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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE LINHA DE PESQUISA: SUBJETIVIDADE, TEXTO E ENSINO “VOCÊ NÃO PRECISA MAIS DE MIM.” O SER, O PAI E A MORTE EM DAYTRIPPER PONTA GROSSA 2017 PHELLIP WILLIAM DE PAULA GRUBER

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE

LINHA DE PESQUISA: SUBJETIVIDADE, TEXTO E ENSINO

“VOCÊ NÃO PRECISA MAIS DE MIM.” O SER, O PAI E A MORTE EM DAYTRIPPER

PONTA GROSSA

2017

PHELLIP WILLIAM DE PAULA GRUBER

PHELLIP WILLIAM DE PAULA GRUBER

“VOCÊ NÃO PRECISA MAIS DE MIM.” O SER, O PAI E A MORTE EM DAYTRIPPER

Dissertação apresentada para obtenção do grau de mestre pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, área de Estudos da Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Evanir Pavloski

PONTA GROSSA

2017

PHELLIP WILLIAM DE PAULA GRUBER

“VOCÊ NÃO PRECISA MAIS DE MIM” – O SER, O PAI E A MORTE EM DAYTRIPPER

Dissertação apresentada para obtenção do grau de mestre pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, área de Estudos da Linguagem.

Ponta Grossa, 18 de setembro de 2017.

Prof. Dr. Evanir Pavloski - orientador Doutor em Literatura

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Pro. Dr. Luiz Carlos Migliozzi Doutor em Semiótica e Linguística Geral

Universidade Estadual de Londrina

Profª. Drª. Rosana Apolonia Harmuch Doutora em Estudos Literários

Universidade Estadual de Ponta Grossa

RESUMO

O presente trabalho visa analisar a obra Daytripper (2011), de Fábio Moon e Gabriel Bá, com as cores de Dave Stewart, atendo-se aos elementos que fazem parte da temática do ser, dentro da perspectiva existencialista, da relação entre pai e filho e da morte. Para tanto, buscou-se empreender um estudo acerca da configuração da linguagem da arte sequencial, viabilizando diálogos que vão desde a sua macroestrutura, com a teoria de Thierry Groensteen (2015), até aspectos mais pontuais dos elementos internos ao quadro, utilizando-se de algumas vertentes analíticas da semiótica. Na investigação dos aspectos temáticos sobre o ser, pai e filho e a morte, concentramo-nos principalmente nos conceitos apresentados em Ser e Tempo (2012), do filósofo alemão Martin Heidegger, relacionando os argumentos com algumas obras literárias que suscitam as temáticas em questão. Reunimos, neste trabalho, os aspectos da linguagem da graphic novel que dialogam diretamente com a argumentação proporcionada por ela, unindo, na análise, forma e conteúdo.

Palavras-chave: Daytripper; Histórias em quadrinhos; Graphic novel;

ABSTRACT

The present work aims to analyze the work Daytripper (2011), by Fabio Moon and Gabriel Bá, and colors of Dave Stewart, attending to the elements that are part of the theme of being, the relationship between father and son and the death. In order to do so, a study was carried out on the configuration of the language of sequential art, enabling dialogues ranging from its macrostructure, with Thierry Groensteen's (2015) theory, to more specific aspects of the internal elements to the picture, using some analytical aspects of semiotics. In the investigation of the thematic aspects about being, father and son and death, we focus mainly on the concepts presented in Being and Time (2012), by the German philosopher Martin Heidegger, relating his arguments with some literary works that raise the themes in question. In this work, we combine the aspects of the language of the graphic novel that dialogue directly with the argumentation provided by it, uniting, in analysis, form and content.

Keywords: Daytripper; Comics; Graphic novel.

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1 Introdução

Daytripper (2011) é uma graphic novel que marcou, significativamente, o mercado

americano e brasileiro de histórias em quadrinhos. Escrita e desenhada pelos irmãos paulistas

Fábio Moon e Gabriel Bá, a obra contou com a colaboração do colorista Dave Stewart,

famoso pelo seu trabalho em Hellboy (Dark Horse).

Sua narrativa complexa garantiu a atenção de inúmeros críticos de arte sequencial e da

literatura, além de garantir um espaço entre os mais vendidos de na lista da New York Times1

e conquistar diversos prêmios consagrados no circuito de produção e de consumo da nona arte.

A pesquisa aqui proposta teve como núcleo a investigação da linguagem da graphic

novel e a sua intrínseca relação com o conteúdo do discurso presente na obra. Para isto,

lançou-se mão de uma série de teorias comunicativas e de um viés filosófico, intercalando os

métodos para compreender os entrecruzamentos dos códigos utilizados e dos argumentos

sobre a personagem principal e sua visão de si mesma.

Inicialmente, convém indicar os usos das figuras como citação direta das obras

referenciadas. Por se tratar de uma linguagem híbrida, isto é, que se utiliza tantos de códigos

icônicos como verbais, a referência às páginas e momentos da história foi realizada pela

indicação direta do quadro, ou página, a que se refere, valorizando o layout e a imagem como

matéria informativa juntamente com o verbal.

O trabalho dividiu-se em quatro grandes partes, sendo a primeira delas voltada para a

investigação sobre a linguagem da arte sequencial.

No primeiro momento, tratou-se de perceber o funcionamento integral da linguagem,

atendo-se, com a teoria de Thierry Groensteen sobre o sistema dos quadrinhos de maneira

geral. No entanto, sua pesquisa demonstrou-se teoricamente insuficiente para adentrarmos na

análise mais minuciosa da relação entre os elementos verbais e icônicos internos ao quadro.

Além da vertente macrosemiótica de Groensteen, buscou-se discorrer sobre teorias de

análise de outros tipos de textos híbridos, como livro infantil ilustrado e cinema, a fim de

analisar aspectos mais detalhados da relação entre palavra e imagem. Além da exposição

destas teorias, tratamos de empreender pequenos exemplos de aplicação da teoria em páginas

e cenas de algumas histórias em quadrinhos.

1 A graphic novel garantiu o primeiro lugar na lista durante o mês de março de 2011.

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No segundo momento investiram-se em compreender quais elementos fazem parte da

analítica do filósofo alemão Martin Heidegger sobre o ser e o modo do ser de se relacionar

com as coisas e com as pessoas. O objetivo, nesta seção, é perceber quais as formas de relação

possíveis entre pai e filho, intercalando a teoria filosófica de Heidegger com uma pequena

seleção de textos que tratem do assunto, tais quais Franz Kafka, Cristóvão Tezza, Guimarães

Rosa, entre outros.

A terceira parte tratou de investigar o modo como o ser se relaciona com o tempo e

com a efemeridade da sua condição. A temporalização e a morte são temas caros para

Heidegger, e seus conceitos, apesar de extensos quando expostos em Ser e tempo (2012), nos

auxiliarão na análise da graphic novel. Aqui também se utilizou de exemplificações literárias

para descrever narrativamente a teoria exposta. Vale ressaltar que devido à extensa

investigação do filósofo no desenvolvimento do livro, diversos tópicos e conceitos tiveram

que ser suprimidos para uma futura reflexão acerca destes.

No último momento, juntaram-se os aspectos já levantados para compreender sua

aplicabilidade na análise da de Daytripper e da sua noção apresentada sobre o ser de Brás, seu

conflito com o progenitor e o propósito das suas constantes mortes na maioria dos capítulos.

Por fim, após os estudos temáticos ancorados na terminologia heideggeriana,

empenharam-se na utilização dos instrumentos fornecidos sobre os estudos da linguagem dos

quadrinhos, apresentados no primeiro capítulo, para perceber de que maneira a construção

expressiva dos códigos revela o conteúdo discursivo sobre os ser de Brás e as suas formas de

relação com os objetos, pessoas e com a própria morte.

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2 A linguagem dos quadrinhos

Semelhantemente à literatura exclusivamente verbal, as histórias em quadrinhos

trazem discussões que constantemente são retomadas e problematizadas em diversas

pesquisas. Sua origem ainda é um tema difuso, mas sua linguagem e seus instrumentos de

análise caminham para um desenvolvimento mais profícuo.

Há, no entanto, uma série de estudos a respeito da arte sequencial que pode nos servir

de base para uma reflexão mais aprofundada. Outras pesquisas, que incluem narrativas

construídas na relação entre palavra e imagem, também podem nos fornecer conceitos mais

elaborados e difundidos, possibilitando um corpo teórico mais conciso e, ao mesmo tempo,

heterogêneo.

A configuração das histórias em quadrinhos é baseada na interação de signos verbais

e visuais, sendo geralmente tratada como uma forma narrativa iconoverbal. Uma definição

trazida por Eisner e bastante difundida é a de que

A configuração geral da revista de quadrinhos apresenta uma sobreposição de palavra e imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. (EISNER, 1999, p.8)

Partindo de uma proposta comunicativa, a definição de Eisner sugere uma relevância

equivalente para as duas formas de linguagem (icônica e verbal). Assim, numa compreensão

conceitual do gênero, seria necessário que toda forma de composição da arte sequencial

seguisse tais parâmetros.

É evidente que tal definição não envolveria todas as formas e possibilidades de

articulação das histórias em quadrinhos. Alguns quadrinhos não utilizam textos verbais e a

sua leitura, desta forma, exige uma habilidade própria das artes visuais. Além disto, a

relevância de cada signo dentro das narrativas varia de acordo com a proposta da sua

composição. Em suma, não apenas a imagem de cada quadro carece de leitura como também

a própria disposição dos quadros dentro da página.

Contrariando o conceito de Eisner, Thierry Groensteen introduz em seu livro O

Sistema dos quadrinhos (2015) uma forma de teorizar os quadrinhos que tem como princípio

a primazia da imagem desenhada.

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Para Groensteen, os quadrinhos são um gênero que articula duas formas sígnicas,

nominadas por ele como visual e discursiva, mas que possui uma principal diferença das

fotonovelas: "o uso do desenho como matéria de expressão específica” (2015, p.14). Esta

complexidade de código, segundo o autor, faz com que os quadrinhos sejam um sistema que,

de acordo com a sua teoria, a princípio, é desenvolvida no conjunto de vários códigos.

Os quadrinhos, portanto, são uma combinação original de uma (ou duas, junto com a escrita) matéria(s) da expressão e de um conjunto de códigos. [...] O problema que se põe em análise, portanto, não é favorecer um código; é encontrar uma via de acesso ao interior do sistema que permita explorá-lo na sua totalidade e mostrar sua coerência. (GROENSTEEN, 2015, p.14-15).

O que amplia sua discussão a respeito da linguagem da arte sequencial não se limita

às matérias já exploradas como elemento de conceituação do gênero. A contribuição do

estudo de Groensteen dá-se, sobretudo, na tentativa de mapear o sistema narrativo dos

quadrinhos, ampliando, através do seu modelo macrossemiótico, o estudo para os espaços do

layout e de articulação entre quadros.

Caracterizar os quadros (com a presença do requadro ou não) como fenômeno da

estrutura genérica da arte sequencial enriquece a reflexão sobre a interação dos códigos dentro

do seu uso comum: “os códigos são construídos no interior de uma imagem de forma

específica, que mantém a associação da imagem a uma cadeia narrativa onde as ligações se

espalham pelo espaço, em co-presença” (GROENSTEEN, 2015, p. 15).

A composição da página e a sua correlação com o conteúdo interno ao quadro se

ligam narrativamente, criando uma colaboração interlinguagens, em que, para Groensteen, o

visual tem predominância.

A elaboração conjunta dos códigos utilizados na arte sequencial orbita

semanticamente em uma rede colaborativa de sentido. A solidariedade icônica, descrita pelo

autor, sugere um favorecimento mútuo de ligação, que é independente da complexidade da

sua associação e que pode acontecer através de imagens diversas.

Como consequência, esta variedade tende a dificultar as definições conceituais do

gênero. A identificação do conceito de solidariedade icônica pode muito bem ser percebida

em uma página do cartunista argentino Quino (Figura 1).

A imagem apresenta dois soldados em vigia durante uma noite – período sugerido

pela pigmentação em preto e a lua no centro-esquerdo do primeiro quadro. O segundo soldado

posiciona-se com a mão esquerda atrás da orelha esquerda, insinuando que ouve um som

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vindo na sua direção. O som, por sua vez, é expresso iconicamente com passos dentro de um

balão - comumente usado nos quadrinhos para expressar discursos orais das personagens.

Os quadros seguintes da tira mostram o primeiro soldado solicitando identificação

por parte daquele que emite o som. A resposta, por sua vez, é cômica na medida em que

contraria a expectativa de som e apresenta-se por meio de ícones de identificação, isto é, por

meio de uma assinatura e de uma impressão digital. As próprias personagens se surpreendem

com a exposição incomum e parecem revelar um conhecimento de sua materialidade física.

A metalinguagem presente neste quadrinho revela uma das formas de solidariedade

icônica ao explorar os signos verbais, icônicos e até mesmo de onomatopeia, para convergir

numa especificidade narrativa através da disposição das imagens e do som dentro do layout da

página.

Em termos semióticos, os códigos explorados parecem apresentar um desvio do

comum até mesmo no uso do gênero. Umberto Eco, ao descrever o funcionamento semiótico

dos textos estéticos, afirma que na manipulação do continuum expressivo ocorre a

pertinentização de assertos semióticos2que até então funcionavam de forma singular, mas que

alcançam um nível de generalização e segmentação sucessiva: a hipercodificação.

A hipercodificação, desta forma, conduz-se no uso de “uma regra aditiva para uma

aplicação extremamente particular da regra geral” (ECO, 2009, p.121). Nos textos estéticos, a

hipercodificação utiliza da matéria de ocorrência de significantes na repetição dos termos num

continuum segregado:

Em outras palavras, a experiência, estética, revelando que na matéria que põe em jogo existe um espaço em que individuar subformas e subsistemas, sugere que os códigos de que parte poderiam ser submetidos a segmentação sucessiva. (ECO, 2009, p.227)

Vale ressaltar que as formas surgem primeiramente de forma inventiva e individual,

causam quebra de horizonte de expectativas, mas, caso haja recorrência no seu uso, o desvio

acaba por ser incorporado ao eixo paradigmático. Outros autores podem continuar explorando

este uso do continuum, o que poderia gerar uma hipercodificação estética de um idioleto de

corrente, ou de subgênero – caso outras tiras possam se utilizar desta inventividade.

A hipercodificação presente no cartum em questão explora os códigos convencionais

das histórias em quadrinhos: balão de fala como espaço de oralidade e a imagem

2 ECO (2009) identifica o asserto semiótico como um tipo de juízo que marca semanticamente o código com base no seu contexto histórico e social, podendo este ser alterado com o passar do tempo.

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representando o espaço do som. Logo no primeiro quadro (Figura1) há o asserto

metasemiótico proporcionado pela utilização do som no espaço da fala - os passos

representam a presença do som.

Este asserto, por sua vez, é reiterado na pertinentização do uso dos códigos sonoros

nos próximos quadros. Eles repetem o esquema proposto no primeiro quadro e particularizam,

dentro do continuum expressivo da página, o código ao seu próprio sistema expressivo.

Neste sentido, é possível reconhecer, com Eco, que a solidariedade contextual, ou,

neste caso, solidariedade icônica, sugere a presença de uma regra sistêmica.

Isto significa que o texto estético deve possuir, em modelo reduzido, as mesmas características de uma língua: deve haver no texto mesmo um sistema de mútuas relações, um desenho semiótico que paradoxalmente permite oferecer a impressão de a-semiose. (ECO, 2009, p.229)

A concordância estabelecida entre os quadros no cartum analisado revela que a

repetição dos códigos e desvios estabelecidos no seu plano expressivo, o som através do ícone

ou a ambiguidade das formas de identificação, colaboram para um fundamento sistêmico

particular à página. A solidariedade icônica, neste caso, fortaleceu a criação do sentido

cômico.

Há, no entanto, quadrinhos que se utilizam de textos verbais, e estes carregam

importantes elementos semânticos para o continuum expressivo, que, se ignorados,

dificultariam a leitura ou produção de sentido.

Podemos explorar estes elementos investigando uma página da graphic novel Peixe

peludo (Moralez & Bueno, 2010). A narrativa visual nos apresenta um peixe em situações

bastante cotidianas para um humano, enquanto o texto verbal, através do foco narrativo,

expõe elementos subjetivos à personagem (Figura 2).

A dimensão semântica da narrativa resulta da relação de solidariedade icônica. No

entanto, as marcas de frustração da personagem, além de estarem codificadas nos traços

expressivos do rosto - a boca curva para baixo, indicando tristeza; o olho sem alterações de

expressão, indicando monotonia – também são reiteradas pela opinião dele acerca da cidade.

Outro tópico importante na estruturação da obra dá-se no uso da primeira pessoa do

singular e da norma popular pelo foco narrativo. Por se tratar de primeira pessoa, o

recordatório funciona como um espaço de confissão da personagem, no qual ela expressa suas

intenções e visões de mundo. Sua linguagem coloquial o insere em uma espécie de narrativa

urbana, permitindo que a abordagem sintética do desenho monocromático se enquadre num

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espaço narrativo mais amplo, antecipando, inclusive, os temas que serão abordados pelos

ícones posteriormente.

A ironia presente em sua fala – “Sim, porque em São Paulo tudo é do caralho [...]

São Paulo é legal pra caralho. Só não sei pra quem?!” (MORALEZ & BUENO, 2010, p. 7)

fortalece ainda mais a insatisfação da sua expressão, sua frustração com a cidade e os demais

princípios dos seus desapontamentos. A imagem, apresentando o gesto de colocar a jaqueta,

amplia-se para um momento de sincronia com a personagem em seu fluxo de pensamento.

Se ignorarmos este espaço de subjetivação da personagem, corremos o risco de não

dialogar com a estética proporcionada pela conjunção dos códigos concomitantes. Enquanto

seu gesto de colocar a jaqueta, ou de passear pela cidade (ao longo do quadrinho) acontece

visualmente – com toda a sua carga semântica visual, em que o traço expressionista e

monocromático alimenta a matéria narrativa do plano expressivo – as impressões pessoais e

as associações de ideias da personagem corroboram o discurso negativo de todo o livro.

Conceituando, de forma geral, toda obra de quadrinhos por meio de uma concepção

que privilegie unicamente a imagem, não privilegiaríamos espaços de criação de fluxo de

consciência no jogo de interação da imagem e da palavra estebelecido pela narração.

Esta concepção, contudo, não ignora o espaço de layout e distribuição imagética da

sequência narrativa. Ao contrário, prevê que um conceito suficiente para toda forma de

produção da arte sequencial poderia (ou deveria), suportar uma obra em que o texto imagético

carrega o sentido do texto tanto quanto o verbal.

Groensteen esclarece que a preeminência da imagem no sistema dos quadrinhos se

dá justamente pela seleção narrativa do espaço em que a história será narrada. Para o autor,

não se trata da condição espaçotópica se adequar à narrativa, mas sim da história se adaptar

para o gênero escolhido como suporte:

[...] acredito que assim que um autor confia aos quadrinhos a história que ele pretende contar, ele pensa essa história e sua obra em formação dentro de uma determinada forma mental com a qual ele terá de negociar. O dispositivo espaçotópico é exatamente esta forma e uma das chaves do sistema dos quadrinhos, um complexo de unidades, de parâmetros e de funções que cabe a nós descrever. (GROENSTEEN, 2015, p.32).

A defesa do dispositivo espaçotópico leva o autor a teorizar sobre uma unidade

mínima do sistema da arte sequencial, a saber, o quadro. Para o autor, o quadro se configura

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como o átomo primário da linguagem dos quadrinhos, o que o possibilita elaborar um modelo

teórico abrangente.

Nesta concepção, o quadro, além de elemento mínimo da narrativa, é cambiável e

mutável, funcionando como “uma entidade aberta à manipulação geral. Podemos extraí-lo,

por exemplo, para ampliar e fazer uma camiseta [...]” (GROENSTEEN, 2015, p.36).

É com base nesta partícula singular que a página constrói a cena e,

consequentemente, a narrativa. No entanto, ela não seria suficiente, uma vez que por si só não

corresponde a uma narrativa. O autor reconhece a relevância do requadro para o quadro e

propõe o conceito de multirequadro, ou seja, a conjunção dos elementos mínimos,

“aglomerado de quadros justapostos” (p.39), que se adequam à espaçotopia:

Desenhar um multirequadro qualquer não é remeter à uma página de HQ em particular, mas às histórias em quadrinhos em si, ao dispositivo sobre o qual se baseia sua linguagem. (GROENSTEEN, 2015, p. 39).

A intenção de Groensteen com seu mapeamento do sistema dos quadrinhos é

abandonar o método de olhar do microssemiótico para o macrossemiótico, de forma a

encontrar uma teoria que compreenda, no seu modelo teórico, o nível de articulação entre

quadros.

Esta teoria das histórias em quadrinhos parece elucidativa para um alargamento

maior dos limites da linguagem. Embora o autor considere o quadro (limitado pelo requadro)

como unidade mínima e transferível, sua independência, no entanto, não se manifesta

narrativamente, e ele depende do multirequadro, isto é, da sua diposição espaçotópica para

sua eficácia comunicativa dentro do continuum sequencial.

A relação intrínseca criada pelo multirequadro é que possibilita a articulação entre os

quadros. Groensteen desenvolve o conceito da artrologia, para discutir a variedade de relações

estabelecidas entre os quadros, em que a descreve como um esquema maior de

reconhecimento do sistema em todos os níveis do plano de expressão.

A artrologia (articulação), de acordo com Groensteen se dá de duas maneiras; por

intermédio da artrologia restrista e da artrologia geral da obra. A artrologia restrita se refere à

conexão estabelecida entre dois quadros em uma única página,

[...] apesar de a enunciação ser descontínua e a demonstração intermitente, a narrativa ainda produz forma, ou seja, uma totalidade ininterrupta e inteligível. O ‘vazio’ entre dois quadros não é o lugar de uma imagem virtual, ele é lugar de uma articulação

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ideal, de uma conversão lógica, a de um segmento de enunciáveis (os quadros) em um enunciado singular e coerente (a narrativa). (GROENSTEEN, 2015, P.121)

As operações realizadas entre as imagens e as palavras, entre espaçamentos e seleção

de cenas, assim como entre enquadramento e escolhas apresentadas internamente ao quadro

são nomeadas por Groensteen de decupagem, termo tradicional emprestado do cinema. Para

ele o termo decupagem deve ser entendido literalmente e em duas dimensões: o que é decupado não são apenas momentos do tecido narrativo (os momentos chaves da ação), são também vistas parciais, os enquadramentos seletivos, que enfocam zonas pertinentes e deixam diversas informações fora de quadro. (GROENSTEEN, 2015, P. 127).

Restaria à solidariedade icônica, como engrenagem da artrologia restrita, o papel de

propiciar fundamentos para desenvolver uma articulação entre os vazios do multirequadro e

os elementos decupados no interior de cada quadro. Os vazios entre os quadros estabelecem a

narrativa através da amarração necessária para condução dos elementos enunciados, isto é, a

concatenação da narrativa é constantemente decretada pelo quadro porvir. A artrologia restrita

define-se com a linearidade proporcionada pelas relações elementares entre os quadros através

da decupagem.

Para Groensteen, é neste estágio de artrologia que a escrita assume um papel

complementar no plano expressivo da narrativa. Agindo como ancoragem, revezamento,

sutura, entre outras funções elencadas por Groensteen, o verbal reforça os argumentos

proporcionados pela imagem, reagindo sob a condição polissêmica do icônico.

Os espaços criados entre os quadros das páginas analisadas anteriormente dão

vestígios dos tipos de decupagem possíveis de artrologia restrita. A espaçotopia do cartum

mostra-se como um bom exemplo para concebermos as formas de articulação entre quadros,

além de ser uma ilustração da unidade dos segmentos em um esquema que revela e corrige as

expectativas de cada leitor.

No primeiro exemplo, no cartum de Quino (Figura 1), a utilização do som pelo

iconismo no primeiro quadro é contrariada pela presença gráfica de uma assinatura no mesmo

espaço utilizado para o som (dentro do balão). Esta contrariedade é reforçada com a presença

da digital, o que provoca a quebra da expectativa criada desde o primeiro quadro e

propiciando ainda mais os experimentos metalinguísticos do cartum.

A segunda página analisada (Figura 2) encontra no foco narrativo seu maior reforço

dialógico na comunicação entre leitor e obra. Enquanto a imagem apresenta o peixe vestindo

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sua jaqueta e dirigindo-se à porta, o discurso verbal apresenta uma relação que rompe com o

tempo preciso da cena. Entre um quadro e outro o leitor percebe o fluxo narrativo e pode

manter facilmente a ordem da cena, mas é no texto verbal que a relevância da passagem

alarga-se para um momento de compartilhamento das indagações do próprio personagem.

Esta forma de articulação problematiza um pouco o olhar sobre as conexões entre

desenho e escrita. Embora a espaçotopia oportunize uma ferramenta base de análise, a

decupagem e os espaços entre quadros, bem como os vazios internos ao próprio quadro,

também são elementos relevantes para se refletir sobre a linguagem das histórias em

quadrinhos.

Conforme assumido por Groensteen, uma teoria similar foi elaborada por Wolfgang

Iser em seus estudos sobre o ato comunicativo dos textos literários verbais. Para Iser os vazios

do texto é que controlam a contingência da leitura durante a interação do leitor com o texto.

Segundo Iser

Tais vazios funcionam como um comutador central da interação do texto com o leitor. Donde, os vazios regulam a atividade de representação (Vorstellungstatigkeit) do leitor, que agora segue as condições postas pelo texto. (...) Os vazios e as negações contribuem de diversos modos para o processo de comunicação que se desenrola, mas em conjunto, tem como efeito final aparecerem como instâncias de controle. (ISER, 1979, p. 90-91)

Os vazios e as negativas do texto são, para Iser, os elementos de controle do ato de

leitura, que negam ou criam as projeções do indivíduo leitor sobre o texto, podendo este

concretizar ou não a sua especulação quanto à progressão do enredo e a criação de sentido.

Se considerado o modelo teórico de Wolfgang Iser, é preciso reconhecer que, além

dos espaços criados pela decupagem na artrologia restrita da obra, a espaçotopia também

depende da articulação gerada pelos textos verbais. O leitor interage com o uso das palavras

para além da dimensão puramente descritiva e produz estruturas muito singulares em relação

à norma sintagmática que não podem ser ignoradas.

Dessa forma, além de se preocupar com a codificação desenvolvida na interação

entre ambos, a artrologia deve prever também as interações entre ícone e escrita, ampliando

seu sistema de referência estética para os desvios e particularidades de cada código.Tomemos

como exemplo uma página de Daytripper, escrita e desenhada por Fabio Moon e Gabriel Bá e

colorizada por Dave Stewart.

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A cena (Figura 3) mostra o protagonista entrando na sala do seu pai, horas após a sua

morte. O foco narrativo amplia o luto para um discurso subjetivo sobre a ausência e o

significado do pai para Brás. Ao fim do texto, há uma sentença que repete semanticamente a

afirmação anterior. “[...] o coração de seu pai parou [...] Seu coração parou” (MOON & BÀ,

2011, p.106). A repetição sugere uma redundância específica com a expressão duplicada, uso

comum nos espaços da literatura verbal.

Eco, ao discorrer sobre a hipercodificação estética quanto a impressão e alteração do

conteúdo no ato de percepção do plano expressivo, relembra a sua própria análise do verso de

Gertrud Stein

A rose is a rose is a rose is a rose

que à primeira vista nada mais oferece que um excesso de normalidade e redundância. [...] Todavia, é exatamente esse excesso de redundância que se desvia da norma e induz à suspeita de que a mensagem seja muito mais ambígua do que parece. A sensação de que, a cada ocorrência, a palavra significa sempre uma outra coisa, transforma a mensagem num texto: porque aqui está se desviando os vários subcódigos, do botânico ao simbólico-alegórico [...]. (ECO, 2002, p.229).

O estranhamento proporcionado pela repetição na página de Daytripper desvia o

significado do coração para outro coração, aquele de Brás, que só se confirma na apresentação

fatídica da sua morte pela imagem. A repetição, no entanto, se dá na distribuição de vários

quadros, o que culmina no funcionamento da artrologia da condição espaçotópica dos

quadros.

Desta forma, podemos inscrever a visão de interpretação dupla, defendida por Will

Eisner, em uma noção de artrologia e decupagem que se subdivide na atuação dos signos

conjuntos. Além da espaçotopia, há a necessidade de articulação dos vazios no próprio texto

verbal, mesmo como unidade frásica: “Seu coração parou”.

No entanto, o desvio da norma, de âmbito verbal, e a redundância entre códigos só

acontecem na condição de espaçotopia da linguagem dos quadrinhos e apenas proporciona

ancoragem para a leitura no momento em que o código interno ao quadro, o desenho, revela o

detentor do outro coração parado.

O funcionamento múltiplo da página revela uma forma de construção do texto em

quadrinho que, como já vimos, interage com o leitor numa série de desvios e relações que se

dão pelos códigos icônicos e verbais. Este modelo de interação parece desvendar uma

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estrutura narrativa que comanda os espaços apresentados nas histórias em quadrinhos que

revela as possibilidades de produção de sentido dos discursos presentes na obra.

A artrologia geral, diferente da restrita, funciona como aquela estabelecida ao longo

da narrativa, com “relações translineares ou distanciadas [...] e compõem as modalidades do

entrelaçamento” (Groensteen, 2015, p.32). Ela garante com que o quadro, mais do que dentro

de uma sequência linear e adjacente, esteja vinculado espacialmente e/ou cronologicamente à

trama completa da história.

Groesnteen, em seu Sistema dos Quadrinhos (2015), aprimora um conceito já

utilizado por ele anteriormente e que empreenderá na análise da rede desenvolvida pela

organização da totalidade de um álbum3: o conceito de entrelaçamento. O entrelaçamento

cumpre a função de dar sentido ao quadro, ou ao argumento interno a ele, no conjunto

desenvolvido antes e depois dele. É necessário que haja, no exercício da leitura, uma

apropriação de elementos que complementem argumentos anteriores e eles se conectem com

discursos posteriores, mesmo que estes estejam espacialmente longe.

O entrelaçamento é exatamente a operação que, desde a fase de criação, programa e efetua essa função de ponte. Ela consiste em uma estruturação bônus e marcante que, levando em conta a decupagem e layout, define as séries internas a uma trama sequencial. (GROENSTEEN, 2015, P.154)

De acordo com Groensteen, o layout situa o quadro dentro da sua condição

espaçotópica, dando-lhe um lugar dentro do multirrequadro. A decupagem, na artrologia

restrita, se preocupa em situar temporalmente (ou no cronotópo), enquanto o entrelaçamento

confere a qualidade de hipertópica, indicando sua subordinação dentro do sistema de

correspondências narrativas. Em suma, o entrelaçamento é responsável por tornar o quadro

um lugar, isto é, um espaço ativo dentro do projeto narrativo.

Groensteen desenvolve, para compreender o processo de elaboração narrativa dentro

da artrologia geral, o conceito de quadriculação. Para ele, os autores, desde o processo de

roteiro ao esboço da página, já submetem a história à compartimentação em cenas ou

capítulos. De acordo com ele, este início de configuração já define, ainda grosseiramente, o

multirrequadro:

3 A totalidade estudada por Groensteen se realiza sobretudo na análise do que ele intitula álbum, tendo como referência as normas editoriais francesas. Ampliaremos este conceito para também outras formas de organização editorial, como graphic novels, revistas em quadrinhos etc.

19

Essa configuração provisória fornece ao autor um quadro de trabalho, uma matriz. O layout será a versão revisada e corrigida da quadriculação, ou seja, a versão informada pelos conteúdos exatos e pelas duas outras operações constutivas da artrologia, a decupagem e (caso surja) o entrelaçamento. (GROENSTEEN, 2015, p.153)

Embora o processo de quadriculação seja, de fato, um elemento relevante na

construção da narrativa, nos parece pouco para compreender de que maneira o entrelaçamento

e a elaboração por parte dos autores dão sentido às leituras possíveis, ou ao processo dialógico

entre autores (roteirista e/ou desenhista), obra e leitor.

A teoria desenvolvida por Eco em suas conferências à Universidade Harvard, em

1993, pode contribuir para a compreensão da comunicação narrativa. Nestas conferências, o

autor compara as narrativas a um bosque em que o leitor faz opções de trilhas enquanto

transita por entre suas árvores. Nesta comparação, a narrativa funcionaria como uma

“máquina preguiçosa” (ECO, 2004, p.11) e que depende constantemente da participação do

leitor para seu funcionamento.

Para o autor, os leitores são obrigados constantemente a adotar opções de caminhos

de leitura. Por outro lado, os caminhos possíveis apresentam opções que se mostram como

razoáveis, na medida em que são estabelecidas por um esquema proporcionado pela própria

obra. O que Eco desenvolve, como uma teoria comunicativa, é a distinção entre a voz autoral

que difere do narrador e também do autor empírico (indivíduo do universo experimental que

produz fisicamente a obra) e entre o receptor prescrito que difere do indivíduo empírico. A

voz funciona como instância controladora dos caminhos possíveis da leitura, e o receptor

ideal aceita seguir as regras do jogo:

Este tipo de espectador (ou de leitor, no caso de um livro) é o que eu chamo de leitor-modelo – uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar. [...] O autor-modelo é uma voz que nos fala afetuosamente (ou imperiosamente ou dissimuladamente), que nos quer ao seu lado. Essa voz se manifesta como uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como leitor-modelo. (ECO, 2009, p. 15, 21).

Poderíamos pensar nesta entidade comunicativa dentro da linguagem da arte

sequencial. Se os vazios criados na artrologia proporcionam um ato de concretização dos

leitores, os espaços são controlados por esta entidade que abre a trilha dentro do bosque para

que o leitor o acompanhe. Se o leitor da página analisada lê a repetição da sentença que narra

a parada do coração de Brás e encara como redundância estética, é em sua conexão com a

figura que a produção de sentido pode ser realizada. O leitor-modelo desta obra precisa

20

reconhecer que o narrador tem um conhecimento da cena e, mais do que isto, conhece os

dramas subjetivos da personagem para ligar a perda do pai à sua própria morte.

O mesmo acontece nas páginas anteriormente analisadas. A estrutura narrativa de

Peixe Peludo é, logo no início, determinada com, por exemplo, o fluxo da sua fala e as cenas

das suas ações. Esta ligação entre foco narrativo em primeira pessoa e as figuras se repete ao

longo da obra, e é preciso que o leitor, que deseja seguir o movimento do texto, reconheça

esta dupla condição e se atenha aos detalhes tanto do texto verbal como do imagético. Em

outras palavras, a estrutura da obra, o autor-modelo, convida o leitor a testemunhar o

pensamento da personagem enquanto o vê em cena.

O autor modelo sugere a motivação e expressão da personagem que está em cena, de

forma que a imagem pode ganhar profundidade com o texto verbal ou o texto verbal pode se

justificar pela presença da cena. É necessário que o leitor-modelo da obra siga as sugestões

dadas por esta entidade organizacional para que leia a história de uma forma mais

aprofundada.

Segundo Eco, o autor modelo da obra pode aparecer de forma dissimulada ou

“descarada”, revelando abertamente seu processo de exposição narrativa ou método de

construção dela. Eco cita exemplos de algumas obras em que a narração convida os leitores

modelo a assumirem determinadas posturas, como no caso de My gun is quick, de Mickey

Spillane:

[...] você alguma vez pensou no que acontece lá fora? Provavelmente não. [...] Mas lembre-se disto: estão acontecendo coisas lá fora. [...] você tem de ser rápido e tem de ser capaz [...]”. (SPILLANE apud ECO, 2002, p.23-24).

Neste caso, o autor convida abertamente o leitor a se comportar de maneira adequada

ao estilo narrativo proposto pela obra. O desafio proposto pelo narrador faz parte da

compreensão da narrativa, incitando-o a pensar no que acontece para além daquilo que se

conta, ou seja, para além dos fatos narrados. Esta espécie de convite também se dá nas mais

diversas formas narrativas. Desde a escolha de cor e enquadramento, até a presença, ou não,

do texto verbal: Em síntese, podemos afirmar que tudo no processo narrativo aponta para uma

recepção estruturada.

Na arte sequencial, a estrutura narrativa parece se evidenciar com menos sutileza em

alguns aspectos. Para a teoria de Groensteen, que , como já dissemos, prevê o quadro como

21

unidade mínima dos quadrinhos, o layout também funciona como seleção narrativa e a sua

estrutura se evidencia para o leitor logo na virada de página:

emoldurado, isolado por vazios (que reforçam o requadro), geralmente de pequena dimensão, o quadro permite sua fácil identificação e destaca-se no continuum sequencial. Isto quer dizer que, aos níveis perceptivos e cognitivos, o quadro tem maior existência para o leitor de HQ do que um plano para o espectador do filme. (GROENSTEEN, 2015, p.37).

A espaçotopia, desta forma, prevê o revelar da compilação das cenas para os leitores.

No entanto, a seleção exposta se limita ao espaçamento entre quadros e as dinâmicas da

relação entre eles. Outros elementos internos ao requadro, como enquadramento das cenas,

cores, formas, linhas, texturas, material verbal etc; demandam formas de percepção que vão

além do material espaçotópico.

Um modelo teórico que pode nos auxiliar na reflexão desta manifestação

organizacional é a teoria desenvolvida por Chatman (1990) em seus estudos sobre a

linguagem fílmica. Chatman defende que a voz construtiva dos filmes se dá na organização de

vários agentes narrativos, que proporcionam todos os elementos para a reconstrução no ato de

leitura:

o autor implícito é o agente intrínseco à história cuja responsabilidade é o design completo – incluindo a decisão de comunicar o filme através de um ou mais narradores. O narrador cinematográfico são agentes de narrativas e não os criadores dela. (tradução livre) [...] poderíamos distinguir entre um apresentador da história, o narrador (que é um componente do que discurso ) , e o inventor tanto da história quanto do discurso (incluindo o narrador): o autor implícito - não como a causa original, a pessoa biográfica original, mas sim como o princípio dentro do texto ao qual atribuímos as tarefas inventivas. (CHATMAN, 1990, p. 132-133, tradução nossa.).4

Este autor implícito, semelhante ao autor modelo, é esta voz organizacional, que, no

caso dos quadrinhos, utiliza-se de todos os códigos da sua linguagem para a confecção da sua

narrativa. Estes agentes funcionam como comutadores do exercício estético e de produção de

sentido.

Estudos sobre o livro infantil ilustrado também podem nos dar subsídios para a

diferenciação da arte sequencial dentre os demais gêneros literários verbais. A sobreposição

4 The implied author is the agent intrinsic to the story whose responsibility is the overall design - including the decision to communicate it through one or more narrators. Cinematic narrators are transmitting agents of narratives, not their creators. [...] we would do well to distinguish between a presenter of the story, the narrator (who is a component of he discourse) , and the inventor of both the story and the discourse (including the narrator): that is, the implied author - not as the original cause, the original biographical person, but rather as the principle within the text to which we assign the inventional tasks.

22

entre palavra e imagem, elemento comum nas linguagens já citadas, é o ponto de conexão

mais evidente e bastante estudado no gênero.

2.1 ENTRE PALAVRA E IMAGEM

Embora o conceito de espaçotopia de Groensteen compreenda o quadro como unidade

mínima do seu modelo teórico, precisamos de outras concepções analíticas para identificar

quais elementos são utilizados pelo autor modelo durante a confecção do maquinário

estrutural da narrativa.

Par ampliarmos teoricamente a análise das histórias em quadrinhos, iremos aprofundar

nossa discussão para o interior do quadro, investigando as formas de relação entre palavra e

imagem e o movimento de ampliação, complemento e/ou contradição dos signos no

desenvolvimento da artrologia restrita e da decupagem.

Estudos sobre o livro infantil ilustrado já levantaram diversas questões comuns com a

arte sequencial, sendo a sobreposição entre imagem e texto verbal, o enaltecimento de um

signo sobre outro ou a disposição igualitária entre as duas formas sígnicas, aquelas que mais

nos interessam no momento.

Muitas pesquisas sobre o livro infantil ilustrado abriram caminhos para a investigação

de Nikolajeva & Scott (2011), destaques dentre os poucos que se detiveram sobre a relação

estrita entre os elementos verbais e visuais. O conceito que se desenvolveu de forma mais

proveitosa para compreender estas relações foi o conceito de iconotexto (iconotext),

apresentada por Kristin Hallberg (1982).

Segundo Nikolajeva & Scott, o conceito se baseava na distinção entre

o livro com ilustração e o livro ilustrado, sendo o último baseado na noção de iconotexto, uma entidade indissociável de palavra e imagem, que cooperam para transmitir uma mensagem.(NIKOLAJEVA & SCOTT, 2011, p.21).

Esta forma iconoverbal5 difere do livro com ilustração na medida em que a relação

entre signo verbal e icônico não se dá de maneira valorativa para um dos membros, isto é, não

privilegia, na tessitura do texto, um único signo.

É evidente que as relações entre figura e verbo na construção do livro infantil

ilustrado – assim como na arte sequencial – podem se ampliar para os mais diversos

5 Optamos por utilizar a expressão texto iconoverbal para se referir ao conceito iconotexto, uma vez que a concepção adotada sobre a palavra texto para o trabalho amplia-se e inclui em seu escopo, além dos códigos verbais, formas pictóricas – como fotografia, figura, cinema.

23

caminhos, alterando o equilíbrio das relações e privilegiando ora o verbo, ora a imagem. A

distinção da forma, no entanto, instiga a qualquer pesquisador da linguagem iconoverbal a não

dispensar em seu estudo um signo em detrimento de outro, ignorando a composição conjunta

do gênero.

Nikolajeva & Scott também utilizam a percepção de Schwarcz sobre a função das

ilustrações nos textos. Com o intuito de perceber os meios e função da linguagem icônica na

composição da narrativa, Schwarcz descreve diversas maneiras da cooperação entre palavras

e imagens, podendo elas apresentar congruência, amplificação, extensão, complementação,

contraponto etc.

Outros estudiosos também propuseram suas análises a partir das formas de interação

iconoverbal. Nikolajeva e Scott apresentam o estudo de Golden que difere as interações

quando:

a) o texto e as imagens são simétricos (criando uma redundância) b) o texto depende das imagens para esclarecimento c) a ilustração reforça, elabora o texto d) o texto carrega narrativa elementar, a ilustração é seletiva e) a ilustração carrega narrativa elementar, o texto é seletivo. (GOLDEN apud NIKOLAKEVA & SCOTT, 2011, p.22).

Aqui se iniciam algumas diferenciações do livro infantil ilustrado e da arte

sequencial. Nas histórias em quadrinhos, as relações iconoverbais também podem carregar

marcas de distinções entre as obras, trazendo vários tipos de relações. Algumas obras podem

não conter a presença de nenhum signo verbal, enquanto outras privilegiam menos a imagem

na construção narrativa. Há aquelas que utilizam as duas formas sígnicas de maneira mais

variada, alternando a carga semântica para uma ou outra ao longo da obra. Há, no entanto,

uma condição espacial do texto que não pode ser ignorada durante a composição: enquanto no

livro infantil ilustrado o texto verbal e a imagem funcionam página a página, disputando um

espaço comum, a arte sequencial possui em uma única página uma série de quadros que

dentro de si carregam imagens e sentenças.

A condição do multirrequadro, ou seja, a espaçotopia, diferencia a forma narrativa

dos quadrinhos da do livro infantil ilustrado, embora a cooperação dos códigos nos possibilite

aproximações teóricas no processo de análise dos quadrinhos.

24

O uso pontual da linguagem nos quadrinhos, isto é, a relação de decupagem entre as

formas sígnicas criadas quadro a quadro se estabelece com outra dinâmica de interação. É

possível, no multirrequadro, que cada quadrinho possa conter, além da imagem, expressões

verbais, como o foco narrativo, a legenda, os balões de fala e pensamento, as onomatopeias e

os demais mecanismos singulares de cada narrativa.

Esta utilização multifacetada amplia as formas de relação entre imagem e palavra,

proporcionando em uma única narrativa várias formas de interação, isto é, em uma única

página a relação entre linguagem verbal e icônica pode ser simétrica, ou a imagem dependente

do texto verbal, ou o contrário etc. Todas elas podem, no entanto, se alterar constantemente,

criando uma variação de significações e intensificando sua condição iconoverbal.

É evidente, no entanto, que o layout já conduz imageticamente o movimento de

leitura da narrativa, mas a espaçotopia é apenas um dos elementos da artrologia, sendo o texto

iconoverbal, e a decupagem interna ao quadro, uma importante forma de interação da

linguagem. Em suma, a análise de uma história em quadrinho seria insuficiente se apenas

analisada macrossemioticamente.

Se utilizarmos a página de Daytripper (2011), analisada anteriormente (Figura 3),

para refletirmos sobre as formas de interação elencadas por Nikolajeva & Scott, veremos que

a interação, no contexto da graphic novel, torna-se múltipla em sua complexidade artrológica.

O primeiro quadro apresenta Brás olhando para baixo enquanto puxa a gravata e abre

um pouco a camisa. A cena é complementada pela presença do foco narrativo que descreve a

tentativa do protagonista de se aproximar afetivamente do pai. O rosto de Brás aparenta

tristeza, mas é o texto quem manifesta verbalmente as razões da expressão.

Em suma, os dois criam uma espécie de redundância complementar: enquanto se

apresenta a cena, desenvolve-se semanticamente um quadro de relações dramáticas, seja pelas

expressões verbais, seja pelo enquadramento, grossura do traço ou cores do ambiente.

É importante enaltecer a condição de representação dos signos visuais na página. Ao

adotar a figura como elemento de representação, os autores da obra se sujeitam a sintetizar

expressões variadas através dos estereótipos referenciais para eles e as comunidades leitoras.

Expressões que denotam tristeza, alegria, encanto, horror etc., fazem parte do ato

comunicativo, mas que só podem ocorrer com alguma base informativa em comum.

Eisner (1999) defende que a expressão da linguagem corporal das personagens é a

codificação visual mais utilizada para representar as mais variadas experiências. Para ele, a

25

postura da personagem e os movimentos subtendidos em uma única imagem, deverão servir

de base para a narrativa, transmitindo a mensagem.

O sucesso ou fracasso desse método de comunicação depende da facilidade com que o leitor reconhece o significado e o impacto emocional da imagem. Portanto, a competência da representação e a universalidade da forma escolhida são cruciais. O estilo e a adequação da técnica são acessórios da imagem e do que ela está tentando dizer. (EISNER, 1999, p.14).

Eisner insiste que o estudo anatômico das personagens – por mais diversa que esta

anatomia possa ser – é importante para o desenvolvimento da narrativa. Elementos como

corpo, gestos, rosto e demais características da expressão física do ser humano são

constantemente retomados por ele como unidade expressiva da arte sequencial.

Podemos ampliar esta concepção para, além dos padrões expressivos da linguagem

corporal, a própria utilização do material significante. A utilização de determinada forma de

representação pictórica, isto é, desenho e arte final, coloração e acabamento, também fazem

parte de níveis de comunicação estética.

Eco (2002) problematiza a noção de representação natural icônica. Para o autor, a

iconicidade não foge da convenção social e pode, facilmente, alterar a noção de realidade em

relação à ótica do mundo que o autor traz consigo no momento em que pinta/desenha. Ele cita

casos descritos por Gombrich em que artes recusadas temporalmente passam a adquirir uma

noção de representatividade posterior. Lembra ainda casos em que desenhistas entre os

séculos XVI e XVIII ainda desenhavam rinocerontes baseando-se nos bestiários medievais.

Desta forma

Representar iconicamente o objeto significa então transcrever por meio de artifícios gráficos (ou de outro gênero) as propriedades culturais que lhe são atribuídas. Uma cultura, ao definir seus objetos, remente-se a alguns CÓDIGOS DE RECONHECIMENTOS que individuam traços pertinentes e caracterizantes do conteúdo. [...] mesmo nos casos de representação mais ‘realista’, podem-se individuar blocos de unidades expressivas que remetem não àquilo que SE VÊ do objeto, mas àquilo que SE SABE, ou àquilo que se aprendeu a ver. (ECO, 2002, p.182).

Esta concepção de representação icônica nos permite perceber a utilização do

desenho na arte sequencial não apenas como fidelidade ao objeto referencial, mas também

como signo convencionado no ato comunicativo pelo autor e receptores num dado período de

tempo e cultura.

26

Neste sentido, a força estética do desenho se liga diretamente ao ambiente cultural

em que a obra circulará. Da mesma forma, os referenciais estéticos visuais do autor também

influenciarão nas escolhas de traço e de arte final. O uso da técnica do nanquim como arte-

final em Daytripper pode ter sido influenciado pelo uso recorrente de outros artistas de

quadrinhos anteriores. Além disto, a cor, simulando a pintura em aquarela, também dialoga

com as técnicas de materiais, e brushes, no caso da pintura digital, já utilizada por coloristas

que trabalharam para o mesmo mercado consumidor.

A substancialidade do material utilizado, bem como as técnicas que prescindem

pigmento, linha, ponto etc; também são elementos que, de acordo com Eco, concentram auto

reflexividade estética:

Numa poesia, o trabalho estético se desenvolve também sobre os valores meramente fonéticos que a comunicação comum aceita por pré-definidos; [...]; uma reprodução a cores de um quadro de Magnasco, por mais perfeita que seja, não dá conta do papel fundamental que nesta pintura desempenham grumos e filtrações de cor, o traço em relevo deixado por uma pincelada gordurosa e pastosa, onde a luz externa desempenha diversos papéis nas diversas situações e nas diversas horas do dia. (ECO, 2002, p.225).

Desta forma, a materialidade do significante também se mostra relevante para o

processo de comunicação do texto estético. Se a composição da personagem se dá por meio

de características comuns às pinceladas de nanquim, comumente utilizada nas histórias em

quadrinhos, é perceptível o asserto do signo vinculado a uma série de outras composições de

obras do mesmo gênero.

A obra, no entanto, também pode reutilizar a técnica em uma combinação estilística

própria ao autor. A caracterização de Brás se dá por pinceladas mais geométricas e

retangulares e as sombras criadas pelo nanquim reforçam ainda mais a dramaticidade da cena

que narra sua morte.

A utilização dos elementos figurativos como artefato semiótico, isto é, transformado

em matéria “semioticamente relevante” (ECO, 2002), interage com os usos já codificados na

relação da obra com o meio. Daytripper não é a primeira obra em quadrinhos da história,

logo, interage com uma série de usos comuns na caracterização de um ser humano no gênero

ou, mas especificamente, de um homem.

Caberia dizer que o texto, neste sentido, não apenas hipercodifica os usos do signo

dentro de um hipersistema próprio como também dialoga com outros idioletos estéticos já

estabelecidos. Renderia um grande esforço de pesquisa e comparação traçarmos paralelos

27

entre a obra analisada e outras correntes do campo das artes visuais. Correntes artísticas como

o cubismo, no seu uso angular para caracterização de personagens, fauvismo, no uso

impressionista da cor podem ter influência não como fonte direta para a produção de

Daytripper, mas como código circunscrito no âmbito da produção visual em que estão

inseridos os desenhistas e o colorista. Em suma, as comunicações dos desenhos na obra estão

relacionadas a diálogos estéticos já empreendidos anteriormente por outras correntes artísticas

ou obras de histórias em quadrinhos.

As cores da cena também podem ser associadas com idioletos estéticos já

reconhecíveis na história da pintura. O uso da aquarela por pintores renomados como Willian

Turner ou as pinceladas indefinidas na representação ambígua da realidade pelo

impressionismo de Monet e outros pintores estão presentes na hipercodificação trazida pela

coloração de Dave Stewart em Daytripper.

O uso de cores mais frias para a composição do ambiente e da personagem, bem

como o gradativo sumiço das cores quentes nos primeiros quadros e os tons de laranja pelo

chão (que criavam o contrapeso de cores complementares) favorece a nostalgia da cena,

interagindo semanticamente com a tristeza nos olhos de Brás e com a parada abrupta do seu

coração.

Apresenta-se relevante também a utilização da imagem na sua relação com a

espaçotopia da narrativa. Com a interrupção do coração, há também a interrupção do fluxo

narrativo dos quadros. Explica-se: quando a sentença anuncia “parou”, os quadros também

somem e a imagem, os olhos baixos de Brás, mostra-se sem requadros, simulando um

rompimento com a narrativa e com o break, tanto do pulsar do sangue quanto da condução do

enredo.

As imagens anteriores também dialogam com outras formas de codificação da

iconografia e da arte sequencial. A tira de Quino (Figura 1) remete a outras composições de

textos iconoverbais do passado que já representaram histórias restritas a uma única página,

como podemos ver em impressos europeus durante o século XIX – ou mesmo em Yellow Kid,

famoso por levar o título de primeiro quadrinho.

Além disso, a própria característica do seu desenho nesta tira já era bastante

difundida no ano de sua publicação, devido ao seu sucesso com a personagem Mafalda, que

estabeleceu seu idioleto estético particular e ampliou a forma de codificação das tiras que

vieram posteriormente.

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Na figura 2, a caracterização do ambiente e da personagem por traços mais grossos e

sombreamentos mais marcantes reporta à ambientação comum do cinema expressionista

alemão, o que sugere o tom subjetivo da trama e estabelece uma regra hipersistêmica dos

códigos utilizados para se contar a história.

A hipercodificação nas páginas analisadas revela a utilização dos códigos visuais para

a constituição dos planos expressivos que, por sua vez, se ligam a uma utilização específica

do código dentro de uma organização interna. As relações entre si e com os signos verbais

sugerem ambiguidade na medida em que atraem a leitura para a sua própria constituição,

gerando, na multiplicidade das suas conexões, um sentido tanto narrativo quanto

metalinguístico (ou metassemiótico).

Quando, em vez de produzir mera desordem, ela atrai a atenção do destinatário e o põe em situação de ‘orgasmo interpretativo’, o destinatário é estimulado a interrogar as flexibilidades e as potencialidades do texto que interpreta como as do código a que faz referência. [...] Como primeiro enfoque, poder-se-ia dizer que se tem ambiguidade estética quando a um desvio no plano de expressão corresponde uma alteração qualquer no plano do conteúdo. (ECO, 2002, p.224).

A ambiguidade se apresenta, nas histórias em quadrinhos, numa codificação dupla,

sendo as formas de interação (simétrica, ou com sentido concentrado na imagem, ou sentido

concentrado no texto), e as suas constantes mutações da matéria, os desvios que promovem

reflexão sobre os seus próprios usos. Quando Quino utiliza o balão de fala como espaço não

de texto verbal, mas imagético e onomatopéico, ele reconfigura a utilização tradicional do

código. O idioleto estético anterior, rompendo com sua formulação padrão para a

reconfiguração pontual no seu plano de expressão, resulta, por consequência, na rearticulação

do plano de conteúdo.

Embora a contribuição de comparações entre idioletos estéticos e convenções da

imagem possa nos ajudar a compreender o discurso presente no texto, resta-nos procurar uma

teoria que viabilize um método analítico para a análise das imagens.

Pietroforte (2004), utilizando-se da semiótica narrativa graimasiana, defende a

utilização do quadro semiótico como formalização do processo de significação e sentido

gerado pelo texto. Para ele, a rede de relações estabelecidas por termos contrários e

contraditórios desenvolve categorias semânticas que orientam o percurso do texto e, desta

forma, o da sua análise.

29

Assim, por meio de operações de afirmação e de negação, o quadrado semiótico sistematiza uma rede fundamental de relações de contradição, contrariedade e implicação. Além destas três relações entre os termos simples, há no quadro semiótico um termo complexo, gerado pela simultaneidade de suas negações. (PIETROFORTE, 2004, p.14).

Esta formalização é utilizada por Pietroforte para articular os planos de expressão e

conteúdo. Segundo ele, este método de análise narrativa, comumente utilizado para

compreender o processo de categorização de personagens e de ações, pode ser atualizado nos

estudos de sistemas semi-simbólicos. Para o autor

Em muitos textos o plano de expressão funciona apenas para a veiculação do conteúdo, como na conversação, por exemplo. No entanto, em muitos outros, ele passa a “fazer sentido”. Quando isso acontece, uma forma da expressão é articulada com uma forma do conteúdo, e essa relação é chamada semi-simbólica. (PIETROFORTE, 2004, p. 21).

Para a análise de imagens, estabelece-se um esquema comparativo entre as categorias

semânticas e temáticas tanto do plano de conteúdo, quanto do plano de expressão presentes na

imagem. Podemos analisar um dos quadros em uma página da graphic novel Orquídea Negra

(2013), de Neil Gaiman e Dave Mckean (Figura 4).

O segundo quadro da página, no sentido da leitura tradicional do ocidente, apresenta

uma imagem abstrata, com contornos definidos apenas pela cor, ou seja, sem traçado. Esta

imagem remete-nos a uma noção de não rigidez, pela descentralização do desenho e pela

intensidade desnivelada da cor, na qual branco e magenta não estabelecem uma relação de

equilíbrio no quadro.

Poderíamos, desta forma, estabelecer como categoria semântica do plano expressivo

do quadro em questão os contrários magenta x branco, ou luz x sombra, para então os

relacionar com o plano de conteúdo. O plano de conteúdo, por sua vez, só pode ser

identificado na sua conexão com os quadros precedentes. A sequência da página anterior, em

que a personagem cai para um espaço em branco, liga-se a esta imagem para compreendermos

que a sua “sanidade” é gradativamente retomada. Em resumo, a significação do quadro é

estabelecida na conexão com as imagens anteriores, ou seja, na artrologia geral da obra.

Diante disso, voltamos à teoria de sistema dos quadrinhos de Groensteen em que a

condição de multirrequadro diferencia a linguagem sincrética dos quadrinhos com outras

linguagens não verbais. A relação do plano de conteúdo com o plano expressivo da página em

questão só será possível em decorrência da solidariedade icônica defendida anteriormente.

30

Desta forma a categoria magenta x branco interage, paralelamente, com a categoria lucidez x

inconsciência do plano do conteúdo.

Esta mesma categoria do conteúdo poderá se repetir nos quadros seguintes para, de

outras formas, estabelecer construções no plano expressivo. No entanto, a perpetuação do

plano de conteúdo se dará pela relevância da imagem dentro do contexto da narrativa, se será

um momento de ruptura ou de novo elemento conotativo, ou se perpetuará o conteúdo já

desenvolvido ao longo da obra.

Como já dito, as formas de interação entre os signos verbais e não verbais dentro do

quadro variam de acordo com os seus usos e relevância dentro do contexto narrativo. A

solidariedade, para além da icônica, se dá de modo contextual. Tanto o texto verbal quanto a

figura podem, em situações diversas, carregar a narrativa elementar.

A página analisada anteriormente nos dá subsídios para compreender a relevância

das sentenças dentro do contexto da narrativa. Respaldado na solidariedade contextual, o

leitor pode concluir que a página toda manifesta a volta da personagem ao seu estado de

lucidez. A página seguinte, que apresenta seu despertar, também dá indícios deste movimento.

Por outro lado, é através das expressões verbais que a relevância da cena estabelece um

vínculo entre o acontecimento e a subjetividade da personagem.

A frase “O retorno à consciência é difícil” não apenas marca o espaço da imagem –

da subjetividade da personagem – como também revela suas impressões, elemento narrativo

que intensifica a experiência estética no processo de leitura. A semântica categórica lucidez x

inconsciência se soma à construção frasal do texto e ao uso das cores e formas da imagem:

uma construção que apenas se dá na conexão da artrologia da página e na estrutura

iconoverbal interna ao quadro.

Groensteen defende que o verbal, na arte sequencial, tem duas funções: “uma função

de dramatização (o intercâmbio de comentários colabora para o pathos da situação) e a função

realística” (GROENSTEEN, 2015, p.135). Para o autor, a função realística se refere ao uso

dos diálogos, que marcam uma semelhança entre os personagens e as pessoas do mundo não

ficcional.

Apesar de reconhecer papéis relevantes para os textos verbais, Groensteen mantém-

se conectado à ideia hierárquica de que a narrativa elementar na disposição do sistema dos

quadrinhos se dá pela imagem: “parece-me necessário estabelecer com clareza que a imagem

sozinha é portadora de sentido” (GROENSTEEN, 2015, p.135).

31

A imagem, evidentemente, é o código que mais se sobressai na linguagem sincrética

do gênero, inclusive em termos quantitativos. As trocas verbais, por outro lado, apresentam-se

também como elementos de importância na construção do sentido geral do texto, na

solidariedade contextual. Na cena analisada anteriormente, o plano de expressão de ambas as

formas sígnicas interagem com a categoria do plano de conteúdo, isto é, ambos os códigos

fazem parte do processo de construção estética do texto.

Groensteen defende que a imagem tem a capacidade de comunicação estritamente

visual e não pode compartilhar as trocas verbais– embora os pensamentos também possam

expressar-se em imagens. De acordo com ele

Entre todas as ações à que as personagens se dispõem, há uma que consiste exatamente em falar. Esse ato de discurso inscreve-se na cadeia de ações e reações que constitui a narrativa, é parte integrante de sua trama de fatos. Os recordatórios, equivalentes à voz em off, encerram em si um discurso, o do narrador explícito (que pode ser narrador principal ou secundário, intra ou extradiegético etc.) (GROENSTEEN, 2015, p.136).

Chamado por ele de recordatório, o foco narrativo das histórias em quadrinhos

funciona como um recurso comum e bastante relevante nas graphic novels. No exemplo de

Orquídea Negra (2013), analisado acima, a obra utiliza-se de um foco narrativo em primeira

pessoa, enaltecendo o papel de exposição narrativa pela própria personagem desenhada.

Groensteen teoriza sobre a linguagem verbal e sua função dentro do sistema dos

quadrinhos. Para ele, os textos verbais possuem sete funções específicas:

Reconhecemos no verbal sete funções distintas na organização de uma história em quadrinhos, sendo respectivamente o efeito de real, a dramatização, a ancoragem, o revezamento, a sutura, a condução e o ritmo. Entre essas funções, contamos três (as duas primeiras e a última) que se voltam para a ilusão referencial e para a composição de cena. As quatro outras são, em suma, casos particulares do que poderíamos resumir como função informativa do verbal. (GROENSTEEN, 2015, p. 142).

Para o autor, as declarações linguísticas devem completar as informações trazidas

pela sequência icônica. Por isso, as suas definições funcionais para os signos verbais se

limitam a subterfúgios narrativos que apenas surgem como suplemento e não como parte

orgânica do sistema.

O problema na teoria de Groensteen se dá quando ele encara o texto verbal como

complementar e não como parte integrante da narração. Ele descreve o texto verbal, nas suas

várias funções, como próprio à ancoragem e condução temporal; ou como signo de conexão

entre imagens não solidárias – contrariando seu entendimento do funcionamento do

32

multirrequadro. Além destas funções específicas, compreende que o texto participa da

dramatização e do tempo de leitura, mas insiste na ideia de que a imagem é suficientemente

pronta para conduzir por si só o sentido.

O equívoco encontrado na sua teoria se percebe na concepção que o autor tem de que

a sutura, conexão entre quadros independentes, se dá pelo texto verbal por sua capacidade de

conexão na artrologia geral dos quadrinhos. Conforme defendido por ele mesmo “[...] a

imagem muitas vezes não necessita de mensagem linguística alguma pra ancorar-se em uma

significação unívoca. Não é verdade dizer que, sem uma ‘muleta’ verbal, ela está condenada à

polissemia” (GROENSTEEN, 2015, p. 138).

Para Groensteen, a imagem, sem suporte verbal, tem a capacidade de possibilitar

significações na sua condição de relação na solidariedade icônica. Desta forma, entender que

as participações dos códigos linguísticos se dão apenas na conexão entre dois quadros nos

parece insuficiente.

A página analisada de Daytripper (Figura 3) revela um exemplo da relevância mútua

dos códigos presentes na cena. O foco narrativo, ou recordatório, não apenas conecta os

quadros e, embora funcione para a dramatização da cena, caso fosse retirada, não veicularia o

mesmo valor subjetivo da personagem e não funcionaria esteticamente como é apresentada. A

repetição da expressão se torna completa na imagem, fazendo com que a imagem funcione

como elo de sentido, quase como elemento base e sutura. Dessa forma, o autor modelo, nos

quadrinhos, utiliza-se tanto da estética visual quanto dos desvios da norma dos textos escritos.

Casos em que o uso do foco narrativo se revela como condutor da narrativa também

possibilitam uma reflexão sobre o papel do verbal na construção de sentido. A adaptação em

quadrinhos do conto de Kafka “Uma pequena fábula”, pelo artista norte-americano Peter

Kuper, serve de exemplo de manipulação da construção verbal para a artrologia da história e o

entrelaçamento do todo da narrativa.

Iniciada com o foco narrativo em primeira pessoa e ampliado pelas imagens, as

relações entre o verbal e o icônico se conectam como conotações imagéticas para o discurso

redigido pelo narrador. O personagem aparece percorrendo um globo que, mais abaixo,

revela-se como a sua própria cabeça. Seu desespero e limitação geográfica vão diminuindo

pelo estreitamento de paredes e pela dramatização do foco narrativo, até culminar em um

quarto contendo apenas uma ratoeira – já descrita previamente pelo foco narrativo.

33

O interessante no conto é a rápida mudança do foco narrativo. No conto original, o

texto se inicia em terceira pessoa para, em seguida, dar a voz ao monólogo do personagem

rato. No entanto, o foco narrativo no quadrinho já se inicia com a primeira pessoa, sendo

interrompido somente quando o rato é engolido pelo gato. Neste momento, há uma fala do

gato que abre caminho para o surgimento do foco narrativo na terceira pessoa.

“‘Você só precisa mudar de direção’, disse o gato e o devorou” (KUPER, 2008,

p.11). A alteração do foco narrativo no quadrinho movimenta o plano de conteúdo da história,

já que enquanto altera a voz do narrador, altera também a posição de contador da história do

rato. Em suma, realiza-se estruturalmente uma mudança que acontece também no argumento

do texto: o rato perde a possibilidade de ser o “autor” da própria história.

A presença do texto verbal se mostra fundamental para o desenvolvimento

expressivo do texto, além de funcionar esteticamente como desvio intencional, agregando a

força estética do desenho à presença marcante de um uso incomum da escrita. Para além do

ritmo e da dramatização, o verbal aqui está como parte integrante do todo da narrativa.

2.2 GRAPHIC NOVEL

O desenvolvimento das histórias em quadrinhos e a sua popularização logo sofreram

com a recepção da crítica e de estudiosos da educação. Seus primeiros passos, na era

moderna, nos jornais, começaram a ampliar-se e promover preocupação a uma geração

conservadora.

Os quadrinhos tiveram seus detratores representados, sobretudo, na figura de

Frederic Wertham, psiquiatra alemão, autor de Sedução dos Inocentes - Seduction of the

Innocent (1954), um marco para as críticas aos quadrinhos. O autor alegava que os quadrinhos

incitavam a violência, o lesbianismo (encabeçado pela heroína Mulher-Maravilha), o anti-

patriotismo (Superman) e apresentavam elementos grotescos à estética visual. Em grande

parte, os valores morais eram postos em evidência e questionados pelo psiquiatra.

A questão moral para os quadrinhos tornou-se intensa a ponto de ser estabelecido o

código de ética dos quadrinhos (Comics Code Authority), em 1954. O Código foi

desenvolvido pela Associação Americana de Revistas em Quadrinhos (CMAA - Comics

Magazine Association of America): união de diversas editoras de quadrinhos para defender

seus interesses e agir em resposta às críticas feitas pelo psiquiatra alemão. O Código previa

uma série de prescrições que norteavam os possíveis conteúdos das revistas. As revistas que

34

se submetiam a censura levavam um selo na capa que garantia a revisão do conteúdo. Embora

o selo já não tivesse muita força desde meados de 1980, a sua extinção oficial só se deu em

2011, quando as grandes editoras divulgaram que não mais submeteriam seus trabalhos a

avaliação da associação.

Apesar das constantes críticas ao gênero, os quadrinhos continuaram a se expandir

em diversos formatos e plataformas, encontrando seu público, para além do jornal, em

revistas de heróis e de aventura. Após a grande era de ouro dos quadrinhos, época do

surgimento de diversas revistas de sucesso, as eras seguintes modernizaram seus modelos

narrativos e transformaram o público para o qual eram dirigidas as primeiras revistas.

A era moderna dos quadrinhos, percebida com maior evidência a partir dos idos de

1980, contemplou uma das mais significativas contribuições à arte sequencial, ao incluir na

formatação do gênero da época a forma da graphic novel:

O número de quadrinhos em formato longo de depois da Segunda Guerra Mundial haviam chamado diversas vezes um romance imagem, romance em imagens, novela ilustrada, o romance em quadrinhos , álbum gráfico, história e arte gráfica . Apesar de não ser o primeiro a empregar o termo , Will Eisner deu ao termo “graphic novel” maior circulação e estatura com sua 1978 coleção de quatro histórias sobre a vida judaica urbana na década de 1930 intitulado Um Contrato com Deus e Outras Histórias do Cortiço : Uma Graphic Novel (PETERSEN, 2011, p. 222) (tradução nossa)6

Difundida por Will Eisner, a expressão ganhou força e passou a ampliar a forma de

composição, tanto das grandes editoras de heróis como de editoras menores e/ou produções

mais independentes. As obras de Eisner traziam temas urbanos, com argumentos mais

centrados no cotidiano e na subjetividade das personagens.

No mesmo caminho seguiram as graphic novels produzidas dentro dos grandes

estúdios. The dark Knight (O cavalheiro das trevas, 1985), do quadrinista norte americano

Frank Miller e Watchmen (1986), do escritor britânico Alan Moore, são duas obras que

problematizaram os heroísmos dos personagens tradicionais da editora DC Comics e abriram

caminho para séries e histórias que teriam como tema central não mais a salvação da nação ou

6 Number of long-format comics from after World War II had called themselves variously a picture novel, novel

in pictures, illustrated novel, comic novel, graphic album, and graphic story. Although not the first to employ the term, Will Eisner gave the term ‘‘graphic novel’’ greater circulation and stature with his 1978 collection of four stories on urban Jewish life in the 1930s entitled A Contract with God and Other Tenement Stories: A Graphic Novel. (PETERSEN, 2011, p. 222)

35

de personagens em perigo, mas a condição humana em paralelo a existência de seres

fantásticos ou maravilhosos.

A posição encontrada pelos quadrinhos neste momento de ruptura com os discursos

tradicionais do gênero insere em uma discussão muito semelhante a já vivida pelo romance

durante sua época de ascensão, isto é, de tentativa de ruptura com o da idealização romântica

anterior.

Ian Watt (1996) discorre sobre a tentativa de vários estudiosos de categorizar o

gênero romance como aquele próprio à forma realista, que tentava se distanciar do “idéalité

poétique” do neoclassisimo na pintura e, mais tarde, da forma de produções anteriores,

sobretudo das obras dos autores do início do século XVIII.

O autor percebe que os riscos do termo se localizam na possível posição de

antagonista do romantismo, tomando vozes de um romantismo às avessas, que apenas

enfatizaria o carnal e o social da humanidade. Segundo Watt, mais do que o conteúdo realista,

sua forma era a grande novidade.

O primeiro grande desafio a esse tradicionalismo partiu do romance, cujo critério fundamental era a fidelidade à experiência individual – a qual é sempre única e, portanto, nova. Assim, o romance é o veículo literário lógico de uma cultura que, nos últimos séculos, conferiu um valor sem precedentes à originalidade, à novidade. (WATT, 1996, p.15).

Esta mesma novidade na forma marcou a transição das histórias em quadrinhos

tradicionais para a forma da graphic novel. Talvez fosse possível que outras narrativas

trouxessem o cotidiano, ou mesmo visões mais realistas, para dentro de seus enredos, mas a

grande marca deste novo realismo dentro do gênero se baseava numa nova formatação, em

que planos de expressão e conteúdo encontrariam outras formas de articulação.

Will Eisner aprimora o uso desta nova forma, utilizando a própria iconicidade do

espaço para dispor a grafia das letras, ampliando a relação entre palavra e imagem e tornando

o código cada vez mais híbrido e, a cada edição, novo.

Esta inovação da forma trouxe vários incômodos para os estudiosos da linguagem e

semioticistas da época. Novamente de forma semelhante ao romance, a composição inovadora

da graphic novel soava como um grande caos, gênero em que diversos subgêneros da arte

sequencial poderiam ser incluídos, além dos elementos narrativos se subdividirem de

maneiras até então incomuns.

36

Roberto Elísio dos Santos, em seu texto “Caos Semiótico dos quadrinhos: um estudo

de graphic-novels” revela o grande desazo dos pesquisadores da época de mapear o

funcionamento de tantas vozes e ângulos narrativos em uma única obra:

Com tantos narradores e pontos de vista, a narrativa se fragmenta (um fato é mostrado de formas diferentes ou muitos fatos são mostrados ao mesmo tempo, com a ação alternada) – o que causa o “caos semiótico”. A narração subjetiva faculta aos personagens desnudar seu íntimo, tornando claras suas ambiguidades, a ponto de desaparecer a fronteira entre protagonistas e antagonistas [...]. (SANTOS, 1989, p.72).

O novo olhar para os personagens tradicionais, isto é, seu novo horizonte no plano de

conteúdo, só poderia ser alterado na medida em que o plano de expressão também encontrasse

novos meios de narração e de exploração das várias facetas dos heróis e dos vilões.

A inovação da linguagem não se limitou apenas ao mercado de consumo das revistas

de heróis, mas também conquistou revistas voltadas às histórias em quadrinhos mais

independentes do grande cenário, como é o caso de Art Spielgelman, com sua obra Maus7

(2009). A graphic novel teve seu desenvolvimento na publicação em partes da história, que

iniciou em 1973, com o lançamento de um trecho do primeiro volume, até 1991, com a

publicação do último trecho do volume dois.

A história se concentra no relato de Art sobre as memórias do próprio pai em sua

experiência durante a segunda guerra mundial, narrando as perseguições e lutos sofridos como

judeu em Auschwitz. Apesar de apresentar um caráter memorialístico, a obra possui uma

liberdade da forma que se mostrou singular tanto nos códigos utilizados como no conceito de

representação subjacente ao plano expressivo.

Os personagens judeus são descritos, imageticamente, como ratos, enquanto os

poloneses são apresentados como porcos, os nazistas como gatos e os americanos como

cachorros. A discussão sobre os estereótipos de figura, levantados por Eisner, encontram aqui

outros meios de representação, já que são animais com uma carga semântica muito mais

significativa como função alegórica.

Além do uso de animais como representação das pessoas, a inserção de outras formas

de codificação e de usos metassemióticos dentro da narrativa contribuiu para que a obra se

tornasse um grande marco no desenvolvimento da linguagem e das potencialidades temáticas

das histórias em quadrinhos.

7 Maus, a Survivor’s tale, 1973 – 1991.

37

Um exemplo do uso metassemiótico se dá quando, dentro do contexto proporcionado

pela história, o pai de Art lê uma de suas histórias sobre sua família. A história narra o

suicídio da sua mãe e é construída com uma estética completamente diversa àquela que é

traçada desde o início da obra.

A pequena história apresenta, com seus traços fortes e expressionistas, o drama

vivido por Art com a morte da mãe (Figura 5). Ela é representada com traços que se

assemelham à técnica da xilogravura e marca uma importante distinção entre sua história e a

narrativa elementar, que é marcada pelos diálogos entre Art, o pai e as suas memórias.

A inserção desta pequena história dentro da narrativa maior representa uma marca de

distinção das graphic novels com a produção geral da arte sequencial. A artrologia geral,

dentro deste gênero, possibilita a inserção, inclusive, de outros gêneros menores8 dentro do

seu enredo. A incorporação no trecho contribuiu para o plano de conteúdo geral da obra,

enquanto proporcionou um momento de construção mais profunda no drama das personagens.

Em suma, a complexidade estrutural do gênero possibilita níveis mais variados da utilização

dos códigos e da forma que configura sua linguagem.

A distinção da forma também é exemplificada em outro trecho de Maus. Mesmo

representando toda a sua família como ratos, o autor-modelo da obra se utiliza de fotografias

para representar o pai, a mãe e outros parentes durante a narrativa (Figura 6).

O uso da fotografia como um código novo na graphic novel apenas reitera a condição

do gênero de explorar sua capacidade de hipercodificação ampliada na artrologia geral.

Embora se revele contraditório, seu uso evidencia a caracterização de ratos como alegoria

durante o todo da narrativa, além de sublinhar a veracidade biográfica dos elementos

narrados. A argumentação do autor-modelo se fortalece através do seu uso da linguagem.

Maus é um exemplo do desenvolvimento da linguagem das graphic novels durante as

décadas de 70, 80 e início de 90, uma vez que sua produção marca as relações da linguagem

da obra com outras obras produzidas neste ínterim.

Com o desenvolvimento do mercado das histórias em quadrinhos, outras vozes

contemporâneas continuaram a explorar as potencialidades da forma e conteúdo das graphic

novels.

8 A expressão “menores” aqui se refere à dimensão e quantidade de elementos descritos, não à sua relevância como obra.

38

Um exemplo que poderíamos citar é Asterios Polyp, (2009) de David Mazzuchelli. O

enredo da obra é simples: um homem, Asterios, que narra o término de seu namoro e seus

traumas com a morte de um irmão gêmeo. A narrativa, no entanto, se dá de forma distinta: a

paleta de cor é limitada e Asterios é constituído da cor azul, sendo a de sua companheira a cor

vermelha. Este elemento informa grande parte das características e das personalidades dos

personagens, o que o torna de suma importância para a trama.

Conforme a obra se desenvolve, as informações dadas logo no início – de formato e

cor dos personagens – são repetidas na condução dramática do enredo. É preciso que o leitor

reconheça a estrutura “ensinada” no início para que se leia a importância identitária e

subjetiva das personagens na cena.

Outro tópico muito enfático da obra se dá nos momentos em que o irmão de Asterios

aparece na história em saltos narrativos que nos são dados por transição de cor. Seu irmão,

morto, narra partes da história e nos conduz em um fluxo de consciência necessário para a

leitura do drama de Asterios. Estes pequenos elementos são parte integrante desta obra em

quadrinhos e não se configuram como regra e forma para todas as obras da arte sequencial.

Novamente, é uma obra que mistura as distinções de quadro e conteúdo.

Esta particularidade da forma reflete ainda mais a semelhança com o surgimento do

romance e sua relação com a inovação singular. É certo, como já vimos, que todo texto

estético constitui uma espécie de idioleto interno e que estas novas regras criadas no interior

do texto são de constituição da própria história, isto é, manifestam-se de forma original

estabelecendo um sistema de linguagem particular.

No entanto, a multiplicidade de vozes e elementos narrativos nas graphic novels

estabelece uma dimensão autorreferencial ao longo de toda a trama. Ao criar os parâmetros

semânticos que coordenarão a caracterização dos personagens em Asterior Polyp, por

exemplo, Mazzuchelli cria um sistema que sempre voltará às cores e formas dos personagens,

podendo explorar esta gramática/sintaxe em todo o romance gráfico (Figura 7).

O método singular de composição do gênero, mais uma vez, mostra-se muito

semelhante à forma do romance, que tem na sua autenticidade a maior marca. O aparente caos

semiótico, descrito por Santos em relação às graphic novels, trouxe a mesma preocupação aos

detratores do romance quando o gênero incluía, em seu escopo, vários gêneros dentro do seu

corpo narrativo.

39

Pode inventar todas as espécies de classificações nas quais se ,misturam as distinções de quadro (rústico, urbano, exótico), de conteúdo (ideias, costumes, psicologia), de técnica (cartas, diário íntimo, confissão). No limite, todo o romance um pouco complexo constitui uma espécie em si. (BOURNEUF & OUELLET, 1976, p.35).

A experiência original de cada obra do romance segue o mesmo sentido da

experiência própria a cada graphic novel. Em Daytripper, temos a presença, a cada capítulo,

de um obituário de Brás. O protagonista morre e aparece a cada novo segmento, criando um

elo invisível através dos obituários e marcando a morte subjetiva ou alegórica do personagem

de forma bastante singular.

O elemento narrativo “obituário” não se configura como regra para a constituição do

romance gráfico, assim como a subdivisão dos capítulos ou a diferenciação entre foco

narrativo e outra voz de recordatório. A experiência de leitura, em Daytripper, assim como

em Maus e Asteriors Polyp é singular e funciona apenas como idioleto interno à própria obra,

como linguagem autorreferencial. Mas cabe ressaltar que todo idioleto interage com a história

estabelecida das ações comunicativas de caráter estético e da formação de outros idioletos no

plano diacrônico.

Daí um dos motivos do gênero ser comparado, inclusive em nomeação, ao romance.

A forma singular e autorreferencial marcam seu surgimento e a singularidade de cada obra

constitui o valor de autoria intensificada nos últimos anos na área dos quadrinhos.

3 A MEDIDA DE TODAS AS COISAS

Édipo, protagonista emblemático da peça de Sófocles, é aquele que suscita o dilema

entre pai e filho. O coro da peça evoca a condição de conflito e a escolha da personagem:

“Ilustre e querido Édipo, tu que no leito nupcial de teu pai foste recebido como filho, e como

esposo, dize: como por tanto tempo esse abrigo paterno te pôde suportar em silêncio?”

(SÓFOCLES, 2005, p. 88).

A batalha travada entre pai e filho, na peça, atinge o ápice com a morte do pai e a

usurpação do trono pelo filho. Édipo, mesmo desconhecendo a profecia, cumpre seu destino e

sela o conflito criado pelo pai no seu nascimento. O espaço por eles ocupado é o da disputa

silenciosa e de reconhecimento do papel um do outro no destino que os liga.

Não é novidade a leitura deste clássico por vias desta relação traumática.

Sigmund Freud (1856 – 1939), famoso psicanalista austríaco, não só averiguou a relação entre

40

pai e filho na peça como instituiu um dos mais populares conceitos da psicologia infantil: o

complexo de Édipo.

Há, de acordo com o psicanalista, na formação da libido das crianças do sexo

masculino um desejo pela mãe, com o intuito de ocupar o lugar do pai. Seu conceito pode ser

percebido na peça de Sófocles, mas também em outras obras conhecidas, como Hamlet, de

Shakespeare, que intensificou a discussão sobre a constante hesitação do protagonista em

vingar a morte do pai.

Na peça inglesa, Hamlet encontra o fantasma do pai que pede a ele para vingar a sua

morte, orquestrada pelo irmão do rei, Claudio, que além de usurpar o trono casa-se com a

esposa do finado rei e mãe de Hamlet. O filho aceita o convite prontamente, mas a vingança

perde vigor diante de uma hesitação incomum, o levando a questionar se deveria ou não tomar

o rumo da vingança.

Esta hesitação é tida, por estudiosos psicanalistas, sobretudo aqueles que seguem a

vertente freudiana, como um exemplo de complexo de Édipo, a partir do qual a morte do pai é

experimentada como liberdade, inclusive para desfrutar do desejo infantil que os meninos

sentem pela mãe.

A dualidade do abrigo e do confronto paterno é a condição essencial do dilema de

Édipo e Hamlet, mas também, de maneira diferenciada, a de Kafka, em Carta ao pai, e de

Brás, em Daytripper. O cenário da disputa e o interesse de se encontrar com e como o

progenitor é de suma relevância no trato de todos estes personagens com a figura do pai.

Qual a relação possível do confronto com o pai e a procura de definição do seu próprio

ser? Um olhar atento para a teoria do alemão Martin Heidegger, sobre as formas de interação

do ser com o outro, pode elucidar o tema em vários aspectos, desde a forma de ocupação com

as coisas que podem remeter ao pai, a relação direta do pai com o título filho e a condição de

qualquer um deles como ente individual que se percebe rodeado de outros seres.

3.1 O SER E O SER-COM-OS-OUTROS

Tendo como professor o filósofo morávio Edmund Husserl, que o influenciou

diretamente com a sua teoria fenomenológica, Heidegger foi um leitor ávido dos teólogos da

angústia, como Santo Agostinho e Kiekergaard, além de Karl Barth e Pascal (talvez uma de

suas maiores influências sobre o tema), que o influenciaram, de acordo com Steiner, para a

individualização da morte. Leitor de Nietzsche e Lucáks, Heidegger era interlocutor das

41

teorias e discussões da filosofia contemporânea à sua produção, além de apreciar os artistas do

expressionismo alemão, a prosa intimista de Dostoievski e a poesia de Rilke.

Esta série de influências, embora não dêem conta do todo, são algumas das

referências formativas da sua obra mais significativa: Ser e tempo (Sein und Zeit). Lançada

em 1927, a obra marcou expressivamente o circuito acadêmico da época, não demorando a

acarrear outras expressões com o mesmo norte:

Meio ano depois da sua publicação, a notoriedade de Heidegger nos círculos teológico e filosófico estava assegurada. Por volta de 1930 já havia uma vasta literatura secundária. A afirmação de Heidegger, frequentemente repetida, de que o manuscrito lhe tinha sido mais ou menos extorquido (por motivos de promoção acadêmica) e que a obra, no seu estado presente, era um fragmento, aumentou a sensação geral de estranheza e revelação. O mesmo efeito teve, seguramente, a sua recusa de elucidar ou comentar os seus “significados”. (STEINER, 1990, p.69)

O assombro causado na época, tanto na forma como na sua relação direta com a

argumentação teórica, perpetuou-se na história da filosofia e levou pesquisadores a

considerarem a obra como um modelo de ruptura estilístico-teórica do pensamento ocidental,

em pé de igualdade com Tractatus, de Wittgenstein, Fenomenologia do espírito,de Hegel e

Genealogia da Moral, de Nietzsche.

Heidegger, com a prerrogativa de ampliar o pensar o ser, tenta difundir uma visão

mais analítica da discussão sobre o mesmo. Utilizando-se do vocabulário da fenomenologia

no seu esquema ontológico, ele acreditava encontrar uma resposta satisfatória sobre o

esclarecimento do objeto na sua relação com o ente.

A proposta trazida pelo existencialismo volta-se, tanto em Heidegger como em

Kierkegaard, para o ser no sentido do existir, i.e., no sentido dado pela própria condição de

percepção da existência e de autoquestionamento. Para Heidegger, a inteligência do ser é

própria do homem e somente nesta condição é que se pode vislumbrar o conceito frágil de ser.

É por se voltar para a existência em si que Heidegger, mesmo discordando das

conclusões do seu mentor, vai se fundamentar no método descritivo da fenomenologia de

Husserl. O ponto de vista fenomenológico propicia ao filósofo alemão uma perscrutação da

problemática do ser, uma vez que esta investigação caminhava até então, de acordo com

Heidegger, mais para a fuga da busca do ser do que para uma analítica precisa e pontual sobre

o tema.

42

Heidegger (HEIDEGGER, 1986, p.30)., logo no início de Ser e tempo (1986), lança

luz sobre seu propósito investigativo, a saber, não apenas a questão para o ser como também o

próprio método de esclarecimento por vias concretas.

Deve-se colocar a questão do sentido do ser. Tratando-se de uma ou até da questão fundamental, seu questionamento necessita, portanto, de uma transparência conveniente. Por isso é preciso que se discuta brevemente o que pertence a um questionamento para então, a partir daí, se poder mostrar a questão do ser como uma questão privilegiada. (HEIDEGGER, 1986, p.30).

O ser, esta palavra abrangente, passível de alteração de sentido em diversas

explicações e teorias, passa a representar, segundo Heidegger, o que designa o ente, isto é,

aquilo que pode ser passível de qualificações e de experiência. Mas, diferente do ente que é

designado, que não questiona a si mesmo e é definido a priori, a designação está no centro do

seu próprio ser, expresso na figura que Heidegger denominou como Dasein.

O Dasein é a principal característica do ente do homem, do ente passível de se

colocar em evidência para esclarecer o ser. O ente que questiona o próprio ser, este ente que

somos todos nós, é chamado por Heidegger de Da-sein, isto é, o Ser-aí, a clareira que revela

momentaneamente o todo do ser (que é a floresta):

Ser atingido essencialmente pelo questionado pertence ao sentido mais autêntico da questão do ser. Isso, porém, significa apenas que o ente, dotado do caráter da presença, traz em si mesmo uma remissão talvez até privilegiada à questão do ser. (HEIDEGGER, 1986, p.34).

O modo de ser do Dasein revela-se como um dos conceitos mais caros para a teoria

existencialista do pensador alemão. A estrutura do existente se manifesta, desta forma, como

elemento básico para a compreensão do ser e para a questão da essência do mesmo. A

essência do ser só se manifesta na sua existência, o que pressupõe que o ser-aí é a única

manifestação do ser do ente, i.e., possibilidade concreta da manifestação da essência. Desta

forma, não é surpresa dizer que a existência tem primazia sobre a essência.

No entanto, é preciso privar-se do equívoco de valorizar o ente mais do que o ser.

Os dois se relacionam numa condição intrínseca e mútua, mesmo sendo distintos, como ôntico

e ontológico. Mas entre todas as formas de ente, de vários ônticos, é no homem que se

encontra a possibilidade de questionamento sobre o ser. O homem é dotado do privilégio de

poder questionar e buscar a ontologia.

43

Em Heidegger, a possibilidade torna-se radical. A realização da essência, desta

forma, se dá no seu autoquestionamento, no desenrolar da sua própria existência. É desta

forma que o ente consegue o seu Dasein, o seu ser-aí, i.e, na possibilidade de interpelar o ser,

mais precisamente o seu próprio ser.

O Dasein tem, por conseguinte, uma multíplice precedência diante de todo outro ente. A primeira precedência é ôntica: esse ente é determinado em seu ser pela existência. A segunda é ontológica: sobre o fundamento de sua determinidade-de-existência, o Dasein é em si mesmo “ontológico.” (HEIDEGGER, 2012, p.63).

A distinção entre estes dois pólos representa um importante passo no método

analítico de Heidegger 9. Esta perspectiva fundamental difere o ôntico e o ontológico no

âmago da sua distinção e reciprocidade. O ôntico representa a existência do próprio ente,

vinculado diretamente ao universo dos “particulares exteriores” (STEINER, 1990, p.72), ao

passo que o ontológico representa diretamente o universo do próprio ser.

Pode-se resumir o ôntico na definição física ou nas remissões que envolvem os

entes. É possível nomear os traços físicos de uma pessoa ou mesmo resumi-la em sua

personalidade, aspectos familiares ou profissionais. No entanto, estes elementos não definem

ontologicamente o ser. Responder a questão “quem é você” respaldando-se em fundamentos

de experiência dos entes seria ontificar aquilo que é ontológico, aquilo que de fato descreve o

ser.

O ontológico, por outro lado, é dado por Heidegger como aquilo que define o ser,

mas está em constante retraimento, justamente por ser algo em constante projeção. O ser

nunca “é”, o ser “está” em processo de definição.

Mas esta condição mútua do ente com o ser, ou do Dasein, carece de infiltração do

ente por caminhos individuais. O ente deve entrar neste círculo hermenêutico para, na

clareira, encontrar a “desocultação” da verdade e do próprio ser, não demarcando este

caminho como apenas possibilidade, uma vez que esta aquisição soa fraca para a urgência do

ser. Para Heidegger, é essencial ao homem a procura pelo próprio ser.

O ente do homem é o único que, num salto do ôntico sobre a questão do ontológico,

pode encontrar o Dasein, a clareira que revela o ser, na sua problemática. É somente neste

salto, segundo Heidegger, que o homem pode assegurar a possibilidade de uma essência, que

9 A dicotomia, ou mutualidade, estabelecida entre os dois conceitos já foi abordada por outros autores, inclusive por Immanuel Kant, pensador bastante referenciado e criticado por Heidegger.

44

jamais se dará por uma condição a priori. O homem realiza a sua essência no decurso da sua

própria existência, e a fará no questionar dela mesma, ou seja, na caça ao ser de si mesmo.

Se é requisito do Dasein a investigação do ser pelo próprio ente, já se mostrou que,

além da individualidade do questionamento, o Dasein apenas se dá na relação de existência,

i.e., na conexão do ser com o mundo. Esta, talvez, seja a principal diferença do pensar o ser

em Heidegger. Diferentemente das grandes teorias do ser, por parte da filosofia ocidental, que

descreviam o ser para longe da vida cotidiana, aqui ela vai apenas se manifestar em relação ao

dia a dia.

O mundo é determinante para o próprio Dasein. De que modo ele poderia ser se não

no próprio mundo, onde estamos e somos? Neste ponto, para o filósofo alemão, é rasa a

filosofia que afasta a existência concreta do cotidiano da investigação sobre o ser. Resulta

desta urgência o conceito de ser-no-mundo (in-der-welt-sein):

Apenas orientado-se pela estrutura ontológica assim concebida é que se poderá definir a priori, através de uma privação, a constituição ontológica da “vida”. Tanto do ponto de vista ôntico como ontológico, o ser-no-mundo, enquanto ocupação, tem a primazia. Na analítica da pré-sença, essa estrutura recebe uma interpretação fundamental. (HEIDEGGER, 1986, p.96)

Abrir mão de outras formas de concepção do homem e do seu ser mostra-se tão

relevante na análise de Heidegger, que o filósofo restringe a possibilidade do Dasein para o

ente somente através do ser-no-mundo (In-der-welt-sein). As fronteiras de ambos os conceitos

se ligam indissociavelmente, de forma que não se vê ultrapassagem para o primeiro se não for

pelo segundo.

Segundo o filósofo, o estado de ser-no-mundo é o estado de poder-ser; dotado de

possibilidade e ultrapassagem, isto é, sem jamais dominá-lo ou poder sê-lo como fim, apenas

na experimentação momentânea ou parcial de quem ele é:

O entender como abrir abrange sempre o todo da constituição-fundamental do ser-no-mundo. Como poder-ser, o ser-em é cada vez poder-ser-no-mundo. Este não é aberto somente qua mundo como possível significatividade, mas o próprio pôr-em-liberdade o ente-do-interior-do-mundo deixa este ente livre em suas possibilidades. (HEIDEGGER, 2012,P. 411).

Passa pela analítica do filósofo então a capacidade de irrupção do Dasein, e as

possibilidades do ser, para o ente do homem através do ser-no-mundo. Para isto, utiliza-se do

conceito atualizado de transcendência que, ao contrário do que sugere a visão de consciência

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tradicional, i.e, de enclausuramento e fechamento para si, se dá na abertura para fora, para a

totalidade da iluminação, no chamado Erschlossenheit (estado de ser aberto).

É no estado de elucidação, de Erschlossenheit, que o Dasein revela a si para as

possibilidades das várias formas do seu ser. Neste impulso, como ser-no-mundo, encontra

também o seu tolhimento, ou seja, retraimento de possibilidades, uma vez que sua escolha é

limitada ao desenvolvimento do seu ente, mas jamais poderá participar da escolha de existir

ou não. Pois é nesta conjuntura que, apesar de ser definido pela possibilidade, irrompe o

sentimento de estar no mundo sem ter tido escolha. Disto resulta a facticidade de sua

substância.

Somos “” – uma restituição insatisfatória do Uberantwortung de Heidegger, com as suas claras conotações de “responsabilidade para com isso a que fomos entregues” – a uma actualidade, um “aí”, uma presenteidade total, envolvente. O Dasein tem de aceitar esta presenteidade, tem de a assumir na sua própria existência. (STEINER, 1990, p. 78).

O convite à aceitação da presenteidade incluiria, na teoria de Heidegger, a recusa à

abstração para as “ideias eternas” ou “certezas matemáticas”. Estabelecer-se-ia, desta forma,

outro modo de encontro com o mundo, que não aquele regido sob a idealização platônica.

Esta forma de encontro com o mundo se dá na instrumentalização das entidades-

objeto (ser-junto-a) e na compreensão da presenteidade de outros (ser-com-os outros). Estes

dois conceitos representam os modos de ser do Dasein no seu estado de ser-no-mundo

enquanto define os objetos e os outros que lhe vêm de encontro.

Do primeiro modo de ser do Dasein citado acima, a caracterização do objeto é

Vorhandenheit (estar-presente-perante)10 , isto é, para fins teóricos e de estudo. Ela dá lugar,

por sua vez, à sua presença prática nas suas atribuições cotidianas e de atualização pelo e no

Dasein: Heidegger denomina esta relação como Zunhanden (à mão). Assim a água está

Vorhanden para o químico, mas está Zunhanden para o trabalhador que a bebe num recipiente

de vidro, sendo a segunda forma de ligação do ente com o objeto a maneira de realização do

seu ser, de evocação pelo Dasein.

O martelar ele mesmo descobre a específica “maneabilidade” do martelo. O modo-de-ser de instrumento, em que ele se manifesta em si a partir de si mesmo, nós o denominamos a utilizabilidade. Somente porque o instrumento tem esse “ser-em-si”, não se limitando a apenas ocorrer, é ele manejável em sentido amplo e disponível. Por

10 Significado indicado por George Steiner (1990, p.78)

46

mais agudo que seja o olhar olhando apenas para este ou para aquele “aspecto” das coisas, ele não é capaz de descobrir o utilizável. O olhar para as coisas unicamente “teórico” dispensa o entendimento da utilizabilidade. (HEIDEGGER, 2012, p. 213).

Vale ressaltar que, para Heidegger, o olhar prático não se manifesta,

necessariamente, ateórico. Ele “junta” o ser-em-si na sua aplicabilidade originária, de certa

forma teórica. Sua principal distinção para a caracterização do objeto sendo Vorhanden, i.e.,

para o teórico, está no que ele chama utilizabilidade, sendo construída pelo método e não na

simples prática de ver-ao-redor.

Apesar de promover uma constante aproximação com a experiência de vida, a

aplicabilidade originária dos objetos pode ser relativizada se pensada sobre as formas de

ocupação das coisas pelos entes. Vincent Jouve, nas reflexões iniciais do seu livro Porque

estudar literatura (2012) problematiza os critérios de definição dos objetos artísticos. O autor

lembra que objetos que antes eram utilizados unicamente para fins práticos, passaram a ter,

com o passar do tempo, um valor estético atribuído diretamente às suas formas de ocupação, o

que fez com que fossem exibidos em galerias e conseguissem o “status” de uma atenção

estética.

[...] nada proíbe que se reconheçam como obras de arte objetos que, na origem, tinham vocação utilitária, como um vaso antigo ou um manuscrito medieval: basta reconhecer-lhes um valor independente da sua função prática. Os cantos de guerra zulus serviam para suscitar o ardor militar, as pinturas rupestres pré-históricas decerto tinham uma dimensão religiosa ou mágica, mas não é sob esse ângulo que elas são consideradas pelos amantes da arte [...]. (JOUVE, 2012, p. 22).

As formas de ocupação de um objeto podem se dar das mais variadas maneiras se

percebidas sob a individualidade do ente de cada ser. Mesmo um objeto que tem a função de

martelar e tem nisto sua razão de ser pode encontrar formas de ocupação distintas pelos entes,

se estes olham para o objeto com a carga de representatividade de um ícone em uma bandeira,

por exemplo.

Esta ocupação diferenciada é presente no olhar de artistas, que se ocupam dos seus

próprios instrumentos e de objetos do mundo para representar suas poéticas. Um exercício de

rearticulação dos espaços de ocupação de cada objeto. A subjetividade em torno da ocupação

pode ser percebida no romance A insustentável Leveza do ser, de Milan Kundera.

As nuvens alaranjadas do crepúsculo douram todas as coisas com o encanto da nostalgia: até mesmo a guilhotina.Não faz muito tempo, surpreendi-me experimentando uma sensação incrível: folheando um livro sobre Hitler, fiquei emocionado com algumas fotos dele; lembravam-me o tempo de minha infância; eu a

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vivi durante a guerra; diversos membros da minha família foram mortos nos campos de concentração nazistas; mas o que era a sua morte diante dessa fotografia Hitler que me lembrava um tempo passado da minha vida, um tempo que não voltaria mais?Essa reconciliação com Hitler trai a profunda perversão, moral inerente a um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do retorno, pois nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e tudo é, portanto, cinicamente permitido. (KUNDERA, 2017, p.10).

É evidente que a fotografia já carrega formas de representação e que podem evocar

memórias e lembranças que agem no imaginário do apreciador. Mas a fotografia também

propicia ocupações por parte do ente, e as remissões por ele estabelecidas poderiam caminhar

facilmente para o modo de registro (a câmera, a tecnologia, o vestuário da época) até chegar,

por fim, à guerra, Hitler e seu regime ditatorial. Contrariando esta previsão, a personagem se

remete à sua própria família e se relaciona com as fotos do estadista alemão de uma maneira

bastante particular. As ocupações são variadas para cada ente e a aplicabilidade originária do

objeto pode ser não a única ou mais acertada.

A provocação conceitual de Marcel Duchamp, ao colocar sua obra A fonte (1917) no

espaço tradicionalmente regido pelo mercado institucionalizado das artes, fortaleceu ainda

mais a ideia de que a utilizabilidade de um objeto pode variar de acordo com a situação e

olhar de cada ente. Se o ser dos objetos é atualizado pelo Dasein e o Dasein só pode ser

individual, a sua maneira de se envolver com o objeto pode, também, ser única, mesmo que o

seu fim prático seja a contemplação.

O exercício proporcionado por Duchamp é justamente o das remissões dos entes. O

urinol remete ao sistema desenvolvido pela humanidade para a captação dos seus próprios

dejetos, o que alude, obviamente, ao sistema urinário, e a natureza do corpo humano e suas

necessidades de consumo de água. As remissões do objeto chegam à natureza humana, mas a

sua utilizabilidade pôde ser distorcida para a provocação estética do artista francês.

Na tentativa de aproximar a discussão sobre o retraimento do ser com a vida

cotidiana, Heidegger supervalorizou a pragmática dos objetos, ignorando aspectos não

práticos na criação dos próprios objetos, ou mesmo as implicações subjetivas com as quais os

objetos poderiam subsistir. A pena, para o escritor, pode muito bem se tornar algo maior do

que sua ferramenta de trabalho. Pode tornar-se prazer ou mesmo seu vício; pode tornar-se

objeto de contemplação ou mesmo de nojo. Todo objeto carrega em si seu fim usual, mas

também sua forma e valor simbólico referente à época que é produzido e utilizado.

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Dizer que a obra de arte surgiu de “estados Intencionais” é, portanto, lembrar que ela supõe em sua fonte um fenômeno mental que deságua numa representação. Sem dúvida, qualquer objeto surgiu de uma causalidade Intencional: um simples pode de geleia tem igualmente em sua fonte um estado mental que remete, entre outras coisas, à representação de um pote de geleia. Mas é justamente porque todo artefato humano exprime algo: o pote de geleia dá testemunho das exigências práticas, e até das preferências estéticas, que, levadas em conta pelo concebedor (individual ou coletivo), resultaram na sua concepção. (JOUVE, 2012, p. 24-25).

Em suma, um artefato com uma finalidade considerada sagrada possibilita a

percepção da visão sobre o espiritual ou as formas materiais de manifestar uma religiosidade.

Além disso, ele expõe em sua forma, sua cor ou sua matéria-prima uma orientação estética

relacionada ao respectivo credo. Reduzir o modo de ser do objeto à sua utilizabilidade como

instrumento prático no cotidiano significa ignorar a sua concepção e a sua recepção pelos

entes no processo de instrumentalização.

A escrita, para muitos autores, exige um exercício de ressignificação que implica

rearticular constantemente as ocupações e remissões dos objetos. Avenca, uma pequena

planta, conhecida por sua fragilidade, é citada em pelo menos dois contos de Caio Fernando

Abreu, no livro de contos O ovo apunhalado (2016). Ora ela aparece como título “Para uma

avenca partindo” e ora como resultado final do conto “Margarida enlatada”. Em ambas, a

fragilidade é evocada e a ocupação da avenca pode carregar não apenas a remissão ao seu

modo de ser planta, como também a sua condição de planta sensível. Ocupar-se de uma

avenca implica mais do que sua utilizabilidade prática, pode implicar na identificação da

fragilidade que também é constituinte do seu ser.

Ricardo Piglia, em um ensaio dedicado a Kafka, percebe o exercício que o escritor

tcheco faz para tentar encontrar as várias formas de ocupação de um mesmo objeto. A

constante reescrita fazia com que Kafka retirasse concepções variadas de uma mesma

experiência e, até mesmo, de um mesmo objeto.

A máquina de escrever, para Kafka, é impossibilitada de acompanhar o seu fluxo de

escrita. Para ele a máquina tem sua prática instaurada no mundo corporativo e distante da sua

relação com o narrar.

A inconveniência de escrever à máquina é que se perde o fio”, diz Kafka a Felice em sua primeira carta de 20 de setembro. A máquina de escrever não é para escrever, produz uma deriva, perde-se a linha, a continuidade, a mão se distancia do corpo, se mecaniza (“a mão que nesses momentos está acionando as teclas”, observa Kafka na terceira pessoa nessa carta a Felice). (PIGLIA, 2006, p.65).

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A instrumentalização da máquina para Kafka era tamanha que o próprio ato de

escrever se distanciava. Para ele, a máquina criava um autor desconhecido por meio dos

movimentos das mãos. “’Por isso me sinto tão atraído pela máquina de escrever em todos os

assuntos relacionados com o escritório, pois seu trabalho – realizado, além disso, pela mão do

datilógrafo – é tão anônimo’ (carta de 2 de novembro de 1912).” (PIGLIA, 2006, p.65-66).

É evidente que a citação de Kafka reitera a condição de utilizabilidade do objeto

máquina. Além disso, as remissões por ele apontadas se relacionam com os fins burocráticos e

com a pressa corporativa, nunca com a sua escrita autoral, aquela que para ele é mais

importante: “mais que a clareza da grafia, interessa o ritmo corporal da escrita, muito ligada,

para Kafka, à respiração, aos órgãos internos, aos ritmos do coração.” (PIGLIA, 2006, p.65).

Kafka é um bom exemplo para identificar as formas de ocupação dos objetos por

vias de uma experiência individual. O momento em que conta como a loja do pai foi se

transformando em um lugar traumático, devido às grosserias do progenitor, indica a condição

sintomática com que se relacionava não apenas com o espaço da loja, mas também com as

remissões por ela suscitadas:

Mas quando aos poucos tu fostes me aterrorizando por todos os lados e a loja e a tua pessoa se tornaram para mim uma coisa só, então também ela já não era mais acolhedora. Coisas que no começo eram naturais para mim passaram a me atormentar [...]. (KAFKA, 2016, p. 374).

Seu discurso sobre a transformação do olhar que tinha sobre a loja demonstra

também a maneira como a forma de ocupação de um objeto pode se transformar. O ser em si

da loja, para além do uso meramente comercial, remetia, ao jovem Kafka, ao tormento. “[...]

tudo isso tornava a loja insuportável, tudo me lembrava demais minha relação contigo [...].”

(KAFKA, 2016, p. 376).

A transformação da sua apropriação da loja reitera a relevância do pai para seu olhar

para o mundo. O outro, neste exemplo, condiciona não apenas a forma de remissão como

aquele que gera a preocupação de ser agradado ou, no mínimo, percebido.

Diferente da relação do Dasein com as coisas, obviamente, é a do ente com os outros

entes. Ser-com-os-outros manifesta uma possível teoria antropológica da fenomenologia

heideggeriana. Para Heidegger, o outro é também um Dasein, propenso a inquirir o próprio

ser e, por consequência, ser também um ser.

Isto torna a sua relação com o outro maior do que aquela das ocupações dos objetos.

O outro é também um ser, o que torna minha relação com ele o reconhecimento da sua

50

autonomia e da sua singularidade como ser. No entanto, maior do que o reconhecimento do

Dasein do outro, o ser-com é manifestado como um modo essencial do ser, uma vez que

condiciona a experiência do Dasein de estar em constante troca com outro Dasein. Estas

trocas interferem no Dasein um do outro e agem sobre a formação do ser em constante

projeção.

Se o Dasein encontra a questão sobre si mesmo e sobre o ser das coisas com as quais

aparece como ser-com-as-coisas, também se revela a condição igualitária do outro. Se apenas

no ente do homem se manifesta a revelação da existência como questão, é por ele, também,

como ser-no-mundo, que se reconhece a existência de entes igualmente lançados. Desta

forma, ser-no-mundo significa, irrevogavelmente, ser-com-os-outros.

É por isto que Kafka não consegue se relacionar com a loja do pai ou mesmo com o

mundo, como admite mais a frente, sem pensar diretamente na relação que tem com o próprio

pai. Por isso também que o protagonista de A insustentável Leveza do ser se relaciona com a

fotografia de uma maneira mais complexa que a ocupação primária do objeto de papel: os

outros agem sobre o Dasein porque todo Dasein é ser-com-os-outros.

A diferenciação dos entes que não são instrumentos ou coisas se dá justamente na

sensibilidade do Dasein próprio de reconhecer o Dasein do outro, i.e., de reconhecer a

presença do existente que não sou eu ou meu próprio Dasein.

O mundo do Dasein libera, portando, entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas, mas que, de acordo com seu modo de ser de Dasein, são e estão ‘no’ mundo em que vêm ao encontro segundo seu modo de ser no mundo (HEIDEGGER, 2012,p. 169).

O ser-com manifesta, pela linguagem, o modo de ser do Dasein, rompendo com a

visão de outros como o resto fora do “eu”. A condição do Dasein do outro, também manifesto

ser-no-mundo, subsiste para além da inaptidão de outro, tornando o mundo como um todo,

compartilhado entre todos.

O encontro com o outro, do Dasein como ser-no-mundo-compartilhado, escapa ao

funcionamento tradicional do ente do homem com os outros entes. Ser-com-os-outros, como

condição do Dasein próprio, revela-se fundamental para a compreensão do seu próprio ser.

Sua atitude primeira, então, resulta na potencialidade de se reconhecer e de se compreender.

A figura paterna, desde Édipo, Hamlet e até em Kafka, interfere na busca e

possibilidade do ser de cada um destes personagens. Édipo só é, na medida em que se

51

reconhece como filho, mas também como usurpador do trono. As possibilidades do seu ser

são regidas, também, pela relação que tem com a mãe, seja como filho ou amante, e com o

pai, como filho ou desertor.

O mesmo se dá para Hamlet. Seu famoso monólogo “ser ou não ser”

(SHAKESPEARE, 2016, p. 67), apenas reitera o dilema das possibilidades do seu ser diante

da expectativa do Dasein do seu pai. O rei, ainda que morto, interfere em quem Hamlet é ou

pode ser. A peça trata do dilema (e a possível loucura) que é confrontar-se com os desejos do

pai e a busca pelo ser próprio. A presença do pai lhe é inevitável, não sendo à toa que o

discurso proferido por Hamlet é escutado por outros. A verdade é que mesmo na solidão, os

outros nos marcam.

Mitsein faz ver então o caráter indissociável do Dasein próprio com relação aos

outros Dasein. Mesmo a solidão não escapa ao fato de lhe ser intrínseca a condição de ser-

com: para a ausência tornar-se concreta é preciso ausentar-se como outro; é preciso existir o

outro. A co-presença lhe é imanente.

A distinção da relação do Mitsein com entes simplesmente dados, seres à mão, é

apontada por Heidegger sob duas formas: ocupação e preocupação.

De acordo com o filósofo, ocupar-se com não aclara o caráter ontológico de Dasein,

embora revele um modo de ser-para os entes. Contrária é a relação com o outro. Este, por

possuir ele mesmo o próprio Dasein, condiciona ao encontro um elo de co-relação. Neste ente

se precisa a autenticidade de ser-com-os-outros própria do Dasein, alternando o modo de

ocupação para o de preocupação.

Sua urgência factual é motivada pelo fato de o Dasein se manter de pronto e no mais das vezes nos modi deficientes da preocupação-com. Ser um para o outro, ser um contra o outro, prescindir um do outro, passar um ao lado do outro, não se importar em nada com o outro são modos possíveis de preocupação-com. (HEIDEGGER, 2012, p.351)

Embora, de acordo com a citação, Heidegger compreenda que a indiferença, ou seja,

não se importar em nada com o outro, seja um modo possível de preocupação-com, ele

assume uma distinção desta forma de preocupação.

De acordo com o filósofo, a indiferença se apresenta como modi de deficiência da

preocupação-com na sua possibilidade de interpretação ontológica, uma vez que afasta o

Dasein de descoberta de si mesmo, de forma que “persiste uma diferença ontológica essencial

entre a concorrência “indiferente” de coisas quaisquer e o-não-se-importar-em-nada-com-os-

52

outros de entes que são-uns-com-os-outros.” (HEIDEGGER, 2012 p.651). Assim, a

preocupação-com assume um caráter fundamental na constituição do Dasein e insere-se no

escopo da questão sobre si feita pelo ente do homem.

Ser-com-o-outro é essencialmente preocupar-se com o outro. É por este motivo que

Kafka insiste ao longo da carta ao seu pai, na tentativa de encontrar o elo que une o Dasein

um do outro. Seu pai sempre se mostrou, em atos e palavras, duro e, muitas vezes, indiferente.

Mas mesmo toda esta dureza condicionava o ser de Kafka, o ser que mais tarde se revela

impossibilitado da fala, temeroso com o mundo, “débil, amedrontado, hesitante” justamente

por obter do pai um tratamento hostil que levava o menino tcheco a se sentir “esmagado pela

simples materialidade do teu corpo.” (KAFKA, 2016, p. 360).

Parece-nos que, para Kafka, a forma de ser-com o pai é maior e mais significativa do

que suas relações com os outros entes. A preocupação é tamanha, que suas palavras carregam

o temor que tem pelo pai, de modo que “também no ato de escrever o medo e suas

consequências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe

minha memória e meu entendimento” (KAFKA, 2016, p. 353).

Mesmo admitindo culpa e indiferença no trato dos objetos que remetiam ao genitor,

Kafka reconhece que esperava dele um apoio que constituísse seu ser como um ser em

conexão com o pai. A tentativa de fugir daquilo que orbitava sua família condicionava ainda

mais a preocupação que tinha com a figura paterna na formação de si mesmo. “É bem

possível que eu, mesmo se tivesse crescido totalmente livre da tua influência, não pudesse me

tornar um ser humano na medida em que o teu coração desejava” (KAFKA, 2016, p.356).

Jamais seria um “Robert Kafka”, mas o que queria era a possibilidade de viver com o

pai de maneira que ambos “poderiam suportar um ao outro de forma maravilhosa” (KAFKA,

2016, p. 356). O que nos parece é que seu desejo era de que o ser-com como modo de

preocupação fosse vital na forma de exercício do seu Dasein. Mesmo reconhecendo a

impossibilidade, a preocupação faz com que Kafka queira aproximar-se do ser do Dasein que

é o pai.

A dificuldade de Kafka em reconhecer o lugar do pai na sua vida se trava, sobretudo,

na visão que tem do pai como um homem complexo, no qual bondade e grosseria pareciam

dissolver sua intenção de educar o jovem filho. Uma passagem narrada por Kafka demonstra

este espectro que assola o ser de Kafka.

53

Eu choramingava certa noite sem parar, pedindo água, com certeza não por sentir sede, mas provavelmente em parte para aborrecer, em parte para me distrair. Depois de algumas severas ameaças não terem adiantado, tu me tiraste da cama, me levaste para a pawlatsche e me deixaste ali sozinho, por um bom momento, só de camisola de dormir, diante da porta trancada.(KAFKA, 2016, p.358).

Momentos como este, em que seu pai age com certa brutalidade educativa, são

evidenciados por toda a sua carta ao pai. Este ato brusco fez com que o escritor admitisse,

durante a sua escrita, que não só não se esqueceu do fato, como ficou marcado por toda a

vida, sentindo-se um ser pequeno diante da robustez enérgica do pai.

Mesmo depois de passados anos eu ainda sofria com a ideia torturante de que o homem gigante, meu pai, a última instância, pudesse vir quase sem motivo para me tirar da cama à noite e me leva à pawlastsche e de que, portanto, eu era um tamanho nada para ele. (KAFKA, 2016, p.359)

Sua visão das possibilidades do seu próprio ser é atualizada com a noção que tem de

si mesmo com base no pai. Por ser o pai grande, um gigante, Kafka é um “nada para ele”. Este

é o reflexo do Dasein do pai para o seu próprio Dasein. Sua investigação sobre a autoridade

do pai sempre deságua na visão de lei do mundo, das regras e da justiça.

Este princípio de ordem reflete-se em Kafka, por exemplo, nos contos que narram a

força de uma lei maior que a dos protagonistas. Contos como O timoneiro (2002), Desista!

(2002) e Uma pequena fábula (2002) ilustram o aspecto de invalidez das personagens e do

próprio Kafka. No primeiro exemplo, o protagonista perde a luta contra aquele que rege o

navio; no segundo texto ele é subjugado pela autoridade civil; e na última obra ele é devorado

por um gato, após perceber que não há escapatória no mundo que parecia imenso, mas vai se

tornando cada vez menor.

A nosso ver, esses protagonistas das narrativas de Kafka simulam o Dasein dele

mesmo, enquanto as figuras que representam a ordem e o domínio replicam a força da

presença de seu pai. Sua escrita e sua experiência de vida se confundem no desempenho da

articulação entre o que aconteceu e o que pode acontecer para cada personagem ou para si,

como aparece em carta ao pai.

A experiência é enigmática. O relato estabelece um sentido incerto. O menino que vive a situação não a compreende. A mesma coisa acontece em O processo e em O castelo. K nunca entende o que acontece com ele. E em “O veredicto” não há relação lógica entre a frase do pai e o suicídio. “Eu o condeno à morte por afogamento!”, diz-lhe o pai, e o filho sai de casa e se joga no rio. Georg interpreta a frase do pai literalmente, e a vive (ou morre por ela). (PIGLIA, 2006, p.53).

54

Ser-com-o-outro para Kafka é elementar quando se trata do pai, a ponto de elevar à

própria visão de si mesmo ao estatuto que coordena o mundo de pai e filho. Mas esta escolha

não é feita apenas como uma regra social. É a presença do pai, seu Dasein e sua liberdade de

poder-ser, que interfere na vida de Kafka, fazendo com ele o torne juiz e legislador do mundo

do escritor: “Já na cabine eu me sentia miserável e na realidade não apenas diante de ti, mas

diante do mundo inteiro, pois para mim tu eras a medida de todas as coisas” (KAFKA, 2016,

p.360).

A medida de todas as coisas. Esta é a nominação de Kafka ao pai. Tanto que repetirá

a nomenclatura ao reconhecer que o Dasein do pai e as remissões do mundo feitas a partir

dele, afetam-no diretamente e se afastam das outras formas de ocupação cotidiana.

[...] que essa contradição se fortalecia sem cessar pela acumulação de material, de tal forma que no fim ela acaba se impondo até como costume, mesmo que às vezes tu tivesses opinião igual à minha, e finalmente, já que essas decepções não eram as decepções da vida comum, elas acertavam em cheio, pois isso dizia respeito à tua pessoa, a medida de todas as coisas. (KAFKA, 2016, p. 361-362).

Esta lei, no entanto, mostrava-se fragilizada pelo próprio pai. Ele, mesmo exigindo

uma postura respeitosa sobre a mesa ou um linguajar adequado, jamais atendeu aos desejos

das próprias normas. Sua hipocrisia afligia Kafka, de forma que o julgamento para o mundo,

com base naquele que ele nomeava como a medida de todas as coisas, condenava o próprio

legislador: “[...] e isso ficava sendo para mim o recurso mais importante para poder julgar o

mundo, sobretudo para julgar-te a ti mesmo; e nisso o teu fracasso foi completo” (KAFKA,

2016, p. 363).

Acreditamos que, mesmo com as fraquezas apresentadas, Kafka não consegue

ignorar a presença do pai. Sua frustração é substancial porque fere o seu próprio ser e as

possibilidades dele. Fere sua noção de bom homem, marido e pai. Em suma, fere aquilo que

ele se esforça para se tornar, mesmo que abomine os ideais presentes nesta figura.

Dilema parecido enfrenta o filho no conto “A terceira margem do rio”, de João

Guimarães Rosa. O conto, do livro Primeiras estórias (1988), narra o sentimento de um filho

que vê o pai passar o restante da vida em um pequeno barco transitando por um rio. O pai é

visto como louco, muito embora o termo não possa ser pronunciado em casa. Todos vão

seguindo cursos distintos para a sua vida, mas o menino cresce ali mesmo, cercado pelo

assombro de querer estar com o pai, mesmo que ele mesmo não soubesse explicar o motivo:

55

“Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto

que jogava para trás meus pensamentos” (ROSA, 1988, p. 34).

No início do conto, ele pede para que o pai o leve no barco, junto dele: “O rumo

daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — ‘Pai, o senhor me leva junto,

nessa sua canoa?’ Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me

mandando para trás” (ROSA, 1988, p. 33).

A recusa do pai o atormenta o filho porque, para ele, o pai precisava da sua

companhia, do sustento trazido por ele, do legado criado pelo gesto no rio. “Nosso pai carecia

de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito” (ROSA, 1988, p.

35-36).

O narrador sente-se na obrigação de estar junto ao pai. Ele não consegue se distanciar

da casa e nem do espaço que ele ocupa na relação pai e filho. Seu tributo ao pai perdura por

toda a sua vida, até mesmo diante da morte, como pede ao fim da narração: “que, no artigo da

morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não

pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.” (ROSA, 1988, p. 37).

Seu desejo era de seguir o curso do pai no rio ou ainda seguir o curso do rio que se

transformou no seu pai. Ele quer, com o ímpeto de um Édipo ou de um Hamlet, ocupar o

espaço criado pelo pai. A própria condição de estar no rio representa o fluxo do tempo e da

vida e, no entremeio da terceira margem, o filho quer estar com o pai, mesmo que este esteja

longe.

Mas a verdade é que ele sempre esteve na família. Seu Dasein é vivenciado pela

experiência de ser-com: “[...] se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua

família dele.” (ROSA, 1988, p.34). Para Heidegger, a ausência do outro também me define,

ao passo que ser-com é inerente ao Dasein e a não presentificação do Dasein do outro é

apenas uma das formas de agir sobre o estado de ser-com-os-outros. Mesmo não estando

fisicamente presente, ainda era o pai. E dizer “pai” implica em presentificar o Dasein dele.

O pavor de ocupar o lugar do pai cerca o narrador no seu exercício de compreender o

que o mantém, ali. “Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o

culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro.” (ROSA, 1988, p. 36). Ele parece não

compreender a transgressão que comete. Sente culpa daquilo que desconhece: a terceira

margem e o pai o assombram, um assombro marcado na pele de ser filho.

56

A perplexidade de se lançar para o dilema do pai é o que o sustenta até o último

momento, em que vai até a beira do rio e grita para trocar de lugar. O clímax é tanto que ele

sucumbe a ideia de entrecruzar o caminho do pai com o seu. Ele desiste de ficar no lugar do

pai:

E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. (ROSA, 1988, p. 37)

Sua visão de si mesmo é a de um desertor. Sua infração o assombra até o fim da

narrativa e a compunção, que o levara a pedir que trocasse de lugar com o pai, intensifica-se,

atingindo o ápice da batalha travada entre a presença/ausência do pai. A consequência do seu

ato é o sumiço do pai por completo e o remorso que o acompanhará até a morte.

Kafka também se responsabiliza por ser um filho que, de que alguma maneira,

corresponde às expectativas de seu pai. O esforço de colocar em uma carta todos os traumas

que constituíram a relação dos dois revela, senão o próprio interesse em dar sentido para os

conflitos, a condição de filho grato e confuso, mas que ainda procura satisfazer-se nesta

relação.

Podemos encontrar um exemplo quando Kafka descreve que o interesse do pai por

ele, ou qualquer um da casa, reluzia alegria nos filhos: “Nesses momentos a gente ia se deitar

e chorava de felicidade, e chora ainda agora enquanto escreve” (KAFKA, 2006, p.370).

Kafka se emociona porque o Dasein do pai interfere no seu estado emocional. É

necessário que ele compreenda que o pai se interessa por ele, mesmo que sejam por nuances

de um aceno ou por frases atravessadas.

O papel do pai também se evidencia como um Dasein que procura no filho a

distinção de si mesmo. A título de exemplo, podemos perceber a tentativa de mapear a si

mesmo em vista do filho no romance O filho eterno (2015), de Cristóvão Tezza. O pai, no

romance, discorre sobre a chegada do primeiro filho, que nasce com Síndrome de Down, e a

dificuldade que tem para se aceitar como tal.

O narrador se utiliza do discurso indireto livre para se apropriar das visões de mundo

do pai e manifestar estes encontros do seu ser com o mundo que age sobre ele. A sua

dificuldade não se limita apenas à aceitação de um filho com Síndrome de Down (muito

embora esse aspecto intensifique seu conflito neste momento, o que o leva a utilizar,

inclusive, a expressão mongoloide para se referir ao filho), mas ela aparece antes, quando

57

ainda reflete sobre a grande divisão que sente entre o que queria ser, escritor, e a vida que

agora leva: “Será um pai excelente, ele tem certeza: fará de seu filho a arena de sua visão de

mundo” (TEZZA, 2015, p. 14).

A arena é ambiente vital para se entender a relação entre o pai e o seu filho. As

expectativas, ideais e o modo como vê o mundo são projetados no Dasein do seu descendente.

Para o protagonista do romance, seu filho herdará seus ideais e seu modo de ser-no-mundo. A

arena é a metáfora que sustentará para sempre a união dos dois.

Quanto às formas da preocupação-com, o filósofo alemão aponta duas

possibilidades: a de substituição da preocupação pela ocupação; e a pressuposição do poder-

ser existencial do outro. Na primeira opção, o risco de dependência e dominação para com o

outro se torna possível, uma vez que a subtração da “preocupação” acarreta, eventualmente, a

usurpação desta pela ocupação utilizável, tornando a relação de preocupação-com em ser-para

da instrumentalidade das coisas. Neste caso, a relação de Dasein para o outro, torna-se uma

relação de Dasein para uma coisa e não para outro Dasein.

Tornar-se um ser ocupado ocorre quando o Dasein passa a servir de instrumento para

outro Dasein. É o que acontece com o protagonista de Abril despedaçado (1991), de Ismail

Kadaré. Gjorg se vê condenado pelo rito da aldeia por ter que vingar legalmente a morte do

irmão. Como consequência legal, a família do morto tem de vingar também a sua morte. Essa

série de atos vingativos perdura por 40 anos, ao passo que o herói da história reluta em aceitar

esta condição de ser ocupado pelo Kanun, um código de regras e direitos consuetudinário de

tribos da Albânia, conhecido como Constituição da Morte.

A família do finado concede aquilo que chamam de grande trégua, permitindo trinta

dias de suspensão ao protagonista sem ser caçado. Toda a narrativa apresenta os dilemas do

rapaz em enfrentar um código de conduta que foge das suas projeções e vontades para o seu

próprio ser. Seu pai é quem representa este código e o ordena que cumpra todos os requisitos

prescritos pelo Kanun:

- Depois de amanhã, vai ser preciso que se ponha a caminho de Kulla de Orosh – retomou o pai – Ela fica a um dia de caminhada daqui. Gjorg não se sentia muito disposto a viajar. - Esse assunto não pode esperar, pai? É preciso pagar esse dinheiro já?- Sim, já, meu filho. É um assunto que precisa ser regularizado o mais cedo possível. (KADARÉ,1991,p.18)

A relação os dois restringe-se ao passo a passo dos cumprimentos da vingança. O

modo de ser-com do pai com o filho, ou mesmo entre as famílias que participam da constante

58

vingança, é um modo semelhante ao ser-para, de forma que o ente de Gjorg é encarado apenas

sob a ótica da constituição do grupo, sem a valorização dos modos individuais do seu ser.

Por outro lado, a possibilidade contrária, a de conjectura das projeções do outro, não

apenas ilumina a condição do Dasein de ser-com como também “ajuda o outro a obter a

transparência em sua preocupação e a se tornar livre para ela” (HEIDEGGER, 2012, p.353).

O risco seria de o pai projetar em seu filho às suas expectativas como modo de ser do

filho. Ocupar-se do filho como esboço do seu querer limita as possibilidades do ser do próprio

filho. Exemplo desta projeção do ideal de ser do pai na ocupação do filho pode ser visto em

Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar.

No romance, o pai Iohána enfatiza constantemente o modo que, para ele, configura

os valores ideais e familiares, dentro de padrões éticos e tradicionais do meio em que viviam.

Evanir Pavloski, em seu texto A utopia familiar e a familiaridade da utopia em Lavoura

arcaica, de Raduan Nassar, e a Manta do soldado, de Lidia Jorge, desenvolve uma

interessante análise das ressignificações que o filho, André, faz da homogeneização que

baseia o discurso do pai:

André, contudo, é incapaz de considerar suas ações para além do sistema de valores no qual foi criado, pois sua ética, assim como qualquer antítese – a distopia, por exemplo – define-se predominantemente pelo seu contrário. A personagem desconstrói o discurso patriarcal, mas adapta parte dele aos seus interesses, remontando o processo de apagamento das individualidades praticado por Iohána. O protagonista nega a singularidade dos membros da família e instrumentaliza seus corpos como forma de convulsionar os princípios reguladores daquele núcleo; por meio da erotização dos corpos e da sublimação de seu desejo, André reconstitui o processo de homogeneização do qual tenta se afastar. (PAVLOSKI, 2017, p.197-198)

André, como afirma a citação acima, não consegue escapar do sistema desenvolvido

dentro do ambiente familiar. A homogeneização criada pelo pai, ou seja, a maneira de

transformação do modo de ser-com em ser-para, como anulador da individualidade do ser de

cada ente, ainda está presente no seu modo de ser-com a família.

Semelhantemente, este é um dos assombros de Kafka. De que o seu ser, seja privado

das potencialidades de poder-ser. Ele parece temer que o seu Dasein se coisifique nas mãos do

“homem gigante”, seu pai, mas, a nosso ver, não consegue escapar do controle de ocupação

estabelecido pelas experiências negativas com o progenitor.

59

Há um momento que esclarece o contato de Kafka com as expectativas do pai,

quando o menino/Kafka, não apresentando interesse pela loja, impulsionava o pai a proferir

outros discursos, a fim de enquadrar o menino da maneira como julgava necessária:

Tu procuraste então (para mim isso ainda hoje é comovente e vergonhoso) extrair da minha aversão à loja, à tua obra, aversão que te era muito dolorosa, um pouco de doçura. Afirmando que me faltava tino comercial, que eu tinha ideias mais elevadas na cabeça e coisas do tipo. (KAFKA, 2006, p. 376-377).

O impulso de tentar servir aos ideais do pai, de acordo com Kafka, o levou ao estudo

do direito e ao “desembarcar em definitivo na escrivaninha de funcionário público” (KAFKA,

2006, p.377). Embora reconhecesse os momentos em que o pai disse abertamente que era

livre, Kafka não consegue ver a si mesmo esta liberdade. Ele vê no pai, inclusive, a função da

sua escrita: “Minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que

não podia me queixar junto ao teu peito” (KAFKA, 2006, p.389).

Há um modo de ocupação recíproca entre pai e filho. Kafka espera do pai um abraço

caloroso e confortável para poder expurgar de si os assombros da sua relação. E por esperar

demais do pai, Kafka sente-se culpado. O pai, de seu lado, o trata com frieza e distância,

vendo nisso a maneira correta de educar um homem forte para suas escolhas futuras, embora

acabe limitando com a sua presença as possibilidades das escolhas de Kafka.

Em suma, ambos padecem do pertencimento de ser pai e filho ou filho e pai: “o

sentimento de culpa exclusivo da criança em parte foi substituído pela compreensão do nosso

desamparo comum” (KAFKA, 2006, p.365).

Esta compreensão é uma das peças-chave para compreender a narrativa de

Daytripper. Brás se espelha no pai, mas na expectativa de superá-lo, muito embora caminhe

por vias parecidas.

A vida de Brás parece não fugir de uma condição comum com o pai e a figura do pai

como grande escritor o assombra até o fim; mais especificamente, até o momento em que eles

se conectam pela escrita de uma carta, conforme veremos no terceiro capítulo.

De qualquer forma, a preocupação-com, sobretudo na relação entre pai e filho, se

prova como consituição-do-ser própria do Dasein, seja em associação à ocupação das coisas

que fazem parte da sua lida diária ou à definição Dasein ele mesmo.

60

4 Heidegger e a questão do ser

A morte é tema presente tanto nos discursos da filosofia quanto nos da literatura. A

“indesejável das gentes”, apelido dado por Manuel Bandeira, sempre foi tratada como objeto

de assombro e de revelação, proporcionando questões para o pensamento dos teórico e dos

poetas.

Sua condição nebulosa não apenas garantiu espaço na retórica de protagonistas

clássicos como também intensificou a relação intrínseca entre obra e autor, como vemos em

Kafka: “O que escrevi de melhor fundamenta-se nessa aptidão para poder morrer contente”

(KAFKA apud BLANCHOT, 2011, p.94); ou, ainda, em André Gide: “As razões que me

impelem a escrever são múltiplas, e as mais importantes são, segundo me parece, as mais

secretas. Talvez seja esta, sobretudo: colocar algo ao abrigo da morte” (GIDE apud

BLANCHOT, 2011, p.97).

O lançar-se para a morte pela obra, sugerido pelos autores citados, aponta para a

possibilidade de se reconhecer finito, reconhecer-se existente. Da mesma forma, a qualidade

ocasional de motivação da escrita pela morte se dá de modo também desafiador para a

filosofia, já suscitado por Schopenhauer: “A morte é o verdadeiro gênio inspirador ou o

Muságeta da filosofia, razão pela qual Sócrates também a definiu como thanatou meléte

[preparação para a morte]. De fato, sem a morte, seria até difícil filosofar”

(SCHOPENHAUER, 2013, p. 3).

Apesar da retomada constante do tema da morte na filosofia, remontada

historicamente por visões que contemplam desde a proposta hedonista de Epicuro até o

enfrentamento libertador de Montaigne, o conceito de ser-para-a-morte (Sein-zum-Tode), de

Martin Heidegger, abriu um campo bastante profícuo para um estudo mais preciso e

metodológico do que a morte significaria para uma compreensão abrangente também sobre o

ser.

No entanto, seu percurso para chegar à relevância da morte na vida do homem

encontra diversos outros elementos tão significativos quanto a morte. Encontrar a definição do

próprio ser, do mundo e de tudo aquilo que lhe vem ao encontro, pertence à mesma esfera de

preocupação do homem de encontrar seu sentido, seu ser e sua morte.

A preocupação sobre o ser em Heidegger garantiu um pensamento preciso, e um

método notável, na sua reflexão ontológica sobre o homem e a sua existência. Resta-nos

61

compreender qual o percurso que o filósofo alemão empreendeu nos extremos entre o ser e a

morte.

Ainda que a preocupação-com represente um dos modos de ser do Dasein, há um risco

peculiar levantado por Heidegger. Em todas as formas de relação com os outros entes, o

Dasein não deve se confundir ontologicamente com o outro ou com as coisas, isto é, nas

formas de ser-com ou ser-junto-a.

No entanto, ao longo da sua experiência cotidiana, o ente do homem é levado a

subtrair de si o próprio ser. Na resolução cotidiana com os outros, o nós lhe toma a

prerrogativa de se interrogar sobre si e de assumir a pessoalidade do próprio Dasein.

A-gente está por toda parte, de tal maneira, no entanto, que já escapuliu sempre, de onde urge que o Dasein tome uma decisão. Mas, por que antecipa todo julgar e todo decidir, a-gente retira cada vez a responsabilidade de cada Dasein. A-gente pode como que se prestar a que constantemente se apele para ela. [...] Pode se incumbir de tudo com a maior facilidade, porque não há quem tenha de responder por algo. (HEIDEGGER, 2012, P. 367).

O alerta para a impessoalidade das relações como ser-no-mundo é bem evidente. É

preciso assumir o próprio ser para que não se responda à incumbência como a-gente, logo,

como ninguém, uma vez que não se assuma no ser de alguém como resposta.

Esta ditadura do impessoal é ponto de extrema relevância na teoria fenomenológica

de Heidegger. Para o autor, a publicidade do mundo condiciona (ou se dá pela) a interação do

Dasein próprio com o outro, i.e., através do mundo circundante do outro. Esta ocupação da

existência do outro causa, com os riscos da inautenticidade, a dissolução da surpresa

reveladora do próprio Dasein.

O ente já não se pergunta sobre si mesmo e o cotidiano, que envolve o Dasein e o faz

ir de encontro com as coisas e os outros, ou seja, é engolido pelo Nós. Assim, percebemos o

mundo e o nomeamos pelo impessoal. A-gente se torna legislador da cotidianidade e do

Dasein.

Com seus modos-de-ser, a-gente controla toda a interpretação-do-mundo e do

Dasein, através do que Heidegger chama de “publicidade”. Distanciamento, mediania e

nivelamento cumprem a insensibilidade do Dasein com a autenticidade do encontrar-se na

elucidação do próprio ser.

A medianidade desmantela o distanciamento promovido pelo ser-com natural do

Dasein. Ela cria o controle que define o que se pode ou o que se deve, usar, vestir, falar; vigia

62

e inspeciona as exceções de modo a moderar as possibilidades do projeto-do-ser. Desta forma,

o Dasein resulta em seu estado de redução nivelada.

Logo, é possível, de acordo com Beaufret (1976), perceber aspectos fundamentais do

ser-no-mundo: Verstehen, isto é, elucidar-se em relação a sua possibilidade; Geworfehneit, ser

lançado simplesmente; e Verfallen, a queda.

Elucidar-se em relação a sua possiblilidade, nada mais significa que a natureza

própria do Dasein de reconhecer o projeto de construção do seu próprio ser. Por outro lado,

embora ainda pertencente à natureza mesma do existir humano, ser lançado é reconhecer a

facticidade de simplesmente estar assim no mundo.

O sentimento de se encontrar aí (Befindlichkeit) circunda o retraimento das

possibilidades do homem. Este se encontra aí não apenas como ser de possibilidade, mas

também como pura ultrapassagem tolhida, sem jamais conseguir completar o seu quadro de

projeto completo, nem encontrar a razão de sua existência. É constantemente atravessado pelo

projeto e pela condição do seu porvir.

É no aspecto Verfallen, i.e., que o modo de ser a-gente interfere na natureza do

homem e o lança para o inautêntico, de fuga para a questão sobre si mesmo. Distraído nos

afazeres do cotidiano, o homem tem a possibilidade do assombro de elucidar-se novamente.

É-lhe conferido o poder de cura, de voltar à surpresa do seu próprio ser.

Justamente neste jogo de poder-ser e facticidade que, para o homem, manifesta-se a

possibilidade de liberdade do próprio destino. Encontra-se no homem a possibilidade de ser

autêntico, i.e., de escapar da distração para a qual é impulsionado. Nele reside a angústia.

O fenômeno da angústia está posto na base como um estado-de-ânimo de encontrar-se que satisfaz a tais exigências de método. [...] A angústia, como possibilidade-de-ser do Dasein e o Dasein ele mesmo que nela se abre, fornece o solo fenomênico para a explícita apreensão da originária totalidade-de-ser do Dasein, cujo ser se desvenda como a preocupação. (HEIDEGGER, 2012, p. 511).

A angústia, para Heidegger, revela-se como parte fundamental da constituição

autêntica do Dasein. Apresenta-se, também, como elemento básico para o método analítico do

ser, uma vez que ele revela um complexo esquema de conexão com o medo e a sua função

ontológica de revelar a autenticidade.

Nem todo retroceder do Dasein para a-gente ou no mundo se dá por vias de fuga. O

retroceder quando fundado na possibilidade que o medo pode propiciar não tem o atributo de

63

fuga, mas, ao contrário, o “diante-de quê” do medo se mostra mais perto do interior-do-

mundo, como ameaça que faz o ente retroceder cada vez mais ao seu modo-de-ser primitivo:

o próprio Dasein.

Assim, “o diante-de-quê da angústia é o ser-no-mundo como tal” (HEIDEGGER,

2012, p.521). A angústia revela ao ente do homem o modo-de-ser do Dasein que o liberta das

distrações da impessoalidade proporcionada pelo cotidiano. Mas o que nos revela a angústia

ao nos libertar da praticidade utilizável das coisas que-vem-de encontro? Nada, diz-nos o

filósofo.

O diante-de-quê da angústia se caracteriza pelo ameaçador, que não está em parte

alguma, mas que molesta e restringe a respiração do ente – está aí e não está em parte alguma,

embora revele a abertura para o ser-em espacial. Este é o confronto do ente do homem, ao

descobrir que a sua existência está fundamentada apenas nela mesma e que toda a sua

experiência de vida estará perdida assim que tiver morrido.

Deste modo, a angústia é o mundo. Sem significado, a angústia representa não a

ausência, mas o interior-do-mundo, que se impõe como o próprio mundo, como seu próprio

porquê. “Na angústia, o utilizável do mundo-ambiente e em geral o ente do-interior-do-mundo

se afundam” (HEIDEGGER, 2012, P.525).

A angústia liberta o homem da distração causada pela ditadura do impessoal

instaurada no cotidiano. Como é defendido por Kierkegaard, a angústia purifica a alma, ou,

como atualiza Heidegger, nos desperta para quem realmente somos – ou para o verdadeiro

ser:

Mas a cotidianidade desse fugir mostra fenomenicamente, contudo, que a angústia, como encontrar-se fundamental, pertence à constituição essencial do Dasein no ser-no-mundo e, como existenciária, nunca é subsistente mas sempre em modus do Dasein factual, sendo portanto um encontrar-se. O ser-no-mundo familiar tranquilizado é um modus do estranhamento do Dasein e não o contrário. O não-ser-em-casa deve ser conceituado de modo ontológico-existenciário como o fenômeno mais originário. (HEIDEGGER, 20125, p.531).

A própria existência é angustiante e, por conseguinte, o homem não consegue

encontrar o descanso em nenhum outro ente. O sentido da angústia sempre aponta para o nada

e a humanidade não consegue garantir resposta mais precisa que esta mesma: nada, i.e., não

determinado, implicação direta sobre a questão de si mesmo do Dasein. Em suma, angústia

nos “corta a palavra” (HEIDEGGER apud WERLE, 2003, p. 27).-

64

Para o ente do homem, é preciso experimentar a angústia para que possa se libertar

para o próprio ser. A angústia o leva a retornar à experiência individual de posse do Dasein, o

que o levaria factualmente ao reconhecimento das suas próprias possibilidades do projeto de

ser. Estas possibilidades do Dasein, reveladas no encontro com a angústia, são dadas de

maneira como são e não deturpadas pelo ente-do-interior-do-mundo ou pela publicidade, nos

quais o ente comumente se agarra.

A revelação da autenticidade pela angústia abre campo para um último estágio antes

de tentar encontrar a totalidade do todo estrutural do Dasein, que está no cerne do ser como

preocupação. Resta-nos, primeiramente, compreender o todo da fórmula do ente como

Dasein:

Existencialidade ou projeto de si mesmo no sentido de sua possibilidade, facticidade ou consciência de achar-se simplesmente lançado aí, queda em si mesmo até a perda de si no anonimato do “impessoal” reversível porém em vida autêntica pela ascese da angústia, eis pois, o homem como ser-no-mundo. (BEAUFRET, 1976, p.25).

É na preocupação (Sorge) que Heidegger vai encontrar o dispositivo de união de

todos os itens da fórmula geral do ser. O homem é um ser completamente atarefado nas suas

práticas diárias. Sua relação com o mundo o desvia da contemplação e deságua diretamente na

preocupação.

Porém, este estado de preocupação, segundo o filósofo, sustenta uma questão

singular na proposição sobre o ser no mundo. Ele recria as possibilidades e as relações de

existencial idade, facticidade e queda.

Na prática cotidiana o homem liga-se à preocupação e procura reagrupar as suas

possibilidades, porém, na circunstância de impotência, por ser também impossibilidade de

projeto completo do ser. Logo, mais do que uma qualidade do Dasein a preocupação é uma

expressão da necessidade a priori da condição mesmo do ente do homem.

A preocupação, como totalidade estrutural-originária, reside existenciariamente a priori “antes”, isto é, já sempre em cada “comportamento” factual e “situação” do Dasein. Fenômeno, portanto, que de modo algum expressa uma precedência do comportamento “prático” em relação ao teórico. O determinar unicamente intuitivo de um subsistente tem um caráter de preocupação que não é menor do que o de uma “ação política” ou um divertido passatempo. “Teoria” e “prática” são possibilidades-do-ser de um ente cujo ser deve ser determinado como preocupação. (HEIDEGGER, 2012, p.541).

65

Heidegger cita uma fábula latina do século V que promove a visão de ascensão

ontológica da preocupação. Nela, Júpiter e a terra fundem o corpo e espírito para formar o

homem, mas é a preocupação que articula a argila que o forma:

‘Tu, Júpiter, porque deste o espírito, deves recebê-lo na sua morte; tu, Terra, porque o presenteaste com o corpo, deves receber o corpo. Mas, porque a ‘Preocupação’ foi quem primeiro o formou, que ela então o possua enquanto ele viver.’ (HERDER apud HEIDEGGER, 2012, p.553).

A narrativa ilustra a concepção de condição pré-ontológica da preocupação e mostra

o peso pelo qual o homem se prende a ela durante toda a sua vida. Mas mais do que isto, ela

compõe a visão de formação plena do homem através da preocupação e, somente nela, é que

se depositam seu Dasein como formas de ser-para, ser-em, ser-com-os outros.

É interessante notar que na narrativa, contrariando as vontades próprias de Júpiter e

Terra, a preocupação ganha a posse do homem em sua estada na terra por ordem de Saturno, o

deus do tempo. “A determinação pré-ontológica da essência do homem expressa na fábula

desde o início fixou assim o olhar no modo-de-ser que domina sua passagem temporal no

mundo. (HEIDEGGER, 2012, p.553).

A preocupação é evidenciada nos devaneios de Gjorg, em Abril despedaçado.

Enquanto viaja até a casa que guarda os códigos dos montanheses, a fim de cumprir o rito

prescrito pelo Kanun, o protagonista divaga em idealizações para se livrar da lei do código da

aldeia, embora reconheça que as normas que cerceiam os homens estão em todos os lugares:

“Então teria sido preciso que fosse padre, disse a si mesmo, para não ser atingido pelo Kanun.

Mas outros artigos do Código referiam-se também aos padres, só escapavam da recuperação

do sangue” (KADARÉ,1991, p.24).

A preocupação está inerente ao Código, mas também ao estado de vida em que se

encontra Gjorg. Enquanto caminha, sua constante reflexão o leva a crer que não importa o

caminho percorrido por cada ser, uma vez que o rito, o contínuo da vida que atinge os homens

estava ali, materializado pelo Kanun e presente em todo lugar. Esta é a conclusão da

personagem Bessian, escritor que passa pelas montanhas durante uma pesquisa para o seu

próximo livro: “A famosa fórmula de que os vivos são simplesmente mortos de licença nesta

vida encontra em nossas montanhas sua significação plena” (KADARÉ, 1991, p. 100).

66

Em suma, o homem, como ser-no-mundo é essencialmente preocupação, tendo como

alternativas a vida inexpressiva na inautenticidade ou a salvação do ser pela angústia lúcida

frente a facticidade e a morte.

A preocupação é o centro da relação de Gjorg com o tempo que lhe resta de vida,

mas também com aquilo que está ligado às suas atribuições como ser-no-mundo: “O que faria

ele nos trinta dias que lhe restavam? Geralmente, durante a grande trégua, os homens

apressavam-se em cumprir o que não haviam podido realizar até então em sua vida”

(KADARÉ, 1991, p. 17).

O tempo que lhe resta evoca o modo de preocupação inerente aos entes dos homens.

Embora seu tempo seja pré-determinado, sua condição é semelhante à de qualquer outro ente,

i.e., ele tem de lidar com a preocupação que é inerente ao ser.

Em que se baseia, então, a preocupação? De que forma mostra-se possível o conceito

de preocupação e de fundamentação do Dasein sob a prova de uma analítica rígida? É no

tempo ou na temporalidade (zeitlichkeit) que a resposta se ancora.

A preocupação temporaliza-se nas possibilidades da existência. Sem estar dentro do

tempo, como uma semente dentro de um fruto, mas sendo essencialmente temporal, a

preocupação caracteriza no tempo as formas de ser do Dasein. Assim, os modos de ser do ente

do homem são correspondentes aos modos de ser temporais.

Se a temporalidade constitui o originário sentido-do-ser do Dasein, ente para o qual no seu ser está em jogo esse ser ele mesmo, então a preocupação deve empregar “tempo” e, por conseguinte, contar com “o tempo”. A temporalidade do Dasein desenvolve a “contagem do tempo”. O “tempo” nela experimentado é o aspecto fenomênico imediato da temporalidade. Dele nasce o entendimento-do-tempo-cotidiano-vulgar. (HEIDEGGER, 2012, p.649).

O tempo, nas suas três categorias tradicionais de passado, presente e futuro, é o

próprio homem na sua trajetória de elucidação de si mesmo. Na teoria de Heidegger, o tempo

foge a ideia de exterioridade e funde-se à existência elementar individual do Dasein e da

angústia de se encontrar autêntico.

Há uma nova maneira de encarar a temporalidade com Heidegger. Aqui, os

momentos do tempo agem como unidade, mas apartando-se uns dos outros na fórmula da

preocupação do Dasein. Este lastro criado na eclosão das relações entre cada período se

exterioriza na experiência de vida, mas nunca perde a liga que os reúne, esta que se dá através

67

do seu próprio Dasein. O tempo é, ao mesmo tempo, liberdade e pressuposição da queda no

encontro presente (Gegenwart).

Mas há uma distinção nas formas de valorização, de acordo com Heidegger, das

“ekstases” do tempo. O futuro, essencialmente temporalização, marca o sentido e o rumo do

projeto do ser. “Negligenciar o futuro é decapitar o tempo” (BEAUFRET, 1976, p.28). O

passado e o presente apostam seu sentido no porvir para o ser acabado e ultrapassado pelo

projeto.

Heidegger intensifica esta visão do ser na construção histórica do homem. A história,

encarada como revelação do passado, só adquire sentido na projeção de um ser do porvir.

Como ekstase privilegiada, o porvir possibilita que a temporalidade originária, o

fundamento das três ekstases, temporalize-se no vigor do passado e se lança para o porvir,

despertando a atualidade do presente nesta projeção. Esta visão transforma a comum

conceituação de temporalidade como sucessão de ekstases.

O Dasein, como porvir também é definido pelo vigor de ter sido, de já estar lançado

no mundo. No entanto, estes dois modos de temporalização cumprem um único papel: de

fornecer a cura para a autenticidade do Dasein, visto que o passado irrompe pelo porvir, que

como facticidade última fornece a morte.

Exemplo cognoscível está no emprego do tempo na preocupação de Gjorg durante a

metade dos meses de março e abril. Ao lidar com a expectativa da sua morte próxima, ele

temporaliza seus modos de ser tanto do passado, quanto no olhar para si mesmo no presente

enquanto projeta o futuro:

Trinta dias, disse consigo. Aquele tiro dado ali do talude da estrada principal cortara bruscamente sua vida em dois: de um lado, os vinte e seis anos que vivera até então; do outro, os trinta dias que começavam naquele dia, dezessete de março, e que terminariam em dezessete de abril. Depois viria a vida de morcego, que já não calculava mais. (KADARÉ, 1991, p. 16).

Desta forma, a finitude do ser garante a autenticidade na temporalização do seu

porvir e seu ter-sido. É na tentativa de escapar a esta condição de finitude ou de angústia da

temporalidade originária que se lhe impõe o que Heidegger chama tempo vulgar.

Na criação e contagem do tempo, somado e calculado nos relógios, o homem

temporalizou a temporalidade de maneira a objetivar a contagem das ekstases, transformando

a temporalização em algo palpável. Entretanto, o tempo “é” anterior a toda objetividade e

subjetividade porque é fundamentalmente a possibilidade do próprio ser.

68

Assim, no sentido de tempo vulgar, quando o homem conta o tempo, ele conta a si

mesmo.

Se o tempo se publiciza com a abertura do mundo e se, com o descobrimento com o ente do interior-do-mundo – descoberta inerente à abertura de mundo - , o tempo já se torna objeto de ocupação – na medida em que o Dasein contando consigo mesmo se conta o tempo -, então o comportamento em que “a gente” se dirige expressamente pelo tempo reside no emprego-de-relógio. (HEIDEGGER, 2012, p.1135).

O que se conta na contagem do tempo são os agoras. Desta visão de soma dos agoras

emana uma noção de tempo infinito, parecida com a imagem já proporcionada por Platão. O

risco desta visão, de acordo com Heidegger, está em garantir uma equivocada fuga da

temporalidade, uma vez que o homem se prende no agora, no momento em que olha para o

relógio e se vê presente nele, perdendo-se na fuga do próprio fim do ser-no-mundo. Em suma,

o homem esquece-se de reconhecer o porvir do tempo.

Nesse sentido, a gente nunca morre, porque sempre ainda há tempo. A morte como

experiência individual se perde, pois o tempo vulgar, que é de todos, não pode ser de ninguém

em específico. Não pode ser meu como é o ser ou a experiência finita do ser.

Gjorg elucida este confronto temporal quando percebe o seu próprio ser com relação

ao tempo e a sua forma vulgar:

Mais um pouco e sua bessa expiraria, ele sairia do tempo do Kanun. Sair do tempo, repetiu consigo mesmo. Pareceu-lhe estranho que alguém pudesse sair de seu tempo. Mais um pouco, repetiu para si mesmo levantando a cabeça para o céu. (KADARÉ, 1991, p.182).

O protagonista parece discorrer sobre a distinção entre as formas temporais. O tempo

do Kanun se refere a este tempo vulgar, em que a soma dos “agoras” resulta na experiência

ôntica e o modo de relação dos entes. Ele, no entanto, reflete, como um convite antológico, a

pensar o seu lugar na forma de se relacionar com a temporalidade.

Vale ressalta que, para Heidegger, a importância de se calcular o tempo é

fundamental, muito embora este não contemple a temporalidade do Dasein nem a sua

temporalização. Segundo ele, seria difícil ou mesmo impossível viver sem se adentrar a

computação do tempo.

O esforço do filósofo alemão foi identificar no tempo, ou na temporalidade, a

ontologia e existencialidade da totalidade originária do Dasein atendo-se as formas de

autenticidade ou não da sua “salvação”. Embora não tenha alcançado seu objetivo de ver o

tempo como árbitro da compreensão e explicação de descobrir qual o caminho que leva o ser

69

ao tempo ou se o tempo revela-se horizonte do próprio ser, Heidegger conseguiu introduzir

questões que favoreceram a reflexão sobre o ser e o tempo. E trouxe à luz o elemento último

da sua facticidade e porvir: a morte.

4.1 O SER PARA MORTE

A estrutura do Dasein se revela como ser que coloca a si mesmo constantemente em

questão, preocupação por vias da angústia, como modo de encontrar a autenticidade perdida

na ditadura do impessoal causada pelo cotidiano do a-gente.

No entanto, o que esta estrutura apresentou, através da preocupação e o estado do

porvir é que o Dasein é inacabamento e o seu lançar-se para o porvir o define, inclusive, como

modo de temporalização do presente. De que forma o ser se encontra no lançar-se para o

porvir, possivelmente, acabado? É na morte que vamos encontrar a disposição ambígua de

acabamento do ser.

O ente do homem não pode se encontrar completamente realizado, isto é, acabado. É

impossível, como existente, colocar-se sobre a experiência na sua completude, a não ser, é

claro, através da observação da morte dos outros. No entanto, esta nunca pode lhe ser genuína,

uma vez que mesmo que experimentada como fenômeno visto, não é a sua própria morte ou a

morte do Dasein próprio. Ainda que possamos apelar para a preocupação do modo de ser-

com-os-outros, a morte é a experiência de finitude isolada. Morre-se sozinho.

O morrer deve assumi-lo todo Dasein cada vez por si mesmo. A morte, na medida em que “é”, é essencialmente cada vez a minha. E ela significa sem dúvida uma peculiar possibilidade-de-ser, na qual está pura e simplesmente em jogo o ser que é cada vez próprio do Dasein. No morrer se mostra que a morte é ontologicamente constituída pelo ser-cada-vez-minha e pela experiência. (HEIDEGGER, 2012, p.663).

É interessante notar que mesmo a morte sendo uma experiência individual, a morte

dos outros em muito significa e revela algo fundamental do Dasein. O falecido, para

Heidegger, deixa de ser-no-mundo como Dasein próprio, mas ainda permanece como ser-com

dos outros entes vivos.

Este modo do ser é salientado na relação que a protagonista de Desumanização, de

Valter Hugo Mãe, tem com a irmã morta. Halla e o pai promovem pela falecida um exercício

constante de retomada do ser da irmã morta através da atualização do seu modo de ser-com:

Pensei que ele escavaria tudo de novo com as próprias mãos e andaria montanha acima até ao fosso medonho, carregando o corpo desligado da minha irmã. Éramos

70

gêmeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte. (MÃE, 2014, p. 9).

O pai deseja realizar o funeral como gostaria e lançar o corpo da menina sobre um

grande penhasco. Mesmo o corpo dela não mais recebendo sua existência, o pai ainda se

relaciona com o Dasein da filha através do seu modo de ser-com ela. O mesmo acontece com

Halla. O seu modo de ser-no-mundo está intimamente ligado ao ser da irmã, de modo que a

experiência advinda do mundo lhe parece ser reduzida radicalmente com o fim do ser da irmã

gêmea.

O que este pensamento intensifica, indiretamente, é a qualidade de ser-com-os-outros

do Dasein, isto é, de qualidade existencial do cotidiano. De forma mais intensa ainda, implica

a dedução de que os mortos estão ativamente conosco, como partes plenas do nosso ser, uma

vez que o nosso Dasein, enquanto ainda ser-no-mundo, ainda é ser-com-os-outros. Para o

Dasein, a recordação das ideais artísticos e políticos do ente já morto, a retomada do Dasein

deste outro não-mais, são elementos próprios do cuidado e preocupação do Dasein na relação

de ser-com.

No entanto, ainda que se enfatize a condição própria do Dasein de ser-com-os-outros e

o ente já morto seja retomado nesta relação de forma preocupada, isto em nada significa que a

podemos tomar como minha genuína experiência. É impossível tomar para si a morte do

outro.

Halla descobre na morte da irmã alguns paralelos com sua existência. Ela passa a

perceber o seu futuro encontro com a morte e a sua inevitável solidão diante da percepção da

própria existência: “O meu pai, que era um nervoso sonhador, abraçou-me brevemente e

sorriu. Um sorriso silencioso, o modo de revelar ser tão imprestável quanto eu para o exagero

da morte. Comecei a sentir-me violentamente só” (MÃE, 2014, p.11). Ao perceber a solidão e

a sua consequente relação com a morte, Halla descobre a solidão de transcendência para o

próprio ser e a sua disposição finita.

Mas de que modo poderíamos apreender o fenômeno da morte? Heidegger define a

morte como o “não ainda”, de modo que o Dasein “ainda não” o definirá por toda a sua

existência. Isto difere radicalmente da ideia de incompletude de coisas que, quando somados a

elementos da sua formação poderão encontrar a sua forma de término natural. As coisas são

incompletas ou não dependendo da luz que lançamos sobre o objeto. Um desenho preto e

branco pode estar concluído, mas ser “incompleto” de acordo com a nossa visão de

71

“incompletamente” colorido. O inacabamento do ser, ao contrário, é constitutivo do próprio

ser enquanto este viver.

O “não ser ainda” é modo essencial para o Dasein, uma vez que foge perpetuamente

para as suas possibilidades, buscando alcançar este algo que, por ser constituinte do seu

próprio ser, é inalcançável. “O Dasein é, por essência, o ser que jamais poderá alcançar-se”

(JOLIVET, 1961, p. 127).

“Sem jamais alcançar-se” significa, inclusive, jamais tornar-se completo, como um

ovo em último estágio que se torna completo ou perfeito na maturação do animal que sai deste

ovo. A perfeição escapa do Dasein juntamente com as possibilidades cessadas através da

morte. A solidão e a imperfeição são marcas do ser-para-a-morte.

O encerramento das possibilidades não implica, necessariamente, a cessação do

Dasein. Uma vez que “não ainda” lhe é constitutivo, o Dasein é, desde o seu início, a morte,

ou o seu fim (sein-zum-ende). A morte não lhe é, por conseguinte, um interromper por

acidente exterior; esta o marca e o afeta enquanto existir.

Isto não significa que a morte seja um ter-chegado-ao-final do Dasein, mas um ser-

para-o-final deste ente. “O humano logo que nasce já é bastante velho para morrer”

(HEIDEGGER, 2012, p.677).

Chegar ao final demanda uma apreensão da antologia do próprio ser. Somente

enquanto se compreende a finitude existencial do Dasein é que se pode reconhecer a própria

condição de ainda-não ou daquilo que se situe antes do fim. Assombro semelhante repercute

na narração de Halla: “Acordei e pensei que não fazia sentido que a morte doesse” (MAE,

2014, p. 17).

Enquanto a morte o afeta e marca, resta ao homem defini-la como possibilidade

adotada ou negligenciada pelo Dasein. Não é surpresa reconhecer que o ente do homem,

muitas vezes no seu abandono do próprio questionar do Dasein, esquiva-se da angústia

própria da morte. Alguns a negligenciam parcialmente, adotando-a como verdade estatística e

experimental. Outros a negligenciam totalmente, agindo como se a possibilidade da morte

fosse apenas na esfera da possibilidade comum aos homens, como se morressem apenas a-

gente e nunca o Dasein próprio. A morte, para estes, é desagradável e incomoda quando

inserida no agir cotidiano.

Para Heidegger, esta angústia não poderá o deprimir se o indivíduo se colocar em

presença da morte, encarando-a como a possibilidade pessoal. Sendo a condição de

72

acabamento do inacabado Dasein, a morte representa, para o ente do homem, a possível

impossibilidade da existência. Mais do que um fato incontestável, a morte é uma carência

metafísica do homem, um traço ontológico para o seu próprio ser.

A esta carência o romance Aparição (1962), de Vergílio Ferreira, parece se dirigir.

Nele, a personagem Alberto, que enfrenta a morte recente do pai, confronta a si mesmo em

uma constante retomada de quem é e do que a morte significa para ele:

Mais real do que o nascer era o morrer. Porque quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é o universo, é a pura necessidade de ser. Um homem só é perfeito, só se realiza até aos seus limites, depois de a morte o não poder surpreender. (FERREIRA, 1962, p. 65).

A percepção apresentada pelo protagonista durante a narrativa dialoga veementemente

com a teoria de Heidegger. O ser se completa e encontra o seu modo de plenitude através da

experiência projetada da morte.

"O homem só existe para morrer” (JOLIVET, 1961, p.129), e é preciso que este

reconheça este traço fundamental para que possa aceitar a condição da angústia e chegar a

plenitude da sua autenticidade na sua solidão, frente ao desdobramento do cotidiano e o trato

do a-gente. A individualização é clara e observável na aceitação da angústia da morte e do

nada.

No entanto, a publicidade, apontada por Heidegger, na situação de articulação do

falatório cotidiano, distrai o homem da angústia e da sua fundamentação na preocupação:

O “morrer” nivela numa ocorrência que afeta sem dúvida o Dasein, mas não pertence propriamente a ninguém. Se a ambiguidade é cada vez própria do falatório, então o é também nesse discurso sobre a morte. O morrer que é por essência, de modo indelegável, meu torna-se um acontecimento que sobrevém publicamente vindo-de-encontro à-gente. [...] A-gente justifica e eleva a tentação de se encobrir o ser para a morte mais próprio. (HEIDEGGER, 2012, p.699).

A-gente se ocupa constantemente em tranquilizar o ente a respeito da morte, de modo

a confundir aquele que consola o moribundo sobre quem é de fato que está sendo consolado.

Aquele que consola, ao desejar ao moribundo “mais vida” apenas foge de reconhecer que a

morte também já lhe é presente, como essência mesma do próprio Dasein.

Esta anestesia proporcionada pela tranquilização da morte gera uma alienação de

indiferença sobre a morte e a sua angústia. O “pensar na morte” é tido, no falatório cotidiano,

como, insegurança e fuga-do-mundo. Para o filósofo, a-gente se dedica a aplicar a angústia

em medo e transformar aquilo que é autêntico para o Dasein em visão de pusilanimidade.

73

Mas é preciso lhe recobrar o direito a angústia. Esta nos é a revelação, proporcionando

significação às possiblidades e à totalidade do ser, abrangendo radicalmente o nosso poder-ser

na possibilidade essencial da morte. Mas que possibilidade define a morte?

Na diretriz dos objetos intramundanos, ao adotar uma possibilidade, criam-se novas

possibilidades, ao mesmo tempo em que se negligenciam outras. Em toda realização subistem

as possibilidades. Na morte, ao contrário, não se realiza nada. Mas como possibilidade, ela se

limita a ser a possibilidade do fim das realizações. A aceitação da morte, sendo ela

possibilidade, é a espera, uma vez que nela se cumpre a impossibilidade de outras

possibilidades. Desta forma, a morte é a possibilidade paradoxal e infindável do ser-para-a-

morte.

Gradativamente, a aceitação da morte implica na ampliação da condicionalidade da

existência nossa ou de qualquer outra, uma vez que já não se aceita qualquer limite imposto

de fora. O Dasein autoriza na morte a suprema e mais pessoal possibilidade: torna-se livre ao

reconhecer, na morte, o nada do seu ser. O ente se torna livre para as próprias possibilidades e

para a aceitação da sua liberdade própria e dos outros, na compreensão da existência e nas

escolhas das possibilidades. Se o outro escolhe compreender a existência de maneira diferente

à sua, o Dasein livre consegue reconhecer a liberdade do outro porque pôde reconhecer a sua

própria.

A caracterização do ser para a morte existenciariamente projetado e próprio pode ser resumida da seguinte forma: o adiantar-se desvenda para o Dasein sua perda em a-gente mesma e leva-o ante a possiblidade de ser si mesmo, sem o apoio primário da ocupada preocupação-com-o-outro e de o ser numa liberdade apaixonada, livre das ilusões de a-gente, liberdade factual, certa de si mesma e que se angustia: liberdade para a morte. (HEIDEGGER, 2012, p.731).

A liberdade para a morte implica na recisão com o eles ou a-gente, que confundem a

angústia em medo. Ela torna o ente pronto para reconhecer o sentido do Dasein na

temporalidade, e a torna completa na verdade última que o Dasein é ser-para-a-morte.

A busca da liberdade do ser-para-a-morte pode ser percebida no esforço que Alberto

faz de situar sua escrita no encontro para a morte em Aparição. “Escrevo para ser, escrevo

para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu” (FERREIRA, 1962, p. 193-

194). Alberto parece encontrar na escrita o espaço para descrever a transcendência do seu ser

e o seu projeto no caminho para a morte. Todo o romance caminha neste assombro do salto

ontológico.

74

Outros escritores enxergaram na escrita um processo de aproximação com a sua

possibilidade final. Kafka descreve que gostaria de ter dito ao amigo que a morte não lhe

causava temor:

Voltando a casa, disse a Max que no meu leito de morte, na condição de que os sofrimentos não sejam insuportáveis, eu estaria muito contente. Esqueci-me de acrescentar, e mais tarde omiti-o deliberadamente, que o que escrevi de melhor fundamenta-se nessa aptidão para poder morrer contente. (KAFKA apud BLANCHOT, 2011, p.93).

Kafka subverte a sua relação com o texto. Ele alega que as passagens de morte e de

pesar comovem os leitores, mas agem com ele por vias de uma aceitação alegre da morte. Ele

a aceita e parece fundamentar a força significativa de vários dos seus textos, rumo a morte.

É justamente na escrita que Kafka pode encontrar este espaço da possibilidade final.

A morte, como vemos em Heidegger, é a possibilidade última, de modo que não pode ser

experiência genuína através da temporalização. Ela existe no âmbito das conjecturas do

porvir. Mas na escrita, ele encontra o silêncio ideal para se isolar das vozes anestesiantes do a-

gente e assumir a própria morte e, consequentemente, o próprio ser:

Se não me salvo num trabalho, estou perdido. Será que o sei tão distintamente quanto isso é? Não evito mostrar-me diante dos seres porque queira viver sossegadamente mas porque quero perecer sossegadamente. (KAFKA apud BLACHOT, 2011, p.96).

A morte se torna, para Kafka, uma exigência ontológica. Ele precisa encará-la de

frente e que seja na solidão da experiência literária. André Gide, escritor francês, também

associa a morte ao exercício da escrita: “As razões que me impelem a escrever são múltiplas,

e as mais importantes são, segundo me parece, as mais secretas. Talvez seja esta, sobretudo:

colocar algo ao abrigo da morte” (GIDE apud BLACHOT, 2011, p. 97).

Em seu estudo O espaço literário (2011), Maurice Blanchot percebe a importância da

morte neste movimento de elucidar-se sobre si mesmo. Apesar de sua teoria desenvolver uma

reflexão distinta daquela proposta por Heidegger, sua percepção sobre o homem e a morte

corrobora para um fundamento de que o homem deve encarar a si mesmo e a finitude

presente: “Depois que se concentra inteiramente em si mesmo na certeza da sua condição

mortal, é quando a preocupação do homem passa a ser a de tornar a morte possível”

(BLANCHOT, 2011, p.100).

Tornar a morte possível se inviabiliza através da literatura ou, mais precisamente, da

escrita. Para Blanchot, este condicionamento da morte pela criação promove um estado outro

75

de ser o ente na busca do ontológico. Para ele, o espaço literário se configura como esta tarefa

humana de assumir a morte e cria-la:

O homem morre, isso não é nada, mas o home é a partir de sua morte, liga-se fortemente à sua morte, por um vínculo de que ele é juiz, ele faz sua morte, faz-se mortal e, por conseguinte, confere-se o poder de fazer e dá ao que faz seu sentido e sua verdade. (BLACHOT, 2011, p. 100).

Diferentemente de Heidegger, Blanchot encara o lançar-se para a morte como uma

apropriação da morte e não apenas como uma aceitação, embora reconheça que o filósofo

alemão tenda a tornar a morte uma experiência possível.

Rainer Maria Rilke também mostra indícios de uma escrita que se lança para a criação

da própria morte e da finitude do seu Dasein. O poeta tcheco também buscava a morte por

vários caminhos, preocupando-se com a dimensão e com suas marcas na vida:

Ó Senhor, dai a cada um sua própria morte, O morrer que seja verdadeiramente fruto desta vida, Onde ele encontrou amor, sentido e aflição. (RILKE apud BLACHOT, 2011, p. 128).

Ao solicitar que a morte seja dada a cada um, Rilke reconhece a impossibilidade da

morte ser compartilhada e, ainda sim, o caráter de completude inerente a ela. De acordo com o

poema, a morte que é fruto da vida é aquela oriunda das experiências possíveis da vida, i.e.,

daquela que se vincula as projeções do ser e ao seu modo de ser-com, no amor e na aflição.

Rilke, de acordo com Blanchot, vê na poesia o espaço possível de sua libertação e

encontro com a morte. Anulando a si mesmo e tocando levemente o espaço de eco da

linguagem no poema, o poeta consegue associar-se a morte como passagem fora de si:

O espaço onde tudo retorna ao ser profundo, onde existe passagem infinita entre os dois domínios, onde tudo morre, mas onde a morte é a sábia companheira da vida, onde o pavor é êxtase, onde a celebração se lamenta e a lamentação glorifica [...]. (BLANCHOT, 2011, p.152).

O domínio da morte é ofertado pela escrita de Blanchot, Rilke e do protagonista de

Aparição. Este lançar-se para a morte pela palavra dialoga substancialmente com o conceito

de ser-para-a-morte de Heidegger. Para o filósofo, a morte não é apenas inevitável, ela deve

ser encarada como o alvo para onde se lança o projeto de ser e, caso o ser escape deste modo

do ser no mundo, corre o risco de perder a autenticidade de sua vida.

Evidentemente, não se encerram aqui as contribuições de Heidegger para a

compreensão do ser e a sua elucidação sobre o ente e a morte. Muitos outros aspectos, tão

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relevantes quanto os aqui apresentados, foram elencados e refletidos no corpo de Ser e

Tempo. No entanto, o espaço dedicado a se pensar o ser como unidade ôntica-ontológica nas

suas relações com os objetos, com os outros entes, com a temporalidade e com a morte,

limitou-se a compreender a forma que estes comportamentos de ser o define e o constitui

como modo de ser-no-mundo. Resta agora empreender a sua conexão conceitual com a

argumentação experimentada nos muitos fenômenos da vida de Brás em Daytripper.

5 BRÁS E O SER

Daytripper é uma graphic novel lançada em 2010, pelo selo editorial norte americano

Vertigo. A obra foi escrita e desenhada pelos gêmeos paulistas Fabio Moon & Gabriel Bá,

além de contar com a participação do premiado colorista Dave Stewart.

A história foi publicada, originalmente, em dez fascículos, no formato de revista

padrão americana. Apesar de serem reproduzidas separadamente, elas formam uma única

narrativa, mesclando os momentos da vida de um único personagem.

A obra foi relançada no formato de graphic novel, contendo todos os capítulos, no ano

seguinte, inclusive com tradução para vários idiomas, dentre eles, para o português brasileiro,

lançado no Brasil pela Panini Books.

Apesar de o seu primeiro lançamento ser multifacetado, a obra fora composta de uma

maneira que funcionasse tanto no todo, como individualmente em cada capítulo. Nisso reside,

inclusive, parte da sua originalidade. A artrologia da obra é desenvolvida de uma maneira

bastante específica. Brás, o protagonista da obra, morre em quase todos os capítulos, mesmo

estando vivo e em outro momento da vida no capítulo seguinte.

Marcel Luiz Tomé, em sua dissertação As inovações estéticas e narrativas nos

quadrinhos autorais de fábio moon e gabriel bá: Um estudo de Daytripper, discorre sobre a

originalidade do texto. Para ele, a graphic novel apresenta diversas inovações tanto no plano

expressivo quanto no plano de conteúdo, inclusive alterando formas clássicas da linguagem

das histórias em quadrinhos. Para ele:

Daytripper traz uma série de inovações narrativas e estéticas, mas inova principalmente no conteúdo da história criada. Narrada em dez capítulos de forma não linear, cada um deles aborda um dos anseios vividos pelo personagem em uma fase de sua vida. (TOMÉ, 2013, p.90).

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Tomé percebe também o uso, em Daytripper, de diversos elementos característicos

dos quadrinhos, mas com caráter diferenciado. Os enquadramentos vazados, o uso de um foco

narrativo onisciente e que dialoga constantemente com as figuras são elementos que

enfatizam a peculiaridade narrativa em Daytripper.

Tomé, no entanto, não se aprofunda nos elementos narrativos que distinguem a

utilização do verbal dentro da narrativa. Podemos notar esta originalidade, por exemplo, com

o uso dos obituários. Cada capítulo termina com um obituário ao fim. A profissão de Brás é

escrever obituários, o que condiciona o leitor a estabelecer conexões entre a diegese da obra e

a sua construção episódica. Nesse sentido, a artrologia geral de Daytripper caminha para uma

intensa relação entre forma e conteúdo.

Podemos enfatizar também o detalhado uso das cores por Dave Stewart. A variação

de tons e atmosferas para cada cena faz com que a coloração da obra narre, em diversos

momentos, aspectos não ditos pelo desenho e pelo texto verbal. Tomé, inclusive, considera

Stewart como autor, juntamente com os gêmeos: “Dave Stewart pode ser considerado um dos

autores dessa novela gráfica ao conseguir transmitir emoções mesclando cores planas e cores

mais expressivas.” (TOMÉ, 2013, p.87). De acordo com o pesquisador, as inovações da obra

também são mérito do colorista:

As inovações de Dave Stewart nesta publicação estão presentes nas poucas páginas em que pôde utilizar coloração mais expressiva e nas constantes aplicações de foco por meio da utilização de cores quentes contrapostas às frias e neutras. (TOMÉ, 2013, p.97).

Além das novidades do plano expressivo, Daytripper intensifica o uso de temas

complexos. Cada capítulo apresenta Brás em uma fase da vida. Os títulos dos capítulos são

dados de acordo com a idade de Brás naquele momento, o que nos fornece, segundo Tomé,

uma base temporal para reconhecermos o encadeamento dos fatos.

Ainda em relação ao nível temático, Marcel Luiz Tomé expõe o diálogo da obra com

a cultura popular e erudita brasileira. Segundo ele

Apesar de Daytripper ter sido lançada originalmente nos Estados Unidos, foi feita por brasileiros com personagens e cenários brasileiros. Esses aspectos revelam um espaço para o desenvolvimento de uma cultura híbrida que engloba não apenas a cultura, mas também a língua (TOMÉ, 2013, p.93).

Além de aspectos da experiência de vida no contexto sociocultural brasileiro, não

podemos deixar de notar a relação da obra com um dos mais relevantes livros da produção

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literária nacional: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1988), de Machado de Assis. O

protagonista de Daytripper carrega o mesmo nome do protagonista do romance e seus dilemas

não são muito diferentes daqueles enfrentados pelo protagonista machadiano, isto é, o sentido

da vida e a procura de marcar a sua passagem em vida.

Esta força discursiva relacionada à cultura brasileira é marcada na história através dos

elementos referenciados, como a tradição baiana com as oferendas a Iemanjá, o carnaval

carioca na televisão, os cenários tropicais brasileiros, além de monumentos e espaços culturais

paulistas.

No entanto, não apenas sobre o Brasil fala a obra. Seus temas transcendem a

experiência local para proposições universais. A obra, inclusive, já foi escolhida para o

programa Life of the Mind Book, durante o ano de 2014, da Universidade do Tennessee. O

programa consiste na escolha de uma obra literária que será lida por todos os alunos que

entraram na universidade durante o ano letivo. Todos esses alunos - por volta de 4500 -

devem realizar ensaios a respeito da obra e participar de discussões sobre os temas propostos

pela graphic novel. Segundo o site oficial da universidade, esta foi a primeira vez que uma

obra em arte sequencial foi contemplada pelo programa.

A escolha de Daytripper para o programa se deu justamente pela sua capacidade de

dialogar tematicamente com diversas pessoas, independente da nacionalidade. É o que alega o

diretor do programa, Jason Mastrogiovanni, no site da universidade. De acordo com ele, a

obra “atrai os leitores para as paisagens vibrantes, amorosamente detalhadas do país de

origem dos autores, o Brasil, enquanto retrata momentos cruciais centrais para a experiência

humana, independentemente de sua nacionalidade”. 11 ·.

(http://tntoday.utk.edu/2014/04/07/daytripper-2014-life-of-the-mind-book/ Acessado em: 16

de setembro de 2014.)

Toda esta riqueza temática e narrativa fez com que Daytripper ficasse durante duas

semanas na lista dos mais vendidos do The New York Times, além de ganhar diversos

prêmios como Eisner e Eagle, e ter sido indicada ao Harvey e ao Shel Dorf Awards.

11 Texto original: “Daytripper pulls readers into the vibrant, lovingly detailed landscapes of the authors’ home

country of Brazil while depicting pivotal moments central to the human experience, regardless of nationality,”.

79

Cabe-nos, portanto, explorar estes elementos, sobretudo no que diz respeito à

construção da personagem principal Brás e a sua relação consigo mesmo, com o pai e com a

morte.

5.1 BRÁS E O SER-COM O PAI

Enquanto revisita sua experiência de vida, Brás manifesta seus modos de ser com os

outros e nos seus modos de ser com as coisas. Seus itens de trabalho e as remissões por eles

estabelecidas são constantemente retomados no entrelaçamento da obra, fazendo com que

temas como profissão, relacionamentos amorosos, amizade e família estabeleçam os tons que

permeiam o ser de Brás dentro da narrativa.

Alguns momentos e pessoas da história parecem marcar mais o protagonista. A

relação com Jorge, o melhor amigo, perpetua-se por toda a obra, sobretudo com a

representação do suicídio do amigo e na morte conjunta dos dois em uma ilha isolada, no

capítulo sete. Relações como a do protagonista com o melhor amigo, mantém o ser de Brás

em exercícios com seu modo-de-ser singular e em conjunto no mundo.

Por outro lado, a questão pai e filho permanece tematicamente por vários capítulos e

ressurge como uma chaga que envolve o ser de Brás em toda a sua tentativa de escrita sobre si

mesmo. Mesmo diante da leitura matinal do jornal, no primeiro capítulo, é o encontro com o

seu pai e a grande homenagem que o pai receberá naquela mesma noite que o atormenta.

Sua ocupação com o jornal logo toma proporções do modo de ser-com relacionado

ao pai. Enquanto lê o jornal, suas reflexões, através da exposição do discurso do foco

narrativo, expõem sua frustração e incapacidade de chamar para si a atenção do pai (Figura 8).

Brás se entristece com a aparente indiferença do pai com a data. O foco narrativo

expõe ainda, que este suposto desdém já aconteceu em outros momentos. Emblemática

também é a decupagem da cena. O quadro maior, no centro da página, mostra o jornal em um

plano mais aberto, enquanto o quadro seguinte volta-se para Brás para em seguida, no último

quadro, voltar-se para Benedito em um close, simulando o olhar do filho para o pai, enquanto

reflete sobre o acontecido.

A decisão de Brás, após ler a notícia da homenagem ao pai, é a de retomar seu

trabalho como escritor. “Talvez ele devesse pular o café também, passar logo a trabalhar no

seu livro”. (MOON & BÁ, 2011, p.16). No entanto, quando senta para escrever, a remissão do

80

trabalho o leva à família e, consequentemente, ao pai. A máquina de escrever, o cigarro, tudo

ali, no seu hábito de escrita, é herdado também do pai.

O que parece é que Brás não consegue escapar da condição de estar ligado ao pai na

busca pelo seu próprio ser. É por isso que a temática pai e filho perdura no seu olhar para a

escrita, uma vez que seu pai também é escritor e na forma de ocupação dos outros objetos. Ao

chegar diante do teatro municipal de São Paulo é a preocupação de ser-com em relação ao pai

que vem a tona: “Ele lembra de ter lido em algum lugar que na noite de abertura, em 1911,

houve uma apresentação de Hamlet no municipal... o grande salão ecoa pais e filhos desde o

princípio.” (MOON & BÁ, 2011 , p.28).

Assim como Hamlet enfrenta o fantasma de seu pai, Brás parece fazê-lo, ainda que

metaforicamente, ao encarar o legado do pai como escritor. Entrar no evento para prestigiar a

homenagem ao pai é enfrentar o eco de ser filho de um escritor famoso; de não ter o

aniversário lembrado pelo próprio pai; de ter que ser a sombra do pai.

A menção ao texto de Shakespeare potencializa ironicamente o dilema enfrentado

por ele diante da entrada principal do teatro: “Onde que eu vou achar cigarro? [...] eis a

questão.” (MOON & BÁ, 2011, p. 28). Mesmo que a citação seja uma referência cômica

diante da evocação ao texto clássico, é de conhecimento do leitor que a marca que fuma é a

mesma que a do pai. “Eis a questão” é, ainda, uma questão sobre a ocupação do objeto

cigarro, mas traz consigo a mesma questão ontológica de Hamlet, a de continuar o legado do

pai ou não, isto é, para Brás, o de fumar a mesma marca de cigarro ou não, de escrever e ser

escritor como o pai ou não.

O momento seguinte também reflete a transferência de cargo de pai para filho no

diálogo com o dono do bar. O nome do bar é Genaro e Brás pergunta ao homem se a placa se

refere a ele. A resposta a esta pergunta parece conduzir, novamente, ao conflito de seguir o

mesmo caminho que o progenitor: “É o que todo mundo acha. Mas Genaro era o nome do

meu pai.” (MOON & BÁ, 2011, p. 30). A conversa segue e o homem conta que se chama

Policarpo Claudionor, embora todos o chamem de Genarinho.

O fato de o homem ser chamado com do mesmo nome que o pai é sintomático se

considerarmos a sua aparente impossibilidade de fugir da questão de seguir ou não os passos

do pai. Brás o indaga sobre o porquê de ele não mudar o nome do bar, ao passo que sua

resposta resume situação de estar lançado não apenas no mundo, mas na relação ser-com o

81

pai: “Continuaria sendo o bar dele, e eu continuaria sendo o filho dele.” (MOON & BÁ, 2011,

p.31).

O dono do bar parece representar, para o momento vivenciado por Brás, o dilema de

aproximar-se do ofício do pai. Genarinho opta por continuar com o bar e com o nome igual ao

do pai, mas é por ser chamado assim pelos outros que o apelido perdura. A ocupação do papel

do pai não se dá apenas no trato individual de ser-com ele, mas também na relação de ser-com

as outras pessoas.

O teatro municipal apresenta Hamlet, mas também o bar do Genaro ecoa a temática

de pai e filho. Aparentemente, Brás tem de encarar o pai e o papel que ele ocupa na sua vida.

A cena seguinte à revelação de “Genarinho” sintetiza um dos modos do ser de Brás como ser-

com o pai. Com o cigarro na boca e a carteira de cigarros na mão, ele afirma: “Todo mundo é

filho de alguém, né?” (MOON & BÁ, 2011, p.31).

Pode-se presumir que, neste momento, Brás está reconhecendo a universalidade do

dilema, ou seja, todo ser é ser-com em conexão com o pai e mesmo ele, gostando ou não, é

lançado no mundo sem a escolha de optar por este ou aquele genitor, nem mesmo livrar-se do

desejo de querer que o pai o note. O dono do bar já o avisa: “Pois é. Família a gente não

escolhe.” (MOON & BÁ, 2011, p.31).

No entanto, embora Brás esteja, de certa maneira, evocando uma noção de

impessoalidade com o pronome “alguém”, o seu conflito está ligado a Benedito e não a

qualquer pai. Apesar do jargão “família a gente não escolhe”, Brás tem de lidar com o fato de

ser-aí com Benedito, aquele que é um grande escritor, que esquece o aniversário do filho etc.

Dilema similar é enfrentado por Kafka em seu esforço de dar sentido para a seu

conflito familiar. É por não poder se situar em outra família e não ter outro pai que ele busca

esclarecer, em Carta ao pai, o porquê do seu medo e fascínio pelo pai:

Naturalmente as coisas não se encaixam tão bem na realidade como as provas contidas na minha carta, pois a vida é mais do que um jogo de paciência; mas com a correção que resulta dessa réplica, uma correção que não posso nem quero discutir nos detalhes, alcançou-se a meu ver algo tão aproximado da verdade, que isso pode nos tranquilizar um pouco e tornar a vida e a morte mais fácil para ambos. (KAFKA, 2013, p.407).

A citação nos mostra a profundidade com que o elo pai e filho perdura. Vida e morte

são fatos ligados ao modo de ser-com e é preciso aceitar estas circunstâncias. Do mesmo

modo, Brás escreve e recapitula os momentos que viveu com o pai, a nosso ver, procurando

tranquilizar a si mesmo sobre desamparo de não mais ter Benedito perto de si.

82

A atmosfera da relação entre pai e filho e os extremos vida e morte é representada,

em Daytripper, pela experiência de Brás em encontrar a própria morte diante dos

questionamentos sobre ser pai. A primeira experiência de morte dada pela narrativa é

acometida pelas mãos de um rapaz que descobre que será pai e resolve assaltar o próprio tio.

Esta resulta no primeiro obituário da obra e alude ao caráter identitário de Brás com o pai. A

descrição de quem era o protagonista se ancora na sua possiblidade de ser como Benedito.

Brás de Oliva Domingos compartilhava com o pai, Benedito de Oliva Domingos, a paixão pelas palavras e, não fosse sua morte repentina numa assalto no centro de São Paulo, com certeza viria a ser tão respeitado quanto ele. (MOON & BÁ, 2011, p. 34).

O Dasein de Brás é evidenciado pela possiblidade de se igualar ao pai. Parece que,

mesmo diante da morte, é inevitável para ele ser-com. A potencialidade do seu ser não apenas

se ancora na aproximação com o trabalho do pai, como também no desejo de se igualar a ele

em sucesso na profissão.

A relação entre Brás e Benedito também é esclarecida em diálogos entre os dois,

como por exemplo, no capítulo três, que se concentra principalmente no relacionamento de

Brás com a mulher que conhece em Salvador. Após uma palestra de Benedito, os dois estão

em um restaurante, conversando sobre o tema da preleção: amor.

A conversa dos dois concentra-se sobre a vida e a maneira como nos relacionamos

com as outras pessoas. Brás, fragilizado pelo término com a namorada, ouve os conselhos do

pai sobre a ligação que temos com outras pessoas. Ele recorre à lembrança de quando ele e

esposa se conheceram:

Lembro de quando nos conhecemos. Eu lhe disse que queria ser um grande escritor e que tinha certeza de que havia um grande romance esperando que eu o escrevesse. Ela sorriu e disse que havia um grande romance esperando que o vivesse. (MOON & BÁ, 2011, p. 65).

A dicotomia entre a vida e a escrita de Benedito é a mesma enfrentada por Brás.

Tendo que escrever sobre os romances de um pintor famoso, que pintava as amantes

chamando-as todas por “Lola”, Brás se obriga a olhar para a própria vida e encarar o

rompimento recente com sua namorada. Seu pai o incentiva a buscar os momentos que o

marcaram; “Momentos que nunca vai esquecer” (MOON & BÁ, 2011, p.66).

O quadro seguinte a esta sugestão traz um balão que antecipa o flashback da briga do

casal, que aparece logo nas cenas seguintes. O balão simula a memória de Brás daquele

83

momento; um momento que, como a dica do pai, Brás nunca vai esquecer. A briga dos dois é

constantemente atualizada no capítulo. O foco narrativo relembra a mulher e os próprios

quadros da exposição, em um determinado momento, “falam” com Brás, repetindo as mesmas

palavras que ele ouvira da ex-namorada durante uma briga.

A influência do pai se manifesta também em outros momentos. Mesmo quando a

cena descreve a primeira vez que encontra com a mulher, é a voz do pai que ressoa na sua

cabeça: “Então, é claro, ele se lembra do que seu pai vem dizendo todos esses anos – e tudo

fez sentido.” (MOON & BÁ, 2011, p. 80). “Cidade deserta”, o discurso proferido por

Benedito um pouco antes do início do diálogo, é atualizado na cena em que Brás corre atrás

da moça. A distinção entre a escrita e a vida é evocada em paralelo à fala do pai: “O momento

em que a vida começa de verdade.” (MOON & BÁ, 2011, p.81).

A referência a fala do pai, de um romance que espera ser vivido, é brutalmente

interrompida com a morte de Brás. E, mesmo neste momento, o seu obituário não ignora a

presença do pai no Dasein do protagonista. Segundo o obituário, Brás estava “tentando achar

seu caminho no deserto, à procura do oásis que preferimos chamar de... ‘amor’.” (MOON &

BÁ, 2011, p.82). O discurso do pai, novamente, é tema identitário para Brás. Quem ele era, no

momento em que morreu, ligava-se à reflexão de Benedito.

A citação do discurso de Benedito dentro do obituário é importante para

compreendermos a função dos obituários para o próprio Brás. Como escritor de obituários, ele

parece reutilizar da fala do pai para definir a si mesmo, como uma escrita que adianta a

experiência da morte para explicar os fenômenos e momentos da própria vida.

Assim como Kafka, Brás sugere uma investigação narrativa dos momentos da sua

vida, buscando sentido para os acontecimentos na singularização da morte. Ele parece matar a

si mesmo e escrever um obituário para compreender aquele momento sob a perspectiva de um

escritor/leitor. Inserir o discurso do pai neste obituário, manifesta o apego às palavras do pai

neste processo de recriação da vida. Brás, com 28 anos, apaixonado, morre com a lembrança

de quem era na experiência discursiva do pai.

Esforço parecido era empreendido pelo autor tcheco no seu processo de dar sentido

ao mundo. Brás e Kafka procuram a experiência da vida nas palavras para, de alguma

maneira, encontrar as conexões possíveis de cada momento vivido: Em vez de uma interpretação, temos o relato do que está por vir; ou melhor, a interpretação se transforma em relato (das múltiplas conexões inesperadas). A escrita é um resumo da vida, condensa a experiência e a torna possível. (PIGLIA, 2006, p.51)

84

O que nos parece é que Brás estabelece estes tipos de conexões das várias

experiências vivenciadas. O encontro com aquela que será sua esposa, o nascimento do filho,

o primeiro beijo, a morte do melhor amigo. Todos estes momentos são perpassados pelo

aprendizado junto ao pai.

A remissão ao pai pode ser percebida com o nascimento do seu filho Miguel. Tornar-

se pai implica, para Brás, trazer a tona o espectro da sua relação com Benedito. (Figura 9) A

imagem que abre o capítulo quatro ilustra esta presença concomitante das gerações

representadas no conflito entre pai e filho. A ilustração mostra Benedito cobrindo quase toda a

página, enquanto Brás e o filho recém-nascido são representados no centro do peito do avô.

A centralidade com que os descendentes de Benedito aparecem dentro de sua figura

maior, sugere a afeição que ele sente pelo filho e pelo neto. Sua coloração e traço também são

importantes no enaltecimento da temática do capítulo. Benedito é representado com uma arte

final 12 marcada fortemente, com traços definidos, além de uma coloração terrosa e

acinzentada, mais fria. A caracterização de Brás e do filho, por outro lado, se dá de maneira

distinta. Ambos estão com cores mais quentes e com a arte final em traços menos rigorosos,

além de as cores confundirem-se com os tons aquarelados de fundo, transformando-os numa

representação menos fixada e até mais abstrata.

O adiantamento temático dado pela capa é significativo, na medida em que antecipa

a centralidade da morte de Benedito e o nascimento de Miguel. O movimento de passar

adiante o legado de ser pai acontece simultaneamente à experiência da morte por Brás. Ele se

torna pai quando perde o próprio pai. A nova geração parece surgir no apagamento da

anterior.

O capítulo se concentra na experiência da morte do pai e no contraste estabelecido

com o nascimento. Mesmo diante da expectativa do nascimento, o foco narrativo retoma a

temática da morte até o momento em que Brás encontra com sua mãe no hospital e descobre

sobre a morte do pai.

Não mencionaram em nenhuma aula para grávidos que ele estaria morrendo de vontade de fumar no instante em que seu filho estivesse nascendo. [...] Em todas aquelas consultas com o médico, ninguém havia avisado Brás que seu telefone ia morrer [...]. (MOON & BÁ, 2011, p.87).

12 A expressão arte final, aqui, significa o método de acabamento do desenho. Geralmente pode ser

feita digitalmente, ou com tinta nanquim, caneta etc.

85

A morte personifica a atmosfera de ausência do pai. O pai está presente mesmo

quando não está fisicamente, através da referência da sua morte pelo foco narrativo. A

ocupação dos objetos, como o telefone e, principalmente, o cigarro, é o meio pelo qual

Benedito se apresenta na cena. O ser-com o pai é figurado pelo ser-com os objetos.

Todo o capítulo é caracterizado por uma coloração fria, permeada principalmente por

tons de verde, roxo e azul. Além dessa caracterização, há outra maneira de situar, pela

composição, a solidão vivenciada por Brás na perda do pai.

A cena em que ele se encontra com a esposa, após descobrir que o pai morrera, é um

bom exemplo da representação do vazio que sente como um pai órfão. Todo o quadro está

escuro, sendo que os únicos elementos destacados, ocupando boa parte do quadro, são Brás e

Ana, que está deitada em uma maca rodeada de aparelhos hospitalares. O vazio em torno dos

personagens simula o vazio que assombra Brás naquele momento.

O foco narrativo, por sua vez, explicita o sentimento de Brás. Ele não conta para a

esposa sobre a morte do pai para não causar complicações para a gestação. No entanto, o

narrador enfatiza o parentesco entre o falecido e a criança de maneira pausada, simulando um

pensamento ou fala, do próprio Brás.

A cena do velório do pai é fundamental na construção do ser de Brás definido no

obituário ao final do capítulo. Toda a cena mantém-se dentro da paleta já definida

anteriormente, com tons mais frios e com sombras marcadas, com muito contraste entre luz e

sombra.

Há uma conexão aparente entre o nascimento do filho e a morte do pai. O telefone

celular, que apareceu anteriormente como o objeto que “morreu” é referenciado de duas

maneiras, ora remetendo ao pai, morto, ora ao filho, possivelmente nascido. O foco narrativo

descreve uma última ligação entre os dois: “Dois dias antes, ou menos, ele havia falado com

seu pai ao telefone, sobre alguma coisa que não lembrava mais.” (MOON & BÁ, 2011, p.90).

A ocupação ao telefone se dá de maneira distinta para a sua subjetividade. O

telefone, que antes o ligara ao pai, agora era o objeto de expectativa para o nascimento do

filho. “Por mais que estivesse sofrendo, ele não estava ali por completo. Sua mente esperava

uma ligação que o levaria dali.” (MOON & BÁ, 2011, p.90). O reforço da relação entre o

foco narrativo e o visual, quando mostra Brás segurando firmemente o telefone, favorece a

leitura da sua relação com o objeto. Ocupar-se dele, no momento, seria resolver o dilema

86

quanto ao nascimento do filho, mas, subjetivamente, trata da distinção entre os telefonemas de

dois dias atrás e o de agora.

A morte do pai remete também à profissão de Brás como escritor de obituários. Ao

perceber que a morte do pai atraiu várias jornalistas, ele se incomoda com a presença massiva

deles no funeral. “Ele não deixou de perceber a ironia da situação, pois pensava.. ‘é isso que

as pessoas querem ler no jornal?’.”(MOON & BÁ, 2011, p.90).

A ironia é sustentada pela sua profissão. Ele escreve para o jornal justamente aquilo

que ele criticava no momento. A menção aos jornalistas trouxe à memória o melhor amigo,

Jorge, que o foco narrativo indica que “não estava lá.” (MOON & BÁ, 2011, p.90). A

sucessão de remissões feitas por Brás o fazem questionar a profissão, já que mesmo quando

não escreve sobre as mortes, elas ainda permanecem ocorrendo.

Novamente, as ocupações do mundo ao seu redor influenciam na visão de si mesmo

e da sua profissão. Pensar em todo o ritual ali realizado remete, no final das contas, a ele

mesmo, a sua relação com a escrita e consequentemente com o pai.

Durante o enterro, uma mulher aparece e pergunta sobre Benedito. Brás a reconhece

do evento em homenagem ao pai, representado no primeiro capítulo, e logo percebe que ela

faz parte de outro relacionamento do pai e que ela, portanto, é sua irmã.

A aparição da mulher traz à tona o dia em que se conheceram. A cena é apresentada

em tons de sépia amarelados, sugerindo a nostalgia que constrói a cena, uma vez que se trata

da memória seletiva de Brás. O encontro é marcado por uma conversa rápida da mulher com

seu pai, ao passo que a cena seguinte é muito importante para apresentar outra faceta de

Benedito.

O pai, que até então aparecia como alguém que esquecia seu aniversário e era

indiferente ao filho, é apresenta de maneira mais delicada e até mesmo mais íntima. Ele deseja

ao filho feliz aniversário, lhe entrega uma taça com alguma bebida e o convida a conhecer

outras pessoas. No quadro seguinte ao momento em que ele parabeniza o filho, Brás aparece

em um close, sorrindo para o pai.

A cena é construída com cores mais quentes que as anteriores, o que faz com que

este momento represente, para Brás, não apenas um momento nostálgico, mas também de

felicidade com o pai. Poderíamos aproximar o contraste entre o pai indiferente e o pai

acolhedor na figura de Kafka, sobretudo nos momentos de memória afetiva com o pai.

87

Assim como Kafka, Brás sente-se feliz nos momentos em que o pai demonstra um

cuidado maior. Sob o peso da memória, a cena é mais harmoniosa em cores e na

representação o pai. A transição da lembrança para a narração do capítulo é significativa neste

quesito. (Figura 10).

No momento em que Brás é levado para outro salão pelo pai para conhecer “gente

importante”, ele aparece de costas, caminhando da esquerda para a direita. Seu pai está ao seu

lado, colocando a mão direita nas costas do filho, conduzindo-o. O quadro seguinte, que traz a

narração para o presente do capítulo, apresenta o protagonista na mesma posição que a

anterior, com a diferença de que agora seu pai não está mais o conduzindo.

Também a cor volta para os tons que estavam até então, frias e acinzentadas. Brás

está a caminho do hospital para receber o filho. Parece-nos que o nascimento do filho terá de

ser encarado sob a perspectiva da ausência do seu pai, o que sugere um adiantamento temático

do entrelaçamento da narrativa. Mais tarde, Brás terá que assumir que a morte do pai seria

importante para a libertação do seu Dasein.

A moça, suposta filha de Benedito, aparece no hospital em que a esposa de Brás está.

Ela o procura, alegando precisar de alguém para poder conversar sobre o pai. Brás se irrita,

perde a paciência e grita: “Ele morreu!”. (MOON & BÁ, p.96). É interessante o aspecto

visual do quadro em que ele anuncia a morte do pai. Ele e ela se encaram, um de frente para

outro. O cenário permanece com as tonalidades anteriores, mas os personagens são

representados de maneira diferente. Ele e ela estão com tonalidade laranja-amareladas, mais

quentes que o restante da cena. A evocação ao pai e a sua condição fúnebre o situam num

lugar distinto ao da cena. Eles estão presos à memória, em sépia, do pai quando ele anuncia o

falecimento.

Outro aspecto esclarecido no encontro de Brás com a possível irmã são os elementos

os diferem na apropriação das coisas do pai. Brás encontra na irmã indícios que a diferem

radicalmente do pai, indícios estes que o marcam durante toda a narrativa.

O primeiro destes indícios é cigarro. Brás diz para ela que precisa de um cigarro e

pergunta se ela fuma. Ela responde que tem asma. Brás então, sai do hospital e acende um

cigarro. Ela se despede e ele, com um cigarro aceso na boca, pergunta: “Só uma coisa. Qual

livro dele era o seu favorito?” (MOON & BÁ, 2011, p.98), e ela responde: “Eu nunca li

nenhum.” (MOON & BÁ, 2011, p.98).

88

Dois dos traços que unem pai e filho não estão presentes na filha. Ele fuma como o

pai, inclusive a mesma marca de cigarro, e nutre uma relação íntima com a escrita. Ela não

apenas não segue a profissão como nunca lera nada do pai. Brás procura constantemente pelo

apoio, presença e atenção do pai, mas não estaria ele já ligado ao pai, inclusive na sua

formação identitária, na busca de definir quem ele é?

Impasse parecido é enfrentado pelo protagonista/narrador de A terceira margem do

rio (Rosa, 2001). Toda a sua família vai, aos poucos, desistindo de se conectar ao progenitor,

ao passo que ele permanece ligado ao rio e ao rito desenvolvido com a partida do pai. Sua

irmã, em certa medida, parece estabelecer um vínculo menor com o pai. É ele quem se sente

responsável por ocupar aquele lugar e viver no meio do rio.

Receber o manto de pai, agora que o seu se fora, é difícil para Brás. Na cena em que

ele vai até em casa buscar uma caixa de música para a sua esposa, o narrador, intruso nos

pensamentos de Brás, discorre sobre esta ruptura abrupta de ocupar o lugar de pai: “Mas as

memórias... as conversas que nunca teria com o pai – a meia irmã que ele não suportava nem

olhar -, a ideia de que teria que assumir o papel do pai logo agora que se sentia menos

preparado...” (MOON & BÁ, 2011, p.101).

Relevante também é o gênero da criança. Chegando ao hospital, o protagonista

encontra a mãe chorando, que conta que é um menino. O papel assumido como pai será ainda

mais ligado ao papel assumido anteriormente por Benedito. Novamente, é a preocupação

desta relação, isto é, de pai e filho, que permeará os próximos passos de Brás com o menino.

Ele, agora, como pai, terá de ser-com o filho, enquanto ainda mantém o modo de ser-com em

relação às lembranças do pai.

O ser-com o pai não apenas se perpetua pela memória, mas também na ocupação dos

objetos. Sua mãe pede para ir buscar o pijama usado por ele quando ainda era um recém-

nascido. Brás reluta, mas os argumentos da sua mãe perpassam o seu modo de ser-com o pai:

“Foi o seu pai que escolheu aquele pijama, e ele insistiu que ficássemos com ele para um dia

que nem esse. Então... você vai buscar, sim!” (MOON & BÁ, 2011, p. 103).

Mesmo na ausência de Benedito, parece inevitável para Brás conseguir encontrar seu

Dasein sem considerar sua relação com o pai. Mesmo depois de morto, seu desejo está

presente no pequeno pijama. E esta busca pelo objeto que remete ao pai o leva a um encontro

ainda mais profundo consigo mesmo.

89

Ao chegar a casa, não é apenas o pijama que remete ao pai. O narrador explicita o

envolvimento de Brás com a atmosfera da casa: “Ele não estava lá e, ainda assim, estava por

toda parte.” (MOON & BÁ, 2011, p. 104). Cada quadro da página cuida de mostrar Brás

olhando para diversos espaços. A casa está vazia, contrariando a presença do pai que está,

evidentemente, na ocupação de Brás pela casa e não na casa propriamente dita. Seu olhar para

os objetos é alterado pelo olhar que tinha do pai.

A ocupação pelo viés afetivo desenvolve-se em proporções maiores quando ele

chega ao escritório de Benedito. Sua relação pessoal com o espaço invade suas memórias:

“Embora fosse um aposento grande, as memórias de infância de Brás deixavam o estúdio dez

vezes maior. Podia ser porque ele era muito pequeno... [...] ou porque tudo relacionado a seu

pai parecia grandioso.” (MOON & BÁ, 2011, p.105).

O fim do capítulo quatro se dá todo no escritório de Benedito e as memórias de Brás

preenchem a fala do narrador com as indagações do menino Brás: “O que ele estaria

escrevendo agora – o que ele estaria lendo?” (MOON & BÁ, 2011, p.105). A

complementaridade da imagem com o foco narrativo favorece ainda mais o desfecho

emocional do protagonista com o espaço de vida do pai.

Quando o narrador evoca a pergunta quanto às leituras do pai, a imagem mostra o

romance de autoria do próprio Brás. A conexão temporal das questões da infância com a

resposta atual revela um caráter afirmativo para o protagonista. Seu pai leu o seu romance e,

desta forma, ele pode conquistar o espaço que sonhava: “Os livros eram a grande paixão de

Benedito, e se Brás pudesse ser parte daquele mundo, ele poderia garantir seu espaço no

coração do pai.” (MOON & BÁ, 2011, p.105).

O elo entre pai e filho se estreita, na narrativa, até mesmo na morte. Brás seguira o

pai no fumo e na escrita e, naquele momento, repete sua morte com o próprio ser, no mesmo

lugar em que o pai morrera. O foco narrativo realça esta conexão através da repetição dos

termos(Figura 3). Alternando o pertencimento coração (ora o coração de Benedito que a parar,

ora é de Brás), favorece para a percepção de que Brás morre indiretamente com o pai.

Ao longo da graphic novel, os obituários resumem a temática do capítulo, mas

acabam por definir também aspectos sobre o ser de Brás. Assim como no primeiro capítulo,

em que o obituário remete o ser de Brás à sua relação com o pai, no capítulo quatro, questões

de pai e filho se amplificam para aquelas entre avô, pai e filho.

90

Romancista como o pai, apegado à família como a mãe, ele se sentia incrivelmente realizado com o sucesso de seu primeiro romance e com o nascimento saudável do seu primeiro filho. Infelizmente, seu pai não viveu o bastante para conhecer o neto, e a morte dele foi forte demais para o coração do próprio Brás. (MOON & BÁ, 2011, p.106).

O pai não pôde conhecer o próprio neto e de alguma maneira a sua morte impactou a

existência do próprio Brás. A morte de Brás naquele momento faz com que ele também não

conheça o filho e comungue com o pai na mesma condição de estar morto. Mas, como

sabemos, esta morte carrega outro significado além da morte física de Brás. Se ele estará vivo

no capítulo seguinte, adotando a estrutura já construída até aqui, resta-nos perguntar o que

significa morrer junto do pai.

O obituário revela que a morte do pai foi forte demais para o coração do próprio

Brás. A cena anterior liga simbolicamente o coração de Benedito e de Brás. O elo com o pai é

que parece sucumbir ao acontecido. Ele havia seguido o pai no hábito de fumar, na carreira

literária e agora, que seguiria também na paternidade, Benedito não está lá. Sua morte parece

representar uma tentativa de continuar a seguir os passos do pai: “E então Brás mais uma vez

seguiu os passos de seu velho pai ao morrer de um ataque cardíaco aos 41 anos, deixando pra

trás sua amorosa esposa, Ana, e seu filho recém-nascido, Miguel.” (MOON & BÁ, 2011,

p.106).

A admiração de Brás pelo pai aparece claramente durante suas memórias de infância.

O capítulo cinco, que narra alguns de seus dias de visita à chácara da família, fornece indícios

das observações que o personagem faz do pai.

Os quadros que abrem a narração sobre as visitas de sua família descrevem a distinção

entre cada parente, mas se concentram visualmente em Benedito. Além de demonstrá-la

visualmente, o foco narrativo fortalece a descrição do pai: “Mesmo que fosse dos seus sogros,

Benedito amava vir para o sítio, pois lá tinha paz e todo tempo do mundo para escrever. [...]

Ele não prestava atenção em nada que as crianças faziam. Nem em mais ninguém. É como se

elas nem estivessem lá.” (MOON & BÁ, 2011, P.114).

A indiferença de Benedito com a família é importante para percebermos a forma de

relação dele com Brás, mesmo que a narrativa se concentre em mostrar as tentativas do filho

de se aproximar do pai.

Assim como em outros momentos da narrativa, várias coisas do mundo que vem de

encontro ao ser de Brás passam pelo seu modo de ser com o pai. Ao descrever alguns aspectos

91

do sítio, o narrador centraliza o mapeamento em uma árvore adotada por Benedito para os

momentos de escrita: “Era a de Benedito, onde ele ia para pensar em suas histórias. Todo

mundo conhecia como a árvore do Benedito, mas ele a havia batizado com o nome de sua

musa: Aurora.” (MOON & BÁ, 2011, p.115).

O trecho salienta a transformação ocorrida pela ocupação e Benedito com a árvore.

Ele a nomeia e ela deixa de pertencer ao modo de ser de uma árvore. Ela passa a ser Aurora.

A partir deste momento, a árvore também passa a ser ocupada de outras maneiras pela

narrativa, através de remissões alegóricas e de encontros relevantes para Brás.

Brás, em determinado momento, vai até o pai para perguntar o porquê de eles terem

de utilizar o “mato” para as necessidades se a casa tinha banheiro. A resposta do pai

demonstra a indiferença de Benedito com o filho: “Não vê que estou escrevendo?” (MOON &

BÁ, 2011, p.117). Brás indaga sobre o vazio da página em que Benedito repousa a caneta. O

pai, então, desenvolve uma argumentação comparativa entre a economia da água do banheiro

e a economia das palavras:

A água que usamos na casa vem do poço. Nós bombeamos para o tanque e usamos no chuveiro, na cozinha e no lavabo. Também precisamos dela para regar o pomar e alimentar os bichos. [...] Mas não temos muita água. Por isso, a gente espera o poço encher, que demora um pouco, por isso não podemos ficar gastando água o tempo todo. [...] É isso que estou fazendo. Estou enchendo a minha cabeça de ideias, escolhendo as melhores, as mais raras.[...] Assim, depois eu posso escrever sem gastar muita água. (MOON & BÁ, 2011, p.117).

Assim como nos capítulos anteriores, o discurso de Benedito acaba influenciando

outros momentos da narrativa. A preleção sobre a procura do amor pelo deserto influenciou a

percepção de Brás de si mesmo e o encontro com aquela que seria sua futura esposa, além, é

claro, da presença do discurso no seu obituário.

No capítulo da sua infância não é diferente. A árvore predileta do pai e o seu

ensinamento sobre o racionamento das palavras, através da alegoria com a água, repercute no

discurso do foco narrativo, na apresentação dos cenários do sítio e, por fim, no primeiro beijo

de Brás.

Logo após o diálogo de Brás com Benedito, embaixo da árvore, a narração relata os

dias de chuva na chácara. O foco narrativo concentra-se em explanar as funções de adultos e

crianças nestes momentos. Os adultos indo para fora “brincar” com as atribuições do sítio,

enquanto as crianças ficavam dentro de casa. De acordo com o narrador, os dias de chuva

tornava a família mais próxima, principalmente na apreciação de Brás da presença do pai.

92

A complementaridade entre foco narrativo e imagem amplia ainda mais a admiração

de Brás pelo pai e a influência deste para todo o fluxo da narrativa (Figura 11). A imagem

mostra o filho olhando para Benedito, com algumas cartas na mão. O pai, como na cena

embaixo da árvore, está com um caderno no colo, escrevendo.

Em um primeiro momento, podemos perceber, através da composição e seleção de

cores, que Brás e Benedito constroem, na cena, uma dinâmica complementar. Apesar de toda

a cena carregar uma luminosidade amarelada, por ser a fonte de luz uma vela, o filho é

apresentado com uma blusa verde, enquanto o pai, mais ao canto direito, está com uma

camisa vermelha. A distinção do plano de expressão corrobora com a dicotomia estabelecida

entre as duas personagens. Paralelamente distantes, estão ligadas, ao menos nesta cena, pelo

círculo cromático.

Vale ressaltar, neste momento, a aproximação do discurso do foco narrativo com o

discurso proferido por Benedito nas cenas anteriores. No último quadro da página 118, o foco

narrativo alude a alegoria da água: “... enquanto a água jorrava livremente lá fora.” (MOON &

BÁ, 2011, p.118).

O que nos parece é que a chuva, jorrando livremente para fora, se compara com o

fluxo das palavras de Benedito. A água que jorra livremente lá fora são as ideias de Benedito,

enquanto ali dentro, com a família, no caderno que anota, as palavras são selecionadas,

controladamente descritas.

O poder dos discursos de Benedito se evidencia para além da situação narrada, eles

influenciam a vida de Brás e a própria estrutura de Daytripper. Se adotarmos a leitura de que

toda a seleção das memórias, bem como a ordem dos saltos e obituários, é feita pelo próprio

Brás, muito do que parece enigmático e sem conexão, desvela-se como parte de um todo

construído pela recepção do protagonista dos ensinamentos com o pai.

Desde a cena em que conversam em um restaurante, no capítulo dois, Benedito já

sugere a Brás uma espécie de seleção de momentos da vida: “Momentos que nunca vai

esquecer” (MOON & BÁ, 2011, p.66). A sugestão vem de um discurso sobre como

procuramos o amor, mas Benedito fala ao filho incluindo a palavra vida.

Quanto à seleção narrativa, a indicação do pai é de que é preciso economizar a escrita,

assim como a água. O exercício da reinvenção da vida de Brás passa pelo crivo de uma

seleção pessoal, em que diversos momentos relevantes (como uma viagem marcante, o

93

primeiro beijo, o nascimento do filho e morte do pai etc.) são revividos capítulo a capítulo,

reincidindo com o aspecto da morte nos seus desfechos.

Além disso, a alegoria com a água se repete na imagem de Iemanjá, figura religiosa

ligada à fertilidade através das águas. No primeiro capítulo, temos uma menção a ela e às suas

oferendas, mas é no capítulo do sonho que ela tem uma significação maior.

Logo no início do capítulo, ele está diante da divindade, em um barco, um de frente

para o outro. (Figura 12) O narrador adianta que Brás já conhece aquele lugar e que já sabe o

que ela irá dizer: “Bem-vindo Brás. Esta é a sua vida. [...] Você é esse barco, flutuando num

oceano sem fim.” (MOON & BÁ, 2011, p.205).

A aproximação entre a vida de Brás e o mar em que os dois flutuam expõe o caráter de

continuidade da vida, isto é, da água que jorra “lá fora”. A seleção de Brás, dos momentos

sugeridos pelo pai, é retirada das suas várias experiências de vida, selecionadas como se

raciona a água que pode ser aproveitada posteriormente.

Outro momento em que a água se destaca na obra é quando, ainda no sonho, ele

conversa com a esposa durante o café da manhã. Ele conta para ela sobre o diálogo com

Iemanjá e ela pede que ele se concentre na vida real: “Mas se você ficar aí só olhando pra ela,

tudo vai afundar. Eu não posso cuidar de tudo enquanto você fica na cama.” (MOON & BÁ,

2011, p.209). Enquanto ela diz isto, a água da pia inunda todo o cômodo em que se

encontram.

A contingência estabelecida entre as duas formas sígnicas é representativa no

entrelaçamento narrativo. A água já fora apresentada em sua objetificação pragmática, na sua

relação alegórica com a escrita e com a vida. Neste momento, parece reiterar o conceito de

vida ligado a ela e é fortalecida pelo foco narrativo. Tudo afundaria se Brás não retomasse o

controle das coisas, se ele não assumisse seu papel diante das escolhas que deve seguir no

projeto do seu próprio ser.

A temática da água permanece sendo atualizada ao longo da trama. No fim do capítulo

Sonho, quando Brás senta para escrever o próprio obituário, é diante do mar que ele o faz.

Acompanhado das carpas, a água que antes era uma representação da seleção dos momentos,

agora significa a própria morte, ou o próprio mar diante do qual ele escreve este obituário.

Ademais, o motivo da água se repete uma última vez na cena final da narrativa. Após

ler a carta do pai, que até então lhe era desconhecida, Brás, em um ritual de despedida, lança

flores sobre o mar, enquanto permanece ali, até o fim da história.

94

Este ato simbólico é expressivo se considerado o aspecto artrológico, de

autorreferencialidade, da narrativa. A água, tão referenciada, teve seu discurso fundamentado

na fala de Benedito e é justamente em homenagem a ele e ao seu legado, presente na carta,

que Brás dedica os momentos finais.

Todos estes momentos parecem nos certificar de que o pai, para Brás, é fundamental

na sua reconstrução do passado e na identificação do seu próprio Dasein, posto que não

apenas a água é o elemento reutilizado pela narração, mas também a árvore, apelidada de

Aurora por Benedito.

Este mesmo sentimento, de conexão com o pai no passado e a influência dele no ato

de escrita sobre si mesmo, pode ser percebido na carta de Kafka para o seu pai. As lembranças

da sua ligação com a figura paterna na infância agem sobre o modo com que escreve essas

recordações: “Nesses momentos a gente ia se deitar e chorava de felicidade, e chora ainda

agora enquanto escreve.” (KAFKA, 2013, p.370).

Todo o esforço de regressão de Brás parece ser influenciado pelos elementos que mais

possuíam significação na sua formação identitária. O pai, neste processo, é de extrema

relevância, aparecendo tanto no plano expressivo, como personagem de várias cenas, como no

plano de conteúdo, através dos seus discursos e falas.

A representação da árvore também aparece como relevante no desenvolvimento da

narrativa. O local onde Aurora está plantada, tão importante para o pai, é cenário de outros

momentos, sejam eles representados na narração visual ou verbal. Nas cenas em que Brás

aparece observando a família e o narrador apresenta parte de suas indagações sobre os

familiares, o caráter polissemiótico se expande para a genealogia e para o aspecto temporal da

vida.

Um dos quadros mostra a imagem da árvore predileta de Benedito, acompanhando o

discurso introspectivo do narrador: “Enquanto a semente da árvore genealógica começava a

germinar e fazer sentido na sua cabeça... [...] .. as estações mudavam dentro dele.” (MOON &

BÁ, 2011, p.121). A árvore assume semanticamente outra significação. A família é trazida

para a centralidade da imagem e passa a representar parte relevante para o ser de Brás. Além

do aspecto genealógico, há a noção da passagem do tempo, caracterizada pelo close no

arrastar das folhas da árvore pelo vento. As estações que mudavam dentro dele alude à visão

de folhas que são carregadas.

95

A aparição da árvore não se restringe apenas à representação da mudança de Brás no

âmbito familiar. Aurora também foi testemunha do primeiro beijo do protagonista que

acontece acima das suas raízes. (Figura 13) A cena enfatiza o local, enquanto passeia pelos

closes das mãos e da boca do casal.

Convém nos atentarmos para a organização da cena e a sua composição temporal. A

imagem que abre a página mostra Brás se apoiando na raiz e se abaixando para beijar a

menina. Os quadros que seguem fornecem uma leitura atemporal do momento. A cena é uma

só e os passeios entre quadros e descrição (sobre a brevidade do beijo) se situam para além do

momento. São discursos sinestésicos que movimentam a cena congelada.

Os quadros finais são importantes para percebermos a seleção narrativa apresentada

pelo capítulo. Brás aparece observando a menina correndo, enquanto é descoberto pelo primo

que o procura durante brincadeira de pique esconde. No entanto, o foco narrativo dá conta de

esmiuçar o sentimento de Brás com relação ao acontecido: “E não importa o que acontecesse

[...] ele nunca esqueceria daquele momento.” (MOON & BÁ, 2011, p.125).

A experiência vivida por Brás embaixo da árvore do pai é um dos momentos que

passaram pelo crivo do seu racionamento. A cena o marcou, assim como o marcou a árvore e

a metáfora com a água. Seu pai estava presente em vários momentos da sua reconstrução, seja

pela sua presença imponente como escritor, seja pelos seus discursos e gostos que marcaram o

protagonista como, por exemplo, no hábito de fumar, na ocupação de escrever e até na forma

de lembrar o primeiro beijo.

A árvore aparecerá mais duas vezes de maneira marcante. Uma delas se dá enquanto a

família sai do sítio, enquanto o foco narrativo lembra da força daqueles momentos para Brás:

“Lembranças que levariam com eles pelo resto da vida.” (MOON & BÁ, 2011, p.127).

A última aparição da árvore se dá em um importante diálogo de Brás com o filho e

com o pai durante o sonho, no capítulo nove. Brás encontra Benedito e o neto sentados sob a

árvore, enquanto o avô lê uma citação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas

(1997), de Machado de Assis. Toda a cena trata dos paradoxos entre loucura x sanidade e vida

x morte.

Após encontrar-se com os dois, Brás dialoga com o filho sobre uma possível história

que, de acordo com Benedito, só poderia ser contada pelo protagonista. Brás, então, expõe

para o filho o tema da história: “... acho que é uma história sobre morte” (MOON & BÁ,

2011, p.219). O filho refuta, dizendo não gostar do tema, ao passo que ele responde

96

comparando a vida a um livro, que, de acordo com ele, sem o fim, não proporciona o deleite

do desenvolvimento.

O diálogo com Miguel termina quando ele convida o filho para ir se divertir enquanto

ele conversa com Benedito. É interessante perceber que o encontro das gerações é

possibilitado pelo espaço onírico em que se encontram e que ambos os diálogos discorrem

sobre a existência e espaços ocupados pela vida e pela morte.

O papel de Miguel na vida de Brás também é essencial para a percepção do seu modo

de ser-com os outros. A relação do protagonista com Miguel e com Ana é detalhada no

capítulo oito. Brás não está presente fisicamente em nenhum momento, mas mesmo assim,

através do modo de ser-com sua esposa e filho, ele é incluído na narrativa.

A capa do capítulo já retrata o mote dos momentos que se serão expostos

posteriormente. (Figura 14) A imagem apresenta Ana e o filho Miguel sentados na cama que

parece ser do menino. A coloração da cena é construída por um degradê de tons que partem

desde o chão até a sombra de Brás, que cobre do centro ao topo da página. A coloração varia

de cores quentes, em tons de magenta, e vai até uma coloração esverdeada, contrastando

friamente.

Essa mudança gradativa se intensifica na medida em que a cena se aproxima da fonte

de luz, que é caracterizada pela forma de Brás. Se adotarmos a categoria semântica presença x

ausência, no plano de conteúdo, poderíamos comparar com a dicotomia estabelecida pelo

plano de expressão cor quente x cor fria.

O plano de expressão se altera tematicamente na medida em que se distancia ou se

aproxima de Brás. Se, conforme vimos, a coloração se torna fria nesta aproximação,

poderíamos associar as cores frias com a presença de Brás, ao passo que quanto maior a

distancia das cores quentes de Ana e Miguel, mais ausente Brás permanece. As cores frias

remetem a sua presença porque esta se liga à sua morte no capítulo. Mesmo que evocado

como ser-com, é na atualização pelo Dasein do filho e da mulher que ele pode ser

personificado, pois sua presença é caracterizada pelas cores frias, ou, tematicamente falando,

pela morte.

Sua presença e sua ausência são evidenciadas em diversos momentos do capítulo.

Desde a cena do café da manhã, até trechos que apresentam Ana no trabalho e Miguel na

escola, Brás é citado constantemente pelo narrador. Um desses momentos pode ser percebido

97

na escola, quando Miguel é representado refletindo sobre a possibilidade de levar o pai para

até a escola para contar para a turma sobre sua profissão.

Na cena, em um dos quadros, Miguel retira o livro da mochila. Nos quadros seguintes,

Miguel está sozinho, com o livro do pai na mãos, cujo título é Olhos de seda. Alguns colegas

da escola aparecem e o insultam: “O papaizinho esqueceu de te buscar? [...] Ele nem gosta de

você. Nunca escreveu um livro sobre você.” (MOON & BÁ, 2011, p.187). Mesmo com as

provocações, Miguel não responde e permanece em silêncio.

Mas é no foco narrativo que as respostas e indagações do menino quanto ao pai são

apontadas.

Miguel nunca se importou em saber no que os pais das outras crianças trabalhavam. [...] Ele sabe a profissão do seu pai. [...] Ele está ansioso para trazer seu herói para escola e mostra-lo para todos. [...] O gato conhece todos os livros do pai, mesmo sendo jovem demais para ler ou entendê-los. [...] Ninguém o conhecia melhor de que seu filho orgulhoso. (MOON & BÁ, 2011, p.186-187).

Toda a cena demonstra o valor de Brás para o menino. Ele orgulhava-se da profissão

do pai, conhecia todos os seus escritos e o considerava um herói. O apreço que tem pelo pai é

similar ao que Brás sentia por Benedito, inclusive com um misto de desconfiança e raiva: “Ele

sente sua falta. [...] Alguns dias mais do que outros.” (MOON & BÁ, 2011, p.187).

O conflito das gerações, ou seja, entre pai, filho e neto também compõe o plano de

conteúdo do capítulo. Em um diálogo entre Ana e a sogra, elas discutem sobre como o cigarro

de Benedito e de Brás marcavam os espaços que eles circulavam. Enquanto este diálogo

ocorre, a narração mostra Miguel passeando pelo escritório do avô.

A sobreposição do diálogo sobre o passeio do menino se situa para além da artrologia

restrita daquele momento. Ela se estende dialogicamente por toda a artrologia geral da obra.

(Figura 15) Miguel caminha pelo escritório, coloca a mão sobre a mesa do avô. Na mesa, o

romance de Brás repousa próximo a máquina de escrever. O diálogo das duas mulheres sobre

a marca do cigarro ecoa por sobre as imagens: “Não dá pra não notar. [...] Perfeita para pai e

filho. [...] e quando ele me visita e acende um continental... [...] é como se o Benedito

estivesse ali, bem na minha frente.” (MOON & BÁ, 2011, p.189).

Ao comparar a presença de Brás com a de Benedito, um terceiro elemento é

apresentado visualmente: Miguel. Se Brás, através do cigarro e do hábito de escrita, se

compara ao pai, é em Miguel que a “herança” dos hábitos parece desaguar naquele momento.

98

O menino olha para a foto do avô, enquanto a fala da avó referencia a saudade que sente do

marido.

O foco narrativo e a narração dos quadros apontam para a junção dos três em um único

momento. Miguel, presencialmente, no escritório atualiza a presença do avô, pelo retrato, ao

passo que Brás, além de estar presente nos diálogos sobreposto às imagens, tem seu Dasein

atualizado pelo seu livro, em cima da mesa. Miguel ocupa-se dos elementos ali distribuídos,

mas também age sobre o modo de ser-com com o pai e o avô, mesmo que não o tenha

conhecido.

Outro momento em que o modo de ser-com de Brás é representado para além da sua

presença física, se dá na inferência narrativa do longa metragem O rei Leão13. O filme,

inspirado na peça Hamlet, de Shakespeare, apresenta Simba, um pequeno leão que perde seu

pai, Mufasa, numa trama de traição de Scar.

A inferência não poderia ser mais significativa, uma vez que a cena citada apresenta

Simba no momento em que descobre o pai morto. (Figura 16) A imagem, dentro do contexto

da narrativa, potencializa outras formas de relação, uma vez que o leitor já conhece os

caminhos habituais da narrativa, isto é, assim como Brás morre no fim dos capítulos

anteriores, o fim deste capítulo parece caminhar para o mesmo desfecho.

No entanto, Ana e Miguel desconhecem a trama e agem normalmente, ela lavando a

louça e ele apreciando o filme. A inserção dos frames do filme no desenvolvimento da

discussão “pai e filho”no capítulo é importante na medida em que atravessam-se os discursos

diegéticos da animação e a atrologia restrita da página.

Ao chamar pelo pai, a fala de Simba, “Pai, vem. Vamos pra casa” (MOON & BÁ,

2011, p.191) estabelece uma conexão com a desculpa de Miguel de que o pai o deixaria vendo

televisão até tarde: “O papai ia deixar eu assistir” (MOON & BÁ, 2011, p.191). A fala da

mãe, no entanto, dá um ultimato que serve para as duas colocações: “Seu pai não está... Agora

faça o que eu digo e vá dormir!” (MOON & BÁ, 2011, p.191).

É evidente que a fala de Ana refere-se somente a Brás. Mas, dentro da construção

artrológica da narrativa, a aparição da fala sobre a cena em que Simba deixa de chamar o pai e

deita ao seu lado é crucial para o desenvolvimento da relação entre Miguel e Brás. Assim

como Simba, Miguel precisa aceitar a morte de Brás e a sua não presença, anunciada pela fala

de Ana, significa a facticidade natural da existência de qualquer ente.

13 No original The King Lion (1994), de Roger Allers e Rob Minkoff.

99

A proposição da cena antecipa o diálogo entre Brás e Miguel durante o sonho, no

capítulo nove. O menino tem de aceitar a ausência do pai, tanto na ordem de ter que ir dormir

quanto na morte, ilustrada pela aparição de O rei Leão.

No diálogo do sonho, Brás ensina ao filho a importância de aceitar a morte como parte

da vida. Aprendizado que compartilha com o filho, mas que recebe do pai, nos últimos

instantes da narrativa. Na retomada da sua experiência de vida, Brás insere a morte como

elemento fundamental da relação entre ele e seu filho, assim como foi fundamental na

construção do seu Dasein e no seu modo de ser-com Benedito.

Há outra cena em que sua presença é evocada. O nascimento de Brás, narrado no

quarto capítulo, é caracterizado como um milagre pela mãe. Este acontecimento é contado por

Ana ao filho, durante um blecaute na casa. Ela conta que Brás nasceu sob condições

parecidas, enquanto um blecaute acontecia no hospital, e que ele, de acordo com a avó,

“nasceu para brilhar” (MOON & BÁ, 2011, p.195). Miguel, por outro lado, descreve a sua

relação com o acontecimento naquele momento: “Mas ele não tá aqui, e tá escuro e eu tô com

medo.” (MOON & BÁ, 2011, p.195).

A não presença do pai se contrapõe ao seu nascimento milagroso. Para Miguel, o

blecaute ainda estava lá e seu pai não, independentemente da sua relação “milagrosa” diante

de acontecimentos parecidos. O filho, mais uma vez, tem de aceitar a ausência do pai, mesmo

quando numa situação simples como um blecaute.

Ana diz para o menino ficar calmo, alegando que Brás voltaria em breve. No entanto,

as cenas seguintes revelam que algo fatídico acontecera. Uma série de espaços são

apresentados vazios, figurando apenas objetos que fazem menção à Brás: sua máquina de

escrever, o escritório em que costumava escrever, a cozinha em que deixava os bilhetes para

Ana; toda a ambientação visual favorece a pequena narrativa lida por Miguel na escola, que se

sobrepõe a narração pictórica:

“Porque você viaja tanto? Perguntou o homenzinho” [...] “Quando estou longe de casa, lembro do quanto tenho saudade da minha família.” [...] “E quando finalmente retorno...” [...] “...eles sempre se lembram do quanto me amam.” [...] Essa foi a última carta que o meu pai me mandou. Ele era escritor. (MOON & BÁ, 2011, p.197-198).

Convém estabelecer um paralelo entre a pequena narrativa e o título da obra,

Daytripper, o qual alude à ideia de viagens realizadas por Brás ao longo de sua vida. Sejam

viagens temporais ou de modos do seu ser, elas são sempre realizadas na sua conexão com os

100

outros e com a sua morte. A nosso ver, a carta sintetiza um dos movimentos realizados por

essas passagens de recapitulações do passado. Estar longe de casa, seja no espaço ou no

tempo, significa, para Brás, lembrar que tem saudade de sua família.

A descrição de Brás para a turma de Miguel se dá pela escrita, isto é, o aspecto que

caracteriza o protagonista está ligado à sua profissão. A pequena história contada por Miguel

também sintetiza o estado dele e de sua mãe com relação ao pai. Enquanto a história descreve

o retorno da personagem, ela lembra a família do amor que sentem: Brás não voltará. O

contraste entre as duas situações fortalece o caráter subjetivo da narrativa, que influencia o

modo de Miguel ver o pai.

A descrição de Miguel do pai é marcada pelo verbo ser no passado: “Ele era escritor”

(MOON & BÁ, 2011, p.198). Ao conjugar o verbo no passado, o ser de Brás é dado como

morto, enquanto, para Miguel, sua presença é ontologicamente ligada a si mesmo: “[...] meu

pai me mandou”. (MOON & BÁ, 2011, p.198). O pronome possessivo permanece indicando

Brás como seu pai, mesmo depois de morto, mesmo com o fim do Dasein.

O conflito presente no capítulo oito se conecta com a cena, já descrita, do encontro de

Brás com o filho durante o sonho. Da mesma maneira como a carta resumiria os sentimentos

de partida, Brás desenvolve uma interação entre narrativa e vida. Ao comparar a vida a uma

história, ele adverte sobre o papel do fim para o todo do livro. Este mesmo papel é o que ele

enfrenta, também, na conversa com Benedito, no fim do sonho.

O diálogo é bastante singular e carrega uma sinopse significativa para o

entrelaçamento de Daytripper. Brás e Benedito conversam sobre as escolhas do filho e sobre a

importância de Brás ler a sua história até o fim. O pai, ao que parece, é primordial como

motivação para que o protagonista siga no sonho que culmina na escrita do próprio obituário.

A nosso ver, Benedito quer auxiliar o filho a assumir a morte como parte de sua vida.

Sua motivação, que surtira efeito desde seus discursos sobre guardar na memória os melhores

momentos e sobre racionar a água que jorra no pensamento, pode ser também encontrada

tanto na sua fala, no sonho, quanto na carta deixada por ele para Brás no dia do nascimento de

Miguel.

A carta, que é lida nos últimos instantes da narrativa apresentada em Daytripper, fala

sobre a liberdade que Brás tem de aceitar que ter um filho é assumir o próprio Dasein e aceitar

a condição daquele que nasce de seguir o próprio percurso.

101

O pai está presente até o último momento de sua vida, mas atualizado pelo Dasein de

Brás. Ele não está lá, em carne e osso, mas sobrevive pela subjetividade do filho. Sua

presença pode ser percebida em um momento, perto do fim da narrativa, em que Brás

conversa com o filho Miguel. O filho o está chamando, mas ele parece olhar, distraído, para

uma árvore presente em seu quintal.

Abaixo da árvore, Brás enxerga o pai fumando. O reforço da fala de Miguel cria uma

interessante dualidade entre as gerações. A fala aparece solta pelo quadro, sugerindo que estas

perguntas podem estar vindas do próprio protagonista. Enquanto Miguel chama pelo pai, Brás

parece questionar Benedito dentro da mesma situação, evocando significados distintos para as

mesmas perguntas: “Já foi suficiente? [...] Está satisfeito? [...] Pai?” (MOON & BÁ, 2011,

p.239).

A ambiguidade do chamado pelo pai parece sugerir que Brás talvez estivesse

questionando Benedito, indagando-o sobre o relacionamento dos dois e exigindo dele uma

aceitação quanto à vida do filho, que agora já está com 76 anos. Além do fator etário, Brás

carregava o peso do câncer no cérebro.

O diálogo com Miguel após esta cena é exemplar para percebermos a autorreflexão de

Brás. Ele conta para o filho sobre a situação da sua doença e o filho o questiona sobre ainda

continuar fumando, mesmo sabendo da saúde debilitada. Brás o responde através de um

questionamento sobre aquilo que herdou de Benedito: “ [...] Isso faz parte de quem eu sou. É

como a escrita. [...] engraçado. [...] Dois vícios... duas paixões que eu dividi com o seu avô.

Cheguei a achar que fossem maldições. [...] agora vejo como minha herança.” (MOON & BÁ,

2011, p.240).

Brás parece assumir o caráter identitário das remissões feitas pelo cigarro e pela

escrita. A projeção do seu ser está ligada aos elementos adotados por ele durante as escolhas

da vida e estas projeções estavam em conexão com a vida e escolhas do próprio pai.

A sua fala, no entanto, sugere que ele relutava em aceitar estes aspectos como

positivos. Encarar como maldição, poderia induzir a ocupação dos objetos por vias de uma

não liberdade, como se suas escolhas não fossem suas, fossem programadas para estarem

ligados a sua vida.

Mas é fundamental para Brás a aceitação do pai como presença dentro das suas

ocupações. É um fator importante que repercute em suas falas ao filho: “Carregamos nossa

família dentro de nós. É quem nós somos.” (MOON & BÁ, 2011, p.241). Carregar Benedito

102

dentro das ocupações por ele realizadas, na escrita, no cigarro, no papel de pai, faz parte da

construção e projeção do seu Dasein. Parece-nos que Brás reconhece a natureza de ser-com do

seu próprio ser.

Sua libertação quanto a sua relação com o pai toma forma na sua ocupação pela carta

do pai. Ela resume a relação dialógica com Benedito, que continua agindo sobre as escolhas

do protagonista, mesmo que apenas atualizado ontologicamente pelo ser do filho.

A carta inicia com uma menção ao nascimento de Miguel: “Querido filho, [...] você

está lendo esta carta porque hoje é o dia mais importante da sua vida. [...] você está prestes a

ter o seu primeiro filho.” (MOON & BÁ, 2011, p.244). É significativo o motivo da carta e a

sua relação com o passado de Brás com o pai. Benedito fora apresentado pela narrativa como

um pai ausente e, em certa medida, negligente. Era passível de esquecer o aniversário do filho

e frio em alguns momentos de conversa com o filho quando criança.

No entanto, a carta apresenta um Benedito ligado não apenas a relação familiar, mas

ligado profundamente ao filho. Além de chamar o filho de querido, ele nomeia o nascimento

de Miguel como o dia mais importante da vida de Brás, o que sugere a relevância do

protagonista na sua vida.

A referência à relação dos dois não se interrompe apenas no início da carta. Toda ela

relata a importância do filho para a existência do pai:

Isto significa que a vida que construiu com tanto esforço, que você conquistou, que você fez por merecer, finalmente chegou ao ponto em que não lhe pertence mais. [... ] Este bebê será o novo mestre da sua vida. [...] Ele é a única razão da sua existência. (MOON & BÁ, 2011, p.244).

A revelação de Benedito por meio desta carta soa quase incompatível com seu

comportamento ao longo da trama. A visão de Brás do pai não parece ser a de que a sua

existência está atrelada ao pai como maestrina. Ao contrário, ele sempre vira o pai como

alguém neutro com relação a sua vida, algo que está mais aparente no primeiro capítulo da

narrativa. Porém, é justamente neste paradoxo que se sustenta o discurso de pertencimento no

Dasein do outro presente na carta.

A máscara da indiferença e neutralidade de Benedito se converte em uma atenção

constante para que a liberdade do projeto de ser do filho não sofra interferência do Dasein do

pai.

103

Você vai entregar sua vida a ele, seu coração e sua alma, pois quer que ele seja forte... [...] corajoso o bastante para tomar todas as decisões, sem você. De forma que, quando ele crescer, não precise mais de você. (MOON & BÁ, 2011, p.245).

Neste trecho, Benedito revela seu modo de ser-com o filho. Este modo se baseia na

emancipação de Brás, sugerindo que seu intuito era o de fortalecer o menino para que não

necessitasse mais da sua presença diante das suas escolhas.

Convém ressaltar o aspecto complementar entre os signos presentes na citação acima.

Enquanto a carta de Benedito discorre sobre o crescimento do filho de maneira livre, a

imagem apresenta Brás olhando para o lado, como se refletisse sobre o que lê. Se

considerarmos que a carta fora escrita quando Brás ainda era jovem, ela não consideraria a

disparidade temporal com que seria lida. Ao ler já idoso, a última frase potencializa o efeito

do texto, concretizando o desejo do pai. Ele já estava crescido, já havia tomado as decisões da

sua vida e não precisaria mais do pai.

É interessante enaltecer o aspecto das ocupações dos objetos em torno de Brás

enquanto lê a carta. Algumas carpas orientais aparecem em uma árvore, o mar à sua frente,

uma pipa no céu; vários elementos já apresentados por Daytripper são retomados neste

momento. Se considerarmos a reescrita como elemento fundamental de toda a narrativa, a

inversão possibilita o mesmo caminho, isto é, esta cena, talvez, seja quem influenciou todas as

referências anteriores. Brás ocupa dos objetos enquanto lê a carta e enquanto reescreve os

momentos da vida.

A fala do pai também evoca o modo de ser-para-a-morte de Brás. Toda sua

argumentação quanto a tentativa de fortalecer o crescimento do filho se respalda neste modo

de ser, ou seja, para assumir o fim de si mesmo e a incapacidade de permanecer sempre ao

lado do filho para suportá-lo.

Isto porque você sabe que um dia você não estará mais lá. [...] É apenas quando você aceita que vai morrer que consegue realmente se libertar... [...] e aproveitar a vida ao máximo. [...] Este é o grande segredo. [...] Este é o milagre. (MOON & BÁ, 2011, p.246).

O modo de ser-com, para Benedito, está estritamente ligado com o modo de ser-para-

a-morte. Parece-nos que, para ele, a única maneira de se libertar das formas de preocupação

errada quanto aos outros Dasein é na aceitação da morte, i.e., é na condição pessoal da morte,

que se consegue reconhecer a individualidade de cada Dasein e, consequentemente, do dasein

104

do filho. O mesmo acontece com Brás ao morrer em cada capítulo. Além de valorizar os

momentos de sua vida, também reconhece o Dasein do pai e sua importância em sua vida.

Convém ressaltar a menção ao adjetivo relacionado a Brás durante a narrativa,

sobretudo nas narrações da sua infância. Conhecido como “milagrinho” pela sua mãe, Brás

era assim referenciado pelo seu nascimento incomum, durante um blecaute do hospital. Ao

mencionar a maneira como o filho era qualificado, Benedito estabelece um comparativo. O

milagre, de acordo com a carta, é aceitar a própria morte. Os extremos da vida de Brás se

conectam no discurso do pai.

Os momentos finais da carta são essenciais para a temática de toda a trama. A carta

finaliza com um convite a aceitação da própria morte: “É apenas quando você aceita que vai

morrer que consegue realmente se libertar...”. (MOON & BÁ, 2011, p.247). A artrologia

restrita apresenta Brás na praia, acendendo três velas e se dirigindo para a água, com algumas

flores na mão.

As cenas seguintes dão continuidade ao ritual desenvolvido pelo protagonista. Brás

lança sobre o mar as flores que estavam em suas mãos, ao passo que a carta permanece sendo

enunciada nos recordatórios: “... e aproveitar a vida ao máximo. [...] Este é o segredo. [...]

Este é o milagre”. (MOON & BÁ, 2011, p.248). Há uma espécie de redundância no discurso

da carta na repetição das palavras “segredo” e “milagre”, o que enaltece o caráter enfático do

tema e da relação entre Brás e esta aceitação da morte.

Os momentos finais da narrativa mostram a esposa Ana deitada em sua cama. Alguns

dos elementos citados o longo da graphic novel são retomados na descrição visual do

ambiente. As carpas aparecem novamente, assim como a caixa de música com a boneca, a

máquina de escrever, um cartaz do Rio de Janeiro – referência ao avião que caíra em São

Paulo anos antes; todo o cenário recompõe trechos da experiência de Brás, como se fizessem

parte da reconstrução da sua experiência e da sua memória.

O término da carta tem um tom fúnebre se considerado sob o ponto de vista da morte

de Benedito. No entanto, é justamente sobre esta situação que ele evoca, no jogo existencial

entre pai e filho, o caráter individual de cada um, a aceitação pessoal da sua condição finita:

Sua vida já não está mais nas suas mãos... [...] assim como a minha deixou de estar, desde o dia em que você nasceu. [... ] Escrevo esta carta para lhe parabenizar ... [...] e para admitir que você não precisa mais de mim. (MOON & BÁ, 2011, p.249-250).

105

O paradoxo da liberdade ofertada pelo pai reside na relação entre os dois. Aceitar a

própria morte é viver sob a libertação do filho, na medida em que se vive para fortalecê-lo,

isto é, livrá-lo da necessidade do pai.

Benedito reconhece que agora que Brás também é pai, saberá viver para tornar o

filho forte o que, em contrapartida, significa reconhecer-se um ser-para-a-morte. Parece-nos,

que é este o motivo do ato final do protagonista na narrativa. Ele vai até a praia, lança as

flores sobre as águas, elemento constantemente referenciado ao longo da história e despede-se

do pai.

Mas, além da despedida do pai, o que se infere pelo momento vivenciado por Brás no

último capítulo é de que aos setenta e seis anos, com câncer no cérebro e com o filho já adulto

vivendo a sua própria vida, o protagonista tem de encarar a si mesmo, isto é, seu Dasein, perto

do outro extremo da vida, perto do milagre do fim.

O ritual conduziu-lhe para um adeus de si mesmo, como quem se despede da própria

vida. O que nos parece, é que este é o movimento realizado por Brás ao longo da narrativa e,

nesse processo, os obituários cumprem um papel primordial para o reconhecimento de um ser

que se percebe para-o-fim.

5.2 BRÁS E O MODO DE SER-PARA-A-MORTE

Toda a cena de morte apresenta-se como flashforward do fim do capítulo. Logo no

primeiro capítulo, após um pequeno prólogo, a imagem salta para uma manhã em que Brás lê

um jornal. O narrador anuncia que Brás tem um misto de sensações ao ler no jornal sobre uma

homenagem que acontecerá para o seu pai. As cenas seguintes descrevem sua tentativa de

esquecer os momentos em que seus pais ignoravam seu aniversário. A mãe parece repetir o

feito quando liga para o protagonista e não lhe dá parabéns.

Todo o capítulo descreve as tentativas de Brás de se esquivar de conversar com a

mãe, que o lembra sobre a homenagem do pai, e com a esposa, que lembra do seu aniversário.

É com Jorge, seu amigo, que ele trava uma conversa mais longa. O diálogo dos dois é de

suma importância para se percebermos sua inquietação com a profissão, com a escrita, e com

a própria vida: “Eu queria escrever sobre a vida, Jorge, e olha pra mim agora... [...] eu só

escrevo sobre a morte” (MOON & BÁ, 2011, p.24).

Sua indignação com o rumo da própria vida e a sua constante vinculação com a

morte simbolizam o esforço de Brás de encontrar um sentido para sua existência e a

106

independência do seu próprio ser, expresso principalmente na sua tentativa de ignorar suas

semelhanças com o pai e o seu legado de ser escritor: “Desligar-se do resto do mundo e

escrever. [...] Esquecer que a máquina de escrever foi presente de seu pai. [...] Esquecer que

aprendeu a fumar com sua mãe, e que fuma a marca preferida de seu pai. [...] Esquecer que

dia é hoje. (MOON & BÁ, 2011, p.19).

Brás manifesta sua constante tentativa de mapear seu próprio ser, encontrar a sua

individualidade, seu Dasein. A homenagem ao pai, os hábitos herdados dos seus progenitores,

seu aniversário, seu romance, trabalho, em suma, seu estado de relação com o cotidiano o

impedem de encontrar este estado de abertura para o ser. Ele luta para fugir da distração

causada pelo mundo na busca do seu ser, ao mesmo tempo em que percebe a constante

confluência do seu “Eu sou” com o “Tu és” da presença dos outros entes ao seu redor.

O que nos é revelado é a sua tentativa ontológica de encontrar a si mesmo, que o

motiva a tantos questionamentos sobre quem é, quem são os outros em relação a si e o que

significa viver da escrita dos obituários.

Os obituários representam uma importante forma de hipercodificação que são

utilizados para a revelação desta investigação do Dasein sobre o ser. O uso recorrente dos

obituários, ao se distinguirem da voz do foco narrativo, apresenta uma ruptura na noção

tradicional de recordatório e serve como um preceito novo da regra geral da obra, ou seja,

como elemento de atualização do desvio da norma e segmentação do próprio uso recorrente

de narrador. Os obituários criam uma aplicação particular dos usos do foco narrativo.

A presença dos obituários manifesta-se como as tentativas de que o ente de Brás

lança mão para alcançar as possibilidades do seu ser na natureza do Dasein de poder-ser e

encontrar, neste atravessamento de possibilidades, respostas, mesmo que figurativas, do seu

ser. A morte se apresenta como possibilidade da impossibilidade, mas agora se apresenta

acessível, tornando a existência finita.

O que temos acesso, através da narrativa, são os momentos de encontro de Brás com

a clareira que lhe revela as possibilidades do seu próprio ser. Seu Dasein, no movimento de

ente que se questiona sobre si mesmo, nos aparece em ocasiões distintas em que suas

possibilidades são apresentadas e o seu ser é inquirido, revelando a angústia que advém da

própria condição do Dasein e da experiência com o fenômeno da morte.

No entanto, o encontro com suas possibilidades ontológicas só poderia se revelar na

sua condição de ser-no-mundo. Nisto residem os percursos narrados da sua relação cotidiana,

107

seja como escritor de obituários e de romances, ou como pai, como marido, amante, filho etc.

Os objetos, as funções e os outros lhe são indispensáveis para a substância ôntica do Dasein e

estes lhe ajudam no encontro com o próprio ser.

Em cada capítulo, algum fato interfere na vida de Brás e de alguma maneira o seu ser

é indagado, levando-o a questionar sobre si mesmo. Podemos perceber este inquirir o ser no

fim do capítulo dois quando nos é apresentada sua morte em Salvador.

Todo o capítulo descreve suas aventuras na terra baiana: a beleza natural

compartilhada com o amigo, a cultura local com os seus atributos religiosos e a paixão vivida

com uma mulher que conheceu em uma viagem. A artrologia restrita do fim do capítulo

mostra Brás em um barco com um homem desconhecido. Ambos estão ali para participar de

uma celebração a Iemanjá, em que são levadas ofertas através do mar. Brás questiona a

ausência da mulher com quem tivera um encontro no dia anterior, já que ela é quem o

convidara para estar ali. A resposta, no entanto, é mais reveladora do que aparenta ser: “Vocês

não são um” (MOON & BÁ, 2011, p.56).

A marca semântica de “não-um” constrói a temática do restante da artrologia restrita

do capítulo e, como solidariedade contextual, favorece a construção imagética da separação

entre Brás e a jovem. O homem no barco retira o laço que prende dois bonecos em uma

oferenda enquanto enuncia as sentenças e é na construção da artrologia que se manifesta o

discurso divisor e de particularização do ente de Brás.

O mesmo argumento é expresso através da cor da cena. Ela também manifesta uma

divisão clara no plano de expressão de toda a página. Se adotarmos a redução gradativa da

tonalidade quente presente no céu como um elemento do plano de expressão que carrega uma

marca de sentido, perceberemos que a dicotomia estabelecida pela categoria semântica

solidão x par conecta-se com a categoria cores quentes x cores frias do plano de expressão

dos códigos visuais presentes nas três últimas páginas.

Gradativamente os nuances de vermelho vão se diluindo e as cores frias tomam conta

de quase todo o quadro, ao passo que é na redução drástica dos tons de magenta que Brás

também some dos próximos quadros, de maneira que apenas se pode visualizar o homem que

o recebe no barco. A solidão se reveste de azul e da morte solitária do protagonista.

Mostra-se expressiva também a descrição de Brás no obituário que encerra o capítulo

dois. Após sua morte na praia, não há menção da jovem que marcou a sua visita a Salvador,

muito menos a sua relação com a ida do rapaz ao barco:

108

Brás de Oliva Domingos visitava Salvador a tempo de participar da festa do dia de Iemanjá em 2 de fevereiro. Junto a milhares de pessoas, ele foi ao Rio Vermelho oferecer presentes à rainha do mar, mas desta vez ela quis muito mais do que foi oferecido. (MOON & BÁ, 2011, p.58).

A solidão de Brás e a divisão estabelecida nos quadros anteriores à sua morte

marcam a particularidade do seu próprio Dasein. Só lhe seria possível encontrar este Eu

através da sua singularidade, e sua morte só poderia ser solitária, mesmo que ele não

acreditasse, naquele momento, que os dois viveriam sendo dois e não um. O homem do barco,

ao apontar a distinção dos dois, indica a transcendência possível de Brás, isto é, ao dizer

“vocês são dois” o homem afirma, como se o instigasse a inquirir sobre o ser, que o Dasein é

somente de Brás e não poderia ser diferente.

É preciso que Brás assuma a sua possibilidade de encontrar o seu próprio ser. Este

exercício de possibilidade de escolha de se encontrar revela o fundamento do Dasein como

ser-cada-vez-meu.

E, porque o Dasein é, cada vez, essencialmente sua possibilidade, esse ente em seu ser pode se “escolher”, pode ganhar a si mesmo ou pode se perder, isto é, nunca se ganhando ou só se ganhando “em aparência”. Ele só pode se haver perdido ou ainda não se ter ganhado na medida em que, segundo sua essência, é um possível ser próprio, isto é, na medida em que ele tem a possibilidade de se apropriar de si. (HEIDEGGER, 2012, p.141).

É a essência da possibilidade de encontrar o seu “ganhar a si mesmo” que é evocada

nos saltos temporais e de localidade do Sonho no capítulo nove. Em cada momento narrado

no sonho, Brás é provocado para que faça escolhas, para que encontre na sua existência o

despertar de algo indefinido, de um caminho que o libertará para o próprio ser.

A decupagem estabelecida na primeira cena apresenta um diálogo de Brás com quem

aparenta ser Iemanjá, em um cenário semelhante à sua morte no capítulo dois. Ela o instiga a

encontrar seus sonhos, vontades e desejos, na sua experiência ôntica, para que pudesse de

alguma maneira, encontrar as “forças que o movem”.

Vale ressaltar que o narrador descreve que Brás já experimentara estes sonhos outras

vezes. “Não havia mistério” no desafio proposto pela mulher. Sua vontade de se projetar para

o futuro, ou seja, a preocupação com a sua existência, manifestava-se como algo constante na

sua vida. Seu devaneio com o futuro era sempre a indagação da sua vida, de quem ele

realmente era. Para isto, é preciso que ele transcenda seu estado de contemplação para o

109

próprio ser, no sentido proposto por Heidegger, e que ele se abra para a sua possibilidade

como Dasein: “Acorde, antes que seja tarde demais.” (MOON & BÁ, 2011, p.205).

Percebe-se, na artrologia de todo o capítulo, que é o movimento de se encontrar com

as suas possibilidades diante da cotidianidade mediana, parte constituinte do ôntico do ente,

que o leva ao jogo para qual está também o Dasein, ou seja, no confronto entre o modus de

fuga do ser e a apreensão do ontológico. Em suma, Brás parece ter que escolher entre assumir

a busca pelo ser ou viver na fuga para a qual a vida cotidiana o lança. Este conflito aparece na

fala do amigo Jorge, diante da sua tentativa de fuga do sonho: “Você não pode simplesmente

fugir, sabe? Nunca é tão fácil assim” (MOON & BÁ, 2011, p. 217).

Outra passagem que manifesta a hesitação de Brás em lançar-se para apropriação de

si mesmo está no momento em que ele toma um café para se distrair dos problemas que o

incomodam no trabalho. Mas estes problemas não são propriamente sobre o trabalho, mas

sobre algo maior, algo que gera medo.

A decupagem estipulada através da cena manifesta a tentativa de Brás de encontrar

na medianidade do cotidiano uma distração para a preocupação própria do Dasein na sua

condição de ser-no-mundo. Seus problemas estavam no sonho, naquele projeto de ser, com as

“forças” descritas por Iemanjá, aquelas que o moviam pelas possibilidades de encontrar a si

mesmo na existência.

A chamada para o medo é um importante elemento a ser percebido como parte

constituinte do ente do homem. O medo o acompanha de maneira intrínseca, uma vez que

tudo aquilo que se teme é manifesto pela condição do próprio Dasein, é a ele mesmo, Brás,

que se volta a preocupação. Em outras palavras, o próprio Dasein é que evoca a si mesmo

como temor: “o medo traduz sempre o sentimento originário do ser intramundano, que sente a

sua existência como que ameaçada, e, por isso mesmo, faz parte da existência,

acompanhando-a sempre” (JOLIVET, 1961, p.108).

O sentir medo do fracasso, na busca pelos sonhos, revela o próprio Dasein de Brás.

Seu conflito entre sonho e realidade condiciona a sua caminhada para o desafio final. A

decisão de assumir a própria facticidade de estar lançado-aí, além de chegar a autenticidade

através da aceitação da Angst e da morte.

Não à toa, sua trajetória no sonho culmina no momento decisivo, em que seu amigo o

convoca para o encontro final. A autenticidade possível para o Dasein só se manifesta através

da angústia, e é este caminho que Brás percorre para chegar à conversa com seu pai e com seu

110

filho, ao fim do capítulo. A angústia é o sentimento fundamental do ser-no-mundo e exprime

o sentimento originário de todos os outros, inclusive aqueles elencados por Iemanjá (desejo,

vontades, forças que o movem). Mas não há definição daquilo que a angústia determinaria

como seu contrário, o que caracterizaria um modo de existência diferente daquele

estabelecido pelo medo.

É o isolamento do ente que confere a forma medular da angústia como sentimento

originário. Por este motivo, talvez, é que Brás não consiga as respostas para as perguntas que

faz para todos os outros que interagem com ele durante o sonho. O confronto com Iemanjá,

com a esposa, com o chefe, com sua fã, com o amigo; todos levantam mais perguntas e o

afastam de uma definição desta angústia que o assola em todo momento:

A angústia permanece como centro do seu sonho e ele não consegue escapar desta

força. As perguntas começam a cessar conforme ele adentra para o sonho, junto com o

sentimento originário da angústia, para a aceitação da sua própria morte. Entretanto, antes de

assumir a sua solidão nesta caminhada, ele tem de assumir seu próprio Dasein, reconhecer a

solidão do seu próprio ser dentro da sua trajetória como constante possibilidade.

Seu pai o questiona sobre sua continuação até o fim do sonho. (Figura 17)

Contrariado, ele pergunta sobre a sua possibilidade para seguir em frente e a resposta do pai

define a cura para a perda de si na ditadura do impessoal: “Você sempre tem escolha”

(MOON & BÁ, 2011, p.221)

A importância dada pelo pai para a busca pela autenticidade é ímpar para a

percepção da relação do protagonista com o pai e da sua existência com o ser. Na decupagem

da cena, enquanto declara a sua constante possibilidade de escolha, o pai lhe oferece um

cigarro, retomando a semelhança que o jovem escritor tem com o pai.

Brás, como todo ente do homem, está fadado à queda (Verfallen). É condição

existencial do próprio Dasein que este permaneça “decaído” sob a rede do mundo, isto é,

mantenha-se como um “não-ser” ele mesmo, atuando com a comunidade na qual se insere,

mas atuando como um “ser outro”. Para Heidegger, como determinação do Dasein, ele já está

decaído, e por ser assim determinado, a queda apresenta-se como algo positivo. No entanto, é

a Alienação (entfremdung) que causa a inautenticidade. É a perda das possibilidades que

determina o estado de se encontrar longe da “vida plena”.

A decupagem do quadro em que o pai de Brás lhe oferece o cigarro desenvolve um

aspecto interessante sobre o Dasein de Brás e a artrologia geral da narrativa: a possibilidade.

111

Ele tem a possibilidade de escolher entre fumar um cigarro igual ao do pai ou não, seguir

escrevendo como pai ou não, fumar como a mãe ou não, escolher se deve seguir no sonho, i.

e., na busca pela resposta para a sua angústia ou não. É-lhe sempre dada a oportunidade de

escolha sobre as ações e sobre o seu Dasein.

O entrelaçamento dado entre este quadro e todas as outras cenas vividas por Brás,

sugere cada vez mais a dimensão das suas escolhas com os momentos que definem a sua

busca de encontrar ontologicamente o próprio ser e a sua relação com o mundo que o cerca.

Na tentativa de Brás de encontrar no seu Dasein a autenticidade do seu próprio ser,

ele revela também o seu modo de ser-no-mundo, caracterizando a simultaneidade do seu

Dasein com a presença dos outros seres e a instrumentalização dos objetos. O protagonista

tem de reconhecer os traços definidores do seu Dasein como ser-junto-a e ser-com-os-outros:

“Nada vai trazer o ente querido deles de volta, mas cada pequena informação nova ajuda.

Cada obituário novo acaba com uma dúvida, deixa uma família em paz.” (MOON & BÁ,

2011, p. 148).

O que Ana reitera na sua fala é a atualização que a obra também traz não apenas aos

objetos internos à instrumentalidade, mas também às remissões de portador e usuário. Para

Heidegger, a obra também remete ao consumidor e às práticas em torno da obra, o que, em

última análise, vai remeter ao próprio modo-de-ser do ente do homem. “Com a obra, portanto,

não vem-de-encontro somente o ente que é utilizável, mas também o ente do modo-de-ser do

homem, em cuja ocupação o produzido se torna utilizável” (HEIDEGGER, 2012, p.217).

À vista disto é que Brás recorre à máquina e à sua utilizabilidade como escrita para

compor seu obituário ao fim do capítulo nove. O fim do seu sonho o leva para uma praia,

onde uma máquina de escrever descansa sobre uma mesa. Brás vai até ela e inicia a escrita do

seu próprio obituário.

O obituário, desta vez, está em primeira pessoa, o que direciona a autoria diretamente

para Brás. A voz deste obituário não difere daquela presente nos outros obituários, uma vez

que está caracterizada com a mesma coloração no espaço do recordatório presente nos oito

capítulos anteriores.

À utilizabilidade da máquina trás ao encontro também o próprio Dasein de Brás, e é

através dela que o seu esforço de questionar o seu próprio ser é recobrado. O ser-junto-a como

modo de ser-no-mundo possibilita a Brás a apuração de um dos seus modos de ser e, por

conseguinte, permite o trato da ocupação de maneira distinta: escrever para Brás não apenas

112

se define na sua utilizabilidade mediana, isto é, na sua aplicação cotidiana. Ela encontra uma

dimensão mais profunda, sua utilizabilidade está ligada ao questionamento do próprio ser de

Brás.

A máquina de escrever assume um caráter ontológico para Brás quando representa,

para ele, uma relação direta com o mundo, com o escrever artístico e consigo mesmo, na auto

absorção de si para o romance que está escrevendo - “Desligar-se do resto do mundo e

escrever” (MOON & BÁ, 2011, p.19) – e para os obituários que escreve sobre suas

possibilidades – “Nos meus sonhos, sou o escritor da minha própria história, embora nunca

escreva sobre mim mesmo, sendo este obituário a primeira e única exceção” (MOON & BÁ,

2011, p.225).

Brás utiliza da escrita para ir de encontro a morte, da mesma maneira que Kafka e

Rilke também faziam. O desejo comum entre todos eles é o de experimentar o espaço da

escrita, que possibilita transitarem entre os extremos: “O espaço onde tudo retorna ao ser

profundo, onde existe passagem infinita entre os dois domínios, onde tudo morre, mas onde a

morte é a sábia companheira da vida, onde o pavor é êxtase, onde a celebração se lamenta e a

lamentação glorifica.” (BLANCHOT, 2011, p.152).

A experiência da literatura propicia aos autores adentrar-se para o espaço onde a

morte é possível e é vista como celebração. Brás encontra a morte em cada capítulo através da

escrita de si e só através dela é que pode vislumbrar seu próprio Dasein.

Embora a ocupação em Heidegger se dê pelo uso prático dos instrumentos, ou seja,

da instrumentalidade dos objetos que vem-de-encontro, sua ocupação acontece na relação do

Dasein como ser-no-mundo. É através do seu trato com o ente-do-interior-do-mundo que

também se lhe revela parte da sua forma de ser-junto-a. É na sua utilizabilidade que Brás

define a obra e um dos seus modos de ser para, assim, poder encontrar o seu ser próprio.

Na cena em que Brás se utiliza da máquina de escrever para a escrita do seu obituário

há também a “menção” de outro ente-do-interior-do-mundo: as carpas birutas. A

utilizabilidade das carpas não é retratada nesta cena, mas em outros momentos, como em

frente à sua casa no primeiro capítulo e no último, no momento em que lê a carta que recebeu

de seu pai. Nas cenas cotidianas, diferentemente das cenas do sonho, as carpas cumprem a

finalidade de decoração. Como instrumento, elas são “para algo”, ou seja, para ornamento. No

entanto, sua ocupação pode ser dada de maneira distinta se considerada sob o viés cultural e

as outras remissões estabelecidas pelo aparato.

113

A tradição japonesa do Kodomo no Hi (dia das crianças, ou dia dos meninos), inclui

o ornamento do Koinobori como símbolo do que se deseja às crianças:

No Japão, há duas grandes festividades relacionadas com as crianças: o Festival dos Meninos (Tango no Sekku), comemorado no dia 5 de maio, e o Festival das Meninas (Hina Matsuri), comemorado no dia 3 de março. No Festival dos Meninos, os japoneses têm o costume de enfeitar a parte externa das casas com os koinobori, enfeites em forma de carpa que balançam com o vento, com o intuito de pedir saúde para os meninos. Em geral, os koinobori são hasteados de modo a compor uma série vertical. (ARAGÃO, 2010, p.225).

Possivelmente, o rito utiliza-se da carpa pela capacidade que ela possui de enfrentar

grandes correntezas no período de sua desova. A luta enfrentada por ela e a sua consequente

vitória sobre o fluxo forte da água representam uma alegoria com a futura vida dos meninos e

a necessidade de saúde para enfrentá-la como uma correnteza.

Desta forma, as remissões da ocupação das carpas biruta remetem diretamente ao

contexto cultural japonês, que, por sua vez, remetem à própria carpa, que remete à sua

natureza de desova e à água. Estas séries de remissões fazem parte da utilizabilidade das

carpas biruta como ornamentos e se ligam à forma de ocupação delas por parte de Brás. Ele se

utiliza delas como instrumento de decoração, mas dotados de significados e remissões

anteriores.

Neste sentido, sua ocupação se dá num viés prático de decoração alegórica. No

entanto, sua aplicação durante o sonho revela ainda o próprio sentido da ocupação por parte

de Brás. O que nos é revelado é a subjetividade da sua ocupação dos entes-que-vem-de-

encontro. A forma de ser-no-mundo como ser-junto-a do Dasein de Brás nos é revelada na

investigação do seu próprio ser. Para encontrar o seu próprio ser, Brás reconhece seu modo de

ser-junto-a e, para tanto, ocupa-se dos objetos justamente no exercício de encontrar a sua

angústia e assumir o encontro com a própria morte.

A ocupação das carpas reitera o seu modo de ser-para-a-morte (Figura 18). Com a

força alegórica do peixe, que enfrenta a corrente para desovar, Brás escreve o obituário,

enfrentando a corrente da própria existência e aceitando os desafios inseridos no salto

ontológico de definir quem é e a facticidade do seu ser.

Embora o seu sonho manifeste a relação de subjetividade na ocupação de cada

objeto, é na prática que estes lhe vem-de-encontro. É na escrita dos obituários para o jornal

que ele se relaciona diretamente com a máquina de escrever como utilizabilidade. É no seu

trato como ornamento que ele se relaciona com as carpas. Em suma, é no mundo, no sentido

114

ôntico, que Brás toma os elementos como instrumento, mas é a mundidade, ou seja, o seu

modo de ocupação destes entes que se revela através do seu sonho.

Há ainda a aparição da pipa que é referenciada não apenas no sonho, manuseada pelo

seu filho, mas no apêndice que narra a sua infância. Na cena final da graphic novel, enquanto

Brás lê a carta (objeto que traz em si a remissão do ato da escrita) as carpas aparecem sobre

ele e ao longe se pode avistar uma pipa sendo levantada por algumas crianças. Uma ênfase

especial é dada no último quadro da página, quando a pipa se apresenta como um elemento

mais relevante na decupagem da cena.

Ao ocupar-se da máquina de escrever, da pipa e das carpas biruta, Brás emprega a

utilizabilidade de cada objeto e suas remissões que findam na prática diária com o que vem de

encontro e com a natureza do próprio Dasein. Ao determinar o que-vem-de-encontro, ele

define seu próprio modo de ser no mundo.

Entretanto, sua investigação sobre o seu próprio ser estaria incompleta se ignorasse

os outros modos-de-ser do Dasein. Sua forma de ocupação se dá unicamente com os entes que

“é o empregado, o produzido etc.” (HEIDEGGER, 2012, p.207). Mas há ainda aqueles com

os quais o ente do homem se depara na partilha da ocupação, pois ser-no-mundo, para ele, é

também Mitsein (ser-com-os-outros).

Toda a narrativa de Brás revela as maneiras com as quais Brás reconhece a presença

dos outros. Suas formas de ocupação com os entes do interior-do-mundo também revelam a

sua condição de Dasein que é ser-com. A máquina de escrever, como vimos, revela a sua

forma de ser-com o pai, que é referenciado significativamente ao longo da trama.

A forma de preocupação com os outros aparece constantemente em cada momento

da vida de Brás. Seja com o pai, com o melhor amigo, ou com suas relações amorosas, seu

modo-de-ser se liga diretamente aos outros. O Dasein de Brás é sempre dado na condição de

ser-com.

A busca de Brás pela sua questão sobre o ser não se esquiva do compartilhar do seu

ente com os outros ao seu redor. Se o Dasein é, por definição, ser-no-mundo, este também é

Mitsein, isto é, ser-com-os-outros. A presença do outro é garantia do modus de ser-junto-a

com os objetos, uma vez que o ente não produz sozinho e unicamente para si mesmo, o outro

também produz e faz parte dos modos de ser cotidianos. O Ser só pode-ser na medida em que

se estrutura como ser-com.

115

Se este modo de ser releva-se fundamental para o próprio Dasein, Brás precisa

reconhecer, neste processo de visualização da suas possibilidades de ser, a presenteidade dos

outros e, inclusive, a sua própria presença como ser-com o outro e ser também para o outro

um ser presente.

A narrativa expõe diversos elementos do entrelaçamento entre os capítulos,

desenvolvendo códigos que, por repetição e conexão, auxiliam no arremate da leitura de

Daytripper. Embora a morte seja, semanticamente, a questão mais relevante, não podemos

ignorar outros aspectos ligados aos modos de ser do Dasein de Brás.

A repetição de alguns objetos pode dar indícios da sua relevância semântica no plano

expressivo da graphic novel. A máquina de escrever, instrumento utilizado por Brás no

trabalho como escritor de obituários e como romancista, é representada em diversas cenas da

narrativa. No primeiro capítulo, quando ele tenta se esquecer do próprio aniversário e do

evento em homenagem ao pai, é a maquina de escrever que ele recorre.

Toda a decupagem desenvolvida na página (figura 19) estabelece o tempo em que

Brás parece tentar fazer uso da máquina de escrever. As imagens, inclusive, com a seleção das

cenas e enquadramentos, favorecem uma assimetria com o discurso presente no foco

narrativo. De acordo com o conteúdo verbal, Brás não se importa com nada além da escrita,

naquele momento, embora, de fato, como nos é revelado pelo desenho, ele não escreva nada.

Mostra-se interessante, contudo, a forma como cada discurso parece desenvolver a

unicidade entre a vontade de Brás e a situação de fato. O discurso presente no texto verbal

carrega marcas semânticas de esquecimento, mas são todos dados através do discurso indireto

livre do narrador. Embora este dite constantemente a tentativa do esquecimento, seu uso

estilístico aponta para o pensamento do protagonista, que tenta, durante um bom tempo

(elemento dado pela imagem) esquecer de fato os dramas descritos.

A imagem, por sua vez, apresenta o tempo e espaço da narrativa e enfatiza a

subjetividade do personagem quando apresenta categorias visuais para a solidão e realce do

seu monólogo interior. Se adotarmos a dicotomia entre luz x sombra, ou magenta x amarelo,

nos quadros na página analisada, e adotarmos a categoria semântica destaque x irrelevância

como categorias do conteúdo da página, poderemos perceber que o uso da luz sobre o rosto de

Brás e sobre as suas mãos nos quadros menores, assim como a sombra que mascara os demais

elementos do seu escritório favorecem ainda mais a percepção do monólogo no texto do foco

116

narrativo. Inclusive, o quadro em que aparecem os cigarros gastos por Brás dá indícios do

tempo em que ele parece tentar extrair algo da máquina.

Neste sentido, o foco narrativo parece cumprir a função dada por Groensteen de

dramatizar a cena, uma vez que o visual já daria conta de insinuar sua frustração em não

conseguir escrever. Além disto, a relevância do verbal, nesta cena, se dá na caracterização

daquilo que incomoda Brás. Mas há nesta complementaridade a redundância que aponta

enfaticamente para o objeto máquina de escrever. “Esquecer que a máquina de escrever foi

presente de seu pai” (MOON & BÁ, 2011, p.19).

A redundância aparente com a enunciação da máquina de escrever, sendo mostrada,

inclusive, no mesmo quadro, nos condiciona a perceber sua potencialidade narrativa como

situação de entrelaçamento. A máquina passa a representar mais do que o simples ato de

datilografar, ela é atualizada em seu modo-de-ser, isto é, no seu Zunhanden para Brás. Ele se

ocupa da máquina como ferramenta de trabalho, ou seja, liga-se a ela como instrumento

prático.

Para Heidegger, os instrumentos atuam sempre na relação de um todo instrumental e

se ampliam, em cadeia, nas mais variadas formas de utilizabilidade. Para tanto, uma ocupação

de instrumentos não é desprovida de “teoria”. Há uma visão na ocupação daquilo que vem-de-

encontro, e toda ocupação carrega consigo uma série de remissões que vão desde outros

instrumentos diretamente ligados à coisa manuseada (uma maçaneta remete a uma porta, que

remete a madeira, que remete a árvore etc) até o portador, produtor ou usuário do produto

criado.

Com a obra, portanto, não vem-de-encontro somente o ente que é utilizável, mas também o ente do modo-de-ser do homem, em cuja ocupação o produzido se torna utilizável; e juntamente vem-de-encontro o mundo em que vivem portadores e consumidores, o qual é, ao mesmo tempo, o nosso. (HEIDEGGER, 2012, p.217).

Assim, Brás se ocupa da máquina para a criação do seu romance, que por sua vez

tornar-se-á utilizável para um leitor, que fará vir-de-encontro o consumo e o comércio livreiro

etc. Da mesma forma, o papel na máquina de escrever, a tinta usada na máquina, todo

instrumento se dá na relação com as várias remissões possíveis, para o qual Brás também faz

uso no seu modo de ser-junto-a.

Outro momento da narrativa que reforça a conexão de Brás com a máquina e o todo

instrumental por ela atualizado se dá na sua visita ao escritório do pai no capítulo quatro.

117

Os quadros que narram a passagem pela mesa do pai trazem à tona a ocupação da

máquina de escrever por parte não apenas de Brás, mas do seu pai também. É a máquina de

Benedito que aparece em um dos quadros, mas é a ocupação de Brás pela máquina e o vir-de-

encontro do seu livro Olhos de seda que perpetuam o modo de ser da máquina e o todo-

instrumental atualizado por ela.

A remissão do livro em relação à máquina de escrever é claramente atualizada pela

decupagem no terceiro quadro da página14. Se adotarmos a dualidade da presença ou não

presença para compreender o plano de conteúdo que forma a construção do plano de

expressão da imagem, perceberemos que alguns elementos básicos da composição fortalecem

a condução ao livro como aquilo que vem-de-encontro com a máquina e com a utilizabilidade

dela mesma.

O plano de conteúdo destaque vs. não-destaque inscreve-se numa relação semi-

simbólica quando o plano de expressão se correlaciona com o conteúdo na forma da

composição centro vs margem. Na construção de toda a cena, o livro aparece como o centro

do quadro, inclusive aparecendo na sua forma total. Por outro lado, a máquina de escrever, o

bloco de anotações, objetos do vir-de-encontro à escrita (ou vir-de-encontro ao livro) são

colocados em segundo plano.

As formas de composição plástica também se manifestam na dualidade entre a

coloração mais viva e outra dissolvida com o cenário. O livro difere radicalmente na cor,

apresentando uma tonalidade que se distingue dos outros elementos, os quais assumem

visualmente cores próximas àquela que marca o chão ou o restante do cenário. Em suma, a

plasticidade também aponta para a ênfase da categoria semântica, destaque vs não-destaque,

quando difere a coloração do livro, próxima a um tom de azul, do restante dos elementos

apresentados pelo quadro, que se limitam a tons terrosos e mais opacos.

A complementaridade proporcionada pelo foco narrativo também contribui para uma

percepção do modo-de-ser da máquina de escrever e a sua ampliação com o vir-de-encontro

do livro. O vínculo entre escrita e leitura, dado pelo questionamento levantado pelo foco

narrativo, liga-se diretamente com o todo-instrumental da escrita de Brás. A pergunta refere-

se ao seu pai – “o que ele estaria escrevendo agora”, mas a segunda pergunta liga-se

diretamente à ocupação de Brás pela máquina de escrever, “o que ele estaria lendo?” (MOON

14 Na figura em questão, o exemplo refere-se ao segundo quadro, uma vez que o trecho está recortado da página

para melhor inserção no trabalho.

118

& BÁ, 2011, p.105), ao passo que a imagem destaca, como analisado anteriormente, o livro

de Brás. Em suma, mesmo quando se fala sobre o pai, é o modo de ocupar-se de Brás sobre a

máquina de escrever que está em jogo. Mesmo que seja a máquina do pai, o modo de ser dela

é dado pela ocupação no modo de ser-no-mundo do Dasein de Brás.

Com efeito, as remissões da máquina de escrever não apenas trazem o todo

instrumental daquilo que-vem-de-encontro, isto é, aquilo que é, por essência, utilizabilidade.

Para Heidegger, a obra apresenta a finalidade do instrumento e traz em si mesma, o modo de

ser de cada instrumento utilizado para sua realização.

Aquilo junto a que o trato cotidiano de pronto se detém não são os instrumentos-para-obrar, as ferramentas elas mesmas, mas a obra, o que deve ser produzido em cada caso, aquilo de que há primariamente ocupação e, por conseguinte, é também utilizável. A obra sustenta a totalidade-de-remissão em cujo interior o instrumento vem-de-encontro. (HEIDEGGER, 2012, p.215).

Em suma, a finalidade do instrumento é apresentada também como aquilo que a

define. Uma cama montada, por exemplo, remete à madeira, ao parafuso, a parafusadeira etc.

Ao passo que, além de se apresentar como obra, também utilizável, remete aos instrumentos

que são dados como aquilo que vem-de-encontro internamente à própria obra.

A máquina de escrever, para Brás, apresenta-se como aquilo-que-vem de encontro,

mas sua utilizabilidade é internamente remetida no interior do seu livro Olhos de seda.

Entretanto, não é apenas ao livro que se dirige a instrumentalidade da máquina de escrever de

Brás. Os obituários também fazem parte da sua ocupação do objeto e a obra final apresenta-

se, no todo-instrumental do cotidiano, como consolo aos outros Dasein. Sua utilizabilidade

está na fruição dos outros pela morte dos entes perdidos. Esta utilização prática fica evidente

quando sua esposa, no capítulo seis, descreve a relevância dos obituários para os familiares

que perderam entes queridos numa tragédia descrita pelo capítulo.

No entanto, os obituários representam para Brás mais do que um instrumento de

trabalho. Eles o atingem e marcam sua forma de lidar com o mundo e com a própria vida. O

início da narrativa apresenta alguns obituários, antes de mostrar o protagonista refletindo

sobre a própria profissão:

As pessoas morrem todos os dias. Este foi o pensamento mais reconfortante que Brás teve enquanto todos os obituários que escrevera para o jornal passavam diante dos seus olhos. [ ... ] Ele acabou de perceber que, mesmo quando não está mais escrevendo sobre isso... [...] as pessoas vão continuar morrendo. (MOON & BÁ, 2011, p. 13-14).

119

A morte dos outros afeta as projeções do Dasein de Brás. O modo de ser-com age

sobre o questionamento do seu próprio ser. Enquanto experimenta narrativamente a morte dos

outros, Brás não consegue deixar de refletir sobre a própria morte. Seu trabalho o lembra todo

o tempo de que todo ser é um ser-para-a-morte.

Brás não consegue fugir do inquirir o próprio ser, mas através da morte. A pergunta

“quem é você” é interpelada pela morte dos outros durante o seu modo de ser-com, enquanto

escreve os obituários ou é afetado pela morte do melhor amigo, do pai etc.

A preocupação, que é inerente ao ser enquanto estiver vivo, é intrínseca ao modo de

Brás se relacionar com os outros. Ele está constantemente preso à morte e a angústia advinda

dela interfere na sua escrita e na sua forma de voltar-se para si mesmo, seja no dia-a-dia ou na

reescrita de toda a obra.

A caracterização da natureza do Mitsein pode ser visualizada na ausência icônica de

Brás durante o capítulo oito, em que a sua morte e vida são apresentadas sob a perspectiva da

sua esposa e filho (Figura 20). A complementaridade entre palavra e imagem neste capítulo

tem uma disposição mais enfática na sua relação. O foco narrativo concentra-se no papel de

Brás nas relações diárias entre a família, enquanto a imagem apresenta a ausência do

protagonista no momento em que a história é narrada.

No primeiro quadro, o foco narrativo expõe o esforço de Brás para tomar café com a

família, ao passo que imageticamente, sua presença é ausente. A dicotomia estabelecida entre

sua presença e ausência se intensifica por toda a página. O foco narrativo demonstra o hábito

de Brás não falar muito durante o café. No entanto, a ausência da sua fala encontra outro

sentido quando a decupagem do quadro apresenta uma redundância entre os códigos. A

imagem mostra uma cadeira vazia, além de alguns elementos espalhados sobre a mesa. Se

adotarmos a ideia de presença vs ausência do plano de conteúdo, notaremos que, no plano

expressivo, a combinação de cores e enquadramento se conectam a discursividade

estabelecida pela artrologia restrita da página.

A cadeira se encontra alinhada no centro do quadro. Sua posição divide o quadro

horizontalmente junto com o término da mesa e direciona perpendicularmente o olhar com o

sentido das hastes e o seu ajuste equilibrado com o alinhamento vertical. Como categoria do

plano expressivo, a dualidade centro x margem culmina na relevância temática da presença

(ou da ausência, se adotada sob a inversão da categoria como ausência x presença).

120

Outro elemento que fortalece o sentido de presença vs ausência no quadro se dá na

coloração utilizada para caracterizar o espaço comumente ocupado por Brás e o ambiente em

torno. A apresentação da cadeira, mesa e fundo se dá por meio de cores complementares para

a caracterização destas. As cores complementares são aquelas que se apresentam

diametralmente opostas em um círculo cromático e, quando utilizadas em conexão dentro de

uma imagem, apresentam equilíbrio entre os objetos e harmonia entre os elementos figurados

com tais cores. As cores complementares geralmente são utilizadas para apresentar um

contraste e/ou fortalecer os objetos descritos sem uns aos outros.

A parede, ao fundo, é toda apresentada sob a tonalidade de um azul mais claro. A

cadeira, por sua vez, é meio amarelada, com nuances de ocre e bege, enquanto o descanso de

prato é representado, em destaque, com a cor laranja. A complementariedade da cor azul, no

tom apresentado como fundo do quadro é justamente a cor alaranjada, conforme o círculo

cromático. Este destaque para o objeto não poderia ser mais representativo: é justamente sob o

descanso de prato destinado a Brás que se enfatiza a cor e, logo, a ausência daquilo para qual

se destina o objeto.

Assim, a descrição icônica do quadro apresenta, como plano expressivo, as

categorias centro vs margem e azul vs laranja, enaltecendo a centralidade da presença (ou

ausência) e o equilíbrio enfático entre uma cor e outra, o que possibilita a descrição da

ausência como complemento do espaço que é dado pela cor da parede da cozinha.

Não obstante, esta dicotomia apenas manifesta a dialética da presença vs ausência

no sentido da presenteidade de Brás, mesmo ele estando ausente. Para Heidegger, a falta do

outro, só pode ser possível, na determinação do Dasein de ser-com: “Só em um e para um ser-

com um outro pode faltar” (HEIDEGGER, 2012, p.349).

A artrologia restrita do restante da página continua a estabelecer a

complementaridade entre o foco narrativo e as imagens, enquanto a categoria do plano

expressivo caracterizada pelo uso complementar das cores azul vs laranja é reiterada ao longo

da solidariedade contextual de todo o capítulo. O foco narrativo é situado em um recordatório

azul (diferente do restante da graphic novel, em que ele é representado em tonalidades de

roxo), ao passo em que a história é apresentada em tonalidades amareladas e em tons de

laranja.

Não é apenas sobre a sua forma de ser o outro para o Dasein dos seus familiares que

Brás lança mão para interpelar o próprio ser. Os outros lhe são constantemente recobrados

121

como parte do esqueleto existencial do próprio Dasein, uma vez que ser-com é determinado

pelo vir-de-encontro do Dasein dos outros no seu mundo.

Ser-com é uma determinidade do Dasein cada vez próprio; Dasein-com caracteriza o Dasein dos outros, na medida em que este Dasein é posto-em-liberdade para um ser-com pelo mundo deste. O Dasein próprio de cada um é encontrado pelos outros como um Dasein-com só na medida em que o Dasein ele mesmo tem a estrutura existenciária do ser-com. (HEIDEGGER, 2012, P.349).

É por ser-com constitutivo do ser-no-mundo do Dasein de Brás que ele reconhece o

Dasein dos outros como o que vem-de-encontro no modo de ser-com na sua vida e nas

possibilidades do seu poder-ser. As pessoas que passam por ele também constituem aquilo

que ele “é” em cada momento da narrativa.

O capítulo cinco, que narra um trecho da infância de Brás, traz um exemplo de

presenteidade do Dasein de outro como constitutivo da existenciaridade do Dasein de Brás

determinado pela datidade daquele momento. Brás é o que o seu Dasein é no momento

marcado pela narrativa.

O beijo trocado com a prima durante uma brincadeira de esconde-esconde assinala

uma importante ruptura na caracterização do “quem” de Brás. Seu Dasein determina o

“quem” de Brás na sua condição de ser-no-mundo e com a mudança advinda das suas

experiências.

O momento vivido por Brás com a prima se mostra relevante para a personagem.

“[...] ele nunca esqueceria daquele momento” (MOON & BÁ, 2011, p.125), o que se

caracterizaria, posteriormente, como uma cena de ruptura na sua subjetividade e marcaria,

para si mesmo, um traço determinante do “quem” do seu Dasein.

A relevância deste momento se revela na forma com que Brás encara seu cotidiano

após a experiência do beijo. A maneira de olhar para a vida e encarar a própria existência é

transformada por ela. O verbo que determinaria a interpretação-de-si após o beijo não poderia

ser outro – ser: “Ele era livre como um pássaro” (MOON & BÁ, 2011, p. 128). O uso do

verbo ser conjugado na terceira pessoa do singular no modo do pretérito imperfeito do

indicativo exemplifica a forma de interpretação que o Dasein pode fazer de si mesmo, na

busca de uma determinação ontológica sobre o próprio ente.

A perspectiva desta terminação do ser do menino Brás é apresentada pelo foco

narrativo. Embora o foco narrativo se apresente de maneira impessoal, contrariando uma

visão de auto-análise por parte de Brás, toda a obra é percebida como o questionamento de

122

Brás sobre o seu próprio ser. É na memória que Brás encontra subsídios para reconhecer as

possibilidades e determinações do seu ser.

No entanto, Heidegger adverte sobre os equívocos possíveis da interpretação do

Dasein sobre a questão do “quem” do ser.

E se, ao tomar como ponto-de-partida a referida datidade do eu, a analítica existenciária caísse numa como que armadilha do próprio Dasein e de sua imediata interpretação-de-si? [...] Pode-se sempre muito bem dizer sobre esse ente, em termos onticamente justificáveis, que “eu” o sou. Contudo, a analítica ontológica, ao empregar estas proposições, deve fazê-lo com reservas de princípio. (HEIDEGGER, 2012, p.337).

Mostra-se a possibilidade do equívoco das definições do “quem” evocado pelo

Dasein em cada momento da vida de Brás. Aquilo que ele “é”, determinado pela visão

subjetiva de si mesmo, pode (e a possibilidade é soberana em cada definição sobre o ser) não

se referir propriamente ao ser de fato. Mas isto não impede o reconhecimento dos fenômenos

que constituem suas formas de ser-no-mundo e o seu vínculo, seja como ocupação ou

preocupação, com aquilo (e aqueles) que vem-de-encontro.

Pois, para Brás, é justamente a forma de ser-com que se destaca na busca da sua

autenticidade. A resposta é indeterminada e sempre mutável, mas a constituição do mundo do

seu Dasein é vista como mundo-com. Em todos os capítulos, por mais solitária que seja a

busca pelo seu ser, o ser-com é evidente - os outros determinam um modo de ser fundamental.

Há outros momentos que revelam o Dasein-com do outro no seu vir-de-encontro com

o Dasein de Brás. Os capítulos dois e três narram a relação tumultuosa com a jovem que

conheceu em Salvador. No capítulo intitulado “21”, o primeiro encontro com a jovem

determina, na artrologia geral da obra, um dos momentos que descrevem sua juventude, além

de fortalecer narrativamente o vínculo do protagonista com o melhor amigo Jorge.

A interpretação-de-si sobre o próprio ser na relação de ser-com Olinda mostra-se

equivocada justamente na sua morte, já analisada, durante as oferendas a Iemanjá. Ao se

apaixonar por ela, o que Brás “é” se torna determinado por ele como junto-a ela – como pode

ser visto na sua percepção dos bonecos amarrados. No entanto, a própria menção, dada pelo

homem no barco, da individualidade de cada um dos bonecos (“vocês são dois”) indica, como

flashfoward, a resposta equivocada de Brás sobre o “quem” do seu ser.

123

No entanto, mesmo que de maneira equivocada, o Dasein não pode deixar de se ater

a presença de Olinda. Ela fundamenta também sua forma de ser-no-mundo e participa da

existência de Brás como uma forma de preocupação-com. Esta forma de constituição do

Dasein não abandona, no seu cerne, as formas de ocupação das coisas intra-mundanas.

É no compartilhar do mundo com o outro que Brás se ocupa dos objetos e da

instrumentalização daquilo que vem-de-encontro. A sua experiência em Salvador e a

ocupação dos objetos que remetem à sua viagem são compartilhadas com Olinda de forma

que as remissões chegam ao Dasein da jovem. Isto fica claro quando Brás se ocupa das

oferendas e lembra da jovem como portadora da voz de Iemanjá.

Quando ele é convocado para ir até a praia por Olinda, é a imagem do orixá que

aparece, dando forma à voz da moça. Sua forma de ocupação dos objetos liga-se ao modo de

ser-com ela e transfere a forma de preocupação para o modo de ver-ao-redor, a transformado,

nas memórias de Brás, em objeto de ocupação através dos elementos intra-mundanos com ela

compartilhados. Em suma, sua memória parece substituir, na artrologia geral da obra, a figura

dela pelos elementos pertencentes ao mundo compartilhado entre eles.

Talvez por isto, nos saltos temporais e espaciais do sonho, no capítulo nove, Olinda

não apareça fisicamente, mas o Orixá ocupado pelo Dasein de Brás. Ao nível da artrologia

restrita, a ausência de Olinda também caracteriza as formas de ocupação do Dasein de Brás e

de compartilhamento do mundo com o Dasein da jovem.

No capítulo três, é-nos descrito o drama vivenciado por Brás em seu rompimento

com Olinda. Carregado com vários flashbacks, o capítulo mostra diversos momentos em que

Brás enfrenta o drama da ausência da amada. Podemos perceber esta descrição na cena em

que o protagonista passeia pela casa, visualizando objetos que remetem diretamente a ela.

Toda a página é construída com uma palheta de cor bastante reduzida. Se adotarmos

a categoria semântica tristeza vs alegria do plano de conteúdo para analisar a artrologia

restrita da página, poderíamos perceber que, no plano expressivo, ela se concentra quase que

exclusivamente na primeira parte da categoria. A dicotomia cores frias vs cores quentes do

plano expressivo apenas reitera a hegemonia da sensação de tristeza apresentada por toda a

página. A coloração esverdeada predomina por todo o cenário e os únicos tons quentes podem

ser visto em detalhes como a porta (no último quadro), a fotografia de Olinda presa à

geladeira e a calcinha dela pendurada no varal (que carrega leves tons de roxo).

124

A utilização das cores quentes para caracterizar os objetos que fazem menção a

Olinda proporciona uma interessante visão sobre a relação do protagonista com os pertences

dela. Brás parece substituir a sua forma de preocupação com a jovem pela ocupação de

objetos que por remissão chegam a ela. Ele apenas consegue chegar a ela através da sua forma

de ser-junto-a.

Não obstante a relação de Brás com Olinda se caracterize pela substituição da

preocupação por ocupação, a qual não deixa de representar uma forma de Dasein-com.

Mesmo que pela indiferença, todos os modis-do-ser apresentam o caráter de determinação da

natureza mesma do Dasein.

Há ainda outras formas de ser-com que nos são apresentadas ao longo das narrativas

de cada momento de Brás. Sua relação com a esposa, com a mãe e com o filho, embora se

mostrem também como modis positivos das formas de ser-com, as situações vivenciadas com

o pai e com o melhor amigo se revelam mais proveitosas para compreender a relação de

“Dasein a Dasein” e sua forma constitutiva dos próprios Dasein de cada ente.

Suas relações com amigo e com o pai são constantemente mencionadas e em

diversos momentos se apresentam como momentos relevantes no inquirir de Brás sobre o

próprio ser e sobre o encontro inevitável com a sua própria morte. Dentro da artrologia geral

da obra, estes momentos marcam pontos culminantes nas possibilidades que definiam o “eu”

respondido pelos obituários.

Jorge, o amigo, possibilita um momento significativo na definição do Dasein de Brás

nos capítulos Seis e Sete. Sua possível morte na queda de um avião, no capítulo seis,

influencia todos os obituários escritos por Brás para cada pessoa que estava, de fato, no avião.

Embora o obituário remeta diretamente ao Dasein particular de Brás, é evidente o

significativo modo de preocupação-com que caracterizou o ente do protagonista por todo o

capítulo.

Ainda sim, no capítulo sete, o obituário reconhece a presenteidade de Jorge na

própria condição do ser de Brás.

O obituário refere-se à amizade como aquilo que condicionou a morte de Brás. Se

compreendermos que todas as mortes de Brás determinam, ontologicamente, a nomeação do

Dasein pelo próprio ser e que estas não acontecem onticamente, isto é, na materialidade física

do ente, a morte de Brás, ao acreditar na amizade, pode representar mais do que sua viagem e

busca pelo amigo.

125

Ao assimilar sua morte à do amigo, Brás assume a sua condição de Dasein-com na

medida em que reconhece também sua forma de finitude. Ele assume, dessa forma, a

dimensão existenciária do seu próprio Dasein como ser-com, na forma de preocupação

originária que constitui um elo indefinido do seu ser com o ser do outro.

Como já vimos, Brás reescreve a própria história, filtrando os momentos que considera

mais significativos na construção da sua trajetória. No entanto, estes caminhos se dão,

estruturalmente, de forma não linear. A narrativa inicia com Brás adulto, indo para uma fase

mais juvenil, posteriormente infantil etc. O que este movimento narrativo evidencia é a forma

com que a temporalidade acontece subjetivamente para o protagonista.

A temporalidade em Heidegger é prescrita como diretamente ligada ao Dasein como

ser-no-mundo. A preocupação se temporaliza também na sua seleção dos momentos que mais

o marcaram. As ekstases são contidas em uma progressão bastante pessoal pelo ser de Brás.

Seu futuro, na expectativa de encontro com a morte, é caracterizado pelos obituários. Eles

representam a facticidade última da relação temporal do ser.

Mas o passado é também fundamental para o reencontro com a interrogação sobre o

ser. O fato de já estar lançado aí é importante no processo de autenticação do Dasein. Brás

investiga este passado quando reexperimenta o nascimento milagroso. Está também no

passado quando rememora o primeiro beijo e a infância na chácara da família.

O exercício de projeção do ser para cada obituário exige um encontro com os

momentos do passado. Sua investigação sobre os momentos pretéritos que o marcaram

passeiam de maneira não linear e apresentam ora o Brás de 32 anos, ora o de 21; isto tudo

porque as ektases do tempo resultam da elucidação do próprio protagonista sobre o seu ser.

O desejo de encontrar com a morte exige de si mesmo uma investigação longínqua de

quem ele era, para, só assim, poder encontrar sua projeção como ser-para-a-morte. Neste

encontro com o passado e no lançar-se para o futuro, o presente é desperto pela procura

ontológica do seu ser.

Desta forma, as cenas finais da narrativa suscitam a atualização do passado na sua

projeção para a morte. A carta do pai o provoca a se despedir do genitor, da mesma maneira

como o exorta a aceitar sua projeção para o fim e reconhecer a liberdade do Dasein do filho.

Diante desta motivação, as carpas, a pipa, o Rio de Janeiro, todos estes aspectos das

ocupações passadas são ressuscitados no encontro das ektases com o encontro da

autenticidade do ser de Brás.

126

É o mesmo conflito vivenciado por Gjorg em Abril despedaçado. A expectativa com o

próximo mês que, não tem dúvidas, será seu último, faz com que olhe para a própria

existência e investigue o seu ser, da mesma maneira com que o Brás, idoso, motivado pela

carta do pai, experimenta subjetivamente as ektases na projeção do seu fim.

Todo este ajuntamento temporal coincide com o interesse de Brás de encontrar o seu

próprio ser. Ele almeja encontrar a morte para descobrir quem é ou o que pode vir a ser com a

facticidade da própria existência. Brás precisa morrer para saber quem é.

Em Daytripper percebemos a possibilidade do experimentar a morte, sem a

consequência finita da experiência real, e, mesmo assim, com a mesma novidade da sua

possibilidade. Assim, podemos relacionar o uso da morte com o uso realizado pelo

protagonista da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas (1979) de Machado de Assis.

Neste romance, o narrador também se utiliza da situação em que se encontra – da

posição privilegiada sobre o passado, uma vez que está morto – para reescrever suas

memórias. O intertexto em Daytripper nos permite, evidentemente, relacionar a presença do

narrador, em ambos os casos, na sua relação com a morte.

Na obra de Machado de Assis, o narrador utiliza a pós-morte para poder descrever os

fatos passados, enquanto em Daytripper, Brás narra ainda em vida, mas utilizando a

possibilidade da sua morte como projeção do seu ser. Diferentemente de Brás Cubas, Brás de

Oliva Domingos não experimenta a morte de fato e nem escreve do pós-vida, mas

experimenta, através da narração da sua própria existência, várias mortes do seu próprio eu,

utilizando desta experiência estética para desenvolver as suas várias relações com o passado.

O Brás Cubas experimentou de fato a morte, enquanto o Brás de Oliva experimenta

imaginativamente a morte para reescrever, de diferentes formas, as projeções do seu ser.

Embora as duas narrativas se distingam no seu uso da morte no enredo, ambas as

obras privilegiam o eu do narrador na sua retomada do passado, o que permite, em níveis

diferentes, a estetização das imagens passadas de acordo com as respectivas propostas. Brás,

em Daytripper, reconstrói não apenas a morte, mas as muitas mortes, em diversas imagens

reconstruídas como pequenos ciclos.

As memórias de Brás remontam momentos importantes da sua vida. São situações

como essas que acabam sendo revividas esteticamente por meio da escritura e da ficção, para

logo em seguida serem encerradas pela morte efêmera como as lembranças e instável como a

memória.

127

Brás então imagina o fim da história, diante das possibilidades que lhe são viáveis

através da morte. Com várias condicionais, Brás reescreve a próxima vida experimentando a

morte e alterando a sua memória, tornando-as finitas e, desta forma, tornando-as únicas, uma

vez que a morte encerraria todas as outras possibilidades, o que permite um vislumbre do ser

que está em constante retraimento.

Morrer em cada capítulo modifica a experiência da memória e ressignifica tudo aquilo

que Brás já viveu. A morte torna cada momento da sua vida único, alterando as possibilidades

de luto para cada situação, criando alternativas para experimentar a vida como se ela fosse se

esgotar no momento seguinte. Brás encontra o ser quando se encontra com a morte.

128

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidentemente, as significações e arremates de leitura desta obra não se encerram

neste trabalho. Daytripper apresenta um importante trabalho de construção narrativa, em que

os temas abordados, juntamente com o domínio da linguagem da arte sequencial, favorecem

múltiplas leituras e abrem margem para uma constante retomada do texto.

O que se buscou neste trabalho foi perceber de que maneira os aspectos do texto

funcionavam na conexão artrológica entre capítulos, atendo-se para a maneira como a graphic

novel construía sua hipercodificação interna e agia sobre o entrelaçamento narrativo.

O aspecto comunicativo do quadrinho nos forneceu parâmetros para diagnosticar o

seu funcionamento dentro da espaçotopia. O traço dos autores, ora condiciona o andamento da

trama, ora revela a subjetividade do protagonista, bem como os nuances valorativos das

relações de Brás com o pai, mãe, namoradas e esposa etc.

A constante retomada de objetos cenográficos enriquece o entrelaçamento narrativo e

cria o espaço necessário para a análise das influências deles na confecção do passado de Brás.

Os desenhos dos objetos se mostraram importantes para a solidariedade icônica da graphic

novel, revelando que o distanciamento entre os capítulos poderia ser revisto através das pontes

de sentidos fornecidos por eles.

Além dos valores representativos, temos na obra um investimento valorativo em

cenas figurativas. É o caso das capas que simulam a temática do capítulo que virá, mas

utilizando de espaços mais abstratos e momentos híbridos. Neste, a coloração de Dave

Stewart foi primordial na ambientação e sentido de cada uma.

O mesmo vale para a sua participação por toda a obra. O trabalho de Dave Stewart

favorece, em diversas cenas, a interpretação de tom emocional de Brás. O uso de uma paleta

de cor voltada para contrastes de cores quentes e frias, bem como uma variação sutil quando

tinha como base em uma única cor, como em cenas compostas todas em tons azulados ou

roxos, demonstrou a força do relato visual na produção de sentido no texto.

Vale ressaltar a pertinência do uso de um narrador. Percebeu-se que a narração, em

terceira pessoa, dava vestígios da pontualidade de cada momento para Brás. Era a visão do

protagonista que, enaltecida pelo discurso, ganhava forma e interferia na ambientação do

lugar. Em diversos momentos o texto verbal dá conta de manifestar a subjetividade de Brás,

129

ignorando o restante das personagens. A história se mostrou ser sobre Brás, e o foco narrativo

descrevia claramente o cerne deste objetivo.

O uso dos obituários também se mostraram primordiais para a percepção temática da

morte na narrativa. Brás trabalhou durante anos com isto, e sua profissão parecia condicioná-

lo a perceber a morte a cada instante, cada vez que via outra pessoa morrer. Além disso, cada

morte circunstancial de Brás era acompanhada por um obituário, em coloração distinta, como

uma voz em off.

Importante também se mostrou a caracterização destes obituários. Os obituários do

trabalho de Brás eram escritos com uma coloração de fundo diferenciada daqueles ao final do

capitulo. Apesar de escritos com a mesma diferenciação estética de um obituário comum, eles

se diferiam como vozes distintas, com autoria e intencionalidades diferentes. Elas se

aproximaram, sobretudo, na análise desta voz ao fim do sonho de Brás, em que ele assume a

autoria também do segundo obituário.

O mesmo valor narrativo pôde ser encontrado nas personagens. Suas aparições e

diálogos reiteram a discussão que envolve a história. Diálogos sobre a morte com o pai, com o

melhor amigo, com a esposa, manifestavam o interesse da artrologia geral em discorrer sobre

o assunto. O mesmo vale para as constantes aparições do pai, sejam pelas exposições do

narrador ou na fala das personagens, a temática revelou-se primordial na elaboração da

personalidade e caracterização de Brás.

Justamente por esta pertinência temática de pai e filho é que nos concentramos em

perceber de que maneira o pai o afetava na busca por descobrir quem é “Brás de Oliva

Domingos”. A aproximação com a teoria de Heidegger favoreceu para questionarmos de que

maneira o outro pode interferir na questão do eu. A obra demonstrou uma pertinência grande

na interferência do pai em Brás, agindo, inclusive, sobre o comportamento do personagem e

os projetos de ser para o futuro, como profissão, hábito de fumar, ser pai etc.

Não obstante, não apenas sobre pai e filho a narrativa discorria. Com efeito, a

inserção do pai como elemento provocador mostrou-se parte de todo um apanhado de

relacionamento de Brás com os objetos e os outros para definir o seu próprio ser, de modo que

o pai, em última análise, representava um dos mais importantes modos de ser de Brás, a saber,

o modo de ser-com. A preocupação com o pai, em certa medida, o define e age sobre as

formas de projeção de si mesmo e a maneira como enxerga a si mesmo.

130

As aproximações com autores como Kafka e personagens como dos livros Abril

despedaçado (1991), O filho eterno (2007) e o conto “A terceira margem do rio” (2001),

enriqueceram a conotação da relevância de Benedito para a vida de Brás, assim como para

cada personagem destas histórias.

A morte do pai também o marcou significativamente. Da mesma forma como Brás

era lembrado constantemente, através do seu trabalho sobre várias mortes, o pai também o

influenciou o lançar-se no reconhecimento da finitude da própria existência. A morte do pai e

a sua carta, lida por Brás na sua velhice, interferiam na maneira como Brás passou a

vislumbrar o seu próprio Dasein, além de interferir no todo da narrativa, surgindo pedaços das

falas de Benedito por vários obituários do protagonista.

Mas não foi apenas a morte de Benedito que influenciou Brás na escrita de si na

morte. Brás precisava reconhecer a finitude da sua própria existência, uma vez que, de acordo

com Heidegger, o ser só pode se descobrir sozinho, assim como a transcendência para o

encontro com o ser só pode ser realizado neste ato de reconhecer a facticidade da sua vida.

O interesse de Brás pelo encontro com a morte condicionou-lhe a busca da

temporalização pelo seu Dasein. Encontrar a projeção futura, i.e., a morte, só foi-lhe possível

na retomada do passado pelo presente. O resultado desta empreitada foi a construção não

linear da narrativa, em que os objetos e as pessoas que fizeram parte da sua história, foram

sendo inseridas estrategicamente.

Mas a inserção destes entes não foi unicamente para fornecer aspectos da história de

vida de Brás. Mais do que isso, ela ajudava na configuração daquilo que significava o ser de

Brás. Ocupação e preocupação, como vimos, são modos de ser fundamentais para o Dasein e,

para o protagonista descobrir quem ele é dentro desta temporalização, era preciso que

investigasse os entes que fizeram parte do mundo do Dasein dele.

A relação com Kafka novamente se mostrou pertinente, seja no objetivo de

reescrever as próprias experiências ou no próprio passo ontológico para a morte. Outros

poetas que viam a escrita como o espaço propício para a investigação da morte também foram

inseridos na discussão, tais como Rilke e Gide.

Apesar da distinção entre forma e conteúdo ter sido retratada aqui de maneira distinta,

durante análise, tentou-se valorizar a forma indissociável destes dois na medula da obra.

Aspectos narrativos só fazem sentido se interligados com a intencionalidade temática e

131

estética da história, fazendo com que a análise da graphic novel se sustente principalmente na

percepção dos signos em manifestar retoricamente os argumentos.

Desta forma, quando analisada sob a ótica estrutural, a relação pai e filho e morte

condicionava a escolha dos termos, decupagem e cores, forjando, assim a artrologia geral que

regeria os elementos dispostos ao longo da narrativa.

É assim que acontece com os obituários. A existência destes só existe para cumprir

com o roteiro prescrito que tem como centro a discussão da morte. Mas esta, só pode ocorrer

tematicamente na medida em que os obituários cumprem com o seu propósito de desvio do

uso tradicional de um narrador.

Da mesma maneira, a retomada dos objetos que ligavam Brás ao pai, bem como as

cenas que descreviam diálogos e menções aos dois, foi primordial para a sustentação do

conteúdo. O discurso do pai ecoando pela voz do narrador e dos obituários foi mais uma

maneira de unir forma e o conteúdo na composição artrológica da história.

Desta forma, percebeu-se que, no processo de análise da graphic novel, forma e

conteúdo dialogaram constantemente para a eficácia comunicativa, além de favorecer em

muitos aspectos para a inovação estética e narrativa de Daytripper no mercado brasileiro de

histórias em quadrinhos.

132

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Watt, Ian. A Ascensão do Romance. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das

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135

ANEXO

FIGURA 2 - (Moralez & Bueno, 2010,p. 7).

FIGURA 1 - QUINO, 2010, p. 123

136

Figura 4 – (Gaiman; Mckean, 1990, p. 99).

Figura 3 – (Moon; Bá, 2011, p. 105-106).

137

Figura 5 – (Spiegelman, 2009, p.105).

138

Figura 6 – (Spiegelman, 2009, p.294).

139

Figura 7 – (MAZZUCCHELLI, 2009, p.294).

140

Figura 8 - Daytripper (2011), p. 15.

141

Figura 9 - Daytripper (2011), p. 83.

Figura 10 - Daytripper (2011), p. 95.

142

Figura 11 - Daytripper (2011), p. 118.

Figura 12 - Daytripper (2011), p. 205

143

Figura 13 - Daytripper (2011), p. 122.

Figura 14 - Daytripper (2011), p. 179.

144

Figura 15 - Daytripper (2011), p. 189.

145

Figura 16 - Daytripper (2011), p. 191.

146

Figura 17 - Daytripper (2011), p.221.

Figura 18 - Daytripper (2011), p.224.

147

Figura 19 - Daytripper (2011), p.19.

148

Figura 20 - Daytripper (2011), p.183.