Cf. voll. 11,p. 1836.

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uma aproximação à verdade, ou seja, cada uma, à suamaneira, participa da verdade. Toda a relevância conferidaà tradição filosófica fica, então, aqui justificada.

A possibilidade de uma conciliação de todos os pensa-mentos reside precisamente aqui: a promoção da concór-dia é possível a partir do movimento de recondução decada pensamento particular à Verdade que é perspectivadacomo Una, Universal e Transcendente.

Esta questão da concórdia ou paz filosófica tem osseus antecedentes, embora seja o nosso autor aquele quemais alargou o âmbito da noção de concórdia, sinal deum espírito irénico e tolerante.

Se na noção de prisca theologia podemos encontraruma sugestão que Giovanni Pico colheu, é contudo como pensamento de Nicolau de Cusa que maior afinidadeesta sua tematização apresenta, embora este autor alemãocoloque a questão em termos essencialmente teológicos,e o nosso em termos fundamentalmente filosóficos.

Nicolau de Cusa, na sua obra De Pace et ConcordantiaFidei, refere-se ao facto de as múltiplas formas e costu-mes segundo os quais os povos adoram a Deus, soba forma de uma multiplicidade de divindades, corres-ponderem à necessidade de, mediante determinaçõesconcretas, se captar uma realidade que verdadeira-mente é incaptável e que ao limite se identifica com oDeus do Cristianismo. Ora, tal tese exerceu, sem dúvida,certa influência no seu pensamento.

Este tema da paz, que ganha hoje em dia plena actu-alidade, quer na sua dimensão ético-religiosa, quer mes-mo político-estratégica, faz de Giovanni Pico um autorverdadeiramente universal. A paz - núcleo indiscutívelda Oratio -, no dizer de Eugenio Garin, é uma espéciede hino à paz doutrinal, ou seja, aposta num acordo defundo e substancial entre todos os pensamentos, filósofose correntes. Tal facto seria, no entender do nosso autor,

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XXIX

atingido pelo diálogo, tal como o concebeu aquando doprojecto da disputa romana. Esta idéia de uma unidadesuperior justificadora de cada filosofia particular aparece--nos como uma ideia reguladora à maneira kantiana.

Para o tempo de Giovanni Pico, tratava-se também deresolver, mediante uma superação, por síntese, um dosgrandes contrastes que atravessou, em termos teoréticos,a sua época, ou seja, a oposição entre platonismo e aris-totelismo, sem cair, no entanto, na posição ficiniana desubmeter este último ao primeiro, mas antes numa posiçãode igualdade, de integração e complementaridade.

Ora, esta atitude - de defensor intransigente doacordo e da concórdia entre Platão e Aristóteles - estána origem, precisamente, de uma interpretação de Gio-vanni Pico como ecléctico ou mesmo sincrético. Entreos defensores da tese sincretística temos, por exemplo, P.Kristeltert "). Porém, com outro tipo de argumentação,a esta interpretação opõem-se Pina Martins e EugenioGarin (16), que não consideram haver uma posição ecléc-tica ou sincrética no seu pensamento. Para este último

(15)Cf.Paul Oskar Kristeller, Quo pensatori del Rinascimento ita-liano. Milão-Nápoles, Riccardo Ricciardi ed., 1970, pp. 61-79. Esteautor expressa a opinião a favor de uma consideração sincretistarelativamente ao pensamento de Pico.

(16)Tanto Pina Martins na sua monografia,já citada, sobre Pico,como Eugenio Garin, na sua obra fundamental de renovação dosestudos piquianos, intitulada Giovanni Pico delta Mirandola. Vita edottrina. Florença, Le Mounier, 1937, reflectem acerca da ques-tão do eclectismo e ou do sincretismo do Conde de Mirandola,considerando que este filósofo supera essasposições. Então o quehá, no pensamento deste autor, é sobretudo a tomada de cons-ciência de uma pluralidade de pontos de vista, entre si integráveise susceptíveis de uma harmonia superior, tendo como objectivoa procura da verdade que se dá como inatingível no plano dainvestigação humana.

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especialista do pensamento piquiano, tais consideraçõesinterpretativas são superadas a partir da reformulaçãoda questão: o que está implicado na atitude filosófica deGiovanni Pico della Mirandola é, sem dúvida, a tomadade consciência e a convicção de que é possível integrarnuma busca comum da verdade filosófica e teológica- tarefa que é o objectivo primordial de toda a filosofiaque seriamente se constitui como tal - uma pluralidadede pontos de vista, tendo como horizonte a constituiçãode uma harmonia superior, que está para além da parti-cularidade e limite da cada filosofia concreta.

Quando Ermolao Barbaro o acusa, na sua célebrecarta, de traidor, por passar do campo aristotélico parao campo platónico (como se de uma batalha se tratasse,quanto ao confronto das duas posições que apareciamcomo extremadas), a resposta do nosso filósofo é muitoclara e já pré-anuncia este ideal de concórdia, ao dizerque era como explorador e não como trânsfuga que agoraacedia ao conhecimento dos mistérios platónicos. Ora,uma tal afirmação vem acentuar e sublinhar a sua atitudede conciliador, já também prefigurada no seu propósitode não jurar nas palavras de ninguém.

A intuição do nosso autor, relativamente a este problema,centra-sena convicçãode que a verdade se apura na dialécticados pontos de vista, constituindo-se cada filosofur concretocomo uma aproximação àverdade que, no entanto, transcendea particularidade de cada aproximação.

o elogio da filosofia

Para concluir, e retomando uma afirmação feita no iní-cio deste estudo, relativamente ao facto de a Oratio ser umelegante elogio da filosofia, gostaríamos de aduzir, a partirdo próprio texto, alguns argumentos a favor desta tese.

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XXXI

Procurando aceder ao núcleo significativo do que éa filosofia para o nosso autor, e tal çomo se tem vindo ademonstrar, ele centra-se numa reflexão sobre o homem,acentuando neste a moralidade, mediante uma afirma-ção inequívoca da liberdade humana enquanto esta estáorientada para o bem.

A questão fundamental a dilucidar e que aqui estáimplicada diz respeito ao homem que sabe que tem umatarefa terrena a desempenhar e que esta está a todo omomento invadida pelo divino. Há aqui uma revaloriza-ção do homem apoiada no Studia Humanitatis. Porém, atematização de Giovanni Pico rasga os horizontes destehumanismo de cariz predominantemente literário, aocentrar a reflexão acerca do homem na sua liberdade,retirando-o da hierarquia neoplatónica dos três mundos:elementar, celestial e angélico. Graças à possibilidadeindeterminada de ser tudo, o homem é nó do universo,vínculo que une o mundo sensível ao inteligível, microcos-mos na acepção de mundo humanizado, metaforicamentetomado como «camaleão», porque «animal de naturezavária, multiforme e mutável-I!").

Esta intuição, que impressionou fortemente a suaépoca, nasce de uma vivência muito própria e que estáfundada no seu claro optimismo antropológico, presentee estruturante do seu pensamento e que justifica simul-taneamente o valor que confere à dignidade do homeme a sua convicção de que a paz ou concórdia como mo-mento de afirmação da solidariedade fraternal é possívelser realizada. Optimismo - não obstante os reveses que

('7)CL Eugenio Garin, L'umanesimo italiano, 9." ed., Bari La-terza, 1984,p. 128:«LaceIebrazione pichiana dell'uomo e tutta unasottintesa polemica contro il tema deI microcosmo, tritum in scholis,per giungere, capovengendo la tesi dell'universo che si incentranell'uomo, all'altra, dell'uomo che si prolunga nell'universo.»

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a sua biografia aponta, numa época que foi esplêndida,mas não foi feliz, antes trágicat!") - que não está desligadode riscos,de tensões e de equilíbrios instáveis,suscitadores deangústias quanto à própria destinação humana.Joga-se aqui,numa dialéctica do bem e do mal, a plenitude e a realização.humana: o seu poder de degenerar ou de se regenerar. E taltarefa responsabiliza-o frente a si mesmo e frente a Deus. Ohomem, universo contracto, tem, de acordo com a hierarquianeoplatónica, o dever de seelevaraté àsrealidades superiores,subsumindo simultaneamente as inferiores. Ao homemcompete a tarefa de espiritualizar o mundo.

Daqui se segue a sua tematização do mal ligado à ig-norância, à fraqueza da carne, à alteração da hierarquiados valores, correspondendo o bem à inclinação natural, àvontade livre e racional. Então, podemos dizer que é a virtusque confere ao homem a dignidade e que o eleva acimade todas as outras criaturas, esse o magnum miraculum.

Na sequência desta argumentação, de todos os homenso mais excelente e digno é o filósofo, «animal celeste», de-vido ao poder indagador da recta razão, e isto porque nelese dá a coincidência do saber e do agir orientados por umespírito de verdade. Mas é da dignidade da filosofia queadvém a dignidade do filósofo, do elogio da filosofia, comotarefa excelente, se passa ao elogio do filósofo. Este um traçocaracterístico da sua época, isto é, a afirmação do individua-lismo. Giovanni Pico centra o filosofar na pessoa singulardo filósofo, aquele que mais próximo está da Verdade--Deus, quer se coloque numa atitude discursiva, que aponta

(18) Cf. Eugenio Garin, Rittrati di humanisti, p. 187: «11 Ri-nascimento italiano e stato una stagione splendida della storiadel mondo: non una stagione lieta. Savonarola e Machiavelli,Leonardo e Michelangelo hanno aspectto tragico non gioioso; laloro grandeza e sempre terribile: la loro serenità e oltre il dolore,di lã d'ogni illusione.»

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XXXIII

os caminhos do futuro racionalismo moderno, quer numaaposta da via mística, em que se afirma como muito fortea relação afectiva, sendo neste aspecto o Amor a chave deinterpretação.

Todas estas considerações são como que a justifica-ção da sua opção existencial, que consistiu em tudoabandonar (honras, riqueza, poder) e tudo sacrificar àfilosofia, dedicando-lhe a sua vida e labor intelectual, deum modo desinteressado e altruísta, sem esperar ganhossofísticos, antes inflamado por esse amor socrático e poressa procura de sabedoria, que, se muitas vezes aparececomo a tentação de tudo querer saber, numa atitudeenciclopédica, no entanto é mais do nível da opóvnou;(prudência) e que sempre se constitui como questão paraqualquer espírito inquieto e insaciável de saber, que põea si próprio um conjunto de interrogações, que só umareflexão penetrante e atenta ao real pode assegurar.

Por tudo isto, parece-nos justo considerar como mestreda vida interior este filósofo que durante muito temposimbolizou e encarnou o espírito do Renascimento sem,no entanto, ser devidamente conhecido, sendo sobretudoapreciado de um modo exterior. A riqueza da sua abor-dagem filosófica, a profundidade das suas intuições, quesó uma leitura atenta dos textos deixa entrever, são ummarco importante da história da filosofia. O seu pensa-mento não está isento de dificuldades (19) , mas inequi-

(19) a. Eugenio Garin, L'Opem e i1pensiero di Giovanni Pico della Mimn-doia, onde se refere às dificuldades da filosofiado nosso autor, de quesalientamos as seguintes:vastíssimomaterial não completo>destinado auma reelaboração e sistematizaçâo,que o autor, porque morreu jovem,não teve tempo de concretizar: algumas das suas posições ressentem-sede situaçõespolémicas (recordamos a polémica anti-retórica,a polémicaem tomo da Disputa Romana e, por fim, a polémica contra a astrologiajudiciária); além disso,algumas afirmacões presentes na sua obra devemser consideradas citações e não expressão do seu pensamento pessoal.

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vocamente pré-anuncia o homem moderno, quer pelassuas problemáticas subjectivísticas, podendo nós falar deum itinerário da consciência, quer pela valorização dasquestões naturalistas que nos propõe, quer ainda pela suaposição de conciliador e de aposta na tolerância, obtidamediante o diálogo. Princeps Concordiae, no dizer dos seusamigos, Giovanni Pico delIa Mirandola foi, inegavelmen-te, um homem que dignificou o trabalho filosófico e àmaneira socrática tudo sacrificou à filosofia. *

* A tradução foi realizada a partir do texto latino, es-tabelecido criticamente e traduzido por Eugenio Garin.Nesse sentido, cf. Giovanni Pico de lla Mirandola, Opera.De hominis dignitate. Heptaplus. De ente et uno. Introd. diEugenio Garin, Florença, ValIecchi ed., Edizione Nazio-nale dei Classici del Pensiero Italiano, 1942, pp. 102-165.Usámos largamente a tradução de Garin, consideradainequivocamente como a mais fiel ao pensamento e aoestilo de Pico, quer no que diz respeito ao apuramento determinologia, quer no referente à elegância estilística.

No que diz respeito ao hebraico, seguimos o critério dopróprio Garin, que na tradução omitiu as expressões e osvocábulos naqueles caracteres. Fizérno-lo por comodidadede edição. Contudo, mantivemos o grego.

MARIA DE LOURDES SIRGADO GANHO

Nota Bibliogáfica

Apresentamos uma breve bibliografia com a intenção de elu-cidar e orientar o leitor. Assim, referimos em primeiro lugar asprincipais obras de Giovanni Pico, seguidas das edições mais im-portantes da sua obra, assim como algumas traduções da Oratio.

Quanto aos estudos, referenciamos os que foram essenciaispara a elaboração deste trabalho, e que, simultaneamente,são fundamentais para uma compreensão do pensamento donosso filósofo.

OBRAS DE GmVANNI PICO DAlLA MIRANDOLLA

Epistola ad Hermolaum Barbarum;Commento alta canzone d 'amore;Conclusiones sive Theses DCCCC;Oratio;Apologia;Heptaplus;De ente et uno;Disputationes adversus astrologiam divinatricem;Omnia opera, Basileia, 1557, 1572, 1601;opera omnia. I. 11. Introd. Cesare Vasoli, Hildesheim, G. Olms,

1969, (reprodução anastática da ed. de Basileia, 1572).

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XXXVI [ GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA

Opera omnia. Premessa Eugenio Garin, Turim, 1971, (ed. fac-simile) .

De hominis dignitate. Hectaplus. De ente et uno. Introd. EugenioGarin, Florença, Vallecchi, 1942;

Disputationis adversus astrologiam divinatricem. I. lI., Florença,Vallecchi, 1946-1952, (Edizione Nazionale dei Classici delPensiero Italiano).

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Italiano

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Orazione di Giovanni Pico della Mirandola, conte di Concordia. Textobilingue com tradução de Eugenio Garin in "De hominisdignitate ... " Florença, Vallecchi, 1942;

La dignità dell'uomo. Trad. F. Sante Pignagnoli, Bolonha, Pa-tron, 1969.

Discorso sulla dignitá dell'uomo. (Edição bilingue). Trad. deGiuseppe Tognon, Pref. de Eugenio Garin, Brescia, Scuola,1992.

Projecto Pico De Hominis Dignitate - Projecto de tradução ano-tada e comentada da obra de Pico, para italiano e inglês,realizado pela Universitã degli Studi di Bologna e pelaBrown University. (http://www.brown.edu/Departments/Italian_Studies/pico/) .

Espanhol

Discurso sobre la dignidad dei hombre. Trad. Adolfo Ruiz Diaz,Buenos Aires, Lib. Goncourt, 1978;

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DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM [XXX\1!

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- Studi pichiani. "Atti e Memorie per iI v Centenariodella Nascita di Giovanni Pico de lIa Mirandola. Modena- Mirandola, magio 1963", Modena, 1964.

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Estudo Pedagógico Introdutório

Pico: o homem e o seu tempo

Esta é uma obra marcante da filosofia do Renascimentoporque retrata uma visão nova do homem e do mundo,no contexto da história da filosofia. De facto, com Re-nascimento quer significar-se ressurgimento, novo nasci-mento ou ressurreição, renovação, rejuvenescimento. UmRenascimento como renovação do mundo clássico, gregoe romano, pela proclamação do fim da época medieval- sete séculos após a queda do império romano - comespecial relevância, depois, para a oposição às doutrinasneo-aristotélicas da escolástica. É antes de tudo uma ma-nifestação de cultura, uma nova concepção da vida e domundo que influi nas artes, nas ciências, na educação, namoral e nos costumes, numa época de tolerância religiosa,de concórdia das crenças e de sínteses platónico-cristãs ou,por exemplo, de Aristóteles e Platão de que são paradigmasMarsilio Ficino e Pico della Mirandola.

Antes de mais, o Renascimento traduz um senti-mento generalizado da necessidade de recuperar osclássicos na sua autenticidade - contra a adulteraçãoque, supostamente, a Idade Média operou -, o que, ine-vitavelmente, também comporta, nem que seja pela crítica,

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a descoberta do mundo medieval. Pretende-se com isso eao mesmo tempo a recuperação do próprio cristianismo,vencendo divisões e disputas que então vingavam. Destemodo, como fenómeno total, à renovação espiritual deve,necessariamente, corresponder uma renovação civile polí-tica, assente na dignidade do homem como indivíduo, napaz e na liberdade. No essencial, as temáticas que têm sidoidentificadas como próprias do Renascimento são: a crisede crenças e ideias, o desenvolvimen to da individualidade ,a descoberta de novas ideias sobre o homem e o mundo ,a amplificação do horizonte geográfico, histórico e expe-rimental, a confiança na possibilidade do conhecimento ea exaltação mística e metafísica do homem criador.

Avalorização da acção humana no seu enquadramentohistórico, na sua temporalidade, permitiu que o homempassasse a considerar-se o criador da sua própria vida,desfrutando da natureza para realização dos seus fins.Naturalmente, novas descobertas (Descobrimentos),novos conhecimentos (ciências experimentais, como afísica, e a importância da matemática) e novas práticaslevaram à instauração daquilo que denominamos comociência moderna. No entanto, esta valorização conduziu,ao mesmo tempo, à confluência de duas visões sobre ohomem: por um lado, a glorificação e elogio do homemcomo criador das artes e das ciências, por outro, a suafraqueza e depravação, com acentuação na modéstia dolugar que ocupa no universo, fruto de uma cultura deociosidade e de hedonismo. É também nesta revalorizaçãoque assenta a oficialização de práticas como a astrologiae magia, bem como a ideia de uma proporcionalidadeharmónica entre todos os seres, que conduziu às noções deum macrocosmo divino e de um microcosmo humano.

Este último exemplo ilustra bem a estreita relaçãoentre o Renascimento e o platonismo, nomeadamenteem autores como Nicolau de Cusa, Marsilio Ficino e Pico

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XLIII

della Mirandola, assim como as tentativas de elaborar umasíntese entre Aristóteles e Platão, de que Pico é, talvez, oexpoente máximo. De facto, este período da história dafilosofia é marcado por uma nova compreensão de Aristó-teles, pelo estudo de escolas de pensamento como sejamo epicurismo, o estoicismo e o cepticismo, pelo conheci-mento de Cícero e, sobretudo, de Platão - a recuperaçãodos textos de Platão para o mundo latino, por obra dostrabalhos de tradução de Marsilio Ficino, é determinantepara a constituição deste novo pensamento.

Em Pico podemos constatar, como presença de umacaracterística marcante do Renascimento, a noção dohomem como o grande milagre da criação, centro do uni-verso e mediador das realidades terrena, celeste e divina- no fundo como marca da revolução antropocêntrica,que se realiza no Renascimento, que celebra o homemcomo o centro do mundo.

A sua obra reflecte um profundo conhecimento dosfilósofosgregos, cristãos,judeus e árabes e debruça-se sobrea metafísica e a antropologia, assim como sobre a religiãoe a magia - tal como a entende. Tais estudos e interesses,aos quais se alia a profunda influência que sofre de Platão,levam-no a perspectivar uma conciliação entre a filosofiaclássica, sobretudo grega, e o cristianismo, procurandosempre auscultar o lugar e a especificidade do homemno mundo. Assim, o homem é concebido como sendo aperfeita síntese de todas as partes do universo - um mi-crocosmos criador da sua própria vida - na medida emque, à ordem divina, à ordem celeste e à ordem terrena,corresponde em si o corpo, a alma e o espírito. Só assim épossívelo conhecimento humano alcançar e fundir-se como uno absoluto e ser incondicionado, que é Deus.

Tal como em Aristóteles, também em Pico o homeme a sua alma ocupam um lugar central na filosofia e, tal

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como em Platão, também aqui a alma humana é conce-bida como um intermediário entre o mundo corpóreo eo mundo transcendente. A novidade reside na conjunçãoque faz da filosofia clássica com a doutrina cristã, onde asnoções de encamaçãoe de salvação balizam o horizonte dodiscurso, porque a dignidade humana reside, sobretudo,no facto de o homem ser uma criatura feita à imagem esemelhança de Deus, capaz de atingir a salvação.

O tema da natureza e dignidade humana, não sendoexclusivo do estudo Pico, mas transversal a todo o Renas-cimento, recebe na Oratio a sua mais interessante formu-lação neste período da história da filosofia. Aqui, o autorsocorre-se das suas fontes históricas, filosóficas e religiosasde modo a estabelecer, para si, de uma vez por todas, a ver-dadeira natureza e dignidade humana. Pico, passa, então,a conceber o homem como um ser que livremente podedeterminar e escolher o seu próprio destino, porque a suamarca distintiva é o facto de estar privado de propriedadesfixas, sendo que, ao mesmo tempo, tem a capacidade departilhar de todas as propriedades dos outros seres emconsonância com a sua própria livre escolha. Retoma-se,aqui, o mito do Protágoras, de Platão, em que o Criadordistribui por todas as criaturas os dons próprios de cadaum, sendo que, ao homem, uma vez que não havia maisdons a distribuir, não é conferida uma natureza ou essênciaclaramente determinada podendo, por isso, participar emtodos os dons que haviam sido distribuídos, tornando-se,por decisão sua, no que quiser. O que aqui está patente éa noção do homem como um microcosmos, com a missãode superar as formas de vida inferiores e se elevar até Deus,actualizando o Cosmos.

Este poder de escolha sobre a forma e o valor que a vidade cada um adquirirá mediante a sua reflexão e assuasacçõesimplica, necessariamente, que se faça sempre a melhor esco-lha possível. Uma escolha que permita ao homem elevar-se

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM XLV

da sua condição terrena à realidade celeste, em comunhãocom os anjos, conhecedor das coisas divinas e fundindo-se,pelo amor, no Pai. Neste contexto, a filosofia assume umaimportãncia determinante para o bom sucessode tal empresapois o seu estudo auxilia esta ascensão ontológica. De outromodo, há uma hierarquia ordenada de possibilidades pelasquaiso homem sepode realizar mas nem todas correspondemà dignidade humana que resulta desta sua natureza, neste sen-tido, a liberdade implica, não a possibilidade de uma escolhaqualquer, mas uma escolha moral e intelectual responsávelque cumpra o dever de nos elevarmos até Deus.

Ao elevar-se para Deus carrega também consigo a re-lação que as outras partes do mundo estabelecem umascom as outras, visto ser ele o dinamizador dessas relações.Assim, fica a porta aberta para a constatação, posteriorna história da filosofia, de que a dignidade humana nãopode ser separada do princípio de que o homem governaos elementos e controla a natureza. Esta será uma carac-terística da modernidade e uma das razões do papel quea ciência experimental e a tecnologia passaram a ocuparna vida humana; marca de uma nova ciência e de umanova filosofia. De facto, Pico tem sido evocado como umpensador que já se preocupa com a tecnologia.

A obra: Discurso sobre a Dignidade do Homem

A Oratio divide-se em duas partes. A primeira trata doproblema da natureza e dignidade do homem, da justi-ficação do estudo da filosofia como meio que concorrepara a concretização dessa natureza, e o seu auge naPaz Teológica da comunhão com o Pai; a segunda parteapresenta-se como justificação da existência de diferentese por vezes contraditórias posições e escolas filosóficas ereligiosas acerca deste mesmo tema.

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XLVI I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA

Nesta obra compreende-se o homem na sua naturezamultiforme e cambiante, na sua essência livre e criadorade si mesmo e na sua substancialidade como criatura deDeus, por excelência. É em tomo destas premissas quePico apresenta os seus argumentos, tentando demonstrarcomo o homem é um ser livre, porque capaz de decidiro seu destino e cumprir a sua natureza.

Para o Conte di Concordia e della Mirandola, o ho-mem é um ser entre dois mundos - o mundo celeste queé superior e o mundo terrestre, inferior - e entre doistempos -, a finitude e a eternidade - mas é também umser dotado de corpo, de sensibilidade e de razão e, comosuprema e mais perfeita criatura de Deus, é portador deuma «natureza indefinida» que necessita de ser concre-tizada, isto é, realizada de acordo com esta sua essência.Neste sentido, o homem é livre e responsável perante avida que tem e a vida que quer ter, visto que esta é obrasua. Pode-se, assim, falar de uma natureza animal, umanatureza propriamente humana e uma natureza divinaque coexistem no homem visto, neste sentido, como ummicrocosmos de toda a realidade.

«Ó suma liberdade de Deus pai, ó suma e admirávelfelicidade do homem! ao qual é concedido obter o quedeseja, ser aquilo que quer» (20) .

No entanto, esta suprema liberdade, que contém em sia exigência de o homem se realizar de acordo com a suanatureza, implica uma escolha que acarreta o perigo deessa realização ser feita em tomo dessa instância inferior ,animalesca e hedonista, libertinária e corrupta, ou, pelocontrário, desse dom divino de que somos portadores.

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XLVII

Assim se compreende que o homem seja aqui conside-rado como um camaleão, «um animal de natureza vária,multiforme e mutável» (21), dotado do livre-arbítrio paradecidir o caminho de vida que quer levar e aquilo quequer vir a ser. Por isto mesmo, há aqui uma consideraçãosobre o que seja a virtude do homem, sobre o que o queseja admirável e honrável na actividade humana.

De facto, a actividade humana pode mover-se em duasdirecções e pode ter dois objectos opostos. Por um lado,a actividade contemplativa, filosófica e espiritual, que éaquela que possibilita a aproximação com as realidadescelestes e nos pode conduzir «próximo da sumidade dadivindade», por outro, a vida mundana, terrena, da ri-queza material e do prazer carnal e das paixões que nosalienam de nós próprios.

Qual então a direcção que devo tomar para verdadei-ramente viver?

Apoiada na ciência moral perante as paixões, e nadialéctica como clarificadora da razão, a direcção deveráter sempre dois sentidos: por um lado, ascendente, pelarazão da filosofia natural ao amor do conhecimentodas coisas divinas, visando a contemplação da verdadee a purificação da alma face à ignorância e ao vício;por outro lado, e em seguida, descendente, tratando ascoisas terrenas e mundanas com o recto discernimentoalcançado, eliminados os vícios e refreadas as paixões. Sóassim «elevar-nos-ernos até que por fim no seio do Pai,que está no vértice da escada, repousaremos na felicidadeteológica» (22) .

(21) Cf. p. 6l.(22) Cf. p. 67.

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XLVIII I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA

Aí estará a paz solucionadora do conflito da nossanatureza dúbia composta de carne e de espírito. Aí «go-zaremos a paz desejada, a santíssima paz, a indissolúvelunião, a amizade concorde pela qual todas as almas nãosó se acordam numa única Mente que está acima de cadamente, mas também de uma maneira inefável se fundemnum só»(23). Uma Paz Filosófica que será, também pela Gra-ça de Deus, uma Paz Teológica, onde <jánão seremos maisnós próprios, mas Aquele mesmo que nos fez» (24).

Estaremos então na casa do Pai e desfrutaremos osquatro rios do paraíso que se podem denominar comojustiça, expiação, luz e fé. Com eles concordaremos, res-pectivamente, mediante a ciência moral, a dialéctica, acontemplação e a meditação teológica.

Na segunda parte da obra, Pico pretende demonstrar anecessidade e a possibilidade de acordo entre as diversasescolas filosóficas acerca de problemas tão fundamentaiscomo sejam «a causa das coisas, os processos da natureza,a razão do universo, os conselhos de Deus, os mistériosdo céu e da terra ... »(25) e, naturalmenete, a naturezae dignidade do homem, bem como da sua orientaçãopara o divino, nesta visão do universo e de Deus. Trata--se, sobretudo, de umajustificação ou fundamentação daveracidade dos seus pressupostos e argumentos, nem quepara isso seja necessário estabelecer uma nova filosofiaque permita procurar a verdade «com base nos números»- não numa «aritmética de comerciantes» mas numa«aritmética divina» (26) - e com base em «teoremas má-gicos», como realizações da filosofia natural, isto porque

(2~) Cf. p. 7l.(24) Cf. p. 75 e 77.(2") Cf. p. 83.(2") Cf. p. 101.

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XLIX

«a magia outra coisa não era senão o conhecimento dascoisas divinas» (27) .

Assim, segundo Pico della Mirandola, concordarãotodas as religiões e todas as filosofias.

Nota sobre o estudo do Discurso sobre a Dignidadedo Homem

A De hominis dignitate oratio ou Discurso sobre a Dignidadedo Homem, de Pico della Mirandola, é uma obra presenteno Programa Curricular de Filosofia do 12.0 Ano, e, nestecontexto, o seu estudo insere-se na escolha do tema ouproblema integrador a ser desenvolvido ao longo de cadaano lectivo, em conjunto com outras duas obras de leituraobrigatória. Como qualquer outra, o estudo desta obra deveser orientado para a possibilidade de um confronto com-parativo com outras perspectivas e argumentos, visando aaquisição e demonstração de uma postura filosófica crítica.Assimsendo, assume particular importância a identificaçãoclara e concisa da problemática do texto, da sua rede con-ceptual e da sua própria estrutura argumentativa, sendo que,para isso, é importante compreender a época e conhecer ocontexto em que a obra foi escrita.

Pelos contributos já dados para a compreensão das re-lações possíveis que se podem estabelecer entre Pico dellaMirandola e toda a sua herança filosófica, nomeadamentecom Pitágoras, Platão, Aristóteles, Plotino, Santo Agostinho,importa também compreender como é que o Discurso sobrea Dignidade do Homem influencia ou, de certa forma, estápresente em autores e obras posteriores.

(2') Cf. p. 103

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L GIOVANNI PICO DELLA MIRANDO LA

Como obra marcante de uma época de transição dochamado mundo medieval para o mundo moderno, ou, sequisermos, da filosofia medieval para a filosofia moderna,o seu horizonte temático projectou-se até aos nossos dias.De facto, esta nova visão do homem como artífice de si,dotado de livre-arbítrio e da capacidade para escolherlivremente a sua própria vida, influencia decisivamenteo entendimento moderno do homem sobre o homem.A centralidade do homem no mundo e a dignidade dacondição humana contribuíram para que o antropocen-trismo aqui afirmado abrisse as portas a um individualismoque se veio a agudizar até aos nossos dias.

Do mesmo modo, a acentuação da liberdade de escolhadada a cada um para se realizar, a seu modo, de acordocom a sua própria natureza, conduziu a um enfraque-cimento da consideração das hierarquias sociais comoreflexo da hierarquia cósmica. Neste contexto, abriu-seas portas à afirmação de um ideal de autenticidade in-dividual que enfatiza o igual valor das escolhas de vidaem detrimento da determinação da própria vida boa. Oque é no fundo a manifestação de um relativismo moralcontra o qual ainda hoje lutamos e que deve muito tam-bém às considerações utilitaristas de que nos socorremosquando temos que decidir. Não é por isso de estranharque o tema da liberdade tenha sido uma das principaiscategorias filosóficas do século xx, se não mesmo a maisimportante.

Em qualquer caso o tema integrador por excelência,entre esta e outras obras de cariz filosófico é a naturezahumana, é o que é o homem, na sua dignidade e liber-dade, na sua essência e substancialidade.

Luís LOIA

Discurso de Giovanni PicoConde de Concórdia

(Oratio /oannis Piei MirandulaniConcordiae Comitis)

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Legi, Patres colendissimi, in Arabum monumentis,interrogatum Abdalam Sarracenum, quid in hac quasimundana scaena admirandum maxime spectaretur,nihil spectari homine admirabilius respondisse. Cuisententiae illud Mercurii adstipulatur: Magnum, o As-clepi, miraculum est homo. Horum dictorum rationemcogitanti mihi non satis illa faciebant, quae multa dehumanae naturae praestantia afferuntur a multis: essehominem creaturarum internuntium, superis famili-rem, regem inferiorum; sensuum perspicacia, rationisindagine, intelligentiae lumine, naturae interpretem:stabilis aevi et fluxi temporis interstitium, et (quodPersae dicunt) mundi copulam, immo hymenaeum,ab angelis, teste Davide, paulo deminutum.' Magnahaec quidem, sed non principalia, idest quae summaeadmirationis privilegium sibi iure vendicent. Cur enimnon ipsos angelos et beatissimos caeli choros magisadmirernur? Tandem intellexisse mihi sum visus, curfelicissimum proindeque dignum omni admirationeanimal sit homo, et quae sit demum illa conditioquam in universi serie sortitus sit, non brutis modo,sed astris, sed ultramundanis mentibus invidiosam.Res supra fidem et mira. Quidni? Nam et propterea

Li nos escritos dos Árabes, venerandos Padres, que, in-terrogado Abdala Sarraceno sobre qual fosse a seus olhoso espectáculo mais maravilhoso neste cenário do mundo,tinha respondido que nada via de mais admirável do queo homem. Com esta sentença concorda aquela famosa deHermes]"): «Grande milagre, ó Asclépio, é o homern.»

Ora, enquanto meditava acerca do significado destasafirmações, não me satisfaziam de todo as múltiplas razõesque são aduzidas habitualmente por muitos a propósito dagrandeza da natureza humana: ser o homem vínculo dascriaturas, familiar com as superiores, soberano das inferi-ores; pela agudeza dos sentidos, pelo poder indagador darazão e pela luz do intelecto, ser intérprete da natureza;intermédio entre o tempo e a eternidade e, como dizem osPersas, cópula, portanto, himeneu do mundo e, segundoatestou David, em pouco inferior aos anjos. Grandes coisasestas, sem dúvida, mas não as mais importantes, isto é, nãotais que consintam a reivindicação do privilégio de umaadmiração ilimitada. Porque, de facto, não deveremos nósadmirar mais os anjos e os beatíssimos corpos celestes?

n Hermes Trimegisto (três vezes grande) - nome grego do deusegípcio Tote, a que a tradição grega atribuiu conhecimentos esotéricossobre magia, alquimia e astrologia. Foi o primeiro a expressar por escrito,os fundamentos da medicina astrológica. Os livros atribuídos a Hermesencontram-se reunidos no Corpus Hermeticum. Em 1445, esse manuscritocomeça a circular em F1orença, tendo chegado ao conhecimento e aoestudo de Pico della Mirandola. Aí assume-se que o Homem, como mi-crocosmo, reproduz a estrutura do Universo - macrocosmos. (N. T.)

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magnum miraculum et admirandum profecto animaliure homo et dicitur et existimatur. Sed quaenam easit audite, Patres, et benignis auribus pro vestra hu-manitate hanc mihi operam condonate.

Iam summus Pater architectus Deus hanc quamvidemus mundanam domum, divinitatis templum au-gustissimum, archanae legibus sapientiae fabrefecerat.Supercaelestem regionem mentibus decorarat; aethe-reos globos aeternis animis vegetarat; excrementariasac feculentas inferioris mundi partes omnigena anima-lium turba complerat. Sed, opere consummato, desid-erabat artifex esse aliquem qui tanti operis rationemperpenderet, pulchritudinem amaret, magnitudinemadmiraretur. Idcirco iam rebus omnibus (ut Moses Ti-maeusque testantur) absolutis, de producendo hominepostremo cogitavit. Verum nec erat in archetypis undenovam sobolem effingeret, nec in thesáuris quod novofilio hereditarium largiretur, nec in subselliis totiusorbis, ubi universi contemplator iste sederet. Iam plenaomnia: omnia summis, mediis, infimisque ordinibusfuerant distributa. Sed non erat paternae potestatisin extrema fetura quasi effeta defecisse; non eratsapientiae, consilii inopia in re necessaria fluctuasse;non erat benefici amoris, ut qui in aliis esse divinamliberalitatem laudaturus in se illam dammare coger-etur. Statuit tandem optimus opifex, ut cui dare nihilproprium poterat commune esse quicquid privatumsingulis fuerat. Igitur hominem accepit indiscretaeopus imaginis atque in mundi positum meditulliosic est alloquutus: «Nec certam sedem, nec propriamfaciem, nec munus ullum peculiare tibi dedimus, o

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 55

Finalmente, pareceu-me ter compreendido por querazão é o homem o mais feliz de todos os seres animadose digno, por isso, de toda a admiração, e qual enfim acondição que lhe coube em sorte na ordem universal,invejável não só pelas bestas, mas também pelos astros eaté pelos espíritos supramundanos. Coisa inacreditável emaravilhosa. E como não? Já que precisamente por isso ohomem é dito e considerado justamente um grande milagree um ser animado, sem dúvida digno de ser admirado.

Mas, escutai, ó Padres, qual é essa condição de grandezae, com a vossa liberalidade, prestai um ouvido benignoe tolerante a este meu discurso.

Já o Sumo Pai,Deus arquitecto, tinha construído segundoleis de arcana sabedoria este lugar do mundo como nós ovemos,augustíssimo templo da divindade. Tinha embelezadoa zona superceleste com inteligências, avivado os globosetéreos com almas eternas, povoado com uma multidão deanimais de toda a espécie as partes vis e fermentantes domundo inferior. Mas, consumada a obra, o Artífice desejavaque houvesse alguém capaz de compreender a razão deuma obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse asua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moi-sés e Timeu atestam, pensou por último criar o homem.Dos arquétipos, contudo, não ficara nenhum sobre o qualmodelar a nova criatura, nem dos tesouros tinha algumpara oferecer em herança ao novo filho, nem dos lugaresde todo o mundo restara algum no qual se sentasse estecontemplador do universo. Tudo estavajá ocupado, tudotinha sido distribuído nos sumos, nos médios e nos ínfimosgraus. Mas não teria sido digno da paterna potência nãose superar, como se fosse inábil, na sua última obra, nãoera próprio da sua sapiência permanecer incerta numaobra necessária, por falta de decisão, nem seria digno doseu benéfico amor que quem estava destinado a louvarnos outros a liberalidade divina, fosse constrangido alamentá-la em si mesmo.

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Adam, ut quam sedem, quam faciem, quae muneratute optaveris, ea, pro voto, pro tua sententia, habeaset possideas. Definita ceteris natura intra praescriptasa nobis leges coercetur. Tu, nullis angustiis coercitus,pro tua arbitrio, in cuius manu te posui, tibi illampraefinies. Medium te mundi posui, ut circumspi-ceres inde commodius quicquid est in mundo. Necte caelestem neque terrenum, neque mortalem nequeimmortalem fecimus, ut tui ipsius quasi arbitrariushonorariusque plastes et fictor, in quam malueris tuteformam effingas. Poteris in inferiora quae sunt brutadegenerare; poteris in superiora quae sunt divina extui animi sententia regenerari».

O summam Dei patris liberalitatem, summamet admirandam hominis felicitatem! cui datum idhabere quod optat, id esse quod velit. Bruta simulatque nascuntur id secum afferunt, ut ait Lucilius, ebulga matris quod possessura sunt. Supremi spiritusaut ab initio aut paulo mox id fuerunt, quod suntfuturi in perpetuas aeternitates. Nascenti hominiomnifaria semina et omnigenae vitae germina indiditPater; quae quisque excoluerit illa adolescent, etfructus suos ferent in illo. Si vegetalia, planta fiet.Si sensualia, obrutescet. Si rationalia, caeleste evadetanimal. Si intellectualia, angelus erit et Dei filius,et si nulla creaturarum sorte contentus in unitatiscentrum suae se receperit, unus cum Deo spiritusfactus, in solitaria Patris caligine qui est superomnia constitutus omnibus antestabit. Quis huncnostrum chamaeleonta non admiretur? aut omninoquis aliud quicquam admiretur magis? Quem nonimmerito Asclepius Atheniensis versipellis huius

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Estabeleceu, portanto, o óptimo artífice que, àquele aquem nada de especificamente próprio podia conceder,fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmenteaos outros. Assim, tomou o homem como obra de na-tureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo,falou-lhe deste modo: «Ó Adão, não te demos nem umlugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio,nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas epossuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa quetu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer ea tua decisão. A natureza bem definida dos outros seresé refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário,não constrangido por nenhuma limitação, determiná-Ia-áspara ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei.Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olharmelhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celestenem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu,árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses ete informasses, na forma que tivesses seguramente esco-lhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas,poderás regenerar-te até às realidades superiores que sãodivinas, por decisão do teu ânimo».

Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirávelfelicidade do homem! ao qual é concedido obter o quedeseja, ser aquilo que quer. As bestas, no momento emque nascem, trazem consigo do ventre matemo, comodiz Lucílio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritossuperiores ou desde o princípio, ou pouco depois, foramo que serão eternamente. Ao homem nascente o Paiconferiu sementes de toda a espécie e germes de toda avida, e segundo a maneira de cada um os cultivar assimestes nele crescerão e darão os seus frutos. Se vegetais,tomar-se-á planta. Se sensíveis, será besta. Se racionais,elevar-se-á a animal celeste. Se intelectuais, será anjo efilho de Deus, e se, não contente com a sorte de ne-nhuma criatura, se recolher no centro da sua unidade,

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et se ipsam transformantis naturae argumento perProteum in mysteriis significari dixit. Hinc illaeapud Hebraeos et Pythagoricos metamorphosescelebratae. Nam et Hebraeorum theologia secretiornunc Enoch sanctum in angelum divinitatis, quemvocant iTj'l~~iT j~t,~ nunc in alia alios numinareformant. Et Pythagorici scaelestos homines in brutadeformant et, si Empedocli creditur, etiam in plantas.Quas imitatus Maumeth illud frequens habebat in ore,qui a divina lege recesserit brutum evadere, et meritoquidem. Neque enim plantam cortex, sed stupida etnihil sentiens natura; neque iumenta corium, sedbruta anima et sensualis; nec caelum orbiculatumcorpus, sed recta ratio; nec sequestratio corporis, sedspiritualis intelligentia angelum facit. Si quem enimvideris deditum ventri, humi serpentem hominem,frutex est, non homo, quem vides; si quem in fantasia equasi Calypsus vanis praestigiis caecutientem etsubscalpenti delinitum illecebra sensibus mancipatum,brutum est, non homo, quem vides. Si rectaphilosophum ratione omnia discernentem, huncvenereris; caeleste est animal, non terrenum. Si purumcontemplatorem corporis nescium, in penetraliamentis relegatum, hic non terrenum, non caelesteanimal; hic augustius est numen humana carnecircumvestitum. Ecquis hominem non admiretur?qui non immerito in sacris litteris mosaicis etchristianis, nunc omnis carnis, nunc omnis creaturaeappellatione designatur, quando se ipsum ipse inomnis carnis faciem, in omnis creaturae ingeniumeffingit, fabricat et transformat. Idcirco scribit EvantesPersa, ubi chaldaicam theologiam enarrat, non esse

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tornado espírito uno com Deus, na solitária caligem (*)do Pai, aquele que foi posto sobre todas as coisas estarásobre todas as coisas.

Quem não admirará este nosso camaleão?(*) Não semrazãoAsclépio, ateniense, devido ao aspecto mutável e devidoa uma natureza que a si mesma se transforma, disse que nosmistérios era simbolizado por Proteu. Daqui asmetamorfosescelebradas pelos Hebreus e pelos Pitágoricos. Até mesmoa mais secreta teologia hebraica, de facto, transforma oraEnoch santo no anjo da divindade, ora outros noutros es-píritos divinos. E os Pitagóricos transformam os celeradosem bestas e, a acreditar em Empédocles, até mesmo emplantas. Imitando isto, Maomé repetia muitas vezes e comrazão: «quem se afasta da lei divina toma-se uma besta». Defacto, não é a casca que faz a planta, mas a sua naturezaentorpecida e insensível; não é o couro que faz a jumenta,mas a alma bruta e sensual; nem é a forma circular que fazo céu, mas a recta razão; nem é a separação do corpo quefaz o anjo, mas a inteligência espiritual. Por isso, se virmosalguém dedicado ao ventre rastejar por terra como serpen-te, não é homem o que vê, mas planta; se alguém cego,como Calipso, por vãs miragens da fantasia, seduzido porsensuais engodos, escravo dos sentidos, é uma besta o quevemos, não é um homem. Se é um filósofo que discemecom recta razão todas as coisas, venerá-lo-emos, é animalceleste, não terreno. Se é um puro contemplante, ignarodo corpo, todo embrenhado no âmago da mente, este nãoé animal terreno, nem mesmo celeste: é um espírito mais

(') Caligem - o termo caligem remete para uma mística nocturnaque pretende referir o encontro solitário e pessoal da criatura com ocriador, do filho, homem, com o Pai, Deus. Corresponde à problemáticado Deus Escondido tematizada por Nicolau de Cusa.

(') Camaleão - Ao contrário dos dias de hoje em que camaleão temuma certa carga negativa, nesta época era um animal admirado pelasua capacidade de transformação e adaptação ao meio circundante.Estamos perante um símbolo da possibilidade que o homem possuide se transformar (N.T.).

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homini suam ullam et nativam imaginem, extrariasmultas et adventitias. Hinc illud Chaldaeorum:"nt,r~ n~~~ ;,~~, t:J"'j~ ~,;, ~,~~ idest homovaria e ac multiformis et desultoriae naturae animal.Sed quorsum haec? ut intelligamus, postquamhac nati sumus conditione, ut id simus quod essevolumus, curare hoc potissimum debere nos, utillud quidem in nos non dica tu r, cum in honoreessemus non cognovisse similes factos brutis etiumentis insipientibus. Sed illud potius Asaphprophetae: «Dii estis et filii excelsi ornnes», ne,abutentes indulgentissima Patris liberalitate, quamdedit ille liberam optionem, e salutari noxiamfaciamus nobis. lnvadat animum sacra quaedamambitio ut mediocribus non contenti anhelemus adsumma, adque illa (quando possumus si volumus)consequenda totis viribus enitamur. Dedignemurterrestria, caelestia contemnamus, et quicquid mundiest denique posthabentes, ultramundanam curiamemitensissimae divinitati proximam advolemus. Ibi,ut sacra tradunt mysteria, Saraphin, Cherubin etThroni primas possident; horum nos iam cederenescií et secundarum impatientes et dignitatem etgloriam aemulemur. Erimus illis, cum voluerimus,nihilo inferiores.

Sed qua ratione, aut quid tandem agentes? Videa-mus quid illi agant, quam vivant vitam. Eam si et nosvixerimus (possumus enim), illorum sortem iam ae-quaverimus. Ardet Saraph caritatis igne; fulget Cher-ub intelligentiae splendore; stat Thronus iudicii fir-mitate. Igitur si actuosae addicti vitae inferiorumcuram recto examine susceperimus, Thronorum stata

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elevado, revestido de carne humana. Quem pois não ad-mirará o homem? Que não por acaso nos sagrados textosmoisaicos e cristãos é chamado ora com o nome de cadaser de carne, ora com o de cada criatura, precisamenteporque se forja, modela e transforma a si mesmo segundoo aspecto de cada ser e a sua índole segundo a naturezade cada criatura? O persa Evantes, por isso, onde expõea teoria caldaica, escreve que o homem não possui umasua específica e nativa imagem, mas muitas estranhas eadventícias. Daí o dito caldaico de que o homem é animalde natureza vária, multiforme e mutável.

Mas com que objectivo recordar tudo isto? Para quecompreendamos, a partir do momento em que nascemos nacondição de sermos o que quisermos, que o nosso dever(")é preocuparmo-nos sobretudo com isto: que não se digade nós que estando em tal honra não nos demos conta denos termos tomado semelhantes às bestas e aos estúpidosjumentos de carga. Acerca de nós repita-se, antes, o dito doprofeta Asaph: «Soisdeuses e todos filhos do Altíssimo». Detal modo que, abusando da indulgentíssima liberalidade doPai, não tomemos nociva, em vez de salutar, a livre escolhaque ele nos concedeu. Que a nossa alma seja invadida poruma sagrada ambição de não nos contentarmos com ascoisas medíocres, mas de anelarmos às mais altas, de nosesforçarmos por atingi-las, com todas as nossas energias,desde o momento em que, querendo-o, isso é possível.

Desdenhemos das coisas da terra, desprezemos as as-trais e, abandonando tudo o que é terreno, voemos paraa sede supramundana, próximo da sumidade da divin-dade. Ali, como narram os sagrados mistérios, Serafins,Querubins e Tronos ocupam os primeiros lugares; deles

(') Dever - mais do que poder escolher ou decidir, o dever impõe--se como uma exigência imperativa à nossa acção. Neste caso, é nossodever vivermos de acordo com a mais alta e honrada forma de vida quea nossa natureza, enquanto seres criados por Deus, permite (N. T.).

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soliditate firmabimur. Si ab actionibus feria ti , in opi-ficio opificem, in opifice opificium meditantes, incontemplandi ocio negociabimur, luce cherubica un-dique corruscabimus. Si caritate ipsum opificem solumardebimus, illius igne, qui edax est, in saraphicameffigiem repente flammabimur. Super Throno, idestiusto iudice, sedet Deus iudex saeculorum. SuperCherub, idest contemplatore, volat atque eum quasiincubando fovet. Spiritus enim Domini fertur superaquas, has, inquam quae super caelos sunt, quae apudIob Dominum laudant antelucanis hymnis. Qui Saraph,idest ama tor est, in Deo est, et Deus in eo, immo etDeus et ipse unum sunt. Magna Thronorum potestas,quam iudicando; summa Saraphinorum sub limitas ,quam amando assequimur. Sed quonam pacto veliudicare quisquam vel amare potest incognita? Ama-vit Moses Deum quem vidit, et administravit iudexin populo quae vidit prius contemplator in monte.Ergo medius Cherub sua luce et saraphico igni nospraeparat et ad Thronorum iudicium pariter illuminat;hic est nodus primarum mentium, ordo palladicus,philosophiae contemplativae praeses; hic nobis etaemulandus primo et ambiendus, atque adeo compre-hendendus est, unde et ad amoris rapiamur fastigiaet ad munera actionum bene instructi para tique de-scendamus. At vero operae precium, si ad exemplarvitae cherubicae vita nostra formanda est, quae illa etqualis sit, quae actiones, quae illorum opera, praeoculis et in numerato habere. Quod cum nobis pernos, qui caro sumus et quae humi sunt sapimus,consequi non liceat, adeamus antiquos patres, qui dehis rebus utpote sibi domesticis et cognatis locupletis-

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também nós emulemos a dignidade e a glória, incapazesagora de recuar e não suportando. o segundo lugar. E sequisermos, não seremos em nada inferiores a eles.

Arde o Serafim no fogo de amor, refulge o Querubim noesplendor da inteligência, está o Trono na solidez do juízo.Portanto, ainda que dedicados à vida activa, se assumirmostratar as coisas inferiores com recto discernimento, afirmar-nos-emos com a firmeza dos Tronos. Se libertos das acções,meditando na criação o artífice e no artífice a criação, estare-mos imersos na paz da contemplação (*), resplandeceremosrodeados de querubínica luz. Se ardermos só por amor doartífice daquele fogo que consome todas as coisas, inflamar--nos-ernos logo com aspecto seráfico. Sobre o Trono, istoé, acima do justo juiz, está Deus juiz dos séculos. Acimado Querubim, ou seja, sobre o contem plante, voa e quasegerando-o por incubação aquece-o. De facto, o espírito doSenhor move-se sobre as águas, aquelas que estão por cimados céus e que, como está escrito no livro de Job, louvam oSenhor com hinos antelucanos. O Serafim, isto é, o amante,está em Deus e Deus está nele, e Deus e ele são um só.

Grande é o poder dos Tronos e atingimo-lo com o juí-zo: suma é a sublimidade dos Serafins e atingi-la-emoscom o amor. Mas como pode alguém julgar ou amar oque não conhece? Moisés amou o Deus que viu, e promul-gou ao povo, como juiz, aquilo que antes tinha visto namontanha como contemplador. Eis por que no meioo Querubim com a sua luz nos prepara para a chamaseráfica e nos ilumina juntamente com o juízo dosTronos. Este é o nó das primeiras mentes, a ordem sa-piencial que preside à filosofia contemplativa: isto deve-mos, primeiro que tudo, emular, investigar e compreen-

(*) paz contemplativa - A evocação do fim deste itinerário para Deuscomo um estado de paz e de contemplação retoma o Eros platónicoque permite superar o final da Alegoria da Linha, na República, ou aGraça divina por que suplica Santo Agostinho nas Confissões (N. T.).

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simam nobis et certam fidem facere possunt. Con-sulamus Paulum apostolum vas electionis, quid ipsecum ad tertium sublimatus est caelum, agentesCherubinorum exercitus viderit. Respondebit utiqueDionysio interprete: purgari illos, tum illuminari,postremo perfici: ergo et nos cherubicam in terrisvitam aemulantes, per moralem scientiam affectumimpetus coercentes, per dialecticam rationis caliginemdiscutientes, quasi ignorantiae et vitiorum eluentessordes animam purgemus, ne aut affectus temere de-bacchentur aut ratio imprudens quandoque deliret.Tum bene compositam ac expiatam animam naturalisphilosophiae lumine perfundamus, ut postremo divi-narum rerum eam cognitione perficiamus. Et ne nobisnostri sufficiant consulamus Iacob patriarcham, cuiusimago in sede gloriae sculpta corruscat. Admonebitnos pater sapientissimus in inferno dormiens, mundoin superno vigilans. Sed admonebit per figuram Citaeis omnia contingebant) esse scalas ab imo solo adcaeli summa pro tensas multorum graduum serie dis-tinctas: fastigio Dominum insidere. Contemplatoresangelos per eas vicibus alternantes ascendere et de-scendere. Quod si hoc idem nobis angelicam affec-tantibus vitam factitandum est, quaeso, quis Dominiscalas vel sordidato pede, vel male mundis manibusattinget? Impuro, ut habent mysteria, purum attin-gere nefas. Sed qui hi pedes? quae manus? Profectopes anima e illa est portío despicatissima, qua ipsamateriae tamquam terrae solo innititur, altrix inquampotestas et cibaria, fomes libidinis et voluptuariaemollitudinis magistra. Manus anima e cur irascentiamnon dixerimus, quae appetentiae propugnatrix pro ea

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der, de modo a sermos arrebatados até aos fastígiosdo amor e descer em seguida instruídos e preparadospara as tarefas da acção. Mas, se a nossa vida deve sermodelada sobre a vida dos Querubins, devemos ter cla-ro, frente aos nossos olhos, em que consiste tal vida, quaisas acções e quais as obras deles, este o preço de tal rea-lização. Mas porque isto não podemos atingir, nós quesomos carne e que temos o gosto das coisas terrenas,aproximemo-nos dos antigos Padres, os quais nos po-dem oferecer um seguro e rico testemunho de tais coisas, aeles familiares e congénitas. Perguntemos ao apóstolo Pau-lo (*), vaso de eleição, que faziam os exércitos dos Querubinsquando foi arrebatado ao terceiro céu. Responder-nos-á,como interpreta Dionísio: purificava-se, eram iluminadose tornavam-se, por fim, perfeitos.

Também nós, portanto, emulando na terra a vida queru-bínica, refreando o ímpeto das paixões com a ciência moral,dissipando a treva da razão com a dialécticat"), purifique-mos a alma limpando-a das sujidades da ignorância e dovício para que os afectos não se desencadeiem cegamentenem a razão imprudente alguma vezes delire.

Na alma, portanto, assimrecomposta e purificada, difunda-mos a luzda filosofianatural, levando-aem seguida à perfeiçãofinal mediante o conhecimento das coisas divinas.

E para não nos restringirmos aos nossos Padres, consul-temos o patriarcaJacob, cuja figura resplandece esculpidaem sede de glória. O sapientíssimo patriarca ensinar-nos-á

(*) Paulo - A referência recorrente a São Paulo ilustra bem esteinteresse renascentista com o contacto directo com as fontes dopensamento cristão, ultrapassando as teorias oficiais dos seus principaisinterpretes, como é o caso de São Tomás de Aquino (N. T.).

(') Dialéctica - Refere-se ao método ou arte de discutir, argu-mentando, discorrendo e procurando o desvelamento da verdade.A decomposição dos conceitos para melhor compreensão da suaamplitude significante e a sua reconstrução, já informada com essesconhecimentos parcelares, traduzem o modo de pensar rectamentee a melhor forma de aproximação à verdade (N. T.).

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decertat et sub pulvere ac sole praedatrix rapit, quaeilla sub umbra dormitans helluetur? Has manus, hospedes, idest totam sensual em partem in quam sedetcorporis illecebra quae animam obtorto, ut aiunt,detinet callo, ne a scalis tamquam profani pollutiquereiiciamur, morali philosophia quasi vivo flumineabluamus. At nec satis hoc erit, si per lacob scalamdiscursantibus angelis comites esse volumus, nisi eta gradu in gradum rite promoveri, et a scalarum tra-mite deorbitare nusquam, et reciprocos obire excursusbene apti prius instructique fuerimus. Quod cum perartem sermocinalem sive rationariam erimus conse-quuti, iam cherubico spiritu animati, per scalarum,idest naturae gradus philosophantes, a centro ad cen-trum omnia pervadentes, nunc unum quasi Osirimin multitudinem vi titanica discerpentes descendemus,nunc multitudinem quasi Osiridis membra in unumvi phoebea colligentes ascendemus, donec in sinuPatris qui super scalas est tandem quiescentes, theo-logica felicitate consummabimur. Percontemur etiustum]ob, qui foedus iniit cum Deo vitae prius quamipse ederetur in vitam, quid summus Deus in decemillis centenis milibus, qui assistunt ei, potissimumdesideret: pacem utique respondebit, iuxta id quodapud eum legitur, qui facit pacem in excelsis. Et quo-niam supremi ordinis monita medius ordo inferioribusinterpretatur, interpretetur nobis lob theologi verbaEmpedocles philosophus. Hic duplicem naturam innostris animis sitam, quarum altera sursum tollimurad caelestia, altera deorsum tradimur ad inferna, perlitem et amicitiam, sive bellum et pacem, ut suamtestantur carmina, nobis significat. In quibus se lite

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que, se donnia no mundo terreno, velava no reino doscéus. Mas ensinar-nos-á mediante um símbolo (tudo assimse lhes apresentava) que existem escadas que sobem dofundo da terra até ao cume dos céus, distintas numa longasérie de degraus, no alto dos quais está sentado o Senhor,enquanto os anjos contemplantes por elas sobem e descem,alternando-se, cada um por sua vez. E se é nosso dever fazera mesma coisa, imitando a vida dos anjos, pergunto, quemousará tocar as escadas do Senhor ou com pé impuro oucom mãos por lavar? Ao impuro, segundo os mistérios,é-lhe vedado tocar aquilo que é puro.

Mas que pés? Que mãos? Sem dúvida, pé da alma é aparte vilíssima com a qual se apoia à matéria e ao solo; opoder que alimenta, fonte de lascívia, mestra de sensualbrandura. E mão da alma porque não chamar à irascívelque, serva dos apetites, por eles se bate e se lança comoum predador sob o pó e o sol, que os devora sofregamenterepousando à sombra? Estas mãos, estes pés, isto é, toda aparte sensível onde estão sediadas as seduções corpóreasque, como se diz, têm subjugada a alma, Iavemo-los com afilosofia moral, como um vivo rio, para não sermos expulsosdaquelas escadas como profanos e imundos.

Mas nem isto será suficiente, se queremos ser compa-nheiros dos anjos que percorrem a escada de Jacob, seprimeiro não tivermos sido bem habilitados e instruídos amover-nos com ordem de degrau em degrau, sem nuncasairmos da rampa da escada, sem estorvar a um ou a outroo caminho. Quando tivermos conseguido isto com a partediscursiva ou raciocinante, animados então por um espíritoquerubínico filosofando ao longo dos degraus da escada,isto é, da natureza, e tudo perscrutando do centro e parao centro, ora desceremos dilacerando com força titânicao um nos muitos, como Osíris, ora, recolhendo com forçaapolínea os muitos no um, como os membros de Osíris,elevar-nos-emos até que por fim no seio do Pai, que está novértice da escada, repousaremos na felicidade teológica.

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et discordia actum, furenti similem profugum a diis,inaltum iactari conqueritur. Multiplex profecto, patres,in nobis discordia; gravia et intestina domi habemuset plus quam eivilia bella. Quae si noluerimus, si illamaffectaverimus pacem, quae in sublime ita nos tollatut inter excelsos Domini statuamur, sola in nobiscompescet prorsus et sedabit philosophia moralisprimum, si nos ter homo ab hostibus indueias tantumquaesierit, multiplieis bruti effrenes excursiones etleonis iurgia, iras animosque contundet. Tum, si rec-tius consulentes nobis perpetuae paeis securitatemdesideraverimus, aderit illa et vota nostra liberaliterimplebit, quippe quae caesa utraque bestia, quasi ictaporca, inviolabile inter camem et spiritum foedussanctissimae paeis saneiet. Sedabit dialectica rationisturbas inter orationum pugnantias et syllogismorumcaptiones anxie tumultuantis. Sedabit naturalis phi-losophia opinionis lites et dissidia, quae inquietamhinc inde animam vexant, distrahunt et lacerant. Sedita sedabit, ut meminisse nos iubeat esse naturamiuxta Heraclitum ex bello genitam, ob id ab Homerocontentionem voeitatam; ideirco in ea veram quietemet solidam pacem se nobis praestare non posse, essehoc domina e suae, idest sanctissimae theologiae, mu-nus et privilegium. Ad illam ipsa et viam monstrabitet comes ducet, quae procul nos videns properantes:«Venite, inclamabit, ad me qui laborastis; venite etego refieiam vos; venite ad me et dabo vobis pacemquam mundus et natura vobis dare non possunt»,Tam blande vocati, tam benigniter invitati, alatis pe-dibus quasi terrestres Mercurii, in beatissimae am-plexus matris evolantes, optata pace perfruemur; pace

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E perguntemos ao justo Job, o qual antes de tersido gerado para a vida fez um pacto com o Deus da vida, queé que o sumo Deus deseja sobretudo, daqueles milhões deanjos que estão na sua presença; ele responderá, certamente:a paz, conforme nele se lê, «Aquele que faz a paz nos céus».E porque a ordem mediana é, para a inferior, intérprete dospreceitos da ordem superior, que as palavras do teólogo Jobsejam para nós ilustradas pelo filósofo Empédocles. Este,como atestam os seus poemas, simboliza com o ódio e como amor, isto é, com a guerra e com paz, as duas naturezasda nossa alma, a partir das quais somos levados ao céu ouprecipitados nos infernos. E ele, naquela luta e discórdia,transtornado como se fosse um louco, lamenta-se por tersido arrastado para o abismo, para longe dos deuses.

É indubitável, ó Padres, que múltiplas são as discórdiasentre nós, temos lutas intestinas graves e piores do queguerras civis, que só a filosofia moral poderá acalmar, selhes quisermos fugir e se quisermos obter a paz que nosconduza ao alto, de modo a colocar-nos entre os eleitos doSenhor. Mas se antes de tudo o homem que há em nós pedirtrégua aos seus inimigos, travará os descompostos tumultosdo animal multiforme e o ímpeto, o furor e o assalto doleão. Depois, mais solícitos relativamente ao nosso bem, sedesejarmos a segurança de uma paz perpétua, esta virá ecoroará abundantemente os nossos votos, e morto um eoutro animal, como vítimas imoladas, instituir-se-á um pactoinviolável de santíssima paz entre a carne e o espírito.

A dialéctica acalmará a razão tumultuosamente mor-tificada entre os contrastes das palavras e dos silogismoscapciosos. A filosofia natural acalmará os conflitos daopinião e os dissídios que atormentam, dividem e dila-ceram de modos diversos a alma inquieta. Mas acalma--los-á de modo a recordar-nos que a natureza, como disseHeraclito, é gerada pela guerra e, por isso, chamada porHomero luta. Nesta, no entanto, não podemos encontraruma verdadeira calma e paz estável, dom e privilégio da sua

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sanctissima, individua copula, unanimi amicitia, quaomnes animi in una mente, quae est super omnemmentem, non concordent adeo, sed ineffabili quodammodo unum penitus evadant. Haec est illa amicitiaquam totius philosophiae finem esse Pythagorici dic-tunt, haec illa pax quam facit Deus in excelsis suis,quam angeli in terram descendentes annuntiarunthominibus bonae voluntatis, ut per eam ipsi hominesascendentes in caelum angeli fierent; hanc pacemamicis, hanc nostro optemus saeculo, optemus uni-cuique domui quam ingredimur, optemus animaenostrae, ut per eam ipsa Dei domus fiat; ut, postquamper moralem et dialecticam suas sordes excusserit ,multiplici philosophia quasi aulico apparatu se exor-narit, portarum fastigia theologicis sertis coronarit,descendat Rex gloriae et cum Patre veniens mansionemfaciat apud eam. Quo tanto hospite si se dignampraestiterit, quae est illius immensa clementia, deau-rato vestitu quasi toga nuptiali multiplici sententiarumcircumdata varietate, speciosum hospitem, non uthospitem iam, sed ut sponsum excipiet, a quo neumquam dissolvatur dissolvi cupiet a populo suo etdomum patris sui, immo se ipsam oblita, in se ipsacupiet mori ut vivat in sponso, in cuius conspectupreciosa profecto mors sanctorum eius mors inquamilla, si dici mors debet plenitudo vitae', cuiu~ medita~tionem esse studium philosophiae dixerunt sapientes.Citemus et Mosem ipsum a sacrosanctae et ineffabilisintelligentiae Fontana plenitudine, unde angeli suonectare inebriantur, paulo deminutum.

Audiemus venerandum iudicem nobis in desertahuius corporis solitudine habitantibus leges sic edi-

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senhora, isto é, a santíssima teologia. Esta mostrará o cami-nho e servir-nos-á de guia; esta, vendo-nos apressados, delonge gritará: «Vinde a mim, vós que viveislaboriosamente,vinde e eu vos reconfortarei, vinde e dar-vos-ei a paz que omundo e a natureza não vos podem dar».

Chamados de um modo tão persuasivo, convidados comtanta benignidade, voando para o abraço da beatíssima mãe,com pés alados como terrenos Mercúrios, gozaremos a pazdesejada, a santíssima paz, a indissolúvel união, a amizadeconcorde pela qual todos as almas não só se acordam numaúnica Mente que está acima de cada mente, mas também deuma maneira inefável se fundem num só. Esta é a amizadeque os Pitagóricos dizem ser o fim de toda a filosofia, estaé a paz que Deus põe em acto nos seus céus, que os anjosdescendo à terra anunciaram aos homens de boa vontade,a fim de que mediante esta também os homens, subindo aocéu, se tomassem anjos. Esta paz desejemo-Ia aos amigos,desejemo-Ia ao nosso tempo, invoquemo-Ia em cada casa emque entremos, invoquemo-Ia para a nossa alma para que elase tome morada de Deus, para que, rejeitadas as impurezascom a moral e a dialéctica, se adorne da mais vasta filosofiacomo se fosse um ornamento real, que coroe o frontão dasportas com a grinalda da teologia, de tal modo que desçasobre ela o Rei da glória e, vindo com o Pai, estabeleça nelaa sua morada.

E se souber mostrar-se digna de tal hóspede, já queimensa é a sua demência, vestida de ouro, como de vestenupcial, circundada da múltipla variedade dos saberes,acolherá o singular hóspede, não já como hóspede, mascomo esposo e, para nunca mais deste se separar, desejarádesligar-se da sua gente, e esquecida da casa do pai e atéde si mesma, desejará em si morrer para viver no esposo, acujo conspecto é preciosa a morte dos santos, digo aquelamorte, se morte se deve chamar a plenitude de vida, a cujameditação os sábios chamaram estudo de filosofia.

E invoquemos também Moisés, em pouco inferioràquela inexcedível plenitude de sacrossanta e inefável

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centem: qui polluti adhuc morali indigent, cum plebehabitent extra tabernaculum sub divo, quasi Thelassisacerdotes interim se expiantes. Qui mores iam com-posuerunt, in sanctuarium recepti, nondum quidemsacra attractent, sed prius dialectico famulatu sedulilevitae philosophiae sacris ministrent. Tum ad ea etipsi admissi, nunc superioris Dei regia e multicolorem,idest sidereum aulicum ornatum, nunc caelestemcandelabrum septem luminibus distinctum, nunc pel-licea elementa, in philosophiae sacerdotio contempl-entur, ut postremo per theologicae sublimitatis meritain templi adita recepti, nullo imaginis intercedente velo,divinitatis gloria perfruantur. Haec nobis profecto Mo-ses et imperat et imperando admonet, excitat, ínhor-tatur, ut per philosophiam ad futuram caelestemgloriam, dum possumus, iter paremus nobis. Verumenimvero, nec Mosaica tantum aut Christiana myste-ria, sed priscorum quoque theologia harum, de quibusdisputaturus accessi, liberalium artium et emolu-menta nobis et dignitatem ostendit. Quid enim aliudsibi volunt in Graecorum arcanis observati initiatorumgradus, quibu primum per illas quas diximus quasifebruales artes, moralem et dialecticam, purifica tis ,contingebat mysteriorum susceptio? Quae quid aliudesse potest quam secretioris per philosophiam naturaeinterpreta tio ? Tum demum ita dispositis illa adveniebatE1t01t'tEÍa, idest rerum divinarum per theologiae lumeninspectio. Quis talibus sacris initiari non appetat? Quishumana omnia posthabens, fortunae contemnens bona,corporis negligens, deorum conviva adhuc degens interris fieri non cupiat, et aeternitatis nectare madidusmortale animal immortalitatis munere donari? quis non

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inteligência, de cujo néctar os anjos se inebriam. Ouvi-remos o venerando juiz ditar as leis a nós que habitamosna deserta solidão do corpo: os que, ainda impuros, têmnecessidade moral, fiquem com o vulgo fora do taberná-culo, sob o céu descoberto, como os sacerdotes da Tessália,até estarem purificados. Os que já atingiram uma vidarecta, acolhidos no santuário, não se aproximem aindadas coisas sacras, mas prestem-lhes primeiro serviço comum noviciado dialéctico, como zelosos levitas da filosofia.Por fim, admitidos também eles, contemplem agora, nosacerdócio da filosofia, ora o multicolor, quer dizer, osidéreo ornamento do palácio de Deus, ora o candelabrodas sete chamas, ora os elementos de pele, até que, acol-hidos finalmente no tabernáculo do templo, por méritoda sublimidade teológica, usufruam, retirado totalmenteo véu da imagem, da glória de Deus. Isto, sem dúvida,nos ordena Moisés e ordenando aconselha-nos, incita--nos e exorta-nos a preparar, enquanto pudermos, a viapara a futura glória dos céus, por meio da filosofia.

Mas não só os mistérios moisaicos ou os cristãos,mas também a teologia dos antigos nos mostra o valor e adignidade das artes liberais (*), que estou a discutir. Que outracoisa, de facto, querem significar nos mistérios gregos osgraus habituais dos iniciados, admitidos no mistério atravésde uma purificação obtida com a moral e com a dialéctica,artes que já dissemos serem quase purificatórias? E aquelainiciação que outra coisa pode ser senão a interpretaçãoda mais oculta natureza mediante a filosofia? Finalmente,quando estavam preparados, sobrevinha aquela E1t01t'tEUx,

isto é, a visão das coisas divinas através da luz da teologia.

(*) Artes liberais - São disciplinas a serem cultivadas pelos homenslivres (em oposição às artes serviles), dignas de ser estudadas "por si"pois são livres de utilidade prática. Agrupam-se no trivium (Gramática,Retórica e Dialética) e no quadrivium (Aritmética, Geometria, Músicae Astronomia) (N. T.).

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Socraticis illis furoribus, a Platone in Phaedro decanta-tis, sic afflari non velit, ut alarum pedumque remigiohinc, idest ex mundo, qui est positus in maligno, pro-pere aufugiens, ad caelestem Hierusalem concitatissimocursu feratur? Agemur, Patres, agemur Socraticis fu-roribus, qui extra mentem ita nos ponant, ut mentemnostram et nos ponant in Deo. Agemur ab illis utique,si quid est in nobis ipsi prius egerimus; nam si et permoralem affectuum vires ita per debitas competentiasad modulos fuerint intentae, ut immota invicem con-sonent concinentia, et per dialecticam ratio ad numerumse progrediendo auribus combinemus. Tum Musarumdux Bacchus in suis mysteriis, idest visibilibus naturaesignis, invisibilia Dei philosophantibus nobis ostendens,inebriabit nos ab ubertate domus Dei, in qua tota siuti Moses erimus fideles, accedens Sacratissima Theo-logia duplici furore nos animabit. Nam in illius emi-nentissimam sublima ti speculam, inde et quae sunt,quae erunt quaeque fuerint insectili metientes aevo,et primaevam pulchritudinem suspicientes, illorumPhoebei vates, huius alati erimus amatores, et inef-fabili demum caritate, quasi aestro perciti, quasiSaraphini ardentes extra nos positi, numine pleni, iamnon ipsi nos, sed ille erimus ipse qui fecit nos. SacraApollinis nomina, si quis eorum significantias et lati-tantia perscrutetur mysteria, satis ostendunt esse Deumillum non minus philosophum quam vatem. Quodcum Ammonius satis sit exequutus, non est cur egoaliter pertractem; sed subeant animum, Patres, triadelphica praecepta oppido his necessaria, qui nonficti sed veri Apollinis, qui illuminat omnem animamvenientem in hunc mundum, sacrosanctum et augus-

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Quem não desejaria ser iniciado em tais mistérios?Quem é que não deseja, ainda peregrino na terra, masdesprezando tudo o que é terreno e desprezando osbens da fortuna, esquecido do corpo, tomar-se comen-sal dos deuses e dessedentado pelo néctar da eterni-dade, receber, animal mortal, o dom da imortalidade? Quemnão quererá ser inspirado pelo furor socrático, exaltado porPlatão no Fedro, arrebatado em célere voa para aJerusalémCeleste, fugindo rapidamente com um bater de asas daqui,isto é, do mundo, reino do demónio? Arrebatar-nos-ão, óPadres, arrebatar-nos-ão os furores socráticos, trazendo-nospara fora da mente a tal ponto que nos coloquemos a nóse à nossa mente em Deus. E por eles certamente seremosarrebatados, se primeiro tivermos realizado tudo quanto estáem nós: se, de facto, com a moral forem refreados, dentrodos justos limites, os ímpetos das paixões ("), de tal modoque se harmonizem reciprocamente com estável acordo,se a razão proceder ordenadamente mediante a dialéctica,inebriar-nos-emos, invocados pelas Musas, com a harmoniaceleste. Então Baco, senhor das Musas,mostrando-nos, toma-dos filósofos, nos seus mistérios, isto é, nos sinais visíveisdanatureza, os invisíveissegredos de Deus, inebriar-nos-á coma abundância da casa divina na qual, se formos totalmentefiéis como Moisés, a santíssima teologia, aproximando-se,animar-nos-á com um duplo furor. Sublimados, portanto, noseu excelso observatório, referindo à medida do eterno ascoisas que são, que serão e que foram, observando nelas abeleza original, seremos, como vates apolíneos, os amadoresalados até que num inefável amor, como invadidos por umestro, postos fora de nós e cheios de Deus como Serafinsardentes, já não seremos mais nós próprios, mas Aquelemesmo que nos fez.

n Paixões - Pretende significar os interesses ou apetites que condic-ionam a acção humana, desviando-a dos seus mais altos propósitos. Comocondicionadoras da acção devem ser refreadas pela razão (N. T.).

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tissimum templum ingressuri sunt; videbitis nihilaliud illa nos admonere, quam ut tripartitam hanc, dequa est praesens disputatio, philosophiam totis viribusamplectamur. Illud enim ~Tlocvà:yav, idest ne quidnimis, virtutum omnium normam et regulam permediocritatis rationem, de qua moralis agit, rectepraescribit. Tum illud v&3tcrEautóv, idest cognosce teipsum, ad totius naturae nos cognitionem, cuius etinterstitium et quasi cynnus natura est hominis, ex-citat et inhortatur. Qui enim se cognoscit, in se omniacognoscit, ut Zoroaster prius, deinde Plato in Alcibiadescripserunt. Postremo hac cognitione per naturalemphilosophiam illuminati, iam Deo proximi, EI, idestes dicentes, theologica salutatione verum Apollinemfamiliariter proindeque feliciter apellabimus. Con-sulamus et Pythagoram sapientissimum, ob id prae-cipue sapientem, quod sapientis se dignum nominenunquam existimavit. Praecipiet primo ne super mo-dium sedeamus, idest rationalem, partem, qua animaomnia metitur, iudicat et examinat, ociosa desidia neremittentes amittamus, sed dialectica exercitatione acregula et dirigamus assidue et excitemus. Tum cav-enda in primis duo nobis significabit, ne aut adversusSolem emingamus, aut inter sacrificandum unguemresecemus. Sed postquam per moralem et superflu-entium voluptatum eminxerimus appetentias, et un-guium praesegmina, quasi acutas irae prominentiaset animo rum aculeos resecuerimus, tum demum sac-ris, idest de quibus mentionem fecimus Bacchi mys-teriis, interesse, et cuius pater ac dux merito Sol di-citur nostrae contemplationi vacare incipiamus.Postremo ut gallum nutriamus nos admonegit, idest

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Os sagrados nomes de Apolo, se alguém perscrutar afundo o significado e os mistérios encobertos, demons-tram suficientemente ser aquele Deus não menos filósofodo que vate. Mas tendo já Amónio ilustrado isto copio-samente, não há motivo para que eu trate disso de umaoutra maneira. Recordemo-nos, todavia, ó Padres, dostrês preceitos délficos, indispensáveis aos que estão paraentrar no sacrossanto e augustíssimo templo, não do falsomas do verdadeiro Apolo, que ilumina toda a alma quevem a este mundo; vereis que nada mais reclamam de nóssenão que abracemos com todas as forças a tríplice filosofiaacerca da qual agora se disputa. De facto, o ~TJÕEV áycxv,isto é, nada em excesso, prescreve rectamente a norma ea regra de cada virtude segundo o critério do justo meio,de que trata a moral. E o famoso v&ihcrêcxmóv, isto é, co-nhece-te a ti mesmo, incita e exorta ao conhecimento danatureza na sua totalidade, de que o homem é vínculoe quase síntese. Quem, de facto, se conhece a si mesmotudo em si conhece, como escreveram primeiro Zoroastroe depois Platão no Alcibíades. Finalmente, iluminados portal conhecimento mediante a filosofia natural, próximosagora de Deus e pronunciando EI, isto é, tu és, teológicasaudação, chamaremos o verdadeiro Apolo com alegrefamiliaridade.

Interroguemos também o sapientíssimo Pitágoras,sapiente sobretudo por nunca se ter considerado dig-no de tal nome. Exortar-nos-á, em primeiro lugar, anão nos sentarmos em cima do alqueire, isto é, nãodeixemos inactiva a parte racional com a qual a almatudo mede, julga e examina, mas antes devemos dirigi--la e mantê-la desperta com o exercício e as regras dadialéctica. Indicar-nos-á então duas coisas que acima detudo devemos evitar: urinarmos voltados para o sol e cor-tarmos as unhas durante o sacrifício. Só quando tivermosexpulso de nós, mediante a moral, os turvos apetites davoluptuosidade e tivermos cortado as garras aduncas da ira,

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ut divinam animae nostrae partem divinarum rerumcognitione quasi solido cibo et caelesti ambrasia pas-camus. Hic est gallus cuius aspectum leo, idest omnisterrena potestas, formidat et reveretur. Hic ille gallus,cui datam esse intelligentiam apud lob legimus. Hocgallo canente aberrans homo resipiscit. Hic gallus inmatutino crepusculo, matutinis astris Deum laudan-tibus, quotidie commodulator. Hunc gallum moriensSocrates, cum divinitatem animi sui divinitati maior-is mundi copulaturum se speraret, Aesculapio, idestanimarum medico, iam extra omne morbi discrimenpositus, debere se dixit. Recenseamus et Chaldaeorummonumenta, videbimus (si illis creditur) per easdemartes patere viam mortalibus ad felicita tem. Scribuntinterpretes Chaldaei verbum fuisse Zoraastris alatamesse animam, cumque alae exciderent ferre illampraeceps in corpus, tum illis subcrescentibus ad su-peras revolare. Percunctantibus eum discipulis alisquo pacto bene plumantibus volucres animos sortiren-tur: «irrigetis, dixit, alas aquis vitae». lterum scisci-tantibus unde has aquas peterent, sic per parabolam(qui erat hominis mos) illis respondit: «quatruor am-nibus paradisus Dei abluitur et irrigatur, indidemvobis salutares aquas hauriatis. Nomen ei qui ab aq-uilone Pischon, quod rectum denotat, ei qui ab oc-casu Dichon, quod expiationem significat, ei qui abortu Chiddekel, quod lumen sonat, ei qui a meridiePerath, quod pietatem interpretari possumus». Ad-vertite animum et diligenter considera te , Patres, quidhaec sibi velint Zoraastris dogmata: prafecto nihilaliud nisi ut morali scientia, quasi undis hibericis,oculorum sordes expiemus; dialectica, quasi boreali

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removidos os aguilhões da alma, só então começaremosa tomar parte nos sacros mistérios de Baco, dos quais jáfalámos e dedicar-nos-emos à contemplação de que o Solmerecidamente é considerado pai e senhor. Aconselhar-nos-á, por fim, a alimentar o galo, isto é, a saciar comsólida alimentação e com a celeste ambrósia das coisasdivinas a parte divina da nossa alma. É este o galo cujoaspecto teme e venera o leão, isto é, toda a potência ter-rena. É este o galo, ao qual, segundo Job, foi conferidaa inteligência. Com o canto deste galo arrepende-se ohomem extraviado. Este é o galo que canta todos os diasde madrugada, quando as estrelas de manhã louvam aDeus. É este o galo que Sócrates, na hora da morte, nomomento em que esperava reunir o divino da sua almaà divindade de tudo e já afastado do perigo de qualquerdoença corpórea, considerava que devia a Esculápio, istoé, ao médico da alma.

Examinemos também os testemunhos dos Caldeus e,se acreditarmos neles, veremos que são as mesmas artesque abrem aos mortais o caminho da felicidade. Escrevemos intérpretes caldaicos que Zoroastro havia dito ser aalma alada e que, quando lhe caem as asas, se precipitano corpo e volta a voar para o céu quando lhe tornam acrescer. Tendo-lhe os discípulos perguntado de que modopoderiam tornar a alma apta para o voo com asas bemplumadas, «regai as asas, disse, com a água da vida». Eperguntando-lhe ainda estes como poderiam obter taiságuas, respondeu-lhes, segundo o seu costume, com umaparábola: «O paraíso de Deus é banhado e irrigado porquatro rios: a partir daí podereis atingir as águas salutares.O nome daquele que corre de setentrião é Pischon, quesignifica justiça; o que vem do ocaso chama-se Dichon,isto é, expiação; o que vem do oriente é Chiddekel esignifica luz; por fim, aquele que corre do sul chama-sePerath e podemos interpretar como fé». Pensai bem, óPadres, e considerai com atenção o significado destes

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amussi, illorum aciem liniemus ad rectum. Tum innaturali contemplatione debile adhuc veritatis lumen,quasi nascentis solis incunabula, pati assuescamus,ut tandem per theologicam pie tatem et sacratissimumDei cultum, quasi caelestes aquilae, meridiantis solisfulgidissimum iubar fortiter perferamus. Hae illaeforsan et a Davide decantatae primum, et ab Augus-tino explicatae latius, matutinae, meridiana e et ves-pertinae cognitiones. Haec est illa lux meridialis,quae Seraphinos ad lineam inflammat et Cherubinospari ter illuminat. Haec illa regio, quam versus sem-per antiquus pater Abraham proficiscebatur. Hic illelocus, ubi immundis spiritibus locum non esse etCabalistarum et Maurorum dogmata traditerunt. Etsi secretiorum aliquid mysteriorum fas est vel subaegnimate in publicum proferre, postquam et repense caelo casus nostri hominis caput vertigine damna-vit et, iuxta Hieremiam, ingressa per fenestras morsiecur pectusque male affecit, Raphaelem caelestemmedicum advocemus, qui nos morali et dialecticauti pharmacis salutaribus liberet. Cum ad valitudinembonam restitutos, iam Dei robur Gabriel inhabitabit,qui nos per naturae ducens miracula, ubique Deivirtutem potestatemque indicans, tandem sacerdotisummo Michaeli nos tradet qui, sub stipendiis phi-losophiae emeritos, Theologiae sacerdotio quasicorona preciosi lapidis insignet.

Haec sunt, Patres colendissimi, quae me adphilosophiae studium non animarunt modo sedcomputerunt. Quae dicturus certe non eram,nisi his responderem qui philosophiae studiuminprincipibus praesertim viris, aut his omnino qui

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dogmas de Zoroastro; certamente nada mais significamdo que isto, que devemos purificar a viscosidade dos olhoscom a ciência moral, como com ondas ocidentais; quedevemos dirigir atentamente o olhar com a dialéctica,como com um nível boreal; que nos devemos habituar asuportar na contemplação da natureza a ainda fraca luzda verdade, primeiro indício do sol nascente: até que,finalmente, com a meditação teológica e o santíssimoculto de Deus, possamos aguentar vigorosamente, comoáguias do céu, o fulgurante esplendor do sol do meio-dia.Talvez sejam estes os conhecimentos matutinos, meri-dianos e vespertinos, cantados primeiro por David e emseguida explicados amplamente por Agostinho. Esta é aluz resplandecente que inflama os Serafins e do mesmomodo ilumina os Querubins. Esta é a região para a qualtendia sempre o antigo pai Abraão. É este o lugar onde,segundo o ensino dos Cabalistas e dos Árabes, não hálugar para os espíritos impuros.

E se é lícito trazer a público alguma coisa dos maissecretos mistérios, ainda que só sob o véu do enigma,dado que a nossa imprevista queda do céu condenou àvertigem a cabeça do homem; segundo as palavras deJe-remias, de facto, foram abertas asjanelas à morte, a qualatingiu o coração e o fígado, invoquemos Rafael, médicoceleste, para que nos liberte com a moral e a dialéctica,fármacos salutares. Habitará então em nós, já outra vezde boa saúde, Gabriel, força de Deus, levando-nos atravésdas maravilhas da natureza e mostrando-nos por todoo lado a virtude e o poder de Deus, apresentar-nos-á fi-nalmente a Miguel sumo sacerdote, o qual, após termosprestado serviço nas milícias da filosofia, nos coroará,como se se tratasse de uma coroa de pedras preciosas,com o sacerdócio da Teologia.

Estes são os motivos, venerandos Padres, que não sóme encorajaram, mas também me impeliram ao estudo dafilosofia. Certamente não os teria exposto se não tivesse

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mediocri fortuna vivunt, damnare solent. Est enimiam hoc totum philosophari (quae est nostae aetatisinfelicitas) in contemptum potius et contumeliam,quam in honorem et gloriam. Ita invasit fere omniummentes exitialis haec et monstruosa persuasio, autnihil aut paucis philosophandum. Quasi rerumcausas, naturae vias, universi rationem, Dei consilia,caelorum terraeque mysteria, prae oculis, praemanibus exploratissima habere nihil sit prorsus,nisi vel gratiam inde aucupari aliquam, vel lucrumsibi quis comparare possit. Quin eo deventum estut iam (pro h dolor!) non existimentur sapientesnisi qui mercenarium faciunt studium sapientiae, utsit videre pudicam Palladem, deorum munere interhomines diversantem, eiici, explodi, exsibilari; nonhabere qui amet, qui faveat, nisi ipsa, quasi prostanset praefloratae virginitatis accepta mercedula, maleparatum aes in amatoris arculam referat. Quaeomnia ego non sine summo dolore et indignationein huius temporis, non principes, sed philosophosdico, qui ideo non esse philosophandum et creduntet praedicant, quod philosophis nu lIa merces, nu lIasint praemia constituta, quasi non ostendant ipsi,hoc uno nomine, se non esse philosophos. Quodcum tota eorum vita sit vel in quaestu, vel inambitione posita, ipsam per se veritas cognitionemnon amplectuntur. Dabo hoc mihi, et meipsum hacex parte laudare nihil erubescam, me numquamalia de causa philosophatum nisi ut philosopharer,nec ex studiis meis, ex meis lucubrationibus,mercedem ullam aut fructum vel sperasse aliumvel quaesiisse, quam animi cultum et a me semper

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de responder a todos quantos têm o hábito de condenar oestudo da filosofia, sobretudo aos príncipes, ou que gozamem geral de uma qualquer fortuna. Todo este filosofar,de facto, dá azo mais ao desprezo e ao vitupério - e istoé uma infelicidade do nosso tempo - do que à honra eà glória. E esta funesta e monstruosa convicção invadiude tal modo a mente da maioria que só pouquíssimos,ou mesmo ninguém, deviam poder filosofar: como se oinvestigar as causas das coisas, os processos da natureza,a razão do universo, os conselhos de Deus, os mistériosdo céu e da terra não valesse de nada, a menos que daíse consiga retirar algo de útil ou de lucrativo. Chegámosa um tal ponto, actualmente, e é uma dor de alma, quenão se consideram sábios senão os que transformaram oestudo da sabedoria em fonte de lucro, de tal modo quese pode ver a casta Palas, enviada para o meio dos homenspor dom divino, expulsa, ridicularizada e vilipendiada.Não há quem a ame, quem a siga, senão com a condiçãode se prostituir e de tirar lucro da sua violada virgindadee, recebido o dinheiro, deitar esse mal obtido dinheirono cofre do amante.

E digo tudo isto, não sem uma enorme dor e profun-da indignação, não já contra os príncipes, mas contraos filósofos do nosso tempo, os quais acreditam e dizemque não se deve filosofar porque não se estabeleceramprémios e recompensas para os filósofos; como se nãomostrassem precisamente com esta afirmação não seremfilósofos. Toda a vida destes, efectivamente, ao assentar nolucro ou na ambição, mostra que eles não abraçam por simesmo o conhecimento da verdade. A mim mesmo con-cederei apenas isto, e não corarei, pois, por ser elogiado,que nunca filosofei senão pelo amor da pura filosofia,nem nunca esperei ou procurei com os meus estudose as minhas meditações obter alguma mercê ou algumfruto a não ser a formação da minha alma e o conheci-mento da verdade, por mim ansiada acima de qualquer

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plurimum desideratae veritatis cognitionem. Cuius itacupidus semper et amantissimus fui ut, relícta omniprivatarum et publícarum rerum cura, contemplandioeio totum me tradiderim; a quo nullae invidorumobtrectationes, nu lIa hostium sapientiae maledicta,vel potuerunt antehac, vel in posterum me deterrerepoterunt. Docuit me ipsa philosophia apropriapotius conseientia quam ab externis pendere ludiciís,cogitareque semper, non tam ne male audiam, quamne quid male dicam ipse vel agam. Equidem noneram neseius, Patres colendissimi, futuram hancipsam meam disputa tionem quam vobis omnibus,qui bonis artibus favetis et augustissima vestrapraesentia illam honestare voluistis, gratam atqueiucundam, tam multis alíis gravem atque molestam;et seio non deesse qui inceptum meum et damnarintantehac et in praesentia multis nominibus damnent.Ita consueverunt non paueiores, ne dicam plures,habere oblatratores quae bene sancteque aguntur advirtutem, quam quae inique et perperam ad vitium.Sunt autem qui totum hoc disputandi genus et hancde líteris publice disceptandi institutionem nonapprobent, ad pompam potius ingenií et doctrinae,quam ad comparandam eruditionem esse illamasseverantes. Sunt qui hoc quidem exereitationisgenus non improbent, sed in me nullo modo probent,quod ego hac aetate, quartum scilicet et vigesimummodo natus annum, de sublimibus Christianaetheologiae mysteriís, de altissimis philosophiae loeis,de incognitis diseiplínis, in celebratissima urbe, inamplíssimo doctissimorum hominum consessu, inApostolíco senatu, disputationem proponere sim

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outra coisa. Da qual tenho sido sempre um amante tãoapaixonado que, abandonada toda e qualquer preocupa-ção relativamente aos negócios privados e públicos, medediquei completamente à paz da meditação; disto nemcalúnias de invejosos nem a maldade dos inimigos dosaber me puderam até aqui desviar e nunca o poderão.Foi a filosofia que me ensinou a depender mais da minhaconsciência do que dos juízos dos outros; a estar sempreatento, não ao mal que de mim se diz, mas a não dizerou a não fazer eu próprio o mal.

Não ignorava certamente, venerandos Padres, que estadiscussão acabaria por ser tão apreciada e agradável a todosvós, amantes das artes liberais e dando voluntariamenteprestígio à iniciativa com a vossa augustíssima presença,quanto intolerável e molesta a muitos outros, e bem sei quenão faltam os que já condenaram antes e condenam agorade muitas maneiras a minha iniciativa, de tal modo queas boas e santas iniciativas têm habitualmente implacáveiscríticas, se não mais, decerto não menos numerosas, doque as iníquas e viciosas. Alguns há que desaprovam estegénero de discussão e esta minha iniciativa de debaterem público questões doutrinais, afirmando que tudo istotem mais como intenção mostrar engenho e erudição doque obter um melhor conhecimento. Outros, embora nãodesaprovando esta espécie de exercício, não o aprovamabsolutamente no meu caso, visto que eu, com esta idade,isto é, com apenas vinte e quatro anos, tive a ousadia depropor uma discussão acerca dos mistérios mais altos dareligião cristã, acerca das questões mais profundas dafilosofia, acerca de doutrinas desconhecidas, numa cida-de famosíssima, numa vastíssima assembleia de homensdoutíssimos, frente ao senado Apostólico. Outros, emboraconsentindo que eu discuta, não admitem que eu discutaacerca de novecentos assuntos, afirmando maldosamenteque isto é uma atitude tão soberba e ambiciosa comoacima está das minhas forças.

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ausus. Alii, hoc mihi dantes quod disputem, id darenolunt quod de nongentis disputem quaestionibus,tam superfluo et ambitiose quam supra vires id factumcalumniantes. Horum ego obiectamentis et manusillico dedissem, si ita quam profiteor philosophiame edocuisset et nunc, illa ita me docente, nonresponderem, si rixandi iurgandique propositoconstituam hanc inter nos disceptationem crederem.Quare, obtrectandi omne lacessendique propositum,et quem scribit Plato a divino semper abesse choro,a nostris quoque mentibus facessat livor, et andisputandum a me, an de tot etiam quaestionibus,amice incognoscamus. Primum quidem ad eos,qui hunc publice disputandi morem calumniantur,multa non sum dicturus, quando haec culpa, siculpa censetur, non solum vobis omnibus, doctoresexcellentissimi, qui saepius hoc munere, non sinesumma et laude et gloria, functi estis, sed Platoni,sed Aristoteli, sed probatissimis omnium aetatumphilosophis mecum est communis. Quibus eratcertissimum nihil ad consequendam quam quaerebantveritatis cognitionem sibi esse, potius quam ut essent indisputandi exercitatione frequentissimi. Sicut enim pergyrnnasticam corporis vires firmiores fiunt, ita dubioprocul, in hac quasi literaria palaestra, animi vires etfortiores longe et vegetiores evadunt. Nec crediderimego aut Poetas aliud per decantata Palladis arma, autHebraeos, cum t",~,ferrum, sapientum syrnbolumesse dicunt, significasse nobis quam honestissimahoc genus certamina, adipiscendae sapientiae oppidoquam necessaria. Quo forte fit ut et Chaldaei, in eiusgenesi qui philosophus sit futurus, illud desiderent, ut

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Às objecções de todos estes me teria rendido ime-diatamente se assim me tivesse ensinado a filosofia queprofesso; nem mesmo agora, pelo seu ensino, responderiase eu considerasse que esta discussão tinha sido levada acabo com o propósito de altercar e polemizar entre nós.Está, portanto, longe do nosso ânimo qualquer intençãode litígio e de provocação e a inveja que, segundo Platão,afasta dos deuses; examinemos, antes, amigavelmente seé admissível que eu tenha iniciado esta disputa e tenhadiscutido tantas questões.

Aos que criticam o hábito de discutir em públiconão direi muitas coisas, a partir do momento em quetal culpa, se como culpa é considerada, não é só comuma todos vós, exímios doutores, que muitas vezes haveisassumido esta tarefa não sem grande louvor e glória,mas também a Platão, a Aristóteles, a todos os filósofosmais famosos de todos os tempos. Os quais tinham porcertíssima convicção que nada lhes era mais favorávelpara a obtenção da verdade que procuravam do que oexercício contínuo e frequente da discussão. De facto,do mesmo modo que as forças do corpo se robuste-cem com a ginástica, assim também, sem dúvida, nestaespécie de palestra do espírito, a energia da alma setorna mais forte e firme. E eu sou levado a crer queisto quiseram dar a entender os poetas com as famosasarmas de Palas, ou os Hebreus considerando o ferrosímbolo dos sapientes, acerca da conveniência de talgénero de lutas para obter a sapiência, assim como anecessidade delas para a defender. E talvez também poristo os Caldeus desejavam que no nascimento daqueleque se deve tornar filósofo, Marte olhe triangularmentepara Mercúrio, de tal modo que, uma vez retiradas estasconjunções e estes contrastes, toda a filosofia resultassesoporífera e sonolenta.

É-me mais difícil a defesa frente àqueles que não meconsideram à altura desta iniciativa: se, de facto, me

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Mars Mercurium triquetro aspectu conspiciat, quasi,si hos congressus, haec bella substuleris, somniculosaet dormitans futura sit omnis philosophia. At verocum his qui me huic provinciae imparem dicunt,difficilior est mihi ratio defensionis: nam si parem medixero, forsitan immodesti et de se nimia sentientis ,si imparem fatebor, temerarii et inconsulti notamvideor subiturus. Videte quas incidi angustias, quoloco sim constitutus, dum non possum sine culpa deme promittere, quod non possum mox sine culpa nonpraestare. Forte et illud Job afferre possem, spiritumesse in omnibus, et cum Timotheo audire «nernocontemnat adolescentiam tuarn». Sed ex mea veriushoc conscientia dixero, nihil esse in nobis magnum velsingulare; studio, sum me forte et cupidum bonarumartium non inficiatus, docti tamen nomen mihi necsumo nec arrogo. Quare et quod tam grande humerisonus imposuerim, non fuit propterea quod mihi consciusnostrae infirmitatis non essem, sed quod sciebam hocgenus pugnis, idest literariis, esse peculiare quod in eislucrum est vinci. Quo fit ut imbecillissimus quisquenon detractare modo, sed appetere ultro eas iure possitet debeat. Quandoquidem qui succumbit beneficiuma victore accipit, non iniuriam, quippe qui per eumet locupletior domum, idest doctior et ad futuras pug-nas redit instructior. Hac spe animatus, ego infirmusmiles cum fortissimis omnium strenuissimisque tamgravem pugnam decemere nihil sum veritus. Quodtamen temere sit factum necne, rectius utique de eventupugna e quam de nostra aetate potest quis iudicare?Restat ut tertio loco his respondeam, qui numerosapropositarum rerum multitudine offenduntur, quasi

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considerar à altura de tal empresa, serei talvez conside-rado digno da acusação de imodesto e presunçoso; se,pelo contrário, me considerar incapaz, serei digno dade imprudente e temerário. Vede, pois, em que caí, emque posição me encontro, já que não posso deixar deprometer sem reprovação o que em seguida não possosem reprovação dar. Talvez possa citar de Job que o es-pírito está em todos, e ouvir com Timóteo: «ninguémdespreze a tua juventude». Mas, de um modo mais sin-cero e segundo a minha consciência, poderei dizer queem mim nada há de grande e de singular; ainda queadmitindo ser estudioso e desejoso de saber, contudonão me arrogo nem pretendo o nome de douto. Peloque, se me propus realizar uma tarefa tão pesada, não foiporque não tivesse consciência da minha fraqueza; masdependeu do reconhecimento, que é prerrogativa destaespécie de batalhas doutrinárias, de que o ser vencido éum ganho. Por isso, acontece que o mais fraco não sóas deve evitar, mas antes pode e deve afrontá-las por suainiciativa, já que quem sucumbe recebe não um dano,mas uma vantagem, pois volta para casa mais rico, istoé, mais douto e mais armado para as futuras batalhas.Animado de tal esperança, eu, fraco soldado, não tivereceio algum de afrontar uma tão perigosa batalhacom combatentes mais fortes e corajosos. Se, contudo,a minha empresa é ou não temerária, poder-se-á julgarmelhor a partir do resultado do combate, e não devidoà minha idade.

Resta-me, em terceiro lugar, responder àqueles aquem ofende o número exagerado das teses propostas,como se o peso delas recaísse sobre os seus ombros e,em vez disso, não fosse apenas eu a dever suportar talfadiga, por muito pesada que ela possa ser. Mas é ver-dadeiramente inconveniente e pouco razoável quererpôr um limite às obras dos outros e, como disse Cícero,querer exigir a mediocridade ao que é tanto melhor

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hoc eorum humeris sederet onus, et non potius hicmihi soli, quantuscunque est labor, esset exanclandus.Indecens profecto hoc et morosum nimis, velle alienaeindustriae modum ponere, et, ut inquit Cicero, in ea requae eo melior quo maior, mediocritatem desiderare.Omnino tam grandibus ausis erat necesse me velsuccumbere vel satisfacere; si satisfacerem, non videoCUf quod in decem praestare quaestionibus est laudabile,in nongentis etiam praestitisse culpabile existimetur,Si succumberem, habebunt ipsi, si me oderunt, undeaccusarent, si amant unde excusent. Quoniam in re tamgravi, tam magna, tenui ingenio, exiguaque doctrina,adolescentem hominem defecisse, venia potius dignumerit quam accusatione. Quin et iuxta Poetam:

si deficiant vires, audacia certelaus erit: in magnis et voluisse sat est.

Quod si nostra aetate multi, Gorgiam leontinumimitati, non modo de nongentis sed de omnibus etiamomnium artium quaestionibus soliti sunt, non sinelaude, proponere disputationem, cur mihi non liceat,vel sine culpa, de multis quidem, sed tamen certiset determina tis disputare? At superfluum inquiunthoc et ambitiosum. Ego vero non superfluo modo,sed necessario factum hoc a me contendo, quod et siipsi mecum philosophandi rationem considerarent,inviti etiam fateantur plane necesse est. Qui enimse cuipiam ex philosophorum familiis addixerunt,Thomae videlicet aut Scoto, qui nunc plurimumin manibus, faventes, possunt illi quidem vel inpaucarum quaestionum discussione suae doctrinae

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quanto maior é.Numa empresa tão grande como esta, é necessano

que eu sucumba ou triunfe; se consigo, não vejo por quemotivo é digno de louvor conseguir com dez assuntos ese deva considerar uma culpa fazê-lo com novecentos.Se sucumbir, aqueles, se me odeiam, terão motivo parame acusarem; se me amam, para me desculparem. Queum jovem de pouco engenho e de exígua doutrina nãoesteja à altura de uma tão grande e arriscada empresa éum facto mais digno de perdão do que de condenação.Como diz o Poeta:

Se as forças faltam, será fonte de louvora audácia: nas grandes empresas, é jámuito o tê-lo querido.

Se, nos nossos tempos, muitos, imitando Górgias deLeontino, propuseram disputas, não sem louvor, nãosó sobre novecentas teses, mas mesmo sobre todos osassuntos de todas as artes, porque não poderei eu, semser reprovado, discutir sobre muitas, sim, mas bem pre-cisas e determinadas? Mas replicam que isso é supérfluoe ambicioso. Eu, pelo contrário, contraponho que nãosó não é supérfluo, mas que para mim é necessáriofazê-lo, e se aqueles considerassem as razões do meufilosofar seriam constrangidos a reconhecer tal absolutanecessidade.

Os que, de facto, seguem uma qualquer escola filo-sófica, de São Tomás, por exemplo, ou de Escoto, queactualmente congregam os maiores consensos, cimentama sua doutrina na discussão de poucas questões. Eu, pelocontrário, propus interessar-me seriamente por todos osmestres da filosofia, examinar todas as posições, conhe-cer todas as escolas, mas não jurar sobre a palavra deninguém. Por isso, encontrando-me na necessidade defalar de todos os filósofos, para não parecer sustentar

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periculum facere. At ego ita me institui, ut in nulliusverba iuratus, me per omnes philosophiae magistrosfunderem, omnes schedas executerem, omnes familiasagnoscerem. Quare, cum mihi de illis omnibus essetdicendum, ne, si priva ti dogmatis defensor reliquaposthabuissem, illi viderer obstrictus, non potuerunt,etiamsi pauca de singulis proponerentur, non esseplurima quae simul de omnibus affeberantur. Nec idin me quispiam damnet, quod me quocumque ferattempestas deferar hospes. Fuit enim cum ab antiquisomnibus hoc observatum, ut omne scriptorum genusevolventes, nullas quas possent commentationes il-lectas praeterirent, tum maxime ab Aristotele, quieam ob causam àua:yu<ÍxrtllÇ, idest lector, a Platonenuncupabatur, et profecto angustae est mentis intraunam se Porticum aut Academiam continuisse. Necpotest ex omnibus sibi recte propriam selegisse, quiomnes prius familiariter non agnoverit. Adde quod inunaquaque familia est aliquid insigne, quod non sitei commune cum ceteris. Atque ut a nostris, ad quospostremo philosophia pervenit, nunc exordiar, estin Joanne Scoto vegetum quiddam atque discussum,in Thoma solidum et aequabile, in Aegidio tersumet exactum, in Francisco acre et acutum, in Albertopriscum, amplum et grande, in Henrico, ut mihi visumest, semper sublime et venerandum. Est apud Arabes,in Averroe firmum et inconcussum in Avenpace in, ,Alpharabio grave et meditatum, in Avicenna divinumatque platonicum. Est apud Graecos in universumquidem nitida, in primis et casta philosophia; apudSimplicium locupies et copiosa, apud Themistiumelegans et conpendiaria, apud Alexandrum constans

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uma tese determinada sem tomar em consideração asoutras, as questões propostas não podiam deixar deser muitas no seu conjunto, ainda que sejam poucasas atinentes a cada um. Nem me venham reprovar queem qualquer lado que a tempestade se apresente aíchego eu como hóspede. Por todos os antigos, de facto,foi observada esta regra, que, examinado cada autor,não deixassem de ler, tanto quanto possível, nenhumescrito. Tal regra observou-a em particular, Aristótelesque, por isso, era denominado por Platão àua,yuóx}"'tllÇ,quer dizer, o leitor; e é verdadeiramente próprio demente estreita restringir-se a uma só escola, quer elaseja o Pórtico(*) ou a Academiaf"). Portanto, não podeescolher entre todas a sua família quem primeiro nãoexaminou a fundo todas. Acrescente-se que em cadaescola há algo de peculiarmente insigne não comumcom as outras, e, para começar com os nossos, aos quaischegou finalmente a investigação filosófica, há emJoão[Duns] Escoto qualquer coisa de vigoroso e de subtil ,em Tomás [de Aquino] de sólido e de equilibrado, emEgídio [Romano] de terso e de exacto, em Francisco[de Mayronnes] de penetrante e de agudo, em Alberto[Magno] de antigo, amplo e imponente, em Henrique[de Gand], parece-me, qualquer coisa sempre sublimee veneranda.

E entre os Árabes há em Averróis algo de seguro ede inconcusso, em Avenpace e em Alfarrabi de gravee de meditado, em Avicena de divino e de platónico.Entre os Gregos, em geral, existe acima de tudo umafilosofia clara e pura; rica e ampla em Simplício, ele-

(') Pórtico e Academia - O Pórtico e a Academia referem-se,respectivamente, à escola estóica e à escola fundada por Platão. Am-bos os nomes derivam da localização das escolas: nos estóicos, sob opórtico ornado com as pinturas de Polignoto; em Platão, no ginásiodos jardins do herói Academos (N.T.).

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et docta, apud Theophrastum gravite r elabora ta, apudAmmonium enodis et gratiosa. Et si ad Platonicos teconverteris, ut paucos percenseam, in Porphyrio rerumcopia et multiiuga religione delectaberis, in Jamblicosecretio rem philosophiam et barbarorum mysteriaveneraberis, in PIo tino primum quicquam non esta-dmireris, qui se undique praebet admirandum, quemde divinis divine, de humanis longe supra hominemdocta sermonis obliquitate loquentem, sudantesPlatonici vix intelligunt. Praetereo magis novitios,Proculum Asiatica fertilitate luxuriantem et qui abeo fluxerunt Hermiam, Damascium, Olympiodorumet complures alios, in quibus omnibus illud 'to SEtOV,idest divinum, peculiare Platonicorum symbolum elu-cet semper. Accedit quod, si qua est secta quae verioraincessat dogmata et bonas causas ingenii calumnialudificetur, ea veritatem firmat, non infirmat, et, velutmotu quassatam flammam, excitat, non extinguit. Hacego ratione motus, non unius modo (ut quibusdamplacebat), sed omnigenae doctrinae placita in mediumafferre volui, ut hac complurium sectarum collationeac multifariae discussione philosophiae, ille veritatisfulgor, cuius Plato meminit in Epistulis, animis nostrisquasi sol oriens ex alto clarius illucesceret. Quid erat,si Latinorum tantum, Alberti scilicet, Thomae, Scoti,Aegidii, Francisci, Henricique philosophia, obmís-sis Graecorum Arabumque philosophis, tractabatur?Quando omnis sapientia a Barbaris ad Graecos, a Graecisad nos manavit. Ita nostrates semper in philosophandiratione peregrinis inventis stare, et aliena excoluisse sibiduxerunt satis. Quid erat cum Peripateticis egisse denaturalibus, nisi et Platonicorum accersebatur academia,

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gante e sintética em Temístio, constante e douta emAlexandre de Afrodísia, profundamente elaborada emTeofrasto, ágil e graciosa em Amónio. E se em seguidanos voltarmos para os Platónicos, para falar só de pou-cos, com Porfírio deleitar-nos-emos com a abundânciade temas e com a religião complexa, em Jâmblicoveneremos a filosofia oculta e os mistérios bárbaros,em PIotino não há nada que não se possa admirar,porque em tudo ele se mostra admirável, porque faladivinamente das coisas divinas, porque quando fala dascoisas humanas coloca-se muito acima do humano coma sapiente subtileza do discurso, de tal modo que, comalgum trabalho, só o entendem os próprios Platónicos.E deixo os mais recentes, Proclo luxuriante de fecun-didade asiática e os seus alunos, Hérmias, Damásio eOlimpiodoro e muitos outros, nos quais reluz sempreaquele 'to SEtOV, isto é, o divino, símbolo característicodos Platónicos.

Acrescente-se que, se há uma qualquer escola quecombate as afirmações mais verdadeiras e calunia osválidos juízos da razão, ela reforça e não enfraquece averdade, tal como o vento agitando a chama a alimentae não a apaga.

Movido por esta consideração, quis apresentar as con-clusões não de uma só doutrina, como teria agradado aalguns, mas de todas, de modo a que, do confronto demuitas escolas e da discussão das múltiplas filosofias, ofulgor de verdade de que Platão fala nas Cartas resplan-deça nas nossas almas, como um sol nascente no céu.Que valor teria tratar só da filosofia dos latinos, isto é, deAlberto, de Tomás, de Escoto, de Egídio, de Francisco, deHenrique, esquecendo a filosofia dos Gregos e dos Arabes,quando todo o conhecimento passou dos Bárbaros aosGregos e dos Gregos a nós? Por isso, os nossos sempreretiveram suficiente, no campo filosófico, aterem-se àsdescobertas dos outros e aperfeiçoar o pensamento

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quorum doctrina et de divinis semper inter omnes phi-losophias - teste Augustino - habita est sanctissima eta me nunc primum, quod sciam, - verbo absit invidia- post multa saecula sub disputandi examen est inpublicum allata. Quid erat et aliorum quotquot eranttractasse opiniones, si quasi ad sapientum symposiumasymboli accedentes, nihil nos quod esset nostrum,nostro partum et elaboratum ingenio, afferebamus?Profectum ingenerosum est, ut ait Seneca, sapere solumex commentario et, quasi maiorum inventa nostraeindustriae viam praecluserint, quasi in nobis effeta sitvis naturae, nihil ex se parere, quod veritatem, si nondemonstret, saltem innuat vel de longinquo. Quod si inagro colonus, in uxore maritus odit sterilitatem, certetanto magis infecundam animam oderit illi complicitaet associata divina mens, quanto inde nobilior longeproles desideratur.

Propterea non contentus ego, praeter communesdoctrinas multa de Mercuri Trismegisti prisca theolo-gía, multa de Chaldaeorum, de Pythagorae disciplinis,multa de secretioribus Hebraeorum addidisse mys-teriis, plurima quoque per nos inventa et meditata,de naturalibus et divinis rebus disputanda propo-suimus. Proposuimus primo Platonis Aristotelisqueconcordiam a multis antehac creditam, a nemine satisprobatam. Boethius, apud Latinos, id se facturum pol-licitus, non invenitur fecisse umquam quod semperfacere voluit. Simplicius, apud Graecos idem profes-sus, utinam id tam praestaret quam pollicetur. Scribitet Augustinus in Academicis non defuisse plures quisubtilissimus suis disputationibus idem probare co-nati sint, Platonis scilicet et Aristotelis eamdem esse

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alheio. De que teria valido discutir acerca de questõesfísicas com os Peripatéticos, se não se fizesse tambémintervir a Academia dos Platónicos, cuja doutrina acercadas coisas divinas, segundo Agostinho, tem sempre sidoconsiderada santíssima entre todas as filosofias e agora,pela primeira vez após tantos séculos, por mim apenas- que eu saiba, e longe de mim que tais palavras sejamde inveja - foi trazida ao exame de um debate público?De que teria valido ter discutido as opiniões dos outros,se, convidados para o banquete como quem não levanada consigo, não tivéssemos trazido nada de nosso,nada produzido e elaborado pelo nosso engenho? Éverdadeiramente pouco nobre, como afirma Séneca,saber apenas de comentário, como se as descobertasdos maiores tivessem fechado o caminho para a nossainvestigação, como se a força da natureza, como queesgotada, não pudesse gerar algo que, ainda que nãomostrando completamente a verdade, a faça pelo menosentrever de longe. Do mesmo modo que o camponêsodeia a infertilidade do campo e o marido a esterilidadena mulher, assim também a mente divina odiará aindamais uma alma infecunda ligada e cingida a si, quantomais nobre é a prole que dela se deseja.

Por tais motivos, eu, insatisfeito por ter trazido, alémdas doutrinas comuns, muitos assuntos da antiga teologiade Hermes Trimegisto, muitas das teorias dos Caldeus ede Pitágoras, muitos dos escondidos mistérios dos He-breus, também propus à discussão muitíssimos assuntosconcernentes ao mundo natural e divino, encontradose meditados por mim. Antes de tudo o mais, propus oacordo entre Platão e Aristóteles, por muitos já antesconsiderado possível, mas por ninguém suficientementeprovado. Boécio, entre os Latinos, embora tivesse pro-metido fazê-lo, parece que nunca cumpriu o que sempredisse querer fazer: Simplício, entre os Gregos, tinhasustentado a mesma coisa, oxalá tivesse mantido quanto

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philosophiam. joannes item Grammaticus cum dieatapud eos tantum dissidere Platonem ab Aristotele,qui Platonis dieta non intelligunt, probandum tamenposteris hoc reliquit. Addidimus autem et plures locosin quibus Scoti et Thomae, plures in quibus Averroiset Avieennae sententias, quae discordes existimantur,concordes esse nos asseveramus. Secundo loco, quaein philosophia cum Aristotelica tum Platoniea excogi-tavimus nos, tum duo et septuaginta nova dogmataphysiea et metaphysiea collocavimus, quae si quisteneat, peterit, nisi fallor, quod mihi erit mox mani-festum, quamcumque de rebus naturalibus divinisquepropositam quaestionem longe alia dissolvere ratione,quam per eam edoceamur quae et legitur in scholis etab huius aevi doctoribus colitur philosophiam. Nectam admirari quis debet, Patres, me in primis annis, intenera aetate, per quam vix licuit - ut iactant quidam- aliorum legere commentationes, novam afferre vellephilosophiam, quam vel laudare illam, si defenditur,vel damnare, si reprobatur, et denique, cum nostrainventa haec nostrasque sint litteras iudieaturi, nonauctoris annos, sed illorum merita potius vel demeritanumerare. Est autem, et praeter illam, alia, quam nosattulimus, nova per numeros philosophandi institutioantiqua, illa quidem et a Priscis Theologis, a Pythagorapraesertim, ab Aglaophamo, a Philolao, a Platone priori-busque Platonicis observa ta, sed quae hac tempestate,ut praeclara alia, posteriorum incuria sie exolevit, ut vixvestigia ipsius ulla reperiantur. Scribit Plato in Epinomide,inter omnes liberales artes et scientias contemplatricespraecipuam maximeque divinam esse scientiam nume-randi. Quarens item, cur homo animal sapientissimum?

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prometera. Até mesmo Agostinho, no livro Contra os Aca-démicos, escreve que muitos foram os que tentaram provarnas suas subtilíssimas disputas que a filosofia de Platãoe de Aristóteles são uma mesma filosofia. Assim, JoãoGramático, que afirma que Platão difere de Aristótelessó para os que não percebem o texto de Platão, deixouaos vindouros a demonstração.

Acrescentámos ainda várias teses nas quais afirmámosque as sentenças consideradas contrastantes de Escoto ede Tomás, de Averróis e de Avicena, pelo contrário sãoconcordantes. Propusemos, pois, as conclusões por nósencontradas quer sobre a filosofia platónica, quer sobrea aristotélica e, portanto, setenta e duas novas teses defísica e de metafísica, as quais, após demonstradas, qual-quer um poderá, (se não me engano) com o que meserá manifesto dentro de pouco tempo, resolver qual-quer questão natural e teológica com um outro critério,diferente do que se ensinou e se ensina nas escolas e queé usado pelos filósofos do nosso tempo. E que ninguémse admire, ó Padres, que eu jovem em anos e de idadeimatura, a qual, como insinuam alguns, só permite quese leiam os comentários dos outros, queira propor umanova filosofia. Tal facto será antes de louvar, se a souberdefender, de condenar, se for reprovada; enfim, os quedeverão julgar as nossas descobertas e os nossos escritos,tenham em conta não os anos do autor, mas sim os méritosou deméritos da obra.

Propusemos ainda, além das novas teses, um outro pro-cedimento filosófico com base nos números, seguido pelosprimeiros Teólogos, especialmente por Pitágoras, por Agla-ofemo, por Filolau, por Platão e pelos antigos platónicos,doutrina que, como outras doutrinas ilustres, se apagou detal modo, devido à incúria dos vindouros, que delas dificil-mente se encontra actualmente um ou outro traço. EscrevePlatão no Epinómides que a ciência de contar é, entre todasas artes e as ciências de contemplar, excelente e sumamente

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respondet: quia numerare novit. Cuius sententiae etAristoteles meminit in Problematis. Scribit Abumasarverbum fuisse Avenzoar Babylonii, eum omnia nosse quinoverat numerare. Quae vera esse nullo modo possunt,si per numerandi artem eam artem intellexerunt cuiusnunc mercatores in primis sunt peritissimi, quod et Platotestatur, exserta nos admonens voce ne divinam hancarithmeticam mercatoriam esse arithmeticam intelliga-mus. Illam ergo arithmeticam, quae ita extollitur, cummihi videar post multas lucubrationes exploratam habere,huiusce rei periculum facturus, ad quattor et septuagintaquaestiones, quae inter physicas et divinas principalesexistimantur, responsurum per numeras publice me sumpollicitus. Praposuimus et magica theoremata, in quibusduplicem esse magiam significavimus, quarum alteradaemomum tota opere et auctoritate constat, res mediusfidius execranda et portentosa. Altera nihil est aliud, cumbene exploratur, quam naturalis philosophiae absolutaconsummatio. Utriusque cum meminerint Graeci, illammagiae nullo modo nomine dignantes yor}'a::iavnuncu-pant, hanc prapria peculiarique appellatione j..layEÍav,quasi perfectam summamque sapientiam vocant.Idem enim, ut ait Porphyrius, Persarum linguamagus sonat quod apud nos divino rum interpres etcultor. Magna autem, immo maxima, Patres, inter hasartes disparilitas et dissimilitudo. Illam non modoChristiana religio, sed omnes leges, omnis bene in-stituta respublica damnat et exsecratur. Hanc omnessapientes, omnes caelestium et divinarum rerumstudiosae nationes, approbant et amplectuntur. Illaartium fraudolentissima, haec firma, fidelis et solida.Illam quisquis coluit semper dissimulavit, quod in

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divina. E perguntando-se por que razão é o homem o maissapiente dos animais, responde: porque sabe contar. Estasentença também Aristóteles recorda nos Problemas. EscreveAbumasar, que foi opinião de Avenzoar, babilónio, que tudosabe quem sabe contar. Tal coisa de modo algum poderiaser verdadeira se, por arte de contar, se entendesse a artedo cômputo de que agora são peritos sobretudo os merca-dores, e isto confirma também Platão quando nos adverte,com voz ampla, para não se confundir esta aritmética divinacom a aritmética dos comerciantes. Após longas reflexões,considerando, portanto, ter examinado a fundo a aritméticaassim exaltada e estando pronto para afrontar a discussão,tomei a decisão de responder publicamente mediante osnúmeros a setenta e quatro questões, consideradasprincipais entre as físicas e divinas.

Propusemos também teoremas mágicos onde de-monstrámos que a magia(*) é dupla; uma fundando-seexclusivamente na obra e autoridade dos demónios, écoisa execrável e monstruosa; a outra, pelo contrário, seolharmos bem, nada mais é do que a suprema realizaçãoda filosofia natural. Os Gregos, tendo presente uma eoutra, indicam a primeira, não a dignificando de modoalgum com o nome de Magia com o vocábulo yOTl'cEÍav, echamam com o próprio e peculiar nome J!ayEÍa à quaseperfeita e suprema sapiência. Como disse Porfírio, defacto, na língua persa, «mago» tem o mesmo significadoque tem para nós intérprete e cultor das coisas divinas.Grande, portanto, melhor, enormíssima, ó Padres, é a

(*) Magia - Para Pico existem dois tipos de magia. Por um ladoa magia negra da bruxaria e da feitiçaria, obra do demónio que elecritica e recusa, por outro, identificando-se com a filosofia natural. Picoconsidera-a uma "boa magia" porque se refere ao estudo e interpretaçãodas coisas celestes e divinas que permite, também, o conhecimento darealidade terrestre visto esta ser uma criação de Deus. Correspondetambém ao poder do homem manipular a natureza. Há quem serefira, por isso, ao Pico que anuncia a tecnologia (N. T.).

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auetoris esset ignominiam et eontumeliam, ex haesumma litterarum claritas gloriaque antiquitus etpaene semper petita. Illius nemo umquam studiosusfuit vir philosophus et eupidus diseendi bobas artes;ad hane Pythagoras, Empedocles, Demoeritus, Plato,diseendam navigavere, hane praediearunt reversi,et in areanis praecipuam habuerunt. Illa, ut nullisrationibus, ita nee eertis probatur auetoribus; haee,clarissimis quasi parentibus honestata, duos prae-cipue habet auetotes: Xalmosidem, quem imitatusest Abbaris hyperboreus, et Zoroastrem, non quemforte ereditis, sed ilium Oromasi filuim. Utriusquemagia quid sit, Platonem si pereontemur, respondebitin Alcibiade: Zoroastris magia non esse aluid quamdivino rum scientiam, qua filios Persarum reges erud-iebant, ut ad exemplar mundana e Reipublieae suamipsi regere Rempublieam edoeerentur. Respondebit inCharmide, magiam Xalmosidis esse animi medicinam,per quam scilieet animo temperantia, ut per illam cor-pori sanitas eomparatur. Horum vestigiis postea per-stiterunt Carondas, Damigeron, Apollonius, Hostaneset Dardanus. Perstitit Homerus, quem ut omnes aliassapientias, ita hane quoque sub sui Ulixis erroribusdissimulasse in poetica nostra Theologia aliquandoprobabimus. Perstiterunt Eudoxus et Hermippus.Perstiterunt fere omnes qui Pythagora Platonieaquemysteria sunt perserutati. Ex iunioribus autem, quieam olfeeerint tres reperio, Alchindum, Arabem,Rogerium Baeonem et Guilielmum Parisiensem. Me-minit et Plotinus, ubi naturae ministrum esse et nonarticifem Magum demonstrat: hane magiam probatasseveratque vir sapientissimus, alteram ita abhor-

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disparidade e a dissemelhança entre estas duas artes. Umaé condenada e detestada não só pela religião cristã, maspor todas as leis, por qualquer Estado bem organizado. Aoutra aprovam-na e abraçam-na todos os sábios, todos ospovos amantes de coisas celestes e divinas. Aquela é entretodas as artes a mais fraudulenta; esta é segura, dignade fé e sólida. Quem quer que tenha praticado aquelasempre o escondeu, pois teria revertido como vergonhae como dano sobre o seu autor; com esta, na antiguidadee depois, quase sempre se procurou grande celebridadee glória nas letras. Daquela nunca foi estudioso algumfilósofo ou homem desejoso de aprender as boas artes;para aprender esta, Pitágoras, Empédocles, Demócrito ePlatão correram os mares e quando voltaram ensinaram-na e tiveram-na como suprema arte nos seus mistérios.Aquela, porque não é sustentada por nenhuma razão,não é aprovada por nenhum autor; esta, quase tornadanobre por ilustres pais, tem sobretudo dois cultores.

Zalmóxides que imitou Ábaris, o Hiperbóreo, eZoroastro, não aquele em que talvez estejais a pensar,mas o filho de Oromásio. Que magia é a destes dir--nos-á, se o interrogarmos, Platão no Alcibíades: que amagia outra coisa não era senão o conhecimento dascoisas divinas, que os reis persas ensinavam aos seusfilhos para que aprendessem a governar a sua Repúbli-ca, segundo o exemplo da ordem do mundo. Respon-der-nos-á no Cármines que a magia de Zalmóxides é amedicina da alma, com a qual se atinge a harmonia davida interior, do mesmo modo que com a outra se obtéma saúde do corpo.

Na esteira destes persistiram Carondas, Damigeron,Apolónio, Hostanes, Dárdano. Seguiu-a Homero, quedemonstraremos um dia, numa nossa Teologia poética,ter escondido, sob as viagens do seu Ulisses, tal comotodas as outras ciências, também esta. Seguiram-naEudoxo e Hermipo. Seguiram-na quase todos os que

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rens ut, cum ad malorum daemonum sacra vocare-tur, rectius esse, dixerit, ad se illos quam se ad illosaccedere, et merito quidem. Ut enim illa obnoxiummancipatumque improbis potestatibus hominemreddit, ita haec illarum principem et dominum. Illadenique nec artis nec scientiae sibi potest nomemvendicare; haec altissimis plena mysteriis, profundis-simam rerum secretissimarum contemplationem, etdemum totius naturae cognitionem complectitur. Haec,inter sparsas Dei beneficio et inter seminatas mundovirtudes, quasi de latebris evocans in lucem, non tamfacit miranda quam facienti naturae sedula famulatur.Haec universi consensum, quem significantius GraecicrUjl1táSEtUV dicunt, introrsus perscrutatius rima ta etmutuam naturarum cognitionem habens persectam,nativas adhibens unicuique rei et suas illecebras, quaemagorum íU'Y'YEç nominantur, in mundi recessibus,in naturae gremio, in promptuariis arcanisque Deilatitantia miracula, quasi ipsa sit artifex, promit inpublicum, et sicut agricola ulmos vitibus, ita Magusterram caelo, idest inferiora superiorum dotibus vir-tutibusque maritat. Quo fit ut quam illa prodigiosa etnoxia, tam haec divina et salutaris appareat. Ob hocpraecipue quod illa hominem, Dei hostibus mancipans,avocat a Deo, haec in eam operum Dei admirationemexcitat, quam propensa caritas, fides ac spes, certís-sime consequuntur. Neque enim ad religionem, adDei cultum quicquam promovet magis quam assiduacontemplatio mirabilium Dei, quae ut per hanc dequa agimus naturalem magiam bene exploraverimus,in opificis cultum amoremque ardentius anima ti illudcanere compellemur: «Pleni sunt caeli, plena est omnis

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investigaram a fundo os mistérios Pitagóricos e Plató-nicos. Entre os modernos que a praticaram encontrotrês, o árabe Alkindi, Rogério Bacon e Guilherme deParis [de Alvérnia]. Recorda-a também Plotino, quan-do demonstra que o mago é ministro e não artíficeda natureza: e tal espécie de magia, aquele homemsapientíssimo aprova e sustém, enquanto, pelo con-trário, desdenha a tal ponto da outra que, convidadopara os rituais dos demónios, respondeu com razão queera melhor que eles fossem até ele e não ele até eles.Enquanto aquela, de facto, torna o homem escravo dasforças do mal, esta torna-o senhor e dono. Aquela nãopode reivindicar para si o nome da arte ou da ciência:esta, repleta de profundíssimos mistérios, abraça acontemplação mais alta das coisas mais secretas e porfim, o conhecimento total da natureza. Esta, como quetrazendo das profundidades à luz as virtudes dispersas edisseminadas no mundo pela bondade de Deus, mais doque realizar milagres coloca-se ao serviço da milagrosanatureza. Esta, perscrutando intimamente o secretoacordo do universo a que os Gregos chamam de umamaneira muito significativa crUJl1táSEta, explorando amútua ligação das naturezas, atribuindo a cada umadelas as congénitas lisonjas que se chamam tÚyyEÇ,isto é, encantamentos dos magos, traz à luz, como seela própria fosse o artífice, as maravilhas escondidasnas profundezas do mundo, no seio da natureza e dosmistérios de Deus, e, do mesmo modo que o camponêscasa olmos com videiras, também o Mago casa a terracom o céu, isto é, as forças inferiores com os dotes e aspropriedades superiores. Daqui se infere que, enquantoa primeira magia aparece como monstruosa e nociva, asegunda mostra-se divina e salutar. Sobretudo por isto,enquanto uma, colocando o homem à mercê dos inimigosde Deus, o afasta de Deus, a outra exalta-o para tal admi-ração das obras de Deus, de onde seguramente derivam

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terra maiestate gloriae tuae».Et haec satis de magia, de qua haec diximus,

quod seio esse plures qui, sicut canes ignotos semperadlatrant, ita et ipsi saepe damnant oderuntque quaenon intelligunt.

Venio nunc ad ea quae ex antiquis Hebraeorummysterris eruta, ad sacrosanctam et catholicam fidemconfirmandam attuli, quae ne forte ab his, quibus suntignota, commentitiae nugae aut fabulae eircumlatorumexistimentur, volo intelligant omnes quae et qualiasint, unde petita, quibus et quam claris auctoribusconfirma ta et quam reposita, quam divina, quamnostris hominibus ad propugnandam religionem contraHebraeorum importunas calumnias sint necessaria.Scribunt non modo celebres Hebraeorum doctores,sed ex nostris quoque Esdras, Hilarius et Origines,Mosem non legem modo, quam quinque exaratamlibris posteris reliquit, sed secretiorem quoque etveram legis enarrationem in monte divinitus accepisse;praeceptum autem ei a Deo ut legem quidem populopublicaret, legis interpretationem nec traderetlibris, nec invulgaret, sed ipse Iesu Nave tantum,tum ille aliis deinceps succedentibus sacerdotumprimoribus, magna silenti religione, revelaret. Satiserat per simplicem historiam nunc Dei potentiam,nunc in improbos iram, in bonos clementiam, inomnes iustitiam agnoscere, et per divina salutariaquepraecepta ad bene beateque vivendum et cultumverae religionis institui. At mysteria secretiora,et sub cortice legis rudique verborum praetextulatitantia, altissimae divinitatis arcana, plebi palamfacere, quid erat illud quam dare sanctum canibus

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a caridade, a fé e a esperançat"). De facto, nada conduzmelhor à religião, ao culto de Deus, como a constantecontemplação das maravilhas de Deus, e quando as tiver-mos examinado bem mediante esta magia natural de queagora tratamos, mais ardentemente animados pelo cultoe por um grande amor pelo artífice, seremos levados acantar: «Cheios estão os céus, cheia está a Terra da Tuamajestade e glória».

E agora chega de magia, de que tanto falei, porquesei que muitos há que, como os cães que ladram sempreaos desconhecidos, também condenam e odeiam o quenão compreendem.

Passo agora às coisas que, tiradas dos antigos mistériosHebreus, aleguei como confirmação da sacrossanta e cató-lica fé, e com o fim de não serem consideradas por aquelesque as ignoram como vaidades, patetices ou fábulas decharlatães, quero que todos saibam que coisas são e quais,donde derivam, por que ilustres autores são confirmadas,quão escondidas, quão divinas, quão necessárias são taiscoisas para defender a nossa religião contra as fastidiosascalúnias dos Hebreus. Escrevem não só célebres doutoreshebreus mas, entre os nossos, também Esdras, Hilárioe Orígenes, que Moisés recebeu no monte não só a leique depois deixou aos descendentes em cinco livros, mastambém uma secreta e verdadeira interpretação dela. AMoisés Deus ordenou que divulgasse a lei, mas que nãoescrevesse a interpretação da lei nem a divulgasse, mas arevelasse só aJesus Nave e este, por sua vez, aos seguintessumos sacerdotes, sob o sagrado sigilo do absoluto silên-cio. Era suficiente conhecer mediante o simples relatodaqueles factos quer a potência de Deus, quer a sua ira

(') Caridade, fé e esperança - São as virtudes teologais transmitidasao homem por Deus no acto do Baptismo e visam complementar asvirtudes naturais, habitualmente designadas por virtudes cardeais:prudência,justiça, fortaleza e temperança (N. T.).

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et inter porcos spargere margaritas? Ergo haecclam vulgo habere, perfectis communieanda, interquos tantum sapientiam loqui se ait Paulus, nonhumani consilii sed divini praecepti fuit. Quemmorem antiqui philosophi sanctissime observarunt.Pythagoras nihil scripsit nisi pau cuia quaedam, quaeDamae filiae moriens commendavit. Aegyptiorumtemplis insculptae Sphinges, hoc admonebant utmystica dogmata per aenigmatum nados a profanamultitudine inviolata custodirentur. Plato Dionysioquaedam de supremis scribens substantiis, «peraenigmata, inquit, dieendum est, ne si epistula fortead aliorum pervenit manus, quae tibi scribemus abaliis intelligantur». Aristoteles libros Metaphysicaein quibus agit de divinis editos esse et non editosdieebat. Quid plura? Iesum Christum vitae magistrumasserit Origenes multa revelasse discipulis, quaeilli, ne vulgo fierentcommunia, scribere noluerunt.Quod maxime confirmat Dionysius Areopagita, quisecretiora mysteria a nostrae religionis auctoribus ÉKvoú EÍç voüv <>tà uéoov Â.óyov,ex animo in animum,sine litteris, media intercedente verbo, ait fuissetransfusa. Hoc eodem penitus modo cum ex Deipraecepto vera illa legis interpretatio Moisi deitustradita revelare tur, dieta est Cabala, quod idem estapud Hebraeos quod apud nos receptio; ob id scilicetquod illam doctrinam, non per litterarum monumenta,sed ordinariis revelationum successionibus alterab altero quasi hereditario iure reciperet. Verumpostquam Hebraei a Babyloniea captivitate restitutiper Cyrum et sub Zorobabel instaura to templo adreparandum legem animum appulerunt, Esdras, tunc

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contra os malvados, quer a demência para com os bons,a justiça para com todos, e serem deste modo educados,mediante preceitos divinos e salutares, para uma vidaboa e feliz, para o culto da verdadeira religião. Porém,revelar abertamente à plebe os mistérios mais secretos,escondidos sob a casca da lei, expor os sublimes misté-rios de Deus, ocultos sob a rude veste das palavras, queoutra coisa teria sido senão dar as coisas santas aos cãese lançar pérolas a porcos?

Manter, portanto, tudo isto oculto do vulgo, a fimde o comunicar apenas aos perfeitos, entre os quaisunicamente Paulo afirma pronunciar palavras de sa-piência, não foi obra de humana prudência, mas dedivina sabedoria. E tal costume foi escrupulosamenteobservado pelos antigos filósofos. Pitágoras não escreveusenão pouquíssimas coisas que ao morrer confiou à filhaDamo. As Esfinges, esculpidas nas frentes dos templosegípcios, advertiam que os ensinamentos místicos de-viam ser guardados com os nós dos enigmas, invioláveispara a multidão profana. Platão, escrevendo a Dionísioacerca dos modos das substâncias supremas, afirma: «Énecessário exprimirmo-nos mediante enigmas de modoque, se alguma vez por acaso a carta cair na mão deum outro, não seja percebido pelos outros aquilo queescrevo». Aristóteles dizia que os livros da Metafísica,nos quais trata das coisas divinas, eram publicados einéditos. Que mais ainda? Orígenes afirma que JesusCristo, mestre de vida, revelou aos discípulos muitascoisas que eles não quiseram escrever para não seremvulgarizados. Tal facto confirma-o sobretudo DionísioAreopagita, o qual diz que os mistérios mais secretosforam transmitidos pelos fundadores da nossa religião h:vou EÍç voüv ôtà uéoov ÂÓyov, isto é, de mente a mente,sem escritos, mediante o Verbo.

Tendo deste modo sido revelada, por mandamento deDeus, a verdadeira interpretação da lei dada a Moisés por

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ecclesiae praefectus, post emendatum Moseos librum,cum plane cognosceret per exilia, caedes, fugas,captivitatem gentis Israeliticae institutum a maioribusmorem tradendae per manus doctrinae servari nonposse, futurumque ut sibi divinitus indulta caelestisdoctrinae arcana perirent, quorum commentariisnon intercedentibus durare diu memoria nonpoterat, constituit ut, convocatis qui tunc supererantsapientibus, afferret unusquisque in medium quaede mysteriis legis memoriter tenebat, adhibitisquenotariis in septuaginta volumina (tot enim ferein Synedrio sapientes) redigerentur. Qua de re nemihi soli credatis, Patres, audite Esdram ipsum sicloquentem: «Exactis quadraginta diebus loquutus estaltissimus dicens: Priora quae scripsisti in palam pone,legant digni et indigni, novissimos autem septuagintalibras conservabis ut tradas eos sapientibus de populotuo. In his enim est vena intellectus et sapientiae fonset scientiae flumen. Atque ita feci». Haec Esdras adverbum. Hi sunt libri scientiae Cabalae, in his librismerito Esdras venam intellectus, idest ineffabilemde supersubstantiali deita te Theologiam, sapientiaefontem, idest de intelligibilibus angelicisque formisexactam metaphysicam, et scientiae flumen, idest derebus naturalibus firmissimam Philosophiam esse,clara in primis voce pranuntiavit.

Hi libri Sixtus quartus Pontifex maximus, quihunc sub quo vivimus feliciter Innocentium octavumpraxime antecessit, maxima cura studioque curavitut in publicam fidei nostrae utilitatem Latinis litterismandarentur. Itaque, cum ille decessit, tres ex illispervenerant ad Latinos. Hi libri apud Hebraeos hac

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Deus, deu-se-Ihe o nome de Cabala(*) , que para os Hebreustem o mesmo significado que para nós receptio (recepção).E isto porque tal doutrina era recebida, não mediantemomentos literários, mas por meio de sucessivasrevelaçõesque um recebia do outro, como por direito hereditário.

Quando os Hebreus, libertados por Ciro da escravi-dão babilónica e construído o templo sob Zorobabel, seempenharam em restaurar a lei, Esdras, então chefe daigreja, depois de ter emendado o livro de Moisés, ao verclaramente que não se podia manter a tradição fixadapelos antepassados de transmitir oralmente a doutrina nosexílios, nos massacres, nas fugas, nos cativeiros do povode Israel, dado que deste modo pereceriam os mistériosda celeste doutrina, concedidos por Deus, não podendomanter-se por muito tempo a memória desta sem a inter-posição de textos escritos, estabeleceu que, reunidos ossábios então sobreviventes, cada um manifestasse quantoconservava guardado na memória acerca dos mistérios dalei. Estes em seguida, chamados os escribas, foram escritosem setenta volumes, tantos quantos eram então os sábiosdo Sinédrio. E porque nisto, ó Padres, não deveis apenascrer em mim, escutai Esdras que assim fala: «Ao fim dequarenta dias, o Altíssimo falou dizendo: o que primeiroescreveste toma-o público e que o leiam os dignos e osindignos; mas os últimos setenta livros conservá-los-ás afim de os confiares aos sábios do teu povo; neles está aveia do intelecto, a fonte de sabedoria, um rio de ciência.E assim fiz»: Assim Esdras, textualmente.

São estes os livros da ciência da Cabala; neles, comrazão, Esdras proclamou claramente estar ali a veia do

(') Cabala - Estudo bíblico de cariz filosófico, teológico e cos-mológico, de carácter esotérico (secreto), que sustenta uma tradiçãooriginada numa revelação divina, transmitida oralmente só a algunseleitos, pretendendo resolver os mistérios da relação do mundo divinocom o mundo terrestre. Corresponde à mais secreta teologia dosjudeus, apontando para um conhecimento místico. (N. T.)

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tempestate tanta religione coluntur, ut nemimemliceat nisi annos quadraginta natum illos attingere.Hos ego libros non mediocri impensa mihi cumcomparassem, summa diligentia, indefessis laboribuscum perlegissem, vidi in illis - testis est Deus- religionem non tam Mosaicam quam Christianam.Ibi Trinitatis mysterium, ibi Verbi incarnatio, ibiMessiae divinitas, ibi de peccato originali, de illiusper Christum expiatione, de caelesti Hierusalem, decasu daemonum, de ordinibus angelorum, de purgatoriis,de inferorum poenis, eadem legi quae apud Paulum etDionysium, apud Hieronymum et Augustinum, quotidielegimus. In his vero quae spectant ad philosophiam,Pythagoram prorsus audias et Platonem, quorumdecreta ita sunt fidei Christianae affinia, ut Augustinusnoster immensas Deo gratis agat, quod ad eius manuspervenerint libri Platonicorum. In plenum nulla estferme de re nobis cum Hebraeis controversia, de quaex libris Cabalistarum ita redargui convincique nonpossint, ut ne angulus quidem reliquus sit in quem secondant. Cuius rei testem gravissimum habeo AntoniumCronicum virum eruditissimum, qui suis auribus,cum apud eum essem in convivio, audivit DactylumHebraeum peritum huius scientiae in Christianorumprorsus de Trinitate sententiam pedibus manibusquedescendere. Sed ut ad meae redeam disputationis capitapercensenda, attulimus et nostram de interpretandisOrphei Zoroastrisque carminibus sententiam. Orpheusapud Graecos ferme integer, Zoroaster apud eosmancus, apud Chaldaeos absolutior legitur. Ambopriscae sapientiae crediti patres et auctores. Nam uttaceam de Zoroastre, cuius frequens apud Platonicos

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intelecto, isto é, a inefável Teologia da supersubstancialdivindade; a fonte de sapiência, isto é, a exacta metafísi-ca das formas inteligíveis e angélicas; e o rio de ciência,isto é, a solidíssima filosofia das coisas da natureza. Esteslivros, Sisto N, Sumo Pontífice, que foi o imediato prede-cessor de Inocêncio VIII sob o qual felizmente vivemos,mandou, com grande cuidado e grande zelo, que fossemtraduzidos para latim, para pública utilidade da nossa fé.Assim, quando morreu, já três tinham sido traduzidos.Estes livros procurei-os com não pequeno dispêndio dedinheiro, li-os com suma diligência e incansável estudo evi neles - Deus é disso testemunha - não tanto a religiãoMoisaica quanto a Cristã. Aqui os mistérios da Trindade,aqui a encarnação do Verbo, aqui a divindade do Messias;aqui quanto diz respeito ao pecado original, à expiaçãodeste por meio de Cristo, quanto concerne à JerusalémCeleste, à queda dos demônios, aos coros angélicos, àspenas do purgatório e do inferno; li as mesmas coisas quetodos os dias lemos em Paulo e Dionísio, em Jerônimoe em Agostinho. No tocante à filosofia, parece-nos ouvirPitágoras e Platão, cujos princípios são tão afins à fé cristãque o nosso Agostinho dá imensas graças a Deus por lheterem chegado às mãos os livros dos platônicos.

Concluindo, não há nenhum assunto controversoentre nós e os Hebreus, em que estes não possam sercombatidos e convencidos com os livros cabalísticos, detal modo que não lhes fica nem sequer um cantinho ondese possam esconder. De tal facto tenho uma testemunhaatendibilíssima, Antônio Crônico, homem eruditíssimo,que na sua casa durante um banquete ouviu com os seuspróprios ouvidos Dáctilo Hebreu, conhecedor profundode tal ciência, chegar em tudo às mesmas conclusões doscristãos acerca da Trindade.

Mas, voltando ao exame dos argumentos da minhadisputa, trouxemos também o nosso modo de interpretaros carmes de Orfeu e de Zoroastro. Orfeu lê-se nos textos

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non sine summa semper veneratione est mentio, scribitlamblichus Chalcideus habuisse Pythagoram OrphicamTheologiam tamquam exemplar ad quam ipse suamfingeret formaretque philosophiam.

Quin idcirco tantum dieta Pythagorae sacranuncupari dicunt, quod ab Orphei fluxerint institutis;inde secreta de numeris doctrina, et quicquid magnumsublimeque habuit graeca philosophia, ut a primo fontemanavit. Sed (qui erat veterum mos Theologorum)ita Orpheus suorum dogmatum mysteria fabularumintexit involucris et poetico velamento dissimulavit,ut si quis legat illius hymnos, nihil subesse credatpraeter fabellas nugasque meracissimas. Quod voluidixisse ut cognoscatur quis mihi labor, quae fueritdificultas, ex affectatis aenigmatum syrpis, ex fabularumlatebris latitantes eruere secretae philosophiae sensus,nulla praesertim in re tam gravi tam absconditainexplorataque adiuto aliorum interpretum opera etdiligentia. Et tamen oblatrarunt canes mei minutulaquaedam et levia ad numeri ostentationem meaccumulasse, quasi non omnes quae ambiguae maximecontroversaeque sunt quaestiones, in quibus principalesdigladiantur academiae, quasi non multa attulerim hisipsis, qui et mea carpunt et se credunt philosophorumprincipes, et incognita prorsus et intentata.

Quin ego tantum absum ab ea culpa, ut curaverimin quam paucissima potui capita cogere disputationem.Quam si - ut consueverunt alii - partiri ipse in suamembra et lancinare voluissem, in innumerum profectonumerum excrevisset. Et, ut taceam de ceteris, quisest qui nesciat unum dogma ex nongentis, quodscilicet de concilianda est Platonis Aristotelisque

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gregos quase integralmente, Zoroastro nos textos gregos estámutilado, mas está mais completo nos dos Caldeus. Ambossão considerados pais e autores da antiga sabedoria. Paranão falar de Zoroastro, frequentemente mencionado pelosPlatónicos e sempre com suma veneração,]âmbico de Cal-cíclica escreve que Pitágoras considerava a teologia órfica omodelo sobre o qual plasmou e formou a sua filosofia.

Precisamente por isso, porque derivam da iniciação ór-fica, os ensinamentos de Pitágoras consideram-se sagrados;deles emanou, como sua primeira fonte, a secreta doutrinados números e tudo o que de grande e de sublime tevea filosofia grega. Mas, como era costume dos antigos teó-logos, Orfeu revestiu os mistérios dos seus dogmas com aveste das fábulas e dissimulou-os com véus poéticos, de talmodo que quem lê os seus hinos pode julgar não passaremestes de fabulações e de divagações brincalhonas. E quisdizer isto para que se saiba que fadiga foi a minha, quedificuldade foi tirar do emaranhado dos enigmas, dos véusdas fábulas, os sentidos ocultos da secreta filosofia, sem oauxílio de outros intérpretes, numa empresa tão grave, re-côndita e inexplorada. E mesmo assim, os que me assediamcomo cães ladram que eu acumulei por mera ostentaçãofutilidade e patetices, como se não tivesse proposto todasaquelas questões que são as mais ambíguas e controversas,sobre as quais polemizam as principais escolas; como se eutivesse proposto questões de todo desconhecidas e nuncafocadas mesmo por aqueles que me atacam e se reputamde mestres entre os filósofos.

De tal modo estou longe de tais culpas que procureireduzir a discussão ao menor número possível de pon-tos. Que, se eu tivesse querido - como é habitual outrosfazerem - dividir e desmembrar nas suas partes, teriaescrito certamente um número inumerável de teses. Paranão falar de tudo o mais, quem não sabe que uma só dasnovecentas teses, isto é, aquela sobre a conciliação entrea filosofia de Aristóteles e a de Platão, eu a poderia ter

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GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA

philosophia, potuisse me citra omnem affectataenumerositatis suspicionem in sexcenta ne dicamplura capita deduxisse, locos scilicet omnes in quibusdissidere alii, convenire ego illos existimo particulatimenumerantem? Sed certe - dicam enim quamquamneque modeste neque ex ingenio meo - dicam tamen,quia dicere me invidi cogunt, cogunt obtrectatores,volui hoc meo congressu fidem facere, non tam quodmulta scirem, quam quod scirem quae multi nesciunt.Quod ut vobis reipsa, Patres colendissimi, iam palamfiat, ut desiderium vestrum, doctores excelentissimi, quospara tos accinctosque expectare pugnam non sine magnavoluptate conspicio, mea longius oratio non remoretur,quod felix faustumque sit quasi citante classico iamconseramus manus.

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 1117

dividido, e sem incorrer na suspeita de prolixidade, emseiscentos pontos, para não dizer mais ainda, enumerandoseparadamente todos os lugares em que os outros consi-deram que os dois contrastam e eu penso, pelo contrário,que estão de acordo?

Mas certamente - e di-lo-ei, embora não seja modestoda minha parte e seja contra a minha índole - di-Io-ei,contudo, porque a isso me obrigam os invejosos e meforçam os detractores: quis nesta assembleia mostrar nãotanto que sei muitas coisas, mas que sei coisas que os ou-tros ignoram. E para que isto agora, ó Venerandos Padres,seja manifesto a partir da realidade dos factos, para queo meu discurso não empate muito mais o vosso desejo,excelentíssimos doutores que vejo, prontos e preparados,esperando a contenda, e não sem grande prazer, com umbom augúrio, como ao som da trompa de guerra, venha-mos agora à batalha.

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~lndice

Acerca do pensamento de Giovannidella Mirandola VII

Nota Bibliográfica XXXV

Estudo Pedagógico Introdutório XLI

Discurso de Giovanni Pico Conde de Concórdia 51