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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 257-278, jun. 2006. 257 1 Uma parte do presente texto, assinada por LCF, integrou uma resenha publi- cada na Revista ide; outra parte, escrita por MM (que agradece a interlocução de Cintia Buschinelli), foi publicada, em co-autoria com Giuliana Gouveia (responsável pela realização da entre- vista), no livro Adolescência e violên- cia, organizado por David Léo Levisky. Ambas foram transformadas para com- por o presente trabalho e a elas se acres- centaram partes novas escritas a quatro mãos. * Psicanalista, professor da PUC-SP e da USP. ** Psicanalista, Membro Efetivo e Ana- lista Didata da SBPSP. PESQUISA EM PSICANÁLISE: ALGUMAS IDÉIAS E UM EXEMPLO 1 Luís Claudio Figueiredo * e Marion Minerbo ** RESUMO Inicialmente, os autores diferenciam pesquisa em psicanálise de pesquisa com o método psicanalítico. No primeiro caso, a psicanálise é o objeto da pesquisa, e o pesquisador não precisa ser um psicanalista atuante. Pode ser um filósofo, um historiador, um sociólogo ou um crítico literário. No segundo caso requer-se um psicanalista. Após a pesquisa, o objeto, o sujeito (o pesquisador) e seus meios de investigação (conceitos, técnicas) são transformados. Em seguida, o procedimento é minuciosamente exemplificado pela análise de uma entrevista. Nas considerações finais, considera-se, ao lado da dimensão investigativa, a dimensão terapêutica da pesquisa, bem como o seu campo de validade. Palavras-chave: Pesquisa em psicanálise. Pesquisa com o método psicanalítico. Análise psicanalítica de entrevista. Introdução Todos nos lembramos das palavras de Freud: a psicanálise, simultaneamente, é (1) um procedimento para a investigação de processos mentais inconscientes (inacessíveis a outras for- mas de pesquisa), (2) um procedimento terapêu- tico e (3) um conjunto de conhecimentos em contínua expansão e reformulação sobre seu ob- jeto. Sabemos também da preocupação freudiana em não subordinar as atividades clínicas terapêu- ticas, em seu livre curso, a metas especificamente científicas — procura obstinada de conhecimen- to —, embora tais processos estejam e precisem estar bem articulados. Muito do que conhecemos da clínica freudiana vem dos seus historiais, em que a dimensão de pesquisa e comunicação (fre-

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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 257-278, jun. 2006. 257

1 Uma parte do presente texto, assinadapor LCF, integrou uma resenha publi-cada na Revista ide; outra parte, escritapor MM (que agradece a interlocuçãode Cintia Buschinelli), foi publicada,em co-autoria com Giuliana Gouveia(responsável pela realização da entre-vista), no livro Adolescência e violên-cia, organizado por David Léo Levisky.Ambas foram transformadas para com-por o presente trabalho e a elas se acres-centaram partes novas escritas a quatromãos.* Psicanalista, professor da PUC-SP eda USP.** Psicanalista, Membro Efetivo e Ana-lista Didata da SBPSP.

PESQUISA EM PSICANÁLISE:ALGUMAS IDÉIAS E UM EXEMPLO1

Luís Claudio Figueiredo* e Marion Minerbo**

RESUMO

Inicialmente, os autores diferenciam pesquisa em psicanálise de pesquisa como método psicanalítico. No primeiro caso, a psicanálise é o objeto da pesquisa, e opesquisador não precisa ser um psicanalista atuante. Pode ser um filósofo, umhistoriador, um sociólogo ou um crítico literário. No segundo caso requer-se umpsicanalista. Após a pesquisa, o objeto, o sujeito (o pesquisador) e seus meios deinvestigação (conceitos, técnicas) são transformados. Em seguida, o procedimentoé minuciosamente exemplificado pela análise de uma entrevista. Nas consideraçõesfinais, considera-se, ao lado da dimensão investigativa, a dimensão terapêutica dapesquisa, bem como o seu campo de validade.

Palavras-chave: Pesquisa em psicanálise. Pesquisa com o método psicanalítico.Análise psicanalítica de entrevista.

Introdução

Todos nos lembramos das palavras deFreud: a psicanálise, simultaneamente, é (1) umprocedimento para a investigação de processosmentais inconscientes (inacessíveis a outras for-mas de pesquisa), (2) um procedimento terapêu-tico e (3) um conjunto de conhecimentos emcontínua expansão e reformulação sobre seu ob-jeto. Sabemos também da preocupação freudianaem não subordinar as atividades clínicas terapêu-ticas, em seu livre curso, a metas especificamentecientíficas — procura obstinada de conhecimen-to —, embora tais processos estejam e precisemestar bem articulados. Muito do que conhecemosda clínica freudiana vem dos seus historiais, emque a dimensão de pesquisa e comunicação (fre-

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qüentemente colorida por razões políti-cas e polêmicas) era dominante e elabo-rada após o término do tratamento. Poucosabemos, na verdade, das centenas decasos clínicos conduzidos por ele. Ounão parecem ter despertado sua maioratenção “científica”, ou não lhe serviampara a afirmação ou confirmação de suasposições no campo psicanalítico. Assim,não vieram a se tornar peças ilustrativasnem de sua técnica, nem de suas idéias,nem de suas descobertas ou invençõesconceituais. O que sugere que uma certadistinção entre o Freud clínico e terapeu-ta e o Freud produtor de conhecimentodeve ser mantida, mesmo com a ressalvade que na psicanálise pesquisa, práticaclínica e teoria caminham juntas.

Dito isso, o que ele poderia pensarao ver a “pesquisa em psicanálise” — oque inclui, mas não se confunde com a“pesquisa com o método psicanalítico”— ganhar a extensão que veio conquis-tando no mundo e, em especial, no Bra-sil? É bem provável que, ao dizer que apsicanálise é ao mesmo tempo as trêsordens de processos e fenômenos acimamencionados, não lhe passasse pela ca-beça a produção em grande escala depesquisas tais como observamos, porexemplo, em diversos cursos de pós-gra-duação no país e no exterior (França,Estados Unidos e até Inglaterra). Mesmoao sugerir uma certa distância entre pes-quisa e clínica, talvez não lhe ocorresse apossibilidade de existência de sistemasde produção em série de pesquisas emque a dimensão terapêutica está à mar-

gem ou ausente, não sendo levada emconta, por exemplo, nos momentos deavaliação: pode-se dar 10 a uma tese dedoutorado sem considerar se o candidatoé um bom clínico, se é que exerce aclínica de forma significativa e minima-mente satisfatória. Um doutor em teoriapsicanalítica pode muito bem ser um zeroà esquerda em psicanálise ou nem isso:um mero letrado curioso. Não há nenhumcritério universitário que permita discri-minar entre um psicanalista e um interes-sado em psicanálise. Ambos podem tirar10 ou ser reprovados diante de uma banca.

Cabe perguntar diante de tantapesquisa em psicanálise: será que issoexiste? Ou, ao menos, existe como algomerecedor de uma atenção tão concen-trada? Será que nesta estranha segrega-ção de uma das três facetas da psicanálisede forma a que, isolada das demais, venhaa receber um grande investimento detanta gente e de parcelas ponderáveis denossos dispositivos educacionais aindahá psicanálise viva? Será que a psicaná-lise tem algo a ganhar com tais, aparente-mente aberrantes e desgarradas, ativida-des? O que se faz quando se pretendeestar fazendo “pesquisa em psicanálise” e,mais especificamente, quando se está “pes-quisando com o método psicanalítico”?

Chamemos de “pesquisa em psi-canálise”, no sentido amplo, um conjun-to de atividades voltadas para a produçãode conhecimento que podem manter coma psicanálise propriamente dita relaçõesmuito diferentes. Em certas circunstânci-as, por exemplo, observa-se uma respei-

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tosa distância: ora as teorias da psicaná-lise tornam-se “objeto” de estudos siste-máticos, ora de estudos históricos, ora dereflexões epistemológicas; outras vezes,alguns conceitos psicanalíticos são mo-bilizados como instrumentos para a in-vestigação e compreensão de variadosfenômenos sociais e subjetivos. Em ne-nhuma destas modalidades de pesquisaem psicanálise requer-se um psicanalistaatuante. Estudos do primeiro tipo podemmuito bem ser realizados por filósofos ouhistoriadores; trabalhos do segundo tipopodem ser feitos por críticos literários,teóricos da cultura, sociólogos, pessoasbem-intencionadas em geral etc. Numcaso, algum aspecto da psicanálise — emgeral, suas idéias, mas eventualmente,suas práticas — é objeto de exame; nooutro caso, a psicanálise é usada comoum arsenal de idéias e conceitos que, malou bem manejados — muitas vezes, naverdade, bastante mal, dada a distânciaexistente entre eles e os pesquisadores —, deveriam lançar alguma luz sobre fenô-menos e processos da cultura. Algumasvezes, mas não sempre, tais pesquisas empsicanálise são divertidas, úteis e de inte-resse para um vasto público letrado. Quan-do isso acontece, expande-se e reforça-sea “cultura psi” no campo social, o que nãodeixa de ser bom, ao menos em termosmercadológicos. Às vezes, tais trabalhoschegam a ser úteis até mesmo para psica-nalistas, embora raramente sejam indis-pensáveis na formação de um profissio-nal do ramo. Muitas pesquisas acadêmi-cas ilustram bem estas modalidades de

investigação e, aqui entre nós, repousa-rão para sempre na paz das bibliotecasuniversitárias, passada a festa da aprova-ção, garantido o diploma.

Disso se diferenciam as “pesqui-sas em psicanálise com o método psica-nalítico”, em que a exigência de presençado psicanalista enquanto psicanalista éincontornável, embora seus temas e al-cances possam ser bastante amplos. Pes-quisas em psicanálise com o método psi-canalítico podem ter como alvo, entreoutros, processos socioculturais e/ou fe-nômenos psíquicos transcorridos e con-templados fora de uma situação analíticano sentido estrito (embora também aí seconstate uma dimensão clínica e se ob-servem efeitos terapêuticos, como se veráno caso da análise da entrevista que seráapresentada a seguir).

Aqui desaparece a respeitosa dis-tância entre “pesquisador” e “referencialteórico” para dar lugar a um corpo-a-corpo do qual a psicanálise, Deus sejalouvado, não sairá tal como entrou. Issoé, aliás, digno de nota: na academia oufora dela, uma “pesquisa com o métodopsicanalítico” é sempre obra de psicana-lista e capaz de trazer novidades à própriapsicanálise.

A especificidade da pesquisa como método psicanalítico, esta que requer opsicanalista em atividade analítica, émarcada por diversas características aque aludiremos em seguida.

A relação sujeito e objeto em umapesquisa tal como concebida nas ciênciasnaturais e nas ciências sociais ou huma-

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nas implica um sujeito ativo debruçadometodicamente sobre seu objeto, munidode conceitos, instrumentos e técnicas dedescoberta e de verificação — ou refuta-ção — de suas hipóteses. Não é bemassim nas relações entre o psicanalista,suas “teorias” e seus “objetos”. A entregado “pesquisador” ao “objeto”, o deixar-se fazer por ele e, em contrapartida, cons-truí-lo à medida que avançam suas elabo-rações e descobertas faz desta “pesquisa”um momento na história de uma relaçãoque não deixa nenhum dos termos talcomo era, antes de a própria pesquisa seriniciada. Isso é mais óbvio em uma situ-ação “terapêutica”, mas a atitude clínicapode se manifestar em outras condições esempre terá como efeito a transformaçãodas partes em jogo, o “objeto” e o “sujei-to” da pesquisa, tal como se verá noexemplo de investigação psicanalíticaapresentado a seguir, uma análise de en-trevista.

Mas qual a natureza da transfor-mação do objeto? Interpretar significaolhar para o fenômeno investigado forade seu campo habitual. O olhar do psica-nalista é um olhar fora da rotina, quedesopacifica o objeto. Ele ressurge dife-rente, desconstruído, transformado. Osujeito também se transforma na medidaem que se torna capaz de ver coisas quenão via antes.

Como sublinha reiteradamenteRenato Mezan em sua tese de doutorado(Mezan, 1985), uma magistral pesquisacom o método psicanalítico que tanto sediferencia de sua pesquisa em psicanáli-

se realizada na condição de filósofo e quefora seu mestrado (Mezan, 1985, p. 638)— “de me fabula narratur”; esta históriafala de mim pode ser o mote do pesquisa-dor psicanalista em todas as etapas de seutrabalho, que o vai alterando lentamentee, às vezes, abruptamente. Aliás, o con-fronto entre o mestrado e o doutorado deRenato Mezan, ambos excelentes, servepara diferenciar os estatutos de dois tiposde trabalho com o texto freudiano: nomestrado, obra de filósofo (ou teólogo), otexto de Freud (sagrado) é verdadeira-mente “objeto” de exegese e pode ser útilao estudioso da teoria freudiana sem che-gar a ser indispensável na formação dopsicanalista; no doutorado, as relações secomplicam e se instala o aludido corpo-a-corpo em que Renato, Freud e a culturaocidental se engalfinham com efeitos bemmais interessantes e muito mais formati-vos. Pois também o “objeto” e a própria“teoria” passam pelo mesmo processo detransformação sofrido pelo pesquisadorao longo da pesquisa com o método psi-canalítico. Indo além, a pesquisa com ométodo psicanalítico é tanto um momen-to na história do “objeto” (no caso doexemplo abaixo, um momento para aentrevistada poder se sentir escutada ecuidada, embora não se estivesse prati-cando com ela uma psicanálise clínica),quanto na história do “pesquisador” (aintérprete da entrevista vai claramentedeixando-se embalar no processo e ga-nhando uma desenvoltura de escuta einterpretação inexistentes no início), e astransformações que a pesquisa engendra

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vão além das relações específicas queestes elementos entretêm ao longo da“pesquisa”. O “objeto” — seja um paci-ente, uma comunidade, uma formação dacultura, um texto — não sai incólumequando submetido a uma atividade de“pesquisa” deste tipo, que, por outro lado,ele mesmo convocou. Que um pacienteforme seu próprio analista e a escutaanalítica que o acolhe e reflete não nosespanta. Mas o mesmo pode ser dito deuma obra pictórica, de um filme, de umpadrão sociocultural, de uma pessoa “sim-plesmente” entrevistada e realmente “ou-vida” ou de um texto realmente lido e issofaz com que a atividade cognitiva e afeti-va que tais “objetos” produzem e indu-zem faça parte de suas potencialidades derealização, expressão e autoconhecimen-to. O leitor de um texto, por exemplo,responde ao apelo de leitura que tal peçaconstitui e ao responder seriamente a taldemanda — ao ler com devoção, cuidadoe liberdade o texto — dá a ele novofôlego, novas possibilidades interpretati-vas, novo futuro. Um texto, ao ser bemlido, renova-se e sai da experiência deleitura em direção a um porvir que, poroutro lado, fazia parte, como possibilida-de, do que o texto já “era” mas a que não

acederia sem o concurso do leitor queresponde, do seu modo, a tal apelo. Passaa existir assim, a cada boa leitura, nacondição de texto descoberto e inventa-do, como na lógica do paradoxo queWinnicott elabora para tratar dos fenô-menos transicionais. O mesmo pode-sedizer do depoimento colhido em uma boaentrevista: descoberto e inventado pela ena interpretação analítica.

Ou seja, o “objeto” do psicanalistagoza deste mesmo estatuto ambíguo —objetivo-subjetivo — próprio do que éhumano. Mas, em contrapartida, o inte-resse e os pressupostos (ideológicos e,principalmente, teóricos e simbólicos)com que o pesquisador entrega-se e diri-ge-se a tais “objetos” fazem da pesquisaque enceta também uma parte de suastransformações possíveis. A história dopesquisador psicanalista não seria a mes-ma sem estas passagens e desvios pelosseus “objetos” e pelas interpretações quesuscitam.

Estamos nos referindo, natural-mente às relações transferenciais (e seusequivalentes2) e contratransferenciais quedão a marca da singularidade ao que sedescobre e ao que se inventa e cria emuma “pesquisa com o método psicanalíti-

2 Nas relações entre o texto e seus leitores, há transferência a partir dos dois lados: o leitor atribui saberao texto a que se dedica e o escritor atribui, antecipadamente, o poder de leitura e decifração aos leitoresque, eventualmente, ainda nem existem, vindo a ser criados e inventados pelo próprio escritor através dostextos que oferece. No caso da entrevista apresentada a seguir, nos termos de André Green (Green, 2002),é nítida a transferência da depoente sobre as palavras e sobre o objeto (a entrevistadora, profundamenteafetada pelo que vê e ouve). A transferência sobre as palavras é a condição precisa da análisepsicanalítica deste material, mas a transferência sobre o objeto é o que abriu — na forma de umacontratransferência — o horizonte da interpretação.

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co”. Chamaríamos, assim de “pesquisacom o método psicanalítico” uma ativi-dade em que se constituem e se transfor-mam “objetos”, “pesquisadores” e “mei-os” ou “instrumentos” de investigação(conceitos, técnicas etc).

Em acréscimo, nestas atividadesoperam necessariamente e de forma su-plementar as duas lógicas (ou duas for-mas de ser) a que se refere Matte-Blanco:a lógica dos processos secundários — ada consciência e da razão — e a lógica doinconsciente, a dos processos primários eemoções, interligadas e, não apenas, masao invés disso, incomensuráveis. Isso seráverdadeiro, provavelmente, em toda ati-vidade criativa e, no caso de uma pesqui-sa, dá conta da dimensão criativa dodescobrir e, principalmente, do inventar.Contudo, nas pesquisas ditas acadêmi-cas, o momento da demonstração tende apredominar: prefere-se uma idéia idiota,desde que bem demonstrada, a uma idéiaousada e fecunda sem a devida demons-tração. Daí imperar na pesquisa universi-tária a exigência da verificação e/ou darefutação, o que quase sempre deixa opsicanalista em palpos de aranha. Daí,igualmente, ser tão fácil no caso daquelaspesquisas convencionais anunciar-se cla-ramente o quê e o como do que vai serfeito, apresentando-se antecipadamenteo material na forma de “projetos de pes-quisa” muito bem alinhavados e de fácilcompreensão por qualquer assessor doschamados “órgãos de fomento”. Em psi-canálise, ao contrário, o segmento de-monstrativo é bem pobre e, quando dá o

ar de sua graça, é sempre ilusório. Já osmomentos de descoberta e invenção cri-ativa predominam na psicanálise e neleso entrejogo das duas lógicas em regimede suplementaridade é decisivo: não hádescoberta do inesperado e invenção donovo sem as irrupções inspiradas dosnossos subterrâneos anímicos e corpo-rais. Na análise da entrevista que se se-gue, nem o material analisado fundamen-ta e justifica cabalmente as interpreta-ções, nem estas explicam de forma indis-cutível o depoimento: trata-se de um traba-lho de descoberta/invenção que se ali-menta do depoimento e, em contraparti-da, o enriquece e abre para dimensõespsíquicas, individuais e sociais, inespe-radas.

Pois bem, as duas característicasaté aqui apontadas se articulam: é porqueas duas lógicas se mesclam sob a formada suplementaridade que “sujeito de pes-quisa”, “objeto de pesquisa” e “meios deinvestigação” podem se constituir e sedeixar transformar, perdendo cada um asua identidade monolítica e empedernidae existindo no regime do paradoxo: des-cobertos e inventados simultaneamente.

Mas será que isso em que o métodopsicanalítico opera com tamanha inci-dência e tanta insistência deve ainda serchamado de pesquisa? Não se prestariaisso à confusão entre duas coisas total-mente distintas? De um lado, temos apesquisa planejada e racional das ciênci-as modernas e, de outro, uma atividade dedescoberta e invenção característica daatividade psicanalítica. Por que não assu-

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mirmos, enfim, que a psicanálise com-porta em seu pleno exercício a dominânciada descoberta e da invenção criativas e quea idéia de “pesquisa” veste muito melhor asatividades em que descoberta e invençãopodem até existir, mas subordinadas aomomento da demonstração, da verificaçãoou da refutação de hipóteses e teses?

Indo além: será que a noção de“método” é a que mais se afina com amútua constituição e transformações deobjeto, sujeito e meios e com a primordi-al “entrega não mediada ao objeto”, sema qual não se exerce a psicanálise? Nãoseria a psicanálise ela mesma uma matrizde estratégias de investigação (Minerbo,2000) mais do que um “método de pes-quisa”, considerando-se o quanto a no-ção de “método” está, desde Descartes,comprometida com a pretensão do ho-mem da modernidade de exercer um ple-no controle sobre seus próprios proces-sos volitivos e cognitivos? Já as estraté-gias vão se formando e transformando,engendrando táticas e propiciando “sa-cadas”, em função das condições atuaisem que são efetivadas; estratégias dei-xam uma larga margem para o improvisoe para os processos primários, para asdescobertas e para as invenções. A me-nos que se desconstrua a acepção corren-te de “método”, forjada em muitos sécu-los da cultura ocidental, para retomaruma acepção mais arcaica e original dotermo, deixando de lado suas ressonânci-as modernas e “científicas”.

A estas questões poderemos retor-nar nas considerações finais sem que nossintamos obrigados a dar a elas uma res-posta unívoca. Passemos ao exemplo.

A entrevista e sua interpretação,originalmente, fizeram parte de umamonografia apresentada ao fim do cursode especialização em psicanálise da Uni-versidade Federal de Uberlândia3, queum de nós (MM) teve a oportunidade deorientar. A autora partia da observaçãode um fenômeno que a intrigava: por que,mesmo tendo as informações necessáriasà prevenção da AIDS, uma alta porcenta-gem de mulheres se deixa contaminarpelo HIV? Sua hipótese era de que háoutros fatores — quais? — que tornam ainformação insuficiente. Optou, então,por entrevistar uma mulher nestas condi-ções: tinha as informações, e estava con-taminada pelo vírus. A entrevista trans-correu livremente: “Conte-me sua vida”foi a única instrução dada à paciente.

Depois de transcrita, a entrevistafoi interpretada seguindo os mesmos pro-cedimentos usados na clínica psicanalíti-ca: uma escuta flutuante, isto é, des-centrada do tema central, intencionado;um recorte do texto privilegiando temas,expressões, brechas, palavras, ou quais-quer elementos que sirvam como cunhapara desconstruir o texto; uma reconstru-ção deste texto que permita ao analistacriar ali um sentido novo, inesperado,produzindo uma outra verdade sobre otexto. A escuta é informada pela contra-

3 Giuliana Gouveia.

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transferência, ou seja, pela maneira comoa entrevista, e depois o texto, interpelamo intérprete4. Acompanharemos este pro-cesso — o pulo do gato — detalhadamente.

Antecipamos o que a interpreta-ção da entrevista revelou. O processo decontaminação, neste caso, se iniciou muitoantes da relação sexual em que a mulhercontraiu a doença. A causa da doença foio ambiente familiar e social que deixouesta paciente totalmente desprotegida evulnerável. A AIDS pode ser entendidatambém como uma metáfora do modo devida de certas meninas/adolescentes/mulheres, transmitido de mãe para filha.Desde o berço, esta mulher foi exposta,sem qualquer tipo de proteção, a umasituação social altamente contaminada.Não houve, em seu cotidiano, uma matrizsimbólica para que se construísse a noçãode “proteção”. Os significantes “prote-ger” e “ser protegida” permaneceramvazios de experiência e de significação.Tal como o corpo sem imunidade, elacomeçou a vida como uma lutadora, coma esperança de vencer o destino. Foiperdendo as batalhas, uma após a outra,até desistir. É quando se descuidou, con-taminando-se. Sua história de vida “pe-dia” um final precoce e trágico. A AIDSchegou sem surpresa, revolta ou ressenti-mento. Desta perspectiva, a doença fazmais sentido como desfecho desta vida— como os acordes finais de uma sinfo-

nia, já esperados — do que qualquerdesfecho feliz.

Na transcrição da entrevista, a falada paciente aparece em itálico. A trans-crição da entrevista é, tanto quanto possí-vel, literal, mantendo-se o estilo e voca-bulário da paciente.

A entrevista

A história de minha mãe com meu pai...

Para levá-la ao lugar em que deve-ria entrevistá-la, a entrevistadora foi bus-car a paciente em sua casa; esta se despe-de da filha pequena com um beijinho naboca. Ao ligar o gravador, a entrevistadarecebe apenas a instrução de contar suahistória de vida.

Antes eu sabia contar minha vidainteirinha, dava até um livro. (Agoravocê não sabe?) Agora estou meiotontinha.

Você quer saber de quando eu eramocinha ou quando eu era criança? (Euquero saber tudo da sua história, você vaicontando o que quiser.)

A história de minha mãe com meupai vem lá do sul. Eu nasci lá, e vim paracá com quatro anos de idade. Minha mãese casou com quinze anos e teve quatrofilhos. Teve quatro não, teve seis, porquedois gêmeos ela perdeu. Ela separou domeu pai depois de doze anos. Era teste-

4 No caso, como se verá, algo que a entrevistadora observou antes de começar a entrevista a afetouprofundamente. Esta forte impressão passou à intérprete e instalou o horizonte antecipado de interpre-tação em que os recortes do material foram sendo efetuados e as novas costuras foram ocorrendo.

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munha-de-jeová e fugiu para cá com agente. Largou casa e tudo porque meupai era violento, bebia e batia nela.

Aqui, por incrível que pareça, mi-nha mãe trabalhava muito, era só ela quetrabalhava. Meus irmãos mais velhosficavam levando turminha em casa, fa-zendo festinha, tudo quando minha mãenão estava. Usavam droga, maconha etudo na frente das crianças — que era eue minha outra irmã mais novinha.

Menina direita, igual a minha mãe

Quando eu tinha treze anos, umrapaz malquerido me roubou e eu fugicom ele. (Roubou? Mas você quis ir comele?) Ah, eu quis, né. Dali uma semanameu irmão foi me buscar, e eu não quis ir,quis ficar com ele, mas aí eu era mocinhaainda, né, mas fiquei, mas minha mãe fezos papéis do casamento, fez eu passarpelo médico, mas os papéis caducou, nósnão casamos. Eu tenho uma filha comeste homem. Ele é dez anos mais velho doque eu. Quando eu fugi com ele eu tinhatreze anos e ele tinha vinte e três. Aí agente se separou quando eu tinha dezes-seis anos, foi pouco tempo, eu estavagrávida de uns três meses de vida, ele foipreso e larguei dele, eu já não gostavamuito dele, eu queria largar dele, pois eunão gostava de drogas, destas coisas, né.Inclusive nesta época eu fumei até maco-nha com ele, mas quando fiquei grávidada minha filha eu comecei a passar male parei e eu falei esta vida não é paramim.

Eu sou menina direita igual a mi-nha mãe, porque só eu puxei para minhamãe. Aí quando minha filha nasceu, comdois meses de vida eu fui na cadeia,mostrei para ele e peguei os documentosdele para registrar e disse que nuncamais ia querer ele. Olha, para você ver,ele roubava e levava para casa da mãe, amãe dele escondia droga, escondia rou-bo dele, mexia com macumba, esta coisahorrível. Eu não, eu já gosto de Deus, eusempre rezava, eu me escondia dela tododia, lá fora, no banheiro, para rezar detanto medo que eu tinha daquela mulher,de alguma macumba que ela pudesse fazerpara mim. E parece que foi mesmo, quandoeu vim embora para cá, ela rogou mil e umapragas, disse que eu não ia dar certo, queeu não ia passar de uma prostituta, que seeu não ficasse com o filho dela eu não iaficar com mais ninguém. Eu fiquei commedo... Eu não fiquei assim com medo, eufalei, Deus é mais forte, sabe?

Eu sempre fui assim, uma venced... umalutadora

Eu sempre fui assim, desde peque-nininha fui uma venced... uma lutadora.Igual minha mãe. Quando eu vim pra cácom a criança, aquela mulher (sogra) meroubou a minha filha. Hoje minha filhamora lá com ela, ela tem doze anos. (Mascomo roubou?) Eu tenho seis processos,de seis anos que eu lutei pela minha filha,agora eu desisti tem três anos. Eu mora-va sozinha, minha mãe quando eu vimcom minha filha disse que eu poderia

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ficar dois, três meses com ela, depoisarrumar uma casa e cuidar de minhafilha, pois ela não queria mais criança lá.Eu teria que me virar, foi o que minhamãe disse para mim. No prazo de trêsmeses, arrumei um emprego, arrumeiuma casa e fui morar sozinha, com dezes-sete anos, eu e minha filhinha, mas aí eutinha que deixar ela com os vizinhos parapoder trabalhar.

A sogra veio de lá e pegou a meni-na para levar, e para eu pegar nas mi-nhas folgas. E foi assim, eu deixei elalevar e pegava a menina de sábado edomingo, trazia para cá, ficava comigo,e na segunda ela vinha buscar a meninae levava para lá para eu poder trabalhar.Um fim de semana eu cheguei lá e ela nãoquis mais me entregar a menina, que játinha quatro anos e meio.

Aí eu fui no fórum, conversei comuma juíza e a juíza falou para mim que eudeveria pegar a menina e vir embora,mas aí eles não deixavam. Aí, a mãe delefalou que eu só levaria a criança da casadela com ordem do juiz, mas eu pergunteique ordem do juiz ela tinha para estarcom minha filha. Não deixaram trazer amenina nunca mais e disseram que eu sóposso ir lá ver. Eu lutei todos estes anos,mas todos os advogados que eu pegavalargavam a causa.

Agora eu não vou mais lá, porqueda última vez que fui elas queriam mebater. Não o pai dela, pois ele sumiu decasa, sumiu do mundo. Aí eu falei, elaganhou a causa. Ela quer levar a menina

para lá, ganhou, levou. Eu não perdi nemganhei, não teve audiência, eu tenho seisadvogados que trabalhavam para mim enão faziam nada, todos desistiram dacausa. É macumba que a velha fez.

E ele desistiu de mim

Minha filha tem três anos e meioque eu tenho, esta. Eu estava cansada detrabalhar e morar sozinha e disse paraminha mãe que ia arrumar um homem ecasar, aí arrumei este namorado, que émuito bom, não fuma, não usa droga, nãobebe muito, porque eu odeio homem queusa droga, peguei trauma por causa dosmeus irmãos.

Este Juliano é um amor de pessoa,ele tinha um irmão, aí tudo bem, comeceinamorar ele e com três meses de namoroengravidei e olha que faz tempo que eutinha a outra menina, a outra tinha seisanos quando engravidei desta. E eu lu-tando, aí eu disse que estava no meio deum processo, e disse a ele que era melhora gente se casar logo porque aí ele medava uma força para eu entrar na justiça,porque casada talvez era melhor do quemãe solteira, por causa da condição devida. Aí ele aceitou. De repente eu fiqueigrávida e ele veio morar junto, só que agente não deu certo por causa do proces-so, aí o irmão dele morreu de acidente,morreu esmagado numa ponte, aí elemuito triste e eu grávida, lutando parater a outra menina e ele desistiu de mim.Por isso que sou mãe solteira.

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A pior coisa que fiz na minha vida

Agora arrumei outro estes temposatrás. De novo falei para minha mãe,disse que arrumaria um homem porqueminha filhinha estava crescendo e queriaarrumar um pai para ela, da outra eudesisti de lutar Aí minha mãe disse tá,você é quem sabe. Aí conheci um rapazque não fumava nem usava droga, masbebia pinga. Foi a pior coisa que eu fiz naminha vida. Este homem se instalou naminha vida, morou comigo uns seis me-ses e eu tentei largar, largar, largar,resultado de tudo, quando eu tentei mes-mo largar dele, além de ele me tomargeladeira, fogão que compramos juntos,ele mandou eu ir na Marginal buscar umdinheiro e mandou uma mulher me ma-tar, verdade, e ela me trancou no quarto eme deu um monte de garrafada, queria mematar, por isso eu tenho estas marcas.

Acho que foi ele que me passou adoença (AIDS). Eu peguei até gonorréiadele, tive que tomar dez injeções dolorosas.

Deu positivo duas vezes

Este homem ficava atrás de mim,interessado em meu dinheiro. Quando eurecebia pensão da minha filha, ele toma-va de mim, gastava tudo, me dava sóalguns reais para fazer compra, eu tiveque misturar leite com água. (Pede paradesligar e começa a chorar.)

Aí eu estava desnutrida e com sa-pinho na boca, diarréia, aí achei quefosse falta de vitamina. Aí o otorrino

disse que eu estava com AIDS, porque oué neném ou idosos que tem sapinhos naboca. Fiz exame HIV em Ribeirão, deupositivo duas vezes, estava muito carre-gado, eles tentaram me ajudar de todasas maneiras, mas demorou um poucominha internação, eu comecei a tomar ocoquetel no mesmo dia que deu positivo.Em agosto eu já tomava, 15 de agosto. Euvim embora para cá e passei junho ejulho com ele, ele não queria me levar nomédico, não queria que eu fosse em Ri-beirão, ele queria que eu morresse, vocêacha?

Eu vim para Jaboticabal e pedi àminha mãe para pôr meus móveis navaranda da casa dela até eu arrumaruma casa e um serviço, aí falei que estavadoente da barriga, ela achava estranhoaquele tanto de remédio. Aí recebi oito-centos reais de seguro e desemprego,atrasado quatro meses, eu recebi de umasó vez. Aí fui no Córrego Rico, alugueiuma casinha lá, eu e minha mãe. Fui emGuariba e limpei a casa, pois tudo ali erameu. Aí eu trabalhava na roça e deixavaminha menina com minha irmã que moralá. Ela ia na escolinha.

Não sou depressiva, sou feliz

Com umas três semanas na roçaeu fui em Ribeirão e fui internada. Omédico disse que eu não podia trabalharem uma roça nem em um sol e falou domeu peso, eu estava dez quilos abaixo donormal e tinha febre de quarenta e oitograus. Aí deixei minha menina com a

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minha mãe e me internaram, disse que jáera para terem me internado, eu estavacom octoplasmose, era manchas pretas.Aí fiquei dezoito dias lá, e eles não quise-ram me deixar ocupando um quarto, adoença é no sangue e com o HIV, então,a pessoa morre mesmo. Aí pedi para umaenfermeira amiga minha para contar paraminha mãe.

Meus irmãos dizem que sou de-pressiva, mas não sou, sou feliz, em vistado que eu estava com aquele monstro,porque estou melhor. Eles dizem para eusair de casa, mas eu gosto de assistirtelevisão, de ficar em casa com a minhafilha, eu me sinto bem, não sou depressi-va. Para mim me divertir não é sair ebeber, é ir a um churrasco, em um aniver-sário.

Eu não tenho só o vírus da AIDS,eu tenho a AIDS. Se eu não tomar cuida-do, tomar chuva, eu passo mal. Se eubeber eu fico só vomitando.

(Seu companheiro não fez o exa-me?) Ele não quer fazer, ele diz se tiver ovírus ele morre logo ou vai para a Bahiae toma um chá, olha o que ele pensa. Elediz que não tem, que não pegou. Mas eletem sim porque ninguém escapa destadoença, se tiver relação com quem tem adoença, pega mesmo. Depois que eu ar-rumei este homem minha vida acabou, eume arrependi até o último fio de cabelo.

O único apoio que tive foi você

(Percebi que você fala em Deus,você tem religião?) Sou evangélica, mas

agora vou para a católica, só que tenhovergonha de ir porque não tenho roupapara pôr e as pessoas reparam. Eu tenhomuita fé em Deus e o médico até seespantou com o tanto que eu melhorei. Acarga viral abaixou de 3800 para 800. Ovírus está dormindo.

Eu fico com a boca amarga, comvontade de deitar, cansada, se eu traba-lhar é capaz de me dar um trem, nãoposso forçar meu corpo, nem para an-dar. Não consigo mais trabalhar do jeitoque eu trabalhava antes. Nem na padariada esquina eu não vou. Só quando estouanimadinha vou comer lanche com mi-nha filha. (Sua filha fez o exame?) Fez eacabou de dar negativo, demorou ummês para dar o resultado. Com a graçade Jesus.

O que mudou depois da doença foique voltei a ser a menininha que eu eraantes dos treze anos. Minha mãe agorame trata com o mesmo carinho de quan-do eu era criança. Minha mãe trabalha-va e quando estava em casa fazia o quegostávamos de comer. Hoje, se estoudormindo ela nem abre a porta do quartopara não me incomodar. Sinto-me prote-gida com a minha mãe. Para minha mãetambém foi bom, ela estava perdida, euajudei ela, dando força para ela psicolo-gicamente. Ela me ajuda financeiramen-te e estou sendo mais forte que ela porquemeus irmãos deram muito trabalho paraela. O mais velho esteve preso. Minhairmã mais velha ficou sem-vergonha.Bebe de bar em bar, e é casada ainda,hein. Ela dá dor de cabeça para minha

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mãe. Eu dei uns cacetes nela. Ela temproblemas e procura minha mãe. E aindadiz que não é alcoólatra.

Ao fim de três entrevistas ela diz àentrevistadora: O único apoio que tive foivocê.

O processo de interpretação:o pulo do gato

Como dissemos, o texto originalserá desconstruído, desmontado, recor-tado, e reconstruído segundo certas li-nhas de força, tal como o faríamos naclínica de consultório. Começamos nos-so trabalho de leitura recortando um tre-cho do início do material, uma observa-ção que a entrevistadora registra antesmesmo de iniciar a entrevista. Diz respei-to à sua própria reação emocional ao queobservara.

A paciente estava no portão com afilha pequena e deu-lhe um beijinho naboca. O beijo na boca chama a atenção daentrevistadora. Ela imagina que este bei-jo poderia ser perigoso. Sem querer, amãe poderia estar fazendo mal à filha.

Esta fantasia da entrevistadora —“sem querer, a mãe poderia estar fazendomal à filha” — vai operar como eixonorteador da escuta de toda a entrevista.Funciona como os primeiros acordes deuma sinfonia: o tema nos é apresentado,e reaparece, com variações, ao longo daobra. Na atividade interpretativa, umafantasia de forte conteúdo emocional dáo clima e o rumo ao que irá sendodescortinado. O intérprete já está em pro-

cesso de transformação: afetado pelo queencontrou no material, ele já começa a sepôr em sintonia para empreender suatarefa.

Embora a entrevistadora soubesseque a AIDS não se transmite pelo beijo,ficou alarmada com a idéia de que a mãeestaria fazendo mal à filha. Em lugar dedescartar esta idéia, resolvemos tomá-laem consideração, não no campo da medi-cina, em que não faz sentido, mas emoutro. Em que outro campo a idéia de umbeijo perigoso faria sentido? Como vere-mos, as mães transmitem (pelo beijo) àsfilhas, não a doença, mas um modo devida completamente contaminado, o quetorna as filhas realmente vulneráveis atodo tipo de perigo. A história dramáticaque acabamos de ouvir tende a se repetirde geração em geração porque este modode vida ultrapassa aquela mãe e aquelafilha. Portanto, é no campo socioculturalque a apreensão da entrevistadora fazsentido: é o meio em que nascem, cres-cem e vivem estas mulheres que as tornatão vulneráveis.

Continuamos recortando a entre-vista.

Antes eu sabia contar minha vidainteirinha, dava até um livro. Agora es-tou meio tontinha.

A vida é dividida entre antes eagora, agora que tenho a doença. Maspodemos dividi-la, também, entre antes eagora — agora, quando toma consciênciade que já ter transmitido à filha um modode vida contaminado. Antes, o beijinho édado inocentemente, sem qualquer cons-

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ciência deste fato. Agora, quando conta àentrevistadora que precisou colocar águana mamadeira da filha, ela chora. Choraporque sabe que transmitiu, desde a mama-deira, a desproteção (o leite aguado). Choraporque percebe que não tinha como evitaristo. Chora porque sabe que esta desproteçãotornará sua filha tão vulnerável aos perigosda vida quanto ela mesma foi.

A menção ao livro revela o desejode registrar sua experiência. A entrevis-ta, como ela sabe, irá para um “livro”, amonografia. Seu testemunho está sendogravado. E o testemunho mostra, justa-mente, como antes ela era tontinha. An-tes ela não tinha consciência de sua condi-ção. Agora, graças à AIDS — sem a qualela não estaria sendo entrevistada —, suavida, seu sofrimento anônimo, tem umsentido. Ela poderá legar à filha — e àsoutras mulheres —, não um leite ralo,mas algo que poderá fortalecê-las: o co-nhecimento de como se transmite a vul-nerabilidade feminina. Neste sentido, suaúltima frase (o único apoio que tive foivocê) é curiosa. Que apoio teria recebidoda entrevistadora? À primeira vista, apoioé sinônimo de ser escutada, por outramulher, pela primeira vez na vida. Maspodemos entender este “ser escutada”como a construção de uma ponte comoutras mulheres, como um apoio à sua“causa”: as mulheres precisam lutar con-tra a mamadeira rala que a sociedade lhesoferece5.

Retornando ao beijinho na boca,além do amor, vimos que ele simboliza atransmissão de certo modo de ser mulherno meio sociocultural em que vive: de-samparada, frágil, vulnerável, cumpridorapassiva e solitária de um destino terrível.Sua história, portanto, começa com ahistória de sua mãe.

A história de minha mãe com meupai vem lá do sul.

Sua história vem de longe, lá dosul, perde-se na noite dos tempos. Estasmulheres tentam fugir — minha mãefugiu, largou casa e tudo. Fugiu de ummarido alcoólatra que batia nela. Masnão há para onde fugir. A própria pacien-te, em sua terceira tentativa de recons-truir a vida, acabou com um marido alco-ólatra, a pior coisa que fiz na minha vida,da qual me arrependi até o último fio decabelo. É este homem que a contaminoucom o HIV.

Eu sempre fui assim, desde peque-nininha fui uma venced... uma lutadora.Igual a minha mãe.

A mãe fugiu do pai na esperançade ser uma vencedora, de conseguirdriblar seu destino. O máximo que con-seguiu foi ser uma lutadora. Coube-lhecriar, sozinha, quatro filhos, sendo queos filhos tornaram-se drogados ou ban-didos, uma das filhas ficou “sem-ver-gonha”, e ela mesma, que sempre foidireita, igual a minha mãe, está comAIDS.

5 Mais adiante, retornaremos a esta mesma passagem da entrevista agregando novos elementos.

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Era só ela, minha mãe, que traba-lhava. Meus irmãos mais velhos, quepodiam ajudar, ficavam fazendo festi-nha.

É sua primeira experiência de vio-lência social, da exploração da mulherpelo homem, dentro de casa. A garotinhaé testemunha do esforço hercúleo e soli-tário da mãe, e começa a internalizar asrepresentações do que significa ser mu-lher, e ser homem, neste meio social.Homem, segundo sua própria experiên-cia, é aquele que pode se divertir demaneira egoísta e irresponsável. Para ela,os filhos homens “herdam” do pai umaatitude de desprezo e de exploração damulher.

E eles usavam droga, tudo na fren-te das crianças.

Vai-se delineando um cenário te-nebroso: em lugar de proteger, o homemexpõe a mulher, ainda criança, ao perigo.A idéia, a própria noção de “proteção”,não tem como se formar porque a experi-ência cotidiana não contém uma matrizsimbólica para este significado. O signi-ficante “proteger” permanece vazio deexperiência e de significação. Assim, nãohá como internalizar uma atitude de pro-teção e de autoproteção diante da vida,resultando numa vulnerabilidade que elairá carregar para sempre.

Com mais rigor, pode-se dizer quea representação de proteção que ela trazé ambígua. Em outra entrevista (que nãoestá transcrita neste texto), ela diz que,segundo a mãe (pois ela mesma não serecorda), o pai tanto a protegeu quanto a

expôs ao perigo. Ele gostava mais de mimdo que dos outros, porém era muito vio-lento quando ficava bêbado. O mesmoirmão que usava drogas diante dela e dairmã menor esboça um frágil gesto deproteção quando, aos treze anos, ela éroubada por um rapaz malquerido.

Enfim, a idéia de proteção estáatravessada pela ambigüidade quando elaconta que rezava para Deus, trancada nobanheiro, para escapar à sogra. Ela estárestrita a ocupar um único lugar no mun-do: o banheiro. É ali que ela se sente asalvo, no lugar onde os seres humanosdeixam seus dejetos, no lugar do sujo e docontaminado. É com os dejetos que ela seidentifica, e, enquanto tal, sente-se a sal-vo, pois nem a sogra atacaria um dejetohumano. Ainda assim, espera que Deus aajude, mas será que ele ouviria os apelosvindos de um banheiro?

Como vemos, a imagem paterna(Deus), geralmente associada à proteção,se constitui a partir da idealização (opuro, o sagrado), do sujo e contaminado(banheiro) e do persecutório (a sogra).Com relação à figura materna, há a mes-ma indistinção entre proteção e persegui-ção: a sogra começa por ajudá-la, masacaba roubando sua filha. Esta confusãoimpede que se forme a idéia de proteção,o que exigiria uma cisão bem demarcadaentre o limpo e o sujo. Embora não fossenossa intenção no processo interpretati-vo deste material identificar a forma daconstituição psíquica da entrevistada,parece claro que a ausência de uma noçãode proteção, ou a ambigüidade da noção

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existente, são indícios de uma organiza-ção subjetiva extremamente precária evulnerável. Poderíamos vislumbrar umaconfiguração egóica muito frágil, o quejustifica a hipótese de que “ser escutada”e “ser levada a contar sua história”, regis-trando-a em um gravador (para inclusãoem um “livro”), possa ter o sentido de“receber um apoio”, mesmo que nadamais lhe seja oferecido.

Passemos adiante.Um rapaz malquerido me roubou

e eu fugi com ele. Meu irmão foi mebuscar e eu não quis ir.

Nesta frase, temos uma adolescen-te que já se acostumou a desejar (nosentido psicanalítico) ser malquerida. Hátambém uma ambigüidade em ele meroubou e eu fugi com ele. Foi roubada oufugiu? Gostava do rapaz ou ele eramalquerido? Se antes ela era uma vítimapassiva da falta de proteção, agora ela jáa recusa abertamente: o irmão foi buscá-la, mas ela não quis ir. A mãe ainda tentaprotegê-la, fez os papéis do casamento,fá-la passar pelo médico, mas os papéiscaducou. Não adianta mais. Ela já está nomundo, sozinha, vulnerável, exposta aosperigos. O pai de sua filha está na cadeia,a sogra macumbeira acoberta os crimesdo filho, a mãe diz lhe diz que tem que sevirar sozinha. É na adolescência, aos tre-ze anos, que começa a cumprir seu desti-no de vítima. Ela imagina que pode seruma venced..., logo se corrige, é umalutadora, e, quando as forças se esgota-rem, sua vulnerabilidade fará dela umaperdedora.

Nunca mais ia querer ele.Não existe nunca mais: uma vez

entrando nesta vida que se passa no ba-nheiro do mundo, ninguém sai limpo ouileso. Seu destino está selado aos dezes-sete anos, quando volta para casa com afilha no colo.

Ao perder a filha para a sogra,tendo lutado durante anos na justiça —seis advogados que trabalhavam paramim e não faziam nada, todos desistiramda causa. É macumba que a velha fez —,temos a primeira metáfora para a AIDS.Os advogados e a justiça, que funcionamcomo sistema imunológico da sociedade,desistiram, corrompidos pela macumba.Ela lutou, lutou, e morreu na praia. A filhanão a quis mais/ela desistiu da filha. Écomo um corpo esgotado que aceita, frá-gil e vulnerável, as infecções da vida.Estamos falando, aqui, de cidadania. Eusou menina direita igual a minha mãe.De nada lhe vale ser direita. O mundo, deseu ponto de vista, é injusto, e quando elase vê, de fato, abandonada pela justiça,fica claro que para ela não existe prote-ção. Os direitos básicos do cidadão, damulher — educação, saúde, emprego,creche etc. — não são, nem jamais serão,para ela. Já temos, aqui, plenamente cons-tituída, uma adolescente sem qualquerimunidade contra a vida: sem camisinha,sem abrigo, sem proteção, sem residên-cia própria.

Ainda assim, não se entrega à do-ença social, e tenta recomeçar. Agora,apesar de jovem, já tem experiência devida e pode escolher melhor seu parceiro.

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Este Juliano é um amor de pessoa. Émuito bom, não fuma, não usa droga, nãobebe muito. Pode inclusive ter outra fi-lha. E, por um tempo, parece que a vidalhe sorri. Mas a sensação de fragilidadepersiste, como um mau presságio. Eudisse que era melhor a gente se casarlogo. Logo, quer dizer imediatamente,antes que o destino acorde, e que outradesgraça lhe aconteça. E acontece. Oirmão de Juliano morre esmagado numaponte. Um acontecimento tão absurdocomo um aidético morrer de gripe, umabobagem que coloca a vida a perder. Omarido bom que ela poderia ter, seu pri-meiro protetor, também desiste dela. Eele desistiu, por isto sou mãe solteira. Elasolta no mundo, perdida sua segundabatalha.

Terceira tentativa. Este homem seinstalou na minha vida.

A idéia que esta fala nos transmiteé de algo ruim que se instala para sempre,como uma doença fatal, como o HIV.Desta vez o furo da camisinha estava numlugar novo para ela — ele não fumavanem usava droga, mas bebia pinga. Foi apior coisa que eu fiz na minha vida. Ohomem lhe tirava todo o dinheiro, dei-xando-a, e à filha, desvalidas. O relatodesta vida nos encaminha, como os acor-des finais de uma sinfonia, para um des-fecho precoce e trágico. A AIDS é quaseuma decorrência natural da vida. Aliás, amorte entra em cena bem antes da doen-ça. Ele mandou uma mulher me matar.Por isto tenho estas marcas. De fato, elaé uma mulher marcada, sobretudo por

sua condição social que lhe fecha todas assaídas. Esta condição social se inscreveno plano intrapsíquico como uma ausên-cia de recursos próprios e de espaçosinternos protegidos.

Finalmente, este homem lhe trans-mite a doença. Isto nos é dito sem grandesemoções, tanto ela como nós já o esperá-vamos. Há duas frases que passam quasedespercebidas, mas, quando nos damosconta do que significam, são terríveis.Uma é a que mencionamos logo no iníciodesta interpretação: ela pede que a entre-vistadora desligue o gravador e choraquando conta que teve que misturar águano leite da mamadeira. E a outra é: Tiveque tomar dez injeções dolorosas.

Nestas duas frases ela parece en-trar em contato, pela primeira vez, com ador. Quando o corpo sente dor, adota umaposição antálgica, que protege o localdolorido. Sua vida é, do começo ao fim,uma dor só. Mas é na ponta da agulha queentra na carne que se condensam todas asdores. A dor psíquica e a doença lhetrazem, paradoxalmente, um alívio paraas dores da vida. Meus irmãos dizem quesou depressiva, mas não sou, sou feliz,em vista do que eu estava com aquelemonstro.

Os pequenos prazeres são mencio-nados pela primeira vez, nesta longa en-trevista. Para mim me divertir é ir achurrasco, em um aniversário. Foi preci-so que ela chegasse ao fundo do poçopara que seu pedido de ajuda fosse escu-tado. Ela relata que recebe atenção dosmédicos e remédios; recebeu seguro-saú-

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de e passou a ter sua própria roça; a irmãcuida da filha, a mãe agora a trata comcarinho. Se estou dormindo ela nem abrea porta do quarto para não me incomo-dar. Sinto-me protegida com a minhamãe. Deus está cuidando dela: a cargaviral baixou de 3800 para 800, o vírusestá dormindo, e sua filha não foi conta-minada, com a graça de Jesus. Concluin-do, graças à doença a idéia de proteção,antes um significante vazio, ganha umsentido nesta história de vida. Em contra-partida, é apenas no processo da entrevis-ta que uma história de vida chega a seconstituir.

Considerações finais

A conclusão — a interpretaçãopsicanalítica da transcrição da entrevista— foi apresentada no início do trabalhointerpretativo para que agora possamosdiscutir a idéia de pesquisa em psicanálise.

Como ficou ilustrado, o que podeser apresentado como “método psicana-lítico” — guardadas as ressalvas jáesboçadas — consiste em efetuar certosrecortes que não são arbitrários, pois vãosendo solicitados pela própria análise emandamento e se transformam à medidaque a análise transcorre. No caso, foi acontratransferência da entrevistadora di-ante do beijo da mãe aidética na boca dafilha — uma sensação forte de perigo efalta de proteção — que instalou o hori-zonte e o espaço por onde os recortes ecosturas interpretativos caminharam. Apartir daí, eram os achados que determi-

navam os rumos das invenções, e vice-versa. Ou seja, é a própria interpretação,à medida que tramita, que funciona comoeixo para a escuta/recorte de novos frag-mentos, os quais, quando interpretados,terão a mesma função com relação aomaterial que virá.

O primeiro recorte, como vimos,foi efetuado a partir da sensação contra-transferencial de “beijo perigoso”. Mes-mo sabendo que AIDS não se transmitepor beijos, o psicanalista toma em consi-deração o impacto emocional experimen-tado diante da cena, sabendo que há defazer sentido em algum outro campo. Éentão que se abre — em uma espécie delance antecipatório — o campo da inter-pretação.

Cabem algumas consideraçõessobre o alcance do “método psicanalíti-co”. Este pode ser usado para interpretarqualquer fenômeno que faça parte douniverso simbólico do homem: sessõesde psicoterapia, entrevistas, qualquer tipode material apresentativo-expressivo(projetivo), fenômenos sociais ou insti-tucionais, material clínico colhido de gru-pos de pacientes (colostomizados, fóbicosetc.). Por outro lado, não é adequado paradescobrir relações de causa e efeito, nempara transpor descobertas feitas num cam-po para outro. Nem é preciso dizer queinvestigações feitas por meio deste pro-cedimento não se prestam para tratamen-to estatístico. Com relação à verdade dainterpretação, ela é sempre relativa aoprocesso que a produziu e este processo— como qualquer estratégia — é

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irrepetível e singular. No caso, ele teveinício com a escuta do “beijo perigoso”.Mas pode haver outra interpretação igual-mente verdadeira, e uma pode ser maisútil do que a outra, dependendo do con-texto, e do uso, que se venha a fazer dela.De qualquer modo, a verdade de umainterpretação não pode ser tomada comodefinitiva, mas sempre provisória. Nemcomo totalizante, pois é sempre uma ver-dade parcial, uma perspectiva seleciona-da do seu objeto.

Ainda com relação ao alcance des-te método, é importante enfatizar quetoda investigação psicanalítica tem al-gum efeito terapêutico, no sentido ampli-ado do termo. Recordemos que esta in-vestigação partiu da observação de umamulher que, apesar de ter todas as infor-mações sobre prevenção da AIDS, eraHIV positivo. Ora, o efeito terapêutico dainvestigação deste fragmento da realida-de só pode incidir diretamente sobre ele,e não sobre a moça entrevistada. Daí, aidéia de efeito terapêutico no sentidoampliado do termo, pois, neste caso, oefeito terapêutico se dá com/pela desco-berta de que uma campanha meramenteinformativa tem seus limites; de que es-tes limites se relacionam com a ausênciade certas matrizes simbólicas, tornando ainformação inoperante; e de que as estra-tégias em saúde pública não podem fazera economia da construção destas matri-zes simbólicas. Instrumentando-se o efei-to terapêutico obtido, o ideal seria queestas informações fossem passadas aospoucos, em grupos terapêuticos. Estes

grupos ofereceriam, no aqui-e-agora docampo transferencial, criado entre agen-tes de saúde e participantes, a experiên-cia emocional de “serem cuidados”, fun-dando-se, assim, esta matriz simbólicacompartilhada. Espera-se que, por meiodeste processo, as informações “técni-cas” possam vir a se tornar realmenteoperantes.

Nada impede, porém, que, saindodo campo próprio a esta investigação,pensemos no efeito terapêutico de que sebeneficiou a moça entrevistada. Em certomomento ela diz: “O único apoio que tivefoi você”. Ao sentir-se escutada, e, prin-cipalmente, sabendo que sua narrativadará “um livro”, ela está expressando, àsua maneira, que a sua vida e a sucessãode seus sofrimentos passaram a ter umsentido — passaram a se constituir emacontecimentos de sua história. Nestacondição, podem vir inclusive a benefici-ar outras mulheres que, como ela, nãopuderam contar com um ambiente sufici-entemente bom. Poderíamos ainda dizer,avançando para a dimensão intrapsíquicada moça entrevistada, que a incapacidadede conceber um espaço protegido desfal-cara este psiquismo de uma função egói-ca fundamental e, assim, privara o eudesta pessoa da capacidade de se apropriarde recursos e usar em seu proveito informa-ções cruciais. Uma certa dimensão destasfalhas de constituição subjetiva parece tersido tocada na entrevista, o que se expressano agradecimento pelo “apoio”.

De todo modo, em termos de pes-quisa psicanalítica, convém que o inves-

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tigador não pretenda mais do que suainvestigação permite. Quando investigana clínica, suas conclusões valem para aclínica. Quando investiga um fragmentoda realidade, suas conclusões valem parao fragmento estudado. E isto já é o bas-tante para tornar a atividade de pesquisaem psicanálise perfeitamente respeitável.

REFERÊNCIAS

Green, A. (2002). Idées directrices de lapsychanalyse contemporaine. Paris:PUF.

Mezan, R. (1979). A trama dos concei-tos. São Paulo: Perspectiva.

Mezan R. (1985). Freud, pensador dacultura. São Paulo: Brasiliense.

Minerbo, M. (2000). Estratégias de inves-tigação em psicanálise. São Paulo:Casa do Psicólogo.

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SUMMARY

Research in psychoanalysis: some ideas and an example

Initially the authors differentiate research in psychoanalysis and research withthe use of the psychoanalytic method. In the first case psychoanalysis is the object ofresearch. The researcher does not need to be an active psychoanalyst. He may be aphilosopher, a historian, a sociologist or a literary critic. In the second case apsychoanalyst is required. In this case, the object, the subject (the researcher) and hismeans of investigation (technical concepts) are transformed in the end of the research.The procedure is then minutely exemplified by the analysis of an interview. In the finalconsiderations, the therapeutic dimension and its field of validity are considered alongwith the investigative dimension.

Key words: Research in psychoanalysis. Research with the psychoanalytic method.Psychoanalytic analysis of an interview.

RESUMEN

Investigación en psicoanálisis: algunas ideas y un ejemplo

Inicialmente, los autores presentan una diferenciación entre la investigación enpsicoanálisis y la investigación que usa el método psicoanalítico. En el primer caso,el psicoanálisis es el objeto de la investigación, y el investigador no necesita ser unpsicoanalista actuante. Puede ser un filósofo, un historiador, un sociólogo o un críticoliterario. En el segundo caso se requiere un psicoanalista. Después de la investigación,el objeto, el sujeto (el investigador) y sus medios de investigación (conceptos,técnicas) sufren transformaciones. Enseguida, el procedimiento es minuciosamenteejemplificado con el análisis de una entrevista. En las consideraciones finales secoloca, al lado de la dimensión investigativa, la dimensión terapéutica de la investigación,así como su campo de validad.

Palabras-llave: Investigación en psicoanálisis. Investigación con el métodopsicoanalítico. Análisis psicoanalítico de entrevista.

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Recebido em: 11/04/06Aceito em: 11/05/06