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Universidade de Brasília Instituto de Artes Departamento de Artes Cênicas RAFAEL Augusto TURSI Matsutacke PÉS? A criação do movimento expressivo por pessoas com deficiência Brasília, 2011

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Universidade de Brasília

Instituto de Artes

Departamento de Artes Cênicas

RAFAEL Augusto TURSI Matsutacke

PÉS?

A criação do movimento expressivo por pessoas com deficiência

Brasília, 2011

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RAFAEL AUGUSTO TURSI MATSUTACKE

PÉS?

A criação do movimento expressivo por pessoas com deficiência

Trabalho de conclusão do curso de Artes

Cênicas, habilitação em Licenciatura, do

Departamento de Artes Cênicas do Instituto de

Artes da Universidade de Brasília.

Orientadora: Profª Ms. Fabiana Marroni Della

Giustina

Brasília, 2011

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AGRADECIMENTOS

Eu confesso, este foi um trabalho realizado por muitos corpos e sem os quais ele não

teria acontecido. Cada um ao seu tempo e todo mundo ao mesmo tempo. Em primeiro lugar o

coração. Agradeço a Deus pela pulsão do movimento que há em mim e agradeço a vocês, Pai,

Mãe, Xande, Té, Tia e Adni pelos batimentos diários. À Fabiana, minha super-orientadora,

que foi a minha cabeça e me ajudou a pensar este trabalho com zelo e dedicação. À Clarinha,

Alê, Analu, Wel e Rô que foram os meus braços e ajudaram a conduzir com determinação

todo este processo me monitorando em tudo. Aos amigos Glauco, Vinícius e Diego que foram

meus ouvidos e foram chegando aos poucos ouvindo as minhas necessidades. À Aira, Ângela,

Cristina e Simone por terem sido meus olhos e me ensinado o que devia olhar quando eu

olhava suas filhas. E claro, à eles que foram os meus PÉS e caminharam este processo junto

comigo passo por passo: à Kelly, Marina, Monise, Thainá e Felipe o meu muitíssimo

obrigado. SEMPRE.

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À Maiara,

uma grande amiga e a maior inspiração para este trabalho.

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RESUMO

A construção deste trabalho se dará na experimentação didática do estímulo, criação e

análise do movimento expressivo para pessoas com deficiência através de atividades de teatro

e dança, tendo como principais fundamentos o estudo de uma pedagogia do movimento aliada

a alfabetização estética dos envolvidos. Este processo se dará com base no trabalho realizado

com grupo de alunos do projeto “PÉS?”, criado como extensão desta pesquisa.

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SUMÁRIO

COMO DANÇA QUEM NÃO DANÇA? 08

1. O CORPO QUE MOVE 13

1.1. A Perna não faz o que o Joelho Quer 15

2. UM É POUCO, DOIS É BOM, TRÊS É MELHOR 19

2.1. Conceituação Ético-Conceitual-Estética 19

2.1.1. Conceituação Ética 19

2.1.2. Conceituação Conceitual 20

2.1.3. Conceituação Estética 27

3. ÁGUA MOLE EM PEDRA DURA TANTO BATE ATÉ QUE FURA 28

3.1. Klepsydra 29

3.2. Eu já falei, vou repetir! 37

DAR O PEIXE OU ENSINAR A PESCAR? 40

.

REFERÊNCIAS 41

ANEXO 1 - Cartaz 42

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QUADROS E FIGURAS

Quadro 01. Quadro Resumo de Comprometimento. 17

Quadro 02. As oito ações básicas de esforço. 26

Figura 01. As vinte e sete direções de orientação espacial. (RENGEL, 2005, p.48) 22

Figura 02. O voo de Wendy rumo a Terra do Nunca (Peter Pan, 1953) 32

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COMO DANÇA QUEM NÃO DANÇA?

Mover-se é inato a todo ser humano vivo. E sim, esta pode ser uma afirmação perigosa

para se iniciar um texto acadêmico, eu sei. Mas ainda sim é uma afirmação real, pois mesmo

que estejamos aparentemente parados e imóveis, por dentro de cada um de nós existem

batimentos cardíacos, pulsações, fluxo sanguíneo, multiplicação celular, construção de

pensamentos e uma variedade de outros fenômenos que acontecem por movimentos, ainda

que internos. São esses movimentos que nos caracterizam como seres vivos.

Lenira Rengel (2003) afirma a importância de percebermos que existe movimento

mesmo na imobilidade e que o movimento não acontece somente fora do corpo. A percepção

do movimento externo, porém, é ainda sim detentora de um foco de observação bem maior do

que quando comparado aos nossos espaços internos. Esta afirmação, sim, poderia estar errada

se estivéssemos falando de uma pesquisa da biologia e seus aspectos biológicos, mas não é o

caso. E mesmo não sendo, falaremos sobre o corpo humano, limitações físicas, sinapses1 e

outras coisas que pouco (ou muito) tem a ver, como, por exemplo, os processos de

aprendizagem.

Falando sobre processos de aprendizagem abordaremos metodologias pedagógicas

para a criação do movimento e princípios para uma alfabetização estética. Ah! Eu já ia me

esquecendo de dizer para quem é esta proposta de processos, metodologias e princípios. Ela é

uma proposta para pessoas com deficiências. Que deficiência? Qualquer deficiência. Que

pessoa? Qualquer pessoa. Poderia ser para mim que escrevo, para você leitor que me lê, para

aquele outro que fez parte do meu grupo ou para aquela uma que está afim. E eu não digo isso

por prepotência, digo porque quando penso no trabalho com pessoas com deficiência, onde

terei de pensar em diferentes formas de ensino e avaliação para cada aluno, de acordo com o

1 “Muitos fatores no cérebro não foram bem compreendidos, entre os neurocientistas, mais sabemos que o

cérebro possui uma plasticidade incrível, isso é, sofre alterações a todo o momento. Essas alterações se dão no

momento em que o cérebro é estimulado, modificando a sua anatomia. Segundo Paola Gentile (2005, p.54) o

cérebro possui bilhões de neurônios, e cada neurônio pode ter até 100 mil contatos, essas áreas de contato entre

neurônios através de partículas de sódio, potássio, cálcio e cloreto é conhecida como área sináptica onde ocorre a

sinapse, isto é local onde ocorrem ligações entre neurônios através de impulsos nervosos ou eletroquímico

chamado de potenciais de ação. Esse é um relatório que a autora faz com relação a nossa comunicação interna,

que se da através de neurônios uma vez excitados por estímulos. Sabe-se hoje que o cérebro armazena fatos

separadamente, entre neurônios, e que a aprendizagem se da quando associados através das sinapses, essa

associação ocorre quando novos estímulos provenientes do meio através dos sentidos são propagados, daí a

importância do educador saber como proporcionar esses estímulos.” (Célio Garcia, 2005)

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seu desenvolvimento, penso que isto deveria ser feito com qualquer aluno de qualquer outro

processo.

E este projeto visa o estimulo da criação do movimento expressivo para pessoas com

deficiência. A real problemática aqui é acerca do movimento e sobre compreendermos como

ele é feito e de onde ele surge. E com isso, surge a necessidade da busca por uma metodologia

de pesquisa do movimento.

Adepto de treinamentos de lutas e acrobacias de saltos e rolamento, a metodologia do

treino e repetição me é objeto antigo de estudo. A possibilidade de buscar essa metodologia

no processo de criação cênico é a força geratriz desta pesquisa. A escolha pela teoria de

Rudolf Laban2 para a análise da criação neste trabalho vem junto com meu processo

acadêmico na Universidade de Brasília - UnB. Meu primeiro contato com a teoria de Laban

para o movimento foi no início do curso na disciplina Corpo e Movimento 2 (2005),

ministrada pela professora Soraia Silva3, onde apresentava as dinâmicas do movimento, a

combinação de fatores qualitativos que geram as ações básica de esforço. Depois, no

treinamento da disciplina Interpretação 1 (2006), com a professora Alice Stefania4, a

abordagem em Laban sobre ações físicas e algumas aplicações das ações básicas de esforço

na movimentação da personagem teatral. Em Expressão Corporal 2 (2006), também com a

professora Soraia Silva, reaplicamos, porém com maior ênfase, os aspectos qualitativos do

movimento nos exercícios propostos. Adiante, na disciplina Expressão Corporal 3 (2007),

com a professora Luciana Lara5, a introdução da cinetografia, a teoria proposta por Laban

para registro e anotação do movimento, conhecido também como Labanotação, e outras

experimentações de movimento. Em outro momento, no trabalho de conclusão do curso de

2 Rudolf Laban (Hungria, 1879-1958), foi coreógrafo, bailarino, filósofo da dança e professor. Considerado um

dos maiores teóricos da dança do século XX, Laban estudou e sistematizou a linguagem corporal em diversos

aspectos, incluindo criação e educação.

3 Soraia Maria Silva é graduada em Dança pela Universidade Estadual de Campinas (1989), mestre em Artes

pela Universidade Estadual de Campinas (1994), doutora em Literatura pela Universidade de Brasília (2003) e

professora adjunta do Depto de Artes Cênicas da Universidade de Brasília desde 1998, lecionando

principalmente na cadeia de corpo, movimento e linguagem. 4 Alice Stefania Curi é graduada em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília (1995), Mestre em Arte

pela Universidade de Brasília (2000), doutora em Artes Cênicas pela, Universidade Federal da Bahia (2007) e

professora adjunta do Depto de Artes Cênicas da Universidade de Brasília desde 2006, lecionando

principalmente na cadeia de interpretação teatral. 5 Luciana Soares Lara é especializada no Laban Centre for Movement and Dance (1998), graduada em Artes

Cênicas pela Faculdade Dulcina de Moraes (2005), e mestranda em Arte na Universidade de Brasília, onde foi

professora substituta entre 2007 e 2008, lecionando principalmente na cadeia de corpo e movimento.

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bacharel em artes cênicas (2008), busquei o estudo do sistema Laban para criação de uma

personagem teatral (emocional, psicológico e físico).

No decorrer desta pesquisa para criação da personagem, uma amiga muito próxima

sofreu um acidente de transito que a deixou com tetraparesia6. Ao acompanhar seu tratamento

na Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, em Brasília/DF, e sem qualquer crítica ao

mesmo, observei que as atividades complementares de reeducação do corpo, são em sua

maioria atividades esportivas, englobando poucas vezes o campo artístico. Comecei então a

me questionar sobre a possibilidade do exercício do teatro e da dança como reeducador

corporal para pessoas com deficiência. Este processo coincide com minha entrada para cursar

a dupla-habilitação no curso, onde através das disciplinas psicopedagógicas tive contato com

conteúdos sobre educação especial, integração e inclusão escolar.

Vendo a possibilidade de aplicação da pesquisa sobre Laban, de maneira consciente,

para gerar movimentos cotidianos em cena, e repeti-los posteriormente com precisão, nasce,

então, a idéia de estudar o sistema para sua aplicação na educação física de pessoas com

deficiência através da expressão corporal.

A criação de coreografias a partir da perspectiva do movimento de Laban é

comumente vista no âmbito da dança em todo o mundo, porém, no Brasil, é ainda pouco

recorrente na sistematização do trabalho cênico. Luciana Lara diz que isso acontece devido ao

desenvolvimento na dança moderna, mas que “suas idéias [de Laban] vem sendo usadas em

métodos de treinamento do artista cênico desde o início do desenvolvimento de sua teoria, em

consonância com as concepções de que não há divisão entre dança e teatro, corpo e mente,

movimento e texto.” (LARA, 2005). Laban pensou o corpo como corponectivo (RENGEL,

2005), corpo e mente juntos; e fazia a seguinte distinção entre os termos corporal e físico:

“Ação Corporal é a ação que compreende um envolvimento total da pessoa, [integrando os

âmbitos] racional, emocional e físico. Ação Física, é a ação que compreende a função

mecânica do corpo.” (NORTH apud RENGEL, 2005, p.23)7. A relação de todos esses

elementos permite o estudo do movimento humano. Conforme Ciane Fernandes:

O que hoje chamamos de Sistema Laban ou Análise Laban de Movimento

(até os anos 80 chamado de sistema Effort-Shape, Expressividade-Forma) consiste

de fato, em uma série de desenvolvimentos realizados até o momento por

profissionais das mais variadas localidades, atualizados e divulgados em congressos

6 Paralisia incompleta de nervo ou músculo dos membros inferiores e superiores que não perderam inteiramente

a sensibilidade e o movimento.

7 North, M. – Moviment education – child development though body motion. New York: E.P. Dutton & CO.,

INC., 1973

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e publicações periódicas. Atualmente a Análise Laban de Movimento,

internacionalmente abreviada como LMA, Laban Movement Analysis (Moore e

Yamamoto, 1988) é usada como forma de descrição e registro de movimento cênico

ou cotidiano (de cunho artístico e/ou científico), método de treinamento corporal

(teatro, dança, musical), coreográfico, diagnóstico e tratamento em dança-terapia.

(FERNANDES, 2002, p.28).

É nesse sentido da Análise Laban do Movimento como treinamento corporal associada

a dança-terapia que se dará a elaboração desta monografia, vinculando, ainda, a dança como

terapia ocupacional, buscando como resultados um questionamento sobre o exercício da

expressão corporal cênica como facilitadora do processo de reeducação corporal de pessoas

com deficiência.

Não se objetivava ao final deste processo a criação artística de uma apresentação final,

e sim a sistematização do exercício, porém, a idéia de elaborar um espetáculo com

apresentações públicas não foi, tampouco, descartada.

Outro mote desta pesquisa é a observação pela ausência de projetos destinados à

pessoas com deficiências. Esses projetos existem? Sim, mas por vezes não são suficientes ou

não oferecem uma gama de opções a este público, que aqui tentaremos tratar como

protagonistas desta ação. A inclusão social, assim como o acesso a educação e a cultura é

direito garantido a todos pela constituição federal, porém, por despreparo dos

professores/formadores e pela falta de infra-estrutura necessária, esses direitos ficam

comprometidos em todas as suas etapas, e sujeito, em sua maioria, apenas as instituições

particulares, e as vezes nem mesmo elas o fazem. A proposta deste trabalho foi oferecer este

laboratório como projeto de extensão da universidade. E deu certo, o projeto “PÉS?”, com

coordenação da professora Fabiana Marroni8 e assistência de coordenação minha, é hoje um

Projeto de Extensão e Ação Contínua da Universidade de Brasília – PEAC9 - que visa a

pesquisa do trabalho corporal expressivo para pessoas com deficiências, quaisquer que sejam.

O projeto é aberto à comunidade e tem como foco o desenvolvimento da integralidade e da

socialização, garantindo acessibilidade à informação em pesquisa.

8 Mestre em Arte pelo Programa de Pós-graduação em Arte Contemporânea da Universidade de Brasília (2009) e

especialista em Psicopedagogia em Contexto Escolar pela Universidade Católica de Uberlândia (2005).

Professora do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília UnB, desde novembro de 2009, onde

atua nas áreas de pedagogia teatral e de movimento e linguagem.

9 As ações de extensão se desenvolvem por meio das unidades acadêmicas e administrativas da UnB, em

processos educativos, culturais e científicos, articulados com o ensino e a pesquisa. É por meio da ação

extensionista envolvendo professores, estudantes e técnicos que a Universidade interage com a sociedade, em

um exercício de contribuição mútua. São projetos e programas contínuos e especiais, cursos e eventos

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Acho que é isso. Aliás, sim, é sobre isso que trata este trabalho, e como você já deve

ter percebido durante esta introdução, o meu posicionamento pessoal na elaboração desta

pesquisa me permitirá o dialogo em alguns momentos, me questionando, indagando a você,

leitor, e até mesmo o sistema a fim de tentar construir um pensamento coletivo. Finalizando e

antes de tentar responder a pergunta título desta introdução, “como dança quem não dança?”,

buscaremos explanar e entender, primeiramente, o que é movimento.

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1. O CORPO QUE MOVE

“O corpo tem uma linguagem própria e necessita se expressar. Não

precisa de palavras, mas de movimento.” (Eliana Carneiro).

A análise do movimento é o tema objeto desta pesquisa, portanto, antes de debruçar

em busca de uma análise do movimento para pessoas com deficiência, seguem algumas

definições para o verbete movimento e as suas referências:

O que é movimento? Essa é a pergunta título do artigo de Ana Cintra (1999), onde

ela diz que o movimento, segundo pode-se observar, precisa minimamente de um corpo, de

uma ação, e de um espaço. Talvez seja possível dizer-se do movimento que seja a descrição

de um determinado desenho no espaço em determinada relação com o tempo, que lhe confira

maior ou menor velocidade, fluência, aceleração, e/ou outros elementos de tempo-espaço. Ou

ainda que seja uma dada ocupação do tempo com ações corporais relacionadas ao espaço.

Podemos, portanto, escolher uma das dimensões como ponto de partida para uma perspectiva

sobre o movimento, não excludentes e complementares. Já em uma definição literal, o

Dicionário Brasileiro Globo (2006) traduz o significado da palavra movimento como o “ato

ou efeito de mover ou de mover-se; deslocação; mudança de lugar ou de posição; agitação;

animação; evolução; giro; revolta; andamento musical; impulso interior; evolução das idéias;

afluência de gente a andar; gesto”. Vale grifar a definição “impulso interior”. Vamos usá-la

algumas vezes no nosso contexto.

Num contexto de corpo como linguagem e tratando da dança, o Pequeno Manual de

Corpos e Danças, de Eliana Carneiro (2007), diz que movimento “é linguagem, é

comunicação, é vida” e completa “A motivação ou o estímulo para o movimento pode ser de

origem interna ou externa. Deve-se percebê-la com sensibilidade, deixá-lo fluir e responder os

variados estímulos que o cercam”. Érica Verderi, em seu artigo Música / Rítmo / Movimento,

diz que o movimento no homem determina a ação corporal que é representada pela expressão

da corporeidade. Diz que podemos considerar o movimento como uma alteração do corpo em

diversos segmentos do espaço, também como, uma característica de todo ser vivo. O

movimento é a materialização do corpo na conduta humana e o feixe de onde saem as ações

concretas do pensamento.

Em outro tipo de dicionário, o Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis (2005), é curto

e diz que movimento é “a maneira neutra e comum de designar a atividade do ator e mesmo

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seu treinamento (aula de “movimento”). O movimento fornece uma primeira abordagem geral

à análise do ator e reagrupa a maioria das questões sobre o corpo, o gestual e o jogo do ator”.

Ao procurar-se o verbete movimento no Dicionário Laban, de Lenira Rengel (2003), vemos

que ela não trás uma definição única para o verbete movimento. Ela classifica o movimento

de acordo com os estudos de Laban, podendo ser classificado como ativo, cardial, causal,

central, coral, córdico, de sombra, do balanceio, dramático, funcional, gestual, passivo,

periférico, postural, ritual, simétrico, simultâneo ou sucessivo. Por fim, em seu livro Klaus

Vianna: Estudos para uma Dramaturgia Corporal, Neide Neves (2008) diz que movimento

é imaginação corporeificada.

A partir de todas essas definições, entramos no nosso processo de compreensão

de como o jogo da criação do movimento expressivo pode vir a favorecer pessoas físico-

debilitados na busca pelo conhecimento de seus corpos, suas igualdades e suas

especificidades. Ah! E não pense que eu me esqueci de que no final do capítulo anterior eu

estava indo responder a minha pergunta sobre como dança quem não dança. A minha resposta

é simplesmente dançando. Sim, dançando. Em minha opinião o que é preciso é que ela queira

dançar e se mover. E movimento para mim é a ação do fazer, a tentativa e o erro (porque nele

também houve ação) e até a intenção será admitida como tal. Vale o movimento do olhar e o

da respiração; o da inspiração e até o do abandono. Talvez eu só não aceite o “não querer” e o

“não tentar” como opções de movimento aqui, pois para este trabalho, o desejo e a vontade

serão fundamentais. Afinal, esta pesquisa de movimento também quer abordar o sorriso e a

qualidade de vida como conclusivos neste treinamento. Eu disse treinamento? Humm, talvez

esta não seja a melhor palavra... Como a ideia é a pesquisa, admitindo-se o erro, a criação, o

ineditismo de algumas atividades e até o empirismo, onde o conhecimento é adquirido pelas

sensações e experiências, e cujas habilidades adquiridas no processo derivem da experiência

prática e não apenas da instrução da teoria, o melhor talvez seja algo que tenha mais haver

com isso. Repare que na frase anterior, a palavra “experiência” acaba de aparecer duas vezes.

E não foi toa. Não sei para você leitor, mas para mim, a ideia do labor, é mais sensível e

palpável neste processo. Portanto, quando me referir ao laboratório que será executado,

entendam-se os nossos encontros, aulas e ensaios.

Nossos encontros? Encontros de quem? Quem faz parte disso? Quem vai laborar

movimentos conosco? Quanto mais a gente se perdeu, mais a gente se achou. Assim também

foi o nosso trabalho.

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1.1. A perna não faz o que o joelho quer

“Se uma criança não pode aprender da maneira que é ensinada, é

melhor ensiná-la da maneira que ela pode aprender.”

(Marion Welchmann)

Como dito anteriormente, a ideia para execução da pesquisa foi torná-la um Projeto de

Extensão da UnB. O intuito de vincular o projeto com o Decanato de Extensão – DEX -

possibilitaria aos alunos do projeto, uma bolsa financeira mensal para ajuda de custo, créditos

curriculares e certificado de participação no mesmo. A proposta foi lançada e aceita com

unanimidade tanto pelo colegiado de professores do Departamento de Artes Cênicas – CEN -

como pela câmara de extensão da universidade. O projeto recebeu então o apoio da mídia do

campus universitário e de jornais da cidade para divulgação da proposta.

A primeira proposta ofertada, porém, era oferecer um laboratório sobre o movimento

expressivo para pessoas com paraplegia nos membros inferiores, ou seja, que tivessem apenas

o funcionamento das pernas comprometido, e com isso os braços possivelmente fortes, falas

usuais e o desenvolvimento cognitivo em estado preservado. Esse tipo de deficiência é

geralmente oriundo de acidentes ou de doenças como a poliomielite e não de nascença.

Quando da divulgação do projeto, me deparei na universidade com o minicurso Deficiência:

Vamos Discutir (PET/SER/UnB)10

e com o Programa para Portadores de Necessidades

Especiais - PPNE/UnB. E com isso, o empecilho de que quase não existem alunos

paraplégicos na UnB; existiam no cadastro um aluno e um funcionário no campus Darcy

Ribeiro, e um aluno e um professor no campus de Ceilândia e nenhum dos quatro tinha

disponibilidade de horários.

Mudança de planos, e a ideia seria então ofertar as bolsas para alunos da UnB com

interesse em atuarem como monitores na pesquisa e ofertar o projeto para a comunidade

distrital. Como monitores, tivemos neste momento a entrada de Alessandra (dançarina de

diversos grupos em Brasília e aluna do curso de Terapia Ocupacional/UnB Ceilândia), Clara

(fotógrafa, baterista e aluna do curso de Artes Visuais/UnB) e Wellington (aluno do curso de

10 PET/SER - Programa de Educação Tutorial/Depto de Serviço Social. O PET objetiva envolver os estudantes

que dele participam num processo de formação integral, propiciando–lhes uma compreensão abrangente e

aprofundada de sua área de estudos.

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Artes Cênicas/UnB). Mais tarde, entrariam para a equipe: Ana Luísa (aluna de Artes

Cênicas/UnB), Rodrigo (aluno de Artes Visuais/UnB) e Vinícius (músico e web designer).

Tão logo foi aberto o projeto para a comunidade, um grupo entrou em contato com a

orientadora da pesquisa com uma contraproposta; eles já eram um grupo, porém estavam sem

professor para atuar com eles. O que parecia juntar o útil ao agradável me pareceu a princípio

como outro empecilho, pois apesar de ser um grupo de cinco pessoas com deficiência que já

trabalhavam juntas, não havia no grupo sequer uma pessoa com paraplegia como se idealizava

inicialmente.

Diminuir o desafio não era de se cogitar, mas ampliá-lo estava dentro da proposta.

Então após conversas, dúvidas e novos interesses de pesquisa entre orientando e orientadora, a

contraproposta foi aceita. O próximo passo seria conhecer o grupo e identificar as novas

possibilidades.

O primeiro encontro com as cinco alunas do grupo seria uma apresentação mútua para

conhecermos quem é quem, suas deficiências e meus interesses. Foi um encontro decisivo

para a realização do projeto e o sorriso das alunas com a chegada de um novo professor foi o

primeiro passo. Ao explicar o método que planejava trabalhar, o interesse por parte delas foi

ainda maior devido às experiências anteriores. A ideia é trabalhar o indivíduo no coletivo,

buscando uma unidade como um todo, porém, exercitando suas especificidades. Neste

encontro ainda, elas realizaram uma sequencia de exercícios de alongamento para demonstrar

os movimentos que executavam. A proposta de trabalho foi aceita por ambas as partes e no

encontro seguinte as aulas se iniciariam.

Erroneamente por minha parte, preparei uma primeira aula que julguei que seria

fenomenal para aplicar. Trabalharíamos com massa de modelar a fim de identificar a

coordenação motora fina que existia no movimento dos dedos das alunas. O exercício foi bem

aceito por algumas e até serviu ao seu propósito, porém somente na aplicação, observei

realmente as diferenças entre elas. Eu estava num grupo de cinco alunas, com cinco

deficiências diferentes, o que me exigiria cinco abordagens diferentes de um mesmo

conteúdo, para aplicação da mesma aula.

Este momento exigiu um novo debruçar sobre a bibliografia e a busca de novas

referências. A ideia de inclusão de todos é possível, exigindo, porém, uma experimentação/

preparação prática maior para gerar uma avaliação imediata, posteriormente às aulas. A

instrução e preparação para os encontros passaram a ser realizada em reunião apenas com os

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17

monitores do projeto. Essas reuniões aconteciam uma vez por semana em dia e horário a parte

do laboratório com as alunas.

As cinco alunas do projeto neste momento são: Kelly, de 36 anos, áfona e com

paralisia cerebral grave (fazendo com que fique na posição deitada em sua cadeira de rodas e

gerando pequenos retardos cognitivos), Laís, de 11 anos, com deficiência intelectual leve

(gerando dificuldade de assimilação de conteúdos e falta de coordenação motora), Marina, de

22 anos, com dificuldade de fala e paralisia cerebral média (tem cognitivo preservado e apesar

de ter alguns movimentos, fica sentada na cadeira de rodas devido à falta de equilíbrio e

sustentação do quadril), Monise, de 18 anos, com deficiência múltipla envolvendo deficiência

intelectual grave e paralisia cerebral leve (anda e se move com dificuldade física, tem

dificuldade na fala e alto grau de cognitivo defasado) e Thainá, de 18 anos, com Síndrome de

Kabuki11

, causando deficiência intelectual leve e baixo tônus muscular, alterando a

coordenação motora. Na metade do processo, tivemos a saída da aluna Laís e a entrada de um

homem no grupo. Felipe, de 25 anos, com tetraparesia (com cognitivo preservado, porém com

movimentação reduzida nos braços e pernas). Veja abaixo, quadro resumo dos integrantes:

Nome Deficiência Fala

Comprometida

Coordenação

Motora Fina

Comprometida

Cadeirante Déficit

Intelectual

Possui

Movimento

das

Pernas

Felipe Tetraparesia X X X

Kelly Paralisia

Cerebral

X X X

Marina Paralisia

Cerebral

X X X X

Monise Paralisia

Cerebral e

Deficiência

Intelecutal

X X X X

Thainá Síndrome

de Kabuki

X X

Quadro 01. Quadro Resumo de Comprometimento.

11

O nome foi dado devido a fácies típica, presente em 100% dos casos, lembrando a maquilagem dos atores do

teatro clássico japonês. (in, SOUZA, Jorge; RIBEIRO, Thereza; RIBEIRO Renata. A síndrome da máscara do

Cabúqui. Jornal de Pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria: 1996.)

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Devido à aceitação individual dos monitores, alunos e pais pela realização deste

trabalho e com respeito e interesse em protagonizá-los por suas ações, todos serão livremente

citados por seus nomes quando necessário. A cada avaliação são feitos os ajustes necessários

buscando uma didática própria junto com a sistematização dos exercícios. Adequação virou

uma palavra chave no trabalho; Como adequar os exercícios para cada uma das alunas? Como

adequar o processo de ensino? Como adequar o projeto para cada novo enfrentamento? Essas

perguntas fizeram parte do processo de aprendizagem que eu tive que passar para poder

ensinar o que eu queria. Nem sempre a perna faz o que o joelho quer.

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2. UM É POUCO, DOIS É BOM, TRÊS É MELHOR

Até aqui, o projeto me parece bem legal, mas é necessário entender ainda, quem vai

ensinar, o quê vai ensinar e como este projeto será aplicado.

2.1. Conceituação Ética-Conceitual-Estética

O processo didático “PÉS?” será dividido em duas grandes etapas, uma abrangendo a

pedagogia do movimento e outra a alfabetização estética dos alunos. Porém, antes de iniciar

este ensino, como o projeto tornou-se multidisciplinar com a presença de monitores com

diferentes formações, mas com este intuito de pesquisa, surgiu-se a necessidade de uma

conceituação nos quesitos ética-conceitual-estética do que se propunha com o trabalho.

2.1.1. Conceituação Ética

O primeiro ponto, ético, visa explanar a pessoa com quem estamos lidando, ou seja,

o como tratar pessoas com deficiência, e isso desde a nomenclatura. É considerada deficiência

“toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou

anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão

considerado normal para o ser humano” (Decreto 3.298 da Presidência da República).

Em geral, quando falam comigo sobre o meu trabalho, a maioria das pessoas, se

preocupando em tomar cuidado com o termo deficiência, pergunta se trabalho com “pessoas

portadoras de deficiência”; há os que tratam por “pessoas com necessidades”; outras mais

diretas preferem “pessoas especiais”, ou ainda “pessoas com necessidades especiais”; quando

todas as quatro estão igualmente erradas. O primeiro, ao trazer o termo portador de

deficiência, que pela definição gramatical da palavra, é aquele que porta algo, carrega consigo

e, portanto, pode deportá-la quando assim quiser, e não me parece ser este o caso das pessoas

com deficiência. O segundo ao tratar por pessoas com necessidade pode estar se referindo a

qualquer pessoa, uma vez que tanto eu, quanto ele ou você leitor, tem as suas necessidades. Já

o terceiro, que trazia o termo especial, deposita uma ideia de especialidade no indivíduo,

quase o mesmo erro cometido pelo quarto o chamando de pessoa com necessidades especiais.

O termo especial, quando referido a pessoa com deficiência cabe apenas quando falamos de

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processo educacional e neste caso, o correto é tão somente pessoa com necessidade

educacional especial, uma vez que se refira ao processo de ensino aprendizagem, pois este

deve ser especial. Entenda-se por especial o processo de ensino e a adequação curricular

necessária, e não o facilitar por julgá-lo incapaz da atividade. Quando quisermos nos referir a

pessoa com deficiência, portanto, o tratamento correto é exatamente este, pessoa com

deficiência. O termo foi definido pela Convenção sobre o Direto das Pessoas com Deficiência,

apresentada pela ONU em 2006 e aprovada e ratificada pelo Brasil em 2008. De acordo com a

Convenção:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo

prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com

diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em

igualdades de condições com as demais pessoas. (Presidência da República, 2011)

Os outros pontos que tratam sobre quesitos éticos, abordam o como lidar com pessoas

com cada uma das diferentes deficiências (físicas, sensoriais, intelectuais e/ou múltiplas), e

em primeiro ponto, temos: eles são deficientes e sabem que são. Ponto. Cabe então entender o

momento de auxiliar, de oferecer ajuda, de elogiar, de fazer cobranças e até desafios.

Por fim, o processo de leitura e interpretação dos laudos. Sim, apesar deste projeto não

ter profundo interesse biológico, é importante entender minimamente o que é a deficiência de

cada um dos alunos a fim de verificar o que é um ponto a ser trabalhado e o que podemos

admitir como pontos limitantes pela sua deficiência. Por vezes, bastariam conversas com os

pais para este assunto, mas como na maioria dos casos a deficiência não é recente, os pais já

se habituaram com ela de maneira prática e nem sempre saberão pontuar coisas que poderiam

ser obtidas pela leitura dos laudos médicos. Um ponto que reforça este quesito foi a entrega

dos laudos quando solicitados. A maioria deles eram datados há mais de um ano, havendo

casos onde não se sabia nem a existência de um original, uma vez que são quadros

permanentes e, em geral, não necessitam de atualizações.

Uma vez entendido com quem falamos, e importante saber o que queremos falar.

2.1.2. Conceituação Conceitual

Iremos tratar agora do processo de análise do movimento a ser criado, observado e

interferido e até educado. Deve-se inferir que eles já se movem à sua maneira e que o nosso

laboratório terá como finalidade localizar os pontos de eficiência, ou seja, onde eles já têm

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uma habilidade adquirida e o ponto a ser trabalhado, definido como ponto de trabalho, gerado

em maioria pela sua deficiência ou apenas por despreparo e falta de autoconhecimento

corporal e aliar uma à outra de modo a alavanca-lo na execução de uma nova atividade gerada

no seu ponto de trabalho. De acordo com Suelly Mello (in CARRARA, 2004), Vigotsky

apresenta essa dialógica como tendo o desenvolvimento real, o que ele já é capaz de executar,

e seu desenvolvimento potencial, determinado pelas habilidades que o indivíduo já construiu,

porém encontram-se em processo, ou seja, o que ele poderá adquirir. Na relação entre elas,

temos a Zona de Desenvolvimento Proximal – ZDP, considerada um nível de

desenvolvimento, fornecendo os indícios do potencial, e permitindo que os processos

educativos atuem de forma sistemática e individualizada. O indivíduo torna-se protagonista da

ação e da criação, “a descoberta do eu interno, de um ser único, individual e criativo, é

indispensável ao exercício da dança, se quisermos que ela se torne uma forma de expressão da

comunidade humana”, diz Neide Neves (2008).

Para tanto, opta-se pela escolha de um sistema de análise do movimento possível para

os movimentos executados pelos alunos do projeto, e que ajudem a sistematizar possíveis

exercícios para a criação de outros movimentos, gerando, contudo, um aumento do repertório

e vocabulário semântico para os mesmos.

A didática e a sistematização permeiam toda a criação corporal que se necessite da

repetição em sua execução. Existem diversos métodos para a busca desse corpo sistematizado,

entre eles o sistema criado por Rudolf Laban. Laban estabeleceu o ritmo industrial, que

avaliava as capacidades de trabalho em pesquisas do ritmo natural do homem, e desenvolveu

ainda, um sistema de notação da dança, conhecido como Labanotação. O sistema é

reconhecido no mundo todo e utilizado em diversas áreas da ciência e da arte, além de ser

praticado até mesmo para reconhecer traços da personalidade de uma pessoa através da

observação de seus movimentos. A análise do movimento em Laban abrange quatro fatores:

corpo, esforço, forma e espaço. Esses elementos permitem o estudo do movimento humano.

O sistema Laban, comumente aplicado a pessoas comuns, sem deficiências, será aqui

proposto para pessoas com deficiências. Associado a Analise Laban do Movimento, o

trabalho será reforçado com a práxis do teatro e da dança, além de exercícios específicos da

dança em cadeira de rodas12

, buscando como objetivo maior, benefícios e contribuições para a

qualidade de vida de pessoas com deficiência através da expressão corporal. O desafio

proposto é, então, orientar a sistematização de um trabalho corporal expressivo possível.

12

Extraído do relatório “Subsídios para competições oficiais de dança esportiva em cadeira de rodas” da

Confederação Brasileira de Dança em Cadeira de Rodas (2003).

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Para esta análise, devemos entender como Laban observa e analisa o movimento

corporal. Devemos observar ainda, o processo corporal como um processo de natureza e

cultura de um só corpo, onde aspectos físicos, biológicos, emocionais e intelectuais são

corponectivos, isto é, trazidos juntos. Soraia Silva diz que a análise labaniana permite ainda

“identificar e nomear os vários fatores e as qualidades envolvidas no movimento, expressando

a dinâmica subjacente segundo o conceito de unidade mente-corpo (eucinética), assim como

decifrar o conteúdo-forma ou definir as relações espaciais (...)” (SILVA, 2001).

Tratando de relações espaciais, faz-se necessária uma breve definição de corêutica, a

análise espacial, note, não é o fator Espaço e sim Espacial, os significados são diferente um do

outro, principalmente pelas expressões: o espaço no corpo, e o corpo no espaço. Na primeira

expressão, falamos do fator de movimento Espaço e como ele nos preenche. Na outra, tem-se

a espacialidade na cena, a cinesfera. Cinesféra é a esfera de espaço em volta do corpo na qual

e com a qual ele se move. O centro da cinesfera é o centro do agente. A cinesfera do agente

pode ser analisada em três vertentes, pelas dimensões espaciais, pelos planos espaciais e pelas

direções de orientação espacial, onde somando as direções mais o centro do agente, chegamos

às vinte e sete direções de orientação definidas por Laban, como podemos visualizar na figura

a seguir:

Figura 01. As vinte e sete direções de orientação espacial. (RENGEL, 2005, p.48)

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A partir de então, o primeiro ponto de localização é a identificação do corpo frágil,

ou fragilizado de maneira a entender suas especificidades. Para isso e pensando na teoria

proposta por Laban em seu Dança Educativa Moderna (1990), utilizaremos os Temas do

Movimento para essa conscientização. Os temas de movimento são um instrumental didático,

de aprendizado da teoria de movimento de Laban. Cada um dos temas trata de um conceito

e/ou uma idéia de movimento e corresponde a uma etapa na progressão da sensação e

compreensão mental/emocional do movimento. Um tema é sempre processo de outro.

Conforme Lenira Rengel, Laban desenvolveu seu trabalho em 16 temas, “conjuntos

de possibilidades com relação a se pensar, fazer e conhecer movimento” (RENGEL, 2008).

São eles relacionados com a consciência do corpo; do peso e tempo; do espaço; da fluência do

peso corporal no espaço e tempo; com a adaptação a parceiros; com o uso instrumental do

corpo; com as oito ações de esforço básicas; com os ritmos ocupacionais; com as formas do

movimento; com os ritmos dinâmicos e as transições das oito ações básicas; com a orientação

espacial; às afinidade de esforço e forma; com a elevação do solo; com o despertar da

sensação de grupo e a composição de grupo; com as formações grupais; e com significado,

expressão, comunicação e implementação no corpo.

Os temas se relacionam entre si, devido, principalmente, aos fatores do movimento:

fluência, espaço, peso e tempo; porém é possível dar atenção maior a um ou outro tema para

análise. O trabalho explanado aqui será, primordialmente, focado nos temas I - relacionado

com a consciência do corpo; tema V – relacionado com a adaptação a parceiros; tema VI -

relacionado ao uso instrumental do corpo; e tema VII – relacionado com as oito ações básicas

de esforço. Outros temas serão permeados devido a relação de desenvolvimento existente

entre eles, porém, sem que haja uma abordagem temática.

Tema do Movimento I - Relacionado com a consciência do corpo

Como ponto de partida, ouso dizer que é indiscutível a necessidade de uma pessoa

conhecer o próprio corpo e suas possibilidades físicas de movimento para a criação de

movimentos conscientes, de movimentos corponectivos.

Essa consciência nos abre as possibilidades de movimento e domínio das ações

físicas, mecânicas do movimento, as quais envolvem o esticar, dobrar e torcer. Apesar do

quase infinito número de ações que o corpo pode executar, o corpo humano tem apenas essas

três funções mecânicas para uso e delas todos os movimentos se originam.

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Essa primeira conscientização é percebida devido ao sentido sinestésico, sentido

mediante o qual percebe-se o esforço muscular, o movimento e a posição do corpo no espaço.

Esse corpo será analisado tanto em deslocamento quanto parado, lembrando que podemos

estar parados, porém, não imóveis. Esta imobilidade é visual, aparente, mas deve ser levado

em conta todo o organismo que se move dentro do corpo, olhares e pensamentos do agente.

Deste ponto chegamos às ações corporais, que compreendem o todo, o racional,

emocional e físico da pessoa. São ações habituais como caminhar, abotoar, sentar, virar,

levantar, correr, acenar, entre outros. Essas ações utilizam as funções mecânicas citadas, por

exemplo, o esticar e dobrar das pernas para locomoção, ou a torção do pescoço ao olhar para

um lado ou outro. As ações corporais permitem ainda uma experiência com diferentes

nuances das qualidades dos fatores de movimento, ao determinar qualidades específicas,

como por exemplo, andar para frente com pernas pesadas, ou ainda, com as pernas pesadas e

andando rapidamente.

Tema do Movimento IV - Relacionado com a adaptação a parceiros

Ao contrário do anterior onde o foco estava no agente, agora o foco será o outro,

afirma Pregnolatto (2004). A autora afirma ainda que, conforme aprofundado, ele propicia o

prazer pela descoberta do compartilhar e a ampliação do vocabulário pessoal a partir do outro.

Como diz o título deste tema, a intenção aqui será a experimentação do movimento

relacionado a outras pessoas, compartilhando a criação. Lenira Rengel (2003) explicita jogos

a serem trabalhados neste momento, como: “Fazendo o mesmo”, brincar de espelhos;

“Conversações com movimento”, estabelecendo diálogos apenas com movimentos;

“Dançando juntos”, onde, precisamente, o movimento tem que ser realizado por mais de uma

pessoa; “Dançando para o parceiro”, trabalhando a observação. Lenira fala de “aprender a

desenvolver e a estimular a fruição, fazer comentários sobre a dança, ouvir opinião [...] A

observação ajuda a aprender como são os movimentos e a conhecer o outro, a perceber e a

reconhecer significados” (ibidem, 2003); além de exercícios para dançar duos, trios etc. A

intenção é inferir movimento ao outro/ do outro. Laban cita uma “estátua solitária que muda

sua posição em resposta a outra estátua” (Laban apud Rengel, 2003).

Tema do Movimento VI - Relacionado com o uso instrumental do corpo

Este tema é diretamente ligado ao tema I, onde simultaneamente a aquisição de

consciência corporal, dar-se-á atenção ao que esse corpo é capaz de fazer. Parte-se de um

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vocabulário de movimento de diferentes atividades miméticas, e à medida que as ações vão

sendo experienciadas, o elemento mimético se dissolve. A importância desses elementos é a

metáfora gerada, a sensação e pensamentos que elas nos causam.

Este tema trata ainda de gestos, passos, locomoção, pular, virar e imobilidade. A

saber, segundo Laban (1978):

- Gestos incluem todos os movimentos do corpo que não estão concernentes a

suportar o peso. Podem ser feitos com as mãos, quadril, tronco e até pés se não

estiverem como suporte do corpo;

- Passos incluem todas as transferências de peso de suporte para outro (neste

caso o suporte são sempre os pés). Podem ser feitos apoiados nos calcanhares, nos

dedos, com os pés abertos ou paralelos, agachados, em circulo etc;

- Locomoção inclui maneiras de transportar o corpo de um lugar para outro.

Pode ser feita através dos passos, ou ainda, por rastejamentos, saltos e rolamentos

entre outros;

- Pular inclui todos os movimentos nos quais não há suporte de peso. Laban

decodificou cinco tipos de saltos: de um pé para o mesmo pé; de um pé para os dois

pés; de dois pés para dois pés; de dois para um pé; de um pé para o outro pé;

- Virar inclui todos os movimentos nos quais é feita uma mudança de frente. Em

Laban, é o centro do corpo (região do umbigo) que define o que é frente. Os giros

trazem a experiência de equilíbrio e do desequilíbrio;

- Imobilidade inclui fluência, tipos de equilíbrio e relações entre partes do corpo.

Tema do Movimento VII - Relacionado com as oito ações básicas de esforço

Colocando em ordem crescente de utilização, passamos por conhecer o corpo, saber

o que o corpo é capaz de fazer e agora, pela dinâmica dos movimentos, sobre como esse corpo

faz o movimento. Para esta análise precisamos entender segundo Laban, o que é esforço.

Segundo Luciana Lara, para Laban, o esforço não tem significado literal com o fazer força,

mas sim uma atitude interna. “O próprio esforço e a ação dele resultante podem ser

inconscientes e involuntários. Portanto, Esforço é a função interior que dá origem a mecânica

motora intrínseca do movimento.” (LARA, 2005). Lenira Rengel cita esforço como sendo a

pulsão de atitudes que se expressa em movimento visível, imprimindo-lhe variadas e

expressivas qualidades. “As atitudes internas são indicações daquilo que chamamos de caráter

e temperamento.” (LABAN, 1978). Sua combinação é feita a partir dos fatores naturais e

inerentes do movimento.

Esses fatores são observáveis nas atitudes corporais na experiência do movimento e

nos relacionamos com eles de forma integral. São eles, Fluência, Espaço, Peso e Tempo.

Ciane Fernandes define os fatores da seguinte forma:

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- Fluência: refere-se a tensão muscular usada para deixar fluir o

movimento (fluxo livre) ou por restringi-lo (fluxo controlado). É o “como” do

movimento e não possui afinidade espacial específica;

- Espaço: refere-se à atenção do indivíduo a seu ambiente ao mover-se.

Podendo ter sua atenção concentrada em um ponto, canalizada, o que consiste em

foco direto. Ou pode ter sua atenção expandida por milhares de pontos ao mesmo

tempo, como se seu corpo tivesse olhos em todos os poros. Neste caso o foco é

indireto. É o “onde” do movimento;

- Peso: refere-se a mudança na força usada pelo corpo ao mover-se,

mobilizando seu peso para empurrar, puxar ou carregar objetos etc. Por exemplo,

para abrir uma janela emperrada, são necessários movimentos firmes, já para brindar

com taças de cristal, o peso leve é necessário. Relaciona-se com o “o quê”;

- Tempo: indica uma variação na velocidade do movimento, que pode ser

gradualmente mais rápido ou mais sustentada. É o “quando” do movimento.

(FERNANDES, 2006).

Notado o conceito de Esforço, Atitude Interna e entendendo o que são os fatores do

movimento, obtemos as ações básicas de esforço. As ações básicas se darão a partir da

combinação dos fatores tempo, peso e espaço. A dinâmica do movimento faz parte da

Eucinética, o estudo dos aspectos qualitativos do movimento. Segundo Lenira Rengel, a

Eucinética levou Laban a conceitualização da palavra esforço e dos quatro fatores do

movimento.

TEMPO PESO ESPAÇO AÇÃO OBTIDA

Rápido Leve Direto Pontuar

Rápido Leve Flexível Talhar

Rápido Firme Direto Socar

Rápido Firme Flexível Chicotear

Sustentado Leve Direto Deslizar

Sustentado Leve Flexível Flutuar

Sustentado Firme Direto Empurrar

Sustentado Firme Flexível Torcer

Quadro 02. As oito ações básicas de esforço.

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27

2.1.3. Capacitação Estética

Tem-se em primazia, um pré-conceito de que pessoas com deficiência são incapazes

de demonstrar expressões artísticas próprias, são coitados e fazedores de “coisas bonitinhas”.

Quando apresento as noções de capacitação estética aos monitores, apresento as ideia do que

se quer “colher” junto aos alunos. Defendo a noção de que a importância está na maneira de

ensinar e faço uso das palavras de Pero Vaz de Caminha, quando escreve ao rei de Portugal

dizendo que “a terra é de tal maneira tão maravilhosa que em se plantando dar-se-á nela

tudo”, comparando o mesmo ao ensino de pessoas com deficiência. O segredo está no ensinar.

Não digo que encontrei a fórmula secreta ou a maneira certa, sequer afirmo que exista uma,

mas afirmo, porém, que me objetivei a fazê-lo.

No campo da capacitação estética, vale enfatizar dois pontos, um deles, sobre a

estética do sensível, abordada por Duarte Junior (2010), onde o autor apresenta conceitos de

diferenciação entre poético, poesia e poema; “o poema constitui, pois, uma construção

linguística que busca registrar, fixar, concretizar a poesia surgida de um olhar poético”, e

completa dizendo que existem outras formas de se verter a poesia, e dentre elas, a coreografia.

É por esse campo que devemos nos guiar ao conduzir este processo, na procura por maneiras

de se verter a poesia que objetivamos em cena. Há de se encontrar no cotidiano dos alunos,

possibilidades de movimento imbuídas de um estado poético, “onde os objetos são

apreendidos de outro modo que não o corriqueiro” (ibidem, 2010). Essa busca tende a nos

mostrar, principalmente as individualidades dos alunos na sua maneira de lidar com o mundo,

seus interesses, afetos e desafetos, e a partir de então, auxiliá-lo a escolher o que/como

colocar sua cena em cena. E este processo, acontecerá através de novos experimentos com o

movimento. Neves (2008) diz que “ao executar movimentos, percebe-se que emergem

sensações, imagens e memórias que realimentam o movimento”, gerando, assim, um ciclo de

ações e opções para uma aplicação consciente posteriormente.

O segundo ponto aqui, serve de orientação e trata especificamente sobre a criação de

espetáculo teatral e noções acerca de temas como: presença cênica, orientação espacial no

palco, foco de olhar e relação palco-plateia ou ator-expectador. Aqui serão feitas as

“transformações” de exercícios em cenas e a “costura” de cena com cena. Para gerar um

possível resultado a ser apresentado publicamente.

Uma vez com essa capacitação em andamento/movimento para alunos e monitores

temos a fruição dos encontros e a experimentação do movimento.

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3. ÁGUA MOLE EM PEDRA DURA TANTO BATE ATÉ QUE FURA

“O que importa é lançar sementes no corpo de cada um, abrir espaço

na mente e nos músculos. E esperar que as respostas surjam. Ou não.”

(Klauss Vianna)

O processo de laboratório busca relacionar práticas de exercício corporal com a

pesquisa de criação de movimento expressivo por pessoas com deficiência. O laboratório foi

realizado com dois encontros semanais, com avaliação diária e pontual ao fim de cada

encontro. Essa avaliação objetivava medir a eficiência da atividade experimentada, a

possibilidade de uma reaplicação da mesma e estabelecer uma codificação dos elementos

apreendidos. O processo foi ainda dividido em duas grandes etapas, uma dedicada ao trabalho

de pedagogia e outra ao trabalho de criação, que apesar de indissociáveis aqui, tiveram focos

diferentes de experimentação.

Os encontros iniciais são dedicados ao trabalho de pedagogia do movimento, sempre

iniciados com um aquecimento/ alongamento padrão, respeitando os limites individuais e suas

possíveis variações. A seguir a apresentação do tema da aula com demonstração de exercício,

execução grupal, execução e atendimento individual e possíveis variações, onde a partir de

dinâmicas com objetos lúdicos, busca-se identificar as potencialidades individuais. Os

exercícios executados com massas de modelar, balões, lenços, barbantes e instrumentos

percussivos servem para decompor o movimento a fim de gerar um entendimento sobre onde

ele se inicia e suas etapas. Esses exercícios são executados com a indicação de variação dos

fatores do movimento a fim de obter indícios para uma avaliação funcional dos padrões de

movimento existente. É a avaliação funcional que irá nos ajudar a localizar os pontos de

eficiência e os pontos de trabalho13

.

A partir dos exercícios, os objetos vão sendo retirados e com a criação dos

movimentos a dança vai surgindo aos poucos. Neste segundo momento, a partir do laboratório

corporal, busca-se uma alfabetização estética geradora do movimento expressivo e da criação

coreográfica. Essa criação geradora de expressão será a nossa Klepsydra.

13

Tomei conhecimento da noção de avaliação funcional durante a disciplina Estágio Supervisionado em Artes

Cênicas 01, ministrada pela professora Fabiana Marroni (2011), onde durante a observação prática realizada no

CETEFE (Associação Centro de Treinamento de Educação Física Especial – Brasília/DF), acompanhei alunos

com deficiências diversas em diferentes atividades físicas visando à melhoria do seu rendimento.

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29

3.1. Klepsydra

“Temos é que reconhecer esses processos internos poderosos e dar

espaço para que eles se manifestem, criando assim a coreografia, a

dança de cada um.” (Klauss Vianna)

Além do objetivo do projeto, com a experimentação dos exercícios, o interesse e

desempenho dos alunos serviu como impulso para a criação do espetáculo intitulado

Klepsydra: Exercícios de Expressão Cênica, composto por dez exercícios, onde a busca por

uma dança pessoal e cotidiana é posta em cena14

.

O principal ponto de trabalho aqui se dará numa relação semântica entre uma

associação induzida e a livre associação de significados a fim de gerar uma alfabetização

estética e pessoal junto ao grupo. Neste ponto, foram levadas sugestões de movimentos

cotidianos para aplicação em cena e solicitado que os realizassem a sua maneira, com seu

tempo, espacialidade e intenção. Essas sugestões permeavam por ações de deslocamento

espacial, leitura, escrita e processo de auto-reconhecimento. O intuito é verificar o quê de

conceito estético foi absorvido pelo aluno para sua criação. Não significa que o trabalho a ser

apresentado tem livre execução dos movimentos pelos alunos, mas sim que a partir de uma

orientação, o seu processo temporal de execução é pessoal.

Esse processo temporal é a iniciativa para a montagem de Klepsydra. A clepsidra

(escrita atual da palavra) é um dos primeiros meios utilizados pelo homem para medir o

tempo. Ele se baseia em um processo de transferência de água, onde o líquido de um

recipiente deverá passar para outro, gota por gota. Neste sistema uma simples gota, por si só,

é quase nula como unidade de medida, porém, quando acumulada ao fim da transferência, o

tempo decorrido gera um “todo”, uma passagem, um processo de vivência que buscamos

equiparar com este processo de pesquisa, onde um observador ao assistir apenas uma aula

pode ter a impressão de que há pouca atividade apreendida naquele tempo, mas está

apreensão, porém, por menor que lhe pareça, é um elemento importante de um mesmo “todo”,

como a água precisa daquela gota.

O processo de criação dos exercícios-cenas se dará de forma a garantir a participação

dos alunos tanto em cenas coletivas, favorecendo a inclusão dos mesmos, quanto em cenas

solos, buscando a individualidade de cada um. Para os trabalhos coletivos serão apresentados

14

Confira o cartaz do espetáculo no Anexo 1.

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primordialmente cenas oriundas dos exercícios de laboratórios em sala, a partir dos

movimentos físicos (esticar, dobrar e torcer) e dos jogos lúdicos com manipulação de objetos.

Para as cenas solos, a escolha do trabalho de dará de duas maneiras, uma a partir das

potencialidades demonstradas pelos alunos durante os treinos, de acordo com suas

deficiências e outra, mais importante neste momento, que é dada pelo desejo. Como dito

anteriormente, um dos pontos verificados como primordial e pulsante para está pesquisa é a

qualidade de vida como geradora de sorriso e satisfação pessoal. É aqui que entram as

vontades de cada um para escolher o que querem mostrar.

A escolha de cada música utilizada não tem o intuito de traduzir o que acontece em

cena, nem vice-versa. O idealizado é que as músicas embasem as cenas propostas,

imprimindo-lhes nuances e texturas.

Em nenhum momento o objetivo será chocar o público apresentando puramente a

deficiência dessas pessoas, mas sim, a pessoa com a deficiência e sua eficiência a partir de

então. Buscar-se-á uma apresentação que mexa com o sensível de cada um: tanto dos alunos

com um trabalho que represente sua singularidade no coletivo, quanto para o público com a

possibilidade de ver um coletivo de singularidades.

Segue abaixo o roteiro das cenas criadas para apresentação:

Exercício 01: Ensaio

A apresentação se inicia do lado de fora. Ao chegar do público, temos uma

exposição fotográfica do processo “PÉS?”. O diferencial é que as fotos foram

tiradas pelos próprios alunos com a justificativa de que uma coisa seria a foto

obtida pela equipe de monitores e direção, acadêmicos e estudantes/praticantes

de artes diversas com olhares por vezes viciados ou acostumados com uma

estética e com o interesse na pesquisa deste trabalho, e outra coisa é a foto

obtida pelos alunos “fazedores” do processo, pessoas com deficiência e com

interesse no fazer-dançar. O que da dança é importante pra eles? O que do

outro é importante? A resposta para essas perguntas deveriam aparecer nas

fotos expostas... ou não. A ideia é tentar introduzir para o expectador parte da

estética que lhe será apresentada dentro da sala teatral. O público é convidado a

manusear parte da exposição, onde temos um “jardim zen”, uma caixa de

madeira preenchida por uma fina areia branca e ao redor do jardim tem-se

alguns rastelos para que o público possa arar o “jardim”, e sob a areia diversas

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fotos do projeto onde o público escolhe o que quer ver. Ao centro do painel de

fotos, lê-se “EXERCÍCIO 01”. No som, temos a música ‘Blue Bicycle’, de

Hauschka, propondo ao público este primeiro passeio.

Entrada

Quando as portas se abrirem para a entrada do público, a música externa reduz

de volume e há uma nova música que começa do lado dentro. Diferente da

anterior, temos um ritmo percussivo do batuque “Coração Caboclo”, da banda

Batalá. As luzes estão acesas sobre as cadeiras da plateia e quando as pessoas

estiverem sentadas, a música cessa, a luz se apagará e temos um primeiro sinal.

Inicia-se aqui um texto, onde propositalmente as palavras não são claramente

inteligíveis, assim como o processo também não o foi. O texto é um poema

escolhido pela Marina, aluna do projeto e com paralisia cerebral, como forma

de autodescrição e será dito por ela mesma. O texto diz:

"Sou pessoa de dentro pra fora. Minha beleza está na minha essência e no meu

caráter. Acredito em sonhos, não em utopia. Mas quando sonho, sonho alto. Estou

aqui é pra viver, cair, aprender, levantar e seguir em frente. Sou isso hoje... Amanhã,

já me reinventei. Reinvento-me sempre que a vida pede um pouco mais de mim. Sou

complexa, sou mistura, sou mulher com cara de menina... E vice-versa. Me perco,

me procuro e me acho. E quando necessário, enlouqueço e deixo rolar... Não me dôo

pela metade, não sou tua meio amiga nem teu quase amor. Ou sou tudo ou sou nada.

Não suporto meio termos. Sou boba, mas não sou burra. Ingênua, mas não santa.

Sou pessoa de riso fácil...e choro também!" (Tati Bernardi)

Ao final do texto, toca-se o segundo sinal e reiniciam os exercícios: Projeta-se

ao fundo “Exercício 02”;

Exercício 02: (An)Dança

Ao som da banda Marron 5, a música ‘She will be loved’ acompanha esta

cena. Em um recorte da música, a tradução da letra diz: “Nem tudo são arco-

íris e borboletas / São as concessões que nos impulsionam / Meu coração está

cheio e minha porta está sempre aberta / Venha sempre que quiser” 15

. Este é o

exercício de apresentação dos alunos e monitores do projeto. Começamos com

a entrada da Marina em cena, onde com dificuldade ela tenta tocar a sua

cadeira para adentrar sozinha no espaço e do outro lado, entra Ana Luísa, uma

15

Tradução obtida na página de internet Vagalume – Letra de Músicas. Disponível em

http://www.vagalume.com.br/maroon-5/she-will-be-loved-traducao.html. Acessada em 15/11/2011.

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das monitoras do projeto, em câmera lenta; elas terão todo o tempo da música

para atravessarem o palco. Durante o caminhar de ambas, um a um, todos

deverão entrar em cena e transitar pelo palco até que todos estejam no espaço.

Entre passos, giros, rastejares, pulos e toques de cadeiras, eles irão atravessar o

palco e depois sair até que sobre apenas Kelly, que não é capaz de andar

sozinha com sua cadeira de rodas, devido à paralisia cerebral. A luz cai

incidentemente restando apenas um foco de luz sobre ela. Lentamente um sino

desce do teto irrompendo a solidão da cena. A menina, com uma baqueta na

mão deverá tentar, por algumas vezes em vão, tocar o sino e ao tocá-lo por três

vezes, temos o terceiro sinal. Esta brincadeira de alusão aos três sinais pode

não ser claramente percebida pelo público, mas traz em carga poética, uma

intenção de preparação do espetáculo “a ser iniciado-já-iniciado”, assim como

o trabalho realizado durante a pesquisa não foi um início de atividades para

nenhum deles, porém, uma somatória de vivências. Junto ao propagar do som

as luzes se apagarão até um blackout. Projeta-se ao fundo “Exercício 03”;

Exercício 03: Anjo

As luzes começam a acender e a menina que estava no palco ainda está lá ao

centro. Da lateral do palco entra Thainá “voando”, sendo carregada de braços

abertos para o palco por Alessandra, Rodrigo e eu. No imagético criativo,

temos o primeiro voo da menina Wendy rumo a “Terra do Nunca”, no desenho

Peter Pan16

.

16

GERONIMI, Clyde; JACKSON, Wilfred; LUSKE, Hamilton (Direção). Peter Pan. (Peter Pan) [Animação

cinematográfica]. Disney. EUA,1953.

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Figura 02. O voo de Wendy rumo a Terra do Nunca (Peter Pan, 1953)

Esta será uma cena curta aonde Thainá irá “sobrevoar” à frente a ao redor de

Kelly, buscando a interação pelo olhar tanto com o público quanto com sua

parceira em cena. O exercício representa o sonho-realidade de dançar e ser

aceita fazendo a sua dança. No som, a música ‘O sonho de uma flauta’, da

banda O Teatro Mágico, também trata do tema sonho, dizendo que “nem toda

palavra é aquilo que o dicionário diz”, e brinca com aviões que parecem

passarinhos, passarinhos que parecem borboletas e borboletas que parecem

flores que o vento tira para dançar. A música completa dizendo que “sonho

parece verdade quando a gente esquece de acordar”, e se isso tudo for verdade,

brinco então, ao dizer que o espetáculo é todo feito por pessoas dormindo em

cena. Após o “voo”, ela desce e passeia ao redor da cadeira de Kelly, se olham,

sorriem e seguem para fora do palco. Projeta-se ao fundo “Exercício 04”.

Exercício 04: Encontros

Antes de a música iniciar, alguém entra e coloca um balão vermelho no centro

do palco e um kit com espelho de mão e um batom em uma das laterais. Inicia-

se ‘Roadblock 1’, de Alberto Iglesias. A música instrumental do filme ‘O

Jardineiro Fiel’ servirá de fundo para o exercício. De um lado do palco entra

Monise e vai para o centro do palco, ela pega o balão e põe-se a brincar, do

outro lado, entra Thainá, que se posiciona em frente ao espelho e batom e

começa a se admirar e maquiar-se. Em meio a isso, Felipe, Kelly e Marina, de

olhos fechados e cabeça baixa, são trazidos em suas cadeiras, por Rodrigo,

Clara e Alessandra, sendo manipulados pelo espaço e sem qualquer autonomia.

Posicionam-se compondo com os outros um semicírculo ao centro. Os

carregadores das cadeiras saem de cena, e quando sozinhos, começam todos a

perceberem a existência do outro, a se verem em coletivo. Demonstram

primeiras interações (olhares, toques e repetições) até se formarem um grupo,

todos olhando em uma mesma direção. Projeta-se ao fundo: “Exercício 05”

Exercício 05: Espelho, Espelho Meu

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Na troca de cena, alguém entra e tira os objetos utilizados. Uma luz corta o

palco na horizontal e entram Ana Luísa e Monise. Esta cena possui um roteiro

de ações a serem realizadas, a partir da livre movimentação das atrizes, ou seja,

as ações marcadas não tem necessidade de ser executadas à maneira

cronológica em que foram dispostas durante os ensaios. As meninas evoluem

executando movimentos espelhados entre si até o momento em que realmente

entram duas grandes placas espelhadas em cena. As placas não são

propriamente espelhos, são lâminas de acrílico com uma fina película metálica,

imprimindo-lhes a característica de espelhos, e por isso, são moles e maleáveis,

gerando imagens ora nítidas ora turvas nos reflexos. Neste exercício, tanto o

objeto do espelho quanto a música foram escolhidos principalmente pelo fator

pessoal de interesse. Os espelhos fazem com que ela consiga se movimentar

“copiando seus próprios movimentos”, ganhando assim um passo maior na

autonomia dos movimentos trabalhados. E a música, após diversos estímulos,

percebe-se o grande interesse da Monise pela trilha sonora do filme Shrek17

,

sempre a envolvendo, ora mais ora menos, a ponto de chegar a estar inclusive

“fora de controle” com alguma delas. Escolheu-se dentre elas, a música

‘Hallelujah’, de Leonard Cohen e interpretação de John Cale por possibilitar

variações autônomas com maior nível de consciência pela Monise. A fim de

que não se sinta acuada sozinha no palco, uma das monitoras trabalhará em

parceria na cena. Ao longo da música, ambas dançam por vezes entre si e por

vezes olhando-se nos espelhos, e no decorrer dá música um dos espelhos é

posto ao chão propondo um deitar sobre ele, com as meninas em paralelo uma

à outra, e agora a interação com o reflexo será na horizontal, até que ambos

espelhos estejam no chão e as meninas girem se colocando alinhadas. A luz cai

em incidência. Projeta-se ao fundo: “Exercício 06”

Exercício 06: WOOH

A mesma luz do exercício anterior será mantida, porém sem os espelhos. A

música é o hit ‘The way you make me Fell’, de Michael Jackson. Vemos Felipe

entrar em cena na cadeira de rodas, mas ele não utiliza as mãos para tocar a

cadeira e sim os pés. Ele vem como se estivesse andando, porém sentado. Seus

17

ADAMSON, Andrew; JENSON, Vicky (Direção). Shrek. (Shrek) [Animação cinematográfica]. Dreamworks.

EUA, 2001.

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movimentos são curtos, retraídos e rápidos. Ele atravessa o palco dublando a

música e realizando movimentos pontuados e ágeis com os braços e pernas. Ele

apresenta deslocamentos para frente, atrás e giros. Durante sua evolução,

vemos ele sair da cadeira e realizar uma parada de ponta cabeça, ao estilo

“queda de rim”, oriunda da capoeira. Volta a cadeira e continua dançando até a

entrada de Alessandra e Ana Luísa que irão propor movimentos sinuosos e

contínuos, contrapondo aos movimentos pontuados da dança. Os três seguem

com seus movimentos até o momento em que as meninas se aproximam de

Felipe e seguram sua cadeira. Ele as olha, sorri e elas o tiram do palco por uma

das laterais. Blackout. Projeta-se ao fundo “Exercício 07”;

Exercício 07: O que você vê?

Baseada em um dos exercícios trabalhados em aula, esta cena será feita em

black-out. A música é uma mixagem entre as instrumentais ‘Eltern’, de

Hauschka e ‘Vinheta vibrante’ da cantora Céu. Na primeira parte, com a

entrada da música, Thainá entra em cena. Ela está equipada com pequenos

luminosos tipo pisca-pisca, dispostos pelo corpo (mãos, cotovelos, tronco,

joelhos e pés) e é tudo o que se pretende ver. Ela transita pelo palco com uma

coreografia solo, explorando planos baixos e médios em busca de movimentos

sinuosos e contínuos. Em determinado momento, na mixagem das músicas,

outras luzes se acendem pelo palco em pontos diferentes. Todos estão em cena

e tem luzes em diferentes lugares do corpo. A idéia é não deixar claramente

identificável quais pessoas estão em cena, quantos estão em cena, nem quem

estão nas cadeiras, ou quem mexes pernas ou braços, mas sim, a possibilidade

da busca do movimento com o artifício dos luminosos. Antes de finalizar a

música, todos se aproximam e as luzes começam a se apagar progressivamente

até restar apenas uma. Ela passeia revelando alguns rostos e por fim apaga-se.

Blackout. Projeta-se ao fundo: “Exercício 08”;

Exercício 08: Pés?

Apesar de ser a menor cena, é a cena que leva o nome deste projeto, “PÉS?”, e

que discursa acerca da exclusividade e real necessidade dos ágeis pés das

pessoas comuns, sem deficiência, para execução de movimentos expressivos.

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Tudo o que se pretende ver aqui serão os pés. Uma luz os ilumina e ao som de

uma valsa temos em cena a Clara na sapatilha de ponta, Alessandra com

sapatos de sapateado e Monise descalça. Cada uma tem seu momento de

dançar um trecho da mesma música até que todas põe-se a dançarem juntas.

Blackout. Projeta-se ao fundo: “Exercício 09”;

Exercício 09: Duetos

As luzes se acendem e vemos um palco vazio. Inicía-se o tango ‘Santa Maria

(Del Buen Ayre)’, do grupo Gotan Project. De um lado do palco, Wellington

entra trazendo Marina em sua cadeira, e em seguida Alessandra entra pelo

outro lado trazendo Kelly, também na cadeira. Assim que chegarem às

extremidades do palco, Wellington e Alessandra saem e começamos a entrar

pelo fundo, Rodrigo e eu. Encontramo-nos ao centro do palco e alternadamente

Rodrigo vai até Marina e eu até Kelly, explorando a partir de então, possíveis

movimentos e variações de apoio junto ao corpo delas na cadeira. No decorrer

da música, trocam-se os parceiros. Rodrigo tira Kelly da cadeira carregando-a

rente a seu corpo enquanto faço uma variação de movimentos com Marina

ainda na cadeira. Quando a primeira dupla diminui os movimentos, me

posiciono de frente para Marina e lhe estendo os braços para que possa sair

andando da cadeira, e tentamos alguns movimentos com ambos em pé.

Carrego-a, então, rente ao meu corpo e retomamos com a movimentação das

duas duplas até o final da música. A luz cai em incidência e as meninas são

levadas de volta para as cadeiras. Blackout.

Exercício 10: Como dança quem não dança?

Durante o blackout, vemos pela penumbra um computador entrar em cena e se

posicionar de frente para Marina. Lentamente ela começa a digitar uma palavra

letra por letra: “E-X-E-R-C-Í-C-I-O-1-0”. Antes de terminar, a luz se acende e

vemos a menina na cadeira de rodas digitando com os pés as frases que

encerram as cenas. Ao terminar de digitar, logo após o “10”, ela olha pra

plateia e as luzes se apagam. Lê-se por alguns segundos apenas “Exercício 10”.

Blackout. Neste momento, ouve-se uma voz em off (a minha), onde tento

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explicar o que é uma clepsidra e o porque da escolha deste nome. O texto diz

que:

“Um movimento pode ser apenas um movimento, assim como uma gota para o

relógio d´água é apenas uma gota d´água. Porém, de gota em gota o relógio muda o

tempo, o tempo vira processo e o processo se transforma em todo. Assim é o

movimento; O movimento muda o corpo, o corpo vira ação e a ação se transforma

em todo. Isso é clepsidra.” (Rafael Tursi)18

Encerramento:

Ao fim do exercício 10, as luzes se acendem e temos todos os alunos e

monitores em cena para os agradecimentos. A música final é ‘Dancing Days’,

de Nelson Mota, e interpretação de Lulu Santos. A letra que encerra diz que

“na nossa festa vale tudo, vale ser alguém como eu, como você. Dance bem,

dance mal, dance sem parar. Dance bem, dance até sem saber dançar”. E em

clima festivo, todos se alinham para fazermos os agradecimentos. Assim

termina esta nossa festa, o nosso primeiro passeio de um plano de vários

outros.

3.2. Eu já falei, vou repetir!

“Aí entra a autonomia. O corpo vivo acha seu caminho agindo

apropriadamente por seus próprios recursos” (Neide Neves)

Objetivando para um trabalho futuro a sistematização pontual de uma metodologia

possível para pessoas com deficiência, este projeto foi muitas vezes apresentado, discutido,

debatido e criticado.

Apesar da existência de diversos grupos nacionais e internacionais que trabalham o

teatro e a dança para pessoas com deficiência, e inclusive diversas publicações acerca do

tema, pouco material humano é encontrado no distrito federal como referência, por isso,

grande parte do trabalho nasceu de forma empírica e experimental nos laboratórios, e

analisado de acordo com os referenciais adotados. Para teste de aceitação do trabalho,

18

Por se tratar do roteiro do espetáculo, peço licença para fazer uma citação direta de um texto meu dentro da

peça e me citar como referência neste momento.

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38

inscrevemos o projeto para participar de diversos outros projetos, como se pode observar a

seguir:

Oficina Metodologias de Práticas Corporais para Pessoas com Deficiência: Solicitada

pela escola Macunaíma de Teatro de São Paulo para a UnB, ministrei uma oficina que

visava a instruções de todos os professores da escola quanto ao tratamento e a didática

para aulas de teatro e dança para pessoas com deficiência;

Tubo de Ensaios – Mostra de Performances da Universidade de Brasília: Aprovado em

edital de seleção, o projeto consistia aqui em apresentar uma cena de trabalho do

grupo, com duração de cinco minutos aproximadamente e repeti-la durante as duas

horas de duração do evento. Por questão de experimentação, adaptamos então um dos

exercícios (Exercício 07, ver página 33) apenas para Marina e Thainá. O exercício

consistia em uma dança em blackout com o auxilio de pequenos luminosos e o mesmo

se repetiu durante todo o tempo do evento. Diferente de qualquer outro trabalho que as

meninas já haviam executado, quando chegamos no final do evento e solicitei que se

fechassem as portas para acender as luzes, víamos ambas derrotadas pelo cansaço

junto com Ana Luísa e eu, porém, todos com sorrisos vitoriosos pela persistência na

atividade. No segundo dia do evento, estendemos o convite e colocamos todos os

alunos em cena;

4º Congresso Nacional de Diversidade e Inclusão: Para este evento, enviamos um

artigo sobre o projeto e dentre todos os artigos do evento, três tratavam do ensino das

artes para pessoas com deficiência, sendo dois de pintura e o “PÉS?” sobre teatro-

dança;

Semana Universitária da UnB: Pela primeira vez, o projeto seria apresentado pelas

monitoras do projeto. Alessandra e Clara se dividiram em dias diferentes para expor o

trabalho para a câmara de extensão da UnB;

Projeto Cívico do Centro Educacional 01 de Sobradinho: Convidados para integrar o

projeto cívico da escola, apresentamos parte do nosso resultado de experimentação

cênica para alunos do ensino fundamental e médio a fim de preparar os alunos do

“PÉS?” para nossa apresentação final;

Encontro do Lions Clube de Sobradinho: Em parceria com membros do Lions Clube,

apresentamos cenas da nossa apresentação final, demonstrando o trabalho dos alunos e

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solicitando apoio para aquisição de uma cadeira de rodas nova para um dos

integrantes;

1º Salão de Acessibilidade do Distrito Federal: Convidado para participar do salão de

acessibilidade no Centro de Convenções Ulisses Guimarães, com apresentação oral

sobre o projeto e apresentação de uma das cenas de trabalho;

Lançamento do Plano Nacional da Pessoa com Deficiência: Devido à visibilidade

conseguida pelas participações nos eventos citados anteriormente, o projeto foi

convidado a compor o lançamento do Plano Nacional, realizado no Palácio do Planalto

pela Presidente Dilma Roussef;

1º Encontro TransArte/UnB: Selecionado para apresentação de seu resultado final de

pesquisa no encontro TransArte sobre a arte como reflexão das problemáticas dos

corpos;

53º Cometa Cenas: Para encerrar as atividades do primeiro ano de execução do

projeto, o grupo inscreveu-se para apresentar seu resultado final também na Mostra

Semestral de Artes Cênicas do Departamento de Artes Cênicas da UnB.

A realização destas atividades e a participação em cada um destes eventos, tanto

teóricos quanto práticos, serve como amadurecimento do projeto, dos alunos e dos

pesquisadores envolvidos, além de, com a visibilidade adquirida, incentivar para o surgimento

de novas propostas para o ensino especial e inclusivo.

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DAR O PEIXE OU ENSINAR A PESCAR?

Para que servem asas senão para voar? Para que serve a boca senão para falar? Pra que

servem pés senão para andar? O que é deficiência? Aonde este trabalho chegou?

Este é o resultado do primeiro ciclo de experimentações do projeto “PÉS?” que

pesquisa a criação do movimento expressivo para pessoas com deficiência. Que pessoas? Que

deficiências? Qualquer pessoa e qualquer deficiência. O objetivo foi associar o trabalho de

pedagogia do movimento para pessoas com deficiências, físicas, sensoriais e intelectuais à

criação cênica. Veem-se possibilidades de adequação de sistemas de ensino da atividade

físico-motora do teatro e da dança para pessoas com deficiência através da aplicação de jogos

lúdicos criados a partir da experimentação de objetos a fim de gerar movimentos expressivos

como forma de criar um vocabulário de movimentos.

Durante este processo, buscou-se observar tanto as habilidades já desenvolvidas pelos

alunos quanto às habilidades a serem desenvolvidas. A essa relação chamou-se ponto de

trabalho e foi onde se deu a criação dos exercícios. Vê-se a partir de então, o trabalho de uma

avaliação funcional em/para cena e o quanto o trabalho de busca por uma educação do

sensível se torna facilitadora no processo de educação da arte, aplicável tanto para pessoa com

deficiência quanto sem, como forma de alfabetização estética. Em cena, alunos, monitores e

diretores tornam-se dançantes neste trabalho, onde adaptação, poesia e tempo foram palavras-

chave para sua construção e a construção de significados.

Falamos de criação de vocabulário, de alfabetização e de construção de significados; a

mim, falta apenas tratar do estado poético, pois quando este trabalho é proposto, ele não quer

levantar ao final da pesquisa, corpos dançarinos, que bailem e valsem sobre palcos e salões,

mas sim, corpos que saibam se mover e gerar movimentos que, sozinhos ou em grupo, sejam

por si só, movimentos expressivos artisticamente. A proposta “PÉS?” de educação corporal

implica em auxiliar pessoas com deficiência a se permitirem enxergar capazes de executar

movimentos artísticos cênico-dançantes. Este movimento não precisa ser complexo

fisicamente, mas sim, dotado de significado, o que ouso chamar de poesia corporal.

Como próximos passos, este trabalho deixa interesses e indícios para a sistematização

de uma metodologia didática de exercícios possíveis para pessoas com deficiência. Agora

sim, concluo que conclui. E respondendo a pergunta título desta conclusão, eu prefiro ensinar

a pescar.

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REFERÊNCIAS

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formação e pesquisa em Artes Cênicas. São Paulo: Annablume, 2002.

FERREIRA, Eliana Lucia. Corpo-Movimento-Deficiência. Juiz de Fora: CBDCR, 2005.

___________. Dança em Cadeira de Rodas. Campinas: Unicamp, Curitiba: Abradecar,

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Anexo 1

Cartaz do Espetáculo KLEPSYDRA