percurso criativo do projeto obra em derretimento

76
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS CENTRO DE ARTES CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ARTES VISUAIS TERMINALIDADE: ENSINO E PERCURSOS POÉTICOS PERCURSO CRIATIVO DO PROJETO OBRA EM DERRETIMENTO AUTOR: PATRICK TEDESCO ORIENTADOR: JOÃO CARLOS MACHADO (CHICO MACHADO) PELOTAS, JULHO DE 2012

Upload: patrick-tedesco

Post on 25-Jul-2015

219 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTASCENTRO DE ARTESCURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ARTES VISUAISTERMINALIDADE: ENSINO E PERCURSOS POÉTICOS

PERCURSO CRIATIVO DO PROJETO

OBRA EM DERRETIMENTO

AUTOR: PATRICK TEDESCOORIENTADOR: JOÃO CARLOS MACHADO (CHICO MACHADO)

PELOTAS, JULHO DE 2012

Page 2: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

2

Page 3: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

3

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTASCENTRO DE ARTESCURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ARTES VISUAISTERMINALIDADE: ENSINO E PERCURSOS POÉTICOS

PERCURSO CRIATIVO DO PROJETO

OBRA EM DERRETIMENTO

PELOTAS, JULHO DE 2012

Monografia submetida ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas, terminalidade Ensino e Percursos Poéticos, para obtenção do título de especialista, por PATRICK TEDESCO, sob orientação do professor João Carlos Machado (Chico Machado).

Page 4: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

4

Page 5: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

5

dedico esta monografia a Beto Santos e a Luciano Mello, por terem percebido as coisas certas, nos momentos certos, e pela expertise de terem apoiado e conduzido este artistas até que ele pudesse correr por conta própria.

Page 6: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

6

Page 7: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

7

e agora os músculos do meu rosto se movimentam em forma de sorriso e eu agradeço a quem está colaborando com meu ato de tornar-me artista, em especial a: José Luiz Pellegrin, Neiva Bohns, Lílian Schwanz, Guto Leite, Chico Machado (João Carlos Machado), Tainah Dadda, Renata Requião, Norma e Anilto Tedesco.

Page 8: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

8

Page 9: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

9

Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa.

(Clarice Lispector, no início do livro "Água Viva")

Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente o chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num segundo imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero o seu fluxo.

(Clarice Lispector, algumas páginas depois)

Page 10: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

10

Page 11: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO __________________________________________________________________13

| 1 | Primeiro memorial ____________________________________________________________19| 2 | Segundo memorial

| 3 | Primeiro estudo teórico: o preenchimento do tempo através da criação de ficções _____25| 4 | Segundo estudo teórico: o tempo das imagens ___________________________________31

| 5 | O projeto Obra em Derretimento: da criação ao momento atual ______________________41| 7 | No entorno da criação ________________________________________________________63

CONCLUSÃO ___________________________________________________________________71

ANEXO I: Portifólio

Page 12: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

12

Page 13: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

13

É difícil precisar o momento em que o projeto Obra em Derretimento tomou forma, fato é que ele vem sendo construído ao longo de vários anos e, agora, com esta monografia de especialização, acaba por ganhar um tratado com ares de comentário a respeito de seus processos. Operações de soma/adição/acréscimo/sobreposição regem o meu percurso artístico, uma vez que as obras que estou produzindo atualmente são resultado de um longo trabalho de elaboração e assimilação de reflexões e técnicas com as quais me envolvi com o passar do tempo. Quando observo com distanciamento o meu primeiro trabalho artístico, alguns anos depois de sua publicação, fico satisfeito por encontrar nele construções seminais que hoje fazem parte da natureza íntima de minhas obras, que fazem o projeto Obra em Derretimento ser como ele é. Disto resulta que sou um artista em pleno momento de construção de um projeto artístico, cujas obras seguem determinada linha evolutiva e cujo tema, embora nem sempre de forma consciente, diz respeito à maneira que estou encontrando de relacionar com o mundo.

Meu primeiro trabalho artístico apresentado ao público é o livro Como analisar um raio de sol e meu último trabalho exibido em uma exposição, considerando que estou escrevendo estas linhas em

INTRODUÇÃO

Page 14: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

14

junho de 2012, é o vídeo Obra em derretimento: video portrait nº1. Embora eles se desenvolvam através de linguagens estéticas diferentes, ambos apresentam uma forte relação entre visualidade e passagem do tempo. É, neste caso, quase um contrassenso falar em obra que se desenvolve em relação com a passagem do tempo, pois, cabe salientar, é praticamente impossível que exista uma obra – quer seja de arte, quer seja proveniente de qualquer outro meio da produção humana – que não esteja em intensa relação com uma determinada ordem temporal. No entanto, ocorre que em meu percurso artístico costumo criar obras que encaram de frente esta questão, a qual torna-se tema – explicitado, comentado, potencializado – e ponto de partida para minhas criações.

Além desta especialização em Artes Visuais, sou psicólogo e curso atualmente graduação em Design Digital (UFPEL) e mestrado em Literatura Comparada (UFPEL). A academia tem me oferecido um importante acesso a artistas e teóricos os quais, muitas vezes, tornam-se referências para meu trabalho. O projeto Obra em Derretimento desenvolve-se não apenas em termos práticos – com o planejamento, execução e apresentação de obras visuais – mas assume também uma dimensão teórico-reflexiva. Existe, assim, como plano de fundo, um exercício de pensamento – de pesquisa, produção e assimilação de conteúdos, conceitos e teorias – que acaba por integrar o resultado final de minhas

narrações sobre o tempo. Evidentemente, esses conteúdos nem sempre se apresentam de forma manifesta na visualidade das minhas obras, porém podem ser vistos como conteúdos latentes inerentes à minha produção.

O meu projeto de conclusão de curso sofreu várias alterações ao longo do período em que cursei esta especialização. Inicialmente, eu pretendia estudar situações nas quais a passagem do tempo interfere no resultado final da imagem fotográfica e, como proposta prática, produzir obras de arte tendo como plano de fundo o registro da passagem do tempo através da fotografia. O ato fotográfico era o meu principal interesse e, sendo assim, o foco de minhas investigações. Além do mais, eu me interessava imensamente por aprender questões técnicas, as quais me possibilitariam alcançar resultados que eu esperava com a imagem fotográfica. No entanto, ao longo deste período, fui percebendo que o meu projeto artístico não estava ligado, unicamente, à produção de imagens fotográficas, mas, sobretudo, à exploração de diferentes linguagens, provenientes, especialmente, da escultura, da fotografia e da produção de vídeos. Foi então que, embora eu ainda desenvolva produções seguindo outras linhas de raciocínio, resolvi me dedicar com maior exclusividade à produção de obras de arte as quais estão relacionadas ao projeto Obra em Derretimento, este projeto que acabou por ser resultado de uma confluência de diferentes linguagens estéticas.

Page 15: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

15

A metodologia utilizada para ampliar meus conhecimentos em Artes Visuais e para construir uma identidade para o projeto baseia-se em um exercício de conhecimento que segue um caminho de dentro para fora, ou seja, de compreensão do mundo a partir de meu próprio percurso artístico. Para tanto, no primeiro semestre desta especialização, me dediquei ao exercício de observar, nas criações que eu tinha produzido até então, quais eram as questões/temáticas/conceitos que apareciam de forma recorrente em minhas obras. Até aquele momento, muitas questões que estavam presentes em minha produção apareciam de forma mais espontânea do que consciente; tratava-se, simplesmente, de questões que me inquietavam e que acabavam por repercutir em minhas criações visuais, muitas vezes de forma inconsciente. O desenvolvimento desta monografia tem sido, então, uma forma de tornar mais claro – inclusive para mim – com quais assuntos o projeto Obra em Derretimento está relacionado.

Hoje em dia costumo dizer que o que eu crio pertence ao rol de objetos que possuem um plano sincrético de significação. Explico: desde minhas primeiras construções poéticas produzo obras que interagem através de pontos de intersecção entre diferentes códigos. Não há uma linguagem única, mas justaposições de linguagens. Isso acontece com todas as obras que constituem o Obra em Derretimento: para produzí-las, me utilizo de processos de produção

provenientes do campo da escultura, da pintura, da fotografia, da produção de vídeos, e, mais recentemente, da performance. Exploro, assim, múltiplos meios de criação para a produção dessas obras. Sou construtor, portanto, de linguagem híbrida: escultura em derretimento que produz um grande número de novas obras de arte; sequência de fotografias que se transforma em vídeo; produção de vídeos que se parecem com fotografias, entre outras tantas variações.

Assim sendo, tenho entendido o contexto desta especialização e, consequentemente, do tecimento desta monografia, como um momento de crescimento artístico e de consolidação das idéias relacionadas ao Obra em Derretimento. Trata-se, portanto, de um período de formação como artista e de envolvimento com a prática artística como atividade profissional.

Muitos desdobramentos surgem desta atitude, o que tem me levado a perceber que um artista não apenas se dedica a produzir obras de arte para apresentar em exposições. É importante que ele se dedique também, por exemplo, a um trabalho de divulgação de suas produções e de formação de público, ou seja, fazer com que as obras cheguem ao conhecimento das pessoas, incentivando, de alguma forma, o interesse delas em relação às suas produções. Estou explorando inúmeras maneiras para satisfazer esta necessidade, entre elas está a publicação e divulgação de informações sobre meus trabalhos na internet, a concessão de entrevistas

Page 16: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

16

para a imprensa, a conversa com o público e apresentação de minhas reflexões em seminários e palestras acadêmicas. É um exercício complexo de tornar-se artista que, geralmente, não está incluído nisto que as pessoas imaginam ser aquilo que o artista faz.

Tendo em vista estas considerações iniciais, dividi esta monografia em seis capílutos os quais estão dispostos aos pares: os dois primeiros se caracterizam por ser memoriais, o terceiro e o quarto contituem duas reflexões teóricas e o quinto e sexto falam, especificamente, sobre o desenvolvimento do projeto Obra em Derretimento.

Assim, o primeiro memorial apresenta uma breve retrospectiva, de caráter bastante pessoal, sobre os caminhos que me levaram a escolher a produção artística como atividade profissional; já o segundo memorial apresenta uma retrospectiva sobre a criação do projeto Obra em Derretimento, oferencendo ao leitor uma idéia geral sobre a visualidade e o contexto conceitual das obras que o compõem.

Por sua vez, o capítulo número 3, intitulado "primeiro estudo teórico: o preenchimento do tempo através da criação de ficções", é uma reflexão teórica a respeito de como os artistas lidam com a questão da passagem do tempo e como seus efeitos repercutem em suas criações; escrever este capítulo contribuiu, especialmente, para eu melhor entender motivos que levam os artistas a produzir artísticamente. Na sequência,

o capítulo 4, intitulado, "Segundo estudo teórico: o tempo das imagens", é uma reflexão, de caráter mais específico que a do capítulo anterior, sobre como a passagem do tempo aparece em diferentes linguagens, interferindo na visualidade dos resultados finais, com especial atenção às imagens fotográficas.

Constituindo os dois últimos pares de capítulos desta monografia, o capítulo 5 é uma descrição comentada sobre meu percurso artístico e o sexto apresenta situações, para além da produção de obras, as quais fazem parte de minha atividade artística profissional. Para finalizar, apresento em anexo, como parte do desenvolvimento desta monografia, meu portifolio com trabalhos que elaborei desde 2009 até hoje.

Page 17: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

17

Page 18: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

18

Page 19: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

19

Na ocasião da exposição “Arte Sul Contemporânea”, que ocorreu durante os meses de julho e agosto de 2012, a curadora Neiva Bohns enviou para os artistas expositores um lista de perguntas a serem respondidas por eles com o objetivo de criar um panorama sobre o perfil de cada um. A questão número 1 deste questionário, perguntava, justamente, qual foi o momento em que o artísta começou a se interessar por Artes Visuais. Resolvi, então, utilizar a minha resposta para esta pergunta como uma breve apresentação de meu percurso pessoal até me tornar artista. A seguir, apresento, então, a resposta à pergunta de Bohns.

Neiva Bohns - Quando começou seu interesse por artes visuais? Você foi incentivado por alguém?

Sou artista desde sempre. Isso tem a ver com a forma que encontrei para me relacionar com o mundo. Tive uma infância feliz em um lugar estranho/desconhecido à maioria dos gaúchos, porém, não muito distante daqui. Nasci em Pato Branco, no Paraná, e viví até meus doze anos em Clevelândia,

PRIMEIRO MEMORIAL

Page 20: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

20

no mesmo estado. Visitava com frequência a casa de minha avó, em Xaxim – SC, e costumava passar as férias de verão em Pelotas e Pedro Osório - RS, visitando a casa de parentes e a xácara de meu avô. Eu era moleque ao melhor estilo de moleques do interior: ia para a escola de manhã e passava a tarde me divertindo na rua e nos pátios gigantes das casas de meus amigos: jogando bola, andando de bicicleta, brincando de carrinho, construindo castelos de areia, projetando casas nas árvores e carrinhos de rolimã (que, na minha cabeça, deveriam ter até motor à gasolina).

Quando eu era pequeno, nunca cheguei perto de imaginar que um dia seria artista, quero dizer, que eu trabalharia com arte. Eu queria ser, na verdade, engenheiro mecânico, pois, como meu maior sonho era ter uma fábrica de automóveis quando me tornasse adulto, um dia, meu pai disse que para fazer carros era preciso cursar Engenharia Mecânica. Lembro que inclusive criei um clubinho de desenho de projetos de automóveis que possuía sede no porão da Loja Caçula, a loja dos pais de um grande amigo de infância.

A época de criar clubinhos foi divertida. Inventávamos clubinhos para tudo. Todos tinham objetivos importantíssimos: procurar fantasmas nos porões, incomodar as meninas da vizinhança, fazer oposição a clubinhos concorrentes. Lembro de quando nos unimos para uma causa social: o cachorro de um amigo tinha fugido de casa e,

então, passamos mais de um mês procurando por ele (o Pito); não tendo tido sucesso na busca e já tendo adquirido alguma experiência, resolvemos criar um clube especializado em procurar cachorros desaparecidos (nunca tivemos nenhum cliente, no entanto, pois não era comum que cachorros desaparecessem em uma cidade tão pequena).

Quando eu viajava para a casa de minha avó, em Xaxim, eu ficava imaginando como fora a infância de meu pai naquele lugar. Xaxim é uma cidade de colonização italiana. Meu pai, durante sua adolescência, foi projetista de filmes no cinema da cidade. Na casa da minha avó, eu tinha acesso a muitas coisas antigas: brinquedos de meus tios, fotografias em preto e branco de imigrantes italianos, imagens dos caminhões GMC e Internacional do meu avô (ele era caminheiro), entre muitas outras maravilhas. Lembro também das estórias: do vendedor de enciclopédias que deixou duas filhas pequenas na casa de minha avó e nunca mais voltou para buscar, da festa que fizeram na cidade quando uma mulher desgostosa se casou e foi morar em outro lugar, da tensão que existia entre índios tupi-guaranis e os imigrantes italianos que ocuparam suas terras. Como os filmes da década de 50 e 60 que eu assistia na TV eram sempre em preto e branco, a memória que eu tinha em relação à infância de meu pai também não possuía cores, e eu ficava imaginando como era viver aquela infância em preto e branco.

Page 21: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

21

Porque eu estou comentando isso tudo? Apenas para dizer que eu tive uma infância inventiva, carregada de imaginação, de percepção apurada e de sonhos hiperbólicos.

Até meus 17 anos, mesmo depois que me mudei para Pelotas (aos 12), nunca tive contato próximo com nenhum artista, ou seja, nunca tive contato com ninguém que se dedicasse à arte como profissão. Para mim, artistas eram aquelas pessoas (foi isso que eu aprendi na escola) que pintavam quadros ou que faziam esculturas e que, na maioria das vezes, já tinham morrido, como Leonardo, Donatello, Rafael e Michelangelo.

Aos meus 17 anos tive um primeiro contato mais próximo com as artes. Eu estudava no CEFET-RS (hoje IF-Sul) e frequentei a aula de uma professora de Artes que me fez compreender que o mundo das Artes Visuais era mais amplo e mais importante do que eu imaginava até então. O nome dessa professora é: Adriana Nepomuceno.

Aos meus 18 anos, quando tudo parecia andar conforme eu tinha planejado e quando eu vislumbrava ter um futuro brilhante pela frente como odontólogo (sim, eu tinha sido aprovado no vestibular para cursar Odontologia na UFPEL), eu conheci e me tornei amigo do músico e compositor Luciano Mello, que é, sem dúvidas, um dos artistas mais incríveis que conheço em termos de extensão e qualidade de produção. Até então eu conhecia pouca música (embora gostasse de Beatles e Queen), desconhecia o

que era arte contemporânea e apenas tinha ido ao teatro para assistir a apresentações de natal de corais de igreja e a uma peça de teatro tão ruim que nem vale a pena citar o nome. Foi o Luciano Mello que me apresentou ao maravilhoso mundo da música brasileira – Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gal Costa, Ney Lisboa, Vitor Ramil – e internacional – Phillip Glass, Laurie Anderson, Lou Reed, Nick Cave –. Foi também através da porta aberta por ele que conheci a obra de escritores tais como Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Sérgio Sant´Anna, Valêncio Xavier, Jack Kerouac entre muitos outros.

Por motivos óbvios eu não durei muito na faculdade de Odontologia. Resolvi trancar a matrícula no segundo semestre e migrei para a Psicologia (UCPEL). Cheguei à Psicologia tomado por um desejo com ares ainda adolescentes de compreensão disso que é a realidade. Minha ideia inicial era extrapolar os limites da percepção e aprender a escrever sobre as coisas. No entanto, como veio a ficar mais claro posteriormente, não viria a ser através da Psicologia que eu iria conseguir me satisfazer de forma confortável, mas através de uma maior aproximação, finalmente, com as artes, especialmente com a literatura e as artes visuais.

Quando eu estava cursando Psicologia, resolvi selecionar poesias e contos que eu tinha escrito durante a minha adolescência e criei o livro Como analisar um raio de sol. Esse foi o primeiro trabalho artístico, mas ele é resultado de minha

Page 22: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

22

produção em artes antes mesmo de eu saber que aquilo que eu escrevia era uma produção artística.

Foi também em função do Como analisar um raio de sol que comecei a cursar a faculdade de Design Digital, na UFPEL. Em 2008, quando eu procurava uma forma econômica para diagramar e publicar esse livro, resolvi cursar Design Digital com um único objetivo: aprender a diagramar o Como analisar um raio de sol. Nesse curso, por conseguinte, muitos caminhos se abriram e eu, finalmente, pude estar em contato próximo com o mundo das criações visuais. Foi importantíssimo, nesse período, a atitude de um professor em especial que soube perceber com inteligência que eu era um talvez-possível-provável artista plástico. Seu nome é Beto Santos, ele é professor de Iconologia e de História da Arte na UFPEL. Minhas primeiras obras em Artes Visuais foram criadas como resultado de uma proposta de aula deste professor, que consistia na criação de releituras de obras dos artistas que tinham sido estudados ao longo de semestre acadêmico. Essas primeiras criações em Artes Visuais já estavam relacionadas ao que hoje chamo de projeto Obra em Derretimento, uma vez que escolhi, desde o início, trabalhar com o material “gelo” para a produção de imagens.

Foi assim que a partir de meados de 2009-2010, então, tanto eu, como as outras pessoas, passaram a me ver como artista. Existe em minha carreira, portanto, duas fazes: eu, enquanto não-

sabendo artista, e eu, enquanto já-sabendo artista. No fundo, sempre fui artista, apenas não sabia que era.

Page 23: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

23

Page 24: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

24

Page 25: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

25

Este segundo memorial oferece um panorama geral sobre o projeto Obra em Derretimento e sobre as idéias que embasam sua produção. Assim como ocorre em "Memorial nº 1", resolvi apresentar as respostas que dei a uma entrevista para introduzir um panorama sobre meu percurso de criação relacionado às obras que compõem este projeto. O conteúdo a seguir é, portanto, transcrição literal de minhas respostas às perguntas de Hugo Lorenzetti Neto. Esta entrevista ocorreu em função de uma exposição que fui convidado a participar na Casa do Brasil na Bélgica, onde Netto é curador e em que apresentei o vídeo "Obra em Derretimento nº 1".

O vídeo “obra em derretimento” na Casa do Brasil na Bélgica (entrevista)Entrevista cedida por Patrick Tedesco ao curador Hugo Lorenzetti Netto(Casa do Brasil

na Bélgica – Bruxelas). via Facebook – em 30 de abril de 2012

SEGUNDO MEMORIAL

Page 26: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

26

Imagem e dados da obra apresentada na Casa do Brasil:

BRASIL – BRAZILIË – BRÉSILObra em Derretimento nº1Patrick Tedesco (2010)animação stop-motion 3’ 34’’ – em loop

Por que você escolheu fazer o vídeo em stop-motion1, e não filmado e acelerado?

Ter escolhido fazer um vídeo através da técnica de stop-motion tem a ver com minha trajetória como artista. Antes de produzir aquele vídeo, no campo de artes visuais, eu trabalhava

1 Stop-motion é a técnica de captação de imagens em sequência utilizada para a criação de animações quadro a quadro. Quando um animador coloca as imagens em sequência, para produzir um desenho animado, por exemplo,

tem-se a ilusão de que os objetos estão se movimentando.

especificamente com fotografia.

“Obra em derretimento” foi teu primeiro vídeo, então?

Bem, um pouco antes desse eu havia produzido um pequeno curta-metragem juntamente com alguns colegas da faculdade de Design Digital, chamado “O homem e a bola” (2009).

Construir esse curta serviu para que eu aprendesse a técnica. Logo depois, fiz o vídeo “Obra em Derretimento”. Acho que, pra você

Page 27: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

27

entender melhor, eu preciso te falar sobre o meu percurso anterior, pode ser?

Pode.Sou um artista jovem (tenho 25 anos), e

estou em processo de crescimento profissional (acho que sou um artista emergente, como dizem por aí). O interesse pela arte foi especialmente influenciado por minha amizade com o músico e compositor Luciano Mello (que é meu parceiro de trabalho hoje em dia). Conversando com ele, percebi que eu já tinha alguma produção, mas que eu desconhecia que se tratava de arte.

O que você fazia?Literatura. Eu tinha contos e poesias.

Descobri que aquilo era arte e comecei a pensar em produzir artisticamente, desta vez de forma oficial.

Qual é a diferença entre saber que a coisa é arte e não saber?

Acho que hoje em dia eu produzo com a consciência de que é feito para um público, para ser apresentado em determinado lugar. Antes, era algo mais pessoal, extremamente espontâneo. Hoje sou mais rigoroso em meu trabalho. Tenho um projeto maior, e a maioria das obras que eu produzo estão relacionadas com ele.

Como é esse projeto artístico?Comecei pela fotografia. A ideia específica

era a de produzir esculturas de gelo feitas a partir de moldes e fotografá-las, acompanhando seu derretimento. Eu pretendia criar algum objeto interessante a partir do qual eu pudesse produzir imagens fotográficas. Talvez por isso, resolvi misturar água com tinta acrílica para construir esculturas coloridas. O primeiro ensaio que fiz com essas esculturas chama-se “Gelos quentes” (2009).

2

Em um deles eu congelei um relógio em um bloco de gelo para ver o que acontecia. Quis congelar o tempo, mas o relógio seguiu funcionando. A fotografia também não deixa de ser uma tentativa de congelamento do tempo. Assim, meu trabalho é duplamente irônico, porque a fotografia tenta congelar a imagem de algo que está se descongelando.

2 Fotografiadasérie“GelosQuentes”(2009)

Page 28: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

28

Depois de congelar o relógio, surgiu a ideia para “Obra em derretimento”?

Isso. Nesse momento, descobri a cronofotografia, que são aquelas imagens, por exemplo, dos fotógrafos Marey e Muybridge… que mostram sequencias de quadros de cavalos, pessoas etc em movimento. O futurismo italiano, o trabalho de Marcel Duchamp e o minimalismo (Bob Wilson, Phillip Glass, Laurie Anderson) também foram fontes de influência.

3

Como essas fontes confluíram para esse vídeo que vamos mostrar na Casa do Brasil?

Quis criar uma sequência de fotografia, e trabalhar com a ideia de multiplicação de obras de arte a partir de apenas uma escultura em derretimento.

Ou seja, a sequência de obras é, de um lado, sequencia, mas cada foto é uma obra também?

3 “the horse in motion”. Muybridge (1878) fonte: wikipedia

Sim: criei uma primeira escultura (1 obra), tirei 1258 fotos (outras 1258 obras), e, por fim, produzi o vídeo (mais uma obra). O vídeo teve de ser em stop-motion, porque partiu de fotografias.

4

Respondi tua primeira questão, não é? rs

Respondeu!Foi quando eu fiz esse vídeo que me dei

conta de que vinha trabalhando em um mesmo projeto, explorando possibilidades a partir da modelagem com gelo, cor, fotografia, vídeo.

Dei o nome a esse vídeo de “Obra em Derretimento”, que também é o nome do projeto todo, que já tem muitas outras obras.

O vídeo que vamos mostrar é um momento de síntese e preparação para mais 4 Imagem contendo 16 fotografias das 1258

fotografias que compõem o conjunto

Page 29: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

29

projetos, portanto?Isso. Ele é resultado de momento em que

tudo que eu pensava convergiu para uma obra só. Por isso considero que o vídeo "Obra em Derretimento" é, talvez, o mais importante de minha carreira.

Em outro vídeo, intitulado “Empty”, a escultura não se descongela completamente (na verdade, descongela bem pouco). Então, depois que eu captei as imagens para criar um stop-motion, coloquei a escultura de volta em meu congelador (tenho aqui em casa um congelador de obras de arte).

Em seguida, em uma exposição na qual planejei expor o vídeo criado, construí uma vídeo-instalação na qual, em frente ao vídeo, depositei a escultura. Ou seja, no dia da abertura, o público pôde ver tanto o vídeo da escultura como a própria escultura derretendo.

Espera, você tem um congelador de obras? Como é teu congelador, é que nem esses de guardar sorvete?

Isso, que nem esses de guardar sorvete. É um freezer horizontal, escolhi o maior que tinha disponível no mercado. Dentro dele tem um estoque de esculturas. Vou fazendo experiências e colocando pra congelar, geralmente elas não são muito grandes. Quando acho que tenho algo interessante, retiro do congelador e produzo imagens.

Você congela o impulso criativo, e trabalha com ele depois!

Sim. O que mais me toca como artista é o fundo existencial que existe. Por exemplo: assim como o gelo, sou alguém que tem uma vida limitada. Assim como o gelo será fotografado, também eu procuro registrar momentos, registrá-los nas minhas imagens, nos meus textos… Pode parecer um pouco bobagem, mas como artista é isso que me move. Algo como uma tentativa (nem sempre bem sucedida) de aproveitar ao máximo

Page 30: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

30

cada instante. (o vídeo “obra em derretimento” pode ser

visualizado através do endereço http://www.patricktedesco.com/port/videoobra.php. Demais imagens e vídeos comentados aqui podem estão disponíveis no site e portifolio digital de Patrick Tedesco, em http://www.patricktedesco.com/port/fotografia.php)

Page 31: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

31

Você é um ser humano, tem que enfrentar terríveis conflitos, já porque você

é consciente e sabe de si próprio e dos outros; mas também as coisas

podem ser muito lindas, a vida é muito rica, porque você é um criador de

formas. (Fayga Ostrower)

PRIMEIRO ESTUDO TEÓRICO: O PREENCHIMENTO DO TEMPO ATRAVÉS DA CRIAÇÃO DE FICÇÕES

Page 32: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

32

O conteúdo desenvolvido nesta monografia segue uma estrutura base que engloba dois eixos de produção: um eixo poético e um eixo teórico. O eixo poético consiste na produção prática experimental de obras de arte a partir da exploração de linguagens visuais, com ênfase criação de esculturas, fotografias e vídeos. Já o eixo teórico se caracteriza pela pesquisa teórica e conceitual a qual contribui para delimitar e elucidar temáticas presentes no desenvolvimento das obras visuais. Sendo assim, o presente capítulo pretende apresentar e discutir os conteúdos referentes ao eixo teórico os quais tenho me deparado ao longo do desenvolvimento do projeto Obra em Derretimento.

Quando iniciei esta especialização em Artes Visuais, me dei conta que existiam conteúdos recorrentes em minhas criações artísticas. Em relação a esta percepção, é importante destacar que a escolha e delimitação dos conteúdos teóricos aqui apresentados ocorreu em função da observação de meu percurso de produção de obras de arte. Os capítulos teóricos que constituem esta monografia são configurados, então, por uma busca por clarificar (trazer maior entendimento sobre) conteúdos que venho desenvolvimendo em minhas criações visuais.

Conforme comentei anteriormente, recorrer a estudos teóricos contribui com o enriquecimento conceitual de meu projeto. No momento em que minhas obras são expostas em espaços expositivos, estou apresentando apenas

a dimensão visual de minhas construções. No entanto, como será observado ao longo desta monografia, meu percurso poético apresenta-se em dimensões mais amplas do que os resultados visuais, uma vez que tanto a experimentação prática - com a produção de obras de arte – quanto a reflexão teórico-conceitual fazem parte do projeto Obra em Derretimento.

A base da discussão teórica inerente a este projeto encontra sustentação inicial em reflexões propostas pelo crítico literário norte-americano Frank Kermode, especialmente em seu livro intitulado The sense of an ending. Neste livro, Kermode ensaia considerações a respeito do trabalho de escritores tomando como ponto de partida a idéia de que, através de ficções, o homem organiza e constrói sentido para sua experiência de vida, forma pela qual o ele se organiza em relação ao mundo. O sentido utilizado por Kermode para a palavra “ficção” remete a criações que “nós sabemos que não existe, mas que nos ajudam a nos movimentar e a construir sentido para o mundo” (KERMODE, 1966, p. 37). Trata-se, assim, de algo semelhante à nossa imaginação relacionada à idéia que temos, por exemplo, em relação à noção de eternidade ou em relação à criação de números matemáticos, ou seja, criações que não existem em concretude existencial, mas que nos ajudam em nossa experiência de vida. De acordo com Kermode:

Page 33: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

33

(...)faz pouca diferença se você acredita que a idade do mundo é seis mil anos ou cinco mil milhões de anos, se você acha que o tempo irá parar ou que o mundo é eterno; de qualquer forma, há sempre uma necessidade de falar humanamente sobre a importância da vida em relação a isto – uma necessidade no momento da existência de pertencer, de estar em relação com um início e um fim.

(KERMODE, 1966, p. 4)

As noções de princípio e fim são, assim, de fundamental importância para a compreensão de qualquer criação. Todos os eventos possíveis de acontecer estão sempre arranjados em período de tempo que compreende um início e um fim, dois pontos fronteiriços que demarcam uma criação e uma total destruição; Kermode cita o texto da Bíblia como um exemplo em que esta estrutura encontra-se de forma bastante evidente: “A Bíblia é um modelo familiar de história. Ela começa no princípio (´No princípio criou Deus os céus e a terra...`) e encerra com uma visão sobre o fim (´Mesmo assim, vem, Senhor Jesus`); o primeiro livro é o Genesis, o último é o Apocalipse)” (KERMODE, 1966, p. 6). Kermode comenta que a Bíblia possui uma estrutura totalmente concordante, na qual o fim está em harmonia com o princípio, e na qual o meio está em harmonia tanto com princípio quanto com o fim (1966).

Dentre estas considerações, para o desenvolvimento desta monografia, é importante

destacar, portanto, que as noções que o homem produz sobre o princípio e sobre o fim, de certa forma, oferecem pontos base para a construção de arranjos, pedaços de entendimento, ficções que estão de acordo com inícios e fins, construções que produzem significados para vidas, sendo que qualquer possibilidade de existir ocorre, necessariamente, no decorrer deste intervalo.

De acordo com a perspectiva de Kermode, ficções não ocorrem somente no caso da criação de ficções literárias: segundo ele, ficções podem ser encontradas em situações bem mais simples do que imaginamos – estão em todos os lugares – como, por exemplo, no caso do tique-taque do relógio. É interessante a argumentação de Kermode em relação a esta questão, uma vez que ele compreende que entre um tique e um taque de um relógio existe um modelo elementar para o que nós chamamos de enredo (plot). A passagem do tempo é, a priori, uma ocorrência essencialmente não definida, não organizada, isenta de qualquer ponto chave para a criação de sentidos. Contudo, através da criação de dois ruídos repetidos continuamente e de forma idêntica, tornou-se possível para o homem, então, a elaboração de uma “organização que humaniza o tempo”, conferindo “forma a ele” (p. 45). Por conseguinte, através de invenções como o tique-taque do relógio, o homem vem adquirindo condições para organizar-se em relação ao tempo e construir significados para a sua história.

O ruídos que o relógio produz dão origem

Page 34: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

34

a dois tipos de intervalo de tempo: o primeiro é o intervalo existente entre o “tique” e o “taque”; o segundo é o intervalo existente entre o “taque” e o “tique”. O primeiro representa o tempo humanizado, o tempo carregado de sentido, enquanto que o segundo representa puramente sucessão, “tempo desorganizado do tipo que precisamos humanizar” (KERMODE, 1966, p. 45).

De forma a evidenciar esta diferenciação entre tempo humanizado e tempo desprovido de sentido, Kermode comenta a distinção entre o significado das palavras gregas chronos e kairos. Para tanto, recorre à perspectiva de Oscar Cullmann e John Marsh, dois teólogos e estudiosos sobre o tempo, segundo a qual: “chronos é ‘passagem do tempo’ ou ‘tempo de espera’(...), enquanto que kairos é a estação, um ponto no tempo preenchido com significância, carregado com um significado derivado de sua relação com o final.” (KERMODE, 1966, p. 47).

Através dessas abordagens apresentadas por Kermode, torna-se bastante claro a diferenciação entre duas formas de conceber a passagem do tempo: uma, de caráter qualitativo, que remete à produção de sentido; outra, de caráter quantitativo, que é pura sucessão temporal. Além disso, cabe, por ora, salientar a importância da criação de ficções – isto que encontramos em todos os lugares – para a nossa organização em relação ao existir. Esta noção tem sido de grande importância para o projeto Obra em Derretimento, conforme será retomado

no final deste capítulo, uma vez que faz parte da base teórico-conceitual das criações que o constituem.

Apesar de ser de extrema utilidade, a criação do tique-taque do relógio não representa um enredo muito elaborado: “Tique é um gênesis humilde, taque um apocalipse fraco; e tique-taque é em todo caso não muito de um enredo” (KERMODE, 1966, p. 45). Para Kermode, enredos muito maiores e muito mais complicados são necessários se persistirmos em buscar encontrar “o que será suficiente”, ou, em outras palavras, um sentido para o existir. Daí surge, por exemplo, a criação de uma novela literária de mil páginas. Neste caso, na perspectiva de Kermode, o que o novelista faz é transformar mera sucessividade em experiências de amor, consciência erótica que produz um divino sentido de satisfação para os leitores (1966).

Ora, a experiência humana é preenchida, então, por ficções, que atribuem significado e adicionam sentido ao que antes era mera sucessão temporal. Daqui em diante, tomando como base a percepção de Kermode a respeito do preenchimento do tempo e da produção de ficções, podemos supor que, assim como ocorre com a produção de sentido a partir do tique-taque do relógio, e assim como ocorre com o efeito de satisfação gerado pela escrita ou leitura de uma novela, a criação de ficções através de outras linguagens ou através de outros campos da produção humana deve fazer, portanto, sentido

Page 35: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

35

semelhante. Desta forma, não estamos longe de afirmar que, por exemplo, criações relativas ao campo das Artes Visuais perfazem, também, uma busca constante do homem em preencher de significação a passagem do tempo, de entrar em harmonia com e construir sentido para os intervalos existentes entre inícios e fins.

Muitos outros estudiosos de Arte defendem posição semelhante à apresentada por Kermode em relação ao motivo pelo qual o homem produz artisticamente. Nesse sentido, é particularmente interessante e bela a visão apresentada por Fayga Ostrower, em seu artigo “A construção do olhar”. Neste artigo, Ostrower faz referência à imagem de um jarro do período neolítico, datando de aproximadamente três mil anos antes de nossa era. Ao comentar o fato de que ainda é possível reconhecer as marcas das mãos do artesão no jarro e perceber o modo como seus dedos moldaram a terra (OSTROWER, 2002), Ostrower destaca que, a priori, para nós observadores, bastaria olhar para o objeto para satisfazer nossa curiosidade e, assim, entender como era o dia a dia daqueles povos primitivos. Porém, algo impressionante ocorre nesta situação: após olhar para o objeto, temos vontade de revê-lo várias outras vezes. Segundo essa autora, então, “Compreendemos de repente que, quando o artesão moldou o pote, dando certas subdivisões, tessituras, ornamentos ao volume bojudo e às beiras finas, dando uma ordenação às formas do pote, no fundo ele estava dando uma ordenação

a si próprio” (OSTROWER, 2002, p. 169).Ora, este objeto deveria ter uma função de,

possívelmente, armazenar óleo ou água, porém, para muito além de sua função utilitária, ao visualizar o jarro “vemos a face interna do artista, sua alma, seu ser” (OSTROWER, 2002, p. 169). Para Ostrower, assim, uma obra de arte diferencia-se de uma mercadoria uma vez que, consciente ou inconscientemente, ela sempre apresenta um depoimento sobre o sentido de viver.

De forma semelhante à perspectiva apresentada por Kermode, para Ostrower as escolhas tomadas pelo homem para a construção de um objeto, mais do que uma simples produção mecânica, remetem à maneira pela qual o homem organiza a si próprio, modulando sua identidade a partir de suas escolhas, em pleno relacionamento com o mundo enquanto sujeito criador de formas. Produzir arte é, então, uma das maneiras pelas quais o homem toma posse, ordena, compreende, constrói significados para sua existência e transforma a realidade não objetiva em que se encontra, preenchendo a existência com significações e tornando a vida mais prazerosa e memorável.

Passamos agora a explorar as reflexões de mais um teórico que estuda a relação entre tempo e a construção de ficções. Na trilogia Tempo e Narrativa, composta pelos livros A intriga e a narrativa histórica, A configuração do tempo na narrativa de ficção e O tempo narrado, Paul Ricoeur desenvolve um amplo debate germinado

Page 36: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

36

a partir da relação entre tempo e narrativas. Sobre esse tema, o núcleo central do conjunto da obra é a tese de que “o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de maneira narrativa” (RICOEUR, 2010, p. 9). Sendo assim, conforme destaca Hélio Salles Gentil no prefácio do primeiro livro, a tese fundamental é que a experiência humana do tempo se torna acessível através da criação de narrativas (2010). Seguindo uma linha de pensamento semelhante às apresentadas por Kermode e Ostrower, Ricoeur argumenta que a experiência do homem, bem como a ação desse sobre o mundo, são sempre organizados, então, por composição de intrigas (intriga, na terminologia de Ricoeur, assume o mesmo sentido daquilo que outros teóricos chamam de enredo, ou seja, o esqueleto da narrativa, aquilo que dá sustentação à história, o desenrolar dos acontecimentos).

Nesta trilogia, Ricouer comenta, fazendo referência a um pensamento de Santo Agostinho, que o entendimento a respeito da natureza da passagem do tempo é algo extremamente complexo, o que fica evidente em Agostinho a partir da frase “que é, pois, o tempo?” e do posterior comentário “se ninguém perguntar, eu sei; se quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”. A nossa experiência em relação à compreensão sobre o tempo, é, então, carregada de aporéticas, ou seja, de questões insolúveis que estão repletas de paradoxos.

Para esta monografia, o que me interessa

em sua trilogia é a distinção que ele estabelece em relação à existência de três categorias diferentes de tempo, a saber:

• O tempo Fenomenológico (ou o tempo vivido) é o tempo subjetivo, da experiência singular de cada um em sua relação com o mundo. Seria, por exemplo, o tempo simbólico de nossas experiências, sensações, em nosso ato de nos relacionarmos com o mundo, tempo este que é vivênciado de forma particular e diferente por cada indivíduo.

• O tempo Cosmológico (ou o tempo do mundo) é o tempo dos astros, dos movimentos celestes, que tornam possível, por exemplo a apreensão de significados através dos movimentos do sol ou da lua. É um tempo externo à experiência humana, porém, que está em relação e interfere na experiência vivída do tempo Fenomenológico.

• O tempo histórico (ou terceiro tempo) pode ser também compreendido como tempo do meio e atua na “reinscrição do tempo vivido no tempo cósmico” (215, vol. 3). O tempo histórico se utiliza de conectores (que são, por exemplo, o calendário, o relógio) para a perpetuação dessa reinscrição. É um código, uma forma de entendimento sobre o tempo, criado pelo homem, e que, com a utilização de estratégias/ferramentas tais como a criação de relógio, calendário, estações do ano, etc, contribuem para a organização e o entendimento do homem

Page 37: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

37

em relação à passagem do tempo. É o que torna possível, por exemplo, o entendimento a respeito de questões tais como: em que época aconteceu determinado fato, quantos anos se passaram depois de..., qual é a idade daquele homem etc.

Para além desta classificação, Ricoeur acrescenta ainda uma quarta forma especial de compreensão sobre a passagem do tempo. Ele afirma que, assim como o tempo histórico se caracteriza por ser uma forma criada pelo homem para harmonizar a relação entre tempo cosmológico e tempo fenomenológico, é possível também, através da criação de variações imaginativas sobre o tempo, tornar o entendimento de tais aporéticas mais acessível, sendo que esta forma está presente de maneira característica no campo de criação de ficções. Para melhor compreender a natureza da relação entre experiência temporal e ficção, Ricoeur desenvolve a análise de três narrativas de ficção: Mrs. Dalloway (Virgínia Woolf), A montanha mágica (Thomaz Mann) e Em busca do tempo perdido (Marcel Proust). Como conclusões, Ricoeur destaca que “A narrativa de ficção é mais rica em informações sobre o tempo, no próprio plano da arte de compor, que a narrativa histórica. Não que a narrativa histórica seja extremamente pobre a esse respeito”, uma vez que faz uso de forma livre das variações imaginativas e não depende da utilização de conectores entre o mundo vivido e o mundo cosmológico, conforme ao que ocorre

em geral no caso da historiografia.Variações imaginativas, por exemplo, podem

ser frequentemente observadas em narrativas fílmicas contemporâneas, através da utilização de recursos de edição tais como uso de feedback (trazer ao presente imagens que corresponde ao passado), de câmera lenta, de retrocesso da imagem, entre outros. Poderíamos ainda incluir nesta terminologia o caso da produção de anamorfoses cronotopicas nas imagens, tal qual Arlindo Machado discute no artigo "Anamorfoses cronotópicas ou a quarta dimensão da imagem", que será comentado no próximo capítulo desta monografia.

Variações imaginativas sobre o tempo podem ser entendidas, então, como uma forma mais livre de falar sobre a passagem do tempo, de criar novos arranjos sobre o tempo os quais são viáveis apenas no campo da ficção; tornando-se, assim, um importante recurso através do qual o homem adquire condições para melhor compreender as aporéticas do tempo e também através do qual o homem adquire condições para tornar possível (no campo da ficção) aquilo que não é possível ocorrer na realidade.

Conclusão

Fazendo relação com meu projeto Obra em Derretimento, eu diria que minha produção se caracteriza, então, por ser um laboratório experimental de produção de variações

Page 38: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

38

imaginativas sobre o tempo. O que estou fazendo ao criar obras de arte é, portanto, a construção de ficções compostas por enredos que se caracterizam pela criação de variações imaginativas sobre o tempo. Essas experiências organizam, criam significados e acabam por alterar nossa percepção a respeito da nossa presença no mundo com relação ao fluxo irreversível do tempo.

Conforme a perspectiva e Kermode sobre a criação de ficções, trata-se de um preencher o tempo com significados, de transformar chronos em kairos, através da criação de Obras Visuais. As obras produzidas no decorrer do projeto Obra em Derretimento comentam, justamente, a impossibilidade de reter o tempo, de torná-lo controlável por mãos humanas. É uma tentativa irônica, que sabe-se fadada ao fracasso desde o início, de apropriar-se do tempo, de lutar contra a destruição das coisas. Porém, embora não deixe nunca de ser uma tentativa, é um ato que atinge sucesso no momento em que cria um grande número de registros do objeto que deixa de existir: com isso, sua a existência breve é preenchida de significações.

Page 39: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

39

Page 40: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

40

Page 41: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

41

Em O mal-estar da civilização (1930), Freud convida o leitor à construção de uma narrativa imagética que me interessa enormemente:

Permitam-nos agora, num voo da imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante – isto é, uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. Isso significaria que, em Roma, os palácios dos césares e as Septizonium do Sétimo Severo ainda se estariam erguendo em sua antiga altura sobre o Palatino e o Castelo de Santo Ângelo ainda apresentaria em suas ameias as belas estátuas que o adornavam até a época do cerco pelos godos, e assim por diante. [...] Ao mesmo tempo, onde hoje se ergue o Coliseu, poderíamos admirar a desaparecida casa Dourada, de Nero. Na praça do Panteão encontraríamos não apenas o atual, tal como legado por Adriano, mas, aí mesmo, o edifício original levantado por Agripa: na verdade, o mesmo trecho de terreno estaria sustentando a Igreja de Santa Maria sobre Minerva e o antigo templo sobre o qual ela foi construída. E talvez o observador tivesse apenas de mudar a direção do olhar ou a sua posição para invocar uma visão ou a outra. (FREUD, 1930/2001)

SEGUNDO ESTUDO TEÓRICO: O TEMPO DAS IMAGENS

Page 42: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

42

Este “voo de imaginação” busca ilustrar determinada característica da mente humana: o passado encontra-se, de alguma forma, preservado em sua configuração atual. Experiências vivenciadas em tempos passados, como, por exemplo, na infância, encontram-se, então, vigentes no presente, apresentando-se como acumulação de registros, memórias, conhecimentos etc. Assim como seria possível na construção de Freud visualizar no presente diferentes construções de um tempo passado, o corpo humano (incluindo a mente) é constituído por marcas, restos, vestígios de suas experiências passadas. Nesse sentido, é coerente afirmar que a experiência humana em relação ao tempo é transcendente, ou seja, excede a fronteira de sua vivência atual, atravessando o sujeito para algo fora dele, para um passado já não mais o qual, no entanto, encontra-se preservado – e atuante – em sua constituição.

Quando comecei a estudar fotografia, momento em que eu estava particularmente interessado nesta reflexão proposta por Freud, encontrei na linguagem fotográfica um meio de pensar por imagens, buscar compreender/transpor àquele voo de imaginação de Freud para a linguagem fotográfica. Foi então que percorri o seguinte raciocínio:

Algumas máquinas fotográficas, tais como câmeras de uso profissional e câmeras de lomografia1, permitem, através do controle de tempo de exposição, definir o tempo em que o filme (ou o sensor digital) ficará exposto à luz para formar/registrar a imagem. Esse dispositivo está relacionado com o tempo que a câmera leva para abrir e fechar o obturador. Com esse recurso é possível fotografar uma situação específica dentro de um período de, por exemplo, trinta segundos, sem que, no entanto, a imagem final deixe de ser uma imagem única. A imagem capturada representa, assim, por uma lógica aditiva, tudo aquilo que, sendo suscetível à captura, se passou em frente à câmera em um período compreendido entre a abertura e o fechamento de seu obturador. Não é impossível, portanto, reler Freud através de uma simples experiência fotográfica:

1 Lomografiaéumtipodefotografiaproduzidacomcâ-merasanalalógicasfabricadascommaterialbaratoedequalida-de duvidosa, porém, com uma aceitavel quantidade de ajustes manuais.Porapresentarem“defeitos”noresultadofinaldasima-gens, que, na verdade, podem ser aprecisados como distor-ções e texturas de natureza inusitada e esteticamente interes-sante,essasfotografiastornaram-sefebreapartirdemeadosdadécadade1990e, atualmente, éobjetode interessedemuitosgruposdefotógrafos.

Page 43: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

43

Esta fotografia foi tirada com um tempo de exposição de 15 segundos a fim de representar através da fotografia aquilo que estava sendo discutido por Freud. Ao invés de prédios históricos, têm-se agora dois objetos simples: uma lâmpada e um frasco de vidro. O procedimento utilizado foi o seguinte: primeiro dispor um dos objetos (a lâmpada) em frente à câmera e apertar o botão de abertura do obturador previamente programado para manter-se aberto por 15 segundos; depois de aproximadamente sete segundos, substituir com rapidez a lâmpada pelo segundo objeto (o frasco de vidro), o qual deve permanecer em frente à câmera até que o obturador se feche. Ao final tem-se que: assim como a Casa Dourada poderia

ser imaginada de forma sobreposta ao Coliseu, a lâmpada fotografada também encontra-se representada - marcada na fotografia - mesmo tendo sido substituída, instantes depois, por um segundo objeto. É assim também que me sinto em relação ao meu passado, às memórias da minha infância, às coisas que construí.

Dando continuidade, percebe-se que o tempo de exposição influencia diretamente (e oferece dados para reflexão sobre) o resultado final da imagem. Esta é uma característica inerente à própria história da fotografia e remete à produção das primeiras imagens fotográficas: no início, as fotografias não eram instantâneas, mas, pelo contrário, necessitavam de um longo tempo de duração para que a imagem fosse registrada. De acordo com Walter Benjamin:

A fraca sensibilidade luminosa das primeiras chapas exigia uma longa exposição ao ar livre. Isso por sua vez obrigava o fotógrafo a colocar o modelo num lugar tão retirado como possível, onde nada pudesse perturbar a concentração necessária ao trabalho. (...) O próprio procedimento técnico levava o modelo a viver não ao sabor do instante, mas dentro dele; durante a longa exposição da pose, eles por assim dizer cresciam dentro da imagem [...] Tudo nessas primeiras imagens era organizado para durar [...] as próprias dobras de um vestuário, nessas imagens, duram mais

tempo. (BENJAMIN, 1994, p. 96)

Page 44: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

44

A partir da fotografia é possível então, como ocorre em experiências realizadas desde o momento do surgimento das primeiras fotografias, ver além do instante. É possível obter, através da continuidade do tempo uma representação que irrompe o limite tempo/instante. A imagem final transcende ao último instante registrado e, portanto, é uma imagem gerada pela acumulação da imagem espacial no decorrer do período em que a objetiva esteve aberta. Sendo assim, tanto a partir de reflexões teóricas como a partir de produções artísticas, torna-se relevante explorar o fato de a fotografia captar não apenas um evento ou um acontecimento isolado em uma fração mínima no tempo, mas sim a possibilidade de ela concentrar em si (seja ela de mais de um objeto ou não) uma continuidade temporal condensada, cuja representação é preservada na visualidade da imagem final da fotografia.

Após esse movimento inicial, resolvi explorar de forma mais aprofundada a relação entre a passagem do tempo e a produção de imagens, com foco maior nas imagens fotográficas. Foi então que conheci o livro A máquina de esperar, de Mauricio Lissovsky, o qual percorre a história da fotografia, colocando-a em relação com sua busca técnica por tornar-se instantânea. Passo agora, então, a tecer uma reflexão sobre a imagem fotográfica ancorada na perspectiva apresentada por Lissovsky, buscando também fazer referência a outros teóricos e estudiosos sobre fotografia.

Em A máquina de esperar, Lissovsky

defende que, apesar do fato de que era necessário um longo tempo de duração para a captura das primeiras imagens fotográficas, a produção dessas imagens tornou-se dominantemente instantânea com a sua evolução técnica. Nas palavras dele: “Desde esses dias tão remotos até bem recentemente, os avanços na ótica e o incremento progressivo da fotossensibilidade dos suportes (...) reduziram o tempo de exposição a frações infinitesimais do segundo” (LISSOVSKY, 2008, p. 33).

Vejamos a seguir um breve panorama sobre a evolução técnica pela qual a fotografia passou:

Diferentemente da experiência que temos hoje com a produção de fotografias, para a captura das primeiras imagens fotográficas era necessário um longo tempo de duração. Segundo Pedro Peixoto Ferreira e Márcio Barreto, a captura da primeira fotografia, por exemplo, “exigiu um tempo de exposição de pelo menos oito horas”.

2

2VistadaJanelaemLeGras,JosephNiépce (1826). fonte:http://cool.conservation-us.org/byorg/abbey/an/an26/an26-3/an26-307.html

Page 45: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

45

Os sinais da passagem do tempo estão presentes de forma contundente nesta imagem. Ao observa-la, somos autorizados a imaginar, por exemplo, que a fotografia apresenta borrões, traços de movimentos, de objetos que tenham se movimentado em frente à objetiva durante o tempo de captura de imagem. Para além do visível, não seria incoerente imaginar que esta fotografia possivelmente apresenta, portanto, vestígios de pássaros que tenham sobrevoado o céu durante as oito horas de captura, ou, por que não, a imagem do próprio Niépce ao situar-se em frente à câmera para verificar se o dispositivo estava adequadamente posicionado. Eis que, para além da imagem visível de forma mais ou menos objetiva – predominantemente, o telhado de uma residência – a percepção que temos sobre uma imagem capturada através de um longo tempo de visualização é ampliada, tornando-se possível observar os movimentos que ocorreram em frente à câmera no decorrer do tempo como constitutivo de seu significado.

Em função dos longos tempos de exposição, nos primórdios da fotografia, era comum que os sujeitos fotografados precisassem apoiar-se uns nos outros, ou, então, apoiar-se em estruturas fixas como colunas de concreto ou cadeiras, para a criação de retratos. Assim ocorre, por exemplo, em fotografias do fotógrafo David Octavius Hill (1802–1870):

3

No livro A câmera clara, Barthes comenta a invenção de um aparato capaz de manter o corpo imóvel durante a captura das imagens, de forma a tornar mais confortável o ato de ser fotografado. Segundo ele:

para fazer os primeiros retratos (em torno de 1840), era preciso submeter o sujeito a longas poses atrás de uma vidraça em pleno sol; tornar-se objeto, isso fazia sofre como uma operação cirúrgica; inventou-se então um aparelho, um apoio para a cabeça, espécie de prótese, invisível para a objetiva, que sustentava e mantinha o corpo em sua

3 fonte:http://www.edinphoto.org.uk/pp_d/pp_hill_calo-types_of_do_hill.htm

Page 46: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

46

passagem para a imobilidade.” (BARTHES, p. 26)

A captação das imagens nas chapas fotossensíveis tornou-se, no entanto, cada vez mais rápida. Segundo Lissovsky, tais avanços "deram-se aos saltos, espantosos e atordoantes. Mergulhos repentinos que conduziram do insuportavelmente lento ao demorado; deste ao breve e ao brevíssimo; e, ao final, ao imperceptível.” Em termos numéricos tem-se que: as imagens de Niépce consumiram horas de exposição para serem produzidas; já em 1940, os tempos de exposição variavam entre 4,5 e 60 minutos; em 1951, com a criação da técnica conhecida por ‘colódio úmido, a exposição foi reduzida para intervalos de 3 a 21 seguntos; em 1878, quando os fotógrafos passaram a dispor de gelatina seca, os filmes passaram a ser quarenta vezes mais sensíveis e a fotografia alcançou a impressionante marca do décimo de segundo (LISSOVSKY, 2008).

Segundo Lissovsky, “quando a técnica do instantâneo se naturaliza, fotografar torna-se a prática de um ausentar-se do tempo, de um refluir do tempo para fora da imagem” (LISSOVSKY, 2008, p. 40). A evolução técnica da fotografia reflete, então, a busca do homem pela captura de instantes, dos menores fragmentos de tempo possíveis. Por um lado, isto resulta em um ganho de nitidez das imagens e da objetividade das

imagens produzidas, por outro, um esvaecimento da experiência temporal. Evidentemente, não é o caso de defender uma ou outra forma de produção de imagens, mas de salientar que, se em um primeiro momento, a produção de imagens dependia, necessariamente, de sua relação com o tempo, com a evolução técnica o próprio resultado fotográfico tornou-se menos dependente de uma relação com ele.

Cabe observar que o conceito de “instante”, nesse caso, deve ser relativizado: em termos matemáticos, sempre existe uma distância menor entre um corpo e outro, por exemplo: a distância entre um copo e a mão que irá pegar esse copo pode começar perfazendo 1 metro e depois passar para 0,1 metro... e depois passar para 0,001 metro ... e assim ad infinitum. Em termos reais ocorre que a mão acaba tocando o objeto, mas existe um paradoxo em termos matemáticos. Conforme evidencia Arlindo Machado no artigo "Anamorfoses cronotópicas ou a quarta dimensão da imagem, haveria infinitos instantes dentro de um instante e, portanto, acredito eu, a duração de um instante não deve ser nunca desconsiderada.

Dando continuidade ao raciocínio que vem sendo apresentado, pode-se dizer que as consequências dessa evolução técnica sobre as formas de criação artística são enormes, gerando diferentes maneiras através das quais os artistas passaram a relacionar-se com o tempo. Torna-se, então, esclarecedor citar alguns exemplos:

Em meados de 1870, Eadweard J.

Page 47: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

47

Muybridge e Étienne-Jules Marey desenvolveram experimentos para captar, através da fotografia, os movimentos de animais e pessoas. A técnica intitulada “cronofotografia” consistia na criação de um dispositivo fotográfico que permitia a captura de sucessivas imagens no decorrer de um curto período de tempo. Especialmente no caso das fotografias produzidas por Marey, tais experimentos possuíam uma finalidade científica: através das cronofotografias o homem adquiriu condições para decifrar aspectos da realidade que não eram possíveis de serem compreendidos com a visualização do olho nu, como, por exemplo, o entendimento dos movimentos realizados por um cavalo durante “a passagem de um tipo de marcha para outra, por exemplo do galope ao trote ou do trote a andadura” (GODOY, 2001, p. 235). Lissovsky destaca que a produção de cronofotografias só tornou-se possível com o advento da tecnologia do instantâneo, podendo ser considerada como uma expressão máxima, espantosa, com relação ao “muito rápido”. Com isso, “libertos da duração, os fotógrafos acreditaram finalmente ter dominado o tempo que antes os atormentava” (LISSOVSKY, 2008, p. 35).

Na sequência, em 1895, os irmãos Lumière criaram o Cinematógrafo, um aparelho que permitia tanto a captação de fotogramas como a projeção dos mesmos em sequência em uma tela branca. No caso do cinema, a experiência com o tempo em relação a cada fotograma acaba por

sofrer uma ausência ainda maior do que no caso das cronofotografias, uma vez que a imagem cinematográfica é gerada por uma sucessão de ínfimos instantes fotográficos. O cinema acaba por apresentar, então, uma experiência diferente com o tempo: Bergson chega a afirmar que o que o cinema faz é “reproduzir artificialmente o devir das coisas” (LISSOVSKY, 2008), uma vez que a duração não se encontra na imagem de cada fotograma, mas a partir da “ilusão” de duração criada pelas imagens sucessivas. Não se pode negar, no entanto, que existe, sim, uma experiência da imagem em sua relação com o tempo, porém trata-se de uma forma distinta de relacionamento daquela encontrada nas primeiras fotografias.

O futurismo italiano e as experiências de fotógrafos que criavam imagens fotodinâmicas configuraram-se como um movimento contrário à expulsão da experiência de duração das imagens. Os irmãos Bragaglia foram dois personagens importantes desse cenário: “em suas imagens fotodinâmicas, realizadas entre 1910 e 1912, os irmãos Bragaglia procuravam distinguir-se dos cronofotógrafos”. nas palavras deles:

Assim nós queremos afirmar e captar essas qualidades transcendentais do real, em seu deslocamento, o qual, por sua vez, desloca a atmosfera; pois queremos nos esforçar para notar o ambiente, em todo o seu volume, perturbado e desordenado na revolução

Page 48: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

48

provocada pelo movimento do corpo [...]

(Bragaglia, apud Fabris, 2004, p. 65)

Assim, em um momento em que todos buscavam explorar a produção de imagens instantâneas, mesmo já sendo detentores da capacidade de produção de imagens com um curto período de captação, os fotodinamistas optaram por produzir fotografias com longo tempo de exposição, tal como na imagem apresentada a seguir:

4

Os irmãos Bragaglia não estavam interessados na reconstrução precisa do movimento, o qual já tinha sido dividido e analisado, mas estavam envolvidos com a idéia de criar sensações a partir da exploração de movimentos. Com isso, o tempo, que tinha sido 4 fonte: http://midiamagia.wordpress.com/tag/imagem-em-movimento/

expulso das imagens fotográficas no decorrer da evolução técnica dos aparatos de fotografia, fora, então, “restituído à imagem na forma de afecção do espaço” (LISSOVSKY, 2008, p. 56)

Machado utilizou o termo "anamorfoses cronotópicas" para referir-se a esta anotação do deslocamento dos corpos nas imagens, ou seja, anamorfoses cronotópicas são deformações resultantes de uma inscrição do tempo na imagem. Machado evidencia que parece existir uma paradoxo relacionado à esta questão, uma vez que "a fotografia é normalmente encarada como um sistema significante de suspensão do tempo, de congelamento da imagem num instante mínimo e único.", enquanto que "O princípio básico do cronotopo fotográfico reside na elasticidade do conceito de instante: considerando o tempo como um desenrolar de eventos, a fotografia surge como algo que se interpõe nessa sucessão, para fixar um intervalo"(MACHADO, p. 103). Assim, a inscrição da passagem do tempo nas imagens fotográficas é, de certa forma, algo antagônico ao próprio desenvolvimento tecnológico da fotografia, porém, isso não impediu que os fotógrafos explorassem formas de reinscrição desta temporalidade perdida. No lugar de capturar instantes, conforme evidenciou Machado, talvez seja sempre mais adequado afirmar que "a fotografia capta um intervalo".

Mais adiante, em 1945, as fotografias do fotógrafo Gjon Mili, publicadas na revista Life em 1949, apresentam Pablo Picasso tendo em

Page 49: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

49

mãos uma lanterna, construindo desenhos que pressupõe o movimento da fonte de luz sobre o dispositivo de registro fotográfico.

5

As imagens desta série compreendem a inscrição do tempo como um dos elementos que interferem na produção dos resultados finais. As fotografias de Mili e Picasso estão, portanto, diretamente relacionadas às fotografias produzidas por, por exemplo, os irmãos Bragaglia, mas a diferença aqui é que Mili e Picasso utilizam a mesma técnica de longa exposição para, agora, compor desenhos com a utilização de uma lanterna. A produção desse desenho se

5 fonte:http://www.revistaleaf.com.br/as-pinturazde-luz-de-pablo-picasso/3082/

torna possível através da utilização da fotografia e de sua relação com o tempo. A fotografia de Gjon Mili é, portanto, a experimentação de uma técnica fotográfica na busca por possibilidades de criação.

Atualmente, com o advento das câmeras fotográficas digitais, uma forma bastante semelhante de criação de imagens fotográfica tem se popularizado: a técnica chamada light painting. Esta técnica compreende o registro de movimentos de fontes luminosas através de fotografias de longa exposição, criando desenhos com o que os praticantes chamam de “pincéis de luz”, tal qual fez Picasso em 1945. Exemplo desse tipo de criação são as produções do grupo LICHTFAKTOR, um coletivo de jovens artistas alemães que estão explorando o território de expressão do light painting.

Conclusão

Percebe-se então que tal evolução abriu caminho para duas formas especiaks de os fotógrafos relacionarem-se com a passagem do tempo. Por um lado, como no caso das imagens produzidas por cronofotografias, as marcas da passagem temporal são expulsas das imagens fotográficas, as quais adquiriram a capacidade de serem instantâneas. Mesmo assim, ocorre, neste caso, uma relação com o tempo, a qual não pode ser observada no resultado final de cada imagem produzida, mas a partir da visualização

Page 50: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

50

de sequências de imagens. Por outro lado, como ocorre no caso das fotografias dos fotodinamistas, a passagem do tempo interfere no próprio resultado da imagem fotográfica, de forma semelhante ao que ocorria no caso das primeiras fotografias.

Como se percebe, pode-se dizer que a evolução técnica trouxe liberdade aos fotógrafos para escolherem diferentes formas de relacionar-se como o tempo: em alguns casos a passagem do tempo encontra-se inscrita nas imagens fotográficas, em outros expulsa. A partir do momento em que a fotografia tornou-se instantânea, passou a ser possível, então, optar entre produzir fotografias que apresentam maior ou menor relação com a passagem temporal.

No decorrer deste curso de especialização, explorei tanto a produção de fotografias com longo tempo de exposição (tornando a passagem do tempo inscrita nas imagens fotográficas), como a criação de sequências de fotografias instantâneas. É exemplo do primeiro caso, as obras "perícolo" e "l'agile", que criei em 2010, quando eu estava especialmente interessado no estudo dos trabalhos dos fotodinamistas e do futurismo italiano (apresento as imagens na página a seguir).

As obras que pertencem ao projeto Obra em Derretimento, por outro lado, apresentam predominantemente aquela forma de relacionar-se com o tempo caracterísco da produção de cronofotografias, ou seja, de criação de

sequências de fotografias com intervalos de tempo muito breves das esculturas de gelo em derretimento. Atualmente, como será apresentado com maiores detalhes no capítulo a seguir, tenho trabalhado não mais apenas com fotografias, mas com a produção de vídeos. Ou seja, o estágio atual das produções do projeto Obra em Derretimento compreende uma diversidade de formas de criação e de formas de relacionar-se com o tempo, entre elas a produção de vídeo e a criação de fotografias em sequência.

Page 51: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

51

Page 52: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

52

Page 53: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

53

O PROJETO OBRA EM DERRETIMENTO: DA CRIAÇÃO AO MOMENTO ATUAL

Tendo apresentado dois breves memoriais no início desta monografia e após ter clarificado algumas questões relacionadas à produção de obra de arte e à forma como o tempo se torna presente em minhas criações, passo, agora, a construir uma descrição comentada sobre os principais momentos que compõem o projeto Obra em Derretimento. Com isso, pretendo tanto articular as idéias comentadas até aqui com o conteúdo específico de cada obra, como criar um panorama sobre a constituição do projeto.

Para começar, eu não poderia deixar de falar sobre a minha primeira produção artística: o livro Como analisar um raio de sol. Embora sua linguagem e materialidade seja de natureza completamente diferente das obras que compõem o Obra em Derretimento - esta composta por gelo e fotografia, aquela por papel e construção literária - creio ser possível identificar neste trabalho elementos seminais os quais estão presentes ao longo de toda a minha produção artística. Tanto elementos formais como de conteúdo foram, assim, explorados, relidos e rearranjados de diferentes maneiras ao longo do tempo, acabando por constituir todo um universo contextual de obras inter-relacionadas. Vejamos:

Como analisar um raio de sol é um livro digital composto por contos e poesias os quais

Page 54: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

54

apresentam forte relação entre palavra e imagem. Os textos que o constituem foram produzidos durante um período de minha adolescência (entre 2003 e 2005 - dos meus 16 aos meus 18 anos) e publicados em formato de livro digital no ano de 2010, quando ingressei na faculdade de Design Digital (UFPEL). Conforme comentei na entrevista concedida a Lorenzetti (memorial 2), a existência do livro Como analisar um raio de sol é fruto de um processo extremamente espontâneo - resultado de surtos criativos - de um garoto em plena necessidade/desejo de relacionar-se com o mundo, tomado por uma ânsia por expressar suas idéias, por entender seus sentimentos, por conhecer pessoas, por aproveitar ao máximo cada instante, por fazer a vida valer. Além disso, este trabalho é, também, um processo de elaboração de perdas - de uma infância que deixava de ser, de uma morte simbólica dos pais e de uma avó que faleceu - e de busca por identidade para tornar-se um adulto feliz: o artista que cria para tornar a vida mais interessante.

Gostaria então de apresentar e comentar uma das poesias que constituem este livro. Ela se chama pôr-do-sol:

Vejo nesta poesia uma síntese - a mais precisa que consegui atingir - sobre a inevitável passagem: dia, pouco dia, pouca noite, noite. O dia que se esvaece aos poucos; a noite que chega sem pedir para entrar. O poema na parte inferior da página e a forma arredondada de um sol, prestes a despencar.

Eis que encontro nela todos os principais componentes de minhas obras atuais: composição em forma redonda, gelo em transformação que se esvaece, forma e conteúdo que registram a passagem de um estado a outro, um nem sempre desejável deixar de existir e um transformar-se.

Na sequência: Gelos Quentes (2009). É especialmente importante em minha trajetória, pois é o primeiro trabalho que realizei no campo específico das artes visuais e também o primeiro que desenvolvi com a utilização do material “gelo”. Trata-se de uma série de fotografias que acabaram por compor um quadro que contém cinco fotografias de uma escultura de gelo em

Page 55: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

55

derretimento. A escultura, que foi produzida através de uma mistura de água e tinta acrílica, é um estudo que deu origem ao trabalho que produzi na sequencia, intitulado Releituras de Dali.

Releituras de Dali é uma série de fotografias produzidas a partir da captação de imagens de duas esculturas de gelo, que fazem referência à pinturas de Salvador Dali.

A primeira escultura recebe o nome de “estudo para o congelamento da memória” e faz referência à obra “a persistência da memória” (DALI, 1931). É uma obra de caráter experimental cujo processo de criação consistiu na imersão em água de um relógio de pulso digital e seu posterior congelamento. A água utilizada na escultura passou por um processo prévio de tratamento de forma a garantir que o gelo se mantivesse transparente e o relógio pudesse ser visualizado. Detalhe: após o congelamento, o relógio continuou funcionando e marcando o horário correto.

Já a segunda escultura é intitulada “Estudo para a preservação da rosa meditativa” e faz referência à pintura “A rosa meditativa” (DALI, 1958). Foi produzida através da adição e congelamento de diversas camadas de água misturada com tinta acrílica de diferentes colorações. Sobre uma das camadas, foi depositado uma rosa (flor), que foi posteriormente submersa por outras camadas de água/gelo.

Page 56: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

56

O Homem e a Bola (2009 - nanquim sobre papel; fotografia em sequência e edição) foi primeira vídeo-animação que produzi. Foi elaborada em parceria com colegas do curso de Design Digital da UFPEL e teve por objetivo a produção de uma animação utilizando procedimentos e visualidades semelhantes às utilizadas nas primeiras vídeo-animações. Não considero que este trabalho pertença ao projeto Obra em Derretimento, mas através dele exercitei a técnica a qual utilizei para criar o primeiro vídeo

em stop-motion produzido a partir de imagens de uma sequência de fotografias de uma escultura em derretimento, vídeo que recebeu o nome de Obra em Derretimento nº1.

Obra em Derretimento nº 1 (2010 - técnica: esculturas de gelo e forografia digital; material: água e tinta acrílica; duração 4' 09'') foi o primeiro vídeo produzido a partir da captação de imagens de esculturas em derretimento. É caracterizado pela utilização do conceito de cronofotografia - ou seja, o registro de diversas fases de um movimento através de fotografias em sequência para a captação das modificações que ocorrem ao longo do derretimento do gelo. A partir desse experimento foram produzidos: 1259 fotografias, 1 animação em stop-motion e 1 livro-objeto composto por parte das fotografias.

Page 57: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

57

1

Este trabalho é o marco da criação do projeto maior que recebeu o nome Obra em Derretimento, que tem por objetivo a produção de um grande número de obras de arte a partir da criação de esculturas de gelo e o registro intensivo das mesmas durante seu processo de desconstrução.

1 Imagens do livro-objeto Obra em Derretimento nº 1 (2011)

Posteriormente ao Obra em Derretimento nº 1, veio o primeiro vídeo do projeto produzido em parceria com outro artista. Na produção do vídeo intitulado Empty (2010 - material: água, bexiga de aniversário), as imagens, capturadas também em sequência, foram produzidas a partir da sonoridade de uma música produzida pelo compositor Luciano Mello, composta especialmente para esse projeto. No vídeo, no entanto, a escultura não chega a derreter completamente. O material que sobrou da escultura foi exposto posteriormente na abertura da exposição “Eles estão chegando”, com curadoria de José Luiz Pellegrim. Desta forma, além de assistir ao vídeo apresentado na exposição, no dia da abertura, o público pôde ter contato com a escultura utilizada para a produção do vídeo.

Em agosto de 2010 visitei uma exposição chamada "Video Portraits", de Robert Wilson, que me jogou aos olhos novas idéias para trabalhos que eu poderia realizar - e que, de fato, vim a realizar posteriormente. Esta exposição apresentava imagens em vídeo de celebridades, sendo que estas imagens se pareciam com retratos uma vez que as imagens mostravam movimentos mínimos dos personagens na tela. Daí, acredito eu, vem o nome, video protraits.

Em 2011, após ter elaborado/processado novas idéias, criei, então, a primeira vídeo-fotografia de meu projeto. Trata-se da produção de um vídeo com a filmagem de todo o período que compreende o início e o fim do derretimento

Page 58: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

58

2

de uma escultura de gelo. Como esse processo, especialmente em um dia de não muito calor, é bastante vagaroso, a obra final, intitulada Vídeo fotografia nº 1, possui aproximadamente 8 horas de duração. Assim, a idéia é que, quando apresentada em uma exposição, o público tenha a impressão de estar olhando para uma fotografia; no entanto, se, por exemplo, um observador

2 Obra vídeo-fotografia nº1 (2011), ao ser exposta no “Paralelo 31” (local: A SALA, Centro de Artes - UFPEL)

mais atento contemplar a obra quando chegar na exposição e, posteriormente, após passar algum tempo contemplando outras obras, voltar para vizualizar novamente a vídeo-fotografia nº 1, ele perceberá que a obra se modificou ao longo do tempo; e, da mesma forma, poderá voltar 1 ou duas horas depois para visualizar mudanças no estado da obra. O termo vídeo-fotografia foi criado por mim e é variação para o termo

Page 59: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

59

2012, executei e transmiti ao vivo pela internet a performance artística intitulada Ato em Derretimento nº 2, na abertura da exposição "Arte Sul Contemporânea", realizada no MAC-RS (Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul), em Porto Alegre. A idéia, desta vez, foi montar um set de filmagem no centro da sala de exposições e produzir uma vídeo-arte a partir da captura de imagens de uma escultura em derretimento. Tudo foi realizado diante dos olhos do público: visitantes da exposição e internautas em qualquer lugar do mundo puderam acompanhar, participar e conversar comigo durante seu processo de criação.

Este foi o último trabalho que realizei até o presente momento. Parte do material coletado

"video portrait", utilizado por Wilson. Isto pois "Portrait"(retrato), embora possa ser utilizado para designar qualquer imagem fotográfica, é mais comumente utilizado para fazer referencia à imagens fotográficas de pessoas; como, então, minha obra não apresenta imagens de pessoas, mas de uma escultura em derretimento, escolhi utilizar o termo "vídeo fotografia", mais adequado para a situação.

Considero que o processo de produção desta vídeo-fotografia sofreu também um salto qualitativo, pois foi nesse episódio que executei a performance intitulada Ato em Derretimento nº1. Até a realização deste trabalho, a produção de todas as obras que eu elaborara tinham ocorrido de forma isolada, individual, uma vez que eu costuma produzir sozinho em meu apartamento. No entanto, a partir deste momento, resolvi transformar meu ato criativo em um evento aberto ao público, de exposição do ato criativo, no qual as pessoas podem acompanhar e participar de meu processo de feitura de uma obra de arte. Para tanto, durante um período de aproximadamente 10 horas de duração, eu transmiti ao vivo, pela internet (via twitcam), imagens de todo meu processo de criação. Tanto esta vídeo-fotografia como um registro de performance do Ato em Derretimento nº 1 foram expostos na exposição "Paralelo 31", que ocorreu neste ano em Pelotas (ver portifólio para acessar link de visualização do registro da performance no Vimeo).

Recentemente, no dia 7 de Julho de

Page 60: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

60

naquele dia já foi editado e finalizando, dando origem ao vídeo Obra em Derretimento: ao vivo no museu nº1. Outra parcela do material encontra-se em processo de pós-produção.

O projeto Obra em Derretimento segue, atualmente, em pleno desenvolvimento. A partir de agora, como ações futuras, pretendo dar continuidade à realização de outros "atos em derretimento" de forma a estreitar minhas relações com o público, bem como buscarei explorar variações formais na constituição das esculturas, tais como criar blocos de gelo com diversas camadas de cores e verificar qual é o efeito disso durante o derretimento. Creio que esta continuidade ao projeto necessitará, ainda, de alguns anos para desenvolvimento e elaboração de novas técnicas e visualidades e, sendo assim, posso concluir que tenho material criativo para trabalhar neste projeto por um longo período de minha vida.

Page 61: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

61

Page 62: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

62

Page 63: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

63

NO ENTORNO DA CRIAÇÃO

Ao longo desse processo me envolvi em algumas situações e me dediquei a algumas tarefas que não estão diretamente relacionadas à produção de obras de arte, mas que perfazem o entorno do ato de tornar-se artista. A seguir, listo e comento algumas delas, e tentarei demonstrar que ser artista na atualidade envolve um contexto bastante mais amplo do que unicamente a produção de obras.

Primeira atitude: criação de site pessoal na internet e utilização de redes sociais

Foi no período correspondente ao início desta especialização (início de 2010) que eu planejei e publiquei meu site pessoal, no endereço www.patricktedesco.com. Como eu frequento o curso de Design Digital da UFPEL, tive a oportunidade de desenhar por conta própria a visualidade desta página e arquitetar cada um das sessões que ela possui. A idéia era utilizar o site como portifólio digital, um ambiente em que em pudesse apresentar o todo de minha produção e, ao mesmo tempo, publicar as novidades de meus trabalhos e apresentá-las ao público. Para tanto, resolvi construir um

Page 64: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

64

ambiente virtual clean e neutro (plano de fundo branco, menu horizontal e vertical alinhados, cores utilizando gradação de cinza), baseado, por exemplo, na visualidade das salas de exposições, de forma que as características formais do site não interferisse na visualização de minhas obras. Criei sessões nas quais eu pudesse publicar diferentes tipos de trabalhos, consideranto a variedade de minha pordução: fotografias, vídeos, livros e trabalhos em design. Desta forma, mesmo após dois anos após sua criação, ainda tenho um site que suporta as minhas necessidades e que, por ser um ambiente neutro, ainda se mantém moderno e não necessitou passar por re-design.

Segunda atitude: criação de um blog

No momento em que criei meu site, resolvi agregar a ele, também, um blog que me oferecesse a oportunidade de publicar materiais relacionados à minha produção, como, por exemplo, imagens de making of, reportagens de jornais, etc. Este é um ambiente, também, que possibilita a publicação de comentários por parte do público visitante, tornando-se um meio de troca de idéias e feedbacks em relação a meus trabalhos.

Embora eu tenha criado este blog em 2010, comecei a utilizá-lo há apenas alguns meses, quando senti uma maior necessidade de postar conteúdos relacionados às minhas produções. O blog pode ser visitado através do endereço:

http://www.patricktedesco.com/port/blog/.

Terceira atitude: criação de uma fan page no Facebook

Há também aproximadamente dois anos, mantenho uma página pessoal no facebook, cujo perfil pode ser acessado através do endereço: http://www.facebook.com/patrickwtedesco. Utilizo esse perfil tanto como forma de relacionar-me com meus amigos como para publicação de novidades de minhas produções, tais como imagens de meus trabalhos e informações sobre exposições que participo. Porém, mais recentemente, resolvi criar também uma fan page no facebook, que consiste em um ambiente semelhante à página pessoal para amigos, porém que contém exclusivamente informações sobre meu trabalho artístico. É uma forma de manter o público que acompanha meu trabalho atualizado e participante de meu percurso artístico.

Até 2011 utilizei com bastante frequência, também, para a publicação de informações de meus trabalhos, um perfil pessoal na plataforma Twitter, o qual permitia a criação de textos breves e a visualização rápida por um grande número de pessoas. O twitter é uma rede social virtual na qual os usuários podem escolher "seguir" os usuários de sua preferência e, assim, conseguem visualizar os conteúdos publicados por eles. Fiquei extremamente feliz e, de certa forma, realizado, no dia em que a artista Yoko Ono,

Page 65: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

65

uma das grandes influências para meu trabalho, passou a me "seguir" nesta rede social. Até este dia, eu não compreendia a dimensão que a publicação de conteúdos na internet sobre meus trabalhos podia atingir, porém, a partir de então, passei a valorizar a utilização de redes sociais na internet como uma forma de tornar meu trabalho acessível às pessoas de qualquer lugar do mundo. Ainda mantenho esse perfil no twitter, porém, atualmente, estou utilizando com maior frequência o facebook.

Quarta atitude: visita à abertura das exposições

Entendo o dia das aberturas das exposições que eu participo como um momento para avaliação de meus trabalhos. Nestes dias, costumo visitar os espaços expositivos e ficar observando, com bastante atenção, às reações do público ao ter contato com minhas obras. Esta é uma das principais formas que encontrei para melhor compreender os significados que meu trabalho adquire ao serem apresentados, bem como de obter um feedback sobre minhas escolhas (de cores, formas, ritmos, materiais, etc...) durante meu processo de criação e de planejar trabalhos futuros.

Por exemplo: foi através da observação da reação das pessoas que percebi o quão ampla pode ser a interpretação e criação de sentido sobre minhas obras. Raramente as pessoas se

dão conta que trata-se de gelo o material que utilizo para a criação de minhas esculturas, sendo que imaginam os mais variados materiais: já ouvi suposições tais como vela derretendo, bronze, camisinha, etc. É sempre divertido e revigorante perceber a reação delas quando conversam comigo e quando eu revelo que trata-se de "gelo", uma vez que estou trabalhando com um material que gera reação de surpresa a quem o visualiza. Conforme comentei no capítulo anterior, na exposição "Arte Sul Contemporânea" eu levei uma escultura à sala de exposições e, com a montagem de um set de filmagem, registrei, naquele mesmo ambiente, o processo de derretimento. Neste dia, precisei permanecer do lado de minha obra por mais de dez horas, período em que as pessoas estavam, também, visitando a exposição. Durante esta experiência, muitas pessoas vinham conversar comigo sobre suas percepções e conhecer mais detalhes sobre meu trabalho. Percebi então que nem mesmo podendo visualizar a escultura ao vivo no espaço expositivo, tendo ela à frente de seus olhos, as pessoas chegavam à conclusão de que era um bloco colorido de gelo derretendo. Em relação às minhas escolhas, considero essas reações como positivas, uma vez que pude perceber que o material utilizado favorece a criação de sentido, ou seja, favorece com que as pessoas imaginem o-que-quer-que-seja a partir da visualização de minhas obras.

Outro ponto que considero favorável à

Page 66: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

66

criação de sentido é a escolha por criar esculturas a partir de blocos de gelo que não possuem forma figurativa: tata-se de blocos de gelo com uma forma concreta, geralmente arredondada. Isso diferencia meu trabalho de, por exemplo, outros artistas que trabalham com esculturas de gelo, os quais, na maioria das vezes, trabalham esculpindo (geralmente com muita habilidade, cabe observar) blocos de gelo e criando formas definidas, tais como imagens de pessoas, animais, objetos etc esculpidos em gelo. Diferentemente, ocorre que meu trabalho assume uma dimensão poética/aberta, uma vez que a partir da visualização de minhas obras as pessoas criam seus próprios sentidos: muitas vêem uma paisagem, outras um planeta, algumas chegam a visualizar formas tais como pássaros na textura criada pelo gelo. Creio que a utilização de tinta acrílica misturada à água que é posteriormente congelada favorece, também, a uma reação de estranhamento, uma vez que não conheço, até hoje, o trabalho de outro artista que trabalhe com a utilização de gelo colorido.

Quinta atitude: bate-papo com o público, realização de palestras e visita a escolas

Conforme comentei anteriormente, conversar com as pessoas nas exposições é, também, uma dessas práticas que estão no entorno do fazer artístico e é, sem dúvidas, uma das situações que me trazem maior prazer e

satisfação.Para se ter idéia da importância que esse

momento de contato com o público pode atingir, eu gostaria de comentar, brevemente, um fato ocorrido durante a abertura da exposição "Eles estão chegando", de curadoria do professor José Luiz Pellegrin. Neste dia, quando cheguei no prédio da antiga Laneira (local onde foi realizada a exposição), pude perceber que algumas pessoas observavam com muita atenção a obra EMPTY, produzida por mim e pelo compositor Luciano Mello. Algum tempo depois, uma colega da faculdade me disse, então, que uma pessoa gostaria muito de me conhecer, pois tinha ficado particularmente impressionada com minha obra. ... e fui, então apresentado à ela. Percebi neste momento que esta pessoa, uma garota de aproximadamente 20 ou 25 anos, estava visivelmente emocionada e com um sorriso alegre no rosto. Após sermos apresentados, ela perguntou se eu tinha idéia da reação que minha obra era capaz de provocar, pois ela tinha sentido uma sensação extremamente profunda e que nunca tinha experimentado antes enquanto visualizava minha obra - algo como uma sensação de transcendência, que a levou a entrar em contato muito profundo consigo mesma, com sua experiência de vida. Após ela ter me relatado o que tinha ocorrido, eu respondi que estava surpreso, ao mesmo tempo que feliz, por ter produzido algo que gerou um efeito tão interessante. Para finalizar, ela perguntou se eu tinha noção da

Page 67: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

67

responsabilidade que um artista tem ao criar obras de arte, uma vez que suas obras tem a capacidade de gerar reações tão intensas. Recebi esse acontecimento como uma confirmação de que eu estava trilhando um caminho interessante no campo das Artes Visuais, o que me incentivou a continuar produzindo. Até aquele momento, de fato, eu não tinha me dado conta da importância que meu trabalho poderia atingir, mas, a partir de então, passei a entendê-lo como algo especial, capaz de provocar experiências singulares. Foi, então, a partir de uma conversa que tive com alguém que conheceu meu trabalho, que passei a entender com melhor clareza a natureza e a importância de minhas obras.

Ao longo deste período em que estou frequentando este curso de pós-graduação, me dediquei, também, a apresentar algumas falas sobre meu percurso artístico em seminários e encontros de pesquisa que ocorreram em Universidades. Escolhi, para estes momentos, apresentar imagens das obras que produzi e comentar os conteúdos conceituais e teóricos os quais constituem o plano de fundo daquelas construções. Essas participações foram, também, muito importantes, uma vez que tive a oportunidade de comentar de forma acadêmica o meu percurso artístico e, com isso, possibilitar a reflexão sobre seu conteúdo a partir de outros níveis e camadas de produção de sentido.

Por fim, gostaria de comentar que, talvez, a experiência mais interessante e envolvente que

tive neste ano foi a realização de uma "conversa com o artista" em uma escola municipal de ensino fundamental. Esse encontro foi promovido pelo grupo de mediação do Centro de Artes (Patafísica: mediadores do imaginário) e acompanhado pelo acadêmico Valentim Jailson dos Santos.

Segundo relatório escrito por Santos:

A visita de Patrick Tedesco a E.E.E.F. José Brusque Filho ocorreu no dia 20 de abril de 2012, dentro do programa educativo do Projeto Paralelo 31º. Patrick em sua oficina, ministrada a educandos do 4º ano, fez uma conversa com as crianças onde contextualizou sua fala discorrendo sobre sua própria infância, que reverberou em seu processo criativo, conseguindo de imediato a adesão das crianças a seu trabalho. O artista evidenciou a importância da produção artística, chamando a atenção para o fato de que o local onde se produz arte

Page 68: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

68

pode ser em qualquer lugar. Ele exibiu três de seus vídeos que mostram suas obras e seu processo criativo, despertando a curiosidade das crianças e instigando-as a criação artística. Depois da explanação de sua fala e da exibição dos vídeos, as crianças foram instigadas a produzir um trabalho a partir do que elas haviam visto.

Considero, portanto, que esses momentos de contato com o público e de conversa com pessoas que estão conhecendo minhas obras são de extrema importância não apenas para efetivação de minha carreira como artista, mas também de concretização de um certo efeito coletivo que a arte pode gerar, construindo uma via dupla de trocas a partir da qual tanto as pessoas tornam-se acompanhantes (e, inclusive, participantes ativos, interagentes) de meus projetos como meus projetos tornam-se participante de suas vidas, gerando mudanças nas formas de perceber, sentir e relacionar com o mundo.

Page 69: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

69

Page 70: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

70

Page 71: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

71

CONCLUSÃO

Em meus estudos, tenho me dedicado a me aprofundar em diferentes campos do conhecimento. Me formei em Psicologia em 2010, estou cursando faculdade Design Digital desde 2008 e, mais recentemente, tenho me dedicado, especialmente, à produção desta monografia que corresponde ao trabalho final de meu curso de especialização e a escrever uma dissertação vinculada ao meu curso de mestrado em Literatura Comparada. Os últimos anos de minha vida têm sido, portanto, um período de crescimento acadêmico e profissional, a partir do qual estou buscando consolidar as bases para a atividade que escolhi desempenhar.

Com este objetivo, procurei encarar o curso de especialização em Artes Visuais como um meio para refletir sobre meu percurso artístico e, também, para desenvolver novos trabalhos. Entendo, assim, que o curso ofereceu suporte complementar à minha produção, uma vez que foi uma oportunidade de ter acesso sistemático e organizado a conhecimentos e disciplinas, os quais, certamente, eu não teria não fosse o fato de estar vinculado a uma instituição de ensino. Durante este período, foi também importantíssimo o contato com pessoas (hoje muitas delas minhas amigas) com um percurso em Artes Visuais mais extenso que o meu, o que contribuiu para que eu pudesse me interiar com maior

Page 72: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

72

facilidade sobre questões relativas a este campo de produção.

O momento em que comecei a participar de exposições coincide com o período em que me matriculei no curso de especialização. Sou um artista jovem, em início de carreira, e estou buscando tornar minha prática mais ampla e interessante, bem como atingir novos públicos e lugares. Felizmente, posso perceber hoje com bastante clareza que, degrau por degrau, estou tornando minha produção artística mais rica e tenho evoluído artisticamente no sentido de estar me sentindo mais seguro em termos profissionais. É, sobretudo, um período de crescimento como pessoa, de tornar-me atuante e protagonista de meu tempo.

Tudo isso é resultado de muito esforço. Estou longe de pensar que a escolha por ser artista é uma busca por uma vida tranquila e confortável. Não raramente preciso virar madrugadas trabalhando ou estudando, elaborando alguma produção nova ou refletindo teoricamente sobre o que já produzi, ou, então, desempenhar verdadeiros plantões para preparar materiais para serem apresentados em exposições. Porém, o prazer surge, justamente, dos momentos em que percebo que meu trabalho está gerando efeito, quando fez a diferença na vida de alguém, mesmo que por breves instantes,

Estar em contato com o público é uma das situações mais gratificantes que já pude experimentar. Quando nos tornamos artistas,

passamos a ser, também, figuras públicas, formadores de opinião. Ao longo deste processo, tive a oportunidade de conhecer pessoas que não se interessavam por Artes Visuais e que, no entanto, passaram a acompanhar produções em Arte Contemporânea a partir do momento em que conheceram meu trabalho. Perceber isso me traz uma grande satisfação, uma vez que, produzindo arte, torno-me também incentivador deste grande campo de produção: não é o caso, simplesmente, de fazer com que as pessoas conheçam meu trabalho, mas de fomentar um crescimento das Artes Visuais como um todo.

Conforme explorei ao longo desta monografia, tornar-se artista na contemporaneidade é algo amplo e complexo, que não demanda, apenas, a produção de obras de arte, mas, também, requer a construção e a participação de um contexto maior. É isto que procurei demonstrar quando escrevi o capítulo "no entorno da produção", ou seja, com base em meu percurso, tenho percebido que para que eu seja visto como artista eu preciso, de certa forma, construir e administrar uma imagem pública, e tenho feito isso, por exemplo, através da divulgação de informações sobre meus trabalhos em meu site pessoal e nas redes sociais virtuais. Para além disso, o artista é chamado para, por exemplo, promover exposições, participar de "conversas" em escolas, conceder entrevistas, participar de eventos acadêmicos, etc. É todo este entorno que acaba por preencher o dia-a-dia do artista.

Page 73: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

73

O estágio atual de minha produção é particularmente interessante. Além de produzir obras, eu executo performances - eventos, acontecimentos - que visam tornar o público participante do processo de produção. Exponho meus atos assim como exponho minhas obras e sou, assim, elemento mediador. É como andar de mãos dadas com o público, torná-lo participante e interagente do processo de criação de obras de arte.

Congelar através da linguagem fotográfica imagens de uma escultura de gelo em derretimento: o plano de fundo conceitual que exploro em meus trabalhos e que comentei ao longo desta monografia está em constante diálogo com as técnicas e linguagens que resolvo utilizar. Conforme apresentei nos dois capítulos teóricos, linguagens tais como a da fotografia e a do vídeo, podem ser utilizadas para criar variações imaginativas sobre o tempo (um laboratório experimental sobre coisas da vida), o que, para mim, é uma maneira de estar em contato de forma mais confortável com as coisas do mundo. No fundo, a partir de suas características específicas, o que eu faço é brincar com as linguagens: brinco com blocos de gelo e com imagens de câmeras assim como em minha infância eu brincava de carrinho e assim como construía casinhas de lego, imaginando e projetando um futuro.

Em termos pessoais, minha produção satisfaz algumas necessidades existenciais. Quando falo sobre meus trabalhos, costumo

dizer que, por muito tempo, experimentei uma angústia gigantesca por ter a sensação de não estar vivenciando todos os momentos de minha vida da forma mais feliz e produtiva possível. É um dar-se conta de que o tempo passa e que, talvez, o único sentido seja aproveitá-lo da melhor maneira que formos capazes. Eis que a epígrafe apresentada no início desta monografia apresenta o tom do desespero das contínuas tentativas de buscar apossar-se do tempo. Minha geração acreditou que cada instante deve ser o melhor (nesse sentido, posso citar uma música que, acredito eu, ficou bastante marcada na memória de meus contemporâneos, chamada "Epitáfio": "devia ter amado mais. Ter chorado mais. Ter visto o sol nascer [...]", composta por Sérgio Britto, dos Titãs). Esta idéia de "aproveitar cada segundo" é quase uma ideologia dos tempos atuais e, às vezes, configura-se como uma necessidade de se ser feliz, uma espécie de ditadura da felicidade. Assim, ao mesmo tempo que oferece um norte para viver, pode ser também fonte de angústia ou culpa por não se estar aproveitando a passagem do tempo da maneira que seria a ideal. Pois bem, porque estou falando tudo isso? Para explicar que, em grande parte, através de recursos minimalistas (tornar grande o que é mínimo) é isto que move a idéia de fazer um grande número de registros de esculturas de gelo em derretimento: corpos que em pouco tempo deixam de existir, mas que, no entanto, multiplicam-se em outras formas - uma tentativa (sincera e irônica) de fazer

Page 74: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

74

cada ato existencial valer.

Page 75: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. A câmera clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Tradução de Júlio Castañon Guimarães.

BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia: magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

FABRIS, Annateresa. A captação do movimento: do instantâneo ao fotodinamismo. Revista do De-partamento de Artes Plásticas ECA – USP, nº4, 2004. Disponível em www.cap.eca.usp.br/ars4/fabris.pdf (acesso em 15 de maio de 2010)

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Maria Aparecida Moraes Rego. Rio de Janeiro: Imago, 2001.GODOY, Hélio. Documentário, realidade e semiose: os sistemas audiovisuais como fontes de conhe-cimento. São Paulo: Fapesp, 2001.

KERMODE, Frank. The sense of an ending. Nova York: Oxford University Press, 1966.

LISSOVSKY, Maurício. A máquina de esperar: origem e estética da fotografia moderna. Rio de Ja-neiro: Mauad X, 2008.

MACHADO, Arlindo. Anamorfoses cronotópicas ou a quarta dimensão da imagem. In: PARENTE, An-dré. Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Editora 34 Ltda, 2003. Tradução de Rogério Luz et alii.

OSTROWER, Fayga. A construção do olhar. In: NOVAES, A. O olhar. [S.l.]: Companhia das Letras, 2002.

RICOEUR, P. Tempo e narrativa: a intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Page 76: Percurso criativo do projeto obra em derretimento

76