percursos dramatúrgicos de jovens à margem · história oral nas pesquisas sobre violência e...

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Percursos dramatúrgicos de jovens à margem FERNANDA ROBERTA LEMOS SILVA 1 Resumo Este trabalho objetiva apresentar a “transcriação”, na perspectiva de Meihy (2007), da história oral de vida de adolescentes, em cumprimento de medida socioeducativa de Liberdade Assistida, atendidos na instituição executora Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência (SETA), na cidade de Campinas/SP. As histórias de vida coletadas através de entrevistas com os adolescentes, foram guiadas pela pergunta norteadora: “Qual a história que marcou a sua vida?”. Através da narrativa coletada com os entrevistados foi possível revelar um universo peculiar dos adolescentes imersos nos enfrentamentos da transição para a juventude, nos dilemas e conflitos familiares e, sobretudo, nos seus sonhos e nos percalços da reconstrução do seu futuro em liberdade. Este trabalho também identifica o processo que o jovem conduz para a elaboração de suas histórias e, posteriormente, a transformação e a “transcriação” das mesmas, as quais nomeio de “percursos dramatúrgicos”. Por fim, esse trabalho compartilha os “percursos dramatúrgicos” oriundos das histórias narradas por esses adolescentes adotando o conceito “transcriação” como horizonte metodológico. Palavras chave: Adolescentes; Liberdade Assistida; Transcriação INTRODUÇÃO Este trabalho visa compartilhar os resultados alcançados utilizando a “transcriação”, procedimento metodológico que compõe História Oral de Vida, na realização de entrevistas 2 com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Liberdade Assistida na Instituição Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência (SETA) 3 e que vivem às margens da cidade de Campinas/SP e imersos em processos de 1 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Doutoranda em Educação, Conselho Nacional de desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 A entrevista, neste trabalho, é compreendida na perspectiva de (CALDAS, 2009:63) “a entrevista envolve (...) uma relação mais íntima e sutil (...) do que pode parecer à primeira vista (1917:16), sendo mais que simples técnica, pois envolve “comunicação entre duas pessoas (...) é um método de cordialidade, um método de fazer perguntas com o único objetivo compreender” (1976:18 -74) o que bachelardiamente Meihy chama de aberto ao aconchego, à confidência e ao respeito”. 3 A Instituição Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência (SETA), executora da medida socioeducativa de Liberdade Assistida nas regiões Sudoeste, Norte e Noroeste de Campinas/SP, é uma associação com fins não econômicos, de natureza assistencial, educacional e cultural, que atua há mais de 38 anos na região Leste de Campinas oferecendo serviços, atividades educativas e treinamentos para a comunidade.

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Page 1: Percursos dramatúrgicos de jovens à margem · História Oral nas pesquisas sobre violência e juventude4. ... como tentativas de resposta ao aumento da delinquência juvenil,

Percursos dramatúrgicos de jovens à margem

FERNANDA ROBERTA LEMOS SILVA1

Resumo

Este trabalho objetiva apresentar a “transcriação”, na perspectiva de Meihy (2007), da

história oral de vida de adolescentes, em cumprimento de medida socioeducativa de

Liberdade Assistida, atendidos na instituição executora Sociedade Educativa de

Trabalho e Assistência (SETA), na cidade de Campinas/SP. As histórias de vida

coletadas através de entrevistas com os adolescentes, foram guiadas pela pergunta

norteadora: “Qual a história que marcou a sua vida?”. Através da narrativa coletada com

os entrevistados foi possível revelar um universo peculiar dos adolescentes imersos nos

enfrentamentos da transição para a juventude, nos dilemas e conflitos familiares e,

sobretudo, nos seus sonhos e nos percalços da reconstrução do seu futuro em liberdade.

Este trabalho também identifica o processo que o jovem conduz para a elaboração de

suas histórias e, posteriormente, a transformação e a “transcriação” das mesmas, as

quais nomeio de “percursos dramatúrgicos”. Por fim, esse trabalho compartilha os

“percursos dramatúrgicos” oriundos das histórias narradas por esses adolescentes

adotando o conceito “transcriação” como horizonte metodológico.

Palavras chave: Adolescentes; Liberdade Assistida; Transcriação

INTRODUÇÃO

Este trabalho visa compartilhar os resultados alcançados utilizando a

“transcriação”, procedimento metodológico que compõe História Oral de Vida, na

realização de entrevistas 2 com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa

de Liberdade Assistida na Instituição Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência

(SETA)3 e que vivem às margens da cidade de Campinas/SP e imersos em processos de

1 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Doutoranda em Educação, Conselho Nacional de

desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

2 A entrevista, neste trabalho, é compreendida na perspectiva de (CALDAS, 2009:63) “a entrevista

envolve (...) uma relação mais íntima e sutil (...) do que pode parecer à primeira vista (1917:16), sendo

mais que simples técnica, pois envolve “comunicação entre duas pessoas (...) é um método de

cordialidade, um método de fazer perguntas com o único objetivo compreender” (1976:18-74) o que

bachelardiamente Meihy chama de aberto ao aconchego, à confidência e ao respeito”.

3 A Instituição Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência (SETA), executora da medida

socioeducativa de Liberdade Assistida nas regiões Sudoeste, Norte e Noroeste de Campinas/SP, é uma

associação com fins não econômicos, de natureza assistencial, educacional e cultural, que atua há mais de

38 anos na região Leste de Campinas oferecendo serviços, atividades educativas e treinamentos para a

comunidade.

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exclusão e acesso à oportunidade de estudo e trabalho. Neste sentido, é possível afirmar

que majoritariamente os adolescentes e jovens inseridos nesse contexto estão expostos a

uma “situação de risco” e de vulnerabilidade social, aqui compreendida de acordo com a

Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Vivenciar situações de vulnerabilidade

social inclui:

(...) perda ou fragilidade de vínculos afetividade, pertencimento e

sociabilidade, ciclos da vida, identidades estigmatizadas em termos étnicos,

cultural e sexual (...) exclusão pela pobreza e, ou, no acesso as demais

políticas públicas (...). Já as situações de risco pessoal e social se diferem da

vulnerabilidade social. São exemplos desta última abandono, maus tratos

físicos ou psíquicos, abuso sexual uso de substâncias psicoativas, situação de

rua, situação de trabalho infantil, entre outras. (PNAS, 2004:33-34).

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Art.118, a

Liberdade Assistida é a medida mais adequada para acompanhar, auxiliar e orientar o

adolescente em liberdade, tendo a duração de no mínimo seis meses e podendo ser

prorrogada ou substituída por outra medida. A Liberdade Assistida possibilita ao

adolescente cumprir a medida socioeducativa em meio aberto e, desta maneira, reforçar

os laços familiares e comunitários. Os adolescentes e jovens em cumprimento de

medida socioeducativa, de acordo com Agrário (2016), geralmente apresentam as

seguintes características:

(...) têm direitos violados; possuem baixa escolaridade e defasagem

idade/série, trabalho infantil nas piores formas como aliciamento para o

tráfico de drogas; ou envolvidos em atos de violência. Freqüentemente,

adolescentes que vivenciam a fragilidade de vínculos familiares e, ou,

comunitários são mais vulneráveis à pressão para se integrarem a gangues

ou a grupos ligados ao tráfico de drogas. Esse cenário provoca a imposição

de uma série de estigmas sociais a esses adolescentes, impedindo que sejam

compreendidos a partir de suas peculiaridades. (AGRÁRIO, 2016,:17).

Foram realizadas entrevistas pautadas na história oral de vida de 04 jovens, 02

meninas e 02 meninos, com faixa etária de 15 a 17 anos. A partir de um roteiro de

perguntas semi estruturado, foi proposto ao adolescente que compartilhasse uma

narrativa referente à sua história de vida e/ou histórias que marcaram a sua trajetória,

tendo como pergunta norteadora: “Qual a história que marcou a sua vida?”

É legal, né, porque você começa a pensar em um monte de coisa que você

fez... Porque, tipo a gente não fica pensando nisso o tempo todo. Você não

pensa: “ah minha história é essa”. Só que aí quando alguém te

pergunta:“qual é a sua história”, você pensa: Qual é a minha história? Você

pensa: “nossa qual é a minha história”? O que eu posso falar para essa

pessoa? Do que é a minha história em si? E aí você começa a pensar na sua

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vida em si, nas coisas que você pode mudar, nas coisas que anda fazendo,

que você fez, nas coisas que mudaram, no que ainda vai mudar. Legal fico

pensando: “O que é a minha história?”. (Percurso dramatúrgico IV – O

menino e aquela cena).

Entrevistá-los nesta pesquisa teve como objetivo identificar o processo que o

jovem conduz à elaboração de suas histórias e, posteriormente, à transformação e

transcriação das mesmas, procedimento que nomeio de “percursos dramatúrgicos”. No

sentido figurado, a palavra “percurso” significa atividades e experiências de uma pessoa

durante a vida ou, também, trajeto, roteiro, caminho. Nessa direção aponto o percurso

do jovem entrevistado na elaboração da sua história oral de vida. A junção com o

conceito intitulado “dramatúrgico” envolve uma abordagem mais direta das teorias da

arte. Compreende-se no campo das artes da cena, de acordo com Guinsburg (2009), que

a figura da dramaturgia surgiu na Alemanha no século XVIII, sendo definida como o

ofício de elaborar um texto e transpô-lo para o palco. Considera-se dramatiker aquele

que escreve o texto teatral. Originalmente a palavra drama vem do grego drâma, que

significa “ação” e era usada com relação à arte teatral. Um drama é um texto cuja

história é caracterizada por um desenrolar de acontecimentos semelhantes aos da vida

real.

O interesse pela “transcriação” das entrevistas realizadas com os adolescentes

também se deu pelas provocações/inspirações procedentes da disciplina Seminário I -

História Oral nas pesquisas sobre violência e juventude4. Ao me debruçar sobre as

diferentes poéticas de se realizar uma entrevista, na perspectiva da História Oral,

encontrei nesse processo algumas referências que foram decisivas para a organização da

produção oral que coletei com os adolescentes.

Eduardo Coutinho, através dos seus documentários Santo Forte (1999),

Edifício Máster (2002), O Fim e o Princípio (2005) e Canções (2011), mostrou-me os

caminhos percorridos para a realização das entrevistas, desde a escolha das colônias e

da pergunta de corte que perpassa os documentários até a maneira em que interfere no

diálogo com os entrevistados, além de sugerir (para os entrevistadores), o

“esvaziamento” de pré-conceitos, das percepções estereotipadas e de julgamentos e,

ainda, a sutileza da concepção de “fazer um filme com as pessoas e não sobre as

4 Disciplina ministrada no 2º semestre de 2015, no Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pela Profª Dra. Áurea Guimarães e Profª Dra. Fabíola

Holanda e Profª Dra. Susy Cristina Rodrigues.

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pessoas”. Sobretudo, considero a poética existente nos silêncios. Para Almeida, Amorim

e Barbosa (2007), existem várias formas de silêncio: o silêncio carregado de

significados, o silêncio como intervalo e como estratégia para chamar a atenção do

leitor. Silêncio não é ausência da “palavra”, de linguagem, de sentido, mas ele é a

própria linguagem que possibilita os sentidos.

Inicialmente busquei construir um universo que permitisse que os adolescentes

entrevistados escolhessem o ponto de vista que contariam a sua história. A possibilidade

de abrir para o jovem a escolha deste recorte, e a maneira como ele narra e compartilha

o que viveu, foi o que me impulsionou a utilizar a “transcriação” como horizonte

metodológico.

O conceito de transcriação é uma mutação “ação transformada, ação

recriada” de uma coisa em outra, de algo que, sendo de um estado de

natureza se torna outro. A beleza da palavra composta por “trans” e

“criação” sugere uma sabedoria que ativa o íntimo do ato de transcriar.

Fala-se de geração, mas não de cópia ou reprodução. Nem de paródia ou

imitação (MEIHY, 2008:147).

A passagem do oral para o grafado é um elemento que compõe o início do

processo da “transcriação”. Evangelista (2010), ao descrever o conceito de

“transcriação” no artigo intitulado: A transcriação em história oral e a insuficiência da

entrevista, destaca que:

A idéia de transcriação sugerida pelo fazer da história oral tem sua fonte de

inspiração em discussões que giram em torno da tradução. A passagem de

uma língua para outra seria equivalente à passagem do oral para o escrito,

de maneira que a atitude de fazê-lo literalmente em nada teria relação com o

respeito ao sentido conferido à mensagem que deseja disseminar. Pelo

contrário, a leitura de um texto simplesmente transcrito não permite a

ebulição de sentimentos que um texto literário, por exemplo, traz à tona.

(EVANGELISTA, 2010:176).

De acordo com Fefferman (2006), inúmeros trabalhos sobre a juventude tem

surgido no século XX, como tentativas de resposta ao aumento da delinquência juvenil,

sobretudo nos Estados Unidos. Ao fundamentar a precariedade dos processos de

identificação dos jovens no mundo contemporâneo, a autora cita uma pesquisa realizada

em Moscou, na qual foram aplicadas entrevistas com adolescentes na faixa etária de 14

anos. Os dados coletados nesse trabalho revelaram que a maioria dos meninos

entrevistados responderam que a sua “profissão dos sonhos” era ser “mafioso”, e as

meninas “prostitutas”. A mesma autora também apresenta a idéia, que alguns estudiosos

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sustentam, de que jovens infratores buscam o reconhecimento social e a “construção de

identidade”.

Neste sentido destaco a pesquisa realizada pelo educador francês Philippe

Meirieu (1993), que também adotou como metodologia em seu trabalho a utilização de

entrevistas com crianças de 6 a 12 anos, em situação de vulnerabilidade social na

periferia de Lion, na França. O autor obteve como resultado que a principal

característica das crianças entrevistadas e que se sentem fracassadas socialmente, “é a

absoluta incapacidade de pensar uma história, de pensar a própria história” (MEIRIEU,

1993:17 apud DESGRANGES, 2010:22)5. A realidade das crianças apresentadas por

Meirieu (1993) possui as mesmas características da colônia de destino desta pesquisa.

Os adolescentes e jovens que passam pelo processo de uma medida socioeducativa em

meio aberto também apresentam dificuldades em elaborar suas histórias.

Para Meihy (2010:27) “isto recobra significado quando se leva em conta que no

mundo globalizado a fragmentação da individualidade é um fenômeno coerente com a

incapacidade rotineira de se narrar”. Por fim evidenciar as narrativas dos jovens com

base na história oral de vida:

Não só oferece uma mudança para o conceito de história, mais do que isto,

garante sentido social à vida de depoentes e leitores que passam a entender a

sequência histórica e a sentirem parte do contexto em que vivem (MEIHY,

1996:10).

Pude observar, em análises de pesquisas acadêmicas que adotaram entrevistas

com adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas como recurso

metodológico, que os adolescentes tornaram-se objetos de interesse de investigação a

partir do contexto específico das circunstâncias que os levaram a cometer atos

infracionais e das reflexões estabelecidas diante da autoria desses delitos. Contrapondo

à essa parte da história de vida dos participantes desta pesquisa, os relatos coletados

foram direcionados ao compartilhamento de elementos que também fazem parte da

história de vida desses adolescentes e jovens: seus sonhos, suas lutas, seus medos, as

relações com a família, a escola e o futuro e, acima de tudo, sobre a potência da

juventude (no processo de ressocialização e reconstrução da vida em liberdade).

5 Desgranges (2010:22) destaca que: “a incapacidade de contar a sua história está diretamente

relacionada, portanto com a falta de condições para organizar e compreender o seu passado, o que indica

ainda a dificuldade de situar-se no presente e projetar-se no futuro”.

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1 - Transcriando a História Oral de adolescentes e jovens em Liberdade Assistida

A História Oral pode ser compreendida em três segmentos diferentes: História

Oral de Vida, História Oral Temática e Tradição Oral. Ambos os gêneros da história oral

valorizam o contato prolongado com o grupo “estudado”. De acordo com Evangelista

(2010:174) “a imersão do pesquisador em cultura diversa da sua faz do caderno de

campo recurso indispensável para a constituição narrativa, seja ela etnográfica ou de

história oral”. Para esse trabalho adotou-se a História Oral de Vida.

A História Oral de Vida obedece a um procedimento conhecido por

entrevistas livres, isto é, sem questionário ou perguntas diretamente

indutivas. Quase sempre, as gravações de História Oral de Vida são longas e

devem obedecer à captação do sentido da experiência vivencial de alguém. A

individualização é fundamental, sendo que cada pessoa deve ser tratada

como um caso específico, a noção de tempo histórico individual e seu

enquadramento no contexto é fator constante da História Oral. Fala-se,

portanto, nesta circunstância, da provação existencial do indivíduo como um

todo. As informações sobre detalhes ou parcelas da vida do depoente têm

relativa importância, da mesma forma a exatidão dos dados. (MEIHY,

1994:6).

Coletar entrevistas, depoimentos, é algo muito recorrente no trabalho com

sujeitos em vulnerabilidade social e também com jovens em cumprimento de medidas

socioeducativas, como se pode empreender nas pesquisas realizadas por Torezan (2005),

Silvestre (2006), Santana (2005) e Carvalho (2009), que analisaram entrevistas

coletadas com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Liberdade

Assistida problematizando a história de vida dos adolescentes em diferentes temas

como, por exemplo: a relação conflituosa com o ambiente escolar, a esfera assistencial e

o sistema de justiça.

Os trabalhos que apresentam o emprego de entrevistas como metodologia para

a coleta de dados possuem escolhas metodológicas semelhantes, por exemplo: a

utilização de nomes fictícios para preservar a identidade dos sujeitos, o uso de iniciais

para a não identificação dos nomes dos adolescentes, a preservação do relato original na

transcrição da entrevista (mantendo as expressões e linguagens utilizadas pelos

entrevistados), roteiro semi-estrurado, e a utilização de gravadores. Valeta (2012), ao

pesquisar a representação corporal de jovens em Liberdade Assistida, aliou a realização

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de entrevistas com o conceito de auto-imagem corporal, coletando dos jovens

colaboradores da pesquisa um auto-desenho.6

Meihy (2005) propõe que a análise dos depoimentos na História Oral seja

realizada em três fases: 1 ª fase - A transcrição: transposição da gravação em áudio para

o relato escrito; 2 ª fase - A textualização: corresponde a uniformização do texto, no

qual são suprimidas as perguntas das entrevista, obtendo uma narrativa linear; e, por

fim, a 3 ª fase: A transcriação: trata da criação de um novo texto a partir da fala. De

acordo com Evangelista (2010:180) “o texto transcriado é o resultado em uma série de

etapas criativas que vão contornando um produto sempre inédito”. Para compor a

“transcriação” Meihy (1996) sugere a utilização de um caderno de campo durante o

processo de coleta das entrevistas.

A transcriação das entrevistas deste trabalho também foram subsidiadas por

informações presentes em relatórios de acompanhamento inicial e conclusivo,

destinados à Vara da Infância e da Juventude de Campinas, e informações do Plano

Individual de Atendimento (PIA) dos adolescentes entrevistados, disponibilizado pela

executora Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência (SETA), MSE/Liberdade

Assistida. As entrevistas, gravadas em áudio com a autorização dos adolescentes,

tiveram a duração de cerca de 30 minutos cada. Após a gravação das entrevistas foi

realizada a transcrição dos relatos buscando preservar a linguagem utilizada pelos

adolescentes.

A preservação do relato original dos adolescentes e a transcriação de suas

histórias em “percursos dramatúrgicos”, assim como sinalizado por Evangelista (2010),

ajudou-me a refletir sobre a questão: “A história contada poderia ir além do que é dito

pelo entrevistado? ” (EVANGELISTA, 2010:177). Após a transcrição e textualização da

entrevista, iniciei o processo de transcriação do material coletado. Eu dispunha das

entrevistas gravadas em áudio transcrito, relatos do meu caderno de campo, e do vínculo

estabelecido com os adolescentes durante o desenvolvimento do projeto Territórios:

6 De acordo com Valeta (2012:82) (...) “a interpretação dos desenhos dos jovens pode contribuir como

meio simbólico de comunicação, de expressão de conteúdos psíquicos inconscientes e de características

psicológicas de personalidade, cognitivas, afetivas comportamentais e corporais”.

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Liberdade Assistida e Comunidade7, que me permitiu conhecer particularidades de suas

histórias que não foram compartilhadas pelos adolescentes nas entrevistas.

No processo de construção do percurso dramatúrgico analisei as entrevistas e

elaborei um roteiro de cada história, destacando quais eram os principais dramas

compartilhados nas entrevistas e qual a visibilidade que o adolescente evidencia na

história de vida que compartilha. A sistematização desse roteiro deu visibilidade aos

pontos que os adolescentes destacaram nas suas histórias e, assim, concretizei a

elaboração da transcriação dos percursos dramatúrgicos, apresentados em fragmentos

abaixo:

Gostaria de saber um pouco sobre você, sobre a sua História de Vida? Uma

bosta! Ah Dona! Ruim demais! É a vida infelizmente. (Percurso

dramatúrgico I - O menino e aquela cena!) Porque nessa história quem acabou sofrendo foi só eu! (Percurso

dramatúrgico II- A princesa da L.A)

Aí eu aprendi que traficar nem sempre é a solução dos problemas da gente,

da vida! Percurso dramatúrgico III – A menina que queria voar)

Família é a união e compartilhamento do amor por um grupo de pessoas

leais umas as outra. (Percurso dramatúrgico IV O filho do rei)

2 - Categorias de codificação dos percursos dramatúrgicos

A partir dos relatos compartilhados pelos adolescentes transcriados, busquei

potencializar os fatos que marcaram suas histórias identificando nos percursos

dramatúrgicos “categorias de codificação”.

O desenvolvimento de um sistema de codificação envolve vários passos:

percorre os seus dados na procura de regularidades e padrões bem como de

tópicos presentes nos dados e, em seguida, escreve palavras e frases que

representam estes mesmos tópicos e padrões. Estas palavras são categoria de

codificação. (BOGDAN, BIKLEN,1994:221).

7 O projeto: Territórios: Liberdade Assistida e Comunidade, realizado através do Programa Serviço de

Apoio ao Estudante (SAE) Ação Cultural: Educação, Comunidade e Campus 2016, buscaram no

desenvolvimento de uma ação cultural na comunidade, estabelecer uma aproximação com grupos de

adolescentes e jovens com faixa etária entre 15 e 17 anos em cumprimento de medida socioeducativa de

Liberdade Assistida na Instituição Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência (SETA). O projeto

buscou evidenciar os processos de exclusão e acesso à cultura, relatado pelos adolescentes em

conseqüência da localização dos territórios em que residem na cidade de Campinas/SP. Os objetivos

específicos da ação cultural buscaram atravessar esses territórios, através de “passeios culturais”

programados em três eixos: a cidade, espaços culturais e a Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP).

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Deste modo, para codificar as entrevistas, adotei, de acordo com Bogdan e

Bilrem (1994), as categorias “códigos de relação e estrutura social”, “códigos de

acontecimentos” e “códigos de estratégia”.

Códigos de relação e de estrutura social: Os padrões regulares de

comportamento entre pessoas não oficialmente definidos pelo mapa

organizacional são aqueles que agrupamos como “relações” (BOGDAN;

BIKLEN,1994:227).

Nas “relações” apresentadas nos percursos dramatúrgicos foi possível

identificar que, em todas as histórias, os adolescentes apresentaram informações sobre a

sua dinâmica familiar, compartilhando nesses relatos a composição familiar em que

vivem e os dilemas vivenciados por seus membros durante a passagem do adolescente

pelo cumprimento da medida socioeducativa de Internação.

Utilizo os códigos de acontecimento: “que são dirigidos a unidades de dados que

estão relacionados com atividades específicas que ocorrem no meio ou na vida dos

sujeitos que está a entrevistar” (BOGDAN; BIKLEN, 1994:226). Os sujeitos

entrevistados tinham em comum: o cumprimento de medida socioeducativa de meio

aberto pela autoria de atos infracionais, a mesma faixa etária e, por coincidência, eram

moradores da mesma região em Campinas. Pude identificar, nas entrevistas concedidas,

qual o lugar que o “ato infracional” ocupa no relato dos jovens e de que maneira

apresentam a experiência vivenciada no cumprimento de medida de privação de

liberdade ou de meio aberto.

No Percurso Dramatúrgico I - O menino e aquela cena, o adolescente apresenta

dificuldade em refletir sobre o seu envolvimento com atos infracionais, descrevendo em

seu relato atitudes delituosas que já cometeu.

As meninas entrevistadas, nos percursos II - A princesa da L.A e III - A menina

que queria voar, relatam, como um “acontecimento”, o momento de suas apreensões e a

ausência de informações referentes à responsabilização de menores de idade diante do

flagrante de autoria de atos infracionais.

Por fim, no Percurso dramatúrgico IV - O filho do rei, o jovem entrevistado não

relata o ato infracional em sua história de vida. Mesmo tendo acesso às informações

processuais, a preservação dessa parte da história do adolescente será mantida devido à

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escolha que o entrevistado fez no compartilhamento de sua história de vida e dos

princípios éticos presentes na História Oral.

Identifiquei nos relatos os “códigos de estratégia”: “as estratégias referem-se a

tácticas, métodos, caminhos, técnicas, manobras, tramas e outras formas conscientes de

pessoas realizarem várias coisas” (BOGDAN; BIKLEN 1994:227). Os jovens

entrevistados compartilharam, em seu processo socioeducativo, os sonhos e as metas

que traçaram nesse período de ressocialização. Como apresentado no quadro a seguir:

Jovem colaborador

Códigos de Estratégia

I - O menino e aquela cena

Abrir uma “loja” ou “Biqueira”

II - A princesa da L.A

Ser fotógrafa

III - A menina que queria voar

Ser Comissária de Bordo

IV - O filho do rei Fazer faculdade de Psicologia ou Ciências Sociais

Figura 1- Quadro expositivo das narrativas referentes ao Código de Estratégia.

Em dezembro de 2016 encerrei a minha pesquisa de campo e, após acompanhar

os desdobramentos dos adolescentes no cumprimento da Liberdade Assistida, pude

observar aspectos conclusivos em suas histórias. O adolescente retratado no Percurso I -

O menino e aquela cena, diante da dificuldade de refletir sobre a prática de atos

infracionais e a instabilidade da sua relação familiar (fator que dificulta a reconstrução

dos seus vínculos afetivos), a SETA/MSE Liberdade Assistida solicitou a prorrogação

da medida socioeducativa do adolescente para que um novo Plano Individual de

Atendimento fosse construído com o ele.

Com relação à jovem apresentada no Percurso dramatúrgico II - A princesa da

L.A, a SETA/MSE Liberdade Assistida conseguiu uma parceria com um estúdio de

fotografia que ofereceu um curso gratuito para a adolescente e que, infelizmente, não

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conseguiu se organizar para freqüentar as aulas. A sua instabilidade emocional a impede

de priorizar seus desejos pessoais.

No Percurso III - A menina que queria voar, a SETA/MSE Liberdade Assistida

conseguiu uma parceria com uma Escola de Comissários que ofereceu uma bolsa de

estudos do curso para a adolescente e que terá início após a sua conclusão do Ensino

Médio.

Por fim, no Percurso IV - O filho do rei, o jovem foi aprovado no final de 2016

no vestibular para o curso Ciências Sociais, pelo Sistema de Seleção Unificada (SISU).

Todos os jovens colaboradores dessa pesquisa foram desligados da medida

socioeducativa de Liberdade Assistida sem intercorrências, devido a sua extinção do

processo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizar entrevistas com adolescentes e jovens em cumprimento de medidas

socioeducativas, como coleta de dados para uma pesquisa, apresenta-se como um

desafio no que se refere aos aspectos metodológicos. Adotar como sujeitos

colaboradores de uma pesquisa, adolescentes que carregam os estigmas deixados pela

vivência e protagonismo em situações de violência e que possuem como marca em suas

vidas a passagem em uma medida socioeducativa privativa de liberdade durante a

adolescência, é um convite para adentrar em um espaço/território de difícil acesso e

cheio de particularidades no que se refere às histórias de vida e ao contexto em que

estão inseridos, tanto pela abertura a ser dada ou não pelos adolescentes, como pelos

procedimentos éticos e sigilosos pelos quais correm os processos judiciais relacionados

às medidas socioeducativas.

Os adolescentes colaboradores deste trabalho são julgados tanto pelo poder

judiciário quanto pela escola e pela família, fator que interfere diretamente na

elaboração de suas histórias, na maneira que estabelecem reflexões sobre o passado,

como o compreendem e estabelecem metas para a reconstrução de seu futuro.

Transcriar os dramas do cotidiano destes adolescentes e jovens trouxe uma

melhor compreensão sobre os enfrentamentos em sua ressocialização, os conflitos

vivenciados nas relações familiares, no ambiente escolar, a violência policial, a ausência

de políticas públicas que contemplem as demandas de jovens pobres e com baixa

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escolaridade, moradores de territórios periféricos na cidade de Campinas e que

necessitam de iniciação e capacitação profissional.

A “transcriação” desses relatos permitiu um desfecho das entrevistas atento às

particularidades do público pesquisado, potencializando o processo criativo de

elaboração das histórias que marcam suas vidas. Em suma, como afirma Caldas

(1999:110) “os textos transcriados tornaram-se realidades abertas que exigem abertura e

enfrentamento (...) como os textos são resultantes de uma poética da experiência,

clamam por uma poética da leitura e por uma poética da interpretação.”

A preservação do relato original dos adolescentes e a transcriação de suas

histórias em “percursos dramatúrgicos”, compartilhou dramaturgias reais,

acontecimentos que marcaram, interferiram ou transformaram suas histórias

apresentados na poética da “transcriação”.

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FILMOGRAFIA:

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_______________ Edifício Master (110 min), Rio de Janeiro: Vídeofilmes,2001. _______________ O fim e o princípio (101 min), Rio de Janeiro, Vídeofilmes, 2005.