perverso rejeitado em todos nós, o

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  • O perverso rejeitado em todos ns - reflexes sobre o manejo da perverso Paula Fontenelle

    Resumo: O presente trabalho traz uma breve reflexo sobre os desafios postos pelo perverso no setting analtico. Para isso, apresento as diferentes vises de Freud, Lacan e especialistas contemporneos, cujas opinies so usadas por profissionais como balizadoras na construo de discursos opostos: uns acreditam que a perverso seja um elemento constitutivo do ser humano, portanto, passvel de anlise; outros encaram a perverso como estrutura psquica impermevel ao manejo analtico.

  • O PERVERSO REJEITADO EM TODOS NS

    - Reflexes sobre o manejo da perverso

    A perverso tratada por Freud primordialmente em trs

    momentos. No Trs Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), ele a

    estabelece como sendo o oposto da neurose, caracterizada pela fixao

    da libido na pr-genitalidade, ou seja, na infncia. Ope-se neurose

    porque desconhece o recalque e a sublimao.

    Em uma segunda explorao do tema, Freud identifica a recusa

    como sendo seu mecanismo bsico de defesa unido a uma ciso do ego

    que ocorre mediante o terror provocado pela castrao.

    Em O Fetichismo (1927), o pai da psicanlise estuda os fetiches

    mais de perto, associando os objetos utilizados representao do falo

    materno, uma forma de manter no psiquismo a crena infantil na

    existncia do pnis da me. O conceito de perverso como doena

    psquica seria marcado pela persistncia da recusa Arajo (2003).

    Parece haver grande aceitao de que esse mecanismo e a ciso

    so responsveis pelo comportamento perverso e que justamente a

    incapacidade do paciente de entrar em contato com o Complexo de dipo

    e a castrao que suscita os principais questionamentos sobre ser ou no

    tratvel.

    Para que ele procure ajuda, o paciente que se enquadra nesse

    complexo (e controverso) quadro precisa vivenciar algum tipo de conflito,

    caso contrrio, no se colocar diante do analista. Afinal, ajuda para qu,

    se ele se sente vontade com o que os outros tacham de desvios?

    Para Santos (2008), quando a barreira inconsciente da castrao

    se impe, levando angstia, que ele procura um profissional. Ou se sua

    relao com o gozo perturbada, provocando uma ruptura da montagem

    perversa, e incmodos que precisam ser olhados de perto.

  • A impossibilidade de integrao de questes relativas castrao e

    ao dipo - dois balizadores da teoria psicanaltica -, provocaria no

    analisando uma constante e repetitiva atuao de fantasias que teriam

    como principal objetivo triunfar sobre a castrao e no a busca no

    prazer. ao perceber que existe uma diferena entre os sexos que ocorre

    a ciso (Besset).

    E por que seria to difcil trabalhar a ciso? Winnicott (Arajo,

    2003) responde esclarecendo o que a diferencia do recalque, presente

    nas neuroses. Nesse ltimo, o material inconsciente permanece dentro

    dos limites do psiquismo e cabe ao analista traz-lo tona para que haja

    uma elaborao desse material.

    J a dissociao ocorre de maneira desintegrada do sujeito, ou seja,

    no acontece por intermdio do Eu, e sim, no prprio Eu. Como a

    castrao e o Complexo de dipo no esto integrados, o manejo por

    meio da simbolizao dificilmente ser possvel.

    Outra viso que encontra adeptos na Psicanlise a de que a

    perverso um caminho encontrado pela pessoa para construir sua

    identidade sexual. por meio da atuao, repetida incessantemente, que

    ela encontra uma resposta possvel realidade da castrao, realidade

    essa que ele se recusa a registrar. Trata-se de um crculo vicioso que

    envolve uma forte angstia, rebatida pelo impulso da repetio e que, s

    vezes, inviabiliza seu manejo clnico.

    Existem alguns aspectos que dificultam o tratamento desse quadro.

    Um deles, e talvez o principal, a crena recorrente de que o perverso

    inanalisvel, o que acaba por afastar analista de analisando. Eu mesma j

    ouvi a frase no trato perversos de uma analista, declarao justificada

    pela convico de que eles so impermeveis ao manejo clnico.

  • Por traz dessa postura escondem-se preconceitos,

    desconhecimento, medos e at falta de segurana por parte do

    profissional sobre como deve proceder diante do grande desafio posto.

    E no toa que haja receio em aceitar um paciente com essas

    caractersticas. O perverso desafia o analista e traz para o div a recusa

    como mecanismo central de seu modo de vida. Parece bastante difcil

    lutar contra algo que em si a negao do complexo de dipo e da

    castrao, conceitos que so o alicerce da psicanlise.

    Mas h autores que refutam essa justificativa, como Bernardes

    (2003), que defende o tratamento do perverso justamente porque o

    perverso tem como centro da sua dinmica, o complexo de dipo e a

    castrao, operadores fundamentais da anlise. Para ele, esses

    profissionais contradizem os pressupostos freudianos.

    Discordo. As duas vises no parecem contraditrias. Embora

    ambas tenham um olhar fixado na castrao e Complexo de dipo como

    balizadores centrais na psique do perverso, os autores que defendem a

    impossibilidade de trat-lo ressaltam que esses dois conceitos inexistem

    devido ao da recusa. Como se pode explorar algo que no existe?

    Parece-me que so apenas modos de olhar diferentes, e no

    opostos. Para os favorveis clnica, cabe ao analista explorar a

    castrao e o dipo; nos que desacreditam, eles inexistem. As opinies

    so diferentes, mas no contraditrias.

    Ferraz (2000), aponta outro fator que desestimula a aceitao de

    pacientes, dessa vez, com os holofotes voltados para o profissional: a

    clnica da perverso leva o analista a vivenciar a exigncia mxima da

    tica psicanaltica, que pressupe neutralidade e abstinncia. Essa

    neutralidade demanda o mais alto nvel do que Mezan (1998), classifica

    como tolerncia ao desvio, um valor central da psicanlise.

  • Manter juzos de valor longe do setting outro desafio, embora me

    parea menos exclusivo que o citado anteriormente, pois essa

    dificuldade permeia qualquer anlise, seja ela de um perverso ou no.

    Concordo com McDougall, (2001) quando diz: o div no deveria

    tornar-se um leito de Procusto. Parece-me que a normatizao de

    comportamentos e sintomas praticamente impossibilita a clnica que

    precisa se despir de qualquer regra pr-estabelecida, inclusive nas

    ferramentas usadas no tratamento.

    Uma possibilidade que levanto que, no que diz respeito clnica

    do perverso, talvez o julgamento do certo e errado tenha seus efeitos

    destrutivos amplificados, j que do outro lado da escuta encontra-se uma

    pessoa que se pauta pelo desvio de parmetros tidos como normais.

    E no s com o esforo de se manter neutro que o analista se

    depara. No podemos esquecer que o prprio ego do profissional

    repetidamente ferido na clnica do perverso que, ao contrrio do

    neurtico, pe em cheque o suposto saber do profissional.

    Ele vai alm ao criar um embate competitivo com o analista, e que

    precisa ganhar a qualquer custo. A vitria funcionaria como uma mscara

    de superioridade que ele precisa manter para reafirmar seu lugar no

    mundo. O div vira luva de boxe; o setting o ringue criado por ele, onde

    a luta repetidamente disputada.

    O mundo do perverso distorcido; suas relaes existem como

    provas que precisam ser vencidas na competio em que sua vida se

    transformou. Nesse embate, o pedestal do analista derrubado e, como

    Clavreul (1990) observou, ele desafiado justamente por querer

    refugiar-se nesse pedestal.

    E no difcil encontrar bases tericas para a no aceitao do

    perverso na clnica. O prprio Lacan nos apresenta a perverso como uma

    terceira estrutura psquica, essa irreversvel, no podendo, portanto, ser

  • objeto de anlise (Santos, 2008). As outras duas so a neurose e a

    psicose (Rudge, 2003).

    Acho arriscada essa postura, uma possvel maneira que os

    profissionais encontraram de se protegerem contra esse enorme desafio,

    uma espcie de refgio terico por no saberem conduzir a clnica. Basta

    olhar para outro lado e seguir os ensinamentos de Freud, que, em

    momento algum definiu a perverso como estrutural, mas sim como um

    elemento constitutivo presente em todos ns.

    Outro ponto que merece destaque o de que o prprio analista

    pode ser convidado a participar do ato perverso que se reproduz na

    anlise, algo que acontece por uma ferramenta bastante presente na

    relao analtica do perverso: a rebelio (Ferraz, 2005). Essa tentao

    tambm precisa ser combatida pelo profissional.

    Como podemos, ento, derrubar os muros que distanciam esses

    dois personagens da anlise? Penso que uma sada seja aceitar, nem que

    seja a ttulo de observao, a existncia de espao para avanos clnicos

    no tratamento da perverso. Caso contrrio, continuaremos a ter poucos

    estudos e referncias que nos permitam avaliar os limites dessa

    construo mediante a observao das defesas do paciente que

    ocorrem via transferncia -, e a prpria contratransferncia do analista -

    que requer apurado senso crtico.

    Essa observao me leva a outra grande dvida nesse campo. O

    que pode ser considerado avano no tratamento? Eis uma questo

    central. Tambm no existe consenso do que seria o manejo clnico ideal.

    Joyce McDougall, uma das maiores especialistas nessa rea, ressalta que

    o analista no deve cometer o erro de tentar enquadrar o perverso numa

    pretensa normalidade (McDougall, 2001), at porque no existe

    qualquer tipo de sexualidade que constitua uma garantia contra distrbios

    psicolgicos. Para a autora, a atitude de impor sistema de valores

    constitui em si uma perverso do papel analtico.

  • Ao reeditar encenaes, o perverso tambm suscita alguns riscos

    que remetem ao humano no profissional que est ali para ouvi-lo. Que

    risco seriam esses? O da seduo, de transformar o analista em voyeur

    de mecanismos que tambm esto presentes em seu psiquismo. Como

    manter a distncia necessria para apontar no analisando sua relao

    com o gozo e com os outros?

    Essa me parece uma das dvidas fundamentais que devem ser

    exploradas na literatura psicanaltica. Algumas respostas so: resistir

    tendncia do perverso de impor seu prprio desejo sobre o dos outros e,

    acima de tudo, ter cuidado para no responder, ele mesmo,

    perversamente s representaes mobilizadas na transferncia (Besset).

    Tudo isso sem ser complacente com a conduta de seu paciente.

    Tais consideraes remetem para o fato de que a clnica do

    perverso constitui um desafio dos mais complexos da psicanlise. No

    toa que muitos optam por se distanciar.

    Diante da leitura ainda preliminar sobre o tema, acredito que a

    psicanlise, com sua ampla capacidade de construir reflexes sobre

    fenmenos psquicos, tenha muito que aprender com o perverso. Pelo

    menos at que se prove o contrrio.

    Como no buscamos provas de nada, seria bom compreender

    melhor o desafio encarando-o de frente.

    Bibliografia

    Arajo, J. C. (2003). Entre o terror e o erotismo. Seminrio Perverso.

    Bernardes, W. S. (2003). A perverso em questo. Reverso, revista do crculo psicanaltico de Minas

    Gerais, 35.

    Besset, A. B. (s.d.). A clnica psicanaltica da perverso.

  • Clavreul, J. (1990). O desejo e a perverso. In: J. Clavreul, O casal perverso (pp. 113-155). Campinas:

    Papirus.

    Ferraz, F. C. (2000). Perverso. So Paulo: Casa do Psiclogo.

    Ferraz, F. C. (2005). Tempo e ato na perverso. So Paulo: Casa do Psiclogo.

    McDougall, J. (2001). As mltiplas faces de Eros: uma explorao psicoanaltica da sexualidade

    humana. So Paulo: Martins Fontes.

    Mezan, R. (1998). O psicanalista como sujeito moral. In: Tempo de Muda: ensaios de psicanlise (pp.

    195-210). So Paulo: Companhia das Letras.

    Rudge, S. L. (maro de 2003). Perverso e tica na clnica psicanaltica. Mal-estar e Subjetividade, pp.

    78-95.

    Santos, A. B. (2008). As instituies psicanalticas e o discurso da perverso., (p. 4).