peregrinação, experiência e sentidos: uma leitura de narrativas sobre o caminho de santiago de...
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Tarcyanie Cajueiro Santos e Míriam Cristina SilvaTRANSCRIPT
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Peregrinao, experincia e sentidos: Uma leitura de narrativas sobre o
Caminho de Santiago de Compostela1Tarcyanie Cajueiro Santos e Mriam Cristina Silva
1 Introduo
As narrativas produzem parte da cultura,
assim como so produtos culturais, j que
materializam singularidades perceptivas acerca
dos fenmenos experimentados pelo homem, na
relao com o seu meio e com o seu imaginrio.
Possuem um importante papel de mediao,
sobretudo medida que ajudam a identificar,
selecionar e interpretar os fatos, alm de serem
uma possibilidade para organizar, analisar,
criticar, subverter, transformar e at substituir a
experincia concreta, a partir da simulao, do
jogo, da fabulao. Narrador, espao, personagens
e tempo intrincam-se e relacionam-se com a
finalidade de produzir sentido e memria.
Narra-se em suportes e linguagens distintos,
que vo desde as inscries rupestres, passando
pelas narrativas orais, nas quais a necessidade
dos corpos presentes, tanto o do narrador quanto
os dos ouvintes, concedia ao narrar um carter
ritualstico e essencialmente comunitrio, vinculado
experincia do estar juntos no aqui e no agora,
compartilhando o mesmo tempo e o mesmo espao.
Tarcyanie Cajueiro Santos | [email protected] e doutora em Cincias da Comunicao pela ECA/USP. Professora do Mestrado em Comunicao e Cultura da Universidade de Sorocaba - UNISO.
Mriam Cristina Silva | [email protected] em Comunicao e Semitica pela PUC-SP. Ps-doutora em Comunicao Social pela PUC-RS. Professora titular do Mestrado em Comunicao e Cultura da Universidade de Sorocaba - UNISO.
ResumoObjetiva-se refletir sobre as possibilidades
comunicacionais a partir da experincia da
peregrinao, registrada nas narrativas do site da
Associao de Confrades e Amigos do Caminho de
Santiago de Compostela; assim como investigar o
modo como se narram estas experincias, discutindo-
se a produo de sentidos a partir do que narrado.
Pergunta-se: O que dizem estas narrativas? Qual a
importncia delas para a experincia da peregrinao?
Estas narrativas propiciam pistas sobre o mundo
contemporneo, a experincia da peregrinao, a
natureza do narrador, os enredos mais narrados
e suas tramas, o leitor ideal esperado e o que se
pretende comunicar ao narrar este tipo de experincia.
Palavras-ChaveNarrativas. Peregrinao. Santiago de Compostela.
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Benjamin (1982) descreve dois tipos de
narradores, o tradicional, que conhece em
profundidade os fatos e as histrias locais, por
nunca ter deixado a sua comunidade; e o viajante,
aquele que vem de terras distantes e traz novas
experincias. Ambos possuem uma relao
vivencial direta com o fato a ser narrado, porm,
o narrador tradicional est ligado a uma extenso
ampla de tempo, pois percorreu perodos distintos
de um espao restrito para acumular o seu saber,
enquanto que o narrador viajante se relaciona com
uma maior amplitude de espao, j que percorreu
grandes distncias, entre as quais dividiu
distintas parcelas de tempo, a fim de guardar o
seu conhecimento. O que ocorre, portanto, que
a narrativa se faz possvel pela vivncia e pelo
acmulo da experincia atravs do tempo ou
atravs do espao.
Diferentemente das comunidades orais, nas
sociedades da escrita, possibilita-se um narrador
de corpo ausente e a sobrevida das histrias
narradas. J na era do compartilhamento
e da reproduo frentica de posts, nas
contemporneas redes sociais digitais, o
narrar pode se converter em imediatismo,
instantaneidade e fugacidade, expressas por
curtidas e comentrios empreendidos por
indivduos isolados e em constante estado de
alerta. A memria no se produz apenas a partir
dos acontecimentos presenciados, mas, tambm,
da soma de signos ofertados pelas mdias.
Desta forma, a subjetividade se expe
potencialmente mais voltil, nmade, mutante
e mltipla, assim como as identidades e os
vnculos. Para Guattari (1993), a subjetividade
humana afetada nuclearmente pelas mquinas
tecnolgicas de informao e de comunicao,
tanto no que tange s memrias e inteligncia
quanto nos aspectos referentes sensibilidade,
aos afetos e at mesmo em relao aos
fantasmas inconscientes.
No cabe aqui polarizar a interferncia das
novas prticas comunicacionais, regidas pela
tecnologia digital. O que se pretende discutir
so as possibilidades comunicacionais a partir
da experincia da peregrinao, retratada nas
narrativas publicadas no site da Associao de
Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de
Compostela no Brasil. Parte destas narrativas
ocupa as redes sociais, fomentada pelo uso
das novas tecnologias da comunicao. Pinho
(2008) discute a necessidade de se superar os
antagonismos analticos que ora entendem a
tecnologia como redentora, ora como vil. Porm,
afirma que imperativo no se inocentar a
tecnologia, tachando-a como neutra e colocando-a
como mera ferramenta, e adverte sobre a
necessidade de se investigar os processos que a
envolvem em sua complexidade:
O caos gerador de diversidade na medida em
que ele explode e vai criando novas ordens,
mundos novos, associaes e trocas inusitadas.
1 Verso do trabalho apresentado na XXIV COMPS, 2015.
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dinmico, processual, no se deixa aprisionar.
A subjetividade humana, assim como a nature-
za, tambm no linear; por demais complexa
e processual, no permitindo reduzir-se ou limi-
tar-se pela jaula de ferro dos cientificismos; pelo
contrrio, deve ser entendida na sua dimenso
de criatividade e contnuo reordenamento. E as
tecnologias no se situam fora da subjetividade
humana (PINHO, p. 8, 2008).
Nas redes sociais digitais, as narrativas sobre
peregrinao se multiplicam e so acessadas
tanto por aqueles que j experimentaram a
prtica de peregrinar quanto pelos que desejam
obter informaes sobre rotas, o que levar, o que
esperar, por vontade de se lanar na aventura ou
simplesmente por curiosidade.
O Caminho de Santiago de Compostela, uma
das rotas mais tradicionais da religio catlica,
tornou-se um dos principais centros de
peregrinao dos brasileiros no exterior, sendo
recriada em diversas cidades brasileiras. Trombini
(2013), ao pesquisar nas fontes de informaes
de vrias oficinas localizadas no Brasil, constatou
que o nmero de brasileiros que solicitaram e
receberam a credencial ou passaporte at 2012 era
de 22.291. Este nmero prximo ao de Sandra
Carneiro (2012), ao afirmar que mais de vinte
mil brasileiros fizeram essa peregrinao (uma
ou mais vezes) nos ltimos quinze anos. Ainda
segundo esta pesquisadora, o Brasil foi o terceiro
pas estrangeiro que contou com o maior nmero
de peregrinos que recebeu a Compostela, em 2001.
A credencial de peregrinos uma precondio
para receber a Compostela, sendo um documento
gratuito que as organizaes de acolhida fornecem
s pessoas que a solicitam, como um meio de
serem facilmente reconhecidos como peregrinos
e de receber a hospitalidade do Caminho. Apenas
podem solicitar a credencial os peregrinos que
vo a p, de bicicleta ou a cavalo, e cumprem as
condies para poder receb-la. A compostela, por
sua vez, um documento tradicional que comprova
a peregrinao Compostela, devotionis causa,
mediante a apresentao da credencial, e desde
que tenham cumprido todas as condies que so
exigidas pela Catedral de Santiago.
De acordo com Carneiro (2001), diferentemente
de outras peregrinaes europeias, como a
de Ftima em Portugal ou a de Lourdes na
Frana, que so centradas na Virgem Maria, este
caminho ultrapassa as fronteiras do catolicismo,
constituindo-se como uma nova forma de
peregrinao. A nfase na viagem e, como se
alcana a igreja (a p, de bicicleta ou a cavalo)
marca a diferena, assumindo um significado
especial. A longa jornada tem duplo aspecto
fsico e espiritual.
neste contexto que se situa o objeto deste
trabalho, as narrativas produzidas a partir de
experincias relacionadas peregrinao. So
narrativas de um universo contemporneo,
conectado e globalizado. O que se busca aqui
investigar o modo como se narram estas
experincias, discutindo-se as possibilidades
de produo de sentidos a partir daquilo que
narrado. Entende-se que, a partir de uma
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leitura destas narrativas, pode-se obter pistas
sobre o mundo contemporneo e a experincia
da peregrinao, tambm sobre a natureza
do narrador, os enredos mais frequentemente
narrados e suas tramas, bem como o leitor ideal
esperado e o que se pretende comunicar ao narrar
a experincia da peregrinao.
2 A peregrinao
A peregrinao um fenmeno milenar complexo
e variado, que agrega histrica e culturalmente
diversas prticas. H muitos sculos, milhares
de pessoas se deslocam de seus locais de
origem, empreendendo principalmente a p, mas
tambm a cavalo ou de bicicleta, um percurso
cuja finalidade originalmente estava atrelada
religiosidade: o cumprimento de uma pena, o
pagamento de uma promessa, o agradecimento
por uma graa alcanada, a evangelizao para
converter novos fiis.
A peregrinao, enquanto uma jornada fsica e
espiritual, ultrapassa o mbito do catolicismo,
estando presente em diversas culturas e
religies. H nela uma busca que pressupe um
deslocamento e um ritual, por devoo e culto,
evocando uma viagem a um local desconhecido ou
estrangeiro, considerado sagrado.
Em sua raiz etimolgica, peregrinao se
relaciona com o aparecimento do outro; o
estrangeiro que sai em busca de algo e vivencia
momentos cujo desfecho a transformao de si.
Steil (2003, p.30) alude a esse duplo movimento.
Em suas palavras:
Como se pode observar, se, por um lado, a
peregrinao se exprime na histria como um
exerccio de encontro com o outro, o estran-
geiro, por outro, aponta para uma busca ms-
tica de si, como uma jornada de santificao
que encontra seu ponto de chegada no reco-
nhecimento de uma divindade que se manifes-
ta no interior de cada devoto.
Steil (2003), seguindo a corrente interpretativa
dos estudos antropolgicos sobre peregrinao,
adverte acerca das diferenas entre elas nesta
rea, e se ope viso clssica que estuda as
peregrinaes como sendo reflexo de um sistema
de representaes sociais nico e coerente. As
peregrinaes, segundo este autor, agregam
uma pluralidade de discursos e vises de mundo
que direcionam e preenchem os seus rituais,
combinando pessoas, textos e lugares. O que
pode haver em comum entre os diversos rituais
de peregrinao diz respeito s formas pelas
quais as pessoas, os textos e os lugares
so vivenciados nesses eventos. Ou seja, as
peregrinaes so compostas de pessoas, lugares
e textos escritos ou mitos orais sagrados, os
quais do poder de autoridade a esses eventos.
O modo como as relaes entre eles ocorre pode
servir para a anlise comparativa entre diferentes
tipos de peregrinao, na medida em que levanta
questes importantes sobre as mesmas:
Na sua expresso emprica, esses elementos
pessoa, lugar e texto coincidem nos
eventos de peregrinao que se apresentam
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como depositrios de tradies mticas e his-
tricas atualizadas por seus peregrinos e de-
mais agentes religiosos mediante a invocao
de suas crenas, a venerao de suas imagens
e a performance de seus rituais. Cada peregri-nao, no entanto, pode enfatizar um ou mais
desses elementos (STEIL, 2003, p.47).
Ao nos depararmos com o fenmeno das
peregrinaes nas sociedades contemporneas
ocidentais, especialmente as do Caminho de
Santiago de Compostela, percebemos, nessa
perspectiva, caractersticas que lhes so
particulares e que permitem questionar conceitos
clssicos relacionados ao domnio da religio,
como o caso do sagrado. Uma outra vivncia do
sagrado nas formas de religiosidade contemporneas
coexiste com valores e prticas seculares, modernas
e ps-modernas. A noo ocidental de religio,
baseada em uma relao transcendente com Deus,
cede espao para uma concepo imanente, mais
prxima s religies orientais.
Hoje, a motivao parece tambm se
desvincular do propsito religioso das primeiras
peregrinaes, para se desdobrar na busca por
aventura, atividade fsica, turismo, transformao
interior ou apenas para a suspenso do cotidiano,
como um modo de romper a monotonia.
A segregao da experincia (GIDDENS, 2002),
com a expanso da tcnica e dos no lugares
(AUG, 1994), cria um ambiente assptico
que, frequentemente, desafiado e burlado
por aqueles que buscam dar sentido s suas
vidas. A estetizao do cotidiano no se ope
sua sacralizao. Os no lugares, locais de
passagem que podem ser pensados como os
shopping centers, os aeroportos e o turismo
podem ser ressignificados e se tornarem locais
identitrios, com sentidos. O fenmeno da
peregrinao nas sociedades contemporneas
ocidentais pode representar um outro modo de
se vivenciar o sagrado, na medida em que traz
consigo elementos seculares, que inspiram as
experincias religiosas. O Caminho de Santiago
de Compostela, nesta perspectiva, mesmo
atravessado pelo movimento do turismo, pela
busca da relao com a natureza, pela prtica
de exerccios fsicos e do corpo saudvel, ainda
assim traz consigo a experincia dos sentidos.
Autores que pesquisam o aumento das
peregrinaes na sociedade contempornea,
especialmente a intensa procura pelo Caminho
de Santiago de Compostela e a construo de
novas rotas de peregrinao no Brasil, chamam
a ateno para a autonomia da experincia do
sagrado em relao s instituies religiosas
tradicionais. Pesquisadores como Steil e Carneiro
(2008, p.113) apontam para a reinveno das
peregrinaes, na medida em que os sujeitos
religiosos incorporam o turismo como mediao
da experincia do sagrado, que absorve
elementos de lazer, de consumo e de marketing.
Enquanto os peregrinos de outrora objetivavam
a transcendncia, utilizando seus corpos como
instrumentos de penitncia e perdo a um Deus
alm deste mundo, os peregrinos contemporneos
fazem a jornada no intuito de encontrar o
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Deus que est neles mesmos. A peregrinao,
nesse sentido, torna-se uma experincia
interior. Nesses contextos, as experincias dos
sujeitos so os prprios princpios geradores de
autenticidade da relao que se estabelece com
o sagrado (STEIL & TONIOL, 2010). Nas novas
peregrinaes, os corpos dos peregrinos e da
natureza aparecem como lugares privilegiados
de contato entre o eu e Deus. Os peregrinos as
veem como uma possibilidade de aperfeioamento
pessoal e transformao de si. Alm disso, a nova
modalidade de peregrinao aparece no somente
como manifestao de uma experincia religiosa,
mas tambm como expresso cultural (turstica).
Estudiosos da peregrinao a percebem como
um sistema abrangente de trocas polticas e
econmicas, no qual competem simultaneamente
discursos religiosos e seculares, ortodoxias
oficiais e interpretaes populares de um mesmo
cdigo doutrinrio, grupos religiosos estabelecidos
e seitas profticas de contestao ao status quo
(STEIL, 2003, p.45). As novas peregrinaes,
assim, so compostas de interesses tursticos,
msticos, culturais, histricos e ecolgicos, que
no se excluem, combinando-se em um contexto
social amplo, cujas fronteiras tornam-se porosas
(STEIL E CARNEIRO, 2008). E no se pode
descartar que essa porosidade comporte, tambm,
uma forma de comunicao, um acontecimento
comunicacional, frequentemente relatado nas
narrativas relacionadas peregrinao. Nela,
a suspenso do cotidiano, um outro modo de
vivenciar o tempo, em um espao estranho,
enseja a promessa de encontros e trocas efetivas,
do peregrino consigo, com os outros, com a
natureza e com o sagrado, nomeado como Deus, o
Inexplicvel, o Intangvel, o Todo-Poderoso, entre
outros termos.
3 Peregrinar e Narrar
As Redes Sociais exercem distintas funes
relacionadas peregrinao, sobretudo a partir
da veiculao de narrativas sobre o tema.
Elas parecem colaborar para o surgimento
e disseminao de peregrinaes e novas
modalidades de peregrinos que, cada vez mais,
precisam do mercado para se realizar. Entre
um grande nmero de entidades, escolhemos a
Associao de Confrades e Amigos do Caminho
de Santiago de Compostela, fundada em 25
de novembro de 1995, tendo mais de 2.000
associados, segundo informao do site. O
nome dessa rede social prope uma associao
(organizao de pessoas para um fim ou interesse
comum), formada por confrades (companheiro,
colega, camarada, scio, cada um dos membros de
uma sociedade religiosa, etc) e amigos (que tanto
pode significar aquele que tem gosto por alguma
coisa, do latim amicu, quanto ter o sentido do
indivduo ligado a outro por amizade). O interesse
comum que associa aqueles que participam do site
o Caminho de Santiago de Compostela.
Trata-se de uma das muitas associaes
existentes no mundo, destinadas a promover
e apoiar as peregrinaes pelo Caminho de
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Santiago de Compostela, na Espanha. Como
outras entidades, ela busca promover eventos
nas reas social, cultural, de esporte e de turismo,
tendo como principal objetivo incentivar, apoiar,
auxiliar, informar e preparar as pessoas, futuros
Peregrinos, a percorrerem em Peregrinao o
Caminho de Santiago de Compostela. Entre suas
atribuies, resumidamente, ela emite a credencial
oficial do peregrino, documento que permite
ao peregrino utilizar os albergues existentes ao
longo do percurso; divulga os caminhos no Brasil;
promove palestras e caminhadas preparatrias;
vende livros e guias sobre o caminho; realiza
planto uma vez por ms com peregrinos que j
fizeram o caminho para passar a sua experincia; e
promove confraternizao em almoos, jantares ou
encontros agendados.
O site da Associao apresenta vrias
informaes sobre o Caminho de Santiago de
Compostela. Entre elas: a sua histria; o que o
caminho; a catedral; a preparao; a necessidade
de o peregrino ter uma credencial para poder
dormir nos albergues. H tambm dicas sobre
as caminhadas dirias; o que levar; como se
preparar fisicamente; conselhos prticos; aluso
s melhores pocas para peregrinar; preparao
fsica; os albergues ao longo do caminho; as
despesas; os equipamentos necessrios; a tica
do peregrino. O site ainda apresenta as dez
principais razes para se percorrer 800 km a p,
rumo Catedral de Santiago de Compostela, onde,
supostamente, esto guardados os restos mortais
de um dos doze apstolos de Jesus, Tiago Maior:
encontrar-se consigo mesmo; buscar o sentido
da vida; procurar um ambiente propcio para se
pensar e refletir; cumprir uma promessa; estar em
contato com outras pessoas; seguir as indicaes
que outros foram deixando ao longo dos sculos;
apreciar os monumentos histricos e conhecer as
lendas do Caminho; aprofundar um conhecimento
cultural sobre a arte do Caminho; renovar a f
de um Apstolo de Jesus. No entanto, no h, de
acordo com o site, o certo ou o errado, pois o motivo
que leva peregrinao pessoal, ou seja, aquele
que verdadeiro para voc. Desta forma, a
inteno ou a verdadeira motivao o que confere
a condio de peregrino, segundo as reflexes de
Santo Agostinho: a inteno que d valor s
aes humanas. Ressalta-se, tambm, que no
h, necessariamente, um motivo para se realizar a
caminhada, que basta atender ao chamado, e que,
durante a caminhada, as razes surgiro. Este
chamado, subjetivo, inexplicvel, indefinido,
mais um dos elementos recorrentes nas narrativas
sobre a peregrinao. Sugere-se que aquele que
sente o desejo de realizar a peregrinao atende
a um chamado, talvez mstico, ou to somente
subjetivo e pessoal um desejo de encontrar algo
alm do cotidiano, com vistas a uma transformao
interior, a qual se refletir exteriormente.
A Associao considera que o primeiro passo para
se tornar um peregrino ambientar-se com a rota;
e, para isso, disponibiliza a Histria do Caminho
e das peregrinaes. Alm disso, conforme o site,
o contato com a experincia de outros peregrinos
tambm pode ajudar bastante. H sugesto de
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diversos livros sobre quem fez a peregrinao,
assim como depoimentos e histrias de vrios
peregrinos sobre o seu caminho. As narrativas so,
portanto, para muitos, a primeira forma de contato
com o caminho, que se inicia a partir da leitura da
experincia relatada pelos narradores-viajantes, no
necessariamente a partir da prpria experincia.
Desta forma, a Associao expe em seu site, no link
Meu caminho, narrativas enviadas por peregrinos
que desejam compartilhar a sua experincia.
Uma narrativa, convencionalmente, consiste
em um texto contendo narrador, tempo, espao,
personagens e um enredo, sendo fundamentada
na transformao dos fatos pela ao do tempo.
comum em muitos dos relatos do site o uso
da primeira pessoa, o que refora a presena
da funo emotiva da linguagem, centrada no
emissor e em sua experincia, ou seja, o narrador
tambm personagem daquilo que narra,
de modo que se pode remeter ao narrador viajante
de Benjamin: algum que tem o que contar, porque
experimentou a cultura de terras distantes.
A experincia demonstrada como subjetiva,
pessoal e nica, o que refora a ideia de que,
por mais que os interessados leiam os relatos,
fundamental fazer o caminho, viver a prpria
experincia. Isso fica patente, a comear
pelo ttulo, no relato de Zlia Maria Ferreira2:
Minhas3 impresses sobre o Caminho de
Santiago. A peregrina conta que fez o caminho
pela terceira vez, com a diferena de estar
acompanhada, na terceira. No h meno a
grandes dificuldades ou problemas, mas se enfatiza
a superao: Alguns dias a caminhada ultrapassou
o que era esperado. Teve um dia de 37 e outro de 38
km. Marca recorde, para mim, uma peregrina que das
outras vezes se valeu de caronas ou de nibus para
suportar os ltimos quilmetros do dia a fora da
palavra suportar sugere um certo sofrimento, no
explcito, mas que dever ou poder ser percebido
pelo leitor, quase como um conselho; a emoo:
A chegada Catedral foi emocionante, revi os
lugares j passados e me deu certo frenesi
de me ver mais uma vez por ali, num lugar
to distante de casa e to familiar. Na missa,
chorei por me emocionar ao ver o botafumeiroe
a freira cantando o Hino a Santiago, num tom
envolvente e inebriante que preenche a alma de
vida. Vida esta conquistada atravs de esforo e
muita sade durante o Caminho.
Aqui, misturam-se elementos relacionados
experincia fsica e alma; e vem a transformao:
Para mim, algumas mudanas se apresentaram,
a viso de que a vida finita e que preciso apro-
veitar cada minuto que segue com todo o saber e
atitude. Outra parte que me fez mudar depois do
Caminho que as emoes so para serem sen-
tidas e vividas e me sinto mais livre para senti-las
sem nenhuma crtica, a qualquer hora.
No relato de Monica Mouri4, a funo emotiva
da linguagem tambm privilegiada, a comear
2 http://www.santiago.org.br/noticias-boletins.asp?id=525
3 Grifo nosso.
4 http://www.santiago.org.br/noticias-boletins.asp?id=708
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pelo ttulo: Meu Caminho 5, que repete o nome
do link. Nesta narrativa, mais uma vez, a nfase
recai sobre a experincia subjetiva, individual e
nica, mas ressalta-se o compartilhamento do
que foi vivido, durante o prprio percurso, pelas
redes sociais digitais:
Durante este perodo fiz anotaes e posts no
Facebook, compartilhando um pouco da enorme
emoo e encantamento com as experincias vi-
venciadas. Obtive um retorno alm do esperado
de pessoas que se emocionaram comigo, muitas
delas no as conheo pessoalmente (....).
Neste sentido, o compartilhamento das
informaes ao longo do percurso, em processo,
simula as narrativas orais. No h o dividir do
mesmo espao e tempo, tampouco os corpos
interagem presencialmente, mas possvel
ocorrer um maior imediatismo que, inclusive,
parece converter a narrativa em espetculo.
O narrador assume um contrato com o leitor,
entendendo que este realmente se emociona
com os relatos, vivenciando o caminho
distncia. O leitor converte-se tambm em
narrador, e o narrador, em leitor, o que alimenta
a narrativa. O compartilhamento pelas redes,
entretanto, no descarta o encontro corpo a
corpo, com o outro, durante o prprio caminho:
Fiz amigos, andamos juntos por dias, rimos,
choramos, cantamos, comemoramos, nos
perdemos, voltamos a nos encontrar. Essa
dinmica intensa de cruzar diariamente com
pessoas de todas as idades, vindas dos qua-
tro cantos do mundo, uma verdadeira torre de
Babel de lnguas, cheiros e costumes nos d
a necessria noo do Todo.
Outro aspecto de relevo o encontrar-se,
sobretudo pela vivncia solitria:
Muitas dessas experincias, imerses profun-
das e dolorosas desnudaram sentimentos h
muito guardados. Esse encontro comigo mesma
foi um dos pontos altos do meu caminho, era
a minha proposta. Em muitos momentos e at
por dias inteiros andei completamente s, por
opo ou por circunstncias.
Um nico relato parece demonstrar que a
experincia de peregrinar d vazo a possibilidades
distintas de interao, no sem a dor e o
sofrimento, como se estes fossem o tributo a ser
pago para se alcanar a transformao almejada.
Em Homens que pedalam montanhas, de Alfredo
A. Bechara, o breve relato descreve subjetivamente
a viagem, iniciando-se, no ttulo figurativo, com
uma referncia ao esforo fsico descomunal para
se realizar a jornada: H exato um ano tive a
felicidade de fazer o Camio Francs, de bike, em
13 dias. Foi uma viagem fantstica, intrnseca,
cultural e produtiva. Note-se que, neste caso, os
objetivos desvinculam-se da busca religiosa ou
mstica. Destacam-se os obstculos, mostrando-se
a atividade fsica como norteadora:
Como todo comeo, o mais difcil foi logo de in-
cio, nos Pirineus, aonde tive que superar as ci-
bras e contraturas musculares, que terminaram
5 Grifo nosso.
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no terceiro dia, quando fui de Villava-Pamplona
at Estela, subindo o mtico Morro dos Perdes
(aonde vi que conseguiria o objetivo) e atraves-
sando a Ponte de La Reina.
A superao desses obstculos e o papel auxiliar
do prprio site: Da a viajem (sic) fluiu, com
adaptao total, muito me ajudou a ACACS-SP, com
os mapas, as dicas, conselhos e planejamento, que
foi fundamental para o sucesso da viajem (sic).
Aparentemente, a superao fsica, associada
performance atltica, parece ser o objetivo maior
da viagem, a meta a ser alcanada, no algo
transcendente e de carter interior, neste caso.
O contato com a natureza, a beleza das paisagens
percorridas so elementos que povoam a maior parte
das narrativas sobre peregrinao, transformando-
as em descrio, em tempo presente, o que converte
o prprio caminho em protagonista e que pode
ampliar a sensao, no leitor, de compartilhar
o mesmo espao construdo pelo narrador. No
relato de Cirene de Oliveira Colen de Almeida6, ela
descreve: Bem cedo um bilho de estrelas e uma lua
linda iluminando meu caminho, logo em seguida um
nascer do sol fantstico, transformando o breu em
um cu mais azul que meus olhos j viram (...). J
Katia Tolomei Fonseca7 ressalta a importncia de se
produzir as narrativas enquanto se caminha: Amo
escrever e articular conhecimento, ideia, sentimento
e pensamento (...). Ktia tambm descreve a
paisagem, mas expe no apenas as suas belezas,
como tambm seus obstculos, concentrando
protagonista e antagonista no prprio caminho,
que oferece belezas e perigos:
(...) Vi montanhas e caminhei com mosquitos.
Tive paisagens lindssimas e que no imaginava
que fossem existir ali. As flores me acompanha-
ram por todos os montes. Eram roxas, amarelas,
vermelhas e laranjas. O verde era to forte na
natureza que contrastava com o azul do cu...
Marchei todo o tempo com muitos mosquitos ao
meu redor e com dor nas bolhas em meus ps.
A descida foi difcil entender que era to dura
de fazer. Senti cada passo de minha descida. As
pedras atrapalham demais. Marcha solitria e
doda. Ao escrever estas palavras me emocio-
no, pois aqueles sentimentos foram fortes em
mim. Marcha de descida que durou cinco horas
com trs interrupes para descanso, comida e
energticos. Neste dia fiquei mais forte (...).
A descrio no apenas d ao leitor uma ideia das
dificuldades que enfrentar aquele que se dispuser
a viver o caminho, mas registra a atualizao da
experincia pela prpria narradora, que afirma se
emocionar ao escrever.
Angelo Lage8 escreve sobre transformao e sobre
a importncia de se relatar a experincia, a fim de
compartilh-la com outros:
Aps a mgica e profunda experincia no Cami-nho de Santiago, eis que cheguei a minha casa e a minha famlia. Como vocs da ACACS-SP mesmo disseram preparado para uma Nova Vida. Literalmente espero dar incio a uma nova etapa em minha vida, recuperando todo o tempo
que perdi com coisas que no valem a pena... Es-
6 http://www.santiago.org.br/noticias-boletins.asp?id=637
7 http://www.santiago.org.br/noticias-boletins.asp?id=231
8 http://www.santiago.org.br/noticias-boletins.asp?id=623
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tou repensando tudo e recatalogando cada etapa,
cada escrito no meu caderno que agrupou cerca
de 130 pginas de escritos... As experincias que
l vivi ficou (sic) gravadas em meu corao e em
minha alma... Ainda estou degustando-as para
enfim comungar de maneira sbia com todos...
Afinal para que serve uma luz no candelabro se a
colocamos embaixo da cama?
Talvez a experincia de realizar uma peregrinao
no possa ser substituda por sua narrativa,
pois o caminhar constri uma histria que se
experimenta passo a passo, com vivncias,
interaes, intenes e intensidades distintas para
cada peregrino. Porm, as narrativas encontradas
no site da Associao de Confrades e Amigos do
Caminho de Santiago auxiliam, de forma fcil,
prtica e rpida, na construo de um repertrio
prvio que, em alguma medida, fornece conforto
e segurana para aqueles que pretendem realizar
a jornada. H muito os peregrinos contam com as
narrativas sobre peregrinao para auxiliarem o
seu caminho, mas se outrora esse acesso se dava,
sobretudo, pelos livros, com seus altos custos de
produo e de aquisio, hoje, conta-se com uma
mirade de informaes, as quais correspondem
multiplicidade de motivos que levam o sujeito
a aventurar-se como peregrino. Outra mudana
a de que os livros eram escritos por autoridades,
especialmente religiosas, fornecendo uma voz
oficial que alimentava a necessidade de informao.
Com a presena das narrativas de peregrinao nas
redes sociais, pelo baixo custo que representam e
pela quase ausncia de crtica e de censura, d-se
voz a um imenso nmero de sujeitos e, deste modo,
evidencia-se a imensa gama de motivaes, idades,
personalidades, profisses dos peregrinos, o que
pode vir a ser um elemento motivador para uma
grande diversidade de leitores.
Ao entrar em contato com estas narrativas, ao
repercuti-las e ao interagir com elas, antes mesmo
de optar por realizar ou no a peregrinao, o
leitor passa a ser um sujeito da comunicao ou
em comunicao, como sinalizou Frana:
Ser sujeito da comunicao ou em comunicao
significa algo mais especfico, e nomeia um su-
jeito enredado numa teia de relaes que consti-
tuem esse sujeito relao com o outro, a rela-
o com a linguagem e o simblico. Assim, no
falamos em sujeito no singular, mas no plural; e
no apenas sujeitos em relaes, mas relaes
mediadas discursivamente. Trata-se, portanto,
de uma dupla injuno, de uma triangulao. Tal
apreenso produz o enquadramento lgico para
entender seja a sua natureza, seja sua constitui-
o. So sujeitos interlocutores sujeitos que
falam um com o outro, produzindo ns e pelos
laos discursivos que os unem (2006, p. 77).
Mesmo que opte por no realizar o Caminho, o
leitor das narrativas sobre a peregrinao poder
trazer consigo a marca da vieira (concha usada
pelos peregrinos, pendurada no pescoo, roupas,
mochila ou cajado, com o significado de busca de
conhecimento e proteo). Dela se apropriar, ainda
que invisvel, e tambm de seu discurso simblico,
para interagir com outros, a partir desta apropriao.
4 Consideraes Finais
O fenmeno da peregrinao na sociedade
contempornea apresenta ligaes com as mdias
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digitais, colaborando para a disseminao de novas
formas de se vivenciar o sagrado, em conjunto com
a produo de novas subjetividades. As modalidades
de peregrinao, como as do Caminho de Santiago
de Compostela, aparecem como propiciadoras
de uma experincia ligada ao projeto de
autoconhecimento. As narrativas, por sua vez, no
poderiam deixar de existir, apresentando-se como
reafirmao e mobilizao das transformaes em
si, propiciadas pela experimentao do caminhar,
ou, talvez, por um acontecimento comunicacional,
a partir do qual haver uma mudana significativa,
ainda que no definitiva, tal como as subjetividades,
que se modificam conforme mudam os enredos e os
atores com os quais se atua.
Nos relatos presentes no site da Associao de
Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de
Compostela, a estrutura narrativa convencional
permanece quase inalterada: h um narrador,
enredo, tempo, espao, personagens. A diferena
proporcionada pelo suporte digital que, como
uma marca da contemporaneidade, so narrativas
mais sintticas, condensadas e at superficiais,
o que atende necessidade de agilidade, rapidez
e leveza da atualidade. Acompanhadas de poucas
imagens, fotografias de carter ilustrativo, que
reforam elementos-chave apontados no texto,
sem excesso de detalhes, estas micronarrativas
limitam-se ao essencial, a exemplo da mochila
levada pelo peregrino, que no deve pesar muito,
mas trazer o suficiente e o necessrio, apenas o que
interessa ao narrador e o que ele pensa interessar
a seus leitores. A trama quase sempre se inicia
com o motivo que levou o peregrino realizao
do caminho. Na sequncia, comea a jornada,
descrevem-se as belezas, as emoes positivas,
os obstculos superados. O desfecho se d com
a chegada emocionante Catedral de Santiago
de Compostela tudo em trs, quatro, cinco, no
mximo oito pargrafos, no mais que doze ou
quinze linhas. Variam os motivos e a intensidade
com que se percebem os obstculos: dificuldades
com o clima, bolhas nos ps, fome, sono, saudades
de casa e outras privaes. So recorrentes
as menes natureza, receptividade dos
hospitaleiros, aos que se tornaram amigos ao longo
do caminho. Muito embora, por vezes, o Caminho se
torne o protagonista e at mesmo o antagonista, o
centro da narrativa o sujeito que narra, com suas
impresses, seus motivos, sua vivncia e sua busca
por mudana o centro o eu.
Em que pesem as diferenas entre as narrativas
apresentadas pelos peregrinos, quase todas falam
de um antes e de um depois uma transformao,
que parece ser tambm o elemento que leva
prpria narrativa, ao ato de narrar ou seja, no
basta sentir essa transformao, necessrio
comunic-la ao mundo, incentivar a outros que
empreendam as suas jornadas e construam a sua
prpria narrativa rumo ao encontro com mais
um entre os muitos eus de que se composto
o sujeito andarilho, que gastar a sola de seus
sapatos para ter o que contar.
Desta forma, as narrativas configuram-se como
um registro da experincia de peregrinar, cujo
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objetivo final ser ponte para o outro, em busca
de compartilhamento, em um irmanar-se em um
contrato que visa validar aquilo que foi vivido.
Por isso, no necessariamente o leitor ideal
seria aquele disposto a realizar a peregrinao,
mas sim aquele disposto a acreditar que o
Caminho proporcionou uma transformao da
subjetividade. Compartilhando a narrativa, vive-
se mais uma vez a prpria experincia, incitando-
se uma espcie de conversao. De qualquer
modo, seja oral, escrita ou compartilhada pelas
redes sociais, a narrativa segue, operando como
ponte entre sujeitos que se confraternizam,
fornecendo parte da realidade, criticando-a e
criando outros mundos possveis.
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Recebido em:20 de junho de 2015
Aceito em: 12 de agosto de 2015
Pilgrimage, experience and meaning: A reading of narratives about Santiago de Compostela WayAbstract This work aims to reflect on the communication
possibilities from the pilgrimage experience, recorded
in narratives at the site of Santiago de Compostela
Way Brotherhood and Friends Association. We
intend to know how these experiences are narrated,
discussing the production of sense from the narrative.
What do these narratives say? What is their relevance
for the experience of pilgrimage? Reading these
stories provides clues about the contemporary world
and the experience of the pilgrimage; on the nature
of the narrator, on the plots more often narrated and
their stories; as well as concerning the expected ideal
reader and what we want to communicate by narrating
the pilgrimage experience.
KeywordsNarratives; pilgrimage; Santiago de Compostela,
Media culture.
Peregrinaje , experiencia y sentido : Una lectura de las narraciones sobre el Camino de Santiago de CompostelaResumen Objetivamos reflexionar sobre las posibilidades de
comunicacin de la experiencia de la peregrinacin,
registrada en las narraciones del sitio de los
Hermanos y Amigos de la Santiago de Compostela.
Tambin investigamos cmo se narran estas
experincias e la produccin de significados de la lo
que se narra. Preguntamos: qu dicen estos relatos?
Cul es la importancia de que la experiencia de la
peregrinacin en el mundo contemporneo? Estas
narraciones dan pistas sobre la experiencia de la
peregrinacin , la naturaleza del narrador, las parcelas
ms narrados, el lector ideal esperado y lo que quiere
comunicar a narrar este tipo de experiencia.
Palabras claveNarrativas. Peregrinacin. Santiago de Compostela.
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CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Rocha da Silva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Alexandre Farbiarz, Universidade Federal Fluminense, Brasil Ana Carolina Damboriarena Escosteguy, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Brasil
Ana Carolina Rocha Pessa Temer, Universidade Federal de Gois, Brasil Ana Regina Barros Rego Leal, Universidade Federal do Piau, Brasil Andr Luiz Martins Lemos, Universidade Federal da Bahia, Brasil Andrea Frana, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil Antonio Carlos Hohlfeldt, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Brasil
Arthur Ituassu, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil lvaro Larangeira, Universidade Tuiuti do Paran, Brasil ngela Freire Prysthon, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Csar Geraldo Guimares, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Cludio Novaes Pinto Coelho, Faculdade Csper Lbero, Brasil Daisi Irmgard Vogel, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Daniela Zanetti, Universidade Federal do Esprito Santo, Brasil Denize Correa Araujo, Universidade Tuiuti do Paran, Brasil Eduardo Antonio de Jesus, Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, Brasil
Eduardo Vicente, Universidade de So Paulo, Brasil Elizabeth Moraes Gonalves, Universidade Metodista de So Paulo, Brasil Erick Felinto de Oliveira, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Francisco Elinaldo Teixeira, Universidade Estadual de Campinas, Brasil Francisco Paulo Jamil Almeida Marques, Universidade Federal do Cear, Brasil Gabriela Reinaldo, Universidade Federal do Cear, Brasil Gisela Grangeiro da Silva Castro, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil
Goiamrico Felcio Carneiro Santos, Universidade Federal de Gois, Brasil Gustavo Daudt Fischer, Unisinos, Brasil Herom Vargas, Universidade Municipal de So Caetano do Sul, Brasil
ExpedienteA revista E-Comps a publicao cientfica em formato eletrnico da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao (Comps). Lanada em 2004, tem como principal finalidade difundir a produo acadmica de pesquisadores da rea de Comunicao, inseridos em instituies do Brasil e do exterior.
E-COMPS | www.e-compos.org.br | E-ISSN 1808-2599Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao. Braslia, v.18, n.2, maio/ago. 2015.A identificao das edies, a partir de 2008, passa a ser volume anual com trs nmeros.
Indexada por Latindex | www.latindex.unam.mx
COMISSO EDITORIALCristiane Freitas Gutfreind Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Brasil
Irene Machado Universidade de So Paulo, Brasil
Jorge Cardoso Filho Universidade Federal do Reconcavo da Bahia, Brasil
Universidade Federal da Bahia, Brasil
EQUIPE TCNICAASSISTENTE EDITORIAL | Mrcio Zanetti NegriniREVISO DE TExTOS | Press RevisoEDITORAO ELETRNICA | Roka Estdio CONTATO | [email protected]
COMPS | www.compos.org.brAssociao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao
PresidenteEdson Fernando Dalmonte Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contempornea - UFBA [email protected]
Vice-presidenteCristiane Freitas Gutfreind Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social PUC-RS [email protected]
Secretrio-GeralRogrio FerrarazPrograma de Ps-Graduao em Comunicao Universidade Anhembi Morumbi [email protected]
Itania Maria Mota Gomes, Universidade Federal da Bahia, Brasil Janice Caiafa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Jiani Adriana Bonin, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Jos Afonso da Silva Junior, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Jos Luiz Aidar Prado, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Brasil Kati Caetano, Universidade Tuiuti do Paran, Brasil Lilian Cristina Monteiro Frana, Universidade Federal de Sergipe, Brasil Liziane Soares Guazina, Universidade de Braslia, Brasil Luza Mnica Assis da Silva, Universidade de Caxias do Sul, Brasil Luciana Miranda Costa, Universidade Federal do Par, Brasil Malena Segura Contrera, Universidade Paulista, Brasil Marcel Vieira Barreto Silva, Universidade Federal da Paraba, Brasil Maria Ogcia Drigo, Universidade de Sorocaba, Brasil Maria Ataide Malcher, Universidade Federal do Par, Brasil Maria Clotilde Perez Rodrigues, Universidade de So Paulo, Brasil Maria das Graas Pinto Coelho, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
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