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Aluísio Ferreira de Lima

Sofr imento de indeterminação e reconhec imento perverso

Um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma

identidade-metamorfose-emancipação

Doutorado em Psicologia Social

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social

2009

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Aluísio Ferreira de Lima

Sofr imento de indeterminação e reconhec imento perverso

Um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma

identidade-metamorfose-emancipação

Doutorado em Psicologia Social

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Psicologia Social, sob orientação do Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social

2009

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Banca Examinadora:

Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa.

Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado

Prof. Dr. Odair Sass

Prof. Dr. Juracy Armando M. de Almeida

Prof. Dr. José Mendes Fonteles Filho

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Para julgarmos os outros, existem diversos critérios que, em conjunto, podem ser todos válidos. Escolher, porém, um só deles, seja o da ciência, seja o da moral pública, e proclamá-lo sagrado – é a coisa que não consigo compreender.

Hermann Hesse. Para ler e pensar. Todo pensar é um exagero, enquanto todo pensamento, que vale como tal, aponta para mais além dos fatos que o justificam. Na diferença entre o pensamento e a solução se encontra um potencial tanto de verdade como de loucura. Não existem critérios obrigatórios, únicos, absolutamente confiáveis, e a decisão depende sempre de um complexo de intermediários complexos.

Theodor W. Adorno. Opinion, Locura, Sociedad.

O mundo é minha miniatura porque está tão longe, tão azul, tão calmo, quando o considero onde ele está, como está, no tênue desenho de meu devaneio, no limiar de meu pensamento! Para dele fazer uma representação, para colocar todos os objetos em escala e medida real, em seu verdadeiro lugar, preciso quebrar a imagem que eu contemplava quando ele era uno e, depois, encontrar em mim mesmo motivos ou lembranças para reunir e ordenar o que minha análise acaba de quebrar. Gaston Bachelard. O mundo como capricho e

miniatura.

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Dedico este trabalho...

... à Meire e Stephanie Caroline, que têm suportado e compartilhado minha insatisfação com o que insiste em não ser mudado e que é o motor de meu pensamento. ... aos companheiros (des)conhecidos que se preocupam em proteger a sociedade dos especialistas e acreditam que um mundo melhor é possível.

... aos corpos torturados, às vozes silenciadas e olhos vendados que insistem na resistência e lutam por reconhecimento e emancipação.

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Agradecimentos

Essa tese pode ser vista como o resultado de suturas realizadas por mim, a partir do

material mais rico que se poderia utilizar: a existência humana, ou ainda, a luta pela

existência humana, oferecida em abundância, a todo instante, por colaboradores

conhecidos, anônimos e material bibliográfico. Tenho a plena convicção de que mesmo se

fosse possível o recolhimento de todo material produzido acerca do tema tratado nessa

pesquisa, tudo teria sido reduzido a nada se ela não fosse a expressão de muitos olhares e

reflexões proporcionados pelas relações que vivenciei. Por esse motivo se o trabalho em

questão não conseguir expressar claramente o que se propõe, o erro estará justamente na

minha inabilidade e ingenuidade, pois esse tipo de material é de difícil manuseio e sua

costura muito delicada.

Sendo assim, embora a escrita de uma tese tenha sido um empreendimento solitário,

sua gestação, assim como as sementes finalmente germinadas, é resultado da complexidade

existente, do equacionamento das interações, dos encontros, dos desencontros, das

descobertas, das renúncias, da poética e do devaneio. O que implica necessariamente em

alguns agradecimentos que, embora tente apresentar aqui, não contemplará todos os

envolvidos na produção intelectual que resulta nesse trabalho. Assumo que serei injusto,

assim como todos que fazem seus agradecimentos, quanto aos nomes que apresentarei a

seguir. Espero sinceramente que aquelas pessoas que porventura não estejam citadas

saibam o quanto sou grato por terem compartilhado fragmentos de suas vidas comigo,

experiências compartilhadas que têm servido de alimento para minha escrita e pensamento.

Algumas pessoas, entretanto, não poderiam deixar de ser citadas, três delas,

inclusive, aparecem inicialmente por terem sido essenciais durante todo esse processo. As

duas primeiras são Meire Silva de Lima e Stephanie Caroline Ferreira de Lima, que

acompanharam de perto as metamorfoses que sofri e em todos os momentos estiveram ao

meu lado, sempre tendo de negociar um pouco de atenção com a imensidão de afazeres

acadêmicos e profissionais. Não tenho palavras para descrever o quanto vocês duas

foram/são importantes em todo esse percurso. Obrigado pelo amor, carinho e paciência

dispensado todos esses anos. Espero que de agora em diante possa dedicar o tempo que

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vocês merecem e que possamos viver com intensidade os pequenos e grandes momentos de

nossas vidas.

A terceira trata-se do Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa, ou simplesmente Ciampa,

como costumamos chamá-lo, exemplo de docente e intelectual que pretendo um dia me

tornar. Alguém que consegue viver plenamente aquilo que estuda e ensina. As influências

desse grande mestre que alimentam minhas considerações acerca da Psicologia Social e

identidade humana estão evidenciadas em minha produção acadêmica. Hoje tenho a honra

de chamá-lo também de meu amigo e aproveito essa oportunidade para agradecê-lo pela

acolhida na PUCSP, ainda em término de minha graduação, e por ter suportado as minhas

angústias durante todos esses anos.

Entre aquelas que estiveram ligadas diretamente à confecção dessa tese de

doutoramento, dá-me uma enorme satisfação observar que muitas delas já sentaram comigo

para almoçar, tomar café, jogar videogame etc., participaram comigo em congressos, aulas

e debates, jogaram conversa fora, trocaram angústias, desilusões e sonhos — todo tipo de

coisas que enriquece a nossa vida e fazem com ela seja única e, ao mesmo tempo, um

desafio à imaginação. Uma atmosfera que muitas vezes transformou o relacionamento

acadêmico em amizades duradouras. Entre esses questionadores e co-conspiradores que

conheci e convivi na PUCSP estão: Juraci Armando Mariano de Almeida, que sempre fez a

pergunta certa para (des)organizar minhas certezas; Nadir Lara Junior, com quem realizei

ótimos debates e sempre fui cobrado pela busca da precisão epistemológica; Renato

Ferreira de Souza, pelas leituras primorosas e sua tolerância à discussão por Internet;

Shirley Acioly, sempre disponível para me ajudar com os abstracts; Clodoaldo Leme;

Edileuza Santiago; Helena Kolyniak, com quem tive minha primeira experiência de

docência universitária; Marlene Camargo, que literalmente organizou minha vida no

Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da PUCSP, acolheu minhas

angústias e expectativas frente às possibilidades de bolsa; todos os colegas do Núcleo de

Estudos da Identidade Humana – NEPIM, que debateram todos os assuntos tratados nessa

tese.

Na PUCSP também tive a honra de contar com a contribuição de outros mestres

imprescindíveis para minha formação intelectual. Aqui me refiro a todos os professores do

Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da PUCSP – PSO, por seus textos,

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debates, seminários e aulas. Principalmente à professora Maria do Carmo Guedes, que com

seu brilhantismo e paixão ensinou-me ainda no mestrado a importância da pesquisa

histórica. Outros professores, fora do PSO, também contribuíram de forma significativa em

meu processo de formação, me refiro aos professores: Odair Sass, do Programa de

Educação: História, Política e Sociedade que sempre apareceu com um novo

questionamento acerca de minhas proposições e metodologias (sempre paciente com

minhas abordagens nos corredores da PUCSP); Jeane-Marie Gagnebin, do Programa de

Mestrado e Doutorado em Filosofia, pela iniciação nos estudos da hermenêutica,

principalmente pelas brilhantes aulas sobre Walter Benjamin & Paul Ricoeur; e José Luiz

Aidar Prado, do Mestrado e Doutorado em Comunicação e Semiótica, que apresentou

autores críticos até então desconhecidos por mim e pelas ótimas sugestões na banca de

qualificação.

No que se refere às colaborações teórico-metodológicas que recebi fora da PUCSP,

agradeço aos professores: José Mendes (Babi) Fonteles Filho & Gislene Maia de Macêdo,

do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará – UFC, companheiros do

Laboratório de Identidade Cultura e Subjetividade – LAICUS, pelos deliciosos almoços

filosóficos e conversas em(na) rede que contribuíram sobretudo nos momentos de crise da

escrita; José Umbelino Gonçalves Neto, também da UFC, por suas sugestões preciosas,

pela leitura atenta e ajuda na revisão gramatical do texto; Thomas S. Szasz, da State

University of New York’s Upstate Medical University in Syracuse, que não poupou esforços

para ajudar-me na busca de suas obras publicadas no Brasil, por fazer apontamentos

importantes acerca do meu projeto inicial e por me enviar manuscritos recentes de seus

trabalhos; Karl E. Scheibe, da Wesleyan University, por ter me fornecido trabalhos

inacessíveis de Theodor R. Sarbin, alguns inclusive não publicados.

Fora do espaço universitário, não poderia deixar de agradecer aos irmãos e irmãs

que pude escolher, pessoas que representam a amizade verdadeira e o companheirismo que

é essencial para sustentar um projeto ético-político como o que tenho tentado vivenciar.

Não tenho palavras para agradecer a Brendali Dias, companheira de batalhas árduas, saiba

que sempre poderá contar comigo; Marcelo Alves dos Santos, que muito me presenteia

com sua confiança; Rogério Dias, que sempre me atentando para não esquecer das minhas

origens; Ana Paula de Carvalho, sempre me provocando; Simone Souza, por suportar

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minhas provocações; Cristiano Caires, que transcreveu as entrevistas com extrema rapidez

e atenção, mesmo estando próximo ao final de sua graduação e envolto com as diversas

exigências acadêmicas. Luciana Guilherme, que me ensinou que não precisamos de anos de

amizade para considerar alguém como grande amigo; Andréia Moassab, que tanto tem me

ajudado a pensar alternativas para as alternativas; Sâmia Malufe, pela solidariedade e pela

alegria; Sonha Malaquias, poeta apaixonada pela vida que muito me orgulho de ter

conhecido e compartilhado minha história de vida e Antonio Maia O. do Vale, parceiro na

coordenação do curso de Psicologia da UFC, sempre disposto para as boas conversas.

Não poderia esquecer de agradecer à minha grande família formada por: Aparecida

Alves Ferreira (minha mãe), Vera (minha sogra), Alexandre, Paulo, Ana Paula, Thiago,

Elisa e João Victor (meus irmãos), Aucilene (Lena), Gisele, Osvano, Mirian e Sérgio (meus

cunhados(as)) e Roger Junior, Beatriz, Luiz, Kevin, Rodrigo, Felipe, Caio, Thamyres,

Giovanna (sobrinhos), que acompanharam de perto as dificuldades de um teimoso jovem da

periferia rumo à formação superior. E a minha segunda família, formada por todos os

companheiros de treino do Judô Mauá e Infight Jiu-Jitsu, principalmente aos Mestres Paulo

Nardy, Leandro Fidelis e Shihan Kaor Okada, esse último, com quem aprendi o Bushidô

(Caminho do Guerreiro).

Agradeço à Universidade Federal do Ceará – UFC, nas figuras do Magnífico Reitor

Jesualdo Pereira Farias e Prof. Dr. Sérgio Armando de Sá e Benevides – Diretor do Campus

Avançado de Sobral da UFC, que não apresentaram nenhuma dificuldade para que eu

pudesse finalizar a tese de doutoramento. Assim como, a todos os amigos conhecidos a

partir de meu ingresso como docente nessa instituição: estudantes a quem ministrei aulas ou

que têm participado de meu projeto de extensão, técnicos administrativos (Jean e Franklin)

e colegas docentes: Luis Achilles Furtado, Franklin Freitas, José Olinda Braga, Érica Atem

Costa, Camilla Vieira, Carlos Roger Ponte, Joyce Di Ciero, Luciane Oliveira, Suely Costa,

Odimar Feitosa Filho, Pablo Benevides, Renata Guimarães e Rita Helena S. F. Gomes.

Finalmente, agradeço ao CNPq pelo financiamento da pesquisa nos dois primeiros

anos de doutoramento — ocasião em que abri mão da bolsa integral para tomar posse do

cargo de professor efetivo do setor de estudo: Psicologia Social, da Universidade Federal

do Ceará – UFC — e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –

CAPES, de quem fui bolsista nos meses finais de pesquisa, escrita e defesa da tese.

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Resumo

LIMA, Aluísio Ferreira de. Sofrimento de indeterminação e reconhecimento perverso: Um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma identidade-metamorfose-emancipação. Tese de Doutorado. PUCSP, 2009.

Essa é uma tese de Psicologia Social Crítica, cujo foco principal foi explicitar, a partir da

teoria de identidade proposta por Antonio da Costa Ciampa expressada no sintagma

identidade-metamorfose-emancipação, como ocorre a construção da personagem doente

mental a partir do reconhecimento de diferentes atores sociais, e a relação que essa

personagem estabelece com o discurso da saúde mental proposto pela reforma psiquiátrica.

Dividimos a pesquisa em três capítulos denominados: itinerário histórico, itinerário teórico,

itinerário empírico. No primeiro itinerário fazemos uma apresentação histórica do

desenvolvimento da concepção dualista normal/patológico, que culminou na construção da

identidade pressuposta do doente mental, e analisamos esse desenvolvimento à luz das

diferentes articulações institucionais e políticas (principalmente a relação entre a Psiquiatria

e Psicologia Social) legitimadas a partir de leis e decretos que possibilitaram a Reforma

Psiquiátrica brasileira atual. Em seguida, assinalamos como a teoria de identidade proposta

por Ciampa se insere na tradição da Psicologia Social Crítica e atravessa as contribuições

da Teoria Crítica, principalmente a habermasiana, para pensar as condições de emancipação

humana, a ponto de desvelar como a identidade sofre fortes investidas dos discursos

técnico-psicológicos, que produzem personagens fetichizadas sustentadas por um

reconhecimento perverso. Na seqüência trazemos as narrativas da história de vida de Ana,

Gabriel e Francisco, que nos ofereceram elementos para evidenciar como os indivíduos têm

se apropriado do discurso de doença mental para organizar e representar suas identidades

atualmente. Nesse momento, assinalamos que não podemos mais sustentar cinicamente

que, ao utilizar o discurso de doença mental a partir de uma política de identidade

antimanicomial, estamos possibilitando a emancipação dos indivíduos, sendo necessário

que adotemos um reconhecimento pós-convencional (visão em paralaxe), para não

reproduzirmos reconhecimentos perversos.

Palavras-chave: Identidade, Reconhecimento Pós-Convencional, Sofrimento de

indeterminação, Psicologia Social, Teoria Crítica, Saúde Mental.

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Abstract

LIMA, Aluísio Ferreira de. Suffering from indeterminacy and perverse recognition: A

study on the construction of the mentally ill character from the identity-

metamorphosis-emancipation sintagma. Doctoral Thesis. PUCSP, 2009.

This is a thesis of Critical Social Psychology which main focus was to unveil, based on the

theory of identity proposed by Antonio da Costa Ciampa expressed in the identity-

metamorphosis-emancipation sintagma, how the construction of the mentally ill character

occurs considering the recognition of different social actors and the relation set with the

mental health discourse proposed by the psychiatric reform. The research was divided into

tree named routes: historical route, theoretical route, empirical route. In the first route we

make a presentation of the historical development of the dual normal/pathological

conception, which culminated in the construction of the assumed identity of the mentally

ill, and analyze this development in light of the different institutional articulations and

policies (especially the relationship between psychiatry and Social Psychology) legitimized

from laws and decrees that allowed the Brazilian Psychiatric Reform. Then, we point out

how the theory of identity proposed by Ciampa is inserted in the tradition of Critical Social

Psychology and cross the contribution of critical theory, especially the habermasian theory.

All this to think about the conditions for human emancipation to unveil the strong

investment of technical and psychological discourses suffered by the identity and which

produce fetishized characters sustained by perverse recognition. Then, we bring the life

history narratives of Ana, Gabriel and Francisco, which offered evidence of how

individuals have appropriated the discourse of mental illness to organize and represent their

identities today. In this moment, which point out that we can not cynically sustain, by using

the discourse of mental illness from an anti-asylum politics, that we are enabling the

empowerment of individuals. We need to adopt a post-conventional recognition (parallax

view) to not reproduce perverse recognition.

Keywords: Identity, Post-Conventional Recognition, Suffering from indeterminacy, Social

Psychology, Critical Theory, Mental Health.

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Resumen

LIMA, Aluísio Ferreira de. Sufrimiento de indeterminación y reconocimiento perverso: Un estudio de la construcción del personaje enfermo mental a partir del sintagma identidad-metamorfosis-emancipación. Tesis de Doctorado. PUCSP, 2009.

Esa es una tesis de Psicología Social Critica, cuyo enfoque principal fue revelar, a partir de

la teoría de la identidad propuesta por Antonio da Costa Ciampa expresada en el sintagma

identidad-metamorfosis-emancipación, como ocurre a la construcción del personaje

enfermo mental a partir del reconocimiento de diferentes actores sociales, y la relación que

ese personaje establece con el discurso de la salud mental propuesto por la reforma

psiquiátrica. Dividimos a la investigación en tres capitulos denominados: camino histórico,

camino teórico, camino empírico. En el primer camino hacemos una presentación histórica

del desarrollo de la concepción dualista normal/patológico, que culminó en la construcción

de la identidad presupuesta por el enfermo mental, y analizamos ese desarrollo a la luz de

las diferentes articulaciones institucionales y políticas (principalmente a la relación entre la

Psiquiatría y Psicología Social) legitimadas a partir de leyes y decretos que posibilitaron a

la Reforma Psiquiátrica brasileña actual. En seguida, apuntamos como la teoría de identidad

propuesta por Ciampa se pone en la tradición de la Psicología Social Critica y traspasa las

contribuciones de la Teoría Critica, principalmente a la habermasiana, para pensar las

condiciones de la emancipación humana, a punto de revelar como la identidad sufre fuertes

investidas de los discursos técnico-psicológicos, que producen personajes fetichisadas

sostenidas por un reconocimiento perverso. En seguida traemos las narrativas de la historia

de vida de Ana, Gabriel y Francisco, que nos ofrecieron elementos para evidenciar como

los individuos ven apropiado del discurso de enfermedad mental para organizar y

representar sus identidades actuales. En ese momento, defendiemos que no podemos mas

sujetar cinicamente que, al utilizar el discurso de la enfermedad mental a partir de una

política de identidad antimanicomial, estamos posibilitando la emancipación de estos

individuos y enseñando que volverse necesario un reconocimiento pos-convencional, para

que no reproduzcamos reconocimientos perversos.

Palabras-Claves: Identidad, Reconocimiento Pos-Convencional, Sufrimiento de

indeterminación, Psicología Social, Teoría Crítica, Salud Mental.

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SUMÁRIO PRÓLOGO .......................................................................................................................... 23 OBJETO E MÉTODO ........................................................................................................ 31 PRIMEIRA PARTE: ITINERÁRIO HISTÓRICO ............................................................. 45 I. Psicologia Social Crítica e saúde mental: as metamorfoses da concepção de doença

mental e sua relação com a sociedade da insatisfação administrada ............................ 47 1. A construção da identidade pressuposta do doente mental como instrumento de

particularização e opacificação das contradições sociais: o anormal como caso típico do que o Brasil tem de “errado” ......................................................................................... 53

2. A identidade pressuposta do doente mental nos anos 60, 70 e 80 no Brasil: a reprodução do paciente doente mental como justificativa de expansão do hospital psiquiátrico privado e a produção do cidadão doente mental como política de saúde mental ......... 77

3. O “cinismo consensual” da saúde mental concretizado no abandono de uma revolução psiquiátrica em detrimento do direito de ser reconhecimento como doente mental: A reforma psiquiátrica como um problema para Psicologia Social Crítica ...................... 94

SEGUNDA PARTE: ITINERÁRIO TEÓRICO ............................................................... 109 II. Psicologia Social Crítica e Identidade: As contribuições da Teoria Crítica nos estudos de

Antonio da Costa Ciampa e a possibilidade de pensar a doença mental como um problema de identidade ............................................................................................... 111

1. Da identidade social e sua relação com a ideologia ao sintagma identidade-metamorfose-emancipação ................................................................................................................ 112

2. Políticas de identidade e identidades políticas como conceitos necessários para o entendimento do sentido emancipatório das identidades ............................................ 136

3. Sofrimento de indeterminação e reconhecimento perverso: a administração da insatisfação como instrumento de controle da sociedade capitalista .......................... 164

TERCEIRA PARTE: ITINERÁRIO EMPÍRICO ............................................................ 185 III. A saúde mental interpelada pelo sintagma identidade-metamorfose-emancipação: A

(im)possível relação entre a manutenção da concepção de doença mental e a luta por reconhecimento da identidade humana ....................................................................... 187

1. A história de Ana: quando assumir uma personagem insustentável de doente mental se mostra como única opção frente a possibilidade de representação de uma outra personagem insuportável ............................................................................................. 190

2. A história de Gabriel: quando assumir uma personagem fetichizada é vislumbrada como única possibilidade de reconhecimento como pessoa portadora de direitos ............... 220

3. A história de Francisco: quando a deflação da personagem fetichizada serve de mediação para a construção de uma personagem possibilitadora de auto-respeito e alteridade . 240

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 263 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 267 ANEXOS ........................................................................................................................... 293

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PRÓLOGO

Os homens renovam com seu próprio trabalho uma realidade que os escraviza em medida crescente e os ameaça com todo tipo de miséria. A consciência dessa oposição não provém da fantasia, mas da experiência.

Max Horkheimer1

Nesse prólogo pretendo fornecer algumas respostas a questionamentos que em

meus sentimentos mais íntimos, nas horas mais solitárias da escrita da tese apareceram,

me perturbaram e que foram responsáveis pela produção dessa tese de doutoramento.

Nas páginas que seguem irei apresentar, de uma forma menos formal do que nos

capítulos seguintes, qual o sentido da obra para minha formação enquanto pesquisador,

docente e, sobretudo, como Psicólogo Social que tem se voltado para os estudos da

identidade humana e das formas de reconhecimento. Tentarei em poucas linhas fazer

uma reflexão sobre as metamorfoses que passei ao longo dos últimos anos como pós-

graduando em Psicologia Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –

PUCSP e o quanto essa experiência influenciou de forma direta meu contato com

pessoas, textos teórico-técnicos e principalmente com as narrativas de história de vida

das pessoas entendidas como portadoras de transtorno mental, doença mental, loucura

etc.

Inicio com algumas perguntas que me perseguiram durante toda a escrita do

trabalho ora apresentado, possivelmente as mais difíceis de responder: Por que essa

tese? Qual sua relevância social e científica? Discutir “doença mental” no auge da

Reforma Psiquiátrica brasileira, momento em que os discursos sobre o fechamento dos

manicômios e a implantação das instituições substitutivas — os Centros de Atenção

Psicossocial: CAPS, as Residências Terapêuticas etc. —, são hegemônicos nas políticas

de saúde mental e nas ciências da saúde, não seria sem sentido? O que justificaria

retomar um conceito (doença mental) que é negado e combatido pelo Movimento da

Luta Antimanicomial? Não seria mais interessante ajudar a encontrar novas tecnologias

para fortalecer o movimento e a implementação plena da Reforma Psiquiátrica?

1 HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. p.134.

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Retomar a doença mental como objeto de pesquisa não seria lidar com um problema já

ultrapassado, ou como diria Pierre Bourdieu2, um falso problema?

Confesso que inicialmente pensava que sim! O projeto de tese inicial, inclusive,

procurava produzir um conhecimento que pudesse contribuir com a Reforma

Psiquiátrica, tal como ela tem se configurado no Brasil a partir da Lei 10.216, de 06 de

abril de 2001, mais especificamente, imaginava em tecer os prolegômenos para uma

clínica de identidade.3 Acreditava que esse projeto contribuiria de forma crítica para a

transformação do discurso acerca das doenças mentais, certeza que provinha da crença

que compartilhei durante os últimos anos em que estive envolvido com a área4 e que me

fazia sentir sendo parte de um movimento de resistência, de vanguarda. A questão

inicial era como pensar uma clínica mais social, tal como Omar Ardans havia proposto

em sua primeira tentativa de pensar uma clínica de identidade5. Em outras palavras,

2 Cf. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. Passim. 3 O projeto inicial, apresentado na seleção de doutorado Programa de Estudos Pós-graduados em

Psicologia Social (PSO) da PUCSP no 1º semestre de 2006 era intitulado: Patologias mentais e sua relação com as distorções sistemáticas da linguagem: Uma re-leitura a partir do sintagma identidade-metamorfose-emancipação. A proposta recebeu parecer consubstanciado em setembro de 2007 do PSO e foi encaminhado para a comissão de ética da PUCSP, sendo registrado como Protocolo de Pesquisa n.196/2007 e aprovado na Reunião Ordinária do Comitê de Ética em Pesquisa da PUCSP do dia 24/09/2007. É importante destacarmos que não submetemos o projeto novamente a este comitê após a mudança do foco de discussão da tese por acreditarmos que os elementos que garantem o cumprimento das normas éticas continuam sendo observados e respeitados, inclusive, o objetivo buscado nas entrevistas de história de vida, assim como o tipo de participantes, continuaram os mesmos. (os pareceres constam no anexo)

4 Meu envolvimento com o campo da saúde mental dá-se desde o 3º. ano de minha graduação em Psicologia, momento em que fiz estágio no Espaço Fernando Ramos da Silva, atualmente CAPSad, da cidade de Diadema – SP. Desde então participei de Redução de Danos e Movimento da Luta Antimanicomial, atuei como Psicólogo e coordenador de ambulatório de Saúde Mental na Prefeitura de Rio Grande da Serra e no Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras drogas da Estância Turística de Ribeirão Pires, ambas em São Paulo; tomei como objeto de pesquisa o uso de drogas e o tratamento pelas oficinas terapêuticas no Mestrado realizado na PUCSP; cursei especialização em Saúde Mental na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – USP; participei de dezenas de Congressos, Fóruns, Encontros etc. no campo da Saúde Mental e Psicologia; e participei como membro e posteriormente como membro-pesquisador do Consórcio Intermunicipal de Saúde Mental do ABC Paulista.

5 Refiro-me aqui à influência que recebi na época da proposta apresentada anteriormente por Omar Ardans, em 2001, no posfácio de sua tese de doutorado intitulada: Apontamentos sobre a Metamorfose Humana: Um ensaio de Psicologia Social. O autor, nesse texto, ao propor uma Psicologia Social Clínica, “supõe um movimento inverso àquele inaugurado pela psicanálise; no lugar do percurso que leva das descobertas na psicologia individual à dimensão coletiva, ir da consideração das formas espirituais e coletivas da sociabilidade, particularmente a partir do comportamento desumano, para o individual em torno de sua identidade e de sua metamorfose.” op.cit. p.146. No projeto inicial de doutorado, Ardans procurou focar seu projeto na Clínica de Identidade, estudando um grupo de profissionais antroposóficos que desenvolvia um trabalho social em três favelas paulistas; porém, esse grupo passou por dificuldades e encerrou as atividades, inviabilizando o andamento do projeto e fazendo com que o pesquisador mudasse o foco inicial e assumisse um caráter teórico que fornecesse subsídios para a ampliação das discussões sobre metamorfose e das categorias a ela vinculadas.

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estava certo de que o problema era como aplicar os pressupostos teórico-metodológicos

da Psicologia Social à Reforma Psiquiátrica e com isso demorei um pouco para

finalmente entender algumas das provocações trazidas pelo professor Dr. Odair Sass,

ainda na minha qualificação e posteriormente defesa da dissertação de mestrado6.

Não sei se meu orientador — Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa — conseguiu

enxergar todas essas minhas dificuldades iniciais com o tema ou se já vislumbrava as

possibilidades de metamorfose apresentadas aqui. Mas não poderia deixar de apontar

que certamente foi no decorrer de nossas conversas, nos corredores, na sala do

Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social, nas orientações em sua casa,

que essas transformações foram sendo gestadas e tornadas possíveis. Ouso dizer,

inclusive, que o texto ora apresentado é uma resposta ao nosso primeiro contato na

PUCSP. Lembro que com alguns manuscritos o procurei após ler A estória do Severino

e a história da Severina, ainda quando fazia estágio de graduação e lhe contei sobre

meu interesse em articular a teoria de identidade com o manejo das oficinas terapêuticas

e que desejava sua orientação, terminei perguntando o que achava da proposta.

Estávamos em uma lanchonete situada dentro da PUCSP. Sua resposta, após ter

acabado de fumar um cigarro e tomar um primeiro gole de café, foi uma pergunta que

me perseguiria durante os anos seguintes. Com a calma e clareza que sempre tece seus

comentários e faz sugestões, me perguntou se era médico. Com minha resposta

negativa, continuou dizendo: “— pois você me parece um médico querendo descrever

uma nova terapêutica!”. Sem comentar mais nada a respeito de minha questão inicial

me convidou para participar do Núcleo de Estudos da Identidade Humana e indicou

“Pensamento Pós-Metafísico”, de Jürgen Habermas, para ler, inaugurando meu ingresso

na leitura das diversas teorias críticas.

Passaram-se alguns anos desde esse primeiro encontro. O tema que motivou

minha procura pela academia permaneceu, entretanto, as metamorfoses ocorridas na

maneira como compreendia o tema foram muitas. Atualmente o prof. Ciampa não fuma,

nem toma café e mais do que orientador é um amigo pessoal, eu sou Psicólogo,

6 Na dissertação de mestrado que também inicialmente procurei entender o potencial terapêutico das

oficinas de teatro para os usuários de drogas ficou claro que o “terapêutico” dessa oficina não era a produção artística, mas sim, a possibilidade de reconhecimento do humano por trás do diagnóstico psiquiátrico. Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de identidade: possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro e Dependência de drogas e psicologia social: um estudo sobre o sentido das oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da teoria de identidade.

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continuei com diversas atuações na área da saúde mental. Exerço a docência e pesquisa

na área de Psicologia Social do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará –

UFC e estou preste a defender uma tese de doutoramento. Uma tese resultante do

impacto de um primeiro encontro e que acompanhada das vivências ao longo desses

anos foi se configurando como um projeto não apenas de doutorado, mas também, como

um projeto de trabalho para minha vida. Sendo assim, fica evidente que a pergunta que

remetia ao lugar de onde estava fazendo meus questionamentos foi recorrente em

minhas leituras, ora aparecendo como um demônio inoportuno, ora sendo acolhida e até

mesmo sendo esperada nos lugares certos.

Poderia dizer aqui, de um outro modo, que a tese apresentada a seguir é uma

tentativa de resposta àquela simples pergunta de Ciampa, que não conseguiu ser

respondida e que colocou em xeque tudo o que eu acreditava. Pergunta que hoje

percebo ter incomodado por denunciar a persistência de uma racionalidade psiquiátrica7

em meu próprio discurso, o discurso psicológico, que aprendi em minha formação e que

entrava em consonância com o discurso da Reforma Psiquiátrica brasileira. Tomar

consciência desse fato, como poderá ser observado ao longo da tese, influenciou

radicalmente as metamorfoses frente minha proposta inicial, uma vez que as

dificuldades de implementação efetiva da reforma psiquiátrica, que me parecia no início

da pesquisa ser de ordem meramente instrumental, passaram a ser percebidas de forma

diferenciada quando percebi que no caso da saúde mental, que tem se voltado para

atender objetivos utilitariamente estabelecidos (redução de leitos e ampliação de

serviços substitutivos), estava diante do divórcio entre a teoria e a práxis.

Como se poderia imaginar, essa guinada fez com que a construção da pesquisa

se tornasse um trabalho árduo que encontrou como principal dificuldade a revisão de

meu projeto ético-político de vida. Uma vez que minha formação em Psicologia, que de

certa maneira ainda é hegemônica no Brasil e ao meu ver tem transformado a formação

universitária em deformação profissional, voltou-se muito mais para a reprodução da

prática e aprimoramento de aplicações das teorias e técnicas com vistas no mercado de

7 Racionalidade psiquiátrica e discurso psiquiátrico são entendidos aqui como evidências de não

superação da instituição psiquiátrica, que mais do que uma estrutura concreta que separaria os indivíduo normais dos anormais, excluindo-os do espaço público, refere-se ao conjunto de conhecimentos e normas morais revestidas de científicas determinam o que é doença mental. Como assinala Thomas Szasz, o discurso normativo e classificador da Psicologia e Psiquiatria, que ao utilizarem-se de metáforas comparativas com as doenças físicas, transformam o sofrimento frente aos problemas estruturais do capitalismo em doença mental. Cf. SZASZ, Thomas S. O mito da doença mental.

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trabalho, do que para a história, crítica, questionamento e produção do conhecimento

psicológico. Não percebia que a armadilha conceitual presente no campo da saúde

mental, — que ao mesmo tempo que me direcionava para o ativismo8 obscurecia minha

percepção da produção da exclusão (entendida aqui como processo estrutural) a ponto

de transformar em “sofrimento psíquico”, “doença mental”, o sentimento frente à grave

situação de desemprego, de precarização do emprego, vulnerabilidade do trabalho,

exploração e indeterminação — fazia com que eu ofertasse uma escuta surda, um olhar

cego, uma fala muda e uma ação reiterativa9.

Acredito que seja importante discorrer, mesmo que de forma breve, sobre essa

metamorfose, uma vez que antes de fazer parte do Programa de Estudos Pós-Graduados

em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo não havia me

atentado às diversas análises já realizadas, por autores como Jürgen Habermas, Max

Horkheimer, Theodor Adorno, Hannah Arendt, Cornelius Castoriadis, Naomi Klein,

Boaventura de Souza Santos, Giorgio Agamben, Slavoj Žižek, Milton Santos e tantos

outros, que fizeram parte de meu programa de estudos nos últimos anos. Um programa

de estudos que mais do que se preocupar com o aprofundamento dos temas trabalhados

no mestrado e doutorado voltou-se para o aprofundamento da história e epistemologia

da Psicologia Social, a pragmática, a ética do discurso, a hermenêutica, a dialética, a

psicanálise, a teoria política e teoria crítica.

Inevitavelmente, na medida em que o programa de estudos foi sendo

desenvolvido, o olhar e a crítica aos objetos estudados foram se transformando

radicalmente. Na esfera teórica o auge das metamorfoses sofridas frente ao objeto de

estudo pode ser identificada durante a pós-graduação em saúde mental, cursada e

8 É notório o enfraquecimento da figura do militante em nosso momento histórico, indícios e reflexos da

força do militarismo em nosso país. Para mim que nasci no final da ditadura é extremamente difícil vivenciar a experiência de resistência e encontrar um projeto utópico. Entendo que a socialização para militância transformou-se em uma socialização para o ativismo (cada vez mais especializado), esse último entendido como uma ação pragmática que abandona visões totalizadoras em benefício de implicações mais pontuais. O politicamente correto é pressuposto e visto como postura de vanguarda (que curiosamente questiona as partes mas alia-se ao todo).

9 Rosa Maria Nader, em sua tese de doutoramento de 1990 descrevia uma realidade que ainda não foi superada pelos profissionais da psicologia inseridos nos serviços substitutivos. Por escuta surda a autora entende a onipotência do saber a priori utilizado pelo psicólogo que faz com que sua escuta seja avaliada pela capacidade de articular a realidade com a teoria, o olhar cego refere-se ao olhar treinado para a classificação (que por mais que seja questionada acaba cedendo ao CID10 ao mantermos os conceitos tradicionais) e, finalmente, a fala muda, replicante de um discurso tecnificado ou fetichizado, muda por não conseguir expressar o verdadeiro sofrimento do indivíduo submetido ao especialista. Cf. NADER, Rosa Maria. Psicologia e Transformação: Os caminhos para a prática psi. Por ação reiterativa entendemos a práxis que não produz de fato algo transformador, apenas repõe o que já está instituído.

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concluída entre o final da pesquisa de mestrado e início do doutoramento.

“Especialização” que me mostrou claramente que ao invés de construir “outra”

alternativa para o campo da saúde mental, transformando radicalmente a realidade que o

indivíduo, nomeado doente mental, louco, está inserido, estava me transformando em

especialista na administração e faturamento do que é convencionalmente entendido

como doença mental; mais um cínico, como bem descreve Žižek, que sabe o que faz,

mas continua a fazê-lo10. Percebi que o objetivo maior da proposta, a publicização da

loucura, o aumento da cidadania do louco, era na verdade a promoção de uma cidadania

despolitizada e reduzida à simples inserção do indivíduo não-convencional numa forma

de vida social já dada, que não questionava a realidade instaurada.

Na esfera prática, meu próprio envolvimento com o tema, a partir da

participação em fóruns, reuniões técnicas de planejamento orçamentário, congressos e

serviços substitutivos em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catarina,

Ceará e Pará, fez com que gradualmente enxergasse que o próprio discurso da

desinstitucionalização, proposto pelos precursores da atual reforma psiquiátrica, tem

sido cada vez mais reduzido à diminuição de leitos nos manicômios e aumento de vagas

de trabalho para equipes multiprofissionais. Não refletindo acerca da nova forma de

institucionalização que tem sido proposta e implementada com o aumento dos serviços

substitutivos (implementados muitas das vezes por conta de facilidades e incentivos

governamentais e não por iniciativa de movimentos sociais) e oferta de empregos, em

grande maioria não vinculados a concursos públicos e sujeitos a contratações via

Organizações Sociais (OS), ou ainda, com utilização de cargos comissionados

(profissionais que sequer entendem o sentido da própria reforma psiquiátrica e foram

“formados” de forma tradicional ou para o mercado). Até mesmo o discurso positivo de

luta pelos direitos humanos do indivíduo não-convencional, começou a desvelar-se

como um discurso que não conseguia problematizar o quanto o doente mental libertado,

tornado agente econômico (consumidor) e mercadoria (objeto de trabalho para os

especialistas e indústrias), passa a estar submetido a uma nova fase da administração

capitalista, cuja fase de produção atual tem promovido a existência de consumidores,

nos mais diversos seguimentos de mercado.

A articulação entre essas duas esferas fez com que percebesse que nos dois

movimentos, que se descrevem como opostos tanto na literatura referente à Saúde 10 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia.

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Mental quanto na prática, persiste, em última análise, o mesmo problema. O primeiro

deles é o dos ativistas da Reforma Psiquiátrica que elogiam e engrandecem seu próprio

discurso como movimento de vanguarda, o segundo, é aquele feito pelos militantes da

Psiquiatria Clássica que seguem defendendo a retomada dos manicômios11. Nos dois

discursos12 o indivíduo continua sendo tutelado e desresponsabilizado. Sua fala é

medida pela mesma cama de Procusto13, a equipe multiprofissional, quando não apenas

o psiquiatra, são aqueles que dizem o que é normal e patológico.

Na prática o indivíduo diagnosticado ainda recebe o estigma que o acompanhará

pelo resto de sua vida como usuário da saúde mental: “louco em abstinência,

estabilizado”. A persistência do discurso psiquiátrico na atualidade, tão bem

demonstrado nos trabalhos clássicos de Thomas Szasz e Michel Foucault, possibilita

observar que na reforma os avanços teóricos e mesmo concretos foram pouquíssimos: o

muro do manicômio foi derrubado, mas o discurso da instituição psiquiátrica

permanece. O indivíduo continua sendo selecionado e classificado a partir do mesmo

ideal de normalidade, como na criticada psiquiatria clássica. Impossibilitado de negar o

diagnóstico (se o fizer prova sua doença) e a terapêutica acordada pelos “técnicos”, tem

que lidar com o risco de ser visto como usuário sem perfil para os serviços substitutivos,

ou ainda, perder algum “benefício” da previdência social, só restando alguma dignidade

e reconhecimento para os “militantes profissionais”14, obviamente pelo seu papel de

legitimizadores das práticas estabelecidas.

11 Utilizando-se da retórica científica, que Szasz já mostrou ser extremamente fraca no que se refere ao

conceito de doença mental, os opositores da desconstrução das instituições psiquiátricas asilares defendem a legitimidade frente ao controle do doente mental, incapaz e abandonado. Ver, por exemplo, o editorial assinado por Valentim Gentil, do Hospital das Clínicas da FMUSP, publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria.

12 É importante que fique claro que não estou negando o fato explícito de que o discurso da Reforma Psiquiátrica é mais humanizado e que é um avanço frente a lógica manicomial, a ênfase dada aqui é para o fato de esse discurso ter se transformado em apenas apenas isso, um discurso mais humanizado, não questionando a concepção de loucura socialmente estabelecida, simplesmente propondo uma reabilitação ao instituído.

13 O uso do termo cama de Procusto remete ao mito grego, onde para entrar em Atenas, o viajante tinha que passar por um portão. Este portão era guardado por Procusto, um monstro poderoso que só deixava entrar aqueles que correspondiam a um padrão ideal, a uma certa normalidade. Se a pessoa fosse muito baixa, ele a punha numa cama de ferro para esticá-la; se fosse muito alta, ele a deitava nesta cama e submetia a vítima a uma cirurgia, cortando-lhe os pés; este leito era conhecido como a Cama de Procusto.

14 Militantes profissionais é um termo empregado por Jubel Barreto (2005) para designar determinados pacientes (usuários de serviços substitutivos) que participam em diversos eventos e que atestam as vantagens de estar fora do manicômio, o que podemos pensar que serve muito mais para reforçar a política adotada do que para ampliar sua participação no espaço público, ou ainda, questionar os novos serviços, defendidos como ideais para essas pessoas.

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Aparente está que ao imergir nesse universo, passei a entender que os problemas

presentes na implantação das instituições substitutivas não são da ordem do treinamento

e organização, mas sim, da própria concepção de “reforma psiquiátrica”, que não se

interessa em libertar os indivíduos do discurso psiquiátrico, o qual continua sendo

fortalecido e pregrado religiosamente a partir da pactuação dos diferentes campos de

conhecimentos que se organizam em torno da concepção de saúde mental com o Estado.

As metamorfoses me fizeram abandonar o objetivo inicial de propor mais uma

tecnologia para aquilo que é pressuposto como discurso de “vanguarda” — o que

colocaria a Psicologia Social a serviço dessa lógica — e buscasse compreender as

influências desse discurso, na construção e manutenção da personagem doente mental,

portador de sofrimento psíquico, louco etc., e sua relação com o capitalismo avançado,

o que por sua vez, propõe o uso da Psicologia Social não como tecnologia de saúde

mental, mas sim, como possibilidade de crítica do discurso psiquiátrico.

Inevitavelmente, também ficará explícito no texto que a análise, constituída a

partir da procura por pontos de sutura entre a Filosofia, Psicanálise, Teoria Crítica,

Teorias da Comunicação e Psicologia Social, focará e não só desvelará o que “está aí”

— a persistência do discurso psiquiátrico mascarado de “novo” discurso de cuidado —,

mas principalmente os perigos que a utilização de um reconhecimento perverso — que

reduz as diversas personagens que compõem a identidade dos indivíduos à uma

representação da personagem fetichizada que impede os mesmos de serem algo mais

que o militante profissional ou doente mental em recuperação — oferece para a

emancipação humana. Valendo-me de uma metáfora comumente utilizada nos textos

que tratam da saúde mental, que diz colocar em xeque a concepção de loucura —

rebatizada pela polissemia que, em última análise, redunda no significado de doença

mental —, acredito que o texto a seguir é uma proposta de leitura alternativa cuja

argumentação defende que enquanto continuarmos apenas colocando em xeque a

instituição psiquiátrica permaneceremos consentindo em jogar a mesma partida. A tese

adquire uma postura frente ao conhecimento o qual segue a proposição de Paul

Feyerabend15, para quem fazer ciência é assumir um empreendimento anárquico, cuja

produção deve ser capaz de avaliar quanto avançamos frente à nossas crenças em

determinadas teorias ou quanto colaboramos com a reposição de uma tecnologia que

serve ao modismo e adequação à sociedade. 15 FEYERABEND, Paul. Contra o Método.

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OBJETO E MÉTODO

A confusão e o deserto da psicologia não se explicam pelo fato de ela ser uma “ciência jovem”; seu estado não pode ser comparado com o da física, por exemplo, nos seus inícios. Existem na psicologia métodos experimentais e confusão conceitual.

Ludwig Wittgenstein1

É importante que apresentemos, antes da tese propriamente dita, como

entendemos a relação entre o método e o objeto da pesquisa. É necessário que

registremos aqui os meios utilizados para a compreensão de nosso objeto de estudo,

pois como escreve Humberto Eco, somente a partir dessa definição é que poderemos

“definir as condições sob as quais podemos falar, com base em certas regras que

estabelecemos ou que outros estabeleceram antes de nós”2. O texto que segue tem como

intuito expressar como fizemos a pesquisa e de certa maneira, apresentar os obstáculos

epistemológicos encontrados em nosso percurso. Todavia, não tem a pretensão de ser

uma discussão antecipada daquilo que se pretende estudar, acreditamos que aqui

poderemos indicar como objeto e método apareceram como indissociáveis entre si. Ao

ponto que o próprio objeto determinou, “dentro dos limites possíveis e conhecidos, o

método e não o inverso”. Da mesma forma, acreditamos que será visível como a escolha

de uma ou de outra técnica para investigar o problema foi “condicionado à teoria e às

hipóteses dele decorrentes”3, afastando-nos de alguns outros métodos, sobretudo, o

positivista.

Essa é uma pesquisa de Psicologia Social que toma como referencial teórico-

metodológico de base autores da chamada Teoria Crítica, que por sua vez, consideram o

fenômeno estudado a partir de suas determinações histórico-sociais e sua orientação

para a emancipação humana, ao mesmo tempo possível e bloqueada pela lógica própria

da organização social vigente. Teoria Crítica aqui é entendida como um campo teórico

amplo que está além da configuração histórica que lhe conferiu o título de Escola de

Frankfurt4, mas que continua orientando-se para a compreensão das possibilidades de

1 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. p.206. [grifos do autor] 2 ECO, Humberto. Como se faz uma tese. p.21. 3 SASS, Odair. Teoria Crítica e investigação empírica na psicologia. p. 147-159. 4 No sentido originário dado por Max Horkheimer em seu artigo de 1937, “Teoria Tradicional e Teoria

Crítica”, a expressão apontava um campo teórico ligado ao marxismo. Esse posicionamento ajuda a

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emancipação da dominação. Esse posicionamento crítico requer uma atitude frente ao

conhecimento tão prudente quanto aquela que é recomendada para as leituras do senso

comum. Do mesmo modo, exige um estado de alerta diante dos conhecimentos atuais e

uma disposição interna para colocar as verdades escolares em questionamento.

Conhecimentos que são postos à prova a partir da explicitação dos discursos sufocados

e naturalizados. Um exercício concreto, como defende Boaventura de Souza Santos, “de

provocação que faz ao pensamento e à práxis no duplo movimento de trabalhar

conceitos hegemônicos de forma contra-hegemônica, buscando indícios de superação

das relações sociais capitalistas”5 e as artimanhas de reposição da realidade atual.

O distanciamento que fazemos do método positivista se dá por entendermos que

este é um sistema de referência que busca a partir do reducionismo dos fenômenos e do

controle de variáveis um resultado pressuposto generalizável. O pesquisador pré-avalia

o sentido de possíveis proposições científico-experimentais, que por sua vez estabelece

regras não só para a construção de teorias, mas também para sua comprovação crítica6,

o que faz com que a análise da realidade somente seja reconhecida como objetiva se

realizada por instrumentos padronizados, pretensamente neutros. A busca pelo resultado

controlado nos leva a questionar se os dados produzidos a partir dessa perspectiva são

realmente aquilo que se propõe a priori conhecer, ou se na verdade o que se prova é a

fidedignidade do experimento, sua replicação instrumental, independente da realidade.

Não iremos alongar essa discussão do positivismo e nossa crítica a esse modelo,

diversos autores já a fizeram com bastante competência. Basta trazer aqui a constatação

de Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, ainda na década de 80 do século passado, que

dentre outras proposições diziam que “não estamos mais no tempo em que os

fenômenos imutáveis prendiam atenção. Não são mais as situações estáveis e as

permanências que nos interessam antes de tudo, mas as evoluções, as crises e

instabilidades”7. Concordamos que necessitamos de “uma teoria sobre a impossibilidade

entender porque autores como Axel Honneth e Jürgen Habermas, que não compartilham totalmente com o projeto inicial frankfurtiano, não sejam relacionados à Escola de Frankfurt mas ainda sejam considerados herdeiros do legado da Teoria Crítica. Uma discussão interessante a esse respeito pode ser encontrada em: NOBRE, Marcos. Luta por Reconhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crítica.

5 SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. p.11. 6 Nossas críticas ao modelo positivo baseiam-se nas discussões realizadas pelos autores da Escola

Frankfurtiana, sobretudo as críticas realizadas por Jürgen Habermas. Cf. HABERMAS, Jürgen. La lógica de las ciencias sociales & Idem. Técnica e Ciência como Ideologia.

7 PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabele. A nova aliança: A metamorfose da Ciência. p.5 e segts.

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de uma teoria geral”8 e que somente a partir dessa guinada epistemológica é que

poderemos desenvolver uma Psicologia Social Crítica9. Afinal, já é bem conhecido o

fato de a Psicologia Científica, sobretudo a Psicologia Social, ter tomado forma a partir

de uma cadeia de pretensões de conhecimento acerca dos indivíduos e coletividades que

permitiram o controle e adaptação desses à ordem estabelecida, ou seja, serviu como

instrumento de normalização e administração da sociedade.

Por enquanto adiantamos que o fato de assumirmos a articulação entre a

Psicologia Social e a Teoria Crítica deixa explícita nossa posição frente à produção de

conhecimento numa época em que o capitalismo tardio vive sua globalização em busca

de legitimação10, transformando as formas sociais de interação em relações de consumo

e a cultura em commodities11. O Materialismo Histórico leva-nos a considerar que o

conhecimento do real é uma luta contra a opacidade, nunca é imediato e pleno, em

outras palavras, que o pensamento empírico somente torna-se claro a posteriori, quando

o conjunto de argumentos é enfim explicitados. Isso refletido está na maneira como a

pesquisa foi realizada, que não condiz diretamente com a forma que se encontra

apresentada: itinerário histórico, itinerário teórico, itinerário empírico e itinerários que

se entrecruzam.

Apontamos no prólogo as metamorfoses que o pesquisador sofreu ao longo da

pesquisa, entretanto, não dissemos como essas metamorfoses influenciaram a escrita

desse trabalho. Podemos dizer que a tese foi tomando forma a partir de um movimento

contrário às pesquisas geralmente feitas acerca do tema, que seguem a ideologia

dominante da reforma psiquiátrica e têm como pressuposto o discurso da psiquiatria e

anti-psiquiatria como ponto inicial. Essa é uma pesquisa de identidade entendida como

metamorfose humana, que segue como influencia as proposições teóricas desenvolvidas

8 SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. p.39. 9 Não discutiremos o termo “Psicologia Social Crítica”, sua utilização durante o desenvolvimento da tese

mostrará que se trata de pensar a Psicologia Social articulada com o Materialismo Histórico. É importante assinalar, entretanto, Psicologia Social Crítica não é uma nomenclatura nova, ela aparece como configuração de uma proposta para o campo da Psicologia Social na década de 70 do século passado. Para maiores detalhes sugerimos a leitura dos textos: LANE, Silvia T. M. A Psicologia Social e uma nova concepção do homem para a Psicologia; Ibidem. O processo grupal & MONTEIRO, Luís G. M. Objetividade x Subjetividade: da crítica à psicologia à psicologia crítica.

10 Cf. HABERMAS, Jürgen. Crise de legitimação no capitalismo tardio. 11 Cf. HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Harvey escreve que “dentro da lógica da

acumulação do capital, é que o capital possui meios de se apropriar e extrair excedentes das diferenças locais, das variações culturais locais e dos significados estéticos, não obstante a origem.” p.237.

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por Antonio da Costa Ciampa12, o que nos leva a considerar que lidamos com algo que

não contém nenhum núcleo duro que garanta sua consistência.

Na concepção de Ciampa, que difere de outros autores da sociologia e psicologia

que tratam a identidade como identidades híbridas13, transnacionais14, líquidas15, pós-

convencionais16, agenciamentos17, zonas de contato e rotas18, subversão e

transgressão19, identização20, ipseidade21, agenciamentos22 etc., a identidade somente é

representada por meio de personagens, que quando são reconhecidas, negam a

totalidade da identidade. Em outras palavras, a identidade é compreendida como uma

interioridade que somente é vista quando exteriorizada. Isso, por sua vez, obriga-nos a

aceitar que a identidade somente é passível de ser estudada em sua aparência, através de

seu auto-reflexo, no jogo de representação entre as diferentes personagens, ou ainda, no

fetiche da representação de algumas delas. Por conta disso, a questão do

reconhecimento mostrar-se-á essencial no decorrer da pesquisa, uma vez que

acreditamos ser justamente nas formas de reconhecimento das identidades que

poderemos vislumbrar como as personagens são superadas, articuladas ou condenadas à

reposição. No que se refere a essa última colocação, assinalaremos tanto como os

efeitos do discurso propagado pela instituição psiquiátrica foi sendo desenvolvido com

o intuito de construir a personagem doente mental, como também evidenciaremos a

função da manutenção desse discurso para a sociedade capitalista atual.

Podemos dizer que a construção da tese foi realizada pelo seu avesso, ou seja,

primeiramente entramos em contato com a realidade que pretendíamos estudar e com

possíveis “informantes”, que eram indivíduos que indicavam pessoas que eram vistas

por eles como “doentes mentais”, “pessoas portadoras de sofrimento mental”, “loucos”

etc., ou ainda, que se descreviam como doentes mentais e/ou usuários de saúde mental.

Esses informantes foram escolhidos aleatoriamente, nos diferentes espaços sociais em 12 A concepção de identidade como metamorfose será explorada na segunda parte do segunda parte, por

enquanto podemos dizer que nos referimos ao trabalho: CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de Psicologia Social.

13 BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. 14 GILROY, Paul. The Sugar You Stir. 15 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. 16 HABERMAS, Jürgen. Para a Reconstrução do Materialismo Histórico. 17 BUTLER, Judith. Agencies of Style for a Liminal Subject. 18CLIFFORD, James. Taking Identity Politics Seriously: ‘The Contradictory Stony Ground…’. 19 GROSSBERG, Lawrence. History, Imagination and the Politics of Belonging: Between the Death

and Fear of history. 20 MELUCCI, Alberto. O Jogo do Eu. 21 RICOEUR, Paul. O si mesmo como um Outro. 22 TAYLOR, Charles. O que é agência humana?

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que o pesquisador participou, tais como: escolas, praças, universidades, clínicas,

instituições substitutivas de saúde mental, Internet etc. Sendo que o objetivo dessa

estratégia foi o de encontrar pessoas que eram reconhecidas ou se reconheciam como

doentes mentais e que não necessariamente faziam parte da rede de saúde mental

implementada pelo Estado. E, posteriormente, a partir das indicações feitas pelos

informantes e das pesquisas de grupos na Internet, nos aproximamos dos entrevistados,

submetemos o projeto de pesquisa à comissão de ética da PUCSP23 e agendamos a

gravação das narrativas de histórias de vida com doze deles24. Com as primeiras

histórias de vida em mãos, começamos a levantar o material bibliográfico que

possibilitasse compreender como se constituiu historicamente a concepção de normal e

patológico no Brasil (principalmente a relação estabelecida entre a Psiquiatria,

Psicologia, Sociedade, Estado e Capitalismo), e, finalmente, articulamos esse material

com o referencial teórico-metodológico da Psicologia Social, mais especificamente, a

teoria de identidade proposta por Ciampa, que por sua vez, foi articulada com as

proposições da Teoria Crítica25, Teorias da Comunicação e a Psicanálise26.

Podemos dizer que fizemos um exercício de pensamento contra-indutivo,

utilizando aqui uma contribuição de Feyerabend27, e esperamos que este conjunto de

proposições presentes nessa tese possa colaborar com a construção de uma leitura

acerca dos fenômenos descritos como doenças mentais que parta não mais da orientação

psiquiátrica, mas do corpo teórico da Psicologia Social Crítica. Não foi nosso intuito

fazer uma análise institucional da instituição psiquiátrica — nos pareceu mais

interessante contrapor as histórias de vida com os discursos da instituição psiquiátrica e

a partir dessa contraposição pensar qual a relação com o trabalho, a economia e a

dominação. Isso não significa que tenhamos desprezado as contribuições clássicas da

antipsiquiatria presentes nas obras de Ervin Goffman, Michael Foucault, Thomas Szasz,

Ronald Laing e Theodor Sarbin. Esses autores nos mostraram como o naturalismo

instaurado pelo discurso normativo da instituição psiquiátrica, que tem imperado nas

interpretações não somente da saúde mental, sempre foi articulado com o

desenvolvimento do capitalismo e tem sido utilizado como neutralizador de nossas

23 A aprovação da Comissão de Ética da PUCSP encontra-se na sessão de anexos. 24 Embora tenhamos realizado as entrevistas com doze pessoas apenas utilizaremos três delas. 25 Principalmente os trabalhos de Jürgen Habermas & Axel Honneth. 26 Principalmente as proposições de Slavoj Žižek e seus interlocutores brasileiros: Vladimir Safatle &

José Luiz Aidar Prado. 27 Cf. FEYERABEND, Paul. Contra o Método.

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fontes morais e éticas sendo, portanto, um dos grandes males da nossa sociedade.

Naturalismo que tenta impedir que vejamos a hierarquia moral que sempre existe nos

diagnósticos e que serve de pano de fundo para os indivíduos avaliarem uns aos outros.

Essa postura na produção de conhecimento fez com que nos aproximássemos

tanto do que Cecília Minayo28 entende como método hermenêutico-dialético, quanto da

tentativa de reconciliação entre a hermenêutica e a crítica das ideologias proposta por

Paul Ricoeur29. Esses dois modelos, que apresentam mais pontos de encontro do que se

distanciam, nos trazem elementos importantes “na crítica da produção do conhecimento

científico, principalmente no esforço que estes apresentam contra a ameaça da

tecnocracia”30. As narrativas e os discursos dos indivíduos são entendidas como centro

da análise, situadas em seu contexto e o pesquisador tem a tarefa de entender o

fenômeno ou processo social a partir das suas determinações e transformações dadas

pelos indivíduos.31 É importante lembrar que assinalar que nos aproximamos desses

modelos teóricos não significa que nos afastemos do materialismo histórico que, por sua

vez, — aqui nos valemos da interpretação de Slavoj Žižek das teses sobre o conceito de

história de Walter Benjamin —, tem a capacidade “de imobilizar o movimento

histórico, de isolar o detalhe da totalidade histórica”32, possibilitando que vislumbremos

como determinado aspecto tem sido re-posto, retornando como passado “repleto do

presente” por não ter sido revolucionado33.

De forma esquemática, podemos dizer que a partir das narrativas de história de

vida nos colocamos três tarefas: primeira, explorar as concepções tradicionais e

descobrir a serviço de quem determinado conhecimento foi produzido e tem se

28 MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 29 Essa reconciliação é desenvolvida por esse autor no trabalho: RICOEUR, P. Interpretação e

Ideologias. Nesse trabalho, Ricoeur, após a análise que faz do debate ocorrido entre Habermas e Gadamer, chega à conclusão que: “A tarefa da hermenêutica das tradições é a de lembrar à crítica das ideologias que é sobre o fundo da reinterpretação criadora das heranças culturais que o homem pode projetar sua emancipação e antecipar uma comunicação sem entrave e sem limite. (...) É bem provável que quem não é capaz de reinterpretar seu passado, também não seja capaz de projetar concretamente seu interesse pela emancipação.” p.142.

30 LIMA, Aluísio Ferreira de. Hermenêutica da Tradição ou Crítica das Ideologias? O debate entre Hans-Georg Gadamer & Jürgen Habermas.

31 MINAYO, Maria Cecília de Souza. Ciência, Técnica e Arte: O desafio da pesquisa social. p. 25 e segts. [grifos da autora]

32 ŽIŽEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. p.182. 33 Como escreve Žižek, esse é o momento em que “o contínuo se rompe, onde se aniquila a textura da

história prévia, a dos vencedores, e onde, retroativamente, através do sucesso da revolução, todos os ‘atos falhos’, todas as tentativas malogradas do passado, que funcionavam no texto vigente como traço vazio e desprovido de sentido, são resgatadas, recebem sua significação.” op.cit. p.185.

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perpetuado; segunda, trazer a experiência do mundo da vida34, o diálogo abafado, para

contrapor a essas teorias e colocá-las a prova; terceira, realizar uma análise que possa

explicitar35 o papel do discurso psiquiátrico na manutenção da realidade social e no

reconhecimento da identidade pessoal. Aqui não só explicitar como as identidades tem

sido danificadas pelo discurso psiquiátrico, mas também apontar os limites e as

implicações éticas na utilização cínica desse discurso. Sendo assim, o que buscamos

com a tese não será descrever como determinado conhecimento representa o real, mas

sim discorrer sobre o que determinado conhecimento produz na realidade, sua

intervenção no real. A importância de tal proposição estará na possibilidade que

apresenta na explicitação da colonização do imaginário e as possibilidades de

alterização e emancipação da identidade. Propomos que o objeto de estudo fosse visto a

partir de sua gênese histórico-social, a qual possibilitou observar que no caso da doença

mental ao invés de encontrar uma ação dos indivíduos sobre um determinado objeto,

deparamo-nos com um processo invertido no qual o indivíduo é definido pela

passividade e é do objeto que vem o movimento. Essa inversão, como poderá ser

acompanhada no itinerário histórico, mostrar-se-á como particularidade própria da

34 Mundo da Vida é citado aqui a partir da apreensão habermasiana do conceito, que se refere ao “lugar

transcedental” do indivíduo, no qual ele está sempre inserido, em relação ao qual é impossível manter uma distância. “O ‘mundo da vida’ tanto forma o horizonte como o pano de fundo para a comunicação quotidiana e a experiência quotidiana. O ‘mundo da vida’, enquanto pano de fundo e contexto pouco temático e levado por acréscimo, forma o pólo oposto para um saber tematizado, que é presenciado, dentro do seu horizonte, e exposto, sempre de novo, ao risco de dissenção, do poder-dizer-não. Já na comunicação quotidiana combinamos as nossas enunciações com as exigências de validade, possíveis de criticar, que transcendem todos os padrões provinciais enquanto meras exigências. Com isto, as tensões sentidas entre as contingentes limitações e as idealizadoras pressuposições da práxis do entendimento mútuo invadem o ‘mundo da vida’ propriamente dito – idealizações, essas, que na realidade se põem em evidência, com totais e antes de mais, nas formas comunicativas das argumentações. O contrapropendente jogo mútuo entre aquele saber explícito, que depende de idealizações, e aquele saber de segundo plano, que absorve os riscos, não se pratica, tal como Husserl julgava, na concorrência entre o saber empírico da ciência, dos especialistas, e as certezas pré-teóricas. O ‘mundo da vida’ permanece referenciado, muito mais, como pano de fundo e horizonte, numa práxis quotidiana da vida cujos pressupostos de comunicação dependem, prontamente, de idealizações.” HABERMAS, Jürgen. Edmund Husserl sobre o “mundo da vida”, filosofia e ciência. p.41

35 Acreditamos que a palavra “explicitar” é a que melhor se encaixa para descrever àquilo que faremos no decorrer da tese, pois concordamos com posturas como a Slavoj Žižek que no momento atual não se trata mais de “desvelar”, “descobrir”, “desmistificar”, “desalienar” etc. O problema é o do exercício hegeliano de negação da negação daquilo que está aí: a aparência. Esse difícil exercício, como bem assinala Žižek, “não nos leva a uma mera e simples afirmação: assim que as coisas (começam a) parecer, não só parecem o que não são, criando uma ilusão, como também podem parecer apenas parecer, ocultando o fato de que são o que parecem ser.” ŽIŽEK, Slavoj. Visão em paralaxe. 48. Nesse sentido, assumimos que não existem dois pontos de vista (o bem e o mal), mas sim, que existe um ponto de vista (que na tese mostrar-se-á como o discurso da saúde mental) e o que foge a ele, um outro ponto de vista que é produzido pelo vazio do que não pode ser visto pelo primeiro ponto de vista (e que pretendemos explicitar com as narrativas de história de vida de pessoas que organizam suas identidades a partir da personagem doente mental).

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gênese de nosso objeto, uma vez que diferentemente das patologias orgânicas em que o

pedido de diagnóstico e tratamento segue o princípio do alívio do sofrimento para o

doente, as chamadas doenças mentais surgem de uma reivindicação de membros da

sociedade que não suportavam o comportamento diferente de determinado membro da

sociedade36.

A escolha pela narrativa de história de vida como elemento empírico utilizado na

tese segue a proposta de pesquisa de identidade inaugurada há 21 anos por Antonio da

Costa Ciampa37, n’A Estória do Severino e a História da Severina. Nesse trabalho, a

história de vida foi um instrumento apropriado para obter as informações necessárias

para compreender como a identidade é metamorfose em busca de emancipação.

Seguindo uma certa influência sartreana38, principalmente a explanação que este faz do

método progressivo regressivo desenvolvido no trabalho Questão de método, Ciampa

nos ensina que a narrativa de história de vida pode demonstrar como o homem se

caracteriza antes de tudo por sua capacidade de superação das circunstâncias dadas, pela

capacidade de criar projetos para si e que isso permite compreender se o resultado de

suas ações promove uma realidade nova e provida de significação própria, em lugar de

ser muito mais do que simplesmente uma média.

Acreditamos que a utilização da narrativa de história de vida possibilita o

surgimento da personagem do narrador, que, segundo Benjamin, estaria em vias de

extinção, há muito esquecido e sufocado, por trazer as contradições do sistema e por

apontar o mal-estar cotidiano, “como se estivéssemos privados de uma faculdade que

nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”39. E uma vez

que não descrevemos o passado simplesmente, mas o articulamos com nosso presente e

projetos futuros, também podemos dizer que essa ação aparece como uma forma de

resistência à massificação e à serialidade. A importância da narrativa encontra-se na

possibilidade de que aquele que conta a história tem de nos mostrar os restos, rastros, de

sua individualidade. Como assinala Jeanne Marie Gagnebin40, a narrativa de história de

36 Cf. SZASZ, Thomas. Cruel compaixão; Idem. Mito da doença mental; Idem. Fabricação da

Loucura e Ideologia e Doença Mental. 37 Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de

Psicologia Social. e CARONE, Iraí. Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa: A estória do Severino e a história da Severina.

38 Cf. SARTRE, Jean-Paul. Questão de Método. p. 155 et seq.. 39 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. p. 198. 40 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, História, Testemunho.

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vida, justamente por apresentar-se como um exercício de articulação entre o passado e o

presente, possibilita a quebra da repetição daquilo que se lembra e,

abre-se aos brancos [do pensamento], aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer o passado, mas também de agir sobre o presente.41

Isso, por sua vez, reforça o compromisso do pesquisador com o relacionamento

ético frente ao entrevistado, pois este se torna mais do que um mero expectador da

história narrada. O pesquisador que utiliza a narrativa de história de vida ocupa o lugar

de “testemunha” do sofrimento, da mortificação e das possibilidades de subversão dos

indivíduos. O conceito de “testemunha” apontado aqui, como bem adverte Gagnebin, é

entendido de uma forma ampliada à sua concepção habitual. Ultrapassa o sentido

daquele que “viu com os próprios olhos” e que pode afirmar como determinado

acontecimento ocorreu. Testemunha, na perspectiva apresentada, é aquele que

compartilha o sofrimento do outro, é aquele que não vai embora:

[é aquele] que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento do indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, inventar o presente.42

A concepção de pesquisador como testemunha é um posicionamento ético-

político frente à desigualdade que é presenciada. Isto posto, lembremos que uma tese

dessa natureza é um trabalho de criação e como tal lida com as possibilidades e limites

da produção subjetiva, o que torna a articulação dessas narrativas com os dados

históricos e teóricos extremamente importante. O trabalho de análise e sua relação com

a objetividade “acaba por condicionar-se à competência, à sensibilidade e à honestidade

do pesquisador na crítica interna e externa dos documentos (dados) que elegeu e na

determinação do peso (ou valor) de cada um deles no corpo de seu trabalho43. O que,

41 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, História, Testemunho. p.55. [grifos da autora] 42 Ibidem. p.57. 43 ALBERTI, Verena. História Oral: a experiência do CPDOC. p.06.

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obviamente, não significa dizer que ao adotarmos o uso de narrativas de história de vida

como instrumento é ter em mãos todas as possibilidades de interpretação e análise.

Afinal, faremos o estudo de três narrativas em nossa tese, o que levaria alguns

pesquisadores a questionar a generalidade das análises realizadas. A respeito dessa

última colocação, inclusive, é importante adiantar que na análise da identidade proposta

por Ciampa44, que resgata a lógica hegeliana45, o universal materializa o universal, na

unidade do particular. Iraí Carone46, ao realizar uma análise da tese de doutorado de

Ciampa, explora essa questão da generalização e escreve:

(...) você tem que entender o universal como necessariamente particularizado. O universal não existe separadamente; sociedade somos todos nós; e o que nós somos, somos particularizações. Sociedade é o universal particularizado através de seus agentes sociais, dos indivíduos, das instituições. Então, eu só posso ver o universal na sua particularização; isso não quer dizer que o universal seja o conjunto dos particulares, porque aí você vai perder a noção de totalidade; a totalidade não é a soma dos particulares e nem o particular é separado do universal; o particular é singularização do universal.47

Em um período cujo universal dominante é o Capital, podemos imaginar que a

explicitação do singular pode mostrar como a quebra da continuidade do existir humano

pode ser decorrente de uma imposição social, em que a identidade do indivíduo, sua

vontade, é confrontada com exigências do mercado. A preocupação com a

generalização dos dados, nesse sentido, cede lugar para a preocupação com o

aprofundamento dos dados, ou como assinala Silvia Lane, a “preocupação com a

objetividade do empírico abre espaço para a subjetividade como processo histórico”48.

O objetivo na análise das narrativas de história de vida, nesse sentido, está na

possibilidade que esta tem de nos mostrar como a identidade de uma pessoa foi se

metamorfoseando ao longo dos anos a partir de “uma infinidade de influências que nela

se cruzam e às quais não pode por nenhum meio escapar, de ações que sobre ela se

exercem que lhe são inteiramente exteriores”49, e ao mesmo tempo, evidenciar como

determinadas representações podem representar a contradição frente à mesmice. Afinal,

44 CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de

Psicologia Social. p.127. 45 HEGEL, Georg W. F. Princípios de filosofia do Direito. p.15. 46 CARONE, Iraí. Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa: A

estória do Severino e a história da Severina. 47 Ibidem. p.12-13. 48 LANE, Silvia T. M. Prefácio: A estória do Severino e a História da Severina. p.10. 49 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. p.36.

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os eventos não só acontecem por conta de todas as coisas que o indivíduo vive, mas

sim, por conta de determinados acontecimentos e dos significados que estes adquiriram

no decorrer do tempo.“É a interpretação, o sentido que atribuímos aos fatos, que os faz

existir como tais”50.

Talvez nem fosse preciso dizer que não temos a pretensão de descrever uma

objetividade tal como ela é, pois acreditamos que nunca nos aproximaremos da

realidade pura, pois essa não existe. Como escreve Slavoj Žižek, o “Materialismo não é

a afirmação direta de minha inclusão na realidade objetiva (...); ele reside, antes, na

torção reflexiva por meio da qual e me incluo na imagem constituída por mim”51.

Assume-se na apropriação desse instrumento que a realidade que vemos nunca é

“inteira”, não somente porque grande parte dela me escapa, mas porque existe uma

opacidade inerente que indica minha inclusão nela. Opacidade que nos leva a acreditar

ser mais interessante o instante rememorado do que uma história de vida linear, uma vez

que se compreendemos a identidade como a articulação de várias personagens, o tempo

e a memória também devem ser entendidos como uma articulação de muitos instantes.52

Nos instantes, momentos focalizados pelos indivíduos nas narrativas, podemos

entender como cada personagem que constitui a identidade dos entrevistados foram

sendo reconhecidas, negadas ou repostas, o que reforça a proposição de Ciampa de que

“quando um momento biográfico é focalizado, não é para afirmar que só aí a

metamorfose está se dando; é apenas um recurso para lançar mais luz no episódio onde

é mais visível o que se está afirmando”53. Novamente a contribuição de Ciampa para a

pesquisa de identidade torna-se explícita, na medida em que este autor supera a prática

da mera descrição identitária, cujo desafio era obter o maior número de informações

possíveis e passa a ser a busca pelos significados implícitos presentes na construção

dessa identidade, que é entendida como metamorfose, transformação. A ênfase de nossa

investigação como será verificado, está na importância da ação individual autônoma —

em parte à margem (ou não diretamente ligada à) da instituição psiquiátrica, que

funciona na atualidade como instituição socializadora e político-cultural tradicional —

como geradora de novas estratégias de sobrevivência, novos universos de sentido. Ao

50 AUGRAS, Monique. História Oral e subjetividade. p.36. 51 ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.32. 52 Aqui nos referimos a uma aproximação da teoria de identidade com a teoria dos instantes de Roupnel,

trabalhada no texto de BACHELARD, Gaston. La intuición del instante. 53 CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de

Psicologia Social. p.141.

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mesmo tempo, a investigação não deixará de assinalar que o espaço de iniciativa

individual tanto é afetado pelos como afeta os determinantes estruturais e institucionais

existentes na atualidade, o que torna possível e necessário pensar a possibilidade de um

ato comunicativo54 como proposta de intervenção.

Entendendo que os argumentos apresentados até aqui foram suficientes para

expor o objeto e método utilizado para pesquisar nosso tema, sigamos para a

apresentação esquemática da tese, que foi dividida em três itinerários denominados:

itinerário histórico, itinerário teórico e itinerário empírico. No primeiro itinerário

apresentaremos o desenvolvimento histórico da concepção dualista normal/patológico

no Brasil, que culminou na construção da identidade pressuposta do doente mental e

analisamos esse desenvolvimento à luz das diferentes articulações institucionais e

políticas (principalmente a relação entre a Psiquiatria e Psicologia Social). Nesse

capítulo poderá ser encontrada a legitimação dessas concepções a partir de leis e

decretos que possibilitaram a Reforma Psiquiátrica brasileira atual. Em seguida, no

itinerário teórico, mostraremos como a teoria de identidade proposta por Antonio da

Costa Ciampa se insere na tradição da Psicologia Social Crítica e atravessa as

contribuições da Teoria Crítica, principalmente a habermasiana, para pensar as

condições de emancipação humana. Assinalaremos como as proposições desenvolvidas

por Ciampa fazem parte do núcleo de uma teoria de identidade capaz de explicitar como

o desenvolvimento da identidade sofre fortes investidas dos discursos técnico-

psicológicos, que por sua vez, tende a reduzir a complexidade da identidade a

personagens fetichizadas, sustentadas por um reconhecimento perverso, possibilitando

entender como tem ocorrido a construção da personagem doente mental na atualidade.

No itinerário empírico apresentaremos as narrativas da história de vida de Ana, Gabriel

e Francisco que, na medida em que forem possibilitando observarmos como foram

ocorrendo a construção e o impedimento de suas personagens, nos darão elementos para

evidenciar como os indivíduos têm se apropriado do discurso de doente mental para

organizar e representar suas identidades, do mesmo modo, assinalaremos como essa

personagem tem sido reconhecida pelos técnicos da saúde, o que, como poderá ser

verificado, implicará em nossa proposição de que não podemos mais sustentar

54 Tal como assinalado por José Luiz Aidar Prado, para quem é necessário um novo tipo de discurso, onde

o espaço político se alteraria, a partir de um ato comunicativo, “do político, na esfera fetichizada da ordem instrumental, seu modo de possibilidade como acontecimento.” PRADO, J. L. A. Brecha na comunicação: Habermas, o Outro, Lacan. p.267-268.

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cinicamente que ao utilizar o diagnóstico de doença mental a partir de uma lógica

antimanicomial estamos possibilitando que esses indivíduos possam se emancipar.

Realizada as apresentações dos itinerários, faremos nossas considerações finais que,

longe de querer indicar uma conclusão, tratará de assinalar o que aprendemos com a

pesquisa e as conseqüências dessa tese para a Psicologia Social, sobretudo, para os

estudos de identidade.

Temos plena clareza que o exercício proposto na tese é um exercício de

racionalização, ou poderíamos melhor dizer que é uma busca pela explicitação de

formas de expressão da racionalidade na realidade, contra uma tendência que insiste em

desenvolver uma racionalidade da realidade, facilmente identificadas como

racionalidades sistêmica55, cínica56 e indolente57, existentes atualmente. Uma postura

que reflete mais do que um jogo de palavras e que insiste na importante proposição de

Paul Feyerabend58, que nos alerta para o fato de que fazer ciência é assumir um

empreendimento anárquico, cuja produção deve ser capaz de avaliar o quanto

avançamos frente à nossas crenças em determinadas teorias, ou como colaboramos com

uma reposição de uma tecnologia que serve ao modismo e adequação à sociedade. Que

mascara uma razão interessada ao utilizar discursos hegemônicos de liberdade e

democracia que na verdade não passam de instrumentos de garantia e legitimação de

campos de trabalho especializados, que dependem da existência do problema ao invés

de sua subversão, revolução.

55 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa. Volumes I e II 56 ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. 57 SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da

Experiência. 58 FEYERABEND, Paul. Contra o Método.

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PRIMEIRA PARTE

ITINERÁRIO HISTÓRICO

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I. PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA E SAÚDE MENTAL: AS

METAMORFOSES DA CONCEPÇÃO DE DOENÇA MENTAL E SUA

RELAÇÃO COM A SOCIEDADE DA INSATISFAÇÃO ADMINISTRADA

Há um quadro de Klee que se chama Ângelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse mesmo aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.

Walter Benjamin1

Vivemos um momento histórico em que a globalização do mundo pode ser

entendida como a universalização do capital e de seu mercado, dos preços e do dinheiro

— cada vez mais virtual —, do mercado de trabalho, do mercado improdutivo e do

mercado imaterial2, dos gostos, da alimentação, da cultura e dos modelos de vida social,

das identidades, de uma racionalidade instrumental/sistêmica a serviço de um

capitalismo de desastre3 — que se organiza não mais a partir da ordem, mas do caos —,

que defende a liberdade — que é em última análise liberdade para o consumo4 —, e que

é mantido com mercadorias metamorfoseadas em sua estética, em que a marca substitui

o produto5 e sustenta a simulação6. Podemos dizer que estamos imersos nas ruínas que

Walter Benjamin apontou em sua alegoria da história7. E tal como o anjo pintado por

Paul Klee sentimo-nos arrastados de costas para um futuro incerto e impotentes perante

as catástrofes acumuladas ao longo da história, sendo cada vez mais difícil escapar do

conformismo que quer apoderar-se do presente. 1 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, p. 226. 2 GORZ, André. O imaterial. 3 KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. 4 SEVERIANO, Maria de Fátima V. Narcisismo e Publicidade: Uma análise psicossocial dos ideais de

consumo na contemporaneidade. 5 HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da Estética da Mercadoria. 6 BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. 7 BENJAMIN, Walter. Op.cit.

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E mesmo que autores como Eric Hobsbawn digam que “a descoberta de que

estávamos enganados, de que talvez não tenhamos entendido algo direito, deve ser o

ponto de partida de nossas reflexões sobre a história”8, o sentimento de época reinante

parece ser o de pessimismo que fez com que outros autores como Francis Fukuyama9

proclamassem o fim da história e o início da pós-modernidade, que expressa a

consciência de uma burguesia que se vê vencedora e com a possibilidade de finalmente

transformar o tempo em repetição infinita de sua dominação. O que para Michael

Löwy10, por exemplo, apresenta um perigo duplo: “transformar tanto a história do

passado – a tradição dos oprimidos – quanto o sujeito histórico atual – as classes

dominadas, novos destinatários dessa tradição – ou seja, em instrumento nas mãos de

classes dominantes”.

Inserido nesse cenário, o próprio conhecimento, construção humana que aparece

na tentativa de dominar a natureza e que por sua vez acaba por dominar o próprio

humano, afasta-se de sua origem histórica e corre o risco de parecer, ele mesmo, o

conhecimento, uma natureza, como se sua origem fosse ex-nihilo, tornando-se

instrumento de administração da realidade. O que nos leva a arriscar a dizer que essa

negação da história, que temos visto em muitas proposições teóricas, é acompanhada da

empatia com os dominadores e que inseridos nesse pano de fundo chegamos ao ponto

em que o nosso pensamento prefere muito mais confirmar seu saber a explorar aquilo

que o contradiz; ou que prefere mais as respostas do que as perguntas. Não percebemos,

ou fingimos cinicamente não perceber, que as discussões acerca da exclusão são apenas

parte da retórica que reforça a exclusão, que as personagens representadas como

mesmidade são na verdade modulações da mesmice11 de identidades fetichizadas e que

talvez os próprios movimentos sociais, cooptados pelo Capital e/ou Estado, estejam

trabalhando contra o seu projeto emancipatório inicial12.

Slavoj Žižek, de quem nos valemos de algumas considerações, denuncia esse

perigo quando trata de discutir a falência do estado de bem-estar social e a nova

configuração de um Estado que passa agora a transformar em caso “típico”

determinadas personagens tidas como problemáticas (a mãe solteira negra, no exemplo

8 HOBSBAWN, Eric J. O presente como história: Escrever a história de seu próprio tempo. p.112. 9 FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. 10 LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de

História”. p.66. [grifos do autor] 11 Discutiremos essa diferença com maior profundidade na segunda parte da tese. 12 ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.11 et seq.

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de Žižek), e posteriormente transforma esse caso “típico” em noção universal — na

verdade, pano de fundo para a ideologia dominante — de modo que a estratégia de

negação das contradições sociais, as particularidades, expressadas pela mãe solteira

(desemprego, família numerosa, raça, gênero etc.) é invertida na transformação dessa

identidade em símbolo de identidade plena. É tendo em vista que estamos inseridos

nessa realidade que pensamos acerca da identidade pressuposta do doente mental,

sustentada pelo discurso psiquiátrico13, cuja concepção serviu e serve a interesses

específicos em cada momento histórico de nossa sociedade a ponto de tornar-se parte do

imaginário coletivo. Julgamos, inclusive, que seja pertinente já apresentarmos um

primeiro questionamento e nossa posição frente a ele: seria possível concluir a priori

que vivemos um momento histórico onde o reconhecimento da doença mental reflete

uma política de identidade promotora de autonomia, tal como é proposta pela literatura

atual que analisa os avanços da Reforma Psiquiátrica brasileira?

Acreditamos que não seria possível. Pensamos que antes de assumir essa política

de identidade proposta como parte de uma política de Estado (apoiada inclusive pelos

ativistas do Movimento Antimanicomial), devemos caminhar sobre os escombros

produzidos ao longo da história da psiquiatria no Brasil e sua relação com a Psicologia,

principalmente com a Psicologia Social, devemos escavar o passado, e buscar elementos

que ajudem a explicitar que o estado de exceção em que vivemos ainda é regra geral.

Estado de exceção cuja opacidade de definição “diz respeito a um patamar, ou uma zona

de indiferença, em que o dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam”14, como

assinala Giorgio Agamben, o momento onde a regra é o esvaziamento, a suspensão da

Lei. Condição que, inclusive, apareceu como o primeiro obstáculo na pesquisa, uma vez

que a própria polissemia utilizada para a classificação do indivíduo como anormal foi

mostrando-se como promotora de diversos sentidos que poderiam nos fazer cair em

armadilhas que levariam apenas a realizar uma crítica convencional à instituição

psiquiátrica concreta (manicômio, hospital psiquiátrico), sem, contudo atacar aquilo que

identificamos como a raiz do problema: a persistência do discurso psiquiátrico no

discurso da saúde mental e a manutenção da construção da personagem doente mental.

Para exemplificar essas últimas proposições, podemos trazer aqui um trecho do

levantamento — realizado por Thomas Szasz em meados da década de 90 do século

13 Iremos apresentar e discorrer sua utilização ainda nesse capítulo. 14 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.39.

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passado — das denominações utilizadas para diagnosticar, tipificar, as representações

realizadas no cotidiano pelos indivíduos com comportamentos indesejáveis e as

respectivas instituições responsáveis por sua tutela ao longo de mais de trezentos anos.

[o comportamento indesejado] (...) foi rotulado e re-rotulado como loucura, insanidade, alienação mental, idiotia, demência, neurastenia, demência precoce, psicopatia, mania, esquizofrenia, neurose, psiconeurose, psicose, doença emocional, descontrole do ego, fracasso do ego, desordem emocional, doença psicológica, desordem psicológica, doença psiquiátrica, desordem psiquiátrica, imaturidade, fracasso social, má adaptação social, desordem de comportamento, e assim por diante. De modo semelhante, a instituição para o confinamento de tais ‘pacientes’ tem sido chamada de casa de loucos, asilo para lunáticos, asilo para insanos, hospital mental estadual, hospital mental, hospital para psicopatas, hospital psiquiátrico, instituto psiquiátrico, instituto psiquiátrico para pesquisas e treinamento, centro psiquiátrico e centro de saúde mental comunitário.15

Denominações que, longe de encontrar uma superação, uma definição

consensual, fazem parte da linguagem comum entre os especialistas e coexistem sem

maiores problemas atualmente. Naomar Almeida Filho16, em um excelente ensaio, ao

explorar as dimensões antropológicas, sociológicas e epistemológicas dos conceitos de

doença, defende inclusive que esses conceitos têm permanecido como acessórios para

esboçar uma teoria da saúde, não sendo nenhuma surpresa que Loucura, Doença

Mental, Patologia Mental, Transtorno Mental, Saúde Mental, sejam praticamente

conceitos cognatos17, cuja utilidade somente pode ser sustentada em uma sociedade que

15 SZASZ, Thomas Stephen. A retórica da Rejeição. p.61. 16 Cf. ALMEIDA FILHO, Naomar. For a general theory of Health: Preliminary epistemological and

antropological notes. Nesse ensaio o autor nos mostra que na língua inglesa encontram-se vários termos: disease, que corresponderia à patologia; illness, à enfermidade; malady, à moléstia; sickness, à doença; disorder, a transtorno, sendo que conforme a doutrina adotada pelos autores essas mesmas palavras aparecem com sentidos diferentes. 17 Ao consultar diferentes dicionários encontramos as seguintes definições: DORSCH, Friedrich, HÄCKER, Hartmut & STAPF, Kurt-Hermann. Dicionário de Psicologia Dorsch. Loucura é próxima de alienação: Alienação: alienation, termo para designar uma sensação vaga, que tudo parece estranho e não familiar. Termos semelhantes são: desrealização, despersonalização, síndrome de despersonalização. Ibidem. p.30 Já Loucura: psicose; perturbação dos processos mentais, onde ocupam o primeiro plano representações delirantes e ilusões (patológicas) dos sentidos. Doença mental em sentido estrito. (em Medicina Legal) estado em que, pela psicose, faltam consciência e responsabilidade das próprias ações e suas conseqüências. Ibidem. p.541; ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Alienação: 1) na linguagem comum significa perda ou posse, de um afeto ou dos poderes mentais. 2) idade média; grau de ascensão mística em direção a Deus; Rousseau como cessão de direitos naturais à comunidade, efetuada com o contrato social; Hegel como alhear-se à consciência de si mesma, em Marx como distanciamento do homem de sua consciência das coisas que produz. (p. 26) Loucura: dois modos diferentes: 1º. Como inspiração ou dom divino, 2º. Como amor à vida e tendência a vivê-la em simplicidade; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. A Alienação é ato ou efeito de alienar(-se); alheação, alheamento, alienamento (seguida de uma descrição dos conceitos listados anteriormente nos dicionários de filosofia e psicologia). Loucura é explicada como um distúrbio,

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permanece enfeitiçada pela “ideologia da saúde perfeita”, tal como foi postulada por

Lucien Sfez18. Lembremos também que essa mesma polissemia serve de referencial

para disciplinas acadêmicas que explicam a anormalidade psíquica nos currículos de

graduação em Psicologia, Medicina, Enfermagem, Terapia Ocupacional etc.; assim

como esses conceitos são utilizados como base para a classificação e faturamento do

“doente mental” (Código Internacional de Doenças – CID1019 e Diagnostic and

Statistical Manual – DSMIV20) pelo Ministério da Saúde; bandeira nos movimentos de

Luta Antimanicomial; na própria linguagem cotidiana para apontar as contravenções

frente às formas de conduta convencionais. Fenômeno que nos remete às proposições

apresentadas por Jürgen Habermas, para quem quando um discurso científico, com sua

forma objetivante, passa a imperar na sociedade estamos diante de uma “colonização do

mundo da vida”21, resultante da pressão de imperativos econômicos e burocráticos que

introduzem distorções reificantes em nossa compreensão individual e coletiva.

alteração mental caracterizada pelo afastamento mais ou menos prolongado do indivíduo de seus métodos habituais de pensar; de seu sentir e agir; também é relacionado à paixão, a quando as coisas fogem do controle pessoal e a atitude, comportamento que denota falta de senso, de juízo, de discernimento. Os outros conceitos somente podem ser articulados conjuntamente, uma vez que nenhuma delas encontram-se unidas no dicionário: a palavra Mental, na rubrica referente a psiquiatria diz respeito ao psiquismo, às características psíquicas de um indivíduo; Doença é a alteração biológica do estado de saúde de um ser (homem, animal etc.), manifestada por um conjunto de sintomas perceptíveis ou não; enfermidade, mal, moléstia (em sua extensão é compreendida como alteração do estado de espírito ou do ânimo de um ser); Patologia qualquer desvio anatômico e/ou fisiológico, em relação à normalidade, que constitua uma doença ou caracterize determinada doença; Transtorno, conceito da moda associado à mente: no dicionário é descrito como ato ou efeito de transtornar, situação que causa incômodo a outrem (contratempo; situação imprevista e desfavorável; contrariedade, decepção); Saúde, finalmente, é concebida em sua característica tradicional: estado de equilíbrio dinâmico entre o organismo e seu ambiente, o qual mantém as características estruturais e funcionais do organismo dentro dos limites normais para a forma particular de vida (raça, gênero, espécie) e para a fase particular de seu ciclo vital (estado de boa disposição física e psíquica; bem-estar).

18 Lucien Sfez defende em seu livro A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia, a tese de que vivenciamos o surgimento de uma ideologia, mais global que a comunicação, onde prega-se que seria possível alcançarmos uma nova utopia em que a saúde seria conquistada plenamente. Embasa suas considerações nas teorias da comunicação e nos avanços da engenharia genética. Em uma das passagens desse trabalho Sfez escreve que “o inimigo não está mais no exterior, não tem mais de ser combatido ou civilizado. Não é mais o selvagem, o negro, o amarelo, o judeu, o proletário para o burguês, o burguês para o proletário. O inimigo está por toda parte e em lugar nenhum, anônimo, sem fronteiras, no eletronicon sem rosto como na camada esburacada de ozônio, na droga e no colesterol.” Ibidem. p.25.

19 Um Simpósio da Organização Mundial de Saúde realizado em Londres, 2001, concluiu que as próximas edições do código estariam suspensas até 2010.

20 DSM (manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais) é a classificação elaborada pela American Psychiatry Association. Tem como objetivo a unificação de critérios descritivos com fins de diagnóstico e estatística dos transtornos mentais. A primeira edição data de 1952.

21 Daremos maior atenção às proposições de Habermas no segunda parte da tese. A discussão acerca da ciência e técnica como ideologia e colonização do mundo da vida podem ser aprofundados nos trabalhos: Cf. HABERMAS, J. Técnica e ciência como “Ideologia”; Idem. Crise de legitimação no capitalismo tardio; e Idem. Teoria de la acción comunicativa. 2 volumes.

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Essa polissemia frente ao conceito, inclusive, nos levou a abrir mão de querer

encontrar um conceito que abarcasse todos os sentidos que a concepção de saúde mental

poderia representar e escolhesse utilizar simplesmente os conceitos “doença mental” e

“Loucura” para identificar a utilização de um discurso “técnico-psicológico” —

incluímos aqui os discursos psicanalítico, psicológico e psiquiátrico acerca do ideal de

normal e patológico, para diagnosticar as expressões identitárias não-convencionais,

indesejadas. É importante assinalar que ao utilizar os dois conceitos não estamos

deflacionando sua importância ou ignorando o fato de que pessoas possam ser

diferentes umas das outras, que possam tomar atitudes não esperadas ou que algumas

vezes necessitem de medicamentos para diminuir sentimentos de angústia, solidão, ou

deixar de ver e ouvir vozes, pelo contrário, defendemos que as diferenças individuais e

as formas de sofrimento devem ser reconhecidas e acolhidas como problema a ser

trabalhado.

Ficará explícito no decorrer do texto que o que queremos apontar com o uso

desses conceitos ao longo da tese é a cooptação a priori dessas expressões humanas

pelo discurso da instituição psiquiátrica, inaugurado desde o alienismo de Philipe

Pinel22 e ainda hoje utilizado pela saúde mental e sua utilização no reconhecimento

perverso dos indivíduos — que assim como em outras políticas de identidade atuais

devem submeter-se ao diagnóstico (abrir mão de sua totalidade) como pré-condição

para a inclusão como “cidadão” em programas governamentais — explicitando a

presença de uma lógica disciplinar na qual esses indivíduos passam a orientar “seu

modo de agir a partir de uma lógica de anulação paradoxal de contradições e de

amaciamento de contrários exigida pela racionalidade das sociedades capitalistas

contemporâneas”23.

Uma última advertência antes de encerrarmos nossa apresentação se refere à

maneira como nos apropriamos da história, uma vez que não apresentaremos nesse 22 O Traité Médico-Philosophique sur L’Aliénation Mentale ou La Manie, publicado em 1800 na França,

será a bíblia do alienismo e dará a Philipe Pinel o título de pai do alienismo. Muitas das biografias descreviam Pinel como um herói que literalmente arrancou as correntes e libertou os alienados do encarceramento. Todavia, sabe-se hoje que esses gestos nunca existiram, foram construídos após sua morte por pessoas próximas, que idealizavam sua atuação nos manicômios. Se existiu algum mérito no gesto de Pinel é, segundo Foucault, o de ter introduzido, junto a William Tuke, “uma personagem, cujos poderes atribuíam a esse saber apenas um disfarce ou, no máximo, sua justificativa.” FOUCAULT, Michael. História da Loucura na Idade Clássica. p. 498. Uma análise mais aprofundada da desmistificação do gesto de Pinel encontra-se em WEINER, Dora. Le geste de Pinel: The history of a psychiatric myth. p.232-247. Para maior aprofundamento das idéias de Pinel sugerimos conferir: PINEL, Philippe. Tratado médico-philosófico sobre a alienação mental ou a mania.

23 SAFATLE, Vladimir. O cinismo e a falência da crítica. p.24.

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capítulo uma história da loucura. Por outro lado, poderá ser encontrada ao longo do

texto diversas indicações de ótimas tradições que realizaram o estudo aprofundado

desse tema. Nosso foco histórico estará na gênese e desenvolvimento da concepção

dicotômica normal/patológico e da identidade pressuposta do doente mental —

materializada nas políticas e normas legitimadas pelas diferentes formas de governo

experienciadas no Brasil (aqui pediremos paciência para o leitor, pois retornaremos até

o final do século XVIII) — e nas vicissitudes de uma Psicologia Social que sempre

manteve relações com essa temática. Certamente ao utilizar esta estratégia correremos o

risco de apresentar limites e falhas em nosso percurso, todavia, voltamos a dizer que

não nos propomos aqui a fazer uma nova história da loucura ou da psiquiatria.

1 – A construção da identidade pressuposta do doente mental como instrumento de

particularização e opacificação das contradições sociais: o anormal como caso

típico do que o Brasil tem de “errado”

(...) imitamos (...) os que julgamos superiores a nós, os creadores, os requintados, os progressivos, os que estão, lá do outro lado do mundo, fazendo a civilização. Cada vez que um desses fazedores da civilização se mexe para fazer uma revolução ou para fazer a barba, nós, cá do outro lado, ficamos mais assanhados do que a macacaria dos junglaés. De uns copiamos as formas de governo e os modos de vestir, os principios da política e os padrões das casemiras – os figurinos, alfaiates e as instituições. De outros copiamos outras cousas: as philosophias mais em voga, as modas literarias, as escolas de arte, os requintes e mesmo suas taras de civilizados. De nós é que não copiamos nada.24

Essas palavras de Oliveira Vianna, escritas em 1921, no prefácio do que

poderíamos chamar de primeiro texto brasileiro de Psicologia Social, não poderiam ser

mais apropriadas para iniciarmos nossa apresentação do desenvolvimento da instituição

psiquiátrica no Brasil. Esta, como poderá ser observado, desenvolveu-se a partir de um

amálgama entre as idéias acerca da Educação, Medicina e Psicologia, a ponto de criar

uma confusão frente ao campo de conhecimento em que cada teoria era praticada. É

certo que desde 1543 já existia no Brasil a preocupação com os indivíduos indesejados e

miseráveis, que eram tratados nas Santas Casas de Misericórdia, as chamadas “casinhas

de doidos” da Bahia25. Todavia, não encontramos nenhuma citação que apontasse

24 VIANNA, Oliveira. Pequenos Estudos de Psychologia Social. p.08-09. 25 São raros os relatos sobre as formas de diagnóstico e os métodos de tratamento desse período. A

informação que pudemos encontrar é extremamente sucinta e encontra-se em um livro de história da

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produções ou preocupações com o que seria denominado como alienação nos primeiros

300 anos da colônia portuguesa26.

A ausência de registros, ao nosso ver, pode ser atribuída ao tipo de atenção que

era dada a esse tipo de indivíduos pelas instituições religiosas antes da transferência da

Corte para o Brasil, que até então era apenas uma colônia de exploração praticamente

abandonada. Até meados do século XVIII, a ocupação do território brasileiro era feita

por meio da iniciativa privada dos colonos. “Enquanto os interesses políticos e

econômicos desses colonos coincidiram com os do reino, as cidades se comportaram

com a expectativa do Estado”27. Junto à expansão das cidades e ao surgimento de uma

elite formada por negociantes, militares, funcionários públicos, religiosos e outros que

se opunham à extorsão portuguesa, aparecem as ações de sabotagem econômica e

rebeldia, fazendo com que Portugal decida dominar a situação, chegando a transferir o

Vice-Reinado da Bahia para o Rio de Janeiro.

Com a chegada da corte Portuguesa em 1808, a vida privada dos indivíduos será

associada ao destino político de uma determinada classe social, sendo assim, o

imperativo de controle da “barbárie” será ainda maior. Sabia-se que não era possível

contar com a Igreja (durante todo período colonial o clero defendeu seus próprios

interesses e foi um opositor em várias ocasiões), nem com a corporação militar (além do

perigo de armar a população, ocorreram vários episódios em que os militares se

envolveram em disputas políticas contra o Governo português). Perante essa fragilidade

política no controle da população, causada pela falta de apoio de instituições aliadas que

tivessem legitimação frente à sociedade, a instituição médica encontrou a brecha

esperada para tornar-se instituição de referência, como nos mostra Jurandir Freire

Costa28:

psiquiatria produzido por cerca de 40 historiadores franceses, cada um focando uma etapa histórica ou ramo da psiquiatria. Nele atribui-se as casas de doidos das Santas Casas de Misericórdia da Bahia como os primeiros dispositivos de atenção aos indesejáveis, sendo que o primeiro grande asilo somente surgirá após 1822. Cf. POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la Psiquiatría. p.462 et seq.

26 A ausência de registros também foi reforçada quando tomamos contato com o belíssimo trabalho de José Souza e Agostinho Lima que em 1900 publicaram um livro em dois volumes onde apresentavam resenhas de todas as publicações brasileiras e textos importantes desde a colonização até 1900. O segundo capítulo é dedicado ao balanço do desenvolvimento das ciências médicas no Brasil. Cf. SOUZA, José Eduardo Teixeira de & LIMA, Agostinho José de Souza. O livro do centenário (1500-1900).

27 COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.20. 28 Ibidem. p.28 e segts.

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A medicina que, desde o início do século XIX, lutava contra a tutela jurídico-administrativa herdada da Colônia, deu um largo passo em direção à sua independência, aliando-se ao novo sistema contra a antiga ordem colonial. Este progresso fez-se através da higiene, que incorporou a cidade e a população ao campo do saber médico. Articulando antigas técnicas de submissão, formulando novos conceitos científicos, transformando uns e outros em táticas de intervenção, a higiene congregou harmoniosamente interesses da corporação médica e objetivos da elite agrária.29

Com um novo e forte aliado, o Estado sabia pela experiência européia que para

tal empreitada não bastava apenas criar formas de controle dos corpos mais rígidas, ou a

criação de leis, tampouco inculcar ideológica, filosófica ou politicamente idéias que

fizessem os indivíduos mudarem suas visões de mundo. Era preciso colonizar o

imaginário da esfera privada e para que essa colonização tivesse efeito seria necessário

que ela operasse em um outro nível. Primeiramente, despolitiza-se o mundo da vida, o

cotidiano, o senso comum, e apresenta-se uma nova leitura acerca dos seus problemas,

ou seja, inverte-se a preocupação social e direciona-se a mesma preocupação para o

indivíduo, descrito de forma fragmentada nos discursos sobre o corpo, o sexo, a

subjetividade. Tal despolitização, por sua vez, não é possível sem um agente que seja

socialmente legitimado, o que não era o caso vivenciado até então. Lembremos que a

esfera pública brasileira havia se tornado um foco permanente de contestação do poder

real desde o século XVIII.

O meio utilizado para essa colonização do imaginário foi a imprensa, que não

por acaso chegou junto com a Corte portuguesa em 1808. Nem precisaríamos dizer aqui

como esta influenciará toda a formação intelectual no país30. Com a aliança entre o

Estado e a Medicina, começam a aparecer as primeiras publicações acerca da

normalidade e das patologias, “logo no primeiro anno da sua fundação, conhecem-se 37

publicações, no segundo (1809) 62, no terceiro (1810) 99, e até 1822 catalogou Valle

Cabral 1154 impressos varios das suas officinas saídas”31. A imprensa da Corte

publicará, em 1808, a primeira regulamentação especial do serviço sanitário e o

primeiro trabalho médico impresso no país. Em 182232 surge a primeira publicação

médica, no Estado do Maranhão, com o título de Folha Medicinal, que apesar desse

nome tinha como conteúdo da primeira edição uma forte discussão política. Em

29 COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.28. 30 SOUZA, José Eduardo Teixeira de & LIMA, Agostinho José de Souza. A Imprensa. p.31 e segts. 31 Ibidem. p.34. 32 IDEM. As sciencias medico-pharmaceuticas. p.130.

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seguida, mais precisamente em 1827, no Rio de Janeiro, foram publicados o

Propagador das Sciencias Medicas, Annales de médicine, chirurgie et pharmacie,

organizado por J. F. Sigaud. Esse periódico, de acordo com Postel & Quetel33,

desempenhou um papel crucial para o desenvolvimento da cultura medicalista no país,

principalmente no que se refere à propagação da medicina européia, em particular a

francesa. Um fato curioso é que a revista teve uma periodicidade extremamente curta,

publicou-se apenas de 1827 a 1828, todavia, foi responsável por vários estudos

posteriores.

Contando com uma produção que pouco a pouco foi se tornando significativa na

área, a doença mental e os seus perigos resultantes dessa doença foram alcançando a

esfera privada. O alcance das informações que os jornais e revistas obtinham era muito

maior do que o tipo de informação que era proporcionado pelas instituições escolares

freqüentadas por uma elite social muito restrita e o tipo de informação, destinado

principalmente para a classe em ascensão, que proliferava nessa época, tinham diversas

finalidades: científicas, políticas, literárias, artísticas, de instrução e recreio. Tendo a

norma como preocupação principal, a atenção dispensada à doença mental, metáfora da

desordem, passa a ser objeto de reflexão e preocupação. A imprensa, tornada veículo de

conhecimento atualizado destinado a transformar as formas privadas de subjetividade,

na promoção e fortalecimento dos ideais de homem europeu, realiza intervenções em

três eixos básicos: educação, saúde e trabalho (não muito diferente do que vemos hoje

em dia).

Todavia, para uma efetiva colonização do imaginário foi imprescindível uma

educação que orientasse (dirigisse) as possibilidades de compreensão dos indivíduos.

Sendo assim, a educação moral torna-se um ideal a ser buscado, com a desculpa de ser o

agente mais eficaz para o refinamento científico da primitiva sociedade colonial. Os

especialistas encarregados de reeducar terapeuticamente a família “dão-se conta de que

a desestruturação familiar é um fato social, mas raramente percebem que as terapêuticas

educativas são componentes ativos na fabricação deste fato”34. É importante apontar

que o que se entendia como ideal de família era a família abastada da sociedade

brasileira, influente nos assuntos políticos; eram para esses indivíduos as políticas

médico-higienistas.

33 POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la Psiquiatría. p.462. 34 COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.16.

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Não interessava ao Estado modificar o padrão familiar dos escravos que deveriam continuar obedecendo ao código punitivo de sempre. Estes últimos, juntamente com os desqualificados de todo o tipo, serão trazidos à cena médica como aliados na luta contra a rebeldia familiar. Escravos, mendigos, loucos, vagabundos, ciganos, capoeiras, etc., servirão de anti-norma, de casos-limites da infração higiênica.35

Em 1829, criou-se a Sociedade de Medicina e Cirurgia no Rio de Janeiro. O

objetivo dessa entidade era reforçar a higiene pública e defender as ciências médicas.

Nasce aqui a Medicina Social brasileira formada por um conjunto de médicos que

defendiam a necessidade de uma “melhor” assistência aos alienados. Fizeram parte da

inauguração dessa sociedade os médicos: J. C. Soares Meirelles, J. M. da Cruz Jobim,

L. V. De Simoni, J. F. Sigaud e J. M. Faivre. Unidos, esses médicos poderiam

“promover o progresso e desenvolvimento das sciencias medicas, prestar socorros

gratuitos aos doentes pobres, beneficiar em geral a população, pelo estudo e applicação

dos meios favoráveis á conservação e melhoramento da saúde pública”36. Esses mesmos

médicos criaram o seminário da saúde pública em 1831, que era órgão da Sociedade de

Medicina e Cirurgia; esta última em 1835 adotou o nome de Academia Imperial de

Medicina. Uma lei de 1832 transformou os antigos colégios de Medicina e Cirurgia da

Bahia e Rio de Janeiro em Faculdades de Medicina. A formação médica nessas

instituições será direcionada para o que será denominada medicina social, sendo que no

bojo teórico abordado durante a formação do médico a psicologia ocupará um lugar

privilegiado e fechará o tripé formado pela Educação e o Direito para compreensão e

tratamento dos brasileiros. A psicologia será nesse período o conhecimento ideal37 para

o alienismo em desenvolvimento, uma vez que se busca com as teorias e técnicas

psicológicas uma produção de conhecimento que pudesse oferecer “meios para o

controle social dos indivíduos e das populações e para a ‘patologização’ do

comportamento anormal”38. Massimi escreve que algumas teses defendidas nesse

período podem nos dar bons exemplos dos usos da psicologia, uma vez que:

35 COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.33. 36 SOUZA, José Eduardo Teixeira de & LIMA, Agostinho José de Souza. As sciencias medico-

pharmaceuticas. p.81. 37 O termo “ideal” aqui empregado poderia ser atrelado ao uso kantiano do termo, que quer dizer uma

idéia in individuo, ou seja, uma coisa individual só determinável ou só determinada através da idéia. Ideal, ainda mais distante da realidade que a idéia, um protótipo, uma cópia, diretriz normativa de ação.

38 MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.38.

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(...) entre as teses e dissertações elaboradas pelos estudantes da escola para a obtenção do grau de doutor, há muitas dedicadas a esse domínio. Em tais trabalhos, os temas específicos mais debatidos são: a psicologia da mulher, as doenças relacionadas à sexualidade, os aspectos psicossociais do casamento e da relação familiar; a higiene do desenvolvimento infantil, da puberdade e da terceira idade; a higiene das diversas condições sociais (escravos, presos, mendigos, prostitutas) e das instituições (em particular, colégios e prisões); a alienação mental, suas diferenças e analogias com o estado de saúde psíquica, o suicídio como forma de doença mental, as emoções e os afetos; as influências do estado moral do homem sobre o físico, e vice-versa; a frenologia; a “terapia moral”39.

A idéia de medicina social como ciência positiva ocupa nesse período um papel

político fundamental, o de ordenar o mundo da vida de uma forma que garanta o

progresso inevitável da sociedade. De forma emblemática, os trabalhos de José

Francisco Xavier Sigaud40 e Luiz Vicente De-Simoni41 expressam os desejos pelas

ações de contenção da desordem social. O primeiro autor criticou a falta de

providências para retirar das ruas os tipos populares que perambulavam pelas ruas da

cidade do Rio de Janeiro, indivíduos que “embuçados em grotescos andrajos excitam as

risadas dos viandantes, e provocam apenas um sorriso de compaixão de envolta com a

torrente de grosseiras injúrias e ridículos apítetos com que são amofinados”42, e o

segundo defendeu a criação urgente de asilos com seu ensaio enfático denominado A

importância e necessidade de um manicômio ou estabelecimento especial para o

tratamento dos alienados, publicado em 1839, que fundamentalmente defende os

princípios do tratamento moral como método eficaz no tratamento dos alienados.

Com a ajuda de autores como os citados anteriormente, o positivismo e o

eugenismo passam a ser as ciências primeiras, fazendo com que as epistemologias de

caráter mais metafísico sofram repressões, fato visível na reforma do ensino proposta

pelo ministro Benjamin Constant em 1891. Uma passagem da tese de Pereira Barreto

apresentada à faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1865, intitulada Teorias das

Gastralgias e das Nevroses em Geral, oferece uma ótima síntese do espírito de época,

em que o pressuposto básico é o mesmo para todo conhecimento científico: “todos os

fenômenos quaisquer, astronômicos ou físicos, químicos ou biológicos, sociais ou

39 MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.38-39. 40 SIGAUD, José Francisco Xavier. Reflexões acerca do trânsito livre dos doidos pelas ruas da cidade

do Rio de Janeiro. p.559-562. 41 DE-SIMONI, Luiz Vicente. Importância e necessidade de criação de um manicômio ou

estabelecimento especial para o tratamento dos alienados. p.142-159. 42 SIGAUD, José Francisco Xavier. Op. cit. 560.

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morais, estão sujeitos a leis fixas e invariáveis”43. As conseqüências dessa hegemonia

teórico-conceitual será a de tratar todos os fatos da vida cotidiana como propensos à

investigação positivista e à intervenção sistêmica. Toda a complexidade social passa a

ser reduzida ao composto da inteligência, sentimento e atividade, isto é, a funções

cerebrais. Com isso, os problemas resultantes das interações cotidianas tornam-se

problemas de adaptação ao meio ambiente.

A população não seria doente porque era miserável. Pelo contrário, a miséria do povo é que seria fruto tanto da doença, da escravidão do homem ao verme, quanto da ignorância, plasma dos males que empobreciam a terra e enfraqueciam o povo, fazendo-o mergulhar na incapacidade.44

São criadas e fortalecidas as condições ideais para a criação de asilos para

alienados, que serão inaugurados ainda durante o segundo reinado (1841-1889). São

eles: o Hospício Dom Pedro II45, fundado em 1852, no Rio de Janeiro; em São Paulo,

em 1852, estado em que a ofensiva da ciência com relação aos doentes mentais havia

começado em 1848 com a lei provincial que visava criar um Hospício — somente

inaugurado em 1852 na Avenida São João, que funcionou até 1864, quando foi

transferido para uma chácara na Ladeira Tabatinguera —; em Pernambuco, em 1861; na

Bahia, em 1874 e no Rio Grande do Sul em 1884. No estado de São Paulo, em 1892, o

Doutor Franco da Rocha46 foi convidado pelo governo do estado para orientar os

estudos sobre assistência aos alienados, resultando disso a construção do Hospício

Juquery, concluída em 1903.

No que se refere à população que era internada nesses manicômios, notava-se

que no hospício de São Paulo, por exemplo, onde a maioria dos alienados eram

indigentes, “havia em 1895, 376 doentes, distribuídos da seguinte forma: 258 brancos, 43 BARRETO, Luis Pereira. Teoria das Gastralgias e das Nevroses em geral. p.316. 44 ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.72. 45 Esse hospício permanecerá anexo ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia até 11 de janeiro de 1890,

data em que é decretada a separação dessa instituição. Cf. BRASIL, Decreto 142-A: “Considerando, finalmente, que cessaram os motivos que determinaram o Governo a annexar ao hospital da Santa Casa da Misericordia desta Capital o que fôra primitivamente creado, para tratamento de alienados, pelo Decreto n.º 82 de 18 de julho de 1841: Resolve desannexa-lo daquelle hospital e constitui-lo estabelecimento publico independente, com a denominação de Hospicio Nacional de Alienados, que se regerá por instrucções que serão opportunamente expedidas, mantendo-se por enquanto os estatutos approvados pelo Decreto n.º 1077 de 4 de dezembro de 1852, na parte não alterada pelo presente Decreto.”

46 São Paulo representou desde 1918, por meio da Faculdade de Medicina de São Paulo, o primeiro núcleo de difusão das idéias psicanalíticas no Brasil. Franco da Rocha (1864-1933), que ocupa a partir de 1913 até 1923 a cátedra de Clínica Psiquiátrica e Neuriátrica na Faculdade de Medicina, será uma figura de destaque nesse processo.

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77 negros e 41 mulatos. [O estado de] São Paulo tinha cerca de 2 milhões de habitantes,

com um percentual de: 30% estrangeiros, 11% negros e 13% mulatos”47. É importante

apontar um fato apresentado por Romero: nesse período São Paulo era descrita como o

despejo de loucos estrangeiros. “Clamava-se por maior rigor das autoridades, que

permitiam a entrada no país de tarados, débeis mentais, criminosos e prostitutas”48. E se

considerarmos que as internações nesses hospícios eram realizadas sem nenhuma

regulamentação até o final do século XIX, podemos inferir que muitos dos brancos

internados eram estrangeiros.

Na sociedade a qual o discurso técnico-científico exigia a implementação da

disciplina que garantiria a ordem e o progresso, a alienação tornou-se um conceito útil

para explicar a ruptura do equilíbrio individual e coletivo. Conceito que, por sua vez,

inicia o período de ampliação da ação do Estado na esfera privada que seguirá até

meados da Segunda Guerra Mundial. O tratamento moral, por sua vez, passou a ser

utilizado como intervenção científica para o controle e correção dos indivíduos não

convencionais repetindo a história dos países europeus. As causas da alienação passam

a ser relacionadas a fatores predisponentes — o clima, a sexualidade, a idade, o

temperamento, a profissão e o modo de vida — e às causas determinantes, ou seja,

fatores físicos (comportamentos hereditários de distúrbios patológicos) e emocionais

(devido a problemas familiares). Os fenômenos que mais despertam a atenção dos

médicos alienistas são o amor e a sexualidade, o ciúme, a tristeza ou melancolia. De

acordo com Massimi49, muitos dos autores enfatizam “a origem social da alienação

mental: os indivíduos que não conseguem acompanhar os movimentos rápidos do

progresso da civilização, sobretudo nas sociedades industrializadas, são mais sujeitos à

doença.” E como nos mostra Mariza Romero50, a medida para a normalidade segue uma

perspectiva estética:

Fragilidade, desproporção nas formas, desarmonia dos movimentos, feiúra, semelhança com animais colocavam a aparência como critério científico para determinar quem estava apto ao convívio social, pois se, de um lado, o corpo

47 POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la Psiquiatría. p.466. Tradução

nossa: “había, en 1895, 376 enfermos, distribuidos de la manera siguiente: 258 blancos, 77 negros y 41 mulatos. São Paulo tenía cerca de dos millones de habitantes, con um porcentaje de: 30% de extranjeros, 11% de negros y 13% de mulatos.” Esta é a população do Estado, mais precisamente 2.282.279, segundo o Censo de 1900. A cidade tinha 239.820 habitantes.

48 ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.93. 49 MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.53. 50 ROMERO, Mariza. Op. cit. p.90.

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pelos sinais de beleza indicava a normalidade e diferenciava as classes, por outro, pelos estigmas degenerativos apontava os doentes mentais que a partir de meados do século 19 tornaram-se objeto de intervenção da ciência.

“Distúrbios” como o onanismo, a pederastia, a bebedeira, a mentira e a excentricidade expressavam o avesso da ordem, mas geravam também atitudes como a daquele senhor [Franco da Rocha havia examinado um rico senhor de nacionalidade inglesa e embora não tenha encontrado nenhuma anormalidade o fato de permanecer solteiro e com fortuna o suficiente para não precisar trabalhar fez com que lhe fosse atribuído o diagnóstico de misantropia] que não se entregou sem crítica às imposições sociais, à disciplina, ao ideal de constituição da família que deveria ser o agente mais perfeito da moralização da sociedade.51

Perante uma nação formada por índios, negros, mestiços e estrangeiros, os

manicômios não pararam mais de crescer e aumentar suas internações. Obviamente, isso

não significou que o poder médico tenha sido internalizado como inevitável, uma vez

que ocorreram algumas desconfianças frente a esse governo médico. Lembremos que

Machado de Assis52, por exemplo, demonstrou sua preocupação com o crescimento

desmedido dos asilos e das intervenções dos alienistas em sua sátira O alienista,

publicada em 1882, cujo personagem principal, Dr. Simão Bacamarte, ao utilizar os

conhecimentos modernos da medicina alienista acaba por declarar a todos os indivíduos

itaguainenses como anormais, a ponto de, por fim, internar a si mesmo, uma vez que era

o exemplar de perfeição humana, logo, uma anormalidade também. O texto literário já

apresenta os perigos decorrentes do aumento do poder da instituição psiquiátrica na

descrição do que era normal ou patológico.

No próprio meio técnico-científico não demorou muito para os efeitos dessas

instituições totais emergirem. Em meados de 1886, os problemas serão explicitados e

aparecerão na pesquisa do médico Teixeira Brandão, “Os estabelecimentos para

alienados no Brasil”53, que defenderá a necessidade de uma legislação que

regulamentasse o confinamento dos alienados. Entretanto, mesmo com toda a influência

política de Teixeira Brandão, essa legislação somente será concretizada via decreto após

a proclamação da República. Outra obra de grande repercussão que ajudará a organizar

51 ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.92. [grifos

da autora] 52 Cf. ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O Alienista. 53 Guilherme Messas escreve que Teixeira Brandão foi a principal figura do período inicial da psiquiatria

brasileira, sua influência era tamanha que elegeu-se deputado para aprovar o Decreto 1.132 de 1903. Cf. MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento legislativo brasileiro em saúde mental. p.73 e segts.

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os hospícios nesse período será O alienado no direito civil brasileiro: apontamentos

medico-legaes ao projecto de código civil, escrito por Raimundo Nina Rodrigues54, em

1901. Nela, Nina Rodrigues faz um exame das diferentes leis para alienados espalhadas

na Europa e aponta o que seria ideal para o caso brasileiro. Faz, inclusive, apontamentos

interessantes e de certa forma até libertários com relação aos cuidados com o alienados

e denuncia as instituições existentes.

E´a garantia a direitos do cidadão, ameaçados pelo mao funccionamento dos asylos de alienados, graças ao abandono e menospreço a que os tem votado a maioria dos governos estaduaes. E esses direitos periclitam si, a pretexto de methodos curativos, os asylos de alienados se puderem converter n’uma ameaça de sequestração de pessoas sans; ou, si o internamento dos realmente loucos se puderem transformar, por falta de necessaria fiscalisação da justiça publica, em um efficaz e impune instrumento de assalto dos bens do alienado.55

De fato, a experiencia nos mostra que os alienados entre nós precisam de garantias contra todos; contra as familias particulares que os queiram explorar, contra os proprios poderes publicos que os submettem a tratamentos des-humanos.56

Como nos mostra Guilherme Messas57, “ainda no calor dos acontecimentos

ligados à ruptura institucional e sob a tutela do governo provisório, foi expedida a

primeira longa série de normas jurídicas concernentes ao campo mental, o Decreto

142.” Exatamente cinqüenta e sete dias após a proclamação da República, em 11 de

janeiro de 1890, legitima-se o pacto entre o Estado, a Psiquiatria e o Direito. Após esse

primeiro decreto outros três foram expedidos até a aprovação da primeira Lei em

190358, os Decretos 206, 508 e 89659; neles podem-se observar os ajustes que

legitimaram a instituição psiquiátrica como a responsável pela administração da ordem.

No artigo 3º do Decreto 206, a figura do médico será eleita como a determinante: “A

54 RODRIGUES, Raimundo Nina. O alienado no direito civil brasileiro: apontamentos medico-legaes

ao projecto de código civil. 55 Ibidem. p.228. 56 Ibidem. p.231. 57 MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento

legislativo brasileiro em saúde mental. p.66. 58 BRASIL. Decreto n.º 1132 - de 22 de dezembro de 1903: Reorganiza a assistencia a Alienados.

Essa lei será inspirada na legislação francesa sobre os alienados de 1838, promulgada por Jean-Étienne Esquirol (fiel discípulo de Pinel).

59 Respectivamente: Decreto n.º 206. Aprova as instruções a que se refere o Decreto 142A, de 11 de janeiro último e cria a Assistência Médica e Legal de Alienados. 15 fev. 1890; BRASIL. Decreto n.º 508. Aprova o regulamento para a assistência Médico-Legal de Alienados. 21 jun. 1890; BRASIL. Decreto n.º 896. Consolida as disposições em vigor relativas aos diferentes serviços da Assistência Médico-Legal de Alienados. 29 jun. 1892.

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direcção dos differentes asylos será confiada a um médico, responsável perante o

Ministro do Interior, de quem diretamente dependerá”60; esse decreto será revisto e

refinado, dando poder efetivo à psiquiatria no Decreto 508, artigo 3º: “A direcção geral

da Assistência será confiada a um médico de competência comprovada em Estudos

Psychiatricos...”61. Uma curiosidade a ser apontada é que até a publicação desses dois

decretos a instituição psiquiátrica somente se apropriava do corpo masculino. Antes, a

cargo das instituições religiosas, as alas femininas ficavam sob responsabilidade das

irmãs de caridade. O distanciamento definitivo com o assistencialismo religioso será

realizado em 1892, com a publicação do Decreto 896, que inaugurava a assistência laica

na administração dos asilos62. Passa a ser tarefa exclusiva do médico o direcionamento

conveniente do estado físico e das faculdades morais do paciente, ou seja, “o

humanitarismo médico se substitui à antropologia e à ética de matriz religiosa da cultura

colonial”63.

Ainda no ano de 1903, vota-se a primeira lei que regulamenta as internações,

que passaram a ser efetivadas somente se o indivíduo passasse por um exame de seu

estado mental. A mesma lei criou a divisão entre o encarceramento dos doentes mentais

e criminosos, tornando necessárias às construções de novos hospícios para alienados

criminosos e para alienados delinqüentes64. Ao fazer uma análise detalhada dessa lei e

compará-la às atuais legislações, Messas mostrará que não existirá uma grande mudança

com relação à lei de 190365. Em todas elas o direito individual é tomado como base para

pensar as ações médicas. A diferença aparece na práxis, na concepção de alienação e no

método de tratamento dos indivíduos. Nesse período a instituição psiquiátrica estava às

voltas com o positivismo e com o eugenismo.

A idéia de que o progresso passava pela qualidade da raça foi adotada pela maioria dos nossos intelectuais e, após a Proclamação da República, tornou-se praticamente uma obsessão definir o “tipo nacional” que garantisse o rumo à civilização, fazendo frente às visões pessimistas que davam o país como

60 BRASIL. Decreto n.º 206. Aprova as instruções a que se refere o Decreto 142A, de 11 último e cria

a Assistência Médica e Legal de Alienados. 61 Cf. Idem. Decreto n.º 508. Aprova o regulamento para a assistência Médico-Legal de Alienados. 62 Lembremos que o Decreto 791, publicado em 1890, criou a Escola Profissional de Enfermeiros e

Enfermeiras dentro do Hospício Nacional de Alienados. 63 MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.39. 64 Cf. POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la Psiquiatría. p.467 e segs. 65 Cf. MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento

legislativo brasileiro em saúde mental. p.75 e segts.

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perdido, já que os mestiços, segundo o censo de 1890, compunham a maioria da população.66

A aristocracia eugênica seria composta por indivíduos possuidores de força, clarividência, senso de realidade, auto-domínio, coragem, ambição e energia moral, qualidades essas que não pertenciam nem às raças negra e amarela nem a trabalhadores e pobres, inferiores por natureza. As provas científicas desse pensamento eram fornecidas por estatísticas elaboradas nos Estados Unidos e Inglaterra, mostrando que “53% dos bem-dotados pertencem à classe abastada, 37% à classe média, 10% à medíocre e 0% a inferior”.67

A produção científica procurava, ao invés de questionar a validade das teorias

importadas, prová-las mesmo que para isso tivesse que distorcer resultados. O interesse

de classe guiava o conhecimento, que por sua vez, deveria ser capaz de abarcar as

questões sociais e exercer seu controle sobre elas, com vistas nos dizeres positivos de

ordem e progresso. Isso implicava na eliminação da “desordem” a partir da eliminação

dos “desordeiros”, e na medida em que a sociedade, e conseqüentemente o homem

branco burguês, a partir dessa perspectiva, passou a ser considerado como resultado de

uma evolução natural do humano, todos aqueles que escapavam a esta “norma” eram

vistos como uma doença que deveria ser tratada para o bem estar do todo. As palavras

de Pereira Barreto ajudam a entender bem o espírito científico da época:

Contemplamos o organismo social como um grande doente, ao qual temos aplicado tôda sorte de terapêuticas, de medicações empíricas e racionais, de anódinos e corroborantes, de paliativos e de intempestivos, e, vendo que a moléstia continua, nós nos perguntamos se não será tempo de substituirmos o empirismo e o racionalismo pelo ponto de vista puramente naturalista, como o está fazendo com tanto fruto a medicina hodierna ou científica.68

Sob essa perspectiva, desenvolve-se uma teoria e práxis distanciada do mundo

da vida, que se serve da perspectiva da adaptação social. A ausência de um olhar que

considerasse as experiências subjetivas abriu espaço para que as teorias da

degenerescência pudessem ser articuladas com os pressupostos positivistas. Em

Teixeira Brandão, por exemplo, a teoria da degenerescência, entendida como ciência,

serve para sustentar a diferença entre os seres humanos, dividindo-os em inferiores e

66 ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.112. [grifos

nossos] 67 ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.120. 68 BARRETO, Luís Pereira. As três filosofias. In, BARROS, R. S. M. Obras Filosóficas de Luís Pereira

Barreto. p.128

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superiores69. “A evidência supostamente ‘manifesta’ é a prova de que a hereditariedade

é o aspecto essencial nas causas de patologia mental”70. E embora tenham ocorrido

algumas alterações de cunho jurídico, a noção de doença mental adotada

hegemonicamente era a de Teixeira Brandão. Sendo que o auge dessa política será a

criação em 1920 do Departamento Nacional de Saúde Pública, que selará o pacto entre a

instituição psiquiátrica, justiça e Estado71. A teoria da degenerescência teve um duplo

efeito de autorizar com suas hipóteses a reorientação do alienismo e a formulação de um

novo projeto de profilaxia a partir do asilo.

O otimismo positivista encarregar-se-ia da tarefa de facilitar a passagem conceitual do indivíduo à sociedade, formada a imagem do organismo individual, avalizando um amplo projeto assistencial científico com apoio na idéia de uma linha contínua sobre a qual a patologia e normalidade deixam de ser realidades heterogêneas. O resultado desta junção foi a formulação do primeiro grande projeto global de assistência psiquiátrica brasileira, impregnado do espírito de “missão” eugênica e orgulhoso de sua contribuição para romper o atávico atraso social recorrendo a técnicas profiláticas para a purificação da raça brasileira.72

A influência dessa nova ideologia dominante pode ser vista no caso da criação

da Liga Brasileira de Higiene Mental73, em 1923, na cidade do Rio de Janeiro, por

Gustavo Riedel. A instituição trabalhava com os aportes da psicologia e mantinha um

laboratório e um “Seminário Brasileiro de Psicologia” que se reunia semanalmente e

anualmente organizava as “Jornadas Brasileiras de Psicologia”. O objetivo inicial da

Liga era pensar a melhoria da assistência ao doente mental. Contudo, a partir de 1926,

69 A proposta teórica de Teixeira Brandão era de certa maneira original, uma vez que desenvolve sua

própria classificação das doenças mentais, em um momento histórico cuja teoria Kraepeliniana era hegemônica mundialmente. Cf. BRANDÃO, João Carlos Teixeira. Elementos fundamentaes de psychiatria e clinica forense.

70 MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento legislativo brasileiro em saúde mental. p.77.

71 A criação do DNSP, marco legislativo que estabeleceu o regime entre Estado e indivíduo deu-se com o Decreto 3.987. 2 de jan., 1920. Entre as atribuições desse novo órgão, estavam: “a) os serviços de hygiene no Districto Federal que deverão abranger a prophylaxia geral e específica das doenças transmissiveis, a execução de providencias de natureza, agressiva ou defensiva, as que tiverem por fim a hygiene domiciliaria, a policia sanitaria das habitações privadas e collectivas, das fabricas, das officinas, dos collegios, dos estabelecimentos commerciaes e industriaes, dos hospitaes, casas de saude, maternidade, matadouros, mercados, logares ou logradouros publicos, hotéis, restaurantes e fiscalização dos gêneros alimenticios.”

72 BARRETO, Jubel. O umbigo da reforma psiquiátrica. p.130-131. 73 Decretada instituição de utilidade pública pelo Decreto 4.778 de 27 de dez. de 1923. De acordo com

Mário Yahn, “As Ligas acabavam por se reduzir a um ambulatório, onde eram atendidos neuróticos e psicóticos menos graves, que recebiam, especialmente, tratamentos medicamentosos.” Cf. YAHN, M. Higiene Mental. p.40.

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esse objetivo foi cedendo lugar para a ideologia eugênica, a profilaxia e a adaptação dos

indivíduos por meio da educação. “A preocupação transferiu-se do indivíduo ‘doente’

para o ‘normal’, da cura para a prevenção, ampliando seu raio de ação para a sociedade

como um todo, definindo a ação psiquiátrica como prática higiênica, apoiada na noção

de eugenia”74. Inicia-se o combate ao alcoolismo, à prostituição, ao jogo e ao crime.

Estes se tornaram temas de destaque no interior da Psiquiatria, que passou a articular

doença mental e criminalidade, com base na teoria da degenerescência. Sendo que o

auge desse higienismo eugênico na legislação brasileira ocorre em 1927, com a

publicação do Decreto 5.14875, de 10 de janeiro de 1927, que passou a considerar como

“assistência aos psicopatas” as ações que até então eram nomeadas como “assistência

aos alienados”. Já havia sido importada dos portugueses uma leitura psiquiátrica que

possibilitava associar loucura e crime, tais como o Manual de Enfermidades Mentais, de

Benedict Morel e Os alienados nos tribunais e a loucura, de Cesare Lombroso, que

reforçavam o argumento “do determinismo biológico quanto aos papéis desempenhados

pelos autores e seu ambiente: os atores obedecem à sua natureza inata”76.

E tal como propunha Nina Rodrigues, aqueles indivíduos que não se adequassem

deveriam ser vistos como ameaças sociais e deveriam ser retirados da sociedade,

independentemente de sua raça, ainda que por razões diferentes: “os negros porque

eram historicamente defasados em relação a ela, os brancos por não terem se adaptado

às normas de conduta que eles próprios produziram”77. Essa forma de interpretação

possibilitará uma arbitrariedade em relação ao que seria considerado crime, imputando

ao criminoso a etiologia da criminalidade associada à idéia da mentalidade primitiva,

isentando assim, a influência das condições sociais na construção do criminoso, ao

mesmo tempo que a sociedade era entendida como vítima do indivíduo criminoso, o que

referendava a exclusão dos degenerados e a regeneração dos indivíduos.

A ênfase atribuída pelo próprio Nina Rodrigues às análises antropométricas, particularmente à craniometria, assim como a relevância dada por alguns de seus críticos a este aspecto de sua obra, talvez tenham contribuído para tornar quase invisível uma passagem que embora tardia é muito importante em sua

74 ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A Psicologia no Brasil: Leitura histórica sobre sua

constituição. p.50. 75 Cf. BRASIL. Decreto 5.148. Reorganiza a Assistência a Psicopatas no Distrito Federal. 10 de jan.,

1927. 76 GOLD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. p.135. 77 CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil.

p.142.

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carreira: o deslocamento da atenção dos aspectos fisiológicos para os aspectos psíquicos do comportamento humano. No entanto, quanto mais psicológicas se tornavam as observações de Nina Rodrigues, tanto mais sociológicas se mostram suas análises; mais e mais a loucura, por exemplo, aparece como expressão das relações sociais entre os homens.78

A própria alienação era entendida a partir dessa articulação entre pensamento

primitivo e inadaptação à sociedade. A influência de Nina Rodrigues será explícita na

medicina social, psicologia forense e criminal, aparecendo claramente nos trabalhos de

Oscar Freire, Flámínio Favero, Almeida Junior, Pacheco e Silva e, principalmente, em

Arthur Ramos79. Para este último, por exemplo, a alienação era entendida como negação

da realidade. No trabalho “Loucura e Crime” ele escreve que, nos alienados:

A sua adaptação ao real é nulla. (...) é o pensamento que não busca a adaptação á realidade; tem as suas leis próprias, que só dizem respeito ao indivíduo, esquecido completamente da vida exterior, despida, para o interiorizado, de qualquer interesse.80

Com Arthur Ramos a relação entre Alienismo, Psiquiatria, Direito e Psicologia

Social começará a ser explicitada e, de certa maneira, desmembrada81. A sua inserção e

participação política fortalecerá ainda mais o papel da instituição psiquiátrica no

78 CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil.

p.141-142. 79 Arthur Ramos foi discípulo de Nina Rodrigues e pode ser considerado um dos mais importantes e

veementes defensores da teoria da degenerescência no Brasil. Produtor de várias obras que procuravam enfocar a inferioridade racial e a degeneração psíquica, assim como as formas de expressão afro-brasileiras, vistas a partir da concepção de manifestações primitivas, pode ser considerado um dos pioneiros da Psicologia Social no Brasil, embora autores como Mariza Corrêa (Op. cit.), por exemplo, digam que este reduziu ainda mais a teoria de seu mestre, caindo em distorções da própria teoria de Nina Rodrigues, como simplesmente substituir os termos raça por cultura e mestiçamento por aculturação.

80 RAMOS, Arthur. Loucura e Crime: Questões de Psychiatria, Medicina Forense e Psychologia Social. p.16-17.

81 Embora tenhamos na literatura acadêmica uma propensão a indicar o trabalho de Arthur Ramos como um marco histórico para a Psicologia Social, sua obra não foi a pioneira no país nessa área. Já haviam sido publicados, em 1921, os Pequenos Estudos de Psychologia Social, de Oliveira Vianna e, em 1935, Psicologia Social, de Raul Briquet, que era catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e professor de Psicologia Social da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Nesse último trabalho, como explica Briquet, foram reunidas as lições do curso de Psicologia Social que ministrou no segundo semestre de 1933, na Escola Livre de Sociologia e Política. Arthur Ramos foi responsável pelo segundo curso de psicologia social do Brasil, ministrado em 1935 na Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, experiência que resultou na escrita e publicação de seu livro célebre publicado em 1936: Introdução à Psicologia Social. Dado o prestígio da Escola de Obstetrícia, coube a Edgard Braga o primeiro livro que relacionava a articulação entre essa Psicologia Social e as práticas de higiene e saúde. O livro, intitulado O homem errado, resultado da coletânea de vários artigos publicados por esse último autor em 1936, foi muito divulgado e alcançou várias edições, popularizando-se em todo o país, principalmente no Nordeste. Cf. COELHO, Maria Cecília Simões de Oliveira. Edgard Braga: O jovem velho poeta das metamorfoses.

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controle da sociedade. Sob sua orientação a psicologia social (até então amalgamada no

interior da medicina) pela primeira vez aparecerá como ciência diferenciada. Entretanto,

sua ação não aparecerá como crítica ao modelo adotado, pelo contrário, ela seguirá a

tradição inaugurada no país, positiva e normativa, como ciência auxiliar da Psiquiatria e

do Direito.

A posteriori, a filiação das pesquisas de Nina Rodrigues à orientação culturalista, por oposição ao método histórico, Arthur Ramos não só ignorava o contexto teórico em que se desenvolveu o trabalho de Nina Rodrigues – contexto no qual a perspectiva histórica estava por definição assegurada – como esclarecia a sua própria visão de categorias culturais como categorias definidas a partir da cor da pele de seus integrantes.82

A importância dada a Arthur Ramos aqui não se deve apenas ao impacto de sua

Psicologia Social83, mas sim, à sua ação política a partir dessas concepções. Após ser

nomeado chefe da Sessão Técnica de Ortofrenia e Higiene Mental, por Anísio Teixeira,

em 193484, Arthur Ramos coloca em ação seu plano de higiene mental. E passa a ditar

os parâmetros de comportamento social sadio e doentio. Esse teórico orientou os adultos

a fugir das cartomantes e curandeiros — incentivando a procura do médico quando era

preciso alguma orientação —, a se adaptarem de bom humor a seu trabalho, a repousar

nas férias e a evitar o álcool e outros tóxicos. Às mães, lembrava, em primeiro lugar que

“a infância é a idade de ouro para a higiene mental” e que a “maior responsabilidade

dessa educação higiênica cabe às mães”. Um de seus conselhos célebres é assim

fraseado: “Dê à criança a maior liberdade vigiada”85.

82 CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil.

p.283. 83 A Psicologia Social de Arthur Ramos segue o modelo apresentado originalmente por Floyd H. Allport,

que considerava o comportamento social e suas relações com o biológico. Arthur Ramos adota certos conceitos freudianos, embora os “behavioriza” e individualiza. Sendo assim, fala de “motivações anti-sociais” no lugar de pulsões instintivas, de “pulsões socializadas” no lugar de superego e substitui os instintos descritos por McDougall por “reações nervosas”, determinadas pela herança biológica, mas modificáveis pelo condicionamento social. É importante apontar aqui que a Psicanálise brasileira desse período (embora com algumas tensões) também seguirá esse mesmo movimento de ajustamento, uma vez que se deu sobretudo pela importação da leitura norte-americana da teoria freudiana.

84 Ano em que foi publicado o decreto que resistiu por mais tempo no campo da doença/saúde mental, uma vez que somente foi reformado após a publicação da Lei de 6 de abril de 2001.O Decreto 24.559, de 3 de julho de 1934, tinha como finalidade, como o próprio título nos mostra, dar “proteção à pessoa e bens dos psicopatas”. Composto por 8 artigos, o Decreto marca uma forma de organização que tem sua imagem melhor descrita no “O alienista” de Machado de Assis.

85 Maria Cecília Coelho lembra que desde os anos 20 desse período uma grande significativa de mão-de-obra industrial era de mulheres e crianças, assim como, era o momento de organização e expansão da indústria farmacêutica e de alimentos. Estas “provavelmente, como conseqüência, passam a produzir os reclames inspirados nas matérias médicas. A Publicidade nos meios de comunicação – jornais, revistas

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Outras personagens se destacaram nesse período com produções em que também

trabalharam a relação direito, medicina e psicologia86. Dentre elas, Domingos José de

Nogueira Jaguaribe (1843-1926) foi uma das que obtiveram maior reconhecimento.

Jaguaribe se dedicou principalmente às pesquisas referentes ao alcoolismo, fundando

nos primeiros anos do século XX o Instituto Psycho-Physiologico, voltado para estudos

experimentais e elaboração de métodos de tratamento para os alcoolistas, baseados

principalmente no hipnotismo e na sugestão. Como lembra Massimi87, foi de Nogueira

Jaguaribe também o projeto que criou “a ‘Liga Brasileira contra o Alcoolismo’, da

implantação do ‘tratamento psychoterápico’ do alcoolismo nas casas de correção e da

instituição do ensino antialcoólico em todas as escolas do estado”. Jaguaribe será um

dos primeiros brasileiros a fazer parte de uma rede de relações internacionais, sendo

membro e presidente, em 1912, da Sociétè de Psychoterapie de Paris; professor

correspondente da Escola de Psicologia de Paris, reconhecido e estimado por autores

que eram referências internacionais, tais como Liebeault Le Bon, Lombroso, Bérrillon,

Ramon y Cajal, participa, em 1900, do Congresso Internacional de Hipnotismo, na

mesma cidade. Em 1913 publica o texto “As Bases da Moral: Estudos de Psychologia

Physiológica”, que estabelece uma relação entre a psicologia experimental e

hipnotismo.

Outra personagem que atualmente é vista como importantíssima para a Reforma

Psiquiátrica, mas que em sua época não conseguiu grande repercussão de seu trabalho

dentro do país, foi o médico Ulisses Pernambucano (1892-1943), do Instituto de

Psicologia e da Assistência a Psicopatas de Pernambuco. Ulisses Pernambucano,

e mais rádio difusora.” Cf. COELHO, Maria Cecília Simões de Oliveira. Edgard Braga: o jovem velho poeta das metamorfoses. p.76-78.

86 Discordando de Marina Massimi (1990; 1994; 2000) que vê nessas produções o desenvolvimento do pensamento psicológico e a consolidação da psicologia como ciência independente, vemos nesses trabalhos o fortalecimento e validação da medicina social, do higienismo e, principalmente, da instituição psiquiátrica. As pesquisas realizadas nesse período eram relacionadas com neurologia, psiquiatria, higiene mental, criminologia e psiquiatria forense. Dentre os autores encontrados que discutem essas temáticas, podemos destacar: Henrique Roxo de Brito Belfort (1877-1969), autor da tese “Duração dos Atos Psíquicos Elementares”, apresentada na Escola Médica do Rio de Janeiro em 1900, considerada o primeiro grande trabalho de psicologia experimental publicado no Brasil; Antonio Austregésilo (1876-1960), neurologista atuante da Faculdade do Rio de Janeiro, que se destaca por sua contribuição à psicoterapia, principalmente nas obras “A Cura dos Nervosos (1918)” e “Pequenos Males (1919)”; Maurício Medeiros (1885-1966), possivelmente o primeiro brasileiro estudante de psicologia experimental no exterior (Paris), autor da tese sobre os “Métodos em Psicologia”, apresentada no Rio de Janeiro em 1907, fundador e diretor do Laboratório de Psicologia Experimental e Clínica Psiquiátrica do Hospício Nacional; Miguel Álvaro Branca Osório, especialista em fisiologia nervosa e psicofisiologia do Laboratório de Fisiologia do Rio de Janeiro.

87 MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.67-68.

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considerado um dos pioneiros da psiquiatria social na América Latina, junto com seus

colaboradores, desenvolveu uma modalidade de atendimento aos alienados que era

extremamente revolucionária. Enquanto a hegemonia dos pesquisadores e técnicos

estavam voltados para as formas de controle da sociedade e melhoria das tecnologias

utilizadas nos manicômios, Ulisses Pernambucano pensou em criar

(...) serviços para doentes mentais não alienados, com hospital aberto; serviços para doentes mentais alienados, com hospital para doentes agudos e colônia para doentes crônicos; Manicômio Judiciário; Serviço de Higiene Mental, com Serviço de Prevenção das Doenças Mentais e Instituto de Psicologia.88

Ulysses Pernambucano, que fora discípulo de Nina Rodrigues, distanciou-se da

concepção eugenista e positivista, dirigindo seus estudos para outras perspectivas. A

concepção de adoecimento mental desenvolvida por esse autor era de que a doença

mental tinha uma relação existencial, na qual o indivíduo era agente do processo, tendo

os fatores sociais como co-determinantes. Opunha-se à visão organicista, que era antes

determinante do que determinada pelas condições sociais. De acordo com Antunes89,

Pernambucano pode ser considerado o pioneiro no Brasil do movimento que seria

conhecido posteriormente como antipsiquiatria90.

Frente a uma produção teórica e uma práxis concreta espalhada em praticamente

todo território nacional, não é difícil prever que a consolidação da instituição

psiquiátrica no Brasil foi ficando cada vez maior. Já vimos que o Decreto 5.148, de

1923, reconhecia sua importância na sociedade brasileira e que o papel da Psicologia foi

essencial nesse projeto91. Também dissemos que essa influência não ocorreu

simplesmente como uma inspiração para a produção de conhecimento, mas sim que foi

88 ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A Psicologia no Brasil: Leitura histórica sobre sua

constituição. p.53. 89 Ibidem. 90 Embora Antunes na obra citada, ressalte que a pouca divulgação de seu pensamento e obra (talvez por

conta da ideologia dominante na época) não tenha permitido que tal movimento reconhecesse seu trabalho. Mário Yahn escreve que “iam adiantados os trabalhos e as pesquisas, quando, em 1935, modificou-se a orientação política do Governo Federal. Ulisses Pernambucano foi perseguido e o grupo se desmembrou.” YAHN, Mário. Higiene Mental. p.42.

91 Vale a pena lembrar as duas obras de destaque desse período na Psicologia Social: “Psicologia Social”, de Raul Briquet, e “Introdução à Psicologia Social” de Arthur Ramos. Nos dois trabalhos vemos uma tentativa de leitura das principais tendências mundiais. Para o primeiro, a Psicologia Social deveria evidenciar a relevância dos fatores psíquicos no entendimento do comportamento dos indivíduos, para o segundo, era a ciência intermediária entre a psicologia e a sociologia, que poderia ajudar a desvelar as deformidades hereditárias da personalidade, seguindo a influência de Nina Rodrigues. No seu livro, Arthur Ramos destaca a obra de Floyd Allport, desde 1921 co-editor do Journal of Abnormal and Social Psychology, que como o próprio título sugere, aproxima o social do anormal.

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utilizada como discurso de autoridade que tentava a todo custo adequar os “bárbaros” ao

ideal de “civilização” que foi se delineando. Em 1923, por exemplo, o Hospital de

Engenho de Dentro montou seu Laboratório de Psicologia92, dirigido por Gustavo

Riedel, então Diretor da “Colônia de Psicopátas”. Com a mudança na direção, o

Laboratório foi assumido por Waclaw Radecki em 1924, que ampliou as atividades de

pesquisa e os cursos de especialização para médicos da Colônia93. Em 1932, o

Laboratório de Psicologia muda novamente sua direção, Nilton Campos que estudara

com W. Köhler na Alemanha permanece no cargo até 1934, quando assume o ensino da

Psicologia na Universidade do Brasil. Ainda no Laboratório de Psicologia formou

pesquisadores em várias áreas, desde a psicofisiologia até a Psicologia Social,

publicando em 1930, Psicologia da vida afetiva. A Psicologia, principalmente a

Psicologia Social, mesmo sendo ensinada como disciplina complementar dos cursos de

Biologia e Neurologia, ofereceria o suporte necessário para o projeto que viria a seguir,

uma vez que ainda não existiam as cátedras de Psiquiatria94. Todavia, o auge do

higienismo eugênico só se torna possível após a publicação do Decreto 24.559, de 3 de

julho de 193495, que será o ato legislativo que resistirá por mais tempo, sendo renovado

apenas pela lei de 6 de abril de 200196.

92 Este laboratório contava com instrumental capaz de medir sensações, reflexos, atenção, associações,

discriminação, memória etc. adquirido na França e Alemanha. 93 O Laboratório é transformado em 1932 pelo Decreto Lei n° 21.173, no Instituto de Psicologia da

Secretaria de Estado da Educação e Saúde Pública, onde deveria ser organizado o primeiro curso de psicologia. “Todavia, provavelmente devido a problemas financeiros, o instituto sobrevive apenas poucos meses, sendo incorporado, em junho de 1937 (Lei n° 452), à Universidade do Brasil.” Cf. MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p. 66.

94 De acordo com Isaías Pessotti: “Até as gestões de Décio de Souza, em 1950, para se criarem cadeiras de Psicologia nos cursos de Medicina, os médicos, nesse campo, eram autodidatas e mesmo o ensino de Psiquiatria durava apenas um ano.” Cf. Pessotti, I. Dados para uma história da Psicologia no Brasil. p.127.

95 No ano de 1934 também teremos a criação da Universidade de São Paulo – USP que incorporou a cátedra de Psicologia do Instituto de Educação Caetano de Campos, antiga Escola Normal de São Paulo e no ano seguinte cria-se a Universidade do Brasil, proposta como padrão para outras universidades. Na USP a disciplina de psicologia torna-se obrigatória nos três primeiros anos do currículo de Filosofia. De 1935 até 1944 essa cadeira ficou a cargo de Jean Maugüé, sendo substituído em 1945 por Otto Klineberg, que havia publicado, em 1940, um manual “Social Psychology”, que por sua vez fica no cargo até 1947 quando a disciplina passa a ser ministrada por Annita de Castilho e Marcondes Cabral que trabalhava com Noemi Silveira Rudofler no Serviço de Psicologia Aplicada. Em 1954 os estudos mudam de direção novamente e será a vez da psicologia experimental ocupar o palco com os trabalhos de Arrigo Leonardo Angelini.

96 O único ato legislativo significativo no período que vai da constituição da República brasileira até a Segunda Guerra Mundial será o Decreto-Lei 3.138, de 24 de janeiro de 1941, que Dispõe sobre a assistência médica, pelos Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões, dos doentes mentais que forem seus segurados ou associados.

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O Decreto 24.559 delimitará finalmente os mecanismos “de proteção” aos

psicopatas em relação aos seus bens, direitos civis e amparo social. Detalhará as

condições de credenciamento de profissionais97 e as instituições de referência para o

tratamento dos psicopatas. No que se refere ao projeto de profilaxia mental e o destino

do psicopata, o decreto apontava que:

O serviço de profilaxia mental destina-se a concorrer para a realização da profilaxia das doenças nervosas e mentais, promovendo o estudo das causas destas doenças no Brasil, e organizando-se como centro especializado da vulgarização e aplicação dos preceitos de higiene preventiva. § 1º Para segurança dessas finalidades, o Govêrno providenciará no sentido de serem submetidos a exame de sanidade os estrangeiros que se destinarem a qualquer parte do territorio nacional, e os que requererem naturalização, sendo que, nêste caso, o exame deverá precisar, especialmente, o estado neuro-mental do requerente. § 2º Os portadores de qualquer doença mental ou nervosa, congênita ou adquirida, não sendo casados com brasileiros natos ou não tendo filhos nascidos no Brasil, poderão ser repatriados, mediante acôrdo com os gôvernos dos respectivos países de origem.98 Os Psicopatas, assim declarados por perícia médica processada em fórma regular, são absoluta ou relativamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil. Parágrafo único. Supre-se a incapacidade pelo modo instituído na legislação civil ou pelas alterações constantes do presente decreto.99

Assume-se um eugenismo xenofóbico na legislação brasileira, preza-se a

purificação racial com a repatriação dos estrangeiros. A busca pela sociedade eficiente

que espelhasse os ditames de “ordem e progresso” adquire nesse período o auge de sua

forma. O que colocaria, por um lado, a guinada da instituição psiquiátrica na mesma

linha de desenvolvimento – retardada como podemos perceber –, do desenvolvimento

da instituição psiquiátrica na Europa, e que pode ser descrito sinteticamente da seguinte

97 Com esse Decreto a Psicologia começa a perder seu lugar no seio da medicina social e vai se tornando

uma ciência auxiliar para uma psiquiatria que passa a ser vista como auto-suficiente para o entendimento das patologias mentais. O artigo 5 do Decreto 24.559 expressa claramente quem são os responsáveis pelo psicopata: “É considerado profissional habilitado a dirigir estabelecimento psiquiátrico, público ou particular, quem possuir o título de professor de clínica psiquiátrica ou de docente livre desta disciplina em uma das Faculdades de Medicina da República, oficiais ou oficialmente reconhecidas, ou quem tiver, pelo menos durante dois anos, exercido efetivamente o lugar de psiquiatra ou de assistente de serviço psiquiátrico no Brasil ou no estrangeiro, em estabelecimento psiquiátrico, público ou particular, autorizado.”

98 BRASIL. Decreto n.º 24.559. Dispõe sôbre a profilaxia mental, a assistência e proteção á pessôa e aos bens dos psicopatas, a fiscalização dos serviços psiquiátricos e dá outras providências. 3 de jul. 1934., Art.25.

99 IDEM. Decreto 24.559, Art.26.

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maneira: num primeiro momento seguiu o modelo de uma nosologia naturalista,

considerando a hereditariedade como fator principal da degeneração e desordem social,

e posteriormente ampliou sua atenção e apoiou-se em teorias naturalistas do meio físico

para explicar as causas da insanidade (nos dois casos apoiando-se em causas físicas e

concretas). Em que as metáforas da desordem, a decisão acerca do normal e patológico,

segue a fórmula: desorganizar é ir contra a organização — como se tanto a sociedade

quanto os indivíduos chegassem à estabilidade do silêncio dos órgãos —, contrariando

leituras críticas como a de Georges Canguilhem, para quem o patológico estaria

justamente no silêncio da repetição de um mesmo padrão de comportamento para lidar

com o sofrimento em diferentes contextos100. E por outro lado, redefiniriam as

estratégias de administração social do doente mental paulatinamente, da necessidade de

adaptação social (típica de uma sociedade disciplinar), para a urgência do ajustamento

cultural a partir de uma higiene mental (típica de uma sociedade de controle).

Com o advento da psicanálise no Brasil, a normalidade física é colocada em

segundo plano, assumindo-se a cultura como objeto de investigação e ação, e a

Psicologia tem sua utilidade reduzida dentro do campo da medicina. Como Szasz

assinala, isso foi algo que ocorreu de forma similar em outros países, onde a partir do

momento em que a psicanálise foi absorvida pela psiquiatria, “as facções opostas foram

redefinidas como as perspectivas médicas e psicológicas sobre o comportamento do

anormal”101, surgindo assim, uma separação entre as escolas de psiquiatria biológica

(médica) e não-biológica (existencial, psicológica e social). Entretanto, em ambas as

perspectivas a concepção de loucura se igualam ao concordarem que com a existência

de indivíduos que precisa de tratamento psicológico e moral, os quais estão impedidos

de ter uma vida articulada, entre o racional e irracional, entre a esfera pública e a esfera

privada. Como Ronald Laing assinala, na prática a manutenção dessa ideologia expressa

o fato de que ao atestar que alguém é louco, doente mental:

(...) não ponho em dúvida que ele seja desequilibrado, talvez perigoso para si mesmo e para os outros, e exija atenção e cuidados num hospital para doentes mentais. Ao mesmo tempo, estou cônscio de que, em minha opinião, existem outras pessoas consideradas sadias, cuja mente é radicalmente doentia, podendo

100 A saúde, escreve Canguilhem, está justamente na possibilidade de “ultrapassar a norma que define o

normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas”. Cf. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. p.148.

101 SZAZ, Thomas S. Cruel Compaixão. p.193.

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também constituir um perigo para si mesmas e para os outros, e a quem a sociedade não considera psicopatas destinadas a um hospício.102

Com isso, se desde meados do século XIX e início do século XX a Psicologia

aparecia como campo de conhecimento importante para a medicina social e alienismo

brasileiro, com a consolidação da Psiquiatria e sua aliança com a Psicanálise103, sua

ação fica cada vez mais distante do cenário psiquiátrico104. As relações entre médico e

psicólogo podem ser visualizadas na obra de Mário Yahn, que em 1955, na introdução

do livro “Higiene Mental” dizia ser a atribuição do Psicólogo (Psicanalista) contribuir

com o trabalho clínico nos Centros de Saúde, uma vez que haveria ocorrido uma

evolução que teria partido primeiramente na fase teórica das Ligas de Higiene Mental,

organizações de conferências, palestras, semanas relativas a assuntos como: alcoolismo,

102 LAING, Ronald David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p.27. 103 É importante assinalar aqui que no eixo Rio-São Paulo, somente três estabelecimentos estarão filiados

a International Psychoanalitical Association – IPA, fundada por Freud em 1910. Nesses três apenas a de São Paulo – SBPSP, desde seus primeiros Estatutos, abre possibilidade para que pessoas não médicas se submetam a formação, o que é contraditório, uma vez que é conhecida as diversas denúncias de charlatania realizadas por médicos psiquiatras e neurologistas à essas associações.

104 Isso não impede o desenvolvimento da Psicologia, como nos mostram os estudos de Massimi (1990; 2000; 2004); Antunes (2005), Coimbra (1995), Pessotti (2004), Jacó-Vilela & Rodrigues (2004). A Psicologia que já se desenvolvia no país mesmo antes do uso da instituição psiquiátrica como aparelho ideológico do Estado, entre meados de 1940 até o início dos anos de 1970, desenvolve-se nas diferentes abordagens. A título de ilustração, podemos dizer que as principais escolas que se desenvolvem nesse período são: a Psicanálise, a Fenomenologia, o Funcionalismo, o Behaviorismo e a Psicologia Social. A Psicanálise divulgada no Brasil desde os anos 10 até os 30, é fortalecida com a fundação da primeira Sociedade Brasileira de Psychanalise, em 1927 e, iniciando a artir daí a formação nos moldes freudianos, psicanalistas a partir de 1937; o movimento fenomenológico e a filosofia existencial por sua vez, teve sua origem a partir da fundação da Universidade de São Paulo, em 1934, tendo inicialmente forte influência francesa e posteriormente, a americana a partir de 1959 e o primeira programa de formação em Gestalt-Terapia oferecido em 1977 por Walter Ribeiro, em Brasília; o funcionalismo que passará por três fases: de 1900-1930, preocupava-se em explorar as possibilidades de estudo da Psicologia em instituições de saúde mental e educação do país, de 1930-1940, com as primeiras tentativas de aplicação desses conhecimentos aos problemas sociais (educação, trabalho e saúde mental), 1940-1960, período em que coincide com a fase em que se inicia a formação universitária em Psicologia e que corresponde à expansão da pesquisa científica no país na área, 1960-1990, com o debate entre cultura e cognição, da hipótese de carência cultural, marginalidade e na explicação de algumas formas de fracasso escolar e doença mental e, finalmente, a partir de 1990 até atualmente, com a consolidação dos grupos de pesquisa formados entre 1970-1980 e com a expansão da pós-graduação no país; já o behaviorismo radical no Brasil, inicia-se a partir da primeira viagem de Fred Keller ao Brasil, em 1961, embora os contatos entre este teórico e o Brasil tenham se iniciado a partir de 1959. Durante sua estada no Brasil, este teórico ofereceu um curso de curta duração na Sociedade de Psicologia de São Paulo, e tornou-se professor visitante da USP. A presença de Keller possibilitou com que gerassem os primeiros trabalhos de análise do comportamento no Brasil, publicados no Journal of the Experimental Analysis of Behavior. Dentre os pioneiros da análise do comportamento no Brasil pode-se destacar a Dra. Carolina Bori, principal responsável pela continuidade da pesquisa em análise do comportamento no Brasil. A consolidação da institucionalização da Psicologia também se dá com a publicação da Lei n.º 4.119, de 27 de agôsto de 1962, que Dispõe sôbre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo, e do Decreto n.º 53.464, de 21 de janeiro de 1964, que Regulamenta a Lei n.º 4.119, de 27 de agôsto de 1962, que dispõe sôbre a profissão de psicólogo.

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casamento, profilaxia do divórcio etc., a ponto de deixar o campo apto para as ações de

higiene mental105.

Os muros dos asilos e manicômios começam a tornarem-se pequenos frente às

necessidades de intervenção no corpo social. Os propósitos psicanalíticos, advindos de

uma prática adaptacionista de psicanálise, que disseminavam sua atuação na articulação

entre esfera pública e privada não poderiam mais ser realizados no interior de grandes

hospícios. As ações voltadas para o ajustamento deveriam ser fruto da evolução dos

olhares desses dois campos de conhecimento: da medicina exige-se um olhar para além

da doença, do psicanalista uma articulação com a pedagogia. Essa “clínica do social”

que ampliou com a Psicanálise sua possibilidade de diagnosticar o normal e o

patológico pôde “cuidar de toda população desajustada”, como nos mostra Yahn ao

discorrer sobre a orientação dada às educadoras sanitárias acerca de como seria a

identificação do doente mental:

Quando fomos a um Centro de Saúde para dar, às educadoras sanitárias, a primeira orientação específica sôbre o trabalho de Higiene Mental na Infância, perguntaram-nos quais as pessoas que deveriam ser conduzidas à consulta. Havíamos pedido que fôsse organizado um grupo de oito a dez mães. “Mas de que tipo?” Perguntaram-nos. “Não há necessidade de escolher”, respondemos. “Tôda mulher que a Sra. vir com uma criança ao colo ou puxando uma criança pela mão, traz consigo, seguramente, um problema psicológico, decorrente de inter-relações pessoais defeituosas que sempre existem entre adultos e crianças”106.

O pensamento de Yahn a respeito da articulação entre a Psiquiatria e a

Psicanálise107, na verdade, segue a tendência dos países capitalistas do pós-guerra que

absorveram essa última como nova tecnologia para o diagnóstico, tratamento e

prevenção dos desajustes: “a clínica de Higiene Mental, já em franca evolução,

105 Cf. YAHN, Mário. Higiene Mental. p.15-16. 106 YAHN, Mário. Higiene Mental. p.15. Em outra passagem esse autor escreve que o Centro de Saúde,

como ambulatório, “passa a funcionar, como verdadeiro cérebro orientador, para os pacientes. Não se estabelece mais uma diferença tão radical entre os doentes que precisam ou não precisam ser internados; e o ambulatório tem duas frentes: — Uma voltada para o meio social, atendendo os pacientes que ali podem permanecer, e outra voltada para dentro do hospital psiquiátrico, onde o paciente continua a ser atendido, sem que se modifique radicalmente a orientação que vinha sendo seguida.” Cf. Ibidem. p.302.

107 No início da década de 70 do século passado, Leão Cabernite, presidente da SPRJ, será um dos vários psicanalistas que farão críticas a esse modelo de Psicanálise. Os artigos acerca da “poluição da psicanálise” feita pelo bando de “invasores”, os psicólogos e a segunda geração de psicanalistas argentinos, serão voltadas para o conteúdo fascista e reacionário das práticas desenvolvidas. Para maiores detalhes dessa tensão sugerimos o trabalho: COIMBRA, Cecília. Os guardiães da ordem. p.60 et seq.

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principalmente nos E.U.A e na Inglaterra”108. De modo a nos levar a associar a

tendência de desmonte do aparato tradicional (manicômio), como seguimento das

premissas que estavam sendo colocadas em pauta na agenda mundial. Momento

histórico em que, como nos ensinou Szasz, era antiquado opor-se abertamente à

liberdade109. Uma forma de pactuação perversa entre Psicanálise e Psiquiatria

denunciada, por exemplo, na crítica realizada por Theodor Adorno em sua Mínima

Moralia:

Se fosse possível uma psicanálise da cultura prototípica dos nossos dias, se a predominância absoluta da economia não escarnecesse de toda a alternativa de explicar a situação a partir da vida anímica das suas vítimas, e se os próprios psicanalistas não tivessem, há muito, jurado fidelidade a esta situação, tal investigação revelaria que a enfermidade actual consiste justamente na normalidade.110

No que se refere à autonomia legislativa, após 1945 nota-se uma deflação na

produção de normas jurídicas específicas para os doentes mentais. A legislação que

discutirá a assistência e a proteção dos indivíduos “portadores de enfermidades

mentais”, passa a ser regulada por leis e decretos gerais sobre saúde. Messas111

defenderá a tese de que isso ocorreu devido, em primeiro lugar, à interpretação

culturalista que se tornou predominante, “no limite, ela também termina por reduzir a

psicologia a um posto avançado da pedagogia”, em segundo lugar, de natureza

conjuntural, deveu-se “ao enfraquecimento do Estado totalitário vanguardista e de seus

sustentáculos de ordenação social”. Sendo assim, assinalamos que se nas primeiras

décadas do século determinados indivíduos eram vistos como doentes mentais,

alienados graves com tendência à intervenção médica — e a psiquiatria era um

sinônimo de manicômio —, cuja confinação permanente pelo Estado era aceita como

uma resposta justa, para o alienado e para a sociedade ameaçada; a partir de 1961, a

sociedade desajustada necessitava de um aumento das ações da instituição psiquiátrica,

as quais saíam dos muros e passava a se espalhar pela sociedade.

108 YAHN, Mário. Op. cit. p.16. 109 SZASZ, Thomas. Cruel Compaixão. p.193. 110 ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia. p.55. 111 Cf. MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das leis e as leis do espírito. p.88 e sgts.

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2. A identidade pressuposta do doente mental nos anos 60, 70 e 80 no Brasil: a

reprodução do paciente doente mental como justificativa de expansão do

hospital psiquiátrico privado e a produção do cidadão doente mental como

política de saúde mental

Com a chamada modernização do Brasil, iniciada no Governo de Jucelino

Kubitscheck112, nosso presidente Bossa Nova, desenvolve-se a expansão do capitalismo

monopolista, por meio da industrialização dominada pelo capital estrangeiro. Logo a

relação estabelecida entre o Estado e a instituição psiquiátrica sofrerá uma nova

transformação. Seguindo a influência norte-americana, o Brasil, a partir de 1960, mais

precisamente após a publicação do Decreto 49.974, de 21 de janeiro de 1961113,

promove uma nova reforma psiquiátrica. A novidade no decreto está na inversão da

internação do alienado, do psicopata, como elemento indispensável para a ordem social,

para desse momento em diante, a desinternação progressiva desses indivíduos. Com a

adoção da epidemiologia como referência principal na elaboração das políticas114,

abandonam-se às preocupações com a ordem pública — tão presentes nas idéias e leis

de períodos anteriores e que reduziam os problemas políticos-sociais-econômicos aos

atributos individuais específicos do povo brasileiro —, e passa-se a identificar os casos

particulares “típicos”, o que possibilita identificar o impacto das ações de saúde

mental115 da população, que passaria a ser cada vez mais medicalizada. A Reforma

Psiquiátrica promove a partir de então a metáfora da desinternação, que na realidade

prática do mundo da vida apenas ampliava sua função de regulação da população.

A desinternação como preocupação principal fica aparente no segundo capítulo

do Decreto 49.974-A, Art. 75, que deixa explícita que “a política sanitária nacional,

com referência à saúde mental, é orientada pelo Ministério da Saúde, no sentido da

prevenção da doença e da redução, ao mínimo possível, dos internamentos em

estabelecimentos nosocomiais”. Os novos reformistas brasileiros, como foi o caso de 112 Seu Governo perdura de 1956 à 1961. 113 BRASIL. Decreto nº 49.974-a. Regulamenta, sob a denominação de Código Nacional de Saúde, a Lei nº 2.312, de 3 de setembro de 1954, de Normas Gerais Sôbre Defesa e Proteção da Saúde". 114 Ibidem. Artigo 83: O Ministério da Saúde promoverá investigações epidemiológicas, sôbre a

prevalência e a incidência das doenças mentais no país. 115 A Liga das Nações, criada após a guerra de 1918, havia criado em seu Departamento de Saúde uma

sessão de Higiene Mental, universalizando o termo. Posteriormente, tal como estava proposto desde 1946 pela Organização Mundial de Saúde (departamento especializado da Organização das Nações Unidas, fundada em 1945), higiene mental é substituído por um termo mais abrangente que articulava com a concepção de saúde como “um estado de bem estar completo, físico, mental e social”.

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Mario Yahn, com forte influência psicanalítica e cultural dos problemas mentais, não

consideravam os manicômios espaços que possibilitavam uma intervenção efetiva. Para

a efetivação dessa orientação cabia ao Ministério da Saúde fomentar “a criação de

‘centros de elucidação de diagnóstico’ como organizações para-hospitalares, de

‘hospitais de dia’, e de serviços de ‘assistência aberta’, públicos ou privados, aos quais

poderá dar cooperação técnica e material”116. A cobertura da assistência extra-hospitalar

previa intervenções desde o psicopata indigente até o dependente de drogas, assim como

previa também estratégia de reintegração social117.

Art. 84. As instituições de amparo social à família do psicopata indigente e os centros de recuperação profissional para alcoolistas e outros toxicômanos, exercerão suas atividades de psico-higiene, através de organizações para-hospitalares. Art. 85. O Ministério da Saúde organizará e estimulará a criação de serviços psiquiátrico-sociais de assistência tanto aos pacientes egressos de nosocômios, como as famílias, no próprio meio social ou familiar. Art. 86. O Ministério da Saúde tomará providências para a criação de "anexos psiquiátricos" nos hospitais gerais, para o cumprimento do disposto no § 1º do art. 77.

A intenção interventiva estava explícita: promover a saúde mental em meio à

comunidade e à família, em outras palavras, nos espaços em que a produção das

doenças mentais ocorria. Em casos extremos, a assistência deveria ser realizada em

anexos psiquiátricos em hospitais gerais. A higiene mental aparecia como tecnologia

capaz de contribuir para o desenvolvimento de uma vida psíquica mais saudável.

Yahn118 ao discorrer sobre os objetivos principais da higiene mental destaca dois

objetivos: “a) a profilaxia da loucura e de outras perturbações psíquicas ou psicológicas

menos graves; b) o estabelecimento de regras e conceitos graças aos quais se pode

conseguir uma vida psicológica mais equilibrada e normal”. Sua construção teórico-

metodológica não se embasava em uma ciência, “mas um ponto de vista especial

adotado para atingirmos determinados fins práticos no sentido do bem estar

psíquico”119.

116 BRASIL. Decreto 49.974-A, de 21de janeiro de 1961. artigo. 77, § 1º. 117 Ibidem. 118 YAHN, Mário. Higiene Mental. p.17. 119 Ibidem. p.28.

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Todavia, vai se tornando cada vez mais aparente que a reforma psiquiátrica

firmada por meio do Decreto 49.974, efetivamente, apenas promoveu a simples

substituição do termo “doença mental” por “saúde mental” e efetuou um upgrade na

tecnologia psiquiátrica tradicional, que poderia agora abrir as portas da instituição

psiquiátrica para que outros saberes se tornassem parceiros, como foi o caso, por

exemplo, da Psicologia Social120. Isso mostra que o projeto de desinstitucionalização —

que na verdade foi apenas de desinternação, ao passo que não se questionava a

instituição psiquiátrica — proposta a partir de 1961 no Brasil, não foi um resultado a

posteriori de nenhum movimento social, pelo contrário, foi a priori mais uma estratégia

de ajuste político-econômico. Esse tipo de racionalidade instrumental proporcionou para

essa proposta durante um curto período de tempo uma perspectiva promissora, muito

próxima, inclusive, ao que se espera atualmente conseguir com a Lei 10.216 de 6 de

abril de 2001. Todavia, surgiram alguns problemas que impediram sua implementação

prática do decreto de 1961.

O primeiro, talvez o principal, refere-se exatamente ao fato de o Brasil estar

nesse período aliado fortemente à expansão do capitalismo por meio do crescimento da

industrialização dominada pelo capital estrangeiro, cujo modo de produção requer um

poder de dominação contínuo dos que se apropriam sobre os expropriados. Isso faz com

que o poder econômico somente possa ser mantido pela manutenção, também contínua,

do poder político. Nesse caso, como assinala Célia Regina Borges121, era quase que

inevitável o desenvolvimento de aparatos institucionais de coerção, repressão e

consenso ideológico que permitissem exercer controle sobre a sociedade. O segundo

problema refere-se às guerras declaradas. O código de 1961 não ocultou seus

adversários, reforçava a rixa com a religião (não mais como instituição concorrente na

assistência – pois a hegemonia da instituição psiquiátrica já estava constituída, mas

como especificidade terapêutica) e classificava as “pessoas não qualificadas”

120 Os primeiros trabalhos que discutem a relação da Psicologia Social com a Saúde Mental e tentam

definir esse “novo campo” foram publicados a partir de 1958. Entre os trabalhos que se destacaram e que posteriormente foram objeto de análise no ensaio de FREEMAN, Howard E. & GIOVANNONI, Jeanne M. intitulado: Social Psychology and Mental Health, publicado na segunda edição do Handbook of Social Psychology são: SCOTT, W. A. Research definitions of mental health and mental illness, 1958.; JAHODA, M. Current concepts of mental health, 1958.; SMITH, M. B. Research strategies toward a conception of positive mental health, 1961. Em todos eles a preocupação era contribuir com o entendimento do desajustamento social e com os métodos de adaptação e adequação.

121 Cf. BORGES, Célia Regina Congilio. Através do Brasil: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo.

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(profissionais que atuavam com técnicas não reconhecidas)122 como inaptas para

desenvolver intervenções. Existia o consenso de que essas práticas influenciavam o

psiquismo da população, todavia, o código não impediu que as comunidades

terapêuticas proliferassem em todo país. Por último, o código desconsiderou a

hegemonia da instituição psiquiátrica e sua íntima relação com o desenvolvimento

capitalista brasileiro.

Esperava-se que o Código Nacional de Saúde pudesse garantir a redução das

internações psiquiátricas e ampliar a assistência à comunidade, e que, para tanto,

multiplicariam-se os equipamentos para-hospitalares e anexos psiquiátricos nos

hospitais gerais. Na prática o inverso ocorre, paradoxalmente será justamente nesse

período a grande expansão dos manicômios no Brasil123. O Brasil, que no imediato pós-

guerra estava capitalizado, forneceu as condições necessárias para que dois documentos

datados de 1946 e 1947124 fossem contemplados e beneficiassem empreendedores

privados. O Decreto 22.561, de 7 de fevereiro de 1947, é o exemplo da contradição

entre uma reforma psiquiátrica humanista e uma política hospitalar grandiosa em termos

físicos: para conseguir renúncia fiscal era necessário a instalação mínima de duzentos

leitos hospitalares em cada projeto; assim, é fácil imaginar, com esse tipo de facilitação

a partir desse decreto, o modo que a privatização progressiva dos serviços começa a

ocorrer paulatinamente. Madel Luz, em um estudo pioneiro, publicado em 1979, sobre

as instituições médicas, intitulado: As instituições médicas no Brasil, escreve que nesse

período incentivam-se as consultas ambulatoriais e internações médicas, por um lado, e

122 BRASIL. Decreto 49.974-A. Art. 80. É vedada, quer nos estabelecimentos destinados à assistência a

psicopatas, quer fora dêles, a pratica de quaisquer atos litúrgicos de religião, culto ou seita, com finalidade terapêutica, ainda que a título filantrópico e exercida gratuitamente; Art. 81. É vedada a pessoas sem habilitação legal para o exercício da profissão, a prática de técnicas psicológicas com fundamento nos processos de sugestão capazes de infundar o estado mental de indivíduos ou de coletividades, ainda que sem finalidades de proteção ou de recuperação da saúde; Art. 82. Qualquer autoridade pública local tem o dever de notificar, imediatamente, às autoridades sanitárias competentes, a eclosão de "epidemia de crendice terapêutica" de qualquer natureza, com aspectos de contágio psíquico, propiciando psicoses induzidas, fanatismo de multidões ou loucura coletiva.

123 Aqui aparece uma particularidade brasileira que ajuda a entender a viabilidade atual da reforma e a inviabilidade dos anos de 1960. Quando Szasz realizou sua pesquisa acerca da reforma psiquiátrica nos EUA pós Segunda Guerra Mundial, foi associada a possibilidade desse feito com o desenvolvimento dos medicamentos antipsicóticos, os estimulantes e antidepressivos. No Brasil, tal como apresentado no relatório de Mário Yahn, em 1952, em Santiago do Chile, o uso de medicamentos psiquiátricos ainda era muito restrito. Cf. SZASZ, T. Cruel Compaixão. e YAHN, M. Higiene Mental.

124 O Decreto-Lei 8.550, de 3 de janeiro de 1946, autorizava o Ministério da Educação e Saúde a “celebrar Acordos, visando a intensificação da assistência psiquiátrica no território nacional”, otimizando a assistência psiquiátrica “nas regiões em que os estudos (...) revelarem deficiencias” Art.1. e o Decreto 22.561, de 7 de fevereiro de 1947, por sua vez concede favores fiscais aos Estabelecimentos Hospitalares que se construírem no Distrito Federal.

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o consumo de medicamentos por outro. É importante lembrar que nesse período o

mercado farmacêutico também havia se desenvolvido a ponto de tornar desnecessário o

uso de força, uma vez que os novos medicamentos possibilitavam que os doentes

mentais, novos consumidores, retornassem ao trabalho. “A medicina será um lenitivo

para a extrema carência da população. O remédio, uma alternativa para a fome”125.

O papel político das instituições médicas transparece nessa ambigüidade do termo Saúde: a medicalização generalizada como substituto do que é retirado da maioria pelas condições sociais da produção: um mínimo de controle sobre as decisões de política-ecônomica (salários, “produtividade”, planejamento da economia, etc.), conquistado historicamente, a duras penas; um mínimo de controle sobre as políticas de saúde (planos, programas, organização dos serviços e a própria concepção de saúde); um mínimo de controle sobre a produção e a reprodução (o ensino) dos conhecimentos da medicina.126

Tal como o alienista de Machado de Assis, o discurso técnico-psicológico

desenvolvido a partir de então colocará toda a sociedade brasileira dentro do

manicômio, como pode ser visto na comparação feita por Gabriel Figueiredo127, do

crescimento das instituições manicomiais desde os anos de 1941 até os anos de 1981.

Figueiredo mostra-nos que a rede privada cresceu praticamente 11 vezes mais que a

pública. Em 1941, em meio à Segunda Guerra Mundial, existiam 65 hospitais

psiquiátricos no Brasil (31 pertenciam à rede pública e 34 à privada). Após o Plano

Salte128, mais precisamente em 1961, existiam 140 hospitais (54 públicos e 86

privados). Nos 10 anos que seguiram, em que ocorreu a maior privatização dos serviços

de saúde da história brasileira, em todo território nacional existiam 340 hospitais (63

públicos e 277 privados). Entre os anos de 1971 e 1981 nenhum hospital público foi

aberto, ao passo que o número de hospitais psiquiátricos privados passou de 277 para

362.

Embora tivéssemos uma nova orientação na concepção de saúde mental

garantida pelo Conselho Nacional de Saúde, de 1961, na prática, graças à hegemonia da

instituição psiquiátrica, todos os Governos mantiveram o mesmo projeto de expansão

física de um modelo que do ponto de vista internacional estava ultrapassado.

125 LUZ, Madel T. As instituições médicas no Brasil: Instituição e estratégia de hegemonia. p.19. 126 Ibidem. p.19-20. 127 Cf. FIGUEIREDO, Gabriel. Ética e reforma da assistência psiquiátrica no Brasil. p.1-14. 128 O Plano Salte (Saúde, Alimentação, Trabalho e Energia), foi mais uma tentativa frustrada de

desenvolvimento. Os gastos foram mal elaborados e não faziam relação com os resultados obtidos. Cf. BRASIL. Lei n.1102. Aprova o Plano Salte e dispõe sobre sua execução. 18 de mai., 1950.

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Tanto nos governos democráticos dos anos 40 e 50 quanto no regime militar, nas duas décadas seguintes, prevaleceu a noção de que o investimento na economia (inicialmente na indústria, em seguida na infra-estrutura), bastaria para tornar o país justo e apto a participar do primeiro time do mundo ocidental. A saúde mental jamais foi estrela de primeira grandeza dessa agenda, sendo entendida como fator secundário a agregar valor ao progresso. A lógica que moveu as políticas do período foi a do empreendedorismo industrial, e o balanço das ações promovidas em saúde mental confirma esta tese. O parque industrial brasileiro privado cresceu à semelhança do parque industrial e infra-estrutura. Ambos eram avaliados pelo número de plantas e, sobretudo, pela crescente participação privada, apoiada pelo poder público.129

Diante das várias reformas psiquiátricas apresentadas até agora é preciso

discordar de Paulo Amarante130, o qual entende que uma reforma psiquiátrica concreta

somente inicia em fins da década de 1970. Fica cada vez mais explícito o fato de que a

história da saúde mental no Brasil é uma história de reformas iniciadas concretamente

desde o início do século XX e que após 1960 seguiu duas frentes: o fortalecimento dos

manicômios privados e o aumento da intervenção psiquiátrica na comunidade, com

fortes tendências a psiquiatrização do social, em que o psiquiatra deve responsabilizar-

se, treinar os agentes não-profissionais, tais como: vizinhos, agentes religiosos, líderes

comunitários etc. Sendo assim, vemos que mesmo o conceito de saúde mental surge

associado a um processo de adaptação do social, apontando um padrão ampliado de

anormalidade, do mesmo modo como ocorreu nos Estados Unidos131. Entretanto,

também verificaremos nesse período que concomitantemente às tentativas de

ajustamento dessa comunidade imaginada132, que não se restringiu apenas à saúde

mental, mas sim a toda política nacional, surgirão formas de resistência advindas tanto

129 MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das leis e as leis do espírito. p.95. 130 AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. p. 91.

Nesse trabalho Amarante diz que no “Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concretamente e principalmente a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970, fundado não apenas na crítica conjuntural do subsistema nacional de saúde mental, mas também, e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas (...).” Nos parece que aceitar a idéia de que a reforma somente inicia-se nesse período seria negar todos os outros momentos de metamorfose da instituição psiquiátrica. Claro que aqui está em jogo nossa compreensão de instituição, que está para além da idéia de estrutura física e saber técnico de um determinado período e entende que o manicômio e as técnicas utilizadas fazem parte de um período de aperfeiçoamento da instituição psiquiátrica, não tendo sido, portanto, superadas, mas sim aperfeiçoadas.

131 Cf. SZASZ, Thomas S. Cruel Compaixão. Passim. 132 Achamos útil trazer o conceito de comunidade imaginada desenvolvido por Benedict Anderson. Para

esse historiador as comunidades são imaginadas no sentido de que se organizam a partir de um discurso heterogêneo, possibilitando planejamento e projeções. Cf. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas.

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de movimentos universitários como dos movimentos populares: as minorias mostram-se

como maiorias silenciosas.

Frente ao reordenamento monopolista do capitalismo internacional, que

caracteriza a política populista de 1961 a 1964, vem surgir movimentos sociais que são

marcados pelos debates “em torno do ‘engajamento’ e da ‘eficácia revolucionária’, onde

a tônica é a formação de uma ‘vanguarda’ e seu trabalho de ‘consciência das massas’,

para que possam participar do processo revolucionário”133. Esses movimentos,

fortalecidos pelos ecos de vitória da Revolução Cubana, começam a colocar em xeque

os grupos dominantes aliados aos capitais estrangeiros, incapazes de desenvolver uma

política autônoma, o que faz com que seja criada mais uma nova ameaça: a personagem

do comunista. Sob esse discurso, que aterrorizava os ideais de família e a

propriedade134, dá-se o golpe militar de 1964. Borges nos mostra com muita

propriedade que no momento em que os argumentos liberais retiram do Estado seu

caráter meramente regulatório para dar seguimento às necessidades de reestruturação do

capital, “o Estado manifesta-se reduzido à pureza de sua essência: o Estado policial.

Sustentado pela comunidade do medo, e onde impera o reino absoluto do mercado, o

Estado é recolocado na função ilusória dos ‘interesses gerais’”135. A psiquiatria, assim

como as outras instituições médicas, continuariam cumprindo o pacto de implantação e

manutenção da estrutura de dominação. Isso fica explícito após 1968 quando suas

práticas, enquanto instrumento técnico-científico, tornam-se modos de intervenção

política, representando, utilizando aqui uma linguagem habermasiana, uma dominação e

colonização cada vez maior do mundo da vida ocultado pela invocação de imperativos

técnicos136, ou ainda, pela assunção de uma racionalidade cínica, onde a contradição

posta é ao mesmo tempo uma contradição resolvida137. Não sendo uma surpresa

observar o crescimento desigual dos manicômios138 ocorrer ao mesmo tempo em que se

133 COIMBRA, Cecília. Guardiães da Ordem: Uma viagem pelas práticas psi no Brasil do

“Milagre”. p.3. 134 “(...) semanas antes e depois do golpe de 31 de março de 1964, em muitas capitais do país, são

organizadas as Marchas da Família com Deus e Propriedade. Multidões de senhoras e suas famílias de classe média e média alta desfilam pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro e São Paulo e, juntamente com a cúpula da Igreja Católica, denunciam a ‘comunização’ da sociedade brasileira e exigem um governo forte.” Ibidem. p.5.

135 BORGES, Célia Regina Congilio. Através do Brasil: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo. p.21. 136 HABERMAS, Jürgen. Ciência e técnica como “Ideologia”. p. 49 et seq. 137 ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. p.60 et seq. 138 Fernando Tenório mostra que foram “sobretudo os governos militares que consolidaram a articulação

entre internação asilar e privatização da assistência, com a crescente contratação de leitos as clínicas e hospitais conveniados. O direcionamento do financiamento público para a esfera privada durante o

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estabelece como política de saúde a desinternação e ampliação da clínica na

comunidade pregada pelo Código Nacional de Saúde.

Com o apoio de diferentes mídias, a popularidade do discurso acerca da

identidade pressuposta do doente mental, já instaurada por jornais e revistas, expandiu-

se a todos os cantos do país e classes sociais, tornando a área médica o tema central dos

debates ao catequizar a esfera privada com as siglas, doenças e formas de controle

médico139 (num movimento atrelado à expansão dos aparelhos televisores, que

passavam a ser um dos bens mais estimados da classe média e baixa140). Esses meios de

comunicação, inclusive, vivem seu momento de fortalecimento e variam de acordo com

os interesse dos grupos representados nos veículos de comunicação, ou seja, tanto

coincidiam com o discurso do Estado, quanto em momentos oportunos se opunham a

ele. Quando o “milagre econômico” começa a se desfazer, as camadas mais pobres e

algumas parcelas da classe média tornam-se aliados nas lutas por melhores condições de

vida, trabalho, salário, moradia, alimentação, educação e saúde e democratização da

sociedade em todos os seus níveis.

A famosa “crise das instituições” que se explicita nos diferentes movimentos de 1968 começa na prática a ser repensada no Brasil. Em cima, principalmente, das crises da Igreja, das esquerdas e do sindicalismo – que a ditadura militar brasileira aprofunda e acirra – surge uma série de movimentos sociais procurando novos caminhos. Caminhos que produzem práticas ligadas à “teologia da libertação”, que repensam o marxismo, a luta armada e o movimento sindical.141

A Psicologia, que havia sido relegada ao espaço universitário desde meados de

1930 e vivia uma “aparente separação” da instituição psiquiátrica, volta ao campo da

saúde mental na medida em que seu interesse é direcionado à aplicação frente a uma

sociedade que se interessava cada vez mais pelos projetos de ascensão social.

Fortalecida com a consolidação como instituição independente após a publicação da Lei

regime militar deixa-se ver, por exemplo, no fato de que entre 1965 e 1970 a população internada em hospitais diretamente públicos permaneceu a mesma, enquanto a clientela das instituições conveniadas remuneradas pelo poder público saltou de 14 mil, em 196, para trinta mil, em 1970.” TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. p.34.

139 LUZ, Madel T. As instituições médicas no Brasil: Instituição e estratégia de hegemonia. p.205 e segts.

140 COIMBRA, Cecília. Op. cit. p.24. 141 Ibidem. p.40.

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que regulamenta a profissão em 1962142, passa a fornecer, a partir do “psicologismo”, a

legitimação científica à tecnologia do ajustamento143. Fenômeno que nos faz entender

tanto a onipresença da clínica no imaginário social da profissão quanto o fato de que

essa clínica responde por um modelo específico, liberal e privado, denominado

anteriormente de concepção clássica de clínica. Cecília Coimbra nos mostra que

seguindo a influência midiática que colocava na educação o melhor investimento de

uma sociedade e possibilidade de ascensão, os cursos de psicologia, principalmente a

rede privada, também crescerão de forma assustadora144. Nessa graduação, por sua vez,

produzia-se, como podemos imaginar, observando o pano de fundo apresentado até

aqui, uma certa psicologia que desde seu início trazia impressa em suas diferentes

práticas a marca da tradição positivista.

(...) exemplos são a hegemonia do Behaviorismo e de uma Psicologia Social que reproduz mecanicamente conceitos e técnicas de estudo de inspiração norte-americana. É o domínio da psicologia experimental positivista com suas características de cientificidade, neutralidade, objetividade e tecnicismo. A própria psicanálise ensinada – e, em certos cursos, hegemônica – nesses cursos de graduação também está marcada por este positivismo e pela “psicologização” da vida social e política, seguindo os modelos produzidos na época e já citados.145

Entretanto, a utilidade da Psicologia como tecnologia de ajustamento, aliada

novamente à hegemonia do discurso psiquiátrico, não se tornaria uma concepção

consensual entre os diferentes psicólogos. Haja vista o fenômeno de época que foi

denominado como “crise do pensamento social”, cuja expressão mundial referia-se à

crescente transformação do teórico em mero técnico, que havia perdido a capacidade de

142 BRASIL. Lei nº 4.119. Dispõe sôbre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a

profissão de psicólogo. de 27 de agôsto de 1962, regulamentada pelo Decreto nº 53.464, de 21 de janeiro de 1964. O artigo 4º. Referente ao exercício profissional do Psicólogo deixa explícito sua função a resolução de problemas de ajustamento.

143 Domenico U. Hur assinala que a atuação política “estava capturada pela repressão do Estado. O contrato social dos psicólogos compactuava com tal captura e não esboçava reação. A maneira de compactuar com o Estado foi o mecanismo de negação de que tal atuação fosse política e afirmá-la como meramente técnica-profissional. A entidade de classe, por meio do mecanismo de cisão, cindiu o político e o profissional, criando uma atuação meramente técnica. À profissão referia-se apenas a questões da teoria e técnica; a política era outra coisa, representada por posicionamentos ideológicos referentes à macropolítica”. Cf. HUR, Domênico Uhng. Políticas da psicologia de São Paulo : as entidades de classe durante o período do regime militar à redemocratização do país. p.197.

144 No ano de 1964, havia no Rio de Janeiro apenas na PUC o curso de Psicologia (desde 1957). Em São Paulo existiam três cursos: USP, inciado em 1958; PUC São Bento iniciado em 1962 e o Sedes Sapientiae. Ainda em 1964 são criados o curso de Psicologia na UFRJ; em 1965 na UEG (atual UERJ).

145 COIMBRA, Cecília. Guardiães da Ordem: Uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “Milagre”. p.118.

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envolver sua produção científica em um contexto globalizado. O psicólogo, profissional

responsável pela produção de conhecimento e transformação da sociedade se

“transforma em mero técnico adstrito às tarefas que lhe são impostas com alvos não

científicos. A alienação do trabalho científico se traduz por ações orientadas segundo

interesses daqueles que financiam sua atividade”146. Entretanto, nessa “crise”, a

consciência histórica começa a emergir e os especialistas, na pretensão de conseguir

respeitabilidade científica, começam a ver-se como responsáveis pela barbárie imposta à

sociedade. Principalmente entre o final de 1960 e meados de 1970, quando o corpo

social emerge no campo discursivo sob a égide da pobreza, da miséria, e vê-se brotar

diversas críticas ao Estado autoritário e à deficiência da assistência pública. Nesse

período são descortinadas as fraudes no sistema de financiamento dos serviços privados,

as denúncias de abandono, tortura e maus tratos a que eram submetidos os indivíduos

submetidos à saúde mental. Com o estado de exceção exposto vive-se à experiência do

social, a chamada minoria a ser ajustada mostra-se como maioria silenciosa, que

reconhece os riscos de fratura de uma sociedade cônscia de sua divisão, e que toma

consciência da necessidade de adoção de práticas democráticas. Os movimentos

populares urbanos se fortalecem e as ligas camponesas vão cada vez mais aglutinando

um número maior de trabalhadores em torno da reivindicação das necessidades básicas.

As greves se espalham em vários setores da produção, o desemprego e a inflação

alcançam números assustadores. A universidade passa a lidar com as desigualdades

sociais e com a produção de alternativas de intervenção e constata sua impotência, fruto

da simples importação de uma leitura de sociedade que não correspondia à realidade

brasileira. Uma crise torna-se evidente, os parâmetros de leitura e intervenção

comumente utilizados mostram-se ineficientes.

A influência das contradições sociais no desmantelamento do Estado autoritário

e nas formas de interpretação e intervenção de alguns psicólogos torna-se explícita

principalmente no início da década de 1970, quando sob o regime militar, os psicólogos

envolvidos com a psicologia na comunidade passaram a incorporar os setores populares.

Nestes espaços as intervenções possíveis estavam na possibilidade de incitamento da

racionalidade crítica, organização popular e participação política147. Esses profissionais

tinham como característica uma postura de militância e um envolvimento com a vida 146 CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social e suas relações com a ideologia. p.12. 147 Para maiores detalhes Cf. LANE, Silvia T. M. Histórico e fundamento da psicologia comunitária

no Brasil. p.17 et seq.

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das populações oprimidas. Esse envolvimento e o próprio sentimento de opressão

vivido pelos psicólogos colocou como necessidade imediata à criação de uma sociedade

mais justa e livre. Dentre esses, aqueles que estavam envolvidos com os problemas de

saúde mental defendiam que essa questão deveria ser encarada de maneira mais

abrangente, uma vez que na vida das pessoas diagnosticadas como doentes mentais se

entrelaçavam problemas ligados ao desemprego, habitação e educação148.

A crítica à Psicologia distanciada do social estava instaurada e os movimentos

pela deselitização e criação de referenciais teórico-metodológicos que possibilitassem

emancipação social tornou-se a agenda do período. O discurso dos profissionais

militantes, levados inevitavelmente para dentro das universidades, colocou ainda mais

em xeque a utilidade dos referencias utilizados até então. Ao comentar esse momento

histórico, Antonio da Costa Ciampa escreve que a própria experimentação “passa

apenas a servir como uma evidência de que [estavam] fazendo ciência e não

filosofia”149, e com isso os grandes e verdadeiros problemas da sociedade começam a

emergir de forma impossível de se fragmentar e manipular de forma estéril150.

148 Cf. ANDERY, Alberto Abib. Psicologia na comunidade. p.205 et seq. Sugerimos também o artigo

publicado originalmente em 1985: GOIS, César Wagner de Lima. O paciente pobre. p.71 et seq. 149 CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social e suas relações com a ideologia. p.13. 150 Na Psicologia Social constata-se que a literatura hegemônica até então era a norte-americana, ou seja,

quando se falava em Psicologia Social, falava-se em psicologia social desenvolvida nos Estados Unidos. Nesse sentido, começou-se a entender que muitos dos problemas estudados no Brasil eram na verdade problemas da sociedade norte-americana. Surge aquilo que será denominado por diversos autores (Triandis, 1977; Ianni, 1971; Zajonc, 1969; Moscovici, 1972) como a “crise da Psicologia Social”. Embora seja apontada por Ciampa como existente a partir de 1972, o marco dessa nova postura teórico-epistemológica ocorrerá em 1976, no Congresso da Sociedade Interamericana de Psicologia – SIP que ocorrera em Miami, quando Silvia Lane, alinhada aos questionamentos europeus à respeito da crise da Psicologia, declara a assunção de um novo empreendimento: a construção de uma Psicologia Social Crítica que lidasse com as complexidades brasileiras e que buscasse a emancipação das classes dominadas. O lócus de desenvolvimento dessa “nova” Psicologia Social foi a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, universidade cuja Psicologia foi a primeira área a instalar a Pós-Graduação, e que “embora iniciada com um curso de Psicologia da Educação (1969), teve desde o início estudantes cujas pesquisas lidavam com objetos e métodos da Psicologia Social. Por exemplo, a dissertação de Mestrado de José Roberto Malufe “Caça ao tesouro: experimento de campo em Psicologia Social”.” (PEPG-PS, 2002, p. 16) Com a abertura democrática nos fins dos anos 70 e início dos anos 80, os trabalhos produzidos durante os anos anteriores começaram a tomar mais visibilidade e de um trabalho associado a clandestinidade, a “psicologia comunitária” passa a ser vista como uma atividade consagrada, adotada por vários profissionais, gerando debates e reflexões. Com o surgimento da ABRAPSO em julho de 1980, legitima-se um espaço de interlocução e troca de experiências entre os Psicólogos Sociais. A PUCSP (conhecida internacionalmente como escola de São Paulo), a PUCRS, a UFRGS e a UFMG ainda hoje servem como pólos de produção teórica para esse campo, seja nos trabalhos com grupos, a análise da ideologia, representações sociais, mediando a consciência crítica e o desenvolvimento de identidades políticas. No que se refere aos estudos e intervenções, a UFPB e a UFC se tornaram locais de referencia. A Psicanálise, inserida nessa discussão, teve com os trabalhos de Joel Birman, Jurandir Freire Costa, Luis Cláudio Figueiredo e Suely Rolnik, por exemplo, uma guinada frente ao seu lugar na lógica discursiva de ajustamento para o desvelamento das condições onde são produzidos e mantidos esses discursos.

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A militância desses profissionais (não somente psicólogos) na saúde mental,

fortalecida a partir das críticas ao discurso da instituição psiquiátrica elaboradas

principalmente por Ervin Goffman151, Thomas Szasz152, Michel Foucault153, Ronald

Laing154, Franco Basaglia155, Theodor Sarbin & J. Juhasz156, entre outros, desde a

década de 60, que tentaram propor reflexões para os problemas da instituição

psiquiátrica para a liberdade e autonomia humana, impulsionam a criação de 151 GOFFMAN, Ervin. Manicômios, Prisões e Conventos. Publicado em 1961, o trabalho de Goffman

demonstra como as práticas realizadas nas instituições totais (manicômios, prisões e conventos) são práticas de mortificação dos indivíduos

152 SZASZ, Thomas Stephen. The Myth of Mental Illness. Os esforços de Szasz ao longo de todos os anos seguintes têm se voltado para a tarefa de encontrar elementos que pudessem demonstrar que o conceito de “doença mental” é uma invenção médica do século XIX, tornada popular devido às potencialidades de utilização como instrumento de administração político-econômica, que muitas de suas proposições são atos violentos contra os direitos humanos, uma ameaça para a liberdade e emancipação humana. N’O Mito da Doença Mental, livro publicado no ano seguinte ao artigo citado (1961), Szasz nos oferece uma forma de análise do desenvolvimento do comportamento desviante e/ou da doença mental, que o aproxima tanto das discussões de Ervin Goffman como da Psicologia Social de George Herbert Mead. O último trabalho publicado por Szasz chama-se Psychiatry: the Science of Lies, onde segue defendendo a utilização ideológica da concepção de doença mental.

153 FOUCAULT, Michel. História da Loucura. É importante assinalar que a genealogia da Loucura de Michel Foucault, além de uma genealogia da loucura, também será um estudo detalhado sobre a transformação das formas de exclusão individual. Para Foucault após a revolução industrial ocorreu uma transformação na forma de marginalização do louco que passou a ser realizada a partir da ideologia do trabalho (louco é aquele inapto para o trabalho). Em outro trabalho, ele sintetiza essa transformação ao dizer que os “indivíduos identificados como ‘anormais’ passam a ser segregados entre os séculos XVI e XIX na França, e somente a partir do desenvolvimento do capitalismo e a necessidade de um exército de reserva da força de trabalho retornam para o espaço público.” Cf. FOUCAULT, M. Loucura e Sociedade. p.262.

154 LAING, Ronald David. O Eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. Ronald Laing, cujo trabalho teve um tremendo impacto na revolução cultural de 1960, seguia o sentido das críticas realizadas pelos teóricos apresentados anteriormente, que ficaram conhecidas como antipsiquiatria, e sua atuação, serviu como modelo alternativo de atenção aos desviantes. Laing confrontou a racionalidade entendida como “normal” com as formas de irracionalidade mantidas pela sociedade. Assim, guerra, violência urbana, cultura de consumo etc., são colocadas lado a lado com os casos de pessoas internadas nos manicômios, o que leva Laing a defender a tese de que o isolamento humano é irracional e que a loucura é uma característica comum no desenvolvimento humano, sendo, portanto, anormal” o olhar direcionado para o humano que tende a caracterizá-lo como doente mental.

155 BASAGLIA, Franco. Che cos’è la psichiatria? Franco Basaglia foi reconhecido como um ícone da Luta Antimanicomial, principalmente no Brasil onde é referência hegemônica no projeto de desinstitucionalização. Com a ajuda de colaboradores publicou, em 1963, Che cos’è la psichiatria?, onde incorpora as discussões trazidas por Goffman, Foucault, Szasz, Laing e outros mais, e desde então parte para a elaboração de uma proposta alternativa aos modelos de tratamento. Para Basaglia a etiologia da doença mental deveria ser pensada como uma complexa interação entre a experiência do “paciente” e sua localização social, os métodos médicos de intervenção, valores culturais e ideologia dominante. Nesse sentido, era mister que as diferentes abordagens trabalhassem interdisciplinarmente para que os sistemas científicos pudessem ser contestados. A apresentação desse texto e outros do autor podem ser encontros nos escritos selecionados por Paulo Amarante. Cf. BASAGLIA, Franco. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica.

156 Cf. SARBIN, Theodor R. & JUHASZ, J. B. The concept of mental illnesss: A historical perspective. Sarbin & Juhasz traz a discussão da doença mental para o campo da Psicologia Social, incorpora a teoria de Goffman, as críticas de Szasz, aplica os conceitos de Psicologia Social as categorias tradicionais de doença mental e conclui nesse trabalho que o estigma tradicional e o tratamento de indivíduos diagnosticados dessa maneira eram metáforas que serviam à administração social.

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movimentos sociais que realizam fortes críticas ao modelo manicomial financiado pelo

Estado e às políticas de saúde implementadas de forma autoritária, que resultam na

elaboração de propostas alternativas que vieram a chamar-se de reforma sanitária:

movimento pela reformulação do Sistema Nacional de Saúde.

É importante assinalar aqui que a política de identidade desse movimento foi se

configurando em torno de uma proposta que não cindia com a ideologia da doença

mental desenvolvida desde o alienismo até a teoria psiquiátrica kraepeliniana157. O

saber psiquiátrico não é contestado, como aconteceria nas obras de autores da

antipsiquiatria como Goffman158, Laing159 e Szasz160, mas visto como possível de ser

reformado a partir de uma psiquiatria democrática, menos radical em relação às teorias

técnico-psicológicas, tal como é encontrada na obra de Franco Basaglia161. Apontar essa

escolha entre as diferentes leituras críticas à instituição psiquiátrica e a subseqüente

escolha teórico-metodológica adotada pelo movimento pró-reforma psiquiátrica nos

possibilita entender muitos dos problemas vivenciados pela própria saúde mental atual,

157 Kraepelin, assim como Pinel, terá sua obra reconhecida e será apontado como o pai da reforma

psiquiátrica moderna. 158 Goffman criticava além da forma asilar a forma como está configurada a sociedade, uma vez que havia

percebido que as relações mantidas no interior dos manicômios reproduziam as formas de interação social realizadas fora desse lugar. Para Goffman, “quaisquer que sejam os refinamentos dos diagnósticos psiquiátricos dos vários pacientes, e quaisquer que sejam as maneiras específicas pelas quais se singulariza a vida ‘no interior’, o pesquisador pode verificar que está participando de uma comunidade que não é significativamente diferente de qualquer outra que já tenha estudado.” GOFFMAN, Ervin. Manicômios, Prisões e Conventos. p.113.

159 Para Laing o problema estava em como adotar a noção de “homem visto como pessoa” em substituição à pregada pela psiquiatria tradicional de “homem visto como organismo”. LAING, Ronald David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p. 19 et seq.

160 Para Szasz, o mais radical dos autores da antipsiquiatria, a própria concepção de doença mental seria um engodo, uma vez que não é possível atribuir às condições mentais os mesmos critérios das condições orgânicas, o que desvelaria que a manutenção da concepção de doença mental, pelo que ele chama de falsa-ciência psiquiátrica, serviria apenas aos interesses do Estado e sua relação com o capital. Cf. SZASZ, Thomas Stephen. Psychiatry: the Science of Lies.

161 Basaglia não questionou o estatuto técnico-científico da psiquiatria, sua preocupação voltou-se para a abolição dos “manicômios”, entendidos como instituições promotoras da desumanidade, dizia que o problema da doença mental era algo a ser trabalhado após a efetivação de uma abolição dos manicômios, enquanto isso não acontecia a concepção de doença deveria ser colocada “entre parênteses”. Seus esforços fizeram com que surgisse, em 1970, uma associação de caráter nacional: a Psiquiatria Democrática, cuja representação possibilitou que fosse aprovada a Lei 180, em 1978, que trazia novamente a psiquiatria para o corpo médico e a integrava na reforma sanitária global. Esse episódio, inclusive, tornou-se polêmico, pois como nos mostra Étienne Trillat: “Basaglia, a quem se deu a satisfação com o fechamento dos hospitais psiquiátricos, não desaprovou a Lei; o que nos explica a amargura dos militantes da Psiquiatria Democrática, que protestaram contra a medicalização da loucura”. Cf. TRILLAT, Étienne. Una Historia de la psiquiatria no século XX. p.344. Tradução nossa: “Basaglia, a quien se dio satisfacción con el cierre de los hospitales psiquiátricos, no desaprobó la Ley; lo que nos explica a amargura de los militantes de Psichiatria Democrática, que protestaron contra esta medicalización de la locura.” Basaglia colocou a loucura entre parênteses, garantiu a participação de outros especialistas no tratamento do doente mental, mas não propôs uma subversão do conceito.

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que convive com o resultado de ter escolhido, ao invés de uma revolução psiquiátrica,

uma proposta conciliadora onde a identidade pressuposta do doente mental torna-se

elemento de disputa, ou ainda, de utilização dual em um capitalismo tardio que na

tentativa de conciliar a tensão entre os interesses do mundo da vida e da lógica sistêmica

incorpora pelo menos dois conteúdos particulares para cada expressão identitária

(cidadão doente mental e paciente doente mental), como escreve Žižek, da expressão de

seu conteúdo popular autêntico e sua distorção pelas relações de dominação e

exploração162. Isso significa que a escolha pelas políticas de reforma apareceram como

ideais para essa fase de desenvolvimento capitalista no Brasil, que a partir de novas

estruturas disciplinares deixa evidente que “a mola do poder não é a imposição de uma

norma de conduta, mas a organização das possibilidades de escolha”163.

Trata-se de operar uma redução da escolha que transforma o movimento no circuito limitado de um pêndulo que vai necessariamente de um pólo para o outro. E, como todo pêndulo, o mover-se é apenas uma maneira de conservar o mesmo centro. Ir de um pólo ao outro é apenas uma maneira mais complicada de não andar. [a partir dessa perspectiva as] novas formas hegemônicas de vida podem muito bem conviver, ao mesmo tempo, com a geografia mental da liberalização e da restrição.164

Por falar em escolhas, no que se refere à própria concepção de democracia,

defendida como uma das bandeiras que justificavam tal reforma psiquiátrica, se torna

evidente que o caminho seguido por essa política de identidade foi o de abrir mão da

eliminação da desigualdade e luta por redistribuição econômica — tão explícita nos

casos em que o diagnóstico psiquiátrico foi utilizado na história da doença mental no

Brasil —, e assumir a bandeira do reconhecimento da diferença, da anulação da

degradação e desrespeito165, garantindo emprego para os especialistas envolvidos com a

saúde mental. Boaventura de Souza Santos acredita que a adoção dessa perspectiva

político-social tem uma relação direta com a herança política da ditadura que

vivenciamos e possibilitando o aprofundamento de processos iniciados a partir de 1930.

162 ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.11 et seq. 163 SAFATLE, Slavoj. Cinismo e falência da crítica. p.202. 164 Ibidem. Loc. cit. 165 Uma discussão interessante a esse respeito pode ser encontrada no debate entre Axel Honneth e Nancy

Fraser acerca das políticas de reconhecimento e redistribuição. Os dois teóricos concordam com o fato de que existiu uma tendência mundial em se assumir as políticas de reconhecimento das diferenças em detrimento das políticas de redistribuição igualitária. Cf. FRASER, Nancy & HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition?

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A ditadura militar, além de consolidar novas estruturas sócio-econômicas de poder, produziu um modelo de Estado que no início da década de oitenta se encontrava já em profunda crise. Em meados da década, a transição democrática avançou, pondo fim ao modelo de dominação política, mas não confrontou as estruturas de poder econômico e social nem deu prioridade à reforma do Estado. Foi nesse contexto que as elites conservadoras cavalgaram com êxito a transição democrática, aproveitando e reforçando a crise do Estado para entregar o país à nova ortodoxia neoliberal onde vieram as novas oportunidades para reproduzir seu poder.166

A assunção dessa proposta conciliadora tornar-se-á mais evidente a partir de

1978, quando será fundado o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM,

que articulou as reivindicações trabalhistas, com o discurso humanitário. Esse

movimento fortaleceu-se nos anos seguintes e liderou os acontecimentos que fizeram

avançar até seu caráter fundamentalmente antimanicomial167. As discussões trazidas por

esse movimento estavam voltadas para a garantia de direitos dos pacientes, o

aperfeiçoamento e universalização dos instrumentos utilizados até então, ou seja, o

direito à saúde como questão político-social. Duas citações, um pouco extensas, de

Fernando Tenório168, parecem esclarecer de forma interessante dois problemas

instaurados, valendo a pena colocá-las aqui.

No plano da crítica, produziram-se importantes diagnósticos quanto ao seguinte funcionamento do modelo de prestação de serviços vigente no país, caracterizado pela solidária articulação entre a prevalência da internação asilar e a privatização da assistência: as internações psiquiátricas públicas no Brasil não são feitas exclusivamente nos hospitais públicos propriamente ditos (isto é, da união, estados e municípios). A maioria delas é realizada em instituições privadas, que são para isso remuneradas pelo setor público. É o chamado setor conveniado ou contratado: hospitais privados que provêem a internação da clientela pública, mediante remuneração do estado – antes via INPS, depois Inamps, hoje pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Na maioria das vezes, as clínicas contratadas funcionam totalmente a expensas do SUS, existindo como empresas privadas com fins lucrativos apenas para receber clientela. Sua única fonte de receita é a internação psiquiátrica, remunerada na forma de uma diária paga para cada dia de internação de cada paciente. A receita será maior de acordo com três variáveis: quanto maior o número de pacientes internados, quanto maior o tempo de internação e, por último, quanto menor o gasto da clínica com a manutenção do paciente internado (por exemplo, uma internação acompanhada apenas por uma consulta

166 SANTOS, Boaventura de Souza (org.) A Globalização e as Ciências Sociais. p.13. 167 Cf. AMARANTE, Paulo. Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate em Torno da Reforma

Psiquiátrica. p.492. 168 Cf. TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:

história e conceitos. p.33-34.

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psiquiátrica espaçada, mais refeição e remédios, deixa como lucro uma parte menor da diária do que uma internação acompanhada por psicólogo, atividades corporais, lazer assistido etc.). (...) A proposta de Política de Saúde Mental da Nova República, de 1985, mostrava que a crítica germinada nos dez ou 15 anos anteriores não mudara a política de financiamento de internações: dos recursos gastos pelo Inamps em serviços contratados junto às clínicas privadas, 81,96% destinavam-se à área hospitalar, e 4% à assistência ambulatorial.

As experiências “bem sucedidas” realizadas pelo Programa de Saúde Mental de

Santos e pelo Centro de Atenção Professor Luiz da Rocha Cerqueira, em São Paulo, são

vistas como marcos inaugurais da última reforma psiquiátrica que vivenciaríamos até o

presente momento. No caso do Programa de Saúde Mental de Santos, que surge após a

intervenção motivada pelas denúncias (comprovadas) de mortes, superlotação,

abandono e maus-tratos, veremos que surgirão os Núcleos de Atenção Psicossocial –

NAPS, e que será uma das muitas experiências documentadas e discutidas em

dissertações de mestrado e doutorado a partir de 1988169. Nessa proposta o serviço de

atendimento é feito, em geral, durante o dia e à noite o indivíduo volta para casa, o que

torna muito menos custoso sua manutenção. Esse atendimento possibilita que o paciente

compareça todos os dias da semana se necessário e tenha um acompanhamento

multiprofissional. O pressuposto é o de que a alienação, a loucura, a doença mental,

como modo de ser, implica numa dificuldade específica de expressão subjetiva. Sendo

que as dificuldades concretas da vida, acarretadas pela doença mental, devem ser objeto

das ações de cuidado, incorporando-se aquilo que Mário Yahn, em 1955, já descrevia

como extra-clínico. Os CAPS também ampliavam a oferta de novos empregos para os

diferentes técnicos, uma vez que, como nos lembra Tenório170, para essa nova

reorganização dos serviços substitutivos é necessária “uma ampliação tanto da

intensidade dos cuidados (todos os dias, o dia inteiro) quanto de sua diversidade

(atividades e pessoas diversas etc.)”.

169 A experiência de Santos foi retratada na dissertação de mestrado defendida em 1994 no Instituto de

Medicina Social da UERJ por Erotildes Leal sob o título: A noção de cidadania como eixo da prática clínica: uma análise do programa de saúde mental de Santos. As críticas a essa mesma instituição, principalmente no que se refere à contradição existente entre o discurso militante (em favor da autonomia do louco) e o discurso técnico-psicológico (que contribui com a heteronomia e dependência do doente mental à instituição), reforçando a idéia da existência nesses serviços de uma racionalidade cínica onde saber e não saber convivem sem problema, podem ser encontradas na dissertação de mestrado defendida no Instituto de Psicologia da USP por Myrna Yamazato Koda, em 2002, intitulada: Da negação do manicômio à construção de um modelo substitutivo em saúde mental: o discurso de usuários e trabalhadores de um Núcleo de Atenção Psicossocial.

170 TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. p.40.

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Com a difusão do “sucesso” cada vez maior desse novo modelo as condições

para a concretização do movimento pela “nova” Reforma Psiquiátrica tornam-se

possíveis. Dois eventos ocorridos em 1987, inclusive, serão o marco dessa

consolidação, são eles: a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Encontro

Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental. Esse último é planejado durante a I

Conferência, após a constatação de que a perspectiva sanitarista de incorporar as

propostas reformistas nas políticas do período vinha sofrendo a resistência da rede

hospitalar privada. Fernando Tenório afirma que a I Conferência representa o marco da

desinternação.

O encontro que a ela se segue institui um novo lema: “Por uma sociedade sem Manicômios”. Estabelece um novo horizonte de ação: não apenas as macroreformas, mas a preocupação com o “ato de saúde”, que envolve profissional e cliente; não apenas as instituições psiquiátricas, mas a cultura, o cotidiano, as mentalidades. E incorpora novos aliados: entre eles, os usuários e familiares, que, seja na relação direta com os cuidadores, seja através de suas organizações, passam a ser verdadeiros agentes críticos e impulsionadores do processo.171

Sendo que um dos espaços onde será reforçado o reconhecimento da cidadania

do louco, doente mental, e cobrada a garantia de seu tratamento e medicalização na

comunidade, será o Movimento da Luta Antimanicomial. Para marcar a importância

desse movimento, inclusive, institui-se o dia 18 de maio como Dia Nacional da Luta

Antimanicomial. E finalmente, a estrutura de tratamento, negando suas origens, tem

como novo plano à invenção de novos dispositivos e tecnologias de cuidado,

substituindo a clínica fechada por instrumentos abertos, diversificados, de natureza

comunitária. Todo esse processo, por sua vez, será amparado por duas novas

proposições legislativas: o projeto de Lei no. 3.657, apresentado em 1989172 pelo

171 TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:

história e conceitos. p.35. Colocamos os grifos com o intuito de assinalar a concepção de agente crítico, que aqui nos parece se referir àquele que concorda com o discurso psiquiátrico e assume a nova política de reforma psiquiátrica. Vamos discutir com melhor profundidade essa questão ao longo deste trabalho.

172 O projeto 3.657/89, de autoria do deputado Paulo Delgado, que viria a ser conhecido como a Lei da Reforma Psiquiátrica, era simples, contendo apenas três artigos em seu conteúdo: o primeiro impedia a construção ou contratação de novos hospitais psiquiátricos pelo poder público; o segundo previa direcionamento de recursos para equipamentos “não-manicomiais”; e o terceiro obrigava a comunicação das internações compulsórias à autoridade judiciária, que por sua vez, emitiria parecer sobre a legalidade da internação. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas encontrou dificuldade no Senado, que aprovou, no ano 2000, uma versão menos radical no que se refere a substituição dos hospitais. Essa versão foi repudiada quando voltou para a Câmara dos Deputados, uma

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deputado Paulo Delgado (que somente será aprovada em 2001 com ressalvas) e a Lei

no. 10.216 de 6 de abril de 2001173 (Lei da Reforma Psiquiátrica atual), esta última

contemplando a Declaração de Caracas de 14 de novembro de 1990174. A qual, segundo

Paulo Amarante, “tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de

propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria”175, em

outras palavras, a redução dos leitos psiquiátricos, dos manicômios e a garantia de ser

reconhecido publicamente como louco e tratado na comunidade.

3 – O “cinismo consensual” da saúde mental concretizado no abandono de uma

revolução psiquiátrica em detrimento da luta pelo direito de ser reconhecido

como cidadão doente mental: A reforma psiquiátrica como um problema para

a Psicologia Social Crítica

Com o que foi trazido até agora possível observar que nunca no Brasil se propôs

uma “revolução” ou “emancipação” psiquiátrica. Apenas é possível dizer que, ao longo

dos anos com as transformações teórico-políticas, somou-se à identidade pressuposta do

paciente doente mental, proposta pela instituição psiquiátrica, uma identidade

pressuposta do cidadão doente mental, pelos militantes da saúde mental, que culminou

no desenvolvimento da política de saúde mental brasileira, que vivenciamos atualmente,

a qual assume o discurso de que o produtor da desumanização do doente mental é o

manicômio e que a solução para essa desumanização está na ampliação, a partir de

dados demográficos, as instituições substitutivas, isto é, dos novos dispositivos de

controle que promoverão a inclusão do louco na sociedade. De forma concreta, como

bem assinala Fernando Tenório:

vez que chegava a autorizar explicitamente a construção de hospitais e contratação de novos leitos “nas regiões onde não existia estrutura assistencial”, que suprimiu o artigo referente à construção e contratação de leitos. Cf. DELGADO, Paulo. Projeto de Lei n.3657/89.

173 BRASIL. Lei no. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Duas coisas nos chamam atenção nessa lei, a primeira está no item II do 2º. Parágrafo: no qual o indivíduo portador de sofrimento mental deve receber o maior número possível de informações a respeito de sua doença e seu tratamento (que não é clara nem para os profissionais, uma vez que a premissa da reforma é criar formas alternativas) e a segunda está no item I do 6º Artigo: cuja internação voluntária é descrita como aquela em que o indivíduo dá o consentimento (baseado no que lhe dizem ser sua doença).

174 A Declaração de Caracas avalia o hospital psiquiátrico como insuficiente e redireciona a organização dos serviços, como serão expostos na Lei 10.216.

175 AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. p.91

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O questionamento dos pressupostos do saber psiquiátrico é colocado não em uma perspectiva externa à psiquiatria, mas no sentido de, internamente ao campo, produzir um novo modo de fazer e conceber a doença mental, seu tratamento e a cura. A clínica do CAPS, portanto, não dispensa a tradição, o saber e os instrumentos da psiquiatria, mas subordina-os a uma nova apreensão do que seja a problemática da doença mental e do que seja tratar.176

De qualquer modo, vale reforçar aqui que a Lei 10.216, aprovada em 2001,

tornou finalmente possível à execução do plano que, como vimos, já era visualizado em

1961, o que é possível observar no desenvolvimento que a “nova” reforma psiquiátrica

terá a partir do momento em que a nova lei começou a vigorar. No mesmo ano, por

exemplo, foi convocada a III Conferência Nacional de Saúde Mental177, que segundo o

relatório elaborado ao final do evento, as etapas municipal e estadual envolveram cerca

de 23.000 pessoas, e a etapa final contou com 1.480 delegados, entre representantes de

usuários, movimentos sociais, familiares e profissionais. Com o evento, o novo ciclo da

reforma psiquiátrica brasileira é fechado, profissionais, pesquisadores, usuários e

familiares, assumem esse modelo como o ideal a ser buscado. Em 2004, realiza-se o

primeiro Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, em São Paulo, que

segundo o Ministério da Saúde reuniu dois mil trabalhadores e usuários de CAPS178. No

âmbito jurídico, a Lei 10.216 também pode ser considerada um marco da retomada da

autonomia e hegemonia psiquiátrica, uma vez que a partir dessa lei esta instituição volta

novamente a ter leis e portarias específicas para sua organização e financiamento. Mais

tarde, inclusive, serão criadas linhas específicas de financiamento pelo Ministério da

Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao modelo manicomial, assim como serão

criadas novas normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos179. E,

finalmente, na esfera acadêmica, por sua vez, o crescimento das pesquisas que se

voltaram para o desenvolvimento de tecnologias para saúde mental,

desinstitucionalização, crítica aos hospitais psiquiátricos etc., seguiu o mesmo

movimento de expansão dos serviços substitutivos.

176 TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:

história e conceitos. p.39. [grifos nossos] 177 Cf.BRASIL. Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental. 178 IDEM. Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de

Caracas. p.08. 179 Isso foi um avanço do ponto de vista da organização e distribuição de recursos, pois até 1992, por

exemplo, o país tinha “208 CAPS, mas cerca de 93% dos recursos do Ministério da Saúde para a Saúde Mental ainda [eram] destinados aos hospitais psiquiátricos.” BRASIL. Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. p.07.

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Com relação à esfera acadêmica, o impacto da Lei 10.216 pode ser verificado

pela quantidade de dissertações de mestrado e teses de doutoramento defendidas com

vistas na discussão acerca da saúde mental e reforma psiquiátrica a partir de sua

publicação. Em nosso levantamento das teses de doutorado, por exemplo, encontramos

182 trabalhos registrados no banco de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior – CAPES180 entre os anos de 1988 até 2007. Esses trabalhos

são fruto de 45 programas de pós-graduação, os quais tiveram uma produção tímida de

1988 até 2000, com apenas 61 defesas. Contudo, 24 desses programas iniciaram

pesquisas após 2001, ano de aprovação da Lei 10.216, com uma produção muito maior

entre 2001 e 2007: 121 defesas. Os programas que mais produziram foram: a) os de

Enfermagem, sobretudo, da EEUSP (25) e USP – Ribeirão Preto (21); b) Psiquiatria,

Psicanálise e Ciências Médicas, como é o caso da UFRJ (18), UNIFESP (12) e

UNICAMP (10). Juntos, esses programas representam cerca de 42% da produção de

conhecimento. No que se refere à produção teórica da Psicologia, embora saibamos que

os psicólogos estiveram envolvidos em todo o processo que resultou na reforma

psiquiátrica e que têm participado ativamente das instituições substitutivas, no que diz

180 A pesquisa foi realizada a partir dos dados encontrados no banco de teses da CAPES:

http://servicos.capes.gov.br/capesdw/ entre os meses de setembro e novembro de 2008. A tabela com programas de pós-graduação que produziram teses entre os anos de 1988 e 2007 tendo a saúde mental e a reforma psiquiátrica como objeto de estudo, pode ser conferida no anexo. Essa busca obviamente pode apresentar falhas, seja de ordem da ausência de inscrição de alguma tese no banco de dados, seja pelas palavras chaves utilizadas nas teses e em nossa pesquisa (utilizamos como palavras chaves: doença mental, saúde mental, psicopatologia, reforma psiquiátrica). Não foi nosso objetivo inicial utilizar esse tipo de dado, todavia, achamos interessante utilizá-lo para apontar que a ampliação da ideologia acerca da reforma psiquiátrica atual não fica restrita aos serviços substitutivos. Os programas de pós-graduação encontrados foram: USP: Psicologia Escolar / USP: Enfermagem / UNICAMP: Saúde Mental / USP: Medicina Preventiva / UFRJ: Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental / USP: Psicologia Social / PUCSP: Psicologia clínica / UNIFESP: Psiquiatria e Psicologia Médica / USP: Saúde Pública / UFRJ: Enfermagem / UNICAMP: Ciências Médicas / FIOCRUZ: Saúde Pública / UFRJ: Serviço Social / UFBA: Saúde Coletiva / USP: Sociologia / UNICAMP: Saúde Coletiva / USP Ribeirão Preto: Medicina / PUC Campinas: Psicologia / UFBA: Medicina / UFSC: Direito & Enfermagem / PUC Rio de Janeiro: Psicologia Clínica & Letras / UFC: Enfermagem / UFRJ: Saúde Coletiva / GAMA FILHO: Direito / IPUERJ: Sociologia / USP Ribeirão Preto: Enfermagem Psiquiátrica / UERJ: Saúde Coletiva / UFES: Psicologia / USP Ribeirão Preto: Psicologia / USP: Psiquiatria / UFRGS: Psicologia / UFMG: Economia / UFMG: Saúde Pública / Universidade de Brasília: Estudos Comparados sobre as Américas & Psicologia Clínica e Saúde / PUCSP: Direito / UERJ: Psicologia Social / PUCSP: Psicologia Social / UFRGS: Informática na Educação / UMESP: Comunicação Social / USP: Psicologia Clínica / UFPE: Serviço Social. Outro importante apontamento refere-se ao fato que sabemos da existência de uma produção muito significativa também em nível de Mestrado, que inclusive pode apresentar contribuições da Psicologia Social maiores do que os dados do Doutorado, todavia, por questões de tempo não nos debruçamos para levantar essas informações.

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respeito à contribuição teórica na saúde mental em nível de doutorado, todas as

produções dessa área representam apenas 10,5%181.

Tudo isso poderia fazer-nos acreditar que a reforma psiquiátrica tem se

desenvolvido com sucesso, haja vista a distribuição cada vez mais bem sucedida de

recursos e serviços substitutivos para a reforma psiquiátrica182. Entretanto, como

mostram as pesquisas acerca dos problemas com os manicômios do início do século XX

no Brasil e dos CAPS, CAPSad e serviços substitutivos atuais183, as formas de

intervenção no projeto proposto pela instituição psiquiátrica continuam produzindo a

estigmatização e a medicalização dos indivíduos, o que nos faz intuir que a reforma

psiquiátrica tem se dado apenas em nível instrumental, burocrático. A luta pela pretensa

liberdade do louco parece ter se desenvolvido em seu contrário, em novas formas de

181 A Psicologia Clínica da PUCSP (7) e USP (1); Psicologia Social USP (2) e PUCSP (3) e UERJ (1);

Psicologia UFES (3), USP Ribeirão Preto (1) e UFRGS (1). 182 Os gastos com os serviços substitutivos têm chegado a ultrapassar os destinados para os hospitais

psiquiátricos. Em 1997, por exemplo, eram gastos 97,14% dos recursos com os hospitais psiquiátricos e 6,86% com os serviços extra-hospitalares. Em 2006, foram gastos 48,67% dos recursos com os hospitais psiquiátricos e 51,33% com os serviços extra-hospitalares. O número de CAPS cresceu entre 2003 e 2006, de 500 para 1011, aumentando em mais de 100% em apenas 3 anos. Enquanto isso, no mesmo período, o número de leitos em Hospitais Psiquiátricos diminuiu mais 22%, caindo de 48 mil para 39 mil, ou seja, em termos absolutos, entre os anos de 2003 e 2006, foram reduzidos 11.826 leitos no Brasil e foram instalados 500 CAPS. Ao mesmo tempo foram instalados, no período de 2002 a 2007, 2,4 mil leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais em todo o país. Cf. BRASIL. Saúde Mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção. Relatório de Gestão 2003-2006 & ACAYABA, C & PICHONELLI, M. Redução de leitos psiquiátricos é lenta.

183 Citando apenas alguns dos trabalhos encontrados que fizeram críticas ao funcionamento dos equipamentos substitutivos da reforma atual encontramos, por exemplo: KODA, Myrna Yamazato. Da negação do manicômio à construção de um modelo substitutivo em saúde mental: o discurso de usuários e trabalhadores de um Núcleo de Atenção Psicossocial. Nessa dissertação de mestrado a autora estuda o discurso de profissionais e usuários de um serviço de saúde mental de Santos – SP, referência para a reforma psiquiátrica, e encontra um confronto entre o discurso político e o discurso clínico, entre a posição militante e a posição técnica. Koda descreve o olhar clínico como um possível dispositivo de institucionalização do indivíduo, na medida em que reduz o mesmo à condição de doente. QUEIROZ, Isabela Saraiva de. Adoção de ações de redução de danos direcionados aos usuários de drogas: concepções e valores de equipes do programa de saúde da família. Esta autora, por sua vez, estudou as concepções e valores das equipes do Programa de Saúde da Família – PSF de Belo Horizonte frente à adoção das ações de Redução de Danos direcionadas aos usuários de drogas, mostra como existe uma tendência à aceitação da proposta pelas equipes do PSF (por ser uma imposição superior), ao mesmo tempo em que aponta o fato do desconhecimento dos fundamentos ideológicos da Redução de Danos e a coexistência de valores tradicionais fundamentados em conceitos morais e religiosos, o que acaba descaracterizando a proposta. “Viu-se, por exemplo, que a maioria expressiva dos entrevistados acredita que qualquer uso de drogas leva à dependência e/ou traz problemas aos usuários, opinião representativa das abordagens que visam a abstinência, próprias dos modelos moral e médico de doença.” (p.135); Estes dois exemplos mostram que a relação dos profissionais de saúde mental, sobretudo os psicólogos, ainda não superaram os problemas encontrados por NADER, Rosa Maria. Psicologia e transformação: caminhos para a prática psi. Dentre eles, o de que ao graduarem-se psicólogos, os profissionais “dominam um conjunto mínimo de técnicas para a abordagem da dimensão psi dos indivíduos, seja para compreendê-la, seja para enfrentar situações junto com eles. Falta-lhes, no entanto, instrumentos teóricos mínimos para fazer uma leitura das dimensões psicológica do social (como a natural, a física, a econômica, a política, a ética etc.). p.84.

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dominação. Mesmo com a implementação de Leis e Decretos, a prática dos

profissionais da chamada saúde mental não tem sido a de fortalecimento da auto-

determinação individual como tem sido apregoado pelo movimento de Luta

antimanicomial, pelo contrário, eles têm continuado a tradição de administração de

indivíduos, coletividades e grupos184.

Se considerarmos os elementos históricos trazidos até agora não parece incorreto

afirmar que a persistência da hegemonia psiquiátrica tem relação com a adoção de uma

racionalidade instrumental que passa a ser utilizada como um instrumento útil para os

profissionais da saúde mental, que acreditam possuir, sob forma de monopólio, o único

conhecimento verdadeiro e legítimo sobre a questão da saúde e da doença, além de

acreditarem estar investidos de uma autoridade científico-social que os coloca como

militantes especialistas capazes de prescrever as melhores formas de inclusão daqueles

que eles mesmos carimbam com o diagnóstico excludente. Não estamos dizendo aqui

que não ocorreram mudanças qualitativas, pelo contrário, a reforma psiquiátrica atual é

mais humanizadora que a lógica manicomial. Desse modo, pode-se dizer que com essa

reforma psiquiátrica produz-se certamente uma práxis, todavia, uma práxis reiterativa,

que é ela mesma uma práxis de segunda mão, como defende Adolfo S. Vasquez185.

Reiterativa porque não produz uma mudança qualitativa na realidade presente, “não

transforma criadoramente, ainda que contribua para ampliar a área do já criado e,

portanto, multiplicar quantitativamente uma mudança qualitativa produzida. Não cria;

não faz emergir uma nova realidade humana”186.

Ainda baseados nos elementos históricos podemos inferir, inclusive, que

atualmente o discurso que descreve a identidade pressuposta do doente mental continua

sendo monopolizado pela instituição psiquiátrica, cujo projeto encontra-se muito bem

estruturado e alinhado às necessidades de administração capitalista. Parece que abrir

mão da leitura psiquiátrica acerca do normal e patológico é interpretado como um adeus

à ciência, o que concretamente não é verdade. De todo modo, lembremos que

Horkheimer e Adorno187, assinalavam que para a substituição do curandeiro e do clero

pelo discurso científico exigiu-se uma superação da lógica medieval frente à loucura —

que mantinha a figura da possessão a partir da colonização do imaginário coletivo e 184 Cf. KODA, Myrna Yamazato. Da negação do manicômio à construção de um modelo substitutivo

em saúde mental: o discurso de usuários e trabalhadores de um Núcleo de Atenção Psicossocial. 185 VASQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Práxis. p.258. 186 Ibidem. p.258. 187 Cf. HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento. p.25.

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legitimava que as mulheres “diagnosticadas” como bruxas fossem caçadas pelos

inquisidores, seus ajudantes e jogadas à fogueira188— o que nos faz pensar que seria

necessário uma descolonização do imaginário coletivo frente aos sentidos que o

discurso dominante da doença mental tem na atualidade. Por enquanto apenas

conseguimos substituir o Malleus Maleficarum189 pelos CID10 e DSM IV. Aqui aparece

de forma explícita nosso ponto de descontentamento com a proposta da Reforma

Psiquiátrica e a postura dos “especialistas” da saúde mental que não assumem de fato

uma postura crítica frente ao seu objeto.

Essa falta de compromisso teórico-crítico nos parece evidente quando

observamos que profissionais, sobretudo os Psicólogos, que tiveram uma participação

efetiva na construção dos movimentos contra as formas desumanas proporcionadas pelo

discurso psiquiátrico, ainda permanecem presos entre a negação e o consentimento com

esse discurso, não considerando que a personagem doente mental passou por

metamorfoses conceituais, mas nunca deixou de ser encarada como uma identidade

pressuposta, uma totalidade, essência ou personalidade do indivíduo que mantém uma

conduta não-convencional. Claro que não é novidade que os especialistas têm fechado

os olhos em momentos oportunos — diagnóstico, faturamento dos serviços e

medicalização — para o fato de que cada vez que os psiquiatras, laboratórios e/ou

centros de pesquisa criam uma nova regra de saúde mental, “criam uma nova classe de

indivíduos mentalmente doentes – assim como, cada vez que os legisladores promulgam

uma nova lei restritiva, criam uma nova categoria de delinqüentes.”190 E que o mesmo

ocorre da parte dos diagnosticados, que quando cumprem as prescrições dadas pelos

técnicos da saúde mental, o fazem porque não querem ser penalizados pelo não

cumprimento, ou porque consideram justas, ou acreditam que devem respeito às

autoridades que tanto dizem que os defendem, ou porque entendem que se não se

submeterem a lógica dominante serão assombrados pelo fantasma do manicômio,

demônio persistente que aparece como única alternativa (em retrocesso) para o modelo

de reforma atual. Além do fato que, uma vez que atualmente a doença mental é uma

forma de existência que possibilita reconhecimento e, principalmente, acesso à renda,

188 Cf. SZASZ, Thomas. A fabricação da Loucura. 189 KRAMER, Henrich & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. “O Martelo das Feiticeiras”.

Escrito em 1484, este texto serviu de instrumentalização, intervenção e solidificação da doutrina demonológica, principalmente no que tange à identificação dos casos de possessão diabólica, comércio com o demônio, tornando-se a principal referência dos inquisidores e eclesiásticos em geral.

190 SZASZ, Thomas. A fabricação da Loucura. p.27

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nega-se também uma pactuação perversa entre a instituição substitutiva e o usuário do

serviço.

Pesquisas atuais como a de Fuad Kirillos Neto, realizada em São Paulo, que

assinala os efeitos da circulação do discurso psiquiátrico em serviços substitutivos de

saúde mental, nos mostra, no exemplo do fenômeno de adesão a práticas

psicofarmacológicas, que tudo se passa como se ao aceitar a narrativa da inclusão

oferecida pelo discurso da saúde mental, “ao conformar seus paradoxos aos próprios

paradoxos da formação delirante, o usuário aceitasse também e, agora, mais docilmente,

o consumo de substâncias ‘antipsicóticas’”191, encaradas agora como um direito e uma

demanda e não mais algo a ser resistido. Em outra pesquisa, realizada no início de 1970

por Szasz já que era assinalada uma certa “atuação” da personagem do doente mental,

possibilitada pelo fato dessa concepção de doença mental ser estabelecida entre um

discurso de autoridade, ampla propaganda e a credulidade popular, a ponto de ocorrer

muitas vezes uma exacerbação das descrições sintomáticas, como “preço que precisam

pagar para conseguir os serviços de um especialista cujos clientes são socialmente

definidos dessa forma”192.

Isso aponta, inclusive, uma das múltiplas dificuldades de superação da

hegemonia psiquiátrica, pois se por um lado concordamos com Szasz e Sarbin com o

fato de que as doenças mentais concretamente não existem, que são mitos ou metáforas

que servem como instrumento de administração de uma realidade normatizadora, por

outro lado não podemos deixar de considerar a influência dos aparelhos ideológicos do

Estado (escola, família, exército, “sistema de saúde”) trazidos por Louis Althusser193,

que produzem um discurso capaz de direcionar as formas de vida para a reprodução da

submissão à ideologia dominante. Em outras palavras, sob forte publicização das

doenças mentais ao longo de nossa colonização, não é incorreto afirmar que após a

colonização do imaginário e representação do indivíduo ideal, essas doenças mentais

estão no mundo da vida, existindo como forma de organização social. Numa outra face

do mesmo problema, a partir do itinerário histórico percorrido vemos que o Estado

aparece e permanece como agente de facilitação do capitalismo tardio, cujas estratégias

transformaram-se ao longo dos tempos, indo das técnicas violentas de contenção para a

191 KYRILLOS NETO, Fuad. Efeitos de circulação do discurso em serviços substitutivos de Saúde

Mental: Uma perspectiva psicanalítica. p.165. 192 SZASZ, Thomas. A fabricação da Loucura. p.22. 193 Cf. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. p.253-294.

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neutralização das possibilidades de organização social dos indivíduos, que explicitariam

que o problema não pode ser reduzido à humanização no tratamento do doente mental.

Essas estratégias de contenção e neutralização, aperfeiçoadas desde meados de 1950,

por sua vez, desembocam num funcionamento sintomático em tempos de um

capitalismo cuja busca de legitimação tenta, ao mesmo tempo, regular as formas de

interação social e o desenvolvimento da auto-regulação, de um lado, e estimular o

consumo e satisfação irrestrita, de outro.

Ficou evidenciado também que partir da política de oferta de novos serviços

substitutivos, baseados na expansão a partir de dados demográficos e não

necessariamente das demandas locais194, o Estado tem atraído cada vez mais

simpatizantes, principalmente profissionais das áreas “psi”, que enxergam nos espaços

substitutivos possibilidades de atuação profissional garantidas por portarias de

regulamentação do Ministério da Saúde. Sob o deslocamento da raiz do problema da

reforma, o Estado tem promovido diversos cursos de capacitação dos profissionais,

fóruns, congressos, material bibliográfico, áudio-visual e virtual, que socializa o

discurso médico e populariza de forma problemática a saúde mental, como explica

Sérgio Aragaki:

Essa popularização da área, longe de permitir melhor condição de acordos entre profissionais de saúde e seus pacientes, em busca de melhores possibilidades de conviver, reafirmam àqueles que dessa área se utilizam, os seus lugares de poder e de controle social. Todos os comportamentos e sentimentos humanos podem ser em algum momento sinais de algo que não está bem, que há um processo patológico já instalado ou se instalando. Tudo pode ser alvo de tratamento. E tratamento inclui de forma essencial a medicalização.195

O Estado também tem recebido apoio e apoiado sem reservas os movimentos de

luta Antimanicomial, seja porque muito dos representantes do governo são antigos

194 A expansão dos equipamentos substitutivos segue a lógica dos estudos epidemiológicos utilizados nas

doenças orgânicas. A portaria GM no.336, de 19 de fevereiro de 2002, define as modalidades a serem implantadas da seguinte maneira: CAPS I, para municípios entre 20.000 e 70.000 habitantes; CAPS II para população entre 70.000 e 200.000 habitantes; CAPS III para municípios com população acima de 200.000; CAPSi (infantil) para municípios com população de cerca de 200.000, ou outro parâmetro populacional a ser definido pelo gestor local; CAPSad II (álcool e outras drogas) para municípios com população superior a 70.000. Para garantir o interesse dos gestores na implementação dessa portaria, criou-se outra a GM n.º1.455, de 31 de julho de 2003, que define o incentivo financeiro da ordem de R$ 20.000,00 para cada CAPS I, R$ 30.000,00 para cada CAPS II, R$ 50.000,00 para cada CAPS III e R$ 30.000,00 para cada CAPSi habilitados pelo Ministério da Saúde.

195 ARAGAKI, Sérgio Seiji. O aprisionamento de Selves em diagnósticos na área de Saúde Mental. p.36.

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militantes, seja porque o apoio às suas políticas representa (pelo menos

hipoteticamente) uma melhoria nos aparelhos públicos de cuidado, garantia de

medicamentos, previdência e aumento de empregos para os técnicos. Embora, de forma

concreta vejamos o doente mental sendo reconhecido apenas como produto,

contribuinte ativo e consumidor de produtos (principalmente medicamentos)196 e

serviços, representando uma cidadania fraca que o torna usuário (dependente) do

serviço de saúde mental, para somente depois promover sua reabilitação e inclusão na

comunidade197, ou como Habermas compreende, para somente depois incorporar, a

partir do controle de comportamento, esses indivíduos no mercado198. A própria

substituição da palavra “doença mental” por “portador de transtorno mental” mascara o

fato de que longe de um reconhecimento do indivíduo como ser complexo — que

expressa as contradições e problemas advindos da colonização cada vez maior do

mundo da vida — o reconhecimento ainda se dá a partir da compreensão de que existe

um sofrimento que necessita ser tratado e medicalizado pelo especialista. Fica claro que

se critica em conjunto o manicômio, em tese produtor da desumanização, e não se

atenta para o fato de que o próprio discurso acerca do normal e do patológico — mesmo

quando esteticamente expressado como possibilidade humana — reforça uma política

de identidade199 que limita as possibilidades de expressão humana à personagens

fetichizadas200 que, por sua vez, fazem com que a identidade humana, que é

196 Basta observar o consumo absurdo de medicamentos controlados no país, oferecidos como se fossem

aspirinas para dor de cabeça. Cf. PASSOS, Ana Cláudia de Brito. Utilização de Psicofármacos entre os usuários da Atenção Primária do município de Maracanaú, Ceará. Nessa pesquisa, realizada por Ana Cláudia Passos, ficou evidenciado que a média de consumo de medicamentos dos usuários do CAPS desse município era de 1,5 por pessoa. A maioria das pessoas (78,3%) utilizavam de forma contínua os medicamentos e a maioria sequer havia sido informada dos riscos de utilizá-los por tempo prolongado (73,3%). Dentre os tipos de medicamentos utilizados 36,5% faziam uso de ansiolíticos e 31,5% antidepressivos. Quanto à aquisição desses medicamentos, 41,6% foram adquiridos na farmácia do CAPS e 24,3% compraram. Os principais motivos que geraram o consumo dos psicofármacos foram: “nervosismo”, “insônia” e “depressão”.

197 A Lei n.º 10.708 é um curioso exemplo que mostra como o Estado se desresponsabiliza da cronificação dos indivíduos que ficaram longos anos internados nos asilos invertendo a necessidade de indenização por dano e oferecendo uma ajuda de custo como “benefício social”. Cf. BRASIL. Lei no. 10.708, de 31 de julho de 2003. Institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações; BRASIL. Manual do Programa De Volta para Casa. & BRASIL. Saúde Mental e Economia Solidária: Inclusão Social pelo Trabalho.

198 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. p.230 et seq. 199 As questões teóricas referentes à identidade serão tratadas com maior profundidade no próximo

capítulo. O conceito de política de identidade pode ser encontrado em: CIAMPA, Antonio da Costa. Políticas de Identidade e Identidades Políticas. & LIMA, Aluísio Ferreira de. Para uma reconstrução dos conceitos de massa e identidade.

200 Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social. p.164 et seq.

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metamorfose, se reduza à reprodução do papel de doente em recuperação201. Aqui um

questionamento de Žižek nos parece bastante válido:

E se o problema não for a condição frágil dos excluídos, mas, pelo contrário, o fato de, no nível mais elementar, sermos todos “excluídos” no sentido de nossa posição “zero” elementar ser a de um objeto de biopolítica, e de alguns possíveis direitos políticos e de cidadania nos serem dados como um gesto secundário, de acordo com considerações biopolíticas estratégicas?202

E se a negação da persistência do discurso psiquiátrico no discurso da saúde

mental refletir na verdade numa tentativa de riscar da memória coletiva sua culpa pela

construção do inimigo comum: o manicômio? Se for, podemos defender aqui que essa

tentativa tem sido fracassada, porque o passado que se quer esquecer permanece muito

vivo, o que torna atual a proposição de Adorno, a qual onde o “gesto de tudo esquecer e

perdoar, privativo de quem sofreu injustiça acaba vindo dos partidários daqueles que

praticaram a injustiça”203. Como concretizar uma política antimanicomial se a

concepção de loucura desenvolvida pela instituição psiquiátrica e mantida pelos

técnicos da saúde mental ainda persiste na sociedade e esvaiu-se para além dos muros

do próprio manicômio, tal como escreve Habermas204, e serve de instrumento de

administração social? Vale, inclusive, trazer o questionamento de Kyrillos Neto205:

“como libertar o outro se ele é objeto de um saber de liberdade? Como fazê-lo

reconhecer-se em um saber do qual ele não é, em primeira instância, produtor, mas

reprodutor?” Em outras palavras, como promover um discurso de liberdade quando a

única coisa que a negação do discurso psiquiátrico consegue é sustentar um cinismo que

produz uma opacidade capaz de dificultar que vislumbremos o fato de que o projeto da

instituição psiquiátrica, que construiu a identidade pressuposta do doente mental, desde

sua implementação, nunca foi enfraquecido ou deflacionado?

201 Esse conceito será aprofundado no decorrer da tese, entretanto, já aparece em nossa dissertação de

mestrado: Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de identidade: possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro.

202 ŽIŽEK, Slavoj. Bem-Vindo ao deserto do Real! p.115. [grifos do autor] 203 ADORNO, Theodor W. O que significa elaborar o passado. p.29. 204 HABERMAS, Jürgen. O discurso Filosófico da Modernidade. “A libertação do louco, por razões

humanitárias, da situação de abandono a que está sujeito nos locais de internação; a criação de clínicas, higiênicas com finalidades médicas; o tratamento psiquiátrico dos doentes mentais e o direito que conseguiram em matéria de compreensão psicológica e cuidado terapêutico torna-se possível pelo regime institucional que converte o paciente em vigilância contínua, de manipulação, isolamento, regulamentação e, sobretudo, de pesquisa médica." p.345.

205 KYRILLOS NETO, Fuad. Efeitos de circulação do discurso em serviços substitutivos de Saúde Mental: Uma perspectiva psicanalítica. p.163.

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Antes que venham as críticas a esse questionamento, lembremos que projeto é

diferente de plano. Nesse itinerário histórico ficou explícito que o que se

metamorfoseou ao longo dos anos foram os planos frente ao tratamento destinado aos

doentes mentais. Plano é entendido aqui como o momento técnico de uma atividade,

quando se determina a forma de trabalho mais eficiente. Sendo que é a partir do plano

bem delimitado que é possível desenvolver programas. Cornelius Castoriadis206

conceitua programa como “concretização provisória dos objetivos do projeto quanto aos

pontos considerados essenciais nas circunstâncias dadas, na medida em que sua

realização provocaria ou facilitaria, por sua própria dinâmica a realização do conjunto”.

Desse modo, o plano é apenas um momento fragmentário e provisório do projeto. Como

podemos perceber, no que se refere à instituição psiquiátrica, os planos foram criados e

abandonados, os programas passaram, mas o projeto permaneceu. Não ocorreu

nenhuma interrupção na reprodução de um conhecimento a favor da dominação, em que

até mesmo o discurso de multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, tão

belissimamente produzidos, somente se efetivam ou se alinham com a concepção

psiquiátrica — lembremos que a Lei 10.216 foi aprovada com o que interessava ao

Estado e aos donos dos manicômios privados, não aos indivíduos. O que é novo na nova

reforma psiquiátrica são as estratégias de governabilidade, uma vez que o interesse

agora se transfere do indivíduo problemático e se dirige a grupos inteiros, sem que se

possa atribuí-las a instituições ou seres humanos localizados, “fragmentando-se a

possibilidade de resistência e luta contra ele (instituição psiquiátrica), dado o caráter

transitório e fugidio dos relacionamentos e das estruturas que agora lhe são

peculiares”207.

Frente a esse “diagnóstico”, realizado a partir dos escombros acumulados ao

longo da história, que nos mostraram a persistência do discurso psiquiátrico no discurso

da saúde mental e a relação estabelecida com a Psicologia, um questionamento nos

parece inevitável: se enquanto Psicólogos Sociais assumimos como práxis a

explicitação das condições de opressão, impedimento da emancipação e promoção da

autonomia, não estaríamos correndo o perigo de reproduzir a lógica da negação e

consentimento frente ao projeto da instituição psiquiátrica quando não pensamos em 206 CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição imaginária da sociedade. p.97. Castoriadis também alerta

para o fato de que pode “ocorrer decadência e degeneração do programa; o programa pode ser tomado como absoluto, a atividade e os homens podem ser alienados no programa.” Op. cit.. p.98.

207 ARAGAKI, Sérgio Seiji. O aprisionamento de Selves em diagnósticos na área de Saúde Mental. p.40.

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uma outra leitura alternativa à alternativa encontrada atualmente para lidar com as

doenças mentais, quando focamos apenas no efeito asilo, quando nos centramos

unicamente nas práticas mais humanizadoras de inclusão, ignorando estar em um

sistema que produz a própria exclusão instituída?

Acreditamos que sim! E o pior equívoco seria continuar sustentando uma

racionalidade cínica frente a essa situação, como, por exemplo, atacar o manicômio e

não direcionar nossa atenção para as novas formas de dominação, para os novos

dispositivos de controle, que em última análise nos leva a considerar que talvez o

próprio doente mental não seja mais o doente mental presente no discurso psiquiátrico

— não podemos ignorar o fato de que atualmente, devido a própria colonização do

imaginário frente às concepção de normal e patológico os indivíduos possam estar

utilizando da doença mental como modelo de construção para suas identidades —, uma

vez é evidente que este nunca foi apenas um sujeito passivo no processo de construção

do discurso psiquiátrico. Afinal, lembremos que essa é uma tese de Psicologia Social

que segue a tradição iniciada no Brasil a partir dos primeiros escritos de Silvia Lane208

frente à crise das Ciências Humanas na década de 60 do século passado (e que pela

análise de teóricos como Boaventura de Souza Santos ainda persiste209) e que nessa

tradição a Psicologia Social debruça-se sobre a realidade brasileira e atravessa a Teoria

Crítica210 buscando elementos que possibilitem a produção de conhecimento voltado

para a emancipação humana. Esse empreendimento, por sua vez, indica assumir

radicalmente a superação da separação entre o indivíduo e a sociedade, insistindo na

permanência em um ponto de tensão entre a Psicologia211, a Sociologia e a Filosofia.

208 Silvia Lane é autora e organizadora dos dois primeiros livros que inauguram essa chamada Psicologia

Social Crítica, são eles: LANE, Sílvia T. Maurer. O que é Psicologia Social. (1981) e LANE, Sílvia T. Maurer & CODO, Wanderley. Psicologia Social: O homem em movimento. (1984)

209 Boaventura Santos defende a tese de que hoje vivemos a persistência de um problema complicado, “uma discrepância entre teoria e prática social que é nociva para a teoria e também para a prática. Para uma teoria cega, a prática social é invisível; para uma prática cega, a teoria social é irrelevante.” Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. p.20.

210 Adotaremos para fins de diferenciação a utilização de Teoria Crítica (maiúscula) quando nos referirmos aos autores filiados de alguma forma com a tradição frankfurtiana e teoria crítica (minúscula) para as teorias que julgamos de vertente crítica da atualidade.

211 Desde sua criação a Psicologia tem realizado o papel de ciência da normatização; todavia, revestida do discurso científico e, recentemente, da saúde, tenta manter-se como ciência neutra, desvinculada dos problemas que ela mesma provoca.

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Acreditamos que a Psicologia Social Crítica assim definida pode assumir-se

como Ciência Social212 e como tal se inserir nas críticas inerentes a esse campo de

conhecimento e nos desafios atuais. Atualidade em que, como apontamos no início do

capítulo, o sentimento de que nossa existência é marcada por uma terrível sensação de

sobrevivência, de sobreviver a um momento histórico de fronteira, em que o horizonte

histórico e utópico, articulação promotora de força revolucionária, parece ter se

desvanecido213, dando lugar a uma modernidade fluida, líquida214, refletindo como um

espelho a famosa frase de Karl Marx de que “tudo que é sólido desmancha no ar”, é o

imperativo dominante. E que até mesmo a “participação social” é materializada como

falsa participação em um sistema que está atento em cooptar os movimentos de

resistência, tal como Slavoj Žižek215 assinala na metáfora do elevador onde o botão de

fechamento das portas serve apenas como placebo para simular a participação dos

indivíduos na rapidez com que a viagem do elevador funciona, ou ainda, a participação

ensinada, sem individualidade e intimidade, apontada por Bader Sawaia216, impõe a

necessidade de se passar para além das narrativas de subjetividades originárias e

focalizar os momentos ou processos em que são produzidos os elementos de dominação

e as emergências de fragmentos de emancipação.

As considerações de Benedict Anderson217, que nos mostram como cada vez

mais as culturas “locais”, “nacionais”, “transnacionais” estão sendo produzidas,

“imaginadas”, a partir do reconhecimento perverso das minorias destituídas, nos força a

perceber que o próprio presente não pode mais ser visto simplesmente como uma

ruptura ou continuidade do passado, mas sim que deve ser analisado, pelo seu

sincretismo, desigualdade e repetições, considerando que o capital ocupa o elemento

central, que é o universal dominante. Estamos convencidos de que a Psicologia Social

de vertente crítica deve ser capaz de identificar a distorção das formas de entendimento,

em uma sociedade capitalista cuja hegemônica “racionalidade instrumental sistêmica”

212 Um artigo interessante discutindo a Psicologia como ciência Social foi escrito por Nikolas Rose,

professor da University of London, e publicado no volume 20 (2) da Revista da ABRAPSO: Psicologia & Sociedade. Nele o autor trabalha com a tese de que desde sua separação enquanto ciência independente a Psicologia Social esteve ligada às Ciências Sociais e não às Ciências da Saúde, que estariam submetidas ao paradigma médico, o que não quer dizer que ela não possa analisar e ajudar o desenvolvimento dessa última.

213 Cf. HABERMAS, Jürgen. A crise do Estado de bem-estar e o esgotamento das energias utópicas. 214 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. 215 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Os Direitos Humanos e o Nosso Descontentamento. 216 Cf. SAWAIA, Bader Burihan. Participação Social e Subjetividade. 217 Cf. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas.

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— já identificada na Dialética do Esclarecimento218 como a racionalidade única

dominante e analisada por Jürgen Habermas219 como um tipo de racionalidade cuja

crítica deve lhe impor freios — tenta a todo custo colonizar o mundo da vida e impedir

as formas de solidariedade, tão perigosas para a manutenção da realidade instaurada.

Nesse ponto, inclusive, entendemos que a análise dos processos de construção da

identidade (pessoal e coletiva) torna-se imprescindível para a Psicologia Social Crítica,

uma vez que pode evidenciar como as formas de construção das identidades têm se

relacionado com as lutas por reconhecimento que imperam em nossa sociedade220. Aqui

também se torna evidente como pensamos em contribuir com essa Psicologia Social,

uma vez que, como já foi dito anteriormente, o foco principal dessa tese será explicitar,

a partir da teoria de identidade proposta por Antonio da Costa Ciampa, expressada no

sintagma identidade-metamorfose-emancipação, como ocorre a construção da

personagem doente mental, a partir do reconhecimento de diferentes atores sociais e a

relação que essa personagem estabelece com o discurso da saúde mental apoiado pela

reforma psiquiátrica atual. Dito de outra forma, e já preparando o leitor para o que virá a

seguir, a partir da interpretação de que as proposições desenvolvidas por Ciampa fazem

parte do núcleo de uma teoria de identidade capaz de explicitar como o

desenvolvimento da identidade sofre fortes investidas dos discursos técnico-

psicológicos221, mostraremos como determinados indivíduos têm se relacionado com o

discurso da saúde mental, o que explicitará que não podemos mais sustentar

cinicamente que ao utilizar o diagnóstico de doença mental a partir de uma lógica

antimanicomial estamos possibilitando com que esses indivíduos possam se emancipar,

ou dizendo em uma linguagem habermasiana, que ao nos associarmos à política de

identidade antimanicomial estamos colaborando com a descolonização da lógica

sistêmica de sobre o mundo da vida. Sendo assim, prossigamos apresentando como de

fato pensamos que a teoria de Ciampa tem se configurado como uma possibilidade

alternativa para pensar a questão da doença mental.

218 Cf. HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento. 219 Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa: crítica de la razón funcionalista;

Idem. Teoria de la Acción Comunicativa: racionalidad de la acción y racionalización social. 220 Cf. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos socais. 221 Por discursos técnico-psicológicos incluímos aqui o discurso psicanalítico, psicológico e psiquiátrico

acerca do ideal de normal e patológico —, que por sua vez, tendem a reduzir a complexidade da identidade à personagens fetichizadas, sustentadas por um reconhecimento perverso.

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SEGUNDA PARTE

ITINERÁRIO TEÓRICO

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II. PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA E IDENTIDADE: AS CONTRIBUIÇÕES

DA TEORIA CRÍTICA NOS ESTUDOS DE ANTONIO DA COSTA

CIAMPA E A POSSIBILIDADE DE PENSAR A DOENÇA MENTAL

COMO UM PROBLEMA DE IDENTIDADE

Se é verdade que uma identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia, fica claro sob que condições vivemos quando percebemos que na nossa sociedade o devir homem sujeito é praticamente impossível (ao menos universalmente). A metamorfose, ainda quando impedida, ainda quando oculta, expressa a invencibilidade da substância humana, como produção histórica e material.

Antonio da Costa Ciampa1

Nesse itinerário mostraremos de que maneira o pensamento de Antonio da Costa

Ciampa se vincula à tradição da Psicologia Social Crítica inaugurada pela Escola de São

Paulo.2 Do mesmo modo, exploraremos a forma como esse autor articula a Teoria

Crítica3, sobretudo a desenvolvida por Jürgen Habermas4, em sua concepção de

1 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.182. 2 Como apresentado brevemente no capítulo anterior, a Psicologia Social brasileira, sobretudo, a teoria de

identidade proposta por Antonio da Costa Ciampa, atravessa e se insere com todas as suas conseqüências em uma linha de pensamento comprometida na luta contra a opressão histórica frente à vontade e a autonomia humana inaugurada a partir de meados da década de 70 do século passado por Silvia Lane e seus colaboradores.

3 Podemos dizer sinteticamente aqui que Teoria Crítica geralmente é o nome dado ao conjunto teórico-metodológico filosófico de um grupo de intelectuais marxistas não-ortodoxos que estavam ligados ao Instituto de Pesquisas Sociais filiado a Universidade de Frankfurt na década de 20 do século passado. A história empírica do Instituto é bastante conhecida. Após a Semana Marxista de Trabalho — realizada em 1922, reunindo um grupo de intelectuais eminentes concentrados em torno da temática Marxismo e Filosofia: Georg Lukács, Karl A. Wittfogel, Friedrich Pollock, Max Horkheimer, Paul Massing e outros — Karl Korsh (associado tradicionalmente à Antonio Gramsci e a Georg Luckács, que foram considerados como os precursores do ‘marxismo ocidental’) e Felix Weil, idealizadores e organizadores da semana, decidem fundar um “instituto para estudos marxistas”. No ano seguinte, em fevereiro, o “Instituto de Pesquisas Sociais” é fundado em Frankfurt. Os principais expoentes desse instituto foram Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Walter Benjamin. Após a ascensão de Hitler ao poder, janeiro de 1933, o Instituto é decretado como ilegal, o que faz com que as atividades sejam deslocadas para as cidades de Genebra (1933), Paris (1933 a 1936) e Londres (1933 a 1934). Após esse período Adorno e Horkheimer fixam as atividades do Instituto em Nova York (1934) e Los Angeles (1941), retornando para Frankfurt após 1950. Para um maior aprofundamento da história do Instituto e dos integrantes associados à Teoria Crítica indicamos a leitura de: FREITAG, Bárbara. A teoria crítica ontem e hoje. BRONNER, Stephen E. Da teoria crítica e seus teóricos. WIGGERSHAUS, Rouf. A escola de Frankfurt: História, desenvolvimento teórico, significação política. O ensaio de Erich Fromm. Método e função de uma Psicologia Social Analítica. Neste trabalho, publicado em 1932, Fromm mostra o interesse de articular a Teoria Crítica e a Psicologia Social desde os primeiras publicações do instituto.

4 Embora se distancie das discussões posteriores aos anos 40 feitas por Horkheimer e Adorno, é explícita a influência dos primeiros escritos destes na obra habermasiana. A função específica do pensamento

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identidade e apresentaremos nossa tentativa de reatualização, utilizando aqui um termo

de Axel Honneth5, da teoria de identidade; tratar-se-á acima de tudo de um

esclarecimento atualizador do pensamento que Ciampa expressa com sua formulação

dificilmente compreendida6 de que a identidade é metamorfose humana em busca de

emancipação. Tentaremos interpretar essa proposição como o núcleo de uma teoria de

identidade capaz de explicitar como o desenvolvimento da identidade sofre fortes

investidas dos discursos técnico-psicológicos — lembramos que incluímos aqui o

discurso psicanalítico, psicológico e psiquiátrico acerca do ideal de normal e patológico

—, que por sua vez, tendem a reduzir a complexidade da identidade a personagens

fetichizadas, sustentadas por um reconhecimento perverso.

1 – Da identidade social e sua relação com a ideologia ao sintagma identidade-

metamorfose-emancipação

Começamos então dizendo que consideramos Antonio da Costa Ciampa um dos

primeiros a pensar de forma significativa à construção de uma Psicologia Social Crítica

tipicamente brasileira.7 Uma produção que, como vimos no itinerário histórico,

procurava superar a produção de conhecimento feito aos moldes das teorias positivistas

reinantes na década de 60 e 70. Acreditamos que Ciampa conseguiu propor uma teoria

crítico (seu caráter prático) é explorado de modo muito mais aprofundado por Habermas em seus primeiros trabalhos: Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria y Práxis [publicado em 1963 e publicado ampliado em 1971]; Idem. Técnica e Ciência como “Ideologia” [publicados em 1968]; Id. Conhecimento e Interesse [originalmente publicado em 1968]; Id. La lógica de las ciencias sociales [textos originalmente publicados de 1963 a 1977]. Posteriormente essa discussão vai desvanecendo e aparece apenas de forma implícita nos textos do autor; todavia, dois ensaios muito interessantes podem ser encontrados em HABERMAS, J. Teoria de La Acción Comunicativa. Tomo I e II [1981], pois em dois momentos desse trabalho Habermas retoma a função da Teoria Crítica e o problema da compreensão nas Ciências Sociais (Cf. op. cit., p.147-196 do primeiro volume e p.527-572 do segundo).

5 Axel Honneth chama atenção para o fato de que ao propormos reatualizações devemos escolher dois caminhos: ou partimos para a reatualização “direta”, prezando a integridade dos conceitos e sistemas (nesse caso criticando as possíveis más compreensões), ou realizamos uma reatualização “indireta” (aqui se justificaria a reconstrução e utilização de certos conceitos em detrimento de outros em função dos problemas colocados pelo presente). Na tese ficará explícita nossa adoção pela segunda proposição. Cf. HONNETH, Axel. Sofrimento de Indeterminação: Uma reatualização da Filosofia do Direito de Hegel.

6 Essa constatação será melhor explorada quando discorrermos acerca da concepção de metamorfose e articulação de personagens, que difere e singulariza a teoria de identidade desenvolvida por Ciampa das demais concepções tradicionais e atuais desenvolvidas pela sociologia e psicologia.

7 Juracy Armando Mariano de Almeida, confirma essa proposição em sua tese de doutoramento ao afirmar que no Brasil, Roberto Cardoso de Oliveira (1976), antropólogo, com seus estudos de identidade étnica, e Ciampa (1977), psicólogo, com seus estudos sobre a identidade social, personificam marcos iniciais da utilização da noção de identidade em suas respectivas áreas de estudo.” Cf. ALMEIDA, J. A. M. Sobre a Anamorfose: Identidade e Emancipação na velhice. p.46.

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de identidade que espelha a metamorfose de nossa sociedade e as dificuldades de

emancipação. Mais ainda, acreditamos que esse autor conseguiu de forma intuitiva8 (ou

indireta), resgatar e atualizar a teoria desenvolvida por George Mead, seguindo na

contramão das descrições acerca da personalidade e identidade, que tendem à

naturalização do desenvolvimento, ou ainda, daquelas que trabalham com a perspectiva

de personalidade. Na concepção de Ciampa, identidade humana “é construção,

reconstrução e desconstrução constantes, no dia-a-dia do convívio social, na

multiplicidade das experiências vividas”9.

Em 1977, Antonio da Costa Ciampa10 afirmava que “compreender a identidade é

compreender a relação indivíduo-sociedade”, ou seja, já em sua dissertação de

mestrado, a qual discutiu a identidade social e suas relações com a ideologia, a

identidade era entendida como um conceito central para Psicologia Social, que poderia

ajudar a explicar tanto como se dava a construção das desigualdades e problemas

sociais, quanto entender como se formavam as resistências individuais aos processos de

massificação e as buscas emancipatórias. O autor vivenciava nesse período a chamada

crise da Psicologia Social brasileira e estava alinhado às preocupações de tantos outros

autores, sobretudo Silvia Lane, de construir uma proposta teórico-metodológica que não

somente superasse o modelo positivista de psicologia ensinado no Brasil, mas que

refletisse nossa realidade. Ciampa acreditava, ancorado pela influência de Peter Berger

& Thomas Luckmann11, que para solucionar a dicotomia entre indivíduo e sociedade era

necessário o estudo do fenômeno identitário12. Nas palavras do próprio autor, “o que se

tem em mente com estas afirmações que enfocam com mais ênfase o indivíduo, é

compreender a relação indivíduo-sociedade, este objetivo como tentativa de

compreender a realidade social”13.

Em síntese, a dissertação propõe, a partir da articulação das idéias de Berger &

Luckmann e de Karl Scheibe14, assinalar como as teorias de identidade, associadas

8 Essa colocação deve-se ao fato de não notarmos na dissertação de mestrado escrita por Ciampa a ênfase

no potencial teórico de George Mead em suas proposições, Mead aparece indiretamente na análise que Ciampa faz de Berger & Luckmann, uma vez que aquele influencia estes.

9 KOLYNIAK, Helena Maria Rath. & CIAMPA, Antonio da Costa. Corporeidade e Dramaturgia do cotidiano. p. 09.

10 CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade Social e suas relações com a ideologia. 11 Principalmente o texto: BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 12 CIAMPA, A. C. op.cit. p. 19 13 Ibidem. p. 19 14 Ex-orientando de Theodor Sarbin, criador da Teoria do Papéis. Cf. SARBIN, Theodor R. & SCHEIBE,

Karl E. Studies in Social Identity e SCHEIBE, Karl E. Beliefs and Values.

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inevitavelmente por interesses sociais, podem tornar-se formas de manipulação

ideológica.15 Para tanto, Ciampa discute as proposições de Sarbin acerca da Identidade

Social chegando a admitir que o modelo proposto por este último, juntamente com

Scheibe, era promissor para a Psicologia Social16, entretanto, reconhece a deficiência

encontrada nesse modelo baseado numa perspectiva funcionalista, que tende a

representar a ideologia dominante. É importante frisar que essa deficiência —

encontrada pela utilização de Berger & Luckmann — preparou o terreno para a guinada

que viria a seguir. O traço mais significante nessa dissertação está no fato de assumir

que a produção científica deve estar diretamente associada com a práxis.

O interesse pela articulação entre teoria e práxis leva Ciampa a buscar

referenciais teórico-metodológicos que pudessem associar a Psicologia Social, a

pesquisa de identidade e a ação política. Durante praticamente uma década, as

impressões e orientações obtidas foram amadurecendo no pensamento de Ciampa, até se

transformarem na convicção de que a identidade é metamorfose humana.17 Para

demonstrar essa tese era preciso primeiro superar os moldes tradicionais de estudar

identidade pela Psicologia Social — abrir mão do caráter descritivo e estatístico — e

assumir uma outra orientação metodológica: a narrativa de história de vida. E de fato

Ciampa realiza um estudo, em que a estória do Severino — personagem ficcional, do

poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto — e a história da

Severina — personagem da vida real —, são articuladas para demonstrar como o

singular pode materializar o universal, “desvendando a ideologia da não transformação

do ser humano como condição para a não transformação da sociedade”18. Nessa tese,

em que é proposta a idéia de que identidade é metamorfose, se delineiam duas

afirmações igualmente fortes: a) faz parte do desenvolvimento da identidade uma

seqüência de formas de reconhecimento; b) este reconhecimento, quando ausente ou

feito de forma desumana, se dá a saber aos indivíduos pela experiência de

aprisionamento à “mesmice”, ao fetiche de uma personagem que impede a

concretização do sentido emancipatório da identidade.

Não é por acaso que em Ciampa encontramos os meios mais apropriados para

compreender a persistência do discurso psiquiátrico e seu uso como instrumento de

15 CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade Social e suas relações com a ideologia. p.37 et seq. 16 Ibidem. p.142. 17 Cf. Idem. A estória do Severino e a História da Severina. 18 LANE, Silvia T. M. Prefácio. p.10.

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administração da sociedade capitalista. Em seus escritos, Ciampa partilha com Hegel do

período de Jena, Mead e Habermas mais do que uma teoria acerca da socialização e

individualização da identidade. N’A estória do Severino e a História da Severina,

encontramos elementos que demonstram coincidências com a obra de Honneth,

principalmente na parte que focaremos aqui em nossa discussão: ele também procura

demonstrar como a busca por emancipação é em última instância uma luta por

reconhecimento, que por sua vez depende de condições históricas e sociais dadas, o que

insere o autor na tradição da Teoria Crítica. E se por um lado no livro de Ciampa

existem poucas citações de Hegel e de Mead, ou ainda, que o próprio autor diga ter

tomado conhecimento da obra de Habermas apenas no término de sua pesquisa19, por

outro, a apropriação que faz do conteúdo habermasiano permite-lhe ir além das idéias

desenvolvidas na dissertação de mestrado e demonstrar definitivamente que o

desenvolvimento de uma teoria de identidade é essencial para uma Psicologia Social

Crítica.

A Estória do Severino e a História da Severina representou a assunção de uma

concepção de identidade que subvertia as teorias importadas e utilizadas no Brasil até

então (focadas na idéia de identidade natural em que se pressupõe seu desenvolvimento,

ou ainda, sua cristalização), propondo uma concepção que previa um desenvolvimento

dinâmico, de constante metamorfose. Na tese Ciampa propõe que a identidade é a

articulação tanto entre diferença e igualdade (ou semelhança), como entre objetividade e

subjetividade, pois “sem essa unidade, a subjetividade é desejo que não se concretiza, e

a objetividade é finalidade sem realização”20, e passa a defender que é impossível falar

de identidade sem falar em metamorfose, como um processo que se dá desde o

nascimento do indivíduo até sua morte, podendo ultrapassar esses limites biológicos.21

A concepção de identidade proposta por Ciampa apresenta forte influência

hegeliana, uma vez que nela a identidade é a “passagem da indeterminação

indiferenciada à diferenciação, a delimitação e a posição de determinação específica que 19 Em sua tese, Ciampa se vale apenas de dois trabalhos de Habermas: Conhecimento e Interesse e Para

a reconstrução do materialismo histórico. 20 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.145. Embora nessa

citação Ciampa esteja se referindo a articulação que Ciampa faz das teorias de Freud e Marx, podemos dizer que nela é possível também pensar as proposições meadianas da articulação entre o “eu” e o “mim” para além do modelo darwinista, incorporando-os ao materialismo histórico.

21 Quando Ciampa afirma isso está se referindo à personagens que mesmo após a morte continuam sendo utilizadas como referência para a composição de outras personagens, como exemplo podemos citar os casos das personagens Jesus Cristo, Elvis Presley etc., que continuam influenciando a construção das identidades.

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passa a caracterirzar um conteúdo e um objeto”22. O que em certa medida também é

encontrado em Habermas quando este faz a diferenciação entre a singularidade e a

individualidade da identidade. Essa diferenciação, apoiada na influência piagetiana

expressa na teoria de desenvolvimento moral proposta por Kohlberg23, significa que

enquanto singularidade o indivíduo é indiferença de todas as determinidades, de modo

que se exibe enquanto totalidade, ao passo que do ponto de vista ontogenético, enquanto

individualidade, o Eu é a diferença de todas as determinidades, é um vivente formal e

reconhece-se como tal24. A singularidade nos diferencia enquanto sujeitos, ao mesmo

tempo nos iguala nas expectativas em relação à sociedade, enquanto que a

individualidade, construída em contato com a realidade social, sendo a negação de todas

as determinidades nos dá acesso à subjetividade e possibilita uma reconstrução do Eu a

partir das diferenças. Mas somente até esse ponto, pois a forma como Habermas pensa o

desenvolvimento da identidade25, segue um caminho muito diferente do proposto por

Ciampa, como veremos mais adiante. Por enquanto, reforçamos que ao conceber a

identidade dessa forma superamos a discussão de que ela é influenciada pelo social, ela 22 Cf. HEGEL, Georg W. Princípios de Filosofia do Direito. p.14. 23 Habermas justifica a utilização da teoria de Kohlberg pelo fato deste situar-se na tradição do

pragmatismo norte-americano, por ter pensado a ética do discurso na linha desenvolvida por John Rawls e, sobretudo, por ligar-se “a Kant e ao direito natural racional, para realizar suas concepções filosóficas, inspiradas inicialmente por Mead, sobre a ‘natureza do juízo moral.” Cf. HABERMAS, J. Consciência Moral e Agir Comunicativo. p.146. Kohlberg facilita a articulação da teoria da ação comunicativa com o direito e a moral, que segundo Habermas, são os meios privilegiados na regulação não violenta da reprodução social. O modelo de desenvolvimento moral desenvolvido por Kohlberg, cujas noções, segundo Habermas, “satisfazem as condições formais de uma lógica do desenvolvimento”, ocorrem em três níveis passíveis de verificação: 1) Nível Pré-Convencional: em que a atitude “correta” é a obediência literal às regras e à autoridade, evitando assim o castigo e o dano físico; 2) Nível Convencional: em que o desempenho do papel de uma pessoa boa (amável), que preocupa-se com as outras pessoas e seus sentimentos, que é leal e conserva a confiança dos parceiros, estando assim, motivado a seguir regras e expectativas, e a atitude “correta” a seguir; e 3) Nível Pós-Convencional: onde as decisões morais são geradas a partir de direitos, valores ou princípios com os quais concordam (ou podem concordar) todos os integrantes do discurso ou possibilitando o desenvolvimento de uma sociedade ética cujas leis são práticas e benéficas. Essa proposta apresentada por Kohlberg acerca dos estágios ontogenéticos do desenvolvimento moral possibilita Habermas incorporar em seu arcabouço teórico a compreensão de um desenvolvimento que parte de uma identidade que é própria do organismo social (hedonista inicialmente), até uma identidade do Eu que consegue expandir-se até uma identidade pós-convencional (com princípios universais). Cf. Idem. Para a Reconstrução do Materialismo Histórico. p.55

24 HEGEL, Georg W. F. O sistema de vida ética. p.34 et seq. 25 Seguindo um modelo que poderíamos chamar de determinista, Habermas escreve que a identidade

passa por três momentos: identidade natural, identidade de papel e identidade do Eu, sendo que bem-sucedida seria a identidade do Eu que conseguisse manter sua autenticidade perante as mudanças sociais. O Eu, para Habermas, está além da linha constituída por todas as normas e papéis sociais; tendo de estabilizar-se na capacidade de representar a si mesmo, em qualquer situação, inclusive diante de expectativas de papel contraditórias. No que se refere aos indivíduos adultos, ela se confirma “na capacidade de construir novas identidades, integrando nelas as identidades superadas e organizando a si mesmo e as próprias interações numa biografia inconfundível”. HABERMAS, J. Para a Reconstrução do materialismo histórico. p.80.

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é constitutivamente social, e como tal, sujeita às mudanças que a estrutura social

experimenta. Juracy Almeida, referindo-se às proposições de Ciampa, assinala que esse

é um marco decisivo que implica “no abandono da distinção entre ‘identidade pessoal’,

referida às marcas distintas do indivíduo, associadas à sua biografia, e ‘identidade

social’, referida às categorias sociais a que o indivíduo pertence ou mesmo aos seus

papéis sociais”26.

Para explicar como se dá a apresentação da identidade enquanto metamorfose,

Ciampa utiliza elementos da dramaturgia. Metodologicamente isso implica em defender

que a identidade passa a ser vista, expressada empiricamente, por meio de personagens,

e que é a articulação dessas personagens que vai constituir a identidade. Como o próprio

Ciampa explica: “podemos dizer que as personagens são momentos da identidade,

degraus que se sucedem, círculos que se voltam sobre si em um movimento, ao mesmo

tempo, de progressão e de regressão”27. Desse modo, o autor não só relaciona-se com

Hegel, para quem “o conceito de desenvolvimento do espírito consiste em que o seu

extrinsecar-se e o seu cindir-se é simultaneamente o vir a si mesmo”28, como também, e

poderíamos dizer principalmente, relaciona-se com Mead, o qual ao empregar a

categoria “mim” como uma característica da auto-relação originária, o emprega para

mostrar que o “eu” somente consegue se sustentar colocando-se como objeto para si-

mesmo. Vale apontar, inclusive, que a concepção de personagem, desenvolvida por

Ciampa, mostra-se muito próxima da idéia meadiana de articulação “eu” com vários

“mim(s)”, tal como foi apresentado por esse último no ensaio The mechanism of social

consciousness, de 1912. Mead escreve que essa relação (“eu” e “mim”) é semelhante ao

relacionamento entre parceiros de um diálogo, “a consciência de si-mesmo, atualmente

operante no relacionamento social, é um ‘mim’ objetivo ou vários ‘mim(s)’ num

processo contínuo e que implica um ‘eu’ fictício sempre fora de seu campo de visão”29.

Em Ciampa a identidade é expressão de várias personagens e a articulação

dessas personagens é a expressão do Eu. Isso assinala que é impossível viver sem

26 ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.60.

A distinção identificada e defendida por Ciampa é entre identidade individual e identidade coletiva, ambas como identidades sociais. Essa distinção será melhor explorada a partir da próxima sessão desse capítulo.

27 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.198. 28 HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.63. 29 MEAD, George Herbert. The mechanism of social consciousness. p.406. Tradução nossa: “the self-

conscious, actual self in social intercourse is the objective ‘me’ or ‘me’s’ with the process of response continually going on and implying a fictitious ‘I’ always out of sight of himself.”

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personagens, na medida que sempre me apresento como representante de mim mesmo

perante os outros. Essa concepção de identidade implica em entender que a “cada

momento, é impossível expressar a totalidade de mim; posso falar por mim, agir por

mim, mas sempre estou sendo o representante de mim mesmo. O mesmo pode ser dito

do outro frente ao qual compareço (e que comparece frente a mim).”30 Um jogo de

interação que estabelece uma complexidade impossível de estabelecer um fundamento

originário para cada personagem, “não só a identidade de uma personagem constitui a

de outra e vice-versa (o pai do filho e o filho do pai), como também a identidade das

personagens constitui a do autor (tanto quanto a do autor constitui a das

personagens)”31. A idéia de personagem possibilita Ciampa explicitar algo que não foi

apresentado nas teorias de Scheibe & Sarbin: que o papel é uma atividade padronizada

previamente, uma tentativa de controle, administração e reprodução da identidade

pressuposta.32 Um exemplo dessa proposição pode ser encontrado na seguinte

passagem: “Severino é lavrador, mas já não lavra: a personagem Severino-lavrador

torna-se algo como poder sobre o indivíduo, mantendo e reproduzindo sua identidade,

mesmo que ele esteja envolvido em outra atividade”33.

Este princípio dramatúrgico serve para Ciampa esboçar um quadro metodológico

dentro do qual ele pode perseguir seus verdadeiros interesses na pesquisa: de que “a

questão central da psicologia, ou pelo menos para a psicologia social que se propõe

estudar os indivíduos como pessoas, é a ‘metamorfose humana’”34, e que isto posto,

direciona o pesquisador a questionar a idéia de que a identidade pode ser estudada como

algo dado, uma vez que é a articulação da igualdade e da diferença. Dito de outro modo,

a identidade nunca pode ser representada em sua totalidade, pois, também nesse caso,

sempre nos apresentamos como representantes de nós mesmos perante os outros. Se

identidade é metamorfose, como explicar o fato de que muitas vezes permanecemos os

mesmos? Essa questão aparece como outro obstáculo a ser solucionado: é preciso que o

autor explique como se dá a aparência de não-metamorfose. Ciampa nesse momento,

em nossa opinião, atualiza as proposições de Mead acerca da simultaneidade da

socialização e individualização, e avança no sentido de explicar como, a partir da

30 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.170-171. 31 Idem. Identidade. p.60. 32 Cf. Idem. A estória do Severino e a História da Severina. p.136 et seq. 33 Ibidem. p.139. 34 Idem. As metamorfoses da ‘Metamorfose Humana’: Uma utopia emancipatória ainda é possível

hoje? p.1.

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articulação entre o “mim” e o “eu”, pode ocorrer um tipo de problema que impede o

indivíduo de se auto-determinar.

Marquemos essa atualização da proposição meadiana de constituição identitária.

Para Ciampa, assim como para Mead, a influência do discurso social é determinante na

construção da identidade. A questão que se apresenta para entender a constituição do Eu

é a da compreensão, do entendimento, do jogo lingüístico responsável pela socialização

e individualização do bicho-humano. Não obstante, é preciso captar o jogo das

aparências, a “preocupação é com o que se oculta, fundamentalmente com o

desvelamento do que se mostra velado”35. O fato de Ciampa mostrar com a história da

Severina que é a partir da linguagem, do ser nomeado, que o bicho-humano se

humaniza, se determina36 — ou como ensina Piera Aulagnier37, se aliena de si-mesmo

para futuramente se libertar —, não apresenta novidades frente às idéias de Mead.

Entretanto, no que se refere à discussão acerca das possibilidades de aprisionamento e

impedimento da concretização da auto-determinação, Ciampa amplia a leitura de

desenvolvimento do self proposto por Mead, inclusive, apresentando elementos que não

haviam sido abordados na época por teóricos do reconhecimento como Charles Taylor38

e Axel Honneth39.

Lembremos que Mead já alertava para o fato de enquanto Outros generalizados,

as instituições podem interferir de forma negativa no desenvolvimento dos selves.

As instituições sociais opressivas, estereotipadas e ultra-conservadoras — como a igreja —, que, com sua antiprogressividade mais ou menos rígida e inflexível esmagam e borram a individualidade, ou inibem qualquer expressão de conduta e pensamento distintivos e originais das pessoas ou personalidades individuais nelas implicadas e a elas submetidas, são produtos indesejáveis mas não necessários do processo social geral da experiência e do comportamento.40

35 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.139. 36 Ibidem. p.132. 37 AULAGNIER, Piera. Um interprete em busca de sentido I. 38 Cf. TAYLOR, Charles. La politica del riconoscimento. 39 Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.. 40 MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.262.

Tradução nossa: “Oppressive, stereotyped, and ultra-conservative social institutions — like the church — wich by their more or less rigid and inflexible unprogressiveness crush or blot out individuality, or discourage any distinctive or original expressions of thought and behavior in the individual selves or personalities implicated in and subjected to them, are undesirable but not necessary outcomes of the general social process of experience and behavior.”

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Entretanto, Ciampa aponta para o perigo de que a personagem se transforme —

assim como ocorre com a forma mercadoria estudada por Marx no Capital41 — em um

fetiche, “que vai explicar a quase impossibilidade de um indivíduo atingir a condição de

ser-para-si e vai ocultar a verdadeira natureza da identidade como metamorfose”42.

Nesse caso, vemos a inversão de um fenômeno que poderíamos chamar de característica

básica — que não deve ser reduzido aqui como algo biológico ou metafísico, mas sim

como necessidade histórica e psicossocial — própria das identidades: a necessidade de

reconhecimento. O jogo do reconhecimento faz com que a identidade seja sempre

pressuposta, abrindo o precedente para que ela seja re-posta.43

Ou seja, sempre há pressuposição de uma identidade; sempre uma identidade é pressuposta. Podemos até desconhecê-la; mas, pressupomos sua existência. Até mesmo na pergunta sobre o recém-nascido há um ele (pronome, no lugar do nome...) indicando a mesma pressuposição em relação àquele pequeno ser humano.44

O indivíduo, nesse sentido, é um ser com uma determinidade que se articula

com a indeterminação de forma dialética.45 Como assinala Hegel, é um “ser

determinado, enquanto reflexo de em si na sua determinidade, é algo que está-aí,

alguma coisa”46, a unidade entre o ser e o nada que desvanece na determinidade e

também na sua contradição, a negatividade consigo mesmo. Ciampa considera essas

proposições em A estória do Severino e a História da Severina, Hegel aí é citado

diversas vezes ao longo do texto e, tal como no pensamento hegeliano, a identidade é

pensada como resultado de uma contradição superada, “como um ser, mas um ser com a

negação ou a determinidade: é o devir, posto na forma de um dos seus momentos, do

ser”47. A identidade, portanto, se configura para Ciampa na dialética posição-reposição,

que pode ser tanto positiva quanto negativa, uma vez que é resultante da articulação que

o indivíduo faz com o que fizeram/fazem dele em todos os momentos. Os indivíduos,

41 Cf. MARX, Karl. O fetichismo da mercadoria: o seu segredo. 42 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.140. 43 É possível que um leitor atento a tal proposição levante os seguintes questionamentos: O que e como

seria esse ‘jogo do reconhecimento’? De que modo ele faz com que a identidade seja sempre pressuposta? Por que a pressuposição abre o precedente para que haja reposição? Apesar de essas questões serem trabalhadas nas páginas que se seguem, elas serão mais detalhadas a partir da página 165 e seguintes, quando trouxermos as contribuições de Honneth, Mead e Winnicott acerca do processo de socialização e individualização dos indivíduos.

44 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.153. 45 Cf. HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.14 et seq. 46 Idem. Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome. p.143. 47 Ibidem. p.143.

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como reforça Ciampa, encarnam “múltiplas personagens que ora se conservam, ora se

sucedem; ora coexistem, ora se alternam”48, que indicam como que “modos de

produção da identidade”, ou poderíamos dizer, modos de produção de uma história

pessoal.

Identidade é história. Isto nos permite afirmar que não há personagens fora de uma história, assim como não há história (ao menos história humana) sem personagens. Como é óbvio, as personagens são vividas pelos atores que as encarnam e que se transformam à medida que vivem suas personagens. Enquanto atores, estamos sempre em busca de nossas personagens; quando novas não são possíveis, repetimos as mesmas; quando se tornam impossíveis tanto novas como velhas personagens, o ator caminha para a morte, simbólica ou biológica.49

Dessa maneira, se por um lado existe a necessidade de normatização de

determinadas personagens, por outro corre-se o perigo de que essa personagem (que é

percebida como identidade pressuposta) seja transformada em pura determinidade ou

infinita reposição, dando aparência de não-metamorfose, tal como postulado por Gaston

Bachelard, o qual, apoiado nas reflexões de Roupnel, escreve que tudo quanto pode

haver de permanente em um ser é a expressão, “não de uma causa imóvel e constante,

mas uma justaposição de resultados fugitivos e incessantes, cada um com sua base

solitária, e cuja ligação, que não é outra coisa senão um hábito, compõe o indivíduo”50.

Para ajudar a entender como ocorre esse processo, Ciampa propõe dois movimentos,

caracterizados como mesmice e mesmidade. No que se refere ao movimento de

mesmice, ele explica que é um fenômeno decorrente da re-posição da identidade que

pode se dar como consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão à

repetição. Nesse caso, a identidade é pré-suposta como “dada” permanentemente e não

como re-posição de uma identidade que um dia foi posta. Dizemos cotidianamente eu

sou, não estou sendo.

Daí a expectativa generalizada de que alguém deve agir de acordo com suas predicações e, consequentemente, ser tratado como tal. De certa forma, re-atualizamos, através de rituais sociais, uma identidade pressuposta, que assim é vista como algo dado (e não como se dando continuamente através da re-

48 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.156. 49 Ibidem. p.157. 50 BACHELARD, Gaston. La intuición del instante. p.26. Tradução nossa: “no de una causa inmóvil y

constante, sino de una yuxtaposición de huidizos e incesantes, cada uno con su base solitaria, y cuya ligadura, que no es otra cosa que un hábito, compone o individuo.”

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posição). Com isso, retira-se o caráter de historicidade da mesma, aproximando-a mais da noção de um mito que prescreve as condutas corretas, re-produzindo o social.

O caráter temporal da identidade fica restrito a um momento originário — como se fosse uma revelação de algo preexistente e permanente —, quando, de fato, já vimos, nos tornamos nossas predicações; interiorizamos a personagem que nos é atribuída; identificamo-nos com ela. É discutível o grau de liberdade que um indivíduo tem de escolher (e de ser escolhido para) uma personagem; mesmo para adultos, esse grau de liberdade (ou o grau de seletividade da personagem) parece ter uma relação direta com a quantidade de poder a que a personagem dá acesso.51

Esse fenômeno oferece ao indivíduo uma experiência de atemporalidade: como

ser social ele é um ser-posto. A temporalidade que é uma sucessão de instantes

acumulados, transforma-se em permanência, em imutabilidade52, e uma vez que a

duração não tem uma força direta, o passado se torna um hábito presente. A mesmice

desse tipo é um hábito restituído de novidade, “uma assimilação rotineira de uma

novidade”53, e será chamada por Ciampa de fetichismo da personagem, que vai explicar

“a quase impossibilidade de um indivíduo atingir a condição de ser-para-si, ocultando a

verdadeira natureza da identidade como metamorfose e gerando o que será chamado

identidade mito”54. Aparece aqui o caráter produtivo da identidade, de sua produção

como mercadoria, lembrando com Jean Baudrillard, que a “acepção original da

‘produção’ não é a da fabricação material, mas a de tornar visível, de fazer aparecer, e

comparecer pro-ducere”55. E tal como ocorre nas mercadorias56, a personagem

fetichizada é reforçada em seu comparecimento pela forma de valor social, que, como

Ciampa lembra, força os indivíduos a reproduzirem-se como réplicas de si mesmos, “a

fim de preservar interesses estabelecidos, situações convenientes, interesses e

conveniências que são, se radicalmente analisados, interesses e conveniências do capital

(e não do ser humano, que assim permanece um ator preso à mesmice imposta)”57.

Desse modo, o fetiche da personagem é percebido como um aprisionamento no mundo

51 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.163-164. 52 BACHELARD, Gaston. La intuición del instante. p.28. 53 Idem. ‘Op.cit.. p.73. Tradução nossa: “como una asimilación rutinaria de una novedad.” 54 CIAMPA, A. C. op.cit. p.140. Para Ciampa a idéia de ser-para-si significa “buscar a autodeterminação

(que não é a ilusão de ausência de determinações exteriores); ‘tornar-se escrava de si própria’ (que de alguma forma é tentar tornar-se sujeito); procurar a unidade da subjetividade e da objetividade, que faz agir uma atividade finalizada, relacionando desejo e finalidade, pela prática transformadora de si e do mundo.” Ibid. p.146.

55 BAUDRILLARD, Jean. Esquecer Foucault. p.31. 56 Cf. MARX, Karl. O fetichismo da mercadoria: o seu segredo. p.79 et seq. 57 CIAMPA, A. C. op.cit. p.165.

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da mesmice (da não-mesmidade) e da má infinidade (a não superação das contradições),

a atividade que engendra a personagem deixa de ser desempenhada, mas a

representação da personagem persiste, lembremos do exemplo trazido anteriormente:

Severino “é lavrador” mas já “não lavra”.

Entretanto, é preciso apontar aqui um aspecto não muito explorado n’A estória

do Severino e a História da Severina: o caráter positivo da mesmice. Quando Ciampa

trata do “fetiche da personagem”, do aprisionamento à mesmice, seu foco está voltado

para a explicação de como ocorrem os movimentos de regressão e progressão da

história da Severina. Sua discussão da mesmice como re-posição da personagem

pressuposta aparece em contraste com a mesmidade, a alterização58, possibilidade de

tornar-se outro, que no caso da Severina aparece como movimento emancipatório da

identidade, a lição de que “um mundo que não merece ser vivido deve ser recusado,

negado”59. Com isso, corre-se o risco de reduzir a mesmice à um problema que deva ser

superado — o que não é verdade —, pois como vimos, Ciampa compartilha com Mead

o pressuposto de que a constituição do Eu deve ser pautada na articulação entre

socialização e individuação. Ao explorar com maior profundidade essa questão,

Almeida60 lembra que a reposição também pode expressar nossas necessidades, uma

forma de lidar com o mundo, ao ponto de servir de base para lidar com a alteridade,

para representar resistência.

(...) há que se considerar que nem sempre o processo de re-posição da identidade expressa alienação e heteronomia. Com efeito, ele pode ser fruto de uma atitude positiva frente à vida, de expressão afetiva do ser, de satisfação com um modo de vida específico, que se considera suficientemente válido e digno de manter. Alguns indivíduos chegam a demonstrar uma altivez frente a dissabores e perdas (doenças, deficiências adquiridas, desemprego, projetos materiais prejudicados, perda de entes queridos etc.), reafirmando seus propósitos de uma existência digna e autônoma apesar dos problemas que os afetam. O que se preconiza, então, é que os indivíduos não se transformem em prisioneiros do que estão sendo ou têm sido, de seus papéis ou das situações que vivenciam. A vivência prazerosa não pode ser feita à custa da procura incessante e alienada da imutabilidade e nem se transformar numa obsessão e numa luta a todo custo contra a mudança de si, dos outros, das relações e das situações e, principalmente, à revelia dos outros. Os papéis desempenhados não podem ser tratados como uma realidade absoluta da pessoa. Ao contrário,

58 O termo alterização, utilizado por Ciampa, quer expressar a idéia de uma mudança significativa — um

salto qualitativo — resultante do acúmulo de mudanças quantitativas, às vezes insignificantes, invisíveis, mas graduais e não radicais.

59 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.234. 60 Cf. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice.

p.84 et seq.

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admitida a identidade como metamorfose, os seres humanos devem ser considerados do ponto de vista de sua potência, seres capazes de ultrapassar limites, considerados estes limites não como um término.61

Não como término, mas como ponto de partida. O imperativo ético dessa

concepção de identidade é explicitado: não há como determinar um a priori para as

formas de vida. Cada biografia deve adquirir uma história única que possa tanto

identificá-la como uma singularidade dotada de direitos individuais, quanto uma

universalidade que expressa uma coletividade. A doença mental no caso de Severina,

para não generalizar todos os casos de loucura, aparece como única possibilidade de

resistência a um mundo desumanizador. O problema, como é bem frisado em sua

história, é que ao ser diagnosticada como doente mental passa a ser reconhecida como

escrava inutilizada. Visualisamos um paradoxo, aquilo que para os especialistas era

visto como doença mental, por representar a incapacitação para a exploração, do ponto

de vista de Severina tornou-se a possibilidade de finalmente se libertar da escravidão e

ficar livre do encosto62. Se considerarmos que vivemos em uma sociedade desigual e

exploradora, e que a identidade se forma sempre a partir da pressuposição, da re-posição

e alterização, a idéia de que a identidade é metamorfose adquire seu pleno significado,

ou seja, a luta pela emancipação. Isto posto, abre-se espaço para que exploremos o outro

movimento da identidade: a mesmidade. Mas antes de discorrer acerca do conceito de

mesmidade parece-nos, importante algumas das considerações desenvolvidas por

Habermas em Para a reconstrução do materialismo histórico e Conhecimento e

Interesse —, uma vez que será a partir delas que Ciampa concluirá que o impedimento

da emancipação e a manutenção da mesmice não se constituem como algo inevitável.

Em Para a reconstrução do Materialismo Histórico, Habermas afirma que o ser

social apenas se destaca da natureza, emergindo pela primeira vez na história, com o

advento das ações executadas exclusivamente na esfera interativa: o “sistema de

comunicação” progrediu diretamente das “interações mediatizadas de modo gestual”

dos homínidas, por consequência da familização do homem. Com o advento da família,

a ordem hierárquica dos primatas e homínidas (unidimensional) é substituída pela

ordem hierárquica dos homo sapiens (pluridimensional), que passa a ser organizada a

partir de relações intersubjetivas fundadas em expectativas de comportamento e

61 ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.92. 62 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.67 et seq.

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próprias ao modo de reprodução da vida pela interação – a moralização dos motivos de

ação63. Essa “moralização dos motivos de ação” prova que o único elemento próprio ao

ser social é a ação comunicativa, isto é, o estabelecimento de relações com o mundo e

com outros indivíduos a partir de normas sociais compartilhadas intersubjetivamente

pela comunidade linguística.

Para que essas normas sejam compartilhadas é imprescindível que três condições

sejam satisfeitas: a) na interação os indivíduos devem, por meio dos papéis sociais,

assumir não apenas a perspectiva do outro, mas também colocarem-se na perspectiva

dos observadores, pois somente desse modo eles poderiam criar uma relação entre “suas

expectativas recíprocas e colocá-las, enquanto sistema, como fundamento do próprio

agir”64; b) a constituição de papéis sociais, por parte dos indivíduos que participam da

interação, deve pressupor sua conscientização a respeito do tempo, em outras palavras,

os papéis sociais não se esgotam no imediatismo de uma dada relação interativa; c) os

papéis sociais se relacionam apenas a partir de mecanismos de sanção por intermédio

das interpretações das normas vigentes em dada formação social, e não mais por

intermédio da força: as normas sociais linguisticamente fundadas substituem as ameaças

de violência física. É importante ressaltar que o interesse pela relação entre os

diferentes papéis na evolução da ação simbólica ou das estruturas de comunicação, que

agora complementariam o desenvolvimento dos modos de produção ou das esferas

instrumentais de ação, faz com que Habermas desenvolva elementos que poderíamos

chamar de prolegômenos para uma Psicologia Social Crítica. Lembremos que ainda

antes da publicação de Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, Habermas

havia aprofundado a discussão acerca dos limites da proposição marxiana de que o

trabalho (a ação instrumental) era o motor da história65.

A discussão acerca da familização do homem leva Habermas a explorar as

potencialidades da Psicanálise, o que será levado a cabo, sobretudo, em Conhecimento e

Interesse. Trabalho o qual Habermas se ocupa em discutir a psicanálise enquanto prática

terapêutica, que seria, em última análise, um exercício de auto-reflexão. Vale ressaltar

que a apropriação da psicanálise realizada por Habermas, e que leva a redução da

Psicanálise a um exercício de auto-reflexão segue a influência de Alfred Lorenzer e

63 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do Materialismo Histórico. p.115 et seq. 64 Ibidem. p.117. 65 Idem. Técnica e Ciência como Ideologia.

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Alexander Mitscherlich66, autores que entendem a psicanálise como um procedimento

hermenêutico-materialista das profundidades, correspondente à conceitualização de um

sujeito pertencente a uma teoria materialista da socialização67, o que possibilita colocar

a Psicanálise como instrumento de recuperação e tradução da biografia perdida. Essa

concepção de texto adulterado e a possibilidade de tradução a partir da psicanálise,

inclusive, será para Habermas a brecha para a discussão acerca da fecundidade da

psicanálise enquanto uma teoria crítica que leva ao ato de auto-reflexão que alteraria a

vida e levaria ao movimento de emancipação68. Com vistas em uma hermenêutica

psicanalítica, Habermas prossegue denotando atenção especial aos atos falhos, uma vez

que neles seria possível verificar como nossa intenção lingüística pode ser perturbada,

por erros, apenas na aparência acidentais,

através de omissões ou deformações que, quando se mantém no interior dos limites da tolerância habitual, podem ser depreciadas como fortuitas e, como tais, esquecidas. Estes atos falhos, aos quais Freud soma casos de esquecimento, lapsos de linguagem, de escrita, de leitura, os equívocos no apanhar um objeto e os chamados atos descuidados, são indicadores do fato de o texto defeituoso revelar e, simultaneamente, encobrir as auto-ilusões do autor.69

A caracterização freudiana do sonho70, reforçada por Lorenzer71 como instância

de formação do compromisso é utilizada, na teoria habermasiana, como paradigma para

analisar o sintoma72. O sintoma na leitura psicanalítica ocorre quando as inexatidões do

66 Encontramos a influência de dois grandes psicanalistas alemães na obra habermasiana, são eles:

Alexander Mitscherlich e Alfred Lorenzer. O primeiro é lembrado principalmente no trabalho Texto e Contexto, o segundo, por sua vez, aparece na obra citada Conhecimento e Interesse. Em nossa opinião, a leitura da psicanálise realizada por Habermas, principalmente as críticas direcionadas à psicanalistas como Jacques Lacan (embora Lacan seja reconhecido como um dos grandes autores que discutem a relação entre linguagem e psicanálise, apenas é rapidamente citado por Habermas no Discurso Filosófico da Modernidade e Pensamento Pós-metafísico), devem-se à disputa entre Lorenzer (que articula Wittgenstein e Marx) e Lacan (estruturalismo e Saussure) acerca da apropriação da Psicanálise lingüisticamente orientada. Para uma melhor compreensão do diálogo entre esses dois autores sugerimos a leitura da advertência para a reedição da obra El lenguaje destruido y la reconstrucción psicoanalítica, de Alfred Lorenzer.

67 LORENZER, Alfred. El lenguaje destruído y la reconstrucción psicoanalítica. p.23. 68 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. p.232. 69 Op.cit. p.238. Aqui o autor se refere a FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana. 70 FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. 71 O interesse de Lorenzer pelas idéias de Wittgenstein direcionam esse autor para a correlação da análise

dos sonhos com os símbolos. Wittgenstein achava que o sonho era um desafio para a análise da linguagem. Em uma palestra sobre psicologia afirma que “se um símbolo num sonho não for compreendido, não parecerá ser absolutamente um símbolo.” Cf. WITTGENSTEIN, L. Estética, Psicologia e Religião: Palestras e conversações. p.78.

72 Tanto Lorenzer como Lacan atribuem a Marx novas possibilidades para a leitura da psicanálise. Slavoj Žižek em sua tese de doutoramento dedica um capítulo específico para discutir como aquele autor

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texto são mais flagrantes e se situam na esfera do patológico. A conseqüência dessas

proposições leva Habermas a afirmar que para Freud o sonho é o “modelo normal” das

afecções psicopatológicas. Sendo assim, se “a interpretação dos sonhos permaneceu

sempre como modelo de explicação em vista do esclarecimento de complexões de

sentido patológicas deformadas”73, o analista deve assumir uma rigorosa atitude de

intérprete.

Entretanto, se por um lado Habermas apresenta as grandezas da teoria

psicanalítica, por outro — assim como o fez seu parceiro frankfurtiano Erich Fromm74

— trata de assinalar suas limitações, principalmente no que se refere às proposições

marxianas. A primeira delas refere-se ao determinismo psíquico proposto pela

psicanálise, mais precisamente a deformação da linguagem e patologia do

comportamento, que nos inclina a entender que os indivíduos são sujeitos que se auto-

iludem, e que o caso normal é o caso-limite de “uma estrutura de motivação que

depende, concomitantemente, de interpretações que afetam tanto necessidades

comunicadas publicamente quanto necessidades reprimidas e privatizadas”75. Se o

problema encontrado em Marx era a centralização do trabalho e o foco nas questões

produtivas, em Freud a redução do destino humano à socialização das pulsões faz com

que Habermas enxergue um outro limite para pensar a ação comunicativa.

Assim Freud vê também o processo cultural da espécie como uma realidade presa à dinâmica das pulsões: as forças libidinais e agressivas, potestades pré-históricas da evolução, perpassam por assim dizer o sujeito da espécie e determinam sua história. Ocorre que o modelo biológico da filosofia da história não é outra coisa do que a sombra refletida do modelo teológico, ambos igualmente pré-críticos. As pulsões como primum movens da história, cultura como resultado de sua luta — uma tal concepção teria esquecido que acabamos de adquirir privativamente o conceito do impulso pulsional e da patologia exclusivamente, a partir da deformação da linguagem e da patologia do comportamento. No plano antropológico não deparamos com necessidades que não estejam interpretadas em termos de linguagem e não estejam simbolicamente fixadas em ações virtuais. A herança da história natural, a qual consiste em um potencial de impulsos desprovidos de qualquer especialização, determina as condições iniciais de reprodução da espécie humana, mas os meios de tal reprodução societária emprestam, de saída, à conservação da espécie a qualidade da autoconservação.76

entende que Lacan atribui à Marx a criação do sintoma. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos. O capítulo dessa tese referente à criação do sintoma foi publicado também em ŽIŽEK, Slavoj. (org.) Um mapa da Ideologia, sob o título: Como Marx inventou o sintoma?

73 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. p.239. 74 Cf. FROMM, Erich. Grandezas e limitações do pensamento de Freud. 75 HABERMAS, Jürgen. Op. cit. p.271. 76 Ibidem. p.298-299.

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Marx, nesse contexto, será considerado por Habermas como em vantagem frente

à teoria freudiana, por ser “herdeiro de uma tradição idealista, que mantém a síntese

como ponto de referência”, e assinalar que as formas pelas quais as ações são

executadas e os conflitos são decididos “são, pelo contrário, dependentes das condições

culturais de nossa existência: trabalho, linguagem e poder”77. A razão é inerente ao

conhecimento. Sob essas premissas, Habermas não poderia deixar de apontar que Freud,

em sua psicanálise, depara-se com a situação “onde a maiêutica do médico não pode

incentivar a auto-reflexão do doente senão sob o impacto da coerção patológica do

interesse correspondente de a remover”78. A adaptação da natureza externa à sociedade

com a ajuda das forças de produção (instrumentais), e da natureza interna com a ajuda

das estruturas normativas (comunicativas), será entendida como adaptação inteligente à

realidade exterior, frente às crises de legitimação, que se configuram:

Num processo fatal que, apesar de toda a objetividade, simplesmente não se impõe de fora e não permanece externo à identidade das pessoas colhidas por ele. A contradição, expressa na combinação catastrófica do conflito, é inerente à estrutura da ação sistêmica e aos sistemas de personalidade dos principais caracteres. O fato cumpre-se na revelação de normas conflituais contra as quais as identidades dos personagens se chocam, a menos que estejam aptos a mobilizar a força para recuperar a sua liberdade, derrubando o poder mítico do fato através da formação de novas identidades.79

Conseqüentemente a essas análises vemos que Habermas se distancia da

psicanálise, o que não ocorrerá sem críticas, muitas delas, interpretadas como não

fundamentadas, como foi o caso de sua apropriação da psicanálise como uma

hermenêutica das profundidades, cuja crítica será realizada por Hans-Georg Gadamer,

77 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. p.299. 78 Ibidem. p.301. A relação com a psicanálise será criticada por Hans-Georg Gadamer fortemente em A

universalidade do problema hermenêutico. Nesse texto Gadamer acusa Habermas de seguir uma lógica de difícil aplicação na realidade, pois diferentemente do sofrimento e desejo de cura presentes na intervenção terapêutica, que é imputada ao analista por meio de uma autoridade que possibilita que este esclareça as motivações reprimidas e derrube as resistências, na vida social, cuja “resposta se dá mediante a autoridade do médico bem informado [...] no âmbito social e político falta uma base específica para a análise comunicativa, cujo tratamento o doente aceita livremente porque conhece sua doença”. op. cit., p. 313. Uma série de cautelas institucionais que protegem o paciente frente a um possível excesso do psicanalista, principalmente frente à interpretação, cuja possibilidade de “um mascaramento pseudo-comunicativo”, vai ser entendido por Gadamer como um fenômeno que ocorre no âmbito social, a resistência do oponente e a resistência contra o oponente, uma pressuposição comum a todos. Em outras palavras, as questões relativas à emancipação no âmbito social e político não são susceptíveis de um tratamento epistemológico-hermenêutico, pois seguem convenções político-sociais. Dessa forma, para Gadamer não há, como pretendia Habermas, um paralelo entre a psicanálise e luta política, ao passo que nesta última o adversário não pode ser considerado como um dialogante.”

79 HABERMAS, Jürgen. Crise de legitimação no capitalismo tardio. p.12.

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que acusará Habermas de distorcer o sentido originário da hermenêutica crítica e de

propor como saída a terapia da sociedade80. Para outros, essa compreensão da

psicanálise será interpretada como uma “degradação intelectualista”, que reduz a

psicanálise a uma psicologia do eu, “O eu que a própria psicanálise veio destruir,

mostrando que há necessariamente uma falha no coração do diamante”81. José Luiz

Aidar Prado, por sua vez, lembra que o inconsciente não pode ser reduzido à auto-

reflexão82, a “análise não é processo educativo, em que o paciente aprende a comunicar-

se, a bem-viver, a ter acesso aos bens. O analista não está na escuta para dar ao mal-

falante o que lhe falta”83. Esse “mau-uso” da psicanálise e a sua indicação como um

substituto para a hermenêutica crítica também será criticado fortemente por Gadamer,

que não acredita ser possível atribuir à sociedade conceitos que a psicanálise

desenvolveu na relação terapêutica com o indivíduo, correndo o grave risco, caso seja

transposto o modelo clínico psicanalítico para a sociedade, de patologizar o mundo da

vida.

A busca pela condição ideal de fala (consenso livre de coerção) seria uma

armadilha, segundo esses autores, para a análise crítica da comunicação. Valendo

inclusive o seguinte questionamento: se a violação dos pressupostos gerais da

comunicação (inteligibilidade, verdade, retidão e veracidade) são vistos por Habermas

como distorções do ato de fala comunicativo proporcionadas pela lógica sistêmica, não

poderiam ser as patologias da modernidade uma das dificuldades inerentes encontradas

no mundo da vida que sofre a colonização sistêmica? E não uma exceção à regra que

deveria ser corrigida? Vejamos mais duas citações de Aidar Prado que, longe de

responder essas questões, abrem espaço para mais outras brechas na ação comunicativa:

Digamos com todas as letras: não há padrão estrito de normalidade do uso da linguagem. Grifo o estrito. Partir da idéia de uma capacidade de uso normal da linguagem, que deve ser restituída ao neurótico, significa impor à teoria um grau de idealização ancorado na navalha transcendental. Quem dirá até onde se estica a faixa do que pode ser considerado normal? O senhor, o mestre, o

80 Para maior aprofundamento nesse debate sugerimos a leitura de nosso trabalho: LIMA, Aluísio Ferreira

de. Hermenêutica das tradições ou Crítica das ideologias? Um debate entre Hans-Georg Gadamer e Jürgen Habermas, ou ainda, HABERMAS, Jürgen. Pretención de universalidad de la hemenéutica; HABERMAS, Jürgen. ¿Cómo es posible la metafísica después del historicismo?; HABERMAS, Jürgen. Sobre “Verdade e Método” de Gadamer; GADAMER, Hans-Georg. A universalidade do problema hermenêutico; RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias e STEIN, Ernildo. Dialética e Hermenêutica: Uma controvérsia sobre método em filosofia.

81 PRADO Jr. Bento. Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito? p.23. 82 PRADO, José Luiz Aidar. Teoria da sociedade ou teoria da comunicação? p.233. 83 Ibidem. p.236.

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expert, o hermeneuta, o policial, o juiz, o professor, o carrasco? Será que não há juízes psicóticos, filósofos perversos, mestres mentirosos? Quem garante isso? A comunidade de comunicação como um todo? Que todo? Essa comunidade é o Outro? Não há posição do simbólico que garante essa normalidade de usar a linguagem.84

Amar a normalidade ao modo de uma garantia para o entendimento implica em ficar demasiado atento à não-distorção, ao não-desfiguramento, à não-falha, ao não-desvio, ao não-defeituoso dos atos linguísticos e à identidade dos significados.85

O que podemos entender com as duas citações é que a separação realizada por

Habermas, que estabelece um normal-pragmático responsável pelas condições

universais da comunicação, e por sua vez, exclui do padrão o que é considerado

patológico, torna-se problemática em uma sociedade cujo mundo da vida está

submetido a uma razão instrumental/sistêmica. Fenômeno decorrente em uma sociedade

capitalista que se diferencia cada vez mais das sociedades mais tradicionais, lançando

um discurso disciplinar, reforçador de uma identidade única e imutável. Mas que, pelo

contrário, seria uma sociedade que estimularia a proliferação daquilo que Slavoj Žižek

denominou “estruturas normativas duais”86, onde os indivíduos estariam sendo

socializados por meio da internalização simultânea de duas estruturas normativas, que

embora contraditórias, servem como complementares uma à outra.

Sendo assim, mesmo que não tenha sido objeto de reflexão na época da escrita

de A estória do Severino e a História da Severina, parece-nos apropriado transcrever

aqui uma citação de um dos estudos mais atuais de Habermas, que apresenta de forma

sintética o impacto dessa transformação da organização capitalista:

Quanto maior for a complexidade da sociedade e quanto mais se ampliar a perspectiva restringida etnocentricamente, tanto maior será a pluralização de formas de vida e a individualização de histórias de vida, as quais inibem as zonas de sobreposição ou de convergência de convicções que se encontram na base do mundo da vida; e, na medida de seu desencantamento, decompõem-se os complexos de convicções sacralizadas em aspectos de validade diferenciados, formando os conteúdos mais ou menos tematizáveis de uma tradição diluída comunicativamente. Antes de tudo, porém, os processos de diferenciação social impõem uma multiplicação de tarefas funcionalmente especificadas, de papéis sociais e de interesses, que liberam o agir comunicativo

84 PRADO, José Luiz Aidar. Teoria da sociedade ou teoria da comunicação? p.264. [grifos do autor] 85 Ibidem. p.266. 86 Essa estrutura dual se caracterizaria para Žižek a partir da articulação entre a lei simbólica que visa

normatizar, de forma explícita, as interações sociais a partir dos ideais de auto-regulação; e da lei do supereu que visa impor uma forma de interação pautada na satisfação irrestrita. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia.

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das amarras institucionais estreitamente circunscritas, ampliando os espaços de opção, o que implica uma intensificação das esferas do agir orientado pelo interesse do sucesso individual.87

A colocação de Habermas, que apresenta os elementos que aproximaram

Ciampa dessas ideias e ao mesmo tempo abre espaço para mostrarmos o distanciamento

da teoria da ação comunicativa, indica um duplo discurso presente nas sociedades

complexas: 1) socializar os indivíduos para o mercado, nesse sentido promovendo a

semi-formação; 2) incentivar sua diferenciação, dada a necessidade de que se contemple

os diferentes produtos oferecidos pelo mercado. Dizemos que aqui Ciampa difere de

Habermas porque para este último o problema a ser superado é a proposição de uma

“regulamentação normativa de interações estratégicas”88, enquanto que para Ciampa o

problema está em demonstrar — sendo impossível viver sem personagens, quando

muito permanecemos repondo as mesmas — como ocorre a alterização, a qual em

última instância significa se tornar um ser-para-si. A questão também não está em

demonstrar as dificuldades de um desenvolvimento moral, em nível pós-convencional,

como postulado por Habermas, mas em explicitar como determinadas representações

identitárias anunciam e exigem um reconhecimento pós-convencional89. Novamente o

autor se aproxima das proposições meadianas e explica o processo em que o “eu” se

contrapõe ao “mim”, ou, utilizando as palavras do próprio Ciampa, como ocorre a

“negação” da negação de minha identidade pressuposta.

A negação da negação permite a expressão do outro outro que também sou eu: isso consiste na alterização da minha identidade, na eliminação de minha identidade pressuposta (que deixa de ser re-posta) e no desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante, em que toda a humanidade contida em mim se concretiza. Isso permite me representar (1o sentido) sempre como diferente de mim mesmo (deixar de presentificar uma representação de mim que foi cristalizada em momentos anteriores, deixar de repor a identidade pressuposta).90

Na concepção de Ciampa, o indivíduo não é apenas um receptáculo inofensivo

que incorpora as predicações e as dramatiza no cotidiano, mas também propõe novas

87 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. p.44. 88 Ibidem. p.46. Nos estudos atuais, Habermas tem direcionado seus esforços para propor uma teoria do

direito que possa validar e concretizar sua teoria da ação comunicativa. Ele esclarece que o direito “é entendido aqui somente sob o ponto de vista funcional da estabilização de expectativas de comportamento.” Ibid. p.72.

89 Retomaremos essa questão em nosso itinerário empírico. 90 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.181.

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personagens, se auto-determina; ele não é apenas um cidadão, um membro da

comunidade, ele reage também a essa comunidade e a transforma com suas reações. A

materialidade da identidade se concretiza na manifestação da vontade, que como

assinala Hegel, é “a infinitude ilimitada da abstração e da generalidade absolutas, o puro

pensamento em si mesmo”91. Assim como para Mead, entende-se que a ação espontânea

é capaz de criar um campo comunicacional que atualiza a tradição, a alterização pode

indicar uma possibilidade e uma tendência da conversão das mudanças quantitativas em

mudanças qualitativas. Destacamos que alterização foi um termo utilizado por Ciampa

para dar conta do conceito de “alternação” proposto principalmente por Peter Berger, o

qual considerava as metamorfoses miraculosas, radicais, uma exceção, uma migração de

universo simbólico, em que somente “os loucos ou raros gênios podem habitar sozinhos

em seus mundos de significados”92. Como assinala o próprio Berger:

A experiência daquilo a que demos o nome de ‘alternação’ (que é precisamente a percepção de si mesmo diante de uma sucessão infinita de espelhos, cada um dos quais transforma a imagem numa diferente conversão potencial) leva a uma sensação de vertigem, uma agorafobia metafísica diante dos intermináveis horizontes do possível ‘eu’.93

Alternação, nesse sentido, referia-se às transformações percebidas nas

identidades individuais que fugiam ao script pré-suposto. Podemos tomar como

exemplo o caso de usuários de drogas que deixam de representar essa atuação ao

converter-se como crente de uma determinada religião94. Para Berger, esse fenômeno

ocorreria porque a identidade de um determinado indivíduo migra de um universo

simbólico (universo simbólico do usuário de droga) radicalmente para outro (universo

simbólico do crente). Nesse sentido, a transformação não é entendida como processual,

ainda como, uma superação dos indivíduos, a metamorfose é entendida como migração

de universos simbólicos entre identidades estáticas, cristalizadas.

O conceito de alterização possibilita Ciampa trabalhar com o que denomina

mesmidade, que se refere à superação da personagem re-posta pelo indivíduo;

mesmidade, que pode ser compreendida como a expressão de um outro outro que

também sou eu, possibilitando a formulação dos projetos de identidade, cujos conteúdos

91 HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.13. 92 BERGER, Peter. Excurso: Alternação e Biografia. p.75-76. 93 Ibidem. p.75. 94 Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. Dependência de drogas e psicologia social: um estudo sobre o

sentido das oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da teoria de identidade.

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não estejam prévia e autoritariamente definidos. Ciampa assinala que em sua forma

concreta essas identidades alterizadas se definem “pela aprendizagem de novos valores,

novas normas, produzidas no próprio processo em que a identidade está sendo

produzida, como mesmidade de aprender (pensar) e ser (agir)”95. Novamente, fica claro

que nessa perspectiva o desenvolvimento de normas intersubjetivas válidas e a

progressiva concretização da identidade humana depende das possibilidades de acesso à

liberdade de escolha do que seja uma vida boa para cada um. Alteridade e mesmidade

alinham-se à noção de desenvolvimento da liberdade subjetiva hegeliana96, reforçando a

idéia de que a identidade é uma questão política, contra as estratégias de dominação

que, como bem assinalou Slavoj Žižek97, têm como objetivo a produção de indivíduos

ideais, “cínicos privados”, que somente conseguem existir se o sistema está “aí” e se

pode contar com outros ingênuos que “acreditam de verdade”. Acreditamos que seja

interessante transcrever uma citação de Ciampa, um pouco longa, que parece sintetizar

muito bem as proposições trazidas até agora:

É esse o perigo que a adequada compreensão da questão da identidade humana pode nos ajudar a prevenir. Não ter uma identidade humana é não ser homem. Pois, como o singular materializa o universal na unidade do particular, quando o particular (que no nosso caso é a identidade de um indivíduo dado, como Severina) não concretiza essa unidade, o universal permanece abstrato, falso (que no nosso caso é a sociedade capitalista). Tudo porque prevalece o interesse da desrazão, a razão interesseira — que demonstra a irracionalidade substancial do mundo capitalista em que vivemos, um mundo que não merece ser vivido, pois ameaça a auto-conservação da espécie, na medida em que cada singular, em vez de devir homem — como a metamorfose é inevitável —, devém não-homem, inverte-se no seu contrário: em vez de proprietário das coisas, estas é que o têm como propriedade; em vez de fazer uso das coisas, estas é que o usam; em vez de trabalhar com suas ferramentas, com seus instrumentos, estes é que trabalham com o homem como ferramenta, instrumentalizando-o.

Mas este mesmo mundo que o nega, é um mundo, produzido por ele; por mais paradoxal que possa parecer, nosso mundo — que é um mundo desumanisador — é um mundo humano, produzido pelo próprio homem, que assim se faz homem (como produtor do mundo humano), ao mesmo tempo que se faz não-homem (como produto do mundo desumanisador). A contradição, enquanto não for superada, será sempre re-posta como mau infinito. O interesse da razão pede a negação da negação para que a superação se dê, contendo a má infinidade, estabelecendo a verdadeira infinitude humana que decorre, a um tempo, de ser o homem um ser de responsabilidades e, em outro, um ser concreto; por isso,

95 CIAMPA, Antonio da Costa. Políticas de Identidade e Identidades Políticas. p. 241. 96 Cf. HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.16 et seq. É certo que quando Ciampa

trabalha com o conceito de alteridade em sua tese de doutorado o traz a partir das proposições habermasianas, todavia, fazemos aqui a menção de Hegel e Mead por ser nesses autores que Habermas irá buscar elementos para pensar essa questão.

97 ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.17.

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concretizável. Um concreto que não é concretizável não é possível. Aí está a invencibilidade da substância humana, como produção histórica e material.98

Isto posto, resta-nos dizer que com a articulação da psicologia social de Mead, a

filosofia hegeliana e a Teoria Crítica habermasiana, fica evidente que a teoria de

identidade que Ciampa traçou em A estória do Severino e a História da Severina faz

parte de uma Psicologia Social Crítica. Do mesmo modo, acreditamos que tenha ficado

explícito que o propósito dessa teoria é evidenciar que a identidade deve ser

compreendida como metamorfose humana, que é, por sua vez, luta por reconhecimento

frente a uma sociedade capitalista que tende a reduzir a identidade a personagens

fetichizadas que negam sua totalidade em favor do universal dominante: o Capital. O

interesse científico dessa concepção envolve uma dimensão prática e teórica; “interesse

(prático) pela transformação do sistema social, interesse pela libertação da coerção;

interesse (teórico) pela clarificação da situação que se constitui nas condições sob as

quais vivemos”99.

O ponto de partida dessa teoria de identidade é constituído pelo princípio no

qual Ciampa coincidirá com Habermas: o entendimento do desenvolvimento da

sociedade dá-se pela compreensão de como os indivíduos se desenvolvem até o ponto

de se transformarem em pessoas, que podem “afirmar a própria identidade independente

dos papéis concretos e de sistemas particulares de normas”100, transformando-se de fato

em autores de suas histórias de vida. Nesse sentido, o processo de socialização e

individualização da identidade é entendido como sendo sempre algo que pode ser

observado na história da espécie. Em sua forma política está ligado também às formas

de reconhecimento mútuo, que são necessárias, senão inevitáveis para a constituição das

personagens, o que aproxima Ciampa das proposições de Honneth101 e nos permite dizer

que: a história da Severina é a história da luta pelo reconhecimento de sua humanidade e

pelo “tornar-se escrava de si mesma”. A identidade, portanto, é concretizada a partir de

um processo de significações estabelecidas com outros indivíduos, no jogo do

reconhecimento. Isso nos leva a admitir que se identidade manifesta-se a partir de uma

pluralidade de personagens ou se ela torna-se reduzida a uma personagem fetichizada,

ainda assim é pela relação de reconhecimento que ela se mantém estruturada.

98 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.227-228. 99 Ibidem. p.216. grifos do autor. 100 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. p.64. 101 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.

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Essa concepção diferencia a proposição de Ciampa, para não dizer que

contrapõe, das leituras realizadas pela sociologia e psicologia que postulam a

problemática do não-reconhecimento da identidade, como é o caso Charles Taylor, para

quem é possível pensar em “crise de identidade”102. No caso da teoria de identidade

postulada por Ciampa, estaríamos mais próximos, mas não totalmente como será visto

posteriormente, da concepção habermasiana de distorção sistemática da linguagem, que

é produzida pela manutenção de uma racionalidade instrumental/sistêmica que negaria

as formas de consenso, uma vez que em tais casos, “ao menos um dos participantes

engana a si mesmo ao não se dar conta que está atuando a partir de uma atitude

orientada ao êxito, apenas na aparência uma ação comunicativa”103. Para Habermas, se a

“crítica das auto-ilusões e dos sintomas de uma forma de vida forçada ou alienada

mede-se na idéia de uma vida vivida de modo consciente e coerente”104, as patologias

devem ser medidas pela impossibilidade de viver uma “vida boa”105.

Ao relacionar a alterização como possibilidade de metamorfose, Ciampa

apresenta sua preocupação com a emancipação humana. Todavia, como a emancipação

não era objeto de reflexão da tese vemos que não encontramos em A estória do Severino

e a História da Severina uma discussão aprofundada sobre esse assunto, algo que

trabalhasse com o sentido que a idéia de emancipação ocupa em uma determinada

biografia. Esse aprofundamento será realizado alguns anos depois da publicação da tese

de doutoramento e será anunciado no XXVI Congresso Internacional da Sociedade

Interamericana de Psicologia – SIP, realizado em 1997, evento em que Ciampa fará a

apresentação das pesquisas e orientações que realizou nos dez anos que se passaram e

vai assinalar que têm se deparado com “uma variedade de formas de ‘metamorfose

humana’, [...] em que uma utopia emancipatória sempre surge, seja como meta visada,

seja como falta sentida”106.

Todavia, a temática da emancipação nas pesquisas de identidade passa ocupar a

cena principal após 1999, quando no Encontro Nacional da ABRAPSO, Ciampa propõe

102 TAYLOR, Charles. As fontes do Self: A construção da identidade moderna. p.44 et seq. 103 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I. p.425. Tradução nossa: “al

menos uno de los participantes se engaña a si mesmo al no darse cuenta de que está actuando en actitud orientada al éxito y manteniendo solo una aparencia de acción comunicativa.”

104 Idem. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. p.41. 105 A idéia de “vida boa” apresentado por Habermas refere-se a forma de vida escolhida de forma não

coercitiva. 106 CIAMPA, Antonio da Costa. As metamorfoses da ‘Metamorfose Humana’: Uma utopia

emancipatória ainda é possível hoje? p.3.

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ampliar a concepção identidade-metamorfose para o sintagma Identidade-Metamorfose-

Emancipação. É importante destacar que mais do que simplesmente incorporar a

palavra “emancipação” aos já associados identidade-metamorfose, essa proposição

indica que o autor assume que pesquisar identidade é buscar compreendê-la em toda sua

abrangência e complexidade (cognitivo, afetivo, estético, moral, sexual, corpóreo, motor

etc.). É considerar como pressuposto que o indivíduo, à medida que vai adquirindo a

capacidade de agir e de falar, vai também passando a se reconhecer e a ser reconhecido

como alguém que pode afirmar “eu” de si mesmo. Nessa guinada, incorpora-se a

perspectiva habermasiana de que a constituição do humano, a subjetividade do

indivíduo, é vista sempre articulada com a objetividade da natureza, a normatividade da

sociedade e a intersubjetividade da linguagem.

2 – Políticas de identidade e identidades políticas como conceitos necessários para

o entendimento do sentido emancipatório das identidades

A concepção de identidade, entendida como metamorfose em busca de

emancipação, que Ciampa tem desenvolvido desde A estória do Severino e a História

da Severina, pôde exercer uma influência significativa na produção teórica da

Psicologia Social brasileira; haja vista que esta é a centésima orientação realizada por

esse teórico. Como apresentamos até este momento, a corrente de pensamento

caracterizada principalmente por Berger, Luckmann, Freud, Marx, Mead, Hegel e

Habermas acrescentou ao sintagma identidade-metamorfose-emancipação a

possibilidade de elevar a teoria de identidade de uma categoria de análise a uma teoria

de alto teor político. Dissemos anteriormente que Ciampa rompe com a dicotomia

existente entre identidade pessoal e identidade social, pois considera que toda

identidade é social. Lembramos que Mead já havia alertado sobre isso ao postular que

“uma pessoa é uma personalidade porque pertence a uma comunidade, porque incorpora

as instituições da comunidade em sua conduta”107. O que não havíamos explorado na

teoria de Ciampa é a discussão que esse autor propõe ao discorrer acerca da relação dos

indivíduos com outros indivíduos, aquilo que denomina como identidade coletiva.

107 MEAD, George Herbert. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.162.

Tradução nossa: “a person is a personality because he belongs to a community, because he takes the institutions of the community into his own conduct.”

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Novamente remetemo-nos A estória do Severino e a História da Severina, e

lembramos que nesse trabalho a discussão da identidade coletiva não aparece como foco

principal. O problema político surge quando o uso dos relatos simbólicos, da memória

coletiva, narrativas de história de vida, aparecem como discursos a favor de uma

autodeterminação excludente e colocam à prova a solidariedade universal. Ciampa,

entretanto, retoma essas questões e avança frente às primeiras proposições

habermasianas e mostra a possibilidade do sintagma identidade-metamorfose-

emancipação avaliar o quanto determinadas identidades coletivas possuem uma

expressão emancipatória ou reacionária (reiterativa)108. Antes de discorrer acerca dessas

contribuições, daremos mais um passo atrás, trazendo algo não dito anteriormente que

julgamos imprescindível a uma reatualização da discussão de Ciampa sobre a luta pela

afirmação e pelo desenvolvimento de identidade coletivas.

Vimos que Ciampa assume algumas das preocupações de Habermas e que isso

possibilitou ampliar a concepção de identidade metamorfose para o sintagma

identidade-metamorfose-emancipação. Acreditamos que na apresentação dessa

apropriação da teoria habermasiana foi possível observar que este último assumiu uma

postura teórica na qual, distanciando-se da Psicanálise, passou a assumir que a

dimensão pragmática está na base de todas as funções da linguagem. O que pode não ter

ficado claro é o fato de que, por conseqüência, essa atitude levará esse autor a

desenvolver uma pragmática universal da linguagem cuja função é identificar,

reconstruir condições universais de possível compreensão mútua (Vertändingung) e

analisar as influências da racionalidade sistêmica como instância que pode neutralizar as

ações comunicativas, levando a uma colonização do mundo da vida. Entendendo a

complexidade da linguistic turn habermasiana, parece apropriado apresentar, mesmo

que de forma simplificada, como Habermas entende os conceitos de ação comunicativa,

lógica sistêmica e mundo da vida, para então avançarmos em nosso texto.

A teoria da ação comunicativa é resultado da leitura realizada da teoria dos atos

de fala postulada por John L. Austin109, que leva Habermas à conclusão de que nos atos

108 Para maior aprofundamento do que seria práxis reiterativa, conferir o trabalho: VASQUEZ, Adolfo

Sánchez. Filosofia da Práxis. De forma sintética podemos adiantar que para Vasquez a práxis pode se apresentar de duas formas: como práxis reiterativa ou como práxis inovadora. A primeira é aquela que segue com conformidade as leis traçadas a priori e cujos produtos seguem em conformidade com o desenvolvimento social; a segunda, por sua vez, questiona as leis previamente determinadas e resulta em um produto novo e único.

109 Cf. AUSTIN, John L. Cómo hacer cosas con palabras.

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de fala constatativos estaria contida uma proposta que nos permitiria recorrer à fonte

experimental de onde o falante tira a certeza de que aquilo que afirma é verdade; e que

nos atos de fala regulativos encontramos apenas a proposta por parte do falante de

indicar, se necessário, o contexto normativo que lhe dá convicção de que sua expressão

está certa. Inaugura-se um ideal de normalidade para a linguagem, cujo pressuposto é

que o falante experiencia uma obrigação imanente aos atos de fala, mais concretamente,

a obrigação de provar a verdade, ou seja, demonstrar nas conseqüências de suas ações

o que realmente queria. Nessa perspectiva, a força de um argumento consiste em seu

conteúdo racional, explicitado em sua capacidade de convencimento dos indivíduos

envolvidos na negociação, em outras palavras, na capacidade de fazê-los compreender

as pretensões de validade contidas nos proferimentos postos em questão. Aqui aparece a

criticada “situação ideal de fala”110, em que pressupõe-se o exercício efetivado de uma

estrutura pragmática de comunicação, da prática comunicativa lingüística, isenta de

qualquer tipo de coação externa ou distorção interna111. E a partir dessa concepção,

Habermas designa a estrutura pragmática da comunicação, ou seja, toda a série de

caracteres formais que devem ser contidos nas argumentações discursivas geradoras de

consenso.

No que se refere ao gênero humano, essa concepção leva Habermas a defender

que diferente das espécies naturais, o humano emancipou-se da esfera da natureza por

ser dotado de um atributo inerente: a “competência comunicativa”, entendida como

“competência universal, ou seja, independente desta ou daquela cultura”112. Essa

competência comunicativa criaria todas as possibilidades para a individuação,

socialização e desenvolvimento cultural dos indivíduos. Nesse sentido, importa-lhe

demonstrar que o emprego lingüístico “estratégico”, ou seja, a comunicação que

seguiria uma orientação não para o “entendimento”, mas para o “sucesso”, para o

“conflito”, para a “competição”, está numa relação de dependência com o emprego

lingüístico de “orientação para o entendimento”. Em outras palavras, a Habermas

110 HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa. Tomo I. p.46. 111 Sérgio Paulo Rouanet escreve que a situação ideal de fala repele tanto as ideologias como as neuroses,

elementos que prejudicariam a aquisição intersubjetiva de consenso por parte de sujeitos lingüística e interativamente competentes. Cf. ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. p.294. José Luiz Aidar, por sua vez, critica essa idealidade por achar que ao não considerar os elementos inconscientes presentes no discurso, Habermas estaria sendo de certa maneira ingênuo. Cf. PRADO, José Luiz Aidar. Teoria da Sociedade ou Teoria da Comunicação? p.213 et seq.

112 HABERMAS, Jürgen. Notas sobre el desarrollo de la competencia interactiva. Tradução nossa: “competencia universal, es decir, independiente de ésta o aquella cultura”. p.161.

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importa demonstrar que, apesar de empregos lingüísticos estratégicos, qualquer

indivíduo que pretender participar num processo através do qual se procura chegar a um

entendimento, não poderá evitar de apresentar as seguintes (e, no fundo, precisamente

as seguintes) pretensões de validade: a) enunciar de uma forma inteligível; b) dar (ao

ouvinte) algo que compreenderá; c) fazer-se a si mesmo desta forma, entender; e d)

atingir o seu objetivo de compreensão junto ao outro.

A aposta habermasiana está na crença de que essas pretensões de validade

necessárias à ação comunicativa são intranscendíveis e universais, uma vez que não

podem ser negadas nem contestadas sem cair em contradição performativa113. O que

não significa que isso seria uma garantia de entendimento a priori. O próprio Habermas

assinala que “o significado da validade [do discurso] reside no seu valor em termos de

reconhecimento, ou seja, na garantia de que o reconhecimento intersubjetivo pode ser

atingido se as condições forem favoráveis”114. Isso significa assumir que toda pretensão

de validade exige a tomada de posição sim/não115 por parte dos destinatários. A questão

estaria em verificar quatro pretensões de validade, presentes em toda ação

comunicativa, que devem ser apresentadas simultaneamente e reconhecidas como

justas, embora não possam ser tematizadas ao mesmo tempo. A esse respeito Habermas

escreve:

A universalidade das pretensões de validade inerentes à estrutura do discurso poderá talvez ser explicada através da referência ao lugar sistemático da linguagem. Esta constitui um meio através do qual falantes e ouvintes fazem certas demarcações fundamentais: um indivíduo demarca-se (i) de um meio-ambiente que objectiva numa atitude de terceira pessoa típica de um observador; (ii) de um meio-ambiente com o qual se coloca em conformidade ou se afasta na atitude performativa de um participante; (iii) da sua própria subjectividade, que expressa ou esconde na atitude de primeira pessoa; e, finalmente, (iv) de um meio da própria linguagem. Para esses domínios da realidade, propusemos as de alguma forma arbitrariamente escolhidas designações de natureza externa, sociedade, natureza interna e linguagem.116

A citação assinala que o lugar sistemático da linguagem, de onde surgem as

pretensões de validade dos discursos, está relacionado a quatro tipos de relação com a

realidade, assumindo funções pragmáticas correspondentes de representação,

113 Para maiores detalhes acerca da contradição performativa, consultar o trabalho: Idem. Consciência

moral e agir comunicativo. p.113-114. 114 HABERMAS, Jürgen. O que é a Pragmática universal? p.15. [grifos do autor] 115 Idem. Pensamento pós-metafísico. p.145. 116 Idem. O que é a Pragmática universal? p.98. [grifos do autor]

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estabelecimento de relações interpessoais e expressão de subjetividade específicas. Por

natureza externa o autor compreende que pode estar explicitamente declarado no

conteúdo dos proferimentos — a objetividade aparece aqui como a medida para avaliar

a veracidade do discurso. A partir do contato com a realidade social (sociedade), tem-se

a possibilidade de incorporar a normatividade, o que possibilitaria questionar as normas

e valores institucionalizados. Do mesmo modo, para Habermas, na natureza interna dos

indivíduos manifesta-se o discurso por meio das intenções do falante. Nesse nível os

indivíduos poderiam avaliar as condições de “correção” (que é a pretensão com a qual

avaliamos a validade de uma expressão em termos normativos) e “veracidade” (que é a

pretensão com que afirmamos a validade da intenção expressa nessa mesma expressão).

Finalmente, por intersubjetividade da linguagem (linguagem), o autor entende o caráter

como a capacidade de exercer os atos de fala por meio de significados idênticos, que

garantiria o reconhecimento de pretensões universais. Nesse último item a pretensão de

validade é garantida pelo grau de compreensibilidade desenvolvida entre os falantes.

A partir dessas considerações em sua Teoria da Ação Comunicativa, Habermas

defenderá que das relações intersubjetivas estabelecidas entre indivíduos lingüística e

interativamente competentes, um verdadeiro processo de “reprodução cultural,

integração social e socialização” é instituído117. Nesse processo verdadeiro as

“estruturas simbólicas do mundo da vida se reproduzem por meio da continuação do

saber válido da estabilização da solidariedade dos grupos e da formação de atores

capazes de responder por suas ações”118. Em outras palavras, a ação comunicativa é

entendida como “um processo cooperativo de interpretação, em que os participantes se

referem simultaneamente a respeito de algo no mundo objetivo, no mundo social e no

mundo subjetivo”119, visando atingir o entendimento por meio de um “reconhecimento

intersubjetivo da pretensão de validade” das emissões proferidas — encontra o seu

complemento no mundo da vida (Lebenswelt)120. Este último, por sua vez, possui três

117 HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.

p.196. 118 Ibidem. p.196. Tradução nossa: “estructuras simbólicas del mundo de la vida se reproducen por vía de

la continuación del saber válido de la estabilización de la solidaridad de los grupos y de la formación de actores capaces de responder de sus acciones.”

119 Ibidem. p.171. Tradução nossa: “la acción comunicativa se basa en un proceso cooperativo de interpretación en que los participantes se refieren simultaneamente a algo en el mundo objetivo, en el mundo social y en el mundo subjetivo”.

120 Habermas escreve que introduz o mundo da vida “privisonalmente, y, por cierto, desde la perspectiva de una investigación reconstrutiva. Constituye un concepto complementario del de acción comunicativa.”

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características básicas: a) tem o caráter de “comunidade em sentido radical”, b) possui

um a priori social inscrito intersubjetivamente, e c) forma um contexto em que ele

próprio, sem limites, delineia limites.121 Isso ocorre porque o mundo da vida, tal como

descreve Habermas, é o lugar transcendental:

(...) em que falante e ouvinte se encontram, onde eles podem reciprocamente colocar a pretensão de que suas declarações se adequam ao mundo (objetivo, social ou subjetivo) e onde eles podem criticar e conformar a validade de seus intentos, solucionar seus desacordos e chegar a um acordo. Numa sentença: os participantes não podem in actu assumir em relação à linguagem e à cultura a mesma distância que assumem em relação à totalidade dos fatos, normas ou experiências concernentes sobre os quais é possível um mútuo entendimento.122

Enquanto lugar transcendental, o mundo da vida se manifesta nas infinitas

possibilidades de interação lingüísticas empreendidas socialmente, podendo ser

entendido como um “horizonte” em que os agentes comunicativos se movem “desde

sempre”123. Sendo assim, quando pelo menos dois indivíduos lingüística e

interativamente competentes estiverem presentes travando uma relação dialógica com o

objetivo de alcançar um entendimento sobre algo no mundo, um fragmento do mundo

da vida emergirá, constituindo para eles aquilo que apontamos anteriormente como

“situação ideal de fala”, que é para Habermas “o centro de seu mundo da vida”124. Ao

fundamentar-se na prática comunicativa cotidiana, o conceito habermasiano de mundo

da vida mostra que a ação comunicativa, “sob o aspecto funcional do entendimento (...)

serve à tradição e à renovação do saber cultural; sob o aspecto de coordenação da ação,

serve à integração social e a criação da solidariedade; e, finalmente, sob o aspecto da

socialização, serve à formação de identidades pessoais”125. O mundo da vida

apresentado por Habermas é assim uma espécie de pano de fundo (background) 121 Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.

p.187-188. 122 Ibidem. p.179. Tradução nossa: “en que hablante y oyente se salen el encuentro; en que pueden

plantearse reciprocamente le pretención de que sus emisiones concuerdan con el mundo (con el mundo objetivo, con el mundo subjetivo y con el mundo social); y en que pueden criticar y exhibir los fundamentos de esas pretensiones de validez, resolver sus disentimientos y llegar a un acordo. En una palabra: respecto al lenguaje y a la cultura los participantes no pueden adoptar in actu la misma distancia que respecto a la totalidad de los hechos, de las normas o de las vivencias, sobre que es posible el entendimiento.

123 HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.p.169. 124 Ibidem. p.175. 125 Ibidem. p.196. Tradução nossa: “bajo el aspecto funcional de entendimiento, la acción comunicativa

sierve a la tradición y a la renovación del saber cultural; bajo el aspecto de coordinación de la acción, sirve a la integración social y a la creación de solidaridad; y bajo el aspecto de socialización, finalmente, sirve a la formación de identidades personales.”

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compartilhado intersubjetivamente. Estruturado a partir de três componentes que

garantem a estabilidade dos processos de socialização e individualização, mediadas pela

linguagem. São eles: a Cultura, compreendida como reserva do conhecimento válido

alimentada pelas interpretações lingüísticas e pela tensão entre os conteúdos da tradição

e da modernidade; a Sociedade, composta por normas, pelas quais os participantes de

processos comunicativos regulam seu pertencimento a grupos sociais; e a

Personalidade126, vista como um conjunto de motivações que inspiram o indivíduo à

ação e é capaz de pruduzir uma identidade, “tão sólida que permite dominar com pleno

sentido de realidade as situações que surgem em seu mundo da vida”127. O mundo da

vida, descrito por Habermas, é o espaço de continuidade e renovação da tradição, ou

seja, “da possibilidade de ordenações legítimas estabilizarem as identidades de grupo e

da socialização dos novos membros que surgem a cada geração, constituindo suas

identidades pessoais”128.

A esta altura se torna evidente que o conceito de mundo da vida aparece em

Habermas como elemento necessário para a compreensão constitutiva da linguagem, da

formação identitária e reprodução social. Todavia, Habermas atenta para o fato de que

devido à crescente racionalização e burocratização da vida, apontada nos trabalhos de

Max Weber e explorada por Herbert Marcuse129, os indivíduos participantes desse

mundo da vida também estariam sujeitos a intervenções sistêmicas que, a partir das

tentativas de neutralização do mundo da vida pela ação instrumental, distorceriam a

comunicação e produziriam as patologias da modernidade. A intervenção sistêmica é 126 HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.p.196. 127 Ibidem. p.202. Tradução nossa: “tan sólida que les permite dominar con pleno sentido de la realidad

las situaciones que surgen en su mundo de la vida.” 128 PRADO, José Luiz Aidar. O pódio da normalidade: considerações sobre a teoria da ação

comunicativa e a psicologia social. p.152. 129 O ensaio de Herbert Marcuse, apresentado na Conferência do XV Congresso de Sociólogos da

Alemanha, em Heidelberg, no ano de 1964, intitulado: Industrialização e Capitalismo na obra de Max Weber, aprofunda essa discussão e inaugura o conceito de razão instrumental, que será resgatado por Habermas em Ciência e Técnica como “Ideologia” e posteriormente utilizado como elemento central na construção da Teoria da Ação Comunicativa. De acordo com Herbert Marcuse, o processo de racionalização descrito por Max Weber não teria implantado a racionalidade propriamente dita, mas sim, “uma forma determinada de dominação política oculta”. Nesse sentido, a “ação racional referente a fins” derivada deste tipo de racionalidade nada mais é do que “exercício de controle”. Como explica Jessé Souza, para Max Weber existe uma diferença entre racionalismo e racionalidade. Esta última significa “o imperativo de qualquer existência humana de tornar-se uma personalidade na medida em que a corrente de decisões última que dá, em última instância, o sentido da individualidade de uma vida, passa a ser conscientemente executada e mantida.” Cf. SOUZA, Jessé. Patologias da modernidade: um diálogo entre Habermas e Weber. p.69. Racionalismo, por sua vez, “significa a forma, culturalmente singular, como uma civilização específica, e por extensão também os indivíduos que constituem sua maneira de pensar e agir a partir desses modelos culturais, interpreta o mundo.” SOUZA, Jessé. O mundo desencantado. p.8

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interpretada por Habermas como aquilo “que desconecta a coordenação da ação da

formação linguística comunicativa”, neutralizando-a130, em oposição à integração

social, que proporciona aos participantes o alcance do consenso. O autor reforça que o

sistema pode ser compreendido como o locus das esferas econômica e burocrática, cuja

característica principal é ter como meios de controle o dinheiro e o poder, dois

elementos que tomam o lugar da linguagem nos processos de entendimento, sendo

responsáveis pela tecnicização do mundo da vida131, que, de acordo com a análise

realizada por Habermas, seria hegemônica na atualidade132. A justificação ideológica do

poder, exercido não mais pelo discurso metafísico (como ocorria na Idade Média), nem

pelo sistema de parentesco, mas sim por dispositivos muito mais superiores, são

realizados pelos analistas simbólicos, funcionários públicos suscetíveis de gozarem de

privilégios políticos e econômicos133.

A tarefa da Teoria Crítica habermasiana passa a ser, portanto, apreender o modo

como esta diferenciação entre mundo da vida e lógica sistêmica se efetiva. A crítica se

direciona para o telos do entendimento, ao ponto de Habermas afirmar que as patologias

da sociedade surgem quando os meios a-linguísticos dinheiro e poder — que exercem

seu controle sobre a reprodução social sem recorrer às interações linguísticas — passam

a atacar o espaço intersubjetivo que emerge nas relações entre sujeitos linguística e

interativamente competentes para assim instrumentalizá-lo, configurando uma

verdadeira violência estrutural.

As coações provenientes da reprodução que instrumentalizam o mundo da vida, sem reduzir a aparência de autarquia deste mundo, têm, por assim dizer, que ficar ocultas nos poros das ações comunicativas. O resultado disso é uma violência estrutural que, sem se manifestar como tal, se apodera da forma de

130 HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.

p.258. Tradução nossa: desconectan la coordinación de la acción de la formación lingüística de consenso, neutralizándola”. [grifos do autor] Em outro trabalho, Habermas vai escrever que por via sistêmica o mundo da vida, que serve como pano de fundo, é neutralizado, principalmente “quando se trata de vencer situações que caíram sob imperativos do agir orientado pelo sucesso; o mundo da vida perde sua força coordenadora em relação à ação, deixando de ser fonte garantidora do consenso.” Idem. Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos. p. 97

131 Idem. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista. p.259. 132 De acordo com o diagnóstico habermasiano, o mundo da vida sofre uma forte influência de uma razão

instrumental que predominaria no "sistema", isto é, nas esferas da economia e da política (Estado) que, no processo de modernização capitalista, acabou dominando e "colonizando" o mundo da vida. Os termos ‘pano de fundo’ , ‘primeiro plano’ e ‘recorte do mundo da vida relevante para a situação’, só fazem sentido se adotarmos a perspectiva de um falante que deseja entender-se com outro sobre algo no mundo e que pode apoiar a plausibilidade da oferta de seu ato de fala sobre uma massa de saber não temático, partilhado intersubjetivamente.

133 Cf. Ibidem. p.232 et seq.

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intersubjetividade do entendimento possível. A violência estrutural se exerce através de uma restrição sistemática da comunicação.134

Habermas entende que na sociedade capitalista, a instrumentalização e a

violência estrutural do mundo da vida são processos indissociáveis: ambas

desembocariam na redução e ajustamento da prática comunicativa a ações meramente

cognitivo-instrumentais. Viveríamos uma colonização do mundo da vida por

imperativos de subsistemas autonomizados, que não estando mais implicitamente

presentes na sociedade de forma ideológica, invadem de fora o mundo da vida —

“como senhores coloniais em uma sociedade tribal”135 — e impõem a assimilação da

dominação. O resultado dessa colonização é evidente: uma vez que o potencial

comunicativo é neutralizado, as interpretações cognitivas, as expectativas morais, as

expressões de valores, as organizações comunitárias e solidárias, tem de formar um todo

racional por meio de duas tendências interligadas e mutuamente potencializadas que

conduzem “a uma racionalização unilateral ou de uma coisificação da prática

comunicativa cotidiana”136. De um lado, uma reificação conduzida sistematicamente e,

de outro, um empobrecimento cultural.

Entender a ação instrumental como ação não-social leva o autor a afirmar que

“nas deformações do mundo da vida, sintomas de rigidificação combinam-se com

sintomas de devastação”137. Sendo que a primeira tendência é resultado da

racionalização unilateral da comunicação cotidiana, trazendo para o mundo da vida uma

ausência de conteúdo normativo e de tradições vivas138; a segunda, por sua vez, o

resultado da penetração das formas de racionalidade econômica e administrativa no

interior das áreas de ação139. É importante salientar que esse modelo de análise não se

restringe à análise da relação entre dois indivíduos. No contexto institucional, Habermas

134 HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.

p.264. Tradução nossa: “las coacciones dinamanantes de la reproducción que instrumentalizan al mundo de la vida sin menguar la apariencia de autarquía de esse mundo tiene, por así decirlo, que ocultarse en los poros de la acción comunicativa. El resultado de ello es una violencia estructural que, sin hacerse manifesta como tal, se apodera de la forma de la intersubjetividad del entendimiento posible. La violencia estructural se ejerce a través de una restricción sistemática de la comunicación.” [grifos do autor]

135 Ibidem. p.502. 136 Ibidem. Loc. cit. Tradução nossa: “a una racionalización unilateral o a una cosificación de la prática

comunicativa cotidiana”. 137 Ibidem. p.464. Tradução nossa: “en las deformaciones del mundo de la vida se aúnan síntomas de

anquilosamiento com sintomas de desertización”. 138 Ibidem. p.465. 139 Ibidem. p.469.

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também enxerga a possibilidade de criação e manutenção de falsos consensos, sendo

necessária uma certa atenção a esse aspecto. Nesse último caso, a questão consiste,

precisamente, em saber como as formas de representação e as práticas de instituições

contemporâneas afetam os ânimos:

(...) se as encenações simbólicas conseguem criar obrigatoriedades através de suas ficções normativas, ou se elas apenas reforçam pretensões de validade normativas, ou seja, contribuem para que certas ideias obtidas de modo racional lancem raízes nos motivos e na consciência dos participantes.140

Essa preocupação justifica-se na medida em que Habermas entende que é

justamente nos espaços públicos, no mundo da vida, que o indivíduos utilizam-se da

tradição, das instituições, para estabelecerem relações comunicativas. E uma vez que

essas instituições, de forma ideológica e/ou perversa, distorçam e impossibilitem a ação

comunicativa, tem-se a semiformação de indivíduos, que “abandonados uns dos outros”,

“tornam-se susceptíveis de serem doutrinados e postos em movimento por chefes

plebiscitários e ser movidos a ações de massa”141. É certo que ao assumir essa postura

teórico-metodológica Habermas apresenta vários problemas, tornando-se alvo de várias

críticas. Dentre elas, as realizadas por Axel Honneth.142

Honneth concorda com a análise realizada por Habermas dos trabalhos de

Adorno e Horkheimer — que atribuíram à racionalidade um caráter exclusivamente

“instrumental” —, considerando como não adequados para os objetivos de uma teoria

crítica da sociedade que se propusesse a transformar as condições sociais. Todavia,

Honneth não concordará plenamente com o resultado da crítica elaborada por Habermas

aos problemas identificados nos autores da primeira geração. A ênfase na colonização

do mundo da vida pela lógica sistêmica e no ideal utópico de consenso livre de coerção

(entendimento) teriam distanciado Habermas da temática central da Teoria Crítica: o

conflito social. Na divisão entre sistema e mundo da vida, o autor da teoria da ação

comunicativa teria cedido demais à teoria dos sistemas, justificando a racionalidade

instrumental como necessária para a coordenação da ação social e reprodução material 140 HABERMAS, Jürgen. Expressão simbólica e comportamento ritual: uma visão retrospectiva

sobre Ernst Cassirer e Arnold Gehlen. p. 86. 141 Idem. Más allá del Estado Nacional. p.161. Tradução nossa: “resultan susceptibles de ser

adoctrinados y puestos en movimiento por cadillos plebiscitarios y ser movidos a acciones de masas. 142 Axel Honneth é conhecido como o mais novo herdeiro frankfurtiano, representando a terceira geração

da Teoria Crítica. Foi assistente de Habermas entre 1984 e 1990, atualmente é professor titular de filosofia social da Universidade Goethe e diretor do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt.

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das sociedades complexas, gerando, segundo Honneth, um déficit sociológico: uma

concepção de sociedade que tem duas formas de racionalidade e nenhuma mediação

entre elas143.

Honneth assinala ainda, e concordamos com ele nesse sentido, que a distinção

entre “sistema” e “mundo da vida” é ambígua, oscilando entre uma concepção

meramente analítica e outra “real” entre as esferas sociais, ao ponto de parecer, em

certos momentos da teoria da ação comunicativa, que o autor se refere a dois mundos

distintos. Como conseqüência, no modelo habermasiano, “a dinâmica de transformação

e as patologias sociais passam a ser descritas de forma muito abstrata, mecânica e

funcional”144. O modelo consegue explicar como o mundo da vida pode ser colonizado

pelos imperativos sistêmicos, entretanto, não consegue explicar como isso se reflete nas

experiências dos indivíduos. Isso ocorreria, segundo Honneth, porque Habermas não se

atentou para a dimensão do conflito, que, como já vimos, é entendido por Habermas

como uma violação do “ponto de vista moral” estabelecido entre os falantes e uma

problemática a ser enfrentada pela ética do discurso que busca o ideal de fala (consenso

livre de coerção).

Para desfazer o déficit sociológico, a saída apontada por Honneth é a de desenvolver o paradigma da comunicação mais em direção aos pressupostos sociológicos ligados à teoria da intersubjetividade, no sentido de explicitar as expectativas morais de reconhecimento inseridas nos processos cotidianos de socialização, de construção da identidade, interação social e reprodução cultural. Portanto, o paradigma da comunicação, para Honneth, teria de ser desenvolvido não nos termos de uma teoria da linguagem, mas a partir das relações de reconhecimento formadoras de identidade. A dinâmica da reprodução social, os conflitos e a transformação da sociedade poderiam ser mais bem explicados a partir das pretensões de identidade individual e coletiva.145

143 Cf. NOBRE, Marcos. Luta por recohecimento: Axel Honneth e a teoria crítica. José Luiz Aidar

Prado realizou uma crítica que segue nesse sentido. Esse autor entende como complicada a divisão realizada por Habermas entre sistema e mundo da vida, porque este último não teria explicado como ocorrem os fluxos entre os dois mundos. “A crítica resulta ancorada num paradigma comunicativo que precisa, para sua definição, de um conceito de ‘uso normal da linguagem’, posição esta que permitiria a correlação de desvios ideológicos. Essa dupla face da razão, fatiando a sociedade em mundo da vida e sistema, por um lado, sem especificar de modo satisfatório a relação de negociação diante dos conflitos entre esses mundos, e a idealização da ação comunicativa, [por outro], fazem com que a saída habermasiana seja extremamente problemática.” PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do intelectual: do extrato comunicável ao ato impossível. p.88.

144 WERLE, Denílson Luis & MELO, Rúrion Soares. Teoria crítica, teorias da justiça e a “reatualização” de Hegel. p.12.

145 Ibidem. p.12-13.

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147

A base da interação social, deste modo, desloca-se da proposição habermasiana

de que no mundo da vida a linguagem é o télos do entendimento, para a proposição

elaborada por Honneth de que a linguagem é o télos do reconhecimento, uma vez que

cada vez mais vemos os indivíduos se orientando apenas por “esferas juridicamente

institucionalizadas das práticas comunicativas”146. Para neste momento não nos

determos nessa problemática, faremos uma maior discussão da teoria de luta por

reconhecimento elaborada por Honneth mais adiante. Vale lembrar que com as

considerações feitas até esta altura estamos buscando mais subsídios para discutir as

expressões emancipatórias ou reacionárias de determinadas identidades coletivas.

Daremos agora seguimento apresentando alguns elementos apresentados por Habermas

em Direito e Democracia I e II, uma vez que nesses textos o autor retoma a temática da

esfera pública, abandonada desde a publicação de Mudança estrutural da esfera

pública147, e parece oferecer para Ciampa motivos para desenvolver o que ele denomina

ser a tensão entre as políticas de identidade e as identidades políticas.

Em Direito e Democracia II, Habermas assume que até então havia tratado a

esfera pública como se fosse uma estrutura comunicacional enraizada no mundo148. Ao

espaço público político era creditado o rótulo de caixa de ressonância dos problemas

elaborados pelo sistema. Todavia, a autor alerta para o fato de que a partir do momento

em que passamos a viver em sociedades democráticas, a esfera pública deve superar sua

condição de identificadora dos problemas para assumir a tarefa de “tematizá-los,

problematizá-los e dramatizá-los de modo convincente e eficaz, a ponto de serem

assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar”149. Habemas retoma aqui a

perspectiva ampla de sociedade possibilitadora da constituição do Eu, como foi

desenvolvida por Mead, na qual o processo social promotor de experiência e condutas

que um grupo pode colocar em prática é representado diretamente pela sua própria

experiência comunicada entre os distintos membros150. A esfera pública, nesse sentido,

é o espaço existente em que há mais do que aquilo o próprio Habermas, em sua Teoria

da Ação Comunicativa, denomina de lógica sistêmica, “pois mesmo que seja possível

146 HONNETH, Axel. Patologias da liberdade individual. p.90. 147 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma

categoria da sociedade burguesa. 148 Idem. Direito e Democracia. Volume II. p.91 et seq. 149 Ibidem. p.91. 150 MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.235 et

seq.

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delinear seus limites internos, exteriormente ela [a esfera pública] se caracteriza através

de horizontes abertos permeáveis e deslocáveis”151, e assemelha-se ao Mundo da Vida,

na medida em que “se reproduz através do agir comunicativo”152.

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de condensarem-se em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.153

A esfera pública, nessa concepção, torna-se o espaço de debate e validação dos

temas advindos do mundo da vida, o qual, como sabemos, sofre fortes investidas da

lógica sistêmica. Um espaço de luta por influência, não somente de determinadas

instituições, mas também de indivíduos e especialistas, os quais, como Habermas

reconhece, “conquistaram sua influência através de esferas públicas especiais (por

exemplo, a autoridade de membros de igrejas, a notoriedade de literatos e artistas, a

reputação de cientistas, o renome dos astros do esporte, do showbusiness, etc.)”154.

Nesse ponto o espaço público se estende para além do contexto das interações simples

ao ponto de induzir o público privado, que “tem de ser convencido através de

contribuições compreensíveis e interessantes sobre temas que eles sentem como

relevantes”155. Novamente recorremos a Mead, que já alertava para a possibilidade de

uma fusão entre o “mim” e o “eu”, que daria a sensação de que estamos fazendo parte

de uma mesma comunidade156. Para Mead isso ocorreria pelo fato de dependermos de

um outro generalizado, ou instituição, para podermos adotar atitudes socialmente

válidas: “o ‘outro organizado’ presente em nós mesmos, é, pois, uma comunidade de

um diâmetro estreito”157. Ainda citando Mead, e finalmente abrindo espaço para as

proposições de Ciampa acerca das identidades coletivas:

Em geral, o Self tem respondido definitivamente à organização da reação social que constitui a comunidade enquanto tal; o grau em que o Self se desenvolve

151 HABERMAS, Jürgen. op.cit. p.92. 152 Ibidem. Loc. cit. 153 Ibidem. Loc. cit. 154 Idem. Direito e Democracia. Volume II. p.95-96. 155 Ibidem. p.96. [grifos do autor] 156 MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.260 et

seq. 157 Ibidem. p.265. Tradução nossa: “The ‘organized other’ present in ourselves is then a community of a

narrow diameter.”

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depende da comunidade, do grau em que o indivíduo provoca em si mesmo esse grupo de reações institucionalizadas.158

A esfera pública, ou sociedade, aqui apresentada, parece ser a arena em que

Ciampa discute a luta pela afirmação e pelo desenvolvimento de identidades coletivas,

que tanto podem controlar as condições de vida de seus membros quanto podem mediar

e potencializar o desenvolvimento de identidades políticas. Em outras palavras,

articulado de forma dialética, o conceito de identidade política desenvolvido por

Ciampa, por um lado, permite verificar que mesmo dentro de grupos que lutam pelo

reconhecimento legítimo de determinadas políticas de identidade, existem expressões de

opressão à identidade, “políticas de administração competente” citadas por Žižek159, que

aparecem nos momentos em que a individualidade de determinado sujeito é massacrada

pelo grupo que não suporta a não submissão à ideologia grupal, que caso fosse

realizada, resultaria na própria totalidade desse mesmo sujeito. Como bem assinala

Almeida, nessas situações, “as políticas de identidade obedecem a razões político-

estratégicas de determinados atores sociais, direcionando os relacionamentos entre os

indivíduos e entre os diferentes grupos que integram uma dada sociedade”160. Por outro

lado, o conceito de identidade política permite entender as metamorfoses que acontecem

nesses mesmos grupos e enxergá-los como espaços democráticos também, que se

metamorfoseiam na medida em que os interesses individuais mobilizam os grupais.

Como o próprio Ciampa escreve, ao assumirmos essa perspectiva:

Sempre é possível perguntar se movimentos que levam a novas identidades podem preservar o espaço político como arena de questionamento e tematização de questões individuais e coletivas, sem que esses movimentos também incrementem maior racionalização do poder e da dominação. Haveria uma dialética inevitável entre progresso e desenvolvimento, de um lado e, de outro, opressão e exploração? Querer desenvolver projetos democráticos não exige articular a construção e o reconhecimento de novas identidades com a auto-organização jurídica de cidadãos livres e iguais?161

158 MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.265.

Tradução nossa: “In general, the self has answered definitely to that organization of the social response which constitutes the community as such; the degree to which the self is developed depends upon the community, upon the degree to which the individual calls out that institutionalized group of responses in himself.”

159 ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real. p.25 160 ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.131. 161 CIAMPA, Antonio da Costa. Políticas de Identidade e Identidades Políticas. p.134.

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As proposições de Ciampa alinham-se nesse ponto à crítica realizada por

Habermas às identidades nacionais, a qual, como observamos, aponta para a idéia de

que esse tipo de identidade é uma clausura, que subestima o potencial inovador do

presente; são apenas os resultados de reivindicações das tradições que pretendem

renovar o passado, cujo sentido é o problema da não criação autônoma e livre. Em

geral, essas políticas de identidade são, “por conseqüência, políticas regulatórias que

visam cristalizar os papéis e os lugares sociais, assim como as correspondentes

identidades dos indivíduos”162. Vale lembrar que quando trabalhamos as políticas de

identidade como instrumento de regulação, estamos nos referindo às situações onde

essas políticas são utilizadas de forma ideológica para a manutenção de uma

determinada realidade instituída, não possibilitando a expressão da subjetividade

individual. Fazer esse apontamento é importante porque permite que encontremos essas

formas de regulação até mesmo em espaços considerados revolucionários, como é o

caso dos movimentos sociais que ao invés de desestruturar o capital trabalha

contraditoriamente em favor de seu desenvolvimento. Uma boa discussão a esse

respeito é realizada por Žižek no ensaio em que discute as condições do

multiculturalismo na sociedade capitalista. Para Žižek, inclusive, é fácil comprovar que

a promoção de um discurso essencialista sobre a identidade individual realizada pelos

coletivos intervém exclusivamente na produção ideológica e na dimensão cultural da

vida política sem desestabilizar o capital.

Uma vez mais, a necessidade do fracasso é estrutural: o problema não é simplesmente que, devido à complexidade empírica da situação, nunca haverá uma união de todas as lutas “progressistas” particulares, que sempre ocorrerão cadeias de equivalências “erradas” – por exemplo, o encadeamento da luta pela identidade étnica afro-americana à ideologia patriarcal e homofóbica; trata-se ao contrário, de que as emergências dos encadeamentos “errados” estão alicerçadas no próprio princípio estruturante da política “progressista” atual de criação de “cadeias de equivalências”: o próprio âmbito da multidão de lutas particulares, com seus deslocamentos e condensações em constante mutação, é sustentado pela “repressão” do papel chave da luta econômica – a política de esquerda em relação às “cadeias de equivalências” entre a pluralidade de lutas é estritamente correlativa ao abandono tácito da análise do capitalismo como sistema econômico global e à aceitação das relações econômicas capitalistas como marco inquestionável.163

162 ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.132. 163 ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.36.

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O desafio, que é evidente, surge quando questionamos se os discursos dos

movimentos sociais, espaços pretensamente revolucionários etc., podem desestabilizar

formas ideológicas sem eliminar o propósito prático da auto-determinação. Percebemos

aqui a necessidade do sentido de comunidade para a constituição da identidade, pois,

como Mead havia ensinado, a identidade do “eu” é resultado da identidade coletiva e do

reconhecimento do outro. Ciampa também esclareceu essa questão quando aponta que a

identidade somente se torna possível pelo reconhecimento da humanidade do bicho-

humano, de sua identidade pressuposta que o incorpora ao discurso social. Nesse

sentido, a análise das políticas de identidade requer que analisemos o sentido interno da

coesão grupal que acaba se manifestando em suas práticas públicas.

Tomemos como exemplo a coletividade antimanicomial. Não é novidade que

encontremos nos espaços de discussão dos direitos para esse grupo a presença

esmagadora de profissionais (técnicos) e estudantes, mas uma parcela muito tímida de

usuários dos serviços de saúde mental (o termo usuário aqui é proposital). O espaço de

influência que deveria ser de tomada do poder de uma minoria (silenciada ao longo da

história da loucura) é ocupado por “autoridades”. Àquilo que Nancy Fraser identificou

como uma “identidade de grupo única, drasticamente simplificada, que nega a

complexidade das vidas das pessoas, a multiplicidade de suas identificações eos contra-

golpes de várias afiliações”164. Quando muito, o “usuário”, o “portador de sofrimento

psíquico”, serve de exemplo empírico dos discursos pró-reforma psiquiátrica, e lembra a

todos dos maus tratos advindos de sua vivência nos manicômios (sem perceber que

continua subjugado no mesmo diagnóstico, na mesma personagem). Esse movimento,

que como tantos outros que existem hoje no Brasil e que se alinham com as políticas

implementadas pelo Estado, não tem realizado uma crítica a respeito dessa relação,

muitas vezes mantida a partir da negação e o consentimento com as políticas propostas.

Parecem não querer considerar (agindo de forma cínica) que as políticas sociais do

Estado não têm outra função senão controlar o fluxo e refluxo da força de trabalho no

mercado, para atender às necessidades conjunturais e estruturais do capital privado.

Outro exemplo — que torna explícito como uma identidade coletiva pode se

configurar como uma luta legítima na esfera pública sem que necessariamente possa

estar influenciando a transformação das formas de relação no mundo da vida e ao

mesmo tempo ser utilizada de forma estratégica para lidar com problemas políticos — 164 FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? p.117.

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pode ser encontrado no conteúdo das entrevistas preliminares da pesquisa que temos

orientado de estudantes de graduação do curso de Psicologia da Universidade Federal

do Ceará – UFC.165 Nessa pesquisa, as estudantes envolvidas166 tem se deparado com o

desconhecimento por parte dos transeuntes, donos de estabelecimentos e moradores, do

que é o prédio existente naquela localidade; os que sabem que ali é um CAPS, ao serem

questionados acerca do propósito da instituição e se conseguem se enxergar como

possíveis usuários do serviço, mostram-se confusos e em sua maioria dizem que aquele

é um lugar para tratar das pessoas loucas que podem ser perigosas para a sociedade e

que não freqüentariam o lugar. Vale esclarecer, utilizando-nos da contribuição de

Sampaio e Carneiro167, que a rede de Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral – CE

somente passou a ser implementada a partir de 1999, mais precisamente após a morte

trágica de Damião Ximenes Lopes na Casa de Repouso Guararapes — episódio que fez

com que o Brasil fosse julgado por tribunal internacional —, ou seja, nesse caso fica

aparente que a identidade coletiva do louco, tão preconizada pelos movimentos

antimanicomiais, não foi o elemento que culminou na transformação das formas

desumanas de tratamento do doente mental, a transformação se tratou de uma manobra

política para resolver um problema político (internacional).

O que queremos destacar é o perigo que determinadas políticas de identidade

oferecem ao fragmentar as diferentes formas de preconceito, discriminação etc. e negar

que o problema do negro, da mulher, do índio, do adolescente, do louco etc., é o

problema do reconhecimento da dignidade humana, das necessidades humanas. Se

abandonarmos este pensamento utópico (um projeto de sociedade igualitária), se torna

“difícil sentir-se indignado com a degradação do outro, tanto quanto com a degradação

de si mesmo”168. Para Habermas, que trabalha a questão das políticas de identidade a

partir da perspectiva do desenvolvimento das identidades coletivas, o problema político

surge quando o uso dos relatos simbólicos, da memória coletiva e de narrativas de

história de vida aparece como discursos a favor de uma autodeterminação excludente e

165 A pesquisa tem procurado explicitar o quanto as pessoas que vivem nos arredores do CAPS da cidade

de Sobral – CE têm conhecimento do objetivo dessa instituição. 166 Refiro-me aqui às estudantes do curso de Psicologia da UFC, do Campus Avançado de Sobral: Karina

de Andrade Batista, Lorrana Calíope Castelo Branco Mourão e Tamylle Arruda Prestes. 167 Cf. SAMPAIO, J. J. C. & CARNEIRO, C. Rede de Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral-

CE: Planejamento, supervisão e reflexões críticas. 168 CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social como metamorfose humana em busca de

emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico. p.04.

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colocam à prova a solidariedade universal169, o que também aparece como problemático

quando determinado membro de uma comunidade incorpora voluntariamente ou

involuntariamente uma determinada identidade coletiva, negando outros componentes

de sua identidade, gerando dúvidas acerca da validade do próprio conceito de

coletividade em que está se apoiando.

O problema da universalidade surge nesse ponto; lembremos que Ciampa,

apoiado em Hegel e Mead, não tem dúvidas que na medida em que um indivíduo adota

a atitude do outro transforma o símbolo resultante disso em um universal: o singular

materializa o universal, mas como pensar uma singularidade que comporte o universal

humano sem excluir nenhum dos participantes? Como Žižek170 nos ajuda a advertir, a

questão aqui não é que estamos lidando com o processo pseudo-hegeliano de

“alienação” e “desalienação”, de como determinada política de identidade é “alienada”,

não conseguindo incorporar o outro como alguém dotado de uma particularidade,

subordinando esse indivíduo à sua ideologia: se trata aqui de apontar que o discurso de

determinada política de identidade pode estar relacionado ao universal dominante, que

na atualidade é o capital. Com isso, a relação de dominação exercida sobre o indivíduo

submetido a uma política de identidade é “compensada” pela promessa de inclusão no

mercado. É por isso que Žižek encontra na crítica aos marxistas ortodoxos realizada por

Mao Tsé-Tung elementos de grande de valia para pensar a questão da universalidade,

uma vez que para este último é justamente na particularidade da contradição que

encontramos a universalidade.

Esse é o argumento principal de Mao: a contradição principal (universal) não se sobrepõe àquela que deveria ser tratada como a contradição dominante numa situação particular – a dimensão particular literalmente reside nessa contradição particular. Em cada situação concreta, uma contradição ‘particular’ diferente é a predominante, no sentido preciso de que, para vencer a luta pela resolução da contradição principal, devemos tratar uma contradição particular como a que é predominante, à qual todas as outras lutas deveriam ser subordinadas.171

Ao que nos parece Ciampa concorda com essa argumentação, e assinala que a

universalidade é representada por uma série de axiomas lógicos, dentre eles de que o

indivíduo deve lidar com a tensão entre projetar uma nova personagem ou fazer a

169 Problema que Ciampa descreve como sendo a ação de uma política de identidade segregadora. 170 ŽIŽEK, Slavoj. Slavoj Žižek apresenta: Mao Tse-Tung “Senhor do Desgoverno” marxista. 171 Ibidem. p.13.

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manutenção da personagem pressuposta, e que isso desvela tanto o fetiche da

personagem (sua aparência de não metamorfose) como a possibilidade da alteridade

(tornar-se outro). Desse modo, desvela-se que as pressuposições não são universais (ou

somente são universais enquanto papéis pré-estabelecidos). Ciampa compreende isso

muito bem, e como já adiantamos, mostra-nos que para identificar o quanto determinada

política de identidade massacra a individualidade em favor da coletividade é necessário

que vislumbremos a negação da condição de produto da história que determinado grupo

carrega consigo. Assim, o universal deve incorporar a metamorfose. Aqui Ciampa

alinha-se novamente com o pensamento meadiano, o qual ensina que o universal, “para

ser universal, tem que ser continuamente revisado”172. Sendo assim, uma vez que “o

limiar entre a esfera privada e a esfera pública não é definido através de temas ou

relações fixas, porém através de condições de comunicação modificadas”173, fica a lição

de que para apreendermos a expressão de identidades políticas nas coletividades é

necessário que vislumbremos a negação da condição de produto da história que

determinado grupo carrega consigo frente a idéia de multiculturalismo capitalista.

Esse conteúdo potencial das políticas de identidade foi estudado por Neuza

Guareschi. Pela sua análise, na medida em que as identidades coletivas lutam

diretamente por definições, indo além do dinheiro ou poder, podem “iniciar um

processo que visa evitar a discriminação e dominação de determinadas identidades,

fazendo com que novas identidades possam emergir e que outras recusem ser

excluídas”174. Nesse último caso, podemos dizer que as identidades pressupostas

oferecidas por determinadas políticas de identidade podem se tornar um impulso para a

superação de outra personagem posta (segregadora) de forma negativa e limitadora.

Almeida, reforçando essa colocação, assinala que aqui a identidade desejada

contradiz e reposiciona a identidade reposta que até então era vivida como

inevitabilidade. Nesse sentido, ela expressa, “uma metamorfose dotada de

características emancipatórias; as novas pretensões identitárias expressam o assumir de

172 MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.269.

Tradução nossa: “(…) to be universal has had to be continually revised.” 173 HABERMAS, Jürgen. Direto e Democracia II. p.98. 174 GUARESCHI, Neuza M. F. Políticas de identidade: novos enfoques e novos desafios para

psicologia social. p.123.

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uma nova posição de sujeito, uma alterização”175, o que não significa que deixemos de

lado tudo o que discutimos até agora.

Além disso, se considerarmos que um indivíduo nunca é total e plenamente integrante de uma única categoria social (por exemplo, uma pessoa pode ser simultaneamente mulher, mãe, trabalhadora assalariada, praticante de uma dada religião, migrante, moradora de favela etc.), mas que ele expressa o entrecruzamento de distintas categorizações e, por extensão, de distintas contradições sociais, o avanço de determinados projetos é sempre um fragmento de emancipação. As lutas de distintas categorias sociais pelo reconhecimento de direitos, por uma maior participação na cena social são válidas em si mesmo na medida em que alargam o espaço de direitos e de negociações, na medida em que reduzem diferenças, injustiças e a opressão. Não implicam, porém, necessariamente, na eliminação de outras condições sociais de heteronomia e subordinação, coercitivas, que incidem sobre outros indivíduos e sobre outras categorias e até mesmo sobre seus próprios membros. Muitas vezes, inclusive, resultam em um deslocamento de injunções, transferindo os ônus sistêmicos para outros tipos de benefícios existentes ou desejados e adentrando no terreno da política do “toma lá, dá cá”.176

Claro está que as políticas de identidade servem à formação e manutenção de

determinadas identidades coletivas, e podem representar um sentido emancipatório ou

então regulatório; emancipatório quando ampliam a(s) possibilidade(s) de existência na

sociedade, garantindo direitos para os indivíduos; regulatório quando criam regras

normativas que muitas vezes aprisionam os indivíduos numa única representação

possível de sua identidade, impedindo sua diferenciação. Um tipo de negação, que como

alertava Ervin Goffman, funciona de forma perversa, pois “aparece na orientação feita

ao estigmatizado no sentido de que se ele adotar uma linha correta ele terá boas relações

consigo e será um homem completo, um adulto com dignidade e auto respeito”177.

Nesse sentido, o potencial emancipatório das políticas de identidade reside não

apenas no sentido de uma coalizão de forças, mas também de uma utopia coletiva que

transcenda os particularismos daqueles que lutam contra o status quo. Isso se torna um

problema a ser pensado, pois se seguirmos a compreensão habermasiana que uma utopia

desse tipo envolve considerar a possibilidade do surgimento de identidades pós-

convencionais — que estariam antecipando formas de vida com valores e normas ainda

não estabelecidos, podendo apenas estabilizarem-se “na antecipação de relações

175 ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice.

p.137. 176 Ibidem. p.139-140. 177 GOFFMAN, Ervin. Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada. p.134.

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simétricas de um reconhecimento recíproco isento de coerção”178 —, logo, um

reconhecimento também pós-convencional, como fazer isso sem considerar o conflito e

as lutas existentes frente as políticas de administração e controle da sociedade

capitalista? Frente a essa questão tanto Habermas179 como Ciampa180, concordam que

isso ainda é um desafio frente a um pensamento utópico que tem se desvanecido nos

últimos anos e que precisa ser renovado.

Renovação inclusive da própria crítica, que por sua vez, deve ter a força de

voltar-se contra os nossos próprios referenciais de análise. Como diria Boaventura de

Souza Santos, precisamos de teorias alternativas para as alternativas existentes181. O que

significa nesse caso que a própria idéia de busca pela situação ideal de fala como

pressuposto para a emancipação, ou ainda para a descolonização do mundo da vida,

apresentada por Habermas, deve ser questionada, pois se assumirmos aqui que na esfera

pública as formas de vida podem ser mutiladas a ponto de orientar-se por valores

resultantes de distorções comunicativas não podemos mais guiar-nos por ideais

normativos de justiça e consenso que estariam pré-existentes nas dimensões da vida

social. Se esses ideais existem, devem ser explicitados em meio aos conflitos existentes

no mundo da vida. O desenvolvimento de uma identidade pós-convencional por si só

não é garantia de uma emancipação “completa” ou definitiva do indivíduo; isso seria

“convencionar”, predeterminar o que entendemos por emancipação humana. Seria

ignorar uma lógica sistêmica que a todo instante oferece saídas heterônomas e ilusórias

para todos nós e que o diagnóstico do presente tem se transformado drasticamente.

Ciampa lembra-nos que em tempos de um capitalismo tardio vivemos a inversão

da preocupação com a produção para a preocupação com o consumo — a própria idéia

de metamorfose foi absorvida pelo capitalismo182—, o que traz conseqüências

profundas para a análise da identidade entendida como metamorfose em busca de

emancipação. No que se refere a essa pontuação realizada por Ciampa, acreditamos que

178 HABERMAS, Jürgen. Passado como Futuro. p.222. 179 Idem. A crise do Estado de bem-estar e o esgotamento das energias utópicas. 180 CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social como metamorfose humana em busca de

emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico. 181 SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social.

Passim. 182 Como apontado anteriormente, no Encontro Nacional da ABRAPSO de 1999, Ciampa, ciente acerca

dessa transformação do capitalismo de produção para o capitalismo de consumo, e da cooptação da idéia de metamorfose pelo mercado, propõe que o conceito do sintagma identidade-metamorfose-emancipação deve ser analisado a partir do seu potencial de emancipação.

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valha a pena transcrever um trecho do trabalho realizado por Safatle, uma vez que nele

acreditamos encontrar argumentos essenciais para que continuemos nossa análise:

De maneira esquemática, podemos dizer que o mundo capitalista da produção estava vinculado à ética do ascetismo, da acumulação (o prazer que submete todos os prazeres) e pela fixidez identitária que se manifestou como vocação para funções específicas e especializadas. O mundo do consumo pede, por sua vez, uma ética do direito ao gozo. Pois o que o discurso do capitalismo contemporâneo precisa é da procura do gozo que impulsiona a plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do consumo.183

A proposição de Safatle, que assinala a guinada do mundo da produção para o

mundo do consumo, nos obriga a considerar que os elementos identificados por

Habermas como próprios do mundo da vida (a saber: a cultura, a sociedade e a

personalidade) têm sofrido uma nova reconfiguração que passa a anular todo conteúdo

determinado. Não se trata mais de disponibilizar exatamente o conteúdo de

representações sociais por meio do mercado; é justamente a opacidade que possibilita a

manutenção do capital. A partir dessa perspectiva podemos inferir que na esfera pública

o indivíduo produtor devém consumidor de produtos indeterminados. Parece que a

sociedade tardo-capitalista encontraria no consumo o elemento sui generis para

administrar o sofrimento de indeterminação que, valendo-nos da concepção hegeliana

do termo, se refere ao sentimento vivenciado pelo indivíduo frente à impossibilidade de

auto-realização individual184. Consumo que, como assinala Maria de Fátima Severiano,

apresenta-se como um “paliativo para a profunda angústia humana ante uma impotência

generalizada, a qual é substituída pela incorporação fetichizada de objetos que

prometem conferir poder, completude e realização individual”185, “provisoriamente”,

possível após a metamorfose da estética da própria mercadoria186. Isso não quer dizer

que certamente os elementos da tradição tenham desvanecido, pelo contrário, eles

183 SAFATLE, Vladimir. Cinismo e a falência da crítica. p.126. [grifos do autor] 184 Cf. HEGEL, Georg W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Passim. p.1-35. Confira também o

artigo de Axel Honneth: Patologias da liberdade individual: O diagnóstico hegeliano de época e o presente. p. 77 et seq.

185 SEVERIANO, Maria de Fátima. Narcisismo e publicidade. p.111. 186 Wolfgang F. Haug acredita que o segredo para a concretização está no fato de o capitalismo começar a

investir na aparência, que em sua forma mais abominável, oferece “uma seqüência interminável de imagens acerca das pessoas atuando como espelhos, com empatia, observando o seu íntimo, trazendo à tona os segredos e espalhando-os. Nessas imagens evidenciam-se às pessoas os lados sempre insatisfeitos de seu ser. A aparência oferece-se como se anunciasse a satisfação; ela descobre alguém, lê os desejos em seus olhos e mostra-os a superfície das mercadoria.” Idem. Crítica da estética da mercadoria. p.77.

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permanecem configurando antigas políticas de identidade. Aliás, vemos na esfera

pública brasileira, dada a multiplicidade de culturas, etnias e classes sociais, uma co-

existência, e porque não uma concorrência, entre as diversas formas de socialização que

expressam desde elementos pós-modernos até formas de vida pré-modernas187.

Essa concorrência entre novas e velhas políticas de identidade faz com que

incorporemos mais uma contribuição antes de prosseguir. Falamos da análise realizada

por Almeida188 do fenômeno denominado “anamorfose”189. Esse autor escreve que se

por um lado as políticas de identidade — resultantes do esforço de incorporação do

discurso social — funcionam como as pinturas com ponto fixo, colocando os indivíduos

em seus “devidos” lugares sociais, impondo limites à participação nos espaços públicos,

por outro lado promovem a negação de qualquer projeto singular e/ou particular.

Qualquer projeto idealizado fora dos parâmetros estabelecidos, não reconhecidos como

metamorfoses das políticas de identidade tradicionais, “são, a partir daí, considerados

como verdadeiras aberrações, como alucinações, como anamorfoses (figuras em

187 Refiro-me aqui à diversidade encontrada em nossa cultura, que espelha desde experiências pré-

modernas como as encontradas em: KRAMER, Henrich & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. “O Martelo das Feiticeiras”, até outras pós-modernas (como as verificadas nas comunidades virtuais que excitam novas formas de vida, vistas como patológicas, como as pró-anorexia e uso de drogas). A própria relação com os serviços substitutivos que em alguns lugares configuram-se como instituições garantidoras de renda (o que Safatle caracteriza como identificação irônica e que iremos assinalar como resultado de um reconhecimento perverso), noutros ainda são espaços entendidos como “depósito”: Cf. BUENO, Austregélino Carrano. O canto dos malditos. A título de exemplo vale contar que em uma das cidades visitadas durante a realização da pesquisa, localizada na divisa do Ceará com o Piauí, conhecemos uma família em que todos os filhos eram vistos como loucos. Estes tinham vivido durante toda infância e adolescência no interior da fazenda, sem contato com meios de comunicação e ao viajar buscando trabalho no Rio de Janeiro experienciam algo que foi diagnosticado como psicose por profissionais de saúde mental de um CAPS desse estado, que os encaminharam para o nordeste novamente com o intuito de que se submetessem ao tratamento.

188 Juracy Almeida conta como foi sua aproximação com o fenômeno da anamorfose: “Meu primeiro contato com a anamorfose foi através de um painel do Grupo de Identidade José Roberto Malufe apresentado em um encontro científico da SIP – Sociedade Interamericana de Psicologia, realizado em São Paulo em 1997. O painel tinha uma superfície espelhada, com uma saliência central em forma de cone. Observado de diferentes ângulos, o painel apresentava-se como um conjunto de borrões em preto e branco, desproporcionais entre si, sem um sentido maior, compreensível, despertando a atenção do público presente à sessão de exposição. Os borrões mudavam de forma, suas proporções se alteravam com o meu deslocamento. Outras pessoas ao redor também se mostravam perplexas e curiosas com o significado do painel. Apenas após vários deslocamentos laterais e também de aproximação e afastamento é que pude vislumbrar, a partir de um ponto determinado (que depois descobri ser único), a imagem (uma fotografia ampliada) de uma pessoa. Fui informado, então, que se tratava de uma anamorfose cônica. Mais tarde, encontrei uma explicação para o que acontecera: ‘A anamorfose é uma figura em perspectiva deformada que, para ser reconhecida, exige do observador um deslocamento, um abandono de sua posição convencional, e uma busca de um novo ponto de vista. Este ponto é sempre extremamente preciso mas desconhecido, e sua descoberta revela, na figura até ali incompreensível, formas finalmente reconhecíveis.’ (Silva Júnior, 2001: 4)”. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.30-31.

189 Cf. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice.

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perspectiva deformada) das identidades socialmente idealizadas”190. A anamorfose

apontaria a contradição inerente na disputa entre as políticas de identidade, o conteúdo

ético, como já exposto, que estaria na possibilidade de criar possibilidades de existência

mais justas. A anamorfose representaria, como assinala Almeida apoiado nas reflexões

de Jurandir Freire Costa, formas de resistência que podem se dar:

(...) pelo que ele chama de fraqueza dos excessos (distúrbios psicológicos tais como desânimo, depressão, síndrome de pânico, insônia, estresse físico, dependência química, hipocondria, transtornos da imagem corporal etc.), como também, pela procura e criação de alternativas às idéias dominantes. Estas são condutas possíveis quando as pessoas sentem as determinações que as afetam como anamorfoses de algo imaginado e desejado. Há sempre a possibilidade de alguns indivíduos tentarem emancipar-se da heteronomia e dos enquadramentos a que estão expostos, buscando um novo ponto de vista que lhes permita descobrir/estabelecer uma nova proporcionalidade entre as exigências dos papéis sociais imputados e seus reclamos de coerência, de realização e de autonomia. Em outras palavras, que lhes permita se (re)posicionarem em relação a um ponto de vista fixo (comum a todos os que se encontram na mesma situação que eles) e, neste processo, construírem uma nova identidade.191

Esse processo dialético de submissão e luta por emancipação pode ser articulado

em Almeida pela tensão entre as esferas pública e privada. No que se refere à esfera

pública — mais especificamente na sua relação com os interesses dominantes, que no

Brasil se configura desde os primórdios da colonização pela tentativa de administração

e controle — essas formas de existência representam aberrações, anormalidades,

anamorfoses dos modelos pressupostos, que impulsionam a existência e permanência

das instituições que visam à adaptação (como é evidente no nosso estudo o caso da

instituição psiquiátrica). No que se refere à esfera privada que, do ponto de vista da

perspectiva normativa do “Outro generalizado”, nos ensina a reconhecer outros

membros da coletividade como portadores de direitos, abre-se aqui a possibilidade de

nos reconhecermos também como pessoas de direito. Fenômeno decorrente da

institucionalização dos direitos civis de liberdade, que inaugurou o processo de

inovação permanente, o qual pressupõe que para poder agir como uma pessoa

moralmente imputável, o indivíduo não precisa apenas da proteção jurídica contra as

interferências em sua esfera de liberdade, “mas também da possibilidade juridicamente

190 ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.101. 191 Ibidem. p.112.

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assegurada de participação no processo público de formação da vontade, da qual ele faz

uso, porém, somente quando lhe compete ao mesmo tempo um certo nível de vida”192.

A nova identidade, desejada ou conquistada, expressa um reposicionamento dos sujeitos frente àquela a que se espera eles devem se conformar. Expressa, nesse sentido, um processo de metamorfose dotado de características emancipatórias, pois as modificações identitárias representam, na busca da autonomia frente aos preceitos dados, o assumir um lugar de sujeito do olhar, uma (re)colocação do sujeito ante as condições pessoais e sociais restritivas que lhe são impostas (vistas, sentidas por ele como anamorfoses, deformações de seus projetos). Representa um sujeito com capacidade de julgar, isto é, de considerar hipoteticamente e de fundar normas com base em princípios interiorizados, um sujeito que não mais se liga a papéis singulares e a normas preexistentes, que vê como problemática a ligação a papéis dados, pontos de cristalização da própria biografia (cf. Habermas, 1983). O que caracteriza tal identidade é a capacidade do sujeito conservá-la mesmo em situações de conflito, organizando a si mesmo e as suas interações de maneira autônoma e individualizada, numa biografia original e insubstituível.193

A anamorfose, tal como é explicada por Almeida, aparece como fenômeno

causador de curto-circuito na percepção, uma impossibilidade de representar o exposto

e incorporá-lo no discurso coletivo. E como ocorrem esses curtos-circuitos? Para

entender esse processo temos que retomar algumas pontuações apresentadas

anteriormente. Lembremos que as políticas de identidade estabelecem pontos fixos

(identidades pressupostas, idealizadas, fetichizadas) e que essas políticas de identidade

estabelecem critérios, apresentam orientações, as quais os indivíduos devem seguir caso

queiram ser reconhecidos. Quando o indivíduo submete-se à política de identidade

proposta, diz-se que ajustou-se ao instituído, tornou-se alienado. Por outro lado, existem

indivíduos que resistem ao enquadramento e buscam ser reconhecidos a partir da

coordenada onde estão localizados, nesse caso, se colocando como pontos fixos os quais

a política de identidade deve tensionar-se para reconhecer o que está sendo

representado. Quando os indivíduos assumem essa posição geralmente são considerados

como anormais, desajustados, problemáticos, cujo ajustamento deve ser aplicado, uma

vez que são anamorfoses em relação à política de identidade instituída, são um perigo

para a ordem. Desse modo, não é por um acaso que vemos Almeida defender a tese de

que as identidades pós-covencionais, os projetos emancipatórios, são fundamentais para

a alterização das identidades. Afinal, uma vez que essas identidades pós-vonvencionais

192 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.. p.192-193. 193 ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.113.

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“expressam a busca de um novo ponto de vista que permita aos indivíduos/grupos

estabelecerem uma nova proporcionalidade entre as exigências dos papéis sociais e de

reclamos de autonomia/realização”194.

Sendo assim, podemos então considerar que as identidades anamórficas, em sua

potencialidade emancipatória, trazem uma nova proporcionalidade entre as exigências

de reposição e os reclamos de alterização. Se falamos de uma nova proporcionalidade

entre as exigências de reposição e reclamos de alterização, nos referimos a uma espécie

de deformação em relação ao que estava antes estabelecido, logo, quando falamos de

uma nova proporcionalidade, nos referimos a anamorfose. Assim é importante frisar que

— se as personagens anamórficas são anamorfoses em relação à identidade pressuposta

idealizada por determinada política de identidade — a identidade pressuposta idealizada

por determinada política de identidade é anamorfose em relação às identidades

anamórficas. Assim sendo, quando a identidade anamórfica é considerada ponto fixo, o

ponto preciso e especial, então será a identidade pressuposta e a política de identidade

que a produz e sustenta que deverão efetuar deslocamentos e mudanças de ponto de

vista para se adequar ao ponto preciso que a identidade anamórfica exige. Portanto, para

a personagem anamórfica ser considerada o ponto preciso, é necessário um tipo de

lógica de reconhecimento de uma outra ordem, um reconhecimento que poderíamos

chamar aqui de pós-convencional, ou como assinala Žižek, seria preciso um

reconhecimento efetuado a partir da própria diferença, o que significa não adotar nem o

próprio ponto de vista nem do ponto de vista de outros, encarando a personagem

anamórfica como uma paralaxe195.

Entretanto, não podemos ser ingênuos, esse tipo de reconhecimento que exige o

deslocamento de uma política de identidade de seu ponto fixo para o ponto fixo que

determinada personagem está representando, na esfera pública onde o Capital tem sido

o universal dominante, não é conseguido de forma gratuita. Ele somente pode ser

vislumbrado como uma luta incessante. Essa dificuldade mostra-se aparente na tese de

Almeida, a qual ficou evidenciada como a personagem anamórfica, por se constituir

194 ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.109. 195 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Na página 32, Žižek nos apresenta o conceito de Paralaxe

da seguinte forma: “é o padrão de deslocamento aparente de um objeto (mudança de sua posição em relação ao fundo) causado pela mudança do ponto de observação que permite uma nova linha de visão”. Žižek reforça a importância desse fenômeno ao assinalar que Hegel já alertava para o fato de “sujeito e objeto são inerentemente ‘mediados’, de modo que uma mudança ‘epistemlógica’ do ponto de vista do sujeito sempre reflete a mudança ‘ontológica’ do próprio objeto.” Ibidem. p.32.

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numa divergência do que é idealizado e marcar a saída do ponto fixo em busca de novas

configurações identitárias, representariam formas de resistência ao que é imposto e

lutariam constantemente contra políticas de identidade que a todo instante tentam

cooptar essas anamorfoses e transformá-las em novas mercadorias. O caso dos idosos é

emblemático nesse sentido, uma vez que a grande questão estaria em manter a

indeterminação entre o fato de que a condição do idoso não seriam nem espelhos das

identidades pressupostas tradicionalmente (o velho que espera a morte), nem espelhos

das identidades pressupostas pela lógica sistêmica atual (que impõe convencionalmente

a personagem do velho consumidor). Quanto a isso, parece-nos um ponto chave quando

ele considera que as condições pessoais e sociais restritivas são vistas e sentidas pelos

indivíduos como anamorfoses, isto é, como deformações de seus projetos.

A anamorfose dá conta da constituição de identidades por parte de indivíduos que procuram superar suas condições identitárias, as quais geram identidades sem lugar na vida coletiva ou, em outros termos, uma “contraditória identidade desidentificadora”.196

Dessa maneira, a partir do conceito de anamorfose empregado por Almeida,

podemos vislumbrar empiricamente uma ação política por parte dos indivíduos que

contrastam com o papel original das políticas de identidades (cada um no seu devido

lugar). Nos referimos à ação política que questiona o universal instituído existente em

nome do seu “sintoma”, em nome da expressão de sua identidade, sua personagem, que

embora inerente à ordem universal existente, não encontra nela um lugar próprio. Žižek

entenderá esse tipo de ato como revolucionário, uma vez que ao identificar-se com o

sintoma, o indivíduo executa a necessária inversão do gesto crítico e ideológico

clássico,197 que consiste em buscar reconhecimento para além da noção universal

abstrata (o “velho” tradicional é o representante inverso da juventude, a mulher

trabalhadora o inverso da mãe dedicada; o “doente mental” o inverso do indivíduo

racional etc.). A anamorfose, tal como tem sido interpretada aqui, de certo modo

aproxima-se das proposições apresentadas por Honneth (influenciadas por Mead e

Hegel), e reforça a tese de que a inclusão em um sistema com papéis sociais delineados

196 ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.205. 197 ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.41 et seq.

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a priori é um movimento reverso da autonomia198. A liberdade configura-se como

liberdade negativa, em oposição à liberdade pressuposta pelo mercado, somente

passível de ser concretizada quando ocorrerem “mudanças culturais que acarretam uma

ampliação radical das relações de solidariedade”199.

Isto posto, por outro lado, a discussão do fenômeno da anamorfose nos remete a

alguns questionamentos: se o processo de socialização e individualização nos ensina

que o indivíduo é metamorfose em busca de emancipação — é luta por reconhecimento

frente às tentativas de fetichização e redução a personagens heteronomamente

pressupostas —, como explicar o ato crítico político de um sujeito que está submetido

ao postulado lógico proposto por Wittgenstein de que “os limites de nossa linguagem

significam os limites do nosso mundo”200? Dito de outra forma, como explicar a

possibilidade ou impedimento do ato crítico de um indivíduo, se o mesmo está

submetido à distorções da linguagem que oferecem uma semiformação, negação a

priori dos direitos individuais, que podem configurar uma naturalização da opressão?

Em tempos de um capitalismo tardio, cujo estímulo ao consumo exige metamorfoses

constantes (na verdade modulações da mesmice201), perguntamos aqui: existiria a

198 Em suas considerações finais Juracy Almeida elenca os elementos promissores da noção de

metamorfose para a pesquisa de identidade, são eles: “a) do modo como são interpretados os projetos individuais ou coletivos de mudança que ultrapassam os limites dos parâmetros socialmente dominantes, projetos estes que são vistos como deformações daquilo que costumeiramente se considera como modos de ser e de viver adequados; b) dos modelos de conduta sociais estabelecidos, quando vistos do ponto de vista dos sujeitos de projetos emancipatórios; deste ponto de vista, tais modelos surgem a esses sujeitos como deformações daquilo que idealizam; c) da identidade continuamente reposta através de um trabalho que resulta da acomodação ou sujeição às condições com as quais os indivíduos se deparam em sua vida cotidiana. De modo geral, as pessoas apresentam-se como idênticas a si mesmas e, desta maneira, encobrem, ocultam o caráter dinâmico e temporal da identidade. Aqui, a apresentação de algo que já não se é como algo que se está sendo surge como uma deformação de si apresentada pelas próprias pessoas (borrões daquilo que se é de fato), como se elas não passassem por modificações; d) da identidade humana degradada por processos sociais que recusam aos indivíduos a qualidade de sujeitos, negando-lhes o reconhecimento e o tratamento como tais, vale dizer, que atribuem a indivíduos a identidade de não-humanos, restringindo-lhes a autonomia pessoal e, mesmo, sujeitando-os a tutelas”. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.207-208.

199 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.. p.280. 200 Cf. WITTGENSTEIN. Ludwig. Tractatus Logico-philosophicus. p.111. 201 Destacamos aqui as seguintes palavras de Ciampa quando trata da aparência de não-metamorfose da

identidade como resultado do trabalho ode re-posição: “(...) é o trabalho da re-posição que sustenta a mesmice. Outros são levados a essa situação, involuntariamente, quando seu desenvolvimento é de alguma forma prejudicado, barrado, impedido; na nossa sociedade, encontramos milhões de exemplos de pessoas submetidas a condições sócio-econômicas desumanas; às vezes, mesmo com condições sócio-econômicas favoráveis, milhares, talvez milhões, de pessoas são impedidas de se transformar, são forçadas a se reproduzir como réplicas de si, involuntariamente, a fim de preservar interesses estabelecidos, situações convenientes, interesses e conveniências que são, se radicalmente analisados, interesses e conveniências do capital (e não do ser humano, que assim permanece um ator preso a

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possibilidade de explicitar, a partir do sintagma identidade-metamorfose-emancipação,

como determinados discursos “revolucionários” são reforçados pelo capital para

promover a manutenção de políticas de identidade segregadoras que neutralizariam a

expressão das anamorfoses, transformando-as de denúncia em mera patologia a ser

tratada pelo olhar do especialista? Que ensinamentos poderiam obter do tipo de

reconhecimento proposto pela reforma psiquátrica? Aparece aqui mais uma

problematização a ser explorada: a dinâmica do sofrimento de indeterminação e

reconhecimento da identidade.

3 – Sofrimento de indeterminação e reconhecimento perverso: a administração da

insatisfação como instrumento de controle da sociedade capitalista.

Quando Ciampa contou a história da Severina, mostrou-nos como ocorre o

processo de metamorfose do ser escrava de alguém até tornar-se escrava de si-própria.

Esse processo configurou-se como uma luta por sua humanidade negada desde sua

infância; o que obrigou Severina a dramatizar personagens pressupostas que negavam a

sua totalidade até chegar a zero, tornando-se louca. Momento em que renasce e, após

alguns ensaios na casa do patrão, volta a buscar alternativas para sua identidade, até

encontrar o budismo e conseguir um reconhecimento que até então jamais havia

experienciado. Ciampa pôde assinalar com essa história o fenômeno de alterização da

identidade: a superação das personagens pressupostas. Também vimos que em 1999, no

Encontro Nacional da ABRAPSO, o autor ampliou o conceito de identidade-

metamorfose, uma vez verificado que o mercado estava apropriando-se desse conceito,

para o sintagma identidade-metamorfose emancipação, o que na prática significou

assumir que era o momento de realizar a análise do sentido que as metamorfoses

estavam seguindo: emancipação ou resignação frente aos ditames do mercado. Dentre

os conceitos analíticos trabalhados por Ciampa, destacamos sua discussão acerca das

políticas de identidade e das identidades políticas e articulamos esses conceitos com o

estudo da anamorfose realizado por Almeida. Levantamos a hipótese de que o potencial

da anamorfose, a qual expressa o sofrimento de indeterminação e denuncia as

contradições sociais, sofre a neutralização na atualidade por conta de um

mesmice imposta).” CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.165.

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reconhecimento perverso que reduziria as identidades à personagens fetichizadas, que

representariam o que Ciampa havia denominado identidade mito.

Gostaríamos agora de tirar as primeiras conseqüências dessas proposições — a

serem melhor vislumbradas nas narrativas de história de vida que apresentaremos na

terceira parte de nosso estudo — proposições que têm como ponto de partida o que

Ciampa chamou de trabalho de reposição, só pensado a partir da estabilidade dos signos

que mantêm a mesmice, e como ponto de chegada a assunção de que o trabalho crítico

no estudo da identidade segue o sentido de explicitar aquilo que o capitalismo tardio

tende a manter e reproduzir a partir da dinâmica de reconhecimento das identidades. A

análise de Ciampa mostrou-nos que será necessário incorporar na teoria de identidade as

contribuições da Psicanálise para analisar a lógica que sustenta a forma, para além do

conteúdo e explicitar o sentido não aparente das metamorfoses identitárias. Essa

necessidade de certa maneira já aparece n’A estória do Severino e a História da

Severina, seja nos momentos em que retoma a discussão da teoria freudiana realizada

por Habermas em Conhecimento e Interesse, seja nas passagens na qual o autor lembra-

nos que “assim como a questão da metamorfose se inverte como não-metamorfose, a

questão da consciência se inverte como inconsciente. Num certo sentido, é o

conhecimento invertido como ilusão”202. É importante destacar que Ciampa não avança

nessa discussão, pois como o mesmo lembra, “a narrativa autobiográfica analisada ficou

praticamente restrita às representações conscientes”, embora reforce que isso não

significa o abandono das contribuições psicanalíticas, pelo contrário, “uma psicanálise

livre dos perigos do mecanicismo, do a-historicismo (e de certo positivismo) tem muito

a contribuir”203.

Todavia, parece-nos que essa articulação será muito importante para evoluirmos

na discussão das formas de reconhecimento da identidade dos indivíduos que estão

sujeitos aos diagnósticos da saúde mental, uma vez que temos trazido ao longo de toda a

tese que acreditamos existir uma relação perversa estabelecida entre um indivíduo que

frente ao sofrimento de indeterminação busca reconhecimento de sua personagem

(geralmente uma anamorfose) de um lado, com o discurso de um Outro que reconhece

sua personagem anamórfica a partir de um ponto de vista reducionista da identidade, de

outro. Inclusive, o fio condutor para as reflexões que faremos a seguir encontra-se na

202 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.194. 203 Ibidem. p.195.

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própria articulação teórica utilizada por Ciampa. Lembremos que A estória do Severino

e a História da Severina é, em última instância, uma tese que insiste na defesa de que é

na relação com o outro que eu posso estabelecer condições de desenvolvimento de mim-

mesmo, a partir daquilo que Mead chamou de outro generalizado, o qual também fora

postulado por Hegel. Considerando os limites da compatibilidade entre as concepções e

conceitos, não é difícil notar uma proximidade com a teoria psicanalítica de Jacques

Lacan, para quem a constituição do sujeito começa a configurar-se no campo da

intersubjetividade como o Outro (grande outro), ou seja, a partir de uma alienação

constitutiva da ordem simbólica frente à figura do Outro204.

No Seminário 11205, Lacan — aqui assinalamos a proximidade da teoria lacaniana

com as proposição de desenvolvimento do si-mesmo de Hegel e Mead —, esforça-se

em demonstrar que essa alienação no Outro deveria ser seguida pela separação do

Outro. Essa separação, na concepção de Lacan, ocorreria na medida em que o sujeito

percebesse que esse Outro é inconsistente, virtual, “barrado”, cuja existência somente se

sustentaria pela fantasia de que nele (Outro) é possível encontrar o preenchimento do

vazio (falta). Esse Outro postulado por Lacan se refere ao senso comum a que chegamos

após o entendimento (a ação comunicativa de Habermas, que preconiza o consenso) e

que estaria se desvanecendo no capitalismo tardio. Uma proposta que de imediato nos

coloca frente a impossibilidade de escolher entre uma razão comunicativa ou uma razão

estratégica, uma vez que sequer teríamos acesso a essas esferas de um modo racional.

Uma das contribuições de Prado, presente em sua crítica da teoria habermasiana a partir

da psicanálise, assinala esses limites da teoria da ação comunicativa da seguinte forma:

(...) ao invés de realizar a transposição conceitual de um modo de ação estratégico para um modo comunicativo de ação, em que mudaria o tipo de racionalidade envolvida, pensaríamos a razão crítica como um novo tipo de discurso, como um espaço político em que se alteraria a partilha do sensível, a forma de distribuição de vozes, forças e visibilidades passíveis de vir a campo, de contar no campo. Em outras palavras, seria preciso pensar o modo de

204 Odair Sass mostra-nos que essa associação entre a teoria meadiana e psicanálise não é incoerente.

Sass, em nota de rodapé, ao analisar o trabalho de T. V. Smith, um dos contemporâneos de Mead na Universidade de Chicago, identificou cinco autores que exerceram forte influência sobre sua teoria social: Hegel, Marx, Darwin, Adam Smith e Freud. “Em relação ao último autor, Smith constata que a doutrina freudiana do inconsciente – entendida como uma estruturação de nossa experiência que ultrapassa aquilo que denominamos por consciência –, ‘era da maior importância para Mead, porque o princípio serviu como elo mediador entre seu idealismo anterior e seu pragmatismo (...)’ (SMITH, 1931, p.372)”. SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.111.

205 Cf. LACAN, Jacques. El Seminário. Libro 11.

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possibilidade do surgimento do ato comunicativo, ou melhor dizer, político, na esfera fetichizada da ordem instrumental, seu modo de possibilidade enquanto acontecimento. (...) A razão crítica não seria, nessa óptica, talhada a partir de uma divisão primordial entre agir instrumental e agir comunicativo, mas como giro de discurso, como mudança das possibilidades de inscrição simbólica no espaço social do discursivo.206

Isso nos remete ao que foi trazido anteriormente quando se falou do potencial

emancipatório da identidade anamórfica que, nos termos agora trazidos, por meio de

uma razão crítica, tensionaria na direção de um giro discursivo para mudanças das

possibilidades de inscrição simbólica estabelecidas por determinadas políticas de

identidade. Novamente deparamo-nos com o necessário surgimento das anamorfoses,

uma vez que no processo de luta por reconhecimento da alteridade da identidade, esta

tensiona o social no sentido de sua renovação e atualização, pois obriga essa instância

maior a questionar os conteúdos tradicionais do mundo da vida e, principalmente, a

racionalidade utilizada. Racionalidade que, como observamos, tem sido aquela que nos

força a observar nossa realidade como realidade pressuposta. Ciampa explicita isso

muito bem quando escreve sobre o episódio de Loucura da Severina, “com ênfase

afirma: e daí eu fiquei louca. E fiquei! Identifica-se como louca. É louca! (...) ela

sempre acreditando. E agindo como tal! A realidade simbólica sendo produzida

socialmente”207. Nesse exemplo, Ciampa mostra que a atuação de Severina como louca

se dá justamente porque é o único reconhecimento possível para sua identidade, a

personagem anamorfíca, que antes fora traduzida como encosto no centro espírita. E

agora era traduzida no hospital como doença mental. Ser tratada como Louca, utilizando

aqui uma interpretação lacaniana, é ser excluída do Outro social/simbólico, ou, nos

termos utilizados até então, é ser considerada anamorfose e tensionada para que assuma

uma personagem fetichizada retornando assim ao ponto fixo (uma inscrição simbólica

apriorística), retornando ao seu “devido lugar”. Destaquemos aqui que esse diagnóstico

não vem baseado em fatos concretos, considera-se louco aquele que se mostra

percebendo as coisas “como elas realmente são”. Como diria Lacan, a anamorfose

provocada pela “personagem (ora obsidiada, ora louca)” é uma armadilha para o olhar,

que não suportando a angústia frente ao Real desfere a pressuposição (redução), a

fetichização208. É importante destacar aqui que o “Real” a que Lacan se refere não é a

206 PRADO, José Luiz Aidar. Teoria da Sociedade ou Teoria da Comunicação? p.267-268. 207 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.71. 208 Cf. LACAN, Jacques. La anamorfosis.

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verdadeira realidade que estaria velada, mas o vazio que mantém a realidade incompleta

e inconsistente, algo próximo àquilo que Mead identificava ser o elemento

impulsionador do surgimento de si-mesmo (self) e que Ciampa entende com sua

concepção de metamorfose, de outro modo, uma vez que para esse autor: “se identidade

é identidade de pensar e ser, a resposta que buscamos é uma resposta sempre vazia,

como um salto, pois é metamorfose”209.

Žižek exemplifica esse surgimento do novo que explicita o instituído ao discorrer

como o episódio de 11 de setembro de 2001 afetou os indivíduos dos países vistos como

desenvolvidos:

(...) antes do colapso do WTC, vivíamos nossa realidade vendo os horrores do Terceiro Mundo como algo que na verdade não fazia parte de nossa realidade social, como algo que (para nós) só existia como fantasma espectral na tela do televisor –, o que aconteceu foi que, no dia 11 de setembro, esse fantasma da TV entrou na nossa realidade. Não foi a realidade que invadiu a nossa realidade: foi a imagem que invadiu e destruiu a nossa realidade (ou seja, as coordenadas simbólicas que determinam o que sentimos como realidade).210

O exemplo de Žižek possibilita que avancemos em nossa análise da condição em

que tem funcionado a racionalidade sistêmica no capitalismo tardio: o Real em que

qualquer ataque é invertido em discurso ideológico. A barbárie promovida pelos

Estados Unidos no Oriente Médio por conta de seu interesse no petróleo é mascarada

pela eleição de um inimigo comum: o terrorista, que passa a ser utilizado como

justificativa para a intensificação da barbárie, agora legitimada. Esse episódio mais uma

vez mostra que em alguns momentos, ao contrário do que Habermas idealizava ao

propor a condição ideal de fala, as palavras não servem ao entendimento e a

solidariedade, mas para em muitos casos a implementação de um estado de exceção

como dispositivo de controle. Isso porque, por sua própria característica, as “palavras

são um recurso que reduz a realidade a uma abstração que nossa razão possa aceitar, e

em seu poder de corroer a realidade, inevitavelmente insinua-se o perigo de que as

209 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.241-242. 210 ŽIŽEK, Slajov. Bem-Vindo ao deserto do Real! p.31. Vivenciamos algo semelhante no último

semestre de 2008 no Brasil, quando o desastre natural ocorrido no Sul do país mobilizou todos a rapidamente “reconstruir” a imagem de progresso e segurança instaurada. Compartilho aqui o incomodo que senti ao notar que um estado como o Ceará, que vivia na época o auge da seca (os noticiários locais notificavam a todo instante as cidades onde haviam pessoas passando sede e que faltava recursos para levar água para esses lugares), orgulhava-se por enviar caminhões de água para o Sul. Aparentemente, a pobreza e seca instaurada como “natural” no Nordeste não afetam em nada a realidade.

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próprias palavras também sejam corroídas”211. As palavras constroem e corroem a

realidade, ou poderíamos dizer, constroem e desconstroem concepções de mundo. José

Saramago, em um determinado momento do seu Ensaio sobre a cegueira, escreve um

diálogo entre a mulher do médico (a única imune à cegueira branca) e seu marido, que

parece explicitar muito bem essa lógica.

Não me acreditarás se eu te disser o que tenho diante de mim, todas as imagens da igreja estão com os olhos vendados, Que estranho, por que será, Como hei-de eu saber, pode ter sido obra de algum desesperado da fé quando compreendeu que teria de cegar como os outros, pode ter sido o próprio sacerdote daqui, talvez tenha pensado justamente que uma vez que os cegos não poderiam ver as imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos, As imagens não vêem, Engano teu, as imagens vêem com os olhos que as vêem, só agora a cegueira é para todos, Tu continuas a ver, Cada vez irei vendo menos, mesmo que não perca a vista tornar-me-ei mais e mais cega cada dia porque não terei quem me veja (...).212

O trecho citado serve de argumento para assinalarmos aquilo que aprendemos

com os escritos dos autores estudados até agora: que a interpretação que o indivíduo faz

da realidade é antes uma antecipação do discurso internalizado, cuja subversão,

alterização, é dada a partir do reconhecimento de sua individualidade, de sua

anamorfose. Por outro lado, na medida em que esse discurso começa a ser cada vez

mais fetichizado e tornado elemento de administração social e negação do Real,

211 MISHIMA, Yukio. Sol e Aço. p. 09. Essa frase, inclusive, escrita pelo japonês Yukio Mishima, tenta

expor a dificuldade vivenciada por um descendente de samurais, homossexual, escritor, frente a uma sociedade que prezava a negação do “eu” em favor da sociedade. O autor dizia que ao nascer já estava condenado a ser estragado pelas palavras. “Na pessoa comum, imagino, o corpo vem antes da linguagem. No meu caso, antes vieram palavras; então – pé ante pé, com toda a aparência de extrema relutância, e já vestida de conceitos – veio a carne. Já estava, nem é preciso dizer, estragada pelas palavras.” op.cit. p.08. Tanto a escrita, como a vida de Mishima expressam a luta do indivíduo para diferenciar-se do grande número, representar o coletivo pela diferença, encontrando a realidade “em algum ponto onde as palavras não tivessem nenhum papel a desempenhar.” op.cit. p.09. Podemos considerar que suas palavras representam o movimento que Almeida descreveu como potencialidade emancipatória da identidade anamórfica. Mishima acreditava que no pleno exercício do existir as pessoas se tornavam invisíveis e que somente a morte lhes daria a opaca presença absoluta de um objeto no mundo. Fiel ao projeto de si-mesmo, Mishima concretizou sua presença, em novembro de 1970, quando, após tomar as dependências do Quartel das Forças Armadas de Tóquio e após ler para a tropa imperial um texto em que denunciava a violência da ocidentalização e a decadência dos códigos tradicionais de seu país, cometeu o sepuku — também conhecido popularmente como Harakiri (cortar o abdômen), preferimos utilizar o termo tradicional pela representação do gesto. O samurai realizava o ritual do sepuku quando chegava à conclusão de que a vida não tinha mais sentido, ou que a vida que teria de levar dali em diante seria uma vida que ele não escolheu, uma vida desonrosa. Mishima não suportaria viver em um país que lhe conferiria uma política de identidade garganta abaixo. Não nos deteremos na história de Mishima, nem em sua obra, sugerimos para quem quiser conhecer sua obra que inicie com Sol e Aço. Também indicamos um estudo interessante realizado por BASTIDAS, Cláudio. A outra Beleza: o estudo da beleza para a Psicanálise.

212 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. p.302.

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podemos verificar o esgotamento de um certo regime de crítica, ligados àquilo que

Ciampa e Habermas denunciaram como o esvanecimento do horizonte utópico213.

Fenômeno que Zigmunt Bauman identificou como sendo resultado da falta de liberdade

proporcionada pela privação da faculdade de estabelecer significados objetivos e

normas, promovido por uma sociedade cujo “poder consiste no monopólio ou privilégio

do campo da interpretação do significado”214. Agamben trabalhou como a persistência

de um estado de exceção que é “essencialmente um espaço vazio, onde uma ação

humana sem relação com o direito está diante de uma norma sem relação com a vida”215

e Safatle diagnosticou como sendo resultado de uma guinada da sociedade da satisfação

administrada para uma sociedade da insatisfação administrada216, na qual os indivíduos

não acreditam mais nas promessas de emancipação, vinculadas pelo sistema de

mercadorias, e ficam propensos a determinações provisórias (que na verdade não é o

reconhecimento de sua alteridade). No que se refere a esse último autor, inclusive, é

importante assinalar que na sua compreensão do capitalismo atual a metamorfose é

pressuposta como necessária para os indivíduos, que agora ao invés de aprisionados na

reposição de personagens estariam presos à substituição infinita das personagens. O

segredo dessa nova etapa da sociedade capitalista, na visão de Safatle, está naquilo que

o autor denomina como “ironização absoluta dos modos de vida”.

Pois, em uma sociedade da insatisfação administrada, os sujeitos não são mais chamados a identificar-se com tipos ideais construídos a partir de identidades fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e certa ética de convicção, fato impossível em uma situação de crise de legitimidade como a nossa. Na verdade, eles são cada vez mais chamados a sustentar identificações irônicas, ou seja, identificações nas quais, a todo momento, o sujeito afirma sua distância em relação àquilo que ele está representando ou, ainda, em relação a suas próprias ações. Pois uma exigência irrestrita de gozo que procura realizar-se através da anulação de toda determinidade “restritiva” encontra sua forma perfeita na ironia absoluta que reenvia todo vínculo com a determinidade ao campo inefetivo.217

213 Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social como metamorfose humana em busca de

emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico e HABERMAS, Jürgen. A crise do Estado de bem-estar e o esgotamento das energias utópicas.

214 BAUMAN, Zigmunt. Para una sociologia crítica. p.197. Tradução nossa: “el poder consiste en el monopolio o privilegio en el campo de la interpretación del significado”.

215 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p..131. 216 SAFATLE, Vladmir. O cinismo e a falência da crítica. p.133 et seq. 217 Ibidem. p.134.

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Os resultados negativos dessa guinada nas identidades são evidentes para o autor.

Safatle acredita que esse é o motivo pelo qual os grandes sintomas da

contemporaneidade (obsessividade e conversão histérica) terem sido substituídos pela

depressão e ansiedade, que “pressupõem a consciência tácita da incapacidade de

sustentar escolhas de objeto”218. A sustentação dessa forma de socialização capaz de

manter identificações socialmente disponibilizadas, passa a ser identificada como

“cinismo”, uma vez que esse nome reflete a ironia necessária para se viver em uma

sociedade que se submete a essa administração da insatisfação. Safatle, nesse sentido,

assume plenamente as considerações de Žižek, para quem o indivíduo que acredita no

discurso neoliberal hegemônico “não pode ser ao mesmo tempo inteligente e honesto:

ou é estúpido ou um cínico corrompido”219. O cinismo é aqui identificado como um

movimento duplo no qual saber e não-saber podem coexistir conjuntamente,

caracterizando a forma perversa da negação. Essa condição, por sua vez, inaugura um

novo problema: os indivíduos transformarem-se em objeto do gozo do outro por

contrato, “ser Senhor e escravo por contrato é uma forma absolutamente paródica de

reconhecer a autonomia dos sujeitos”220. Em outras palavras, articulando o conceito de

cinismo com a linguagem habermasiana, poderíamos dizer que com a colonização do

mundo da vida pela lógica sistêmica, que preza os fins econômicos à solidariedade, as

condições as relações de reconhecimento recíproco transformam-se em relações

mercadológicas, cuja própria ação comunicativa não consegue operar.

No nosso caso, fica evidente que indivíduos diagnosticados como doentes

mentais, “portadores de sofrimento mental”, encarnam completamente essa condição,

“a figura do contrato pressupõe previamente o reconhecimento da dignidade dos

sujeitos que deixam de lado sua dignidade a fim de sustentar uma encenação limitada

no tempo e no espaço”221. Ciampa já havia nos mostrado isso n’A estória do Severino e

a História da Severina quando assinala o episódio em que Severina permanece escrava

do discurso médico-psiquiátrico e se vê inutilizada. O reconhecimento médico-

psiquiátrico de sua doença transforma-se naquilo que Charles Taylor denominou como

discriminação invertida não percebida222. Nesse momento, inclusive, Ciampa apresenta

uma artimanha utilizada por Severina frente ao discurso que a negava enquanto pessoa: 218 SAFATLE, Vladmir. O cinismo e a falência da crítica. p.137. 219 ŽIŽEK, Slajov. Bem-Vindo ao deserto do Real! p.90. 220 SAFATLE, Vladmir. Op. cit. p.162. 221 Ibidem. Loc. cit. [grifos do autor] 222 Cf. TAYLOR, Charles. La politica del riconoscimento.

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enganar o médico para continuar definitivamente afastada pelo INPS de modo a poder

continuar recebendo pensão mensal como “incapacitada” e informalmente trabalhar

“sem registro”. Ele nos adverte, entretanto, quanto aos perigos de fazer uma

interpretação convencional da situação:

É preciso sempre lembrar o significado real da situação para Severina, e não o aparente. Caso contrário, fica ilógico: Severina tinha parado de trabalhar no hospital porque se tornara uma doente mental. Logo, o desejável seria que quisesse deixar de ser doente mental para voltar a trabalhar. Contudo, está trabalhando e tem medo de não ser mais declarada doente mental; chega até a enganar o médico do INPS. Certamente, para Severina, deixar de ser doente mental era continuar sendo declarada doente mental, não voltar para o mundo que a enlouquecera, e ficar naquele refúgio onde de vez em quando podia fazer molecagens [seria uma regressão de sua situação – AFL]. O próprio fato de voltar a trabalhar dá a impressão de algo ilógico – pelo menos do ponto de vista da lógica vigente no mercado de trabalho (...).223

Torna-se claro que essa estratégia de continuar encenando a personagem Louca,

no caso de Severina, serviu como resposta à falta de reconhecimento de sua totalidade,

de sua dignidade, por parte do social224. Ela aceita (estrategicamente) o reconhecimento

perverso que lhe fora atribuído ao ser diagnosticada como doente mental —

reconhecimento perverso não porque a reconhece enquanto alguém que está ali com

uma situação problemática, mas perverso porque desconsidera toda sua história e a

convence de que o problema é uma loucura individual — e dramatiza a personagem

frente ao medico (não como escrava, mas como atriz que espera ser bem sucedida no

papel desempenhado), até ser aposentada. Por invalidez? Não. Poderíamos dizer que foi

por sensatez (contradizendo a condição pressuposta de arrazoada), já que o diagnóstico

não a aprisionou à personagem. Podemos dizer que, no caso de Severina, o

reconhecimento de uma nova personagem (louca) e a possibilidade de representar outra

personagem (moleque) ao mesmo tempo, criaram as condições para sua alterização

futura: o reconhecimento posterior, obtido no budismo, de sua responsabilização por si-

mesma, o que, enfim, concretizou sua condição de humana. No que se refere a essa

última colocação (do reconhecimento institucional), inclusive, Ciampa reforça sua

importância no último episódio da dramaturgia encarnada por Severina:

223 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.89. 224 Ibidem. p.86 et seq.

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Recorrendo novamente a uma metáfora, poderíamos ver aqui um diretor de teatro insistindo com um ator para que este viva a personagem que está representando. Não basta apenas agir como a personagem; é necessário pensar, sentir, acreditar como ela: ter a fé e a convicção que caracterizam a personagem. É preciso ingressar no seu mundo, conhecê-lo, migrar para esse mundo e nele viver como o mundo! Não é só outra personagem, também é outra peça teatral; é outra personagem e outra história. Não basta simular, caricaturar. É necessário identificar-se com ela e com seu drama.225

E é recorrendo a esse episódio que podemos encontrar elementos para retomar

nossa discussão acerca do sofrimento de indeterminação e das condições de

reconhecimento da identidade do doente mental. Para tanto, somaremos às

contribuições acerca do reconhecimento da identidade elaborada por Ciampa e

Habermas, as reflexões de Axel Honneth, que considera a identidade como inevitável

luta por reconhecimento. Adiantando que às proposições aqui realizadas por Honnet

acerca da importância do reconhecimento da identidade para o exercício da alteridade

realizadas por esse último não serão contrárias às desenvolvidas por Ciampa. E que isso

se deve ao fato de o próprio Honneth assumir que seu objetivo é atualizar o projeto

hegeliano para fundar uma teoria social com conteúdo normativo; o que pretende

realizar a partir da exploração do que ele chama de déficit sociológico dos autores

frankfurtianos, principalmente Habermas, o qual acusa de ter dedicado muita atenção às

influências sistêmicas no mundo da vida e negligenciado o potencial de transformação

dos movimentos sociais226.

Para Honneth a análise da colonização do mundo da vida pela lógica sistêmica

deve ser direcionada para a explicitação das condições de reconhecimento na sociedade

capitalista. O diagnóstico das patologias da modernidade ao invés de se embasar no

diagnóstico dos impedimentos da fala livre de coerção, direciona-se para o diagnóstico

dos pressupostos intersubjetivos da formação identitária, consolidada na luta por

reconhecimento. O problema do reconhecimento — explorado nas obras do jovem

Hegel e na psicologia social de Mead, e que aparece em Habermas como elemento

necessário para a constituição do Eu —, é retomado em Honneth como conceito central

que possibilita potencializar a Teoria Crítica e redirecioná-la para o entendimento das

mudanças sociais proporcionadas pela imposição do capital, em que mercado e Estado

225 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.107. 226 Estes, como vimos, na perspectiva aqui adotada são considerados os tensionadores do deslocamento

dos pontos fixos (inscrições simbólicas) de determinadas políticas de identidade.

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fomentam as instituições sociais que são cristalizações dos processos de aprendizado

moral.

A compreensão de que a busca pelas condições ideais de fala, proposta na teoria

da ação comunicativa (pensada por Habermas como prévia ao conflito), deixa para o

segundo plano a dinâmica do conflito social (distanciando a teoria da ação comunicativa

do projeto original da Teoria Crítica), leva Honneth a buscar nos próprios escritos

habermasianos os elementos que teriam sido negligenciados e impedido Habermas de

vislumbrar na luta pelo reconhecimento227 a verdadeira gramática dos conflitos sociais.

Não é por acaso que as referências principais em Luta por reconhecimento — trabalho

em que esse autor elabora o que chama sistematicamente de “teoria social com teor

normativo”228 e “teoria crítica da sociedade”229, apresentando sua “gramática dos

conflitos e da lógica das mudanças sociais” —, sejam os escritos do jovem Hegel e a

psicologia social de Mead. A articulação desses dois autores, segundo o próprio

Honneth, possibilita uma distinção conceitual das diversas etapas do reconhecimento.

Portanto, com a inclusão da psicologia social de Mead, a idéia de que o jovem Hegel traçou em seus escritos de Jena com rudimentos geniais pode se tornar o fio condutor de uma teoria social de teor normativo; seu propósito é esclarecer os processos de mudança social reportando-se às pretensões normativas estruturalmente inscritas na relação de reconhecimento recíproco.230

Ao retomar os escritos de Jena, Honneth considera válidas as críticas realizadas

por Habermas no Discurso filosófico da modernidade, de que esses escritos trazem

consigo uma retaguarda metafísica, e reforça a tese de que toda abordagem que tentar

buscar uma retomada dessa teoria filosófica encontra-se na obrigação de um contato

direto com as ciências empíricas. Isso, segundo sua concepção, eleva a “luta por

reconhecimento” — identificada por Hegel para além de uma teoria normativa das

instituições, ou ainda, para além de uma teoria da concepção moral ampliada no plano

da teoria da subjetividade — para uma perspectiva teórica com forte teor normativo,

que por sua vez, deve lidar com três problemas: a) explicar como se dá a constituição de

um Eu que depende de um reconhecimento recíproco para assim poder se colocar como

227 Uma ótima discussão acerca do reconhecimento pode ser encontrada em: RICOEUR, Paul. O

Percurso do reconhecimento. 228 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.23. 229 Ibidem. p.24. 230 Ibidem. p.155.

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autonomamente agente e individuado; b) partindo das premissas da teoria da

intersubjetividade, assinalar como as diversas formas de reconhecimento recíproco

distinguem-se umas das outras segundo o grau de autonomia possibilitando a ação

política autônoma, sendo necessárias e inerentes ao aumento do desenvolvimento

capitalista; e c) demonstrar como no curso da formação identitária, mediada pelas etapas

de uma luta moral, os sujeitos são compelidos a entrar num conflito intersubjetivo, cuja

pretensão é o reconhecimento de sua pretensão de autonomia, até então não confirmada

socialmente. Segundo Honneth, os dois primeiros problemas podem ser resolvidos pela

Psicologia Social de George Mead, uma vez que seus escritos “permitem traduzir a

teoria hegeliana da intersubjetividade em uma linguagem teórica pós-metafísica”231 e

ainda por cima mostram como a luta por reconhecimento é “o ponto referencial de uma

construção teórica que deve explicar a evolução moral da sociedade”232. Honneth233,

assim como Habermas234, defende a tese de que a Psicologia Social de George Mead é a

única capaz de oferecer elementos para uma Teoria Crítica pós-metafísica.

Como já havíamos adiantado, a contribuição de Mead volta a aparecer em

nosso texto, o que nos leva a entender que é importante apresentarmos uma síntese de

seu pensamento. Os dois autores trabalhados até agora concordam que George Mead

conseguiu desenvolver plenamente a compreensão da relação entre o indivíduo e a

sociedade. Nos escritos de Mead a compreensão dos processos de interação social, da

linguagem e dos objetos físicos do mundo material são elementos centrais no processo

de entendimento da formação do self e da construção das identidades sociais. A

consciência para Mead é social, sendo uma função e não uma substância desenvolvida

no cérebro. A comunicação entre sujeitos não aconteceria numa esfera mental, mas num

campo comunicacional, resultante da complexidade dos processos sociais em que os

indivíduos estão imersos. Assim Mead, partindo de uma explicação naturalista, procura

mostrar como, a partir dos gestos, surgem os sinais e os símbolos e, posteriormente, as

convenções semânticas válidas intersubjetivamente.

O sujeito individual surge no momento em que ele incorpora os referenciais

intersubjetivamente compartilhados e pode dizer “Eu” de si mesmo. Esse processo,

longe de ser reduzido a um determinismo fisiológico ou psíquico, segundo Mead, 231 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.123. 232 Ibidem. p.125. 233 Cf. Ibidem. p.125-154. 234 Cf. HABERMAS, Jürgen. Individuação através da socialização. Sobre a teoria da subjetividade

de George Herbert Mead. p.183-234.

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somente se torna possível num processo de socialização e individuação. Em Mind, Self,

and Society235, o autor ilustra esse processo de desenvolvimento, como se sabe,

recorrendo primeiramente a duas fases da atividade lúdica infantil, que ele denominará

de play e game236. Na primeira fase a criança entra em relação com os objetos e se

apropria do outro por meio de suas próprias atitudes, para depois reagir a isso

complementariamente na própria ação; posteriormente a criança desenvolveria a

capacidade de interagir num jogo com regras. Essa etapa é conhecida por games

justamente pela inclusão das regras que determinam os padrões de comportamento dos

participantes no jogo. Uma vez incorporada a regra, o indivíduo consegue atingir seus

objetivos em conjunto e não mais individualmente, não sendo mais necessária a regra

coletiva para que ela se estabeleça, pois é criada e mudada pelo próprio indivíduo. Esse

resultado é explicado em Mead como o desenvolvimento do “outro generalizado”, que

se caracteriza, como o próprio conceito explicita, como a generalização das

expectativas de comportamento de todos os membros da sociedade, o que possibilita,

como bem descreve Odair Sass, “internalizar conscientemente o mundo exterior, e

suplantar a si mesmo, convertendo a si mesmo, como consciência de si, no seu outro.

(...) o que Mead, e outros autores denominam de diálogo interiorizado”237.

A proposição meadiana acerca do outro generalizado leva Honneth a entender

que:

Se o sujeito, pelo fato de aprender a assumir as normas sociais de ação do “outro generalizado”, deve alcançar a identidade de um membro socialmente aceito de sua coletividade, então tem todo o sentido empregar para essa relação intersubjetiva o conceito de “reconhecimento”: na medida em que a criança em desenvolvimento reconhece seus parceiros de interação pela via da interiorização de suas atividades normativas, ela própria pode saber-se reconhecida como um membro de seu contexto social de cooperação.238

Honneth entende ainda que até esse momento Mead consegue desenvolver uma

versão de psicologia social alternativa à teoria do desenvolvimento da identidade do

jovem Hegel. Entretanto, no que se refere ao conceito de reconhecimento, o autor

representante da Escola de Chicago teria levado a teoria hegeliana para um outro nível.

235 MEAD, George Herbert. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. 236 Cf. Ibidem. p.152-164. 237 SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.205. 238 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.136.

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É verdade que falta em Mind, Self and Society qualquer referência a uma etapa de reconhecimento recíproco como a que Hegel tentou caracterizar com seu conceito romântico de “amor”; talvez seja essa a razão também de as explicações de Mead terem poupado a forma elementar de auto-respeito dada com a formação de uma confiança emocional nas próprias capacidades. Mas, com vista à relação de reconhecimento que Hegel introduziu em seu modelo evolutivo com uma segunda etapa, sob o conceito genérico de “direito”, a concepção de “outro generalizado” não representa apenas uma complementação teórica, mas também um aprofundamento objetivo: reconhecer-se reciprocamente como pessoa de direito significa que ambos os sujeitos incluem em sua própria ação, com efeito de controle, a vontade comunitária incorporada nas normas intersubjetivamente reconhecidas de uma sociedade. Pois, com a adoção comum da perspectiva normativa do “outro generalizado”, os parceiros da interação sabem reciprocamente quais obrigações eles têm de observar em relação ao respectivo outro; por conseguinte, eles podem se conceber ambos, inversamente, como portadores de pretensões individuais, a cuja satisfação seu defrontante sabe que está normativamente obrigado.239

O pensamento de Mead seria compatível com o de Hegel também pela

constatação de que a relação jurídica de reconhecimento se torna incompleta se não

puder expressar as diferenças individuais entre os participantes de uma coletividade.

Todavia, novamente Mead apresentaria uma vantagem frente ao pensamento

hegeliano por incorporar no desenvolvimento da identidade o potencial criativo do

“Eu”. O “Eu” na proposta teórica meadiana é a reação espontânea frente a novas

situações. Como disse o próprio Mead, “é portanto graças ao ‘Eu’ que dizemos nunca

ter consciência plena do que somos, que nos surpreendemos com nossa própria

ação”240, àquilo que Ciampa denominou como expressão do outro outro que também

sou eu. Enquanto na sua relação com o outro generalizado o "mim" expressa a

convencionalidade, a tradição e a adaptação, o "Eu" enquanto instância de liberdade

expressa a novidade, a transgressão e a originalidade. De forma dinâmica, como

explica Mead, “o ‘mim’ é o conjunto organizado das atitudes dos outros que o

indivíduo adota para si mesmo. As atitudes dos outros constituem o mim organizado

e então o indivíduo reage a elas como um ‘eu’”241. Valendo-nos da contribuição de

Sass, podemos dizer que o “Eu” é a fase: “que se exterioriza, reagindo à atitude dos

239 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.138-139. 240 MEAD, George Herbert. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.174.

Tradução nossa: "It is because of the "I" that we say that we are never fully aware of what we are, that we surprise ourselves by our own action."

241 Ibidem. p. 175. Tradução nossa: ""me" is the organized set of the attitudes of the others which one himself assumes. The attitudes of the others constitute the organized "me", and then one reacts toward that as an "I"."

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outros”, enquanto que o “mim” é a fase “que internaliza aquelas atitudes”242. Para

Honneth, essa contribuição reforça a tese de que o desenvolvimento da identidade, ao

contrário do a priori habermasiano da estabilidade, é conflito.

Se esse potencial de reação criativa do “Eu” é concebido como contraparte psíquica do “Me”, então salta à vista rapidamente que a mera interiorização da perspectiva do “outro generalizado” não pode bastar na formação da identidade moral; pelo contrário, o sujeito sentirá em si, reiteradamente, o afluxo de exigências incompatíveis com as normas [ponto fixo, inscrição simbólica] intersubjetivamente reconhecidas de seu meio social, de sorte que ele tem de pôr em dúvida seu próprio “Me”. Esse atrito interno entre “Eu” e “Me” representa para Mead as linhas gerais do conflito que deve explicar o desenvolvimento moral tanto dos indivíduos como das sociedades: o “Me” incorpora, em defesa da respectiva coletividade, as normas convencionais que o sujeito procura constantemente ampliar por si mesmo, a fim de poder conferir expressão social à impulsividade e criatividade do seu “Eu”. Mead insere na auto-relação prática uma tensão entre vontade global internalizada e as pretensões da individuação, a qual deve levar a um conflito moral entre o sujeito e seu ambiente social; pois para poder pôr em prática as exigências que afluem do íntimo, é preciso em princípio o assentimento de todos os membros da sociedade, visto que a vontade comum controla a própria ação até mesmo como norma interiorizada. É a existência do “Me” que força o sujeito a engajar-se, no interesse de seu “Eu”, por novas formas de reconhecimento social.243

Tendo isso em vista, fica claro que para Mead o indivíduo somente consegue se

diferenciar em face ao meio social, ampliando a extensão de seus direitos e autonomia.

Claro está também que essa concepção já se apresentava nos escritos do jovem Hegel. O

diferencial encontrado na Psicologia Social de Mead, portanto, é que o movimento de

reconhecimento individual está condicionado pela ação incontrolável do “Eu”, que

atualiza continuamente o outro generalizado. O que Mead não teria conseguido

diferenciar muito bem, e que deixaria Hegel com uma vantagem, segundo Honneth,

seria a relação entre a generalização das normas sociais e a ampliação dos direitos à

liberdade individual. Hegel, nesse sentido, “não só fez nos seus primeiros escritos que a

relação amorosa precedesse, na qualidade de uma primeira etapa do reconhecimento, a

relação jurídica, como também distinguiu dela uma outra relação de reconhecimento, na

qual a particularidade do sujeito individual deve obter confirmação”244.

242 SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.231. 243 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.141. 244 Ibidem. p.146.

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Honneth, inclusive, entende que se Mead tivesse se atentado a essa questão teria

incluído em sua teoria a discussão acerca da eticidade. Lembremos que na obra juvenil

de Hegel a presença do indivíduo se anula em proveito do povo, a identidade é a

unidade que transforma os indivíduos em uma universalidade viva em que todos são

apenas um, “o particular, o indivíduo, é enquanto consciência particular, pura e

simplesmente igual ao universal; e esta universalidade, que sem mais unificou consigo a

particularidade, é a divindade do povo”245. Finalmente, Honneth dirá que Mead de fato

abordou ser nossa tarefa, mas depois abandonou, dotar o outro generalizado com um

common good, que possibilitasse a todos os indivíduos conceberem igualmente seu

próprio valor para a coletividade, sem com isso abrir mão da realização autônoma do

Self. Com isso, volta novamente a se igualar a Hegel no que se refere a não conseguir

demonstrar como as formas de desrespeito podem se tornar experienciáveis para os

atores sociais, “na qualidade de um equivalente negativo das correspondentes relações

de reconhecimento, o fato do reconhecimento negado”246.

Isso faz com que Honneth insista no estudo das três formas distintas de

reconhecimento encontradas em Hegel: a) emotiva, que é responsável pelo

desenvolvimento de confiança em si, indispensável para os projetos da auto-realização

pessoal247; b) jurídico-moral, cuja dimensão é responsável pelas relações baseadas no

direito, possibilitando o auto-respeito; e c) estima social, que, baseada na solidariedade

social, potencializa os projetos de auto-realização a ponto de torná-los universalizáveis.

O reconhecimento assume para Honneth, na sua dimensão mais profunda, uma espécie

de constituição social de base afetiva, primária de cada indivíduo (o amor), que em

Hegel já era explicitado na proposição: ser si-mesmo num estranho248, abrindo espaço

para a retomada da Psicanálise como teoria auxiliar da Teoria Crítica. Como escreve o

próprio Honneth, “é dito das relações primárias afetivas que elas dependem de um

equilíbrio precário entre autonomia e ligação, o qual constitui o interesse diretivo pela

determinação das causas de desvios patológicos na teoria psicanalítica das relações de

245 HEGEL, Georg W. F. O sistema de vida ética. p.55. 246 HONNETH, Axel. Op. cit. p.157. 247 Honneth escreve que com Hegel é possível dizer que “o indivíduo deve aprender em certa medida que

o caráter negativo do direito formal contém ao mesmo tempo a grande vantagem de poder nesse caso prescindir de todas as relações concretas e papéis sociais, para com isso insistir na própria indeterminação e abertura.” Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.90.

248 HEGEL, G. W. F. Op. cit. p.22.

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objeto”249. Não será, portanto, a linguagem destruída ou o texto deformado que

interessará a Honneth; em seu resgate da Psicanálise esse autor toma um rumo diferente

ao adotado por Habermas. Sua preocupação é pré-linguistica, mais precisamente, recai

sobre os estudos empíricos de Donald W. Winnicott, atualizados por Jessica

Benjamin250.

Não é a ampliação intersubjetiva do quadro explicativo psicanalítico como tal o que faz a teoria das relações de objeto parecer especialmente apropriada para os fins de uma fenomenologia das relações de reconhecimento; ela só permite uma ilustração do amor com uma forma determinada de reconhecimento em virtude do específico pelo qual o sucesso das ligações afetivas se torna dependente da capacidade, adquirida na primeira infância, para o equilíbrio da simbiose e a auto-afirmação. Essa idéia central, na qual as intuições do jovem Hegel encontram confirmação num grau surpreendente, teve seu caminho preparado pelo psicanalista inglês Donald W. Winnicott.251

Winnicott escreveu seus trabalhos da perspectiva de um pediatra com postura

psicanalítica que busca esclarecer os distúrbios comportamentais, articulando-os às

condições sociais de desenvolvimento psíquico. Para esse autor interessava esclarecer

os processos por meio dos quais o ser humano começa a existir desde seu próprio ponto

de vista, constituindo-se como um si-mesmo. A teoria psicanalítica nessa perspectiva

não mais se embasaria pela neurose, mas sim pelos sofrimentos de desrealização e

despersonalização, na qual as limitações do individuo não seriam o resultado de cisões

existenciais, mas de uma falha ambiental, que teria impossibilitado o indivíduo perceber

que a vida vale a pena ser vivida — proposições que distinguem de imediato a

abordagem winnicottiana da tradição ortodoxa que remonta a Freud e insere o autor

comodamente nas preocupações teóricas de Honneth embasadas por Hegel e Mead252.

Em relação a esses últimos, inclusive, podemos encontrar vários trechos em que a

Psicanálise serviria de complemento para explicar a socialização e a individuação, como

o reproduzido abaixo:

249 HONNETH, Axel. Op. cit. p.160. 250 Segundo Honneth, Jessica Benjamin empreendeu uma primeira tentativa de interpretar, com os meios

psicanalíticos, a relação amorosa como um processo de reconhecimento recíproco. 251 Ibidem. p.163-164. 252 Salta aos olhos a proximidade teórica referente ao self nas concepções de Mead e Winnicott. Esses

autores nos trazem uma concepção diferenciada de se pensar a constituição do eu, em que o individuo, ao nascer, precisaria de um outro significativo, que seria responsável pela socialização das pulsões e, ocorrendo êxito nesse processo, teríamos o surgimento do self, ou nos termos de Winnicott, de um verdadeiro self.

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De um modo complexo (que tem sido estudado), o desenvolvimento, especialmente no início, depende de um suprimento satisfatório. Pode-se dizer que um ambiente satisfatório é aquele que facilita as várias tendências individuais herdadas, de tal forma que o desenvolvimento ocorre de acordo com elas. Herança e meio ambiente são ambos fatores externos, se falamos em termos do desenvolvimento emocional de cada pessoa, ou seja, da psicomorfologia. Pode ser muito útil postular que o meio ambiente satisfatório começa com um alto grau de adaptação às necessidades individuais da criança.253

Para Winnicott a relação com um outro significativo (mãe) também é vista como

imprescindível, na medida em que somente a partir dessa relação (suficientemente boa),

torna-se possível a integração do bebê, impulsionando-o a “uma categoria unitária, ao

pronome pessoal ‘eu’, ao numero um; isso torna possível o EU SOU, que dá sentido ao

EU FAÇO”254. O ser humano é entendido por Winnicott como um acontecimento, o

resultado de um processo. Ao nascer o ser (que ainda nem é humano) é apenas um soma

(corpo), sem mundo interior (psique); esse ser, chamado pela linguagem que o acolhe de

bebê, necessita de uma mãe, ou substituta desta, capaz de lhe fazer sentir que a vida vale

a pena de ser vivida, proporcionando assim a vivência da ilusão, necessária para que

este possa desenvolver posteriormente objetos subjetivos. Winnicott descreve a fase

anterior à ilusão e ao sentido para a existência, como um momento do “não estar vivo”.

Não estar vivo psiquicamente aponta a necessidade objetiva de um outro para o

desenvolvimento do “eu”.

A constituição do Self, como escreve Tânia Aiello Vaisberg, “é um fenômeno

que se dá no encontro da criança com o mundo humano, com o qual entra em contato,

inicialmente, através da mãe, da família e de quem se encarregue de seu cuidado”255. Se

este for bem sucedido, tem-se a superação da condição de dependência absoluta,

partindo-se para uma dependência relativa, momento em que a criança pode ser aquele

“si-mesmo em um estranho”, proposto por Hegel. Essa fase é importante para Winnicott

na medida em que nela a criança encontra-se em condições de um relacionamento com

os objetos escolhidos, no qual ela suporta a separação da mãe mantendo a confiança na

continuidade do amor desta. Ao ponto de a partir desse sentimento de pertencimento ser

capaz de estar só consigo mesma. Nas palavras do próprio Winnicott, “à medida que o

self se constrói e o indivíduo se torna capaz de incorporar e reter lembranças do cuidado

253 WINNICOTT, Donald W. Tudo começa em casa. p.04. 254 Ibidem. p.11. 255 VAISBERG, Tânia Aiello. Ser e Fazer. p.177.

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ambiental, e portanto de cuidar de si mesmo, a integração se transforma num estado

cada vez mais confiável”256.

O inverso também interessa para Honneth; a esse respeito vemos o autor buscar

elementos na obra de Jessica Benjamin, que investigou as “deformações patológicas da

relação amorosa”257. Honneth assinala que essa autora consegue demonstrar

empiricamente como as relações “masoquistas” e “sádicas”´eram fruto da não superação

da fase simbiótica que o indivíduo tinha com a mãe. Em uma articulação com o

pensamento da psicanalista, Honneth insiste que nesse caso “a dependência

simbioticamente alimentada de um parceiro da relação amorosa acaba se relacionando

de modo complementar com as fantasias de onipotência de matriz agressivo, às quais se

fixa o outro parceiro”258. Como podemos observar, o desenvolvimento primário da

capacidade de autoconfiança é visto por Honneth como a base das relações sociais entre

adultos. A ponto de o autor sustentar que esse nível de reconhecimento é reponsável não

só pelo auto-respeito como também pela autonomia necessária para a participação na

sociedade.

Parece-nos que é possível acolher as proposições desenvolvidas por Honneth

baseados na história de Severina, onde a importância do reconhecimento de

personagens humanizadoras para a promoção da alteridade humana ficou evidenciada.

Ciampa pode demonstrar empiricamente o que Honneth explora em Luta por

Reconhecimento. Entretanto, é importante lembrar que nem todas as histórias de vida

são “bem sucedidas” como a de Severina, nem todos possuem um patrão que pode

suportar as molecagens e reconhecer um outro outro surgindo pela frente, nem

encontrar uma instituição que reconheça sua humanidade. Chamamos atenção aqui

novamente para o reconhecimento médico-psiquiátrico de Severina. Nele ocorre o

inverso do que Severina vivencia na casa do patrão e na organização budista: no

hospital sua identidade é pressuposta, todas as suas personagens são reduzidas a uma

única personagem fetichizada, uma “identidade de louca”.

Ciampa já assinalava n’A estória do Severino e a História da Severina, que a

história de Severina fala de nós259, que somos vários Severinos e Severinas massacrados

pela sociedade capitalista. Como temos assinalado, sua análise, articulada aos

256 WINNICOTT, Donald W. Natureza Humana. p.137. 257 Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.175. 258 Ibidem. p.176. 259 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p. 125.

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pressupostos históricos e teóricos trazidos até agora, permite que façamos a afirmação

de que a representação da “personagem louca”, que conferiu à Severina a pressuposição

de uma “identidade louca”, foi resultado de um discurso utilizado com o pretenso

interesse de diagnosticar o sofrimento individual, mas que em sua concretização se

expressou como elemento de administração da insatisfação, configurando ao invés de

um reconhecimento promotor de alterização (reconhecimento pós-convencional), um

reconhecimento perverso, que reduz as infinitas possibilidades de criação das

personagens à representação de uma identidade fetichizada, estigmatizada.

Isto posto, chega o momento de avançarmos para o nosso último itinerário, nele

apresentaremos nossa Severina e nossos Severinos, que serão chamados de forma

fictícia Ana, Gabriel e Francisco. Pessoas cujas narrativas de histórias de vida nos

ajudarão a explicitar empiricamente como as anamorfoses que trazem consigo todas as

contradições da sociedade capitalista, ao invés de serem acolhidas como expressão de

um sofrimento de indeterminação, são cooptadas pelo discurso técnico-psicológico,

configurando o que temos assinalado aqui como reconhecimento perverso. Essas

narrativas darão elementos para analisar criticamente a apropriação da personagem

doente mental atualmente por esses indivíduos, uma vez que ficará evidenciado que a

representação como doente mental tem se concretizado como saída possível para a

impossibilidade de representar personagens que explicitem as condições desumanas de

nossa sociedade.

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TERCEIRA PARTE

ITINERÁRIO EMPÍRICO

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III – A SAÚDE MENTAL INTERPELADA PELO SINTAGMA IDENTIDADE-

METAMORFOSE-EMANCIPAÇÃO: A (IM)POSSÍVEL RELAÇÃO

ENTRE A MANUTENÇÃO DA IDENTIDADE PRESSUPOSTA DE

DOENTE MENTAL E A LUTA POR RECONHECIMENTO DA

IDENTIDADE HUMANA.

Interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se torna algo nosso. A tendência é nós nos predicarmos coisas que os outros nos atribuem. Até certa fase esta relação é transparente e muito efetiva; depois de algum tempo, torna-se menos direta e visível; torna-se mais seletiva, mais velada (e mais complicada).

Antonio da Costa Ciampa1

Para bem caracterizar o que temos postulado como construção da personagem

doente mental, articulando com o sintagma identidade-metamorfose-emancipação

proposto por Ciampa, torna-se necessário que demonstremos empiricamente como esse

fenômeno tem se apresentado e para quê ele tem sido utilizado. Sendo assim, será

preciso ultrapassar o plano intelectual e compreender como as considerações trazidas

até agora se organizam na vida cotidiana, como estruturam a construção das identidades

em seu processo de metamorfose em busca de emancipação, como são impedidas ou

barradas em seu percurso, ou seja, como o empírico materializa o que até agora

havíamos trazido nos itinerários histórico e teórico. Acreditamos que somente assim a

idéia defendida, que nos parece tão clara, tão simples e, ao mesmo tempo, tão complexa

e pouco discutida pela Psicologia Social (tal como assinalamos no itinerário histórico

quando apresentamos a quantidade de teses de Psicologia que tomaram a saúde mental

como tema de análise e crítica), poderá caracterizar-se como uma proposta teórica frente

àquilo que identificamos como a persistência do discurso psiquiátrico no discurso da

saúde mental.

A maneira que encontramos para fazer isso foi adiantada no início da tese,

momento em que apresentamos nossa discussão acerca do objeto e método: dissemos

que assim como foi proposto por Ciampa na análise da história de Severina,

adotaríamos em nosso terceiro itinerário a narrativa de história de vida como

instrumento para a apresentação empírica de nossas proposições. Reforçamos naquele

1 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.131.

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instante que quando focalizamos um momento da história de vida de determinado

indivíduo não significa que somente ali é que a metamorfose está se dando.

Acreditamos que seja importante resgatar essa informação pois o mesmo pode ser dito

quanto à escolha das personagens analisadas nas histórias de vida que virão a seguir,

uma vez que por conta do recorte que fizemos em nossa tese as personagens que ficarão

em evidência nas narrativas serão aquelas que foram produzidas pelo discurso da

doença mental, as quais, como poderá ser verificado, aprisionaram os indivíduos na

atuação da identidade pressuposta de doente mental. Temos clareza de que ao escolher

esse recorte assumimos que outras personagens ficarão em segundo plano, ou ainda,

poderão deixar de ser evidenciadas, um preço que pagaremos para não ficarmos

aprisionados na discussão de outras personagens, que embora importantes, nos

desviariam de nosso foco principal.

Frente a essa preocupação, adotamos uma maneira diferente daquela utilizada

por Ciampa para contar a história da Severina2, ou ainda, da maneira como contamos a

história de Lou-Lou em nossa dissertação de mestrado,3 uma vez que nessas duas

pesquisas o interesse foi assinalar como as diferentes personagens foram sendo criadas e

impedidas de se realizar, evidenciando as metamorfoses e o movimento de emancipação

a partir da auto-determinação. Focaremos aqui como foi sendo construída a personagem

doente mental em cada uma das histórias e o que essa personagem representa para os

indivíduos. Isso inevitavelmente nos levará a discutir as condições de reconhecimento a

que esses indivíduos estiveram/estão submetidos, uma vez que, como assinala

Habermas, o indivíduo, enquanto singularidade histórica, “só pode ser acessado

performativamente, a saber, pelo caminho de um reconhecimento da alteridade do

outro, a ser obtido no decorrer de uma interação”4. Nesse momento, o conceito de

anamorfose desenvolvido por Almeida, articulado ao sintagma apresentado por Ciampa,

nesse sentido, mostrar-se-á de extrema valia em nossa empreitada, pois, como vimos no

capítulo anterior, poderá nos ajudar a explicitar como formas de expressão identitárias

presentes no mundo da vida, as personagens que são representadas pelos indivíduos, são

administradas de forma a serem negadas e impedidas de apresentarem-se como

contradições do próprio sistema.

2 Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. Passim. 3 LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de identidade:

possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro. p.158 et seq. 4 HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião. p.229

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Acreditamos que ficará evidente que a diferença de nossa apresentação das

narrativas daquela realizada por Ciampa n’A estória do Severino e a História da

Severina, estará apenas no fato de que daremos maior ênfase de análise aos momentos

de indeterminação da identidade, na forma com que esses indivíduos se relacionaram

com a personagem doente mental e na importância do outro que reconhece essa

personagem (especialmente os especialistas: Psicólogo e Psiquiatra) nesse processo.

Essa estratégia provavelmente fará com que muitos detalhes não fiquem evidenciados,

todavia, faz parte de uma pesquisa dessa natureza lidar com o fato de que nunca

conseguiríamos dar conta de todas as possibilidades de leitura e interpretação. De

qualquer modo, as narrativas de história de vida aparecem aqui como uma vantagem:

nelas é possível trazer à tona as contradições individuais e articulá-las com o universal

dominante, ou utilizando palavras benjaminianas, com essas histórias será possível

explicitar como a concepção de doença mental/saúde mental é mais uma das

“exceções”, que fazem parte do fato de que todos somos “exceções” em um sistema

capitalista tardio, cuja mensagem sustentada é a de que se fossem tomadas as medidas

certas essas exceções poderiam ser eliminadas.

Sem querer adiantar as análises que virão a seguir, vale dizer que essas histórias

de vida demonstrarão como a perspectiva habermasiana de colonização do mundo da

vida pela lógica sistêmica não pode ser empregada de forma dualista, ou de forma

binária como escreve Prado5, uma vez que nas narrativas poderemos observar que essa

colonização instrumental se dá durante o processo de socialização e individualização

das identidades e, como o próprio Habermas reconhece, depende de condições de

reconhecimento (perverso) recíproco. Nas narrativas poderemos verificar como os

discursos “tendem a naturalizar-se, a funcionar como verdades definitivas, até que outro

discurso os questione e cobre ‘verdadeira’ visão dos estados de coisas.”6 Também vale

anunciar que retomaremos as contribuições de Žižek, Aidar Prado e Safatle, que

articulam a Psicanálise (lacaniana) com as ciências sociais e a filosofia e que se

mostraram como referências valiosas para pensar a reatualização do sintagma

identidade-metamorfose-emancipação.

Isto posto, resta pedir paciência ao leitor, pois as histórias de Ana, Gabriel e

Francisco que traremos à cena não foram apenas difíceis de serem escritas, elas também 5 PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do intelectual: do extrato comunicável ao ato impossível.

p.89. 6 Ibidem. p.93.

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são difíceis de serem lidas, não somente por sua riqueza e quantidade de matizes, mas

principalmente, pelo insuportável que elas carregam.7 Ficará claro que a idéia de

pesquisador como testemunha, proposta por Gagnebin8, mostrar-se-á extremamente

pertinente, uma vez que ao buscarmos a forma mais apropriada para trabalhar com essas

narrativas pessoais chegamos a uma espécie de intermediário entre a confissão, a

denúncia e o grito silenciado de socorro frente às incontáveis (im)possibilidades de

existência.

1 – A história de Ana: quando assumir uma personagem insustentável de doente

mental se mostra como a única possibilidade frente a uma outra personagem

insuportável

Esses dias fico pensando e choro... penso que eu nunca vou ser o que quero e o que sempre quis ser... tanto tempo passou mas não tinha dinheiro pra isso... eu até que tentei, fiz o que pude, trabalhei mas logo parei de andar (por querer ser magra, apenas isso), hoje estou velha não vai dar tempo de nada mais, não vou andar... e as cicatrizes que tenho, o que faço? Tudo se perdeu, nunca deixou de ser um sonho, não quero mais sonhar porque só choro, só quero morrer, não tem mais lugar aqui pra mim, não tenho o que fazer, nunca vou ser o que quero ser ou o que um dia achei que poderia... tudo acabou pra mim, acho que não devia ter vindo pra esse mundo, que tudo não passou de um erro... Na verdade, queria muito que alguém me desse uma chance de eu mostrar que posso, que sempre foi isso o que quis, que vou dar tudo de mim, que nada importa a não ser o que quero... mas, deixa, acho que isso nunca vai acontecer, e vejo que logo morro.9

Nosso primeiro contato com Ana foi a partir de sua identidade literalmente

virtual, marcada pela citação acima. Essa mensagem, que estava acompanhada de várias

outras, era complementada por fotos onde pedaços de seu corpo estavam expostos. À

primeira vista, a imagem apresentada de suas pernas, coxas e quadril, onde era possível

ver os ossos sob a pele, dava-nos a impressão de que não existiam músculos em seu

corpo, levavam a imaginar que o texto denunciava uma atitude suicida, uma auto-

aniquilação de si mesma. Naquele instante estávamos frente ao monitor de um

computador e havíamos acabado de ser adicionados em sua comunidade de amigos na 7 Talvez fosse desnecessário dizer que os nomes e lugares que poderiam identificar nossos entrevistados

foram todos alterados. Entretanto, alertamos para o fato de que caso exista alguma identificação do leitor com alguma das histórias apresentadas não será uma mera coincidência, mas sim, uma afirmação de que o problema ora apresentado é um problema de todos nós.

8 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, História, Testemunho. 9 Texto extraído do Blog da entrevistada, acessado a partir do acesso ao perfil da mesma em um site de

relacionamentos na Internet.

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Internet, estávamos diante de uma das muitas pessoas que pretendiamos entrevistar para

a tese de doutorado10 e sentíamos o desconforto que todos nós sentimos frente a pessoas

que se denominam anoréxicas, ou melhor dizendo, frente à imagem que as anoréxicas

apresentam. Superado o desconforto inicial, possivelmente por conta do nosso interesse

em saber como era viver naquela situação, passamos a manter contato. Após algumas

semanas de conversas esporádicas, curtas e desconfiadas (Ana sempre dizia que não

queria ser tratada por Psicólogo e que se eu tentasse curá-la cortaria o contato),

finalmente conseguimos desenvolver um mínimo de confiança que fora indispensável

para que pudesse me aproximar e escutar sua história.

Com seu consentimento nos dirigimos à sua casa, que ficava em uma das muitas

periferias de São Paulo. Ana vivia em uma pequena casa de dois cômodos com a mãe e

um cachorro, convivia com o barulho de uma fábrica que ficava ao lado de sua

residência. Na ocasião da entrevista estava sozinha, sua mãe ainda não havia chegado

do trabalho, por isso pediu que pulássemos o muro, pois não podia sair de casa. Até

aquele momento não imaginávamos o que encontraríamos pela frente, uma vez que

sabíamos ser comum os indivíduos construírem nicknames11, personagens fictícios na

rede de computadores, e que nem sempre o indivíduo fora do mundo virtual

correspondia com a personagem virtual. Somente sabíamos que abrir a porta de sua casa

significava tomar contato com uma Ana diferente daquela que havíamos conhecido até

então. E de fato, ao atravessar a porta nos deparamos com uma garota em condições

extremamente vulneráveis, pouco peso, numa cadeira de rodas que sequer possibilitava

que chegasse à porta, haja vista o pouco espaço de locomoção que tinha disponível no

pequeno cômodo. Contrariando os textos e fotos deprimidas de seu Blog, que diziam

querer se afastar de todas as pessoas, recebeu-nos com um sorriso e dizendo que nunca

havia sido entrevistada, nunca havia imaginado que alguém se interessaria por sua vida.

Para contar-nos sua história, Ana faz um movimento que tenta justificar a

personagem que acreditava ser de nosso interesse: a identidade pressuposta que estava

sendo re-posta cotidianamente e que havia sido o elo de ligação entre nós. Acreditava

10 Havia pensado como estratégia de levantamento dos possíveis participantes da pesquisa em participar

de vários grupos que se auto-denominavam de alguma maneira como doentes mentais, pacientes, usuários de instituições de saúde mental, ou ainda, dependentes de droga, dependentes de sexo, bulímicos, anoréxicos, hiperativos etc., e de fato fui aceito em diversas comunidades e passei a conversar com vários candidatos potenciais, entretanto, sempre que o encontro pessoal era anunciado vivenciava o afastamento do possível entrevistado. Não compreendia muito bem o porquê desse fenômeno até ter contato com a história de Ana, que me recebeu em sua casa e contou-me sua história.

11 Apelidos utilizados na Internet para preservar o anonimato da identidade do usuário.

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que poderia nos mostrar como sempre foi anoréxica e como sua condição atual era algo

inevitável. Pergunta-nos se poderia então começar a contar sua história de vida desde o

início, que, semelhante ao relato de Severina trazido por Ciampa, também se mostrou

uma narrativa de alguém que descreve a infância que não teve, ou melhor dizendo, de

sua infância como criança humilhada pelos colegas de escola. Era filha do desejo

apenas de uma mulher (sua mãe) e trazia consigo algo que entende hoje como sendo o

prelúdio de sua história com a anorexia.

Mas não nos enganemos com essa primeira fala de Ana, que acredita que a

personagem que nos interessa é a personagem que conhecemos na Internet, pois

veremos que embora inicie seu relato falando da personagem anoréxica, o simples fato

de nascer prematura, com pouco peso, não será garantia da pressuposição da

personagem fetichizada, que luta ainda hoje para se manter reconhecida. Aliás, o

sentido da proposição anoréxica, a qual normalmente é atribuída a restrição alimentar,

já aparece na apresentação de Ana como uma proposição que explicaria à restrição não

somente de alimentos, mas também dos elementos que são incorporados socialmente

como necessários para o desenvolvimento normal de um indivíduo.

(...) quando eu nasci, a minha mãe falou que tava grávida pro meu pai, ele não quis. Então minha mãe falou, eu quero e ficou só comigo e se separou dele... nasci com problema, por causa de ser pequena, fiquei um monte de tempo lá na incubadora. Pra crescer... minha mãe fala que eu já nasci anoréxica.

Sendo assim, iniciar com o anúncio da personagem que representa atualmente

serve para Ana encontrar um fio condutor para sua narrativa e, como ela mesma

comenta: mostrar como sua vida sempre foi de restrições e privações. Ana, que nesse

primeiro momento de sua vida representava uma criança prematura abandonada pelo

pai, conta-nos que sua infância é vivenciada em condições precárias, reconhecendo que

sua mãe foi a garantia mínima de conforto que pôde obter. Conforto que era conseguido

com a solidão experienciada nos vários dias em que ficou em casa sozinha por conta do

trabalho da mãe. Ana acredita, inclusive, que essa situação a fez aprender que a solidão

era algo normal, somente sendo neutralizada nos momentos em que ficava com sua

mãe, que compensava os momentos em que não estava ao lado de Ana com mimos,

dentre eles uma alimentação cuidadosamente preparada.

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Minha mãe cuidava muito bem de mim quando estava em casa, aí eu só comia as coisas que ela fazia pra mim... acho que ela me acostumou assim. Ela comprava coisa natural pra eu comer, porque eu não conseguia comer as outras coisas por causa de nojo. Era suco de laranja que minha mãe fazia na hora, era ovo caipira, arroz integral, feijão, açúcar mascavo, essas coisas. E, sempre foi assim. (...) salada, esse tipo de coisa (...) comia bastante porcaria, sabe... bastante sorvete, bastante chocolate, era uma criança normal...

A Ana de hoje, que esforça-se em representar a Ana anoréxica, assinala que a

Ana de ontem mantinha uma relação afetiva com a alimentação que, ao ser oferecida

como algo individualizado, reforçava o amor de sua mãe, compensando de certa

maneira a falta dessa. Ana assinala que durante esse período de sua vida não vive

nenhum problema com a comida, nem com seu corpo. Aliás, o problema com a comida

estava na dificuldade que encontrava em se alimentar por conta das dificuldades

financeiras da mãe, que não podendo comprar lanches para Ana levar para a escola fazia

com que esta última tivesse que lidar com a falta de alimento durante toda sua infância e

adolescência. É importante destacar que a relação alimento x corpo, inclusive, somente

será problema para a Ana de hoje, nesse momento, como ela mesma assinala, nem se

“importava tanto [com a comida] e também não sabia que se não comesse eu ia

emagrecer ou se eu comesse eu ia engordar”. Pelo contrário, ser magra, principalmente

a partir do momento em que começa a ir para a escola, torna-se motivo de humilhação.

Isso porque não era considerada um tipo ideal de indivíduo. Como ela mesma descreve:

Eu por ter o cabelo encaracolado, diferente das meninas que eram da minha rua, eu por ser magrela, me rebaixavam. Eles botavam apelidos, sabe... eu não gostava... me sentia mal. Então, eu queria ser diferente, não queria ser daquele jeito, eu queria ser sempre como... sei lá... como uma menina... não que eu não me achasse menina... eu queria ser como aquelas que eram amigas deles, esse tipo de coisa. Não queria ser a excluída ou a apelidada. Eles me enchiam bastante o saco. E por minha mãe ter o cabelo curto, eles apelidavam ela e eu não gostava, sabe... desde criança. E pensando bem eu era meio retraída, quase nunca ficava de cabelo solto e eles me chamavam de leão. Parece até meio engraçado, mas eu odiava. E eles [os meninos] falavam que nunca ficariam comigo sabe... porque eu parecia um menino.

A representação de si-mesma era confrontada com um outro generalizado cruel

que lhe apresentava um apavorante paradoxo: representava cotidianamente uma forma

de existência que era rejeitada pelos outros, ao mesmo tempo em que era apresentada

como única existência possível, uma vez que aquilo que era rejeitado era sua própria

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identidade. Ana de repente percebe que a realidade é extremamente hostil, que para ser

aceita deveria ser uma outra. Esse paradoxo nos leva a adiantar algumas questões: como

criar novas personagens e vivenciar a alteridade quando não conseguia sequer o

reconhecimento de sua existência? A humilhação nesse caso levaria Ana à

impossibilidade de lutar por reconhecimento no futuro tal como Honneth postula em sua

teoria?12 Vejamos como Ana vai lidar com essa problemática, ou ainda, como vai lidar

com as contradições dessa condição objetiva.

A contradição interna que Ana vivenciaria corre o risco de ser vivida

simplesmente como revolta, indivualizar-se, se transformar em “sina”, em vingança

contra os humilhadores — tal como ocorreu com Severina no episódio em que

representava a vingadora que “arquiteta planos para adquirir poder e ‘destruir toda

aquela gente’13” —, e retroceder a patamares de adaptação ou identificação com os

agressores. Isso porque a simples vivência de novas relações (na escola, na comunidade

etc.) não parecem produzir uma contradição, pelo contrário, via de regra geralmente

essas relações parecem corroborar com o fortalecimento e reprodução da humilhação.

Afinal, as relações que constituem o universo simbólico, a intersubjetividade presente

no ambiente escolar, são relações preestabelecidas. Nelas existem uma clara hierarquia

de divisão de estruturas de poder nas quais aquele que sente uma forte necessidade

somente pode realizá-la a partir de sua submissão às regras expressas por um outro

(criança não pode falar alto com seus amigos, não pode brigar, não pode ir ao banheiro

a toda hora, meninos devem brincar de bola, meninas de boneca etc.). O que deflagra

que na escola, as regras de uma sociedade de controle que aparentemente estariam

externas (mas que na verdade são cada vez mais materializadas na colonização

incessante do mundo da vida pela lógica sistêmica), é internalizada de maneira que a

submissão à disciplina escolar é invertida na produção de indivíduos disciplinados (o

12 Honneth entende, apoiado na teoria do reconhecimento hegeliana e na psicanálise winnicottiana, que

caso o indivíduo não consiga ter suas necessidades afetivas e físicas satisfeitas “plenamente”, este não poderia desenvolver o potencial de lutar por reconhecimento. No ensaio Reconhecimento ou redistribuição?, ele escreve que: “a relação de reconhecimento está ligada à existência física dos Outros concretos, que retribuem seus sentimentos de estima especial. A atitude positiva em relação a si próprio surge desse reconhecimento afetivo, que é o de confiança em si mesmo. (...) esse tipo de reconhecimento recíproco não pode ser generalizado além do círculo dos relacionamentos sociais primários, aparente nas ligações afetivas, como de família, amizade ou amor.” Cf. HONNETH, Axel. Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectiva na ordem moral da sociedade. p.86

13 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.49 et seq.

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que é o esperado para o indivíduo que futuramente deverá se submeter ao mundo do

trabalho).

No caso de Ana, a contradição ficaria cada vez mais intensa devido ao fato de

que continuaria a insistir naquilo que não era reconhecido pelos colegas de escola.

Indiferente aos comentários cruéis e as humilhações, continuava a brincar com “coisas

de menino”. Como ela mesma faz questão de frisar, jogava bola o dia inteiro com outros

meninos e seguia na contramão das meninas de sua idade que brincavam com “coisas de

menina”, que “só queriam ficar brincando de boneca (...) e eu [Ana] não tinha paciência

para isso, gostava de jogar futebol, de basquete, de andar de bicicleta, esse tipo de

coisa.” Ana nos fala que tenta identificar-se com coisas que ficam sendo descritas como

pertencentes a lugares divergentes. Esse processo aparece em sua narrativa como

extremamente complexo e confuso, a coordenação entre os elementos de socialização e

individualização ora aparecem como encaixes intercambiáveis, ora aparecem como

peças trocadas de um quebra-cabeça.

Ana passa por um processo de crise que deixa explícita a contradição da

sociedade capitalista a qual insiste em difundir que existe espaço para todas as formas

de existência. Na narrativa de Ana fica aparente que em sua inserção nas relações da

sociedade do capital ela deparou-se com uma contradição entre um valor interiorizado

(o amor de sua mãe) e a objetividade das relações sociais vivenciadas (ser diferente do

que é esperado justifica ser excluída). Eis que, de repente, surge alguém que se parece

com ela, alguém que também diz se reconhecer em Ana. Nesse momento a menina que

parecia menino, percebe que não é a única: a amiga não tinha desenvolvido o corpo, e

não era considerada um menino, por um breve momento “não ter corpo”, como Ana se

refere a esse momento, as diferenciava das outras garotas da escola que já apresentavam

as mudanças da adolescência. O fato de “não ter corpo”, que em um primeiro momento

era vivenciado como motivo de humilhação, tem seu sentido distorcido a ponto de

tornar-se um elemento de diferenciação, de individualização.

E era engraçado porque eu e minha amiga, minha melhor amiga, a gente ficava espiando as meninas, sabe... aquelas que já tinham corpo, que já tinham seios, tinham um monte de coisa. Ela [a amiga] falava: (...) “quando eu crescer quero ser daquele jeito”. Se comparando com uma menina (...) queria ter um peitão e eu já falei, eu não! Eu não quero ser assim! Não quero ser igual!

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Novamente, não nos adiantemos em interpretações dessa situação, pois Ana

assinala que nesse momento de sua vida, a menina que parecia menino não quer ser

uma menina para sempre, ela quer algo não vivenciado até então, ela quer a satisfação

de uma necessidade até então não percebida: seu querer ser igual à amiga representava

um querer ser uma menina de família, tal como a amiga que vivia com a mãe e o pai, o

qual Ana nunca havia sequer conhecido o seu próprio. A amiga representava uma

realidade alternativa a que vivia e que passa a ser vista como ideal, como Ana mesmo

reconhece: “hoje eu consigo perceber isso (...) eu queria ser como ela. Não queria o

corpo. Queria ser bonita, queria estar com o meu cabelo liso como ela tinha, queria ser

loira, queria ter pai, mãe e irmão.”

O desejo de ser como a amiga faz com que Ana decida procurar pelo pai que a

abandonara. E quando finalmente decide questionar sua mãe acerca do paradeiro deste,

descobre que ele trabalhava em uma instituição de tratamento e inclusão de portadores

de necessidades especiais. Pensava na ocasião que talvez o pai tivesse se arrependido de

tê-la abandonado e que sua presença poderia fazer alguma diferença. Decide então

procurar pelo pai e descobre algo que não esperava: o pai já havia formado uma outra

família. E se já não bastasse o fato de que essa condição a obrigava a lidar com a

impossibilidade de concretização da sua fantasia14 de reorganização da família, depara-

se com uma coisa que não consegue administrar: as condições que configuraram a

família de seu pai.

(...) ele teve um caso com uma mulher, uma mãe de um paciente, sabe... é ridículo, ele preferiu ficar com um tetraplégico do que comigo que andava, que era perfeita. E, nossa, aquilo pra mim foi o fim do mundo.

Mais uma tentativa frustrada de busca por reconhecimento de sua identidade.

Seu corpo novamente mostra-se como um receptáculo que não lhe garantia a existência,

pelo contrário, parecia se tornar um estorvo. Ana diz que após descobrir que seu pai já

tinha outra família e que assumira um tetraplégico como filho passou a ter ódio dos

deficientes. Não suportava a presença de ninguém que tivesse alguma necessidade ao

14 É importante assinalar, como lembra-nos Safalte, “a fantasia não é construção de uma aparência que

seria distorção ou recalcamento de uma realidade psíquica positiva primeira; ela é o modo de defesa contra a experiência angustiante da inadequação entre desejo e os objetos do mundo empírico. Em outras palavras, a fantasia é modo de defesa contra a impossibilidade da totalização integral do sujeito e seu desejo em uma rede de determinações positivas”. SAFATLE, Vladimir. A política do real de Slavoj Žižek. p.189.

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seu lado. Que alternativa encontrava frente a essa situação? A saída era mostrar a todos

(ou ao pai) que tem mais valor que um deficiente passando a praticar diversas atividades

esportivas. O corpo, que havia sido foco de humilhação e que na identificação com a

amiga mostrou-se como possibilidade de diferenciação, agora iria ser utilizado como

instrumento de negação dessa situação (da condição de filha que valia menos que um

deficiente). Essa maneira de lidar com essa situação parece fornecer os elementos que

nos ajudam a entender o sentido da representação de sua personagem atual: a Ana

anoréxica.

Para não se tornar uma filha de ninguém, tal como ocorreu com Severina15, ou,

melhor dizendo, para não se contentar com o fato de que era uma filha que valia menos

que um deficiente — o que lhe conferia justificativa para continuar sendo humilhada

socialmente — vemos Ana trabalhar de forma curiosa a construção de duas

personagens, uma que passa a ser vista como uma possibilidade de superação e outra

que serviria como uma personagem de negação: a esportista e a deficiente. A primeira

será construída a partir de uma personagem que outrora era objeto de humilhação, a

menina que parecia um menino, e mostrar-se-á como forma de aceitação no espaço

social (principalmente no momento em que é contratada para trabalhar numa academia);

a segunda, por sua vez, será construída como um inimigo insuportável a ser derrotado (o

preconceito de Ana aparece como outra ambivalência, uma vez que em sua narrativa

vemos os sentimentos de ódio e inveja por essa condição explicitamente aparente na

forma como fala do filho que o pai adotou, que tomou seu “lugar”). Para uma efetiva

representação da esportista será preciso muito esforço, tanto físico como emocional. O

esforço físico será expressado na prática de várias modalidades, o emocional na re-

significação de uma personagem vivida anteriormente: a menina que parecia um

menino.

Ana, que passa a representar a Ana esportista, começa a acreditar que a

representação dessa personagem lhe traria o reconhecimento tanto buscado desde a

infância quando representava uma Ana humilhada. Dessa forma, os músculos que

traziam a infelicidade de ser reconhecida como a menina que parecia um menino

perdem sua condição de foco principal nesse momento de sua vida, o que para a Ana-

de-hoje se torna uma grande contradição para sua auto-descrição como anoréxica. No

momento que nos conta isso, inclusive, faz questão de frisar: 15 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.52 et seq.

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(...) era ridículo, porque se eu soubesse disso hoje acho que eu não faria (...) quanto mais eu tentava me livrar deles [os músculos], mais eles ficavam, porque fazia exercício o dia inteiro, bicicleta, natação, aeróbica, aula de dança sabe... não parava.

Hoje, ter músculos aparece como um problema para a representação como

anoréxica, entretanto, no momento em que está se referindo, os músculos faziam parte

da composição da personagem esportista que com o esporte mostraria que era alguém

interessante, uma filha que valia mais que um deficiente. E com o passar do tempo

consegue o reconhecimento pela insistência na representação: Ana é convidada para

trabalhar em uma academia de tênis. Sua felicidade em obter o reconhecimento da

personagem vivenciada é tamanha que parecia compensar toda a exploração que

vivenciaria nesse lugar.

Foi o lugar que eu mais amei. [Ana chora nesse momento] Pegava as bolinhas (...) era raro eu ficar sentada. Só sentava pra comer alguma coisa que eu dividia com meu amigo. E eu ficava mais, ainda o dia inteiro mais sem comer andando pra lá pra cá, pra lá pra cá e ai eu comecei a sentir umas dores, assim, comecei a sentir muitas câimbras. Eu ia de bicicleta de casa pra escola, da escola às vezes pro trabalho da minha mãe. E do trabalho dela para o meu trabalho, onde eu ficava o dia todo de pé e chegava às vezes dez e meia, onze horas em casa, não lembro muito se eu comia ou não e ia dormir.

Será que Ana finalmente havia conseguido o que queria? Essa resposta Ana

ainda não teria, mas de uma coisa tinha certeza, naquele lugar vivenciaria um outro

reconhecimento para sua identidade, que até então somente haviam lhe possibilitado

vivenciar o sentimento de humilhação. É certo que esse novo reconhecimento traz

novos problemas, se antes era humilhada agora era explorada. Novamente fica explícito

que o fato de não comer estava relacionado às condições concretas que vivia e que a

impediam de ter acesso à comida. Mas isso também não era um problema, pois o fato de

não se alimentar de forma ideal já era visto como normal. Na academia era alguém

necessária e desejável, isso aparecia como possibilidade de superação de antigas

situações em que era humilhada, como eram as vezes em que esperava ser desejada

pelos garotos da escola e, pelo contrário, era vista como menina que parecia menino.

Um episódio que marca essa situação foi o momento em que é cantada por um

freqüentador da academia que dizia estar interessado nela.

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Um menino falou que eles [outros rapazes da academia] tinham comentado de mim, aí, ele falou que queria ficar comigo (...) que eu não tinha barriga, que eu era bonita, sabe... E você sabe como é menina boba né? Eu me achei... me senti a mais linda do mundo (...).

Finalmente a personagem que tanto lhe incomodava, a menina que parecia

menino, poderia ser atualizada, ou ainda, superada. Todavia, eis que surge algo

inesperado, uma nova cena é apresentada e exigiria uma outra interpretação, que,

inclusive, impediria de forma radical a representação da Ana esportista. De repente, as

dores que sentia constantemente — que eram fruto tanto dos esforços físicos como do

tempo que passava de pé na academia — a surpreendem de uma maneira nunca antes

experimentada. Essa dor insuportável, que em um primeiro momento é vista como uma

dor passageira, em breve se mostraria como um tipo de dor persistente que lhe obrigaria

a resignificar tal identidade. Deixemos que Ana conte como as coisas aconteceram:

Cheguei em casa e a dor não passava. Minha mãe chegou do serviço falando “Ana, vamos pro hospital!” (...) eu mesmo não querendo, falei: vamos! Só que antes eu vou tomar um banho (...) Eu não tomei banho [não deu tempo para isso] como era beliche eu falei que estava com dor de cabeça subi e fiquei deitada lá um minuto (...) na hora que ela falou vamos, eu fui descer (...) só cheguei a colocar o corpo pra fora e fiquei me segurando pra não cair de vez no chão. Minha mãe achou engraçado, [pensava] que era brincadeira, mas a minha bexiga começou a encher, parecia que tava grávida. Fui no banheiro, me arrastei toda, me ralei toda (...) bati a cabeça e a barriga na cama da minha mãe e ela viu que eu não tava brincando (...) e as coisas foram piorando, minha mãe tentando pedir ajuda e ninguém acreditava nela, sei lá... não que não acreditavam nela, mas acho que também não estavam nem ai (...) Não era a filha deles, nem nada, então passou sábado à noite, domingo e eu fiquei em casa. Só segunda-feira o pai da minha amiga que eu sempre quis ser igual também, perguntou: conseguiu buscar ajuda? e minha mãe falou: não! Aí ele falou: então vamos levar ela pro hospital!

Com a ajuda do pai de sua amiga, Ana é levada para o hospital. A descrição que

faz desse lugar lembra-nos aquela realizada por Rainer Maria Rilke, nos Cadernos de

Malte Laurids Brigge16, um lugar destacado como espaço para a busca da vida, mas que

parece ser um lugar onde se vai para morrer. Hospital lotado, pessoas espalhadas pelos

corredores em macas improvisadas. Ana é encaminhada para a emergência, sua mãe é 16 Nessa obra Rilke escreve: “Então é aqui que as pessoas vêm para viver; eu antes diria que aqui se vem

para morrer. Hoje saí de casa. E vi: hospitais. Vi um homem cambalear e cair. As pessoas rodearam-no, poupando-me o resto. Vi uma mulher grávida. Arrastava-se pesadamente ao longo de um muro alto e quente, que por vezes apalpava como para certificar-se de que ele ainda estava ali.” Cf. RILKE, Rainer Maria. Os cadernos de Malte Laurids Brigge. p.05.

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encaminhada para casa. Logo depois da internação Ana entra em coma, estado em que

iria permanecer por nove dias.

Ao despertar do coma a primeira coisa que pede para sua mãe é um espelho,

com este objeto em mãos nota que não reconhece a si-mesma na imagem refletida,

percebe em seguida que não coordenava as pernas, imaginava que aquele estado era

provisório e que era devido a alguma medicação. Após a primeira visita médica

descobre que o provisório pode ser algo permanente: é informada que havia contraído

um encéfalo vírus. Naquele instante descobre que passara por uma metamorfose radical,

todo o trabalho desenvolvido para conquistar um corpo com o qual pudesse se

identificar parece ter sido em vão ao notar que o corpo refletido no espelho era um

corpo definhado, atrofiado. Tal como Gregor Samsa, personagem d’A metamorfose de

Franz Kafka, que acorda metamorfoseado em algo inumano, naquele momento não

consegue mais descrever quem é: representa uma anamorfose para si mesma. Mas o que

isso quer dizer? Que ela, na condição concreta em que estava, em relação ao ponto de

vista que adotara sobre si mesma, representava uma deformação de imagem?

Considerando isso, não é difícil entender que adotar uma personagem esportista

significava adotar uma imagem ideal sobre si e sobre o próprio corpo, a qual se mostra

distorcida na imagem refletida no espelho.

Minha vida acabou ali, sabe (...) quando eu cai... têm coisas que acontecem que faz com que a gente não seja mais gente. A única coisa que eu queria saber é se eu ia voltar a andar.

A partir daquele momento, inclusive, Ana descobriria que não poder andar seria

apenas mais um dos problemas. Devido à fragilidade em que se encontrava, era como se

dali em diante tivesse de começar do zero. Discutimos, e de certa forma adiantamos

esse fenômeno no itinerário teórico, quando Ciampa interpretou o momento em que

Severina esgotou todas as possibilidades de representação das personagens interpretadas

até aquele momento a ponto de chegar a zero, fato que abriu espaço para que ela fosse

reconhecida como doente mental. Havíamos identificado esse fenômeno também em

nossa dissertação de mestrado, onde, a partir da narrativa de Lou-Lou, também ficou

evidenciado que o diagnóstico de doença mental (sob o diagnóstico de dependente-de-

drogas-louca-suicida) viria após a impossibilidade de interpretação de personagens

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ensaiadas e não reconhecidas17. Já nessas duas histórias de vida era possível observar

que o momento de chegar a zero representava o instante de potencialidade e fragilidade

enfrentada pelo indivíduo frente à indeterminação de sua identidade e as formas

convencionais de reconhecimento. Nas duas histórias foi possível perceber, uma vez

que em ambas narrativas puderam ser observados fragmentos de emancipação —

utilizando aqui o conceito de anamorfose proposto por Almeida —, que somente

quando foi possível suportar e incorporar as anamorfoses expressadas (incorporar o

estranho, o inominável nas identidades de Severina e Lou-Lou) é que a alteridade das

identidades puderam ser concretizadas.

Na narrativa de Ana, como poderemos verificar, o sofrimento de indeterminação

se estenderá por algum tempo, afinal, estava diante de uma situação a qual ainda não era

possível dizer em que condições ficaria: não era conclusivo o fato de que voltaria a

andar ou se tornaria paralítica, era uma anamorfose para si mesma e para os outros.

Entretanto, se na esfera do reconhecimento de sua identidade após a doença ainda não

era possível afirmar quem era, no que se refere ao relacionamento com os outros,

principalmente com a mãe, era como se tivesse regredido ao período de infância.

Devido ao seu estado físico é obrigada a depender da mãe para se alimentar e realizar

coisas que antes lhe eram simples tais como: tomar banho, ir ao banheiro etc.

Após cinco meses de internação chega o momento de Ana voltar para casa,

descobre que tornou-se popular, não por conta de sua melhora, mas porque chamava

atenção por conta de sua condição: Ana não andava mais.

Pois é, voltei para aquele lugar chato onde todo mundo me conhecia, onde era novidade que eu tinha parado de andar e que eu tinha voltado para casa (...) É uma coisa doida, primeiro as pessoas não estavam nem aí para mim (...) acontece uma coisa e vai perguntar pra minha mãe se eu tinha morrido, se ela tinha se costumado e quando eu volto pra casa está todo mundo lá (...) um monte de cínicos (...) Aninha! Que bonitinha! Que bom que você ta aí!

Ana conta que passada a recepção inicia o momento de re-adaptação ao mundo.

Novamente tem que lidar com o fato de ter saído prematura do hospital, as feridas

(escaras) ainda estavam abertas, o que denunciava o fato de que não contou com a

solidariedade, muito menos com a ética, das enfermeiras que trabalhavam nessa 17 Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de identidade:

possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro. p.202 et seq e Idem. Dependência de drogas e psicologia social: um estudo sobre o sentido das oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da teoria de identidade.

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instituição, uma vez que as escaras eram resultado do contato contínuo de seus

membros inferiores sem mobilidade com o leito. Como havia se tornado uma garota

que não andava é encaminhada para uma instituição para pessoas com necessidades

especiais, filial daquela em que havia descoberto que o pai trabalhava no início de sua

adolescência. Estava diante de uma situação no mínimo incômoda, todavia, não havia

outra alternativa, precisava se recuperar.

Eu tive que me recuperar das escaras porque se não era impedida de fazer fisioterapia e durou muito tempo, porque não adiantava eu correr porque não sei se você sabe, mas tem aquela deficiência do corpo (...) de uma ferida aberta roubar nutrientes (...) então eu não ganhava peso para começar fazer a bendita da fisioterapia e também não sarava. Eu fiquei muito tempo com essas porcarias dessas escaras, então meus músculos foram atrofiando (...) eu tive escara no calcanhar, imagina nos dois (...) num monte de lugar, na coluna, nas costas, e aquela continuava grande na virilha, nossa muita coisa, era horrível, fora que isso eu também usava frauda.

É importante lembrar aqui que embora estivesse em uma instituição para

deficientes, Ana acreditava que sua estada naquele lugar seria provisória, apenas um

mal necessário que estaria submetida até voltar a andar. Acreditava que apenas tinha

parado de andar, não era uma deficiente. Como ela mesmo assinala, “todo mundo tinha

aquela esperança (...) parou de andar (...) então se começar a fazer algumas coisas vai

voltar a andar (...) Então eu fui para lá, mesmo com algumas dificuldades ainda”. Claro

que a dificuldade de estar em uma instituição como essa — que lhe trazia o perigo de

ser reconhecida como deficiente tal como o filho assumido pelo pai — era constante, a

anamorfose de sua identidade incomodava a instituição, que poderia a qualquer

momento exigir a interpretação da personagem Ana deficiente, algo que para Ana era

insuportável.

Não escondo que eu nunca gostei de deficiente, nunca... desde quando eu andava e hoje continua a mesma coisa (...) Nunca gostei, sempre tive preconceito então, eu sonhava em nunca ficar assim [sem andar], então vou fazer de tudo para continuar sendo independente e fazer o que eu queria.

O sofrimento de indeterminação de sua identidade se torna evidente, não queria

ser deficiente, mas não andava, não queria ter de volta os músculos que poderiam lhe

conferir novamente a personagem menina que parecia menino, mas precisava se

exercitar para combater a atrofia muscular. Tudo isso era somado ao fato de ter que lidar

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com a grosseria das enfermeiras que a tratavam com o mesmo descaso e humilhação

que Ana direcionava para aqueles que reconhecia como deficientes.

As enfermeiras grossas da instituição trocavam as fraldas (...) eu não tenho controle [dos esfíncteres], eu não sinto as coisas (...) eu não sabia quando acontecia, então as pessoas [enfermeiras] ficavam tirando um barato (...) nossa... aquilo me matava sabe. (...) O tempo foi passando e em 2004 que eu já estava bem, (...) bem para eles [técnicos], eu estava com trinta e sete [quilos], ou seja, depois desses anos todos eu consegui chegar nos trinta e sete.

O tempo passava e nada de retornar a andar. A indeterminação tende cada vez

mais para a identidade determinada como deficiente. Ana conta que começa a ficar

cansada com essa situação, ainda mais quando começa a perceber que o interesse da

instituição era fazer com que ela aumentasse seu peso, aumentasse seus músculos, o que

era diferente de seu interesse principal: voltar a andar. Como Ana analisa, o tratamento

começa a ser direcionado para aulas de como se conformar com o problema. O que era

realizado a partir de informações que os usuários da instituição recebiam acerca de sua

condição. Fazer parte delas significava estar ao lado de outros indivíduos com as quais

Ana não queria se identificar. Não queria aceitar a carreira moral que estava sendo

oferecida pela instituição, que Goffman identifica como sendo uma das fases do

processo de socialização dos indivíduos estigmatizados18, ou seja, o momento em que a

pessoa estigmatizada “aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, adquirindo,

portanto, as crenças da sociedade mais ampla em relação à identidade e uma idéia geral

do que significa possuir um estigma particular”19. Embora participasse da rotina

proposta pela instituição, Ana deixa bem claro em sua narrativa: não queria aprender a

ser deficiente.

O que é uma lesão medular, o que afeta (...) e que as pessoas tem que ajudar (...) as pessoas que convivem tem que saber como lidar (...) que uma pessoa [com necessidades especiais] pode levar uma vida normal, pode casar, pode ter filhos, pode trabalhar, pode fazer esporte, pode isso, pode aquilo (...) eles ficavam falando (...) eu nem ouvia, entrava por um ouvido e saía pelo outro (...) eu não queria estar naquele lugar, eu odiava e ainda odeio.

18 O conceito de estigma é utilizado por Goffman para se referir às “desgraças” que são expressas pelas

evidências corporais, ou seja, o estigma como referindo a marcas que denunciam a presença de um indivíduo de segunda categoria. Cf. GOFFMAN, Ervin. Estigma.

19 Ibidem. p.41.

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Ana participava das atividades, dos ensaios da deficiente, mas não aceitava

representar essa personagem. Mas o que fazia então Ana nesse lugar? Alimentava a

esperança de que na instituição poderia voltar a andar e retomar sua vida. Frente à

possibilidade de retomar à personagem perdida, a esportista, valeria qualquer

sofrimento para retomar o projeto de ser uma Filha que valia mais que um deficiente?

Entretanto, como era de se esperar, chegou o momento em que a indeterminação não

pôde ser mais sustentada.

A fisioterapeuta pegou meu histórico (...) pegou os exames que eu fiz e falou que eu não ia mais voltar a andar (...) que eu tinha que me acostumar com a cadeira. (...) Aí pronto! Eu fiquei aquela sessão inteira chorando (...) aí foi uma seqüência de... de desastre, uma seqüência de frustrações (...) então eu comecei a não querer ir mais, nem ligar para estar lá para fazer a fisioterapia mesmo (...) ela me dava só exercício daqui para cima sabe, fazendo musculação e isso e aquilo. Eu falei, opa! Eu ficar musculosa como esses homens de cadeira de roda (...) Deus me livre. E ela me deu alta. Então, eu falei, já que me deu alta, não tenho mais que vir pra cá.

A fisioterapia perdeu o sentido quando passou a ser apenas um conjunto de

exercícios para ajudá-la com a cadeira de rodas. De repente começa a perceber que tudo

o que estava sendo direcionado para ela servia para instrumentalizá-la para a

representação da Ana deficiente. Ana comenta que em uma das reuniões participadas

ficou indignada com o fato de a assistente social lhe dizer que deveria ver o lado bom de

sua condição, pois tendo se tornado uma deficiente havia se tornado uma “privilegiada

para conseguir empregos, todo mundo tem que dar vagas para deficientes”. Nem

precisaríamos dizer aqui que o fato de Ana não aceitar essa condição foi considerado

como uma afronta para a política de identidade proposta pela instituição. Afinal, a

instituição estava oferecendo a possibilidade de ser reconhecida como deficiente e a

vantagem de ser incorporada no mercado de trabalho. Chega o momento em que é

colocada uma escolha para Ana: ou ela aceitava se submeter à política de identidade

proposta pela instituição e passasse a representar a deficiente ou deveria abandonar esse

lugar.

Aquele povo da [instituição para portadores de necessidades especiais] é assim, se uma pessoa consegue fazer, por que você não? Então, era assim, eu falava que não queria fazer, que não queria trabalhar [como deficiente], que não queria fazer nada na cadeira, o que eu continuo falando até hoje (...) e eles ali: não, você pode, você tem que fazer isso porque o deficiente pode fazer (...) E eu nem aí (...) então eu saí de lá e me desliguei totalmente de fazer a fisioterapia (...)

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não que eu não quisesse voltar a andar, mas eu me desliguei sabe (...) além do que, eu queria ainda pensar (...) eu queria voltar a andar.

O que a instituição não considerou foi o fato de que se Ana aceitasse tal política

de identidade teria que viver representando uma personagem que para ela era

insuportável. Entre a escolha do sofrimento de ser identificada como deficiente e a

permanência do sofrimento de indeterminação, Ana decide pela segunda opção, e

abandona a instituição, afinal, o que esta última poderia lhe oferecer naquele momento

era algo que havia procurado se distanciar durante toda sua vida. Entretanto, abandonar

a instituição significava desistir da possibilidade de voltar a andar. Como Ana lidaria

com isso? Como negar algo que o seu corpo denunciava a todo instante? Eis que surge

uma possibilidade, uma alternativa frente à alternativa oferecida pela instituição. Uma

amiga que havia conhecido nas sessões de terapia havia lhe contado que em alguns

casos de anorexia a pessoa parava de andar. Isso, para Ana, que sempre teve

dificuldades com a alimentação e sempre havia sido magra, surge como uma luz no fim

do túnel, uma possibilidade frente ao sofrimento de indeterminação. Nesse momento,

acreditamos que fica evidenciado que o sofrimento de indeterminação da identidade a

que temos nos referido consiste na não aceitação de uma personagem que conferia uma

identidade pressuposta, o que deixa o indivíduo aparentemente sem opções de criar

novas personagens, representar uma antiga ou sustentar uma expressão anamórfica,

logo, gerando uma indeterminação de si mesmo. Fazendo uma articulação com a teoria

meadiana, podemos dizer que o sofrimento de indeterminação também pode ser

compreendido como uma não identificação do indivíduo com os elementos do “mim”,

que serviriam de contraste para a espontaneidade do “eu”, proporcionando a

impossibilidade de apresentação do self.

Retomemos a história de Ana e vejamos como essa proposição tem sentido. O

simples fato de escutar da amiga que o fato de não andar poderia ser interpretado como

outra coisa, algo que poderia servir como personagem alternativa à deficiente, não

garantiria a adoção dessa nova representação de imediato. Ana precisaria ter certeza que

a nova personagem seria viável. Mas como? Se não saía de casa porque não podia

andar, como faria as pesquisas que precisava? É quando uma solução aparece de forma

inesperada, o pai de sua amiga (aquele que a levara para o hospital) sensibiliza-se com

sua impossibilidade de locomoção e oferece um computador e o pagamento do acesso à

Internet para que ela pudesse passar seu tempo. Ana descobre rapidamente que com a

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ajuda da Internet poderia verificar a procedência da informação fornecida pela amiga

sem precisar se locomover fisicamente. No ciberespaço pode visitar diversas

comunidades que a “ajudam” no “diagnóstico”, na nova interpretação para seu

sofrimento de indeterminação. Deixemos que Ana fale como foi esse processo de

descoberta.

Quando eu entrei (...) quando eu comecei a entrar na Internet, muitas vezes eu perguntei se era errado eu ser magra (...) se podia ser normal, porque eu não andava (...) e também se alguma pessoa que não andasse podia ser daquele jeito (...) mesmo porque eu não sabia, eu nunca tinha falado nada para ninguém [que não se alimentava direito] desde que eu andava (...) Então falaram que não tinha nada a ver [tinha parado de andar por conta do pouco peso].

Encontra uma outra leitura para o não andar, a limitação biológica passa a ser

pensada como limitação psicológica, isso oferecia a possibilidade de negação da

condição de deficiência, de impotência frente ao corpo. Nesse caso, a condição de não

andar não seria uma deficiência, um déficit, mas a eficácia na representação da

personagem, estava de certa maneira no controle da situação. Mas como é possível Ana

prescindir de uma personagem estigmatizada (deficiente) em favor de uma outra

personagem estigmatizada (anoréxica) e com isso pensar que poderia ser aceita

socialmente? Para responder essa questão devemos lembrar o sentido que a personagem

deficiente teria para sua identidade e o sentido que será atribuído para a personagem

anoréxica. Enquanto a primeira personagem aparece como a imposição de uma

identidade pressuposta insuportável, a segunda possilita sustentar a fantasia de que sua

condição é resultado de uma escolha. Portanto, a possibilidade de representação da

personagem anoréxica, sustenta uma aparente escolha entre um “modo de vida” e

doença mental — por exemplo, basta observar imensa quantidade de comunidades pró-

anorexia na Internet que defendem o ser anoréxica como escolha racional pelo não

comer. Entretanto, como veremos a seguir, Ana logo descobre que a possibilidade de

representação dessa personagem gerará uma nova necessidade: se antes já havia

descoberto que não bastava apenas saber que em casos de anorexia um indivíduo

poderia deixar de andar, agora descobre que para representar a personagem anoréxica

não bastava que fosse reconhecida como uma, precisaria compor a personagem e

representá-la de uma forma que não restasse dúvidas quanto a sua autenticidade. A

relação com o diagnóstico é invertida. Se antes, na instituição de portadores de

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necessidades especiais, resistia às aulas dos especialistas em deficiência, agora

procuraria especialistas em anorexia para ensiná-la como construir essa personagem,

uma Ana anoréxica. Eu fui visitar minha amiga no Hospital Estadual (...) eu peguei um folheto desse hospital acho que é um dos especialistas em intoxicação (...) dessas crianças que tomam cândida [alvejante], esse tipo de coisa (...) e tinha um folheto de que se a criança, se a pessoa, ingere determinado tipo de coisa tem que fazer ela vomitar (...) e tinha uma mulher que ensinava num folheto (...) A prefeitura que colocou isso, sem saber que (...) uma pessoa que nem eu, que sempre pensou em tudo antes de fazer, estava ajudando [a aprender a vomitar]. Aquelas noções básicas. Aí eu tentei, tentei com o dedo, tentei com a escova, com a colher, ai eu comecei a entrar na Internet (...) eu tentei, com detergente, com mostarda, acho que com um monte de coisa (...) depois que eu entrei [na Internet] é que eu comecei a conversar com as meninas (...) e aí que elas foram me falando mais coisas, mais coisas pra eu tentar.

Escondendo seus planos da mãe, Ana vai aprendendo, a partir das tentativas e

erros, a vomitar. Com o passar do tempo já havia conhecido dezenas de outras garotas

que também estavam aprendendo a ser anoréxicas nas comunidades da Internet, todavia,

como Ana faz questão de destacar, ainda era aprendiz, não tinha passado por nenhum

especialista. Foi quando, após dois anos trancada em casa mantendo contato com

pessoas pela Internet, tem uma chance de conhecer uma especialista em anorexia, uma

Psicóloga que se torna “amiga” de Ana e procura tratá-la virtualmente. Ana conta que

havia dito para a amiga psicóloga que vomitava e não andava mais por conta disso, que,

inclusive, enviou algumas fotos tiradas de suas pernas. Certo dia, após pesar-se em uma

balança caseira, que sem saber estava alterada20, Ana conta alegremente para a

Psicóloga que chegara aos 25 quilos. A Psicóloga, mobilizada pelo discurso de Ana,

toma uma atitude que (des)organiza toda a atuação sustentada até aquele momento. Na

verdade, a Psicóloga age da mesma forma que os especialistas criticados por Szasz na

década de 60 do século passado, uma vez que a profissional, a partir de uma atitude

paternalista e ao mesmo tempo de poder (afinal representava a especialista em

anorexia), como se fosse um agente da família ou do Estado, assume responsabilidade

por Ana, “a define como uma paciente contra sua vontade [a coloca em um táxi e leva

20 A balança caseira tinha sido alterada pela mãe de Ana um dia antes sem que a mesma soubesse. O

objetivo da mãe ao fazer a alteração partiu do pressuposto de que se era o pouco peso o objetivo buscado pela filha, então bastava alterar os números.

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para o hospital] e a sujeita ao tratamento considerado o melhor para ela, com ou sem o

seu consentimento”21.

Acreditei que eu tava com 25 quilos. E foi isso que eu falei pra minha amiga [Psicóloga] (...) eu bebi um copo de vinho, era um copo de vinho branco seco horrível que eu coloquei adoçante. E nesse dia eu comi uma salsicha. Então conversando com ela, ela ficou preocupada e veio aqui em casa [sem avisar], veio de táxi e tudo e falou: eu vou levar você para o hospital. (...) Aí pronto, eu tinha um dia antes tomado um diurético. Então ficou tudo descompensado (...) Começaram a fazer exame de sangue (...) falaram um monte de coisa, queriam até passar a sonda mas minha mãe (...) não deixou.

Uma garota com o corpo atrofiado acompanhada de uma especialista em saúde

mental, isso foi o necessário para que Ana fosse internada com suspeita de anorexia,

suspeita porque como a mesma irá nos contar adiante, ainda teria que passar por vários

exames que comprovassem sua personagem. Passa a noite internada, no dia seguinte

visitou novamente a balança, descobre que a balança que utilizou em casa estava errada.

E eu lá (...) certa de que tava com vinte e cinco quilos (...) aquilo na cabeça. (...) quando eu me pesei deu trinta e um e meio. Você imagina (...) eu fiquei louca da vida. Eu falei: essa balança está errada, comecei a xingar o enfermeiro, esse negócio está errado! (...) E eles me colocaram na cadeira para eu voltar para o consultório e eu chorando, chorando, chorando e vinha comida, vinha café da manhã, almoço (...) [e Ana dizendo] não vou comer!

O resultado da balança também desequilibra a amizade com a Psicóloga, que de

acordo com a narrativa de Ana ficou muito desapontada. Além de ter descoberto que

não estava com vinte e cinco quilos, descobre também que a condição física de Ana

estava relacionada ao encéfalo vírus que contraíra anos atrás e que causou a atrofia dos

membros inferiores. E como a Psicóloga reage novamente frente à descoberta de que

estava enganada à respeito de Ana? Reage de forma cínica. Lembremos que cinismo,

como Safatle assinala, é o nome correto para essa “posição subjetiva que é capaz de

sustentar identificações socialmente disponibilizadas, ao mesmo tempo em que ironiza

toda e qualquer determinidade (por reconhecer seu caráter descartável)22”. Adotando a

postura cínica, a Psicóloga de aliada torna-se inimiga e alinha-se ao discurso do

Psiquiatra nas interpretações selvagens acerca da condição vivenciada por Ana. Afinal,

se essa última não era de fato anoréxica — nesse sentido deixa de ser uma paciente —,

21 SZASZ, Thomas S. O que a psiquiatria pode e o que não pode fazer. p.87. 22 SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.138.

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sustentar que estava ali enquanto uma especialista em anorexia poderia colocar em risco

sua representação enquanto especialista. De repente, a Psicóloga “nega reflexivamente

aquilo ao qual se vincula, criando um universo social ‘carnavalesco’ de aparências

reflexivas, ou seja, aparências postas como aparências”23. Mas é Ana quem tem a

palavra.

O idiota do psiquiatra chegou a falar pra mim que aquilo era frescura, que eu queria chamar a atenção da minha mãe. E a Psicóloga falou que eu fazia aquilo porque, porque eu queria morrer, porque eu não andava (...) você não tem nada (...) isso aí é pra chamar a atenção. Você está falando que você tinha antes de parar de andar [não se alimentava] (...) é mentira! Quando você me contou que tava internada, você nunca me falou disso (...) você não disse que tinha músculos, que você era fortinha. Pronto, pra que foi falar fortinha na minha frente. Ai eu comecei a gritar com ela (...) Aí eles falaram que não iam ficar comigo porque tinham medo de eu morresse, porque eu estava entrando num caminho que não tinha volta, que era aquilo que eu queria, que isso era uma doença.

Se sua história era ou não verdade, seria essa a postura de uma profissional que

se considerava uma especialista em saúde mental e havia levado Ana para o hospital

com o discurso de solidariedade e compreensão do outro? Era isso que Ana se

perguntava nesse momento. De nossa parte, não fosse o fato de termos presenciado (o

que?) em nossas visitas a instituições asilares e substitutivas, e se não tivéssemos

conversado com profissionais e escutado de nossos orientandos diversos relatos de

interpretações selvagens como essa, ficaria difícil de compreender o que ouvimos de

Ana. A análise selvagem realizada pelos dois técnicos, inclusive, faz com que

questionemos se as condições de reconhecimento deveriam ser tratadas pela instância da

ética individual, como proposto por Honneth24. Esse episódio deixa claro que o direito à

estima social nem é tematizado, pelo contrário, o discurso do especialista mascara o fato

de que a leitura para a situação de Ana estava baseada na moral da Psicóloga e do

Psiquiatra.25

Ana até tenta encontrar uma forma de sustentar a personagem anoréxica frente

às interpretações dos especialistas, entretanto, agora era denunciada, desmentida por seu

23 SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.138. 24 Cf. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. p.157 et seq. 25 Essa utilização do discurso moral como se fosse técnico-psicológico, que denunciam a impossibilidade

de uma ação comunicativa na relação especialista paciente, justifica as críticas de Nancy Fraser, para quem o reconhecimento deveria ser tratado como instância moral, logo, uma problema de justiça. Cf. FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? p.113.

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próprio corpo. Agora, mais do que antes, deveria negar qualquer forma de alimentação,

deveria justificar a personagem. Isso obviamente se tornou um problema, pois como a

Psicóloga e o Psiquiatra não reconheceram sua anorexia — pelo contrário,

diagnosticaram sua condição como a de uma deficiente que queria chamar atenção — e

a própria Ana não se reconhecia como deficiente, acaba sendo diagnosticada como

Louca-suicida. Da emergência é encaminhada para a ala psiquiátrica.

Veio o médico, falou comigo, e eu tava tão, tão loca da vida, ele falou assim: você acha suas pernas bonitas? Falei: eu acho! O que você prefere, ficar assim ou voltar a andar? Eu falei: ficar assim. (...) Pronto! Aí uns dez minutos depois já tinha surgido a vaga para a ala psiquiátrica. Era a porta fechada assim, horrível, não sei se você conhece o hospital. É péssimo! E se você também conhecer alguém, não indique!

Sua representação como anoréxica não é validada quando tem seu peso aferido

— a condição de anoréxica como doente mental nesse sentido exige um duplo

reconhecimento: de sua condição mental (não querer comer) e de sua condição física

(pouco peso) —, como não quis representar a deficiente com frescura e continua sem

querer se alimentar é diagnosticada como Louca-suicida — uma modulação da

personagem doente mental que não esperava interpretar —, por conta disso é levada

para a ala psiquiátrica do hospital, a qual não apresentava condições de acolher alguém

com limitações físicas. Uma passagem escrita por Thomas Szasz ajuda a elucidar a

lógica desse pensamento: as regras do jogo da doença.

Se o jogo médico reconhece a legitimidade do papel de doente em pessoas

fisicamente doentes, logo os que assumem esse papel sem o estar fisicamente

serão considerados simuladores de doença; ao passo que se o jogo médico

reconhece a legitimidade do papel de doente em pessoas que não estão

fisicamente doentes, logo os que assumem o papel de doentes sem o estar

fisicamente serão considerados doentes mentais.26

Nessa lógica, em que a regra do jogo da doença utiliza-se de um conteúdo moral

para fazer o diagnóstico, torna-se explícita a falência do discurso psiquiátrico frente ao

conteúdo empírico expressado por Ana. Como assinala Habermas, esse discurso “diz

26 SZASZ, Thomas S. O mito da doença mental. p.207.

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como as pessoas devem se comportar, e não o que se passa com as coisas27”. A

prevalência da leitura moral frente à situação de Ana é percebida por sua mãe, a qual, já

surpreendida pelo “seqüestro” da filha pela Psicóloga e resolve pedir alta administrativa

do hospital. Ana conta que na ocasião sua mãe diz perceber que aquilo que estava sendo

oferecido pelo hospital não era tratamento, mas uma forma de castigo. Deixemos que

Ana conte como foi essa experiência.

Louca da vida e com medo (...) não queria ficar (...) no dia seguinte minha mãe conseguiu falar com os médicos (...) não tinha condições, a ala não era adaptada, não tinha como eu tomar banho (...) eu não tomava banho, porque não tinha lugar (...) a única coisa que eu fazia era lavar o rosto e escovar os dentes (...) ir no banheiro e me limpar com lencinho umedecido porque banheiro adaptado [não tinha].

E Ana continua seu relato dizendo que além do diagnóstico recebe uma

sentença. De acordo com a Psicóloga, que primeiro certificava que Ana era anoréxica e

agora dizia que ela era uma suicida, seu caminho não tinha volta. Está claro que os

especialistas não conseguiram suportar a representação de Ana. Fazendo uma analogia

com os casos em que indivíduos cortam seus próprios corpos, trazidos por Žižek,

podemos dizer que: longe de uma atitude suicida, longe de indicar um desejo de auto-

aniquilação, o não comer “é uma tentativa radical de (re)dominar a realidade ou, o que é

outro aspecto do mesmo fenômeno, basear firmemente o ego na realidade do corpo

contra a angústia insuportável de sentir-se inexistente”28. Mais uma vez Ana deveria

lidar com uma interpretação que indica um beco sem saída para sua identidade,

novamente fica frente ao sofrimento de indeterminação e a escolha entre duas únicas

representações: ou assumia a personagem deficiente que tanto negava ou insistia em

uma personagem cuja morte estava anunciada.

Minha mãe conseguiu me tirar de lá. Saí de lá e fui para a parte administrativa, fizeram minha mãe assinar um termo de responsabilidade e eu também assinei. Falaram que era caso de polícia, que eu podia morrer, mesmo assim deram a alta. (...) voltei para casa um pouquinho mais inchada (...) voltei a fazer tudo de novo.

A experiência no hospital é tomada como parte da aprendizagem, foi um teste

para a personagem que estava há dois anos construindo. Estava certa de que na próxima 27 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. p.269. 28 ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. p.24.

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vez que voltasse para um espaço como aquele não seria surpreendida, não adiantava

mais confiar apenas na balança, muito menos apenas naquilo que dizia, afinal, como ela

mesma comenta: “(...) antes era tudo balela? Eu só queria chamar a atenção das

pessoas? Então eu ia mostrar que aquilo [a personagem anoréxica] era de verdade!” A

obstinação de Ana na construção e representação da personagem anoréxica nos faz

lembrar da obstinação do oficial que toma o lugar do acusado na máquina de tortura

para ter seu corpo submetido a uma nova escrita de Na colônia Penal de Franz Kafka.

Isso nos mostra que mesmo quando uma superfície corporal é reconhecida como

“natural” (não andar = deficiência) pelo Outro, ainda é possível que esse corpo seja

tomado pelo indivíduo como passível de ser transformado em algo dissonante,

performativo, desnaturalizado. É o que acontece com Ana, que assume radicalmente a

personagem, começa a provocar vômito constantemente, faz restrição de alimento, e por

fim, consegue o que queria: em dois meses perde cinco quilos e volta para o hospital,

dessa vez tinha todas as condições para ser identificada como anoréxica.

E eles me deram um encaminhamento para o Hospital das Clínicas, porque falaram que não iam ficar comigo (...) E o psiquiatra já colocou aquele monte de CID no encaminhamento. Sabe (...) lembro que estava escrito no encaminhamento: urgente! Paciente Ana X com estado de anorexia nervosa (...) tratamento urgente.

Pronto! Ana havia conseguido uma nova chance de mostrar que a personagem

representada era verdadeira. Com o encaminhamento do especialista segue até uma

instituição que é referência para o tratamento e pesquisa da anorexia. Como Ana já

esperava (tinha feito lição de casa para não ser surpreendia de novo) ao chegar na

instituição lhe informam que para ser aceita no programa de tratamento precisava passar

por entrevista e realizar alguns testes, consegue ser aceita sem nenhuma ressalva: a Ana

anoréxica é legitimada.

Engraçado (...) tem teste, eu já sabia, sabia o que responder para ser aceita no programa, as meninas [das comunidades na Internet que mantinha contato] tinham me ensinado. Me falaram que o objetivo era o tratamento medicamentoso e terapia. Então eu comecei a passar com a nutricionista e ela começou a passar aqueles cardápios que eu fazia com as minhas escolhas. Eles diziam o que eu tinha que comer e claro que eu não comia, sabia que aquilo era para eu começar a me alimentar, como eles queriam. E era terapia, era nutricionista falando o que a gente já sabe: olha o laxante faz isso, o diurético faz aquilo, vomitar faz tal coisa (...) aquele monte de coisa, aquele monte de história que eu já sabia.

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Um primeiro problema havia sido resolvido, como o diagnóstico de anorexia

conseguiu dar sentido ao não andar, podia agora dizer que não andava porque era

anoréxica, negando assim a possibilidade de representar uma Ana deficiente. Nesse

momento, ao nosso ver, Ana consegue finalmente encontrar uma alternativa, na

representação da personagem anoréxica, para criar uma modulação na mesmice da

representação da esportista, que na verdade era uma personagem criada na tentativa de

se tornar filha que valia mais que um deficiente. Aqui nos parece ser possível dizer que

sua representação como anoréxica, mesmo podendo ser confundida com um movimento

de mesmidade, ainda é expressão da mesmice, ou seja, a personagem anoréxica, uma

vez que expressa a repetição da negação da personagem deficiente, pode ser pensada

como uma modulação da mesmice da personagem esportista.

A personagem anoréxica surge como alternativa de continuidade do projeto de

ser uma filha que valia mais que um deficiente. Todavia, outro problema surge, afinal,

essa personagem ao ser reconhecida trazia uma contradição: se a anorexia era entendida

como doença mental, então deveria ser tratada, superada. Essa condição inaugura um

novo conflito na representação dessa personagem, Ana experienciava a imposição da

alimentação e a resistência frente ao que era oferecido. Um mal-estar institucional

começa a se constituir. O lugar que lhe conferiu o reconhecimento de sua personagem

começa a se configurar como o lugar que poderá destituí-la dessa representação. Afinal,

os interesses eram divergentes, a instituição queria que Ana se transformasse numa ex-

anoréxica, Ana, por sua vez, queria permanecer na instituição para administrar a

mesmice da personagem fetichizada.

Se antes já tinha sido complicado o processo de se tornar uma anoréxica, agora

seria mais difícil ainda manter a representação. Nesse momento, inclusive, Ana

vivenciaria um tipo de solidariedade inesperada: no mundo virtual, em blogs e

comunidades, sua história de resistência faz com que seja reconhecida como um

exemplo a ser seguido por outras anoréxicas. Seu blog passa a ser visitado por diversas

garotas que pretendiam seguir seus passos. De aprendiz havia se tornado uma mestra,

finalmente era alguém importante. Fora da Internet, por outro lado, a resistência frente à

alimentação começa a se tornar um problema para sua mãe, que contra a vontade de

Ana começa a levá-la em consultas médicas, até que uma internação é novamente

vivenciada.

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Eu nunca fui que nem essas meninas que ficam mentindo, quer dizer, a não ser para minha mãe. Mas para médico eu nunca menti. Quando eles diziam: Ana, você comeu hoje? Eu dizia: eu não como desde de ontem, ou dizia, o que eu comi eu vomitei (...) Ele falava: você tem que fazer isso! Eu falava: eu não vou fazer! Você tem que comer! Eu não vou comer! Aí uma médica falou: você vai comer, aqui você vai ser obrigada a comer! Isso foi uma das últimas coisas [faladas] antes de ficar internada (...) eu dizia: eu quero ver quem vai me obrigar a comer! E eu falei antes: eu não vou comer e também não vou voltar! (...) Mas também não adiantou (...) porque eu não ando (...) eu dependo da minha mãe. Então algumas vezes você não tem escolha, você vai mesmo sem querer. Você não anda? Eu te pego no colo e te levo, sabe... esse tipo de coisa. E aí eu acabei ficando internada, no dia 24 de novembro. E o meu aniversário é dia 27. [na internação] Eu não tinha uma reação de chorar que as outras meninas tinham, a minha reação era cara fechada, não falem comigo. No fundo, eu não sabia se eu chorava ou se eu continuava com raiva ou se eu queria aquilo mesmo (...) até mesmo para me livrar ou para mostrar que eles falaram você vai comer vai fazer isso e eu para mostrar para eles que eu não ia, que eu não ia fazer aquilo. Que eu não ia ser mandada por nenhuma daquelas pessoas. Então eu passei meu aniversário lá.

Novamente havia sido internada contra sua vontade, entretanto, a internação, que

em outros momentos de sua vida significou a experiência de solidão, dessa vez é

vivenciada de forma diferente. Dessa vez Ana recebe inesperadamente a visita de

algumas das garotas que mantinha contato pelo site de relacionamentos da Internet e

eram leitoras de seu blog. O interesse delas era colher notícias de sua internação e

atualizar diariamente seu perfil. Mais uma nova descoberta para Ana, pois isso

significava na prática que embora seu corpo estivesse em poder do hospital, sua

identidade virtual permaneceria livre, sendo representada sem maiores problemas. Ana

assinala que a partir desse momento percebe que era importante para alguém além de

sua mãe, uma vez que as garotas reforçavam em todas as visitas que estavam torcendo

por sua saúde e, principalmente, para que continuasse a resistir como anoréxica. O que

não seria uma tarefa fácil de ser cumprida no hospital devido ao tratamento intensivo.

Afinal, ela sabia que se se negasse a comer o que lhe fosse oferecido dessa vez, seria

submetida a uma sonda e já que não adiantaria uma ação comunicativa com os

especialistas, a saída encontrada então seria utilizar um agir estratégico. É quando Ana,

que já representava a anoréxica-problema, soma a essa personagem a adolescente que

não viveu.

Mesmo com a sonda eu tinha que tomar água. Então descobri uma maneira de não tomar aquilo que me davam, eu guardava os copinhos descartáveis e levava

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para o meu quarto (...) então quando não tinha ninguém, eu abria a torneirinha da sonda e descartava, depois eu jogava fora. Sabe (...) eu aprontei muito, aprontei minha vida (...)

Nesse momento de sua vida era como se tivesse retomado sua adolescência, ou

melhor dizendo, como se tivesse revivido aquilo que entendia como adolescência-

perdida, podendo agora ser exemplo para outras garotas. No hospital especializado

conhece outras meninas com quem se identifica, parecia que tudo estava sob controle

novamente: fazia traquinagens para continuar com o pouco peso, mantinha seu blog

atualizado por conta das fãs que conquistara, fazia bagunça, arrumava sua vida.

O que eu não fiz na minha adolescência, na época de escola, eu fiz lá. (...) na escola eu não tinha meu grupinho (...) mas lá eu tinha um grupinho, que botava apelido nas pessoas, que aprontava, que faz isso e aquilo.

Todavia, como era de se esperar, as traquinagens não duraram muito tempo. A

estratégia é descoberta e Ana expulsa do programa de tratamento. Deixemos que Ana

nos conte como essa nova cena se configurou. Ela conta que em um determinado dia,

em que ocorreria a saída de uma interna por conta de uma licença, decide radicalizar

suas traquinagens.

Era uma Mulher casada (...) um dia quando ela saiu eu pedi diurético para ela. Falei: Traz para mim? Ela não disse nem que sim nem que não mas no dia de voltar da licença ela me chamou num cantinho e falou: Ana, toma, esconde (...) Era o remédio... (...) escondi o diurético porque você sabe (...) não pode entrar esse tipo de coisa, principalmente diurético, laxante. Aí ficou comigo. Eu fiquei com medo [no início], tinha medo de tomar e ter um treco (...) medo de que se eu tivesse um treco [descobrissem] que tomei um diurético que não devia e aquele monte de coisa.

O medo não impede Ana de tomar os comprimidos, afinal, manter a personagem

naquele momento significava não ter que retornar ao sofrimento de indeterminação que

vivera anteriormente. O medo é superado também na medida em que começa a

compreender que o fato de estar em um hospital era um indicativo de que tudo seria

feito para mantê-la viva. E consegue ficar contornando o tratamento mais um tempo, até

que sua estratégia é descoberta por uma outra paciente com quem havia feito amizade.

Com o segredo socializado o medo de passar mal começa a ser transformado em medo

de ser descoberta.

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Eu fiz amizade com uma menina que todo mundo excluía (...) e ela viu que eu tinha o diurético (...) então, era tipo daquele jeito: se você me dar eu não conto que você tem! Então eu dei um e dei outro. E nessas duas vezes, ela chamou muito a atenção (...) ficava a noite inteira indo no banheiro e era sempre depois que saía do meu quarto, claro... dá na cara isso (...) Aí eu tive minha primeira licença, na Páscoa e vim pra casa, fiquei feliz pra caramba (...) perdi dois quilos, e claro que me ferrei na volta (...) perder dois quilos é uma condição para não ter outra licença. Um dia eu caí na besteira de perguntar [havia lido todos os efeitos colaterais presentes na bula do remédio] para o médico da Mulher casada que me levou o diurético o que significava todas aquelas coisas e que podia acontecer, então ele me explicou tudo (...) logo em seguida a enfermeira chefe me chamou. Aí eu pensei: pronto ele deve ter contado para ela! E eu tava com a Mulher no quarto e ela [a enfermeira] me chamou e eu fiquei com medo (...) aí eu disse: Mulher toma e guarda pra mim, esconde e depois eu pego com você! Se for tomar a gente toma, mas um de cada vez, você me pede, eu dou, não é para ficar com você. E nisso descobri que a enfermeira só queria meu telefone (...) não era nada.

Não era nada. Parecia que tudo voltaria à rotina, poderia continuar com seu

plano, mas Ana não havia considerado no momento em que acreditava ter sido

descoberta que tinha pedido para o “lobo tomar conta das galinhas”, ou seja, para uma

pessoa que também estava em sua mesma situação para tomar conta de algo que ela

mesma tinha dificuldade de lidar. Foi quando ocorreu uma tragédia.

E já estava com ela [Mulher], quando chegou o jantar (...) eu tive que comer [e lembrou do remédio], nisso ela pegou o remédio deitou no meu colo e falou: Ana, me desculpa! E eu falei: desculpa porque? Ela falou: eu tomei! Eu falei: tomou quantos? Ela falou: sete! Aí eu falei: meu deus [Mulher], porque você fez isso? Sabe, ela não podia ter feito isso. Eu ficava num quarto sozinha. Então ela tomou sete e até de noite não tinha acontecido nada, fiquei aliviada porque nada tinha acontecido e dormi. E nesse que fazia um mês que eu não estava tomando o remédio (...) eu escondia o remédio, tentei tirar a sonda também, foi um caos, eu aprontei muito aquele mês. Então nesse dia eu dormi. Acordei com a [enfermeira] entrando no meu quarto: Ana me fala o nome do remédio que a [Mulher] está morrendo. Eu mal tinha acordado direito (...) me fala o nome do remédio! Aí eu falei tudo, um monte de coisa (...) ela estava no soro (...) tinha dado um revertério forte (...) levaram o aparelho de freqüência cardíaca. Nisso a [amiga com quem dividia o remédio] vendo que a [Mulher] estava passando mal, desmaiou também (...) desmaiou e contou que ela tinha levado o diurético para mim, que eu tinha pedido e que sabia onde estava escondido também se eu não quisesse devolver, então o enfermeiro foi conversar comigo, pediu para eu entregar. Falei que eu não ia entregar para ele. Uma hora da tarde, falaram: Ana você vai ter alta administrativa, você e a [amiga]. A [Mulher] não porque o médico dela pôs no prontuário como tentativa de suicídio. Então minha mãe foi me buscar, ela ficou feliz e tudo, eu não fiquei.

Com o ocorrido Ana recebe alta administrativa, não poderia mais fazer o

tratamento proposto pela instituição. A argumentação utilizada na ocasião da expulsão

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era que ela não tinha perfil para o tratamento proposto pelo hospital de referência para o

tratamento da anorexia. Outro argumento utilizado foi o de que até aquele momento

representava um perigo apenas para si mesma, mas que a partir do que havia feito

tornava-se um perigo para as demais internas, que representavam a demanda

“verdadeira” da instituição — principalmente porque se submetiam à identidade

pressuposta pela instituição e deixavam seus corpos dóceis nas mãos dos especialistas.

É importante assinalar que essa explicação, vinda de uma instituição que se colocava

como a melhor instituição de tratamento para anoréxicas, convence Ana de que não

existia nenhuma alternativa para sua condição, ou seja, a mesma instituição que

reconhece ela como anoréxica assume que não sabe como tratá-la. Claro que aqui fica

explícito que a fragilidade técnica é invertida como um problema individual. Ana é

reconhecida de forma perversa como doente mental sem perfil para tratamento. Esse

diagnóstico, que poderia ser pensado aqui apenas do ponto de vista subjetivo, vindo de

uma instituição entendida como referência para o tratamento da anorexia refletirá de

forma concreta nas futuras tentativas de busca por tratamento. O histórico de

reincidências (recaídas) conferiam à Ana o estigma de intratável.

Depois de uns dois meses e meio depois eu emagreci ainda mais (...) minha mãe viu que não tinha adiantado muita coisa eu ter saído e porque eu já estava do mesmo jeito de quando eu entrei, quer dizer, é estava com mesmo peso, então ela queria que alguém ajudasse (...) a gente perguntou sobre terapia, procurei na Internet (...) acredita que nem pagando quiseram me atender? Minha mãe procurou a prefeitura para arrumar psiquiatra e psicólogo e falaram [os técnicos do serviço de saúde mental que a mãe foi encaminhada] que eu tinha que procurar um hospital primeiro (...) que eu tinha que me tratar, tinha que me internar que isso e aquilo, para depois fazer terapia, falaram que não tinha jeito, falaram que não tinha vaga e eu sabia das conseqüências que não iam me internar e acabou (...) não tem tratamento.

Mesmo que voltasse a ser internada será que conseguiria o que procurava? O

hospital já havia lhe dito que o que poderia oferecer como tratamento era o aumento de

seu peso. Não era isso que Ana procurava, ninguém havia conseguido entender que sua

personagem tinha uma função de negação de outra personagem insuportável: a

deficiente. Valendo-nos de uma passagem escrita por Žižek, podemos dizer que nenhum

especialista conseguiu entender uma condição básica daquilo que se configura

atualmente como demanda: “a demanda por comida, por parte da criança, por exemplo,

pode articular o desejo de amor, de modo que algumas vezes a mãe pode atender à

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demanda simplesmente abraçando a criança”29, isso assinala que não basta apenas

corresponder ao que se apresenta como problema, é preciso abrir mão do cinismo —

que traz a anamorfose para o ponto fixo determinado pelo especialista —, e deslocar

nosso olhar para o ponto onde a anamorfose se apresenta — suportando o fato de que

muitas vezes teremos que abrir mão do discurso técnico-psicológico e produzir uma

outra leitura considerando que o desejo envolve a Lei e sua transgressão. Também

nenhum especialista considerou que a personagem anoréxica conferia a Ana um

reconhecimento de sua identidade nunca antes experienciado, pois era finalmente

popular, como se essa representação pudesse reparar algo nunca vivenciado. Ciampa

havia identificado esse fenômeno como o momento em que nos tornamos nossas

predicações, devido ao fato de a representação significar um aumento do poder a que

uma personagem dá acesso30. Aqui nos referimos a possibilidade de paridade31 que essa

personagem confere ao indivíduo frente, pelo menos, àqueles com quem se identifica e

com quem é identificado.

Na narrativa de Ana algumas questões permanecem sem uma resposta

satisfatória: a) se aqueles que deveriam escutar o sofrimento de Ana, compreender sua

história de vida não se dispuseram a reconhecê-la em sua totalidade, reduzindo-a apenas

à personagem fetichizada, como ela poderia lidar com a anamorfose que fazia com que

ficasse aprisionada entre a adoção de uma personagem que poderia se concretizar como

uma metamorfose para a morte e o sofrimento de indeterminação? b) como poderia dar

outros sentidos para a anamorfose materializada por seu corpo se a própria

representação deste sofria a disputa de diferentes instituições que a priori lhe conferiam

apenas um significado, uma identidade pressuposta? Longe de querer responder a essas

indagações, acreditamos, inclusive, que seja necessário mantê-las como um problema

que deve ser pensado por todos. Falemos do que foi/tem sido possível para Ana, que

sem a possibilidade de experienciar um outro outro alternativo a alternativa encontrada

para negar a personagem deficiente, somente encontra como saída uma representação

limitada, a reposição de uma personagem que é reconhecida de forma perversa. Em

última instância, é uma metamorfose para a morte, se não simbólica, física certamente.

Isso fica explícito quando nos conta quais seus planos para o futuro, seu horizonte 29 ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.391. 30 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina. p.163-164. 31 Paridade aqui é utilizado no sentido apresentado por Nancy Fraser e que se refere à condição de ser um

par, de estar no mesmo nível que os outros, de estar em pé de igualdade. Cf. FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?

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utópico, o qual vislumbramos algo como a fantasia de poder representar uma

moribunda-que-não-morre ou uma personagem metafísica/sobrenatural que desafia a

Natureza ou Deus32.

Sabe qual o melhor tratamento para mim? Ficar internada de novo, mas não para comer. Para realmente não comer, entende? (...) para não ter acesso fácil a comida (...) Você quer saber o que penso para meu futuro? Não existe o futuro! Não para mim. Eu odeio essa cadeira (...) às vezes me desespero sabe... eu estou na minha cama e olho para ela, dá uma vontade de jogar ela no chão (...) me dá vontade de jogar fora (...) sabe... ter vontade de mexer as pernas e não mexer é horrível. Ano que vem vai fazer sete anos. Sete anos é muita coisa (...) eu não quero passar oito, não quero viver assim. Sabe, se não é normal eu vou continuar fazendo como sempre fiz (...), vivo pela Internet. Tanto que eu nem saio de casa, é muito difícil. E eu sinto um pouquinho de falta, mas agora, para que eu vou sair de casa? Me fala! Não tem porque. Eu não, eu não gosto de sair. Fico em casa vinte e quatro horas por dia.

Como propor um tratamento para Ana que não significasse abrir mão da única

personagem que lhe conferiu um reconhecimento desejado para sua identidade? Será

que a expansão dos serviços de saúde mental conseguirá vislumbrar algo além dos

membros atrofiados ou de sua personagem virtual? Será que entenderão algum dia que o

sofrimento passado pelo seu corpo biológico é pequeno quando comparado ao

sofrimento de seu corpo subjetivo? Afinal, não nos parece que Ana queira morrer, sua

história mostra que muitas vezes a realidade se transforma em aparência, que as coisas

simplesmente parecem parecer. Sua história é como um sussurro, um pedido de socorro,

feito por alguém que luta contra a morte simbólica, alguém que resiste em favor da

mínima possibilidade de ser reconhecida, de existir não como um objeto para o outro,

mas como um objeto para si mesma. A narrativa de Ana reforça os argumentos trazidos

na primeira parte de nossa tese, onde questionamos a forma meramente instrumental

que a reforma psiquiátrica tem se concretizado. A explicação de que o problema de Ana

foi o de não se adequar ao perfil, à demanda atendida pela instituição especializada,

deflagra que o interesse da instituição não é pelo desejo do indivíduo (que no caso de

32 Fazemos essa colocação baseando-nos em um hexagrama do I Ching, intitulado “Prover Alimentos”,

cuja primeira linha fala para o consulente: “Você deixa escapar sua tartaruga mágica e olha para mim, com os lábios caídos”; a seguir vem a explicação: “A tartaruga mágica é um ser dotado de poderes extraordinários; pode viver do ar e não necessita de alimento material. A imagem indica que uma pessoa que poderia viver com liberdade e independência abdica dessa autonomia interior e olha com inveja e desgosto para aqueles que estão externamente em melhor posição”. Cf. WILHELM, Richard. I Ching: O livro das mutações. p.385-388.

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Ana aparece como uma re-atualização de toda sua história de vida, da superação do

projeto de querer ser uma filha que valia mais que um deficiente).

Com aquelas últimas palavras Ana termina de nos contar sua história de vida,

sem esperança, sem vislumbrar metamorfoses miraculosas33. Ao cruzar o batente da

porta de sua casa percebemos que a única possibilidade de encontrarmos com ela

novamente, a não ser que ela nos convidasse novamente para uma conversa em sua

casa, seria através de seu blog, da personagem virtual anamorficamente distorcida,

invertida, reduzida, que pelo menos por enquanto representa uma possibilidade e, ao

mesmo tempo, a totalidade de sua identidade. Uma representação que não poderá ser

pensada pelos especialistas da saúde mental enquanto não for pensada para além de uma

demanda psiquiátrica, da transformação de uma anoréxica em ex-anoréxica.

2 – A história de Gabriel: quando assumir uma personagem fetichizada é

vislumbrada como única possibilidade de reconhecimento como pessoa

portadora de direitos

Gabriel também se relaciona com pessoas pela Internet; a personagem que tem

representado também é pressuposta como a de um doente mental, todavia, a forma

como tem dramatizado essa personagem difere daquela apresentada na história de Ana.

Tomamos contato com sua história em uma de nossas viagens cotidianas no transporte

coletivo e depois de uma longa conversa percebemos que sua história de vida poderia

ser interessante para nossa pesquisa. Gabriel trabalha informalmente como técnico de

computadores e é em sua oficina que escutamos sua narrativa de história de vida. Logo

no início de nossa entrevista, ele conta que descobriu interessar-se por esse tipo de

atividade após três anos afastado pelo INSS34 do trabalho que exercia anteriormente por

conta de uma depressão. Antes de seu afastamento trabalhava como motorista em uma

empresa de transporte coletivo de São Paulo. Diferente de Ana, que iniciou seu relato a

partir do seu nascimento, Gabriel começa a nos contar quem é a partir do que fazia, do

seu trabalho e da constituição familiar.

33 Sem vislumbrar metamorfoses miraculosas, prevalecendo a interpretação na linha do I Ching, que ela

deixa escapar a tartaruga mágica ao querer construir uma utopia que consiste em conseguir uma metamorfose miraculosa, a qual seria viver de ar.

34 Instituto Nacional de Seguridade Social

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Eu comecei muito cedo, com quatorze anos eu tava namorando, com quinze anos eu já estava trabalhando, larguei os estudos, fui trabalhar, aos dezessete eu estava amigado [morando junto com uma companheira]. Tinha juntado as coisas e vazei [saiu da casa dos pais]. Essa era a idéia de vida mesmo, a que haviam me ensinado, eu vou trabalhar, montar uma família. Mas uma coisa que nunca me ensinaram foi que não ia ser fácil. Que no trabalho, principalmente no trabalho a coisa ia ser difícil, que eu ia ser explorado. Vou contar para você como foi isso, mas do ponto de vista de alguém que passou pela coisa, que entende de outro jeito agora o que aconteceu.

Gabriel adianta que sua história será contada do ponto de vista “de alguém que

passou pela coisa”, ou seja, de alguém que atualmente atribui um significado específico

para aquilo que está vivenciando. Sua advertência é importante para que lembremos que

sua narrativa, assim como a de Ana, parte de uma personagem cujo sentido de

manutenção segue a configuração realizada frente às personagens que ora foram se

apresentando, ora foram sendo oprimidas, impedidas de se apresentar, ora foram

resistindo frente às tentativas de aniquilação. Após essa primeira apresentação, Gabriel

fala-nos de sua infância e adolescência, encurtada pelo casamento precoce e entrada no

mundo do trabalho. Acredita que contar sua história dessa forma pode ajudar a entender

o que está reivindicando hoje — que, como poderá ser observado, não se refere ao

reconhecimento como doente mental, mas sim, à indenização de danos pessoais sofridos

por conta da lógica sistêmica presente em seu trabalho.

Para você entender vou contar minha história do começo. Acho minha infância foi tranqüila. Tirando o fato que eu era só. Na época eu não tinha irmão, fui filho único até os treze anos de idade e depois dos treze anos minha mãe engravidou, então, quer dizer, eu fui ter um irmãozinho quando já tinha quatorze anos. Meus pais sempre se deram bem, nunca vi meus pais brigando, ao contrário de muitos outros que acontece por aí. Eu cresci tranqüilo mesmo, morei minha vida todo num bairro da periferia onde sou conhecido até hoje pelos colegas, não tenho o que me queixar da minha infância, ela foi curta mas foi boa.

Gabriel diz que tentava se esforçar para aprender o que era oferecido pela escola.

Mas que, com o passar do tempo, começou a perceber que o conteúdo oferecido pela

escola não serviria para nada para a vida que projetava: queria entrar para uma empresa

de ônibus, queria seguir os passos de seu pai migrante nordestino que com pouco estudo

havia conseguido um trabalho em uma empresa de transporte coletivo e tinha lhe

oferecido uma boa infância. Para isso acreditava que não precisaria estudar física,

matemática, história etc., afinal, a própria escola mantinha um discurso ambivalente que

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ora sustentava que bastava se esforçar, se lançar no mundo do trabalho para que

conseguisse viver com dignidade, ora reforçava que para garotos da periferia não existia

futuro.

Esse relato nos leva a resgatar uma colocação de Jean Baudrillard que assinala o

fato de que atualmente os indivíduos estão “simultaneamente intimados a constituir-se

como sujeitos autônomos, responsáveis, livres e conscientes, e a constituírem-se como

objetos submissos, inertes, obedientes, conformes.”35 Vivenciar essa condição faz com

que Gabriel questione o sentido dessa educação: se não teria condições de entrar em

uma faculdade, se não sairia da periferia, estudaria para quê? Sem um sentido prático

que lhe fizesse encontrar na escola algo necessário para sua vida, torna-se o garoto-

problema.

Eu não tinha nada na cabeça, era bem molecão mesmo. Eu arquitetava as trapalhadas, aprontava muito na escola. Não agia por impulso (...) a única coisa que eu estudava, é engraçado, era para fazer uma arte, uma trapalhada.

Passa a ser reconhecido como garoto-problema porque não se submete ao estudo

sem sentido. Essas primeiras falas de Gabriel valem uma provocação: poderíamos

pensar aqui que a escola não estaria cumprindo sua função se não fosse o fato de que ao

mostrar-se como espaço sem sentido ela está contribuindo com a lógica do capital, ou

seja, ao invés de garantir a liberdade subjetiva, a autonomia individual, promove, ao

contrário, práticas disciplinadoras necessárias para uma socialização com vistas no

mercado de trabalho, uma semi-formação. A exigência de disciplina em um lugar sem

sentido é futuramente entendida como o autocontrole necessário para a disciplina no

trabalho. De qualquer modo, o garoto-problema não é representado por muito tempo,

Gabriel prefere deixar as “trapalhadas” em meados de sua adolescência e adiantar o que

era posto como inevitável para um jovem da periferia (trabalhar e constituir família),

afinal, para quê estudar, ficar perdendo seu tempo na escola se seu destino estava

traçado?

Então eu casei muito cedo. E foi difícil foi no começo (...) imagina dois adolescentes, eu trabalhava, ganhava pouco, minha esposa engravidou (...) pagava pagar aluguel, ficamos um tempo pagando aluguel. Passamos fases bem difíceis mesmo, e enfim, e aí você vai começando a enxergar como não é fácil. Você criar, ter uma família hoje em dia não é fácil, é bem complicado mesmo,

35 BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. p.110.

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mas você cresce ouvindo as historinhas que deve casar e trabalhar. Ninguém fala que as responsabilidades aumentam assim de maneira assustadora e você depende mesmo do trabalho, que vira escravo do trabalho. Eu acho que hoje o ser humano, pra se dar bem, pra tentar ser bem sucedido, porque ele pode se dar mal, ele só trabalha, ele não faz mais nada (...) ele tem que viver para trabalhar, só isso.

Gabriel abandona sua adolescência e assume o projeto de tornar-se um homem

de família, as dificuldades começam a aparecer, todavia, ainda eram vistas como

temporárias. Nesse primeiro momento de sua nova representação acreditava que bastava

seguir lançando-se no trabalho, vendendo sua mão-de-obra, para conquistar sua

liberdade da escravidão do trabalho.

As dificuldades pareciam provisórias, parecia que eu é que não tinha me esforçado o bastante, acreditava que se você não trabalha, não tem como você morar, não tem como você comer, isso e aquilo, então você tem que trabalhar. Trabalhar e foda-se o resto. Então ficava com aquilo na minha cabeça, tenho que trabalhar, tenho que trabalhar, tenho que trabalhar, tenho que conseguir dinheiro.

Decide ingressar em uma empresa de transporte coletivo, acreditava que nesse

tipo de profissão conseguiria um mínimo de conforto, que se não fosse conquistado

inicialmente seria conseguido até o final de sua vida, tal como acontecera com seu pai,

que era motorista de ônibus aposentado. Sendo assim, o homem de família, não via

outra possibilidade para sua liberdade a não ser uma submissão à escravidão por

contrato, o qual para ser executado deveria abrir mão de trabalhar para viver por um

viver para trabalhar. Não tinha clareza nesse momento de que essa condição

caracterizaria sua futura representação como alguém escravo por contrato, o que Safatle

identifica ser um fenômeno característico de nosso tempo e que expressa a

funcionalidade da estrutura dual de identificação — a absorção do próprio código e sua

negação —, o trabalho ao mesmo tempo como dispositivo disciplinar e instrumento de

libertação36. De qualquer forma, outras possibilidades não haviam sido apresentadas

para Gabriel, que continua sua narrativa.

E foi assim que eu comecei ir nessa empresa, que hoje eu estou afastado dela. Daí por diante eu comecei a trabalhar na oficina, ali mesmo eu já percebi que a coisa não era, não era fácil mesmo. Você vê muitas pessoas estranhas, as atitudes das pessoas começam a te incomodar. Pelo menos a mim, tem muita

36 Cf. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.135 et seq.

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gente que não está nem aí, para as coisas que vão acontecendo ao redor. Mas ainda acreditava que poderia melhorar, que era só uma fase. Eu comecei na oficina, sujando minhas mãos de graxa, enfim, eu era moleque, não tinha profissão nenhuma, eu estava de ajudante lá e eu via aqueles ônibus (...) os caras dirigindo, como meu pai era. Então, a gente filho homem sempre tem aquela coisa também, de seguir o que o pai faz, até mesmo porque eu nunca fui assim de estudo mesmo (...) eu odiava estar na sala de aula. Mas ali eu imaginava que o trabalho de motorista seria ótimo.

O que tornava essa condição de ter se tornado um escravo por contrato

suportável? A esperança de que um dia poderia se libertar da escravidão, que parecia

uma etapa a ser superada pelo ajudante de oficina. O garoto-problema, que havia se

tornado um homem de família, traça como objetivo de sua realização pessoal e familiar

a construção da personagem motorista de ônibus.

Então eu fui batalhando, com o tempo, da oficina eu passei para fiscal, de fiscal eu passei para cobrador e de cobrador eu cheguei a me tornar motorista. Finalmente tinha conseguido chegar onde queria, onde diziam que eu teria futuro, que garantiria o sustento de minha família, que teria felicidade.

Gabriel decide pagar o preço anunciado para conquistar sua felicidade, contudo,

não sabia que o preço da felicidade seria permanecer preso à inconstância do desejo.

Uma vez, que como Žižek assinala, na vida diária, “(fingimos) desejar coisas que na

verdade não desejamos, e assim, ao final, o pior que pode nos acontecer é conseguir o

que ‘oficialmente’ desejamos. A felicidade é, portanto, oficialmente hipócrita: é a

felicidade de sonhar com coisas que na verdade não queremos”37. Isso fica claro para

Gabriel assim que percebe que o problema de ser explorado não estava no fato de ser

ajudante de oficina, ou fiscal, ou cobrador, o problema da exploração era estrutural da

própria empresa, que sugava até o último sangue de seus empregados. Nessa época

descobre que mesmo tendo imaginado ter assinado um contrato de escravidão

provisória, essa condição provisória poderia se tornar perpétua. Como era de se esperar,

quando Gabriel passa a perceber isso, as coisas começam a se transformar, o sentido de

sua submissão começa a desvanecer.

Quando cheguei no ponto esperado [se tornar motorista] comecei ver que não fazia muito sentido aquilo. Não de não trabalhar ou de estar trabalhando, mas de como você teria que trabalhar, as condições de trabalho. Eu sempre fui esforçado, sempre fui perfeccionista, tanto na minha vida pessoal em casa

37 ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. p.79.

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mesmo, quanto no meu trabalho. Eu sempre havia ficado mais tempo no trabalho do que em casa com minha família. Mas lá no trabalho eu comecei a perceber que ia fazer diferença eu ser perfeccionista ou ser relaxado e tentar fazer da melhor maneira possível, comecei a perceber que era apenas mais uma peça da máquina, descartável. E aquilo foi me incomodando porque eu queria fazer da maneira correta, trabalhar o necessário, para estar bem para tratar as pessoas, mas eu acabei não tendo condições, eles não me davam condições adequadas de eu fazer da maneira correta.

Gabriel assinala o fato de que as condições de trabalho não consideravam sua

condição de indivíduo, de pessoa de direito. Se antes imaginava que a partir do seu

trabalho personalizado poderia se libertar da condição de peça descartável, começa a

perceber concretamente que a personalização era algo que não interessava para a

empresa. O que interessava era explorar sua mão-de-obra até as últimas conseqüências.

Para ilustrar como se dava essa exploração Gabriel nos traz um exemplo do que ocorria

em sua rotina de trabalho.

Por exemplo, o nosso horário de almoço era de vinte e cinco minutos, nossa jornada de trabalho era para ser seis horas e quarenta semanais, mas aumentaram para sete horas e vinte. Só que na verdade você fazia mais de dez. Fazia obrigado, porque eles me davam uma tabela, por mim eu fazia minhas seis horas e quarenta e ia embora pra casa. Mas não. Eles me davam uma tabela de dez horas e eu tinha que cumprir ela e eu não podia abandonar ela nesse horário e eu tinha que fazer meu vinte e cinco minutos que era descontado ainda, com horas-extras fora do contracheque. E detalhe, com uma ferramenta de trabalho totalmente desapropriada para estar ali onze horas, sem manutenção, pneus carecas, sem peças de reposição. Horrível, horrível!

E se não bastasse a exploração física ainda havia a exploração emocional, a

humilhação em todos os momentos que tinha de lidar com o autoritarismo dos seus

superiores, que não consideravam suas opiniões acerca das condições a que estava

submetido, o que agravava cada vez mais sua relação com esse lugar, que embora

ficasse cada vez mais hostil era visto como a única possibilidade de sustento para sua

família.

Comecei a perceber que se a pessoa impõe algo para você fazer você tem que fazer da maneira que ele impôs. Porque ele está acima de você, ele está lá no topo da cadeia alimentar e você está embaixo, você tem que obedecer mesmo que seja uma coisa que esteja saindo errado. Isso me deixava louco. É da maneira deles, dos empresários ou seja lá de quem for, o que estiver por cima, tem que ser da maneira deles, não consideram suas opiniões. E isso começou a me incomodar, até hoje me incomoda, pois eu gosto de ter minha opinião formada, eu gosto de fazer da maneira que eu articule e veja que dá para fazer

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melhor, mas eu tinha que abrir mão disso porque eu precisava do trabalho. Precisava pelo menos do dinheiro, precisava garantir o sustento de minha família. Mas não poder pensar é muito doloroso, e nessa eu fui me desgastando, fui mesmo.

Não poder pensar! No momento em que Gabriel chega a esse ponto de

submissão e humilhação o limite de representação do motorista de ônibus é

ultrapassado, e outra personagem, não esperada nem desejada, começa a aparecer: o

doente mental. Tal como a Severina da narrativa apresentada por Ciampa, Gabriel

começaria a chegar a zero, deparar-se-ia com o sofrimento de indeterminação. Aqui vale

ressaltar a compreensão de Mead no que concerne à explicação dos comportamentos

patológicos. Antes, vale dizer que acreditamos já ter evidenciado a proximidade que a

concepção meadiana de self tem da concepção de identidade proposta por Ciampa —

para esses dois autores seria esperado, de certa maneira poderíamos dizer que é normal,

uma multiplicidade de representações, ou seja, é importante que essa multiplicidade

tenha unidade38. Como assinala Odair Sass, para Mead “a ruptura [dessa multiplicidade]

pode provocar o fenômeno das dissociações da personalidade”39, o que para Ciampa

evidencia o fetichismo da personagem, o aprisionamento na repetição40.

No caso de Gabriel veremos, inclusive, que antes dessa personagem inesperada

ser reconhecida, dando conta do sofrimento de indeterminação gerado pela

impossibilidade de representar o motorista de ônibus, ocorrerá um processo de

desintegração dessa última personagem.

Chegou uma hora que eu não estava agüentando mais. Depois de treze anos nessa empresa eu não estava agüentando mais porque eu estava me sentindo um nada, um lixo, um pano de chão que só é útil enquanto pode ser arrastado pela sujeira e que depois se torna outro lixo que você tem que jogar fora. Porque se eu estivesse bem para trabalhar, ótimo para eles, mas se eu estivesse doente, cansado, estressado, foda-se. Nisso chegou uma hora que eu simplesmente nem tinha mais vontade de sair de casa, eu não tinha mais nem vontade de acordar. De levantar e ir pro trabalho. Mas eu olhava de um lado, para o outro, via

38 Cf. MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist.

“Normally, within the sort of community as a whole to wich we belong, there is a unfied self, but that may be broken up. To a person who is somewhat unstable nervously and in whom there is line of cleavage, certain activities become impossible, and that set of activities may separate and evolve another self.” p.143. Tradução da passagem para o português feita por Odair Sass: “Normalmente, na espécie de comunidade a que pertencemos, há um self unificado, mas que pode ser fragmentado. Uma pessoa nervosamente instável, e para quem há uma linha de clivagem, certas atividades se tornam impossíveis, e essa série de atividades pode separar e desenvolver outro self.” Cf. SASS, O. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.276.

39 SASS, Odair. Op. cit. p.275. 40 Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina. p.157.

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minha mulher, meu filho, minhas contas para pagar e concluía que eu tinha que fazer aquilo. Eu era obrigado a fazer aquilo. Porque se eu não fizesse ali, eu teria que buscar outro, outro trabalho, que possivelmente também me trataria igual, assim dizia meus amigos quando falava do meu descontentamento, para eles onde eu estava era maravilhoso, um sonho, então eu tinha que fazer de qualquer forma. Já que eu estava ali eu não ia sair dali para enfrentar outro ambiente de trabalho. Passou o tempo e eu não dormia, amanhecia o dia eu já estava acordado e ainda tinha que trabalhar. Eu comecei a trabalhar chorando, chorando mesmo, comecei a ficar meio xarope, e todo mundo dizia que era frescura, e o tempo foi passando e minha vontade de pensar e criticar foi diminuindo, até mesmo porque eu sabia que eu ia receber um não.

O sofrimento era interpretado como frescura, mais uma vez vemos que a

solidariedade é anulada pelos imperativos morais presentes para justificar e fortalecer a

submissão ao trabalho, o problema coletivo gerado pelas péssimas condições de

trabalho é invertido como problema individual de um funcionário que não estava

disposto a cumprir seu contrato. Embora Gabriel não quisesse abrir mão de uma

personagem que durante toda sua vida acreditou que lhe traria a felicidade, ficava cada

vez mais evidente que onde quer que fosse representar essa personagem deparar-se-ia

com o mesmo palco e o mesmo script. Quando o sentido se desvanece por completo,

quando passou a ter certeza de que não importando a sua reivindicação receberia um

não a priori como resposta — sabia que tudo que falava: “era como se estivesse

pregando no deserto!” —, resgata uma antiga personagem que fora utilizada na época

da escola: o garoto-problema, que, ao ser amalgamado à personagem do motorista de

ônibus, passa a fazer com que seja reconhecido em seu trabalho como motorista-

problema.

Então chegou uma hora que eu já não tava mais agüentando mais, eu tava assim, eu tava estourando, parecia que eu ia morrer cara. Meu peito estava horrível, frio no estômago, peito apertado, a cabeça latejando, chorando dia e noite, não conseguia dormir. Então às vezes abandonava o ônibus no terminal mesmo e ia embora, faltava e nem justificava. Então comecei a tomar gancho [suspensão] nessa época, eu tomava gancho um atrás do outro... por insubordinação. (...) Então eu não estava agüentando mais. Eu perdi mesmo a noção das coisas (...) uma vez fui pras cabeça e eu cheguei até a agredir um dos superiores. Sem falar nas agressões verbais, isso aí já tinha virado praxe lá.

As punições iam aumentando na mesma proporção que seu descontentamento,

até que em um determinado dia a personagem motorista-problema finalmente deixa de

ser representada. E como não é possível viver sem personagens, no caso de Gabriel,

sustentar uma indeterminação gerada pela impossibilidade de ser um motorista-que-

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não-poderia-dirigir, outra personagem lhe é oferecida, o doente mental, uma vez que

seria apenas sob essa condição que a não submissão ao trabalho, sua libertação da

escravidão por contrato, torna-se possível. Aqui a proposição de Žižek acerca da relação

entre liberdade e loucura mostra-se evidenciada, pois “o ato livre em seu abismo é

insuportável, traumático, de modo que, quando realizamos um ato de liberdade, para

sermos capazes de suportá-lo, nós o vivemos como condicionado por alguma motivação

patológica”41. Mas deixemos que Gabriel nos conte como ocorreu essa metamorfose.

Até que chegou o dia que não agüentei mais, pedi para eles me dispensarem mais cedo porque eu não estava bem, eu estava chorando, eu saí de casa chorando e até mesmo os passageiros notaram isso. Chegaram até a comentar lá com um dos meus superiores de que eu não estava bem. Aí eu fui lá na sala do meu supervisor e conversei com ele, eu falei: olha, eu não estou legal e preciso ir para casa. Ele falou: O que é que você tem? Eu não sei. Eu não sabia realmente o que eu tinha. Ele respondeu pra mim: Ah! Hoje não vai dar não. Aí eu pensei, mas como assim não vai dar? Eu não estou legal, preciso ir no médico, preciso fazer alguma coisa. E eu diante dele, lá na sala dele, eu estava em soluços. Eu estava péssimo. Aí eu falei: eu vou fazer umas viagens, mas arranja alguém para me substituir. Eu entrei... o que? Três e meia da manhã naquele dia. Pensava que se eu fosse para casa oito horas da manhã estava bom, não agüentaria ficar até duas horas da tarde. Eu sabia que não ia agüentar mesmo. Eu falei, até oito horas você vê o que você faz a pra mim, eu falei... Vê se coloca algum motorista no meu lugar para mim ir embora, a famosa rendição42. E ele me vendo naquele estado nem pra ele falar assim: vamos fazer um seguinte, você não está legal mesmo, deixa o carro aí, eu me viro, eu seguro essa bucha e você vai lá no médico e depois você me trás um atestado, vai lá se cuidar. E eu fui tentando me segurar, mas sei que depois de ir lá cutucar ele, pedir umas três vezes, na quarta vez deu vontade de entrar com ônibus e tudo lá dentro daquela sala. Eu cheguei lá para conversar e aí ele falou: definitivamente não dá mesmo para te liberar mais cedo, não sobrou ninguém, agüenta as pontas. Pô! Eu não enxerguei mais nada. Do jeito que eu estava com o a tabela de horários na mão já joguei na cara dele, fui pra cima dele, eu não lembro quem estava lá, pegou e me segurou. Aí eu peguei o ônibus, cara, estava encostado num ponto, eu não tinha aberto aquela porta, então enfiei ali de baixo, como se fosse uma garagem, guardei o ônibus lá, peguei minhas coisas e fui embora. Eu cheguei em casa tão mal, tão mal que eu não estava conseguindo nem andar mais, eu chorava e soluçava, o peito não agüentava mais, eu achei que eu ia enfartar. Foi quando minha esposa ligou para o meu pai, falou para ele que parecia que eu tinha saído do serviço, tinha brigado com alguém. Meu pai foi lá em casa, me colocou no carro, me levou no pronto socorro e de lá já

41 ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.128. 42 Rendição é um termo utilizado que se refere à dispensa de um determinado motorista. Essa dispensa

está condicionada à substituição por um outro motorista que (deveria) está como reserva para as eventuais faltas e problemas médicos que pudessem aparecer, evitando assim que ocorra falta na oferta de viagens e com isso houvesse prejuízo, atrasos, para os usuários do transporte coletivo. Em uma linguagem de dicionário esse termo remete ao ato de entregar-se (uma força militar, uma praça de guerra etc.) incondicionalmente, ou sob condições, a uma força inimiga; passagem de serviço em rodízio, de um militar para outro. Cf. HOUAISS, Antonio & VILLAR, M. S. Houaiss: Dicionário da Língua Portuguesa.

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fazem cinco anos, vai fazer cinco anos, que eu nunca mais fui o mesmo. Fui diagnosticado com depressão, virei doente mental, já passei por vários especialistas, psiquiatras nossa! Já perdi as contas.

Nem suplicando rendição Gabriel consegue uma trégua do campo de batalha. O

que lhe restava fazer? Assumir a deserção e não voltar para o trabalho. O preço para

isso, como já adiantamos, será a representação de outra personagem: o depressivo, o

doente mental. Personagem oferecida após ser levado para uma consulta com o

Psiquiatra conveniado ao plano de saúde da empresa. A relação com esse profissional

não poderia ser pior, como assinala Gabriel, uma vez que percebe que sua história de

vida, sua relação com as pessoas na empresa e com o trabalho não são levadas em

consideração por esse profissional. Não interessa para o Psiquiatria os fatores que

poderiam levar Gabriel à depressão, interessa a intensidade da atuação. Como Gabriel já

chorava há vários dias sem parar, tinha insônia, vontade de morrer e não queria sair de

casa, enquadrava-se nos itens necessários para o diagnóstico presente no CID10, era

isso que interessava para o Psiquiatra.

A única vantagem do diagnóstico que recebera e que para alguns indivíduos

levaria à segregação, era a possibilidade que Gabriel encontraria na representação dessa

personagem da libertação de sua condição de escravo. O que ele não contava é que até

para se tornar um escravo inutilizado, afastado pelo INSS, seria tão difícil.

O convênio [médico-hospitalar] da própria empresa, quando eu mais precisei do convênio, foi quando eu me afastei, foi a primeira coisa que cortaram. Ainda fiquei alguns meses usando o convênio com determinado psiquiatra, mas a empresa foi lá e cortou. Então, automaticamente eu tive que mudar de psiquiatra, eu tive que ir para uma coisa mais pública mesmo (...) mais aí não consegui (...) não tinha psiquiatra no posto de saúde, psicólogo nem pensar. (...) Tinha fila de espera, não me davam nenhum direcionamento (...) no CAPS me disseram que só atendiam loucura grave, que meu caso era para consultório, era coisa de psiquiatria do trabalho, outros diziam que eu tinha trabalho e recebia salário e devia procurar particular.

O descomprometimento da empresa diante de sua condição já era esperado por

Gabriel: “tinha muitos colegas de trabalho afastados pelo mesmo motivo por causa da

empresa, todos eles foram abandonados, lá você só é útil trabalhando”, mas não

imaginava que seria abandonado antes de ser acolhido pelo INSS, muito menos que ao

procurar pelo serviço público de saúde mental teria que enfrentar uma fila de espera, ou

ainda, que deveria representar uma personagem mais grave, “o que seria loucura grave?

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Eu teria que comer merda, matar algum chefe?” Onde estaria a assistência segurada

pelos serviços substitutivos? O que seria necessário para ser enquadrado como uma

demanda pelo CAPS, precisaria primeiro ser internado em um manicômio? É o que se

perguntava frente à postura cínica dos profissionais que encontrou nessa instituição. Se

antes sabia que seria abandonado pela empresa, descobre-se nesse momento

abandonado pelo Estado. Como lidaria com uma situação como essa?

E o problema ainda seria aumentado com a morosidade do pagamento do

benefício previdenciário.

Porque tem essa também, quando você se afasta, você fica um puta tempo para começar a receber do INSS. Eu não sei se até acabou piorando minha situação porque eu saí de um problema e caí num outro. Que é do sistema mesmo. Já nos primeiros meses, no primeiro mês você já sente. Pô! E cadê os meus direitos? Eu preciso receber. Cadê o INSS que não me paga, cara? Eu tenho que pagar o psiquiatra, eu preciso comprar medicação, preciso comprar os remédios, preciso correr atrás dessas coisas. Então, me irritava mais ainda. E enquanto mais me irritava mais ainda, eu precisava passar urgente, não tinha, precisava de remédio não tinha. Eu sei que eram crises assim, cara, que achava que não iam ter fim. Eu achava que não ia acabar nunca. Eu sei que eu fiquei, cara, eu emagreci dez quilos. Eu fiquei pele e osso. Eu não tinha apetite, eu não dormia, eu não comia nada, nada, nada, nada. Eu fiquei péssimo, péssimo, péssimo.

Finalmente recebe o dinheiro do INSS e sem encontrar alternativa começa a

pagar tratamento privado, procura um Psicólogo e um Psiquiatra. Afinal, submeter-se ao

tratamento de sua doença mental era inevitável, seja porque queria “curar-se” da

depressão, seja porque teria que encaminhar laudos para os peritos do INSS para

continuar a receber o benefício previdenciário. Assim como Severina, que “recebe

pensão para se manter viva e reproduzir sua identidade de doente mental, encarnação,

concretização da destrutividade de uma sociedade desumanizadora”43, Gabriel tenta

fazer tudo o que lhe é pedido para uma boa representação como doente mental, faz

terapia, toma os medicamentos controlados, todavia, descobre que isso não era garantia

de que o Estado faria sua parte.

Então, como estava dizendo, quando começou sair o pagamento do INSS comecei a passar no psiquiatra e psicólogo particular. Eu fiz um convênio para mim particular, já que o da empresa tinham cortado, e comecei a pagar e comecei a passar com outro psiquiatra. Que nesse caso já era o terceiro, o primeiro foi do... do convênio que foi cortado, o segundo eu passei assim, no CAPS que não tava nem aí para meu problema e no outro convênio, o terceiro

43 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina. p.80.

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psiquiatra, comecei a me tratar com ele, totalmente instável ainda. Eu estava no começo do tratamento, aí o quê que aconteceu? Minha primeira alta do INSS, cortaram meu benefício, automaticamente eu não tive dinheiro para pagar aquele convênio, o convênio foi cancelado. Aí eu acabei piorando mais ainda.

Nem precisaríamos teorizar muito para saber o porque dessa piora: receber alta

significava voltar a trabalhar na empresa, e isso Gabriel não queria, ou melhor dizendo,

não conseguia, pois bastava pensar nessa possibilidade para começar a chorar

novamente, por várias horas.

Nossa, eu não conseguia, eu tinha pesadelos. Incrível, cara, eu tinha pesadelos com, com o trabalho, com a empresa. Pesadelos mesmo. Eu dormia pouco e quando eu dormia eu tinha pesadelos. Eu cansei de sonhar coisas bizarras, estranhas. Era uma neurose, sei lá que porra que era (...) sonhava matando um fiscal, sonhava saindo na porrada com o supervisor, sonhava capotando um ônibus, assim, um barato bizarro. Quando acabava era um desconforto total.

Sem precisar voltar para a empresa consegue renovar seu afastamento, isso lhe

dá um novo período para sua recuperação. Nesse período Gabriel nos conta que

intensifica suas consultas com o Psicólogo. Nas consultas encontra espaço para falar

sobre aquilo que não conseguia suportar, aquilo que só de lembrar o levava a chorar.

Mas, Gabriel é quem tem a palavra.

Eu cheguei no consultório e o Psicólogo perguntou para mim o que estava havendo. Muitas vezes eu dizia: eu não sei o que está havendo. Eu só chorava. Eu não sabia descrever o que estava acontecendo, só sabia o que eu estava sentindo, mas porque eu estava sentindo, de onde que vinha, isso eu não sabia. Eu ficava o tempo todo do atendimento chorando. (...) As consultas com o Psicólogo foram importantes, eu fui aprendendo com o tempo, as possíveis ligações, as possíveis coisas que poderiam ter acarretado (...). Isso já foi outra etapa, a segunda etapa, e teve agora essa terceira, que é você saber o quê que é, dar nome paras as coisas, e tentar conviver com isso.

É importante grifar o tentar conviver que Gabriel está se referindo, pois não

significa aqui tentar conformar-se com a situação. Com o Psicólogo ele consegue se

apropriar do sentido de seu sofrimento e a relação desse sofrimento com as condições

desumanizadoras a que estava submetido. O Psicólogo, utilizando aqui a linguagem

habermasiana, consegue ser um agente mediador da crítica à “colonização do mundo da

vida que esvaziado pelas intervenções da ciência e da técnica, do mercado e do capital,

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do direito e da burocracia”44. Como isso foi possível? Nossa hipótese é que esse

Psicólogo abriu mão de uma perspectiva objetivista (discurso técnico-psicológico) e

assumiu que estava diante de uma anamorfose, ou seja, ao invés de entender seu choro

como a simples expressão de um depressivo — o que significaria movimentar a

anamorfose apresentada por Gabriel para um ponto de vista previamente estabelecido

— passou a buscar os elementos que possibilitavam a representação como doente

mental — mudou seu ponto de observação permitindo uma nova linha de visão, uma

visão em paralaxe45.

Essa mudança de perspectiva efetuada pelo Psicólogo possibilitou que Gabriel

articulasse as personagens representadas em sua vida até aquele momento. Obviamente

esse processo não foi instantâneo, em um primeiro momento Gabriel somente sabia o

que seu corpo estava dizendo, ou seja, somente sabia que não conseguia parar de chorar,

não sabia de onde vinha a causa do choro, a única interpretação que tinha dessa

condição era aquela compartilhada socialmente: tornara-se um doente mental. Na

medida em que o tempo foi passando, começa a perceber que o sofrimento vivenciado

tinha relação com as condições de trabalho a que foi submetido pela empresa.

Eu não sei te dizer assim especificamente o que foi, mas foi ali. Também não sei te dizer especificamente quando começou a afetar. É lógico que depois vai caindo a ficha e você fala: Merda! Eu já estava assim faz tempo. Tanto é que o negócio se tornou crônico, hoje percebo que eu já sentia aquelas coisas antes, aquela angústia, já estava com os sintomas de depressão, eu já estava depressivo já fazia uns dois, três anos, e que chegou a hora que uma hora uma última gota d’água fez o copo transbordar... Porque antes eu não era assim. Eu abaixava a cabeça, eu engolia sapo, como diz o ditado. (...) Antes eu engolia sapos e abaixava a cabeça para muitas situações, como o sistema diz que deve ser e deu no que deu: acabei adoecendo.

Como Gabriel mesmo assinala: “Hoje eu sofro e isso é conseqüente de outra

coisa que eu não provoquei, que eu não busquei (..) e a Empresa? E o Estado? Cadê a

responsabilização deles?” Aqui Gabriel assinala o fato de que somente é possível sair da

condição de doente incapacitado ao apropriar-se de modo crítico da sua história de vida,

nesse momento ele não somente compreende quem é e quem gostaria de ser, mas

também aquilo que havia impedido que seu projeto fosse concretizado. Começa a

perceber que o diagnóstico de depressão, que o aprisionou à representação de doente 44 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. p.324. 45 Lembremos que para Žižek essa metáfora do fenômeno óptico apresenta-se como um instrumento

crítico contra as falsas formas de universal. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe.

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mental, fez com que perdesse tudo que havia construído em sua vida, tudo que havia

projetado para sua vida desde a época de escola. Pode-se perceber que ele havia

projetado um motorista-de-ônibus/homem-de-família-feliz. Como haviam ensinado,

para esse projeto deveria trabalhar incansavelmente. Em busca desse projeto, perdeu-o.

Perdeu-o por que?

Depois que eu adoeci minha vida entortou de uma maneira assim drástica mesmo. Eu perdi tudo cara. Eu perdi um, assim, para não dizer que um futuro mesmo. Eu perdi casa, eu perdi esposa, automaticamente eu perdi até muitos momentos. Eu falo, falo que eu perdi esposa que perdi filho também porque eu perdi os momentos que eu poderia estar, estar ali com eles e sei lá estão vivendo uma vida tranqüila até. Mas com certeza porque, depois que eu adoeci as coisas não, não andou da maneira, a doença é complicado. Não estou legal. Como eu te falei eu me tornei uma pessoa explosiva e difícil de manusear de diálogo mesmo. Totalmente anti-social hoje, hoje eu me considero uma pessoa totalmente anti-social, cara. Eu sei que conseqüência de disso que ocorreu comigo, eu perdi tudo, eu perdi tudo. Hoje eu estou tentando recuperar grande parte das coisas que perdi com o problema: minha esposa, meu filho...

Chegar a essa conclusão implicou em tomar uma posição crítica frente à sua

representação como doente mental. Se antes chegou a imaginar que o problema que

vivenciava era de origem pessoal, desse momento em diante passou a entender que seu

problema foi de ordem relacional, mais especificamente, que o diagnóstico de depressão

foi fruto de uma relação exploratória vivenciada na empresa em que trabalhava, cujas

regras ele tentou seguir à risca (pois tinham sido apresentadas durante toda sua vida

como necessárias para seu projeto de vida). O problema agora não era como iria se

recuperar para voltar para a empresa, mas como conseguir reconhecimento da produção

de sua doença mental e a responsabilização daqueles que foram responsáveis por sua

condição: o INSS, como instituição do Estado, em sua concepção, deveria regulamentar

e supervisionar as condições de trabalho das empresas, e já que não o faz, deveria

indenizá-lo pelo impedimento de seu projeto de vida.

Como eu falei para você: Me fizeram engolir vários sapos! Eu engolia mesmo, eu engoli vários, só que com o passar desses anos os sapos que eu engoli já vomitei todos e pretendo nunca mais engolir. (...) Então hoje eu já faço totalmente ao contrário, se o sistema permite que alguém como eu adoeça então que ele assuma a indenização, então que ele pague o prejuízo, tenho certeza que se eu estivesse onde eu estava estaria bem pior do que eu já estou. (...) A empresa quer mais que você se foda, ela diz que quer seu trabalho, a sua mão-de-obra, que vai pagar seu salário, mas não diz que vai roubar sua vida junto. Sua opinião não importa, independente se você está bem ou se você está mal, se

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você tem um ponto de vista diferente, eles querem padronizar. As reuniões, por exemplo, nessa empresa aí (...) vinha a psicóloga e outro chefe só para falarem: Vocês tem que tratar bem o passageiro! Vocês não podem ficar faltando muito! Vocês não podem nem trazer atestado! Dava vontade de abandonar uma reunião dessa, só pede, só pede, só pede, só pede, vai se foder! Ninguém vinha dizer que iriam mudar a lógica da empresa, que queriam saber como era trabalhar doze horas, folgar só um domingo por mês, isso ninguém vinha falar, só vinham pedir para servirmos bem cliente para gerar mais lucro pro nosso patrão. (...) Se eu tivesse condições naquela época, de trabalhar legal, sei lá, acho que não teria acontecido nada disso. Os caras acabaram com meu projeto de vida, projeto de vida que o sistema diz que devemos seguir para sermos bem sucedidos. Me enganaram e ninguém hoje quer pagar a conta, dizem que o problema é meu.

Para Gabriel vai ficando cada vez mais claro que o diagnóstico de doente mental

na prática somente é interessante para os empresários exploradores. O diagnóstico que o

reconhece como doente mental direciona a responsabilidade para o indivíduo e

escamoteia todas as condições desumanas que produziram o adoecimento mental.

Diagnóstico, inclusive, que vai se mostrando cada vez mais subjetivo e desinteressado

por sua condição na medida em que percebe que os laudos e relatórios que encaminhava

para as perícias começam a ser ignorados pelos peritos do INSS. Nesse momento

percebe claramente que quando um indivíduo é apenas visto como organismo “não há

lugar para desejos, temores, esperanças, ou desesperos como tais”46. Vale dizer aqui,

discordando de autores como Charles Taylor e Nancy Fraser, que esse episódio

demonstra que o problema não é o não-reconhecimento, pois o especialista contratado

pelo Estado atualmente reconhece os indivíduos, os doentes cidadãos. O problema está

justamente no fato de que se utilizando apenas da perspectiva técnico-psicológica os

especialistas não conseguem perceber as anamorfoses apresentadas, ou seja, não

percebem na mesma representação diferentes matizes, o que evitaria o psicologismo

apontado por Wittgenstein47. O reconhecimento feito dessa maneira é o que temos

denunciado como sendo um reconhecimento perverso, uma vez que não se interessa de

fato em ser produzido a partir de uma interação onde exista uma paridade, mas sim, a

partir de uma relação de poder na qual o especialista cinicamente utiliza o seu discurso

técnico-psicológico para lidar com os problemas trazidos pelos indivíduos que devem

submeter-se à sua avaliação ou diagnóstico para ter seus direitos de cidadão garantidos.

46 LAING, Ronald David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p.21. 47 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. p.175 e segts.

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Gabriel continua sua história nos contando que desde essa época começa a

receber alta de sua condição de doente mental e tem que recorrer contra a negação do

benefício concedido pelo INSS: começa sua luta contra a escuta surda e o olhar cego do

especialista.

Você chega no perito lá no INSS, o cara tem ver que você está sem um braço, sem uma perna, para ele conceder seu benefício, sua indenização, o seu direito. Eu chego lá com essa história de problema psicológico mal sabe ele o que estou passando, o que passa pela minha cabeça, sabe, tudo o que já aconteceu, minha história (...) faço a maior correria, eu passo no médico, no psicólogo, para pegar os laudos que a lei pede, faço tudo direitinho para chegar lá e o filho da puta do perito pegar esses papéis, nem ler direito, não perguntar nada e falar: você não tem nada, é só ir para casa e voltar a trabalhar. Quer dizer, não faz sentido. Não faz sentido mesmo. A única coisa que me resta é resistir a isso, não é verdade? Eu tenho que resistir a isso daqui para frente e se isso for meu futuro, eu vou ter que conviver com isso até minha morte. Porra! E é um fardo terrível de se carregar.

Como é? É só voltar a trabalhar? E os laudos? E os relatórios? Para que servem

esses papéis na verdade? É o que se questionava Gabriel em todas as vezes que levava

os documentos necessários para a renovação de seu afastamento. Ele estava diante de

mais um dos sintomas de nosso momento histórico: a negociação de direitos que evita a

suspensão de conflitos em benefício do bom funcionamento do capital.

Pois basta que as normas possam ser “flexibilizadas” em seus regimes de indexação da efetividade para que o conflito seja suspenso. Em outras palavras, bastam que sejam seguidas de maneira cínica, fazendo com que justifiquem o contrário do que pareciam indexar. Dessa forma, o “sofrimento de indeterminação” normativa capaz de provocar sintomas como a ansiedade e a depressão pode aparecer, no interior do cinismo, como motivo de gozo.48

E não seria justamente isso o que aconteceria muitas vezes com as diversas

reportagens vinculadas nas diferentes mídias ao “denunciar” as tentativas de “fraude”

do INSS? Dito de outra forma, não seriam essas reportagens uma tentativa de convencer

o grande público de que a resistência frente ao retorno para o trabalho é na verdade a

expressão da “preguiça” de cidadãos “criminosos” e não um problema das próprias

condições de trabalho e distribuição de renda (uma vez que muito desses indivíduos

somam ao “benefício” do INSS a renda proveniente de trabalhos informais)?

Lembremos que o mal-humor recentemente tem sido relacionado como uma das 48 SAFATLE, Vladimir.Cinismo e falência da crítica. p.139.[grifos do autor]

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doenças mentais da moda, sendo classificado no CID10 como distimia (F34.1). Nesse

período de sua vida, que se estende durante três anos, chega a ficar seis meses sem

receber do INSS. Como estratégia de resistência, ou poderíamos dizer, de

sobrevivência, faz um curso e começa a trabalhar com manutenção de computadores

nos fundos de sua casa. O técnico de computadores continua fazendo o tratamento

recomendado, continua com a terapia e com os medicamentos aviados pelo psiquiatra,

continua buscando indenização pela sua condição.

Quando eu falo que quero reativar meu benefício não quer dizer que quero ser visto como inválido, quero que eles vejam o meu caso como uma indenização, para que eles saibam [a empresa] que não podem tratar as pessoas como lixo, como as máquinas, os ônibus deles. Tenho feito coisas que eu aprendi nesse tempo, coisas que eu gosto de fazer aqui em casa mesmo, que me mostram que sou uma pessoa ainda. Trabalho com computadores, isso ajuda porque tem dias que eu nem quero sair da cama. Então não é uma coisa certa, hoje é quinta, semana passada eu fiquei uma semana na cama, aqui nesse quarto aqui. Fiquei uma semana aqui dentro de casa, me distraindo com o jogo de vez em quando, ou com um livro. Eu não queria ver ninguém, não queria falar com ninguém. Só isso. E pensando justamente nessa coisa aí do INSS, que foi negado mais uma vez. Tenho que começar a correr tudo de novo, eu tenho que dar nova entrada, eu vou ter que passar de novo com o Psiquiatra, tenho que conversar com ele, pegar um relatório dele. A empresa não está louca de me mandar embora doente, então obviamente eu teria que pedir a conta. Pedir a conta eu não vou pedir, que eu também estou doente. E eu vou perder muita coisa. Penso que muitas coisas poderiam ser amenizadas, se as pessoas que estão envolvidas, que são peritos, psicólogos, médicos, psiquiatras, poderiam amenizar minha situação, pelo menos reconhecendo e respeitando o que eu estou sentindo, o que eu estou passando, que é meu problema, falta reconhecer o meu problema.

A preocupação de Gabriel é muito simples e trágica: se ele aceitar a alta dos

peritos do INSS precisará voltar para a empresa. Aqui vemos a funcionalidade do

reconhecimento perverso, que no caso de Gabriel possibilita a desresponsabilização da

empresa e do Estado por sua condição. Uma vez aceitada a alta do INSS, ele poderia

retornar para o trabalho como funcionário recuperado e finalmente ser demitido sem

nenhum problema pela empresa. Se a personagem doente mental já lhe impede de

pensar novos planos e projetos de futuro, como seria lançar-se novamente no mercado

de trabalho sendo reconhecido como o desempregado doente mental? A proposta de

humanização e reconhecimento do louco encontra seu limite nesse ponto, pois o próprio

Honneth admite que diante da desigualdade econômica crescente, “seria perigoso e

arriscado sugerir que o reconhecimento apenas da identidade pessoal ou coletiva

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pudesse formar o objetivo de uma sociedade justa”49. A narrativa de Gabriel deixa claro

que o inimigo é muito maior do que o manicômio ou a garantia de reconhecimento da

diferença, pelo contrário, ela expressa que o grande desafio é conseguir demonstrar que

vivemos as mesmas contradições de exceção impostas pelo capital, que estamos

submetidos ao mesmo jogo perverso de inclusão no mercado.

Saber que o problema não era de ordem individual fez com que Gabriel não

aceitasse se submeter à lógica da recolocação, não seria tratado da mesma forma que os

ônibus da empresa. Deixemos que ele mesmo fale sobre isso:

A depressão, acho que é essa coisa produzida pela insatisfação, por conta da pressão de você ter que trabalhar por obrigação, num ambiente que não te dá condições. E você pode até dizer: Pô! Gabriel! Porque então você não escolheu outro lugar para trabalhar? Isso eu ouvi de um psicólogo que trabalha na coordenação de saúde mental de uma cidade aqui perto, ele faz mestrado em na faculdade que você, acho que no mesmo curso. Ele falou: Porque que você não se retirou dessa empresa e não foi tentar outra? Eu respondi na mesma hora: como se eu já estava fodido lá? Eu ia sair dessa empresa para entrar em outra empresa? Será que ia ser diferente? Não é! (...) ele não tem noção da realidade e é Psicólogo. Como que eu ia fazer essa escolha? Como se fosse fácil arrumar emprego, como se na hora que pedissem minhas referências para a empresa eles não fossem dizer que eu estava afastado, que eu era doente. E readaptar? Não adianta. Porque não é o cargo, são as mesmas condições de trabalho. Eu vou no INSS eles falam: é só você se readaptar, trocar de função, mas a coisa não é física, não é a função de motorista que me deixou assim. É as condições mesmo ali dentro. (...) Aí eu faço de tudo para mudar de empresa só para ter certeza de que realmente estou doente, que eu não estou legal? E aí, quem é que vai perder nessa história? A primeira empresa que eu saí? A segunda que eu entrei e estou saindo? Não! Nenhuma dessas firmas vão perder. Quem vai perder sou eu. Eu não vou largar o certo pelo duvidoso, se eu não estou legal, não adianta nem tentar mesmo.

A resistência frente à alta do INSS, conseguida pela reposição da personagem

doente mental, no caso de Gabriel começa a caracterizar-se como uma “profanação”, no

sentido utilizado por Agamben50, que a entende como estratégia que não consiste mais

em transgredir ou apresentar novas normas, mas na mimetização da própria norma ao

ponto de torná-la sem sentido. O que poderia ser esperado desses profissionais afinal?

Certamente uma visão em paralaxe, cuja concretização estaria em não aceitar “a tarefa

de colaborar com políticos e administradores para aliviar os descontentamentos e

sofrimentos contemporâneos, mas antes se perguntar como esses descontentamentos

49 HONNETH, Axel. Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectiva na ordem moral

da sociedade. p.89. 50 AGAMBEN, Giorgio. Profanações. p.38-39.

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subjetivos são gerados pela própria ordem social”51. Como isso ainda não é possível,

pelo menos na relação estabelecida entre Gabriel e os peritos, a saída está na

manutenção paródica/irônica52 dessa personagem, ou seja, se os peritos da saúde mental

insistem de forma cínica em não reconhecer seu problema, que a própria saúde mental

reconhece como legítima (a partir dos laudos do Psicólogo e do Psiquiatra), então o que

resta como alternativa é insistir na representação irônica dessa personagem.

Agora você chegar lá com problema psicológico lá, eu não tenho condições cara. Não tenho! Não dá! Para mim não dá, não tem cabimento! O sistema fica utilizando esse negócio de psicológico somente para ajudar os empresários, para eles sugarem até o último do seu sangue e depois, quando você não agüenta mais, quando chora, quando fica pirado, em vez de mostrar que esse mundo não tem lógica, que tem que pensar em outra forma de vida, dizem que você ta doente mental e pronto, a culpa é sua, e aí te devolvem para empresa do mesmo jeito dizendo que está curado, a empresa te põe no olho da rua, você fica mais fodido ainda, e outro cara vai entrar no seu lugar para começar a sugação de sangue de novo, e não para. Tem dia que eu não quero nem levantar porra, tem dia que eu choro três, quatro vezes no dia. É normal isso? Não é! Aí o perito que nem quer saber quem você é vai catar o seu relatório e ler, olha para sua cara e simplesmente fala: você está apto a volta a trabalhar! Dizem que você está doente e todo mês te obrigam a correr atrás dos mesmos papéis, fazer todo o processo, ficar horas na fila da perícia esperando para chegar na frente de um médico que em dois minutos te mostra que tudo aquilo que você fez não valeu de nada, então se é para ser filho da puta, se é para brincar de faz de conta, se é para fingir que não sabe ler os laudos, então assume que ninguém tem direito a nada, que pobre não tem direito. Cara é tão ridículo que nem dá para acreditar se você não ver, porque os caras dão alta para neguinho aleijado. Eu não me conformo com isso! Mas parece que você chega lá com algo físico é mais fácil, de ser analisar de ser visto, palpável, não?

Se o discurso da saúde mental não serve para reconhecer a produção do

sofrimento e o impedimento dos projetos de vida — que a própria lógica capitalista

apresenta como possíveis de serem conquistados por todos —, então que seja assumido

o fato de que toda essa história de doença mental é uma mentira. Caso contrário que seja

assumido que a opressão não é apenas fruto da imaginação individual, que o sofrimento

não é apenas subjetivo, pelo contrário, tem íntima relação com as condições concretas e

históricas as quais os indivíduos estão submetidos. É nesse sentido que a luta por

reconhecimento de Gabriel se configura, é a partir dessa leitura de realidade que busca

ser indenizado.

51 ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.346. 52 Por manutenção paródica, irônica, queremos assinalar o fenômeno trabalhado por Safatle que se refere

a representação de uma determinada personagem sem engajamento ou certa ética de convicção.

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(...) Hoje eu quero ser ressarcido, indenizado por tudo, de tudo mesmo. E é uma coisa que é totalmente difícil, praticamente impossível. Porque problema mental não é visto do mesmo modo que um problema físico. Eu estou com trinta e um anos, quer dizer, para a sociedade, para o sistema, eu tenho todo vigor, tenho toda a minha vida ainda para trabalhar, ser explorado e humilhado, para que na hora que eu estiver morrendo, com uns sessenta anos, setenta anos, todo ferrado, receber uma aposentadoria. Eles [os técnicos, os peritos] têm que reconhecer que eu já estou fodido, entendeu? E nada mais justo que eles pegarem e me ressarcir de tudo isso. Se eu tivesse perdido um braço, uma perna, porra! O presidente aposentou porque perdeu um dedo, aí ia ser mais fácil, veriam que a empresa me prejudicou. E eu nem queria uma aposentadoria, eles tinham que assumir que era uma coisa de indenização mesmo.

E como se concretizaria isso na prática? Aqui Gabriel recorre à mesma estratégia

utilizada por Severina53, representar a personagem doente mental para não retornar ao

ambiente insuportável onde era um escravo por contrato até ser aposentado

definitivamente. Afinal, já havia descoberto que o discurso da saúde mental não

culpabilizaria a empresa por sua condição. Para justificar a insistência na mesmice dessa

personagem, ele se ampara no processo que vivenciou:

Eu penso que as coisas estariam melhor se tivessem me escutado lá no trabalho: olha cara, não é por nada não, mas esse ônibus está um lixo, sem condições de trabalho. (...) É demais pedir uma coisa dessas? Trabalhar com dignidade? Se eu estivesse trabalhado num carro legal, se eu estivesse trabalhado a minha jornada correta, se eu não fosse obrigado a fazer hora extra, será que não seria diferente? Eu acho que não teria adoecido se a administração da empresa não fosse um monte de pilantras que só porque estão em cargos de comando acham que podem explorar o outro que é igual ele, mora na mesma favela, come as mesmas marmitas. Peão que explora peão. É lógico que perfeição nunca vai ter, não estou falando de perfeição pois nunca vai ter, sempre vai ter umas picuinhas (...) estou falando de condições humanas, para o cara trabalhar satisfeito. (...) Então, em primeiro lugar, o que me deixaria satisfeito seria reativar o meu benefício e me manter afastado. Porque eu ainda faço o tratamento, tomo os medicamentos, tenho realmente um problema que não é fictício. Dá a entender muitas vezes quando eu passo lá na perícia é que realmente eles acham que eu estou apto mesmo a voltar a trabalhar, voltar à minha vida normal como era há uns anos atrás. Enquanto essa coisa do INSS não se resolver, não irei pra frente, ficarei sempre com medo de voltar para o lugar que não suporto mais. E parece que é mais fácil caminhar para trás, mais desiludido, mais pirado, porque cada vez que eu passo lá no INSS, eu recebo um não, eu recebo uma alta, e fico mais fodido, mais indignado com tudo isso, cara. Então, primeiro tem que ser resolvido isso, não importa de que maneira, se eles vão me indenizar, se eles vão me aposentar, se eles vão manter meu benefício, se eu melhoro ou não, enquanto nada for

53 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.67 et seq.

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decidido não existe projeto de futuro. Por enquanto eu só tenho o que eu estou fazendo. O meu projeto de presente é parecido com o de muita gente, ter aquela oficina de fundo de quintal que o cara conserta televisão e som para se manter. No meu caso não é televisão claro, é computador, impressora. E é isso que eu estou fazendo agora, eu conserto computadores, hardware e software. Depois que tudo for acertado acho que basta o mínimo, no sentido assim, porque no fundo a gente quer uma coisa simples, realmente as pessoas não querem muito, querem apenas ser pessoas.

Enquanto isso não acontece deverá manter a representação enquanto doente

mental, que se não é uma garantia de renda para o sustento de sua família (lembremos

que Gabriel tem se organizado sem contar com esse dinheiro), pelo menos deflagra as

condições desumanas a que fora submetido quando representava o motorista de ônibus.

Seus projetos de futuro? Ainda são incertos: o primeiro projeto é o reconhecimento de

sua condição e a subseqüente indenização (que talvez somente venha como uma

aposentadoria precoce), enquanto isso continuará em sua oficina ensaiando novas

possibilidades de representação.

Gabriel finaliza sua narrativa assinalando que não quer muito, “quer apenas ser

uma pessoa”, o que isso significa? Possivelmente aquilo que Habermas, apoiado nas

proposições de Mead, descreveu como condição de uma sociedade sempre maior, a qual

“os indivíduos esperam uns dos outros uma igualdade de tratamento, que parte do

princípio de que cada pessoa considere cada uma das outras como ‘um dos nossos’”54.

Todavia, como esse tipo de sociedade somente seria possível a partir da incorporação

das formas solidárias de interação e reconhecimento recíproco, fica evidente, não

somente na narrativa de Gabriel, mas também na de Ana, que no que se refere a saúde

mental ainda temos muito a caminhar, ainda temos muito o que fazer.

3 – A história de Francisco: quando a deflação da personagem fetichizada serve de

mediação para a construção de uma personagem possibilitadora de auto-

respeito e alteridade

Ser apenas uma pessoa. Isso deveria ser algo possível em nossa sociedade, mas

como vimos nas histórias trazidas até agora, ser uma pessoa é uma luta que deve ser

travada cotidianamente. Muitas vezes a humanidade é conquistada apenas em

fragmentos, a partir do reconhecimento de uma personagem que nos coloca em

54 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do Outro:estudos de teoria política. p.44.

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condições de reconhecimento recíproco. Esse aspecto poderá ser vislumbrado na

história que traremos a seguir, uma vez que tomamos contato com Francisco por meio

de uma personagem aceita na esfera pública, personagem que sendo representada

cotidianamente mostrou-se-lhe com uma possibilidade para a construção de outras

personagens nunca antes vivenciadas. Sendo assim, para que fique evidenciado a

importância dessa personagem para a identidade de Francisco, iniciaremos a

apresentação de sua narrativa a partir de nosso primeiro contato com ele. Contato que

ocorreu durante um jantar oferecido aos professores recém empossados em uma

universidade do estado do Ceará no primeiro semestre de 2008.

Na ocasião, a reunião dos professores foi realizada em um restaurante muito

conhecido na cidade, que por sinal, estava lotado. De repente, em meio à música,

conversa e gargalhadas, surge um indivíduo sorridente com uma espécie de caixa onde

era possível perceber que haviam vários panfletos de lojas da região. Era Francisco, que

com uma sensibilidade extrema conseguia rapidamente perceber qual o tipo de conversa

que estava sendo estabelecida em determinada mesa, quais as possibilidades de

relacionamento existentes entre as pessoas (namorados, amigos, estudantes etc.), e

oferecia um de seus panfletos de uma forma personalizada. Para as garotas que estavam

à procura de outros garotos, apresentava as ofertas da loja de cosméticos; para os

namorados, as ofertas da casa das alianças; para aqueles que estavam com as chaves em

cima da mesa, apresentava as ofertas da loja de veículos, e assim por diante. Tudo feito

de uma maneira tão dinâmica e agradável que era comum observar pessoas de outras

mesas chamando Francisco para fazer sua performance. Em pouco tempo as mesas

foram visitadas e Francisco se despede caminhando em direção a outros

estabelecimentos.

Francisco vai embora, mas a discussão acerca de sua representação permanece,

pelo menos na mesa dos professores. Uma professora de administração ficou admirada

com tamanha desenvoltura e espontaneidade. Como não era da cidade perguntou para

um dos professores da região para qual empresa Francisco trabalhava. Esse professor

respondeu que ele trabalhava para si mesmo, que aquela era a sua maneira de ser. A

partir desse momento toda a discussão da mesa voltou-se para a habilidade de

Francisco, que claramente era uma agência de publicidade ambulante. Durante a

conversa, uma outra professora, que vivia na cidade há alguns anos falou: — Eh! Mas

nem sempre ele foi assim! Ele já foi muito odiado na cidade. Já foi internado várias

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vezes como louco violento, vivia tirando a roupa na frente das escolas. Com essa

primeira fala surgiram outras, de professores que lembraram dessa época: — Ele havia

sido traído pela mulher, por isso ficou louco. De repente, a discussão acerca da

personagem representada por Francisco é substituída pela discussão acerca da

personagem que representara anteriormente, o doente mental.

Assim termina nosso primeiro contato com Francisco, que seria o primeiro de

vários outros, em vários lugares. Cruzamos com Francisco diversas vezes e horários no

centro da cidade. Em alguns dias era possível encontrá-lo nas praças anunciando

promoções e inaugurações, em outros o víamos visitando bares e restaurantes à noite.

Em todas as vezes, a forma com que se aproximava das pessoas era personalizada. Até

que certo dia, em uma ocasião onde veio nos entregar um panfleto de uma agência de

carros, perguntamos se poderia nos contar sua história de vida. Sua resposta inicial foi

uma outra pergunta. Queria saber qual era minha formação, pois já tinha fornecido

diversas entrevistas e sabia que cada uma delas se interessava por algo. Quando

dissemos que se tratava de uma entrevista para uma pesquisa de Psicologia Social quis

saber qual era o objetivo, pois não gostava de psicólogos, que sempre procuravam

doenças nas pessoas. Quando explicamos que havíamos ouvido sobre sua vida passada,

mas que queríamos saber dele como tudo havia ocorrido, que acreditávamos que

somente ele poderia dizer quem ele era, nos disse que pensaria sobre o assunto e nos

entregou um de seus cartões comerciais, onde se auto-intitulava o garoto publicidade.

Deveríamos ligar após dois dias e caso ele aceitasse deveríamos nos disponibilizar para

entrevistá-lo em um dia que não estivesse ocupado.

Alguns dias depois marcamos a entrevista em sua casa e gravamos sua narrativa.

A entrevista de Francisco inicia com uma rápida apresentação de si mesmo, que já nos

traz alguns elementos que serão explorados por ele durante todo seu relato: a

dificuldade de representar uma personagem pressuposta.

Com três anos eu vim para cá e ha trinta e sete anos eu moro nessa cidade. Tenho quarenta, graças a Deus. E, para contar sobre um pouco da minha vida, que foi assim um pouco complicada, porque foi um pouco difícil na minha infância, na minha adolescência e também a minha fase de adolescente para adulto, tenho que dizer do preconceito em relação à minha própria pessoa. Porque, infelizmente, até que eu comecei a me dar realmente como gente, eu me achava assim, uma pessoa inútil (...) Inútil porquê? Porque eu era sempre assim meio azaradão, ou seja, não tinha sorte (...) Eu ia brincar e nessas minhas brincadeiras acabava me humilhando, quer dizer, meus colegas nessas brincadeiras acabavam me humilhando. Porquê? Porque realmente eu não sabia

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brincar, eu era muito tímido, desde minha fase de infância até minha idade de trinta anos. Foi em noventa e quatro que eu comecei a usufruir realmente, aprendi a comunicar, como brincar.

Francisco biologicamente tem quarenta e dois anos, entretanto, como está nos

dizendo, somente há quinze anos apenas começou a viver realmente. Francisco

considera esse “estar vivendo” como o momento em que começa a se comunicar com as

outras pessoas: “quando eu comecei a me expor para as pessoas, a querer conversar, a

querer brincar, a querer ir realmente para as festas, paquerar”. Isso não significa que

Francisco não queria se comunicar anteriormente. Pelo contrário, ele conta que tentava

constantemente concretizar essa comunicação, todavia, era um pouco exagerado, tanto

no que se refere às interações felizes quanto às infelizes. Como ele mesmo assinala:

“quando eu realmente ficava alegre, eu ia além da alegria. Ultrapassava aquela alegria,

virava uma euforia. E quando eu tinha realmente decepções, as tristezas, eu caía em

depressão profunda.”

A hipótese que Francisco desenvolveu ao longo desses últimos anos a respeito

desse período de sua vida é a de que as limitações interativas eram advindas de sua

socialização primária. Sua infância foi vivida em uma pequena chácara, sem contato

com outras crianças, a não ser um irmão com síndrome de down, com quem os pais não

deixavam brincar. De acordo com Francisco, seus pais eram muito rígidos e não

permitiam nenhum tipo de brincadeira ou manifestação de afeto, acredita que

possivelmente essa maneira de lidar com os filhos seja por conta da educação que esses

tiveram. Permanece nessa chácara até a idade escolar, quando o pai muda-se para a

cidade atual e monta um pequeno negócio. Como era de se esperar, a rigidez do pai

continuou.

Ele chegou a dizer [o pai] que não ia criar os filhos dele no meio da rua. Ele dizia que o correto mesmo é educar dentro de casa, ser criado dentro de casa. Também ele não era uma pessoa estudada, não tinha muitas informações, ou seja, era uma pessoa bastante ignorante. E eu acho que isso influiu bastante na minha educação. Quando você é informado, é estudado, facilita muito quando você vai administrar algo da sua vida, seja realmente no trabalho, seja na criação dos filhos, seja qualquer coisa. (...) se tem educação aí pode conversar, dialogar, passar carinho, passar respeito. Com isso eu me sentia assim, como um patinho feio, desprezado...

Na escola, essa falta de socialização para estar com o outro faz com que

Francisco, sentindo-se como patinho feio, seja tratado como um garoto desprezado.

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Nem precisaríamos discutir aqui esse problema, que remete mais uma vez às duas

narrativas de história de vida trazidas anteriormente, novamente fica evidente que o

processo de socialização é decisivo. Francisco conta que por conta da insegurança que

tinha em se relacionar com os estudantes e com os professores geralmente ficava no

fundo da sala de aula e não fazia perguntas daquilo que não entendida. Com o tempo a

insegurança foi aumentando a ponto de passar a copiar o que os outros estudantes

escreviam, pois achava que por eles serem mais desinibidos eram mais inteligentes. Nos

intervalos do lanche geralmente era humilhado por outros estudantes, quando não

apanhava destes. Francisco tenta justificar essas humilhações dizendo que tinha uma

certa culpa, afinal, os problemas sempre surgiam quando ele tentava participar de

alguma conversa ou de alguma brincadeira.

Eu não sabia realmente como me expressar. Quando tinha algum debate, quando me xingavam, ficava travado. Não tinha palavras para realmente rebater, porque a palavra, sabe, uma boa resposta, ela cala o adversário. Já que eu não tinha isso, a minha pessoa não tinha essa arma, eu acabava apanhando, sempre terminava em pancadas e por isso eu apanhava muito. E eu queria realmente partir pra cima deles [dos agressores], mas não sabia brigar, não sabia falar. É por isso que na minha infância, na minha adolescência, eu realmente não saía de casa. Todos os meus colegas saiam assim, para festas, namorava, paquerava e eu não fazia isso, nada disso. Eu ficava só dentro de casa.

Francisco, que na escola era o garoto desprezado, tenta durante algum tempo

fazer amigos, mas a falta de elementos que pudessem lhe conferir a possibilidade de

representar uma outra personagem além daquela humilhada, faz com que a cada dia que

passava fosse se isolando das pessoas. Não queria mais ser humilhado, a forma como

faria isso nesse momento de sua vida seria passando seus dias em casa, com a mãe, o

pai e o irmão, sem muito contato com outras pessoas. A estratégia funcionava até certo

ponto, pois como Francisco mesmo reconhece: ser um garoto arisco a ponto de não

interagir com os outros impossibilitava desenvolver a habilidade de interação com os

outros. Deixemos que Francisco fale como isso ocorria.

O problema é que eu não conversava e se eu não tinha essa prática como é que eu ia puxar algum assunto? Realmente não tinha sentido. Porque quando a pessoa é tímida, ela é uma pessoa medrosa. É uma pessoa insegura e pra fazer realmente uma coisa, bota logo na cabeça que não vai dar certo aí procura não fazer, deixa passar. E isso aconteceu várias vezes. Por exemplo, quando eu estive no tiro de guerra [serviço militar] conheci uma pessoa que adora me humilhar. E teve uma vez que eu não tinha nada pra falar, mas pediram pra mim

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falar e falei uma besteira. Ele [o humilhador] aproveitou para tirar o sarro e ficou dizendo que quando eu abria minha boca era só para falar besteira, ou seja, eu achava que eu iria falar uma coisa de interessante, mas só me dava mal. (...) Isso acontece porque quando você fala, você depende da maioria, se a maioria tiver seguindo uma conversa e se sua conversa também não for no mesmo caminho você fica descartado, fica sempre parecendo uma besteira, o que não é necessariamente, mas se os outros elegem como besteira, a maioria ganha.

No final de sua adolescência Francisco tem de lidar com a morte de seu pai e

com o comércio deixado por esse. Precisaria se relacionar com as pessoas, mas como?

Como assinala Francisco, com muita dificuldade. De qualquer modo, o fato de começar

a se expor para além da rotina (da casa para escola e da escola para casa), chama a

atenção de uma garota. O garoto arisco, mesmo com todas as dificuldades, começa um

namoro com ela e em pouco tempo assumiria uma nova personagem: homem casado.

E rapidamente me casei, um casamento que durou pouco, eu passei quatro anos casado, quer dizer, casado mesmo talvez dois anos, sem contar que talvez o casamento sempre foi por só parte dela, ela sempre teve atitude. Eu com vinte e três e ela vinte e quatro. E a cabeça dela tinha mais estrutura, ela era da cidade, tinha mais informações. Eu era o quê? Uma pessoa muito ingênua, que vivia com os pais como criança. Tanto é até ela que realmente começou a tirar sarro de minha pessoa, de algumas atitudes que eu tinha. Porque ela já me conheceu como tímido, mas não sabia que era a ponto de não saber nada, de ser virgem em tudo. E ela casou comigo e dei trabalho, ela teve que ensinar, então ela realmente achava que eu era uma pessoa e no caso eu era outra pessoa.

Ser “virgem em tudo” na fala de Francisco não significava apenas o fato de

nunca ter feito sexo, ser virgem significava também que não sabia lidar com coisas

simples do cotidiano. Não havia preparado nenhuma outra personagem a não ser a de

garoto arisco, que na leitura da esposa era apenas a expressão da timidez de Francisco.

Isso se tornaria um problema ainda maior porque ainda no primeiro ano de casamento

Francisco, o homem casado se tornaria pai, o que aumentava ainda mais as exigências

de representação que até então eram evitadas por ele: o homem casado que era pai

deveria agir como tal.

Na tentativa de corresponder às exigências dessas novas personagens começa a

tentar desenvolver a interação que até então era vivida como impossível. Francisco

surpreende-se ao perceber que contrariando suas expectativas o lançar-se no mundo lhe

possibilitava acessar emoções muito diferentes do medo que sentia na época da escola.

Começa a acreditar que pode superar a timidez e finalmente não ser mais humilhado.

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Esse sentimento era reforçado pela esposa que insistia para que Francisco perdesse seu

medo de relacionar-se com as pessoas.

E comecei a gostar daquilo. Porque eu estava tendo aquela liberdade. Eu estava sentindo aquela sensação de liberdade pela primeira vez, liberdade de conhecer gente. Como comecei a me dar bem, eu achava que tinha uma força superior me protegendo, me dando cada vez mais liberdade.

Francisco conta que essa sensação de liberdade é buscada cada vez com maior

intensidade. Isso fazia com que ensaiasse a personagem que achava mais interessante

para cada momento sem se preocupar com o que os outros achariam de sua

performance. Logo os problemas começariam a aparecer, pois como ele mesmo

assinala, nem sempre a personagem que era interessante para ele era a personagem

esperada em determinada situação. Essa incompatibilidade entre a personagem

experimentada e o palco de representação (constituído de expectativas e de

pressuposições) fez com que Francisco passasse por interações desastrosas. Afinal,

como lembra Odair Sass, “as experiências inéditas ocorrem na forma singular (o

indivíduo) mas, para alcançar a universalidade, precisam do reconhecimento dos outros

membros da sociedade.”55 Nessas circunstâncias, como não sabia lidar com as

situações, acabava assumindo uma postura agressiva, uma resposta que o Francisco-de-

hoje também interpreta como expressão de loucura.

Em pouco tempo a liberdade vivenciada é transformada em problema de

conduta, resultando em quatro internações no hospital psiquiátrico da região. Nesse

período, Francisco, que havia fracassado na construção da personagem idealizada pela

esposa, não conseguia representar um homem casado que era pai. Acaba então sendo

reconhecido como doente mental, uma vez que as personagens que ora representava

muitas vezes ficavam fora de contexto. Independentemente das internações, estava

disposto a explorar as possibilidades de novas personagens, entretanto, ainda não

conseguiria construir uma representação capaz de fazer com que fosse reconhecido

como outra coisa que não um doente mental, o que evidencia o fato de as próximas

personagens serem modulações da mesmice, do fetiche que a personagem doente

mental representava. Nesse período, entre as personagens que mais se destacaram foi a

55 SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.261.

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do dançarino, que nos momentos de atuação anulava completamente a sensação de

timidez que tanto incomodava.

Eu descobri que sabia dançar, e fiquei dançando um bom tempo mesmo e eu dançava de uma maneira que chamava muito a atenção das pessoas. Onde tinha som eu sempre procurava, onde tinha MPB, Pop-rock, Axé, Forró, onde tinha som eu estava junto. Mas era bom e era péssimo isso, ao mesmo tempo, porque realmente eu estava fora de si. Eu tinha ansiedade de sair, não conseguia controlar, Eu ia para as portas dos colégios, às vezes as meninas pediam para tirar a roupa e eu tirava. [Visitava vários bares e restaurantes] (...) ia várias vezes dançar. Tanto é que alguns achavam que eu estava drogado, às vezes alguns diziam que eu estava doido, alguns diziam que eu estava bêbado. E virava problema e era internado [no hospital psiquiátrico]. Eu não trabalhava nessa época, eu não trabalhava mesmo, o que eu só fazia realmente é ficar por aí. Tanto é que eu dizia que realmente a minha casa era o centro. Eu ficava mais no centro, de manhã, tarde, noite e de madrugada...

Francisco conta que nessa fase de sua vida, a qual vivenciava com toda a

intensidade a representação como dançarino, ser doente mental não era um problema,

pelo contrário, essa condição inclusive possibilitava que explorasse até o extremo a

liberdade nunca antes permitida. Aproveitava a representação como dançarino para

estudar as formas de composição das personagens, o que nos leva a acreditar que nessa

representação começam a ser germinadas as sementes de uma mesmidade futura, como

se fosse um esboço56 de uma personagem ainda indeterminada. Entretanto, algumas

condições objetivas farão com que o dançarino tenha que lidar com o problema que a

representação fetichizada de uma personagem traz para qualquer indivíduo: “torna-se

algo com poder sobre o indivíduo, mantendo e reproduzindo sua identidade, mesmo que

ele esteja envolvido em outra atividade”57. Como estava vivenciando o dançarino como

se fosse a totalidade de sua identidade, logo, outras personagens estavam sendo

negadas: o homem casado que era pai, sem uma representação satisfatória, acaba saindo

56 Pensar esse momento de experimentação de novas personagens como preparação de esboços, deve-se

ao fato que estes “não são quadros nem desenhos, pois estes últimos são completos; integram todos os seus componentes e projetam-nos para além da obra. Já os esboços são sempre incompletos, contornos parcialmente visíveis de conteúdo indeterminado. Não ditam para o artista como este deve empregar os contrastes de tons, cores e sombras de uma pintura. Estão abertos para serem utilizados de diferentes maneiras, a serem redesenhados ou abandonados. Mas isso não significa que um esboço não conte com uma lógica interna; um esboço bem feito oferece entendimentos construtivos sobre os problemas internos de uma tarefa artística e também quais condições são necessárias para resolver seus propósitos. Assim, contraditóriamente, essa indeterminação do esboço dá ao trabalho futuro uma determinação; lhe confere um sentido de direção”. Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de identidade: possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro. p.21-22.

57 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.139.

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de cena, a esposa pede separação e leva o filho embora. Na época isso geraria uma crise

profunda em Francisco, que hoje diz compreender o que acontecera.

Ela realmente gostava de mim. Mas com o passar do tempo ela foi desgostando. Sem ter aquele valor mesmo, eu reconheço isso (...) eu realmente não tive um papel de homem casado. Eu não tive atitudes também. Eu tive umas atitudes a ponto de ir para o hospital [psiquiátrico]. Se passou quatro anos e quando foi em [ano de acontecimento] ela não agüentou mais e foi embora com meu filho. E ao terminar nosso casamento eu realmente passei por uma crise muito forte, perdi toda a noção.

O trabalho preparatório que estava vivenciando com a representação do

dançarino — que se mantinha como modulação da personagem doente mental — é

desestruturado com o anúncio da separação, a partir de então tudo seria diferente,

perderia totalmente o controle da situação. Sem um lar para onde voltar — o que

denunciava concretamente a impossibilidade de representar a antiga personagem

pressuposta (homem casado que era pai) —, Francisco se “vê abalado ou perdido o

auto-reconhecimento de que ele é o próprio de quem se trata”58, torna-se um andarilho

sem rumo, tenta encontrar um caminho que pudesse oferecer outros sentidos. Nos

parece que nesse momento Francisco acreditava que o dançarino era a personagem que

estava liberada para fazer as loucuras (nesse sentido, fazia loucuras sem ser doente

mental), afinal, tinha sido a própria esposa que havia incentivado a representação de

outras personagens; nesse sentido, é possível pensar que a reação da mulher de se

separar configurou-se como uma “surpresa desagradável”, inesperada, não foi conivente

com a “liberação” que ele esperava ter com a conexão doente mental/dançarino.

Quando me separei andava todos os dias de manhã, à tarde e até de madrugada. Eu saía daqui sem sentido, sem destino, sem rumo na vida. E aí eu dancei muitas vezes [nos bares, pizzarias e restaurantes]. Foi uma maneira de agüentar, porque quando eu dançava me sentia uma autoridade, de uma celebridade, chegava perto do som fechava meus olhos e começava a dançar. Uma atitude que eu tinha também era entrar nas igrejas católicas, principalmente na igreja [X]. E entrava pelo corredor, ia até realmente no altar, virava e ficava olhando para os fiéis, na posição de algum santo, algumas vezes do lado esquerdo e ou do lado direito. Aí depois eu ficava andando na igreja, estilo brincadeira [nesse momento mostra como é esse estilo, anda de forma debochada e fazendo caretas]. E isso eu fiz várias vezes e algumas vezes parecia que eles estavam gostando, outras que não estavam, porque acontecia de também ter um pouco de noção do que eu fazia, quando eu percebia que a pessoa gostava aí eu investia.

58 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.132.

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Entre as apresentações indesejadas realizadas pelo andarilho sem rumo existia

uma que seria retomada no futuro: o distribuidor de panfletos. Todavia, nesse momento

de errância, essa personagem apenas seria utilizada como um meio para conseguir matar

a fome de mendigo e suprir sua busca pelo reconhecimento de sua importância,

precisava ser notado. E lembremos com Laing que essa necessidade não se esgota como

questão visual. Ela “estende-se à necessidade geral de ter a própria presença endossada

ou confirmada por outros, a necessidade, de fato, de ser amado”59. É quando num

determinado dia, Francisco, numa ocasião em que pedia comida, é surpreendido com

uma oferta inesperada.

Eu estava sem fazer nada mesmo, andava só pra cima e pra baixo. Sei que eu cheguei numa loja, cheguei no proprietário e disse que estava com fome, ele me ofereceu duzentos panfletos e disse que daria dinheiro se eu entregasse. Aí fiquei animado, eu realmente era uma pessoa muito carente, queria ter relações com as pessoas, ter contato com as pessoas. Então, naquela carência fui e aceitei. Duzentos panfletos.

Desse dia em diante se tornaria um distribuidor de panfletos e continua preso à

mesmice dessa personagem durante alguns anos. É interessante assinalar que embora

nessa época estivesse representando essa nova personagem, o reconhecimento que ainda

tinha das pessoas com quem se relacionava ainda era de um doente mental. Sabemos

que Ciampa assinala que à medida que as personagens vão se constituindo, vai se

constituindo também um novo universo simbólico60, mas aqui podemos arriscar dizer

que embora Francisco estivesse representando uma nova personagem, o distribuidor de

panfletos ainda não tinha força suficiente, como se ao invés de preso à mesmice

estivesse “enfeitiçado”, “possuído”.

Podemos dizer baseando-nos no fato de que nesse período a mesmice vivenciada

por Francisco sofrerá uma tentativa de alternação apresentada por sua mãe, que o

convence de que todo o sofrimento que estava vivenciando em sua vida era devido ao

seu distanciamento da religião, assim, a saída era se tornar um Francisco evangélico. E

no começo até que essa representação dá certo, entretanto, se já não era fácil interpretar

uma personagem planejada, ficaria ainda mais difícil sustentar uma personagem

pressuposta cujo script não permitia flexibilidade. Mais problemas surgiriam.

59 LAING, Ronald David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p.131. 60 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.154.

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Eu realmente passei a ser evangélico. Eu lia muito a bíblia, me formei na leitura dos textos. Só que foi exagerado. E tanto é que as pessoas aqui realmente não gostavam de mim. Porquê? Porque eu sempre ficava alterado. Incomodava até de madrugada, ficava pregando a palavra de Deus. Queria que aprendessem à força, ou seja, eu achava que teria que ser daquela maneira. Eu achava que estava realmente ajudando, agradando, mas só que eu estava desagradando a todos.

Essa forma de estabelecer a vida da personagem de certa maneira concretizava a

possibilidade de comunicação tão procurada, mas a forma extremista como representava

o evangélico fará com que ela seja abandonada em pouco tempo. Afinal, lembremos que

sua representação como doente mental já havia sido incorporada por seus vizinhos

como sua identidade pressuposta, sendo assim, a atuação exagerada, poderíamos dizer

até mesmo forçada, da personagem evengélico não demoraria para ser interpretada

como enganação, como falha de caráter. A representação das duas personagens era

considerada incompatível.

Não tinha quem viesse realmente a me ouvir, a me entender. Como as pessoas não queriam me conhecer, me xingavam logo, me chamavam de sem vergonha. Teve uma dessas pessoas que falou: “Ele não é doido não, é sem vergonha!”. Nisso as pessoas me magoaram, foram me magoando. Realmente que no momento que eu estava parado das brincadeiras, que eu fiquei na minha, eles diziam que eu não era doido e sim um sem vergonha. E também, aconteceu muitas vezes de algumas pessoas quererem me bater, graças a Deus nunca aconteceu não, só fizeram ameaças.

Francisco, que havia decidido deixar de representar o distribuidor de panfletos,

nesse momento de sua vida não vê outra saída que não fosse abandonar a personagem

evangélico. Vivencia o sofrimento de indeterminação, que, segundo suas próprias

palavras, parece-lhe como um “sentimento de derrota, de tristeza, de desânimo, de

alguém sem esperança, sem fé”. Sem saber qual personagem representar, retoma uma

antiga: como um garoto arisco permanece um ano trancado dentro de casa.

E quando foi nessa época que eu comecei a ficar com depressão, e no caso eu passei um ano. Foi o motivo de realmente a sociedade não aceitar nenhuma coisa que eu queira oferecer. Nessa época as pessoas que me conheciam achavam que eu tinha morrido ou que tava internado. Muitas vezes algumas pessoas que conheciam mamãe, que sabiam que ela era minha mãe, perguntavam se eu tinha morrido. Obviamente como eu estava aqui, minha mãe dizia que não, que era só conversa.

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Em outros momentos seria levado para tratamento mesmo contra sua vontade,

contudo, nessa época o hospital psiquiátrico havia sido interditado devido a denúncias

maus-tratos e uma nova rede substitutiva começava a ser implementada na cidade. Se

fosse passar por algum tratamento teria que procurar pelo CAPS por vontade própria, o

que naquele momento não conseguiria fazer. A mãe, nesse episódio, ocupa novamente

um lugar significativo na vida de Francisco, uma vez que ficará um ano insistindo para

que o filho procurasse a Psicóloga da instituição, a qual sem sequer ter lhe visto sabia

que estava com depressão.

Fiquei um ano só dentro de casa. Minha mãe me dizia que a doutora falava que era depressão! E a doutora realmente me deu uma ficha, eu não tinha noção do que se passava ao meu redor. E quando graças a Deus eu me libertei da depressão, que eu melhorei bastante, eu fui uns tempos fazer tratamento no CAPS.

É importante que atentemos para a última fala de Francisco: primeiro melhora da

depressão, depois volta a participar da esfera pública, finalmente decide procurar a

Psicóloga. Nesse momento, tenta representar o distribuidor de panfletos, todavia, essa

representação não oferecia mais as sensações de liberdade e acolhimento experienciadas

anteriormente. Em alguns momentos, assim nos conta, sentia como se estivesse em sua

casa, “derrotado, triste e sem esperança”, em outros momentos até lembrava do

conselho da mãe, do tratamento no CAPS. Sua mãe havia lhe informado que aquele não

era um lugar para loucos, como era o caso do hospital psiquiátrico, e que poderia

oferecer respostas para aquilo que estava sentindo (o sofrimento de indeterminação)

sem que precisasse ficar internado. Mas como ainda não sabia se seria uma alternativa,

resolve retomar novamente o andarilho sem rumo, que algumas vezes até distribuía

panfletos, mas sem nenhum compromisso.

Fazia isso de graça [distribuir panfletos]. Porque quando eu sentia fome, quando eu sentia fome e sede, eu pedia só pela quantia X. Eu estava só querendo comprar o pão sem explorar mesmo, eu pedia dez centavos para um [estabelecimento] e quinze centavos a outro, para dar a quantia do pão e pronto. Eu não explorava, eu queria viver realmente era daquela euforia. Tá certo que nessa época eu passei um bom tempo pesando cinqüenta e dois, cinqüenta e três, hoje eu tenho sessenta e quatro, sessenta e cinco. Então, por aí você tira que eu era um pouco franzino, era bem feinho.

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Permanece na errância até que em um determinado dia decide procurar pelo

CAPS. Nessa instituição Francisco conhece duas psicólogas, cuja diferença de

tratamento oferecido por uma e por outra será um divisor de águas entre a continuidade

de sua personagem andarilho sem rumo doente mental e a personagem que representa

atualmente, o garoto publicidade.

De acordo com Francisco, a primeira psicóloga parecia com o psiquiatra que o

recebia no hospital psiquiátrico, que não queria saber de sua vida, de sua história, mas

apenas de sua doença mental. Novamente nos deparamos com o difícil processo de

reconhecimento daquilo que se apresenta como anamorfose. Como profissional da

saúde mental a Psicóloga permanece apoiada no discurso técnico-psicólogico (o

contrário do que observamos na relação estabelecida anteriormente entre Gabriel e o

Psicólogo), que de certa forma oferece o conforto da “certeza”, conseguida por basear-

se em um discurso que organiza as diferenças (anamorfoses) segundo parâmetros pré-

estabelecidos, padronizando aquilo que é singular na história de cada indivíduo. A

adoção de um olhar paraláctico é abandonada em detrimento de uma técnica de ver.

Lembremos com Szasz que o conceito de doença mental “serve principalmente para

obscurecer o fato cotidiano de que a vida, para a maioria das pessoas, é uma luta

contínua, não pela sobrevivência biológica, mas por um ‘lugar ao sol’, ‘paz de espírito’,

ou algum outro significado de valor”61.

É certo que o reconhecimento como doente mental por essa Psicóloga do CAPS

será mais humanizado do que o reconhecimento como doente mental realizado pelo

hospital psiquiátrico, que sempre o recebia como doente mental que precisava ser

contido, entretanto, como ficará evidenciado, o reconhecimento que a Psicóloga

proporcionará será apenas isso: mais humanizado. Um problema que persiste todas as

vezes que o cinismo presente no uso do diagnóstico de doença mental é utilizado e o

reconhecimento perverso é concretizado, como ao nosso ver se evidencia parecer ficar

evidenciado na história de Francisco, que terá as contradições que vivera até então

reduzidas à sua doença mental, à sua depressão.

Isso será mais um problema para Francisco, pois havendo sofrido a hostilidade

da comunidade frente às representações como doente mental, passa a frequentar o

CAPS com medo de ser descoberto como usuário do serviço e de ser reconhecido como

doente mental em tratamento. Aqui vale transcrever um trecho escrito por Goffman no 61 SZASZ, Thomas S. O mito da doença mental. p.28-29.

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qual assinala que mesmo nos casos em que o indivíduo apresenta sentimentos e crenças

“bastante anormais, é provável que ele tenha preocupações normais e utilize estratégias

bem normais ao tentar esconder essas anormalidades”62. Mas como dissemos, esconder

que estava em tratamento seria apenas um dos problemas, uma vez que Francisco

reconhece que o problema maior nessa época foi corresponder à representação esperada

pela Psicóloga.

Ela descobriu que minha timidez era uma depressão e insistia que eu era doente. Isso foi bom, mas ela [ficava] me convencendo que era doente. Uma coisa muito chata mesmo. Tanto é que eu realmente ficava perdido. Depois que aprendi que era doente comecei todas as vezes que saía daqui de casa, saía realmente escondido, porque sabia que os outros sabiam que eu ia lá [no CAPS].

Se antes Francisco procurou o CAPS porque havia lembrado que aquele não

seria um lugar como o manicômio, agora tinha suas dúvidas, uma vez que a partir do

momento em que foi diagnosticado pela Psicóloga perdera a condição de negociar,

questionar as intervenções, sem contar que tinha seu comparecimento semanal cobrado

duramente (precisava ter seu acompanhamento faturado pela instituição). Isso torna

explícito que simplesmente oferecer um modelo alternativo ao manicômio não é

garantia de promoção da alteridade, além disso esse episódio, articulado com os que

vislumbramos anteriormente nas histórias de Ana e Gabriel, evidencia a dupla

incorporação do conteúdo autêntico (o reconhecimento do sofrimento) e sua distorção (a

redução desse sofrimento a categorias simplificadoras), configurando “uma maneira

astuta de controle, já que o verdadeiro controle ocorre quando se impõe a nós a

chantagem de uma escolha forçada”63 (a escolha entre a condição de cidadão doente

mental ou marginal torturável paciente do manicômio).

Como era de se esperar em uma relação estabelecida entre especialista e

paciente, Francisco obedece sem questionar à prescrição64, enquanto para além dos

muros da instituição tentava manter sua “loucura” em segredo. Até quando começa a

perceber que aquilo que era trazido como os problemas de sua vida para a Psicóloga

62 GOFFMAN, Ervin. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. p.142. 63 SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.203. 64 Nesses casos se torna evidente que não é possível o estabelecimento de uma ação comunicativa, pois a

relação estabelecida sempre é desigual, enquanto paciente não especialista o indivíduo não tem outra alternativa a não ser se submeter ao discurso técnico-psicológico.

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eram recebidos como expressão de um discurso desinteressante, tedioso para a

especialista.

(...) algumas vezes eu percebia que realmente ela estava chateada. Eu me tratava com ela e percebia que ela realmente estava chateada, que estava cansada de estar me ouvindo. Acho que isso aí é uma coisa que não devia acontecer porque ela é uma profissional. Ela pelo menos devia parecer realmente estar ali gostando, querendo ajudar, não pra atrapalhar. Mas percebia que ela ficava chateada com as minhas conversas. Falava sempre a mesma coisa, então eu estava incomodando a pessoa dela, mas como ia falar de outra coisa se o problema de minha pessoa era o mesmo? Quando eu sentia isso da pessoa dela aí que eu ficava mau mesmo. Mas aí que eu me preocupava mesmo, certo, em querer no dia seguinte ir novamente conversar com ela. Isso toda vez acontecia. Aí, com o passar do tempo, graças a Deus, ela saiu e veio outra.

Mesmo não conhecendo nada de psiquiatria ou psicologia, Francisco estranha

que a Psicóloga fique entediada com seu discurso, chega a dizer que ela pelo menos

poderia ter fingido que estava gostando, ou seja, que pelo menos assumisse o cinismo,

afinal, ele estava se esforçando para ser o paciente que ela queria. Ao mesmo tempo se

perguntava: como falaria de outra coisa se o que imaginava ser importante para essa

Psicóloga era justamente sua doença, sua depressão?

Francisco nos conta que felizmente essa Psicóloga não fica muito tempo no

CAPS. Em seu lugar aparece uma outra profissional que fará toda a diferença para a

construção da personagem que representa atualmente. Como Francisco imaginava que a

nova Psicóloga exigiria a representação de sua identidade pressuposta, procura interagir

com ela da mesma maneira que interagia com a antiga Psicóloga: como um doente

mental e que no CAPS encontraria a solução para os problemas de sua vida. Todavia,

Francisco lembra que é surpreendido no momento dessa representação, a nova

Psicóloga diz algo que impediria a reposição da personagem andarilho sem rumo

doente mental. Deixemos que ele mesmo explique o que aconteceu.

Quando ela percebeu que eu queria realmente que o CAPS solucionasse realmente meus problemas mesmo, que eu acreditava que estava doente e que eles sabiam me tratar, que queria deixar só com eles a responsabilidade, ela me disse: o CAPS é só dez por cento e noventa por cento sou eu, aí que foi a melhoria. Aí que eu entendi realmente que dependia mais da minha pessoa mesmo, noventa por cento [eu] e dez por cento o CAPS. Tinha me ensinado [a Psicóloga antiga] e eu achava realmente que o CAPS poderia resolver, aí descobri que quem resolvia era minha pessoa.

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A fantasia que sustentava a fetichização da personagem doente mental é então

desmascarada. Francisco descobre que o CAPS não podia oferecer as respostas que

procurava, que naquele lugar não encontraria o caminho a seguir, repete várias vezes na

entrevista que quando escuta essas palavras finalmente começa a melhorar. A nova

Psicóloga assume o limite da instituição que representa. E ao fazer isso se propõe a

encontrar outras possibilidades de leitura e reconhecimento para a identidade de

Francisco. Mas uma pergunta poderia aparecer aqui: se Francisco descobre que não

encontraria no CAPS as respostas que procurava, que sentido teria continuar seu

tratamento nesse lugar? A resposta para essa questão aparece rapidamente, uma vez que

ele assinala a diferença que encontrava quando saía de sua casa e se dirigia até o CAPS.

Diferentemente das vezes em que ficava angustiado frente à necessidade de

correspondência dos interesses da antiga Psicóloga, nas consultas com a nova Psicóloga

sabia que poderia pensar coisas novas. Não precisaria ficar repetindo um discurso que

justificasse sua representação como doente mental, poderia falar dos esboços de

representações futuras, pois sabia que a Psicóloga escutaria atentamente suas questões.

Acreditava que ela não estava sustentando apenas uma “tolerância para com [sua]

particularidade individual (...), mas também [mostrava] interesse afetivo por essa

particularidade”65. Da mesma maneira, descobre que poderia aprender novas formas de

interação com os outros.

E com ela as vezes que eu ia no CAPS era mais agradável. Principalmente quando eu simplesmente falava e eu percebia que realmente ela estava ali, que ela me entendia, me via como pessoa e não como doente (...) E daí por perceber que ela estava me entendendo aí que eu tinha a melhoria. E aprendi a escutar também, a ter paciência, sensibilidade. Antes eu fazia as coisas, mas não tinha noção. Aprendi com ela quando realmente não conseguisse me expressar, devia me preocupava em me expressar corretamente. E mudou hoje eu acho bom quando alguma pessoa realmente, quando eu falo alguma coisa errado, uma palavra errado que ela vem me corrigir. Eu passo a agradecer, mas também aprendi a saber quando uma pessoa de uma maneira querer realmente me humilhar, aí eu não aceito, agora não parto pra cima, dou uma resposta e viro as costas, vou embora, meu silêncio fala por mim.

Francisco deixa explícito o fato de que ser reconhecido como alguém que tem

algo para dizer é uma premissa necessária para que se possa desenvolver a capacidade

de suportar a fala do outro. Utilizando-nos aqui da contribuição habermasiana, podemos

65 HONNETH, Axel. Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectiva na ordem moral

da sociedade. p.211. [grifo nosso]

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dizer que com a Psicóloga, Francisco “aprende a compreender o próprio comportamento

na perspectiva do outro, ou seja, à luz da reação comportamental e interpretadora do

outro”66. Isso fica ainda mais evidenciado quando ele assinala que em suas conversas

com a Psicóloga nova vai aprendendo como distinguir os tipos de discurso, a

transformar a sensibilidade, que durante tanto tempo foi um problema, em uma

vantagem.

Se em um primeiro momento as mudanças apareceriam apenas na forma como

era estabelecida a relação com a antiga Psicóloga, posteriormente as transformações

foram se ampliando para além da instituição. Francisco muda seu modo de vestir e agir

publicamente, a representação do andarilho sem rumo doente mental começa a se

mostrar insustentável, logo precisaria ser abandonada em favor de uma outra mais

conveniente. Vemos aqui que ao aprender a ser outro, a partir do reconhecimento pós-

convencional proporcionado pela nova Psicóloga, torna-se outro, e com isso força a

comunidade a reconhecê-lo de forma diferenciada. Um exemplo concreto mostra como

isso exterioriza-se na realidade: Francisco assinala que ao mudar sua aparência e sua

forma de interação com os outros, que descaracterizava a mesmice, criou um incômodo

nos lugares onde costumava pedir panfletos para distribuir pela cidade: de andarilho

sem rumo, que distribuía panfletos por um pouco de comida, passa a ser reconhecido

como um homem procurando um trabalho.

Francisco não havia se dado conta da metamorfose de sua identidade pressuposta

até que um proprietário de um dos estabelecimentos (onde trocava a distribuição dos

panfletos por trocados e alimentos) o chama para conversar e pergunta se ele não se

incomodava de trabalhar de graça. Uma surpresa dupla para Francisco, que se descobre

reconhecido como trabalhador e que tinha direito de cobrar pelo trabalho executado.

O dono da farmácia me perguntou sério se eu não gostava, se eu não sentia mal conviver sem dinheiro. Depois me disse que eu era um ótimo vendedor dos produtos dele, eu fiquei surpreso. Eu sou um vendedor. Uma coisa que realmente eu não sabia, até três anos atrás mais ou menos. Em outra ocasião, quando eu já estava entregando panfleto à noite nos lugares, uma pessoa me olhou e do nada e foi logo me parabenizando. Disse que eu era um grande vendedor. E eu agradeci, mas só que no momento que eles disseram isso eu não me toquei. Eu não me tocava que eu estava vendendo os produtos dos outros. Mas aí eu passei a saber, passei a me valorizar.

66 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico: estudos filosóficos. p.210.

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A partir do reconhecimento como trabalhador Francisco passou a se valorizar. O

que isso significou na prática? Que percebeu que poderia representar uma personagem

que garantiria o reconhecimento como alguém que tinha valor social. Uma condição que

reforça a proposição trazida por Žižek: “só quando nos confrontamos com um tal Outro

opaco é que surge a questão do reconhecimento”67. Surgia assim o garoto publicidade,

que expressava a concretização de uma personagem pela qual passaria a se relacionar

com as outras pessoas. Uma forma de representação passível de ser interpretada como

um ato que atravessa a fantasia, tal como descrito por Aidar Prado, onde “o sujeito que

pratica esse ato real não é o sujeito intencional, o sujeito sistêmico que planeja o ato

visando fins segundo uma ação estratégica”68,como ocorreu nas histórias anteriores,

mas um ato que ocorre de forma imprevista, “que sacode a vida dos que praticam e é

revolucionário, no sentido que coloca em xeque a lógica sistêmica, a razão meramente

instrumental, do extrato economicista”69, um fragmento de emancipação.

Claro que para Francisco manter a credibilidade dessa nova representação

precisaria negar a personagem doente mental, que em um momento anterior colocou em

xeque a personagem evangélica. Mas dessa vez Francisco estava atento para esse

perigo, tanto que para continuar seu tratamento cria uma estratégia: procurava sempre

sair do CAPS por uma porta lateral, onde sabia ter pouco movimento e as chances de

cruzar com algum conhecido seria mínima. Fica evidente que para sua nova

representação se tornar legítima era necessário que a representação como doente mental

fosse deflacionada, a ponto de poder ser abandonada.

Dessa vez Francisco não encontrará problemas, pois contava com uma aliada

nesse processo: a nova Psicóloga estava disposta a se assumir dispensável, o que

significava que Francisco poderia assumir sozinho sua vida. Ele nos conta que chega em

um determinado momento a nova Psicóloga anuncia que era chegada a hora de deixar

de freqüentar o CAPS. Se quisesse poderia procurá-la, mas não seria mais na condição

de usuário do CAPS. A despedida da nova Psicóloga marca um período de

aprendizagem para Francisco, que hoje pode até mesmo arriscar a falar sobre a ética que

os Psicólogos que trabalham com saúde mental deveriam ter.

67 ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.295. 68 PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do intelectual: do extrato incomunicável ao ato

impossível. p.112. 69 Ibidem. Loc. cit.

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A doutora realmente mostrou, no mesmo tempo que estive no CAPS, que se preocupou bastante mesmo com o paciente. Ela demonstrou que ama o que faz, não o seu trabalho em si, mas as pessoas realmente. Ela é uma pessoa profissional, uma pessoa realmente que estudou bastante para conhecer os nossos problemas e mostrar o que é psíquico e o que é da vida mesmo. Ela é assim, um exemplo. Eu tiro realmente a doutora como uma pessoa mais humana que tem uma paciência que ajuda os outros a se tornarem humanos. Ela passou para mim o que a primeira psicóloga realmente não passou. Eu vejo hoje que para poder realmente trabalhar com pessoas com problemas psíquicos, a pessoa tem que ter muito amor e muita paciência. Se preocupar é no caso estudar mais, conversar mais, se dedicar mais, procurar realmente ter mais informações sobre o que a pessoa está fazendo o que ela tá vivendo. Principalmente para quem quer trabalhar com seres humanos, tem que ter muita responsabilidade e porque não é uma máquina, um objeto e sim um ser humano. E eu acho que só dessa maneira os resultados vão ser louváveis.

Mostrar o que é psíquico e o que é da vida mesmo, uma tarefa difícil que

teremos de assumir se quisermos adotar uma visão paraláctica frente às anamorfoses

apresentadas pelos indivíduos que se representam a partir da personagem doente mental.

Nessa colocação fica registrado que se concordamos com Habermas que qualquer

expressão de identidade que se configure como “pós-convencional não pode

desenvolver-se sem antecipar estruturas comunicativas modificadas”70, ela se torna

diretamente relacionada à nossa capacidade de desenvolver formas de reconhecimento

pós-convencionais. Parece correto dizer que, nesse sentido, a identidade que é

metamorfose em busca de emancipação, também pode ser interpretada como

metamorfose que luta por reconhecimento e emancipação. A nova personagem de

Francisco materializa a análise realizada por Ciampa da loucura de Severina, uma vez

que seu reconhecimento como doente mental (proporcionado pelos outros e por ele

mesmo quando representara o dançarino, o andarilho sem rumo, o distribuidor de

panfletos) mostrou-se como “esforço de criação de um novo universo — louco porque

singular, não compartilhado — consequentemente fuga de uma realidade: a realidade

cotidiana. A loucura, quando bem-sucedida, devidamente reconhecida, é morte para a

vida71. Lembremos aqui o episódio em que Severina representava o moleque-

aprontador. Como Ciampa assinala, nessa ocasião, “se permanecesse isolada no mundo

da loucura, se não conseguisse uma personagem que a ligasse ao mundo quotidiano (e

70 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico: estudos filosóficos. p.234. 71 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.157.

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por este fosse aceito), concretizaria plenamente a que, atribuída, encarnava: a Severina-

doente-mental”72.

Frente às condições concretas de reconhecimento, então define a construção de

uma nova personagem: o garoto publicidade, que possibilitaria a manutenção da

liberdade que tanto lhe agradava e a continuidade de desenvolvimento da sensibilidade

para com o outro que aprendera durante o tempo que passou com a Psicóloga. Francisco

vai fazendo a afinação da representação na prática e em pouco tempo torna-se

extremamente conhecido, atraindo a atenção de outros comerciantes, que passaram a

contratar os serviços do garoto publicidade. Francisco oferece um exemplo da maneira

como foi realizando esse processo.

Eu fazia uma apresentação, uma brincadeira, aí depois eu pegava minha bolsa e ia conversar. Algumas pessoas estranhavam no começo, às vezes eu exagerava, e eu prestava atenção. Como depois as pessoas viam que era sério elas geralmente gostavam. Uma vez tinha uma das pessoas chegou até a dizer, disse que ia ser sincero, ele pediu até desculpa. Me disse que no começo, na época que ele me via lá dançando, ele achava que eu era doido. Mas aí como ele viu a minha maneira de conversar, de trabalhar ali, então ele viu que realmente eu não era o que ele estava pensando.

Francisco fica orgulhoso com o fato de seus serviços serem requisitados pelos

melhores estabelecimentos da cidade. Dono atualmente de uma agenda concorridíssima

chega a dizer que em alguns momentos acaba tendo de abrir mão da oferta de trabalho,

pois sua agenda sempre está cheia. Sua popularidade é visível inclusive na Internet,

onde em um site de relacionamentos atualmente conta com quatro comunidades que

juntas somam mais de 3.000 indivíduos auto-cadastrados. É interessante quando

Francisco fala de sua rotina de trabalho como garoto publicidade.

De manhã, [doceria], [fastfood], [churrascaria – as duas lojas]. Antes de almoçar, passo no vizinho que tem a [loja de comida japonesa], depois eu almoço e volto pro ponto. Quando eu vejo esses lugares todinhos que realmente vou me dar bem, aí que eu me sinto bem. Claro que não é sempre que fico bem, às vezes eu me sinto bem no [restaurante] e na [doceria] não, já no [fastfood] sim, então compensa. Do começo ao fim, tanto na ida como na volta, posso me sentir mal, mas sempre acabo me dando bem. Mas agora nunca mais tive crise, aprendi a controlar a crise.

72 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.157.

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Nunca mais teve crise, essas palavras contrastam com as de Gabriel, reforçando

novamente que o problema da saúde mental também não pode ser reduzido à inclusão

do doente mental no mundo do trabalho, geração de renda. Antes, qualquer proposta

desse tipo deve-se perguntar que tipo de inclusão é essa que se tem insistido tanto nos

últimos anos. No caso de Gabriel, o retorno para o trabalho se configurava como retorno

à condição de ser escravo por contrato, o que, pelo menos por enquanto, não parece ser

o caso de Francisco. O garoto publicidade não é escravo de ninguém, inclusive, a fama

conquistada permite questionar os comerciantes, a ponto de chegar a negar-se a

representar estabelecimentos que não correspondam ao que anunciam nos panfletos.

Aí passei a me preocupar com todos os produtos que eu represento. Me preocupar principalmente no caso assim, para saber que o produto realmente é bom. Porque tem restaurante que eu já peguei panfleto e as pessoas ficavam só criticando, me deixando triste. Tanto é que quando acontece isso eu passo para o meu patrão. Digo: olha, eu cheguei com esse produto e algumas pessoas realmente criticaram seu produto. Disseram que seu produto não é bom não. Quando eles [os donos dos comércios] respondem: É mesmo Francisco? Então eu vou procurar melhorar. Então eu fico satisfeito. Por exemplo, você conhece o [conhecida como a melhor pizzaria da cidade]? Algumas vezes as pessoas reclamaram da pizza dele, do atendimento, aí quando isso acontece eu passo para ele [o proprietário], e ele sempre me diz Francisco vamos melhorar isso aí. Aí quando ele diz que vai melhorar eu fico satisfeito. Agora vender um produto que as pessoas só criticam e aquele meu cliente não diz nada, ou mesmo que venha a dizer, vem dizer mentiras e eu vejo que o cliente tem razão, eu abandono esse patrão. Teve uns três clientes que eu deixei de trabalhar só por isso. Eu recebia críticas, falava e não mudava, até que eu deixei de trabalhar para eles. Eu sou conhecido pela minha preocupação realmente com qualidade não com quantidade, por isso as coisas estão, graças a Deus, acontecendo.

O sucesso na representação dessa personagem permite a Francisco sonhar com

um projeto futuro onde as possibilidades de ampliar suas habilidades de interação se

estendem para o infinito. Isso não significa que não saiba do perigo de ficar escravo

dessa personagem, pelo contrário, Francisco tem clareza do fato que algumas pessoas

fetichizam o garoto publicidade, a ponto de, como ele mesmo assinala, “não me vêem

realmente fazendo outra coisa a não ser o que eu estou fazendo”. Do mesmo modo,

entende que antigas personagens ainda precisam ser atualizadas e outras ainda precisam

ser criadas e construídas. Mas é Francisco quem tem a palavra:

Eu penso em voltar a estudar para poder fazer faculdade, na minha mesma área, em marketing. Aí ia ser mais fácil. Até porque hoje para você estudar é mais fácil do que há dez anos atrás e graças a Deus eu já recebi vários apoios de

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pessoas que me ofereceram para que realmente voltasse a estudar, principalmente no supletivo. Mas não vou mais adiante que isso não. Tanto que a pessoa disse que não me via fazendo outra coisa, e eu dou razão a ele. Eu também não me vejo. Por enquanto eu não me vejo ainda fazendo outras coisas, namorando, por exemplo. Eu não me vejo. Porque para isso ainda eu me acho incapaz, eu tenho medo de me decepcionar. Eu já tenho essa coisa, eu já boto isso na minha cabeça, quando eu desenvolver isso aí eu namoro.

Francisco hoje conhece seus limites e também que a possibilidade de criação das

novas personagens é infinita. Reconhece claramente que o limite para a continuidade de

sua representação depende de um jogo conjunto entre sua vontade de experienciar o

novo e as condições de acolhimento, reconhecimento das novas personagens. A

narrativa de sua história de vida termina por aqui, sua luta cotidiana por reconhecimento

do garoto publicidade continua. Se irá conseguir articular essa personagem a outras no

futuro não é algo que podemos discutir aqui, fazer isso seria mera especulação, profecia.

Por enquanto, Francisco aproveita para viver ao máximo o fragmento de emancipação

que conquistou.

Com o término da narrativa de Francisco encerramos nossos itinerários. É

evidente que cada um deles poderiam ter nos levado para caminhos infindáveis de

análise e que nosso alcance foi limitado. Todavia, acreditamos que com o que foi

exposto tenha sido o suficiente para explicitar como o discurso técnico-psicológico —

que ampara a política de identidade da saúde mental — tem servido como instrumento

de controle em nossa sociedade e que nesse momento histórico o diagnóstico tem sido

utilizado de forma dual (para inclusão dos indivíduos como cidadão doente mental e

para tamponar as contradições sociais explicitadas por esses indivíduos como

anamorfoses do sistema), mascarando o fato que os especialistas da saúde mental têm se

utilizado de uma racionalidade cínica, a partir da qual ao invés de partir de um olhar

paraláctico capaz de identificar as contradições trazidas pelas anamorfoses, acabam

reproduzindo reconhecimentos perversos, onde a anamorfose é reduzida ao olhar do

especialista da saúde mental. A ameaça, portanto, não vêm lá de fora, não está no

fantasma do manicômio, vêm de dentro de nossa impossibilidade de abrir mão do

discurso psiquiátrico, da produção de outras leituras para aquilo que é descrito como

doença mental, de nosso cinismo e descrédito na potencialidade do outro que busca

reconhecimento.

Do mesmo modo, acreditamos que as narrativas de história de vida, analisadas à

luz da teoria de identidade proposta por Ciampa, tenham explicitado que a apropriação

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do discurso psiquiátrico não ocorre de uma forma padronizada e que cada indivíduo se

apropria da identidade pressuposta de doente mental de uma forma personalizada,

individualizada. Seja ela como negação, evidenciada na narrativa de Ana, em sua

representação da personagem anoréxica que serve para negar a representação de uma

outra personagem insuportável (a deficiente); como ironia, vista na personagem doente

mental da narrativa de Gabriel frente ao cinismo percebido no discurso dos peritos do

INSS (que evidenciou os problemas resultantes da negação do reconhecimento jurídico-

moral e a dinâmica conflituosa causada pela ruptura do contrato social por uma coerção

legal); ou ainda, como esboço, expressada nas vicissitudes que a personagem doente

mental teve para a identidade de Francisco, que na representação com garoto

publicidade expressou fragmentos de emancipação de sua identidade.

Nessa última narrativa, reforçamos a possibilidade e a necessidade de valermo-

nos de um reconhecimento pós-convencional, vimos que somente é possível mediar

criação de personagens que expressam alteridade quando não estivermos somente

preocupados em ter sucesso no mercado ou em sermos fiéis a uma teoria,

principalmente em “pensar e agir politicamente, para mudar a situação em

acontecimento (ou evento). Este ‘agir politicamente’ evita saídas que recusam,

recalcam ou foracluem o antagonismo”73. Afinal, se a identidade é metamorfose em

busca de emancipação e de reconhecimento, mas em nossa sociedade vemos que cada

vez mais essa emancipação é impedida; se a luta por reconhecimento muitas vezes tem

se configurado como reconhecimento perverso; e se de projeto utópico essa

emancipação tem se desvanecido em favor de uma administração do instituído fruto

tanto da colonização do mundo da vida como de uma racionalidade cínica; é preciso

criar novas formas de resistência frente às aparências e insistir na explicitação das

condições que têm impedido que essa emancipação se concretize como uma

necessidade para todos nós.

73 PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do intelectual: do extrato incomunicável ao ato

impossível. p.106. [grifos do autor]

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É minha imagem o que desejo multiplicar, mas não por narcisismo ou por megalomania, como se poderia facilmente pensar. Ao contrário: é para esconder, em meio a tantas imagens ilusórias de mim mesmo, o eu que as faz mover-se. Por isso, se não tivesse receio de ser mal interpretado, não me oporia a reconstruir em minha casa um cômodo inteiramente forrado de espelhos (...) onde eu me veria caminhar no teto, de cabeça para baixo, e levantar vôo das profundezas do assoalho.

Italo Calvino1

Finalizada a apresentação dos itinerários chega o momento de apresentar nossas

considerações finais, ou talvez fosse mais correto dizer: chegou o momento de

suspendermos temporariamente nosso diálogo. Com aquilo que foi apresentado de

forma histórica, teórica e empírica, acreditamos que os principais conceitos e análises

tenham sido suficientemente trabalhados ao longo do texto, tornando desnecessário

repeti-los de maneira resumida. Sabemos que certamente ficaram algumas arestas,

pontos cegos e questões não respondidas, todavia, isso não nos parece ser um problema.

Temos plena consciência de que essa tese é o resultado daquilo que foi possível, dentro

de condições subjetivas e objetivas a que estivemos submetidos. Obviamente o possível

a que nos referimos não tem relação com um possível absoluto, mas todo o possível

para nós nesse momento. E pensando melhor, talvez, nem sequer todo o possível para

nós, uma vez que já havíamos assumido no final do itinerário empírico que poderíamos

ter analisado e aprofundado as questões trazidas ao longo da tese a partir de vários

matizes, o que nos faz pensar que esse momento poderia então ser melhor descrito, na

verdade, como considerações iniciais para uma nova fase de reflexões, análises e

itinerários. Sendo assim, parece-nos mais apropriado apresentar o que aprendemos com

a tese, o que não incorporamos na pesquisa e as conseqüências que imaginamos ter esse

estudo para a Psicologia Social, sobretudo, para os estudos da identidade.

Aprendemos que a representação da personagem doente mental, expressão da

persistência e manutenção do discurso técnico-psicológico, tem sido apropriada tanto

pelos indivíduos frente ao sofrimento de indeterminação quanto utilizada como

identidade pressuposta pelos especialistas da saúde mental que não adotam uma visão 1 CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. p.166.

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paraláctica para reconhecer as anamorfoses expressadas. Ficou explícito nas narrativas

de história de vida que mesmo quando esses especialistas apoiados em posturas mais

progressistas ou ainda quando obrigados pela Lei 10.216 da Reforma Psiquiátrica atual,

que determina um tratamento mais humanizado do doente mental, louco, portador de

sofrimento psíquico ou seja lá qual for o nome utilizado para descrever como anormal

um comportamento indesejado, a manutenção do discurso técnico-psicológico expressa

um dos sintomas de nossa sociedade atual, a qual incorpora os reclamos dos indivíduos

e sua distorção a partir das relações de dominação e exploração, o que foi explicitado

quando assinalamos o fato de que para ser reconhecido como cidadão doente mental o

indivíduo deve abrir mão da possibilidade de representar outras personagens e se

submeter à arbitrariedade do especialista. Também aprendemos durante o processo de

construção da tese que existem possibilidades concretas — tanto por parte dos

indivíduos que estão submetidos ao discurso técnico-psicológico, como para os

especialistas que são procurados para reconhecer a doença mental e adotam uma visão

em paralaxe, um reconhecimento pós-convencional — de subverter esse discurso e

desenvolver personagens que mesmo de forma anamórfica expressam alteridades

passíveis de serem reconhecidas na esfera pública, expressões de fragmentos de

emancipação, como foi o caso de Francisco. Aqui, o reconhecimento, como um ato que

permite a travessia da fantasia, apareceu como uma importante intervenção política.

Como apresentado no prólogo, esse aprendizado foi responsável pela

configuração que a tese tomou em sua finalização. A tese em si é a concretização da

metamorfose teórico-metodológica do pesquisador. Lembremos que no projeto inicial

da tese imaginávamos que poderíamos traçar coordenadas para uma clínica de

identidade; nem precisaríamos dizer aqui que deixamos de enveredar por esse caminho.

Do mesmo modo, no projeto inicial, prevíamos o estudo de doze histórias de vida. De

fato, até realizamos essas entrevistas, mas preferimos explorar apenas três delas, seja

por julgar que já expressavam o que estávamos querendo discutir, seja porque a forma

como analisamos cada uma das histórias deixaria o trabalho extremamente cansativo,

dado o número de páginas que seriam necessárias,caso analisássemos as doze. No que

se refere ao tamanho da tese também vale dizer que escolhemos adotar um formato final

no qual muitos dos esboços escritos (principalmente os apresentados na qualificação da

tese) não foram incorporados, assim como algumas questões trazidas por esses esboços

não foram tematizadas (elas serão publicadas como artigos e ensaios futuramente).

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Todavia, assinalamos aqui que eles foram e são muito úteis. Como disse Ciampa na

ocasião do exame de qualificação da tese, “eles servem como ensaios para nosso

próprio esclarecimento”.

Esse apontamento abre espaço para discorrer sobre as conseqüências da tese para

os estudos da identidade. De nossa parte podemos dizer que as proposições

desenvolvidas por Ciampa trazidas ao longo da tese foram extremamente pertinentes

para realizar uma análise crítica das condições de controle a que estão submetidos os

indivíduos atualmente e as formas de construção das personagens que compõem a

identidade (aqui nos referimos não somente à personagem doente mental, mas a todas as

personagens que são atribuídas como identidade pressuposta pelas diferentes políticas

de identidade em nossa sociedade). Do mesmo modo, a articulação do sintagma

identidade-metamorfose-emancipação com os conceitos de cinismo, anamorfose,

paralaxe, reconhecimento perverso e reconhecimento pós-convencional, potencializou

as análises da construção das personagens que compõem a identidade e as relações de

reconhecimento recíproco. As proposições desta tese, inclusive, têm sido

freqüentemente estudadas no projeto de extensão Estudos avançados do sintagma

identidade-metamorfose-emancipação que coordenamos no curso de Psicologia da

Universidade Federal do Ceará – UFC, Campus Sobral, e no Laboratório de Identidade,

Cultura e Subjetividade – LAICUS, da mesma Universidade. No que se refere ao campo

da Psicologia Social, acreditamos que essa tese possa contribuir tanto para a discussão

do seu lugar na saúde mental, como para a construção de novos referenciais de análise e

intervenção. Finalmente, para o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Identidade-

Metamorfose da PUCSP – NEPIM, acreditamos que o presente estudo possa somar-se

ao corpo teórico desenvolvido por Ciampa e contribuir com a infinita re-atualização que

essa proposta, assim como toda teoria crítica, está submetida.

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ANEXOS

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1

MINISTÉRIO DA SAÚDE - Conselho Nacional de Saúde - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP FOLHA DE ROSTO PARA PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS

( versão outubro/99 ) Para preencher o documento, use as indicações da página 2. 1. Projeto de Pesquisa: Patologias Mentais e sua relação com as distorções sistemáticas da linguagem: Uma re-leitura a partir do sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação 2. Área do Conhecimento (Ver relação no verso) PSICOLOGIA

3. Código: 7.07

4. Nível: ( Só áreas do conhecimento 4 )

5. Área(s) Temática(s) Especial (s) (Ver fluxograma no verso) 6. Código(s): 7. Fase: (Só área temática 3) I ( ) II ( ) III ( ) IV ( )

8. Unitermos: ( 3 opções )

SUJEITOS DA PESQUISA

9. Número de sujeitos No Centro : 12 Total: 12

10. Grupos Especiais : <18 anos ( ) Portador de Deficiência Mental ( ) Embrião /Feto ( ) Relação de Dependência (Estudantes , Militares, Presidiários, etc ) ( ) Outros (X) Não se aplica ( )

PESQUISADOR RESPONSÁVEL 11. Nome: Aluísio Ferreira de Lima

12. Identidade: 22.523.113 –X

13. CPF.: 192.671.648-56

19.Endereço (Rua, n.º ): Rua João Cosmai, 65

14. Nacionalidade: Brasileira

15. Profissão: Psicólogo

20. CEP: 09340-680

21. Cidade: Mauá

22. U.F. São Paulo

16. Maior Titulação: Mestre

17. Cargo Pesquisador

23. Fone: 11 – 8226.2269

24. Fax

18. Instituição a que pertence: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

25. Email: [email protected]

Termo de Compromisso: Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas complementares. Comprometo-me a utilizar os materiais e dados coletados exclusivamente para os fins previstos no protocolo e a publicar os resultados sejam eles favoráveis ou não. Aceito as responsabilidades pela condução científica do projeto acima. Data: _08__/__08___/__2007_ ______________________________________ Assinatura

INSTITUIÇÃO ONDE SERÁ REALIZADO (observar folha anexa) 26. Nome: 29. Endereço (Rua, nº):

27. Unidade/Órgão: 30. CEP: 31. Cidade: 32. U.F.

28. Participação Estrangeira: Sim ( ) Não ( ) 33. Fone: 34. Fax.: 35. Projeto Multicêntrico: Sim ( ) Não ( ) Nacional ( ) Internacional ( ) ( Anexar a lista de todos os Centros Participantes no Brasil ) Termo de Compromisso (do responsável pela instituição) :Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas Complementares e como esta instituição tem condições para o desenvolvimento deste projeto, autorizo sua execução Nome:_______________________________________________________ Cargo________________________ Data: _______/_______/_______ ___________________________________ Assinatura

PATROCINADOR Não se aplica ( x ) 36. Nome: 39. Endereço

37. Responsável: 40. CEP: 41. Cidade:

42. UF

38. Cargo/Função: 43. Fone: 44. Fax:

COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA – CEP 45. Data de Entrada: _____/_____/_____

46. Registro no CEP: 47. Conclusão: Aprovado ( ) Data: ____/_____/_____

48. Não Aprovado ( ) Data: _____/_____/_____

49. Relatório(s) do Pesquisador responsável previsto(s) para: Data: _____/_____/____ Data: _____/_____/_____ Encaminho a CONEP: 50. Os dados acima para registro ( ) 51. O projeto para apreciação ( ) 52. Data: _____/_____/_____

53. Coordenador/Nome ________________________________ Assinatura

Anexar o parecer consubstanciado

COMISSÃO NACIONAL DE ÉTICA EM PESQUISA - CONEP 54. Nº Expediente : 55. Processo :

56.Data Recebimento : 57. Registro na CONEP:

58. Observações:

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2

LOCAL ONDE SERÁ REALIZADA A PESQUISA

Para realização da pesquisa seguiremos a proposta apresentada pelo Dr. Antonio da

Costa Ciampa, cujas pesquisas realizadas e orientadas nos últimos anos mostram que a

narrativa de história de vida aparece como o instrumento mais apropriado para obter as

informações que julgamos necessárias para compreender como ocorrem as construções

identitárias, assim como, pode nos ajudar a recuperar as determinações singularizadoras da

individualidade. A escolha por este instrumento se deu também pelo fato de que o mesmo

supera a prática da mera descrição (cujo desafio era obter o maior número de informações

possíveis), e possibilitar a busca pelos significados implícitos presentes na construção dessas

identidades, que serão entendidas como metamorfose humana em busca de emancipação.

Serão realizadas um total de 12 entrevistas de história de vida, divididas em três

grupos de sujeitos: a) que fazem “tratamento” das doenças mentais (4) ; b) que estão na “fila

de espera” para tratamento (4) e, c) aquelas que de alguma forma criaram formas de lidar com

o problema de forma não convencional (4). As entrevistas serão realizadas nas residências dos

sujeitos e/ou lugares que os mesmos sentirem-se mais confortáveis. O pesquisador se

compromete observar a qualidade do local da entrevista, evitando, assim, qualquer

possibilidade de exposição e constrangimento para os entrevistados.

Seguiremos todos os cuidados éticos necessários à realização de uma pesquisa desta

natureza. Adotaremos as normas do Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo (PUC-SP) e da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre

Pesquisas Envolvendo seres Humanos. No momento em que entregarmos aos participantes da

pesquisa os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, que serão feitos em duas vias,

serão explicitados os objetivos da pesquisa, o tipo de participação do indivíduo (o relato da

história de vida, o uso do gravador etc.), a garantia do sigilo e de que todos terão uma

devolutiva, se quiserem, com o resultado da pesquisa.

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Termo de Compromisso do Pesquisador

Pesquisa : Patologias Mentais e sua relação com as distorções sistemáticas da linguagem: Uma re-leitura a partir do sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação

Os pesquisadores abaixo assinados, conhecedores da Resolução 196/96 e de seu conteúdo essencialmente de natureza Bioética, centrado na proteção do sujeito de pesquisa, se comprometem a :

• Atender aos deveres institucionais básicos da honestidade, sinceridade, competência e discrição ;

• Pesquisar adequada e independente, além de buscar aprimorar e promover o respeito à sua profissão ;

• Não fazer pesquisas que possam causar riscos não justificados às pessoas envolvidas ;

• Não violar as normas do consentimento informado ; • Não converter recursos públicos em benefícios pessoais ; • Comunicar ao possível participante da pesquisa todas as informações necessárias

para um adequado consentimento informado ; • Propiciar ao possível participante da pesquisa plena oportunidade e encorajamento

para fazer perguntas ; • Excluir a possibilidade de engano injustificado, influência indevida e intimidação ; • Solicitar o consentimento apenas quando o participante tenha conhecimento

adequado dos fatos relevantes e das conseqüências de sua participação e tenha tido oportunidade suficiente para considerar se quer participar ;

• Obter de cada possível participante um documento assinado como evidência do consentimento informado, e

• Renovar o consentimento informado de cada participante se houver alterações nas condições ou procedimentos da pesquisa.

São Paulo, 08 de agosto de 2007.

________________________________ _____________________________

Pesquisador responsável Orientador

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPrograma de Estudos Pós-Graduados em Psicologia

Social NEPIM – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Identidade

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Este termo de consentimento tem por objetivo informar-lhe sobre o que se trata a pesquisa, bem como, a partir de seu entendimento, obter a sua autorização explícita para realizá-la. Espera-se, através deste, possibilitar-lhe uma idéia básica sobre a pesquisa e o que a sua participação envolverá. Se você desejar obter mais detalhes sobre algo mencionado, ou informações não incluídas, sinta-se à vontade para perguntar. Por favor, leia cuidadosamente esse termo e as informações aqui contidas. Tema do Projeto de Pesquisa Patologias Mentais e sua relação com as distorções sistemáticas da linguagem: Uma re-leitura a partir do sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação Pesquisador Aluísio Ferreira de Lima, discente do Doutorado do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica SP. Objetivo da pesquisa: Compreender como, no decorrer de suas vidas, indivíduos perceberam-se portadores de patologia mental e qual a repercussão desse diagnóstico para as suas identidades. Recrutamento e Seleção dos Participantes Foram convidadas para a pesquisa pessoas que em algum momento de suas vidas foram reconhecidas ou se reconheceram como portadoras de transtorno mental, que estariam fazendo tratamento, em fila de espera ou que encontraram outra forma de lidar com o problema. Procedimento Pretende-se realizar entrevista de história de vida com cada um dos participantes. Estima-se a realização de 2 entrevistas de, aproximadamente, 3hs de duração, com cada participante. As entrevistas serão realizadas na residência do sujeito e/ou lugar que o mesmo entender como mais confortável. O pesquisador se compromete observar a qualidade do local da entrevista, evitando, assim, qualquer possibilidade de exposição e

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constrangimento para o entrevistado. As entrevistas serão gravadas para permitir um registro mais preciso das informações e posteriormente transcritas.

Aspectos Éticos

Em relação aos aspectos éticos é importante ressaltar que o foco do presente estudo é a história de vida, portanto, só serão apresentados casos cuja autorização prévia para divulgação seja obtida. Os objetivos da pesquisa serão informados aos participantes e lhes será dada liberdade de decisão sobre participação no estudo, assim como também lhes será garantido anonimato. Risco ou desconforto Por se tratar de entrevista de história de vida, caso o participante se sinta, em algum momento, desconfortável pode solicitar a interrupção da entrevista ou até mesmo, o encerramento de sua participação na pesquisa. Sigilo Os nomes dos participantes serão mantidos em absoluto sigilo. Todas as informações obtidas na pesquisa serão utilizadas, apenas para a análise científica dos dados e em caso algum os nomes dos participantes constarão nas eventuais publicações. Consentimento

A sua assinatura neste formulário indica que você leu e entendeu as informações contidas, que você concorda em participar da pesquisa e ser entrevistado. Você é livre para se recusar a responder a itens específicos ou questões durante a entrevista. Você é livre para desistir de ser participante do estudo em qualquer momento, sem nenhuma penalidade. Sinta-se à vontade para pedir explicações ou esclarecimentos a qualquer momento durante a pesquisa. Se você tiver outras questões relacionadas a este estudo estou à disposição, através do telefone (88) 9252.1415 ou pelo e-mail [email protected].

Participante Data

Pesquisador/Testemunha Data

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Reprodução do quadro: Ângelus Novus de Paul Klee.

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