piaget e as histórias infantis

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UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006) ISSN 1809-4651 Piaget e as histórias infantis Flávia Isaia Pinheiro Mestre em Educação, pedagoga e psicopedagoga [email protected] Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, RS Resumo O estudo em questão resulta da pesquisa “Piaget e as histórias infantis: uma aproximação possível para alfabetizar letrando” e apresenta como propósito compreender e explicar como a literatura infantil contribui para a construção do pensamento das crianças. A investigação foi realizada com um grupo de seis crianças, cujas idades variavam entre 6 e 7 anos, que freqüentavam uma turma de 1º ano, do 1º Ciclo de uma escola pública da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, em 2003. Os resultados da pesquisa apontam para a existência de um caminho solidário entre Letramento e Estruturação do Real, confirmando a hipótese inicial referente à relação estabelecida pela criança entre suas experiências de vida e as histórias guardadas nos livros infantis. A qualidade das trocas simbólicas ocorridas entre as crianças e a professora durante as situações sistemáticas de interação com a literatura infantil produziu avanços significativos no quadro da representação cognitiva de todas as crianças. Além disso, a pesquisa confirma as contribuições de Piaget no que diz respeito ao pensamento intuitivo das crianças pesquisadas, as quais manifestaram raciocínios aparentemente operatórios, porém ligados a uma configuração perceptiva. Palavras-chave: Letramento // Literatura Infantil // Estruturação do Real Introdução A interação da criança com leituras de livros permite desenvolver-se como leitora, uma vez que ouvindo, discutindo e representando as histórias escutadas a criança consegue estabelecer relações entre a linguagem oral e as estruturas do texto escrito. É fundamental que durante esta interação a língua oral e a língua escrita possam constituir duas modalidades de um mesmo objeto – a linguagem verbal. Deste modo, a apresentação da escrita como uma forma de expressão de sentidos através da literatura infantil é imprescindível para que as crianças possam utilizar a experiência que trazem com a língua oral e com outras formas de representação no desenvolvimento do processo de construção da escrita. Considerando que meu interesse está centrado na iniciação lúdica da criança no mundo da literatura, convém mencionar que o estudo em questão baseia-se na idéia de que a criança pode não saber ler e escrever, mas ser, de certa forma, letrada ao folhear livros e ouvir histórias que lhe são lidas e contadas (SOARES, 1998, p.24). O critério de seleção dessas

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  • UNIrevista - Vol. 1, n 2 : (abril 2006) ISSN 1809-4651

    Piaget e as histrias infantis

    Flvia Isaia Pinheiro

    Mestre em Educao, pedagoga e psicopedagoga

    [email protected]

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, RS

    Resumo

    O estudo em questo resulta da pesquisa Piaget e as histrias infantis: uma aproximao possvel

    para alfabetizar letrando e apresenta como propsito compreender e explicar como a literatura

    infantil contribui para a construo do pensamento das crianas.

    A investigao foi realizada com um grupo de seis crianas, cujas idades variavam entre 6 e 7

    anos, que freqentavam uma turma de 1 ano, do 1 Ciclo de uma escola pblica da Rede

    Municipal de Ensino de Porto Alegre, em 2003. Os resultados da pesquisa apontam para a

    existncia de um caminho solidrio entre Letramento e Estruturao do Real, confirmando a

    hiptese inicial referente relao estabelecida pela criana entre suas experincias de vida e as

    histrias guardadas nos livros infantis. A qualidade das trocas simblicas ocorridas entre as

    crianas e a professora durante as situaes sistemticas de interao com a literatura infantil

    produziu avanos significativos no quadro da representao cognitiva de todas as crianas. Alm

    disso, a pesquisa confirma as contribuies de Piaget no que diz respeito ao pensamento intuitivo

    das crianas pesquisadas, as quais manifestaram raciocnios aparentemente operatrios, porm

    ligados a uma configurao perceptiva.

    Palavras-chave: Letramento // Literatura Infantil // Estruturao do Real

    Introduo

    A interao da criana com leituras de livros permite desenvolver-se como leitora, uma vez

    que ouvindo, discutindo e representando as histrias escutadas a criana consegue

    estabelecer relaes entre a linguagem oral e as estruturas do texto escrito. fundamental

    que durante esta interao a lngua oral e a lngua escrita possam constituir duas

    modalidades de um mesmo objeto a linguagem verbal.

    Deste modo, a apresentao da escrita como uma forma de expresso de sentidos atravs

    da literatura infantil imprescindvel para que as crianas possam utilizar a experincia que

    trazem com a lngua oral e com outras formas de representao no desenvolvimento do

    processo de construo da escrita.

    Considerando que meu interesse est centrado na iniciao ldica da criana no mundo da

    literatura, convm mencionar que o estudo em questo baseia-se na idia de que a criana

    pode no saber ler e escrever, mas ser, de certa forma, letrada ao folhear livros e ouvir

    histrias que lhe so lidas e contadas (SOARES, 1998, p.24). O critrio de seleo dessas

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    histrias costuma ser, muitas vezes, do narrador, e o que pode suceder depois depende do

    quanto ele conhece suas crianas.

    Conhecer as crianas implica conhecer a teoria de Piaget e, principalmente, o papel que as

    atividades representativas exercem no contexto do desenvolvimento cognitivo infantil.

    Sabemos que o marco da fase madura de Piaget decorre justamente da sua busca

    incansvel de consultar os fatos para saber o que a inteligncia. Suas descobertas

    revelaram que a inteligncia deriva da ao e que em todos os nveis ela uma assimilao

    do dado s estruturas de transformao e que essas estruturas consistem em organizar o

    real em ato ou em pensamento.

    Esse desenvolvimento contnuo, que conduz as aes sensrio-motoras iniciais s operaes

    mais abstratas, fornece-nos elementos de referncia suficientemente consistentes para

    problematizarmos acerca de vrios campos do conhecimento, inclusive no campo da

    linguagem.

    Para a teoria de Piaget, embora a linguagem no seja um fator constituinte do pensamento,

    ela no deixa de cumprir um papel fundamental na sua formao, sobretudo enquanto

    elemento de expresso e de troca simblica.

    O ato de escutar, recontar, comentar ou discutir uma histria, por exemplo, torna-se

    importante para entender a ao da linguagem e do meio social no processo construtivo do

    pensamento, isto , no processo da interiorizao ou de conceptualizao das aes. No

    apenas a linguagem que contribui nesse processo, mas toda a funo simblica (jogo

    simblico, imitaes diferidas, imagem mental, desenhos), includa a linguagem. Nesse

    sentido, foi necessrio pesquisar a interao das crianas com as histrias infantis tambm

    no plano da representao.

    Fao questo de destacar esses aspectos, uma vez que no quero correr o risco de reduzir a

    ao do meio social a uma mera dimenso de transmisso de contedos culturais atravs da

    literatura infantil. Ao contrrio, este estudo parte da hiptese de que a literatura infantil

    enquanto forma de manifestao escrita na qual a expresso tem preponderncia

    desencadeia, atravs do seu contedo, as aes vividas pela criana, ou seja, a criana

    passa a relacionar suas experincias de vida com o que est no livro. Nesse sentido, a

    histria do livro pode ser pensada como um ponto de partida para a organizao do real:

    Real o mundo dos objetos e dos acontecimentos, estruturado pela criana graas

    aplicao (a este mundo) de seus esquemas de ao. graas ao que exerce

    sobre o meio que a criana se insere no espao e no tempo e percebe as relaes

    causais. Sem essa organizao, a representao do mundo no ser adequada.

    (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 1984, p. 75)

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    Ser justamente a qualidade das interaes simblicas que possibilitar criana comunicar,

    expressar suas experincias, seus saberes, seus sentimentos, assim como conhecer e

    interpretar os alheios.

    As contribuies de Piaget

    A experincia de Piaget (1923), ainda em sua fase jovem1 com crianas cujas idades

    variavam de 6 a 8 anos em que uma criana contava outra uma histria (sem suporte) e

    explicava-lhe o funcionamento das peas de uma torneira ou de uma seringa (com apoio do

    desenho), partira do pressuposto de que a linguagem infantil e interinfantil permaneceria

    mais egocntrica que a do adulto. Essa circunstncia explicaria certos fenmenos lgicos: o

    sincretismo verbal, o desinteresse pelo detalhe das relaes lgicas ou pela razo das

    relaes causais e, sobretudo, a incapacidade de manejar a lgica das relaes que supe

    pensar sob dois ou vrios pontos de vista.

    De fato, Piaget (1923) conseguiu verificar atravs dessa experincia uma diferena

    fundamental entre crianas de 6 a 7 anos e de 7 a 8 anos, do ponto de vista do seu esforo

    de objetividade das narrativas. Suas descobertas no que se refere compreenso e a

    explicaes verbais entre crianas da mesma idade provou que o esforo que elas faziam

    para comunicar objetivamente seu pensamento, para compreender outrem, no surge antes

    dos 7 ou 7 anos e meio, aproximadamente.

    Um ponto importante a destacar nessa experincia realizada por Piaget que apesar de as

    explicaes mecnicas relacionadas com a torneira ou com a seringa serem mais complexas

    que as histrias narradas devido ao manejo de expresses verbais difceis relativas s

    ligaes de causalidade, o sucesso obtido pelo reprodutor2 pode ser atribudo em funo do

    desenho, ou seja, o reprodutor esforava-se para entender algo de significativo na exposio

    do explicador para poder relacionar ao desenho, e vice-versa:

    No caso das explicaes mecnicas, pelo contrrio, o interlocutor j est interessado

    por sua prpria conta no manejo das torneiras e das seringas. Ademais, ele tem o

    desenho sob os olhos, e enquanto o explicador fala ele reflete sobre a significao

    daqueles desenhos. Desde ento, mesmo se o explicador no ouvido, ou se ele

    obscuro e eltico, o reprodutor reconstitui, ele prprio, a explicao a dar. (PIAGET,

    1923, p. 177-178)

    1 A explicao especfica desse perodo constitui-se na passagem do pensamento egocntrico, prprio da criana pequena, a um pensamento mais evoludo, ao mesmo tempo lgico, mais objetivo e capaz de conceber normas morais. Para isso, Piaget faz apelo a um fator social. Trata-se de uma forma particular de trocas interindividuais, a cooperao, que liberta o pensamento de seu egocentrismo, provocando uma descentrao intelectual. (MONTANGERO, Jacques. Piaget ou a inteligncia em evoluo. Porto Alegre: Artmed, 1998) 2 O adulto lia para a primeira criana (explicador) uma das narrativas ou uma das explicaes, sem ter o ar de ler, falando da maneira mais viva possvel. O explicador fazia em seguida sua descrio a uma outra criana (reprodutor) e esta reproduzia a narrativa ou a explicao para o adulto. Uma vez obtida e registrada integralmente a narrao do explicador, este se afastava para que o adulto perguntasse ao reprodutor detalhes sobre os pontos omissos, para ver se ele havia compreendido.

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    Possivelmente o fato de as explicaes mecnicas terem sido melhor compreendidas que as

    histrias narradas, tanto entre crianas como entre crianas e adultos, possa ser atribudo

    utilizao do desenho. A esse respeito, Delval (2002) refora a idia de que os desenhos

    podem vir a ser uma estratgia til quando trabalhamos com sujeitos pequenos que podem

    no saber bem do que estamos falando, o que ajuda a colocar o sujeito na situao.

    Da mesma forma, podemos pensar que as histrias infantis, guardadas em livros que as

    crianas tm acesso e que podem manusear, tornam-se tambm muito teis especialmente

    quando contm ilustraes que completam o texto escrito e permitem que a criana

    desenvolva inclusive o senso esttico. A autora de livros infantis Tatiana Belinky (1992, p.

    49) afirma o seguinte a esse respeito:

    Os dois possuem o mesmo peso e a mesma medida, porque qualquer tipo de

    linguagem, escrita ou visual, a ferramenta do pensamento. De incio, a ilustrao

    mais importante. medida que a obra e a prpria criana se desenvolvem, o texto

    passa a preponderar, porm nunca prescinde de uma boa ilustrao.

    Isso significa que o exerccio de ser leitor do mundo antecede a aquisio e compreenso do

    sistema de relaes da linguagem escrita. A imagem entendida como um texto, enquanto

    objeto de significao, apresenta-se para leitura como um processo de construo, de

    reconhecimento dos elementos que engendram os sentidos nela inscritos e produzem um

    discurso visual (PANOZZO, 2001, p.27).

    Sabemos que o ato de recontar a histria est intimamente relacionado com as ligaes de

    tempo (ordem) ou causa que unem os acontecimentos da histria e, quando preservados na

    narrao da criana, revelam sua organizao do real e objetividade do pensamento

    (PIAGET, 1923, p.189).

    Talvez pudssemos pensar ento que a criana, ao assimilar os aspectos da histria do livro,

    constri noes que lhe permitem, de alguma maneira, ordenar e estabelecer a ligao entre

    os fatos da histria3. Nesse sentido, torna-se importante lembrar que nenhum

    comportamento, nem mesmo quando novo para o indivduo, constitui um incio absoluto.

    Est sempre apoiado em esquemas anteriores, ou seja, a criana alcanar maior sucesso na

    assimilao da histria no momento em que os personagens e/ou os fatos tiverem um

    significado para ela. Isto s a criana pode determinar e revelar pela fora com que reage

    emocionalmente quilo que um conto evoca na sua mente consciente e inconsciente.

    Alm disso, no podemos esquecer que as caractersticas qualitativas das prticas de leitura

    de histrias (TEBEROSKY, 2003, p.25) contribuem muito para essa assimilao,

    especialmente no que se refere relao entre os objetos de duas dimenses dos livros e os

    objetos de trs dimenses do mundo real. na medida em que os adultos tratam os objetos

    3 A partir dos quatro anos, as crianas j podem reproduzir fragmentos em discurso direto do que foi dito por algum personagem de um conto ou de uma narrao (Teberosky, 2003, p. 140). Na afirmao da autora, o discurso direto entendido como sendo a citao literal das palavras ditas pelos locutores.

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    simblicos como representantes dos objetos reais, que as crianas aprendem tambm a

    estabelecer relaes entre essas duas categorias de objetos.

    Sabemos que as crianas gostam de ouvir vrias vezes a mesma histria, o que

    possivelmente as ajude no ato de recontar. Mas outro aspecto tambm deveria ser levado

    em considerao: as crianas imitam o modelo de leitor do adulto, conforme menciona

    Teberosky (2003, p. 25): Aprendem, ento, com um modelo de leitor: captam a entonao,

    as pausas, a posio, os comentrios que os adultos fazem ao ler, para logo poder imit-los

    em atividades de simulao de leitura.

    A metodologia utilizada

    Recorrer s contribuies de Piaget compreendendo-as como uma teoria geral dos processos

    de aquisio de conhecimento significa consider-la, como o fez Ferreiro e Teberosky (1985),

    no como uma teoria particular sobre um domnio particular, mas como um marco de

    referncia terico muito mais vasto, que nos permite compreender de uma maneira nova

    qualquer processo de aquisio de conhecimento4.

    por isso que ao analisar as aplicaes da teoria gentica no campo da aprendizagem

    escolar, Coll (1987) sugere que a nfase deva estar na utilidade da teoria gentica como

    instrumento da anlise de um fenmeno a aprendizagem escolar para identificar os

    problemas mais significativos e formul-los de modo a encontrar solues relevantes e

    adequadas:

    [...] o papel que a teoria gentica ir desempenhar na psicologia da educao dever

    se inscrever em uma concepo que no considere os processos de ensino-

    aprendizagem como um simples campo de aplicao, mas como um objeto de estudo

    com caractersticas prprias. (COLL, 1987, p. 194)

    Desta forma, utilizei o estudo de caso como estratgia de pesquisa (Yin, 2001, p. 25) na

    inteno de compreender e explicar como a literatura infantil contribui para a

    construo do pensamento das crianas: como a criana assimila a histria que lhe

    lida ou contada? Como se d a acomodao nessa construo do pensamento a partir da

    histria? Como acontece a criatividade nessa interao das crianas com as histrias? Como

    se explica nas crianas a diferena no recontar uma histria de forma a modific-la

    (fabulao) ou de forma a preserv-la (narrativa fiel histria)?

    Meu objetivo como pesquisadora foi de expandir e generalizar teorias (generalizao

    analtica) em especial, as contribuies de Piaget e no enumerar freqncias

    (generalizao estatstica).

    4 Cabe salientar que a idia de que a teoria de Piaget uma teoria geral dos processos de aquisio de conhecimento j havia sido demonstrada por Ramozzi-Chiarottino em Piaget: modelo e estrutura (1972).

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    A unidade central de anlise do presente estudo a representao cognitiva da criana. A

    investigao desta unidade de anlise foi realizada com crianas de 6 e 7 anos de idade que

    freqentavam uma turma de 1 ano, do 1 Ciclo de uma escola pblica da Rede Municipal de

    Ensino de Porto Alegre no ano de 2003.

    Selecionei um pequeno grupo de crianas que faziam parte do contexto desta turma com a

    finalidade de acompanh-las ao longo do ano e observar as situaes de interao dos

    mesmos em contextos que envolviam a literatura infantil dentro da escola.

    Ao descobrir quais eram os livros de histrias infantis mais apreciados por algumas crianas,

    passei a delinear a proposta de entrevista clnica com a inteno de direcionar minha

    conversao para o prprio objeto-livro que a criana poderia manipular.

    O ncleo bsico de perguntas (DELVAL, 2002, p.145) da entrevista clnica consistiu nas

    seguintes tarefas que foram propostas igualmente para todos os sujeitos, individualmente: a

    criana tinha que me mostrar o livro escolhido (histria conhecida), escutar a minha leitura

    dessa histria que lhe era conhecida e, depois, recont-la para mim. Num segundo

    momento, a criana tambm tinha que escutar a minha leitura da histria que lhe era

    desconhecida e recont-la.

    Tais tarefas foram elaboradas com o objetivo de comparar as respostas de cada sujeito nas

    duas entrevistas a primeira, realizada no ms de setembro, e a segunda, no ms de

    dezembro e de identificar seus avanos em relao s duas grandes categorias:

    Estruturao do Real e Letramento. O ncleo bsico de perguntas permitiu, ainda, comparar

    esses avanos entre os sujeitos.

    As perguntas complementares a esse roteiro de tarefas tambm foram fundamentais para

    esclarecer e entender o que as crianas diziam. Tais perguntas objetivavam provocar

    crenas/respostas desencadeadas nas crianas, respostas que se produziam no curso da

    entrevista e que estavam de acordo com o conjunto das concepes da criana, com seu

    nvel de desenvolvimento e com sua capacidade de reflexo.

    A prpria escolha de duas histrias infantis durante a entrevista decorrente desta razo,

    uma vez que da histria conhecida para a histria desconhecida o grau de complexidade da

    tarefa aumenta.

    Se o recontar da histria conhecida j fornece informaes a respeito do ponto de vista

    cognitivo da criana, podemos afirmar que atravs da histria desconhecida que a criana

    desafiada a elaborar uma explicao que revele a organizao de seu pensamento,

    justamente porque ela no pensou sobre essa histria antes do momento da entrevista.

    OS RESULTADOS ENCONTRADOS

    Constatamos, ao comparar os dados obtidos na segunda entrevista com aqueles da primeira,

    que houve um progresso cognitivo das crianas.

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    Penso que alm do trabalho sistemtico desenvolvido pela professora com histrias em aula,

    o fato de as crianas se manifestarem espontaneamente durante a minha leitura da histria

    e de responderem a perguntas complementares tanto durante a narrativa como ao final da

    mesma tambm contribuiu na sua compreenso e preocupao com a objetividade da

    narrativa ao recontarem a histria desconhecida com o apoio do livro. Considero estes

    aspectos fundamentais especialmente no que se refere prpria fora do mtodo clnico na

    explorao de territrios pouco conhecidos, uma vez que tanto a experincia que menciono

    aqui de Piaget (1923) como o mtodo utilizado por ele nessa experincia permitiram-me

    construir uma metodologia que se relacionasse com o meu problema de pesquisa a luz do

    aprimoramento de sua prpria teoria5:

    Em todo caso, algo me fica muito claro: podemos ver mais longe e mais

    profundamente quando utilizamos o apoio dos grandes da histria, aqueles que

    mudaram as perguntas e ajudaram-nos a encontrar novas respostas tanto quanto a

    continuar formulando perguntas. (FERREIRO, 2001, p.42)

    Considerando que entre o pensamento pr-conceptual e o pensamento operatrio pode

    intercalar-se certo nmero de intermedirios (pensamento intuitivo), cabe ento a seguinte

    pergunta: o que foi, afinal de contas, que eu consegui ver mais longe e mais

    profundamente ao utilizar a Teoria da Assimilao de Jean Piaget nessa interao das

    crianas com as histrias infantis?

    Parece-me que um dos pontos fundamentais reside, justamente, na confirmao da teoria no

    que diz respeito aos raciocnios aparentemente operatrios das crianas em relao s

    histrias, porm ligados a uma configurao perceptiva.

    Penso que os elementos figurativos em jogo na percepo ou na representao apresentam

    um papel importante na construo das operaes lgicas, uma vez que fornecem uma

    sinalizao ou representao dos dados sobre os quais se apia o raciocnio.

    Ao criar uma categoria diferente do operativo, a dos aspectos figurativos, Piaget estabelece

    uma dicotomia entre os aspectos operativos e figurativos do pensamento para analisar as

    relaes entre, de um lado, a percepo e os diversos aspectos da representao no sentido

    estrito e, de outro, a inteligncia. Cabe salientar que o autor chama operativo os elementos

    constitutivos da inteligncia e da lgica, desde os esquemas de aes efetivos at as

    operaes reversveis6 (MONTANGERO, 1998, p.211), ao passo que os instrumentos

    figurativos limitam-se a fornecer uma cpia ou informaes precisas sobre os estados do

    real, no explicando a verdadeira natureza da inteligncia, nem as razes de seu

    desenvolvimento:

    5 As obras posteriores de Piaget (1936;1937;1945) foram fundamentais para que ele avanasse em sua pesquisa sobre a lgica infantil, aprimorando inclusive o prprio mtodo clnico. 6 ...operativo ser utilizado para o conjunto das aes exteriores ou interiorizadas que precedem a operao, assim como para aquelas que atingem o nvel operatrio M.P, 1961, p.441 (MONTANGERO, 1998, p.209)

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    Ora, os aspectos figurativos do conhecimento incidem sobretudo sobre os estados

    da realidade, ainda que se possam perceber, imitar ou imaginar transformaes, mas

    prestando-lhe ento um carter figural, directo (gestalt de movimentos, etc.) ou

    simblico (imagens de tranformaes). Os aspectos operativos incidem por seu lado

    sobretudo nas transformaes, ainda que se possa caracterizar operatoriamente um

    estado como resultado das transformaes anteriores, ponto de partida das

    transformaes ulteriores ou situao de transformaes nulas ou compensadas.

    (PIAGET, 1966, p.30)

    nesse sentido que podemos pensar que a histria guardada dentro de um livro por si s

    no suficiente para que a criana a reconte, nem tampouco a leitura desta mesma histria

    pelo adulto o ser, pois para conseguir recontar uma histria o que est em jogo so

    justamente os aspectos operativos do pensamento da criana, ou seja, as ligaes

    temporais, causais e lgicas, que unem os acontecimentos da histria e fazem da narrativa

    um todo coerente, e no a cpia da histria enquanto repetio e memorizao. Alis isto

    seria humanamente impossvel, tendo em vista tanto a extenso das histrias dos livros

    utilizados como o prprio fato de se tratarem de crianas ainda no alfabetizadas7.

    No entanto, podemos observar que os aspectos figurativos do pensamento tiveram uma

    grande influncia nos raciocnios das crianas pesquisadas. Ao recontar a histria conhecida

    As sobrinhas da Bruxa Onilda e a roupa nova do rei (COMPANY, 1997), Andrea ficou

    pensativa ao ter que responder se as sobrinhas da bruxa eram costureiras de verdade. Aps

    um pequeno silncio, afirmou: Eram!. Ela no compreendeu, portanto, que as sobrinhas da

    bruxa se fizeram passar por costureiras, talvez porque elas tenham costurado de verdade na

    histria, inclusive fazendo a roupa do rei. Logo mais adiante, Andrea afirmou ao referir-se

    roupa nova do rei: Foi elas que fizeram. Observamos aqui o quanto Andrea permaneceu

    presa ilustrao do livro, ou seja, configurao perceptiva (aspecto figurativo do

    pensamento) que determinou sua compreenso limitada da histria ao desconsiderar as

    ligaes causais presentes desde o incio da histria. De acordo com Piaget (1966, p.486):

    (...) o caracter esttico das imagens antes dos 7-8 anos tem a ver com o

    pensamento pr-operatrio que ignora as transformaes em proveito das

    configuraes ou estados, de tal maneira que as imagens deste nvel se ligaro

    aquilo que parece simples numa tal perspectiva.

    7 At mesmo Hermes e Guilherme desistiram de solicitar minha leitura para que pudessem repetir/copiar frase por frase na medida em que recontavam a histria. Vale lembrar as palavras sbias de Guilherme a esse respeito no dia seguinte Entrevista II: N que quando eu fui, da outra vez e ontem, eu consegui contar sem copiar?. Ento eu perguntei: Como assim, sem copiar?, e ele me respondeu: Sem repetir o que tu dizia.

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    Flvia Isaia Pinheiro

    UNIrevista - Vol. 1, n 2 : (abril 2006)

    Desta forma, podemos pensar a imagem mental como sendo um instrumento figurativo

    fundamental para a constituio da memria de evocao8.

    O aparecimento das imagens est ligado ao surgimento da funo simblica, por volta de um

    ano e meio a dois anos, uma vez que as condutas observadas em relao ao objeto

    permanente, ao espao sensrio-motor, causalidade etc no necessitam da imagem antes

    do nvel de aquisio da linguagem, do jogo simblico e da imitao diferida. A imitao

    assegura a transio entre o sensrio-motor e o representativo e a imagem nada mais que

    a imitao interiorizada:

    Se, (...) imagem uma imitao interiorizada, o sujeito imita em regra geral apenas

    o que compreende ou o que est em vias de compreender, o que subordina j a

    imitao ao funcionamento da inteligncia. (PIAGET, 1966, p.25)

    Portanto, a imagem nasce da diferenciao entre significante e significado no momento da

    constituio da funo simblica e na qualidade de imitao diferida, isto , imitao na

    ausncia do modelo, e interiorizada, permitindo ao sujeito evocar objetos ou acontecimentos

    j conhecidos (imagens reprodutoras). Neste perodo, as crianas com menos de 7-8 anos

    preocupam-se com o produto, com o antes e o depois, as transformaes no so sua

    preocupao (PIAGET; INHELDER, 1966). Esta descoberta pode ser pensada tambm no

    plano verbal narrativas das crianas ao recontarem as histrias.

    Tomemos como exemplo a histria Joo e Maria (nica histria escutada em disco CD e

    recontada sem o apoio do livro), escolhida por Daniela e Alessandra na Entrevista I (Tabela

    I).

    Tabela I

    Histria conhecida: Joo e Maria (antes de escutar o CD)

    Pesquisadora Flvia Daniela

    Como essa histria do Joo e Maria do

    disquinho?

    Eu s lembro a parte da bruxa.

    E como que a parte da bruxa? Era assim: eles tavam...num castelo. Num

    castelo, numa casa e eles viram uma casa l

    (prolonga a palavra l ao falar) em cima e a eles

    foram e quando viram a bruxa pego eles e ia bot

    na gaiola e o Joo e a Maria pegaram a vassoura

    deles e depois botaram, queimaram e a bruxa ficou

    numa gaiola. S lembro essa parte.

    Histria conhecida: Joo e Maria (aps escutar o CD)

    8 Para Piaget e Inhelder (1966), a imagem sempre o produto de um esforo de cpia concreta e mesmo smile-sensvel do objeto, mas esta cpia permanece fundamentalmente simblica, pois o significado efetivo s se encontra no conceito.

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    Flvia Isaia Pinheiro

    UNIrevista - Vol. 1, n 2 : (abril 2006)

    Pesquisadora Flvia Daniela

    Agora tu vais me contar a historinha do Joo e

    Maria.

    Ai, difcil. difcil! Se eu conto a historinha e

    no lembro mais...Deixa eu me lembrar... (silncio)

    Eu s lembro a parte da bruxa...do Joo e Maria

    que tavam soltando a pedra...

    Soltando a pedra aonde? n...soltando a pedra nos caminhos... Ento...e

    s.

    E depois que ele soltou as pedrinhas? Ele se perdeu...e foi l (prolonga a palavral)

    pra casa da bruxa e botou ela numa, ia bot

    na...n...a bruxa ia bot eles na gaiola e a eles

    (fala forte a palavra eles para destacar) botaram

    ela na gaiola e ela se transformou em uma fada.

    Mas ela...transformou em uma fada...

    E assim que termina a histria? , mas eu no sei a ...

    E eles ficam morando na casa da bruxa? No, eles voltam pra casa deles.

    Como que eles voltam se eles no sabiam mais

    o caminho?

    No. Eles no sabiam o caminho de ir (prolonga

    a palavra ir, destacando-a) pela comida do papai

    deles. Da eles se perderam e foram pra casa da

    bruxa (fala a palavra bruxa com fora) malvada.

    A o resto eu no sei, o resto eu no me lembro.

    E o pai e a me deles, eles no vo mais

    encontrar no fim da histria?

    Eles foram l (prolonga a palavra l) na casa

    da bruxa, peg os filhinhos deles.

    O pai e a me? .

    Hum...E como que eles chegaram at l? O passarinho lev...os passarinho deles tinham

    levado os pai...o pai e a me deles l (prolonga a

    palavra l) na casa da bruxa. Por causa que eles

    sabiam ir e voltar.

    E a bruxa tinha poderes, ? Tinha. O poder era...com a vassoura. Com a

    vassoura...humm...a vassoura.

    E o que que a vassoura fazia? Ela voava...tambm tinha feitio e tambm fazia

    as bruxaria.

    Ao recontar a histria, Daniela vai direto para a parte em que Joo e Maria encontram a casa

    da bruxa, valorizando a parte da gaiola. Porm, ela no reconta como Joo e Maria

    conseguiram colocar a bruxa na gaiola nem como a bruxa se transformou em uma fada, ou

    seja, ela ignora a idia de processo, embora durante a leitura da histria em CD tenha

    comentado espontaneamente, de forma a antecipar tanto a luta das crianas com a bruxa

    Eles, ela...a bruxa vai l pra dentro e eles puxavam ela por fora como a transformao da

    bruxa ao libertarem-na da gaiola A ela era fada. Virou a voz de fada. Observamos que a

    idia de processo diz respeito no somente parte da histria referente gaiola, mas

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    Flvia Isaia Pinheiro

    UNIrevista - Vol. 1, n 2 : (abril 2006)

    tambm prpria articulao com as demais partes da histria (incio e fim), tendo sido

    necessrias vrias perguntas complementares de minha parte em relao a esse aspecto.

    Quando eu pergunto como as crianas voltam para casa se elas no sabiam mais o caminho,

    Daniela parece no compreender que o caminho de ir o mesmo de voltar, ou seja: o

    caminho de levar a comida para o papai o mesmo caminho da volta para casa deles. Ela

    no apresenta, portanto, reversibilidade no pensamento, mesmo que tenha explicado depois

    que os passarinhos sabiam ir e voltar, quando eu perguntei como os pais de Joo e Maria

    conseguiram chegar at a casa da bruxa.

    O pensamento pr-operatrio pode ser concebido, portanto, como um sistema de noes

    cuja considerao figurativa dos estados tem mais importncia do que a compreenso das

    transformaes e em que, por conseqncia, as imagens dirigem o pensamento, ao passo

    que a situao se inverte no nvel operatrio. A esse respeito, tomemos como exemplo a

    aproximao de Alessandra em relao ao nvel operatrio ao recontar esta mesma histria

    (Tabela II).

    Tabela II

    Histria: Joo e Maria (antes de escutar o CD)

    Pesquisadora Flvia Alessandra

    Como essa historinha do Joo e Maria? Eram dois irmo n que o pai deles s queria comida n.

    Da n eles tavam na floresta e eles ficaram me...

    ficaram assim... repartiram os po pelo caminho n,

    menos o irmo dele. Da n, na volta os passarinho

    falaram assim: - Vamos voltar e ainda conseguimos

    comida. Da os passarinho tinham comido todas as

    migalhas n. Da eles, da n... eles, eles encontraram

    um, uma casa assim feita de doce, po de l, um monte

    de coisas boas, da eles entraram. Da apareceu a bruxa,

    n. Ela falou: -Entrem, no tenham medo. Podem entrar!

    Da eles entraram... da a bruxa pegou o irmo dela.

    Pegou, botou dentro do coisa e fa e... trouxe assim n:

    - Vou te alimentar muito, mas muito bem pra ti ficar

    gordinho pra mim comer.

    Da a Maria teve que todos dias d comida pra ele. Da a

    Maria falou assim, da ele falou: - Toca fora, toca fora!

    Como a bruxa no enxergava direito, sabe... ela tocou os

    coisa fora e da ela comeu um pedao n, e botou o

    irmo dela, que ele tava de costas. Da a bruxa foi l ver:

    - Vamos ver seu dedinho... (Ele pegou um...)Vamos ver

    se o dedinho est gordinho.

    Pegou assim olha, uma coisa, um pauzinho e botou assim

    no dedo. Da falou assim : - T muito magrinho.

    Da, da... todos dias era assim, n... Da, da o

    passarinho vai na casa do... do pai deles falando assim

    olha: - A bruxa pegou os seus filhos.

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    Flvia Isaia Pinheiro

    UNIrevista - Vol. 1, n 2 : (abril 2006)

    Da eles foram l pegar e eles tavam, enquanto ele tava

    indo l na floresta pra achar os filhos, eles tavam, ele se

    soltou l, que a Maria conseguiu um pauzinho fininho e

    se soltou... e... botaram a bruxa ali dentro. Da tentaram

    puxar a vassoura da bruxa n, da comearam a cantar:

    Puxa! Puxa! Puxa a vassoura da bruxa! Puxa! Puxa!

    Da n conseguiram a vassoura e prenderam ela. Da, da

    depois ele chegou... Agora...

    - Ah, agora vocs, eu no posso fazer mais os meus

    poderes. (muda a entonao da voz)

    Da vem o pai e diz assim : - J pegamos a bruxa.

    Podem nos buscar.

    - Mas ela t sem a vassoura, podem tocar nela.

    Da ela voltou transformada, assim n ... n...: - Ai! O

    feitio me transformou em uma bruxa, com vassoura,

    gato e tudo. Obrigado por ter me libertado!

    Da assim terminou a histria e fim.

    Histria: Joo e Maria (aps escutar o CD)

    Pesquisadora Flvia Alessandra

    E acabou? (refiro-me histria do disco) Hum...eu acho que esqueci algumas partes.

    ? Quais as partes que tu esqueceste? Do final...de uma parte assim olha, do...uma parte

    do comeo e essa da do final. Uma parte do comeo,

    a segunda parte e essa do final eu me esqueci.

    Ento conta pra mim como essa parte que tu

    esqueceste.

    Era a do...que ele tava lenhando, que ele tinha

    que lenh as coisa, que ele tava cortando as rvores

    e essa da do ltimo da...que ela se transforma em

    boa.

    Se transformou em boa? .

    Como que ela se transformou em boa? Queima...que queimassem a vassoura dela a ela

    ia ficar boa. Ia se transformar em outra mulher.

    Mas ento ela era a culpada? No. O bruxo transformou ela. Da s queimando

    a vassoura ela ia se transformar em mulher de novo e

    normal.

    Alessandra consegue recontar a histria do incio ao fim com detalhes, mesmo que as

    falas dos personagens ao final da histria tenham sido recontadas de forma confusa.

    interessante notar que, aps escutar a histria, Alessandra consegue localizar as partes da

    histria por ela omitidas anteriormente, inclusive a parte final, conseguindo explicar como a

    bruxa se transformou numa mulher boa. Observamos, no caso de Alessandra, que os

    estados se subordinam s transformaes, uma vez que ela conseguiu recontar toda histria

    com coerncia.

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    Flvia Isaia Pinheiro

    UNIrevista - Vol. 1, n 2 : (abril 2006)

    O fato de a Alessandra conseguir conquistar formas mais complexas de representao

    conceptual, inclusive da escrita alfabtica, sinaliza para a importncia da estruturao do real

    enquanto fonte das operaes, e leva-me a inferir que o percurso do pensamento das demais

    crianas poder tambm atingir o grau de letramento alcanado por Alessandra, tendo em

    vista os avanos significativos das crianas obtidos nas categorias de anlise Letramento e

    Estruturao do Real.

    importante assinalar que as crianas pesquisadas foram solicitadas a estruturarem suas

    representaes das histrias em relao ao espao, tempo e em relao ao sentido lgico e

    causal, fundamentais tanto para a compreenso do prprio contedo das histrias na sua

    grande maioria, histrias fantasistas como para os relatos de suas experincias a partir da

    histria; relatos esses envolvendo o estabelecimento do princpio de realidade ao

    conseguirem distinguir o faz de conta, ou seja, a fantasia presente nas histrias, das suas

    experincias vividas no mundo do real. Alm disso, essa imerso induzida das crianas no

    mundo da escrita tambm contribuiu para o seu conhecimento do objeto livro enquanto

    objeto scio-cultural.

    Concluses

    De forma anloga s descobertas de Piaget e Inhelder (1966), as crianas desta pesquisa

    preocuparam-se especialmente na Entrevista I com o produto, com o antes e o depois, e

    no com as transformaes presentes nas histrias ao recontarem-nas, permaneceram

    muitas vezes presas ilustrao do livro, configurao perceptiva (aspecto figurativo do

    pensamento) de determinadas partes da histria, o que acabou determinando a sua

    compreenso limitada da totalidade da histria ao desconsiderarem as ligaes temporais,

    causais e lgicas. Sabemos que so justamente essas ligaes que unem os acontecimentos

    da histria e que fazem da narrativa um todo coerente (aspectos operativos do

    pensamento).

    Se na Entrevista I a considerao figurativa dos estados teve mais importncia do que a

    compreenso das transformaes razo dos acontecimentos na histria, a qual envolve a

    idia de processo , o mesmo no podemos afirmar com relao Entrevista II, quando o

    pensamento das crianas deixou de ser dirigido exclusivamente pelas imagens (ilustraes)

    do livro e os aspectos operativos do pensamento passaram a exercer predominncia na hora

    de escutar, recontar, comentar e discutir as histrias.

    Essas alteraes que ocorreram no quadro da representao cognitiva de todas as crianas

    pesquisadas no perodo entre a primeira e a segunda entrevista relacionam-se com a

    qualidade das trocas simblicas ocorridas entre as crianas e a professora em situaes

    sistemticas de interao com a literatura infantil. Tais situaes indicam um avano

    cognitivo nas crianas no somente em relao sua capacidade representativa, mas

    tambm no que diz respeito operatoriedade do pensamento, como foi o caso de

    Alessandra. Observamos, portanto, que a interao da criana com leituras de livros permite

    a ela desenvolver-se como leitora (e escritora!), uma vez que ouvindo, discutindo e

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    Flvia Isaia Pinheiro

    UNIrevista - Vol. 1, n 2 : (abril 2006)

    representando as histrias escutadas a criana consegue estabelecer relaes entre a

    linguagem oral e as estruturas do texto escrito.

    No entanto, no podemos esquecer que Piaget nunca se ocupou da escrita nem da lngua

    escrita, e que embora o social sempre o interessasse, o tipo de interao constitutiva dos

    objetos culturais no foi uma de suas principais preocupaes (FERREIRO, 2001, p.23).

    Mesmo assim, podemos considerar sua obra como uma teoria geral de processos de

    aquisio de conhecimento, potencialmente apta para dar conta dos processos de construo

    de outras noes em outros domnios no considerados pelo prprio Piaget, como o fez

    Ferreiro (1985) em sua investigao sobre a aquisio da escrita enquanto processo de

    compreenso do modo de construo de um sistema de representao.

    Embora o objeto livro apresente uma ordem preestabelecida na qual existe uma regularidade

    da seqncia da histria que visvel, tal ordem por si s no basta. Para apreend-la so

    necessrias aes ordenadas do sujeito no plano da representao, bem como sua interao

    com o objeto livro e o adulto intrprete-leitor. Foi atravs da assimilao de determinadas

    partes e aspectos da histria, como a batida do lobo na casa dos porquinhos, o espirro do

    lobo, a chegada da polcia etc., que as crianas conseguiram enriquecer tais partes da

    histria e criar as onomatopias Tum! Tum! Tum!, Achim! Achim! e Iuiuiuiu,

    respectivamente. Ao criarem esses detalhes, elas conseguiram recontar a histria

    preservando as ligaes temporais, causais e lgicas referentes aos acontecimentos da

    mesma, ou seja, conseguiram interpretar a histria no momento em que os personagens e

    os fatos tinham um significado para elas. Em outras palavras, podemos dizer que a

    preservao da narrativa fiel histria uma interpretao da criana, e no uma cpia

    mecnica da mesma.

    Ao recontar a histria, a criana ocupa o lugar de intrprete e no de copiadora, at mesmo

    porque sua estrutura da memria parcialmente dependente da estrutura das operaes

    (PIAGET, 1975). Isso significa que as interaes entre sujeito e objeto so mais ricas do que

    aquilo que os objetos podem fornecer por eles mesmos, e que os conceitos de assimilao e

    de acomodao so orientados para esta construo inventiva que caracteriza o

    pensamento.

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