perec, em desenvolvimento
TRANSCRIPT
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 1/16
O efeito de real em Éspéces d’espaces: da descrição e seus absurdos.
Henrique de Oliveira Lee1
1. Introdução
A pergunta teórica que move este trabalho surgiu de uma breve mas curiosa
menção que se encontra na contracapa de uma edição inglesa intitulada: Species of Space
and other pieces. Tal edição é a primeira aparição do trabalho de George Perec 2 em
língua inglesa, nela, John Sturrock, tradutor e crítico inglês, apresenta o livro como: “(..)
essa generosa seleção da obra não-ficcional de Perec (…)”3. O que há de curioso nessa
menção é o fato de que ela afirma - ou se preferirmos, sugere - um estatuto não-ficcional
para Espèces d’espaces de George Perec, bem como para outros de seus trabalhos. O foco
de interesse incide aí não tanto na questão da exatidão ou a coerência dos critérios
classificatórios que John Sturrock utiliza ao definir Espèces como uma não-ficção, mas
muito mais na surpresa que esta forma de classificar proporciona. E através desta
surpresa, a constatação das possibilidades de problematização que esta obra oferece do
próprio estatuto do ficcional.
O livro Espèces d’espaces, enceta questionamentos sobre os estratos que
sustentam a oposição binária entre discursos ficcionais e referenciais, e entre narração e
descrição. Assim como boa parcela da literatura contemporânea, o livro de Perec
encontra-se num certo regime de inclassificabilidade quanto às questões de gênero.
1 Doutorando em Literatura Comparada, UFMG, bolsista FAPEMIG.2 Georges Perec nasceu no ano de 1936, em Paris, e morreu em Ivry, 46 anos depois. Viveu em Paris namaior parte de sua vida. Seu pai lutou na Segunda Grande Guerra e foi morto em 1940. Sua mãe morreu emAuschwitz e Perec, órfão aos 6 anos, foi criado por parentes próximos.3 Contracapa.
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 2/16
Certamente, o que há de inclassificável nesses textos da literatura contemporânea não é
nenhum caráter intrínseco, ou algo que possa ser pensado fora da relação com os modos
de classificação através da qual uma certa tradição de teoria literária demarcou e
classificou o espaço artístico da literatura.
Em outro livro, Pensar Classificar , Perec argumenta que sua obra literária pode
ser dividida da seguinte forma:
Os livros que escrevi se associam com quatro campos diferentes, quatro modos de
interrogação formulados, e no fim das contas, a mesma pergunta. A primeira das
interrogações se pode qualificar como “sociológica”: como observar o cotidiano; ela deu
origem a textos como As coisas, Espécies de Espaços; a segunda é de ordem
autobiográfica: W ou a memória das coisas, A boutique obscura, Eu me lembro, Lugares
onde já dormi, etcétera; a terceira, lúdica, remete a meu gosto pelas restrições, pelas
proezas, pela “gama”, por todos os trabalhos pelos os quais as investigações do OuLiPo
me deram a idéia e os meios: palíndromos, lipogramas, pangramas, anagramas,
isogramas, acrósticos, palavras cruzadas, etcétera; a quarta, por último, concerne ànovela, ao gosto por histórias e por peripécias, ao desejo de escrever livros que se
devorem de bruços na cama; A vida modo de usar é um exemplo típico dele.
Esta divisão é algo arbitrária e poderia ser muito mais precisa: quase nenhum de meus
livros escapa de todo a certa marca autobiográfica (por exemplo, somente inserir ilusões e
acontecimentos cotidianos no capítulo que estou escrevendo); quase nenhum, de outra
forma, deixa de recorrer às restrições estruturais “oulipiana”. 4
Perec, ao comentar sua própria obra, relaciona o Espéces de espaces com um tipo
de indagação que ele denomina sociológica, forneceria justificativas para que se
4 PEREC. p. 11
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 3/16
classifique essa obra como não-ficcional, assim como proposto por John Sturrock, tal
modo de classificar parece confirmar a hipótese de Wolfgang Iser 5, segundo a qual o
ficcional seria definido pelo saber tácito como aquilo cujo atributo de realidade se
encontra ausente. Ainda assim, a afirmação de Sturrock nos leva à seguinte pergunta:
como a descrição está relacionada aos atributos de realidade?
Uma parte considerável das primeiras correntes teórico-críticas, entre elas o
formalismo russo, dedicaram-se à tentativa de delimitar os aspectos formais da
literaridade do literário6. Essas tentativas de definir o objeto literário, muitas vezes
baseando-se em aspectos imanentes ao texto (e transcendentes no que diz respeito aoscontextos históricos culturais), nos fornecem um bom exemplo de como a descrição teria,
por certas vezes, sido tomada como o avesso daquilo que pertenceria ao campo literário.
Iuri Lotman, teórico comprometido com a leitura estruturalista do formalismo
russo, em sua formulação sobre a estrutura do texto artístico, coloca grande ênfase na
função modelizante do espaço e da representação espacial no texto artístico. Pois o
espaço é, dentro deste modelo teórico, uma condição de possibilidade da ocorrência de
um acontecimento no texto literário.
O acontecimento no texto é o deslocamento da personagem através da fronteira do campo
semântico. (…) Mas na medida em que, ao lado de uma disposição semântica geral do
texto, há lugar também para disposições locais, de que cada um tem a sua fronteira
conceptual, o acontecimento pode ser realizado como uma hierarquia de acontecimentos
de planos mais particulares, como uma cadeia de acontecimentos, isto é, como uma
trama.7 5 Ver ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. p. 96 LIMA. A teoria da literatura em suas fontes vol.I p. 197 LOTMAN. A estrutura do texto artístico p. 379
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 4/16
No esquema proposto por Lotman, o acontecimento e, por conseqüência, a trama,
são os dois operadores que caracterizam o texto literário. Faz-se necessário um
movimento de transgressão das fronteiras dos campos semânticos dispostos no texto
literário para ocasionar a emergência do acontecimento, e as cadeias de acontecimentos
constituem uma trama. Mas para compreender o funcionamento do texto com trama,
Lotman recorre primeiramente à compreensão do texto sem trama. Os modelos a que
Lotman recorre para exemplificar o texto sem trama são: o mapa, o calendário e a lista
telefônica, pois tratar-se-iam de textos cujo espaço de distribuição dos objetos é regido pela funcionalidade classificatória, portanto, sem acontecimento. “Os textos sem trama
têm um caráter nitidamente classificador, eles afirmam o mundo e sua disposição”.8
Nota-se que há uma associação dos textos sem trama com textos de vocação
descritiva. Uma descrição “pura” seria aquela em que todos os elementos descritos
encontrariam-se em um mesmo nível de privilégio do ponto de vista da representação,
portanto não há perspectiva, não há diferenciação entre figura e fundo, o que excluiria
necessariamente a idéia de trama, já que esta se dá a partir da hierarquização dos
acontecimentos . Além disso, subjaz a idéia de que essas afirmações de estado de mundo,
essas descrições “puras” não possuem “intencionalidade”, no sentido de que não há o
posicionamento de uma perspectiva. No entanto, esta definição logo se revela
inadequada, como se a aleatoriedade não pudesse ser pensada também enquanto uma perspectiva intencionada. Todavia, o que seria importante reter disso por ora é o esforço
empreendido por Lotman para definir estes elementos estruturais, o “acontecimento” e a
“trama”, que caracterizariam um texto literário.
8 LOTMAN. p. 384
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 5/16
Vale mencionar, para uma compreensão mais clara da forma como esses
elementos estruturais são compostos, os desdobramentos do exemplo do mapa. Um mapa
é um texto sem trama, mas se nele for acrescido uma seta ou uma marca, poderíamos
falar de um acontecimento, e, talvez, dos rudimentos de uma trama. Pois já haveria aí
estratificação de campos que fazem emergir os elementos mínimos para o
estabelecimento de uma trama. Para Lotman, “o texto com trama constrói-se na base do
texto sem trama enquanto negação deste”9.
Dessa forma, se utilizarmos os elementos estruturais propostos por Lotman como
balizas de leitura para pensar a “ficcionalidade” ou a “literarialidade” em Éspèces deespaces, os resultados serão no mínimo surpreendentes. O que parece ser apenas a
descrição da aleatoriedade absurda dos espaços, sem acontecimento e sem trama, sofre
uma sutil transformação ao longo do livro: pois acúmulo de descrições formam séries
heterogêneas, de modo que própria heterogeneidade passa a ser um acontecimento. Ou
seja, uma “trama” se produz em Espèces d’espaces através da saturação e do “fracasso”
da tentativa de empreender uma descrição exaustiva que apenas afirme o mundo e sua
disposição. Se “a trama é um elemento revolucionário relativamente à imagem do
mundo”10, então podemos concluir que ela se constrói de maneira paradoxal em Espèces
d’espaces pois é na tentativa de ser o mais “fiel” possível a uma certa “imagem de
mundo”, através de sua descrição mesma, que Perec acaba por introduzir nela um
“elemento revolucionário”.Os inumeráveis exercícios de descrição conduzem sempre a uma espécie de
malogro, pois eles resultam quase sempre impossíveis de serem levados efetivamente a
9 LOTMAN p. 38510 LOTMAN p. 386
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 6/16
cabo. Entretanto, esses exercícios precipitam a emergência da problematização da
disposição da fronteiras fixas dos espaços e objetos a serem descritos. As séries
descritivas levam ao questionamento da sensação de obviedade e evidência que cerca a
nossa experiência com o espaço, e com isso sublinha-se o caráter imaginário dessa
experiência.
Simulacre d’espace, simple prétexte à nomenclature: mais il n’est pas nécessaire
de fermer les yeux pour que cet espace suscité par les mots, ce seul espace de
dictionnaire, ce seul espace de papier, s’anime, se peuple, se remplisse.11
Nossa hipótese é que os procedimentos de escrita presentes em Espèces d’espaces
subvertem os estratos que sustentam a oposição binária entre discursos ficcionais e
referenciais, e entre narração e descrição. Pois ao empreender o que parece ser simples
descrição e nomeação dos espaços, as noções mais básicas e óbvias começam a ser
colocada em xeque. O objeto da descrição, por momentos é o próprio espaço do texto, o
que força a uma revisão da noção de descrição, pois nestes momentos não há objeto
referencial ou extraliterário a ser descrito, mas descreve-se o espaço mesmo onde a
descrição está acontecendo. Perec empreende tentativas de exaurir as formas de utilização
do espaço da Página. Muitas vezes de modo lúdico, outras atribuindo funções simples à
escrita, porém pouco habituais. Como no capítulo dedicado ao espaço da página:
de gauche d à droite
e
11 PEREC p. 27
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 7/16
h
a
u
t
e
n
b
a
s 12
Nesse mesmo capítulo, Perec faz a primeira referência direta a Borges citando o Aleph.
L’aleph, ce lieu borgésien ou lê monde entier est simultanément visibel, est-il autre chose
qu’un alphabet?13
O alfabeto é um conjunto limitado que contem em si as possibilidades de um
universo ilimitado, o Aleph. Assim também, pensarímos com Perec, do espaço limitado
das páginas podem emergir infinitas possibilidades de mundo.
Via de regra os procedimentos descritivos aparecem associados a discursos
referenciais e miméticos. Mas é interessante notar que o tipo de mimese realizada por
12 PEREC. Espèces d’espaces . p. 2213 PEREC. Espèces d’espaces . p. 26
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 8/16
Perec é distinta daquela cujo sentido é comumente atribuído a essa noção. Vemos aí algo
que poderíamos chamar de uma “mimese prospectiva”, ao invés de uma mímese
retrospectiva. Ela é prospectiva no sentido em que não há primazia ontológica do objeto,
do referencial a ser descrito, sobre a descrição, mas a descrição é simultânea ao objeto, ao
referente, senão que é, antes, através da descrição que o referente passa a existir. A
descrição performativa presente em Espèces d’espaces lembra a injunção apontada por
Foucault em “O pensamento exterior” como fundante do discurso literário: “eu falo” que
pode ser desdobrado em “eu falo que falo”. De modo análogo, a mimese prospectiva de
Perec poderia ser resumida no enunciado “eu estou descrevendo uma descrição”.
2- Descrição e ilusão referencial
Parece-nos, após as considerações desenvolvidas sobre o estatuto da descrição em
Espèces d’espaces, que Sturrock, ao classificar o livro de Perec dessa maneira, foi vítima
da armadilha daquilo que Barthes chamou a “ilusão referencial”.
Vamos procurar retratar aqui as relações entre os textos descritivos e a noção deilusão referencial, explicitada por Barthes em vários momentos de seu trabalho de análise
estrutural da narrativa, mas principalmente em um artigo chamado “O efeito de real”.
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 9/16
A análise estrutural da narrativa tem por objetivo descobrir a função e o papel dos
diversos elementos do tecido narrativo. Dessa forma, Barthes procurou isolar alguns
elementos, de modo geral aqueles que forneciam as grandes articulações narrativas, por
exemplo, que situavam pontos de mudança, os shifters, que apontavam para uma escolha
narrativa que alterava irreversivelmente o seu destino. Por vezes, ele isola os elementos
estruturantes da temporalidade da narrativa.
Na tentativa de sistematizar as possibilidades de função estrutural desses
elementos do tecido narrativo Barthes se deparou com alguns campos de exclusão,
pormenores inúteis e supérfluos (com relação à estrutura). Esses pormenores inúteis são,invariavelmente, trechos de descrição, Barthes refere-se a eles como “luxo da narração”
que não fazem avançar em nada a informação narrativa. Apesar do caráter inútil, Barthes
reconhece nesses pormenores um fator inquietante e enigmático:
(...) assim fica sublinhado o caráter enigmático de qualquer descrição, a respeito
da qual é preciso dizer uma palavra. A estrutura geral da narrativa, aquela, pelo
menos, que até agora tem sido analisada aqui e ali, aparece como essencialmente
preditiva; esquematizando ao extremo, e sem levar em conta os numerosos
desvios, atrasos, reviravoltas e decepções que a narrativa impões
institucionalmente a esse esquema. (...) Bem diferente é a descrição: não tem
qualquer marca preditiva; “analógica”, sua estrutura é puramente somatória e não
contem esse trajeto de escolhas e alternativas que dá a narração um desenho de
vasto dispatching , dotado de uma temporalidade referencial (e não mais apenas
discursivas). (…) A descrição aparece assim como uma espécie de próprio das
linguagens ditas superiores, na medida, aparentemente paradoxal, em que ela não
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 10/16
se justifica por nenhuma finalidade de ação e comunicação. A singularidade da
descrição (ou do pormenor inútil) no tecido narrativo, a sua solidão, designa uma
questão de maior importância para a análise estrutural das narrativas. É a
seguinte questão: tudo, na narrativa, seria significante, e senão, se subsistem no
sintagma narrativo alguns intervalos insignificantes, qual é, definitivamente, se
assim se pode dizer a sua significância?14
A descrição figura para Barthes como um tipo de estrutura paratáxica, ou seja, na
qual não há hierarquia de elementos, apenas uma somatória. Enquanto para Lotman a
hierarquia entre os elementos presentes num texto é de vital importância para
caracterização da trama, Barthes vê neste tipo de linguagem não hierarquizada, na qual a
descrição está contida, uma “linguagem superior”.
Segundo Barthes, a descrição nem sempre foi subordinada ao realismo tal como
na literatura moderna. Uma certa tradição da descrição sobreviveu desde a Idade Média
na qual “não havia nenhum acanhamento em colocar leões e oliveiras numa região
nórdica; a verossimilhança aqui não é referencial, mas abertamente discursiva: são as
regras genéricas do discurso que fazem a lei”.15 Perec parece avançar em direção a essa
mesma constatação em certos momentos de Espèces:
Nous vivons dans l’espace, e dans ces espaces, dans ces villes, dans ces
campagnes, dans ces couloir, dans ces jardins. Cela nous semble évident. Peut-
être cela devrait-il être effectivement évident Mais cela n’est pas évident, cela
ne va pas de soi. C’est réel, évidemment, et par conséquence, c’est
14 BARTHES. O efeito de real. p. 183-18415 BARTHES. O efeito de real. p. 185
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 11/16
vraisemblablement rationnel. On peut toucher. On peut même se laisser aller à
rêver. Rien, par exemple, ne nous empêche de concevoir des choses qui ne seront
ni des villes ni des campagnes (ni de banlieues), ou bien des couloirs de
métropolitain qui seraient en même temps des jardin. Rien ne nous interdit non
plus d’imaginer un métro en pleine campagne (…) 16
A evidência do espaço é contestada. Apesar do caráter real e verossimilhante das
descrições dos espaços que habitamos, as leis do discurso não impedem que imaginemos
outras disposições espaciais. Portanto, vemos aqui um sutil deslocamento da preocupação
com a disposição dos objetos e do espaço em direção a um questionamento dos limites da
linguagem.
E curiosamente, assim como Barthes nota o “efeito de real” através de certos
elementos sem função do ponto de vista da estrutura narrativa, é através de um
experimento da tentativa de descrição de um espaço inútil que Perec alcança uma
conclusão chave para compreensão de todo o experimento com a linguagem que está
sendo empreendido em Espèces d’espaces.
Il m’a été impossible, en dépit des mes efforts, de suivre cette pensée, cette
image, jusqu’au bout. Le langage lui-même, me semble-t-il, s’est avéré
inapte à décrire ce rien, ce vide, comme si l’on pouvait parler que de ce qui
est plein, utile et fonctionnel.17
16 PEREC. Espèces d’espaces . p. 14 (grifo nosso)17 PEREC. Espèces d’espaces . p. 66
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 12/16
Apesar da existência empírica de tal espaço inútil ser perfeitamente possível e até
verossimilhante, do ponto de vista discursivo, o texto de Perec aponta para a dificuldade
em imaginar e descrever o nada, o inútil, aquilo que não tem função. Para descrever o
não-funcional esbarra-se em algumas limitações da linguagem que parece constituída, ao
ver de Perec, de modo a poder falar do pleno, do útil, e do funcional.
Ao acompanharmos o deslocamento efetuado em Espéces, dos objetos a serem
descritos, para as leis do discurso que tornam possíveis as descrições, e cotejamos
juntamente com as questões ligadas à funcionalidade da linguagem vislumbramos o que
Barthes chamou de “ilusão referencial” e como ela se liga às linguagens descritivas:através da ilusão mesma de que uma notação é inútil ou insignificante do ponto de vista
da estrutura da narrativa. Ao tentar empreender uma descrição pura, como nos vários
exercícios de descrição citados por Perec, somos levados a acreditar que é possível que
um objeto seja denotado por uma única palavra, quando na verdade o signo puro não
existe, os itens do apartamento que Perec relaciona não existem em si mesmos, mas são
situados num sintagma ao mesmo tempo referencial e sintático.
No momento mesmo em que se julga denotarem tais detalhes diretamente do real,
nada mais se faz, de maneira escamoteada, do que significá-los.
É a categoria do real (e não os seus conteúdos contingentes) que é significada;
noutras palavras é a própria carência de significado em proveito só do referente
torna-se um significante mesmo do realismo: produz-se um efeito de real,
fundamento dessa verossimilhança inconfessa que forma a estética de todas as
obras correntes da modernidade.18
18 BARTHES. O efeito de real. p. 190
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 13/16
A aparente ausência de sentido e função do objeto descrito no conjunto do tecido
narrativo, como se ele fosse apenas citado para referir-se a uma certa concretude, é o
truque retórico que engendra o “efeito de real”.
No romance A vida modo de usar , realiza-se um inventário exaustivo de todos os
habitantes do prédio. “Um inventário que – pelo excesso de ordenação e detalhamento –
acaba também por perder sua própria eficácia enquanto procedimento taxonômico diante
da proliferação excessiva dos objetos e detalhes que se acumulam enquanto “materiais da
vida” dos personagens”19
. Já no livro Pensar/Classificar , Perec dedica-se a umateorização não-convencional de classificação mostrando sua fixação por listas, glossários,
índices e várias modalidades de ordenação do mundo. Em suas palavras:
Lamentavelmente não funciona, nunca funcionou, nunca funcionará. O que não impedirá
que sigamos durante muito tempo classificando os animais pelo seu número ímpar de
dedos ou por seus chifres ocos.20
Dessa forma, os exercícios descritivos e classificatórios de Perec, marcados
sempre pelo malogro, abrem questionamentos sobre o estatuto da ficcionalidade e da
representação, assim como parte da literatura da arte contemporânea dedicada à
serialização: os inventários, os conjuntos, as séries fragmentárias, as colagens. Talvez
todas essas expressões provoquem uma contestação do valor referencial, introduzindo a
dimensão necessariamente ficcional de qualquer discurso, em oposição ao saber tático
que considera, de maneira inversa, o ficcional como um sub-tipo de discursivo.
19 MACIEL. p. 1520 PEREC. Pensar/Classificar. p. 111
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 14/16
O ficcional aí não comparece como “contrário de realidade”, mas no seu aspecto
de invenção, artefato, algo fabricado. Estes questionamentos, abertos pela literatura de
Perec, tomam contornos mais nítidos quando os situamos em relação a uma tradição de
pensamento que apostou na vocação descritiva da ciência, na possibilidade de criar um
texto “neutro”, que apenas afirme uma disposição de mundo, como ideal científico. Esta
noção de descrição participa de uma “epistemologia da recognição” e da descoberta, ao
contrário, os procedimentos de Perec apontam para uma noção de descrição que
participaria de uma “epistemologia da invenção”.
Talvez o que tenha escapado a John Sturrock seja esta sutileza ficcional de Espéces d’espaces, sutil como uma pequena seta em um mapa. É no procedimento de
levar às últimas conseqüências o imperativo descritivo de uma “epistemologia da
recognição”, que Perec demonstra a inescapável relação da descrição com o ficcional.
Absurdo também explorado por Borges em um texto que poderia ter valor de epígrafe
para este artigo, mas que preferimos deixar como a última palavra:
... Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal perfeição que o mapa duma só
Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma Província. Com o
tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos
levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto por
ponto com ele. Menos Apegadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes
entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às
inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste subsistem despedaçadas
Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos. Em todo o País não resta outra
relíquia das disciplinas geográficas.21
21 BORGES p. 311
5/11/2018 Perec, em desenvolvimento - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 15/16
3. Bibliografia
BARTHES, Roland. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
BELLOS, David. Georges Perec. A life in words. The Harvill Press. London 1993.BORGES, Jorge Luis. Obras Completas I . Editora Globo, 1999.
_________________.Obras Completas II . Editora Globo, 1999.
FOUCAULT, Michel. O pensamento do exterior . São Paulo: Princípio, 1990.
LOTMAN, Iuri. A composição da obra artística verbal
MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas. Rio de Janeiro. Lamparina Editora, 2004.
PEREC, Georges. Éspèces d’espaces. Paris: Galilée, 2000.
______________. La Disparition. Paris, Denoel,1969.
______________. A vida modo de usar. Editorial Presença, 1989.
______________. W ou a Memória das Coisas. Companhia das Letras, 1995.
______________. As coisas. São Paulo. Nova Crítica, 1969.
______________. Um homem que dorme. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1988. ______________. 53 Jours. Paris. Gallimard, 1989.
______________. Pensar/Classificar. Barcelona: Gedisa, 1986.
______________. A coleção particular. Rio de Janeiro, Cosac Naify, 2005.