phellip william de paula gruber
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE
LINHA DE PESQUISA: SUBJETIVIDADE, TEXTO E ENSINO
“VOCÊ NÃO PRECISA MAIS DE MIM.” O SER, O PAI E A MORTE EM DAYTRIPPER
PONTA GROSSA
2017
PHELLIP WILLIAM DE PAULA GRUBER
PHELLIP WILLIAM DE PAULA GRUBER
“VOCÊ NÃO PRECISA MAIS DE MIM.” O SER, O PAI E A MORTE EM DAYTRIPPER
Dissertação apresentada para obtenção do grau de mestre pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, área de Estudos da Linguagem.
Orientador: Prof. Dr. Evanir Pavloski
PONTA GROSSA
2017
PHELLIP WILLIAM DE PAULA GRUBER
“VOCÊ NÃO PRECISA MAIS DE MIM” – O SER, O PAI E A MORTE EM DAYTRIPPER
Dissertação apresentada para obtenção do grau de mestre pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, área de Estudos da Linguagem.
Ponta Grossa, 18 de setembro de 2017.
Prof. Dr. Evanir Pavloski - orientador Doutor em Literatura
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Pro. Dr. Luiz Carlos Migliozzi Doutor em Semiótica e Linguística Geral
Universidade Estadual de Londrina
Profª. Drª. Rosana Apolonia Harmuch Doutora em Estudos Literários
Universidade Estadual de Ponta Grossa
RESUMO
O presente trabalho visa analisar a obra Daytripper (2011), de Fábio Moon e Gabriel Bá, com as cores de Dave Stewart, atendo-se aos elementos que fazem parte da temática do ser, dentro da perspectiva existencialista, da relação entre pai e filho e da morte. Para tanto, buscou-se empreender um estudo acerca da configuração da linguagem da arte sequencial, viabilizando diálogos que vão desde a sua macroestrutura, com a teoria de Thierry Groensteen (2015), até aspectos mais pontuais dos elementos internos ao quadro, utilizando-se de algumas vertentes analíticas da semiótica. Na investigação dos aspectos temáticos sobre o ser, pai e filho e a morte, concentramo-nos principalmente nos conceitos apresentados em Ser e Tempo (2012), do filósofo alemão Martin Heidegger, relacionando os argumentos com algumas obras literárias que suscitam as temáticas em questão. Reunimos, neste trabalho, os aspectos da linguagem da graphic novel que dialogam diretamente com a argumentação proporcionada por ela, unindo, na análise, forma e conteúdo.
Palavras-chave: Daytripper; Histórias em quadrinhos; Graphic novel;
ABSTRACT
The present work aims to analyze the work Daytripper (2011), by Fabio Moon and Gabriel Bá, and colors of Dave Stewart, attending to the elements that are part of the theme of being, the relationship between father and son and the death. In order to do so, a study was carried out on the configuration of the language of sequential art, enabling dialogues ranging from its macrostructure, with Thierry Groensteen's (2015) theory, to more specific aspects of the internal elements to the picture, using some analytical aspects of semiotics. In the investigation of the thematic aspects about being, father and son and death, we focus mainly on the concepts presented in Being and Time (2012), by the German philosopher Martin Heidegger, relating his arguments with some literary works that raise the themes in question. In this work, we combine the aspects of the language of the graphic novel that dialogue directly with the argumentation provided by it, uniting, in analysis, form and content.
Keywords: Daytripper; Comics; Graphic novel.
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1 Introdução
Daytripper (2011) é uma graphic novel que marcou, significativamente, o mercado
americano e brasileiro de histórias em quadrinhos. Escrita e desenhada pelos irmãos paulistas
Fábio Moon e Gabriel Bá, a obra contou com a colaboração do colorista Dave Stewart,
famoso pelo seu trabalho em Hellboy (Dark Horse).
Sua narrativa complexa garantiu a atenção de inúmeros críticos de arte sequencial e da
literatura, além de garantir um espaço entre os mais vendidos de na lista da New York Times1
e conquistar diversos prêmios consagrados no circuito de produção e de consumo da nona arte.
A pesquisa aqui proposta teve como núcleo a investigação da linguagem da graphic
novel e a sua intrínseca relação com o conteúdo do discurso presente na obra. Para isto,
lançou-se mão de uma série de teorias comunicativas e de um viés filosófico, intercalando os
métodos para compreender os entrecruzamentos dos códigos utilizados e dos argumentos
sobre a personagem principal e sua visão de si mesma.
Inicialmente, convém indicar os usos das figuras como citação direta das obras
referenciadas. Por se tratar de uma linguagem híbrida, isto é, que se utiliza tantos de códigos
icônicos como verbais, a referência às páginas e momentos da história foi realizada pela
indicação direta do quadro, ou página, a que se refere, valorizando o layout e a imagem como
matéria informativa juntamente com o verbal.
O trabalho dividiu-se em quatro grandes partes, sendo a primeira delas voltada para a
investigação sobre a linguagem da arte sequencial.
No primeiro momento, tratou-se de perceber o funcionamento integral da linguagem,
atendo-se, com a teoria de Thierry Groensteen sobre o sistema dos quadrinhos de maneira
geral. No entanto, sua pesquisa demonstrou-se teoricamente insuficiente para adentrarmos na
análise mais minuciosa da relação entre os elementos verbais e icônicos internos ao quadro.
Além da vertente macrosemiótica de Groensteen, buscou-se discorrer sobre teorias de
análise de outros tipos de textos híbridos, como livro infantil ilustrado e cinema, a fim de
analisar aspectos mais detalhados da relação entre palavra e imagem. Além da exposição
destas teorias, tratamos de empreender pequenos exemplos de aplicação da teoria em páginas
e cenas de algumas histórias em quadrinhos.
1 A graphic novel garantiu o primeiro lugar na lista durante o mês de março de 2011.
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No segundo momento investiram-se em compreender quais elementos fazem parte da
analítica do filósofo alemão Martin Heidegger sobre o ser e o modo do ser de se relacionar
com as coisas e com as pessoas. O objetivo, nesta seção, é perceber quais as formas de relação
possíveis entre pai e filho, intercalando a teoria filosófica de Heidegger com uma pequena
seleção de textos que tratem do assunto, tais quais Franz Kafka, Cristóvão Tezza, Guimarães
Rosa, entre outros.
A terceira parte tratou de investigar o modo como o ser se relaciona com o tempo e
com a efemeridade da sua condição. A temporalização e a morte são temas caros para
Heidegger, e seus conceitos, apesar de extensos quando expostos em Ser e tempo (2012), nos
auxiliarão na análise da graphic novel. Aqui também se utilizou de exemplificações literárias
para descrever narrativamente a teoria exposta. Vale ressaltar que devido à extensa
investigação do filósofo no desenvolvimento do livro, diversos tópicos e conceitos tiveram
que ser suprimidos para uma futura reflexão acerca destes.
No último momento, juntaram-se os aspectos já levantados para compreender sua
aplicabilidade na análise da de Daytripper e da sua noção apresentada sobre o ser de Brás, seu
conflito com o progenitor e o propósito das suas constantes mortes na maioria dos capítulos.
Por fim, após os estudos temáticos ancorados na terminologia heideggeriana,
empenharam-se na utilização dos instrumentos fornecidos sobre os estudos da linguagem dos
quadrinhos, apresentados no primeiro capítulo, para perceber de que maneira a construção
expressiva dos códigos revela o conteúdo discursivo sobre os ser de Brás e as suas formas de
relação com os objetos, pessoas e com a própria morte.
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2 A linguagem dos quadrinhos
Semelhantemente à literatura exclusivamente verbal, as histórias em quadrinhos
trazem discussões que constantemente são retomadas e problematizadas em diversas
pesquisas. Sua origem ainda é um tema difuso, mas sua linguagem e seus instrumentos de
análise caminham para um desenvolvimento mais profícuo.
Há, no entanto, uma série de estudos a respeito da arte sequencial que pode nos servir
de base para uma reflexão mais aprofundada. Outras pesquisas, que incluem narrativas
construídas na relação entre palavra e imagem, também podem nos fornecer conceitos mais
elaborados e difundidos, possibilitando um corpo teórico mais conciso e, ao mesmo tempo,
heterogêneo.
A configuração das histórias em quadrinhos é baseada na interação de signos verbais
e visuais, sendo geralmente tratada como uma forma narrativa iconoverbal. Uma definição
trazida por Eisner e bastante difundida é a de que
A configuração geral da revista de quadrinhos apresenta uma sobreposição de palavra e imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. (EISNER, 1999, p.8)
Partindo de uma proposta comunicativa, a definição de Eisner sugere uma relevância
equivalente para as duas formas de linguagem (icônica e verbal). Assim, numa compreensão
conceitual do gênero, seria necessário que toda forma de composição da arte sequencial
seguisse tais parâmetros.
É evidente que tal definição não envolveria todas as formas e possibilidades de
articulação das histórias em quadrinhos. Alguns quadrinhos não utilizam textos verbais e a
sua leitura, desta forma, exige uma habilidade própria das artes visuais. Além disto, a
relevância de cada signo dentro das narrativas varia de acordo com a proposta da sua
composição. Em suma, não apenas a imagem de cada quadro carece de leitura como também
a própria disposição dos quadros dentro da página.
Contrariando o conceito de Eisner, Thierry Groensteen introduz em seu livro O
Sistema dos quadrinhos (2015) uma forma de teorizar os quadrinhos que tem como princípio
a primazia da imagem desenhada.
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Para Groensteen, os quadrinhos são um gênero que articula duas formas sígnicas,
nominadas por ele como visual e discursiva, mas que possui uma principal diferença das
fotonovelas: "o uso do desenho como matéria de expressão específica” (2015, p.14). Esta
complexidade de código, segundo o autor, faz com que os quadrinhos sejam um sistema que,
de acordo com a sua teoria, a princípio, é desenvolvida no conjunto de vários códigos.
Os quadrinhos, portanto, são uma combinação original de uma (ou duas, junto com a escrita) matéria(s) da expressão e de um conjunto de códigos. [...] O problema que se põe em análise, portanto, não é favorecer um código; é encontrar uma via de acesso ao interior do sistema que permita explorá-lo na sua totalidade e mostrar sua coerência. (GROENSTEEN, 2015, p.14-15).
O que amplia sua discussão a respeito da linguagem da arte sequencial não se limita
às matérias já exploradas como elemento de conceituação do gênero. A contribuição do
estudo de Groensteen dá-se, sobretudo, na tentativa de mapear o sistema narrativo dos
quadrinhos, ampliando, através do seu modelo macrossemiótico, o estudo para os espaços do
layout e de articulação entre quadros.
Caracterizar os quadros (com a presença do requadro ou não) como fenômeno da
estrutura genérica da arte sequencial enriquece a reflexão sobre a interação dos códigos dentro
do seu uso comum: “os códigos são construídos no interior de uma imagem de forma
específica, que mantém a associação da imagem a uma cadeia narrativa onde as ligações se
espalham pelo espaço, em co-presença” (GROENSTEEN, 2015, p. 15).
A composição da página e a sua correlação com o conteúdo interno ao quadro se
ligam narrativamente, criando uma colaboração interlinguagens, em que, para Groensteen, o
visual tem predominância.
A elaboração conjunta dos códigos utilizados na arte sequencial orbita
semanticamente em uma rede colaborativa de sentido. A solidariedade icônica, descrita pelo
autor, sugere um favorecimento mútuo de ligação, que é independente da complexidade da
sua associação e que pode acontecer através de imagens diversas.
Como consequência, esta variedade tende a dificultar as definições conceituais do
gênero. A identificação do conceito de solidariedade icônica pode muito bem ser percebida
em uma página do cartunista argentino Quino (Figura 1).
A imagem apresenta dois soldados em vigia durante uma noite – período sugerido
pela pigmentação em preto e a lua no centro-esquerdo do primeiro quadro. O segundo soldado
posiciona-se com a mão esquerda atrás da orelha esquerda, insinuando que ouve um som
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vindo na sua direção. O som, por sua vez, é expresso iconicamente com passos dentro de um
balão - comumente usado nos quadrinhos para expressar discursos orais das personagens.
Os quadros seguintes da tira mostram o primeiro soldado solicitando identificação
por parte daquele que emite o som. A resposta, por sua vez, é cômica na medida em que
contraria a expectativa de som e apresenta-se por meio de ícones de identificação, isto é, por
meio de uma assinatura e de uma impressão digital. As próprias personagens se surpreendem
com a exposição incomum e parecem revelar um conhecimento de sua materialidade física.
A metalinguagem presente neste quadrinho revela uma das formas de solidariedade
icônica ao explorar os signos verbais, icônicos e até mesmo de onomatopeia, para convergir
numa especificidade narrativa através da disposição das imagens e do som dentro do layout da
página.
Em termos semióticos, os códigos explorados parecem apresentar um desvio do
comum até mesmo no uso do gênero. Umberto Eco, ao descrever o funcionamento semiótico
dos textos estéticos, afirma que na manipulação do continuum expressivo ocorre a
pertinentização de assertos semióticos2que até então funcionavam de forma singular, mas que
alcançam um nível de generalização e segmentação sucessiva: a hipercodificação.
A hipercodificação, desta forma, conduz-se no uso de “uma regra aditiva para uma
aplicação extremamente particular da regra geral” (ECO, 2009, p.121). Nos textos estéticos, a
hipercodificação utiliza da matéria de ocorrência de significantes na repetição dos termos num
continuum segregado:
Em outras palavras, a experiência, estética, revelando que na matéria que põe em jogo existe um espaço em que individuar subformas e subsistemas, sugere que os códigos de que parte poderiam ser submetidos a segmentação sucessiva. (ECO, 2009, p.227)
Vale ressaltar que as formas surgem primeiramente de forma inventiva e individual,
causam quebra de horizonte de expectativas, mas, caso haja recorrência no seu uso, o desvio
acaba por ser incorporado ao eixo paradigmático. Outros autores podem continuar explorando
este uso do continuum, o que poderia gerar uma hipercodificação estética de um idioleto de
corrente, ou de subgênero – caso outras tiras possam se utilizar desta inventividade.
A hipercodificação presente no cartum em questão explora os códigos convencionais
das histórias em quadrinhos: balão de fala como espaço de oralidade e a imagem
2 ECO (2009) identifica o asserto semiótico como um tipo de juízo que marca semanticamente o código com base no seu contexto histórico e social, podendo este ser alterado com o passar do tempo.
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representando o espaço do som. Logo no primeiro quadro (Figura1) há o asserto
metasemiótico proporcionado pela utilização do som no espaço da fala - os passos
representam a presença do som.
Este asserto, por sua vez, é reiterado na pertinentização do uso dos códigos sonoros
nos próximos quadros. Eles repetem o esquema proposto no primeiro quadro e particularizam,
dentro do continuum expressivo da página, o código ao seu próprio sistema expressivo.
Neste sentido, é possível reconhecer, com Eco, que a solidariedade contextual, ou,
neste caso, solidariedade icônica, sugere a presença de uma regra sistêmica.
Isto significa que o texto estético deve possuir, em modelo reduzido, as mesmas características de uma língua: deve haver no texto mesmo um sistema de mútuas relações, um desenho semiótico que paradoxalmente permite oferecer a impressão de a-semiose. (ECO, 2009, p.229)
A concordância estabelecida entre os quadros no cartum analisado revela que a
repetição dos códigos e desvios estabelecidos no seu plano expressivo, o som através do ícone
ou a ambiguidade das formas de identificação, colaboram para um fundamento sistêmico
particular à página. A solidariedade icônica, neste caso, fortaleceu a criação do sentido
cômico.
Há, no entanto, quadrinhos que se utilizam de textos verbais, e estes carregam
importantes elementos semânticos para o continuum expressivo, que, se ignorados,
dificultariam a leitura ou produção de sentido.
Podemos explorar estes elementos investigando uma página da graphic novel Peixe
peludo (Moralez & Bueno, 2010). A narrativa visual nos apresenta um peixe em situações
bastante cotidianas para um humano, enquanto o texto verbal, através do foco narrativo,
expõe elementos subjetivos à personagem (Figura 2).
A dimensão semântica da narrativa resulta da relação de solidariedade icônica. No
entanto, as marcas de frustração da personagem, além de estarem codificadas nos traços
expressivos do rosto - a boca curva para baixo, indicando tristeza; o olho sem alterações de
expressão, indicando monotonia – também são reiteradas pela opinião dele acerca da cidade.
Outro tópico importante na estruturação da obra dá-se no uso da primeira pessoa do
singular e da norma popular pelo foco narrativo. Por se tratar de primeira pessoa, o
recordatório funciona como um espaço de confissão da personagem, no qual ela expressa suas
intenções e visões de mundo. Sua linguagem coloquial o insere em uma espécie de narrativa
urbana, permitindo que a abordagem sintética do desenho monocromático se enquadre num
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espaço narrativo mais amplo, antecipando, inclusive, os temas que serão abordados pelos
ícones posteriormente.
A ironia presente em sua fala – “Sim, porque em São Paulo tudo é do caralho [...]
São Paulo é legal pra caralho. Só não sei pra quem?!” (MORALEZ & BUENO, 2010, p. 7)
fortalece ainda mais a insatisfação da sua expressão, sua frustração com a cidade e os demais
princípios dos seus desapontamentos. A imagem, apresentando o gesto de colocar a jaqueta,
amplia-se para um momento de sincronia com a personagem em seu fluxo de pensamento.
Se ignorarmos este espaço de subjetivação da personagem, corremos o risco de não
dialogar com a estética proporcionada pela conjunção dos códigos concomitantes. Enquanto
seu gesto de colocar a jaqueta, ou de passear pela cidade (ao longo do quadrinho) acontece
visualmente – com toda a sua carga semântica visual, em que o traço expressionista e
monocromático alimenta a matéria narrativa do plano expressivo – as impressões pessoais e
as associações de ideias da personagem corroboram o discurso negativo de todo o livro.
Conceituando, de forma geral, toda obra de quadrinhos por meio de uma concepção
que privilegie unicamente a imagem, não privilegiaríamos espaços de criação de fluxo de
consciência no jogo de interação da imagem e da palavra estebelecido pela narração.
Esta concepção, contudo, não ignora o espaço de layout e distribuição imagética da
sequência narrativa. Ao contrário, prevê que um conceito suficiente para toda forma de
produção da arte sequencial poderia (ou deveria), suportar uma obra em que o texto imagético
carrega o sentido do texto tanto quanto o verbal.
Groensteen esclarece que a preeminência da imagem no sistema dos quadrinhos se
dá justamente pela seleção narrativa do espaço em que a história será narrada. Para o autor,
não se trata da condição espaçotópica se adequar à narrativa, mas sim da história se adaptar
para o gênero escolhido como suporte:
[...] acredito que assim que um autor confia aos quadrinhos a história que ele pretende contar, ele pensa essa história e sua obra em formação dentro de uma determinada forma mental com a qual ele terá de negociar. O dispositivo espaçotópico é exatamente esta forma e uma das chaves do sistema dos quadrinhos, um complexo de unidades, de parâmetros e de funções que cabe a nós descrever. (GROENSTEEN, 2015, p.32).
A defesa do dispositivo espaçotópico leva o autor a teorizar sobre uma unidade
mínima do sistema da arte sequencial, a saber, o quadro. Para o autor, o quadro se configura
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como o átomo primário da linguagem dos quadrinhos, o que o possibilita elaborar um modelo
teórico abrangente.
Nesta concepção, o quadro, além de elemento mínimo da narrativa, é cambiável e
mutável, funcionando como “uma entidade aberta à manipulação geral. Podemos extraí-lo,
por exemplo, para ampliar e fazer uma camiseta [...]” (GROENSTEEN, 2015, p.36).
É com base nesta partícula singular que a página constrói a cena e,
consequentemente, a narrativa. No entanto, ela não seria suficiente, uma vez que por si só não
corresponde a uma narrativa. O autor reconhece a relevância do requadro para o quadro e
propõe o conceito de multirequadro, ou seja, a conjunção dos elementos mínimos,
“aglomerado de quadros justapostos” (p.39), que se adequam à espaçotopia:
Desenhar um multirequadro qualquer não é remeter à uma página de HQ em particular, mas às histórias em quadrinhos em si, ao dispositivo sobre o qual se baseia sua linguagem. (GROENSTEEN, 2015, p. 39).
A intenção de Groensteen com seu mapeamento do sistema dos quadrinhos é
abandonar o método de olhar do microssemiótico para o macrossemiótico, de forma a
encontrar uma teoria que compreenda, no seu modelo teórico, o nível de articulação entre
quadros.
Esta teoria das histórias em quadrinhos parece elucidativa para um alargamento
maior dos limites da linguagem. Embora o autor considere o quadro (limitado pelo requadro)
como unidade mínima e transferível, sua independência, no entanto, não se manifesta
narrativamente, e ele depende do multirequadro, isto é, da sua diposição espaçotópica para
sua eficácia comunicativa dentro do continuum sequencial.
A relação intrínseca criada pelo multirequadro é que possibilita a articulação entre os
quadros. Groensteen desenvolve o conceito da artrologia, para discutir a variedade de relações
estabelecidas entre os quadros, em que a descreve como um esquema maior de
reconhecimento do sistema em todos os níveis do plano de expressão.
A artrologia (articulação), de acordo com Groensteen se dá de duas maneiras; por
intermédio da artrologia restrista e da artrologia geral da obra. A artrologia restrita se refere à
conexão estabelecida entre dois quadros em uma única página,
[...] apesar de a enunciação ser descontínua e a demonstração intermitente, a narrativa ainda produz forma, ou seja, uma totalidade ininterrupta e inteligível. O ‘vazio’ entre dois quadros não é o lugar de uma imagem virtual, ele é lugar de uma articulação
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ideal, de uma conversão lógica, a de um segmento de enunciáveis (os quadros) em um enunciado singular e coerente (a narrativa). (GROENSTEEN, 2015, P.121)
As operações realizadas entre as imagens e as palavras, entre espaçamentos e seleção
de cenas, assim como entre enquadramento e escolhas apresentadas internamente ao quadro
são nomeadas por Groensteen de decupagem, termo tradicional emprestado do cinema. Para
ele o termo decupagem deve ser entendido literalmente e em duas dimensões: o que é decupado não são apenas momentos do tecido narrativo (os momentos chaves da ação), são também vistas parciais, os enquadramentos seletivos, que enfocam zonas pertinentes e deixam diversas informações fora de quadro. (GROENSTEEN, 2015, P. 127).
Restaria à solidariedade icônica, como engrenagem da artrologia restrita, o papel de
propiciar fundamentos para desenvolver uma articulação entre os vazios do multirequadro e
os elementos decupados no interior de cada quadro. Os vazios entre os quadros estabelecem a
narrativa através da amarração necessária para condução dos elementos enunciados, isto é, a
concatenação da narrativa é constantemente decretada pelo quadro porvir. A artrologia restrita
define-se com a linearidade proporcionada pelas relações elementares entre os quadros através
da decupagem.
Para Groensteen, é neste estágio de artrologia que a escrita assume um papel
complementar no plano expressivo da narrativa. Agindo como ancoragem, revezamento,
sutura, entre outras funções elencadas por Groensteen, o verbal reforça os argumentos
proporcionados pela imagem, reagindo sob a condição polissêmica do icônico.
Os espaços criados entre os quadros das páginas analisadas anteriormente dão
vestígios dos tipos de decupagem possíveis de artrologia restrita. A espaçotopia do cartum
mostra-se como um bom exemplo para concebermos as formas de articulação entre quadros,
além de ser uma ilustração da unidade dos segmentos em um esquema que revela e corrige as
expectativas de cada leitor.
No primeiro exemplo, no cartum de Quino (Figura 1), a utilização do som pelo
iconismo no primeiro quadro é contrariada pela presença gráfica de uma assinatura no mesmo
espaço utilizado para o som (dentro do balão). Esta contrariedade é reforçada com a presença
da digital, o que provoca a quebra da expectativa criada desde o primeiro quadro e
propiciando ainda mais os experimentos metalinguísticos do cartum.
A segunda página analisada (Figura 2) encontra no foco narrativo seu maior reforço
dialógico na comunicação entre leitor e obra. Enquanto a imagem apresenta o peixe vestindo
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sua jaqueta e dirigindo-se à porta, o discurso verbal apresenta uma relação que rompe com o
tempo preciso da cena. Entre um quadro e outro o leitor percebe o fluxo narrativo e pode
manter facilmente a ordem da cena, mas é no texto verbal que a relevância da passagem
alarga-se para um momento de compartilhamento das indagações do próprio personagem.
Esta forma de articulação problematiza um pouco o olhar sobre as conexões entre
desenho e escrita. Embora a espaçotopia oportunize uma ferramenta base de análise, a
decupagem e os espaços entre quadros, bem como os vazios internos ao próprio quadro,
também são elementos relevantes para se refletir sobre a linguagem das histórias em
quadrinhos.
Conforme assumido por Groensteen, uma teoria similar foi elaborada por Wolfgang
Iser em seus estudos sobre o ato comunicativo dos textos literários verbais. Para Iser os vazios
do texto é que controlam a contingência da leitura durante a interação do leitor com o texto.
Segundo Iser
Tais vazios funcionam como um comutador central da interação do texto com o leitor. Donde, os vazios regulam a atividade de representação (Vorstellungstatigkeit) do leitor, que agora segue as condições postas pelo texto. (...) Os vazios e as negações contribuem de diversos modos para o processo de comunicação que se desenrola, mas em conjunto, tem como efeito final aparecerem como instâncias de controle. (ISER, 1979, p. 90-91)
Os vazios e as negativas do texto são, para Iser, os elementos de controle do ato de
leitura, que negam ou criam as projeções do indivíduo leitor sobre o texto, podendo este
concretizar ou não a sua especulação quanto à progressão do enredo e a criação de sentido.
Se considerado o modelo teórico de Wolfgang Iser, é preciso reconhecer que, além
dos espaços criados pela decupagem na artrologia restrita da obra, a espaçotopia também
depende da articulação gerada pelos textos verbais. O leitor interage com o uso das palavras
para além da dimensão puramente descritiva e produz estruturas muito singulares em relação
à norma sintagmática que não podem ser ignoradas.
Dessa forma, além de se preocupar com a codificação desenvolvida na interação
entre ambos, a artrologia deve prever também as interações entre ícone e escrita, ampliando
seu sistema de referência estética para os desvios e particularidades de cada código.Tomemos
como exemplo uma página de Daytripper, escrita e desenhada por Fabio Moon e Gabriel Bá e
colorizada por Dave Stewart.
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A cena (Figura 3) mostra o protagonista entrando na sala do seu pai, horas após a sua
morte. O foco narrativo amplia o luto para um discurso subjetivo sobre a ausência e o
significado do pai para Brás. Ao fim do texto, há uma sentença que repete semanticamente a
afirmação anterior. “[...] o coração de seu pai parou [...] Seu coração parou” (MOON & BÀ,
2011, p.106). A repetição sugere uma redundância específica com a expressão duplicada, uso
comum nos espaços da literatura verbal.
Eco, ao discorrer sobre a hipercodificação estética quanto a impressão e alteração do
conteúdo no ato de percepção do plano expressivo, relembra a sua própria análise do verso de
Gertrud Stein
A rose is a rose is a rose is a rose
que à primeira vista nada mais oferece que um excesso de normalidade e redundância. [...] Todavia, é exatamente esse excesso de redundância que se desvia da norma e induz à suspeita de que a mensagem seja muito mais ambígua do que parece. A sensação de que, a cada ocorrência, a palavra significa sempre uma outra coisa, transforma a mensagem num texto: porque aqui está se desviando os vários subcódigos, do botânico ao simbólico-alegórico [...]. (ECO, 2002, p.229).
O estranhamento proporcionado pela repetição na página de Daytripper desvia o
significado do coração para outro coração, aquele de Brás, que só se confirma na apresentação
fatídica da sua morte pela imagem. A repetição, no entanto, se dá na distribuição de vários
quadros, o que culmina no funcionamento da artrologia da condição espaçotópica dos
quadros.
Desta forma, podemos inscrever a visão de interpretação dupla, defendida por Will
Eisner, em uma noção de artrologia e decupagem que se subdivide na atuação dos signos
conjuntos. Além da espaçotopia, há a necessidade de articulação dos vazios no próprio texto
verbal, mesmo como unidade frásica: “Seu coração parou”.
No entanto, o desvio da norma, de âmbito verbal, e a redundância entre códigos só
acontecem na condição de espaçotopia da linguagem dos quadrinhos e apenas proporciona
ancoragem para a leitura no momento em que o código interno ao quadro, o desenho, revela o
detentor do outro coração parado.
O funcionamento múltiplo da página revela uma forma de construção do texto em
quadrinho que, como já vimos, interage com o leitor numa série de desvios e relações que se
dão pelos códigos icônicos e verbais. Este modelo de interação parece desvendar uma
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estrutura narrativa que comanda os espaços apresentados nas histórias em quadrinhos que
revela as possibilidades de produção de sentido dos discursos presentes na obra.
A artrologia geral, diferente da restrita, funciona como aquela estabelecida ao longo
da narrativa, com “relações translineares ou distanciadas [...] e compõem as modalidades do
entrelaçamento” (Groensteen, 2015, p.32). Ela garante com que o quadro, mais do que dentro
de uma sequência linear e adjacente, esteja vinculado espacialmente e/ou cronologicamente à
trama completa da história.
Groesnteen, em seu Sistema dos Quadrinhos (2015), aprimora um conceito já
utilizado por ele anteriormente e que empreenderá na análise da rede desenvolvida pela
organização da totalidade de um álbum3: o conceito de entrelaçamento. O entrelaçamento
cumpre a função de dar sentido ao quadro, ou ao argumento interno a ele, no conjunto
desenvolvido antes e depois dele. É necessário que haja, no exercício da leitura, uma
apropriação de elementos que complementem argumentos anteriores e eles se conectem com
discursos posteriores, mesmo que estes estejam espacialmente longe.
O entrelaçamento é exatamente a operação que, desde a fase de criação, programa e efetua essa função de ponte. Ela consiste em uma estruturação bônus e marcante que, levando em conta a decupagem e layout, define as séries internas a uma trama sequencial. (GROENSTEEN, 2015, P.154)
De acordo com Groensteen, o layout situa o quadro dentro da sua condição
espaçotópica, dando-lhe um lugar dentro do multirrequadro. A decupagem, na artrologia
restrita, se preocupa em situar temporalmente (ou no cronotópo), enquanto o entrelaçamento
confere a qualidade de hipertópica, indicando sua subordinação dentro do sistema de
correspondências narrativas. Em suma, o entrelaçamento é responsável por tornar o quadro
um lugar, isto é, um espaço ativo dentro do projeto narrativo.
Groensteen desenvolve, para compreender o processo de elaboração narrativa dentro
da artrologia geral, o conceito de quadriculação. Para ele, os autores, desde o processo de
roteiro ao esboço da página, já submetem a história à compartimentação em cenas ou
capítulos. De acordo com ele, este início de configuração já define, ainda grosseiramente, o
multirrequadro:
3 A totalidade estudada por Groensteen se realiza sobretudo na análise do que ele intitula álbum, tendo como referência as normas editoriais francesas. Ampliaremos este conceito para também outras formas de organização editorial, como graphic novels, revistas em quadrinhos etc.
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Essa configuração provisória fornece ao autor um quadro de trabalho, uma matriz. O layout será a versão revisada e corrigida da quadriculação, ou seja, a versão informada pelos conteúdos exatos e pelas duas outras operações constutivas da artrologia, a decupagem e (caso surja) o entrelaçamento. (GROENSTEEN, 2015, p.153)
Embora o processo de quadriculação seja, de fato, um elemento relevante na
construção da narrativa, nos parece pouco para compreender de que maneira o entrelaçamento
e a elaboração por parte dos autores dão sentido às leituras possíveis, ou ao processo dialógico
entre autores (roteirista e/ou desenhista), obra e leitor.
A teoria desenvolvida por Eco em suas conferências à Universidade Harvard, em
1993, pode contribuir para a compreensão da comunicação narrativa. Nestas conferências, o
autor compara as narrativas a um bosque em que o leitor faz opções de trilhas enquanto
transita por entre suas árvores. Nesta comparação, a narrativa funcionaria como uma
“máquina preguiçosa” (ECO, 2004, p.11) e que depende constantemente da participação do
leitor para seu funcionamento.
Para o autor, os leitores são obrigados constantemente a adotar opções de caminhos
de leitura. Por outro lado, os caminhos possíveis apresentam opções que se mostram como
razoáveis, na medida em que são estabelecidas por um esquema proporcionado pela própria
obra. O que Eco desenvolve, como uma teoria comunicativa, é a distinção entre a voz autoral
que difere do narrador e também do autor empírico (indivíduo do universo experimental que
produz fisicamente a obra) e entre o receptor prescrito que difere do indivíduo empírico. A
voz funciona como instância controladora dos caminhos possíveis da leitura, e o receptor
ideal aceita seguir as regras do jogo:
Este tipo de espectador (ou de leitor, no caso de um livro) é o que eu chamo de leitor-modelo – uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar. [...] O autor-modelo é uma voz que nos fala afetuosamente (ou imperiosamente ou dissimuladamente), que nos quer ao seu lado. Essa voz se manifesta como uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como leitor-modelo. (ECO, 2009, p. 15, 21).
Poderíamos pensar nesta entidade comunicativa dentro da linguagem da arte
sequencial. Se os vazios criados na artrologia proporcionam um ato de concretização dos
leitores, os espaços são controlados por esta entidade que abre a trilha dentro do bosque para
que o leitor o acompanhe. Se o leitor da página analisada lê a repetição da sentença que narra
a parada do coração de Brás e encara como redundância estética, é em sua conexão com a
figura que a produção de sentido pode ser realizada. O leitor-modelo desta obra precisa
20
reconhecer que o narrador tem um conhecimento da cena e, mais do que isto, conhece os
dramas subjetivos da personagem para ligar a perda do pai à sua própria morte.
O mesmo acontece nas páginas anteriormente analisadas. A estrutura narrativa de
Peixe Peludo é, logo no início, determinada com, por exemplo, o fluxo da sua fala e as cenas
das suas ações. Esta ligação entre foco narrativo em primeira pessoa e as figuras se repete ao
longo da obra, e é preciso que o leitor, que deseja seguir o movimento do texto, reconheça
esta dupla condição e se atenha aos detalhes tanto do texto verbal como do imagético. Em
outras palavras, a estrutura da obra, o autor-modelo, convida o leitor a testemunhar o
pensamento da personagem enquanto o vê em cena.
O autor modelo sugere a motivação e expressão da personagem que está em cena, de
forma que a imagem pode ganhar profundidade com o texto verbal ou o texto verbal pode se
justificar pela presença da cena. É necessário que o leitor-modelo da obra siga as sugestões
dadas por esta entidade organizacional para que leia a história de uma forma mais
aprofundada.
Segundo Eco, o autor modelo da obra pode aparecer de forma dissimulada ou
“descarada”, revelando abertamente seu processo de exposição narrativa ou método de
construção dela. Eco cita exemplos de algumas obras em que a narração convida os leitores
modelo a assumirem determinadas posturas, como no caso de My gun is quick, de Mickey
Spillane:
[...] você alguma vez pensou no que acontece lá fora? Provavelmente não. [...] Mas lembre-se disto: estão acontecendo coisas lá fora. [...] você tem de ser rápido e tem de ser capaz [...]”. (SPILLANE apud ECO, 2002, p.23-24).
Neste caso, o autor convida abertamente o leitor a se comportar de maneira adequada
ao estilo narrativo proposto pela obra. O desafio proposto pelo narrador faz parte da
compreensão da narrativa, incitando-o a pensar no que acontece para além daquilo que se
conta, ou seja, para além dos fatos narrados. Esta espécie de convite também se dá nas mais
diversas formas narrativas. Desde a escolha de cor e enquadramento, até a presença, ou não,
do texto verbal: Em síntese, podemos afirmar que tudo no processo narrativo aponta para uma
recepção estruturada.
Na arte sequencial, a estrutura narrativa parece se evidenciar com menos sutileza em
alguns aspectos. Para a teoria de Groensteen, que , como já dissemos, prevê o quadro como
21
unidade mínima dos quadrinhos, o layout também funciona como seleção narrativa e a sua
estrutura se evidencia para o leitor logo na virada de página:
emoldurado, isolado por vazios (que reforçam o requadro), geralmente de pequena dimensão, o quadro permite sua fácil identificação e destaca-se no continuum sequencial. Isto quer dizer que, aos níveis perceptivos e cognitivos, o quadro tem maior existência para o leitor de HQ do que um plano para o espectador do filme. (GROENSTEEN, 2015, p.37).
A espaçotopia, desta forma, prevê o revelar da compilação das cenas para os leitores.
No entanto, a seleção exposta se limita ao espaçamento entre quadros e as dinâmicas da
relação entre eles. Outros elementos internos ao requadro, como enquadramento das cenas,
cores, formas, linhas, texturas, material verbal etc; demandam formas de percepção que vão
além do material espaçotópico.
Um modelo teórico que pode nos auxiliar na reflexão desta manifestação
organizacional é a teoria desenvolvida por Chatman (1990) em seus estudos sobre a
linguagem fílmica. Chatman defende que a voz construtiva dos filmes se dá na organização de
vários agentes narrativos, que proporcionam todos os elementos para a reconstrução no ato de
leitura:
o autor implícito é o agente intrínseco à história cuja responsabilidade é o design completo – incluindo a decisão de comunicar o filme através de um ou mais narradores. O narrador cinematográfico são agentes de narrativas e não os criadores dela. (tradução livre) [...] poderíamos distinguir entre um apresentador da história, o narrador (que é um componente do que discurso ) , e o inventor tanto da história quanto do discurso (incluindo o narrador): o autor implícito - não como a causa original, a pessoa biográfica original, mas sim como o princípio dentro do texto ao qual atribuímos as tarefas inventivas. (CHATMAN, 1990, p. 132-133, tradução nossa.).4
Este autor implícito, semelhante ao autor modelo, é esta voz organizacional, que, no
caso dos quadrinhos, utiliza-se de todos os códigos da sua linguagem para a confecção da sua
narrativa. Estes agentes funcionam como comutadores do exercício estético e de produção de
sentido.
Estudos sobre o livro infantil ilustrado também podem nos dar subsídios para a
diferenciação da arte sequencial dentre os demais gêneros literários verbais. A sobreposição
4 The implied author is the agent intrinsic to the story whose responsibility is the overall design - including the decision to communicate it through one or more narrators. Cinematic narrators are transmitting agents of narratives, not their creators. [...] we would do well to distinguish between a presenter of the story, the narrator (who is a component of he discourse) , and the inventor of both the story and the discourse (including the narrator): that is, the implied author - not as the original cause, the original biographical person, but rather as the principle within the text to which we assign the inventional tasks.
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entre palavra e imagem, elemento comum nas linguagens já citadas, é o ponto de conexão
mais evidente e bastante estudado no gênero.
2.1 ENTRE PALAVRA E IMAGEM
Embora o conceito de espaçotopia de Groensteen compreenda o quadro como unidade
mínima do seu modelo teórico, precisamos de outras concepções analíticas para identificar
quais elementos são utilizados pelo autor modelo durante a confecção do maquinário
estrutural da narrativa.
Par ampliarmos teoricamente a análise das histórias em quadrinhos, iremos aprofundar
nossa discussão para o interior do quadro, investigando as formas de relação entre palavra e
imagem e o movimento de ampliação, complemento e/ou contradição dos signos no
desenvolvimento da artrologia restrita e da decupagem.
Estudos sobre o livro infantil ilustrado já levantaram diversas questões comuns com a
arte sequencial, sendo a sobreposição entre imagem e texto verbal, o enaltecimento de um
signo sobre outro ou a disposição igualitária entre as duas formas sígnicas, aquelas que mais
nos interessam no momento.
Muitas pesquisas sobre o livro infantil ilustrado abriram caminhos para a investigação
de Nikolajeva & Scott (2011), destaques dentre os poucos que se detiveram sobre a relação
estrita entre os elementos verbais e visuais. O conceito que se desenvolveu de forma mais
proveitosa para compreender estas relações foi o conceito de iconotexto (iconotext),
apresentada por Kristin Hallberg (1982).
Segundo Nikolajeva & Scott, o conceito se baseava na distinção entre
o livro com ilustração e o livro ilustrado, sendo o último baseado na noção de iconotexto, uma entidade indissociável de palavra e imagem, que cooperam para transmitir uma mensagem.(NIKOLAJEVA & SCOTT, 2011, p.21).
Esta forma iconoverbal5 difere do livro com ilustração na medida em que a relação
entre signo verbal e icônico não se dá de maneira valorativa para um dos membros, isto é, não
privilegia, na tessitura do texto, um único signo.
É evidente que as relações entre figura e verbo na construção do livro infantil
ilustrado – assim como na arte sequencial – podem se ampliar para os mais diversos
5 Optamos por utilizar a expressão texto iconoverbal para se referir ao conceito iconotexto, uma vez que a concepção adotada sobre a palavra texto para o trabalho amplia-se e inclui em seu escopo, além dos códigos verbais, formas pictóricas – como fotografia, figura, cinema.
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caminhos, alterando o equilíbrio das relações e privilegiando ora o verbo, ora a imagem. A
distinção da forma, no entanto, instiga a qualquer pesquisador da linguagem iconoverbal a não
dispensar em seu estudo um signo em detrimento de outro, ignorando a composição conjunta
do gênero.
Nikolajeva & Scott também utilizam a percepção de Schwarcz sobre a função das
ilustrações nos textos. Com o intuito de perceber os meios e função da linguagem icônica na
composição da narrativa, Schwarcz descreve diversas maneiras da cooperação entre palavras
e imagens, podendo elas apresentar congruência, amplificação, extensão, complementação,
contraponto etc.
Outros estudiosos também propuseram suas análises a partir das formas de interação
iconoverbal. Nikolajeva e Scott apresentam o estudo de Golden que difere as interações
quando:
a) o texto e as imagens são simétricos (criando uma redundância) b) o texto depende das imagens para esclarecimento c) a ilustração reforça, elabora o texto d) o texto carrega narrativa elementar, a ilustração é seletiva e) a ilustração carrega narrativa elementar, o texto é seletivo. (GOLDEN apud NIKOLAKEVA & SCOTT, 2011, p.22).
Aqui se iniciam algumas diferenciações do livro infantil ilustrado e da arte
sequencial. Nas histórias em quadrinhos, as relações iconoverbais também podem carregar
marcas de distinções entre as obras, trazendo vários tipos de relações. Algumas obras podem
não conter a presença de nenhum signo verbal, enquanto outras privilegiam menos a imagem
na construção narrativa. Há aquelas que utilizam as duas formas sígnicas de maneira mais
variada, alternando a carga semântica para uma ou outra ao longo da obra. Há, no entanto,
uma condição espacial do texto que não pode ser ignorada durante a composição: enquanto no
livro infantil ilustrado o texto verbal e a imagem funcionam página a página, disputando um
espaço comum, a arte sequencial possui em uma única página uma série de quadros que
dentro de si carregam imagens e sentenças.
A condição do multirrequadro, ou seja, a espaçotopia, diferencia a forma narrativa
dos quadrinhos da do livro infantil ilustrado, embora a cooperação dos códigos nos possibilite
aproximações teóricas no processo de análise dos quadrinhos.
24
O uso pontual da linguagem nos quadrinhos, isto é, a relação de decupagem entre as
formas sígnicas criadas quadro a quadro se estabelece com outra dinâmica de interação. É
possível, no multirrequadro, que cada quadrinho possa conter, além da imagem, expressões
verbais, como o foco narrativo, a legenda, os balões de fala e pensamento, as onomatopeias e
os demais mecanismos singulares de cada narrativa.
Esta utilização multifacetada amplia as formas de relação entre imagem e palavra,
proporcionando em uma única narrativa várias formas de interação, isto é, em uma única
página a relação entre linguagem verbal e icônica pode ser simétrica, ou a imagem dependente
do texto verbal, ou o contrário etc. Todas elas podem, no entanto, se alterar constantemente,
criando uma variação de significações e intensificando sua condição iconoverbal.
É evidente, no entanto, que o layout já conduz imageticamente o movimento de
leitura da narrativa, mas a espaçotopia é apenas um dos elementos da artrologia, sendo o texto
iconoverbal, e a decupagem interna ao quadro, uma importante forma de interação da
linguagem. Em suma, a análise de uma história em quadrinho seria insuficiente se apenas
analisada macrossemioticamente.
Se utilizarmos a página de Daytripper (2011), analisada anteriormente (Figura 3),
para refletirmos sobre as formas de interação elencadas por Nikolajeva & Scott, veremos que
a interação, no contexto da graphic novel, torna-se múltipla em sua complexidade artrológica.
O primeiro quadro apresenta Brás olhando para baixo enquanto puxa a gravata e abre
um pouco a camisa. A cena é complementada pela presença do foco narrativo que descreve a
tentativa do protagonista de se aproximar afetivamente do pai. O rosto de Brás aparenta
tristeza, mas é o texto quem manifesta verbalmente as razões da expressão.
Em suma, os dois criam uma espécie de redundância complementar: enquanto se
apresenta a cena, desenvolve-se semanticamente um quadro de relações dramáticas, seja pelas
expressões verbais, seja pelo enquadramento, grossura do traço ou cores do ambiente.
É importante enaltecer a condição de representação dos signos visuais na página. Ao
adotar a figura como elemento de representação, os autores da obra se sujeitam a sintetizar
expressões variadas através dos estereótipos referenciais para eles e as comunidades leitoras.
Expressões que denotam tristeza, alegria, encanto, horror etc., fazem parte do ato
comunicativo, mas que só podem ocorrer com alguma base informativa em comum.
Eisner (1999) defende que a expressão da linguagem corporal das personagens é a
codificação visual mais utilizada para representar as mais variadas experiências. Para ele, a
25
postura da personagem e os movimentos subtendidos em uma única imagem, deverão servir
de base para a narrativa, transmitindo a mensagem.
O sucesso ou fracasso desse método de comunicação depende da facilidade com que o leitor reconhece o significado e o impacto emocional da imagem. Portanto, a competência da representação e a universalidade da forma escolhida são cruciais. O estilo e a adequação da técnica são acessórios da imagem e do que ela está tentando dizer. (EISNER, 1999, p.14).
Eisner insiste que o estudo anatômico das personagens – por mais diversa que esta
anatomia possa ser – é importante para o desenvolvimento da narrativa. Elementos como
corpo, gestos, rosto e demais características da expressão física do ser humano são
constantemente retomados por ele como unidade expressiva da arte sequencial.
Podemos ampliar esta concepção para, além dos padrões expressivos da linguagem
corporal, a própria utilização do material significante. A utilização de determinada forma de
representação pictórica, isto é, desenho e arte final, coloração e acabamento, também fazem
parte de níveis de comunicação estética.
Eco (2002) problematiza a noção de representação natural icônica. Para o autor, a
iconicidade não foge da convenção social e pode, facilmente, alterar a noção de realidade em
relação à ótica do mundo que o autor traz consigo no momento em que pinta/desenha. Ele cita
casos descritos por Gombrich em que artes recusadas temporalmente passam a adquirir uma
noção de representatividade posterior. Lembra ainda casos em que desenhistas entre os
séculos XVI e XVIII ainda desenhavam rinocerontes baseando-se nos bestiários medievais.
Desta forma
Representar iconicamente o objeto significa então transcrever por meio de artifícios gráficos (ou de outro gênero) as propriedades culturais que lhe são atribuídas. Uma cultura, ao definir seus objetos, remente-se a alguns CÓDIGOS DE RECONHECIMENTOS que individuam traços pertinentes e caracterizantes do conteúdo. [...] mesmo nos casos de representação mais ‘realista’, podem-se individuar blocos de unidades expressivas que remetem não àquilo que SE VÊ do objeto, mas àquilo que SE SABE, ou àquilo que se aprendeu a ver. (ECO, 2002, p.182).
Esta concepção de representação icônica nos permite perceber a utilização do
desenho na arte sequencial não apenas como fidelidade ao objeto referencial, mas também
como signo convencionado no ato comunicativo pelo autor e receptores num dado período de
tempo e cultura.
26
Neste sentido, a força estética do desenho se liga diretamente ao ambiente cultural
em que a obra circulará. Da mesma forma, os referenciais estéticos visuais do autor também
influenciarão nas escolhas de traço e de arte final. O uso da técnica do nanquim como arte-
final em Daytripper pode ter sido influenciado pelo uso recorrente de outros artistas de
quadrinhos anteriores. Além disto, a cor, simulando a pintura em aquarela, também dialoga
com as técnicas de materiais, e brushes, no caso da pintura digital, já utilizada por coloristas
que trabalharam para o mesmo mercado consumidor.
A substancialidade do material utilizado, bem como as técnicas que prescindem
pigmento, linha, ponto etc; também são elementos que, de acordo com Eco, concentram auto
reflexividade estética:
Numa poesia, o trabalho estético se desenvolve também sobre os valores meramente fonéticos que a comunicação comum aceita por pré-definidos; [...]; uma reprodução a cores de um quadro de Magnasco, por mais perfeita que seja, não dá conta do papel fundamental que nesta pintura desempenham grumos e filtrações de cor, o traço em relevo deixado por uma pincelada gordurosa e pastosa, onde a luz externa desempenha diversos papéis nas diversas situações e nas diversas horas do dia. (ECO, 2002, p.225).
Desta forma, a materialidade do significante também se mostra relevante para o
processo de comunicação do texto estético. Se a composição da personagem se dá por meio
de características comuns às pinceladas de nanquim, comumente utilizada nas histórias em
quadrinhos, é perceptível o asserto do signo vinculado a uma série de outras composições de
obras do mesmo gênero.
A obra, no entanto, também pode reutilizar a técnica em uma combinação estilística
própria ao autor. A caracterização de Brás se dá por pinceladas mais geométricas e
retangulares e as sombras criadas pelo nanquim reforçam ainda mais a dramaticidade da cena
que narra sua morte.
A utilização dos elementos figurativos como artefato semiótico, isto é, transformado
em matéria “semioticamente relevante” (ECO, 2002), interage com os usos já codificados na
relação da obra com o meio. Daytripper não é a primeira obra em quadrinhos da história,
logo, interage com uma série de usos comuns na caracterização de um ser humano no gênero
ou, mas especificamente, de um homem.
Caberia dizer que o texto, neste sentido, não apenas hipercodifica os usos do signo
dentro de um hipersistema próprio como também dialoga com outros idioletos estéticos já
estabelecidos. Renderia um grande esforço de pesquisa e comparação traçarmos paralelos
27
entre a obra analisada e outras correntes do campo das artes visuais. Correntes artísticas como
o cubismo, no seu uso angular para caracterização de personagens, fauvismo, no uso
impressionista da cor podem ter influência não como fonte direta para a produção de
Daytripper, mas como código circunscrito no âmbito da produção visual em que estão
inseridos os desenhistas e o colorista. Em suma, as comunicações dos desenhos na obra estão
relacionadas a diálogos estéticos já empreendidos anteriormente por outras correntes artísticas
ou obras de histórias em quadrinhos.
As cores da cena também podem ser associadas com idioletos estéticos já
reconhecíveis na história da pintura. O uso da aquarela por pintores renomados como Willian
Turner ou as pinceladas indefinidas na representação ambígua da realidade pelo
impressionismo de Monet e outros pintores estão presentes na hipercodificação trazida pela
coloração de Dave Stewart em Daytripper.
O uso de cores mais frias para a composição do ambiente e da personagem, bem
como o gradativo sumiço das cores quentes nos primeiros quadros e os tons de laranja pelo
chão (que criavam o contrapeso de cores complementares) favorece a nostalgia da cena,
interagindo semanticamente com a tristeza nos olhos de Brás e com a parada abrupta do seu
coração.
Apresenta-se relevante também a utilização da imagem na sua relação com a
espaçotopia da narrativa. Com a interrupção do coração, há também a interrupção do fluxo
narrativo dos quadros. Explica-se: quando a sentença anuncia “parou”, os quadros também
somem e a imagem, os olhos baixos de Brás, mostra-se sem requadros, simulando um
rompimento com a narrativa e com o break, tanto do pulsar do sangue quanto da condução do
enredo.
As imagens anteriores também dialogam com outras formas de codificação da
iconografia e da arte sequencial. A tira de Quino (Figura 1) remete a outras composições de
textos iconoverbais do passado que já representaram histórias restritas a uma única página,
como podemos ver em impressos europeus durante o século XIX – ou mesmo em Yellow Kid,
famoso por levar o título de primeiro quadrinho.
Além disso, a própria característica do seu desenho nesta tira já era bastante
difundida no ano de sua publicação, devido ao seu sucesso com a personagem Mafalda, que
estabeleceu seu idioleto estético particular e ampliou a forma de codificação das tiras que
vieram posteriormente.
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Na figura 2, a caracterização do ambiente e da personagem por traços mais grossos e
sombreamentos mais marcantes reporta à ambientação comum do cinema expressionista
alemão, o que sugere o tom subjetivo da trama e estabelece uma regra hipersistêmica dos
códigos utilizados para se contar a história.
A hipercodificação nas páginas analisadas revela a utilização dos códigos visuais para
a constituição dos planos expressivos que, por sua vez, se ligam a uma utilização específica
do código dentro de uma organização interna. As relações entre si e com os signos verbais
sugerem ambiguidade na medida em que atraem a leitura para a sua própria constituição,
gerando, na multiplicidade das suas conexões, um sentido tanto narrativo quanto
metalinguístico (ou metassemiótico).
Quando, em vez de produzir mera desordem, ela atrai a atenção do destinatário e o põe em situação de ‘orgasmo interpretativo’, o destinatário é estimulado a interrogar as flexibilidades e as potencialidades do texto que interpreta como as do código a que faz referência. [...] Como primeiro enfoque, poder-se-ia dizer que se tem ambiguidade estética quando a um desvio no plano de expressão corresponde uma alteração qualquer no plano do conteúdo. (ECO, 2002, p.224).
A ambiguidade se apresenta, nas histórias em quadrinhos, numa codificação dupla,
sendo as formas de interação (simétrica, ou com sentido concentrado na imagem, ou sentido
concentrado no texto), e as suas constantes mutações da matéria, os desvios que promovem
reflexão sobre os seus próprios usos. Quando Quino utiliza o balão de fala como espaço não
de texto verbal, mas imagético e onomatopéico, ele reconfigura a utilização tradicional do
código. O idioleto estético anterior, rompendo com sua formulação padrão para a
reconfiguração pontual no seu plano de expressão, resulta, por consequência, na rearticulação
do plano de conteúdo.
Embora a contribuição de comparações entre idioletos estéticos e convenções da
imagem possa nos ajudar a compreender o discurso presente no texto, resta-nos procurar uma
teoria que viabilize um método analítico para a análise das imagens.
Pietroforte (2004), utilizando-se da semiótica narrativa graimasiana, defende a
utilização do quadro semiótico como formalização do processo de significação e sentido
gerado pelo texto. Para ele, a rede de relações estabelecidas por termos contrários e
contraditórios desenvolve categorias semânticas que orientam o percurso do texto e, desta
forma, o da sua análise.
29
Assim, por meio de operações de afirmação e de negação, o quadrado semiótico sistematiza uma rede fundamental de relações de contradição, contrariedade e implicação. Além destas três relações entre os termos simples, há no quadro semiótico um termo complexo, gerado pela simultaneidade de suas negações. (PIETROFORTE, 2004, p.14).
Esta formalização é utilizada por Pietroforte para articular os planos de expressão e
conteúdo. Segundo ele, este método de análise narrativa, comumente utilizado para
compreender o processo de categorização de personagens e de ações, pode ser atualizado nos
estudos de sistemas semi-simbólicos. Para o autor
Em muitos textos o plano de expressão funciona apenas para a veiculação do conteúdo, como na conversação, por exemplo. No entanto, em muitos outros, ele passa a “fazer sentido”. Quando isso acontece, uma forma da expressão é articulada com uma forma do conteúdo, e essa relação é chamada semi-simbólica. (PIETROFORTE, 2004, p. 21).
Para a análise de imagens, estabelece-se um esquema comparativo entre as categorias
semânticas e temáticas tanto do plano de conteúdo, quanto do plano de expressão presentes na
imagem. Podemos analisar um dos quadros em uma página da graphic novel Orquídea Negra
(2013), de Neil Gaiman e Dave Mckean (Figura 4).
O segundo quadro da página, no sentido da leitura tradicional do ocidente, apresenta
uma imagem abstrata, com contornos definidos apenas pela cor, ou seja, sem traçado. Esta
imagem remete-nos a uma noção de não rigidez, pela descentralização do desenho e pela
intensidade desnivelada da cor, na qual branco e magenta não estabelecem uma relação de
equilíbrio no quadro.
Poderíamos, desta forma, estabelecer como categoria semântica do plano expressivo
do quadro em questão os contrários magenta x branco, ou luz x sombra, para então os
relacionar com o plano de conteúdo. O plano de conteúdo, por sua vez, só pode ser
identificado na sua conexão com os quadros precedentes. A sequência da página anterior, em
que a personagem cai para um espaço em branco, liga-se a esta imagem para compreendermos
que a sua “sanidade” é gradativamente retomada. Em resumo, a significação do quadro é
estabelecida na conexão com as imagens anteriores, ou seja, na artrologia geral da obra.
Diante disso, voltamos à teoria de sistema dos quadrinhos de Groensteen em que a
condição de multirrequadro diferencia a linguagem sincrética dos quadrinhos com outras
linguagens não verbais. A relação do plano de conteúdo com o plano expressivo da página em
questão só será possível em decorrência da solidariedade icônica defendida anteriormente.
30
Desta forma a categoria magenta x branco interage, paralelamente, com a categoria lucidez x
inconsciência do plano do conteúdo.
Esta mesma categoria do conteúdo poderá se repetir nos quadros seguintes para, de
outras formas, estabelecer construções no plano expressivo. No entanto, a perpetuação do
plano de conteúdo se dará pela relevância da imagem dentro do contexto da narrativa, se será
um momento de ruptura ou de novo elemento conotativo, ou se perpetuará o conteúdo já
desenvolvido ao longo da obra.
Como já dito, as formas de interação entre os signos verbais e não verbais dentro do
quadro variam de acordo com os seus usos e relevância dentro do contexto narrativo. A
solidariedade, para além da icônica, se dá de modo contextual. Tanto o texto verbal quanto a
figura podem, em situações diversas, carregar a narrativa elementar.
A página analisada anteriormente nos dá subsídios para compreender a relevância
das sentenças dentro do contexto da narrativa. Respaldado na solidariedade contextual, o
leitor pode concluir que a página toda manifesta a volta da personagem ao seu estado de
lucidez. A página seguinte, que apresenta seu despertar, também dá indícios deste movimento.
Por outro lado, é através das expressões verbais que a relevância da cena estabelece um
vínculo entre o acontecimento e a subjetividade da personagem.
A frase “O retorno à consciência é difícil” não apenas marca o espaço da imagem –
da subjetividade da personagem – como também revela suas impressões, elemento narrativo
que intensifica a experiência estética no processo de leitura. A semântica categórica lucidez x
inconsciência se soma à construção frasal do texto e ao uso das cores e formas da imagem:
uma construção que apenas se dá na conexão da artrologia da página e na estrutura
iconoverbal interna ao quadro.
Groensteen defende que o verbal, na arte sequencial, tem duas funções: “uma função
de dramatização (o intercâmbio de comentários colabora para o pathos da situação) e a função
realística” (GROENSTEEN, 2015, p.135). Para o autor, a função realística se refere ao uso
dos diálogos, que marcam uma semelhança entre os personagens e as pessoas do mundo não
ficcional.
Apesar de reconhecer papéis relevantes para os textos verbais, Groensteen mantém-
se conectado à ideia hierárquica de que a narrativa elementar na disposição do sistema dos
quadrinhos se dá pela imagem: “parece-me necessário estabelecer com clareza que a imagem
sozinha é portadora de sentido” (GROENSTEEN, 2015, p.135).
31
A imagem, evidentemente, é o código que mais se sobressai na linguagem sincrética
do gênero, inclusive em termos quantitativos. As trocas verbais, por outro lado, apresentam-se
também como elementos de importância na construção do sentido geral do texto, na
solidariedade contextual. Na cena analisada anteriormente, o plano de expressão de ambas as
formas sígnicas interagem com a categoria do plano de conteúdo, isto é, ambos os códigos
fazem parte do processo de construção estética do texto.
Groensteen defende que a imagem tem a capacidade de comunicação estritamente
visual e não pode compartilhar as trocas verbais– embora os pensamentos também possam
expressar-se em imagens. De acordo com ele
Entre todas as ações à que as personagens se dispõem, há uma que consiste exatamente em falar. Esse ato de discurso inscreve-se na cadeia de ações e reações que constitui a narrativa, é parte integrante de sua trama de fatos. Os recordatórios, equivalentes à voz em off, encerram em si um discurso, o do narrador explícito (que pode ser narrador principal ou secundário, intra ou extradiegético etc.) (GROENSTEEN, 2015, p.136).
Chamado por ele de recordatório, o foco narrativo das histórias em quadrinhos
funciona como um recurso comum e bastante relevante nas graphic novels. No exemplo de
Orquídea Negra (2013), analisado acima, a obra utiliza-se de um foco narrativo em primeira
pessoa, enaltecendo o papel de exposição narrativa pela própria personagem desenhada.
Groensteen teoriza sobre a linguagem verbal e sua função dentro do sistema dos
quadrinhos. Para ele, os textos verbais possuem sete funções específicas:
Reconhecemos no verbal sete funções distintas na organização de uma história em quadrinhos, sendo respectivamente o efeito de real, a dramatização, a ancoragem, o revezamento, a sutura, a condução e o ritmo. Entre essas funções, contamos três (as duas primeiras e a última) que se voltam para a ilusão referencial e para a composição de cena. As quatro outras são, em suma, casos particulares do que poderíamos resumir como função informativa do verbal. (GROENSTEEN, 2015, p. 142).
Para o autor, as declarações linguísticas devem completar as informações trazidas
pela sequência icônica. Por isso, as suas definições funcionais para os signos verbais se
limitam a subterfúgios narrativos que apenas surgem como suplemento e não como parte
orgânica do sistema.
O problema na teoria de Groensteen se dá quando ele encara o texto verbal como
complementar e não como parte integrante da narração. Ele descreve o texto verbal, nas suas
várias funções, como próprio à ancoragem e condução temporal; ou como signo de conexão
entre imagens não solidárias – contrariando seu entendimento do funcionamento do
32
multirrequadro. Além destas funções específicas, compreende que o texto participa da
dramatização e do tempo de leitura, mas insiste na ideia de que a imagem é suficientemente
pronta para conduzir por si só o sentido.
O equívoco encontrado na sua teoria se percebe na concepção que o autor tem de que
a sutura, conexão entre quadros independentes, se dá pelo texto verbal por sua capacidade de
conexão na artrologia geral dos quadrinhos. Conforme defendido por ele mesmo “[...] a
imagem muitas vezes não necessita de mensagem linguística alguma pra ancorar-se em uma
significação unívoca. Não é verdade dizer que, sem uma ‘muleta’ verbal, ela está condenada à
polissemia” (GROENSTEEN, 2015, p. 138).
Para Groensteen, a imagem, sem suporte verbal, tem a capacidade de possibilitar
significações na sua condição de relação na solidariedade icônica. Desta forma, entender que
as participações dos códigos linguísticos se dão apenas na conexão entre dois quadros nos
parece insuficiente.
A página analisada de Daytripper (Figura 3) revela um exemplo da relevância mútua
dos códigos presentes na cena. O foco narrativo, ou recordatório, não apenas conecta os
quadros e, embora funcione para a dramatização da cena, caso fosse retirada, não veicularia o
mesmo valor subjetivo da personagem e não funcionaria esteticamente como é apresentada. A
repetição da expressão se torna completa na imagem, fazendo com que a imagem funcione
como elo de sentido, quase como elemento base e sutura. Dessa forma, o autor modelo, nos
quadrinhos, utiliza-se tanto da estética visual quanto dos desvios da norma dos textos escritos.
Casos em que o uso do foco narrativo se revela como condutor da narrativa também
possibilitam uma reflexão sobre o papel do verbal na construção de sentido. A adaptação em
quadrinhos do conto de Kafka “Uma pequena fábula”, pelo artista norte-americano Peter
Kuper, serve de exemplo de manipulação da construção verbal para a artrologia da história e o
entrelaçamento do todo da narrativa.
Iniciada com o foco narrativo em primeira pessoa e ampliado pelas imagens, as
relações entre o verbal e o icônico se conectam como conotações imagéticas para o discurso
redigido pelo narrador. O personagem aparece percorrendo um globo que, mais abaixo,
revela-se como a sua própria cabeça. Seu desespero e limitação geográfica vão diminuindo
pelo estreitamento de paredes e pela dramatização do foco narrativo, até culminar em um
quarto contendo apenas uma ratoeira – já descrita previamente pelo foco narrativo.
33
O interessante no conto é a rápida mudança do foco narrativo. No conto original, o
texto se inicia em terceira pessoa para, em seguida, dar a voz ao monólogo do personagem
rato. No entanto, o foco narrativo no quadrinho já se inicia com a primeira pessoa, sendo
interrompido somente quando o rato é engolido pelo gato. Neste momento, há uma fala do
gato que abre caminho para o surgimento do foco narrativo na terceira pessoa.
“‘Você só precisa mudar de direção’, disse o gato e o devorou” (KUPER, 2008,
p.11). A alteração do foco narrativo no quadrinho movimenta o plano de conteúdo da história,
já que enquanto altera a voz do narrador, altera também a posição de contador da história do
rato. Em suma, realiza-se estruturalmente uma mudança que acontece também no argumento
do texto: o rato perde a possibilidade de ser o “autor” da própria história.
A presença do texto verbal se mostra fundamental para o desenvolvimento
expressivo do texto, além de funcionar esteticamente como desvio intencional, agregando a
força estética do desenho à presença marcante de um uso incomum da escrita. Para além do
ritmo e da dramatização, o verbal aqui está como parte integrante do todo da narrativa.
2.2 GRAPHIC NOVEL
O desenvolvimento das histórias em quadrinhos e a sua popularização logo sofreram
com a recepção da crítica e de estudiosos da educação. Seus primeiros passos, na era
moderna, nos jornais, começaram a ampliar-se e promover preocupação a uma geração
conservadora.
Os quadrinhos tiveram seus detratores representados, sobretudo, na figura de
Frederic Wertham, psiquiatra alemão, autor de Sedução dos Inocentes - Seduction of the
Innocent (1954), um marco para as críticas aos quadrinhos. O autor alegava que os quadrinhos
incitavam a violência, o lesbianismo (encabeçado pela heroína Mulher-Maravilha), o anti-
patriotismo (Superman) e apresentavam elementos grotescos à estética visual. Em grande
parte, os valores morais eram postos em evidência e questionados pelo psiquiatra.
A questão moral para os quadrinhos tornou-se intensa a ponto de ser estabelecido o
código de ética dos quadrinhos (Comics Code Authority), em 1954. O Código foi
desenvolvido pela Associação Americana de Revistas em Quadrinhos (CMAA - Comics
Magazine Association of America): união de diversas editoras de quadrinhos para defender
seus interesses e agir em resposta às críticas feitas pelo psiquiatra alemão. O Código previa
uma série de prescrições que norteavam os possíveis conteúdos das revistas. As revistas que
34
se submetiam a censura levavam um selo na capa que garantia a revisão do conteúdo. Embora
o selo já não tivesse muita força desde meados de 1980, a sua extinção oficial só se deu em
2011, quando as grandes editoras divulgaram que não mais submeteriam seus trabalhos a
avaliação da associação.
Apesar das constantes críticas ao gênero, os quadrinhos continuaram a se expandir
em diversos formatos e plataformas, encontrando seu público, para além do jornal, em
revistas de heróis e de aventura. Após a grande era de ouro dos quadrinhos, época do
surgimento de diversas revistas de sucesso, as eras seguintes modernizaram seus modelos
narrativos e transformaram o público para o qual eram dirigidas as primeiras revistas.
A era moderna dos quadrinhos, percebida com maior evidência a partir dos idos de
1980, contemplou uma das mais significativas contribuições à arte sequencial, ao incluir na
formatação do gênero da época a forma da graphic novel:
O número de quadrinhos em formato longo de depois da Segunda Guerra Mundial haviam chamado diversas vezes um romance imagem, romance em imagens, novela ilustrada, o romance em quadrinhos , álbum gráfico, história e arte gráfica . Apesar de não ser o primeiro a empregar o termo , Will Eisner deu ao termo “graphic novel” maior circulação e estatura com sua 1978 coleção de quatro histórias sobre a vida judaica urbana na década de 1930 intitulado Um Contrato com Deus e Outras Histórias do Cortiço : Uma Graphic Novel (PETERSEN, 2011, p. 222) (tradução nossa)6
Difundida por Will Eisner, a expressão ganhou força e passou a ampliar a forma de
composição, tanto das grandes editoras de heróis como de editoras menores e/ou produções
mais independentes. As obras de Eisner traziam temas urbanos, com argumentos mais
centrados no cotidiano e na subjetividade das personagens.
No mesmo caminho seguiram as graphic novels produzidas dentro dos grandes
estúdios. The dark Knight (O cavalheiro das trevas, 1985), do quadrinista norte americano
Frank Miller e Watchmen (1986), do escritor britânico Alan Moore, são duas obras que
problematizaram os heroísmos dos personagens tradicionais da editora DC Comics e abriram
caminho para séries e histórias que teriam como tema central não mais a salvação da nação ou
6 Number of long-format comics from after World War II had called themselves variously a picture novel, novel
in pictures, illustrated novel, comic novel, graphic album, and graphic story. Although not the first to employ the term, Will Eisner gave the term ‘‘graphic novel’’ greater circulation and stature with his 1978 collection of four stories on urban Jewish life in the 1930s entitled A Contract with God and Other Tenement Stories: A Graphic Novel. (PETERSEN, 2011, p. 222)
35
de personagens em perigo, mas a condição humana em paralelo a existência de seres
fantásticos ou maravilhosos.
A posição encontrada pelos quadrinhos neste momento de ruptura com os discursos
tradicionais do gênero insere em uma discussão muito semelhante a já vivida pelo romance
durante sua época de ascensão, isto é, de tentativa de ruptura com o da idealização romântica
anterior.
Ian Watt (1996) discorre sobre a tentativa de vários estudiosos de categorizar o
gênero romance como aquele próprio à forma realista, que tentava se distanciar do “idéalité
poétique” do neoclassisimo na pintura e, mais tarde, da forma de produções anteriores,
sobretudo das obras dos autores do início do século XVIII.
O autor percebe que os riscos do termo se localizam na possível posição de
antagonista do romantismo, tomando vozes de um romantismo às avessas, que apenas
enfatizaria o carnal e o social da humanidade. Segundo Watt, mais do que o conteúdo realista,
sua forma era a grande novidade.
O primeiro grande desafio a esse tradicionalismo partiu do romance, cujo critério fundamental era a fidelidade à experiência individual – a qual é sempre única e, portanto, nova. Assim, o romance é o veículo literário lógico de uma cultura que, nos últimos séculos, conferiu um valor sem precedentes à originalidade, à novidade. (WATT, 1996, p.15).
Esta mesma novidade na forma marcou a transição das histórias em quadrinhos
tradicionais para a forma da graphic novel. Talvez fosse possível que outras narrativas
trouxessem o cotidiano, ou mesmo visões mais realistas, para dentro de seus enredos, mas a
grande marca deste novo realismo dentro do gênero se baseava numa nova formatação, em
que planos de expressão e conteúdo encontrariam outras formas de articulação.
Will Eisner aprimora o uso desta nova forma, utilizando a própria iconicidade do
espaço para dispor a grafia das letras, ampliando a relação entre palavra e imagem e tornando
o código cada vez mais híbrido e, a cada edição, novo.
Esta inovação da forma trouxe vários incômodos para os estudiosos da linguagem e
semioticistas da época. Novamente de forma semelhante ao romance, a composição inovadora
da graphic novel soava como um grande caos, gênero em que diversos subgêneros da arte
sequencial poderiam ser incluídos, além dos elementos narrativos se subdividirem de
maneiras até então incomuns.
36
Roberto Elísio dos Santos, em seu texto “Caos Semiótico dos quadrinhos: um estudo
de graphic-novels” revela o grande desazo dos pesquisadores da época de mapear o
funcionamento de tantas vozes e ângulos narrativos em uma única obra:
Com tantos narradores e pontos de vista, a narrativa se fragmenta (um fato é mostrado de formas diferentes ou muitos fatos são mostrados ao mesmo tempo, com a ação alternada) – o que causa o “caos semiótico”. A narração subjetiva faculta aos personagens desnudar seu íntimo, tornando claras suas ambiguidades, a ponto de desaparecer a fronteira entre protagonistas e antagonistas [...]. (SANTOS, 1989, p.72).
O novo olhar para os personagens tradicionais, isto é, seu novo horizonte no plano de
conteúdo, só poderia ser alterado na medida em que o plano de expressão também encontrasse
novos meios de narração e de exploração das várias facetas dos heróis e dos vilões.
A inovação da linguagem não se limitou apenas ao mercado de consumo das revistas
de heróis, mas também conquistou revistas voltadas às histórias em quadrinhos mais
independentes do grande cenário, como é o caso de Art Spielgelman, com sua obra Maus7
(2009). A graphic novel teve seu desenvolvimento na publicação em partes da história, que
iniciou em 1973, com o lançamento de um trecho do primeiro volume, até 1991, com a
publicação do último trecho do volume dois.
A história se concentra no relato de Art sobre as memórias do próprio pai em sua
experiência durante a segunda guerra mundial, narrando as perseguições e lutos sofridos como
judeu em Auschwitz. Apesar de apresentar um caráter memorialístico, a obra possui uma
liberdade da forma que se mostrou singular tanto nos códigos utilizados como no conceito de
representação subjacente ao plano expressivo.
Os personagens judeus são descritos, imageticamente, como ratos, enquanto os
poloneses são apresentados como porcos, os nazistas como gatos e os americanos como
cachorros. A discussão sobre os estereótipos de figura, levantados por Eisner, encontram aqui
outros meios de representação, já que são animais com uma carga semântica muito mais
significativa como função alegórica.
Além do uso de animais como representação das pessoas, a inserção de outras formas
de codificação e de usos metassemióticos dentro da narrativa contribuiu para que a obra se
tornasse um grande marco no desenvolvimento da linguagem e das potencialidades temáticas
das histórias em quadrinhos.
7 Maus, a Survivor’s tale, 1973 – 1991.
37
Um exemplo do uso metassemiótico se dá quando, dentro do contexto proporcionado
pela história, o pai de Art lê uma de suas histórias sobre sua família. A história narra o
suicídio da sua mãe e é construída com uma estética completamente diversa àquela que é
traçada desde o início da obra.
A pequena história apresenta, com seus traços fortes e expressionistas, o drama
vivido por Art com a morte da mãe (Figura 5). Ela é representada com traços que se
assemelham à técnica da xilogravura e marca uma importante distinção entre sua história e a
narrativa elementar, que é marcada pelos diálogos entre Art, o pai e as suas memórias.
A inserção desta pequena história dentro da narrativa maior representa uma marca de
distinção das graphic novels com a produção geral da arte sequencial. A artrologia geral,
dentro deste gênero, possibilita a inserção, inclusive, de outros gêneros menores8 dentro do
seu enredo. A incorporação no trecho contribuiu para o plano de conteúdo geral da obra,
enquanto proporcionou um momento de construção mais profunda no drama das personagens.
Em suma, a complexidade estrutural do gênero possibilita níveis mais variados da utilização
dos códigos e da forma que configura sua linguagem.
A distinção da forma também é exemplificada em outro trecho de Maus. Mesmo
representando toda a sua família como ratos, o autor-modelo da obra se utiliza de fotografias
para representar o pai, a mãe e outros parentes durante a narrativa (Figura 6).
O uso da fotografia como um código novo na graphic novel apenas reitera a condição
do gênero de explorar sua capacidade de hipercodificação ampliada na artrologia geral.
Embora se revele contraditório, seu uso evidencia a caracterização de ratos como alegoria
durante o todo da narrativa, além de sublinhar a veracidade biográfica dos elementos
narrados. A argumentação do autor-modelo se fortalece através do seu uso da linguagem.
Maus é um exemplo do desenvolvimento da linguagem das graphic novels durante as
décadas de 70, 80 e início de 90, uma vez que sua produção marca as relações da linguagem
da obra com outras obras produzidas neste ínterim.
Com o desenvolvimento do mercado das histórias em quadrinhos, outras vozes
contemporâneas continuaram a explorar as potencialidades da forma e conteúdo das graphic
novels.
8 A expressão “menores” aqui se refere à dimensão e quantidade de elementos descritos, não à sua relevância como obra.
38
Um exemplo que poderíamos citar é Asterios Polyp, (2009) de David Mazzuchelli. O
enredo da obra é simples: um homem, Asterios, que narra o término de seu namoro e seus
traumas com a morte de um irmão gêmeo. A narrativa, no entanto, se dá de forma distinta: a
paleta de cor é limitada e Asterios é constituído da cor azul, sendo a de sua companheira a cor
vermelha. Este elemento informa grande parte das características e das personalidades dos
personagens, o que o torna de suma importância para a trama.
Conforme a obra se desenvolve, as informações dadas logo no início – de formato e
cor dos personagens – são repetidas na condução dramática do enredo. É preciso que o leitor
reconheça a estrutura “ensinada” no início para que se leia a importância identitária e
subjetiva das personagens na cena.
Outro tópico muito enfático da obra se dá nos momentos em que o irmão de Asterios
aparece na história em saltos narrativos que nos são dados por transição de cor. Seu irmão,
morto, narra partes da história e nos conduz em um fluxo de consciência necessário para a
leitura do drama de Asterios. Estes pequenos elementos são parte integrante desta obra em
quadrinhos e não se configuram como regra e forma para todas as obras da arte sequencial.
Novamente, é uma obra que mistura as distinções de quadro e conteúdo.
Esta particularidade da forma reflete ainda mais a semelhança com o surgimento do
romance e sua relação com a inovação singular. É certo, como já vimos, que todo texto
estético constitui uma espécie de idioleto interno e que estas novas regras criadas no interior
do texto são de constituição da própria história, isto é, manifestam-se de forma original
estabelecendo um sistema de linguagem particular.
No entanto, a multiplicidade de vozes e elementos narrativos nas graphic novels
estabelece uma dimensão autorreferencial ao longo de toda a trama. Ao criar os parâmetros
semânticos que coordenarão a caracterização dos personagens em Asterior Polyp, por
exemplo, Mazzuchelli cria um sistema que sempre voltará às cores e formas dos personagens,
podendo explorar esta gramática/sintaxe em todo o romance gráfico (Figura 7).
O método singular de composição do gênero, mais uma vez, mostra-se muito
semelhante à forma do romance, que tem na sua autenticidade a maior marca. O aparente caos
semiótico, descrito por Santos em relação às graphic novels, trouxe a mesma preocupação aos
detratores do romance quando o gênero incluía, em seu escopo, vários gêneros dentro do seu
corpo narrativo.
39
Pode inventar todas as espécies de classificações nas quais se ,misturam as distinções de quadro (rústico, urbano, exótico), de conteúdo (ideias, costumes, psicologia), de técnica (cartas, diário íntimo, confissão). No limite, todo o romance um pouco complexo constitui uma espécie em si. (BOURNEUF & OUELLET, 1976, p.35).
A experiência original de cada obra do romance segue o mesmo sentido da
experiência própria a cada graphic novel. Em Daytripper, temos a presença, a cada capítulo,
de um obituário de Brás. O protagonista morre e aparece a cada novo segmento, criando um
elo invisível através dos obituários e marcando a morte subjetiva ou alegórica do personagem
de forma bastante singular.
O elemento narrativo “obituário” não se configura como regra para a constituição do
romance gráfico, assim como a subdivisão dos capítulos ou a diferenciação entre foco
narrativo e outra voz de recordatório. A experiência de leitura, em Daytripper, assim como
em Maus e Asteriors Polyp é singular e funciona apenas como idioleto interno à própria obra,
como linguagem autorreferencial. Mas cabe ressaltar que todo idioleto interage com a história
estabelecida das ações comunicativas de caráter estético e da formação de outros idioletos no
plano diacrônico.
Daí um dos motivos do gênero ser comparado, inclusive em nomeação, ao romance.
A forma singular e autorreferencial marcam seu surgimento e a singularidade de cada obra
constitui o valor de autoria intensificada nos últimos anos na área dos quadrinhos.
3 A MEDIDA DE TODAS AS COISAS
Édipo, protagonista emblemático da peça de Sófocles, é aquele que suscita o dilema
entre pai e filho. O coro da peça evoca a condição de conflito e a escolha da personagem:
“Ilustre e querido Édipo, tu que no leito nupcial de teu pai foste recebido como filho, e como
esposo, dize: como por tanto tempo esse abrigo paterno te pôde suportar em silêncio?”
(SÓFOCLES, 2005, p. 88).
A batalha travada entre pai e filho, na peça, atinge o ápice com a morte do pai e a
usurpação do trono pelo filho. Édipo, mesmo desconhecendo a profecia, cumpre seu destino e
sela o conflito criado pelo pai no seu nascimento. O espaço por eles ocupado é o da disputa
silenciosa e de reconhecimento do papel um do outro no destino que os liga.
Não é novidade a leitura deste clássico por vias desta relação traumática.
Sigmund Freud (1856 – 1939), famoso psicanalista austríaco, não só averiguou a relação entre
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pai e filho na peça como instituiu um dos mais populares conceitos da psicologia infantil: o
complexo de Édipo.
Há, de acordo com o psicanalista, na formação da libido das crianças do sexo
masculino um desejo pela mãe, com o intuito de ocupar o lugar do pai. Seu conceito pode ser
percebido na peça de Sófocles, mas também em outras obras conhecidas, como Hamlet, de
Shakespeare, que intensificou a discussão sobre a constante hesitação do protagonista em
vingar a morte do pai.
Na peça inglesa, Hamlet encontra o fantasma do pai que pede a ele para vingar a sua
morte, orquestrada pelo irmão do rei, Claudio, que além de usurpar o trono casa-se com a
esposa do finado rei e mãe de Hamlet. O filho aceita o convite prontamente, mas a vingança
perde vigor diante de uma hesitação incomum, o levando a questionar se deveria ou não tomar
o rumo da vingança.
Esta hesitação é tida, por estudiosos psicanalistas, sobretudo aqueles que seguem a
vertente freudiana, como um exemplo de complexo de Édipo, a partir do qual a morte do pai é
experimentada como liberdade, inclusive para desfrutar do desejo infantil que os meninos
sentem pela mãe.
A dualidade do abrigo e do confronto paterno é a condição essencial do dilema de
Édipo e Hamlet, mas também, de maneira diferenciada, a de Kafka, em Carta ao pai, e de
Brás, em Daytripper. O cenário da disputa e o interesse de se encontrar com e como o
progenitor é de suma relevância no trato de todos estes personagens com a figura do pai.
Qual a relação possível do confronto com o pai e a procura de definição do seu próprio
ser? Um olhar atento para a teoria do alemão Martin Heidegger, sobre as formas de interação
do ser com o outro, pode elucidar o tema em vários aspectos, desde a forma de ocupação com
as coisas que podem remeter ao pai, a relação direta do pai com o título filho e a condição de
qualquer um deles como ente individual que se percebe rodeado de outros seres.
3.1 O SER E O SER-COM-OS-OUTROS
Tendo como professor o filósofo morávio Edmund Husserl, que o influenciou
diretamente com a sua teoria fenomenológica, Heidegger foi um leitor ávido dos teólogos da
angústia, como Santo Agostinho e Kiekergaard, além de Karl Barth e Pascal (talvez uma de
suas maiores influências sobre o tema), que o influenciaram, de acordo com Steiner, para a
individualização da morte. Leitor de Nietzsche e Lucáks, Heidegger era interlocutor das
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teorias e discussões da filosofia contemporânea à sua produção, além de apreciar os artistas do
expressionismo alemão, a prosa intimista de Dostoievski e a poesia de Rilke.
Esta série de influências, embora não dêem conta do todo, são algumas das
referências formativas da sua obra mais significativa: Ser e tempo (Sein und Zeit). Lançada
em 1927, a obra marcou expressivamente o circuito acadêmico da época, não demorando a
acarrear outras expressões com o mesmo norte:
Meio ano depois da sua publicação, a notoriedade de Heidegger nos círculos teológico e filosófico estava assegurada. Por volta de 1930 já havia uma vasta literatura secundária. A afirmação de Heidegger, frequentemente repetida, de que o manuscrito lhe tinha sido mais ou menos extorquido (por motivos de promoção acadêmica) e que a obra, no seu estado presente, era um fragmento, aumentou a sensação geral de estranheza e revelação. O mesmo efeito teve, seguramente, a sua recusa de elucidar ou comentar os seus “significados”. (STEINER, 1990, p.69)
O assombro causado na época, tanto na forma como na sua relação direta com a
argumentação teórica, perpetuou-se na história da filosofia e levou pesquisadores a
considerarem a obra como um modelo de ruptura estilístico-teórica do pensamento ocidental,
em pé de igualdade com Tractatus, de Wittgenstein, Fenomenologia do espírito,de Hegel e
Genealogia da Moral, de Nietzsche.
Heidegger, com a prerrogativa de ampliar o pensar o ser, tenta difundir uma visão
mais analítica da discussão sobre o mesmo. Utilizando-se do vocabulário da fenomenologia
no seu esquema ontológico, ele acreditava encontrar uma resposta satisfatória sobre o
esclarecimento do objeto na sua relação com o ente.
A proposta trazida pelo existencialismo volta-se, tanto em Heidegger como em
Kierkegaard, para o ser no sentido do existir, i.e., no sentido dado pela própria condição de
percepção da existência e de autoquestionamento. Para Heidegger, a inteligência do ser é
própria do homem e somente nesta condição é que se pode vislumbrar o conceito frágil de ser.
É por se voltar para a existência em si que Heidegger, mesmo discordando das
conclusões do seu mentor, vai se fundamentar no método descritivo da fenomenologia de
Husserl. O ponto de vista fenomenológico propicia ao filósofo alemão uma perscrutação da
problemática do ser, uma vez que esta investigação caminhava até então, de acordo com
Heidegger, mais para a fuga da busca do ser do que para uma analítica precisa e pontual sobre
o tema.
42
Heidegger (HEIDEGGER, 1986, p.30)., logo no início de Ser e tempo (1986), lança
luz sobre seu propósito investigativo, a saber, não apenas a questão para o ser como também o
próprio método de esclarecimento por vias concretas.
Deve-se colocar a questão do sentido do ser. Tratando-se de uma ou até da questão fundamental, seu questionamento necessita, portanto, de uma transparência conveniente. Por isso é preciso que se discuta brevemente o que pertence a um questionamento para então, a partir daí, se poder mostrar a questão do ser como uma questão privilegiada. (HEIDEGGER, 1986, p.30).
O ser, esta palavra abrangente, passível de alteração de sentido em diversas
explicações e teorias, passa a representar, segundo Heidegger, o que designa o ente, isto é,
aquilo que pode ser passível de qualificações e de experiência. Mas, diferente do ente que é
designado, que não questiona a si mesmo e é definido a priori, a designação está no centro do
seu próprio ser, expresso na figura que Heidegger denominou como Dasein.
O Dasein é a principal característica do ente do homem, do ente passível de se
colocar em evidência para esclarecer o ser. O ente que questiona o próprio ser, este ente que
somos todos nós, é chamado por Heidegger de Da-sein, isto é, o Ser-aí, a clareira que revela
momentaneamente o todo do ser (que é a floresta):
Ser atingido essencialmente pelo questionado pertence ao sentido mais autêntico da questão do ser. Isso, porém, significa apenas que o ente, dotado do caráter da presença, traz em si mesmo uma remissão talvez até privilegiada à questão do ser. (HEIDEGGER, 1986, p.34).
O modo de ser do Dasein revela-se como um dos conceitos mais caros para a teoria
existencialista do pensador alemão. A estrutura do existente se manifesta, desta forma, como
elemento básico para a compreensão do ser e para a questão da essência do mesmo. A
essência do ser só se manifesta na sua existência, o que pressupõe que o ser-aí é a única
manifestação do ser do ente, i.e., possibilidade concreta da manifestação da essência. Desta
forma, não é surpresa dizer que a existência tem primazia sobre a essência.
No entanto, é preciso privar-se do equívoco de valorizar o ente mais do que o ser.
Os dois se relacionam numa condição intrínseca e mútua, mesmo sendo distintos, como ôntico
e ontológico. Mas entre todas as formas de ente, de vários ônticos, é no homem que se
encontra a possibilidade de questionamento sobre o ser. O homem é dotado do privilégio de
poder questionar e buscar a ontologia.
43
Em Heidegger, a possibilidade torna-se radical. A realização da essência, desta
forma, se dá no seu autoquestionamento, no desenrolar da sua própria existência. É desta
forma que o ente consegue o seu Dasein, o seu ser-aí, i.e, na possibilidade de interpelar o ser,
mais precisamente o seu próprio ser.
O Dasein tem, por conseguinte, uma multíplice precedência diante de todo outro ente. A primeira precedência é ôntica: esse ente é determinado em seu ser pela existência. A segunda é ontológica: sobre o fundamento de sua determinidade-de-existência, o Dasein é em si mesmo “ontológico.” (HEIDEGGER, 2012, p.63).
A distinção entre estes dois pólos representa um importante passo no método
analítico de Heidegger 9. Esta perspectiva fundamental difere o ôntico e o ontológico no
âmago da sua distinção e reciprocidade. O ôntico representa a existência do próprio ente,
vinculado diretamente ao universo dos “particulares exteriores” (STEINER, 1990, p.72), ao
passo que o ontológico representa diretamente o universo do próprio ser.
Pode-se resumir o ôntico na definição física ou nas remissões que envolvem os
entes. É possível nomear os traços físicos de uma pessoa ou mesmo resumi-la em sua
personalidade, aspectos familiares ou profissionais. No entanto, estes elementos não definem
ontologicamente o ser. Responder a questão “quem é você” respaldando-se em fundamentos
de experiência dos entes seria ontificar aquilo que é ontológico, aquilo que de fato descreve o
ser.
O ontológico, por outro lado, é dado por Heidegger como aquilo que define o ser,
mas está em constante retraimento, justamente por ser algo em constante projeção. O ser
nunca “é”, o ser “está” em processo de definição.
Mas esta condição mútua do ente com o ser, ou do Dasein, carece de infiltração do
ente por caminhos individuais. O ente deve entrar neste círculo hermenêutico para, na
clareira, encontrar a “desocultação” da verdade e do próprio ser, não demarcando este
caminho como apenas possibilidade, uma vez que esta aquisição soa fraca para a urgência do
ser. Para Heidegger, é essencial ao homem a procura pelo próprio ser.
O ente do homem é o único que, num salto do ôntico sobre a questão do ontológico,
pode encontrar o Dasein, a clareira que revela o ser, na sua problemática. É somente neste
salto, segundo Heidegger, que o homem pode assegurar a possibilidade de uma essência, que
9 A dicotomia, ou mutualidade, estabelecida entre os dois conceitos já foi abordada por outros autores, inclusive por Immanuel Kant, pensador bastante referenciado e criticado por Heidegger.
44
jamais se dará por uma condição a priori. O homem realiza a sua essência no decurso da sua
própria existência, e a fará no questionar dela mesma, ou seja, na caça ao ser de si mesmo.
Se é requisito do Dasein a investigação do ser pelo próprio ente, já se mostrou que,
além da individualidade do questionamento, o Dasein apenas se dá na relação de existência,
i.e., na conexão do ser com o mundo. Esta, talvez, seja a principal diferença do pensar o ser
em Heidegger. Diferentemente das grandes teorias do ser, por parte da filosofia ocidental, que
descreviam o ser para longe da vida cotidiana, aqui ela vai apenas se manifestar em relação ao
dia a dia.
O mundo é determinante para o próprio Dasein. De que modo ele poderia ser se não
no próprio mundo, onde estamos e somos? Neste ponto, para o filósofo alemão, é rasa a
filosofia que afasta a existência concreta do cotidiano da investigação sobre o ser. Resulta
desta urgência o conceito de ser-no-mundo (in-der-welt-sein):
Apenas orientado-se pela estrutura ontológica assim concebida é que se poderá definir a priori, através de uma privação, a constituição ontológica da “vida”. Tanto do ponto de vista ôntico como ontológico, o ser-no-mundo, enquanto ocupação, tem a primazia. Na analítica da pré-sença, essa estrutura recebe uma interpretação fundamental. (HEIDEGGER, 1986, p.96)
Abrir mão de outras formas de concepção do homem e do seu ser mostra-se tão
relevante na análise de Heidegger, que o filósofo restringe a possibilidade do Dasein para o
ente somente através do ser-no-mundo (In-der-welt-sein). As fronteiras de ambos os conceitos
se ligam indissociavelmente, de forma que não se vê ultrapassagem para o primeiro se não for
pelo segundo.
Segundo o filósofo, o estado de ser-no-mundo é o estado de poder-ser; dotado de
possibilidade e ultrapassagem, isto é, sem jamais dominá-lo ou poder sê-lo como fim, apenas
na experimentação momentânea ou parcial de quem ele é:
O entender como abrir abrange sempre o todo da constituição-fundamental do ser-no-mundo. Como poder-ser, o ser-em é cada vez poder-ser-no-mundo. Este não é aberto somente qua mundo como possível significatividade, mas o próprio pôr-em-liberdade o ente-do-interior-do-mundo deixa este ente livre em suas possibilidades. (HEIDEGGER, 2012,P. 411).
Passa pela analítica do filósofo então a capacidade de irrupção do Dasein, e as
possibilidades do ser, para o ente do homem através do ser-no-mundo. Para isto, utiliza-se do
conceito atualizado de transcendência que, ao contrário do que sugere a visão de consciência
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tradicional, i.e, de enclausuramento e fechamento para si, se dá na abertura para fora, para a
totalidade da iluminação, no chamado Erschlossenheit (estado de ser aberto).
É no estado de elucidação, de Erschlossenheit, que o Dasein revela a si para as
possibilidades das várias formas do seu ser. Neste impulso, como ser-no-mundo, encontra
também o seu tolhimento, ou seja, retraimento de possibilidades, uma vez que sua escolha é
limitada ao desenvolvimento do seu ente, mas jamais poderá participar da escolha de existir
ou não. Pois é nesta conjuntura que, apesar de ser definido pela possibilidade, irrompe o
sentimento de estar no mundo sem ter tido escolha. Disto resulta a facticidade de sua
substância.
Somos “” – uma restituição insatisfatória do Uberantwortung de Heidegger, com as suas claras conotações de “responsabilidade para com isso a que fomos entregues” – a uma actualidade, um “aí”, uma presenteidade total, envolvente. O Dasein tem de aceitar esta presenteidade, tem de a assumir na sua própria existência. (STEINER, 1990, p. 78).
O convite à aceitação da presenteidade incluiria, na teoria de Heidegger, a recusa à
abstração para as “ideias eternas” ou “certezas matemáticas”. Estabelecer-se-ia, desta forma,
outro modo de encontro com o mundo, que não aquele regido sob a idealização platônica.
Esta forma de encontro com o mundo se dá na instrumentalização das entidades-
objeto (ser-junto-a) e na compreensão da presenteidade de outros (ser-com-os outros). Estes
dois conceitos representam os modos de ser do Dasein no seu estado de ser-no-mundo
enquanto define os objetos e os outros que lhe vêm de encontro.
Do primeiro modo de ser do Dasein citado acima, a caracterização do objeto é
Vorhandenheit (estar-presente-perante)10 , isto é, para fins teóricos e de estudo. Ela dá lugar,
por sua vez, à sua presença prática nas suas atribuições cotidianas e de atualização pelo e no
Dasein: Heidegger denomina esta relação como Zunhanden (à mão). Assim a água está
Vorhanden para o químico, mas está Zunhanden para o trabalhador que a bebe num recipiente
de vidro, sendo a segunda forma de ligação do ente com o objeto a maneira de realização do
seu ser, de evocação pelo Dasein.
O martelar ele mesmo descobre a específica “maneabilidade” do martelo. O modo-de-ser de instrumento, em que ele se manifesta em si a partir de si mesmo, nós o denominamos a utilizabilidade. Somente porque o instrumento tem esse “ser-em-si”, não se limitando a apenas ocorrer, é ele manejável em sentido amplo e disponível. Por
10 Significado indicado por George Steiner (1990, p.78)
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mais agudo que seja o olhar olhando apenas para este ou para aquele “aspecto” das coisas, ele não é capaz de descobrir o utilizável. O olhar para as coisas unicamente “teórico” dispensa o entendimento da utilizabilidade. (HEIDEGGER, 2012, p. 213).
Vale ressaltar que, para Heidegger, o olhar prático não se manifesta,
necessariamente, ateórico. Ele “junta” o ser-em-si na sua aplicabilidade originária, de certa
forma teórica. Sua principal distinção para a caracterização do objeto sendo Vorhanden, i.e.,
para o teórico, está no que ele chama utilizabilidade, sendo construída pelo método e não na
simples prática de ver-ao-redor.
Apesar de promover uma constante aproximação com a experiência de vida, a
aplicabilidade originária dos objetos pode ser relativizada se pensada sobre as formas de
ocupação das coisas pelos entes. Vincent Jouve, nas reflexões iniciais do seu livro Porque
estudar literatura (2012) problematiza os critérios de definição dos objetos artísticos. O autor
lembra que objetos que antes eram utilizados unicamente para fins práticos, passaram a ter,
com o passar do tempo, um valor estético atribuído diretamente às suas formas de ocupação, o
que fez com que fossem exibidos em galerias e conseguissem o “status” de uma atenção
estética.
[...] nada proíbe que se reconheçam como obras de arte objetos que, na origem, tinham vocação utilitária, como um vaso antigo ou um manuscrito medieval: basta reconhecer-lhes um valor independente da sua função prática. Os cantos de guerra zulus serviam para suscitar o ardor militar, as pinturas rupestres pré-históricas decerto tinham uma dimensão religiosa ou mágica, mas não é sob esse ângulo que elas são consideradas pelos amantes da arte [...]. (JOUVE, 2012, p. 22).
As formas de ocupação de um objeto podem se dar das mais variadas maneiras se
percebidas sob a individualidade do ente de cada ser. Mesmo um objeto que tem a função de
martelar e tem nisto sua razão de ser pode encontrar formas de ocupação distintas pelos entes,
se estes olham para o objeto com a carga de representatividade de um ícone em uma bandeira,
por exemplo.
Esta ocupação diferenciada é presente no olhar de artistas, que se ocupam dos seus
próprios instrumentos e de objetos do mundo para representar suas poéticas. Um exercício de
rearticulação dos espaços de ocupação de cada objeto. A subjetividade em torno da ocupação
pode ser percebida no romance A insustentável Leveza do ser, de Milan Kundera.
As nuvens alaranjadas do crepúsculo douram todas as coisas com o encanto da nostalgia: até mesmo a guilhotina.Não faz muito tempo, surpreendi-me experimentando uma sensação incrível: folheando um livro sobre Hitler, fiquei emocionado com algumas fotos dele; lembravam-me o tempo de minha infância; eu a
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vivi durante a guerra; diversos membros da minha família foram mortos nos campos de concentração nazistas; mas o que era a sua morte diante dessa fotografia Hitler que me lembrava um tempo passado da minha vida, um tempo que não voltaria mais?Essa reconciliação com Hitler trai a profunda perversão, moral inerente a um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do retorno, pois nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e tudo é, portanto, cinicamente permitido. (KUNDERA, 2017, p.10).
É evidente que a fotografia já carrega formas de representação e que podem evocar
memórias e lembranças que agem no imaginário do apreciador. Mas a fotografia também
propicia ocupações por parte do ente, e as remissões por ele estabelecidas poderiam caminhar
facilmente para o modo de registro (a câmera, a tecnologia, o vestuário da época) até chegar,
por fim, à guerra, Hitler e seu regime ditatorial. Contrariando esta previsão, a personagem se
remete à sua própria família e se relaciona com as fotos do estadista alemão de uma maneira
bastante particular. As ocupações são variadas para cada ente e a aplicabilidade originária do
objeto pode ser não a única ou mais acertada.
A provocação conceitual de Marcel Duchamp, ao colocar sua obra A fonte (1917) no
espaço tradicionalmente regido pelo mercado institucionalizado das artes, fortaleceu ainda
mais a ideia de que a utilizabilidade de um objeto pode variar de acordo com a situação e
olhar de cada ente. Se o ser dos objetos é atualizado pelo Dasein e o Dasein só pode ser
individual, a sua maneira de se envolver com o objeto pode, também, ser única, mesmo que o
seu fim prático seja a contemplação.
O exercício proporcionado por Duchamp é justamente o das remissões dos entes. O
urinol remete ao sistema desenvolvido pela humanidade para a captação dos seus próprios
dejetos, o que alude, obviamente, ao sistema urinário, e a natureza do corpo humano e suas
necessidades de consumo de água. As remissões do objeto chegam à natureza humana, mas a
sua utilizabilidade pôde ser distorcida para a provocação estética do artista francês.
Na tentativa de aproximar a discussão sobre o retraimento do ser com a vida
cotidiana, Heidegger supervalorizou a pragmática dos objetos, ignorando aspectos não
práticos na criação dos próprios objetos, ou mesmo as implicações subjetivas com as quais os
objetos poderiam subsistir. A pena, para o escritor, pode muito bem se tornar algo maior do
que sua ferramenta de trabalho. Pode tornar-se prazer ou mesmo seu vício; pode tornar-se
objeto de contemplação ou mesmo de nojo. Todo objeto carrega em si seu fim usual, mas
também sua forma e valor simbólico referente à época que é produzido e utilizado.
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Dizer que a obra de arte surgiu de “estados Intencionais” é, portanto, lembrar que ela supõe em sua fonte um fenômeno mental que deságua numa representação. Sem dúvida, qualquer objeto surgiu de uma causalidade Intencional: um simples pode de geleia tem igualmente em sua fonte um estado mental que remete, entre outras coisas, à representação de um pote de geleia. Mas é justamente porque todo artefato humano exprime algo: o pote de geleia dá testemunho das exigências práticas, e até das preferências estéticas, que, levadas em conta pelo concebedor (individual ou coletivo), resultaram na sua concepção. (JOUVE, 2012, p. 24-25).
Em suma, um artefato com uma finalidade considerada sagrada possibilita a
percepção da visão sobre o espiritual ou as formas materiais de manifestar uma religiosidade.
Além disso, ele expõe em sua forma, sua cor ou sua matéria-prima uma orientação estética
relacionada ao respectivo credo. Reduzir o modo de ser do objeto à sua utilizabilidade como
instrumento prático no cotidiano significa ignorar a sua concepção e a sua recepção pelos
entes no processo de instrumentalização.
A escrita, para muitos autores, exige um exercício de ressignificação que implica
rearticular constantemente as ocupações e remissões dos objetos. Avenca, uma pequena
planta, conhecida por sua fragilidade, é citada em pelo menos dois contos de Caio Fernando
Abreu, no livro de contos O ovo apunhalado (2016). Ora ela aparece como título “Para uma
avenca partindo” e ora como resultado final do conto “Margarida enlatada”. Em ambas, a
fragilidade é evocada e a ocupação da avenca pode carregar não apenas a remissão ao seu
modo de ser planta, como também a sua condição de planta sensível. Ocupar-se de uma
avenca implica mais do que sua utilizabilidade prática, pode implicar na identificação da
fragilidade que também é constituinte do seu ser.
Ricardo Piglia, em um ensaio dedicado a Kafka, percebe o exercício que o escritor
tcheco faz para tentar encontrar as várias formas de ocupação de um mesmo objeto. A
constante reescrita fazia com que Kafka retirasse concepções variadas de uma mesma
experiência e, até mesmo, de um mesmo objeto.
A máquina de escrever, para Kafka, é impossibilitada de acompanhar o seu fluxo de
escrita. Para ele a máquina tem sua prática instaurada no mundo corporativo e distante da sua
relação com o narrar.
A inconveniência de escrever à máquina é que se perde o fio”, diz Kafka a Felice em sua primeira carta de 20 de setembro. A máquina de escrever não é para escrever, produz uma deriva, perde-se a linha, a continuidade, a mão se distancia do corpo, se mecaniza (“a mão que nesses momentos está acionando as teclas”, observa Kafka na terceira pessoa nessa carta a Felice). (PIGLIA, 2006, p.65).
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A instrumentalização da máquina para Kafka era tamanha que o próprio ato de
escrever se distanciava. Para ele, a máquina criava um autor desconhecido por meio dos
movimentos das mãos. “’Por isso me sinto tão atraído pela máquina de escrever em todos os
assuntos relacionados com o escritório, pois seu trabalho – realizado, além disso, pela mão do
datilógrafo – é tão anônimo’ (carta de 2 de novembro de 1912).” (PIGLIA, 2006, p.65-66).
É evidente que a citação de Kafka reitera a condição de utilizabilidade do objeto
máquina. Além disso, as remissões por ele apontadas se relacionam com os fins burocráticos e
com a pressa corporativa, nunca com a sua escrita autoral, aquela que para ele é mais
importante: “mais que a clareza da grafia, interessa o ritmo corporal da escrita, muito ligada,
para Kafka, à respiração, aos órgãos internos, aos ritmos do coração.” (PIGLIA, 2006, p.65).
Kafka é um bom exemplo para identificar as formas de ocupação dos objetos por
vias de uma experiência individual. O momento em que conta como a loja do pai foi se
transformando em um lugar traumático, devido às grosserias do progenitor, indica a condição
sintomática com que se relacionava não apenas com o espaço da loja, mas também com as
remissões por ela suscitadas:
Mas quando aos poucos tu fostes me aterrorizando por todos os lados e a loja e a tua pessoa se tornaram para mim uma coisa só, então também ela já não era mais acolhedora. Coisas que no começo eram naturais para mim passaram a me atormentar [...]. (KAFKA, 2016, p. 374).
Seu discurso sobre a transformação do olhar que tinha sobre a loja demonstra
também a maneira como a forma de ocupação de um objeto pode se transformar. O ser em si
da loja, para além do uso meramente comercial, remetia, ao jovem Kafka, ao tormento. “[...]
tudo isso tornava a loja insuportável, tudo me lembrava demais minha relação contigo [...].”
(KAFKA, 2016, p. 376).
A transformação da sua apropriação da loja reitera a relevância do pai para seu olhar
para o mundo. O outro, neste exemplo, condiciona não apenas a forma de remissão como
aquele que gera a preocupação de ser agradado ou, no mínimo, percebido.
Diferente da relação do Dasein com as coisas, obviamente, é a do ente com os outros
entes. Ser-com-os-outros manifesta uma possível teoria antropológica da fenomenologia
heideggeriana. Para Heidegger, o outro é também um Dasein, propenso a inquirir o próprio
ser e, por consequência, ser também um ser.
Isto torna a sua relação com o outro maior do que aquela das ocupações dos objetos.
O outro é também um ser, o que torna minha relação com ele o reconhecimento da sua
50
autonomia e da sua singularidade como ser. No entanto, maior do que o reconhecimento do
Dasein do outro, o ser-com é manifestado como um modo essencial do ser, uma vez que
condiciona a experiência do Dasein de estar em constante troca com outro Dasein. Estas
trocas interferem no Dasein um do outro e agem sobre a formação do ser em constante
projeção.
Se o Dasein encontra a questão sobre si mesmo e sobre o ser das coisas com as quais
aparece como ser-com-as-coisas, também se revela a condição igualitária do outro. Se apenas
no ente do homem se manifesta a revelação da existência como questão, é por ele, também,
como ser-no-mundo, que se reconhece a existência de entes igualmente lançados. Desta
forma, ser-no-mundo significa, irrevogavelmente, ser-com-os-outros.
É por isto que Kafka não consegue se relacionar com a loja do pai ou mesmo com o
mundo, como admite mais a frente, sem pensar diretamente na relação que tem com o próprio
pai. Por isso também que o protagonista de A insustentável Leveza do ser se relaciona com a
fotografia de uma maneira mais complexa que a ocupação primária do objeto de papel: os
outros agem sobre o Dasein porque todo Dasein é ser-com-os-outros.
A diferenciação dos entes que não são instrumentos ou coisas se dá justamente na
sensibilidade do Dasein próprio de reconhecer o Dasein do outro, i.e., de reconhecer a
presença do existente que não sou eu ou meu próprio Dasein.
O mundo do Dasein libera, portando, entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas, mas que, de acordo com seu modo de ser de Dasein, são e estão ‘no’ mundo em que vêm ao encontro segundo seu modo de ser no mundo (HEIDEGGER, 2012,p. 169).
O ser-com manifesta, pela linguagem, o modo de ser do Dasein, rompendo com a
visão de outros como o resto fora do “eu”. A condição do Dasein do outro, também manifesto
ser-no-mundo, subsiste para além da inaptidão de outro, tornando o mundo como um todo,
compartilhado entre todos.
O encontro com o outro, do Dasein como ser-no-mundo-compartilhado, escapa ao
funcionamento tradicional do ente do homem com os outros entes. Ser-com-os-outros, como
condição do Dasein próprio, revela-se fundamental para a compreensão do seu próprio ser.
Sua atitude primeira, então, resulta na potencialidade de se reconhecer e de se compreender.
A figura paterna, desde Édipo, Hamlet e até em Kafka, interfere na busca e
possibilidade do ser de cada um destes personagens. Édipo só é, na medida em que se
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reconhece como filho, mas também como usurpador do trono. As possibilidades do seu ser
são regidas, também, pela relação que tem com a mãe, seja como filho ou amante, e com o
pai, como filho ou desertor.
O mesmo se dá para Hamlet. Seu famoso monólogo “ser ou não ser”
(SHAKESPEARE, 2016, p. 67), apenas reitera o dilema das possibilidades do seu ser diante
da expectativa do Dasein do seu pai. O rei, ainda que morto, interfere em quem Hamlet é ou
pode ser. A peça trata do dilema (e a possível loucura) que é confrontar-se com os desejos do
pai e a busca pelo ser próprio. A presença do pai lhe é inevitável, não sendo à toa que o
discurso proferido por Hamlet é escutado por outros. A verdade é que mesmo na solidão, os
outros nos marcam.
Mitsein faz ver então o caráter indissociável do Dasein próprio com relação aos
outros Dasein. Mesmo a solidão não escapa ao fato de lhe ser intrínseca a condição de ser-
com: para a ausência tornar-se concreta é preciso ausentar-se como outro; é preciso existir o
outro. A co-presença lhe é imanente.
A distinção da relação do Mitsein com entes simplesmente dados, seres à mão, é
apontada por Heidegger sob duas formas: ocupação e preocupação.
De acordo com o filósofo, ocupar-se com não aclara o caráter ontológico de Dasein,
embora revele um modo de ser-para os entes. Contrária é a relação com o outro. Este, por
possuir ele mesmo o próprio Dasein, condiciona ao encontro um elo de co-relação. Neste ente
se precisa a autenticidade de ser-com-os-outros própria do Dasein, alternando o modo de
ocupação para o de preocupação.
Sua urgência factual é motivada pelo fato de o Dasein se manter de pronto e no mais das vezes nos modi deficientes da preocupação-com. Ser um para o outro, ser um contra o outro, prescindir um do outro, passar um ao lado do outro, não se importar em nada com o outro são modos possíveis de preocupação-com. (HEIDEGGER, 2012, p.351)
Embora, de acordo com a citação, Heidegger compreenda que a indiferença, ou seja,
não se importar em nada com o outro, seja um modo possível de preocupação-com, ele
assume uma distinção desta forma de preocupação.
De acordo com o filósofo, a indiferença se apresenta como modi de deficiência da
preocupação-com na sua possibilidade de interpretação ontológica, uma vez que afasta o
Dasein de descoberta de si mesmo, de forma que “persiste uma diferença ontológica essencial
entre a concorrência “indiferente” de coisas quaisquer e o-não-se-importar-em-nada-com-os-
52
outros de entes que são-uns-com-os-outros.” (HEIDEGGER, 2012 p.651). Assim, a
preocupação-com assume um caráter fundamental na constituição do Dasein e insere-se no
escopo da questão sobre si feita pelo ente do homem.
Ser-com-o-outro é essencialmente preocupar-se com o outro. É por este motivo que
Kafka insiste ao longo da carta ao seu pai, na tentativa de encontrar o elo que une o Dasein
um do outro. Seu pai sempre se mostrou, em atos e palavras, duro e, muitas vezes, indiferente.
Mas mesmo toda esta dureza condicionava o ser de Kafka, o ser que mais tarde se revela
impossibilitado da fala, temeroso com o mundo, “débil, amedrontado, hesitante” justamente
por obter do pai um tratamento hostil que levava o menino tcheco a se sentir “esmagado pela
simples materialidade do teu corpo.” (KAFKA, 2016, p. 360).
Parece-nos que, para Kafka, a forma de ser-com o pai é maior e mais significativa do
que suas relações com os outros entes. A preocupação é tamanha, que suas palavras carregam
o temor que tem pelo pai, de modo que “também no ato de escrever o medo e suas
consequências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe
minha memória e meu entendimento” (KAFKA, 2016, p. 353).
Mesmo admitindo culpa e indiferença no trato dos objetos que remetiam ao genitor,
Kafka reconhece que esperava dele um apoio que constituísse seu ser como um ser em
conexão com o pai. A tentativa de fugir daquilo que orbitava sua família condicionava ainda
mais a preocupação que tinha com a figura paterna na formação de si mesmo. “É bem
possível que eu, mesmo se tivesse crescido totalmente livre da tua influência, não pudesse me
tornar um ser humano na medida em que o teu coração desejava” (KAFKA, 2016, p.356).
Jamais seria um “Robert Kafka”, mas o que queria era a possibilidade de viver com o
pai de maneira que ambos “poderiam suportar um ao outro de forma maravilhosa” (KAFKA,
2016, p. 356). O que nos parece é que seu desejo era de que o ser-com como modo de
preocupação fosse vital na forma de exercício do seu Dasein. Mesmo reconhecendo a
impossibilidade, a preocupação faz com que Kafka queira aproximar-se do ser do Dasein que
é o pai.
A dificuldade de Kafka em reconhecer o lugar do pai na sua vida se trava, sobretudo,
na visão que tem do pai como um homem complexo, no qual bondade e grosseria pareciam
dissolver sua intenção de educar o jovem filho. Uma passagem narrada por Kafka demonstra
este espectro que assola o ser de Kafka.
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Eu choramingava certa noite sem parar, pedindo água, com certeza não por sentir sede, mas provavelmente em parte para aborrecer, em parte para me distrair. Depois de algumas severas ameaças não terem adiantado, tu me tiraste da cama, me levaste para a pawlatsche e me deixaste ali sozinho, por um bom momento, só de camisola de dormir, diante da porta trancada.(KAFKA, 2016, p.358).
Momentos como este, em que seu pai age com certa brutalidade educativa, são
evidenciados por toda a sua carta ao pai. Este ato brusco fez com que o escritor admitisse,
durante a sua escrita, que não só não se esqueceu do fato, como ficou marcado por toda a
vida, sentindo-se um ser pequeno diante da robustez enérgica do pai.
Mesmo depois de passados anos eu ainda sofria com a ideia torturante de que o homem gigante, meu pai, a última instância, pudesse vir quase sem motivo para me tirar da cama à noite e me leva à pawlastsche e de que, portanto, eu era um tamanho nada para ele. (KAFKA, 2016, p.359)
Sua visão das possibilidades do seu próprio ser é atualizada com a noção que tem de
si mesmo com base no pai. Por ser o pai grande, um gigante, Kafka é um “nada para ele”. Este
é o reflexo do Dasein do pai para o seu próprio Dasein. Sua investigação sobre a autoridade
do pai sempre deságua na visão de lei do mundo, das regras e da justiça.
Este princípio de ordem reflete-se em Kafka, por exemplo, nos contos que narram a
força de uma lei maior que a dos protagonistas. Contos como O timoneiro (2002), Desista!
(2002) e Uma pequena fábula (2002) ilustram o aspecto de invalidez das personagens e do
próprio Kafka. No primeiro exemplo, o protagonista perde a luta contra aquele que rege o
navio; no segundo texto ele é subjugado pela autoridade civil; e na última obra ele é devorado
por um gato, após perceber que não há escapatória no mundo que parecia imenso, mas vai se
tornando cada vez menor.
A nosso ver, esses protagonistas das narrativas de Kafka simulam o Dasein dele
mesmo, enquanto as figuras que representam a ordem e o domínio replicam a força da
presença de seu pai. Sua escrita e sua experiência de vida se confundem no desempenho da
articulação entre o que aconteceu e o que pode acontecer para cada personagem ou para si,
como aparece em carta ao pai.
A experiência é enigmática. O relato estabelece um sentido incerto. O menino que vive a situação não a compreende. A mesma coisa acontece em O processo e em O castelo. K nunca entende o que acontece com ele. E em “O veredicto” não há relação lógica entre a frase do pai e o suicídio. “Eu o condeno à morte por afogamento!”, diz-lhe o pai, e o filho sai de casa e se joga no rio. Georg interpreta a frase do pai literalmente, e a vive (ou morre por ela). (PIGLIA, 2006, p.53).
54
Ser-com-o-outro para Kafka é elementar quando se trata do pai, a ponto de elevar à
própria visão de si mesmo ao estatuto que coordena o mundo de pai e filho. Mas esta escolha
não é feita apenas como uma regra social. É a presença do pai, seu Dasein e sua liberdade de
poder-ser, que interfere na vida de Kafka, fazendo com ele o torne juiz e legislador do mundo
do escritor: “Já na cabine eu me sentia miserável e na realidade não apenas diante de ti, mas
diante do mundo inteiro, pois para mim tu eras a medida de todas as coisas” (KAFKA, 2016,
p.360).
A medida de todas as coisas. Esta é a nominação de Kafka ao pai. Tanto que repetirá
a nomenclatura ao reconhecer que o Dasein do pai e as remissões do mundo feitas a partir
dele, afetam-no diretamente e se afastam das outras formas de ocupação cotidiana.
[...] que essa contradição se fortalecia sem cessar pela acumulação de material, de tal forma que no fim ela acaba se impondo até como costume, mesmo que às vezes tu tivesses opinião igual à minha, e finalmente, já que essas decepções não eram as decepções da vida comum, elas acertavam em cheio, pois isso dizia respeito à tua pessoa, a medida de todas as coisas. (KAFKA, 2016, p. 361-362).
Esta lei, no entanto, mostrava-se fragilizada pelo próprio pai. Ele, mesmo exigindo
uma postura respeitosa sobre a mesa ou um linguajar adequado, jamais atendeu aos desejos
das próprias normas. Sua hipocrisia afligia Kafka, de forma que o julgamento para o mundo,
com base naquele que ele nomeava como a medida de todas as coisas, condenava o próprio
legislador: “[...] e isso ficava sendo para mim o recurso mais importante para poder julgar o
mundo, sobretudo para julgar-te a ti mesmo; e nisso o teu fracasso foi completo” (KAFKA,
2016, p. 363).
Acreditamos que, mesmo com as fraquezas apresentadas, Kafka não consegue
ignorar a presença do pai. Sua frustração é substancial porque fere o seu próprio ser e as
possibilidades dele. Fere sua noção de bom homem, marido e pai. Em suma, fere aquilo que
ele se esforça para se tornar, mesmo que abomine os ideais presentes nesta figura.
Dilema parecido enfrenta o filho no conto “A terceira margem do rio”, de João
Guimarães Rosa. O conto, do livro Primeiras estórias (1988), narra o sentimento de um filho
que vê o pai passar o restante da vida em um pequeno barco transitando por um rio. O pai é
visto como louco, muito embora o termo não possa ser pronunciado em casa. Todos vão
seguindo cursos distintos para a sua vida, mas o menino cresce ali mesmo, cercado pelo
assombro de querer estar com o pai, mesmo que ele mesmo não soubesse explicar o motivo:
55
“Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto
que jogava para trás meus pensamentos” (ROSA, 1988, p. 34).
No início do conto, ele pede para que o pai o leve no barco, junto dele: “O rumo
daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — ‘Pai, o senhor me leva junto,
nessa sua canoa?’ Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me
mandando para trás” (ROSA, 1988, p. 33).
A recusa do pai o atormenta o filho porque, para ele, o pai precisava da sua
companhia, do sustento trazido por ele, do legado criado pelo gesto no rio. “Nosso pai carecia
de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito” (ROSA, 1988, p.
35-36).
O narrador sente-se na obrigação de estar junto ao pai. Ele não consegue se distanciar
da casa e nem do espaço que ele ocupa na relação pai e filho. Seu tributo ao pai perdura por
toda a sua vida, até mesmo diante da morte, como pede ao fim da narração: “que, no artigo da
morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não
pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.” (ROSA, 1988, p. 37).
Seu desejo era de seguir o curso do pai no rio ou ainda seguir o curso do rio que se
transformou no seu pai. Ele quer, com o ímpeto de um Édipo ou de um Hamlet, ocupar o
espaço criado pelo pai. A própria condição de estar no rio representa o fluxo do tempo e da
vida e, no entremeio da terceira margem, o filho quer estar com o pai, mesmo que este esteja
longe.
Mas a verdade é que ele sempre esteve na família. Seu Dasein é vivenciado pela
experiência de ser-com: “[...] se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua
família dele.” (ROSA, 1988, p.34). Para Heidegger, a ausência do outro também me define,
ao passo que ser-com é inerente ao Dasein e a não presentificação do Dasein do outro é
apenas uma das formas de agir sobre o estado de ser-com-os-outros. Mesmo não estando
fisicamente presente, ainda era o pai. E dizer “pai” implica em presentificar o Dasein dele.
O pavor de ocupar o lugar do pai cerca o narrador no seu exercício de compreender o
que o mantém, ali. “Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o
culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro.” (ROSA, 1988, p. 36). Ele parece não
compreender a transgressão que comete. Sente culpa daquilo que desconhece: a terceira
margem e o pai o assombram, um assombro marcado na pele de ser filho.
56
A perplexidade de se lançar para o dilema do pai é o que o sustenta até o último
momento, em que vai até a beira do rio e grita para trocar de lugar. O clímax é tanto que ele
sucumbe a ideia de entrecruzar o caminho do pai com o seu. Ele desiste de ficar no lugar do
pai:
E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. (ROSA, 1988, p. 37)
Sua visão de si mesmo é a de um desertor. Sua infração o assombra até o fim da
narrativa e a compunção, que o levara a pedir que trocasse de lugar com o pai, intensifica-se,
atingindo o ápice da batalha travada entre a presença/ausência do pai. A consequência do seu
ato é o sumiço do pai por completo e o remorso que o acompanhará até a morte.
Kafka também se responsabiliza por ser um filho que, de que alguma maneira,
corresponde às expectativas de seu pai. O esforço de colocar em uma carta todos os traumas
que constituíram a relação dos dois revela, senão o próprio interesse em dar sentido para os
conflitos, a condição de filho grato e confuso, mas que ainda procura satisfazer-se nesta
relação.
Podemos encontrar um exemplo quando Kafka descreve que o interesse do pai por
ele, ou qualquer um da casa, reluzia alegria nos filhos: “Nesses momentos a gente ia se deitar
e chorava de felicidade, e chora ainda agora enquanto escreve” (KAFKA, 2006, p.370).
Kafka se emociona porque o Dasein do pai interfere no seu estado emocional. É
necessário que ele compreenda que o pai se interessa por ele, mesmo que sejam por nuances
de um aceno ou por frases atravessadas.
O papel do pai também se evidencia como um Dasein que procura no filho a
distinção de si mesmo. A título de exemplo, podemos perceber a tentativa de mapear a si
mesmo em vista do filho no romance O filho eterno (2015), de Cristóvão Tezza. O pai, no
romance, discorre sobre a chegada do primeiro filho, que nasce com Síndrome de Down, e a
dificuldade que tem para se aceitar como tal.
O narrador se utiliza do discurso indireto livre para se apropriar das visões de mundo
do pai e manifestar estes encontros do seu ser com o mundo que age sobre ele. A sua
dificuldade não se limita apenas à aceitação de um filho com Síndrome de Down (muito
embora esse aspecto intensifique seu conflito neste momento, o que o leva a utilizar,
inclusive, a expressão mongoloide para se referir ao filho), mas ela aparece antes, quando
57
ainda reflete sobre a grande divisão que sente entre o que queria ser, escritor, e a vida que
agora leva: “Será um pai excelente, ele tem certeza: fará de seu filho a arena de sua visão de
mundo” (TEZZA, 2015, p. 14).
A arena é ambiente vital para se entender a relação entre o pai e o seu filho. As
expectativas, ideais e o modo como vê o mundo são projetados no Dasein do seu descendente.
Para o protagonista do romance, seu filho herdará seus ideais e seu modo de ser-no-mundo. A
arena é a metáfora que sustentará para sempre a união dos dois.
Quanto às formas da preocupação-com, o filósofo alemão aponta duas
possibilidades: a de substituição da preocupação pela ocupação; e a pressuposição do poder-
ser existencial do outro. Na primeira opção, o risco de dependência e dominação para com o
outro se torna possível, uma vez que a subtração da “preocupação” acarreta, eventualmente, a
usurpação desta pela ocupação utilizável, tornando a relação de preocupação-com em ser-para
da instrumentalidade das coisas. Neste caso, a relação de Dasein para o outro, torna-se uma
relação de Dasein para uma coisa e não para outro Dasein.
Tornar-se um ser ocupado ocorre quando o Dasein passa a servir de instrumento para
outro Dasein. É o que acontece com o protagonista de Abril despedaçado (1991), de Ismail
Kadaré. Gjorg se vê condenado pelo rito da aldeia por ter que vingar legalmente a morte do
irmão. Como consequência legal, a família do morto tem de vingar também a sua morte. Essa
série de atos vingativos perdura por 40 anos, ao passo que o herói da história reluta em aceitar
esta condição de ser ocupado pelo Kanun, um código de regras e direitos consuetudinário de
tribos da Albânia, conhecido como Constituição da Morte.
A família do finado concede aquilo que chamam de grande trégua, permitindo trinta
dias de suspensão ao protagonista sem ser caçado. Toda a narrativa apresenta os dilemas do
rapaz em enfrentar um código de conduta que foge das suas projeções e vontades para o seu
próprio ser. Seu pai é quem representa este código e o ordena que cumpra todos os requisitos
prescritos pelo Kanun:
- Depois de amanhã, vai ser preciso que se ponha a caminho de Kulla de Orosh – retomou o pai – Ela fica a um dia de caminhada daqui. Gjorg não se sentia muito disposto a viajar. - Esse assunto não pode esperar, pai? É preciso pagar esse dinheiro já?- Sim, já, meu filho. É um assunto que precisa ser regularizado o mais cedo possível. (KADARÉ,1991,p.18)
A relação os dois restringe-se ao passo a passo dos cumprimentos da vingança. O
modo de ser-com do pai com o filho, ou mesmo entre as famílias que participam da constante
58
vingança, é um modo semelhante ao ser-para, de forma que o ente de Gjorg é encarado apenas
sob a ótica da constituição do grupo, sem a valorização dos modos individuais do seu ser.
Por outro lado, a possibilidade contrária, a de conjectura das projeções do outro, não
apenas ilumina a condição do Dasein de ser-com como também “ajuda o outro a obter a
transparência em sua preocupação e a se tornar livre para ela” (HEIDEGGER, 2012, p.353).
O risco seria de o pai projetar em seu filho às suas expectativas como modo de ser do
filho. Ocupar-se do filho como esboço do seu querer limita as possibilidades do ser do próprio
filho. Exemplo desta projeção do ideal de ser do pai na ocupação do filho pode ser visto em
Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar.
No romance, o pai Iohána enfatiza constantemente o modo que, para ele, configura
os valores ideais e familiares, dentro de padrões éticos e tradicionais do meio em que viviam.
Evanir Pavloski, em seu texto A utopia familiar e a familiaridade da utopia em Lavoura
arcaica, de Raduan Nassar, e a Manta do soldado, de Lidia Jorge, desenvolve uma
interessante análise das ressignificações que o filho, André, faz da homogeneização que
baseia o discurso do pai:
André, contudo, é incapaz de considerar suas ações para além do sistema de valores no qual foi criado, pois sua ética, assim como qualquer antítese – a distopia, por exemplo – define-se predominantemente pelo seu contrário. A personagem desconstrói o discurso patriarcal, mas adapta parte dele aos seus interesses, remontando o processo de apagamento das individualidades praticado por Iohána. O protagonista nega a singularidade dos membros da família e instrumentaliza seus corpos como forma de convulsionar os princípios reguladores daquele núcleo; por meio da erotização dos corpos e da sublimação de seu desejo, André reconstitui o processo de homogeneização do qual tenta se afastar. (PAVLOSKI, 2017, p.197-198)
André, como afirma a citação acima, não consegue escapar do sistema desenvolvido
dentro do ambiente familiar. A homogeneização criada pelo pai, ou seja, a maneira de
transformação do modo de ser-com em ser-para, como anulador da individualidade do ser de
cada ente, ainda está presente no seu modo de ser-com a família.
Semelhantemente, este é um dos assombros de Kafka. De que o seu ser, seja privado
das potencialidades de poder-ser. Ele parece temer que o seu Dasein se coisifique nas mãos do
“homem gigante”, seu pai, mas, a nosso ver, não consegue escapar do controle de ocupação
estabelecido pelas experiências negativas com o progenitor.
59
Há um momento que esclarece o contato de Kafka com as expectativas do pai,
quando o menino/Kafka, não apresentando interesse pela loja, impulsionava o pai a proferir
outros discursos, a fim de enquadrar o menino da maneira como julgava necessária:
Tu procuraste então (para mim isso ainda hoje é comovente e vergonhoso) extrair da minha aversão à loja, à tua obra, aversão que te era muito dolorosa, um pouco de doçura. Afirmando que me faltava tino comercial, que eu tinha ideias mais elevadas na cabeça e coisas do tipo. (KAFKA, 2006, p. 376-377).
O impulso de tentar servir aos ideais do pai, de acordo com Kafka, o levou ao estudo
do direito e ao “desembarcar em definitivo na escrivaninha de funcionário público” (KAFKA,
2006, p.377). Embora reconhecesse os momentos em que o pai disse abertamente que era
livre, Kafka não consegue ver a si mesmo esta liberdade. Ele vê no pai, inclusive, a função da
sua escrita: “Minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que
não podia me queixar junto ao teu peito” (KAFKA, 2006, p.389).
Há um modo de ocupação recíproca entre pai e filho. Kafka espera do pai um abraço
caloroso e confortável para poder expurgar de si os assombros da sua relação. E por esperar
demais do pai, Kafka sente-se culpado. O pai, de seu lado, o trata com frieza e distância,
vendo nisso a maneira correta de educar um homem forte para suas escolhas futuras, embora
acabe limitando com a sua presença as possibilidades das escolhas de Kafka.
Em suma, ambos padecem do pertencimento de ser pai e filho ou filho e pai: “o
sentimento de culpa exclusivo da criança em parte foi substituído pela compreensão do nosso
desamparo comum” (KAFKA, 2006, p.365).
Esta compreensão é uma das peças-chave para compreender a narrativa de
Daytripper. Brás se espelha no pai, mas na expectativa de superá-lo, muito embora caminhe
por vias parecidas.
A vida de Brás parece não fugir de uma condição comum com o pai e a figura do pai
como grande escritor o assombra até o fim; mais especificamente, até o momento em que eles
se conectam pela escrita de uma carta, conforme veremos no terceiro capítulo.
De qualquer forma, a preocupação-com, sobretudo na relação entre pai e filho, se
prova como consituição-do-ser própria do Dasein, seja em associação à ocupação das coisas
que fazem parte da sua lida diária ou à definição Dasein ele mesmo.
60
4 Heidegger e a questão do ser
A morte é tema presente tanto nos discursos da filosofia quanto nos da literatura. A
“indesejável das gentes”, apelido dado por Manuel Bandeira, sempre foi tratada como objeto
de assombro e de revelação, proporcionando questões para o pensamento dos teórico e dos
poetas.
Sua condição nebulosa não apenas garantiu espaço na retórica de protagonistas
clássicos como também intensificou a relação intrínseca entre obra e autor, como vemos em
Kafka: “O que escrevi de melhor fundamenta-se nessa aptidão para poder morrer contente”
(KAFKA apud BLANCHOT, 2011, p.94); ou, ainda, em André Gide: “As razões que me
impelem a escrever são múltiplas, e as mais importantes são, segundo me parece, as mais
secretas. Talvez seja esta, sobretudo: colocar algo ao abrigo da morte” (GIDE apud
BLANCHOT, 2011, p.97).
O lançar-se para a morte pela obra, sugerido pelos autores citados, aponta para a
possibilidade de se reconhecer finito, reconhecer-se existente. Da mesma forma, a qualidade
ocasional de motivação da escrita pela morte se dá de modo também desafiador para a
filosofia, já suscitado por Schopenhauer: “A morte é o verdadeiro gênio inspirador ou o
Muságeta da filosofia, razão pela qual Sócrates também a definiu como thanatou meléte
[preparação para a morte]. De fato, sem a morte, seria até difícil filosofar”
(SCHOPENHAUER, 2013, p. 3).
Apesar da retomada constante do tema da morte na filosofia, remontada
historicamente por visões que contemplam desde a proposta hedonista de Epicuro até o
enfrentamento libertador de Montaigne, o conceito de ser-para-a-morte (Sein-zum-Tode), de
Martin Heidegger, abriu um campo bastante profícuo para um estudo mais preciso e
metodológico do que a morte significaria para uma compreensão abrangente também sobre o
ser.
No entanto, seu percurso para chegar à relevância da morte na vida do homem
encontra diversos outros elementos tão significativos quanto a morte. Encontrar a definição do
próprio ser, do mundo e de tudo aquilo que lhe vem ao encontro, pertence à mesma esfera de
preocupação do homem de encontrar seu sentido, seu ser e sua morte.
A preocupação sobre o ser em Heidegger garantiu um pensamento preciso, e um
método notável, na sua reflexão ontológica sobre o homem e a sua existência. Resta-nos
61
compreender qual o percurso que o filósofo alemão empreendeu nos extremos entre o ser e a
morte.
Ainda que a preocupação-com represente um dos modos de ser do Dasein, há um risco
peculiar levantado por Heidegger. Em todas as formas de relação com os outros entes, o
Dasein não deve se confundir ontologicamente com o outro ou com as coisas, isto é, nas
formas de ser-com ou ser-junto-a.
No entanto, ao longo da sua experiência cotidiana, o ente do homem é levado a
subtrair de si o próprio ser. Na resolução cotidiana com os outros, o nós lhe toma a
prerrogativa de se interrogar sobre si e de assumir a pessoalidade do próprio Dasein.
A-gente está por toda parte, de tal maneira, no entanto, que já escapuliu sempre, de onde urge que o Dasein tome uma decisão. Mas, por que antecipa todo julgar e todo decidir, a-gente retira cada vez a responsabilidade de cada Dasein. A-gente pode como que se prestar a que constantemente se apele para ela. [...] Pode se incumbir de tudo com a maior facilidade, porque não há quem tenha de responder por algo. (HEIDEGGER, 2012, P. 367).
O alerta para a impessoalidade das relações como ser-no-mundo é bem evidente. É
preciso assumir o próprio ser para que não se responda à incumbência como a-gente, logo,
como ninguém, uma vez que não se assuma no ser de alguém como resposta.
Esta ditadura do impessoal é ponto de extrema relevância na teoria fenomenológica
de Heidegger. Para o autor, a publicidade do mundo condiciona (ou se dá pela) a interação do
Dasein próprio com o outro, i.e., através do mundo circundante do outro. Esta ocupação da
existência do outro causa, com os riscos da inautenticidade, a dissolução da surpresa
reveladora do próprio Dasein.
O ente já não se pergunta sobre si mesmo e o cotidiano, que envolve o Dasein e o faz
ir de encontro com as coisas e os outros, ou seja, é engolido pelo Nós. Assim, percebemos o
mundo e o nomeamos pelo impessoal. A-gente se torna legislador da cotidianidade e do
Dasein.
Com seus modos-de-ser, a-gente controla toda a interpretação-do-mundo e do
Dasein, através do que Heidegger chama de “publicidade”. Distanciamento, mediania e
nivelamento cumprem a insensibilidade do Dasein com a autenticidade do encontrar-se na
elucidação do próprio ser.
A medianidade desmantela o distanciamento promovido pelo ser-com natural do
Dasein. Ela cria o controle que define o que se pode ou o que se deve, usar, vestir, falar; vigia
62
e inspeciona as exceções de modo a moderar as possibilidades do projeto-do-ser. Desta forma,
o Dasein resulta em seu estado de redução nivelada.
Logo, é possível, de acordo com Beaufret (1976), perceber aspectos fundamentais do
ser-no-mundo: Verstehen, isto é, elucidar-se em relação a sua possibilidade; Geworfehneit, ser
lançado simplesmente; e Verfallen, a queda.
Elucidar-se em relação a sua possiblilidade, nada mais significa que a natureza
própria do Dasein de reconhecer o projeto de construção do seu próprio ser. Por outro lado,
embora ainda pertencente à natureza mesma do existir humano, ser lançado é reconhecer a
facticidade de simplesmente estar assim no mundo.
O sentimento de se encontrar aí (Befindlichkeit) circunda o retraimento das
possibilidades do homem. Este se encontra aí não apenas como ser de possibilidade, mas
também como pura ultrapassagem tolhida, sem jamais conseguir completar o seu quadro de
projeto completo, nem encontrar a razão de sua existência. É constantemente atravessado pelo
projeto e pela condição do seu porvir.
É no aspecto Verfallen, i.e., que o modo de ser a-gente interfere na natureza do
homem e o lança para o inautêntico, de fuga para a questão sobre si mesmo. Distraído nos
afazeres do cotidiano, o homem tem a possibilidade do assombro de elucidar-se novamente.
É-lhe conferido o poder de cura, de voltar à surpresa do seu próprio ser.
Justamente neste jogo de poder-ser e facticidade que, para o homem, manifesta-se a
possibilidade de liberdade do próprio destino. Encontra-se no homem a possibilidade de ser
autêntico, i.e., de escapar da distração para a qual é impulsionado. Nele reside a angústia.
O fenômeno da angústia está posto na base como um estado-de-ânimo de encontrar-se que satisfaz a tais exigências de método. [...] A angústia, como possibilidade-de-ser do Dasein e o Dasein ele mesmo que nela se abre, fornece o solo fenomênico para a explícita apreensão da originária totalidade-de-ser do Dasein, cujo ser se desvenda como a preocupação. (HEIDEGGER, 2012, p. 511).
A angústia, para Heidegger, revela-se como parte fundamental da constituição
autêntica do Dasein. Apresenta-se, também, como elemento básico para o método analítico do
ser, uma vez que ele revela um complexo esquema de conexão com o medo e a sua função
ontológica de revelar a autenticidade.
Nem todo retroceder do Dasein para a-gente ou no mundo se dá por vias de fuga. O
retroceder quando fundado na possibilidade que o medo pode propiciar não tem o atributo de
63
fuga, mas, ao contrário, o “diante-de quê” do medo se mostra mais perto do interior-do-
mundo, como ameaça que faz o ente retroceder cada vez mais ao seu modo-de-ser primitivo:
o próprio Dasein.
Assim, “o diante-de-quê da angústia é o ser-no-mundo como tal” (HEIDEGGER,
2012, p.521). A angústia revela ao ente do homem o modo-de-ser do Dasein que o liberta das
distrações da impessoalidade proporcionada pelo cotidiano. Mas o que nos revela a angústia
ao nos libertar da praticidade utilizável das coisas que-vem-de encontro? Nada, diz-nos o
filósofo.
O diante-de-quê da angústia se caracteriza pelo ameaçador, que não está em parte
alguma, mas que molesta e restringe a respiração do ente – está aí e não está em parte alguma,
embora revele a abertura para o ser-em espacial. Este é o confronto do ente do homem, ao
descobrir que a sua existência está fundamentada apenas nela mesma e que toda a sua
experiência de vida estará perdida assim que tiver morrido.
Deste modo, a angústia é o mundo. Sem significado, a angústia representa não a
ausência, mas o interior-do-mundo, que se impõe como o próprio mundo, como seu próprio
porquê. “Na angústia, o utilizável do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-mundo
se afundam” (HEIDEGGER, 2012, P.525).
A angústia liberta o homem da distração causada pela ditadura do impessoal
instaurada no cotidiano. Como é defendido por Kierkegaard, a angústia purifica a alma, ou,
como atualiza Heidegger, nos desperta para quem realmente somos – ou para o verdadeiro
ser:
Mas a cotidianidade desse fugir mostra fenomenicamente, contudo, que a angústia, como encontrar-se fundamental, pertence à constituição essencial do Dasein no ser-no-mundo e, como existenciária, nunca é subsistente mas sempre em modus do Dasein factual, sendo portanto um encontrar-se. O ser-no-mundo familiar tranquilizado é um modus do estranhamento do Dasein e não o contrário. O não-ser-em-casa deve ser conceituado de modo ontológico-existenciário como o fenômeno mais originário. (HEIDEGGER, 20125, p.531).
A própria existência é angustiante e, por conseguinte, o homem não consegue
encontrar o descanso em nenhum outro ente. O sentido da angústia sempre aponta para o nada
e a humanidade não consegue garantir resposta mais precisa que esta mesma: nada, i.e., não
determinado, implicação direta sobre a questão de si mesmo do Dasein. Em suma, angústia
nos “corta a palavra” (HEIDEGGER apud WERLE, 2003, p. 27).-
64
Para o ente do homem, é preciso experimentar a angústia para que possa se libertar
para o próprio ser. A angústia o leva a retornar à experiência individual de posse do Dasein, o
que o levaria factualmente ao reconhecimento das suas próprias possibilidades do projeto de
ser. Estas possibilidades do Dasein, reveladas no encontro com a angústia, são dadas de
maneira como são e não deturpadas pelo ente-do-interior-do-mundo ou pela publicidade, nos
quais o ente comumente se agarra.
A revelação da autenticidade pela angústia abre campo para um último estágio antes
de tentar encontrar a totalidade do todo estrutural do Dasein, que está no cerne do ser como
preocupação. Resta-nos, primeiramente, compreender o todo da fórmula do ente como
Dasein:
Existencialidade ou projeto de si mesmo no sentido de sua possibilidade, facticidade ou consciência de achar-se simplesmente lançado aí, queda em si mesmo até a perda de si no anonimato do “impessoal” reversível porém em vida autêntica pela ascese da angústia, eis pois, o homem como ser-no-mundo. (BEAUFRET, 1976, p.25).
É na preocupação (Sorge) que Heidegger vai encontrar o dispositivo de união de
todos os itens da fórmula geral do ser. O homem é um ser completamente atarefado nas suas
práticas diárias. Sua relação com o mundo o desvia da contemplação e deságua diretamente na
preocupação.
Porém, este estado de preocupação, segundo o filósofo, sustenta uma questão
singular na proposição sobre o ser no mundo. Ele recria as possibilidades e as relações de
existencial idade, facticidade e queda.
Na prática cotidiana o homem liga-se à preocupação e procura reagrupar as suas
possibilidades, porém, na circunstância de impotência, por ser também impossibilidade de
projeto completo do ser. Logo, mais do que uma qualidade do Dasein a preocupação é uma
expressão da necessidade a priori da condição mesmo do ente do homem.
A preocupação, como totalidade estrutural-originária, reside existenciariamente a priori “antes”, isto é, já sempre em cada “comportamento” factual e “situação” do Dasein. Fenômeno, portanto, que de modo algum expressa uma precedência do comportamento “prático” em relação ao teórico. O determinar unicamente intuitivo de um subsistente tem um caráter de preocupação que não é menor do que o de uma “ação política” ou um divertido passatempo. “Teoria” e “prática” são possibilidades-do-ser de um ente cujo ser deve ser determinado como preocupação. (HEIDEGGER, 2012, p.541).
65
Heidegger cita uma fábula latina do século V que promove a visão de ascensão
ontológica da preocupação. Nela, Júpiter e a terra fundem o corpo e espírito para formar o
homem, mas é a preocupação que articula a argila que o forma:
‘Tu, Júpiter, porque deste o espírito, deves recebê-lo na sua morte; tu, Terra, porque o presenteaste com o corpo, deves receber o corpo. Mas, porque a ‘Preocupação’ foi quem primeiro o formou, que ela então o possua enquanto ele viver.’ (HERDER apud HEIDEGGER, 2012, p.553).
A narrativa ilustra a concepção de condição pré-ontológica da preocupação e mostra
o peso pelo qual o homem se prende a ela durante toda a sua vida. Mas mais do que isto, ela
compõe a visão de formação plena do homem através da preocupação e, somente nela, é que
se depositam seu Dasein como formas de ser-para, ser-em, ser-com-os outros.
É interessante notar que na narrativa, contrariando as vontades próprias de Júpiter e
Terra, a preocupação ganha a posse do homem em sua estada na terra por ordem de Saturno, o
deus do tempo. “A determinação pré-ontológica da essência do homem expressa na fábula
desde o início fixou assim o olhar no modo-de-ser que domina sua passagem temporal no
mundo. (HEIDEGGER, 2012, p.553).
A preocupação é evidenciada nos devaneios de Gjorg, em Abril despedaçado.
Enquanto viaja até a casa que guarda os códigos dos montanheses, a fim de cumprir o rito
prescrito pelo Kanun, o protagonista divaga em idealizações para se livrar da lei do código da
aldeia, embora reconheça que as normas que cerceiam os homens estão em todos os lugares:
“Então teria sido preciso que fosse padre, disse a si mesmo, para não ser atingido pelo Kanun.
Mas outros artigos do Código referiam-se também aos padres, só escapavam da recuperação
do sangue” (KADARÉ,1991, p.24).
A preocupação está inerente ao Código, mas também ao estado de vida em que se
encontra Gjorg. Enquanto caminha, sua constante reflexão o leva a crer que não importa o
caminho percorrido por cada ser, uma vez que o rito, o contínuo da vida que atinge os homens
estava ali, materializado pelo Kanun e presente em todo lugar. Esta é a conclusão da
personagem Bessian, escritor que passa pelas montanhas durante uma pesquisa para o seu
próximo livro: “A famosa fórmula de que os vivos são simplesmente mortos de licença nesta
vida encontra em nossas montanhas sua significação plena” (KADARÉ, 1991, p. 100).
66
Em suma, o homem, como ser-no-mundo é essencialmente preocupação, tendo como
alternativas a vida inexpressiva na inautenticidade ou a salvação do ser pela angústia lúcida
frente a facticidade e a morte.
A preocupação é o centro da relação de Gjorg com o tempo que lhe resta de vida,
mas também com aquilo que está ligado às suas atribuições como ser-no-mundo: “O que faria
ele nos trinta dias que lhe restavam? Geralmente, durante a grande trégua, os homens
apressavam-se em cumprir o que não haviam podido realizar até então em sua vida”
(KADARÉ, 1991, p. 17).
O tempo que lhe resta evoca o modo de preocupação inerente aos entes dos homens.
Embora seu tempo seja pré-determinado, sua condição é semelhante à de qualquer outro ente,
i.e., ele tem de lidar com a preocupação que é inerente ao ser.
Em que se baseia, então, a preocupação? De que forma mostra-se possível o conceito
de preocupação e de fundamentação do Dasein sob a prova de uma analítica rígida? É no
tempo ou na temporalidade (zeitlichkeit) que a resposta se ancora.
A preocupação temporaliza-se nas possibilidades da existência. Sem estar dentro do
tempo, como uma semente dentro de um fruto, mas sendo essencialmente temporal, a
preocupação caracteriza no tempo as formas de ser do Dasein. Assim, os modos de ser do ente
do homem são correspondentes aos modos de ser temporais.
Se a temporalidade constitui o originário sentido-do-ser do Dasein, ente para o qual no seu ser está em jogo esse ser ele mesmo, então a preocupação deve empregar “tempo” e, por conseguinte, contar com “o tempo”. A temporalidade do Dasein desenvolve a “contagem do tempo”. O “tempo” nela experimentado é o aspecto fenomênico imediato da temporalidade. Dele nasce o entendimento-do-tempo-cotidiano-vulgar. (HEIDEGGER, 2012, p.649).
O tempo, nas suas três categorias tradicionais de passado, presente e futuro, é o
próprio homem na sua trajetória de elucidação de si mesmo. Na teoria de Heidegger, o tempo
foge a ideia de exterioridade e funde-se à existência elementar individual do Dasein e da
angústia de se encontrar autêntico.
Há uma nova maneira de encarar a temporalidade com Heidegger. Aqui, os
momentos do tempo agem como unidade, mas apartando-se uns dos outros na fórmula da
preocupação do Dasein. Este lastro criado na eclosão das relações entre cada período se
exterioriza na experiência de vida, mas nunca perde a liga que os reúne, esta que se dá através
67
do seu próprio Dasein. O tempo é, ao mesmo tempo, liberdade e pressuposição da queda no
encontro presente (Gegenwart).
Mas há uma distinção nas formas de valorização, de acordo com Heidegger, das
“ekstases” do tempo. O futuro, essencialmente temporalização, marca o sentido e o rumo do
projeto do ser. “Negligenciar o futuro é decapitar o tempo” (BEAUFRET, 1976, p.28). O
passado e o presente apostam seu sentido no porvir para o ser acabado e ultrapassado pelo
projeto.
Heidegger intensifica esta visão do ser na construção histórica do homem. A história,
encarada como revelação do passado, só adquire sentido na projeção de um ser do porvir.
Como ekstase privilegiada, o porvir possibilita que a temporalidade originária, o
fundamento das três ekstases, temporalize-se no vigor do passado e se lança para o porvir,
despertando a atualidade do presente nesta projeção. Esta visão transforma a comum
conceituação de temporalidade como sucessão de ekstases.
O Dasein, como porvir também é definido pelo vigor de ter sido, de já estar lançado
no mundo. No entanto, estes dois modos de temporalização cumprem um único papel: de
fornecer a cura para a autenticidade do Dasein, visto que o passado irrompe pelo porvir, que
como facticidade última fornece a morte.
Exemplo cognoscível está no emprego do tempo na preocupação de Gjorg durante a
metade dos meses de março e abril. Ao lidar com a expectativa da sua morte próxima, ele
temporaliza seus modos de ser tanto do passado, quanto no olhar para si mesmo no presente
enquanto projeta o futuro:
Trinta dias, disse consigo. Aquele tiro dado ali do talude da estrada principal cortara bruscamente sua vida em dois: de um lado, os vinte e seis anos que vivera até então; do outro, os trinta dias que começavam naquele dia, dezessete de março, e que terminariam em dezessete de abril. Depois viria a vida de morcego, que já não calculava mais. (KADARÉ, 1991, p. 16).
Desta forma, a finitude do ser garante a autenticidade na temporalização do seu
porvir e seu ter-sido. É na tentativa de escapar a esta condição de finitude ou de angústia da
temporalidade originária que se lhe impõe o que Heidegger chama tempo vulgar.
Na criação e contagem do tempo, somado e calculado nos relógios, o homem
temporalizou a temporalidade de maneira a objetivar a contagem das ekstases, transformando
a temporalização em algo palpável. Entretanto, o tempo “é” anterior a toda objetividade e
subjetividade porque é fundamentalmente a possibilidade do próprio ser.
68
Assim, no sentido de tempo vulgar, quando o homem conta o tempo, ele conta a si
mesmo.
Se o tempo se publiciza com a abertura do mundo e se, com o descobrimento com o ente do interior-do-mundo – descoberta inerente à abertura de mundo - , o tempo já se torna objeto de ocupação – na medida em que o Dasein contando consigo mesmo se conta o tempo -, então o comportamento em que “a gente” se dirige expressamente pelo tempo reside no emprego-de-relógio. (HEIDEGGER, 2012, p.1135).
O que se conta na contagem do tempo são os agoras. Desta visão de soma dos agoras
emana uma noção de tempo infinito, parecida com a imagem já proporcionada por Platão. O
risco desta visão, de acordo com Heidegger, está em garantir uma equivocada fuga da
temporalidade, uma vez que o homem se prende no agora, no momento em que olha para o
relógio e se vê presente nele, perdendo-se na fuga do próprio fim do ser-no-mundo. Em suma,
o homem esquece-se de reconhecer o porvir do tempo.
Nesse sentido, a gente nunca morre, porque sempre ainda há tempo. A morte como
experiência individual se perde, pois o tempo vulgar, que é de todos, não pode ser de ninguém
em específico. Não pode ser meu como é o ser ou a experiência finita do ser.
Gjorg elucida este confronto temporal quando percebe o seu próprio ser com relação
ao tempo e a sua forma vulgar:
Mais um pouco e sua bessa expiraria, ele sairia do tempo do Kanun. Sair do tempo, repetiu consigo mesmo. Pareceu-lhe estranho que alguém pudesse sair de seu tempo. Mais um pouco, repetiu para si mesmo levantando a cabeça para o céu. (KADARÉ, 1991, p.182).
O protagonista parece discorrer sobre a distinção entre as formas temporais. O tempo
do Kanun se refere a este tempo vulgar, em que a soma dos “agoras” resulta na experiência
ôntica e o modo de relação dos entes. Ele, no entanto, reflete, como um convite antológico, a
pensar o seu lugar na forma de se relacionar com a temporalidade.
Vale ressalta que, para Heidegger, a importância de se calcular o tempo é
fundamental, muito embora este não contemple a temporalidade do Dasein nem a sua
temporalização. Segundo ele, seria difícil ou mesmo impossível viver sem se adentrar a
computação do tempo.
O esforço do filósofo alemão foi identificar no tempo, ou na temporalidade, a
ontologia e existencialidade da totalidade originária do Dasein atendo-se as formas de
autenticidade ou não da sua “salvação”. Embora não tenha alcançado seu objetivo de ver o
tempo como árbitro da compreensão e explicação de descobrir qual o caminho que leva o ser
69
ao tempo ou se o tempo revela-se horizonte do próprio ser, Heidegger conseguiu introduzir
questões que favoreceram a reflexão sobre o ser e o tempo. E trouxe à luz o elemento último
da sua facticidade e porvir: a morte.
4.1 O SER PARA MORTE
A estrutura do Dasein se revela como ser que coloca a si mesmo constantemente em
questão, preocupação por vias da angústia, como modo de encontrar a autenticidade perdida
na ditadura do impessoal causada pelo cotidiano do a-gente.
No entanto, o que esta estrutura apresentou, através da preocupação e o estado do
porvir é que o Dasein é inacabamento e o seu lançar-se para o porvir o define, inclusive, como
modo de temporalização do presente. De que forma o ser se encontra no lançar-se para o
porvir, possivelmente, acabado? É na morte que vamos encontrar a disposição ambígua de
acabamento do ser.
O ente do homem não pode se encontrar completamente realizado, isto é, acabado. É
impossível, como existente, colocar-se sobre a experiência na sua completude, a não ser, é
claro, através da observação da morte dos outros. No entanto, esta nunca pode lhe ser genuína,
uma vez que mesmo que experimentada como fenômeno visto, não é a sua própria morte ou a
morte do Dasein próprio. Ainda que possamos apelar para a preocupação do modo de ser-
com-os-outros, a morte é a experiência de finitude isolada. Morre-se sozinho.
O morrer deve assumi-lo todo Dasein cada vez por si mesmo. A morte, na medida em que “é”, é essencialmente cada vez a minha. E ela significa sem dúvida uma peculiar possibilidade-de-ser, na qual está pura e simplesmente em jogo o ser que é cada vez próprio do Dasein. No morrer se mostra que a morte é ontologicamente constituída pelo ser-cada-vez-minha e pela experiência. (HEIDEGGER, 2012, p.663).
É interessante notar que mesmo a morte sendo uma experiência individual, a morte
dos outros em muito significa e revela algo fundamental do Dasein. O falecido, para
Heidegger, deixa de ser-no-mundo como Dasein próprio, mas ainda permanece como ser-com
dos outros entes vivos.
Este modo do ser é salientado na relação que a protagonista de Desumanização, de
Valter Hugo Mãe, tem com a irmã morta. Halla e o pai promovem pela falecida um exercício
constante de retomada do ser da irmã morta através da atualização do seu modo de ser-com:
Pensei que ele escavaria tudo de novo com as próprias mãos e andaria montanha acima até ao fosso medonho, carregando o corpo desligado da minha irmã. Éramos
70
gêmeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte. (MÃE, 2014, p. 9).
O pai deseja realizar o funeral como gostaria e lançar o corpo da menina sobre um
grande penhasco. Mesmo o corpo dela não mais recebendo sua existência, o pai ainda se
relaciona com o Dasein da filha através do seu modo de ser-com ela. O mesmo acontece com
Halla. O seu modo de ser-no-mundo está intimamente ligado ao ser da irmã, de modo que a
experiência advinda do mundo lhe parece ser reduzida radicalmente com o fim do ser da irmã
gêmea.
O que este pensamento intensifica, indiretamente, é a qualidade de ser-com-os-outros
do Dasein, isto é, de qualidade existencial do cotidiano. De forma mais intensa ainda, implica
a dedução de que os mortos estão ativamente conosco, como partes plenas do nosso ser, uma
vez que o nosso Dasein, enquanto ainda ser-no-mundo, ainda é ser-com-os-outros. Para o
Dasein, a recordação das ideais artísticos e políticos do ente já morto, a retomada do Dasein
deste outro não-mais, são elementos próprios do cuidado e preocupação do Dasein na relação
de ser-com.
No entanto, ainda que se enfatize a condição própria do Dasein de ser-com-os-outros e
o ente já morto seja retomado nesta relação de forma preocupada, isto em nada significa que a
podemos tomar como minha genuína experiência. É impossível tomar para si a morte do
outro.
Halla descobre na morte da irmã alguns paralelos com sua existência. Ela passa a
perceber o seu futuro encontro com a morte e a sua inevitável solidão diante da percepção da
própria existência: “O meu pai, que era um nervoso sonhador, abraçou-me brevemente e
sorriu. Um sorriso silencioso, o modo de revelar ser tão imprestável quanto eu para o exagero
da morte. Comecei a sentir-me violentamente só” (MÃE, 2014, p.11). Ao perceber a solidão e
a sua consequente relação com a morte, Halla descobre a solidão de transcendência para o
próprio ser e a sua disposição finita.
Mas de que modo poderíamos apreender o fenômeno da morte? Heidegger define a
morte como o “não ainda”, de modo que o Dasein “ainda não” o definirá por toda a sua
existência. Isto difere radicalmente da ideia de incompletude de coisas que, quando somados a
elementos da sua formação poderão encontrar a sua forma de término natural. As coisas são
incompletas ou não dependendo da luz que lançamos sobre o objeto. Um desenho preto e
branco pode estar concluído, mas ser “incompleto” de acordo com a nossa visão de
71
“incompletamente” colorido. O inacabamento do ser, ao contrário, é constitutivo do próprio
ser enquanto este viver.
O “não ser ainda” é modo essencial para o Dasein, uma vez que foge perpetuamente
para as suas possibilidades, buscando alcançar este algo que, por ser constituinte do seu
próprio ser, é inalcançável. “O Dasein é, por essência, o ser que jamais poderá alcançar-se”
(JOLIVET, 1961, p. 127).
“Sem jamais alcançar-se” significa, inclusive, jamais tornar-se completo, como um
ovo em último estágio que se torna completo ou perfeito na maturação do animal que sai deste
ovo. A perfeição escapa do Dasein juntamente com as possibilidades cessadas através da
morte. A solidão e a imperfeição são marcas do ser-para-a-morte.
O encerramento das possibilidades não implica, necessariamente, a cessação do
Dasein. Uma vez que “não ainda” lhe é constitutivo, o Dasein é, desde o seu início, a morte,
ou o seu fim (sein-zum-ende). A morte não lhe é, por conseguinte, um interromper por
acidente exterior; esta o marca e o afeta enquanto existir.
Isto não significa que a morte seja um ter-chegado-ao-final do Dasein, mas um ser-
para-o-final deste ente. “O humano logo que nasce já é bastante velho para morrer”
(HEIDEGGER, 2012, p.677).
Chegar ao final demanda uma apreensão da antologia do próprio ser. Somente
enquanto se compreende a finitude existencial do Dasein é que se pode reconhecer a própria
condição de ainda-não ou daquilo que se situe antes do fim. Assombro semelhante repercute
na narração de Halla: “Acordei e pensei que não fazia sentido que a morte doesse” (MAE,
2014, p. 17).
Enquanto a morte o afeta e marca, resta ao homem defini-la como possibilidade
adotada ou negligenciada pelo Dasein. Não é surpresa reconhecer que o ente do homem,
muitas vezes no seu abandono do próprio questionar do Dasein, esquiva-se da angústia
própria da morte. Alguns a negligenciam parcialmente, adotando-a como verdade estatística e
experimental. Outros a negligenciam totalmente, agindo como se a possibilidade da morte
fosse apenas na esfera da possibilidade comum aos homens, como se morressem apenas a-
gente e nunca o Dasein próprio. A morte, para estes, é desagradável e incomoda quando
inserida no agir cotidiano.
Para Heidegger, esta angústia não poderá o deprimir se o indivíduo se colocar em
presença da morte, encarando-a como a possibilidade pessoal. Sendo a condição de
72
acabamento do inacabado Dasein, a morte representa, para o ente do homem, a possível
impossibilidade da existência. Mais do que um fato incontestável, a morte é uma carência
metafísica do homem, um traço ontológico para o seu próprio ser.
A esta carência o romance Aparição (1962), de Vergílio Ferreira, parece se dirigir.
Nele, a personagem Alberto, que enfrenta a morte recente do pai, confronta a si mesmo em
uma constante retomada de quem é e do que a morte significa para ele:
Mais real do que o nascer era o morrer. Porque quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é o universo, é a pura necessidade de ser. Um homem só é perfeito, só se realiza até aos seus limites, depois de a morte o não poder surpreender. (FERREIRA, 1962, p. 65).
A percepção apresentada pelo protagonista durante a narrativa dialoga veementemente
com a teoria de Heidegger. O ser se completa e encontra o seu modo de plenitude através da
experiência projetada da morte.
"O homem só existe para morrer” (JOLIVET, 1961, p.129), e é preciso que este
reconheça este traço fundamental para que possa aceitar a condição da angústia e chegar a
plenitude da sua autenticidade na sua solidão, frente ao desdobramento do cotidiano e o trato
do a-gente. A individualização é clara e observável na aceitação da angústia da morte e do
nada.
No entanto, a publicidade, apontada por Heidegger, na situação de articulação do
falatório cotidiano, distrai o homem da angústia e da sua fundamentação na preocupação:
O “morrer” nivela numa ocorrência que afeta sem dúvida o Dasein, mas não pertence propriamente a ninguém. Se a ambiguidade é cada vez própria do falatório, então o é também nesse discurso sobre a morte. O morrer que é por essência, de modo indelegável, meu torna-se um acontecimento que sobrevém publicamente vindo-de-encontro à-gente. [...] A-gente justifica e eleva a tentação de se encobrir o ser para a morte mais próprio. (HEIDEGGER, 2012, p.699).
A-gente se ocupa constantemente em tranquilizar o ente a respeito da morte, de modo
a confundir aquele que consola o moribundo sobre quem é de fato que está sendo consolado.
Aquele que consola, ao desejar ao moribundo “mais vida” apenas foge de reconhecer que a
morte também já lhe é presente, como essência mesma do próprio Dasein.
Esta anestesia proporcionada pela tranquilização da morte gera uma alienação de
indiferença sobre a morte e a sua angústia. O “pensar na morte” é tido, no falatório cotidiano,
como, insegurança e fuga-do-mundo. Para o filósofo, a-gente se dedica a aplicar a angústia
em medo e transformar aquilo que é autêntico para o Dasein em visão de pusilanimidade.
73
Mas é preciso lhe recobrar o direito a angústia. Esta nos é a revelação, proporcionando
significação às possiblidades e à totalidade do ser, abrangendo radicalmente o nosso poder-ser
na possibilidade essencial da morte. Mas que possibilidade define a morte?
Na diretriz dos objetos intramundanos, ao adotar uma possibilidade, criam-se novas
possibilidades, ao mesmo tempo em que se negligenciam outras. Em toda realização subistem
as possibilidades. Na morte, ao contrário, não se realiza nada. Mas como possibilidade, ela se
limita a ser a possibilidade do fim das realizações. A aceitação da morte, sendo ela
possibilidade, é a espera, uma vez que nela se cumpre a impossibilidade de outras
possibilidades. Desta forma, a morte é a possibilidade paradoxal e infindável do ser-para-a-
morte.
Gradativamente, a aceitação da morte implica na ampliação da condicionalidade da
existência nossa ou de qualquer outra, uma vez que já não se aceita qualquer limite imposto
de fora. O Dasein autoriza na morte a suprema e mais pessoal possibilidade: torna-se livre ao
reconhecer, na morte, o nada do seu ser. O ente se torna livre para as próprias possibilidades e
para a aceitação da sua liberdade própria e dos outros, na compreensão da existência e nas
escolhas das possibilidades. Se o outro escolhe compreender a existência de maneira diferente
à sua, o Dasein livre consegue reconhecer a liberdade do outro porque pôde reconhecer a sua
própria.
A caracterização do ser para a morte existenciariamente projetado e próprio pode ser resumida da seguinte forma: o adiantar-se desvenda para o Dasein sua perda em a-gente mesma e leva-o ante a possiblidade de ser si mesmo, sem o apoio primário da ocupada preocupação-com-o-outro e de o ser numa liberdade apaixonada, livre das ilusões de a-gente, liberdade factual, certa de si mesma e que se angustia: liberdade para a morte. (HEIDEGGER, 2012, p.731).
A liberdade para a morte implica na recisão com o eles ou a-gente, que confundem a
angústia em medo. Ela torna o ente pronto para reconhecer o sentido do Dasein na
temporalidade, e a torna completa na verdade última que o Dasein é ser-para-a-morte.
A busca da liberdade do ser-para-a-morte pode ser percebida no esforço que Alberto
faz de situar sua escrita no encontro para a morte em Aparição. “Escrevo para ser, escrevo
para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu” (FERREIRA, 1962, p. 193-
194). Alberto parece encontrar na escrita o espaço para descrever a transcendência do seu ser
e o seu projeto no caminho para a morte. Todo o romance caminha neste assombro do salto
ontológico.
74
Outros escritores enxergaram na escrita um processo de aproximação com a sua
possibilidade final. Kafka descreve que gostaria de ter dito ao amigo que a morte não lhe
causava temor:
Voltando a casa, disse a Max que no meu leito de morte, na condição de que os sofrimentos não sejam insuportáveis, eu estaria muito contente. Esqueci-me de acrescentar, e mais tarde omiti-o deliberadamente, que o que escrevi de melhor fundamenta-se nessa aptidão para poder morrer contente. (KAFKA apud BLANCHOT, 2011, p.93).
Kafka subverte a sua relação com o texto. Ele alega que as passagens de morte e de
pesar comovem os leitores, mas agem com ele por vias de uma aceitação alegre da morte. Ele
a aceita e parece fundamentar a força significativa de vários dos seus textos, rumo a morte.
É justamente na escrita que Kafka pode encontrar este espaço da possibilidade final.
A morte, como vemos em Heidegger, é a possibilidade última, de modo que não pode ser
experiência genuína através da temporalização. Ela existe no âmbito das conjecturas do
porvir. Mas na escrita, ele encontra o silêncio ideal para se isolar das vozes anestesiantes do a-
gente e assumir a própria morte e, consequentemente, o próprio ser:
Se não me salvo num trabalho, estou perdido. Será que o sei tão distintamente quanto isso é? Não evito mostrar-me diante dos seres porque queira viver sossegadamente mas porque quero perecer sossegadamente. (KAFKA apud BLACHOT, 2011, p.96).
A morte se torna, para Kafka, uma exigência ontológica. Ele precisa encará-la de
frente e que seja na solidão da experiência literária. André Gide, escritor francês, também
associa a morte ao exercício da escrita: “As razões que me impelem a escrever são múltiplas,
e as mais importantes são, segundo me parece, as mais secretas. Talvez seja esta, sobretudo:
colocar algo ao abrigo da morte” (GIDE apud BLACHOT, 2011, p. 97).
Em seu estudo O espaço literário (2011), Maurice Blanchot percebe a importância da
morte neste movimento de elucidar-se sobre si mesmo. Apesar de sua teoria desenvolver uma
reflexão distinta daquela proposta por Heidegger, sua percepção sobre o homem e a morte
corrobora para um fundamento de que o homem deve encarar a si mesmo e a finitude
presente: “Depois que se concentra inteiramente em si mesmo na certeza da sua condição
mortal, é quando a preocupação do homem passa a ser a de tornar a morte possível”
(BLANCHOT, 2011, p.100).
Tornar a morte possível se inviabiliza através da literatura ou, mais precisamente, da
escrita. Para Blanchot, este condicionamento da morte pela criação promove um estado outro
75
de ser o ente na busca do ontológico. Para ele, o espaço literário se configura como esta tarefa
humana de assumir a morte e cria-la:
O homem morre, isso não é nada, mas o home é a partir de sua morte, liga-se fortemente à sua morte, por um vínculo de que ele é juiz, ele faz sua morte, faz-se mortal e, por conseguinte, confere-se o poder de fazer e dá ao que faz seu sentido e sua verdade. (BLACHOT, 2011, p. 100).
Diferentemente de Heidegger, Blanchot encara o lançar-se para a morte como uma
apropriação da morte e não apenas como uma aceitação, embora reconheça que o filósofo
alemão tenda a tornar a morte uma experiência possível.
Rainer Maria Rilke também mostra indícios de uma escrita que se lança para a criação
da própria morte e da finitude do seu Dasein. O poeta tcheco também buscava a morte por
vários caminhos, preocupando-se com a dimensão e com suas marcas na vida:
Ó Senhor, dai a cada um sua própria morte, O morrer que seja verdadeiramente fruto desta vida, Onde ele encontrou amor, sentido e aflição. (RILKE apud BLACHOT, 2011, p. 128).
Ao solicitar que a morte seja dada a cada um, Rilke reconhece a impossibilidade da
morte ser compartilhada e, ainda sim, o caráter de completude inerente a ela. De acordo com o
poema, a morte que é fruto da vida é aquela oriunda das experiências possíveis da vida, i.e.,
daquela que se vincula as projeções do ser e ao seu modo de ser-com, no amor e na aflição.
Rilke, de acordo com Blanchot, vê na poesia o espaço possível de sua libertação e
encontro com a morte. Anulando a si mesmo e tocando levemente o espaço de eco da
linguagem no poema, o poeta consegue associar-se a morte como passagem fora de si:
O espaço onde tudo retorna ao ser profundo, onde existe passagem infinita entre os dois domínios, onde tudo morre, mas onde a morte é a sábia companheira da vida, onde o pavor é êxtase, onde a celebração se lamenta e a lamentação glorifica [...]. (BLANCHOT, 2011, p.152).
O domínio da morte é ofertado pela escrita de Blanchot, Rilke e do protagonista de
Aparição. Este lançar-se para a morte pela palavra dialoga substancialmente com o conceito
de ser-para-a-morte de Heidegger. Para o filósofo, a morte não é apenas inevitável, ela deve
ser encarada como o alvo para onde se lança o projeto de ser e, caso o ser escape deste modo
do ser no mundo, corre o risco de perder a autenticidade de sua vida.
Evidentemente, não se encerram aqui as contribuições de Heidegger para a
compreensão do ser e a sua elucidação sobre o ente e a morte. Muitos outros aspectos, tão
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relevantes quanto os aqui apresentados, foram elencados e refletidos no corpo de Ser e
Tempo. No entanto, o espaço dedicado a se pensar o ser como unidade ôntica-ontológica nas
suas relações com os objetos, com os outros entes, com a temporalidade e com a morte,
limitou-se a compreender a forma que estes comportamentos de ser o define e o constitui
como modo de ser-no-mundo. Resta agora empreender a sua conexão conceitual com a
argumentação experimentada nos muitos fenômenos da vida de Brás em Daytripper.
5 BRÁS E O SER
Daytripper é uma graphic novel lançada em 2010, pelo selo editorial norte americano
Vertigo. A obra foi escrita e desenhada pelos gêmeos paulistas Fabio Moon & Gabriel Bá,
além de contar com a participação do premiado colorista Dave Stewart.
A história foi publicada, originalmente, em dez fascículos, no formato de revista
padrão americana. Apesar de serem reproduzidas separadamente, elas formam uma única
narrativa, mesclando os momentos da vida de um único personagem.
A obra foi relançada no formato de graphic novel, contendo todos os capítulos, no ano
seguinte, inclusive com tradução para vários idiomas, dentre eles, para o português brasileiro,
lançado no Brasil pela Panini Books.
Apesar de o seu primeiro lançamento ser multifacetado, a obra fora composta de uma
maneira que funcionasse tanto no todo, como individualmente em cada capítulo. Nisso reside,
inclusive, parte da sua originalidade. A artrologia da obra é desenvolvida de uma maneira
bastante específica. Brás, o protagonista da obra, morre em quase todos os capítulos, mesmo
estando vivo e em outro momento da vida no capítulo seguinte.
Marcel Luiz Tomé, em sua dissertação As inovações estéticas e narrativas nos
quadrinhos autorais de fábio moon e gabriel bá: Um estudo de Daytripper, discorre sobre a
originalidade do texto. Para ele, a graphic novel apresenta diversas inovações tanto no plano
expressivo quanto no plano de conteúdo, inclusive alterando formas clássicas da linguagem
das histórias em quadrinhos. Para ele:
Daytripper traz uma série de inovações narrativas e estéticas, mas inova principalmente no conteúdo da história criada. Narrada em dez capítulos de forma não linear, cada um deles aborda um dos anseios vividos pelo personagem em uma fase de sua vida. (TOMÉ, 2013, p.90).
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Tomé percebe também o uso, em Daytripper, de diversos elementos característicos
dos quadrinhos, mas com caráter diferenciado. Os enquadramentos vazados, o uso de um foco
narrativo onisciente e que dialoga constantemente com as figuras são elementos que
enfatizam a peculiaridade narrativa em Daytripper.
Tomé, no entanto, não se aprofunda nos elementos narrativos que distinguem a
utilização do verbal dentro da narrativa. Podemos notar esta originalidade, por exemplo, com
o uso dos obituários. Cada capítulo termina com um obituário ao fim. A profissão de Brás é
escrever obituários, o que condiciona o leitor a estabelecer conexões entre a diegese da obra e
a sua construção episódica. Nesse sentido, a artrologia geral de Daytripper caminha para uma
intensa relação entre forma e conteúdo.
Podemos enfatizar também o detalhado uso das cores por Dave Stewart. A variação
de tons e atmosferas para cada cena faz com que a coloração da obra narre, em diversos
momentos, aspectos não ditos pelo desenho e pelo texto verbal. Tomé, inclusive, considera
Stewart como autor, juntamente com os gêmeos: “Dave Stewart pode ser considerado um dos
autores dessa novela gráfica ao conseguir transmitir emoções mesclando cores planas e cores
mais expressivas.” (TOMÉ, 2013, p.87). De acordo com o pesquisador, as inovações da obra
também são mérito do colorista:
As inovações de Dave Stewart nesta publicação estão presentes nas poucas páginas em que pôde utilizar coloração mais expressiva e nas constantes aplicações de foco por meio da utilização de cores quentes contrapostas às frias e neutras. (TOMÉ, 2013, p.97).
Além das novidades do plano expressivo, Daytripper intensifica o uso de temas
complexos. Cada capítulo apresenta Brás em uma fase da vida. Os títulos dos capítulos são
dados de acordo com a idade de Brás naquele momento, o que nos fornece, segundo Tomé,
uma base temporal para reconhecermos o encadeamento dos fatos.
Ainda em relação ao nível temático, Marcel Luiz Tomé expõe o diálogo da obra com
a cultura popular e erudita brasileira. Segundo ele
Apesar de Daytripper ter sido lançada originalmente nos Estados Unidos, foi feita por brasileiros com personagens e cenários brasileiros. Esses aspectos revelam um espaço para o desenvolvimento de uma cultura híbrida que engloba não apenas a cultura, mas também a língua (TOMÉ, 2013, p.93).
Além de aspectos da experiência de vida no contexto sociocultural brasileiro, não
podemos deixar de notar a relação da obra com um dos mais relevantes livros da produção
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literária nacional: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1988), de Machado de Assis. O
protagonista de Daytripper carrega o mesmo nome do protagonista do romance e seus dilemas
não são muito diferentes daqueles enfrentados pelo protagonista machadiano, isto é, o sentido
da vida e a procura de marcar a sua passagem em vida.
Esta força discursiva relacionada à cultura brasileira é marcada na história através dos
elementos referenciados, como a tradição baiana com as oferendas a Iemanjá, o carnaval
carioca na televisão, os cenários tropicais brasileiros, além de monumentos e espaços culturais
paulistas.
No entanto, não apenas sobre o Brasil fala a obra. Seus temas transcendem a
experiência local para proposições universais. A obra, inclusive, já foi escolhida para o
programa Life of the Mind Book, durante o ano de 2014, da Universidade do Tennessee. O
programa consiste na escolha de uma obra literária que será lida por todos os alunos que
entraram na universidade durante o ano letivo. Todos esses alunos - por volta de 4500 -
devem realizar ensaios a respeito da obra e participar de discussões sobre os temas propostos
pela graphic novel. Segundo o site oficial da universidade, esta foi a primeira vez que uma
obra em arte sequencial foi contemplada pelo programa.
A escolha de Daytripper para o programa se deu justamente pela sua capacidade de
dialogar tematicamente com diversas pessoas, independente da nacionalidade. É o que alega o
diretor do programa, Jason Mastrogiovanni, no site da universidade. De acordo com ele, a
obra “atrai os leitores para as paisagens vibrantes, amorosamente detalhadas do país de
origem dos autores, o Brasil, enquanto retrata momentos cruciais centrais para a experiência
humana, independentemente de sua nacionalidade”. 11 ·.
(http://tntoday.utk.edu/2014/04/07/daytripper-2014-life-of-the-mind-book/ Acessado em: 16
de setembro de 2014.)
Toda esta riqueza temática e narrativa fez com que Daytripper ficasse durante duas
semanas na lista dos mais vendidos do The New York Times, além de ganhar diversos
prêmios como Eisner e Eagle, e ter sido indicada ao Harvey e ao Shel Dorf Awards.
11 Texto original: “Daytripper pulls readers into the vibrant, lovingly detailed landscapes of the authors’ home
country of Brazil while depicting pivotal moments central to the human experience, regardless of nationality,”.
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Cabe-nos, portanto, explorar estes elementos, sobretudo no que diz respeito à
construção da personagem principal Brás e a sua relação consigo mesmo, com o pai e com a
morte.
5.1 BRÁS E O SER-COM O PAI
Enquanto revisita sua experiência de vida, Brás manifesta seus modos de ser com os
outros e nos seus modos de ser com as coisas. Seus itens de trabalho e as remissões por eles
estabelecidas são constantemente retomados no entrelaçamento da obra, fazendo com que
temas como profissão, relacionamentos amorosos, amizade e família estabeleçam os tons que
permeiam o ser de Brás dentro da narrativa.
Alguns momentos e pessoas da história parecem marcar mais o protagonista. A
relação com Jorge, o melhor amigo, perpetua-se por toda a obra, sobretudo com a
representação do suicídio do amigo e na morte conjunta dos dois em uma ilha isolada, no
capítulo sete. Relações como a do protagonista com o melhor amigo, mantém o ser de Brás
em exercícios com seu modo-de-ser singular e em conjunto no mundo.
Por outro lado, a questão pai e filho permanece tematicamente por vários capítulos e
ressurge como uma chaga que envolve o ser de Brás em toda a sua tentativa de escrita sobre si
mesmo. Mesmo diante da leitura matinal do jornal, no primeiro capítulo, é o encontro com o
seu pai e a grande homenagem que o pai receberá naquela mesma noite que o atormenta.
Sua ocupação com o jornal logo toma proporções do modo de ser-com relacionado
ao pai. Enquanto lê o jornal, suas reflexões, através da exposição do discurso do foco
narrativo, expõem sua frustração e incapacidade de chamar para si a atenção do pai (Figura 8).
Brás se entristece com a aparente indiferença do pai com a data. O foco narrativo
expõe ainda, que este suposto desdém já aconteceu em outros momentos. Emblemática
também é a decupagem da cena. O quadro maior, no centro da página, mostra o jornal em um
plano mais aberto, enquanto o quadro seguinte volta-se para Brás para em seguida, no último
quadro, voltar-se para Benedito em um close, simulando o olhar do filho para o pai, enquanto
reflete sobre o acontecido.
A decisão de Brás, após ler a notícia da homenagem ao pai, é a de retomar seu
trabalho como escritor. “Talvez ele devesse pular o café também, passar logo a trabalhar no
seu livro”. (MOON & BÁ, 2011, p.16). No entanto, quando senta para escrever, a remissão do
80
trabalho o leva à família e, consequentemente, ao pai. A máquina de escrever, o cigarro, tudo
ali, no seu hábito de escrita, é herdado também do pai.
O que parece é que Brás não consegue escapar da condição de estar ligado ao pai na
busca pelo seu próprio ser. É por isso que a temática pai e filho perdura no seu olhar para a
escrita, uma vez que seu pai também é escritor e na forma de ocupação dos outros objetos. Ao
chegar diante do teatro municipal de São Paulo é a preocupação de ser-com em relação ao pai
que vem a tona: “Ele lembra de ter lido em algum lugar que na noite de abertura, em 1911,
houve uma apresentação de Hamlet no municipal... o grande salão ecoa pais e filhos desde o
princípio.” (MOON & BÁ, 2011 , p.28).
Assim como Hamlet enfrenta o fantasma de seu pai, Brás parece fazê-lo, ainda que
metaforicamente, ao encarar o legado do pai como escritor. Entrar no evento para prestigiar a
homenagem ao pai é enfrentar o eco de ser filho de um escritor famoso; de não ter o
aniversário lembrado pelo próprio pai; de ter que ser a sombra do pai.
A menção ao texto de Shakespeare potencializa ironicamente o dilema enfrentado
por ele diante da entrada principal do teatro: “Onde que eu vou achar cigarro? [...] eis a
questão.” (MOON & BÁ, 2011, p. 28). Mesmo que a citação seja uma referência cômica
diante da evocação ao texto clássico, é de conhecimento do leitor que a marca que fuma é a
mesma que a do pai. “Eis a questão” é, ainda, uma questão sobre a ocupação do objeto
cigarro, mas traz consigo a mesma questão ontológica de Hamlet, a de continuar o legado do
pai ou não, isto é, para Brás, o de fumar a mesma marca de cigarro ou não, de escrever e ser
escritor como o pai ou não.
O momento seguinte também reflete a transferência de cargo de pai para filho no
diálogo com o dono do bar. O nome do bar é Genaro e Brás pergunta ao homem se a placa se
refere a ele. A resposta a esta pergunta parece conduzir, novamente, ao conflito de seguir o
mesmo caminho que o progenitor: “É o que todo mundo acha. Mas Genaro era o nome do
meu pai.” (MOON & BÁ, 2011, p. 30). A conversa segue e o homem conta que se chama
Policarpo Claudionor, embora todos o chamem de Genarinho.
O fato de o homem ser chamado com do mesmo nome que o pai é sintomático se
considerarmos a sua aparente impossibilidade de fugir da questão de seguir ou não os passos
do pai. Brás o indaga sobre o porquê de ele não mudar o nome do bar, ao passo que sua
resposta resume situação de estar lançado não apenas no mundo, mas na relação ser-com o
81
pai: “Continuaria sendo o bar dele, e eu continuaria sendo o filho dele.” (MOON & BÁ, 2011,
p.31).
O dono do bar parece representar, para o momento vivenciado por Brás, o dilema de
aproximar-se do ofício do pai. Genarinho opta por continuar com o bar e com o nome igual ao
do pai, mas é por ser chamado assim pelos outros que o apelido perdura. A ocupação do papel
do pai não se dá apenas no trato individual de ser-com ele, mas também na relação de ser-com
as outras pessoas.
O teatro municipal apresenta Hamlet, mas também o bar do Genaro ecoa a temática
de pai e filho. Aparentemente, Brás tem de encarar o pai e o papel que ele ocupa na sua vida.
A cena seguinte à revelação de “Genarinho” sintetiza um dos modos do ser de Brás como ser-
com o pai. Com o cigarro na boca e a carteira de cigarros na mão, ele afirma: “Todo mundo é
filho de alguém, né?” (MOON & BÁ, 2011, p.31).
Pode-se presumir que, neste momento, Brás está reconhecendo a universalidade do
dilema, ou seja, todo ser é ser-com em conexão com o pai e mesmo ele, gostando ou não, é
lançado no mundo sem a escolha de optar por este ou aquele genitor, nem mesmo livrar-se do
desejo de querer que o pai o note. O dono do bar já o avisa: “Pois é. Família a gente não
escolhe.” (MOON & BÁ, 2011, p.31).
No entanto, embora Brás esteja, de certa maneira, evocando uma noção de
impessoalidade com o pronome “alguém”, o seu conflito está ligado a Benedito e não a
qualquer pai. Apesar do jargão “família a gente não escolhe”, Brás tem de lidar com o fato de
ser-aí com Benedito, aquele que é um grande escritor, que esquece o aniversário do filho etc.
Dilema similar é enfrentado por Kafka em seu esforço de dar sentido para a seu
conflito familiar. É por não poder se situar em outra família e não ter outro pai que ele busca
esclarecer, em Carta ao pai, o porquê do seu medo e fascínio pelo pai:
Naturalmente as coisas não se encaixam tão bem na realidade como as provas contidas na minha carta, pois a vida é mais do que um jogo de paciência; mas com a correção que resulta dessa réplica, uma correção que não posso nem quero discutir nos detalhes, alcançou-se a meu ver algo tão aproximado da verdade, que isso pode nos tranquilizar um pouco e tornar a vida e a morte mais fácil para ambos. (KAFKA, 2013, p.407).
A citação nos mostra a profundidade com que o elo pai e filho perdura. Vida e morte
são fatos ligados ao modo de ser-com e é preciso aceitar estas circunstâncias. Do mesmo
modo, Brás escreve e recapitula os momentos que viveu com o pai, a nosso ver, procurando
tranquilizar a si mesmo sobre desamparo de não mais ter Benedito perto de si.
82
A atmosfera da relação entre pai e filho e os extremos vida e morte é representada,
em Daytripper, pela experiência de Brás em encontrar a própria morte diante dos
questionamentos sobre ser pai. A primeira experiência de morte dada pela narrativa é
acometida pelas mãos de um rapaz que descobre que será pai e resolve assaltar o próprio tio.
Esta resulta no primeiro obituário da obra e alude ao caráter identitário de Brás com o pai. A
descrição de quem era o protagonista se ancora na sua possiblidade de ser como Benedito.
Brás de Oliva Domingos compartilhava com o pai, Benedito de Oliva Domingos, a paixão pelas palavras e, não fosse sua morte repentina numa assalto no centro de São Paulo, com certeza viria a ser tão respeitado quanto ele. (MOON & BÁ, 2011, p. 34).
O Dasein de Brás é evidenciado pela possiblidade de se igualar ao pai. Parece que,
mesmo diante da morte, é inevitável para ele ser-com. A potencialidade do seu ser não apenas
se ancora na aproximação com o trabalho do pai, como também no desejo de se igualar a ele
em sucesso na profissão.
A relação entre Brás e Benedito também é esclarecida em diálogos entre os dois,
como por exemplo, no capítulo três, que se concentra principalmente no relacionamento de
Brás com a mulher que conhece em Salvador. Após uma palestra de Benedito, os dois estão
em um restaurante, conversando sobre o tema da preleção: amor.
A conversa dos dois concentra-se sobre a vida e a maneira como nos relacionamos
com as outras pessoas. Brás, fragilizado pelo término com a namorada, ouve os conselhos do
pai sobre a ligação que temos com outras pessoas. Ele recorre à lembrança de quando ele e
esposa se conheceram:
Lembro de quando nos conhecemos. Eu lhe disse que queria ser um grande escritor e que tinha certeza de que havia um grande romance esperando que eu o escrevesse. Ela sorriu e disse que havia um grande romance esperando que o vivesse. (MOON & BÁ, 2011, p. 65).
A dicotomia entre a vida e a escrita de Benedito é a mesma enfrentada por Brás.
Tendo que escrever sobre os romances de um pintor famoso, que pintava as amantes
chamando-as todas por “Lola”, Brás se obriga a olhar para a própria vida e encarar o
rompimento recente com sua namorada. Seu pai o incentiva a buscar os momentos que o
marcaram; “Momentos que nunca vai esquecer” (MOON & BÁ, 2011, p.66).
O quadro seguinte a esta sugestão traz um balão que antecipa o flashback da briga do
casal, que aparece logo nas cenas seguintes. O balão simula a memória de Brás daquele
83
momento; um momento que, como a dica do pai, Brás nunca vai esquecer. A briga dos dois é
constantemente atualizada no capítulo. O foco narrativo relembra a mulher e os próprios
quadros da exposição, em um determinado momento, “falam” com Brás, repetindo as mesmas
palavras que ele ouvira da ex-namorada durante uma briga.
A influência do pai se manifesta também em outros momentos. Mesmo quando a
cena descreve a primeira vez que encontra com a mulher, é a voz do pai que ressoa na sua
cabeça: “Então, é claro, ele se lembra do que seu pai vem dizendo todos esses anos – e tudo
fez sentido.” (MOON & BÁ, 2011, p. 80). “Cidade deserta”, o discurso proferido por
Benedito um pouco antes do início do diálogo, é atualizado na cena em que Brás corre atrás
da moça. A distinção entre a escrita e a vida é evocada em paralelo à fala do pai: “O momento
em que a vida começa de verdade.” (MOON & BÁ, 2011, p.81).
A referência a fala do pai, de um romance que espera ser vivido, é brutalmente
interrompida com a morte de Brás. E, mesmo neste momento, o seu obituário não ignora a
presença do pai no Dasein do protagonista. Segundo o obituário, Brás estava “tentando achar
seu caminho no deserto, à procura do oásis que preferimos chamar de... ‘amor’.” (MOON &
BÁ, 2011, p.82). O discurso do pai, novamente, é tema identitário para Brás. Quem ele era, no
momento em que morreu, ligava-se à reflexão de Benedito.
A citação do discurso de Benedito dentro do obituário é importante para
compreendermos a função dos obituários para o próprio Brás. Como escritor de obituários, ele
parece reutilizar da fala do pai para definir a si mesmo, como uma escrita que adianta a
experiência da morte para explicar os fenômenos e momentos da própria vida.
Assim como Kafka, Brás sugere uma investigação narrativa dos momentos da sua
vida, buscando sentido para os acontecimentos na singularização da morte. Ele parece matar a
si mesmo e escrever um obituário para compreender aquele momento sob a perspectiva de um
escritor/leitor. Inserir o discurso do pai neste obituário, manifesta o apego às palavras do pai
neste processo de recriação da vida. Brás, com 28 anos, apaixonado, morre com a lembrança
de quem era na experiência discursiva do pai.
Esforço parecido era empreendido pelo autor tcheco no seu processo de dar sentido
ao mundo. Brás e Kafka procuram a experiência da vida nas palavras para, de alguma
maneira, encontrar as conexões possíveis de cada momento vivido: Em vez de uma interpretação, temos o relato do que está por vir; ou melhor, a interpretação se transforma em relato (das múltiplas conexões inesperadas). A escrita é um resumo da vida, condensa a experiência e a torna possível. (PIGLIA, 2006, p.51)
84
O que nos parece é que Brás estabelece estes tipos de conexões das várias
experiências vivenciadas. O encontro com aquela que será sua esposa, o nascimento do filho,
o primeiro beijo, a morte do melhor amigo. Todos estes momentos são perpassados pelo
aprendizado junto ao pai.
A remissão ao pai pode ser percebida com o nascimento do seu filho Miguel. Tornar-
se pai implica, para Brás, trazer a tona o espectro da sua relação com Benedito. (Figura 9) A
imagem que abre o capítulo quatro ilustra esta presença concomitante das gerações
representadas no conflito entre pai e filho. A ilustração mostra Benedito cobrindo quase toda a
página, enquanto Brás e o filho recém-nascido são representados no centro do peito do avô.
A centralidade com que os descendentes de Benedito aparecem dentro de sua figura
maior, sugere a afeição que ele sente pelo filho e pelo neto. Sua coloração e traço também são
importantes no enaltecimento da temática do capítulo. Benedito é representado com uma arte
final 12 marcada fortemente, com traços definidos, além de uma coloração terrosa e
acinzentada, mais fria. A caracterização de Brás e do filho, por outro lado, se dá de maneira
distinta. Ambos estão com cores mais quentes e com a arte final em traços menos rigorosos,
além de as cores confundirem-se com os tons aquarelados de fundo, transformando-os numa
representação menos fixada e até mais abstrata.
O adiantamento temático dado pela capa é significativo, na medida em que antecipa
a centralidade da morte de Benedito e o nascimento de Miguel. O movimento de passar
adiante o legado de ser pai acontece simultaneamente à experiência da morte por Brás. Ele se
torna pai quando perde o próprio pai. A nova geração parece surgir no apagamento da
anterior.
O capítulo se concentra na experiência da morte do pai e no contraste estabelecido
com o nascimento. Mesmo diante da expectativa do nascimento, o foco narrativo retoma a
temática da morte até o momento em que Brás encontra com sua mãe no hospital e descobre
sobre a morte do pai.
Não mencionaram em nenhuma aula para grávidos que ele estaria morrendo de vontade de fumar no instante em que seu filho estivesse nascendo. [...] Em todas aquelas consultas com o médico, ninguém havia avisado Brás que seu telefone ia morrer [...]. (MOON & BÁ, 2011, p.87).
12 A expressão arte final, aqui, significa o método de acabamento do desenho. Geralmente pode ser
feita digitalmente, ou com tinta nanquim, caneta etc.
85
A morte personifica a atmosfera de ausência do pai. O pai está presente mesmo
quando não está fisicamente, através da referência da sua morte pelo foco narrativo. A
ocupação dos objetos, como o telefone e, principalmente, o cigarro, é o meio pelo qual
Benedito se apresenta na cena. O ser-com o pai é figurado pelo ser-com os objetos.
Todo o capítulo é caracterizado por uma coloração fria, permeada principalmente por
tons de verde, roxo e azul. Além dessa caracterização, há outra maneira de situar, pela
composição, a solidão vivenciada por Brás na perda do pai.
A cena em que ele se encontra com a esposa, após descobrir que o pai morrera, é um
bom exemplo da representação do vazio que sente como um pai órfão. Todo o quadro está
escuro, sendo que os únicos elementos destacados, ocupando boa parte do quadro, são Brás e
Ana, que está deitada em uma maca rodeada de aparelhos hospitalares. O vazio em torno dos
personagens simula o vazio que assombra Brás naquele momento.
O foco narrativo, por sua vez, explicita o sentimento de Brás. Ele não conta para a
esposa sobre a morte do pai para não causar complicações para a gestação. No entanto, o
narrador enfatiza o parentesco entre o falecido e a criança de maneira pausada, simulando um
pensamento ou fala, do próprio Brás.
A cena do velório do pai é fundamental na construção do ser de Brás definido no
obituário ao final do capítulo. Toda a cena mantém-se dentro da paleta já definida
anteriormente, com tons mais frios e com sombras marcadas, com muito contraste entre luz e
sombra.
Há uma conexão aparente entre o nascimento do filho e a morte do pai. O telefone
celular, que apareceu anteriormente como o objeto que “morreu” é referenciado de duas
maneiras, ora remetendo ao pai, morto, ora ao filho, possivelmente nascido. O foco narrativo
descreve uma última ligação entre os dois: “Dois dias antes, ou menos, ele havia falado com
seu pai ao telefone, sobre alguma coisa que não lembrava mais.” (MOON & BÁ, 2011, p.90).
A ocupação ao telefone se dá de maneira distinta para a sua subjetividade. O
telefone, que antes o ligara ao pai, agora era o objeto de expectativa para o nascimento do
filho. “Por mais que estivesse sofrendo, ele não estava ali por completo. Sua mente esperava
uma ligação que o levaria dali.” (MOON & BÁ, 2011, p.90). O reforço da relação entre o
foco narrativo e o visual, quando mostra Brás segurando firmemente o telefone, favorece a
leitura da sua relação com o objeto. Ocupar-se dele, no momento, seria resolver o dilema
86
quanto ao nascimento do filho, mas, subjetivamente, trata da distinção entre os telefonemas de
dois dias atrás e o de agora.
A morte do pai remete também à profissão de Brás como escritor de obituários. Ao
perceber que a morte do pai atraiu várias jornalistas, ele se incomoda com a presença massiva
deles no funeral. “Ele não deixou de perceber a ironia da situação, pois pensava.. ‘é isso que
as pessoas querem ler no jornal?’.”(MOON & BÁ, 2011, p.90).
A ironia é sustentada pela sua profissão. Ele escreve para o jornal justamente aquilo
que ele criticava no momento. A menção aos jornalistas trouxe à memória o melhor amigo,
Jorge, que o foco narrativo indica que “não estava lá.” (MOON & BÁ, 2011, p.90). A
sucessão de remissões feitas por Brás o fazem questionar a profissão, já que mesmo quando
não escreve sobre as mortes, elas ainda permanecem ocorrendo.
Novamente, as ocupações do mundo ao seu redor influenciam na visão de si mesmo
e da sua profissão. Pensar em todo o ritual ali realizado remete, no final das contas, a ele
mesmo, a sua relação com a escrita e consequentemente com o pai.
Durante o enterro, uma mulher aparece e pergunta sobre Benedito. Brás a reconhece
do evento em homenagem ao pai, representado no primeiro capítulo, e logo percebe que ela
faz parte de outro relacionamento do pai e que ela, portanto, é sua irmã.
A aparição da mulher traz à tona o dia em que se conheceram. A cena é apresentada
em tons de sépia amarelados, sugerindo a nostalgia que constrói a cena, uma vez que se trata
da memória seletiva de Brás. O encontro é marcado por uma conversa rápida da mulher com
seu pai, ao passo que a cena seguinte é muito importante para apresentar outra faceta de
Benedito.
O pai, que até então aparecia como alguém que esquecia seu aniversário e era
indiferente ao filho, é apresenta de maneira mais delicada e até mesmo mais íntima. Ele deseja
ao filho feliz aniversário, lhe entrega uma taça com alguma bebida e o convida a conhecer
outras pessoas. No quadro seguinte ao momento em que ele parabeniza o filho, Brás aparece
em um close, sorrindo para o pai.
A cena é construída com cores mais quentes que as anteriores, o que faz com que
este momento represente, para Brás, não apenas um momento nostálgico, mas também de
felicidade com o pai. Poderíamos aproximar o contraste entre o pai indiferente e o pai
acolhedor na figura de Kafka, sobretudo nos momentos de memória afetiva com o pai.
87
Assim como Kafka, Brás sente-se feliz nos momentos em que o pai demonstra um
cuidado maior. Sob o peso da memória, a cena é mais harmoniosa em cores e na
representação o pai. A transição da lembrança para a narração do capítulo é significativa neste
quesito. (Figura 10).
No momento em que Brás é levado para outro salão pelo pai para conhecer “gente
importante”, ele aparece de costas, caminhando da esquerda para a direita. Seu pai está ao seu
lado, colocando a mão direita nas costas do filho, conduzindo-o. O quadro seguinte, que traz a
narração para o presente do capítulo, apresenta o protagonista na mesma posição que a
anterior, com a diferença de que agora seu pai não está mais o conduzindo.
Também a cor volta para os tons que estavam até então, frias e acinzentadas. Brás
está a caminho do hospital para receber o filho. Parece-nos que o nascimento do filho terá de
ser encarado sob a perspectiva da ausência do seu pai, o que sugere um adiantamento temático
do entrelaçamento da narrativa. Mais tarde, Brás terá que assumir que a morte do pai seria
importante para a libertação do seu Dasein.
A moça, suposta filha de Benedito, aparece no hospital em que a esposa de Brás está.
Ela o procura, alegando precisar de alguém para poder conversar sobre o pai. Brás se irrita,
perde a paciência e grita: “Ele morreu!”. (MOON & BÁ, p.96). É interessante o aspecto
visual do quadro em que ele anuncia a morte do pai. Ele e ela se encaram, um de frente para
outro. O cenário permanece com as tonalidades anteriores, mas os personagens são
representados de maneira diferente. Ele e ela estão com tonalidade laranja-amareladas, mais
quentes que o restante da cena. A evocação ao pai e a sua condição fúnebre o situam num
lugar distinto ao da cena. Eles estão presos à memória, em sépia, do pai quando ele anuncia o
falecimento.
Outro aspecto esclarecido no encontro de Brás com a possível irmã são os elementos
os diferem na apropriação das coisas do pai. Brás encontra na irmã indícios que a diferem
radicalmente do pai, indícios estes que o marcam durante toda a narrativa.
O primeiro destes indícios é cigarro. Brás diz para ela que precisa de um cigarro e
pergunta se ela fuma. Ela responde que tem asma. Brás então, sai do hospital e acende um
cigarro. Ela se despede e ele, com um cigarro aceso na boca, pergunta: “Só uma coisa. Qual
livro dele era o seu favorito?” (MOON & BÁ, 2011, p.98), e ela responde: “Eu nunca li
nenhum.” (MOON & BÁ, 2011, p.98).
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Dois dos traços que unem pai e filho não estão presentes na filha. Ele fuma como o
pai, inclusive a mesma marca de cigarro, e nutre uma relação íntima com a escrita. Ela não
apenas não segue a profissão como nunca lera nada do pai. Brás procura constantemente pelo
apoio, presença e atenção do pai, mas não estaria ele já ligado ao pai, inclusive na sua
formação identitária, na busca de definir quem ele é?
Impasse parecido é enfrentado pelo protagonista/narrador de A terceira margem do
rio (Rosa, 2001). Toda a sua família vai, aos poucos, desistindo de se conectar ao progenitor,
ao passo que ele permanece ligado ao rio e ao rito desenvolvido com a partida do pai. Sua
irmã, em certa medida, parece estabelecer um vínculo menor com o pai. É ele quem se sente
responsável por ocupar aquele lugar e viver no meio do rio.
Receber o manto de pai, agora que o seu se fora, é difícil para Brás. Na cena em que
ele vai até em casa buscar uma caixa de música para a sua esposa, o narrador, intruso nos
pensamentos de Brás, discorre sobre esta ruptura abrupta de ocupar o lugar de pai: “Mas as
memórias... as conversas que nunca teria com o pai – a meia irmã que ele não suportava nem
olhar -, a ideia de que teria que assumir o papel do pai logo agora que se sentia menos
preparado...” (MOON & BÁ, 2011, p.101).
Relevante também é o gênero da criança. Chegando ao hospital, o protagonista
encontra a mãe chorando, que conta que é um menino. O papel assumido como pai será ainda
mais ligado ao papel assumido anteriormente por Benedito. Novamente, é a preocupação
desta relação, isto é, de pai e filho, que permeará os próximos passos de Brás com o menino.
Ele, agora, como pai, terá de ser-com o filho, enquanto ainda mantém o modo de ser-com em
relação às lembranças do pai.
O ser-com o pai não apenas se perpetua pela memória, mas também na ocupação dos
objetos. Sua mãe pede para ir buscar o pijama usado por ele quando ainda era um recém-
nascido. Brás reluta, mas os argumentos da sua mãe perpassam o seu modo de ser-com o pai:
“Foi o seu pai que escolheu aquele pijama, e ele insistiu que ficássemos com ele para um dia
que nem esse. Então... você vai buscar, sim!” (MOON & BÁ, 2011, p. 103).
Mesmo na ausência de Benedito, parece inevitável para Brás conseguir encontrar seu
Dasein sem considerar sua relação com o pai. Mesmo depois de morto, seu desejo está
presente no pequeno pijama. E esta busca pelo objeto que remete ao pai o leva a um encontro
ainda mais profundo consigo mesmo.
89
Ao chegar a casa, não é apenas o pijama que remete ao pai. O narrador explicita o
envolvimento de Brás com a atmosfera da casa: “Ele não estava lá e, ainda assim, estava por
toda parte.” (MOON & BÁ, 2011, p. 104). Cada quadro da página cuida de mostrar Brás
olhando para diversos espaços. A casa está vazia, contrariando a presença do pai que está,
evidentemente, na ocupação de Brás pela casa e não na casa propriamente dita. Seu olhar para
os objetos é alterado pelo olhar que tinha do pai.
A ocupação pelo viés afetivo desenvolve-se em proporções maiores quando ele
chega ao escritório de Benedito. Sua relação pessoal com o espaço invade suas memórias:
“Embora fosse um aposento grande, as memórias de infância de Brás deixavam o estúdio dez
vezes maior. Podia ser porque ele era muito pequeno... [...] ou porque tudo relacionado a seu
pai parecia grandioso.” (MOON & BÁ, 2011, p.105).
O fim do capítulo quatro se dá todo no escritório de Benedito e as memórias de Brás
preenchem a fala do narrador com as indagações do menino Brás: “O que ele estaria
escrevendo agora – o que ele estaria lendo?” (MOON & BÁ, 2011, p.105). A
complementaridade da imagem com o foco narrativo favorece ainda mais o desfecho
emocional do protagonista com o espaço de vida do pai.
Quando o narrador evoca a pergunta quanto às leituras do pai, a imagem mostra o
romance de autoria do próprio Brás. A conexão temporal das questões da infância com a
resposta atual revela um caráter afirmativo para o protagonista. Seu pai leu o seu romance e,
desta forma, ele pode conquistar o espaço que sonhava: “Os livros eram a grande paixão de
Benedito, e se Brás pudesse ser parte daquele mundo, ele poderia garantir seu espaço no
coração do pai.” (MOON & BÁ, 2011, p.105).
O elo entre pai e filho se estreita, na narrativa, até mesmo na morte. Brás seguira o
pai no fumo e na escrita e, naquele momento, repete sua morte com o próprio ser, no mesmo
lugar em que o pai morrera. O foco narrativo realça esta conexão através da repetição dos
termos(Figura 3). Alternando o pertencimento coração (ora o coração de Benedito que a parar,
ora é de Brás), favorece para a percepção de que Brás morre indiretamente com o pai.
Ao longo da graphic novel, os obituários resumem a temática do capítulo, mas
acabam por definir também aspectos sobre o ser de Brás. Assim como no primeiro capítulo,
em que o obituário remete o ser de Brás à sua relação com o pai, no capítulo quatro, questões
de pai e filho se amplificam para aquelas entre avô, pai e filho.
90
Romancista como o pai, apegado à família como a mãe, ele se sentia incrivelmente realizado com o sucesso de seu primeiro romance e com o nascimento saudável do seu primeiro filho. Infelizmente, seu pai não viveu o bastante para conhecer o neto, e a morte dele foi forte demais para o coração do próprio Brás. (MOON & BÁ, 2011, p.106).
O pai não pôde conhecer o próprio neto e de alguma maneira a sua morte impactou a
existência do próprio Brás. A morte de Brás naquele momento faz com que ele também não
conheça o filho e comungue com o pai na mesma condição de estar morto. Mas, como
sabemos, esta morte carrega outro significado além da morte física de Brás. Se ele estará vivo
no capítulo seguinte, adotando a estrutura já construída até aqui, resta-nos perguntar o que
significa morrer junto do pai.
O obituário revela que a morte do pai foi forte demais para o coração do próprio
Brás. A cena anterior liga simbolicamente o coração de Benedito e de Brás. O elo com o pai é
que parece sucumbir ao acontecido. Ele havia seguido o pai no hábito de fumar, na carreira
literária e agora, que seguiria também na paternidade, Benedito não está lá. Sua morte parece
representar uma tentativa de continuar a seguir os passos do pai: “E então Brás mais uma vez
seguiu os passos de seu velho pai ao morrer de um ataque cardíaco aos 41 anos, deixando pra
trás sua amorosa esposa, Ana, e seu filho recém-nascido, Miguel.” (MOON & BÁ, 2011,
p.106).
A admiração de Brás pelo pai aparece claramente durante suas memórias de infância.
O capítulo cinco, que narra alguns de seus dias de visita à chácara da família, fornece indícios
das observações que o personagem faz do pai.
Os quadros que abrem a narração sobre as visitas de sua família descrevem a distinção
entre cada parente, mas se concentram visualmente em Benedito. Além de demonstrá-la
visualmente, o foco narrativo fortalece a descrição do pai: “Mesmo que fosse dos seus sogros,
Benedito amava vir para o sítio, pois lá tinha paz e todo tempo do mundo para escrever. [...]
Ele não prestava atenção em nada que as crianças faziam. Nem em mais ninguém. É como se
elas nem estivessem lá.” (MOON & BÁ, 2011, P.114).
A indiferença de Benedito com a família é importante para percebermos a forma de
relação dele com Brás, mesmo que a narrativa se concentre em mostrar as tentativas do filho
de se aproximar do pai.
Assim como em outros momentos da narrativa, várias coisas do mundo que vem de
encontro ao ser de Brás passam pelo seu modo de ser com o pai. Ao descrever alguns aspectos
91
do sítio, o narrador centraliza o mapeamento em uma árvore adotada por Benedito para os
momentos de escrita: “Era a de Benedito, onde ele ia para pensar em suas histórias. Todo
mundo conhecia como a árvore do Benedito, mas ele a havia batizado com o nome de sua
musa: Aurora.” (MOON & BÁ, 2011, p.115).
O trecho salienta a transformação ocorrida pela ocupação e Benedito com a árvore.
Ele a nomeia e ela deixa de pertencer ao modo de ser de uma árvore. Ela passa a ser Aurora.
A partir deste momento, a árvore também passa a ser ocupada de outras maneiras pela
narrativa, através de remissões alegóricas e de encontros relevantes para Brás.
Brás, em determinado momento, vai até o pai para perguntar o porquê de eles terem
de utilizar o “mato” para as necessidades se a casa tinha banheiro. A resposta do pai
demonstra a indiferença de Benedito com o filho: “Não vê que estou escrevendo?” (MOON &
BÁ, 2011, p.117). Brás indaga sobre o vazio da página em que Benedito repousa a caneta. O
pai, então, desenvolve uma argumentação comparativa entre a economia da água do banheiro
e a economia das palavras:
A água que usamos na casa vem do poço. Nós bombeamos para o tanque e usamos no chuveiro, na cozinha e no lavabo. Também precisamos dela para regar o pomar e alimentar os bichos. [...] Mas não temos muita água. Por isso, a gente espera o poço encher, que demora um pouco, por isso não podemos ficar gastando água o tempo todo. [...] É isso que estou fazendo. Estou enchendo a minha cabeça de ideias, escolhendo as melhores, as mais raras.[...] Assim, depois eu posso escrever sem gastar muita água. (MOON & BÁ, 2011, p.117).
Assim como nos capítulos anteriores, o discurso de Benedito acaba influenciando
outros momentos da narrativa. A preleção sobre a procura do amor pelo deserto influenciou a
percepção de Brás de si mesmo e o encontro com aquela que seria sua futura esposa, além, é
claro, da presença do discurso no seu obituário.
No capítulo da sua infância não é diferente. A árvore predileta do pai e o seu
ensinamento sobre o racionamento das palavras, através da alegoria com a água, repercute no
discurso do foco narrativo, na apresentação dos cenários do sítio e, por fim, no primeiro beijo
de Brás.
Logo após o diálogo de Brás com Benedito, embaixo da árvore, a narração relata os
dias de chuva na chácara. O foco narrativo concentra-se em explanar as funções de adultos e
crianças nestes momentos. Os adultos indo para fora “brincar” com as atribuições do sítio,
enquanto as crianças ficavam dentro de casa. De acordo com o narrador, os dias de chuva
tornava a família mais próxima, principalmente na apreciação de Brás da presença do pai.
92
A complementaridade entre foco narrativo e imagem amplia ainda mais a admiração
de Brás pelo pai e a influência deste para todo o fluxo da narrativa (Figura 11). A imagem
mostra o filho olhando para Benedito, com algumas cartas na mão. O pai, como na cena
embaixo da árvore, está com um caderno no colo, escrevendo.
Em um primeiro momento, podemos perceber, através da composição e seleção de
cores, que Brás e Benedito constroem, na cena, uma dinâmica complementar. Apesar de toda
a cena carregar uma luminosidade amarelada, por ser a fonte de luz uma vela, o filho é
apresentado com uma blusa verde, enquanto o pai, mais ao canto direito, está com uma
camisa vermelha. A distinção do plano de expressão corrobora com a dicotomia estabelecida
entre as duas personagens. Paralelamente distantes, estão ligadas, ao menos nesta cena, pelo
círculo cromático.
Vale ressaltar, neste momento, a aproximação do discurso do foco narrativo com o
discurso proferido por Benedito nas cenas anteriores. No último quadro da página 118, o foco
narrativo alude a alegoria da água: “... enquanto a água jorrava livremente lá fora.” (MOON &
BÁ, 2011, p.118).
O que nos parece é que a chuva, jorrando livremente para fora, se compara com o
fluxo das palavras de Benedito. A água que jorra livremente lá fora são as ideias de Benedito,
enquanto ali dentro, com a família, no caderno que anota, as palavras são selecionadas,
controladamente descritas.
O poder dos discursos de Benedito se evidencia para além da situação narrada, eles
influenciam a vida de Brás e a própria estrutura de Daytripper. Se adotarmos a leitura de que
toda a seleção das memórias, bem como a ordem dos saltos e obituários, é feita pelo próprio
Brás, muito do que parece enigmático e sem conexão, desvela-se como parte de um todo
construído pela recepção do protagonista dos ensinamentos com o pai.
Desde a cena em que conversam em um restaurante, no capítulo dois, Benedito já
sugere a Brás uma espécie de seleção de momentos da vida: “Momentos que nunca vai
esquecer” (MOON & BÁ, 2011, p.66). A sugestão vem de um discurso sobre como
procuramos o amor, mas Benedito fala ao filho incluindo a palavra vida.
Quanto à seleção narrativa, a indicação do pai é de que é preciso economizar a escrita,
assim como a água. O exercício da reinvenção da vida de Brás passa pelo crivo de uma
seleção pessoal, em que diversos momentos relevantes (como uma viagem marcante, o
93
primeiro beijo, o nascimento do filho e morte do pai etc.) são revividos capítulo a capítulo,
reincidindo com o aspecto da morte nos seus desfechos.
Além disso, a alegoria com a água se repete na imagem de Iemanjá, figura religiosa
ligada à fertilidade através das águas. No primeiro capítulo, temos uma menção a ela e às suas
oferendas, mas é no capítulo do sonho que ela tem uma significação maior.
Logo no início do capítulo, ele está diante da divindade, em um barco, um de frente
para o outro. (Figura 12) O narrador adianta que Brás já conhece aquele lugar e que já sabe o
que ela irá dizer: “Bem-vindo Brás. Esta é a sua vida. [...] Você é esse barco, flutuando num
oceano sem fim.” (MOON & BÁ, 2011, p.205).
A aproximação entre a vida de Brás e o mar em que os dois flutuam expõe o caráter de
continuidade da vida, isto é, da água que jorra “lá fora”. A seleção de Brás, dos momentos
sugeridos pelo pai, é retirada das suas várias experiências de vida, selecionadas como se
raciona a água que pode ser aproveitada posteriormente.
Outro momento em que a água se destaca na obra é quando, ainda no sonho, ele
conversa com a esposa durante o café da manhã. Ele conta para ela sobre o diálogo com
Iemanjá e ela pede que ele se concentre na vida real: “Mas se você ficar aí só olhando pra ela,
tudo vai afundar. Eu não posso cuidar de tudo enquanto você fica na cama.” (MOON & BÁ,
2011, p.209). Enquanto ela diz isto, a água da pia inunda todo o cômodo em que se
encontram.
A contingência estabelecida entre as duas formas sígnicas é representativa no
entrelaçamento narrativo. A água já fora apresentada em sua objetificação pragmática, na sua
relação alegórica com a escrita e com a vida. Neste momento, parece reiterar o conceito de
vida ligado a ela e é fortalecida pelo foco narrativo. Tudo afundaria se Brás não retomasse o
controle das coisas, se ele não assumisse seu papel diante das escolhas que deve seguir no
projeto do seu próprio ser.
A temática da água permanece sendo atualizada ao longo da trama. No fim do capítulo
Sonho, quando Brás senta para escrever o próprio obituário, é diante do mar que ele o faz.
Acompanhado das carpas, a água que antes era uma representação da seleção dos momentos,
agora significa a própria morte, ou o próprio mar diante do qual ele escreve este obituário.
Ademais, o motivo da água se repete uma última vez na cena final da narrativa. Após
ler a carta do pai, que até então lhe era desconhecida, Brás, em um ritual de despedida, lança
flores sobre o mar, enquanto permanece ali, até o fim da história.
94
Este ato simbólico é expressivo se considerado o aspecto artrológico, de
autorreferencialidade, da narrativa. A água, tão referenciada, teve seu discurso fundamentado
na fala de Benedito e é justamente em homenagem a ele e ao seu legado, presente na carta,
que Brás dedica os momentos finais.
Todos estes momentos parecem nos certificar de que o pai, para Brás, é fundamental
na sua reconstrução do passado e na identificação do seu próprio Dasein, posto que não
apenas a água é o elemento reutilizado pela narração, mas também a árvore, apelidada de
Aurora por Benedito.
Este mesmo sentimento, de conexão com o pai no passado e a influência dele no ato
de escrita sobre si mesmo, pode ser percebido na carta de Kafka para o seu pai. As lembranças
da sua ligação com a figura paterna na infância agem sobre o modo com que escreve essas
recordações: “Nesses momentos a gente ia se deitar e chorava de felicidade, e chora ainda
agora enquanto escreve.” (KAFKA, 2013, p.370).
Todo o esforço de regressão de Brás parece ser influenciado pelos elementos que mais
possuíam significação na sua formação identitária. O pai, neste processo, é de extrema
relevância, aparecendo tanto no plano expressivo, como personagem de várias cenas, como no
plano de conteúdo, através dos seus discursos e falas.
A representação da árvore também aparece como relevante no desenvolvimento da
narrativa. O local onde Aurora está plantada, tão importante para o pai, é cenário de outros
momentos, sejam eles representados na narração visual ou verbal. Nas cenas em que Brás
aparece observando a família e o narrador apresenta parte de suas indagações sobre os
familiares, o caráter polissemiótico se expande para a genealogia e para o aspecto temporal da
vida.
Um dos quadros mostra a imagem da árvore predileta de Benedito, acompanhando o
discurso introspectivo do narrador: “Enquanto a semente da árvore genealógica começava a
germinar e fazer sentido na sua cabeça... [...] .. as estações mudavam dentro dele.” (MOON &
BÁ, 2011, p.121). A árvore assume semanticamente outra significação. A família é trazida
para a centralidade da imagem e passa a representar parte relevante para o ser de Brás. Além
do aspecto genealógico, há a noção da passagem do tempo, caracterizada pelo close no
arrastar das folhas da árvore pelo vento. As estações que mudavam dentro dele alude à visão
de folhas que são carregadas.
95
A aparição da árvore não se restringe apenas à representação da mudança de Brás no
âmbito familiar. Aurora também foi testemunha do primeiro beijo do protagonista que
acontece acima das suas raízes. (Figura 13) A cena enfatiza o local, enquanto passeia pelos
closes das mãos e da boca do casal.
Convém nos atentarmos para a organização da cena e a sua composição temporal. A
imagem que abre a página mostra Brás se apoiando na raiz e se abaixando para beijar a
menina. Os quadros que seguem fornecem uma leitura atemporal do momento. A cena é uma
só e os passeios entre quadros e descrição (sobre a brevidade do beijo) se situam para além do
momento. São discursos sinestésicos que movimentam a cena congelada.
Os quadros finais são importantes para percebermos a seleção narrativa apresentada
pelo capítulo. Brás aparece observando a menina correndo, enquanto é descoberto pelo primo
que o procura durante brincadeira de pique esconde. No entanto, o foco narrativo dá conta de
esmiuçar o sentimento de Brás com relação ao acontecido: “E não importa o que acontecesse
[...] ele nunca esqueceria daquele momento.” (MOON & BÁ, 2011, p.125).
A experiência vivida por Brás embaixo da árvore do pai é um dos momentos que
passaram pelo crivo do seu racionamento. A cena o marcou, assim como o marcou a árvore e
a metáfora com a água. Seu pai estava presente em vários momentos da sua reconstrução, seja
pela sua presença imponente como escritor, seja pelos seus discursos e gostos que marcaram o
protagonista como, por exemplo, no hábito de fumar, na ocupação de escrever e até na forma
de lembrar o primeiro beijo.
A árvore aparecerá mais duas vezes de maneira marcante. Uma delas se dá enquanto a
família sai do sítio, enquanto o foco narrativo lembra da força daqueles momentos para Brás:
“Lembranças que levariam com eles pelo resto da vida.” (MOON & BÁ, 2011, p.127).
A última aparição da árvore se dá em um importante diálogo de Brás com o filho e
com o pai durante o sonho, no capítulo nove. Brás encontra Benedito e o neto sentados sob a
árvore, enquanto o avô lê uma citação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas
(1997), de Machado de Assis. Toda a cena trata dos paradoxos entre loucura x sanidade e vida
x morte.
Após encontrar-se com os dois, Brás dialoga com o filho sobre uma possível história
que, de acordo com Benedito, só poderia ser contada pelo protagonista. Brás, então, expõe
para o filho o tema da história: “... acho que é uma história sobre morte” (MOON & BÁ,
2011, p.219). O filho refuta, dizendo não gostar do tema, ao passo que ele responde
96
comparando a vida a um livro, que, de acordo com ele, sem o fim, não proporciona o deleite
do desenvolvimento.
O diálogo com Miguel termina quando ele convida o filho para ir se divertir enquanto
ele conversa com Benedito. É interessante perceber que o encontro das gerações é
possibilitado pelo espaço onírico em que se encontram e que ambos os diálogos discorrem
sobre a existência e espaços ocupados pela vida e pela morte.
O papel de Miguel na vida de Brás também é essencial para a percepção do seu modo
de ser-com os outros. A relação do protagonista com Miguel e com Ana é detalhada no
capítulo oito. Brás não está presente fisicamente em nenhum momento, mas mesmo assim,
através do modo de ser-com sua esposa e filho, ele é incluído na narrativa.
A capa do capítulo já retrata o mote dos momentos que se serão expostos
posteriormente. (Figura 14) A imagem apresenta Ana e o filho Miguel sentados na cama que
parece ser do menino. A coloração da cena é construída por um degradê de tons que partem
desde o chão até a sombra de Brás, que cobre do centro ao topo da página. A coloração varia
de cores quentes, em tons de magenta, e vai até uma coloração esverdeada, contrastando
friamente.
Essa mudança gradativa se intensifica na medida em que a cena se aproxima da fonte
de luz, que é caracterizada pela forma de Brás. Se adotarmos a categoria semântica presença x
ausência, no plano de conteúdo, poderíamos comparar com a dicotomia estabelecida pelo
plano de expressão cor quente x cor fria.
O plano de expressão se altera tematicamente na medida em que se distancia ou se
aproxima de Brás. Se, conforme vimos, a coloração se torna fria nesta aproximação,
poderíamos associar as cores frias com a presença de Brás, ao passo que quanto maior a
distancia das cores quentes de Ana e Miguel, mais ausente Brás permanece. As cores frias
remetem a sua presença porque esta se liga à sua morte no capítulo. Mesmo que evocado
como ser-com, é na atualização pelo Dasein do filho e da mulher que ele pode ser
personificado, pois sua presença é caracterizada pelas cores frias, ou, tematicamente falando,
pela morte.
Sua presença e sua ausência são evidenciadas em diversos momentos do capítulo.
Desde a cena do café da manhã, até trechos que apresentam Ana no trabalho e Miguel na
escola, Brás é citado constantemente pelo narrador. Um desses momentos pode ser percebido
97
na escola, quando Miguel é representado refletindo sobre a possibilidade de levar o pai para
até a escola para contar para a turma sobre sua profissão.
Na cena, em um dos quadros, Miguel retira o livro da mochila. Nos quadros seguintes,
Miguel está sozinho, com o livro do pai na mãos, cujo título é Olhos de seda. Alguns colegas
da escola aparecem e o insultam: “O papaizinho esqueceu de te buscar? [...] Ele nem gosta de
você. Nunca escreveu um livro sobre você.” (MOON & BÁ, 2011, p.187). Mesmo com as
provocações, Miguel não responde e permanece em silêncio.
Mas é no foco narrativo que as respostas e indagações do menino quanto ao pai são
apontadas.
Miguel nunca se importou em saber no que os pais das outras crianças trabalhavam. [...] Ele sabe a profissão do seu pai. [...] Ele está ansioso para trazer seu herói para escola e mostra-lo para todos. [...] O gato conhece todos os livros do pai, mesmo sendo jovem demais para ler ou entendê-los. [...] Ninguém o conhecia melhor de que seu filho orgulhoso. (MOON & BÁ, 2011, p.186-187).
Toda a cena demonstra o valor de Brás para o menino. Ele orgulhava-se da profissão
do pai, conhecia todos os seus escritos e o considerava um herói. O apreço que tem pelo pai é
similar ao que Brás sentia por Benedito, inclusive com um misto de desconfiança e raiva: “Ele
sente sua falta. [...] Alguns dias mais do que outros.” (MOON & BÁ, 2011, p.187).
O conflito das gerações, ou seja, entre pai, filho e neto também compõe o plano de
conteúdo do capítulo. Em um diálogo entre Ana e a sogra, elas discutem sobre como o cigarro
de Benedito e de Brás marcavam os espaços que eles circulavam. Enquanto este diálogo
ocorre, a narração mostra Miguel passeando pelo escritório do avô.
A sobreposição do diálogo sobre o passeio do menino se situa para além da artrologia
restrita daquele momento. Ela se estende dialogicamente por toda a artrologia geral da obra.
(Figura 15) Miguel caminha pelo escritório, coloca a mão sobre a mesa do avô. Na mesa, o
romance de Brás repousa próximo a máquina de escrever. O diálogo das duas mulheres sobre
a marca do cigarro ecoa por sobre as imagens: “Não dá pra não notar. [...] Perfeita para pai e
filho. [...] e quando ele me visita e acende um continental... [...] é como se o Benedito
estivesse ali, bem na minha frente.” (MOON & BÁ, 2011, p.189).
Ao comparar a presença de Brás com a de Benedito, um terceiro elemento é
apresentado visualmente: Miguel. Se Brás, através do cigarro e do hábito de escrita, se
compara ao pai, é em Miguel que a “herança” dos hábitos parece desaguar naquele momento.
98
O menino olha para a foto do avô, enquanto a fala da avó referencia a saudade que sente do
marido.
O foco narrativo e a narração dos quadros apontam para a junção dos três em um único
momento. Miguel, presencialmente, no escritório atualiza a presença do avô, pelo retrato, ao
passo que Brás, além de estar presente nos diálogos sobreposto às imagens, tem seu Dasein
atualizado pelo seu livro, em cima da mesa. Miguel ocupa-se dos elementos ali distribuídos,
mas também age sobre o modo de ser-com com o pai e o avô, mesmo que não o tenha
conhecido.
Outro momento em que o modo de ser-com de Brás é representado para além da sua
presença física, se dá na inferência narrativa do longa metragem O rei Leão13. O filme,
inspirado na peça Hamlet, de Shakespeare, apresenta Simba, um pequeno leão que perde seu
pai, Mufasa, numa trama de traição de Scar.
A inferência não poderia ser mais significativa, uma vez que a cena citada apresenta
Simba no momento em que descobre o pai morto. (Figura 16) A imagem, dentro do contexto
da narrativa, potencializa outras formas de relação, uma vez que o leitor já conhece os
caminhos habituais da narrativa, isto é, assim como Brás morre no fim dos capítulos
anteriores, o fim deste capítulo parece caminhar para o mesmo desfecho.
No entanto, Ana e Miguel desconhecem a trama e agem normalmente, ela lavando a
louça e ele apreciando o filme. A inserção dos frames do filme no desenvolvimento da
discussão “pai e filho”no capítulo é importante na medida em que atravessam-se os discursos
diegéticos da animação e a atrologia restrita da página.
Ao chamar pelo pai, a fala de Simba, “Pai, vem. Vamos pra casa” (MOON & BÁ,
2011, p.191) estabelece uma conexão com a desculpa de Miguel de que o pai o deixaria vendo
televisão até tarde: “O papai ia deixar eu assistir” (MOON & BÁ, 2011, p.191). A fala da
mãe, no entanto, dá um ultimato que serve para as duas colocações: “Seu pai não está... Agora
faça o que eu digo e vá dormir!” (MOON & BÁ, 2011, p.191).
É evidente que a fala de Ana refere-se somente a Brás. Mas, dentro da construção
artrológica da narrativa, a aparição da fala sobre a cena em que Simba deixa de chamar o pai e
deita ao seu lado é crucial para o desenvolvimento da relação entre Miguel e Brás. Assim
como Simba, Miguel precisa aceitar a morte de Brás e a sua não presença, anunciada pela fala
de Ana, significa a facticidade natural da existência de qualquer ente.
13 No original The King Lion (1994), de Roger Allers e Rob Minkoff.
99
A proposição da cena antecipa o diálogo entre Brás e Miguel durante o sonho, no
capítulo nove. O menino tem de aceitar a ausência do pai, tanto na ordem de ter que ir dormir
quanto na morte, ilustrada pela aparição de O rei Leão.
No diálogo do sonho, Brás ensina ao filho a importância de aceitar a morte como parte
da vida. Aprendizado que compartilha com o filho, mas que recebe do pai, nos últimos
instantes da narrativa. Na retomada da sua experiência de vida, Brás insere a morte como
elemento fundamental da relação entre ele e seu filho, assim como foi fundamental na
construção do seu Dasein e no seu modo de ser-com Benedito.
Há outra cena em que sua presença é evocada. O nascimento de Brás, narrado no
quarto capítulo, é caracterizado como um milagre pela mãe. Este acontecimento é contado por
Ana ao filho, durante um blecaute na casa. Ela conta que Brás nasceu sob condições
parecidas, enquanto um blecaute acontecia no hospital, e que ele, de acordo com a avó,
“nasceu para brilhar” (MOON & BÁ, 2011, p.195). Miguel, por outro lado, descreve a sua
relação com o acontecimento naquele momento: “Mas ele não tá aqui, e tá escuro e eu tô com
medo.” (MOON & BÁ, 2011, p.195).
A não presença do pai se contrapõe ao seu nascimento milagroso. Para Miguel, o
blecaute ainda estava lá e seu pai não, independentemente da sua relação “milagrosa” diante
de acontecimentos parecidos. O filho, mais uma vez, tem de aceitar a ausência do pai, mesmo
quando numa situação simples como um blecaute.
Ana diz para o menino ficar calmo, alegando que Brás voltaria em breve. No entanto,
as cenas seguintes revelam que algo fatídico acontecera. Uma série de espaços são
apresentados vazios, figurando apenas objetos que fazem menção à Brás: sua máquina de
escrever, o escritório em que costumava escrever, a cozinha em que deixava os bilhetes para
Ana; toda a ambientação visual favorece a pequena narrativa lida por Miguel na escola, que se
sobrepõe a narração pictórica:
“Porque você viaja tanto? Perguntou o homenzinho” [...] “Quando estou longe de casa, lembro do quanto tenho saudade da minha família.” [...] “E quando finalmente retorno...” [...] “...eles sempre se lembram do quanto me amam.” [...] Essa foi a última carta que o meu pai me mandou. Ele era escritor. (MOON & BÁ, 2011, p.197-198).
Convém estabelecer um paralelo entre a pequena narrativa e o título da obra,
Daytripper, o qual alude à ideia de viagens realizadas por Brás ao longo de sua vida. Sejam
viagens temporais ou de modos do seu ser, elas são sempre realizadas na sua conexão com os
100
outros e com a sua morte. A nosso ver, a carta sintetiza um dos movimentos realizados por
essas passagens de recapitulações do passado. Estar longe de casa, seja no espaço ou no
tempo, significa, para Brás, lembrar que tem saudade de sua família.
A descrição de Brás para a turma de Miguel se dá pela escrita, isto é, o aspecto que
caracteriza o protagonista está ligado à sua profissão. A pequena história contada por Miguel
também sintetiza o estado dele e de sua mãe com relação ao pai. Enquanto a história descreve
o retorno da personagem, ela lembra a família do amor que sentem: Brás não voltará. O
contraste entre as duas situações fortalece o caráter subjetivo da narrativa, que influencia o
modo de Miguel ver o pai.
A descrição de Miguel do pai é marcada pelo verbo ser no passado: “Ele era escritor”
(MOON & BÁ, 2011, p.198). Ao conjugar o verbo no passado, o ser de Brás é dado como
morto, enquanto, para Miguel, sua presença é ontologicamente ligada a si mesmo: “[...] meu
pai me mandou”. (MOON & BÁ, 2011, p.198). O pronome possessivo permanece indicando
Brás como seu pai, mesmo depois de morto, mesmo com o fim do Dasein.
O conflito presente no capítulo oito se conecta com a cena, já descrita, do encontro de
Brás com o filho durante o sonho. Da mesma maneira como a carta resumiria os sentimentos
de partida, Brás desenvolve uma interação entre narrativa e vida. Ao comparar a vida a uma
história, ele adverte sobre o papel do fim para o todo do livro. Este mesmo papel é o que ele
enfrenta, também, na conversa com Benedito, no fim do sonho.
O diálogo é bastante singular e carrega uma sinopse significativa para o
entrelaçamento de Daytripper. Brás e Benedito conversam sobre as escolhas do filho e sobre a
importância de Brás ler a sua história até o fim. O pai, ao que parece, é primordial como
motivação para que o protagonista siga no sonho que culmina na escrita do próprio obituário.
A nosso ver, Benedito quer auxiliar o filho a assumir a morte como parte de sua vida.
Sua motivação, que surtira efeito desde seus discursos sobre guardar na memória os melhores
momentos e sobre racionar a água que jorra no pensamento, pode ser também encontrada
tanto na sua fala, no sonho, quanto na carta deixada por ele para Brás no dia do nascimento de
Miguel.
A carta, que é lida nos últimos instantes da narrativa apresentada em Daytripper, fala
sobre a liberdade que Brás tem de aceitar que ter um filho é assumir o próprio Dasein e aceitar
a condição daquele que nasce de seguir o próprio percurso.
101
O pai está presente até o último momento de sua vida, mas atualizado pelo Dasein de
Brás. Ele não está lá, em carne e osso, mas sobrevive pela subjetividade do filho. Sua
presença pode ser percebida em um momento, perto do fim da narrativa, em que Brás
conversa com o filho Miguel. O filho o está chamando, mas ele parece olhar, distraído, para
uma árvore presente em seu quintal.
Abaixo da árvore, Brás enxerga o pai fumando. O reforço da fala de Miguel cria uma
interessante dualidade entre as gerações. A fala aparece solta pelo quadro, sugerindo que estas
perguntas podem estar vindas do próprio protagonista. Enquanto Miguel chama pelo pai, Brás
parece questionar Benedito dentro da mesma situação, evocando significados distintos para as
mesmas perguntas: “Já foi suficiente? [...] Está satisfeito? [...] Pai?” (MOON & BÁ, 2011,
p.239).
A ambiguidade do chamado pelo pai parece sugerir que Brás talvez estivesse
questionando Benedito, indagando-o sobre o relacionamento dos dois e exigindo dele uma
aceitação quanto à vida do filho, que agora já está com 76 anos. Além do fator etário, Brás
carregava o peso do câncer no cérebro.
O diálogo com Miguel após esta cena é exemplar para percebermos a autorreflexão de
Brás. Ele conta para o filho sobre a situação da sua doença e o filho o questiona sobre ainda
continuar fumando, mesmo sabendo da saúde debilitada. Brás o responde através de um
questionamento sobre aquilo que herdou de Benedito: “ [...] Isso faz parte de quem eu sou. É
como a escrita. [...] engraçado. [...] Dois vícios... duas paixões que eu dividi com o seu avô.
Cheguei a achar que fossem maldições. [...] agora vejo como minha herança.” (MOON & BÁ,
2011, p.240).
Brás parece assumir o caráter identitário das remissões feitas pelo cigarro e pela
escrita. A projeção do seu ser está ligada aos elementos adotados por ele durante as escolhas
da vida e estas projeções estavam em conexão com a vida e escolhas do próprio pai.
A sua fala, no entanto, sugere que ele relutava em aceitar estes aspectos como
positivos. Encarar como maldição, poderia induzir a ocupação dos objetos por vias de uma
não liberdade, como se suas escolhas não fossem suas, fossem programadas para estarem
ligados a sua vida.
Mas é fundamental para Brás a aceitação do pai como presença dentro das suas
ocupações. É um fator importante que repercute em suas falas ao filho: “Carregamos nossa
família dentro de nós. É quem nós somos.” (MOON & BÁ, 2011, p.241). Carregar Benedito
102
dentro das ocupações por ele realizadas, na escrita, no cigarro, no papel de pai, faz parte da
construção e projeção do seu Dasein. Parece-nos que Brás reconhece a natureza de ser-com do
seu próprio ser.
Sua libertação quanto a sua relação com o pai toma forma na sua ocupação pela carta
do pai. Ela resume a relação dialógica com Benedito, que continua agindo sobre as escolhas
do protagonista, mesmo que apenas atualizado ontologicamente pelo ser do filho.
A carta inicia com uma menção ao nascimento de Miguel: “Querido filho, [...] você
está lendo esta carta porque hoje é o dia mais importante da sua vida. [...] você está prestes a
ter o seu primeiro filho.” (MOON & BÁ, 2011, p.244). É significativo o motivo da carta e a
sua relação com o passado de Brás com o pai. Benedito fora apresentado pela narrativa como
um pai ausente e, em certa medida, negligente. Era passível de esquecer o aniversário do filho
e frio em alguns momentos de conversa com o filho quando criança.
No entanto, a carta apresenta um Benedito ligado não apenas a relação familiar, mas
ligado profundamente ao filho. Além de chamar o filho de querido, ele nomeia o nascimento
de Miguel como o dia mais importante da vida de Brás, o que sugere a relevância do
protagonista na sua vida.
A referência à relação dos dois não se interrompe apenas no início da carta. Toda ela
relata a importância do filho para a existência do pai:
Isto significa que a vida que construiu com tanto esforço, que você conquistou, que você fez por merecer, finalmente chegou ao ponto em que não lhe pertence mais. [... ] Este bebê será o novo mestre da sua vida. [...] Ele é a única razão da sua existência. (MOON & BÁ, 2011, p.244).
A revelação de Benedito por meio desta carta soa quase incompatível com seu
comportamento ao longo da trama. A visão de Brás do pai não parece ser a de que a sua
existência está atrelada ao pai como maestrina. Ao contrário, ele sempre vira o pai como
alguém neutro com relação a sua vida, algo que está mais aparente no primeiro capítulo da
narrativa. Porém, é justamente neste paradoxo que se sustenta o discurso de pertencimento no
Dasein do outro presente na carta.
A máscara da indiferença e neutralidade de Benedito se converte em uma atenção
constante para que a liberdade do projeto de ser do filho não sofra interferência do Dasein do
pai.
103
Você vai entregar sua vida a ele, seu coração e sua alma, pois quer que ele seja forte... [...] corajoso o bastante para tomar todas as decisões, sem você. De forma que, quando ele crescer, não precise mais de você. (MOON & BÁ, 2011, p.245).
Neste trecho, Benedito revela seu modo de ser-com o filho. Este modo se baseia na
emancipação de Brás, sugerindo que seu intuito era o de fortalecer o menino para que não
necessitasse mais da sua presença diante das suas escolhas.
Convém ressaltar o aspecto complementar entre os signos presentes na citação acima.
Enquanto a carta de Benedito discorre sobre o crescimento do filho de maneira livre, a
imagem apresenta Brás olhando para o lado, como se refletisse sobre o que lê. Se
considerarmos que a carta fora escrita quando Brás ainda era jovem, ela não consideraria a
disparidade temporal com que seria lida. Ao ler já idoso, a última frase potencializa o efeito
do texto, concretizando o desejo do pai. Ele já estava crescido, já havia tomado as decisões da
sua vida e não precisaria mais do pai.
É interessante enaltecer o aspecto das ocupações dos objetos em torno de Brás
enquanto lê a carta. Algumas carpas orientais aparecem em uma árvore, o mar à sua frente,
uma pipa no céu; vários elementos já apresentados por Daytripper são retomados neste
momento. Se considerarmos a reescrita como elemento fundamental de toda a narrativa, a
inversão possibilita o mesmo caminho, isto é, esta cena, talvez, seja quem influenciou todas as
referências anteriores. Brás ocupa dos objetos enquanto lê a carta e enquanto reescreve os
momentos da vida.
A fala do pai também evoca o modo de ser-para-a-morte de Brás. Toda sua
argumentação quanto a tentativa de fortalecer o crescimento do filho se respalda neste modo
de ser, ou seja, para assumir o fim de si mesmo e a incapacidade de permanecer sempre ao
lado do filho para suportá-lo.
Isto porque você sabe que um dia você não estará mais lá. [...] É apenas quando você aceita que vai morrer que consegue realmente se libertar... [...] e aproveitar a vida ao máximo. [...] Este é o grande segredo. [...] Este é o milagre. (MOON & BÁ, 2011, p.246).
O modo de ser-com, para Benedito, está estritamente ligado com o modo de ser-para-
a-morte. Parece-nos que, para ele, a única maneira de se libertar das formas de preocupação
errada quanto aos outros Dasein é na aceitação da morte, i.e., é na condição pessoal da morte,
que se consegue reconhecer a individualidade de cada Dasein e, consequentemente, do dasein
104
do filho. O mesmo acontece com Brás ao morrer em cada capítulo. Além de valorizar os
momentos de sua vida, também reconhece o Dasein do pai e sua importância em sua vida.
Convém ressaltar a menção ao adjetivo relacionado a Brás durante a narrativa,
sobretudo nas narrações da sua infância. Conhecido como “milagrinho” pela sua mãe, Brás
era assim referenciado pelo seu nascimento incomum, durante um blecaute do hospital. Ao
mencionar a maneira como o filho era qualificado, Benedito estabelece um comparativo. O
milagre, de acordo com a carta, é aceitar a própria morte. Os extremos da vida de Brás se
conectam no discurso do pai.
Os momentos finais da carta são essenciais para a temática de toda a trama. A carta
finaliza com um convite a aceitação da própria morte: “É apenas quando você aceita que vai
morrer que consegue realmente se libertar...”. (MOON & BÁ, 2011, p.247). A artrologia
restrita apresenta Brás na praia, acendendo três velas e se dirigindo para a água, com algumas
flores na mão.
As cenas seguintes dão continuidade ao ritual desenvolvido pelo protagonista. Brás
lança sobre o mar as flores que estavam em suas mãos, ao passo que a carta permanece sendo
enunciada nos recordatórios: “... e aproveitar a vida ao máximo. [...] Este é o segredo. [...]
Este é o milagre”. (MOON & BÁ, 2011, p.248). Há uma espécie de redundância no discurso
da carta na repetição das palavras “segredo” e “milagre”, o que enaltece o caráter enfático do
tema e da relação entre Brás e esta aceitação da morte.
Os momentos finais da narrativa mostram a esposa Ana deitada em sua cama. Alguns
dos elementos citados o longo da graphic novel são retomados na descrição visual do
ambiente. As carpas aparecem novamente, assim como a caixa de música com a boneca, a
máquina de escrever, um cartaz do Rio de Janeiro – referência ao avião que caíra em São
Paulo anos antes; todo o cenário recompõe trechos da experiência de Brás, como se fizessem
parte da reconstrução da sua experiência e da sua memória.
O término da carta tem um tom fúnebre se considerado sob o ponto de vista da morte
de Benedito. No entanto, é justamente sobre esta situação que ele evoca, no jogo existencial
entre pai e filho, o caráter individual de cada um, a aceitação pessoal da sua condição finita:
Sua vida já não está mais nas suas mãos... [...] assim como a minha deixou de estar, desde o dia em que você nasceu. [... ] Escrevo esta carta para lhe parabenizar ... [...] e para admitir que você não precisa mais de mim. (MOON & BÁ, 2011, p.249-250).
105
O paradoxo da liberdade ofertada pelo pai reside na relação entre os dois. Aceitar a
própria morte é viver sob a libertação do filho, na medida em que se vive para fortalecê-lo,
isto é, livrá-lo da necessidade do pai.
Benedito reconhece que agora que Brás também é pai, saberá viver para tornar o
filho forte o que, em contrapartida, significa reconhecer-se um ser-para-a-morte. Parece-nos,
que é este o motivo do ato final do protagonista na narrativa. Ele vai até a praia, lança as
flores sobre as águas, elemento constantemente referenciado ao longo da história e despede-se
do pai.
Mas, além da despedida do pai, o que se infere pelo momento vivenciado por Brás no
último capítulo é de que aos setenta e seis anos, com câncer no cérebro e com o filho já adulto
vivendo a sua própria vida, o protagonista tem de encarar a si mesmo, isto é, seu Dasein, perto
do outro extremo da vida, perto do milagre do fim.
O ritual conduziu-lhe para um adeus de si mesmo, como quem se despede da própria
vida. O que nos parece, é que este é o movimento realizado por Brás ao longo da narrativa e,
nesse processo, os obituários cumprem um papel primordial para o reconhecimento de um ser
que se percebe para-o-fim.
5.2 BRÁS E O MODO DE SER-PARA-A-MORTE
Toda a cena de morte apresenta-se como flashforward do fim do capítulo. Logo no
primeiro capítulo, após um pequeno prólogo, a imagem salta para uma manhã em que Brás lê
um jornal. O narrador anuncia que Brás tem um misto de sensações ao ler no jornal sobre uma
homenagem que acontecerá para o seu pai. As cenas seguintes descrevem sua tentativa de
esquecer os momentos em que seus pais ignoravam seu aniversário. A mãe parece repetir o
feito quando liga para o protagonista e não lhe dá parabéns.
Todo o capítulo descreve as tentativas de Brás de se esquivar de conversar com a
mãe, que o lembra sobre a homenagem do pai, e com a esposa, que lembra do seu aniversário.
É com Jorge, seu amigo, que ele trava uma conversa mais longa. O diálogo dos dois é de
suma importância para se percebermos sua inquietação com a profissão, com a escrita, e com
a própria vida: “Eu queria escrever sobre a vida, Jorge, e olha pra mim agora... [...] eu só
escrevo sobre a morte” (MOON & BÁ, 2011, p.24).
Sua indignação com o rumo da própria vida e a sua constante vinculação com a
morte simbolizam o esforço de Brás de encontrar um sentido para sua existência e a
106
independência do seu próprio ser, expresso principalmente na sua tentativa de ignorar suas
semelhanças com o pai e o seu legado de ser escritor: “Desligar-se do resto do mundo e
escrever. [...] Esquecer que a máquina de escrever foi presente de seu pai. [...] Esquecer que
aprendeu a fumar com sua mãe, e que fuma a marca preferida de seu pai. [...] Esquecer que
dia é hoje. (MOON & BÁ, 2011, p.19).
Brás manifesta sua constante tentativa de mapear seu próprio ser, encontrar a sua
individualidade, seu Dasein. A homenagem ao pai, os hábitos herdados dos seus progenitores,
seu aniversário, seu romance, trabalho, em suma, seu estado de relação com o cotidiano o
impedem de encontrar este estado de abertura para o ser. Ele luta para fugir da distração
causada pelo mundo na busca do seu ser, ao mesmo tempo em que percebe a constante
confluência do seu “Eu sou” com o “Tu és” da presença dos outros entes ao seu redor.
O que nos é revelado é a sua tentativa ontológica de encontrar a si mesmo, que o
motiva a tantos questionamentos sobre quem é, quem são os outros em relação a si e o que
significa viver da escrita dos obituários.
Os obituários representam uma importante forma de hipercodificação que são
utilizados para a revelação desta investigação do Dasein sobre o ser. O uso recorrente dos
obituários, ao se distinguirem da voz do foco narrativo, apresenta uma ruptura na noção
tradicional de recordatório e serve como um preceito novo da regra geral da obra, ou seja,
como elemento de atualização do desvio da norma e segmentação do próprio uso recorrente
de narrador. Os obituários criam uma aplicação particular dos usos do foco narrativo.
A presença dos obituários manifesta-se como as tentativas de que o ente de Brás
lança mão para alcançar as possibilidades do seu ser na natureza do Dasein de poder-ser e
encontrar, neste atravessamento de possibilidades, respostas, mesmo que figurativas, do seu
ser. A morte se apresenta como possibilidade da impossibilidade, mas agora se apresenta
acessível, tornando a existência finita.
O que temos acesso, através da narrativa, são os momentos de encontro de Brás com
a clareira que lhe revela as possibilidades do seu próprio ser. Seu Dasein, no movimento de
ente que se questiona sobre si mesmo, nos aparece em ocasiões distintas em que suas
possibilidades são apresentadas e o seu ser é inquirido, revelando a angústia que advém da
própria condição do Dasein e da experiência com o fenômeno da morte.
No entanto, o encontro com suas possibilidades ontológicas só poderia se revelar na
sua condição de ser-no-mundo. Nisto residem os percursos narrados da sua relação cotidiana,
107
seja como escritor de obituários e de romances, ou como pai, como marido, amante, filho etc.
Os objetos, as funções e os outros lhe são indispensáveis para a substância ôntica do Dasein e
estes lhe ajudam no encontro com o próprio ser.
Em cada capítulo, algum fato interfere na vida de Brás e de alguma maneira o seu ser
é indagado, levando-o a questionar sobre si mesmo. Podemos perceber este inquirir o ser no
fim do capítulo dois quando nos é apresentada sua morte em Salvador.
Todo o capítulo descreve suas aventuras na terra baiana: a beleza natural
compartilhada com o amigo, a cultura local com os seus atributos religiosos e a paixão vivida
com uma mulher que conheceu em uma viagem. A artrologia restrita do fim do capítulo
mostra Brás em um barco com um homem desconhecido. Ambos estão ali para participar de
uma celebração a Iemanjá, em que são levadas ofertas através do mar. Brás questiona a
ausência da mulher com quem tivera um encontro no dia anterior, já que ela é quem o
convidara para estar ali. A resposta, no entanto, é mais reveladora do que aparenta ser: “Vocês
não são um” (MOON & BÁ, 2011, p.56).
A marca semântica de “não-um” constrói a temática do restante da artrologia restrita
do capítulo e, como solidariedade contextual, favorece a construção imagética da separação
entre Brás e a jovem. O homem no barco retira o laço que prende dois bonecos em uma
oferenda enquanto enuncia as sentenças e é na construção da artrologia que se manifesta o
discurso divisor e de particularização do ente de Brás.
O mesmo argumento é expresso através da cor da cena. Ela também manifesta uma
divisão clara no plano de expressão de toda a página. Se adotarmos a redução gradativa da
tonalidade quente presente no céu como um elemento do plano de expressão que carrega uma
marca de sentido, perceberemos que a dicotomia estabelecida pela categoria semântica
solidão x par conecta-se com a categoria cores quentes x cores frias do plano de expressão
dos códigos visuais presentes nas três últimas páginas.
Gradativamente os nuances de vermelho vão se diluindo e as cores frias tomam conta
de quase todo o quadro, ao passo que é na redução drástica dos tons de magenta que Brás
também some dos próximos quadros, de maneira que apenas se pode visualizar o homem que
o recebe no barco. A solidão se reveste de azul e da morte solitária do protagonista.
Mostra-se expressiva também a descrição de Brás no obituário que encerra o capítulo
dois. Após sua morte na praia, não há menção da jovem que marcou a sua visita a Salvador,
muito menos a sua relação com a ida do rapaz ao barco:
108
Brás de Oliva Domingos visitava Salvador a tempo de participar da festa do dia de Iemanjá em 2 de fevereiro. Junto a milhares de pessoas, ele foi ao Rio Vermelho oferecer presentes à rainha do mar, mas desta vez ela quis muito mais do que foi oferecido. (MOON & BÁ, 2011, p.58).
A solidão de Brás e a divisão estabelecida nos quadros anteriores à sua morte
marcam a particularidade do seu próprio Dasein. Só lhe seria possível encontrar este Eu
através da sua singularidade, e sua morte só poderia ser solitária, mesmo que ele não
acreditasse, naquele momento, que os dois viveriam sendo dois e não um. O homem do barco,
ao apontar a distinção dos dois, indica a transcendência possível de Brás, isto é, ao dizer
“vocês são dois” o homem afirma, como se o instigasse a inquirir sobre o ser, que o Dasein é
somente de Brás e não poderia ser diferente.
É preciso que Brás assuma a sua possibilidade de encontrar o seu próprio ser. Este
exercício de possibilidade de escolha de se encontrar revela o fundamento do Dasein como
ser-cada-vez-meu.
E, porque o Dasein é, cada vez, essencialmente sua possibilidade, esse ente em seu ser pode se “escolher”, pode ganhar a si mesmo ou pode se perder, isto é, nunca se ganhando ou só se ganhando “em aparência”. Ele só pode se haver perdido ou ainda não se ter ganhado na medida em que, segundo sua essência, é um possível ser próprio, isto é, na medida em que ele tem a possibilidade de se apropriar de si. (HEIDEGGER, 2012, p.141).
É a essência da possibilidade de encontrar o seu “ganhar a si mesmo” que é evocada
nos saltos temporais e de localidade do Sonho no capítulo nove. Em cada momento narrado
no sonho, Brás é provocado para que faça escolhas, para que encontre na sua existência o
despertar de algo indefinido, de um caminho que o libertará para o próprio ser.
A decupagem estabelecida na primeira cena apresenta um diálogo de Brás com quem
aparenta ser Iemanjá, em um cenário semelhante à sua morte no capítulo dois. Ela o instiga a
encontrar seus sonhos, vontades e desejos, na sua experiência ôntica, para que pudesse de
alguma maneira, encontrar as “forças que o movem”.
Vale ressaltar que o narrador descreve que Brás já experimentara estes sonhos outras
vezes. “Não havia mistério” no desafio proposto pela mulher. Sua vontade de se projetar para
o futuro, ou seja, a preocupação com a sua existência, manifestava-se como algo constante na
sua vida. Seu devaneio com o futuro era sempre a indagação da sua vida, de quem ele
realmente era. Para isto, é preciso que ele transcenda seu estado de contemplação para o
109
próprio ser, no sentido proposto por Heidegger, e que ele se abra para a sua possibilidade
como Dasein: “Acorde, antes que seja tarde demais.” (MOON & BÁ, 2011, p.205).
Percebe-se, na artrologia de todo o capítulo, que é o movimento de se encontrar com
as suas possibilidades diante da cotidianidade mediana, parte constituinte do ôntico do ente,
que o leva ao jogo para qual está também o Dasein, ou seja, no confronto entre o modus de
fuga do ser e a apreensão do ontológico. Em suma, Brás parece ter que escolher entre assumir
a busca pelo ser ou viver na fuga para a qual a vida cotidiana o lança. Este conflito aparece na
fala do amigo Jorge, diante da sua tentativa de fuga do sonho: “Você não pode simplesmente
fugir, sabe? Nunca é tão fácil assim” (MOON & BÁ, 2011, p. 217).
Outra passagem que manifesta a hesitação de Brás em lançar-se para apropriação de
si mesmo está no momento em que ele toma um café para se distrair dos problemas que o
incomodam no trabalho. Mas estes problemas não são propriamente sobre o trabalho, mas
sobre algo maior, algo que gera medo.
A decupagem estipulada através da cena manifesta a tentativa de Brás de encontrar
na medianidade do cotidiano uma distração para a preocupação própria do Dasein na sua
condição de ser-no-mundo. Seus problemas estavam no sonho, naquele projeto de ser, com as
“forças” descritas por Iemanjá, aquelas que o moviam pelas possibilidades de encontrar a si
mesmo na existência.
A chamada para o medo é um importante elemento a ser percebido como parte
constituinte do ente do homem. O medo o acompanha de maneira intrínseca, uma vez que
tudo aquilo que se teme é manifesto pela condição do próprio Dasein, é a ele mesmo, Brás,
que se volta a preocupação. Em outras palavras, o próprio Dasein é que evoca a si mesmo
como temor: “o medo traduz sempre o sentimento originário do ser intramundano, que sente a
sua existência como que ameaçada, e, por isso mesmo, faz parte da existência,
acompanhando-a sempre” (JOLIVET, 1961, p.108).
O sentir medo do fracasso, na busca pelos sonhos, revela o próprio Dasein de Brás.
Seu conflito entre sonho e realidade condiciona a sua caminhada para o desafio final. A
decisão de assumir a própria facticidade de estar lançado-aí, além de chegar a autenticidade
através da aceitação da Angst e da morte.
Não à toa, sua trajetória no sonho culmina no momento decisivo, em que seu amigo o
convoca para o encontro final. A autenticidade possível para o Dasein só se manifesta através
da angústia, e é este caminho que Brás percorre para chegar à conversa com seu pai e com seu
110
filho, ao fim do capítulo. A angústia é o sentimento fundamental do ser-no-mundo e exprime
o sentimento originário de todos os outros, inclusive aqueles elencados por Iemanjá (desejo,
vontades, forças que o movem). Mas não há definição daquilo que a angústia determinaria
como seu contrário, o que caracterizaria um modo de existência diferente daquele
estabelecido pelo medo.
É o isolamento do ente que confere a forma medular da angústia como sentimento
originário. Por este motivo, talvez, é que Brás não consiga as respostas para as perguntas que
faz para todos os outros que interagem com ele durante o sonho. O confronto com Iemanjá,
com a esposa, com o chefe, com sua fã, com o amigo; todos levantam mais perguntas e o
afastam de uma definição desta angústia que o assola em todo momento:
A angústia permanece como centro do seu sonho e ele não consegue escapar desta
força. As perguntas começam a cessar conforme ele adentra para o sonho, junto com o
sentimento originário da angústia, para a aceitação da sua própria morte. Entretanto, antes de
assumir a sua solidão nesta caminhada, ele tem de assumir seu próprio Dasein, reconhecer a
solidão do seu próprio ser dentro da sua trajetória como constante possibilidade.
Seu pai o questiona sobre sua continuação até o fim do sonho. (Figura 17)
Contrariado, ele pergunta sobre a sua possibilidade para seguir em frente e a resposta do pai
define a cura para a perda de si na ditadura do impessoal: “Você sempre tem escolha”
(MOON & BÁ, 2011, p.221)
A importância dada pelo pai para a busca pela autenticidade é ímpar para a
percepção da relação do protagonista com o pai e da sua existência com o ser. Na decupagem
da cena, enquanto declara a sua constante possibilidade de escolha, o pai lhe oferece um
cigarro, retomando a semelhança que o jovem escritor tem com o pai.
Brás, como todo ente do homem, está fadado à queda (Verfallen). É condição
existencial do próprio Dasein que este permaneça “decaído” sob a rede do mundo, isto é,
mantenha-se como um “não-ser” ele mesmo, atuando com a comunidade na qual se insere,
mas atuando como um “ser outro”. Para Heidegger, como determinação do Dasein, ele já está
decaído, e por ser assim determinado, a queda apresenta-se como algo positivo. No entanto, é
a Alienação (entfremdung) que causa a inautenticidade. É a perda das possibilidades que
determina o estado de se encontrar longe da “vida plena”.
A decupagem do quadro em que o pai de Brás lhe oferece o cigarro desenvolve um
aspecto interessante sobre o Dasein de Brás e a artrologia geral da narrativa: a possibilidade.
111
Ele tem a possibilidade de escolher entre fumar um cigarro igual ao do pai ou não, seguir
escrevendo como pai ou não, fumar como a mãe ou não, escolher se deve seguir no sonho, i.
e., na busca pela resposta para a sua angústia ou não. É-lhe sempre dada a oportunidade de
escolha sobre as ações e sobre o seu Dasein.
O entrelaçamento dado entre este quadro e todas as outras cenas vividas por Brás,
sugere cada vez mais a dimensão das suas escolhas com os momentos que definem a sua
busca de encontrar ontologicamente o próprio ser e a sua relação com o mundo que o cerca.
Na tentativa de Brás de encontrar no seu Dasein a autenticidade do seu próprio ser,
ele revela também o seu modo de ser-no-mundo, caracterizando a simultaneidade do seu
Dasein com a presença dos outros seres e a instrumentalização dos objetos. O protagonista
tem de reconhecer os traços definidores do seu Dasein como ser-junto-a e ser-com-os-outros:
“Nada vai trazer o ente querido deles de volta, mas cada pequena informação nova ajuda.
Cada obituário novo acaba com uma dúvida, deixa uma família em paz.” (MOON & BÁ,
2011, p. 148).
O que Ana reitera na sua fala é a atualização que a obra também traz não apenas aos
objetos internos à instrumentalidade, mas também às remissões de portador e usuário. Para
Heidegger, a obra também remete ao consumidor e às práticas em torno da obra, o que, em
última análise, vai remeter ao próprio modo-de-ser do ente do homem. “Com a obra, portanto,
não vem-de-encontro somente o ente que é utilizável, mas também o ente do modo-de-ser do
homem, em cuja ocupação o produzido se torna utilizável” (HEIDEGGER, 2012, p.217).
À vista disto é que Brás recorre à máquina e à sua utilizabilidade como escrita para
compor seu obituário ao fim do capítulo nove. O fim do seu sonho o leva para uma praia,
onde uma máquina de escrever descansa sobre uma mesa. Brás vai até ela e inicia a escrita do
seu próprio obituário.
O obituário, desta vez, está em primeira pessoa, o que direciona a autoria diretamente
para Brás. A voz deste obituário não difere daquela presente nos outros obituários, uma vez
que está caracterizada com a mesma coloração no espaço do recordatório presente nos oito
capítulos anteriores.
À utilizabilidade da máquina trás ao encontro também o próprio Dasein de Brás, e é
através dela que o seu esforço de questionar o seu próprio ser é recobrado. O ser-junto-a como
modo de ser-no-mundo possibilita a Brás a apuração de um dos seus modos de ser e, por
conseguinte, permite o trato da ocupação de maneira distinta: escrever para Brás não apenas
112
se define na sua utilizabilidade mediana, isto é, na sua aplicação cotidiana. Ela encontra uma
dimensão mais profunda, sua utilizabilidade está ligada ao questionamento do próprio ser de
Brás.
A máquina de escrever assume um caráter ontológico para Brás quando representa,
para ele, uma relação direta com o mundo, com o escrever artístico e consigo mesmo, na auto
absorção de si para o romance que está escrevendo - “Desligar-se do resto do mundo e
escrever” (MOON & BÁ, 2011, p.19) – e para os obituários que escreve sobre suas
possibilidades – “Nos meus sonhos, sou o escritor da minha própria história, embora nunca
escreva sobre mim mesmo, sendo este obituário a primeira e única exceção” (MOON & BÁ,
2011, p.225).
Brás utiliza da escrita para ir de encontro a morte, da mesma maneira que Kafka e
Rilke também faziam. O desejo comum entre todos eles é o de experimentar o espaço da
escrita, que possibilita transitarem entre os extremos: “O espaço onde tudo retorna ao ser
profundo, onde existe passagem infinita entre os dois domínios, onde tudo morre, mas onde a
morte é a sábia companheira da vida, onde o pavor é êxtase, onde a celebração se lamenta e a
lamentação glorifica.” (BLANCHOT, 2011, p.152).
A experiência da literatura propicia aos autores adentrar-se para o espaço onde a
morte é possível e é vista como celebração. Brás encontra a morte em cada capítulo através da
escrita de si e só através dela é que pode vislumbrar seu próprio Dasein.
Embora a ocupação em Heidegger se dê pelo uso prático dos instrumentos, ou seja,
da instrumentalidade dos objetos que vem-de-encontro, sua ocupação acontece na relação do
Dasein como ser-no-mundo. É através do seu trato com o ente-do-interior-do-mundo que
também se lhe revela parte da sua forma de ser-junto-a. É na sua utilizabilidade que Brás
define a obra e um dos seus modos de ser para, assim, poder encontrar o seu ser próprio.
Na cena em que Brás se utiliza da máquina de escrever para a escrita do seu obituário
há também a “menção” de outro ente-do-interior-do-mundo: as carpas birutas. A
utilizabilidade das carpas não é retratada nesta cena, mas em outros momentos, como em
frente à sua casa no primeiro capítulo e no último, no momento em que lê a carta que recebeu
de seu pai. Nas cenas cotidianas, diferentemente das cenas do sonho, as carpas cumprem a
finalidade de decoração. Como instrumento, elas são “para algo”, ou seja, para ornamento. No
entanto, sua ocupação pode ser dada de maneira distinta se considerada sob o viés cultural e
as outras remissões estabelecidas pelo aparato.
113
A tradição japonesa do Kodomo no Hi (dia das crianças, ou dia dos meninos), inclui
o ornamento do Koinobori como símbolo do que se deseja às crianças:
No Japão, há duas grandes festividades relacionadas com as crianças: o Festival dos Meninos (Tango no Sekku), comemorado no dia 5 de maio, e o Festival das Meninas (Hina Matsuri), comemorado no dia 3 de março. No Festival dos Meninos, os japoneses têm o costume de enfeitar a parte externa das casas com os koinobori, enfeites em forma de carpa que balançam com o vento, com o intuito de pedir saúde para os meninos. Em geral, os koinobori são hasteados de modo a compor uma série vertical. (ARAGÃO, 2010, p.225).
Possivelmente, o rito utiliza-se da carpa pela capacidade que ela possui de enfrentar
grandes correntezas no período de sua desova. A luta enfrentada por ela e a sua consequente
vitória sobre o fluxo forte da água representam uma alegoria com a futura vida dos meninos e
a necessidade de saúde para enfrentá-la como uma correnteza.
Desta forma, as remissões da ocupação das carpas biruta remetem diretamente ao
contexto cultural japonês, que, por sua vez, remetem à própria carpa, que remete à sua
natureza de desova e à água. Estas séries de remissões fazem parte da utilizabilidade das
carpas biruta como ornamentos e se ligam à forma de ocupação delas por parte de Brás. Ele se
utiliza delas como instrumento de decoração, mas dotados de significados e remissões
anteriores.
Neste sentido, sua ocupação se dá num viés prático de decoração alegórica. No
entanto, sua aplicação durante o sonho revela ainda o próprio sentido da ocupação por parte
de Brás. O que nos é revelado é a subjetividade da sua ocupação dos entes-que-vem-de-
encontro. A forma de ser-no-mundo como ser-junto-a do Dasein de Brás nos é revelada na
investigação do seu próprio ser. Para encontrar o seu próprio ser, Brás reconhece seu modo de
ser-junto-a e, para tanto, ocupa-se dos objetos justamente no exercício de encontrar a sua
angústia e assumir o encontro com a própria morte.
A ocupação das carpas reitera o seu modo de ser-para-a-morte (Figura 18). Com a
força alegórica do peixe, que enfrenta a corrente para desovar, Brás escreve o obituário,
enfrentando a corrente da própria existência e aceitando os desafios inseridos no salto
ontológico de definir quem é e a facticidade do seu ser.
Embora o seu sonho manifeste a relação de subjetividade na ocupação de cada
objeto, é na prática que estes lhe vem-de-encontro. É na escrita dos obituários para o jornal
que ele se relaciona diretamente com a máquina de escrever como utilizabilidade. É no seu
trato como ornamento que ele se relaciona com as carpas. Em suma, é no mundo, no sentido
114
ôntico, que Brás toma os elementos como instrumento, mas é a mundidade, ou seja, o seu
modo de ocupação destes entes que se revela através do seu sonho.
Há ainda a aparição da pipa que é referenciada não apenas no sonho, manuseada pelo
seu filho, mas no apêndice que narra a sua infância. Na cena final da graphic novel, enquanto
Brás lê a carta (objeto que traz em si a remissão do ato da escrita) as carpas aparecem sobre
ele e ao longe se pode avistar uma pipa sendo levantada por algumas crianças. Uma ênfase
especial é dada no último quadro da página, quando a pipa se apresenta como um elemento
mais relevante na decupagem da cena.
Ao ocupar-se da máquina de escrever, da pipa e das carpas biruta, Brás emprega a
utilizabilidade de cada objeto e suas remissões que findam na prática diária com o que vem de
encontro e com a natureza do próprio Dasein. Ao determinar o que-vem-de-encontro, ele
define seu próprio modo de ser no mundo.
Entretanto, sua investigação sobre o seu próprio ser estaria incompleta se ignorasse
os outros modos-de-ser do Dasein. Sua forma de ocupação se dá unicamente com os entes que
“é o empregado, o produzido etc.” (HEIDEGGER, 2012, p.207). Mas há ainda aqueles com
os quais o ente do homem se depara na partilha da ocupação, pois ser-no-mundo, para ele, é
também Mitsein (ser-com-os-outros).
Toda a narrativa de Brás revela as maneiras com as quais Brás reconhece a presença
dos outros. Suas formas de ocupação com os entes do interior-do-mundo também revelam a
sua condição de Dasein que é ser-com. A máquina de escrever, como vimos, revela a sua
forma de ser-com o pai, que é referenciado significativamente ao longo da trama.
A forma de preocupação com os outros aparece constantemente em cada momento
da vida de Brás. Seja com o pai, com o melhor amigo, ou com suas relações amorosas, seu
modo-de-ser se liga diretamente aos outros. O Dasein de Brás é sempre dado na condição de
ser-com.
A busca de Brás pela sua questão sobre o ser não se esquiva do compartilhar do seu
ente com os outros ao seu redor. Se o Dasein é, por definição, ser-no-mundo, este também é
Mitsein, isto é, ser-com-os-outros. A presença do outro é garantia do modus de ser-junto-a
com os objetos, uma vez que o ente não produz sozinho e unicamente para si mesmo, o outro
também produz e faz parte dos modos de ser cotidianos. O Ser só pode-ser na medida em que
se estrutura como ser-com.
115
Se este modo de ser releva-se fundamental para o próprio Dasein, Brás precisa
reconhecer, neste processo de visualização da suas possibilidades de ser, a presenteidade dos
outros e, inclusive, a sua própria presença como ser-com o outro e ser também para o outro
um ser presente.
A narrativa expõe diversos elementos do entrelaçamento entre os capítulos,
desenvolvendo códigos que, por repetição e conexão, auxiliam no arremate da leitura de
Daytripper. Embora a morte seja, semanticamente, a questão mais relevante, não podemos
ignorar outros aspectos ligados aos modos de ser do Dasein de Brás.
A repetição de alguns objetos pode dar indícios da sua relevância semântica no plano
expressivo da graphic novel. A máquina de escrever, instrumento utilizado por Brás no
trabalho como escritor de obituários e como romancista, é representada em diversas cenas da
narrativa. No primeiro capítulo, quando ele tenta se esquecer do próprio aniversário e do
evento em homenagem ao pai, é a maquina de escrever que ele recorre.
Toda a decupagem desenvolvida na página (figura 19) estabelece o tempo em que
Brás parece tentar fazer uso da máquina de escrever. As imagens, inclusive, com a seleção das
cenas e enquadramentos, favorecem uma assimetria com o discurso presente no foco
narrativo. De acordo com o conteúdo verbal, Brás não se importa com nada além da escrita,
naquele momento, embora, de fato, como nos é revelado pelo desenho, ele não escreva nada.
Mostra-se interessante, contudo, a forma como cada discurso parece desenvolver a
unicidade entre a vontade de Brás e a situação de fato. O discurso presente no texto verbal
carrega marcas semânticas de esquecimento, mas são todos dados através do discurso indireto
livre do narrador. Embora este dite constantemente a tentativa do esquecimento, seu uso
estilístico aponta para o pensamento do protagonista, que tenta, durante um bom tempo
(elemento dado pela imagem) esquecer de fato os dramas descritos.
A imagem, por sua vez, apresenta o tempo e espaço da narrativa e enfatiza a
subjetividade do personagem quando apresenta categorias visuais para a solidão e realce do
seu monólogo interior. Se adotarmos a dicotomia entre luz x sombra, ou magenta x amarelo,
nos quadros na página analisada, e adotarmos a categoria semântica destaque x irrelevância
como categorias do conteúdo da página, poderemos perceber que o uso da luz sobre o rosto de
Brás e sobre as suas mãos nos quadros menores, assim como a sombra que mascara os demais
elementos do seu escritório favorecem ainda mais a percepção do monólogo no texto do foco
116
narrativo. Inclusive, o quadro em que aparecem os cigarros gastos por Brás dá indícios do
tempo em que ele parece tentar extrair algo da máquina.
Neste sentido, o foco narrativo parece cumprir a função dada por Groensteen de
dramatizar a cena, uma vez que o visual já daria conta de insinuar sua frustração em não
conseguir escrever. Além disto, a relevância do verbal, nesta cena, se dá na caracterização
daquilo que incomoda Brás. Mas há nesta complementaridade a redundância que aponta
enfaticamente para o objeto máquina de escrever. “Esquecer que a máquina de escrever foi
presente de seu pai” (MOON & BÁ, 2011, p.19).
A redundância aparente com a enunciação da máquina de escrever, sendo mostrada,
inclusive, no mesmo quadro, nos condiciona a perceber sua potencialidade narrativa como
situação de entrelaçamento. A máquina passa a representar mais do que o simples ato de
datilografar, ela é atualizada em seu modo-de-ser, isto é, no seu Zunhanden para Brás. Ele se
ocupa da máquina como ferramenta de trabalho, ou seja, liga-se a ela como instrumento
prático.
Para Heidegger, os instrumentos atuam sempre na relação de um todo instrumental e
se ampliam, em cadeia, nas mais variadas formas de utilizabilidade. Para tanto, uma ocupação
de instrumentos não é desprovida de “teoria”. Há uma visão na ocupação daquilo que vem-de-
encontro, e toda ocupação carrega consigo uma série de remissões que vão desde outros
instrumentos diretamente ligados à coisa manuseada (uma maçaneta remete a uma porta, que
remete a madeira, que remete a árvore etc) até o portador, produtor ou usuário do produto
criado.
Com a obra, portanto, não vem-de-encontro somente o ente que é utilizável, mas também o ente do modo-de-ser do homem, em cuja ocupação o produzido se torna utilizável; e juntamente vem-de-encontro o mundo em que vivem portadores e consumidores, o qual é, ao mesmo tempo, o nosso. (HEIDEGGER, 2012, p.217).
Assim, Brás se ocupa da máquina para a criação do seu romance, que por sua vez
tornar-se-á utilizável para um leitor, que fará vir-de-encontro o consumo e o comércio livreiro
etc. Da mesma forma, o papel na máquina de escrever, a tinta usada na máquina, todo
instrumento se dá na relação com as várias remissões possíveis, para o qual Brás também faz
uso no seu modo de ser-junto-a.
Outro momento da narrativa que reforça a conexão de Brás com a máquina e o todo
instrumental por ela atualizado se dá na sua visita ao escritório do pai no capítulo quatro.
117
Os quadros que narram a passagem pela mesa do pai trazem à tona a ocupação da
máquina de escrever por parte não apenas de Brás, mas do seu pai também. É a máquina de
Benedito que aparece em um dos quadros, mas é a ocupação de Brás pela máquina e o vir-de-
encontro do seu livro Olhos de seda que perpetuam o modo de ser da máquina e o todo-
instrumental atualizado por ela.
A remissão do livro em relação à máquina de escrever é claramente atualizada pela
decupagem no terceiro quadro da página14. Se adotarmos a dualidade da presença ou não
presença para compreender o plano de conteúdo que forma a construção do plano de
expressão da imagem, perceberemos que alguns elementos básicos da composição fortalecem
a condução ao livro como aquilo que vem-de-encontro com a máquina e com a utilizabilidade
dela mesma.
O plano de conteúdo destaque vs. não-destaque inscreve-se numa relação semi-
simbólica quando o plano de expressão se correlaciona com o conteúdo na forma da
composição centro vs margem. Na construção de toda a cena, o livro aparece como o centro
do quadro, inclusive aparecendo na sua forma total. Por outro lado, a máquina de escrever, o
bloco de anotações, objetos do vir-de-encontro à escrita (ou vir-de-encontro ao livro) são
colocados em segundo plano.
As formas de composição plástica também se manifestam na dualidade entre a
coloração mais viva e outra dissolvida com o cenário. O livro difere radicalmente na cor,
apresentando uma tonalidade que se distingue dos outros elementos, os quais assumem
visualmente cores próximas àquela que marca o chão ou o restante do cenário. Em suma, a
plasticidade também aponta para a ênfase da categoria semântica, destaque vs não-destaque,
quando difere a coloração do livro, próxima a um tom de azul, do restante dos elementos
apresentados pelo quadro, que se limitam a tons terrosos e mais opacos.
A complementaridade proporcionada pelo foco narrativo também contribui para uma
percepção do modo-de-ser da máquina de escrever e a sua ampliação com o vir-de-encontro
do livro. O vínculo entre escrita e leitura, dado pelo questionamento levantado pelo foco
narrativo, liga-se diretamente com o todo-instrumental da escrita de Brás. A pergunta refere-
se ao seu pai – “o que ele estaria escrevendo agora”, mas a segunda pergunta liga-se
diretamente à ocupação de Brás pela máquina de escrever, “o que ele estaria lendo?” (MOON
14 Na figura em questão, o exemplo refere-se ao segundo quadro, uma vez que o trecho está recortado da página
para melhor inserção no trabalho.
118
& BÁ, 2011, p.105), ao passo que a imagem destaca, como analisado anteriormente, o livro
de Brás. Em suma, mesmo quando se fala sobre o pai, é o modo de ocupar-se de Brás sobre a
máquina de escrever que está em jogo. Mesmo que seja a máquina do pai, o modo de ser dela
é dado pela ocupação no modo de ser-no-mundo do Dasein de Brás.
Com efeito, as remissões da máquina de escrever não apenas trazem o todo
instrumental daquilo que-vem-de-encontro, isto é, aquilo que é, por essência, utilizabilidade.
Para Heidegger, a obra apresenta a finalidade do instrumento e traz em si mesma, o modo de
ser de cada instrumento utilizado para sua realização.
Aquilo junto a que o trato cotidiano de pronto se detém não são os instrumentos-para-obrar, as ferramentas elas mesmas, mas a obra, o que deve ser produzido em cada caso, aquilo de que há primariamente ocupação e, por conseguinte, é também utilizável. A obra sustenta a totalidade-de-remissão em cujo interior o instrumento vem-de-encontro. (HEIDEGGER, 2012, p.215).
Em suma, a finalidade do instrumento é apresentada também como aquilo que a
define. Uma cama montada, por exemplo, remete à madeira, ao parafuso, a parafusadeira etc.
Ao passo que, além de se apresentar como obra, também utilizável, remete aos instrumentos
que são dados como aquilo que vem-de-encontro internamente à própria obra.
A máquina de escrever, para Brás, apresenta-se como aquilo-que-vem de encontro,
mas sua utilizabilidade é internamente remetida no interior do seu livro Olhos de seda.
Entretanto, não é apenas ao livro que se dirige a instrumentalidade da máquina de escrever de
Brás. Os obituários também fazem parte da sua ocupação do objeto e a obra final apresenta-
se, no todo-instrumental do cotidiano, como consolo aos outros Dasein. Sua utilizabilidade
está na fruição dos outros pela morte dos entes perdidos. Esta utilização prática fica evidente
quando sua esposa, no capítulo seis, descreve a relevância dos obituários para os familiares
que perderam entes queridos numa tragédia descrita pelo capítulo.
No entanto, os obituários representam para Brás mais do que um instrumento de
trabalho. Eles o atingem e marcam sua forma de lidar com o mundo e com a própria vida. O
início da narrativa apresenta alguns obituários, antes de mostrar o protagonista refletindo
sobre a própria profissão:
As pessoas morrem todos os dias. Este foi o pensamento mais reconfortante que Brás teve enquanto todos os obituários que escrevera para o jornal passavam diante dos seus olhos. [ ... ] Ele acabou de perceber que, mesmo quando não está mais escrevendo sobre isso... [...] as pessoas vão continuar morrendo. (MOON & BÁ, 2011, p. 13-14).
119
A morte dos outros afeta as projeções do Dasein de Brás. O modo de ser-com age
sobre o questionamento do seu próprio ser. Enquanto experimenta narrativamente a morte dos
outros, Brás não consegue deixar de refletir sobre a própria morte. Seu trabalho o lembra todo
o tempo de que todo ser é um ser-para-a-morte.
Brás não consegue fugir do inquirir o próprio ser, mas através da morte. A pergunta
“quem é você” é interpelada pela morte dos outros durante o seu modo de ser-com, enquanto
escreve os obituários ou é afetado pela morte do melhor amigo, do pai etc.
A preocupação, que é inerente ao ser enquanto estiver vivo, é intrínseca ao modo de
Brás se relacionar com os outros. Ele está constantemente preso à morte e a angústia advinda
dela interfere na sua escrita e na sua forma de voltar-se para si mesmo, seja no dia-a-dia ou na
reescrita de toda a obra.
A caracterização da natureza do Mitsein pode ser visualizada na ausência icônica de
Brás durante o capítulo oito, em que a sua morte e vida são apresentadas sob a perspectiva da
sua esposa e filho (Figura 20). A complementaridade entre palavra e imagem neste capítulo
tem uma disposição mais enfática na sua relação. O foco narrativo concentra-se no papel de
Brás nas relações diárias entre a família, enquanto a imagem apresenta a ausência do
protagonista no momento em que a história é narrada.
No primeiro quadro, o foco narrativo expõe o esforço de Brás para tomar café com a
família, ao passo que imageticamente, sua presença é ausente. A dicotomia estabelecida entre
sua presença e ausência se intensifica por toda a página. O foco narrativo demonstra o hábito
de Brás não falar muito durante o café. No entanto, a ausência da sua fala encontra outro
sentido quando a decupagem do quadro apresenta uma redundância entre os códigos. A
imagem mostra uma cadeira vazia, além de alguns elementos espalhados sobre a mesa. Se
adotarmos a ideia de presença vs ausência do plano de conteúdo, notaremos que, no plano
expressivo, a combinação de cores e enquadramento se conectam a discursividade
estabelecida pela artrologia restrita da página.
A cadeira se encontra alinhada no centro do quadro. Sua posição divide o quadro
horizontalmente junto com o término da mesa e direciona perpendicularmente o olhar com o
sentido das hastes e o seu ajuste equilibrado com o alinhamento vertical. Como categoria do
plano expressivo, a dualidade centro x margem culmina na relevância temática da presença
(ou da ausência, se adotada sob a inversão da categoria como ausência x presença).
120
Outro elemento que fortalece o sentido de presença vs ausência no quadro se dá na
coloração utilizada para caracterizar o espaço comumente ocupado por Brás e o ambiente em
torno. A apresentação da cadeira, mesa e fundo se dá por meio de cores complementares para
a caracterização destas. As cores complementares são aquelas que se apresentam
diametralmente opostas em um círculo cromático e, quando utilizadas em conexão dentro de
uma imagem, apresentam equilíbrio entre os objetos e harmonia entre os elementos figurados
com tais cores. As cores complementares geralmente são utilizadas para apresentar um
contraste e/ou fortalecer os objetos descritos sem uns aos outros.
A parede, ao fundo, é toda apresentada sob a tonalidade de um azul mais claro. A
cadeira, por sua vez, é meio amarelada, com nuances de ocre e bege, enquanto o descanso de
prato é representado, em destaque, com a cor laranja. A complementariedade da cor azul, no
tom apresentado como fundo do quadro é justamente a cor alaranjada, conforme o círculo
cromático. Este destaque para o objeto não poderia ser mais representativo: é justamente sob o
descanso de prato destinado a Brás que se enfatiza a cor e, logo, a ausência daquilo para qual
se destina o objeto.
Assim, a descrição icônica do quadro apresenta, como plano expressivo, as
categorias centro vs margem e azul vs laranja, enaltecendo a centralidade da presença (ou
ausência) e o equilíbrio enfático entre uma cor e outra, o que possibilita a descrição da
ausência como complemento do espaço que é dado pela cor da parede da cozinha.
Não obstante, esta dicotomia apenas manifesta a dialética da presença vs ausência
no sentido da presenteidade de Brás, mesmo ele estando ausente. Para Heidegger, a falta do
outro, só pode ser possível, na determinação do Dasein de ser-com: “Só em um e para um ser-
com um outro pode faltar” (HEIDEGGER, 2012, p.349).
A artrologia restrita do restante da página continua a estabelecer a
complementaridade entre o foco narrativo e as imagens, enquanto a categoria do plano
expressivo caracterizada pelo uso complementar das cores azul vs laranja é reiterada ao longo
da solidariedade contextual de todo o capítulo. O foco narrativo é situado em um recordatório
azul (diferente do restante da graphic novel, em que ele é representado em tonalidades de
roxo), ao passo em que a história é apresentada em tonalidades amareladas e em tons de
laranja.
Não é apenas sobre a sua forma de ser o outro para o Dasein dos seus familiares que
Brás lança mão para interpelar o próprio ser. Os outros lhe são constantemente recobrados
121
como parte do esqueleto existencial do próprio Dasein, uma vez que ser-com é determinado
pelo vir-de-encontro do Dasein dos outros no seu mundo.
Ser-com é uma determinidade do Dasein cada vez próprio; Dasein-com caracteriza o Dasein dos outros, na medida em que este Dasein é posto-em-liberdade para um ser-com pelo mundo deste. O Dasein próprio de cada um é encontrado pelos outros como um Dasein-com só na medida em que o Dasein ele mesmo tem a estrutura existenciária do ser-com. (HEIDEGGER, 2012, P.349).
É por ser-com constitutivo do ser-no-mundo do Dasein de Brás que ele reconhece o
Dasein dos outros como o que vem-de-encontro no modo de ser-com na sua vida e nas
possibilidades do seu poder-ser. As pessoas que passam por ele também constituem aquilo
que ele “é” em cada momento da narrativa.
O capítulo cinco, que narra um trecho da infância de Brás, traz um exemplo de
presenteidade do Dasein de outro como constitutivo da existenciaridade do Dasein de Brás
determinado pela datidade daquele momento. Brás é o que o seu Dasein é no momento
marcado pela narrativa.
O beijo trocado com a prima durante uma brincadeira de esconde-esconde assinala
uma importante ruptura na caracterização do “quem” de Brás. Seu Dasein determina o
“quem” de Brás na sua condição de ser-no-mundo e com a mudança advinda das suas
experiências.
O momento vivido por Brás com a prima se mostra relevante para a personagem.
“[...] ele nunca esqueceria daquele momento” (MOON & BÁ, 2011, p.125), o que se
caracterizaria, posteriormente, como uma cena de ruptura na sua subjetividade e marcaria,
para si mesmo, um traço determinante do “quem” do seu Dasein.
A relevância deste momento se revela na forma com que Brás encara seu cotidiano
após a experiência do beijo. A maneira de olhar para a vida e encarar a própria existência é
transformada por ela. O verbo que determinaria a interpretação-de-si após o beijo não poderia
ser outro – ser: “Ele era livre como um pássaro” (MOON & BÁ, 2011, p. 128). O uso do
verbo ser conjugado na terceira pessoa do singular no modo do pretérito imperfeito do
indicativo exemplifica a forma de interpretação que o Dasein pode fazer de si mesmo, na
busca de uma determinação ontológica sobre o próprio ente.
A perspectiva desta terminação do ser do menino Brás é apresentada pelo foco
narrativo. Embora o foco narrativo se apresente de maneira impessoal, contrariando uma
visão de auto-análise por parte de Brás, toda a obra é percebida como o questionamento de
122
Brás sobre o seu próprio ser. É na memória que Brás encontra subsídios para reconhecer as
possibilidades e determinações do seu ser.
No entanto, Heidegger adverte sobre os equívocos possíveis da interpretação do
Dasein sobre a questão do “quem” do ser.
E se, ao tomar como ponto-de-partida a referida datidade do eu, a analítica existenciária caísse numa como que armadilha do próprio Dasein e de sua imediata interpretação-de-si? [...] Pode-se sempre muito bem dizer sobre esse ente, em termos onticamente justificáveis, que “eu” o sou. Contudo, a analítica ontológica, ao empregar estas proposições, deve fazê-lo com reservas de princípio. (HEIDEGGER, 2012, p.337).
Mostra-se a possibilidade do equívoco das definições do “quem” evocado pelo
Dasein em cada momento da vida de Brás. Aquilo que ele “é”, determinado pela visão
subjetiva de si mesmo, pode (e a possibilidade é soberana em cada definição sobre o ser) não
se referir propriamente ao ser de fato. Mas isto não impede o reconhecimento dos fenômenos
que constituem suas formas de ser-no-mundo e o seu vínculo, seja como ocupação ou
preocupação, com aquilo (e aqueles) que vem-de-encontro.
Pois, para Brás, é justamente a forma de ser-com que se destaca na busca da sua
autenticidade. A resposta é indeterminada e sempre mutável, mas a constituição do mundo do
seu Dasein é vista como mundo-com. Em todos os capítulos, por mais solitária que seja a
busca pelo seu ser, o ser-com é evidente - os outros determinam um modo de ser fundamental.
Há outros momentos que revelam o Dasein-com do outro no seu vir-de-encontro com
o Dasein de Brás. Os capítulos dois e três narram a relação tumultuosa com a jovem que
conheceu em Salvador. No capítulo intitulado “21”, o primeiro encontro com a jovem
determina, na artrologia geral da obra, um dos momentos que descrevem sua juventude, além
de fortalecer narrativamente o vínculo do protagonista com o melhor amigo Jorge.
A interpretação-de-si sobre o próprio ser na relação de ser-com Olinda mostra-se
equivocada justamente na sua morte, já analisada, durante as oferendas a Iemanjá. Ao se
apaixonar por ela, o que Brás “é” se torna determinado por ele como junto-a ela – como pode
ser visto na sua percepção dos bonecos amarrados. No entanto, a própria menção, dada pelo
homem no barco, da individualidade de cada um dos bonecos (“vocês são dois”) indica, como
flashfoward, a resposta equivocada de Brás sobre o “quem” do seu ser.
123
No entanto, mesmo que de maneira equivocada, o Dasein não pode deixar de se ater
a presença de Olinda. Ela fundamenta também sua forma de ser-no-mundo e participa da
existência de Brás como uma forma de preocupação-com. Esta forma de constituição do
Dasein não abandona, no seu cerne, as formas de ocupação das coisas intra-mundanas.
É no compartilhar do mundo com o outro que Brás se ocupa dos objetos e da
instrumentalização daquilo que vem-de-encontro. A sua experiência em Salvador e a
ocupação dos objetos que remetem à sua viagem são compartilhadas com Olinda de forma
que as remissões chegam ao Dasein da jovem. Isto fica claro quando Brás se ocupa das
oferendas e lembra da jovem como portadora da voz de Iemanjá.
Quando ele é convocado para ir até a praia por Olinda, é a imagem do orixá que
aparece, dando forma à voz da moça. Sua forma de ocupação dos objetos liga-se ao modo de
ser-com ela e transfere a forma de preocupação para o modo de ver-ao-redor, a transformado,
nas memórias de Brás, em objeto de ocupação através dos elementos intra-mundanos com ela
compartilhados. Em suma, sua memória parece substituir, na artrologia geral da obra, a figura
dela pelos elementos pertencentes ao mundo compartilhado entre eles.
Talvez por isto, nos saltos temporais e espaciais do sonho, no capítulo nove, Olinda
não apareça fisicamente, mas o Orixá ocupado pelo Dasein de Brás. Ao nível da artrologia
restrita, a ausência de Olinda também caracteriza as formas de ocupação do Dasein de Brás e
de compartilhamento do mundo com o Dasein da jovem.
No capítulo três, é-nos descrito o drama vivenciado por Brás em seu rompimento
com Olinda. Carregado com vários flashbacks, o capítulo mostra diversos momentos em que
Brás enfrenta o drama da ausência da amada. Podemos perceber esta descrição na cena em
que o protagonista passeia pela casa, visualizando objetos que remetem diretamente a ela.
Toda a página é construída com uma palheta de cor bastante reduzida. Se adotarmos
a categoria semântica tristeza vs alegria do plano de conteúdo para analisar a artrologia
restrita da página, poderíamos perceber que, no plano expressivo, ela se concentra quase que
exclusivamente na primeira parte da categoria. A dicotomia cores frias vs cores quentes do
plano expressivo apenas reitera a hegemonia da sensação de tristeza apresentada por toda a
página. A coloração esverdeada predomina por todo o cenário e os únicos tons quentes podem
ser visto em detalhes como a porta (no último quadro), a fotografia de Olinda presa à
geladeira e a calcinha dela pendurada no varal (que carrega leves tons de roxo).
124
A utilização das cores quentes para caracterizar os objetos que fazem menção a
Olinda proporciona uma interessante visão sobre a relação do protagonista com os pertences
dela. Brás parece substituir a sua forma de preocupação com a jovem pela ocupação de
objetos que por remissão chegam a ela. Ele apenas consegue chegar a ela através da sua forma
de ser-junto-a.
Não obstante a relação de Brás com Olinda se caracterize pela substituição da
preocupação por ocupação, a qual não deixa de representar uma forma de Dasein-com.
Mesmo que pela indiferença, todos os modis-do-ser apresentam o caráter de determinação da
natureza mesma do Dasein.
Há ainda outras formas de ser-com que nos são apresentadas ao longo das narrativas
de cada momento de Brás. Sua relação com a esposa, com a mãe e com o filho, embora se
mostrem também como modis positivos das formas de ser-com, as situações vivenciadas com
o pai e com o melhor amigo se revelam mais proveitosas para compreender a relação de
“Dasein a Dasein” e sua forma constitutiva dos próprios Dasein de cada ente.
Suas relações com amigo e com o pai são constantemente mencionadas e em
diversos momentos se apresentam como momentos relevantes no inquirir de Brás sobre o
próprio ser e sobre o encontro inevitável com a sua própria morte. Dentro da artrologia geral
da obra, estes momentos marcam pontos culminantes nas possibilidades que definiam o “eu”
respondido pelos obituários.
Jorge, o amigo, possibilita um momento significativo na definição do Dasein de Brás
nos capítulos Seis e Sete. Sua possível morte na queda de um avião, no capítulo seis,
influencia todos os obituários escritos por Brás para cada pessoa que estava, de fato, no avião.
Embora o obituário remeta diretamente ao Dasein particular de Brás, é evidente o
significativo modo de preocupação-com que caracterizou o ente do protagonista por todo o
capítulo.
Ainda sim, no capítulo sete, o obituário reconhece a presenteidade de Jorge na
própria condição do ser de Brás.
O obituário refere-se à amizade como aquilo que condicionou a morte de Brás. Se
compreendermos que todas as mortes de Brás determinam, ontologicamente, a nomeação do
Dasein pelo próprio ser e que estas não acontecem onticamente, isto é, na materialidade física
do ente, a morte de Brás, ao acreditar na amizade, pode representar mais do que sua viagem e
busca pelo amigo.
125
Ao assimilar sua morte à do amigo, Brás assume a sua condição de Dasein-com na
medida em que reconhece também sua forma de finitude. Ele assume, dessa forma, a
dimensão existenciária do seu próprio Dasein como ser-com, na forma de preocupação
originária que constitui um elo indefinido do seu ser com o ser do outro.
Como já vimos, Brás reescreve a própria história, filtrando os momentos que considera
mais significativos na construção da sua trajetória. No entanto, estes caminhos se dão,
estruturalmente, de forma não linear. A narrativa inicia com Brás adulto, indo para uma fase
mais juvenil, posteriormente infantil etc. O que este movimento narrativo evidencia é a forma
com que a temporalidade acontece subjetivamente para o protagonista.
A temporalidade em Heidegger é prescrita como diretamente ligada ao Dasein como
ser-no-mundo. A preocupação se temporaliza também na sua seleção dos momentos que mais
o marcaram. As ekstases são contidas em uma progressão bastante pessoal pelo ser de Brás.
Seu futuro, na expectativa de encontro com a morte, é caracterizado pelos obituários. Eles
representam a facticidade última da relação temporal do ser.
Mas o passado é também fundamental para o reencontro com a interrogação sobre o
ser. O fato de já estar lançado aí é importante no processo de autenticação do Dasein. Brás
investiga este passado quando reexperimenta o nascimento milagroso. Está também no
passado quando rememora o primeiro beijo e a infância na chácara da família.
O exercício de projeção do ser para cada obituário exige um encontro com os
momentos do passado. Sua investigação sobre os momentos pretéritos que o marcaram
passeiam de maneira não linear e apresentam ora o Brás de 32 anos, ora o de 21; isto tudo
porque as ektases do tempo resultam da elucidação do próprio protagonista sobre o seu ser.
O desejo de encontrar com a morte exige de si mesmo uma investigação longínqua de
quem ele era, para, só assim, poder encontrar sua projeção como ser-para-a-morte. Neste
encontro com o passado e no lançar-se para o futuro, o presente é desperto pela procura
ontológica do seu ser.
Desta forma, as cenas finais da narrativa suscitam a atualização do passado na sua
projeção para a morte. A carta do pai o provoca a se despedir do genitor, da mesma maneira
como o exorta a aceitar sua projeção para o fim e reconhecer a liberdade do Dasein do filho.
Diante desta motivação, as carpas, a pipa, o Rio de Janeiro, todos estes aspectos das
ocupações passadas são ressuscitados no encontro das ektases com o encontro da
autenticidade do ser de Brás.
126
É o mesmo conflito vivenciado por Gjorg em Abril despedaçado. A expectativa com o
próximo mês que, não tem dúvidas, será seu último, faz com que olhe para a própria
existência e investigue o seu ser, da mesma maneira com que o Brás, idoso, motivado pela
carta do pai, experimenta subjetivamente as ektases na projeção do seu fim.
Todo este ajuntamento temporal coincide com o interesse de Brás de encontrar o seu
próprio ser. Ele almeja encontrar a morte para descobrir quem é ou o que pode vir a ser com a
facticidade da própria existência. Brás precisa morrer para saber quem é.
Em Daytripper percebemos a possibilidade do experimentar a morte, sem a
consequência finita da experiência real, e, mesmo assim, com a mesma novidade da sua
possibilidade. Assim, podemos relacionar o uso da morte com o uso realizado pelo
protagonista da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas (1979) de Machado de Assis.
Neste romance, o narrador também se utiliza da situação em que se encontra – da
posição privilegiada sobre o passado, uma vez que está morto – para reescrever suas
memórias. O intertexto em Daytripper nos permite, evidentemente, relacionar a presença do
narrador, em ambos os casos, na sua relação com a morte.
Na obra de Machado de Assis, o narrador utiliza a pós-morte para poder descrever os
fatos passados, enquanto em Daytripper, Brás narra ainda em vida, mas utilizando a
possibilidade da sua morte como projeção do seu ser. Diferentemente de Brás Cubas, Brás de
Oliva Domingos não experimenta a morte de fato e nem escreve do pós-vida, mas
experimenta, através da narração da sua própria existência, várias mortes do seu próprio eu,
utilizando desta experiência estética para desenvolver as suas várias relações com o passado.
O Brás Cubas experimentou de fato a morte, enquanto o Brás de Oliva experimenta
imaginativamente a morte para reescrever, de diferentes formas, as projeções do seu ser.
Embora as duas narrativas se distingam no seu uso da morte no enredo, ambas as
obras privilegiam o eu do narrador na sua retomada do passado, o que permite, em níveis
diferentes, a estetização das imagens passadas de acordo com as respectivas propostas. Brás,
em Daytripper, reconstrói não apenas a morte, mas as muitas mortes, em diversas imagens
reconstruídas como pequenos ciclos.
As memórias de Brás remontam momentos importantes da sua vida. São situações
como essas que acabam sendo revividas esteticamente por meio da escritura e da ficção, para
logo em seguida serem encerradas pela morte efêmera como as lembranças e instável como a
memória.
127
Brás então imagina o fim da história, diante das possibilidades que lhe são viáveis
através da morte. Com várias condicionais, Brás reescreve a próxima vida experimentando a
morte e alterando a sua memória, tornando-as finitas e, desta forma, tornando-as únicas, uma
vez que a morte encerraria todas as outras possibilidades, o que permite um vislumbre do ser
que está em constante retraimento.
Morrer em cada capítulo modifica a experiência da memória e ressignifica tudo aquilo
que Brás já viveu. A morte torna cada momento da sua vida único, alterando as possibilidades
de luto para cada situação, criando alternativas para experimentar a vida como se ela fosse se
esgotar no momento seguinte. Brás encontra o ser quando se encontra com a morte.
128
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Evidentemente, as significações e arremates de leitura desta obra não se encerram
neste trabalho. Daytripper apresenta um importante trabalho de construção narrativa, em que
os temas abordados, juntamente com o domínio da linguagem da arte sequencial, favorecem
múltiplas leituras e abrem margem para uma constante retomada do texto.
O que se buscou neste trabalho foi perceber de que maneira os aspectos do texto
funcionavam na conexão artrológica entre capítulos, atendo-se para a maneira como a graphic
novel construía sua hipercodificação interna e agia sobre o entrelaçamento narrativo.
O aspecto comunicativo do quadrinho nos forneceu parâmetros para diagnosticar o
seu funcionamento dentro da espaçotopia. O traço dos autores, ora condiciona o andamento da
trama, ora revela a subjetividade do protagonista, bem como os nuances valorativos das
relações de Brás com o pai, mãe, namoradas e esposa etc.
A constante retomada de objetos cenográficos enriquece o entrelaçamento narrativo e
cria o espaço necessário para a análise das influências deles na confecção do passado de Brás.
Os desenhos dos objetos se mostraram importantes para a solidariedade icônica da graphic
novel, revelando que o distanciamento entre os capítulos poderia ser revisto através das pontes
de sentidos fornecidos por eles.
Além dos valores representativos, temos na obra um investimento valorativo em
cenas figurativas. É o caso das capas que simulam a temática do capítulo que virá, mas
utilizando de espaços mais abstratos e momentos híbridos. Neste, a coloração de Dave
Stewart foi primordial na ambientação e sentido de cada uma.
O mesmo vale para a sua participação por toda a obra. O trabalho de Dave Stewart
favorece, em diversas cenas, a interpretação de tom emocional de Brás. O uso de uma paleta
de cor voltada para contrastes de cores quentes e frias, bem como uma variação sutil quando
tinha como base em uma única cor, como em cenas compostas todas em tons azulados ou
roxos, demonstrou a força do relato visual na produção de sentido no texto.
Vale ressaltar a pertinência do uso de um narrador. Percebeu-se que a narração, em
terceira pessoa, dava vestígios da pontualidade de cada momento para Brás. Era a visão do
protagonista que, enaltecida pelo discurso, ganhava forma e interferia na ambientação do
lugar. Em diversos momentos o texto verbal dá conta de manifestar a subjetividade de Brás,
129
ignorando o restante das personagens. A história se mostrou ser sobre Brás, e o foco narrativo
descrevia claramente o cerne deste objetivo.
O uso dos obituários também se mostraram primordiais para a percepção temática da
morte na narrativa. Brás trabalhou durante anos com isto, e sua profissão parecia condicioná-
lo a perceber a morte a cada instante, cada vez que via outra pessoa morrer. Além disso, cada
morte circunstancial de Brás era acompanhada por um obituário, em coloração distinta, como
uma voz em off.
Importante também se mostrou a caracterização destes obituários. Os obituários do
trabalho de Brás eram escritos com uma coloração de fundo diferenciada daqueles ao final do
capitulo. Apesar de escritos com a mesma diferenciação estética de um obituário comum, eles
se diferiam como vozes distintas, com autoria e intencionalidades diferentes. Elas se
aproximaram, sobretudo, na análise desta voz ao fim do sonho de Brás, em que ele assume a
autoria também do segundo obituário.
O mesmo valor narrativo pôde ser encontrado nas personagens. Suas aparições e
diálogos reiteram a discussão que envolve a história. Diálogos sobre a morte com o pai, com o
melhor amigo, com a esposa, manifestavam o interesse da artrologia geral em discorrer sobre
o assunto. O mesmo vale para as constantes aparições do pai, sejam pelas exposições do
narrador ou na fala das personagens, a temática revelou-se primordial na elaboração da
personalidade e caracterização de Brás.
Justamente por esta pertinência temática de pai e filho é que nos concentramos em
perceber de que maneira o pai o afetava na busca por descobrir quem é “Brás de Oliva
Domingos”. A aproximação com a teoria de Heidegger favoreceu para questionarmos de que
maneira o outro pode interferir na questão do eu. A obra demonstrou uma pertinência grande
na interferência do pai em Brás, agindo, inclusive, sobre o comportamento do personagem e
os projetos de ser para o futuro, como profissão, hábito de fumar, ser pai etc.
Não obstante, não apenas sobre pai e filho a narrativa discorria. Com efeito, a
inserção do pai como elemento provocador mostrou-se parte de todo um apanhado de
relacionamento de Brás com os objetos e os outros para definir o seu próprio ser, de modo que
o pai, em última análise, representava um dos mais importantes modos de ser de Brás, a saber,
o modo de ser-com. A preocupação com o pai, em certa medida, o define e age sobre as
formas de projeção de si mesmo e a maneira como enxerga a si mesmo.
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As aproximações com autores como Kafka e personagens como dos livros Abril
despedaçado (1991), O filho eterno (2007) e o conto “A terceira margem do rio” (2001),
enriqueceram a conotação da relevância de Benedito para a vida de Brás, assim como para
cada personagem destas histórias.
A morte do pai também o marcou significativamente. Da mesma forma como Brás
era lembrado constantemente, através do seu trabalho sobre várias mortes, o pai também o
influenciou o lançar-se no reconhecimento da finitude da própria existência. A morte do pai e
a sua carta, lida por Brás na sua velhice, interferiam na maneira como Brás passou a
vislumbrar o seu próprio Dasein, além de interferir no todo da narrativa, surgindo pedaços das
falas de Benedito por vários obituários do protagonista.
Mas não foi apenas a morte de Benedito que influenciou Brás na escrita de si na
morte. Brás precisava reconhecer a finitude da sua própria existência, uma vez que, de acordo
com Heidegger, o ser só pode se descobrir sozinho, assim como a transcendência para o
encontro com o ser só pode ser realizado neste ato de reconhecer a facticidade da sua vida.
O interesse de Brás pelo encontro com a morte condicionou-lhe a busca da
temporalização pelo seu Dasein. Encontrar a projeção futura, i.e., a morte, só foi-lhe possível
na retomada do passado pelo presente. O resultado desta empreitada foi a construção não
linear da narrativa, em que os objetos e as pessoas que fizeram parte da sua história, foram
sendo inseridas estrategicamente.
Mas a inserção destes entes não foi unicamente para fornecer aspectos da história de
vida de Brás. Mais do que isso, ela ajudava na configuração daquilo que significava o ser de
Brás. Ocupação e preocupação, como vimos, são modos de ser fundamentais para o Dasein e,
para o protagonista descobrir quem ele é dentro desta temporalização, era preciso que
investigasse os entes que fizeram parte do mundo do Dasein dele.
A relação com Kafka novamente se mostrou pertinente, seja no objetivo de
reescrever as próprias experiências ou no próprio passo ontológico para a morte. Outros
poetas que viam a escrita como o espaço propício para a investigação da morte também foram
inseridos na discussão, tais como Rilke e Gide.
Apesar da distinção entre forma e conteúdo ter sido retratada aqui de maneira distinta,
durante análise, tentou-se valorizar a forma indissociável destes dois na medula da obra.
Aspectos narrativos só fazem sentido se interligados com a intencionalidade temática e
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estética da história, fazendo com que a análise da graphic novel se sustente principalmente na
percepção dos signos em manifestar retoricamente os argumentos.
Desta forma, quando analisada sob a ótica estrutural, a relação pai e filho e morte
condicionava a escolha dos termos, decupagem e cores, forjando, assim a artrologia geral que
regeria os elementos dispostos ao longo da narrativa.
É assim que acontece com os obituários. A existência destes só existe para cumprir
com o roteiro prescrito que tem como centro a discussão da morte. Mas esta, só pode ocorrer
tematicamente na medida em que os obituários cumprem com o seu propósito de desvio do
uso tradicional de um narrador.
Da mesma maneira, a retomada dos objetos que ligavam Brás ao pai, bem como as
cenas que descreviam diálogos e menções aos dois, foi primordial para a sustentação do
conteúdo. O discurso do pai ecoando pela voz do narrador e dos obituários foi mais uma
maneira de unir forma e o conteúdo na composição artrológica da história.
Desta forma, percebeu-se que, no processo de análise da graphic novel, forma e
conteúdo dialogaram constantemente para a eficácia comunicativa, além de favorecer em
muitos aspectos para a inovação estética e narrativa de Daytripper no mercado brasileiro de
histórias em quadrinhos.
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