pequenos desvalidos: a infância pobre, abandonada e … · abandonada e trabalhadora, em juiz de...

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DOUTORADO PEQUENOS DESVALIDOS: a infância pobre, abandonada e operária de Juiz de Fora (1888-1930) RAQUEL PEREIRA FRANCISCO Niterói 2015

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Page 1: PEQUENOS DESVALIDOS: a infância pobre, abandonada e … · abandonada e trabalhadora, em Juiz de Fora, Minas Gerais, nos anos finais do século XIX e nas primeiras décadas do século

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE CIEcircNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA ndash DOUTORADO

PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre

abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)

RAQUEL PEREIRA FRANCISCO

Niteroacutei

2015

ii

RAQUEL PEREIRA FRANCISCO

PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre

abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)

NITEROacuteI

2015

iii

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE CIEcircNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA

PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre

abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)

RAQUEL PEREIRA FRANCISCO

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense como

requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor Aacuterea

de Concentraccedilatildeo Histoacuteria Social e Econocircmica

Orientadora Profordf Drordf

Gizlene Neder

NITEROacuteI

2015

iv

Ficha Catalograacutefica

F818P FRANCISCO RAQUEL PEREIRA

Pequenos desvalidos a infacircncia pobre abandonada e operaacuteria de

Juiz de Fora (1888-1930) Raquel Pereira Francisco ndash 2015

343 f il color

Orientadora Gizlene Neder

Tese (Doutorado em Histoacuteria) ndash Universidade Federal Fluminense

2015

Bibliografia f 307-323

1 Trabalho infantil - Brasil 2 Infacircncia - aspecto social 3

Assistecircncia social 4 Acidente de trabalho I Neder Gizlene

Orientadora II Universidade Federal Fluminense Instituiccedilatildeo

responsaacutevel III Tiacutetulo

CDD 331340981

v

PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre

abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)

Raquel Pereira Francisco

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal

Fluminense como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor Aacuterea de Concentraccedilatildeo

Histoacuteria Social e Econocircmica

Comissatildeo Examinadora

__________________________________________________________

Profordf Drordf Gizlene Neder (Orientadora)

Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________________

Prof Dr Marcos Luiz Bretas da Fonseca (Arguidor)

Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________________________________________

Profordf Drordf Keila Grinberg (Arguidora)

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

__________________________________________________________

Profordf Drordf Laura Antunes Maciel (Arguidora)

Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________________

Prof Dr Gisaacutelio Cerqueira Filho (Arguidor)

Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________________

Profordf Drordf Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva (Suplente)

Universidade do Estado do Rio de Janeiro ndash FFPSatildeo Gonccedilalo

__________________________________________________________

Profordf Drordf Larissa Moreira Viana (Suplente)

Universidade Federal Fluminense

vi

A Ana Doro voacute Nica meu exemplo de vida (in memoriam)

A Neuza minha matildee e fortaleza

Para minha filha Ana Sophia amor da minha vida

vii

AGRADECIMENTOS

Agradecer eacute um ato de demonstrar gratidatildeo de reconhecer a orientaccedilatildeo a ajuda

o carinho o companheirismo e a amizade de algueacutem Assim satildeo muitas as pessoas a

quem preciso agradecer pela realizaccedilatildeo deste trabalho

Em primeiro lugar agradeccedilo agrave professora Gizlene Neder por ter aceitado

orientar-me por sua atenccedilatildeo pelo incentivo pelas sugestotildees e por seu

comprometimento com a pesquisa Sou extremamente grata por ter sido nesses anos

minha incentivadora para eu apresentar meus trabalhos em congressos e seminaacuterios

ajudando-me a superar minhas dificuldades de falar em puacuteblico Com esse estiacutemulo jaacute

realizei alguns progressos

Aos professores da Universidade Federal Fluminense Veroacutenica Secreto e

Humberto Machado pelas indicaccedilotildees de leituras e discussotildees de importantes temas

realizadas nas disciplinas que cursei durante o doutorado

A Kalna Mareto Teao e Raquel de Faacutetima dos Reis amigas que conheci no

percurso do doutorado Foram muito prazerosas as nossas conversas sobre coisas da

vida problemas frustraccedilotildees medos e sonhos e os nossos passeios pelo Rio de Janeiro

A Raquel agradeccedilo tambeacutem por me acolher algumas vezes no seu apartamento em

Niteroacutei Valeu

Agraves professoras Elione Silva Guimaratildees e Sheila de Castro Faria pelas valiosas

criacuteticas sugestotildees e pelos enriquecedores comentaacuterios durante o Exame de

Qualificaccedilatildeo os quais muito contribuiacuteram para que eu refletisse sobre algumas questotildees

e para o desenvolvimento final deste trabalho

A Elione Silva Guimaratildees endosso a minha gratidatildeo pela disponibilidade em

realizar o Parecer Criacutetico de dois terccedilos da minha tese Seus comentaacuterios foram uma

ldquoinjeccedilatildeo de acircnimordquo em um momento de tristeza e desacircnimo

Aos funcionaacuterios da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria-UFF em especial

a Silvana e Thais pela atenccedilatildeo e paciecircncia

Ao professor Manuel Roph de Viveiros Cabeceiras coordenador do Curso de

Graduaccedilatildeo em Histoacuteria-UFF pela atenccedilatildeo durante o meu Estaacutegio Docecircncia no primeiro

semestre letivo de 2012 Aos funcionaacuterios da secretaria do Curso de Graduaccedilatildeo em

Histoacuteria-UFF por sempre se mostrarem soliacutecitos

Aos alunos da graduaccedilatildeo em Histoacuteria-UFF que fizeram o curso ldquoInfacircncia e

Trabalho fins do seacuteculo XIX e iniacutecio do XXrdquo ministrado por mim no primeiro

viii

semestre letivo de 2012 no programa de Estaacutegio Docecircncia PPGH-UFFCAPES por

levantarem questotildees e promoverem debates que enriqueceram as aulas e muito

subsidiaram a reflexatildeo de problemaacuteticas discutidas nesta pesquisa

A CAPES pelo financiamento desta pesquisa

A Heliane Casarin do Setor de Memoacuteria da Biblioteca Municipal Murilo

Mendes sempre presente atenta preocupada com o andamento das pesquisas pelo

incentivo e pelo compromisso com os pesquisadores e com a Histoacuteria de Juiz de Fora

Meus sinceros agradecimentos por tudo

Aos funcionaacuterios do Arquivo Histoacuterico da Universidade Federal de Juiz de Fora

Tarciacutesio e Edna por sempre se mostrarem prestativos e dispostos a ajudar-me no que

fosse preciso

Aos funcionaacuterios do Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora Francisco

Carlos Limp (Chicatildeo) Elione Guimaratildees e Antocircnio Henrique Lacerda pela atenccedilatildeo

Especialmente a Elione e Chicatildeo por sempre se mostrarem dispostos a auxiliar e a

sanar algumas duacutevidas Chicatildeo sua alegria seus conhecimentos sobre a histoacuteria de Juiz

de Fora e sobre a documentaccedilatildeo vatildeo fazer muita falta no arquivo Assim resta-me

desejar-lhe uma boa aposentadoria

Aos amigos do Laboratoacuterio Cidade e Poder do PPGH-UFF Jefferson de

Almeida Pinto Ana Paula Barcelos e Adriano Paranhos pelo incentivo e pelas palavras

de estiacutemulo antes das apresentaccedilotildees

Agraves amigas e aos amigos Rita de Caacutessia Vianna Rosa Antocircnia (Toninha) Sonia

Maria de Souza Elisacircngela Mendes Jussaramar Silva Jerusa Andrade Leda Maria

Ribeiro de Lima Silvania Andrade Patriacutecia Lage Mocircnica Costa Wal Barbosa Tarcilia

Nascimento Cristiano Duarte Zamblute Tarciacutezio Mancini Alexandre Glugliotta

Geraldo Pereira Maacuterio Henrique Dias pelo incentivo e pela amizade Desculpem-me

pela ausecircncia Agradeccedilo especialmente ao Tarciacutezio pelas informaccedilotildees sobre algumas

fontes e pela traduccedilatildeo do ldquoResumordquo para o inglecircs

A Rita de Caacutessia Vianna Rosa amiga sempre presente pelo incentivo e pela

presteza Obrigada por sua leitura atenta e criacutetica de meus textos pelas discussotildees

teoacutericas e metodoloacutegicas pelos empreacutestimos de livros e pelas sugestotildees de leituras Sou

ainda muito grata a Rita por ter me cedido gentilmente os seus fichamentos do jornal

O Dia pelas informaccedilotildees sobre a questatildeo da infacircncia pobre nos perioacutedicos locais do poacutes

1930 e por me ceder alguns exemplares dos jornais das deacutecadas de 1930 1940 e 1950

que digitalizou pertencentes aos acervos dos arquivos e setores de memoacuteria da cidade

ix

A Mocircnica Costa e Arthur Silva pela ajuda na digitalizaccedilatildeo de alguns anos do

Diaacuterio Mercantil e processos judiciais A Mocircnica por me auxiliar na leitura e

fichamento de alguns exemplares do jornal O Pharol

A todos os meus familiares matildee pai marido filha irmatilde cunhados e cunhadas

por todo o incentivo carinho compreensatildeo e paciecircncia que me dispensaram

Aos meus pais Neuza e Manoel pelo grande amor e dedicaccedilatildeo Sou

eternamente grata a minha matildee pelo incentivo pela compreensatildeo e por ter me ajudado

a cuidar de Ana Sophia permitindo-me assim a tranquilidade necessaacuteria para

pesquisar estudar e escrever a tese

A minha irmatilde Giovanna agradeccedilo pelas leituras do meu texto pela confecccedilatildeo

dos bancos de dados e dos graacuteficos e pela paciecircncia em me escutar Ao meu cunhado

Leandro pela ajuda com o computador que sempre resolve dar problemas nos

momentos que dele mais precisamos A minha cunhada Cristina agradeccedilo pela leitura e

pelo fichamento de algumas ediccedilotildees do Jornal do Commercio

Ao meu querido companheiro Aureacutelio pelo carinho pelo incentivo por

compreender a minha ausecircncia o meu nervosismo e os meus medos Obrigada por

compartilhar de todos os momentos bons ou ruins pelas leituras do meu texto e

discussotildees a respeito de algumas questotildees sociais Esses momentos foram muito

enriquecedores para mim Vamos agora compartilhar outros e novos sonhos

A minha pequena Ana Sophia que nasceu no meio desse turbilhatildeo de papeacuteis

livros questionamentos processos falta de tempo prazos medos ansiedades Sempre

ao meu lado vendo-me escrever e estudar chamando minha atenccedilatildeo com um sorriso

um chorinho um gritinho e uma brincadeira Agradeccedilo por simplesmente existir e dar a

minha vida um sentido a cada novo dia Terei mais tempo para darmos uma ldquovoltinhardquo

meu amorzinho

A tia Ana minha ldquomatildee pretardquo por todo o seu carinho e pela cumplicidade

Desculpe-me pela falta de tempo Mas agora natildeo haacute mais tempo neacute Agradeccedilo a

senhora por tudo o que me ensinou ateacute em seu uacuteltimo suspiro naquele abraccedilo eterno

doloroso Dedico agrave senhora todo o meu respeito e amor Saudades

x

Agraves vezes nos esquecemos de que os abusos podem permanecer

ldquodesconhecidosrdquo por longo tempo ateacute serem publicamente

revelados e que as pessoas podem ver a miseacuteria e natildeo

percebecirc-la ateacute a proacutepria miseacuteria se rebelar

E P Thompson (2002 p 215)

xi

RESUMO

Nesta tese busca-se fazer uma reflexatildeo sobre a problemaacutetica da infacircncia pobre

abandonada e trabalhadora em Juiz de Fora Minas Gerais nos anos finais do seacuteculo

XIX e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX O recorte temporal delimitado para a

realizaccedilatildeo desta anaacutelise eacute o da implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do mercado de trabalho livre

em substituiccedilatildeo ao escravo do processo de industrializaccedilatildeo e de reestruturaccedilatildeo do

Estado sob o sistema republicano de governo No contexto dessas transformaccedilotildees as

classes dominantes sentiram a necessidade de criar novas formas de controle social No

que diz respeito agraves crianccedilas pobres e ou abandonadas diversas foram as estrateacutegias de

controle social adotadas pelos segmentos dominantes com o objetivo de manterem o

domiacutenio sobre a matildeo de obra dos ldquomenoresrdquo sendo uma delas o viacutenculo tutelar Nesse

momento de estruturaccedilatildeo do mercado de trabalho capitalista setores da intelectualidade

poliacuteticos meacutedicos-higienistas juristas entre outros apresentaram diversas propostas de

assistecircncia social para as crianccedilas dos estratos mais baixos da hierarquia

socioeconocircmica com o objetivo de educar preservar e regenerar os ldquomenoresrdquo pelo e

para o trabalho A educaccedilatildeo destinada aos setores vulneraacuteveis da sociedade era a

elementar conjugada com o aprendizado de um ofiacutecio ou seja destinava-se a preparar

matildeo de obra disciplinada e submissa O trabalho infanto-juvenil foi uma problemaacutetica

debatida ao longo dos primeiros anos republicanos Poreacutem a sua regulamentaccedilatildeo

ocorreu apenas nos anos finais da deacutecada de 1920 com a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de

Menores A presenccedila de pequenos operaacuterios nas induacutestrias no comeacutercio nas oficinas e

em outros estabelecimentos da cidade de Juiz de Fora no iniacutecio do seacuteculo XX pode ser

constatada por meio dos perioacutedicos e dos processos de acidentes no trabalho analisados

neste estudo onde muitos pequenos foram viacutetimas

Palavras-chave Trabalho Infantil Tutelas Acidentes de Trabalho Assistecircncia Social

xii

ABSTRACT

This thesis intends to analyse the problems involving the poor neglected and

worker infancy in Juiz de Fora Minas Gerais during the last years of the XIX century

and the first decades of the XX century The period studied relates to setting up and

consolidation of free work market to substitute the slave one the process of

industrialization and restructuring of State under a republican system of government In

this context of changes the upper classes felt the necessity to create new ways of social

control Specifically about the poor andor neglected children a lot of strategies of social

control were adopted by the upper classes purposing to keep dominance over the

infantile work market being one of them the guardianship In the historic present of

consolidation of the capitalist work market some sectors like the intellectuality

politicians sanitary doctors and jurists showed proposals of social assistance for

children of the lower economic and social status purposing educate preserve and

regenerate them by and for work The education applied to those children was the

elementary associated to an apprenticeship of manual labour focusing a disciplined and

submissive labour force The infant-juvenile work was a topic debated during the first

republin years although its regulation only occurred in the last years of the decade of

1920 with the Child Act The presence of under-age workers in the local plants

commerce and manufactures of Juiz de Fora at the beginning of the XX century can be

seen through some newspapers and proceedings of work accidents where a lot of under-

age workers were victims

Key-words infantile work guardianships work accidents social assistance

xiii

REacuteSUMEacute

Cette thegravese vise agrave faire une reacuteflexion sur la probeacutematique de lrsquoenfance pauvre

abandonneacutee et travailleuse agrave Juiz de Fora Minas Gerais dans les derniegraveres anneacutees du

XIXe siegravecle et dans les premiegraveres deacutecennies du XXe siegravecle La peacuteriode deacutelimiteacutee pour

cette analyse est celle du deacuteploiement et de la consolidation du marcheacute du travail libre

qui remplace lrsquoesclave du processus drsquoindustrialisation et de restructuration de lrsquoEacutetat

sous la forme reacutepublicaine de gouvernement Dans le contexte de ces transformations

les classes dominantes ont ressenti le besoin de creacuteer de nouvelles formes de controcircle

social En ce qui concerne les enfants pauvres etou abandonneacutes plusieurs strateacutegies de

controcircle social ont eacuteteacute adopteacutees par des segments dominants afin de maicirctriser la main

drsquooeuvre des ldquomineursrdquo lrsquoune drsquoelles eacutetant la relation tuteacutelaire Dans ce moment de

structuration du marcheacute de travail capitaliste les secteurs des intellectuels des

politiciens des meacutedecins-hygieacutenistes des juristes entres autres ont presenteacute de

diffeacuterentes propositions drsquoaide social pour les enfants des couches les plus basses de la

hieacuterarchie socio-eacuteconomique afin drsquoeacuteduquer preacuteserver et reacutegeacuteneacuterer les ldquomineursrdquopar et

pour le travail Lrsquoeacuteducation destineacutee aux secteurs vulneacuterables de la socieacuteteacute eacutetait

eacuteleacutementaire conjugueacutee agrave lrsquoapprentissage drsquoun meacutetier crsquoest-agrave-dire elle avait pour but de

preacuteparer une main drsquooeuvre disciplineacutee et soumise Le travail des enfants et des jeunes a

eacuteteacute une question deacutebattue au long des premiegraveres anneacutees reacutepublicaines Toutefois sa

reacuteglementation na eu lieu quagrave la fin des anneacutees 1920 avec la promulgation du Code des

mineurs La preacutesence de petits travailleurs dans les industries les commerces les

ateliers et drsquoautres eacutetablissements dans la ville de Juiz de Fora au deacutebut du XXe siegravecle

peut ecirctre deacutetecteacutee par des journaux et des procegraves drsquoaccidents du travail analyseacutes dans

cette eacutetude et dont beaucoup de victimes eacutetaient des enfants

Mots-cleacutes Travail des Enfants Tutelle Accidents du Travail Aide Sociale

xiv

IacuteNDICE DOS QUADROS

Quadro 1 Populaccedilatildeo escrava e livre do municiacutepio de Juiz de Fora (1853-18723)52

Quadro 2 Populaccedilatildeo do municiacutepio de Juiz de Fora (1890 ndash 1907 ndash 1920) 52

Quadro 3 Crescimento populacional do municiacutepio de Juiz de Fora (1853-1920) 53

Quadro 4 Nuacutemero de crianccedilas tuteladas por periacuteodo 109

Quadro 5 Presenccedila feminina e masculina nos processos de tutelas (1888 ndash 1930) 117

Quadro 6 Faixa etaacuteria dos ldquomenoresrdquo viacutetimas de acidentes no trabalho (1919 ndash 1930)

178

Quadro 7 Operaacuterios do setor tecircxtil e de malharia envolvidos em acidentes no trabalho

(1919 ndash 1930) 178

Quadro 8 Tipos de abandonoentrega de ldquomenoresrdquo (1888-1930) 257

xv

IacuteNDICE DOS GRAacuteFICOS

Graacutefico 1 Nuacutemero de crianccedilas tuteladas (1888-1930) 111

Graacutefico 2 Nuacutemero de autos de tutela (1888-1930) 111

Graacutefico 3 ldquoMenoresrdquo envolvidos em acidentes no trabalho ndash divisatildeo por

sexo179

Graacutefico 4 ldquoMenoresrdquo envolvidos em acidentes no trabalho ndash divisatildeo por sexo e

setor180

xvi

IacuteNDICE DAS IMAGENS

Imagem 1 ldquoMenorrdquo Joatildeo Theodoro Monteiro ndash 192914

Imagem 2 Fachada e operaacuterios - Faacutebrica de Tecelagem e Fiaccedilatildeo Moraes Sarmento

(Festa 03051922)59

Imagem 3 Fachada da Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial

Mineira60

Imagem 4 ldquoMenoresrdquo nas ruas e pedra nos trilhos dos

bonds 190066

Imagens 5 Habitaccedilatildeo Operaacuteria ndash 192290

Imagem 6 Habitaccedilatildeo Operaacuteria ndash 192291

Imagem 7 Joseacute Procoacutepio Teixeira 92

Imagem 8 Edifiacutecio das Reparticcedilotildees Municipais 1921 93

Imagem 9 Avenida Baratildeo do Rio Branco ndash Juiz de Fora 192094

Imagem 10 Jardim da Infacircncia 1925 Largo do Riachuelo97

Imagem 11 Meninos capinadores 193999

Imagem 12 Meninos capinadores 1939100

Imagem 13 Capa do Processo de Tutela do ldquomenorrdquo Joaquim Mariano Alves 101

Imagem 14 Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas ndash 1928161

Imagem 15 Nota sobre o abandono de uma ldquomenorrdquo pelos patrotildees 181

Imagem 16 Nota sobre acidente de trabalho de uma ldquomenorrdquo ndash serviccedilo domeacutestico182

Imagem 17 Propaganda da Estamparia Universal ndash 1922191

Imagem 18 Fachada da Faacutebrica de Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Tecidos de Malha

Meurer208

Imagem 19 Interior da Faacutebrica Meurer 212

Imagem 20 Fachada do Asilo Joatildeo Emilio ndash 1915 234

Imagem 21 ldquoDeclaraccedilatildeo de entrega do filhordquo 254

Imagem 22 Bilhete sobre uma ldquomenorrdquo abandonada na usina de Marmelo

265

Imagem 23 Ficha de identificaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores (BH) - ldquoMenorrdquo Geraldo

1929288

Imagem 24 Ficha de identificaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores (BH) - ldquoMenorrdquo Geraldo

1929288

xvii

Imagem 25 Ficha Meacutedica ndash Geraldo Theodoro Monteiro 290

Imagem 26 Ficha Meacutedica (2) Idem291

Imagem 27 Ficha Meacutedica (3) Idem 292

Imagem 28 Ficha Meacutedica (4) Idem 293

xviii

IacuteNDICE DE ABREVIATURAS

AHCJF Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora

AHUFJF Arquivo Histoacuterico da Universidade Federal de Juiz de Fora

SM - BMMM Setor de Memoacuteria - Biblioteca Municipal Murilo Mendes

xix

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 1

CAPIacuteTULO 1 A INFAcircNCIA COMO UM PROBLEMA SOCIAL NA PASSAGEM

Agrave MODERNIDADE NO BRASIL 14

11 ldquoFlores de uma geraccedilatildeo futurardquo a questatildeo da infacircncia pobre no Brasil 15

12 Os ldquomenoresrdquo desvalidos na Repuacuteblica da ldquoOrdemrdquo e do ldquoProgressordquo 37

13 A ldquoManchester Mineirardquo e seus ldquomenoresrdquo 47

CAPIacuteTULO 2 OS PEQUENOS DESVALIDOS JUIZ DE FORA (1888-1930) 101

21 Os Processos de tutelas das Ordenaccedilotildees Filipinas ao Coacutedigo Civil

Brasileiro (1916) 102

22 Dar tutor ldquoa todos os oacuterfatildeos e menoresrdquo 108

2 3 Tensotildees e confrontos as disputas entre pais e Tutores pela guarda dos

ldquomenoresrdquo 119

24 Entre tinas vassouras e cafezais as tutelas e contratos de soldadas de

ldquomenoresrdquo desvalidos 135

25 Apreensatildeo de ldquomenoresrdquo 149

CAPIacuteTULO 3 POR ENTRE MAacuteQUINAS E ENGRENAGENS AS CRIANCcedilAS

OPERAacuteRIAS DA ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo 161

31 A questatildeo social na Primeira Repuacuteblica Lei de Acidentes de Trabalho e

Coacutedigo de Menores 162

311 A Lei de Acidentes de Trabalho ndash Brasil 1919 162

312 O Coacutedigo de Menores e a regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil 170

3 2 Da rua agrave faacutebrica o proletariado infanto-juvenil da ldquoManchester Mineirardquo 174

33 Micucci a morte de um pequeno proletaacuterio da ldquoManchester Mineirardquo 207

331 Entre tapas e pontapeacutes o pequeno operaacuterio Micucci 209

CAPIacuteTULO 4 OS ldquoDESERDADOS DA SORTErdquo A ASSISTEcircNCIA AOS

ldquoMENORESrdquo POBRES 234

41 As instituiccedilotildees para ldquomenoresrdquo desvalidos uma obra de caridade cristatilde e

um dever do estado 235

411 A assistecircncia aos ldquomenoresrdquo 240

xx

42 Os ldquofilhos da piedaderdquo os processos de tutelas de crianccedilas abandonadas

enjeitadas expostas ou ldquoentreguesrdquo 253

43 As accedilotildees de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo desvalidos 269

431 Laccedilos do infortuacutenio a accedilatildeo de internaccedilatildeo dos irmatildeos Joatildeo e Geraldo 282

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 297

FONTES 304

FONTES DIGITAIS E ACESSADAS ONLINE 305

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFIAS 307

INTRODUCcedilAtildeO

Na infacircncia estaacute o adulto eacute dele que os educadores e os gestores da cidade se

preocupam de seu lugar social de seus espaccedilos de seus valores e condutas

de sua cor e de seu disciplinamento (Miguel Arroyo)1

Neste trabalho propotildee-se examinar a questatildeo da infacircncia desvalida oacuterfatilde

abandonada e trabalhadora do municiacutepio de Juiz de Fora Minas Gerais na passagem agrave

modernidade O interesse por tal temaacutetica surgiu durante minhas pesquisas para a

elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de mestrado que tinha como objeto de anaacutelise as relaccedilotildees

familiares e de parentesco ndash consanguiacuteneo e ritual ndash entre a populaccedilatildeo escrava e liberta

de Juiz de Fora Mas foi sobretudo no capiacutetulo em que examinei as solicitaccedilotildees de

tutelas de ingecircnuos e de pequenos libertos por segmentos das classes dominantes que

surgiram vaacuterios questionamentos relativos agrave problemaacutetica da infacircncia pobre durante o

processo de constituiccedilatildeo do mercado de trabalho livre no Brasil2 Assim surgiu uma

necessidade de buscar compreender como a assistecircncia agrave infacircncia fiacutesica e socialmente

desamparada e o trabalho infantil foram tratadosdiscutidos na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX

para o XX por poliacuteticos meacutedicos higienistas juristas liacutederes operaacuterios empresariado e

demais setores da intelectualidade Em outras palavras quais eram as preocupaccedilotildees e os

problemas que as crianccedilas dos estratos vulneraacuteveis da sociedade causavam e quais eram

as soluccedilotildees apresentadas pelos setores dominantes para solucionar esse problema social

Dessa maneira o recorte temporal escolhido para realizar este estudo foram os

anos finais do seacuteculo XIX ndash poacutes-aboliccedilatildeo do trabalho escravo ndash e as trecircs primeiras

deacutecadas do seacuteculo XX (1888 a 1930) A escolha se justifica por ser esse momento

marcado pela aboliccedilatildeo do trabalho escravo implantaccedilatildeo do sistema republicano de

governo pelo incremento do processo de implantaccedilatildeo das relaccedilotildees capitalistas de

produccedilatildeo bem como por ser esse periacuteodo caracterizado por uma ampliaccedilatildeo do debate a

respeito do controle social3 das classes subalternas

4

1 ARROYO Miguel ldquoApresentaccedilatildeordquo In VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes

Infacircncia no soacutetatildeo Belo Horizonte Autecircntica 1999 p 14 2 FRANCISCO Raquel Pereira Laccedilos da senzala arranjos da flor de maio relaccedilotildees familiares e de

parentesco entre a populaccedilatildeo escrava e liberta - Juiz de Fora (1870-1900) Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Niteroacutei UFF 2007 3 Estou utilizando o conceito de controle social desenvolvido por Roberto Bergalli em ldquoHistoria

ideoloacutegica del control socialrdquo De acordo com Bergalli o controle social foi se convertendo

progressivamente em um ldquoconceito criacutetico em muacuteltiplos campos de anaacutelisesrdquo nos vaacuterios ramos das

ciecircncias sociais principalmente nos estudos dedicados aos chamados problemas sociais e de sua

2

Assim dentro dos questionamentos sobre a infacircncia desvalida de Juiz de Fora

um colocou-se como de grande relevacircncia a compreensatildeo das estrateacutegias e poliacuteticas de

controle social dos setores dominantes sobre a matildeo de obra infantil No

desenvolvimento dessa problemaacutetica foi necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo o projeto dos

grupos dominantes de construccedilatildeo de uma imagem da cidade como ldquocivilizadardquo

moderna desenvolvida e constituiacuteda por uma populaccedilatildeo ordeira e laboriosa

A obra de Michel Foucault ldquoVigiar e Punirrdquo foi um referencial significativo para

fundamentar este trabalho no que diz respeito agrave discussatildeo do controle social sobre os

segmentos vulneraacuteveis da populaccedilatildeo Em seus estudos Foucault procurou demonstrar

que as praacuteticas de poder eram constituiacutedas de aspectos negativos e positivos Segundo

Roberto Machado Foucault chamaou a atenccedilatildeo para o fato de que o ldquopoder possui uma

eficaacutecia produtiva uma riqueza estrateacutegica uma positividaderdquo o que ldquoexplica o fato de

que tem como alvo o corpo humano natildeo para supliciaacute-lo mutilaacute-lo mas para aprimoraacute-

lo adestraacute-lordquo5 O vieacutes positivo do poder objetiva controlar e dominar todos os aspectos

da vida dos homens como seus haacutebitos sexualidade crenccedilas modos de pensar e agir

entre outros para extrair o maacuteximo de suas ldquopotencialidades e utilizando um sistema de

aperfeiccediloamento gradual e contiacutenuo de suas capacidadesrdquo Esse aspecto do poder era

perpassado ao mesmo tempo por objetivos econocircmicos e poliacuteticos ou seja tornar os

homens trabalhadores economicamente produtivos em sua capacidade maacutexima e por

outro lado diminuir sua ldquoforccedila poliacuteticardquo tornando-os submissos e em corpos ldquodoacuteceis

politicamenterdquo6

Esse poder sobre todos os domiacutenios da vida social dos homens era alcanccedilado

pela ldquodisciplinardquo ou ldquopoder disciplinarrdquo proveniente dos vaacuterios mecanismos de controle

e de vigilacircncia presentes em vaacuterias instituiccedilotildees como faacutebricas escolas hospitais prisotildees

e exeacutercito As estrateacutegias de disciplinarizaccedilatildeo extrapolavam os muros das instituiccedilotildees e

ldquointerpretaccedilatildeo atraveacutes das distintas instancias de controle socialrdquo Assim o conceito de controle social se

constitue em um instrumente de criacutetica social as instituiccedilotildees que promovem a restriccedilatildeo da liberdade

individual Desta maneira os estudiosos tecircm examinado de forma mais acurada como que o controle

social ldquocondiciona a orientaccedilatildeo de processos e estruturas a respeito da procedecircncia de problemas sociais

tais como a pobreza e a criminalidade e de fenocircmeno como o desamparo e abandono de pessoasrdquo Na

interpretaccedilatildeo de Bergalli o direito a educaccedilatildeo e a religiatildeo satildeo aacutereas de maacutexima importacircncia no processo

de instituiccedilatildeo do controle social Cf BERGALLI Roberto MARI Enrique E (coords) ldquoIntroduccioacutenrdquo

In Histoacuteria Ideologica del control social (Espantildea-Argentina siglos XIX y XX) Barcelona PPU 1989 p

X XI XX 4 Cf NEDER Gizlene Discurso Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio

Fabris Editor 1995 5 MACHADO Roberto ldquoPor uma genealogia do poderrdquo In FOUCAULT Michel Microfiacutesica do poder

23 ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 2007 p XV XVI Cf FOUCAULT Michel Vigiar e punir

nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis (RJ) Editora Vozes 2007 p 118-119 6 MACHADO Roberto Op cit 2007 p XVI

3

se espraiavam no seio de toda a sociedade fabricando assim ldquoo tipo de homem

necessaacuterio ao funcionamento e manutenccedilatildeo da sociedade industrial capitalistardquo7

Por meio da anaacutelise das fontes busquei identificar as estrateacutegias de controle e

vigilacircncia de setores das classes dominantes de Juiz de Fora sobre os segmentos

vulneraacuteveis da sociedade mais especificamente sobre os ldquomenoresrdquo e suas famiacutelias Os

processos judiciais de acidentes de trabalho e o de lesatildeo corporal delinearam as vaacuterias

estrateacutegias de disciplinarizaccedilatildeo do trabalhador infanto-juvenil por parte do empresariado

industrial do municiacutepio Nesses espaccedilos de ldquodisciplinardquo o ldquomenorrdquo estava

constantemente sob controle tendo cada accedilatildeogesto vigiado Desse modo ele estava

continuamente sujeito agraves ldquomicropenalidadesrdquo em consequecircncia de alguma falha ou

desvio8

Todavia as classes dominadas natildeo aceitaram pacificamente as imposiccedilotildees

disciplinares e os valores dos segmentos dominantes A documentaccedilatildeo compulsada

tambeacutem revelou as estrateacutegias de reaccedilatildeo dessa parcela da sociedade as medidas de

controle de seus modos de vida de suas tradiccedilotildees e valores Nessa perspectiva as

contribuiccedilotildees teoacutericas de E P Thompson sobre a histoacuteria social do trabalho foram

muito importantes O historiador inglecircs dedicou-se agrave anaacutelise da classe operaacuteria inglesa

agraves reaccedilotildees e resistecircncias dos trabalhadores agraves tentativas de transformaccedilatildeo pelos setores

dominantes de suas tradiccedilotildeescostumes ou seja os ldquoconfrontos entre uma economia de

mercado inovadora e a economia moral da plebe baseada no costumerdquo9 Segundo

Ronaldo Vainfas ldquoo campo teoacuterico da cultura popular em Thompson valoriza portanto

a resistecircncia social e a luta de classes em conexatildeo com as tradiccedilotildees os ritos e o

cotidiano das classes populares em um contexto de transformaccedilatildeordquo10

Assim a

abordagem teoacuterico-metodoloacutegica desta tese eacute perpassada por escolhas heterodoxas que

estabelecem uma articulaccedilatildeo entre o enfoque foucaultiano e sua metodologia

genealoacutegica e as abordagens de E P Thompson autor marxista que adotou e

7 Ibidem p XVII

8 Cf FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis (RJ) Editora Vozes

2007 9 THOMPSON E P Costumes em comum estudos sobre a cultura popular tradicional Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1998 p 21 Cf THOMPSON E P A formaccedilatildeo da classe operaacuteria inglesa 1 a

aacutervore da liberdade 6 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2011 10

VAINFAS Ronaldo Os protagonistas anocircnimos da Histoacuteria micro-histoacuteria Rio de Janeiro Campus

2002 p 66

4

desenvolveu anaacutelises sobre aspectos subjetivos da cultura nos processos histoacuterico-

sociais quando do exame da constituiccedilatildeo da classe trabalhadora inglesa11

Ao analisar a infacircncia desvalida e operaacuteria do municiacutepio de Juiz de Fora em um

momento marcado por profundas mudanccedilas na sociedade brasileira ndash aboliccedilatildeo do

trabalho escravo e implantaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre instauraccedilatildeo do sistema

republicano de governo processo de urbanizaccedilatildeo e industrializaccedilatildeo em expansatildeo ndash as

consideraccedilotildees de Thompson sobre as resistecircncias dos trabalhadores agraves tentativas das

classes dominantes de desestruturaccedilatildeo de seus modos de vidacostumes e de imposiccedilatildeo

de novos valores foram extremante valiosas Assim as lutas dos pais dos ldquomenoresrdquo

para manterem e ou reaverem os seus filhos tutelados por pessoas dos setores

dominantes as fugas dos pupilos das casas de seus tutores e das instituiccedilotildees

assistenciais a retirada dos filhosnetos da casa do tutor sem autorizaccedilatildeo legal a

solicitaccedilatildeo em juiacutezo para que o tutor do filhoneto fosse destituiacutedo do cargo as

denuacutencias de maus tratos e de natildeo recebimento das soldadas o recursar-se a executar as

tarefas entre outras accedilotildees praticadas pelas crianccedilas e famiacutelias dos setores desfavorecidos

foram analisadas em consonacircncia com as abordagens de Thompson

A preocupaccedilatildeo central desta tese foi compreender a problemaacutetica do trabalho

infantil na passagem agrave modernidade dentro do contexto de instauraccedilatildeo do trabalho livre

e de elaboraccedilatildeo de uma nova concepccedilatildeo sobre o trabalho Para tanto tornou-se

necessaacuterio especificar qual forma de trabalho infantil adotei para examinar a questatildeo da

infacircncia desvalida e operaacuteria de Juiz de Fora uma vez que nem todas as atividades que

empregam crianccedilas satildeo marcadas pela exploraccedilatildeo Existem as que satildeo caracterizadas

pela

[] transmissatildeo do patrimocircnio de saberes e disciplinas de certas profissotildees e

de construccedilatildeo do herdeiro e principalmente do sucessor no caso do

trabalhador artesanal profissional ou camponecircs Sob a orientaccedilatildeo e

supervisatildeo dos pais ou de geraccedilotildees anteriores de trabalhadores os

adolescentes e preacute-adolescentes se incorporam ao processo de socializaccedilatildeo

profissional e de ritualizaccedilatildeo da mudanccedila de posiccedilatildeo ingressando-se na idade

adulta A orientaccedilatildeo do uso da forccedila de trabalho nesses casos natildeo responde

diretamente agrave crescente expansatildeo da apropriaccedilatildeo da mais-valia e ao uso

descartaacutevel de seu portador Outros valores referenciais da reproduccedilatildeo social

de posiccedilotildees se encontram em jogo inclusive aqueles que qualificam a relaccedilatildeo

positiva entre pais e filhos mestres e aprendizes Estas formas de uso do

trabalho infantil antecedem e ultrapassam o sistema de produccedilatildeo capitalista

11

A mesma abordagem heterodoxa estaacute presente em ldquoDiscurso juriacutedico e ordem burguesa no Brasilrdquo de

Gizlene Neder Cf NEDER Gizlene Op cit 1995

5

mas natildeo eliminam necessariamente as condiccedilotildees penosas e prejudiciais ao

desenvolvimento da crianccedila ou do adolescente12

Com relaccedilatildeo ao trabalho infantil E P Thompson assinalou em seu estudo sobre

a classe operaacuteria inglesa do seacuteculo XVIII que entre os anos 1780 e 1840 ocorreu ldquouma

intensificaccedilatildeo draacutestica da exploraccedilatildeo do trabalho das crianccedilasrdquo embora o trabalho

infantil natildeo fosse uma novidade sendo mesmo a ldquocrianccedila uma parte intriacutenseca da

economia industrial e agriacutecola antes de 1780rdquo e sua matildeo de obra empregada nas

atividades domeacutesticas ou da ldquoeconomia familiarrdquo Todavia sua capacidade e idade eram

respeitadas e as tarefas natildeo lhes ocupavam o dia inteiro bem como natildeo eram

monoacutetonas ou seja natildeo executavam uma uacutenica e repetitiva tarefa ao longo do dia13

Poreacutem com a constituiccedilatildeo do sistema fabril ocorreu uma ruptura extremamente

profunda nesse padratildeo de utilizaccedilatildeo da matildeo de obra infanto-juvenil impondo-se a partir

de entatildeo uma contundente exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho onde a execuccedilatildeo de uma

mesma atividade durante horas se impocircs como regra pois ldquona faacutebrica a maquinaria

ditava as condiccedilotildees a disciplina a velocidade e a regularidade da jornada de trabalho

tornando-as equivalentes para o mais delicado e o mais forterdquo14

Segundo Thompson

provavelmente natildeo foi apenas o sistema fabril que contribuiu para a ldquointensificaccedilatildeo do

trabalho infantilrdquo poacutes 1780 havendo pois a necessidade de se levar em conta tambeacutem a

questatildeo da especializaccedilatildeo a crescente diferenciaccedilatildeo dos papeacuteis econocircmicos a ruptura

da economia familiar entre outros fatores15

Alan Macfarlane tambeacutem ressaltou as mudanccedilas ocorridas na utilizaccedilatildeo da matildeo

de obra infantil com o advento da Revoluccedilatildeo Industrial na Inglaterra O autor assinalou

que o emprego de crianccedilas de poucos anos de idade e durante longas horas era tatildeo

expressivo nas nascentes manufaturas que ldquonatildeo apenas chocavam alguns

contemporacircneos como tambeacutem teriam espantado os ingleses de dois seacuteculos antesrdquo16

A utilizaccedilatildeo e exploraccedilatildeo da matildeo de obra infantil nas sociedades reguladas pelas

relaccedilotildees capitalistas de produccedilatildeo foi algo que perpassou as formaccedilotildees histoacutericas do

Velho e do Novo continente em seus processos de industrializaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo A

12

PESSANHA NEVES Delma A perversatildeo do trabalho Infantil loacutegicas sociais e alternativas de

prevenccedilatildeo Niteroacutei Intertexto 1999 p 12-13 13

THOMPSON EP A formaccedilatildeo da classe operaacuteria inglesa II a maldiccedilatildeo de Adatildeo 4 ed Rio de

Janeiro Paz e Terra 2002 p 202-205 Cf MACFARLANE Alan Histoacuteria do casamento e do amor ndash

Inglaterra 1300-1840 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 p 87-89 14

THOMPSON EP Op cit 2002 207 15

Ibidem p 205 16

MACFARLANE Alan Histoacuteria do casamento e do amor ndashInglaterra 1300-1840 Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1990 p 87-89

6

Inglaterra que liderou o processo de industrializaccedilatildeo utilizou abundantemente do

trabalho de crianccedilas Engels em A situaccedilatildeo da classe trabalhadora na Inglaterra

salientou que enquanto os trabalhadores viviam no campo os seus filhos os ajudavam

esporadicamente mas que tal situaccedilatildeo modificou-se completamente a partir do

momento em que eles tiveram de vender sua forccedila trabalho nas cidades As crianccedilas e os

jovens passaram entatildeo a ter uma jornada de oito ou doze horas de labor17

O emprego da matildeo de obra infantil esteve presente em vaacuterias sociedades sendo

anterior agrave constituiccedilatildeo do sistema fabril e das relaccedilotildees capitalistas de produccedilatildeo Como

salientado anteriormente a Revoluccedilatildeo Industrial maximizou o processo de utilizaccedilatildeo e

de exploraccedilatildeo do trabalhador infanto-juvenil Assim sem deixar de perceber que

existiram (existem) outras formas de trabalho infantil que natildeo aquelas perpassadas

exclusivamente pela exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho analisei os casos em que

crianccedilas e adolescentes das classes subalternas tiveram sua matildeo de obra explorada em

condiccedilotildees muitas vezes improacuteprias para suas idades e constituiccedilotildees fiacutesicas nos

estabelecimentos industriais e comerciais nas propriedades rurais e nas residecircncias das

classes dominantes de Juiz de Fora durante o periacuteodo de constituiccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do

mercado de trabalho livre e do processo de industrializaccedilatildeo da sociedade brasileira18

Com o desenvolvimento das relaccedilotildees sociais capitalistas nas sociedades

modernas forjou-se a ideia do trabalho como algo positivo que conferia honra e

dignidade ao homem Ele passou a ser considerado um ldquoremeacutediordquo para combater os

viacutecios a ociosidade e a criminalidade

No Brasil a construccedilatildeo de uma nova eacutetica sobre o trabalho ocorreu durante o

processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre e a concomitante constituiccedilatildeo do

proletariado urbano19

Segundo Sidney Chalhoub durante o processo de constituiccedilatildeo do

trabalho livre no Brasil no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX tornou-se

imprescindiacutevel a formulaccedilatildeo de novos conceitos e valores sobre o trabalho ou seja era

de fundamental importacircncia retirar o ldquocaraacuteter aviltante e degradadorrdquo que possuiacutea em

consequecircncia de seacuteculos de regime escravista e dar-lhe ldquouma roupagem nova que lhe

17

ENGELS Friedrich A situaccedilatildeo da classe trabalhadora na Inglaterra Satildeo Paulo Boitempo 2010 p

46 18

Delma Pessanha Neves desenvolve uma instigante discussatildeo a respeito da utilizaccedilatildeo do trabalho

infantil (socialmente condenado) no setor agropecuaacuterio Cf PESSANHA NEVES Delma Op cit 1999 19

Cf NEDER Gizlene Op cit 1995

7

desse um valor positivo tornando-se entatildeo o elemento fundamental para a implantaccedilatildeo

de uma ordem burguesa no Brasilrdquo20

Assim analisando a documentaccedilatildeo compulsada procurei compreender as

estrateacutegias forjadas por parte dos grupos dominantes ndash durante o processo de

implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do trabalho livre assalariado e de edificaccedilatildeo de uma

concepccedilatildeo positiva sobre o trabalho ndash para manter sob controle uma parcela da matildeo de

obra infantil pertencente aos grupos subalternos da sociedade O emprego da matildeo de

obra de crianccedilas era visualizado com ldquobons olhosrdquo por fraccedilotildees das classes dominantes

uma vez que a sua remuneraccedilatildeo era inferior a de um trabalhador adulto21

Aleacutem do fator

econocircmico o trabalho infanto-juvenil tambeacutem era concebido como um ldquomecanismo

disciplinadorrdquo e fundamental para a constituiccedilatildeo de futuros trabalhadores ordeiros e

obedientes agraves leis22

Desse modo constitui-se o trinocircmio trabalho-disciplina-submissatildeo

As fontes examinadas forneceram um retrato da situaccedilatildeo vivida pelas classes

pobres que aleacutem das duras condiccedilotildees de vida e de sobrevivecircncia ainda precisavam

enfrentar a descaracterizaccedilatildeo de suas relaccedilotildees familiares por parte dos grupos

dominantes que propalavam que as famiacutelias das classes desfavorecidas eram marcadas

pela desestruturaccedilatildeo pela falta de haacutebitos de higiene e pela imoralidade Com esse

discurso pretendia-se justificar as accedilotildees de controle social visando enquadrar a

populaccedilatildeo pobre dentro dos valores e das normas disciplinares da sociedade burguesa

Nesse contexto o discurso juriacutedico teve um papel relevante uma vez que

segundo o pensamento corrente entre vaacuterios intelectuais brasileiros do periacuteodo para o

paiacutes alcanccedilar o patamar de naccedilatildeo ldquocivilizadardquo e moderna um dos pressupostos seria o

disciplinamento de sua populaccedilatildeo ou seja era preciso manter a ldquoordemrdquo para atingir o

ldquoprogressordquo Como assinala Gizlene Neder o discurso juriacutedico foi extremamente

importante naquele momento para normatizar a repressatildeo e o controle social

principalmente com relaccedilatildeo agrave questatildeo do mercado de trabalho capitalista que estava se

constituindo no paiacutes23

A imprensa foi um relevante veiacuteculo de divulgaccedilatildeo da nova eacutetica do trabalho

sendo que os jornais foram um instrumento utilizado pelos setores dominantes ou por

20

CHALHOUB Sidney Trabalho lar e botequim o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da

belle eacutepoque 2 ed Campinas (SP) Ed da UNICAMP 2001 p 65 21

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Crianccedilas operaacuterias na receacutem industrializada Satildeo Paulo In

PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil Satildeo Paulo Contexto 2006 p 271-273 Cf

THOMPSON EP Op cit 2002 215 22

FOUCAULT Michel Op Cit 2007 23

NEDER Gizlene Discurso Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris

Editor 1995 p 12-23

8

seus representantes para divulgarem suas ideias bem como um meio de exigirem dos

poderes puacuteblicos medidas mais eneacutergicas contra os ditos problemas sociais crianccedilas

pobres mendigos vadios e prostitutas Por meio da imprensa o discurso meacutedico-

juriacutedico passou a ser divulgado no seio da sociedade e a caracterizaccedilatildeo da infacircncia

pobre foi se consolidando como um grave problema para a sociedade Nesse contexto

deu-se a construccedilatildeo do termo ldquomenorrdquo para designar a crianccedila desvalida abandonada e

delinquente tendo a imprensa contribuiacutedo para difusatildeo do termo com esse caraacuteter

estigmatizante24

Pelo fato de o termo ldquomenorrdquo ter adquirido essa conotaccedilatildeo preconceituosa no

final do seacuteculo XIX e ao longo do XX o seu emprego no texto seraacute sempre entre aspas

para indicar a existecircncia de um sentido pejorativo em torno da referida expressatildeo

A pesquisa nas fontes consultadas teve principalmente um caraacuteter qualitativo o

que exigiu uma leitura e uma anaacutelise minuciosa da documentaccedilatildeo Este meacutetodo me

possibilitou um conhecimento mais detalhado da fonte bem como uma percepccedilatildeo mais

apurada da visatildeo dos setores dominantes com relaccedilatildeo agraves crianccedilas desvalidas25

A partir de leituras que discutem a situaccedilatildeo da infacircncia pobre no Brasil comecei

a perceber a importacircncia de examinar esse tema para o municiacutepio de Juiz de Fora por

dois motivos Primeiro pela importacircncia da cidade no cenaacuterio econocircmico do estado de

Minas Gerais e do Brasil na passagem agrave modernidade A cidade se constituiu ateacute por

volta da deacutecada de 1920 em um dos principais municiacutepios cafeicultor de Minas Gerais

e no principal centro industrial mineiro Em segundo lugar por se tratar de um tema

24

Cf MARCIacuteLIO Maria Luiza Histoacuteria Social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo HUCITEC

2006 NEDER Vinicius Jornalismo e exclusatildeo social anaacutelise comparativa nas coberturas sobre

crianccedilas e adolescentes Rio de Janeiro Editora Multifoco 2011 BATISTA Vera Malaguti Difiacuteceis

ganhos faacuteceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro 2 ed Rio de Janeiro Editora Revan 2003

LONDONtildeO Fernando Torres ldquoA origem do conceito menorrdquo In DEL PRIORE Mary (org) Histoacuteria

da crianccedila no Brasil Satildeo Paulo Contexto 1991 25 Gizlene Neder no artigo ldquoEntre o dever e a caridaderdquo analisou o Asilo dos Meninos Desvalidos e o

Imperial Instituto de Meninos Cegos Segundo o Regulamento do Asilo de 1875 o estabelecimento

destinava-se a recolher ldquomenoresrdquo com idades entre 6 e 12 anos NEDER Gizlene ldquoEntre o dever e a

caridade assistecircncia abandono repressatildeo e responsabilidade parental do Estadordquo In Discursos

Sediciosos (RJ) RJ v Ano 9 n 14 pp 199 ndash 231 2004 Cf FRAGA FILHO Walter Mendigos

moleques e vadios na Bahia do seacuteculo XIX Satildeo Paulo HICITECSalvador (BA) EDUFBA 1996

FRANCISCO Raquel Pereira ldquoOs deserdados da Repuacuteblica a infacircncia pobre em Juiz de Fora no final do

seacuteculo XIX e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXrdquo In Anais do XV Encontro Regional de Histoacuteria

(Anpuh-Rio) ndash Ofiacutecio do Historiador ensino e pesquisa Satildeo Gonccedilalo UERJFFP 2012a Disponiacutevel

em

wwwencontro2012rjanpuhorgresourcesanais1513383334456_ARQUIVO_OsDeserdadosdaRepublic

a_anpuh_2012pdf Acessado em 01-07-2015 ___________ ldquoA infacircncia como objeto de estudordquo In

Duc in Altum ndash Revista de Ciecircncias e Conhecimento Muriaeacute (MG) Faculdade de Filosofia Ciecircncias e

Letras Santa Marcelina (FAFISM) v 12 n 1 dezembro 2013 pp 179-190

9

pouco explorado pelos pesquisadores da aacuterea de histoacuteria26

Os trabalhos desenvolvidos

pelos estudiosos locais dedicam-se principalmente agrave anaacutelise da economia cafeeira da

propriedade escrava dos conflitos por terras das relaccedilotildees familiares e de parentesco dos

escravos e dos libertos das estrateacutegias camponesas de sobrevivecircncia da questatildeo da

pobreza e da assistecircncia da imigraccedilatildeo do movimento operaacuterio do processo de

urbanizaccedilatildeo e industrializaccedilatildeo da ldquoAtenas Mineirardquo27

e de seus literatos entre outros

Entretanto eacute necessaacuterio ressaltar que alguns desses trabalhos abordam o problema da

infacircncia desvalida e ou operaacuteria mas esta natildeo constitui o cerne da discussatildeo dos

estudos dos pesquisadores28

A existecircncia de fontes disponiacuteveis nos arquivos e centros de memoacuteria do

municiacutepio tornou viaacutevel o desenvolvimento do projeto Ao iniciar a pesquisa nos

arquivos tinha a intenccedilatildeo de examinar apenas os processos de tutelas e os jornais

Entretanto deparei-me com outras seacuteries documentais que se apresentaram de grande

relevacircncia para o meu estudo Desta maneira foram incluiacutedos os processos de

apreensatildeo de internaccedilatildeo de acidentes no trabalho envolvendo ldquomenoresrdquo e um

processo de lesatildeo corporal A inclusatildeo dos processos judiciais trouxe novos

questionamentos com relaccedilatildeo agrave infacircncia pobre e operaacuteria do municiacutepio de Juiz de Fora

A tese eacute composta por quatro capiacutetulos O primeiro foi intitulado ldquoA infacircncia

como um problema social na passagem agrave modernidade no Brasilrdquo Nele analisei a

historiografia brasileira sobre a problemaacutetica da infacircncia pobre no Brasil fazendo um elo

com os estudos em acircmbito internacional Essa questatildeo foi examinada levando em

consideraccedilatildeo o processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre bem como de

implantaccedilatildeo de uma nova forma de governo na sociedade brasileira o republicano O

objetivo era compreender como as classes dominantes que procuravam construir uma

imagem do Brasil como uma naccedilatildeo ldquocivilizadardquo e moderna na passagem agrave

26

O uacutenico trabalho de cunho histoacuterico de que tenho conhecimento que discute a questatildeo da infacircncia no

municiacutepio de Juiz de Fora durante a Primeira Repuacuteblica eacute o de Laura Valeacuteria Pinto Ferreira Cf

FERREIRA Laura Valeacuteria Pinto Entre a repressatildeo e a caridade crianccedilas desamparadas em uma

sociedade em construccedilatildeo (1890-1927) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Juiz de Fora UFJF 2009 27

ROSA Rita de Caacutessia Vianna ldquoA General das Letrasrdquo a literata Cosette de Alencar e a ldquosuardquo cidade

ndash Juiz de Fora (MG) 1918 a 1973 Tese de Doutoramento Niteroacutei UFF 2013 28

Cf ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe operaacuteria em Juiz de Fora uma histoacuteria de lutas

(1912 ndash 1924) Juiz de Fora EDUFJF 1987 GOODWIN JUNIOR James William Cidades de Papel

imprensa progresso e tradiccedilotildees Diamantina e Juiz de Fora MG (1884-1914) Tese de Doutoramento

Satildeo Paulo USP 2007 GUIMARAtildeES Elione S Muacuteltiplos viveres de afrodescendentes na escravidatildeo e

no poacutes-emancipaccedilatildeo famiacutelia trabalho terra e conflito (Juiz de Fora ndash MG 1828-1928) Satildeo Paulo

Annablume Juiz de Fora FUNALFA 2006 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Os trabalhadores e a cidade

a formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de Fora e suas lutas por direito (1877-1920) Juiz de Fora (MG)

Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV 2010 PINTO Jefferson de Almeida Controle social e pobreza

(Juiz de Fora c 1876 ndash c 1922) Juiz de Fora (MG) Editar 2008

10

modernidade posicionaram-se frente ao problema da infacircncia desvalida que vivia pelas

ruas das grandes cidades Nesse contexto o pensamento meacutedico-juriacutedico teve um papel

de grande relevacircncia na formulaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social natildeo apenas

destinadas aos ldquomenoresrdquo mas para a populaccedilatildeo pobre em geral Assim as propostas de

supressatildeo do paacutetrio poder e de o Estado assumir a responsabilidade parental29

sobre a

infacircncia desvalida abandonada e delinquente foi se ampliando no decorrer das

primeiras deacutecadas do seacuteculo XX Por meio da anaacutelise empreendida sobre a literatura que

discute tal temaacutetica pude observar a ineficaacutecia das poliacuteticas de assistecircncia destinadas agraves

crianccedilas das classes subalternas da sociedade No terceiro item do primeiro capiacutetulo

examinei a cidade de Juiz de Fora e seus ldquomenoresrdquo abandonados desvalidos

delinquentes e operaacuterios atraveacutes fundamentalmente dos perioacutedicos locais Nesse item

procurei compreender como as ideias de modernidade ldquocivilizaccedilatildeordquo higienismo e

controle social foram incorporadas pelas classes dominantes locais A presenccedila de

ldquomenoresrdquo nas vias puacuteblicas foi algo constantemente combatido pelos oacutergatildeos da

imprensa no decorrer das trecircs primeiras deacutecadas do novecentos Os artigos publicados

referentes a tal situaccedilatildeo advogavam da necessidade urgente de a cidade contar com uma

instituiccedilatildeo que educasse e protegesse as crianccedilas desvalidas preparando-as para serem

bons trabalhadores ordeiros e disciplinados

No segundo capiacutetulo ldquoOs pequenos desvalidos Juiz de Fora ndash (1888-1930)rdquo

desenvolvi uma reflexatildeo acerca das estrateacutegias forjadas pelas classes dominantes de

manutenccedilatildeo e controle de uma parcela da matildeo de obra a baixo custo atraveacutes do

estabelecimento do viacutenculo tutelar de crianccedilas pertencentes agraves camadas subalternas da

sociedade Por meio dos processos de tutelas e de apreensatildeo de menores investiguei a

ldquoresistecircnciardquo das classes desfavorecidas agraves medidas de controle social e de

descaracterizaccedilatildeo de suas relaccedilotildees familiares e de parentesco bem como a ldquolutardquo para

manterem a guarda de suas crianccedilas O exame dessa documentaccedilatildeo ndash tutelas e

apreensatildeo de menores ndash apresentou uma variedade de questotildees a ser abordada sobre a

infacircncia pobre Por intermeacutedio dos processos eacute viaacutevel examinar as relaccedilotildees familiares e

a precariedade das condiccedilotildees de vida e de sobrevivecircncia das classes populares As

29

Pierre Legendre (1992) na obra ldquoLes enfants du texte Eacutetude sur la fonction parentale des Eacutetatsrdquo

trabalha com o conceito de funccedilatildeo parental do Estado Segundo Gizlene Neder o conceito refere-se a um

ldquoconjunto de praacuteticas poliacuteticas e ideoloacutegicas encetadas a partir de um lugar de poder dentro de uma dada loacutegica institucionalrdquo A autora assinala que fez ldquoum pequeno deslocamento conceitual afirmando a ideia

de responsabilidade parentalrdquo por entender que o conceito empregado por Legendre ldquoestaacute muito mais

proacuteximo da ideia de responsabilidade do que de funccedilatildeordquo Neder ressalta que a responsabilidade parental

do Estado (do ponto de vista social poliacutetico ideoloacutegico e juriacutedico) natildeo eacute equivalente ao paternalismo

ldquono seu sentido pejorativordquo Cf NEDER Gizlene Op cit 2004 p 202-203

11

condiccedilotildees sociais e econocircmicas desfavoraacuteveis em determinados momentos

contribuiacuteram para que as famiacutelias pobres abandonassem sua prole solicitassem a

nomeaccedilatildeo de um tutor e ou a destituiccedilatildeo do paacutetrio poder

No terceiro capiacutetulo ldquoPor entre maacutequinas e engrenagens as crianccedilas operaacuterias

da lsquoManchester Mineirarsquordquo analisei as reivindicaccedilotildees operaacuterias durante a Primeira

Repuacuteblica e o esboccedilar de uma legislaccedilatildeo social trabalhista nos anos 1920 As condiccedilotildees

precaacuterias e as longas jornadas de trabalho bem como a exploraccedilatildeo do trabalho infantil e

feminino foram questotildees debatidas nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX Nessa mesma

deacutecada deu-se a aprovaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo destinada agrave infacircncia pobre abandonada e

delinquente O Coacutedigo de Menores (1927) procurou abarcar todos os aspectos referentes

agrave assistecircncia proteccedilatildeo ao controle e puniccedilatildeo das crianccedilas das classes pobres Por esse

Coacutedigo o trabalho infanto-juvenil foi regulamentado Nesse capiacutetulo foram analisados

os acidentes no trabalho e as agressotildees e violecircncias contra os operaacuterios nos

estabelecimentos industriais de Juiz de Fora Pela anaacutelise dos processos de acidentes no

trabalho pude apurar as condiccedilotildees precaacuterias de trabalho e de vida dos trabalhadores do

municiacutepio Nesses espaccedilos de ldquodisciplinardquo o emprego de crianccedilas e adolescentes

submetidas a uma longa jornada de trabalho sem momentos para o lazer e as

brincadeiras ndash proacuteprias para suas idades ndash foram palcos de graves acidentes sendo

alguns fatais Os estabelecimentos industriais comerciais entre outros tambeacutem foram

locais onde as crianccedilas proletaacuterias vivenciaram vaacuterios tipos de violecircncias fiacutesicas morais

e psicoloacutegicas Examinando um processo de lesatildeo corporal de um operaacuterio do setor

tecircxtil pude abordar a questatildeo dos castigos fiacutesicos impostos aos trabalhadores de forma

geral e principalmente sobre as crianccedilas

No quarto e uacuteltimo capiacutetulo ldquoOs lsquodeserdados da sortersquo a assistecircncia aos

lsquomenoresrsquo pobres de Juiz de Forardquo meu objetivo foi examinar os discursos em torno da

problemaacutetica da assistecircncia social aos ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados oacuterfatildeos e

indigitados como delinquentes No alvorecer do seacuteculo XX a sociedade brasileira

passava por um momento de reestruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo do Estado sob a forma

republicana Desse modo estava dando os primeiros passos no processo de

regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre nas questotildees relativas ao controle social

agrave assistecircncia a ser destinada aos setores desfavorecidos entre outros encaminhamentos

Segundo Gizlene Neder as modificaccedilotildees pelas quais o paiacutes estava passando

espelhavam ldquoas necessidades histoacuterico-sociais da edificaccedilatildeo de uma ordem juriacutedico-

12

poliacutetica a um soacute tempo moderna e legitimada poliacutetica e ideologicamenterdquo30

Assim

durante todo o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica a problemaacutetica da assistecircncia do controle

social da educaccedilatildeo e da necessidade de o Estado assumir as suas funccedilotildees parentais para

com a infacircncia desvalida foi uma questatildeo presente continuamente nos debates e

projetos de segmentos da intelectualidade de poliacuteticos juristas meacutedicos higienistas

setores da burguesia industrial entre outros

Neste uacuteltimo capiacutetulo examinei tambeacutem os casos de abandono de dar ldquopara

criarrdquo e de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo O ato de abandonar a prole - seja o literal o dar

ldquopara criarrdquo ou internaacute-la em instituiccedilotildees - era (eacute) perpassado por diversos fatores como

a falta de recursos econocircmicos problemas de sauacutede motivos morais dificuldades de

relacionamento entre os filhos e os novos companheiros dos genitores entre outros

motivos Analisei processos de tutelas e internaccedilatildeo em que foi possiacutevel presumir o ato

do abandono e que me permitiram em alguns casos examinar as condiccedilotildees de vida e de

sobrevivecircncia dos ldquomenoresrdquo e de seus familiares

Por meio dos perioacutedicos e dos processos judiciais foi possiacutevel observar a

presenccedila do discurso dominante sobre o caraacuteter positivo do trabalho como um meio de

preservar a infacircncia desvalida e de regenerar aquela considerada delinquente As

instituiccedilotildees assistenciais aparecem como o locus privilegiado em alguns discursos para

a salvaccedilatildeo da infacircncia e que redundaria na salvaccedilatildeo da paacutetria

Finalizando o capiacutetulo realizei um estudo de caso referente ao processo de

internaccedilatildeo de dois irmatildeos em estabelecimentos de assistecircncia situados na capital do

estado de Minas Gerais Estudando esse processo pude alargar o meu conhecimento

sobre as condiccedilotildees de vida e familiar das crianccedilas provenientes das classes mais baixas

As discussotildees realizadas nesta tese procurou dialogar de certa forma com a

situaccedilatildeo atual da infacircncia pobre de ldquoruardquo trabalhadora abandonada interna e

explorada sexualmente Em outras palavras minha pretensatildeo foi procurar perceber as

mudanccedilas e permanecircncias nos debates e accedilotildees praacuteticas no que concerne agrave infacircncia

pobre fiacutesica e socialmente desamparada Essa eacute uma temaacutetica bem atual visto que

ainda eacute uma questatildeo natildeo resolvida e em debate no Brasil No momento presente a

discussatildeo eacute relativa agrave reduccedilatildeo da maioridade penal na qual pode ser observada a

permanecircncia de ideias de princiacutepios do seacuteculo XX em alguns discursos

30

NEDER Gizlene Discurso juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris

Editor 1995 p 39

13

A epiacutegrafe escolhida para este trabalho fala dos silecircncios do ldquodesconhecimentordquo

dos ldquoabusosrdquo de natildeo se querer perceber a miseacuteria Assim eacute a situaccedilatildeo da infacircncia

pobre na histoacuteria do Brasil Ela eacute ldquoesquecidardquo ldquodesconhecidardquo ldquoinvisiacutevelrdquo ateacute ldquose

rebelarrdquo mostrar a sua fragilidade a sua forccedila a sua revolta e o seu grito de socorro

Quando isso ocorre planejam e constroem novos espaccedilos de reclusatildeo com novas

nomenclaturas Voltam com a infacircncia pobre para os porotildees da sociedade e da histoacuteria

14

CAPIacuteTULO 1

A INFAcircNCIA COMO UM PROBLEMA SOCIAL NA

PASSAGEM Agrave MODERNIDADE NO BRASIL

Imagem 1 ldquoMenorrdquo Joatildeo Theodoro Monteiro ndash 1929 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processo

relativo agrave internaccedilatildeo de Menores ndash Joatildeo Theodoro Monteiro -1929

15

11 ldquoFLORES DE UMA GERACcedilAtildeO FUTURArdquo A QUESTAtildeO DA

INFAcircNCIA POBRE NO BRASIL

Assistido educado a tempo na escola da honra e do trabalho o menino

desvalido desabrocharaacute no homem forte de corpo e de alma aparelhado

material e moralmente para ser uma unidade no movimento de expansatildeo

civilisadora da Patria [] (Leacuteon Renault)31

A infacircncia tornou-se objeto de estudo da historiografia brasileira a partir

principalmente da deacutecada de 1980 em cujo contexto as classes subalternas foram

obtendo cada vez mais espaccedilos nas anaacutelises histoacutericas e socioloacutegicas32

Para a produccedilatildeo

e o crescimento da temaacutetica sobre a infacircncia as ldquoflores de uma geraccedilatildeo futurardquo33

foi de

suma importacircncia a incorporaccedilatildeo de novos procedimentos teoacutericos e metodoloacutegicos

Nesse sentido a histoacuteria demograacutefica o diaacutelogo com as outras ciecircncias sociais como a

antropologia a pedagogia a psicologia o direito e a sociologia foram extremamente

importantes uma vez que possibilitaram aos estudiosos a realizaccedilatildeo de uma releitura

das fontes com um novo olhar bem como o emprego de outras seacuteries documentais ndash

revistas jornais fotografias cartas processos crimes tutelas entre outras

A revisatildeo historiograacutefica levada a cabo a partir sobretudo dos anos de 1980

possibilitou uma nova interpretaccedilatildeo das relaccedilotildees entre dominantes e dominados na

sociedade brasileira As novas abordagens histoacutericas embasadas em fontes diversas

demonstraram que mesmo nas relaccedilotildees assimeacutetricas de dominaccedilatildeo haacute negociaccedilatildeo e

31 RENAULT Leacuteon A assistencia a infancia desvalida em Minas Geraes Belo Horizonte Imprensa

Official do Estado de Minas 1930 p 211 32

De acordo com Acircngela de Castro Gomes na deacutecada de 1970 observa-se uma mudanccedila na

historiografia brasileira no que diz respeito ao tema da questatildeo social Em algumas anaacutelises os

dominados jaacute figuravam como atores histoacutericos e sujeitos de suas histoacuterias Entretanto foi nos anos de

1980 que efetivamente os estudos produziram uma reflexatildeo e um debate mais amplo tendo as classes

menos favorecidas da sociedade como protagonistas de suas histoacuterias Essa revisatildeo historiograacutefica

iniciou-se em um periacuteodo de expansatildeo dos programas de poacutes-graduaccedilatildeo e de redemocratizaccedilatildeo do paiacutes

GOMES Acircngela de Castro ldquoQuestatildeo social e historiografia no Brasil do poacutes-1980 notas para um

debaterdquo Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro n 34 jul-dez 2004 p 157-158 e 183 Disponiacutevel em

httpbibliotecadigitalfgvbrojsindexphpreharticleview22281367 Acessado em 28-12-2013 Cf

BRETAS Marcos Luiz ROSEMBERG Andreacute ldquoA histoacuteria da poliacutecia no Brasil balanccedilos e

perspectivasrdquo In Topoi v 14 n 26 jan-jul pp 162-173 2013 p 166 Disponiacutevel em

wwwrevistatopoiorgnumeros_anteriorestopoi26TOPOI26_2013_TOPOI_26_E01pdf Acessado em

02-07-2015 33 SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 02 ago 1912 p 1 A expressatildeo ldquoflores de uma geraccedilatildeo

futurardquo foi retirada da reportagem sobre o projeto de lei para a regulamentaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho das

crianccedilas nos estabelecimentos industriais de Juiz de Fora O projeto apresentado agrave Cacircmara Municipal

pelo vereador Dr Pinto de Moura foi elogiado pela mateacuteria que assinalou que as accedilotildees em prol dos

operaacuterios deveriam comeccedilar pelas crianccedilas que eram as ldquoflores de uma geraccedilatildeo futurardquo Cf ldquoTirasrdquo

Jornal do Commercio 02 ago 1912 p 1

16

pacto poliacutetico e que os setores dominantes da sociedade natildeo foram (e natildeo satildeo ainda)

capazes de anular a subjetividade dos dominados As anaacutelises poacutes-1980 transformaram

o ldquosentido de um conjunto de comportamentos individuais e coletivos politizando uma

seacuterie de accedilotildees e introduzindo novos atores como participantes da poliacuteticardquo34

A revisatildeo

nos estudos brasileiros relacionados ao tema da questatildeo social estaacute inserida em um

contexto internacional de renovaccedilatildeo teoacuterica e metodoloacutegica da historiografia35

No processo de inserccedilatildeo das classes subalternas da sociedade nos estudos a

demografia histoacuterica teve um papel relevante A sua utilizaccedilatildeo como meacutetodo de anaacutelise

pela Histoacuteria Social trouxe uma dimensatildeo ldquoateacute entatildeo inusitada agrave histoacuteria da famiacuteliardquo36

Os primeiros esforccedilos de anaacutelise sobre o comportamento reprodutivo e econocircmico das

famiacutelias foram realizados pelos franceses seguidos pelos ingleses37

De acordo com

Maria Luiza Marciacutelio ldquoa Demografia Histoacuterica agrave frente acompanhada de diversas

ciecircncias do Homem vem dando ecircnfase ao estudo da infacircncia desvalidardquo38

No Brasil em consonacircncia com toda renovaccedilatildeo pela qual a historiografia

passou a partir dos anos de 1980 vaacuterios trabalhos abordando uma multiplicidade de

questotildees sobre a infacircncia comeccedilaram a ser desenvolvidos Dentro desse cenaacuterio foram

criados os centros de estudos destinados a promover pesquisas abordando esse tema em

distintos periacuteodos de nossa histoacuteria da colocircnia aos dias atuais39

Segundo Irene Rizzini em niacutevel internacional as abordagens histoacutericas sobre a

infacircncia datam do iniacutecio do seacuteculo XX podendo-se encontrar trabalhos dedicados a tais

34

Idem p 158 35

Ibidem 36

CASTRO Hebe ldquoHistoacuteria Socialrdquo In CARDOSO Ciro Flamarion VAINFAS Ronaldo (orgs)

Domiacutenios da Histoacuteria ensaios de teoria e metodologia Rio de Janeiro Campus 1997 p 49 37

FARIA Sheila de Castro ldquoHistoacuteria da famiacutelia e demografia histoacutericardquo In CARDOSO Ciro

Flamarion VAINFAS Ronaldo (orgs) Op cit 1997a p 244-249 38

MARCIacuteLIO Maria Luiza Histoacuteria social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo Ed HUCITEC

2006 p 11-12 e 127 39

Em 1984 foi fundada na Universidade Santa Uacutersula a Coordenaccedilatildeo de Estudos e Pesquisas sobre a

Infacircncia (CESPIUSU) O CESPIUSU eacute um centro de pesquisa e documentaccedilatildeo que definiu como meta

ldquopromover o desenvolvimento da pesquisa e da accedilatildeo social junto agrave infacircncia pobre e excluiacuteda estimular o

conhecimento e socializar a informaccedilatildeo produzida no Brasil e em outros paiacuteses sobretudo da Ameacuterica

Latinardquo RIZZINI Irene RIZZINI Irma HOLANDA Fernanda Rosa Borges de A crianccedila e o

adolescente no mundo do trabalho Rio de Janeiro USU Ed Universitaacuteria Amais Livraria e Editora

1996 (Seacuterie Banco de Dados ndash 4) No mesmo ano de 1984 foi criado pela professora Maria Luiza

Marciacutelio na Universidade de Satildeo Paulo (USP) o Centro de Estudos de Demografia Histoacuterica da Ameacuterica

Latina (Cedhal) Um dos campos de pesquisa desenvolvidos pelo Cedhal foi sobre a histoacuteria da infacircncia

brasileira com destaque para a infacircncia pobre desvalida abandonada e marginal MARCIacuteLIO Maria

Luiza Histoacuteria social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo Ed HUCITEC 2006 Na deacutecada de

1990 surgiu o Nuacutecleo de Estudos Avanccedilados em Histoacuteria Social da Infacircncia ligado ao Centro de

Documentaccedilatildeo e Apoio agrave Pesquisa em Histoacuteria da Educaccedilatildeo (CDAPH) da Universidade de Satildeo

Francisco FREITAS Marcos Cezar de Histoacuteria Social da Infacircncia no Brasil 6 ed Satildeo Paulo Cortez

2006

17

temaacuteticas em paiacuteses como Inglaterra Franccedila e Estados Unidos Entretanto foi com o

trabalho de Philippe Ariegraves ldquoHistoacuteria Social da crianccedila e da famiacuteliardquo tendo o tiacutetulo

original ldquoLrsquoenfance et la vie familiale sous lrsquoAncien Reacutegimerdquo na deacutecada de 1960 que as

anaacutelises histoacutericas com foco na infacircncia adquiriram maior relevacircncia A autora ainda

assinala que essa obra ldquocausou tanto impacto que passou a ser uma das principais

referecircncias para qualquer texto publicado no mundo ocidental sobre crianccedila inclusive

no Brasilrdquo40

Colin Heywood assevera que ateacute a deacutecada de 1950 poucos historiadores haviam

se dedicado ao estudo da infacircncia sendo tal temaacutetica praticamente nova entre os

trabalhos historiograacuteficos41

As primeiras anaacutelises dedicaram-se mais a aspectos

institucionais ficando em um plano secundaacuterio as ldquoideias sobre a infacircncia e as

crianccedilasrdquo42

Entretanto as pesquisas histoacutericas contribuiacuteram ldquopara um reconhecimento

da construccedilatildeo social da infacircncia no qual as comparaccedilotildees no decorrer do tempo foram

tatildeo instrutivas quanto agraves de caraacuteter intelectualrdquo43

O autor tambeacutem destaca que apesar

dos problemas metodoloacutegicos e de anaacutelise observados por alguns pesquisadores na

abordagem desenvolvida por Ariegraves eacute inegaacutevel a sua relevacircncia para o estudo de tal

questatildeo

O trabalho de Philippe Ariegraves foi alvo de severas criacuteticas nas deacutecadas de 1960 e

1970 O historiador francecircs examinou a questatildeo da infacircncia e da morte na Europa

ocidental cristatilde da Idade Meacutedia ao seacuteculo XVIII utilizando diversas fontes para

embasar seus argumentos a respeito da pouca importacircncia conferida agraves crianccedilas naquela

sociedade e de como a mesma foi paulatinamente adquirindo cada vez mais relevo no

seio familiar e no conjunto da sociedade agrave medida que declinava o periacuteodo medieval44

Ariegraves em ldquoHistoacuteria Social da crianccedila e da famiacuteliardquo assinalou que a crianccedila apenas na

sua tenra idade recebia os cuidados necessaacuterios ou ldquopaparicosrdquo como ele nomeou

Apoacutes essa fase da vida ela ingressava no mundo dos adultos e todo o seu aprendizado

ocorria atraveacutes desse conviacutevio ou seja natildeo havia uma consciecircncia da especificidade

dessa fase da vida Essa situaccedilatildeo vivenciada pelas crianccedilas durante o periacuteodo medieval

segundo o autor foi se transformando ao longo do tempo em que as sociedades

40

RIZZINI Irene O seacuteculo perdido raiacutezes histoacutericas das poliacuteticas puacuteblicas para a infacircncia no Brasil 2

ed Satildeo Paulo Cortez 2008 p 37 41

HEYWOOD Colin Uma histoacuteria da infacircncia da Idade Meacutedia agrave Eacutepoca Contemporacircnea no Ocidente

Porto Alegre Artmed 2004 p 13 42

Idem p 13 43

Ibidem 44

VAINFAS Ronaldo Os protagonistas anocircnimos da Histoacuteria micro-histoacuteria Rio de Janeiro Campus

2002 p 42 ndash 43

18

modernas apresentaram caracteriacutesticas completamente opostas e a crianccedila passou a ser

cercada de cuidados e afeiccedilotildees bem como passou a ser percebida como um ser diferente

do adulto45

Segundo Kuhlmann Jr e Fernandes a anaacutelise desenvolvida por Ariegraves sobre a

infacircncia durante o periacuteodo medieval foi construiacuteda em cima de ldquofundamentos

insuficientes e vulneraacuteveisrdquo46

A percepccedilatildeo das vaacuterias fases da vida humana e de que a

infacircncia constituiacutea uma delas com suas especificidades proacuteprias foi observada em

vaacuterios estudos desde a Antiguidade e nas mais diversas constituiccedilotildees sociais Os

autores ainda ressaltaram os graves problemas que a aplicaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo de

Ariegraves sobre a infacircncia na sociedade francesa pode ocasionar quando utilizada em

outros paiacuteses com caracteriacutesticas distintas daquela por ele analisada A observaccedilatildeo por

parte dos estudiosos das tensotildees existentes entre ldquouniversalidade e particularidadesrdquo eacute

uma preacute-condiccedilatildeo das anaacutelises histoacutericas47

Esses aspectos precisam ser levados em

consideraccedilatildeo quando do exame de uma determinada sociedade

Jacques Geacutelis em seu estudo demonstrou que os povos da Europa Ocidental no

periacuteodo medieval tinham a percepccedilatildeo de que a vida humana eacute constituiacuteda de vaacuterias

etapas sendo uma delas a infacircncia O autor ainda assevera que a preocupaccedilatildeo com a

vida da crianccedila fica bem evidente nas anaacutelises a partir da Idade Moderna Entretanto

isso natildeo significa que nos periacuteodos histoacutericos anteriores natildeo tenha havido a preocupaccedilatildeo

com a sauacutede e a vida das crianccedilas48

Geacutelis ressalta que a atitude de recusa dos homens

frente agrave doenccedila e agrave perda de um ente representa um ldquonovo imaginaacuterio da vida e do

tempordquo e que esse aspecto torna-se mais evidente a partir do seacuteculo XVI quando a

ldquovontade de tratar-se e sarar manifesta-se tatildeo fortemente que natildeo deixa duacutevida quanto

ao novo olhar que o homem agora lanccedila sobre si mesmordquo49

Com relaccedilatildeo agrave questatildeo do

sentimento dos paisfamiacutelia pela crianccedila Geacutelis assinala o seguinte

Eacute difiacutecil acreditar que a um periacuteodo de indiferenccedila com relaccedilatildeo agrave crianccedila se

teria sucedido outro durante o qual com a ajuda do ldquoprogressordquo e da

ldquocivilizaccedilatildeordquo teria prevalecido o interesse O interesse ou a indiferenccedila com

relaccedilatildeo agrave crianccedila natildeo satildeo realmente a caracteriacutestica desse ou daquele periacuteodo

45

ARIEgraveS Philippe Histoacuteria social da crianccedila e da famiacutelia 2 ed Rio de Janeiro LTC 2006 46

KUHLMANN JR Moiseacutes FERNANDES Rogeacuterio ldquoSobre a histoacuteria da infacircnciardquo In FARIA FILHO

Luciano Mendes (org) A infacircncia e sua educaccedilatildeo ndash materiais praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e

Brasil) Belo Horizonte Autecircntica 2004 p 16 47

Idem p 16-17 48

GEacuteLIS Jacques ldquoA individualizaccedilatildeo da crianccedilardquo In CHARTIER Roger Histoacuteria da vida privada da

renascenccedila ao Seacuteculo das Luzes Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 p 307-309 49

Idem p 309

19

da histoacuteria As duas atitudes coexistem no seio de uma mesma sociedade

uma prevalecendo sobre a outra em determinado momento por motivos

culturais e sociais que nem sempre eacute faacutecil distinguir A indiferenccedila medieval

pela crianccedila eacute uma faacutebula50

(Grifos meus)

Geacutelis chama de ldquofaacutebulardquo a interpretaccedilatildeo desenvolvida por Ariegraves de que no

periacuteodo medieval tenha predominado uma indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave infacircncia As criacuteticas

direcionadas agrave interpretaccedilatildeo de Ariegraves destacam a necessidade de se considerar as

caracteriacutesticas culturais sociais poliacuteticas entre outras de cada eacutepoca regiatildeo e povo

Cada periacuteodo da histoacuteria da humanidade cada sociedade apresentouapresenta suas

especificidades no que diz respeito ao tratamento dispensado aos seus pequenos Como

destacam Kuhlmann JR e Fernandes ldquoassim como mudam os mais variados aspectos

da atividade humana a relaccedilatildeo da sociedade com a infacircncia natildeo poderia permanecer

estaacuteticardquo51

Por intermeacutedio das criacuteticas feitas ao estudo de Ariegraves uma pluralidade de

questotildees foi levantada o que contribuiu sobremaneira para a ampliaccedilatildeo das anaacutelises

sobre a infacircncia A obra ldquoHistoacuteria Social da crianccedila e da famiacuteliardquo constitui uma

referecircncia fundamental para a historiografia sobre a infacircncia E na trilha aberta por

Ariegraves multiplicaram-se as abordagens sobre as infacircncias A histoacuteria desses pequenos eacute

procurada nas folhas amareladas e carcomidas pelo tempo por fungos e insetos dos

processos dos diaacuterios dos jornais das cadernetas escolares nas fotografias e em vaacuterias

outras fontes52

O objeto em tela nesse trabalho eacute a infacircncia desvalida do final do seacuteculo XIX e

das primeiras deacutecadas do XX Ao analisar essa parcela da sociedade dentro desse

recorte temporal torna-se imprescindiacutevel discorrer sobre o fim do sistema escravista e

das mudanccedilas que o processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre trouxe para a

sociedade O Brasil foi um paiacutes que durante mais de trecircs seacuteculos utilizou-se do

trabalho escravo africano Ao se examinar a questatildeo da infacircncia pobre da famiacutelia das

classes populares enfim dos grupos desfavorecidos da sociedade natildeo haacute como natildeo

estabelecer um diaacutelogo com a historiografia sobre a escravidatildeo e o poacutes-aboliccedilatildeo dadas

as caracteriacutesticas intriacutensecas da nossa formaccedilatildeo social

50

Ibidem p 317-318 51

KUHLMANN JR Moiseacutes FERNANDES Rogeacuterio Op cit 2004 p 18 52 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoA infacircncia como objeto de estudordquo In Duc in Altum ndash Revista de

Ciecircncias e Conhecimento Muriaeacute (MG) Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras Santa Marcelina

(FAFISM) v 12 n 1 dezembro pp 179-190 2013

20

A reposiccedilatildeo da matildeo de obra escrava ocorreu nas unidades produtivas durante a

maior parte do periacuteodo em que perdurou a escravidatildeo no Brasil por meio do traacutefico

Atlacircntico Somente nos anos derradeiros de tal instituiccedilatildeo jaacute na segunda metade do

seacuteculo XIX por intermeacutedio da Lei Euzeacutebio de Queiroacutes em 1850 o traacutefico internacional

de escravos foi abolido no Brasil Mas a necessidade de braccedilos para a lavoura cafeeira

na regiatildeo sudeste soacute aumentava Uma das soluccedilotildees encontrada pelos ldquobarotildees do

Impeacuteriordquo53

para a continuaccedilatildeo do cultivo da rubiaacutecea foi a importaccedilatildeo de cativos de

outras proviacutencias brasileiras e ou de pequenas e meacutedias unidades Dessa forma o

traacutefico interno de escravos generalizou-se como mecanismo de reposiccedilatildeo de matildeo de

obra Essa estrateacutegia senhorial das regiotildees dinacircmicas da economia teve como efeito a

concentraccedilatildeo social e regional da propriedade escrava que em longo prazo levou agrave

deslegitimaccedilatildeo do sistema escravista bem como a ldquoquebra da cumplicidade do conjunto

da populaccedilatildeo livre com a continuidade da escravidatildeordquo54

Aleacutem de recorrer ao traacutefico interno de escravos restava ainda aos escravocratas

a reposiccedilatildeo por meio dos filhos de suas escravas Poreacutem um novo golpe foi desfechado

sobre a propriedade escrava em 1871 com a promulgaccedilatildeo da Lei Rio Branco de no

2040 de 28 de setembro mais conhecida pelo nome de Lei do Ventre Livre55

a qual

53

Expressatildeo empregada por Joatildeo Luiacutes Fragoso Cf FRAGOSO Joatildeo Luiacutes ldquoO Impeacuterio escravista e a

repuacuteblica dos plantadores parte A economia brasileira no seacuteculo XIX mais que uma plantation

escravista-exportadorardquo In LINHARES Maria Yedda (org) Histoacuteria Geral do Brasil Rio de Janeiro

Campus 1990 54

CASTRO Hebe Maria Mattos de ldquoLaccedilos de famiacutelia e direitos no final da escravidatildeordquo In NOVAIS

Fernando A (coord) e ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da vida privada no Brasil

Impeacuterio Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997b p 343-344 55

Segundo Martha Abreu a Lei de 28 de setembro de 1871 passou a ser chamada de ldquoVentre Livrerdquo pelos

opositores ao projeto da mesma O governo usava as expressotildees ldquoa questatildeo do elemento servilrdquo ou

ldquoliberdade dos nasciturosrdquo ABREU Martha ldquoMatildees escravas e filhos libertos novas perspectivas em

torno da Lei do Ventre Livre Rio de Janeiro 1871rdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila

no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria

Amais 1997 p 111 112 A Lei do Ventre Livre que muitos acreditam tratar apenas da liberdade dos

filhos das escravas abordou outras questotildees aleacutem do fruto do ventre da mulher cativa Por intermeacutedio

dessa lei aos escravos foi facultada a possibilidade de formar um pecuacutelio de resgatar a si mesmo atraveacutes

da alforria desde que possuiacutesse o seu valor e a revelia do proprietaacuterio entre outros dispositivos Durante

um longo periacuteodo foi corrente na historiografia a ideia de que era um direito dos escravos que

possuiacutessem em espeacutecie o seu valor poderem comprar a si mesmos Era pois colocado como um direito

do escravo Mas em um estudo apurado realizado por Manuela Carneiro da Cunha ficou demonstrado

que esse direito soacute passou a existir formalmente escrito em lei a partir de 1871 atraveacutes da Lei do Ventre

Livre Segundo Manuela Carneiro da Cunha esse erro histoacuterico tem sua origem em Henry Koster e a

partir dele propagou-se entre os viajantes do seacuteculo XIX e os estudiosos do seacuteculo XX Com relaccedilatildeo agrave

intervenccedilatildeo do Estado na libertaccedilatildeo de cativos Cunha cita algumas ocasiotildees excepcionais em que

ocorreram estas interferecircncias Todavia assevera que antes de 1871 o ato de alforriar era uma

prerrogativa exclusiva dos senhores mesmo que o escravo oferecesse seu valor ao senhor este podia

recusar Aceitar a alforria do cativo que oferecia seu valor fazia parte da lei costumeira bem como o

manciacutepio ter um pecuacutelio Cf CUNHA Manoela Carneiro da ldquoSobre os silecircncios da lei lei costumeira e

positiva nas alforrias de escravos no Brasil do seacuteculo XIXrdquo In Antropologia do Brasil mito histoacuteria

etnicidade 2 ed Satildeo Paulo Brasiliense 1987

21

previa que toda crianccedila filha de mulher escrava que nascesse apoacutes a sua promulgaccedilatildeo

seria livre podendo permanecer em companhia de sua matildee ateacute a idade de oito anos de

idade A partir de entatildeo o destino do ingecircnuo56

o filho livre da mulher escrava ficava

nas matildeos do proprietaacuterio da matildee que poderia fazer a opccedilatildeo de aproveitar-se do trabalho

do ldquomenorrdquo ateacute os 21 anos de idade ou entregaacute-lo ao governo e receber uma

indenizaccedilatildeo Essa lei representou mais uma barreira para a continuidade do regime de

trabalho escravo pois acabou com ldquoa parte mais produtiva da propriedade escravardquo ao

deixar livre o ldquoventre geradorrdquo de novos escravos de acordo com as palavras de

fazendeiros do Piraiacute57

A Lei do Ventre Livre promoveu um acalorado debate na sociedade brasileira

atraveacutes dos jornais e de reuniotildees puacuteblicas ateacute ser votada em setembro de 1871 Setores

das classes dominantes comprometidos com o trabalho escravo criticaram o projeto da

lei alegando que era um franco desrespeito ao direito de propriedade Ressaltavam

ainda que seria um desastre para as famiacutelias escravas existentes nas senzalas porque as

crianccedilas livres nascidas apoacutes a lei natildeo respeitariam seus familiares e parentes escravos

A libertaccedilatildeo do ventre teria como consequecircncia o desmantelamento das relaccedilotildees

familiares Outro ponto ressaltado foi que os chamados ldquoventre-livresrdquo natildeo suportariam

ver o sofrimento de seus familiares dentro do cativeiro e por essa razatildeo iriam embora

Segundo Hebe Mattos e Ana Lugatildeo Rios essa argumentaccedilatildeo dos senhores de que a lei

dividiria a famiacutelia escrava pois manteria uma parte presa agrave escravidatildeo e a outra ao

mundo livre natildeo se justificava uma vez que essa situaccedilatildeo jaacute era vivida por alguns

escravos durante o seacuteculo XIX A conquista da liberdade nem sempre significava

afastar-se do grupo familiar uma vez que muitos ex-escravos permaneceram na mesma

unidade produtiva onde haviam sido escravos por causa da existecircncia de parentes ainda

nas senzalas As autoras assinalam que as famiacutelias buscavam formar um pecuacutelio para

56

Segundo Anna Gicelle Garciacutea Alaniz o termo ingecircnuo adotado para denominar o filho livre da mulher

escrava no Brasil foi inspirado no Direito Romano Mas por causa dos receios de parcela da classe

dominante com relaccedilatildeo aos direitos a que as crianccedilas assim denominadas poderiam ter acesso caso

futuramente reivindicassem apoiados no significado que o termo possuiacutea na Roma antiga esse termo foi

retirado do texto da lei do Ventre Livre apesar de ter continuado a ser empregado para se referir a esses

ldquomenoresrdquo Cf ALANIZ Anna Gicelle G Ingecircnuos e libertos estrateacutegias de sobrevivecircncia familiar em

eacutepocas de transiccedilatildeo 1871-1895 Campinas CMUUNICAMP 1997 p 38-39 Cf NEDER Gizlene ldquoAs

poliacuteticas educacionais para a infacircncia e a juventude pobres no Brasil na passagem a Modernidaderdquo In

Revista Ibero-Americana de Educaccedilatildeo n 541 25 out 2010a p 4 Disponiacutevel em

wwwrieoeiorgdeloslectores3402Nederpdf Acessado em 10-07-2015 57

NABUCO Joaquim O Abolicionismo Rio de Janeiro Nova Fronteira Satildeo Paulo Publifolha 2000 p

101

22

comprarem a liberdade de cada um de seus membros ateacute que todos conseguissem

alcanccedilar a liberdade58

De acordo com Martha Abreu a lei de 1871 feria um dos pilares da relaccedilatildeo

escravista ou seja a ldquopoliacutetica paternalistardquo dos senhores de ldquoconceder benesserdquo a seus

cativos como a manumissatildeo Essa poliacutetica senhorial funcionava para os proprietaacuterios

como uma maneira de controlar suas escravarias uma vez que apenas os ldquobons cativosrdquo

recebiam as graccedilas A Lei Rio Branco libertava os filhos de todas as escravas sem a

anuecircncia de seus donos mesmo os filhos daquelas que natildeo se enquadravam no modelo

padratildeo do ldquobom escravordquo59

Hebe Mattos e Ana Lugatildeo Rios corroboram com as

interpretaccedilotildees de que o ponto central na discussatildeo sobre a libertaccedilatildeo do ventre nada

mais era do que a questatildeo da autoridade senhorial Segundo as autoras todas as medidas

tomadas pelo estado imperial com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escrava desde 1850 tiveram

como resultado praacutetico transformar antigos costumes em leis A decretaccedilatildeo de leis que

beneficiavam a famiacutelia escrava e a conquista da liberdade foi sentida pelos senhores

como uma interferecircncia em sua autoridade e no seu direito exclusivo de conceder

ldquobenessesrdquo aos seus manciacutepios e em retribuiccedilatildeo ter a gratidatildeo desses indiviacuteduos60

Apoacutes longos debates e algumas modificaccedilotildees no projeto original a lei Rio

Branco foi finalmente promulgada em 28 de setembro de 1871 Para Sidney Chalhoub

o texto aprovado representou ldquoo reconhecimento legal de uma seacuterie de direitos que os

escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitaccedilatildeo de alguns objetivos das lutas dos

negrosrdquo61

A lei de 1871 tem um caraacuteter ambivalente observado pelos contemporacircneos

que a criticaram pelas suas limitaccedilotildees mas tambeacutem ressaltaram a sua importacircncia no

processo de emancipaccedilatildeo do trabalho escravo62

O abolicionista Joaquim Nabuco

assinalou que este foi um ldquopasso de gigante dado pelo paiacutesrdquo ndash apesar de todas as suas

imperfeiccedilotildees sua incompletude e sua injusticcedila ndash pelo fato de simbolizar um ldquobloqueio

moral da escravidatildeordquo63

Em suas ponderaccedilotildees Nabuco ressaltou que a lei de 1871 foi

uma ldquoficccedilatildeo de direitordquo pois as crianccedilas nasciam juridicamente livres mas de fato aos

oito anos de idade eram avaliadas em 600$000 mil reacuteis isto eacute o valorindenizaccedilatildeo pago

58

RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Memoacuterias do cativeiro famiacutelia trabalho e cidadania no poacutes-

emancipaccedilatildeo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 p 165-167 59

ABREU Martha Op cit 1997 p 112 60

RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Op cit 2005 p 49-51 61

CHALHOUB Sidney Visotildees da liberdade uma histoacuteria das uacuteltimas deacutecadas da escravidatildeo na corte

Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 p 159-160 62 Cf NEDER Gizlene Op cit 2010a 63

NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 51

23

ao proprietaacuterio que natildeo quisesse aproveitar-se do trabalho do ingecircnuo a partir dessa

idade ateacute os vinte e um anos Para o abolicionista a lei de setembro de 1871 jaacute nasceu

obsoleta sendo por isso necessaacuterio denunciar os absurdos como o fato de manter o

ldquoingecircnuordquo preso ao cativeiro ateacute a idade de vinte e um anos64

Apesar de todas as falhas

descritas e de muitas outras que poderiam ser citadas a lei de 1871 foi segundo

Nabuco o ldquoprimeiro ato de legislaccedilatildeo humanitaacuteria de nossa Histoacuteriardquo65

Joaquim Nabuco inquiriu sobre o futuro que teriam essas crianccedilas nascidas

livres mas vivendo dentro das senzalas ateacute os vinte e um anos de idade Esses ldquoescravos

provisoacuteriosrdquo66

durante as duas primeiras deacutecadas de suas vidas se sobrevivessem

cresceriam totalmente envolvidos com o trabalho escravo e receberiam a mesma

educaccedilatildeo moral Que cidadatildeo seria o ingecircnuo criado na escravidatildeo e exposto a todos os

seus viacutecios Para Nabuco a sorte do escravo estava associada agrave do ingecircnuo A luta dos

abolicionistas visava atender a essas duas classes dos efeitos maleacuteficos do sistema

escravista67

A indefiniccedilatildeo da situaccedilatildeo social e juriacutedica do ingecircnuo na sociedade brasileira

pode ser observada no estudo desenvolvido por Gizlene Neder sobre o Asilo dos

Meninos Desvalidos e o Imperial Instituto de Meninos Cegos As duas instituiccedilotildees

posicionaram-se contraacuterias agrave admissatildeo de ingecircnuos e crianccedilas libertas Segundo Neder

o diretor do Asilo dos Meninos Desvalidos em um ofiacutecio explicou os motivos para a

recusa da matriacutecula de dois ldquomenoresrdquo assinalou que a instituiccedilatildeo natildeo havia sido criada

para receber ingecircnuos Com relaccedilatildeo ao Imperial Instituto de Meninos Cegos a mesma

problemaacutetica se apresenta ou seja destinava-se ao atendimento de crianccedilas livres Os

meninos portadores de alguma deficiecircncia fiacutesica ou mental e de ldquomoleacutestias contagiosas

ou incuraacuteveisrdquo tambeacutem natildeo eram aceitos nas ditas instituiccedilotildees68

Para Neder o

64

A Lei Rio Branco de 28 de setembro de 1871 no Art 1o assinala que ldquoOs filhos da mulher escrava que

nascerem no Impeacuterio desde a data desta lei seratildeo considerados de condiccedilatildeo livre E fica estipulado no

sect1ordm ldquoOs ditos filhos menores ficaratildeo em poder e sob a autoridade dos senhores de suas matildees os quais

teratildeo obrigaccedilatildeo de criaacute-los e trataacute-los ateacute a idade de oito anos completos Chegando o filho da escrava a

esta idade o senhor da matildee teraacute a opccedilatildeo ou de receber do Estado a indenizaccedilatildeo de 600$000 ou de

utilizar-se dos serviccedilos do menor ateacute a idade de 21 anos completosrdquo etc Cf CONRAD Robert ldquoA lei

Rio Brancordquo In Os uacuteltimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888 2 ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1978 p 366 65

NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 51 66

Joaquim Nabuco chamava as crianccedilas nascidas apoacutes a lei que libertou o ventre das escravas de

ldquoescravos provisoacuteriosrdquo pelo fato de os senhores poderem usufruir ndash se desejassem ndash os serviccedilos dessas

crianccedilas ateacute elas completarem 21 anos de idade NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 23 67

NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 23-24 57 68

NEDER Gizlene ldquoEntre o dever e a caridade assistecircncia abandono repressatildeo e responsabilidade

parental do Estadordquo In Discursos Sediciosos (RJ) RJ v Ano 9 n 14 pp 199 ndash 231 2004 p 206 210-

211 215-216

24

abandono pelo Estado das ldquopessoas necessitadas de sua assistecircncia omitindo-se de suas

responsabilidades parentaisrdquo pode ser interpretado como uma poliacutetica de negar ldquoa

assistecircncia agravequeles que natildeo se enquadravam em alguma possibilidade de

desenvolvimento de aptidatildeo uacutetil agrave sociedade e ao proacuteprio Estadordquo69

Com relaccedilatildeo aos ingecircnuos Robert Conrad assinala que em 1885 havia cerca de

quatrocentos mil matriculados mas apenas 01 deles tinha sido entregue ao governo70

Com base nesses dados eacute viaacutevel supor que seja esporaacutedico o caso analisado por Gizlene

Neder sobre a questatildeo da matriacutecula de dois meninos ingecircnuos (ou libertos) no Asilo dos

Meninos Desvalidos

Uma das contradiccedilotildees presentes na lei do Ventre Livre eacute o fato de ela ter

permitido aos senhores decidirem o destino das crianccedilas quando as mesmas chegassem

agrave idade de 8 anos Os proprietaacuterios podiam continuar com os ldquomenoresrdquo explorando

seus serviccedilos ateacute a idade de 21 anos ou entregaacute-los ao governo recebendo de acordo

com os anos de cuidado uma indenizaccedilatildeo de 600 mil reacuteis que seriam pagos em tiacutetulos

de renda com juros de seis por cento ao ano Os senhores em sua grande maioria

escolheram utilizar os trabalhos dessas crianccedilas71

A lei que libertou o ventre contrariou uma determinaccedilatildeo expressa na lei de 1869

que protegia a uniatildeo familiar De acordo com a lei de 1869 os filhos menores de quinze

anos natildeo poderiam ser separados de sua matildee Na lei de 28 de setembro de 1871 essa

idade caiu para 12 anos caso a matildee fosse vendida e para 8 anos na possibilidade de o

senhor dispensar os serviccedilos do ldquomenorrdquo que tivesse nascido depois da lei Se

compararmos a lei que deu proteccedilatildeo aos laccedilos familiares com a que libertou o ventre da

mulher escrava percebe-se que ocorreu um endurecimento com relaccedilatildeo agrave idade em que

as crianccedilas poderiam ser separadas de suas matildees ou pais ou seja de 15 anos passou-se

para 12 anos de idade72

A lei do Ventre Livre foi criticada tanto pelos favoraacuteveis ao fim da escravidatildeo

quanto por aqueles defensores de sua manutenccedilatildeo Para muitos ela teve de imediato um

efeito psicoloacutegico sobre os escravos e muitos senhores mas seus resultados praacuteticos soacute

seriam visiacuteveis vinte anos mais tarde Para vaacuterios poliacuteticos e escravocratas a lei de 1871

69

Idem p 215 70

CONRAD Robert Op cit 1978 p 144 71

ALANIZ Anna Gicelle Garciacutea Op cit 1997 p 40-41 CONRAD Robert Op cit 1978 p 144

NEDER Gizlene Op cit 2010a p 4 72

GUIMARAtildeES Elione S Muacuteltiplos viveres de afrodescendentes na escravidatildeo e no poacutes-emancipaccedilatildeo

famiacutelia trabalho terra e conflito (Juiz de Fora ndash MG 1828-1928) Satildeo Paulo Annablume Juiz de Fora

FUNALFA 2006 p 263

25

estava interferindo no direito de propriedade resguardado pela Constituiccedilatildeo do

Estado73

As criacuteticas mais ferrenhas ao projeto de lei que libertava o ventre da mulher

escrava vieram das regiotildees brasileiras mais comprometidas com o braccedilo escravo isto eacute

Minas Gerais Rio de Janeiro e Satildeo Paulo proviacutencias produtoras de cafeacute que era o

carro-chefe da economia brasileira no periacuteodo O desapego ao trabalho escravo

segundo Emiacutelia Viotti da Costa foi mais lento nas aacutereas em que havia uma grande

necessidade de braccedilos para a lavoura como eacute o caso do Sudeste brasileiro no final do

seacuteculo XIX em funccedilatildeo dos cafezais Nas demais proviacutencias do Impeacuterio em que natildeo

havia um grande comprometimento com o trabalho escravo a transiccedilatildeo para o trabalho

livre foi mais raacutepida74

De acordo com Hebe Mattos e Ana Lugatildeo Rios eacute difiacutecil ldquoprecisar o impactordquo da

lei de 1871 entre os cativos mas em alguns depoimentos dos descendentes dos uacuteltimos

escravos existem pistas de que a mesma teve um efeito marcante entre eles A

relevacircncia da lei pode ser mensurada pelo fato de ser destacada nos depoimentos dos

descendentes depois de decorridos mais de cem anos de sua promulgaccedilatildeo sendo que

alguns depoentes fazem questatildeo de afirmar que eram filhos de mulheres que nasceram

de ldquoventre livrerdquo75

Para as autoras eacute viaacutevel supor ldquoatraveacutes de alguns indiacutecios esparsos eacute

que a liberdade das crianccedilas tenha vindo reforccedilar projetos e comportamentos que

preparavam a uacuteltima geraccedilatildeo de escravos para a liberdaderdquo76

Os referidos relatos

sugerem que a lei que libertou o ventre teve uma conotaccedilatildeo muito importante para os

mesmos uma vez que os seus descendentes doravante nasceriam livres Portanto

presumo que os escravos natildeo concebessem os ingecircnuos como ldquoescravos provisoacuteriosrdquo

como Nabuco os haviam denominado

Para Sidney Chalhoub a lei de setembro de 1871 natildeo eacute passiacutevel de ldquouma

interpretaccedilatildeo uniacutevoca e totalizanterdquo pois segundo sua argumentaccedilatildeo a referida lei pode

ser visualizada como uma conquista dos homens e mulheres escravizados e que teve

certa influecircncia no processo de extinccedilatildeo da escravidatildeo77

Gizlene Neder ressalta com

relaccedilatildeo agraves consequecircncias da Lei do Ventre Livre que a partir de sua promulgaccedilatildeo os

setores desvalidos da sociedade passaram a ser percebidos e que a criaccedilatildeo do Asilo de

Meninos Desvalidos (1874) eacute mais um indiacutecio para os estudos que discutem os ldquoefeitos

73

COSTA Emiacutelia Viotti da Da senzala agrave colocircnia 3 ed Satildeo Paulo UNESP 1998 p 420-421 451 74

Idem p 449 452 465 ABREU Martha Op cit 1997 p 112 75

RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Maria Op cit 2005 p 164-167 76

Idem p 167 77

CHALHOUB Sidney Op cit 1990 p 161

26

muacuteltiplos e contraditoacuterios da Lei do Ventre Livre apontando que ela natildeo foi

completamente inoacutecua ou protelatoacuteriardquo78

Apoacutes a promulgaccedilatildeo da Lei do Ventre Livre setores da classe dominante com

um discurso de proteccedilatildeo e amparo aos ingecircnuos e crianccedilas desvalidas passaram a

recorrer aos meios legais para terem a guarda desses pequenos Os setores abastados da

sociedade solicitaram aos Juiacutezes de Oacuterfatildeos a tutela79

de meninos e meninas pobres

oacuterfatildeos ingecircnuos abandonados etc Foi a partir da Lei do Ventre Livre que esses

ldquomenoresrdquo passaram a interessar as classes dominantes antes eram basicamente os

oacuterfatildeos ricos que possuiacuteam tutores Aproveitando-se da lei que estipulava que se deveria

dar tutor a todos os ldquomenoresrdquo as famiacutelias abastadas com um discurso de proteccedilatildeo de

amizade e de afeto passaram a solicitar aos juiacutezes de oacuterfatildeos a tutela de crianccedilas

desvalidas Num momento de crise do escravismo essa atitude pode ser interpretada

como uma maneira de controlar uma parcela de trabalhadores80

Parafraseando Kaacutetia

Mattoso por detraacutes desse discurso de amparo aos ldquomenoresrdquo estava o trabalhador uacutetil

ao seu senhortutor81

Segundo assinala Arethuza Helena Zero a partir da Lei Rio

Branco o viacutenculo tutelar foi transformado num meio de controle social e econocircmico dos

ingecircnuos por parte dos senhores Essa atitude senhorial tinha por objetivo suprir em

certa medida a carecircncia de matildeo de obra82

Elione S Guimaratildees no estudo desenvolvido sobre a populaccedilatildeo escrava do

municiacutepio de Juiz de Fora ressaltou que encontrou apenas um uacutenico processo de tutela

envolvendo uma crianccedila afro-americana anterior agrave lei do ventre livre A autora

argumentou que antes da Lei 1871 existiram crianccedilas alforriadas e que estavam aptas

de acordo com as leis a receberem tutores mas aparentemente natildeo houve interesse no

periacuteodo anterior em formalizar a ldquoguardardquo e ldquoproteccedilatildeordquo desses ldquomenoresrdquo Esse

interesse surgiu quando o ventre da escrava deixou de gerar novos seres escravizados83

78 NEDER Gizlene Op cit 2010a p 6 79

A tutela eacute o encargo dado a um indiviacuteduo para administrar a pessoa e bens de um menor Ela pode ser

imposta pela lei ou pela vontade proacutepria de quem estaacute assumindo a funccedilatildeo Chama-se tutor a pessoa que

exerce essa incumbecircncia 80

ZERO Arethuza Helena O preccedilo da liberdade caminhos da infacircncia tutelada ndash Rio Claro (1871-

1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Campinas (SP) Unicamp 2004 p 69

httplibdigiunicampbrdocumentcode=vtls000329956 81

MATTOSO Kaacutetia Queiroacutes ldquoO filho da escrava (em torno da lei do ventre livre)rdquo In LARA Silvia

Hunold (org) Escravidatildeo Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo ANPUH Marco Zero v 8 n 16

marag 1988 p 37 ndash 55 p 54 82

ZERO Arethuza Helena Op cit 2004 p 64 e 73 83

GUIMARAtildeES Elione S Op cit 2006 p 110-111 Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas escravas Guimaratildees

ressalta que a estas natildeo eram dados tutores uma vez que os senhores eram seus tutores naturais Idem p

110 Cf NEDER Gizlene Op cit 2010a p 6

27

A anaacutelise de Guimaratildees estaacute de acordo com os estudos que abordam a problemaacutetica da

infacircncia durante a segunda metade do seacuteculo XIX mais especificamente poacutes deacutecada de

1870 ressaltando que o interesse pelos ldquomenoresrdquo das classes populares e pelos

ingecircnuos apareceu justamente num momento em que eacute dado um novo golpe na

propriedade escrava com a decretaccedilatildeo do fim da reproduccedilatildeo vegetativa de escravos

Dentro da nova realidade poliacutetica social e econocircmica era necessaacuterio manter o controle

sobre a matildeo de obra desses ldquomenoresrdquo e o viacutenculo tutelar apareceu como uma das

possibilidades para setores das classes dominantes

A deacutecada de 1870 tem uma grande representatividade no processo que pocircs fim agrave

escravidatildeo no Brasil colocado em andamento pelo governo imperial Nesse periacuteodo

ocorreu um acirramento do movimento de contestaccedilatildeo do regime escravista quando

vaacuterios setores da intelectualidade passaram a utilizar a imprensa para demonstrar os

males que essa instituiccedilatildeo representava para a naccedilatildeo A argumentaccedilatildeo dos abolicionistas

dos anos de 1870 jaacute pode ser observada no pensamento de intelectuais do iniacutecio do

seacuteculo XIX como no de Joseacute Bonifaacutecio e Frederico Leopoldo Ceacutesar Burlamaque

Entretanto a receptividade pela populaccedilatildeo foi distinta nesses dois momentos Na

primeira metade do oitocentos a grande maioria da populaccedilatildeo brasileira estava

comprometida com a propriedade escrava poreacutem essa situaccedilatildeo modificou-se

profundamente no poacutes-1850 quando entatildeo ocorreu uma concentraccedilatildeo regional e social

do elemento servil em consequecircncia das leis emancipacionistas Aleacutem desse fator

interno havia toda uma movimentaccedilatildeo internacional contraacuteria agrave escravidatildeo e vaacuterias

naccedilotildees americanas estavam promovendo a emancipaccedilatildeo de seus cativos Tal conjuntura

contribuiu no processo de deslegitimaccedilatildeo do trabalho escravo e para maior mobilizaccedilatildeo

e aceitaccedilatildeo pela populaccedilatildeo das ideias contraacuterias agrave escravidatildeo

Lilia M Schwarcz destaca outra relevacircncia da deacutecada de 1870 para a anaacutelise da

sociedade brasileira Segundo a autora foi nesse dececircnio que ocorreu a ldquoentrada de todo

um novo ideaacuterio positivista-evolucionista em que os modelos raciais de anaacutelise

cumprem um papel fundamentalrdquo84

Essas ideias tiveram uma grande influecircncia nos

84

SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil ndash

1870-1930 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 p 14 Gizlene Neder e Ana Paula Barcelos Ribeiro

da Silva empreenderam um estudo sobre a histoacuteria das ideias poliacuteticas em consonacircncia com o processo de

circulaccedilatildeo de ideias e apropriaccedilatildeo cultural na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX As autoras examinaram

as vaacuterias correntes de pensamento que influenciaram os setores da intelectualidade brasileira bem como

os diaacutelogos intelectuais entre brasileiros portugueses argentinos e espanhoacuteis para demonstrarem ldquoo

movimento de circulaccedilatildeo de ideias e apropriaccedilatildeo culturalrdquo Esse ldquomovimentordquo natildeo ocorria apenas entre

pensadores brasileiros e europeus mas tambeacutem entre intelectuais brasileiros e latino-americanos Cf

NEDER Gizlen SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da ldquoIntelectuais circulaccedilatildeo de ideias e apropriaccedilatildeo

28

discursos bem como nas accedilotildees dos homens de letras e dos poliacuteticos brasileiros sobre as

camadas empobrecidas

A importacircncia dos anos de 1870 tambeacutem eacute ressaltada nos estudos sobre a

infacircncia Foi a partir desse dececircnio no bojo das discussotildees em torno do novo ator

social o ingecircnuo que a sociedade brasileira passou a repensar o papel da crianccedila

sobretudo com relaccedilatildeo agravequelas pertencentes as classes subalternas Foi nesse momento

que a crianccedila pobre emergiu como um ldquoproblema socialrdquo que medidas foram

formuladas e colocadas em praacuteticas com o fito de controlar essa parcela da populaccedilatildeo

Segundo Irene Rizzini a lei de setembro de 1871 impocircs agrave sociedade uma nova

percepccedilatildeo sobre a crianccedila85

A partir da deacutecada de 1870 o ldquomenorrdquo e a sua educaccedilatildeo passaram a ter uma

importacircncia maior nos debates de pedagogos meacutedicos higienistas intelectuais juristas

e poliacuteticos A preocupaccedilatildeo presente nesses debates estava intimamente relacionada com

uma das principais questotildees que estava perpassando a sociedade brasileira desse

periacuteodo a da constituiccedilatildeo de trabalhadores livres disciplinados e ordeiros durante o

processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre De acordo com Maria Luiza

Marciacutelio a lei de 1871 provocou em vaacuterios setores das classes dominantes o pavor de

ficarem sem trabalhadores domeacutesticos A decretaccedilatildeo dessa lei teve um impacto

importante sobre as poliacuteticas direcionadas agrave ldquoproteccedilatildeordquo bem como a ldquocapacitaccedilatildeo para o

mundo do trabalhordquo da ldquocrianccedila expostardquo86

Comeccedila a ganhar forccedila na sociedade brasileira uma preocupaccedilatildeo entre uma

parcela dos meacutedicos juristas parlamentares entre outros sobre a necessidade de se

ldquoprotegerrdquo ldquoeducarrdquo e ldquoampararrdquo as crianccedilas das camadas populares A educaccedilatildeo era

concebida como uma estrateacutegia para disciplinar e preparar esses ldquomenoresrdquo para o

futuro como trabalhadores disciplinados e ordeiros A proposta de ensino para essa

camada desvalida da sociedade era o baacutesico (ler e escrever) acompanhado do

cultural Anotaccedilotildees para uma discussatildeo metodoloacutegicardquo In Passagens Revista Internacional de Histoacuteria

Poliacutetica e Cultura Juriacutedica v 1 n 1 jan-jun 2009 p 29-54 Disponiacutevel em

wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv1n1a2pdf Acessado em 08-07-2015 Cf PINTO Jefferson

de Almeida ldquoA restauraccedilatildeo catoacutelico-tomista a partir do campo poliacutetico e juriacutedico de Minas Gerais na

passagem agrave modernidaderdquo Passagens Revista Internacional de Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio

de Janeiro v 2 n 5 set-dez 2010 p 147-148 e 150 Disponiacutevel em

wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv2n5a72010pdf Acessado em 10-07-2015 85

RIZZINI Irene ldquoCrianccedilas e menores do paacutetrio poder ao paacutetrio dever Um histoacuterico da legislaccedilatildeo para

a infacircncia no Brasilrdquo In RIZZINI Irene PILOTTI Francisco (orgs) A arte de governar crianccedilas a

histoacuteria das poliacuteticas sociais da legislaccedilatildeo e da assistecircncia agrave infacircncia no Brasil 3 ed Satildeo Paulo

Cortez 2011 p 104 86

MARCILIO Maria Luiza Histoacuteria social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo HUCITEC 2006

p 206

29

aprendizado de um ofiacutecio manual como pedreiro carpinteiro sapateiro ferreiro etc

Essa modalidade de ensino tinha como pretensatildeo entre outros fatores reorganizar as

relaccedilotildees de trabalho e as de controle social sob o regime de trabalho livre A foacutermula

ldquoeducar e instruirrdquo os ldquomenoresrdquo pobres era considerada por setores da classe

dominante brasileira como um antiacutedoto para a vadiagem a criminalidade e o oacutecio87

As anaacutelises sobre a infacircncia tecircm reiteradamente afirmado que a crianccedila na

transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX passou a ser vista sob dois acircngulos como o ldquofuturo

da naccedilatildeordquo e como um ldquoproblema para a naccedilatildeordquo A partir do binocircmio futuro-problema

para a naccedilatildeo estabeleceu-se uma diferenciaccedilatildeo entre as infacircncias88

uma necessitava de

proteccedilatildeo e de cuidados e a outra deveria ser vigiada punida e preparada para o mundo

trabalho Foi nesse processo de divisatildeo das infacircncias que tambeacutem ocorreu a

diferenciaccedilatildeo no plano juriacutedico (Coacutedigo Civil 1916 e do Coacutedigo de Menores 1927) de

sua denominaccedilatildeo ou seja o termo crianccedila passou a ser empregado basicamente para

as que estavam inseridas dentro do modelo de famiacutelia-padratildeo e as que estavam alijadas

dessa estrutura familiar passou a ser denominada de ldquomenorrdquo89

Com relaccedilatildeo ao termo ldquomenorrdquo Maria Luiza Marciacutelio ressalta que a

interferecircncia meacutedico-juriacutedica na questatildeo da infacircncia contribuiu para que essa expressatildeo

se tornasse um ldquodiscriminativo da infacircncia desfavorecida delinquente carente

abandonadardquo90

Nessa mesma linha interpretativa Vinicius Neder assinala que na

passagem do seacuteculo XIX para o XX ocorreu um processo de estigmatizaccedilatildeo da infacircncia

e juventude pobre no Brasil Segundo o autor o termo ldquomenorrdquo sofreu um

ldquodeslizamento semacircnticordquo em trecircs niacuteveis - poliacutetico-cultural juriacutedico e linguiacutestico na

passagem agrave modernidade Nesse processo a expressatildeo adquiriu uma conotaccedilatildeo

pejorativa de ldquorejeiccedilatildeo e preconceitordquo91

Para Vera Malaguti Batista com a criaccedilatildeo da

Justiccedila de Menores (1923) e a aprovaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores (1927) o termo

ldquomenorrdquo passou a ser definitivamente relacionado agraves ldquocrianccedilas pobres a serem tuteladas

87

MARTINEZ Alessandra Frota ldquoEducar e instruir olhares pedagoacutegicos sobre a crianccedila pobre no seacuteculo

XIXrdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de Janeiro

Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 88

Estou chamando de as infacircncias pois foi dado um tratamento diferenciado agraves crianccedilas que tinham uma

estrutura familiar burguesa e agraves que natildeo possuiacuteam tal estrutura 89

Sobre a discussatildeo a respeito da divisatildeo da infacircncia entre ldquomenorrdquo e crianccedila ver RIZZINI Irene O

seacuteculo perdido raiacutezes histoacutericas das poliacuteticas puacuteblicas para a infacircncia no Brasil 2 ed Rev Satildeo Paulo

Cortez 2008 FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Infacircncia no soacutetatildeo Belo

Horizonte Autecircntica 1999 NEDER Vinicius Jornalismo e exclusatildeo social anaacutelise comparativa nas

coberturas sobre crianccedilas e adolescentes Rio de Janeiro Editora Multifoco 2011 90

MARCILIO Maria Luiza Op cit 2006 p 195 91

NEDER Vinicius Op cit 2011 p 103-104

30

pelo Estado para a preservaccedilatildeo da ordem e asseguramento da modernizaccedilatildeo capitalista

em cursordquo92

A preocupaccedilatildeo com os ldquomenoresrdquo pobres tambeacutem se estendeu agraves suas famiacutelias

Estas eram concebidas sob o signo da desorganizaccedilatildeo da promiscuidade e da

imoralidade sendo comum a associaccedilatildeo entre pobreza e marginalidade As famiacutelias dos

afro-brasileiros eram os alvos principais desse estereoacutetipo Os indiviacuteduos saiacutedos das

senzalas e seus descendentes que sempre realizaram todos os tipos de trabalhos foram

caracterizados como preguiccedilosos vadios e suas relaccedilotildees familiares tidas como

permeadas pela promiscuidade

As relaccedilotildees familiares e de parentesco dos cativos e dos libertos bem como a

integraccedilatildeo dos ex-escravos na sociedade burguesa competitiva foram objetos de

investigaccedilatildeo dos pesquisadores nas deacutecadas de 1960 e 1970 Os estudiosos se dedicaram

agrave anaacutelise da escravidatildeo e do poacutes-aboliccedilatildeo na sociedade brasileira e em suas reflexotildees

ressaltaram que os afro-brasileiros natildeo se adaptaram agrave ordem burguesa e competitiva

em consequecircncia dos males que o regime escravista havia produzido no seio da

populaccedilatildeo negra escravizada De acordo com essa abordagem os ex-cativos natildeo sabiam

se comportar em tal sociedade por causa da falta de preceitos morais familiares e de

ideais de acumulaccedilatildeo de riquezas Tais interpretaccedilotildees podem ser observadas nas

anaacutelises desenvolvidas por pesquisadores da chamada ldquoEscola Paulista de Sociologiardquo

como Florestan Fernandes em ldquoA integraccedilatildeo do negro na sociedade de classerdquo e na de

Celso Furtado em ldquoFormaccedilatildeo Econocircmica do Brasilrdquo Os trabalhos dos estudiosos da

referida ldquoEscolardquo contestaram a visatildeo da escravidatildeo brasileira como mais amenasuave

se comparada com outras naccedilotildees americanas que utilizaram o trabalho escravo Suas

criacuteticas recaiacuteram principalmente sobre as interpretaccedilotildees de Gilberto Freyre

especialmente em sua obra ldquoCasa Grande amp Senzalardquo Poreacutem transformaram os

escravos em seres anocircmicos sem personalidade em uma ldquocoisardquo Esses pesquisadores

em suas anaacutelises natildeo conseguiram perceber os significados e as ldquovisotildees de liberdaderdquo93

dos ex-escravos no poacutes-emancipaccedilatildeo As atitudes de autonomia de individualidade dos

libertos foram lidas como anomia vadiagem e ociosidade94

92

BATISTA Vera Malaguti Difiacuteceis ganhos faacuteceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro 2 ed

Rio de Janeiro Editora Revan 2003 p 68-69 93

A expressatildeo ldquovisotildees da liberdaderdquo foi apropriada do tiacutetulo do livro de Sidney Chalhoub em que o autor

estuda os anos finais do sistema escravista na Corte Cf CHALHOUB Sidney Visotildees da liberdade uma

histoacuteria das uacuteltimas deacutecadas da escravidatildeo na Corte Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 94

Cf CARDOSO Fernando Henrique Capitalismo e escravidatildeo no Brasil Meridional Satildeo Paulo Difel

1962 FERNANDES Florestan A integraccedilatildeo do negro na sociedade de classes (o legado da ldquoraccedila

31

Entretanto a visatildeo do ldquoescravo coisardquo e do liberto natildeo adaptado agrave sociedade

burguesa e competitiva bem como a falta de laccedilos familiares e de parentesco entre eles

passou a ser contestada pela historiografia brasileira na deacutecada de 1980 Com base em

uma gama variada de fontes as abordagens poacutes-1980 inseriram os cativos e os libertos

como sujeitos histoacutericos e demonstraram que eles foram capazes de construir redes de

sociabilidade relaccedilotildees familiares e de parentesco padrotildees culturais proacuteprios entre

outras coisas95

Todavia as uniotildees familiares dos ex-escravos e de seus descendentes natildeo foram

as uacutenicas a serem alvos de criacuteticas e preocupaccedilotildees por parte de fraccedilotildees das classes

dominantes brasileiras A organizaccedilatildeo familiar das camadas populares da mesma

forma natildeo coincidia com o modelo que era esperado por segmentos da intelectualidade

e poliacuteticos ou seja o modelo burguecircs nuclear higiecircnico e sexualmente regulado96

O

modelo burguecircs de famiacutelia almejado pelos grupos dominantes estava bem distante da

realidade das camadas pobres (nacionais afro-brasileiros e imigrantes) A natildeo

oficializaccedilatildeo religiosa e ou civil das uniotildees era a regra para a grande maioria desse

segmento social Muitas mulheres-matildees precisavam trabalhar para ajudar nas despesas

domeacutesticas Esse fato as impedia de exercer o papel da esposa-matildee burguesa que se

dedicava ao lar e agrave educaccedilatildeo dos filhos Com relaccedilatildeo ao ldquolarrdquo Cynthia Greive e Luciano

Faria salientam que ldquona modernidade a casa eacute uma das condiccedilotildees para viabilizar uma

famiacutelia e organizar papeacuteisrdquo97

entretanto uma parcela expressiva das classes subalternas

vivia em moradias com precaacuterias condiccedilotildees sanitaacuterias e de privacidade Essas

brancardquo) 3 ed v 1 Satildeo Paulo Aacutetica 1978 FURTADO Celso Formaccedilatildeo econocircmica do Brasil 14 ed

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1976 95

Cf FARIA Sheila S de Castro A colocircnia em movimento fortuna e famiacutelia no cotidiano colonial Rio

de Janeiro Nova Fronteira 1998 CHALHOUB Sidney Visotildees da liberdade uma histoacuteria das uacuteltimas

deacutecadas da escravidatildeo na corte Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 MATTOS Hebe Maria Das

cores do silecircncio os significados da liberdade no Sudeste escravista Brasil seacuteculo XIX Rio de Janeiro

Nova Fronteira 1998 RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Memoacuterias do cativeiro famiacutelia trabalho e

cidadania no poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 SLENES Robert W Na

senzala uma flor as esperanccedilas e recordaccedilotildees na formaccedilatildeo da famiacutelia escrava ndash Brasil Sudeste seacuteculo

XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 SLENES Robert W ldquoLares negros olhares brancos histoacuteria

da famiacutelia escrava no seacuteculo XIXrdquo Revista Brasileira de Histoacuteria v 8 n 16 marccediloagosto 1988 Entre

os estudiosos que apresentaram os escravos enquanto sujeitos histoacutericos podemos destacar Robert

Slenes que foi um dos iniciadores dos estudos demograacuteficos sobre a vida familiar dos escravos no Brasil

Suas reflexotildees sobre o viver dos cativos contribuiacuteram para modificar os ldquoolhares brancosrdquo sobre os ldquolares

negrosrdquo O contato estabelecido por esse pesquisador com outras ciecircncias como a antropologia e a

linguiacutestica fez emergir uma nova visatildeo do cativeiro Em suas anaacutelises os homens e as mulheres presos ao

cativeiro possuiacuteam ldquosonhosrdquo ldquoesperanccedilasrdquo e ldquorecordaccedilotildeesrdquo 96

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoFamiacutelia poder e controle social concepccedilatildeo sobre

famiacutelia no Brasil na passagem agrave modernidaderdquo In ________ Ideias juriacutedicas e autoridade na famiacutelia

Rio de Janeiro Revan 2007 pp 14 ndash 15 COSTA Jurandir Freire Ordem meacutedica e norma familiar 4

ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1999 pp 12-14 97

FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Op cit 1999 pp 66 ndash 67

32

habitaccedilotildees com espaccedilos exiacuteguos expunham as intimidades de seus moradores e

contribuiacuteam para que as crianccedilas encontrassem nas ruas o local para suas brincadeiras

longe dos olhares atentos de suas genitoras

Os moradores desses ldquolaresrdquo que se encontravam nos corticcedilos nas periferias das

cidades e nas favelas tornaram-se alvos das accedilotildees sociais Muitas crianccedilas desses

ldquolaresrdquo eram analfabetas e ainda bem jovens jaacute compunham a matildeo de obra das faacutebricas

oficinas dos ldquolaresrdquo burgueses das construccedilotildees e das lavouras Dentro da concepccedilatildeo de

que as famiacutelias pobres eram desestruturadas e que essa situaccedilatildeo contribuiacutea para a

constituiccedilatildeo do criminoso o Estado procurou assumir a responsabilidade pela educaccedilatildeo

sauacutede e puniccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes pobres que se encontrassem nas ditas

famiacutelias desestruturadas Essa accedilatildeo estatal deu origem a um aparato de ldquopoliacuteticas sociais

especiaisrdquo para a infacircncia pobre que tinham o intuito de reduzir a delinquecircncia e a

criminalidade98

Edson Passetti assim assinala

Durante o seacuteculo XX em nome da preservaccedilatildeo da ordem social da educaccedilatildeo

estatal obrigatoacuteria da necessidade de integrar crianccedilas e jovens pobres pelo

trabalho o Estado tambeacutem passou a zelar pela defesa da famiacutelia monogacircmica

estruturada99

(Grifo meu)

Entretanto eacute necessaacuterio assinalar que as famiacutelias pobres mas trabalhadoras

gozavam de uma visatildeo mais complacente por parte dos setores dominantes pois

estavam de acordo com o quadro social projetado pela burguesia trabalho disciplina

famiacutelia e religiatildeo100

Poreacutem essa situaccedilatildeo poderia modificar-se radicalmente em

consequecircncia de uma eventualidade qualquer como a morte de um dos membros a

perda do emprego levando-os ao mundo dos viacutecios e das doenccedilas Acreditava-se que a

populaccedilatildeo pobre era mais propensa aos mencionados males Pelo exposto uma poliacutetica

preventiva deveria ser direcionada a esse grupo como por exemplo os cuidados que

deveriam ter com seus filhos e a importacircncia de os manterem longe das ruas101

Assim observa-se que a discussatildeo sobre a infacircncia estaacute intimamente relacionada

com a da famiacutelia Entretanto como salientam Gizlene Neder e Gisaacutelio Cerqueira ao se

examinar as relaccedilotildees familiares brasileiras eacute necessaacuterio levar em conta as diferenccedilas

eacutetnico-culturais bem como os vaacuterios tipos de organizaccedilatildeo familiar Dessa forma eacute

98

PASSETTI Edson ldquoCrianccedilas carentes e poliacuteticas puacuteblicasrdquo In DEL PRIORI Mary (org) Histoacuteria

das crianccedilas no Brasil 5 ed Satildeo Paulo Contexto 2006 p 348 99

Idem p 349 100

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 59 101

Idem p 60

33

necessaacuterio ldquopensar as famiacutelias de forma pluralrdquo102

A esse respeito Sheila Faria

acrescenta que as anaacutelises sobre a famiacutelia devem levar em consideraccedilatildeo a eacutepoca as

especificidades regionais e os grupos sociais103

A famiacutelia passou a ser concebida ao longo do seacuteculo XIX como a ldquoceacutelula da

ordem vivardquo104

Foi tambeacutem naquele seacuteculo que essa instituiccedilatildeo comeccedilou a sofrer de

forma mais contundente as interferecircncias do Estado destacando nessa accedilatildeo o poder

judiciaacuterio O Estado ldquonatildeo podendo agir constantemente em nome dela vem a ocupar

seu lugar em especial na gestatildeo da crianccedila o ser social e o capital mais preciosordquo105

Essa accedilatildeo intervencionista foi sentida de forma mais contundente na organizaccedilatildeo

familiar dos segmentos empobrecidos da sociedade considerados incapazes de gerir

seus rebentos A interferecircncia no acircmbito privado das famiacutelias pobres prossegue ao

longo do seacuteculo XX com a intromissatildeo de ldquojuiacutezes meacutedicos e policiaisrdquo com a

justificativa de que tal accedilatildeo era ldquoem nome de um lsquointeresse da crianccedilarsquo dirigindo-se agrave

crianccedila como ser socialrdquo106

A literatura sobre a infacircncia tem destacado que parcela da classe dominante

brasileira defendeu a intervenccedilatildeo do Estado nas questotildees da vida privada das famiacutelias

pobres especialmente as relacionadas agrave crianccedila As classes dominantes propunham que

as crianccedilas abandonadas bem como as que conviviam no seio de famiacutelias que

supostamente natildeo dispunham de condiccedilotildees morais e higiecircnicas para educaacute-las e criaacute-

las deveriam ser encaminhadas para instituiccedilotildees que iriam preparaacute-las para a vida em

uma sociedade ldquocivilizadardquo A suspensatildeo do paacutetrio poder justificava-se como uma

necessidade para o bem da naccedilatildeo

Com o objetivo de manter sobre controle as crianccedilas pobres e abandonadas

vaacuterias associaccedilotildees e sociedades foram criadas nas deacutecadas de 1870 e 1880 para abrigar

esses pequenos elevados agrave categoria de ldquoproblema socialrdquo Entretanto no periacuteodo

republicano ocorreu um crescimento no nuacutemero de instituiccedilotildees governamentais para

assistir os ldquomenoresrdquo deserdados da fortuna107

que deveriam ser ldquomoldadosrdquo

102

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 pp 10-11 103

FARIA Sheila S de Castro A colocircnia em movimento fortuna e famiacutelia no cotidiano colonial Rio de

Janeiro Nova Fronteira 1998 p 45 104

PERROT Michelle ldquoOs atoresrdquo In ________ (org) Histoacuteria da Vida Privada da Revoluccedilatildeo

Francesa agrave Primeira Guerra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 p 78 105

Idem p 78 106

Ibidem p 78 103 107

Expressatildeo encontrada nos perioacutedicos do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX para se referir aos

desvalidospobres Cf O Pharol Diaacuterio Mercantil Jornal do Commercio entre outros Segundo Joseacute

Gonccedilalves Gondra havia um vocabulaacuterio extenso para descrever a ldquoinfacircncia pobre no Brasil

oitocentistardquo Termos como ldquoignorantesrdquo ldquodesvalidosrdquo ldquodesprotegidosrdquo ldquodesamparadosrdquo

34

amparados pelo Estado para no futuro serem uacuteteis agrave naccedilatildeo108

Gizlene Neder ressalta

que na passagem do seacuteculo XIX para o XX havia um consenso entre os homens

puacuteblicos de que a assistecircncia agrave infacircncia desvalida ldquodeveria ser prioridade de poliacuteticas

governamentaisrdquo apesar de haver uma diversidade de propostas para a implementaccedilatildeo

dessas poliacuteticas109

Segundo Irma Rizzini durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo XX ocorreu uma

ldquoconsolidaccedilatildeo do modelo institucional com base na internaccedilatildeo da crianccedila em perigo

(chamada de menor abandonado) ou perigosa (menor delinquente) em instituiccedilotildees

fechadasrdquo Paralelo a esse sistema surgem tambeacutem o ldquoextra-asilarrdquo que era proposto

pelos meacutedicos higienistas e se constituiacutea em uma modalidade preventiva e que tinha a

famiacutelia como base para a sua consecuccedilatildeo110

Os institutosasilos eram concebidos como o locus privilegiado para ldquosalvarrdquo a

infacircncia pobre da ociosidade da vadiagem da prostituiccedilatildeo do mundo do crime bem

como livrar a naccedilatildeo de futuros problemas A foacutermula defendida por setores dominantes

para transformarem os pequenos deserdados da fortuna em cidadatildeos uacuteteis agrave sua paacutetria

foi a internaccedilatildeo em institutos em que a educaccedilatildeo elementar era acompanhada do

aprendizado de um ofiacutecio manual ou seja preparar a matildeo de obra do amanhatilde Segundo

Irene Rizzini a educaccedilatildeo destinada agraves crianccedilas pobres tinha como objetivo moldaacute-las

ldquopara a submissatildeordquo e acrescenta

Foi por essa razatildeo que o paiacutes optou pelo investimento numa poliacutetica

predominantemente juriacutedico-assistencial de atenccedilatildeo agrave infacircncia em detrimento

de uma poliacutetica nacional de educaccedilatildeo de qualidade ao acesso de todos Tal

opccedilatildeo implicou na dicotomizaccedilatildeo da infacircncia de um lado a crianccedila mantida

sob os cuidados da famiacutelia para a qual estava reservada a cidadania e do

outro o menor mantido sob a tutela vigilante do Estado objeto de leis

medidas filantroacutepicas educativasrepressivas e programas assistenciais e

ldquoabandonadosrdquo ldquoinfelizes da sorterdquo entre outros eram comuns tanto entre os meacutedicos higienistas quanto

entre os poliacuteticos religiosos e juristas Cf GONDRA Joseacute Gonccedilalves ldquoFilhos da sombra os ldquoenjeitadosrdquo

como problema da ldquoHygienerdquo no Brasilrdquo In FILHO Luciano Mendes Faria (org) A infacircncia e sua

educaccedilatildeo ndash materiais praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e Brasil) Belo Horizonte Autecircntica 2004 p

125 108

ABREU Martha MARTINEZ Alessandra Frota ldquoOlhares sobre a crianccedila no Brasil perspectivas

histoacutericasrdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de

Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 pp 22-25 e 35

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 206-207 109

NEDER Gizlene ldquoAssistecircncia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gisele (org) Educar na infacircncia

perspectivas histoacuterico-sociais Satildeo Paulo Contexto 2010 p 116 110

RIZZINI Irma ldquoPrincipais temas abordados pela literatura especializada sobre infacircncia e

adolescecircnciardquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de

Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 p 42

35

para o qual poder-se-ia dizer como Joseacute Murilo de Carvalho estava

reservada a ldquoestadaniardquo111

As crianccedilas abandonadas as que trabalhavam nas ruas as de famiacutelias pobres e

sem meios precisavam de acordo com o pensamento higienista e civilizador da eacutepoca

de ser protegidas e educadas para que no futuro natildeo se tornassem um pesado fardo para

a naccedilatildeo Irene Rizzini assinala que nas ldquosociedades modernas crescentemente

urbanizadas e industrializadasrdquo a presenccedila de ldquomenoresrdquo pobres representava um grave

problema social que exigia accedilotildees eneacutergicas e em razatildeo da propalada gravidade dessa

questatildeo ldquoum complexo aparato meacutedico-juriacutedico-assistencialrdquo foi arquitetado e tinha

como metas a ldquoprevenccedilatildeo educaccedilatildeo recuperaccedilatildeo e repressatildeordquo desse estrato da

sociedade112

O ldquomenorrdquo deveria ser vigiado e controlado para evitar que se

desencaminhasse Os que jaacute se encontravam desviados do caminho que uma parcela da

sociedade esperava que eles seguissem (leia-se o do trabalho) deveriam ser reprimidos e

reabilitados pelo trabalho nas instituiccedilotildees assistenciais

Os discursos da eacutepoca satildeo enfaacuteticos em caracterizar a educaccedilatildeo como algo

importante na transformaccedilatildeo da sociedade Todavia como jaacute foi comentado ao menor

pobre abandonado a proposta educacional defendida por alguns segmentos da

sociedade era a elementar acompanhada do aprendizado de um ofiacutecio Apesar da crenccedila

na educaccedilatildeo como um meio transformador da sociedade a questatildeo da seguranccedila

nacional veio primeiro que a obrigatoriedade do ensino puacuteblico para todos pois a jovem

Repuacuteblica brasileira preocupou-se em primeiro tornar o serviccedilo militar obrigatoacuterio para

soacute mais tarde determinar isso para a educaccedilatildeo113

No final do seacuteculo XIX o pensamento higienista norteou as atitudes e praacuteticas

de intelectuais poliacuteticos e juristas Era necessaacuterio preparar o cidadatildeo para a vida em

sociedade Para isso era preciso criar novos haacutebitos de higiene e de relaccedilatildeo desses

indiviacuteduos com o espaccedilo Cynthia Veiga e Luciano Faria salientam que as ldquoelites

intelectuaisrdquo do periacuteodo entendiam que era preciso introduzir uma ldquonova moralidade no

corpo e na mente das pessoasrdquo114

O meacutedico tornou-se nesse contexto o salvador o

indiviacuteduo que iria levar ateacute as camadas pobres ldquoas noccedilotildees baacutesicas de higiene e sauacutede ndash

111

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 29 112

Idem p 26 113

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoAlguns aspectos do confronto entre iliberais versus

liberais em Portugal (meados do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XX)rdquo In NEDER Gizlene CERQUEIRA

FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 82 NEDER Gizlene Op cit 2010 p 100 Cf NEDER Gizlene Op

cit 2010b p 100 114

FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Op cit 1999 p 38

36

em sentido fiacutesico e moralrdquo115

e o caminho para se atingir esse objetivo era a crianccedila

pelo fato de constituir a base da estrutura social A famiacutelia precisava ser saneada para o

bem da naccedilatildeo A preocupaccedilatildeo dos meacutedicos higienistas tambeacutem se fez presente com

relaccedilatildeo aos abrigos agraves instituiccedilotildees e aos asilos para crianccedilas onde as taxas de

mortalidade eram altiacutessimas

O pensamento juriacutedico tambeacutem teve grande destaque no periacuteodo abordado A

conjunccedilatildeo das ideias da medicina higienista com as do direito procuraram interferir nos

modos de vida dos estratos mais baixos da sociedade brasileira por serem considerados

por estas esferas de saberpoder como contaminados por diversos viacutecios e destituiacutedos de

valores morais Esses dois ramos do saber comeccedilaram a propugnar novas formas de

assistecircncia para o ldquomenorrdquo desvalido delinquente atraveacutes da prevenccedilatildeo ou de sua

reclusatildeo em instituiccedilotildees para sua recuperaccedilatildeo e transformaccedilatildeo em indiviacuteduos uacuteteis a

naccedilatildeo116

As accedilotildees dos meacutedicos higienistas e dos juristas tambeacutem se voltaram contra as

antigas praacuteticas de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo ou seja a caritativa Segundo eles era

necessaacuterio introduzir novos meacutetodos de assistecircncia a esse estrato da sociedade Em

substituiccedilatildeo agrave caridade de cunho religioso propunham accedilotildees de filantropia em razatildeo de

seus pretensos meacutetodos cientiacuteficos Segundo Irene Rizzini a ldquoracionalizaccedilatildeo da

assistecircnciardquo ou a ldquociecircncia da caridaderdquo foi um ldquoimperativo da eacutepocardquo117

Em outras

palavras um ajuste no atendimento aos ldquomenoresrdquo dentro da nova ordem econocircmica e

social dos Estados com seu desenvolvimento industrial urbano e capitalista O trabalho

desenvolvido pela accedilatildeo caritativa foi se tornando obsoleto dentro da nova mentalidade

higiecircnica e juriacutedica do seacuteculo XIX e XX Um dos principais alvos de criacuteticas dos

defensores das accedilotildees filantroacutepicas de assistecircncia aos pequenos desvalidos foram as

Rodas dos Expostos Tais criacuteticas respaldavam-se em valores morais e higiecircnicos118

Entre os meacutedicos higienistas preocupados com a causa da infacircncia desvalida

destacou-se a accedilatildeo de Moncorvo Filho que desde o final do seacuteculo XIX e no decorrer

das primeiras deacutecadas do XX dedicou-se agrave ldquocausa da crianccedila pobrerdquo O meacutedico

desenvolveu um amplo programa de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo bem como de

orientaccedilatildeo das matildees e das famiacutelias Tambeacutem levou a efeito campanhas de

conscientizaccedilatildeo das camadas populares onde expunha os prejuiacutezos que os viacutecios

115

Idem p 108 116

MARCILIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 194-196 117

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 94 118

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 194-195 RIZZINI Irene Op cit 2008 pp 92-96 111

37

acarretavam em suas vidas e nas de seus filhos com destaque para o alcoolismo

Moncorvo Filho foi o responsaacutevel pelo Primeiro Congresso Brasileiro de Proteccedilatildeo agrave

Infacircncia que se realizou na entatildeo capital do Brasil Rio de Janeiro em 1922119

12 OS ldquoMENORESrdquo DESVALIDOS NA REPUacuteBLICA DA ldquoORDEMrdquo E

DO ldquoPROGRESSOrdquo

A crenccedila no progresso eacute uma das caracteriacutesticas das sociedades modernas O

amanhatilde seraacute melhor que hoje tem sido a crescente convicccedilatildeo do homem

ocidental desde os tempos do Renascimento [] Por vezes ele tem chegado

a achar que tal mudanccedila seraacute sempre para melhor concluindo por isso que o

progresso eacute inevitaacutevel (Richard Graham)120

No decorrer principalmente da segunda metade do seacuteculo XIX no Brasil

vaacuterios pensadoresgestores puacuteblicos levantaram a bandeira de que o regime republicano

era melhor do que o monaacuterquico A partir especialmente da deacutecada de 1870 com a

publicaccedilatildeo do Manifesto Republicano houve um crescimento da criacutetica ao regime

monaacuterquico Geralmente fazia-se uma associaccedilatildeo entre ldquoprogressordquo e ldquocivilizaccedilatildeordquo e

regime republicano sendo que o sistema monaacuterquico era comparado com o atraso e a

barbaacuterie Vaacuterios intelectuais da geraccedilatildeo 1870 defenderam essa forma de governo para o

Brasil demonstrando atraveacutes da anaacutelise da histoacuteria do paiacutes os graves problemas das

instituiccedilotildees poliacuteticas imperiais Os contestadores 1870 criticavam a estrutura poliacutetica

ldquosaquaremardquo do Estado imperial brasileiro como o centralismo poliacutetico e econocircmico

bem como a praacutetica do ldquofilhotismo poliacuteticordquo ou seja a distribuiccedilatildeo de cargos puacuteblicos a

ldquoafilhadosrdquo e parentes impedindo dessa forma a entrada de pessoas por suas

competecircncias nos cargos puacuteblicos121

Os intelectuais da geraccedilatildeo 1870 defendiam

reformas nos setores educacional eleitoral no regime de trabalho e a separaccedilatildeo entre

119

WADSWORTH James E ldquoMoncorvo Filho e o problema da infacircncia modelos institucionais e

ideoloacutegicos da assistecircncia agrave infacircncia no Brasilrdquo Revista Brasileira de Histoacuteria v 19 n 37 Satildeo Paulo

set 1999 Disponiacutevel em httpwwwscielobrscielophpscript=sciarttextamppid=S0102-

01881999000100006 Acessado em 10-01-2014 RIZZINI Irene Op cit 2008 pp 60-63 120

GRAHAM Richard ldquoSpencer e o progressordquo In _______ Gratilde-Bretanha e o iniacutecio da modernizaccedilatildeo

no Brasil Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1973 p 242 121

ALONSO Acircngela Ideias em movimento a geraccedilatildeo de 1870 na crise do Brasil Impeacuterio Satildeo Paulo

Paz e Terra 2002 p 232

38

Estado e Igreja A defesa da aboliccedilatildeo da escravidatildeo no Brasil foi um ponto comum entre

os vaacuterios grupos da geraccedilatildeo 1870122

Com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em 1889 a crenccedila de que no novo regime

seriam empreendidas as reformas poliacuteticas defendidas pelos contestadores de 1870 e de

que o paiacutes entraria enfim nos trilhos do progresso e da civilizaccedilatildeo natildeo se concretizou

pelo menos para a grande maioria da populaccedilatildeo pobre (afro-brasileiros nacionais e

imigrantes) analfabeta destituiacuteda de terra e de educaccedilatildeo que continuou excluiacuteda do

acesso agrave cidadania plena e agraves riquezas do paiacutes As propostas de alguns intelectuais de

que o paiacutes deveria promover uma reforma agraacuteria e oferecer educaccedilatildeo para os ex-

escravos foram ignoradas pelos ldquodonos do poderrdquo123

republicano como haviam feito os

poliacuteticos do periacuteodo imperial124

Aos deserdados da Repuacuteblica restaram apenas a

repressatildeo a exploraccedilatildeo a desqualificaccedilatildeo de seus laccedilos familiares o abandono de seus

filhos e a mendicacircncia E para os filhos desses homens e mulheres foram planejados

construiacutedos os abrigos as instituiccedilotildees que tinham a missatildeo de transformaacute-los em

indiviacuteduos uacuteteis a sociedade atraveacutes do trabalho e da submissatildeo

A Repuacuteblica brasileira que muitos acreditavam que iria inaugurar ldquouma nova era

de direitosrdquo125

deixou claro jaacute nos primeiros anos que essa natildeo seria a realidade da

Repuacuteblica brasileira Setores das classes subalternas da sociedade perceberam logo que

os agentes do novo status quo natildeo estavam preocupados com mudanccedilas que pudessem

lhes trazer benefiacutecios

O sistema republicano decepcionou tanto os intelectuais (geraccedilatildeo 1870) quanto

uma parcela dos liacutederes operaacuterios uma vez que natildeo atendeu aos anseios reformadores

dos primeiros assim como dificultou a organizaccedilatildeo em partidos e a participaccedilatildeo

eleitoral dos segundos126

122

Idem Sobre a criacutetica empreendida pela geraccedilatildeo 1870 agrave poliacutetica imperial ver principalmente o

capiacutetulo 3 ldquoTeorias para a reformardquo 123

A expressatildeo ldquodonos do poderrdquo foi apropriada do tiacutetulo do livro de Raymundo Faoro Cf FAORO

Raymundo Os donos do poder formaccedilatildeo do patronato poliacutetico brasileiro 6 ed Porto Alegre Globo

1984 124

RESENDE Maria Efigecircnia Lage de ldquoO processo poliacutetico na Primeira Repuacuteblica e o liberalismo

oligaacuterquicordquo In FERREIRA Jorge DELGADO Lucilia de Almeida Neves O tempo do liberalismo

excludente da Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica agrave Revoluccedilatildeo de 1930 2 ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 2006 p 100 125

BATALHA Claacuteudio ldquoLimites da liberdade trabalhadores relaccedilotildees de trabalho e cidadania durante a

Primeira Repuacuteblicardquo In LIBBY Douglas Cole FURTADO Juacutenia Ferreira (orgs) Trabalho livre

trabalho escravo Brasil e Europa seacuteculos XVII e XIX Satildeo Paulo Annablume 2006a p 107 126

Cf ALONSO Acircngela Op cit p 232 BATALHA Claacuteudio ldquoFormaccedilatildeo da classe operaacuteria e projetos

de identidade coletivardquo In FERREIRA Jorge DELGADO Lucilia de Almeida Neves O tempo do

liberalismo excludente da Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica agrave Revoluccedilatildeo de 1930 2 ed Rio de Janeiro

39

Os agentes poliacuteticos do novo regime fazendo jus ao lema positivista da bandeira

republicana ldquoordem e progressordquo deram iniacutecio a vaacuterias empreitadas com o objetivo de

conduzir o Brasil ao que concebiam como ldquomodernordquo e ldquocivilizadordquo tendo a Europa

como modelo Para elevar o paiacutes ao progresso e agrave civilizaccedilatildeo alcanccedilados pelas naccedilotildees

europeias e os Estados Unidos as autoridades republicanas empreenderam reformas nas

grandes cidades e capitais da jovem naccedilatildeo republicana Para tanto aliados agraves

concepccedilotildees sobre saneamento e urbanizaccedilatildeo diversas estrateacutegias foram colocadas em

praacutetica para modernizar sanear e urbanizar os grandes centros em especial a capital

federal Rio de Janeiro Dentro desse processo modernizador almejado pela

intelectualidade republicana as camadas pobres da sociedade permaneceram excluiacutedas

das mudanccedilas pelas quais o Estado brasileiro estava passando Os militares que

comandaram inicialmente o novo regime e logo depois os representantes das

oligarquias principalmente a cafeeira de Satildeo Paulo e de Minas Gerais procuraram

manter ldquoum padratildeo de controle poliacutetico e social excludente (sobretudo da massa de ex-

escravosrdquo127

Os homens que comandaram a implantaccedilatildeo e a consolidaccedilatildeo do regime

republicano no Brasil mantiveram em outras bases a estrutura excludente do periacuteodo

imperial no que diz respeito ao direito de participaccedilatildeo poliacutetica das classes subalternas

Com o estabelecimento entre outros criteacuterios de que apenas os homens alfabetizados

estavam aptos a votar uma parcela expressiva da populaccedilatildeo ficou excluiacuteda desse

direito Ao mesmo tempo em que se determinava que apenas a populaccedilatildeo masculina

alfabetizada poderia votar o Estado natildeo assumia a responsabilidade de oferecer

educaccedilatildeo puacuteblica agrave populaccedilatildeo128

O texto da primeira Constituiccedilatildeo Republicana (1891)

assinala que o ensino nas escolas puacuteblicas seria leigo natildeo determinando a sua

obrigatoriedade e nem o dever do Estado de oferececirc-lo (Tiacutetulo IV Seccedilatildeo II art 72

sect 6o) A despreocupaccedilatildeo com a educaccedilatildeo das classes populares da sociedade brasileira

fica mais evidente quando se observa que ldquoa jovem Repuacuteblica aprovou em primeiro

lugar o serviccedilo militar obrigatoacuterio em detrimento da obrigatoriedade da educaccedilatildeo

baacutesicardquo129

Segundo Maria Efigecircnia L de Resende na Carta Magna de 1891 a questatildeo

dos direitos se apresentou de forma limitada no que tange a cidadania plena e aos

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2006b pp 173-174 CARVALHO Joseacute Murilo de Os bestializados o Rio de

Janeiro e a Repuacuteblica que natildeo foi Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987 p 37 127

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 14 128

CARVALHO Joseacute Murilo de Op cit 1987 p 45 129

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 16

40

direitos poliacuteticos Poreacutem no tocante aos direitos sociais estes ficaram agrave margem da

Constituiccedilatildeo de 1891130

Com o estabelecimento definitivo dos representantes das oligarquias no

comando do governo republicano as poliacuteticas governamentais voltadas ldquoagrave famiacutelia e agrave

educaccedilatildeordquo foram tornando-se cada vez mais escassas Esse fato se explica segundo

Gizlene Neder e Gisaacutelio Cerqueira Filho pela suposta descrenccedila por parte dos setores

dominantes na ldquoeficaacutecia de qualquer poliacutetica social de inclusatildeordquo das classes

populares131

Na passagem do seacuteculo XIX para o XX o Brasil assistiu a vaacuterias

transformaccedilotildees como o processo de industrializaccedilatildeo mudanccedila do regime de trabalho

(do escravo para o livre) e de forma de governo (do monaacuterquico para o republicano)

Durante o processo de constituiccedilatildeo da ordem burguesa no Brasil tiveram papel de

destaque os juristas uma vez que segundo o pensamento corrente entre vaacuterios

intelectuais do periacuteodo para o paiacutes alcanccedilar o patamar de naccedilatildeo ldquocivilizadardquo e

ldquomodernardquo um dos pressupostos seria o disciplinamento de sua populaccedilatildeo ou seja era

preciso manter a ldquoordemrdquo para atingir o ldquoprogressordquo Por isso como assinala Gizlene

Neder o discurso juriacutedico foi extremamente importante nesse contexto para normatizar

a repressatildeo e o controle social principalmente com relaccedilatildeo agrave questatildeo do mercado de

trabalho capitalista que estava se constituindo no paiacutes132

A autora ainda assevera que a

implantaccedilatildeo da ordem burguesa no Brasil foi acompanhada e exigiu ldquoo aperfeiccediloamento

e a eficaacutecia das instituiccedilotildees de controle social (justiccedila e poliacutecia)rdquo133

Assim o discurso

criminoloacutegico teve grande relevacircncia no que diz respeito agrave ldquoregulamentaccedilatildeo do mercado

de trabalho e de combate agrave ociosidaderdquo134

Dentro do discurso de combate agrave ociosidade e agrave vagabundagem alguns setores

das classes dirigentes advogavam que nenhuma poliacutetica de bem-estar social deveria ser

dispensada agrave populaccedilatildeo em especial para os ditos indiviacuteduos ldquoineptos os

imprevidentes os viciososrdquo135

Joaquim Murtinho que foi Ministro da Fazenda durante

130

RESENDE Maria Efigecircnia Lage de Op cit 2006 pp 101 ndash 102 131

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 16 132

NEDER Gizlene Discurso Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris

Editor 1995 pp 12-23 133

Idem p 23 Cf BRETAS Marcos Luiz ROSEMBERG Andreacute ldquoA histoacuteria da poliacutecia no Brasil

balanccedilos e perspectivasrdquo In Topoi v 14 n 26 jan-jul pp 162-173 2013 BRETAS Marcos Luiz ldquoA

poliacutecia carioca no Impeacuteriordquo In Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 12 n 22 pp 219-234

1998 Disponiacutevel em wwwpmalgovbrdownloadsbc_policialpol_05pdf Acessado 10-07-2015 134

NEDER Gizlene Op cit p 23 135 GRAHAM Richard ldquoSpencer e o progressordquo In ______ Gratilde-Bretanha e o iniacutecio da modernizaccedilatildeo

no Brasil Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1973 pp 253-254

41

o governo de Campos Salles apoiando-se nas teorias de Hebert Spencer ressaltava que

nenhuma assistecircncia deveria ser direcionada aos indiviacuteduos ociosos uma vez que o

sofrimento que lhes adviria em consequecircncia de suas atitudes seria o remeacutedio para seus

viacutecios Para ele qualquer poliacutetica que procurasse minorar os sofrimentos desses seres

ldquoineptosrdquo contribuiria para a perpetuaccedilatildeo dos viacutecios136

Com a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre e a concomitante constituiccedilatildeo

do proletariado urbano uma nova eacutetica sobre o trabalho comeccedilou a ser forjada ao

mesmo tempo em que se reprimia a suposta ociosidade das classes populares

As classes dominantes (econocircmica poliacutetica e intelectual) no afatilde de manterem o

status quo da sociedade sentiram a necessidade de implantaccedilatildeo de novos mecanismos

de controle social sobre as classes empobrecidas Nesse sentido o novo valor que

passou a ser atribuiacutedo ao trabalho como uma atividade que conferia dignidade e

respeito bem como um ldquorecurso de superaccedilatildeo da pobrezardquo se adequou perfeitamente agraves

poliacuteticas de repressatildeo e controle social pois o ldquonatildeo-trabalho se identifica com a

vadiagem que eacute matildee do crime da imoralidade dos viacutecios da preguiccedilardquo137

De acordo com Gizlene Neder o vocaacutebulo trabalho estava envolto em uma teia

de significados pois estava dentro do ldquoprocesso de ideologizaccedilatildeo relacionado agrave

honestidade bem-estar dignidade sendo que seu oposto ociosidade relaciona-se a

afrontamento corrupccedilatildeo depravaccedilatildeo suspeitardquo138

Essa nova visatildeo sobre o trabalho era imprescindiacutevel em um paiacutes que foi o

uacuteltimo a abolir o trabalho compulsoacuterio bem como a repressatildeo agrave ociosidade agrave

mendicacircncia e agrave vagabundagem segundo os setores dominantes pelo fato de os homens

receacutem-libertos natildeo estarem preparados ldquopara a vida em sociedaderdquo As classes

dominantes acreditavam que os libertos natildeo teriam amor ao trabalho natildeo se

preocupariam em ocupar-se em uma atividade honesta por conta dos viacutecios que traziam

dos ldquotempos do cativeirordquo Chalhoub ressalta que a preocupaccedilatildeo em coibir a ociosidade

e a mendicacircncia era dirigida prioritariamente aos ex-cativos sendo que os imigrantes

eram raramente citados nos debates139

Para diversos poliacuteticos e setores da intelectualidade brasileira os imigrantes

especialmente os europeus eram tidos como um modelo a ser seguido pelos

136

Idem pp 253-254 137

LAPA Joseacute Roberto do Amaral Os excluiacutedos contribuiccedilatildeo agrave histoacuteria da pobreza no Brasil (1850-

1930) Campinas (SP) Ed da UNICAMP 2008 p 17 138

NEDER Gizlene Op cit 1995 p 52 139

CHALHOUB Sidney Op cit 2001 p 68

42

trabalhadores nacionais e pelos libertos Acreditava-se que os imigrantes estariam mais

capacitados para as atividades urbanas e industriais Entretanto estudos recentes

utilizando uma gama variada de fontes documentais vecircm demonstrando que essa

suposta superioridade dos imigrantes natildeo ocorreu realmente As pesquisas tecircm revelado

que um nuacutemero expressivo dos imigrantes italianos que vieram para o Brasil durante o

processo de substituiccedilatildeo do trabalho escravo era em sua maioria trabalhadores rurais

de aacutereas pobres da Itaacutelia Desse modo ao se investigar se eles possuiacuteam preparo para as

atividades tipicamente urbanas e industriais observa-se que esses imigrantes eram tatildeo

inaptos quanto os homens receacutem-saiacutedos das senzalas nessas atividades140

A concepccedilatildeo de que os libertos natildeo tinham amor ao trabalho natildeo se

preocupavam em economizar e que natildeo estavam preparados para se integrarem agrave

sociedade competitiva e de classe que estava se implantando no Brasil foi

compartilhada pela classe dominante e sua intelectualidade Essa visatildeo sobre os ex-

escravizados natildeo foi uma peculiaridade da sociedade brasileira No estudo desenvolvido

por Thomas Holt sobre o processo emancipacionista na Jamaica essas mesmas

caracteriacutesticas desqualificadoras foram atribuiacutedas aos libertos uma vez que as ldquovisotildees

de liberdaderdquo dos homens e mulheres egressos do cativeiro nas sociedades escravistas

da Ameacuterica como um todo natildeo condiziam com o que era esperado por fraccedilotildees das

classes dominantes De acordo com o autor foi dessa visatildeo sobre os libertos que ldquosurgiu

o estereoacutetipo do lsquoquasheersquo ndash preguiccediloso moralmente degenerado licencioso e sem

preocupaccedilotildees com o futurordquo141

A aboliccedilatildeo da escravidatildeo (1888) e a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889)

provocaram mudanccedilas profundas na sociedade brasileira que fizeram com que vaacuterios

setores das classes dominantes passassem a exigir a elaboraccedilatildeo de novos mecanismos de

controle social e de ordenamento dos espaccedilos urbanos Nesse momento houve toda uma

discussatildeo sobre a construccedilatildeo da nacionalidade e do povo brasileiro e da necessidade de

o Estado modernizar as suas estruturas a exemplo das naccedilotildees europeias Eacute nessa

140

BATALHA Claacuteudio H M Op cit 2006b Sobre a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre ver

entre outros os trabalhos de ALMADA Vilma Paraiacuteso Ferreira de Escravismo e transiccedilatildeo o Espiacuterito

Santo 1850-1888 Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1984 OLIVEIRA Luacutecia Lippi O Brasil dos

imigrantes Rio de Janeiro Jorge Zahar Editora 2001 SARAIVA Luiz Fernando Um correr de casas

antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora ndash 18701900 Dissertaccedilatildeo

de mestrado Niteroacutei UFF 2001 DOMINGUES Petrocircnio Uma Histoacuteria natildeo contada negro racismo e

branqueamento em Satildeo Paulo no poacutes-aboliccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Senac Satildeo Paulo 2004 141

HOLT Thomas C ldquoA essecircncia do contrato a articulaccedilatildeo entre raccedila gecircnero sexual e economia poliacutetica

no programa britacircnico de emancipaccedilatildeo 1838-1866rdquo In COOPER Frederick et all Aleacutem da Escravidatildeo

investigaccedilatildeo sobre raccedila trabalho e cidadania em sociedades poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 pp 122 ndash 123

43

perspectiva que as crianccedilas das classes populares passam a figurar nos debates pois era

preciso preparaacute-las para a vida em uma sociedade assentada nos valores do progresso e

da civilizaccedilatildeo Nesse ideaacuterio ldquosalvar a crianccedilardquo significava ldquosalvar o paiacutesrdquo Segundo

Irene Rizzini essa preocupaccedilatildeo era parte de um ldquoprojeto essencialmente poliacuteticordquo em

que a questatildeo fundamental era a preparaccedilatildeo desses ldquomenoresrdquo em futuros trabalhadores

que atendessem as necessidades da sociedade capitalista em formaccedilatildeo142

Dentro desse contexto de transformaccedilatildeo da sociedade brasileira e de constituiccedilatildeo

do mercado de trabalho livre a questatildeo da infacircncia pobre (afro-brasileira nacional e

imigrante) apresentou-se como de suma importacircncia para as autoridades e para as

classes dominantes como um todo A crianccedila era concebida como a ldquosemente do

futurordquo por isso era preciso ser cuidada preparada para tornar-se um cidadatildeo uacutetil ao seu

paiacutes Nas uacuteltimas deacutecadas do oitocentos e nos primeiros anos do seacuteculo XX a infacircncia

desvalida passou a despertar a preocupaccedilatildeo dos mais diversos setores da sociedade

como meacutedicos juristas poliacuteticos pedagogos entre outros Uma das questotildees era o que

fazer com as crianccedilas abandonadas pobres oacuterfatildes e indigitadas de delinquentes que

viviam pelas ruas das cidades Essas e outras inquietaccedilotildees mobilizaram diversos grupos

da sociedade brasileira na formulaccedilatildeo de estrateacutegias e poliacuteticas voltadas tanto para

amparar como reprimir esses futuros cidadatildeos da jovem Repuacuteblica Como Gizlene

Neder assinala as poliacuteticas de assistecircncias tinham uma ldquoinvocaccedilatildeo pendular ora de

assistecircncia ora de repressatildeordquo143

Com a emancipaccedilatildeo uma grande massa de pessoas empobrecidas foram para as

aacutereas urbanas em busca de melhores condiccedilotildees de vida outros indiviacuteduos simplesmente

foram abandonados por seus antigos senhores por causa da idade avanccedilada e ou de

doenccedilas144

As ruas das cidades tornaram-se entatildeo palco da presenccedila desses indiviacuteduos

pauperizados e de suas crianccedilas Esse cenaacuterio natildeo condizia com os anseios das classes

dominantes de fazer do Brasil uma naccedilatildeo civilizada nos moldes europeus ou dos

142

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 28 143

NEDER Gizlene Op cit 2004 p 213 144

Nos perioacutedicos locais foram publicadas algumas reportagensnotas sobre o abandono de ex-escravos

idosos eou doentes por seus antigos proprietaacuterios e que viviam pelas ruas da cidade O Pharol do dia 30

de maio de 1888 comunicou que na praccedila do mercado de Juiz de Fora encontrava-se ldquohaacute muitos dias

abandonado e exposto aos rigores da temperatura siberiana que ultimamente nos afflige um desgraccedilado

velho ex-escravo que a generosidade de nossos legisladores acaba de proteger e a imprevidecircncia de seu

ex-senhor atirou aos horrores da miseacuteria e da fome []rdquo Segundo a mateacuteria ldquopor dolorosa enfermidade

[]rdquo era impossiacutevel ao infeliz ex-escravo ldquopromover os meios de alimentar-serdquo assim clamavam as

ldquoalmas caridosasrdquo do municiacutepio que auxiliassem o ex-cativo ldquoun bon mouvement srs habitantes de Juiz

de Foacutera Protegei o desgraccedilado que foi escravo hontem e que ainda natildeo pode respirar a plenos pulmotildees o

ar oxygenado da liberdaderdquo AHUFJF ldquoAacute caridade publicardquo O Pharol 30 mai 1888 p 1 Ver tambeacutem

O Pharol 07 fev 1900 p 1

44

Estados Unidos O desejo dos setores dominantes de viverem a belle eacutepoque nos

troacutepicos colocava a necessidade de reformas urgentes nos grandes centros bem como a

necessidade de moralizar e sanear as classes populares

Na passagem agrave modernidade a cidade a vida urbana com suas luzes lojas

automoacuteveis bondes oficinas teatros cinemas cafeacutes faacutebricas suas edificaccedilotildees passou a

gerar um fasciacutenio nas pessoas A cidade era o siacutembolo do desenvolvimento da

sociedade moderna Mas a urbs possuiacutea outra face representada pela criminalidade

pelas greves e agitaccedilotildees populares pela ldquoimoralidaderdquo pelas epidemias pela miseacuteria

sem disfarce pelos corticcedilos etc Esse tambeacutem era o espaccedilo onde ocorria uma

[] mistura populacional desconhecida assustadora Em meio agrave fervilhante

movimentaccedilatildeo ostentatoacuteria de riqueza circulavam e vadiavam nas cidades

tipos humanos de toda a espeacutecie trabalhadores pobres vagabundos

mendigos capoeiras prostitutas pivetesrdquo145

Segundo Maria Stella M Bresciani os homens de letras do seacuteculo XIX

perceberam as transformaccedilotildees que a sociedade urbana e industrializada provocou na

vida das pessoas especialmente nas pertencentes agraves camadas empobrecidas A presenccedila

da multidatildeo e dos pobres nas ruas das cidades das condiccedilotildees miseraacuteveis de vida dos

trabalhadores urbanos que habitavam os bairros pobres em moradias insalubres foi

objeto de anaacutelise dos escritores do seacuteculo XIX Os intelectuais tambeacutem alertaram para

os perigos e os custos poliacutetico-econocircmicos e sociais que a miseacuteria em que viviam os

trabalhadores urbanos poderia trazer para a sociedade como o desemprego a

prostituiccedilatildeo o crime a revoluccedilatildeo etc Esses homens identificavam as cidades como o

local onde a miseacuteria se apresentava de forma mais agressiva e desenvolvida e a

sociedade burguesa e industrial como a responsaacutevel pelo pauperismo do proletariado146

O adensamento populacional que algumas cidades brasileiras assistiram a partir

principalmente da segunda metade do seacuteculo XIX contribuiu para que o saber da

medicina higienista adquirisse grande relevo entre as classes letradas e poliacuteticas

desejosas de sanearem os espaccedilos urbanos remodelando-os e afastando os focos de

epidemias doenccedilas associados agrave populaccedilatildeo pobre Essas accedilotildees tinham entre outros

objetivos o de embelezamento e o de profilaxia da aacuterea urbana com o consequente

afastamento das classes empobrecidas para a periferia As luzes da cidade seus teatros

145

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 34 146

BRESCIANI Maria Stella Martins Op cit 1982

45

confeitarias e cinemas siacutembolos do progresso e da modernidade estariam reservados

aos segmentos abastados da sociedade

Richard Sennett realizou uma anaacutelise da histoacuteria das cidades da Atenas de

Peacutericles agrave Nova York de hoje Em seu estudo o autor procurou compreender a

ldquoexperiecircncia corporal do povordquo nos espaccedilos urbanos O corpo humano eacute colocado como

a peccedila central para a compreensatildeo do desenvolvimento das cidades bem como as

relaccedilotildees e sensaccedilotildees vividas e experimentadas pelas pessoas no espaccedilo citadino Dentro

dessa perspectiva Sennett procurou demonstrar como que a ldquorevoluccedilatildeo anatocircmicardquo

com destaque para as descobertas sobre a respiraccedilatildeo e a circulaccedilatildeo sanguiacutenea por

William Harvey no seacuteculo XVII influenciou no planejamento das cidades Essa

ldquorevoluccedilatildeordquo sobre o funcionamento do corpo humano eacute apontada como tendo

provocado um forte impacto nas concepccedilotildees dos homens do seacuteculo XVII e XVIII sobre

os espaccedilos urbanos Segundo o autor

A revoluccedilatildeo de Harvey favoreceu mudanccedilas de expectativas e planos

urbaniacutesticos em todo o mundo Suas descobertas sobre a circulaccedilatildeo do sangue

e a respiraccedilatildeo levaram a novas ideias a respeito da sauacutede puacuteblica No

Iluminismo do seacuteculo XVIII elas comeccedilaram a ser aplicadas aos centros

urbanos Construtores e reformadores passaram a dar maior ecircnfase a tudo que

facilitasse a liberdade de tracircnsito das pessoas e seu consumo de oxigecircnio

imaginando uma cidade de arteacuterias e veias contiacutenuas por meio das quais os

habitantes pudessem se transportar tais quais hemaacutecias e leucoacutecitos no

plasma saudaacutevel A revoluccedilatildeo meacutedica parecia ter operado a troca de

moralidade por sauacutede e os engenheiros sociais estabelecido a identidade

entre sauacutede e locomoccedilatildeocirculaccedilatildeo Estava criado o novo arqueacutetipo da

felicidade humana147

A revoluccedilatildeo anatocircmica modificou a visatildeo dos idealizadores das cidades que

pegaram de empreacutestimo palavras como ldquoarteacuteriasrdquo e ldquoveiasrdquo para se referirem ao desenho

urbano A preocupaccedilatildeo com a circulaccedilatildeo no espaccedilo urbano contribuiu para a elaboraccedilatildeo

de projetos que tinham como meta o saneamento das cidades com a construccedilatildeo de

canais de esgoto abertura e pavimentaccedilatildeo de ruas drenagem de pacircntanos etc Os

projetistas tambeacutem se preocuparam com a questatildeo da respiraccedilatildeo para isso planejaram e

construiacuteram praccedilas e jardins ldquoos pulmotildees urbanosrdquo onde as pessoas poderiam se

embrenhar ldquopara limpar os pulmotildeesrdquo148

Na sociedade brasileira essas concepccedilotildees sobre sauacutede puacuteblica e reordenamento

do espaccedilo urbano tornou-se a tocircnica dos discursos dos ldquohomens de letrasrdquo e de ciecircncia a

147

SENNETT Richard Carne e pedra o corpo e a cidade na civilizaccedilatildeo ocidental 2 ed Rio de Janeiro

BestBolso 2010 pp 262-263 148 Idem pp 271 274-275

46

partir principalmente da segunda metade do seacuteculo XIX De acordo com o exposto as

grandes cidades em especial a Capital Federal passaram a se preocupar com o

remodelamento e o ordenamento de seus espaccedilos urbanos com aberturas de ruas mais

largas construccedilatildeo de praccedilasjardins (pulmotildees urbanos) novos e modernos preacutedios

Como ocorreu em alguns paiacuteses europeus e na sociedade norte-americana do seacuteculo

XVIII em terras brasileiras tambeacutem se estabeleceu a equivalecircncia entre pobreza-doenccedila

e a cura para esse mal estava na eliminaccedilatildeo das aglomeraccedilotildees constituiacutedas de pessoas

empobrecidas149

Walter Fraga Filho no estudo que empreendeu sobre a pobreza na Bahia

(Salvador) durante o seacuteculo XIX assinala que foram os meacutedicos que ldquoinspiraramrdquo

ldquosugeriramrdquo e ldquojustificaramrdquo as accedilotildees dos poderes puacuteblicos como o objetivo de afastar a

populaccedilatildeo pobre das ruas da cidade150

Segundo o autor as reformas urbanas que foram

empreendidas em Salvador a partir de 1850 tinham por objetivo promover ldquouma

espeacutecie de saneamento socialrdquo uma vez que ldquodar agrave cidade ar moderno significava retirar

do seu recinto indiviacuteduos cuja presenccedila atentava contra a lsquocivilizaccedilatildeorsquordquo151

Essas

concepccedilotildees sobre reformas e ordenamento social tambeacutem podem ser observadas nas

anaacutelises de outras cidades brasileiras Em suma o anseio de setores da elite era

conquistar o status de ldquosociedade civilizadardquo mas isso natildeo implicava uma preocupaccedilatildeo

com ldquoas causas da pobreza e sim com o ocultamento da miseacuteria e dos miseraacuteveisrdquo152

Essa atitude endossava a ideia de que a civilizaccedilatildeo deveria ser reservada agraves classes

abastadas da sociedade as camadas empobrecidas ocupariam os espaccedilos civilizados

apenas como matildeo de obra ordeira e disciplinada A atitude de natildeo atacar as causas da

pobreza e da miseacuteria ainda hoje infelizmente eacute uma praacutetica dos nossos governantes As

paisagens urbanas satildeo maquiadas com ares modernos tecnoloacutegicos mas por traacutes dos

outdoors letreiros luminosos dos arranha ceacuteus fervilha uma grande massa

empobrecida destituiacuteda de escolas de qualidade sauacutede saneamento baacutesico

No proacuteximo item analisarei como que a ideia de modernidade civilizaccedilatildeo e

progresso influenciou as classes dominantes (poliacutetica econocircmica e intelectual) da

cidade de Juiz de Fora e como elas agiram frente agrave problemaacutetica da pobreza da

149

Idem p 282 150

FRAGA FILHO Walter Mendigos moleques e vadios na Bahia do seacuteculo XIX Satildeo Paulo

HICITECSalvador (BA) EDUFBA 1996 p 141 151

Idem p 142 152

Ibidem p 143

47

mendicacircncia da infacircncia desvalida oacuterfatilde abandonada delinquente e dos operaacuterios no

espaccedilo urbano

13 A ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo E SEUS ldquoMENORESrdquo

Ouccedilo as sirenes das faacutebricas apitando para o almoccedilo Juiz de Fora dizem

antecipou-se a Satildeo Paulo em certos pontos da industrializaccedilatildeo conta uma

usina hidroeleacutetrica aleacutem de muitas faacutebricas de tecidos de cerveja de moacuteveis

etc faacutebricas de pesadelos segundo o poeta Arnaldo B inimigo da maacutequina

natildeo ando laacute por dentro pouquiacutessimas vezes entrei numa faacutebrica [] agraves vezes

vou assistir agrave saiacuteda dos operaacuterios quando a chamineacute apita na realidade para

catalogar as operaacuterias haacute mesmo certas feias que me agradam por enquanto

eacute claro ignoro o manifesto comunista de Marx e Engels mesmo a

insuficiente enciacuteclica Rerum Novarum pensar que Rui Barbosa soacute na uacuteltima

hora incluiu na sua plataforma de candidato algumas linhas sobre a questatildeo

social (Murilo Mendes)153

A cidade de Juiz de Fora localizada na Zona da Mata de Minas Gerais surgiu

nas bordas do Caminho Novo aberto por Garcia Rodrigues Paes por volta de 1703

Esse Caminho tinha por objetivo encurtar a distacircncia entre a regiatildeo mineradora de

Minas Gerais e o porto do Rio de Janeiro uma vez que o Caminho Velho como ficou

conhecida a primeira estrada era longo e perigoso154

Em seus primoacuterdios o povoado

de Santo Antocircnio do Paraibuna (que veio a ser Juiz de Fora) dedicou-se agrave produccedilatildeo de

gecircneros alimentiacutecios para abastecer os tropeiros e viajantes do Caminho Novo Com a

queda da produccedilatildeo auriacutefera nas deacutecadas finais do seacuteculo XVIII ocorreu um

deslocamento da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora para outras aacutereas da capitania de

Minas Gerais inclusive para a regiatildeo da Zona da Mata Mineira155

Inicialmente os povoados ao longo do Caminho Novo que deram origem agrave

cidade de Juiz de Fora desenvolveram-se na margem esquerda do rio Paraibuna156

153

MENDES Murilo A Idade do Serrote Rio de Janeiro Record 2003 p 146 154

BASTOS Wilson de Lima ldquoDo Caminho Novo dos campos gerais agrave estrada de rodagem Uniatildeo e

Induacutestria e Estrada de Ferro D Pedro IIrdquo In BASTOS Wilson de Lima et al Histoacuteria econocircmica de

Juiz de Fora subsiacutedios Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Juiz de Fora 1987 pp 9-10 PIRES

Anderson Joseacute Capital agraacuterio investimento e crise na cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1930)

Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 1993 pp 36-37 155

SOUZA Sonia Maria de Terra famiacutelia e solidariedade estrateacutegias de sobrevivecircncia camponesa no

periacuteodo de transiccedilatildeo ndash Juiz de Fora (1870-1920) Tese de Doutoramento Niteroacutei UFF 2003 p 22 156

Paraibuna nome de origem indiacutegena que significa rio de aacuteguas escuras ESTEVES Albino Aacutelbum do

municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees 2008 p 150 Wilson de

Lima Bastos assinala que nas primeiras cartas de sesmarias da regiatildeo o rio Paraibuna era chamado de

ldquoRio Barrordquo Cf BASTOS Wilson de Lima Op cit 1987 p 12

48

Poreacutem em 1836 a construccedilatildeo na margem direita do rio da Estrada Nova157

- uma

variante do Caminho Novo ndash transformou o lado direito na aacuterea mais desenvolvida do

arraial A Estrada Nova foi construiacuteda pelo engenheiro germacircnico Henrique Guilherme

Fernando Halfeld e tinha por objetivo facilitar o traacutefego entre Minas e a capital do

Impeacuterio Essa estrada passou a denominar-se Rua Principal depois Rua Direita e jaacute no

periacuteodo republicano Avenida Baratildeo do Rio Branco (denominaccedilatildeo atual) Ao longo

dessa avenida foram construiacutedos a Santa Casa de Misericoacuterdia a Matriz de Santo

Antocircnio o preacutedio das reparticcedilotildees puacuteblicas municipais o parque municipal e outras

edificaccedilotildees158

O povoado de Santo Antocircnio do Paraibuna foi elevado agrave categoria de Vila em

1850 quando se emancipou do municiacutepio de Barbacena Em maio de 1853 a Vila foi

elevada agrave categoria de cidade passando a chamar-se Cidade do Paraibuna Em 1865 o

municiacutepio recebeu a denominaccedilatildeo de Juiz de Fora devido ao projeto apresentado pelo

vereador Marcelino de Assis Tostes futuro baratildeo de Satildeo Marcelino159

Com a elevaccedilatildeo

da vila agrave categoria de cidade novas ruas foram abertas paralelas ou cortando a rua

Direita que segundo Albino Esteves ldquoeacute a primeira em edade que possue Juiz de

Foacuterardquo160

Jaacute na deacutecada de 1860 observa-se uma preocupaccedilatildeo por parte da Cacircmara

Municipal com a sede do municiacutepio quando entatildeo foi contratado o engenheiro alematildeo

Gustavo Dott para ldquolevantar o plano demarcaccedilatildeo e nivelamento desta cidaderdquo161

O

Plano Dott como entatildeo ficou conhecido o projeto de urbanizaccedilatildeo da aacuterea central de

Juiz de Fora natildeo foi executado completamente A sua execuccedilatildeo se deu de forma lenta e

parcial sendo implementadas basicamente as obras referentes agraves condiccedilotildees sanitaacuterias da

cidade e de ldquoaformoseamentordquo ou seja aquelas referentes agrave localizaccedilatildeo fora da aacuterea

central do hospital do matadouro e do cemiteacuterio assim como de abertura calccedilamento e

arborizaccedilatildeo de ruas162

157

BASTOS Wilson de Lima Op cit 1987 p 20 A abertura dessa estrada deu-se depois da lei no 18 de

01-04-1835 que estabeleceu um plano de estradas ligando Ouro Preto agrave Capital do Impeacuterio 158

GUIMARAtildeES Elione Silva Op cit 2006 pp 41-42 AZZI Riolando Op cit 2000 p 48

BASTOS Wilson de Lima Op cit 1987 pp 18-19 159

ESTEVES Albino Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa

Ediccedilotildees 2008 pp 54-55 63 Marcelino de Assis Tostes foi vereador na administraccedilatildeo 1865-1868 e

tornou-se Baratildeo (Baratildeo de Satildeo Marcelino) em agosto de 1889 BASTOS Wilson de Lima Op cit p 27

ESTEVES Albino Op cit 2008 p 130 160

ESTEVES Albino Op cit 2008 p 159 161

Idem p 62 162

OLIVEIRA Paulino de Histoacuteria de Juiz de Fora 2 ed Juiz de Fora (MG) Graacutefica Comeacutercio e

Induacutestria LTDA 1966 pp 65-66 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Os trabalhadores e a cidade a

formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de Fora e suas lutas por direito (1877-1920) Juiz de Fora (MG)

Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV 2010 pp 44-45

49

Ainda durante a deacutecada de 1860 ocorreu a inauguraccedilatildeo da Estrada Uniatildeo e

Induacutestria (1861) que ligava Juiz da Fora a Petroacutepolis A sua construccedilatildeo foi realizada

pela Companhia Uniatildeo e Induacutestria sob a direccedilatildeo do Comendador Mariano Procoacutepio

Ferreira Lage que obteve do governo imperial uma concessatildeo para ldquomanter e explorar a

estrada durante meio seacuteculordquo163

A Uniatildeo e Induacutestria foi a primeira estrada

macadamizada164

do paiacutes e tinha por objetivo facilitar o escoamento da produccedilatildeo

cafeeira do municiacutepio e regiatildeo para o Rio de Janeiro Segundo Albino Esteves essa via

colocava ldquoa capital do Imperio em contacto immediato com a densa populaccedilatildeo de

Minasrdquo165

Entretanto a chegada dos trilhos da estrada de Ferro D Pedro II na deacutecada

de 1870 suplantou a importacircncia dessa estrada para a regiatildeo sendo que nos anos finais

desse dececircnio ocorreu o fim da Companhia166

Alguns estudos ressaltam que foram os trabalhadores germacircnicos os

responsaacuteveis pela abertura e construccedilatildeo da Rodovia Uniatildeo e Induacutestria167

O cafeicultor

Mariano Procoacutepio contratou trabalhadores alematildees para trabalharem nas obras e os

primeiros imigrantes chegaram agrave cidade em 1856168

Todavia vaacuterios estudos

embasados em fontes diversas demonstram que apesar de o contrato de construccedilatildeo da

Rodovia Uniatildeo e Induacutestria natildeo permitir a utilizaccedilatildeo da matildeo de obra escrava esta foi

amplamente utilizada As pesquisas tecircm constatado que a Companhia desrespeitando o

163

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando Gaudereto Lamas ldquoA Companhia Uniatildeo e Induacutestria e

as vicissitudes da escravidatildeo e da imigraccedilatildeo na fronteira das Proviacutencias mineira e fluminense (1850-

1870)rdquo In VARELLA Flaacutevia F MATA Seacutergio R ARAUJO Valdei L (org) Anais do Seminaacuterio

Nacional de Histoacuteria da Historiografia historiografia brasileira e modernidade Ouro Preto EDUFOP

2007 p 1 Disponiacutevel em wwwseminaacuteriodehistoriaufopbrseminariodehistoria2007tMicrosoftword-

luis_eduardo_e_fernandopdf Acessado em 19-11-2014 164

Macadame (de Mac-Adam) sistema de empedramento de ruas ou estradas por meio de granito e

saibro que se recalca com um cilindro Macadamizar empedrar pelo sistema de macadame SEGUIER

Jayme de (dir) Diccionaacuterio Praacutetico Illustrado (novo diccionaacuterio encyclopeacutedico Luso-Brasileiro) Porto

Lello amp Irmatildeo 1947 p 685 165

ESTEVES Albino Op cit 2008 p 59 166 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando Gaudereto Lamas Op cit 2007 p 1 167 Cf BASTOS Wilson de Lima Mariano Procoacutepio Ferreira Lage sua vida sua obra sua

descendecircncia genealogia Juiz de Fora Ediccedilotildees Paraibuna 1991 168

ESTEVES Albino Op cit 2008 p 60 As condiccedilotildees de vida habitaccedilatildeo e trabalho dos imigrantes

alematildees que vieram trabalhar na Companhia Uniatildeo e Induacutestria segundo os relatos da eacutepoca eram

precaacuterias Em fins de 1858 dadas as peacutessimas condiccedilotildees de alimentaccedilatildeo habitaccedilatildeo e aos baixos salaacuterios

constantemente atrasados houve uma tentativa de sublevaccedilatildeo que foi sufocada pelo destacamento policial

local O representante diplomaacutetico do reino da Pruacutessia no Brasil o baratildeo de Mausebach protestou

formalmente contra as condiccedilotildees degradantes de vida e de trabalho que os trabalhadores germacircnicos

estavam submetidos Possivelmente a situaccedilatildeo dos operaacuterios nacionais livres e dos portugueses na

Companhia Uniatildeo e Induacutestria natildeo eram diferentes das dos imigrantes alematildees ou seja um cotidiano

pautado pela exploraccedilatildeo violecircncia e miseacuteria Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando

Gaudereto Lamas Op cit 2007 pp 7-10

50

que o contrato estipulava alugou centenas de cativos de proprietaacuterios locais e da regiatildeo

para trabalharem na construccedilatildeo da via169

O desenvolvimento de Juiz de Fora esteve intimamente relacionado com a

agricultura cafeeira destinada ao mercado externo sendo que jaacute nos anos de 1850

apresentava-se como o principal produtor da proviacutencia mineira A produccedilatildeo cafeeira

teve um papel de grande relevo na economia do municiacutepio de Juiz de Fora e do estado

de Minas Gerais ateacute por volta da deacutecada de 1920170

Com o desenvolvimento da

agricultura cafeeira jaacute nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX voltada para o mercado

externo a produccedilatildeo de alimentos na regiatildeo natildeo perdeu sua importacircncia tornando-se

mesmo responsaacutevel pelo abastecimento das ldquofazendas cafeeiras atuando como um

redutor de custos da produccedilatildeo dessas unidadesrdquo171

Aleacutem desse fator essa produccedilatildeo

tambeacutem foi importante para abastecer o mercado interno da regiatildeo em franca expansatildeo

A produccedilatildeo de cafeacute bem como de alimentos transformou Juiz de Fora em uma regiatildeo

economicamente dinacircmica funcionando como um entreposto comercial que atraiacutea

populaccedilotildees vizinhas que necessitavam dos mais variados produtos e serviccedilos172

A expansatildeo do municiacutepio de Juiz de Fora ocorreu num periacuteodo marcado pela

crise do regime escravista devido ao processo gradual da aboliccedilatildeo do trabalho escravo

no Brasil que iniciou-se com a lei que colocou fim ao traacutefico atlacircntico de escravos

(1850) e culminou com a Lei Aacuteurea que em maio de 1888 decretou a extinccedilatildeo da

escravidatildeo no paiacutes Apesar da conjuntura desfavoraacutevel aos setores que empregavam a

matildeo de obra escrava o desenvolvimento da cafeicultura nessa cidade da Mata Mineira

natildeo foi prejudicado devido agrave possibilidade de os proprietaacuterios adquirirem cativos

atraveacutes do traacutefico inter e intraprovincial bem como no ldquointerclasserdquo (proprietaacuterios com

169

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando Gaudereto Lamas Op cit 2007 pp 3-6

GUIMARAtildeES Elione S GUIMARAtildeES Valeacuteria Alves Aspectos Cotidianos da Escravidatildeo em Juiz de

Fora Juiz de Fora Funalfa 2001 pp 32 76-77 Cf BIRCHAL Seacutergio de Oliveira ldquoO mercado de

trabalho mineiro no seacuteculo XIXrdquo In Histoacuteria Econocircmica amp Histoacuteria da Empresa n 01 Satildeo Paulo

Hucitec 1998 Disponiacutevel em httpwwwceaeeibmecmgbrwpwp12pdf Acessado em 02-02-2015 170

SOUZA Sonia Maria de Aleacutem dos cafezais produccedilatildeo de alimentos e mercado interno em uma regiatildeo

de economia agroexportadora ndash Juiz de Fora na segunda metade do seacuteculo XIX Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Niteroacutei UFF 1998 p 39 SARAIVA Luiz Fernando Op cit 1 pp 42 46-47 63 171

SOUZA Sonia Maria de Op cit 2003 p 25 LACERDA Antocircnio Henrique Duarte Os padrotildees de

alforrias em Juiz de Fora um municiacutepio cafeeiro em expansatildeo (Zona da Mata de Minas Gerais 1948-

88) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 2002 p 39 172

PIRES Anderson Joseacute Op cit 1993 pp 38 e 151 SOUZA Sonia Maria de Op cit 2003 p 25

SOUZA Sonia Maria de Op cit 1998 pp 45-46

51

poucos recursos vendiam seus escravos para os mais ricos)173

Os senhores de Juiz de

Fora se mantiveram apegados agrave escravidatildeo ateacute nos momentos finais dessa instituiccedilatildeo

O dinamismo econocircmico e urbano de Juiz de Fora observado acima foi

acompanhado por um crescimento populacional tanto de livres quanto de escravos

sendo que nos anos de 1870 a cidade detinha a maior populaccedilatildeo manciacutepia da Zona da

Mata Mineira Todavia a presenccedila de imigrantes de vaacuterias nacionalidades na sua

composiccedilatildeo populacional tambeacutem foi significativa No final do oitocentos e iniacutecio do

novecentos o distrito-sede do municiacutepio apresentou um crescimento populacional

expressivo poreacutem ao contraacuterio do que muitos contemporacircneos procuravam destacar tal

fato natildeo se deu em consequecircncia de os trabalhadores estarem abandonando as unidades

produtivas para viverem na aacuterea urbana mas sobretudo pela entrada constante de

pessoas vindas de diversas regiotildees de Minas Gerais de outros estados brasileiros bem

como pela chegada de imigrantes europeus174

O referido dinamismo econocircmico

vivenciado pelo municiacutepio nesse periacuteodo pode ter funcionado como um fator de atraccedilatildeo

populacional O sucesso das accedilotildees empreendidas pelos setores dominantes da sociedade

juiz-forana de expansatildeo da oferta de matildeo de obra na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o

XX contribuiu fortemente para a constituiccedilatildeo de um proletariado heterogecircneo formado

pelo trabalhador nacional ex-escravos e seus descendentes e imigrantes de vaacuterias

nacionalidades175

Os quadros abaixo fornecem uma dimensatildeo do crescimento

populacional do municiacutepio de Juiz de Fora nas deacutecadas finais do oitocentos e nas

primeiras do seacuteculo XX

173

FRAGOSO Joatildeo Luiacutes ldquoO Impeacuterio escravista e a repuacuteblica dos plantadores parte A economia

brasileira no seacuteculo XIX mais que uma plantation escravista-exportadorardquo In LINHARES Maria

Yedda (org) Histoacuteria Geral do Brasil Rio de Janeiro Campus 1990 pp 133 148-149 154-155

MATTOS Hebe Maria Das cores do silecircncio os significados da liberdade no Sudeste escravista Brasil

seacuteculo XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1998 pp 108-109 174

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 pp 189-192 175

Idem pp 205-206

52

QUADRO 1

POPULACcedilAtildeO ESCRAVA E LIVRE DO MUNICIacutePIO DE JUIZ DE FORA

(1853 -18723)

1853(1)

18723

LIVRES ESCRAVOS TOTAL LIVRES ESCRAVOS TOTAL

9003 13037 22070

23968(2)

19351(3)

43319 Nacionais Estrangeiros

18619 5349

FONTE (1)

Apud OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 48 tabela 1 (2)

Biblioteca do IBGE Recenseamento Geral de 1872 apud SOUZA Sonia M de Terra famiacutelia

solidariedade estrateacutegias de sobrevivecircncia camponesa no periacuteodo de transiccedilatildeo ndash Juiz de Fora (1870-

1920) Bauru (SP) EDUSC 2007 p 166 (3)

Relatoacuterio do Presidente da Proviacutencia de Minas Gerais de 1874 apud GUIMARAES Elione S

Op cit 2006 p 45 O censo realizado em 1872 deixou de computar os escravos da freguesia de

Nossa Senhora da Gloacuteria de Satildeo Pedro de Alcacircntara que de acordo com Elione Guimaratildees

detinha aproximadamente cinco mil manciacutepios que natildeo foram registrados Segundo a autora no

Relatoacuterio do Presidente da Proviacutencia de Minas Gerais de 1874 com dados referentes ao ano de

1873 o municiacutepio de Juiz de Fora possuiacutea 19351 escravos Idem p 45

QUADRO 2

POPULACcedilAtildeO DO MUNICIacutePIO DE JUIZ DE FORA

(1890-1907-1920)

ANO POPULACcedilAtildeO DO MUNICIacutePIO TOTAL

NACIONAIS ESTRANGEIROS

1890(1)

68686 5450 74136

1907(2)

--- --- 85450

1920(3)

112082 6062 118166(4)

Fonte (1) Recenseamento Geral de 1890 apud SOUZA Sonia Maria de

Op cit 2007 p 163

(2) Recenseamento Jornal do Commercio 31 de dez 1907 p 1 apud

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 190

(3) ldquoPopulaccedilatildeo do Municiacutepio de Juiz de Fora Estado de Minas Gerais

segundo o sexo a idade e a nacionalidaderdquo Recenseamento do Brasil de

1920 ndash Populaccedilatildeo do Brasil por Estados e Municiacutepios segundo o sexo a

idade e a nacionalidade v 4 2a parte Tomo II p 79 Disponiacutevel em

bibliotecaibgegovbrvisualizaccedilatildeomonografiasGEBIS-

RJCensode1920RecenGeraldoBrasil1920_v4_Parte2_tomo2_Populacao

pdf Acessado em 21-01-2015

(4) Foram declaradas 22 pessoas com nacionalidade ignorada

53

QUADRO 3

CRESCIMENTO POPULACIONAL DO MUNICIacutePIO DE JUIZ DE FORA

(1853-1920)

ANOS POPULACcedilAtildeO DO

MUNICIacutePIO

INCREMENTO

POPULACIONAL

(1853-1920)

1853 22070

43519

18723 43319

1890 74136

1907 85450

1920 118116

O municiacutepio de Juiz de Fora experimentou um crescimento na ordem de

43519 passando de 22 mil habitantes em 1855 para 118116 almas em 1920 O

crescimento do contingente populacional verificado em Juiz de Fora durante a segunda

metade do seacuteculo XIX propiciou uma expansatildeo no setor de prestaccedilatildeo de serviccedilos com a

instalaccedilatildeo de carpintarias sapatarias oficinas de ferreiros etc A chegada dos trilhos da

estrada de ferro D Pedro II em 1875 promoveu um impulso na economia de Juiz de

Fora e regiatildeo principalmente no setor cafeeiro e favoreceu o desenvolvimento dos

serviccedilos urbanos Nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX a cidade jaacute contava com a presenccedila

de estabelecimentos de ensino companhia de transportes urbanos (Cia Ferrocarril

Bondes de Juiz de Fora) 1881 serviccedilos de telefones e teleacutegrafos 1883 e 1884

respectivamente aacutegua em domiciacutelios 1885 com uma hidreleacutetrica Marmelo Zero176

(a

primeira da Ameacuterica Latina) e iluminaccedilatildeo eleacutetrica puacuteblica e domeacutestica (Companhia

Mineira de Eletricidade) 1889-1890177

Nesse periacuteodo tambeacutem ocorreu a fundaccedilatildeo de

176

Coube ao industrial Bernardo Mascarenhas (Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Bernardo

Mascarenhas) a construccedilatildeo da primeira usina hidreleacutetrica da Ameacuterica do Sul Marmelos Zero

aproveitando-se das aacuteguas do rio Paraibuna Para mais informaccedilotildees sobre a usina hidreleacutetrica de

Marmelos e a iluminaccedilatildeo puacuteblica em Juiz de Fora Cf VAZ Alisson Mascarenhas Bernardo

Mascarenhas desarrumando o arrumado ndash um homem de negoacutecios do seacuteculo XIX Belo Horizonte Cia

de Fiaccedilatildeo e Tecidos Cedro e Cachoeira 2005 Ainda sobre esse tema pode ser consultado BARROS

Cleyton Souza Eletricidade em Juiz de Fora modernizaccedilatildeo por fios e trilhos (1889-1915) Dissertaccedilatildeo

de Mestrado UFJF 2008 177

PIRES Anderson Cafeacute financcedilas e induacutestria Juiz de Fora 18891930 Juiz de Fora (MG) Funalfa

2009 p 75 VAZ Alisson Mascarenhas Op cit 2005 pp 342-343 346-349 PINTO Jefferson de

Almeida Controle Social e Pobreza (Juiz de Fora c 1876 ndash c 1922) Juiz de Fora (MG) Editar 2008 p

20-21

54

casas bancaacuterias Banco Territorial e Mercantil de Minas Gerais (1887) e Banco de

Creacutedito Real de Minas Gerais (1889)

A deacutecada de 1880 eacute extremamente importante para a constituiccedilatildeo de Juiz de Fora

em uma cidade ldquocapitalistardquo178

uma vez que os investimentos na infraestrutura urbana e

no setor financeiro contribuiacuteram para o processo de industrializaccedilatildeo do municiacutepio179

O

capital agraacuterio local teve um papel ativo no processo de diversificaccedilatildeo urbano-

industrial contribuindo efetivamente para uma dinamizaccedilatildeo da economia em vias de

transiccedilatildeo para a ordem capitalista e de constituiccedilatildeo do mercado de trabalho livre180

Os

investimentos nos serviccedilos urbanos ficaram a cargo do setor privado enquanto o poder

puacuteblico local preocupava-se com o ldquoembelezamento urbano e nivelamento das ruasrdquo181

Essa descriccedilatildeo sobre a constituiccedilatildeo e o desenvolvimento de Juiz de Fora eacute

necessaacuteria para a compreensatildeo do seu processo de industrializaccedilatildeo que eacute uma das

questotildees do presente estudo Os grupos dominantes se compraziam em ressaltar o

progresso e a modernidade desse municiacutepio do interior mineiro que havia se antecipado

a Satildeo Paulo ldquoem certos pontos da industrializaccedilatildeordquo182

como destaca a epiacutegrafe que

abre este item Semelhante exaltaccedilatildeo pode ser observada no texto do Almanak de Juiz

de Fora de 1892 intitulado ldquoJuiz de Fora agrave Vol DrsquoOiseaurdquo

Natildeo conta ainda meio seacuteculo de existecircncia a mais bela a mais prospera e

mais adiantada cidade mineira

[]

Cidade essencialmente moderna foi aos poucos tornando-se um centro de

atraccedilatildeo das duas forccedilas invenciacuteveis quando reunidas e inteligentes - o capital

e o trabalho ndash que elevaram-na ao grao de riqueza e prosperidade de que

justamente se ufana ndash vamos tentar descrever a vol drsquooiseau a cidade yakee

felizes se o exemplo de seu desenvolvimento servir de estimulo a suas irmatildes

aleacutem Mantiqueira onde todos reconhecem e lastimam na falta de iniciativa

individual a causa uacutenica de seu estacionarismo quase completo

Nemo183

[Grifos no original]

No texto Juiz de Fora eacute descrita como ldquoessencialmente modernardquo e a ldquomais bela

a mais prospera e mais adiantada cidade mineirardquo enfim como a cidade yakee em

178

Expressatildeo utilizada por Sonia Regina Miranda e Anderson Pires em suas anaacutelises sobre o

desenvolvimento industrial e urbano de Juiz de Fora Cf PIRES Anderson Op cit 2009 MIRANDA

Sonia Regina Cidade Capital e Poder poliacuteticas puacuteblicas e questatildeo urbana na Velha Manchester Mineira

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) Niteroacutei UFF 1990 179

PIRES Anderson Op cit 2009 p 78 180

Idem p 20-22 76 78 MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 pp 106-107 181

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 106 182

MENDES Murilo Op cit 2003 p 146 183

SM-BMMM Almanak de Juiz de Fora (publicaccedilatildeo commercial industrial administrativa litteraria

artiacutestica recreativa scientifica etc) Editores ndash Leite Ribeiro amp Comp 1892 ndash Rua Halfeld JF 2o anno

p xiv-xviii

55

referecircncia ao norte dos Estados Unidos da Ameacuterica que entatildeo era a parte mais

desenvolvida e industrializada daquele paiacutes Segundo James William Goodwin a

identificaccedilatildeo de setores da classe dominante da cidade mineira com os Estados Unidos

acentuava-se agrave medida que avanccedilava o seu processo de industrializaccedilatildeo O municiacutepio

tambeacutem contou com a presenccedila de imigrantes estadunidenses tendo uma parcela se

dedicado ao ramo educacional para a formaccedilatildeo dos filhos dos grupos dominantes Na

deacutecada de 1890 a Igreja Metodista Episcopal do Sul (EUA) fundou o Coleacutegio

Americano que passou a se chamar posteriormente Granbery que foi a ldquoprimeira escola

protestante em Minas Geraisrdquo184

Na reportagem publicada no jornal O Pharol185

de marccedilo de 1900 aleacutem da

exaltaccedilatildeo da cidade yankee mineira a sua populaccedilatildeo tambeacutem eacute enaltecida como

laboriosa de iniciativa e caridosa Segundo a mateacuteria jornalistica

Eacute Juiz de Fora incontestavelmente uma cidade yankee onde natildeo soacute trabalham

seus filhos pelo conforto proacuteprio no sentido material como pela sua

elevaccedilatildeo espiritual procurando instruccedilatildeo e exercitando a caridade virtude

que dilata o coraccedilatildeo humano tornando-o um sacraacuterio de sentimentos outros

cuja sublimidade e grandeza o aproximam do coraccedilatildeo de Deus

Em a nossa cidade ao mesmo tempo que se constroe um palacete levanta-se

um hospital um asylo para alliviar o doente pobre para abrigar o orpham

desamparado e nessa bella alternativa segue caminho do progresso arcando

com as vicissitudes de todas as situaccedilotildees penosas em que se tem visto a

braccedilos a sociedade brasileira inteira

Daqui se irradia sem duvida por todo o Estado o exemplo do trabalho

assiduo da iniciativa que proporciona o bem estar o credito emfim daqui

184

GOODWIN JUNIOR James William Cidades de Papel imprensa progresso e tradiccedilotildees

Diamantina e Juiz de Fora MG (1884-1914) Tese de Doutoramento Satildeo Paulo USP 2007 p 59 185

O jornal O Pharol foi fundado na cidade de Paraiacuteba do Sul (Rio de Janeiro) em 1866 por Thomas

Cameron Posteriormente foi transferido para Juiz de Fora Entretanto natildeo haacute um consenso com relaccedilatildeo

ao ano que o jornal passou a ser editado no municiacutepio da Mata Mineira sendo que haacute indiacutecios de que tal

accedilatildeo tenha ocorrido ainda na deacutecade de 1860 Todavia o exemplar mais antigo preservado do jornal

editado em Juiz de Fora data de janeiro de 1870 e foi localizado em um processo crime que estaacute sob a

guarda do Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora O Pharol circulou da deacutecada de 1860 ateacute o ano

de 1939 quando faliu e paralisou as suas atividades Cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna ldquoA General das

Letrasrdquo a literata Cosette de Alencar e a ldquosuardquo cidade ndash Juiz de Fora (MG) 1918 a 1973 Tese de

Doutoramento ndash Histoacuteria Niteroacutei UFF 2013 p 81 nota 3 Nesse longo periacuteodo de atividade O Pharol

apresentou diversas caracteriacutesticas poliacuteticas seguindo o posicionamento de seus proprietaacuterios-redatores

(liberal conservador monarquista republicano ligado a determinados grupos poliacuteticos e ou ao poder

oficial) De acordo com Almir de Oliveira apesar das vaacuterias orientaccedilotildees pelas quais passou o jornal ldquofoi

sempre o arauto de ideias e opiniotildees que agitaram a poliacutetica mineirardquo O autor ainda ressaltou que O

Pharol possui uma grande importacircncia para a histoacuteria de Juiz de Fora bem como de Minas Gerais tanto

no que diz respeito aos aspectos poliacuteticos-econocircmicos quanto aos sociais e intelectuais Cf OLIVEIRA

Almir de A imprensa em Juiz de Fora Juiz de Fora (MG) Imprensa Universitaacuteria 1981 p 18 Ver

tambeacutem GOODWIN JUNIOR James William Op cit 2007 p 100-104 e 111 Os exemplares

preservados de O Pharol estatildeo no SM-BMMM poreacutem a coleccedilatildeo estaacute incompleta (1876-1879 1881-1888

1890-1897 1890-1919 e 1922-1926) Os exemplares foram microfilmados e atualmente encontram-se

disponiacuteveis para a pesquisa no Arquivo Histoacuterico da UFJF e no site da Biblioteca Nacional

56

partiraacute egualmente o exemplo das boas praticas que constituem o elo forte da

humanidade ndash a Religiatildeo ensinada pelo filho de Deus feito homem186

Nessa mateacuteria Juiz de Fora e sua populaccedilatildeo satildeo novamente apresentadas como

um exemplo para as outras cidades do estado de Minas isto eacute como um siacutembolo do

progresso do labor e da iniciativa Poreacutem satildeo acrescidas as caracteriacutesticas da caridade e

da feacute de sua gente em socorrer os considerados ldquodesvalidos da sorte e da fortunardquo

Entretanto o discurso jornaliacutestico que procurava propagar a imagem da urbs como

moderna e civilizada estava imbuiacutedo do pensamento de setores das classes dominantes

de controle das camadas subalternas dos espaccedilos puacuteblicos e da ideia do trabalho como

algo positivo Ainda eacute ressaltado no texto que em Juiz de Fora ao mesmo tempo em

que era construiacutedo um palacete tambeacutem acontecia a construccedilatildeo de um asilo para

atender aos doentes e oacuterfatildeos pobres Fazia parte do ideal civilizatoacuterio a criaccedilatildeo de locais

para abrigar os grupos que natildeo se adequavam aos espaccedilos modernos e higienizados da

cidade bem como para as classes dominantes satisfazerem seus deveres cristatildeos e

sociais de socorrer os necessitados Nos jornais do periacuteodo em tela neste trabalho satildeo

constantes as notiacutecias sobre doaccedilotildees e eventos realizados por setores dos grupos

dominantes da sociedade juiz-forana para o Asilo Padre Joatildeo Emiacutelio (que abrigava

meninas oacuterfatildes e desvalidas) e para a Santa Casa de Misericoacuterdia e de outras accedilotildees em

prol dos pobres e das crianccedilas desvalidas Nos anuacutencios satildeo relacionados os nomes dos

benemeacuteritos e das distintas senhoras e senhoritas que se dedicavam a tatildeo nobre causa187

O modelo de cidade que era almejado pelas classes dirigentes locais era a capital

da jovem Repuacuteblica o Rio de Janeiro Para elas ldquocivilizar-se significava estar proacuteximo agrave

vida mundana do Rio de Janeirordquo188

Geograficamente Juiz de Fora estaacute mais proacutexima

do Rio de Janeiro do que da capital do estado Belo Horizonte Essa proximidade

contribuiu para uma identificaccedilatildeo maior da cidade e sua populaccedilatildeo com a brisa do mar

carioca do que com as montanhas e os belos horizontes de Minas Nesse sentido

pondera Maraliz Christo

186

AHUFJF ldquoZaacutes-Traacutezrdquo O Pharol 08 mar de 1912 p 1 A reportagem eacute sobre uma romaria que iria

partir de Juiz de Fora para Congonhas (MG) O autor do artigo assina como o pseudocircnimo de Pif Paf 187

Para mais informaccedilotildees ver entre outros os jornais SM-BMMM Jornal do Commercio 20 dez 1896

SM-BMMM Jornal do Commercio 13 mai 1897 SM-BMMM Jornal do Commercio 11 jun 1897

AHUFJF O Pharol de 10 jan1900 e 14 jan 1900 SM-BMMMO Dia 16 nov 1920 AHCJF Diaacuterio

Mercantil 9 nov 1926 AHCJFDiaacuterio Mercantil 25 out 1927 E P Thompson em ldquoFolclore

Antropologia e Histoacuteria Socialrdquo discutiu a questatildeo do ldquoato de doarrdquo da ldquoaccedilatildeo da daacutedivardquo Cf

THOMPSON Edward P As peculiaridades dos ingleses e outros artigos Campinas (SP) Editora da

Unicamp 2001 pp 243- 249 188

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira A ldquoEuropa dos pobresrdquo Juiz de Fora na Belle-Eacutepoque mineira

Juiz de Fora EDUFJF 1994 p 12

57

[] Como cidade do seacuteculo XIX Juiz de Fora natildeo participa da cultura

colonial mineira A proximidade e o maior intercacircmbio econocircmico e cultural

com o Rio de Janeiro assim como a luta poliacutetica contra o predomiacutenio da zona

de Mineraccedilatildeo provocam na cidade um maior cosmopolitismo uma abertura

mais acentuada se a compararmos com o antigo centro cultural do Estado

seja pelo seu nuacutemero de jornais e teatros seja pela expressatildeo de suas escolas

e instituiccedilotildees culturais189

A autora ainda ressaltou que esse distanciamento de Juiz de Fora da cultura

mineira pode ser explicado pelas caracteriacutesticas de sua urbanizaccedilatildeo uma vez que as

cidades barrocas se constituiacuteram e se guiaram

[] pelos sinos das igrejas a populaccedilatildeo de Juiz de Fora teve sua vida

normatizada pelos apitos das faacutebricas de estilo neo-claacutessico e o bater dos

tamancos de seus operaacuterios de ambos os sexos e diversas nacionalidades190

O desejo da populaccedilatildeo abastada e letrada de Juiz de Fora de ldquocivilizar-serdquo aos

moldes do Rio de Janeiro lhe rendeu o apelido de ldquocarioca do brejordquo expressatildeo

pejorativa utilizada pelos belo-horizontinos para criticar a ligaccedilatildeo da cidade com o

Rio191

Creio que a alcunha de ldquocarioca do brejordquo esteja relacionada agrave presenccedila de

terrenos pantanosos nas aacutereas centrais da cidade e agraves enchentes do rio Paraibuna que

alagavam nos periacuteodos de chuvas as aacutereas nas proximidades de suas margens Vaacuterias

propostas desde meados do seacuteculo XIX foram feitas para a retificaccedilatildeo do leito do rio

para seu alargamento e rebaixamento de suas aacuteguas com o intuito de ldquofacilitar o

dessecamento dos terrenosrdquo192

As obras de urbanizaccedilatildeo do centro de Juiz de Fora

tiveram que enfrentar as dificuldades impostas pelos terrenos alagadiccedilos193

Aleacutem

dessas caracteriacutesticas do solo as chuvas tambeacutem traziam as enchentes e os lamaccedilais para

189

Idem p 1 190

Idem p 10 191

Ibidem p 1 A indisposiccedilatildeo de Juiz de Fora com a capital do estado pode ser apreendida atraveacutes dos

jornais que circulavam no municiacutepio Os governos do estado eram acusados de nada fazerem por Juiz de

Fora ldquoafim de que aacute capital natildeo fique em 2ordm logarrdquo poreacutem a cidade que era descrita como um ldquocolosso

que embasbaca o visitante por ver tanto progresso por iniciativa particularrdquo (SM-BMMM O Lynce 20

de out 1923 p 1) Em outra mateacuteria eacute assinalado que pelo fato da cidade da Mata mineira ter ldquovida

proacutepria foi sempre uma cidade desprezada e mesmo guerreada pelos presidentes que o Estado de Minas

tem tidordquo (SM-BMMM ldquoAteacute que emfimrdquo O Lynce 16 set 1922 p 3) Uma das reclamaccedilotildees da

mateacuteria jornalista de setembro de 1922 eacute com relaccedilatildeo ao nuacutemero de grupos escolares que eram mantidos

na cidade pelo governo estadual apenas quatro sendo que deveriam ser seis ou mais 192

OLIVEIRA Paulino de Op cit p 37 68-69 193

SM-BMMM Jornal do Commercio 22 jan 1897 p 1 No Jornal do Commercio de 22 de Jan de

1897 foi publicada uma reclamaccedilatildeo sobre a necessidade de serem tomadas providecircncias com relaccedilatildeo agrave

existecircncia de ldquouma grande poccedila de agua que ha na rua Direita em frente aacute Mecanica proacuteximo ao Largo

do Riachuelo As aguas ali estagnadas em consequencia de aterros feitos na rua de S Sebastiatildeo podem

fazer desenvolver-se alguma palustre com o calor que tem feitordquo

58

as ruas da cidade Sobre as chuvas Rachel Jardim em suas memoacuterias ressalta que Juiz

de Fora ldquoera uma cidade feita para a alergiardquo dadas as chuvas constantes que traziam a

umidade e o mofo194

Todavia Juiz de Fora recebeu vaacuterios epiacutetetos que exaltavam o seu progresso o

seu desenvolvimento industrial e intelectual A cidade foi chamada de a ldquoManchester

Mineirardquo ldquoPrincesa de Minasrdquo ldquoAtenas Mineirardquo ldquoNinho de Poetasrdquo ldquoBarcelona

Mineirardquo entre outros Segundo Rita de Caacutessia Vianna Rosa a imprensa local teve uma

contribuiccedilatildeo consideraacutevel na construccedilatildeo e propagaccedilatildeo do discurso ldquocivilizadorrdquo das

classes dominantes195

O epiacuteteto de ldquoManchester Mineirardquo196

foi atribuiacutedo a Juiz de Fora em virtude de

seu desenvolvimento industrial do pioneirismo no setor de energia eleacutetrica da

arquitetura racionalista de suas faacutebricas com tijolos vermelhos aparentes das chamineacutes

e seus apitos e dos operaacuterios de vaacuterias etnias Todos esses aspectos muito se

assemelhavam agrave Manchester inglesa Poreacutem como muito bem ressaltou Sonia Miranda

as semelhanccedilas com a cidade industrial inglesa iam muito aleacutem desses aspectos Como

na Manchester ldquorealrdquo na urbs mineira a urbanizaccedilatildeo e a industrializaccedilatildeo trouxeram

diversos problemas de saneamento de habitaccedilatildeo de transporte bem como a

ldquomarginalizaccedilatildeordquo e a ldquomanutenccedilatildeo de setores empobrecidos em situaccedilotildees miacutenimas de

sobrevivecircncia sine qua non para a garantia da expansatildeo do mercado de trabalho formal

assalariado e da reproduccedilatildeo ampliada do capitalrdquo197

194

JARDIM Rachel Os anos 40 a ficccedilatildeo e o real de uma eacutepoca 5 ed Juiz de Fora Funalfa Rio de

Janeiro Editora Joseacute Olympio 2003 p 52 195

ROSA Rita de Caacutessia Vianna Op cit 2013 p 28 Sobre o papel da imprensa na propagaccedilatildeo do

discurso civilizador das classes dominantes de Juiz de Fora ver o trabalho de GOODWIN JUNIOR

James William Op cit 2007 196

O cognome ldquoManchesterrdquo mineira se deve ao poeta Antonio Salles poreacutem existe outra semelhante

ldquoManchesterrdquo utilizada por Raja Gabaglia no final do seacuteculo XIX Cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna

Op cit 2013 p 28 197

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 145 Cf SILVA Renata Lutiene da Famiacutelia direito

normas e poder os diversos relacionamentos familiares em Juiz de Fora MG (1890-1920) Dissertaccedilatildeo

de Mestrado Satildeo Joatildeo Del-Rei UFSJ 2010 p 39

59

Imagem 2 Fachada e operaacuterios - Faacutebrica de Tecelagem e Fiaccedilatildeo Moraes

Sarmento (Festa 03-05-1922) SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica

literaria poliacutetica e noticiosa Juiz de Fora 31 de maio de 1922 p 335

Foi principalmente a partir da deacutecada de 1890 que o processo de

industrializaccedilatildeo de Juiz de Fora teve um impulso consideraacutevel e que levou o municiacutepio

a se constituir no principal polo industrial de Minas Gerais nos primeiros anos do seacuteculo

XX198

Eacute nesse momento que ocorreu um investimento maior de capitais e tecnologia e

uma predominacircncia dos setores de meacutedio e grande porte com uma produccedilatildeo em larga

escala O setor que sobressaiu foi o tecircxtil sendo que esse ramo da induacutestria destacou-se

pelo montante de capital investido nuacutemero de operaacuterios e tamanho das faacutebricas

Todavia o municiacutepio contava com outras atividades industriais como de bebidas

alcooacutelicas e gasosas cervejarias massas alimentares produtos ceracircmicos ladrilhos

hidraacuteulicos maacutequinas entre outros sobrepondo-se assim agrave capital do estado em

nuacutemero de empreendimentos industriais199

Conforme dados do Censo de 1905 a cidade

ldquodetinha em relaccedilatildeo ao conjunto do estado de Minas 8 do nuacutemero de

estabelecimentos 22 do capital 16 do nuacutemero de operaacuterios e cerca de 26 do valor

198

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 38 PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 20-

21 MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 101 CHRISTO Maraliz de Castro Vieria Op cit

1994 pp 78-79 199

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 pp 96-97 101 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoPor

entre maacutequinas amp engrenagens as crianccedilas operaacuterias nos acidentes de trabalho em Juiz de Fora (1919-

1930) In SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da PINTO Jefferson de Almeida (orgs) Poder e

Poliacutetica pensando a toleracircncia e a cidadania (Coloacutequio InternacionalSeminaacuterio de Histoacuteria Poliacutetica da

UFF) Niteroacutei (RJ) UFF 2012b pp 109-127 Disponiacutevel em

wwwhistoriauffbrstrictofilespublic_ppghcap_2012_lcp_PoderPoliticapdf Acessado em 04-07-2015

60

total da produccedilatildeo industrial do estadordquo200

De acordo com o Censo Industrial de 1907 a

urbs do interior mineiro contava com duas faacutebricas manufatureiras entre as 100 maiores

do Brasil em termos de produccedilatildeo a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial

Mineira e a Faacutebrica de Sacos de Juta de Luiz de Souza Brandatildeo201

Imagem 3 Fachada da Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial

Mineira Calendaacuterio 2011 ndash FunalfaPJFUFJF

Todavia o progresso o desenvolvimento e a modernizaccedilatildeo da cidade de Juiz de

Fora natildeo foi compartilhado por todos os seus habitantes As condiccedilotildees de vida das

classes pobres da ldquoManchester Mineirardquo como de outras regiotildees do paiacutes se

caracterizavam pela exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho e pelas precaacuterias condiccedilotildees de

vida e trabalho

No cenaacuterio construiacutedo por fraccedilotildees das classes dominantes de uma cidade

moderna industrial siacutembolo do progresso e com uma populaccedilatildeo laboriosa e ordeira a

presenccedila de alguns grupos sociais comeccedilou a incomodar como os mendigos e as

crianccedilas pobres e abandonadas que viviam pelas ruas a esmolar e a praticar vaacuterias

travessuras e delitos

Nos jornais do final do oitocentos e iniacutecio do novecentos satildeo constantes as

reclamaccedilotildees da presenccedila de pessoas esmolando mendigando pelas ruas da cidade

200

PIRES Anderson Cafeacute financcedilas e induacutestria Juiz de Fora 18891930 Juiz de Fora (MG) Funalfa

2009 p 89 201

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 131

61

Indagavam se todos os que viviam a esmolar eram realmente necessitados e solicitavam

das autoridades providecircncia com relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que estavam supostamente a

explorar a caridade puacuteblica Na reportagem publicada no dia 28 de marccedilo de 1900 no

Jornal do Commercio202

intitulada ldquoRepressatildeo Urgenterdquo a preocupaccedilatildeo era com a

presenccedila de ldquomendigos e vagabundosrdquo que ficavam esmolando pelas ruas da cidade De

acordo com a mateacuteria

[] provoca intensa indignaccedilatildeo o espetaculo immoral e altamente irritante

dado por indiviacuteduos no vigor da edade sadio e talhados para o trabalho a

especularem cynicamente com a caridade publica esmolando diariamente de

manha aacute noite quando deviam empregar a actividade em outras misteres de

utilidade geral concorrendo assim para o progresso do paiz203

A presenccedila desses indiviacuteduos como consta da reportagem causava indignaccedilatildeo

aos ldquoyankeerdquo de Minas uma vez que a presenccedila deles contrapunha-se ao desejo da

classe dominante de construir uma imagem da cidade como ldquocivilizadardquo e moderna

Natildeo eacute questionado no texto jornaliacutestico o porquecirc dessas pessoas estarem esmolando

pelas ruas da cidade natildeo eacute assinalado se essas pessoas tinham saiacutedo da zona rural para a

aacuterea urbana em busca de melhores condiccedilotildees de vida e de trabalho fugindo da

exploraccedilatildeo e dos desmandos dos antigos escravocratas A uacutenica preocupaccedilatildeo eacute com o

incocircmodo que elas provocavam por natildeo estarem trabalhando e nem contribuindo para o

progresso da naccedilatildeo Mas em quais atividades esses indiviacuteduos ldquotalhados para o

trabalhordquo poderiam empregar-se O discurso do texto aponta que para os setores

dominantes de Juiz de Fora as pessoas que viviam a esmolar pelas ruas deveriam

submeter-se ao jugo da classe proprietaacuteria aos baixos salaacuterios e a exploraccedilatildeo de sua

forccedila de trabalho204

O artigo do jornal assinalava que as pessoas que viviam esmolando possuiacuteam

ldquouma fisionomia pouco animadorardquo Possivelmente a fisionomia dessa populaccedilatildeo

202 O Jornal do Commercio foi fundado por Vicente de Leon Anibal em 20 de dezembro de 1896 No ano

seguinte 1897 passou para as matildeos do influente poliacutetico mineiro Antonio Carlos Ribeiro de Andrade O

perioacutedico pertenceu ainda a outros poliacuteticos importantes como Joatildeo Penido Filho e Francisco Valadares

Em 1939 o Jornal do Commercio e O Pharol cessaram suas atividades ambos pertenciam agrave viuacuteva de

Francisco Valadares que enfrentou seacuterios problemas financeiros Cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna Op

cit 2013 p 95 AHCJF ldquoHistoacuteria da imprensa de Juiz de Forardquo Diaacuterio Mercantil 27 abr 1946 O

jornal ao longo de sua existecircncia passou por vaacuterias orientaccedilotildees poliacuteticas seguindo o posicionamento de

seus proprietaacuterios Segundo James W Goodwin Juacutenior em princiacutepios do seacuteculo XX os perioacutedicos O

Pharol e Jornal do Commercio pertenciam a grupos poliacuteticos rivais Cf GOODWIN JUacuteNIOR James W

Op cit p 111 203

SM-BMMM ldquoRepressatildeo Urgenterdquo Jornal do Commercio 28 mar 1900 p 1 204

Para mais informaccedilotildees sobre a questatildeo do controle social e da pobreza no municiacutepio de Juiz de Fora

ver o trabalho de PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008

62

empobrecida ficaria mais ldquoanimadorardquo se ela se submetesse a exploraccedilatildeo das classes

dominantes

Michel Mollat analisando as palavras pobreza e pobre assinala que ldquoo emprego

no plural da palavra ldquopobresrdquo traduz a percepccedilatildeo quantitativa de um grupo social de fato

e o despertar de um sentimento de piedade ou de inquietude suscitado pelo nuacutemero de

pobresrdquo205

Nas mateacuterias dos jornais observa-se essa ambiguidade nas atitudes das

classes dominantes com relaccedilatildeo agrave grande concentraccedilatildeo de pessoas pobresdesvalidas

pelas ruas das cidades ora se exigiam puniccedilatildeorepressatildeo para os ldquomenoresrdquo e pobres

que viviam a esmolar transformados em vadios e vagabundos e ora se compadeciam

pela sorte desses deserdados da fortuna

Segundo Sidney Chalhoub a sociedade brasileira nos dececircnios finais do periacuteodo

imperial e ao longo da Primeira Repuacuteblica parecia estar dividida em ldquodois mundosrdquo um

da ordemtrabalho e outro da ociosidadecrime O mundo do oacuteciocrime deveria ser

reprimido e controlado Para o autor essa visatildeo de mundo estava calcada ldquona tradiccedilatildeo

cristatilde ocidental de procurar distinguir sempre o bem do mal o certo do errado etcrdquo e

esse posicionamento parecia ser a ldquocaracteriacutestica fundamental da visatildeo de mundo das

classes dominantes brasileirasrdquo206

A hipoacutetese levantada pelo autor eacute de que o mundo do

oacuteciocrime tinha uma utilidade servia para justificar ldquoos mecanismos de controle e

sujeiccedilatildeo dos grupos sociais mais pobresrdquo pelas classes dominantes207

A desqualificaccedilatildeo

do modo de vida das relaccedilotildees familiares e de trabalho dos setores empobrecidos da

sociedade constitui-se em uma construccedilatildeo das classes dominantes para legitimar sua

dominaccedilatildeo208

Desde que o governo imperial colocou em andamento o processo de aboliccedilatildeo

gradual do trabalho escravo ateacute seu derradeiro fim em maio de 1888 e mesmo deacutecadas

depois da extinccedilatildeo de tal instituiccedilatildeo tornou-se uma constante a reivindicaccedilatildeo por parte

dos grupos dominantes de medidas governamentais de controle sobre a massa de ex-

escravos libertos e da populaccedilatildeo pobre em geral209

Geralmente exigiam-se medidas

205

MOLLAT Michel Os pobres na Idade Meacutedia Rio de Janeiro Campus 1989 p 2 206

CHALHOUB Sidney Op cit 2001 p 78 207

Idem p 80 208

Ibidem p 80 209

A respeito da questatildeo do controle social da disciplina e da exclusatildeo social dos trabalhadores pobres na

transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre e das poliacuteticas de reordenamento e remodelamento dos espaccedilos

urbanos ver NEDER Gizlene ldquoCidade identidade e exclusatildeo socialrdquo Tempo Rio de janeiro v 2 n 3

pp 106-134 1997 MACIEL Laura Antunes SOUZA Vitor Leandro de ldquoOrdem na praccedila normas e

exerciacutecio de administraccedilatildeo em mercados do Rio de Janeirordquo In Passagens Revista Internacional de

Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro v 4 n 1 pp 55-80 jan-abr 2012 p 60-61

Disponiacutevel em wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv4n1a32012pdf Acessado em 10-07-2015

63

que conduzissem os grupos subalternos da sociedade ao trabalho Como jaacute foi discutido

neste capiacutetulo na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX a ideia do trabalho como algo

positivo passou a ser construiacuteda e propagada no seio da sociedade O trabalho passou a

ser uma condiccedilatildeo para o indiviacuteduo ldquocivilizar-serdquo Em maio de 1888 uma mateacuteria

publicada no jornal O Pharol ressaltava que era necessaacuterio ldquoorganisar quanto antes o

trabalho livre para que os novos cidadatildeos que o paiz acaba de receber saibam

comprehender devidamente quaes as circumstancias em que devem gosar a liberdade210

Creio que para uma parcela da classe dominante a liberdade para esses ldquonovos

cidadatildeosrdquo do ldquopaizrdquo significava trabalhar de forma ordeira e obediente agraves leis e aos

antigos ldquosenhores de homens e de terrasrdquo211

210

AHUFJF ldquoNova Ersquorardquo O Pharol 15 maio 1888 p 1 211

A inserccedilatildeo do liberto no mundo do trabalho livre e o trabalhador imigrante satildeo questotildees que vecircm haacute

tempos sendo examinadas pela historiografia brasileira Os estudos revelam a preocupaccedilatildeo em se analisar

a formaccedilatildeo da matildeo de obra livre no Brasil do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX e as novas relaccedilotildees de

trabalho que foram gestadas dentro da nova conjuntura do poacutes-emancipaccedilatildeo Todavia natildeo se concretizou

a crenccedila de que com a aboliccedilatildeo da escravidatildeo os campos ficariam abandonados e de que seria a ruiacutena da

lavoura nacional como era assinalado por muitos defensores do regime escravista Entretanto logo apoacutes a

emancipaccedilatildeo ocorreu certa movimentaccedilatildeo dos libertos alguns abandonaram as unidades onde haviam

sido escravos por longos anos por natildeo concordarem com a permanecircncia de praacuteticas dos ldquotempos do

cativeirordquo outros deixaram as propriedades para buscarem parentes que haviam sido separados durante a

escravidatildeo etc Todavia essa movimentaccedilatildeo natildeo chegou a desestruturar as atividades uma vez que nas

regiotildees de economia mais dinacircmica podia contar com o trabalhador imigrante Essa atitude inicial de

muitos libertos fez com que setores das classes dominantes passassem a exigir medidas que coibissem o

que elas denominavam de vadiagem e ociosidade que eram atribuiacutedos principalmente aos ex-escravos e

seus descendentes De acordo com Eric Foner todas as sociedades em que houve o predomiacutenio da grande

lavoura experimentaram durante o seu processo de emancipaccedilatildeo da escravidatildeo ldquoum amargo conflito em

torno do controle da matildeo de obra ou como pode ser mais bem descrito da formaccedilatildeo de classesrdquo que

necessariamente fez surgir a questatildeo da definiccedilatildeo dos ldquodireitos e privileacutegios e papel social de uma nova

classe a dos libertosrdquo (cf FONER 1988 p 27) O autor ainda assevera que medidas coercitivas em boa

parte dos casos foram empregadas como uma estrateacutegia para forccedilar os antigos escravos a ldquovoltarem a

trabalhar nas fazendasrdquo embora generalizaccedilotildees natildeo possam ser feitas por causa da ldquocomplexidade de

relaccedilotildees de trabalho que surgiram em sociedades especiacuteficasrdquo Cf FONER Eric Nada aleacutem da

liberdade a emancipaccedilatildeo e seu legado Rio de Janeiro Paz e Terra Brasiacutelia CNPq 1988 p 27-28

Sobre a discussatildeo a respeito da inserccedilatildeo do liberto no mundo do trabalho livre apoacutes a emancipaccedilatildeo do

trabalho escravo no Brasil e na Ameacuterica ver entre outros os trabalhos de CASTRO Hebe M Mattos

de Laccedilos de famiacutelia e direitos no final da escravidatildeo In NOVAIS Fernando (coord) ALENCASTRO

Luiz Felipe (org) Histoacuteria da vida privada no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 HOLT

Thomas A essecircncia do contrato In COOPER Frederick HOLT Thomas SCOTT Rebeca J Aleacutem da

escravidatildeo investigaccedilotildees sobre raccedila trabalho e cidadania em sociedades poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 FONER Eric Op cit 1988 MATTOS Hebe Maria Das cores do

silecircncio Os significados da liberdade no sudeste escravista Brasil seacuteculo XIX Rio de Janeiro Nova

Fronteira 1998 MATTOS Hebe Maria Prefaacutecio In COOPER Frederick HOLT Thomas SCOTT

Rebeca J Op cit RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Memoacuterias do Cativeiro famiacutelia e cidadania no

poacutes-aboliccedilatildeo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 FRANCISCO Raquel Pereira ldquoInfacircncia e

Trabalho a questatildeo da matildeo de obra infantil no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XXrdquo In 3ordm Seminaacuterio de

Histoacuteria Econocircmica amp Social da Zona da Mata Mineira Juiz de Fora (MG) Faculdade de Economia ndash

UFJF outubro de 2011 (mesa 22pdf miacutedia eletrocircnica) 2011a SARAIVA Luiz Fernando Um correr de

casas antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora ndash 18701900

Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 2001

64

Para os objetivos deste estudo interessa-me a anaacutelise da problemaacutetica da

infacircncia pobre abandonada e trabalhadora que vivia pelas ruas da cidade nas faacutebricas

nas residecircncias das classes abastadas como empregados domeacutesticos nas moradias

populares e nos asilos212

O recorte temporal eacute o da transiccedilatildeo do trabalho escravo para o

livre periacuteodo esse marcado pela presenccedila de um contingente expressivo de indiviacuteduos

empobrecidos saiacutedos das senzalas tendo uma parcela dessa populaccedilatildeo se direcionado

para os centros urbanos em busca de melhores condiccedilotildees de vida Poreacutem as cidades

natildeo possuiacuteam infraestrutura e condiccedilotildees de absorver integralmente os grupos desvalidos

compostos natildeo apenas dos libertos mas tambeacutem dos nacionais e de muitos imigrantes

A presenccedila dessas pessoas na trama urbana descortinou uma seacuterie de novos problemas

como carecircncia de habitaccedilatildeo e saneamento desemprego mendicacircncia e criminalidade

Entre essa camada de desvalidos estavam as ldquosementes do futurordquo muitas

acompanhadas de seus genitores outras abandonadas ou oacuterfatildes vivendo da caridade

puacuteblica de esmolas de pequenos delitos da prostituiccedilatildeo e de trabalhos esporaacutedicos A

presenccedila desses pequenos era uma constante nas vias puacuteblicas Nesse espaccedilo eles

brincavam brigavam trabalhavam e atraiacuteam os olhares e as atenccedilotildees de setores da

sociedade preocupados com a presenccedila dos mesmos nas ruas O ponto nodal da questatildeo

eram as implicaccedilotildees que futuramente esses ldquomenoresrdquo poderiam trazer para a sociedade

vivendo em um ambiente tatildeo deleteacuterio Os discursos meacutedico-juriacutedico-jornaliacutesticos

apregoavam a necessidade de intervenccedilatildeo do Estado por meio da criaccedilatildeo de instituiccedilotildees

para abrigar esses ldquomenoresrdquo preparando-os para a vida em uma sociedade civilizada

ancorada nos valores da disciplina e do trabalho Por causa das agruras da vida muitos

pais entregaram seus filhos e filhas para as instituiccedilotildees de assistecircncia ou para famiacutelias

abastadas criaacute-los ou alegando natildeo terem condiccedilotildees de mantecirc-los Pedro Nava em suas

memoacuterias da casa de sua avoacute Inhaacute Luiza localizada na Rua Direita (atual Av Baratildeo do

Rio Branco) relata que as meninas eram entregues a sua avoacute para trabalharem e que

seus nomes e a data em que haviam chegado eram registrados no livro de notas por ela

ldquoJacintha entrou para minha casa a 23 de novembro de 1911rdquo ou ldquotomei Catita para

criar em junho de 1913rdquo no que foi chamado por Nava de ldquo13 de maio agraves avessasrdquo

Aleacutem de relatar o emprego dessas meninas Nava tambeacutem fala dos castigos que eram

infligidos agraves mesmas transparecendo que o treze de maio natildeo havia acontecido pois o

212

A discussatildeo sobre pobreza urbana e controle social em Juiz de Fora foi realizada por Jefferson de

Almeida Pinto que discutiu as vaacuterias facetas desenvolvidas pelos grupos dominantes locais de controle da

populaccedilatildeo pobre em especial no que diz respeito agrave mendicacircncia e agrave vadiagem Cf PINTO Jefferson de

Almeida Op cit 2008

65

tapa na boca a vara de marmelo e a palmatoacuteria ainda eram utilizados para disciplinar

natildeo apenas as ldquocrias da casardquo mas tambeacutem as ldquoempregadas assalariadasrdquo213

Essas

histoacuterias de abandono abdicaccedilatildeo do paacutetrio poder seratildeo vistas oportunamente nos

demais capiacutetulos

Segundo o discurso de segmentos das classes dominantes as crianccedilas eram as

ldquosementes do futurordquo Dessa forma as transformaccedilotildees na sociedade deveriam comeccedilar

por elas ou seja desde cedo deveriam ser incutidos os valores do amor ao trabalho e do

respeito agraves leis Nos jornais do municiacutepio de Juiz de Fora eacute comum a presenccedila de

mateacuterias discorrendo sobre a importacircncia de se proteger e reprimir a infacircncia pobre

Atraveacutes da leitura percebe-se a preocupaccedilatildeo de determinados setores da sociedade com

a existecircncia de ldquomenoresrdquo desvalidos vagando pelas ruas frequentando tabernas casas

de prostituiccedilatildeo etc Nos perioacutedicos satildeo constantes as mateacuterias solicitando agraves autoridades

policiais atitudes para conter a ldquomalta de meninos vagabundos que infestam as ruas da

cidaderdquo214

Tal situaccedilatildeo era apresentada pela imprensa como um ldquovexamerdquo215

para a

ldquoManchester Mineirardquo Em finais do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX a cidade de Juiz de

Fora natildeo contava com uma instituiccedilatildeo de assistecircncia para abrigar os ldquomenoresrdquo

abandonados desvalidos e delinquentes do sexo masculino E essa situaccedilatildeo se manteve

ao longo das primeiras deacutecadas republicanas De acordo com Wesleyuml Silva a alternativa

encontrada pelas cidades do interior de Minas Gerais que natildeo contavam com

instituiccedilotildees de assistecircncia para atender ldquomenoresrdquo era de enviaacute-los para os institutos da

capital216

Como foi salientado anteriormente o desenvolvimento industrial da

ldquoManchester Mineirardquo foi acompanhado de um adensamento populacional em seu

periacutemetro urbano Aleacutem dos consumidores a cidade com suas faacutebricas oficinas e

comeacutercio variado atraiacutea tambeacutem pessoas dispostas a venderem sua forccedila de trabalho

Outro fator de atraccedilatildeo populacional foi o ldquoexcesso de caridaderdquo217

dos habitantes da

urbs mineira que contribuiacutea para o afluxo de mendigos e indigentes Essas pessoas eram

provenientes dos municiacutepios proacuteximos dos distritos e das fazendas nos arredores da

aacuterea urbana e de outros estados e junto a elas estavam muitas crianccedilas e jovens que

213

NAVA Pedro ldquoMorro do Imperadorrdquo In _____ Balatildeo Cativo (memoacuterias2) 2 ed Rio de Janeiro J

Olympio 1974 p 4-5 214

AHUFJF O Pharol 08 mar 1900 p 1 215

AHUFJF ldquoAacute Camarardquo O Pharol 17 abr 1887 p 1 216

SILVA Wesleyuml Por uma Histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da delinquecircncia de menores em Belo

Horizonte 1921-1941 Tese de Doutoramento Satildeo Paulo USP 2007 p 251 217

PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 p 89

66

contribuiacuteam para engrossar a massa de desvalidos da cidade Uma parcela desses

ldquomenoresrdquo que natildeo era absorvida como matildeo de obra barata pelas induacutestrias oficinas e

outros estabelecimentos vivia pelas ruas colocando pedras e material explosivo nos

trilhos dos bondes praticando pequenos furtos dirigindo provocaccedilotildees agrave populaccedilatildeo

proferindo palavras de baixo calatildeo invadindo quintais entre outras tropelias como

denunciavam os jornais juiz-foranos218

Imagem 4 Menores nas ruas e pedras nos trilhos dos bonds AHUFJF O

Pharol 22 mar 1900 p 1

A presenccedila e accedilotildees desses ldquomenoresrdquo no cenaacuterio urbano foi alvo constante da

imprensa local que exigia providecircncias das autoridades Com o passar dos anos

218

AHUFJF O Pharol 22 mar 1900 O Pharol 8 mar 1900 O Pharol 4 jan 1911 O Pharol 28 jan

1911 SM-BMMM Jornal do Comeacutercio 22 mar 1900 O Lynce 13 ago 1921

67

passaram a sugerir a criaccedilatildeo de institutos de assistecircncia para os meninos desfavorecidos

Desde os anos finais do seacuteculo XIX jaacute era colocado pelas classes dominantes por

intermeacutedio dos perioacutedicos a necessidade de criaccedilatildeo em Juiz de Fora de um ldquoasylo para

meninos desoccupadosrdquo Na mateacuteria publicada no O Pharol em abril de 1887 com o

tiacutetulo Aacute Camara foi ressaltado que ldquode longa data temo [sic] nos esforccedilado com as

auctoridades locaes instando pela cohibiccedilatildeo de abusos cometidos por esses desordeiros

e vagabundosrdquo O texto destacava que era um ldquovexame de ser uma cidade como a

nossa infestada de pequenos capoeiras desordeiros e vagabundosrdquo De acordo com a

reportagem as induacutestrias poderiam ser uma aliada para a soluccedilatildeo desse grave problema

uma vez que ldquoindustrias natildeo faltam em um logar como este em que as fabricas

formigam o trabalho eacute bem remuneradordquo Sendo assim a Cacircmara tinha ldquopessoas a

quem chamar e encarregar de uma pequena parte do dia no ensino da industria que

exerce mediante retribuiccedilatildeo do governordquo219

Segundo Irene Rizzini os primeiros anos do seacuteculo XX foram ldquoum periacuteodo feacutertil

na idealizaccedilatildeo dos estabelecimentos destinados agrave recuperaccedilatildeo dos menoresrdquo sendo

propostos muacuteltiplos tipos de estabelecimentos para dar atendimento agraves crianccedilas

desvalidas220

Em 1909 foi inaugurado em Belo Horizonte capital de Minas Gerais o Instituto

Joatildeo Pinheiro anexo agrave fazenda da Gameleira para agrave assistecircncia a ldquomenoresrdquo pobres

Esse estabelecimento tinha na educaccedilatildeo profissionalizante ldquoagrozootheacutecniardquo um de

seus principais pilares221

Segundo Jefferson de Almeida Pinto no governo de Joatildeo

Pinheiro (1906-1908) iniciou-se em Minas Gerais uma reforma do sistema educacional

que entre outros fatores objetivava ldquoimplantar um sistema puacuteblico de ensino e a

edificaccedilatildeo e implantaccedilatildeo da educaccedilatildeo em grupos escolares que seriam as bases

responsaacuteveis pela irradiaccedilatildeo do perfil republicano e liberal que se queria fundarrdquo222

Assim de acordo com o autor a fundaccedilatildeo do Instituto deve ser ldquopensado no conjunto

219 AHUFJF Aacute Camarardquo O Pharol 17 abr 1887 p 1 Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010

p 254 220

RIZZINI Op cit 2008 p 136-137 221

PINTO Jefferson de Almeida Ideias juriacutedico-penais e cultura religiosa em Minas Gerais na

passagem agrave modernidade (1890-1955) Rio de Janeiro Editora Multifoco 2013 p 71 Cf O jornal O

Pharol trouxe uma longa mateacuteria sobre o Decreto n 2416 de 9 de fevereiro de 1909 ldquoque organiza a

assistecircncia publica a meninos desvalidos e crea o Instituto Joatildeo Pinheirordquo A mateacuteria prosseguiu nos dias

seguintes AHUFJF ldquoAssistencia a menoresrdquo O Pharol 11 fev 1909 p 1 12 fev 1909 p 1 13 fev

1909 p 2 14 fev 1909 p 1 e 17 fev 1909 p 1 222

PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2013 p 72 Joatildeo Pinheiro assumiu o governo do estado de

Minas Gerais em 1906 poreacutem natildeo terminou o seu mandato pois faleceu em 25 de outubro de 1908 no

Palaacutecio de Liberdade em Belo Horizonte Idem p 71 nota 126

68

das mudanccedilas no sistema educacional que estavam ocorrendo em Minas Gerais e que

tinham suas razotildees na fundaccedilatildeo do proacuteprio sistema republicano no Brasilrdquo223

A

organizaccedilatildeo do Instituto Joatildeo Pinheiro com seu ldquoself governementrdquo e sua postura neutra

e liberal no que diz respeito a crenccedilas religiosas colocou-se como um modelo para os

estabelecimentos assistenciais que viessem a ser organizados futuramente224

Pela leitura dos perioacutedicos do periacuteodo pode-se conjecturar que o Instituto Joatildeo

Pinheiro efetivamente tornou-se o modelo de assistecircncia que era almejado pelas outras

cidades mineiras Na mateacuteria que foi publicada no O Pharol de 22 de fevereiro de 1911

com o tiacutetulo ldquoA Infacircncia desvalidardquo observa-se a crenccedila nas instituiccedilotildees como

formadora de uma nova consciecircncia entre os ldquomenoresrdquo que deveria ser atingida

atraveacutes da pedagogia do trabalho como mostrado no texto transcrito a seguir

A Infacircncia Desvalida

Haacute muito se faz sentir em Juiz de Fora a falta de um estabelecimento para

abrigo da infancia desvalida que sem o minimo cuidado para a sua educaccedilatildeo

vive a toa pelas ruas da cidade a encher tabernas e casas suspeitas de toda a

ordem onde adquire habitos perniciosissimos que cedo a conduzem ao

caminho tortuoso do roubo e do crime

[]

Os poderes publicos tecircm o dever de zelar pela sorte dos menores desvalidos

apparelhando-os convenientemente para convertel-os em cidadatildeos uteis aacute

sociedade e aacute paacutetria225

Observa-se na parte transcrita que a rua eacute colocada como um espaccedilo de

perversatildeo de vadiagem ou seja um local deformador dos ldquomenoresrdquo O discurso

meacutedico caracterizava os ldquomenoresrdquo que viviam nas ruas como os mais nocivos para a

sociedade uma vez que nesse espaccedilo instruiacuteam-se em todos os tipos de crimes e

viacutecios226

Dessa forma as crianccedilas deveriam ser retiradas desse ambiente pernicioso

Para a realizaccedilatildeo de tal meta seria necessaacuteria a implantaccedilatildeo de um instituto que

abrigasse essas crianccedilas e que lhes incutisse valores e as preparasse para serem bons

cidadatildeos por meio do aprendizado de um oficio O texto jornaliacutestico tambeacutem colocava

a questatildeo como um dever dos poderes puacuteblicos ou seja competia ao governo a

moralizaccedilatildeo do espaccedilo urbano e a preparaccedilatildeo dessa matildeo de obra para futuramente ser

uacutetil agrave sociedade e agrave paacutetria

Os debates em torno dos ldquomenoresrdquo desvalidos que viviam nas ruas referem-se

apenas agrave necessidade de contecirc-los de reprimi-los mas natildeo discutem as causas que

223

Ibidem p 71 224

Ibidem p 72-74 225

AHUFJF ldquoA Infacircncia Desvalidardquo O Pharol 22 fev 1911 p 2 226

FRAGA FILHO Walter Op cit 1996 p 115 120-121

69

levaram meninos e meninas para as ruas das cidades Um dos fatores foi (eacute) o aumento

da pobrezamiseacuteria Os pais sem condiccedilotildees de criarem seus filhos muitas vezes

abandonavam-os nas vias puacuteblicas das grandes cidades situaccedilatildeo ainda comum na

atualidade Entretanto natildeo apenas a miseacuteria levava (leva) as crianccedilas para as ruas

outros fatores como a violecircncia domeacutestica sexual exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho

a perda dos pais ou responsaacuteveis eram motivos para que elas encontrassem nas ruas nas

calccediladas debaixo das pontes o seu novo lar

Esses ldquomenoresrdquo que eram tidos como um problema para a sociedade

geralmente eram desprovidos de laccedilos de famiacutelia e de parentesco ou estavam inseridos

em arranjos familiares que natildeo eram o esperado pela sociedade civilizada higiecircnica da

ordem e do progresso Muitas dessas crianccedilas pertenciam a famiacutelias constituiacutedas apenas

pela matildee e irmatildeos ou seja natildeo estavam dentro do modelo nuclearburguecircs em que

havia a presenccedila do pai e da matildee227

Com relaccedilatildeo agraves meninas desvalidasoacuterfatildes o municiacutepio de Juiz de Fora contava

com o asilo Joatildeo Emiacutelio desde o final dos anos de 1890 que poderia como era usual

dizer na eacutepoca encaminhaacute-las na vida dotando-as das qualidades necessaacuterias para o

serviccedilo domeacutestico nas casas das famiacutelias idocircneas para serem boas matildees e donas de

casa De acordo com Maria Luiza Marciacutelio a educaccedilatildeo ministrada agraves meninas nos

asilos tinha por objetivo ldquopreparaacute-las para serem matildees de famiacutelia e ou empregadas

domeacutesticas instruiacutedas e bem treinadasrdquo228

A educaccedilatildeo que deveria ser dada agraves meninas

desvalidas era a baacutesica seguida do aprendizado de um ofiacutecio O projeto de educaccedilatildeo

para os ldquodeserdados da fortunardquo independente do sexo era o mesmo Os institutos

asilos escolas reformatoacuterias e tantas outras instituiccedilotildees de assistecircncia tinham uma

missatildeo clara preparar trabalhadores submissos e obedientes agraves leis

A construccedilatildeo do asilo na deacutecada de 1890 teve inicialmente o objetivo de

atender aos mendigos e indigentes que viviam pelas ruas da cidade sendo o idealizador

desse projeto o padre Joatildeo Emiacutelio Ferreira da Silva229

que veio posteriormente a dar

nome ao estabelecimento A edificaccedilatildeo do preacutedio do ldquoAsilo da Mendicidaderdquo encontrou

227

Cf SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 228

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 173-175 229

Joatildeo Emiacutelio foi um dos padres que assumiu a funccedilatildeo de introduzir na cidade de Juiz de Fora o modelo

eclesial tridentino ultramontano e romanizante Cf AZZI Riolando Op cit 2000 p 106 Para mais

informaccedilotildees sobre a reforma da Igreja Catoacutelica no Brasil na passagem agrave modernidade do modelo luso-

brasileiro para um modelo em conformidade com o catolicismo romano cf AZZI Riolando A Igreja e o

menor na histoacuteria social brasileira Satildeo Paulo Cehila ndash Ediccedilotildees Paulinas 1992 SERBIN Kenneth P

Padres celibato e conflito social uma histoacuteria da Igreja Catoacutelica no Brasil Companhia das Letras

2008

70

inicialmente algumas dificuldades uma vez que o terreno doado pelo Tenente Custoacutedio

da Silveira Tristatildeo para tal fim localizado na rua Antonio Dias foi considerado

inadequado pela Sociedade de Medicina e Cirurgia por encontrar-se no centro da

cidade o que poderia futuramente representar problemas agrave higiene puacuteblica A

construccedilatildeo do asilo deu-se entatildeo na chaacutecara doada pelo comendador Gervaacutesio Monteiro

da Silva em 1891 no bairro Alto dos Passos com a aprovaccedilatildeo da Sociedade de

Medicina e Cirurgia A inauguraccedilatildeo do ldquoPalaacutecio dos Mendigosrdquo como o asilo era

chamado pelos jornais ocorreu em 1895 e redundou em um total fracasso pois natildeo

contou com a adesatildeo dos desvalidos ao qual se destinava Apoacutes a morte do padre Joatildeo

Emiacutelio em 1899 as irmatildes da Congregaccedilatildeo de Santa Catarina ficaram responsaacuteveis pela

administraccedilatildeo do asilo Entretanto em 1902 a administraccedilatildeo foi transferida para as

Irmatildes da Congregaccedilatildeo do Bom Pastor que prosseguiram com as obras de atendimento

agraves meninas oacuterfatildes funccedilatildeo que o asilo assumiu apoacutes natildeo lograr ecircxito no atendimento aos

mendigos e indigentes230

Na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX vaacuterias congregaccedilotildees religiosas se

instalaram em Juiz de Fora a pedido do Bispo de Mariana Dom Silveacuterio que pretendia

com essa accedilatildeo intensificar o modelo eclesial tridentino ultramontano e romanizado na

cidade Nesse periacuteodo o municiacutepio mineiro recebeu sete congregaccedilotildees vindas da

Europa sendo trecircs masculinas e quatro femininas entre elas estava a das Irmatildes do Bom

Pastor231

Segundo Kenneth Serbin ocorreu uma ldquoavalanche de padres religiosos

estrangeirosrdquo na sociedade brasileira nas primeiras deacutecadas republicanas tendo a naccedilatildeo

recebido ldquomais de trecircs duacutezias de ordens religiosas masculinasrdquo Com relaccedilatildeo agraves

congregaccedilotildees femininas o autor assevera que a inserccedilatildeo delas nesse mesmo periacuteodo foi

ainda mais expressiva tendo-se instalado 96 ordens no paiacutes232

Como salientado neste item Juiz de Fora com suas induacutestrias seus teatros seus

poetas enfim com seu progresso e modernidade estava afastada da religiosidade das

barrocas cidades mineiras Segundo Maraliz Christo a urbs da Mata mineira estava

230

PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 p 109-111 AZZI Riolando Sob o baacuteculo episcopal a

Igreja Catoacutelica em Juiz de Fora 1850 ndash 1950 Centro da Memoacuteria da Igreja de Juiz de Fora 2000 p

174-175 OLIVEIRA Paulino Op cit 1966 p 129-130 SM-BMMM ldquoAsylo Joatildeo Emiacuteliordquo Jornal do

Commercio 16 de ago de 1902 p 1 231

AZZI Riolando Op cit 2000 p 165 Segundo Riolando Azzi as congregaccedilotildees religiosas que se

instalaram em Juiz de Fora a partir dos primeiros anos republicanos foram congregaccedilotildees masculinas

redentoristas holandeses salesianos italianos e verbitas alematildees congregaccedilotildees femininas irmatildes francesas

do Sion irmatildes alematildes de Santa Catarina irmatildes alematildes Servas do Espiacuterito Santo e irmatildes francesas do

Bom Pastor (Idem p 165) 232

SERBIN Kenneth P Op cit 2008 p 95

71

ldquoproacutexima ao anti-clericalismordquo constituindo-se em uma preocupaccedilatildeo para os

representantes da Igreja desde meados do seacuteculo XIX O padre Juacutelio Maria233

em 1894

chamou a cidade de a ldquoNova Niacuteniverdquo234

e repreendeu ldquoos lsquojovensrsquo os lsquooperaacuteriosrsquo e os

lsquoricosrsquo por estarem afastados da Igreja e de seus sacramentosrdquo bem como denunciou o

crescimento do protestantismo na cidade235

O desenvolvimento do espiritismo na cidade a partir do iniacutecio do seacuteculo XX

representou mais um obstaacuteculo para a Igreja Catoacutelica em sua ldquocruzada evangelizadorardquo

segundo os preceitos do Vaticano As transformaccedilotildees culturais de Juiz de Fora

advindas do desenvolvimento urbano-industrial criaram um ldquoambiente propiacutecio agrave

proliferaccedilatildeo de novas doutrinas religiosas praticadas por camadas meacutedias e letradas

receptivas agraves novidades em meio agrave proximidade da capital federalrdquo236

Na primeira

deacutecada republicana a ldquoNova Niacuteniverdquo jaacute contava com a presenccedila de catoacutelicos maccedilons

protestantes positivistas espiacuteritas e ateus E os seguidores desses vaacuterios credos faziam

dos jornais locais um locus de divulgaccedilatildeo de suas crenccedilas237

Os espiacuteritas em Juiz de Fora passaram a se dedicar agraves atividades de caridade para

com a populaccedilatildeo pobre disputando dessa forma um espaccedilo de accedilatildeo e representaccedilatildeo na

cidade que ateacute entatildeo era de domiacutenio da Igreja Catoacutelica Aleacutem das obras de caridade de

atendimento aos mendigos e indigentes embrenharam-se tambeacutem no caminho da

educaccedilatildeo dos setores desvalidos da sociedade ofertando agraves crianccedilas pobres ensino e

curso profissionalizante gratuitos238

As obras de assistecircncia agrave infacircncia pobre no municiacutepio de Juiz de Fora no

decorrer dos trinta primeiros anos da Repuacuteblica ficaram a cargo das accedilotildees de caridade e

233

Riolando Azzi assinala que o Padre Juacutelio Maria juntamente com os padres Joatildeo Emiacutelio e Venacircncio

Cafeacute compunha o ldquotrio de sacerdotes que se encarregavam de introduzir em Juiz de Fora o modelo

eclesial tridentinordquo Cf AZZI Riolando Op cit 2000 p 106 234

No livro de Jonas das Escrituras Sagradas ndash a Biacuteblia a cidade de Niacutenive eacute descrita como ldquoa grande

cidaderdquo em que imperava a maldade Jonas 12 235

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 12 236

CAMURCcedilA Marcelo Ayres ldquoFora da caridade natildeo haacute religiatildeo breve histoacuteria da competiccedilatildeo religiosa

entre catoacutelicos e espiritismo kardecista e de suas obras sociais em Juiz de Fora 19001960rdquo In Locus

Revista de Histoacuteria Juiz de Fora v 7 n 1 2001 p 146 237

Idem p 141 238

Ibidem p 147-148 Jefferson de Almeida Pinto ressalta que com o advento da Repuacuteblica a Igreja

Catoacutelica perdeu um espaccedilo importante na formaccedilatildeo das pessoas uma vez que o ensino tornou-se laico A

educaccedilatildeo era visualizada pelos membros do clero catoacutelico como um meio para a divulgaccedilatildeo do modelo

eclesial ultramontano pretendido pela Igreja Com a Repuacuteblica a Igreja perdeu a sua primazia no ensino

passando este a ser ofertado tambeacutem por protestantes e espiritas Cf PINTO Jefferson de Almeida ldquoA

restauraccedilatildeo catoacutelico-tomista a partir do campo poliacutetico e juriacutedico de Minas Gerais na passagem agrave

modernidaderdquo Passagens Revista Internacional de Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro

v 2 n 5 set-dez 2010 p 143 e 145 Disponiacutevel em

wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv2n5a72010pdf Acessado em 10-07-2015

72

filantropia dos catoacutelicos e espiacuteritas como a distribuiccedilatildeo de brinquedos para as crianccedilas

carentes agasalhos festividades na Paacutescoa e Natal recolhimento das meninas oacuterfatildes e

desvalidas cursos profissionalizantes entre outras accedilotildees Entretanto os meninos

desvalidos oacuterfatildeos abandonados e indigitados de delinquentes continuavam a vagar

pelas ruas Como comentado neste item em 1911 poucos anos apoacutes a inauguraccedilatildeo do

Instituto Joatildeo Pinheiro (1909) em Belo Horizonte para atendimento aos ldquomenoresrdquo

desvalidos a imprensa local expunha a necessidade de instalaccedilatildeo no municiacutepio de uma

instituiccedilatildeo congecircnere agrave da capital do estado Todavia a situaccedilatildeo de abandono dos

ldquomenoresrdquo pelas ruas da cidade ainda era uma realidade nos anos de 1920 sendo a

cidade descrita como tendo ldquogarotos lsquoaacute bessarsquordquo que faziam ldquograccedilolas aacutes moccedilas e

meninasrdquo e que natildeo respeitavam os ldquomais velhosrdquo239

As reclamaccedilotildees sobre a presenccedila

desses meninos ldquoa infestar as ruas da cidaderdquo depredando os jardins quebrando as

lacircmpadas dos postes de iluminaccedilatildeo puacuteblica e as vidraccedilas das casas particulares que

ainda tinham as paredes garatujadas ldquocom obscenidadesrdquo foram constantes nos

perioacutedicos do final da deacutecada de 1920 que ressaltava que ldquotaes menores que por esse

caminho em breve se tornaratildeo ndash e muitos deles jaacute o satildeo ndash lsquopivettesrsquo240

e viciadosrdquo

mereciam ldquoum eneacutergico correctivo da policiardquo241

A situaccedilatildeo da infacircncia desvalida abandonada e delinquente e a accedilatildeo do Estado

para com a mesma era uma questatildeo presente nos perioacutedicos locais A presenccedila dos

Estado geralmente se fazia apenas nos momentos de repressatildeo e puniccedilatildeo deixando

parcela da infacircncia pobre e abandonada sem educaccedilatildeo e assistecircncia

A prisatildeo na Argentina de uma menina que havia furtado da casa de seu patratildeo

ldquodez tostotildees para leval-os aacute sua famiacutelia residente foacutera da capitalrdquo serviu de pano de

fundo para uma mateacuteria publicada no jornal Diaacuterio Mercantil242

em fevereiro de 1912

239

SM-BMMM ldquoUrge uma medidardquo O Lynce 13 ago 1921 p 1 Na mateacuteria com o tiacutetulo ldquoUrge uma

medidardquo o foot ball e tambeacutem o jogo de krica (pequenas bolinhas de vidro) eram acusados em parte pelo

comportamento desrespeitoso dos ldquomenoresrdquo Com relaccedilatildeo agrave krica o texto assinala que eram numerosos

os grupos de meninos pelas ruas envolvidos com esse jogo ldquoquando deviam estar na escola ou no

trabalho mesmo em casa dos paesrdquo Por isso era solicitada ao delegado de poliacutecia uma atitude ldquopara que

estes fucturos cidadatildeos natildeo continuem no caminho da malandragemrdquo Idem 240

O termo ldquopiveterdquo segundo Irene Rizzini jaacute era empregado no Rio de Janeiro no iniacutecio do seacuteculo XX

para fazer alusatildeo agraves crianccedilas moradoras nas ruas RIZZINI Irene Op cit 2011 p 115 nota 16 241

SM-BMMM ldquoUrge uma medidardquo O Lynce Juiz de Fora 13 de agosto de 1921 242 O jornal Diaacuterio Mercantil (DM) passou a circular em janeiro de 1912 O perioacutedico tinha um perfil

liberal (defesa das liberdades individuais e da propriedade privada) Desde o iniacutecio o jornal deixou

expresso as suas pretensotildees No editorial da primeira ediccedilatildeo foi assinalado que ldquoos interesses das classes

produtoras do paiacutes quando legiacutetimos teratildeo em o lsquoDiaacuterio Mercantilrsquo um advogado soliacutetico e fielrdquo Cf

GOODWIN JUNIOR James William Op cit 2007 p 81 Segundo Almir de Oliveira o Diaacuterio

Mercantil foi desde sua fundaccedilatildeo um ldquojornal poliacutetico por excelecircnciardquo tendo como fundadores Antocircnio

Carlos Ribeiro de Andrade e Joatildeo Penido Filho ldquopoliacuteticos de forte influecircncia no Municiacutepio e no Estadordquo

73

sobre a situaccedilatildeo da infacircncia desvalida brasileira bem como sobre essa problemaacutetica em

Juiz de Fora Assim pronunciava a mateacuteria

A sorte desta pobre creanccedila [argentina] faz-nos lembrar a de muitos seres

pequeninos que vivem jogado no mundo ao Deus daraacute e para os quaes a

justiccedila humana tem a brutalidade das feras bravias quando apanham nas

garras um animal indefeso e fraacutegil

Quantas e quantas crenccedilas sem pae e sem matildee tendo por guia na vida

exploradores perversos e deshumanos natildeo se atiram pelas ruas aacute

mendicidade e ao crime expostas ao achincalhe da gente abastada e ao

verdugo das autoridades perversas soffrendo mais do que os irracionaes para

conquistarem uma fatia de patildeo que lhes mitigue a fome

A infancia desamparada foacuterma hoje uma legiatildeo tatildeo numerosa que autorisa

uma previsatildeo tristissima sobre o futuro dessa parcella da humanidade que

seraacute amanhatilde talvez a maioria dos homens a lutar pela existencia E eacute faacutecil de

se avaliar a sorte que se reserva a todos indistinctamente quando se

desenvolverem esses desgraccedilados irmatildeos creados e formados no meio da

corrupccedilatildeo avassaladora dos bordeis e das ruas uacutenicos lugares onde

encontram abrigo e refugio orphatildeos como vivem da proteccedilatildeo que lhes devem

os governos e as classes incumbidas de zelar pela sorte dos humildes

Nas grandes cidades eacute um espectaculo compungente que se offerece aos

olhos do transeunte a concorrecircncia de menores mendigos e meninas perdidas

a assaltarem as casa cafeacutes e vehiculos implorando aos que passam ldquoum

nickel para comprar um patildeordquo ou ldquoauxilio para enterro da irmatildezinhardquo ou

ldquodinheiro para levar remeacutedio ao pae moribundordquo ou enfim para outra

qualquer cousa que levam muito bem decorada como o exigem os seus

miseraacuteveis instigadores quase sempre individuos criminosos e suspeitos a

cujo torpe mister as autoridades natildeo procuram crear embaraccedilos com a energia

e o rigor que as leis lhes facultam

A mendicidade constitue o melhor meio de que lanccedilam matildeo os traficantes de

toda a especie para viverem regaladamente sem occupaccedilatildeo e sem trabalho Si

ainda esses typos abjectos se valessem da sua laacutebia somente na conquista das

ambiccedilotildees que lhes corroem a alma negra natildeo era tanto para indignar porque

elles mesmos teriam de acarretar com os males resultantes de sua infame

tarefa

As autoridades declaram-se sempre impotentes e quando se reclama allegam

que os estabelecimentos de caridade eacute que devem recolher os pequenos

desvalidos

Conhecemos um menor nesta cidade chamado Thomeacute um infeliz mulatinho

de 10 annos de edade creado nas tavernas e casas de jogo em que eacute tatildeo feacutertil

esta nossa Princeza Thomeacute foi sempre o accusado o responsavel por todos

os pequenos furtos de que a policia tinha conhecimento As queixas de furto

de guarda-sol de patildeo nas janellas das casas de roscas nas portas das

padarias etc davam sempre em resultado a prisatildeo do abandonado

delinquumlente Vimol-o varias vezes na cadeia entre a fuacuteria do delegado e a

carranca de agentes de policia chorando copiosamente e defendendo-se das

accusaccedilotildees que lhe imputavam O infeliz sempre que era interpelado por taes

crimes rematava assim as suas escusas

- Pobre de quem natildeo tem pae e matildee neste mundo

Casos como o de Thomeacute contam-se aos milhares por toda a parte da terra O

mal estaacute generalisado de modo assustador Ningueacutem veacutela pela sorte da

infacircncia sem assistecircncia Os governos a quem competia em primeiro logar

resolver o problema cruzam os braccedilos criminosamente

Cf OLIVEIRA Almir de Op cit 1981 p 44 Em 1932 o DM foi adquirido pelo grupo dos ldquoDiaacuterios

Associadosrdquo do Rio de Janeiro dirigido pelo empresaacuterio Assis Chateaubriand Cf ROSA Rita de Caacutessia

Vianna Op cit 2013 p 92-95

74

E quando um menor desamparado commete um acto delictuoso qualquer

que deveria ser perdoado por ser inconsciente a justiccedila sem entranhas com

assentimento claro da sociedade faz como este malvado juiz argentino

condemna a DOIS ANNOS de prisatildeo uma creanccedila que furtou duas patacas ndash

Joc [Grifos no original]243

O texto levanta a questatildeo da puniccedilatildeo de crianccedilas que eram ldquoorphatildeos [] da

proteccedilatildeo que lhes devem os governosrdquo Tal problemaacutetica eacute bem atual uma vez que

nossa sociedade se vecirc agraves voltas com a discussatildeo da maioridade penal quando ainda

presenciamos um atendimento governamental insuficiente desumano e brutal para com

a infacircncia carente abandonada e em situaccedilatildeo de risco social Ainda hoje parcela

expressiva das crianccedilas e jovens pobres estaacute alijada de direitos sociais baacutesicos e o uacutenico

contato com o Estado ocorre somente em momentos de repressatildeo e puniccedilatildeo Uma

reportagem veiculada pelo programa Fantaacutestico da emissora Rede Globo em 18 de

agosto de 2013 denuncia o espancamento brutal de seis jovens internos da Fundaccedilatildeo

Casa (antiga Febem) na cidade de Satildeo Paulo por dois funcionaacuterios da instituiccedilatildeo Os

jovens apenas de cuecas receberam chutes cotoveladas e tapas244

Essas cenas

demonstram a permanecircncia de praacuteticas arcaicas de atendimento aos jovens das classes

subalternas em instituiccedilotildees que deveriam zelar pela sua integridade fiacutesica e pelo

desenvolvimento humano e intelectual Oportunamente discutirei em um proacuteximo

capiacutetulo a questatildeo da internaccedilatildeo de jovens em institutos de assistecircncia quando

analisarei os processos de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo nos primeiros anos da Repuacuteblica

Ainda com relaccedilatildeo agrave mateacuteria do Diaacuterio Mercantil esta chamou a atenccedilatildeo para o

fato de a infacircncia pobre ser usada por indiviacuteduos para explorarem a caridade da

populaccedilatildeo atraveacutes de pedidos de esmolas e tambeacutem para a praacutetica de delitos bem como

ressaltou a omissatildeo da justiccedila em solucionar essa questatildeo245

O artigo fez uma previsatildeo

bem pessimista sobre o futuro da sociedade e desses cidadatildeos ldquocreados e formados no

meio da corrupccedilatildeo avassaladora dos bordeis e das ruasrdquo sendo estes os uacutenicos locais

aonde encontravam ldquoabrigo e refugiordquo uma vez que os ldquogovernos a quem competia em

primeiro logar resolver o problemardquo cruzavam ldquoos braccedilos criminosamenterdquo transferindo

243

AHCJF ldquoTraccedilosrdquo Diaacuterio Mercantil 06 fev 1912 p 1 244

Fantaacutestico Rede Globo 18 de agosto de 2013 - ldquoImagens mostram funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Casa

espancando menoresrdquo Disponiacutevel em httpg1globocomfantasticonoticia201308imagens-mostram-

funcionarios-da-fundacao-casa-espacando-menoreshtmlhash=2 Acessado em 25-05-2014 245

Para mais informaccedilotildees sobre a exploraccedilatildeo da caridade puacuteblica atraveacutes dos pedidos de esmolas e da

tentativa por parte da Cacircmara de Vereadores de Juiz de Fora de regulamentar essa accedilatildeo atraveacutes da

identificaccedilatildeo dos mendigos aptos a esmolar pelas ruas ver o trabalho de PINTO Jefferson de Almeida

Op cit 2008

75

a responsabilidade para os ldquoestabelecimentos de caridaderdquo246

O governo por meio da

justiccedila soacute assumia a sua responsabilidade frente a essa fraccedilatildeo da sociedade nos

momentos de puniccedilatildeo e repressatildeo

Manter o espaccedilo urbano ldquoordenadordquo ldquosaneadordquo e ldquopoliciadordquo era o objetivo dos

setores dominantes que buscavam imprimir uma imagem de cidade moderna e

civilizada a Juiz de Fora Entretanto a presenccedila de ldquomenoresrdquo como o ldquomulatinhordquo

Thomeacute de 10 anos de idade ldquocreado nas tavernas e casas de jogordquo afigurava-se pelas

ruas da cidade como um problema para essa sociedade uma vez que ele era a expressatildeo

da outra cidade a cidade insalubre dos corticcedilos dos ldquomenoresrdquo abandonados e

desvalidos dos mendigos dos ex-escravos e seus descendentes das prostitutas dos

becircbados dos operaacuterios dos imigrantes pobres que os setores dominantes queriam

esconder

A questatildeo da exploraccedilatildeo de ldquomenoresrdquo colocados para pedir esmolas nas ruas da

cidade por ldquomiseraacuteveis instigadoresrdquo foi objeto de denuacutencia de O Lynce247

de agosto de

1922248

Segundo o perioacutedico estavam circulando pelas ruas do municiacutepio de Juiz de

Fora havia cerca de dois anos duas ou trecircs meninas morenas e ldquomeio opiladasrdquo que

abordavam os transeuntes com cartotildees supostamente para fins religiosos com uns

quadradinhos que eram perfurados com um alfinete devendo a pessoa abordada

contribuir ldquocom um nickelrdquo O artigo intitulado ldquoCom a Poliacuteciardquo ressaltava que a

educaccedilatildeo das meninas ficava prejudicada com essa atividade tornando-as ldquoinsolentesrdquo e

expondo-as ldquoaos ditos chistosos e avaccalhados dos mal educadosrdquo e que essa tarefa

executada por elas se afigurava como uma exploraccedilatildeo pois ldquouma hora eacute para uma

egreja outra para um santo qualquer ou sinatildeo para uma festa religiosardquo A poliacutecia

deveria averiguar se as meninas estavam explorando o puacuteblico a mando dos pais ou por

alguma Congregaccedilatildeo ldquoporque eacute impossiacutevel que os responsaacuteveis por estas meninas natildeo

encontrem um meio de occupal-as num serviccedilo mais honestordquo249

Na anaacutelise que realizou sobre o Imperial Instituto de Meninos Cegos (atual

Instituto Benjamin Constant - Rio de Janeiro) Gizlene Neder ressaltou que um dos

fatores apontado pelo diretor do Instituto em 1858 para a pouca procura por vagas

246

AHCJF ldquoTraccedilosrdquo Diaacuterio Mercantil Juiz de Fora 6 fev 1912 p 1 247 O Lynce surgiu em janeiro de 1912 seu fundador foi o liacuteder espirita Jesus de Oliveira Segundo Almir

de Oliveira inicialmente foi um jornal de formato pequeno que se tornou gradativamente em uma

ldquorevista literaacuteria e noticiosardquo e posteriorme ldquovoltou agrave feiccedilatildeo de jornal mensalrdquo OLIVEIRA Almir Op

cit 1981 p 48 248

SM-BMMM ldquoCom a policiardquo O Lynce 12 ago 1922 p 2 249

Idem

76

naquele estabelecimento residia no fato de as famiacutelias utilizarem as crianccedilas cegas para

esmolarem250

Ao que parece a praacutetica de utilizar crianccedilas para explorar a caridade da

populaccedilatildeo era comum haja vista as colocaccedilotildees da mateacuteria jornaliacutestica transcrita

anteriormente e as observaccedilotildees do diretor do Instituto de Meninos Cegos examinadas

por Neder

Com o desmantelamento do sistema escravista no Brasil no decorrer da segunda

metade do seacuteculo XIX o trabalho passou a ter uma conotaccedilatildeo positiva como atividade

que conferia respeito e dignidade Todavia quanto ao trabalho infanto-juvenil

determinados setores da sociedade faziam ressalvas quanto aos tipos e tarefas que essas

crianccedilas deveriam executar Os trabalhos desenvolvidos nas ruas eram geralmente

considerados improacuteprios para os ldquomenoresrdquo haja vista a imagem que se formou sobre

esse espaccedilo como um lugar perigoso De acordo com Luciano Faria e Cynthia Veiga no

final do seacuteculo XIX a rua passou a ter uma conotaccedilatildeo de lugar perigoso O uso desse

espaccedilo ganhou duas dimensotildees para a populaccedilatildeo pobre e trabalhadora era um local

ldquosocializador de trocas de experiecircncias de lazer de solidariedade e de lutasrdquo e para as

elites era um ldquoespaccedilo de circulaccedilatildeordquo251

Analisando a questatildeo do trabalho infantil na

Argentina no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX Maria C Zapioli corrobora as

palavras de Faria e de Veiga no sentido de que as classes dominantes e a populaccedilatildeo

pobre tinham visotildees diferentes sobre o espaccedilo denominado de rua De acordo com a

autora para os estratos mais baixos da sociedade ldquono todo era trabajo o delito en las

callesrdquo esse tambeacutem era um local para o estabelecimento de ldquosociabilidad com sus

paresrdquo252

Entretanto apesar dos receios que o binocircmio ldquorua-infacircnciardquo causava em vaacuterios

setores da sociedade por conta da relaccedilatildeo que havia sido estabelecida entre rua-

delinquecircncia-vadiagem muitos ldquomenoresrdquo tiravam o seu sustento e de seus familiares

valendo-se de atividades realizadas nesse espaccedilo Inuacutemeros afazeres eram realizados por

essas crianccedilas nas ruas das grandes cidades do Brasil e da Argentina como vendedores

de jornais engraxates verdureiros entre tantas outras atividades Segundo Zapioli os

250

NEDER Gizlene Op cit 2004 p 215-216 251

FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Op cit 1999 p 33 252

ZAPIOLI Mariacutea Carolina ldquoLos liacutemites de la obligatoriedad escolar en Buenos Aires 1884-1915rdquo

Cadernos de Pesquisa Satildeo Paulo v 39 n 136 Janabr 2009 pp 69-91 p 9 Disponiacutevel em

httpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S0100-15742009000100005 Acessado em 28-

12-2013 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoDa rua agrave faacutebricardquo a questatildeo do ldquomenorrdquo no Brasil e na

Argentina nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX In Anais FoMerco 2011 XII Congresso Internacional

FoMerco ndash Foacuterum Universitaacuterio do Mercosul (GT13 ndash Identidades sul-americanas cultura(s) juriacutedica(s) e

direito(s) na Ameacuterica do Sul) Rio de Janeiro UERJ setembro de 2011b

77

ldquomenoresrdquo exerciam as mais diversas atividades nas ruas de Buenos Aires e os que

conseguiram estabelecer-se em uma funccedilatildeo permanente como ldquolustrabotas o

lsquocanillitasrsquordquo gozavam de uma situaccedilatildeo melhor que a das demais crianccedilas pobres253

Conforme salientado anteriormente a rua passou a ter novos significados no

decorrer do seacuteculo XIX De maneira similar as concepccedilotildees sobre a cidade tambeacutem

foram se modificando no decorrer dos oitocentos De acordo com Carl Schorske podem

ser identificadas trecircs concepccedilotildees sobre a cidade entre os seacuteculos XVIII e XIX a cidade

como ldquovirtuderdquo como ldquoviacuteciordquo e ldquopara aleacutem do bem e do malrdquo sendo que esses

diferentes pensamentos coexistiram por certo tempo254

Com o acelerado processo de

industrializaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo vivenciado por algumas naccedilotildees europeias no iniacutecio do

seacuteculo XIX e o consequente agravamento das condiccedilotildees sociais a imagem sobre a

cidade foi adquirindo tons cada vez mais sombrios passando a ser visualizada como um

espaccedilo de viacutecios Segundo o autor ldquoa cidade como siacutembolo ficou presa na rede

psicoloacutegica de esperanccedilas frustradasrdquo Dessa maneira a imagem ldquodeslumbrante da

cidade como virtuderdquo dos pensadores Iluministas contribuiu para que ldquoa imagem da

cidade como viacuteciordquo exercesse uma forte ldquoinfluencia sobre a mente europeiardquo Por volta

da segunda metade do seacuteculo XIX foi surgindo uma nova noccedilatildeo no pensamento

europeu sobre a cidade que a situava ldquopara aleacutem do bem e do malrdquo ou seja a cidade

moderna era concebida ldquocom todas as suas gloacuterias e seus horrores suas belezas e sua

feiurardquo e com suas ldquomultidotildeesrdquo255

A influecircncia dessas concepccedilotildees do pensamento

europeu sobre a ldquocidaderdquo pode ser observada nas mateacuterias dos perioacutedicos do municiacutepio

de Juiz de Fora Ora a cidade eacute descrita como o espaccedilo da virtude do progresso da

induacutestria e da civilizaccedilatildeo ora como da degradaccedilatildeo moral da miseacuteria dos corticcedilos dos

vadios dos ldquomenoresrdquo a perturbarem a ordem urbana

A presenccedila de crianccedilas nas ruas de Juiz de Fora colocando pedras nos trilhos dos

bondes quebrando lacircmpadas e vidraccedilas xingando os transeuntes praticando pequenos

furtosroubos brigando jogando entre outras accedilotildees subvertia a imagem de ordem e

disciplina da cidade difundida pelos oacutergatildeos da imprensa local Junto com o

desenvolvimento urbano e industrial vivenciado pelo municiacutepio na passagem agrave

253

ZAPIOLI Mariacutea Carolina Op it 2009 p 9 Cf FRANCISCO Raquel Pereira Op cit 2011b 254

SCHORSKE Carl E ldquoA ideia de cidade no pensamento europeu de Voltaire a Spenglerrdquo In

_________ Pensando com a Histoacuteria indagaccedilotildees na passagem para o modernismo Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2000 p 53 255 Idem p 61 66-67 Cf SENNETT Richard Carne e pedra o corpo e a cidade na civilizaccedilatildeo

ocidental 2 ed Rio de Janeiro BestBolso 2010 BRESCIANI Maria Stella Martins Londres e Paris no

seacuteculo XIX o espetaacuteculo da pobreza Satildeo Paulo Editora Brasiliense 1982

78

modernidade vieram os problemas sociais inerentes ao processo como a presenccedila de

um grande contingente de crianccedilas pobres abandonadas e oacuterfatildes nas ruas da cidade A

soluccedilatildeo apontada por fraccedilotildees das classes dominantes para o grave problema dos

ldquomenoresrdquo que ldquoinfestavamrdquo esse espaccedilo urbano eram os institutos e o aprendizado de

um ofiacutecio manual Como discuti anteriormente neste capiacutetulo o trabalho numa

conjuntura de constituiccedilatildeo do mercado de trabalho livre dentro de uma ordem

capitalista apresentava-se como a soluccedilatildeo mais viaacutevel para tal problema A faacutebrica a

oficina o comeacutercio o asilo e outras instituiccedilotildees se apresentavam como o locus

privilegiado para disciplinar as crianccedilas desvalidas e abandonadas para moldaacute-las pelo

e para o trabalho

Como foi salientado no decorrer do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX Juiz de Fora

recebeu um afluxo populacional expressivo e uma parcela desse contingente foi

absorvida pelos estabelecimentos industriais e comerciais da cidade Entre os admitidos

estavam muitas crianccedilas e adolescentes A presenccedila do trabalhador infanto-juvenil nas

faacutebricas oficinas e comeacutercio da cidade estatildeo constantemente presentes nas mateacuterias dos

perioacutedicos locais nas mais diversas situaccedilotildees como de acidentes precariedade das

condiccedilotildees de trabalho violecircncia entre outras No relatoacuterio realizado pelo ldquoinspector da

industriardquo Dr Carlos Prates para ser submetido agrave consideraccedilatildeo do Estado em 1906

Juiz de Fora foi descrita como a cidade industrialmente mais importante de Minas

Gerais Na descriccedilatildeo das faacutebricas (que utilizavam maacutequinas movidas a vapor e a

eletricidade) visitadas o inspetor registrou o nuacutemero total de operaacuterios de cada

estabelecimento ressaltando que este era composto por homens mulheres e crianccedilas256

A sociedade possuiacutea (e ainda possui) uma opiniatildeo ambivalente a respeito da

inserccedilatildeo de ldquomenoresrdquo no mercado de trabalho Para diversos segmentos das classes

dominantes essa era a soluccedilatildeo para o grave problema social representado pelas crianccedilas

pobres abandonadas e oacuterfatildes Entretanto essa opiniatildeo natildeo era compartilhada por liacutederes

operaacuterios e por parcela dos segmentos vulneraacuteveis da sociedade Basicamente as

criacuteticas recaiacuteam sobre o emprego de ldquomenoresrdquo em atividades tipicamente urbanas

induacutestrias faacutebricas oficinas etc A exploraccedilatildeo da matildeo de obra de meninas como babaacutes

empregadas domeacutesticas nas casas das senhoras dos grupos dominantes natildeo foi uma

questatildeo de vulto nos debates Provavelmente muitas meninas eram provenientes das

256

SM-BMMM ldquoMuniciacutepio de Juiz de Forardquo Jornal do Commercio 3 jan 1906 p 1

79

fazendas de seus patrotildees e passaram a vida inteira a servi-los recebendo parcos

ordenados

Os setores da sociedade que defendiam o trabalho infanto-juvenil advogavam

que este era um dos caminhos para manter a ldquopaz socialrdquo uma vez que era necessaacuterio

tornaacute-los cidadatildeos uacuteteis ao paiacutes Junto ao discurso do trabalho como uma estrateacutegia

regeneradora dos ldquomenoresrdquo infratores e de preservaccedilatildeo dos desvalidos estava a

preocupaccedilatildeo com o fornecimento de matildeo de obra para as induacutestrias que estavam se

formando

Segundo Esmeralda de Moura a utilizaccedilatildeo indiscriminada da matildeo de obra

infanto-juvenil no iniacutecio do periacuteodo republicano retrata o ldquobaixo padratildeo de vida da

famiacutelia operaacuteria pautado em salaacuterios insignificantes e em iacutendices de custo de vida

extremamente elevadosrdquo257

A precariedade da vida dos operaacuterios contribuiu para a

inserccedilatildeo de crianccedilas bem jovens no ldquomundo do trabalhordquo Elas eram empregadas nos

mais variados ramos de atividades Aleacutem dos baixos salaacuterios das longas jornadas os

ldquomenoresrdquo estavam mais expostos agraves doenccedilas aos acidentes e aos castigos fiacutesicos258

O trabalho infantil no Brasil na passagem agrave modernidade foi objeto de leis para

a sua regulamentaccedilatildeo A legislaccedilatildeo brasileira por meio do Decreto N 1313 de 17 de

janeiro de 1891 buscou regulamentar ldquoo trabalho dos menores empregados nas faacutebricas

da Capital Federalrdquo poreacutem ele jamais surtiu o efeito esperado259

A literatura sobre a

utilizaccedilatildeo da matildeo de obra infantil destaca que essa natildeo foi uma questatildeo que tenha

gerado muitas querelas entre os parlamentares brasileiros uma vez que esses ldquomenoresrdquo

foram amplamente empregados nas faacutebricas oficinas e nos campos Contribuiacuteram para

a expressiva exploraccedilatildeo desses pequenos trabalhadores a ineficiecircncia da fiscalizaccedilatildeo e

de accedilotildees governamentais para conter os abusos e excessos260

Os estados brasileiros tambeacutem legislaram sobre a carga horaacuteria que seria exigida

desses ldquomenoresrdquo com qual idade poderiam comeccedilar a desempenhar atividades e sobre

o trabalho noturno As leis e os decretos estaduais tornaram-se letra morta pois a

257

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro ldquoCrianccedilas operaacuterias na receacutem-industrializada Satildeo Paulordquo In

DEL PRIORE Mary (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil 5 ed Satildeo Paulo Contexto 2006 p 262 258

Cf BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p 99-100 MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro Op cit

2006 p 266 -268 270 Cf PERROT Michelle ldquoA juventude operaacuteria da oficina agrave faacutebricardquo In LEVI

Giovanni SCHMITT Jean-Claude (org) Histoacuteria dos Jovens a eacutepoca contemporacircnea Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1996 p 103-105 259

RIZZINI Irene RIZZINI Irma HOLANDA Fernanda Rosa Borges de ldquoA infacircncia e o mundo do

trabalho consideraccedilotildees conceituaisrdquo In __________ A crianccedila e o adolescente no mundo do trabalho

Rio de Janeiro USU Ed Universitaacuteria Amais Livraria e Editora 1996 p 31 260

Idem p 32-33

80

fiscalizaccedilatildeo era insuficiente e as diversas brechas existentes no texto desses

documentos permitiam que a matildeo de obra dessas crianccedilas continuasse a ser explorada

Esmeralda Moura assinala que a exploraccedilatildeo mais draacutestica sobre a forccedila de trabalho

infantil recaiu sobre a categoria denominada de ldquoaprendizesrdquo O empresariado paulista

com o discurso de que estava dando uma oportunidade para que esses ldquomenoresrdquo

aprendessem um oficio utilizou-se do trabalho de meninos e meninas sem nenhuma

despesa salarial com os mesmos261

O trabalho infantil era vantajoso para os empregadores uma vez que os seus

salaacuterios eram baixos e a sua forccedila de trabalho era amplamente explorada A utilizaccedilatildeo

indiscriminada dessa matildeo de obra fez com que muitos meacutedicos legisladores

professores e poliacuteticos passassem a criticar a sua utilizaccedilatildeo e a exigirem uma

regulamentaccedilatildeo para essa atividade No Brasil ao longo das primeiras deacutecadas do

seacuteculo XX foram surgindo grupos que criticavam a utilizaccedilatildeo do trabalho de crianccedilas

A imprensa em especial a operaacuteria abriu suas paacuteginas para denunciar os maus tratos e a

exploraccedilatildeo a que esses ldquomenoresrdquo estavam sujeitos dentro das faacutebricas das oficinas etc

Chegaram mesmo a comparar a vida e as condiccedilotildees de trabalho dos pequenos operaacuterios

com a dos ex-escravos A imprensa operaacuteria tambeacutem reivindicava que esses ldquomenoresrdquo

tivessem condiccedilotildees de frequentar a escola Outros segmentos sociais comeccedilaram a

denunciar os males fiacutesicos causados pelo emprego de crianccedilas em atividades

extenuantes e improacuteprias para sua idade262

A imprensa foi uma das ldquotribunasrdquo utilizadas pelos ldquohomens de letrasrdquo e pelos

liacutederes operaacuterios para defenderem ou criticarem a utilizaccedilatildeo da matildeo de obra feminina e

infantil nas induacutestrias263

Nos perioacutedicos consultados deparei-me com notiacutecias sobre a

importacircncia da educaccedilatildeo para os operaacuterios sobre os malefiacutecios que o trabalho poderia

causar em muitos jovens entre outras questotildees Compulsando o jornal O Pharol de

261

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro Op cit 2006 p 271-273 Cf PERROT Michelle Op cit

1996 p 111 119 262

Idem p 279-281 Cf RUSCHE Georg KIRCHHEIMER Otto Puniccedilatildeo e estrutura social 2 ed

Rio de Janeiro Editora Revan 2004 p 56-57 263 Laura Antunes Maciel ressaltou que a imprensa entre o seacuteculo XIX e princiacutepios do XX se constituiacuteu

em um espaccedilo privilegiado de ldquoluta socialrdquo Os diversos setores da sociedade provavelmente tinham a

percepccedilatildeo de que suas ldquolutasrdquo tambeacutem poderiam ser travadas ldquono terreno da palavra impressardquo MACIEL

Laura Antunes ldquoO popular na imprensa linguagens e memoacuteriasrdquo In Anais do XIX Encontro Regional

de Histoacuteria Poder violecircncia e exclusatildeo ANPUHSP ndash USP Satildeo Paulo pp 1-8 set 2008 p 1 e 5-6

Disponiacutevel em wwwanpuhsporgbrspdownloadsCD XIXPDFAutores e ArtigosLaura Antunes

Macielpdf Acessado em 10-07-2015

81

1911 encontrei na Folha de Mariano264

que estava inclusa no dito perioacutedico uma

reportagem sobre a luta dos caixeiros de Juiz de Fora pela reduccedilatildeo da jornada de

trabalho Aproveitando o ensejo a mateacuteria informava sobre as condiccedilotildees de trabalho das

mulheres e crianccedilas nas faacutebricas tecircxteis da regiatildeo de Mariano Procoacutepio como pode ser

observado na transcriccedilatildeo seguinte

Todas as classes proletarias tratam de diminuir as horas de trabalho Aqui

mesmo a classe caixeira reclama aliaacutes muito justamente o fechamento das

portas algumas horas mais cedo

Haacute entretanto outros operarios mais sobrecarregados de trabalho e mais mal

remunerados Entre elles os das fabricas de tecidos principalmente mulheres

e crianccedilas

E assim que pobres operarias da fabrica de tecidos de Mariano a maioria

composta de menores trabalham das 5 horas da manhatilde aacutes 5 horas da tarde

com os pequenos intervallos das refeiccedilotildees e ainda fazem seratildeo ate as 11

horas da noite segundo nos informam

A atmosfera que se respira nas fabricas de tecidos jaacute contribue para alterar a

saude dos operarios O mal augmenta consideravelmente com o accrescimo

de horas de trabalho sobretudo no veratildeo e principalmente quando esses

operarios satildeo moccedilas e crianccedilas

Parece-nos que essa classe proletaria tambeacutem merece a attenccedilatildeo de quem

deve cuidar da saude e da hygiene publica que estatildeo um pouco acima do

interesse industrial265

Na localidade de Mariano Procoacutepio citada na reportagem ora transcrita

localizava-se uma das mais importantes faacutebricas tecircxtil de Juiz de Fora a Companhia de

Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira fundada na deacutecada de 1880 e popularmente

conhecida pelo nome de ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo A Companhia era fruto de um

consoacutercio que tinha como principais promotores e acionistas os ingleses Andrew John e

Peter Steele Willian Moreth e Henry Whittaker ndash ldquocomerciantes e industriais

estabelecidos na Corte e na vizinha Petroacutepolisrdquo266

A reportagem destaca as peacutessimas condiccedilotildees de trabalho e as longas jornadas a

que estavam expostos natildeo apenas as crianccedilas e aproveita para chamar a atenccedilatildeo das

autoridades para tal situaccedilatildeo que foi colocada como uma questatildeo de sauacutede e higiene

puacuteblica267

Dentro dessas ditas condiccedilotildees precaacuterias de trabalho a tuberculose aparecia

como uma das moleacutestias que mais inspiravam cuidados por ceifar a forccedila de trabalho de

muitos operaacuterios Todavia as medidas para combater os focos de insalubridade e de

264

Mariano Procoacutepio eacute um bairro de Juiz de Fora Nessa regiatildeo estava localizada a ldquoFaacutebrica dos

Inglesesrdquo A maior parte do preacutedio da antiga faacutebrica foi demolido e na construccedilatildeo que restou funciona

uma empresa de alimentos 265

AHUFJF O Pharol 2 fev 1911 p 2 ldquoFolha de Marianordquo 266

Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit 2010 p 124 267 FRANCISCO Raquel Pereira Op cit 2012b p 116

82

propagaccedilatildeo da tuberculose e outras doenccedilas geralmente paravam nas portas das

faacutebricas e nas porteiras das fazendas onde as autoridades natildeo conseguiam intervir para

melhorar as condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios O Delegado de Higiene de Juiz de

Fora Dr Joseacute de Mendonccedila Mattos Moreira em seu relatoacuterio de janeiro de 1910

atribuiacutea as dificuldades encontradas pelas autoridades no que diz respeito a um controle

maior sobre as condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios agrave ausecircncia de uma legislaccedilatildeo sobre

as condiccedilotildees de trabalho particularmente no que se refere agrave higiene industrial268

A presenccedila de crianccedilas nas induacutestrias de Juiz de Fora foi observada tambeacutem nos

processos de acidentes no trabalho onde as precaacuterias condiccedilotildees de trabalho satildeo

observadas nos mais diversos tipos de acidentes em que os jovens operaacuterios se

envolveram levando alguns a oacutebito

O problema da carga horaacuteria dos pequenos operaacuterios foi uma questatildeo que

suscitou debates entre vaacuterios grupos da sociedade brasileira nas deacutecadas iniciais do

seacuteculo XX sendo tambeacutem uma questatildeo debatida pela Cacircmara de Vereadores e pela

imprensa de Juiz de Fora

Em julho de 1912 o vereador Dr Francisco Augusto Pinto de Moura269

apresentou um projeto a Cacircmara Municipal de Juiz de Fora em que as crianccedilas operaacuterias

de ateacute 14 anos natildeo poderiam exercer suas atividades depois das 17 horas270

Essa

proposta segundo um artigo do Jornal do Commercio estava sendo muito bem recebida

268

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 133-134 269

Francisco Augusto Pinto de Moura formado em Direito pela Faculdade de Direito de Satildeo Paulo foi

vereador da Cacircmara Municipal de Juiz de Fora de 1912 a 1922 Atuou no magisteacuterio sendo professor da

Academia de Comeacutercio de Juiz de Fora e da Faculdade de Direito da qual foi um dos fundadores Cf

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 23 (Quadro II) 270

AHCJF ldquoCamara Municipalrdquo Diaacuterio Mercantil 24 jul 1912 p 2 O texto do projeto sobre a

regulamentaccedilatildeo do trabalho de crianccedilas nas faacutebricas de Juiz de Fora saiu publicado no Jornal Diaacuterio

Mercantil no dia 24-07-1912 AHCJF ldquoCamara Municipalrdquo Diaacuterio Mercantil 26 out 1912 p 2 Em 18

de outubro de 1912 pela Resoluccedilatildeo da Cacircmara Municipal n 669 foi aprovado o projeto de lei

ldquoO presidente da Camara Municipal de Juiz de Foacutera

Faccedilo saber a todos os habitantes do municipio que a Camara Municipal votou e eu promulguei a

resoluccedilatildeo seguinte

Artigo 1o - Eacute vedado aacutes creanccedilas de ambos os sexos menores de 14 anos de edade o serviccedilo nas fabricas

e officinas da cidade e seu municiacutepio da 5 horas da tarde em deante sob pena de incorrerem os

proprietaacuterios das fabricas ou officinas na multa de cem mil reis e no dobro em caso de reincidecircncia

Art 2o - Esta pena seraacute imposta pelo director de hygiene municipal quando no desempenho das funcccedilotildees

que lhe satildeo conferidas pelo art 3o sect 6 da Resol n

o 3 de 14 de maio de 1892 ou em qualquer occasiatildeo em

que verifique a infracccedilatildeo do artigo antecedente sendo a cobranccedila da multa effectuada pela forma

determinada em lei

Art 3o - O conhecimento ou determinaccedilatildeo da edade das creanccedilas em caso de duvida ficaraacute a criteacuterio do

director de hygiene salvo prova irrecusaacutevel em contrario

Art 4o - Revogam-se as disposiccedilotildees em contrariordquo

Mando portanto a todas as autoridades a quem o conhecimento e execuccedilatildeo pertencerem da referida

resoluccedilatildeo que a cumpram e faccedilam cumprir tatildeo inteiramente como nella se contecircm

Dada no paccedilo da Camara Municipal da cidade de Juiz de Foacutera aos dezoito dias []

Oscar Vidal Barbosa Lage presidente da Camara e agente executivo municipal

83

pelos ldquoorgams da imprensardquo271

De acordo com a notiacutecia as crianccedilas eram ldquoas flores de

uma geraccedilatildeo futurardquo e por isso era por elas que se deveria ldquoiniciar a campanha em

nome das generosas ideias como essa que a todos nos move em prol das classes

operariasrdquo A mateacuteria do jornal continua afirmando que era necessaacuterio cuidar da

ldquoeducaccedilatildeordquo do ldquopreparo espiritualrdquo da ldquohygienerdquo desses pequenos para que dessa

maneira pudesse ldquoassegurar em cada crianccedila de hoje um homem uacutetil agrave sociedade de

amanhatilderdquo e o pai vendo ldquoesse carinho pelo filhordquo ficaria mais conformado com as

dificuldades da vida e mesmo tendo que continuar a trabalhar 10 horas por dia

encontraria consolo no fato de saber que seus filhos estavam sendo protegidos por leis

que velavam ldquopela sua educaccedilatildeo e aprendizagem methodicasrdquo A reportagem destacou a

importacircncia de projetos para a proteccedilatildeo dos ldquooperariosinhosrdquo e dentro desse contexto

fez referecircncia agrave Lei do Ventre Livre (1871) como uma importante medida para a

extinccedilatildeo do trabalho escravo no paiacutes que comeccedilou pelo ventre das escravas ou seja

pelas crianccedilas As medidas em prol do operariado dentro dessa linha de raciociacutenio

deveriam iniciar-se pelas ldquoflores do futurordquo272

Esse projeto regulamentando o horaacuterio de trabalho das crianccedilas nas faacutebricas de

Juiz de Fora foi apresentado dentro de um contexto de tensatildeo entre o operariado e os

patrotildees culminando na deflagraccedilatildeo da greve em agosto de 1912 quando operaacuterios de

diversas aacutereas paralisaram suas atividades273

As crianccedilas operaacuterias foram suprimidas de seu direito agrave escolarizaccedilatildeo por causa

das longas e extenuantes horas de trabalho Essa problemaacutetica tambeacutem foi debatida pela

notiacutecia que assinala que a Cacircmara deveria criar escolas noturnas para atender esse

segmento da sociedade sendo caracterizado como dever do poder puacuteblico ldquoauxiliar o

operaacuterio na educaccedilatildeo de seus filhosrdquo274

Essa notiacutecia sobre a regulamentaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho dos ldquomenoresrdquo de

Juiz de Fora abre um leque de questotildees que natildeo satildeo visiacuteveis inicialmente sendo pois

necessaacuterio esquadrinhar ldquoos silecircncios e os aspectos ocultos nas entrelinhasrdquo do discurso

jornaliacutestico275

271

SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1 272

Idem 273

Em agosto de 1912 ocorreu uma greve em Juiz de Fora sendo uma das propostas a reduccedilatildeo da jornada

de trabalho para 8 horas Esse objetivo natildeo foi atingido pelos operaacuterios da ldquoManchesterrdquo em 1912 Para

mais informaccedilotildees sobre a greve de 1912 ver ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe

operaacuteria em Juiz de Fora uma histoacuteria de lutas (1912 ndash 1924) Juiz de Fora EDUFJF 1987 274

SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1 275

MACHADO Humberto F ldquoA atuaccedilatildeo da Imprensa do Rio de Janeiro no Impeacuterio do Brasilrdquo In

Revista do IHGB Rio de janeiro n 448 julhosetembro de 2010 p 33

84

O texto destaca a relevacircncia do projeto a necessidade de se proteger e educar os

pequenos operaacuterios Mas essas medidas tatildeo saudadas pela imprensa do municiacutepio

mineiro demonstram que os ditos anseios e zelos para com a infacircncia operaacuteria traziam

em seu bojo a preocupaccedilatildeo com o trabalhador em que essas crianccedilas iriam se

transformar futuramente O que a leitura dessa notiacutecia sugere eacute que as leis projetos

foram concebidas para abrandar as reivindicaccedilotildees das lutas operaacuterias Observando com

ldquolentes de aumentordquo as partes ldquoopacasrdquo do texto jornaliacutestico percebe-se que os projetos

leis seriam na verdade uma estrateacutegia dos setores dominantes da sociedade para amainar

a insatisfaccedilatildeo do proletariado Os pais ldquofelizesrdquo pelas leis que protegiam seus filhos

aceitariam ldquosacrifiacutecios indiziacuteveisrdquo e encontrariam ldquomais consolo nas agruras da vida

inevitaacuteveis de prompto e desculparaacute muita iniquidade que por enquanto natildeo nos eacute dado

impedirrdquo276

Presumo que os projetos com vistas a proteger e amparar os

ldquooperariosinhosrdquo traziam em seu bojo a expectativa de refrear o desejo de luta por

melhores condiccedilotildees de trabalho de seus genitores

Junto com a discussatildeo sobre o trabalho de crianccedilas nas induacutestrias a questatildeo da

sua escolarizaccedilatildeo tambeacutem se apresentou A educaccedilatildeo para as crianccedilas desvalidas era

visualizada como uma estrateacutegia para educar e preparar o trabalhador do futuro O

ensino destinado a elas era o baacutesico acompanhado do aprendizado de um oficio ou seja

visava tatildeo somente disciplinar e incutir valores morais nos trabalhadores do amanhatilde e

natildeo promover a sua elevaccedilatildeo social atraveacutes de um ensino de qualidade

No Diaacuterio Mercantil de quatro de agosto de 1912 foram publicados artigos

elogiando o projeto de lei do Dr Pinto de Moura Em uma das mateacuterias foi destacada a

reportagem do ldquoillustre e brilhante chronista do Jornal do Commercio localrdquo da ldquosecccedilatildeo

lsquoTirasrsquordquo que havia chamado a atenccedilatildeo sobre a necessidade de criaccedilatildeo de escolas

noturnas para atender os jovens operaacuterios A respeito do ensino para os ldquomenoresrdquo o

texto do Diaacuterio Mercantil ressaltou que essa era uma necessidade e chamou a atenccedilatildeo

para o fato de que o ensino primaacuterio era obrigatoacuterio ldquoem face do dec Estadoal n 3911

de 1911 a nenhum pae ou tutor eacute licito deixar de mandar seus filhos agrave escolardquo e ainda

assinalou que na cidade existia uma ldquoescola nocturna na Avenida D Rita Halfeld da

conferencia de S Vicente de Paulordquo que era ldquodirigidardquo pelo professor Carlos Machado

Mas que natildeo havia procura por parte das ldquocreanccedilas filhas das socorridas dessa Avenida

porque aacute noite estatildeo occupadas nas fabricasrdquo Assim era imprescindiacutevel que de ldquopar

276

SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1

85

com a lei municipalrdquo sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil a lei estadual do

ensino fosse respeitada277

Em outra mateacuteria do mesmo jornal e data assinada por Joatildeo Vargas discutiu-se

a importacircncia do projeto bem como a problemaacutetica em que estava envolvida a questatildeo

do trabalho infanto-juvenil no periacuteodo Segundo Joatildeo Vargas o projeto apresentado agrave

Cacircmara pelo vereador Pinto de Moura sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho noturno de

crianccedilas era ldquocompleto e perfeitordquo e atendia as necessidades do municiacutepio e colocava

em ldquoharmonia interesses permanentemente em jogordquo Dessa maneira natildeo cabia

ldquoampliaccedilotildees que os sentimentos excessivamente generosos de alguns distinctos

confrades e as suas convicccedilotildees philosophicas tem sugeridordquo278

Em sua explanaccedilatildeo

ainda ressaltou que natildeo era justo que se limitasse a

[] analyse a um aspecto uacutenico da questatildeo que se procura resolver Natildeo basta

examinal-a exclusivamente do lado moral do ponto de vista de direitos que

se possam ferir eacute imprescindiacutevel o estudo sob o aspecto da economia publica

e privada279

De acordo com Joatildeo Vargas a preocupaccedilatildeo que perpassava o projeto era a

ldquoelevaccedilatildeo do niacutevel intellectual moral e physico do operaacuterio do futurordquo e tal objetivo

seria ldquorelativamente atingidordquo O projeto tinha o meacuterito de natildeo tirar o

[] menor do trabalho privando-o de collaborar com o seu auxilio

muitiacutessimas vezes indispensavel na mantenccedila dos pais invalidos para

abandonal-o aacute rua aacutes solicitaccedilotildees da vadiagem e viacutecios daacute-lhe apenas

descanccedilo preciso para que o seu desenvolvimento physico moral e

intellectual natildeo seja retardado ou annullado na sua marcha pela ausecircncia de

repouso frequecircncia escolar e recreios280

Ainda para embasar a sua argumentaccedilatildeo de que o projeto do vereador Pinto de

Moura estava ldquocompleto e perfeitordquo o cronista do Diaacuterio Mercantil passou a discorrer

sobre os paiacuteses europeus (Inglaterra Franccedila Suiacuteccedila e Aacuteustria) que haviam decretado leis

relativas ao trabalhador infanto-juvenil Assim ressaltou que as ldquolegislaccedilotildees operariasrdquo

desses paiacuteses estava ldquoproduzindo efeitos desastrososrdquo De acordo com Joatildeo Vargas o

277

AHCJ ldquoSemanalrdquo Diaacuterio Mercantil 04 ago 1912 p 1 No mesmo perioacutedico e data saiu uma nota em

que a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora declarava que estava de ldquopleno accordordquo com o

projeto do vereador Dr Pinto de Moura sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho noturno de crianccedilas 278

AHCJ ldquolsquoFilmsrsquo Cariocasrdquo Diaacuterio Mercantil 04 ago 1912 p 1 279

Idem p 1 280

Ibidem

86

intelectual francecircs Gustave Le Bon281

havia constatado em seus estudos que a ldquolei

franceza de 1900rdquo referente ao trabalhador ldquomenorrdquo teve como resultado a

ldquodesappariccedilatildeo da aprendizagem e o aumento da criminalidade infantilrdquo Entretanto o

projeto apresentado agrave Cacircmara de Juiz de Fora natildeo expunha a cidade a tal risco pois o

Dr Pinto de Moura natildeo era ldquoum metaphysicordquo282

As duas reportagens do Diaacuterio Mercantil comentadas anteriormente ressaltam

a importacircncia do projeto de lei para a cidade e para as crianccedilas operaacuterias no que diz

respeito a sua escolarizaccedilatildeo Todavia no artigo assinado por Joatildeo Vargas observa-se

uma provaacutevel preocupaccedilatildeo com reivindicaccedilotildees ou propostas ditas mais radicais com

relaccedilatildeo agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil no municiacutepio Conjecturo que um dos

receios estivesse relacionado agraves propostas de se estabelecer um limite de idade para o

ldquomenorrdquo ser admitido nos estabelecimentos industriais Provavelmente tal receio era

compartilhado por vaacuterios segmentos das classes dominantes locais O projeto do

vereador Pinto de Moura versava sobre o horaacuterio de trabalho das crianccedilas nos

estabelecimentos fabris natildeo tocando na questatildeo idadeadmissatildeo e esse detalhe foi

elogiado pelo cronista pelo fato de natildeo retirar a crianccedila do trabalho O projeto de lei

basicamente objetivava propiciar meios para as crianccedilas operaacuterias terem acesso agrave

escola No texto de J Vargas observa-se a presenccedila do discurso dominante do periacuteodo

em que o trabalho era concebido como um antiacutedoto para a vadiagem e a criminalidade

infantil bem como uma defesa dos interesses das classes detentoras dos meios de

produccedilatildeo

Na anaacutelise dos processos judiciais observei a partir dos ldquoautos de perguntasrdquo dos

documentos que a grande maioria das crianccedilas envolvidas natildeo havia recebido a

instruccedilatildeo elementar Nos ldquoautosrdquo os ldquomenoresrdquo geralmente declaravam que ldquonatildeo sabia

ler e nem escreverrdquo ou que ldquosabia assinar o nomerdquo Apesar da constante exaltaccedilatildeo da

educaccedilatildeo nos perioacutedicos do final do seacuteculo XIX e princiacutepios do XX como uma vereda

para o paiacutes atingir o tatildeo decantado progresso natildeo houve realmente uma poliacutetica voltada

281

Charles-Marie Gustave Le Bon (1841-1931) intelectual francecircs que atuou nos campos da psicologia

social e da sociologia Cf CONSOLIM Maacutercia Cristina Raccedila e histoacuteria na obra de Gustave Le Bon In

Anais do XIX Encontro regional de Histoacuteria Poder Violecircncia e Exclusatildeo ANPUHSP-USP Satildeo Paulo

08 a 12 de setembro de 2008 Disponiacutevel em

httpwwwanpuhsporgbrspdownloadsCD20XIXPDFAutores20e20ArtigosMarcia20Cristin

a20Consolimpdf Acessado em 10-05-2015 282

AHCJ ldquolsquoFilmsrsquo Cariocasrdquo Diaacuterio Mercantil 04 ago 1912 p 1 Segundo informaccedilotildees da reportagem

a legislaccedilatildeo social de alguns paiacuteses europeus estabeleceu os limites de idades em que os ldquomenoresrdquo

poderiam ser admitidos nas faacutebricas e oficinas sendo na Inglaterra a partir dos 12 anos na Franccedila dos 13

anos e na Suiacuteccedila e Aacuteustria dos 14 anos de idade Idem

87

para a preparaccedilatildeo dos jovens desvalidos O que as fontes compulsadas sugerem eacute que a

preocupaccedilatildeo das classes dominantes (poliacutetico-econocircmica) era com a constituiccedilatildeo de

trabalhadores ordeiros e disciplinados para compor a matildeo de obra da nascente sociedade

industrial brasileira

A ideologia do trabalho como um ldquoremeacutediordquo para a vadiagem e a ociosidade e

como um caminho para se alcanccedilar a prosperidade ultrapassou a barreira do discurso

das classes dominantes Esse pensamento constantemente presente nas paacuteginas dos

perioacutedicos nas falas dos policiais das autoridades poliacuteticas dos juristas nos sermotildees

dos padres pastores foi criando raiacutezes no seio das camadas empobrecidas da sociedade

tornando-se o trabalho um santo de devoccedilatildeo283

de expressiva parcela da populaccedilatildeo

pobre sendo ele visualizado como uma atividade que conferia dignidade bens materiais

e respeito Ditados como lsquosou pobre mas sou trabalhadorrsquo lsquoescola de pobre eacute a faacutebricarsquo

lsquoestudo natildeo enche barrigarsquo presentes ainda hoje nas falas das pessoas mais humildes

demonstram como que no processo de construccedilatildeo da eacutetica do trabalho a questatildeo da

formaccedilatildeo intelectual das crianccedilas das camadas empobrecidas ficou em um plano

secundaacuterio O importante era a preparaccedilatildeo desses pequenos para o mercado de trabalho

competitivo e assalariado que entatildeo estava se constituindo Os setores desfavorecidos da

sociedade sem perspectivas de mudanccedilas de suas condiccedilotildees de vida visualizavam o

trabalho como o uacutenico mecanismo de transformaccedilatildeo e ou de soluccedilatildeo de seus problemas

imediatos alimentaccedilatildeo e moradia Eles natildeo conseguiram ter a dimensatildeo ou natildeo tiveram

condiccedilotildees materiais de ver as possibilidades que a educaccedilatildeo poderia trazer para seus

rebentos e nem o Estado e os setores dominantes se comprometeram efetivamente

com o ensino das crianccedilas pobres

Dentro desse contexto os Grupos Escolares se destacaram como espaccedilos de

formaccedilatildeo das classes trabalhadoras Segundo Maraliz Christo eles tinham uma

[] funccedilatildeo social bem definida fazer bons cidadatildeos e acima de tudo bons

trabalhadores Cabia ao ensino elementar uma missatildeo moralizadora e

civilizatoacuteria onde o saber apesar do discurso liberal natildeo era visto como um

direito mas como um mecanismo disciplinar para formar o tipo de cidadatildeo

prestaacutevel ditado pelas classes dominantes o trabalhador submisso284

283

Estou empregando essa metaacutefora religiosa para me referir agrave importacircncia que parcela expressiva da

populaccedilatildeo pobre dava (daacute) ao trabalho como um meio de lhe conferir dignidade e respeito perante a

sociedade 284

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 116

88

A reforma do ensino em Minas Gerais (1906) durante o governo de Joatildeo

Pinheiro resultou na criaccedilatildeo dos Grupos Escolares tendo Juiz de Fora sediado o

primeiro estabelecimento desse gecircnero que comeccedilou a funcionar em fevereiro de 1907

com a inauguraccedilatildeo do Grupo Escolar ldquoDelfim Moreirardquo O curriacuteculo desses grupos

escolares tinha como principal vieacutes o ldquoensino da submissatildeordquo285

Para Maraliz Christo a

estrutura de ensino montada para esses grupos visava a ldquodomesticaccedilatildeordquo natildeo apenas das

pessoas que estavam inseridas como da populaccedilatildeo excluiacuteda de seus muros286

O inspetor escolar da Cacircmara de Juiz de Fora Heitor Guimaratildees287

em um

artigo publicado no jornal Correio de Minas288

quando da inauguraccedilatildeo do Grupo

Escolar ldquoDelfim Moreirardquo intitulado ldquoPelos Pobresrdquo ressaltou que pensava que os

ldquogrupos escolares como as escolas primarias isoladasrdquo se destinavam ao atendimento

das crianccedilas pobres entretanto consideradas as exigecircncias com calccedilados uniformes e

livros muitas natildeo teriam condiccedilotildees de permanecer e dessa forma o ldquoEstadordquo acabaria

ldquoministrando instrucccedilatildeo gratuita aos favorecidos da sorte apenasrdquo Para o inspetor

deveria ser exigido apenas asseio dos alunos pois isso fazia parte da educaccedilatildeo Outra

criacutetica lanccedilada por Heitor Guimaratildees aos grupos escolares se refere ao vestuaacuterio que as

professoras ldquoforam convidadas a apresentar-se sempre de roupa branca de chapeacuteo e

luvas []rdquo [grifos no original] Para ele a ldquoinstrucccedilatildeo publica nada lucra com esse luxo

inuacutetil[]rdquo289

De fato a educaccedilatildeo puacuteblica para os pobres de nada lucrou com o ldquoluxo

inuacutetilrdquo das normas do grupo escolar sendo que a evasatildeo foi grande290

285

Idem p 118-119 Segundo Maraliz Christo no curriacuteculo dos grupos escolares constavam ldquoevoluccedilotildees

militares a ginaacutestica os hinos escolares a disciplina o estudo seriado o aprendizado de lsquocoisas

concretasrsquo a ecircnfase agrave praacutetica o culto da autoridade do trabalho e da higienerdquo Ibidem p 119 286

Ibidem p 119 Cf FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis

Vozes 2007 p 174 287

Heitor Guimaratildees foi um dos fundadores da Academia Mineira de Letras (AML) em Juiz de Fora (25

de dezembro de 1909) e o fundador da Associaccedilatildeo de Imprensa de Minas aleacutem de ser membro de vaacuterias

outras instituiccedilotildees Na aacuterea do magisteacuterio atuou como professor em diversos coleacutegios (Juiz de Fora e Rio

de Janeiro) e foi Inspetor Escolar Municipal de Juiz de Fora No jornalismo fundou o Democraacutetico

(1884) e em 1893 a revista literaacuteria Folha Azul no Rio de Janeiro Guimaratildees atuou em vaacuterios oacutergatildeos da

imprensa Com relaccedilatildeo a sua produccedilatildeo literaacuteria escreveu poesias contos crocircnicas e livros didaacuteticos Cf

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 21-22 (Quadro I ndash continuaccedilatildeo) 288

O Correio de Minas foi fundado por Estevatildeo de Oliveira em maio de 1894 Segundo o artigo do

Diaacuterio Mercantil intitulado ldquoHistoacuteria da imprensa de Juiz de Forardquo o perioacutedico era um ldquoorgatildeo

republicano e democraacutetico consagrado aos interesses fundamentais do Estado de Minasrdquo e que o seu

proprietaacuterio e redator Estevatildeo de Oliveira ldquolhe deu cunho poliacutetico acentuadamente nacionalistardquo

AHCJF ldquoHistoacuteria da imprensa de Juiz de Forardquo Diaacuterio Mercantil 27 abr 1946 Ao longo de sua

existecircncia o jornal perteceu a diversos proprietaacuterios que de lhe deu diferentes orientaccedilotildees poliacuteticas Em

1929 foi colocado a ldquoserviccedilo da Alinaccedila Liberalrdquo sendo o seu proprietaacuterio o industrial e poliacutetico

Severino Costa Circulou ateacute 1949 Cf OLIVEIRA Almir de Op cit 1981 p 27-28 289

SM-BMMM ldquoPelos Pobresrdquo Correio de Minas Juiz de Fora 5 fev 1907 p 1 290

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 120

89

Por causa em grande parte ao ldquoluxo inuacutetilrdquo dos grupos escolares uma parcela

expressiva das crianccedilas pobres ficou alijada dos bancos escolares Aleacutem das exigecircncias

como uniformes sapatos e livros que representavam uma barreira para os filhos dos

operaacuterios frequentarem a escola outro fator que os afastavam do ambiente escolar era a

necessidade de ajudar a famiacutelia com seu trabalho constituindo muitos jovens operaacuterios

em ldquoarrimordquo ou ldquoprovedorrdquo de famiacutelia Nos processos de acidentes no trabalho que

pesquisei e que adiante seratildeo analisados muitos deles declararam-se como provedores

da famiacutelia principalmente naquelas constituiacutedas pela matildee (viuacutevas ou natildeo) e filhos

Nas faacutebricas de Juiz de Fora a matildeo de obra infanto-juvenil era abundante sendo

constantemente objeto de apreciaccedilatildeo pela imprensa local que registrava os acidentes as

condiccedilotildees de trabalho os espancamentos a necessidade de reduccedilatildeo da jornada de

trabalho a proibiccedilatildeo dos serotildees entre outros assuntos As crianccedilas das classes populares

aparecem basicamente nos perioacutedicos nas situaccedilotildees de carecircncia como operaacuterias ou

como perturbadores da ordem e da disciplina o que levava os ldquohomens de letrasrdquo291

em

nome dos interesses das classes dominantes a solicitar das autoridades ora medidas de

proteccedilatildeo ora de puniccedilatildeo para esse estrato da sociedade292

Muitos desses ldquomenoresrdquo pobres que viviam pelas ruas das cidades trabalhando

nas faacutebricas e em outros estabelecimentos eram filhos de moradores dos corticcedilos que

segundo o discurso da imprensa eram lugares ldquonos quaes se accumula[va] grande

numero de individuos ndash operarios famiacutelias etcrdquo293

e enfrentavam desde cedo as

dificuldades de sobrevivecircncia impostas agraves camadas populares A ldquoManchester Mineirardquo

a exemplo da capital federal jaacute nos anos finais do seacuteculo XIX enfrentava o problema

dos corticcedilos A preocupaccedilatildeo era com as condiccedilotildees higiecircnicas dessas moradias que

poderiam acarretar graves problemas para a sociedade como um todo uma vez que se

localizavam na aacuterea central ou nos subuacuterbios proacuteximos ao centro da cidade Os corticcedilos

e casas populares habitados pelos trabalhadores prostitutas desordeiros em suma pela

populaccedilatildeo pobre localizavam-se nas regiotildees proacuteximas ao rio Paraibuna ou seja nas

aacutereas que estavam mais sujeitas agraves enchentes Jaacute a classe mais abastada ocupava as

aacutereas mais nobres e de colinas longe das inundaccedilotildees como a Rua Direita (atual Av

Baratildeo do Rio Branco) Rua Santo Antocircnio a parte alta da Rua Halfeld a regiatildeo do Alto

291

A expressatildeo foi utilizada por James Goodwin Junior que a adaptou de ldquoordem gendelettrerdquo (ldquogente de

letrasrdquo) de Balzac Para o historiador os literatos que paralelamente atuavam como ldquojornalistasrdquo no final

do seacuteculo XIX e no iniacutecio do seacuteculo XX eram ldquohomens de letrasrdquo Cf GOODWIN JUNIOR James

William Op cit 2007 p 87 292

NEDER Gizlene Op cit 2004 p 213 293

SM-BMMM Jornal do Commercio 29 maio 1897 p 1

90

dos Passos294

entre outras Apesar das condiccedilotildees insalubres e precaacuterias dessas

habitaccedilotildees segundo os jornais os alugueacuteis eram altos para os parcos rendimentos de

seus habitantes A imprensa local constantemente solicitava das autoridades

ldquohygienicasrdquo e policiais providecircncias com relaccedilatildeo a essas habitaccedilotildees por causa dos

miasmas que exalavam O combate aos corticcedilos decorria principalmente de questotildees

sanitaacuterias e higiecircnicas bem como morais295

As imagens seguintes datildeo uma dimensatildeo

das condiccedilotildees precaacuterias das casas habitadas pelos segmentos vulneraacuteveis da populaccedilatildeo

de Juiz de Fora

Imagem 5 ldquoHabitaccedilatildeo Operaacuteriardquo SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica

literaria politica e noticiosa Juiz de Fora 26 de fevereiro de 1922 p 244

294

A ligaccedilatildeo de Juiz de Fora com o Rio de Janeiro pode ser apreendida em pequenos detalhes como

apelidar um arrabalde do municiacutepio com nomes de bairros cariocas Em 1921 a revista A Evoluccedilatildeo

chamou o Alto dos Passos de o ldquolsquoBotafogorsquo de Juiz de Forardquo SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista

pedagogica literaria poliacutetica e noticiosa Juiz de Fora 31 de outubro de 1921 v I fasciacuteculo VI p 97 295

Para mais informaccedilotildees sobre as condiccedilotildees de moradias da populaccedilatildeo trabalhadora e pobre de Juiz de

Fora na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX ver o trabalho de SILVA Maiacutera Carvalho Carneiro Lugar

de trabalhador eacute na aacuterea de serviccedilo moradia popular em Juiz de Fora (1892-1930) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Juiz de Fora UFJF 2008 p 55-62 90

91

Imagem 6 Habitaccedilatildeo Operaacuteria SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica

literaria politica e noticiosa Juiz de Fora 26 de fevereiro de 1922 p 245

As crianccedilas e as famiacutelias pobres viviam em uma sociedade que buscava por meio

de vaacuterias medidas de controle social enquadraacute-las dentro de uma visatildeo de mundo

burguesa de ordem civilizaccedilatildeo e progresso Por essa razatildeo a sua organizaccedilatildeo familiar

suas habitaccedilotildees seus costumes sua religiosidade e meios de lazer eram alvos constantes

das medidas puacuteblicas de coerccedilatildeo e controle Entretanto a essa parcela da populaccedilatildeo natildeo

eram dadas as condiccedilotildees materiais de sobrevivecircncia dentro dessa sociedade

ldquocivilizadardquo da disciplina e da ordem Com os parcos salaacuterios recebidos pela populaccedilatildeo

pobre em geral restavam apenas as casas de cocircmodos os corticcedilos que geralmente

localizavam-se em aacutereas carentes de infraestrutura urbana

A preocupaccedilatildeo dos agentes da administraccedilatildeo municipal com relaccedilatildeo aos serviccedilos

urbanos baacutesicos e de embelezamento era primordialmente com a aacuterea central e em

especial a que era habitada pelos setores dominantes da sociedade Durante a

administraccedilatildeo de Joseacute Procoacutepio Teixeira o ldquoHaussmann de Juiz de Forardquo296

houve um

consideraacutevel investimento nos serviccedilos de calccedilamentos embelezamento ndash arborizaccedilatildeo

jardins ndash abertura de novas vias de acesso construccedilatildeo do novo paccedilo municipal entre

296

Gazeta Comercial Juiz de Fora 17 de maio de 1928 Apud MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990

p 197-198

92

outras obras localizadas nas aacutereas mais valorizadas297

O novo preacutedio das Reparticcedilotildees

Municipais em estilo neoclaacutessico foi inaugurado em 1918 ndash durante a administraccedilatildeo do

Haussmann mineiro sendo uma construccedilatildeo mais moderna e antenada com o progresso

da cidade estando localizado na Avenida Baratildeo do Rio Branco (antiga Rua Direita)

esquina com a Rua Halfeld um ldquoprotoacutetipo em termos arquitetocircnicos da Avenida Central

no Rio de Janeirordquo298

Imagem 7 ldquoJoseacute Procoacutepio Teixeirardquo SM-BMMM A

Evoluccedilatildeo revista pedagogica literaria poliacutetica e noticiosa

Juiz de Fora 30 de setembro de 1922

297

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 196-197 Sobre a questatildeo das reformas urbanas

empreendidas na capital federal nos primeiros anos da Repuacuteblica e das poliacuteticas de controle social

exclusatildeo e segregaccedilatildeo da populaccedilatildeo pobre das ldquoaacutereas nobresrdquo da cidade ver entre outros o trabalho de

NEDER Gizlene Op cit 1997 298

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 207

93

Imagem 8 ldquoEdifiacutecio das Reparticcedilotildees Municipaisrdquo SM-

BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica literaria

poliacutetica e noticiosa Juiz de Fora 30 de setembro de 1921

p 43

Nessa avenida onde predominavam os ldquopalacetes e chalets construiacutedos dentro

de um padratildeo arquitetocircnico ecleacutetico caracteriacutestico do periacuteodo da Belle Eacutepoquerdquo299

estavam localizados tambeacutem outros siacutembolos do poder (poliacutetico econocircmico e religioso)

do progresso e modernidade de Juiz de Fora dentre os quais o Foacuterum a Matriz o

Parque Municipal (atual Parque Halfeld) a Santa Casa de Misericoacuterdia e o Club Juiz de

Fora O dito Club uma associaccedilatildeo civil foi inaugurado no mesmo ano em que as novas

instalaccedilotildees das Reparticcedilotildees Municipais e localizava-se na esquina da Avenida Rio

Branco com a Rua Halfeld No salatildeo desse preacutedio ocorriam os bailes de gala onde se

reuniam os grupos dominantes da cidade 300

299

Idem p 207 300

O preacutedio do Club Juiz de Fora foi destruiacutedo na deacutecada de 1950 por um incecircndio sendo no local

construiacutedo outro preacutedio com a mesma denominaccedilatildeo e que tecircm em sua fachada os paineacuteis em azulejos

ldquoAs quatro estaccedilotildeesrdquo e ldquoCavalosrdquo ambos de Cacircndido Portinari Os paineacuteis foram tombados pelo poder

executivo municipal em 1997 pelo Decreto no 058691997 e o preacutedio em 2002 pelo Decreto 7475 de 25

de julho de 2002 Para mais informaccedilotildees sobre o Club Juiz de Fora cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna

Op cit 2013 p 28 e 29

94

Imagem 9 Avenida Baratildeo do Rio Branco ndash Juiz de Fora 1920 Acervo Ramon Brandatildeo

Como salientado anteriormente a populaccedilatildeo pobre ficava excluiacuteda dos serviccedilos

urbanos baacutesicos e segregada espacialmente uma vez que as poliacuteticas puacuteblicas de

controle social procuravam afastar os grupos que natildeo se identificavam com a imagem

de progresso e modernidade da cidade para as aacutereas distantes da regiatildeo central

A populaccedilatildeo pobre da ldquoManchester Mineirardquo que vivia nas aacutereas insalubres e

afastadas da Avenida Rio Branco com seus palacetes e chalets comeccedilou a reivindicar

melhores condiccedilotildees de vida e de trabalho desfazendo a imagem propagada pelos oacutergatildeos

da imprensa de uma cidade ordeira Joseacute Procoacutepio Teixeira presidente da Cacircmara

enfrentou em sua administraccedilatildeo os protestos e comiacutecio da populaccedilatildeo ndash em frente ao

novo preacutedio das Reparticcedilotildees Municipais ndash contra a carestia de vida em agosto de 1918

Os protestos resultaram em saques nos estabelecimentos da cidade Esse movimento

popular ficou conhecido como ldquogreve do accediluacutecarrdquo e foi reprimido pela poliacutecia e pelo

exeacutercito301

A exemplo dos grandes centros industriais da jovem Repuacuteblica brasileira Rio de

Janeiro e Satildeo Paulo a classe operaacuteria juiz-forana tambeacutem promoveu movimentos

grevistas no decorrer das deacutecadas de 1910 e 1920 Na pauta de reivindicaccedilatildeo estavam a

301

ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 p 103 -105 Nas localidades proacuteximas de

Juiz de Fora tambeacutem ocorreram movimentos populares de protestos contra a carestia de vida Cf

ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987

95

melhoria das condiccedilotildees de trabalho o aumento salarial a reduccedilatildeo da jornada de

trabalho para oito horas a regulamentaccedilatildeo do trabalho feminino e infanto-juvenil entre

outras questotildees As mobilizaccedilotildees operaacuterias da ldquoManchester Mineirardquo estavam em

consonacircncia com as que estavam ocorrendo nas outras regiotildees industrializadas do paiacutes

Segundo Silvia Vilela de Andrade a conjuntura de 1917-1920 eacute um periacuteodo

emblemaacutetico de ldquomobilizaccedilatildeo da classe trabalhadora no Brasil que pressiona a atuaccedilatildeo

dos industriais e do Estado quanto agrave elaboraccedilatildeo de leis regulamentadoras do

trabalhordquo302

Dentro do quadro de reivindicaccedilotildees do operariado de Juiz de Fora uma

conquista foi obtida com a aprovaccedilatildeo pela Cacircmara Municipal em 1912 do Decreto que

regulamentou o horaacuterio de trabalho dos jovens operaacuterios anteriormente examinado

A precariedade de vida da classe trabalhadora que em fases mais agudas

resultavam em protestos contribuiacutea para que muitas crianccedilas ingressassem no universo

adulto e no ldquomundo do trabalhordquo precocemente sendo assim privadas das brincadeiras

e dos bancos escolares Essa mesma precariedade fazia com que as mulheres pobres

deixassem o seu lar contrapondo-se dessa maneira ao ideal burguecircs da esposa-matildee-

dona de casa para trabalharem no serviccedilo domeacutestico ou fabril Seus filhos que ainda

natildeo trabalhavam fora do lar sem escolas (pela falta de vagas nos estabelecimentos

puacuteblicos ou de condiccedilotildees de atenderem agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo de ensino) viviam

pelas ruas das cidades a praticarem vaacuterias travessuras descritas pelos jornais como

tropelias Com relaccedilatildeo aos filhos da classe operaacuteria juiz-forana O Lynce publicou uma

mateacuteria discutindo a necessidade de as autoridades promoverem a assistecircncia para os

filhos dos operaacuterios O artigo intitulado ldquoAssistecircncia aacute infanciardquo criticava a falta de

assistecircncia escolar agrave crianccedila filha de operaacuterios nos seguintes termos

A falta de assistencia official aacute infancia pobre nesta cidade eacute um facto

Esta cidade cuja populaccedilatildeo em sua maioria vive do trabalho nas fabricas

devia ter nas zonas mais importantes um pequeno estabelecimento de

proteccedilatildeo aacutes creanccedilas de operarios mantidos pelo governo visto que a renda

estadoal aqui recompensa qualquer despeza nesse sentido

Essa protecccedilatildeo poderia ser feita da seguinte foacuterma o Estado construiria em

cada zona operaria um edifiacutecio adequado para receber durante o dia as

creanccedilas cujas matildees fossem trabalhar nas fabricas Completa a construccedilatildeo do

edifiacutecio [] faria entrega do mesmo juntamente como uma quota mensal a

Camara Municipal que por sua vez organizaria uma associaccedilatildeo que zelasse

pelas creanccedilas durante as horas em que as pobres matildees estivessem no

emprego

[]

O operario com alugueis e alimentos caros para manter a familia tem que

trabalhar aacute bessa dahi a necessidade da esposa ir para fabrica em prejuiacutezo de

sua sauacutede e dos filhinhos

302

Idem p 103

96

Proveacutem desse facto a crescente mortalidade infantil que no ponto em que

estaacute eacute o comeccedilo de uma grande e proacutexima calamidade

Emquanto que os filhos dos operaacuterios se definham e morrem porque os seus

paes natildeo podem dar-lhes o conforto que precisam o governo manteacutem o

pomposo e dispensavel Jardim da Infacircncia que natildeo demonstra vantagem de

espeacutecie alguma visto que soacute podem frequental-o creanccedilas de famiacutelias ricas

ou remediadas taes satildeo exigencias para a matricula Vejamos uniformes

caro cestinha de vime com merenda (que natildeo seja anguacute) bonde etc

Eacute ateacute irrisoacuterio O rico aleacutem de ter meios proprios para dar conforto e

divertimento aos filhos tem aacute sua disposiccedilatildeo um grande Jardim da

Infancia[] o pobre que natildeo tem meios para alimentar regularmente sua

prole natildeo merece dos governos a protecccedilatildeo que faz jus

[] Jardim da Infacircncia do Largo do Riachuelo fosse transformado em escola

maternal operaria

Como estaacute natildeo tem utilidade nenhuma303

Ao longo desse item do capiacutetulo tenho apresentado que era uma constante nos

perioacutedicos as reclamaccedilotildees quanto agrave presenccedila de ldquomenoresrdquo pelas ruas da cidade Creio

que uma parcela expressiva dessas crianccedilas que faziam das vias puacuteblicas da cidade um

local de brincadeiras de amizades e de sobrevivecircncia fossem filhos de pais

trabalhadores que passavam longe da prole os dias e agraves vezes a noite dados os

constantes serotildees304

das faacutebricas Como o grosso da populaccedilatildeo pobre e trabalhadora

morava em habitaccedilotildees precaacuterias e pequenas em consequecircncia as crianccedilas que ficavam

em casa para os pais e ou matildees trabalharem encontravam na rua um espaccedilo de lazer e

de liberdade

O artigo jornaliacutestico transcrito acima chama a atenccedilatildeo para essa problemaacutetica

social ndash os pais necessitando trabalhar para sustentar a famiacutelia deixavam os filhos em

casa por conta proacutepria sem ter quem cuidasse de sua educaccedilatildeo Posto isso eacute colocado

pela mateacuteria a necessidade de o poder puacuteblico auxiliar os pais nessa tarefa criando um

estabelecimento que cuidasse dos filhos das operaacuterias enquanto as mesmas

trabalhavam Essa discussatildeo sobre a assistecircncia agraves crianccedilas e adolescentes eacute bem atual

haja vista os debates em torno da educaccedilatildeo de tempo integral que entre outros fatores

reforccedilam a intenccedilatildeo de os manterem longe das ruas e das situaccedilotildees de risco social

A mateacuteria ainda faz uma denuacutencia com relaccedilatildeo agrave existecircncia na cidade de um

ldquopomposordquo Jardim da Infacircncia que apesar de puacuteblico era frequentado apenas pelas

ldquocreanccedilas de famiacutelias ricas ou remediadasrdquo pois as camadas pobres natildeo tinham

303

SM-BMMM ldquoAssistencia aacute Infanciardquo O Lynce 27 set 1925 p 1 304

Segundo Luiacutes Eduardo de Oliveira os serotildees eram visualizados pelos setores dominantes como um

siacutembolo do vigor e da pujanccedila da ldquoeconomia urbana da Manchester Mineirardquo Ao operariado dos

estabelecimentos industriais de Juiz de Fora constituiacutedo em sua maioria por ldquomenoresrdquo e mulheres era

imposta uma jornada de trabalho que poderia chegar ateacute16 hora por dia OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de

Op cit 2010 p 249

97

condiccedilotildees de arcarem com as despesas de uniformes cestinhas para merenda e

transporte Sobre a merenda eacute destacado que os alunos do Jardim da Infacircncia natildeo

podiam levar angu ou seja o alimento baacutesico ou o uacutenico de muitas casas das classes

mais pobres Tais exigecircncias eram um fator de exclusatildeo dos filhos das famiacutelias pobres

que geralmente eram constituiacutedas de uma prole numerosa

Imagem 10 Jardim da Infacircncia - Largo do Riachuelo 1925 SM-BMMM

Banco de Fotos

A questatildeo das exigecircncias das instituiccedilotildees de ensino e a dificuldade de acesso das

classes pobres jaacute haviam sido ressaltadas por Heitor Guimaratildees em 1906 quando da

inauguraccedilatildeo dos Grupos Escolares em Juiz de Fora como jaacute salientei anteriormente

As condiccedilotildees precaacuterias de vida das crianccedilas trabalhadoras do municiacutepio de Juiz

de Fora ficam evidentes na mateacuteria de O Lynce de 27 de junho de 1925 sobre os

ldquomenoresrdquo capinadores contratados pela Cacircmara Municipal O texto comeccedila

assinalando que ldquopor conveniecircncia financeira ou outro motivordquo as ruas da cidade eram

ldquocapinadas por uma turma de mais ou menos 40 menores sob a chefia de um adultordquo A

utilizaccedilatildeo desses ldquomenoresrdquo nessa tarefa natildeo eacute criticada pela mateacuteria que se propunha

tatildeo somente ldquoclamar aacutes autoridades municipaes uma providencia para que desapareccedila a

situaccedilatildeo penosa desses pequenos trabalhadoresrdquo que causava doacute ver esses

[] menores maltrapilhos e immundos tiritando de frio pela manhatilde a hora

do almoccedilo entatildeo os quadros tristes surgem com mais negrura pois uns

almoccedilam um gelado tutuacute com verdura outros um pedaccedilo de linguiccedila com

patildeo comprados na venda finalmente os mais infelizes ficam com os olhos

amortecidos olhando para um e outro companheiro afim de que estes lhes

decircem umas migalhas de anguacute feijatildeo ou melhor correm aacute primeira porta

98

batem e pedem um pedaccedilo de patildeo Ao largarem o serviccedilo aacute tarde alguns

sahem de porta em porta pedindo patildeo305

O texto salienta que a maacute alimentaccedilatildeo faria desses pequenos ldquocidadatildeos rachiticos

quasi imprestaacuteveis E os xingamentos do chefe os tornam malandros e

semvergonhas o que quer dizer ndash uma geraccedilatildeo inuacutetilrdquo306

E prosseguiu assinalando que

a precariedade da alimentaccedilatildeo desses ldquomenoresrdquo era fruto da ldquofalta de escruacutepulo dos

paesrdquo uma vez que os mesmos recebiam ldquoum salario razoaacutevelrdquo Posta essa questatildeo o

artigo do perioacutedico sugeria que a Cacircmara dividisse a turma dos pequenos capinadores

em trecircs cada uma para uma aacuterea da cidade e que ao exemplo dos fazendeiros da regiatildeo

fornecessem alimentaccedilatildeo quente para os operaacuterios307

Mal alimentados mal educados maltrapilhos imundos e a tiritar de frio Esse

era o quadro pintado pela mateacuteria do jornal sobre os pequenos operaacuterios da capina

contratados pela municipalidade Mas essas caracteriacutesticas atribuiacutedas aos ldquomenoresrdquo

satildeo segundo o texto fruto da ldquofalta de escruacutepulo dos paesrdquo As dificuldades enfrentadas

pelos operaacuterios em termos de baixos salaacuterios alugueacuteis altos custo de vida elevado uma

prole extensa ausecircncia de leis sociais natildeo eram consideradas pelo discurso produzido

por fraccedilotildees das classes dominantes sobre as camadas pobres da sociedade que

geralmente eram caracterizadas como imorais viciosas vagabundas e alcooacutelatras

Em fevereiro de 1939 uma reportagem especial para o supplemento illustrado

do Diaacuterio Mercantil tratou da problemaacutetica dos ldquocapinadores de ruardquo do municiacutepio308

A

leitura dessa mateacuteria jornaliacutestica passados quatorze anos desde a publicaccedilatildeo de O Lynce

(1925) sobre o assunto em tela aponta que houve uma permanecircncia das condiccedilotildees

precaacuterias de vida desses ldquomenoresrdquo empregados na capina das ruas De acordo com o

artigo de 1939 ldquoa cidaderdquo jaacute estava acostumada a ldquovecircl-os todo dia quase maltrapilhos

cantando lsquodesafiosrsquo no meio daquella azoada de vozes e do barulho de suas

ldquoenxadinhasrdquo feitas com arcos de barricasrdquo Em outras palavras os ldquomenoresrdquo

capinadores jaacute faziam parte dos ldquoaspectos diariosrdquo da cidade e acreditava-se que a

extinccedilatildeo dessa ldquoclasserdquo soacute ocorreria ldquono caso em que o parallelepipedo e o lsquopeacute de

molequersquordquo cedessem lugar para o ldquoluzidio asphaltordquo Ainda foi ressaltado que as

crianccedilas ldquotrabalhavam realmenterdquo e que recebiam ldquoo bastante para comprar o que

305

SM-BMMM ldquoDe Relancerdquo O Lynce 27 jun 1925 p 2 306

Idem 307

Idem 308 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo Diaacuterio Mercantil - Supplemento Illustrado 05 fev 1939 A informaccedilatildeo

sobre a reportagem ldquoCapinadores de ruardquo de 1939 me foi passada gentilmente por Rita de Caacutessia

Vianna Rosa

99

comer no dia seguinterdquo As roupas que usavam em sua maioria eram provenientes de

ldquoesmolas de alguma alma caridosardquo ou de ldquoinstituiccedilotildees de caridaderdquo Com relaccedilatildeo agrave

comida que os jovens capinadores levavam em suas ldquomarmitasrdquo foi assinalado pelo

repoacuterter ldquoque tomou uma das lsquomarmitasrsquo e olhou laacute dentro feijatildeo e fubaacute um bolo

pastoso feito no dia anterior e jaacute cheirando a azedordquo e que a outra refeiccedilatildeo levada pelos

capinadores de rua era uma ldquosopardquo feita de ldquocouves cosidas com fubaacute e aguardquo Na

reportagem ressalta-se que os capinadores eram ldquorecrutados pelo proacuteprio feitor entre os

vagabundos sem paes nem casa onde comer e dormirrdquo e que eles eram ldquomuitas vezes

obrigados pela poliacutecia a adoptar a profissatildeo transformando-se numa espeacutecie de

forccediladordquo e que tal situaccedilatildeo decorria da ldquoescassez alarmante de reformatoacuterios e de

patronatosrdquo para se dar um destino mais digno a esses ldquomenoresrdquo309

O que se

depreende da leitura dessa reportagem eacute que a situaccedilatildeo da infacircncia desvalida fiacutesica e

socialmente abandonada e desamparada natildeo foi uma problemaacutetica exclusiva da

chamada Repuacuteblica Velha Ela persistiu no poacutes-1930 e atualmente ainda constitui uma

lamentaacutevel realidade A imagem seguinte apresenta um grupo de meninos capinadores

onde pode ser observado que a grande maioria era composta de crianccedilas negras ou seja

provenientes de setores da populaccedilatildeo brasileira que tendiam a estar em uma posiccedilatildeo

inferior dentro da hierarquia socioeconocircmica

Imagem 11 Meninos capinadores 1939 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo

Diaacuterio Mercantil Supplemento Illustrado 05 fev 1939

309 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo Diaacuterio Mercantil - Supplemento Illustrado 05 fev 1939

100

Imagem 12 Meninos capinadores 1939 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo

Diaacuterio Mercantil Supplemento Illustrado 05 fev 1939

A presenccedila constante de ldquomenoresrdquo nas ruas da cidade expunha para a sociedade

a necessidade de poliacuteticas sociais que atendessem esse setor Entretanto a relaccedilatildeo entre

o poder puacutebico poliacuteticas sociais e a crianccedila desvalida e abandonada mostrou-se sempre

estanque sendo que o Estado geralmente apresentava-se apenas para punir No meu

entender as instituiccedilotildees ndash religiosas leigas e estatais ndash criadas para o atendimento da

infacircncia pobre abandonada e delinquente apesar do discurso de que tinham a missatildeo de

transformaacute-los em cidadatildeos buscavam limpar os espaccedilos puacuteblicos da presenccedila de

indiviacuteduos que se contrapunham aos discursos valores e regras sociais das classes

dominantes bem como almejavam transformaacute-los atraveacutes do aprendizado de um ofiacutecio

manual em trabalhadores disciplinados e obedientes agraves leis natildeo constituindo a

alfabetizaccedilatildeo uma prioridade Nesse sentido o estudo da infacircncia pobre no principal

nuacutecleo agraacuterio-exportador e industrial da Zona da Mata e de Minas Gerais

respectivamente na passagem agrave modernidade mostra-se de grande relevacircncia para a

compreensatildeo do encaminhamento que essa sociedade propunha para a problemaacutetica do

ldquomenorrdquo Os setores dominantes construiacuteram uma representaccedilatildeo da cidade e de seus

habitantes como modernos ldquocivilizadosrdquo laboriosos e ordeiros Nesse sentido no

proacuteximo capiacutetulo seraacute examinada a questatildeo da infacircncia pobre do municiacutepio levando em

consideraccedilatildeo esses valores

101

CAPIacuteTULO 2

OS PEQUENOS DESVALIDOS JUIZ DE FORA

(1888-1930)

Imagem 13 Capa do processo de tutela do ldquomenorrdquo Joaquim

Mariano Alves AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos

relativos agrave accedilatildeo de tutelas 18 nov 1890 cx4 proc 7

102

21 OS PROCESSOS DE TUTELAS DAS ORDENACcedilOtildeES FILIPINAS

AO COacuteDIGO CIVIL BRASILEIRO (1916)

Abolida esta [escravidatildeo] e natildeo se podendo mais comprar o negro as

senhoras de Minas tomavam para criar negrinhas e mulatinhas sem pai e sem

matildee ou dadas pelos pais e pelas matildees Comeccedilava para as desgraccediladas o

dormir vestidas em esteiras postas em qualquer canto da casa as noites de

frio a roupa velha o nenhum direito o pixaim rapado o peacute descalccedilo o tapa

na boca o bolo a feacuterula o correatildeo a vara a solidatildeo (Pedro Nava)310

Onofre Olivia Maria da Luz Ramon Jayme Francisca Hildegart Judith

Dinah Sebastiatildeo entre outros Um pouco da histoacuteria de vida dessas e de outras crianccedilas

e jovens estatildeo registradas nos processos de tutelas Satildeo histoacuterias de abandono de

orfandade de disputas de renuacutencias e de violecircncias

Os processos de tutelas satildeo constituiacutedos de peticcedilotildees comunicados pareceres

recibos certidotildees solicitaccedilotildees procuraccedilotildees prestaccedilatildeo de contas sentenccedilas e outros

documentos No periacuteodo em estudo ndash 1888 a 1930 ndash praticamente todos os processos

satildeo manuscritos com apenas algumas partes datilografadas Assim atraveacutes das letras

bordadas ou dos garranchos dos textos produzidos pelos peticionaacuterios tutores pais

avoacutes procuradores advogados promotores puacuteblicos e juiacutezes entre outros eacute possiacutevel

analisar as relaccedilotildees familiares e sociais das pessoas envolvidas bem como as tensotildees e

os confrontos pela guarda das crianccedilas ou jovens Dessa maneira as accedilotildees de tutelas satildeo

uma excelente fonte de pesquisa para o estudo da famiacutelia das relaccedilotildees de trabalho das

estrateacutegias de controle social entre outras problemaacuteticas

Nos autos de tutelas geralmente haacute indicaccedilotildees como a cor dos envolvidos a

nacionalidade dos pais e ou das crianccedilas a filiaccedilatildeo a idade a condiccedilatildeo juriacutedica

(escravolibertolivre) a profissatildeo dos tutores e mais raramente dos ldquomenoresrdquo e de seus

pais a existecircncia de bens e de legados pertencentes aos pupilos a determinaccedilatildeo do

pagamento de uma soldada311

ao ldquomenorrdquo e outras informaccedilotildees Poreacutem nem todos os

310

NAVA Pedro Bauacute de Ossos memoacuterias 2 ed Rio de Janeiro Livraria Joseacute Olympio Editora Sabiaacute

1973 p 259 311 A soldada constituiacutea-se no pagamento de um moacutedico salaacuterio pelos serviccedilos prestados pelo ldquomenorrdquo

Cf BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes ldquoOacuterfatildeos tutelados nas malhas do

judiciaacuterio (Braganccedila ndash Satildeo Paulo 1871-1900)rdquo Cadernos de Pesquisa v 39 n 136 p 41-68 janabr

2009 p 44 Disponiacutevel em httpwwwscielobrpdfcpv39n136a0439136pdf Acessado em 21-10-

2014 AZEVEDO Gislane Campos ldquoDe Sebastianas e Geovannisrdquo o universo do menor nos processos

dos juiacutezes de oacuterfatildeos da cidade de Satildeo Paulo (1871-1917) Dissertaccedilatildeo Mestrado Satildeo Paulo Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica 1995 p 47 Disponiacutevel em httpwwwhistoriaeimagemcombrwp-

contentuploads201404de-sebastianas-e-geovannispdf Acessado em 20-10-2014

103

documentos apresentam esses diversos dados sendo que alguns possuem apenas a

peticcedilatildeo e o auto de tutela outros apenas a peticcedilatildeo e um carimbo dizendo que a tutela foi

assinada e ainda outros apenas a solicitaccedilatildeo Mas haacute processos extremamente ricos em

detalhes registrando as tensotildees e disputas entre os pais das crianccedilas e os tutores pela

guarda das mesmas os contratos de soldada os registros de fugas dos pupilos da casa

dos tutores as denuacutencias de maus-tratos as solicitaccedilotildees de suspensatildeo do paacutetrio poder

entre outros dados

A peticcedilatildeo ou comunicado ao Juiz da Comarca da existecircncia de crianccedilas nas

condiccedilotildees de serem tuteladas segundo as determinaccedilotildees das leis eacute o documento que daacute

iniacutecio ao processo de tutela Os motivos apresentados nesses requerimentos satildeo os mais

diversos possiacuteveis satildeo senhores solicitando a tutela dos filhos de suas ex-escravas

alegando que as mesmas haviam se entregado agrave vida de prostituiccedilatildeo agrave vadiagem e agrave

embriaguez satildeo ldquocidadatildeosrdquo assinalando que em suas residecircncias viviam ldquomenoresrdquo

oacuterfatildeos abandonados ou que haviam sido entregues por seus familiares para que os

criassem satildeo pais solicitando a destituiccedilatildeo do paacutetrio poder por natildeo disporem de meios

para criar seus filhos fazendo a entrega dos mesmos a ditas pessoas idocircneas da

localidade satildeo pedidos de nomeaccedilatildeo de tutores ad hoc312

para a autorizaccedilatildeo de

casamentos de jovens que haviam sido defloradas entre outras alegaccedilotildees

Em algumas peticcedilotildees haacute uma suposta tentativa de desmoralizaccedilatildeo das matildees dos

pais ou familiares da crianccedila provavelmente com tal iniciativa almejava-se a obtenccedilatildeo

de um parecer favoraacutevel do juiz Essa dita estrateacutegia pode ser observada no caso de

Edgar de trecircs anos de idade filho da ex-escrava Bernarda solteira No dia 6 de

setembro de 1888 o suplicante Gabriel de [Mello] ldquomorador em S Anna do Dezerto

drsquoeste termordquo comunicou ao Juiz de Oacuterfatildeos a necessidade de se dar tutor ao ldquomenorrdquo

uma vez que sua matildee havia se retirado da ldquocasa de sua senhora levando consigo o seo

filhordquo aleacutem de ter ldquose desmandado entregando-se aacute prostituiccedilatildeo sem dispor de meios pordf

crear e educar o dito menor sendo ainda certo natildeo ter ella domiciliordquo313

Observa-se que

nesse pedido realizado poucos meses apoacutes a aboliccedilatildeo da escravidatildeo eacute assinalado que

Bernarda havia deixado a ldquocasa de sua senhorardquo como se ela ainda fosse propriedade de

algueacutem Trabalhos que discutem a questatildeo da tutela de ingecircnuos e ldquomenoresrdquo pobres

destacam que o estabelecimento desse viacutenculo foi uma estrateacutegia utilizada pelos

312

Ad hoc eacute uma expressatildeo latina muito utilizada no meio juriacutedico e significa ldquopara istordquo ou ldquopara esta

finalidaderdquo 313

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutelas Tutelado Edgar Data 06-

09-1888 cx 100

104

proprietaacuterios para manterem sobre controle uma parcela da matildeo de obra a baixo custo

Esta se constituiacutea basicamente na alimentaccedilatildeo e no vestuaacuterio ou como em alguns casos

no pagamento de uma soldada de baixo valor314

Mas no caso acima relatado o

ldquomenorrdquo Edgar natildeo tinha ainda condiccedilotildees de prestar qualquer tipo de serviccedilo Por que

entatildeo requerer a tutela desse menino Algumas hipoacuteteses podem ser levantadas a esse

respeito Eacute um fato ocorrido logo apoacutes a aboliccedilatildeo da escravidatildeo quando o temor de

ficar sem serviccedilaisempregados pelos setores dominantes era provavelmente grande

Assim seria uma maneira de assegurar legalmente braccedilos para serem empregados

brevemente em atividades laborativas Outra hipoacutetese eacute a ser uma estrateacutegia das classes

dominantes de manutenccedilatildeo dos pais dos ldquomenoresrdquo desvalidos na localidade pelo fato

de seus filhos estarem sob a guarda de terceiros evitando desse modo a perda de

trabalhadores para outras regiotildees

Em outros processos satildeo possivelmente as condiccedilotildees precaacuterias de

sobrevivecircncia que levaram os pais a solicitarem a entrega de seus filhos a tutores que

deles pudessem cuidar Em fevereiro de 1922 Esmeraldina Braga de Campos viuacuteva

alegando estar doente e em estado de extrema pobreza fatores que de acordo com a sua

peticcedilatildeo a impedia de exercer o paacutetrio poder solicitou a nomeaccedilatildeo de um tutor para seu

filho Onofre de 1 mecircs de idade e indicou para assumir o encargo o sr Sebastiatildeo

Augusto Gaio marido de sua amiga Helena Gaio315

Os dois exemplos citados acima satildeo apenas uma mostra da variedade de motivos

apresentados para a solicitaccedilatildeo do estabelecimento do viacutenculo tutelar

Arlette Farge e Michel Foucault em ldquoLe deacutesordre des famillesrdquo analisaram as

lettres de cachet des archives de la Bastille em que familiares solicitaram ao rei ou

autoridades policiais o encarceramento geralmente de seus cocircnjuges filhos e parentes

De acordo com os autores essas cartaspeticcedilotildees eram possivelmente permeadas por um

modeloesquema Dito de outra maneira as cartas empregavam o discurso dominante do

periacuteodo do que seria uma boa esposa um bom marido e um(a) filho(a) para

demonstrarem o desvio e ou a periculosidade do outro (maridoesposafilhosfilhas) e

314

Cf GUIMARAtildeES Elione Silva Muacuteltiplos viveres de afrodescendentes na escravidatildeo e no poacutes-

emancipaccedilatildeo famiacutelia trabalho terra e conflito (Juiz de Fora ndash MG 1828-1928) Satildeo Paulo

Annablume Juiz de Fora FUNALFA 2006 ZERO Arethuza Helena O preccedilo da liberdade caminhos

da infacircncia tutelada ndash Rio Claro (1871-1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Campinas (SP) Unicamp 2004

httplibdigiunicampbrdocumentcode=vtls000329956 315

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos a accedilatildeo de Tutelas Menor Onofre Data 07-

02-1922 cx 101

105

com isso obterem o parecer favoraacutevel316

Assim creio que as peticcedilotildees de tutelas de

ldquomenoresrdquo desvalidos tambeacutem fossem permeadas pelo discursomodelo dominante da

eacutepoca do que seria uma boa matildee e ou bons pais de famiacutelia A desqualificaccedilatildeo moral o

alcoolismo a suposta precariedade econocircmica entre outros fatores das genitoras e ou

dos pais das crianccedilas pobres provavelmente afiguravam-se como fatores no periacuteodo

em tela para a concessatildeo da tutela ao peticionaacuterio Essas (des)qualificaccedilotildees das famiacutelias

foram amplamente empregadas nas solicitaccedilotildees com a intenccedilatildeo presumiacutevel de se ter o

pedido aceito

A tutela se constituiacutea no encargo dado a uma pessoa para velar e administrar um

ldquomenorrdquo e os bens que o mesmo tinha ou poderia vir a ter317

Para a anaacutelise dos

processos de tutelas no periacuteodo de 1888 a 1930 eacute necessaacuterio levar em conta a legislaccedilatildeo

brasileira Ateacute 1916 quando ocorreu a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo Civil as questotildees

referentes ao Direito de Famiacutelia eram fundamentalmente reguladas pelas Ordenaccedilotildees

Filipinas (1603) que se constituiacuteam numa versatildeo ampliada das ldquoleis civis fiscais

administrativas militares e penais portuguesasrdquo contidas nas Ordenaccedilotildees Manuelinas318

A aprovaccedilatildeo de um Coacutedigo Civil no Brasil foi bem demorada acontecendo 94

anos depois de sua emancipaccedilatildeo poliacutetica (1822) e 27 anos apoacutes tornar-se uma naccedilatildeo

republicana (1889)319

Essa protelaccedilatildeo pode ser atribuiacuteda a muacuteltiplos fatores como a

dificuldade de definir quem era cidadatildeo ndash ainda durante o periacuteodo escravista ndash a

interferecircncia da Igreja Catoacutelica a dificuldade de definiccedilatildeo juriacutedica da mulher a questatildeo

do poder e da disciplina no que diz respeito agrave famiacutelia a problemaacutetica da

316

FARGE Arlette FOUCAULT Michel Le deacutesordre des familles lettres de cachet des archives de la

Bastille Paris Eacuteditions Gallimard Julliard 1982 p 171-172 Cf FRAGA FILHO Walter Mendigos

moleques e vadios na Bahia do seacuteculo XIX Satildeo Paulo HICITECSalvador (BA) EDUFBA 1996

Walter Fraga Filho encontrou na documentaccedilatildeo compulsada sobre a pobreza na Bahia do seacuteculo XIX

situaccedilatildeo semelhante agrave examinada por Farge e Foucault ou seja os paisfamiliares solicitando agraves

autoridades o internamentoprisatildeo de seus entes Para tanto apresentavam diversas justificativas 317

Ordenaccedilotildees Filipinas Quarto Livro Tiacutetulo 102 p 994 Disponiacutevel em

httpwww1ciucptihtiprojfilipinasl4p994htm Acessado em 20-10-2014 Coacutedigo Civil artigo 422

Coacutedigo Civil dos Estados Unidos do Brasil Lei n 3071 de 1o de Janeiro de 1916 Disponiacutevel em

httpwww2camaragovbrleginfedlei1910-1919lei-3071-1-janeiro-1916-397989-publicacaooriginal-

1-plhtml Acessado em 10-10-2014 318

BICALHO Maria Fernanda Baptista ldquoCrime e castigo em Portugal e seu Impeacuteriordquo Topoi (Resenha)

Rio de Janeiro n 1 pp 224-231 2000 Disponiacutevel em

wwwrevistatopoiorgnumeros_anterioresTopoi0101_resenha02pdf Acessado em 28-12-2014 319

NEDER Gizlene ldquoO bibliotecaacuterio-mor e o Iluminismo juriacutedico coimbrenserdquo Op cit 2007 p 50

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoO Atlacircntico como paacutetria livros e ideias entre Portugal

e Brasilrdquo Op cit 2007 p 44 Cf GRINBERG Keila Coacutedigo Civil e cidadania Rio de Janeiro Jorge

Zahar Ed 2001

106

regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre e de direitos dos trabalhadores entre

outros fatores320

Assim o exame dos processos de tutelas ateacute 1916 vatildeo se pautar basicamente

nas determinaccedilotildees das Ordenaccedilotildees Filipinas (1603) no que diz respeito ao Direito de

famiacutelia A partir de 1916 a anaacutelise da documentaccedilatildeo teraacute como referencial o Coacutedigo

Civil

Segundo as Ordenaccedilotildees Filipinas a tutela podia ser testamentaacuteria legiacutetima ou

dativa321

A testamentaacuteria era aquela em que o tutor era indicado em testamento Na

impossibilidade de ele assumir tinha lugar a nomeaccedilatildeo dos tutores legiacutetimos tendo as

matildees e avoacutes prioridade Entretanto deveriam viver honestamente natildeo serem casadas

em segundas nuacutepcias e renunciarem a todos os privileacutegios que lhes eram conferidos322

Nos casos em que o tutor testamentaacuterio e ou legiacutetimo natildeo existia ou natildeo podia assumir

as funccedilotildees do cargo era entatildeo indicado um parente ldquomais chegado que tiver no lugar

ou seu termo onde estatildeo os bens do oacuterfatildeordquo323

Na ausecircncia do testamentaacuterio e ou

legiacutetimo e de um parente chegado o Juiz de Oacuterfatildeos intimava um ldquohomem bomrdquo da

localidade para assumir a funccedilatildeo constituindo esse tipo na chamada tutela dativa324

O Coacutedigo Civil de 1916 versou sobre vaacuterios aspectos a respeito da instituiccedilatildeo do

viacutenculo tutelar tendo pontos de semelhanccedila com as Ordenaccedilotildees Filipinas De acordo

com o Coacutedigo de 1916 a tutela seria instituiacuteda nos casos de falecimento dos pais ou de

serem os mesmos julgados ausentes e com a perda do paacutetrio poder (art 406 incisos I e

II) O Coacutedigo tambeacutem versou sobre a nomeaccedilatildeo do tutor pelos pais em testamento ou

outro documento autecircntico (art 407 sect uacutenico) e na ausecircncia ou impossibilidade de os

testamentaacuterios assumirem deveria o encargo ser transferido aos parentes

consanguiacuteneos tendo prioridade os avoacutes paternos os irmatildeos ou tios do sexo masculino

320

GRINBERG Keila Op cit 2001 p 58 - 66 NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoOs

filhos da leirdquo Op cit 2007 321

A tutela testamentaacuteria era aquela em que o tutor era indicado em testamento o tutor legiacutetimo era

aquele indicado pela lei na impossibilidade de o tutor testamentaacuterio assumir e o tutor dativo era aquele

indicado pelo Juiz de Oacuterfatildeos quando os testamentaacuterios e legiacutetimos natildeo podiam ser nomeados

CARVALHO Joseacute Pereira (1865 p 112 ndash nota 211) apud ZERO Arethuza Helena (2003 p 13)

Algumas pessoas estavam impedidas de serem tutores como os menores de 25 anos os sandeu o

proacutedigo o inimigo do oacuterfatildeo o pobre o infame religioso etc Ordenaccedilotildees Filipinas (quarto livro tiacutetulo

102 sect 1 p 995-996) De acordo com as notas introdutoacuterias das Ordenaccedilotildees Filipinas havia ainda a

tutela pactiacutecia ou prometida que se dava quando o pai pactuava com ldquoalgueacutem o ser por sua morte Tutor

de seu filhordquo Esse tipo de tutela podia ser incluiacuteda na Tutela Testamentaacuteria Ordenaccedilotildees Filipinas (quarto

livro tiacutetulo 102 p 994) 322

CARVALHO Joseacute Pereira (1865 p 113 ndash nota 214) apud ZERO Arethuza Helena Op cit 2003

p 14 Ordenaccedilotildees Filipinas quarto livro tiacutetulo 102 p 995-998 323

Ordenaccedilotildees Filipinas quarto livro tiacutetulo 102 sect 5 p 1001-1002 324

Ordenaccedilotildees Filipinas quarto livro tiacutetulo 102 p 1002-1003

107

No caso dos irmatildeos destaca-se que seriam preferiacuteveis os ldquobilaterais aos unilateraisrdquo (art

409 incisos I II e III C Civil) Nestes e em outros artigos do Coacutedigo Civil observa-se

que a mulher estava juridicamente subordinada ao homem Entretanto eacute necessaacuterio

ressaltar que no projeto de codificaccedilatildeo das leis civil apresentado por Cloacutevis Bevilaacutequa

havia a proposta da igualdade juriacutedica entre os sexos que foi rejeitada pelos membros

da comissatildeo de avaliaccedilatildeo325

Como nas Ordenaccedilotildees Filipinas o Coacutedigo Civil tambeacutem determinou que as

matildees perderiam o paacutetrio poder caso se casassem novamente (art 393 C Civil)326

Entretanto ficou estabelecido no artigo 329 do Coacutedigo de 1916 que as genitoras

poderiam manter os filhos consigo e somente perderia esse direito caso fosse provado

que ela e ou o padrasto natildeo estavam tratando dos ldquomenoresrdquo de maneira conveniente

Em suma as crianccedilas continuavam a conviver com suas matildees mas eram legalmente

representadas por um tutor

Aos ldquomenoresrdquo que natildeo tinham tutores testamentaacuterios ou legiacutetimos e aos

abandonados o juiz deveria indicar uma pessoa idocircnea e residente no domiciacutelio (art

410 e 412 C Civil) Com relaccedilatildeo aos abandonados ficou ainda determinado que estes

poderiam ser ldquorecolhidos a estabelecimentos puacuteblicos para este fim destinadosrdquo e na

falta destes deveriam ficar sob a tutelas de pessoas que ldquovoluntariamente e

gratuitamenterdquo se dispusessem a criaacute-los (art 412 C Civil)

O processo de tutela do ldquomenorrdquo Oswaldo conhecido por Bibi de 14 anos de

idade oacuterfatildeo de pai e matildee datado de maio de 1920 demonstra que nem sempre era faacutecil

a nomeaccedilatildeo de um tutor para uma crianccedila ou jovem abandonado327

Segundo as

informaccedilotildees do documento Bibi encontrava-se a alguns anos em abandono Assim o

juiz de Direito Augusto Ceacutesar Pedreira Franco nomeou para tutor do dito jovem o sr

Custoacutedio Vaz que deveria prestar o juramento e obrigar-se a fornecer ao menino

alimento e vestuaacuterio necessaacuterio Poreacutem o indicado pediu para ser dispensado pois

estava de viagem marcada para a Europa O processo terminou com a solicitaccedilatildeo de

dispensa do cargo Desse modo natildeo eacute possiacutevel saber que destino o juiz de Direito Ceacutesar

325

GRINBERG Keila Op cit 2001 p 44-45 Cf Neder Gizlene (colaboraccedilatildeo de Gisaacutelio Cerqueira

Filho) ldquoCloacutevis Bevilaacutequa e Paulo Merecirca campo intelectual e processos de secularizaccedilatildeo no Brasil e em

Portugalrdquo In _____ Duas Margens Ideias juriacutedicas e sentimentos poliacuteticos no Brasil e em Portugal na

passagem agrave modernidade Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2011 326

No Coacutedigo Civil art 393 ficou estipulado que as matildees recuperariam o paacutetrio poder dos filhos do

primeiro casamento caso ficassem viuacutevas do segundo matrimocircnio poreacutem nas Ordenaccedilotildees do Reino natildeo

havia tal possibilidade Ordenaccedilotildees Filipinas Quarto Livro tiacutetulo 102 sect 4 p 1000 ndash 1001 327

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Oswaldo data 08-

05-1920 caixa 101

108

Franco deu para Oswaldo uma vez que a cidade de Juiz de Fora natildeo dispunha de uma

instituiccedilatildeo para abrigar ldquomenoresrdquo do sexo masculino como jaacute foi examinado no

primeiro capiacutetulo Provavelmente outro ldquocidadatildeordquo idocircneo foi indicado para tutor ou o

jovem pode ter sido encaminhado para algum abrigo para ldquomenoresrdquo existente no

estado de Minas Gerais

A dificuldade de nomeaccedilatildeo de um tutor para ldquomenoresrdquo oacuterfatildeos e ou

abandonados tambeacutem pode ser observada em outros processos de minha anaacutelise Em

maio de 1893 o juiz de Direito foi informado de que o ldquomenorrdquo Carlos de 13 anos de

idade oacuterfatildeo de pai e matildee estava nas condiccedilotildees de receber tutor O processo se arrastou

ateacute janeiro de 1895 sem deixar expliacutecito se um dos indicados assumiu a funccedilatildeo328

Na

accedilatildeo de tutela de Ramiro de maio de 1888 os cidadatildeos indicados para o encargo

tambeacutem solicitaram escusa329

Geralmente os pedidos de dispensa do cargo se

justificavam pelo fato de os indicados jaacute terem ldquomenoresrdquo sob sua tutela por estarem de

mudanccedila para outra cidade ou estado pela idade avanccedilada entre outros motivos Nas

Ordenaccedilotildees Filipinas e no Coacutedigo Civil estavam especificados quais eram as pessoas

que poderiam assumir a tutela quais eram impedidas e as razotildees para a escusa

Na proacutexima parte seratildeo examinados os processos de tutela de ldquomenoresrdquo

desvalidos oacuterfatildeos e abandonados do municiacutepio de Juiz de Fora no periacuteodo de 1888 a

1930 Na anaacutelise da documentaccedilatildeo procurei observar as estrateacutegias das classes

dominantes de controle da matildeo de obra de crianccedilas e jovens as disputas entre tutores e

familiares pela posse dos ldquomenoresrdquo as dificuldades enfrentadas pelas famiacutelias pobres

na criaccedilatildeo de seus filhos entre outras problemaacuteticas

22 DAR TUTOR ldquoA TODOS OS OacuteRFAtildeOS E MENORESrdquo

De fato o filho natildeo pertence apenas aos pais ele eacute o futuro da naccedilatildeo e da

raccedila produtor reprodutor cidadatildeo e soldado do amanhatilde Entre ele e a

famiacutelia principalmente quando esta eacute pobre e tida como incapaz insinuam-se

terceiros filantropos meacutedicos estadistas que pretendem protegecirc-lo educaacute-lo

disciplinaacute-lo (Michelle Perrot)330

328

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Carlos data 01-05-

1893 caixa 5 processo 2 329

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Ramiro data 25-09-

1888 caixa 100 330 PERROT Michelle ldquoFiguras e papeacuteisrdquo In ______ Histoacuteria da vida privada 4 Da Revoluccedilatildeo

Francesa agrave Primeira Guerra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 p 134

109

Examinei todos os processos de tutelas preservados que estatildeo sob a custoacutedia do

Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora e do Arquivo Histoacuterico da Universidade

Federal de Juiz de Fora no periacuteodo de 1888331

a 1930 Da anaacutelise dessa documentaccedilatildeo

foram selecionados 239 autos que tratam do estabelecimento do viacutenculo tutelar de 346

crianccedilas e jovens pertencentes agraves classes subalternas Utilizei como criteacuterio para

selecionar os documentos a descriccedilatildeo constante nos autos de que o ldquomenorrdquo era pobre

ou extremamente miseraacutevel e natildeo possuiacutea ldquobens de espeacutecie algumardquo era abandonado

Entretanto nem todas as accedilotildees de tutelas trazem essas informaccedilotildees mas atraveacutes de uma

leitura minuciosa percebe-se que se trata de crianccedilas das camadas desfavorecidas da

sociedade A identificaccedilatildeo da profissatildeo do tutor dos pais ou do ldquomenorrdquo a natildeo

declaraccedilatildeo de bens nos termos de tutela o estabelecimento de contrato de soldada satildeo

alguns indicativos da condiccedilatildeo social dos pupilos

Dos 239 processos compulsados 95 (3975) satildeo referentes aos anos de 1888 a

1899 3 (126) ao periacuteodo de 1900 a 1909 9 autos (376) satildeo correspondentes aos

anos de 1910 a 1919 e de 1920 a 1930 foram 132 (5523) registros Todavia o

nuacutemero de crianccedilas tuteladas nesses quatro recortes temporais estabelecidos

apresentou uma grande variaccedilatildeo como pode ser observado no Quadro 4

QUADRO 4

NUacuteMERO DE CRIANCcedilAS TUTELADAS POR PERIacuteODO

NUacuteMERO

TOTAL DE

CRIANCcedilAS

PERIacuteODO

NUacuteMERO

DE

CRIANCcedilAS

346

1888 ndash 1899 172 4971

1900 ndash 1909 05 145

1910 ndash 1919 17 491

1920 - 1930 152 4393

FONTE AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo

de tutelas (1888-1930)

331

Com relaccedilatildeo ao ano de 1888 analisei apenas os processos posteriores agrave aboliccedilatildeo da escravidatildeo em 13

de maio de 1888

110

Com relaccedilatildeo ao periacuteodo de 1888-1899 eacute necessaacuterio ressaltar que o ano de 1888

correspondeu sozinho por 39 (4105) processos que incidiram sobre 87 (5058)

crianccedilas As pesquisas nos processos de tutelas nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX tecircm

destacado que o ano de 1888 assistiu a uma verdadeira corrida de parcela dos setores

dominantes aos juiacutezes de oacuterfatildeos para legalizarem a situaccedilatildeo dos filhos das ex-escravas

atraveacutes do viacutenculo tutelar Muitos ex-senhores conseguiram se beneficiar desse

expediente legal e mantiveram sob sua guarda os filhos de ex-cativas Maria Aparecida

Papali assinala que das 330 accedilotildees de tutela analisadas para a cidade de Taubateacute no

periacuteodo de 1871-1895 154 se deram no ano de 1888332

O periacuteodo de 1888 a 1899 apresentou um nuacutemero menor de processos de tutelas

se comparado com o intervalo de 1920 a 1930 Poreacutem quando a anaacutelise recai sobre o

nuacutemero de crianccedilas observa-se que nos anos finais do seacuteculo XIX mais ldquomenoresrdquo

foram tutelados sendo 172 pupilos para o primeiro momento e 152 para o segundo Isso

se deve ao fato de um mesmo processo de tutela se referir a diversos ldquomenoresrdquo Logo

apoacutes a aboliccedilatildeo os antigos senhores solicitaram a tutela dos filhos de suas ex-escravas

em uma uacutenica peticcedilatildeo como na accedilatildeo em que o capitatildeo Joseacute Pedro Ferreira de Souza em

agosto de 1888 requereu a tutela dos rebentos de suas ex-cativas ao todo foram 21

ldquomenoresrdquo tutelados por esse ldquocidadatildeordquo333

No graacutefico 1 estaacute apresentado o nuacutemero de

crianccedilas tuteladas no municiacutepio de Juiz de Fora no periacuteodo de 1888 a 1930

332

PAPALI Maria Aparecida C R A legislaccedilatildeo de 1871 o judiciaacuterio e a tutela de ingecircnuos na cidade de

Taubateacute In Revista Justiccedila e Histoacuteria Porto Alegre Tribunal de Justiccedila do Rio Grande do Sul v 2 n 3

2002 httpwwwtjrsjusbrexportpoder_judiciariohistoriamemorial_do_poder_judiciariomemorial

_judiciario_gauchorevista_justica_e_historiaissn_1676-5834v2n3doc09-Papalipdf Acessado 01-07-

2015 Anna Gicelle G Alaniz ressalta que a partir do momento que os proprietaacuterios perceberam que o fim

da escravidatildeo era inevitaacutevel foram tomados de ldquouma febre tutelarrdquo A autora tambeacutem percebeu um

aumento no nuacutemero de tutelas de menores afrodescendentes no ano de 1888 (1997 p 51e 59) 333

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas Suplicante Capitatildeo Joseacute

Pedro Ferreira de Souza Data 04-08-1888 caixa 100

111

GRAacuteFICO 1

FONTE AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos

relativos agrave accedilatildeo de Tutelas (1888-1930)

No que diz respeito ao nuacutemero de tutelas por periacuteodo no graacutefico abaixo eacute

apresentado um iacutendice elevado de autos na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX ou seja

num momento de implantaccedilatildeo do regime de trabalho livre na sociedade brasileira

seguido de uma queda acentuada na documentaccedilatildeo nos primeiros 20 anos do novecentos

e uma retomada de crescimento das accedilotildees tutelares na deacutecada de 1920

GRAacuteFICO 2

FONTE AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos

relativos agrave accedilatildeo de Tutelas (1888-1930)

O nuacutemero expressivo de tutelas no intervalo de 1888 a 1899 estaacute possivelmente

relacionado com o fim do regime de trabalho compulsoacuterio e a implantaccedilatildeo das relaccedilotildees

112

de trabalho livre Assim num primeiro momento os setores dominantes de Juiz de Fora

vislumbraram no viacutenculo tutelar uma estrateacutegia de manutenccedilatildeo e controle de uma

parcela da matildeo de obra no caso especiacutefico a do trabalhador infanto-juvenil Um

percentual maior de processos nos anos finais do seacuteculo XIX corrobora com as

pesquisas que afianccedilam que apoacutes a lei Rio Branco mais conhecida por Lei do Ventre

Livre (1871) houve uma corrida por parte dos setores dominantes para o

estabelecimento do viacutenculo tutelar de crianccedilas desvalidas e ou abandonadas As

solicitaccedilotildees encaminhadas ao poder judiciaacuterio utilizavam o discurso da proteccedilatildeo do

educar e amparar os ldquomenoresrdquo e ingecircnuos334

Apesar das Ordenaccedilotildees do Reino determinarem que fossem dados tutores ldquoa

todos os oacuterfatildeos e menoresrdquo ndash ricos pobres e expostos335

ndash tal praacutetica parece natildeo ter sido

a regra no Brasil colonial e monaacuterquico uma vez que antes da lei de 1871 foram

sobretudo as crianccedilas ricas que receberam tutores Aproveitando-se dessa determinaccedilatildeo

do Coacutedigo Filipino uma parcela da classe dominante com um discurso de proteccedilatildeo de

amizade e afeto pelos ldquomenoresrdquo pobres e pelos ingecircnuos passou a solicitar aos juiacutezes a

tutela dos mesmos apoacutes a decretaccedilatildeo da Lei do Ventre Livre336

Elione Guimaratildees em seu estudo sobre a populaccedilatildeo afrodescendente do

municiacutepio de Juiz de Fora (1850-1895) assinalou que foi encontrado apenas um

processo de tutela envolvendo uma crianccedila afrodescendente anterior a lei Rio Branco

de 1871 A tutela de marccedilo de 1869 era da menina Margarida de 11 anos de idade

parda que foi liberta por seu senhor A autora argumentou que antes da Lei do Ventre

Livre houve crianccedilas alforriadas e que estavam de acordo com a legislaccedilatildeo vigente

aptas a receberem tutores mas aparentemente natildeo houve uma preocupaccedilatildeo no periacuteodo

anterior em formalizar a guarda e proteccedilatildeo dessas crianccedilas O interesse surgiu apenas

quando o ventre da escrava deixou de gerar novos seres escravizados337

334

ZERO Arethuza Helena O preccedilo da liberdade caminhos da infacircncia tutelada ndash Rio Claro (1871-

1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Campinas (SP) Unicamp 2004 p 64 e 73

httplibdigiunicampbrdocumentcode=vtls000329956) Cf FRANCISCO Raquel Pereira

ldquoAutonomia e Liberdade os processos de tutelas de menores ingecircnuos e libertos ndash Juiz de Fora (1870-

1900)rdquo In Cadernos de Ciecircncias Humanas ndash Especiarias Ilheacuteus (BA) Universidade Estadual de Santa

Cruz v 10 n 18 jul-dez pp 649-676 2007 Disponiacutevel em

wwwuescbrrevistasespeciariased1811_raquel_franciscopdf Acessado em 05-07-2015 335

As notas introdutoacuterias do Quarto Livro Tiacutetulo 102 das Ordenaccedilotildees Filipinas assinalam que se deveria

dar tutor aos oacuterfatildeos ricos pobres e expostos Ordenaccedilotildees Filipinas (Quarto Livro Tiacutetulo 102 p 995) 336

ZERO Arethuza Helena Op cit 2004 p 69 337

GUIMARAtildeES Elione Silva Op cit 2006 p 110-111 Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas escravas Guimaratildees

ressalta que a estas natildeo eram dados tutores uma vez que os senhores eram seus tutores naturais p 110

113

No periacuteodo de 1900 a 1919 como evidenciado no graacutefico anterior ocorreu uma

queda draacutestica no nuacutemero de processos de tutelas de ldquomenoresrdquo pobres e ou

abandonados se comparado com os anos anteriores e posteriores Esses vinte anos soacute

registraram 12 accedilotildees de tutelas de ldquomenoresrdquo desvalidos Tal fato pode ser um

indicativo de que muitos processos natildeo foram preservados ou de uma procura menor

pelo estabelecimento do viacutenculo tutelar por parte das classes dominantes A presenccedila

abundante de matildeo de obra no municiacutepio em tela ndash o que contribuiacutea para a reduccedilatildeo dos

niacuteveis salariais ndash e a ausecircncia de uma legislaccedilatildeo trabalhista nos primeiros anos

republicanos provavelmente foram fatores que desestimularam os setores dominantes a

assumir a guarda legal de crianccedilas desvalidas e ou abandonadas338

Ressalta-se ainda

que o viacutenculo tutelar implicava algumas obrigaccedilotildees do tutor com o pupilo disputas com

familiares da crianccedila pela guarda problemas com a justiccedila em caso de fugas ou

desparecimento do ldquomenorrdquo entre outras questotildees

Quando argumento que as classes dominantes se desinteressaram pela tutela de

crianccedilas das classes subalternas natildeo estou desconsiderando o fato de muitas famiacutelias

abastadas terem continuado a receber ou a manter em suas residecircncias esses ldquomenoresrdquo

na condiccedilatildeo de empregados e ou aprendizes sem nenhum viacutenculo legal Faccedilo tal

ponderaccedilatildeo pelo fato de algumas peticcedilotildees assinalarem que a crianccedila vivia a 4 5 anos ou

mais na residecircncia do suplicante O pedido de tutela em muitos casos soacute foi realizado

quando havia uma necessidade legal ndash por exemplo para o consentimento de casamento

ndash ou quando algum familiar ou outra pessoa pretendesse retirar o ldquomenorrdquo da casa em

que estava vivendo entre outros fatores A transcriccedilatildeo a seguir endossa a minha

reflexatildeo a esse respeito Em julho de 1922 Mauro Roquete Pinto solicitou a tutela de

Maria da Conceiccedilatildeo Oliveira de 17 anos Segundo o peticionaacuterio

[] em outubro de 1907 recolheu sob seu tecto a menor Maria da Conceiccedilatildeo

Oliveira que abandonada por sua mae Francisca de Oliveira ebria habitual

perambulava pelas estradas do Districto de Stordf Anna do Deserto sem

assistencia moral e material e como o suppte ignore o paradeiro desta vem

requerer lhe seja permittido assignar termo de tutela da referida menor que

conta presentemente 17 annos de idade para o fim de consentir no seu

casamento com Jose Lopes de Carvalho tambem empregado do suppte339

338

Luiacutes Eduardo de Oliveira em seu estudo sobre a formaccedilatildeo do proletariado em Juiz de Fora ressalta

que no municiacutepio natildeo houve a tatildeo propalada carecircncia de trabalhadores na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o

XX Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Os trabalhadores e a cidade A formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de

Fora e suas lutas por direitos (1877-1920) Juiz de Fora (MG) Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV

2010 p 154-155 191-192 205-206 339

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Maria da Conceiccedilatildeo

Oliveira data 17-07-1922 caixa 101

114

Atraveacutes da descriccedilatildeo acima observa-se que Maria da Conceiccedilatildeo Oliveira passou

praticamente os primeiros anos de sua vida sob o ldquotectordquo do suplicante sem nenhuma

regularizaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo Pelo relato de Mauro Roquete Pinto depreende-se que a

ldquomenorrdquo era sua empregada entretanto natildeo haacute nos autos nenhuma referecircncia a um

contrato de trabalho ou a existecircncia de uma caderneta para recolhimento de seus

proventos Em muitos processos de tutela o Juiz arbitrava o valor mensal de uma

ldquosoldadardquo340

para o pupilo Os salaacuterios deveriam ser depositados em uma caderneta da

Caixa Econocircmica Estadual que seriam resgatados mais os juros quando o ldquomenorrdquo

atingisse a maioridade civil ou se emancipasse pelo casamento como o caso em anaacutelise

Com relaccedilatildeo agrave soldada o juiz de Direito Augusto Ceacutesar Pedreira Franco

assinalou no processo de tutela de Maria Duarte de 16 anos de idade de julho de 1920

O direito moderno natildeo manteve o instituto da soldada de que cogitava o

direito antigo anterior ao Cod Civil Entretanto sendo a menor pobre e jaacute

estando em edade de trabalhar poacutede o tutor empregal-a em serviccedilos

compatiacuteveis com a sua condiccedilatildeo e recolher mensalmente em seu nome aacute

Caixa econocircmica os seus salaacuterios que devem ser conhecidos em juiacutezo

[]341

Apesar de o Coacutedigo Civil natildeo tratar da remuneraccedilatildeo do trabalho dos ldquomenoresrdquo

tutelados nos processos que analisei poacutes Coacutedigo a expressatildeo soldada ou contrato de

soldada manteve-se O mesmo juiz de Direito Ceacutesar Franco em uma accedilatildeo de tutela de

fevereiro de 1926 determinou que o tutor pagasse uma soldada a sua pupila Arriquinto

Costa em sua peticcedilatildeo assinalou que a ldquomenorrdquo Maria de Almeida Costa de 17 anos de

idade abandonada pelos pais vivia em sua companhia desde um ano de idade e que

estava numa faixa etaacuteria que ldquonecessita(va) de proteccedilatildeo legalmente auctorisadardquo por

340

De acordo com o dicionaacuterio publicado sob a direccedilatildeo de Jayme de Seguier (1947) soldada era o salaacuterio

de criados operaacuterios etc Cf SEGUIER Jayme de Diccionaacuterio Praacutetico Illustrado novo diccionaacuterio

encyclopeacutedico luso-brasileiro Porto Lello amp Irmatildeo Editores 1947 p 1068 A soldada poderia ser paga

pelo tutor mediante a arbitragem do Juiz ou poderia ser assinada por outra pessoa em conformidade com o

Juiz No processo de tutela dos irmatildeos Francisco Idalina e Emygdio de julho de 1891 o tutor e tio dos

ldquomenoresrdquo Albino Franco Barreiro solicitou a autorizaccedilatildeo do Juiz de Oacuterfatildeos para que pudesse dar os

ldquomenoresrdquo Idalina e Emygdio de 14 e 12 anos de idade respectivamente agrave soldada ou fazer contrato de

locaccedilatildeo de serviccedilos O Juiz de Oacuterfatildeos Adeodato de Andrade Botelho deferiu o pedido e em setembro de

1892 Manoel de Aquino Ramos assinou o contrato de soldada e locaccedilatildeo de serviccedilos dos ditos irmatildeos O

locataacuterio dos serviccedilos se obrigava ldquoa cuidar-lhes da educaccedilatildeo moral e litteraria obrigando-se mais a todas

as condiccedilotildees offerecidas na dita peticcedilatildeo e ainda recolhendo os vencimentos dos menores mensalmente a

caixa econocircmica drsquoesta cidade e apresentando os a este juiz sempre que lhes for ordenado []rdquo

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menores Francisco Idalina e

Emygdio data 02-07-1891 caixa 5 processo 4 341 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Maria Duarte data

22-07-1920 caixa 101

115

isso solicitava a guarda da mesma e se comprometia a continuar a ldquoprotegerrdquo a jovem

que residia ldquocom a famiacutelia do suplicanterdquo O juiz deferiu o requerimento e determinou

que Arriquinto Costa tinha a ldquoobrigaccedilatildeo de sustental-a ou antes alimental-a e pagar-lhe

a soldada de 15$000 mensaesrdquo342

De maneira idecircntica ao caso de Maria da Conceiccedilatildeo Oliveira a legalizaccedilatildeo da

situaccedilatildeo de Maria de Almeida Costa ocorreu depois de longos anos de convivecircncia com

a famiacutelia do peticionaacuterio Poreacutem o pedido de sua tutela foi justificado pelo fato de a

jovem encontrar-se em uma idade que ldquonecessita(va) de proteccedilatildeo legalmente

auctorisadardquo Ateacute a idade de 17 anos Maria de Almeida natildeo necessitou de proteccedilatildeo

legal Seria a atitude de Arriquinto Costa motivada pelo receio da jovem resolver deixar

sua residecircncia ou pela existecircncia de algum parente ou outra pessoa que estivesse

procurando ter a guarda da mesma uma vez que a ldquomenorrdquo se encontrava em uma faixa

etaacuteria que poderia ser empregada como matildeo de obra em diversas atividades laborativas

Retornando a discussatildeo sobre o pequeno nuacutemero de processos de tutelas no

intervalo de 1900 a 1919 outra consideraccedilatildeo pode ser feita a esse respeito Juiz de Fora

constituiu-se no principal municiacutepio industrial do estado de Minas Gerais nas primeiras

deacutecadas do seacuteculo XX Esse setor empregava um nuacutemero expressivo de crianccedilas em

suas instalaccedilotildees como jaacute ressaltei neste estudo Dessa forma argumento que a queda no

nuacutemero de processos de tutelas entre 1900 a 1919 possa tambeacutem estar relacionada ao

fato de as famiacutelias pobres estarem empregando seus rebentos nos estabelecimentos

industriais assim natildeo precisavam abandonaacute-los ou entregaacute-los agraves famiacutelias abastadas

Ressalto ainda que estamos num momento em que natildeo havia leis de proteccedilatildeo ao

trabalhador de forma geral nem uma regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-juvenil

Crianccedilas de pouca idade eram empregadas e jaacute contribuiacuteam com as despesas familiares

Outro fator relacionado agrave induacutestria pode ser elencado foi nesse periacuteodo que se deu a

eclosatildeo da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918) O conflito mundial trouxe

problemas para o setor agroexportador brasileiro mas em contrapartida o setor

industrial de bens de consumo foi beneficiado com investimentos e experimentou um

crescimento expressivo Poreacutem os benefiacutecios auferidos pelos industriais com a guerra

natildeo foram repartidos com os operaacuterios que continuaram recebendo baixos salaacuterios e

enfrentando um custo de vida cada vez mais alto Nessa conjuntura de carestia para as

classes subalternas provavelmente muitos pais empregaram seus rebentos nas faacutebricas

342

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Maria de Almeida

Costa data 25-02-1926 caixa 101

116

que em expansatildeo necessitavam de mais braccedilos ou entregaram os ldquomenoresrdquo para as

famiacutelias abastadas sem as formalidades legais

Todavia o periacuteodo de 1920 a 1930 assistiu a um crescimento no nuacutemero de

processos de tutelas no municiacutepio de Juiz de Fora chegando a 132 autos O que teraacute

ocorrido nessa deacutecada para explicar o aumento dos pedidos de tutelas de crianccedilas

desvalidas por setores das classes dominantes Uma das provaacuteveis explicaccedilotildees pode

estar relacionada agraves reivindicaccedilotildees do movimento operaacuterio por direitos sociais e pela

regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-juvenil e feminino A mobilizaccedilatildeo operaacuteria

principalmente nos grandes centros industriais (Rio de Janeiro e Satildeo Paulo) durante a

deacutecada de 1910 pressionou o governo a classe empresarial e setores da intelectualidade

a discutir a chamada questatildeo social Apoacutes longos debates foi aprovada a primeira lei

trabalhista brasileira a de Acidentes no Trabalho em 1919 que seraacute discutida no

proacuteximo capiacutetulo Outro fator para esse crescimento nos autos de tutelas no decorrer do

dececircnio de 1920 pode ser o fato de que apoacutes a Primeira Guerra Mundial em acircmbito

internacional ocoreu uma intensa discussatildeo sobre os direitos da crianccedila sendo

aprovada em 1923 a Declaraccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila (Declaraccedilatildeo de Genebra)

Dentro desse contexto internacional de discussatildeo sobre a infacircncia o Brasil tambeacutem

passou a debater sobre a situaccedilatildeo de sua infacircncia desvalida abandonada delinquente e

operaacuteria Segundo Irene Rizzini o periacuteodo de 1923 a 1927 foi especialmente produtivo

em termos de leis que visavam abarcar todos os aspectos relativos agrave ldquoassistecircncia e

proteccedilatildeo agrave infacircncia abandonada e delinquenterdquo no Brasil343

A culminacircncia desses

debates foi a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores em 1927 Creio que em virtude da

intervenccedilatildeo estatal na questatildeo trabalhista e agraves discussotildees sobre os direitos da crianccedila no

decorrer dos anos 1920 as classes dominantes passaram a ver no viacutenculo tutelar

novamente uma forma de controle da matildeo de obra dos ldquomenoresrdquo A utilizaccedilatildeo do

trabalho dos pupilos pelos tutores natildeo foi objeto de consideraccedilatildeo do Coacutedigo Civil nem

do Coacutedigo de Menores Apesar de o Coacutedigo de 1927 versar sobre diversos assuntos

relativos agrave utilizaccedilatildeo do trabalho de ldquomenoresrdquo como seraacute examinado no terceiro

capiacutetulo natildeo haacute nos seus 231 artigos uma referecircncia ao pagamento de salaacuteriossoldadas

aos tutelados pobres que tinham sua matildeo de obra explorada pelos tutores Assim a

343

RIZZINI Irene ldquoCrianccedilas e menores ndash do Paacutetrio poder ao Paacutetrio Dever Um histoacuterico da legislaccedilatildeo

para a infacircncia no Brasilrdquo In RIZZINI Irene PILOTTI Francisco (orgs) A arte de governar crianccedilas

a histoacuteria das poliacuteticas sociais da legislaccedilatildeo e da assistecircncia agrave infacircncia no Brasil Satildeo Paulo Cortez

2011 p 130

117

tutela se constituiacutea em um meio legal de utilizaccedilatildeo compulsoacuteria do trabalho infanto-

juvenil pelos tutores

Com relaccedilatildeo agrave idade dos ldquomenoresrdquo tutelados as abordagens tecircm demonstrado

que o sexo masculino se fez mais presente no periacuteodo de transiccedilatildeo do trabalho escravo

para o livre Alessandra David no estudo desenvolvido em Franca (1859-1888)

percebeu que 74 dos tutelados eram meninos344

Essa superioridade masculina

tambeacutem foi observada por Arethuza Zero na anaacutelise de 140 registros de Rio Claro

(1871-1888) 61 referia-se a ldquomenoresrdquo do sexo masculino345

Essa presenccedila maior de

meninos nas tutelas tambeacutem foi detectada para Juiz de Fora no periacuteodo de 1871 a 1900

sendo que 572 dos tutelados refere-se a esse grupo346

Nos primeiros anos apoacutes a

aboliccedilatildeo da escravidatildeo o sexo masculino ainda continuou a predominar nas accedilotildees de

tutelas processadas pelo poder judiciaacuterio da comarca de Juiz de Fora Das 172 crianccedilas

tuteladas entre 1888 a 1899 78 (4535) eram referentes ao sexo feminino e 94

(5465) ao masculino Todavia para o periacuteodo de 1900 a 1930 o quadro se inverte

completamente ou seja as meninas tornam-se majoritaacuterias nessa documentaccedilatildeo Das

174 crianccedilas tuteladas 123 (7069) satildeo referentes a meninas e 51 (2931) a meninos

como pode ser visualizado no quadro abaixo

QUADRO 5

PRESENCcedilA FEMININA E MASCULINA NOS PROCESSOS DE TUTELAS

(1888-1930)

PERIacuteODO MENINAS MENINOS TOTAL

1888-1899 78 4535 94 5465 172

1900-1909 03 60 02 40 05

1910-1919 10 5882 07 4118 17

1920-1930 110 7237 42 2763 152

FONTEAHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de

tutelas (1888-1930)

344

DAVID Alessandra (1997) apud TEIXEIRA Heloisa M TEIXEIRA Heloisa Maria A natildeo-

infacircncia crianccedilas como matildeo-de-obra compulsoacuteria em Mariana (1850-1900) 2004 p 11

httpwwwcedeplarufmgbrdiamantina2004textosD04A030PDF 345

ZERO Arethuza H Op cit 2004 p 81 346

FRANCISCO Raquel Pereira Laccedilos da senzala arranjos da flor de maio relaccedilotildees familiares e de

parentesco entre a populaccedilatildeo escrava e liberta ndash Juiz de Fora (1870-1900) Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Niteroacutei UFF 2007

118

No decorrer do processo de emancipaccedilatildeo do regime de trabalho escravo muito

se discutiu sobre o provaacutevel abandono das fazendas pelos cativos quando da aboliccedilatildeo

Poreacutem tal fato natildeo ocorreu como as previsotildees mais pessimistas alardeavam Num

primeiro momento poacutes-aboliccedilatildeo ocorreu uma movimentaccedilatildeo dos libertos alguns

deixaram a propriedade em que tinham sido escravos para se empregarem em outras

unidades produtivas Outros abandonaram as fazendas em busca de melhores condiccedilotildees

de vida na aacuterea urbana outros mudaram de cidade e ou regiatildeo mas a maioria

permaneceu no trabalho da lavoura Aleacutem do fato de um grande contingente de libertos

ter permanecido no campo no municiacutepio de Juiz de Fora deve-se ressaltar que essa

regiatildeo da Mata Mineira tambeacutem recebeu uma leva expressiva de imigrantes o que

contribuiu para a natildeo desestruturaccedilatildeo da produccedilatildeo nas unidades347

Posto isso presumo

que num primeiro momento de estruturaccedilatildeo das novas relaccedilotildees de trabalho poacutes-

emancipaccedilatildeo setores dos grupos dominantes tenham recorrido ao viacutenculo tutelar como

uma medida de manutenccedilatildeo e controle de uma parcela da matildeo de obra com prioridade

para a masculina possivelmente em funccedilatildeo da atividade agriacutecola em que se pretendia

empregaacute-la

Todavia natildeo tendo se concretizado a tatildeo propalada escassez de braccedilos para a

lavoura no municiacutepio de Juiz de Fora e com o assentamento das relaccedilotildees de trabalho

livre possivelmente tenha arrefecido o iacutempeto dos setores dominantes pela tutela de

ldquomenoresrdquo do sexo masculino para serem empregados nos trabalhos agriacutecolas Por outro

lado a matildeo de obra de meninas para serem utilizadas principalmente nas atividades

domeacutesticas dos lares das classes dominantes manteve-se Acrescente-se que essa matildeo de

obra tambeacutem estava sendo requisitada pelo setor fabril da cidade o que tornava o

viacutenculo tutelar uma maneira de manutenccedilatildeo da criadagem

Joseacute Carlos da Silva Cardozo em seu estudo com processos de tutelas de Porto

Alegre (RS) no periacuteodo da Primeira Repuacuteblica (1902 ndash 1925) tambeacutem encontrou um

nuacutemero maior de meninas sendo tuteladas Das 267 crianccedilas de sua anaacutelise 59 eram

do sexo feminino O autor argumentou que a preferecircncia por esse sexo poderia estar

347

GUIMARAES Elione Silva Op cit 2006 p 78 Cf SARAIVA Luiz Fernando Um correr de

casas antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Niteroacutei UFF 2001 SOUZA Sonia Maria de (2003) Terra famiacutelia e solidariedade

estrateacutegias de sobrevivecircncia camponesa no periacuteodo de transiccedilatildeo ndash Juiz de Fora (1870-1920) Tese de

Doutoramento Niteroacutei UFF 2003

119

relacionada agrave questatildeo da proteccedilatildeo da honra e da virgindade bem como agrave prestaccedilatildeo de

serviccedilos domeacutesticos348

Na proacutexima parte apresento a anaacutelise dos processos de tutelas em que os

ldquomenoresrdquo foram alvos de disputas entre familiares e tutores Creio que os motivos para

uma parte expressiva desses conflitos entre tutores e familiares seja a questatildeo da

utilizaccedilatildeo da matildeo de obra das crianccedilas

2 3 TENSOtildeES E CONFRONTOS AS DISPUTAS ENTRE PAIS

E TUTORES PELA GUARDA DOS ldquoMENORESrdquo

Entre inuacutemeros pontos divergentes que o momento ensejou [fim da

escravidatildeo] uma questatildeo parece ter se destacado como foco de tensotildees

remanescentes entre ex-senhores e libertos Tal pendecircncia refere-se agrave

fragilidade social na qual se encontrava o ingecircnuo transformado em oacuterfatildeo

crianccedila abandonada ou simplesmente ldquomenorrdquo com o findar do mundo

escravista (Maria Aparecida C R Papali)349

Com a aboliccedilatildeo da escravidatildeo no Brasil em maio de 1888 diversos proprietaacuterios

recorreram aos juiacutezes de oacuterfatildeos para conseguirem a tutela dos filhos de suas ex-cativas

Como jaacute salientado provavelmente esta foi uma estrateacutegia das classes dominantes de

manutenccedilatildeo e controle da matildeo de obra dos rebentos das ex-escravas Todavia nem

sempre os homens e mulheres egressos do cativeiro se mantiveram passivos aos mandos

e desmandos dos antigos senhores Atraveacutes dos processos de tutelas eacute possiacutevel

acompanhar a luta dos libertos para terem ou manterem a guarda de sua prole

A tutela como um recurso de manutenccedilatildeo e controle de uma parcela da matildeo de

obra natildeo se restringiu apenas aos filhos dos libertos mas se estendeu agraves crianccedilas dos

estratos sociais subalternos Estes tambeacutem lutaram pela guarda de seus entes

Atraveacutes dos autos de tutela eacute possiacutevel acompanhar a luta de tutores e familiares

pela guarda das crianccedilas As disputas na justiccedila pela guarda dos ldquomenoresrdquo agraves vezes

arrastavam-se por meses e ateacute anos

348

CARDOZO Jose Carlos da Silva ldquoO juiacutezo dos oacuterfatildeos e a tutela de menoresrdquo Scripta Nova Revista

Eletroacutenica de Geografia y Ciencias Sociales Universidad de Barcelona v XVI n 395 (14) mar 2012

pp 1-15 Disponiacutevel em httpwwwubesgeocritsnsn-395sn-395-14htm Acessado em 30-10-2014 349 PAPALI Maria Aparecida C R ldquoA legislaccedilatildeo de 1871 o judiciaacuterio e a tutela de ingecircnuos na cidade

de Taubateacuterdquo In Revista Justiccedila e Histoacuteria v 2 n 3 pp 1-18 2002 p 10 Disponiacutevel em

wwwtjrsjusbrexportpoder_judiciariohistoriamemorial_do_poder_judiciariomemorial_judiciario_gau

chorevista_justica_e_historiaissn_1676-5834v2n3doc09-Papalipdf Acessado em 10-07-2015

120

Nos processos de tutelas examinados na peticcedilatildeo dirigida ao Juiz comunicando a

existecircncia de ldquomenoresrdquo pobres ou abandonados em determinado lugar ou residecircncia do

municiacutepio em condiccedilotildees de receber tutor as matildees eram geralmente descritas como

ldquomuito pobresrdquo ldquodadas ao vicio da embriagues e da prostituiccedilatildeordquo ldquosolteira e sem

residecircncia fixardquo etc A suposta maacute conduta das mulheres conjugada agrave situaccedilatildeo de

pobreza contribuiu para que muitas crianccedilas fossem dadas a tutores dativos Segundo

Martha Abreu e Alessandra Martinez

[] As famiacutelias dos setores populares quase sempre associadas agrave

ldquoignoracircncia pobreza descuido viacutecio abandono licenciosidaderdquo e muitas

vezes vistas como criadoras de criminosos e delinquentes eram acusadas de

ldquoincapazesrdquo no que diz respeito agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo de suas crianccedilas350

A partir do momento em que o juiz tomava conhecimento da existecircncia de

ldquomenoresrdquo a que se deveria dar tutor era entatildeo indicado um tutor dativo caso natildeo

houvesse um testamentaacuterio ou um legiacutetimo A tutela dativa poderia ser dada ao

peticionaacuterio caso aceitasse o encargo ou a outra pessoa da localidade desde que ficasse

provada a sua idoneidade

Com a emancipaccedilatildeo do cativeiro os libertos tiveram de enfrentar diversas

dificuldades como a falta de educaccedilatildeo de terras de trabalho de moradia entre outras

Um artigo do jornal O Pharol do dia 19 de maio de 1888 assinado por Olympio de

Arauacutejo351

chamava a atenccedilatildeo para as dificuldades que os libertos do 13 de maio teriam

de enfrentar e indagava sobre quantos ldquolibertos valetudinaacuteriosrdquo e ldquoquantos ingecircnuos

desprotegidos iram sofrer os horrores da miseacuteria e da fomerdquo352

Feitas essas

indagaccedilotildees ele ainda perguntava se natildeo seria o caso de se criar uma associaccedilatildeo

beneficente para cuidar desses ldquoinfelizesrdquo

Nos dias seguintes agrave promulgaccedilatildeo da Lei Aacuteurea o jornal O Pharol publicou

vaacuterias notiacutecias de festejos em homenagem agrave dita lei bem como reclamaccedilotildees de

fazendeiros que se sentiram espoliados pelo ato da princesa Isabel Mas passados os

momentos de empolgaccedilatildeo os libertos se depararam com uma dura realidade entre

outras a dificuldade de reconstruiacuterem seus laccedilos familiares O ldquotreze de maio o mecircs das

floresrdquo353

tambeacutem trouxe os espinhos para os homens e mulheres egressos do cativeiro

350

ABREU Martha MARTINEZ Alessandra Frota op cit p 25 351

AHUFJF O Pharol 19 mai 1888 p 1 Olympio de Araujo em seu artigo ressaltou uma coincidecircncia

admiraacutevel segundo ele a lei Aacuteurea foi assinada no dia de Nossa Senhora dos Maacutertires 352

Idem 353

AHUFJF O Pharol 18 mai 1888 p 1-2 Artigo exaltando a Lei de 13-05-1888

121

A existecircncia de ldquomenoresrdquo afrodescendentes tutelados por ldquohomens bonsrdquo do

municiacutepio de Juiz de Fora levou os pais a terem de lutar pela guarda de seus filhos no

poacutes-emancipaccedilatildeo

O Pharol do dia 18 de julho de 1888 publicou uma mateacuteria da Gazeta da

Comarca em que se discutia a falta de providecircncias do governo com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo

dos ingecircnuos e dos libertos inabilitados para o trabalho por algum motivo depois de jaacute

terem passados dois meses da assinatura da Lei Aacuteurea Com relaccedilatildeo agrave sorte dos

ingecircnuos segundo o texto jornaliacutestico o Juiz de Oacuterfatildeos da comarca havia deliberado

que iriam lhes dar a soldada ldquo[] ainda mesmo aos lavradores mediante contrato feito

com o juiacutezo e aceitaccedilatildeo de certas clausulas essenciaisrdquo para que estes ldquomenoresrdquo

tivessem uma ldquoeducaccedilatildeo proveitosardquo354

Ainda eacute ressaltado que os ldquomenoresrdquo soacute seriam

entregues a seus pais mediante o reconhecimento deles por meio do casamento ou por

intermeacutedio de declaraccedilatildeo realizada em cartoacuterio De acordo com o texto parece que os

lavradores teriam primazia na soldada dessas crianccedilas No final da mateacuteria novamente

eacute feita referecircncia aos lavradores fazendeiros tomarem esses ldquomenoresrdquo para protegecirc-

los como se pode observar por este trecho

Assim pois para assegurar-se aos ingecircnuos e oacuterfatildeos menores uma proteccedilatildeo

definida que tanto atenda aacute sorte atual como ao seu aproveitamento futuro e

jaacute para que sobre este assunto natildeo se suscitem duvidas reciprocamente

desagradaacuteveis conveacutem que os fazendeiros que desejem tomar a si o cargo da

educaccedilatildeo dos ingecircnuos faccedilam os respectivos contratos com o juiacutezo de oacuterfatildeos

que procuraraacute estamos certos conciliar todos os interesses e atender a todas

as circunstacircncias355

[grifos meus]

Ter algueacutem que cuidasse da educaccedilatildeo dos ingecircnuos e oacuterfatildeos era importante

como se depreende do texto tanto para o presente quanto para o futuro deles e presumo

que tambeacutem da lavoura uma vez que representariam braccedilos para a mesma A educaccedilatildeo

desses ldquomenoresrdquo permitiria que eles fossem ldquoaproveitados no futurordquo como

trabalhadores ordeiros A educaccedilatildeo destinada agraves crianccedilas desvalidas era o ensino

primaacuterio e o aprendizado de um ofiacutecio O trabalho para esses ldquomenoresrdquo era concebido

como um ldquoremeacutediordquo para os viacutecios e para o oacutecio a que estavam sujeitos se natildeo

houvesse quem os amparasse E eles podiam encontrar esse ldquoamparo e proteccedilatildeordquo

segundo o artigo do jornal entre a classe dos fazendeiros

354

AHUFJF O Pharol 18 jul 1888 p 1 355

AHUFJF O Pharol 18 jul 1888 p 1

122

Alguns proprietaacuterios colocavam em seus requerimentos que aceitavam o encargo

ldquoespinhosordquo356

de tutor com o intuito apenas de proteger os ldquomenoresrdquo desamparados

bem como pela estima e amizade que tinham pelos mesmos Para Elione Guimaratildees

algumas solicitaccedilotildees de tutelas realmente poderiam ser motivadas por sentimentos de

afeto e amizade e ainda acrescenta que muitas das crianccedilas requeridas poderiam ser

frutos ilegiacutetimos de algum parente do peticionaacuterio357

A esse respeito argumento que

algumas dessas crianccedilas poderiam ser filhas ilegiacutetimas do proacuteprio requerente358

Em

outros casos segundo Guimaratildees a tutela era solicitada como uma medida preventiva

de problemas com a justiccedila pois os juiacutezes de oacuterfatildeos poderiam ser informados por

algueacutem da existecircncia de crianccedilas nas condiccedilotildees de se dar tutor Por isso ldquoalguns

provavelmente preferiram se adiantar a ter algum vizinho lsquopreocupadorsquo com o bem estar

de menores a denunciaacute-losrdquo359

O processo de tutela dos oacuterfatildeos Edgar Cyrino e Edson Cyrino de 2 e 6 anos de

idade respectivamente filhos de Antonio Cyrino e de D Palmyra Marccedilolla

provavelmente eacute um caso em que o viacutenculo tutelar foi estabelecido por relaccedilotildees de

amizade Em setembro de 1929 o operaacuterio Eugenio Ribeiro Bastos solicitou a tutela dos

irmatildeos Edgar e Edson Cyrino que natildeo possuiacuteam bens Segundo o peticionaacuterio essa

famiacutelia era do seu ldquoconhecimentordquo e com a qual ldquomanteve relaccedilotildeesrdquo Em virtude da

suposta amizade e ao fato de os ldquomenoresrdquo terem ficado ldquoem plena orphandade e no

mais triste dos desamparosrdquo ele requereu a tutela dos mesmos alegando que

[] apesar de operaacuterio pobre e chefe de famiacutelia condoendo-se da sorte desses

infelizes e cumprindo um dever que natildeo pode furtar-se estaacute disposto a ter em

sua casa e sob sua proteccedilatildeo os ditos menores aos quaes dispensaraacute cuidados

de pae360

356

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Enedina Martins

Gonccedilalves data 30-07-1925 caixa 07 processo 07 357

GUIMARAtildeES Elione S Op cit 2006 p 114 358

A respeito da tutela de filhos ilegiacutetimos pelo suposto pai ver no capiacutetulo 4 parte 46 ldquoFelicidade

Perpeacutetua a matildee crioula do filho do senhorrdquo de minha dissertaccedilatildeo de mestrado em que analisei um

processo em que o proprietaacuterio Antocircnio Manoel Tostes reconheceu um filho que tivera com sua escrava

Felicidade Perpeacutetua atraveacutes de uma escritura de perfilhaccedilatildeo Ele tornou-se tutor de outros dois filhos da

mesma cativa Pedro e Francisca supostamente seus filhos Os ldquomenoresrdquo Pedro e Francisca nasceram

apoacutes o casamento de Antocircnio Manoel Tostes com D Ameacutelia de Almeida Tostes de quem natildeo houve

filhos Assim se realmente fossem filhos do dito senhor natildeo poderiam ser reconhecidos pois eram filhos

adulterinos Os ldquomenoresrdquo receberam instruccedilatildeo e legados de seu tutor que se colocava como ldquopai de

criaccedilatildeordquo dos mesmos FRANCISCO Raquel Pereira Op cit 2007 p 144-158 359

GUIMARAtildeES Elione Silva Op cit 2006 p 114 360 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menores Edgar e Edson

Cyrino data 11-09-1929 caixa 08 processo 06

123

As peticcedilotildees enviadas ao Juiz de Oacuterfatildeos comunicando a existecircncia de crianccedilas

em condiccedilotildees de serem tuteladas tecircm em comum o fato de descreverem as matildees como

solteiras e ou viuacutevas muito pobres sem condiccedilotildees morais e econocircmicas para criaacute-las Eacute

recorrente tambeacutem assinalar que as matildees pobres haviam se entregado agrave prostituiccedilatildeo ou

ao viacutecio da embriaguez Outras expressotildees presentes nas solicitaccedilotildees eacute o fato de que o

ldquomenorrdquo jaacute vivia em companhia do peticionaacuterio que jaacute o estava educando e criando que

nutria por ele grande afeiccedilatildeo e amizade

Muitos pais contestaram essas alegaccedilotildees difamatoacuterias e lutaram judicialmente

pela guarda de seus filhos Da leitura dos processos de tutelas emerge a importacircncia que

os homens e mulheres receacutem-saiacutedos do cativeiro bem como das classes subalternas

davam a seus viacutenculos familiares Aleacutem do fator emocional pode-se acrescentar que em

alguns casos a disputa pela crianccedila pelos seus familiares estava relacionada agrave

possibilidade de o ldquomenorrdquo poder ajudar com sua forccedila de trabalho na sobrevivecircncia do

grupo familiar

As famiacutelias das classes populares e incluo a dos libertos eram concebidas sob o

acircngulo da desorganizaccedilatildeo e da desestruturaccedilatildeo Nesse periacuteodo predominava a

concepccedilatildeo de que era necessaacuterio moralizar e higienizar as classes subalternas da

sociedade Essa parcela da populaccedilatildeo era tida como incapaz de cuidar e educar os seus

filhos uma vez que a sua organizaccedilatildeo familiar natildeo se conformava com a noccedilatildeo de

famiacutelia burguesa das classes dominantes Essa concepccedilatildeo sobre as famiacutelias pobres

serviu de argumento para alguns tutores contestarem os pedidos de remoccedilatildeo de tutela

impetrados pelos pais dos ldquomenoresrdquo Esse foi o caso da tutela de Conceiccedilatildeo e Gabriel

datada de 16 de maio de 1888

O tutor Francisco Baptista de Assis lavrador morador no distrito de Sarandy

solicitou a tutela dos ldquomenoresrdquo alegando que eles haviam sido criados e mantidos pela

sua famiacutelia e que lhes dedicavam ldquosincera afeiccedilatildeordquo A matildee dos ldquomenoresrdquo Constanccedila

havia sido escrava do peticionaacuterio Segundo o suplicante a matildee das crianccedilas continuava

como sua empregada mas era dada ao viacutecio da embriaguez e temendo que ela ldquopossa

querer retirar-se da noite para o diardquo requeria a nomeaccedilatildeo de um tutor para as

crianccedilas361

No termo de tutela os ldquomenoresrdquo aparecem como filhos de pai incoacutegnito poreacutem

Constanccedila casou-se com Ignaacutecio Cardoso ex-escravo do Conde de Cedofeita e passou a

361

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos Relativos a accedilatildeo de tutelas Menores

Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-05-1888

124

requerer a tutela de seus filhos Numa das primeiras peticcedilotildees enviadas ao Juiz de Paz

pela matildee dos ldquomenoresrdquo Ignaacutecio Antonio Cardoso eacute descrito como padrasto dos

mesmos Entretanto Ignaacutecio reconheceu as crianccedilas como seus filhos por um termo de

reconhecimento datado de 21 de agosto de 1889 uma vez que Constanccedila e Gabriel natildeo

foram reconhecidos no ato do matrimocircnio que havia se realizado em julho de 1888 na

Igreja de Satildeo Francisco do Caeteacute ou se foram reconhecidos tal informaccedilatildeo natildeo foi

anotada pelo paacuteroco362

Esse termo de reconhecimento eacute contestado pelo tutor Francisco Baptista de

Assis que alega natildeo haver possibilidades de os libertos terem se conhecido antes da

concepccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo uma vez que natildeo residiam na mesma freguesia e ainda

ressaltava que na peticcedilatildeo enviada por Constanccedila os ldquomenoresrdquo satildeo descritos como

enteados de Ignaacutecio Na accedilatildeo de embargo que entatildeo move contra Constanccedila e o suposto

pai (Ignaacutecio) o tutor acrescenta que mesmo que fosse provada a paternidade natildeo era

conveniente que as crianccedilas fossem entregues aos peticionaacuterios da remoccedilatildeo da tutela

pois natildeo possuiacuteam ldquoidoneidade moralrdquo para educaacute-los e ainda poderiam corrompecirc-los

com os seus maus exemplos posto que Constanccedila e Ignaacutecio brigavam muito e era

notoacuterio o viacutecio da embriaguez da liberta sempre ldquovista caiacuteda em estrada puacuteblicardquo O

tutor alegou que se recusava a entregar as crianccedilas era pela amizade que lhes devotava e

pelo bem-estar das mesmas uma vez que os encargos da tutela de ldquomenoresrdquo desvalidos

eram superiores agraves vantagens que lhe poderia resultar com a permanecircncia desses em sua

residecircncia Como jaacute salientei alguns tutores colocavam o encargo da tutela como uma

accedilatildeo humanitaacuteria que estavam prestando a esses ldquomenoresrdquo desprotegidos

As testemunhas que foram chamadas para deporem fazem coro agraves alegaccedilotildees de

Francisco Baptista de Assis de que Constanccedila e Ignaacutecio natildeo tinham condiccedilotildees para

cuidar das crianccedilas O advogado dos embargados Constanccedila e Ignaacutecio contestou os

depoimentos das testemunhas ouvidas alegando que duas eram parentes do embargante

362

Decreto no 5604 de 25 de abril de 1874 ndash art 63sect 9

o ldquoo assento de casamento deveraacute conter

necessariamente Declaraccedilatildeo do numero nomes e idades dos filhos havidos antes do casamento e que

ficam por ele legitimadosrdquo A referecircncia a esse decreto estaacute no processo de tutela dos ldquomenoresrdquo

Conceiccedilatildeo (10 a 12 anos) e Gabriel (7 anos mais ou menos) Segundo o advogado dos pais das crianccedilas

Dr Joseacute Caetano de Moraes e Castro o reconhecimento tambeacutem podia se dar por outros meios como por

um terno de reconhecimento lavrado por escritura puacuteblica AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci ndash

Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menores Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-051888

125

Nas razotildees finais do processo o embargante Francisco Baptista de Assis

assinala que o ldquomenorrdquo Gabriel estava aprendendo a ler e escrever363

e que Conceiccedilatildeo

ldquopor jaacute estar muito desenvolvida e mesmo por natildeo ser costume na roccedila mandar ensinar a

ler as mulheres natildeo frequenta a classerdquo poreacutem ela estava ldquoaprendendo os serviccedilos a que

pode dedicar-se uma pessoa nas suas condiccedilotildeesrdquo364

[grifos meus]

Pelo que se depreende da declaraccedilatildeo do tutor a educaccedilatildeo escolar natildeo era

destinada agraves mulheres da roccedila principalmente as pobres que deveriam se dedicar a

outras tarefas entre as quais a do serviccedilo domeacutestico Maria Cristina S de Gouvecirca em

seu estudo sobre a escolarizaccedilatildeo feminina no seacuteculo XIX assinala que natildeo havia muito

interesse da famiacutelia e dos responsaacuteveis com a educaccedilatildeo das meninas e que o governo da

proviacutencia de Minas pouco investia nessa aacuterea A relutacircncia da famiacutelia e dos

responsaacuteveis em enviar as meninas agrave escola principalmente agraves das classes pobres

estava relacionada a vaacuterios fatores sendo um deles o auxiacutelio que elas deveriam prestar

nas atividades domeacutesticas365

A respeito da instruccedilatildeo feminina Rachel Soihet assinala

que o ldquohorizonte ideoloacutegicordquo brasileiro na passagem agrave modernidade concebia o

casamento como ldquoocupaccedilatildeo principalrdquo da mulher natildeo se valorizando desse modo a sua

escolarizaccedilatildeo Segundo a autora essa ldquomentalidaderdquo persistiu por longos anos e

contribuiu sobremaneira para a manutenccedilatildeo da mulher ldquoao exerciacutecio do trabalho na

praacutetica das tarefas menos qualificadas e mais desvalorizadasrdquo366

O advogado dos embargados o dr Joseacute Caetano de Moraes e Castro contra-

argumentou dizendo que o costume de natildeo mandar ensinar as meninas a ler deveria ser

desprezado Prosseguiu explanando que o tutor gozava dos serviccedilos de Conceiccedilatildeo (15

anos) e de Gabriel (9 anos) pela quantia de 4$000 mensais (fazendo referecircncia agrave

363

De acordo com a declaraccedilatildeo de Symphronio de Souza e Silva professor particular de instruccedilatildeo

primaacuteria na fazenda de S Luzia o menor Gabriel Pereira de Andrade frequentava a sua classe e recebia

do tutor do mesmo a mensalidade de quatro mil reacuteis 364

Conforme declaraccedilotildees da testemunha Severino Pires de Almeida (lavrador) a menor Conceiccedilatildeo vivia

em companhia dos filhos de Francisco Baptista de Assis e era empregada em serviccedilos domeacutesticos e em

acompanhar as crianccedilas A testemunha Custodio Nogueira da Silva natural de Portugal informou que

sabia que a ldquomenorrdquo se ocupava em coser 365

GOUVEcircA Maria Cristina Soares de ldquoMeninas nas salas de aula dilemas da escolarizaccedilatildeo feminina

no seacuteculo XIXrdquo In FILHO Luciano Mendes Faria (org) A infacircncia e sua educaccedilatildeo ndash materiais

praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e Brasil) Belo Horizonte Autecircntica 2004 p 203-205 Thomas Holt

tambeacutem aborda a questatildeo do desinteresse na Jamaica pela educaccedilatildeo puacuteblica para crianccedilas em idade

escolar HOLT Thomas C ldquoA essecircncia do contrato a articulaccedilatildeo entre raccedila gecircnero sexual e economia

poliacutetica no programa britacircnico de emancipaccedilatildeo 1838-1866rdquo In COOPER Frederick et all Aleacutem da

Escravidatildeo investigaccedilatildeo sobre raccedila trabalho e cidadania em sociedades poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 p 120-121 Cf PERROT Michelle Op cit 1996 p 118 366

SOIHET Rachel Condiccedilatildeo feminina e formas de violecircncia mulheres pobres e ordem urbana 1890-

1920 Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1989 p 170 Cf PERROT Michelle Op cit 1996 p 118-

119

126

mensalidade escolar de Gabriel) e acrescentou ldquoe como se natildeo haacute de estimar a quem

por tatildeo moacutedica quantia nos serve O interesse infelizmente eacute mola real do coraccedilatildeo

humanordquo367

A disputa entre embargante e embargados continuou demonstrando o interesse

das partes pela guarda das crianccedilas Provavelmente fosse real a alegaccedilatildeo do tutor de

que Ignaacutecio declarou-se pai dos ldquomenoresrdquo apenas como um subterfuacutegio para conseguir

a guarda dos mesmos Se tal afirmaccedilatildeo for verdadeira pode ser interpretada como um

gesto de afeto de Ignaacutecio por sua companheira pois desse modo ela poderia passar a

conviver junto a seus filhos368

Sendo padrasto369

a remoccedilatildeo da tutela poderia natildeo ser

realizada mas reconhecendo a paternidade os entraves diminuiacuteam e a probabilidade de

obter a posse dos ldquomenoresrdquo aumentava Aleacutem do laccedilo afetivo pode-se acrescentar o

fator econocircmico Gabriel e Conceiccedilatildeo estavam em uma faixa etaacuteria em que poderiam

trabalhar e contribuir com as despesas do seu grupo familiar Gizlene Neder observou

no estudo sobre o Asilo dos Meninos Desvalidos a mesma situaccedilatildeo de disputas

ldquoenvolvendo o exerciacutecio do paacutetrio poderrdquo A autora examinou um caso de confronto

entre a famiacutelia de um interno e o diretor do Asilo pela sua guarda As crianccedilas quando

atingiam uma faixa etaacuteria que podeira contribuir com seu trabalho com as despesas do

lar geralmente a sua posse era reivindicada por seus familiares370

Segundo Sheila

Faria os filhos enquanto pequenos eram apenas ldquoconsumidoresrdquo e representavam ldquoum

fardordquo para as famiacutelias pobres poreacutem quando mais velhos eram ldquoprodutoresrdquo e

poderiam contribuir com seu trabalho para a prosperidade de sua famiacutelia371

Outra

367

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores

Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-05-1888 Razotildees finais do processo de embargo movido por Francisco

Baptista de Assis p 49 368

Segundo a declaraccedilatildeo de uma das testemunhas o lavrador Custodio Nogueira da Silva natural do

reino de Portugal Ignaacutecio havia lhe dito que queria a guarda dos menores ou de pelo menos um deles

para que pudessem fazer companhia agrave matildee e que eles natildeo eram seus filhos 369

De acordo com o Livro 4o Tiacutetulo 102 paraacutegrafo 1 (p 995-996) das Ordenaccedilotildees Filipinas alguns

indiviacuteduos estavam inabilitados para serem tutores Eram os casos dos menores de 25 anos do sandeu do

proacutedigo do inimigo do oacuterfatildeo do pobre ao tempo do falecimento do defunto entre outros Na nota

explicativa estaacute assinalado que os padrastos estavam incluiacutedos entre os inabilitados considerados como

inimigos do oacuterfatildeo Segundo a nota os padrastos poderiam ateacute ser admitidos mas com toda a cautela 370 NEDER Gizlene ldquoAssistencia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gizele de (org) Educar na infacircncia

perspectivas histoacuterico-sociais Satildeo Paulo Contexto 2010b p 108-110 371

FARIA Sheila de Castro ldquoA propoacutesito das origens dos enjeitados no periacuteodo escravistardquo In

VENANCIO Renato Pinto (org) Uma Histoacuteria Social do abandono de crianccedilas de Portugal ao Brasil

seacuteculos XVIII-XIX Satildeo Paulo Alameda Editora PUC Minas 2010 p 85 Uma das questotildees discutida

por Alan Macfarlane em sua obra a ldquoHistoacuteria do casamento e do amorrdquo na Inglaterra do periacuteodo de 1300

a 1840 eacute a questatildeo sobre o nuacutemero de filhos e a relaccedilatildeo destes com a prosperidade e ou pobreza da

famiacutelia Na anaacutelise eacute observada tanto essa problemaacutetica no meio rural quanto urbano bem como nos

diversos grupos sociais e periacuteodos Cf MACFARLANE Alan Histoacuteria do casamento e do amor

Inglaterra ndash 1300-1840 Satildeo Paulo Companhia das letras 1990

127

hipoacutetese eacute a de que os ldquomenoresrdquo fossem realmente filhos desse casal de libertos e por

isso lutaram para reconstruiacuterem seus laccedilos familiares

Eric Foner exorta que os receacutem-libertos do sul dos Estados Unidos

consideravam melhor adotar os filhos de algum parente ou amigo falecido do que deixaacute-

los serem entregues aos brancos como aprendizes ou ainda serem enviados para os

orfanatos e ou internatos Eles buscavam livrar-se de todas as caracteriacutesticas da

escravidatildeo com o objetivo de ldquodestruir a autoridade real e simboacutelica que os brancos

haviam exercido sobre todos os aspectos de suas vidasrdquo372

Assim retirar a famiacutelia da

autoridade de homens brancos era considerado pelos ex-escravos provavelmente um

elemento de suma importacircncia da liberdade373

Talvez Ignaacutecio desejasse apenas livrar a

prole de sua esposa do jugo do ex-senhor da mesma adotando-os como seus filhos

como discorreu Foner com relaccedilatildeo aos libertos norte-americanos

O embargo promovido por Francisco Baptista de Assis foi indeferido e a custa

do processo de acordo com a determinaccedilatildeo do Juiz seria paga por ele Ele natildeo aceitou

a sentenccedila e apelou no Tribunal da Relaccedilatildeo do Distrito (22-11-1889) desistindo pouco

depois de tal accedilatildeo alegando que natildeo tinha recursos para continuar com a apelaccedilatildeo e

que fora movido ateacute entatildeo ldquosoacute para defender o que ele supunha ser do interesse dos seus

pupilos a quem professava sincero afeto e tratava sempre com o mesmo carinho e

desvelo com que tratava seus proacuteprios filhosrdquo O ex-tutor ainda asseverou que estava

com a ldquoconsciecircncia tranquilardquo por ter desempenhado bem o seu cargo de tutor e

acrescentou que se o juiz de oacuterfatildeos havia determinado que os ldquomenoresrdquo fossem entatildeo

entregues ldquoao individuo que se diz pairdquo que assim fosse feito374

Ateacute o uacuteltimo instante

Francisco Baptista de Assis nega que o liberto Ignaacutecio fosse pai das crianccedilas Fica a

duacutevida sobre o que realmente motivou o tutor a apelar da sentenccedila de remoccedilatildeo de tutela

se foi a suposta estima que nutria pelos ldquomenoresrdquo ou o serviccedilo que os mesmos

poderiam lhe oferecer por uma pequena remuneraccedilatildeo O que depreendo desse processo

eacute que o casal de libertos natildeo desistiu da luta apesar de todas as tentativas feitas pelo

tutor para manter a tutela Independentemente de ser ou natildeo pai de Conceiccedilatildeo e Gabriel

372

FONER Eric ldquoO significado da liberdaderdquo In LARA Silvia Hunold (org) Escravidatildeo Revista

Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo ANPUH Marco Zero v 8 n 16 marag 1988 p 12 373

Idem pp 17 e 20 Cf FRANCISCO Raquel Pereira Laccedilos de Solidariedade famiacutelia e parentesco

entre os afrodescendentes do municiacutepio de Juiz de Fora no poacutes-emancipaccedilatildeo In Passagens Revista

Internacional de Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro v 4 n 2 maio-agosto 2012c p

233-253 Disponiacutevel em wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv4n2a32012pdf Acessado 10-07-

2015 374

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores

Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-05-1888

128

Ignaacutecio junto com Constanccedila a matildee conseguiu o direito de formar uma famiacutelia a sua

famiacutelia Constanccedila teria a partir de entatildeo seus filhos sob sua proteccedilatildeo sob sua

autoridade Mas nem todos os casais de libertos tiveram a mesma sorte de Ignaacutecio e

Constanccedila em reconstruiacuterem seus laccedilos familiares formados ainda nos ldquotempos do

cativeirordquo ou de darem iniacutecio a uma ldquofamiacuteliardquo

A histoacuteria de Magdalena e Juacutelio ela ex-escrava de Balbino de Magalhatildees

Gomes teve um final totalmente oposto ao da Constanccedila e Ignaacutecio apesar de ser bem

semelhante Esse casal uniu-se em matrimocircnio em novembro de 1893 e em

consequecircncia desse enlace Magdalena perdeu o paacutetrio poder sobre seus filhos Laura de

7 anos de idade e Joatildeo de 4 anos375

O promotor de justiccedila Luiz Barbosa Gonccedilalves

Penna comunicou esse fato ao Juiz de Oacuterfatildeos e indicou para tutor das crianccedilas o Sr

Balbino de Magalhatildees Gomes no ldquoseio de cuja famiacutelia tem os menores sido criados ateacute

esta idaderdquo376

Mas no ano de 1896 Juacutelio solicitou que a tutela sobre a menina cessasse

pois esta era sua filha tida no tempo de solteiro com Magdalena e dessa forma ele e

sua mulher eram os ldquoprotetores naturaisrdquo da mesma (01-10-1896) A peticcedilatildeo enviada ao

Juiz de Oacuterfatildeos em que Juacutelio solicita a guarda de Laura foi contestada pelo promotor

interino o advogado Herculano A Gomes de Souza pois a declaraccedilatildeo de paternidade

feita na peticcedilatildeo natildeo era instrumento legal de reconhecimento de filhos (01-10-1896)377

A ldquomenorrdquo natildeo foi reconhecida no ato do matrimocircnio e nem por uma escritura

puacuteblica de reconhecimento mas apenas atraveacutes da peticcedilatildeo endereccedilada ao Juiz de

Oacuterfatildeos em que Juacutelio dizia-se pai de Laura Por esse motivo o pedido foi indeferido e a

custa do processo ficou a cargo do suplicante Segundo o promotor de Justiccedila a atitude

de Juacutelio em solicitar a guarda da menina era motivada pelo fato de ter-se tornado

inimigo do tutor como era puacuteblico O parecer do promotor foi de que a Laura

continuasse sob a guarda do tutor

Segundo o Sr Balbino de Magalhatildees Gomes Magdalena e o suposto pai natildeo

tinham condiccedilotildees para educarem as crianccedilas uma vez que eram ldquoanalfabetos e baldos

de recursosrdquo e tambeacutem natildeo eram capazes ldquode conservarem em seu poder uma menina

375

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores Laura e

Joatildeo Data 15-05-1894 Juacutelio Francisco Antonio de Lima era jornaleiro e natural de Mangaratiba (RJ)

Sua condiccedilatildeo juriacutedica natildeo estaacute clara no processo mas acredito que ele fosse um liberto Magdalena Maria

da Conceiccedilatildeo era brasileira empregada domeacutestica natural de Juiz de Fora onde residia 376

Idem folha 2 ano 1894 377

Ibidem folha 9 ano 1896

129

que atingiu a idade que [mais] se torna necessaacuterio que dela tenha o maior cuidado

[]rdquo378

O que teria levado Juacutelio a requerer a guarda da ldquomenorrdquo Seraacute que o fato de ter-

se tornado ldquoinimigo do tutorrdquo como alegou o promotor induziu Juacutelio a dizer que era pai

de Laura Por que somente depois de decorridos quase dois anos da assinatura da tutela

o suposto pai assumiu a paternidade e solicitou a remoccedilatildeo da mesma Seria Juacutelio

realmente o pai de Laura

Se a tese de que Juacutelio estava solicitando a remoccedilatildeo da tutela simplesmente por

ter-se tornado inimigo do tutor for verdadeira por que entatildeo natildeo solicitou tambeacutem a

guarda de Joatildeo Como inimigo de Balbino de Magalhatildees Gomes era oacutebvio que

desejasse retirar ambas as crianccedilas do domiacutenio do tutor Uma possibilidade para o

suposto pai de Laura ter solicitado a posse da ldquomenorrdquo apenas dois anos apoacutes a

assinatura da tutela por Balbino de Magalhatildees talvez esteja relacionada agraves condiccedilotildees

financeiras do casal Possivelmente em 1894 quando se deu a tutela eles natildeo tivessem

recursos financeiros para ficarem com as crianccedilas e por isso concordaram que eles

permanecessem sob a responsabilidade do ex-senhor de Magdalena Anna Gicelle G

Alaniz sugere que muitos libertos se viram sem recursos no poacutes-aboliccedilatildeo sendo pois o

viacutenculo tutelar uma possibilidade de sobrevivecircncia para seus rebentos Todavia quando

tinham uma situaccedilatildeo econocircmica mais definida a presenccedila de filhos em idade produtiva

lhes permitiam dispensar o viacutenculo tutelar379

Laura jaacute estava na idade de tornar-se uma

forccedila de trabalho para sua famiacutelia Mas por que natildeo solicitaram em 1896 a posse de de

Joatildeo tambeacutem Seria Joatildeo um ldquofardordquo para o casal que estava buscando sobreviver no

poacutes-aboliccedilatildeo O ldquomenorrdquo contava com apenas 6 anos e pouco serviccedilo poderia oferecer

naquele momento Seraacute que ambos eram filhos do casal mas por causa das dificuldades

de sobrevivecircncia requereram apenas a posse da ldquomenorrdquo que jaacute poderia oferecer algum

trabalho Ou seria apenas Laura filha de Juacutelio e por ser dificultada aos padrastos a

tutela de seus enteados ele natildeo tenha requerido a guarda do menino Mas se a ldquomenorrdquo

era realmente sua filha por que natildeo a reconheceu no ato do matrimocircnio Natildeo saberia

Juacutelio que para obter o paacutetrio poder sobre o rebento havido antes do casamento deveria

reconhececirc-lo nessa cerimocircnia Seraacute que o juiz as testemunhas natildeo perguntavam sobre a

existecircncia de filhos para os nubentes Infelizmente natildeo haacute respostas para estas

questotildees apenas conjecturas

378

Ibidem folha 4 e 4 v ano 1896 379

ALANIZ Anna Gicelle Garcia op cit p 73 -74

130

Anna Gicelle G Alaniz ressaltou que o viacutenculo tutelar pode ter sido uma

possibilidade de sobrevivecircncia para os filhos de muitos libertos sem meios de

sobrevivecircncia no poacutes-emancipaccedilatildeo Poreacutem apoacutes os pais conseguirem se estabelecer

com empregomoradia buscavam reaver seus filhos principalmente os que estavam em

uma faixa etaacuteria produtiva O processo de tutela dos irmatildeos Romatildeo Romana e Paulo

filhos da liberta Anna preta sugere que essa foi a situaccedilatildeo vivida por esse grupo

familiar O processo eacute de fevereiro de 1890 e na peticcedilatildeo encaminhada ao Juiz eacute

colocado que Romatildeo de 11 anos de idade e Romana de 9 anos viviam cada qual na casa

de um proprietaacuterio e que era necessaacuterio dar tutor aos ldquomenoresrdquo visto serem ldquopessoas

destrahidasrdquo No requerimento eacute colocado que eles viviam na companhia de cidadatildeos do

municiacutepio por ldquocaridaderdquo e pelo temor que tinham de que os mesmos fossem

ldquodesencaminhadosrdquo A outra crianccedila de nome Paulo de 7 anos mais ou menos vivia em

companhia de sua matildee e do liberto Gregorio O lavrador Antocircnio Joseacute Teixeira aceitou

o encargo da tutela dativa dos trecircs irmatildeos em marccedilo de 1890 e declarou que o fazia

ldquomais por attender aacute pobresa dos menores e de sua matildee que podem ser equiparados a

pessocircas desvalidasrdquo380

Em dezembro do mesmo ano o tutor solicitou escusa da tutela

alegando que natildeo poderia mais continuar com a mesma e declarou que havia aceitado

tal encargo pelo fato de as crianccedilas se encontrarem no

[] mais lamentaacutevel abandono attenta aacute precaria posiccedilatildeo da matildee [] que

remida da condiccedilatildeo de escrava pela aurea lei de 13 de maio de 1888 natildeo

dispunha absolutamente de mais para delles cuidar alimentar vestir e tratar

como convinha aacute posiccedilatildeo de cada um delles que pelas respectivas edades se

viam na impossibilidade de trabalhar para o sustento381

Antocircnio Joseacute Teixeira indicou para substitui-lo no cargo de tutor o padrasto dos

ldquomenoresrdquo Gregoacuterio Joseacute da Costa que segundo ele era ldquohomem muito trabalhador

honesto e de bons costumes e que a todos os respeitos reuacutene condiccedilotildees para ser um

zeloso tutor de seus enteadosrdquo O discurso do trabalho como uma ldquovirtuderdquo que tornava

o trabalhador em uma pessoa disciplinada honesta e de boa moral foi utilizado pelo

tutor para se referir ao padrasto Na passagem agrave modernidade o trabalho foi revestido

de um caraacuteter ldquosagradordquo e que tinha a capacidade de transformaccedilatildeo do operaacuterio em uma

380

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores Romatildeo e

Romana Data 03-08-1890 Caixa 4 Processo 12 381

Idem

131

pessoa disciplina e ordeira382

A matildee dos ldquomenoresrdquo tambeacutem solicitou a guarda de seus

filhos alegando que estando casada civilmente com Gregoacuterio Joseacute da Costa estava

protegida pela lei Ao que parece a situaccedilatildeo de Anna estava melhor e dessa maneira

ela poderia ter os filhos consigo e ateacute mesmo beneficiar-se da matildeo de obra dos mesmos

para a sobrevivecircncia da famiacutelia

O tutor dos filhos da liberta Anna natildeo se opocircs agrave destituiccedilatildeo da tutela como

tantos outros proprietaacuterios fizeram natildeo desmoralizou a matildee dos ldquomenoresrdquo e nem o

padrasto O comportamento de Antocircnio Joseacute Teixeira eacute atiacutepico da documentaccedilatildeo

analisada Seria o casal Anna e Gregoacuterio empregados desse proprietaacuterio e por isso ele

natildeo criou empecilhos Natildeo teria ele necessidade dos serviccedilos desses ldquomenoresrdquo Ou

aceitou a tutela realmente por causa das condiccedilotildees precaacuterias das crianccedilas

Histoacuterias como a dos libertos Anna e Gregoacuterio e de outros que tiveram acesso agrave

justiccedila pela guarda de seus filhos natildeo foi a realidade para diversas pessoas dos estratos

sociais subalternos Poreacutem eles natildeo deixaram de lutar por seus rebentos da maneira que

podiam Uma das formas de reaccedilatildeo era a recusa em entregar as crianccedilas Mas para que

a lei fosse cumprida os tutores nomeados solicitavam aos juiacutezes que fosse passado

mandado de entrega e apreensatildeo A partir dessa accedilatildeo ou os processos silenciam-se pois

terminavam com a entrega do ldquomenorrdquo ao seu tutor ou prosseguiam com novos pedidos

de apreensatildeo do pupilo por esse ter fugido para a casa de sua matildee ou de um parente de

os pais os terem retirado da casa do tutor entre outras accedilotildees As fugas das crianccedilas das

casas de seus tutores era uma maneira de contestarem de demonstrarem sua

insatisfaccedilatildeo e essas accedilotildees podem estar relacionadas a fatores como os maus tratos a

vontade de estar junto a seus familiares a oportunidade de ter os seus serviccedilos

remunerados de trabalhar para quem desejava383

Gislane Campos Azevedo ressalta que

os castigos fiacutesicos nas crianccedilas tuteladas eram uma praacutetica corriqueira e que muitos

pupilos encontravam na fuga uma maneira de se livrarem de tal situaccedilatildeo384

Aleacutem dos

castigos fiacutesicos as meninas tambeacutem estavam sujeitas aos abusos sexuais por parte dos

382

Segundo E P Thompson durante o processo de gestaccedilatildeo da sociedade industrial na Inglaterra do

seacuteculo XVIII a ideia do trabalho como uma ldquovirtuderdquo e contendo um caraacuteter ldquosagradordquo foi difundido

pelas igrejas protestantes Assim a ldquocruzrdquo e o ldquosanguerdquo de Cristo serviram aos interesses das classes

dominantes para a criaccedilatildeo de haacutebitos de disciplina nos operaacuterios Cf THOMPSON E P A formaccedilatildeo da

classe operaacuteria inglesa 2 a maldiccedilatildeo de Adatildeo 4 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 239-243 383

Com relaccedilatildeo agrave fuga dos ldquomenoresrdquo da residecircncia de seus tutores ver entre outros os processos de

tutelas de Benvindo Fortunato e Sebastiatildeo AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave

accedilatildeo de tutela Menor Benvindo Data 16-11-1888 caixa 100 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci

Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menores Fortunato e Sebastiatildeo Data 28-05-1888 Caixa 100 384

AZEVEDO Gislane Campos Op cit 1995 p 87-88

132

tutores ou de algum de seus parentes385

A recusa em entregar as crianccedilas as fugas as

retiradas dos ldquomenoresrdquo da residecircncia dos tutores pode ser interpretada como parte de

uma ldquoeconomia moralrdquo386

da famiacutelia desvalida isto eacute de sua visatildeo sobre o direito de

permanecer com seus filhos e ou de entregaacute-los para quem desejasse

Da anaacutelise da tutela de Geralda de setembro de 1929 eacute viaacutevel supor que ela

fosse viacutetima de maus-tratos na casa de seu tutor o Juiz Municipal do termo de Satildeo Joatildeo

Nepomuceno Jose Eugenio de Miranda Lima O pedido de tutela dessa ldquomenorrdquo

comeccedila como tantos outros colocando a matildee de Geralda Blandina domeacutestica como

incapaz de exercer o paacutetrio poder por supostamente ter ldquovida licenciosa e viver em

estado de quase indigecircnciardquo Aleacutem dessas alegaccedilotildees tambeacutem foi colocado que a

ldquomenorrdquo jaacute vivia na residecircncia do dito cidadatildeo havia mais de cinco anos O pedido foi

deferido e o tutor nomeado solicitou que sua pupila fosse apreendida pois ela havia sido

ldquosorrateiramente extraviada por elementos despeitados e interessados no trabalho de

Geraldardquo387

Suponho que as alegaccedilotildees do requerente sobre a conduta de Blandina Maria da

Conceiccedilatildeo natildeo foram averiguadas pelos representantes do poder judiciaacuterio Natildeo haacute uma

solicitaccedilatildeo do Juiz para que o suplicante comprovasse as suas palavras A suposta

displicecircncia da justiccedila nesse caso e em outros provavelmente estaacute relacionada com a

posiccedilatildeo social do requerente bem como com a associaccedilatildeo que as classes dominantes

faziam entre mulheres pobres e imoralidade Gislane Azevedo em seu estudo sobre as

385

Elione S Guimaratildees assevera que por causa de vaacuterios fatores provavelmente muitos dos abusos

sexuais sofridos pelas ldquomenoresrdquo tuteladas natildeo foram registrados pelas fontes Dos processos de tutelas de

afrodescendentes analisados para o municiacutepio de Juiz de Fora em apenas um caso houve a denuacutencia de

abuso sexual sofrida por uma ldquomenorrdquo A autora analisou o processo de tutela e o de estupro de Vitalina

que foi tutelada por seu padrinho de batismo Ricardo Augusto de Carvalho Vitalina era filha de Cassiana

que fora escrava de D Generosa Horta de Carvalho (matildee do tutor) A acusaccedilatildeo de estupro foi feita pelo

irmatildeo da menina que acusou o tutor-padrinho da mesma Vitalina ficou graacutevida e a famiacutelia de Ricardo

sendo influente conseguiu reverter a acusaccedilatildeo desmoralizando a ldquomenorrdquo e sua famiacutelia GUIMARAtildeES

Elione Silva Op cit 2006 p 133-137 Na documentaccedilatildeo que pesquisei para a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo

de mestrado deparei-me com o processo de tutela das oacuterfatildes Gabriela e Virginia filhas de Joseacute Luiz da

Costa falecido e de D Minelvina Maria de Satildeo Joseacute onde haacute o relato de uma tentativa de abuso sexual

contra uma ingecircnua D Minelvina Maria de Satildeo Joseacute era casada em segundas nuacutepcias com Joaquim

Antonio Baptista padrasto e tutor de suas filhas Ela solicitou a remoccedilatildeo da tutela pelo fato de ter

descoberto que seu marido havia tentado deflorar uma ingecircnua que possuiacutea entre 10 e 12 anos de idade

sendo tal tentativa praticada em presenccedila de suas filhas Segundo o relato de D Minelvina a ingecircnua

havia sido enviada para a casa de uma famiacutelia vizinha e o fato era conhecido no distrito de Chapeacuteu

drsquoUvas e confessado pela ldquomenorrdquo AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci ndash Processos relativos agrave

accedilatildeo de tutelas - Menores Gabriela e Virginia Data 16-08-1883 Cf SILVA Renata Lutiene Op cit

2010 p 78 386

Cf THOMPSON E P Costumes em comum estudos sobre a cultura popular tradicional Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1998 especialmente os capiacutetulos 4 ldquoA economia moral da multidatildeo inglesa no

seacuteculo XVIIIrdquo e 5 ldquoEconomia moral revisitadardquo 387

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Geralda Data 02-

09-1929 Caixa 8 processo 11

133

accedilotildees de tutelas da cidade de Satildeo Paulo tambeacutem fez essa observaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos

processos referentes agraves crianccedilas pobres os juiacutezes natildeo procuravam comprovar as

informaccedilotildees dos suplicantes sobre os familiares dos ldquomenoresrdquo388

Entretanto eacute

necessaacuterio ressaltar que houve processos em que os requerentes tiveram que comprovar

suas declaraccedilotildees sobre os pais das crianccedilas No processo de Francisca de Jesus de 12

anos de idade o Promotor de Justiccedila solicitou que o peticionaacuterio Affonso Colucci

provasse suas alegaccedilotildees a respeito da conduta da matildee da ldquomenorrdquo ou indicasse

testemunhas389

A matildee da ldquomenorrdquo Geralda contestou as alegaccedilotildees sobre sua conduta e

apresentou atestado de procedimento expedido pelo delegado de poliacutecia e certidatildeo de

que era empregada na casa de Manoel do Couto e Silva por quase 8 anos e requereu a

posse de sua filha Joseacute Eugenio de Miranda Lima em resposta agrave peticcedilatildeo de Blandina

fez uma longa explanaccedilatildeo sobre a vida da mesma e de seus outros filhos assinalado que

dos seus seis filhos trecircs encontravam-se em uma fazenda em Coronel Pacheco sem

instruccedilatildeo escolar dois viviam com a matildee na casa onde era cozinheira sem nenhuma

assistecircncia sendo que um deles ldquoia crescendo no canto da cosinha desnudo e

encardidordquo e o outro vivia vagando pelas ruas e estradas da cidade ldquomaltrapilhordquo sem

nunca ter entrado em uma escola ou encontrado quem ldquolhe desse uma cartilha de A B

Crdquo e ia se enveredando pelo caminho do crime

A dar creacutedito as palavras do tutor a vida de Blandina e de seus filhos era

perpassada pela carecircncia e pela separaccedilatildeo de seus membros Uma mulher solteira

pobre com seis filhos para criar em uma sociedade que impunha como padratildeo a famiacutelia

nuclear jaacute se apresentava desqualificada perante a justiccedila

Apoacutes as alegaccedilotildees de Blandina e do tutor ao que parece os membros do poder

judiciaacuterio procuraram verificar a veracidade das mesmas concluindo o Juiz que a matildee

da ldquomenorrdquo Geralda natildeo estava nas ldquocondiccedilotildees de exercer o poder materno visto que

mora em casa alheia em emprego humilde e sem meios de educar outros filhos

menoresrdquo Todavia a tutela da ldquomenorrdquo concedida a Joseacute Eugenio de Miranda Lima foi

considerada sem efeito e foi indicado outro tutor uma vez que a matildee se opunha

388

AZEVEDO Gislane Campos Op cit 1995 p 119-120 Cf CARDOZO Jose Carlos da Silva Op

cit 2012 389

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Francisca de Jesus

Data 25-11-1893 Caixa 5 Processo 4

134

ldquoexpressamenterdquo que sua filha permanecesse com o mesmo390

Aleacutem disso Geralda foi

ouvida em juiacutezo e ldquopediu em pranto que natildeo fosse mandada para a casa do Dr Miranda

Limardquo sendo que jaacute havia se ldquoausentadordquo da casa do tutor e se colocado sobre a

ldquoprotecccedilatildeordquo do Sr Carlos Grande

Por que Geralda teria pedido ldquoem prantosrdquo para natildeo voltar para a casa de seu

tutor Seria maltratada por ele e seus familiares Teria sofrido algum tipo de violecircncia

fiacutesica ou sexual A recusa de Blandina de que sua filha permanecesse sob a tutela de

Miranda Lima seria motivada por ter conhecimento de que sua filha era explorada

maltratada Nesse caso apenas indagaccedilotildees podem ser tecidas uma vez que temos

apenas um pequeno fragmento dessa histoacuteria

O tutor natildeo concordou com a sentenccedila e recorreu Alegou que as laacutegrimas da

menina se deviam ao temor que lhe haviam incutido A recusa em aceitar a remoccedilatildeo da

tutela por Joseacute Eugenio de Miranda Lima seria motivada por preocupaccedilatildeo com a

ldquomenorrdquo ou pela perda da matildeo de obra O tutor em suas consideraccedilotildees sobre a sua

remoccedilatildeo da tutela assinalou que a ldquomenorrdquo estava em sua casa ldquohaacute mais de 5 annosrdquo e

que solicitou a tutela depois de decorrido esse tempo ldquopara poder valer a sua qualidade

contra terceiros manhosamente empenhados em retirar a menor da sua casardquo [grifado no

original] Eacute viaacutevel supor que o cerne da questatildeo nessa disputa tenha sido a forccedila de

trabalho da ldquomenorrdquo que jaacute estava possivelmente treinada para os serviccedilos domeacutesticos

Quando do pedido de apreensatildeo de Geralda logo apoacutes a assinatura da tutela o tutor

alegou que ela havia sido ldquosorrateiramente extraviada por elementos despeitados e

interessadosrdquo em seu trabalho Creio que um nuacutemero expressivo de tutelas de crianccedilas

pobres tenha se configurado em uma forma disfarccedilada de trabalho compulsoacuterio dos

ldquomenoresrdquo e que por isso a sua perda significava prejuiacutezos para os interessados

Aleacutem da questatildeo da utilizaccedilatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo outras questotildees tambeacutem

podem ser observadas atraveacutes dos processos de tutelas como a preocupaccedilatildeo com o

ldquomenorrdquo com a sua honra a sua seguranccedila e o seu futuro tanto da parte do tutor quanto

da parte dos familiares da crianccedila

A ldquomenorrdquo Maria da Conceiccedilatildeo de 4 anos de idade filha de Sebastiana Augusta

do Carmo solteira e que havia sido assassinada teve a sua tutela solicitada pelo avocirc

materno Augusto Alves da Silva em fevereiro de 1929 O avocirc da menina que era

390

O Coacutedigo Civil estabeleceu quem natildeo poderia ser tutor ou deveria ser exonerado do cargo em seu art

413 inciso III que ldquoos inimigos do menor ou de seus pais ou que tiverem sido por estes expressamente

excluiacutedos da tutelardquo

135

estafeta do Correio declarou no requerimento que sua neta havia sido levada por

Eduardo de Tal ldquoindividuo mal afamado e destituiacutedo de recursosrdquo e que se declarava pai

da menina391

A tutela foi concedida a Augusto Alves da Silva e provavelmente os

agentes do judiciaacuterio natildeo averiguaram a autenticidade das informaccedilotildees prestadas pelo

avocirc quanto ao comportamento do suposto pai da ldquomenorrdquo

Nesse processo a dar creacutedito agraves palavras de Augusto Alves da Silva a

motivaccedilatildeo para o pedido da tutela foi o afeto pela neta e a preocupaccedilatildeo com a sua

seguranccedila e seu futuro

Na proacutexima parte discutirei a questatildeo da utilizaccedilatildeo da matildeo de obra dos pupilos

pelos tutores as soldadas ou contratos de locaccedilatildeo de serviccedilo desses ldquomenoresrdquo bem

como as formas de reaccedilatildeo das crianccedilas e de seus familiares agraves condiccedilotildees impostas pelas

classes dominantes

2 4 ENTRE TINAS VASSOURAS E CAFEZAIS AS TUTELAS E

CONTRATOS DE SOLDADAS DE ldquoMENORESrdquo DESVALIDOS

A exploraccedilatildeo das crianccedilas na escala e na intensidade com que foi praticada

representou um dos acontecimentos mais vergonhosos da nossa histoacuteria (E

P Thompson)392

O trabalho na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX passou a ter uma conotaccedilatildeo

positiva na sociedade brasileira ou seja ele passou a ser valorizado como algo que

conferia dignidade e respeito sendo tambeacutem considerado um ldquoremeacutediordquo contra a

vadiagem a ociosidade e o crime Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas dos estratos sociais

subalternos o trabalho era colocado como o caminho para a constituiccedilatildeo dos mesmos

em cidadatildeos uacuteteis agrave paacutetria

O trabalho infantil fundamentalmente o realizado em faacutebricas e oficinas foi

objeto de discussatildeo por parte da imprensa do movimento operaacuterio de

meacutedicoshigienistas de advogados de pedagogos e de poliacuteticos A discussatildeo pautava-se

nos malefiacutecios que as atividades realizadas em tais estabelecimentos poderiam gerar

391

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Maria Augusta

Data 26-02-1929 Caixa 8 Processo 12 392 THOMPSON E P A formaccedilatildeo da classe operaacuteria inglesa II a maldiccedilatildeo de Adatildeo 4 ed Rio de

Janeiro Paz e Terra 2002 p 224

136

para a sauacutede do jovem operaacuterio O emprego de ldquomenoresrdquo nesses estabelecimentos foi

alvo de leis nos estados e municiacutepios com certo niacutevel de desenvolvimento industrial ao

longo da Primeira Repuacuteblica poreacutem pela falta de uma fiscalizaccedilatildeo efetiva natildeo

lograram ecircxito como seraacute discutido no proacuteximo capiacutetulo

Se a regulamentaccedilatildeo de horas de trabalho da proibiccedilatildeo do trabalho noturno da

idade de admissatildeo entre outras questotildees preocupava setores da intelectualidade com

relaccedilatildeo ao operaacuterio infanto-juvenil nas faacutebricas essa preocupaccedilatildeo natildeo se estendeu ao

trabalho de ldquomenoresrdquo no serviccedilo domeacutestico e rural As atividades nos lares das classes

dominantes e no campo muitas vezes eram extenuantes para a pouca idade de quem

estava executando e possivelmente representavam riscos agrave integridade fiacutesica e ateacute de

morte dos ldquomenoresrdquo em muitos casos

A lei de acidentes no trabalho 1919 que seraacute examinada oportunamente natildeo

contemplou o trabalhador rural e domeacutestico apenas os operaacuterios urbanos que utilizavam

motores inanimados Quantos trabalhadores do campo e domeacutesticos natildeo sofreram

graves acidentes durante a execuccedilatildeo de seus trabalhos como cortes com instrumentos

(foices machados facotildees facas enxadas) queimaduras entre outros e natildeo receberam

auxiacutelio de seus empregadores

Com relaccedilatildeo agraves atividades domeacutesticas realizadas pelas ldquomenoresrdquo Pedro Nava

em suas lembranccedilas da infacircncia na casa de sua avoacute Inhaacute Luiacutesa em Juiz de Fora relatou

que as ldquonegrinhas [] carregavam menino traziam aacutegua varriam aqui espanavam ali

serviam mesa apanhavam fruta lavavam louccedila quebravam louccedila []rdquo393

Aleacutem de

executarem diversas tarefas as ldquocriasrdquo e as empregadas assalariadas da casa de sua avoacute

ainda sofriam com os castigos fiacutesicos a ldquoratambardquo394

os tapas na boca e a vara de

marmelo Pelo que se depreende do relato de Nava algumas meninas foram entregues

para serem criadas395

por sua avoacute como no caso da ldquomenorrdquo Evangelina Berta a Catita

de sete anos de idade que provavelmente foi abandonada pela matildee Suponho que

muitas meninas tenham sido entregues para serem criadas pelas distintas senhoras do

municiacutepio e em retribuiccedilatildeo tinham que trabalhar

Wesleyuml Silva em sua anaacutelise sobre a problemaacutetica da infacircncia abandonada e

delinquente em Belo Horizonte entre os anos de 1920 a 1940 abordou a questatildeo de

393

NAVA Pedro Balatildeo Cativo memoacuterias 2 Rio de Janeiro J Olympio 1974 p 4-5 394

Ratamba chicote chibata vergasta Cf Dicionaacuterio Aulete Digital httpwwwauletecombr Acessado

em 18-11-2014) 395

O ldquocriarrdquo no meu entender essas ldquomenoresrdquo significava dar-lhes comida um local para dormir e em

troca usufruir do trabalho das mesmas

137

meninas de cidades do interior serem levadas para a capital para trabalharem como

empregadas domeacutesticas Essas trabalhadoras mirins estavam expostas a vaacuterios tipos de

violecircncia como o afastamento da famiacutelia tarefas estafantes baixos salaacuterios maus tratos

e agressotildees (fiacutesicas sexuais e psicoloacutegicas)396

Em estudo realizado no Rio de Janeiro

na deacutecada de 1980 sobre o emprego domeacutestico constatou-se a existecircncia de um ldquotraacutefico

de meninas da zona rural para a zona urbana realizado pelas famiacutelias empregadorasrdquo397

Creio que esse ldquotraacuteficordquo fosse resquiacutecio de praacuteticas arraigadas de segmentos das classes

dominantes de arregimentar ldquomenoresrdquo da aacuterea rural para trabalharem em suas

residecircncias urbanas por baixos salaacuterios ou em troca de um suposto aprendizado

profissional Com o fim do trabalho escravo em maio de 1888 essa pode ter sido uma

das estrateacutegias utilizada pelas classes dominantes de manterem trabalhadores

domeacutesticos em seus lares O viacutenculo tutelar e o criar ldquomenoresrdquo oacuterfatildeos abandonados ou

entregues pelos pais possivelmente configurou-se em outros mecanismos de controle

da matildeo de obra infantil no periacuteodo em estudo nesse trabalho

O horaacuterio de trabalho e a idade dos ldquomenoresrdquo trabalhadores nas induacutestrias e

oficinas foram uma problemaacutetica que permeou as discussotildees sobre a regulamentaccedilatildeo do

trabalho infantil ao longo da Primeira Repuacuteblica398

Poreacutem o serviccedilo domeacutestico

realizado por diversas ldquomenoresrdquo nos lares das classes dominantes natildeo foi contemplado

O trabalho domeacutestico geralmente tinha hora para comeccedilar mas natildeo para terminar e as

ldquomenoresrdquo provavelmente passavam os dias as semanas ndash sem dias santos e feriados ndash

na labuta ocupando as aacutereas de serviccedilo da casa os quartinhos insalubres399

Tambeacutem

396 SILVA Wesleyuml Por uma histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da delinquecircncia de menores em Belo

Horizonte ndash 1921-1941 Doutorado em Educaccedilatildeo Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2007 p 204-

206 397

CAMPOS Maria Machado Malta ldquoInfacircncia abandonada o piedoso disfarce do trabalho precocerdquo In

MARTINS Joseacute de Souza O massacre dos inocentes a crianccedila sem infacircncia no Brasil 2 ed Satildeo Paulo

HUCITEC 1993 p 122 O telejornal ldquoBom Dia Brasilrdquo da emissora Rede Globo do dia 08 de maio de

2015 anunciou que estava sendo investigando pela poliacutecia do Paraacute os anuacutencios de contrataccedilatildeo de crianccedilas

para trabalharem como babaacutes Segundo a mateacuteria do telejornal o Ministeacuterio Puacuteblico do estado jaacute havia

recebido mais de 200 denuacutencias sobre o assunto Nos anuacutencios de serviccedilos publicados nos jornais os

contratantes se comprometiam em oferecer educaccedilatildeoescola e moradia para os interessados Outro dado

assinalado pela reportagem eacute do costume que haacute em Beleacutem dos setores dominantes empregarem meninas

do interior como babaacutes e ou empregadas domeacutesticas O trabalho domeacutestico eacute considerado uma das piores

formas de exploraccedilatildeo do trabalho infantil (OIT) Disponiacutevel em httpg1globocombom-dia-

brasilnoticia201505policia-do-para-investiga-anuncios-para-criancas-trabalharem-como-babahtml

Acessado em 03-07-2015 398

GOMES Acircngela Maria de Castro Burguesia e trabalho poliacutetica e legislaccedilatildeo social no Brasil 1917-

1937 Rio de Janeiro Campus 1979 399

Rita C V Rosa examinando a relaccedilatildeo entre patroas e empregadas domeacutesticas ressaltou que apesar do

conviacutevio aparentemente harmonioso e de afeto havia uma relaccedilatildeo hieraacuterquica que definia o papel e a

posiccedilatildeo de cada uma das partes ROSA Rita de Caacutessia Vianna ldquoA General das Letrasrdquo a literata

138

natildeo havia a preocupaccedilatildeo com a formaccedilatildeo escolar dessas meninas uma vez que para

uma parcela expressiva dos setores dominantes elas jaacute estavam sendo preparadas para o

papel que se esperava principalmente das mulheres pobres de serem boas donas de

casa esposas e matildees

Dos 239 processos analisados em 40 (1674) houve a menccedilatildeo de soldadas ou

de pagamento pelos serviccedilos prestados pelos ldquomenoresrdquo Dessa parcela 27 (675) se

referiam a meninas e 13 (325) a meninos Provavelmente boa parte dessas

ldquomenoresrdquo senatildeo todas foram destinadas ao trabalho domeacutestico Com relaccedilatildeo aos

meninos creio que foram encaminhados para os trabalhos ligados agrave lavoura Os 13

ldquomenoresrdquo foram tutelados ou dados a soldadas para lavradores ou fazendeiros A faixa

etaacuteria das 27 meninas variou entre 5 a 19 anos de idade e a dos meninos entre 5 e 15

anos

Segundo Kaacutetia Mattoso as crianccedilas escravas entre sete-oito anos de idade jaacute

comeccedilavam a exercer atividades na qualidade de aprendizes era o periacuteodo de transiccedilatildeo

dos escravos para a vida adulta400

A inserccedilatildeo de crianccedilas escravas no mundo do

trabalho a partir dos oito anos tambeacutem eacute ressaltada por Sandra L Graham que assinala

que era costume dos proprietaacuterios de escravos terem manciacutepios entre oito e doze anos

como aprendizes de serviccedilos domeacutesticos Apoacutes a aboliccedilatildeo da escravidatildeo as classes

dominantes passaram a empregar meninas de dezdoze anos em razatildeo dos salaacuterios

baixos ou pelo fato de poderem apenas fornecer roupas e o aprendizado de um ofiacutecio401

Presumo que essa faixa etaacuteria de iniciaccedilatildeo profissional tambeacutem possa ser aplicada ao

caso dos ldquomenoresrdquo desvalidos (afro-americanos nacionais e imigrantes)

Atraveacutes da documentaccedilatildeo compulsada foi possiacutevel observar que a forccedila de

trabalho de crianccedilas de bem pouca idade foi utilizada na ldquoManchester Mineirardquo natildeo

apenas nas faacutebricas mas tambeacutem nas residecircncias das classes dominantes O processo de

tutela da ldquomenorrdquo Isolina eacute um bom exemplo disso

Em 24 de abril de 1896 o Escrivatildeo de Oacuterfatildeos Ignacio Ernesto N da Gama

comunicou ao Juiz a necessidade de se dar tutor agrave menina Isolina de 5 anos de idade

filha da falecida liberta Antocircnia solteira O representante do judiciaacuterio indicou para o

cargo o Major Guilherme Justino Halfeld que era ldquopessoa idocircneardquo e assinalou que a

ldquomenorrdquo natildeo possuiacutea ldquobens de qualquer especierdquo O juiz de Direito Josino de Alcacircntara

Cosette de Alencar e a ldquosuardquo cidade ndash Juiz de Fora (MG) 1918 a 1973 Tese de Doutoramento Niteroacutei

UFF 2013 p 43-46 Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 236-239 400

MATTOSO Kaacutetia Queiros Op cit 1988 p 39-43 401

GRAHAM Sandra Lauderdale Op cit 1992 p 35-36

139

Arauacutejo concordou com a indicaccedilatildeo do cidadatildeo de que deveria ser intimado para assinar

o ldquotermo de responsabilidade com as obrigaccedilotildees do estylo independente de soldada ateacute

a edade de 12 annosrdquo Trecircs dias apoacutes a comunicaccedilatildeo da situaccedilatildeo da menina o cidadatildeo

Guilherme Justino Halfeld assinou a tutela com a obrigaccedilatildeo de zelar por sua ldquopessocirca e

bens e dandolhe (sic) educaccedilatildeo compatiacutevel com a sua condiccedilatildeo de que daraacute contas em

Juizo e tendo seus serviccedilos em troca ateacute que complete doze anos ou desta data a sete

anos []rdquo402

Foi dado um tutor dativo para a oacuterfatilde Isolina mas natildeo teria ela algum parente nas

condiccedilotildees de assumir o encargo Avoacutes Tios Irmatildeos Possivelmente a infacircncia dessa

menina foi como a de tantas outras crianccedilas pobres marcada pelo trabalho submissatildeo e

humilhaccedilatildeo

Ao assinar o termo o tutor se comprometeu a dar educaccedilatildeo ldquocompatiacutevelrdquo com a

condiccedilatildeo da ldquomenorrdquo em suma o aprendizado de um ofiacutecio e a educaccedilatildeo elementar

uma vez que essa era a educaccedilatildeo destinada agraves classes pobres Entretanto haacute a

possibilidade de Isolina natildeo ter recebido instruccedilatildeo escolar pois eacute comum na

documentaccedilatildeo examinada as ldquomenoresrdquo natildeo saberem ler e escrever Enquanto

propunha-se para as mulheres dos setores dominantes uma formaccedilatildeo educacional que

lhes possibilitassem ser boas matildees esposas educadoras dos filhos e com haacutebitos

burgueses de ldquoboas maneirasrdquo para as dos estratos sociais subalternos visava-se uma

educaccedilatildeo voltada para o trabalho ndash para a formaccedilatildeo de uma matildeo de obra submissa e

disciplina ndash e com um forte cunho moral que as afastassem do mundo da vadiagem e da

prostituiccedilatildeo403

Maria Cristina S de Gouvecirca em seu estudo sobre a escolarizaccedilatildeo

feminina no seacuteculo XIX assinala que natildeo havia muito interesse da famiacutelia e dos

responsaacuteveis com a educaccedilatildeo das meninas pobres Esse desinteresse estava relacionado

a diversos fatores entre os quais o auxiacutelio que as ldquomenoresrdquo deveriam prestar nas

atividades domeacutesticas remuneradas ou natildeo e aos ldquopapeis sociais destinados agrave mulher

adulta que natildeo demandavam o acesso a instruccedilatildeo elementarrdquo404

Associada a essa visatildeo

estava a argumentaccedilatildeo dos pais de que necessitavam do trabalho das filhas no serviccedilo

domeacutestico ou fabril o que contribuiacutea ainda mais para afastaacute-las dos bancos escolares

402

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de Tutela Menor Isolina Data 27-

04-1896 Caixa 5 processo 1 403

Cf NEDER Gizlene ldquoFamiacutelia poder e controle social concepccedilotildees sobre famiacutelia no Brasil na

passagem agrave modernidaderdquo Op cit 2007 p14-15 MARCILIO Maria Luiza Histoacuteria Social da crianccedila

abandonada 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2006 p 175-177 RAGO Margareth Do cabareacute ao lar a utopia

da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista Brasil 1890-1930 4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 p

88-91 404

GOUVEcircA Maria Cristina Soares de Op cit 2004 p 203-205

140

Com relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo da forccedila de trabalho de Isolina o Juiz determinou que a

partir dos 12 anos de idade a ldquomenorrdquo deveria passar a receber uma soldada mas ateacute

completar a idade estipulada ela iria compensar o tutor pela sua criaccedilatildeo com trabalho

Nos sete anos de criaccedilatildeo a ldquomenorrdquo seria preparada para os serviccedilos domeacutesticos do lar

do capitatildeo Guilherme Justino Halfeld Provavelmente Isolina experimentou pouco dos

prazeres da infacircncia sendo os seus brinquedos as panelas os tachos a lenha as tinas e

vassouras e suas professoras as outras criadas da residecircncia desse cidadatildeo

Depois da assinatura do termo de tutela segundo Ana Cristina Bastos e Moyseacutes

Kuhlmann JR os juiacutezes pouco sabiam sobre as condiccedilotildees dessas crianccedilas Os

magistrados soacute voltavam a ter alguma informaccedilatildeo sobre os ldquomenoresrdquo nos casos de

denuacutencias de maus-tratos comunicados de fugas dos pupilos renovaccedilatildeo do contrato de

soldada entre outras questotildees405

Sendo assim eacute viaacutevel supor que muitas crianccedilas como

no caso de Isolina que deveria ter a sua soldada estipulada anos depois do

estabelecimento do viacutenculo tutelar nunca tenham gozado desse direito

Com relaccedilatildeo ao pagamento das soldadas em alguns processos de tutelas haacute a

denuacutencia de que o tutor natildeo estava efetivando o pagamento dos soldos dos ldquomenoresrdquo

que deveriam ser depositados (cofres dos menores ou na Caixa Econocircmica Estadual)

conforme o Juiz estipulasse (trimestral semestral anualmente) O natildeo cumprimento do

pagamento da soldada pelos tutores pode ser observado na accedilatildeo de tutela da ldquomenorrdquo

Lucrecia de 10 anos filha da ex-escrava Sophia falecida O tutor Antonio Caiafa

assinou a tutela em 1892 e em 1896 foi intimado a comparecer com a ldquomenorrdquo em juiacutezo

para ser arbitrada uma soldada para mesma Em abril de 1897 Lucrecia declarou que

natildeo havia ldquorecebido remuneraccedilatildeo de seus serviccedilosrdquo406

Tenho argumentado que a tutela foi uma estrateacutegia utilizada por setores das

classes dominantes na transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre de controle e

manutenccedilatildeo da matildeo de obra infantil por baixos salaacuterios ou gratuitamente Apesar dos

baixos valores das soldadas houve tutores que procuraram burlar a lei ou recorreram

para natildeo realizar o pagamento Um exemplo eacute o caso do ldquomenorrdquo Benvindo de 10 anos

de idade filho da liberta Romana que foi tutelado por Militatildeo Honoacuterio Rodrigues

lavrador em Satildeo Joseacute do Rio Preto em janeiro de 1889 No decorrer do processo houve

a solicitaccedilatildeo de apreensatildeo do ldquomenorrdquo por causa das fugas da casa de seu tutor Em

405

BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 56-57 406

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Lucrecia Data 09-

02-1892 Caixa 101

141

1896 o Promotor de Justiccedila Alvaro Macedo Guimaratildees alegou que apesar de os

serviccedilos do ldquomenorrdquo serem remunerados o tutor natildeo havia mandado ldquoensinar-lhe a ler e

escreverdquo e considerou o valor da soldada insignificante Assim foi arbitrada uma nova

soldada O tutor solicitou a sua exoneraccedilatildeo do cargo por provaacuteveis motivos de sauacutede e

pelo fato de o ldquomenorrdquo que jaacute estava com 18 anos de idade natildeo permanecer em sua

companhia e ldquosob o [seu] governordquo Com a alegaccedilatildeo de que Benvindo fugia e

ausentava-se constantemente o tutor requereu que natildeo fosse obrigado a fazer o

pagamento das soldadas no periacuteodo de 1895 a 1897 pois nesse periacuteodo o seu pupilo natildeo

havia lhe prestado serviccedilos O pedido foi indeferido e Militatildeo Honoacuterio Rodrigues ficou

responsabilizado pelo pagamento de ldquotodas as soldadas compreendidas no tempo da

tutela ateacute o dia em que eximiu-serdquo em 1898 pois segundo o parecer do judiciaacuterio se o

pupilo fugia e natildeo prestava os serviccedilos ldquoera por falta de cuidados do tutorrdquo407

No processo de tutela de Benvindo observa-se o descumprimento do tutor da

obrigaccedilatildeo de mandar o pupilo a aprender a ler e escrever e a baixa remuneraccedilatildeo pelos

serviccedilos prestados As ditas ldquofugasrdquo e ldquoausecircnciasrdquo do ldquomenorrdquo podem ser interpretadas

como uma forma de reaccedilatildeo agraves condiccedilotildees de trabalho e de sobrevivecircncia impostas pelo

tutor O poder judiciaacuterio ao que tudo indica nesse caso fez valer os interesses e

direitos do ldquomenorrdquo ao determinar o pagamento das soldadas devidas

Segundo Ana Cristina Bastos e Moyseacutes Kuhlmann JR os valores das soldadas

eram estipulados de acordo com a idade e o sexo dos ldquomenoresrdquo Conforme pude apurar

na documentaccedilatildeo compulsada os valores das soldadas eram baixos As soldadas

estipuladas para as ldquomeninasrdquo variaram de dois mil reacuteis a quinze mil reacuteis mensais e a

dos meninos de cinco mil reacuteis a 25 mil reacuteis mensais

O estabelecimento de contratos de soldadas em alguns casos foram alvos de

disputas entre os pretendentes Os baixos salaacuterios pagos a essas crianccedilas deveria se

afigurar como um atrativo para os setores dominantes O processo de tutela dos

ingecircnuos Sebastiatildeo e Fortunato de 6 e 13 anos de idade respectivamente filhos da

liberta Maria solteira ex-escrava de Dominciano Joseacute Lopes moradora no distrito de

Vargem Grande eacute um bom exemplo Em 28 de maio de 1888 os ldquomenoresrdquo solicitaram

que lhes fosse nomeado um tutor pois apesar da promulgaccedilatildeo da lei de 13 de maio

eles permaneciam no ldquoserviccedilo de seu ex-senhor que os maltratardquo A matildee dos meninos

encontrava-se trabalhando para outro proprietaacuterio A peticcedilatildeo foi realizada pelo

407

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Benvindo Data 16-

11-1888 Caixa 100

142

advogado Joatildeo Severiano da Fonseca a rogo dos meninos que natildeo sabiam escrever O

juiz nomeou para o cargo de tutor Antonio Joseacute dos Santos Nazareth

Atraveacutes da peticcedilatildeo dos irmatildeos Fortunato e Sebastiatildeo eacute provaacutevel supor que

muitos ingecircnuos tenham permanecido sob o poder dos antigos senhores de suas matildees ou

pais Conjecturo que uma parcela dos libertos logo apoacutes aboliccedilatildeo do trabalho escravo

sem recursos e meios de sobrevivecircncia tenham deixado seus rebentos nas unidades em

que haviam sido cativos com ex-companheiros de cativeiro ou com algum parente ateacute

conseguirem se estabelecer com emprego e residecircncia Essa provaacutevel estrateacutegia dos ex-

escravizados pode ter contribuiacutedo para que muitos proprietaacuterios tenham se aproveitado

de tal situaccedilatildeo para solicitarem a tutela dessas crianccedilas sob a alegaccedilatildeo de que elas

haviam sido abandonadas que as matildees haviam se ldquodesmandadordquo estavam vivendo na

prostituiccedilatildeo

Como em outros processos de tutelas foram constantes as fugas dos irmatildeos

Fortunato e Sebastiatildeo da residecircncia do tutor Em uma peticcedilatildeo de 1894 comunicando a

fuga dos pupilos o tutor solicitou a apreensatildeo dos mesmos e que fosse arbitrada uma

soldada O promotor de justiccedila Afracircnio Mello Franco natildeo se opocircs agrave soldada

ressaltando entretanto que ela deveria ser ldquoregulada pela idade agilidade preacutestimos dos

oacuterphatildeos pela qualide do serviccedilo etcrdquo e que deveriam ldquoser preferidos os lavradoresrdquo

Aleacutem dessas ponderaccedilotildees o promotor ainda asseverou que se deveria mandar ensinar a

ler e escrever caso fossem analfabetos bem como o aprendizado de um oficio para o

qual tivessem vocaccedilatildeo Assim o juiz determinou que o tutor indicasse uma pessoa

idocircnea para assinar o contrato de soldada sendo entatildeo indicado o fazendeiro Nicolau

Kennitz Cappelli Nesse iacutenterim o fazendeiro Raphael [Gelhioti] tambeacutem se dispocircs a

assinar o contrato de locaccedilatildeo de serviccedilo dos ldquomenoresrdquo alegando que a matildee dos

mesmos era colona em sua fazenda e desejava ter os filhos proacuteximos de si [Gelhioti]

acrescentou ainda que os meninos fugiam constantemente para a sua propriedade para

ficarem com a matildee Ambos os pretendentes apresentaram suas propostas para a

assinatura do contrato Os valores dos salaacuterios propostos foram os mais altos que

encontrei na documentaccedilatildeo examinada [Gelhioti] comprometeu-se a pagar vinte mil

reacuteis mensais para Fortunato e oito mil reacuteis mensais para Sebastiatildeo enquanto Cappelli

ofereceu pelos serviccedilos dos jovens a quantia de vinte e cinco e doze mil reacuteis mensais

respectivamente A proposta aceita foi a de Cappelli O tutor solicitou que os ldquomenoresrdquo

fossem apreendidos pois estavam haacute mais de cinco meses na propriedade de [Gelhioti]

143

No processo consta apenas a assinatura do contrato de Sebastiatildeo pois Fortunato havia

fugido novamente

Se para algumas famiacutelias dos estratos sociais subalternos a tutela de seus filhos

representou problemas foi motivo para disputas judiciais com os tutores pela guarda

dos ldquomenoresrdquo Para outras creio que tenha representado uma alternativa de dar um

futuro melhor para suas crianccedilas ou tenha sido a uacutenica possibilidade visualizada para

natildeo deixaacute-los ao abandono nas ruas como presas faacuteceis para a delinquecircncia e a

criminalidade

Seacutergio C Fonseca argumenta que nas cidades em que natildeo havia instituiccedilotildees para

abrigar as ldquocrianccedilas oacuterfatildes abandonadas ou cujos pais natildeo podiam cuidar delas []rdquo a

tutela se mostrou como um mecanismo empregado para ldquoremediarrdquo tal problema408

Como foi analisado no primeiro capiacutetulo a cidade de Juiz de Fora nos anos finais do

seacuteculo XIX e nas primeiras deacutecadas do XX natildeo contou com uma instituiccedilatildeo para

abrigar meninos abandonados oacuterfatildeos ou que os pais natildeo tinham condiccedilotildees de criaacute-los e

educaacute-los Assim concordo com o autor quanto agrave tutela ter sido utilizada como uma

medida paliativa pelos setores dominantes para ldquoremediarrdquo a questatildeo do ldquomenorrdquo

abandonado e oacuterfatildeo

Dentro dessa perspectiva a tutela pode ser interpretada como uma via de matildeo

dupla utilizada tanto pelos setores dominantes quanto pelas classes subalternas Para os

primeiros representava um mecanismo de controle de uma parcela da matildeo de obra a

baixo custo ou gratuitamente e para os segundos uma possibilidade de natildeo deixar os

filhos entregues ao abandono pelas ruas das cidades A esse respeito E P Thompson

assinala que ldquoa estrutura em qualquer relaccedilatildeo entre ricos e pobres sempre corre em

matildeo dupla e essa mesma relaccedilatildeo quando girada e vista em perspectiva inversa pode

expor uma heuriacutestica alternativardquo409

O estabelecimento do viacutenculo tutelar nos municiacutepios que natildeo contavam com

instituiccedilotildees para abrigar os ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados oacuterfatildeos e que os pais natildeo

tinham condiccedilotildees de criaacute-los ao que tudo indica ainda era considerado pelas classes

dominantes como uma accedilatildeo social ou um gesto de caridade que visava retiraacute-los das

ruas e transformaacute-los em cidadatildeos uacuteteis agrave paacutetria Em alguns processos os peticionaacuterios

ou indicados para tutor colocavam a funccedilatildeo como ldquoespinhosardquo ou como um ldquoocircnusrdquo e

408

FONSECA Seacutergio C ldquoA infacircncia nos autos de tutela da comarca de Ribeiratildeo Preto (1889-1917)rdquo

Anais do XXI Encontro Estadual de Histoacuteria ndash ANPUH ndash Campinas setembro 2012 sp 409

THOMPSON E P As peculiaridades dos ingleses e outros artigos Campinas (SP) Editora da

Unicamp 2001 p 246

144

que se dispunham a assumi-la para o bem da crianccedila e da paacutetria Entretanto esse

discurso da necessidade de se dar tutor para ldquosalvarrdquo o ldquomenorrdquo e a sociedade tambeacutem

foi utilizado pelas classes subalternas para dar um encaminhamento para seus entes

Assim em abril de 1888 Carlos Albino dos Passos solicitou que fosse dado tutor a seu

neto ldquomenorrdquo Alberto filho natural de Minelvina Cacircndida dos Passos falecida com a

seguinte justificativa

[] aproveitando-se de seu estado valetudinario e de achar-se o Suppte

paralytico natildeo queacuter dedicar-se a trabalho ou officio algum vivendo pelas

ruas desta cidade em companhia de outros menores vagabundos o suppt no

intuito de prestar um acto de caridade ao dito menor e um serviccedilo aacute

sociedade vem requerer a VSordf que se [] nomear tutor ao mesmo menor []

o supplet sendo pobre e aleyjado e vivendo da caridade publica como eacute

publico e notorio nesta cidade e se vecirc pelos attestados juntos []410

O avocirc de Alberto utilizou-se do discurso dominante para solicitar um

encaminhamento para o seu neto oacuterfatildeo ou seja a valorizaccedilatildeo do trabalho a caridade ou

preocupaccedilatildeo com o futuro do ldquomenorrdquo e da sociedade A nomeaccedilatildeo de um tutor para

esse jovem foi colocada como importante para livraacute-lo da vadiagem bem como a naccedilatildeo

de problemas futuros com um adulto indisciplinado e vadio Apesar de o texto ter sido

redigido a rogo do suplicante Carlos Albino dos Passos por natildeo ldquopoder escreverrdquo por

estar ldquosem movimento em ambas as pernas e matildeosrdquo esse homem desvalido recorreu aos

meios legais provavelmente com o objetivo de proporcionar um futuro melhor para o

seu neto

Durante o processo de constituiccedilatildeo de mercado de trabalho livre na sociedade

brasileira deu-se a construccedilatildeo da ideia do trabalho como algo positivo regenerador e

dignificante e no mesmo compasso ocorreu tambeacutem a elaboraccedilatildeo do conceito de

vadiagem Dentro desse contexto o natildeo trabalho passou a ser classificado como uma

ameaccedila agrave sociedade e agrave ordem O oacuteciovadiagem era associado agrave depravaccedilatildeo dos

costumes e da moral ao crime agrave corrupccedilatildeo e portanto deveria ser reprimido411

No processo de tutela do ldquomenorrdquo Mariano de 14 anos de idade filho de

Joaquina Maria de Jesus morador no distrito de Satildeo Sebastiatildeo de Chaacutecara o discurso

do natildeo trabalho associado agrave ociosidade vadiagem e crime tambeacutem se fez presente Em

410

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Alberto Data 21-

04-1888 Caixa 100 411

CHALHOUB Sidney Trabalho lar e botequim o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da

belle eacutepoque 2 ed Campinas (SP) Editora da Unicamp 2001 p 73-77 NEDER Gizlene Discurso

Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1995 p 18-19 52-53

145

julho de 1890 Joaquina Maria solicitou a nomeaccedilatildeo de um tutor para seu filho que

havia fugido de sua casa e achava-se no distrito de Aacutegua Limpa412

sem trabalho e em

ldquocompleto estado de ociosidade e por isso caminhando para a vagabundagem e viacutecios

aleacutem de deixar a suppte em completo estado de abandonordquo Joaquina Maria ainda

salientou que era velha e aleijada e que era sustentada pelo ldquomenorrdquo e que a fuga teria

decorrido da ldquoinsinuaccedilatildeo de Joatildeo da Silva Lagerdquo413

Com o discurso da vadiagem e do crime a matildee solicitou um tutor para zelar pela

pessoa de seu filho para que o mesmo natildeo se entregasse agrave ldquoperdiccedilatildeordquo Um dado

relevante nesse processo eacute o fato de a matildee declarar que era ldquosustentadardquo pelo filho o

que leva a crer que o ldquomenorrdquo exercia alguma atividade que possibilitava o seu proacuteprio

sustento e o de sua genitora Mas o que teria levado Mariano a fugir da casa de sua

matildee Maus-tratos Exploraccedilatildeo Teria Joatildeo da Silva Lage com suas ldquoinsinuaccedilotildeesrdquo

prometido algum contrato de trabalho vantajoso para o ldquomenorrdquo no distrito de Aacutegua

Limpa Joaquina Maria estaria realmente preocupada com o futuro de seu filho ou

apenas com a sua sobrevivecircncia garantida ao que tudo indica pelos trabalhos ou

biscates realizados pelo ldquomenorrdquo

Na documentaccedilatildeo consultada casos de violecircncia de pais contra os filhos foram

identificados Em novembro de 1895 o delegado de poliacutecia Luiz Alves comunicou ao

Juiz de Direito que havia apreendido a menina Juacutelia de quatro para cinco anos de idade

por ter sido ldquobarbaramente espancada por seu pairdquo tendo as costas em chagas O pai da

ldquomenorrdquo segundo o delegado havia se mudado do municiacutepio ou seja estava

foragido414

A tutela de Juacutelia foi assinada pelo major Joaquim Nogueira Jaguaribe

marido da senhora Maria Luiacutesa a Inhaacute Luiacutesa avoacute do memorialista Pedro Nava Na

epiacutegrafe que abre esse capiacutetulo Nava relata sobre as condiccedilotildees de vida das meninas as

ldquocriasrdquo na casa de sua avoacute sobre os castigos fiacutesicos as palmatoacuterias [] A dar creacutedito

aos relatos de Nava a vida de Juacutelia na casa dos Jaguaribes provavelmente natildeo foi

isenta de castigos e agressotildees

412

O distrito de Aacutegua Limpa foi criado pelo decreto estadual no 158 de 31-07-1890 e Lei Estadual n 2

de 14-09-1891 subordinado ao municiacutepio de Juiz de Fora Em 1948 o distrito passou a denominar-se

Coronel Pacheco (Lei Estadual n 336) e em 1962 foi elevado a categoria de municiacutepio mantendo a

denominaccedilatildeo de Coronel Pacheco (lei Estadual 2764 de 30-12-1962) Disponiacutevel em

httpwwwcidadesibgegovbrpainelhistoricophplang=ampcodmun=311960ampsearch=minas-

gerais|coronel-pacheco|infograficos-historico Acessado em 28-11-2014 413

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Mariano Data 24-

07-1890 Caixa 04 Processo 11 414

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Juacutelia Data 13-11-

1895 Caixa 101

146

Nos jornais os supostos casos de agressotildees dos pais contra os filhos tambeacutem

foram denunciados Em 30 de janeiro de 1900 com o tiacutetulo ldquoPai desnaturadordquo O

Pharol noticiou o espancamento de um ldquomenorrdquo de 14 anos de idade por seu pai no

distrito de Rosaacuterio que culminou no falecimento do mesmo A mateacuteria solicitava

providecircncias do delegado de poliacutecia415

No mesmo perioacutedico e data foi ainda publicado

que a ldquopretardquo Clementina havia sido admoestada pelo delegado de poliacutecia pelo fato de

ter o ldquocostume de maltratar o seu filhordquo Em 24 de janeiro de 1911 o mesmo jornal O

Pharol relatou que havia uma casa na Rua Fonseca Hermes onde uma crianccedila era

constantemente espancada ldquopor seus pais ou coisa que os valhardquo A reportagem

solicitava uma providecircncia da poliacutecia e ressaltava que o fato lhes havia sido denunciado

pela vizinhanccedila que estava comovida e indignada com tal situaccedilatildeo416

Os vizinhos

possuem um papel importante nas denuacutencias de maus tratos infligidos agraves crianccedilas pelos

pais e ou parentes nos comunicados agraves autoridade sobre a presenccedila de ldquomenoresrdquo em

casas de prostituiccedilatildeo tabernas entre outras situaccedilotildees Segundo Arlette Farge e Michel

Foucault a vizinhanccedila eacute um componente importante nos estudos sobre as relaccedilotildees

familiares pois os casais e ou as pessoas natildeo vivem sozinhos ou seja satildeo observados

constantemente pelos vizinhos417

E satildeo eles que em determinadas situaccedilotildees podem com

seus testemunhos esclarecer fatos resguardar a honra de uma meninamoccedila livrar

crianccedilas de situaccedilotildees de abusos e maus tratos entre outras questotildees418

Eacute provaacutevel que as agressotildees fiacutesicas os maus-tratos e a exploraccedilatildeo tenham sido e

ainda satildeo as causas de fugas de muitas crianccedilas dos lares de seus pais familiares ou

tutores As ruas para esses ldquomenoresrdquo poderiam (podem) significar liberdade

solidariedade e autonomia

A questatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo tambeacutem suscitou problemas entre tutor e

pupilo e em alguns casos foi motivo para o pedido de exoneraccedilatildeo do cargo Segundo

Ana Cristina do C L Bastos e Moyseacutes Kuhlmann JR a falta de afetividade entre tutor

415

AHUFJF ldquoPai desnaturadordquo O Pharol 30 jan 1900 p 1 416

AHUFJF O Pharol 24 jan 1911 p 1 417

FARGE Arlette FOUCAULT Michel Op cit 1982 p 35-36 418

Carolina Neder em seu estudo sobre as operaacuterias da ldquoManchester Mineirardquo (1890-1954) analisou entre

outros o caso de ldquoseduccedilatildeordquo e ldquoviolecircncia carnalrdquo da ldquomenorrdquo Augusta de Souza Outeiro de 20 anos de

idade operaacuteria da faacutebrica de tecidos Satildeo Joatildeo no ano de 1917 Segundo a autora o que pesou a favor da

ldquomenorrdquo no processo que moveu contra o noivo Francisco Pereira foi o fato de seus vizinhos entre eles

ldquomuitos homensrdquo terem assinalado em seus testemunhos que Augusta era uma ldquomenina honesta e seacuteriardquo

Assim os testemunhos da vizinhanccedila da ofendida foram fundamentais na decisatildeo do caso pelo poder

judiciaacuterio a favor da ldquomenorrdquo NEDER Carolina Barbosa Memoacuterias que natildeo se apagam o cotidiano de

lutas das operaacuterias na Manchester Mineira (1890-1954) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Juiz de Fora UFJF

2010 p 80-81

147

e tutelado pode ser apreendida nos processos em que haacute a solicitaccedilatildeo do tutor para ser

liberado do encargo Os autores ressaltaram que Evaristo de Moraes na obra ldquoCreanccedilas

abandonadas creanccedilas criminosasrdquo de 1900 jaacute havia alertado para o fato de que com

relaccedilatildeo aos oacuterfatildeos a preocupaccedilatildeo primeira era em estabelececirc-los no exerciacutecio de uma

atividadeocupaccedilatildeo e natildeo em inseri-los no seio de uma famiacutelia em que houvesse a

possibilidade de relaccedilotildees de afetividade419

Segundo Evaristo de Moraes natildeo eram as

pessoas ldquo[] mais dotadas de afetividade familiar as que encomendavam nos cartoacuterios e

aos juiacutezes esses creadinhos baratosrdquo420

A tutela da ldquomenorrdquo Sebastiana dos Reis demonstra o provaacutevel surgimento de

tensatildeo entre tutor e pupila relacionado agrave questatildeo do trabalho Em 2 de novembro de

1912 o farmacecircutico Antonio da Silva Vianna casado residente na Rua de Satildeo Mateus

solicitou a tutela da menina Sebastiana dos Reis de nove anos de idade filha legiacutetima

de Joseacute dos Reis falecido e de D Thereza dos Reis Segundo informaccedilotildees da peticcedilatildeo a

ldquomenorrdquo

[] foi entregue ao suppte com 3 annos de edade por occasiatildeo do

fallecimento do seu pae Jose dos Reis isto espontaneamente pela propria matildee

Dordf Thereza dos Reis que allegando achar-se sem recurso para manter e

educar a referida sua filha entregou-a ao suppte na qualidade de padrinho

para esse ficar tendo tido o mesmo procedimento com as demais filhas em

numero de 3 que tambem entregou aos padrinhos e amigos Acontece agora

que a mesma Dordf Thereza exige do suppte a entrega da referida menor por

isso vem com o devido respeito requerer a V Excia a sua nomeaccedilatildeo de tutor

da mesma menor visto continuar sua matildee sem os necessarios recursos para

mantel-a e educal-a []421

Ao que tudo indica a matildee da ldquomenorrdquo entregou as filhas ldquopara os padrinhos e

amigosrdquo quando se encontrava em uma situaccedilatildeo econocircmica desfavoraacutevel logo apoacutes o

falecimento de seu marido com vaacuterias crianccedilas para sustentar Quando a menina

Sebastiana foi entregue ao padrinho contava apenas com trecircs anos de idade sendo

apenas ldquoconsumidorardquo ou seja ainda natildeo podia contribuir com as despesas domeacutesticas

Entretanto quando D Thereza dos Reis retorna requerendo a guarda Sebastiana jaacute

estava com nove anos de idade ou seja poderia exercer atividades que auxiliariam nos

419

BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 58 420

MORAES A Evaristo de Creanccedilas abandonadas creanccedilas criminosas Typografia Moraes 1900

Apud BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 58 421

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Sebastiana dos

Reis Data 02-12-1912 Caixa 06 Processo 1

148

gastos domeacutesticos jaacute era ldquoprodutorardquo422

Com relaccedilatildeo agraves irmatildes da ldquomenorrdquo que o

peticionaacuterio declarou que haviam sido entregues para os pais espirituais e amigos

provavelmente tambeacutem estavam em uma faixa etaacuteria que natildeo poderiam ajudar nas

despesas familiares quando a matildee as deixou

Foram arroladas duas testemunhas para deporem sobre as alegaccedilotildees do

peticionaacuterio o farmacecircutico Antonio da Silva Vianna Em seus depoimentos as

testemunhas confirmaram que a matildee de Sebastiana a havia entregado ao seu padrinho

de batismo bem como outros filhos para pessoas diversas Disseram que Dordf Thereza

continuava a natildeo ter recursos para cuidar de sua prole era dada ao viacutecio da embriaguez

e natildeo tinha a ldquohonestidaderdquo necessaacuteria para cuidar da menina que era bem tratada na

casa de seu padrinho Uma das testemunhas declarou que natildeo sabia se a ldquomenorrdquo estava

aprendendo a ler e escrever

A desqualificaccedilatildeo da matildeemulher pobre foi uma caracteriacutestica observada nas

fontes consultadas Com o discurso da imoralidade e do viacutecio das genitoras das crianccedilas

desvalidas e ou oacuterfatildes setores das classes dominantes conseguiram a guarda de crianccedilas

que creio que em sua maioria transformaram-se nos denominados ldquocreadinhos baratosrdquo

por Evaristo de Moraes

Assim a tutela de Sebastiana dos Reis foi concedida ao farmacecircutico Antonio da

Silva Vianna apenas um mecircs apoacutes a solicitaccedilatildeo No termo de tutela o suplicante se

comprometeu a cuidar da educaccedilatildeo da menina ldquoensinando-lhe a ler e escreverrdquo A matildee

da ldquomenorrdquo estava vivendo na comarca de Viccedilosa Minas Gerais

Antonio da Silva Vianna apoacutes cinco anos como tutor de Sebastiana solicitou

em fevereiro de 1917 a sua exoneraccedilatildeo do cargo com a alegaccedilatildeo de

[] natildeo podendo mais continuar como tutor da mesma por essa natildeo querer

sujeitar-se ao trabalho tornando-se mmo

insuportavel por isso vem requerer a

V Exa a exoneraccedilatildeo da dita tutella Entregando essa menor a sua avoacute de bom

comportamento residente no municipio de Viccedilosa e cazo essa natildeo queira

acceitar a menor entreguea a uma famiacutelia honesta423

Os motivos declarados para o pedido de exoneraccedilatildeo datildeo a entender que a

preocupaccedilatildeo fundamental do tutor era com o trabalho que a ldquomenorrdquo poderia oferecer

Poreacutem a suposta recusa da pupila em ldquosujeitar-serdquo agraves tarefas impostas por seu tutor a

422

FARIA Sheila de Castro ldquoA propoacutesito das origens dos enjeitados no periacuteodo escravistardquo In

VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010 p 85 423

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Sebastiana dos

Reis Data 02-12-1912 Caixa 06 Processo 1

149

tornou ldquoinsuportaacutevelrdquo ao ponto de natildeo a querer mais em sua residecircncia Mas quais

seriam os trabalhos que a menina deveria realizar A provaacutevel recusa de Sebastiana em

trabalhar poderia estar relacionada a falta de pagamentos pelos seus serviccedilos O

comportamento da ldquomenorrdquo poderia ser uma maneira de demonstrar a sua insatisfaccedilatildeo

em estar vivendo na casa de seu padrinho-tutor Nesse caso apenas conjecturas podem

ser feitas uma vez que natildeo temos a versatildeo da pupila O Juiz deferiu o pedido do tutor

sem escutar a versatildeo da menina Geralmente o pupilo soacute era ouvido judicialmente em

casos de disputas pela sua guarda ou de denuacutencias de maus-tratos

A esse respeito Ana Cristina do C L Bastos e Moyseacutes Kuhlmann JR salientam

que ao ldquomenorrdquo natildeo era dada a oportunidade de dizer se desejava trocar de tutor se

aceitava o novo pretendente ou indicado e sobre o seu destino As argumentaccedilotildees de

que o tutelado era ldquopreguiccedilosordquo ou ldquodoenterdquo eram comuns nos pedidos para deixar o

cargo de tutor Para os autores esse dado ldquoreforccedila a hipoacutetese de ser o contrato de

serviccedilos o elemento determinante na relaccedilatildeo de tutoriardquo424

Compactuo com a hipoacutetese

de Bastos e Kuhlmann JR de que a questatildeo do trabalho foi primordial nas accedilotildees de

tutelas dos ldquomenoresrdquo desvalidos oacuterfatildeos e abandonados No caso analisado a menina

Sebastiana supostamente recusando-se a realizar as tarefas ordenadas foi motivo para

ser deixada por seu tutor

Na proacutexima parte analisarei os processos de apreensatildeo de ldquomenoresrdquo Essa

documentaccedilatildeo assemelha-se em alguns aspectos agraves tutelas uma vez que seu exame nos

permite observar as disputas pela guarda das crianccedilas entre pais e tutores entre os pais

e ou entre os pais e parentes Muitos autos de tutelas constam pedidos dos tutores ou

dos pais de apreensatildeo dos ldquomenoresrdquo que haviam fugido que estavam vivendo fora do

lar que estavam vagando pelas ruas da cidade entre outros fatores

2 5 APREENSAtildeO DE ldquoMENORESrdquo

Moleques de recado vendedores ambulantes criados e aprendizes as

crianccedilas populares escravas livres nacionais ou estrangeiras exerceram

diversas funccedilotildees na sociedade e teceram com suas matildeos um quinhatildeo da

histoacuteria (Alessandra F Martinez)425

424

BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 58 425 MARTINEZ Alessandra Frota Op cit 1997 p 163

150

Os processos de apreensatildeo de ldquomenoresrdquo apresenta uma gama variada de

possibilidade de estudos Essa documentaccedilatildeo permite a observaccedilatildeo das tensotildees e

conflitos entre pais e tutores e entre os familiares pela guarda da crianccedila Outro dado

que essa fonte possibilita que seja analisado eacute a questatildeo da utilizaccedilatildeo da matildeo de obra

infantil Os autos de apreensatildeo estatildeo sob a custoacutedia do Arquivo Histoacuterico de Juiz de

Fora Foram preservados 65 processos dos quais analisei 45 (6923) por se referirem a

crianccedilas das camadas populares426

Do total de 45 documentos examinados 17

(3778) dizem respeito a disputas entre os pais das crianccedilas 19 (4222) satildeo

referentes a disputas entre os pais o pai e ou matildee com outras pessoas da comunidade

ou parentes e os outros 9 (20) devem-se a questotildees variadas como fuga da casa dos

pais por maus tratos por casos de defloramento disputa entre o tutor e um outro

indiviacuteduo ou ao fato de a crianccedila se encontrar em casa de prostituiccedilatildeo

Nos processos em que os pais estatildeo em disputas pela guarda as acusaccedilotildees mais

frequentes quando satildeo relativas agraves matildees eacute a de que as mesmas haviam se

ldquodesmandadordquo ou se entregado agrave vida de prostituiccedilatildeo perdendo a ldquoqualidade de matildee de

famiacuteliardquo427

Poreacutem quando as acusaccedilotildees satildeo desferidas contra o pai geralmente as

alegaccedilotildees satildeo de que o mesmo era dado ao viacutecio da embriaguez possuiacutea maus costumes

e mau comportamento e de que abandonou o lar deixando a famiacutelia ao desamparo

Os processos de apreensatildeo de ldquomenoresrdquo iniciam-se com uma peticcedilatildeo

geralmente dirigida ao Juiz de Direito assinalando que o ldquomenorrdquo fugiu foi raptado foi

levado por seu pai ou matildee ou por outro indiviacuteduo que se encontrava vivendo em casa

de prostituiccedilatildeo vagando pelas ruas etc Alguns processos satildeo mais ricos em detalhes e

informaccedilotildees trazendo a cor dos envolvidos a profissatildeo a nacionalidade etc Poreacutem

outros trazem poucos dados possuem apenas a peticcedilatildeo ou natildeo contecircm a conclusatildeo

Assim eacute necessaacuterio ir costurando as informaccedilotildees os pequenos detalhes para que parte

da histoacuteria dessas crianccedilas e de suas famiacutelias desvalidas possa emergir Para que isso

aconteccedila eacute necessaacuterio seguirmos as ldquopistasrdquo e os ldquorastrosrdquo deixados pelos

subdelegados pelos juiacutezes pelos promotores escrivatildees e tantos outros intermediaacuterios

426

Existem no Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora 65 processos de apreensatildeo de menores Deste

total 15 processos satildeo referentes ao periacuteodo de 1877 ateacute 1888 e os outros 5 processos satildeo da deacutecada de

1930 Os 45 processos examinados estatildeo compreendidos no periacuteodo de 1888 a 1922 427

AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Processo da menor Itaacutelia 1897 cx 04

151

presentes nesses documentos ou seja eacute preciso olhar para as partes ldquoopacasrdquo dos

textos428

Os processos de apreensatildeo examinados perfazem um total de 54 crianccedilas onde

38 (7037) satildeo do sexo feminino e 16 (2963) do masculino As idades variam entre

nove meses de idade a vinte e um anos A grande maioria das crianccedilas envolvidas na

documentaccedilatildeo estaacute compreendida na faixa etaacuteria acima dos sete anos de idade

perfazendo um total de 29 casos (5370) Dos 16 meninos 8 (50) deles possuiacuteam

mais de sete anos 5 (3125) menos de sete anos e em 3 (1875) casos natildeo consta a

idade Com relaccedilatildeo agraves 38 meninas 21(5526) delas foram declaradas com mais de sete

anos 10 (2632) com idade inferior a sete anos e em 7 (1842) casos natildeo apareceu a

idade das envolvidas429

De posse desses dados algumas observaccedilotildees podem ser feitas no que se refere agrave

possibilidade de utilizaccedilatildeo da forccedila de trabalho dessas crianccedilas Essa porcentagem

maior de crianccedilas acima dos sete anos de idade eacute bem sugestiva pois era a idade em que

jaacute podiam comeccedilar a exercer atividades na qualidade de aprendizes era o periacuteodo de

transiccedilatildeo dos escravos para a vida adulta430

Daiacute o interesse maior pelas crianccedilas

compreendidas nessa faixa etaacuteria quando estatildeo aptas a executarem atividades a

aprenderem um ofiacutecio Conjecturo que os pais poderiam estar solicitando a apreensatildeo e

a guarda de seus filhos para poderem empregaacute-los em alguma atividade remunerada

para dessa forma ajudarem na subsistecircncia da famiacutelia Pode-se tambeacutem aventar que os

tutores ou parentes que estavam com a guarda ou as retiraram da posse de seus genitores

poderiam estar utilizando dos serviccedilos dessas crianccedilas

Diversos motivos deram origem agrave abertura dos processos de apreensatildeo de

ldquomenoresrdquo e a questatildeo da presenccedila dessas crianccedilas nas ruas foi um deles O incocircmodo

que esses ldquomenoresrdquo vagando nas ruas da cidade causavam agrave sociedade eacute perceptiacutevel

nos processos Como jaacute foi assinalado neste estudo a presenccedila de meninos nas ruas e

suas provaacuteveis accedilotildees eram motivos de reclamaccedilotildees nos jornais locais e de apreensatildeo das

classes dominantes No processo da menina Altina de doze anos mais ou menos filha

428

GINZBURG Carlo Introduccedilatildeo In O fio e os rastros verdadeiro falso fictiacutecio Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2007 p 11-12 GINZBURG Carlo Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo italiana In O queijo e os

vermes o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisiccedilatildeo Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2006 p 13 429

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Apreensatildeo de Menores (1877-1938)

cx 04 430

MATTOSO Kaacutetia Queiros (1988) ldquoO filho da escrava (em torno da Lei do Ventre Livre)rdquo In LARA

Silvia Hunold (org) Escravidatildeo Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero v 8 n

16 marago 1988 p 39-43

152

natural da ex-escrava Malvina o Juiz Municipal de Oacuterfatildeos foi comunicado por Martins

Kascher que ela estava vagando pelas ruas da cidade ateacute altas horas da noite e que sua

matildee natildeo possuiacutea condiccedilotildees de educaacute-la e vesti-la por isso deveria ser dado a ela um

tutor431

Eacute possiacutevel que Martins Kascher estivesse realmente interessado na situaccedilatildeo da

menina e por outro lado podemos conjecturar a possibilidade de estar preocupado com

os provaacuteveis problemas que essa ldquomenorrdquo poderia causar no futuro vivendo nas ruas jaacute

que esse espaccedilo era tido como um local de marginalidade e de viacutecios sendo

representado pelo discurso meacutedico como a ldquogrande escola do malrdquo Para os meacutedicos

higienistas era necessaacuterio proteger essa infacircncia desvalida e abandonada que vivia pelas

ruas das cidades e as instituiccedilotildees assistenciais eram apresentadas como o locus

privilegiado para a preservaccedilatildeo dessas crianccedilas432

Com relaccedilatildeo agraves meninas ainda havia a preocupaccedilatildeo com a honra a preservaccedilatildeo

da virgindade e com a formulaccedilatildeo de medidas que impedissem que elas entrassem na

vida de prostituiccedilatildeo A prostituiccedilatildeo era tida pelos higienistas e por outros setores dos

grupos dominantes como um grande mal para a sociedade pois as meretrizes pervertiam

ldquoa moral da mulher-matildeerdquo eram irresponsaacuteveis com ldquoa vida dos filhosrdquo um mau

exemplo para as meninas pobres entre outras questotildees433

Assim era de fundamental

importacircncia incutir nessas meninas haacutebitos higiecircnicos e valores de uma boa conduta

para que futuramente fossem disciplinadas trabalhadoras boas matildees e donas e casas

Para setores das classes dominantes a ldquohonra sexualrdquo das meninas e mulheres era a base

da famiacutelia e da naccedilatildeo Sem esses pilares seria o caos social434

A matildee da ldquomenorrdquo Malvina Maria da Conceiccedilatildeo enviou ao Juiz de Oacuterfatildeos uma

peticcedilatildeo declarando-se pobre e sem ldquomeios de vidardquo para educar sua filha Ela solicitou

que o cidadatildeo Quintiliano Alves Horta Jardim fosse indicado para tutor da menina o

que o Juiz aceitou e convocou o citado cidadatildeo para assumir a guarda de Altina

Para muitas mulheres egressas do cativeiro conseguir ldquomeios de vidardquo natildeo deve

ter sido muito faacutecil e possivelmente muitas delas fizeram a entrega de seus filhos agraves

famiacutelias abastadas na esperanccedila de que seus rebentos pudessem receber alguma

431

AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Altina 15-10-1890 cx 04 432

RAGO Margareth Op cit 2014 p 160-161 433

COSTA Jurandir Freire Ordem meacutedica e norma familiar 4 ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1999

p 265-266 434

CAULFIELD Sueann Em defesa da honra moralidade modernidade e naccedilatildeo no Rio de Janeiro

(1918-1940) CampinasSP Ed da UNICAMP 2000 p 26

153

educaccedilatildeo ou apenas tivessem um meio de vida e sobrevivecircncia Na peticcedilatildeo Malvina

requer que seja dada ldquoalguma educaccedilatildeordquo para sua filha Altina possivelmente recebeu

ldquoalguma educaccedilatildeordquo o aprendizado de uma tarefa

A inserccedilatildeo dos ex-escravos no poacutes-aboliccedilatildeo foi perpassada por vaacuterias

dificuldades e uma delas foi a luta para conseguirem ter a guarda de seus filhos Muitos

antigos escravocratas buscaram novos mecanismos de obtenccedilatildeo de matildeo de obra e uma

das estrateacutegias foi recorrer ao viacutenculo tutelar como jaacute foi analisado neste capiacutetulo

As famiacutelias das classes populares eram vistas por alguns segmentos da

sociedade pelo prisma da desorganizaccedilatildeo da imoralidade da embriaguez e da

prostituiccedilatildeo A organizaccedilatildeo familiar dos grupos subalternos da sociedade natildeo coincidia

com o modelo que era esperado pelos meacutedicos higienistas juristas poliacuteticos e

intelectuais ou seja com o modelo burguecircs nuclear higiecircnico e sexualmente

regulado435

Nos meses apoacutes a decretaccedilatildeo da lei Aacuteurea 13 de maio de 1888 vaacuterios senhores

recorreram ao expediente de solicitar a tutela dos filhos de suas antigas cativas com a

alegaccedilatildeo de que elas e ou seus familiares natildeo tinham as condiccedilotildees materiais e morais

para cuidarem de sua prole436

A maioria dos homens e mulheres escravizados saiu do

cativeiro destituiacutedo de bens de terra de educaccedilatildeo e de oportunidades de recomeccedilar a

vida sob os novos padrotildees de trabalho e de vida Muitos senhores provavelmente

aproveitaram-se da falta de meios de vida e de instruccedilatildeo dos antigos escravos para

conseguirem legalmente ou natildeo a guarda de seus filhos

O processo de apreensatildeo do ldquomenorrdquo Antocircnio eacute um bom exemplo das

dificuldades enfrentadas pelos libertos no poacutes-emancipaccedilatildeo e das atitudes arbitraacuterias dos

antigos escravocratas Em dezembro de 1888 o liberto Joatildeo de Lima Teixeira que

havia sido escravo de Luiacutes Calisto Mendes morador no distrito de Chapeacuteu DrsquoUvas do

municiacutepio de Juiz de Fora declarou que teve um filho de nome Antocircnio com a tambeacutem

liberta Jacintha ex-escrava do mesmo senhor Joatildeo de Lima e Jacintha haviam se

casado mas o documento natildeo informa se antes ou depois do 13 de maio O ldquomenorrdquo

tinha seis anos quando da abertura do processo de apreensatildeo Segundo o pai de

435

NEDER Gizlene CERQUEIRA Gisaacutelio (2007) Famiacutelia poder e controle social concepccedilotildees sobre

famiacutelia no Brasil na passagem agrave modernidade In Ideias juriacutedicas e autoridade na famiacutelia Rio de

Janeiro Revan p 14-15 COSTA Jurandir Freire Op cit 1999 p 12-14 Cf NEDER Gizlene

ldquoAjustando o foco das lentes um novo olhar sobre a organizaccedilatildeo das famiacutelias no Brasilrdquo In

KALOUSTIAN Silvio Manoug (org) Famiacutelia Brasileira a base de tudo Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia

DF UNICEF 2011 436

Para mais informaccedilotildees sobre a relaccedilatildeo entre viacutenculo tutelar e controle de matildeo de obra ver o trabalho

de ZERO Arethuza Helena Op cit 2004

154

Antocircnio Eduardo Teixeira de Carvalho um importante proprietaacuterio de Juiz de Fora

aproveitou-se de sua pobreza e ignoracircncia e o ldquofez assinar um contrato obrigatoacuteriordquo em

que o ldquomenorrdquo deveria trabalhar para o proprietaacuterio ateacute a idade de 21 anos sem nada

receber podendo ser castigado Pelo suposto ldquocontratordquo Eduardo Teixeira tambeacutem

tinha o direito de buscar o menino onde quer que ele estivesse Na peticcedilatildeo Joatildeo de

Lima contesta o dito documento pelo fato de que ldquotal contrato natildeo podia fazer por ser

uma espeacutecie de novo cativeiro ainda que por 15 anosrdquo437

Infelizmente no processo natildeo

consta o dito contrato o que impossibilita averiguar se ocorreu antes ou apoacutes a

decretaccedilatildeo da Lei Aacuteurea ou a quantos mesesanos Antocircnio estava em poder de Eduardo

Teixeira de Carvalho Poreacutem pode-se indagar que o liberto Joatildeo de Lima Teixeira tenha

aceitado tal ldquocontratordquo em um momento em que estava sem meios de vida e

sobrevivecircncia e que apoacutes se estabelecer junto com sua esposa em alguma atividade

passando a ter condiccedilotildees de manter seu filho Antocircnio tenha resolvido requerecirc-lo Aleacutem

do mais o menino estava com seis anos de idade ou seja numa faixa etaacuteria muito

proacutexima da que normalmente as crianccedilas das camadas subalternas eram empregadas

para executarem tarefas ou seja a forccedila de trabalho do ldquomenorrdquo poderia ser empregada

em pequenas atividades contribuindo dessa maneira com as despesas de sua famiacutelia

O Juiz de Oacuterfatildeos expediu mandado de apreensatildeo em que Eduardo Teixeira de

Carvalho teria que apresentar o menino e a certidatildeo para que dessa forma fosse ldquodado

destino legalrdquo ao ldquomenorrdquo Ele acatou o mandado poreacutem declarou que soacute poderia

atender a solicitaccedilatildeo apoacutes o dia seis de janeiro de 1889 em diante e que iria

pessoalmente O documento termina dessa forma sem que se possa saber qual foi o

ldquodestino legalrdquo dado a Antocircnio

Esse processo indica que o percurso que os antigos escravos teriam de percorrer

na nova condiccedilatildeo de homens livres nem sempre foi tranquilo e sem problemas Como

se observa eles tiveram de enfrentar adversidades como lutar contra antigos senhores

que buscavam atraveacutes de meios legais ou natildeo manter a posse sobre a forccedila de trabalho

de seus filhos como foi chamado no documento de ldquoum novo cativeirordquo no mundo da

liberdade

Semelhante ao caso relatado anteriormente eacute o de Juvenato de 15 anos de idade

ldquomais ou menosrdquo filho de Justino Lino drsquoOliveira Em junho de 1901 o Dr Virgiacutelio

Fabiano Alves comunicou ao delegado de poliacutecia que era tutor dativo do ldquomenorrdquo e que

437

AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Antocircnio 31-12-1888 cx 04

155

este havia sido seduzido por um italiano e encontrava-se acoitado na fazenda do Dr

Marcello Bifano situada no distrito de Simatildeo Pereira Segundo o relato do peticionaacuterio

o Dr Marcello Bifano se recusava a entregar o ldquomenorrdquo438

O Dr Virgiacutelio Fabiano Alves se declarou como ldquotutor dativordquo de Juvenato na

peticcedilatildeo enviada ao delegado de poliacutecia e como comprovaccedilatildeo de sua alegaccedilatildeo apresentou

uma ldquoEscriptura e Contracto de entregardquo do ldquomenorrdquo feita por Justino Lino drsquoOliveira

pai do menino Assim constava no documento assinado em 26 de marccedilo de 1890 na

cidade de Ribeiro Preto no Cartoacuterio do Tabeliatildeo Castilho

[] por Justino Justino Lino de Oliveira foi dito que se acha justo e

contratado com o Doutor Virgilio Fabiano Alves de entregar-lhe o seu filho

Juvenato de dois annos de idade podendo ou ficando dito Dr Virgilio com

direito ao trabalho do mesmo e obrigado a sustental-o de tudo quanto

necessitar como seja roupa sustento medico e Botica no caso fique doente

e obrigado mais em tempo suficiente ensinal-o a ler e escrever Pelo dito

Justino foi dito que a tempo vive separado de sua mulher Pelo Doutor

Virgilio Fabiano Alves foi dito que acceitava a presente escriptura com as

condiccedilotildees nella estipuladas E de como assim o disseratildeo me pediratildeo lhes

lavrasse esta que lida e aceita assignatildeo com as testemunhas presentes []

[] Em tempo _ Pelo Justino Lino drsquoOliveira foi dito que o menino tem

cinco annos de idade Eu Joatildeo R de Carvalho escrivatildeo juramentado escrevi

[]439

O documento apresentado pelo Dr Virgiacutelio Fabiano Alves natildeo eacute efetivamente

um termo de tutela mas pode-se dizer um termo de renuacutencia do paacutetrio poder um

contrato de trabalho com a obrigaccedilatildeo de cuidar e educar o ldquomenorrdquo Na ldquoescriptura e

contracto de entregardquo natildeo haacute qualquer menccedilatildeo a salaacuteriossoldadas pelos serviccedilos

prestados por Juvenato Ao que parece o ldquomenorrdquo iria pagar pela ldquocriaccedilatildeordquo e

ldquoeducaccedilatildeordquo com sua forccedila de trabalho Por que teria o pai de Juvenato feito esse

contrato com o Dr Virgiacutelio Fabiano Alves Se porventura o motivo que levou Justino

Lino drsquoOliveira a entregar o seu filho foi a falta de recursos para criaacute-lo por que entatildeo

natildeo solicitou ao Juiz de Oacuterfatildeo a nomeaccedilatildeo de um tutor para o mesmo

De acordo com o depoimento da primeira testemunha arrolada no processo de

apreensatildeo Joseacute Dionizio Cardoso brasileiro casado lavrador o ldquomenorrdquo Juvenato

vivia na fazenda do Dr Virgiacutelio F Alves ldquoprestando serviccedilos compatiacuteveis com sua

idade sendo por elle tratado convenientementerdquo Ele relatou que o ldquomenorrdquo havia

fugido da fazenda de seu tutor indo acoitar-se na do Dr Marcello Bifano e que um

438

AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Juvenato 17-06-1901 cx 04 439

Idem

156

colono da fazenda do dito senhor o aconselhou a natildeo voltar mais para o poder de seu

tutor A testemunha ainda declarou que quando o Dr Virgiacutelio Fabiano Alves tomou

conhecimento da fuga de Juvenato ldquofoi em companhia dele testemunha a fazenda do dr

Marcello onde entenderam-se com o administrador Pedro Brande para lhes ser entregue

o menorrdquo poreacutem este asseverou que soacute faria a entrega ldquopor ordem da Autoridaderdquo

conforme havia determinado o Dr Marcello Bifano ldquoque sabia e consentia na estada do

menorrdquo440

As demais testemunhas arroladas relataram que o Dr Virgiacutelio F Alves tentou

outras vezes reaver o ldquomenorrdquo Leocadio Custoacutedio Gonsalves casado lavrador natural

do estado do Rio de Janeiro em seu depoimento declarou que por ordem do Dr

Virgiacutelio Fabiano Alves havia levado uma carta ao Dr Bifano que na porteira da

fazenda ldquoencontrou-se com um italiano baixo que lhe consta ser chamado de

lsquoPanoramarsquordquo Este declarou que Juvenato soacute sairia da fazenda ldquopela Justiccedilardquo ldquopois do

contrario nem vinte pessoas o levavam e se o Dr Bifano natildeo quisesse resistir elle

ldquoPanoramardquo o levaria para a casardquo A testemunha ainda relatou que entregou a carta ao

administrador Pedro Brande e que este lhe disse ldquoque por sua vontade o menor seria

entregue immediatamente e soacute natildeo o fazia porque natildeo tinha ordem do Dr Bifanordquo que

mandara conservar Juvenato na fazenda O administrador ainda teria dito que o ldquomenor

era surdo e pouco ou nenhum serviccedilo prestava e que por sua vontade isto se resolvia em

harmoniardquo441

Quando do cumprimento do mandado de apreensatildeo o administrador da fazenda

Pedro Brande declarou que o ldquomenorrdquo estava na fazenda ldquomas natildeo apareceurdquo para o

mandado ser executado O subdelegado de poliacutecia Francisco M Romano da

Subdelegacia de Poliacutecia do districto de Satildeo Pedro de Alcacircntara oficiou ao delegado de

poliacutecia de Juiz de Fora relatando que havia se entendido ldquocom Dr Bifano arespeito (sic)

a entrega do menor Juvenatordquo e que este lhe havia dito que o entregaria mas que queria

ldquouma ordem do Juiz de orfam por escriptordquo442

A anaacutelise do processo de Juvenato leva a crer que o que estava em jogo era a

utilizaccedilatildeo de sua forccedila de trabalho a baixo valor ou gratuitamente O ldquomenorrdquo estava

com 15 anos de idade e provavelmente tinha habilidade para a lida com as atividades

rurais Mas examinando mais detalhadamente o documento outra questatildeo ressalta por

440

Ibidem 441

Ibidem 442

Ibidem

157

que a insistecircncia do Dr Marcello Bifano de entregar o ldquomenorrdquo apenas com uma ordem

do Juiz de Oacuterfatildeos Essa insistecircncia estaria relacionada a tal ldquoescriptura e contractordquo

feita entre o pai de Juvenato e o Dr Virgiacutelio Fabiano Alves ou seja natildeo teria ela

validade legal sendo necessaacuteria a indicaccedilatildeo de um tutor para o menor e nesse caso

Bifano se colocaria agrave disposiccedilatildeo para assumir o encargo E por que o colono italiano

defendia ardorosamente Juvenato segundo consta nos relatos das testemunhas Estaria

o ldquomenorrdquo trabalhando junto com o colono e por isso ele natildeo desejava que o mesmo

retornasse para o conviacutevio de seu tutor

Os dois processos acima analisados dos ldquomenoresrdquo Antocircnio e Juvenato

apresentam semelhanccedilas cidadatildeos pertencentes agrave classe dominante proprietaacuteria se

apropriando da matildeo de obra de crianccedilas pertencentes agrave camada subalterna da sociedade

No processo de Juvenato a tal ldquoescriptura e contracto de entregardquo foi registrada em

cartoacuterio entretanto natildeo foi possiacutevel saber se no caso do ldquomenorrdquo Antocircnio ocorreu o

mesmo Provavelmente as dificuldades de sobrevivecircncia levaram esses pais a tal

situaccedilatildeo No processo de apreensatildeo de Antocircnio foi possiacutevel averiguar que os pais eram

ex-escravos poreacutem na accedilatildeo de Juvenato natildeo foi possiacutevel identificar a condiccedilatildeo juriacutedica

dos pais se livreslibertos

O exame desses dois casos permite que sejam levantadas algumas questotildees

esses ldquocontractosrdquo natildeo deveriam ser processados pelo poder judiciaacuterio que estipularia o

valor de uma soldada e a idade que o ldquomenorrdquo comeccedilaria a receber Se porventura

foram as dificuldades de sobrevivecircncia que levaram os ldquomenoresrdquo e os pais a tal

situaccedilatildeo natildeo seria o caso de ser nomeado um tutor para as crianccedilas

E P Thompson assinala que ldquoum modo de descobrir normas surdas eacute examinar

um episoacutedio ou uma situaccedilatildeo atiacutepicosrdquo443

Identifiquei apenas esses dois ldquocontractosrdquo na

documentaccedilatildeo analisada e os considero ldquoatiacutepicosrdquo no conjunto de minhas fontes o que

faz deles um indicativo de que os grupos dominantes utilizaram diversos meios de

controle e coerccedilatildeo sobre a classe trabalhadora Posto isso indago quantas outras

crianccedilas e jovens natildeo ficaram presas a esse tipo de ldquonovo captivierordquo apoacutes a aboliccedilatildeo da

escravidatildeo em maio de 1888 Quantos pais natildeo tiveram condiccedilotildees de recorrer agrave justiccedila

para ter a guarda de seus rebentos e suas histoacuterias ficaram silenciadas

Esses dois contratos acenam para a possibilidade de utilizaccedilatildeo de outra fonte de

pesquisa sobre a problemaacutetica do trabalho infantil no poacutes-aboliccedilatildeo os livros de

443

THOMPSON E P Op cit 2001 p 235

158

escritura Essa documentaccedilatildeo pode descortinar que tais contratos constituiacuteram mais uma

estrateacutegia dos setores dominantes para o controle sobre a matildeo de obra infantil ou

confirmar a minha hipoacutetese de que satildeo documentos atiacutepicos

Da anaacutelise dos processos de apreensatildeo pode-se presumir que outros

proprietaacuterios buscaram manter sob seu controle a posse de crianccedilas filhas de ex-

escravos ou natildeo Em outro documento o pai Augusto Campos de Almeida solicita ao

Juiz que sua filha Domitildes fosse apreendida pois o cidadatildeo Isidoro Raymundo de

Souza a conservava ldquoem seu poder contra a vontade do suplicanterdquo e negava-se a

entregar a ldquomenorrdquo e ainda fazia ameaccedilas de espancaacute-lo se continuasse ldquono intento de

retirar a sua filhardquo444

O processo de Domitildes tambeacutem se desenrola no distrito de Chapeacuteu DrsquoUvas

Segundo Sonia Maria de Souza nesse distrito cultivava-se cafeacute poreacutem o destaque

maior ficava por conta da produccedilatildeo de alimentos e da pecuaacuteria445

O Juiz de Oacuterfatildeos

determinou que a ldquomenorrdquo fosse entregue a seu pai o que foi contestado pelo cidadatildeo

Isidoro Raymundo de Souza que alegou entregaacute-la ldquoem obediecircncia a ordem do Juizrdquo e

ainda assinalou que o suplicante natildeo era pai da menina e que o mesmo natildeo possuiacutea as

ldquoqualidades necessaacuterias para a ter sob sua guardardquo Possivelmente Augusto Campos de

Almeida era um afrodescendente Tal hipoacutetese se justifica pelo fato do dito cidadatildeo

fazer ameaccedilas ao suplicante O regime escravista e suas praacuteticas coercitivas ainda

estavam muito presentes nas atitudes das pessoas logo apoacutes a aboliccedilatildeo Por isso Isidoro

Raymundo talvez se sentisse no direito de espancar ou mandar espancar quem

contrariasse as suas ordens Infelizmente o processo natildeo informa a idade da menina

mas presumo que Isidoro Raymundo de Souza estivesse utilizando-se da forccedila de

trabalho dessa menina talvez no serviccedilo domeacutestico

Os proprietaacuterios brasileiros do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX ainda tinham

a possibilidade de utilizarem os serviccedilos dos ldquomenoresrdquo na aacuterea urbana ou rural

pagando baixos salaacuterios ou mesmo natildeo remunerando o trabalho executado por essas

crianccedilas com a alegaccedilatildeo de que estavam lhes dando uma oportunidade de aprenderem

um ofiacutecio como foi o caso dos chamados aprendizes446

444

AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Domitildes 02-04-1889 cx 04 445

SOUZA Sonia Maria de Op cit 2007 p 105-108 446

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Crianccedilas operaacuterias na receacutem industrializada Satildeo Paulo In

PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil Satildeo Paulo Contexto 2006 p 271-273

159

Aleacutem dos baixos salaacuterios que os ldquomenoresrdquo recebiam havia ainda os casos de

maus tratos infligidos aos trabalhadores mirins Como nas memoacuterias de Pedro Nava as

meninas que trabalhavam na casa de sua avoacute e de outros parentes assalariadas ou natildeo

eram corrigidas fisicamente em periacuteodo bem posterior a decretaccedilatildeo da aboliccedilatildeo da

escravidatildeo447

Nos processos de apreensatildeo que venho analisando foram encontrados relatos de

violecircncia fiacutesica contra essas crianccedilas Em 20 de abril de 1900 o poder judiciaacuterio tomou

conhecimento de que a oacuterfatilde Albertina de 12 anos de idade era ldquoseviciada

barbaramente na casa de Francisco Pinto [F] Bretatildesrdquo448

Devido a denuacutencia desse

provaacutevel caso de maus tratos a ldquomenorrdquo foi depositada na casa de Antocircnio da Cunha

Figueiredo professor e secretaacuterio da Escola Normal e que depois foi indicado pelo juiz

para assumir a tutela da menina com a condiccedilatildeo de lhe pagar uma soldada

Todavia eacute necessaacuterio ressaltar que os atos de violecircncia fiacutesica e sexual tambeacutem se

davam no seio familiar da crianccedila A ldquomenorrdquo Rita Cacircndida de Jesus de 16 para 17

anos de idade filha de Pedro Manoel das Chagas e de Rita Cacircndia de Jesus moradores

no distrito de Vargem Grande fugiu da casa de seus pais em dezembro de 1891 em

consequecircncia dos supostos ldquomaus tratos e pelas contiacutenuas ameaccedilas de castigosrdquo

infligidos por seu pai como declarou ao delegado de poliacutecia de Juiz de Fora Rita

Cacircndida ainda assinalou que seus irmatildeos e irmatildes tambeacutem desejavam sair da casa

paterna pelos mesmos motivos e que sua matildee jaacute havia se separado de seu pai por

diversas vezes por essas mesmas razotildees Em uma peticcedilatildeo enviada ao Juiz de Oacuterfatildeos

em dezembro de 1891 o pai da ldquomenorrdquo defendeu-se dizendo que sua filha era ldquotratada

com amor e delicadesa proacuteprios de um bom pairdquo mas que consentia que ela ficasse na

casa em que estava recolhida pois era de ldquofamiacutelia honestardquo e onde estava ganhando

dinheiro e que pelo seu estado de pobreza natildeo poderia ldquoprover melhor do que tem feito

a educaccedilatildeo subsistecircncia e futurordquo da mesma449

Provavelmente na concepccedilatildeo do pai da

ldquomenorrdquo os castigos fiacutesicos fossem uma maneira de educaacute-la e aos demais filhos A

ideia de corrigir os filhos com tapas chicotadas varadas entre outros era tida como a

melhor maneira de educar os filhos e tal pensamento perdurou por longos anos na

sociedade brasileira e ainda pode-se dizer que persiste entre muitas famiacutelias como

447

NAVA Pedro Op cit 1974 p 4 448

AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Albertina 20-04-1900 cx 04 449

AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Rita Cacircndida de Jesus 03-12-1891 cx 04

160

atestam os ditados populares que assinalam que ldquoeacute melhor surrar os filhos do que ver a

poliacutecia baterrdquo ou ldquoeacute melhor apanhar em casa do que apanhar na ruardquo450

Outro suposto caso de violecircncia domeacutestica eacute o de Albertina filha de Joatildeo da

Rocha Ferreira de Souza viuacutevo A ldquomenorrdquo havia fugido da casa de seu pai alegando

que havia sido deflorada pelo mesmo e de quem estava graacutevida Por esse motivo ela foi

depositada em dezembro de 1911 na casa de seu cunhado Antonio Gomes da Silva O

pai de Albertina foi descrito pelo genro como um ldquohomem desordeiro becircbado e

turbulentordquo o que os moradores do distrito de Gramma poderiam confirmar Por causa

do receio que tinha do sogro ele solicitou que fosse indicada outra pessoa para ficar

com a ldquomenorrdquo depositada451

As fugas dos ldquomenoresrdquo como jaacute foi discutido neste capiacutetulo geralmente

estavam relacionadas agraves peacutessimas condiccedilotildees de vida e de trabalho das crianccedilas e jovens

Os maus-tratos possivelmente foram uma das causas principais para o abandono do lar

dos paisfamiliares e dos tutores pelos meninos e meninas

Nos processos de apreensatildeo pode-se observar vaacuterias questotildees que estavam

presentes na sociedade brasileira do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX como a

problemaacutetica do paacutetrio poder a utilizaccedilatildeo da matildeo de obra infantil a violecircncia contra

essas crianccedilas a preocupaccedilatildeo com o destino a ser dado a esses ldquomenoresrdquo etc Em suma

essa documentaccedilatildeo eacute uma fonte importante para o estudo da infacircncia

450

Sobre os provaacuteveis casos de maus-tratos infligidos aos ldquomenoresrdquo pelos seus pais e parentes ver o

processo de Orozimbo de 12 anos de idade AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis

Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de menores Menor Orozimbo 01-03-1905 cx 04 451

AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Albertina 03-01-1912 cx 04

161

CAPIacuteTULO 3

POR ENTRE MAacuteQUINAS E ENGRENAGENS

AS CRIANCcedilAS OPERAacuteRIAS DA ldquoMANCHESTER

MINEIRArdquo

Imagem 14 Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas ndash 1928 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processo relativo

agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Pedro Paulo 31-05-1928 cx 006proc 9

162

31 A QUESTAtildeO SOCIAL NA PRIMEIRA REPUacuteBLICA LEI DE

ACIDENTES DE TRABALHO E COacuteDIGO DE MENORES

Foi a vida industrial moderna com suas exigecircncias brutais com suas

inexoraacuteveis injusticcedilas que fez surgir esse corpo de doutrinas sociais-

econocircmicas que datildeo satisfaccedilatildeo a umas tantas aspiraccedilotildees dos trabalhadores e

que devem ser traduzidas em leis (Evaristo de Moraes)452

311 A Lei de Acidentes de Trabalho ndash Brasil 1919

Com o desenvolvimento da industrializaccedilatildeo e da urbanizaccedilatildeo a questatildeo da

regulamentaccedilatildeo do trabalho urbano tornou-se uma necessidade para as sociedades que

estavam vivenciando esse processo As reivindicaccedilotildees operaacuterias e os movimentos de

luta para alcanccedilar melhores condiccedilotildees de trabalho foram paulatinamente pressionando

patrotildees e governos para o encaminhamento da questatildeo social De acordo com Acircngela

Maria de Castro Gomes a ldquoQuestatildeo Socialrdquo surgiu no bojo das transformaccedilotildees sociais

poliacuteticas e econocircmicas ensejadas pela Revoluccedilatildeo Industrial ao longo do seacuteculo XIX e

impocircs para as naccedilotildees europeias a necessidade de se reconhecer ldquoos novos problemas

vinculados agraves modernas condiccedilotildees de trabalho urbano e dos direitos sociaisrdquo gerados

pela sociedade urbana industrial453

As transformaccedilotildees vivenciadas pelas naccedilotildees europeias durante a Revoluccedilatildeo

Industrial contribuiacuteram para que as praacuteticas tradicionais de proteccedilatildeo aos pobres fossem

duramente criticadas pelos teoacutericos liberais durante o processo de constituiccedilatildeo da

sociedade capitalista industrial Eles advogavam que a ajuda a essa parcela da

populaccedilatildeo representava um obstaacuteculo para o desenvolvimento do espiacuterito de iniciativa e

ambiccedilatildeo contribuindo dessa forma para a ociosidade e a vadiagem Entretanto Angela

de Castro Gomes salienta que ao mesmo tempo em que a sociedade capitalista

industrial combatia as antigas praacuteticas de proteccedilatildeo ela abriu caminho para a

ldquoemergecircncia de um novo tipo de problemaacutetica social que acabaria por acarretar o

nascimento de uma nova concepccedilatildeo de proteccedilatildeo socialrdquo454

Segundo a autora a

compreensatildeo da contradiccedilatildeo liberalismo X poliacutetica social eacute de fundamental importacircncia

452

MORAES Evaristo de Apontamentos de Direito operaacuterio 2 ed Satildeo Paulo LTR Editora Ltda SP

Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1971 p 24-25 453

GOMES Acircngela Maria de Castro Burguesia e trabalho poliacutetica e legislaccedilatildeo social no Brasil 1917-

1937 Rio de Janeiro Campus 1979 p 31 454

Idem p 33

163

para a anaacutelise da sociedade europeia do seacuteculo XIX sendo que essa questatildeo permeou a

Europa ao longo do oitocentos455

No Brasil como em outras naccedilotildees que passaram pelo processo de urbanizaccedilatildeo e

industrializaccedilatildeo a problemaacutetica da chamada questatildeo social tambeacutem se fez presente O

desenvolvimento industrial e das relaccedilotildees capitalistas de produccedilatildeo tambeacutem foi

perpassado pelo embate entre os princiacutepios liberais expressos na Constituiccedilatildeo

republicana de 1891 e a decretaccedilatildeo de leis sociais de proteccedilatildeo aos trabalhadores A

intervenccedilatildeo do Estado para a regulamentaccedilatildeo do trabalho em uma ordem econocircmica

liberal sofreu criacuteticas por parte de setores poliacuteticos e pelo empresariado brasileiro que

sem negar por completo a participaccedilatildeo do Estado procurou estabelecer os limites dessa

intervenccedilatildeo456

Todavia eacute necessaacuterio ressaltar que apesar de reconhecerem mesmo que em

muitos casos apenas teoricamente a importacircncia das leis sociais o patronato procurou

interferir e influenciar em todas as medidas relacionadas agrave legislaccedilatildeo social

participando ativamente dos debates sobre a questatildeo trabalhista no decorrer dos anos

vinte do seacuteculo passado A participaccedilatildeo da burguesia industrial e comercial nas

discussotildees sobre a legislaccedilatildeo trabalhista contribuiu em muitos casos para o

protelamento da aprovaccedilatildeo de leis e na revisatildeo dos projetos que eram entatildeo

reelaborados com o fito de atenderem aos interesses da classe burguesa457

Durante a chamada Repuacuteblica Velha a discussatildeo mais acirrada sobre uma

legislaccedilatildeo social ocorreu principalmente no decorrer da segunda deacutecada do seacuteculo XX

O periacuteodo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi caracterizado pelo

desenvolvimento dos setores industriais e comerciais poreacutem os ganhos obtidos pela

classe burguesa nesse momento natildeo atingiram as camadas subalternas que vivenciaram

um quadro de grande carestia fortemente marcado por uma inflaccedilatildeo elevadiacutessima e por

baixos salaacuterios Esse momento tambeacutem eacute caracterizado pelo emprego intenso da matildeo de

obra infantil e feminina o que contribuiacutea ainda mais para a reduccedilatildeo dos niacuteveis salariais

Eacute nesse cenaacuterio marcado por grandes dificuldades de sobrevivecircncia para os operaacuterios

que vaacuterios movimentos de reivindicaccedilatildeo por melhores condiccedilotildees de vida e de trabalho

explodiram nas cidades que possuiacuteam um razoaacutevel niacutevel de desenvolvimento industrial

455

Ibidem p 33 456

Ibidem p 185-186 457

Ibidem p 158-159 164-165

164

O auge dessas manifestaccedilotildees foi marcado pelas greves de 1917 a 1919 em que a

questatildeo de uma legislaccedilatildeo trabalhista se impocircs para a sociedade brasileira

Em acircmbito internacional a questatildeo social tambeacutem estava sendo colocada uma

vez que o Tratado de Paz de Versalhes estipulava a necessidade de se atentar para as

reivindicaccedilotildees do proletariado pois a miseacuteria dos operaacuterios poderia redundar em graves

problemas para as naccedilotildees Dentro desse contexto deu-se a criaccedilatildeo de um organismo

internacional destinado a discutir as questotildees ligadas ao trabalho agrave Organizaccedilatildeo

Internacional do Trabalho (OIT) do qual o Brasil tornou-se membro458

Os anos finais da deacutecada de 1910 foram marcados pela discussatildeo a respeito da

legislaccedilatildeo social bem como pelos movimentos grevistas e pelas reivindicaccedilotildees

operaacuterias por melhores condiccedilotildees de trabalho pela regulamentaccedilatildeo do trabalho

feminino e infantil pela reduccedilatildeo da jornada entre outras questotildees Dentro desse cenaacuterio

de agitaccedilatildeo social o Estado brasileiro passou a intervir na chamada ldquoquestatildeo socialrdquo

A intervenccedilatildeo estatal nas questotildees trabalhistas chocava-se com o princiacutepio

liberal da Constituiccedilatildeo brasileira de 1891 Poreacutem a conjuntura de intensa mobilizaccedilatildeo

da massa trabalhadora entre os anos de 1917 a 1919 por intermeacutedio das greves

colocou como necessaacuteria a intervenccedilatildeo do governo em tal questatildeo O impacto da greve

de 1917 nas discussotildees sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho pode ser mensurado a

partir da constataccedilatildeo de que a problemaacutetica das leis sociais passou a ser discutida por

candidatos nas campanhas eleitorais para a presidecircncia da repuacuteblica (1919) e para o

governo do estado de Satildeo Paulo (1920)459

A legislaccedilatildeo social suscitou debates que envolveram diversos setores da

sociedade interessados na questatildeo No meio poliacutetico vaacuterias vozes ecoaram para

defenderem ou para criticarem tal proposiccedilatildeo A bancada paulista na Cacircmara dos

Deputados defendeu a intervenccedilatildeo estatal no que diz respeito ao direito social Os

deputados paulistas visualizavam a legislaccedilatildeo social como uma necessidade para a

manutenccedilatildeo dos interesses privados e da ldquopaz socialrdquo concebendo-a como uma

458

Ibidem p 58-60 VIANNA Luiz Jorge Werneck ldquoSistema liberal e direito do trabalhordquo In Estudos

Cebrap 07 Satildeo Paulo Ed Brasileira de Ciecircncias Ltda jan-fev-mar 1974 p 136 Disponiacutevel em

httpwwwcebraporgbrv2filesuploadbiblioteca_virtualsistema_liberal_e_direitopdf Acessado em

19 -11-2013 MUNAKATA Kasumi A legislaccedilatildeo trabalhista no Brasil Satildeo Paulo Brasiliense 1985 p

30 ndash 32 459

BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p 104-105 FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite ldquoAcidentados e

remediados a lei de acidentes no trabalho na Piracicaba da Primeira Repuacuteblica (1919-1930)rdquo In Revista

Mundos do Trabalho v 2 n 3 jan-jul de 2010 p 206-235 PASSETTI Edson ldquoOp cit 2006 p 352

165

estrateacutegia de ldquorefreamento do movimento operaacuteriordquo Entretanto defendiam a aprovaccedilatildeo

de uma ldquolegislaccedilatildeo moderada que impedisse maiores conflitos e prejuiacutezosrdquo460

Os gauacutechos se colocaram firmemente contraacuterios a qualquer medida de

regulamentaccedilatildeo do trabalho proposta durante as deacutecadas de 1910 e 1920 A bancada

gauacutecha considerava inconstitucional a intervenccedilatildeo do Estado nas questotildees trabalhistas

uma vez que o direito civil brasileiro estabelecia o livre contrato entre as partes (patratildeo-

empregado) E assinalavam que os paiacuteses que haviam aprovado leis de proteccedilatildeo social

aos operaacuterios natildeo conseguiram extirpar os conflitos inerentes agrave relaccedilatildeo capital e

trabalho Todavia os deputados gauacutechos cediam em alguns pontos no que se referia agrave

regulamentaccedilatildeo do trabalho como no que tange aos acidentes de trabalho e agrave proteccedilatildeo

agraves mulheres e aos ldquomenoresrdquo A esse respeito Acircngela de Castro Gomes salienta que o

posicionamento dos gauacutechos era bem sugestivo uma vez que essa aceitaccedilatildeo se

destinava aos trabalhadores que natildeo eram considerados cidadatildeos mulheres e crianccedilas

(natildeo votavam) e aos invaacutelidos (temporariamente ou natildeo) para o trabalho ou seja a accedilatildeo

estatal se destinava aos que estavam ldquoagrave margem do sistema poliacutetico e ateacute mesmo

econocircmicordquo461

Posto dessa forma segundo a autora tal medida poderia ser considerada

mais como uma accedilatildeo filantroacutepica do que uma conquista da classe trabalhadora pois natildeo

se constituiacutea em ldquouma intervenccedilatildeo indeacutebita do Estado e natildeo se chocando com a

concepccedilatildeo liberal do mercadordquo462

Para os Deputados gauacutechos a aceitaccedilatildeo desses dois

pontos na legislaccedilatildeo era concebido como um

[] fator de ordem sanitaacuteria e moral justificando-se pela proteccedilatildeo agrave sauacutede

puacuteblica ao futuro da raccedila e da famiacutelia Tratava-se portanto da reproduccedilatildeo e

conservaccedilatildeo da proacutepria forccedila de trabalho e eacute neste sentido que os itens aceitos

satildeo os de acidentes de trabalho e proteccedilatildeo agrave mulher e ao menor 463

Fraccedilotildees da bancada mineira compactuavam com a posiccedilatildeo dos gauacutechos no que

diz respeito ao direito social Entretanto apesar de ser uma das mais numerosas e

importantes da Cacircmara fez ldquopoucos discursos sobre o assunto marcando sua presenccedila

predominantemente com apartes e interpelaccedilotildeesrdquo464

460

GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 81-82 461

Idem p 77 462

Ibidem 463

Ibidem p 77-78 Segundo Acircngela de Castro Gomes os deputados gauacutechos defendiam que as

mulheres fossem afastadas do trabalho fora do acircmbito do lar Para eles a mulher natildeo deveria ser

incorporada como matildeo de obra pelas induacutestrias Ibidem p 78 464

Ibidem p 81

166

O grupo denominado de os ldquotrabalhistasrdquo465

eram mais combativos e na Cacircmara

denunciaram a situaccedilatildeo precaacuteria do proletariado urbano bem como defenderam o

movimento grevista como uma forma de luta dos proletaacuterios Eles propuseram diversos

projetos abordando vaacuterios aspectos da questatildeo operaacuteria como a regulamentaccedilatildeo do

trabalho feminino e infantil reduccedilatildeo da jornada de trabalho a criaccedilatildeo de creches nos

estabelecimentos industriais com nuacutemero superior a dez operaacuterios entre outras

propostas Eles apresentaram vaacuterios projetos entre junho-julho de 1917 quando entatildeo o

movimento operaacuterio estava em sua fase mais acirrada e na Cacircmara estava ocorrendo um

acalorado debate sobre a questatildeo social

Dentro dessa conjuntura a Comissatildeo de Constituiccedilatildeo e Justiccedila da Cacircmara reuniu

todas as indicaccedilotildees e projetos de leis que versavam sobre a questatildeo trabalhista em um

uacutenico projeto o Projeto no 284 do Coacutedigo de Trabalho As propostas desse documento

foram discutidas ao logo dos anos de 1918 e 1919466

No Brasil natildeo houve por parte do movimento operaacuterio reaccedilatildeo ao

intervencionismo estatal na questatildeo social como aconteceu na Alemanha e nos Estados

Unidos467

Na sociedade brasileira o movimento operaacuterio ressaltava a urgecircncia da

elaboraccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo social (trabalhista e previdenciaacuteria) e visualizava a

participaccedilatildeo do Estado como um ldquoaacuterbitro nos conflitos sociaisrdquo468

Os anos de 1917 a

1920 satildeo iacutempares no que diz respeito agrave intervenccedilatildeo do Estado nas questotildees trabalhistas

Nesse periacuteodo ocorreu a ldquodiscussatildeo formal de praticamente todas as medidas que

envolvem a regulamentaccedilatildeo do trabalhordquo bem como a implantaccedilatildeo dos ldquoprimeiros

oacutergatildeos governamentais destinados exclusivamente a tratar deste assuntordquo469

Foi nesse

momento que ocorreu um avanccedilo significativo da questatildeo trabalhista na sociedade

brasileira ou seja ela passou a ser visualizada pelo Estado como uma problemaacutetica de

seu interesse e responsabilidade deixando de ser encarada apenas como um ldquocaso de

poliacuteciardquo No bojo dessa nova concepccedilatildeo da questatildeo social como uma responsabilidade

estatal foi votada a primeira lei trabalhista brasileira em acircmbito federal a Lei de

Acidentes no trabalho em janeiro de 1919470

465

Segundo Acircngela de Castro Gomes o grupo ldquotrabalhistardquo assim se autodenominava e era representado

pelos deputados Mauriacutecio de Lacerda Nicanor Nascimento e Deodato Maia GOMES Acircngela Maria de

Castro Op cit 1979 p 64 466

Ibidem p 64-65 467

Kasumi Munakata ressalta que os anarquistas eram contraacuterios agrave participaccedilatildeo do Estado nas questotildees

trabalhistas MUNAKATA Kasumi Op cit 1985 468

GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 44-45 469

Idem p 157 470

Ibidem p157 FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite Op cit 2010 p 207

167

O projeto sobre acidentes de trabalho foi desmembrado do projeto do Coacutedigo de

Trabalho (no 2841917) sendo discutido e aprovado na Cacircmara e no Senado em

dezembro de 1918 tornando-se lei em janeiro de 1919 pelo Decreto no 3724 A dita

Lei inspirada na legislaccedilatildeo trabalhista internacional foi aprovada depois de um longo

processo de abandono A discussatildeo sobre uma lei para proteger os operaacuterios viacutetimas de

acidentes de trabalho esteve por quinze anos no Congresso Desde 1901 projetos

propondo medidas de proteccedilatildeo ao operariado foram apresentados sem que surtissem

efeitos ou fossem regulamentados Segundo destacou Gizlene Neder

Foi soacute em 1915 no Senado que vingou o projeto de Adolpho Gordo que

chegou agrave Cacircmara Laacute teve dois substantivos o de Prudente de Moraes e o de

Andrade Bezerra adotado este pela Comissatildeo de Legislaccedilatildeo Social em 1918

aprovado pela Cacircmara e pelo Senado feito lei sob o nuacutemero 3724 de 15 de

janeiro de 1919 O regulamento de autoria de Arauacutejo Castro baixou com o

decreto nuacutemero 13498 de 12 de marccedilo de 1919471

Apesar da longa demora na aprovaccedilatildeo da Lei de Acidentes quando enfim foi

aprovada apresentou uma seacuterie de limitaccedilotildees Para Neder a enumeraccedilatildeo das ldquoinduacutestrias

sobre as quais recai o favor da lei fez lsquoipso factorsquo exceccedilotildees injustas e indevidasrdquo472

No serviccedilo rural o trabalhador que sofresse um acidente e natildeo estivesse utilizando

equipamentos que possuiacutessem motores inanimados estava excluiacutedo do direito a

indenizaccedilatildeo pelo acidente sofrido Igualmente estavam privados do direito trabalhista

os empregados do comeacutercio e os domeacutesticos as ldquoinduacutestrias mariacutetimas de pesca e de

navegaccedilatildeordquo A Lei de Acidentes no trabalho de 1919 contemplou fundamentalmente os

trabalhadores do setor fabril isto eacute o trabalho mecacircnico473

A lei de acidentes atendeu principalmente os setores do operariado urbano em

que a contradiccedilatildeo entre capital e trabalho se apresentava de maneira mais acirrada As

reivindicaccedilotildees e manifestaccedilotildees do proletariado urbano colocaram para o empresariado e

para o governo a necessidade de dar um encaminhamento agrave ldquoquestatildeo socialrdquo Em suma

o direito social atendeu a parcela dos trabalhadores que apresentavam certo niacutevel de

organizaccedilatildeo e de mobilizaccedilatildeo naquele momento

Outra limitaccedilatildeo observada na lei de acidentes estaacute relacionada com a questatildeo da

indenizaccedilatildeo devida ao operaacuterio acidentado A lei estipulava no artigo 6o da parte

referente agrave indenizaccedilatildeo que o caacutelculo da mesma estaria vinculado ao salaacuterio do

471

NEDER Gizlene Op cit 1995 p 83 472

Idem p 83 473

Ibidem

168

trabalhador e que natildeo poderia ultrapassar a quantia de 2400$000 (dois contos e

quatrocentos mil-reacuteis) anuais mesmo que os proventos do acidentado ultrapassassem

esse valor Nos casos de morte ou de incapacidade total e permanente da viacutetima a lei

previa que a indenizaccedilatildeo consistiria na soma igual ao salaacuterio de trecircs anos do operaacuterio

(art 7o e 8

o)

A fixaccedilatildeo de um teto para as indenizaccedilotildees foi um ganho para a classe patronal

pois independente do salaacuterio do operaacuterio acidentado a indenizaccedilatildeo a ser paga natildeo

poderia ultrapassar 2400$000 (dois contos e quatrocentos mil-reacuteis) anuais Segundo

Ferraz nos casos mais graves como de morte ou invalidez o total maacuteximo que o

operaacuterio ou seus herdeiros poderiam receber de indenizaccedilatildeo seria a quantia de

7200$000 (sete contos e duzentos mil-reacuteis) considerando os trecircs anos que a lei

estipulava474

O pagamento da indenizaccedilatildeo aos operaacuterios acidentados poderia ser realizado

atraveacutes das companhias de seguros As induacutestriasfaacutebricas segurariam seus funcionaacuterios

em firmas autorizadas pelo governo e em casos de acidentes a dita empresa seguradora

se responsabilizaria por todos os procedimentos discriminados no Art 29 do Decreto no

13498 sobre os acidentes de trabalho O citado Decreto foi equipado com uma tabela

anexa (Art 21 sect 1o) que estabelecia a porcentagem do valor da indenizaccedilatildeo que deveria

ser paga ao operaacuterio que tivesse uma lesatildeo que lhe provocasse uma ldquoincapacidade

parcial e permanenterdquo O valor poderia ser de 5 a 60 do que a viacutetima receberia caso

tivesse uma incapacidade classificada como total e permanente Por exemplo o operaacuterio

que tivesse a matildeo direita amputada a sua indenizaccedilatildeo deveria ser de 45 a 60 do que

receberia no caso de uma incapacidade total e permanente O artigo 21 do Decreto

assinalava que deveria ser levado em consideraccedilotildees no

[] calculo aacute natureza e extensatildeo da incapacidade do operaacuterio e tendo-se em

vista os seguintes elementos a) as faculdades de trabalho que subsistem

depois do accidente b) a idade c) intelligencia d) o graacuteo de instrucccedilatildeo e) a

iniciativa e energia moral f) capacidade de adaptaccedilatildeo a uma outra profissatildeo

g) a seguranccedila da accommodaccedilatildeo do operaacuterio aacute mesma profissatildeo que exercia

na occasiatildeo do accidente475

474

FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite Op cit 2010 p 220-221 475

Decreto n 13498 ndash 12 de marccedilo de 1919 ndash Aprova o regulamento para a execuccedilatildeo da lei n 3724 de

15 de janeiro de 1919 sobre as obrigaccedilotildees resultantes dos acidentes no trabalho Disponiacutevel em

httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm

169

A lei de acidentes de 1919 adotou o princiacutepio do ldquorisco profissionalrdquo em que o

patratildeo passou a ter a responsabilidade de indenizar o operaacuterio pelo acidente sofrido Por

esse princiacutepio natildeo estava mais em questatildeo de quem era a responsabilidade pelo

acidente mas sim o risco inerente agrave atividade laboral476

A lei determinava que apenas

os acidentes ocorridos pelo ldquofato do trabalho ou durante esterdquo deveriam ser indenizados

ficando excluiacutedos os que porventura tivessem ocorrido por ldquoforccedila maior ou dolo da

proacutepria vitima ou de estranhosrdquo477

Para a Lei de Acidentes no Trabalho eram considerados operaacuterios passiacuteveis de

indenizaccedilatildeo em caso de acidentes ldquoo indiviacuteduo que sem distincccedilatildeo de sexo ou idade

presta seus serviccedilos a outrem a titulo oneroso gratuito ou de aprendizagem

permanente ou provisoacuterio foacutera de sua habitaccedilatildeo nas industrias e serviccedilos []rdquo478

Com relaccedilatildeo ao trabalho do ldquomenorrdquo que eacute o tema em tela nesse trabalho a Lei

de Acidentes no Trabalho se refere apenas aos casos dos aprendizes Na parte referente

agrave indenizaccedilatildeo no art 17 fica estabelecido que

[] tratando-se de aprendizes entende-se que o seu salaacuterio diaacuterio natildeo eacute

inferior ao menor salaacuterio de um operaacuterio adulto que trabalhe em serviccedilo da

mesma natureza em caso de incapacidade temporaacuteria poreacutem a diaacuteria do

aprendiz natildeo excederaacute aacute que ele effectivamente percebia na occasiatildeo do

accidente479

A regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil era uma questatildeo presente no projeto do

Coacutedigo de Trabalho (no 2841917) do qual se desmembrou a Lei de Acidentes no

Trabalho Entretanto somente em 1927 com a decretaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores essa

problemaacutetica seria enfim estabelecida em lei Segundo Acircngela de Castro Gomes o

empresariado ao longo do periacuteodo republicano colocou-se contra dois pontos

principais no debate acerca do trabalho de crianccedilas o limite de idade estipulado e o

nuacutemero de horas permitido ao trabalhador ldquomenorrdquo480

A lentidatildeo na aprovaccedilatildeo de leis sociais deixou a classe operaacuteria ao longo de

quase todo o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica exposta a vaacuterias arbitrariedades violecircncias

476

A Lei de Acidentes no trabalho brasileira inspirou-se na lei francesa da teoria do ldquofato do trabalhordquo

FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite Op cit 2010 p 215 477

Decreto n 13498 - 12-03-1919 Tiacutetulo I art 2o Disponiacutevel em

httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm 478

Decreto n 13498 ndash 12-03-1919 Tiacutetulo II art 5o Disponiacutevel em

httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm 479

Decreto n 13498 ndash 12 de marccedilo de 1919 ndash Aprova o regulamento para a execuccedilatildeo da lei n 3724 de

15 de janeiro de 1919 sobre as obrigaccedilotildees resultantes dos acidentes no trabalho Disponiacutevel em

httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm 480

GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 182

170

e a mercecirc dos interesses da burguesia Os ldquomenoresrdquo e as mulheres foram os mais

afetados por essa problemaacutetica uma vez que foram os principais alvos da extraccedilatildeo da

mais valia por parte do empresariado O Estado com o seu ldquoliberalismordquo compactuou

com os interesses dos setores da burguesia industrial ao natildeo promover uma intervenccedilatildeo

efetiva na questatildeo social ao longo da Primeira Repuacuteblica

Na parte seguinte examinarei o Coacutedigo de Menores de 1927 quanto agrave

regulamentaccedilatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo

312 O Coacutedigo de Menores e a regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil

A regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil se daria apenas em 1927 com a

promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores Ao longo da Primeira Repuacuteblica algumas

iniciativas relacionadas a essa parcela da populaccedilatildeo trabalhadora foram adotadas sendo

que em janeiro de 1891 foi aprovado o Decreto 1313 destinado agrave proteccedilatildeo dos

operaacuterios menores das faacutebricas do Distrito Federal Os estados e municiacutepios tambeacutem

procuraram legislar sobre o emprego de crianccedilas poreacutem na maioria das vezes essas

leis foram desrespeitadas em grande parte por causa da falta de uma fiscalizaccedilatildeo

eficiente dos oacutergatildeos governamentais

A preocupaccedilatildeo com os ldquomenoresrdquo desvalidos pode ser observada desde o iniacutecio

do periacuteodo republicano quando se deu a criaccedilatildeo do cargo de Juiz Municipal e de Oacuterfatildeos

e a aprovaccedilatildeo do Decreto 439 (1890) referente agrave assistecircncia agrave infacircncia desvalida Nos

primeiros atos do regime implantado em novembro de 1889 pode-se observar a

preocupaccedilatildeo que permeou a legislaccedilatildeo destinada a esse setor da sociedade qual seja a

de preparar esse estrato da populaccedilatildeo para futuramente serem bons cidadatildeos

trabalhadores disciplinados e ordeiros As medidas ao longo dos primeiros anos

republicanos destinadas agrave crianccedila desvalidaabandonada tambeacutem se estenderam agrave

infacircncia delinquenteinfratora O Coacutedigo Criminal de 1890 foi extremamente rigoroso

uma vez que rebaixou a idade penal de 14 anos para 9 anos Segundo Irene Rizzini esse

endurecimento do Coacutedigo natildeo se adequava agrave realidade do momento que destacava a

prevalecircncia da educaccedilatildeo sobre a puniccedilatildeo481

481

RIZZINI Irene Op cit 2011 p 116 ndash 120

171

No decorrer dos primeiros anos do seacuteculo XX a preocupaccedilatildeo com a infacircncia

pobre associada com a questatildeo do aumento da criminalidade entre essa parcela da

populaccedilatildeo redundou na elaboraccedilatildeo de vaacuterios projetos e na decretaccedilatildeo de leisdecretos

com o fito de proteger controlar e disciplinar os ldquomenoresrdquo atraveacutes da educaccedilatildeo

elementar e do aprendizado de um ofiacutecio Nesse momento destacou-se a figura do

meacutedico Moncorvo Filho na assistecircncia e proteccedilatildeo agrave infacircncia desvalida Outro

personagem de destaque nesse periacuteodo foi o jurista Antocircnio Evaristo de Moraes que fez

dos jornais sua tribuna de denuacutencia das condiccedilotildees precaacuterias da infacircncia desvalida

abandonada e delinquente

A crianccedila era concebida como a ldquosemente do futurordquo entatildeo o que fazer com a

parcela abandonada e delinquente de nossa sociedade Essa problemaacutetica inquietou

vaacuterios segmentos da sociedade entre estes juristas poliacuteticos e meacutedicos Em 1906 foi

apresentado agrave Cacircmara por Alcindo Guanabara um projeto de lei para a regulamentaccedilatildeo

ldquoda situaccedilatildeo da infacircncia moralmente abandonada e delinquenterdquo Participou da

elaboraccedilatildeo desse projeto de lei o jurista Joseacute Cacircndido de Albuquerque Mello Mattos

que tornou-se em 1923 o primeiro Juiz de Menores do Brasil e da Ameacuterica Latina e

uma das principais figuras do Coacutedigo de Menores instituiacutedo pelo Decreto no 5083 de

1926 e consolidado pelo Decreto no 17943 A de 1927 Inclusive o Coacutedigo de Menores

ficou conhecido pelo nome de Coacutedigo Mello Mattos em sua homenagem Do projeto de

1906 ateacute 1926 foram 20 anos de debates para enfim ser decretada uma legislaccedilatildeo

especificamente destinada a regulamentar a questatildeo da infacircncia desvalida abandonada e

delinquente No decorrer dessas duas deacutecadas projetos foram apresentados e

decretosleis foram consolidados versando sobre a internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo os

patronatos agriacutecolas a assistecircncia entre outras questotildees preparando dessa forma as

bases para a instituiccedilatildeo do Coacutedigo de Menores nos anos 1920482

Irene Rizzini aponta duas possibilidades para a demora na consolidaccedilatildeo de uma

lei para a infacircncia desvalida uma primeira hipoacutetese eacute a de essa natildeo se constituir em uma

ldquoprioridaderdquo do governo e a outra eacute a eclosatildeo da Primeira Guerra Mundial que pode ter

desviado a atenccedilatildeo para outros problemas483

A meu ver a morosidade na aprovaccedilatildeo de

uma lei de proteccedilatildeo agrave infacircncia tambeacutem pode estar associada ao posicionamento do

governo de natildeo intervenccedilatildeo nos interesses da classe empresarial principalmente no que

concernia agrave questatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo

482

Idem p 121-126 483

Ibidem p 126

172

Em meados do conflito mundial a questatildeo ressurge colocando para a sociedade

a necessidade de o Estado assumir ldquoa organizaccedilatildeo geral da assistecircnciardquo Nesse

momento a questatildeo passa a ter um caraacuteter utilitarista e os discursos apontam para os

ganhos que o Estado teria com a regulamentaccedilatildeo da assistecircncia agrave infacircncia484

Outro fator

que contribuiu para uma presenccedila maior do Estado brasileiro na problemaacutetica da

infacircncia desvalida foi o debate internacional que ocorreu apoacutes o teacutermino da Primeira

Guerra Mundial sobre os direitos das crianccedilas e que culminou com a aprovaccedilatildeo da

Declaraccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila ndash Declaraccedilatildeo de Genebra em 1923 Essa

Declaraccedilatildeo teve influecircncia na criaccedilatildeo pelo governo brasileiro do Juizado Privativo dos

Menores Abandonados e Delinquentes em 1924485

A intervenccedilatildeo do Estado no que tange agrave regulamentaccedilatildeo da assistecircncia e

proteccedilatildeo agrave infacircncia abandonada pobre e delinquente assistiu a um crescimento no

decorrer da deacutecada de 1920 periacuteodo em que se observa um aumento na aprovaccedilatildeo de

decretos e leis versando sobre a infacircncia e que culminou em 1926 com a instituiccedilatildeo do

Coacutedigo de Menores e em 1927 com a sua consolidaccedilatildeo Todavia eacute necessaacuterio ressaltar

que parcela da intelectualidade juristas meacutedicos entre outros setores tambeacutem se

envolveram no debate sobre o tema em tela Em 1922 na Capital Federal Rio de

Janeiro houve o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteccedilatildeo a Infacircncia promovido por

Moncorvo Filho e o III Congresso Americano sobre a Infacircncia486

O Coacutedigo de Menores foi o resultado de um longo debate sobre as poliacuteticas de

assistecircncia e proteccedilatildeo agrave infacircncia pobre sendo portanto necessaacuterio ressaltar a relevacircncia

que os projetos de leis as leis e os decretos anteriores tiveram em sua elaboraccedilatildeo e

aprovaccedilatildeo487

Irene Rizzini ressalta que o texto do Coacutedigo de Menores aprovado em

1926 quase duplicou se comparado com o documento que consolidou as leis de

assistecircncia agrave infacircncia em 1927 em razatildeo da incorporaccedilatildeo de novos capiacutetulos e artigos

O documento final eacute composto por 231 artigos A autora ainda assinala que ao se

analisar a lei tem-se a sensaccedilatildeo de que

[] atraveacutes da lei em questatildeo procurou-se cobrir um amplo espectro de

situaccedilotildees envolvendo a infacircncia e a adolescecircncia Parece-nos que o

legislador ao propor a regulamentaccedilatildeo de medidas ldquoprotectivasrdquo e tambeacutem

assistenciais enveredou por uma aacuterea social que ultrapassava em muito as

fronteiras do juriacutedico O que o impulsionava era ldquoresolverrdquo o problema dos

484

Ibidem p 126-127 485

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 221 486

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 138-140 487

RIZZINI Irene Op cit 2011 p 132-133

173

menores prevendo todos os possiacuteveis detalhes e exercendo firme controle

sobre os menores atraveacutes de mecanismos de ldquotutelardquo ldquoguardardquo ldquovigilacircnciardquo

ldquoeducaccedilatildeordquo ldquopreservaccedilatildeordquo e ldquoreformardquo488

Com relaccedilatildeo agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil Acircngela de Castro Gomes

assinala que essa era uma preocupaccedilatildeo do Estado uma vez que estava associada agrave

problemaacutetica da sauacutede higiene e proteccedilatildeo da famiacutelia Poreacutem a sua implementaccedilatildeo

sempre esbarrava na oposiccedilatildeo de fraccedilotildees do empresariado e de poliacuteticos que reagiam

contra dois pontos principais quais sejam a idade que o ldquomenorrdquo poderia ser admitido e

o nuacutemero de horas que deveria cumprir489

Essas querelas foram se arrastando ao longo

da Repuacuteblica Velha sendo apenas no final dos anos de 1920 que enfim deu-se a

decretaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores regulamentando o trabalho de crianccedilas

O Coacutedigo de Menores no Capiacutetulo I ndash Do objeto e fim da lei artigo 1o estipulava

que ldquoo menor de um ou outro sexo abandonado ou delinquente que tiver menos de 18

anos de idade seraacute submetido pela autoridade competente agraves medidas de assistecircncia e

proteccedilatildeo contidas neste Coacutedigordquo Do nascimento ateacute a idade de 18 anos a lei procurava

resguardar proteger e controlar a crianccedila desvalida abandonada e delinquente

Para os objetivos desta parte do trabalho interessa mais especificamente o

Capiacutetulo IX intitulado ldquoDo Trabalho dos Menoresrdquo do Coacutedigo de 1927 O citado

capiacutetulo eacute composto por vinte e cinco artigos em que estatildeo discriminadas as condiccedilotildees e

os locais em que os ldquomenoresrdquo operaacuterios e os aprendizes poderiam exercer alguma

atividade profissional quais as funccedilotildees que estavam autorizados a executar o nuacutemero

de horas os intervalos o trabalho noturno as idades em que poderiam ser admitidos as

penas e as multas para quem infringisse as determinaccedilotildees da lei entre outras questotildees

Pelo Coacutedigo de 1927 ficou determinado que a jornada de trabalho dos operaacuterios

e aprendizes menores de 18 anos de idade seria de seis horas diaacuterias com intervalos

para repouso cuja duraccedilatildeo natildeo poderia ser inferior a uma hora (art 108) Uma questatildeo

que chama a atenccedilatildeo no Coacutedigo eacute a preocupaccedilatildeo com a ldquoinstrucccedilatildeo primaacuteriardquo dos

operaacuterios No art 102 estaacute expressa essa questatildeo nos seguintes termos

Igualmente natildeo se poacutede ocupar a maiores dessa idade (12 anos) que contem

menos de 14 annos e que natildeo tenham completando sua instrucccedilatildeo primaria

Todavia a autoridade competente poderaacute autorizar o trabalho destes quando

o considere indispensavel para a subsistencia dos mesmos ou de seus paes ou

irmatildeos comtanto que recebam a instrucccedilatildeo escolar que lhes seja possivel

488

Idem p 133 489

GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 182

174

A questatildeo da educaccedilatildeo do aprendiz e do trabalhador infanto-juvenil aparece em

outros artigos do Capiacutetulo IX do Coacutedigo de Menores sempre enfatizando a necessidade

da instruccedilatildeo primaacuteria490

ou da presenccedila do certificado do curso elementar como

condiccedilatildeo para eles serem admitidos em determinadas atividades profissionais (art 103 sect

3o art 107 e art 122)

Com o Coacutedigo de Menores o Estado passou a se responsabilizar pela crianccedila

desvalida abandonada e delinquente ou seja tomou para si o encargo de educar

disciplinar e preparaacute-la para ser integrada ao mercado de trabalho

Na proacutexima parte desse capiacutetulo analisarei os processos de acidentes no trabalho

em que os ldquomenoresrdquo foram viacutetimas agrave luz da legislaccedilatildeo social ndash Lei de acidentes do

trabalho e Coacutedigo de Menores

3 2 DA RUA Agrave FAacuteBRICA O PROLETARIADO INFANTO-JUVENIL

DA ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo

Nas cidades as fabricas alejam as creanccedilas fenecem o vigor da mocidade e

matam as esperanccedilas da velhice E quando um brado da consciencia uma voz

da humanidade parte da canalha da rua dos paacuterias do brahmanismo

brasileiro e echocirca no recinto do nosso parlamento esmolando o desafogo do

proletariado haacute sempre uma voz cujos sons de metal azinhavrado tem a

facilidade de convencer que no Brasil natildeo haacute questatildeo social a resolver (Sadi

Carnot de Miranda Lima)491

490

Conforme Decreto 981 de 8 de novembro de 1890 que regulamentava a Instruccedilatildeo primaacuteria e

secundaacuteria do Distrito Federal a instruccedilatildeo primaacuteria apresentava a seguinte estrutura escolas primaacuterias de

1o grau e de 2

o grau O art 2

o do citado Decreto no sect 1

o especificava que ldquoas escolas do 1

o graacuteo

admittiratildeo alumnoacutes de 7 a 13 annos de idade e as do 2o graacuteo de 13 a 15 annos Umas e outras seratildeo

distinctas para cada sexo poreacutem meninos ateacute 8 annos poderatildeo frequentar as escolas do 1o graacuteo do sexo

femininordquo O art 3o sect 1

o estabelecia que as escolas primaacuterias de 1

o grau abarcariam trecircs cursos o

elementar (para alumnos de 7 a 9 annos) o meacutedio (para os de 9 a 11) e o superior (para os de 11 a 13)

sendo gradualmente feito em cada curso o estudo de todas as mateacuteriasrdquo Disponiacutevel em

httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-981-8-novembro-1890-515376-

publicacaooriginal-1-pehtml Apesar de o Decreto 981 de novembro de 1890 ser destinado ao ensino no

Distrito Federal Ana Luacutecia Fernandes e Luiacutes Grosso Correia ressaltam que provavelmente o mesmo

ldquopudesse ter um caraacuteter de modelo a ser seguido em niacutevel nacionalrdquo uma vez que a cidade do Rio de

Janeiro aleacutem de ser a capital poliacutetica e administrativa tambeacutem tinha um importante papel ldquono processo

de disseminaccedilatildeo de ideias praacuteticas e modelosrdquo Cf FERNANDES Ana Luacutecia CORREIA Luiacutes Grosso

ldquoO ensino primaacuterio nos espaccedilos-tempos da I Repuacuteblica no Brasil (1889-1930) e em Portugal (1910-

1926)rdquo In Revista da Faculdade de Letras ndash Histoacuteria Porto III Seacuterie v 11 2010 p 185 nota 13

Disponiacutevel em httprepositorio-abertoupptbitstream10216560652LuisGrossoensino000128140pdf

Acessado em 03-2-2014 491

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Japyassuacute de

Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8

175

As agressotildees fiacutesicas os abusos sexuais satildeo apenas algumas das dificuldades

enfrentadas por crianccedilas e adolescentes no ambiente fabril nas oficinas no emprego

domeacutestico no comeacutercio no campo entre outros espaccedilos de trabalho As crianccedilas e

adolescentes foram viacutetimas constantes de acidentes no trabalho Suas pequeninas matildeos e

corpos muitas vezes eram esmagados dilacerados queimados eletrocutados cortados

nas maacutequinas nas engrenagens nos tornos nos fornos e em outros tantos instrumentos

de trabalhos improacuteprios para suas idades e capacidade fiacutesica O que pretendo investigar

nesse item satildeo os processos de acidentes no trabalho em que a viacutetima foi o trabalhador

infanto-juvenil

As notiacutecias sobre os acidentes de ldquomenoresrdquo nas unidades fabris nas oficinas e

nos demais estabelecimentos estatildeo presentes nos perioacutedicos desde finais dos oitocentos

Atraveacutes das notiacutecias veiculadas nos perioacutedicos sobre acidentes de trabalhadores nas

faacutebricas oficinas construccedilotildees serviccedilos agriacutecolas setor de transporte e residecircncias

pode-se ter uma dimensatildeo da exploraccedilatildeo e das condiccedilotildees precaacuterias de trabalho dos

operaacuterios entre os seacuteculos XIX e as primeiras deacutecadas do XX De acordo com Luiacutes

Eduardo de Oliveira o nuacutemero de acidentes entre os dececircnios de 1890 e 1910

provavelmente foram bem maiores do que os noticiados nos jornais locais e que as

constantes propagandas de companhia de seguros de vida e contra acidentes satildeo um

indicativo de que as ocorrecircncias eram bem significativas Os acidentes eram tratados

como fatalidade descuido distraccedilatildeo ou ldquoobrardquo de alguma entidade como o diabo e

recaiacutea sobre as viacutetimas e seus familiares os gastos com o tratamento ou sepultamento

Assim nos casos mais graves como de paralisia de amputaccedilotildees de membros

(pernasbraccedilosmatildeos) ou de longos periacuteodos de convalescecircncia os operaacuterios e seus entes

tinham de contar muitas vezes com o auxiacutelio da caridade puacuteblica uma vez que natildeo

havia nenhum tipo de previdecircncia puacuteblica492

Somente em 1919 com a decretaccedilatildeo da

Lei de Acidentes no Trabalho eacute que o trabalhador passou a estar resguardado por uma

legislaccedilatildeo social Por intermeacutedio dessa lei processos foram abertos e constituem hoje

uma importante fonte de investigaccedilatildeo das condiccedilotildees de vida e trabalho da classe

492

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 240 ndash 246 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoPor

entre maacutequinas amp engrenagens as crianccedilas operaacuterias nos acidentes de trabalho em Juiz de Fora (1919-

1930) In SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da PINTO Jefferson de Almeida (orgs) Poder e

Poliacutetica pensando a toleracircncia e a cidadania (Coloacutequio InternacionalSeminaacuterio de Histoacuteria Poliacutetica da

UFF) Niteroacutei (RJ) UFF 2012b p 109-127 Disponiacutevel em

wwwhistoriauffbrstrictofilespublic_ppghcap_2012_lcp_PoderPoliticapdf Acessado em 04-07-2015

176

operaacuteria durante os primeiros anos do desenvolvimento industrial e das relaccedilotildees

capitalistas de produccedilatildeo da sociedade brasileira

Os processos de acidentes no trabalho possibilitam que seja levantada uma

multiplicidade de questionamentos sobre as condiccedilotildees de trabalho e de vida do

operariado constituindo-se em uma documentaccedilatildeo riquiacutessima para a anaacutelise da questatildeo

operaacuteria Nessa fonte pode-se observar no caso especiacutefico da infacircncia as idades em

que esses ldquomenoresrdquo eram admitidos nas mais diversas tarefas - muitas extremamente

perigosas para suas idades - o nuacutemero excessivo de horas de trabalho o que

impossibilitava o acesso agrave escola as condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees industriais e de

outros estabelecimentos que expunham os trabalhadores a graves acidentes entre outras

tantas questotildees Atraveacutes dessa fonte tambeacutem eacute possiacutevel observar a presenccedila dos

descendentes de imigrantes compondo a massa de trabalhadores fabris bem como dos

afrodescendentes que pude identificar atraveacutes dos sobrenomes e indicaccedilatildeo da

nacionalidade dos genitores e da indicaccedilatildeo da cor Entretanto nem todos os processos

possuem dados como a cor dos envolvidos a nacionalidade e ou a de seus pais

Pesquisei todos os processos preservados de acidentes no trabalho envolvendo o

trabalhador infanto-juvenil referentes ao periacuteodo de 1919 a 1930 sendo analisados 67

autos Todavia eacute necessaacuterio fazer uma observaccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves idades dos ldquomenoresrdquo

nesse periacuteodo Para o recorte de 1919 ateacute 1927 pesquisei processos envolvendo

trabalhadores ateacute a idade de 21 anos E a partir da promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores

em 1927 limitei a consulta ateacute a idade de 18 anos uma vez que o Coacutedigo estabeleceu a

maioridade do operaacuterio na citada idade493

O mais jovem da documentaccedilatildeo compulsada

foi o aprendiz Pedro Paulo de nove anos de idade que trabalhava na Companhia Tecircxtil

Bernardo Mascarenhas na ldquomachina de fiar algodatildeordquo e recebia a quantia de ldquoum mil reis

(1$000) diariosrdquo494

Pedro Paulo era oacuterfatildeo ndash de pai e matildee ndash e residia com seu cunhado e

tutor Joaquim Vidal ldquoagrave Avenida Freirerdquo no bairro Poccedilo Rico No dia 26 de maio de

1928 o aprendiz teve o seu dedo indicador da matildeo esquerda esmagado pela engrenagem

da maacutequina em que trabalhava o que levou agrave perda da falangeta O Juiz de Direito

Custodio de Almeida Lustosa arbitrou a indenizaccedilatildeo em ldquo25 (vinte e cinco por centro)

da indenizaccedilatildeo total que seria de 900 vezes o salario diaacuterio de mil reisrdquo dada a

ldquogravidade da lesatildeo e aacute pouca edade da victima que assim se veraacute privada de um

493

Os processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho encontram-se sob a guarda do Arquivo

Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora e do Arquivo Histoacuterico da Universidade Federal de Juiz de Fora 494

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Pedro Paulo

31-05-1928 cx 006proc 9

177

importante instrumento de trabalho nos melhores anos de sua atividaderdquo495

A pouca

idade do menino Pedro Paulo estava em desacordo com o que o Coacutedigo de Menores

(1927) estipulava em seu Capiacutetulo IX art 101 ldquoeacute prohibido em todo o territoacuterio da

Republica o trabalho nos menores de 12 annosrdquo O aprendiz contava apenas com nove

anos de idade quando do acidente

A questatildeo da instruccedilatildeo primaacuteria para a admissatildeo de ldquomenoresrdquo nos

estabelecimentos industriais e outros foi tratada pelo Coacutedigo de Menores que

estabelecia a sua obrigatoriedade conforme estipulado no art 103 e sect 3o do citado

Coacutedigo

Art 103 Os menores natildeo podem ser admittidos nas usinas manufacturas

estaleiros minas ou qualquer trabalho subterraneo pedreiras officinas e suas

dependencias de qualquer natureza que sejam publicas ou privadas ainda

quando esses estabelecimentos tenham caracter profissional ou de

beneficencia antes da idade de 11 annos sect 3

o Todavia os menores providos de certificados de estudos primarios

pelo menos do curso elementar podem ser empregados a partir da idade de

12 annos

Segundo informaccedilotildees dos ldquoAutosrdquo do processo o aprendiz Pedro Paulo sabia ler

e escrever o que subentende que tivesse recebido instruccedilatildeo elementar mas mesmo

assim sua situaccedilatildeo ainda estava em desacordo com o que a lei estipulava a respeito da

idade miacutenima para a admissatildeo em uma atividade laborativa e ou de aprendizado

profissional

O que se depreende da anaacutelise desse processo e de outros que seratildeo examinados

ao longo desse item eacute que as determinaccedilotildees do Coacutedigo de Menores no que diz respeito

agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho dos ldquomenoresrdquo natildeo foram cumpridas pelos

estabelecimentos industriais e muito menos observadas pelas autoridades

governamentais e judiciais da ldquoManchester Mineirardquo

Analisando as idades dos ldquomenoresrdquo que foram viacutetimas de acidentes no trabalho

percebe-se que a maioria concentrava-se na faixa etaacuteria compreendida entre os 14 e 20

anos de idade Entre as meninas o nuacutemero mais expressivo se dava a partir dos 15 anos

e entre os meninos a partir dos 14 anos de idade No quadro a seguir consta uma visatildeo

mais detalhada das idades dos pequenos operaacuterios que se acidentaram nos

estabelecimentos do municiacutepio de Juiz de Fora

495

Idem

178

QUADRO 6

FAIXA ETAacuteRIA DOS ldquoMENORESrdquo VIacuteTIMAS DE ACIDENTES NO

TRABALHO (1919-1930)

FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de Acidentes no Trabalho (1919-1930)

O nuacutemero mais expressivo de meninos nos acidentes pode estar relacionado com

o fato de que estes eram empregados em outras atividades aleacutem daquelas do serviccedilo nas

faacutebricas tecircxteis Os jovens do sexo masculino tinham um leque mais amplo de utilizaccedilatildeo

de sua forccedila de trabalho Dos 47 operaacuterios envolvidos em acidentes no trabalho 16

(3404) eram do setor tecircxtil e os demais 31 (6596) estavam na abertura de estradas

de rodagem faacutebricas alimentiacutecias de manteiga de ferradura de vassouras e balas em

oficinas mecacircnicas de marcenaria e carpintaria moinho estamparias pedreiras

padarias e companhias de eletricidade Com relaccedilatildeo agraves operaacuterias das 20 meninas

viacutetimas de acidentes com exceccedilatildeo de apenas uma que trabalhava numa faacutebrica de

chinelos496

todas as demais eram empregadas em induacutestrias tecircxteis e malharias

QUADRO 7

Operaacuterios do setor Tecircxtil e de Malharia envolvidos em acidentes no trabalho

(1919-1920)

INDUacuteSTRIA TEcircXTIL E MALHARIAS

OPERAacuteRIAS

ACIDENTADAS

OPERAacuteRIAS

ACIDENTADAS

TEXTIL

MALHARIA

OPERAacuteRIOS

ACIDENTADOS

OPERAacuteRIOS

ACIDENTADOS

TEXTIL

MALHARIA

20 19()

950 47 16 3404

FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de Acidentes no Trabalho (1919-1930) () Faacutebrica de Tecidos de Juta ndash A B Santos amp Companhia 1

Faacutebrica de Tecidos de Malha ndash Benedicto Lacordia 1 Faacutebrica de Malhas ndash Gerhin amp Irmatildeos 1

Companhia Malharia N S da Penha ndash Bichara Calil Estefan 1

Malharia Santa Rosa 1

496

AHCJ Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho Geralda Farini

09-06-1930 cx 107

TOTAL DE

OPERAacuteRIOS

IDADES

(MENINOS

E

MENINAS)

TOTAL MENINAS MENINOS

67

09 - 11 05 746 01 149 04 597

12 -16 31 4627 09 1343 22 3284

17 - 20 31 4627 10 1493 21 3134

179

Malharia Satildeo Miguel 1

Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira 4

Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas 4 Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer amp Irmatildeos 5

Analisando apenas os processos relativos aos trabalhadores das induacutestrias

tecircxteis malharias (conforme quadro 7) observa-se um nuacutemero maior de meninas nesses

estabelecimentos Os estudos que discutem a questatildeo operaacuteria no municiacutepio de Juiz de

Fora tecircm ressaltado a elevada presenccedila de crianccedilas nos estabelecimentos fabris497

Conforme observou Silvia Vilela de Andrade no Censo de 1920 nas faacutebricas tecircxteis de

Juiz de Fora havia uma predominacircncia de trabalhadores do sexo feminino com idade

inferior a 20 anos de idade Dos 1853 operaacuterios empregados nesse setor entre homens

e mulheres 1221(6589) era composto por operaacuterios com menos de 20 anos de idade

Desse total 794 (6503) era constituiacutedo por operaacuterias498

Os graacuteficos a seguir

fornecem uma visatildeo mais detalhada sobre a presenccedila de meninos e meninas nos

acidentes de trabalho

GRAacuteFICO 3

ldquoMENORESrdquo ENVOLVIDOS EM ACIDENTES NO TRABALHO ndash DIVISAtildeO

POR SEXO

FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de

Acidentes no Trabalho (1919-1930)

497

ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe operaacuteria em Juiz de Fora uma histoacuteria de lutas

(1912 ndash 1924) Juiz de Fora EDUFJF 1987 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 NEDER

Carolina Barbosa Memoacuterias que natildeo se apagam o cotidiano de lutas das operaacuterias na Manchester

Mineira (1890-1954) Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Histoacuteria Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

Juiz de Fora 2010 498

ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 p 38-39

180

GRAacuteFICO 4

ldquoMENORESrdquo ENVOLVIDOS EM ACIDENTES NO TRABALHO ndash DIVISAtildeO

POR SEXO E SETOR

FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de Acidentes no

Trabalho (1919-1930)

Com relaccedilatildeo agraves meninas considero que uma parcela expressiva estava

empregada nas casas das famiacutelias abastadas do municiacutepio e como a lei de acidentes no

trabalho natildeo contemplava essa categoria de trabalhadores elas natildeo aparecem nos

registros apesar de estarem expostas a vaacuterios tipos de acidentes como queimaduras

ferimentos cortes e amputaccedilotildees Nos perioacutedicos satildeo constantes as notiacutecias sobre essas

trabalhadoras principalmente logo apoacutes a decretaccedilatildeo do fim do trabalho escravo - em

maio de 1888 Muitas mateacuterias dos jornais ressaltavam a falta dessa matildeo de obra para ldquoo

desespero familiarrdquo das donas de casa e atribuiacuteam essa situaccedilatildeo ao fato de as mulheres

principalmente as libertas natildeo desejarem entregar-se ldquoa nenhum emprego licitordquo ou

acusavam as faacutebricas que com ldquomelhores salarios arrastam ateacute as crianccedilas para a vida

das industriasrdquo499

Tambeacutem foram publicadas notiacutecias sobre fugas de meninas das casas

499

Sandra L Graham realizou uma anaacutelise das relaccedilotildees entre as criadas e seus patrotildees no Rio de Janeiro

nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX e nos primeiros anos do XX A autora explorou questotildees como as

semelhanccedilas nas condiccedilotildees de vida e de trabalho entre as empregadas livres e escravas as relaccedilotildees

familiares das camadas populares o emprego domeacutestico infanto-juvenil a questatildeo da habitaccedilatildeo entre

outras problemaacuteticas Cf GRAHAM Sandra Lauderdale Proteccedilatildeo e obediecircncia criadas e seus patrotildees

no Rio de Janeiro 1860 ndash 1910 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992 SM-BMMM

ldquoCorrespondenciardquo O Pharol 6 jul 1888 p 2 AHCJF ldquoA electricidade no uso domesticordquo Diaacuterio

Mercantil 23 dez 1926 O artigo publicado no jornal Diaacuterio Mercantil com o tiacutetulo ldquoA electricidade no

uso domesticordquo explanava sobre a falta de criadas para o serviccedilo domestico poreacutem ressaltava que as

donas de casas poderiam ficar tranquilas pois a ldquomaior fabrica de material electrico do mundo ndash General

Electric []rdquo estava lanccedilando no ldquomercado apparelhos electricos para todos os misteres caseirosrdquo

181

onde trabalhavam e de abandono pelos patrotildees das pequenas criadas entre outros

assuntos relativos a essas trabalhadoras500

Imagem 15 Nota sobre o abandono de uma ldquomenorrdquo pelos patrotildees

AHCJF ldquoFalta de Conscienciardquo Diaacuterio Mercantil 22 nov 1927 p 1

500

Em 17 de novembro de 1926 foi publicado o desaparecimento da empregada Raymunda Silva de 14

ou 15 anos de idade da casa de seus patrotildees Cf AHCJF ldquoUma menor desaparecidardquo Diaacuterio Mercantil

17 nov 1926 Na ediccedilatildeo de 31 de dezembro do mesmo ano lecirc-se a notiacutecia sobre a fuga da empregada

Raymunda da Conceiccedilatildeo parda de 14 anos da casa de seu patratildeo Cf AHCJF ldquoMenor Desaparecidardquo

Diaacuterio Mercantil 31 dez 1926 Em 22 de novembro de 1927 o jornal Diaacuterio Mercantil publicou uma

notiacutecia sobre o abandono de uma ldquomenorrdquo pelos patrotildees Cf AHCJF ldquoFalta de Consciecircnciardquo Diaacuterio

Mercantil 22 nov 1927 p 1 Cf SILVA Wesleyuml Por uma histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da

delinquecircncia de menores em Belo Horizonte ndash 1921-1941 Doutorado em Educaccedilatildeo Satildeo Paulo

Universidade de Satildeo Paulo 2007 p 204-206

182

Imagem 16 Nota sobre acidente de trabalho de uma ldquomenorrdquo ndash serviccedilo

domeacutestico SM-BMMM ldquoDesastrerdquo Jornal do Commercio 27 jan 1905

p 2

A uacutenica operaacuteria da documentaccedilatildeo por mim compulsada sobre acidentes no

trabalho que natildeo estava empregada na induacutestria tecircxtilmalharia foi a menor Geralda

Farini de 15 anos de idade que sabia apenas ldquoassignar o nomerdquo empregada como

aprendiz na faacutebrica de chinelos de propriedade de Oscar Rodrigues Pereira localizada

na Rua Santo Antocircnio Sua matildee Rachel Farini queixou-se na Delegacia de Poliacutecia que

no dia 31 de maio de 1930 sua filha havia sofrido um acidente quando trabalhava na

183

ldquomachina de ligas do fabrico de chinelosrdquo A ldquomenorrdquo teve o dedo indicador da matildeo

direita atingido pela engrenagem de uma maacutequina que resultou segundo o exame

meacutedico na perda definitiva ldquode um quarto da extremidade da phalangeta do dedo

traumatizado e a perda da unhardquo O que chama a atenccedilatildeo nesse processo eacute a explicaccedilatildeo

dada pela jovem operaacuteria para a ocorrecircncia do acidente Geralda Farini em seu

depoimento declarou que estava trabalhando

[] quando nessa occasiatildeo ao por sua matildeo direita para atraz foi a mesma

apanhada pela engrenagem de uma machina que estava funccionando atraz

das costas da declarenate recebendo no momento ferimento na ponta do dedo

indicador da mesma matildeo501

Pelo depoimento da aprendiz presume-se a precariedade das instalaccedilotildees da

faacutebrica de chinelos A crer na veracidade das declaraccedilotildees de Geralda o que se conclui eacute

que os espaccedilos entre uma maacutequina e outra eram tatildeo exiacuteguos que somente o fato de

colocar a matildeo para traacutes foi o bastante para feri-la

A esse respeito Esmeralda Moura ao analisar a questatildeo operaacuteria em Satildeo Paulo

ressalta

Nos horizontes da cidade o perfil das faacutebricas enquanto liacutedimos

representantes do progresso era motivo de juacutebilo para as autoridades locais

Em seu interior no entanto o improviso era praticamente a nota dominante

maacutequinas e operaacuterios muitas vezes acomodados em espaccedilo exiacuteguo

iluminaccedilatildeo e ventilaccedilatildeo insuficientes ausecircncia de dispositivos de seguranccedila

colocando a matildeo de obra agrave mercecirc das engrenagens502

A classe poliacutetica e econocircmica da cidade de Juiz de Fora tambeacutem se comprazia

em decantar o progresso e a modernidade da cidade do interior mineiro Nos perioacutedicos

satildeo constantes os elogios ao desenvolvimento do municiacutepio Entretanto no interior das

faacutebricas com seus tijolinhos vermelhos com suas chamineacutes e seus apitos o improviso

as gambiarras a falta de espaccedilo e provavelmente de iluminaccedilatildeo e ventilaccedilatildeo adequados

era uma marca503

501

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho Geralda

Farini 09-06-1930 cx 107 502

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 264 503

Para mais informaccedilotildees sobre o discurso das classes dominantes de Juiz de Fora sobre a questatildeo do

progresso e da modernidade da cidade ver os trabalhos de MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit 2010

GOODWIN JUacuteNIOR James W A ldquoPrincesa de Minasrdquo a construccedilatildeo de uma identidade pelas elites

juiz-foranas (1850-1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Belo Horizonte UFMG 1996 GOODWIN JUNIOR

James William Op cit 2007

184

Outro processo de acidente envolvendo uma aprendiz e que acena para as

condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees das faacutebricas de Juiz de Fora eacute o da ldquomenorrdquo Maria

da Gloacuteria Eduardo de 11 anos de idade que ldquonatildeo sabia ler e nem escreverrdquo Ela feriu

trecircs dedos da matildeo direita quando

[] ao passar junto a uma machina de enrolar barbante quando ia a

instalaccedilatildeo sanitaria satisfazer uma necessidade physiologicva por natildeo ter

outro caminho a passar a natildeo ser junto a referida machina que se achava em

movimento e como era muito estreito o corredor teve que por a sua matildeo

direita em uma das peccedilas da mesma occasiatildeo em que esta pegou-lhe treis

dedos da matildeo alludida fazendo todos elles ferimentos504

Os ferimentos sofridos pela operaacuteria Maria da Gloacuteria Eduardo resultaram

segundo o laudo meacutedico em uma ldquolesatildeo definitiva e portanto incapacidade parcial e

permanente no dedo index da matildeo direita que ficaraacute com uma ankylose ao nivel das

articulaccedilatildeo phalange-phalanginha e phalanginha-phalangetardquo505

Antonio Celso Vieira gerente da Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer amp

Irmatildeos onde trabalhava Maria da Gloacuteria declarou em seu depoimento que a ldquomenorrdquo

havia se ferido quando ldquodistrahidamente poz a matildeo direita em uma das engrenagensrdquo

da maacutequina de enrolar barbante Em momento algum ele ressalta a provaacutevel dificuldade

que os operaacuterios tinham de ter acesso agraves instalaccedilotildees sanitaacuterias como relatado pela

aprendiz O acidente no relato do gerente foi fruto da distraccedilatildeo da ldquomenorrdquo506

As condiccedilotildees inadequadas os espaccedilos exiacuteguos entre as maacutequinas natildeo era uma

caracteriacutestica exclusiva das pequenas faacutebricas Faccedilo tal afirmaccedilatildeo com base na

informaccedilatildeo de que a Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Malha Antonio Meurer em 1925 era a

quarta maior induacutestria do ramo tecircxtil do municiacutepio de Juiz de Fora em nuacutemero de

operaacuterios contando 350 funcionaacuterios e a terceira em termos de equipamentos (220

teares) e valor da produccedilatildeo (2451000$000)507

Essa provaacutevel precariedade dos

504

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Maria da

Gloacuteria Eduardo 18-08-1927 cx 005 proc 15 505

Idem 506 Carolina Neder em seu estudo sobre o cotidiano das operaacuterias de Juiz de Fora entre os anos de 1890-

1954 assinalou que algumas ex-operaacuterias relataram em seus depoimentos as dificuldades que tinham para

irem ao banheiro dadas as normas disciplinares e de controle existentes dentro das faacutebricas sendo que o

periacuteodo menstrual mostrava-se ainda mais problemaacutetico para elas NEDER Carolina Barbosa Memoacuterias

que natildeo se apagam o cotidiano de luta das operaacuterias na Manchester Mineira (1890-1954) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Juiz de Fora (MG) UFJF 2010 p 42-43 507

Secretaria da Agricultura Anuaacuterio Estatiacutestico Ano II (1922-1925) Belo Horizonte Imprensa Official

1929 Apud ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe Operaria em Juiz de Fora uma histoacuteria

de lutas (1912-1924) Ed da UFJF 1987 p 31

185

estabelecimentos expunham os funcionaacuterios a riscos como se deu no caso da ldquomenorrdquo

Geralda Farini Maria da Gloacuteria Eduardo e tantos outros

Egydio Augusto cunhado da aprendiz Maria da Gloacuteria e com quem ela residia

solicitou que fosse nomeado um tutor ad hoc pois a menor era oacuterfatilde de matildee e ldquopor lhe

faltar pae legitimordquo para cuidar de seus interesses no processo de acidente no trabalho

O advogado Joseacute Ribeiro de Abreu foi nomeado tutor ad hoc da menina508

O advogado Joseacute Ribeiro de Abreu em suas ldquoallegaccedilotildeesrdquo em defesa dos

interesses da jovem operaacuteria assim ponderou

Trata-se de uma menor que alem de deformada ficaraacute privada para sempre de

seu dedo index da matildeo direita - ankylosado nas articulaccedilotildees das phalanges

Essa lesatildeo sem embargo aacutes demais constantes do attestado junto deve ser

considerada de summa gravidade e portanto a victima que inicia agora a

lucta pela existencia sem o amparo paternal natildeo poderaacute regressar ao seu

officio com os mesmos elementos de habilidade pelo accidente

paralysados509

Com base nas alegaccedilotildees o tutor ad hoc solicitou que o caacutelculo da indenizaccedilatildeo

devida agrave ldquomenorrdquo fosse arbitrada no maacuteximo da porcentagem que a Lei de Acidentes no

Trabalho (Decreto 13 4981919) estabelecia em sua tabela anexa que era de ldquo40 para

a indemnizaccedilatildeo da perda do indicador da matildeo direitardquo Ele ainda inferiu que o caacutelculo

deveria ser realizado tendo por base o menor salaacuterio de um operaacuterio adulto que

trabalhasse em ldquoserviccedilo da mesma naturezardquo conforme estipulava o art 17 da citada

Lei510

O Juiz de Direito Custoacutedio de Almeida Lustosa arbitrou a indenizaccedilatildeo em 30

tendo como referecircncia o menor salaacuterio de um trabalhador adulto que exercia a mesma

atividade que era de 4$000 A Companhia de Seguro Lloyd Industrial Sul Americano

pediu vista dos autos do acidente de trabalho por natildeo concordar com a indenizaccedilatildeo

arbitrada de 1080$000 Da anaacutelise do processo observa-se que a indenizaccedilatildeo arbitrada

foi efetivada pois em setembro de 1930 o cunhado da ldquomenorrdquo solicitou o

levantamento dos juros da quantia de 1080$000 que Maria da Gloacuteria tinha ldquoem

deposito da Caixa Economicardquo desde setembro de 1927 fruto da indenizaccedilatildeo que

508

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Maria da

Gloacuteria Eduardo 18-08-1927 cx 005 proc 15 509

Idem 510

Art 17 Tratando-se de aprendizes entende-se que o seu salario diario natildeo eacute inferior ao menor salario

de um operario adulto que trabalhe em serviccedilo da mesma natureza em caso de incapacidade temporaria

poreacutem a diaria do aprendiz natildeo excederaacute aacute que ele effectivamente percebia na occasiatildeo do accidente

Decreto N 13498 de 12 de marccedilo de 1919 Disponiacutevel em

httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm

186

recebeu proveniente de um acidente no trabalho O dinheiro solicitado por Egydio

Augusto destinava-se agrave compra de vestuaacuterio Egydio Augusto tambeacutem solicitou em

setembro de 1930 a tutela de Maria da Gloacuteria Apoacutes o Juiz de Direito Andreacute Martins de

Andrade ouvir as declaraccedilotildees da ldquomenorrdquo a respeito de solicitaccedilatildeo de sua tutela por seu

cunhado deferiu o pedido

A ldquolucta pela existenciardquo de Maria da Gloacuteria Djanira Avelino Geraldina

Adolpho Hilda Augusto e tantas outras crianccedilas operaacuterias e aprendizes comeccedilou bem

cedo entre maacutequinas engrenagens apitos e chamineacutes A presenccedila desses pequenos

proletaacuterios nas faacutebricas e em outros estabelecimentos eacute prova da pobreza de uma imensa

maioria da populaccedilatildeo que estava alijada do progresso e da modernidade Em sua ldquolucta

pela existenciardquo essa parcela da populaccedilatildeo ficou longe dos bancos escolares ou recebeu

uma educaccedilatildeo precaacuteria que lhe permitiu quando muito assinar o nome perpetuando

dessa forma a exclusatildeo e a submissatildeo da massa proletaacuteria As dificuldades de

sobrevivecircncia das classes trabalhadoras lhes impuseram a necessidade de empregar suas

mulheres e seus filhos Aleacutem disso a nova eacutetica do trabalho e os mecanismos de

controle social se impunham para as classes pobres pressionando-as a se sujeitarem agraves

precaacuterias condiccedilotildees de trabalho uma vez que natildeo exercer uma atividade laborativa

significava aos olhos da ldquosociedade disciplinarrdquo511

estar contra ou agrave margem dessa

sociedade

Dos 67 processos analisados 35 (5224)512

viacutetimas de acidente declaram que

sabiam ler e escrever 23 (3433) que natildeo sabiam ler nem escrever 7 (1045) que

sabiam assinar o nome e de 2 (298) natildeo haacute informaccedilotildees a esse respeito No processo

de Sebastiatildeo de Carvalho de 13 anos de idade aprendiz de carpinteiro na Companhia

de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Moraes Sarmento haacute a observaccedilatildeo de que ele sabia ldquoler e

escrever malrdquo513

Quantos outros jovens operaacuterios que declararam que sabiam ler e

escrever tambeacutem natildeo estavam nessa mesma condiccedilatildeo Somando o nuacutemero dos

analfabetos com o dos que sabiam assinar apenas o nome o iacutendice dos operaacuterios sem

instruccedilatildeo eleva-se para 4478

511

Cf FOUCAULT Michel Vigiar e Punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis Vozes 2007 512

O operaacuterio Faacutebio SantrsquoAnna que declarou que sabia ler e escrever aparece duas vezes nos processos

de acidentes no trabalho ou seja em 25-04-1928 e 06-03-1929 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci

Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Fabio SantrsquoAnna 25-04-1928 cx 007proc 23

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Fabio

SantrsquoAnna 06-03-1929 cx 107 513

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Sebastiatildeo

de Carvalho 13-11-1919 cx001proc 2

187

A educaccedilatildeo era concebida por setores da classe dominante como um meio de o

Brasil atingir a civilizaccedilatildeo a modernidade e o progresso Entretanto apesar de

reconhecerem a importacircncia da educaccedilatildeo para o desenvolvimento da naccedilatildeo essa

questatildeo natildeo constituiu em uma prioridade para os homens que comandaram o processo

de implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do regime republicano no paiacutes sobretudo com relaccedilatildeo a

que seria destinada agraves crianccedilas pobres A preocupaccedilatildeo era constituir as massas em matildeo

de obra para nascente induacutestria Por isso os debates sobre disciplina e controle das

massas e a questatildeo da defesa nacional tiveram mais peso nas discussotildees e decisotildees dos

homens puacuteblicos do que a da obrigatoriedade do ensino baacutesico514

A educaccedilatildeo das crianccedilas pobres tambeacutem foi uma problemaacutetica que perpassou as

naccedilotildees europeias durante o processo de industrializaccedilatildeo Segundo George Rusche e Otto

Kirchheimer para muitos teoacutericos europeus a ldquoboa educaccedilatildeordquo significava preparar a

crianccedila pobre para o mercado de trabalho nas induacutestrias sendo essa praacutetica considerada

ldquoo melhor caminho para mantecirc-las longe do mal ao mesmo tempo em que as ensinava

ajudar os pais financeiramenterdquo515

Nos perioacutedicos do municiacutepio de Juiz de Fora foram publicadas vaacuterias mateacuterias

sobre a importacircncia da educaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma sociedade civilizada e

moderna A educaccedilatildeo especialmente a profissional era considerada de suma

importacircncia para a formaccedilatildeo da classe trabalhadora Com o fim do trabalho escravo

vaacuterias vozes se levantaram mesmo antes da aboliccedilatildeo para explanar sobre a necessidade

de se instruir os libertos para que os mesmos pudessem ingressar na sociedade

civilizada bem como as classes subalternas Outra questatildeo presente nos artigos

jornaliacutesticos eacute a da abertura de cursos noturnos para o atendimento dos operaacuterios Uma

mateacuteria do jornal O Pharol de 27 de maio de 1888 ressaltava a necessidade da criaccedilatildeo

de cursos noturnos

[] a creaccedilatildeo de cursos nocturnos onde abundam as fabricas e as oficinas

parece-nos um acto de perigosa necessidade E digna da civilizaccedilatildeo desta

cidade e fecundiacutessima em resultados beneacuteficos seraacute a fundaccedilatildeo de um Lyceu

de Artes e Officios []516

No Diaacuterio Mercantil de 23 de dezembro de 1926 na mateacuteria intitulada

ldquoInstrucccedilatildeo Publicardquo foi comunicada a criaccedilatildeo pelo Decreto no 7432 do ldquogrupo escolar

514

A esse respeito ver NEDER Gizlene ldquoAssistecircncia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gisele de Op

cit 2010 p 100 515

RUSCHE Georg KIRCHHEIMER Otto Op cit 2004 p 56-57 516

SM-BMMM ldquoLyceu de Artes e Officiosrdquo O Pharol 27 maio 1888 p 1

188

nocturno na cidade de Juiz de Focircra com a denominaccedilatildeo de Estevam de Oliveirardquo A

reportagem ainda informava que na cidade jaacute funcionavam algumas classes

[] em curso nocturno sete classes anexas aos grupos escolares Joseacute Rangel

e Delfim Moreira considerando que nessas classes destinadas principalmente

a filhos de operaacuterios estatildeo matriculados 410 crianccedilas excedendo de 500 os

pedidos de matricula []517

A preocupaccedilatildeo com a instruccedilatildeo das classes subalternas foi uma constante nos

perioacutedicos ao longo de toda a Primeira Repuacuteblica Era necessaacuterio preparar as ldquoflores de

uma geraccedilatildeo futurardquo518

e dentro desse pensamento a escola se afigurava para vaacuterios

setores das classes dominantes como um espaccedilo privilegiado na transmissatildeo de valores

morais e disciplinares natildeo apenas para as crianccedilas como tambeacutem para os seus

familiares Em outras palavras o poder disciplinador e moralizador da escola

extrapolava os seus muros Segundo Michel Foucault ldquoa escola tende a construir

minuacutesculos observatoacuterios sociais para penetrar ateacute nos adultos e exercer sobre eles um

controle regularrdquo519

Dessa maneira era preciso preparar os filhos dos operaacuterios para

substituiacuterem seus pais nas faacutebricas ou como nos dizeres da reportagem assegurar ldquoem

cada crianccedila de hoje um homem uacutetil aacute sociedade de amanhardquo520

O projeto de lei apresentado pelo vereador Pinto de Moura agrave Cacircmara Municipal

de Juiz de Fora em 1912 versando sobre a regulamentaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho dos

ldquomenoresrdquo nas faacutebricas foi saudado como algo de suma importacircncia para a sociedade

O artigo do Jornal do Commercio louvando o projeto que previa limitar o horaacuterio de

trabalho dos ldquooperariosinhosrdquo ressaltava a necessidade de se ldquofacilitar a essas crianccedilas a

frequecircncia de escolas nocturnas por duas horas ao menos Para isso a cacircmara crearia

escolas nos bairros mais habitados por operaacuteriosrdquo521

A mateacuteria continuou assinalando

que

517

AHCJF ldquoInstrucccedilatildeo publica ndash Grupo escolar lsquoEstevam de Oliveirarsquordquo Diaacuterio Mercantil 23 dez 1926

p 1 518

SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 02 ago 1912 p 1 519

FOUCAULT Michel Op cit 2007 p 174 520

SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1 No primeiro capiacutetulo da tese examinei

o projeto de Lei do vereador Francisco Augusto Pinto de Moura relativo agrave proibiccedilatildeo do trabalho de

crianccedilas ateacute a idade de 14 anos apoacutes as 17 horas O projeto foi apresentado dentro de uma conjuntura de

greve de alguns setores do operariado da cidade Para mais informaccedilotildees sobre a greve de 1912 em Juiz de

Fora ver o trabalho de ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 521

Idem

189

[] esses meninos trabalham nas fabricas para auxiliarem os pais teremos o

direito de privar estes do auxilio dos filhos sem alguma compensaccedilatildeo Certo

que natildeo

Assim pois si impedirmos que as pobres creanccedilas se cansem no trabalho por

todo o dia alguma medida complementar deve ser tomada e essa creio seraacute

facilitar-se-lhes a escola Prohibindo que o pequeno operaacuterio trabalhe ndash para

ajudar os pais mais do que lhe permittam as forccedilas o poder publico vai

adeante do pai na obrigaccedilatildeo que tem este de zelar pela sauacutede do filho Ao

poder publico portanto compete proporcionar ao lado desse zelo alguma

compensaccedilatildeo que o justifique Deve elle auxiliar o operaacuterio na educaccedilatildeo de

seus filhos522

A educaccedilatildeo segundo a reportagem era uma compensaccedilatildeo que o poder puacuteblico

deveria oferecer ao filho do trabalhador uma vez que a precaacuteria condiccedilatildeo social e

econocircmica do operaacuterio lhe impunha a necessidade de empregar seus filhos nas faacutebricas

A demonstraccedilatildeo de que a educaccedilatildeo que deveria ser oferecida a essas crianccedilas seria para

preparaacute-las para ocuparem os cargos inferiores encontra-se no final da mateacuteria quando

foi destacado que era de se esperar que o ldquohumanitaacuterio vereador se preocupe sempre

com outras medidas em favor da infancia dos futuros artiacutefices inspirando-se nas

praticas generosas de verdadeiro catholicordquo523

(grifos meus) O humanitarismo e o

espiacuterito cristatildeo-catoacutelico das classes dominantes entretanto natildeo se preocupava em

eliminar a miseacuteria das classes trabalhadoras e ou erradicar o trabalho infantil O projeto

apresentado agrave Cacircmara de Vereadores de Juiz de Fora sobre a carga horaacuteria dos

ldquooperariosinhosrdquo natildeo versava sobre a educaccedilatildeo A reportagem do Jornal do Commercio

sugeriu que futuramente fossem elaborados projetos sobre a educaccedilatildeo dos operaacuterios

Todavia era a proposta de uma educaccedilatildeo elementar destinada agrave formaccedilatildeo de futuros

operaacuteriosartiacutefices e natildeo para a sua elevaccedilatildeo e de seus filhos mas para a manutenccedilatildeo do

status quo

Aproveitando a ldquobrechardquo aberta pela reportagem sobre as ldquopraticas generosas de

verdadeiro catholicordquo do vereador Dr Pinto de Moura destaco o papel da Igreja

Catoacutelica na discussatildeo do trabalho na sociedade urbana e industrial Segundo Jessie Jane

V de Sousa o catolicismo social incorporou-se ao mundo do trabalho a partir da

publicaccedilatildeo pelo Papa Leatildeo XIII da Enciacuteclica Rerum Novarum (1891) Os preceitos

dessa Enciacuteclica foram incorporados paulatinamente na sociedade brasileira Para a

autora a ldquoRerum Novarum foi o primeiro lsquoalerta profeacuteticorsquo da Igreja quanto agrave

deterioraccedilatildeo das condiccedilotildees de vida dos trabalhadores submetidos agraves relaccedilotildees de trabalho

522

Ibidem 523

Ibidem

190

capitalistasrdquo524

Entretanto foi somente nos anos 1920 que a alta hierarquia da Igreja

Catoacutelica passou a colocar em accedilatildeo o ldquoalertardquo dado pelo papa Leatildeo XIII no final do

seacuteculo XIX525

Jefferson de Almeida Pinto ressaltou que apesar da Enciclica Rerum

Novarum dedicar-se agrave discussatildeo da questatildeo social apresentava um ldquocaraacuteter estritamente

conservadorrdquo526

O documento papal de 1891 explanou sobre as obrigaccedilotildees e deveres de patrotildees e

empregados bem como da necessidade de se evitar os conflitos entre as classes para

que a paz e a ordem reinassem na sociedade O Papa Leatildeo XIII teceu uma contundente

criacutetica agraves ideias socialistas e uma profiacutecua defesa da propriedade privada da famiacutelia do

trabalho da ldquoconcoacuterdiardquo entre as classes O trabalho infantil tambeacutem foi contemplado

pela Rerum Novarum que ressaltava que natildeo se deveria exigir da crianccedila e da mulher o

mesmo trabalho que era requerido de um homem adulto e no vigor de sua forccedila

Especificamente sobre o trabalho infantil eacute enfatizado que a crianccedila natildeo deveria ldquoentrar

na oficina senatildeo quando a sua idade tenha suficientemente desenvolvido nela as forccedilas

fiacutesicas intelectuais e moraisrdquo527

Entretanto o exame dos processos de acidentes no trabalho de Juiz de Fora

sugere que os patrotildees natildeo estavam preocupados com o pleno desenvolvimento das

forccedilas fiacutesicas intelectuais e morais de seus pequenos operaacuterios uma vez que muitas

crianccedilas com menos de 14 anos foram admitidas nas faacutebricas para executarem

atividades em maacutequinas provavelmente para as quais natildeo tinham tamanho e ou forccedila

fiacutesica Acrescente-se a esse quadro o fato de muitos ldquomenoresrdquo natildeo estarem

intelectualmente preparados pois muitos declararam nos processos de acidente que natildeo

sabiam ler e nem escrever ou que apenas assinavam o nome

O fato de muitos ldquomenoresrdquo natildeo estarem no pleno desenvolvimento das forccedilas

fiacutesicas e natildeo terem idade e maturidade suficiente para executarem determinadas

atividades redundou em muitos graves acidentes sendo alguns fatais Dos 67

ldquooperariosinhosrdquo dos processos de acidentes no trabalho 53 (7910) sofreram

ferimentos queimaduras ou amputaccedilotildees nos membros superiores (dedos matildeos e

braccedilos) e 7 (1045) nos membros inferiores (peacutes e pernas) Em 5 (747) processos

524

SOUSA Jessie Jane Vieira de Os ciacuterculos operaacuterios e a intervenccedilatildeo da Igreja catoacutelica no mundo do

trabalho no Brasil uma discussatildeo historiograacutefica p 4 Disponiacutevel em

httpwwwppghisifcsufrjbrmediajessie_jane_circulospdf Acessado em 17-01-2014 525

Idem p 5 526

PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 p 98 527

LEAtildeO XIII Papa Enciacuteclica Rerum Novarum - sobre as condiccedilotildees dos operaacuterios Roma 15 de maio de

1891 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherleo_xiiiencyclicalsdocumentshf_l-

xiii_enc_15051891_rerum-novarum_pohtml Acessado em 19-11- 2013

191

os jovens cada um correspondendo a um tipo de lesatildeo feriram-se na colunaabdocircmen

na claviacutecula no olho na fronte e ferimentos pelo corpo 1 (149) foi viacutetima de asfixia

por afogamento e outro (149) de choque eleacutetrico Dos 67 ldquomenoresrdquo acidentados 4

(597) perderam suas vidas todos do sexo masculino Os primeiros socorros como

curativos prestados aos operaacuterios apoacutes os acidentes eram realizados nas farmaacutecias

locais e dependendo das lesotildees sofridas eram atendidos posteriormente por meacutedicos e

os casos mais graves eram levados para a Santa Casa de Misericoacuterdia528

O aprendiz

Germano Taddei da faacutebrica Estamparia Universal529

de propriedade de Lagrota amp

Companhia assim descreveu o acidente que sofreu e a assistecircncia prestada pelos

proprietaacuterios da mesma

PERGUNTADO o que aconteceu com elle hoje quando trabalhava nesta

Estamparia onde heacute empregado respondeo que hoje cerca de uma e meia

hora da tarde quando limpava a pequena machina (Laminoir) descuidando-se

em certo occasiatildeo colocou os dedos medio e annelar da matildeo direita sobre a

ingrennagem occasionando-lhe pequenos ferimentos nesses dois dedos que

logo que foi ferido os proprietaacuterios da fabrica seos patrotildees o mandaram aacute

pharmacia Barros que immediatamente fez o curativo necessario aos

ferimentos que recebeu que eacute empregado como aprendiz desta Estamparia

vencendo a diaria de um mil reis que seo pae jaacute eacute fallecido tendo porem sua

matildee Pret Taddei []530

Imagem 17 Propaganda da Estamparia Universal 1922 SM-

BMMM Revista Luz Composta e impressa nas officinas Graphicas

ldquoLuzrdquo Ano I n V Junho de 1922

528

Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 244-246 529

A ldquoEstamparia Universalrdquo tambeacutem aparece na documentaccedilatildeo com o nome de ldquoEstamparia Mineirardquo

As declaraccedilotildees no inqueacuterito policial foram dadas pelo soacutecio do estabelecimento Joatildeo Tardio AHCJF

Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Germano Taddei 17-

05-1919 cx 106 530 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Germano

Taddei 17-05-1919 cx 106

192

Doravante passo a anaacutelise dos processos que redundaram na morte dos

operaacuterios Inicio pelo acidente do ldquomenorrdquo Mario Roque de 15 anos de idade pardo

guia de bois na Fazenda Bomba de Fogo situada no distrito da cidade de propriedade

do coronel Alfredo Moreira de Resende Segundo o relato de Anselmo Joseacute dos Santos

lavrador o menino estava ldquotomando conta de uma carroccedila carregada com lixo cujo

vehiculo estava puxado por dois bois []rdquo531

poreacutem o ldquomenorrdquo subiu no

[] cabeccedilalho da carroccedila onde se entretinha a chupar limas que em dado

momento os bocircis espantaram arrastando a carroccedila que foi de encontro a uma

raiz grossa que tem ao lado do caminho provocando com o baque a queda da

victima que se achava como jaacute disse sobre o cabeccedilalho em frente a roda do

vehiculo que foi de encontro ao seu corpo atravessando sobre o peito e perna

esquerda da victima que a morte da victima se deu immediatamente natildeo

sendo por isso possivel dar-lhe qualquer socorro[]532

Os depoimentos das demais testemunhas satildeo semelhantes aos do representante

da fazenda Anselmo Joseacute dos Santos De acordo com as testemunhas o menino era

oacuterfatildeo de pai e vivia na fazenda desde a idade de quatro anos em companhia de seu

padrinho Pedro Ivo funcionaacuterio da mesma propriedade rural pois havia sido

abandonado pela matildee Mario Roque natildeo sabia ler e nem escrever e recebia pela funccedilatildeo

de guia de bois a quantia de oitocentos reis diaacuterios Em consequecircncia do acidente o

ldquomenorrdquo teve ldquofractura da colunna vertebral na regiatildeo dorsal e contusatildeo do abdomem

sendo produzida a morte por choque traumaacuteticordquo533

O responsaacutevel por Mario Roque

natildeo teve direito agrave indenizaccedilatildeo pelo acidente sofrido e que ocasionou a morte do

ldquomenorrdquo uma vez que a Lei de Acidentes no Trabalho natildeo contemplava o trabalhador

rural que natildeo utilizava motores inanimados O processo foi remetido ao Promotor

Puacuteblico Dr Nisio Baptista de Oliveira para dar ldquoVistardquo e que assim justificou o fato da

natildeo indenizaccedilatildeo

[] Natildeo cabe entretanto aos seus herdeiros nenhuma indennizaccedilatildeo porque o

serviccedilo em que trabalhava natildeo foi contemplado na Lei do [risco] profissional

nordm 3724 de 14 de janeiro de 1919 E assim que pelo seu art 3 os operarios

rurais soacute tem direito aacute indennisaccedilatildeo por accidente quando ao serviccedilo de

trabalhos agricolas em que se empreguem motores inanimados

O texto legal eacute bastante claro para se oppor qualquer duvida e o jurista

Andrade Bezerra commentando-o chega a [] conclusatildeo seguinte Escapam

531

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Mario

Roque 12-11-1919 cx 001proc 1 532

Idem 533

Ibidem

193

assim os innumeros casos de accidente na agricultura causados pelo uso de

instrumentos manejados pelo operario ou accionados por forccedila animal

Natildeo fosse a exclusatildeo legal e o patratildeo teria de pagar a indennisaccedilatildeo de

720$000 isto eacute 900 vezes o salario diario da vitima que era de $800 (grifos

no original)534

O processo foi entatildeo arquivado Como foi salientado por Gizlene Neder a lei de

Acidentes no Trabalho ldquoteve a preocupaccedilatildeo lsquomecacircnicarsquo do acidente a ponto de no

trabalho rural proteger o trabalhador que empregue motores inanimados e deixar sem

compensaccedilatildeo os que forem viacutetimas de outros acidentesrdquo535

A partir desse exemplo

histoacuterico concreto destaco as limitaccedilotildees das leis de proteccedilatildeo social especialmente com

relaccedilatildeo ao trabalhador rural e domeacutestico que ao longo do seacuteculo XX foram preteridos

pelo direito social brasileiro

Outro ldquomenorrdquo que teve a sua vida ceifada no exerciacutecio de sua atividade

profissional foi Americo Baresi de 19 anos de idade empregado na Companhia de

Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira durante dez anos ou seja ele comeccedilou a

trabalhar aos 9 anos de idade assim passou toda a sua adolescecircncia no serviccedilo da dita

faacutebrica e estava no momento do acidente como aprendiz de mecacircnico Ele foi viacutetima de

um choque eleacutetrico em fevereiro de 1922 quando conduzia uma barra de ferro que

tocou os fios que conduziam a energia para a dita Companhia De acordo com os

relatos o ldquomenorrdquo foi ldquofulminado pela corrente que possuiacutea seis mil voltsrdquo Segundo o

depoimento de Sebastiatildeo Elias operaacuterio com 20 anos de idade eles trabalhavam ldquona

remoccedilatildeo de umas barras de ferro que se achavam na carpintaria quando ao levantar

uma das barras a victima tocou na corrente electrica que passa pelos fios mais ou menos

baixo no lugar resultando ser fulminado pela corrente []536

As provaacuteveis condiccedilotildees

precaacuterias das instalaccedilotildees da faacutebrica foi o fator que ocasionou a morte de Americo

Baresi Como jaacute salientei nesta pesquisa as gambiarras os improvisos a falta de

espaccedilos e o excesso de trabalho foram preacute-condiccedilotildees para a ocorrecircncia de vaacuterios

acidentes envolvendo os trabalhadores Da leitura das fontes o que se depreende eacute que o

interesse da classe empresarial era manter um ritmo elevado da produccedilatildeo auferindo o

maacuteximo de lucro por meio da exploraccedilatildeo da matildeo de obra sem se preocupar com a

questatildeo da seguranccedila no ambiente de trabalho No caso de Juiz de Fora a presenccedila de

534

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Mario

Roque 12-11-1919 cx 001proc 1 Vista ao processo - Promotor Puacuteblico Nisio Baptista de Oliveira em

30-07-1919 535

NEDER Gizlene Op cit 1995 p 83 536

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Americo

Baresi 23-02-1922 cx 002proc 3

194

um contingente expressivo de matildeo de obra agrave disposiccedilatildeo do setor industrial

provavelmente foi mais um fator que favoreceu a despreocupaccedilatildeo patronal com a sauacutede

e a integridade fiacutesica de seus operaacuterios

A Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira em 1924 foi palco de

mais um acidente com morte de um operaacuterio Jacob Stephan de 17 anos de idade

acidentou-se gravemente quando trabalhava em uma pedreira pertencente agrave dita faacutebrica

Segundo as testemunhas do processo o ldquomenorrdquo encontrava-se sobre um enorme bloco

de pedra que havia sido dinamitado dias antes e que estava ldquoem falsordquo O bloco de

pedra rolou e levou junto o operaacuterio que teve o braccedilo esquerdo decepado em seu terccedilo

meacutedio fratura exposta da perna esquerda ferimentos incisos na cabeccedila (regiatildeo

occipital) na perna direita no antebraccedilo direito e escoriaccedilotildees pelo corpo O acidente

ocorreu no dia 17 de julho de 1924 vindo o trabalhador a falecer de septicemia em

consequecircncia dos ferimentos no dia 31 do mesmo mecircs

No setor da construccedilatildeo tambeacutem foram registrados acidentes fatais envolvendo

jovens operaacuterios Joseacute Finocchio Filho de 15 anos de idade filho de Joseacute Finocchio

italiano e de D Maria Candida Finocchio portuguesa estava a serviccedilo de uma obra da

Inspectoria de Estradas de Rodagem do estado de Minas Gerais (Secretaria da

Agricultura Induacutestria Terras Viaccedilatildeo e Obras Puacuteblicas ndash Directoria de Viaccedilatildeo e Obras

Publicas ndash 4a Residencia de Estradas de Rodagem) sob a administraccedilatildeo do engenheiro

chefe da 4a Residecircncia de Estradas de Rodagem Dr Joseacute da Rocha Lagocirca no ano de

1929 quando se acidentou O ldquomenorrdquo trabalhava na construccedilatildeo da ponte de cimento

armado Carlos Otto quando caiu no rio Paraibuna o que resultou em sua morte por

asfixia por submersatildeo Segundo informaccedilotildees do documento o ldquomenorrdquo trabalhava em

ldquomeacutedia dez horas por diardquo537

A anaacutelise desses processos demonstra as condiccedilotildees precaacuterias e a falta de

seguranccedila a que os operaacuterios estavam expostos em funccedilatildeo da postura do empresariado

de procurar maximizar seus lucros em detrimento das condiccedilotildees de trabalho do

proletariado538

Com relaccedilatildeo agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo esta soacute ocorreu

537

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Joseacute

Finocchio Filho 04-12-1929 cx 107 Segundo Luiacutes Eduardo de Oliveira a construccedilatildeo civil

(demoliccedilotildees construccedilotildees escavaccedilotildees de terrenos etc) ao que parece era o setor da economia local que

apresentava um iacutendice mais elevado de acidentes de operaacuterios entre o periacuteodo de 1890 a 1910 Cf

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 243 nota 278 538

As condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees fabris e de trabalho dos operaacuterios podem ser observadas em O

Lynce de 25 de outubro de 1919 em que foi assinalado o fato dos operaacuterios das faacutebricas almoccedilarem ldquoem

plena rua e debaixo as vezes de uma fina garoacirc []rdquo o que favorecia para a comida ficar com aspecto de

ldquolavagemrdquo Nessa nota de O Lynce que se referia a outra publicada em julho do mesmo ano o perioacutedico

195

em 1927 com a decretaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores Por essa razatildeo os jovens operaacuterios

ficaram expostos em praticamente todo o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica a diversos

tipos de condiccedilotildees degradantes e de riscos a sua integridade fiacutesica nos estabelecimentos

que utilizavam a sua forccedila de trabalho

Dos quatro operaacuterios que morreram durante o trabalho apenas Joseacute Finocchio

estava respaldado pela lei de proteccedilatildeo ao trabalhador infanto-juvenil uma vez que seu

acidente ocorreu apoacutes a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de 1927 Entretanto as determinaccedilotildees

do Coacutedigo foram desrespeitadas uma vez que em seu art 108 estabelecia que

Art 108 O trabalho dos menores aprendizes ou operarios abaixo de 18 anos

tanto nos estabelecimentos mencionados no art 103 como nos natildeo

mencionados natildeo poacutede exceder de seis horas por dia interrompidas por um

ou varios repouso cuja duraccedilatildeo natildeo poacutede ser inferior a uma hora539

Poreacutem no comunicado feito ao Delegado de Poliacutecia sobre o acidente sofrido por

Joseacute Finocchio Filho e no ldquoAuto de Accidente no Trabalhordquo o representante do

engenheiro responsaacutevel pelas obras Joseacute Teixeira informou que o ldquomenorrdquo trabalhava

ldquodiariamente dez horasrdquo e recebia ldquoum mil reis (1$000) a horardquo sendo portanto o seu

ldquoordenado de dez mil reis (10$000) por diardquo540

A carga horaacuteria de trabalho do jovem

operaacuterio que era funcionaacuterio de uma obra do Estado de Minas Gerais estava em

desacordo com a determinaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores que estipulava seis horas diaacuterias

de atividade laborativa para os menores de 18 anos

Outro exemplo de descumprimento do Coacutedigo de Menores pelo governo mineiro

pode ser observado no processo de acidente do menino Albertino de Oliveira de 12

anos de idade que declarou que natildeo ldquosabia ldquoler e nem escreverrdquo O ldquomenorrdquo foi

ldquoapanhado por bloco de terra de uma barreira que estava sendo cortadardquo e esse acidente

resultou na fratura de diversas partes de sua perna direita O acidente ocorreu quando

ele trabalhava no serviccedilo de ldquoreconstrucccedilatildeo da estrada de rodagem lsquoUniatildeo Induacutestriarsquo no

fim da rua Osorio de Almeidardquo uma obra estadual que estava sob a supervisatildeo do

destacou que Jornal do Commercio tambeacutem estava apelando para ldquoos proprietaacuterios das fabricas para que

estes faccedilam cobertas para abrigar tatildeo desprotegidos auxiliares do progressordquo O Lynce 25 out 1919 p 2 539

Coacutedigo de Menores Capiacutetulo IX ndash Do trabalho dos Menores art 108 O art 103 estabelecia que ldquoOs

menores natildeo podem ser admittidos nas usinas manufacturas estaleiros minas ou qualquer trabalho

subterraneo pedreiras officinas e suas dependencias de qualquer natureza que sejam publicas ou

privadas ainda quando esses estabelecimentos tenham caracter profissional ou de beneficencia antes da

idade de 11 annosrdquo Coacutedigo de Menores - Consolida as leis de assistecircncia e proteccedilatildeo a menores Decreto

nordm 17943-a de 12 de outubro de 1927 Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto1910-

1929d17943ahtm 540

AHCJF Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Joseacute Finocchio Filho 04-12-1929 cx

107

196

engenheiro Dr Joseacute da Rocha Lagocirca541

A viacutetima segundo informaccedilotildees do processo

trabalhava havia mais de um ano no serviccedilo para o Estado de Minas ou seja por volta

dos 10-11 anos de idade contrariando o art 101 que estipulava que ldquoeacute prohibido em

todo o territoacuterio da Republica o trabalho nos menores de 12 annosrdquo Natildeo teria o

engenheiro responsaacutevel pela obra Dr Joseacute Rocha Lagocirca conhecimento de que era

proibido por lei o emprego de crianccedilas menores de 12 anos O Coacutedigo de Menores

(1927) estabelecia as condiccedilotildees em que uma crianccedila poderia ser admitida em uma

atividade profissional a partir dos 12 anos de idade Segundo o capiacutetulo IX art 103 sect 3

ldquotodavia os menores providos de certificados de estudos primaacuterios pelo menos do

curso elementar podem ser empregados a partir da idade de 12 annosrdquo542

Entretanto

Albertino de Oliveira segundo informaccedilotildees do processo trabalhava havia mais de um

ano para os serviccedilos do Estado de Minas Gerais natildeo sabia ldquoler e nem escreverrdquo outro

flagrante desrespeito ao Coacutedigo de Menores

Por esses exemplos concretos de natildeo cumprimento da lei e principalmente por

se tratarem de obras puacuteblicas pode-se concluir que o setor privado tenha mantido o

mesmo comportamento de burlar a lei

Pondero que natildeo apenas o Coacutedigo de Menores tenha sido descumprido em

algumas determinaccedilotildees pelo empresariado de Juiz de Fora mas tambeacutem a Lei de

Acidentes no trabalho de 1919 Do ano de 1919 ateacute 1930 foram preservados 67

processos de acidentes em que o trabalhador infanto-juvenil se envolveu A par dessa

informaccedilatildeo faccedilo a seguinte indagaccedilatildeo quantos acidentes natildeo foram comunicados ao

longo desse periacuteodo Levanto tal questionamento baseando-me nas informaccedilotildees

coligidas nos processos acerca das condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees industriais e de

trabalho desses ldquomenoresrdquo como a falta de espaccedilos os fios eleacutetricos baixos e as longas

jornadas de trabalho e que provavelmente redundaram em um nuacutemero maior de

acidentes Outro dado que me leva a suspeitar da possibilidade de um nuacutemero maior de

acidentes nesse periacuteodo eacute o fato de que em alguns documentos pesquisados o

comunicado do acidente foi feito pelo proacuteprio operaacuterio ou por seu representante legal

pelo motivo de o empregador natildeo ter comunicado agraves autoridades competentes o

541

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Albertino de

Oliveira 30-11-1929 cx 107 542

Coacutedigo de Menores - Consolida as leis de assistecircncia e proteccedilatildeo a menores Decreto no 17943-a de 12

de outubro de 1927 Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto1910-

1929d17943ahtm

197

ocorrido em seu estabelecimento543

As ldquozonas opacasrdquo dos textos dos processos ou

seja os seus ldquofiosrdquo e ldquorastrosrdquo possibilitaram que tais questotildees fossem tecidas Segundo

Carlo Ginzburg todo texto eacute constituiacutedo de ldquozonas opacasrdquo e que perscrutando essas

partes ldquovozes incontrolaacuteveisrdquo podem emergir mesmo ldquocontra as intenccedilotildeesrdquo de quem

produziu a fonte544

No caso da documentaccedilatildeo em tela provavelmente os advogados

juiacutezes promotores gerentes patrotildees e outros atores natildeo pretendiam revelar esses

aspectos da industrializaccedilatildeo e da relaccedilatildeo empregado-patratildeo da ldquoManchester Mineirardquo

O processo do ldquomenorrdquo Joseacute Pinto Bretatildes de 18 anos de idade operaacuterio do

Moinho Prosperidade de propriedade de Nerval do Nascimento situado agrave Rua Halfeld

ilustra a relaccedilatildeo da classe empresarial de Juiz de Fora com a legislaccedilatildeo operaacuteria O

Comunicado do acidente foi feito pelo proacuteprio operaacuterio uma vez que o ldquopatratildeordquo natildeo

havia tomado as providecircncias necessaacuterias No ldquoAuto de Perguntasrdquo o representante do

proprietaacuterio do Moinho Nicolino Retto justificou o fato de natildeo ter dado ldquosciencia a

policia por ignorar que era necessaacuteriordquo545

Quantos outros proprietaacuterios natildeo

comunicaram os acidentes de seus operaacuterios agraves autoridades por comodamente

ldquoignoraremrdquo ldquoque era necessaacuteriordquo E ainda pode-se indagar quantos operaacuterios por

desconhecerem seus direitos ou por causa dos vaacuterios tipos de cerceamento e ou de

coaccedilatildeo natildeo comunicaram o fato agraves autoridades Com relaccedilatildeo agrave questatildeo do

conhecimento de seus direitos pelos operaacuterios tem-se de ponderar tambeacutem sobre a

facilidade de acesso dos mesmos agrave Justiccedila e os receios que possivelmente muitos

nutriam e ainda nutrem em ldquolevar o patratildeo na Justiccedilardquo fato esse corriqueiro entre as

pessoas mais humildes

Dos acidentes que foram comunicados agraves autoridades a maioria eacute relativa aos

trabalhadores das induacutestrias tecircxteis e malharias de Juiz de Fora Do total de 67

processos 35 se referem aos citados setores As faacutebricas que mais compareceram na

543 No processo de Geralda Farini de 15 anos de idade aprendiz na faacutebrica de chinelos de Oscar

Rodrigues Pereira o comunicado agrave autoridade policial do acidente ocorrido no dia 31 de maio de 1930

foi realizado pela matildee da ldquomenorrdquo no dia 03 de junho de 1930 Cf AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash

Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Geralda Farini 09-06-1930 cx 107 Outro processo

em que o comunicado do acidente sofrido pelo operaacuterio natildeo foi realizado pelo patratildeo eacute o do ldquomenorrdquo

Pedro Jabour de 15 anos de idade e que havia pegado um ldquobiscaterdquo para substituir temporariamente um

funcionaacuterio doente na faacutebrica de balas (firma Alves Junior amp Cia) situada na Rua Marechal Deodoro O

acidente ocorrido em novembro de 1924 foi comunicado ao delegado de poliacutecia em marccedilo de 1925 pelo

proacuteprio Pedro Jabour Cf AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no

trabalho Pedro Jabour 08-04-1925 cx 003proc1 544

GINZBURG Carlo ldquoIntroduccedilatildeordquo In ________ O fio e os rastros verdadeiro falso fictiacutecio Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2007 p 11-12 545

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Joseacute Pinto

Bretatildes 04-06-1921 cx 001proc 9

198

documentaccedilatildeo foram a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira

conhecida pelo nome de ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo546

com 11 (1642) registros a Faacutebrica

de Tecidos de Malha Meurer Irmatildeos amp Companhia com 8 (1194) processos e a

Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas com 6 (895) casos

A anaacutelise dos processos de acidentes no trabalho demonstra uma presenccedila

significativa de trabalhadores de origem europeia no setor industrial de Juiz de Fora

Essa constataccedilatildeo pode ser feita atraveacutes dos sobrenomes das testemunhas e das viacutetimas

bem como da informaccedilatildeo da nacionalidade dos pais dos ldquomenoresrdquo em muitos

documentos Na fonte compulsada abundam sobrenomes como Peterman Baresi

Gerheim Winther Abramo Farini Stephan Finocchio Rizzo Limp Stehling Jabour

Taddei entre outros Entretanto a presenccedila dos descendentes dos ex-escravos tambeacutem

foi observada na composiccedilatildeo da forccedila de trabalho das induacutestrias e oficinas da

ldquoManchester Mineirardquo atraveacutes da declaraccedilatildeo da cor (preto mulato moreno e pardo)

A principal induacutestria tecircxtil de Juiz de Fora a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem

Industrial Mineira fornece uma imagem bem reveladora da presenccedila do trabalhador

imigrante na composiccedilatildeo do heterogecircneo operariado da ldquoManchester Mineirardquo Em

1897 o trabalhador imigrante e seus descendentes constituiacuteam-se no grosso do

operariado desse estabelecimento fabril correspondendo a 714 dos 241 operaacuterios A

constante chegada de imigrantes na Hospedaria de Imigrantes Horta Barbosa em Juiz

de Fora favoreceu a contrataccedilatildeo de trabalhadores estrangeiros pelas induacutestrias do setor

tecircxtil por modestos salaacuterios e entre eles estavam muitas mulheres e crianccedilas que

tinham ordenados inferiores aos que eram pagos aos homens Na deacutecada de 1890 a matildeo

de obra feminina e infanto-juvenil da ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo correspondia

respectivamente a 469 e 328 do total de 241 empregados547

Sobre a Faacutebrica dos Ingleses o militante e dirigente do Partido Comunista

Italiano (deacutecadas de 1920-1960) Domenico Marchioro (1888-1965) deixou um

546

Segundo Luiacutes Eduardo de Oliveira a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira fundada

na deacutecada de 1880 ficou popularmente conhecida pelo nome de ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo Ela era fruto de

um consoacutercio que tinha como principais promotores e acionistas os ingleses Andrew John e Peter Steele

Willian Moreth e Henry Whittaker ndash ldquocomerciantes e industriais estabelecidos na Corte e na vizinha

Petroacutepolisrdquo OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit 2010 p 124 547

Segundo os dados da pesquisa de Luiz Eduardo de Oliveira sobre a formaccedilatildeo da classe operaacuteria

juizforana os italianos correspondiam a 32 dos 241 trabalhadores da Industrial Mineira em 1897 os

germacircnicos e seus descendentes a 386 os brasileiros e lusos a 286 e os ingleses a 08 Na soma que

realizei dos dados sobre os trabalhadores da Industrial Mineira apresentados por Oliveira natildeo estatildeo

inclusos os portugueses e seus descendentes pois eles foram relacionados junto com os brasileiros pelo

autor A porcentagem de 714 de trabalhadores imigrantes corresponde apenas aos italianos alematildees e

britacircnicos Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 206-208

199

importante relato das condiccedilotildees do operariado de Juiz de Fora e das condiccedilotildees de

adaptaccedilatildeo e de sobrevivecircncia dos imigrantes548

Em 1896 Marchioro e sua famiacutelia (pai

matildee irmatildeos e uma tia) vieram para o Brasil Ao chegarem a Juiz de Fora ficaram como

os demais imigrantes no ldquoluacutegubre edifiacutecio destinado a hospedar os emigradosrdquo

(hospedaria de imigrantes Horta Barbosa) indo pouco tempo depois residir em uma

ldquocasinhardquo proacutexima da hospedaria Seu pai encontrou emprego em uma pequena faacutebrica

de cerveja mas apoacutes 15 dias de trabalho adoeceu o que fez com que Machioro e um

irmatildeo mais velho comeccedilassem a trabalhar nesse periacuteodo ele e o irmatildeo tinham pouco

mais de sete e nove anos de idade respectivamente Eles encontraram uma colocaccedilatildeo na

Faacutebrica dos Ingleses (Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira) e segundo

o relato

[] as condiccedilotildees de trabalho eram aquelas existentes na Inglaterra na

primeira metade do seacutec XIX descritas assim cruamente nos nefastos

relatoacuterios dos Inspetores de Faacutebrica do governo inglecircs daquele periacuteodo

horaacuterio de doze horas diaacuterias salaacuterios mensal miseraacutevel 13 liras italianas de

entatildeo e o chicote que tombava frequentemente sobre o tenro corpo dos

meninos tatildeo logo se distraiam sonolentos549

Entretanto Domenico Marchioro ressalta que as condiccedilotildees de trabalho na

induacutestria tecircxtil italiana natildeo diferiam muito das encontradas nos estabelecimentos fabris

brasileiros onde tambeacutem se empregavam crianccedilas de oito e dez anos com uma carga

horaacuteria de doze horas Segundo o autor as crianccedilas operaacuterias do Vecircneto (Itaacutelia)

cresciam ldquomiseraacuteveis e raquiacuteticosrdquo e com

[] os estigmas da inferioridade fiacutesica moral e intelectual sim tambeacutem e

sobretudo intelectual porque a uma notaacutevel porccedilatildeo deles era praticamente

tolhida a primeira instruccedilatildeo elementar sob esse edificante perfil tinham

muito pouco a invejar dos pequenos escravos do cotonifiacutecio inglecircs de

ldquoMariano Procoacutepiordquo550

548 MARCHIORO Domenico ldquoAutobiografia juvenil de um velho militante das lutas operaacuterias

Domenico Marchioro histoacuteria vivida sofrida e descrita por um proletaacuterio revolucionaacuterio corajoso do

final do seacuteculo XIX aos primeiros anos do seacuteculo XX na regiatildeo norte da proviacutencia de Vicenzardquo

Traduccedilatildeo Dr Antonio Folquito Verona Disponiacutevel em

httpwww2assisunespbrfolquitoautobiografia_marchiorohtm Acessado em 04-02-2015 Cf

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit p 252-253 549

MARCHIORO Domenico Op cit 550

Idem

200

Todavia para Marchioro o que tornava a vida nas faacutebricas brasileiras do periacuteodo

distinta de outras realidades fabris ldquoera o regime quase escravista existente nas relaccedilotildees

de trabalhordquo551

A presenccedila expressiva da matildeo de obra infanto-juvenil nas unidades fabris de

Juiz de Fora tambeacutem pode ser apreendida atraveacutes das ldquofalasrdquo dos personagens dos

documentos judiciais No processo de acidente da jovem operaacuteria da secccedilatildeo de fiaccedilatildeo da

Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer Maria da Conceiccedilatildeo de 15 anos de idade parda

oacuterfatilde de pai e matildee e que natildeo sabia ler nem escrever eacute declarado pelo representante do

dito estabelecimento Antonio Celso Vieira que na seccedilatildeo que a ldquomenorrdquo se acidentou soacute

trabalhavam ldquomenoresrdquo e que o ldquomaacuteximo ordenado percebido pelos mesmos nessa

secccedilatildeo eacute de dois mil reis (2$000)rdquo A jovem recebia quase o salaacuterio maacuteximo pois o seu

ordenado era de 1$800 reis552

A formaccedilatildeo de uma secccedilatildeo composta apenas por trabalhadores ldquomenoresrdquo eacute um

indicativo do interesse que o empresariado tinha na contrataccedilatildeo dessa parcela do

proletariado como um meio de reduzir os custos da produccedilatildeo uma vez que recebiam

proventos inferiores ao do trabalhador adulto do sexo masculino553

Outro operaacuterio da faacutebrica Meurer da seccedilatildeo de fiaccedilatildeo que foi viacutetima de um

acidente no trabalho foi o ldquomenorrdquo Japyassuacute de Abreu554

de 10 anos de idade que

sabia ler e escrever Em junho de 1921 ele teve os dedos anular meacutedio e miacutenimo da

matildeo direita esmagados quando procedia agrave limpeza da maacutequina ldquofilatoriardquo e teve os

dedos apanhados pela engrenagem da mesma Uma das testemunhas disse que ao ouvir

gritos no salatildeo de fiaccedilatildeo correu e encontrou o menino ldquocahido debaixo da machinardquo O

curador agrave lide555

Dr Sadi Carnot de Miranda Lima indicado pelo Juiz para defender os

interesses do operaacuterio fez um retrato no texto em que deu ldquoVistardquo ao processo das

condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios de Juiz de Fora Na ldquoVistardquo ao processo o curador

Sadi Carnot argumentou que apesar da pouca idade e ldquoquiccedila pensando nos brinquedos

que cedo e cruelmente a miseria lhe arrebataacuterardquo o menor jaacute estava empregado em um

551

Idem 552

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho Maria da

Conceiccedilatildeo 24-01-1928 cx 006proc 15 553

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 262 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit

2010 p 171 e 254 554

O ldquomenorrdquo Japyassuacute de Abreu ora aparece como tendo nove anos de idade ora com dez anos ou doze

anos de idade AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho

Japyassuacute de Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8 555

Curador agrave lide - Pessoa especialmente nomeada pelo juiz da causa para defender os interesses ou o

direito do menor ou interdito no processo em que qualquer deles eacute parte Disponiacutevel em

httpwwwjusbrasilcombrtopicos408436curador-a-lide

201

estabelecimento fabril onde veio a se ferir Para o curador os acidentes envolvendo

crianccedilas e adolescentes nas faacutebricas e oficinas acenavam para a necessidade ldquode uma lei

federal que prohiba ou quando menos regule o trabalho dos menores de 14 annos nos

estabelecimentos industriais do paizrdquo556

Ele ainda asseverava o seguinte

[] Si possuissemos uma lei inspirada em taes principios possivelmente natildeo

teriamos de assignalar o desastre que motivou a presente acccedilatildeo porque outra

tarefa menos arriscada seria a do menor Japyassuacute

Eacute realmente desoladora a impressatildeo em que ficamos quando assistimos -

principalmente nesta culta cidade - o desfile dos operarios ao deixarem as

fabricas Pode-se affirmar que 40 destes satildeo crianccedilas menores de 12 annos

e muitas ainda com a blesidade infantil Notando-se consideravel numero de

meninas

Obrigados a desenvolver um esforccedilo emulo do operario adulto trabalhando

durante o mesmo espaccedilo de tempo que este - quando natildeo fazem seratildeo -

alimentando-se parca e irregularmente eacute contristador ver-se o aspecto doentio

que apresentam essas crianccedilas

Que cidadatildeos a inconsciencia dos nossos legisladores estaacute pregando para

servir a Patria damanhatilde

No interior do paiz nas povoaccedilotildees agriculas a anchilostomiase a molestia de

Chagas e a morpheacutea ceifam vidas numa voracidade espantosa quando natildeo

estiolam a energia dessas populaccedilotildees Nas cidades as fabricas alejam as

creanccedilas fenecem o vigor da mocidade e matam as esperanccedilas da velhice

E quando um brado da consciencia uma voz da humanidade parte da canalha

da rua dos paacuterias do brahmanismo brasileiro e echocirca no recinto do nosso

parlamento esmolando o desafogo do proletariado haacute sempre uma voz cujos

sons de metal azinhavrado tem a facilidade de convencer que no Brasil natildeo

haacute questatildeo social a resolver[] Sadi Carnot de Miranda Lima557

O curador Sadi Carnot em 1921 ressaltava a necessidade urgente que o paiacutes

tinha de regulamentar o trabalho dessa parcela da populaccedilatildeo Essa problemaacutetica esteve

presente nos perioacutedicos ao longo da Primeira Repuacuteblica e vaacuterios segmentos da

sociedade expuseram a premecircncia de leis de proteccedilatildeo do trabalhador infantil poreacutem

somente em fins da deacutecada de 1920 se deu a regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-

juvenil como discuti anteriormente neste capiacutetulo

Em sua argumentaccedilatildeo Sadi Carnot indagou ldquoque cidadatildeos a inconsciencia dos

nossos legisladores estaacute pregando para servir a Patria damanhatilderdquo Com essa indagaccedilatildeo

o curador sugeriu a meu ver a despreocupaccedilatildeo por parte de setores da classe dominante

com as condiccedilotildees de existecircncia dessa parcela da populaccedilatildeo bem como com a sua

inserccedilatildeo precoce no mercado de trabalho Os cidadatildeos que uma parcela de ldquonossos

legisladoresrdquo esperavam para servir a ldquoPatria drdquoamanhatilderdquo era o ordeiro o submisso o

556

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Japyassuacute de

Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8 557

Idem

202

trabalhador sujeito agraves mais precaacuterias condiccedilotildees e que a (in)consciecircncia dos mesmos

acreditava poder ser alcanccedilada atraveacutes de leis repressivas e natildeo sociais

O curador Sadi Carnot ainda chamou a atenccedilatildeo em seu parecer para a

descaracterizaccedilatildeo por parte dos setores dominantes da sociedade brasileira das

reivindicaccedilotildees operaacuterias ao declararem com ldquosons de metal azinhavradordquo que natildeo havia

ldquoquestatildeo social a resolverrdquo A respeito da negaccedilatildeo por setores da classe dominante

durante a Primeira Repuacuteblica da existecircncia da ldquoquestatildeo socialrdquo Gisaacutelio Cerqueira Filho

exorta que antes de 1930 ela natildeo se constituiacutea ainda ldquocomo questatildeo no pensamento

dominanterdquo figurando ldquosenatildeo como fato excepcional e episoacutedico natildeo porque natildeo

existisse jaacute mas porque natildeo tinha condiccedilotildees de se impor como questatildeo inscrita no

pensamento dominanterdquo natildeo sendo pois uma questatildeo ldquolegalrdquo na concepccedilatildeo de uma

parcela das classes dominantes a ldquoquestatildeo socialrdquo era entatildeo concebida e tratada como

ldquoum caso de poliacuteciardquo558

Retornando agrave argumentaccedilatildeo desenvolvida pelo curador Sadi Carnot no processo

de acidente no trabalho do ldquomenorrdquo Japyassuacute de Abreu sobre as condiccedilotildees do

operariado infanto-juvenil de Juiz de Fora pode-se observar a utilizaccedilatildeo por ele do

discurso construiacutedo pelos setores dominantes locais da cidade como culta moderna e

civilizada para entatildeo apresentar a cidade ldquosilenciadardquo que era ldquoinvisiacutevelrdquo aos olhos da

classe dominante559

Em sua descriccedilatildeo da ldquoManchester Mineirardquo o curador ressaltou

que ldquoo desfile dos operarios ao deixarem as fabricasrdquo era uma cena desoladora onde se

observava a presenccedila elevada de crianccedilas que apresentavam um ldquoaspecto doentiordquo

Ainda destacou a presenccedila ldquoconsideraacutevelrdquo de meninas naquele ldquodesfilerdquo560

A presenccedila feminina nas faacutebricas foi algo constantemente discutido pelos

jornais pelos meacutedicos higienistas pelo movimento operaacuterio e por outros segmentos da

sociedade Na passagem agrave modernidade a construccedilatildeo do tipo ideal de mulher ndash

educada boa esposa e matildee de famiacutelia ndash natildeo se adequava agrave realidade das mulheres dos

558

CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio A ldquoquestatildeo socialrdquo no Brasil critica do discurso poliacutetico Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 p 59 Cf FRENCH John D ldquoProclamando direitos metendo o

pau e lutando pelos direitos a questatildeo social como caso de poliacutecia 1920-1964rdquo In LARA Silvia H e

MENDONCcedilA Joseli Maria N (org) Direitos e Justiccedilas no Brasil ensaios de Histoacuteria social

Campinas Editora da Unicamp 2006 p 379-416 559

Iacutetalo Calvino no romance ldquoAs Cidade Invisiacuteveisrdquo faz a descriccedilatildeo de inuacutemeras cidades fantaacutesticas

atraveacutes do personagem Marco Poacutelo Cada uma eacute descrita com suas extravagacircncias problemas e

curiosidades Entretanto elas natildeo satildeo reais Agrave semelhanccedila das cidades invisiacuteveis do romance as classes

dominantes de Juiz de Fora descreviam uma cidade moderna civilizada e proacutespera que era ldquoinvisiacutevelrdquo

para a maioria da populaccedilatildeo Cf CALVINO Iacutetalo As Cidades Invisiacuteveis Biblioteca Folha [snt] 560

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Japyassuacute de

Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8

203

setores empobrecidos que dadas as condiccedilotildees impostas pelas precaacuterias condiccedilotildees de

existecircncia tinham de recorrer ao mercado de trabalho nas faacutebricas nas casas das

famiacutelias abastadas e outras atividades inclusive em seus proacuteprios domiciacutelios como a

lavagem de roupas e as costuras por exemplo Todavia a forccedila de trabalho feminina

enfrentava uma dupla estigmatizaccedilatildeo a de trabalhar fora do lar e da desvalorizaccedilatildeo do

seu trabalho em termos salariais Aleacutem disso a mulher proletaacuteria precisa conviver com

a imposiccedilatildeo pela sociedade burguesa de severas normas morais e de conduta Segundo

Margareth Rago quanto mais as mulheres se afastavam ldquoda esfera privada da vida

domeacutesticardquo mais se viam cercadas por imposiccedilotildees morais e por cobranccedilas sociais para

com o lar o marido e os filhos561

A ideia da mulher como um ser talhado para ocupar o espaccedilo do lar como matildee

boa esposa e do casamento como um meio de garantia e realizaccedilatildeo para a mulher pode

ser percebido no processo da ldquomenorrdquo Augusta Gerheim

Augusta Gerheim de 17 anos de idade que trabalhava na Companhia de Fiaccedilatildeo

e Tecelagem Industrial Mineira declarou em maio de 1925 no processo de acidente no

trabalho em que figurava como viacutetima que natildeo sabia ler e nem escrever Ela acidentou-

se quando trabalhava na maacutequina de fiaccedilatildeo e teve a matildeo direita atingida resultando na

amputaccedilatildeo das falanges e falanginhas dos dedos polegar indicador e meacutedio562

O

promotor de justiccedila Nisio Baptista de Oliveira na ldquoVistardquo ao processo concluiu que a

indenizaccedilatildeo a ser paga pela Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira agrave

ldquomenorrdquo deveria ser de 40 sobre o salaacuterio de trecircs anos da operaacuteria que era de 2$600

(dois mil e seiscentos reacuteis) diaacuterios ou seja a indenizaccedilatildeo deveria ser de 936$000

(novecentos e trinta e seis mil reacuteis) Entretanto o curador agrave lide Dr Constantino Luiz

Paletta natildeo concordou com o parecer do promotor pois entendeu que a indenizaccedilatildeo

deveria ser de 60 sobre o salaacuterio de trecircs anos da ldquomenorrdquo O Juiz de Direito da

comarca de Juiz de Fora Augusto Cesar Pedreira Franco em seu parecer analisou os

graves prejuiacutezos que o acidente traria para o futuro da operaacuteria Em sua explanaccedilatildeo o

juiz destacou

561

RAGO Margareth Do cabareacute ao lar a utopia da cidade disciplinar Brasil 1890-1930 Rio de

Janeiro Paz e Terra 1985 p 62-63 562

De acordo com o atestado meacutedico assinado pelo Dr Renato de Andrade em maio de 1925 a operaacuteria

teve as seguintes lesotildees ldquoA) amputaccedilatildeo da phalangeta e 12 phalanginha do dedo medio da matildeo direita

b) amputaccedilatildeo da 12 da 2a phalange do pollegar c) amputaccedilatildeo da phalangeta do index com ferimentos

lateral externo de 2 cm que causou perda correspondente de tecido mollerdquo AHUFJF Foacuterum Benjamin

Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Augusta Gerheim 23-05-1925 cx

003proc 4

204

Considerando que a accidentada eacute uma moccedila de 17 annos nutrindo

naturalmente esperanccedilas de casar e no casamento encontrar o conforto que

natildeo tem como operaria

Considerando que essas esperanccedilas si natildeo ficaram apagadas estatildeo pelo

menos muito diminuidas por isso que com tal deformidade uma mulher

difficilmente encontraraacute marido563

Considerando que a ldquomenorrdquo tinha adquirido uma incapacidade parcial e

permanente para o trabalho por consequecircncia do acidente e que de acordo com o

entender do juiz poderia ateacute prejudicaacute-la a encontrar um marido o mesmo arbitrou a

indenizaccedilatildeo no valor maacuteximo estipulado pela Lei de Acidentes no Trabalho de 1919

ou seja de 60 sobre o valor do salaacuterio de trecircs anos da viacutetima em conformidade com o

parecer do curador agrave lide A senhora Elisa Gerheim matildee e representante legal da

ldquomenorrdquo recebeu a quantia de 1404$000 (um conto quatrocentos e quatro mil reacuteis)

referente agrave indenizaccedilatildeo pelo acidente sofrido pela sua filha

A anaacutelise cuidadosa do parecer do Juiz de Direito permite que se observe o tipo

de visatildeo que esse representante da justiccedila tinha sobre a mulher e o casamento A meu

ver uma visatildeo burguesa da instituiccedilatildeo familiar em que o homem era o provedor do lar

e a mulher a senhora do espaccedilo domeacutestico e dos cuidados com os filhos Para o Juiz o

acidente poderia prejudicar os sonhos da jovem Augusta Gerheim de se casar e de

encontrar nessa instituiccedilatildeo o ldquoconfortordquo que natildeo tinha enquanto operaacuteria Cabe ressaltar

poreacutem que muitas mulheres pobres precisavam contribuir financeiramente com o

sustento do lar e para isso recorriam agrave venda de sua forccedila de trabalho Provavelmente

muitas jovens das classes subalternas natildeo encontraram o ldquoconfortordquo no casamento que o

magistrado assinalou

As severas condiccedilotildees de trabalho a que as crianccedilas operaacuterias provavelmente

estavam expostas sem descanso e sem poderem brincar contribuiacuteram sobremaneira

para que fossem as ldquoprincipais viacutetimas de acidentes no trabalho e de doenccedilas

relacionadas ao trabalhordquo564

Aleacutem disso elas tambeacutem eram alvos dos castigos fiacutesicos

por parte de seus superiores toda vez que saiacuteam do padratildeo disciplinar imposto ao

trabalhador uma vez que

[] O emprego de castigos fiacutesicos como parte integrante do processo

educacional era aceito tanto na educaccedilatildeo formal como na profissional desde

que natildeo excedesse certos limites Nas escolas afora vaacuterias formas de

563

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Augusta

Gerheim 23-05-1925 cx 003proc 4 564

BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p 100

205

humilhaccedilatildeo dos alunos o uso de instrumentos de puniccedilatildeo como palmatoacuterias

eram de praxe 565

Os operaacuterios principalmente as meninas e as mulheres ainda sofriam outro tipo

de violecircncia ndash a sexual ndash que era praticada por patrotildees mestres e ou por companheiros

de trabalho566

Sobre a questatildeo do asseacutedio e dos abusos sexuais enfrentados pelas

operaacuterias Michelle Perrot assinalou que as jovens das faacutebricas tecircxteis francesas no

decorrer do seacuteculo XIX ldquodadas as relaccedilotildees de idade e de poder [] foram as viacutetimas

preferenciais dos abusos e das exigecircncias luacutebricasrdquo de seus chefes que exigiam com

frequecircncia o ldquodireito a primeira noiterdquo como forma de compensaccedilatildeo pela contrataccedilatildeo567

Essa situaccedilatildeo vivida pelas operaacuterias francesas muitas vezes contava com a

ldquocomplacecircncia das famiacutelias por muito tempo indiferentes agrave sua sujeiccedilatildeo sexualrdquo568

Esses abusos praticados contra as jovens trabalhadoras foi um dos grandes temas dos

jornais operaacuterios do Norte tecircxtil francecircs no final do oitocentos e o ldquodireito da primeira

noiterdquo foi uma questatildeo central da ldquogrande greve das operaacuterias de porcelana de Limoges

em 1905 feita contra o diretor amante de lsquocarne frescarsquordquo569

Em Juiz de Fora muitos casos de abusos contra as operaacuterias foram denunciados

mas eacute provaacutevel que muitos outros natildeo tenham sido levados ao conhecimento da justiccedila

por receio das jovens e ou familiares perderem o emprego por medo da opiniatildeo de

companheiros de trabalho e vizinhos entre outros fatores Poreacutem muitas trabalhadoras

denunciaram seus chefes e ou patrotildees por asseacutedio sexual e por terem sido violentadas

sexualmente pelos mesmos Carolina Neder ressalta que vaacuterias operaacuterias natildeo se

intimidaram com as ameaccedilas e com a humilhaccedilatildeo a que eram submetidas quando do

exame de corpo de delito para comprovar que haviam sido estupradas e denunciaram

os seus agressores Entretanto na maioria dos casos os processos se reverteram contra

as ofendidas que foram tidas como mulheres de moral duvidosa As mulheres

565

Idem apud PENTEADO Jacb Belegravenzinho 1910 (retrato de uma eacutepoca) 2 ed Satildeo Paulo Carrenho

EditorialNarrativa Um 2003 p 53 Na passagem agrave modernidade a praacutetica de castigos fiacutesicos nas

instituiccedilotildees escolares foram paulatinamente sendo abolidas por castigos morais No Brasil desde o iniacutecio

do seacuteculo XIX haacute o registro de leis que proibiam a utilizaccedilatildeo de castigos fiacutesicos nos alunos Entretanto

no decorrer das primeiras deacutecadas do seacuteculo XX tais praacuteticas ainda eram usuais nas escolas brasileiras

Cf ARAGAtildeO Milena FREITAS Anamaria Gonccedilalves Bueno de ldquoPraacuteticas des castigos escolares

enlaces histoacutericos entre normas e cotidianordquo In Conjecturas v 17 n 2 mai-ago 2012 p 17-36

Disponiacutevel em httpwwwucsbretcrevistasindexphpconjecturaarticleviewFile16481024 Acessado

em 01-06-2014 566

Cf NEDER Carolina Barbosa Op cit 2010 p 48 83-88 BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p

101-102 567

PERROT Michelle Op cit 1996 p 120 568

Idem p 120 569

Ibidem p 120-121

206

trabalhadoras eram visualizadas com desconfianccedila por setores das classes dominantes e

pelos membros do judiciaacuterio uma vez que natildeo se encaixavam no modelo burguecircs de

mulher ndash dedicada ao lar boa matildee e esposa e que natildeo saiam agraves ruas sozinhas570

Natildeo

apenas no acircmbito fabril ocorriam esses abusos As meninas que trabalhavam nas casas

das famiacutelias burguesas estavam expostas a todos os tipos de agressotildees e arbitrariedades

Pedro Nava em suas memoacuterias da meninice em Juiz de Fora ressalta que as meninas

que trabalhavam na casa de sua avoacute Inhaacute Luisa eram viacutetimas de asseacutedios Segundo

Nava seu tio Juacutelio aproveitava-se para ldquodeixar a matildeo-boba resvalar para os peitos de

bronze da ama-secardquo toda vez que ia brincar com a crianccedila que ela trazia ao colo571

Geralmente os casos de denuacutencia de abusos sexuais eram referentes a meninas e

mulheres Todavia Renata Lutiene Silva compulsando os processos criminais de rapto

e violecircncia carnal deparou-se com um caso de abuso sexual a um menino Em 1916

Joseacute Theodoro de treze anos de idade foi colocado por sua matildee dona Braudina para

trabalhar como auxiliar de carpinteiro de Francisco Gama casado de 78 anos de idade

para que aprendesse o ofiacutecio O ldquomenorrdquo morava e trabalhava na casa de seu patratildeo

onde se deu o abuso Dona Braudina denunciou o caso e as testemunhas arroladas

declararam que o reacuteu ldquotinha haacutebitos pederastas e que jaacute havia atentado contra Iliacutedio

outro menor que fora seu aprendizrdquo Poreacutem Francisco Gama foi inocentado e a

denuacutencia considerada improcedente dada a sua idade572

Os castigos fiacutesicos os abusos sexuais e psiacutequicos sofridos pelos pequenos

trabalhadores acrescidos de atividades muitas vezes superiores agraves suas forccedilas

interromperam e ainda interrompem a infacircncia de milhares de crianccedilas que bem cedo

aprenderam a enfrentar as adversidades da vida Como os filhos dos escravos durante o

periacuteodo escravista os pequenos proletaacuterios filhos de nacionais afro-brasileiros e de

imigrantes antes de completarem uma deacutecada de vida jaacute estavam familiarizados com a

labuta A literatura sobre o periacuteodo escravista tem destacado que a crianccedila escrava ao

570

NEDER Carolina Barbosa Op cit 2010 p 48 83-89 Em um dos casos de violecircncia sexual

analisados por Carolina Neder a operaacuteria da Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Morais Sarmento Maria

de Assis negra menor de idade acusou o mestre da dita companhia Carlos Keller alematildeo de 46 anos

de tecirc-la violentado sexualmente Inicialmente ele foi inocentado apesar de as testemunhas assinalarem

que a operaacuteria Maria de Assis era moccedila virgem e honesta O parecer da justiccedila soacute foi alterado por causa

de uma carta recebida pela poliacutecia em que a esposa de Carlos Keller declarava que ele ldquose utilizava de

sua autoridade para manter relaccedilotildees sexuais com operaacuterias com quem trabalhavardquo e que Keller jaacute havia

sido condenado pelo defloramento de uma operaacuteria em outra cidade de onde eles fugiram e vieram para

Juiz de Fora Idem p 85-86 Cf SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 p 134 -140 Cf RAGO

Margareth Do Cabareacute ao lar a utopia da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista ndash Brasil 1890-1930

4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 571

NAVA Pedro Op cit 1974 p 4-5 Cf SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 p 78-79 572 SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 p 79

207

atingir a idade de sete anos tida como a ldquoidade da razatildeordquo era considerada apta para o

trabalho e ou para o aprendizado de uma atividade profissional573

Acredito que essa

idade tambeacutem era aplicada para as crianccedilas das camadas subalternas da sociedade para a

sua inserccedilatildeo no mercado de trabalho Isso anteriormente agraves leis que foram promulgadas

ao longo da Primeira Repuacuteblica com o fito de regulamentar o trabalho infantil que

entretanto muitas vezes foram burladas como tive a oportunidade de constatar durante

a anaacutelise dos processos de acidentes no trabalho examinados neste item A crianccedila pobre

aprendia bem cedo a rotina fabril com seu apito com os acidentes que dilaceravam suas

carnes e seus membros com o ar carregado e pesado dos estabelecimentos industriais

Na proacutexima parte analisarei um processo de lesatildeo corporal de um jovem

operaacuterio de uma unidade fabril de Juiz e Fora

33 MICUCCI A MORTE DE UM PEQUENO PROLETAacuteRIO DA

ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo

[] Agrave mercecirc dos interesses do empresariado a crianccedila operaacuteria transforma-se

num trabalhador como outro qualquer cuja natureza quando vem agrave tona

como por exemplo ao transgredir a disciplina da faacutebrica eacute penalizada com

repreensotildees que atingem muitas vezes os limites do castigo corporal574

O objeto em tela nessa parte do capiacutetulo eacute analisar o processo de lesatildeo corporal

de um jovem operaacuterio de uma faacutebrica de tecidos de malha de Juiz de Fora que

supostamente foi espancado pelo gerente da unidade fabril e veio a falecer em

consequecircncia do ato de violecircncia de que foi viacutetima Antonio Gervason de 42 anos de

idade italiano gerente da faacutebrica de tecidos de Malha Meurer575

foi acusado de ter

espancado no interior do estabelecimento fabril o operaacuterio Antonio Micucci de 13 anos

de idade brasileiro filho de imigrantes italianos576

573

FRAGA FILHO Walter Op cit 1996 p 121 Cf MATTOSO Kaacutetia de Queiroz Op cit1998 574 MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de ldquoInfacircncia operaacuteria e acidente do trabalho em Satildeo Paulordquo

In DEL PRIORE Mary (org) Histoacuteria da crianccedila no Brasil Satildeo Paulo Contexto 1991 124 575

A Fiaccedilatildeo e Tecelagem de malha meias e camisas de meias do Sr Antonio Meurer foi fundada em

1896 e localizava-se em preacutedio proacuteprio agrave Rua do Espiacuterito Santo ESTEVES Albino LAGE Oscar Vidal

Barbosa (orgs) Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees

2008 p 285 e 317 Na deacutecada de 1920 de acordo com as informaccedilotildees por mim apuradas nos processos

de acidentes no trabalho a faacutebrica denominava-se ldquoFiaccedilatildeo e Tecelagem Meurer Irmatildeos amp Companhiardquo 576

Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima Antonio

Micucci 02-08-1919 cx 138 AHCJF Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoMicucci a morte de um

pequeno operaacuterio ndash Juiz de Fora (1919)rdquo In NEDER Gizlene SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da

208

A anaacutelise dos processos judiciais (criminais e ciacuteveis) tem obtido cada vez mais

relevacircncia nos estudos histoacutericos Atraveacutes dessa documentaccedilatildeo podem-se observar as

visotildees dos agentes da justiccedila com relaccedilatildeo agraves camadas menos favorecidas da sociedade

no que diz respeitos a suas relaccedilotildees familiares seus costumes modo de vida entre

outras questotildees As vozes dos excluiacutedos devem ser filtradas atraveacutes dos discursos

produzidos nessas e em outras fontes pela classe letrada uma vez que os textos foram

escritos pelos homens que detinham o poder (poliacutetico e econocircmico) e o saber dentre os

quais os juristas advogados meacutedicos poliacuteticos latifundiaacuterios e industriais

Por intermeacutedio das partiacuteculas filtradas dos textos o historiador pode

compreender diversas particularidades da sociedade em anaacutelise as tensotildees entre os

grupos sociais o posicionamento da Justiccedila e do Estado frente aos embates entre as

classes bem como outras problemaacuteticas

Imagem 18 Fachada da Faacutebrica de Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Tecidos de Malha Meurer ESTEVES Albino LAGE

Vidal Barbosa (org) Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees

2008 p 317

SOUZA Jessie Jane Vieira de (orgs) Intoleracircncia e Cidadania secularizaccedilatildeo poder e cultura poliacutetica

Rio de Janeiro Autografia 2015 p 122-156

209

331 Entre tapas e pontapeacutes o pequeno operaacuterio Micucci

Antonio Micucci de 13 anos de idade brasileiro filho de Maria Micucci577

e de

Joseacute Micucci italianos como muitas outras crianccedilas pertencentes agraves camadas

empobrecidas da sociedade passava os seus dias entre as paredes e as maacutequinas de um

estabelecimento industrial Ele como outros meninos e meninas teve sua inserccedilatildeo no

mundo do trabalho precocemente provavelmente devido as necessidades familiares

Entretanto eacute necessaacuterio ressaltar que aleacutem da pobreza inuacutemeros fatores direcionavam

(e ainda direcionam) as crianccedilas e jovens para o mercado de trabalho sendo uma delas a

concepccedilatildeo de que o trabalho impedia que a crianccedila pobre se enveredasse para o mundo

do oacutecio da vadiagem e dos viacutecios Na passagem agrave modernidade o trabalho se revestiu

de uma aacuteurea passou a ser visualizado como algo que conferia dignidade disciplina e

respeito sendo que o ldquonatildeo-trabalho se identifica com a vadiagem que eacute matildee do crime

da imoralidade dos viacutecios da preguiccedilardquo578

Essa visatildeo positiva do trabalho difundida

por setores dominantes principalmente no periacuteodo de implantaccedilatildeo do regime de

trabalho livre no Brasil foi adotada pelas classes subalternas que entendiam que o

trabalho lhes conferia respeito e honra perante a sociedade

Micucci trabalhava na faacutebrica de tecidos de malha da viuacuteva Antonio Meurer e

Filhos ao lado de vaacuterias outras crianccedilas e jovens como pode ser constatado atraveacutes do

depoimento das testemunhas no processo de lesatildeo corporal A utilizaccedilatildeo e exploraccedilatildeo

da matildeo de obra infantil nas sociedades reguladas pelas relaccedilotildees capitalistas de

produccedilatildeo foi algo que perpassou as naccedilotildees do Velho e do Novo Continente em seus

processos de industrializaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo Segundo Silvia Villela de Andrade as

condiccedilotildees do operariado de Juiz de Fora eram semelhantes agraves dos proletaacuterios da capital

Federal (Rio de Janeiro) e de Satildeo Paulo579

As faacutebricas juiz-foranas utilizavam-se do

trabalho infanto-juvenil e feminino as condiccedilotildees das instalaccedilotildees industriais

577

A matildee de Antonio Micucci aparece no processo ora com o nome de Maria Manccia ora como Maria

Micucci Irei me referir a ela sempre como Maria Micucci Joseacute Miccusi italiano casado pai de Antonio

Micucci constituiu como seu bastante procurador o Sr Aristarcho Paes Leme para representaacute-lo no

processo que estava em andamento na justiccedila sobre o provaacutevel espancamento de seu filho Na

procuraccedilatildeo o sobrenome Micucci aparece escrito da seguinte forma Miccusi AHCJF Foacuterum da Cacircmara

de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima Antonio Micucci 02-08-1919

cx 138 578

LAPA Joseacute Roberto do Amaral Op cit 2008 p 17 Cf Cf RAGO Margareth Do Cabareacute ao lar a

utopia da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista ndash Brasil 1890-1930 4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra

2014 p 180-181 579

ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 p 53

210

geralmente eram precaacuterias e os salaacuterios eram baixos e com longas jornadas de trabalho

Nesse cenaacuterio eacute que se deu o provaacutevel espancamento do operaacuterio Micucci Assim como

nas faacutebricas e oficinas cariocas e paulistas nessa cidade do interior mineiro tambeacutem os

maus-tratos aos trabalhadores eram verificados

Os operaacuterios cumpriam uma jornada de trabalho aacuterdua geralmente de 10 a 12

horas diariamente Segundo Esmeralda Moura ldquoas normas de trabalho impostas e o

ritmo de produccedilatildeo exigido incidiam sobre o conjunto do operariado mas natildeo de forma

indiferenciadardquo Em outras palavras o trabalhador infanto-juvenil estava exposto agraves

mesmas normas disciplinares e obrigaccedilotildees dos adultos580

Todavia esses ldquomenoresrdquo natildeo

tinham a mesma forccedila fiacutesica desenvoltura senso de responsabilidade e agilidade de um

operaacuterio adulto Natildeo dispondo dessas caracteriacutesticas dada a pouca idade muitas

crianccedilas-operaacuterias transformavam o local de trabalho em um espaccedilo para brincadeiras

jaacute que natildeo tinham outro o que muitas vezes poderia resultar em graves acidentes ou

problemas na produccedilatildeo Esses ldquoerrosrdquo eram alvos de medidas disciplinares por parte de

seus superiores581

Mas natildeo apenas as brincadeiras as atitudes improacuteprias para o local

de trabalho resultavam em repreensatildeo violenta por parte dos patrotildees e chefes aos

operaacuterios As ldquofalhasrdquo os ldquoerrosrdquo os ldquodescuidosrdquo com a produccedilatildeo tambeacutem eram

motivos para que os superiores demonstrassem todo o seu poder e os submetessem a

severos castigos fiacutesicos582

Os estabelecimentos fabris eram (satildeo) espaccedilos de disciplinas

coerccedilatildeo e poder Os operaacuterios eram submetidos a normas disciplinares e de conduta

dentro desse universo tendo seus ritmos de trabalho e atitudes constantemente sob a

ldquovigilacircnciardquo de todos que estatildeo inseridos naquela estrutura583

Segundo Michel

Foucault todos os sistemas disciplinares satildeo constituiacutedos de um ldquopequeno mecanismo

penalrdquo e que

[] na oficina na escola no exeacutercito funciona como repressora toda uma

micropenalidade do tempo (atrasos ausecircncias interrupccedilotildees das tarefas) da

atividade (desatenccedilatildeo negligencia falta de zelo) da maneira de ser

(grosseira desobediecircncia) dos discursos (tagarelice insolecircncia) do corpo

(atitudes ldquoincorretasrdquo gestos natildeo conformes sujeira) da sexualidade

(imodeacutestia indececircncia) Ao mesmo tempo eacute utilizada a tiacutetulo de puniccedilatildeo

580

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 279 581

Para mais informaccedilotildees sobre as brincadeiras dos pequenos operaacuterios nos locais de trabalho ver

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de 2006 p 268 ndash 270 582

Sobre os castigos fiacutesicos impetrados aos operaacuterios principalmente nos mais jovens ver BATALHA

Claacuteudio Op cit 2006a p 100 - 101 MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 268

RAGO Margareth Do Cabareacute ao lar a utopia da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista ndash Brasil

1890-1930 4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 p 182 188-189 583

FOUCAULT Michel Op cit 2007 p 147-148

211

toda uma seacuterie de processos sutis que vatildeo do castigo fiacutesico leve a privaccedilotildees

ligeiras e a pequenas humilhaccedilotildees584

O caso do operaacuterio Micucci ilustra bem a utilizaccedilatildeo dessa ldquomicropenalidaderdquo

dentro de um estabelecimento fabril O ldquomenorrdquo segundo os depoimentos de algumas

testemunhas natildeo estava brincando em seu local de trabalho mas cometeu uma falha

um erro na atividade que estava executando e por isso foi punido pelo gerente da

faacutebrica Antonio Gervason que o espancou Sobre o provaacutevel espancamento sofrido

pelo menino Micucci na faacutebrica Meurer a testemunha Maria Joseacute Sayatildeo de 16 anos

operaacuteria e que sabia ler e escrever relatou

[] quando se achava no seu trabalho que fica na mesma secccedilatildeo em que

trabalhava Micucci viu quando este por um descuido no trabalho deixou

cahir uma peccedila de fazenda no chatildeo que por esse motivo viu Gervason

repreender a Micucci em quem bateu dando-lhe bofetadas puchotildees (sic) de

orelha e ponta-peacutes que Gervason natildeo gosta que as operarias prestem attenccedilatildeo

quando elle estaacute batendo em algum operaacuterio mas apezar disso sem maior

reparaccedilatildeo a depoente observou que os tapas dados por Gervason em Micucci

apanharam a regiatildeo das costas que a despeito de Micucci ter sofrido todo

espancamento sem dar um grito e sem gemer pelo modo como elle foi feito

natildeo podia deixar de lhe proporcionar grandes docircres que Gervason

commumente bate nos operaacuterios menores que trabalham na fabrica e que na

secccedilatildeo da prensa onde trabalhava muitos meninos quase sempre se datildeo

espancamento585

O motivo que resultou no espancamento do proletaacuterio Micucci segundo o relato

de Maria Joseacute Sayatildeo foi fruto de um ldquodescuidordquo que ocasionou que uma ldquopeccedila de

fazendardquo caiacutesse ao chatildeo Dessa forma o gerente da faacutebrica Antonio Gervason aplicou

no jovem operaacuterio a ldquomicropenalidade do tempordquo e da ldquoatividaderdquo pois ao deixar o

tecido cair no chatildeo por um ldquodescuidordquo (desatenccedilatildeo negligencia falta de zelo) segundo

as palavras de uma testemunha Micucci interrompeu as suas atividades mesmo que

brevemente Sob o olhar ldquovigilanterdquo de seus companheiros de trabalho e de seu superior

o ldquodescuidordquo do proletaacuterio foi percebido e sob esses mesmos olhares ele foi punido

Como saber se ao deixar a peccedila de fazenda cair ao chatildeo o ldquomenorrdquo natildeo estivesse

brincando com um companheiro de trabalho Como saber se esse ldquodescuidordquo natildeo foi

resultado do cansaccedilo da fome ou do sono

Maria Joseacute Sayatildeo ainda asseverou que o gerente da faacutebrica era dado a espancar

outros ldquomenoresrdquo e que essa atitude era comum na ldquosecccedilatildeo da prensardquo onde segundo

584

Idem p 148 585

Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima Antonio

Micucci 02-08-1919 cx 138 AHCJF

212

suas palavras trabalhavam muitos pequenos operaacuterios A imagem abaixo eacute de uma das

seccedilotildees da faacutebrica Meurer O exame da fotografia coloca em evidecircncia o pouco espaccedilo

entre as maacutequinas Esse fator provavelmente circunscrevia os operaacuterios a uma pequena

aacuterea de movimentaccedilatildeo A imagem tambeacutem acena para a presenccedila de trabalhadores

mirins nesse setor do estabelecimento fabril

Imagem 19 Interior da Faacutebrica de Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Tecidos de Malha Meurer ESTEVES Albino

LAGE Vidal Barbosa (org) Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG)

Funalfa Ediccedilotildees 2008 p 321

Com relaccedilatildeo agrave praacutetica da violecircncia contra os trabalhadores pelos patrotildees ou

chefes Esmeralda Moura ressalta que o trabalhador infanto-juvenil foi transformado no

ldquoalvo privilegiado de uma disciplina feacuterreardquo e ainda acrescenta que a relaccedilatildeo entre essas

partes ldquotalvez tenha sido aquela na qual as imagens do pai e do patratildeo frequentemente

se confundiamrdquo586

Durante a Primeira Repuacuteblica setores das classes dominantes transmitiam a

imagem de que a relaccedilatildeo patratildeo-empregado se assemelhava agrave existente entre pais e

filhos ou seja uma relaccedilatildeo de poder e obediecircncia Para Sidney Chalhoub a construccedilatildeo

dessa imagem tinha explicitamente o objetivo de controle social ao procurar mitigar o

potencial de conflito inerente agrave relaccedilatildeo capital-trabalho587

Em seu depoimento durante o inqueacuterito policial a matildee de Micucci assinalou

que chamava o menino para o trabalho agraves cinco e meia da manhatilde Supondo que o jovem

operaacuterio entrasse as seis ou sete horas no serviccedilo teria que trabalhar ateacute as dezessete

horas com intervalos para as refeiccedilotildees Essa rotina se dava de segunda-feira a saacutebado e

586

MOURA Esmeralda B Bolsonaro de Op cit 2006 p 268 587

CHALHOUB Sidney Op cit 2001 p 114-115

213

provavelmente os operaacuterios trabalhavam em peacute durante longas horas em atividades

monoacutetonas repetitivas e exaustivas em um ambiente saturado pela poeira e pelo

barulho das maacutequinas pela pouca iluminaccedilatildeo e ventilaccedilatildeo o que natildeo era em hipoacutetese

alguma salutar para o desenvolvimento fiacutesico dos pequenos operaacuterios

A apuraccedilatildeo da causa mortis do operaacuterio Antonio Micucci iniciou-se com as

investigaccedilotildees policiais logo apoacutes o seu falecimento no dia 31 de julho de 1919 No dia

primeiro de agosto o delegado de poliacutecia Sr Joseacute Ribeiro de Abreu tomando

conhecimento da morte do ldquomenorrdquo determinou que fossem intimados os meacutedicos Drs

Alberto Vieira Lima e Renato de Andrade Santos para realizarem naquele mesmo dia

no cemiteacuterio municipal o ldquoexame cadaverico do alludido menorrdquo Jaacute no dia dois de

agosto as testemunhas que foram arroladas comeccedilaram a dar seus depoimentos sobre o

que teria acontecido com o operaacuterio Micucci no dia 23 de julho uma quarta-feira na

faacutebrica de tecidos de malha Meurer onde ele trabalhava Ao todo foram interrogadas

dezesseis testemunhas entre funcionaacuterios da faacutebrica e meacutedicos Atraveacutes do depoimento

das testemunhas tem-se uma pequena imagem do cotidiano dos funcionaacuterios de um

estabelecimento fabril do iniacutecio do seacuteculo XX e da vida de uma famiacutelia de operaacuterios

Podemos tambeacutem captar atraveacutes da anaacutelise do processo o posicionamento dos homens

cultos da sociedade sobre os operaacuterios e suas famiacutelias

Das dezesseis testemunhas intimadas dez eram funcionaacuterias da faacutebrica sendo

sete mulheres e trecircs homens com idades variando entre quinze e vinte e sete anos de

idade Poreacutem os operaacuterios na faixa etaacuteria dos quinze e dezesseis anos perfaziam o total

de seis Com relaccedilatildeo agrave escolaridade desses dez funcionaacuterios a uacutenica informaccedilatildeo que foi

possiacutevel amealhar eacute a de que sabiam ldquoler e escreverrdquo ou ldquonatildeo sabiam ler nem escreverrdquo

sendo que neste item houve uma equivalecircncia

A presenccedila maior do sexo feminino entre as testemunhas corrobora as

informaccedilotildees da eacutepoca de que era imenso o nuacutemero de meninas e mulheres nas faacutebricas

tecircxteis de Juiz de Fora Em um processo de acidente no trabalho de 1921 o curador a

lide Dr Sadi Carnot de Miranda Lima na Vista ao processo de um ldquomenorrdquo que se

acidentou em seu local de trabalho assim descreveu o cenaacuterio fabril dessa cidade do

interior mineiro

[] Eacute realmente desoladora a impressatildeo em que ficamos quando assistimos -

principalmente nesta culta cidade - o desfile dos operarios ao deixarem as

fabricas Pode-se affirmar que 40 destes satildeo crianccedilas menores de 12 annos

214

e muitas ainda com a blesidade infantil Notando-se consideravel numero de

meninas588

Os perioacutedicos tambeacutem ressaltavam a elevada presenccedila de meninas e mulheres

nas induacutestrias de tecidos da cidade O jornal O Pharol de fevereiro de 1911 em um

encarte que estava sendo publicado com o nome Folha de Mariano trouxe uma mateacuteria

sobre a reivindicaccedilatildeo dos caixeiros pela reduccedilatildeo da jornada de trabalho e aproveitou

para chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees precaacuterias do operariado dos estabelecimentos

tecircxteis de Juiz de Fora destacando a situaccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo e das mulheres Assim

descrevia a reportagem

Haacute entretanto outros operaacuterios mais sobrecarregados de trabalho e mais mal

remunerados Entre eles os das fabricas de tecidos principalmente mulheres

e crianccedilas

E assim que pobres operaacuterias da faacutebrica de tecidos de Mariano a maioria

composta de menores trabalham das 5 horas da manhatilde as 5 horas da tarde

com os pequenos intervalos das refeiccedilotildees e ainda fazem seratildeo ate as 11 horas

da noite segundo nos informam

A atmosfera que se respira nas faacutebricas de tecidos jaacute contribui para alterar a

sauacutede dos operaacuterios O mal aumenta consideravelmente com o acreacutescimo de

horas de trabalho sobretudo no veratildeo e principalmente quando esses

operaacuterios satildeo moccedilas e crianccedilas

Parece-nos que essa classe proletaacuteria tambeacutem merece a atenccedilatildeo de quem deve

cuidar da sauacutede e da higiene puacuteblicas que estatildeo um pouco acima do interesse

industrial589

A notiacutecia desenha um quadro de grande exploraccedilatildeo da matildeo de obra nas

induacutestrias tecircxteis Conforme salientado pelo Curador Sadi Carnot a reportagem tambeacutem

ressalta a presenccedila elevada de mulheres e crianccedilas nas induacutestrias juiz-foranas

Durante o inqueacuterito policial os depoimentos das testemunhas foram

apresentando contradiccedilotildees Dos dez operaacuterios da Fiaccedilatildeo e Tecelagem Meurer que foram

arrolados como testemunhas no inqueacuterito policial sete disseram que natildeo viram que

ouviram falar que nem viram e nem ouviram dizer que natildeo aconteceu nada que nada

sabiam apenas trecircs testemunhas declararam que viram o ldquomenorrdquo ser espancado com

chutes pontapeacutes puxotildees de orelha ser empurrado contra a parede e a maacutequina Mesmo

entre as declaraccedilotildees das testemunhas que disseram que assistiram ao suposto

espancamento haacute divergecircncias As operaacuterias Sebastiana Pereira Maria Joseacute Sayatildeo e

Virginia Judipina (italiana) de 15 16 e 23 anos de idade respectivamente em seus

588

AHUFJF Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Japyassuacute de Abreu 28-06-1921 cx

001proc 8 589

SM-BMMM O Pharol 02 fev 1911 p 2 ldquoFolha de Marianordquo

215

depoimentos apresentaram contradiccedilotildees no que diz respeito ao horaacuterio que teria

acontecido o espancamento - se antes ou depois do meio dia se Micucci continuou no

trabalho ateacute o final do expediente as dezessete horas ou natildeo se ele retornou ao trabalho

no restante da semana ou natildeo

Com relaccedilatildeo ao horaacuterio do suposto espancamento Sebastiana Pereira disse que o

ldquofacto se passou depois do meio dia natildeo podendo poreacutem precizar (sic) a hora exata em

que se deurdquo e Maria Joseacute Sayatildeo disse que foi por volta das ldquotreze horas mais ou menosrdquo

O problema com relaccedilatildeo ao horaacuterio encontra-se realmente no depoimento de Virginia

Judipina ao afirmar que ldquopela manhatilde antes do almoccedilo viu Antonio Gervason espancar

o operaacuterio Micucci dando-lhe com as matildeos e com os peacutesrdquo Por causa da ldquodivergecircncia e

contradiccedilatildeordquo nos depoimentos dos operaacuterios o delegado de poliacutecia Joseacute Ribeiro de

Abreu realizou um ldquoAuto de Acareaccedilatildeordquo entre as testemunhas no dia sete de agosto de

1919 As trecircs operaacuterias que disseram que haviam assistido ao espancamento

confirmaram suas declaraccedilotildees Com relaccedilatildeo ao horaacuterio que teria ocorrido o castigo de

que foi viacutetima o operaacuterio Micucci Sebastiana e Maria Joseacute declararam que o

espancamento havia ocorrido por volta do meio-dia poreacutem Virginia continuou

afirmando que havia se dado ldquoantes do almoccedilo que eacute feito as nove horas da manhatilderdquo

[grifos no original] Outro problema observado nos depoimentos dessas trecircs

funcionaacuterias estaacute na questatildeo se o ldquomenorrdquo permaneceu ateacute o final do expediente ou natildeo

depois do dito espancamento Sebastiana e Virginia disseram que ele permaneceu

trabalhando ateacute as dezessete horas e Maria Joseacute declarou que ele foi embora logo

depois por volta das treze horas Com relaccedilatildeo agrave permanecircncia de Antonio Micucci na

faacutebrica no restante da semana houve tambeacutem divergecircncia sendo que Sebastiana e

Virginia disseram que natildeo o viram mais na faacutebrica depois da suposta surra que ele

recebeu do gerente Gervason As demais testemunhas declararam que viram ou

estiveram com Micucci na faacutebrica depois da quarta-feira 23 de julho em que teria

ocorrido o espancamento O operaacuterio Orlando Meurer declarou que saacutebado 26 de julho

ldquoesteve as quatro e meia horas da tarde com a victima quando se limpavam as

machinasrdquo590

As testemunhas que disseram que assistiram ao espancamento citaram o nome

de outras operaacuterias que acreditavam que haviam presenciado o espancamento do

ldquomenorrdquo As operaacuterias que foram citadas negaram enfaticamente que tivessem

590

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

216

assistido ao espancamento do menino Micucci Carolina Helt de 27 anos cortadeira

que era conhecida na faacutebrica pelo apelido de ldquoSinhaacuterdquo disse que trabalhava na mesma

sala que Micucci ldquosendo que o dito menor trabalhava em logar proacuteximo ao da depoenterdquo

e que natildeo havia acontecido nada com o menino na faacutebrica Ela ainda declarou que

ldquodepotildee sem insinuaccedilatildeo de ningueacutem porque a isso se oporia a quem tentasse fazerrdquo e que

as declaraccedilotildees de Sebastiana Pereira natildeo eram verdadeiras O discurso das outras

testemunhas citadas eacute semelhante ao de Carolina Helt

Observando esses depoimentos algumas indagaccedilotildees satildeo necessaacuterias como por

que apenas trecircs operaacuterias declararam a existecircncia da violecircncia contra o jovem operaacuterio

Antonio Micucci Por que os demais funcionaacuterios da faacutebrica Meurer negaram o

espancamento Nesse caso apenas conjecturas podem ser tecidas Os demais operaacuterios

provavelmente sentiram-se ameaccedilados de perderem o emprego na faacutebrica ou foram

efetivamente ameaccedilados caso confirmassem que havia ocorrido o espancamento

Possivelmente por causa das insinuaccedilotildees de que estava sendo coibida de dizer a

verdade a operaacuteria Carolina Helt tenha declarado que estava depondo ldquosem insinuaccedilatildeo

de ningueacutemrdquo As operaacuterias Sebastiana e Maria Joseacute que depuseram contra o gerente da

faacutebrica Meurer Antonio Gervason natildeo continuaram a trabalhar no dito estabelecimento

industrial Elas declararam que natildeo trabalhavam mais na faacutebrica pois saiacuteram

voluntariamente A testemunha Maria Joseacute Sayatildeo em seu depoimento em juiacutezo disse

[] depois que prestou o seu depoimento na policia ainda voltou ao trabalho

da fabrica e neste esteve durante dous dias natildeo continuando mais porque as

operarias Carolina Helt e Maria Bellote se puzeram a debical-a que esse

debique consistia em as referidas operarias dizerem aacute depoente que esta

quando depoz a verdade na policia eacute porque queria estar no embrulho e que

ellas Helt e Bellote natildeo haviam dito a verdade na policia para se livrarem

de embrulho que tem certeza absoluta que as operarias Helt e Bellote

assistiram ao espancamento e isto porque ellas como a depoente estavam

perto de Micucci quando este foi espancado []591

Os ldquodebiquesrdquo que as operaacuterias Carolina Helt e Maria Bellote comeccedilaram a fazer

a Maria Joseacute seriam a mando do gerente Estariam elas tentando amedrontar a

companheira de trabalho

A operaacuteria Virginia Judipina permaneceu no emprego na faacutebrica Meurer ateacute o

momento em que deu o seu depoimento na justiccedila Uma das suposiccedilotildees para a

permanecircncia de Virginia no emprego eacute o fato de que ela trabalhava na faacutebrica haacute dois

591

Idem

217

anos ou seja tinha domiacutenio do processo de produccedilatildeo e as outras estavam a poucos

meses empregadas Sebastiana ldquodurante quase um mezrdquo e Maria Joseacute ldquoquase tres

mezesrdquo

A perda do emprego a dificuldade de conseguir uma nova contrataccedilatildeo em um

estabelecimento industrial depois de acusar um representante e ou o patratildeo como na

expressatildeo da eacutepoca ldquoentrar no embrulhordquo significava uma possibilidade real para os

operaacuterios A ameaccedila da demissatildeo foi um dos mecanismos de coerccedilatildeo utilizados pelos

patrotildees para manter os operaacuterios submissos Entrar para o rol dos operaacuterios marcados

pelos estigmas de grevista baderneiro ou anarquista em uma cidade em que a classe

patronal se conhecia ou estava ligada por laccedilos familiares de parentesco ou de amizade

representava para a maioria dos operaacuterios um grande temor uma vez que poderia

resultar na possibilidade de o trabalhador natildeo conseguir empregar-se tendo de buscar

emprego em outro municiacutepioestado em muitos casos deixando a famiacutelia em

graviacutessima situaccedilatildeo financeira ateacute conseguir estabelecer-se profissionalmente Aleacutem

disso a falta de uma legislaccedilatildeo trabalhista gerava uma situaccedilatildeo de grande instabilidade

no seio da classe operaacuteria

As lutas dos operaacuterios por melhores condiccedilotildees de trabalho pela reduccedilatildeo da

jornada pela regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-juvenil por melhores salaacuterios soacute

avanccedilaram de uma forma mais significativa poacutes-deacutecada de 1930 No periacuteodo em tela

neste trabalho a classe operaacuteria obteve a sua primeira conquista na luta por direitos em

1919 com a promulgaccedilatildeo da Lei de Acidentes no Trabalho592

Poreacutem essa lei

apresentou limitaccedilotildees graves uma vez que contemplou basicamente os trabalhadores

do setor fabril ou seja trabalho mecacircnico593

Apoacutes essa breve descriccedilatildeo da situaccedilatildeo do operariado durante a Primeira

Repuacuteblica no que tange agraves leis sociais prossegue o exame do caso do ldquomenorrdquo

Micucci Analisando os depoimentos dos meacutedicos594

que examinaram a viacutetima observa-

se tambeacutem contradiccedilotildees no laudo sobre as condiccedilotildees do menino As manchas e

592

A partir de 1919 os operaacuterios ficaram assegurados por lei nos casos de acidentes ocorridos no local de

trabalho atraveacutes da Lei n 3724 de 15 de janeiro de 1919 regulamentada pelo Decreto n 13498 de 12

de marccedilo de 1919 Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwacidentedotrabalhoadvbrleisDEC-

003724Integralhtm e

httplegissenadogovbrlegislacaoListaNormasactionnumero=13498amptipo_norma=DECampdata=1919

0312amplink=s 593

Idem p 83 594

Antonio Micucci foi examinado pelos seguintes meacutedicos Joatildeo drsquo Aacutevila Joatildeo Monteiro Cassimiro

Villela de Andrade Filho Antonio Luiz de Almada Horta Alciro Valladatildeo e Augusto Penna Filho

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

218

contusotildees pelo corpo do ldquomenorrdquo natildeo foram relatadas por todos os meacutedicos ou foram

consideradas sem importacircncia por alguns de acordo com o que foi apurado nos relatos

dos doutores Entretanto todos os meacutedicos enfatizaram que o estado do jovem operaacuterio

era muito grave pois apresentava um quadro de febre altiacutessima mais de 40 graus e

estado delirante e que era uma moleacutestia infecciosa

O primeiro meacutedico a examinar Micucci foi o Dr Joatildeo drsquoAvila que disse natildeo ter

encontrado nenhum sinal aparente que induzisse a hipoacutetese de que o ldquomenorrdquo havia sido

espancado e que as insinuaccedilotildees de que o menino havia sofrido alguma agressatildeo natildeo se

confirmavam com os exames que havia realizado Segundo o seu diagnoacutestico era o

seguinte o quadro do menino

[] um exantema diffuso e manifestaccedilotildees para a pleura e pulmotildees que diante

dessa situaccedilatildeo desejaria que o seu juiacutezo fosse assistido pela opiniatildeo de um

collega distincto na sciencia e tambeacutem distincto pela sua probidade de

maneira a sentir-se assim melhor amparado nessa situaccedilatildeo que se

descortinava ao seu espirito como uma [bandeira de exploraccedilatildeo] que de facto

o seu collega que foi o illustre Dr Almada Horta sancionou o seu juiacutezo

aprovou a sua tese [pneutica] e concordou com o prognostico que

estabelecera de fatal595

Em seu depoimento o Dr Antonio Luiz de Almada Horta disse que na ldquovespera

do fallecimento do menor Micuccirdquo esteve na casa de um ldquodoenterdquo do ldquocollega Dr Joatildeo

drsquoAvillardquo na rua Fonseca Hermes para ldquover em conferenciardquo com o mesmo o estado do

menino O exame foi realizado no paciente na presenccedila de algumas pessoas da famiacutelia e

do Dr Joatildeo drsquoAvilla Segundo seu exame tratava-se de um

[] caso grave de moleacutestia infectuoza por isso que o doente em torpor

delirante tendo alta a temperatura dificuldade de respiraccedilatildeo alem de

apresentar na pelle em diversas partes do corpo manchas roacuteseas e algumas

rocheadas todas porem superficiaes denunciadoras em regra de infecccedilotildees

graves596

O Dr Almada Horta disse que examinando mais detidamente o menino

[] constactou lesotildees mal definidas para os pulmotildees e para as pleuras (pleuri

digo pleuro-penemonite) pequeno timpanismo abbdominal coraccedilatildeo abafado

alem de dores diffusas com localizaccedilatildeo pronunciadas para algumas

articulaccedilotildees ndash articulaccedilatildeo do hombro do joelho e do peacute do lado direito

595

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138 596

Idem

219

(todos do lado direito) que donde concluio tratar-se de um caso de moleacutestia

infectuosa grave597

Disse o Dr Almada Horta que depois de realizados os exames foi inquirido pelo

Dr Joatildeo drsquoAvilla se havia encontrado algum sinal de traumatismo ao que respondeu

que ldquoabsolutamente natildeordquo

O caso Micucci apresentava um cenaacuterio extremamente sombrio A gravidade do

caso era ressaltada por todos os meacutedicos que o examinavam e o problema jaacute havia

ganhado as paacuteginas dos jornais que denunciavam o caso com grande alarde Dentro

desse contexto o delegado de poliacutecia solicitou que o Dr Joatildeo Monteiro e o Dr Augusto

Penna Filho fossem ateacute a casa do dito operaacuterio para examinaacute-lo Em seu depoimento o

Dr Joatildeo Monteiro disse que encontrou o ldquomenorrdquo em ldquoestado febril delirante pallido

uma contusatildeo no tornosello esquerdo acompanhada de edema uma edema no joelho

tambeacutem esquerdo um exantema na parte anterior do thorax pescoccedilo e rostordquo598

O Dr Augusto Penna Filho descreveu um aspecto das condiccedilotildees da habitaccedilatildeo do

ldquomenorrdquo bem como seu estado Segundo Penna Filho

[] o exame a esse que tornou-se deficiente natildeo soacute devido ao estado do

paciente ser graviacutessimo como pela falta de iluminaccedilatildeo na habitaccedilatildeo do

enfermo que apoacutes o exame procurou o Dr delegado de policia dizendo-lhe

que o menino apresentava uma inflamaccedilatildeo no tornozelo esquerdo e o quadro

tiacutepico de uma grave infecccedilatildeo e uma pleurisia do pulmatildeo direito para a qual

chamou a attenccedilatildeo da famiacutelia do enfermo que aconselhou por essa razatildeo a

mesma famiacutelia que de novo chamasse o medico assistente599

A referecircncia da falta de iluminaccedilatildeo feita pelo Dr Penna Filho eacute um

demonstrativo da precariedade das casas dos operaacuterios e da populaccedilatildeo pobre em geral

A falta de iluminaccedilatildeo poderia estar relacionada agrave ausecircncia de uma janela no cocircmodo em

que se encontrava o moribundo Segundo Esmeralda Moura ldquoas habitaccedilotildees operaacuterias os

corticcedilos particularmente representavam cenas inequiacutevocas de um cotidiano pautado na

pobrezardquo600

O ldquomenorrdquo ainda passou pela avaliaccedilatildeo de outro meacutedico o Dr Alciro Valladatildeo

que esteve na casa do menino no dia 31 de julho

597

Ibidem 598

Ibidem 599

Ibidem 600

MOURA Esmeralda B Bolsonaro de Op cit 2006 p 275

220

[] mais ou menos a meia noite e alli jaacute encontrou o menor em questatildeo em

quase estado de comma que attendendo a essa circunstancia e como lhe

dissessem que o menor enfermo fora espancado sua attenccedilatildeo voltou

principalmente para o exame esterno que nesse exame alias feito em todo o

corpo notou algumas contusotildees na regiatildeo direita do homoplata (sic) e sobre a

matildeo direita que entretanto natildeo pode affirmar se essas contusotildees satildeo

consequencias de algum traumatismo ou se produsidas pela moleacutestia

infecciosa que acredita que o exame pericial esclareceraacute essa duvida que

devido ao estado adiantadiacutessimo da moleacutestia que se apoderara de Micucci

tanto assim que o depoente lhe deu poucas horas de vida o seu exame interior

foi mais ou menos raacutepido pois que o seu estado natildeo lhe permitia fazer maior

exame que quando tocava nas partes contundidas o depoente notava que o

doente natildeo acusava docircr entretanto tocando na regiatildeo abdominal verificava

que o doente gemia concluindo elle dahi que se tratasse de uma peritonite

que podia ser uma consequencia do traumatismo ou do curso natural da

moleacutestia601

Nos depoimentos dos meacutedicos que examinaram Micucci nenhum deles em seus

diagnoacutesticos confirmou que o ldquomenorrdquo poderia ter sido espancado Todos

encaminharam seus pareceres para a existecircncia de uma grave infecccedilatildeomoleacutestia uma

pneumonia As manchas roacuteseas e roxas pelo corpo as contusotildeesinflamaccedilotildees as dores

na regiatildeo abdominal foram consideradas provavelmente como uma consequecircncia da

grave infecccedilatildeo que havia se apoderado do jovem operaacuterio

O primeiro meacutedico a examinar o menino foi o Dr Joatildeo DrsquoAvilla Em seu

depoimento no inqueacuterito policial ele assinalou que natildeo havia dado muita atenccedilatildeo as

ldquoinsinuaccedilotildeesrdquo de que o ldquomenorrdquo havia sido espancado na faacutebrica Meurer Em suas

declaraccedilotildees o Dr Joatildeo drsquoAvilla deu a entender que a famiacutelia estava tentando se

beneficiar da doenccedila do menino Micucci com a histoacuteria de espancamento Em seu

segundo depoimento jaacute no sumaacuterio de culpa ele manteve a tese de que a famiacutelia estava

utilizando a doenccedila do menino e disse novamente que natildeo havia dado atenccedilatildeo agraves

insinuaccedilotildees da matildee do ldquomenorrdquo e acrescentou que tudo aquilo ldquo[] era uma verdadeira

phantasia e de que se desejava tirar partido e vantagemrdquo Para corroborar com o seu

diagnoacutestico de pleuro-pneumonia o doutor drsquoAvilla convidou o doutor Almada Horta

para examinar o ldquomenorrdquo

Pelo depoimento do meacutedico Joatildeo drsquoAvilla pode-se apurar o juiacutezo que setores

dominantes faziam das famiacutelias das camadas subalternas como dissimuladas

interesseiras desprovidas de caraacuteter e dispostas a tudo para tirar proveito de uma

situaccedilatildeo A literatura sobre as relaccedilotildees familiares da populaccedilatildeo pobre destacam que elas

601

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Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

221

eram visualizadas pelos segmentos dominantes como permeadas pela imoralidade

promiscuidade ociosidade viacutecios e pela incapacidade de cuidar e educar seus rebentos

O Dr Augusto Penna Filho em seu depoimento disse que apoacutes examinar o

operaacuterio relatou ao delegado de poliacutecia que em seu exame

[] natildeo foi possiacutevel fazer um diagnostico de espancamento porquanto a

pleropneumonia pela intoxicaccedilatildeo que produz ao organismo pode fazer o

apparecimento de edema dores cyanose etc que aconselhou o doutor

Delegado de Policia que caso o menor vieacutesse a fallecer mandasse proceder aacute

autopsia porque existem si bem que raras pleuropneumonias thraumaticas602

A sugestatildeo do Dr Penna Filho de se proceder agrave autopsia no caso do falecimento

do ldquomenorrdquo pode ser interpretada como um alerta para a possibilidade de ter ocorrido o

espancamento Pode-se conjecturar que natildeo pretendendo contradizer seus

companheiros de profissatildeo ele tenha declarado que natildeo foi possiacutevel determinar que o

menino foi espancado poreacutem por alguma motivaccedilatildeo eacutetica ou ateacute sentimental ele

sentiu-se impelido a sugerir a autopsia esquivando-se de ser reprovado por seus colegas

e pelos setores dominantes Ele negou que o ldquomenorrdquo tenha lhe confidenciado que havia

sido espancado como a matildee de Micucci declarou em seu depoimento mas que essa

histoacuteria lhe foi contada pelos familiares do doente Em resposta a uma inquiriccedilatildeo do

advogado do reacuteu Dr Constantino Luiz Palleta o Dr Penna Filho assinalou que em

casos de infecccedilatildeo grave acompanhadas de temperaturas elevadas o paciente pode ldquo[]

manifestar terrores mostrando-se presa de phantasias e perseguiccedilotildeesrdquo

O depoimento do Dr Casemiro Villela de Andrade Filho no sumaacuterio de culpa

natildeo trouxe novidades com relaccedilatildeo ao estado do ldquomenorrdquo Esse meacutedico limitou-se a dizer

ldquoque natildeo depotildee sobre os factos que constatou durante o exame referentes ao doente

porque quer guardar o segredo profissionalrdquo Por que motivos o Dr Villela de Andrade

natildeo externou o seu parecer sobre a moleacutestia do menor Por que escolheu ldquoguardar o

segredo profissionalrdquo Seria isso uma confissatildeo velada de que a moleacutestia do jovem

operaacuterio Micucci e que o levou a morte era consequecircncia do espancamento de que

diziam que ele tinha sido viacutetima na Fiaccedilatildeo e Tecelagem da viuacuteva A Meurer e filhos Eacute

viaacutevel supor que o Dr Villela Filho natildeo quisesse se envolver no caso por natildeo concordar

com os rumos que o mesmo estava tomando A testemunha sendo reinquirida pelo

advogado do reacuteu disse ldquoque a ningueacutem externou o seu juiacutezo sobre a causa da moleacutestia

do menor Micucci ficando por essa foacuterma contestado o que se propalou a respeitordquo

602

Idem

222

A matildee do ldquomenorrdquo Maria Micucci contou em seu depoimento no sumaacuterio de

culpa que chamou o Dr Villela Filho para ir a sua casa ver o seu filho pois este natildeo

apresentava melhoras Ela relatou que o meacutedico disse ldquoque o haviam chamado aacute ultima

hora e que nada mais podia fazer que o doutor Villela ao sair disse que em vez de um

simples atestado deviam fazer autopsia em Micuccirdquo

O saber meacutedico foi construindo uma imagem do caso do suposto espancamento

do operaacuterio Micucci como uma ldquophantasiardquo arquitetada pela famiacutelia para obter algum

benefiacutecio e as provaacuteveis declaraccedilotildees do ldquomenorrdquo de que o gerente da faacutebrica Meurer

havia lhe batido seria nada mais nada menos que fruto de deliacuterios febris

A necropsia no cadaacutever do ldquomenorrdquo foi realizada no dia primeiro de agosto e o

resultado do laudo pericial saiu no dia sete do mesmo mecircs De acordo com uma mateacuteria

publicada no O Lynce a Associaccedilatildeo Operaacuteria havia contratado advogados e meacutedicos

para acompanharem o caso pois tinham receio de que a necropsia no corpo do ldquomenorrdquo

ldquofosse burladardquo Em protesto pelo acontecido foi declarada uma ldquogreve paciacutefica por 48

horasrdquo por ldquogrande parte do operariadordquo603

O exame pericial foi realizado em presenccedila do delegado de poliacutecia do promotor

puacuteblico representantes da imprensa e partes interessadas604

Os meacutedicos responsaacuteveis

pela necropsia no cadaacutever de Micucci foram os doutores Alberto Vieira Lima e Renato

de Andrade Santos (doutores pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro) que assim

concluiacuteram os resultados dos exames

[] podemos afirmar em san consciencia e conscios das nossas

responsabilidades de peritos que da necropsia tornou-se manifesta e essa eacute a

nossa firme convicccedilatildeo que a morte do menor Antonio Micucci ocorreu em

consequecircncia de uma ldquophlegmosia pleuro-pulmonarrdquo cujos caracteres

anatomicos digo anatomo-pathologicos podem ser com seguranccedila

emquadrado em sua espeacutecie moacuterbida sob a rubrica nosologica dosldquopleuro

pneumossitesrdquo E essa eacute a nosso ver a ldquocausa mortisrdquo A morte foi

ldquooccasionada por uma infecccedilatildeo especifica pelo ldquoPneumococcus de Tolomon

ndash Fraenkelrdquo [] Em tempo ndash accrecentamos que a inspecccedilatildeo da face interna

do thorax apoacutes a retirada das viacutesceras respectivas nada de anormal nos

apresentou605

O laudo pericial natildeo confirmou o suposto espancamento no ldquomenorrdquo sendo a

moleacutestia e a consequente morte do menino atribuiacutedas a uma ldquophlegmosia pleuro-

pulmonarrdquo

603

SM-BMMM ldquoColumna do Operariadordquo O Lynce 02-08-1919 p 2 604

Assinaram como testemunhas do exame pericial Norberto Madeira e Benjamim Barbosa Braga 605

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223

O Lynce na mateacuteria intitulada ldquoPezames Operariado de Juiz de Foacuterardquo do dia

nove de agosto anunciando o desfecho do caso assinala que as operaacuterias que haviam

declarado que o ldquomenorrdquo havia sido espancado continuavam a confirmar essa

informaccedilatildeo A reportagem em tom sarcaacutestico assinala que ldquoagora eacute que os

espancamentos em menores operaacuterios continuaratildeo com maior intensificaccedilatildeo agora que

a lsquoboca dos mestres e contra mestres ficaram adoccediladasrsquo com o caso Micuccirdquo Nessa

mesma mateacuteria eacute informado o caso de outro espancamento ocorrido na faacutebrica de

tecidos dos Ingleses dias depois do ocorrido na faacutebrica Meurer606

Os relatos e as denuacutencias de violecircncias e de diversas formas de coerccedilatildeo

impetradas contra os trabalhadores das faacutebricas e oficinas do comeacutercio das unidades

rurais foram e satildeo realidade ainda hoje na vida de vaacuterios operaacuterios O caso do suposto

espancamento de Micucci e de outros que foram noticiados pela imprensa eacute apenas uma

pequena mostra do cotidiano dos trabalhadores

Os casos de violecircncia contra os trabalhadores urbanos ou rurais no poacutes-

aboliccedilatildeo eacute um retrato da sociedade brasileira que conviveu com o trabalho compulsoacuterio

por mais de 300 anos A cultura autoritaacuteria o mandonismo dos patrotildees e dos superiores

encontra suas raiacutezes no passado escravista brasileiro607

O poder poliacutetico e econocircmico

poacutes-aboliccedilatildeo continuou nas matildeos de antigos escravocratas e ou de seus descendentes

grupo esse marcado por uma profunda cultura autoritaacuteria A esse respeito John French

assinala

A cultura autoritaacuteria e paternalista das classes dominantes com seus

impulsos repressivos inatos continuaria a permear a sociedade brasileira

mesmo depois de 1888 moldando as dimensotildees interpessoais juriacutedicas e

ideoloacutegicas do Brasil capitalista e industrial do seacuteculo XX608

Apoacutes o laudo da necropsia a autoridade policial tomou as declaraccedilotildees de Maria

Micucci matildee do jovem operaacuterio e do reacuteu Antonio Gervason No ldquoauto de perguntasrdquo

ocorrido no dia oito de agosto de 1919 Maria Micucci relatou os uacuteltimos dias de seu

filho Segundo ela no dia vinte e trecircs de agosto uma quarta-feira dia do suposto

espancamento o menino retornou para casa no horaacuterio habitual ldquotriste e sem querer

receber alimentaccedilatildeo alguma que nessa noite o menino foacutera de seus haacutebitos se deitou

606

SM-BMMM ldquoPezames Operariado de Juiz de Foacuterardquo O Lynce 9 ago 1919 p 3 No jornal O Pharol

do dia 6 ago 1919 foi publicada nas Notas Policiais mais uma denuacutencia de espancamento de um pequeno

operaacuterio O ldquomenorrdquo Bernardo Lobo denunciou que havia sido espancado pelo ajudante de mestre da

Companhia Industrial Mineira SM-BMMM ldquoNotas Policiaisrdquo O Pharol 6 ago 1919 607

Para uma discussatildeo mais ampla sobre a questatildeo da escravidatildeo e liberdade no mundo do trabalho na

sociedade brasileira ver FRENCH John Op cit 2006 608

Idem p 78

224

vestidordquo A declarante disse que tomou essa atitude do filho como ldquopreguiccedila de voltar

ao trabalho e por isso natildeo se incomodou com o factordquo Nos dias seguintes Micucci

continuou a natildeo se alimentar e na sexta-feira em vez de ir para o trabalho foi para a

casa da irmatilde Ana Coelho que residia na Rua de Santa Rita Ao retornar para casa ele

solicitou para que a matildee pedisse ao gerente da faacutebrica Antonio Gervason para natildeo lhe

bater mais poreacutem

[] que ainda nessa occasiatildeo a declarante suppoz que se tratasse antes de

preguiccedila por parte do menor e natildeo quiz acreditar nas suas informaccedilotildees ou

queixas que no dia seguinte sabbado ainda fez com que seu filho Antonio

Micucci seguisse para a fabrica e como notasse que elle parecia seguir de maacute

vontade foi ateacute a esquina e de longe o observou ateacute a distancia que as cinco

horas tarde digo da tarde de sabbado regressou o menino tristonho e sem

acceitar alimento algum foi se deitar ocasiatildeo em que se pocircz vomitar que

nessa occasiatildeo a declarante indo saber do menor se sentia alguma coisa ficou

sabendo por elle que o sr Antonio Gervason lhe havia batido tambeacutem

naquelle dia (sabbado) e que assim natildeo podia mais suportar acrecentando

(sic) que estava machucado [nas costas] por um socirccco recebido que tinha

tambeacutem maxucada uma das pernas informando o menino que essa lesatildeo

recebeu contra um ferro da machina onde foi atirado por Gervason []

Apesar das insistentes queixas do menino a matildee disse natildeo ter acreditado antes

pensou que fosse apenas ldquopreguiccedilardquo Somente quando o ldquomenorrdquo comeccedilou a demonstrar

fisicamente que estava passando mal que a matildee passou a dar creacutedito a suas palavras A

eacutetica do trabalho provavelmente operou na decisatildeo da Maria Micucci de insistir para

que seu filho retornasse a suas atividades laborais pois aquele comportamento do

menino destoava do que era esperado pelos pais e responsaacuteveis e pela sociedade

dedicar-se ao trabalho As condiccedilotildees sociais das famiacutelias operaacuterias no iniacutecio do seacuteculo

XX muitas beirando a sobrevivecircncia possivelmente levaram muitos pais a fazerem

vistas grossas aos tapas e ldquopetelecosrdquo recebidos por seus filhos nos locais de trabalho ou

de aprendizagem de um ofiacutecio Entretanto eacute necessaacuterio ressaltar que o ato de corrigir

uma crianccedila ou adolescente atraveacutes da utilizaccedilatildeo da forccedila fiacutesica (bater surrar) fazia

parte nessa eacutepoca da concepccedilatildeo de educaccedilatildeo Os pais corrigiam e educavam seus filhos

com as chinelas varas tapas e palmatoacuterias E nas escolas os castigos fiacutesicos bem como

os morais tambeacutem eram empregados para disciplinar os alunos

Maria Micucci disse que mandou uma filha ir agrave casa de Gervason para lhe pedir

que enviasse meacutedico e medicamento e que nessa ocasiatildeo o gerente da faacutebrica Meurer

disse que ldquonatildeo o culpasse porque elle apenas tinha dado um peteleco no meninordquo Ele

enviou entatildeo ldquodois cartotildees sendo um para a pharmacia e outro para o medico Dr

225

Avilardquo Em seguida ela passou a relatar a visita de vaacuterios meacutedicos em sua casa para

examinar o ldquomenorrdquo

O gerente da faacutebrica limitou-se no ldquoauto de perguntasrdquo a dizer que natildeo havia

batido no menino Micucci e que era ldquointeiramente innocente no facto que se lhe

imputardquo Disse tambeacutem que no saacutebado havia mandado o ldquomenor comprar um paiz

para sua leitura que a esse menino dava preferencia para seus [mandaletes] por ser elle

um bom meninordquo

Atraveacutes do depoimento do gerente Gervason observa-se que aleacutem das

atividades exercidas no recinto fabril os ldquomenoresrdquo tambeacutem eram utilizados para

cumprirem outras tarefas os [mandaletes] para seus superiores

O delegado de poliacutecia Joseacute Ribeiro de Abreu em seu relatoacuterio no processo crime

de ldquoque foi theatro a Fabrica de Tecidos de Malha da viuacuteva A Meurer e Filhos e fez

echo em toda a imprensa desta cidade e ateacute fora daquirdquo passou a relatar como tomou

conhecimento do suposto espancamento sofrido pelo operaacuterio na dita faacutebrica Ele disse

que foi procurado em sua residecircncia por duas senhoras na tarde do dia 30 de julho que

lhe relataram o caso Apoacutes esse fato ele

[] mandou na casa do menor o Dr Joatildeo Monteiro meacutedico da poliacutecia e

recomendou aos agentes de policia que sobre o facto procedessem aacute

necessaacuteria investigaccedilatildeo porque no inqueacuterito regular que [tencionava]

instaurar tudo ficaria esclarecido

Em sua explanaccedilatildeo dos fatos disse que foi procurado na delegacia por um

italiano de nome Paschoal Luiz que denunciou ter sido o jovem operaacuterio espancado

pelo gerente da faacutebrica Meurer e que ele ldquomorreria em consequecircncia dos ferimentos

graves que lhe produziu Antonio Gervasonrdquo O delegado disse que alertou o dito

Paschoal da gravidade da denuacutencia e sobre a possibilidade de ele responder um processo

por caluacutenia caso aquela acusaccedilatildeo natildeo fosse confirmada Poreacutem Paschoal natildeo

compreendendo esse alerta da autoridade policial ou de maacute feacute passou a declarar que

Joseacute Ribeiro de Abreu natildeo queria tomar providecircncias sobre o caso e que ateacute o havia

ameaccedilado de prisatildeo O delegado desmente essas informaccedilotildees Apesar de denunciar o

suposto espancamento na delegacia Paschoal Luiz natildeo apareceu entre as testemunhas

do caso Micucci

Ainda em seu relatoacuterio dos fatos o delegado passou a descrever os depoimentos

das testemunhas as contradiccedilotildees e o resultado do laudo do auto de corpo de delito que

226

estabeleceu que natildeo havia evidecircncias do suposto espancamento Com relaccedilatildeo aos

depoimentos das testemunhas onde algumas declararam que ocorreu o espancamento e

outras que o negaram o delegado de poliacutecia ponderou que como natildeo se tratava

na hyppothese de testemunhas versadas na arte de enganar satildeo antes moccedilas

empregadas da mesma fabrica e que naturalmente natildeo alimentam nenhuma

animosidade contra o indiciado animosidade essas que as conduzissem a

uma possiacutevel mentira a sustentaccedilatildeo da invencionice natildeo era faacutecil mormente

no auto de acareaccedilatildeo quando foram inquiridas umas testemunhas em frente

das outras609

(grifos no original)

De acordo com as provas dos autos e provavelmente por natildeo acreditar que as

testemunhas que confirmaram o espancamento estivessem mentindo por completo o

delegado concluiu que o gerente da Faacutebrica de tecidos de Malhas Meurer Antonio

Gervason realmente

offendeu physicamente e levemente ao menor Antonio Micucci incorrendo

por isso na sancccedilatildeo do art 303 do Cod Pen que diz ldquooffender pysicamente

algueacutem produzindo-lhe dor ou alguma lesatildeo no corpo embora sem

derramamento de sangue610

O delegado Joseacute Ribeiro de Abreu natildeo descartou a possibilidade do ldquomenorrdquo ter

sofrido algum tipo de violecircncia fiacutesica por parte do gerente Antonio Gervason Todavia

ele ressaltou que a ofensa fiacutesica foi leve posto isso nenhuma relaccedilatildeo poderia ter com a

causa mortis do jovem operaacuterio Micucci tendo ocorrido pois uma ldquoinfeliz

coincidecircnciardquo e desta forma Gervason natildeo poderia ser responsabilizado pela morte do

ldquomenorrdquo

Com a conclusatildeo do inqueacuterito policial os autos foram remetidos para o Juiz

Municipal da Comarca de Juiz de Fora Hugo de Andrade Santos Apoacutes os mesmos

foram remetidos ao Promotor Puacuteblico para dar ldquoVistardquo No dia sete de outubro de 1919

apoacutes dar ldquoVistardquo aos autos o promotor puacuteblico Dr Nisio Baptista de Oliveira

apresentou denuacutencia contra Antonio Gervason pelo suposto espancamento do ldquomenorrdquo

por ter infringido o art 303 do Coacutedigo Penal

As testemunhas foram arroladas e intimadas para deporem no processo judicial

No interrogatoacuterio foram ouvidas tambeacutem as irmatildes da viacutetima Ana Coelho e Rosa

Micucci No interrogatoacuterio da matildee do ldquomenorrdquo Maria Micucci ela declarou que

609

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Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138 610

Idem

227

inicialmente natildeo acreditou nas queixas de seu filho de que ldquoGervason o espancava e isso

todas as vezes em que se quebrava uma agulha poreacutem a depoente natildeo acreditava e

suppunha ser [faralandice] e mentira de seu filhordquo Relatou ainda que quando seu filho

adoeceu e a depoente o chamava cedo para o trabalho o mesmo se queixava dela e dizia

que por ela ser ldquoitaliana estava esganada pelo seu trabalhordquo611

Na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX o Brasil recebeu uma grande leva de

imigrantes principalmente de origem europeia Muitos imigrantes vieram fugindo de

guerras e conflitos da fome e da miseacuteria Eles traziam em suas trouxas e bagagens o

sonho de uma vida melhor na nova terra poreacutem esse sonho para a grande maioria

rapidamente se desvaneceu Nas aacutereas rurais eles foram submetidos a vaacuterias formas de

exploraccedilatildeo e coerccedilatildeo que se assemelhavam agraves relaccedilotildees escravistas o que contribuiu

para que muitos deles abandonassem as unidades agriacutecolas para viverem nas aacutereas

urbanas engrossando dessa forma o contingente de matildeo de obra disponiacutevel para a

induacutestria bem como de miseraacuteveis Nos centros urbanos os imigrantes empregados no

comeacutercio nas oficinas e nas faacutebricas tambeacutem vivenciaram vaacuterias formas de coerccedilatildeo e

exploraccedilatildeo da sua forccedila de trabalho Eacute viaacutevel supor que as dificuldades enfrentadas

pelas famiacutelias imigrantes desde sua terra natal fizessem com que vislumbrassem no

trabalho uma saiacuteda para melhorar as condiccedilotildees de vida e desse modo era de

fundamental importacircncia a contribuiccedilatildeo de todos os membros da famiacutelia Quando o

jovem operaacuterio Micucci dizia que sua matildee por ser ldquoitaliana estava esganada pelo seu

trabalhordquo talvez fosse pelo fato de ela o obrigar a trabalhar mesmo ele natildeo se sentido

bem ou pela crenccedila ou desejo de seus pais melhorem as condiccedilotildees de vida em uma terra

estrangeira fazendo com que todos os membros trabalhassem Todavia nesse caso

apenas conjecturas podem ser tecidas

No processo judicial as irmatildes do operaacuterio Micucci Ana Coelho 29 anos de

idade italiana casada e do serviccedilo domeacutestico e Rosa Micucci 19 anos de idade

brasileira solteira tecelatilde foram intimadas Em seu depoimento Ana disse que os

remeacutedios e meacutedicos fornecidos a ldquoseu irmatildeo o foram pela Caixa de Beneficencia a que o

mesmo tinha direito como um de seus contribuintesrdquo Rosa assinalou que a pedido de

611

De acordo com o Diccionaacuterio da Liacutengua Portugueza de Antonio de Moraes Silva ldquoEsganarrdquo

significava afogar apertando as fauces estrangular Privar de liacutequidos matar algueacutem com sede

Estrangular-se Se com sede de ouro ou etc desejar muito o ouro ou as cousas que se appetecem com

ardor Flor Diz-se tambeacutem que se esganam os que fallam ou gritam muito BMMM-SM SILVA

Antonio de Moraes Diccionario da Liacutengua Portugueza 6 ed Lisboa Typographia de Antonio Joseacute da

Rocha 1858 (Tomo I ndash A-E)

228

sua matildee foi agrave casa do gerente Gervason solicitar o envio de meacutedico e remeacutedio para seu

irmatildeo que estava doente e que nessa ocasiatildeo o gerente da faacutebrica Meurer disse que ldquolhe

havia dado uns petelecos e que Antonio Micucci era muito preguiccediloso e sem

vergonha[]rdquo Ela ressaltou ainda que Gervason havia dito para que ldquonatildeo o pusessem

no embrulho porque quem com isso havia de soffrer mais tarde era a matildee da

declaranterdquo Levando em consideraccedilatildeo as palavras de Rosa Micucci pode-se dizer que o

gerente da faacutebrica Meurer Antonio Gervason ameaccedilou a famiacutelia do ldquomenorrdquo

supostamente espancado caso ele fosse envolvido no ldquoembrulhordquo Mas no que

consistiria essa ameaccedila O que Gervason quis dizer ao afirmar que quem haveria de

sofrer caso ele fosse envolvido em alguma questatildeo seria a matildee do ldquomenorrdquo Micucci

Seria essa uma ameaccedila de demissatildeo do menino Micucci ou de outro parente que

trabalhava na faacutebrica

Apoacutes a inquiriccedilatildeo das testemunhas o Promotor Puacuteblico Nisio Baptista de

Oliveira considerou desnecessaacuteria a realizaccedilatildeo da acareaccedilatildeo entre as testemunhas que

apresentaram contradiccedilotildees em seus depoimentos pois tal expediente jaacute havia sido

realizado no inqueacuterito policial Apoacutes todas as testemunhas serem ouvidas o reacuteu Antonio

Gervason foi intimado a comparecer no Foacuterum no dia trecircs de fevereiro de 1920 O reacuteu

apresentou a sua defesa por escrito jaacute que a lei lhe facultava esse direito

O procurador do reacuteu o Dr Constantino Luiz Palleta no texto de defesa iniciou

dizendo que toda aquela situaccedilatildeo era ldquoproducto do boato o pernicioso arauto das mais

extravagantes phantazias o eterno demolidor das mais solidas reputaccedilotildeesrdquo A defesa eacute

construiacuteda com o intuito de transformar a provaacutevel violecircncia sofrida pelo ldquomenorrdquo em

uma grande ldquophantaziardquo e sua argumentaccedilatildeo foi embasada nos depoimentos dos

meacutedicos no laudo cadaveacuterico e no depoimento das testemunhas que disserem que natildeo

viram e nem sabiam de nada O Dr Palleta ressaltou que o resultado da lsquoautopsiarsquo

confundiu os ldquoboateirosrdquo pois nenhuma evidecircncia de espancamento foi apurada

ldquointerna e externamente e ndash precisando de modo seguro e irretorquiacutevel aacute luz da

sciencia a causa mortis ndash o que tudo excluiacutea de modo peremptorio o phantaziado

assassinatordquo612

O advogado do reacuteu descaracterizou os depoimentos das trecircs testemunhas que

disseram que assistiram o ldquomenorrdquo ser espancado pelo gerente da faacutebrica Meurer

Segundo o Dr Palleta o depoimento das operaacuterias natildeo era a ldquoexpressatildeo de verdaderdquo

612

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

229

por isso natildeo mereciam ldquofeacuterdquo Ele foi pontuando passo a passo os depoimentos das

testemunhas demonstrando a imprecisatildeo e as contradiccedilotildees dos mesmos O advogado

citou um documento enviado pela irmatilde da testemunha Sebastiana Pereira em que

estava assinalado que a operaacuteria natildeo assistiu ao espancamento mas que fora ldquoinduzida a

fazer aquelle depoimentordquo na poliacutecia por outra pessoa O documento ao qual se refere o

Dr Palleta eacute de dezoito de outubro de 1919 Entretanto o depoimento no sumaacuterio de

culpa (justiccedila) deu-se no dia vinte e nove de outubro de 1919 no qual ela confirmou que

havia assistido ao gerente Gervason espancar o menino Micucci Esse ponto o advogado

esqueceu de ressaltar uma vez que o depoimento dias depois da entrega da carta ao Sr

Gervason desmente o seu conteuacutedo Logo apoacutes ele passa a analisar o depoimento de

Maria Joseacute Sayatildeo que segundo ele era ldquocomparsa de invencionicerdquo de Sebastiana

Pereira O depoimento de Maria Joseacute eacute colocado pelo advogado como uma retaliaccedilatildeo da

operaacuteria ao gerente pois ldquopresa do propoacutesito de comprometter a todo o custo o

indiciado de quem guardava serio sentimento por oppor-se elle a suas desenvolturas e

desembaraccedilos na fabrica ndash sob sua direccedilatildeordquo Colocado dessa forma o advogado daacute a

entender que a operaacuteria desejava apenas se vingar de Gervason e junto com outras

operaacuterias e com a famiacutelia do ldquomenorrdquo criaram toda aquela ldquoinvencionicerdquo de

espancamento O Dr Palleta continua sua explanaccedilatildeo assinalando que exames feitos em

Micucci antes de seu falecimento e a lsquoautopsiarsquo natildeo verificaram a presenccedila de

espancamento em seu corpo e que entre as declaraccedilotildees dos meacutedicos e das operaacuterias ldquonatildeo

haacute vacillarrdquo (sic) ou seja as palavras dos doutores tinham no seu entender mais

creacutedito do que as das moccedilas operaacuterias O advogado argumentou ainda que como as

testemunhas haviam afirmado que o ldquomenorrdquo ldquonatildeo chorou natildeo gritou natildeo gemeurdquo

quando foi supostamente espancado natildeo demonstrando dor o acusado natildeo poderia ser

incurso no art 303 do Coacutedigo Penal613

dada a falta da comprovaccedilatildeo da dor bem como

de lesotildees corporais

A defesa argumentou que se realmente o reacuteu tivesse ldquocastigado

moderadamenterdquo o operaacuterio por uma falta cometida ldquoteria soacute por isso transgredido o

disposto no artigo citado e incorrido na respectiva sanccedilatildeordquo O advogado Dr Palleta

ainda ponderou que Antonio Gervason ldquona qualidade de gerente da faacutebrica de mestre de

613

O artigo 303 do Coacutedigo Penal de 1890 determinava que ldquoOffender physicamente alguem produzindo-

lhe docircr ou alguma lesatildeo no corpo embora sem derramamento de sangue Pena - de prisatildeo cellular por tres

mezes a um annordquo Para mais informaccedilotildees consultar Coacutedigo Penal - Decreto no 847 de 11 de Outubro

de 1890 Disponiacutevel em httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-847-11-outubro-

1890-503086-publicacaooriginal-1-pehtml

230

toda a officina ndash natildeo se lhe pode negar o direito de correccedilatildeo uma vez que esta natildeo

excedesse aos justos limites do castigo moderadordquo Ele citou alguns ldquomestresrdquo do direito

penal (Puglia Nypels et Servais Chauveam et Helie Blanche Garraud etc) e o artigo

230 do Coacutedigo Penal brasileiro614

para embasar seu argumento de que o gerente da

faacutebrica Meurer tinha o direito por lei de corrigir o operaacuterio Micucci e isso era o que

estava sendo ldquofirmado pela jurisprudencia dos tribunaesrdquo Como jaacute assinalei

anteriormente o ato de corrigir utilizando-se da forccedila fiacutesica era de certa forma aceito

pela sociedade

O advogado do reacuteu ainda apresentou as declaraccedilotildees do farmacecircutico Vespaziano

Pinto Vieira para embasar seu argumento de que o ldquomenorrdquo Micucci natildeo foi alvo de

nenhuma violecircncia no interior da faacutebrica Meurer No texto a defesa assinala que o

farmacecircutico declarou ter ouvido o menino dizer que natildeo havia sido espancado pelo

gerente da faacutebrica Meurer Antonio Gervason Com relaccedilatildeo ao depoimento da matildee e das

irmatildes de Micucci o Dr Palleta disse que natildeo teceria nenhum comentaacuterio ldquoem attenccedilatildeo

e respeito ao delicado sentimento que devera pungir o coraccedilatildeo de taes pessoas pela

perda do ente queridordquo Poreacutem ele fez uma ressalva ao dizer que de acordo com o

depoimento de meacutedicos e de fatos preferiu ldquosilenciarrdquo pois ldquomuito poderiacuteamos inferir

para desnudar a preocupaccedilatildeo ndash menos lisa ndash que sempre tiveram taes pessoas ndash

responsabilisando o accusado pela morte de Micuccirdquo A defesa encerra o texto

solicitando a absolviccedilatildeo do acusado uma vez que natildeo ficou provada a denuacutencia de

espancamento

Na conclusatildeo do processo o Juiz Municipal Hugo de Andrade Santos em sua

explanaccedilatildeo dos fatos assinalou que as divergecircncia observadas nos depoimentos das trecircs

operaacuterias da faacutebrica Meurer se justificavam

[] porque segundo o illustre professor da Universidade de Graz a natureza

e educaccedilatildeo as impedem de adquirir o rapido e seguro golpe de vista sobre

factos inesperados e satildeo ellas incapazes de ver e apreciar com exatidatildeo a sua

importacircncia e modalidade615

614

O artigo 230 do Coacutedigo Penal de 1890 estipulava que ldquoExceder a prudente faculdade de reprehender

corrigir ou castigar offendendo ultrajando ou maltratando por obra palavra ou escripto algum

subalterno dependente ou qualquer outra pessoa com quem tratar em razatildeo do officio Pena - de

suspensatildeo do emprego por um mez a um anno aleacutem das mais em que incorrer pelo excesso ou injuria que

praticar Para mais informaccedilotildees consultar Coacutedigo Penal - Decreto n 847 de 11 de Outubro de 1890

Disponiacutevel em httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-847-11-outubro-1890-

503086-publicacaooriginal-1-pehtml 615

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

231

Com relaccedilatildeo aos depoimentos dos meacutedicos o Juiz Municipal assinalou que os

deixavam de parte apesar de dois terem verificado a presenccedila de contusotildees no tornozelo

esquerdo do operaacuterio Micucci mas essa informaccedilatildeo natildeo tinha importacircncia no processo

uma vez que o reacuteu estava sendo julgado por espancamento e nesse caso a ldquodocircr basta

para caracterizar o crime Phenomeno subjetivo que eacute soacute a victima poderia declarar tel-a

ou natildeo sentido e na ausecircncia drsquoessa declaraccedilatildeo diz a jurisprudecircncia ao juiz compete

concluir por inducccedilatildeo a sua existenciardquo Para embasar seu argumento de que o ldquomenorrdquo

sentiu dor ao ser espancado o Juiz Municipal Hugo de Andrade Santos apoiou-se nos

depoimentos das testemunhas que disseram terem assistido ao fato e que Micucci

recebera vaacuterios tapas do gerente Gervason Segundo a argumentaccedilatildeo do Juiz ldquotapas de

um homem de 42 annos no momento de raiva em uma creanccedila de 13 annos fatalmente

produzem dor com ou sem escoriaccedilotildees ou ecchymosesrdquo O Juiz ainda ponderou que as

manchas produzidas pelo espancamento e que poderiam receber vaacuterias denominaccedilotildees

poderiam desaparecer em pouco tempo ldquopois se diffudem aacutes vezes rapidamente e nem

sempre estatildeo em proporccedilatildeo com a violencia do traumatismo mas dependem da

constituiccedilatildeo individual do local da edade etcrdquo Essa argumentaccedilatildeo fundamenta-se no

livro de Hans Grou ldquoGuia Pratico para a instrucccedilatildeo dos processos criminaisrdquo

O Juiz Municipal desconstruiu o argumento do advogado do reacuteu Dr

Constantino Luiz Palleta de que o gerente da faacutebrica Meurer teria agido em

conformidade com a lei caso tivesse repreendido o operaacuterio Micucci Segundo o Juiz o

artigo 230 do Coacutedigo Penal citado e utilizado pelo Dr Palleta na defesa do reacuteu referia-

se ldquoao excesso de poder da autoridade publica ou funcionaacuterio publico tanto assim que a

pena eacute de suspensatildeo de empregordquo Desta forma a invocaccedilatildeo do art 230 natildeo era propiacutecia

agrave defesa do reacuteu Antonio Gervason Pelas provas dos autos o Juiz Municipal Hugo de

Andrade dos Santos julgou no ldquodespacho de pronuacutenciardquo procedente a denuacutencia de

espancamento do operaacuterio Micucci e pronunciou o reacuteu Antonio Gervason no artigo 303

do Coacutedigo Penal sujeitando-o a prisatildeo e arbitrou o valor da fianccedila provisoacuteria em

500$000 A fianccedila provisoacuteria foi paga

O juiz de direito da comarca de Juiz de Fora Augusto Cesar Pedreira Franco foi

ponderando parte a parte o ldquodespacho de pronuacutenciardquo proferido pelo juiz municipal Hugo

de Andrade Santos Em suas observaccedilotildees considerou improcedente a pronuacutencia do reacuteu

Antonio Gervason no art 303 do Coacutedigo Penal pois segundo ele natildeo havia provas

cabais sobre o espancamento do ldquomenorrdquo pelo gerente da faacutebrica Com relaccedilatildeo aos

232

depoimentos das operaacuterias e as divergecircncias constatadas o Juiz de Direito inferiu o

seguinte

[] si seis raparigas todas operarias collocadas no mesmo niacutevel social

tendo as mesmas virtudes e os mesmos defeitos a mesma educaccedilatildeo e quasi

que a mesma edade divergem em seus depoimentos quando tinham razatildeo de

saber que um facto teve ou natildeo teve existencia natildeo pode o juiz sem mais

exame declarar que a verdade estaacute com o grupo que affirma e natildeo com

aquelle que nega Na duvida ou haacute de recorrer a outros elementos de prova

ou haacute de se estes natildeo existem pender para o grupo que nega Pode acontecer

que natildeo esteja com este a verdade Pouco importa O juiz julga pelo allegado

e provado e havendo conflicto de provas a decisatildeo deve sempre ser a mais

favoraacutevel ao accusado In dubio pro reo616

Em oito de maio de 1920 com base nos depoimentos dos meacutedicos testemunhas

e peritos o juiz de direito Augusto Cesar Pedreira Franco deu ldquoprovimento ao recurso

necessaacuterio interposto do despacho de pronunciardquo e o reformou e julgou como

ldquoimprocedente a denuncia de fls 2rdquo Dessa forma o reacuteu Antonio Gervason foi

inocentado da acusaccedilatildeo de ter espancado o ldquomenorrdquo Antonio Micucci no interior da

Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer em julho de 1919

A documentaccedilatildeo criminal segundo Baacuterbara Lisboa Pinto fornece mecanismos

para se perceber nas visotildees dos agentes do judiciaacuterio o que destacavam como

relevante De acordo com a autora ldquosatildeo inuacutemeras as maneiras de se interpretar e

portanto de se fazer cumprir a lei Nesses documentos igualmente podemos perceber

diaacutelogos e conflitos com a sociedaderdquo617

No processo crime de lesatildeo corporal analisado nesse artigo percebe-se o embate

entre os agentes do judiciaacuterio que utilizando o mesmo corpo de lei e literatura afins

tiveram uma interpretaccedilatildeo completamente diversa sobre o suposto espancamento do

ldquomenorrdquo Micucci O Juiz de Direito Augusto Cesar Pedreira Franco teve uma visatildeo

mais pragmaacutetica do caso Ele desconsiderou o depoimento dos familiares do ldquomenorrdquo e

das operaacuterias que disseram que assistiram ao gerente Antonio Gervason espancar

Antonio Miccuci atendo-se apenas agraves declaraccedilotildees dos meacutedicos e ao resultado do auto

de corpo de delito Enquanto isso o Juiz Municipal Hugo de Andrade Santos deu

616

In dubio pro reo em duacutevida pelo reacuteu TARANTI Patrick G Dicionaacuterio baacutesico de latim-portuguecircs

expressotildees e termos juriacutedicos 1 ed virtual SP Cajuru 2006 Disponiacutevel em

httpptslidesharenetWaleriahicionrio-bsico-latimportugus-expresses-e-termos-jurdicos Acessado em

10-11-2013 617

PINTO Baacuterbara Lisboa ldquoO ldquomenorrdquo nos processos criminais sob a oacutetica dos atores dos Tribunais

Criminais no iniacutecio da Repuacuteblicardquo In RIBEIRO Gladys Sabina NEVES Edson Alvisi FERREIRA

Maria de Faacutetima C Moura (orgs) Diaacutelogos entre Direito e Histoacuteria cidadania e justiccedila Niteroacutei

EdUFF 2009 p 143

233

creacutedito agraves declaraccedilotildees dos familiares e das operaacuterias apesar de observar certas

contradiccedilotildees presentes nos depoimentos das mesmas Sobre as atitudes dos agentes da

Justiccedila Baacuterbara L Pinto ressaltou

[] na esfera processual a atuaccedilatildeo dos agentes era norteada por elementos

presentes na hora de acusar de defender ou de decidir sobre questotildees

referentes ao crime em tela Estavam em jogo concepccedilotildees formadas pela

influecircncia da formaccedilatildeo acadecircmica pela forma de compreender o Direito e a

tradiccedilatildeo juriacutedica no Brasil pela influencia do pensamento de autores

valorizados nos manuais de doutrina de direito penal pela organizaccedilatildeo da

burocracia judiciaacuteria pelas praacuteticas que se desenvolviam no cotidiano de

cada instacircncia da justiccedila e esses indiviacuteduos eram ainda influenciados pelas

noccedilotildees gerais de justiccedila que permeavam o universo juriacutedico como aquelas

que faziam parte da opiniatildeo puacuteblica618

As peacutessimas condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios e os abusos de autoridade por

parte de patrotildees e chefes nas faacutebricas nas oficinas no comeacutercio nas residecircncias e nas

lavouras natildeo deveriam ser desconhecidas dos juiacutezes envolvidos no caso do ldquomenorrdquo

Micucci uma vez que os perioacutedicos geralmente traziam mateacuterias sobre as

reivindicaccedilotildees dos proletaacuterios sobre acidentes de trabalho e denuacutencias diversas Por

isso eacute viaacutevel supor que o Juiz Municipal Hugo de Andrade Santos tenha se mostrado

mais suscetiacutevel aos relatos das operaacuterias e dos familiares de Micucci e por isso tenha

pronunciado o reacuteu no artigo 303 do Coacutedigo Penal (1890)

O processo crime de lesatildeo corporal do menino Micucci eacute um retrato das

precaacuterias condiccedilotildees de vida e de trabalho da classe operaacuteria do iniacutecio do seacuteculo XX que

se via na necessidade de inserir seus filhos ainda bem jovens no mercado de trabalho

No processo tambeacutem se apreende o clima tenso entre os companheiros frente a uma

situaccedilatildeo limite no caso a denuacutencia do gerente da faacutebrica A possibilidade de perder o

emprego provavelmente foi um mecanismo de coerccedilatildeo utilizado pelos patrotildees para

frearem as reivindicaccedilotildees dos trabalhadores e para mantecirc-los calados em casos

semelhantes ao do operaacuterio Micucci

618

Idem

234

CAPIacuteTULO 4

OS ldquoDESERDADOS DA SORTErdquo A ASSISTEcircNCIA

AOS ldquoMENORESrdquo POBRES

Imagem 20 Fachada do Asilo Joatildeo Emilio - 1915 ESTEVES Albino LAGE Vidal Barbosa (org) Aacutelbum do

municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees 2008 p 263

235

41 AS INSTITUICcedilOtildeES PARA ldquoMENORESrdquo DESVALIDOS UMA

OBRA DE CARIDADE CRISTAtilde E UM DEVER DO ESTADO

[]

Aos quinze foi mandado pro reformatoacuterio

Onde aumentou seu oacutedio diante de tanto terror

(Faroeste Caboclo - Legiatildeo Urbana)

Atualmente a miacutedia de modo geral tem dado muito destaque aos atos

infracionais cometidos e ou que tiveram a participaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo As reportagens

tambeacutem ressaltam os casos de assassinatos e de chacina de jovens nas comunidades e

em bairros da periferia das grandes e meacutedias cidades praticados por pessoas ligadas

principalmente ao traacutefico de drogas por causa dos chamados ldquoacertos de contasrdquo bem

como por alguns policiais despreparados para as accedilotildees ou envolvidos com a

criminalidade Segundo o Conselho Nacional do Ministeacuterio Puacuteblico ocorreu um

aumento na ordem de 7 no nuacutemero de representaccedilotildees registradas pelos Ministeacuterios

estaduais no que diz respeito aos atos infracionais cometidos por menores de 18 anos

num comparativos entre os anos de 2011 e 2012619

Essas notiacutecias satildeo utilizadas por

uma parcela de poliacuteticos juristas repoacuterteres apresentadores policiais e por diversos

outros setores da sociedade para defender a reduccedilatildeo da maioridade penal no paiacutes

Objetivando sensibilizar a opiniatildeo puacuteblica a esse respeito muitas vezes satildeo lanccediladas as

perguntas ndash ldquoe se fosse com vocecircrdquo ldquoe se fosse com seu filho ou sua filhardquo ou ldquoe se

fosse com um parente seurdquo Assim a questatildeo passa para um niacutevel de discussatildeo pessoal

do indiviacuteduo do emocional ficando relegado a segundo plano a problemaacutetica efetiva da

crianccedila e do jovem infrator abandonada em risco social e desassistida

619

ldquoAumentam representaccedilotildees contra menores por crimes diz MPrdquo Disponiacutevel em

g1globocombrasilnoticia201306aumentam-representacoes-contra-menores-por-crimes-diz-mphtml

Acessado em 16-02-2015 A morteassassinatochacina de ldquomenoresrdquo procedentes das classes sociais

desfavorecidas eacute concebida por alguns setores das classes dominantes como um alivio um ldquobenefiacuteciordquo

uma limpeza para a sociedade Sobre o assassinato de ldquomenoresrdquo o presidente do Clube de Diretores

Lojistas do Rio de Janeiro (1991) assinalou que ldquomatando-se um pivete se faz um benefiacutecio agrave sociedaderdquo

Na Comissatildeo Parlamentar de Inqueacuterito da Cacircmara Federal referente ao extermiacutenio de crianccedilas e

adolescentes ele tentou negar tal declaraccedilatildeo poreacutem natildeo obteve ecircxito e procurou se justificar alegando

que ldquopivetes natildeo satildeo crianccedilas possuem entre 1216 anos e tem forccedila suficiente para enfrentar um adultordquo

Segundo Gisaacutelio Cerqueira Filho tal postura demonstra o ldquodesrespeito agrave lei como mecanismo inscrito na

cultura da violecircnciardquo Pela fala do Presidente do Clube de Lojista do RJ ldquopivetesrdquo de ldquo1216 anos natildeo satildeo

crianccedilasrdquo assim pressupotildee-se que apenas os filhos de 1216 anos de idade de famiacutelias de certo poder

aquisitivo podem ser classificadas de crianccedilasadolescentes e merecem viver estudar serem protegidos

por leis entre outros direitos CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio A Ideologia do Favor amp a Ignoracircncia

Simboacutelica da Lei Rio de Janeiro Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro 1993 p 28 Cf Jornal do

Brasil 23 ago 1991

236

Segundo os dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

(SINASE)620

relativos ao ldquolevantamento anual dosas adolescentes em cumprimento de

medida socioeducativa ndash 2012rdquo o Brasil tem 010 de jovens cumprindo medidas

socioeducativas de restriccedilatildeo e privaccedilatildeo de liberdade e 041 cumprindo Prestaccedilatildeo de

Serviccedilos agrave Comunidade (PSC) e em Liberdade Assistida (LA) Essa porcentagem

segundo o relatoacuterio do SINASE2012 eacute pequena frente ao quantitativo da populaccedilatildeo de

jovens do paiacutes que segundo o censo de 2007 era de 21265930621

Tal constataccedilatildeo

demonstra a necessidade de implantaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas efetivas para o

atendimento das crianccedilas e jovens das classes subalternas da sociedade e do

cumprimento real das disposiccedilotildees do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA 1990)

que infelizmente ainda natildeo atinge todas as crianccedilas do paiacutes pois muitas natildeo tecircm

acesso agrave escola agrave sauacutede entre outros direitos satildeo exploradas sexualmente e satildeo

inseridas precocemente em atividades prejudiciais ao seu desenvolvimento fiacutesico e

intelectual

O relatoacuterio ainda destacou que os atos infracionais satildeo cometidos

principalmente por ldquomenoresrdquo do sexo masculino (2010-2012) correspondendo por

95 das accedilotildees Tais dados se refletem no nuacutemero de unidades socioeducativas

destinadas ao atendimento de jovens do sexo masculino que perfazem um total de 377

O Brasil conta com 452 unidades nas ldquomodalidades de atendimento de internaccedilatildeo

internaccedilatildeo provisoacuteria semiliberdade e atendimento inicialrdquo desse total 35 satildeo

instituiccedilotildees femininas e 40 mistas (masculina e feminina) A regiatildeo sudeste comporta a

maioria dos estabelecimentos socioeducativos do paiacutes sendo responsaacutevel por 46

deles Os dados do relatoacuterio do SINASE2012 tambeacutem apontaram que a internaccedilatildeo eacute a

medida mais aplicada aos jovens infratores sendo os principais atos infracionais

620 O Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente (CONANDA) aprovou e publicou em

2006 a resoluccedilatildeo no 119 que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) Em

2006 tambeacutem foi encaminhado ao Congresso Nacional ldquoum conjunto de propostas [] para que se

fizessem detalhamentos e complementaccedilotildees necessaacuterias em relaccedilatildeo ao adolescente em cumprimento de

medida socioeducativa ao Estatuto da Crianccedila e Adolescente ndash ECA ndash no acircmbito deste tema as quais

deram origem agrave Lei Federal n 125942012rdquo Assim a Resoluccedilatildeo 1192006 e a Lei Federal 125942012

fazem parte do que foi denominado de ldquonormatizaccedilatildeo conceitual e juriacutedica necessaacuteria agrave implementaccedilatildeo

dos princiacutepios consagrados na Constituiccedilatildeo Federal e no ECA em todo territoacuterio nacional referentes agrave

execuccedilatildeo das medidas socioeducativas destinadas aos adolescentes em atendimento socioeducativordquo

Levantamento anual dosdas adolescentes em conflito com a Lei ndash 2012 Brasiacutelia Secretaacuteria de Direitos

Humanos da Presidecircncia da Repuacuteblica 2013 p 8-9 Disponiacutevel em wwwsdhgovbrassuntoscriancas-

e-adolescentespdflevantamento-sinase-2012 Acessado em 16-02-2015 621

Levantamento anual dosdas adolescentes em conflito com a Lei ndash 2012 p 11-12

237

praticados pelos ldquomenoresrdquo o roubo (3870) o traacutefico (2705) e o homiciacutedio

(903)622

Os dados do relatoacuterio trazem apenas um retrato dos tipos de crimes cometidos

pelos jovens todavia natildeo apresentam as condiccedilotildees das instituiccedilotildees de atendimento a

realidade de vida dessa parcela da populaccedilatildeo entre outros fatores Como apontado pelo

documento a internaccedilatildeo eacute a principal medida de atuaccedilatildeo do poder puacuteblico para com os

ldquomenoresrdquo infratores Todavia apesar do sistema de privaccedilatildeo da liberdade dos

chamados jovens infratores o que se verifica nos uacuteltimos anos eacute um aumento da

criminalidade entre essa parcela da populaccedilatildeo do paiacutes Assim eacute preciso procurar

compreender os fatores desse crescimento para combater suas causas O modelo vigente

de medidas socioeducativas de privaccedilatildeo da liberdade natildeo tem dado o resultado esperado

pelas autoridades e pela populaccedilatildeo Em geral o aumento da participaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo

em crimes as constantes rebeliotildees nos estabelecimentos e as reincidecircncias de atos

infracionais entre os jovens tecircm demonstrado isso A reduccedilatildeo da maioridade penal

colocada como a soluccedilatildeo para a problemaacutetica em tela provavelmente natildeo iraacute solucionar

a questatildeo da violecircncia entre os jovens Se atualmente principalmente ldquomenoresrdquo de 16

a 18 anos de idade satildeo ldquoutilizadosrdquo em atividades iliacutecitas pelo ldquomundo do crimerdquo pois

supostamente se ldquolivramrdquo mais facilmente das responsabilidades com a reduccedilatildeo da

idade penal para 16 anos eacute viaacutevel supor que o ldquomundo do crimerdquo iraacute se utilizar de

jovens com idades inferiores se realmente a ldquoloacutegicardquo for essa Dessa maneira eacute preciso

a aplicaccedilatildeo de poliacuteticas sociais efetivas de assistecircncia agraves crianccedilas e jovens das classes

subalternas da sociedade Sem um investimento de monta na educaccedilatildeo dessa parcela da

populaccedilatildeo provavelmente outras medidas ficaratildeo com seus resultados comprometidos

Emilio Garciacutea Meacutendez realizou um exame criacutetico dos vinte anos da Convenccedilatildeo

Internacional sobre os Direitos da Crianccedila (1989-2009) na Ameacuterica Latina onde

procurou fazer ldquoum balance acerca de su impacto y perspectivasrdquo O autor em sua

anaacutelise detectou trecircs periacuteodos distintos da Convenccedilatildeo nos paiacuteses latinos O primeiro

momento (1989-1991) foi o de ratificaccedilatildeo e adoccedilatildeo o segundo (1992-1997) de

expansatildeo juriacutedico-cultural dos diretos da infacircncia e por uacuteltimo (1998-2009) Meacutendez

observou um ldquoproceso de involucioacuten autoritariardquo ou seja um desmantelamento dos

princiacutepios de proteccedilatildeo integral e especial agraves crianccedilas e adolescentes estabelecidos na

622

Idem p 13 17 23-25

238

Convenccedilatildeo623

Esse uacuteltimo periacuteodo (1998-2009) apresenta dois momentos especiacuteficos

que segundo Mendez

Si desde 1997 hasta los antildeos 2003-2004 la involucioacuten autoritaria se

manifiesta bajo la forma claacutesica de las propuestas de aumento de las penas y

baja de edad de la imputabilidad a partir de esa uacuteltima fecha empieza a

manifestarse de forma bien diversa Se trata ahora no tanto del aumento de la

verborragia represiva sino mucho maacutes sutilmente del desmantelamiento

sistemaacutetico jurisprudencial normativo y faacutectico de todo tipo de garantiacuteas

destinado a facilitar la utilizacioacuten de la privacioacuten de libertad como una

ldquoforma reforzada de poliacutetica socialrdquo muy especialmente para los

adolescentes pobres de las periferias de los grandes conglomerados

urbanos624

A sociedade brasileira atual estaacute vivenciando esse processo denominado por

Meacutendez de retrocesso autoritaacuterio As discussotildees sobre penalidades mais riacutegidas para os

ldquomenoresrdquo infratores e os projetos de reduccedilatildeo da maioridade penal representam um

franco ataque de alguns setores sociais aos direitos e garantias da crianccedila e do

adolescente previstos na Constituiccedilatildeo Federal (1888) na Convenccedilatildeo Internacional dos

Direitos da Crianccedila (1989) da qual o Brasil eacute signataacuterio e ao Estatuto da Crianccedila e do

Adolescente (ECA1990) O fenocircmeno do ldquoneomenorismordquo representa um retrocesso na

posiccedilatildeo do Brasil que foi o paiacutes pioneiro na regiatildeo ldquoen mateacuteria de reformas legales e

institucionales que siguen a la Convencioacutenrdquo de 1989625

A internaccedilatildeoprisatildeo de ldquomenoresrdquo abandonados (fiacutesica e moralmente) e ou

indigitados como infratores e delinquentes era apontada como soluccedilatildeo para o chamado

grave problema social representado por esse segmento da populaccedilatildeo na transiccedilatildeo do

seacuteculo XIX para o XX Segundo o discurso corrente no periacuteodo examinado era preciso

moldar e amparar esses ldquomenoresrdquo para futuramente serem uacuteteis ao paiacutes Neste

contexto a educaccedilatildeo passou a ser visualizada como um mecanismo de transformaccedilatildeo

das crianccedilas das camadas subalternas da sociedade No imaginaacuterio republicano a escola

ldquoera uma arma para efetuar o progressordquo poreacutem essa era uma ldquoarma perigosardquo e que

para segmentos das classes dominantes deveria ser manuseada com cuidado impondo

623

MEacuteNDEZ Emilio Garciacutea ldquoDe las relaciones puacuteblicas al neomenorismo 20 antildeos de Convencioacuten

Internacional de los Derechos del Nintildeo en America Latina (1989-2009)rdquo In Passagens Revista

Internacional de Historia Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro v 3 n 1 jan-abr 2011 pp 117-

141 p 117 127-132 Disponiacutevel em wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigov3n1a62011pdf

Acessado em 06-07-2015 624

Idem p 129 625

Ibidem p 134

239

mesmo a ldquoredefiniccedilatildeo de seu estatuto como instrumento de dominaccedilatildeordquo626

Assim a

educaccedilatildeo era concebida como um mecanismo de controle social A modalidade de

ensino destinada agraves crianccedilas desvalidas abandonadas e ou delinquentes era a elementar

conjugada com o aprendizado de um ofiacutecio Em suma a preocupaccedilatildeo natildeo era com a

elevaccedilatildeo social desse grupo mas sim com a sua ldquodomesticaccedilatildeordquo para ser incluiacutedos na

sociedade civilizada do trabalho do progresso e da ordem nos patamares inferiores da

hierarquia social como matildeo de obra barata A esse respeito Irene Rizzini ressalta que

ldquofalava-se repetidamente em educar mas com um sentido particular ndash como antiacutedoto agrave

ociosidade e agrave criminalidade e natildeo como instrumento que possibilitasse melhores

chances de igualdade socialrdquo627

A pretensatildeo neste capiacutetulo eacute refletir sobre o encaminhamento que foi dado pelas

autoridades agrave questatildeo da infacircncia desvalida abandonada e infratora no Brasil na

passagem a modernidade No contexto de implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do trabalho livre

de desenvolvimento industrial e de acelerado processo de urbanizaccedilatildeo o discurso da

disciplina da ordem da proteccedilatildeo e do trabalho foi amplamente empregado para

justificar ou embasar as propostas destinadas aos ldquomenoresrdquo desvalidos que viviam

pelas ruas das cidades desamparados e a praticarem diversos delitos Fraccedilotildees dos

juristas dos meacutedicos higienistas da imprensa de setores da intelectualidade de

poliacuteticos entre outros debatiam sobre a necessidade de implantaccedilatildeo de uma lei de

proteccedilatildeo e de criaccedilatildeo de instituiccedilotildees para proteger corrigir recuperar amparar educar e

preparar pelo trabalho as ldquosementes do futurordquo

626

Segundo Marta Maria Chagas de Carvalho o engenheiro e professor da Escola Nacional de Belas

Artes Heytor Lyra da Silva concebia a ldquoinstruccedilatildeo pura e simplesrdquo como uma ldquoarma perigosardquo Ele e

outros integrantes da ABE (Associaccedilatildeo Brasileira de Educaccedilatildeo RJ 1924) preconizavam uma ldquoeducaccedilatildeo

integralrdquo que valorizava a formaccedilatildeo ciacutevica da populaccedilatildeo Na concepccedilatildeo de setores da intelectualidade a

educaccedilatildeo ciacutevica era revestida de um ldquopoderrdquo disciplinador que extrapolava os muros da escola

CARVALHO Marta Maria Chagas de A escola e a Repuacuteblica Satildeo Paulo Brasiliense 1989 p 7 58 ndash

60 Cf CARVALHO Marta Maria Chagas de ldquoQuando a histoacuteria da educaccedilatildeo eacute a histoacuteria da disciplina e

da higienizaccedilatildeo das pessoasrdquo In FREITAS Marcos Cezar (org) Histoacuteria Social da infacircncia no Brasil 6

ed Satildeo Paulo Cortez 2006 p 291-292 306-307 Cf Associaccedilatildeo Brasileira de Educaccedilatildeo Brasiliana a

divulgaccedilatildeo cientiacutefica no Brasil Disponiacutevel em

wwwmuseudavidafiocruzbrbrasilianacgicgiluaexesysstarthtminfoid=2ampsid=15 Acessado em 10-

04-2015 627 RIZZINI Irene Op cit 2008 p 144-145

240

411 A Assistecircncia aos ldquoMenoresrdquo

A questatildeo do abandono de crianccedilas foi algo que perpassou a sociedade brasileira

desde o periacuteodo colonial Segundo Maria Luiza Marciacutelio tal praacutetica foi introduzida

pelos colonizadores europeus nas terras do Novo Mundo uma vez que tal costume natildeo

existia entre a populaccedilatildeo indiacutegena antes da dominaccedilatildeo europeia De acordo com a

autora a Igreja Catoacutelica era tolerante com o ato de abandonar bebecircscrianccedilas mas

condenava (condena) veementemente o aborto e o infanticiacutedio Tal postura natildeo ocorria

nos paiacuteses de tradiccedilatildeo protestante onde a praacutetica de abandonar os filhos era condenada

uma vez que a doutrina religiosa pregava que o fiel deveria ser responsaacutevel pelos seus

atos perante Deus e a sociedade assim raros foram os casos628

Pelas Ordenaccedilotildees do Reino de Portugal as Cacircmaras Municipais seriam

responsaacuteveis pela criaccedilatildeo e proteccedilatildeo das crianccedilas abandonadasenjeitadas funccedilatildeo que

desempenharam com ldquorelutacircncia e a contragostordquo629

Os conselhos municipais eram

autorizados a criarem um imposto especial ndash a finta dos expostos ndash para arcar com as

despesas da criaccedilatildeo desse segmento A responsabilidade municipal se estendia ateacute a

crianccedila completar 7 anos de idade quando entatildeo eram entregues ao Juiz de Oacuterfatildeos que

as colocavam ldquoem casas de famiacutelias que pudessem acolhecirc-las ou empregaacute-lasrdquo630

Maria Luiza Marciacutelio ressaltou que as Cacircmaras Municipais podiam estabelecer

contratos escritos com outras instituiccedilotildees para a criaccedilatildeo e proteccedilatildeo das crianccedilas

enjeitadas Dessa maneira foram celebrados acordos principalmente entre as

municipalidades e as confrarias das Santas Casas de Misericoacuterdia que com autorizaccedilatildeo

real criaram Rodas e Casas dos Expostos bem como Recolhimentos para meninas

pobres e para as abandonadas mas as Cacircmaras continuaram responsaacuteveis

financeiramente e pelo controle da criaccedilatildeo dos expostos631

Em 1828 a Lei dos Municiacutepios estabeleceu que nos locais onde houvesse Santas

Casas de Misericoacuterdia as Cacircmaras poderiam transferir para as mesmas as suas

responsabilidades com a criaccedilatildeo das crianccedilas abandonadasexpostas Entretanto por

628

MARCIacuteLIO Maria Luiza ldquoA crianccedila abandonada na histoacuteria de Portugal e Brasilrdquo In VENANCIO

Renato Pinto (org) Uma histoacuteria social do abandono de crianccedilas de Portugal ao Brasil seacuteculos XVIII-

XIX Satildeo Paulo Alameda Editora PUC Minas 2010 p 21-22 MARCIacuteLIO Maria Luiza Histoacuteria Social

da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo Editora HUCITEC 2006 p 128 629

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 131 630

Idem p 139-140 MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2010 p 22 ndash 23 631

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 135 Cf RODRIGUES Andreacutea da Rocha ldquoAs Santas

Casas da Misericoacuterdia e a Roda dos Expostosrdquo In VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010

241

causa de problemas relacionados com o repasse de verbas pelas Cacircmaras as

Assembleias Provinciais passaram a subsidiar as despesas das Misericoacuterdias com a

criaccedilatildeo das crianccedilas enjeitadas632

Todavia o sistema mais usual de criaccedilatildeo das crianccedilas oacuterfatildes pobres enjeitadas

abandonadas foi o ldquoinformalrdquo ou ldquoprivadordquo Nas localidades onde natildeo contavam com

sistema de Rodas dos Expostos as crianccedilas eram abandonadas nas praccedilas estradas

praias portas de igrejas e residecircncias entre outros locais e eram criadas na maioria das

vezes pelas pessoas que as haviam encontrado quando os bebecircs conseguiam sobreviver

aos ataques de animais ao frio agrave chuva e agrave fome633

De acordo com Marciacutelio o sistema

informal de criaccedilatildeo dessas crianccedilas foi o mais amplo e universal existente em toda a

histoacuteria do Brasil e tal caracteriacutestica se constituiu em uma originalidade da ldquohistoacuteria da

assistecircncia agrave crianccedila abandonadardquo em nosso paiacutes Nas naccedilotildees europeias ndash eacutepocas

Moderna e Contemporacircnea ndash os enjeitadosabandonados foram majoritariamente criados

pelas instituiccedilotildees634

Oportunamente examinarei o debate acerca das causas do

abandono de crianccedilas e os provaacuteveis fatores que levavam algumas famiacutelias a criarem os

abandonados e expostos

Durante o processo de constituiccedilatildeo do Estado Imperial a problemaacutetica da

infacircncia foi debatida de forma tangencial relacionada agrave questatildeo do ensino ou seja

estava inserida dentro de uma discussatildeo maior que era a da formaccedilatildeo do povo e do

cidadatildeo brasileiro Com a abertura dos cursos superiores de Medicina (Rio de Janeiro) e

Direito (Satildeo Paulo e Recife) na deacutecada de 1820 a temaacutetica e mesmo a definiccedilatildeo da

infacircncia desenvolveu-se com mais vigor principalmente no campo da medicina As

teses meacutedicas defendidas entre as deacutecadas de 1830 a 1870 abordaram diversos temas

sobre a crianccedila e a famiacutelia (educaccedilatildeo aleitamento criaccedilatildeo mortalidade doenccedilas da

pueriacutecia abandono ilegitimidade prostituiccedilatildeo infantil e outros) Nesse periacuteodo das 81

teses que refletiram sobre o tema em apreccedilo 419 dedicaram-se exclusivamente agraves

crianccedilas pertencentes aos estratos desfavorecidos da sociedade Esses estudos

analisaram a problemaacutetica da infacircncia em consonacircncia com as questotildees sociais do

632

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 135 143-144 AREND Silvia Maria Faacutevero ldquoDe

expostos a menor abandonado uma trajetoacuteria juriacutedico-socialrdquo In VENANCIO Renato Pinto (org) Op

cit 2010 p 344-345 633

FARIA Sheila de Castro ldquoA propoacutesito das origens dos enjeitados no periacuteodo escravistardquo In

VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010 p 83-84 ______ A colocircnia em movimento fortuna e

famiacutelia no cotidiano colonial Rio de Janeiro Nova Fronteira 1998 p 68 MARCIacuteLIO Maria Luiza Op

cit 2006 p135-136 MORENO Alessandra Zorzetto ldquoNa roda da vida os filhos de criaccedilatildeo em Satildeo

Paulo colonialrdquo In VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010 p 99-101 634

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 136

242

periacuteodo como escravidatildeo crescimento urbano pobreza mendicidade relaccedilotildees de

trabalho entre outros635

No campo juriacutedico a discussatildeo principal com relaccedilatildeo agrave infacircncia logo apoacutes a

emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil relacionou-se com a questatildeo da definiccedilatildeo da idade penal

e sobre a problemaacutetica do discernimento do ldquomenorrdquo no ato criminoso636

Mas foi a partir da segunda metade do seacuteculo XIX com o processo gradual de

emancipaccedilatildeo do trabalho escravo colocado em andamento pelo Governo imperial (fim

do traacutefico Atlacircntico de escravos 1850 libertaccedilatildeo do ventre escravo 1871 e aboliccedilatildeo do

trabalho escravo 1888) que a questatildeo da infacircncia tornou-se um tema de discussatildeo de

amplos setores da sociedade ndash poliacuteticos meacutedicos juristas professores entre outros

Nessa conjuntura as crianccedilas dos estratos sociais subalternos passaram a ter uma grande

relevacircncia nos debates acerca de questotildees como o controle social a formaccedilatildeo de matildeo de

obra as famiacutelias populares a criminalidade a educaccedilatildeo entre outros De acordo com

Marciacutelio o fim do traacutefico Atlacircntico de escravos em 1850 ocasionou nas classes

dominantes uma ldquoprimeira onda de temor de se verem sem matildeo de obra domeacutesticardquo

bem como agriacutecola Tal fato se refletiu na postura de setores poliacuteticos e da

intelectualidade de modo geral que ressaltavam a necessidade de se dar assistecircncia agraves

crianccedilas desvalidas e ou abandonadas637

Todavia foi principalmente apoacutes a decretaccedilatildeo da Lei do Ventre Livre (1871) que

a crianccedila pobre ndash descendente ou natildeo de escravos ndash tornou-se efetivamente uma

preocupaccedilatildeo para amplos setores da sociedade que passaram a discorrer sobre a

necessidade de uma poliacutetica de assistecircncia para os ldquomenoresrdquo como jaacute foi examinado

no primeiro capiacutetulo

Ao longo da segunda metade do seacuteculo XIX foram criadas algumas instituiccedilotildees

(religiosas leigas ou estatais) com o objetivo de dar assistecircncia educar e preparar pelo e

para o trabalho os ldquomenoresrdquo desvalidos oacuterfatildeos e ou abandonados638

As Santas Casas

635

ABREU Marta MARTINEZ Alessandra Frota ldquoOlhares sobre a crianccedila no Brasil perspectivas

histoacutericasrdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil Seacuteculos XIX e XX Rio de

Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 p 20-22 636

Idem p 22 637

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 193 202 Cf NEDER Gizlene ldquoEntre o dever e a

caridade assistecircncia abandono repressatildeo e responsabilidade parental do Estadordquo Discursos Sediciosos

(RJ) RJ v Ano 9 n 14 p 199 ndash 231 2004 638

Entre as instituiccedilotildees criadas na segunda metade do seacuteculo XIX ainda durante o regime monaacuterquico

podemos citar o Imperial Instituto de Meninos Cegos (Rio de Janeiro 1854) o Asilo dos Meninos

Desvalidos (Rio de Janeiro 1875) o Asilo Agriacutecola Santa Isabel (Rio de Janeiro 1875) o Asilo Santa

Leopoldina (Porto Alegre 1857) o Coleacutegio dos Educandos Menores (Cearaacute 1856) a Casa dos

Educandos Artiacutefices de Manaus (1856) a Escola Propagadora de Instruccedilatildeo (Satildeo Paulo 1873) o Instituto

243

de Misericoacuterdia com suas Rodas de Expostos continuaram funcionando durante os

oitocentos e na primeira metade do seacuteculo XX Mas foram alvos de constantes ataques

por parte de poliacuteticos meacutedicos higienistas juristas entre outros setores que

denunciavam as altas taxas de mortalidade dos expostos a falta de preceitos da higiene

em suas instalaccedilotildees e no trato das crianccedilas por ser um atentado agrave moralidade e por

contribuir para o aumento de filhos ilegiacutetimos entre outras questotildees

A preocupaccedilatildeo social com a infacircncia pobre e ou abandonada observada

fundamentalmente apoacutes a aprovaccedilatildeo da Lei do Ventre esteve profundamente imbricada

com a questatildeo do controle social e da formaccedilatildeo de trabalhadores ordeiros higiecircnicos

civilizados e disciplinados Ao longo da segunda metade do seacuteculo XIX e no decorrer

das primeiras deacutecadas do novecentos a Medicina e o Direito tiveram um papel de

destaque no que diz respeito agrave infacircncia pobre abandonada e dita delinquente As teorias

da Escola de Milatildeo principalmente as de Ceacutesar Lombroso da Escola Socioloacutegica de

Liatildeo e o Positivismo de Augusto Comte tiveram uma grande influecircncia nas propostas de

assistecircncia agrave infacircncia desvalida e delinquente elaborada por meacutedicos juristas e

parlamentares brasileiros639

Essa preocupaccedilatildeo das classes letradas com a crianccedila pobre

abandonada e infratora de querer saber sobre ela e de como trataacute-la adequadamente

relaciona-se tambeacutem segundo Fernando Londontildeo ao fato de os grupos dominantes

verem tal atitude como uma maneira de ldquoparticipar dos avanccedilos do progresso

ocidentalrdquo640

A ldquoscienciardquo era concebida como um siacutembolo da civilizaccedilatildeo do moderno

e do progresso e o Brasil desejava participar desse modelo de ldquoconhecimento e

de Educandos Artiacutefices do Paraacute Lauro Sodreacute (1870-1872) a Casa dos Educandos Artiacutefices do Maranhatildeo

(1874) Colocircnia Agriacutecola Orfanoloacutegica e Industrial Isabel (Recife 1873) Colocircnia Agriacutecola Orfanoloacutegica

Cristina (Fortaleza 1880) a Colocircnia Orfanoloacutegica Isabel (Salvador 1886) entre outras Cf NEDER

Gizlene ldquoAssistecircncia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gisele de (org) Educar na infacircncia perspectivas

histoacuterico-sociais Satildeo Paulo Contexto 2010 p 102 111 MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p

204-205 208-213 217 LIMA Lana Lage da Gama VENAcircNCIO Renato Pinto ldquoO abandono de

crianccedilas negras no Rio de Janeirordquo In PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria da crianccedila no Brasil Satildeo

Paulo Contexto 1991 p 72 ABREU Marta MARTINEZ Alessandra Frota Op cit 1997 p 24-25 639

As teorias europeias tiveram grande influecircncia sobre setores da intelectualidade brasileira O

pensamento de Ceacutesar Lombroso de que as ldquotaras hereditaacuterias do criminosordquo soacute poderiam se contidas com

uma disciplina riacutegida e pela ordem que deveria comeccedilar na famiacutelia por intermeacutedio da autoridade do pai

fez vaacuterios seguidores no Brasil como por exemplo o jurista Evaristo de Moraes O positivismo de

Augusto Comte de consecuccedilatildeo de instituiccedilotildees totais de regeneraccedilatildeo ou correccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo

delinquentes tambeacutem fez adeptos no seio dos setores pensantes brasileiros Cf MARCIacuteLIO Maria Luiza

Op cit 2006 p 194 640

LONDONtildeO Fernando Torres ldquoA origem do conceito menorrdquo In PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria

da crianccedila no Brasil Satildeo Paulo Contexto 1991 p133

244

civilidaderdquo dos paiacuteses europeus e dos Estados Unidos Assim era preciso construir uma

imagem da naccedilatildeo como ldquomoderna industriosa civilizada e cientiacuteficardquo641

Desse modo as propostas de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados

e delinquentes nas primeiras deacutecadas do XX pautaram-se dentro dos ditos princiacutepios

cientiacuteficos (higienismo sanitarismo darwinismo eugenia entre outros) bem como na

jurisprudecircncia internacional relativa a tal problemaacutetica642

Tais projetos estavam em

consonacircncia com a nova conjuntura poliacutetica econocircmica e social da jovem Repuacuteblica

brasileira onde o trabalho passou a ser concebido como algo supremo que propiciava

riqueza ordem e progresso Imbuiacutedos dessa concepccedilatildeo sobre o trabalho setores da

intelectualidade brasileira passaram a defender um modelo assistencial de recolhimento

dos ldquomenoresrdquo desvalidos e infratores em que o trabalho seria um dos principais meios

de disciplinaacute-los e regeneraacute-los para que assim pudessem ingressar na sociedade como

cidadatildeos uacuteteis Entretanto boa parte dos projetos apresentados concernentes agrave

assistecircncia puacuteblica agrave infacircncia permaneceram no campo das ideias dos discursos e

debates ao longo dos primeiros anos republicanos

Apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889) os dirigentes procuraram logo criar

novas leis para o paiacutes No ano seguinte agrave instituiccedilatildeo do regime republicano foi

promulgado o Coacutedigo Penal brasileiro em outubro de 1890 Nesse Coacutedigo de 1890

observa-se um endurecimento no tratamento dispensado agrave infacircncia pobre abandonada e

indigitada delinquente se comparado ao Coacutedigo Criminal do Impeacuterio (1830) A

legislaccedilatildeo republicana reduziu a idade penal de 14 para 9 anos e determinou que os

ldquomenoresrdquo que haviam cometidos atos infracionais ldquocom discernimentordquo deveriam ser

ldquorecolhidos a estabelecimentos disciplinares industriais pelo tempo que ao juiz parecer

contanto que o recolhimento natildeo exceda a idade de 17 anosrdquo (Art 30)643

A ideia do

trabalho como uma estrateacutegia para a recuperaccedilatildeo desse segmento da sociedade pode ser

apreendida no artigo citado

641

SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientista instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil ndash

1870-1930 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 p 28-31 Cf LONDONtildeO Fernando Torres Op cit

1991 642

Nos Estados Unidos a partir da deacutecada de 1820 foram criadas as primeiras instituiccedilotildees

especificamente destinadas para o atendimento das ditas crianccedilas infratoras No decorrer do seacuteculo XIX

esses estabelecimentos ficaram marcados pela instituiccedilatildeo de uma riacutegida disciplina e pela implantaccedilatildeo do

ldquotrabalho fiacutesico e manual como elemento reabilitador educador disciplinador e formador das crianccedilas

infratoras e abandonadasrdquo Cf LONDONtildeO Fernando Torres Op cit 1991 p 133 643

Coacutedigo Penal ndash Decreto no 847 de 11 de outubro de 1890 Disponiacutevel em

httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-847-11-outubro-1890-503086-

publicacaooriginal-1-pehtml Acessado em 22-12-2014

245

Todavia o cumprimento do disposto no Coacutedigo Penal com relaccedilatildeo aos

ldquomenoresrdquo abandonados e infratores esbarrava nas condiccedilotildees materiais dos estados em

outras palavras faltavam instituiccedilotildees apropriadas para o recolhimento dos mesmos o

que na maioria das vezes fazia com que as crianccedilas fossem presas com adultos que

haviam praticado os mais diversos tipos de delitos644

Atraveacutes dos jornais Evaristo de

Moraes teceu contundentes criacuteticas a tal situaccedilatildeo Segundo o autor o encarceramento de

ldquomenoresrdquo com adultos funcionava como um ldquolaboratoacuterio de crimesrdquo onde o jovem se

instruiacuteda nos vaacuterios ramos da criminalidade645

Aleacutem do fato do ldquomenorrdquo

possivelmente se especializar nas atividades criminais ao ser preso com adultos ele

tambeacutem poderia ser viacutetima de diversas formas de violecircncia Wesleyuml Silva cita o caso

noticiado pelo Jornal do Brasil em 28 de marccedilo de 1926 de um jovem engraxate da

cidade do Rio de Janeiro que foi detido depois de jogar um vidro de tinta em um cliente

que se recusou a pagar pelos serviccedilos O ldquomenorrdquo foi encarcerado juntamente com vinte

detentos adultos que dele abusaram sexualmente O engraxate permaneceu preso

durante um mecircs e ldquosomente depois disto pocircde procurar socorro meacutedico junto agrave Santa

Casa do Distrito Federalrdquo A accedilatildeo das autoridades pelo que se presume da notiacutecia do

perioacutedico foi penalizar o ldquomenorrdquo e natildeo defender o seu direito de receber pelo serviccedilo

prestado646

O aumento da criminalidade infantil e da presenccedila de crianccedilas abandonadas e ou

desvalidas nas ruas das meacutedias e grandes cidades brasileiras no final do seacuteculo XIX e

nas primeiras deacutecadas do XX passou a ser uma problemaacutetica constantemente divulgada

pela imprensa que cobrava das autoridades puacuteblicas medidas urgentes para sanar o

grave problema social representado por essa parcela da populaccedilatildeo As mateacuterias

jornaliacutesticas reivindicavam a criaccedilatildeo de instituiccedilotildees que pudessem recolher os

ldquomenoresrdquo das ruas ou retiraacute-los das famiacutelias que presumivelmente natildeo possuiacuteam as

condiccedilotildees morais e materiais para criaacute-los A ideia do trabalho como soluccedilatildeo para essa

problemaacutetica foi recorrente nos artigos publicados nos perioacutedicos da eacutepoca

644

Cf SANTOS Marco Antonio Cabral dos ldquoCrianccedila e criminalidade no iniacutecio do seacuteculordquo In PRIORE

Mary Del (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil 5 ed Satildeo Paulo Contexto 2006 p 224 SILVA

Wesleyuml Por uma histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da delinquecircncia de menores em Belo Horizonte ndash

1921-1941 Doutorado em Educaccedilatildeo Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2007 p 251-253

LONDONtildeO Fernando Torres Op cit 1991 p 138-140 RIZZINI Irene ldquoCrianccedilas e menores ndash do

Paacutetrio Poder ao Paacutetrio dever Um histoacuterico da legislaccedilatildeo para a infacircncia no Brasilrdquo In RIZZINI Irene

PILOTTI Francisco (orgs) A arte de governar crianccedilas a histoacuteria das poliacuteticas sociais da legislaccedilatildeo e

da assistecircncia agrave infacircncia no Brasil 3 ed Satildeo Paulo Cortez 2011 p 119-120 645

RIZZINI Irene Op cit 2011 p 119-120 646

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 111 nota 257

246

A preocupaccedilatildeo social com a crianccedila das classes vulneraacuteveis da sociedade surgiu

em um momento marcado pela discussatildeo do controle sobre a matildeo de obra No contexto

de implantaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre a repressatildeo agrave vadiagem e agrave ociosidade

passou a ser considerada por diversos segmentos da populaccedilatildeo como um imperativo da

nova ordem poliacutetica econocircmica e social O Coacutedigo Penal de 1890 nos Artigos 399 e

400 especificou o que se entendia por vadiagem e determinou as penalidades para tal

infraccedilatildeo

Art 399 Deixar de exercitar profissatildeo officio ou qualquer mister em que

ganhe a vida natildeo possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que

habite prover a subsistencia por meio de occupaccedilatildeo prohibida por lei ou

manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes

Pena - de prisatildeo cellular por quinze a trinta dias

sect 1ordm Pela mesma sentenccedila que condemnar o infractor como vadio ou

vagabundo seraacute elle obrigado a assignar termo de tomar occupaccedilatildeo dentro de

15 dias contados do cumprimento da pena

sect 2ordm Os maiores de 14 annos seratildeo recolhidos a estabelecimentos

disciplinares industriaes onde poderatildeo ser conservados ateacute aacute idade de 21

annos

Art 400 Si o termo for quebrado o que importaraacute reincidencia o infractor

seraacute recolhido por um a tres annos a colonias penaes que se fundarem em

ilhas maritimas ou nas fronteiras do territorio nacional podendo para esse

fim ser aproveitados os presidios militares existentes

Paragrapho unico Si o infractor for estrangeiro seraacute deportado647

A eacutetica do trabalho eacute perceptiacutevel nos artigos citados do Coacutedigo de 1890 O

adensamento populacional das grandes e meacutedias cidades e das capitais na transiccedilatildeo do

seacuteculo XIX para o XX veio acompanhado de diversos problemas sociais como

habitaccedilatildeo saneamento mendicacircncia desemprego prostituiccedilatildeo criminalidade etc

Dentro desse quadro urbano muitas pessoas das classes sociais mais baixas natildeo

conseguiram se inserir profissionalmente fazendo com que muitos vivessem de biscates

ou de atividades consideradas iliacutecitas Os empregos temporaacuterios provavelmente

dificultavam a manutenccedilatildeo de uma residecircncia fixa Apesar da precariedade das casas

populares e de cocircmodos os alugueacuteis eram altos para os parcos recursos Assim essa

populaccedilatildeo excluiacuteda do mercado de trabalho ldquolegalrdquo por inuacutemeros fatores foi

transformada em vadiavagabunda Entre esses setores desfavorecidos da sociedade

havia muitas crianccedilasjovens oacuterfatildes abandonadas vivendo em famiacutelias chefiadas pelas

matildees e ou avoacutes entre outros tipos de organizaccedilatildeo familiar (vivendo com parentes

647

Coacutedigo Penal ndash Decreto no 847 de 11 de outubro de 1890 Disponiacutevel em

httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-847-11-outubro-1890-503086-

publicacaooriginal-1-pehtml Acessado em 22-12-2014

247

vizinhos etc) A insuficiecircncia de recursos dessas famiacutelias pobres possivelmente levava

muitas destas crianccedilas para as ruas das cidades para esmolar realizar atividades

(carregadores engraxates) e outras tinham como moradia as proacuteprias ruas praccedilas e

becos

A presenccedila dos ldquomenoresrdquo pelas ruas das cidades praticando diversas atividades

brincadeiras e delitos foi objeto de consideraccedilatildeo da imprensa e de setores da

intelectualidade que clamavam por uma providecircncia das autoridades O Art 399 sect 2o do

Coacutedigo Penal (1890) estipulou que as crianccedilas maiores de 14 anos de idade que fossem

condenadas como vadias ou vagabundas deveriam ser encaminhadas para instituiccedilotildees

ldquodisciplinares industriaisrdquo entretanto como jaacute foi salientado havia uma carecircncia de

estabelecimentos puacuteblicos para que a lei pudesse ser cumprida integralmente E essa

situaccedilatildeo se manteve praticamente durante toda a Primeira Repuacuteblica Desta maneira as

autoridades policiais e do judiciaacuterio procuraram mecanismos de proteccedilatildeo controle e

repressatildeo para esse grupo social desvalido Uma das estrateacutegias foi o viacutenculo tutelar de

crianccedilas oacuterfatildes abandonadas ou integrantes de famiacutelias que supostamente natildeo tinham as

condiccedilotildees materiais e morais para educaacute-las e criaacute-las como jaacute estudado no capiacutetulo

dois Outra possibilidade era a prisatildeo dos ditos ldquomenoresrdquo vadios e delinquentes em

cadeiasprisotildees juntamente com adultos Havia ainda em alguns municiacutepios a

possibilidade de se contar com os estabelecimentos religiosos de caridade para as

crianccedilas pobres e ou abandonadas

Nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX e em princiacutepios do seacuteculo XX o aumento da

criminalidade infanto-juvenil e o tratamento que deveria ser dispensado aos ldquomenoresrdquo

desvalidos e delinquentes era uma questatildeo que estava em discussatildeo em vaacuterias naccedilotildees da

Europa e da Ameacuterica Dessa maneira fraccedilotildees de poliacuteticos juristas meacutedicos

criminologistas psicoacutelogos policiais educadores entre outros setores letrados passaram

a ressaltar a necessidade de um direito penal especiacutefico para a infacircncia e a juventude

delinquente com tribunais destinados especificamente para o tratamento dessa parcela

da sociedade648

O primeiro passo nesse sentido foi dado pelo Estado de Illinois (EUA)

em 1899 com a criaccedilatildeo do primeiro tribunal juvenil649

648

RIZZINI Irene Op cit 2011 p 118-119 SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 112-116 LONDONtildeO

Fernando Torres Op cit 1991 p 133-134 A tiacutetulo de exemplo pode ser observado o caso da Franccedila

que nos primeiros anos do seacuteculo XX enfrentou um aumento da delinquecircncia entre os jovens - os

apaches Essa situaccedilatildeo foi objeto de consideraccedilatildeo de diversos segmentos da sociedade francesa tendo

mesmo uma parcela dos setores dominantes passado a defender a necessidade de penas mais duras e ateacute

mesmos castigos corporais Segundo Michele Perrot o termo apache se referia aos ldquojovens malandros

dos subuacuterbiosrdquo das grandes cidades principalmente agrave Paris popular A expressatildeo surgiu no iniacutecio do

248

A emergecircncia desse movimento pela proteccedilatildeo social da infacircncia preconizava a

necessidade de se proteger regenerar e recuperar o ldquomenorrdquo para que ele pudesse ser

devolvido sadio e produtivo para a sociedade Tal pensamento se contrapunha agraves ideias

de simples repressatildeo uma vez que o propoacutesito era reeducar o ldquomenorrdquo atraveacutes de

princiacutepios morais da educaccedilatildeo e do trabalho Nesse contexto os Estados foram

paulatinamente ao longo do seacuteculo XX assumindo as suas responsabilidades parentais

para com a infacircncia desvalida abandonada e ou delinquente atraveacutes da decretaccedilatildeo de

leis e de medidas de prevenccedilatildeo de proteccedilatildeo de amparo e de regeneraccedilatildeo passando

mesmo a substituir as funccedilotildees da famiacutelia que supostamente natildeo apresentasse as

condiccedilotildees morais e econocircmicas para a criaccedilatildeo e educaccedilatildeo de suas crianccedilas650

Nesse contexto setores das classes dominantes brasileira em consonacircncia com o

debate que estava ocorrendo em acircmbito internacional ressaltavam a necessidade de o

paiacutes promulgar leis especificas para a infacircncia desvalida abandonada trabalhadora e

dita delinquente Ao longo da Primeira Repuacuteblica diversos segmentos da

intelectualidade passaram a reivindicar uma responsabilidade social maior do Estado

pela situaccedilatildeo do ldquomenorrdquo ou seja medidas de proteccedilatildeo de assistecircncia e de educaccedilatildeo

As propostas de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados oacuterfatildeos e

indigitados delinquentes na passagem a modernidade vinham casadas com a ideia de

trabalho Em consonacircncia com esse pensamento os asilos abrigos escolas institutos

entre outras denominaccedilotildees dadas para estes estabelecimentos emergiram no ideaacuterio de

setores das classes dominantes como espaccedilos por excelecircncia de assistecircncia agraves crianccedilas e

jovens das camadas mais baixas da hierarquia socioeconocircmica De acordo com os

discursos de modernidade progresso e civilizaccedilatildeo da eacutepoca parcelas da intelectualidade

propunham que tais estabelecimentos fossem arquitetados dentro de princiacutepios

seacuteculo XX por volta de 1902 em referecircncia a ldquoimagem indiacutegena difundida pelos livros infantisrdquo

Entretanto natildeo eacute conhecido quem empregou primeiramente essa palavra em referecircncia aos grupos se

membros da poliacutecia da imprensa ou os proacuteprios jovens A expressatildeo apache de acordo com Perrot

passou a ser ldquoo novo sinocircnimo de bandidordquo eram os grupos de jovens que uniam ldquoagrave sua delinquecircncia uma

certa contestaccedilatildeo da ordem socialrdquo PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres e

prisioneiros Satildeo Paulo Paz e Terra 2010 p 315-317 329-332 ______ ldquoA juventude operaacuteria Da

oficina agrave faacutebricardquo In LEVI Giovanni SCHMITT Jean-Claude (org) Histoacuteria dos Jovens a eacutepoca

contemporacircnea Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 p 84 86-87 649

FERREIRA Antoacutenio Gomes LIMA Carla Cristina ldquoMenores em risco social e delinquentes no

seacuteculo XIX e princiacutepios do seacuteculo XX agrave luz da legislaccedilatildeo portuguesardquo In FARIA FILHO Luciano

Mendes de (org) A infacircncia e sua educaccedilatildeo materiais praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e Brasil)

Belo Horizonte Autecircntica 2004 p 91-93 Atraveacutes do Decreto de 27 de maio de 1911 Portugal

regulamentou a criaccedilatildeo e o funcionamento de Tribunais de Menores Idem p 95 Em 1912 foi criado o

Tribunal para Menores na Franccedila PERROT Michelle Op cit 2010 p 132 Cf SILVA Wesleyuml Op

cit 2007 p 114-115 650

FERREIRA Antoacutenio Gomes LIMA Carla Cristina Op cit 2004 p 91-98

249

cientiacuteficos higiecircnicos e disciplinares Assim creio que diversos setores da sociedade

vislumbravam as instituiccedilotildees como uma ldquomaacutequina de poderrdquo que teria a capacidade de

transformar os ldquomenoresrdquo procedentes dos estratos desfavorecidos em ldquocorpos

submissosrdquo e ldquodoacuteceisrdquo ou seja corpos transformados e aperfeiccediloados para ocuparem as

funccedilotildees mais baixas dentro estrutura social651

Desse modo os ldquomenoresrdquo seriam

devolvidos agrave sociedade da ordem e do progresso como trabalhadores submissos e uacuteteis

agrave naccedilatildeo

Ainda no que diz respeito agraves instituiccedilotildees assistenciais creio que a segregaccedilatildeo de

crianccedilas e jovens das camadas vulneraacuteveis da populaccedilatildeo em estabelecimentos de

internamento era visualizada por fraccedilotildees da classe dominante como uma maneira de

ldquolimparrdquo as ruas e praccedilas da presenccedila de pessoas que ameaccedilavam a imagem de

progresso civilizaccedilatildeo e modernidade bem como de se resguardar a seguranccedila e a

propriedade dos setores afortunados Possivelmente natildeo se constituiacutea em uma

preocupaccedilatildeo as causas do abandono da delinquecircncia infanto-juvenil bem como as

condiccedilotildees das instituiccedilotildees para abrigar os ldquomenoresrdquo

De acordo com Edson Passetti ldquoo orfanato e a prisatildeo para crianccedilas e jovens satildeo

imagens que assustam quem estaacute fora e apavoram quem estaacute dentrordquo652

A epiacutegrafe que

abre este capiacutetulo eacute um refratildeo da muacutesica Faroeste Caboclo do grupo de rock brasileiro

Legiatildeo Urbana em que uma das personagens da letra da muacutesica foi enviada aos 15 anos

de idade para um reformatoacuterio ldquoonde aumentou o seu oacutedio diante de tanto terrorrdquo A

histoacuteria dos estabelecimentos de recolhimento sejam religiosos filantroacutepicos ou estatais

satildeo marcadas pela imagem do abandono da solidatildeo das perdas da violecircncia da

exclusatildeo Suponho em consonacircncia com a epiacutegrafe que muitos jovens saiacuteram ou saem

desses estabelecimentos mais revoltados desiludidos apaacuteticos do que quando entraram

devido as experiecircncias vivenciadas nesses estabelecimentos

A vida de muitas dessas crianccedilas foi (eacute) marcada desde o nascimento pela falta

de cuidados baacutesicos (alimentar meacutedico e afetivo) e pelo abandono perdas e carecircncias

Nas instituiccedilotildees de internaccedilatildeo provavelmente elas vivenciaram (vivenciam) outras

formas de abandonoperdasviolecircncia como o afastamento da famiacutelia653

e da

651

FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis Vozes 1987 p 118-

119 652

PASSETTI Edson ldquoCrianccedilas carentes e poliacuteticas puacuteblicasrdquo In PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria

das crianccedilas no Brasil 5 ed Satildeo Paulo Contexto 2006 p 356 653

Segundo Maria M Malta Campos muitas crianccedilas denominadas de abandonadas natildeo satildeo efetivamente

abandonadas ou seja muitas delas que vivem nas ruas dormindo debaixo de viadutos pontes e

marquises continuam se relacionando com seus familiares esporadicamente Viver nas ruas mendigando

250

convivecircncia com os companheiros de rua Nos estabelecimentos os ldquomenoresrdquo ficavam

(ficam) sob a vigilacircncia de funcionaacuterios que na maioria das vezes eram (satildeo)

indiferentes agraves suas condiccedilotildees e ao seu bem-estar tratando-os com descaso e

possivelmente em muitas situaccedilotildees com palavras e accedilotildees violentas654

Ainda com

relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees Ethel Volfzon Kosminsky ressalta que elas eram (satildeo) regidas

por

[] normas obrigaccedilotildees e horaacuterios riacutegidos Eacute o tempo burocraacutetico

determinado pela instituiccedilatildeo Tempo da vigilacircncia e do trabalho fiscalizado

por castigos e por ameaccedilas onde o lsquolazerrsquo eacute um precircmio ao lsquobom

comportamentorsquo natildeo eacute o tempo da infacircncia tempo da liberdade e do bem-

querer655

Entretanto neste espaccedilo de ldquoelogio agrave disciplinardquo nada saiacutea absolutamente

perfeito Segundo Edson Passetti toda uma ldquoeconomia da ilegalidaderdquo era (eacute) colocada

em accedilatildeo entre os internos os ldquointernos e seus superiores superiores e familiares dos

prisioneirosrdquo onde circulavam ldquomercadorias roubadas corpos drogas e lucrosrdquo

Segundo o autor

O mundo dos prisioneiros natildeo existe como algo separado ou marginal ele se

comunica com o mundo dos cidadatildeos livres por meio das ilegalidades

interceptaccedilotildees e exclusotildees Forma e aprimora corruptores enganadores e

camufladores de ambos os lados E obteacutem como resposta eficaz do

prisioneiro ao caacutercere o investimento na sua destruiccedilatildeo Ele eacute o uacutenico que

sabe e expressa que a prisatildeo e o internato em vez de corrigir deforma que a

integraccedilatildeo se daacute pelo avesso na ilegalidade que a austera vida de interno

orientada pela rotina que mortifica individualidades os dispotildee enfileirados

para accedilotildees delinquenciais Mas a falecircncia dos internatos em vez de gerar

investimentos em outras formas de educaccedilatildeo ao infrator se transformou em

estandarte dos amedrontados que clamam por mais seguranccedila muitas vezes

exigindo prisotildees de seguranccedila maacutexima e ateacute pena de morte656

praticando pequenos delitos trabalhando em muacuteltiplas atividades (liacutecitas ou natildeo) eacute uma das

possibilidades encontradas por diversos ldquomenoresrdquo de garantir o seu proacuteprio sustento e de ajudar os seus

familiares com dinheiro restos de alimentos (feiras supermercados etc) CAMPOS Maria Machado

Malta ldquoInfacircncia abandonada o piedoso disfarce do trabalho precocerdquo In MARTINS Joseacute de Souza O

massacre dos inocentes a crianccedila sem infacircncia no Brasil 2 ed Satildeo Paulo HUCITEC 1993 p 118-121

654 Cf KOSMINSKY Ethel Volfzon ldquoInternados ndash os filhos do Estado padrastordquo In MARTINS Joseacute de

Souza O massacre dos inocentes a crianccedila sem infacircncia no Brasil 2 ed Satildeo Paulo HUCITEC 1993 655

Idem p 173 Cf PASSETTI Edson Op cit p 356 Charles Dickens no romance intitulado Oliver

Twist retratou as peacutessimas condiccedilotildees de higiene de alimentaccedilatildeo os maus-tratos e humilhaccedilotildees

dispensados agraves crianccedilas nos estabelecimentos assistenciais ingleses do seacuteculo XIX bem como a

corrupccedilatildeo das instituiccedilotildees e de seus funcionaacuterios A obra pode-se dizer eacute uma denuacutencia das condiccedilotildees

precaacuterias das classes operaacuterias e desvalidas da sociedade inglesa E tambeacutem da exploraccedilatildeo da matildeo de

obra infantil tanto por parte dos setores produtivos quanto por pessoas ligadas ao mundo do crime Cf

DICKENS Charles Oliver Twist Traduccedilatildeo de Machado de Assis e Ricardo Liacutesias 1 ed Satildeo Paulo

Hedra 2002 656

PASSETTI Edson Op cit 2006 p 356 Cf SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 269

251

Apesar de se ter constatado haacute tempos a ldquoineficaacutecia do internamento como

instituiccedilatildeo capaz de corrigir comportamentos ou reeducar o jovem prisioneiro parapelo

trabalhordquo ele permanece sendo o modelo mais usual em vaacuterios paiacuteses Assim de acordo

com Passetti o Estado ao optar por uma ldquopoliacutetica de internaccedilatildeo para crianccedilas

abandonadas e infratorasrdquo escolheu ldquoeducar pelo medordquo657

O autor argumentou que

vaacuterias foram as justificativas ao longo dos anos para a adoccedilatildeo e a permanecircncia do

modelo prisional Nas primeiras deacutecadas republicanas os pareceres meacutedicos-juriacutedicos

serviram de base para as propostas de construccedilatildeo e manutenccedilatildeo desses estabelecimentos

de internaccedilatildeo Era preciso tratar e aplicar as medidas juriacutedicas necessaacuterias aos

ldquomenoresrdquo abandonados e ou infratores para que eles pudessem futuramente ser

reintegrados agrave sociedade como cidadatildeos sadios e uacuteteis 658

Os anos 1920 foram iacutempares no que diz respeito agrave questatildeo da infacircncia no Brasil

podendo ser observada a emergecircncia de uma preocupaccedilatildeo social maior por parte do

Estado A mobilizaccedilatildeo de fraccedilotildees de poliacuteticos meacutedicos juristas advogados

educadores entre outros e o debate em acircmbito internacional sobre a problemaacutetica da

crianccedila abandonada desvalida trabalhadora e infratora creio que geraram uma pressatildeo

poliacutetica que contribuiu para uma intervenccedilatildeo mais efetiva do Estado no que diz respeito

aos ldquomenoresrdquo em especial com os classificados de abandonados e ou delinquentes

Em janeiro de 1921 foi aprovada a Lei n 4242 que fixou ldquoa Despesa Geral da

Republica dos Estados Unidos do Brasil para o exerciacutecio de 1921rdquo que em seu art 3o

autorizava o Governo a ldquoorganizar o serviccedilo de assistencia e protecccedilatildeo agrave infacircncia

abandonada e delinquenterdquo659

Essa autorizaccedilatildeo foi ratificada pelo art 1o do Decreto n

o

4547 de 22 de maio de 1922 Entretanto segundo Wesleyuml da Silva o presidente

Epitaacutecio Pessoa natildeo fez uso da autorizaccedilatildeo que lhe foi concedida pelo Decreto n 4547

provavelmente dada a situaccedilatildeo econocircmica do paiacutes naquele momento660

Em 20 de

dezembro de 1923 o presidente eleito Arthur Bernardes aprovou o Regulamento da

Assistecircncia e Proteccedilatildeo aos Menores Abandonados e Delinquentes atraveacutes do Decreto

de n 16272 Por intermeacutedio desse decreto foi criado no ldquoDistrito Federal um Juiacutezo de

657

Idem p 356 No dia 31 de marccedilo de 2015 foi aprovada na Comissatildeo de Constituiccedilatildeo e Justiccedila (CCJ)

da Cacircmara dos Deputados por 42 votos a favor e 17 contra agrave Proposta de Emenda Constitucional (PEC)

171-A93 que prevecirc a reduccedilatildeo da maioridade penal no Brasil de 18 anos para 16 anos de idade Isso fez

reacender um forte debate na sociedade brasileira sobre a questatildeo da infacircncia desamparada em risco

social e infratora 658

Idem p 357 659

RIZZINI Irene O seacuteculo perdido raiacutezes histoacutericas das poliacuteticas puacuteblicas para a infacircncia no Brasil 2

ed Rev Satildeo Paulo Cortez 2008 p 138 660

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 119-120

252

Menores para assistecircncia proteccedilatildeo defesa processo e julgamento dos menores

abandonados e delinquentesrdquo661

Segundo Irene Rizzini o periacuteodo compreendido entre

1923 a 1927 ldquoassistiu-se ao avolumar de capiacutetulos artigos e incisos procurando-se

cobrir com todo o detalhamento possiacutevel a regulamentaccedilatildeo da assistecircncia e proteccedilatildeo agrave

infacircncia abandonada e delinquenterdquo662

Coroando as accedilotildees governamentais para as

crianccedilas dos setores mais baixos da hierarquia socioeconocircmica em 1927 foi aprovado o

Coacutedigo de Menores (Decreto n 17943-A)

A deacutecada de 1920 ainda foi palco de dois congressos relativos agrave infacircncia Em

1922 a Capital da jovem Repuacuteblica Rio de Janeiro sediou o I Congresso Brasileiro de

Protecccedilatildeo agrave Infacircncia presidido pelo meacutedico Moncorvo Filho e o III Congresso

Americano dirigido pelo Dr Olinto de Oliveira663

Por mais de um seacuteculo a sociedade brasileira vem debatendo sobre a

problemaacutetica da infacircncia pobre fiacutesica e socialmente em perigo abandonada e

delinquente Geralmente a questatildeo levantada era (eacute) o que fazer com esse segmento

social As soluccedilotildees apresentadas na maioria das vezes tinham um caraacuteter paliativo que

natildeo combatiam efetivamente o cerne do problema A praacutetica do internamento sempre

apresentada como a soluccedilatildeo mais viaacutevel vem demonstrando ao longo dos anos a sua

ineficaacutecia Essa modalidade de assistecircncia preconizada por parcela dos setores

dominantes para as crianccedilas das classes subalternas com sua disciplina prussiana e sua

educaccedilatildeo de baixa qualidade objetivava a manutenccedilatildeo das hierarquias sociais e a

qualificaccedilatildeo dessas crianccedilas para o mercado de trabalho como operaacuterios submissos

Todavia creio que esse projeto assistencial natildeo apresentou os resultados esperados em

sua totalidade A austeridade dos estabelecimentos assistenciais favoreceu em muitos

casos rebeliotildees e a formaccedilatildeo de uma parcela dos internos natildeo identificados com os

ideais desejados pelos setores dominantes ou seja trabalhadores submissos e

disciplinados

No proacuteximo item seratildeo apresentados os resultados das anaacutelises dos processos de

tutelas de ldquomenoresrdquo do municiacutepio de Juiz de Fora que foram abandonados por seus

genitores e os casos em que os pais entregaram seus filhos para outras pessoas criaacute-los

661

Decreto n 16272 de 20 de dezembro de 1923 - Regulamento da Assistecircncia e Proteccedilatildeo aos Menores

Abandonados e Delinquentes Disponiacutevel em

httplegissenadogovbrlegislacaoListaNormasactionnumero=16272amptipo_norma=DECampdata=1923

1220amplink=s Acessado em 20-02-2015 662

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 139 663

Idem p 139

253

ou solicitaram a suspenccedilatildeo do Paacutetrio Poder com a argumentaccedilatildeo de que natildeo dispunham

de condiccedilotildees econocircmicas para a criaccedilatildeo de sua prole

42 OS ldquoFILHOS DA PIEDADErdquo OS PROCESSOS DE TUTELAS DE

CRIANCcedilAS ABANDONADAS ENJEITADAS EXPOSTAS OU

ldquoENTREGUESrdquo

ldquoO Brasil surgiu como um paiacutes onde o problema da assistecircncia se poderia

julgar resolvido pelo avesso isto eacute pelo indiviacuteduo e natildeo pelo Estadordquo

(Ataulpho de Paiva)664

ldquoDeclaro que entreguei meu filho Francisco com 14 mezes de idade ao sr Joatildeo

[Millar] para a eternidaderdquo665

Assim o pai do menino Francisco Antonio Rodrigues

registrou em 2 de junho de 1923 a entrega de seu filho ldquopara a eternidaderdquo ao Sr Joatildeo

Muumlller sem entretanto manifestar os motivos de tal atitude Assinaram como

testemunhas dessa declaraccedilatildeo Alfredo [Lentini] e Jeronymo Gomes Moreira

664 Apud RIZZINI Irma ldquoMeninos desvalidos e menores transviados a trajetoacuteria da assistecircncia puacuteblica

ateacute a Era Vargasrdquo In RIZZINI Irene PILOTTI Francisco (orgs) A arte de governar crianccedilas a

histoacuteria das poliacuteticas sociais da legislaccedilatildeo e da assistecircncia agrave infacircncia no Brasil 3 ed Satildeo Paulo

Cortez 2011 p 241 665

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas ndash ldquomenorrdquo

Francisco Data 18-06-1923 Cx 6 proc 5

254

Imagem 21 ldquoDeclaraccedilatildeo de entrega do filhordquo AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos

relativos agrave accedilatildeo tutelas - ldquomenorrdquo Francisco Data 18-06-1923 Cx 6 proc 5

O ldquoabandonordquo666

desse ldquofilho da piedaderdquo667

foi levado ao conhecimento do Juiz

de Direito da Comarca Augusto Ceacutesar Pedreira Franco pelo inspetor de poliacutecia da Rua

Bernardo Mascarenhas Alfredo [Lentini] em 16 de junho de 1923 O Juiz Ceacutesar Franco

determinou que Joatildeo Muumlller apresentasse o ldquomenorrdquo ldquoem juiacutezordquo para ldquodar

esclarecimentos sobre o seu abandonordquo668

No ldquoTermo de declaraccedilotildeesrdquo ocorrido em 22 de junho de 1923 Joatildeo Muumlller

assinalou que Francisco era filho de Antonio Rodrigues e de Dona Maria Schoeffer

residentes na cidade de Juiz de Fora e que tinha conhecimento de que eles natildeo eram

666

Estou empregando o termo abandono entre aspas pois natildeo entendo a accedilatildeo dos pais do ldquomenorrdquo como

um abandono em sua literalidade Os pais tiveram o cuidado de entregar o filho para ser cuidado por outra

famiacutelia Eles deram o filho ldquoa criarrdquo Sobre a circulaccedilatildeo de crianccedilas por vaacuterias famiacutelias e ldquodar a criarrdquo os

filhos ver MORENO Alessandra Zorzetto Op cit 2010 667 Expressatildeo ldquofilhos da piedaderdquo foi utilizada por Ana Scott e Carlos Bacellar em referecircncia agraves crianccedilas

abandonadas Cf SCOTT Ana Silvia Volpi amp BACELLAR Carlos de Almeida Prado ldquoCrianccedilas

abandonadas em aacutereas sem assistecircncia institucionalrdquo In VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010

p 60 668

Idem

255

ldquocasados civilmentterdquo poreacutem natildeo sabia informar se o eram ldquoreligiosamenterdquo O

declarante ainda disse que a crianccedila foi abandonada pelos pais que natildeo a queriam e nem

podiam trataacute-la mas que desejavam que o menino ficasse em sua companhia (do

declarante) e de sua esposa e que o ldquomenorrdquo lhe havia sido entregue pelo inspetor de

poliacutecia Alfredo [Lentini]669

Nos autos do processo foi registrado que Antonio Rodrigues e Dona Maria

Schoeffer natildeo queriam e nem podiam tratar do ldquomenorrdquo Eacute provaacutevel que esse natildeo

querer e nem poder tratar de Francisco esteja relacionado agraves condiccedilotildees econocircmicas

precaacuterias do casal Esse processo de tutela eacute apenas um fragmento da vida dessa famiacutelia

e reflete um momento tenso de desestruturaccedilatildeo do grupo familiar (pai matildee e filho pai

e filho ou matildee e filho) Ao longo do processo os pais natildeo foram intimados a prestarem

declaraccedilotildees sobre o ldquoabandonordquo assim natildeo eacute possiacutevel saber se estavam empregados e

quais as atividades que realizavam quais as suas condiccedilotildees econocircmicas e de sauacutede e

mesmo se viviam maritalmente

Sheila Faria em estudo sobre o enjeitamento de crianccedilas no periacuteodo escravista

ressaltou que vaacuterias hipoacuteteses foram aventadas com o objetivo de se explicar as razotildees

para o abandono670

Em seu livro ldquoA colocircnia em movimentordquo a autora chegou a sugerir

que o tipo mais frequente de enjeitamento estava relacionado aos filhos indesejados de

relaccedilotildees amorosas independente das condiccedilotildees econocircmicas dos genitores Apesar de

ressaltar que crecirc que o fenocircmeno fosse mais recorrente entre os setores mais abastados

uma vez que nas famiacutelias pobres de aacutereas rurais os filhos provavelmente eram um

ldquobenefiacuteciordquo apesar de num primeiro momento representarem um ldquofardordquo pois eram

apenas consumidores poreacutem mais velhos como produtores contribuiacuteam para a

prosperidade da unidade familiar671

A exposiccedilatildeo de crianccedilas segundo Faria

ldquorepresentava a proacutepria manutenccedilatildeo da estabilidade familiar ou melhor dizendo da

moralidade familiar Para os mais ricos esconder filhos naturais ou adulterinos poderia

significar manter a heranccedila dentro da legalidade e da moral catoacutelicardquo A exposiccedilatildeo

favorecia o retorno dos solteiros ao ldquomercado matrimonialrdquo672

A explicaccedilatildeo de que uma gestaccedilatildeo indesejada tenha sido a causa majoritaacuteria para

a exposiccedilatildeo de crianccedilas natildeo eacute compartilhada por Renato P Venancio que atribui o

enjeitamento de bebecircs ou receacutem-nascidos agraves precaacuterias condiccedilotildees econocircmicas dos pais e

669

Ibidem 670

FARIA Sheila de Castro Op cit 2010 p 85 671

Idem p 85 FARIA Sheila de Castro Op cit 1998 p 71 672

Sheila de Castro Op cit 1998 p 71 FARIA Sheila de Castro Op cit 2010 p 87

256

ou agraves suas condiccedilotildees fiacutesicas Para o autor eacute na ldquoconjunccedilatildeo da pobreza com a morte ou a

doenccedilardquo dos responsaacuteveis pela criaccedilatildeo das crianccedilas que se encontra a justificativa para

a maioria dos casos de abandono673

A esse respeito Sheila Faria assinala que concorda

em parte com essa abordagem de Renato Venancio poreacutem natildeo crecirc que fossem os

motivos mais frequentes para o abandono e questiona se ldquohaveria realmente um motivo

mais frequente que pudesse explicar o abandono em todas as regiotildees e eacutepocas da

histoacuteria do Brasilrdquo A historiadora ainda enfatiza que ldquonatildeo havia um padratildeo uacutenicordquo e

que as fontes examinadas natildeo sustentam a tese da pobreza como motivo principal674

Dos 346 processos de tutelas por mim examinados no recorte temporal de 1888

a 1930 foram identificados 59 casos em que as crianccedilas foram presumivelmente

abandonadasentregues675

por seus pais e ou parentes No decorrer do exame da

documentaccedilatildeo foram se descortinando distintas modalidades de abandonoentrega

como de ldquomenoresrdquo abandonados em estradas propriedades rurais ruas hospitais

(Santa Casa de Misericoacuterdia) porta de residecircncia ou de asilo de desaparecimento dos

pais matildee e ou pai de desistecircncia do Paacutetrio poder (pais matildee e ou pai) de entrega do

rebento ldquopara todo o semprerdquo676

para uma pessoa da localidade criaacute-lo ou

simplesmente deixaacute-lo na casa de um parente (consanguiacuteneo ou espiritual) ou

conhecido e desaparecer para ldquolugar incerto e natildeo sabidordquo

Nos processos de tutelas em que foi possiacutevel identificar as justificativas para o

abandonoentrega a pobreza e ou a doenccedila foram os mais recorrentes Apenas 10

registros possuem essa informaccedilatildeo Todavia creio que nos autos em que os

responsaacuteveis alegaram que natildeo podiam criar as crianccedilas sem darem maiores detalhes

tambeacutem estivessem relacionados a esses mesmos fatores Entretanto como alertou

Sheila Faria vaacuterios motivos contribuiacuteram para o ato do abandono natildeo havendo pois

um padratildeo uacutenico para essa praacutetica

673

FARIA Sheila de Castro Op cit 2010 p 85 674

Idem p 86 675

Estou empregando a palavra ldquoentregardquo para me referir aos casos em que os pais deixaramentregaram

os seus filhos para que parentes conhecidos ou pessoas da regiatildeo os criassem Em alguns processos de

tutela haacute uma declaraccedilatildeoescritura feita pelos responsaacuteveis pela crianccedila assinalando que estavam

entregando o filho e em outros autos de tutela no termo de abertura eacute registrado que a crianccedila foi

deixadaentregue ao requerente da tutela pelo paimatildee ou pais Cf MORENO Alessandra Zorzetto Op

cit 2010 676

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas ndash ldquomenorrdquo Mariana

Dornella da Conceiccedilatildeo Data 26-09-1929 Cx 9 proc 31

257

QUADRO 8

TIPOS DE ABANDONOENTREGA DE ldquoMENORESrdquo (1888-1930)

MENORES TIPOS DE ABANDONOENTREGA

59

RENUacuteNCIA

PAacuteTRIO

PODER

ABANDONO()

ENTREGA OU DESAPARECIMENTO

(PAIS MAtildeE E ou

PAI)

09 1525 11 1864 39 6610

Fonte AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas (1888-1930)

() O termo abandono aqui se refere aos casos que atraveacutes da leitura das fontes se pressupotildee que a matildee ou

os pais natildeo eram conhecidos em que procuraram manter o anonimato Satildeo os casos de crianccedilas deixadas

na estrada porta de residecircncia hospital asilo entre outros

No processo de tutela da menina Rita de trecircs anos de idade filha de Joaquim

Pedro da Silva e de Carmem Claudina de Paula as justificativas para a entrega da

ldquomenorrdquo para o casal Hugo Aust e Margarida Caruette-Hugo foi a doenccedila do pai

(cegueira) e as condiccedilotildees financeiras da famiacutelia677

Em abril de 1926 os pais solicitaram

ao judiciaacuterio que Hugo Aust fosse nomeado tutor de Rita

[] por estarem em situaccedilatildeo precaria e na impossibilidade de criar e educar

os seus proprios filhos visto estar quase cego e sem recursos o pae

empregada a matildee deixaram ao cuidado do avocirc materno Snr Joaquim

Romualdo de Paula a sua filha Rita sendo poreacutem o avocirc egualmente pobre

natildeo dispondo do necessario e habitando casa humida e ante-hygienica

entregou a crianccedila que estava doente nascida em 24 de marccedilo de 1923 em

Vargem Grande tendo actualmente 3 annos ao cuidado da familia do Snr

Hugo Aust empregado no commercio de 37 annos de idade casado com

Margarida Caruette-Hugo de 39 annos O casal que eacute sem filhos mora na av

15 de novembro 850 e dispondo de recursos sufficientes cercando a crianccedila

de todo conforto e submettendo a mesma a tratamento medico conseguiu

melhorar o estado de saude da menina graccedilas ao caridoso empenho de Da

Margarida pelo que a pequena Rita tomou muito carinho com a referida

senhora ao que a mesma corresponde como uma verdadeira matildee Tendo em

vista o futuro risonho que a nossa filha teraacute o que em nossas condiccedilotildees nunca

poderiamos offerecer vimos requerer por indicaccedilatildeo do avocirc e em bem de

nossa filha que Va Sa queira delegar a tutela ao senhor Hugo Aust esposo da

Da Margarida e por estarmos ambos de accordo com esta decisatildeo

renunciamos aos direitos do patrio poder que a lei nos confere e assignamos a

presente com duas testemunhas em Juiz de Foacutera em primeiro de abril de

1926678

677

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Rita data 06-

04-1926 cx 07 proc 10 678

Idem

258

O discurso da peticcedilatildeo procurou ressaltar a precariedade de vida sauacutede e

habitaccedilatildeo da famiacutelia de Rita e de seus parentes no caso o avocirc que segundo consta

tambeacutem natildeo dispunha de recursos financeiros e residia em uma ldquocasa humida e ante-

hygienicardquo As condiccedilotildees adversas de vida dessa famiacutelia retratada no requerimento e o

fato de a menina encontrar-se doente foram os fatores alegados para a entrega da

ldquomenorrdquo ao casal Hugo Aust e Margarida Caruette-Hugo

A leitura desse documento me leva a crer que se trata de uma modalidade de

adoccedilatildeo da ldquomenorrdquo Rita pelo casal Hugo Aust e Margarida Caruette-Hugo Pela

legislaccedilatildeo brasileira vigente estava vetada ao dito casal que natildeo tinha filhos a adoccedilatildeo

legal da menina pois o Coacutedigo Civil de 1916 no Capiacutetulo V ndash Da Adoccedilatildeo ndash estabeleceu

no artigo 368 que ldquosoacute os maiores de cinquenta anos sem prole legiacutetima ou legitimada

podem adotarrdquo679

Eles encontravam-se em uma faixa etaacuteria inferior agrave estabelecida pelo

Coacutedigo de 1916 para adotarem uma crianccedila Assim possivelmente a tutela apresentou-

se como uma alternativa legal para poderem criar uma crianccedila como filho

Segundo Maria Luiza Marciacutelio as primeiras leis de adoccedilatildeo ldquoforam cautelosas

muito restritivas a fim de salvaguardar o direito de heranccedila dos filhos legiacutetimosrdquo O

sistema de adoccedilatildeo brasileiro instituiacutedo pelo Coacutedigo Civil de 1916 foi inspirado pela lei

francesa de 1904680

Segundo o parecer do Promotor Puacuteblico os pais natildeo podiam renunciar ao paacutetrio

poder dessa forma natildeo era possiacutevel o estabelecimento do viacutenculo tutelar O Promotor

ainda asseverou que ldquose a menor estaacute bem na companhia do Srn Hugo Aust os seus

paes nada mais tecircm a fazer do q deixarem-na em tal companhiardquo Assim o requerimento

dos pais de Rita foi indeferido pelo Juiz de Direito Ceacutesar Franco681

A alegada falta de

recursos financeiros e de sauacutede dos pais de Rita natildeo foi suficiente para a nomeaccedilatildeo de

um tutor que pudesse zelar pela menina Todavia foi sugerido que a ldquomenorrdquo

permanecesse em companhia do casal Hugo e Margarida mas sem nenhum respaldo

legal

O Coacutedigo Civil no Capiacutetulo VI ndash Do Paacutetrio Poder ndash estabeleceu quais eram as

condiccedilotildees para a suspensatildeo e extinccedilatildeo do paacutetrio poder O Artigo 395 determinou que

679

Coacutedigo Civil Brasileiro 1916 Disponiacutevel em lthttpwww2camaragovbrleginfedlei1910-1919lei-

3071-1-janeiro-1916-397989-publicacaooriginal-1-plhtmlgt 680

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2010 p 27 Cf PERROT Michelle ldquoFiguras e papeacuteisrdquo In

______ (org) Histoacuteria da Vida Privada 4 da Revoluccedilatildeo Francesa agrave Primeira Guerra Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2009 p 138 681

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Rita data 06-04-

1926 cx 07 proc 10

259

ldquoPerderaacute por ato judicial o paacutetrio poder o pai ou matildee I - que castigar imoderadamente

o filho II - que o deixar em abandono III - que praticar atos contraacuterios agrave moral e aos

bons costumesrdquo

Em 1923 Maria Dalvina do Nascimento solteira tambeacutem solicitou a nomeaccedilatildeo

de um tutor para a sua filha Maria da Luz do Nascimento de 1 ano de idade por se

encontrar em ldquodificuldades para manter e crear sua filhinhardquo e declarou que desistia do

paacutetrio poder A matildee da ldquomenorrdquo indicou para tutor o Sr Jose Appoly de Souza em cujo

poder jaacute estava a menina O Juiz de Direito Ceacutesar Franco indeferiu a peticcedilatildeo e assinalou

que os pais natildeo tinham ldquoa faculdade de desistir do paacutetrio poderrdquo e que os artigos do

Capiacutetulo ndash Do Paacutetrio Poder ndash do Coacutedigo Civil natildeo versavam sobre a desistecircncia682

Entretanto em outros processos similares os requerimentos foram deferidos Em

fevereiro de 1922 Esmeraldina Braga de Campos viuacuteva a matildee de Onofre de um mecircs

de idade solicitou a nomeaccedilatildeo de um tutor para o menino por estar ldquodoente e em estado

de extrema pobrezardquo o que a impedia de ldquoexercer o paacutetrio poder sobre seu filhordquo O

Juiz de Direito Cesar Franco suspendeu a matildee do Paacutetrio poder e nomeou o indicado por

ela para tutor de Onofre683

A mesma decisatildeo foi proferida com relaccedilatildeo agrave peticcedilatildeo de

Roza [Mazoni] solteira e ldquoreconhecidamente pobrerdquo matildee de Maria de oito meses de

idade Em dezembro de 1922 Roza solicitou a nomeaccedilatildeo de um tutor para sua filha e

que assim ficaria ldquosem direito ao paacutetrio poderrdquo O Juiz deferiu a peticcedilatildeo e suspendeu a

matildee da menina do paacutetrio poder pelo fato de que ldquoa supplicante pelo seu estado de

pobreza natildeo pode dirigir a criaccedilatildeo e educcedilatildeo(sic) de sua filha nem tel-a em sua

companhia e guardardquo684

De maneira idecircntica o pai de Maria Magdalena e as matildees de

Dagmar Thereza e Roberta que alegaram natildeo poder exercer seus direitos de paacutetrio

poder dadas as dificuldades financeiras e ou de sauacutede e que por isso

renunciavamdesistiam do mesmo tiveram seus requerimentos deferidos685

682

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Maria da Luz do

Nascimento data 09-02-1923 cx 101 683

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Onofre data 07-

02-1922 cx 101 684

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Maria data 18-12-

1922 cx 101 685

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Roberta data 17-

06-1922 cx 101 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo

Dagmar data 26-10-1928 cx 8 proc 5 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave

accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Maria Magdalena de Souza data 21-06-1928 cx 8 proc 14 AHUFJF Foacuterum

Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Thereza data 22-09-1928 cx 8

proc 18

260

Dos oito processos em que os pais declararam que desistiamrenunciavam ou

natildeo podiam exercer o paacutetrio poder sobre seus filhos apenas um era constituiacutedo por um

casal nos demais em seis as matildees eram mulheres solteiras e ou viuacutevas e em um o pai

era viuacutevo

Esses casos ora comentados apresentam similitudes A pobreza e ou problemas

com a sauacutede foram provavelmente os fatores que levaram os pais a solicitarem a tutela

para seus filhos abdicando assim do direito ao paacutetrio poder Poreacutem a decisatildeo judicial

diferiu nos casos analisados dois pedidos foram indeferidos e os demais deferidos Os

processos examinados satildeo posteriores ao Coacutedigo Civil assim coloca-se a questatildeo por

que pareceres diversos Por que Maria Dalvina do Nascimento e o casal Joaquim Pedro

da Silva e Carmem Claudina de Paula tiveram o pedido negado Teria sido por que

declararam que as crianccedilas jaacute estavam vivendo com a famiacutelia das pessoas indicadas para

tutores As ldquomenoresrdquo supostamente jaacute se encontravam amparadas por uma famiacutelia

assim natildeo haveria a necessidade de suspensatildeo do paacutetrio poder dos paismatildee Conforme

o parecer do Promotor Puacuteblico no processo de tutela de Rita se a crianccedila estava bem

na companhia da famiacutelia do indicado para tutor os pais deveriam deixaacute-la onde estava

sem outras formalidades Todavia nesses casos o que pode ser feito satildeo apenas

conjecturas

Provavelmente o pedido de tutor ou entrega do filho foi uma forma encontrada

por muitos pais das classes subalternas para garantir a sobrevivecircncia de seus rebentos

configurando assim uma alternativa ao abandono Eacute viaacutevel supor que muitas famiacutelias

que receberam crianccedilas principalmente naquelas sem prole tenham estabelecido laccedilos

de afetividade com os pequenos Poreacutem eacute necessaacuterio ressaltar que muitas residecircncias

que recebiam os ldquomenoresrdquo ou pessoas que aceitavam o encargo da tutela o faziam com

o intuito de utilizar-se da matildeo de obra dessas crianccedilas

Todavia se a entrega ou o viacutenculo tutelar foi uma alternativa ao abandono nem

todas as matildeespais recorreram a essa opccedilatildeo por inuacutemeros motivos como por ser a

crianccedila fruto de uma relaccedilatildeo proibida e que precisava ficar em segredo pela morte da

matildee e ou pais por natildeo ter com quem deixarentregar Possivelmente essa foi a situaccedilatildeo

vivenciada por muitas mulheres pobres empregadas domeacutesticas que viviam na casa dos

patrotildees ou eram operaacuterias que se viram sem alternativa a natildeo ser abandonar o filho686

686

Cf GRAHAM Sandra Lauderdale Proteccedilatildeo e obediecircncia criadas e seus patrotildees no Rio de Janeiro

1860-1910 Satildeo Paulo Companhia das letras 1992

261

Nos processos de tutelas examinados deparei-me com onze casos de provaacuteveis

abandonos Deste total nove ocorreram na deacutecada de 1920 e em dois natildeo foi possiacutevel

precisar a data do provaacutevel abandono Em 1927 o Coronel Antatildeo Ferreira de Almeida

fazendeiro nesta comarca solicitou a tutela das ldquomenoresrdquo Maria Orlanda e Emilia

pretas que estavam com 12 e 15 anos de idade respectivamente Segundo o requerente

as meninas ldquohaacute alguns annos foram abandonadas na sua fazenda [] Condoida da sorte

das mesmas sua esposa tomou-as sob sua proteccedilatildeo e as vem criandordquo Desse modo natildeo

foi possiacutevel saber quando as meninas foram supostamente abandonadas na fazenda do

dito coronel

Na documentaccedilatildeo analisada foi percebida uma presenccedila maior de meninas em

situaccedilotildees de abandono sendo oito crianccedilas do sexo feminino e trecircs do masculino A

faixa etaacuteria desses ldquomenoresrdquo variou de receacutem-nascidos ateacute 6 anos de idade Esses

pequenos deserdados da sorte foram abandonados em lugares variados Dos onze casos

examinados foi possiacutevel identificar o local do abandono de oito (Santa Casa de

Misericoacuterdia fazenda portas do Asilo Padre Joatildeo Emilio rua estrada e exposto agraves

portas de particulares) Alessandra Zorzetto Moreno assinala que Renato P Venancio

verificou em seus estudos o abandono de crianccedilas em locais ermos terrenos baldios e

outros que ocorriam geralmente em regiotildees que natildeo dispunham de estabelecimentos

para recolhimento dos ldquomenoresrdquo687

Em setembro de 1922 o farmacecircutico Joseacute de Aquino Barros solicitou a tutela

de Myriam de Barros branca entatildeo com um ano de idade que havia sido ldquoexposta ou

enjeitadardquo agrave porta de sua residecircncia no ano anterior Em seu requerimento para ser

admitido a prestar o juramento de tutor o farmacecircutico argumentou que sendo a

ldquomenorrdquo

[] filha de paes desconhecidos natildeo satildeo achados os parentes que deviam

assumir os encargos de criaccedilatildeo e educaccedilatildeo da menor O supplicante recolheu-

a baptisou-a fel-a inscrever no registro civil tem-lhe prodigalizado todos os

carinhos e a estima como verdadeira filha participando sua mulher de eguaes

sentimentos688

No processo de tutela natildeo haacute informaccedilotildees se Joseacute de Aquino Barros e sua

esposa Elisa Soares de Barros professora normalista tinham filhos Mas segundo

Maria Luiza Marciacutelio o ato de acolher a crianccedila encontrada na porta de residecircncia era

687

MORENO Alessandra Zorzetto Op cit 2010 p 100 688

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenorrdquo Myriam de

Barros data 20-09-1922 cx 101

262

considerado pela populaccedilatildeo como um ldquodever intransferiacutevelrdquo bem como a obrigaccedilatildeo de

batizaacute-la imediatamente Para a autora o acolhimento da crianccedila exposta era

provavelmente perpassado por um ldquocomponente religiosordquo689

Esses ldquofilhos da piedaderdquo

tinham de contar com as ldquoalmas caridosasrdquo que compadecidas com a situaccedilatildeo de

abandono acolhiam e criavam essas crianccedilas690

Aleacutem do fator religioso do ato de

caridade de acolher o exposto Marciacutelio ainda ressaltou o fator econocircmico uma vez que

ldquoos expostos incorporados a uma famiacutelia poderiam representar um complemento ideal

de matildeo de obra gratuitardquo A autora fez essas observaccedilotildees para os seacuteculos XVIII e XIX

ou seja durante o periacuteodo escravista e creio que satildeo pertinentes para o exame da

sociedade brasileira nos primeiros anos do seacuteculo XX pois a incorporaccedilatildeo dessas

crianccedilas poderia suprir a demanda por criadosempregadas domeacutesticas691

Todavia estudo realizado por Renato Franco sobre o abandono de crianccedilas em

Vila Rica (Minas Gerais) no periacuteodo colonial alerta para o fato de que natildeo se deve

fazer generalizaccedilotildees quanto ao acolhimento de crianccedilas expostas em portas pela famiacutelia

da residecircncia em que se deu a exposiccedilatildeo De acordo com o autor em Vila Rica foi

habitual o repasse do exposto para famiacutelias dispostas a criaacute-los692

Assim a atitude de

acolher o pequeno deixado agrave porta deve ter variado de regiatildeo para regiatildeo bem como de

uma eacutepoca para outra

Entretanto eacute provaacutevel que o sentimento de ldquodeverrdquo acolher a crianccedila exposta e o

ldquocomponente religiosordquo tenham estado presentes na atitude do farmacecircutico Joseacute de

Aquino Barros e de sua esposa Aleacutem disso pode-se conjecturar que o casal natildeo tivesse

filhos legiacutetimos e que fosse um desejo de ambos a criaccedilatildeo de um filho Em sua peticcedilatildeo

o farmacecircutico assinalou que acolheu batizou e registrou a menina Inclusive ele deu o

seu nome de famiacutelia para a pequena

Ana Scott e Carlos Bacellar em estudo sobre o abandono domiciliar de crianccedilas

em Sorocaba (Satildeo Paulo) entre os seacuteculos XVII e XIX ressaltaram que foi possiacutevel

traccedilar algumas tendecircncias no que diz respeito aos lares receptores de expostos Entre as

tendecircncias destacadas pelos autores estariam os domiciacutelios sem filhos ou com poucos

filhos os casais maduros com filhos jaacute emancipados o acolhimento de rebento

ilegiacutetimo dos(as) filhos (as)parentes ou de um dos cocircnjuges e os lares que acabaram de

689

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2010 p 30 690

SCOTT Ana Silvia Volpi BACELLAR Carlos de Almeida Prado Op cit 2010 p 60 691

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 136-138 692

FRANCO Renato ldquoAssistecircncia e abandono de receacutem-nascidos em Vila Rica colonialrdquo In

VENANCIO Renato Pinto Op cit 2010 p 154

263

vivenciar o oacutebito de um bebecirc e que possivelmente manifestavam o desejo de acolher

um receacutem-nascido aos vizinhos e tal intenccedilatildeo chegava ateacute aos paismatildees que pretendiam

abandonar o filho693

De acordo com Renato Pinto Venancio em seu livro Famiacutelias Abandonadas

apesar de os termos ldquoexporrdquo e ldquoenjeitarrdquo serem muitas vezes empregados como

sinocircnimos eles ldquoencobriam realidades distintasrdquo O ato de deixar a crianccedila receacutem-

nascida no meio da noite em locais ermos ou terrenos baldios significava que ela

estava sendo exposta ldquoagrave morterdquo mas ao deixaacute-la em ldquohospitais conventos e

domiciacuteliosrdquo a intenccedilatildeo era de protegecirc-la No primeiro caso no chamado ldquoabandono-

infanticiacutediordquo o bebecirc geralmente ia a oacutebito por consequecircncia do frio da fome sede ou

de ataques de animais poreacutem no ldquoabandono-proteccedilatildeordquo a crianccedila tinha mais chances de

sobreviver694

As crianccedilas enjeitadas nas portas de casas ou instituiccedilotildees tambeacutem eram

rondadas pela morte Elas eram frutos muitas vezes de gravidezes de riscos de partos

complicados de matildees desnutridas de abortos malsucedidos e ainda podiam ser

acometidas de febres infecccedilotildees de umbigo sarna entre outros agravantes o que

contribuiacutea para sua morte precoce695

Com relaccedilatildeo ao termo ldquoexpostordquo Silvia M Faacutevero Arend salientou que ao

longo do seacuteculo XIX natildeo houve por parte dos legisladores e juristas brasileiros uma

preocupaccedilatildeo com a definiccedilatildeo juriacutedica desse vocaacutebulo E que foi apenas no Coacutedigo de

Menores de 1927 que se atribuiu um ldquosignificado mais precisordquo para termo que assim

foi definido ldquosatildeo considerados expostos os infantes ateacute sete anos de idade encontrados

em estado de abandono onde quer que sejardquo696

O advogado Itagyba de Oliveira procurador do farmacecircutico Joseacute de Aquino

Barros na peticcedilatildeo enviada ao judiciaacuterio solicitando a tutela de Myriam empregou os

dois vocaacutebulos - ldquoenjeitarrdquo e ldquoexporrdquo- provavelmente por causa da imprecisatildeo contida

nos termos e por natildeo haver uma definiccedilatildeo juriacutedica para tais expressotildees ou seja qual era

a condiccedilatildeo social da menina

693

SCOTT Ana Silvia Volpi BACELLAR Carlos de Almeida Prado Op cit 2010 p 73-74 694

VENAcircNCIO Renato Pinto Famiacutelias abandonadas assistecircncia agrave crianccedila de camadas populares no

Rio de Janeiro e em Salvador ndash Seacuteculos XVIII e XIX Campinas SP Papirus 1999 p 23-24 Cf

AREND Silvia Maria Faacutevero ldquoDe exposto a menor abandonado uma trajetoacuteria juriacutedico-socialrdquo In

VENANCIO Renato Pinto Op cit 2010 p 340-342 695

MORENO Alessandra Zorzetto Op cit 2010 p 101 SCOTT Ana Silvia Volpi BACELLAR

Carlos de Almeida Prado Op cit 2010 p 60 696

AREND Silvia Maria Faacutevero ldquoDe exposto a menor abandonado uma trajetoacuteria juriacutedico-socialrdquo In

VENANCIO Renato Pinto Op cit 2010 p 340

264

Em outro processo de tutela uma receacutem-nascida foi deixada perto das Usinas de

Eletricidade (Marmelo) No entanto na documentaccedilatildeo consultada natildeo foram

empregados os termos ldquoenjeitarrdquo ou ldquoexporrdquo mas sim o vocaacutebulo abandono Em 28 de

setembro de 1923 Gabriel Ribeiro de Oliveira foi nomeado tutor pelo Juiz de Direito

Augusto Ceacutesar Pedreira Franco de uma receacutem-nascida

[] abandonada pelos seus paes e encontrada perto das Usinas de

Electricidade na manhatilde de segunda feira (24) vinte e quatro do corrente

envolvida em um panno preto e um sacco de aniagem com as iniciais A H

Bemfica e tendo na cabecinha uma tunica cocircr de rosa []697

A menina que iria ser registrada com o nome de Geralda havia sido encontrada

segundo informaccedilatildeo do termo de tutela por Antonio Martine poreacutem natildeo diz se o

mesmo era funcionaacuterio da Usina No registro de tutela tambeacutem natildeo haacute a informaccedilatildeo do

sobrenome que seria dado agrave ldquomenorrdquo

Provavelmente Geralda foi ldquoexpostardquo durante a madrugada perto das usinas de

eletricidade (Marmelo) A localidade em que foi abandonada a crianccedila estava bem

distante para a eacutepoca do centro da cidade de Juiz de Fora constituindo-se em uma aacuterea

suburbana assim eacute viaacutevel supor que a matildee ou os pais tenham considerado a Usina o

local mais adequado para deixaacute-la podendo a mesma ser encontrada por algum

funcionaacuterio Esses fatos permitem conjecturar que os responsaacuteveis pela crianccedila tenham

praticado o ldquoabandono-proteccedilatildeordquo ao deixaacute-la perto da usina onde possivelmente a

pequena teria mais chances de ser encontrada e de ser encaminhada a uma famiacutelia

acolhedora

Ao que parece um funcionaacuterio da Usina de Marmelo Antonio [Weitzel]

solicitou ao Juiz de Direito Ceacutesar Franco a nomeaccedilatildeo de Gabriel Ribeiro para tutor da

menina Geralda No processo de tutela haacute um bilhete do provaacutevel funcionaacuterio da Usina

Antonio [Weitzel] de apresentaccedilatildeo do dito Gabriel Ribeiro e de agradecimento pela

atenccedilatildeo que lhe foi dispensada pelo Juiz Eacute viaacutevel supor que ateacute o proacuteprio indicado para

tutor fosse tambeacutem um funcionaacuterio da usina de eletricidade

697

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenorrdquo Geralda data

28-09-1923 cx 6 proc 6

265

Imagem 22 Bilhete AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas

ldquomenorrdquo Geralda data 28-09-1923 cx 6 proc 6

Natildeo apenas crianccedilas receacutem-nascidas e de poucos dias foram abandonadas

enjeitadas ou expostas Nas fontes consultadas deparei-me com casos de abandonos de

crianccedilas a quem se atribuiu a idade de 6 anos Em outubro de 1922 Carlos Monteiro

requereu a tutela de uma menina morena de seis anos de idade presumiacuteveis de filiaccedilatildeo

ignorada e que foi ldquohaacute mezes abandonada agrave porta do Asilo Joatildeo Emiacuteliordquo Segundo o

requerente ele estava ldquotomando contardquo desde entatildeo da ldquopequenardquo a qual deu o nome

de Dinah698

Creio que neste caso pode-se aventar a hipoacutetese de que o interesse pela

ldquopequenardquo Dinah pudesse estar aleacutem dos sentimentos humanitaacuterios de caridade ou

religiosos A menina estava em uma faixa etaacuteria em que jaacute poderia ser empregada em

alguns afazeres do serviccedilo domeacutestico Como jaacute salientado o viacutenculo tutelar e ou o

acolhimento de crianccedilas oacuterfatildesabandonadasexpostasenjeitadas poderia ser uma

possibilidade para setores das classes dominantes obterem matildeo de obra gratuita

Argumentaccedilatildeo semelhante pode ser desenvolvida no caso do ldquomenorrdquo Joatildeo preto de 6

anos de idade ldquomais ou menosrdquo Em 29 de maio de 1926 o delegado de poliacutecia

698

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenorrdquo Dinah data 03-

11-1922 cx 101

266

comunicou ao judiciaacuterio que ldquohaacute cerca de um anno nas ruas desta cidaderdquo havia sido

encontrado o menino Joatildeo que teria supostamente informado que era ldquooacuterphatildeo de pai e

matildeerdquo e que ldquona occasiatildeo o menor alludido foi entregue ao Sr Sebastiatildeo Macedo Moura

lavrador residente em Aacutegua Limpa em cuja casa deu abrigo ao dito menor que laacute se

encontra[va] ateacute hojerdquo O delegado informou que o dito lavrador tinha interesse em

regularizar a situaccedilatildeo do ldquomenorrdquo assumindo o encargo da tutela do mesmo699

Em tal

faixa etaacuteria o menino poderia ser empregado em algumas atividades laborativas

proacuteprias do meio rural

A falta de um abrigo ou de uma instituiccedilatildeo para acolhimento das crianccedilas

abandonadas e ou oacuterfatildes em Juiz de Fora era remediada com o recurso de se entregar as

crianccedilas para particulares por intermeacutedio do viacutenculo tutelar No entanto no

requerimento do delegado enviado ao judiciaacuterio observa-se que o menino Joatildeo ficou

por volta de um ano na companhia do lavrador Sebastiatildeo Macedo Moura sem nenhuma

regulamentaccedilatildeo Eacute provaacutevel que muitas outras crianccedilas das classes mais baixas da

hierarquia socioeconocircmica tenham permanecido sob os cuidados de pessoas das classes

mais abastadas ou remediadas sem nunca terem tido a sua situaccedilatildeo regularizada Com

relaccedilatildeo agraves meninas havia a possibilidade de serem internadas no Asilo Joatildeo Emilio isso

quando houvesse vagas O processo de tutela das irmatildes Rheacutea-Sylvia e Ameacuterica acena

para o fato de que natildeo era tatildeo faacutecil conseguir uma vaga Em dezembro de 1928 o juiz

de Direito solicitou agrave Superiora do asilo Irmatilde Maria de Santa Euphrasia Chaves a

internaccedilatildeo das meninas ao que a mesma respondeu

[] tenho de informar-vos que natildeo temos actualmente nenhuma vaga tendo

uma pequena que nos foi apresentada por uma dama de caridade com officio

de V Excia esperando que se decirc uma vaga A lotaccedilatildeo estaacute completa

chegando ao elevado numero de 140700

O abandono em instituiccedilotildees o chamado ldquoabandono-proteccedilatildeordquo tambeacutem foi

verificado na documentaccedilatildeo compulsada Em primeiro de agosto de 1929 Lourenccedilo

Weiss assinou a tutela da menina ldquoMaria Ignez branca nascida em 21 de janeiro []

filha de paes incoacutegnitos e abandonada logo ao nascer na Santa Casa de Misericoacuterdia

desta cidaderdquo

699

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenorrdquo Joatildeo data 31-

05-1926 cx 7 proc 6 Aacutegua Limpa eacute o atual municiacutepio de Coronel Pacheco 700

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenoresrdquo Ameacuterica e

Rheacutea Sylvia data 08-06-1928 cx 8 proc 3

267

Dar agrave luz no hospital nos primeiros anos do seacuteculo XX na sociedade brasileira

era considerado por uma parcela dos setores abastados e meacutedios como algo indigno

proacuteprio de matildees solteiras prostitutas e mulheres pobres A presenccedila do meacutedico

especialista em ldquodoenccedilas de senhorasrdquo e partos foi sendo aceita gradativamente pela

sociedade principalmente pelas famiacutelias dos estratos dominantes Os valores morais e

religiosos da eacutepoca provavelmente tiveram uma grande influecircncia na aceitaccedilatildeo desses

profissionais As famiacutelias de modo geral davam preferecircncia agraves parteiras e aos partos

realizados nos domiciacutelios701

Esse comportamento natildeo foi tiacutepico apenas do Brasil

Segundo Michelle Perrot na sociedade francesa ldquodar agrave luz no hospitalrdquo era ldquosinal de

pobreza e principalmente de vergonha e solidatildeordquo e a ldquorejeiccedilatildeo do filho natural levava

a matildee ao hospitalrdquo A autora ainda ressaltou que a partir do periacuteodo entre-guerras

comeccedilou a ocorrer uma mudanccedila ldquotiacutemidardquo nessa atitude702

Em outubro de 1926 O Lynce exaltou em um de seus artigos a iniciativa de D

Analita de Campos Carvalho ldquode dotarrdquo Juiz de Fora com uma maternidade para a qual

havia escolhido o nome de ldquoTherezinha de Jesusrdquo A importacircncia de tal iniciativa foi

ressaltada pelo fato de a cidade mineira ser []

[] constituiacuteda de operarios como eacute a maioria de nossa populaccedilatildeo essa

maternidade viraacute prestar grandes benefiacutecios aacutes matildees pobres que em grande

numero devido a crise de casas natildeo tem um quarto decente que lhes sirvam

para o repouso durante o parto703

A ideia que a reportagem parece transmitir eacute a de que a maternidade seria

destinada exclusivamente agraves mulheres dos setores mais baixos da sociedade ou seja

para aquelas que natildeo possuiacuteam condiccedilotildees de darem agrave luz no aconchego do lar A

situaccedilatildeo econocircmica e habitacional da cidade eacute ressaltada na mateacuteria Desde o final da

deacutecada de 1910 e ao longo da deacutecada de 1920 a ldquocarestiardquo a alta dos preccedilos dos

gecircneros alimentiacutecios e dos alugueis foi uma constante nos perioacutedicos locais704

701

MARQUES Rita de Caacutessia ldquoA maternidade Hilda Brandatildeo de Belo Horizonte medicina e caridaderdquo

In Gecircnero revista do nuacutecleo transdisciplinar de Estudos de Gecircnero ndash NUTEG v 6 n 1 2 sem 2005

Niteroacutei EDUFF 2006 p 157-172 Para mais informaccedilotildees sobre a atuaccedilatildeo das parteiras e as poliacuteticas

puacuteblicas de fiscalizaccedilatildeo e de regulaccedilatildeo da accedilatildeo das mesmas em paiacuteses europeus ver o trabalho de GISSI

Alessandra ldquoParteiras e controle de natalidade na Europa do seacuteculo XXrdquo In Gecircnero revista do nuacutecleo

transdisciplinar de Estudos de Gecircnero ndash NUTEG v 6 n 1 2 sem 2005 Niteroacutei EDUFF 2006 p 11-

41 702

PERROT Michelle Op cit 2009 p 138-139 703

SMBMMM ldquoMaternidade Therezinha de Jesusrdquo O Lynce 06-10-1926 p 1 704

SM-BMMM ldquoAs casardquo Jornal do Commercio 08-12-1912 p 1 Varias ldquoA Carestiardquo O Dia 04-08-

1918 ldquoSobre a Carestia de Vida a intervenccedilatildeo do Governordquo O Dia 03-07-1924 ldquoVida Apertadardquo O

Lynce 29-07-1923 entre outras reportagens

268

A Maternidade Therezinha de Jesus foi inaugurada em 1o de janeiro de 1927

contou com a presenccedila de autoridades poliacuteticas (municipais e estaduais) religiosas e

militares aleacutem de importantes setores das classes dominantes A maternidade estava

instalada em preacutedio proacuteprio localizado na Avenida Quinze de Novembro (atual Av

Presidente Getuacutelio Vargas) ldquodispondo de todos os requisitos de hygiene e de conforto

para a assistencia efficiente aacutes matildeesrdquo705

Nos jornais locais ressaltou-se a importacircncia

da ldquoinstituiccedilatildeo piardquo que era tida como uma obra de ldquosenhoras e cavalheiros de nossa

melhor sociedaderdquo706

bem como a necessidade de auxiacutelios A esse respeito os

ldquopresidentes do Estado e da Camarardquo jaacute haviam prometido apoio707

Apesar de o municiacutepio contar com uma maternidade desde o ano de 1927 a matildee

da menina Maria Ignez procurou auxiacutelio meacutedico no momento do parto na Santa Casa de

Misericoacuterdia onde deixou a pequena Eacute viaacutevel supor que a matildee de Maria Ignez fosse

uma mulher pobre ou prostituta e que sem recursos tenha ido dar agrave luz na Santa Casa

com a intenccedilatildeo de laacute deixar o bebecirc tambeacutem pode-se conjecturar que fosse uma operaacuteria

ou empregada domeacutestica e que a tenha abandonado por natildeo ter meios de cuidar de sua

crianccedila e pelo receio de perder o emprego Outra hipoacutetese eacute a de que a crianccedila fosse

filha de uma famiacutelia desvalida com outros filhos para criar e que as condiccedilotildees adversas

de vida tenham levado a optarem pelo abandono da menina

Nas anaacutelises sobre o abandono de crianccedilas eacute utilizada uma gama variada de

fontes com destaque para a eclesiaacutestica (batismo oacutebito e casamento) as fontes

institucionais (Santa Casa de Misericoacuterdia ndash Roda dos Expostos) as listas nominativas

de habitantes entre outras A documentaccedilatildeo por mim utilizada para analisar os casos de

abandono foram os processos de tutelas Essa fonte nos fornece mais uma possibilidade

de anaacutelise dos casos de abandono vivenciados por muitas crianccedilas de famiacutelias

desvalidas ou natildeo bem como acena para os provaacuteveis destinos que esses ldquomenoresrdquo

trilharam apoacutes o abandono

Dos 59 processos de tutelas de provaacuteveis crianccedilas abandonadas no periacuteodo de

1889 a 1930 em apenas 15 foi possiacutevel averiguar a cor dos ldquomenoresrdquo sendo 11 natildeo-

brancos e 4 brancos sendo 2 imigrantes italianos A matildee dos italianinhos Humberto de

seis anos e Maria de quatro anos de idade faleceu na Hospedaria de Imigrantes Horta

Barbosa de Juiz de Fora O pai das crianccedilas Luglio Antonio havia desaparecido da

705

SM-BMMM ldquoMaternidade Therezinha de Jesusrdquo Diaacuterio Mercantil 03-01-1927 p1 706

SM-BMMM ldquoMaternidade Therezinha de Jesusrdquo Correio de Minas 01-01-1927 p 1 707

SM-BMMM ldquoMaternidade Therezinha de Jesus a sua inauguraccedilatildeordquo Jornal do Commercio 04-01-

1927 p 1

269

fazenda de Evaristo Botelho e segundo consta no processo nem o fazendeiro nem a

ldquoinspectoriardquo sabia o ldquorumordquo que o imigrante havia tomado ficando as crianccedilas em

abandono708

Dos 11 pequenos natildeo-brancos 6 foram registrados como pretos 2 como

mesticcedilos e os outros 3 foram tidos como moreno pardo e ldquode corrdquo A presenccedila maior de

registros de ldquomenoresrdquo tidos como natildeo-brancos me leva a crer apesar de ser uma

amostra pequena que uma parcela expressiva das crianccedilas abandonadas fossem filhas

de paismatildees com um passado ligado ao cativeiro ou seja pessoas que tendiam a estar

numa posiccedilatildeo inferior dentro da hierarquia socioeconocircmica enfrentando condiccedilotildees

adversas de vida Alguns indiacutecios nos processos reforccedilam essa ideia como os casos em

que natildeo foi declarada a cor das crianccedilas mas que as matildeespais foram identificados

como ex-escravoslibertos

Independente da cor das crianccedilas abandonadas enjeitadas expostas e

ldquoentreguesrdquo das motivaccedilotildees dos paismatildees para tal praacutetica ou dos fatores para o

acolhimento desses ldquofilhos da piedaderdquo o que se descortina atraveacutes da leitura das fontes

satildeo fragmentos de histoacuterias de vidas de pessoas que se viram desde tenra idade

obrigadas a lutarem pela sobrevivecircncia Algumas possivelmente tiveram amor e afeto

de ldquoalmas caridosasrdquo e desejosas de terem filhos mesmo que ldquoadotivosrdquo Ao passo que

outras crianccedilas provavelmente obtiveram de ldquoalmasrdquo natildeo tatildeo ldquocaridosasrdquo apenas

comida teto e trabalho

No proacuteximo item examino os processos de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo desvalidos

A situaccedilatildeo de pobreza as dificuldades de sobrevivecircncia e as relaccedilotildees familiares foram

fatores que levaram muitos pais a solicitarem a internaccedilatildeo de seus rebentos

43 AS ACcedilOtildeES DE INTERNACcedilAtildeO DE ldquoMENORESrdquo DESVALIDOS

Si a assistecircncia publica natildeo se apoderar da crianccedila desamparada ella cresceraacute

como planta damninha cujos fructos seratildeo a ociosidade a embriaguez a

prostituiccedilatildeo o crime na melhor das hypotheses representaraacute ella peso morto

ou quantidade inexpressiva na dynamica social as mais das vezes poreacutem

constituiraacute o fermento da anarchia filho da ignoracircncia e da impotecircncia para a

lucta pela vida iraacute povoar os carceres ou acabar nos hospitaes (Leacuteon

Renault)709

708

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenoresrdquo Humberto e

Maria data 26-04-1889 cx 100 709 RENAULT Leacuteon A assistencia a infancia desvalida em Minas Geraes Belo Horizonte Imprensa

Official do Estado de Minas 1930 p 210

270

Em ldquoLe deacutesordre des famillesrdquo Arlette Farge e Michel Foucault examinaram as

cartas enviadas agraves autoridades policiais e ao rei por pessoas em sua maioria

pertencentes aos estratos sociais mais baixos da sociedade francesa do seacuteculo XVIII

solicitando o internamentoprisatildeo de seus maridos esposas filhos(as) e parentes

Segundo os autores em boa parte dessas peticcedilotildees as questotildees eram referentes a assuntos

familiares e privados (ldquodrsquoaffaires de famille et tout agrave fait priveacuteesrdquo)710

como desavenccedilas

entre os cocircnjuges pais e filhos alcoolismo orfandade problemas econocircmicos honra

familiar entre outros711

A documentaccedilatildeo analisada neste item eacute constituiacuteda pelos processos de

internaccedilatildeo de menores Levando em consideraccedilatildeo as diferenccedilas entre as fontes ldquolettres

de cachetrdquo e ldquoprocessos de internaccedilatildeordquo em um ponto elas se assemelham familiares

que por alguma razatildeo solicitaram agraves autoridades do periacuteodo ndash rei poliacutecia e poder

judiciaacuterio ndash o internamentoprisatildeo de um familiar por motivos diversos No caso dos

autos de internaccedilatildeo de menores os pais requereram o internamento de seus filhos ao

poder judiciaacuterio Os motivos alegados foram a pobreza e ou problemas de sauacutede dos

genitores e a suposta propensatildeo dos ldquomenoresrdquo para o crime

Segundo Farge e Foucault por meio da leitura das lettres de cachet se percebe

que os textos eram permeados por um modeloesquema como por exemplo do que

seria um bom pai ou uma boa matildee Em outras palavras os pedidos com o objetivo de

serem aceitos empregavam o discurso dominante do periacuteodo712

Os textos eram

intermediados pelos escrivatildees assim as peticcedilotildees natildeo eram as ldquomanifestations lsquobrutesrsquo

mais des expressions relativement complexes ougrave se fixent entre les particuliers et les

autoriteacutes les representations admises de la bonne et de la mauvaise conduiterdquo713

No recorte delimitado por meu estudo (1888-1930) foram encontrados apenas

quatro processos de internaccedilatildeo de menores no ano de 1929 mas que tratam da

internaccedilatildeo de cinco meninos uma vez que um dos documentos refere-se a dois irmatildeos

Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro Todos os autos satildeo referentes a meninos na faixa

etaacuteria entre 10 e 14 anos de idade Embora seja uma amostra pequena creio poder

710

FARGE Arlette FOUCAULT Michel Le deacutesordre des familles lettres de cachet des archives de la

Bastille Paris Eacuteditions Gallimard Julliard 1982 p 9 711

Idem p 27-36 157-174 712

Ibidem p 171-172 713

Ibidem p 351 ldquo[] manifestaccedilotildees lsquobrutasrsquo mas expressotildees relativamente complexas fixadas entre as

pessoas (particulares) e as autoridades das representaccedilotildees admitidas de uma boa ou de uma maacute condutardquo

(Traduccedilatildeo minha)

271

assinalar que os pedidos de internaccedilatildeo dos filhos enviados ao poder judiciaacuterio pelos

pais de Juiz de Fora tambeacutem tenham empregado um discursoesquema ou seja

utilizaram o discurso dominante da eacutepoca com o propoacutesito de terem seus pedidos

aceitos Assim da leitura dos requerimentos observa-se a presenccedila da ideia de que os

institutosasilosabrigos eram espaccedilos privilegiados para protegerregenerar as crianccedilas

desvalidas e preparaacute-las pelo e para o trabalho para viverem em uma sociedade

civilizada do trabalho da ordem e do progresso Nos pedidos a pobreza e a doenccedila dos

genitores foram colocadas como empecilhos para que os mesmos pudessem continuar a

exercer a contento o direito do paacutetrio poder e que por causa de tal situaccedilatildeo os filhos

estavam encaminhando-se para o mundo do crime Nas entrelinhas das peticcedilotildees estatildeo

presentes os discursosesquemas de quais seriam as condiccedilotildees fiacutesicas econocircmicas e

morais para os pais criarem seus filhos para o mundo do trabalho ou para o mundo do

crime Em outras palavras quais eram as concepccedilotildees sobre as condiccedilotildees para uma boa

ou maacute criaccedilatildeo dos filhos

As peticcedilotildees dos pais dos ldquomenoresrdquo provavelmente foram redigidas por um

advogado delegado ou um escrivatildeo e suponho que as suas declaraccedilotildees ldquobrutasrdquo tenham

sido filtradas e lapidadas por esses profissionais poreacutem como a amostra documental eacute

muito reduzida eacute viaacutevel apenas fazer conjecturas Os textos desses documentos pode-se

dizer que eram padronizados apresentavam um discurso uma estrutura de como

deveriam ser as solicitaccedilotildees encaminhadas ao poder judiciaacuterio Com isso natildeo quero

aqui afirmar que os pais natildeo estivessem realmente preocupados com seus filhos e que a

pobreza e a doenccedila bem como o suposto direcionamento dos ldquomenoresrdquo para a

criminalidade natildeo tenham sido fatores para tais pedidos mas eacute oportuno alertar que

outras questotildees como por exemplo problemas familiares entre pais e filhos entre os

ldquomenoresrdquo e o padrasto e ou a madrasta podem ter contribuiacutedo tambeacutem para os

pedidos de internaccedilatildeo dos meninos mas natildeo foram declarados nos requerimentos pois

para se obter ecircxito no pedido possivelmente era preciso demonstrar preocupaccedilatildeo com a

subsistecircncia e o futuro do ldquomenorrdquo o que subtendia-se na eacutepoca com o futuro da naccedilatildeo

e do mercado de trabalho Abaixo estatildeo as transcriccedilotildees dos pedidos e do termo de

autorizaccedilatildeo do internamento de trecircs jovens onde se pode observar uma padronizaccedilatildeo

conforme argumentei acima O quarto processo dos irmatildeos Joatildeo e Geraldo Theodoro

Monteiro seraacute analisado posteriormente

272

O abaixo assignado casado brasileiro pobre residente nesta cidade pae do

menor Joseacute Guimaratildees Filho de 10 annos de idade vem respeitosamente

pedir a V Ex a internaccedilatildeo do referido menor no Aprendisado Agricola de

Barbacena visto natildeo ter meios para garantir a sua subsistencia e ainda por

estar se habituando a pratica de furtos o seu citado filho714

O abaixo assignado viuacutevo brasileiro indigente e cego residente nrsquoesta

cidade pae do menor Joseacute Luiz da Silva de 13 annos de idade vem

respeitosamente pedir a V Exc a internaccedilatildeo do referido menor em um dos

asylos do Estado visto natildeo ter meios para garantir a sua subsistecircncia e ainda

por estar se habituando a pratica de furto o seu citado filho715

Termo

[] no Forum na sala de audiecircncias perante o Excellentissimo senhor Doutor

Custodio de Almeida Lustosa Meritiacutessimo Juiz de Direito desta comarca

compareceu o cidadatildeo Manoel Silveira e por elle foi dito que autorizava a

qualquer autoridade internar o seu filho menor Antonio Silveira de doze anos

de idade em qualquer estabelecimento do Estado visto natildeo poder exercer o

paacutetrio poder em razatildeo de seu estado de pobreza Para constar mandou o Juiz

lavrar este termo que depois de lido e achado conforme vai devidamente

assignado Eu Jose Cassimiro de Figueiredo escrivatildeo o escrevi e dou feacute716

O municiacutepio de Juiz de Fora natildeo contou com uma instituiccedilatildeo para abrigar os

ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados oacuterfatildeos e apontados como delinquentes nos

primeiros anos da jovem Repuacuteblica Por isso era necessaacuterio enviaacute-los para as cidades

que contavam com esses estabelecimentos ou para a capital do estado Belo Horizonte

Com relaccedilatildeo ao internamento de crianccedilas nos abrigos da capital Wesleyuml Silva ressaltou

que tal fato era motivo de criacuteticas de determinados setores que assinalavam que alguns

ldquomenoresrdquo do interior eram beneficiados por um ldquoprotecionismordquo e que os mesmos

eram internados ldquoatropelando a fila de pedidos e prioridadesrdquo717

Essas criacuteticas eram

rebatidas por Alarico Barroso juiz de Menores e Eleitoral de Belo Horizonte que

transferia a responsabilidade para os juiacutezes de direito das cidades do interior que

ldquoemitiam atestados de pobreza com base em falsas informaccedilotildees prestadas pelas

famiacuteliasrdquo O juiz Barroso chegou a ressaltar que muitos pais que se diziam miseraacuteveis

estavam apenas querendo se livrar dos filhos718

O ldquoprotecionismordquo ou poliacutetica do favor foi objeto de estudo de Gisaacutelio Cerqueira

Filho que analisou ldquoa ideologia do favor amp a ignoracircncia simboacutelica da leirdquo na sociedade

714

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de Internaccedilatildeo de Menores ldquoMenorrdquo

Joseacute Guimaratildees Filho Data 19-10-1929 Cx 0012ordm processo 715

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de Internaccedilatildeo de Menores ldquoMenorrdquo

Joseacute Luiz da Silva Data 30-01-1929 Cx 112 716

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de Internaccedilatildeo de Menores ldquoMenorrdquo

Antonio Silveira Data 02-04-1929 Cx 112 717

Apud SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 252 718

Apud SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 252

273

brasileira O autor procurou nas raiacutezes ibeacutericas e sua filiaccedilatildeo ao tomismo no

autoritarismo e no sistema escravista as explicaccedilotildees para as praacuteticas sociais do ldquofavorrdquo

no Brasil desde o periacuteodo colonial De acordo com Cerqueira Filho a chamada

ldquoideologia do favorrdquo contribui para uma descaracterizaccedilatildeo do Direito para o natildeo

cumprimento das leis ou seja para o reconhecimento-desconhecimento da lei pela

populaccedilatildeo brasileira no que foi denominado pelo estudioso de ldquoignoracircncia simboacutelica da

leirdquo719

Natildeo tenho dados para afirmar que os pais dos ldquomenoresrdquo da documentaccedilatildeo

compulsada foram favorecidos por algum tipo de protecionismo poliacutetico nem de

comprovar a veracidade das alegaccedilotildees de pobreza e doenccedilas A uacutenica constataccedilatildeo eacute a de

que os peticionaacuterios foram atendidos O menino Joseacute Luiz da Silva de 13 anos de idade

foi enviado para o Abrigo de Menores de Belo Horizonte em caraacuteter provisoacuterio pois

segundo informaccedilotildees do Secretaacuterio Joseacute F Bias Fortes da Secretaria de Seguranccedila e

Assistecircncia Puacuteblica do Estado de Minas Gerais natildeo havia naquele momento vaga em

outros estabelecimentos do estado Com relaccedilatildeo aos ldquomenoresrdquo Antonio Silveira e Joseacute

Guimaratildees Filho de 12 e 10 anos de idade respectivamente natildeo foi possiacutevel identificar

para qual ou quais instituiccedilotildees foram encaminhados Joseacute Alves Guimaratildees pai de Joseacute

Guimaratildees Filho solicitou a internaccedilatildeo do menino no Aprendizado Agriacutecola de

Barbacena (MG) poreacutem natildeo haacute informaccedilotildees de que o jovem tenha sido internado no

citado estabelecimento Aleacutem da peticcedilatildeo o processo consta apenas de uma breve

declaraccedilatildeo do Juiz assinalando para se requerer o internamento e uma certidatildeo dizendo

que o ldquomandadordquo havia sido expedido

Nos processos de Joseacute Luiz de Silva e Joseacute Guimaratildees Filho foi colocado que os

meninos estavam se ldquohabituando a pratica de furtordquo Em uma sociedade que a ideia do

trabalho como um meio de se atingir o progresso a modernidade e a ldquocivilizaccedilatildeordquo

estava sendo forjada essa suposta inclinaccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo para o mundo do crime do

natildeo trabalho deveria ser combatida ser tratada e as instituiccedilotildeesabrigosreformatoacuterios

eram tidas como o loacutecus privilegiado para essa accedilatildeo profilaacutetica

Apesar da importacircncia econocircmica (setor cafeeiro e industrial) de Juiz de Fora no

cenaacuterio estadual nas primeiras deacutecadas republicanas bem como do crescimento urbano

e populacional o municiacutepio natildeo dispunha de uma instituiccedilatildeo para abrigar os seus

meninos desvalidos abandonados oacuterfatildeos e delinquentes como jaacute foi salientado Nos

719

CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio A Ideologia do Favor amp a Ignoracircncia Simboacutelica da Lei Rio de

Janeiro Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro 1993 p 19-26

274

perioacutedicos do periacuteodo satildeo constantes as queixas sobre a inexistecircncia de um

estabelecimento em Juiz de Fora e sobre a necessidade de a cidade ser dotada de uma

instituiccedilatildeo para tal finalidade Em uma reportagem intitulada ldquoA infacircncia desvalidardquo o

jornal O Pharol em fevereiro de 1911 discutiu sobre essa problemaacutetica e destacou a

importacircncia do Instituto Joatildeo Pinheiro720

de Belo Horizonte e contemplou que o

Governo do Estado poderia empreender uma obra semelhante em Juiz de Fora Segundo

a mateacuteria

[]

Sem o auxilio do governo que dispotildee de todos os meios para resolver esse

problema eminentemente humanitaacuterio nada se poderaacute fazer em favor da

infacircncia sem assistecircncia

Em Belo Horizonte criou-se o Instituto Joatildeo Pinheiro para recolhimento de

menores pobres e natildeo haacute hoje quem natildeo bendiga os frutos magniacuteficos e a

utilidade desse importante estabelecimento um dos maiores tiacutetulos de

benemerecircncia a que pode aspirar um governo digno da missatildeo que tem de

cuidar dos destinos do povo satisfazendo-lhe as justas e legitimas aspiraccedilotildees

A excelente impressatildeo recebida por quantos tiveram oportunidade de visitar o

Instituto Joatildeo Pinheiro eacute a melhor recomendaccedilatildeo da necessidade de sua

existecircncia e as palavras de louvores com que em todo o Estado satildeo

apreciados os seus resultados devem animar o governo a prosseguir nessa

obra generosa criando institutos congecircneres nas cidades onde avulta o

nuacutemero de crianccedilas sem assistecircncia Juiz de Fora mais do que nenhuma

outra estaacute no direito de exigir um estabelecimento modelado pelo Instituto de

Belo Horizonte pois aqui se podem contar agraves dezenas os menores que vivem

abandonados reclamando o carinho e o cuidado de quem os pode livrar dessa

situaccedilatildeo

Seria muito faacutecil faciacutelimo ateacute ao Estado criar um instituto de assistecircncia agrave

infacircncia nessa cidade Haacute um preacutedio que se presta admiravelmente e cuja

adaptaccedilatildeo para esse fim quase nenhuma despesa acarretaria

Eacute a antiga hospedaria de imigrantes pertencente ao governo de Minas

Ali com ligeiras alteraccedilotildees far-se-ia um oacutetimo instituto modelado pelo da

Capital onde os infelizes deserdados da fortuna adquirissem os meios de

minorar um pouco os seus sofrimentos habilitando-se aleacutem disso para o

futuro preparando-se para ganhar a vida na aprendizagem de artes e ofiacutecios

Lucrariam a infacircncia a sociedade e o proacuteprio governo se tal obra fosse

levada a efeito o que depende soacute da boa vontade daqueles que dirigem o

nosso Estado Vamos sr Coronel Bueno Brandatildeo um bom movimento em

favor dessa medida que natildeo lhe faltaram as becircnccedilatildeos e os aplausos dos

habitantes em peso desta progressiva e adiantada terra ndash J Costahile 721

720

Segundo Cynthia G Veiga e Luciano M de Faria o Instituto Joatildeo Pinheiro foi a primeira iniciativa do

governo do estado de Minas Gerais voltada agrave problemaacutetica da assistecircncia a infacircncia desvalida e

abandonada ldquomaterial ou moralmenterdquo O Instituto foi fundado pelo governo estadual e organizado por

ldquoum grupo de intelectuais professores e juristas republicanosrdquo O ensino agriacutecola era um dos pilares do

estabelecimento assistencial Segundo os idealizadores do Instituto o campo era o local ideal para a

ldquoeducaccedilatildeoregeneraccedilatildeordquo das crianccedilas abandonadas e o ensino agriacutecola era apontado como o mais eficaz

em tais processos Cf VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes de Infacircncia no soacutetatildeo

Belo Horizonte Autecircntica 1999 p 47 51-57 721

SM-BMMM ldquoA Infacircncia desvalidardquo O Pharol 22 fev 1911 p 2

275

A criaccedilatildeo de institutos era visualizada no periacuteodo como a salvaccedilatildeo para os

ldquoinfelizes deserdados da fortunardquo bem como para a sociedade Os estabelecimentos

assistenciais habilitariam os ldquomenoresrdquo abandonados para ldquoganhar a vida na

aprendizagem de artes e ofiacuteciosrdquo para viverem futuramente na sociedade como

trabalhadores Em suma os ldquomenoresrdquo seriam preparados para as atividades menos

qualificadas e para serem inseridos na sociedade como matildeo de obra barata disciplinada

e ordeira enfim sem comprometerem a hierarquia socioeconocircmica estabelecida

Apesar de Juiz de Fora contar com as condiccedilotildees materiais segundo a

reportagem para a implantaccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo de assistecircncia pelo governo do

estado isso natildeo ocorreu ao longo da Primeira Repuacuteblica O texto ressalta que na cidade

era grande o nuacutemero de crianccedilas ldquosem assistecircnciardquo e que poderia se ldquocontar agraves dezenas

os menores que vivem abandonados reclamando o carinho e o cuidado de quem os

pode livrar dessa situaccedilatildeordquo

As famiacutelias pobres e suas crianccedilas podiam entretanto contar com as accedilotildees

filantroacutepicas das ldquodamasrdquo ldquosenhorinhasrdquo e ldquosenhoresrdquo da sociedade juiz-forana ligados

agraves associaccedilotildees como a da Sociedade Satildeo Vicente de Paulo a Uniatildeo Catoacutelica Patildeo de

Santo Antocircnio (Patildeo dos Pobres ligados aos vicentinos) as Damas da Caridade o

Instituto de Proteccedilatildeo e Assistecircncia agrave Infacircncia a Associaccedilatildeo das Damas de Assistecircncia agrave

Infacircncia (ligadas ao Instituto de Proteccedilatildeo e Assistecircncia a Infacircncia) Obra da Santa

Infacircncia (associaccedilatildeo dirigida pelos padres da Congregaccedilatildeo do Verbo Divino) entre

outras de orientaccedilatildeo religiosa ou natildeo Essas associaccedilotildees promoviam festas para

arrecadaccedilotildees de donativos para serem repassados agraves famiacutelias desvalidas agrave Santa Casa

de Misericoacuterdia e ao Asilo Joatildeo Emiacutelio construiacuteam casas para as viuacutevas e famiacutelias

pobres assistidas por essas instituiccedilotildees distribuiacuteam brinquedos roupas e prestavam

assistecircncia meacutedica722

Eram accedilotildees que mitigavam em parte o sofrimento e as carecircncias

dos mais necessitados entretanto natildeo promoviam uma mudanccedila social na vida dessas

722

PINTO Jefferson de Almeida Controle social e pobreza (Juiz de Fora c 1876 ndash c 1922) Juiz de

Fora (MG) Editar 2008 Ver principalmente o capiacutetulo 3 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo

pobreza caridade e accedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico SM-BMMM Em abril de 1918 a

Diretoria do Instituto de Proteccedilatildeo e Assistecircncia a Infacircncia comunicou que havia distribuiacutedo listas de

subscriccedilatildeo para auxiliar na instalaccedilatildeo da sede provisoacuteria do citado instituto ldquoInstituto de Proteccedilatildeo e

Assistecircncia a Infacircnciardquo O Dia 05 abr 1918 p 1 O Instituto de Proteccedilatildeo e Assistecircncia a Infacircncia foi

inaugurado em 29 de setembro de 1918 ldquoInstituto de Assistecircncia e Proteccedilatildeo a Infacircnciardquo Correio de

Minas 29 set 1918 p 1 ldquoA casa da crianccedila uma visita ao Instituto de Proteccedilatildeo e Assistencia aacute

Infanciardquo O Dia 08 jan 1919 A Associaccedilatildeo das Damas de Proteccedilatildeo e Assistecircncia agrave Infacircncia foi fundada

em 26 de outubro de 1919 ldquoAssociaccedilatildeo das Damas de Assistencia aacute Infanciardquo Correio de Minas 28 out

1919 p 2 ldquoAssociaccedilatildeo das Damasrdquo O Dia 26 out 1919 p 2 Doaccedilatildeo de casas para as viuacutevas pobres

ldquoGesto Nobrerdquo O Lynce 20 de ago de 1927 p 1 AHCJF ldquoO grande festival de hontem ndash Em beneficio

da Obra da Santa Infacircnciardquo Diaacuterio Mercantil 04 jan 1926 p 2

276

pessoas que ficavam refeacutens da caridade das damas senhorinhas e cavalheiros que

tinham seus nomes estampados nos jornais locais como benfeitores

Todavia a infacircncia abandonada oacuterfatilde e indigitada delinquente que vivia pelas

ruas de Juiz de Fora sem assistecircncia representava um grave problema para a sociedade

de modo geral O que fazer com esses ldquomenoresrdquo Em alguns casos a soluccedilatildeo poderia

ser a nomeaccedilatildeo de um tutor dativo e em outros o envio para instituiccedilotildees puacuteblicas

destinadas ao atendimento dessa parcela da sociedade A exiguidade de

estabelecimentos para o atendimento dessas crianccedilas provavelmente fazia com que

muitos pedidos expedidos pela justiccedila fossem indeferidos dada a falta de vagas nos

institutos puacuteblicos ou subvencionados pelo estado Wesleyuml Silva ressalta que as

instituiccedilotildees puacuteblicas da capital mineira destinadas ao internamento de ldquomenoresrdquo

geralmente eram caracterizadas pela superlotaccedilatildeo O nuacutemero de internos estava sempre

acima de sua capacidade de atendimento723

A esse respeito Cinthya Veiga e Luciano

Faria assinalaram que boa parte dos problemas enfrentados por essas instituiccedilotildees

provinham da ldquofalta de criteacuterios para a internaccedilatildeordquo724

Assim ao longo de todo o

periacuteodo da Primeira Repuacuteblica como jaacute comentado os perioacutedicos reclamaram sobre a

presenccedila de ldquomenoresrdquo ditos ldquovagabundosrdquoldquovadiosrdquo pelas ruas de Juiz de Fora bem

como exigiam das autoridades puacuteblicas uma providecircncia 725

A soluccedilatildeo muitas vezes

encontrada era o encarceramento dos ldquomenoresrdquo que supostamente estavam vagando

pelas vias puacuteblicas da cidade726

A problemaacutetica da infacircncia desvalida abandonada (fiacutesica e moralmente) e

delinquente bem como a discussatildeo sobre a assistecircncia a ser prestada a essa parcela da

populaccedilatildeo foi (eacute) uma questatildeo presente constantemente na imprensa No iniacutecio do

seacuteculo para diversos setores das classes dominantes as instituiccedilotildees assistenciais de

internamento de ldquomenoresrdquo as chamadas escolas de ldquoregeneraccedilatildeordquo ldquocorrecionaisrdquo e de

ldquopreservaccedilatildeordquo eram consideradas como a soluccedilatildeo para o grave problema social

representado pelos ldquomenoresrdquo que viviam pelas ruas das cidades Esses

estabelecimentos como jaacute foi examinado eram tidos como o locus privilegiado para a

preparaccedilatildeo dessas crianccedilas em futuros cidadatildeos uacuteteis agrave paacutetria ou seja em matildeo de obra

barata e disciplinada O jornal O Pharol do dia 23 de junho de 1905 na coluna

723

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 261 724

VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes de Op cit 1999 p 51 725

AHCJF Diaacuterio Mercantil 09 de dez de 1914 p 1 AHUFJF ldquoReclamaccedilotildeesrdquo O Pharol 23 de jun de

1905 p 2 726

AHUFJF ldquoNotas Policiaesrdquo O Pharol 17 de dez 1905 p 1 SM-BMMM Jornal do Commercio 05

de jan de 1897 p 1

277

ldquoExcerptos dos Jornaesrdquo publicou um trecho de uma mateacuteria do perioacutedico O Paiz sobre

a criaccedilatildeo de escolas correcionais Assim veiculou o jornal carioca

[] na organizaccedilatildeo de uma assistecircncia regular aacute infancia a escola

correccional representa papel destacado Ella eacute o forno de purificaccedilatildeo onde

os elementos viciados se escoimam por uma alta tensatildeo educativa das

impurezas que trouxeram727

Essa concepccedilatildeo das instituiccedilotildees de internamento como propiacutecias para corrigir

erros de reabilitar os ldquomenoresrdquo pode ser observada nas entrelinhas dos requerimentos

dos processos de internaccedilatildeo de Joseacute Luiz da Silva e Joseacute Guimaraes Filho Foi

salientado nas peticcedilotildees que os meninos estavam se ldquohabituando a pratica de furtordquo

assim eacute viaacutevel supor que seus pais compartilhassem da ideia dominante de que esses

estabelecimentos assistenciais pudessem ldquopurificaacute-losrdquo de seus ldquoviacuteciosrdquo e ldquoimpurezasrdquo

e por isso solicitaram o internamento dos mesmos ou apenas tenham se utilizado do

discurso dominante provavelmente orientados por uma pessoa letrada para

conseguirem a internaccedilatildeo de seus filhos

Em O Pharol na mesma data um artigo discorria sobre a necessidade de se dar

assistecircncia agrave infacircncia desvalida e abandonada da capital Federal e de Juiz de Fora Na

mateacuteria ldquoessa misericordiosa providenciardquo era extremamente urgente no Rio de Janeiro

[] onde a infacircncia desvalida desceu ao mais degradante graacuteo da perversatildeo

moral Pelos jardins dos theatros nos estribos dos bondes nos cafeacutes em

todos os logares publicos enfim sempre o emocionante quadro de miserias

meninas arvoradas em cambistas de bilhetes de loterias outras transformadas

em floristas assaltam os transeuntes e fazem commercio aos sorrisos

desgraccediladamente atiradas a essa condiccedilatildeo ignoacutebil por verdadeiros abutres que

as exploram

Entretanto si essas crianccedilas desamparadas encontrassem bem cedo o arrimo

da assistecircncia humanitaacuteria si houvesse no Brasil escolas correcionais si a

instrucccedilatildeo publica achasse neste paiz pelos cuidados dos governantes campo

vasto para sua expansatildeo decerto que estas scenas deprimentes da nossa

civilisaccedilatildeo natildeo seriam tatildeo repetidamente observadas

Os orccedilamentos que satildeo proacutedigos para quanto de inuacutetil existe no serviccedilo

publico e muitas vezes para encampar sinecuras com que se abarrotam os

cabos eleitoraes satildeo tristemente avaros para com a instrucccedilatildeo popular cujos

servidores satildeo parca e miseravelmente subsidiados

O Brasil apezar de rico e vasto natildeo possue estabelecimentos de instrucccedilatildeo

para abrigar a vigesima parte das crianccedilas desamparadas que perambulam aacutes

soltas pelas ruas entregues a toda sorte de viacutecios e de perdiccedilatildeo sem nome

Aqui mesmo em Juiz de Foacutera haacute uma multidatildeo de crianccedilas que vivem em

completo abandono Meninas haacute que exploram a caridade publica para

sustentarem paes validos que no trabalho honrado decerto encontrariam

seguros meios de subsistencia sem exporem a perigos eminentes as

727

AHUFJF ldquo O Paizrdquo - Excerptos dos Jornaes O Pharol 23 jun 1905 p 1

278

pequeninas flores innocentes e puras que Deus lhes confiou quando lhes

deu a suprema investidura da paternidade

Haacute porque a populaccedilatildeo inteira eacute disso testemunha duas meninas menores de

nove annos filhas de um infeliz rapaz chamado Alfredo Duarte um

desventurado a quem o alcool levou aacute morte que vagam pelas ruas pelos

cafeacutes pela estaccedilatildeo da estrada de ferro por toda parte a esmo atocirca

desprezadas ouvindo pilherias e chalaccedilas e a todos ao preto e ao branco ao

burguez e ao plebeu estendendo aacutes matildeosinhas cocircr de rosa pedindo pelo

amor de Deus uma esmola para a sua progenitora que [afirmam] na miseria

Ora essas crianccedilas deviam ser recolhidas a um orphanolato deviam pelo

menos ir [direitinho] para o asylo Joatildeo Emilio ou para uma casa de famiacutelia

caridosa

[]

Para essas desditosas infancias eu chamo a attenccedilatildeo das autoridades

competentes e decerto que assim ellas teratildeo o arrimo de que precisam para a

salvaccedilatildeo de suas abandonadas alminhas em flocircr duas alvoradas que podiam

irromper para a honra para o lar e jaacutemais para o vicio e para as desgraccedilas

dos lupanares728

A longa reportagem traccedila um perfil da situaccedilatildeo da infacircncia desvalida nas ruas

cariocas e juiz-forana O texto tem um caraacuteter ambivalente pois ao mesmo tempo em

que culpa a poliacutetica nacional pela condiccedilatildeo de miseacuteria das crianccedilas pela falta de

educaccedilatildeo puacuteblica ao acesso de todos e de uma poliacutetica assistencial efetiva por outro

lado responsabiliza os pais pela presenccedila das crianccedilas nas vias por esmolarem e fazem

suposiccedilotildees preacutevias acerca da conduta dos genitores tidos como

exploradoresvagabundos A ideia de trabalho que entatildeo estava sendo forjada na

sociedade brasileira desse periacuteodo transformava em vadiosvagabundos as pessoas dos

estratos sociais vulneraacuteveis que natildeo conseguiam se estabelecer em uma atividade

qualquer independente dos fatores que as levaram a estar sem uma ocupaccedilatildeo como a

falta de necessidade de matildeo de obra dos setores produtivos que natildeo absorviam todo o

contingente populacional disponiacutevel problemas fiacutesicos idade doenccedilas entre outros

Com isso natildeo estou negando que uma parcela dos pais e ou parentes possam ter se

utilizado das crianccedilas para explorarem a caridade puacuteblica ou sua forccedila de trabalho

Com relaccedilatildeo ao municiacutepio de Juiz de Fora o texto do perioacutedico ressaltou que

havia ldquouma multidatildeo de crianccedilasrdquo que estava ldquoem completo abandonordquo e citou o caso de

duas meninas oacuterfatildes de pai que vivam esmolando pelas ruas da cidade sujeitas a todos os

tipos de situaccedilotildees e abusos A soluccedilatildeo proposta pelo jornal para o caso das irmatildes era o

internamento em um orfanato ou no asilo Joatildeo Emilio ou ainda serem entregues para

uma ldquofamiacutelia caridosardquo Um dos provaacuteveis destinos dessas ldquomenoresrdquo foi o viacutenculo

tutelar O Juiz de Direito da Comarca de Juiz de Fora ficando ciente de tal situaccedilatildeo

728

AHUFJF ldquoScenas e Factosrdquo O Pharol 23 jun 1905 p 1

279

pode ter indicado um tutor dativo para as duas crianccedilas ou alguma ldquofamiacutelia caridosardquo

pode ter solicitado a tutela dessas ldquoabandonadas alminhas em flocircrrdquo As meninas

encontravam-se em uma faixa etaacuteria menor de nove anos de idade aptas para serem

criadas e educadas no e para o serviccedilo domeacutestico em troca de parcos salaacuterios (soldadas)

ou de roupas alimentos e moradia Outra preocupaccedilatildeo que transparece na reportagem eacute

com a honra dessas meninas que poderiam com tal modo de vida encaminharem-se para

a prostituiccedilatildeo

O problema da infacircncia desvalida abandonada oacuterfatilde e ou delinquente agravava-

se ainda mais quando se tratava de ldquomenoresrdquo do sexo feminino uma vez que as

instituiccedilotildees puacuteblicas existentes em Minas Gerais nos anos finais da deacutecada de 1920

destinavam-se apenas agraves crianccedilas do sexo masculino De acordo com o Decreto 7680

de 3 de junho de 1927 que reformulou o Regulamento de Assistecircncia em Minas Gerais

a assistecircncia agraves ldquomenoresrdquo deveria contar com a iniciativa privada (religiosa ou leiga) ndash

orfanatos e asilos subvencionados pelo estado - bem como com as famiacutelias idocircneas No

caso de as ldquomeninasrdquo serem entregues a famiacutelias o Regulamento determinava que o

Juiz de Menores estipulasse um ordenado (soldada) para as mesmas729

Nos estabelecimentos particulares ou subvencionados destinados a receber

meninas a educaccedilatildeo era constituiacuteda pela intelectual fiacutesica moral ciacutevica e profissional

O sect 3o do art 42 do Decreto 7680 de 3 de junho de 1927 estabelecia que ldquoa educaccedilatildeo

profissional abrangeraacute as seguintes secccedilotildees a) costura b) rendas e bordados c)

chapeacuteus d) lavanderia e) engommagem f) cozinhardquo730

Assim creio que a assistecircncia

prestada a essas meninas era perpassada por um vieacutes econocircmico ao preparaacute-las para as

atividades domeacutesticas ou seja matildeo de obra qualificada para os lares dos setores

abastados

Nos jornais que circularam no periacuteodo eacute comum a presenccedila de mateacuterias

discorrendo sobre a importacircncia de se proteger a infacircncia desvalida Nas reportagens da

eacutepoca em anaacutelise eacute possiacutevel observar o estabelecimento da correlaccedilatildeo salvaccedilatildeo da

infacircncia-salvaccedilatildeo da paacutetria

No jornal O Dia731

17 de novembro de 1920 saiu uma mateacuteria sobre a

Associaccedilatildeo das Damas Protetoras da Infacircncia onde as senhoras faziam um relatoacuterio das

729

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 253-255 730

Apud SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 254 731

O Jornal O Dia foi fundado em 1916 pelo meacutedico e poliacutetico Rubens Ferreira Campos Segundo Almir

de Oliveira esse perioacutedico estava ldquoa serviccedilo do bernardismordquo Cf OLIVEIRA Almir de A imprensa em

280

ativadas realizadas naquele ano como compra de flanela para as crianccedilas da creche do

Instituto aulas de catecismos festivais para arrecadaccedilatildeo de recursos entre outras accedilotildees

No final do relatoacuterio a presidente da associaccedilatildeo destacou a importacircncia da Associaccedilatildeo e

de suas associadas nos seguintes termos

[] praticando a mais sugestiva maneira de se exercer a caridade salvando e

amparando as crianccedilas desvalidas ndash esses pobres rebentos humanos que

protegidos devidamente podem e devem ser transformados em elementos

fortes instruiacutedos e uacuteteis ao nosso Pais Assim agindo cumprindo o dever

humanitaacuterio de sermos caritativas seremos tambeacutem patriotas praticas

militantes732

Examinando o texto observa-se que a obra de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo

desvalidos era considerada por setores das classes dominantes como uma maneira de

contribuir para o desenvolvimento da naccedilatildeo era uma expressatildeo simultacircnea de caridade

e de patriotismonacionalismo uma vez que estava propiciando agraves crianccedilas pobres

meios de sobreviver com dignidade e ao mesmo tempo estava livrando o paiacutes de futuros

cidadatildeo viciosos vagabundos e inuacuteteis

Em Juiz de Fora havia para o recolhimento das ldquomenoresrdquo o asilo Joatildeo Emilio

dirigido pelas irmatildes do Bom Pastor Essa instituiccedilatildeo tinha a finalidade de proteger a

honra das meninas desvalidas oacuterfatildes bem como cuidar daquelas que haviam sido

desonradas as chamadas penitentes Segundo Riolando Azzi o Relatoacuterio Paroquial de

1910 informava que o asilo estava com ldquo60 oacuterfatildes e 40 moccedilas penitentes com a

finalidade de reabilitaccedilatildeo de sua vida moralrdquo733

Nos jornais constantemente eram

registrados os donativos feitos pelas senhoras senhorinhas associaccedilotildees filantroacutepicas

comerciantes industriais Cacircmara Municipal fazendeiros entre outras a esta instituiccedilatildeo

Aleacutem das doaccedilotildees pecuniaacuterias tambeacutem eram realizadas outras em espeacutecies (leite

bototildees tecidos chitas linhas meias agulhas sabonetes sapatos pentes etc) Para

angariar donativos para a pia instituiccedilatildeo eram realizados pelas diversas associaccedilotildees

existentes no municiacutepio festivais concertos almoccedilos chaacutes danccedilantes e outras

atividades734

Juiz de Fora Juiz de Fora (MG) Imprensa Universitaacuteria 1981 p 36 AHCJF ldquoHistoacuteria da imprensa de

Juiz de Forardquo Diaacuterio Mercantil 27 abr 1946 732

SM-BMMM ldquoAssociaccedilatildeo das Damas de Assistecircncia agrave Infacircnciardquo O Dia 17 nov 1920 p 2 733

AZZI Riolando Sob o Baacuteculo Episcopal a Igreja Catoacutelica em Juiz de Fora 1850-1950 Juiz de Fora

(MG) Centro da Memoacuteria da Igreja de Juiz de Fora 2000 p 161 734

SM-BMMM Jornal do Commercio 20 dez 1896 1 ldquoAsylo Joatildeo Emiliordquo Jornal do Commercio 03

jun 1897 p 1 ldquoAsylo Joatildeo Emiliordquo Jornal do Commercio 11 jun 1897 p 1 ldquoChaacute dansanterdquo O Dia

12 out 1919 p 1 Entre outras reportagens

281

Aleacutem das ldquomenoresrdquo desvalidas encaminhadas com peticcedilotildees da justiccedila ao asilo

Joatildeo Emiacutelio a instituiccedilatildeo tambeacutem recebia oacuterfatildes contribuintes Segundo o artigo 18 sect 1o

do regulamento as internas contribuintes ficariam ldquoabsolutamente e em tudo sujeitas ao

mesmo regimem estatuiacutedo para as oacuterfatildes desvalida []rdquo e o sect 2o do citado artigo

assinalava que ldquonenhuma distincccedilatildeordquo seria ldquopermitida no estabelecimento entre

desvalidas e contribuintesrdquo735

Com relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo creio que a preocupaccedilatildeo maior era com a preparaccedilatildeo

das meninas para as atividades domeacutesticas como cozinhar lavar passar engomar

costurar e bordar De acordo com Maria Luiza Marciacutelio a educaccedilatildeo ministrada agraves

meninas nos asilos de modo geral tinha por objetivo ldquopreparaacute-las para serem matildees de

famiacutelia e ou empregadas domeacutesticas instruiacutedas e bem treinadasrdquo A educaccedilatildeo que

deveria ser dada agraves meninas desvalidas era a baacutesica seguida do aprendizado de um

ofiacutecio736

Segundo uma mateacuteria do jornal Diaacuterio Mercantil de junho de 1938 as

internas do asilo Joatildeo Emilio recebiam instruccedilatildeo primaacuteria e aprendiam ldquotoda sorte de

trabalhos manuais e domeacutesticosrdquo para que pudessem ldquomais tarde segundo sua condiccedilatildeo

social ganhar honestamente sua vidardquo737

Os trabalhos de bordados das meninas e

moccedilas do asilo foram extremamente elogiados pelas reportagens O Diaacuterio Mercantil

nas deacutecadas de 1940 e 1950 publicou diversas mateacuterias sobre o asilo Joatildeo Emiacutelio - que

passou a denominar-se Instituto nos anos de 1950 - sobre sua fundaccedilatildeo a obra das irmatildes

do Bom Pastor sobre as dificuldades econocircmicas os problemas de manutenccedilatildeo do

ldquovelho casaratildeordquo que ameaccedilava desabar e sobre a construccedilatildeo do novo edifiacutecio 738

A educaccedilatildeo ministrada aos meninos e meninas desvalidos oacuterfatildeos abandonados

e indigitados delinquentes natildeo contribuiacutea de modo geral para a superaccedilatildeo da condiccedilatildeo

socioeconocircmica desses ldquomenoresrdquo Em suma era uma educaccedilatildeo voltada para a

preparaccedilatildeo de matildeo de obra para os donos dos meios de produccedilatildeo e capital Essa

concepccedilatildeo de educaccedilatildeo para as crianccedilas das classes mais baixas da sociedade pode ser

735

SM-BMMM ldquoRegulamento para a entrada de oacuterfatildes contribuintes no Asylo lsquoJoatildeo Emiliorsquo segundo os

estatutos do estabelecimentordquo Jornal do Commercio 12 jan 1897 p 2-3 736

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 173-175 737

ldquoA grande obra do Asylo Joatildeo Emiliordquo ndash A vida da cidade - Diaacuterio Mercantil ndash supplemento

illustrado 26 jun 1938 A informaccedilatildeo sobre as reportagens referentes ao Asilo Joatildeo Emilio nas deacutecadas

de 1930 1940 e 1950 e as fotografias do jornal Diaacuterio Mercantil me foram cedidas gentilmente por Rita

de Caacutessia Vianna Rosa 738

ldquoUma instituiccedilatildeo que merece o amparo da populaccedilatildeordquo Diaacuterio Mercantil 26 nov 1940 p 1 (ediccedilatildeo da

tarde) ldquoTreme nos alicerces o velho casaratildeordquo Diaacuterio Mercantil 29 jan 1955 ldquoMatildeos humildes tecem

sonhosrdquo Diaacuterio Mercantil 04 fev 1955 p 6 ldquoCento e cinquenta bocas que imploramrdquo Diaacuterio

Mercantil 5 fev 1955 ldquoO corpo que natildeo trabalha se destroacutei e a alma inativa se arruiacutenardquo Diaacuterio

Mercantil 05 jan 1958 ldquoVisitado o Instituto (asilo) Joatildeo Emiliordquo Diaacuterio Mercantil 25 de dez de 1957

p 5 ldquoA mais velha instituiccedilatildeo filantroacutepica o Asilo Joatildeo Emiliordquo Diaacuterio Mercantil 14 dez 1957 p 5

282

observada nas palavras do diretor do Instituto Joatildeo Pinheiro Leacuteon Renault O diretor do

instituto mineiro de assistecircncia agrave infacircncia desvalida considerava que era dever do

governo propiciar a todas as classes o acesso a ldquoinstruccedilatildeo primaacuteria e elementarrdquo e o

ldquoensino secundaacuterio e superior aacute burguesiardquo Segundo Renault as crianccedilas desvalidas

eram ldquoforccedilas latentes que o ensino adequado e a educaccedilatildeo apropriada aproveitaratildeo para

o engrandecimento econocircmico da nossa terrardquo 739

Essas palavras sugerem que a

preocupaccedilatildeo com os ldquomenoresrdquo era perpassada por um vieacutes econocircmico e tinha por

objetivo apenas proporcionar-lhes os meios baacutesicos de instruccedilatildeo para viverem dentro da

sociedade civilizada higiecircnica e do trabalho almejada por estratos das classes

dominantes Assim a educaccedilatildeo dada a essas crianccedilas natildeo deveria subverter a ordem

social e econocircmica que estava estabelecida

Na proacutexima parte seraacute examinado o processo de internaccedilatildeo dos irmatildeos Joatildeo e

Geraldo Theodoro Monteiro em que as provaacuteveis dificuldades financeiras e problemas

familiares foram fatores para a solicitaccedilatildeo de internaccedilatildeo dos meninos

431 Laccedilos do Infortuacutenio a accedilatildeo de internaccedilatildeo dos irmatildeos Joatildeo e Geraldo

Theodoro Monteiro

Em janeiro de 1929 Dona Maria Umbelina Monteiro matildee dos ldquomenoresrdquo Joatildeo e

Geraldo Theodoro Monteiro de 12 e 14 anos de idade respectivamente sobre os quais

tinha o ldquopoder maternordquo declarou ao juiz de direito Custoacutedio de Almeida Lustosa ldquoque

desejava internal-os em Instituto official por natildeo ter meios de os educar nem de cohibir

o procedimento dos mesmosrdquo740

No ldquoTermo de Declaraccedilotildeesrdquo (15-01-1929) requisitado pelo Juiz a matildee dos

meninos declarou que era natural de Divinoacutepolis (Minas Gerais) possuiacutea 34 anos de

idade era viuacuteva de Joatildeo Theodoro Monteiro e casada em segundas nuacutepcias com

Divino Theodoro Monteiro741

pelo ldquoregimen legal natildeo possuindo bens o seu segundo

739

RENAULT Leacuteon A assistencia a infancia desvalida em Minas Geraes Belo Horizonte Imprensa

Official do Estado de Minas 1930 p 210 740

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos de Internaccedilatildeo de Menores

Menores Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro data 15-01-1929 Cx 0011ordm proc 741

Na documentaccedilatildeo analisada o nome do padrasto dos ldquomenoresrdquo ora aparece como Divino Theodoro

Monteiro e ora como Divino Theodoro Rodrigues Uma explicaccedilatildeo viaacutevel na hipoacutetese do pai e o padrasto

possuiacuterem os mesmos sobrenomes - ldquoTheodoro Monteirordquo - eacute a de que esses indiviacuteduos fossem afro-

283

maridordquo Segundo as declaraccedilotildees de Maria Umbelina ela tivera de seu primeiro

matrimocircnio quatro filhos a saber Geraldo (14 anos de idade) Joatildeo (12 anos) Joseacute

(falecido em Divinoacutepolis) e Raymundo (16 anos) que vivia em Barbacena (MG) e

estava empregado em uma faacutebrica de salames E de seu segundo casamento um filho de

nome Joseacute de trecircs anos de idade Segundo o documento a matildee dos ldquomenoresrdquo havia

declarado que natildeo possuiacutea ldquobens nem meios para educar os seus dois filhos Joatildeo e

Geraldordquo e que por isso desejava que os mesmos fossem ldquorecolhidos a um

estabelecimento para menores do estado e ali educados de modo a se tornarem

cidadatildeos dignos da sociedaderdquo742

Na documentaccedilatildeo analisada observa-se que a matildee dos ldquomenoresrdquo Joatildeo e

Geraldo estava empregando o discurso dominante de que as instituiccedilotildees eram espaccedilos

ideais para a recuperaccedilatildeo ou funcionavam como ldquoforno de purificaccedilatildeordquo dos viacutecios e

comportamentos indesejados das crianccedilas e jovens Talvez orientada por um advogado

ou outra pessoa instruiacuteda ou ainda por ter incorporado o pensamento dominante da

eacutepoca Maria Umbelina teria expressado em juiacutezo que desejava internar seus filhos ldquopor

natildeo ter meios de os educar nem de cohibir o procedimento dos mesmosrdquo e que eles

fossem internados em um estabelecimento oficial e ldquoali educados de modo a se

tornarem cidadatildeos dignos da sociedaderdquo As provaacuteveis justificativas empregadas pela

matildee dos meninos para que eles fossem enviados para um estabelecimento de

assistecircncia foram a pobreza e os supostos ldquoprocedimentordquo dos ldquomenoresrdquo Assim

internaacute-los era fundamental para ldquopurificaacute-losrdquo e tornaacute-los ldquocidadatildeos dignos da

sociedaderdquo ou seja bons trabalhadores disciplinados e ordeiros

Entretanto as justificativas dadas por Joatildeo e Geraldo a respeito de suas

internaccedilotildees diferem das que provavelmente a matildee apresentou Em janeiro de 1929 os

ldquomenoresrdquo foram enviados para o Abrigo de Menores em Belo Horizonte onde deram

brasileiros e que seus antepassados tenham sido escravos de um mesmo proprietaacuterio e que com a aboliccedilatildeo

tenham adotado o sobrenome dos antigos senhores Segundo os estudos sobre a escravidatildeo e o poacutes-

aboliccedilatildeo a praacutetica do sobrenome natildeo era muito comum entre os cativos brasileiros Geralmente era

adotado apoacutes a alforria e comumente era o do ex-proprietaacuterio Outra explicaccedilatildeo que pode ser aventada eacute a

de que o pai e o padrasto fossem parentes Ainda haacute de ser contemplado que a populaccedilatildeo dos setores

subalternos da sociedade muitas vezes natildeo possuiacutea nome de famiacutelia e quando o tinha geralmente natildeo

permaneciam com o mesmo ao longo da vida A matildee dos ldquomenoresrdquo tambeacutem aparece com sobrenomes

distintos nos registros sendo que em alguns aparece como Maria Umbelina Monteiro e em outros como

Maria Umbelina de Jesus Cf FARIA Sheila de Castro Op cit 1998 MATTOS Hebe Maria Das

cores do silecircncio os significados da liberdade no Sudeste escravista Brasil seacuteculo XIX Rio de Janeiro

Nova Fronteira 1998 SCHWARTZ Stuart B Segredos internos engenhos e escravos na sociedade

colonial 1550-1835 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1999 VOGT Carlos FRY Peter Cafundoacute a

Aacutefrica no Brasil ndash linguagem e sociedade Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 742

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos de Internaccedilatildeo de Menores

Menores Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro data 15-01-1929 Cx 0011o proc

284

entrada no dia 18 de janeiro de 1929743

De acordo com as informaccedilotildees do

ldquopromptuariordquo do Abrigo de Menores os meninos foram interrogados no dia 19 de

janeiro Abaixo estatildeo as declaraccedilotildees dos ldquomenoresrdquo em seus respectivos

interrogatoacuterios

Interrogatorio feito ao menor Joatildeo Theodoro Monteiro cocircr branca aos

dezenove dias do mez de janeiro de mil novecentos e vinte e nove

Interrogado disse

Que eacute filho de Joatildeo e Maria Umbelina de Jesus aquele fallecido e esta

residente a rua Mariano Procoacutepio nordm 1406 Juiz de Foacutera que nasceu em

Divinopolis e tem doze annos que jaacute frequentou escola e assigna o nome

que tem mais 3 irmatildeos estando um internado aqui outro em Juiz de Fora

com sua matildee e outro empregado em Barbacena que sua matildee e casada soacute no

religioso com Divino Theodoro Rodrigues que seu padrasto maltrata muito o

depoente e todos os irmatildeos que tem um tio Agente de Poliacutecia em Juiz de

Fora que arranjou para o depoente ser internado aqui no Abrigo que nunca

esteve preso e natildeo gosta de beber nem jogar que o depoente e sadio bem

assim sua matildee que tem um tio paterno que jaacute esteve meio atrapalhado do

juiacutezo que agora estaacute melhor []744

Interrogatorio feito ao menor Geraldo Theodoro Monteiro cocircr branca aos

dezenove dias do mez de janeiro de mil novecentos e vinte e nove

Interrogado disse

[] que nasceu no dia 1 de marccedilo de 1914 em Divinopolis que jaacute frequentou

escola e assina o nome que jaacute esteve empregado em Barbacena na ldquoFaacutebrica

de Salamerdquo com o sr Antocircnio de Oliveira e ganhava roupa comida e 15$000

por mecircs dessa quantia tirava 5$000 e mandava 10$000 para sua matildee que sua

matildee eacute casada segunda vez com Divino Theodoro sendo este indiferente para

os enteados por esta razatildeo sua matildee quis interna-los num collegio que o

depoente nunca esteve preso que tem mais 3 irmatildeos um aqui no Abrigo

outro empregado em Barbacena e o uacuteltimo com sua matildee que seu pai bebia

muito que sua matildee presume a morte dele devido a bebida que tem um tio

que jaacute esteve no Hospicio de Barbacena que o depoente eacute sadio bem assim

sua matildee []745

Pelos depoimentos presume-se que o provaacutevel fator que levou a matildee Maria

Umbelina a solicitar a internaccedilatildeo dos meninos tenha sido a relaccedilatildeo supostamente tensa

dos filhos com seu segundo marido Pelos ldquomenoresrdquo foi declarado que o padrasto

ldquomaltratavardquo e era ldquoindiferenterdquo a seus enteados

Nas famiacutelias dos segmentos sociais mais baixos geralmente o pai nem sempre eacute

uma personagem presente e ou conhecida dos filhos Muitas vezes a ausecircncia estaacute

743

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores ldquoMenoresrdquo Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112 744

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores ldquoMenoresrdquo Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112 Juiacutezo de Menores da Comarca

de Bello Horizonte ndash Abrigo de Menores Promptuario Nordm 287 Menor Joatildeo Theodoro Monteiro 745

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores ldquoMenoresrdquo Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112 Juiacutezo de Menores da Comarca

de Bello Horizonte ndash Abrigo de Menores Promptuario nordm 286 Menor Geraldo Theodoro Monteiro

285

relacionada com a morte o abandono a separaccedilatildeo dos pais e outros motivos A

construccedilatildeo de uma imagem paterna pai ou padrasto fica tambeacutem prejudicada em

algumas situaccedilotildees por causa de uniotildees passageiras das matildees com seus companheiros

Aleacutem disso as novas relaccedilotildees afetivas das genitoras das crianccedilas das classes mais

pobres podem significar rompimento dos laccedilos entre matildees e filhos pois muitos

parceiros natildeo aceitam a presenccedila das crianccedilas de uniotildees anteriores no domicilio746

No depoimento Joatildeo assinalou que um tio que era ldquoAgente de Poliacuteciardquo havia

conseguido a internaccedilatildeo dele no abrigo Avento a hipoacutetese se veriacutedica essa alegaccedilatildeo de

que esse tio possa ter se beneficiado de suas redes de conhecimento para ajudar a matildee

dos ldquomenoresrdquo a conseguir a internaccedilatildeo dos mesmos em uma instituiccedilatildeo puacuteblica Como

jaacute foi abordado segmentos letrados da capital mineira criticavam o fato de algumas

famiacutelias do interior conseguirem vagas para internarem seus filhos nos estabelecimentos

de assistecircncia puacuteblica de Belo Horizonte dada a suposta ldquoproteccedilatildeo poliacuteticardquo747

O

ldquomenorrdquo Geraldo em seu depoimento declarou que jaacute havia trabalhado em uma

ldquoFaacutebrica de salamerdquo em Barbacena cidade proacutexima de Juiz de Fora onde recebia

ldquoroupa comidardquo e mais o ordenado de ldquo15$000rdquo (quinze mil reis) mensais e que

enviava para sua matildee parte do salaacuterio Poreacutem natildeo relatou o motivo pelo qual natildeo

permaneceu trabalhando no dito estabelecimento como seu irmatildeo mais velho

Raymundo Geraldo ainda ressaltou que seu pai ldquobebia muitordquo e que sua matildee atribuiacutea o

falecimento dele a esse fato O alcoolismo era (eacute) algo presente em muitas famiacutelias dos

setores desfavorecidos da sociedade Os ldquomenoresrdquo ainda declararam que tinham um tio

que ldquojaacute esteve meio atrapalhado do juiacutezordquo e que havia estado no Hospiacutecio de Barbacena

Segundo Cynthia Veiga e Luciano Faria nos prontuaacuterios do Abrigo de Menores havia a

preocupaccedilatildeo em se registrar a partir dos interrogatoacuterios a existecircncia de casos de

alcoolismo e ou loucura na famiacutelia dos internos bem como a profissatildeo que desejavam

seguir De acordo com os autores tal procedimento se devia []

[] as preocupaccedilotildees com as heranccedilas bioloacutegicas e sua possiacutevel manifestaccedilatildeo

na crianccedila aleacutem da necessidade de identificar no menino as suas propensotildees

de caraacuteter por meio da profissatildeo escolhida procedimento comum no

discurso psicoloacutegico da eacutepoca748

746

KOSMINSKY Ethel Volfzon Op cit 1993 p 164-165 Cf CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio A

Ideologia do Favor amp a Ignoracircncia Simboacutelica da Lei Rio de Janeiro Imprensa do Estado do Rio de

Janeiro 1993 p 36-37 40-42 747

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 252 748

VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes de Op cit 1999 p 59

286

No prontuaacuterio de Geraldo Theodoro haacute a informaccedilatildeo de que o mesmo jaacute havido

estado no Aprendizado Agriacutecola de Barbacena pelo periacuteodo de dois anos mas ldquosem

nenhum resultadordquo Suponho que a relaccedilatildeo de indiferenccedila ou de violecircncia do segundo

marido de Maria Umbelina para com seus filhos ou mesmo a natildeo aceitaccedilatildeo das crianccedilas

no domicilio a tenha levado a recorrer ao internamento como uma maneira de natildeo os

deixarem soltos no mundo

Os irmatildeos Joatildeo e Geraldo incialmente foram para o Abrigo de Menores que

era o estabelecimento responsaacutevel pelo exame das crianccedilas ou seja de fazer a triagem

A passagem por esse estabelecimento deveria ser temporaacuteria ateacute que fosse determinado

em qual instituiccedilatildeo o interno deveria ficar preservaccedilatildeo ou reforma749

A Escola de

Reforma era para atender ldquomenoresrdquo que haviam sido ldquojulgados e condenados como

pervertidos ou delinquentes por um juiz ou entatildeo classificados como tal durante sua

passagem pelo Abrigo de Menores750

E a Escola de Preservaccedilatildeo era para os menores

desvalidos classificados como de boa iacutendole751

Wesleyuml Silva assinala que pelo

Regulamento de Assistecircncia e Proteccedilatildeo do Estado de Minas Gerais (Decreto n 7326 de

1926) foi criado a Escola de Regeneraccedilatildeo esta por sua vez se subdividia em trecircs seccedilotildees

distintas de atendimento a ldquomenoresrdquo a saber o de observaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores

Affonso de Moraes o de preservaccedilatildeo ndash Escola de Preservaccedilatildeo Lima Duarte e o de

reforma ndash Escola de Reforma Alfredo Pinto752

No pouco tempo que passaram pelo Abrigo de Menores eles tentaram fugir Os

irmatildeos deram entrada no estabelecimento em 18 de janeiro de 1929 sendo que uma

semana apoacutes tentaram fugir mas natildeo obtiveram ecircxito sendo ldquocapturadosrdquo no mesmo

dia No dia 26 de janeiro de 1929 ou seja um dia apoacutes a primeira tentativa de fuga o

ldquomenorrdquo Joatildeo conseguiu evadir-se do Abrigo de Menores Em seu prontuaacuterio estaacute

registrado que ele foi apreendido em Juiz de Fora e remetido novamente para o Abrigo

De acordo com Wesleyuml Silva geralmente os ldquomenoresrdquo recapturados retornavam ao

Abrigo de Menores e permaneciam ldquopor tempos variaacuteveis contrariando as

determinaccedilotildees contidas no Regulamento de Assistecircncia e no Coacutedigo de Menoresrdquo753

O

autor ainda ressaltou que as fugas tambeacutem eram comuns na Escola de Regeneraccedilatildeo

Alfredo Pinto e que as ocorrecircncias eram mais frequentes com internos provenientes de

749

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 243-244 750

Idem p 289 751

Ibidem p 297 752

Ibidem p 241-242 e 297 753

Ibidem p 261

287

outros municiacutepios sendo que os que obtinham ecircxito geralmente retornavam para a sua

cidade754

Os dois prontuaacuterios examinados do Abrigo de Menores satildeo constituiacutedos de uma

ficha que na frente eacute composta pelas impressotildees digitais de ambas as matildeos e no verso

traz os dados pessoais dos ldquomenoresrdquo como nome idade cor filiaccedilatildeo naturalidade

instruccedilatildeo residecircncia motivo da internaccedilatildeo e outras Na mesma paacutegina em que se

encontra a ficha de identificaccedilatildeo consta tambeacutem as fotos dos meninos de frente e de

perfil jaacute com o uniforme do Abrigo contendo a data e o nuacutemero do registro civil O

processo de internaccedilatildeo ainda eacute composto pelo interrogatoacuterio dos ldquomenoresrdquo por pedidos

de informaccedilotildees ao delegado de poliacutecia da cidade de origem sobre os ldquoantecedentes

pessoal e familiarrdquo dos meninos informaccedilotildees sobre qual a profissatildeo que queriam seguir

ficha meacutedica a sentenccedila de abandono e internaccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo entre outras755

Segundo Carlo Ginzburg a necessidade das sociedades em distinguir seus

indiviacuteduos exigiu a criaccedilatildeo de processos cada vez mais elaborados de identificaccedilatildeo dos

mesmos O nome a assinatura arquivos fotograacuteficos antropometria foram meios

utilizados para distinguir os indiviacuteduos da sociedade Poreacutem quanto mais complexa as

sociedades ficavam maiores eram as exigecircncias para a correta identificaccedilatildeo de seus

componentes De acordo com o autor foi no final do seacuteculo XIX que ldquoforam propostos

por vaacuterios lados em concorrecircncia entre si novos sistemas de identificaccedilatildeordquo Tal

processo foi fruto das exigecircncias impostas pela sociedade capitalista burguesa pela luta

de classe pelo aumento da criminalidade Esses entre outros fatores exigiam das

sociedades modernas novas formas de identificar os seus sujeitos A identificaccedilatildeo

constituiu-se em um ldquoprojeto geral mais ou menos consciente de controle generalizado

e sutil sobre a sociedaderdquo A descoberta da impressatildeo digital permitiu a perfeita

identificaccedilatildeo de indiviacuteduos ldquoa senha oculta da individualidaderdquo estava decifrada

Assim ricos pobres analfabetos ou natildeo ldquotornava-se graccedilas agraves impressotildees digitais

reconheciacutevel e controlaacutevelrdquo756

754

Ibidem p 263 755

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores ldquoMenoresrdquo Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112 Cf VEIGA Cynthia Greive

FARIA FILHO Luciano Mendes de Op cit 1999 p 58-59 756

GINZBURG Carlo Mitos emblemas e sinais morfologia e histoacuteria Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2009 p 171-177

288

Imagem 23 Ficha de identificaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores (BH) ndash ldquoMenorrdquo Geraldo 1929

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis processos relativos agrave accedilatildeo de

internaccedilatildeo de menores ldquoMenorrdquo Geraldo Theodoro Monteiro Ano 1929 cx 112

Imagem 24 Ficha de identificaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores (BH) ndash ldquoMenorrdquo Geraldo 1929 Idem

289

Observando as fotografias tem-se a impressatildeo de que os uniformes eram de

tamanhos maiores que a numeraccedilatildeo que os meninos deveriam usar fator este que

contribui para reforccedilar a ldquoideia de abandonordquo desses ldquomenoresrdquo A esse respeito Ethel

Kosminsky em estudo sobre a internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo em unidades da FEBEMSP

na deacutecada de 1980 ressaltou que o fato de as crianccedilas internas em instituiccedilotildees natildeo

possuiacuterem objetos de uso pessoal ou suas proacuteprias roupas representa um dos ldquoelementos

responsaacuteveis pelo aviltamento da identidade ou seja da lsquomutilaccedilatildeo do eursquordquo e que esse

aspecto eacute ldquouma das caracteriacutesticas desse tipo de instituiccedilatildeordquo757

Examinando a fonte observa-se que natildeo havia uma definiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave cor

dos ldquomenoresrdquo ora eles foram descritos como mesticcedilos claros ora como brancos e ou

como morenos

Fazia parte dos procedimentos de internaccedilatildeo uma anaacutelise meacutedica dos ldquomenoresrdquo

que objetivava diagnosticar problemas fiacutesicos psiacutequicos e comportamentais De acordo

com a ficha meacutedica as informaccedilotildees eram fornecidas pelos proacuteprios internos ao ldquomeacutedico

do Juizo de Menoacuteresrdquo A ficha meacutedica era composta pelos seguintes itens identificaccedilatildeo

antecedentes hereditaacuterios a quem a crianccedila estava confiada (parentes tutor assistecircncia

puacuteblicaparticular) meio familiar meio escolar meio profissional antecedentes

pessoais exame fiacutesico musculatura exame intelectual exame escolar caraacuteter-

perversotildees observaccedilotildees parecer e indicaccedilotildees

Muitos itens da ficha meacutedica natildeo eram respondidos pelos ldquomenoresrdquo onde era

registrada a expressatildeo ldquoignoacuterardquo (dados com idade dos pais quando haviam falecido

doenccedilas causas da morte irmatildeos do ldquomesmo leitordquo nome dos avoacutes entre outras)

Cynthia Veiga e Luciano Faria analisaram 70 pastas (prontuaacuterios) de crianccedilas que

passaram pelo Abrigo no periacuteodo de 1927 a 1947 Segundo os autores natildeo foi

identificada nenhuma ficha meacutedica ldquopreenchida adequadamenterdquo sendo que os dados

dos ldquomenoresrdquo geralmente eram descritos de forma bem ldquogeneralizada demonstrando

terem sido obtidos por uma impressatildeo superficialrdquo758

Para Veiga e Faria os itens natildeo

preenchidos poderiam estar relacionados agrave falta de um profissional realmente capacitado

para o preenchimento dos dados ou entatildeo que natildeo haveria

[] nenhum empenho das autoridades em conhecer mais profundamente os

meninos para uma consequente busca de efetiva resoluccedilatildeo para cada caso O

que temos eacute uma tensatildeo entre a existecircncia de uma ficha meacutedica elaborada

757

KOSMINSKY Ethel Volfzon Op cit 1993 p 161-162 758

VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes de Op cit 1999 p 58-59

290

dentro do pensamento meacutedico-cientiacutefico da eacutepoca mas natildeo respondida

adequadamente Eacute como se a proacutepria condiccedilatildeo de abandono e ou miseacuteria dos

meninos os fizessem portadores dos mesmos sintomas que se espalhava por

tudo levando a falta onde quer que estivesse759

Imagem 25 Ficha Meacutedica ndash Geraldo Theodoro Montreiro AHCJF Foacuterum

Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores ldquoMenorrdquo Geraldo Theodoro Monteiro Ano 1929 cx 112

759

Ibidem

291

Imagem 26 Ficha Meacutedica (2) Idem

292

Imagem 27 Ficha Meacutedica (3) Idem

293

Imagem 28 Ficha Meacutedica (4) Idem

No exame meacutedico os ldquomenoresrdquo eram submetidos a exames do diacircmetro

biacromial dos aspectos fiacutesicos da fisionomia da capacidade de memorizaccedilatildeo de

leitura e escrita e outros aspectos Durante o seacuteculo XIX e princiacutepios do XX com o

294

surgimento da estatiacutestica social da psicologia da frenologiacraniologia da

antropometria da eugenia da antropologia criminal entre outros estudos o

desenvolvimento e o comportamento humano e os caracteres anaacutetomo-fisioloacutegicos

tornaram-se passiacuteveis de quantificaccedilatildeo mensuraccedilatildeo e classificaccedilatildeo Esses estudos

vestidos com o manto da cientificidade objetivavam determinar a capacidade mental as

propensotildees de caraacuteter os aspectos hereditaacuterios entre outras caracteriacutesticas das

pessoas760

Com relaccedilatildeo agrave escolaridade apesar de os ldquomenoresrdquo Joatildeo e Geraldo terem

afirmado que haviam frequentado o Grupo Escolar a instruccedilatildeo deles resumia-se

basicamente em escrever o nome Na ficha meacutedica de Joatildeo de 12 anos de idade foi

registrado que assinava o nome que natildeo sabia ler e nem escrever e que eram nulas as

suas ldquonoccedilotildees geraes e praticasrdquo Geraldo de 14 anos foi descrito em seu exame como

tendo pouca leitura escrita e copiada tambeacutem pouca761

Na parte referente ao ldquocaraacuteter e perversotildeesrdquo Joatildeo foi descrito entre outros itens

como tendo um temperamento ldquosymphaticordquo natildeo sendo dada a coacutelera violecircncia

impulsotildees fugas e vadiagem e possuiacutea uma ldquoconduta habitualrdquo boa Jaacute seu irmatildeo

Geraldo foi descrito como tendo um temperamento nervoso dado a coacutelera violecircncia

impulsotildees fugas e vadiagem de maacute conduta habitual poreacutem natildeo era nocivo Todavia

as fichas meacutedicas dos meninos apresentam algumas incongruecircncias Ambos tentaram

fugir sendo que Joatildeo obteve ecircxito conseguindo inclusive chegar a Juiz de Fora

retornando somente em 5 marccedilo de 1929 para o Abrigo de onde foi ldquoremettido na

mesma data para a Escola de Reforma Alfredo Pintordquo O ldquomenorrdquo ainda foi descrito

pela professora do Abrigo Dordf Marina Franco como tendo ldquomaoacute procedimento

Desattenciosordquo Entretanto seu irmatildeo foi declarado pela dita professora como tendo um

ldquobom procedimento em sala Attenciosordquo Geraldo tambeacutem tentou fugir por duas vezes

do Abrigo sendo que no dia da segunda tentativa 25 de janeiro de 1929 foi enviado

para a Escola de Reforma Alfredo Pinto sendo entatildeo desligado do Abrigo762

O meacutedico do Juiacutezo de Menores natildeo anotou na ficha de Joatildeo que ele era dado a

ldquofugasrdquo Natildeo teria o Dr Telles de Menezes conhecimento da fuga e da ausecircncia do

760

SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil

1870-1930 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 p 47-61 166-167 GOUVEcircA Maria Cristina ldquoRaccedila

e infacircncia no seacuteculo XIXrdquo In SOUZA Gisele de (org) Educar na infacircncia perspectivas histoacuterico-

sociais Satildeo Paulo Contexto 2010 p 75-78 VEIGA Cynthia Greive ldquoAs crianccedilas na histoacuteria da

educaccedilatildeordquo In SOUZA Gisele de (org) Op cit 2010 p 34-35 761

AHCJF Foacuterum B Collucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de menores

Menores Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112 762

Idem

295

ldquomenorrdquo do Abrigo A impressatildeo que fica da anaacutelise dessas fichas eacute que o meacutedico natildeo

tomava conhecimento dos fatos que envolviam o ldquomenorrdquo desde a sua chegada a

instituiccedilatildeo ou de que natildeo havia uma comunicaccedilatildeo entre a aacuterea meacutedica e as demais aacutereas

do abrigo Esses detalhes reforccedilam as hipoacuteteses de Veiga e Faria jaacute comentadas de que

as fichas provavelmente natildeo eram realizadas por especialistas ou funcionaacuterios

ldquocompetentes para tal e que natildeo havia nenhum empenho das autoridades em conhecer

mais profundamente os meninos []rdquo763

O parecer e indicaccedilatildeo do meacutedico do Juiacutezo de Menores Telles de Menezes em

21 de fevereiro de 1929 foi de que Joatildeo era ldquomentalmente normalrdquo e poderia ldquoser

internado em Escola de Preservaccedilatildeordquo Com relaccedilatildeo a Geraldo apesar de tambeacutem ser

considerado normal foi considerado como dado a fugas e agrave vadiagem sendo assim

deveria ser internado em Escola de Reforma

Apesar de o parecer meacutedico indicar Joatildeo para ser internado em uma Escola de

Preservaccedilatildeo ele foi enviado para a Escola de Reforma Alfredo Pinto depois de ser

apreendido em Juiz de Fora e de ter retornado para o Abrigo de Menores em marccedilo de

1929

Em agosto de 1929 o Juiz de Menores de Belo Horizonte Alarico Barroso

determinou a remessa dos prontuaacuterios para o Juiz de Direito de Juiz de Fora Custoacutedio

de Almeida Lustosa a quem competia ldquoprocessar e julgar o abandono dos menores Joatildeo

e Geraldo Theodoro Monteiro em vista de a matildee dos ditos menores residirrdquo na referida

cidade

A matildee dos meninos foi intimada a comparecer ao Foacuterum da cidade de Juiz de

Fora No ldquoTermo de declaraccedilotildeesrdquo Maria Umbelina Monteiro declarou que []

[] inteirada do que aconteceu a seus filhos depois da leitura destes autos

que lhe foi feita concordava com a internaccedilatildeo delles no logar em que se

acham e ateacute agradecia tatildeo accertadas providencias do Governo pois soacute assim

elles poderatildeo em futuro proacuteximo se tornarem excellentes cidadatildeos []

Eu Joseacute Casimiro de Figueiredo escrivatildeo escrevi e dou feacute

Maria Umbelina Monteiro 764

Provavelmente os supostos maus tratos e a indiferenccedila de seu segundo marido e

padrasto de seus dois filhos Joatildeo e Geraldo tenham levado Maria Umbelina a

considerar que a internaccedilatildeo em uma instituiccedilatildeo puacuteblica seria melhor para o futuro deles

763

VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes de Op cit 1999 p 58 764

AHCJF Foacuterum B Collucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de menores

Menores Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112

296

bem como para livraacute-la de problemas conjugais Pode-se conjecturar tambeacutem que a matildee

dos meninos acreditasse realmente no poder transformador das instituiccedilotildees ou que

estivesse apenas fazendo coro aos discursos dominantes da eacutepoca que afirmavam que

os institutos de assistecircncia contribuiacuteam para a transformaccedilatildeo dos sujeitos em

ldquoexcelentes cidadatildeosrdquo ou seja bons trabalhadores disciplinados

As dificuldades financeiras os problemas com novos companheiros as atitudes

e comportamentos dos ldquomenoresrdquo tidas como inadequadas muitas vezes foram motivos

para as matildees pais e outros responsaacuteveis solicitarem ou concordarem com a internaccedilatildeo

de suas crianccedilas Nessas situaccedilotildees as crianccedilas que tinham (tem) uma vida perpassada

por perdas violecircncias e privaccedilotildees muitas vezes ainda se deparavam (deparam) com as

atitudes de indiferenccedila de suas matildees que os relegavam (relegam) agraves instituiccedilotildees como

uma maneira de os punirem por suas supostas faltas765

Entre os anos de 1931-1932 os irmatildeos Monteiro solicitaram ao Juiz da comarca

de Juiz de Fora que fossem desligados da Escola de Reforma Alfredo Pinto Com

relaccedilatildeo ao pedido de Geraldo Theodoro Monteiro o Juiz de Direito Andreacute Martins de

Andrade assinalou que natildeo tinha ldquonada a deferir por natildeo ter sido o reqte internado por

determinaccedilatildeo deste juiacutezo mas a pedido de parentesrdquo Jaacute o ldquomenorrdquo Joatildeo solicitava uma

ldquoordem de habeas-corpus a seu favor allegando illegalidade do constrangimento que

soffre detido na Escola Alfredo Pinto por ordem de V S desde 5 de marccedilo de 1929

sem sentenccedila nem processordquo O pedido foi feito por duas vezes (1931-1932) e a uacutenica

notiacutecia que se tem eacute a de que as informaccedilotildees jaacute haviam sido prestadas 766

O estudo sobre a infacircncia desvalida abandonada (fiacutesica e moralmente) e

indigitada delinquente tem demonstrado que na maioria das vezes as poliacuteticas puacuteblicas

e as leis promulgadas para o atendimento desse estrato da sociedade foram ineficientes

A construccedilatildeo de instituiccedilotildees que a priori deveriam amparar proteger cuidar e oferecer

uma educaccedilatildeo de qualidade a essas crianccedilas e jovens foram e ainda satildeo locais de

sofrimento de arbitrariedades inimaginaacuteveis de desrespeito para com as

individualidades de descaso para com a formaccedilatildeo (fiacutesica e intelectual) desses

segmentos vulneraacuteveis da sociedade

765

Cf KOSMINSKY Ethel Volfzon Op cit 1993 p 167 766

AHCJF Foacuterum Benjamin Collucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores Menores Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112

297

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Espancado na faacutebrica Matildeo amputada Eletrocutado Abandonada pelos patrotildees

Natildeo recebeu as soldadas Fratura da coluna Morte por choque traumaacutetico Exposta na

residecircncia Aos prantos Fuga da casa do tutor Natildeo aprendeu a ler e escrever

Internado ldquoEntreguerdquodado para ldquocriarrdquo [] Estas satildeo algumas das situaccedilotildees

vivenciadas pelas crianccedilas cujas vidas ou destinos transitaram pelas paacuteginas deste

trabalho Na maioria das vezes satildeo histoacuterias marcadas por perdas abandono violecircncias

miseacuterias e exploraccedilatildeo Atraveacutes dos processos judiciais criminais das paacuteginas dos

jornais e de revistas e entre outros documentos suas histoacuterias de vida foram se

descortinando e dando um reflexo de como a sociedade do periacuteodo analisado

visualizava a problemaacutetica da infacircncia desvalida abandonada trabalhadora e dita

delinquente A leitura dessas fontes foi reveladora de vaacuterios aspectos da sociedade e das

relaccedilotildees e intenccedilotildees de seus atores A esse respeito Thompson assinalou que ldquoa maioria

das fontes escritas satildeo de valor pouco importando o lsquointeressersquo que levou ao seu

registrordquo e que os ldquoatoresrdquo envolvidos em transaccedilotildees comerciais de propriedades de

acordos nupciais entre outros natildeo tiveram a ldquointenccedilatildeo de registrar fatos interessantes

para uma vaga posteridaderdquo Mas caberaacute ao historiador a leitura desse material e a

partir das perguntas que formular

[] poderaacute derivar dele evidecircncias relativas a transaccedilotildees de propriedade

procedimentos legais mediaccedilotildees entre grupos proprietaacuterios de terras e

mercantis estruturas familiares especificas e laccedilos de parentesco agrave

instituiccedilatildeo do casamento burguecircs ou a atitudes sexuais ndash evidecircncias que os

autores natildeo tiveram a intenccedilatildeo de revelar e algumas das quais (talvez) se

horrorizassem em saber que chegaria agrave luz767

Procurei identificar nas entrelinhas dos documentos produzidos pelas classes

dominantes pelo poder judiciaacuterio entre outras fontes as vozes dos ldquomenoresrdquo e de seus

familiares Os ecos dessas vozes foram percebidos nas atitudes como as fugas dos

ldquomenoresrdquo tutelados das casas de seus tutores dos abrigos nas solicitaccedilotildees dos pais

pela restituiccedilatildeo do paacutetrio poder nas denuacutencias de maus tratos infligidas agraves crianccedilas

tuteladas e operaacuterias e em tantas outras situaccedilotildees Conforme Thompson ressaltou

767

THOMPSON E P A miseacuteria da teoria ou um planetaacuterio de erros uma criacutetica ao pensamento de

Althusser Rio de Janeiro Zahar Editores 1981 p 36-37

298

provavelmente os juiacutezes advogados promotores puacuteblicos os homens da imprensa a

classe empresarial os fazendeiros e outros natildeo tiveram a intenccedilatildeo de produzir relatos

para a posteridade e muito menos as classes vulneraacuteveis da sociedade poderiam supor

que suas lutas por direitos sociais para poderem criar seus filhos as denuacutencias de

abusos e exploraccedilotildees praticados por tutores e patrotildees pudessem revelar no futuro

pensamentos padrotildees de condutas costumes e valores de uma dada eacutepoca

Ao longo deste estudo procurei demonstrar as estrateacutegias de controle social de

segmentos das classes dominantes sobre a matildeo de obra de crianccedilas dos estratos

vulneraacuteveis da sociedade durante o processo de implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do mercado

de trabalho livre na sociedade brasileira A recusa em entregar as crianccedilas a seus

familiares o rapto768

a confecccedilatildeo de contratos de trabalho dando total controle aos

proprietaacuterios sobre a vida dos ldquomenoresrdquo (que foi chamado no processo de apreensatildeo do

menino Antonio de ldquonovo captiveirordquo769

) a busca pelo viacutenculo tutelar foram apenas

algumas das medidas adotadas pelas classes abastadas para manterem sua autoridade e o

controle sob uma parcela da forccedila de trabalho A documentaccedilatildeo analisada para a

realizaccedilatildeo desta pesquisa possibilitou observar o quanto estavam presentes as praacuteticas

autoritaacuterias e coercitivas dos tempos do cativeiro na sociedade brasileira do poacutes-

aboliccedilatildeo

Durante o processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre uma das

medidas para solucionar a provaacutevel falta de braccedilos para a lavoura foi recorrer ao

trabalhador estrangeiro principalmente de origem europeia Assim levas de imigrantes

vieram para o Brasil para trabalharem nas grandes propriedades geralmente as

dedicadas ao cultivo do cafeacute O braccedilo imigrante em determinadas aacutereas do paiacutes

superou a matildeo de obra do nacionalliberto poreacutem as pesquisas dedicadas a tal temaacutetica

demonstram que esta natildeo foi a realidade vivenciada por todas as regiotildees do territoacuterio

nacional inclusive naquelas que se dedicavam ao cultivo da rubiaacutecea Com relaccedilatildeo a

Juiz de Fora os estudos tem salientado que apesar de um contingente expressivo de

imigrantes ter contribuiacutedo para o incremento populacional da cidade na virada do

768

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de menores Menores

Francisca e Joaquim Data 09 de janeiro de 1890 cx 04 769

AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de menores Menor

Antocircnio 31-12-1888 cx 04

299

seacuteculo XIX para o XX este natildeo chegou a suplantar a forccedila de trabalho composta por

nacionais e libertos no poacutes-emancipaccedilatildeo770

Dessa forma a matildeo de obra das unidades agriacutecolas das oficinas das faacutebricas do

comeacutercio e das residecircncias de Juiz de Fora nos anos finais do oitocentos e princiacutepios do

seacuteculo XX era constituiacuteda por nacionais afro-brasileiros e imigrantes de diversas

nacionalidades (italianos alematildees portugueses siacuterios libaneses e outras) de ambos os

sexos e por muitas crianccedilas Assim esse grupo ldquoheterogecircneordquo contribuiu com sua forccedila

de trabalho para o desenvolvimento e o progresso do municiacutepio

As anaacutelises nas fontes acenaram para o fato de que as accedilotildees coercitivas as

medidas de controle e de disciplinamento sobre a matildeo de obra infantil natildeo se

restringiram apenas as crianccedilas afrodescendentes e nacionais mas se estenderam aos

pequenos imigrantes e ou descendentes Dito de outra maneira tais praacuteticas foram

impostas a todos os ldquomenoresrdquo pertencentes aos segmentos mais baixos da hierarquia

socioeconocircmica independente de sua origem eacutetnica e de seu sexo As praacuteticas

autoritaacuterias de coaccedilatildeo e de controle dos setores dominantes foram percebidas ao longo

do periacuteodo delimitado por este estudo o que denota que tais comportamentos estavam

impregnados nos valores nas condutas e nos costumes de estratos das classes

proprietaacuterias

Desse modo procurei verificar o comportamento e as atitudes das classes

dominantes juiz-forana durante o processo de reestruturaccedilatildeo do Estado brasileiro sob

novas bases poliacuteticas econocircmicas e sociais bem como de elaboraccedilatildeo de uma nova eacutetica

do trabalho na passagem agrave modernidade Assim atraveacutes dos jornais foi possiacutevel

observar que os setores da intelectualidade dos grupos dominantes e do empresariado

local estavam antenados com essas mudanccedilas da sociedade brasileira Em consonacircncia

com esse contexto os segmentos dominantes procuraram erigir uma imagem da urbs do

interior mineiro como moderna civilizada e constituiacuteda por um povo de iniciativa

ordeiro e laborioso As poliacuteticas de aformoseamento saneamento e urbanizaccedilatildeo da aacuterea

central o pioneirismo do municiacutepio com relaccedilatildeo agrave energia eleacutetrica (construccedilatildeo da

primeira usina Hidreleacutetrica da Ameacuterica Latina) o seu desenvolvimento industrial

(Manchester Mineira) e cultural (Atenas Mineira) a inauguraccedilatildeo da Sociedade de

770

Cf CARDOSO Ciro Flamarion ldquoA aboliccedilatildeo como problema histoacuterico e historiograacuteficordquo In _____

(org) Escravidatildeo e aboliccedilatildeo no Brasil novas perspectivas Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

SARAIVA Luiz Fernando Um correr de casas antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para

o livre em Juiz de Fora ndash 18701900 Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 2001 OLIVEIRA Luiacutes

Eduardo Os trabalhadores e a cidade A formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de Fora e suas lutas por

direitos (1877-1920) Juiz de Fora (MG) Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV 2010

300

Medicina e Cirurgia da Academia Mineira de Letras entre outras iniciativas visavam

fundamentalmente consolidar a imagem de progresso civilizaccedilatildeo e modernidade da

cidade Por outro lado os setores vulneraacuteveis da sociedade o povo ordeiro e laborioso

eram sistematicamente segregados da cidade civilizada moderna e higiecircnica Nos

perioacutedicos locais as condiccedilotildees insalubres das moradias populares os elevados valores

dos alugueacuteis a falta de infraestrutura urbana nos subuacuterbios as condiccedilotildees precaacuterias de

trabalho foram constantemente publicados nos jornais Na contramatildeo do discurso

dominante da cidade da ordem do labor e do progresso movimentos grevistas de

vaacuterios setores profissionais foram deflagrados e comiacutecios e saques contra a carestia

foram promovidos o que sugere que o povo era laborioso mas natildeo tatildeo

ordeirosubmisso

As discussotildees os projetos e leis relativos ao trabalho infantil agrave assistecircncia social

agraves crianccedilas abandonadas e ou delinquentes a educaccedilatildeo para os pequenos desvalidos

foram questotildees analisadas em resposta ao objetivo inicial de minha proposta de

investigaccedilatildeo O exame da legislaccedilatildeo do periacuteodo (Ordenaccedilotildees Filipinas Coacutedigo Penal

1890 Constituiccedilatildeo Republicana 1891 Coacutedigo Civil 1916 Lei de Acidentes no

Trabalho 1919 e Coacutedigo de Menores 1927) foi extremamente importante para a

conduccedilatildeo da anaacutelise em tela O diaacutelogo com o pensamento juriacutedico mostrou-se

imprescindiacutevel para a compreensatildeo da dimensatildeo normativa disciplinadora e punitiva

que os setores dominantes procuraram impor agraves classes desfavorecidas da sociedade

Assim atraveacutes de accedilotildees e normas assentadas em princiacutepios ditos cientiacuteficos da

medicina-higienista e do Direito as crenccedilas os valores a organizaccedilatildeo familiar o lazer e

o cuidado com os filhos das classes pobres foram gradativamente sendo enquadrados

dentro dos valores burgueses Os que natildeo se conformavam com os padrotildees da sociedade

higiecircnica civilizada da ordem e do trabalho eram considerados marginais e dessa

forma passiacuteveis de tratamento e de correccedilatildeo

Dentro dessa conformaccedilatildeo a educaccedilatildeo passou a ser concebida pelos setores

dominantes como um mecanismo extremamente eficiente de controle social e de difusatildeo

dos valores burgueses entre as classes mais baixas Se de um lado a educaccedilatildeo era

visualizada como um caminho para a ordem o progresso e a civilizaccedilatildeo por outro ela

era considerada uma ldquoarmardquo que deveria ser habilmente manejada para que natildeo

comprometesse a hierarquia social vigente Desse modo a educaccedilatildeo que foi delineada

para as crianccedilas pobres foi a baacutesica acompanhada do aprendizado de um ofiacutecio Assim

ela se prestava a alfabetizar transmitir valores morais e higiecircnicos bem como adestrar

301

os ldquomenoresrdquo como matildeo de obra submissa para o mercado de trabalho Dito de outra

maneira a educaccedilatildeo deveria tatildeo somente proporcionar as condiccedilotildees miacutenimas para a

inserccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo na sociedade higiecircnica e do trabalho livrando-os da miseacuteria e

da criminalidade

Entretanto apesar do enaltecimento da educaccedilatildeo como uma via para o progresso

e a civilizaccedilatildeo na passagem agrave modernidade detectei que ao logo dos primeiros anos

republicanos essa problemaacutetica manteve-se no plano dos discursos A ldquoManchester

Mineirardquo com sua boa gente de iniciativa natildeo criou as condiccedilotildees materiais para que

pudesse proporcionar educaccedilatildeo a todos os ldquomenoresrdquo dos estratos vulneraacuteveis

Dialogando com os perioacutedicos verifiquei uma seletividade no acesso aos

estabelecimentos de ensino puacuteblicos das crianccedilas pobres As exigecircncias de uniformes

tipos de merendas o trabalho precoce foram uma das barreiras entre tantas outras ao

acesso dessas crianccedilas agraves escolas

O trabalho infantil foi a problemaacutetica central deste estudo Destarte todas as

discussotildees relativas agraves crianccedilas pobres tiveram por fito compreender e discutir a

inserccedilatildeo desse segmento social no mundo do trabalho nos anos finais do seacuteculo XIX e

princiacutepios do XX Assim uma das preocupaccedilotildees iniciais foi a de definir a noccedilatildeo de

trabalho infantil na qual iria me basear Dessa forma procurei trabalhar com a definiccedilatildeo

de trabalho infantil em que as relaccedilotildees sociais satildeo perpassadas pela exploraccedilatildeo da matildeo

de obra e em que a forccedila de trabalho eacute tida como uma ldquomercadoriardquo771

Atraveacutes da documentaccedilatildeo compulsada verifiquei que as classes dominantes do

muniacutecipio forjaram diversas estrateacutegias de controle social da matildeo de obra de crianccedilas

procedentes dos setores vulneraacuteveis da sociedade ainda durante o periacuteodo escravista

Por intermeacutedio de accedilotildees legais e ilegais vaacuterias crianccedilas foram precocemente inseridas

nas faacutebricas oficinas no comeacutercio nas propriedades agriacutecolas e residecircncias do

municiacutepio de Juiz de Fora como matildeo de obra barata ou gratuita Nas fontes pude

amealhar informaccedilotildees sobre as condiccedilotildees de vida dessas crianccedilas e de seus familiares

os provaacuteveis fatores de seu abandono sobre a inserccedilatildeo precoce no mercado de trabalho

as supostas causas de seus acidentes as relaccedilotildees entre patrotildeesgerentessupervisores e

empregados e entre os operaacuterios Os indiacutecios das condiccedilotildees precaacuterias de trabalho da

exploraccedilatildeo da forccedila de trabalho infanto-juvenil dos abusos contra os ldquomenoresrdquo

obtidas nas vaacuterias fontes examinadas me permitem verificar como a classe proprietaacuteria

771

MARX Karl ENGELS Friedrich O manifesto comunista Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 p 19

302

local (industriais comerciantes fazendeiros e outros) procurava maximizar seus lucros

com a contrataccedilatildeo de um nuacutemero elevado de crianccedilas com longas jornadas de trabalho

e sem se atentarem para as condiccedilotildees fiacutesicas dos estabelecimentos o que

provavelmente foi o fator para alguns acidentes de trabalho Outra constataccedilatildeo eacute a de

que muitas crianccedilas tiveram sua matildeo de obra utilizada sem nenhuma medida legal

(tutelacontrato de soldada) por vaacuterios anos e possivelmente em condiccedilotildees precaacuterias de

trabalho e marcadas por abusos de autoridade

A reflexatildeo desenvolvida na documentaccedilatildeo me fez perceber que a preocupaccedilatildeo

com a regulamentaccedilatildeo do trabalho priorizou os trabalhadores urbanos e principalmente

dos setores industriais que jaacute possuiacuteam um niacutevel de organizaccedilatildeo capaz de promover

reivindicaccedilotildees Dessa maneira foram principalmente os ldquomenoresrdquo inseridos nas

atividades urbano-industriais que ficaram respaldados pelas leis de acidentes no trabalho

(1919) e pelo Coacutedigo de Menores (1927) A questatildeo do trabalho domeacutestico executado

por muitas e muitas crianccedilas natildeo foi contemplado nas legislaccedilotildees do periacuteodo em tela

apesar de ser uma modalidade laborativa que empregou largamente a matildeo de obra

infantil A crer na veracidade das memoacuterias de contemporacircneos as condiccedilotildees das

crianccedilas empregadas nas atividades domeacutesticas eram marcadas por uma grande

exploraccedilatildeo por condiccedilotildees precaacuterias de sobrevivecircncia nas residecircncias por agressotildees

fiacutesicas sexuais e psiacutequicas bem como estavam expostas a vaacuterios tipos de acidentes

Muitos pequenos e jovens trabalhadores dos lares abastados eram provenientes das

aacutereas rurais e foram levados para as cidadescapitais o que provavelmente ocasionou

um rompimento com seus familiares por algum tempo e ou para toda a vida

Geralmente as justificativas para o emprego dessas crianccedilas pautavam-se nos

novos valores difundidos sobre o trabalho e tambeacutem na ideia de que ele era a mais

eficiente profilaxia contra a vadiagem e o crime Nos processos judiciais e nos jornais

pude detectar essas concepccedilotildees nos pareceres nas conclusotildees nas peticcedilotildees nas

reportagens de advogados juiacutezes promotores puacuteblicos homens de letras entre outros

Mas para as famiacutelias pobres o trabalho dos filhos para aleacutem dos valores morais da

sociedade burguesa representava provavelmente uma necessidade premente para a

renda familiar

Ainda no que diz respeito ao emprego de crianccedilas algumas vozes dissonantes

tambeacutem se fizeram ouvir na documentaccedilatildeo consultada Expunham a necessidade de uma

legislaccedilatildeo social e de uma educaccedilatildeo de qualidade para as classes pobres e seus filhos

303

bem como denunciavam os prejuiacutezos que as atividades laborativas acarretavam na

formaccedilatildeo fiacutesica intelectual e psiacutequica das crianccedilas

O binocircmio trabalho-educaccedilatildeo eram as foacutermulas ideais de salvaccedilatildeo da sociedade

o caminho para o paiacutes civilizar-se na concepccedilatildeo de setores da intelectualidade e dos

grupos dominantes Nesse sentido as instituiccedilotildees assistenciais apareciam como o loacutecus

de consecuccedilatildeo desse ideal As crianccedilas desvalidas abandonadas e ou delinquentes

deveriam ser encaminhas para esses estabelecimentos que lhes proporcionariam as

condiccedilotildees necessaacuterias para a sua inclusatildeo na sociedade higiecircnica do progresso e da

ordem

A necessidade de uma legislaccedilatildeo referente agrave questatildeo dos ldquomenoresrdquo desvalidos

abandonados trabalhadores e delinquentes foi debatida ao longo dos primeiros anos do

regime republicano Entretanto somente nos anos finais da deacutecada de 1920 eacute que

efetivamente se concretizou uma accedilatildeo nesse sentido com a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de

Menores de 1927

Uma preocupaccedilatildeo presente neste estudo foi a de procurar perceber as mudanccedilas

e permanecircncias relativas agrave problemaacutetica da infacircncia pobre no Brasil O que pude

verificar eacute que ainda estatildeo extremamente presentes praacuteticas autoritaacuterias de outrora no

trato com as crianccedilas dos setores vulneraacuteveis da sociedade Com relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo

puacuteblica para as crianccedilas das camadas pobres ainda eacute ofertada uma educaccedilatildeo de baixa

qualidade (professores desvalorizados falta de recursos materiais e humanos de vagas

etc) Provavelmente muitos segmentos das classes dominantes continuam concebendo

a educaccedilatildeo puacuteblica para as camadas pobres como forma de preparaccedilatildeo de trabalhadores

para ocuparem os cargos mais baixos dentro da hierarquia social

O trabalho infantil continua sendo uma realidade em nosso paiacutes apesar da

existecircncia de leis que o proiacutebam A falta de uma fiscalizaccedilatildeo eficiente de poliacuteticas mais

justas de distribuiccedilatildeo de renda de um projeto educacional preocupado com os sujeitos

sociais e natildeo com nuacutemeros para as organizaccedilotildees internacionais entre outros fatores tem

contribuiacutedo para a permanecircncia dessa modalidade de trabalho

Atualmente estamos agraves voltas com a discussatildeo da maioridade penal Apesar da

histoacuteria jaacute ter demonstrado que a prisatildeo o abrigo a escola de reforma o reformatoacuterio

natildeo eacute o meacutetodo mais eficaz para solucionar a questatildeo da infacircncia pobre abandonada e

delinquente esta continua sendo apresentada por vaacuterios segmentos da sociedade como a

soluccedilatildeo ideal sem contudo desenvolver um debate substancial sobre tal problema

social

304

FONTES

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Acervo do Foacuterum da Comarca de Juiz de Fora Foacuterum Benjamin Colucci

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Acervo do Foacuterum Benjamin Collucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos

agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de menores 1929 cx 112

Acervo do Foacuterum da Comarca de Juiz de Fora Foacuterum Benjamin Colucci

Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo tutela (1888-1930) Cx 100 e 101

Acervo do Foacuterum da Comarca de Juiz de Fora Foacuterum Benjamin Colucci

Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de menores (1888 ndash 1922)

cx 04

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Jornal

Diaacuterio Mercantil

Arquivo Histoacuterico da Universidade Federal de Juiz de Fora (AHUFJF)

Acervo do Foacuterum da Comarca de Juiz de Fora Foacuterum Benjamin Collucci

Processos Ciacuteveis - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho (1919-1944) cx

1 a 7

Acervo do Foacuterum da Comarca de Juiz de Fora Foacuterum Benjamin Colucci

Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo tutela (1888-1930) Cx 4 a 9

Acervo do Foacuterum da Comarca de Juiz de Fora Foacuterum Benjamin Colucci

Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de Internaccedilatildeo de Menores 1929 Cx 001

Jornal

O Pharol (microfilme)

305

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O Dia

Jornal do Commercio

Correio de Minas

Revistas

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ii

RAQUEL PEREIRA FRANCISCO

PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre

abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)

NITEROacuteI

2015

iii

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE CIEcircNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA

PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre

abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)

RAQUEL PEREIRA FRANCISCO

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense como

requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor Aacuterea

de Concentraccedilatildeo Histoacuteria Social e Econocircmica

Orientadora Profordf Drordf

Gizlene Neder

NITEROacuteI

2015

iv

Ficha Catalograacutefica

F818P FRANCISCO RAQUEL PEREIRA

Pequenos desvalidos a infacircncia pobre abandonada e operaacuteria de

Juiz de Fora (1888-1930) Raquel Pereira Francisco ndash 2015

343 f il color

Orientadora Gizlene Neder

Tese (Doutorado em Histoacuteria) ndash Universidade Federal Fluminense

2015

Bibliografia f 307-323

1 Trabalho infantil - Brasil 2 Infacircncia - aspecto social 3

Assistecircncia social 4 Acidente de trabalho I Neder Gizlene

Orientadora II Universidade Federal Fluminense Instituiccedilatildeo

responsaacutevel III Tiacutetulo

CDD 331340981

v

PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre

abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)

Raquel Pereira Francisco

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal

Fluminense como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor Aacuterea de Concentraccedilatildeo

Histoacuteria Social e Econocircmica

Comissatildeo Examinadora

__________________________________________________________

Profordf Drordf Gizlene Neder (Orientadora)

Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________________

Prof Dr Marcos Luiz Bretas da Fonseca (Arguidor)

Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________________________________________

Profordf Drordf Keila Grinberg (Arguidora)

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

__________________________________________________________

Profordf Drordf Laura Antunes Maciel (Arguidora)

Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________________

Prof Dr Gisaacutelio Cerqueira Filho (Arguidor)

Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________________

Profordf Drordf Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva (Suplente)

Universidade do Estado do Rio de Janeiro ndash FFPSatildeo Gonccedilalo

__________________________________________________________

Profordf Drordf Larissa Moreira Viana (Suplente)

Universidade Federal Fluminense

vi

A Ana Doro voacute Nica meu exemplo de vida (in memoriam)

A Neuza minha matildee e fortaleza

Para minha filha Ana Sophia amor da minha vida

vii

AGRADECIMENTOS

Agradecer eacute um ato de demonstrar gratidatildeo de reconhecer a orientaccedilatildeo a ajuda

o carinho o companheirismo e a amizade de algueacutem Assim satildeo muitas as pessoas a

quem preciso agradecer pela realizaccedilatildeo deste trabalho

Em primeiro lugar agradeccedilo agrave professora Gizlene Neder por ter aceitado

orientar-me por sua atenccedilatildeo pelo incentivo pelas sugestotildees e por seu

comprometimento com a pesquisa Sou extremamente grata por ter sido nesses anos

minha incentivadora para eu apresentar meus trabalhos em congressos e seminaacuterios

ajudando-me a superar minhas dificuldades de falar em puacuteblico Com esse estiacutemulo jaacute

realizei alguns progressos

Aos professores da Universidade Federal Fluminense Veroacutenica Secreto e

Humberto Machado pelas indicaccedilotildees de leituras e discussotildees de importantes temas

realizadas nas disciplinas que cursei durante o doutorado

A Kalna Mareto Teao e Raquel de Faacutetima dos Reis amigas que conheci no

percurso do doutorado Foram muito prazerosas as nossas conversas sobre coisas da

vida problemas frustraccedilotildees medos e sonhos e os nossos passeios pelo Rio de Janeiro

A Raquel agradeccedilo tambeacutem por me acolher algumas vezes no seu apartamento em

Niteroacutei Valeu

Agraves professoras Elione Silva Guimaratildees e Sheila de Castro Faria pelas valiosas

criacuteticas sugestotildees e pelos enriquecedores comentaacuterios durante o Exame de

Qualificaccedilatildeo os quais muito contribuiacuteram para que eu refletisse sobre algumas questotildees

e para o desenvolvimento final deste trabalho

A Elione Silva Guimaratildees endosso a minha gratidatildeo pela disponibilidade em

realizar o Parecer Criacutetico de dois terccedilos da minha tese Seus comentaacuterios foram uma

ldquoinjeccedilatildeo de acircnimordquo em um momento de tristeza e desacircnimo

Aos funcionaacuterios da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria-UFF em especial

a Silvana e Thais pela atenccedilatildeo e paciecircncia

Ao professor Manuel Roph de Viveiros Cabeceiras coordenador do Curso de

Graduaccedilatildeo em Histoacuteria-UFF pela atenccedilatildeo durante o meu Estaacutegio Docecircncia no primeiro

semestre letivo de 2012 Aos funcionaacuterios da secretaria do Curso de Graduaccedilatildeo em

Histoacuteria-UFF por sempre se mostrarem soliacutecitos

Aos alunos da graduaccedilatildeo em Histoacuteria-UFF que fizeram o curso ldquoInfacircncia e

Trabalho fins do seacuteculo XIX e iniacutecio do XXrdquo ministrado por mim no primeiro

viii

semestre letivo de 2012 no programa de Estaacutegio Docecircncia PPGH-UFFCAPES por

levantarem questotildees e promoverem debates que enriqueceram as aulas e muito

subsidiaram a reflexatildeo de problemaacuteticas discutidas nesta pesquisa

A CAPES pelo financiamento desta pesquisa

A Heliane Casarin do Setor de Memoacuteria da Biblioteca Municipal Murilo

Mendes sempre presente atenta preocupada com o andamento das pesquisas pelo

incentivo e pelo compromisso com os pesquisadores e com a Histoacuteria de Juiz de Fora

Meus sinceros agradecimentos por tudo

Aos funcionaacuterios do Arquivo Histoacuterico da Universidade Federal de Juiz de Fora

Tarciacutesio e Edna por sempre se mostrarem prestativos e dispostos a ajudar-me no que

fosse preciso

Aos funcionaacuterios do Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora Francisco

Carlos Limp (Chicatildeo) Elione Guimaratildees e Antocircnio Henrique Lacerda pela atenccedilatildeo

Especialmente a Elione e Chicatildeo por sempre se mostrarem dispostos a auxiliar e a

sanar algumas duacutevidas Chicatildeo sua alegria seus conhecimentos sobre a histoacuteria de Juiz

de Fora e sobre a documentaccedilatildeo vatildeo fazer muita falta no arquivo Assim resta-me

desejar-lhe uma boa aposentadoria

Aos amigos do Laboratoacuterio Cidade e Poder do PPGH-UFF Jefferson de

Almeida Pinto Ana Paula Barcelos e Adriano Paranhos pelo incentivo e pelas palavras

de estiacutemulo antes das apresentaccedilotildees

Agraves amigas e aos amigos Rita de Caacutessia Vianna Rosa Antocircnia (Toninha) Sonia

Maria de Souza Elisacircngela Mendes Jussaramar Silva Jerusa Andrade Leda Maria

Ribeiro de Lima Silvania Andrade Patriacutecia Lage Mocircnica Costa Wal Barbosa Tarcilia

Nascimento Cristiano Duarte Zamblute Tarciacutezio Mancini Alexandre Glugliotta

Geraldo Pereira Maacuterio Henrique Dias pelo incentivo e pela amizade Desculpem-me

pela ausecircncia Agradeccedilo especialmente ao Tarciacutezio pelas informaccedilotildees sobre algumas

fontes e pela traduccedilatildeo do ldquoResumordquo para o inglecircs

A Rita de Caacutessia Vianna Rosa amiga sempre presente pelo incentivo e pela

presteza Obrigada por sua leitura atenta e criacutetica de meus textos pelas discussotildees

teoacutericas e metodoloacutegicas pelos empreacutestimos de livros e pelas sugestotildees de leituras Sou

ainda muito grata a Rita por ter me cedido gentilmente os seus fichamentos do jornal

O Dia pelas informaccedilotildees sobre a questatildeo da infacircncia pobre nos perioacutedicos locais do poacutes

1930 e por me ceder alguns exemplares dos jornais das deacutecadas de 1930 1940 e 1950

que digitalizou pertencentes aos acervos dos arquivos e setores de memoacuteria da cidade

ix

A Mocircnica Costa e Arthur Silva pela ajuda na digitalizaccedilatildeo de alguns anos do

Diaacuterio Mercantil e processos judiciais A Mocircnica por me auxiliar na leitura e

fichamento de alguns exemplares do jornal O Pharol

A todos os meus familiares matildee pai marido filha irmatilde cunhados e cunhadas

por todo o incentivo carinho compreensatildeo e paciecircncia que me dispensaram

Aos meus pais Neuza e Manoel pelo grande amor e dedicaccedilatildeo Sou

eternamente grata a minha matildee pelo incentivo pela compreensatildeo e por ter me ajudado

a cuidar de Ana Sophia permitindo-me assim a tranquilidade necessaacuteria para

pesquisar estudar e escrever a tese

A minha irmatilde Giovanna agradeccedilo pelas leituras do meu texto pela confecccedilatildeo

dos bancos de dados e dos graacuteficos e pela paciecircncia em me escutar Ao meu cunhado

Leandro pela ajuda com o computador que sempre resolve dar problemas nos

momentos que dele mais precisamos A minha cunhada Cristina agradeccedilo pela leitura e

pelo fichamento de algumas ediccedilotildees do Jornal do Commercio

Ao meu querido companheiro Aureacutelio pelo carinho pelo incentivo por

compreender a minha ausecircncia o meu nervosismo e os meus medos Obrigada por

compartilhar de todos os momentos bons ou ruins pelas leituras do meu texto e

discussotildees a respeito de algumas questotildees sociais Esses momentos foram muito

enriquecedores para mim Vamos agora compartilhar outros e novos sonhos

A minha pequena Ana Sophia que nasceu no meio desse turbilhatildeo de papeacuteis

livros questionamentos processos falta de tempo prazos medos ansiedades Sempre

ao meu lado vendo-me escrever e estudar chamando minha atenccedilatildeo com um sorriso

um chorinho um gritinho e uma brincadeira Agradeccedilo por simplesmente existir e dar a

minha vida um sentido a cada novo dia Terei mais tempo para darmos uma ldquovoltinhardquo

meu amorzinho

A tia Ana minha ldquomatildee pretardquo por todo o seu carinho e pela cumplicidade

Desculpe-me pela falta de tempo Mas agora natildeo haacute mais tempo neacute Agradeccedilo a

senhora por tudo o que me ensinou ateacute em seu uacuteltimo suspiro naquele abraccedilo eterno

doloroso Dedico agrave senhora todo o meu respeito e amor Saudades

x

Agraves vezes nos esquecemos de que os abusos podem permanecer

ldquodesconhecidosrdquo por longo tempo ateacute serem publicamente

revelados e que as pessoas podem ver a miseacuteria e natildeo

percebecirc-la ateacute a proacutepria miseacuteria se rebelar

E P Thompson (2002 p 215)

xi

RESUMO

Nesta tese busca-se fazer uma reflexatildeo sobre a problemaacutetica da infacircncia pobre

abandonada e trabalhadora em Juiz de Fora Minas Gerais nos anos finais do seacuteculo

XIX e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX O recorte temporal delimitado para a

realizaccedilatildeo desta anaacutelise eacute o da implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do mercado de trabalho livre

em substituiccedilatildeo ao escravo do processo de industrializaccedilatildeo e de reestruturaccedilatildeo do

Estado sob o sistema republicano de governo No contexto dessas transformaccedilotildees as

classes dominantes sentiram a necessidade de criar novas formas de controle social No

que diz respeito agraves crianccedilas pobres e ou abandonadas diversas foram as estrateacutegias de

controle social adotadas pelos segmentos dominantes com o objetivo de manterem o

domiacutenio sobre a matildeo de obra dos ldquomenoresrdquo sendo uma delas o viacutenculo tutelar Nesse

momento de estruturaccedilatildeo do mercado de trabalho capitalista setores da intelectualidade

poliacuteticos meacutedicos-higienistas juristas entre outros apresentaram diversas propostas de

assistecircncia social para as crianccedilas dos estratos mais baixos da hierarquia

socioeconocircmica com o objetivo de educar preservar e regenerar os ldquomenoresrdquo pelo e

para o trabalho A educaccedilatildeo destinada aos setores vulneraacuteveis da sociedade era a

elementar conjugada com o aprendizado de um ofiacutecio ou seja destinava-se a preparar

matildeo de obra disciplinada e submissa O trabalho infanto-juvenil foi uma problemaacutetica

debatida ao longo dos primeiros anos republicanos Poreacutem a sua regulamentaccedilatildeo

ocorreu apenas nos anos finais da deacutecada de 1920 com a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de

Menores A presenccedila de pequenos operaacuterios nas induacutestrias no comeacutercio nas oficinas e

em outros estabelecimentos da cidade de Juiz de Fora no iniacutecio do seacuteculo XX pode ser

constatada por meio dos perioacutedicos e dos processos de acidentes no trabalho analisados

neste estudo onde muitos pequenos foram viacutetimas

Palavras-chave Trabalho Infantil Tutelas Acidentes de Trabalho Assistecircncia Social

xii

ABSTRACT

This thesis intends to analyse the problems involving the poor neglected and

worker infancy in Juiz de Fora Minas Gerais during the last years of the XIX century

and the first decades of the XX century The period studied relates to setting up and

consolidation of free work market to substitute the slave one the process of

industrialization and restructuring of State under a republican system of government In

this context of changes the upper classes felt the necessity to create new ways of social

control Specifically about the poor andor neglected children a lot of strategies of social

control were adopted by the upper classes purposing to keep dominance over the

infantile work market being one of them the guardianship In the historic present of

consolidation of the capitalist work market some sectors like the intellectuality

politicians sanitary doctors and jurists showed proposals of social assistance for

children of the lower economic and social status purposing educate preserve and

regenerate them by and for work The education applied to those children was the

elementary associated to an apprenticeship of manual labour focusing a disciplined and

submissive labour force The infant-juvenile work was a topic debated during the first

republin years although its regulation only occurred in the last years of the decade of

1920 with the Child Act The presence of under-age workers in the local plants

commerce and manufactures of Juiz de Fora at the beginning of the XX century can be

seen through some newspapers and proceedings of work accidents where a lot of under-

age workers were victims

Key-words infantile work guardianships work accidents social assistance

xiii

REacuteSUMEacute

Cette thegravese vise agrave faire une reacuteflexion sur la probeacutematique de lrsquoenfance pauvre

abandonneacutee et travailleuse agrave Juiz de Fora Minas Gerais dans les derniegraveres anneacutees du

XIXe siegravecle et dans les premiegraveres deacutecennies du XXe siegravecle La peacuteriode deacutelimiteacutee pour

cette analyse est celle du deacuteploiement et de la consolidation du marcheacute du travail libre

qui remplace lrsquoesclave du processus drsquoindustrialisation et de restructuration de lrsquoEacutetat

sous la forme reacutepublicaine de gouvernement Dans le contexte de ces transformations

les classes dominantes ont ressenti le besoin de creacuteer de nouvelles formes de controcircle

social En ce qui concerne les enfants pauvres etou abandonneacutes plusieurs strateacutegies de

controcircle social ont eacuteteacute adopteacutees par des segments dominants afin de maicirctriser la main

drsquooeuvre des ldquomineursrdquo lrsquoune drsquoelles eacutetant la relation tuteacutelaire Dans ce moment de

structuration du marcheacute de travail capitaliste les secteurs des intellectuels des

politiciens des meacutedecins-hygieacutenistes des juristes entres autres ont presenteacute de

diffeacuterentes propositions drsquoaide social pour les enfants des couches les plus basses de la

hieacuterarchie socio-eacuteconomique afin drsquoeacuteduquer preacuteserver et reacutegeacuteneacuterer les ldquomineursrdquopar et

pour le travail Lrsquoeacuteducation destineacutee aux secteurs vulneacuterables de la socieacuteteacute eacutetait

eacuteleacutementaire conjugueacutee agrave lrsquoapprentissage drsquoun meacutetier crsquoest-agrave-dire elle avait pour but de

preacuteparer une main drsquooeuvre disciplineacutee et soumise Le travail des enfants et des jeunes a

eacuteteacute une question deacutebattue au long des premiegraveres anneacutees reacutepublicaines Toutefois sa

reacuteglementation na eu lieu quagrave la fin des anneacutees 1920 avec la promulgation du Code des

mineurs La preacutesence de petits travailleurs dans les industries les commerces les

ateliers et drsquoautres eacutetablissements dans la ville de Juiz de Fora au deacutebut du XXe siegravecle

peut ecirctre deacutetecteacutee par des journaux et des procegraves drsquoaccidents du travail analyseacutes dans

cette eacutetude et dont beaucoup de victimes eacutetaient des enfants

Mots-cleacutes Travail des Enfants Tutelle Accidents du Travail Aide Sociale

xiv

IacuteNDICE DOS QUADROS

Quadro 1 Populaccedilatildeo escrava e livre do municiacutepio de Juiz de Fora (1853-18723)52

Quadro 2 Populaccedilatildeo do municiacutepio de Juiz de Fora (1890 ndash 1907 ndash 1920) 52

Quadro 3 Crescimento populacional do municiacutepio de Juiz de Fora (1853-1920) 53

Quadro 4 Nuacutemero de crianccedilas tuteladas por periacuteodo 109

Quadro 5 Presenccedila feminina e masculina nos processos de tutelas (1888 ndash 1930) 117

Quadro 6 Faixa etaacuteria dos ldquomenoresrdquo viacutetimas de acidentes no trabalho (1919 ndash 1930)

178

Quadro 7 Operaacuterios do setor tecircxtil e de malharia envolvidos em acidentes no trabalho

(1919 ndash 1930) 178

Quadro 8 Tipos de abandonoentrega de ldquomenoresrdquo (1888-1930) 257

xv

IacuteNDICE DOS GRAacuteFICOS

Graacutefico 1 Nuacutemero de crianccedilas tuteladas (1888-1930) 111

Graacutefico 2 Nuacutemero de autos de tutela (1888-1930) 111

Graacutefico 3 ldquoMenoresrdquo envolvidos em acidentes no trabalho ndash divisatildeo por

sexo179

Graacutefico 4 ldquoMenoresrdquo envolvidos em acidentes no trabalho ndash divisatildeo por sexo e

setor180

xvi

IacuteNDICE DAS IMAGENS

Imagem 1 ldquoMenorrdquo Joatildeo Theodoro Monteiro ndash 192914

Imagem 2 Fachada e operaacuterios - Faacutebrica de Tecelagem e Fiaccedilatildeo Moraes Sarmento

(Festa 03051922)59

Imagem 3 Fachada da Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial

Mineira60

Imagem 4 ldquoMenoresrdquo nas ruas e pedra nos trilhos dos

bonds 190066

Imagens 5 Habitaccedilatildeo Operaacuteria ndash 192290

Imagem 6 Habitaccedilatildeo Operaacuteria ndash 192291

Imagem 7 Joseacute Procoacutepio Teixeira 92

Imagem 8 Edifiacutecio das Reparticcedilotildees Municipais 1921 93

Imagem 9 Avenida Baratildeo do Rio Branco ndash Juiz de Fora 192094

Imagem 10 Jardim da Infacircncia 1925 Largo do Riachuelo97

Imagem 11 Meninos capinadores 193999

Imagem 12 Meninos capinadores 1939100

Imagem 13 Capa do Processo de Tutela do ldquomenorrdquo Joaquim Mariano Alves 101

Imagem 14 Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas ndash 1928161

Imagem 15 Nota sobre o abandono de uma ldquomenorrdquo pelos patrotildees 181

Imagem 16 Nota sobre acidente de trabalho de uma ldquomenorrdquo ndash serviccedilo domeacutestico182

Imagem 17 Propaganda da Estamparia Universal ndash 1922191

Imagem 18 Fachada da Faacutebrica de Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Tecidos de Malha

Meurer208

Imagem 19 Interior da Faacutebrica Meurer 212

Imagem 20 Fachada do Asilo Joatildeo Emilio ndash 1915 234

Imagem 21 ldquoDeclaraccedilatildeo de entrega do filhordquo 254

Imagem 22 Bilhete sobre uma ldquomenorrdquo abandonada na usina de Marmelo

265

Imagem 23 Ficha de identificaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores (BH) - ldquoMenorrdquo Geraldo

1929288

Imagem 24 Ficha de identificaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores (BH) - ldquoMenorrdquo Geraldo

1929288

xvii

Imagem 25 Ficha Meacutedica ndash Geraldo Theodoro Monteiro 290

Imagem 26 Ficha Meacutedica (2) Idem291

Imagem 27 Ficha Meacutedica (3) Idem 292

Imagem 28 Ficha Meacutedica (4) Idem 293

xviii

IacuteNDICE DE ABREVIATURAS

AHCJF Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora

AHUFJF Arquivo Histoacuterico da Universidade Federal de Juiz de Fora

SM - BMMM Setor de Memoacuteria - Biblioteca Municipal Murilo Mendes

xix

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 1

CAPIacuteTULO 1 A INFAcircNCIA COMO UM PROBLEMA SOCIAL NA PASSAGEM

Agrave MODERNIDADE NO BRASIL 14

11 ldquoFlores de uma geraccedilatildeo futurardquo a questatildeo da infacircncia pobre no Brasil 15

12 Os ldquomenoresrdquo desvalidos na Repuacuteblica da ldquoOrdemrdquo e do ldquoProgressordquo 37

13 A ldquoManchester Mineirardquo e seus ldquomenoresrdquo 47

CAPIacuteTULO 2 OS PEQUENOS DESVALIDOS JUIZ DE FORA (1888-1930) 101

21 Os Processos de tutelas das Ordenaccedilotildees Filipinas ao Coacutedigo Civil

Brasileiro (1916) 102

22 Dar tutor ldquoa todos os oacuterfatildeos e menoresrdquo 108

2 3 Tensotildees e confrontos as disputas entre pais e Tutores pela guarda dos

ldquomenoresrdquo 119

24 Entre tinas vassouras e cafezais as tutelas e contratos de soldadas de

ldquomenoresrdquo desvalidos 135

25 Apreensatildeo de ldquomenoresrdquo 149

CAPIacuteTULO 3 POR ENTRE MAacuteQUINAS E ENGRENAGENS AS CRIANCcedilAS

OPERAacuteRIAS DA ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo 161

31 A questatildeo social na Primeira Repuacuteblica Lei de Acidentes de Trabalho e

Coacutedigo de Menores 162

311 A Lei de Acidentes de Trabalho ndash Brasil 1919 162

312 O Coacutedigo de Menores e a regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil 170

3 2 Da rua agrave faacutebrica o proletariado infanto-juvenil da ldquoManchester Mineirardquo 174

33 Micucci a morte de um pequeno proletaacuterio da ldquoManchester Mineirardquo 207

331 Entre tapas e pontapeacutes o pequeno operaacuterio Micucci 209

CAPIacuteTULO 4 OS ldquoDESERDADOS DA SORTErdquo A ASSISTEcircNCIA AOS

ldquoMENORESrdquo POBRES 234

41 As instituiccedilotildees para ldquomenoresrdquo desvalidos uma obra de caridade cristatilde e

um dever do estado 235

411 A assistecircncia aos ldquomenoresrdquo 240

xx

42 Os ldquofilhos da piedaderdquo os processos de tutelas de crianccedilas abandonadas

enjeitadas expostas ou ldquoentreguesrdquo 253

43 As accedilotildees de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo desvalidos 269

431 Laccedilos do infortuacutenio a accedilatildeo de internaccedilatildeo dos irmatildeos Joatildeo e Geraldo 282

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 297

FONTES 304

FONTES DIGITAIS E ACESSADAS ONLINE 305

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFIAS 307

INTRODUCcedilAtildeO

Na infacircncia estaacute o adulto eacute dele que os educadores e os gestores da cidade se

preocupam de seu lugar social de seus espaccedilos de seus valores e condutas

de sua cor e de seu disciplinamento (Miguel Arroyo)1

Neste trabalho propotildee-se examinar a questatildeo da infacircncia desvalida oacuterfatilde

abandonada e trabalhadora do municiacutepio de Juiz de Fora Minas Gerais na passagem agrave

modernidade O interesse por tal temaacutetica surgiu durante minhas pesquisas para a

elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de mestrado que tinha como objeto de anaacutelise as relaccedilotildees

familiares e de parentesco ndash consanguiacuteneo e ritual ndash entre a populaccedilatildeo escrava e liberta

de Juiz de Fora Mas foi sobretudo no capiacutetulo em que examinei as solicitaccedilotildees de

tutelas de ingecircnuos e de pequenos libertos por segmentos das classes dominantes que

surgiram vaacuterios questionamentos relativos agrave problemaacutetica da infacircncia pobre durante o

processo de constituiccedilatildeo do mercado de trabalho livre no Brasil2 Assim surgiu uma

necessidade de buscar compreender como a assistecircncia agrave infacircncia fiacutesica e socialmente

desamparada e o trabalho infantil foram tratadosdiscutidos na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX

para o XX por poliacuteticos meacutedicos higienistas juristas liacutederes operaacuterios empresariado e

demais setores da intelectualidade Em outras palavras quais eram as preocupaccedilotildees e os

problemas que as crianccedilas dos estratos vulneraacuteveis da sociedade causavam e quais eram

as soluccedilotildees apresentadas pelos setores dominantes para solucionar esse problema social

Dessa maneira o recorte temporal escolhido para realizar este estudo foram os

anos finais do seacuteculo XIX ndash poacutes-aboliccedilatildeo do trabalho escravo ndash e as trecircs primeiras

deacutecadas do seacuteculo XX (1888 a 1930) A escolha se justifica por ser esse momento

marcado pela aboliccedilatildeo do trabalho escravo implantaccedilatildeo do sistema republicano de

governo pelo incremento do processo de implantaccedilatildeo das relaccedilotildees capitalistas de

produccedilatildeo bem como por ser esse periacuteodo caracterizado por uma ampliaccedilatildeo do debate a

respeito do controle social3 das classes subalternas

4

1 ARROYO Miguel ldquoApresentaccedilatildeordquo In VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes

Infacircncia no soacutetatildeo Belo Horizonte Autecircntica 1999 p 14 2 FRANCISCO Raquel Pereira Laccedilos da senzala arranjos da flor de maio relaccedilotildees familiares e de

parentesco entre a populaccedilatildeo escrava e liberta - Juiz de Fora (1870-1900) Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Niteroacutei UFF 2007 3 Estou utilizando o conceito de controle social desenvolvido por Roberto Bergalli em ldquoHistoria

ideoloacutegica del control socialrdquo De acordo com Bergalli o controle social foi se convertendo

progressivamente em um ldquoconceito criacutetico em muacuteltiplos campos de anaacutelisesrdquo nos vaacuterios ramos das

ciecircncias sociais principalmente nos estudos dedicados aos chamados problemas sociais e de sua

2

Assim dentro dos questionamentos sobre a infacircncia desvalida de Juiz de Fora

um colocou-se como de grande relevacircncia a compreensatildeo das estrateacutegias e poliacuteticas de

controle social dos setores dominantes sobre a matildeo de obra infantil No

desenvolvimento dessa problemaacutetica foi necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo o projeto dos

grupos dominantes de construccedilatildeo de uma imagem da cidade como ldquocivilizadardquo

moderna desenvolvida e constituiacuteda por uma populaccedilatildeo ordeira e laboriosa

A obra de Michel Foucault ldquoVigiar e Punirrdquo foi um referencial significativo para

fundamentar este trabalho no que diz respeito agrave discussatildeo do controle social sobre os

segmentos vulneraacuteveis da populaccedilatildeo Em seus estudos Foucault procurou demonstrar

que as praacuteticas de poder eram constituiacutedas de aspectos negativos e positivos Segundo

Roberto Machado Foucault chamaou a atenccedilatildeo para o fato de que o ldquopoder possui uma

eficaacutecia produtiva uma riqueza estrateacutegica uma positividaderdquo o que ldquoexplica o fato de

que tem como alvo o corpo humano natildeo para supliciaacute-lo mutilaacute-lo mas para aprimoraacute-

lo adestraacute-lordquo5 O vieacutes positivo do poder objetiva controlar e dominar todos os aspectos

da vida dos homens como seus haacutebitos sexualidade crenccedilas modos de pensar e agir

entre outros para extrair o maacuteximo de suas ldquopotencialidades e utilizando um sistema de

aperfeiccediloamento gradual e contiacutenuo de suas capacidadesrdquo Esse aspecto do poder era

perpassado ao mesmo tempo por objetivos econocircmicos e poliacuteticos ou seja tornar os

homens trabalhadores economicamente produtivos em sua capacidade maacutexima e por

outro lado diminuir sua ldquoforccedila poliacuteticardquo tornando-os submissos e em corpos ldquodoacuteceis

politicamenterdquo6

Esse poder sobre todos os domiacutenios da vida social dos homens era alcanccedilado

pela ldquodisciplinardquo ou ldquopoder disciplinarrdquo proveniente dos vaacuterios mecanismos de controle

e de vigilacircncia presentes em vaacuterias instituiccedilotildees como faacutebricas escolas hospitais prisotildees

e exeacutercito As estrateacutegias de disciplinarizaccedilatildeo extrapolavam os muros das instituiccedilotildees e

ldquointerpretaccedilatildeo atraveacutes das distintas instancias de controle socialrdquo Assim o conceito de controle social se

constitue em um instrumente de criacutetica social as instituiccedilotildees que promovem a restriccedilatildeo da liberdade

individual Desta maneira os estudiosos tecircm examinado de forma mais acurada como que o controle

social ldquocondiciona a orientaccedilatildeo de processos e estruturas a respeito da procedecircncia de problemas sociais

tais como a pobreza e a criminalidade e de fenocircmeno como o desamparo e abandono de pessoasrdquo Na

interpretaccedilatildeo de Bergalli o direito a educaccedilatildeo e a religiatildeo satildeo aacutereas de maacutexima importacircncia no processo

de instituiccedilatildeo do controle social Cf BERGALLI Roberto MARI Enrique E (coords) ldquoIntroduccioacutenrdquo

In Histoacuteria Ideologica del control social (Espantildea-Argentina siglos XIX y XX) Barcelona PPU 1989 p

X XI XX 4 Cf NEDER Gizlene Discurso Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio

Fabris Editor 1995 5 MACHADO Roberto ldquoPor uma genealogia do poderrdquo In FOUCAULT Michel Microfiacutesica do poder

23 ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 2007 p XV XVI Cf FOUCAULT Michel Vigiar e punir

nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis (RJ) Editora Vozes 2007 p 118-119 6 MACHADO Roberto Op cit 2007 p XVI

3

se espraiavam no seio de toda a sociedade fabricando assim ldquoo tipo de homem

necessaacuterio ao funcionamento e manutenccedilatildeo da sociedade industrial capitalistardquo7

Por meio da anaacutelise das fontes busquei identificar as estrateacutegias de controle e

vigilacircncia de setores das classes dominantes de Juiz de Fora sobre os segmentos

vulneraacuteveis da sociedade mais especificamente sobre os ldquomenoresrdquo e suas famiacutelias Os

processos judiciais de acidentes de trabalho e o de lesatildeo corporal delinearam as vaacuterias

estrateacutegias de disciplinarizaccedilatildeo do trabalhador infanto-juvenil por parte do empresariado

industrial do municiacutepio Nesses espaccedilos de ldquodisciplinardquo o ldquomenorrdquo estava

constantemente sob controle tendo cada accedilatildeogesto vigiado Desse modo ele estava

continuamente sujeito agraves ldquomicropenalidadesrdquo em consequecircncia de alguma falha ou

desvio8

Todavia as classes dominadas natildeo aceitaram pacificamente as imposiccedilotildees

disciplinares e os valores dos segmentos dominantes A documentaccedilatildeo compulsada

tambeacutem revelou as estrateacutegias de reaccedilatildeo dessa parcela da sociedade as medidas de

controle de seus modos de vida de suas tradiccedilotildees e valores Nessa perspectiva as

contribuiccedilotildees teoacutericas de E P Thompson sobre a histoacuteria social do trabalho foram

muito importantes O historiador inglecircs dedicou-se agrave anaacutelise da classe operaacuteria inglesa

agraves reaccedilotildees e resistecircncias dos trabalhadores agraves tentativas de transformaccedilatildeo pelos setores

dominantes de suas tradiccedilotildeescostumes ou seja os ldquoconfrontos entre uma economia de

mercado inovadora e a economia moral da plebe baseada no costumerdquo9 Segundo

Ronaldo Vainfas ldquoo campo teoacuterico da cultura popular em Thompson valoriza portanto

a resistecircncia social e a luta de classes em conexatildeo com as tradiccedilotildees os ritos e o

cotidiano das classes populares em um contexto de transformaccedilatildeordquo10

Assim a

abordagem teoacuterico-metodoloacutegica desta tese eacute perpassada por escolhas heterodoxas que

estabelecem uma articulaccedilatildeo entre o enfoque foucaultiano e sua metodologia

genealoacutegica e as abordagens de E P Thompson autor marxista que adotou e

7 Ibidem p XVII

8 Cf FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis (RJ) Editora Vozes

2007 9 THOMPSON E P Costumes em comum estudos sobre a cultura popular tradicional Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1998 p 21 Cf THOMPSON E P A formaccedilatildeo da classe operaacuteria inglesa 1 a

aacutervore da liberdade 6 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2011 10

VAINFAS Ronaldo Os protagonistas anocircnimos da Histoacuteria micro-histoacuteria Rio de Janeiro Campus

2002 p 66

4

desenvolveu anaacutelises sobre aspectos subjetivos da cultura nos processos histoacuterico-

sociais quando do exame da constituiccedilatildeo da classe trabalhadora inglesa11

Ao analisar a infacircncia desvalida e operaacuteria do municiacutepio de Juiz de Fora em um

momento marcado por profundas mudanccedilas na sociedade brasileira ndash aboliccedilatildeo do

trabalho escravo e implantaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre instauraccedilatildeo do sistema

republicano de governo processo de urbanizaccedilatildeo e industrializaccedilatildeo em expansatildeo ndash as

consideraccedilotildees de Thompson sobre as resistecircncias dos trabalhadores agraves tentativas das

classes dominantes de desestruturaccedilatildeo de seus modos de vidacostumes e de imposiccedilatildeo

de novos valores foram extremante valiosas Assim as lutas dos pais dos ldquomenoresrdquo

para manterem e ou reaverem os seus filhos tutelados por pessoas dos setores

dominantes as fugas dos pupilos das casas de seus tutores e das instituiccedilotildees

assistenciais a retirada dos filhosnetos da casa do tutor sem autorizaccedilatildeo legal a

solicitaccedilatildeo em juiacutezo para que o tutor do filhoneto fosse destituiacutedo do cargo as

denuacutencias de maus tratos e de natildeo recebimento das soldadas o recursar-se a executar as

tarefas entre outras accedilotildees praticadas pelas crianccedilas e famiacutelias dos setores desfavorecidos

foram analisadas em consonacircncia com as abordagens de Thompson

A preocupaccedilatildeo central desta tese foi compreender a problemaacutetica do trabalho

infantil na passagem agrave modernidade dentro do contexto de instauraccedilatildeo do trabalho livre

e de elaboraccedilatildeo de uma nova concepccedilatildeo sobre o trabalho Para tanto tornou-se

necessaacuterio especificar qual forma de trabalho infantil adotei para examinar a questatildeo da

infacircncia desvalida e operaacuteria de Juiz de Fora uma vez que nem todas as atividades que

empregam crianccedilas satildeo marcadas pela exploraccedilatildeo Existem as que satildeo caracterizadas

pela

[] transmissatildeo do patrimocircnio de saberes e disciplinas de certas profissotildees e

de construccedilatildeo do herdeiro e principalmente do sucessor no caso do

trabalhador artesanal profissional ou camponecircs Sob a orientaccedilatildeo e

supervisatildeo dos pais ou de geraccedilotildees anteriores de trabalhadores os

adolescentes e preacute-adolescentes se incorporam ao processo de socializaccedilatildeo

profissional e de ritualizaccedilatildeo da mudanccedila de posiccedilatildeo ingressando-se na idade

adulta A orientaccedilatildeo do uso da forccedila de trabalho nesses casos natildeo responde

diretamente agrave crescente expansatildeo da apropriaccedilatildeo da mais-valia e ao uso

descartaacutevel de seu portador Outros valores referenciais da reproduccedilatildeo social

de posiccedilotildees se encontram em jogo inclusive aqueles que qualificam a relaccedilatildeo

positiva entre pais e filhos mestres e aprendizes Estas formas de uso do

trabalho infantil antecedem e ultrapassam o sistema de produccedilatildeo capitalista

11

A mesma abordagem heterodoxa estaacute presente em ldquoDiscurso juriacutedico e ordem burguesa no Brasilrdquo de

Gizlene Neder Cf NEDER Gizlene Op cit 1995

5

mas natildeo eliminam necessariamente as condiccedilotildees penosas e prejudiciais ao

desenvolvimento da crianccedila ou do adolescente12

Com relaccedilatildeo ao trabalho infantil E P Thompson assinalou em seu estudo sobre

a classe operaacuteria inglesa do seacuteculo XVIII que entre os anos 1780 e 1840 ocorreu ldquouma

intensificaccedilatildeo draacutestica da exploraccedilatildeo do trabalho das crianccedilasrdquo embora o trabalho

infantil natildeo fosse uma novidade sendo mesmo a ldquocrianccedila uma parte intriacutenseca da

economia industrial e agriacutecola antes de 1780rdquo e sua matildeo de obra empregada nas

atividades domeacutesticas ou da ldquoeconomia familiarrdquo Todavia sua capacidade e idade eram

respeitadas e as tarefas natildeo lhes ocupavam o dia inteiro bem como natildeo eram

monoacutetonas ou seja natildeo executavam uma uacutenica e repetitiva tarefa ao longo do dia13

Poreacutem com a constituiccedilatildeo do sistema fabril ocorreu uma ruptura extremamente

profunda nesse padratildeo de utilizaccedilatildeo da matildeo de obra infanto-juvenil impondo-se a partir

de entatildeo uma contundente exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho onde a execuccedilatildeo de uma

mesma atividade durante horas se impocircs como regra pois ldquona faacutebrica a maquinaria

ditava as condiccedilotildees a disciplina a velocidade e a regularidade da jornada de trabalho

tornando-as equivalentes para o mais delicado e o mais forterdquo14

Segundo Thompson

provavelmente natildeo foi apenas o sistema fabril que contribuiu para a ldquointensificaccedilatildeo do

trabalho infantilrdquo poacutes 1780 havendo pois a necessidade de se levar em conta tambeacutem a

questatildeo da especializaccedilatildeo a crescente diferenciaccedilatildeo dos papeacuteis econocircmicos a ruptura

da economia familiar entre outros fatores15

Alan Macfarlane tambeacutem ressaltou as mudanccedilas ocorridas na utilizaccedilatildeo da matildeo

de obra infantil com o advento da Revoluccedilatildeo Industrial na Inglaterra O autor assinalou

que o emprego de crianccedilas de poucos anos de idade e durante longas horas era tatildeo

expressivo nas nascentes manufaturas que ldquonatildeo apenas chocavam alguns

contemporacircneos como tambeacutem teriam espantado os ingleses de dois seacuteculos antesrdquo16

A utilizaccedilatildeo e exploraccedilatildeo da matildeo de obra infantil nas sociedades reguladas pelas

relaccedilotildees capitalistas de produccedilatildeo foi algo que perpassou as formaccedilotildees histoacutericas do

Velho e do Novo continente em seus processos de industrializaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo A

12

PESSANHA NEVES Delma A perversatildeo do trabalho Infantil loacutegicas sociais e alternativas de

prevenccedilatildeo Niteroacutei Intertexto 1999 p 12-13 13

THOMPSON EP A formaccedilatildeo da classe operaacuteria inglesa II a maldiccedilatildeo de Adatildeo 4 ed Rio de

Janeiro Paz e Terra 2002 p 202-205 Cf MACFARLANE Alan Histoacuteria do casamento e do amor ndash

Inglaterra 1300-1840 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 p 87-89 14

THOMPSON EP Op cit 2002 207 15

Ibidem p 205 16

MACFARLANE Alan Histoacuteria do casamento e do amor ndashInglaterra 1300-1840 Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1990 p 87-89

6

Inglaterra que liderou o processo de industrializaccedilatildeo utilizou abundantemente do

trabalho de crianccedilas Engels em A situaccedilatildeo da classe trabalhadora na Inglaterra

salientou que enquanto os trabalhadores viviam no campo os seus filhos os ajudavam

esporadicamente mas que tal situaccedilatildeo modificou-se completamente a partir do

momento em que eles tiveram de vender sua forccedila trabalho nas cidades As crianccedilas e os

jovens passaram entatildeo a ter uma jornada de oito ou doze horas de labor17

O emprego da matildeo de obra infantil esteve presente em vaacuterias sociedades sendo

anterior agrave constituiccedilatildeo do sistema fabril e das relaccedilotildees capitalistas de produccedilatildeo Como

salientado anteriormente a Revoluccedilatildeo Industrial maximizou o processo de utilizaccedilatildeo e

de exploraccedilatildeo do trabalhador infanto-juvenil Assim sem deixar de perceber que

existiram (existem) outras formas de trabalho infantil que natildeo aquelas perpassadas

exclusivamente pela exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho analisei os casos em que

crianccedilas e adolescentes das classes subalternas tiveram sua matildeo de obra explorada em

condiccedilotildees muitas vezes improacuteprias para suas idades e constituiccedilotildees fiacutesicas nos

estabelecimentos industriais e comerciais nas propriedades rurais e nas residecircncias das

classes dominantes de Juiz de Fora durante o periacuteodo de constituiccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do

mercado de trabalho livre e do processo de industrializaccedilatildeo da sociedade brasileira18

Com o desenvolvimento das relaccedilotildees sociais capitalistas nas sociedades

modernas forjou-se a ideia do trabalho como algo positivo que conferia honra e

dignidade ao homem Ele passou a ser considerado um ldquoremeacutediordquo para combater os

viacutecios a ociosidade e a criminalidade

No Brasil a construccedilatildeo de uma nova eacutetica sobre o trabalho ocorreu durante o

processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre e a concomitante constituiccedilatildeo do

proletariado urbano19

Segundo Sidney Chalhoub durante o processo de constituiccedilatildeo do

trabalho livre no Brasil no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX tornou-se

imprescindiacutevel a formulaccedilatildeo de novos conceitos e valores sobre o trabalho ou seja era

de fundamental importacircncia retirar o ldquocaraacuteter aviltante e degradadorrdquo que possuiacutea em

consequecircncia de seacuteculos de regime escravista e dar-lhe ldquouma roupagem nova que lhe

17

ENGELS Friedrich A situaccedilatildeo da classe trabalhadora na Inglaterra Satildeo Paulo Boitempo 2010 p

46 18

Delma Pessanha Neves desenvolve uma instigante discussatildeo a respeito da utilizaccedilatildeo do trabalho

infantil (socialmente condenado) no setor agropecuaacuterio Cf PESSANHA NEVES Delma Op cit 1999 19

Cf NEDER Gizlene Op cit 1995

7

desse um valor positivo tornando-se entatildeo o elemento fundamental para a implantaccedilatildeo

de uma ordem burguesa no Brasilrdquo20

Assim analisando a documentaccedilatildeo compulsada procurei compreender as

estrateacutegias forjadas por parte dos grupos dominantes ndash durante o processo de

implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do trabalho livre assalariado e de edificaccedilatildeo de uma

concepccedilatildeo positiva sobre o trabalho ndash para manter sob controle uma parcela da matildeo de

obra infantil pertencente aos grupos subalternos da sociedade O emprego da matildeo de

obra de crianccedilas era visualizado com ldquobons olhosrdquo por fraccedilotildees das classes dominantes

uma vez que a sua remuneraccedilatildeo era inferior a de um trabalhador adulto21

Aleacutem do fator

econocircmico o trabalho infanto-juvenil tambeacutem era concebido como um ldquomecanismo

disciplinadorrdquo e fundamental para a constituiccedilatildeo de futuros trabalhadores ordeiros e

obedientes agraves leis22

Desse modo constitui-se o trinocircmio trabalho-disciplina-submissatildeo

As fontes examinadas forneceram um retrato da situaccedilatildeo vivida pelas classes

pobres que aleacutem das duras condiccedilotildees de vida e de sobrevivecircncia ainda precisavam

enfrentar a descaracterizaccedilatildeo de suas relaccedilotildees familiares por parte dos grupos

dominantes que propalavam que as famiacutelias das classes desfavorecidas eram marcadas

pela desestruturaccedilatildeo pela falta de haacutebitos de higiene e pela imoralidade Com esse

discurso pretendia-se justificar as accedilotildees de controle social visando enquadrar a

populaccedilatildeo pobre dentro dos valores e das normas disciplinares da sociedade burguesa

Nesse contexto o discurso juriacutedico teve um papel relevante uma vez que

segundo o pensamento corrente entre vaacuterios intelectuais brasileiros do periacuteodo para o

paiacutes alcanccedilar o patamar de naccedilatildeo ldquocivilizadardquo e moderna um dos pressupostos seria o

disciplinamento de sua populaccedilatildeo ou seja era preciso manter a ldquoordemrdquo para atingir o

ldquoprogressordquo Como assinala Gizlene Neder o discurso juriacutedico foi extremamente

importante naquele momento para normatizar a repressatildeo e o controle social

principalmente com relaccedilatildeo agrave questatildeo do mercado de trabalho capitalista que estava se

constituindo no paiacutes23

A imprensa foi um relevante veiacuteculo de divulgaccedilatildeo da nova eacutetica do trabalho

sendo que os jornais foram um instrumento utilizado pelos setores dominantes ou por

20

CHALHOUB Sidney Trabalho lar e botequim o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da

belle eacutepoque 2 ed Campinas (SP) Ed da UNICAMP 2001 p 65 21

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Crianccedilas operaacuterias na receacutem industrializada Satildeo Paulo In

PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil Satildeo Paulo Contexto 2006 p 271-273 Cf

THOMPSON EP Op cit 2002 215 22

FOUCAULT Michel Op Cit 2007 23

NEDER Gizlene Discurso Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris

Editor 1995 p 12-23

8

seus representantes para divulgarem suas ideias bem como um meio de exigirem dos

poderes puacuteblicos medidas mais eneacutergicas contra os ditos problemas sociais crianccedilas

pobres mendigos vadios e prostitutas Por meio da imprensa o discurso meacutedico-

juriacutedico passou a ser divulgado no seio da sociedade e a caracterizaccedilatildeo da infacircncia

pobre foi se consolidando como um grave problema para a sociedade Nesse contexto

deu-se a construccedilatildeo do termo ldquomenorrdquo para designar a crianccedila desvalida abandonada e

delinquente tendo a imprensa contribuiacutedo para difusatildeo do termo com esse caraacuteter

estigmatizante24

Pelo fato de o termo ldquomenorrdquo ter adquirido essa conotaccedilatildeo preconceituosa no

final do seacuteculo XIX e ao longo do XX o seu emprego no texto seraacute sempre entre aspas

para indicar a existecircncia de um sentido pejorativo em torno da referida expressatildeo

A pesquisa nas fontes consultadas teve principalmente um caraacuteter qualitativo o

que exigiu uma leitura e uma anaacutelise minuciosa da documentaccedilatildeo Este meacutetodo me

possibilitou um conhecimento mais detalhado da fonte bem como uma percepccedilatildeo mais

apurada da visatildeo dos setores dominantes com relaccedilatildeo agraves crianccedilas desvalidas25

A partir de leituras que discutem a situaccedilatildeo da infacircncia pobre no Brasil comecei

a perceber a importacircncia de examinar esse tema para o municiacutepio de Juiz de Fora por

dois motivos Primeiro pela importacircncia da cidade no cenaacuterio econocircmico do estado de

Minas Gerais e do Brasil na passagem agrave modernidade A cidade se constituiu ateacute por

volta da deacutecada de 1920 em um dos principais municiacutepios cafeicultor de Minas Gerais

e no principal centro industrial mineiro Em segundo lugar por se tratar de um tema

24

Cf MARCIacuteLIO Maria Luiza Histoacuteria Social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo HUCITEC

2006 NEDER Vinicius Jornalismo e exclusatildeo social anaacutelise comparativa nas coberturas sobre

crianccedilas e adolescentes Rio de Janeiro Editora Multifoco 2011 BATISTA Vera Malaguti Difiacuteceis

ganhos faacuteceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro 2 ed Rio de Janeiro Editora Revan 2003

LONDONtildeO Fernando Torres ldquoA origem do conceito menorrdquo In DEL PRIORE Mary (org) Histoacuteria

da crianccedila no Brasil Satildeo Paulo Contexto 1991 25 Gizlene Neder no artigo ldquoEntre o dever e a caridaderdquo analisou o Asilo dos Meninos Desvalidos e o

Imperial Instituto de Meninos Cegos Segundo o Regulamento do Asilo de 1875 o estabelecimento

destinava-se a recolher ldquomenoresrdquo com idades entre 6 e 12 anos NEDER Gizlene ldquoEntre o dever e a

caridade assistecircncia abandono repressatildeo e responsabilidade parental do Estadordquo In Discursos

Sediciosos (RJ) RJ v Ano 9 n 14 pp 199 ndash 231 2004 Cf FRAGA FILHO Walter Mendigos

moleques e vadios na Bahia do seacuteculo XIX Satildeo Paulo HICITECSalvador (BA) EDUFBA 1996

FRANCISCO Raquel Pereira ldquoOs deserdados da Repuacuteblica a infacircncia pobre em Juiz de Fora no final do

seacuteculo XIX e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXrdquo In Anais do XV Encontro Regional de Histoacuteria

(Anpuh-Rio) ndash Ofiacutecio do Historiador ensino e pesquisa Satildeo Gonccedilalo UERJFFP 2012a Disponiacutevel

em

wwwencontro2012rjanpuhorgresourcesanais1513383334456_ARQUIVO_OsDeserdadosdaRepublic

a_anpuh_2012pdf Acessado em 01-07-2015 ___________ ldquoA infacircncia como objeto de estudordquo In

Duc in Altum ndash Revista de Ciecircncias e Conhecimento Muriaeacute (MG) Faculdade de Filosofia Ciecircncias e

Letras Santa Marcelina (FAFISM) v 12 n 1 dezembro 2013 pp 179-190

9

pouco explorado pelos pesquisadores da aacuterea de histoacuteria26

Os trabalhos desenvolvidos

pelos estudiosos locais dedicam-se principalmente agrave anaacutelise da economia cafeeira da

propriedade escrava dos conflitos por terras das relaccedilotildees familiares e de parentesco dos

escravos e dos libertos das estrateacutegias camponesas de sobrevivecircncia da questatildeo da

pobreza e da assistecircncia da imigraccedilatildeo do movimento operaacuterio do processo de

urbanizaccedilatildeo e industrializaccedilatildeo da ldquoAtenas Mineirardquo27

e de seus literatos entre outros

Entretanto eacute necessaacuterio ressaltar que alguns desses trabalhos abordam o problema da

infacircncia desvalida e ou operaacuteria mas esta natildeo constitui o cerne da discussatildeo dos

estudos dos pesquisadores28

A existecircncia de fontes disponiacuteveis nos arquivos e centros de memoacuteria do

municiacutepio tornou viaacutevel o desenvolvimento do projeto Ao iniciar a pesquisa nos

arquivos tinha a intenccedilatildeo de examinar apenas os processos de tutelas e os jornais

Entretanto deparei-me com outras seacuteries documentais que se apresentaram de grande

relevacircncia para o meu estudo Desta maneira foram incluiacutedos os processos de

apreensatildeo de internaccedilatildeo de acidentes no trabalho envolvendo ldquomenoresrdquo e um

processo de lesatildeo corporal A inclusatildeo dos processos judiciais trouxe novos

questionamentos com relaccedilatildeo agrave infacircncia pobre e operaacuteria do municiacutepio de Juiz de Fora

A tese eacute composta por quatro capiacutetulos O primeiro foi intitulado ldquoA infacircncia

como um problema social na passagem agrave modernidade no Brasilrdquo Nele analisei a

historiografia brasileira sobre a problemaacutetica da infacircncia pobre no Brasil fazendo um elo

com os estudos em acircmbito internacional Essa questatildeo foi examinada levando em

consideraccedilatildeo o processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre bem como de

implantaccedilatildeo de uma nova forma de governo na sociedade brasileira o republicano O

objetivo era compreender como as classes dominantes que procuravam construir uma

imagem do Brasil como uma naccedilatildeo ldquocivilizadardquo e moderna na passagem agrave

26

O uacutenico trabalho de cunho histoacuterico de que tenho conhecimento que discute a questatildeo da infacircncia no

municiacutepio de Juiz de Fora durante a Primeira Repuacuteblica eacute o de Laura Valeacuteria Pinto Ferreira Cf

FERREIRA Laura Valeacuteria Pinto Entre a repressatildeo e a caridade crianccedilas desamparadas em uma

sociedade em construccedilatildeo (1890-1927) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Juiz de Fora UFJF 2009 27

ROSA Rita de Caacutessia Vianna ldquoA General das Letrasrdquo a literata Cosette de Alencar e a ldquosuardquo cidade

ndash Juiz de Fora (MG) 1918 a 1973 Tese de Doutoramento Niteroacutei UFF 2013 28

Cf ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe operaacuteria em Juiz de Fora uma histoacuteria de lutas

(1912 ndash 1924) Juiz de Fora EDUFJF 1987 GOODWIN JUNIOR James William Cidades de Papel

imprensa progresso e tradiccedilotildees Diamantina e Juiz de Fora MG (1884-1914) Tese de Doutoramento

Satildeo Paulo USP 2007 GUIMARAtildeES Elione S Muacuteltiplos viveres de afrodescendentes na escravidatildeo e

no poacutes-emancipaccedilatildeo famiacutelia trabalho terra e conflito (Juiz de Fora ndash MG 1828-1928) Satildeo Paulo

Annablume Juiz de Fora FUNALFA 2006 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Os trabalhadores e a cidade

a formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de Fora e suas lutas por direito (1877-1920) Juiz de Fora (MG)

Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV 2010 PINTO Jefferson de Almeida Controle social e pobreza

(Juiz de Fora c 1876 ndash c 1922) Juiz de Fora (MG) Editar 2008

10

modernidade posicionaram-se frente ao problema da infacircncia desvalida que vivia pelas

ruas das grandes cidades Nesse contexto o pensamento meacutedico-juriacutedico teve um papel

de grande relevacircncia na formulaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social natildeo apenas

destinadas aos ldquomenoresrdquo mas para a populaccedilatildeo pobre em geral Assim as propostas de

supressatildeo do paacutetrio poder e de o Estado assumir a responsabilidade parental29

sobre a

infacircncia desvalida abandonada e delinquente foi se ampliando no decorrer das

primeiras deacutecadas do seacuteculo XX Por meio da anaacutelise empreendida sobre a literatura que

discute tal temaacutetica pude observar a ineficaacutecia das poliacuteticas de assistecircncia destinadas agraves

crianccedilas das classes subalternas da sociedade No terceiro item do primeiro capiacutetulo

examinei a cidade de Juiz de Fora e seus ldquomenoresrdquo abandonados desvalidos

delinquentes e operaacuterios atraveacutes fundamentalmente dos perioacutedicos locais Nesse item

procurei compreender como as ideias de modernidade ldquocivilizaccedilatildeordquo higienismo e

controle social foram incorporadas pelas classes dominantes locais A presenccedila de

ldquomenoresrdquo nas vias puacuteblicas foi algo constantemente combatido pelos oacutergatildeos da

imprensa no decorrer das trecircs primeiras deacutecadas do novecentos Os artigos publicados

referentes a tal situaccedilatildeo advogavam da necessidade urgente de a cidade contar com uma

instituiccedilatildeo que educasse e protegesse as crianccedilas desvalidas preparando-as para serem

bons trabalhadores ordeiros e disciplinados

No segundo capiacutetulo ldquoOs pequenos desvalidos Juiz de Fora ndash (1888-1930)rdquo

desenvolvi uma reflexatildeo acerca das estrateacutegias forjadas pelas classes dominantes de

manutenccedilatildeo e controle de uma parcela da matildeo de obra a baixo custo atraveacutes do

estabelecimento do viacutenculo tutelar de crianccedilas pertencentes agraves camadas subalternas da

sociedade Por meio dos processos de tutelas e de apreensatildeo de menores investiguei a

ldquoresistecircnciardquo das classes desfavorecidas agraves medidas de controle social e de

descaracterizaccedilatildeo de suas relaccedilotildees familiares e de parentesco bem como a ldquolutardquo para

manterem a guarda de suas crianccedilas O exame dessa documentaccedilatildeo ndash tutelas e

apreensatildeo de menores ndash apresentou uma variedade de questotildees a ser abordada sobre a

infacircncia pobre Por intermeacutedio dos processos eacute viaacutevel examinar as relaccedilotildees familiares e

a precariedade das condiccedilotildees de vida e de sobrevivecircncia das classes populares As

29

Pierre Legendre (1992) na obra ldquoLes enfants du texte Eacutetude sur la fonction parentale des Eacutetatsrdquo

trabalha com o conceito de funccedilatildeo parental do Estado Segundo Gizlene Neder o conceito refere-se a um

ldquoconjunto de praacuteticas poliacuteticas e ideoloacutegicas encetadas a partir de um lugar de poder dentro de uma dada loacutegica institucionalrdquo A autora assinala que fez ldquoum pequeno deslocamento conceitual afirmando a ideia

de responsabilidade parentalrdquo por entender que o conceito empregado por Legendre ldquoestaacute muito mais

proacuteximo da ideia de responsabilidade do que de funccedilatildeordquo Neder ressalta que a responsabilidade parental

do Estado (do ponto de vista social poliacutetico ideoloacutegico e juriacutedico) natildeo eacute equivalente ao paternalismo

ldquono seu sentido pejorativordquo Cf NEDER Gizlene Op cit 2004 p 202-203

11

condiccedilotildees sociais e econocircmicas desfavoraacuteveis em determinados momentos

contribuiacuteram para que as famiacutelias pobres abandonassem sua prole solicitassem a

nomeaccedilatildeo de um tutor e ou a destituiccedilatildeo do paacutetrio poder

No terceiro capiacutetulo ldquoPor entre maacutequinas e engrenagens as crianccedilas operaacuterias

da lsquoManchester Mineirarsquordquo analisei as reivindicaccedilotildees operaacuterias durante a Primeira

Repuacuteblica e o esboccedilar de uma legislaccedilatildeo social trabalhista nos anos 1920 As condiccedilotildees

precaacuterias e as longas jornadas de trabalho bem como a exploraccedilatildeo do trabalho infantil e

feminino foram questotildees debatidas nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX Nessa mesma

deacutecada deu-se a aprovaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo destinada agrave infacircncia pobre abandonada e

delinquente O Coacutedigo de Menores (1927) procurou abarcar todos os aspectos referentes

agrave assistecircncia proteccedilatildeo ao controle e puniccedilatildeo das crianccedilas das classes pobres Por esse

Coacutedigo o trabalho infanto-juvenil foi regulamentado Nesse capiacutetulo foram analisados

os acidentes no trabalho e as agressotildees e violecircncias contra os operaacuterios nos

estabelecimentos industriais de Juiz de Fora Pela anaacutelise dos processos de acidentes no

trabalho pude apurar as condiccedilotildees precaacuterias de trabalho e de vida dos trabalhadores do

municiacutepio Nesses espaccedilos de ldquodisciplinardquo o emprego de crianccedilas e adolescentes

submetidas a uma longa jornada de trabalho sem momentos para o lazer e as

brincadeiras ndash proacuteprias para suas idades ndash foram palcos de graves acidentes sendo

alguns fatais Os estabelecimentos industriais comerciais entre outros tambeacutem foram

locais onde as crianccedilas proletaacuterias vivenciaram vaacuterios tipos de violecircncias fiacutesicas morais

e psicoloacutegicas Examinando um processo de lesatildeo corporal de um operaacuterio do setor

tecircxtil pude abordar a questatildeo dos castigos fiacutesicos impostos aos trabalhadores de forma

geral e principalmente sobre as crianccedilas

No quarto e uacuteltimo capiacutetulo ldquoOs lsquodeserdados da sortersquo a assistecircncia aos

lsquomenoresrsquo pobres de Juiz de Forardquo meu objetivo foi examinar os discursos em torno da

problemaacutetica da assistecircncia social aos ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados oacuterfatildeos e

indigitados como delinquentes No alvorecer do seacuteculo XX a sociedade brasileira

passava por um momento de reestruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo do Estado sob a forma

republicana Desse modo estava dando os primeiros passos no processo de

regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre nas questotildees relativas ao controle social

agrave assistecircncia a ser destinada aos setores desfavorecidos entre outros encaminhamentos

Segundo Gizlene Neder as modificaccedilotildees pelas quais o paiacutes estava passando

espelhavam ldquoas necessidades histoacuterico-sociais da edificaccedilatildeo de uma ordem juriacutedico-

12

poliacutetica a um soacute tempo moderna e legitimada poliacutetica e ideologicamenterdquo30

Assim

durante todo o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica a problemaacutetica da assistecircncia do controle

social da educaccedilatildeo e da necessidade de o Estado assumir as suas funccedilotildees parentais para

com a infacircncia desvalida foi uma questatildeo presente continuamente nos debates e

projetos de segmentos da intelectualidade de poliacuteticos juristas meacutedicos higienistas

setores da burguesia industrial entre outros

Neste uacuteltimo capiacutetulo examinei tambeacutem os casos de abandono de dar ldquopara

criarrdquo e de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo O ato de abandonar a prole - seja o literal o dar

ldquopara criarrdquo ou internaacute-la em instituiccedilotildees - era (eacute) perpassado por diversos fatores como

a falta de recursos econocircmicos problemas de sauacutede motivos morais dificuldades de

relacionamento entre os filhos e os novos companheiros dos genitores entre outros

motivos Analisei processos de tutelas e internaccedilatildeo em que foi possiacutevel presumir o ato

do abandono e que me permitiram em alguns casos examinar as condiccedilotildees de vida e de

sobrevivecircncia dos ldquomenoresrdquo e de seus familiares

Por meio dos perioacutedicos e dos processos judiciais foi possiacutevel observar a

presenccedila do discurso dominante sobre o caraacuteter positivo do trabalho como um meio de

preservar a infacircncia desvalida e de regenerar aquela considerada delinquente As

instituiccedilotildees assistenciais aparecem como o locus privilegiado em alguns discursos para

a salvaccedilatildeo da infacircncia e que redundaria na salvaccedilatildeo da paacutetria

Finalizando o capiacutetulo realizei um estudo de caso referente ao processo de

internaccedilatildeo de dois irmatildeos em estabelecimentos de assistecircncia situados na capital do

estado de Minas Gerais Estudando esse processo pude alargar o meu conhecimento

sobre as condiccedilotildees de vida e familiar das crianccedilas provenientes das classes mais baixas

As discussotildees realizadas nesta tese procurou dialogar de certa forma com a

situaccedilatildeo atual da infacircncia pobre de ldquoruardquo trabalhadora abandonada interna e

explorada sexualmente Em outras palavras minha pretensatildeo foi procurar perceber as

mudanccedilas e permanecircncias nos debates e accedilotildees praacuteticas no que concerne agrave infacircncia

pobre fiacutesica e socialmente desamparada Essa eacute uma temaacutetica bem atual visto que

ainda eacute uma questatildeo natildeo resolvida e em debate no Brasil No momento presente a

discussatildeo eacute relativa agrave reduccedilatildeo da maioridade penal na qual pode ser observada a

permanecircncia de ideias de princiacutepios do seacuteculo XX em alguns discursos

30

NEDER Gizlene Discurso juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris

Editor 1995 p 39

13

A epiacutegrafe escolhida para este trabalho fala dos silecircncios do ldquodesconhecimentordquo

dos ldquoabusosrdquo de natildeo se querer perceber a miseacuteria Assim eacute a situaccedilatildeo da infacircncia

pobre na histoacuteria do Brasil Ela eacute ldquoesquecidardquo ldquodesconhecidardquo ldquoinvisiacutevelrdquo ateacute ldquose

rebelarrdquo mostrar a sua fragilidade a sua forccedila a sua revolta e o seu grito de socorro

Quando isso ocorre planejam e constroem novos espaccedilos de reclusatildeo com novas

nomenclaturas Voltam com a infacircncia pobre para os porotildees da sociedade e da histoacuteria

14

CAPIacuteTULO 1

A INFAcircNCIA COMO UM PROBLEMA SOCIAL NA

PASSAGEM Agrave MODERNIDADE NO BRASIL

Imagem 1 ldquoMenorrdquo Joatildeo Theodoro Monteiro ndash 1929 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processo

relativo agrave internaccedilatildeo de Menores ndash Joatildeo Theodoro Monteiro -1929

15

11 ldquoFLORES DE UMA GERACcedilAtildeO FUTURArdquo A QUESTAtildeO DA

INFAcircNCIA POBRE NO BRASIL

Assistido educado a tempo na escola da honra e do trabalho o menino

desvalido desabrocharaacute no homem forte de corpo e de alma aparelhado

material e moralmente para ser uma unidade no movimento de expansatildeo

civilisadora da Patria [] (Leacuteon Renault)31

A infacircncia tornou-se objeto de estudo da historiografia brasileira a partir

principalmente da deacutecada de 1980 em cujo contexto as classes subalternas foram

obtendo cada vez mais espaccedilos nas anaacutelises histoacutericas e socioloacutegicas32

Para a produccedilatildeo

e o crescimento da temaacutetica sobre a infacircncia as ldquoflores de uma geraccedilatildeo futurardquo33

foi de

suma importacircncia a incorporaccedilatildeo de novos procedimentos teoacutericos e metodoloacutegicos

Nesse sentido a histoacuteria demograacutefica o diaacutelogo com as outras ciecircncias sociais como a

antropologia a pedagogia a psicologia o direito e a sociologia foram extremamente

importantes uma vez que possibilitaram aos estudiosos a realizaccedilatildeo de uma releitura

das fontes com um novo olhar bem como o emprego de outras seacuteries documentais ndash

revistas jornais fotografias cartas processos crimes tutelas entre outras

A revisatildeo historiograacutefica levada a cabo a partir sobretudo dos anos de 1980

possibilitou uma nova interpretaccedilatildeo das relaccedilotildees entre dominantes e dominados na

sociedade brasileira As novas abordagens histoacutericas embasadas em fontes diversas

demonstraram que mesmo nas relaccedilotildees assimeacutetricas de dominaccedilatildeo haacute negociaccedilatildeo e

31 RENAULT Leacuteon A assistencia a infancia desvalida em Minas Geraes Belo Horizonte Imprensa

Official do Estado de Minas 1930 p 211 32

De acordo com Acircngela de Castro Gomes na deacutecada de 1970 observa-se uma mudanccedila na

historiografia brasileira no que diz respeito ao tema da questatildeo social Em algumas anaacutelises os

dominados jaacute figuravam como atores histoacutericos e sujeitos de suas histoacuterias Entretanto foi nos anos de

1980 que efetivamente os estudos produziram uma reflexatildeo e um debate mais amplo tendo as classes

menos favorecidas da sociedade como protagonistas de suas histoacuterias Essa revisatildeo historiograacutefica

iniciou-se em um periacuteodo de expansatildeo dos programas de poacutes-graduaccedilatildeo e de redemocratizaccedilatildeo do paiacutes

GOMES Acircngela de Castro ldquoQuestatildeo social e historiografia no Brasil do poacutes-1980 notas para um

debaterdquo Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro n 34 jul-dez 2004 p 157-158 e 183 Disponiacutevel em

httpbibliotecadigitalfgvbrojsindexphpreharticleview22281367 Acessado em 28-12-2013 Cf

BRETAS Marcos Luiz ROSEMBERG Andreacute ldquoA histoacuteria da poliacutecia no Brasil balanccedilos e

perspectivasrdquo In Topoi v 14 n 26 jan-jul pp 162-173 2013 p 166 Disponiacutevel em

wwwrevistatopoiorgnumeros_anteriorestopoi26TOPOI26_2013_TOPOI_26_E01pdf Acessado em

02-07-2015 33 SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 02 ago 1912 p 1 A expressatildeo ldquoflores de uma geraccedilatildeo

futurardquo foi retirada da reportagem sobre o projeto de lei para a regulamentaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho das

crianccedilas nos estabelecimentos industriais de Juiz de Fora O projeto apresentado agrave Cacircmara Municipal

pelo vereador Dr Pinto de Moura foi elogiado pela mateacuteria que assinalou que as accedilotildees em prol dos

operaacuterios deveriam comeccedilar pelas crianccedilas que eram as ldquoflores de uma geraccedilatildeo futurardquo Cf ldquoTirasrdquo

Jornal do Commercio 02 ago 1912 p 1

16

pacto poliacutetico e que os setores dominantes da sociedade natildeo foram (e natildeo satildeo ainda)

capazes de anular a subjetividade dos dominados As anaacutelises poacutes-1980 transformaram

o ldquosentido de um conjunto de comportamentos individuais e coletivos politizando uma

seacuterie de accedilotildees e introduzindo novos atores como participantes da poliacuteticardquo34

A revisatildeo

nos estudos brasileiros relacionados ao tema da questatildeo social estaacute inserida em um

contexto internacional de renovaccedilatildeo teoacuterica e metodoloacutegica da historiografia35

No processo de inserccedilatildeo das classes subalternas da sociedade nos estudos a

demografia histoacuterica teve um papel relevante A sua utilizaccedilatildeo como meacutetodo de anaacutelise

pela Histoacuteria Social trouxe uma dimensatildeo ldquoateacute entatildeo inusitada agrave histoacuteria da famiacuteliardquo36

Os primeiros esforccedilos de anaacutelise sobre o comportamento reprodutivo e econocircmico das

famiacutelias foram realizados pelos franceses seguidos pelos ingleses37

De acordo com

Maria Luiza Marciacutelio ldquoa Demografia Histoacuterica agrave frente acompanhada de diversas

ciecircncias do Homem vem dando ecircnfase ao estudo da infacircncia desvalidardquo38

No Brasil em consonacircncia com toda renovaccedilatildeo pela qual a historiografia

passou a partir dos anos de 1980 vaacuterios trabalhos abordando uma multiplicidade de

questotildees sobre a infacircncia comeccedilaram a ser desenvolvidos Dentro desse cenaacuterio foram

criados os centros de estudos destinados a promover pesquisas abordando esse tema em

distintos periacuteodos de nossa histoacuteria da colocircnia aos dias atuais39

Segundo Irene Rizzini em niacutevel internacional as abordagens histoacutericas sobre a

infacircncia datam do iniacutecio do seacuteculo XX podendo-se encontrar trabalhos dedicados a tais

34

Idem p 158 35

Ibidem 36

CASTRO Hebe ldquoHistoacuteria Socialrdquo In CARDOSO Ciro Flamarion VAINFAS Ronaldo (orgs)

Domiacutenios da Histoacuteria ensaios de teoria e metodologia Rio de Janeiro Campus 1997 p 49 37

FARIA Sheila de Castro ldquoHistoacuteria da famiacutelia e demografia histoacutericardquo In CARDOSO Ciro

Flamarion VAINFAS Ronaldo (orgs) Op cit 1997a p 244-249 38

MARCIacuteLIO Maria Luiza Histoacuteria social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo Ed HUCITEC

2006 p 11-12 e 127 39

Em 1984 foi fundada na Universidade Santa Uacutersula a Coordenaccedilatildeo de Estudos e Pesquisas sobre a

Infacircncia (CESPIUSU) O CESPIUSU eacute um centro de pesquisa e documentaccedilatildeo que definiu como meta

ldquopromover o desenvolvimento da pesquisa e da accedilatildeo social junto agrave infacircncia pobre e excluiacuteda estimular o

conhecimento e socializar a informaccedilatildeo produzida no Brasil e em outros paiacuteses sobretudo da Ameacuterica

Latinardquo RIZZINI Irene RIZZINI Irma HOLANDA Fernanda Rosa Borges de A crianccedila e o

adolescente no mundo do trabalho Rio de Janeiro USU Ed Universitaacuteria Amais Livraria e Editora

1996 (Seacuterie Banco de Dados ndash 4) No mesmo ano de 1984 foi criado pela professora Maria Luiza

Marciacutelio na Universidade de Satildeo Paulo (USP) o Centro de Estudos de Demografia Histoacuterica da Ameacuterica

Latina (Cedhal) Um dos campos de pesquisa desenvolvidos pelo Cedhal foi sobre a histoacuteria da infacircncia

brasileira com destaque para a infacircncia pobre desvalida abandonada e marginal MARCIacuteLIO Maria

Luiza Histoacuteria social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo Ed HUCITEC 2006 Na deacutecada de

1990 surgiu o Nuacutecleo de Estudos Avanccedilados em Histoacuteria Social da Infacircncia ligado ao Centro de

Documentaccedilatildeo e Apoio agrave Pesquisa em Histoacuteria da Educaccedilatildeo (CDAPH) da Universidade de Satildeo

Francisco FREITAS Marcos Cezar de Histoacuteria Social da Infacircncia no Brasil 6 ed Satildeo Paulo Cortez

2006

17

temaacuteticas em paiacuteses como Inglaterra Franccedila e Estados Unidos Entretanto foi com o

trabalho de Philippe Ariegraves ldquoHistoacuteria Social da crianccedila e da famiacuteliardquo tendo o tiacutetulo

original ldquoLrsquoenfance et la vie familiale sous lrsquoAncien Reacutegimerdquo na deacutecada de 1960 que as

anaacutelises histoacutericas com foco na infacircncia adquiriram maior relevacircncia A autora ainda

assinala que essa obra ldquocausou tanto impacto que passou a ser uma das principais

referecircncias para qualquer texto publicado no mundo ocidental sobre crianccedila inclusive

no Brasilrdquo40

Colin Heywood assevera que ateacute a deacutecada de 1950 poucos historiadores haviam

se dedicado ao estudo da infacircncia sendo tal temaacutetica praticamente nova entre os

trabalhos historiograacuteficos41

As primeiras anaacutelises dedicaram-se mais a aspectos

institucionais ficando em um plano secundaacuterio as ldquoideias sobre a infacircncia e as

crianccedilasrdquo42

Entretanto as pesquisas histoacutericas contribuiacuteram ldquopara um reconhecimento

da construccedilatildeo social da infacircncia no qual as comparaccedilotildees no decorrer do tempo foram

tatildeo instrutivas quanto agraves de caraacuteter intelectualrdquo43

O autor tambeacutem destaca que apesar

dos problemas metodoloacutegicos e de anaacutelise observados por alguns pesquisadores na

abordagem desenvolvida por Ariegraves eacute inegaacutevel a sua relevacircncia para o estudo de tal

questatildeo

O trabalho de Philippe Ariegraves foi alvo de severas criacuteticas nas deacutecadas de 1960 e

1970 O historiador francecircs examinou a questatildeo da infacircncia e da morte na Europa

ocidental cristatilde da Idade Meacutedia ao seacuteculo XVIII utilizando diversas fontes para

embasar seus argumentos a respeito da pouca importacircncia conferida agraves crianccedilas naquela

sociedade e de como a mesma foi paulatinamente adquirindo cada vez mais relevo no

seio familiar e no conjunto da sociedade agrave medida que declinava o periacuteodo medieval44

Ariegraves em ldquoHistoacuteria Social da crianccedila e da famiacuteliardquo assinalou que a crianccedila apenas na

sua tenra idade recebia os cuidados necessaacuterios ou ldquopaparicosrdquo como ele nomeou

Apoacutes essa fase da vida ela ingressava no mundo dos adultos e todo o seu aprendizado

ocorria atraveacutes desse conviacutevio ou seja natildeo havia uma consciecircncia da especificidade

dessa fase da vida Essa situaccedilatildeo vivenciada pelas crianccedilas durante o periacuteodo medieval

segundo o autor foi se transformando ao longo do tempo em que as sociedades

40

RIZZINI Irene O seacuteculo perdido raiacutezes histoacutericas das poliacuteticas puacuteblicas para a infacircncia no Brasil 2

ed Satildeo Paulo Cortez 2008 p 37 41

HEYWOOD Colin Uma histoacuteria da infacircncia da Idade Meacutedia agrave Eacutepoca Contemporacircnea no Ocidente

Porto Alegre Artmed 2004 p 13 42

Idem p 13 43

Ibidem 44

VAINFAS Ronaldo Os protagonistas anocircnimos da Histoacuteria micro-histoacuteria Rio de Janeiro Campus

2002 p 42 ndash 43

18

modernas apresentaram caracteriacutesticas completamente opostas e a crianccedila passou a ser

cercada de cuidados e afeiccedilotildees bem como passou a ser percebida como um ser diferente

do adulto45

Segundo Kuhlmann Jr e Fernandes a anaacutelise desenvolvida por Ariegraves sobre a

infacircncia durante o periacuteodo medieval foi construiacuteda em cima de ldquofundamentos

insuficientes e vulneraacuteveisrdquo46

A percepccedilatildeo das vaacuterias fases da vida humana e de que a

infacircncia constituiacutea uma delas com suas especificidades proacuteprias foi observada em

vaacuterios estudos desde a Antiguidade e nas mais diversas constituiccedilotildees sociais Os

autores ainda ressaltaram os graves problemas que a aplicaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo de

Ariegraves sobre a infacircncia na sociedade francesa pode ocasionar quando utilizada em

outros paiacuteses com caracteriacutesticas distintas daquela por ele analisada A observaccedilatildeo por

parte dos estudiosos das tensotildees existentes entre ldquouniversalidade e particularidadesrdquo eacute

uma preacute-condiccedilatildeo das anaacutelises histoacutericas47

Esses aspectos precisam ser levados em

consideraccedilatildeo quando do exame de uma determinada sociedade

Jacques Geacutelis em seu estudo demonstrou que os povos da Europa Ocidental no

periacuteodo medieval tinham a percepccedilatildeo de que a vida humana eacute constituiacuteda de vaacuterias

etapas sendo uma delas a infacircncia O autor ainda assevera que a preocupaccedilatildeo com a

vida da crianccedila fica bem evidente nas anaacutelises a partir da Idade Moderna Entretanto

isso natildeo significa que nos periacuteodos histoacutericos anteriores natildeo tenha havido a preocupaccedilatildeo

com a sauacutede e a vida das crianccedilas48

Geacutelis ressalta que a atitude de recusa dos homens

frente agrave doenccedila e agrave perda de um ente representa um ldquonovo imaginaacuterio da vida e do

tempordquo e que esse aspecto torna-se mais evidente a partir do seacuteculo XVI quando a

ldquovontade de tratar-se e sarar manifesta-se tatildeo fortemente que natildeo deixa duacutevida quanto

ao novo olhar que o homem agora lanccedila sobre si mesmordquo49

Com relaccedilatildeo agrave questatildeo do

sentimento dos paisfamiacutelia pela crianccedila Geacutelis assinala o seguinte

Eacute difiacutecil acreditar que a um periacuteodo de indiferenccedila com relaccedilatildeo agrave crianccedila se

teria sucedido outro durante o qual com a ajuda do ldquoprogressordquo e da

ldquocivilizaccedilatildeordquo teria prevalecido o interesse O interesse ou a indiferenccedila com

relaccedilatildeo agrave crianccedila natildeo satildeo realmente a caracteriacutestica desse ou daquele periacuteodo

45

ARIEgraveS Philippe Histoacuteria social da crianccedila e da famiacutelia 2 ed Rio de Janeiro LTC 2006 46

KUHLMANN JR Moiseacutes FERNANDES Rogeacuterio ldquoSobre a histoacuteria da infacircnciardquo In FARIA FILHO

Luciano Mendes (org) A infacircncia e sua educaccedilatildeo ndash materiais praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e

Brasil) Belo Horizonte Autecircntica 2004 p 16 47

Idem p 16-17 48

GEacuteLIS Jacques ldquoA individualizaccedilatildeo da crianccedilardquo In CHARTIER Roger Histoacuteria da vida privada da

renascenccedila ao Seacuteculo das Luzes Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 p 307-309 49

Idem p 309

19

da histoacuteria As duas atitudes coexistem no seio de uma mesma sociedade

uma prevalecendo sobre a outra em determinado momento por motivos

culturais e sociais que nem sempre eacute faacutecil distinguir A indiferenccedila medieval

pela crianccedila eacute uma faacutebula50

(Grifos meus)

Geacutelis chama de ldquofaacutebulardquo a interpretaccedilatildeo desenvolvida por Ariegraves de que no

periacuteodo medieval tenha predominado uma indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave infacircncia As criacuteticas

direcionadas agrave interpretaccedilatildeo de Ariegraves destacam a necessidade de se considerar as

caracteriacutesticas culturais sociais poliacuteticas entre outras de cada eacutepoca regiatildeo e povo

Cada periacuteodo da histoacuteria da humanidade cada sociedade apresentouapresenta suas

especificidades no que diz respeito ao tratamento dispensado aos seus pequenos Como

destacam Kuhlmann JR e Fernandes ldquoassim como mudam os mais variados aspectos

da atividade humana a relaccedilatildeo da sociedade com a infacircncia natildeo poderia permanecer

estaacuteticardquo51

Por intermeacutedio das criacuteticas feitas ao estudo de Ariegraves uma pluralidade de

questotildees foi levantada o que contribuiu sobremaneira para a ampliaccedilatildeo das anaacutelises

sobre a infacircncia A obra ldquoHistoacuteria Social da crianccedila e da famiacuteliardquo constitui uma

referecircncia fundamental para a historiografia sobre a infacircncia E na trilha aberta por

Ariegraves multiplicaram-se as abordagens sobre as infacircncias A histoacuteria desses pequenos eacute

procurada nas folhas amareladas e carcomidas pelo tempo por fungos e insetos dos

processos dos diaacuterios dos jornais das cadernetas escolares nas fotografias e em vaacuterias

outras fontes52

O objeto em tela nesse trabalho eacute a infacircncia desvalida do final do seacuteculo XIX e

das primeiras deacutecadas do XX Ao analisar essa parcela da sociedade dentro desse

recorte temporal torna-se imprescindiacutevel discorrer sobre o fim do sistema escravista e

das mudanccedilas que o processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre trouxe para a

sociedade O Brasil foi um paiacutes que durante mais de trecircs seacuteculos utilizou-se do

trabalho escravo africano Ao se examinar a questatildeo da infacircncia pobre da famiacutelia das

classes populares enfim dos grupos desfavorecidos da sociedade natildeo haacute como natildeo

estabelecer um diaacutelogo com a historiografia sobre a escravidatildeo e o poacutes-aboliccedilatildeo dadas

as caracteriacutesticas intriacutensecas da nossa formaccedilatildeo social

50

Ibidem p 317-318 51

KUHLMANN JR Moiseacutes FERNANDES Rogeacuterio Op cit 2004 p 18 52 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoA infacircncia como objeto de estudordquo In Duc in Altum ndash Revista de

Ciecircncias e Conhecimento Muriaeacute (MG) Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras Santa Marcelina

(FAFISM) v 12 n 1 dezembro pp 179-190 2013

20

A reposiccedilatildeo da matildeo de obra escrava ocorreu nas unidades produtivas durante a

maior parte do periacuteodo em que perdurou a escravidatildeo no Brasil por meio do traacutefico

Atlacircntico Somente nos anos derradeiros de tal instituiccedilatildeo jaacute na segunda metade do

seacuteculo XIX por intermeacutedio da Lei Euzeacutebio de Queiroacutes em 1850 o traacutefico internacional

de escravos foi abolido no Brasil Mas a necessidade de braccedilos para a lavoura cafeeira

na regiatildeo sudeste soacute aumentava Uma das soluccedilotildees encontrada pelos ldquobarotildees do

Impeacuteriordquo53

para a continuaccedilatildeo do cultivo da rubiaacutecea foi a importaccedilatildeo de cativos de

outras proviacutencias brasileiras e ou de pequenas e meacutedias unidades Dessa forma o

traacutefico interno de escravos generalizou-se como mecanismo de reposiccedilatildeo de matildeo de

obra Essa estrateacutegia senhorial das regiotildees dinacircmicas da economia teve como efeito a

concentraccedilatildeo social e regional da propriedade escrava que em longo prazo levou agrave

deslegitimaccedilatildeo do sistema escravista bem como a ldquoquebra da cumplicidade do conjunto

da populaccedilatildeo livre com a continuidade da escravidatildeordquo54

Aleacutem de recorrer ao traacutefico interno de escravos restava ainda aos escravocratas

a reposiccedilatildeo por meio dos filhos de suas escravas Poreacutem um novo golpe foi desfechado

sobre a propriedade escrava em 1871 com a promulgaccedilatildeo da Lei Rio Branco de no

2040 de 28 de setembro mais conhecida pelo nome de Lei do Ventre Livre55

a qual

53

Expressatildeo empregada por Joatildeo Luiacutes Fragoso Cf FRAGOSO Joatildeo Luiacutes ldquoO Impeacuterio escravista e a

repuacuteblica dos plantadores parte A economia brasileira no seacuteculo XIX mais que uma plantation

escravista-exportadorardquo In LINHARES Maria Yedda (org) Histoacuteria Geral do Brasil Rio de Janeiro

Campus 1990 54

CASTRO Hebe Maria Mattos de ldquoLaccedilos de famiacutelia e direitos no final da escravidatildeordquo In NOVAIS

Fernando A (coord) e ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da vida privada no Brasil

Impeacuterio Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997b p 343-344 55

Segundo Martha Abreu a Lei de 28 de setembro de 1871 passou a ser chamada de ldquoVentre Livrerdquo pelos

opositores ao projeto da mesma O governo usava as expressotildees ldquoa questatildeo do elemento servilrdquo ou

ldquoliberdade dos nasciturosrdquo ABREU Martha ldquoMatildees escravas e filhos libertos novas perspectivas em

torno da Lei do Ventre Livre Rio de Janeiro 1871rdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila

no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria

Amais 1997 p 111 112 A Lei do Ventre Livre que muitos acreditam tratar apenas da liberdade dos

filhos das escravas abordou outras questotildees aleacutem do fruto do ventre da mulher cativa Por intermeacutedio

dessa lei aos escravos foi facultada a possibilidade de formar um pecuacutelio de resgatar a si mesmo atraveacutes

da alforria desde que possuiacutesse o seu valor e a revelia do proprietaacuterio entre outros dispositivos Durante

um longo periacuteodo foi corrente na historiografia a ideia de que era um direito dos escravos que

possuiacutessem em espeacutecie o seu valor poderem comprar a si mesmos Era pois colocado como um direito

do escravo Mas em um estudo apurado realizado por Manuela Carneiro da Cunha ficou demonstrado

que esse direito soacute passou a existir formalmente escrito em lei a partir de 1871 atraveacutes da Lei do Ventre

Livre Segundo Manuela Carneiro da Cunha esse erro histoacuterico tem sua origem em Henry Koster e a

partir dele propagou-se entre os viajantes do seacuteculo XIX e os estudiosos do seacuteculo XX Com relaccedilatildeo agrave

intervenccedilatildeo do Estado na libertaccedilatildeo de cativos Cunha cita algumas ocasiotildees excepcionais em que

ocorreram estas interferecircncias Todavia assevera que antes de 1871 o ato de alforriar era uma

prerrogativa exclusiva dos senhores mesmo que o escravo oferecesse seu valor ao senhor este podia

recusar Aceitar a alforria do cativo que oferecia seu valor fazia parte da lei costumeira bem como o

manciacutepio ter um pecuacutelio Cf CUNHA Manoela Carneiro da ldquoSobre os silecircncios da lei lei costumeira e

positiva nas alforrias de escravos no Brasil do seacuteculo XIXrdquo In Antropologia do Brasil mito histoacuteria

etnicidade 2 ed Satildeo Paulo Brasiliense 1987

21

previa que toda crianccedila filha de mulher escrava que nascesse apoacutes a sua promulgaccedilatildeo

seria livre podendo permanecer em companhia de sua matildee ateacute a idade de oito anos de

idade A partir de entatildeo o destino do ingecircnuo56

o filho livre da mulher escrava ficava

nas matildeos do proprietaacuterio da matildee que poderia fazer a opccedilatildeo de aproveitar-se do trabalho

do ldquomenorrdquo ateacute os 21 anos de idade ou entregaacute-lo ao governo e receber uma

indenizaccedilatildeo Essa lei representou mais uma barreira para a continuidade do regime de

trabalho escravo pois acabou com ldquoa parte mais produtiva da propriedade escravardquo ao

deixar livre o ldquoventre geradorrdquo de novos escravos de acordo com as palavras de

fazendeiros do Piraiacute57

A Lei do Ventre Livre promoveu um acalorado debate na sociedade brasileira

atraveacutes dos jornais e de reuniotildees puacuteblicas ateacute ser votada em setembro de 1871 Setores

das classes dominantes comprometidos com o trabalho escravo criticaram o projeto da

lei alegando que era um franco desrespeito ao direito de propriedade Ressaltavam

ainda que seria um desastre para as famiacutelias escravas existentes nas senzalas porque as

crianccedilas livres nascidas apoacutes a lei natildeo respeitariam seus familiares e parentes escravos

A libertaccedilatildeo do ventre teria como consequecircncia o desmantelamento das relaccedilotildees

familiares Outro ponto ressaltado foi que os chamados ldquoventre-livresrdquo natildeo suportariam

ver o sofrimento de seus familiares dentro do cativeiro e por essa razatildeo iriam embora

Segundo Hebe Mattos e Ana Lugatildeo Rios essa argumentaccedilatildeo dos senhores de que a lei

dividiria a famiacutelia escrava pois manteria uma parte presa agrave escravidatildeo e a outra ao

mundo livre natildeo se justificava uma vez que essa situaccedilatildeo jaacute era vivida por alguns

escravos durante o seacuteculo XIX A conquista da liberdade nem sempre significava

afastar-se do grupo familiar uma vez que muitos ex-escravos permaneceram na mesma

unidade produtiva onde haviam sido escravos por causa da existecircncia de parentes ainda

nas senzalas As autoras assinalam que as famiacutelias buscavam formar um pecuacutelio para

56

Segundo Anna Gicelle Garciacutea Alaniz o termo ingecircnuo adotado para denominar o filho livre da mulher

escrava no Brasil foi inspirado no Direito Romano Mas por causa dos receios de parcela da classe

dominante com relaccedilatildeo aos direitos a que as crianccedilas assim denominadas poderiam ter acesso caso

futuramente reivindicassem apoiados no significado que o termo possuiacutea na Roma antiga esse termo foi

retirado do texto da lei do Ventre Livre apesar de ter continuado a ser empregado para se referir a esses

ldquomenoresrdquo Cf ALANIZ Anna Gicelle G Ingecircnuos e libertos estrateacutegias de sobrevivecircncia familiar em

eacutepocas de transiccedilatildeo 1871-1895 Campinas CMUUNICAMP 1997 p 38-39 Cf NEDER Gizlene ldquoAs

poliacuteticas educacionais para a infacircncia e a juventude pobres no Brasil na passagem a Modernidaderdquo In

Revista Ibero-Americana de Educaccedilatildeo n 541 25 out 2010a p 4 Disponiacutevel em

wwwrieoeiorgdeloslectores3402Nederpdf Acessado em 10-07-2015 57

NABUCO Joaquim O Abolicionismo Rio de Janeiro Nova Fronteira Satildeo Paulo Publifolha 2000 p

101

22

comprarem a liberdade de cada um de seus membros ateacute que todos conseguissem

alcanccedilar a liberdade58

De acordo com Martha Abreu a lei de 1871 feria um dos pilares da relaccedilatildeo

escravista ou seja a ldquopoliacutetica paternalistardquo dos senhores de ldquoconceder benesserdquo a seus

cativos como a manumissatildeo Essa poliacutetica senhorial funcionava para os proprietaacuterios

como uma maneira de controlar suas escravarias uma vez que apenas os ldquobons cativosrdquo

recebiam as graccedilas A Lei Rio Branco libertava os filhos de todas as escravas sem a

anuecircncia de seus donos mesmo os filhos daquelas que natildeo se enquadravam no modelo

padratildeo do ldquobom escravordquo59

Hebe Mattos e Ana Lugatildeo Rios corroboram com as

interpretaccedilotildees de que o ponto central na discussatildeo sobre a libertaccedilatildeo do ventre nada

mais era do que a questatildeo da autoridade senhorial Segundo as autoras todas as medidas

tomadas pelo estado imperial com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escrava desde 1850 tiveram

como resultado praacutetico transformar antigos costumes em leis A decretaccedilatildeo de leis que

beneficiavam a famiacutelia escrava e a conquista da liberdade foi sentida pelos senhores

como uma interferecircncia em sua autoridade e no seu direito exclusivo de conceder

ldquobenessesrdquo aos seus manciacutepios e em retribuiccedilatildeo ter a gratidatildeo desses indiviacuteduos60

Apoacutes longos debates e algumas modificaccedilotildees no projeto original a lei Rio

Branco foi finalmente promulgada em 28 de setembro de 1871 Para Sidney Chalhoub

o texto aprovado representou ldquoo reconhecimento legal de uma seacuterie de direitos que os

escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitaccedilatildeo de alguns objetivos das lutas dos

negrosrdquo61

A lei de 1871 tem um caraacuteter ambivalente observado pelos contemporacircneos

que a criticaram pelas suas limitaccedilotildees mas tambeacutem ressaltaram a sua importacircncia no

processo de emancipaccedilatildeo do trabalho escravo62

O abolicionista Joaquim Nabuco

assinalou que este foi um ldquopasso de gigante dado pelo paiacutesrdquo ndash apesar de todas as suas

imperfeiccedilotildees sua incompletude e sua injusticcedila ndash pelo fato de simbolizar um ldquobloqueio

moral da escravidatildeordquo63

Em suas ponderaccedilotildees Nabuco ressaltou que a lei de 1871 foi

uma ldquoficccedilatildeo de direitordquo pois as crianccedilas nasciam juridicamente livres mas de fato aos

oito anos de idade eram avaliadas em 600$000 mil reacuteis isto eacute o valorindenizaccedilatildeo pago

58

RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Memoacuterias do cativeiro famiacutelia trabalho e cidadania no poacutes-

emancipaccedilatildeo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 p 165-167 59

ABREU Martha Op cit 1997 p 112 60

RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Op cit 2005 p 49-51 61

CHALHOUB Sidney Visotildees da liberdade uma histoacuteria das uacuteltimas deacutecadas da escravidatildeo na corte

Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 p 159-160 62 Cf NEDER Gizlene Op cit 2010a 63

NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 51

23

ao proprietaacuterio que natildeo quisesse aproveitar-se do trabalho do ingecircnuo a partir dessa

idade ateacute os vinte e um anos Para o abolicionista a lei de setembro de 1871 jaacute nasceu

obsoleta sendo por isso necessaacuterio denunciar os absurdos como o fato de manter o

ldquoingecircnuordquo preso ao cativeiro ateacute a idade de vinte e um anos64

Apesar de todas as falhas

descritas e de muitas outras que poderiam ser citadas a lei de 1871 foi segundo

Nabuco o ldquoprimeiro ato de legislaccedilatildeo humanitaacuteria de nossa Histoacuteriardquo65

Joaquim Nabuco inquiriu sobre o futuro que teriam essas crianccedilas nascidas

livres mas vivendo dentro das senzalas ateacute os vinte e um anos de idade Esses ldquoescravos

provisoacuteriosrdquo66

durante as duas primeiras deacutecadas de suas vidas se sobrevivessem

cresceriam totalmente envolvidos com o trabalho escravo e receberiam a mesma

educaccedilatildeo moral Que cidadatildeo seria o ingecircnuo criado na escravidatildeo e exposto a todos os

seus viacutecios Para Nabuco a sorte do escravo estava associada agrave do ingecircnuo A luta dos

abolicionistas visava atender a essas duas classes dos efeitos maleacuteficos do sistema

escravista67

A indefiniccedilatildeo da situaccedilatildeo social e juriacutedica do ingecircnuo na sociedade brasileira

pode ser observada no estudo desenvolvido por Gizlene Neder sobre o Asilo dos

Meninos Desvalidos e o Imperial Instituto de Meninos Cegos As duas instituiccedilotildees

posicionaram-se contraacuterias agrave admissatildeo de ingecircnuos e crianccedilas libertas Segundo Neder

o diretor do Asilo dos Meninos Desvalidos em um ofiacutecio explicou os motivos para a

recusa da matriacutecula de dois ldquomenoresrdquo assinalou que a instituiccedilatildeo natildeo havia sido criada

para receber ingecircnuos Com relaccedilatildeo ao Imperial Instituto de Meninos Cegos a mesma

problemaacutetica se apresenta ou seja destinava-se ao atendimento de crianccedilas livres Os

meninos portadores de alguma deficiecircncia fiacutesica ou mental e de ldquomoleacutestias contagiosas

ou incuraacuteveisrdquo tambeacutem natildeo eram aceitos nas ditas instituiccedilotildees68

Para Neder o

64

A Lei Rio Branco de 28 de setembro de 1871 no Art 1o assinala que ldquoOs filhos da mulher escrava que

nascerem no Impeacuterio desde a data desta lei seratildeo considerados de condiccedilatildeo livre E fica estipulado no

sect1ordm ldquoOs ditos filhos menores ficaratildeo em poder e sob a autoridade dos senhores de suas matildees os quais

teratildeo obrigaccedilatildeo de criaacute-los e trataacute-los ateacute a idade de oito anos completos Chegando o filho da escrava a

esta idade o senhor da matildee teraacute a opccedilatildeo ou de receber do Estado a indenizaccedilatildeo de 600$000 ou de

utilizar-se dos serviccedilos do menor ateacute a idade de 21 anos completosrdquo etc Cf CONRAD Robert ldquoA lei

Rio Brancordquo In Os uacuteltimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888 2 ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 1978 p 366 65

NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 51 66

Joaquim Nabuco chamava as crianccedilas nascidas apoacutes a lei que libertou o ventre das escravas de

ldquoescravos provisoacuteriosrdquo pelo fato de os senhores poderem usufruir ndash se desejassem ndash os serviccedilos dessas

crianccedilas ateacute elas completarem 21 anos de idade NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 23 67

NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 23-24 57 68

NEDER Gizlene ldquoEntre o dever e a caridade assistecircncia abandono repressatildeo e responsabilidade

parental do Estadordquo In Discursos Sediciosos (RJ) RJ v Ano 9 n 14 pp 199 ndash 231 2004 p 206 210-

211 215-216

24

abandono pelo Estado das ldquopessoas necessitadas de sua assistecircncia omitindo-se de suas

responsabilidades parentaisrdquo pode ser interpretado como uma poliacutetica de negar ldquoa

assistecircncia agravequeles que natildeo se enquadravam em alguma possibilidade de

desenvolvimento de aptidatildeo uacutetil agrave sociedade e ao proacuteprio Estadordquo69

Com relaccedilatildeo aos ingecircnuos Robert Conrad assinala que em 1885 havia cerca de

quatrocentos mil matriculados mas apenas 01 deles tinha sido entregue ao governo70

Com base nesses dados eacute viaacutevel supor que seja esporaacutedico o caso analisado por Gizlene

Neder sobre a questatildeo da matriacutecula de dois meninos ingecircnuos (ou libertos) no Asilo dos

Meninos Desvalidos

Uma das contradiccedilotildees presentes na lei do Ventre Livre eacute o fato de ela ter

permitido aos senhores decidirem o destino das crianccedilas quando as mesmas chegassem

agrave idade de 8 anos Os proprietaacuterios podiam continuar com os ldquomenoresrdquo explorando

seus serviccedilos ateacute a idade de 21 anos ou entregaacute-los ao governo recebendo de acordo

com os anos de cuidado uma indenizaccedilatildeo de 600 mil reacuteis que seriam pagos em tiacutetulos

de renda com juros de seis por cento ao ano Os senhores em sua grande maioria

escolheram utilizar os trabalhos dessas crianccedilas71

A lei que libertou o ventre contrariou uma determinaccedilatildeo expressa na lei de 1869

que protegia a uniatildeo familiar De acordo com a lei de 1869 os filhos menores de quinze

anos natildeo poderiam ser separados de sua matildee Na lei de 28 de setembro de 1871 essa

idade caiu para 12 anos caso a matildee fosse vendida e para 8 anos na possibilidade de o

senhor dispensar os serviccedilos do ldquomenorrdquo que tivesse nascido depois da lei Se

compararmos a lei que deu proteccedilatildeo aos laccedilos familiares com a que libertou o ventre da

mulher escrava percebe-se que ocorreu um endurecimento com relaccedilatildeo agrave idade em que

as crianccedilas poderiam ser separadas de suas matildees ou pais ou seja de 15 anos passou-se

para 12 anos de idade72

A lei do Ventre Livre foi criticada tanto pelos favoraacuteveis ao fim da escravidatildeo

quanto por aqueles defensores de sua manutenccedilatildeo Para muitos ela teve de imediato um

efeito psicoloacutegico sobre os escravos e muitos senhores mas seus resultados praacuteticos soacute

seriam visiacuteveis vinte anos mais tarde Para vaacuterios poliacuteticos e escravocratas a lei de 1871

69

Idem p 215 70

CONRAD Robert Op cit 1978 p 144 71

ALANIZ Anna Gicelle Garciacutea Op cit 1997 p 40-41 CONRAD Robert Op cit 1978 p 144

NEDER Gizlene Op cit 2010a p 4 72

GUIMARAtildeES Elione S Muacuteltiplos viveres de afrodescendentes na escravidatildeo e no poacutes-emancipaccedilatildeo

famiacutelia trabalho terra e conflito (Juiz de Fora ndash MG 1828-1928) Satildeo Paulo Annablume Juiz de Fora

FUNALFA 2006 p 263

25

estava interferindo no direito de propriedade resguardado pela Constituiccedilatildeo do

Estado73

As criacuteticas mais ferrenhas ao projeto de lei que libertava o ventre da mulher

escrava vieram das regiotildees brasileiras mais comprometidas com o braccedilo escravo isto eacute

Minas Gerais Rio de Janeiro e Satildeo Paulo proviacutencias produtoras de cafeacute que era o

carro-chefe da economia brasileira no periacuteodo O desapego ao trabalho escravo

segundo Emiacutelia Viotti da Costa foi mais lento nas aacutereas em que havia uma grande

necessidade de braccedilos para a lavoura como eacute o caso do Sudeste brasileiro no final do

seacuteculo XIX em funccedilatildeo dos cafezais Nas demais proviacutencias do Impeacuterio em que natildeo

havia um grande comprometimento com o trabalho escravo a transiccedilatildeo para o trabalho

livre foi mais raacutepida74

De acordo com Hebe Mattos e Ana Lugatildeo Rios eacute difiacutecil ldquoprecisar o impactordquo da

lei de 1871 entre os cativos mas em alguns depoimentos dos descendentes dos uacuteltimos

escravos existem pistas de que a mesma teve um efeito marcante entre eles A

relevacircncia da lei pode ser mensurada pelo fato de ser destacada nos depoimentos dos

descendentes depois de decorridos mais de cem anos de sua promulgaccedilatildeo sendo que

alguns depoentes fazem questatildeo de afirmar que eram filhos de mulheres que nasceram

de ldquoventre livrerdquo75

Para as autoras eacute viaacutevel supor ldquoatraveacutes de alguns indiacutecios esparsos eacute

que a liberdade das crianccedilas tenha vindo reforccedilar projetos e comportamentos que

preparavam a uacuteltima geraccedilatildeo de escravos para a liberdaderdquo76

Os referidos relatos

sugerem que a lei que libertou o ventre teve uma conotaccedilatildeo muito importante para os

mesmos uma vez que os seus descendentes doravante nasceriam livres Portanto

presumo que os escravos natildeo concebessem os ingecircnuos como ldquoescravos provisoacuteriosrdquo

como Nabuco os haviam denominado

Para Sidney Chalhoub a lei de setembro de 1871 natildeo eacute passiacutevel de ldquouma

interpretaccedilatildeo uniacutevoca e totalizanterdquo pois segundo sua argumentaccedilatildeo a referida lei pode

ser visualizada como uma conquista dos homens e mulheres escravizados e que teve

certa influecircncia no processo de extinccedilatildeo da escravidatildeo77

Gizlene Neder ressalta com

relaccedilatildeo agraves consequecircncias da Lei do Ventre Livre que a partir de sua promulgaccedilatildeo os

setores desvalidos da sociedade passaram a ser percebidos e que a criaccedilatildeo do Asilo de

Meninos Desvalidos (1874) eacute mais um indiacutecio para os estudos que discutem os ldquoefeitos

73

COSTA Emiacutelia Viotti da Da senzala agrave colocircnia 3 ed Satildeo Paulo UNESP 1998 p 420-421 451 74

Idem p 449 452 465 ABREU Martha Op cit 1997 p 112 75

RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Maria Op cit 2005 p 164-167 76

Idem p 167 77

CHALHOUB Sidney Op cit 1990 p 161

26

muacuteltiplos e contraditoacuterios da Lei do Ventre Livre apontando que ela natildeo foi

completamente inoacutecua ou protelatoacuteriardquo78

Apoacutes a promulgaccedilatildeo da Lei do Ventre Livre setores da classe dominante com

um discurso de proteccedilatildeo e amparo aos ingecircnuos e crianccedilas desvalidas passaram a

recorrer aos meios legais para terem a guarda desses pequenos Os setores abastados da

sociedade solicitaram aos Juiacutezes de Oacuterfatildeos a tutela79

de meninos e meninas pobres

oacuterfatildeos ingecircnuos abandonados etc Foi a partir da Lei do Ventre Livre que esses

ldquomenoresrdquo passaram a interessar as classes dominantes antes eram basicamente os

oacuterfatildeos ricos que possuiacuteam tutores Aproveitando-se da lei que estipulava que se deveria

dar tutor a todos os ldquomenoresrdquo as famiacutelias abastadas com um discurso de proteccedilatildeo de

amizade e de afeto passaram a solicitar aos juiacutezes de oacuterfatildeos a tutela de crianccedilas

desvalidas Num momento de crise do escravismo essa atitude pode ser interpretada

como uma maneira de controlar uma parcela de trabalhadores80

Parafraseando Kaacutetia

Mattoso por detraacutes desse discurso de amparo aos ldquomenoresrdquo estava o trabalhador uacutetil

ao seu senhortutor81

Segundo assinala Arethuza Helena Zero a partir da Lei Rio

Branco o viacutenculo tutelar foi transformado num meio de controle social e econocircmico dos

ingecircnuos por parte dos senhores Essa atitude senhorial tinha por objetivo suprir em

certa medida a carecircncia de matildeo de obra82

Elione S Guimaratildees no estudo desenvolvido sobre a populaccedilatildeo escrava do

municiacutepio de Juiz de Fora ressaltou que encontrou apenas um uacutenico processo de tutela

envolvendo uma crianccedila afro-americana anterior agrave lei do ventre livre A autora

argumentou que antes da Lei 1871 existiram crianccedilas alforriadas e que estavam aptas

de acordo com as leis a receberem tutores mas aparentemente natildeo houve interesse no

periacuteodo anterior em formalizar a ldquoguardardquo e ldquoproteccedilatildeordquo desses ldquomenoresrdquo Esse

interesse surgiu quando o ventre da escrava deixou de gerar novos seres escravizados83

78 NEDER Gizlene Op cit 2010a p 6 79

A tutela eacute o encargo dado a um indiviacuteduo para administrar a pessoa e bens de um menor Ela pode ser

imposta pela lei ou pela vontade proacutepria de quem estaacute assumindo a funccedilatildeo Chama-se tutor a pessoa que

exerce essa incumbecircncia 80

ZERO Arethuza Helena O preccedilo da liberdade caminhos da infacircncia tutelada ndash Rio Claro (1871-

1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Campinas (SP) Unicamp 2004 p 69

httplibdigiunicampbrdocumentcode=vtls000329956 81

MATTOSO Kaacutetia Queiroacutes ldquoO filho da escrava (em torno da lei do ventre livre)rdquo In LARA Silvia

Hunold (org) Escravidatildeo Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo ANPUH Marco Zero v 8 n 16

marag 1988 p 37 ndash 55 p 54 82

ZERO Arethuza Helena Op cit 2004 p 64 e 73 83

GUIMARAtildeES Elione S Op cit 2006 p 110-111 Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas escravas Guimaratildees

ressalta que a estas natildeo eram dados tutores uma vez que os senhores eram seus tutores naturais Idem p

110 Cf NEDER Gizlene Op cit 2010a p 6

27

A anaacutelise de Guimaratildees estaacute de acordo com os estudos que abordam a problemaacutetica da

infacircncia durante a segunda metade do seacuteculo XIX mais especificamente poacutes deacutecada de

1870 ressaltando que o interesse pelos ldquomenoresrdquo das classes populares e pelos

ingecircnuos apareceu justamente num momento em que eacute dado um novo golpe na

propriedade escrava com a decretaccedilatildeo do fim da reproduccedilatildeo vegetativa de escravos

Dentro da nova realidade poliacutetica social e econocircmica era necessaacuterio manter o controle

sobre a matildeo de obra desses ldquomenoresrdquo e o viacutenculo tutelar apareceu como uma das

possibilidades para setores das classes dominantes

A deacutecada de 1870 tem uma grande representatividade no processo que pocircs fim agrave

escravidatildeo no Brasil colocado em andamento pelo governo imperial Nesse periacuteodo

ocorreu um acirramento do movimento de contestaccedilatildeo do regime escravista quando

vaacuterios setores da intelectualidade passaram a utilizar a imprensa para demonstrar os

males que essa instituiccedilatildeo representava para a naccedilatildeo A argumentaccedilatildeo dos abolicionistas

dos anos de 1870 jaacute pode ser observada no pensamento de intelectuais do iniacutecio do

seacuteculo XIX como no de Joseacute Bonifaacutecio e Frederico Leopoldo Ceacutesar Burlamaque

Entretanto a receptividade pela populaccedilatildeo foi distinta nesses dois momentos Na

primeira metade do oitocentos a grande maioria da populaccedilatildeo brasileira estava

comprometida com a propriedade escrava poreacutem essa situaccedilatildeo modificou-se

profundamente no poacutes-1850 quando entatildeo ocorreu uma concentraccedilatildeo regional e social

do elemento servil em consequecircncia das leis emancipacionistas Aleacutem desse fator

interno havia toda uma movimentaccedilatildeo internacional contraacuteria agrave escravidatildeo e vaacuterias

naccedilotildees americanas estavam promovendo a emancipaccedilatildeo de seus cativos Tal conjuntura

contribuiu no processo de deslegitimaccedilatildeo do trabalho escravo e para maior mobilizaccedilatildeo

e aceitaccedilatildeo pela populaccedilatildeo das ideias contraacuterias agrave escravidatildeo

Lilia M Schwarcz destaca outra relevacircncia da deacutecada de 1870 para a anaacutelise da

sociedade brasileira Segundo a autora foi nesse dececircnio que ocorreu a ldquoentrada de todo

um novo ideaacuterio positivista-evolucionista em que os modelos raciais de anaacutelise

cumprem um papel fundamentalrdquo84

Essas ideias tiveram uma grande influecircncia nos

84

SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil ndash

1870-1930 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 p 14 Gizlene Neder e Ana Paula Barcelos Ribeiro

da Silva empreenderam um estudo sobre a histoacuteria das ideias poliacuteticas em consonacircncia com o processo de

circulaccedilatildeo de ideias e apropriaccedilatildeo cultural na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX As autoras examinaram

as vaacuterias correntes de pensamento que influenciaram os setores da intelectualidade brasileira bem como

os diaacutelogos intelectuais entre brasileiros portugueses argentinos e espanhoacuteis para demonstrarem ldquoo

movimento de circulaccedilatildeo de ideias e apropriaccedilatildeo culturalrdquo Esse ldquomovimentordquo natildeo ocorria apenas entre

pensadores brasileiros e europeus mas tambeacutem entre intelectuais brasileiros e latino-americanos Cf

NEDER Gizlen SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da ldquoIntelectuais circulaccedilatildeo de ideias e apropriaccedilatildeo

28

discursos bem como nas accedilotildees dos homens de letras e dos poliacuteticos brasileiros sobre as

camadas empobrecidas

A importacircncia dos anos de 1870 tambeacutem eacute ressaltada nos estudos sobre a

infacircncia Foi a partir desse dececircnio no bojo das discussotildees em torno do novo ator

social o ingecircnuo que a sociedade brasileira passou a repensar o papel da crianccedila

sobretudo com relaccedilatildeo agravequelas pertencentes as classes subalternas Foi nesse momento

que a crianccedila pobre emergiu como um ldquoproblema socialrdquo que medidas foram

formuladas e colocadas em praacuteticas com o fito de controlar essa parcela da populaccedilatildeo

Segundo Irene Rizzini a lei de setembro de 1871 impocircs agrave sociedade uma nova

percepccedilatildeo sobre a crianccedila85

A partir da deacutecada de 1870 o ldquomenorrdquo e a sua educaccedilatildeo passaram a ter uma

importacircncia maior nos debates de pedagogos meacutedicos higienistas intelectuais juristas

e poliacuteticos A preocupaccedilatildeo presente nesses debates estava intimamente relacionada com

uma das principais questotildees que estava perpassando a sociedade brasileira desse

periacuteodo a da constituiccedilatildeo de trabalhadores livres disciplinados e ordeiros durante o

processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre De acordo com Maria Luiza

Marciacutelio a lei de 1871 provocou em vaacuterios setores das classes dominantes o pavor de

ficarem sem trabalhadores domeacutesticos A decretaccedilatildeo dessa lei teve um impacto

importante sobre as poliacuteticas direcionadas agrave ldquoproteccedilatildeordquo bem como a ldquocapacitaccedilatildeo para o

mundo do trabalhordquo da ldquocrianccedila expostardquo86

Comeccedila a ganhar forccedila na sociedade brasileira uma preocupaccedilatildeo entre uma

parcela dos meacutedicos juristas parlamentares entre outros sobre a necessidade de se

ldquoprotegerrdquo ldquoeducarrdquo e ldquoampararrdquo as crianccedilas das camadas populares A educaccedilatildeo era

concebida como uma estrateacutegia para disciplinar e preparar esses ldquomenoresrdquo para o

futuro como trabalhadores disciplinados e ordeiros A proposta de ensino para essa

camada desvalida da sociedade era o baacutesico (ler e escrever) acompanhado do

cultural Anotaccedilotildees para uma discussatildeo metodoloacutegicardquo In Passagens Revista Internacional de Histoacuteria

Poliacutetica e Cultura Juriacutedica v 1 n 1 jan-jun 2009 p 29-54 Disponiacutevel em

wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv1n1a2pdf Acessado em 08-07-2015 Cf PINTO Jefferson

de Almeida ldquoA restauraccedilatildeo catoacutelico-tomista a partir do campo poliacutetico e juriacutedico de Minas Gerais na

passagem agrave modernidaderdquo Passagens Revista Internacional de Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio

de Janeiro v 2 n 5 set-dez 2010 p 147-148 e 150 Disponiacutevel em

wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv2n5a72010pdf Acessado em 10-07-2015 85

RIZZINI Irene ldquoCrianccedilas e menores do paacutetrio poder ao paacutetrio dever Um histoacuterico da legislaccedilatildeo para

a infacircncia no Brasilrdquo In RIZZINI Irene PILOTTI Francisco (orgs) A arte de governar crianccedilas a

histoacuteria das poliacuteticas sociais da legislaccedilatildeo e da assistecircncia agrave infacircncia no Brasil 3 ed Satildeo Paulo

Cortez 2011 p 104 86

MARCILIO Maria Luiza Histoacuteria social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo HUCITEC 2006

p 206

29

aprendizado de um ofiacutecio manual como pedreiro carpinteiro sapateiro ferreiro etc

Essa modalidade de ensino tinha como pretensatildeo entre outros fatores reorganizar as

relaccedilotildees de trabalho e as de controle social sob o regime de trabalho livre A foacutermula

ldquoeducar e instruirrdquo os ldquomenoresrdquo pobres era considerada por setores da classe

dominante brasileira como um antiacutedoto para a vadiagem a criminalidade e o oacutecio87

As anaacutelises sobre a infacircncia tecircm reiteradamente afirmado que a crianccedila na

transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX passou a ser vista sob dois acircngulos como o ldquofuturo

da naccedilatildeordquo e como um ldquoproblema para a naccedilatildeordquo A partir do binocircmio futuro-problema

para a naccedilatildeo estabeleceu-se uma diferenciaccedilatildeo entre as infacircncias88

uma necessitava de

proteccedilatildeo e de cuidados e a outra deveria ser vigiada punida e preparada para o mundo

trabalho Foi nesse processo de divisatildeo das infacircncias que tambeacutem ocorreu a

diferenciaccedilatildeo no plano juriacutedico (Coacutedigo Civil 1916 e do Coacutedigo de Menores 1927) de

sua denominaccedilatildeo ou seja o termo crianccedila passou a ser empregado basicamente para

as que estavam inseridas dentro do modelo de famiacutelia-padratildeo e as que estavam alijadas

dessa estrutura familiar passou a ser denominada de ldquomenorrdquo89

Com relaccedilatildeo ao termo ldquomenorrdquo Maria Luiza Marciacutelio ressalta que a

interferecircncia meacutedico-juriacutedica na questatildeo da infacircncia contribuiu para que essa expressatildeo

se tornasse um ldquodiscriminativo da infacircncia desfavorecida delinquente carente

abandonadardquo90

Nessa mesma linha interpretativa Vinicius Neder assinala que na

passagem do seacuteculo XIX para o XX ocorreu um processo de estigmatizaccedilatildeo da infacircncia

e juventude pobre no Brasil Segundo o autor o termo ldquomenorrdquo sofreu um

ldquodeslizamento semacircnticordquo em trecircs niacuteveis - poliacutetico-cultural juriacutedico e linguiacutestico na

passagem agrave modernidade Nesse processo a expressatildeo adquiriu uma conotaccedilatildeo

pejorativa de ldquorejeiccedilatildeo e preconceitordquo91

Para Vera Malaguti Batista com a criaccedilatildeo da

Justiccedila de Menores (1923) e a aprovaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores (1927) o termo

ldquomenorrdquo passou a ser definitivamente relacionado agraves ldquocrianccedilas pobres a serem tuteladas

87

MARTINEZ Alessandra Frota ldquoEducar e instruir olhares pedagoacutegicos sobre a crianccedila pobre no seacuteculo

XIXrdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de Janeiro

Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 88

Estou chamando de as infacircncias pois foi dado um tratamento diferenciado agraves crianccedilas que tinham uma

estrutura familiar burguesa e agraves que natildeo possuiacuteam tal estrutura 89

Sobre a discussatildeo a respeito da divisatildeo da infacircncia entre ldquomenorrdquo e crianccedila ver RIZZINI Irene O

seacuteculo perdido raiacutezes histoacutericas das poliacuteticas puacuteblicas para a infacircncia no Brasil 2 ed Rev Satildeo Paulo

Cortez 2008 FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Infacircncia no soacutetatildeo Belo

Horizonte Autecircntica 1999 NEDER Vinicius Jornalismo e exclusatildeo social anaacutelise comparativa nas

coberturas sobre crianccedilas e adolescentes Rio de Janeiro Editora Multifoco 2011 90

MARCILIO Maria Luiza Op cit 2006 p 195 91

NEDER Vinicius Op cit 2011 p 103-104

30

pelo Estado para a preservaccedilatildeo da ordem e asseguramento da modernizaccedilatildeo capitalista

em cursordquo92

A preocupaccedilatildeo com os ldquomenoresrdquo pobres tambeacutem se estendeu agraves suas famiacutelias

Estas eram concebidas sob o signo da desorganizaccedilatildeo da promiscuidade e da

imoralidade sendo comum a associaccedilatildeo entre pobreza e marginalidade As famiacutelias dos

afro-brasileiros eram os alvos principais desse estereoacutetipo Os indiviacuteduos saiacutedos das

senzalas e seus descendentes que sempre realizaram todos os tipos de trabalhos foram

caracterizados como preguiccedilosos vadios e suas relaccedilotildees familiares tidas como

permeadas pela promiscuidade

As relaccedilotildees familiares e de parentesco dos cativos e dos libertos bem como a

integraccedilatildeo dos ex-escravos na sociedade burguesa competitiva foram objetos de

investigaccedilatildeo dos pesquisadores nas deacutecadas de 1960 e 1970 Os estudiosos se dedicaram

agrave anaacutelise da escravidatildeo e do poacutes-aboliccedilatildeo na sociedade brasileira e em suas reflexotildees

ressaltaram que os afro-brasileiros natildeo se adaptaram agrave ordem burguesa e competitiva

em consequecircncia dos males que o regime escravista havia produzido no seio da

populaccedilatildeo negra escravizada De acordo com essa abordagem os ex-cativos natildeo sabiam

se comportar em tal sociedade por causa da falta de preceitos morais familiares e de

ideais de acumulaccedilatildeo de riquezas Tais interpretaccedilotildees podem ser observadas nas

anaacutelises desenvolvidas por pesquisadores da chamada ldquoEscola Paulista de Sociologiardquo

como Florestan Fernandes em ldquoA integraccedilatildeo do negro na sociedade de classerdquo e na de

Celso Furtado em ldquoFormaccedilatildeo Econocircmica do Brasilrdquo Os trabalhos dos estudiosos da

referida ldquoEscolardquo contestaram a visatildeo da escravidatildeo brasileira como mais amenasuave

se comparada com outras naccedilotildees americanas que utilizaram o trabalho escravo Suas

criacuteticas recaiacuteram principalmente sobre as interpretaccedilotildees de Gilberto Freyre

especialmente em sua obra ldquoCasa Grande amp Senzalardquo Poreacutem transformaram os

escravos em seres anocircmicos sem personalidade em uma ldquocoisardquo Esses pesquisadores

em suas anaacutelises natildeo conseguiram perceber os significados e as ldquovisotildees de liberdaderdquo93

dos ex-escravos no poacutes-emancipaccedilatildeo As atitudes de autonomia de individualidade dos

libertos foram lidas como anomia vadiagem e ociosidade94

92

BATISTA Vera Malaguti Difiacuteceis ganhos faacuteceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro 2 ed

Rio de Janeiro Editora Revan 2003 p 68-69 93

A expressatildeo ldquovisotildees da liberdaderdquo foi apropriada do tiacutetulo do livro de Sidney Chalhoub em que o autor

estuda os anos finais do sistema escravista na Corte Cf CHALHOUB Sidney Visotildees da liberdade uma

histoacuteria das uacuteltimas deacutecadas da escravidatildeo na Corte Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 94

Cf CARDOSO Fernando Henrique Capitalismo e escravidatildeo no Brasil Meridional Satildeo Paulo Difel

1962 FERNANDES Florestan A integraccedilatildeo do negro na sociedade de classes (o legado da ldquoraccedila

31

Entretanto a visatildeo do ldquoescravo coisardquo e do liberto natildeo adaptado agrave sociedade

burguesa e competitiva bem como a falta de laccedilos familiares e de parentesco entre eles

passou a ser contestada pela historiografia brasileira na deacutecada de 1980 Com base em

uma gama variada de fontes as abordagens poacutes-1980 inseriram os cativos e os libertos

como sujeitos histoacutericos e demonstraram que eles foram capazes de construir redes de

sociabilidade relaccedilotildees familiares e de parentesco padrotildees culturais proacuteprios entre

outras coisas95

Todavia as uniotildees familiares dos ex-escravos e de seus descendentes natildeo foram

as uacutenicas a serem alvos de criacuteticas e preocupaccedilotildees por parte de fraccedilotildees das classes

dominantes brasileiras A organizaccedilatildeo familiar das camadas populares da mesma

forma natildeo coincidia com o modelo que era esperado por segmentos da intelectualidade

e poliacuteticos ou seja o modelo burguecircs nuclear higiecircnico e sexualmente regulado96

O

modelo burguecircs de famiacutelia almejado pelos grupos dominantes estava bem distante da

realidade das camadas pobres (nacionais afro-brasileiros e imigrantes) A natildeo

oficializaccedilatildeo religiosa e ou civil das uniotildees era a regra para a grande maioria desse

segmento social Muitas mulheres-matildees precisavam trabalhar para ajudar nas despesas

domeacutesticas Esse fato as impedia de exercer o papel da esposa-matildee burguesa que se

dedicava ao lar e agrave educaccedilatildeo dos filhos Com relaccedilatildeo ao ldquolarrdquo Cynthia Greive e Luciano

Faria salientam que ldquona modernidade a casa eacute uma das condiccedilotildees para viabilizar uma

famiacutelia e organizar papeacuteisrdquo97

entretanto uma parcela expressiva das classes subalternas

vivia em moradias com precaacuterias condiccedilotildees sanitaacuterias e de privacidade Essas

brancardquo) 3 ed v 1 Satildeo Paulo Aacutetica 1978 FURTADO Celso Formaccedilatildeo econocircmica do Brasil 14 ed

Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1976 95

Cf FARIA Sheila S de Castro A colocircnia em movimento fortuna e famiacutelia no cotidiano colonial Rio

de Janeiro Nova Fronteira 1998 CHALHOUB Sidney Visotildees da liberdade uma histoacuteria das uacuteltimas

deacutecadas da escravidatildeo na corte Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 MATTOS Hebe Maria Das

cores do silecircncio os significados da liberdade no Sudeste escravista Brasil seacuteculo XIX Rio de Janeiro

Nova Fronteira 1998 RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Memoacuterias do cativeiro famiacutelia trabalho e

cidadania no poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 SLENES Robert W Na

senzala uma flor as esperanccedilas e recordaccedilotildees na formaccedilatildeo da famiacutelia escrava ndash Brasil Sudeste seacuteculo

XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 SLENES Robert W ldquoLares negros olhares brancos histoacuteria

da famiacutelia escrava no seacuteculo XIXrdquo Revista Brasileira de Histoacuteria v 8 n 16 marccediloagosto 1988 Entre

os estudiosos que apresentaram os escravos enquanto sujeitos histoacutericos podemos destacar Robert

Slenes que foi um dos iniciadores dos estudos demograacuteficos sobre a vida familiar dos escravos no Brasil

Suas reflexotildees sobre o viver dos cativos contribuiacuteram para modificar os ldquoolhares brancosrdquo sobre os ldquolares

negrosrdquo O contato estabelecido por esse pesquisador com outras ciecircncias como a antropologia e a

linguiacutestica fez emergir uma nova visatildeo do cativeiro Em suas anaacutelises os homens e as mulheres presos ao

cativeiro possuiacuteam ldquosonhosrdquo ldquoesperanccedilasrdquo e ldquorecordaccedilotildeesrdquo 96

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoFamiacutelia poder e controle social concepccedilatildeo sobre

famiacutelia no Brasil na passagem agrave modernidaderdquo In ________ Ideias juriacutedicas e autoridade na famiacutelia

Rio de Janeiro Revan 2007 pp 14 ndash 15 COSTA Jurandir Freire Ordem meacutedica e norma familiar 4

ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1999 pp 12-14 97

FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Op cit 1999 pp 66 ndash 67

32

habitaccedilotildees com espaccedilos exiacuteguos expunham as intimidades de seus moradores e

contribuiacuteam para que as crianccedilas encontrassem nas ruas o local para suas brincadeiras

longe dos olhares atentos de suas genitoras

Os moradores desses ldquolaresrdquo que se encontravam nos corticcedilos nas periferias das

cidades e nas favelas tornaram-se alvos das accedilotildees sociais Muitas crianccedilas desses

ldquolaresrdquo eram analfabetas e ainda bem jovens jaacute compunham a matildeo de obra das faacutebricas

oficinas dos ldquolaresrdquo burgueses das construccedilotildees e das lavouras Dentro da concepccedilatildeo de

que as famiacutelias pobres eram desestruturadas e que essa situaccedilatildeo contribuiacutea para a

constituiccedilatildeo do criminoso o Estado procurou assumir a responsabilidade pela educaccedilatildeo

sauacutede e puniccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes pobres que se encontrassem nas ditas

famiacutelias desestruturadas Essa accedilatildeo estatal deu origem a um aparato de ldquopoliacuteticas sociais

especiaisrdquo para a infacircncia pobre que tinham o intuito de reduzir a delinquecircncia e a

criminalidade98

Edson Passetti assim assinala

Durante o seacuteculo XX em nome da preservaccedilatildeo da ordem social da educaccedilatildeo

estatal obrigatoacuteria da necessidade de integrar crianccedilas e jovens pobres pelo

trabalho o Estado tambeacutem passou a zelar pela defesa da famiacutelia monogacircmica

estruturada99

(Grifo meu)

Entretanto eacute necessaacuterio assinalar que as famiacutelias pobres mas trabalhadoras

gozavam de uma visatildeo mais complacente por parte dos setores dominantes pois

estavam de acordo com o quadro social projetado pela burguesia trabalho disciplina

famiacutelia e religiatildeo100

Poreacutem essa situaccedilatildeo poderia modificar-se radicalmente em

consequecircncia de uma eventualidade qualquer como a morte de um dos membros a

perda do emprego levando-os ao mundo dos viacutecios e das doenccedilas Acreditava-se que a

populaccedilatildeo pobre era mais propensa aos mencionados males Pelo exposto uma poliacutetica

preventiva deveria ser direcionada a esse grupo como por exemplo os cuidados que

deveriam ter com seus filhos e a importacircncia de os manterem longe das ruas101

Assim observa-se que a discussatildeo sobre a infacircncia estaacute intimamente relacionada

com a da famiacutelia Entretanto como salientam Gizlene Neder e Gisaacutelio Cerqueira ao se

examinar as relaccedilotildees familiares brasileiras eacute necessaacuterio levar em conta as diferenccedilas

eacutetnico-culturais bem como os vaacuterios tipos de organizaccedilatildeo familiar Dessa forma eacute

98

PASSETTI Edson ldquoCrianccedilas carentes e poliacuteticas puacuteblicasrdquo In DEL PRIORI Mary (org) Histoacuteria

das crianccedilas no Brasil 5 ed Satildeo Paulo Contexto 2006 p 348 99

Idem p 349 100

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 59 101

Idem p 60

33

necessaacuterio ldquopensar as famiacutelias de forma pluralrdquo102

A esse respeito Sheila Faria

acrescenta que as anaacutelises sobre a famiacutelia devem levar em consideraccedilatildeo a eacutepoca as

especificidades regionais e os grupos sociais103

A famiacutelia passou a ser concebida ao longo do seacuteculo XIX como a ldquoceacutelula da

ordem vivardquo104

Foi tambeacutem naquele seacuteculo que essa instituiccedilatildeo comeccedilou a sofrer de

forma mais contundente as interferecircncias do Estado destacando nessa accedilatildeo o poder

judiciaacuterio O Estado ldquonatildeo podendo agir constantemente em nome dela vem a ocupar

seu lugar em especial na gestatildeo da crianccedila o ser social e o capital mais preciosordquo105

Essa accedilatildeo intervencionista foi sentida de forma mais contundente na organizaccedilatildeo

familiar dos segmentos empobrecidos da sociedade considerados incapazes de gerir

seus rebentos A interferecircncia no acircmbito privado das famiacutelias pobres prossegue ao

longo do seacuteculo XX com a intromissatildeo de ldquojuiacutezes meacutedicos e policiaisrdquo com a

justificativa de que tal accedilatildeo era ldquoem nome de um lsquointeresse da crianccedilarsquo dirigindo-se agrave

crianccedila como ser socialrdquo106

A literatura sobre a infacircncia tem destacado que parcela da classe dominante

brasileira defendeu a intervenccedilatildeo do Estado nas questotildees da vida privada das famiacutelias

pobres especialmente as relacionadas agrave crianccedila As classes dominantes propunham que

as crianccedilas abandonadas bem como as que conviviam no seio de famiacutelias que

supostamente natildeo dispunham de condiccedilotildees morais e higiecircnicas para educaacute-las e criaacute-

las deveriam ser encaminhadas para instituiccedilotildees que iriam preparaacute-las para a vida em

uma sociedade ldquocivilizadardquo A suspensatildeo do paacutetrio poder justificava-se como uma

necessidade para o bem da naccedilatildeo

Com o objetivo de manter sobre controle as crianccedilas pobres e abandonadas

vaacuterias associaccedilotildees e sociedades foram criadas nas deacutecadas de 1870 e 1880 para abrigar

esses pequenos elevados agrave categoria de ldquoproblema socialrdquo Entretanto no periacuteodo

republicano ocorreu um crescimento no nuacutemero de instituiccedilotildees governamentais para

assistir os ldquomenoresrdquo deserdados da fortuna107

que deveriam ser ldquomoldadosrdquo

102

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 pp 10-11 103

FARIA Sheila S de Castro A colocircnia em movimento fortuna e famiacutelia no cotidiano colonial Rio de

Janeiro Nova Fronteira 1998 p 45 104

PERROT Michelle ldquoOs atoresrdquo In ________ (org) Histoacuteria da Vida Privada da Revoluccedilatildeo

Francesa agrave Primeira Guerra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 p 78 105

Idem p 78 106

Ibidem p 78 103 107

Expressatildeo encontrada nos perioacutedicos do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX para se referir aos

desvalidospobres Cf O Pharol Diaacuterio Mercantil Jornal do Commercio entre outros Segundo Joseacute

Gonccedilalves Gondra havia um vocabulaacuterio extenso para descrever a ldquoinfacircncia pobre no Brasil

oitocentistardquo Termos como ldquoignorantesrdquo ldquodesvalidosrdquo ldquodesprotegidosrdquo ldquodesamparadosrdquo

34

amparados pelo Estado para no futuro serem uacuteteis agrave naccedilatildeo108

Gizlene Neder ressalta

que na passagem do seacuteculo XIX para o XX havia um consenso entre os homens

puacuteblicos de que a assistecircncia agrave infacircncia desvalida ldquodeveria ser prioridade de poliacuteticas

governamentaisrdquo apesar de haver uma diversidade de propostas para a implementaccedilatildeo

dessas poliacuteticas109

Segundo Irma Rizzini durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo XX ocorreu uma

ldquoconsolidaccedilatildeo do modelo institucional com base na internaccedilatildeo da crianccedila em perigo

(chamada de menor abandonado) ou perigosa (menor delinquente) em instituiccedilotildees

fechadasrdquo Paralelo a esse sistema surgem tambeacutem o ldquoextra-asilarrdquo que era proposto

pelos meacutedicos higienistas e se constituiacutea em uma modalidade preventiva e que tinha a

famiacutelia como base para a sua consecuccedilatildeo110

Os institutosasilos eram concebidos como o locus privilegiado para ldquosalvarrdquo a

infacircncia pobre da ociosidade da vadiagem da prostituiccedilatildeo do mundo do crime bem

como livrar a naccedilatildeo de futuros problemas A foacutermula defendida por setores dominantes

para transformarem os pequenos deserdados da fortuna em cidadatildeos uacuteteis agrave sua paacutetria

foi a internaccedilatildeo em institutos em que a educaccedilatildeo elementar era acompanhada do

aprendizado de um ofiacutecio manual ou seja preparar a matildeo de obra do amanhatilde Segundo

Irene Rizzini a educaccedilatildeo destinada agraves crianccedilas pobres tinha como objetivo moldaacute-las

ldquopara a submissatildeordquo e acrescenta

Foi por essa razatildeo que o paiacutes optou pelo investimento numa poliacutetica

predominantemente juriacutedico-assistencial de atenccedilatildeo agrave infacircncia em detrimento

de uma poliacutetica nacional de educaccedilatildeo de qualidade ao acesso de todos Tal

opccedilatildeo implicou na dicotomizaccedilatildeo da infacircncia de um lado a crianccedila mantida

sob os cuidados da famiacutelia para a qual estava reservada a cidadania e do

outro o menor mantido sob a tutela vigilante do Estado objeto de leis

medidas filantroacutepicas educativasrepressivas e programas assistenciais e

ldquoabandonadosrdquo ldquoinfelizes da sorterdquo entre outros eram comuns tanto entre os meacutedicos higienistas quanto

entre os poliacuteticos religiosos e juristas Cf GONDRA Joseacute Gonccedilalves ldquoFilhos da sombra os ldquoenjeitadosrdquo

como problema da ldquoHygienerdquo no Brasilrdquo In FILHO Luciano Mendes Faria (org) A infacircncia e sua

educaccedilatildeo ndash materiais praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e Brasil) Belo Horizonte Autecircntica 2004 p

125 108

ABREU Martha MARTINEZ Alessandra Frota ldquoOlhares sobre a crianccedila no Brasil perspectivas

histoacutericasrdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de

Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 pp 22-25 e 35

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 206-207 109

NEDER Gizlene ldquoAssistecircncia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gisele (org) Educar na infacircncia

perspectivas histoacuterico-sociais Satildeo Paulo Contexto 2010 p 116 110

RIZZINI Irma ldquoPrincipais temas abordados pela literatura especializada sobre infacircncia e

adolescecircnciardquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de

Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 p 42

35

para o qual poder-se-ia dizer como Joseacute Murilo de Carvalho estava

reservada a ldquoestadaniardquo111

As crianccedilas abandonadas as que trabalhavam nas ruas as de famiacutelias pobres e

sem meios precisavam de acordo com o pensamento higienista e civilizador da eacutepoca

de ser protegidas e educadas para que no futuro natildeo se tornassem um pesado fardo para

a naccedilatildeo Irene Rizzini assinala que nas ldquosociedades modernas crescentemente

urbanizadas e industrializadasrdquo a presenccedila de ldquomenoresrdquo pobres representava um grave

problema social que exigia accedilotildees eneacutergicas e em razatildeo da propalada gravidade dessa

questatildeo ldquoum complexo aparato meacutedico-juriacutedico-assistencialrdquo foi arquitetado e tinha

como metas a ldquoprevenccedilatildeo educaccedilatildeo recuperaccedilatildeo e repressatildeordquo desse estrato da

sociedade112

O ldquomenorrdquo deveria ser vigiado e controlado para evitar que se

desencaminhasse Os que jaacute se encontravam desviados do caminho que uma parcela da

sociedade esperava que eles seguissem (leia-se o do trabalho) deveriam ser reprimidos e

reabilitados pelo trabalho nas instituiccedilotildees assistenciais

Os discursos da eacutepoca satildeo enfaacuteticos em caracterizar a educaccedilatildeo como algo

importante na transformaccedilatildeo da sociedade Todavia como jaacute foi comentado ao menor

pobre abandonado a proposta educacional defendida por alguns segmentos da

sociedade era a elementar acompanhada do aprendizado de um ofiacutecio Apesar da crenccedila

na educaccedilatildeo como um meio transformador da sociedade a questatildeo da seguranccedila

nacional veio primeiro que a obrigatoriedade do ensino puacuteblico para todos pois a jovem

Repuacuteblica brasileira preocupou-se em primeiro tornar o serviccedilo militar obrigatoacuterio para

soacute mais tarde determinar isso para a educaccedilatildeo113

No final do seacuteculo XIX o pensamento higienista norteou as atitudes e praacuteticas

de intelectuais poliacuteticos e juristas Era necessaacuterio preparar o cidadatildeo para a vida em

sociedade Para isso era preciso criar novos haacutebitos de higiene e de relaccedilatildeo desses

indiviacuteduos com o espaccedilo Cynthia Veiga e Luciano Faria salientam que as ldquoelites

intelectuaisrdquo do periacuteodo entendiam que era preciso introduzir uma ldquonova moralidade no

corpo e na mente das pessoasrdquo114

O meacutedico tornou-se nesse contexto o salvador o

indiviacuteduo que iria levar ateacute as camadas pobres ldquoas noccedilotildees baacutesicas de higiene e sauacutede ndash

111

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 29 112

Idem p 26 113

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoAlguns aspectos do confronto entre iliberais versus

liberais em Portugal (meados do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XX)rdquo In NEDER Gizlene CERQUEIRA

FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 82 NEDER Gizlene Op cit 2010 p 100 Cf NEDER Gizlene Op

cit 2010b p 100 114

FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Op cit 1999 p 38

36

em sentido fiacutesico e moralrdquo115

e o caminho para se atingir esse objetivo era a crianccedila

pelo fato de constituir a base da estrutura social A famiacutelia precisava ser saneada para o

bem da naccedilatildeo A preocupaccedilatildeo dos meacutedicos higienistas tambeacutem se fez presente com

relaccedilatildeo aos abrigos agraves instituiccedilotildees e aos asilos para crianccedilas onde as taxas de

mortalidade eram altiacutessimas

O pensamento juriacutedico tambeacutem teve grande destaque no periacuteodo abordado A

conjunccedilatildeo das ideias da medicina higienista com as do direito procuraram interferir nos

modos de vida dos estratos mais baixos da sociedade brasileira por serem considerados

por estas esferas de saberpoder como contaminados por diversos viacutecios e destituiacutedos de

valores morais Esses dois ramos do saber comeccedilaram a propugnar novas formas de

assistecircncia para o ldquomenorrdquo desvalido delinquente atraveacutes da prevenccedilatildeo ou de sua

reclusatildeo em instituiccedilotildees para sua recuperaccedilatildeo e transformaccedilatildeo em indiviacuteduos uacuteteis a

naccedilatildeo116

As accedilotildees dos meacutedicos higienistas e dos juristas tambeacutem se voltaram contra as

antigas praacuteticas de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo ou seja a caritativa Segundo eles era

necessaacuterio introduzir novos meacutetodos de assistecircncia a esse estrato da sociedade Em

substituiccedilatildeo agrave caridade de cunho religioso propunham accedilotildees de filantropia em razatildeo de

seus pretensos meacutetodos cientiacuteficos Segundo Irene Rizzini a ldquoracionalizaccedilatildeo da

assistecircnciardquo ou a ldquociecircncia da caridaderdquo foi um ldquoimperativo da eacutepocardquo117

Em outras

palavras um ajuste no atendimento aos ldquomenoresrdquo dentro da nova ordem econocircmica e

social dos Estados com seu desenvolvimento industrial urbano e capitalista O trabalho

desenvolvido pela accedilatildeo caritativa foi se tornando obsoleto dentro da nova mentalidade

higiecircnica e juriacutedica do seacuteculo XIX e XX Um dos principais alvos de criacuteticas dos

defensores das accedilotildees filantroacutepicas de assistecircncia aos pequenos desvalidos foram as

Rodas dos Expostos Tais criacuteticas respaldavam-se em valores morais e higiecircnicos118

Entre os meacutedicos higienistas preocupados com a causa da infacircncia desvalida

destacou-se a accedilatildeo de Moncorvo Filho que desde o final do seacuteculo XIX e no decorrer

das primeiras deacutecadas do XX dedicou-se agrave ldquocausa da crianccedila pobrerdquo O meacutedico

desenvolveu um amplo programa de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo bem como de

orientaccedilatildeo das matildees e das famiacutelias Tambeacutem levou a efeito campanhas de

conscientizaccedilatildeo das camadas populares onde expunha os prejuiacutezos que os viacutecios

115

Idem p 108 116

MARCILIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 194-196 117

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 94 118

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 194-195 RIZZINI Irene Op cit 2008 pp 92-96 111

37

acarretavam em suas vidas e nas de seus filhos com destaque para o alcoolismo

Moncorvo Filho foi o responsaacutevel pelo Primeiro Congresso Brasileiro de Proteccedilatildeo agrave

Infacircncia que se realizou na entatildeo capital do Brasil Rio de Janeiro em 1922119

12 OS ldquoMENORESrdquo DESVALIDOS NA REPUacuteBLICA DA ldquoORDEMrdquo E

DO ldquoPROGRESSOrdquo

A crenccedila no progresso eacute uma das caracteriacutesticas das sociedades modernas O

amanhatilde seraacute melhor que hoje tem sido a crescente convicccedilatildeo do homem

ocidental desde os tempos do Renascimento [] Por vezes ele tem chegado

a achar que tal mudanccedila seraacute sempre para melhor concluindo por isso que o

progresso eacute inevitaacutevel (Richard Graham)120

No decorrer principalmente da segunda metade do seacuteculo XIX no Brasil

vaacuterios pensadoresgestores puacuteblicos levantaram a bandeira de que o regime republicano

era melhor do que o monaacuterquico A partir especialmente da deacutecada de 1870 com a

publicaccedilatildeo do Manifesto Republicano houve um crescimento da criacutetica ao regime

monaacuterquico Geralmente fazia-se uma associaccedilatildeo entre ldquoprogressordquo e ldquocivilizaccedilatildeordquo e

regime republicano sendo que o sistema monaacuterquico era comparado com o atraso e a

barbaacuterie Vaacuterios intelectuais da geraccedilatildeo 1870 defenderam essa forma de governo para o

Brasil demonstrando atraveacutes da anaacutelise da histoacuteria do paiacutes os graves problemas das

instituiccedilotildees poliacuteticas imperiais Os contestadores 1870 criticavam a estrutura poliacutetica

ldquosaquaremardquo do Estado imperial brasileiro como o centralismo poliacutetico e econocircmico

bem como a praacutetica do ldquofilhotismo poliacuteticordquo ou seja a distribuiccedilatildeo de cargos puacuteblicos a

ldquoafilhadosrdquo e parentes impedindo dessa forma a entrada de pessoas por suas

competecircncias nos cargos puacuteblicos121

Os intelectuais da geraccedilatildeo 1870 defendiam

reformas nos setores educacional eleitoral no regime de trabalho e a separaccedilatildeo entre

119

WADSWORTH James E ldquoMoncorvo Filho e o problema da infacircncia modelos institucionais e

ideoloacutegicos da assistecircncia agrave infacircncia no Brasilrdquo Revista Brasileira de Histoacuteria v 19 n 37 Satildeo Paulo

set 1999 Disponiacutevel em httpwwwscielobrscielophpscript=sciarttextamppid=S0102-

01881999000100006 Acessado em 10-01-2014 RIZZINI Irene Op cit 2008 pp 60-63 120

GRAHAM Richard ldquoSpencer e o progressordquo In _______ Gratilde-Bretanha e o iniacutecio da modernizaccedilatildeo

no Brasil Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1973 p 242 121

ALONSO Acircngela Ideias em movimento a geraccedilatildeo de 1870 na crise do Brasil Impeacuterio Satildeo Paulo

Paz e Terra 2002 p 232

38

Estado e Igreja A defesa da aboliccedilatildeo da escravidatildeo no Brasil foi um ponto comum entre

os vaacuterios grupos da geraccedilatildeo 1870122

Com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em 1889 a crenccedila de que no novo regime

seriam empreendidas as reformas poliacuteticas defendidas pelos contestadores de 1870 e de

que o paiacutes entraria enfim nos trilhos do progresso e da civilizaccedilatildeo natildeo se concretizou

pelo menos para a grande maioria da populaccedilatildeo pobre (afro-brasileiros nacionais e

imigrantes) analfabeta destituiacuteda de terra e de educaccedilatildeo que continuou excluiacuteda do

acesso agrave cidadania plena e agraves riquezas do paiacutes As propostas de alguns intelectuais de

que o paiacutes deveria promover uma reforma agraacuteria e oferecer educaccedilatildeo para os ex-

escravos foram ignoradas pelos ldquodonos do poderrdquo123

republicano como haviam feito os

poliacuteticos do periacuteodo imperial124

Aos deserdados da Repuacuteblica restaram apenas a

repressatildeo a exploraccedilatildeo a desqualificaccedilatildeo de seus laccedilos familiares o abandono de seus

filhos e a mendicacircncia E para os filhos desses homens e mulheres foram planejados

construiacutedos os abrigos as instituiccedilotildees que tinham a missatildeo de transformaacute-los em

indiviacuteduos uacuteteis a sociedade atraveacutes do trabalho e da submissatildeo

A Repuacuteblica brasileira que muitos acreditavam que iria inaugurar ldquouma nova era

de direitosrdquo125

deixou claro jaacute nos primeiros anos que essa natildeo seria a realidade da

Repuacuteblica brasileira Setores das classes subalternas da sociedade perceberam logo que

os agentes do novo status quo natildeo estavam preocupados com mudanccedilas que pudessem

lhes trazer benefiacutecios

O sistema republicano decepcionou tanto os intelectuais (geraccedilatildeo 1870) quanto

uma parcela dos liacutederes operaacuterios uma vez que natildeo atendeu aos anseios reformadores

dos primeiros assim como dificultou a organizaccedilatildeo em partidos e a participaccedilatildeo

eleitoral dos segundos126

122

Idem Sobre a criacutetica empreendida pela geraccedilatildeo 1870 agrave poliacutetica imperial ver principalmente o

capiacutetulo 3 ldquoTeorias para a reformardquo 123

A expressatildeo ldquodonos do poderrdquo foi apropriada do tiacutetulo do livro de Raymundo Faoro Cf FAORO

Raymundo Os donos do poder formaccedilatildeo do patronato poliacutetico brasileiro 6 ed Porto Alegre Globo

1984 124

RESENDE Maria Efigecircnia Lage de ldquoO processo poliacutetico na Primeira Repuacuteblica e o liberalismo

oligaacuterquicordquo In FERREIRA Jorge DELGADO Lucilia de Almeida Neves O tempo do liberalismo

excludente da Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica agrave Revoluccedilatildeo de 1930 2 ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo

Brasileira 2006 p 100 125

BATALHA Claacuteudio ldquoLimites da liberdade trabalhadores relaccedilotildees de trabalho e cidadania durante a

Primeira Repuacuteblicardquo In LIBBY Douglas Cole FURTADO Juacutenia Ferreira (orgs) Trabalho livre

trabalho escravo Brasil e Europa seacuteculos XVII e XIX Satildeo Paulo Annablume 2006a p 107 126

Cf ALONSO Acircngela Op cit p 232 BATALHA Claacuteudio ldquoFormaccedilatildeo da classe operaacuteria e projetos

de identidade coletivardquo In FERREIRA Jorge DELGADO Lucilia de Almeida Neves O tempo do

liberalismo excludente da Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica agrave Revoluccedilatildeo de 1930 2 ed Rio de Janeiro

39

Os agentes poliacuteticos do novo regime fazendo jus ao lema positivista da bandeira

republicana ldquoordem e progressordquo deram iniacutecio a vaacuterias empreitadas com o objetivo de

conduzir o Brasil ao que concebiam como ldquomodernordquo e ldquocivilizadordquo tendo a Europa

como modelo Para elevar o paiacutes ao progresso e agrave civilizaccedilatildeo alcanccedilados pelas naccedilotildees

europeias e os Estados Unidos as autoridades republicanas empreenderam reformas nas

grandes cidades e capitais da jovem naccedilatildeo republicana Para tanto aliados agraves

concepccedilotildees sobre saneamento e urbanizaccedilatildeo diversas estrateacutegias foram colocadas em

praacutetica para modernizar sanear e urbanizar os grandes centros em especial a capital

federal Rio de Janeiro Dentro desse processo modernizador almejado pela

intelectualidade republicana as camadas pobres da sociedade permaneceram excluiacutedas

das mudanccedilas pelas quais o Estado brasileiro estava passando Os militares que

comandaram inicialmente o novo regime e logo depois os representantes das

oligarquias principalmente a cafeeira de Satildeo Paulo e de Minas Gerais procuraram

manter ldquoum padratildeo de controle poliacutetico e social excludente (sobretudo da massa de ex-

escravosrdquo127

Os homens que comandaram a implantaccedilatildeo e a consolidaccedilatildeo do regime

republicano no Brasil mantiveram em outras bases a estrutura excludente do periacuteodo

imperial no que diz respeito ao direito de participaccedilatildeo poliacutetica das classes subalternas

Com o estabelecimento entre outros criteacuterios de que apenas os homens alfabetizados

estavam aptos a votar uma parcela expressiva da populaccedilatildeo ficou excluiacuteda desse

direito Ao mesmo tempo em que se determinava que apenas a populaccedilatildeo masculina

alfabetizada poderia votar o Estado natildeo assumia a responsabilidade de oferecer

educaccedilatildeo puacuteblica agrave populaccedilatildeo128

O texto da primeira Constituiccedilatildeo Republicana (1891)

assinala que o ensino nas escolas puacuteblicas seria leigo natildeo determinando a sua

obrigatoriedade e nem o dever do Estado de oferececirc-lo (Tiacutetulo IV Seccedilatildeo II art 72

sect 6o) A despreocupaccedilatildeo com a educaccedilatildeo das classes populares da sociedade brasileira

fica mais evidente quando se observa que ldquoa jovem Repuacuteblica aprovou em primeiro

lugar o serviccedilo militar obrigatoacuterio em detrimento da obrigatoriedade da educaccedilatildeo

baacutesicardquo129

Segundo Maria Efigecircnia L de Resende na Carta Magna de 1891 a questatildeo

dos direitos se apresentou de forma limitada no que tange a cidadania plena e aos

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2006b pp 173-174 CARVALHO Joseacute Murilo de Os bestializados o Rio de

Janeiro e a Repuacuteblica que natildeo foi Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987 p 37 127

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 14 128

CARVALHO Joseacute Murilo de Op cit 1987 p 45 129

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 16

40

direitos poliacuteticos Poreacutem no tocante aos direitos sociais estes ficaram agrave margem da

Constituiccedilatildeo de 1891130

Com o estabelecimento definitivo dos representantes das oligarquias no

comando do governo republicano as poliacuteticas governamentais voltadas ldquoagrave famiacutelia e agrave

educaccedilatildeordquo foram tornando-se cada vez mais escassas Esse fato se explica segundo

Gizlene Neder e Gisaacutelio Cerqueira Filho pela suposta descrenccedila por parte dos setores

dominantes na ldquoeficaacutecia de qualquer poliacutetica social de inclusatildeordquo das classes

populares131

Na passagem do seacuteculo XIX para o XX o Brasil assistiu a vaacuterias

transformaccedilotildees como o processo de industrializaccedilatildeo mudanccedila do regime de trabalho

(do escravo para o livre) e de forma de governo (do monaacuterquico para o republicano)

Durante o processo de constituiccedilatildeo da ordem burguesa no Brasil tiveram papel de

destaque os juristas uma vez que segundo o pensamento corrente entre vaacuterios

intelectuais do periacuteodo para o paiacutes alcanccedilar o patamar de naccedilatildeo ldquocivilizadardquo e

ldquomodernardquo um dos pressupostos seria o disciplinamento de sua populaccedilatildeo ou seja era

preciso manter a ldquoordemrdquo para atingir o ldquoprogressordquo Por isso como assinala Gizlene

Neder o discurso juriacutedico foi extremamente importante nesse contexto para normatizar

a repressatildeo e o controle social principalmente com relaccedilatildeo agrave questatildeo do mercado de

trabalho capitalista que estava se constituindo no paiacutes132

A autora ainda assevera que a

implantaccedilatildeo da ordem burguesa no Brasil foi acompanhada e exigiu ldquoo aperfeiccediloamento

e a eficaacutecia das instituiccedilotildees de controle social (justiccedila e poliacutecia)rdquo133

Assim o discurso

criminoloacutegico teve grande relevacircncia no que diz respeito agrave ldquoregulamentaccedilatildeo do mercado

de trabalho e de combate agrave ociosidaderdquo134

Dentro do discurso de combate agrave ociosidade e agrave vagabundagem alguns setores

das classes dirigentes advogavam que nenhuma poliacutetica de bem-estar social deveria ser

dispensada agrave populaccedilatildeo em especial para os ditos indiviacuteduos ldquoineptos os

imprevidentes os viciososrdquo135

Joaquim Murtinho que foi Ministro da Fazenda durante

130

RESENDE Maria Efigecircnia Lage de Op cit 2006 pp 101 ndash 102 131

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 16 132

NEDER Gizlene Discurso Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris

Editor 1995 pp 12-23 133

Idem p 23 Cf BRETAS Marcos Luiz ROSEMBERG Andreacute ldquoA histoacuteria da poliacutecia no Brasil

balanccedilos e perspectivasrdquo In Topoi v 14 n 26 jan-jul pp 162-173 2013 BRETAS Marcos Luiz ldquoA

poliacutecia carioca no Impeacuteriordquo In Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 12 n 22 pp 219-234

1998 Disponiacutevel em wwwpmalgovbrdownloadsbc_policialpol_05pdf Acessado 10-07-2015 134

NEDER Gizlene Op cit p 23 135 GRAHAM Richard ldquoSpencer e o progressordquo In ______ Gratilde-Bretanha e o iniacutecio da modernizaccedilatildeo

no Brasil Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1973 pp 253-254

41

o governo de Campos Salles apoiando-se nas teorias de Hebert Spencer ressaltava que

nenhuma assistecircncia deveria ser direcionada aos indiviacuteduos ociosos uma vez que o

sofrimento que lhes adviria em consequecircncia de suas atitudes seria o remeacutedio para seus

viacutecios Para ele qualquer poliacutetica que procurasse minorar os sofrimentos desses seres

ldquoineptosrdquo contribuiria para a perpetuaccedilatildeo dos viacutecios136

Com a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre e a concomitante constituiccedilatildeo

do proletariado urbano uma nova eacutetica sobre o trabalho comeccedilou a ser forjada ao

mesmo tempo em que se reprimia a suposta ociosidade das classes populares

As classes dominantes (econocircmica poliacutetica e intelectual) no afatilde de manterem o

status quo da sociedade sentiram a necessidade de implantaccedilatildeo de novos mecanismos

de controle social sobre as classes empobrecidas Nesse sentido o novo valor que

passou a ser atribuiacutedo ao trabalho como uma atividade que conferia dignidade e

respeito bem como um ldquorecurso de superaccedilatildeo da pobrezardquo se adequou perfeitamente agraves

poliacuteticas de repressatildeo e controle social pois o ldquonatildeo-trabalho se identifica com a

vadiagem que eacute matildee do crime da imoralidade dos viacutecios da preguiccedilardquo137

De acordo com Gizlene Neder o vocaacutebulo trabalho estava envolto em uma teia

de significados pois estava dentro do ldquoprocesso de ideologizaccedilatildeo relacionado agrave

honestidade bem-estar dignidade sendo que seu oposto ociosidade relaciona-se a

afrontamento corrupccedilatildeo depravaccedilatildeo suspeitardquo138

Essa nova visatildeo sobre o trabalho era imprescindiacutevel em um paiacutes que foi o

uacuteltimo a abolir o trabalho compulsoacuterio bem como a repressatildeo agrave ociosidade agrave

mendicacircncia e agrave vagabundagem segundo os setores dominantes pelo fato de os homens

receacutem-libertos natildeo estarem preparados ldquopara a vida em sociedaderdquo As classes

dominantes acreditavam que os libertos natildeo teriam amor ao trabalho natildeo se

preocupariam em ocupar-se em uma atividade honesta por conta dos viacutecios que traziam

dos ldquotempos do cativeirordquo Chalhoub ressalta que a preocupaccedilatildeo em coibir a ociosidade

e a mendicacircncia era dirigida prioritariamente aos ex-cativos sendo que os imigrantes

eram raramente citados nos debates139

Para diversos poliacuteticos e setores da intelectualidade brasileira os imigrantes

especialmente os europeus eram tidos como um modelo a ser seguido pelos

136

Idem pp 253-254 137

LAPA Joseacute Roberto do Amaral Os excluiacutedos contribuiccedilatildeo agrave histoacuteria da pobreza no Brasil (1850-

1930) Campinas (SP) Ed da UNICAMP 2008 p 17 138

NEDER Gizlene Op cit 1995 p 52 139

CHALHOUB Sidney Op cit 2001 p 68

42

trabalhadores nacionais e pelos libertos Acreditava-se que os imigrantes estariam mais

capacitados para as atividades urbanas e industriais Entretanto estudos recentes

utilizando uma gama variada de fontes documentais vecircm demonstrando que essa

suposta superioridade dos imigrantes natildeo ocorreu realmente As pesquisas tecircm revelado

que um nuacutemero expressivo dos imigrantes italianos que vieram para o Brasil durante o

processo de substituiccedilatildeo do trabalho escravo era em sua maioria trabalhadores rurais

de aacutereas pobres da Itaacutelia Desse modo ao se investigar se eles possuiacuteam preparo para as

atividades tipicamente urbanas e industriais observa-se que esses imigrantes eram tatildeo

inaptos quanto os homens receacutem-saiacutedos das senzalas nessas atividades140

A concepccedilatildeo de que os libertos natildeo tinham amor ao trabalho natildeo se

preocupavam em economizar e que natildeo estavam preparados para se integrarem agrave

sociedade competitiva e de classe que estava se implantando no Brasil foi

compartilhada pela classe dominante e sua intelectualidade Essa visatildeo sobre os ex-

escravizados natildeo foi uma peculiaridade da sociedade brasileira No estudo desenvolvido

por Thomas Holt sobre o processo emancipacionista na Jamaica essas mesmas

caracteriacutesticas desqualificadoras foram atribuiacutedas aos libertos uma vez que as ldquovisotildees

de liberdaderdquo dos homens e mulheres egressos do cativeiro nas sociedades escravistas

da Ameacuterica como um todo natildeo condiziam com o que era esperado por fraccedilotildees das

classes dominantes De acordo com o autor foi dessa visatildeo sobre os libertos que ldquosurgiu

o estereoacutetipo do lsquoquasheersquo ndash preguiccediloso moralmente degenerado licencioso e sem

preocupaccedilotildees com o futurordquo141

A aboliccedilatildeo da escravidatildeo (1888) e a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889)

provocaram mudanccedilas profundas na sociedade brasileira que fizeram com que vaacuterios

setores das classes dominantes passassem a exigir a elaboraccedilatildeo de novos mecanismos de

controle social e de ordenamento dos espaccedilos urbanos Nesse momento houve toda uma

discussatildeo sobre a construccedilatildeo da nacionalidade e do povo brasileiro e da necessidade de

o Estado modernizar as suas estruturas a exemplo das naccedilotildees europeias Eacute nessa

140

BATALHA Claacuteudio H M Op cit 2006b Sobre a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre ver

entre outros os trabalhos de ALMADA Vilma Paraiacuteso Ferreira de Escravismo e transiccedilatildeo o Espiacuterito

Santo 1850-1888 Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1984 OLIVEIRA Luacutecia Lippi O Brasil dos

imigrantes Rio de Janeiro Jorge Zahar Editora 2001 SARAIVA Luiz Fernando Um correr de casas

antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora ndash 18701900 Dissertaccedilatildeo

de mestrado Niteroacutei UFF 2001 DOMINGUES Petrocircnio Uma Histoacuteria natildeo contada negro racismo e

branqueamento em Satildeo Paulo no poacutes-aboliccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Senac Satildeo Paulo 2004 141

HOLT Thomas C ldquoA essecircncia do contrato a articulaccedilatildeo entre raccedila gecircnero sexual e economia poliacutetica

no programa britacircnico de emancipaccedilatildeo 1838-1866rdquo In COOPER Frederick et all Aleacutem da Escravidatildeo

investigaccedilatildeo sobre raccedila trabalho e cidadania em sociedades poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de Janeiro

Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 pp 122 ndash 123

43

perspectiva que as crianccedilas das classes populares passam a figurar nos debates pois era

preciso preparaacute-las para a vida em uma sociedade assentada nos valores do progresso e

da civilizaccedilatildeo Nesse ideaacuterio ldquosalvar a crianccedilardquo significava ldquosalvar o paiacutesrdquo Segundo

Irene Rizzini essa preocupaccedilatildeo era parte de um ldquoprojeto essencialmente poliacuteticordquo em

que a questatildeo fundamental era a preparaccedilatildeo desses ldquomenoresrdquo em futuros trabalhadores

que atendessem as necessidades da sociedade capitalista em formaccedilatildeo142

Dentro desse contexto de transformaccedilatildeo da sociedade brasileira e de constituiccedilatildeo

do mercado de trabalho livre a questatildeo da infacircncia pobre (afro-brasileira nacional e

imigrante) apresentou-se como de suma importacircncia para as autoridades e para as

classes dominantes como um todo A crianccedila era concebida como a ldquosemente do

futurordquo por isso era preciso ser cuidada preparada para tornar-se um cidadatildeo uacutetil ao seu

paiacutes Nas uacuteltimas deacutecadas do oitocentos e nos primeiros anos do seacuteculo XX a infacircncia

desvalida passou a despertar a preocupaccedilatildeo dos mais diversos setores da sociedade

como meacutedicos juristas poliacuteticos pedagogos entre outros Uma das questotildees era o que

fazer com as crianccedilas abandonadas pobres oacuterfatildes e indigitadas de delinquentes que

viviam pelas ruas das cidades Essas e outras inquietaccedilotildees mobilizaram diversos grupos

da sociedade brasileira na formulaccedilatildeo de estrateacutegias e poliacuteticas voltadas tanto para

amparar como reprimir esses futuros cidadatildeos da jovem Repuacuteblica Como Gizlene

Neder assinala as poliacuteticas de assistecircncias tinham uma ldquoinvocaccedilatildeo pendular ora de

assistecircncia ora de repressatildeordquo143

Com a emancipaccedilatildeo uma grande massa de pessoas empobrecidas foram para as

aacutereas urbanas em busca de melhores condiccedilotildees de vida outros indiviacuteduos simplesmente

foram abandonados por seus antigos senhores por causa da idade avanccedilada e ou de

doenccedilas144

As ruas das cidades tornaram-se entatildeo palco da presenccedila desses indiviacuteduos

pauperizados e de suas crianccedilas Esse cenaacuterio natildeo condizia com os anseios das classes

dominantes de fazer do Brasil uma naccedilatildeo civilizada nos moldes europeus ou dos

142

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 28 143

NEDER Gizlene Op cit 2004 p 213 144

Nos perioacutedicos locais foram publicadas algumas reportagensnotas sobre o abandono de ex-escravos

idosos eou doentes por seus antigos proprietaacuterios e que viviam pelas ruas da cidade O Pharol do dia 30

de maio de 1888 comunicou que na praccedila do mercado de Juiz de Fora encontrava-se ldquohaacute muitos dias

abandonado e exposto aos rigores da temperatura siberiana que ultimamente nos afflige um desgraccedilado

velho ex-escravo que a generosidade de nossos legisladores acaba de proteger e a imprevidecircncia de seu

ex-senhor atirou aos horrores da miseacuteria e da fome []rdquo Segundo a mateacuteria ldquopor dolorosa enfermidade

[]rdquo era impossiacutevel ao infeliz ex-escravo ldquopromover os meios de alimentar-serdquo assim clamavam as

ldquoalmas caridosasrdquo do municiacutepio que auxiliassem o ex-cativo ldquoun bon mouvement srs habitantes de Juiz

de Foacutera Protegei o desgraccedilado que foi escravo hontem e que ainda natildeo pode respirar a plenos pulmotildees o

ar oxygenado da liberdaderdquo AHUFJF ldquoAacute caridade publicardquo O Pharol 30 mai 1888 p 1 Ver tambeacutem

O Pharol 07 fev 1900 p 1

44

Estados Unidos O desejo dos setores dominantes de viverem a belle eacutepoque nos

troacutepicos colocava a necessidade de reformas urgentes nos grandes centros bem como a

necessidade de moralizar e sanear as classes populares

Na passagem agrave modernidade a cidade a vida urbana com suas luzes lojas

automoacuteveis bondes oficinas teatros cinemas cafeacutes faacutebricas suas edificaccedilotildees passou a

gerar um fasciacutenio nas pessoas A cidade era o siacutembolo do desenvolvimento da

sociedade moderna Mas a urbs possuiacutea outra face representada pela criminalidade

pelas greves e agitaccedilotildees populares pela ldquoimoralidaderdquo pelas epidemias pela miseacuteria

sem disfarce pelos corticcedilos etc Esse tambeacutem era o espaccedilo onde ocorria uma

[] mistura populacional desconhecida assustadora Em meio agrave fervilhante

movimentaccedilatildeo ostentatoacuteria de riqueza circulavam e vadiavam nas cidades

tipos humanos de toda a espeacutecie trabalhadores pobres vagabundos

mendigos capoeiras prostitutas pivetesrdquo145

Segundo Maria Stella M Bresciani os homens de letras do seacuteculo XIX

perceberam as transformaccedilotildees que a sociedade urbana e industrializada provocou na

vida das pessoas especialmente nas pertencentes agraves camadas empobrecidas A presenccedila

da multidatildeo e dos pobres nas ruas das cidades das condiccedilotildees miseraacuteveis de vida dos

trabalhadores urbanos que habitavam os bairros pobres em moradias insalubres foi

objeto de anaacutelise dos escritores do seacuteculo XIX Os intelectuais tambeacutem alertaram para

os perigos e os custos poliacutetico-econocircmicos e sociais que a miseacuteria em que viviam os

trabalhadores urbanos poderia trazer para a sociedade como o desemprego a

prostituiccedilatildeo o crime a revoluccedilatildeo etc Esses homens identificavam as cidades como o

local onde a miseacuteria se apresentava de forma mais agressiva e desenvolvida e a

sociedade burguesa e industrial como a responsaacutevel pelo pauperismo do proletariado146

O adensamento populacional que algumas cidades brasileiras assistiram a partir

principalmente da segunda metade do seacuteculo XIX contribuiu para que o saber da

medicina higienista adquirisse grande relevo entre as classes letradas e poliacuteticas

desejosas de sanearem os espaccedilos urbanos remodelando-os e afastando os focos de

epidemias doenccedilas associados agrave populaccedilatildeo pobre Essas accedilotildees tinham entre outros

objetivos o de embelezamento e o de profilaxia da aacuterea urbana com o consequente

afastamento das classes empobrecidas para a periferia As luzes da cidade seus teatros

145

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 34 146

BRESCIANI Maria Stella Martins Op cit 1982

45

confeitarias e cinemas siacutembolos do progresso e da modernidade estariam reservados

aos segmentos abastados da sociedade

Richard Sennett realizou uma anaacutelise da histoacuteria das cidades da Atenas de

Peacutericles agrave Nova York de hoje Em seu estudo o autor procurou compreender a

ldquoexperiecircncia corporal do povordquo nos espaccedilos urbanos O corpo humano eacute colocado como

a peccedila central para a compreensatildeo do desenvolvimento das cidades bem como as

relaccedilotildees e sensaccedilotildees vividas e experimentadas pelas pessoas no espaccedilo citadino Dentro

dessa perspectiva Sennett procurou demonstrar como que a ldquorevoluccedilatildeo anatocircmicardquo

com destaque para as descobertas sobre a respiraccedilatildeo e a circulaccedilatildeo sanguiacutenea por

William Harvey no seacuteculo XVII influenciou no planejamento das cidades Essa

ldquorevoluccedilatildeordquo sobre o funcionamento do corpo humano eacute apontada como tendo

provocado um forte impacto nas concepccedilotildees dos homens do seacuteculo XVII e XVIII sobre

os espaccedilos urbanos Segundo o autor

A revoluccedilatildeo de Harvey favoreceu mudanccedilas de expectativas e planos

urbaniacutesticos em todo o mundo Suas descobertas sobre a circulaccedilatildeo do sangue

e a respiraccedilatildeo levaram a novas ideias a respeito da sauacutede puacuteblica No

Iluminismo do seacuteculo XVIII elas comeccedilaram a ser aplicadas aos centros

urbanos Construtores e reformadores passaram a dar maior ecircnfase a tudo que

facilitasse a liberdade de tracircnsito das pessoas e seu consumo de oxigecircnio

imaginando uma cidade de arteacuterias e veias contiacutenuas por meio das quais os

habitantes pudessem se transportar tais quais hemaacutecias e leucoacutecitos no

plasma saudaacutevel A revoluccedilatildeo meacutedica parecia ter operado a troca de

moralidade por sauacutede e os engenheiros sociais estabelecido a identidade

entre sauacutede e locomoccedilatildeocirculaccedilatildeo Estava criado o novo arqueacutetipo da

felicidade humana147

A revoluccedilatildeo anatocircmica modificou a visatildeo dos idealizadores das cidades que

pegaram de empreacutestimo palavras como ldquoarteacuteriasrdquo e ldquoveiasrdquo para se referirem ao desenho

urbano A preocupaccedilatildeo com a circulaccedilatildeo no espaccedilo urbano contribuiu para a elaboraccedilatildeo

de projetos que tinham como meta o saneamento das cidades com a construccedilatildeo de

canais de esgoto abertura e pavimentaccedilatildeo de ruas drenagem de pacircntanos etc Os

projetistas tambeacutem se preocuparam com a questatildeo da respiraccedilatildeo para isso planejaram e

construiacuteram praccedilas e jardins ldquoos pulmotildees urbanosrdquo onde as pessoas poderiam se

embrenhar ldquopara limpar os pulmotildeesrdquo148

Na sociedade brasileira essas concepccedilotildees sobre sauacutede puacuteblica e reordenamento

do espaccedilo urbano tornou-se a tocircnica dos discursos dos ldquohomens de letrasrdquo e de ciecircncia a

147

SENNETT Richard Carne e pedra o corpo e a cidade na civilizaccedilatildeo ocidental 2 ed Rio de Janeiro

BestBolso 2010 pp 262-263 148 Idem pp 271 274-275

46

partir principalmente da segunda metade do seacuteculo XIX De acordo com o exposto as

grandes cidades em especial a Capital Federal passaram a se preocupar com o

remodelamento e o ordenamento de seus espaccedilos urbanos com aberturas de ruas mais

largas construccedilatildeo de praccedilasjardins (pulmotildees urbanos) novos e modernos preacutedios

Como ocorreu em alguns paiacuteses europeus e na sociedade norte-americana do seacuteculo

XVIII em terras brasileiras tambeacutem se estabeleceu a equivalecircncia entre pobreza-doenccedila

e a cura para esse mal estava na eliminaccedilatildeo das aglomeraccedilotildees constituiacutedas de pessoas

empobrecidas149

Walter Fraga Filho no estudo que empreendeu sobre a pobreza na Bahia

(Salvador) durante o seacuteculo XIX assinala que foram os meacutedicos que ldquoinspiraramrdquo

ldquosugeriramrdquo e ldquojustificaramrdquo as accedilotildees dos poderes puacuteblicos como o objetivo de afastar a

populaccedilatildeo pobre das ruas da cidade150

Segundo o autor as reformas urbanas que foram

empreendidas em Salvador a partir de 1850 tinham por objetivo promover ldquouma

espeacutecie de saneamento socialrdquo uma vez que ldquodar agrave cidade ar moderno significava retirar

do seu recinto indiviacuteduos cuja presenccedila atentava contra a lsquocivilizaccedilatildeorsquordquo151

Essas

concepccedilotildees sobre reformas e ordenamento social tambeacutem podem ser observadas nas

anaacutelises de outras cidades brasileiras Em suma o anseio de setores da elite era

conquistar o status de ldquosociedade civilizadardquo mas isso natildeo implicava uma preocupaccedilatildeo

com ldquoas causas da pobreza e sim com o ocultamento da miseacuteria e dos miseraacuteveisrdquo152

Essa atitude endossava a ideia de que a civilizaccedilatildeo deveria ser reservada agraves classes

abastadas da sociedade as camadas empobrecidas ocupariam os espaccedilos civilizados

apenas como matildeo de obra ordeira e disciplinada A atitude de natildeo atacar as causas da

pobreza e da miseacuteria ainda hoje infelizmente eacute uma praacutetica dos nossos governantes As

paisagens urbanas satildeo maquiadas com ares modernos tecnoloacutegicos mas por traacutes dos

outdoors letreiros luminosos dos arranha ceacuteus fervilha uma grande massa

empobrecida destituiacuteda de escolas de qualidade sauacutede saneamento baacutesico

No proacuteximo item analisarei como que a ideia de modernidade civilizaccedilatildeo e

progresso influenciou as classes dominantes (poliacutetica econocircmica e intelectual) da

cidade de Juiz de Fora e como elas agiram frente agrave problemaacutetica da pobreza da

149

Idem p 282 150

FRAGA FILHO Walter Mendigos moleques e vadios na Bahia do seacuteculo XIX Satildeo Paulo

HICITECSalvador (BA) EDUFBA 1996 p 141 151

Idem p 142 152

Ibidem p 143

47

mendicacircncia da infacircncia desvalida oacuterfatilde abandonada delinquente e dos operaacuterios no

espaccedilo urbano

13 A ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo E SEUS ldquoMENORESrdquo

Ouccedilo as sirenes das faacutebricas apitando para o almoccedilo Juiz de Fora dizem

antecipou-se a Satildeo Paulo em certos pontos da industrializaccedilatildeo conta uma

usina hidroeleacutetrica aleacutem de muitas faacutebricas de tecidos de cerveja de moacuteveis

etc faacutebricas de pesadelos segundo o poeta Arnaldo B inimigo da maacutequina

natildeo ando laacute por dentro pouquiacutessimas vezes entrei numa faacutebrica [] agraves vezes

vou assistir agrave saiacuteda dos operaacuterios quando a chamineacute apita na realidade para

catalogar as operaacuterias haacute mesmo certas feias que me agradam por enquanto

eacute claro ignoro o manifesto comunista de Marx e Engels mesmo a

insuficiente enciacuteclica Rerum Novarum pensar que Rui Barbosa soacute na uacuteltima

hora incluiu na sua plataforma de candidato algumas linhas sobre a questatildeo

social (Murilo Mendes)153

A cidade de Juiz de Fora localizada na Zona da Mata de Minas Gerais surgiu

nas bordas do Caminho Novo aberto por Garcia Rodrigues Paes por volta de 1703

Esse Caminho tinha por objetivo encurtar a distacircncia entre a regiatildeo mineradora de

Minas Gerais e o porto do Rio de Janeiro uma vez que o Caminho Velho como ficou

conhecida a primeira estrada era longo e perigoso154

Em seus primoacuterdios o povoado

de Santo Antocircnio do Paraibuna (que veio a ser Juiz de Fora) dedicou-se agrave produccedilatildeo de

gecircneros alimentiacutecios para abastecer os tropeiros e viajantes do Caminho Novo Com a

queda da produccedilatildeo auriacutefera nas deacutecadas finais do seacuteculo XVIII ocorreu um

deslocamento da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora para outras aacutereas da capitania de

Minas Gerais inclusive para a regiatildeo da Zona da Mata Mineira155

Inicialmente os povoados ao longo do Caminho Novo que deram origem agrave

cidade de Juiz de Fora desenvolveram-se na margem esquerda do rio Paraibuna156

153

MENDES Murilo A Idade do Serrote Rio de Janeiro Record 2003 p 146 154

BASTOS Wilson de Lima ldquoDo Caminho Novo dos campos gerais agrave estrada de rodagem Uniatildeo e

Induacutestria e Estrada de Ferro D Pedro IIrdquo In BASTOS Wilson de Lima et al Histoacuteria econocircmica de

Juiz de Fora subsiacutedios Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Juiz de Fora 1987 pp 9-10 PIRES

Anderson Joseacute Capital agraacuterio investimento e crise na cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1930)

Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 1993 pp 36-37 155

SOUZA Sonia Maria de Terra famiacutelia e solidariedade estrateacutegias de sobrevivecircncia camponesa no

periacuteodo de transiccedilatildeo ndash Juiz de Fora (1870-1920) Tese de Doutoramento Niteroacutei UFF 2003 p 22 156

Paraibuna nome de origem indiacutegena que significa rio de aacuteguas escuras ESTEVES Albino Aacutelbum do

municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees 2008 p 150 Wilson de

Lima Bastos assinala que nas primeiras cartas de sesmarias da regiatildeo o rio Paraibuna era chamado de

ldquoRio Barrordquo Cf BASTOS Wilson de Lima Op cit 1987 p 12

48

Poreacutem em 1836 a construccedilatildeo na margem direita do rio da Estrada Nova157

- uma

variante do Caminho Novo ndash transformou o lado direito na aacuterea mais desenvolvida do

arraial A Estrada Nova foi construiacuteda pelo engenheiro germacircnico Henrique Guilherme

Fernando Halfeld e tinha por objetivo facilitar o traacutefego entre Minas e a capital do

Impeacuterio Essa estrada passou a denominar-se Rua Principal depois Rua Direita e jaacute no

periacuteodo republicano Avenida Baratildeo do Rio Branco (denominaccedilatildeo atual) Ao longo

dessa avenida foram construiacutedos a Santa Casa de Misericoacuterdia a Matriz de Santo

Antocircnio o preacutedio das reparticcedilotildees puacuteblicas municipais o parque municipal e outras

edificaccedilotildees158

O povoado de Santo Antocircnio do Paraibuna foi elevado agrave categoria de Vila em

1850 quando se emancipou do municiacutepio de Barbacena Em maio de 1853 a Vila foi

elevada agrave categoria de cidade passando a chamar-se Cidade do Paraibuna Em 1865 o

municiacutepio recebeu a denominaccedilatildeo de Juiz de Fora devido ao projeto apresentado pelo

vereador Marcelino de Assis Tostes futuro baratildeo de Satildeo Marcelino159

Com a elevaccedilatildeo

da vila agrave categoria de cidade novas ruas foram abertas paralelas ou cortando a rua

Direita que segundo Albino Esteves ldquoeacute a primeira em edade que possue Juiz de

Foacuterardquo160

Jaacute na deacutecada de 1860 observa-se uma preocupaccedilatildeo por parte da Cacircmara

Municipal com a sede do municiacutepio quando entatildeo foi contratado o engenheiro alematildeo

Gustavo Dott para ldquolevantar o plano demarcaccedilatildeo e nivelamento desta cidaderdquo161

O

Plano Dott como entatildeo ficou conhecido o projeto de urbanizaccedilatildeo da aacuterea central de

Juiz de Fora natildeo foi executado completamente A sua execuccedilatildeo se deu de forma lenta e

parcial sendo implementadas basicamente as obras referentes agraves condiccedilotildees sanitaacuterias da

cidade e de ldquoaformoseamentordquo ou seja aquelas referentes agrave localizaccedilatildeo fora da aacuterea

central do hospital do matadouro e do cemiteacuterio assim como de abertura calccedilamento e

arborizaccedilatildeo de ruas162

157

BASTOS Wilson de Lima Op cit 1987 p 20 A abertura dessa estrada deu-se depois da lei no 18 de

01-04-1835 que estabeleceu um plano de estradas ligando Ouro Preto agrave Capital do Impeacuterio 158

GUIMARAtildeES Elione Silva Op cit 2006 pp 41-42 AZZI Riolando Op cit 2000 p 48

BASTOS Wilson de Lima Op cit 1987 pp 18-19 159

ESTEVES Albino Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa

Ediccedilotildees 2008 pp 54-55 63 Marcelino de Assis Tostes foi vereador na administraccedilatildeo 1865-1868 e

tornou-se Baratildeo (Baratildeo de Satildeo Marcelino) em agosto de 1889 BASTOS Wilson de Lima Op cit p 27

ESTEVES Albino Op cit 2008 p 130 160

ESTEVES Albino Op cit 2008 p 159 161

Idem p 62 162

OLIVEIRA Paulino de Histoacuteria de Juiz de Fora 2 ed Juiz de Fora (MG) Graacutefica Comeacutercio e

Induacutestria LTDA 1966 pp 65-66 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Os trabalhadores e a cidade a

formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de Fora e suas lutas por direito (1877-1920) Juiz de Fora (MG)

Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV 2010 pp 44-45

49

Ainda durante a deacutecada de 1860 ocorreu a inauguraccedilatildeo da Estrada Uniatildeo e

Induacutestria (1861) que ligava Juiz da Fora a Petroacutepolis A sua construccedilatildeo foi realizada

pela Companhia Uniatildeo e Induacutestria sob a direccedilatildeo do Comendador Mariano Procoacutepio

Ferreira Lage que obteve do governo imperial uma concessatildeo para ldquomanter e explorar a

estrada durante meio seacuteculordquo163

A Uniatildeo e Induacutestria foi a primeira estrada

macadamizada164

do paiacutes e tinha por objetivo facilitar o escoamento da produccedilatildeo

cafeeira do municiacutepio e regiatildeo para o Rio de Janeiro Segundo Albino Esteves essa via

colocava ldquoa capital do Imperio em contacto immediato com a densa populaccedilatildeo de

Minasrdquo165

Entretanto a chegada dos trilhos da estrada de Ferro D Pedro II na deacutecada

de 1870 suplantou a importacircncia dessa estrada para a regiatildeo sendo que nos anos finais

desse dececircnio ocorreu o fim da Companhia166

Alguns estudos ressaltam que foram os trabalhadores germacircnicos os

responsaacuteveis pela abertura e construccedilatildeo da Rodovia Uniatildeo e Induacutestria167

O cafeicultor

Mariano Procoacutepio contratou trabalhadores alematildees para trabalharem nas obras e os

primeiros imigrantes chegaram agrave cidade em 1856168

Todavia vaacuterios estudos

embasados em fontes diversas demonstram que apesar de o contrato de construccedilatildeo da

Rodovia Uniatildeo e Induacutestria natildeo permitir a utilizaccedilatildeo da matildeo de obra escrava esta foi

amplamente utilizada As pesquisas tecircm constatado que a Companhia desrespeitando o

163

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando Gaudereto Lamas ldquoA Companhia Uniatildeo e Induacutestria e

as vicissitudes da escravidatildeo e da imigraccedilatildeo na fronteira das Proviacutencias mineira e fluminense (1850-

1870)rdquo In VARELLA Flaacutevia F MATA Seacutergio R ARAUJO Valdei L (org) Anais do Seminaacuterio

Nacional de Histoacuteria da Historiografia historiografia brasileira e modernidade Ouro Preto EDUFOP

2007 p 1 Disponiacutevel em wwwseminaacuteriodehistoriaufopbrseminariodehistoria2007tMicrosoftword-

luis_eduardo_e_fernandopdf Acessado em 19-11-2014 164

Macadame (de Mac-Adam) sistema de empedramento de ruas ou estradas por meio de granito e

saibro que se recalca com um cilindro Macadamizar empedrar pelo sistema de macadame SEGUIER

Jayme de (dir) Diccionaacuterio Praacutetico Illustrado (novo diccionaacuterio encyclopeacutedico Luso-Brasileiro) Porto

Lello amp Irmatildeo 1947 p 685 165

ESTEVES Albino Op cit 2008 p 59 166 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando Gaudereto Lamas Op cit 2007 p 1 167 Cf BASTOS Wilson de Lima Mariano Procoacutepio Ferreira Lage sua vida sua obra sua

descendecircncia genealogia Juiz de Fora Ediccedilotildees Paraibuna 1991 168

ESTEVES Albino Op cit 2008 p 60 As condiccedilotildees de vida habitaccedilatildeo e trabalho dos imigrantes

alematildees que vieram trabalhar na Companhia Uniatildeo e Induacutestria segundo os relatos da eacutepoca eram

precaacuterias Em fins de 1858 dadas as peacutessimas condiccedilotildees de alimentaccedilatildeo habitaccedilatildeo e aos baixos salaacuterios

constantemente atrasados houve uma tentativa de sublevaccedilatildeo que foi sufocada pelo destacamento policial

local O representante diplomaacutetico do reino da Pruacutessia no Brasil o baratildeo de Mausebach protestou

formalmente contra as condiccedilotildees degradantes de vida e de trabalho que os trabalhadores germacircnicos

estavam submetidos Possivelmente a situaccedilatildeo dos operaacuterios nacionais livres e dos portugueses na

Companhia Uniatildeo e Induacutestria natildeo eram diferentes das dos imigrantes alematildees ou seja um cotidiano

pautado pela exploraccedilatildeo violecircncia e miseacuteria Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando

Gaudereto Lamas Op cit 2007 pp 7-10

50

que o contrato estipulava alugou centenas de cativos de proprietaacuterios locais e da regiatildeo

para trabalharem na construccedilatildeo da via169

O desenvolvimento de Juiz de Fora esteve intimamente relacionado com a

agricultura cafeeira destinada ao mercado externo sendo que jaacute nos anos de 1850

apresentava-se como o principal produtor da proviacutencia mineira A produccedilatildeo cafeeira

teve um papel de grande relevo na economia do municiacutepio de Juiz de Fora e do estado

de Minas Gerais ateacute por volta da deacutecada de 1920170

Com o desenvolvimento da

agricultura cafeeira jaacute nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX voltada para o mercado

externo a produccedilatildeo de alimentos na regiatildeo natildeo perdeu sua importacircncia tornando-se

mesmo responsaacutevel pelo abastecimento das ldquofazendas cafeeiras atuando como um

redutor de custos da produccedilatildeo dessas unidadesrdquo171

Aleacutem desse fator essa produccedilatildeo

tambeacutem foi importante para abastecer o mercado interno da regiatildeo em franca expansatildeo

A produccedilatildeo de cafeacute bem como de alimentos transformou Juiz de Fora em uma regiatildeo

economicamente dinacircmica funcionando como um entreposto comercial que atraiacutea

populaccedilotildees vizinhas que necessitavam dos mais variados produtos e serviccedilos172

A expansatildeo do municiacutepio de Juiz de Fora ocorreu num periacuteodo marcado pela

crise do regime escravista devido ao processo gradual da aboliccedilatildeo do trabalho escravo

no Brasil que iniciou-se com a lei que colocou fim ao traacutefico atlacircntico de escravos

(1850) e culminou com a Lei Aacuteurea que em maio de 1888 decretou a extinccedilatildeo da

escravidatildeo no paiacutes Apesar da conjuntura desfavoraacutevel aos setores que empregavam a

matildeo de obra escrava o desenvolvimento da cafeicultura nessa cidade da Mata Mineira

natildeo foi prejudicado devido agrave possibilidade de os proprietaacuterios adquirirem cativos

atraveacutes do traacutefico inter e intraprovincial bem como no ldquointerclasserdquo (proprietaacuterios com

169

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando Gaudereto Lamas Op cit 2007 pp 3-6

GUIMARAtildeES Elione S GUIMARAtildeES Valeacuteria Alves Aspectos Cotidianos da Escravidatildeo em Juiz de

Fora Juiz de Fora Funalfa 2001 pp 32 76-77 Cf BIRCHAL Seacutergio de Oliveira ldquoO mercado de

trabalho mineiro no seacuteculo XIXrdquo In Histoacuteria Econocircmica amp Histoacuteria da Empresa n 01 Satildeo Paulo

Hucitec 1998 Disponiacutevel em httpwwwceaeeibmecmgbrwpwp12pdf Acessado em 02-02-2015 170

SOUZA Sonia Maria de Aleacutem dos cafezais produccedilatildeo de alimentos e mercado interno em uma regiatildeo

de economia agroexportadora ndash Juiz de Fora na segunda metade do seacuteculo XIX Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Niteroacutei UFF 1998 p 39 SARAIVA Luiz Fernando Op cit 1 pp 42 46-47 63 171

SOUZA Sonia Maria de Op cit 2003 p 25 LACERDA Antocircnio Henrique Duarte Os padrotildees de

alforrias em Juiz de Fora um municiacutepio cafeeiro em expansatildeo (Zona da Mata de Minas Gerais 1948-

88) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 2002 p 39 172

PIRES Anderson Joseacute Op cit 1993 pp 38 e 151 SOUZA Sonia Maria de Op cit 2003 p 25

SOUZA Sonia Maria de Op cit 1998 pp 45-46

51

poucos recursos vendiam seus escravos para os mais ricos)173

Os senhores de Juiz de

Fora se mantiveram apegados agrave escravidatildeo ateacute nos momentos finais dessa instituiccedilatildeo

O dinamismo econocircmico e urbano de Juiz de Fora observado acima foi

acompanhado por um crescimento populacional tanto de livres quanto de escravos

sendo que nos anos de 1870 a cidade detinha a maior populaccedilatildeo manciacutepia da Zona da

Mata Mineira Todavia a presenccedila de imigrantes de vaacuterias nacionalidades na sua

composiccedilatildeo populacional tambeacutem foi significativa No final do oitocentos e iniacutecio do

novecentos o distrito-sede do municiacutepio apresentou um crescimento populacional

expressivo poreacutem ao contraacuterio do que muitos contemporacircneos procuravam destacar tal

fato natildeo se deu em consequecircncia de os trabalhadores estarem abandonando as unidades

produtivas para viverem na aacuterea urbana mas sobretudo pela entrada constante de

pessoas vindas de diversas regiotildees de Minas Gerais de outros estados brasileiros bem

como pela chegada de imigrantes europeus174

O referido dinamismo econocircmico

vivenciado pelo municiacutepio nesse periacuteodo pode ter funcionado como um fator de atraccedilatildeo

populacional O sucesso das accedilotildees empreendidas pelos setores dominantes da sociedade

juiz-forana de expansatildeo da oferta de matildeo de obra na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o

XX contribuiu fortemente para a constituiccedilatildeo de um proletariado heterogecircneo formado

pelo trabalhador nacional ex-escravos e seus descendentes e imigrantes de vaacuterias

nacionalidades175

Os quadros abaixo fornecem uma dimensatildeo do crescimento

populacional do municiacutepio de Juiz de Fora nas deacutecadas finais do oitocentos e nas

primeiras do seacuteculo XX

173

FRAGOSO Joatildeo Luiacutes ldquoO Impeacuterio escravista e a repuacuteblica dos plantadores parte A economia

brasileira no seacuteculo XIX mais que uma plantation escravista-exportadorardquo In LINHARES Maria

Yedda (org) Histoacuteria Geral do Brasil Rio de Janeiro Campus 1990 pp 133 148-149 154-155

MATTOS Hebe Maria Das cores do silecircncio os significados da liberdade no Sudeste escravista Brasil

seacuteculo XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1998 pp 108-109 174

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 pp 189-192 175

Idem pp 205-206

52

QUADRO 1

POPULACcedilAtildeO ESCRAVA E LIVRE DO MUNICIacutePIO DE JUIZ DE FORA

(1853 -18723)

1853(1)

18723

LIVRES ESCRAVOS TOTAL LIVRES ESCRAVOS TOTAL

9003 13037 22070

23968(2)

19351(3)

43319 Nacionais Estrangeiros

18619 5349

FONTE (1)

Apud OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 48 tabela 1 (2)

Biblioteca do IBGE Recenseamento Geral de 1872 apud SOUZA Sonia M de Terra famiacutelia

solidariedade estrateacutegias de sobrevivecircncia camponesa no periacuteodo de transiccedilatildeo ndash Juiz de Fora (1870-

1920) Bauru (SP) EDUSC 2007 p 166 (3)

Relatoacuterio do Presidente da Proviacutencia de Minas Gerais de 1874 apud GUIMARAES Elione S

Op cit 2006 p 45 O censo realizado em 1872 deixou de computar os escravos da freguesia de

Nossa Senhora da Gloacuteria de Satildeo Pedro de Alcacircntara que de acordo com Elione Guimaratildees

detinha aproximadamente cinco mil manciacutepios que natildeo foram registrados Segundo a autora no

Relatoacuterio do Presidente da Proviacutencia de Minas Gerais de 1874 com dados referentes ao ano de

1873 o municiacutepio de Juiz de Fora possuiacutea 19351 escravos Idem p 45

QUADRO 2

POPULACcedilAtildeO DO MUNICIacutePIO DE JUIZ DE FORA

(1890-1907-1920)

ANO POPULACcedilAtildeO DO MUNICIacutePIO TOTAL

NACIONAIS ESTRANGEIROS

1890(1)

68686 5450 74136

1907(2)

--- --- 85450

1920(3)

112082 6062 118166(4)

Fonte (1) Recenseamento Geral de 1890 apud SOUZA Sonia Maria de

Op cit 2007 p 163

(2) Recenseamento Jornal do Commercio 31 de dez 1907 p 1 apud

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 190

(3) ldquoPopulaccedilatildeo do Municiacutepio de Juiz de Fora Estado de Minas Gerais

segundo o sexo a idade e a nacionalidaderdquo Recenseamento do Brasil de

1920 ndash Populaccedilatildeo do Brasil por Estados e Municiacutepios segundo o sexo a

idade e a nacionalidade v 4 2a parte Tomo II p 79 Disponiacutevel em

bibliotecaibgegovbrvisualizaccedilatildeomonografiasGEBIS-

RJCensode1920RecenGeraldoBrasil1920_v4_Parte2_tomo2_Populacao

pdf Acessado em 21-01-2015

(4) Foram declaradas 22 pessoas com nacionalidade ignorada

53

QUADRO 3

CRESCIMENTO POPULACIONAL DO MUNICIacutePIO DE JUIZ DE FORA

(1853-1920)

ANOS POPULACcedilAtildeO DO

MUNICIacutePIO

INCREMENTO

POPULACIONAL

(1853-1920)

1853 22070

43519

18723 43319

1890 74136

1907 85450

1920 118116

O municiacutepio de Juiz de Fora experimentou um crescimento na ordem de

43519 passando de 22 mil habitantes em 1855 para 118116 almas em 1920 O

crescimento do contingente populacional verificado em Juiz de Fora durante a segunda

metade do seacuteculo XIX propiciou uma expansatildeo no setor de prestaccedilatildeo de serviccedilos com a

instalaccedilatildeo de carpintarias sapatarias oficinas de ferreiros etc A chegada dos trilhos da

estrada de ferro D Pedro II em 1875 promoveu um impulso na economia de Juiz de

Fora e regiatildeo principalmente no setor cafeeiro e favoreceu o desenvolvimento dos

serviccedilos urbanos Nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX a cidade jaacute contava com a presenccedila

de estabelecimentos de ensino companhia de transportes urbanos (Cia Ferrocarril

Bondes de Juiz de Fora) 1881 serviccedilos de telefones e teleacutegrafos 1883 e 1884

respectivamente aacutegua em domiciacutelios 1885 com uma hidreleacutetrica Marmelo Zero176

(a

primeira da Ameacuterica Latina) e iluminaccedilatildeo eleacutetrica puacuteblica e domeacutestica (Companhia

Mineira de Eletricidade) 1889-1890177

Nesse periacuteodo tambeacutem ocorreu a fundaccedilatildeo de

176

Coube ao industrial Bernardo Mascarenhas (Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Bernardo

Mascarenhas) a construccedilatildeo da primeira usina hidreleacutetrica da Ameacuterica do Sul Marmelos Zero

aproveitando-se das aacuteguas do rio Paraibuna Para mais informaccedilotildees sobre a usina hidreleacutetrica de

Marmelos e a iluminaccedilatildeo puacuteblica em Juiz de Fora Cf VAZ Alisson Mascarenhas Bernardo

Mascarenhas desarrumando o arrumado ndash um homem de negoacutecios do seacuteculo XIX Belo Horizonte Cia

de Fiaccedilatildeo e Tecidos Cedro e Cachoeira 2005 Ainda sobre esse tema pode ser consultado BARROS

Cleyton Souza Eletricidade em Juiz de Fora modernizaccedilatildeo por fios e trilhos (1889-1915) Dissertaccedilatildeo

de Mestrado UFJF 2008 177

PIRES Anderson Cafeacute financcedilas e induacutestria Juiz de Fora 18891930 Juiz de Fora (MG) Funalfa

2009 p 75 VAZ Alisson Mascarenhas Op cit 2005 pp 342-343 346-349 PINTO Jefferson de

Almeida Controle Social e Pobreza (Juiz de Fora c 1876 ndash c 1922) Juiz de Fora (MG) Editar 2008 p

20-21

54

casas bancaacuterias Banco Territorial e Mercantil de Minas Gerais (1887) e Banco de

Creacutedito Real de Minas Gerais (1889)

A deacutecada de 1880 eacute extremamente importante para a constituiccedilatildeo de Juiz de Fora

em uma cidade ldquocapitalistardquo178

uma vez que os investimentos na infraestrutura urbana e

no setor financeiro contribuiacuteram para o processo de industrializaccedilatildeo do municiacutepio179

O

capital agraacuterio local teve um papel ativo no processo de diversificaccedilatildeo urbano-

industrial contribuindo efetivamente para uma dinamizaccedilatildeo da economia em vias de

transiccedilatildeo para a ordem capitalista e de constituiccedilatildeo do mercado de trabalho livre180

Os

investimentos nos serviccedilos urbanos ficaram a cargo do setor privado enquanto o poder

puacuteblico local preocupava-se com o ldquoembelezamento urbano e nivelamento das ruasrdquo181

Essa descriccedilatildeo sobre a constituiccedilatildeo e o desenvolvimento de Juiz de Fora eacute

necessaacuteria para a compreensatildeo do seu processo de industrializaccedilatildeo que eacute uma das

questotildees do presente estudo Os grupos dominantes se compraziam em ressaltar o

progresso e a modernidade desse municiacutepio do interior mineiro que havia se antecipado

a Satildeo Paulo ldquoem certos pontos da industrializaccedilatildeordquo182

como destaca a epiacutegrafe que

abre este item Semelhante exaltaccedilatildeo pode ser observada no texto do Almanak de Juiz

de Fora de 1892 intitulado ldquoJuiz de Fora agrave Vol DrsquoOiseaurdquo

Natildeo conta ainda meio seacuteculo de existecircncia a mais bela a mais prospera e

mais adiantada cidade mineira

[]

Cidade essencialmente moderna foi aos poucos tornando-se um centro de

atraccedilatildeo das duas forccedilas invenciacuteveis quando reunidas e inteligentes - o capital

e o trabalho ndash que elevaram-na ao grao de riqueza e prosperidade de que

justamente se ufana ndash vamos tentar descrever a vol drsquooiseau a cidade yakee

felizes se o exemplo de seu desenvolvimento servir de estimulo a suas irmatildes

aleacutem Mantiqueira onde todos reconhecem e lastimam na falta de iniciativa

individual a causa uacutenica de seu estacionarismo quase completo

Nemo183

[Grifos no original]

No texto Juiz de Fora eacute descrita como ldquoessencialmente modernardquo e a ldquomais bela

a mais prospera e mais adiantada cidade mineirardquo enfim como a cidade yakee em

178

Expressatildeo utilizada por Sonia Regina Miranda e Anderson Pires em suas anaacutelises sobre o

desenvolvimento industrial e urbano de Juiz de Fora Cf PIRES Anderson Op cit 2009 MIRANDA

Sonia Regina Cidade Capital e Poder poliacuteticas puacuteblicas e questatildeo urbana na Velha Manchester Mineira

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) Niteroacutei UFF 1990 179

PIRES Anderson Op cit 2009 p 78 180

Idem p 20-22 76 78 MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 pp 106-107 181

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 106 182

MENDES Murilo Op cit 2003 p 146 183

SM-BMMM Almanak de Juiz de Fora (publicaccedilatildeo commercial industrial administrativa litteraria

artiacutestica recreativa scientifica etc) Editores ndash Leite Ribeiro amp Comp 1892 ndash Rua Halfeld JF 2o anno

p xiv-xviii

55

referecircncia ao norte dos Estados Unidos da Ameacuterica que entatildeo era a parte mais

desenvolvida e industrializada daquele paiacutes Segundo James William Goodwin a

identificaccedilatildeo de setores da classe dominante da cidade mineira com os Estados Unidos

acentuava-se agrave medida que avanccedilava o seu processo de industrializaccedilatildeo O municiacutepio

tambeacutem contou com a presenccedila de imigrantes estadunidenses tendo uma parcela se

dedicado ao ramo educacional para a formaccedilatildeo dos filhos dos grupos dominantes Na

deacutecada de 1890 a Igreja Metodista Episcopal do Sul (EUA) fundou o Coleacutegio

Americano que passou a se chamar posteriormente Granbery que foi a ldquoprimeira escola

protestante em Minas Geraisrdquo184

Na reportagem publicada no jornal O Pharol185

de marccedilo de 1900 aleacutem da

exaltaccedilatildeo da cidade yankee mineira a sua populaccedilatildeo tambeacutem eacute enaltecida como

laboriosa de iniciativa e caridosa Segundo a mateacuteria jornalistica

Eacute Juiz de Fora incontestavelmente uma cidade yankee onde natildeo soacute trabalham

seus filhos pelo conforto proacuteprio no sentido material como pela sua

elevaccedilatildeo espiritual procurando instruccedilatildeo e exercitando a caridade virtude

que dilata o coraccedilatildeo humano tornando-o um sacraacuterio de sentimentos outros

cuja sublimidade e grandeza o aproximam do coraccedilatildeo de Deus

Em a nossa cidade ao mesmo tempo que se constroe um palacete levanta-se

um hospital um asylo para alliviar o doente pobre para abrigar o orpham

desamparado e nessa bella alternativa segue caminho do progresso arcando

com as vicissitudes de todas as situaccedilotildees penosas em que se tem visto a

braccedilos a sociedade brasileira inteira

Daqui se irradia sem duvida por todo o Estado o exemplo do trabalho

assiduo da iniciativa que proporciona o bem estar o credito emfim daqui

184

GOODWIN JUNIOR James William Cidades de Papel imprensa progresso e tradiccedilotildees

Diamantina e Juiz de Fora MG (1884-1914) Tese de Doutoramento Satildeo Paulo USP 2007 p 59 185

O jornal O Pharol foi fundado na cidade de Paraiacuteba do Sul (Rio de Janeiro) em 1866 por Thomas

Cameron Posteriormente foi transferido para Juiz de Fora Entretanto natildeo haacute um consenso com relaccedilatildeo

ao ano que o jornal passou a ser editado no municiacutepio da Mata Mineira sendo que haacute indiacutecios de que tal

accedilatildeo tenha ocorrido ainda na deacutecade de 1860 Todavia o exemplar mais antigo preservado do jornal

editado em Juiz de Fora data de janeiro de 1870 e foi localizado em um processo crime que estaacute sob a

guarda do Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora O Pharol circulou da deacutecada de 1860 ateacute o ano

de 1939 quando faliu e paralisou as suas atividades Cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna ldquoA General das

Letrasrdquo a literata Cosette de Alencar e a ldquosuardquo cidade ndash Juiz de Fora (MG) 1918 a 1973 Tese de

Doutoramento ndash Histoacuteria Niteroacutei UFF 2013 p 81 nota 3 Nesse longo periacuteodo de atividade O Pharol

apresentou diversas caracteriacutesticas poliacuteticas seguindo o posicionamento de seus proprietaacuterios-redatores

(liberal conservador monarquista republicano ligado a determinados grupos poliacuteticos e ou ao poder

oficial) De acordo com Almir de Oliveira apesar das vaacuterias orientaccedilotildees pelas quais passou o jornal ldquofoi

sempre o arauto de ideias e opiniotildees que agitaram a poliacutetica mineirardquo O autor ainda ressaltou que O

Pharol possui uma grande importacircncia para a histoacuteria de Juiz de Fora bem como de Minas Gerais tanto

no que diz respeito aos aspectos poliacuteticos-econocircmicos quanto aos sociais e intelectuais Cf OLIVEIRA

Almir de A imprensa em Juiz de Fora Juiz de Fora (MG) Imprensa Universitaacuteria 1981 p 18 Ver

tambeacutem GOODWIN JUNIOR James William Op cit 2007 p 100-104 e 111 Os exemplares

preservados de O Pharol estatildeo no SM-BMMM poreacutem a coleccedilatildeo estaacute incompleta (1876-1879 1881-1888

1890-1897 1890-1919 e 1922-1926) Os exemplares foram microfilmados e atualmente encontram-se

disponiacuteveis para a pesquisa no Arquivo Histoacuterico da UFJF e no site da Biblioteca Nacional

56

partiraacute egualmente o exemplo das boas praticas que constituem o elo forte da

humanidade ndash a Religiatildeo ensinada pelo filho de Deus feito homem186

Nessa mateacuteria Juiz de Fora e sua populaccedilatildeo satildeo novamente apresentadas como

um exemplo para as outras cidades do estado de Minas isto eacute como um siacutembolo do

progresso do labor e da iniciativa Poreacutem satildeo acrescidas as caracteriacutesticas da caridade e

da feacute de sua gente em socorrer os considerados ldquodesvalidos da sorte e da fortunardquo

Entretanto o discurso jornaliacutestico que procurava propagar a imagem da urbs como

moderna e civilizada estava imbuiacutedo do pensamento de setores das classes dominantes

de controle das camadas subalternas dos espaccedilos puacuteblicos e da ideia do trabalho como

algo positivo Ainda eacute ressaltado no texto que em Juiz de Fora ao mesmo tempo em

que era construiacutedo um palacete tambeacutem acontecia a construccedilatildeo de um asilo para

atender aos doentes e oacuterfatildeos pobres Fazia parte do ideal civilizatoacuterio a criaccedilatildeo de locais

para abrigar os grupos que natildeo se adequavam aos espaccedilos modernos e higienizados da

cidade bem como para as classes dominantes satisfazerem seus deveres cristatildeos e

sociais de socorrer os necessitados Nos jornais do periacuteodo em tela neste trabalho satildeo

constantes as notiacutecias sobre doaccedilotildees e eventos realizados por setores dos grupos

dominantes da sociedade juiz-forana para o Asilo Padre Joatildeo Emiacutelio (que abrigava

meninas oacuterfatildes e desvalidas) e para a Santa Casa de Misericoacuterdia e de outras accedilotildees em

prol dos pobres e das crianccedilas desvalidas Nos anuacutencios satildeo relacionados os nomes dos

benemeacuteritos e das distintas senhoras e senhoritas que se dedicavam a tatildeo nobre causa187

O modelo de cidade que era almejado pelas classes dirigentes locais era a capital

da jovem Repuacuteblica o Rio de Janeiro Para elas ldquocivilizar-se significava estar proacuteximo agrave

vida mundana do Rio de Janeirordquo188

Geograficamente Juiz de Fora estaacute mais proacutexima

do Rio de Janeiro do que da capital do estado Belo Horizonte Essa proximidade

contribuiu para uma identificaccedilatildeo maior da cidade e sua populaccedilatildeo com a brisa do mar

carioca do que com as montanhas e os belos horizontes de Minas Nesse sentido

pondera Maraliz Christo

186

AHUFJF ldquoZaacutes-Traacutezrdquo O Pharol 08 mar de 1912 p 1 A reportagem eacute sobre uma romaria que iria

partir de Juiz de Fora para Congonhas (MG) O autor do artigo assina como o pseudocircnimo de Pif Paf 187

Para mais informaccedilotildees ver entre outros os jornais SM-BMMM Jornal do Commercio 20 dez 1896

SM-BMMM Jornal do Commercio 13 mai 1897 SM-BMMM Jornal do Commercio 11 jun 1897

AHUFJF O Pharol de 10 jan1900 e 14 jan 1900 SM-BMMMO Dia 16 nov 1920 AHCJF Diaacuterio

Mercantil 9 nov 1926 AHCJFDiaacuterio Mercantil 25 out 1927 E P Thompson em ldquoFolclore

Antropologia e Histoacuteria Socialrdquo discutiu a questatildeo do ldquoato de doarrdquo da ldquoaccedilatildeo da daacutedivardquo Cf

THOMPSON Edward P As peculiaridades dos ingleses e outros artigos Campinas (SP) Editora da

Unicamp 2001 pp 243- 249 188

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira A ldquoEuropa dos pobresrdquo Juiz de Fora na Belle-Eacutepoque mineira

Juiz de Fora EDUFJF 1994 p 12

57

[] Como cidade do seacuteculo XIX Juiz de Fora natildeo participa da cultura

colonial mineira A proximidade e o maior intercacircmbio econocircmico e cultural

com o Rio de Janeiro assim como a luta poliacutetica contra o predomiacutenio da zona

de Mineraccedilatildeo provocam na cidade um maior cosmopolitismo uma abertura

mais acentuada se a compararmos com o antigo centro cultural do Estado

seja pelo seu nuacutemero de jornais e teatros seja pela expressatildeo de suas escolas

e instituiccedilotildees culturais189

A autora ainda ressaltou que esse distanciamento de Juiz de Fora da cultura

mineira pode ser explicado pelas caracteriacutesticas de sua urbanizaccedilatildeo uma vez que as

cidades barrocas se constituiacuteram e se guiaram

[] pelos sinos das igrejas a populaccedilatildeo de Juiz de Fora teve sua vida

normatizada pelos apitos das faacutebricas de estilo neo-claacutessico e o bater dos

tamancos de seus operaacuterios de ambos os sexos e diversas nacionalidades190

O desejo da populaccedilatildeo abastada e letrada de Juiz de Fora de ldquocivilizar-serdquo aos

moldes do Rio de Janeiro lhe rendeu o apelido de ldquocarioca do brejordquo expressatildeo

pejorativa utilizada pelos belo-horizontinos para criticar a ligaccedilatildeo da cidade com o

Rio191

Creio que a alcunha de ldquocarioca do brejordquo esteja relacionada agrave presenccedila de

terrenos pantanosos nas aacutereas centrais da cidade e agraves enchentes do rio Paraibuna que

alagavam nos periacuteodos de chuvas as aacutereas nas proximidades de suas margens Vaacuterias

propostas desde meados do seacuteculo XIX foram feitas para a retificaccedilatildeo do leito do rio

para seu alargamento e rebaixamento de suas aacuteguas com o intuito de ldquofacilitar o

dessecamento dos terrenosrdquo192

As obras de urbanizaccedilatildeo do centro de Juiz de Fora

tiveram que enfrentar as dificuldades impostas pelos terrenos alagadiccedilos193

Aleacutem

dessas caracteriacutesticas do solo as chuvas tambeacutem traziam as enchentes e os lamaccedilais para

189

Idem p 1 190

Idem p 10 191

Ibidem p 1 A indisposiccedilatildeo de Juiz de Fora com a capital do estado pode ser apreendida atraveacutes dos

jornais que circulavam no municiacutepio Os governos do estado eram acusados de nada fazerem por Juiz de

Fora ldquoafim de que aacute capital natildeo fique em 2ordm logarrdquo poreacutem a cidade que era descrita como um ldquocolosso

que embasbaca o visitante por ver tanto progresso por iniciativa particularrdquo (SM-BMMM O Lynce 20

de out 1923 p 1) Em outra mateacuteria eacute assinalado que pelo fato da cidade da Mata mineira ter ldquovida

proacutepria foi sempre uma cidade desprezada e mesmo guerreada pelos presidentes que o Estado de Minas

tem tidordquo (SM-BMMM ldquoAteacute que emfimrdquo O Lynce 16 set 1922 p 3) Uma das reclamaccedilotildees da

mateacuteria jornalista de setembro de 1922 eacute com relaccedilatildeo ao nuacutemero de grupos escolares que eram mantidos

na cidade pelo governo estadual apenas quatro sendo que deveriam ser seis ou mais 192

OLIVEIRA Paulino de Op cit p 37 68-69 193

SM-BMMM Jornal do Commercio 22 jan 1897 p 1 No Jornal do Commercio de 22 de Jan de

1897 foi publicada uma reclamaccedilatildeo sobre a necessidade de serem tomadas providecircncias com relaccedilatildeo agrave

existecircncia de ldquouma grande poccedila de agua que ha na rua Direita em frente aacute Mecanica proacuteximo ao Largo

do Riachuelo As aguas ali estagnadas em consequencia de aterros feitos na rua de S Sebastiatildeo podem

fazer desenvolver-se alguma palustre com o calor que tem feitordquo

58

as ruas da cidade Sobre as chuvas Rachel Jardim em suas memoacuterias ressalta que Juiz

de Fora ldquoera uma cidade feita para a alergiardquo dadas as chuvas constantes que traziam a

umidade e o mofo194

Todavia Juiz de Fora recebeu vaacuterios epiacutetetos que exaltavam o seu progresso o

seu desenvolvimento industrial e intelectual A cidade foi chamada de a ldquoManchester

Mineirardquo ldquoPrincesa de Minasrdquo ldquoAtenas Mineirardquo ldquoNinho de Poetasrdquo ldquoBarcelona

Mineirardquo entre outros Segundo Rita de Caacutessia Vianna Rosa a imprensa local teve uma

contribuiccedilatildeo consideraacutevel na construccedilatildeo e propagaccedilatildeo do discurso ldquocivilizadorrdquo das

classes dominantes195

O epiacuteteto de ldquoManchester Mineirardquo196

foi atribuiacutedo a Juiz de Fora em virtude de

seu desenvolvimento industrial do pioneirismo no setor de energia eleacutetrica da

arquitetura racionalista de suas faacutebricas com tijolos vermelhos aparentes das chamineacutes

e seus apitos e dos operaacuterios de vaacuterias etnias Todos esses aspectos muito se

assemelhavam agrave Manchester inglesa Poreacutem como muito bem ressaltou Sonia Miranda

as semelhanccedilas com a cidade industrial inglesa iam muito aleacutem desses aspectos Como

na Manchester ldquorealrdquo na urbs mineira a urbanizaccedilatildeo e a industrializaccedilatildeo trouxeram

diversos problemas de saneamento de habitaccedilatildeo de transporte bem como a

ldquomarginalizaccedilatildeordquo e a ldquomanutenccedilatildeo de setores empobrecidos em situaccedilotildees miacutenimas de

sobrevivecircncia sine qua non para a garantia da expansatildeo do mercado de trabalho formal

assalariado e da reproduccedilatildeo ampliada do capitalrdquo197

194

JARDIM Rachel Os anos 40 a ficccedilatildeo e o real de uma eacutepoca 5 ed Juiz de Fora Funalfa Rio de

Janeiro Editora Joseacute Olympio 2003 p 52 195

ROSA Rita de Caacutessia Vianna Op cit 2013 p 28 Sobre o papel da imprensa na propagaccedilatildeo do

discurso civilizador das classes dominantes de Juiz de Fora ver o trabalho de GOODWIN JUNIOR

James William Op cit 2007 196

O cognome ldquoManchesterrdquo mineira se deve ao poeta Antonio Salles poreacutem existe outra semelhante

ldquoManchesterrdquo utilizada por Raja Gabaglia no final do seacuteculo XIX Cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna

Op cit 2013 p 28 197

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 145 Cf SILVA Renata Lutiene da Famiacutelia direito

normas e poder os diversos relacionamentos familiares em Juiz de Fora MG (1890-1920) Dissertaccedilatildeo

de Mestrado Satildeo Joatildeo Del-Rei UFSJ 2010 p 39

59

Imagem 2 Fachada e operaacuterios - Faacutebrica de Tecelagem e Fiaccedilatildeo Moraes

Sarmento (Festa 03-05-1922) SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica

literaria poliacutetica e noticiosa Juiz de Fora 31 de maio de 1922 p 335

Foi principalmente a partir da deacutecada de 1890 que o processo de

industrializaccedilatildeo de Juiz de Fora teve um impulso consideraacutevel e que levou o municiacutepio

a se constituir no principal polo industrial de Minas Gerais nos primeiros anos do seacuteculo

XX198

Eacute nesse momento que ocorreu um investimento maior de capitais e tecnologia e

uma predominacircncia dos setores de meacutedio e grande porte com uma produccedilatildeo em larga

escala O setor que sobressaiu foi o tecircxtil sendo que esse ramo da induacutestria destacou-se

pelo montante de capital investido nuacutemero de operaacuterios e tamanho das faacutebricas

Todavia o municiacutepio contava com outras atividades industriais como de bebidas

alcooacutelicas e gasosas cervejarias massas alimentares produtos ceracircmicos ladrilhos

hidraacuteulicos maacutequinas entre outros sobrepondo-se assim agrave capital do estado em

nuacutemero de empreendimentos industriais199

Conforme dados do Censo de 1905 a cidade

ldquodetinha em relaccedilatildeo ao conjunto do estado de Minas 8 do nuacutemero de

estabelecimentos 22 do capital 16 do nuacutemero de operaacuterios e cerca de 26 do valor

198

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 38 PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 20-

21 MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 101 CHRISTO Maraliz de Castro Vieria Op cit

1994 pp 78-79 199

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 pp 96-97 101 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoPor

entre maacutequinas amp engrenagens as crianccedilas operaacuterias nos acidentes de trabalho em Juiz de Fora (1919-

1930) In SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da PINTO Jefferson de Almeida (orgs) Poder e

Poliacutetica pensando a toleracircncia e a cidadania (Coloacutequio InternacionalSeminaacuterio de Histoacuteria Poliacutetica da

UFF) Niteroacutei (RJ) UFF 2012b pp 109-127 Disponiacutevel em

wwwhistoriauffbrstrictofilespublic_ppghcap_2012_lcp_PoderPoliticapdf Acessado em 04-07-2015

60

total da produccedilatildeo industrial do estadordquo200

De acordo com o Censo Industrial de 1907 a

urbs do interior mineiro contava com duas faacutebricas manufatureiras entre as 100 maiores

do Brasil em termos de produccedilatildeo a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial

Mineira e a Faacutebrica de Sacos de Juta de Luiz de Souza Brandatildeo201

Imagem 3 Fachada da Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial

Mineira Calendaacuterio 2011 ndash FunalfaPJFUFJF

Todavia o progresso o desenvolvimento e a modernizaccedilatildeo da cidade de Juiz de

Fora natildeo foi compartilhado por todos os seus habitantes As condiccedilotildees de vida das

classes pobres da ldquoManchester Mineirardquo como de outras regiotildees do paiacutes se

caracterizavam pela exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho e pelas precaacuterias condiccedilotildees de

vida e trabalho

No cenaacuterio construiacutedo por fraccedilotildees das classes dominantes de uma cidade

moderna industrial siacutembolo do progresso e com uma populaccedilatildeo laboriosa e ordeira a

presenccedila de alguns grupos sociais comeccedilou a incomodar como os mendigos e as

crianccedilas pobres e abandonadas que viviam pelas ruas a esmolar e a praticar vaacuterias

travessuras e delitos

Nos jornais do final do oitocentos e iniacutecio do novecentos satildeo constantes as

reclamaccedilotildees da presenccedila de pessoas esmolando mendigando pelas ruas da cidade

200

PIRES Anderson Cafeacute financcedilas e induacutestria Juiz de Fora 18891930 Juiz de Fora (MG) Funalfa

2009 p 89 201

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 131

61

Indagavam se todos os que viviam a esmolar eram realmente necessitados e solicitavam

das autoridades providecircncia com relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que estavam supostamente a

explorar a caridade puacuteblica Na reportagem publicada no dia 28 de marccedilo de 1900 no

Jornal do Commercio202

intitulada ldquoRepressatildeo Urgenterdquo a preocupaccedilatildeo era com a

presenccedila de ldquomendigos e vagabundosrdquo que ficavam esmolando pelas ruas da cidade De

acordo com a mateacuteria

[] provoca intensa indignaccedilatildeo o espetaculo immoral e altamente irritante

dado por indiviacuteduos no vigor da edade sadio e talhados para o trabalho a

especularem cynicamente com a caridade publica esmolando diariamente de

manha aacute noite quando deviam empregar a actividade em outras misteres de

utilidade geral concorrendo assim para o progresso do paiz203

A presenccedila desses indiviacuteduos como consta da reportagem causava indignaccedilatildeo

aos ldquoyankeerdquo de Minas uma vez que a presenccedila deles contrapunha-se ao desejo da

classe dominante de construir uma imagem da cidade como ldquocivilizadardquo e moderna

Natildeo eacute questionado no texto jornaliacutestico o porquecirc dessas pessoas estarem esmolando

pelas ruas da cidade natildeo eacute assinalado se essas pessoas tinham saiacutedo da zona rural para a

aacuterea urbana em busca de melhores condiccedilotildees de vida e de trabalho fugindo da

exploraccedilatildeo e dos desmandos dos antigos escravocratas A uacutenica preocupaccedilatildeo eacute com o

incocircmodo que elas provocavam por natildeo estarem trabalhando e nem contribuindo para o

progresso da naccedilatildeo Mas em quais atividades esses indiviacuteduos ldquotalhados para o

trabalhordquo poderiam empregar-se O discurso do texto aponta que para os setores

dominantes de Juiz de Fora as pessoas que viviam a esmolar pelas ruas deveriam

submeter-se ao jugo da classe proprietaacuteria aos baixos salaacuterios e a exploraccedilatildeo de sua

forccedila de trabalho204

O artigo do jornal assinalava que as pessoas que viviam esmolando possuiacuteam

ldquouma fisionomia pouco animadorardquo Possivelmente a fisionomia dessa populaccedilatildeo

202 O Jornal do Commercio foi fundado por Vicente de Leon Anibal em 20 de dezembro de 1896 No ano

seguinte 1897 passou para as matildeos do influente poliacutetico mineiro Antonio Carlos Ribeiro de Andrade O

perioacutedico pertenceu ainda a outros poliacuteticos importantes como Joatildeo Penido Filho e Francisco Valadares

Em 1939 o Jornal do Commercio e O Pharol cessaram suas atividades ambos pertenciam agrave viuacuteva de

Francisco Valadares que enfrentou seacuterios problemas financeiros Cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna Op

cit 2013 p 95 AHCJF ldquoHistoacuteria da imprensa de Juiz de Forardquo Diaacuterio Mercantil 27 abr 1946 O

jornal ao longo de sua existecircncia passou por vaacuterias orientaccedilotildees poliacuteticas seguindo o posicionamento de

seus proprietaacuterios Segundo James W Goodwin Juacutenior em princiacutepios do seacuteculo XX os perioacutedicos O

Pharol e Jornal do Commercio pertenciam a grupos poliacuteticos rivais Cf GOODWIN JUacuteNIOR James W

Op cit p 111 203

SM-BMMM ldquoRepressatildeo Urgenterdquo Jornal do Commercio 28 mar 1900 p 1 204

Para mais informaccedilotildees sobre a questatildeo do controle social e da pobreza no municiacutepio de Juiz de Fora

ver o trabalho de PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008

62

empobrecida ficaria mais ldquoanimadorardquo se ela se submetesse a exploraccedilatildeo das classes

dominantes

Michel Mollat analisando as palavras pobreza e pobre assinala que ldquoo emprego

no plural da palavra ldquopobresrdquo traduz a percepccedilatildeo quantitativa de um grupo social de fato

e o despertar de um sentimento de piedade ou de inquietude suscitado pelo nuacutemero de

pobresrdquo205

Nas mateacuterias dos jornais observa-se essa ambiguidade nas atitudes das

classes dominantes com relaccedilatildeo agrave grande concentraccedilatildeo de pessoas pobresdesvalidas

pelas ruas das cidades ora se exigiam puniccedilatildeorepressatildeo para os ldquomenoresrdquo e pobres

que viviam a esmolar transformados em vadios e vagabundos e ora se compadeciam

pela sorte desses deserdados da fortuna

Segundo Sidney Chalhoub a sociedade brasileira nos dececircnios finais do periacuteodo

imperial e ao longo da Primeira Repuacuteblica parecia estar dividida em ldquodois mundosrdquo um

da ordemtrabalho e outro da ociosidadecrime O mundo do oacuteciocrime deveria ser

reprimido e controlado Para o autor essa visatildeo de mundo estava calcada ldquona tradiccedilatildeo

cristatilde ocidental de procurar distinguir sempre o bem do mal o certo do errado etcrdquo e

esse posicionamento parecia ser a ldquocaracteriacutestica fundamental da visatildeo de mundo das

classes dominantes brasileirasrdquo206

A hipoacutetese levantada pelo autor eacute de que o mundo do

oacuteciocrime tinha uma utilidade servia para justificar ldquoos mecanismos de controle e

sujeiccedilatildeo dos grupos sociais mais pobresrdquo pelas classes dominantes207

A desqualificaccedilatildeo

do modo de vida das relaccedilotildees familiares e de trabalho dos setores empobrecidos da

sociedade constitui-se em uma construccedilatildeo das classes dominantes para legitimar sua

dominaccedilatildeo208

Desde que o governo imperial colocou em andamento o processo de aboliccedilatildeo

gradual do trabalho escravo ateacute seu derradeiro fim em maio de 1888 e mesmo deacutecadas

depois da extinccedilatildeo de tal instituiccedilatildeo tornou-se uma constante a reivindicaccedilatildeo por parte

dos grupos dominantes de medidas governamentais de controle sobre a massa de ex-

escravos libertos e da populaccedilatildeo pobre em geral209

Geralmente exigiam-se medidas

205

MOLLAT Michel Os pobres na Idade Meacutedia Rio de Janeiro Campus 1989 p 2 206

CHALHOUB Sidney Op cit 2001 p 78 207

Idem p 80 208

Ibidem p 80 209

A respeito da questatildeo do controle social da disciplina e da exclusatildeo social dos trabalhadores pobres na

transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre e das poliacuteticas de reordenamento e remodelamento dos espaccedilos

urbanos ver NEDER Gizlene ldquoCidade identidade e exclusatildeo socialrdquo Tempo Rio de janeiro v 2 n 3

pp 106-134 1997 MACIEL Laura Antunes SOUZA Vitor Leandro de ldquoOrdem na praccedila normas e

exerciacutecio de administraccedilatildeo em mercados do Rio de Janeirordquo In Passagens Revista Internacional de

Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro v 4 n 1 pp 55-80 jan-abr 2012 p 60-61

Disponiacutevel em wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv4n1a32012pdf Acessado em 10-07-2015

63

que conduzissem os grupos subalternos da sociedade ao trabalho Como jaacute foi discutido

neste capiacutetulo na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX a ideia do trabalho como algo

positivo passou a ser construiacuteda e propagada no seio da sociedade O trabalho passou a

ser uma condiccedilatildeo para o indiviacuteduo ldquocivilizar-serdquo Em maio de 1888 uma mateacuteria

publicada no jornal O Pharol ressaltava que era necessaacuterio ldquoorganisar quanto antes o

trabalho livre para que os novos cidadatildeos que o paiz acaba de receber saibam

comprehender devidamente quaes as circumstancias em que devem gosar a liberdade210

Creio que para uma parcela da classe dominante a liberdade para esses ldquonovos

cidadatildeosrdquo do ldquopaizrdquo significava trabalhar de forma ordeira e obediente agraves leis e aos

antigos ldquosenhores de homens e de terrasrdquo211

210

AHUFJF ldquoNova Ersquorardquo O Pharol 15 maio 1888 p 1 211

A inserccedilatildeo do liberto no mundo do trabalho livre e o trabalhador imigrante satildeo questotildees que vecircm haacute

tempos sendo examinadas pela historiografia brasileira Os estudos revelam a preocupaccedilatildeo em se analisar

a formaccedilatildeo da matildeo de obra livre no Brasil do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX e as novas relaccedilotildees de

trabalho que foram gestadas dentro da nova conjuntura do poacutes-emancipaccedilatildeo Todavia natildeo se concretizou

a crenccedila de que com a aboliccedilatildeo da escravidatildeo os campos ficariam abandonados e de que seria a ruiacutena da

lavoura nacional como era assinalado por muitos defensores do regime escravista Entretanto logo apoacutes a

emancipaccedilatildeo ocorreu certa movimentaccedilatildeo dos libertos alguns abandonaram as unidades onde haviam

sido escravos por longos anos por natildeo concordarem com a permanecircncia de praacuteticas dos ldquotempos do

cativeirordquo outros deixaram as propriedades para buscarem parentes que haviam sido separados durante a

escravidatildeo etc Todavia essa movimentaccedilatildeo natildeo chegou a desestruturar as atividades uma vez que nas

regiotildees de economia mais dinacircmica podia contar com o trabalhador imigrante Essa atitude inicial de

muitos libertos fez com que setores das classes dominantes passassem a exigir medidas que coibissem o

que elas denominavam de vadiagem e ociosidade que eram atribuiacutedos principalmente aos ex-escravos e

seus descendentes De acordo com Eric Foner todas as sociedades em que houve o predomiacutenio da grande

lavoura experimentaram durante o seu processo de emancipaccedilatildeo da escravidatildeo ldquoum amargo conflito em

torno do controle da matildeo de obra ou como pode ser mais bem descrito da formaccedilatildeo de classesrdquo que

necessariamente fez surgir a questatildeo da definiccedilatildeo dos ldquodireitos e privileacutegios e papel social de uma nova

classe a dos libertosrdquo (cf FONER 1988 p 27) O autor ainda assevera que medidas coercitivas em boa

parte dos casos foram empregadas como uma estrateacutegia para forccedilar os antigos escravos a ldquovoltarem a

trabalhar nas fazendasrdquo embora generalizaccedilotildees natildeo possam ser feitas por causa da ldquocomplexidade de

relaccedilotildees de trabalho que surgiram em sociedades especiacuteficasrdquo Cf FONER Eric Nada aleacutem da

liberdade a emancipaccedilatildeo e seu legado Rio de Janeiro Paz e Terra Brasiacutelia CNPq 1988 p 27-28

Sobre a discussatildeo a respeito da inserccedilatildeo do liberto no mundo do trabalho livre apoacutes a emancipaccedilatildeo do

trabalho escravo no Brasil e na Ameacuterica ver entre outros os trabalhos de CASTRO Hebe M Mattos

de Laccedilos de famiacutelia e direitos no final da escravidatildeo In NOVAIS Fernando (coord) ALENCASTRO

Luiz Felipe (org) Histoacuteria da vida privada no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 HOLT

Thomas A essecircncia do contrato In COOPER Frederick HOLT Thomas SCOTT Rebeca J Aleacutem da

escravidatildeo investigaccedilotildees sobre raccedila trabalho e cidadania em sociedades poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 FONER Eric Op cit 1988 MATTOS Hebe Maria Das cores do

silecircncio Os significados da liberdade no sudeste escravista Brasil seacuteculo XIX Rio de Janeiro Nova

Fronteira 1998 MATTOS Hebe Maria Prefaacutecio In COOPER Frederick HOLT Thomas SCOTT

Rebeca J Op cit RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Memoacuterias do Cativeiro famiacutelia e cidadania no

poacutes-aboliccedilatildeo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 FRANCISCO Raquel Pereira ldquoInfacircncia e

Trabalho a questatildeo da matildeo de obra infantil no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XXrdquo In 3ordm Seminaacuterio de

Histoacuteria Econocircmica amp Social da Zona da Mata Mineira Juiz de Fora (MG) Faculdade de Economia ndash

UFJF outubro de 2011 (mesa 22pdf miacutedia eletrocircnica) 2011a SARAIVA Luiz Fernando Um correr de

casas antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora ndash 18701900

Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 2001

64

Para os objetivos deste estudo interessa-me a anaacutelise da problemaacutetica da

infacircncia pobre abandonada e trabalhadora que vivia pelas ruas da cidade nas faacutebricas

nas residecircncias das classes abastadas como empregados domeacutesticos nas moradias

populares e nos asilos212

O recorte temporal eacute o da transiccedilatildeo do trabalho escravo para o

livre periacuteodo esse marcado pela presenccedila de um contingente expressivo de indiviacuteduos

empobrecidos saiacutedos das senzalas tendo uma parcela dessa populaccedilatildeo se direcionado

para os centros urbanos em busca de melhores condiccedilotildees de vida Poreacutem as cidades

natildeo possuiacuteam infraestrutura e condiccedilotildees de absorver integralmente os grupos desvalidos

compostos natildeo apenas dos libertos mas tambeacutem dos nacionais e de muitos imigrantes

A presenccedila dessas pessoas na trama urbana descortinou uma seacuterie de novos problemas

como carecircncia de habitaccedilatildeo e saneamento desemprego mendicacircncia e criminalidade

Entre essa camada de desvalidos estavam as ldquosementes do futurordquo muitas

acompanhadas de seus genitores outras abandonadas ou oacuterfatildes vivendo da caridade

puacuteblica de esmolas de pequenos delitos da prostituiccedilatildeo e de trabalhos esporaacutedicos A

presenccedila desses pequenos era uma constante nas vias puacuteblicas Nesse espaccedilo eles

brincavam brigavam trabalhavam e atraiacuteam os olhares e as atenccedilotildees de setores da

sociedade preocupados com a presenccedila dos mesmos nas ruas O ponto nodal da questatildeo

eram as implicaccedilotildees que futuramente esses ldquomenoresrdquo poderiam trazer para a sociedade

vivendo em um ambiente tatildeo deleteacuterio Os discursos meacutedico-juriacutedico-jornaliacutesticos

apregoavam a necessidade de intervenccedilatildeo do Estado por meio da criaccedilatildeo de instituiccedilotildees

para abrigar esses ldquomenoresrdquo preparando-os para a vida em uma sociedade civilizada

ancorada nos valores da disciplina e do trabalho Por causa das agruras da vida muitos

pais entregaram seus filhos e filhas para as instituiccedilotildees de assistecircncia ou para famiacutelias

abastadas criaacute-los ou alegando natildeo terem condiccedilotildees de mantecirc-los Pedro Nava em suas

memoacuterias da casa de sua avoacute Inhaacute Luiza localizada na Rua Direita (atual Av Baratildeo do

Rio Branco) relata que as meninas eram entregues a sua avoacute para trabalharem e que

seus nomes e a data em que haviam chegado eram registrados no livro de notas por ela

ldquoJacintha entrou para minha casa a 23 de novembro de 1911rdquo ou ldquotomei Catita para

criar em junho de 1913rdquo no que foi chamado por Nava de ldquo13 de maio agraves avessasrdquo

Aleacutem de relatar o emprego dessas meninas Nava tambeacutem fala dos castigos que eram

infligidos agraves mesmas transparecendo que o treze de maio natildeo havia acontecido pois o

212

A discussatildeo sobre pobreza urbana e controle social em Juiz de Fora foi realizada por Jefferson de

Almeida Pinto que discutiu as vaacuterias facetas desenvolvidas pelos grupos dominantes locais de controle da

populaccedilatildeo pobre em especial no que diz respeito agrave mendicacircncia e agrave vadiagem Cf PINTO Jefferson de

Almeida Op cit 2008

65

tapa na boca a vara de marmelo e a palmatoacuteria ainda eram utilizados para disciplinar

natildeo apenas as ldquocrias da casardquo mas tambeacutem as ldquoempregadas assalariadasrdquo213

Essas

histoacuterias de abandono abdicaccedilatildeo do paacutetrio poder seratildeo vistas oportunamente nos

demais capiacutetulos

Segundo o discurso de segmentos das classes dominantes as crianccedilas eram as

ldquosementes do futurordquo Dessa forma as transformaccedilotildees na sociedade deveriam comeccedilar

por elas ou seja desde cedo deveriam ser incutidos os valores do amor ao trabalho e do

respeito agraves leis Nos jornais do municiacutepio de Juiz de Fora eacute comum a presenccedila de

mateacuterias discorrendo sobre a importacircncia de se proteger e reprimir a infacircncia pobre

Atraveacutes da leitura percebe-se a preocupaccedilatildeo de determinados setores da sociedade com

a existecircncia de ldquomenoresrdquo desvalidos vagando pelas ruas frequentando tabernas casas

de prostituiccedilatildeo etc Nos perioacutedicos satildeo constantes as mateacuterias solicitando agraves autoridades

policiais atitudes para conter a ldquomalta de meninos vagabundos que infestam as ruas da

cidaderdquo214

Tal situaccedilatildeo era apresentada pela imprensa como um ldquovexamerdquo215

para a

ldquoManchester Mineirardquo Em finais do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX a cidade de Juiz de

Fora natildeo contava com uma instituiccedilatildeo de assistecircncia para abrigar os ldquomenoresrdquo

abandonados desvalidos e delinquentes do sexo masculino E essa situaccedilatildeo se manteve

ao longo das primeiras deacutecadas republicanas De acordo com Wesleyuml Silva a alternativa

encontrada pelas cidades do interior de Minas Gerais que natildeo contavam com

instituiccedilotildees de assistecircncia para atender ldquomenoresrdquo era de enviaacute-los para os institutos da

capital216

Como foi salientado anteriormente o desenvolvimento industrial da

ldquoManchester Mineirardquo foi acompanhado de um adensamento populacional em seu

periacutemetro urbano Aleacutem dos consumidores a cidade com suas faacutebricas oficinas e

comeacutercio variado atraiacutea tambeacutem pessoas dispostas a venderem sua forccedila de trabalho

Outro fator de atraccedilatildeo populacional foi o ldquoexcesso de caridaderdquo217

dos habitantes da

urbs mineira que contribuiacutea para o afluxo de mendigos e indigentes Essas pessoas eram

provenientes dos municiacutepios proacuteximos dos distritos e das fazendas nos arredores da

aacuterea urbana e de outros estados e junto a elas estavam muitas crianccedilas e jovens que

213

NAVA Pedro ldquoMorro do Imperadorrdquo In _____ Balatildeo Cativo (memoacuterias2) 2 ed Rio de Janeiro J

Olympio 1974 p 4-5 214

AHUFJF O Pharol 08 mar 1900 p 1 215

AHUFJF ldquoAacute Camarardquo O Pharol 17 abr 1887 p 1 216

SILVA Wesleyuml Por uma Histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da delinquecircncia de menores em Belo

Horizonte 1921-1941 Tese de Doutoramento Satildeo Paulo USP 2007 p 251 217

PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 p 89

66

contribuiacuteam para engrossar a massa de desvalidos da cidade Uma parcela desses

ldquomenoresrdquo que natildeo era absorvida como matildeo de obra barata pelas induacutestrias oficinas e

outros estabelecimentos vivia pelas ruas colocando pedras e material explosivo nos

trilhos dos bondes praticando pequenos furtos dirigindo provocaccedilotildees agrave populaccedilatildeo

proferindo palavras de baixo calatildeo invadindo quintais entre outras tropelias como

denunciavam os jornais juiz-foranos218

Imagem 4 Menores nas ruas e pedras nos trilhos dos bonds AHUFJF O

Pharol 22 mar 1900 p 1

A presenccedila e accedilotildees desses ldquomenoresrdquo no cenaacuterio urbano foi alvo constante da

imprensa local que exigia providecircncias das autoridades Com o passar dos anos

218

AHUFJF O Pharol 22 mar 1900 O Pharol 8 mar 1900 O Pharol 4 jan 1911 O Pharol 28 jan

1911 SM-BMMM Jornal do Comeacutercio 22 mar 1900 O Lynce 13 ago 1921

67

passaram a sugerir a criaccedilatildeo de institutos de assistecircncia para os meninos desfavorecidos

Desde os anos finais do seacuteculo XIX jaacute era colocado pelas classes dominantes por

intermeacutedio dos perioacutedicos a necessidade de criaccedilatildeo em Juiz de Fora de um ldquoasylo para

meninos desoccupadosrdquo Na mateacuteria publicada no O Pharol em abril de 1887 com o

tiacutetulo Aacute Camara foi ressaltado que ldquode longa data temo [sic] nos esforccedilado com as

auctoridades locaes instando pela cohibiccedilatildeo de abusos cometidos por esses desordeiros

e vagabundosrdquo O texto destacava que era um ldquovexame de ser uma cidade como a

nossa infestada de pequenos capoeiras desordeiros e vagabundosrdquo De acordo com a

reportagem as induacutestrias poderiam ser uma aliada para a soluccedilatildeo desse grave problema

uma vez que ldquoindustrias natildeo faltam em um logar como este em que as fabricas

formigam o trabalho eacute bem remuneradordquo Sendo assim a Cacircmara tinha ldquopessoas a

quem chamar e encarregar de uma pequena parte do dia no ensino da industria que

exerce mediante retribuiccedilatildeo do governordquo219

Segundo Irene Rizzini os primeiros anos do seacuteculo XX foram ldquoum periacuteodo feacutertil

na idealizaccedilatildeo dos estabelecimentos destinados agrave recuperaccedilatildeo dos menoresrdquo sendo

propostos muacuteltiplos tipos de estabelecimentos para dar atendimento agraves crianccedilas

desvalidas220

Em 1909 foi inaugurado em Belo Horizonte capital de Minas Gerais o Instituto

Joatildeo Pinheiro anexo agrave fazenda da Gameleira para agrave assistecircncia a ldquomenoresrdquo pobres

Esse estabelecimento tinha na educaccedilatildeo profissionalizante ldquoagrozootheacutecniardquo um de

seus principais pilares221

Segundo Jefferson de Almeida Pinto no governo de Joatildeo

Pinheiro (1906-1908) iniciou-se em Minas Gerais uma reforma do sistema educacional

que entre outros fatores objetivava ldquoimplantar um sistema puacuteblico de ensino e a

edificaccedilatildeo e implantaccedilatildeo da educaccedilatildeo em grupos escolares que seriam as bases

responsaacuteveis pela irradiaccedilatildeo do perfil republicano e liberal que se queria fundarrdquo222

Assim de acordo com o autor a fundaccedilatildeo do Instituto deve ser ldquopensado no conjunto

219 AHUFJF Aacute Camarardquo O Pharol 17 abr 1887 p 1 Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010

p 254 220

RIZZINI Op cit 2008 p 136-137 221

PINTO Jefferson de Almeida Ideias juriacutedico-penais e cultura religiosa em Minas Gerais na

passagem agrave modernidade (1890-1955) Rio de Janeiro Editora Multifoco 2013 p 71 Cf O jornal O

Pharol trouxe uma longa mateacuteria sobre o Decreto n 2416 de 9 de fevereiro de 1909 ldquoque organiza a

assistecircncia publica a meninos desvalidos e crea o Instituto Joatildeo Pinheirordquo A mateacuteria prosseguiu nos dias

seguintes AHUFJF ldquoAssistencia a menoresrdquo O Pharol 11 fev 1909 p 1 12 fev 1909 p 1 13 fev

1909 p 2 14 fev 1909 p 1 e 17 fev 1909 p 1 222

PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2013 p 72 Joatildeo Pinheiro assumiu o governo do estado de

Minas Gerais em 1906 poreacutem natildeo terminou o seu mandato pois faleceu em 25 de outubro de 1908 no

Palaacutecio de Liberdade em Belo Horizonte Idem p 71 nota 126

68

das mudanccedilas no sistema educacional que estavam ocorrendo em Minas Gerais e que

tinham suas razotildees na fundaccedilatildeo do proacuteprio sistema republicano no Brasilrdquo223

A

organizaccedilatildeo do Instituto Joatildeo Pinheiro com seu ldquoself governementrdquo e sua postura neutra

e liberal no que diz respeito a crenccedilas religiosas colocou-se como um modelo para os

estabelecimentos assistenciais que viessem a ser organizados futuramente224

Pela leitura dos perioacutedicos do periacuteodo pode-se conjecturar que o Instituto Joatildeo

Pinheiro efetivamente tornou-se o modelo de assistecircncia que era almejado pelas outras

cidades mineiras Na mateacuteria que foi publicada no O Pharol de 22 de fevereiro de 1911

com o tiacutetulo ldquoA Infacircncia desvalidardquo observa-se a crenccedila nas instituiccedilotildees como

formadora de uma nova consciecircncia entre os ldquomenoresrdquo que deveria ser atingida

atraveacutes da pedagogia do trabalho como mostrado no texto transcrito a seguir

A Infacircncia Desvalida

Haacute muito se faz sentir em Juiz de Fora a falta de um estabelecimento para

abrigo da infancia desvalida que sem o minimo cuidado para a sua educaccedilatildeo

vive a toa pelas ruas da cidade a encher tabernas e casas suspeitas de toda a

ordem onde adquire habitos perniciosissimos que cedo a conduzem ao

caminho tortuoso do roubo e do crime

[]

Os poderes publicos tecircm o dever de zelar pela sorte dos menores desvalidos

apparelhando-os convenientemente para convertel-os em cidadatildeos uteis aacute

sociedade e aacute paacutetria225

Observa-se na parte transcrita que a rua eacute colocada como um espaccedilo de

perversatildeo de vadiagem ou seja um local deformador dos ldquomenoresrdquo O discurso

meacutedico caracterizava os ldquomenoresrdquo que viviam nas ruas como os mais nocivos para a

sociedade uma vez que nesse espaccedilo instruiacuteam-se em todos os tipos de crimes e

viacutecios226

Dessa forma as crianccedilas deveriam ser retiradas desse ambiente pernicioso

Para a realizaccedilatildeo de tal meta seria necessaacuteria a implantaccedilatildeo de um instituto que

abrigasse essas crianccedilas e que lhes incutisse valores e as preparasse para serem bons

cidadatildeos por meio do aprendizado de um oficio O texto jornaliacutestico tambeacutem colocava

a questatildeo como um dever dos poderes puacuteblicos ou seja competia ao governo a

moralizaccedilatildeo do espaccedilo urbano e a preparaccedilatildeo dessa matildeo de obra para futuramente ser

uacutetil agrave sociedade e agrave paacutetria

Os debates em torno dos ldquomenoresrdquo desvalidos que viviam nas ruas referem-se

apenas agrave necessidade de contecirc-los de reprimi-los mas natildeo discutem as causas que

223

Ibidem p 71 224

Ibidem p 72-74 225

AHUFJF ldquoA Infacircncia Desvalidardquo O Pharol 22 fev 1911 p 2 226

FRAGA FILHO Walter Op cit 1996 p 115 120-121

69

levaram meninos e meninas para as ruas das cidades Um dos fatores foi (eacute) o aumento

da pobrezamiseacuteria Os pais sem condiccedilotildees de criarem seus filhos muitas vezes

abandonavam-os nas vias puacuteblicas das grandes cidades situaccedilatildeo ainda comum na

atualidade Entretanto natildeo apenas a miseacuteria levava (leva) as crianccedilas para as ruas

outros fatores como a violecircncia domeacutestica sexual exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho

a perda dos pais ou responsaacuteveis eram motivos para que elas encontrassem nas ruas nas

calccediladas debaixo das pontes o seu novo lar

Esses ldquomenoresrdquo que eram tidos como um problema para a sociedade

geralmente eram desprovidos de laccedilos de famiacutelia e de parentesco ou estavam inseridos

em arranjos familiares que natildeo eram o esperado pela sociedade civilizada higiecircnica da

ordem e do progresso Muitas dessas crianccedilas pertenciam a famiacutelias constituiacutedas apenas

pela matildee e irmatildeos ou seja natildeo estavam dentro do modelo nuclearburguecircs em que

havia a presenccedila do pai e da matildee227

Com relaccedilatildeo agraves meninas desvalidasoacuterfatildes o municiacutepio de Juiz de Fora contava

com o asilo Joatildeo Emiacutelio desde o final dos anos de 1890 que poderia como era usual

dizer na eacutepoca encaminhaacute-las na vida dotando-as das qualidades necessaacuterias para o

serviccedilo domeacutestico nas casas das famiacutelias idocircneas para serem boas matildees e donas de

casa De acordo com Maria Luiza Marciacutelio a educaccedilatildeo ministrada agraves meninas nos

asilos tinha por objetivo ldquopreparaacute-las para serem matildees de famiacutelia e ou empregadas

domeacutesticas instruiacutedas e bem treinadasrdquo228

A educaccedilatildeo que deveria ser dada agraves meninas

desvalidas era a baacutesica seguida do aprendizado de um ofiacutecio O projeto de educaccedilatildeo

para os ldquodeserdados da fortunardquo independente do sexo era o mesmo Os institutos

asilos escolas reformatoacuterias e tantas outras instituiccedilotildees de assistecircncia tinham uma

missatildeo clara preparar trabalhadores submissos e obedientes agraves leis

A construccedilatildeo do asilo na deacutecada de 1890 teve inicialmente o objetivo de

atender aos mendigos e indigentes que viviam pelas ruas da cidade sendo o idealizador

desse projeto o padre Joatildeo Emiacutelio Ferreira da Silva229

que veio posteriormente a dar

nome ao estabelecimento A edificaccedilatildeo do preacutedio do ldquoAsilo da Mendicidaderdquo encontrou

227

Cf SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 228

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 173-175 229

Joatildeo Emiacutelio foi um dos padres que assumiu a funccedilatildeo de introduzir na cidade de Juiz de Fora o modelo

eclesial tridentino ultramontano e romanizante Cf AZZI Riolando Op cit 2000 p 106 Para mais

informaccedilotildees sobre a reforma da Igreja Catoacutelica no Brasil na passagem agrave modernidade do modelo luso-

brasileiro para um modelo em conformidade com o catolicismo romano cf AZZI Riolando A Igreja e o

menor na histoacuteria social brasileira Satildeo Paulo Cehila ndash Ediccedilotildees Paulinas 1992 SERBIN Kenneth P

Padres celibato e conflito social uma histoacuteria da Igreja Catoacutelica no Brasil Companhia das Letras

2008

70

inicialmente algumas dificuldades uma vez que o terreno doado pelo Tenente Custoacutedio

da Silveira Tristatildeo para tal fim localizado na rua Antonio Dias foi considerado

inadequado pela Sociedade de Medicina e Cirurgia por encontrar-se no centro da

cidade o que poderia futuramente representar problemas agrave higiene puacuteblica A

construccedilatildeo do asilo deu-se entatildeo na chaacutecara doada pelo comendador Gervaacutesio Monteiro

da Silva em 1891 no bairro Alto dos Passos com a aprovaccedilatildeo da Sociedade de

Medicina e Cirurgia A inauguraccedilatildeo do ldquoPalaacutecio dos Mendigosrdquo como o asilo era

chamado pelos jornais ocorreu em 1895 e redundou em um total fracasso pois natildeo

contou com a adesatildeo dos desvalidos ao qual se destinava Apoacutes a morte do padre Joatildeo

Emiacutelio em 1899 as irmatildes da Congregaccedilatildeo de Santa Catarina ficaram responsaacuteveis pela

administraccedilatildeo do asilo Entretanto em 1902 a administraccedilatildeo foi transferida para as

Irmatildes da Congregaccedilatildeo do Bom Pastor que prosseguiram com as obras de atendimento

agraves meninas oacuterfatildes funccedilatildeo que o asilo assumiu apoacutes natildeo lograr ecircxito no atendimento aos

mendigos e indigentes230

Na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX vaacuterias congregaccedilotildees religiosas se

instalaram em Juiz de Fora a pedido do Bispo de Mariana Dom Silveacuterio que pretendia

com essa accedilatildeo intensificar o modelo eclesial tridentino ultramontano e romanizado na

cidade Nesse periacuteodo o municiacutepio mineiro recebeu sete congregaccedilotildees vindas da

Europa sendo trecircs masculinas e quatro femininas entre elas estava a das Irmatildes do Bom

Pastor231

Segundo Kenneth Serbin ocorreu uma ldquoavalanche de padres religiosos

estrangeirosrdquo na sociedade brasileira nas primeiras deacutecadas republicanas tendo a naccedilatildeo

recebido ldquomais de trecircs duacutezias de ordens religiosas masculinasrdquo Com relaccedilatildeo agraves

congregaccedilotildees femininas o autor assevera que a inserccedilatildeo delas nesse mesmo periacuteodo foi

ainda mais expressiva tendo-se instalado 96 ordens no paiacutes232

Como salientado neste item Juiz de Fora com suas induacutestrias seus teatros seus

poetas enfim com seu progresso e modernidade estava afastada da religiosidade das

barrocas cidades mineiras Segundo Maraliz Christo a urbs da Mata mineira estava

230

PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 p 109-111 AZZI Riolando Sob o baacuteculo episcopal a

Igreja Catoacutelica em Juiz de Fora 1850 ndash 1950 Centro da Memoacuteria da Igreja de Juiz de Fora 2000 p

174-175 OLIVEIRA Paulino Op cit 1966 p 129-130 SM-BMMM ldquoAsylo Joatildeo Emiacuteliordquo Jornal do

Commercio 16 de ago de 1902 p 1 231

AZZI Riolando Op cit 2000 p 165 Segundo Riolando Azzi as congregaccedilotildees religiosas que se

instalaram em Juiz de Fora a partir dos primeiros anos republicanos foram congregaccedilotildees masculinas

redentoristas holandeses salesianos italianos e verbitas alematildees congregaccedilotildees femininas irmatildes francesas

do Sion irmatildes alematildes de Santa Catarina irmatildes alematildes Servas do Espiacuterito Santo e irmatildes francesas do

Bom Pastor (Idem p 165) 232

SERBIN Kenneth P Op cit 2008 p 95

71

ldquoproacutexima ao anti-clericalismordquo constituindo-se em uma preocupaccedilatildeo para os

representantes da Igreja desde meados do seacuteculo XIX O padre Juacutelio Maria233

em 1894

chamou a cidade de a ldquoNova Niacuteniverdquo234

e repreendeu ldquoos lsquojovensrsquo os lsquooperaacuteriosrsquo e os

lsquoricosrsquo por estarem afastados da Igreja e de seus sacramentosrdquo bem como denunciou o

crescimento do protestantismo na cidade235

O desenvolvimento do espiritismo na cidade a partir do iniacutecio do seacuteculo XX

representou mais um obstaacuteculo para a Igreja Catoacutelica em sua ldquocruzada evangelizadorardquo

segundo os preceitos do Vaticano As transformaccedilotildees culturais de Juiz de Fora

advindas do desenvolvimento urbano-industrial criaram um ldquoambiente propiacutecio agrave

proliferaccedilatildeo de novas doutrinas religiosas praticadas por camadas meacutedias e letradas

receptivas agraves novidades em meio agrave proximidade da capital federalrdquo236

Na primeira

deacutecada republicana a ldquoNova Niacuteniverdquo jaacute contava com a presenccedila de catoacutelicos maccedilons

protestantes positivistas espiacuteritas e ateus E os seguidores desses vaacuterios credos faziam

dos jornais locais um locus de divulgaccedilatildeo de suas crenccedilas237

Os espiacuteritas em Juiz de Fora passaram a se dedicar agraves atividades de caridade para

com a populaccedilatildeo pobre disputando dessa forma um espaccedilo de accedilatildeo e representaccedilatildeo na

cidade que ateacute entatildeo era de domiacutenio da Igreja Catoacutelica Aleacutem das obras de caridade de

atendimento aos mendigos e indigentes embrenharam-se tambeacutem no caminho da

educaccedilatildeo dos setores desvalidos da sociedade ofertando agraves crianccedilas pobres ensino e

curso profissionalizante gratuitos238

As obras de assistecircncia agrave infacircncia pobre no municiacutepio de Juiz de Fora no

decorrer dos trinta primeiros anos da Repuacuteblica ficaram a cargo das accedilotildees de caridade e

233

Riolando Azzi assinala que o Padre Juacutelio Maria juntamente com os padres Joatildeo Emiacutelio e Venacircncio

Cafeacute compunha o ldquotrio de sacerdotes que se encarregavam de introduzir em Juiz de Fora o modelo

eclesial tridentinordquo Cf AZZI Riolando Op cit 2000 p 106 234

No livro de Jonas das Escrituras Sagradas ndash a Biacuteblia a cidade de Niacutenive eacute descrita como ldquoa grande

cidaderdquo em que imperava a maldade Jonas 12 235

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 12 236

CAMURCcedilA Marcelo Ayres ldquoFora da caridade natildeo haacute religiatildeo breve histoacuteria da competiccedilatildeo religiosa

entre catoacutelicos e espiritismo kardecista e de suas obras sociais em Juiz de Fora 19001960rdquo In Locus

Revista de Histoacuteria Juiz de Fora v 7 n 1 2001 p 146 237

Idem p 141 238

Ibidem p 147-148 Jefferson de Almeida Pinto ressalta que com o advento da Repuacuteblica a Igreja

Catoacutelica perdeu um espaccedilo importante na formaccedilatildeo das pessoas uma vez que o ensino tornou-se laico A

educaccedilatildeo era visualizada pelos membros do clero catoacutelico como um meio para a divulgaccedilatildeo do modelo

eclesial ultramontano pretendido pela Igreja Com a Repuacuteblica a Igreja perdeu a sua primazia no ensino

passando este a ser ofertado tambeacutem por protestantes e espiritas Cf PINTO Jefferson de Almeida ldquoA

restauraccedilatildeo catoacutelico-tomista a partir do campo poliacutetico e juriacutedico de Minas Gerais na passagem agrave

modernidaderdquo Passagens Revista Internacional de Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro

v 2 n 5 set-dez 2010 p 143 e 145 Disponiacutevel em

wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv2n5a72010pdf Acessado em 10-07-2015

72

filantropia dos catoacutelicos e espiacuteritas como a distribuiccedilatildeo de brinquedos para as crianccedilas

carentes agasalhos festividades na Paacutescoa e Natal recolhimento das meninas oacuterfatildes e

desvalidas cursos profissionalizantes entre outras accedilotildees Entretanto os meninos

desvalidos oacuterfatildeos abandonados e indigitados de delinquentes continuavam a vagar

pelas ruas Como comentado neste item em 1911 poucos anos apoacutes a inauguraccedilatildeo do

Instituto Joatildeo Pinheiro (1909) em Belo Horizonte para atendimento aos ldquomenoresrdquo

desvalidos a imprensa local expunha a necessidade de instalaccedilatildeo no municiacutepio de uma

instituiccedilatildeo congecircnere agrave da capital do estado Todavia a situaccedilatildeo de abandono dos

ldquomenoresrdquo pelas ruas da cidade ainda era uma realidade nos anos de 1920 sendo a

cidade descrita como tendo ldquogarotos lsquoaacute bessarsquordquo que faziam ldquograccedilolas aacutes moccedilas e

meninasrdquo e que natildeo respeitavam os ldquomais velhosrdquo239

As reclamaccedilotildees sobre a presenccedila

desses meninos ldquoa infestar as ruas da cidaderdquo depredando os jardins quebrando as

lacircmpadas dos postes de iluminaccedilatildeo puacuteblica e as vidraccedilas das casas particulares que

ainda tinham as paredes garatujadas ldquocom obscenidadesrdquo foram constantes nos

perioacutedicos do final da deacutecada de 1920 que ressaltava que ldquotaes menores que por esse

caminho em breve se tornaratildeo ndash e muitos deles jaacute o satildeo ndash lsquopivettesrsquo240

e viciadosrdquo

mereciam ldquoum eneacutergico correctivo da policiardquo241

A situaccedilatildeo da infacircncia desvalida abandonada e delinquente e a accedilatildeo do Estado

para com a mesma era uma questatildeo presente nos perioacutedicos locais A presenccedila dos

Estado geralmente se fazia apenas nos momentos de repressatildeo e puniccedilatildeo deixando

parcela da infacircncia pobre e abandonada sem educaccedilatildeo e assistecircncia

A prisatildeo na Argentina de uma menina que havia furtado da casa de seu patratildeo

ldquodez tostotildees para leval-os aacute sua famiacutelia residente foacutera da capitalrdquo serviu de pano de

fundo para uma mateacuteria publicada no jornal Diaacuterio Mercantil242

em fevereiro de 1912

239

SM-BMMM ldquoUrge uma medidardquo O Lynce 13 ago 1921 p 1 Na mateacuteria com o tiacutetulo ldquoUrge uma

medidardquo o foot ball e tambeacutem o jogo de krica (pequenas bolinhas de vidro) eram acusados em parte pelo

comportamento desrespeitoso dos ldquomenoresrdquo Com relaccedilatildeo agrave krica o texto assinala que eram numerosos

os grupos de meninos pelas ruas envolvidos com esse jogo ldquoquando deviam estar na escola ou no

trabalho mesmo em casa dos paesrdquo Por isso era solicitada ao delegado de poliacutecia uma atitude ldquopara que

estes fucturos cidadatildeos natildeo continuem no caminho da malandragemrdquo Idem 240

O termo ldquopiveterdquo segundo Irene Rizzini jaacute era empregado no Rio de Janeiro no iniacutecio do seacuteculo XX

para fazer alusatildeo agraves crianccedilas moradoras nas ruas RIZZINI Irene Op cit 2011 p 115 nota 16 241

SM-BMMM ldquoUrge uma medidardquo O Lynce Juiz de Fora 13 de agosto de 1921 242 O jornal Diaacuterio Mercantil (DM) passou a circular em janeiro de 1912 O perioacutedico tinha um perfil

liberal (defesa das liberdades individuais e da propriedade privada) Desde o iniacutecio o jornal deixou

expresso as suas pretensotildees No editorial da primeira ediccedilatildeo foi assinalado que ldquoos interesses das classes

produtoras do paiacutes quando legiacutetimos teratildeo em o lsquoDiaacuterio Mercantilrsquo um advogado soliacutetico e fielrdquo Cf

GOODWIN JUNIOR James William Op cit 2007 p 81 Segundo Almir de Oliveira o Diaacuterio

Mercantil foi desde sua fundaccedilatildeo um ldquojornal poliacutetico por excelecircnciardquo tendo como fundadores Antocircnio

Carlos Ribeiro de Andrade e Joatildeo Penido Filho ldquopoliacuteticos de forte influecircncia no Municiacutepio e no Estadordquo

73

sobre a situaccedilatildeo da infacircncia desvalida brasileira bem como sobre essa problemaacutetica em

Juiz de Fora Assim pronunciava a mateacuteria

A sorte desta pobre creanccedila [argentina] faz-nos lembrar a de muitos seres

pequeninos que vivem jogado no mundo ao Deus daraacute e para os quaes a

justiccedila humana tem a brutalidade das feras bravias quando apanham nas

garras um animal indefeso e fraacutegil

Quantas e quantas crenccedilas sem pae e sem matildee tendo por guia na vida

exploradores perversos e deshumanos natildeo se atiram pelas ruas aacute

mendicidade e ao crime expostas ao achincalhe da gente abastada e ao

verdugo das autoridades perversas soffrendo mais do que os irracionaes para

conquistarem uma fatia de patildeo que lhes mitigue a fome

A infancia desamparada foacuterma hoje uma legiatildeo tatildeo numerosa que autorisa

uma previsatildeo tristissima sobre o futuro dessa parcella da humanidade que

seraacute amanhatilde talvez a maioria dos homens a lutar pela existencia E eacute faacutecil de

se avaliar a sorte que se reserva a todos indistinctamente quando se

desenvolverem esses desgraccedilados irmatildeos creados e formados no meio da

corrupccedilatildeo avassaladora dos bordeis e das ruas uacutenicos lugares onde

encontram abrigo e refugio orphatildeos como vivem da proteccedilatildeo que lhes devem

os governos e as classes incumbidas de zelar pela sorte dos humildes

Nas grandes cidades eacute um espectaculo compungente que se offerece aos

olhos do transeunte a concorrecircncia de menores mendigos e meninas perdidas

a assaltarem as casa cafeacutes e vehiculos implorando aos que passam ldquoum

nickel para comprar um patildeordquo ou ldquoauxilio para enterro da irmatildezinhardquo ou

ldquodinheiro para levar remeacutedio ao pae moribundordquo ou enfim para outra

qualquer cousa que levam muito bem decorada como o exigem os seus

miseraacuteveis instigadores quase sempre individuos criminosos e suspeitos a

cujo torpe mister as autoridades natildeo procuram crear embaraccedilos com a energia

e o rigor que as leis lhes facultam

A mendicidade constitue o melhor meio de que lanccedilam matildeo os traficantes de

toda a especie para viverem regaladamente sem occupaccedilatildeo e sem trabalho Si

ainda esses typos abjectos se valessem da sua laacutebia somente na conquista das

ambiccedilotildees que lhes corroem a alma negra natildeo era tanto para indignar porque

elles mesmos teriam de acarretar com os males resultantes de sua infame

tarefa

As autoridades declaram-se sempre impotentes e quando se reclama allegam

que os estabelecimentos de caridade eacute que devem recolher os pequenos

desvalidos

Conhecemos um menor nesta cidade chamado Thomeacute um infeliz mulatinho

de 10 annos de edade creado nas tavernas e casas de jogo em que eacute tatildeo feacutertil

esta nossa Princeza Thomeacute foi sempre o accusado o responsavel por todos

os pequenos furtos de que a policia tinha conhecimento As queixas de furto

de guarda-sol de patildeo nas janellas das casas de roscas nas portas das

padarias etc davam sempre em resultado a prisatildeo do abandonado

delinquumlente Vimol-o varias vezes na cadeia entre a fuacuteria do delegado e a

carranca de agentes de policia chorando copiosamente e defendendo-se das

accusaccedilotildees que lhe imputavam O infeliz sempre que era interpelado por taes

crimes rematava assim as suas escusas

- Pobre de quem natildeo tem pae e matildee neste mundo

Casos como o de Thomeacute contam-se aos milhares por toda a parte da terra O

mal estaacute generalisado de modo assustador Ningueacutem veacutela pela sorte da

infacircncia sem assistecircncia Os governos a quem competia em primeiro logar

resolver o problema cruzam os braccedilos criminosamente

Cf OLIVEIRA Almir de Op cit 1981 p 44 Em 1932 o DM foi adquirido pelo grupo dos ldquoDiaacuterios

Associadosrdquo do Rio de Janeiro dirigido pelo empresaacuterio Assis Chateaubriand Cf ROSA Rita de Caacutessia

Vianna Op cit 2013 p 92-95

74

E quando um menor desamparado commete um acto delictuoso qualquer

que deveria ser perdoado por ser inconsciente a justiccedila sem entranhas com

assentimento claro da sociedade faz como este malvado juiz argentino

condemna a DOIS ANNOS de prisatildeo uma creanccedila que furtou duas patacas ndash

Joc [Grifos no original]243

O texto levanta a questatildeo da puniccedilatildeo de crianccedilas que eram ldquoorphatildeos [] da

proteccedilatildeo que lhes devem os governosrdquo Tal problemaacutetica eacute bem atual uma vez que

nossa sociedade se vecirc agraves voltas com a discussatildeo da maioridade penal quando ainda

presenciamos um atendimento governamental insuficiente desumano e brutal para com

a infacircncia carente abandonada e em situaccedilatildeo de risco social Ainda hoje parcela

expressiva das crianccedilas e jovens pobres estaacute alijada de direitos sociais baacutesicos e o uacutenico

contato com o Estado ocorre somente em momentos de repressatildeo e puniccedilatildeo Uma

reportagem veiculada pelo programa Fantaacutestico da emissora Rede Globo em 18 de

agosto de 2013 denuncia o espancamento brutal de seis jovens internos da Fundaccedilatildeo

Casa (antiga Febem) na cidade de Satildeo Paulo por dois funcionaacuterios da instituiccedilatildeo Os

jovens apenas de cuecas receberam chutes cotoveladas e tapas244

Essas cenas

demonstram a permanecircncia de praacuteticas arcaicas de atendimento aos jovens das classes

subalternas em instituiccedilotildees que deveriam zelar pela sua integridade fiacutesica e pelo

desenvolvimento humano e intelectual Oportunamente discutirei em um proacuteximo

capiacutetulo a questatildeo da internaccedilatildeo de jovens em institutos de assistecircncia quando

analisarei os processos de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo nos primeiros anos da Repuacuteblica

Ainda com relaccedilatildeo agrave mateacuteria do Diaacuterio Mercantil esta chamou a atenccedilatildeo para o

fato de a infacircncia pobre ser usada por indiviacuteduos para explorarem a caridade da

populaccedilatildeo atraveacutes de pedidos de esmolas e tambeacutem para a praacutetica de delitos bem como

ressaltou a omissatildeo da justiccedila em solucionar essa questatildeo245

O artigo fez uma previsatildeo

bem pessimista sobre o futuro da sociedade e desses cidadatildeos ldquocreados e formados no

meio da corrupccedilatildeo avassaladora dos bordeis e das ruasrdquo sendo estes os uacutenicos locais

aonde encontravam ldquoabrigo e refugiordquo uma vez que os ldquogovernos a quem competia em

primeiro logar resolver o problemardquo cruzavam ldquoos braccedilos criminosamenterdquo transferindo

243

AHCJF ldquoTraccedilosrdquo Diaacuterio Mercantil 06 fev 1912 p 1 244

Fantaacutestico Rede Globo 18 de agosto de 2013 - ldquoImagens mostram funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Casa

espancando menoresrdquo Disponiacutevel em httpg1globocomfantasticonoticia201308imagens-mostram-

funcionarios-da-fundacao-casa-espacando-menoreshtmlhash=2 Acessado em 25-05-2014 245

Para mais informaccedilotildees sobre a exploraccedilatildeo da caridade puacuteblica atraveacutes dos pedidos de esmolas e da

tentativa por parte da Cacircmara de Vereadores de Juiz de Fora de regulamentar essa accedilatildeo atraveacutes da

identificaccedilatildeo dos mendigos aptos a esmolar pelas ruas ver o trabalho de PINTO Jefferson de Almeida

Op cit 2008

75

a responsabilidade para os ldquoestabelecimentos de caridaderdquo246

O governo por meio da

justiccedila soacute assumia a sua responsabilidade frente a essa fraccedilatildeo da sociedade nos

momentos de puniccedilatildeo e repressatildeo

Manter o espaccedilo urbano ldquoordenadordquo ldquosaneadordquo e ldquopoliciadordquo era o objetivo dos

setores dominantes que buscavam imprimir uma imagem de cidade moderna e

civilizada a Juiz de Fora Entretanto a presenccedila de ldquomenoresrdquo como o ldquomulatinhordquo

Thomeacute de 10 anos de idade ldquocreado nas tavernas e casas de jogordquo afigurava-se pelas

ruas da cidade como um problema para essa sociedade uma vez que ele era a expressatildeo

da outra cidade a cidade insalubre dos corticcedilos dos ldquomenoresrdquo abandonados e

desvalidos dos mendigos dos ex-escravos e seus descendentes das prostitutas dos

becircbados dos operaacuterios dos imigrantes pobres que os setores dominantes queriam

esconder

A questatildeo da exploraccedilatildeo de ldquomenoresrdquo colocados para pedir esmolas nas ruas da

cidade por ldquomiseraacuteveis instigadoresrdquo foi objeto de denuacutencia de O Lynce247

de agosto de

1922248

Segundo o perioacutedico estavam circulando pelas ruas do municiacutepio de Juiz de

Fora havia cerca de dois anos duas ou trecircs meninas morenas e ldquomeio opiladasrdquo que

abordavam os transeuntes com cartotildees supostamente para fins religiosos com uns

quadradinhos que eram perfurados com um alfinete devendo a pessoa abordada

contribuir ldquocom um nickelrdquo O artigo intitulado ldquoCom a Poliacuteciardquo ressaltava que a

educaccedilatildeo das meninas ficava prejudicada com essa atividade tornando-as ldquoinsolentesrdquo e

expondo-as ldquoaos ditos chistosos e avaccalhados dos mal educadosrdquo e que essa tarefa

executada por elas se afigurava como uma exploraccedilatildeo pois ldquouma hora eacute para uma

egreja outra para um santo qualquer ou sinatildeo para uma festa religiosardquo A poliacutecia

deveria averiguar se as meninas estavam explorando o puacuteblico a mando dos pais ou por

alguma Congregaccedilatildeo ldquoporque eacute impossiacutevel que os responsaacuteveis por estas meninas natildeo

encontrem um meio de occupal-as num serviccedilo mais honestordquo249

Na anaacutelise que realizou sobre o Imperial Instituto de Meninos Cegos (atual

Instituto Benjamin Constant - Rio de Janeiro) Gizlene Neder ressaltou que um dos

fatores apontado pelo diretor do Instituto em 1858 para a pouca procura por vagas

246

AHCJF ldquoTraccedilosrdquo Diaacuterio Mercantil Juiz de Fora 6 fev 1912 p 1 247 O Lynce surgiu em janeiro de 1912 seu fundador foi o liacuteder espirita Jesus de Oliveira Segundo Almir

de Oliveira inicialmente foi um jornal de formato pequeno que se tornou gradativamente em uma

ldquorevista literaacuteria e noticiosardquo e posteriorme ldquovoltou agrave feiccedilatildeo de jornal mensalrdquo OLIVEIRA Almir Op

cit 1981 p 48 248

SM-BMMM ldquoCom a policiardquo O Lynce 12 ago 1922 p 2 249

Idem

76

naquele estabelecimento residia no fato de as famiacutelias utilizarem as crianccedilas cegas para

esmolarem250

Ao que parece a praacutetica de utilizar crianccedilas para explorar a caridade da

populaccedilatildeo era comum haja vista as colocaccedilotildees da mateacuteria jornaliacutestica transcrita

anteriormente e as observaccedilotildees do diretor do Instituto de Meninos Cegos examinadas

por Neder

Com o desmantelamento do sistema escravista no Brasil no decorrer da segunda

metade do seacuteculo XIX o trabalho passou a ter uma conotaccedilatildeo positiva como atividade

que conferia respeito e dignidade Todavia quanto ao trabalho infanto-juvenil

determinados setores da sociedade faziam ressalvas quanto aos tipos e tarefas que essas

crianccedilas deveriam executar Os trabalhos desenvolvidos nas ruas eram geralmente

considerados improacuteprios para os ldquomenoresrdquo haja vista a imagem que se formou sobre

esse espaccedilo como um lugar perigoso De acordo com Luciano Faria e Cynthia Veiga no

final do seacuteculo XIX a rua passou a ter uma conotaccedilatildeo de lugar perigoso O uso desse

espaccedilo ganhou duas dimensotildees para a populaccedilatildeo pobre e trabalhadora era um local

ldquosocializador de trocas de experiecircncias de lazer de solidariedade e de lutasrdquo e para as

elites era um ldquoespaccedilo de circulaccedilatildeordquo251

Analisando a questatildeo do trabalho infantil na

Argentina no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX Maria C Zapioli corrobora as

palavras de Faria e de Veiga no sentido de que as classes dominantes e a populaccedilatildeo

pobre tinham visotildees diferentes sobre o espaccedilo denominado de rua De acordo com a

autora para os estratos mais baixos da sociedade ldquono todo era trabajo o delito en las

callesrdquo esse tambeacutem era um local para o estabelecimento de ldquosociabilidad com sus

paresrdquo252

Entretanto apesar dos receios que o binocircmio ldquorua-infacircnciardquo causava em vaacuterios

setores da sociedade por conta da relaccedilatildeo que havia sido estabelecida entre rua-

delinquecircncia-vadiagem muitos ldquomenoresrdquo tiravam o seu sustento e de seus familiares

valendo-se de atividades realizadas nesse espaccedilo Inuacutemeros afazeres eram realizados por

essas crianccedilas nas ruas das grandes cidades do Brasil e da Argentina como vendedores

de jornais engraxates verdureiros entre tantas outras atividades Segundo Zapioli os

250

NEDER Gizlene Op cit 2004 p 215-216 251

FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Op cit 1999 p 33 252

ZAPIOLI Mariacutea Carolina ldquoLos liacutemites de la obligatoriedad escolar en Buenos Aires 1884-1915rdquo

Cadernos de Pesquisa Satildeo Paulo v 39 n 136 Janabr 2009 pp 69-91 p 9 Disponiacutevel em

httpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S0100-15742009000100005 Acessado em 28-

12-2013 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoDa rua agrave faacutebricardquo a questatildeo do ldquomenorrdquo no Brasil e na

Argentina nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX In Anais FoMerco 2011 XII Congresso Internacional

FoMerco ndash Foacuterum Universitaacuterio do Mercosul (GT13 ndash Identidades sul-americanas cultura(s) juriacutedica(s) e

direito(s) na Ameacuterica do Sul) Rio de Janeiro UERJ setembro de 2011b

77

ldquomenoresrdquo exerciam as mais diversas atividades nas ruas de Buenos Aires e os que

conseguiram estabelecer-se em uma funccedilatildeo permanente como ldquolustrabotas o

lsquocanillitasrsquordquo gozavam de uma situaccedilatildeo melhor que a das demais crianccedilas pobres253

Conforme salientado anteriormente a rua passou a ter novos significados no

decorrer do seacuteculo XIX De maneira similar as concepccedilotildees sobre a cidade tambeacutem

foram se modificando no decorrer dos oitocentos De acordo com Carl Schorske podem

ser identificadas trecircs concepccedilotildees sobre a cidade entre os seacuteculos XVIII e XIX a cidade

como ldquovirtuderdquo como ldquoviacuteciordquo e ldquopara aleacutem do bem e do malrdquo sendo que esses

diferentes pensamentos coexistiram por certo tempo254

Com o acelerado processo de

industrializaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo vivenciado por algumas naccedilotildees europeias no iniacutecio do

seacuteculo XIX e o consequente agravamento das condiccedilotildees sociais a imagem sobre a

cidade foi adquirindo tons cada vez mais sombrios passando a ser visualizada como um

espaccedilo de viacutecios Segundo o autor ldquoa cidade como siacutembolo ficou presa na rede

psicoloacutegica de esperanccedilas frustradasrdquo Dessa maneira a imagem ldquodeslumbrante da

cidade como virtuderdquo dos pensadores Iluministas contribuiu para que ldquoa imagem da

cidade como viacuteciordquo exercesse uma forte ldquoinfluencia sobre a mente europeiardquo Por volta

da segunda metade do seacuteculo XIX foi surgindo uma nova noccedilatildeo no pensamento

europeu sobre a cidade que a situava ldquopara aleacutem do bem e do malrdquo ou seja a cidade

moderna era concebida ldquocom todas as suas gloacuterias e seus horrores suas belezas e sua

feiurardquo e com suas ldquomultidotildeesrdquo255

A influecircncia dessas concepccedilotildees do pensamento

europeu sobre a ldquocidaderdquo pode ser observada nas mateacuterias dos perioacutedicos do municiacutepio

de Juiz de Fora Ora a cidade eacute descrita como o espaccedilo da virtude do progresso da

induacutestria e da civilizaccedilatildeo ora como da degradaccedilatildeo moral da miseacuteria dos corticcedilos dos

vadios dos ldquomenoresrdquo a perturbarem a ordem urbana

A presenccedila de crianccedilas nas ruas de Juiz de Fora colocando pedras nos trilhos dos

bondes quebrando lacircmpadas e vidraccedilas xingando os transeuntes praticando pequenos

furtosroubos brigando jogando entre outras accedilotildees subvertia a imagem de ordem e

disciplina da cidade difundida pelos oacutergatildeos da imprensa local Junto com o

desenvolvimento urbano e industrial vivenciado pelo municiacutepio na passagem agrave

253

ZAPIOLI Mariacutea Carolina Op it 2009 p 9 Cf FRANCISCO Raquel Pereira Op cit 2011b 254

SCHORSKE Carl E ldquoA ideia de cidade no pensamento europeu de Voltaire a Spenglerrdquo In

_________ Pensando com a Histoacuteria indagaccedilotildees na passagem para o modernismo Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2000 p 53 255 Idem p 61 66-67 Cf SENNETT Richard Carne e pedra o corpo e a cidade na civilizaccedilatildeo

ocidental 2 ed Rio de Janeiro BestBolso 2010 BRESCIANI Maria Stella Martins Londres e Paris no

seacuteculo XIX o espetaacuteculo da pobreza Satildeo Paulo Editora Brasiliense 1982

78

modernidade vieram os problemas sociais inerentes ao processo como a presenccedila de

um grande contingente de crianccedilas pobres abandonadas e oacuterfatildes nas ruas da cidade A

soluccedilatildeo apontada por fraccedilotildees das classes dominantes para o grave problema dos

ldquomenoresrdquo que ldquoinfestavamrdquo esse espaccedilo urbano eram os institutos e o aprendizado de

um ofiacutecio manual Como discuti anteriormente neste capiacutetulo o trabalho numa

conjuntura de constituiccedilatildeo do mercado de trabalho livre dentro de uma ordem

capitalista apresentava-se como a soluccedilatildeo mais viaacutevel para tal problema A faacutebrica a

oficina o comeacutercio o asilo e outras instituiccedilotildees se apresentavam como o locus

privilegiado para disciplinar as crianccedilas desvalidas e abandonadas para moldaacute-las pelo

e para o trabalho

Como foi salientado no decorrer do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX Juiz de Fora

recebeu um afluxo populacional expressivo e uma parcela desse contingente foi

absorvida pelos estabelecimentos industriais e comerciais da cidade Entre os admitidos

estavam muitas crianccedilas e adolescentes A presenccedila do trabalhador infanto-juvenil nas

faacutebricas oficinas e comeacutercio da cidade estatildeo constantemente presentes nas mateacuterias dos

perioacutedicos locais nas mais diversas situaccedilotildees como de acidentes precariedade das

condiccedilotildees de trabalho violecircncia entre outras No relatoacuterio realizado pelo ldquoinspector da

industriardquo Dr Carlos Prates para ser submetido agrave consideraccedilatildeo do Estado em 1906

Juiz de Fora foi descrita como a cidade industrialmente mais importante de Minas

Gerais Na descriccedilatildeo das faacutebricas (que utilizavam maacutequinas movidas a vapor e a

eletricidade) visitadas o inspetor registrou o nuacutemero total de operaacuterios de cada

estabelecimento ressaltando que este era composto por homens mulheres e crianccedilas256

A sociedade possuiacutea (e ainda possui) uma opiniatildeo ambivalente a respeito da

inserccedilatildeo de ldquomenoresrdquo no mercado de trabalho Para diversos segmentos das classes

dominantes essa era a soluccedilatildeo para o grave problema social representado pelas crianccedilas

pobres abandonadas e oacuterfatildes Entretanto essa opiniatildeo natildeo era compartilhada por liacutederes

operaacuterios e por parcela dos segmentos vulneraacuteveis da sociedade Basicamente as

criacuteticas recaiacuteam sobre o emprego de ldquomenoresrdquo em atividades tipicamente urbanas

induacutestrias faacutebricas oficinas etc A exploraccedilatildeo da matildeo de obra de meninas como babaacutes

empregadas domeacutesticas nas casas das senhoras dos grupos dominantes natildeo foi uma

questatildeo de vulto nos debates Provavelmente muitas meninas eram provenientes das

256

SM-BMMM ldquoMuniciacutepio de Juiz de Forardquo Jornal do Commercio 3 jan 1906 p 1

79

fazendas de seus patrotildees e passaram a vida inteira a servi-los recebendo parcos

ordenados

Os setores da sociedade que defendiam o trabalho infanto-juvenil advogavam

que este era um dos caminhos para manter a ldquopaz socialrdquo uma vez que era necessaacuterio

tornaacute-los cidadatildeos uacuteteis ao paiacutes Junto ao discurso do trabalho como uma estrateacutegia

regeneradora dos ldquomenoresrdquo infratores e de preservaccedilatildeo dos desvalidos estava a

preocupaccedilatildeo com o fornecimento de matildeo de obra para as induacutestrias que estavam se

formando

Segundo Esmeralda de Moura a utilizaccedilatildeo indiscriminada da matildeo de obra

infanto-juvenil no iniacutecio do periacuteodo republicano retrata o ldquobaixo padratildeo de vida da

famiacutelia operaacuteria pautado em salaacuterios insignificantes e em iacutendices de custo de vida

extremamente elevadosrdquo257

A precariedade da vida dos operaacuterios contribuiu para a

inserccedilatildeo de crianccedilas bem jovens no ldquomundo do trabalhordquo Elas eram empregadas nos

mais variados ramos de atividades Aleacutem dos baixos salaacuterios das longas jornadas os

ldquomenoresrdquo estavam mais expostos agraves doenccedilas aos acidentes e aos castigos fiacutesicos258

O trabalho infantil no Brasil na passagem agrave modernidade foi objeto de leis para

a sua regulamentaccedilatildeo A legislaccedilatildeo brasileira por meio do Decreto N 1313 de 17 de

janeiro de 1891 buscou regulamentar ldquoo trabalho dos menores empregados nas faacutebricas

da Capital Federalrdquo poreacutem ele jamais surtiu o efeito esperado259

A literatura sobre a

utilizaccedilatildeo da matildeo de obra infantil destaca que essa natildeo foi uma questatildeo que tenha

gerado muitas querelas entre os parlamentares brasileiros uma vez que esses ldquomenoresrdquo

foram amplamente empregados nas faacutebricas oficinas e nos campos Contribuiacuteram para

a expressiva exploraccedilatildeo desses pequenos trabalhadores a ineficiecircncia da fiscalizaccedilatildeo e

de accedilotildees governamentais para conter os abusos e excessos260

Os estados brasileiros tambeacutem legislaram sobre a carga horaacuteria que seria exigida

desses ldquomenoresrdquo com qual idade poderiam comeccedilar a desempenhar atividades e sobre

o trabalho noturno As leis e os decretos estaduais tornaram-se letra morta pois a

257

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro ldquoCrianccedilas operaacuterias na receacutem-industrializada Satildeo Paulordquo In

DEL PRIORE Mary (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil 5 ed Satildeo Paulo Contexto 2006 p 262 258

Cf BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p 99-100 MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro Op cit

2006 p 266 -268 270 Cf PERROT Michelle ldquoA juventude operaacuteria da oficina agrave faacutebricardquo In LEVI

Giovanni SCHMITT Jean-Claude (org) Histoacuteria dos Jovens a eacutepoca contemporacircnea Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1996 p 103-105 259

RIZZINI Irene RIZZINI Irma HOLANDA Fernanda Rosa Borges de ldquoA infacircncia e o mundo do

trabalho consideraccedilotildees conceituaisrdquo In __________ A crianccedila e o adolescente no mundo do trabalho

Rio de Janeiro USU Ed Universitaacuteria Amais Livraria e Editora 1996 p 31 260

Idem p 32-33

80

fiscalizaccedilatildeo era insuficiente e as diversas brechas existentes no texto desses

documentos permitiam que a matildeo de obra dessas crianccedilas continuasse a ser explorada

Esmeralda Moura assinala que a exploraccedilatildeo mais draacutestica sobre a forccedila de trabalho

infantil recaiu sobre a categoria denominada de ldquoaprendizesrdquo O empresariado paulista

com o discurso de que estava dando uma oportunidade para que esses ldquomenoresrdquo

aprendessem um oficio utilizou-se do trabalho de meninos e meninas sem nenhuma

despesa salarial com os mesmos261

O trabalho infantil era vantajoso para os empregadores uma vez que os seus

salaacuterios eram baixos e a sua forccedila de trabalho era amplamente explorada A utilizaccedilatildeo

indiscriminada dessa matildeo de obra fez com que muitos meacutedicos legisladores

professores e poliacuteticos passassem a criticar a sua utilizaccedilatildeo e a exigirem uma

regulamentaccedilatildeo para essa atividade No Brasil ao longo das primeiras deacutecadas do

seacuteculo XX foram surgindo grupos que criticavam a utilizaccedilatildeo do trabalho de crianccedilas

A imprensa em especial a operaacuteria abriu suas paacuteginas para denunciar os maus tratos e a

exploraccedilatildeo a que esses ldquomenoresrdquo estavam sujeitos dentro das faacutebricas das oficinas etc

Chegaram mesmo a comparar a vida e as condiccedilotildees de trabalho dos pequenos operaacuterios

com a dos ex-escravos A imprensa operaacuteria tambeacutem reivindicava que esses ldquomenoresrdquo

tivessem condiccedilotildees de frequentar a escola Outros segmentos sociais comeccedilaram a

denunciar os males fiacutesicos causados pelo emprego de crianccedilas em atividades

extenuantes e improacuteprias para sua idade262

A imprensa foi uma das ldquotribunasrdquo utilizadas pelos ldquohomens de letrasrdquo e pelos

liacutederes operaacuterios para defenderem ou criticarem a utilizaccedilatildeo da matildeo de obra feminina e

infantil nas induacutestrias263

Nos perioacutedicos consultados deparei-me com notiacutecias sobre a

importacircncia da educaccedilatildeo para os operaacuterios sobre os malefiacutecios que o trabalho poderia

causar em muitos jovens entre outras questotildees Compulsando o jornal O Pharol de

261

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro Op cit 2006 p 271-273 Cf PERROT Michelle Op cit

1996 p 111 119 262

Idem p 279-281 Cf RUSCHE Georg KIRCHHEIMER Otto Puniccedilatildeo e estrutura social 2 ed

Rio de Janeiro Editora Revan 2004 p 56-57 263 Laura Antunes Maciel ressaltou que a imprensa entre o seacuteculo XIX e princiacutepios do XX se constituiacuteu

em um espaccedilo privilegiado de ldquoluta socialrdquo Os diversos setores da sociedade provavelmente tinham a

percepccedilatildeo de que suas ldquolutasrdquo tambeacutem poderiam ser travadas ldquono terreno da palavra impressardquo MACIEL

Laura Antunes ldquoO popular na imprensa linguagens e memoacuteriasrdquo In Anais do XIX Encontro Regional

de Histoacuteria Poder violecircncia e exclusatildeo ANPUHSP ndash USP Satildeo Paulo pp 1-8 set 2008 p 1 e 5-6

Disponiacutevel em wwwanpuhsporgbrspdownloadsCD XIXPDFAutores e ArtigosLaura Antunes

Macielpdf Acessado em 10-07-2015

81

1911 encontrei na Folha de Mariano264

que estava inclusa no dito perioacutedico uma

reportagem sobre a luta dos caixeiros de Juiz de Fora pela reduccedilatildeo da jornada de

trabalho Aproveitando o ensejo a mateacuteria informava sobre as condiccedilotildees de trabalho das

mulheres e crianccedilas nas faacutebricas tecircxteis da regiatildeo de Mariano Procoacutepio como pode ser

observado na transcriccedilatildeo seguinte

Todas as classes proletarias tratam de diminuir as horas de trabalho Aqui

mesmo a classe caixeira reclama aliaacutes muito justamente o fechamento das

portas algumas horas mais cedo

Haacute entretanto outros operarios mais sobrecarregados de trabalho e mais mal

remunerados Entre elles os das fabricas de tecidos principalmente mulheres

e crianccedilas

E assim que pobres operarias da fabrica de tecidos de Mariano a maioria

composta de menores trabalham das 5 horas da manhatilde aacutes 5 horas da tarde

com os pequenos intervallos das refeiccedilotildees e ainda fazem seratildeo ate as 11

horas da noite segundo nos informam

A atmosfera que se respira nas fabricas de tecidos jaacute contribue para alterar a

saude dos operarios O mal augmenta consideravelmente com o accrescimo

de horas de trabalho sobretudo no veratildeo e principalmente quando esses

operarios satildeo moccedilas e crianccedilas

Parece-nos que essa classe proletaria tambeacutem merece a attenccedilatildeo de quem

deve cuidar da saude e da hygiene publica que estatildeo um pouco acima do

interesse industrial265

Na localidade de Mariano Procoacutepio citada na reportagem ora transcrita

localizava-se uma das mais importantes faacutebricas tecircxtil de Juiz de Fora a Companhia de

Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira fundada na deacutecada de 1880 e popularmente

conhecida pelo nome de ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo A Companhia era fruto de um

consoacutercio que tinha como principais promotores e acionistas os ingleses Andrew John e

Peter Steele Willian Moreth e Henry Whittaker ndash ldquocomerciantes e industriais

estabelecidos na Corte e na vizinha Petroacutepolisrdquo266

A reportagem destaca as peacutessimas condiccedilotildees de trabalho e as longas jornadas a

que estavam expostos natildeo apenas as crianccedilas e aproveita para chamar a atenccedilatildeo das

autoridades para tal situaccedilatildeo que foi colocada como uma questatildeo de sauacutede e higiene

puacuteblica267

Dentro dessas ditas condiccedilotildees precaacuterias de trabalho a tuberculose aparecia

como uma das moleacutestias que mais inspiravam cuidados por ceifar a forccedila de trabalho de

muitos operaacuterios Todavia as medidas para combater os focos de insalubridade e de

264

Mariano Procoacutepio eacute um bairro de Juiz de Fora Nessa regiatildeo estava localizada a ldquoFaacutebrica dos

Inglesesrdquo A maior parte do preacutedio da antiga faacutebrica foi demolido e na construccedilatildeo que restou funciona

uma empresa de alimentos 265

AHUFJF O Pharol 2 fev 1911 p 2 ldquoFolha de Marianordquo 266

Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit 2010 p 124 267 FRANCISCO Raquel Pereira Op cit 2012b p 116

82

propagaccedilatildeo da tuberculose e outras doenccedilas geralmente paravam nas portas das

faacutebricas e nas porteiras das fazendas onde as autoridades natildeo conseguiam intervir para

melhorar as condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios O Delegado de Higiene de Juiz de

Fora Dr Joseacute de Mendonccedila Mattos Moreira em seu relatoacuterio de janeiro de 1910

atribuiacutea as dificuldades encontradas pelas autoridades no que diz respeito a um controle

maior sobre as condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios agrave ausecircncia de uma legislaccedilatildeo sobre

as condiccedilotildees de trabalho particularmente no que se refere agrave higiene industrial268

A presenccedila de crianccedilas nas induacutestrias de Juiz de Fora foi observada tambeacutem nos

processos de acidentes no trabalho onde as precaacuterias condiccedilotildees de trabalho satildeo

observadas nos mais diversos tipos de acidentes em que os jovens operaacuterios se

envolveram levando alguns a oacutebito

O problema da carga horaacuteria dos pequenos operaacuterios foi uma questatildeo que

suscitou debates entre vaacuterios grupos da sociedade brasileira nas deacutecadas iniciais do

seacuteculo XX sendo tambeacutem uma questatildeo debatida pela Cacircmara de Vereadores e pela

imprensa de Juiz de Fora

Em julho de 1912 o vereador Dr Francisco Augusto Pinto de Moura269

apresentou um projeto a Cacircmara Municipal de Juiz de Fora em que as crianccedilas operaacuterias

de ateacute 14 anos natildeo poderiam exercer suas atividades depois das 17 horas270

Essa

proposta segundo um artigo do Jornal do Commercio estava sendo muito bem recebida

268

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 133-134 269

Francisco Augusto Pinto de Moura formado em Direito pela Faculdade de Direito de Satildeo Paulo foi

vereador da Cacircmara Municipal de Juiz de Fora de 1912 a 1922 Atuou no magisteacuterio sendo professor da

Academia de Comeacutercio de Juiz de Fora e da Faculdade de Direito da qual foi um dos fundadores Cf

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 23 (Quadro II) 270

AHCJF ldquoCamara Municipalrdquo Diaacuterio Mercantil 24 jul 1912 p 2 O texto do projeto sobre a

regulamentaccedilatildeo do trabalho de crianccedilas nas faacutebricas de Juiz de Fora saiu publicado no Jornal Diaacuterio

Mercantil no dia 24-07-1912 AHCJF ldquoCamara Municipalrdquo Diaacuterio Mercantil 26 out 1912 p 2 Em 18

de outubro de 1912 pela Resoluccedilatildeo da Cacircmara Municipal n 669 foi aprovado o projeto de lei

ldquoO presidente da Camara Municipal de Juiz de Foacutera

Faccedilo saber a todos os habitantes do municipio que a Camara Municipal votou e eu promulguei a

resoluccedilatildeo seguinte

Artigo 1o - Eacute vedado aacutes creanccedilas de ambos os sexos menores de 14 anos de edade o serviccedilo nas fabricas

e officinas da cidade e seu municiacutepio da 5 horas da tarde em deante sob pena de incorrerem os

proprietaacuterios das fabricas ou officinas na multa de cem mil reis e no dobro em caso de reincidecircncia

Art 2o - Esta pena seraacute imposta pelo director de hygiene municipal quando no desempenho das funcccedilotildees

que lhe satildeo conferidas pelo art 3o sect 6 da Resol n

o 3 de 14 de maio de 1892 ou em qualquer occasiatildeo em

que verifique a infracccedilatildeo do artigo antecedente sendo a cobranccedila da multa effectuada pela forma

determinada em lei

Art 3o - O conhecimento ou determinaccedilatildeo da edade das creanccedilas em caso de duvida ficaraacute a criteacuterio do

director de hygiene salvo prova irrecusaacutevel em contrario

Art 4o - Revogam-se as disposiccedilotildees em contrariordquo

Mando portanto a todas as autoridades a quem o conhecimento e execuccedilatildeo pertencerem da referida

resoluccedilatildeo que a cumpram e faccedilam cumprir tatildeo inteiramente como nella se contecircm

Dada no paccedilo da Camara Municipal da cidade de Juiz de Foacutera aos dezoito dias []

Oscar Vidal Barbosa Lage presidente da Camara e agente executivo municipal

83

pelos ldquoorgams da imprensardquo271

De acordo com a notiacutecia as crianccedilas eram ldquoas flores de

uma geraccedilatildeo futurardquo e por isso era por elas que se deveria ldquoiniciar a campanha em

nome das generosas ideias como essa que a todos nos move em prol das classes

operariasrdquo A mateacuteria do jornal continua afirmando que era necessaacuterio cuidar da

ldquoeducaccedilatildeordquo do ldquopreparo espiritualrdquo da ldquohygienerdquo desses pequenos para que dessa

maneira pudesse ldquoassegurar em cada crianccedila de hoje um homem uacutetil agrave sociedade de

amanhatilderdquo e o pai vendo ldquoesse carinho pelo filhordquo ficaria mais conformado com as

dificuldades da vida e mesmo tendo que continuar a trabalhar 10 horas por dia

encontraria consolo no fato de saber que seus filhos estavam sendo protegidos por leis

que velavam ldquopela sua educaccedilatildeo e aprendizagem methodicasrdquo A reportagem destacou a

importacircncia de projetos para a proteccedilatildeo dos ldquooperariosinhosrdquo e dentro desse contexto

fez referecircncia agrave Lei do Ventre Livre (1871) como uma importante medida para a

extinccedilatildeo do trabalho escravo no paiacutes que comeccedilou pelo ventre das escravas ou seja

pelas crianccedilas As medidas em prol do operariado dentro dessa linha de raciociacutenio

deveriam iniciar-se pelas ldquoflores do futurordquo272

Esse projeto regulamentando o horaacuterio de trabalho das crianccedilas nas faacutebricas de

Juiz de Fora foi apresentado dentro de um contexto de tensatildeo entre o operariado e os

patrotildees culminando na deflagraccedilatildeo da greve em agosto de 1912 quando operaacuterios de

diversas aacutereas paralisaram suas atividades273

As crianccedilas operaacuterias foram suprimidas de seu direito agrave escolarizaccedilatildeo por causa

das longas e extenuantes horas de trabalho Essa problemaacutetica tambeacutem foi debatida pela

notiacutecia que assinala que a Cacircmara deveria criar escolas noturnas para atender esse

segmento da sociedade sendo caracterizado como dever do poder puacuteblico ldquoauxiliar o

operaacuterio na educaccedilatildeo de seus filhosrdquo274

Essa notiacutecia sobre a regulamentaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho dos ldquomenoresrdquo de

Juiz de Fora abre um leque de questotildees que natildeo satildeo visiacuteveis inicialmente sendo pois

necessaacuterio esquadrinhar ldquoos silecircncios e os aspectos ocultos nas entrelinhasrdquo do discurso

jornaliacutestico275

271

SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1 272

Idem 273

Em agosto de 1912 ocorreu uma greve em Juiz de Fora sendo uma das propostas a reduccedilatildeo da jornada

de trabalho para 8 horas Esse objetivo natildeo foi atingido pelos operaacuterios da ldquoManchesterrdquo em 1912 Para

mais informaccedilotildees sobre a greve de 1912 ver ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe

operaacuteria em Juiz de Fora uma histoacuteria de lutas (1912 ndash 1924) Juiz de Fora EDUFJF 1987 274

SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1 275

MACHADO Humberto F ldquoA atuaccedilatildeo da Imprensa do Rio de Janeiro no Impeacuterio do Brasilrdquo In

Revista do IHGB Rio de janeiro n 448 julhosetembro de 2010 p 33

84

O texto destaca a relevacircncia do projeto a necessidade de se proteger e educar os

pequenos operaacuterios Mas essas medidas tatildeo saudadas pela imprensa do municiacutepio

mineiro demonstram que os ditos anseios e zelos para com a infacircncia operaacuteria traziam

em seu bojo a preocupaccedilatildeo com o trabalhador em que essas crianccedilas iriam se

transformar futuramente O que a leitura dessa notiacutecia sugere eacute que as leis projetos

foram concebidas para abrandar as reivindicaccedilotildees das lutas operaacuterias Observando com

ldquolentes de aumentordquo as partes ldquoopacasrdquo do texto jornaliacutestico percebe-se que os projetos

leis seriam na verdade uma estrateacutegia dos setores dominantes da sociedade para amainar

a insatisfaccedilatildeo do proletariado Os pais ldquofelizesrdquo pelas leis que protegiam seus filhos

aceitariam ldquosacrifiacutecios indiziacuteveisrdquo e encontrariam ldquomais consolo nas agruras da vida

inevitaacuteveis de prompto e desculparaacute muita iniquidade que por enquanto natildeo nos eacute dado

impedirrdquo276

Presumo que os projetos com vistas a proteger e amparar os

ldquooperariosinhosrdquo traziam em seu bojo a expectativa de refrear o desejo de luta por

melhores condiccedilotildees de trabalho de seus genitores

Junto com a discussatildeo sobre o trabalho de crianccedilas nas induacutestrias a questatildeo da

sua escolarizaccedilatildeo tambeacutem se apresentou A educaccedilatildeo para as crianccedilas desvalidas era

visualizada como uma estrateacutegia para educar e preparar o trabalhador do futuro O

ensino destinado a elas era o baacutesico acompanhado do aprendizado de um oficio ou seja

visava tatildeo somente disciplinar e incutir valores morais nos trabalhadores do amanhatilde e

natildeo promover a sua elevaccedilatildeo social atraveacutes de um ensino de qualidade

No Diaacuterio Mercantil de quatro de agosto de 1912 foram publicados artigos

elogiando o projeto de lei do Dr Pinto de Moura Em uma das mateacuterias foi destacada a

reportagem do ldquoillustre e brilhante chronista do Jornal do Commercio localrdquo da ldquosecccedilatildeo

lsquoTirasrsquordquo que havia chamado a atenccedilatildeo sobre a necessidade de criaccedilatildeo de escolas

noturnas para atender os jovens operaacuterios A respeito do ensino para os ldquomenoresrdquo o

texto do Diaacuterio Mercantil ressaltou que essa era uma necessidade e chamou a atenccedilatildeo

para o fato de que o ensino primaacuterio era obrigatoacuterio ldquoem face do dec Estadoal n 3911

de 1911 a nenhum pae ou tutor eacute licito deixar de mandar seus filhos agrave escolardquo e ainda

assinalou que na cidade existia uma ldquoescola nocturna na Avenida D Rita Halfeld da

conferencia de S Vicente de Paulordquo que era ldquodirigidardquo pelo professor Carlos Machado

Mas que natildeo havia procura por parte das ldquocreanccedilas filhas das socorridas dessa Avenida

porque aacute noite estatildeo occupadas nas fabricasrdquo Assim era imprescindiacutevel que de ldquopar

276

SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1

85

com a lei municipalrdquo sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil a lei estadual do

ensino fosse respeitada277

Em outra mateacuteria do mesmo jornal e data assinada por Joatildeo Vargas discutiu-se

a importacircncia do projeto bem como a problemaacutetica em que estava envolvida a questatildeo

do trabalho infanto-juvenil no periacuteodo Segundo Joatildeo Vargas o projeto apresentado agrave

Cacircmara pelo vereador Pinto de Moura sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho noturno de

crianccedilas era ldquocompleto e perfeitordquo e atendia as necessidades do municiacutepio e colocava

em ldquoharmonia interesses permanentemente em jogordquo Dessa maneira natildeo cabia

ldquoampliaccedilotildees que os sentimentos excessivamente generosos de alguns distinctos

confrades e as suas convicccedilotildees philosophicas tem sugeridordquo278

Em sua explanaccedilatildeo

ainda ressaltou que natildeo era justo que se limitasse a

[] analyse a um aspecto uacutenico da questatildeo que se procura resolver Natildeo basta

examinal-a exclusivamente do lado moral do ponto de vista de direitos que

se possam ferir eacute imprescindiacutevel o estudo sob o aspecto da economia publica

e privada279

De acordo com Joatildeo Vargas a preocupaccedilatildeo que perpassava o projeto era a

ldquoelevaccedilatildeo do niacutevel intellectual moral e physico do operaacuterio do futurordquo e tal objetivo

seria ldquorelativamente atingidordquo O projeto tinha o meacuterito de natildeo tirar o

[] menor do trabalho privando-o de collaborar com o seu auxilio

muitiacutessimas vezes indispensavel na mantenccedila dos pais invalidos para

abandonal-o aacute rua aacutes solicitaccedilotildees da vadiagem e viacutecios daacute-lhe apenas

descanccedilo preciso para que o seu desenvolvimento physico moral e

intellectual natildeo seja retardado ou annullado na sua marcha pela ausecircncia de

repouso frequecircncia escolar e recreios280

Ainda para embasar a sua argumentaccedilatildeo de que o projeto do vereador Pinto de

Moura estava ldquocompleto e perfeitordquo o cronista do Diaacuterio Mercantil passou a discorrer

sobre os paiacuteses europeus (Inglaterra Franccedila Suiacuteccedila e Aacuteustria) que haviam decretado leis

relativas ao trabalhador infanto-juvenil Assim ressaltou que as ldquolegislaccedilotildees operariasrdquo

desses paiacuteses estava ldquoproduzindo efeitos desastrososrdquo De acordo com Joatildeo Vargas o

277

AHCJ ldquoSemanalrdquo Diaacuterio Mercantil 04 ago 1912 p 1 No mesmo perioacutedico e data saiu uma nota em

que a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora declarava que estava de ldquopleno accordordquo com o

projeto do vereador Dr Pinto de Moura sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho noturno de crianccedilas 278

AHCJ ldquolsquoFilmsrsquo Cariocasrdquo Diaacuterio Mercantil 04 ago 1912 p 1 279

Idem p 1 280

Ibidem

86

intelectual francecircs Gustave Le Bon281

havia constatado em seus estudos que a ldquolei

franceza de 1900rdquo referente ao trabalhador ldquomenorrdquo teve como resultado a

ldquodesappariccedilatildeo da aprendizagem e o aumento da criminalidade infantilrdquo Entretanto o

projeto apresentado agrave Cacircmara de Juiz de Fora natildeo expunha a cidade a tal risco pois o

Dr Pinto de Moura natildeo era ldquoum metaphysicordquo282

As duas reportagens do Diaacuterio Mercantil comentadas anteriormente ressaltam

a importacircncia do projeto de lei para a cidade e para as crianccedilas operaacuterias no que diz

respeito a sua escolarizaccedilatildeo Todavia no artigo assinado por Joatildeo Vargas observa-se

uma provaacutevel preocupaccedilatildeo com reivindicaccedilotildees ou propostas ditas mais radicais com

relaccedilatildeo agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil no municiacutepio Conjecturo que um dos

receios estivesse relacionado agraves propostas de se estabelecer um limite de idade para o

ldquomenorrdquo ser admitido nos estabelecimentos industriais Provavelmente tal receio era

compartilhado por vaacuterios segmentos das classes dominantes locais O projeto do

vereador Pinto de Moura versava sobre o horaacuterio de trabalho das crianccedilas nos

estabelecimentos fabris natildeo tocando na questatildeo idadeadmissatildeo e esse detalhe foi

elogiado pelo cronista pelo fato de natildeo retirar a crianccedila do trabalho O projeto de lei

basicamente objetivava propiciar meios para as crianccedilas operaacuterias terem acesso agrave

escola No texto de J Vargas observa-se a presenccedila do discurso dominante do periacuteodo

em que o trabalho era concebido como um antiacutedoto para a vadiagem e a criminalidade

infantil bem como uma defesa dos interesses das classes detentoras dos meios de

produccedilatildeo

Na anaacutelise dos processos judiciais observei a partir dos ldquoautos de perguntasrdquo dos

documentos que a grande maioria das crianccedilas envolvidas natildeo havia recebido a

instruccedilatildeo elementar Nos ldquoautosrdquo os ldquomenoresrdquo geralmente declaravam que ldquonatildeo sabia

ler e nem escreverrdquo ou que ldquosabia assinar o nomerdquo Apesar da constante exaltaccedilatildeo da

educaccedilatildeo nos perioacutedicos do final do seacuteculo XIX e princiacutepios do XX como uma vereda

para o paiacutes atingir o tatildeo decantado progresso natildeo houve realmente uma poliacutetica voltada

281

Charles-Marie Gustave Le Bon (1841-1931) intelectual francecircs que atuou nos campos da psicologia

social e da sociologia Cf CONSOLIM Maacutercia Cristina Raccedila e histoacuteria na obra de Gustave Le Bon In

Anais do XIX Encontro regional de Histoacuteria Poder Violecircncia e Exclusatildeo ANPUHSP-USP Satildeo Paulo

08 a 12 de setembro de 2008 Disponiacutevel em

httpwwwanpuhsporgbrspdownloadsCD20XIXPDFAutores20e20ArtigosMarcia20Cristin

a20Consolimpdf Acessado em 10-05-2015 282

AHCJ ldquolsquoFilmsrsquo Cariocasrdquo Diaacuterio Mercantil 04 ago 1912 p 1 Segundo informaccedilotildees da reportagem

a legislaccedilatildeo social de alguns paiacuteses europeus estabeleceu os limites de idades em que os ldquomenoresrdquo

poderiam ser admitidos nas faacutebricas e oficinas sendo na Inglaterra a partir dos 12 anos na Franccedila dos 13

anos e na Suiacuteccedila e Aacuteustria dos 14 anos de idade Idem

87

para a preparaccedilatildeo dos jovens desvalidos O que as fontes compulsadas sugerem eacute que a

preocupaccedilatildeo das classes dominantes (poliacutetico-econocircmica) era com a constituiccedilatildeo de

trabalhadores ordeiros e disciplinados para compor a matildeo de obra da nascente sociedade

industrial brasileira

A ideologia do trabalho como um ldquoremeacutediordquo para a vadiagem e a ociosidade e

como um caminho para se alcanccedilar a prosperidade ultrapassou a barreira do discurso

das classes dominantes Esse pensamento constantemente presente nas paacuteginas dos

perioacutedicos nas falas dos policiais das autoridades poliacuteticas dos juristas nos sermotildees

dos padres pastores foi criando raiacutezes no seio das camadas empobrecidas da sociedade

tornando-se o trabalho um santo de devoccedilatildeo283

de expressiva parcela da populaccedilatildeo

pobre sendo ele visualizado como uma atividade que conferia dignidade bens materiais

e respeito Ditados como lsquosou pobre mas sou trabalhadorrsquo lsquoescola de pobre eacute a faacutebricarsquo

lsquoestudo natildeo enche barrigarsquo presentes ainda hoje nas falas das pessoas mais humildes

demonstram como que no processo de construccedilatildeo da eacutetica do trabalho a questatildeo da

formaccedilatildeo intelectual das crianccedilas das camadas empobrecidas ficou em um plano

secundaacuterio O importante era a preparaccedilatildeo desses pequenos para o mercado de trabalho

competitivo e assalariado que entatildeo estava se constituindo Os setores desfavorecidos da

sociedade sem perspectivas de mudanccedilas de suas condiccedilotildees de vida visualizavam o

trabalho como o uacutenico mecanismo de transformaccedilatildeo e ou de soluccedilatildeo de seus problemas

imediatos alimentaccedilatildeo e moradia Eles natildeo conseguiram ter a dimensatildeo ou natildeo tiveram

condiccedilotildees materiais de ver as possibilidades que a educaccedilatildeo poderia trazer para seus

rebentos e nem o Estado e os setores dominantes se comprometeram efetivamente

com o ensino das crianccedilas pobres

Dentro desse contexto os Grupos Escolares se destacaram como espaccedilos de

formaccedilatildeo das classes trabalhadoras Segundo Maraliz Christo eles tinham uma

[] funccedilatildeo social bem definida fazer bons cidadatildeos e acima de tudo bons

trabalhadores Cabia ao ensino elementar uma missatildeo moralizadora e

civilizatoacuteria onde o saber apesar do discurso liberal natildeo era visto como um

direito mas como um mecanismo disciplinar para formar o tipo de cidadatildeo

prestaacutevel ditado pelas classes dominantes o trabalhador submisso284

283

Estou empregando essa metaacutefora religiosa para me referir agrave importacircncia que parcela expressiva da

populaccedilatildeo pobre dava (daacute) ao trabalho como um meio de lhe conferir dignidade e respeito perante a

sociedade 284

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 116

88

A reforma do ensino em Minas Gerais (1906) durante o governo de Joatildeo

Pinheiro resultou na criaccedilatildeo dos Grupos Escolares tendo Juiz de Fora sediado o

primeiro estabelecimento desse gecircnero que comeccedilou a funcionar em fevereiro de 1907

com a inauguraccedilatildeo do Grupo Escolar ldquoDelfim Moreirardquo O curriacuteculo desses grupos

escolares tinha como principal vieacutes o ldquoensino da submissatildeordquo285

Para Maraliz Christo a

estrutura de ensino montada para esses grupos visava a ldquodomesticaccedilatildeordquo natildeo apenas das

pessoas que estavam inseridas como da populaccedilatildeo excluiacuteda de seus muros286

O inspetor escolar da Cacircmara de Juiz de Fora Heitor Guimaratildees287

em um

artigo publicado no jornal Correio de Minas288

quando da inauguraccedilatildeo do Grupo

Escolar ldquoDelfim Moreirardquo intitulado ldquoPelos Pobresrdquo ressaltou que pensava que os

ldquogrupos escolares como as escolas primarias isoladasrdquo se destinavam ao atendimento

das crianccedilas pobres entretanto consideradas as exigecircncias com calccedilados uniformes e

livros muitas natildeo teriam condiccedilotildees de permanecer e dessa forma o ldquoEstadordquo acabaria

ldquoministrando instrucccedilatildeo gratuita aos favorecidos da sorte apenasrdquo Para o inspetor

deveria ser exigido apenas asseio dos alunos pois isso fazia parte da educaccedilatildeo Outra

criacutetica lanccedilada por Heitor Guimaratildees aos grupos escolares se refere ao vestuaacuterio que as

professoras ldquoforam convidadas a apresentar-se sempre de roupa branca de chapeacuteo e

luvas []rdquo [grifos no original] Para ele a ldquoinstrucccedilatildeo publica nada lucra com esse luxo

inuacutetil[]rdquo289

De fato a educaccedilatildeo puacuteblica para os pobres de nada lucrou com o ldquoluxo

inuacutetilrdquo das normas do grupo escolar sendo que a evasatildeo foi grande290

285

Idem p 118-119 Segundo Maraliz Christo no curriacuteculo dos grupos escolares constavam ldquoevoluccedilotildees

militares a ginaacutestica os hinos escolares a disciplina o estudo seriado o aprendizado de lsquocoisas

concretasrsquo a ecircnfase agrave praacutetica o culto da autoridade do trabalho e da higienerdquo Ibidem p 119 286

Ibidem p 119 Cf FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis

Vozes 2007 p 174 287

Heitor Guimaratildees foi um dos fundadores da Academia Mineira de Letras (AML) em Juiz de Fora (25

de dezembro de 1909) e o fundador da Associaccedilatildeo de Imprensa de Minas aleacutem de ser membro de vaacuterias

outras instituiccedilotildees Na aacuterea do magisteacuterio atuou como professor em diversos coleacutegios (Juiz de Fora e Rio

de Janeiro) e foi Inspetor Escolar Municipal de Juiz de Fora No jornalismo fundou o Democraacutetico

(1884) e em 1893 a revista literaacuteria Folha Azul no Rio de Janeiro Guimaratildees atuou em vaacuterios oacutergatildeos da

imprensa Com relaccedilatildeo a sua produccedilatildeo literaacuteria escreveu poesias contos crocircnicas e livros didaacuteticos Cf

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 21-22 (Quadro I ndash continuaccedilatildeo) 288

O Correio de Minas foi fundado por Estevatildeo de Oliveira em maio de 1894 Segundo o artigo do

Diaacuterio Mercantil intitulado ldquoHistoacuteria da imprensa de Juiz de Forardquo o perioacutedico era um ldquoorgatildeo

republicano e democraacutetico consagrado aos interesses fundamentais do Estado de Minasrdquo e que o seu

proprietaacuterio e redator Estevatildeo de Oliveira ldquolhe deu cunho poliacutetico acentuadamente nacionalistardquo

AHCJF ldquoHistoacuteria da imprensa de Juiz de Forardquo Diaacuterio Mercantil 27 abr 1946 Ao longo de sua

existecircncia o jornal perteceu a diversos proprietaacuterios que de lhe deu diferentes orientaccedilotildees poliacuteticas Em

1929 foi colocado a ldquoserviccedilo da Alinaccedila Liberalrdquo sendo o seu proprietaacuterio o industrial e poliacutetico

Severino Costa Circulou ateacute 1949 Cf OLIVEIRA Almir de Op cit 1981 p 27-28 289

SM-BMMM ldquoPelos Pobresrdquo Correio de Minas Juiz de Fora 5 fev 1907 p 1 290

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 120

89

Por causa em grande parte ao ldquoluxo inuacutetilrdquo dos grupos escolares uma parcela

expressiva das crianccedilas pobres ficou alijada dos bancos escolares Aleacutem das exigecircncias

como uniformes sapatos e livros que representavam uma barreira para os filhos dos

operaacuterios frequentarem a escola outro fator que os afastavam do ambiente escolar era a

necessidade de ajudar a famiacutelia com seu trabalho constituindo muitos jovens operaacuterios

em ldquoarrimordquo ou ldquoprovedorrdquo de famiacutelia Nos processos de acidentes no trabalho que

pesquisei e que adiante seratildeo analisados muitos deles declararam-se como provedores

da famiacutelia principalmente naquelas constituiacutedas pela matildee (viuacutevas ou natildeo) e filhos

Nas faacutebricas de Juiz de Fora a matildeo de obra infanto-juvenil era abundante sendo

constantemente objeto de apreciaccedilatildeo pela imprensa local que registrava os acidentes as

condiccedilotildees de trabalho os espancamentos a necessidade de reduccedilatildeo da jornada de

trabalho a proibiccedilatildeo dos serotildees entre outros assuntos As crianccedilas das classes populares

aparecem basicamente nos perioacutedicos nas situaccedilotildees de carecircncia como operaacuterias ou

como perturbadores da ordem e da disciplina o que levava os ldquohomens de letrasrdquo291

em

nome dos interesses das classes dominantes a solicitar das autoridades ora medidas de

proteccedilatildeo ora de puniccedilatildeo para esse estrato da sociedade292

Muitos desses ldquomenoresrdquo pobres que viviam pelas ruas das cidades trabalhando

nas faacutebricas e em outros estabelecimentos eram filhos de moradores dos corticcedilos que

segundo o discurso da imprensa eram lugares ldquonos quaes se accumula[va] grande

numero de individuos ndash operarios famiacutelias etcrdquo293

e enfrentavam desde cedo as

dificuldades de sobrevivecircncia impostas agraves camadas populares A ldquoManchester Mineirardquo

a exemplo da capital federal jaacute nos anos finais do seacuteculo XIX enfrentava o problema

dos corticcedilos A preocupaccedilatildeo era com as condiccedilotildees higiecircnicas dessas moradias que

poderiam acarretar graves problemas para a sociedade como um todo uma vez que se

localizavam na aacuterea central ou nos subuacuterbios proacuteximos ao centro da cidade Os corticcedilos

e casas populares habitados pelos trabalhadores prostitutas desordeiros em suma pela

populaccedilatildeo pobre localizavam-se nas regiotildees proacuteximas ao rio Paraibuna ou seja nas

aacutereas que estavam mais sujeitas agraves enchentes Jaacute a classe mais abastada ocupava as

aacutereas mais nobres e de colinas longe das inundaccedilotildees como a Rua Direita (atual Av

Baratildeo do Rio Branco) Rua Santo Antocircnio a parte alta da Rua Halfeld a regiatildeo do Alto

291

A expressatildeo foi utilizada por James Goodwin Junior que a adaptou de ldquoordem gendelettrerdquo (ldquogente de

letrasrdquo) de Balzac Para o historiador os literatos que paralelamente atuavam como ldquojornalistasrdquo no final

do seacuteculo XIX e no iniacutecio do seacuteculo XX eram ldquohomens de letrasrdquo Cf GOODWIN JUNIOR James

William Op cit 2007 p 87 292

NEDER Gizlene Op cit 2004 p 213 293

SM-BMMM Jornal do Commercio 29 maio 1897 p 1

90

dos Passos294

entre outras Apesar das condiccedilotildees insalubres e precaacuterias dessas

habitaccedilotildees segundo os jornais os alugueacuteis eram altos para os parcos rendimentos de

seus habitantes A imprensa local constantemente solicitava das autoridades

ldquohygienicasrdquo e policiais providecircncias com relaccedilatildeo a essas habitaccedilotildees por causa dos

miasmas que exalavam O combate aos corticcedilos decorria principalmente de questotildees

sanitaacuterias e higiecircnicas bem como morais295

As imagens seguintes datildeo uma dimensatildeo

das condiccedilotildees precaacuterias das casas habitadas pelos segmentos vulneraacuteveis da populaccedilatildeo

de Juiz de Fora

Imagem 5 ldquoHabitaccedilatildeo Operaacuteriardquo SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica

literaria politica e noticiosa Juiz de Fora 26 de fevereiro de 1922 p 244

294

A ligaccedilatildeo de Juiz de Fora com o Rio de Janeiro pode ser apreendida em pequenos detalhes como

apelidar um arrabalde do municiacutepio com nomes de bairros cariocas Em 1921 a revista A Evoluccedilatildeo

chamou o Alto dos Passos de o ldquolsquoBotafogorsquo de Juiz de Forardquo SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista

pedagogica literaria poliacutetica e noticiosa Juiz de Fora 31 de outubro de 1921 v I fasciacuteculo VI p 97 295

Para mais informaccedilotildees sobre as condiccedilotildees de moradias da populaccedilatildeo trabalhadora e pobre de Juiz de

Fora na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX ver o trabalho de SILVA Maiacutera Carvalho Carneiro Lugar

de trabalhador eacute na aacuterea de serviccedilo moradia popular em Juiz de Fora (1892-1930) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Juiz de Fora UFJF 2008 p 55-62 90

91

Imagem 6 Habitaccedilatildeo Operaacuteria SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica

literaria politica e noticiosa Juiz de Fora 26 de fevereiro de 1922 p 245

As crianccedilas e as famiacutelias pobres viviam em uma sociedade que buscava por meio

de vaacuterias medidas de controle social enquadraacute-las dentro de uma visatildeo de mundo

burguesa de ordem civilizaccedilatildeo e progresso Por essa razatildeo a sua organizaccedilatildeo familiar

suas habitaccedilotildees seus costumes sua religiosidade e meios de lazer eram alvos constantes

das medidas puacuteblicas de coerccedilatildeo e controle Entretanto a essa parcela da populaccedilatildeo natildeo

eram dadas as condiccedilotildees materiais de sobrevivecircncia dentro dessa sociedade

ldquocivilizadardquo da disciplina e da ordem Com os parcos salaacuterios recebidos pela populaccedilatildeo

pobre em geral restavam apenas as casas de cocircmodos os corticcedilos que geralmente

localizavam-se em aacutereas carentes de infraestrutura urbana

A preocupaccedilatildeo dos agentes da administraccedilatildeo municipal com relaccedilatildeo aos serviccedilos

urbanos baacutesicos e de embelezamento era primordialmente com a aacuterea central e em

especial a que era habitada pelos setores dominantes da sociedade Durante a

administraccedilatildeo de Joseacute Procoacutepio Teixeira o ldquoHaussmann de Juiz de Forardquo296

houve um

consideraacutevel investimento nos serviccedilos de calccedilamentos embelezamento ndash arborizaccedilatildeo

jardins ndash abertura de novas vias de acesso construccedilatildeo do novo paccedilo municipal entre

296

Gazeta Comercial Juiz de Fora 17 de maio de 1928 Apud MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990

p 197-198

92

outras obras localizadas nas aacutereas mais valorizadas297

O novo preacutedio das Reparticcedilotildees

Municipais em estilo neoclaacutessico foi inaugurado em 1918 ndash durante a administraccedilatildeo do

Haussmann mineiro sendo uma construccedilatildeo mais moderna e antenada com o progresso

da cidade estando localizado na Avenida Baratildeo do Rio Branco (antiga Rua Direita)

esquina com a Rua Halfeld um ldquoprotoacutetipo em termos arquitetocircnicos da Avenida Central

no Rio de Janeirordquo298

Imagem 7 ldquoJoseacute Procoacutepio Teixeirardquo SM-BMMM A

Evoluccedilatildeo revista pedagogica literaria poliacutetica e noticiosa

Juiz de Fora 30 de setembro de 1922

297

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 196-197 Sobre a questatildeo das reformas urbanas

empreendidas na capital federal nos primeiros anos da Repuacuteblica e das poliacuteticas de controle social

exclusatildeo e segregaccedilatildeo da populaccedilatildeo pobre das ldquoaacutereas nobresrdquo da cidade ver entre outros o trabalho de

NEDER Gizlene Op cit 1997 298

MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 207

93

Imagem 8 ldquoEdifiacutecio das Reparticcedilotildees Municipaisrdquo SM-

BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica literaria

poliacutetica e noticiosa Juiz de Fora 30 de setembro de 1921

p 43

Nessa avenida onde predominavam os ldquopalacetes e chalets construiacutedos dentro

de um padratildeo arquitetocircnico ecleacutetico caracteriacutestico do periacuteodo da Belle Eacutepoquerdquo299

estavam localizados tambeacutem outros siacutembolos do poder (poliacutetico econocircmico e religioso)

do progresso e modernidade de Juiz de Fora dentre os quais o Foacuterum a Matriz o

Parque Municipal (atual Parque Halfeld) a Santa Casa de Misericoacuterdia e o Club Juiz de

Fora O dito Club uma associaccedilatildeo civil foi inaugurado no mesmo ano em que as novas

instalaccedilotildees das Reparticcedilotildees Municipais e localizava-se na esquina da Avenida Rio

Branco com a Rua Halfeld No salatildeo desse preacutedio ocorriam os bailes de gala onde se

reuniam os grupos dominantes da cidade 300

299

Idem p 207 300

O preacutedio do Club Juiz de Fora foi destruiacutedo na deacutecada de 1950 por um incecircndio sendo no local

construiacutedo outro preacutedio com a mesma denominaccedilatildeo e que tecircm em sua fachada os paineacuteis em azulejos

ldquoAs quatro estaccedilotildeesrdquo e ldquoCavalosrdquo ambos de Cacircndido Portinari Os paineacuteis foram tombados pelo poder

executivo municipal em 1997 pelo Decreto no 058691997 e o preacutedio em 2002 pelo Decreto 7475 de 25

de julho de 2002 Para mais informaccedilotildees sobre o Club Juiz de Fora cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna

Op cit 2013 p 28 e 29

94

Imagem 9 Avenida Baratildeo do Rio Branco ndash Juiz de Fora 1920 Acervo Ramon Brandatildeo

Como salientado anteriormente a populaccedilatildeo pobre ficava excluiacuteda dos serviccedilos

urbanos baacutesicos e segregada espacialmente uma vez que as poliacuteticas puacuteblicas de

controle social procuravam afastar os grupos que natildeo se identificavam com a imagem

de progresso e modernidade da cidade para as aacutereas distantes da regiatildeo central

A populaccedilatildeo pobre da ldquoManchester Mineirardquo que vivia nas aacutereas insalubres e

afastadas da Avenida Rio Branco com seus palacetes e chalets comeccedilou a reivindicar

melhores condiccedilotildees de vida e de trabalho desfazendo a imagem propagada pelos oacutergatildeos

da imprensa de uma cidade ordeira Joseacute Procoacutepio Teixeira presidente da Cacircmara

enfrentou em sua administraccedilatildeo os protestos e comiacutecio da populaccedilatildeo ndash em frente ao

novo preacutedio das Reparticcedilotildees Municipais ndash contra a carestia de vida em agosto de 1918

Os protestos resultaram em saques nos estabelecimentos da cidade Esse movimento

popular ficou conhecido como ldquogreve do accediluacutecarrdquo e foi reprimido pela poliacutecia e pelo

exeacutercito301

A exemplo dos grandes centros industriais da jovem Repuacuteblica brasileira Rio de

Janeiro e Satildeo Paulo a classe operaacuteria juiz-forana tambeacutem promoveu movimentos

grevistas no decorrer das deacutecadas de 1910 e 1920 Na pauta de reivindicaccedilatildeo estavam a

301

ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 p 103 -105 Nas localidades proacuteximas de

Juiz de Fora tambeacutem ocorreram movimentos populares de protestos contra a carestia de vida Cf

ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987

95

melhoria das condiccedilotildees de trabalho o aumento salarial a reduccedilatildeo da jornada de

trabalho para oito horas a regulamentaccedilatildeo do trabalho feminino e infanto-juvenil entre

outras questotildees As mobilizaccedilotildees operaacuterias da ldquoManchester Mineirardquo estavam em

consonacircncia com as que estavam ocorrendo nas outras regiotildees industrializadas do paiacutes

Segundo Silvia Vilela de Andrade a conjuntura de 1917-1920 eacute um periacuteodo

emblemaacutetico de ldquomobilizaccedilatildeo da classe trabalhadora no Brasil que pressiona a atuaccedilatildeo

dos industriais e do Estado quanto agrave elaboraccedilatildeo de leis regulamentadoras do

trabalhordquo302

Dentro do quadro de reivindicaccedilotildees do operariado de Juiz de Fora uma

conquista foi obtida com a aprovaccedilatildeo pela Cacircmara Municipal em 1912 do Decreto que

regulamentou o horaacuterio de trabalho dos jovens operaacuterios anteriormente examinado

A precariedade de vida da classe trabalhadora que em fases mais agudas

resultavam em protestos contribuiacutea para que muitas crianccedilas ingressassem no universo

adulto e no ldquomundo do trabalhordquo precocemente sendo assim privadas das brincadeiras

e dos bancos escolares Essa mesma precariedade fazia com que as mulheres pobres

deixassem o seu lar contrapondo-se dessa maneira ao ideal burguecircs da esposa-matildee-

dona de casa para trabalharem no serviccedilo domeacutestico ou fabril Seus filhos que ainda

natildeo trabalhavam fora do lar sem escolas (pela falta de vagas nos estabelecimentos

puacuteblicos ou de condiccedilotildees de atenderem agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo de ensino) viviam

pelas ruas das cidades a praticarem vaacuterias travessuras descritas pelos jornais como

tropelias Com relaccedilatildeo aos filhos da classe operaacuteria juiz-forana O Lynce publicou uma

mateacuteria discutindo a necessidade de as autoridades promoverem a assistecircncia para os

filhos dos operaacuterios O artigo intitulado ldquoAssistecircncia aacute infanciardquo criticava a falta de

assistecircncia escolar agrave crianccedila filha de operaacuterios nos seguintes termos

A falta de assistencia official aacute infancia pobre nesta cidade eacute um facto

Esta cidade cuja populaccedilatildeo em sua maioria vive do trabalho nas fabricas

devia ter nas zonas mais importantes um pequeno estabelecimento de

proteccedilatildeo aacutes creanccedilas de operarios mantidos pelo governo visto que a renda

estadoal aqui recompensa qualquer despeza nesse sentido

Essa protecccedilatildeo poderia ser feita da seguinte foacuterma o Estado construiria em

cada zona operaria um edifiacutecio adequado para receber durante o dia as

creanccedilas cujas matildees fossem trabalhar nas fabricas Completa a construccedilatildeo do

edifiacutecio [] faria entrega do mesmo juntamente como uma quota mensal a

Camara Municipal que por sua vez organizaria uma associaccedilatildeo que zelasse

pelas creanccedilas durante as horas em que as pobres matildees estivessem no

emprego

[]

O operario com alugueis e alimentos caros para manter a familia tem que

trabalhar aacute bessa dahi a necessidade da esposa ir para fabrica em prejuiacutezo de

sua sauacutede e dos filhinhos

302

Idem p 103

96

Proveacutem desse facto a crescente mortalidade infantil que no ponto em que

estaacute eacute o comeccedilo de uma grande e proacutexima calamidade

Emquanto que os filhos dos operaacuterios se definham e morrem porque os seus

paes natildeo podem dar-lhes o conforto que precisam o governo manteacutem o

pomposo e dispensavel Jardim da Infacircncia que natildeo demonstra vantagem de

espeacutecie alguma visto que soacute podem frequental-o creanccedilas de famiacutelias ricas

ou remediadas taes satildeo exigencias para a matricula Vejamos uniformes

caro cestinha de vime com merenda (que natildeo seja anguacute) bonde etc

Eacute ateacute irrisoacuterio O rico aleacutem de ter meios proprios para dar conforto e

divertimento aos filhos tem aacute sua disposiccedilatildeo um grande Jardim da

Infancia[] o pobre que natildeo tem meios para alimentar regularmente sua

prole natildeo merece dos governos a protecccedilatildeo que faz jus

[] Jardim da Infacircncia do Largo do Riachuelo fosse transformado em escola

maternal operaria

Como estaacute natildeo tem utilidade nenhuma303

Ao longo desse item do capiacutetulo tenho apresentado que era uma constante nos

perioacutedicos as reclamaccedilotildees quanto agrave presenccedila de ldquomenoresrdquo pelas ruas da cidade Creio

que uma parcela expressiva dessas crianccedilas que faziam das vias puacuteblicas da cidade um

local de brincadeiras de amizades e de sobrevivecircncia fossem filhos de pais

trabalhadores que passavam longe da prole os dias e agraves vezes a noite dados os

constantes serotildees304

das faacutebricas Como o grosso da populaccedilatildeo pobre e trabalhadora

morava em habitaccedilotildees precaacuterias e pequenas em consequecircncia as crianccedilas que ficavam

em casa para os pais e ou matildees trabalharem encontravam na rua um espaccedilo de lazer e

de liberdade

O artigo jornaliacutestico transcrito acima chama a atenccedilatildeo para essa problemaacutetica

social ndash os pais necessitando trabalhar para sustentar a famiacutelia deixavam os filhos em

casa por conta proacutepria sem ter quem cuidasse de sua educaccedilatildeo Posto isso eacute colocado

pela mateacuteria a necessidade de o poder puacuteblico auxiliar os pais nessa tarefa criando um

estabelecimento que cuidasse dos filhos das operaacuterias enquanto as mesmas

trabalhavam Essa discussatildeo sobre a assistecircncia agraves crianccedilas e adolescentes eacute bem atual

haja vista os debates em torno da educaccedilatildeo de tempo integral que entre outros fatores

reforccedilam a intenccedilatildeo de os manterem longe das ruas e das situaccedilotildees de risco social

A mateacuteria ainda faz uma denuacutencia com relaccedilatildeo agrave existecircncia na cidade de um

ldquopomposordquo Jardim da Infacircncia que apesar de puacuteblico era frequentado apenas pelas

ldquocreanccedilas de famiacutelias ricas ou remediadasrdquo pois as camadas pobres natildeo tinham

303

SM-BMMM ldquoAssistencia aacute Infanciardquo O Lynce 27 set 1925 p 1 304

Segundo Luiacutes Eduardo de Oliveira os serotildees eram visualizados pelos setores dominantes como um

siacutembolo do vigor e da pujanccedila da ldquoeconomia urbana da Manchester Mineirardquo Ao operariado dos

estabelecimentos industriais de Juiz de Fora constituiacutedo em sua maioria por ldquomenoresrdquo e mulheres era

imposta uma jornada de trabalho que poderia chegar ateacute16 hora por dia OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de

Op cit 2010 p 249

97

condiccedilotildees de arcarem com as despesas de uniformes cestinhas para merenda e

transporte Sobre a merenda eacute destacado que os alunos do Jardim da Infacircncia natildeo

podiam levar angu ou seja o alimento baacutesico ou o uacutenico de muitas casas das classes

mais pobres Tais exigecircncias eram um fator de exclusatildeo dos filhos das famiacutelias pobres

que geralmente eram constituiacutedas de uma prole numerosa

Imagem 10 Jardim da Infacircncia - Largo do Riachuelo 1925 SM-BMMM

Banco de Fotos

A questatildeo das exigecircncias das instituiccedilotildees de ensino e a dificuldade de acesso das

classes pobres jaacute haviam sido ressaltadas por Heitor Guimaratildees em 1906 quando da

inauguraccedilatildeo dos Grupos Escolares em Juiz de Fora como jaacute salientei anteriormente

As condiccedilotildees precaacuterias de vida das crianccedilas trabalhadoras do municiacutepio de Juiz

de Fora ficam evidentes na mateacuteria de O Lynce de 27 de junho de 1925 sobre os

ldquomenoresrdquo capinadores contratados pela Cacircmara Municipal O texto comeccedila

assinalando que ldquopor conveniecircncia financeira ou outro motivordquo as ruas da cidade eram

ldquocapinadas por uma turma de mais ou menos 40 menores sob a chefia de um adultordquo A

utilizaccedilatildeo desses ldquomenoresrdquo nessa tarefa natildeo eacute criticada pela mateacuteria que se propunha

tatildeo somente ldquoclamar aacutes autoridades municipaes uma providencia para que desapareccedila a

situaccedilatildeo penosa desses pequenos trabalhadoresrdquo que causava doacute ver esses

[] menores maltrapilhos e immundos tiritando de frio pela manhatilde a hora

do almoccedilo entatildeo os quadros tristes surgem com mais negrura pois uns

almoccedilam um gelado tutuacute com verdura outros um pedaccedilo de linguiccedila com

patildeo comprados na venda finalmente os mais infelizes ficam com os olhos

amortecidos olhando para um e outro companheiro afim de que estes lhes

decircem umas migalhas de anguacute feijatildeo ou melhor correm aacute primeira porta

98

batem e pedem um pedaccedilo de patildeo Ao largarem o serviccedilo aacute tarde alguns

sahem de porta em porta pedindo patildeo305

O texto salienta que a maacute alimentaccedilatildeo faria desses pequenos ldquocidadatildeos rachiticos

quasi imprestaacuteveis E os xingamentos do chefe os tornam malandros e

semvergonhas o que quer dizer ndash uma geraccedilatildeo inuacutetilrdquo306

E prosseguiu assinalando que

a precariedade da alimentaccedilatildeo desses ldquomenoresrdquo era fruto da ldquofalta de escruacutepulo dos

paesrdquo uma vez que os mesmos recebiam ldquoum salario razoaacutevelrdquo Posta essa questatildeo o

artigo do perioacutedico sugeria que a Cacircmara dividisse a turma dos pequenos capinadores

em trecircs cada uma para uma aacuterea da cidade e que ao exemplo dos fazendeiros da regiatildeo

fornecessem alimentaccedilatildeo quente para os operaacuterios307

Mal alimentados mal educados maltrapilhos imundos e a tiritar de frio Esse

era o quadro pintado pela mateacuteria do jornal sobre os pequenos operaacuterios da capina

contratados pela municipalidade Mas essas caracteriacutesticas atribuiacutedas aos ldquomenoresrdquo

satildeo segundo o texto fruto da ldquofalta de escruacutepulo dos paesrdquo As dificuldades enfrentadas

pelos operaacuterios em termos de baixos salaacuterios alugueacuteis altos custo de vida elevado uma

prole extensa ausecircncia de leis sociais natildeo eram consideradas pelo discurso produzido

por fraccedilotildees das classes dominantes sobre as camadas pobres da sociedade que

geralmente eram caracterizadas como imorais viciosas vagabundas e alcooacutelatras

Em fevereiro de 1939 uma reportagem especial para o supplemento illustrado

do Diaacuterio Mercantil tratou da problemaacutetica dos ldquocapinadores de ruardquo do municiacutepio308

A

leitura dessa mateacuteria jornaliacutestica passados quatorze anos desde a publicaccedilatildeo de O Lynce

(1925) sobre o assunto em tela aponta que houve uma permanecircncia das condiccedilotildees

precaacuterias de vida desses ldquomenoresrdquo empregados na capina das ruas De acordo com o

artigo de 1939 ldquoa cidaderdquo jaacute estava acostumada a ldquovecircl-os todo dia quase maltrapilhos

cantando lsquodesafiosrsquo no meio daquella azoada de vozes e do barulho de suas

ldquoenxadinhasrdquo feitas com arcos de barricasrdquo Em outras palavras os ldquomenoresrdquo

capinadores jaacute faziam parte dos ldquoaspectos diariosrdquo da cidade e acreditava-se que a

extinccedilatildeo dessa ldquoclasserdquo soacute ocorreria ldquono caso em que o parallelepipedo e o lsquopeacute de

molequersquordquo cedessem lugar para o ldquoluzidio asphaltordquo Ainda foi ressaltado que as

crianccedilas ldquotrabalhavam realmenterdquo e que recebiam ldquoo bastante para comprar o que

305

SM-BMMM ldquoDe Relancerdquo O Lynce 27 jun 1925 p 2 306

Idem 307

Idem 308 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo Diaacuterio Mercantil - Supplemento Illustrado 05 fev 1939 A informaccedilatildeo

sobre a reportagem ldquoCapinadores de ruardquo de 1939 me foi passada gentilmente por Rita de Caacutessia

Vianna Rosa

99

comer no dia seguinterdquo As roupas que usavam em sua maioria eram provenientes de

ldquoesmolas de alguma alma caridosardquo ou de ldquoinstituiccedilotildees de caridaderdquo Com relaccedilatildeo agrave

comida que os jovens capinadores levavam em suas ldquomarmitasrdquo foi assinalado pelo

repoacuterter ldquoque tomou uma das lsquomarmitasrsquo e olhou laacute dentro feijatildeo e fubaacute um bolo

pastoso feito no dia anterior e jaacute cheirando a azedordquo e que a outra refeiccedilatildeo levada pelos

capinadores de rua era uma ldquosopardquo feita de ldquocouves cosidas com fubaacute e aguardquo Na

reportagem ressalta-se que os capinadores eram ldquorecrutados pelo proacuteprio feitor entre os

vagabundos sem paes nem casa onde comer e dormirrdquo e que eles eram ldquomuitas vezes

obrigados pela poliacutecia a adoptar a profissatildeo transformando-se numa espeacutecie de

forccediladordquo e que tal situaccedilatildeo decorria da ldquoescassez alarmante de reformatoacuterios e de

patronatosrdquo para se dar um destino mais digno a esses ldquomenoresrdquo309

O que se

depreende da leitura dessa reportagem eacute que a situaccedilatildeo da infacircncia desvalida fiacutesica e

socialmente abandonada e desamparada natildeo foi uma problemaacutetica exclusiva da

chamada Repuacuteblica Velha Ela persistiu no poacutes-1930 e atualmente ainda constitui uma

lamentaacutevel realidade A imagem seguinte apresenta um grupo de meninos capinadores

onde pode ser observado que a grande maioria era composta de crianccedilas negras ou seja

provenientes de setores da populaccedilatildeo brasileira que tendiam a estar em uma posiccedilatildeo

inferior dentro da hierarquia socioeconocircmica

Imagem 11 Meninos capinadores 1939 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo

Diaacuterio Mercantil Supplemento Illustrado 05 fev 1939

309 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo Diaacuterio Mercantil - Supplemento Illustrado 05 fev 1939

100

Imagem 12 Meninos capinadores 1939 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo

Diaacuterio Mercantil Supplemento Illustrado 05 fev 1939

A presenccedila constante de ldquomenoresrdquo nas ruas da cidade expunha para a sociedade

a necessidade de poliacuteticas sociais que atendessem esse setor Entretanto a relaccedilatildeo entre

o poder puacutebico poliacuteticas sociais e a crianccedila desvalida e abandonada mostrou-se sempre

estanque sendo que o Estado geralmente apresentava-se apenas para punir No meu

entender as instituiccedilotildees ndash religiosas leigas e estatais ndash criadas para o atendimento da

infacircncia pobre abandonada e delinquente apesar do discurso de que tinham a missatildeo de

transformaacute-los em cidadatildeos buscavam limpar os espaccedilos puacuteblicos da presenccedila de

indiviacuteduos que se contrapunham aos discursos valores e regras sociais das classes

dominantes bem como almejavam transformaacute-los atraveacutes do aprendizado de um ofiacutecio

manual em trabalhadores disciplinados e obedientes agraves leis natildeo constituindo a

alfabetizaccedilatildeo uma prioridade Nesse sentido o estudo da infacircncia pobre no principal

nuacutecleo agraacuterio-exportador e industrial da Zona da Mata e de Minas Gerais

respectivamente na passagem agrave modernidade mostra-se de grande relevacircncia para a

compreensatildeo do encaminhamento que essa sociedade propunha para a problemaacutetica do

ldquomenorrdquo Os setores dominantes construiacuteram uma representaccedilatildeo da cidade e de seus

habitantes como modernos ldquocivilizadosrdquo laboriosos e ordeiros Nesse sentido no

proacuteximo capiacutetulo seraacute examinada a questatildeo da infacircncia pobre do municiacutepio levando em

consideraccedilatildeo esses valores

101

CAPIacuteTULO 2

OS PEQUENOS DESVALIDOS JUIZ DE FORA

(1888-1930)

Imagem 13 Capa do processo de tutela do ldquomenorrdquo Joaquim

Mariano Alves AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos

relativos agrave accedilatildeo de tutelas 18 nov 1890 cx4 proc 7

102

21 OS PROCESSOS DE TUTELAS DAS ORDENACcedilOtildeES FILIPINAS

AO COacuteDIGO CIVIL BRASILEIRO (1916)

Abolida esta [escravidatildeo] e natildeo se podendo mais comprar o negro as

senhoras de Minas tomavam para criar negrinhas e mulatinhas sem pai e sem

matildee ou dadas pelos pais e pelas matildees Comeccedilava para as desgraccediladas o

dormir vestidas em esteiras postas em qualquer canto da casa as noites de

frio a roupa velha o nenhum direito o pixaim rapado o peacute descalccedilo o tapa

na boca o bolo a feacuterula o correatildeo a vara a solidatildeo (Pedro Nava)310

Onofre Olivia Maria da Luz Ramon Jayme Francisca Hildegart Judith

Dinah Sebastiatildeo entre outros Um pouco da histoacuteria de vida dessas e de outras crianccedilas

e jovens estatildeo registradas nos processos de tutelas Satildeo histoacuterias de abandono de

orfandade de disputas de renuacutencias e de violecircncias

Os processos de tutelas satildeo constituiacutedos de peticcedilotildees comunicados pareceres

recibos certidotildees solicitaccedilotildees procuraccedilotildees prestaccedilatildeo de contas sentenccedilas e outros

documentos No periacuteodo em estudo ndash 1888 a 1930 ndash praticamente todos os processos

satildeo manuscritos com apenas algumas partes datilografadas Assim atraveacutes das letras

bordadas ou dos garranchos dos textos produzidos pelos peticionaacuterios tutores pais

avoacutes procuradores advogados promotores puacuteblicos e juiacutezes entre outros eacute possiacutevel

analisar as relaccedilotildees familiares e sociais das pessoas envolvidas bem como as tensotildees e

os confrontos pela guarda das crianccedilas ou jovens Dessa maneira as accedilotildees de tutelas satildeo

uma excelente fonte de pesquisa para o estudo da famiacutelia das relaccedilotildees de trabalho das

estrateacutegias de controle social entre outras problemaacuteticas

Nos autos de tutelas geralmente haacute indicaccedilotildees como a cor dos envolvidos a

nacionalidade dos pais e ou das crianccedilas a filiaccedilatildeo a idade a condiccedilatildeo juriacutedica

(escravolibertolivre) a profissatildeo dos tutores e mais raramente dos ldquomenoresrdquo e de seus

pais a existecircncia de bens e de legados pertencentes aos pupilos a determinaccedilatildeo do

pagamento de uma soldada311

ao ldquomenorrdquo e outras informaccedilotildees Poreacutem nem todos os

310

NAVA Pedro Bauacute de Ossos memoacuterias 2 ed Rio de Janeiro Livraria Joseacute Olympio Editora Sabiaacute

1973 p 259 311 A soldada constituiacutea-se no pagamento de um moacutedico salaacuterio pelos serviccedilos prestados pelo ldquomenorrdquo

Cf BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes ldquoOacuterfatildeos tutelados nas malhas do

judiciaacuterio (Braganccedila ndash Satildeo Paulo 1871-1900)rdquo Cadernos de Pesquisa v 39 n 136 p 41-68 janabr

2009 p 44 Disponiacutevel em httpwwwscielobrpdfcpv39n136a0439136pdf Acessado em 21-10-

2014 AZEVEDO Gislane Campos ldquoDe Sebastianas e Geovannisrdquo o universo do menor nos processos

dos juiacutezes de oacuterfatildeos da cidade de Satildeo Paulo (1871-1917) Dissertaccedilatildeo Mestrado Satildeo Paulo Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica 1995 p 47 Disponiacutevel em httpwwwhistoriaeimagemcombrwp-

contentuploads201404de-sebastianas-e-geovannispdf Acessado em 20-10-2014

103

documentos apresentam esses diversos dados sendo que alguns possuem apenas a

peticcedilatildeo e o auto de tutela outros apenas a peticcedilatildeo e um carimbo dizendo que a tutela foi

assinada e ainda outros apenas a solicitaccedilatildeo Mas haacute processos extremamente ricos em

detalhes registrando as tensotildees e disputas entre os pais das crianccedilas e os tutores pela

guarda das mesmas os contratos de soldada os registros de fugas dos pupilos da casa

dos tutores as denuacutencias de maus-tratos as solicitaccedilotildees de suspensatildeo do paacutetrio poder

entre outros dados

A peticcedilatildeo ou comunicado ao Juiz da Comarca da existecircncia de crianccedilas nas

condiccedilotildees de serem tuteladas segundo as determinaccedilotildees das leis eacute o documento que daacute

iniacutecio ao processo de tutela Os motivos apresentados nesses requerimentos satildeo os mais

diversos possiacuteveis satildeo senhores solicitando a tutela dos filhos de suas ex-escravas

alegando que as mesmas haviam se entregado agrave vida de prostituiccedilatildeo agrave vadiagem e agrave

embriaguez satildeo ldquocidadatildeosrdquo assinalando que em suas residecircncias viviam ldquomenoresrdquo

oacuterfatildeos abandonados ou que haviam sido entregues por seus familiares para que os

criassem satildeo pais solicitando a destituiccedilatildeo do paacutetrio poder por natildeo disporem de meios

para criar seus filhos fazendo a entrega dos mesmos a ditas pessoas idocircneas da

localidade satildeo pedidos de nomeaccedilatildeo de tutores ad hoc312

para a autorizaccedilatildeo de

casamentos de jovens que haviam sido defloradas entre outras alegaccedilotildees

Em algumas peticcedilotildees haacute uma suposta tentativa de desmoralizaccedilatildeo das matildees dos

pais ou familiares da crianccedila provavelmente com tal iniciativa almejava-se a obtenccedilatildeo

de um parecer favoraacutevel do juiz Essa dita estrateacutegia pode ser observada no caso de

Edgar de trecircs anos de idade filho da ex-escrava Bernarda solteira No dia 6 de

setembro de 1888 o suplicante Gabriel de [Mello] ldquomorador em S Anna do Dezerto

drsquoeste termordquo comunicou ao Juiz de Oacuterfatildeos a necessidade de se dar tutor ao ldquomenorrdquo

uma vez que sua matildee havia se retirado da ldquocasa de sua senhora levando consigo o seo

filhordquo aleacutem de ter ldquose desmandado entregando-se aacute prostituiccedilatildeo sem dispor de meios pordf

crear e educar o dito menor sendo ainda certo natildeo ter ella domiciliordquo313

Observa-se que

nesse pedido realizado poucos meses apoacutes a aboliccedilatildeo da escravidatildeo eacute assinalado que

Bernarda havia deixado a ldquocasa de sua senhorardquo como se ela ainda fosse propriedade de

algueacutem Trabalhos que discutem a questatildeo da tutela de ingecircnuos e ldquomenoresrdquo pobres

destacam que o estabelecimento desse viacutenculo foi uma estrateacutegia utilizada pelos

312

Ad hoc eacute uma expressatildeo latina muito utilizada no meio juriacutedico e significa ldquopara istordquo ou ldquopara esta

finalidaderdquo 313

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutelas Tutelado Edgar Data 06-

09-1888 cx 100

104

proprietaacuterios para manterem sobre controle uma parcela da matildeo de obra a baixo custo

Esta se constituiacutea basicamente na alimentaccedilatildeo e no vestuaacuterio ou como em alguns casos

no pagamento de uma soldada de baixo valor314

Mas no caso acima relatado o

ldquomenorrdquo Edgar natildeo tinha ainda condiccedilotildees de prestar qualquer tipo de serviccedilo Por que

entatildeo requerer a tutela desse menino Algumas hipoacuteteses podem ser levantadas a esse

respeito Eacute um fato ocorrido logo apoacutes a aboliccedilatildeo da escravidatildeo quando o temor de

ficar sem serviccedilaisempregados pelos setores dominantes era provavelmente grande

Assim seria uma maneira de assegurar legalmente braccedilos para serem empregados

brevemente em atividades laborativas Outra hipoacutetese eacute a ser uma estrateacutegia das classes

dominantes de manutenccedilatildeo dos pais dos ldquomenoresrdquo desvalidos na localidade pelo fato

de seus filhos estarem sob a guarda de terceiros evitando desse modo a perda de

trabalhadores para outras regiotildees

Em outros processos satildeo possivelmente as condiccedilotildees precaacuterias de

sobrevivecircncia que levaram os pais a solicitarem a entrega de seus filhos a tutores que

deles pudessem cuidar Em fevereiro de 1922 Esmeraldina Braga de Campos viuacuteva

alegando estar doente e em estado de extrema pobreza fatores que de acordo com a sua

peticcedilatildeo a impedia de exercer o paacutetrio poder solicitou a nomeaccedilatildeo de um tutor para seu

filho Onofre de 1 mecircs de idade e indicou para assumir o encargo o sr Sebastiatildeo

Augusto Gaio marido de sua amiga Helena Gaio315

Os dois exemplos citados acima satildeo apenas uma mostra da variedade de motivos

apresentados para a solicitaccedilatildeo do estabelecimento do viacutenculo tutelar

Arlette Farge e Michel Foucault em ldquoLe deacutesordre des famillesrdquo analisaram as

lettres de cachet des archives de la Bastille em que familiares solicitaram ao rei ou

autoridades policiais o encarceramento geralmente de seus cocircnjuges filhos e parentes

De acordo com os autores essas cartaspeticcedilotildees eram possivelmente permeadas por um

modeloesquema Dito de outra maneira as cartas empregavam o discurso dominante do

periacuteodo do que seria uma boa esposa um bom marido e um(a) filho(a) para

demonstrarem o desvio e ou a periculosidade do outro (maridoesposafilhosfilhas) e

314

Cf GUIMARAtildeES Elione Silva Muacuteltiplos viveres de afrodescendentes na escravidatildeo e no poacutes-

emancipaccedilatildeo famiacutelia trabalho terra e conflito (Juiz de Fora ndash MG 1828-1928) Satildeo Paulo

Annablume Juiz de Fora FUNALFA 2006 ZERO Arethuza Helena O preccedilo da liberdade caminhos

da infacircncia tutelada ndash Rio Claro (1871-1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Campinas (SP) Unicamp 2004

httplibdigiunicampbrdocumentcode=vtls000329956 315

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos a accedilatildeo de Tutelas Menor Onofre Data 07-

02-1922 cx 101

105

com isso obterem o parecer favoraacutevel316

Assim creio que as peticcedilotildees de tutelas de

ldquomenoresrdquo desvalidos tambeacutem fossem permeadas pelo discursomodelo dominante da

eacutepoca do que seria uma boa matildee e ou bons pais de famiacutelia A desqualificaccedilatildeo moral o

alcoolismo a suposta precariedade econocircmica entre outros fatores das genitoras e ou

dos pais das crianccedilas pobres provavelmente afiguravam-se como fatores no periacuteodo

em tela para a concessatildeo da tutela ao peticionaacuterio Essas (des)qualificaccedilotildees das famiacutelias

foram amplamente empregadas nas solicitaccedilotildees com a intenccedilatildeo presumiacutevel de se ter o

pedido aceito

A tutela se constituiacutea no encargo dado a uma pessoa para velar e administrar um

ldquomenorrdquo e os bens que o mesmo tinha ou poderia vir a ter317

Para a anaacutelise dos

processos de tutelas no periacuteodo de 1888 a 1930 eacute necessaacuterio levar em conta a legislaccedilatildeo

brasileira Ateacute 1916 quando ocorreu a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo Civil as questotildees

referentes ao Direito de Famiacutelia eram fundamentalmente reguladas pelas Ordenaccedilotildees

Filipinas (1603) que se constituiacuteam numa versatildeo ampliada das ldquoleis civis fiscais

administrativas militares e penais portuguesasrdquo contidas nas Ordenaccedilotildees Manuelinas318

A aprovaccedilatildeo de um Coacutedigo Civil no Brasil foi bem demorada acontecendo 94

anos depois de sua emancipaccedilatildeo poliacutetica (1822) e 27 anos apoacutes tornar-se uma naccedilatildeo

republicana (1889)319

Essa protelaccedilatildeo pode ser atribuiacuteda a muacuteltiplos fatores como a

dificuldade de definir quem era cidadatildeo ndash ainda durante o periacuteodo escravista ndash a

interferecircncia da Igreja Catoacutelica a dificuldade de definiccedilatildeo juriacutedica da mulher a questatildeo

do poder e da disciplina no que diz respeito agrave famiacutelia a problemaacutetica da

316

FARGE Arlette FOUCAULT Michel Le deacutesordre des familles lettres de cachet des archives de la

Bastille Paris Eacuteditions Gallimard Julliard 1982 p 171-172 Cf FRAGA FILHO Walter Mendigos

moleques e vadios na Bahia do seacuteculo XIX Satildeo Paulo HICITECSalvador (BA) EDUFBA 1996

Walter Fraga Filho encontrou na documentaccedilatildeo compulsada sobre a pobreza na Bahia do seacuteculo XIX

situaccedilatildeo semelhante agrave examinada por Farge e Foucault ou seja os paisfamiliares solicitando agraves

autoridades o internamentoprisatildeo de seus entes Para tanto apresentavam diversas justificativas 317

Ordenaccedilotildees Filipinas Quarto Livro Tiacutetulo 102 p 994 Disponiacutevel em

httpwww1ciucptihtiprojfilipinasl4p994htm Acessado em 20-10-2014 Coacutedigo Civil artigo 422

Coacutedigo Civil dos Estados Unidos do Brasil Lei n 3071 de 1o de Janeiro de 1916 Disponiacutevel em

httpwww2camaragovbrleginfedlei1910-1919lei-3071-1-janeiro-1916-397989-publicacaooriginal-

1-plhtml Acessado em 10-10-2014 318

BICALHO Maria Fernanda Baptista ldquoCrime e castigo em Portugal e seu Impeacuteriordquo Topoi (Resenha)

Rio de Janeiro n 1 pp 224-231 2000 Disponiacutevel em

wwwrevistatopoiorgnumeros_anterioresTopoi0101_resenha02pdf Acessado em 28-12-2014 319

NEDER Gizlene ldquoO bibliotecaacuterio-mor e o Iluminismo juriacutedico coimbrenserdquo Op cit 2007 p 50

NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoO Atlacircntico como paacutetria livros e ideias entre Portugal

e Brasilrdquo Op cit 2007 p 44 Cf GRINBERG Keila Coacutedigo Civil e cidadania Rio de Janeiro Jorge

Zahar Ed 2001

106

regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre e de direitos dos trabalhadores entre

outros fatores320

Assim o exame dos processos de tutelas ateacute 1916 vatildeo se pautar basicamente

nas determinaccedilotildees das Ordenaccedilotildees Filipinas (1603) no que diz respeito ao Direito de

famiacutelia A partir de 1916 a anaacutelise da documentaccedilatildeo teraacute como referencial o Coacutedigo

Civil

Segundo as Ordenaccedilotildees Filipinas a tutela podia ser testamentaacuteria legiacutetima ou

dativa321

A testamentaacuteria era aquela em que o tutor era indicado em testamento Na

impossibilidade de ele assumir tinha lugar a nomeaccedilatildeo dos tutores legiacutetimos tendo as

matildees e avoacutes prioridade Entretanto deveriam viver honestamente natildeo serem casadas

em segundas nuacutepcias e renunciarem a todos os privileacutegios que lhes eram conferidos322

Nos casos em que o tutor testamentaacuterio e ou legiacutetimo natildeo existia ou natildeo podia assumir

as funccedilotildees do cargo era entatildeo indicado um parente ldquomais chegado que tiver no lugar

ou seu termo onde estatildeo os bens do oacuterfatildeordquo323

Na ausecircncia do testamentaacuterio e ou

legiacutetimo e de um parente chegado o Juiz de Oacuterfatildeos intimava um ldquohomem bomrdquo da

localidade para assumir a funccedilatildeo constituindo esse tipo na chamada tutela dativa324

O Coacutedigo Civil de 1916 versou sobre vaacuterios aspectos a respeito da instituiccedilatildeo do

viacutenculo tutelar tendo pontos de semelhanccedila com as Ordenaccedilotildees Filipinas De acordo

com o Coacutedigo de 1916 a tutela seria instituiacuteda nos casos de falecimento dos pais ou de

serem os mesmos julgados ausentes e com a perda do paacutetrio poder (art 406 incisos I e

II) O Coacutedigo tambeacutem versou sobre a nomeaccedilatildeo do tutor pelos pais em testamento ou

outro documento autecircntico (art 407 sect uacutenico) e na ausecircncia ou impossibilidade de os

testamentaacuterios assumirem deveria o encargo ser transferido aos parentes

consanguiacuteneos tendo prioridade os avoacutes paternos os irmatildeos ou tios do sexo masculino

320

GRINBERG Keila Op cit 2001 p 58 - 66 NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoOs

filhos da leirdquo Op cit 2007 321

A tutela testamentaacuteria era aquela em que o tutor era indicado em testamento o tutor legiacutetimo era

aquele indicado pela lei na impossibilidade de o tutor testamentaacuterio assumir e o tutor dativo era aquele

indicado pelo Juiz de Oacuterfatildeos quando os testamentaacuterios e legiacutetimos natildeo podiam ser nomeados

CARVALHO Joseacute Pereira (1865 p 112 ndash nota 211) apud ZERO Arethuza Helena (2003 p 13)

Algumas pessoas estavam impedidas de serem tutores como os menores de 25 anos os sandeu o

proacutedigo o inimigo do oacuterfatildeo o pobre o infame religioso etc Ordenaccedilotildees Filipinas (quarto livro tiacutetulo

102 sect 1 p 995-996) De acordo com as notas introdutoacuterias das Ordenaccedilotildees Filipinas havia ainda a

tutela pactiacutecia ou prometida que se dava quando o pai pactuava com ldquoalgueacutem o ser por sua morte Tutor

de seu filhordquo Esse tipo de tutela podia ser incluiacuteda na Tutela Testamentaacuteria Ordenaccedilotildees Filipinas (quarto

livro tiacutetulo 102 p 994) 322

CARVALHO Joseacute Pereira (1865 p 113 ndash nota 214) apud ZERO Arethuza Helena Op cit 2003

p 14 Ordenaccedilotildees Filipinas quarto livro tiacutetulo 102 p 995-998 323

Ordenaccedilotildees Filipinas quarto livro tiacutetulo 102 sect 5 p 1001-1002 324

Ordenaccedilotildees Filipinas quarto livro tiacutetulo 102 p 1002-1003

107

No caso dos irmatildeos destaca-se que seriam preferiacuteveis os ldquobilaterais aos unilateraisrdquo (art

409 incisos I II e III C Civil) Nestes e em outros artigos do Coacutedigo Civil observa-se

que a mulher estava juridicamente subordinada ao homem Entretanto eacute necessaacuterio

ressaltar que no projeto de codificaccedilatildeo das leis civil apresentado por Cloacutevis Bevilaacutequa

havia a proposta da igualdade juriacutedica entre os sexos que foi rejeitada pelos membros

da comissatildeo de avaliaccedilatildeo325

Como nas Ordenaccedilotildees Filipinas o Coacutedigo Civil tambeacutem determinou que as

matildees perderiam o paacutetrio poder caso se casassem novamente (art 393 C Civil)326

Entretanto ficou estabelecido no artigo 329 do Coacutedigo de 1916 que as genitoras

poderiam manter os filhos consigo e somente perderia esse direito caso fosse provado

que ela e ou o padrasto natildeo estavam tratando dos ldquomenoresrdquo de maneira conveniente

Em suma as crianccedilas continuavam a conviver com suas matildees mas eram legalmente

representadas por um tutor

Aos ldquomenoresrdquo que natildeo tinham tutores testamentaacuterios ou legiacutetimos e aos

abandonados o juiz deveria indicar uma pessoa idocircnea e residente no domiciacutelio (art

410 e 412 C Civil) Com relaccedilatildeo aos abandonados ficou ainda determinado que estes

poderiam ser ldquorecolhidos a estabelecimentos puacuteblicos para este fim destinadosrdquo e na

falta destes deveriam ficar sob a tutelas de pessoas que ldquovoluntariamente e

gratuitamenterdquo se dispusessem a criaacute-los (art 412 C Civil)

O processo de tutela do ldquomenorrdquo Oswaldo conhecido por Bibi de 14 anos de

idade oacuterfatildeo de pai e matildee datado de maio de 1920 demonstra que nem sempre era faacutecil

a nomeaccedilatildeo de um tutor para uma crianccedila ou jovem abandonado327

Segundo as

informaccedilotildees do documento Bibi encontrava-se a alguns anos em abandono Assim o

juiz de Direito Augusto Ceacutesar Pedreira Franco nomeou para tutor do dito jovem o sr

Custoacutedio Vaz que deveria prestar o juramento e obrigar-se a fornecer ao menino

alimento e vestuaacuterio necessaacuterio Poreacutem o indicado pediu para ser dispensado pois

estava de viagem marcada para a Europa O processo terminou com a solicitaccedilatildeo de

dispensa do cargo Desse modo natildeo eacute possiacutevel saber que destino o juiz de Direito Ceacutesar

325

GRINBERG Keila Op cit 2001 p 44-45 Cf Neder Gizlene (colaboraccedilatildeo de Gisaacutelio Cerqueira

Filho) ldquoCloacutevis Bevilaacutequa e Paulo Merecirca campo intelectual e processos de secularizaccedilatildeo no Brasil e em

Portugalrdquo In _____ Duas Margens Ideias juriacutedicas e sentimentos poliacuteticos no Brasil e em Portugal na

passagem agrave modernidade Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2011 326

No Coacutedigo Civil art 393 ficou estipulado que as matildees recuperariam o paacutetrio poder dos filhos do

primeiro casamento caso ficassem viuacutevas do segundo matrimocircnio poreacutem nas Ordenaccedilotildees do Reino natildeo

havia tal possibilidade Ordenaccedilotildees Filipinas Quarto Livro tiacutetulo 102 sect 4 p 1000 ndash 1001 327

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Oswaldo data 08-

05-1920 caixa 101

108

Franco deu para Oswaldo uma vez que a cidade de Juiz de Fora natildeo dispunha de uma

instituiccedilatildeo para abrigar ldquomenoresrdquo do sexo masculino como jaacute foi examinado no

primeiro capiacutetulo Provavelmente outro ldquocidadatildeordquo idocircneo foi indicado para tutor ou o

jovem pode ter sido encaminhado para algum abrigo para ldquomenoresrdquo existente no

estado de Minas Gerais

A dificuldade de nomeaccedilatildeo de um tutor para ldquomenoresrdquo oacuterfatildeos e ou

abandonados tambeacutem pode ser observada em outros processos de minha anaacutelise Em

maio de 1893 o juiz de Direito foi informado de que o ldquomenorrdquo Carlos de 13 anos de

idade oacuterfatildeo de pai e matildee estava nas condiccedilotildees de receber tutor O processo se arrastou

ateacute janeiro de 1895 sem deixar expliacutecito se um dos indicados assumiu a funccedilatildeo328

Na

accedilatildeo de tutela de Ramiro de maio de 1888 os cidadatildeos indicados para o encargo

tambeacutem solicitaram escusa329

Geralmente os pedidos de dispensa do cargo se

justificavam pelo fato de os indicados jaacute terem ldquomenoresrdquo sob sua tutela por estarem de

mudanccedila para outra cidade ou estado pela idade avanccedilada entre outros motivos Nas

Ordenaccedilotildees Filipinas e no Coacutedigo Civil estavam especificados quais eram as pessoas

que poderiam assumir a tutela quais eram impedidas e as razotildees para a escusa

Na proacutexima parte seratildeo examinados os processos de tutela de ldquomenoresrdquo

desvalidos oacuterfatildeos e abandonados do municiacutepio de Juiz de Fora no periacuteodo de 1888 a

1930 Na anaacutelise da documentaccedilatildeo procurei observar as estrateacutegias das classes

dominantes de controle da matildeo de obra de crianccedilas e jovens as disputas entre tutores e

familiares pela posse dos ldquomenoresrdquo as dificuldades enfrentadas pelas famiacutelias pobres

na criaccedilatildeo de seus filhos entre outras problemaacuteticas

22 DAR TUTOR ldquoA TODOS OS OacuteRFAtildeOS E MENORESrdquo

De fato o filho natildeo pertence apenas aos pais ele eacute o futuro da naccedilatildeo e da

raccedila produtor reprodutor cidadatildeo e soldado do amanhatilde Entre ele e a

famiacutelia principalmente quando esta eacute pobre e tida como incapaz insinuam-se

terceiros filantropos meacutedicos estadistas que pretendem protegecirc-lo educaacute-lo

disciplinaacute-lo (Michelle Perrot)330

328

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Carlos data 01-05-

1893 caixa 5 processo 2 329

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Ramiro data 25-09-

1888 caixa 100 330 PERROT Michelle ldquoFiguras e papeacuteisrdquo In ______ Histoacuteria da vida privada 4 Da Revoluccedilatildeo

Francesa agrave Primeira Guerra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 p 134

109

Examinei todos os processos de tutelas preservados que estatildeo sob a custoacutedia do

Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora e do Arquivo Histoacuterico da Universidade

Federal de Juiz de Fora no periacuteodo de 1888331

a 1930 Da anaacutelise dessa documentaccedilatildeo

foram selecionados 239 autos que tratam do estabelecimento do viacutenculo tutelar de 346

crianccedilas e jovens pertencentes agraves classes subalternas Utilizei como criteacuterio para

selecionar os documentos a descriccedilatildeo constante nos autos de que o ldquomenorrdquo era pobre

ou extremamente miseraacutevel e natildeo possuiacutea ldquobens de espeacutecie algumardquo era abandonado

Entretanto nem todas as accedilotildees de tutelas trazem essas informaccedilotildees mas atraveacutes de uma

leitura minuciosa percebe-se que se trata de crianccedilas das camadas desfavorecidas da

sociedade A identificaccedilatildeo da profissatildeo do tutor dos pais ou do ldquomenorrdquo a natildeo

declaraccedilatildeo de bens nos termos de tutela o estabelecimento de contrato de soldada satildeo

alguns indicativos da condiccedilatildeo social dos pupilos

Dos 239 processos compulsados 95 (3975) satildeo referentes aos anos de 1888 a

1899 3 (126) ao periacuteodo de 1900 a 1909 9 autos (376) satildeo correspondentes aos

anos de 1910 a 1919 e de 1920 a 1930 foram 132 (5523) registros Todavia o

nuacutemero de crianccedilas tuteladas nesses quatro recortes temporais estabelecidos

apresentou uma grande variaccedilatildeo como pode ser observado no Quadro 4

QUADRO 4

NUacuteMERO DE CRIANCcedilAS TUTELADAS POR PERIacuteODO

NUacuteMERO

TOTAL DE

CRIANCcedilAS

PERIacuteODO

NUacuteMERO

DE

CRIANCcedilAS

346

1888 ndash 1899 172 4971

1900 ndash 1909 05 145

1910 ndash 1919 17 491

1920 - 1930 152 4393

FONTE AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo

de tutelas (1888-1930)

331

Com relaccedilatildeo ao ano de 1888 analisei apenas os processos posteriores agrave aboliccedilatildeo da escravidatildeo em 13

de maio de 1888

110

Com relaccedilatildeo ao periacuteodo de 1888-1899 eacute necessaacuterio ressaltar que o ano de 1888

correspondeu sozinho por 39 (4105) processos que incidiram sobre 87 (5058)

crianccedilas As pesquisas nos processos de tutelas nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX tecircm

destacado que o ano de 1888 assistiu a uma verdadeira corrida de parcela dos setores

dominantes aos juiacutezes de oacuterfatildeos para legalizarem a situaccedilatildeo dos filhos das ex-escravas

atraveacutes do viacutenculo tutelar Muitos ex-senhores conseguiram se beneficiar desse

expediente legal e mantiveram sob sua guarda os filhos de ex-cativas Maria Aparecida

Papali assinala que das 330 accedilotildees de tutela analisadas para a cidade de Taubateacute no

periacuteodo de 1871-1895 154 se deram no ano de 1888332

O periacuteodo de 1888 a 1899 apresentou um nuacutemero menor de processos de tutelas

se comparado com o intervalo de 1920 a 1930 Poreacutem quando a anaacutelise recai sobre o

nuacutemero de crianccedilas observa-se que nos anos finais do seacuteculo XIX mais ldquomenoresrdquo

foram tutelados sendo 172 pupilos para o primeiro momento e 152 para o segundo Isso

se deve ao fato de um mesmo processo de tutela se referir a diversos ldquomenoresrdquo Logo

apoacutes a aboliccedilatildeo os antigos senhores solicitaram a tutela dos filhos de suas ex-escravas

em uma uacutenica peticcedilatildeo como na accedilatildeo em que o capitatildeo Joseacute Pedro Ferreira de Souza em

agosto de 1888 requereu a tutela dos rebentos de suas ex-cativas ao todo foram 21

ldquomenoresrdquo tutelados por esse ldquocidadatildeordquo333

No graacutefico 1 estaacute apresentado o nuacutemero de

crianccedilas tuteladas no municiacutepio de Juiz de Fora no periacuteodo de 1888 a 1930

332

PAPALI Maria Aparecida C R A legislaccedilatildeo de 1871 o judiciaacuterio e a tutela de ingecircnuos na cidade de

Taubateacute In Revista Justiccedila e Histoacuteria Porto Alegre Tribunal de Justiccedila do Rio Grande do Sul v 2 n 3

2002 httpwwwtjrsjusbrexportpoder_judiciariohistoriamemorial_do_poder_judiciariomemorial

_judiciario_gauchorevista_justica_e_historiaissn_1676-5834v2n3doc09-Papalipdf Acessado 01-07-

2015 Anna Gicelle G Alaniz ressalta que a partir do momento que os proprietaacuterios perceberam que o fim

da escravidatildeo era inevitaacutevel foram tomados de ldquouma febre tutelarrdquo A autora tambeacutem percebeu um

aumento no nuacutemero de tutelas de menores afrodescendentes no ano de 1888 (1997 p 51e 59) 333

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas Suplicante Capitatildeo Joseacute

Pedro Ferreira de Souza Data 04-08-1888 caixa 100

111

GRAacuteFICO 1

FONTE AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos

relativos agrave accedilatildeo de Tutelas (1888-1930)

No que diz respeito ao nuacutemero de tutelas por periacuteodo no graacutefico abaixo eacute

apresentado um iacutendice elevado de autos na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX ou seja

num momento de implantaccedilatildeo do regime de trabalho livre na sociedade brasileira

seguido de uma queda acentuada na documentaccedilatildeo nos primeiros 20 anos do novecentos

e uma retomada de crescimento das accedilotildees tutelares na deacutecada de 1920

GRAacuteFICO 2

FONTE AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos

relativos agrave accedilatildeo de Tutelas (1888-1930)

O nuacutemero expressivo de tutelas no intervalo de 1888 a 1899 estaacute possivelmente

relacionado com o fim do regime de trabalho compulsoacuterio e a implantaccedilatildeo das relaccedilotildees

112

de trabalho livre Assim num primeiro momento os setores dominantes de Juiz de Fora

vislumbraram no viacutenculo tutelar uma estrateacutegia de manutenccedilatildeo e controle de uma

parcela da matildeo de obra no caso especiacutefico a do trabalhador infanto-juvenil Um

percentual maior de processos nos anos finais do seacuteculo XIX corrobora com as

pesquisas que afianccedilam que apoacutes a lei Rio Branco mais conhecida por Lei do Ventre

Livre (1871) houve uma corrida por parte dos setores dominantes para o

estabelecimento do viacutenculo tutelar de crianccedilas desvalidas e ou abandonadas As

solicitaccedilotildees encaminhadas ao poder judiciaacuterio utilizavam o discurso da proteccedilatildeo do

educar e amparar os ldquomenoresrdquo e ingecircnuos334

Apesar das Ordenaccedilotildees do Reino determinarem que fossem dados tutores ldquoa

todos os oacuterfatildeos e menoresrdquo ndash ricos pobres e expostos335

ndash tal praacutetica parece natildeo ter sido

a regra no Brasil colonial e monaacuterquico uma vez que antes da lei de 1871 foram

sobretudo as crianccedilas ricas que receberam tutores Aproveitando-se dessa determinaccedilatildeo

do Coacutedigo Filipino uma parcela da classe dominante com um discurso de proteccedilatildeo de

amizade e afeto pelos ldquomenoresrdquo pobres e pelos ingecircnuos passou a solicitar aos juiacutezes a

tutela dos mesmos apoacutes a decretaccedilatildeo da Lei do Ventre Livre336

Elione Guimaratildees em seu estudo sobre a populaccedilatildeo afrodescendente do

municiacutepio de Juiz de Fora (1850-1895) assinalou que foi encontrado apenas um

processo de tutela envolvendo uma crianccedila afrodescendente anterior a lei Rio Branco

de 1871 A tutela de marccedilo de 1869 era da menina Margarida de 11 anos de idade

parda que foi liberta por seu senhor A autora argumentou que antes da Lei do Ventre

Livre houve crianccedilas alforriadas e que estavam de acordo com a legislaccedilatildeo vigente

aptas a receberem tutores mas aparentemente natildeo houve uma preocupaccedilatildeo no periacuteodo

anterior em formalizar a guarda e proteccedilatildeo dessas crianccedilas O interesse surgiu apenas

quando o ventre da escrava deixou de gerar novos seres escravizados337

334

ZERO Arethuza Helena O preccedilo da liberdade caminhos da infacircncia tutelada ndash Rio Claro (1871-

1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Campinas (SP) Unicamp 2004 p 64 e 73

httplibdigiunicampbrdocumentcode=vtls000329956) Cf FRANCISCO Raquel Pereira

ldquoAutonomia e Liberdade os processos de tutelas de menores ingecircnuos e libertos ndash Juiz de Fora (1870-

1900)rdquo In Cadernos de Ciecircncias Humanas ndash Especiarias Ilheacuteus (BA) Universidade Estadual de Santa

Cruz v 10 n 18 jul-dez pp 649-676 2007 Disponiacutevel em

wwwuescbrrevistasespeciariased1811_raquel_franciscopdf Acessado em 05-07-2015 335

As notas introdutoacuterias do Quarto Livro Tiacutetulo 102 das Ordenaccedilotildees Filipinas assinalam que se deveria

dar tutor aos oacuterfatildeos ricos pobres e expostos Ordenaccedilotildees Filipinas (Quarto Livro Tiacutetulo 102 p 995) 336

ZERO Arethuza Helena Op cit 2004 p 69 337

GUIMARAtildeES Elione Silva Op cit 2006 p 110-111 Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas escravas Guimaratildees

ressalta que a estas natildeo eram dados tutores uma vez que os senhores eram seus tutores naturais p 110

113

No periacuteodo de 1900 a 1919 como evidenciado no graacutefico anterior ocorreu uma

queda draacutestica no nuacutemero de processos de tutelas de ldquomenoresrdquo pobres e ou

abandonados se comparado com os anos anteriores e posteriores Esses vinte anos soacute

registraram 12 accedilotildees de tutelas de ldquomenoresrdquo desvalidos Tal fato pode ser um

indicativo de que muitos processos natildeo foram preservados ou de uma procura menor

pelo estabelecimento do viacutenculo tutelar por parte das classes dominantes A presenccedila

abundante de matildeo de obra no municiacutepio em tela ndash o que contribuiacutea para a reduccedilatildeo dos

niacuteveis salariais ndash e a ausecircncia de uma legislaccedilatildeo trabalhista nos primeiros anos

republicanos provavelmente foram fatores que desestimularam os setores dominantes a

assumir a guarda legal de crianccedilas desvalidas e ou abandonadas338

Ressalta-se ainda

que o viacutenculo tutelar implicava algumas obrigaccedilotildees do tutor com o pupilo disputas com

familiares da crianccedila pela guarda problemas com a justiccedila em caso de fugas ou

desparecimento do ldquomenorrdquo entre outras questotildees

Quando argumento que as classes dominantes se desinteressaram pela tutela de

crianccedilas das classes subalternas natildeo estou desconsiderando o fato de muitas famiacutelias

abastadas terem continuado a receber ou a manter em suas residecircncias esses ldquomenoresrdquo

na condiccedilatildeo de empregados e ou aprendizes sem nenhum viacutenculo legal Faccedilo tal

ponderaccedilatildeo pelo fato de algumas peticcedilotildees assinalarem que a crianccedila vivia a 4 5 anos ou

mais na residecircncia do suplicante O pedido de tutela em muitos casos soacute foi realizado

quando havia uma necessidade legal ndash por exemplo para o consentimento de casamento

ndash ou quando algum familiar ou outra pessoa pretendesse retirar o ldquomenorrdquo da casa em

que estava vivendo entre outros fatores A transcriccedilatildeo a seguir endossa a minha

reflexatildeo a esse respeito Em julho de 1922 Mauro Roquete Pinto solicitou a tutela de

Maria da Conceiccedilatildeo Oliveira de 17 anos Segundo o peticionaacuterio

[] em outubro de 1907 recolheu sob seu tecto a menor Maria da Conceiccedilatildeo

Oliveira que abandonada por sua mae Francisca de Oliveira ebria habitual

perambulava pelas estradas do Districto de Stordf Anna do Deserto sem

assistencia moral e material e como o suppte ignore o paradeiro desta vem

requerer lhe seja permittido assignar termo de tutela da referida menor que

conta presentemente 17 annos de idade para o fim de consentir no seu

casamento com Jose Lopes de Carvalho tambem empregado do suppte339

338

Luiacutes Eduardo de Oliveira em seu estudo sobre a formaccedilatildeo do proletariado em Juiz de Fora ressalta

que no municiacutepio natildeo houve a tatildeo propalada carecircncia de trabalhadores na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o

XX Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Os trabalhadores e a cidade A formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de

Fora e suas lutas por direitos (1877-1920) Juiz de Fora (MG) Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV

2010 p 154-155 191-192 205-206 339

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Maria da Conceiccedilatildeo

Oliveira data 17-07-1922 caixa 101

114

Atraveacutes da descriccedilatildeo acima observa-se que Maria da Conceiccedilatildeo Oliveira passou

praticamente os primeiros anos de sua vida sob o ldquotectordquo do suplicante sem nenhuma

regularizaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo Pelo relato de Mauro Roquete Pinto depreende-se que a

ldquomenorrdquo era sua empregada entretanto natildeo haacute nos autos nenhuma referecircncia a um

contrato de trabalho ou a existecircncia de uma caderneta para recolhimento de seus

proventos Em muitos processos de tutela o Juiz arbitrava o valor mensal de uma

ldquosoldadardquo340

para o pupilo Os salaacuterios deveriam ser depositados em uma caderneta da

Caixa Econocircmica Estadual que seriam resgatados mais os juros quando o ldquomenorrdquo

atingisse a maioridade civil ou se emancipasse pelo casamento como o caso em anaacutelise

Com relaccedilatildeo agrave soldada o juiz de Direito Augusto Ceacutesar Pedreira Franco

assinalou no processo de tutela de Maria Duarte de 16 anos de idade de julho de 1920

O direito moderno natildeo manteve o instituto da soldada de que cogitava o

direito antigo anterior ao Cod Civil Entretanto sendo a menor pobre e jaacute

estando em edade de trabalhar poacutede o tutor empregal-a em serviccedilos

compatiacuteveis com a sua condiccedilatildeo e recolher mensalmente em seu nome aacute

Caixa econocircmica os seus salaacuterios que devem ser conhecidos em juiacutezo

[]341

Apesar de o Coacutedigo Civil natildeo tratar da remuneraccedilatildeo do trabalho dos ldquomenoresrdquo

tutelados nos processos que analisei poacutes Coacutedigo a expressatildeo soldada ou contrato de

soldada manteve-se O mesmo juiz de Direito Ceacutesar Franco em uma accedilatildeo de tutela de

fevereiro de 1926 determinou que o tutor pagasse uma soldada a sua pupila Arriquinto

Costa em sua peticcedilatildeo assinalou que a ldquomenorrdquo Maria de Almeida Costa de 17 anos de

idade abandonada pelos pais vivia em sua companhia desde um ano de idade e que

estava numa faixa etaacuteria que ldquonecessita(va) de proteccedilatildeo legalmente auctorisadardquo por

340

De acordo com o dicionaacuterio publicado sob a direccedilatildeo de Jayme de Seguier (1947) soldada era o salaacuterio

de criados operaacuterios etc Cf SEGUIER Jayme de Diccionaacuterio Praacutetico Illustrado novo diccionaacuterio

encyclopeacutedico luso-brasileiro Porto Lello amp Irmatildeo Editores 1947 p 1068 A soldada poderia ser paga

pelo tutor mediante a arbitragem do Juiz ou poderia ser assinada por outra pessoa em conformidade com o

Juiz No processo de tutela dos irmatildeos Francisco Idalina e Emygdio de julho de 1891 o tutor e tio dos

ldquomenoresrdquo Albino Franco Barreiro solicitou a autorizaccedilatildeo do Juiz de Oacuterfatildeos para que pudesse dar os

ldquomenoresrdquo Idalina e Emygdio de 14 e 12 anos de idade respectivamente agrave soldada ou fazer contrato de

locaccedilatildeo de serviccedilos O Juiz de Oacuterfatildeos Adeodato de Andrade Botelho deferiu o pedido e em setembro de

1892 Manoel de Aquino Ramos assinou o contrato de soldada e locaccedilatildeo de serviccedilos dos ditos irmatildeos O

locataacuterio dos serviccedilos se obrigava ldquoa cuidar-lhes da educaccedilatildeo moral e litteraria obrigando-se mais a todas

as condiccedilotildees offerecidas na dita peticcedilatildeo e ainda recolhendo os vencimentos dos menores mensalmente a

caixa econocircmica drsquoesta cidade e apresentando os a este juiz sempre que lhes for ordenado []rdquo

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menores Francisco Idalina e

Emygdio data 02-07-1891 caixa 5 processo 4 341 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Maria Duarte data

22-07-1920 caixa 101

115

isso solicitava a guarda da mesma e se comprometia a continuar a ldquoprotegerrdquo a jovem

que residia ldquocom a famiacutelia do suplicanterdquo O juiz deferiu o requerimento e determinou

que Arriquinto Costa tinha a ldquoobrigaccedilatildeo de sustental-a ou antes alimental-a e pagar-lhe

a soldada de 15$000 mensaesrdquo342

De maneira idecircntica ao caso de Maria da Conceiccedilatildeo Oliveira a legalizaccedilatildeo da

situaccedilatildeo de Maria de Almeida Costa ocorreu depois de longos anos de convivecircncia com

a famiacutelia do peticionaacuterio Poreacutem o pedido de sua tutela foi justificado pelo fato de a

jovem encontrar-se em uma idade que ldquonecessita(va) de proteccedilatildeo legalmente

auctorisadardquo Ateacute a idade de 17 anos Maria de Almeida natildeo necessitou de proteccedilatildeo

legal Seria a atitude de Arriquinto Costa motivada pelo receio da jovem resolver deixar

sua residecircncia ou pela existecircncia de algum parente ou outra pessoa que estivesse

procurando ter a guarda da mesma uma vez que a ldquomenorrdquo se encontrava em uma faixa

etaacuteria que poderia ser empregada como matildeo de obra em diversas atividades laborativas

Retornando a discussatildeo sobre o pequeno nuacutemero de processos de tutelas no

intervalo de 1900 a 1919 outra consideraccedilatildeo pode ser feita a esse respeito Juiz de Fora

constituiu-se no principal municiacutepio industrial do estado de Minas Gerais nas primeiras

deacutecadas do seacuteculo XX Esse setor empregava um nuacutemero expressivo de crianccedilas em

suas instalaccedilotildees como jaacute ressaltei neste estudo Dessa forma argumento que a queda no

nuacutemero de processos de tutelas entre 1900 a 1919 possa tambeacutem estar relacionada ao

fato de as famiacutelias pobres estarem empregando seus rebentos nos estabelecimentos

industriais assim natildeo precisavam abandonaacute-los ou entregaacute-los agraves famiacutelias abastadas

Ressalto ainda que estamos num momento em que natildeo havia leis de proteccedilatildeo ao

trabalhador de forma geral nem uma regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-juvenil

Crianccedilas de pouca idade eram empregadas e jaacute contribuiacuteam com as despesas familiares

Outro fator relacionado agrave induacutestria pode ser elencado foi nesse periacuteodo que se deu a

eclosatildeo da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918) O conflito mundial trouxe

problemas para o setor agroexportador brasileiro mas em contrapartida o setor

industrial de bens de consumo foi beneficiado com investimentos e experimentou um

crescimento expressivo Poreacutem os benefiacutecios auferidos pelos industriais com a guerra

natildeo foram repartidos com os operaacuterios que continuaram recebendo baixos salaacuterios e

enfrentando um custo de vida cada vez mais alto Nessa conjuntura de carestia para as

classes subalternas provavelmente muitos pais empregaram seus rebentos nas faacutebricas

342

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Maria de Almeida

Costa data 25-02-1926 caixa 101

116

que em expansatildeo necessitavam de mais braccedilos ou entregaram os ldquomenoresrdquo para as

famiacutelias abastadas sem as formalidades legais

Todavia o periacuteodo de 1920 a 1930 assistiu a um crescimento no nuacutemero de

processos de tutelas no municiacutepio de Juiz de Fora chegando a 132 autos O que teraacute

ocorrido nessa deacutecada para explicar o aumento dos pedidos de tutelas de crianccedilas

desvalidas por setores das classes dominantes Uma das provaacuteveis explicaccedilotildees pode

estar relacionada agraves reivindicaccedilotildees do movimento operaacuterio por direitos sociais e pela

regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-juvenil e feminino A mobilizaccedilatildeo operaacuteria

principalmente nos grandes centros industriais (Rio de Janeiro e Satildeo Paulo) durante a

deacutecada de 1910 pressionou o governo a classe empresarial e setores da intelectualidade

a discutir a chamada questatildeo social Apoacutes longos debates foi aprovada a primeira lei

trabalhista brasileira a de Acidentes no Trabalho em 1919 que seraacute discutida no

proacuteximo capiacutetulo Outro fator para esse crescimento nos autos de tutelas no decorrer do

dececircnio de 1920 pode ser o fato de que apoacutes a Primeira Guerra Mundial em acircmbito

internacional ocoreu uma intensa discussatildeo sobre os direitos da crianccedila sendo

aprovada em 1923 a Declaraccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila (Declaraccedilatildeo de Genebra)

Dentro desse contexto internacional de discussatildeo sobre a infacircncia o Brasil tambeacutem

passou a debater sobre a situaccedilatildeo de sua infacircncia desvalida abandonada delinquente e

operaacuteria Segundo Irene Rizzini o periacuteodo de 1923 a 1927 foi especialmente produtivo

em termos de leis que visavam abarcar todos os aspectos relativos agrave ldquoassistecircncia e

proteccedilatildeo agrave infacircncia abandonada e delinquenterdquo no Brasil343

A culminacircncia desses

debates foi a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores em 1927 Creio que em virtude da

intervenccedilatildeo estatal na questatildeo trabalhista e agraves discussotildees sobre os direitos da crianccedila no

decorrer dos anos 1920 as classes dominantes passaram a ver no viacutenculo tutelar

novamente uma forma de controle da matildeo de obra dos ldquomenoresrdquo A utilizaccedilatildeo do

trabalho dos pupilos pelos tutores natildeo foi objeto de consideraccedilatildeo do Coacutedigo Civil nem

do Coacutedigo de Menores Apesar de o Coacutedigo de 1927 versar sobre diversos assuntos

relativos agrave utilizaccedilatildeo do trabalho de ldquomenoresrdquo como seraacute examinado no terceiro

capiacutetulo natildeo haacute nos seus 231 artigos uma referecircncia ao pagamento de salaacuteriossoldadas

aos tutelados pobres que tinham sua matildeo de obra explorada pelos tutores Assim a

343

RIZZINI Irene ldquoCrianccedilas e menores ndash do Paacutetrio poder ao Paacutetrio Dever Um histoacuterico da legislaccedilatildeo

para a infacircncia no Brasilrdquo In RIZZINI Irene PILOTTI Francisco (orgs) A arte de governar crianccedilas

a histoacuteria das poliacuteticas sociais da legislaccedilatildeo e da assistecircncia agrave infacircncia no Brasil Satildeo Paulo Cortez

2011 p 130

117

tutela se constituiacutea em um meio legal de utilizaccedilatildeo compulsoacuteria do trabalho infanto-

juvenil pelos tutores

Com relaccedilatildeo agrave idade dos ldquomenoresrdquo tutelados as abordagens tecircm demonstrado

que o sexo masculino se fez mais presente no periacuteodo de transiccedilatildeo do trabalho escravo

para o livre Alessandra David no estudo desenvolvido em Franca (1859-1888)

percebeu que 74 dos tutelados eram meninos344

Essa superioridade masculina

tambeacutem foi observada por Arethuza Zero na anaacutelise de 140 registros de Rio Claro

(1871-1888) 61 referia-se a ldquomenoresrdquo do sexo masculino345

Essa presenccedila maior de

meninos nas tutelas tambeacutem foi detectada para Juiz de Fora no periacuteodo de 1871 a 1900

sendo que 572 dos tutelados refere-se a esse grupo346

Nos primeiros anos apoacutes a

aboliccedilatildeo da escravidatildeo o sexo masculino ainda continuou a predominar nas accedilotildees de

tutelas processadas pelo poder judiciaacuterio da comarca de Juiz de Fora Das 172 crianccedilas

tuteladas entre 1888 a 1899 78 (4535) eram referentes ao sexo feminino e 94

(5465) ao masculino Todavia para o periacuteodo de 1900 a 1930 o quadro se inverte

completamente ou seja as meninas tornam-se majoritaacuterias nessa documentaccedilatildeo Das

174 crianccedilas tuteladas 123 (7069) satildeo referentes a meninas e 51 (2931) a meninos

como pode ser visualizado no quadro abaixo

QUADRO 5

PRESENCcedilA FEMININA E MASCULINA NOS PROCESSOS DE TUTELAS

(1888-1930)

PERIacuteODO MENINAS MENINOS TOTAL

1888-1899 78 4535 94 5465 172

1900-1909 03 60 02 40 05

1910-1919 10 5882 07 4118 17

1920-1930 110 7237 42 2763 152

FONTEAHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de

tutelas (1888-1930)

344

DAVID Alessandra (1997) apud TEIXEIRA Heloisa M TEIXEIRA Heloisa Maria A natildeo-

infacircncia crianccedilas como matildeo-de-obra compulsoacuteria em Mariana (1850-1900) 2004 p 11

httpwwwcedeplarufmgbrdiamantina2004textosD04A030PDF 345

ZERO Arethuza H Op cit 2004 p 81 346

FRANCISCO Raquel Pereira Laccedilos da senzala arranjos da flor de maio relaccedilotildees familiares e de

parentesco entre a populaccedilatildeo escrava e liberta ndash Juiz de Fora (1870-1900) Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Niteroacutei UFF 2007

118

No decorrer do processo de emancipaccedilatildeo do regime de trabalho escravo muito

se discutiu sobre o provaacutevel abandono das fazendas pelos cativos quando da aboliccedilatildeo

Poreacutem tal fato natildeo ocorreu como as previsotildees mais pessimistas alardeavam Num

primeiro momento poacutes-aboliccedilatildeo ocorreu uma movimentaccedilatildeo dos libertos alguns

deixaram a propriedade em que tinham sido escravos para se empregarem em outras

unidades produtivas Outros abandonaram as fazendas em busca de melhores condiccedilotildees

de vida na aacuterea urbana outros mudaram de cidade e ou regiatildeo mas a maioria

permaneceu no trabalho da lavoura Aleacutem do fato de um grande contingente de libertos

ter permanecido no campo no municiacutepio de Juiz de Fora deve-se ressaltar que essa

regiatildeo da Mata Mineira tambeacutem recebeu uma leva expressiva de imigrantes o que

contribuiu para a natildeo desestruturaccedilatildeo da produccedilatildeo nas unidades347

Posto isso presumo

que num primeiro momento de estruturaccedilatildeo das novas relaccedilotildees de trabalho poacutes-

emancipaccedilatildeo setores dos grupos dominantes tenham recorrido ao viacutenculo tutelar como

uma medida de manutenccedilatildeo e controle de uma parcela da matildeo de obra com prioridade

para a masculina possivelmente em funccedilatildeo da atividade agriacutecola em que se pretendia

empregaacute-la

Todavia natildeo tendo se concretizado a tatildeo propalada escassez de braccedilos para a

lavoura no municiacutepio de Juiz de Fora e com o assentamento das relaccedilotildees de trabalho

livre possivelmente tenha arrefecido o iacutempeto dos setores dominantes pela tutela de

ldquomenoresrdquo do sexo masculino para serem empregados nos trabalhos agriacutecolas Por outro

lado a matildeo de obra de meninas para serem utilizadas principalmente nas atividades

domeacutesticas dos lares das classes dominantes manteve-se Acrescente-se que essa matildeo de

obra tambeacutem estava sendo requisitada pelo setor fabril da cidade o que tornava o

viacutenculo tutelar uma maneira de manutenccedilatildeo da criadagem

Joseacute Carlos da Silva Cardozo em seu estudo com processos de tutelas de Porto

Alegre (RS) no periacuteodo da Primeira Repuacuteblica (1902 ndash 1925) tambeacutem encontrou um

nuacutemero maior de meninas sendo tuteladas Das 267 crianccedilas de sua anaacutelise 59 eram

do sexo feminino O autor argumentou que a preferecircncia por esse sexo poderia estar

347

GUIMARAES Elione Silva Op cit 2006 p 78 Cf SARAIVA Luiz Fernando Um correr de

casas antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Niteroacutei UFF 2001 SOUZA Sonia Maria de (2003) Terra famiacutelia e solidariedade

estrateacutegias de sobrevivecircncia camponesa no periacuteodo de transiccedilatildeo ndash Juiz de Fora (1870-1920) Tese de

Doutoramento Niteroacutei UFF 2003

119

relacionada agrave questatildeo da proteccedilatildeo da honra e da virgindade bem como agrave prestaccedilatildeo de

serviccedilos domeacutesticos348

Na proacutexima parte apresento a anaacutelise dos processos de tutelas em que os

ldquomenoresrdquo foram alvos de disputas entre familiares e tutores Creio que os motivos para

uma parte expressiva desses conflitos entre tutores e familiares seja a questatildeo da

utilizaccedilatildeo da matildeo de obra das crianccedilas

2 3 TENSOtildeES E CONFRONTOS AS DISPUTAS ENTRE PAIS

E TUTORES PELA GUARDA DOS ldquoMENORESrdquo

Entre inuacutemeros pontos divergentes que o momento ensejou [fim da

escravidatildeo] uma questatildeo parece ter se destacado como foco de tensotildees

remanescentes entre ex-senhores e libertos Tal pendecircncia refere-se agrave

fragilidade social na qual se encontrava o ingecircnuo transformado em oacuterfatildeo

crianccedila abandonada ou simplesmente ldquomenorrdquo com o findar do mundo

escravista (Maria Aparecida C R Papali)349

Com a aboliccedilatildeo da escravidatildeo no Brasil em maio de 1888 diversos proprietaacuterios

recorreram aos juiacutezes de oacuterfatildeos para conseguirem a tutela dos filhos de suas ex-cativas

Como jaacute salientado provavelmente esta foi uma estrateacutegia das classes dominantes de

manutenccedilatildeo e controle da matildeo de obra dos rebentos das ex-escravas Todavia nem

sempre os homens e mulheres egressos do cativeiro se mantiveram passivos aos mandos

e desmandos dos antigos senhores Atraveacutes dos processos de tutelas eacute possiacutevel

acompanhar a luta dos libertos para terem ou manterem a guarda de sua prole

A tutela como um recurso de manutenccedilatildeo e controle de uma parcela da matildeo de

obra natildeo se restringiu apenas aos filhos dos libertos mas se estendeu agraves crianccedilas dos

estratos sociais subalternos Estes tambeacutem lutaram pela guarda de seus entes

Atraveacutes dos autos de tutela eacute possiacutevel acompanhar a luta de tutores e familiares

pela guarda das crianccedilas As disputas na justiccedila pela guarda dos ldquomenoresrdquo agraves vezes

arrastavam-se por meses e ateacute anos

348

CARDOZO Jose Carlos da Silva ldquoO juiacutezo dos oacuterfatildeos e a tutela de menoresrdquo Scripta Nova Revista

Eletroacutenica de Geografia y Ciencias Sociales Universidad de Barcelona v XVI n 395 (14) mar 2012

pp 1-15 Disponiacutevel em httpwwwubesgeocritsnsn-395sn-395-14htm Acessado em 30-10-2014 349 PAPALI Maria Aparecida C R ldquoA legislaccedilatildeo de 1871 o judiciaacuterio e a tutela de ingecircnuos na cidade

de Taubateacuterdquo In Revista Justiccedila e Histoacuteria v 2 n 3 pp 1-18 2002 p 10 Disponiacutevel em

wwwtjrsjusbrexportpoder_judiciariohistoriamemorial_do_poder_judiciariomemorial_judiciario_gau

chorevista_justica_e_historiaissn_1676-5834v2n3doc09-Papalipdf Acessado em 10-07-2015

120

Nos processos de tutelas examinados na peticcedilatildeo dirigida ao Juiz comunicando a

existecircncia de ldquomenoresrdquo pobres ou abandonados em determinado lugar ou residecircncia do

municiacutepio em condiccedilotildees de receber tutor as matildees eram geralmente descritas como

ldquomuito pobresrdquo ldquodadas ao vicio da embriagues e da prostituiccedilatildeordquo ldquosolteira e sem

residecircncia fixardquo etc A suposta maacute conduta das mulheres conjugada agrave situaccedilatildeo de

pobreza contribuiu para que muitas crianccedilas fossem dadas a tutores dativos Segundo

Martha Abreu e Alessandra Martinez

[] As famiacutelias dos setores populares quase sempre associadas agrave

ldquoignoracircncia pobreza descuido viacutecio abandono licenciosidaderdquo e muitas

vezes vistas como criadoras de criminosos e delinquentes eram acusadas de

ldquoincapazesrdquo no que diz respeito agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo de suas crianccedilas350

A partir do momento em que o juiz tomava conhecimento da existecircncia de

ldquomenoresrdquo a que se deveria dar tutor era entatildeo indicado um tutor dativo caso natildeo

houvesse um testamentaacuterio ou um legiacutetimo A tutela dativa poderia ser dada ao

peticionaacuterio caso aceitasse o encargo ou a outra pessoa da localidade desde que ficasse

provada a sua idoneidade

Com a emancipaccedilatildeo do cativeiro os libertos tiveram de enfrentar diversas

dificuldades como a falta de educaccedilatildeo de terras de trabalho de moradia entre outras

Um artigo do jornal O Pharol do dia 19 de maio de 1888 assinado por Olympio de

Arauacutejo351

chamava a atenccedilatildeo para as dificuldades que os libertos do 13 de maio teriam

de enfrentar e indagava sobre quantos ldquolibertos valetudinaacuteriosrdquo e ldquoquantos ingecircnuos

desprotegidos iram sofrer os horrores da miseacuteria e da fomerdquo352

Feitas essas

indagaccedilotildees ele ainda perguntava se natildeo seria o caso de se criar uma associaccedilatildeo

beneficente para cuidar desses ldquoinfelizesrdquo

Nos dias seguintes agrave promulgaccedilatildeo da Lei Aacuteurea o jornal O Pharol publicou

vaacuterias notiacutecias de festejos em homenagem agrave dita lei bem como reclamaccedilotildees de

fazendeiros que se sentiram espoliados pelo ato da princesa Isabel Mas passados os

momentos de empolgaccedilatildeo os libertos se depararam com uma dura realidade entre

outras a dificuldade de reconstruiacuterem seus laccedilos familiares O ldquotreze de maio o mecircs das

floresrdquo353

tambeacutem trouxe os espinhos para os homens e mulheres egressos do cativeiro

350

ABREU Martha MARTINEZ Alessandra Frota op cit p 25 351

AHUFJF O Pharol 19 mai 1888 p 1 Olympio de Araujo em seu artigo ressaltou uma coincidecircncia

admiraacutevel segundo ele a lei Aacuteurea foi assinada no dia de Nossa Senhora dos Maacutertires 352

Idem 353

AHUFJF O Pharol 18 mai 1888 p 1-2 Artigo exaltando a Lei de 13-05-1888

121

A existecircncia de ldquomenoresrdquo afrodescendentes tutelados por ldquohomens bonsrdquo do

municiacutepio de Juiz de Fora levou os pais a terem de lutar pela guarda de seus filhos no

poacutes-emancipaccedilatildeo

O Pharol do dia 18 de julho de 1888 publicou uma mateacuteria da Gazeta da

Comarca em que se discutia a falta de providecircncias do governo com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo

dos ingecircnuos e dos libertos inabilitados para o trabalho por algum motivo depois de jaacute

terem passados dois meses da assinatura da Lei Aacuteurea Com relaccedilatildeo agrave sorte dos

ingecircnuos segundo o texto jornaliacutestico o Juiz de Oacuterfatildeos da comarca havia deliberado

que iriam lhes dar a soldada ldquo[] ainda mesmo aos lavradores mediante contrato feito

com o juiacutezo e aceitaccedilatildeo de certas clausulas essenciaisrdquo para que estes ldquomenoresrdquo

tivessem uma ldquoeducaccedilatildeo proveitosardquo354

Ainda eacute ressaltado que os ldquomenoresrdquo soacute seriam

entregues a seus pais mediante o reconhecimento deles por meio do casamento ou por

intermeacutedio de declaraccedilatildeo realizada em cartoacuterio De acordo com o texto parece que os

lavradores teriam primazia na soldada dessas crianccedilas No final da mateacuteria novamente

eacute feita referecircncia aos lavradores fazendeiros tomarem esses ldquomenoresrdquo para protegecirc-

los como se pode observar por este trecho

Assim pois para assegurar-se aos ingecircnuos e oacuterfatildeos menores uma proteccedilatildeo

definida que tanto atenda aacute sorte atual como ao seu aproveitamento futuro e

jaacute para que sobre este assunto natildeo se suscitem duvidas reciprocamente

desagradaacuteveis conveacutem que os fazendeiros que desejem tomar a si o cargo da

educaccedilatildeo dos ingecircnuos faccedilam os respectivos contratos com o juiacutezo de oacuterfatildeos

que procuraraacute estamos certos conciliar todos os interesses e atender a todas

as circunstacircncias355

[grifos meus]

Ter algueacutem que cuidasse da educaccedilatildeo dos ingecircnuos e oacuterfatildeos era importante

como se depreende do texto tanto para o presente quanto para o futuro deles e presumo

que tambeacutem da lavoura uma vez que representariam braccedilos para a mesma A educaccedilatildeo

desses ldquomenoresrdquo permitiria que eles fossem ldquoaproveitados no futurordquo como

trabalhadores ordeiros A educaccedilatildeo destinada agraves crianccedilas desvalidas era o ensino

primaacuterio e o aprendizado de um ofiacutecio O trabalho para esses ldquomenoresrdquo era concebido

como um ldquoremeacutediordquo para os viacutecios e para o oacutecio a que estavam sujeitos se natildeo

houvesse quem os amparasse E eles podiam encontrar esse ldquoamparo e proteccedilatildeordquo

segundo o artigo do jornal entre a classe dos fazendeiros

354

AHUFJF O Pharol 18 jul 1888 p 1 355

AHUFJF O Pharol 18 jul 1888 p 1

122

Alguns proprietaacuterios colocavam em seus requerimentos que aceitavam o encargo

ldquoespinhosordquo356

de tutor com o intuito apenas de proteger os ldquomenoresrdquo desamparados

bem como pela estima e amizade que tinham pelos mesmos Para Elione Guimaratildees

algumas solicitaccedilotildees de tutelas realmente poderiam ser motivadas por sentimentos de

afeto e amizade e ainda acrescenta que muitas das crianccedilas requeridas poderiam ser

frutos ilegiacutetimos de algum parente do peticionaacuterio357

A esse respeito argumento que

algumas dessas crianccedilas poderiam ser filhas ilegiacutetimas do proacuteprio requerente358

Em

outros casos segundo Guimaratildees a tutela era solicitada como uma medida preventiva

de problemas com a justiccedila pois os juiacutezes de oacuterfatildeos poderiam ser informados por

algueacutem da existecircncia de crianccedilas nas condiccedilotildees de se dar tutor Por isso ldquoalguns

provavelmente preferiram se adiantar a ter algum vizinho lsquopreocupadorsquo com o bem estar

de menores a denunciaacute-losrdquo359

O processo de tutela dos oacuterfatildeos Edgar Cyrino e Edson Cyrino de 2 e 6 anos de

idade respectivamente filhos de Antonio Cyrino e de D Palmyra Marccedilolla

provavelmente eacute um caso em que o viacutenculo tutelar foi estabelecido por relaccedilotildees de

amizade Em setembro de 1929 o operaacuterio Eugenio Ribeiro Bastos solicitou a tutela dos

irmatildeos Edgar e Edson Cyrino que natildeo possuiacuteam bens Segundo o peticionaacuterio essa

famiacutelia era do seu ldquoconhecimentordquo e com a qual ldquomanteve relaccedilotildeesrdquo Em virtude da

suposta amizade e ao fato de os ldquomenoresrdquo terem ficado ldquoem plena orphandade e no

mais triste dos desamparosrdquo ele requereu a tutela dos mesmos alegando que

[] apesar de operaacuterio pobre e chefe de famiacutelia condoendo-se da sorte desses

infelizes e cumprindo um dever que natildeo pode furtar-se estaacute disposto a ter em

sua casa e sob sua proteccedilatildeo os ditos menores aos quaes dispensaraacute cuidados

de pae360

356

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Enedina Martins

Gonccedilalves data 30-07-1925 caixa 07 processo 07 357

GUIMARAtildeES Elione S Op cit 2006 p 114 358

A respeito da tutela de filhos ilegiacutetimos pelo suposto pai ver no capiacutetulo 4 parte 46 ldquoFelicidade

Perpeacutetua a matildee crioula do filho do senhorrdquo de minha dissertaccedilatildeo de mestrado em que analisei um

processo em que o proprietaacuterio Antocircnio Manoel Tostes reconheceu um filho que tivera com sua escrava

Felicidade Perpeacutetua atraveacutes de uma escritura de perfilhaccedilatildeo Ele tornou-se tutor de outros dois filhos da

mesma cativa Pedro e Francisca supostamente seus filhos Os ldquomenoresrdquo Pedro e Francisca nasceram

apoacutes o casamento de Antocircnio Manoel Tostes com D Ameacutelia de Almeida Tostes de quem natildeo houve

filhos Assim se realmente fossem filhos do dito senhor natildeo poderiam ser reconhecidos pois eram filhos

adulterinos Os ldquomenoresrdquo receberam instruccedilatildeo e legados de seu tutor que se colocava como ldquopai de

criaccedilatildeordquo dos mesmos FRANCISCO Raquel Pereira Op cit 2007 p 144-158 359

GUIMARAtildeES Elione Silva Op cit 2006 p 114 360 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menores Edgar e Edson

Cyrino data 11-09-1929 caixa 08 processo 06

123

As peticcedilotildees enviadas ao Juiz de Oacuterfatildeos comunicando a existecircncia de crianccedilas

em condiccedilotildees de serem tuteladas tecircm em comum o fato de descreverem as matildees como

solteiras e ou viuacutevas muito pobres sem condiccedilotildees morais e econocircmicas para criaacute-las Eacute

recorrente tambeacutem assinalar que as matildees pobres haviam se entregado agrave prostituiccedilatildeo ou

ao viacutecio da embriaguez Outras expressotildees presentes nas solicitaccedilotildees eacute o fato de que o

ldquomenorrdquo jaacute vivia em companhia do peticionaacuterio que jaacute o estava educando e criando que

nutria por ele grande afeiccedilatildeo e amizade

Muitos pais contestaram essas alegaccedilotildees difamatoacuterias e lutaram judicialmente

pela guarda de seus filhos Da leitura dos processos de tutelas emerge a importacircncia que

os homens e mulheres receacutem-saiacutedos do cativeiro bem como das classes subalternas

davam a seus viacutenculos familiares Aleacutem do fator emocional pode-se acrescentar que em

alguns casos a disputa pela crianccedila pelos seus familiares estava relacionada agrave

possibilidade de o ldquomenorrdquo poder ajudar com sua forccedila de trabalho na sobrevivecircncia do

grupo familiar

As famiacutelias das classes populares e incluo a dos libertos eram concebidas sob o

acircngulo da desorganizaccedilatildeo e da desestruturaccedilatildeo Nesse periacuteodo predominava a

concepccedilatildeo de que era necessaacuterio moralizar e higienizar as classes subalternas da

sociedade Essa parcela da populaccedilatildeo era tida como incapaz de cuidar e educar os seus

filhos uma vez que a sua organizaccedilatildeo familiar natildeo se conformava com a noccedilatildeo de

famiacutelia burguesa das classes dominantes Essa concepccedilatildeo sobre as famiacutelias pobres

serviu de argumento para alguns tutores contestarem os pedidos de remoccedilatildeo de tutela

impetrados pelos pais dos ldquomenoresrdquo Esse foi o caso da tutela de Conceiccedilatildeo e Gabriel

datada de 16 de maio de 1888

O tutor Francisco Baptista de Assis lavrador morador no distrito de Sarandy

solicitou a tutela dos ldquomenoresrdquo alegando que eles haviam sido criados e mantidos pela

sua famiacutelia e que lhes dedicavam ldquosincera afeiccedilatildeordquo A matildee dos ldquomenoresrdquo Constanccedila

havia sido escrava do peticionaacuterio Segundo o suplicante a matildee das crianccedilas continuava

como sua empregada mas era dada ao viacutecio da embriaguez e temendo que ela ldquopossa

querer retirar-se da noite para o diardquo requeria a nomeaccedilatildeo de um tutor para as

crianccedilas361

No termo de tutela os ldquomenoresrdquo aparecem como filhos de pai incoacutegnito poreacutem

Constanccedila casou-se com Ignaacutecio Cardoso ex-escravo do Conde de Cedofeita e passou a

361

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos Relativos a accedilatildeo de tutelas Menores

Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-05-1888

124

requerer a tutela de seus filhos Numa das primeiras peticcedilotildees enviadas ao Juiz de Paz

pela matildee dos ldquomenoresrdquo Ignaacutecio Antonio Cardoso eacute descrito como padrasto dos

mesmos Entretanto Ignaacutecio reconheceu as crianccedilas como seus filhos por um termo de

reconhecimento datado de 21 de agosto de 1889 uma vez que Constanccedila e Gabriel natildeo

foram reconhecidos no ato do matrimocircnio que havia se realizado em julho de 1888 na

Igreja de Satildeo Francisco do Caeteacute ou se foram reconhecidos tal informaccedilatildeo natildeo foi

anotada pelo paacuteroco362

Esse termo de reconhecimento eacute contestado pelo tutor Francisco Baptista de

Assis que alega natildeo haver possibilidades de os libertos terem se conhecido antes da

concepccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo uma vez que natildeo residiam na mesma freguesia e ainda

ressaltava que na peticcedilatildeo enviada por Constanccedila os ldquomenoresrdquo satildeo descritos como

enteados de Ignaacutecio Na accedilatildeo de embargo que entatildeo move contra Constanccedila e o suposto

pai (Ignaacutecio) o tutor acrescenta que mesmo que fosse provada a paternidade natildeo era

conveniente que as crianccedilas fossem entregues aos peticionaacuterios da remoccedilatildeo da tutela

pois natildeo possuiacuteam ldquoidoneidade moralrdquo para educaacute-los e ainda poderiam corrompecirc-los

com os seus maus exemplos posto que Constanccedila e Ignaacutecio brigavam muito e era

notoacuterio o viacutecio da embriaguez da liberta sempre ldquovista caiacuteda em estrada puacuteblicardquo O

tutor alegou que se recusava a entregar as crianccedilas era pela amizade que lhes devotava e

pelo bem-estar das mesmas uma vez que os encargos da tutela de ldquomenoresrdquo desvalidos

eram superiores agraves vantagens que lhe poderia resultar com a permanecircncia desses em sua

residecircncia Como jaacute salientei alguns tutores colocavam o encargo da tutela como uma

accedilatildeo humanitaacuteria que estavam prestando a esses ldquomenoresrdquo desprotegidos

As testemunhas que foram chamadas para deporem fazem coro agraves alegaccedilotildees de

Francisco Baptista de Assis de que Constanccedila e Ignaacutecio natildeo tinham condiccedilotildees para

cuidar das crianccedilas O advogado dos embargados Constanccedila e Ignaacutecio contestou os

depoimentos das testemunhas ouvidas alegando que duas eram parentes do embargante

362

Decreto no 5604 de 25 de abril de 1874 ndash art 63sect 9

o ldquoo assento de casamento deveraacute conter

necessariamente Declaraccedilatildeo do numero nomes e idades dos filhos havidos antes do casamento e que

ficam por ele legitimadosrdquo A referecircncia a esse decreto estaacute no processo de tutela dos ldquomenoresrdquo

Conceiccedilatildeo (10 a 12 anos) e Gabriel (7 anos mais ou menos) Segundo o advogado dos pais das crianccedilas

Dr Joseacute Caetano de Moraes e Castro o reconhecimento tambeacutem podia se dar por outros meios como por

um terno de reconhecimento lavrado por escritura puacuteblica AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci ndash

Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menores Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-051888

125

Nas razotildees finais do processo o embargante Francisco Baptista de Assis

assinala que o ldquomenorrdquo Gabriel estava aprendendo a ler e escrever363

e que Conceiccedilatildeo

ldquopor jaacute estar muito desenvolvida e mesmo por natildeo ser costume na roccedila mandar ensinar a

ler as mulheres natildeo frequenta a classerdquo poreacutem ela estava ldquoaprendendo os serviccedilos a que

pode dedicar-se uma pessoa nas suas condiccedilotildeesrdquo364

[grifos meus]

Pelo que se depreende da declaraccedilatildeo do tutor a educaccedilatildeo escolar natildeo era

destinada agraves mulheres da roccedila principalmente as pobres que deveriam se dedicar a

outras tarefas entre as quais a do serviccedilo domeacutestico Maria Cristina S de Gouvecirca em

seu estudo sobre a escolarizaccedilatildeo feminina no seacuteculo XIX assinala que natildeo havia muito

interesse da famiacutelia e dos responsaacuteveis com a educaccedilatildeo das meninas e que o governo da

proviacutencia de Minas pouco investia nessa aacuterea A relutacircncia da famiacutelia e dos

responsaacuteveis em enviar as meninas agrave escola principalmente agraves das classes pobres

estava relacionada a vaacuterios fatores sendo um deles o auxiacutelio que elas deveriam prestar

nas atividades domeacutesticas365

A respeito da instruccedilatildeo feminina Rachel Soihet assinala

que o ldquohorizonte ideoloacutegicordquo brasileiro na passagem agrave modernidade concebia o

casamento como ldquoocupaccedilatildeo principalrdquo da mulher natildeo se valorizando desse modo a sua

escolarizaccedilatildeo Segundo a autora essa ldquomentalidaderdquo persistiu por longos anos e

contribuiu sobremaneira para a manutenccedilatildeo da mulher ldquoao exerciacutecio do trabalho na

praacutetica das tarefas menos qualificadas e mais desvalorizadasrdquo366

O advogado dos embargados o dr Joseacute Caetano de Moraes e Castro contra-

argumentou dizendo que o costume de natildeo mandar ensinar as meninas a ler deveria ser

desprezado Prosseguiu explanando que o tutor gozava dos serviccedilos de Conceiccedilatildeo (15

anos) e de Gabriel (9 anos) pela quantia de 4$000 mensais (fazendo referecircncia agrave

363

De acordo com a declaraccedilatildeo de Symphronio de Souza e Silva professor particular de instruccedilatildeo

primaacuteria na fazenda de S Luzia o menor Gabriel Pereira de Andrade frequentava a sua classe e recebia

do tutor do mesmo a mensalidade de quatro mil reacuteis 364

Conforme declaraccedilotildees da testemunha Severino Pires de Almeida (lavrador) a menor Conceiccedilatildeo vivia

em companhia dos filhos de Francisco Baptista de Assis e era empregada em serviccedilos domeacutesticos e em

acompanhar as crianccedilas A testemunha Custodio Nogueira da Silva natural de Portugal informou que

sabia que a ldquomenorrdquo se ocupava em coser 365

GOUVEcircA Maria Cristina Soares de ldquoMeninas nas salas de aula dilemas da escolarizaccedilatildeo feminina

no seacuteculo XIXrdquo In FILHO Luciano Mendes Faria (org) A infacircncia e sua educaccedilatildeo ndash materiais

praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e Brasil) Belo Horizonte Autecircntica 2004 p 203-205 Thomas Holt

tambeacutem aborda a questatildeo do desinteresse na Jamaica pela educaccedilatildeo puacuteblica para crianccedilas em idade

escolar HOLT Thomas C ldquoA essecircncia do contrato a articulaccedilatildeo entre raccedila gecircnero sexual e economia

poliacutetica no programa britacircnico de emancipaccedilatildeo 1838-1866rdquo In COOPER Frederick et all Aleacutem da

Escravidatildeo investigaccedilatildeo sobre raccedila trabalho e cidadania em sociedades poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 p 120-121 Cf PERROT Michelle Op cit 1996 p 118 366

SOIHET Rachel Condiccedilatildeo feminina e formas de violecircncia mulheres pobres e ordem urbana 1890-

1920 Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1989 p 170 Cf PERROT Michelle Op cit 1996 p 118-

119

126

mensalidade escolar de Gabriel) e acrescentou ldquoe como se natildeo haacute de estimar a quem

por tatildeo moacutedica quantia nos serve O interesse infelizmente eacute mola real do coraccedilatildeo

humanordquo367

A disputa entre embargante e embargados continuou demonstrando o interesse

das partes pela guarda das crianccedilas Provavelmente fosse real a alegaccedilatildeo do tutor de

que Ignaacutecio declarou-se pai dos ldquomenoresrdquo apenas como um subterfuacutegio para conseguir

a guarda dos mesmos Se tal afirmaccedilatildeo for verdadeira pode ser interpretada como um

gesto de afeto de Ignaacutecio por sua companheira pois desse modo ela poderia passar a

conviver junto a seus filhos368

Sendo padrasto369

a remoccedilatildeo da tutela poderia natildeo ser

realizada mas reconhecendo a paternidade os entraves diminuiacuteam e a probabilidade de

obter a posse dos ldquomenoresrdquo aumentava Aleacutem do laccedilo afetivo pode-se acrescentar o

fator econocircmico Gabriel e Conceiccedilatildeo estavam em uma faixa etaacuteria em que poderiam

trabalhar e contribuir com as despesas do seu grupo familiar Gizlene Neder observou

no estudo sobre o Asilo dos Meninos Desvalidos a mesma situaccedilatildeo de disputas

ldquoenvolvendo o exerciacutecio do paacutetrio poderrdquo A autora examinou um caso de confronto

entre a famiacutelia de um interno e o diretor do Asilo pela sua guarda As crianccedilas quando

atingiam uma faixa etaacuteria que podeira contribuir com seu trabalho com as despesas do

lar geralmente a sua posse era reivindicada por seus familiares370

Segundo Sheila

Faria os filhos enquanto pequenos eram apenas ldquoconsumidoresrdquo e representavam ldquoum

fardordquo para as famiacutelias pobres poreacutem quando mais velhos eram ldquoprodutoresrdquo e

poderiam contribuir com seu trabalho para a prosperidade de sua famiacutelia371

Outra

367

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores

Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-05-1888 Razotildees finais do processo de embargo movido por Francisco

Baptista de Assis p 49 368

Segundo a declaraccedilatildeo de uma das testemunhas o lavrador Custodio Nogueira da Silva natural do

reino de Portugal Ignaacutecio havia lhe dito que queria a guarda dos menores ou de pelo menos um deles

para que pudessem fazer companhia agrave matildee e que eles natildeo eram seus filhos 369

De acordo com o Livro 4o Tiacutetulo 102 paraacutegrafo 1 (p 995-996) das Ordenaccedilotildees Filipinas alguns

indiviacuteduos estavam inabilitados para serem tutores Eram os casos dos menores de 25 anos do sandeu do

proacutedigo do inimigo do oacuterfatildeo do pobre ao tempo do falecimento do defunto entre outros Na nota

explicativa estaacute assinalado que os padrastos estavam incluiacutedos entre os inabilitados considerados como

inimigos do oacuterfatildeo Segundo a nota os padrastos poderiam ateacute ser admitidos mas com toda a cautela 370 NEDER Gizlene ldquoAssistencia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gizele de (org) Educar na infacircncia

perspectivas histoacuterico-sociais Satildeo Paulo Contexto 2010b p 108-110 371

FARIA Sheila de Castro ldquoA propoacutesito das origens dos enjeitados no periacuteodo escravistardquo In

VENANCIO Renato Pinto (org) Uma Histoacuteria Social do abandono de crianccedilas de Portugal ao Brasil

seacuteculos XVIII-XIX Satildeo Paulo Alameda Editora PUC Minas 2010 p 85 Uma das questotildees discutida

por Alan Macfarlane em sua obra a ldquoHistoacuteria do casamento e do amorrdquo na Inglaterra do periacuteodo de 1300

a 1840 eacute a questatildeo sobre o nuacutemero de filhos e a relaccedilatildeo destes com a prosperidade e ou pobreza da

famiacutelia Na anaacutelise eacute observada tanto essa problemaacutetica no meio rural quanto urbano bem como nos

diversos grupos sociais e periacuteodos Cf MACFARLANE Alan Histoacuteria do casamento e do amor

Inglaterra ndash 1300-1840 Satildeo Paulo Companhia das letras 1990

127

hipoacutetese eacute a de que os ldquomenoresrdquo fossem realmente filhos desse casal de libertos e por

isso lutaram para reconstruiacuterem seus laccedilos familiares

Eric Foner exorta que os receacutem-libertos do sul dos Estados Unidos

consideravam melhor adotar os filhos de algum parente ou amigo falecido do que deixaacute-

los serem entregues aos brancos como aprendizes ou ainda serem enviados para os

orfanatos e ou internatos Eles buscavam livrar-se de todas as caracteriacutesticas da

escravidatildeo com o objetivo de ldquodestruir a autoridade real e simboacutelica que os brancos

haviam exercido sobre todos os aspectos de suas vidasrdquo372

Assim retirar a famiacutelia da

autoridade de homens brancos era considerado pelos ex-escravos provavelmente um

elemento de suma importacircncia da liberdade373

Talvez Ignaacutecio desejasse apenas livrar a

prole de sua esposa do jugo do ex-senhor da mesma adotando-os como seus filhos

como discorreu Foner com relaccedilatildeo aos libertos norte-americanos

O embargo promovido por Francisco Baptista de Assis foi indeferido e a custa

do processo de acordo com a determinaccedilatildeo do Juiz seria paga por ele Ele natildeo aceitou

a sentenccedila e apelou no Tribunal da Relaccedilatildeo do Distrito (22-11-1889) desistindo pouco

depois de tal accedilatildeo alegando que natildeo tinha recursos para continuar com a apelaccedilatildeo e

que fora movido ateacute entatildeo ldquosoacute para defender o que ele supunha ser do interesse dos seus

pupilos a quem professava sincero afeto e tratava sempre com o mesmo carinho e

desvelo com que tratava seus proacuteprios filhosrdquo O ex-tutor ainda asseverou que estava

com a ldquoconsciecircncia tranquilardquo por ter desempenhado bem o seu cargo de tutor e

acrescentou que se o juiz de oacuterfatildeos havia determinado que os ldquomenoresrdquo fossem entatildeo

entregues ldquoao individuo que se diz pairdquo que assim fosse feito374

Ateacute o uacuteltimo instante

Francisco Baptista de Assis nega que o liberto Ignaacutecio fosse pai das crianccedilas Fica a

duacutevida sobre o que realmente motivou o tutor a apelar da sentenccedila de remoccedilatildeo de tutela

se foi a suposta estima que nutria pelos ldquomenoresrdquo ou o serviccedilo que os mesmos

poderiam lhe oferecer por uma pequena remuneraccedilatildeo O que depreendo desse processo

eacute que o casal de libertos natildeo desistiu da luta apesar de todas as tentativas feitas pelo

tutor para manter a tutela Independentemente de ser ou natildeo pai de Conceiccedilatildeo e Gabriel

372

FONER Eric ldquoO significado da liberdaderdquo In LARA Silvia Hunold (org) Escravidatildeo Revista

Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo ANPUH Marco Zero v 8 n 16 marag 1988 p 12 373

Idem pp 17 e 20 Cf FRANCISCO Raquel Pereira Laccedilos de Solidariedade famiacutelia e parentesco

entre os afrodescendentes do municiacutepio de Juiz de Fora no poacutes-emancipaccedilatildeo In Passagens Revista

Internacional de Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro v 4 n 2 maio-agosto 2012c p

233-253 Disponiacutevel em wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv4n2a32012pdf Acessado 10-07-

2015 374

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores

Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-05-1888

128

Ignaacutecio junto com Constanccedila a matildee conseguiu o direito de formar uma famiacutelia a sua

famiacutelia Constanccedila teria a partir de entatildeo seus filhos sob sua proteccedilatildeo sob sua

autoridade Mas nem todos os casais de libertos tiveram a mesma sorte de Ignaacutecio e

Constanccedila em reconstruiacuterem seus laccedilos familiares formados ainda nos ldquotempos do

cativeirordquo ou de darem iniacutecio a uma ldquofamiacuteliardquo

A histoacuteria de Magdalena e Juacutelio ela ex-escrava de Balbino de Magalhatildees

Gomes teve um final totalmente oposto ao da Constanccedila e Ignaacutecio apesar de ser bem

semelhante Esse casal uniu-se em matrimocircnio em novembro de 1893 e em

consequecircncia desse enlace Magdalena perdeu o paacutetrio poder sobre seus filhos Laura de

7 anos de idade e Joatildeo de 4 anos375

O promotor de justiccedila Luiz Barbosa Gonccedilalves

Penna comunicou esse fato ao Juiz de Oacuterfatildeos e indicou para tutor das crianccedilas o Sr

Balbino de Magalhatildees Gomes no ldquoseio de cuja famiacutelia tem os menores sido criados ateacute

esta idaderdquo376

Mas no ano de 1896 Juacutelio solicitou que a tutela sobre a menina cessasse

pois esta era sua filha tida no tempo de solteiro com Magdalena e dessa forma ele e

sua mulher eram os ldquoprotetores naturaisrdquo da mesma (01-10-1896) A peticcedilatildeo enviada ao

Juiz de Oacuterfatildeos em que Juacutelio solicita a guarda de Laura foi contestada pelo promotor

interino o advogado Herculano A Gomes de Souza pois a declaraccedilatildeo de paternidade

feita na peticcedilatildeo natildeo era instrumento legal de reconhecimento de filhos (01-10-1896)377

A ldquomenorrdquo natildeo foi reconhecida no ato do matrimocircnio e nem por uma escritura

puacuteblica de reconhecimento mas apenas atraveacutes da peticcedilatildeo endereccedilada ao Juiz de

Oacuterfatildeos em que Juacutelio dizia-se pai de Laura Por esse motivo o pedido foi indeferido e a

custa do processo ficou a cargo do suplicante Segundo o promotor de Justiccedila a atitude

de Juacutelio em solicitar a guarda da menina era motivada pelo fato de ter-se tornado

inimigo do tutor como era puacuteblico O parecer do promotor foi de que a Laura

continuasse sob a guarda do tutor

Segundo o Sr Balbino de Magalhatildees Gomes Magdalena e o suposto pai natildeo

tinham condiccedilotildees para educarem as crianccedilas uma vez que eram ldquoanalfabetos e baldos

de recursosrdquo e tambeacutem natildeo eram capazes ldquode conservarem em seu poder uma menina

375

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores Laura e

Joatildeo Data 15-05-1894 Juacutelio Francisco Antonio de Lima era jornaleiro e natural de Mangaratiba (RJ)

Sua condiccedilatildeo juriacutedica natildeo estaacute clara no processo mas acredito que ele fosse um liberto Magdalena Maria

da Conceiccedilatildeo era brasileira empregada domeacutestica natural de Juiz de Fora onde residia 376

Idem folha 2 ano 1894 377

Ibidem folha 9 ano 1896

129

que atingiu a idade que [mais] se torna necessaacuterio que dela tenha o maior cuidado

[]rdquo378

O que teria levado Juacutelio a requerer a guarda da ldquomenorrdquo Seraacute que o fato de ter-

se tornado ldquoinimigo do tutorrdquo como alegou o promotor induziu Juacutelio a dizer que era pai

de Laura Por que somente depois de decorridos quase dois anos da assinatura da tutela

o suposto pai assumiu a paternidade e solicitou a remoccedilatildeo da mesma Seria Juacutelio

realmente o pai de Laura

Se a tese de que Juacutelio estava solicitando a remoccedilatildeo da tutela simplesmente por

ter-se tornado inimigo do tutor for verdadeira por que entatildeo natildeo solicitou tambeacutem a

guarda de Joatildeo Como inimigo de Balbino de Magalhatildees Gomes era oacutebvio que

desejasse retirar ambas as crianccedilas do domiacutenio do tutor Uma possibilidade para o

suposto pai de Laura ter solicitado a posse da ldquomenorrdquo apenas dois anos apoacutes a

assinatura da tutela por Balbino de Magalhatildees talvez esteja relacionada agraves condiccedilotildees

financeiras do casal Possivelmente em 1894 quando se deu a tutela eles natildeo tivessem

recursos financeiros para ficarem com as crianccedilas e por isso concordaram que eles

permanecessem sob a responsabilidade do ex-senhor de Magdalena Anna Gicelle G

Alaniz sugere que muitos libertos se viram sem recursos no poacutes-aboliccedilatildeo sendo pois o

viacutenculo tutelar uma possibilidade de sobrevivecircncia para seus rebentos Todavia quando

tinham uma situaccedilatildeo econocircmica mais definida a presenccedila de filhos em idade produtiva

lhes permitiam dispensar o viacutenculo tutelar379

Laura jaacute estava na idade de tornar-se uma

forccedila de trabalho para sua famiacutelia Mas por que natildeo solicitaram em 1896 a posse de de

Joatildeo tambeacutem Seria Joatildeo um ldquofardordquo para o casal que estava buscando sobreviver no

poacutes-aboliccedilatildeo O ldquomenorrdquo contava com apenas 6 anos e pouco serviccedilo poderia oferecer

naquele momento Seraacute que ambos eram filhos do casal mas por causa das dificuldades

de sobrevivecircncia requereram apenas a posse da ldquomenorrdquo que jaacute poderia oferecer algum

trabalho Ou seria apenas Laura filha de Juacutelio e por ser dificultada aos padrastos a

tutela de seus enteados ele natildeo tenha requerido a guarda do menino Mas se a ldquomenorrdquo

era realmente sua filha por que natildeo a reconheceu no ato do matrimocircnio Natildeo saberia

Juacutelio que para obter o paacutetrio poder sobre o rebento havido antes do casamento deveria

reconhececirc-lo nessa cerimocircnia Seraacute que o juiz as testemunhas natildeo perguntavam sobre a

existecircncia de filhos para os nubentes Infelizmente natildeo haacute respostas para estas

questotildees apenas conjecturas

378

Ibidem folha 4 e 4 v ano 1896 379

ALANIZ Anna Gicelle Garcia op cit p 73 -74

130

Anna Gicelle G Alaniz ressaltou que o viacutenculo tutelar pode ter sido uma

possibilidade de sobrevivecircncia para os filhos de muitos libertos sem meios de

sobrevivecircncia no poacutes-emancipaccedilatildeo Poreacutem apoacutes os pais conseguirem se estabelecer

com empregomoradia buscavam reaver seus filhos principalmente os que estavam em

uma faixa etaacuteria produtiva O processo de tutela dos irmatildeos Romatildeo Romana e Paulo

filhos da liberta Anna preta sugere que essa foi a situaccedilatildeo vivida por esse grupo

familiar O processo eacute de fevereiro de 1890 e na peticcedilatildeo encaminhada ao Juiz eacute

colocado que Romatildeo de 11 anos de idade e Romana de 9 anos viviam cada qual na casa

de um proprietaacuterio e que era necessaacuterio dar tutor aos ldquomenoresrdquo visto serem ldquopessoas

destrahidasrdquo No requerimento eacute colocado que eles viviam na companhia de cidadatildeos do

municiacutepio por ldquocaridaderdquo e pelo temor que tinham de que os mesmos fossem

ldquodesencaminhadosrdquo A outra crianccedila de nome Paulo de 7 anos mais ou menos vivia em

companhia de sua matildee e do liberto Gregorio O lavrador Antocircnio Joseacute Teixeira aceitou

o encargo da tutela dativa dos trecircs irmatildeos em marccedilo de 1890 e declarou que o fazia

ldquomais por attender aacute pobresa dos menores e de sua matildee que podem ser equiparados a

pessocircas desvalidasrdquo380

Em dezembro do mesmo ano o tutor solicitou escusa da tutela

alegando que natildeo poderia mais continuar com a mesma e declarou que havia aceitado

tal encargo pelo fato de as crianccedilas se encontrarem no

[] mais lamentaacutevel abandono attenta aacute precaria posiccedilatildeo da matildee [] que

remida da condiccedilatildeo de escrava pela aurea lei de 13 de maio de 1888 natildeo

dispunha absolutamente de mais para delles cuidar alimentar vestir e tratar

como convinha aacute posiccedilatildeo de cada um delles que pelas respectivas edades se

viam na impossibilidade de trabalhar para o sustento381

Antocircnio Joseacute Teixeira indicou para substitui-lo no cargo de tutor o padrasto dos

ldquomenoresrdquo Gregoacuterio Joseacute da Costa que segundo ele era ldquohomem muito trabalhador

honesto e de bons costumes e que a todos os respeitos reuacutene condiccedilotildees para ser um

zeloso tutor de seus enteadosrdquo O discurso do trabalho como uma ldquovirtuderdquo que tornava

o trabalhador em uma pessoa disciplinada honesta e de boa moral foi utilizado pelo

tutor para se referir ao padrasto Na passagem agrave modernidade o trabalho foi revestido

de um caraacuteter ldquosagradordquo e que tinha a capacidade de transformaccedilatildeo do operaacuterio em uma

380

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores Romatildeo e

Romana Data 03-08-1890 Caixa 4 Processo 12 381

Idem

131

pessoa disciplina e ordeira382

A matildee dos ldquomenoresrdquo tambeacutem solicitou a guarda de seus

filhos alegando que estando casada civilmente com Gregoacuterio Joseacute da Costa estava

protegida pela lei Ao que parece a situaccedilatildeo de Anna estava melhor e dessa maneira

ela poderia ter os filhos consigo e ateacute mesmo beneficiar-se da matildeo de obra dos mesmos

para a sobrevivecircncia da famiacutelia

O tutor dos filhos da liberta Anna natildeo se opocircs agrave destituiccedilatildeo da tutela como

tantos outros proprietaacuterios fizeram natildeo desmoralizou a matildee dos ldquomenoresrdquo e nem o

padrasto O comportamento de Antocircnio Joseacute Teixeira eacute atiacutepico da documentaccedilatildeo

analisada Seria o casal Anna e Gregoacuterio empregados desse proprietaacuterio e por isso ele

natildeo criou empecilhos Natildeo teria ele necessidade dos serviccedilos desses ldquomenoresrdquo Ou

aceitou a tutela realmente por causa das condiccedilotildees precaacuterias das crianccedilas

Histoacuterias como a dos libertos Anna e Gregoacuterio e de outros que tiveram acesso agrave

justiccedila pela guarda de seus filhos natildeo foi a realidade para diversas pessoas dos estratos

sociais subalternos Poreacutem eles natildeo deixaram de lutar por seus rebentos da maneira que

podiam Uma das formas de reaccedilatildeo era a recusa em entregar as crianccedilas Mas para que

a lei fosse cumprida os tutores nomeados solicitavam aos juiacutezes que fosse passado

mandado de entrega e apreensatildeo A partir dessa accedilatildeo ou os processos silenciam-se pois

terminavam com a entrega do ldquomenorrdquo ao seu tutor ou prosseguiam com novos pedidos

de apreensatildeo do pupilo por esse ter fugido para a casa de sua matildee ou de um parente de

os pais os terem retirado da casa do tutor entre outras accedilotildees As fugas das crianccedilas das

casas de seus tutores era uma maneira de contestarem de demonstrarem sua

insatisfaccedilatildeo e essas accedilotildees podem estar relacionadas a fatores como os maus tratos a

vontade de estar junto a seus familiares a oportunidade de ter os seus serviccedilos

remunerados de trabalhar para quem desejava383

Gislane Campos Azevedo ressalta que

os castigos fiacutesicos nas crianccedilas tuteladas eram uma praacutetica corriqueira e que muitos

pupilos encontravam na fuga uma maneira de se livrarem de tal situaccedilatildeo384

Aleacutem dos

castigos fiacutesicos as meninas tambeacutem estavam sujeitas aos abusos sexuais por parte dos

382

Segundo E P Thompson durante o processo de gestaccedilatildeo da sociedade industrial na Inglaterra do

seacuteculo XVIII a ideia do trabalho como uma ldquovirtuderdquo e contendo um caraacuteter ldquosagradordquo foi difundido

pelas igrejas protestantes Assim a ldquocruzrdquo e o ldquosanguerdquo de Cristo serviram aos interesses das classes

dominantes para a criaccedilatildeo de haacutebitos de disciplina nos operaacuterios Cf THOMPSON E P A formaccedilatildeo da

classe operaacuteria inglesa 2 a maldiccedilatildeo de Adatildeo 4 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 239-243 383

Com relaccedilatildeo agrave fuga dos ldquomenoresrdquo da residecircncia de seus tutores ver entre outros os processos de

tutelas de Benvindo Fortunato e Sebastiatildeo AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave

accedilatildeo de tutela Menor Benvindo Data 16-11-1888 caixa 100 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci

Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menores Fortunato e Sebastiatildeo Data 28-05-1888 Caixa 100 384

AZEVEDO Gislane Campos Op cit 1995 p 87-88

132

tutores ou de algum de seus parentes385

A recusa em entregar as crianccedilas as fugas as

retiradas dos ldquomenoresrdquo da residecircncia dos tutores pode ser interpretada como parte de

uma ldquoeconomia moralrdquo386

da famiacutelia desvalida isto eacute de sua visatildeo sobre o direito de

permanecer com seus filhos e ou de entregaacute-los para quem desejasse

Da anaacutelise da tutela de Geralda de setembro de 1929 eacute viaacutevel supor que ela

fosse viacutetima de maus-tratos na casa de seu tutor o Juiz Municipal do termo de Satildeo Joatildeo

Nepomuceno Jose Eugenio de Miranda Lima O pedido de tutela dessa ldquomenorrdquo

comeccedila como tantos outros colocando a matildee de Geralda Blandina domeacutestica como

incapaz de exercer o paacutetrio poder por supostamente ter ldquovida licenciosa e viver em

estado de quase indigecircnciardquo Aleacutem dessas alegaccedilotildees tambeacutem foi colocado que a

ldquomenorrdquo jaacute vivia na residecircncia do dito cidadatildeo havia mais de cinco anos O pedido foi

deferido e o tutor nomeado solicitou que sua pupila fosse apreendida pois ela havia sido

ldquosorrateiramente extraviada por elementos despeitados e interessados no trabalho de

Geraldardquo387

Suponho que as alegaccedilotildees do requerente sobre a conduta de Blandina Maria da

Conceiccedilatildeo natildeo foram averiguadas pelos representantes do poder judiciaacuterio Natildeo haacute uma

solicitaccedilatildeo do Juiz para que o suplicante comprovasse as suas palavras A suposta

displicecircncia da justiccedila nesse caso e em outros provavelmente estaacute relacionada com a

posiccedilatildeo social do requerente bem como com a associaccedilatildeo que as classes dominantes

faziam entre mulheres pobres e imoralidade Gislane Azevedo em seu estudo sobre as

385

Elione S Guimaratildees assevera que por causa de vaacuterios fatores provavelmente muitos dos abusos

sexuais sofridos pelas ldquomenoresrdquo tuteladas natildeo foram registrados pelas fontes Dos processos de tutelas de

afrodescendentes analisados para o municiacutepio de Juiz de Fora em apenas um caso houve a denuacutencia de

abuso sexual sofrida por uma ldquomenorrdquo A autora analisou o processo de tutela e o de estupro de Vitalina

que foi tutelada por seu padrinho de batismo Ricardo Augusto de Carvalho Vitalina era filha de Cassiana

que fora escrava de D Generosa Horta de Carvalho (matildee do tutor) A acusaccedilatildeo de estupro foi feita pelo

irmatildeo da menina que acusou o tutor-padrinho da mesma Vitalina ficou graacutevida e a famiacutelia de Ricardo

sendo influente conseguiu reverter a acusaccedilatildeo desmoralizando a ldquomenorrdquo e sua famiacutelia GUIMARAtildeES

Elione Silva Op cit 2006 p 133-137 Na documentaccedilatildeo que pesquisei para a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo

de mestrado deparei-me com o processo de tutela das oacuterfatildes Gabriela e Virginia filhas de Joseacute Luiz da

Costa falecido e de D Minelvina Maria de Satildeo Joseacute onde haacute o relato de uma tentativa de abuso sexual

contra uma ingecircnua D Minelvina Maria de Satildeo Joseacute era casada em segundas nuacutepcias com Joaquim

Antonio Baptista padrasto e tutor de suas filhas Ela solicitou a remoccedilatildeo da tutela pelo fato de ter

descoberto que seu marido havia tentado deflorar uma ingecircnua que possuiacutea entre 10 e 12 anos de idade

sendo tal tentativa praticada em presenccedila de suas filhas Segundo o relato de D Minelvina a ingecircnua

havia sido enviada para a casa de uma famiacutelia vizinha e o fato era conhecido no distrito de Chapeacuteu

drsquoUvas e confessado pela ldquomenorrdquo AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci ndash Processos relativos agrave

accedilatildeo de tutelas - Menores Gabriela e Virginia Data 16-08-1883 Cf SILVA Renata Lutiene Op cit

2010 p 78 386

Cf THOMPSON E P Costumes em comum estudos sobre a cultura popular tradicional Satildeo Paulo

Companhia das Letras 1998 especialmente os capiacutetulos 4 ldquoA economia moral da multidatildeo inglesa no

seacuteculo XVIIIrdquo e 5 ldquoEconomia moral revisitadardquo 387

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Geralda Data 02-

09-1929 Caixa 8 processo 11

133

accedilotildees de tutelas da cidade de Satildeo Paulo tambeacutem fez essa observaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos

processos referentes agraves crianccedilas pobres os juiacutezes natildeo procuravam comprovar as

informaccedilotildees dos suplicantes sobre os familiares dos ldquomenoresrdquo388

Entretanto eacute

necessaacuterio ressaltar que houve processos em que os requerentes tiveram que comprovar

suas declaraccedilotildees sobre os pais das crianccedilas No processo de Francisca de Jesus de 12

anos de idade o Promotor de Justiccedila solicitou que o peticionaacuterio Affonso Colucci

provasse suas alegaccedilotildees a respeito da conduta da matildee da ldquomenorrdquo ou indicasse

testemunhas389

A matildee da ldquomenorrdquo Geralda contestou as alegaccedilotildees sobre sua conduta e

apresentou atestado de procedimento expedido pelo delegado de poliacutecia e certidatildeo de

que era empregada na casa de Manoel do Couto e Silva por quase 8 anos e requereu a

posse de sua filha Joseacute Eugenio de Miranda Lima em resposta agrave peticcedilatildeo de Blandina

fez uma longa explanaccedilatildeo sobre a vida da mesma e de seus outros filhos assinalado que

dos seus seis filhos trecircs encontravam-se em uma fazenda em Coronel Pacheco sem

instruccedilatildeo escolar dois viviam com a matildee na casa onde era cozinheira sem nenhuma

assistecircncia sendo que um deles ldquoia crescendo no canto da cosinha desnudo e

encardidordquo e o outro vivia vagando pelas ruas e estradas da cidade ldquomaltrapilhordquo sem

nunca ter entrado em uma escola ou encontrado quem ldquolhe desse uma cartilha de A B

Crdquo e ia se enveredando pelo caminho do crime

A dar creacutedito as palavras do tutor a vida de Blandina e de seus filhos era

perpassada pela carecircncia e pela separaccedilatildeo de seus membros Uma mulher solteira

pobre com seis filhos para criar em uma sociedade que impunha como padratildeo a famiacutelia

nuclear jaacute se apresentava desqualificada perante a justiccedila

Apoacutes as alegaccedilotildees de Blandina e do tutor ao que parece os membros do poder

judiciaacuterio procuraram verificar a veracidade das mesmas concluindo o Juiz que a matildee

da ldquomenorrdquo Geralda natildeo estava nas ldquocondiccedilotildees de exercer o poder materno visto que

mora em casa alheia em emprego humilde e sem meios de educar outros filhos

menoresrdquo Todavia a tutela da ldquomenorrdquo concedida a Joseacute Eugenio de Miranda Lima foi

considerada sem efeito e foi indicado outro tutor uma vez que a matildee se opunha

388

AZEVEDO Gislane Campos Op cit 1995 p 119-120 Cf CARDOZO Jose Carlos da Silva Op

cit 2012 389

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Francisca de Jesus

Data 25-11-1893 Caixa 5 Processo 4

134

ldquoexpressamenterdquo que sua filha permanecesse com o mesmo390

Aleacutem disso Geralda foi

ouvida em juiacutezo e ldquopediu em pranto que natildeo fosse mandada para a casa do Dr Miranda

Limardquo sendo que jaacute havia se ldquoausentadordquo da casa do tutor e se colocado sobre a

ldquoprotecccedilatildeordquo do Sr Carlos Grande

Por que Geralda teria pedido ldquoem prantosrdquo para natildeo voltar para a casa de seu

tutor Seria maltratada por ele e seus familiares Teria sofrido algum tipo de violecircncia

fiacutesica ou sexual A recusa de Blandina de que sua filha permanecesse sob a tutela de

Miranda Lima seria motivada por ter conhecimento de que sua filha era explorada

maltratada Nesse caso apenas indagaccedilotildees podem ser tecidas uma vez que temos

apenas um pequeno fragmento dessa histoacuteria

O tutor natildeo concordou com a sentenccedila e recorreu Alegou que as laacutegrimas da

menina se deviam ao temor que lhe haviam incutido A recusa em aceitar a remoccedilatildeo da

tutela por Joseacute Eugenio de Miranda Lima seria motivada por preocupaccedilatildeo com a

ldquomenorrdquo ou pela perda da matildeo de obra O tutor em suas consideraccedilotildees sobre a sua

remoccedilatildeo da tutela assinalou que a ldquomenorrdquo estava em sua casa ldquohaacute mais de 5 annosrdquo e

que solicitou a tutela depois de decorrido esse tempo ldquopara poder valer a sua qualidade

contra terceiros manhosamente empenhados em retirar a menor da sua casardquo [grifado no

original] Eacute viaacutevel supor que o cerne da questatildeo nessa disputa tenha sido a forccedila de

trabalho da ldquomenorrdquo que jaacute estava possivelmente treinada para os serviccedilos domeacutesticos

Quando do pedido de apreensatildeo de Geralda logo apoacutes a assinatura da tutela o tutor

alegou que ela havia sido ldquosorrateiramente extraviada por elementos despeitados e

interessadosrdquo em seu trabalho Creio que um nuacutemero expressivo de tutelas de crianccedilas

pobres tenha se configurado em uma forma disfarccedilada de trabalho compulsoacuterio dos

ldquomenoresrdquo e que por isso a sua perda significava prejuiacutezos para os interessados

Aleacutem da questatildeo da utilizaccedilatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo outras questotildees tambeacutem

podem ser observadas atraveacutes dos processos de tutelas como a preocupaccedilatildeo com o

ldquomenorrdquo com a sua honra a sua seguranccedila e o seu futuro tanto da parte do tutor quanto

da parte dos familiares da crianccedila

A ldquomenorrdquo Maria da Conceiccedilatildeo de 4 anos de idade filha de Sebastiana Augusta

do Carmo solteira e que havia sido assassinada teve a sua tutela solicitada pelo avocirc

materno Augusto Alves da Silva em fevereiro de 1929 O avocirc da menina que era

390

O Coacutedigo Civil estabeleceu quem natildeo poderia ser tutor ou deveria ser exonerado do cargo em seu art

413 inciso III que ldquoos inimigos do menor ou de seus pais ou que tiverem sido por estes expressamente

excluiacutedos da tutelardquo

135

estafeta do Correio declarou no requerimento que sua neta havia sido levada por

Eduardo de Tal ldquoindividuo mal afamado e destituiacutedo de recursosrdquo e que se declarava pai

da menina391

A tutela foi concedida a Augusto Alves da Silva e provavelmente os

agentes do judiciaacuterio natildeo averiguaram a autenticidade das informaccedilotildees prestadas pelo

avocirc quanto ao comportamento do suposto pai da ldquomenorrdquo

Nesse processo a dar creacutedito agraves palavras de Augusto Alves da Silva a

motivaccedilatildeo para o pedido da tutela foi o afeto pela neta e a preocupaccedilatildeo com a sua

seguranccedila e seu futuro

Na proacutexima parte discutirei a questatildeo da utilizaccedilatildeo da matildeo de obra dos pupilos

pelos tutores as soldadas ou contratos de locaccedilatildeo de serviccedilo desses ldquomenoresrdquo bem

como as formas de reaccedilatildeo das crianccedilas e de seus familiares agraves condiccedilotildees impostas pelas

classes dominantes

2 4 ENTRE TINAS VASSOURAS E CAFEZAIS AS TUTELAS E

CONTRATOS DE SOLDADAS DE ldquoMENORESrdquo DESVALIDOS

A exploraccedilatildeo das crianccedilas na escala e na intensidade com que foi praticada

representou um dos acontecimentos mais vergonhosos da nossa histoacuteria (E

P Thompson)392

O trabalho na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX passou a ter uma conotaccedilatildeo

positiva na sociedade brasileira ou seja ele passou a ser valorizado como algo que

conferia dignidade e respeito sendo tambeacutem considerado um ldquoremeacutediordquo contra a

vadiagem a ociosidade e o crime Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas dos estratos sociais

subalternos o trabalho era colocado como o caminho para a constituiccedilatildeo dos mesmos

em cidadatildeos uacuteteis agrave paacutetria

O trabalho infantil fundamentalmente o realizado em faacutebricas e oficinas foi

objeto de discussatildeo por parte da imprensa do movimento operaacuterio de

meacutedicoshigienistas de advogados de pedagogos e de poliacuteticos A discussatildeo pautava-se

nos malefiacutecios que as atividades realizadas em tais estabelecimentos poderiam gerar

391

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Maria Augusta

Data 26-02-1929 Caixa 8 Processo 12 392 THOMPSON E P A formaccedilatildeo da classe operaacuteria inglesa II a maldiccedilatildeo de Adatildeo 4 ed Rio de

Janeiro Paz e Terra 2002 p 224

136

para a sauacutede do jovem operaacuterio O emprego de ldquomenoresrdquo nesses estabelecimentos foi

alvo de leis nos estados e municiacutepios com certo niacutevel de desenvolvimento industrial ao

longo da Primeira Repuacuteblica poreacutem pela falta de uma fiscalizaccedilatildeo efetiva natildeo

lograram ecircxito como seraacute discutido no proacuteximo capiacutetulo

Se a regulamentaccedilatildeo de horas de trabalho da proibiccedilatildeo do trabalho noturno da

idade de admissatildeo entre outras questotildees preocupava setores da intelectualidade com

relaccedilatildeo ao operaacuterio infanto-juvenil nas faacutebricas essa preocupaccedilatildeo natildeo se estendeu ao

trabalho de ldquomenoresrdquo no serviccedilo domeacutestico e rural As atividades nos lares das classes

dominantes e no campo muitas vezes eram extenuantes para a pouca idade de quem

estava executando e possivelmente representavam riscos agrave integridade fiacutesica e ateacute de

morte dos ldquomenoresrdquo em muitos casos

A lei de acidentes no trabalho 1919 que seraacute examinada oportunamente natildeo

contemplou o trabalhador rural e domeacutestico apenas os operaacuterios urbanos que utilizavam

motores inanimados Quantos trabalhadores do campo e domeacutesticos natildeo sofreram

graves acidentes durante a execuccedilatildeo de seus trabalhos como cortes com instrumentos

(foices machados facotildees facas enxadas) queimaduras entre outros e natildeo receberam

auxiacutelio de seus empregadores

Com relaccedilatildeo agraves atividades domeacutesticas realizadas pelas ldquomenoresrdquo Pedro Nava

em suas lembranccedilas da infacircncia na casa de sua avoacute Inhaacute Luiacutesa em Juiz de Fora relatou

que as ldquonegrinhas [] carregavam menino traziam aacutegua varriam aqui espanavam ali

serviam mesa apanhavam fruta lavavam louccedila quebravam louccedila []rdquo393

Aleacutem de

executarem diversas tarefas as ldquocriasrdquo e as empregadas assalariadas da casa de sua avoacute

ainda sofriam com os castigos fiacutesicos a ldquoratambardquo394

os tapas na boca e a vara de

marmelo Pelo que se depreende do relato de Nava algumas meninas foram entregues

para serem criadas395

por sua avoacute como no caso da ldquomenorrdquo Evangelina Berta a Catita

de sete anos de idade que provavelmente foi abandonada pela matildee Suponho que

muitas meninas tenham sido entregues para serem criadas pelas distintas senhoras do

municiacutepio e em retribuiccedilatildeo tinham que trabalhar

Wesleyuml Silva em sua anaacutelise sobre a problemaacutetica da infacircncia abandonada e

delinquente em Belo Horizonte entre os anos de 1920 a 1940 abordou a questatildeo de

393

NAVA Pedro Balatildeo Cativo memoacuterias 2 Rio de Janeiro J Olympio 1974 p 4-5 394

Ratamba chicote chibata vergasta Cf Dicionaacuterio Aulete Digital httpwwwauletecombr Acessado

em 18-11-2014) 395

O ldquocriarrdquo no meu entender essas ldquomenoresrdquo significava dar-lhes comida um local para dormir e em

troca usufruir do trabalho das mesmas

137

meninas de cidades do interior serem levadas para a capital para trabalharem como

empregadas domeacutesticas Essas trabalhadoras mirins estavam expostas a vaacuterios tipos de

violecircncia como o afastamento da famiacutelia tarefas estafantes baixos salaacuterios maus tratos

e agressotildees (fiacutesicas sexuais e psicoloacutegicas)396

Em estudo realizado no Rio de Janeiro

na deacutecada de 1980 sobre o emprego domeacutestico constatou-se a existecircncia de um ldquotraacutefico

de meninas da zona rural para a zona urbana realizado pelas famiacutelias empregadorasrdquo397

Creio que esse ldquotraacuteficordquo fosse resquiacutecio de praacuteticas arraigadas de segmentos das classes

dominantes de arregimentar ldquomenoresrdquo da aacuterea rural para trabalharem em suas

residecircncias urbanas por baixos salaacuterios ou em troca de um suposto aprendizado

profissional Com o fim do trabalho escravo em maio de 1888 essa pode ter sido uma

das estrateacutegias utilizada pelas classes dominantes de manterem trabalhadores

domeacutesticos em seus lares O viacutenculo tutelar e o criar ldquomenoresrdquo oacuterfatildeos abandonados ou

entregues pelos pais possivelmente configurou-se em outros mecanismos de controle

da matildeo de obra infantil no periacuteodo em estudo nesse trabalho

O horaacuterio de trabalho e a idade dos ldquomenoresrdquo trabalhadores nas induacutestrias e

oficinas foram uma problemaacutetica que permeou as discussotildees sobre a regulamentaccedilatildeo do

trabalho infantil ao longo da Primeira Repuacuteblica398

Poreacutem o serviccedilo domeacutestico

realizado por diversas ldquomenoresrdquo nos lares das classes dominantes natildeo foi contemplado

O trabalho domeacutestico geralmente tinha hora para comeccedilar mas natildeo para terminar e as

ldquomenoresrdquo provavelmente passavam os dias as semanas ndash sem dias santos e feriados ndash

na labuta ocupando as aacutereas de serviccedilo da casa os quartinhos insalubres399

Tambeacutem

396 SILVA Wesleyuml Por uma histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da delinquecircncia de menores em Belo

Horizonte ndash 1921-1941 Doutorado em Educaccedilatildeo Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2007 p 204-

206 397

CAMPOS Maria Machado Malta ldquoInfacircncia abandonada o piedoso disfarce do trabalho precocerdquo In

MARTINS Joseacute de Souza O massacre dos inocentes a crianccedila sem infacircncia no Brasil 2 ed Satildeo Paulo

HUCITEC 1993 p 122 O telejornal ldquoBom Dia Brasilrdquo da emissora Rede Globo do dia 08 de maio de

2015 anunciou que estava sendo investigando pela poliacutecia do Paraacute os anuacutencios de contrataccedilatildeo de crianccedilas

para trabalharem como babaacutes Segundo a mateacuteria do telejornal o Ministeacuterio Puacuteblico do estado jaacute havia

recebido mais de 200 denuacutencias sobre o assunto Nos anuacutencios de serviccedilos publicados nos jornais os

contratantes se comprometiam em oferecer educaccedilatildeoescola e moradia para os interessados Outro dado

assinalado pela reportagem eacute do costume que haacute em Beleacutem dos setores dominantes empregarem meninas

do interior como babaacutes e ou empregadas domeacutesticas O trabalho domeacutestico eacute considerado uma das piores

formas de exploraccedilatildeo do trabalho infantil (OIT) Disponiacutevel em httpg1globocombom-dia-

brasilnoticia201505policia-do-para-investiga-anuncios-para-criancas-trabalharem-como-babahtml

Acessado em 03-07-2015 398

GOMES Acircngela Maria de Castro Burguesia e trabalho poliacutetica e legislaccedilatildeo social no Brasil 1917-

1937 Rio de Janeiro Campus 1979 399

Rita C V Rosa examinando a relaccedilatildeo entre patroas e empregadas domeacutesticas ressaltou que apesar do

conviacutevio aparentemente harmonioso e de afeto havia uma relaccedilatildeo hieraacuterquica que definia o papel e a

posiccedilatildeo de cada uma das partes ROSA Rita de Caacutessia Vianna ldquoA General das Letrasrdquo a literata

138

natildeo havia a preocupaccedilatildeo com a formaccedilatildeo escolar dessas meninas uma vez que para

uma parcela expressiva dos setores dominantes elas jaacute estavam sendo preparadas para o

papel que se esperava principalmente das mulheres pobres de serem boas donas de

casa esposas e matildees

Dos 239 processos analisados em 40 (1674) houve a menccedilatildeo de soldadas ou

de pagamento pelos serviccedilos prestados pelos ldquomenoresrdquo Dessa parcela 27 (675) se

referiam a meninas e 13 (325) a meninos Provavelmente boa parte dessas

ldquomenoresrdquo senatildeo todas foram destinadas ao trabalho domeacutestico Com relaccedilatildeo aos

meninos creio que foram encaminhados para os trabalhos ligados agrave lavoura Os 13

ldquomenoresrdquo foram tutelados ou dados a soldadas para lavradores ou fazendeiros A faixa

etaacuteria das 27 meninas variou entre 5 a 19 anos de idade e a dos meninos entre 5 e 15

anos

Segundo Kaacutetia Mattoso as crianccedilas escravas entre sete-oito anos de idade jaacute

comeccedilavam a exercer atividades na qualidade de aprendizes era o periacuteodo de transiccedilatildeo

dos escravos para a vida adulta400

A inserccedilatildeo de crianccedilas escravas no mundo do

trabalho a partir dos oito anos tambeacutem eacute ressaltada por Sandra L Graham que assinala

que era costume dos proprietaacuterios de escravos terem manciacutepios entre oito e doze anos

como aprendizes de serviccedilos domeacutesticos Apoacutes a aboliccedilatildeo da escravidatildeo as classes

dominantes passaram a empregar meninas de dezdoze anos em razatildeo dos salaacuterios

baixos ou pelo fato de poderem apenas fornecer roupas e o aprendizado de um ofiacutecio401

Presumo que essa faixa etaacuteria de iniciaccedilatildeo profissional tambeacutem possa ser aplicada ao

caso dos ldquomenoresrdquo desvalidos (afro-americanos nacionais e imigrantes)

Atraveacutes da documentaccedilatildeo compulsada foi possiacutevel observar que a forccedila de

trabalho de crianccedilas de bem pouca idade foi utilizada na ldquoManchester Mineirardquo natildeo

apenas nas faacutebricas mas tambeacutem nas residecircncias das classes dominantes O processo de

tutela da ldquomenorrdquo Isolina eacute um bom exemplo disso

Em 24 de abril de 1896 o Escrivatildeo de Oacuterfatildeos Ignacio Ernesto N da Gama

comunicou ao Juiz a necessidade de se dar tutor agrave menina Isolina de 5 anos de idade

filha da falecida liberta Antocircnia solteira O representante do judiciaacuterio indicou para o

cargo o Major Guilherme Justino Halfeld que era ldquopessoa idocircneardquo e assinalou que a

ldquomenorrdquo natildeo possuiacutea ldquobens de qualquer especierdquo O juiz de Direito Josino de Alcacircntara

Cosette de Alencar e a ldquosuardquo cidade ndash Juiz de Fora (MG) 1918 a 1973 Tese de Doutoramento Niteroacutei

UFF 2013 p 43-46 Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 236-239 400

MATTOSO Kaacutetia Queiros Op cit 1988 p 39-43 401

GRAHAM Sandra Lauderdale Op cit 1992 p 35-36

139

Arauacutejo concordou com a indicaccedilatildeo do cidadatildeo de que deveria ser intimado para assinar

o ldquotermo de responsabilidade com as obrigaccedilotildees do estylo independente de soldada ateacute

a edade de 12 annosrdquo Trecircs dias apoacutes a comunicaccedilatildeo da situaccedilatildeo da menina o cidadatildeo

Guilherme Justino Halfeld assinou a tutela com a obrigaccedilatildeo de zelar por sua ldquopessocirca e

bens e dandolhe (sic) educaccedilatildeo compatiacutevel com a sua condiccedilatildeo de que daraacute contas em

Juizo e tendo seus serviccedilos em troca ateacute que complete doze anos ou desta data a sete

anos []rdquo402

Foi dado um tutor dativo para a oacuterfatilde Isolina mas natildeo teria ela algum parente nas

condiccedilotildees de assumir o encargo Avoacutes Tios Irmatildeos Possivelmente a infacircncia dessa

menina foi como a de tantas outras crianccedilas pobres marcada pelo trabalho submissatildeo e

humilhaccedilatildeo

Ao assinar o termo o tutor se comprometeu a dar educaccedilatildeo ldquocompatiacutevelrdquo com a

condiccedilatildeo da ldquomenorrdquo em suma o aprendizado de um ofiacutecio e a educaccedilatildeo elementar

uma vez que essa era a educaccedilatildeo destinada agraves classes pobres Entretanto haacute a

possibilidade de Isolina natildeo ter recebido instruccedilatildeo escolar pois eacute comum na

documentaccedilatildeo examinada as ldquomenoresrdquo natildeo saberem ler e escrever Enquanto

propunha-se para as mulheres dos setores dominantes uma formaccedilatildeo educacional que

lhes possibilitassem ser boas matildees esposas educadoras dos filhos e com haacutebitos

burgueses de ldquoboas maneirasrdquo para as dos estratos sociais subalternos visava-se uma

educaccedilatildeo voltada para o trabalho ndash para a formaccedilatildeo de uma matildeo de obra submissa e

disciplina ndash e com um forte cunho moral que as afastassem do mundo da vadiagem e da

prostituiccedilatildeo403

Maria Cristina S de Gouvecirca em seu estudo sobre a escolarizaccedilatildeo

feminina no seacuteculo XIX assinala que natildeo havia muito interesse da famiacutelia e dos

responsaacuteveis com a educaccedilatildeo das meninas pobres Esse desinteresse estava relacionado

a diversos fatores entre os quais o auxiacutelio que as ldquomenoresrdquo deveriam prestar nas

atividades domeacutesticas remuneradas ou natildeo e aos ldquopapeis sociais destinados agrave mulher

adulta que natildeo demandavam o acesso a instruccedilatildeo elementarrdquo404

Associada a essa visatildeo

estava a argumentaccedilatildeo dos pais de que necessitavam do trabalho das filhas no serviccedilo

domeacutestico ou fabril o que contribuiacutea ainda mais para afastaacute-las dos bancos escolares

402

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de Tutela Menor Isolina Data 27-

04-1896 Caixa 5 processo 1 403

Cf NEDER Gizlene ldquoFamiacutelia poder e controle social concepccedilotildees sobre famiacutelia no Brasil na

passagem agrave modernidaderdquo Op cit 2007 p14-15 MARCILIO Maria Luiza Histoacuteria Social da crianccedila

abandonada 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2006 p 175-177 RAGO Margareth Do cabareacute ao lar a utopia

da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista Brasil 1890-1930 4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 p

88-91 404

GOUVEcircA Maria Cristina Soares de Op cit 2004 p 203-205

140

Com relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo da forccedila de trabalho de Isolina o Juiz determinou que a

partir dos 12 anos de idade a ldquomenorrdquo deveria passar a receber uma soldada mas ateacute

completar a idade estipulada ela iria compensar o tutor pela sua criaccedilatildeo com trabalho

Nos sete anos de criaccedilatildeo a ldquomenorrdquo seria preparada para os serviccedilos domeacutesticos do lar

do capitatildeo Guilherme Justino Halfeld Provavelmente Isolina experimentou pouco dos

prazeres da infacircncia sendo os seus brinquedos as panelas os tachos a lenha as tinas e

vassouras e suas professoras as outras criadas da residecircncia desse cidadatildeo

Depois da assinatura do termo de tutela segundo Ana Cristina Bastos e Moyseacutes

Kuhlmann JR os juiacutezes pouco sabiam sobre as condiccedilotildees dessas crianccedilas Os

magistrados soacute voltavam a ter alguma informaccedilatildeo sobre os ldquomenoresrdquo nos casos de

denuacutencias de maus-tratos comunicados de fugas dos pupilos renovaccedilatildeo do contrato de

soldada entre outras questotildees405

Sendo assim eacute viaacutevel supor que muitas crianccedilas como

no caso de Isolina que deveria ter a sua soldada estipulada anos depois do

estabelecimento do viacutenculo tutelar nunca tenham gozado desse direito

Com relaccedilatildeo ao pagamento das soldadas em alguns processos de tutelas haacute a

denuacutencia de que o tutor natildeo estava efetivando o pagamento dos soldos dos ldquomenoresrdquo

que deveriam ser depositados (cofres dos menores ou na Caixa Econocircmica Estadual)

conforme o Juiz estipulasse (trimestral semestral anualmente) O natildeo cumprimento do

pagamento da soldada pelos tutores pode ser observado na accedilatildeo de tutela da ldquomenorrdquo

Lucrecia de 10 anos filha da ex-escrava Sophia falecida O tutor Antonio Caiafa

assinou a tutela em 1892 e em 1896 foi intimado a comparecer com a ldquomenorrdquo em juiacutezo

para ser arbitrada uma soldada para mesma Em abril de 1897 Lucrecia declarou que

natildeo havia ldquorecebido remuneraccedilatildeo de seus serviccedilosrdquo406

Tenho argumentado que a tutela foi uma estrateacutegia utilizada por setores das

classes dominantes na transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre de controle e

manutenccedilatildeo da matildeo de obra infantil por baixos salaacuterios ou gratuitamente Apesar dos

baixos valores das soldadas houve tutores que procuraram burlar a lei ou recorreram

para natildeo realizar o pagamento Um exemplo eacute o caso do ldquomenorrdquo Benvindo de 10 anos

de idade filho da liberta Romana que foi tutelado por Militatildeo Honoacuterio Rodrigues

lavrador em Satildeo Joseacute do Rio Preto em janeiro de 1889 No decorrer do processo houve

a solicitaccedilatildeo de apreensatildeo do ldquomenorrdquo por causa das fugas da casa de seu tutor Em

405

BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 56-57 406

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Lucrecia Data 09-

02-1892 Caixa 101

141

1896 o Promotor de Justiccedila Alvaro Macedo Guimaratildees alegou que apesar de os

serviccedilos do ldquomenorrdquo serem remunerados o tutor natildeo havia mandado ldquoensinar-lhe a ler e

escreverdquo e considerou o valor da soldada insignificante Assim foi arbitrada uma nova

soldada O tutor solicitou a sua exoneraccedilatildeo do cargo por provaacuteveis motivos de sauacutede e

pelo fato de o ldquomenorrdquo que jaacute estava com 18 anos de idade natildeo permanecer em sua

companhia e ldquosob o [seu] governordquo Com a alegaccedilatildeo de que Benvindo fugia e

ausentava-se constantemente o tutor requereu que natildeo fosse obrigado a fazer o

pagamento das soldadas no periacuteodo de 1895 a 1897 pois nesse periacuteodo o seu pupilo natildeo

havia lhe prestado serviccedilos O pedido foi indeferido e Militatildeo Honoacuterio Rodrigues ficou

responsabilizado pelo pagamento de ldquotodas as soldadas compreendidas no tempo da

tutela ateacute o dia em que eximiu-serdquo em 1898 pois segundo o parecer do judiciaacuterio se o

pupilo fugia e natildeo prestava os serviccedilos ldquoera por falta de cuidados do tutorrdquo407

No processo de tutela de Benvindo observa-se o descumprimento do tutor da

obrigaccedilatildeo de mandar o pupilo a aprender a ler e escrever e a baixa remuneraccedilatildeo pelos

serviccedilos prestados As ditas ldquofugasrdquo e ldquoausecircnciasrdquo do ldquomenorrdquo podem ser interpretadas

como uma forma de reaccedilatildeo agraves condiccedilotildees de trabalho e de sobrevivecircncia impostas pelo

tutor O poder judiciaacuterio ao que tudo indica nesse caso fez valer os interesses e

direitos do ldquomenorrdquo ao determinar o pagamento das soldadas devidas

Segundo Ana Cristina Bastos e Moyseacutes Kuhlmann JR os valores das soldadas

eram estipulados de acordo com a idade e o sexo dos ldquomenoresrdquo Conforme pude apurar

na documentaccedilatildeo compulsada os valores das soldadas eram baixos As soldadas

estipuladas para as ldquomeninasrdquo variaram de dois mil reacuteis a quinze mil reacuteis mensais e a

dos meninos de cinco mil reacuteis a 25 mil reacuteis mensais

O estabelecimento de contratos de soldadas em alguns casos foram alvos de

disputas entre os pretendentes Os baixos salaacuterios pagos a essas crianccedilas deveria se

afigurar como um atrativo para os setores dominantes O processo de tutela dos

ingecircnuos Sebastiatildeo e Fortunato de 6 e 13 anos de idade respectivamente filhos da

liberta Maria solteira ex-escrava de Dominciano Joseacute Lopes moradora no distrito de

Vargem Grande eacute um bom exemplo Em 28 de maio de 1888 os ldquomenoresrdquo solicitaram

que lhes fosse nomeado um tutor pois apesar da promulgaccedilatildeo da lei de 13 de maio

eles permaneciam no ldquoserviccedilo de seu ex-senhor que os maltratardquo A matildee dos meninos

encontrava-se trabalhando para outro proprietaacuterio A peticcedilatildeo foi realizada pelo

407

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Benvindo Data 16-

11-1888 Caixa 100

142

advogado Joatildeo Severiano da Fonseca a rogo dos meninos que natildeo sabiam escrever O

juiz nomeou para o cargo de tutor Antonio Joseacute dos Santos Nazareth

Atraveacutes da peticcedilatildeo dos irmatildeos Fortunato e Sebastiatildeo eacute provaacutevel supor que

muitos ingecircnuos tenham permanecido sob o poder dos antigos senhores de suas matildees ou

pais Conjecturo que uma parcela dos libertos logo apoacutes aboliccedilatildeo do trabalho escravo

sem recursos e meios de sobrevivecircncia tenham deixado seus rebentos nas unidades em

que haviam sido cativos com ex-companheiros de cativeiro ou com algum parente ateacute

conseguirem se estabelecer com emprego e residecircncia Essa provaacutevel estrateacutegia dos ex-

escravizados pode ter contribuiacutedo para que muitos proprietaacuterios tenham se aproveitado

de tal situaccedilatildeo para solicitarem a tutela dessas crianccedilas sob a alegaccedilatildeo de que elas

haviam sido abandonadas que as matildees haviam se ldquodesmandadordquo estavam vivendo na

prostituiccedilatildeo

Como em outros processos de tutelas foram constantes as fugas dos irmatildeos

Fortunato e Sebastiatildeo da residecircncia do tutor Em uma peticcedilatildeo de 1894 comunicando a

fuga dos pupilos o tutor solicitou a apreensatildeo dos mesmos e que fosse arbitrada uma

soldada O promotor de justiccedila Afracircnio Mello Franco natildeo se opocircs agrave soldada

ressaltando entretanto que ela deveria ser ldquoregulada pela idade agilidade preacutestimos dos

oacuterphatildeos pela qualide do serviccedilo etcrdquo e que deveriam ldquoser preferidos os lavradoresrdquo

Aleacutem dessas ponderaccedilotildees o promotor ainda asseverou que se deveria mandar ensinar a

ler e escrever caso fossem analfabetos bem como o aprendizado de um oficio para o

qual tivessem vocaccedilatildeo Assim o juiz determinou que o tutor indicasse uma pessoa

idocircnea para assinar o contrato de soldada sendo entatildeo indicado o fazendeiro Nicolau

Kennitz Cappelli Nesse iacutenterim o fazendeiro Raphael [Gelhioti] tambeacutem se dispocircs a

assinar o contrato de locaccedilatildeo de serviccedilo dos ldquomenoresrdquo alegando que a matildee dos

mesmos era colona em sua fazenda e desejava ter os filhos proacuteximos de si [Gelhioti]

acrescentou ainda que os meninos fugiam constantemente para a sua propriedade para

ficarem com a matildee Ambos os pretendentes apresentaram suas propostas para a

assinatura do contrato Os valores dos salaacuterios propostos foram os mais altos que

encontrei na documentaccedilatildeo examinada [Gelhioti] comprometeu-se a pagar vinte mil

reacuteis mensais para Fortunato e oito mil reacuteis mensais para Sebastiatildeo enquanto Cappelli

ofereceu pelos serviccedilos dos jovens a quantia de vinte e cinco e doze mil reacuteis mensais

respectivamente A proposta aceita foi a de Cappelli O tutor solicitou que os ldquomenoresrdquo

fossem apreendidos pois estavam haacute mais de cinco meses na propriedade de [Gelhioti]

143

No processo consta apenas a assinatura do contrato de Sebastiatildeo pois Fortunato havia

fugido novamente

Se para algumas famiacutelias dos estratos sociais subalternos a tutela de seus filhos

representou problemas foi motivo para disputas judiciais com os tutores pela guarda

dos ldquomenoresrdquo Para outras creio que tenha representado uma alternativa de dar um

futuro melhor para suas crianccedilas ou tenha sido a uacutenica possibilidade visualizada para

natildeo deixaacute-los ao abandono nas ruas como presas faacuteceis para a delinquecircncia e a

criminalidade

Seacutergio C Fonseca argumenta que nas cidades em que natildeo havia instituiccedilotildees para

abrigar as ldquocrianccedilas oacuterfatildes abandonadas ou cujos pais natildeo podiam cuidar delas []rdquo a

tutela se mostrou como um mecanismo empregado para ldquoremediarrdquo tal problema408

Como foi analisado no primeiro capiacutetulo a cidade de Juiz de Fora nos anos finais do

seacuteculo XIX e nas primeiras deacutecadas do XX natildeo contou com uma instituiccedilatildeo para

abrigar meninos abandonados oacuterfatildeos ou que os pais natildeo tinham condiccedilotildees de criaacute-los e

educaacute-los Assim concordo com o autor quanto agrave tutela ter sido utilizada como uma

medida paliativa pelos setores dominantes para ldquoremediarrdquo a questatildeo do ldquomenorrdquo

abandonado e oacuterfatildeo

Dentro dessa perspectiva a tutela pode ser interpretada como uma via de matildeo

dupla utilizada tanto pelos setores dominantes quanto pelas classes subalternas Para os

primeiros representava um mecanismo de controle de uma parcela da matildeo de obra a

baixo custo ou gratuitamente e para os segundos uma possibilidade de natildeo deixar os

filhos entregues ao abandono pelas ruas das cidades A esse respeito E P Thompson

assinala que ldquoa estrutura em qualquer relaccedilatildeo entre ricos e pobres sempre corre em

matildeo dupla e essa mesma relaccedilatildeo quando girada e vista em perspectiva inversa pode

expor uma heuriacutestica alternativardquo409

O estabelecimento do viacutenculo tutelar nos municiacutepios que natildeo contavam com

instituiccedilotildees para abrigar os ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados oacuterfatildeos e que os pais natildeo

tinham condiccedilotildees de criaacute-los ao que tudo indica ainda era considerado pelas classes

dominantes como uma accedilatildeo social ou um gesto de caridade que visava retiraacute-los das

ruas e transformaacute-los em cidadatildeos uacuteteis agrave paacutetria Em alguns processos os peticionaacuterios

ou indicados para tutor colocavam a funccedilatildeo como ldquoespinhosardquo ou como um ldquoocircnusrdquo e

408

FONSECA Seacutergio C ldquoA infacircncia nos autos de tutela da comarca de Ribeiratildeo Preto (1889-1917)rdquo

Anais do XXI Encontro Estadual de Histoacuteria ndash ANPUH ndash Campinas setembro 2012 sp 409

THOMPSON E P As peculiaridades dos ingleses e outros artigos Campinas (SP) Editora da

Unicamp 2001 p 246

144

que se dispunham a assumi-la para o bem da crianccedila e da paacutetria Entretanto esse

discurso da necessidade de se dar tutor para ldquosalvarrdquo o ldquomenorrdquo e a sociedade tambeacutem

foi utilizado pelas classes subalternas para dar um encaminhamento para seus entes

Assim em abril de 1888 Carlos Albino dos Passos solicitou que fosse dado tutor a seu

neto ldquomenorrdquo Alberto filho natural de Minelvina Cacircndida dos Passos falecida com a

seguinte justificativa

[] aproveitando-se de seu estado valetudinario e de achar-se o Suppte

paralytico natildeo queacuter dedicar-se a trabalho ou officio algum vivendo pelas

ruas desta cidade em companhia de outros menores vagabundos o suppt no

intuito de prestar um acto de caridade ao dito menor e um serviccedilo aacute

sociedade vem requerer a VSordf que se [] nomear tutor ao mesmo menor []

o supplet sendo pobre e aleyjado e vivendo da caridade publica como eacute

publico e notorio nesta cidade e se vecirc pelos attestados juntos []410

O avocirc de Alberto utilizou-se do discurso dominante para solicitar um

encaminhamento para o seu neto oacuterfatildeo ou seja a valorizaccedilatildeo do trabalho a caridade ou

preocupaccedilatildeo com o futuro do ldquomenorrdquo e da sociedade A nomeaccedilatildeo de um tutor para

esse jovem foi colocada como importante para livraacute-lo da vadiagem bem como a naccedilatildeo

de problemas futuros com um adulto indisciplinado e vadio Apesar de o texto ter sido

redigido a rogo do suplicante Carlos Albino dos Passos por natildeo ldquopoder escreverrdquo por

estar ldquosem movimento em ambas as pernas e matildeosrdquo esse homem desvalido recorreu aos

meios legais provavelmente com o objetivo de proporcionar um futuro melhor para o

seu neto

Durante o processo de constituiccedilatildeo de mercado de trabalho livre na sociedade

brasileira deu-se a construccedilatildeo da ideia do trabalho como algo positivo regenerador e

dignificante e no mesmo compasso ocorreu tambeacutem a elaboraccedilatildeo do conceito de

vadiagem Dentro desse contexto o natildeo trabalho passou a ser classificado como uma

ameaccedila agrave sociedade e agrave ordem O oacuteciovadiagem era associado agrave depravaccedilatildeo dos

costumes e da moral ao crime agrave corrupccedilatildeo e portanto deveria ser reprimido411

No processo de tutela do ldquomenorrdquo Mariano de 14 anos de idade filho de

Joaquina Maria de Jesus morador no distrito de Satildeo Sebastiatildeo de Chaacutecara o discurso

do natildeo trabalho associado agrave ociosidade vadiagem e crime tambeacutem se fez presente Em

410

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Alberto Data 21-

04-1888 Caixa 100 411

CHALHOUB Sidney Trabalho lar e botequim o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da

belle eacutepoque 2 ed Campinas (SP) Editora da Unicamp 2001 p 73-77 NEDER Gizlene Discurso

Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1995 p 18-19 52-53

145

julho de 1890 Joaquina Maria solicitou a nomeaccedilatildeo de um tutor para seu filho que

havia fugido de sua casa e achava-se no distrito de Aacutegua Limpa412

sem trabalho e em

ldquocompleto estado de ociosidade e por isso caminhando para a vagabundagem e viacutecios

aleacutem de deixar a suppte em completo estado de abandonordquo Joaquina Maria ainda

salientou que era velha e aleijada e que era sustentada pelo ldquomenorrdquo e que a fuga teria

decorrido da ldquoinsinuaccedilatildeo de Joatildeo da Silva Lagerdquo413

Com o discurso da vadiagem e do crime a matildee solicitou um tutor para zelar pela

pessoa de seu filho para que o mesmo natildeo se entregasse agrave ldquoperdiccedilatildeordquo Um dado

relevante nesse processo eacute o fato de a matildee declarar que era ldquosustentadardquo pelo filho o

que leva a crer que o ldquomenorrdquo exercia alguma atividade que possibilitava o seu proacuteprio

sustento e o de sua genitora Mas o que teria levado Mariano a fugir da casa de sua

matildee Maus-tratos Exploraccedilatildeo Teria Joatildeo da Silva Lage com suas ldquoinsinuaccedilotildeesrdquo

prometido algum contrato de trabalho vantajoso para o ldquomenorrdquo no distrito de Aacutegua

Limpa Joaquina Maria estaria realmente preocupada com o futuro de seu filho ou

apenas com a sua sobrevivecircncia garantida ao que tudo indica pelos trabalhos ou

biscates realizados pelo ldquomenorrdquo

Na documentaccedilatildeo consultada casos de violecircncia de pais contra os filhos foram

identificados Em novembro de 1895 o delegado de poliacutecia Luiz Alves comunicou ao

Juiz de Direito que havia apreendido a menina Juacutelia de quatro para cinco anos de idade

por ter sido ldquobarbaramente espancada por seu pairdquo tendo as costas em chagas O pai da

ldquomenorrdquo segundo o delegado havia se mudado do municiacutepio ou seja estava

foragido414

A tutela de Juacutelia foi assinada pelo major Joaquim Nogueira Jaguaribe

marido da senhora Maria Luiacutesa a Inhaacute Luiacutesa avoacute do memorialista Pedro Nava Na

epiacutegrafe que abre esse capiacutetulo Nava relata sobre as condiccedilotildees de vida das meninas as

ldquocriasrdquo na casa de sua avoacute sobre os castigos fiacutesicos as palmatoacuterias [] A dar creacutedito

aos relatos de Nava a vida de Juacutelia na casa dos Jaguaribes provavelmente natildeo foi

isenta de castigos e agressotildees

412

O distrito de Aacutegua Limpa foi criado pelo decreto estadual no 158 de 31-07-1890 e Lei Estadual n 2

de 14-09-1891 subordinado ao municiacutepio de Juiz de Fora Em 1948 o distrito passou a denominar-se

Coronel Pacheco (Lei Estadual n 336) e em 1962 foi elevado a categoria de municiacutepio mantendo a

denominaccedilatildeo de Coronel Pacheco (lei Estadual 2764 de 30-12-1962) Disponiacutevel em

httpwwwcidadesibgegovbrpainelhistoricophplang=ampcodmun=311960ampsearch=minas-

gerais|coronel-pacheco|infograficos-historico Acessado em 28-11-2014 413

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Mariano Data 24-

07-1890 Caixa 04 Processo 11 414

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Juacutelia Data 13-11-

1895 Caixa 101

146

Nos jornais os supostos casos de agressotildees dos pais contra os filhos tambeacutem

foram denunciados Em 30 de janeiro de 1900 com o tiacutetulo ldquoPai desnaturadordquo O

Pharol noticiou o espancamento de um ldquomenorrdquo de 14 anos de idade por seu pai no

distrito de Rosaacuterio que culminou no falecimento do mesmo A mateacuteria solicitava

providecircncias do delegado de poliacutecia415

No mesmo perioacutedico e data foi ainda publicado

que a ldquopretardquo Clementina havia sido admoestada pelo delegado de poliacutecia pelo fato de

ter o ldquocostume de maltratar o seu filhordquo Em 24 de janeiro de 1911 o mesmo jornal O

Pharol relatou que havia uma casa na Rua Fonseca Hermes onde uma crianccedila era

constantemente espancada ldquopor seus pais ou coisa que os valhardquo A reportagem

solicitava uma providecircncia da poliacutecia e ressaltava que o fato lhes havia sido denunciado

pela vizinhanccedila que estava comovida e indignada com tal situaccedilatildeo416

Os vizinhos

possuem um papel importante nas denuacutencias de maus tratos infligidos agraves crianccedilas pelos

pais e ou parentes nos comunicados agraves autoridade sobre a presenccedila de ldquomenoresrdquo em

casas de prostituiccedilatildeo tabernas entre outras situaccedilotildees Segundo Arlette Farge e Michel

Foucault a vizinhanccedila eacute um componente importante nos estudos sobre as relaccedilotildees

familiares pois os casais e ou as pessoas natildeo vivem sozinhos ou seja satildeo observados

constantemente pelos vizinhos417

E satildeo eles que em determinadas situaccedilotildees podem com

seus testemunhos esclarecer fatos resguardar a honra de uma meninamoccedila livrar

crianccedilas de situaccedilotildees de abusos e maus tratos entre outras questotildees418

Eacute provaacutevel que as agressotildees fiacutesicas os maus-tratos e a exploraccedilatildeo tenham sido e

ainda satildeo as causas de fugas de muitas crianccedilas dos lares de seus pais familiares ou

tutores As ruas para esses ldquomenoresrdquo poderiam (podem) significar liberdade

solidariedade e autonomia

A questatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo tambeacutem suscitou problemas entre tutor e

pupilo e em alguns casos foi motivo para o pedido de exoneraccedilatildeo do cargo Segundo

Ana Cristina do C L Bastos e Moyseacutes Kuhlmann JR a falta de afetividade entre tutor

415

AHUFJF ldquoPai desnaturadordquo O Pharol 30 jan 1900 p 1 416

AHUFJF O Pharol 24 jan 1911 p 1 417

FARGE Arlette FOUCAULT Michel Op cit 1982 p 35-36 418

Carolina Neder em seu estudo sobre as operaacuterias da ldquoManchester Mineirardquo (1890-1954) analisou entre

outros o caso de ldquoseduccedilatildeordquo e ldquoviolecircncia carnalrdquo da ldquomenorrdquo Augusta de Souza Outeiro de 20 anos de

idade operaacuteria da faacutebrica de tecidos Satildeo Joatildeo no ano de 1917 Segundo a autora o que pesou a favor da

ldquomenorrdquo no processo que moveu contra o noivo Francisco Pereira foi o fato de seus vizinhos entre eles

ldquomuitos homensrdquo terem assinalado em seus testemunhos que Augusta era uma ldquomenina honesta e seacuteriardquo

Assim os testemunhos da vizinhanccedila da ofendida foram fundamentais na decisatildeo do caso pelo poder

judiciaacuterio a favor da ldquomenorrdquo NEDER Carolina Barbosa Memoacuterias que natildeo se apagam o cotidiano de

lutas das operaacuterias na Manchester Mineira (1890-1954) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Juiz de Fora UFJF

2010 p 80-81

147

e tutelado pode ser apreendida nos processos em que haacute a solicitaccedilatildeo do tutor para ser

liberado do encargo Os autores ressaltaram que Evaristo de Moraes na obra ldquoCreanccedilas

abandonadas creanccedilas criminosasrdquo de 1900 jaacute havia alertado para o fato de que com

relaccedilatildeo aos oacuterfatildeos a preocupaccedilatildeo primeira era em estabelececirc-los no exerciacutecio de uma

atividadeocupaccedilatildeo e natildeo em inseri-los no seio de uma famiacutelia em que houvesse a

possibilidade de relaccedilotildees de afetividade419

Segundo Evaristo de Moraes natildeo eram as

pessoas ldquo[] mais dotadas de afetividade familiar as que encomendavam nos cartoacuterios e

aos juiacutezes esses creadinhos baratosrdquo420

A tutela da ldquomenorrdquo Sebastiana dos Reis demonstra o provaacutevel surgimento de

tensatildeo entre tutor e pupila relacionado agrave questatildeo do trabalho Em 2 de novembro de

1912 o farmacecircutico Antonio da Silva Vianna casado residente na Rua de Satildeo Mateus

solicitou a tutela da menina Sebastiana dos Reis de nove anos de idade filha legiacutetima

de Joseacute dos Reis falecido e de D Thereza dos Reis Segundo informaccedilotildees da peticcedilatildeo a

ldquomenorrdquo

[] foi entregue ao suppte com 3 annos de edade por occasiatildeo do

fallecimento do seu pae Jose dos Reis isto espontaneamente pela propria matildee

Dordf Thereza dos Reis que allegando achar-se sem recurso para manter e

educar a referida sua filha entregou-a ao suppte na qualidade de padrinho

para esse ficar tendo tido o mesmo procedimento com as demais filhas em

numero de 3 que tambem entregou aos padrinhos e amigos Acontece agora

que a mesma Dordf Thereza exige do suppte a entrega da referida menor por

isso vem com o devido respeito requerer a V Excia a sua nomeaccedilatildeo de tutor

da mesma menor visto continuar sua matildee sem os necessarios recursos para

mantel-a e educal-a []421

Ao que tudo indica a matildee da ldquomenorrdquo entregou as filhas ldquopara os padrinhos e

amigosrdquo quando se encontrava em uma situaccedilatildeo econocircmica desfavoraacutevel logo apoacutes o

falecimento de seu marido com vaacuterias crianccedilas para sustentar Quando a menina

Sebastiana foi entregue ao padrinho contava apenas com trecircs anos de idade sendo

apenas ldquoconsumidorardquo ou seja ainda natildeo podia contribuir com as despesas domeacutesticas

Entretanto quando D Thereza dos Reis retorna requerendo a guarda Sebastiana jaacute

estava com nove anos de idade ou seja poderia exercer atividades que auxiliariam nos

419

BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 58 420

MORAES A Evaristo de Creanccedilas abandonadas creanccedilas criminosas Typografia Moraes 1900

Apud BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 58 421

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Sebastiana dos

Reis Data 02-12-1912 Caixa 06 Processo 1

148

gastos domeacutesticos jaacute era ldquoprodutorardquo422

Com relaccedilatildeo agraves irmatildes da ldquomenorrdquo que o

peticionaacuterio declarou que haviam sido entregues para os pais espirituais e amigos

provavelmente tambeacutem estavam em uma faixa etaacuteria que natildeo poderiam ajudar nas

despesas familiares quando a matildee as deixou

Foram arroladas duas testemunhas para deporem sobre as alegaccedilotildees do

peticionaacuterio o farmacecircutico Antonio da Silva Vianna Em seus depoimentos as

testemunhas confirmaram que a matildee de Sebastiana a havia entregado ao seu padrinho

de batismo bem como outros filhos para pessoas diversas Disseram que Dordf Thereza

continuava a natildeo ter recursos para cuidar de sua prole era dada ao viacutecio da embriaguez

e natildeo tinha a ldquohonestidaderdquo necessaacuteria para cuidar da menina que era bem tratada na

casa de seu padrinho Uma das testemunhas declarou que natildeo sabia se a ldquomenorrdquo estava

aprendendo a ler e escrever

A desqualificaccedilatildeo da matildeemulher pobre foi uma caracteriacutestica observada nas

fontes consultadas Com o discurso da imoralidade e do viacutecio das genitoras das crianccedilas

desvalidas e ou oacuterfatildes setores das classes dominantes conseguiram a guarda de crianccedilas

que creio que em sua maioria transformaram-se nos denominados ldquocreadinhos baratosrdquo

por Evaristo de Moraes

Assim a tutela de Sebastiana dos Reis foi concedida ao farmacecircutico Antonio da

Silva Vianna apenas um mecircs apoacutes a solicitaccedilatildeo No termo de tutela o suplicante se

comprometeu a cuidar da educaccedilatildeo da menina ldquoensinando-lhe a ler e escreverrdquo A matildee

da ldquomenorrdquo estava vivendo na comarca de Viccedilosa Minas Gerais

Antonio da Silva Vianna apoacutes cinco anos como tutor de Sebastiana solicitou

em fevereiro de 1917 a sua exoneraccedilatildeo do cargo com a alegaccedilatildeo de

[] natildeo podendo mais continuar como tutor da mesma por essa natildeo querer

sujeitar-se ao trabalho tornando-se mmo

insuportavel por isso vem requerer a

V Exa a exoneraccedilatildeo da dita tutella Entregando essa menor a sua avoacute de bom

comportamento residente no municipio de Viccedilosa e cazo essa natildeo queira

acceitar a menor entreguea a uma famiacutelia honesta423

Os motivos declarados para o pedido de exoneraccedilatildeo datildeo a entender que a

preocupaccedilatildeo fundamental do tutor era com o trabalho que a ldquomenorrdquo poderia oferecer

Poreacutem a suposta recusa da pupila em ldquosujeitar-serdquo agraves tarefas impostas por seu tutor a

422

FARIA Sheila de Castro ldquoA propoacutesito das origens dos enjeitados no periacuteodo escravistardquo In

VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010 p 85 423

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Sebastiana dos

Reis Data 02-12-1912 Caixa 06 Processo 1

149

tornou ldquoinsuportaacutevelrdquo ao ponto de natildeo a querer mais em sua residecircncia Mas quais

seriam os trabalhos que a menina deveria realizar A provaacutevel recusa de Sebastiana em

trabalhar poderia estar relacionada a falta de pagamentos pelos seus serviccedilos O

comportamento da ldquomenorrdquo poderia ser uma maneira de demonstrar a sua insatisfaccedilatildeo

em estar vivendo na casa de seu padrinho-tutor Nesse caso apenas conjecturas podem

ser feitas uma vez que natildeo temos a versatildeo da pupila O Juiz deferiu o pedido do tutor

sem escutar a versatildeo da menina Geralmente o pupilo soacute era ouvido judicialmente em

casos de disputas pela sua guarda ou de denuacutencias de maus-tratos

A esse respeito Ana Cristina do C L Bastos e Moyseacutes Kuhlmann JR salientam

que ao ldquomenorrdquo natildeo era dada a oportunidade de dizer se desejava trocar de tutor se

aceitava o novo pretendente ou indicado e sobre o seu destino As argumentaccedilotildees de

que o tutelado era ldquopreguiccedilosordquo ou ldquodoenterdquo eram comuns nos pedidos para deixar o

cargo de tutor Para os autores esse dado ldquoreforccedila a hipoacutetese de ser o contrato de

serviccedilos o elemento determinante na relaccedilatildeo de tutoriardquo424

Compactuo com a hipoacutetese

de Bastos e Kuhlmann JR de que a questatildeo do trabalho foi primordial nas accedilotildees de

tutelas dos ldquomenoresrdquo desvalidos oacuterfatildeos e abandonados No caso analisado a menina

Sebastiana supostamente recusando-se a realizar as tarefas ordenadas foi motivo para

ser deixada por seu tutor

Na proacutexima parte analisarei os processos de apreensatildeo de ldquomenoresrdquo Essa

documentaccedilatildeo assemelha-se em alguns aspectos agraves tutelas uma vez que seu exame nos

permite observar as disputas pela guarda das crianccedilas entre pais e tutores entre os pais

e ou entre os pais e parentes Muitos autos de tutelas constam pedidos dos tutores ou

dos pais de apreensatildeo dos ldquomenoresrdquo que haviam fugido que estavam vivendo fora do

lar que estavam vagando pelas ruas da cidade entre outros fatores

2 5 APREENSAtildeO DE ldquoMENORESrdquo

Moleques de recado vendedores ambulantes criados e aprendizes as

crianccedilas populares escravas livres nacionais ou estrangeiras exerceram

diversas funccedilotildees na sociedade e teceram com suas matildeos um quinhatildeo da

histoacuteria (Alessandra F Martinez)425

424

BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 58 425 MARTINEZ Alessandra Frota Op cit 1997 p 163

150

Os processos de apreensatildeo de ldquomenoresrdquo apresenta uma gama variada de

possibilidade de estudos Essa documentaccedilatildeo permite a observaccedilatildeo das tensotildees e

conflitos entre pais e tutores e entre os familiares pela guarda da crianccedila Outro dado

que essa fonte possibilita que seja analisado eacute a questatildeo da utilizaccedilatildeo da matildeo de obra

infantil Os autos de apreensatildeo estatildeo sob a custoacutedia do Arquivo Histoacuterico de Juiz de

Fora Foram preservados 65 processos dos quais analisei 45 (6923) por se referirem a

crianccedilas das camadas populares426

Do total de 45 documentos examinados 17

(3778) dizem respeito a disputas entre os pais das crianccedilas 19 (4222) satildeo

referentes a disputas entre os pais o pai e ou matildee com outras pessoas da comunidade

ou parentes e os outros 9 (20) devem-se a questotildees variadas como fuga da casa dos

pais por maus tratos por casos de defloramento disputa entre o tutor e um outro

indiviacuteduo ou ao fato de a crianccedila se encontrar em casa de prostituiccedilatildeo

Nos processos em que os pais estatildeo em disputas pela guarda as acusaccedilotildees mais

frequentes quando satildeo relativas agraves matildees eacute a de que as mesmas haviam se

ldquodesmandadordquo ou se entregado agrave vida de prostituiccedilatildeo perdendo a ldquoqualidade de matildee de

famiacuteliardquo427

Poreacutem quando as acusaccedilotildees satildeo desferidas contra o pai geralmente as

alegaccedilotildees satildeo de que o mesmo era dado ao viacutecio da embriaguez possuiacutea maus costumes

e mau comportamento e de que abandonou o lar deixando a famiacutelia ao desamparo

Os processos de apreensatildeo de ldquomenoresrdquo iniciam-se com uma peticcedilatildeo

geralmente dirigida ao Juiz de Direito assinalando que o ldquomenorrdquo fugiu foi raptado foi

levado por seu pai ou matildee ou por outro indiviacuteduo que se encontrava vivendo em casa

de prostituiccedilatildeo vagando pelas ruas etc Alguns processos satildeo mais ricos em detalhes e

informaccedilotildees trazendo a cor dos envolvidos a profissatildeo a nacionalidade etc Poreacutem

outros trazem poucos dados possuem apenas a peticcedilatildeo ou natildeo contecircm a conclusatildeo

Assim eacute necessaacuterio ir costurando as informaccedilotildees os pequenos detalhes para que parte

da histoacuteria dessas crianccedilas e de suas famiacutelias desvalidas possa emergir Para que isso

aconteccedila eacute necessaacuterio seguirmos as ldquopistasrdquo e os ldquorastrosrdquo deixados pelos

subdelegados pelos juiacutezes pelos promotores escrivatildees e tantos outros intermediaacuterios

426

Existem no Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora 65 processos de apreensatildeo de menores Deste

total 15 processos satildeo referentes ao periacuteodo de 1877 ateacute 1888 e os outros 5 processos satildeo da deacutecada de

1930 Os 45 processos examinados estatildeo compreendidos no periacuteodo de 1888 a 1922 427

AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Processo da menor Itaacutelia 1897 cx 04

151

presentes nesses documentos ou seja eacute preciso olhar para as partes ldquoopacasrdquo dos

textos428

Os processos de apreensatildeo examinados perfazem um total de 54 crianccedilas onde

38 (7037) satildeo do sexo feminino e 16 (2963) do masculino As idades variam entre

nove meses de idade a vinte e um anos A grande maioria das crianccedilas envolvidas na

documentaccedilatildeo estaacute compreendida na faixa etaacuteria acima dos sete anos de idade

perfazendo um total de 29 casos (5370) Dos 16 meninos 8 (50) deles possuiacuteam

mais de sete anos 5 (3125) menos de sete anos e em 3 (1875) casos natildeo consta a

idade Com relaccedilatildeo agraves 38 meninas 21(5526) delas foram declaradas com mais de sete

anos 10 (2632) com idade inferior a sete anos e em 7 (1842) casos natildeo apareceu a

idade das envolvidas429

De posse desses dados algumas observaccedilotildees podem ser feitas no que se refere agrave

possibilidade de utilizaccedilatildeo da forccedila de trabalho dessas crianccedilas Essa porcentagem

maior de crianccedilas acima dos sete anos de idade eacute bem sugestiva pois era a idade em que

jaacute podiam comeccedilar a exercer atividades na qualidade de aprendizes era o periacuteodo de

transiccedilatildeo dos escravos para a vida adulta430

Daiacute o interesse maior pelas crianccedilas

compreendidas nessa faixa etaacuteria quando estatildeo aptas a executarem atividades a

aprenderem um ofiacutecio Conjecturo que os pais poderiam estar solicitando a apreensatildeo e

a guarda de seus filhos para poderem empregaacute-los em alguma atividade remunerada

para dessa forma ajudarem na subsistecircncia da famiacutelia Pode-se tambeacutem aventar que os

tutores ou parentes que estavam com a guarda ou as retiraram da posse de seus genitores

poderiam estar utilizando dos serviccedilos dessas crianccedilas

Diversos motivos deram origem agrave abertura dos processos de apreensatildeo de

ldquomenoresrdquo e a questatildeo da presenccedila dessas crianccedilas nas ruas foi um deles O incocircmodo

que esses ldquomenoresrdquo vagando nas ruas da cidade causavam agrave sociedade eacute perceptiacutevel

nos processos Como jaacute foi assinalado neste estudo a presenccedila de meninos nas ruas e

suas provaacuteveis accedilotildees eram motivos de reclamaccedilotildees nos jornais locais e de apreensatildeo das

classes dominantes No processo da menina Altina de doze anos mais ou menos filha

428

GINZBURG Carlo Introduccedilatildeo In O fio e os rastros verdadeiro falso fictiacutecio Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2007 p 11-12 GINZBURG Carlo Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo italiana In O queijo e os

vermes o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisiccedilatildeo Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2006 p 13 429

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Apreensatildeo de Menores (1877-1938)

cx 04 430

MATTOSO Kaacutetia Queiros (1988) ldquoO filho da escrava (em torno da Lei do Ventre Livre)rdquo In LARA

Silvia Hunold (org) Escravidatildeo Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero v 8 n

16 marago 1988 p 39-43

152

natural da ex-escrava Malvina o Juiz Municipal de Oacuterfatildeos foi comunicado por Martins

Kascher que ela estava vagando pelas ruas da cidade ateacute altas horas da noite e que sua

matildee natildeo possuiacutea condiccedilotildees de educaacute-la e vesti-la por isso deveria ser dado a ela um

tutor431

Eacute possiacutevel que Martins Kascher estivesse realmente interessado na situaccedilatildeo da

menina e por outro lado podemos conjecturar a possibilidade de estar preocupado com

os provaacuteveis problemas que essa ldquomenorrdquo poderia causar no futuro vivendo nas ruas jaacute

que esse espaccedilo era tido como um local de marginalidade e de viacutecios sendo

representado pelo discurso meacutedico como a ldquogrande escola do malrdquo Para os meacutedicos

higienistas era necessaacuterio proteger essa infacircncia desvalida e abandonada que vivia pelas

ruas das cidades e as instituiccedilotildees assistenciais eram apresentadas como o locus

privilegiado para a preservaccedilatildeo dessas crianccedilas432

Com relaccedilatildeo agraves meninas ainda havia a preocupaccedilatildeo com a honra a preservaccedilatildeo

da virgindade e com a formulaccedilatildeo de medidas que impedissem que elas entrassem na

vida de prostituiccedilatildeo A prostituiccedilatildeo era tida pelos higienistas e por outros setores dos

grupos dominantes como um grande mal para a sociedade pois as meretrizes pervertiam

ldquoa moral da mulher-matildeerdquo eram irresponsaacuteveis com ldquoa vida dos filhosrdquo um mau

exemplo para as meninas pobres entre outras questotildees433

Assim era de fundamental

importacircncia incutir nessas meninas haacutebitos higiecircnicos e valores de uma boa conduta

para que futuramente fossem disciplinadas trabalhadoras boas matildees e donas e casas

Para setores das classes dominantes a ldquohonra sexualrdquo das meninas e mulheres era a base

da famiacutelia e da naccedilatildeo Sem esses pilares seria o caos social434

A matildee da ldquomenorrdquo Malvina Maria da Conceiccedilatildeo enviou ao Juiz de Oacuterfatildeos uma

peticcedilatildeo declarando-se pobre e sem ldquomeios de vidardquo para educar sua filha Ela solicitou

que o cidadatildeo Quintiliano Alves Horta Jardim fosse indicado para tutor da menina o

que o Juiz aceitou e convocou o citado cidadatildeo para assumir a guarda de Altina

Para muitas mulheres egressas do cativeiro conseguir ldquomeios de vidardquo natildeo deve

ter sido muito faacutecil e possivelmente muitas delas fizeram a entrega de seus filhos agraves

famiacutelias abastadas na esperanccedila de que seus rebentos pudessem receber alguma

431

AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Altina 15-10-1890 cx 04 432

RAGO Margareth Op cit 2014 p 160-161 433

COSTA Jurandir Freire Ordem meacutedica e norma familiar 4 ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1999

p 265-266 434

CAULFIELD Sueann Em defesa da honra moralidade modernidade e naccedilatildeo no Rio de Janeiro

(1918-1940) CampinasSP Ed da UNICAMP 2000 p 26

153

educaccedilatildeo ou apenas tivessem um meio de vida e sobrevivecircncia Na peticcedilatildeo Malvina

requer que seja dada ldquoalguma educaccedilatildeordquo para sua filha Altina possivelmente recebeu

ldquoalguma educaccedilatildeordquo o aprendizado de uma tarefa

A inserccedilatildeo dos ex-escravos no poacutes-aboliccedilatildeo foi perpassada por vaacuterias

dificuldades e uma delas foi a luta para conseguirem ter a guarda de seus filhos Muitos

antigos escravocratas buscaram novos mecanismos de obtenccedilatildeo de matildeo de obra e uma

das estrateacutegias foi recorrer ao viacutenculo tutelar como jaacute foi analisado neste capiacutetulo

As famiacutelias das classes populares eram vistas por alguns segmentos da

sociedade pelo prisma da desorganizaccedilatildeo da imoralidade da embriaguez e da

prostituiccedilatildeo A organizaccedilatildeo familiar dos grupos subalternos da sociedade natildeo coincidia

com o modelo que era esperado pelos meacutedicos higienistas juristas poliacuteticos e

intelectuais ou seja com o modelo burguecircs nuclear higiecircnico e sexualmente

regulado435

Nos meses apoacutes a decretaccedilatildeo da lei Aacuteurea 13 de maio de 1888 vaacuterios senhores

recorreram ao expediente de solicitar a tutela dos filhos de suas antigas cativas com a

alegaccedilatildeo de que elas e ou seus familiares natildeo tinham as condiccedilotildees materiais e morais

para cuidarem de sua prole436

A maioria dos homens e mulheres escravizados saiu do

cativeiro destituiacutedo de bens de terra de educaccedilatildeo e de oportunidades de recomeccedilar a

vida sob os novos padrotildees de trabalho e de vida Muitos senhores provavelmente

aproveitaram-se da falta de meios de vida e de instruccedilatildeo dos antigos escravos para

conseguirem legalmente ou natildeo a guarda de seus filhos

O processo de apreensatildeo do ldquomenorrdquo Antocircnio eacute um bom exemplo das

dificuldades enfrentadas pelos libertos no poacutes-emancipaccedilatildeo e das atitudes arbitraacuterias dos

antigos escravocratas Em dezembro de 1888 o liberto Joatildeo de Lima Teixeira que

havia sido escravo de Luiacutes Calisto Mendes morador no distrito de Chapeacuteu DrsquoUvas do

municiacutepio de Juiz de Fora declarou que teve um filho de nome Antocircnio com a tambeacutem

liberta Jacintha ex-escrava do mesmo senhor Joatildeo de Lima e Jacintha haviam se

casado mas o documento natildeo informa se antes ou depois do 13 de maio O ldquomenorrdquo

tinha seis anos quando da abertura do processo de apreensatildeo Segundo o pai de

435

NEDER Gizlene CERQUEIRA Gisaacutelio (2007) Famiacutelia poder e controle social concepccedilotildees sobre

famiacutelia no Brasil na passagem agrave modernidade In Ideias juriacutedicas e autoridade na famiacutelia Rio de

Janeiro Revan p 14-15 COSTA Jurandir Freire Op cit 1999 p 12-14 Cf NEDER Gizlene

ldquoAjustando o foco das lentes um novo olhar sobre a organizaccedilatildeo das famiacutelias no Brasilrdquo In

KALOUSTIAN Silvio Manoug (org) Famiacutelia Brasileira a base de tudo Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia

DF UNICEF 2011 436

Para mais informaccedilotildees sobre a relaccedilatildeo entre viacutenculo tutelar e controle de matildeo de obra ver o trabalho

de ZERO Arethuza Helena Op cit 2004

154

Antocircnio Eduardo Teixeira de Carvalho um importante proprietaacuterio de Juiz de Fora

aproveitou-se de sua pobreza e ignoracircncia e o ldquofez assinar um contrato obrigatoacuteriordquo em

que o ldquomenorrdquo deveria trabalhar para o proprietaacuterio ateacute a idade de 21 anos sem nada

receber podendo ser castigado Pelo suposto ldquocontratordquo Eduardo Teixeira tambeacutem

tinha o direito de buscar o menino onde quer que ele estivesse Na peticcedilatildeo Joatildeo de

Lima contesta o dito documento pelo fato de que ldquotal contrato natildeo podia fazer por ser

uma espeacutecie de novo cativeiro ainda que por 15 anosrdquo437

Infelizmente no processo natildeo

consta o dito contrato o que impossibilita averiguar se ocorreu antes ou apoacutes a

decretaccedilatildeo da Lei Aacuteurea ou a quantos mesesanos Antocircnio estava em poder de Eduardo

Teixeira de Carvalho Poreacutem pode-se indagar que o liberto Joatildeo de Lima Teixeira tenha

aceitado tal ldquocontratordquo em um momento em que estava sem meios de vida e

sobrevivecircncia e que apoacutes se estabelecer junto com sua esposa em alguma atividade

passando a ter condiccedilotildees de manter seu filho Antocircnio tenha resolvido requerecirc-lo Aleacutem

do mais o menino estava com seis anos de idade ou seja numa faixa etaacuteria muito

proacutexima da que normalmente as crianccedilas das camadas subalternas eram empregadas

para executarem tarefas ou seja a forccedila de trabalho do ldquomenorrdquo poderia ser empregada

em pequenas atividades contribuindo dessa maneira com as despesas de sua famiacutelia

O Juiz de Oacuterfatildeos expediu mandado de apreensatildeo em que Eduardo Teixeira de

Carvalho teria que apresentar o menino e a certidatildeo para que dessa forma fosse ldquodado

destino legalrdquo ao ldquomenorrdquo Ele acatou o mandado poreacutem declarou que soacute poderia

atender a solicitaccedilatildeo apoacutes o dia seis de janeiro de 1889 em diante e que iria

pessoalmente O documento termina dessa forma sem que se possa saber qual foi o

ldquodestino legalrdquo dado a Antocircnio

Esse processo indica que o percurso que os antigos escravos teriam de percorrer

na nova condiccedilatildeo de homens livres nem sempre foi tranquilo e sem problemas Como

se observa eles tiveram de enfrentar adversidades como lutar contra antigos senhores

que buscavam atraveacutes de meios legais ou natildeo manter a posse sobre a forccedila de trabalho

de seus filhos como foi chamado no documento de ldquoum novo cativeirordquo no mundo da

liberdade

Semelhante ao caso relatado anteriormente eacute o de Juvenato de 15 anos de idade

ldquomais ou menosrdquo filho de Justino Lino drsquoOliveira Em junho de 1901 o Dr Virgiacutelio

Fabiano Alves comunicou ao delegado de poliacutecia que era tutor dativo do ldquomenorrdquo e que

437

AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Antocircnio 31-12-1888 cx 04

155

este havia sido seduzido por um italiano e encontrava-se acoitado na fazenda do Dr

Marcello Bifano situada no distrito de Simatildeo Pereira Segundo o relato do peticionaacuterio

o Dr Marcello Bifano se recusava a entregar o ldquomenorrdquo438

O Dr Virgiacutelio Fabiano Alves se declarou como ldquotutor dativordquo de Juvenato na

peticcedilatildeo enviada ao delegado de poliacutecia e como comprovaccedilatildeo de sua alegaccedilatildeo apresentou

uma ldquoEscriptura e Contracto de entregardquo do ldquomenorrdquo feita por Justino Lino drsquoOliveira

pai do menino Assim constava no documento assinado em 26 de marccedilo de 1890 na

cidade de Ribeiro Preto no Cartoacuterio do Tabeliatildeo Castilho

[] por Justino Justino Lino de Oliveira foi dito que se acha justo e

contratado com o Doutor Virgilio Fabiano Alves de entregar-lhe o seu filho

Juvenato de dois annos de idade podendo ou ficando dito Dr Virgilio com

direito ao trabalho do mesmo e obrigado a sustental-o de tudo quanto

necessitar como seja roupa sustento medico e Botica no caso fique doente

e obrigado mais em tempo suficiente ensinal-o a ler e escrever Pelo dito

Justino foi dito que a tempo vive separado de sua mulher Pelo Doutor

Virgilio Fabiano Alves foi dito que acceitava a presente escriptura com as

condiccedilotildees nella estipuladas E de como assim o disseratildeo me pediratildeo lhes

lavrasse esta que lida e aceita assignatildeo com as testemunhas presentes []

[] Em tempo _ Pelo Justino Lino drsquoOliveira foi dito que o menino tem

cinco annos de idade Eu Joatildeo R de Carvalho escrivatildeo juramentado escrevi

[]439

O documento apresentado pelo Dr Virgiacutelio Fabiano Alves natildeo eacute efetivamente

um termo de tutela mas pode-se dizer um termo de renuacutencia do paacutetrio poder um

contrato de trabalho com a obrigaccedilatildeo de cuidar e educar o ldquomenorrdquo Na ldquoescriptura e

contracto de entregardquo natildeo haacute qualquer menccedilatildeo a salaacuteriossoldadas pelos serviccedilos

prestados por Juvenato Ao que parece o ldquomenorrdquo iria pagar pela ldquocriaccedilatildeordquo e

ldquoeducaccedilatildeordquo com sua forccedila de trabalho Por que teria o pai de Juvenato feito esse

contrato com o Dr Virgiacutelio Fabiano Alves Se porventura o motivo que levou Justino

Lino drsquoOliveira a entregar o seu filho foi a falta de recursos para criaacute-lo por que entatildeo

natildeo solicitou ao Juiz de Oacuterfatildeo a nomeaccedilatildeo de um tutor para o mesmo

De acordo com o depoimento da primeira testemunha arrolada no processo de

apreensatildeo Joseacute Dionizio Cardoso brasileiro casado lavrador o ldquomenorrdquo Juvenato

vivia na fazenda do Dr Virgiacutelio F Alves ldquoprestando serviccedilos compatiacuteveis com sua

idade sendo por elle tratado convenientementerdquo Ele relatou que o ldquomenorrdquo havia

fugido da fazenda de seu tutor indo acoitar-se na do Dr Marcello Bifano e que um

438

AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Juvenato 17-06-1901 cx 04 439

Idem

156

colono da fazenda do dito senhor o aconselhou a natildeo voltar mais para o poder de seu

tutor A testemunha ainda declarou que quando o Dr Virgiacutelio Fabiano Alves tomou

conhecimento da fuga de Juvenato ldquofoi em companhia dele testemunha a fazenda do dr

Marcello onde entenderam-se com o administrador Pedro Brande para lhes ser entregue

o menorrdquo poreacutem este asseverou que soacute faria a entrega ldquopor ordem da Autoridaderdquo

conforme havia determinado o Dr Marcello Bifano ldquoque sabia e consentia na estada do

menorrdquo440

As demais testemunhas arroladas relataram que o Dr Virgiacutelio F Alves tentou

outras vezes reaver o ldquomenorrdquo Leocadio Custoacutedio Gonsalves casado lavrador natural

do estado do Rio de Janeiro em seu depoimento declarou que por ordem do Dr

Virgiacutelio Fabiano Alves havia levado uma carta ao Dr Bifano que na porteira da

fazenda ldquoencontrou-se com um italiano baixo que lhe consta ser chamado de

lsquoPanoramarsquordquo Este declarou que Juvenato soacute sairia da fazenda ldquopela Justiccedilardquo ldquopois do

contrario nem vinte pessoas o levavam e se o Dr Bifano natildeo quisesse resistir elle

ldquoPanoramardquo o levaria para a casardquo A testemunha ainda relatou que entregou a carta ao

administrador Pedro Brande e que este lhe disse ldquoque por sua vontade o menor seria

entregue immediatamente e soacute natildeo o fazia porque natildeo tinha ordem do Dr Bifanordquo que

mandara conservar Juvenato na fazenda O administrador ainda teria dito que o ldquomenor

era surdo e pouco ou nenhum serviccedilo prestava e que por sua vontade isto se resolvia em

harmoniardquo441

Quando do cumprimento do mandado de apreensatildeo o administrador da fazenda

Pedro Brande declarou que o ldquomenorrdquo estava na fazenda ldquomas natildeo apareceurdquo para o

mandado ser executado O subdelegado de poliacutecia Francisco M Romano da

Subdelegacia de Poliacutecia do districto de Satildeo Pedro de Alcacircntara oficiou ao delegado de

poliacutecia de Juiz de Fora relatando que havia se entendido ldquocom Dr Bifano arespeito (sic)

a entrega do menor Juvenatordquo e que este lhe havia dito que o entregaria mas que queria

ldquouma ordem do Juiz de orfam por escriptordquo442

A anaacutelise do processo de Juvenato leva a crer que o que estava em jogo era a

utilizaccedilatildeo de sua forccedila de trabalho a baixo valor ou gratuitamente O ldquomenorrdquo estava

com 15 anos de idade e provavelmente tinha habilidade para a lida com as atividades

rurais Mas examinando mais detalhadamente o documento outra questatildeo ressalta por

440

Ibidem 441

Ibidem 442

Ibidem

157

que a insistecircncia do Dr Marcello Bifano de entregar o ldquomenorrdquo apenas com uma ordem

do Juiz de Oacuterfatildeos Essa insistecircncia estaria relacionada a tal ldquoescriptura e contractordquo

feita entre o pai de Juvenato e o Dr Virgiacutelio Fabiano Alves ou seja natildeo teria ela

validade legal sendo necessaacuteria a indicaccedilatildeo de um tutor para o menor e nesse caso

Bifano se colocaria agrave disposiccedilatildeo para assumir o encargo E por que o colono italiano

defendia ardorosamente Juvenato segundo consta nos relatos das testemunhas Estaria

o ldquomenorrdquo trabalhando junto com o colono e por isso ele natildeo desejava que o mesmo

retornasse para o conviacutevio de seu tutor

Os dois processos acima analisados dos ldquomenoresrdquo Antocircnio e Juvenato

apresentam semelhanccedilas cidadatildeos pertencentes agrave classe dominante proprietaacuteria se

apropriando da matildeo de obra de crianccedilas pertencentes agrave camada subalterna da sociedade

No processo de Juvenato a tal ldquoescriptura e contracto de entregardquo foi registrada em

cartoacuterio entretanto natildeo foi possiacutevel saber se no caso do ldquomenorrdquo Antocircnio ocorreu o

mesmo Provavelmente as dificuldades de sobrevivecircncia levaram esses pais a tal

situaccedilatildeo No processo de apreensatildeo de Antocircnio foi possiacutevel averiguar que os pais eram

ex-escravos poreacutem na accedilatildeo de Juvenato natildeo foi possiacutevel identificar a condiccedilatildeo juriacutedica

dos pais se livreslibertos

O exame desses dois casos permite que sejam levantadas algumas questotildees

esses ldquocontractosrdquo natildeo deveriam ser processados pelo poder judiciaacuterio que estipularia o

valor de uma soldada e a idade que o ldquomenorrdquo comeccedilaria a receber Se porventura

foram as dificuldades de sobrevivecircncia que levaram os ldquomenoresrdquo e os pais a tal

situaccedilatildeo natildeo seria o caso de ser nomeado um tutor para as crianccedilas

E P Thompson assinala que ldquoum modo de descobrir normas surdas eacute examinar

um episoacutedio ou uma situaccedilatildeo atiacutepicosrdquo443

Identifiquei apenas esses dois ldquocontractosrdquo na

documentaccedilatildeo analisada e os considero ldquoatiacutepicosrdquo no conjunto de minhas fontes o que

faz deles um indicativo de que os grupos dominantes utilizaram diversos meios de

controle e coerccedilatildeo sobre a classe trabalhadora Posto isso indago quantas outras

crianccedilas e jovens natildeo ficaram presas a esse tipo de ldquonovo captivierordquo apoacutes a aboliccedilatildeo da

escravidatildeo em maio de 1888 Quantos pais natildeo tiveram condiccedilotildees de recorrer agrave justiccedila

para ter a guarda de seus rebentos e suas histoacuterias ficaram silenciadas

Esses dois contratos acenam para a possibilidade de utilizaccedilatildeo de outra fonte de

pesquisa sobre a problemaacutetica do trabalho infantil no poacutes-aboliccedilatildeo os livros de

443

THOMPSON E P Op cit 2001 p 235

158

escritura Essa documentaccedilatildeo pode descortinar que tais contratos constituiacuteram mais uma

estrateacutegia dos setores dominantes para o controle sobre a matildeo de obra infantil ou

confirmar a minha hipoacutetese de que satildeo documentos atiacutepicos

Da anaacutelise dos processos de apreensatildeo pode-se presumir que outros

proprietaacuterios buscaram manter sob seu controle a posse de crianccedilas filhas de ex-

escravos ou natildeo Em outro documento o pai Augusto Campos de Almeida solicita ao

Juiz que sua filha Domitildes fosse apreendida pois o cidadatildeo Isidoro Raymundo de

Souza a conservava ldquoem seu poder contra a vontade do suplicanterdquo e negava-se a

entregar a ldquomenorrdquo e ainda fazia ameaccedilas de espancaacute-lo se continuasse ldquono intento de

retirar a sua filhardquo444

O processo de Domitildes tambeacutem se desenrola no distrito de Chapeacuteu DrsquoUvas

Segundo Sonia Maria de Souza nesse distrito cultivava-se cafeacute poreacutem o destaque

maior ficava por conta da produccedilatildeo de alimentos e da pecuaacuteria445

O Juiz de Oacuterfatildeos

determinou que a ldquomenorrdquo fosse entregue a seu pai o que foi contestado pelo cidadatildeo

Isidoro Raymundo de Souza que alegou entregaacute-la ldquoem obediecircncia a ordem do Juizrdquo e

ainda assinalou que o suplicante natildeo era pai da menina e que o mesmo natildeo possuiacutea as

ldquoqualidades necessaacuterias para a ter sob sua guardardquo Possivelmente Augusto Campos de

Almeida era um afrodescendente Tal hipoacutetese se justifica pelo fato do dito cidadatildeo

fazer ameaccedilas ao suplicante O regime escravista e suas praacuteticas coercitivas ainda

estavam muito presentes nas atitudes das pessoas logo apoacutes a aboliccedilatildeo Por isso Isidoro

Raymundo talvez se sentisse no direito de espancar ou mandar espancar quem

contrariasse as suas ordens Infelizmente o processo natildeo informa a idade da menina

mas presumo que Isidoro Raymundo de Souza estivesse utilizando-se da forccedila de

trabalho dessa menina talvez no serviccedilo domeacutestico

Os proprietaacuterios brasileiros do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX ainda tinham

a possibilidade de utilizarem os serviccedilos dos ldquomenoresrdquo na aacuterea urbana ou rural

pagando baixos salaacuterios ou mesmo natildeo remunerando o trabalho executado por essas

crianccedilas com a alegaccedilatildeo de que estavam lhes dando uma oportunidade de aprenderem

um ofiacutecio como foi o caso dos chamados aprendizes446

444

AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Domitildes 02-04-1889 cx 04 445

SOUZA Sonia Maria de Op cit 2007 p 105-108 446

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Crianccedilas operaacuterias na receacutem industrializada Satildeo Paulo In

PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil Satildeo Paulo Contexto 2006 p 271-273

159

Aleacutem dos baixos salaacuterios que os ldquomenoresrdquo recebiam havia ainda os casos de

maus tratos infligidos aos trabalhadores mirins Como nas memoacuterias de Pedro Nava as

meninas que trabalhavam na casa de sua avoacute e de outros parentes assalariadas ou natildeo

eram corrigidas fisicamente em periacuteodo bem posterior a decretaccedilatildeo da aboliccedilatildeo da

escravidatildeo447

Nos processos de apreensatildeo que venho analisando foram encontrados relatos de

violecircncia fiacutesica contra essas crianccedilas Em 20 de abril de 1900 o poder judiciaacuterio tomou

conhecimento de que a oacuterfatilde Albertina de 12 anos de idade era ldquoseviciada

barbaramente na casa de Francisco Pinto [F] Bretatildesrdquo448

Devido a denuacutencia desse

provaacutevel caso de maus tratos a ldquomenorrdquo foi depositada na casa de Antocircnio da Cunha

Figueiredo professor e secretaacuterio da Escola Normal e que depois foi indicado pelo juiz

para assumir a tutela da menina com a condiccedilatildeo de lhe pagar uma soldada

Todavia eacute necessaacuterio ressaltar que os atos de violecircncia fiacutesica e sexual tambeacutem se

davam no seio familiar da crianccedila A ldquomenorrdquo Rita Cacircndida de Jesus de 16 para 17

anos de idade filha de Pedro Manoel das Chagas e de Rita Cacircndia de Jesus moradores

no distrito de Vargem Grande fugiu da casa de seus pais em dezembro de 1891 em

consequecircncia dos supostos ldquomaus tratos e pelas contiacutenuas ameaccedilas de castigosrdquo

infligidos por seu pai como declarou ao delegado de poliacutecia de Juiz de Fora Rita

Cacircndida ainda assinalou que seus irmatildeos e irmatildes tambeacutem desejavam sair da casa

paterna pelos mesmos motivos e que sua matildee jaacute havia se separado de seu pai por

diversas vezes por essas mesmas razotildees Em uma peticcedilatildeo enviada ao Juiz de Oacuterfatildeos

em dezembro de 1891 o pai da ldquomenorrdquo defendeu-se dizendo que sua filha era ldquotratada

com amor e delicadesa proacuteprios de um bom pairdquo mas que consentia que ela ficasse na

casa em que estava recolhida pois era de ldquofamiacutelia honestardquo e onde estava ganhando

dinheiro e que pelo seu estado de pobreza natildeo poderia ldquoprover melhor do que tem feito

a educaccedilatildeo subsistecircncia e futurordquo da mesma449

Provavelmente na concepccedilatildeo do pai da

ldquomenorrdquo os castigos fiacutesicos fossem uma maneira de educaacute-la e aos demais filhos A

ideia de corrigir os filhos com tapas chicotadas varadas entre outros era tida como a

melhor maneira de educar os filhos e tal pensamento perdurou por longos anos na

sociedade brasileira e ainda pode-se dizer que persiste entre muitas famiacutelias como

447

NAVA Pedro Op cit 1974 p 4 448

AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Albertina 20-04-1900 cx 04 449

AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Rita Cacircndida de Jesus 03-12-1891 cx 04

160

atestam os ditados populares que assinalam que ldquoeacute melhor surrar os filhos do que ver a

poliacutecia baterrdquo ou ldquoeacute melhor apanhar em casa do que apanhar na ruardquo450

Outro suposto caso de violecircncia domeacutestica eacute o de Albertina filha de Joatildeo da

Rocha Ferreira de Souza viuacutevo A ldquomenorrdquo havia fugido da casa de seu pai alegando

que havia sido deflorada pelo mesmo e de quem estava graacutevida Por esse motivo ela foi

depositada em dezembro de 1911 na casa de seu cunhado Antonio Gomes da Silva O

pai de Albertina foi descrito pelo genro como um ldquohomem desordeiro becircbado e

turbulentordquo o que os moradores do distrito de Gramma poderiam confirmar Por causa

do receio que tinha do sogro ele solicitou que fosse indicada outra pessoa para ficar

com a ldquomenorrdquo depositada451

As fugas dos ldquomenoresrdquo como jaacute foi discutido neste capiacutetulo geralmente

estavam relacionadas agraves peacutessimas condiccedilotildees de vida e de trabalho das crianccedilas e jovens

Os maus-tratos possivelmente foram uma das causas principais para o abandono do lar

dos paisfamiliares e dos tutores pelos meninos e meninas

Nos processos de apreensatildeo pode-se observar vaacuterias questotildees que estavam

presentes na sociedade brasileira do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX como a

problemaacutetica do paacutetrio poder a utilizaccedilatildeo da matildeo de obra infantil a violecircncia contra

essas crianccedilas a preocupaccedilatildeo com o destino a ser dado a esses ldquomenoresrdquo etc Em suma

essa documentaccedilatildeo eacute uma fonte importante para o estudo da infacircncia

450

Sobre os provaacuteveis casos de maus-tratos infligidos aos ldquomenoresrdquo pelos seus pais e parentes ver o

processo de Orozimbo de 12 anos de idade AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis

Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de menores Menor Orozimbo 01-03-1905 cx 04 451

AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de

menores Menor Albertina 03-01-1912 cx 04

161

CAPIacuteTULO 3

POR ENTRE MAacuteQUINAS E ENGRENAGENS

AS CRIANCcedilAS OPERAacuteRIAS DA ldquoMANCHESTER

MINEIRArdquo

Imagem 14 Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas ndash 1928 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processo relativo

agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Pedro Paulo 31-05-1928 cx 006proc 9

162

31 A QUESTAtildeO SOCIAL NA PRIMEIRA REPUacuteBLICA LEI DE

ACIDENTES DE TRABALHO E COacuteDIGO DE MENORES

Foi a vida industrial moderna com suas exigecircncias brutais com suas

inexoraacuteveis injusticcedilas que fez surgir esse corpo de doutrinas sociais-

econocircmicas que datildeo satisfaccedilatildeo a umas tantas aspiraccedilotildees dos trabalhadores e

que devem ser traduzidas em leis (Evaristo de Moraes)452

311 A Lei de Acidentes de Trabalho ndash Brasil 1919

Com o desenvolvimento da industrializaccedilatildeo e da urbanizaccedilatildeo a questatildeo da

regulamentaccedilatildeo do trabalho urbano tornou-se uma necessidade para as sociedades que

estavam vivenciando esse processo As reivindicaccedilotildees operaacuterias e os movimentos de

luta para alcanccedilar melhores condiccedilotildees de trabalho foram paulatinamente pressionando

patrotildees e governos para o encaminhamento da questatildeo social De acordo com Acircngela

Maria de Castro Gomes a ldquoQuestatildeo Socialrdquo surgiu no bojo das transformaccedilotildees sociais

poliacuteticas e econocircmicas ensejadas pela Revoluccedilatildeo Industrial ao longo do seacuteculo XIX e

impocircs para as naccedilotildees europeias a necessidade de se reconhecer ldquoos novos problemas

vinculados agraves modernas condiccedilotildees de trabalho urbano e dos direitos sociaisrdquo gerados

pela sociedade urbana industrial453

As transformaccedilotildees vivenciadas pelas naccedilotildees europeias durante a Revoluccedilatildeo

Industrial contribuiacuteram para que as praacuteticas tradicionais de proteccedilatildeo aos pobres fossem

duramente criticadas pelos teoacutericos liberais durante o processo de constituiccedilatildeo da

sociedade capitalista industrial Eles advogavam que a ajuda a essa parcela da

populaccedilatildeo representava um obstaacuteculo para o desenvolvimento do espiacuterito de iniciativa e

ambiccedilatildeo contribuindo dessa forma para a ociosidade e a vadiagem Entretanto Angela

de Castro Gomes salienta que ao mesmo tempo em que a sociedade capitalista

industrial combatia as antigas praacuteticas de proteccedilatildeo ela abriu caminho para a

ldquoemergecircncia de um novo tipo de problemaacutetica social que acabaria por acarretar o

nascimento de uma nova concepccedilatildeo de proteccedilatildeo socialrdquo454

Segundo a autora a

compreensatildeo da contradiccedilatildeo liberalismo X poliacutetica social eacute de fundamental importacircncia

452

MORAES Evaristo de Apontamentos de Direito operaacuterio 2 ed Satildeo Paulo LTR Editora Ltda SP

Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1971 p 24-25 453

GOMES Acircngela Maria de Castro Burguesia e trabalho poliacutetica e legislaccedilatildeo social no Brasil 1917-

1937 Rio de Janeiro Campus 1979 p 31 454

Idem p 33

163

para a anaacutelise da sociedade europeia do seacuteculo XIX sendo que essa questatildeo permeou a

Europa ao longo do oitocentos455

No Brasil como em outras naccedilotildees que passaram pelo processo de urbanizaccedilatildeo e

industrializaccedilatildeo a problemaacutetica da chamada questatildeo social tambeacutem se fez presente O

desenvolvimento industrial e das relaccedilotildees capitalistas de produccedilatildeo tambeacutem foi

perpassado pelo embate entre os princiacutepios liberais expressos na Constituiccedilatildeo

republicana de 1891 e a decretaccedilatildeo de leis sociais de proteccedilatildeo aos trabalhadores A

intervenccedilatildeo do Estado para a regulamentaccedilatildeo do trabalho em uma ordem econocircmica

liberal sofreu criacuteticas por parte de setores poliacuteticos e pelo empresariado brasileiro que

sem negar por completo a participaccedilatildeo do Estado procurou estabelecer os limites dessa

intervenccedilatildeo456

Todavia eacute necessaacuterio ressaltar que apesar de reconhecerem mesmo que em

muitos casos apenas teoricamente a importacircncia das leis sociais o patronato procurou

interferir e influenciar em todas as medidas relacionadas agrave legislaccedilatildeo social

participando ativamente dos debates sobre a questatildeo trabalhista no decorrer dos anos

vinte do seacuteculo passado A participaccedilatildeo da burguesia industrial e comercial nas

discussotildees sobre a legislaccedilatildeo trabalhista contribuiu em muitos casos para o

protelamento da aprovaccedilatildeo de leis e na revisatildeo dos projetos que eram entatildeo

reelaborados com o fito de atenderem aos interesses da classe burguesa457

Durante a chamada Repuacuteblica Velha a discussatildeo mais acirrada sobre uma

legislaccedilatildeo social ocorreu principalmente no decorrer da segunda deacutecada do seacuteculo XX

O periacuteodo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi caracterizado pelo

desenvolvimento dos setores industriais e comerciais poreacutem os ganhos obtidos pela

classe burguesa nesse momento natildeo atingiram as camadas subalternas que vivenciaram

um quadro de grande carestia fortemente marcado por uma inflaccedilatildeo elevadiacutessima e por

baixos salaacuterios Esse momento tambeacutem eacute caracterizado pelo emprego intenso da matildeo de

obra infantil e feminina o que contribuiacutea ainda mais para a reduccedilatildeo dos niacuteveis salariais

Eacute nesse cenaacuterio marcado por grandes dificuldades de sobrevivecircncia para os operaacuterios

que vaacuterios movimentos de reivindicaccedilatildeo por melhores condiccedilotildees de vida e de trabalho

explodiram nas cidades que possuiacuteam um razoaacutevel niacutevel de desenvolvimento industrial

455

Ibidem p 33 456

Ibidem p 185-186 457

Ibidem p 158-159 164-165

164

O auge dessas manifestaccedilotildees foi marcado pelas greves de 1917 a 1919 em que a

questatildeo de uma legislaccedilatildeo trabalhista se impocircs para a sociedade brasileira

Em acircmbito internacional a questatildeo social tambeacutem estava sendo colocada uma

vez que o Tratado de Paz de Versalhes estipulava a necessidade de se atentar para as

reivindicaccedilotildees do proletariado pois a miseacuteria dos operaacuterios poderia redundar em graves

problemas para as naccedilotildees Dentro desse contexto deu-se a criaccedilatildeo de um organismo

internacional destinado a discutir as questotildees ligadas ao trabalho agrave Organizaccedilatildeo

Internacional do Trabalho (OIT) do qual o Brasil tornou-se membro458

Os anos finais da deacutecada de 1910 foram marcados pela discussatildeo a respeito da

legislaccedilatildeo social bem como pelos movimentos grevistas e pelas reivindicaccedilotildees

operaacuterias por melhores condiccedilotildees de trabalho pela regulamentaccedilatildeo do trabalho

feminino e infantil pela reduccedilatildeo da jornada entre outras questotildees Dentro desse cenaacuterio

de agitaccedilatildeo social o Estado brasileiro passou a intervir na chamada ldquoquestatildeo socialrdquo

A intervenccedilatildeo estatal nas questotildees trabalhistas chocava-se com o princiacutepio

liberal da Constituiccedilatildeo brasileira de 1891 Poreacutem a conjuntura de intensa mobilizaccedilatildeo

da massa trabalhadora entre os anos de 1917 a 1919 por intermeacutedio das greves

colocou como necessaacuteria a intervenccedilatildeo do governo em tal questatildeo O impacto da greve

de 1917 nas discussotildees sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho pode ser mensurado a

partir da constataccedilatildeo de que a problemaacutetica das leis sociais passou a ser discutida por

candidatos nas campanhas eleitorais para a presidecircncia da repuacuteblica (1919) e para o

governo do estado de Satildeo Paulo (1920)459

A legislaccedilatildeo social suscitou debates que envolveram diversos setores da

sociedade interessados na questatildeo No meio poliacutetico vaacuterias vozes ecoaram para

defenderem ou para criticarem tal proposiccedilatildeo A bancada paulista na Cacircmara dos

Deputados defendeu a intervenccedilatildeo estatal no que diz respeito ao direito social Os

deputados paulistas visualizavam a legislaccedilatildeo social como uma necessidade para a

manutenccedilatildeo dos interesses privados e da ldquopaz socialrdquo concebendo-a como uma

458

Ibidem p 58-60 VIANNA Luiz Jorge Werneck ldquoSistema liberal e direito do trabalhordquo In Estudos

Cebrap 07 Satildeo Paulo Ed Brasileira de Ciecircncias Ltda jan-fev-mar 1974 p 136 Disponiacutevel em

httpwwwcebraporgbrv2filesuploadbiblioteca_virtualsistema_liberal_e_direitopdf Acessado em

19 -11-2013 MUNAKATA Kasumi A legislaccedilatildeo trabalhista no Brasil Satildeo Paulo Brasiliense 1985 p

30 ndash 32 459

BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p 104-105 FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite ldquoAcidentados e

remediados a lei de acidentes no trabalho na Piracicaba da Primeira Repuacuteblica (1919-1930)rdquo In Revista

Mundos do Trabalho v 2 n 3 jan-jul de 2010 p 206-235 PASSETTI Edson ldquoOp cit 2006 p 352

165

estrateacutegia de ldquorefreamento do movimento operaacuteriordquo Entretanto defendiam a aprovaccedilatildeo

de uma ldquolegislaccedilatildeo moderada que impedisse maiores conflitos e prejuiacutezosrdquo460

Os gauacutechos se colocaram firmemente contraacuterios a qualquer medida de

regulamentaccedilatildeo do trabalho proposta durante as deacutecadas de 1910 e 1920 A bancada

gauacutecha considerava inconstitucional a intervenccedilatildeo do Estado nas questotildees trabalhistas

uma vez que o direito civil brasileiro estabelecia o livre contrato entre as partes (patratildeo-

empregado) E assinalavam que os paiacuteses que haviam aprovado leis de proteccedilatildeo social

aos operaacuterios natildeo conseguiram extirpar os conflitos inerentes agrave relaccedilatildeo capital e

trabalho Todavia os deputados gauacutechos cediam em alguns pontos no que se referia agrave

regulamentaccedilatildeo do trabalho como no que tange aos acidentes de trabalho e agrave proteccedilatildeo

agraves mulheres e aos ldquomenoresrdquo A esse respeito Acircngela de Castro Gomes salienta que o

posicionamento dos gauacutechos era bem sugestivo uma vez que essa aceitaccedilatildeo se

destinava aos trabalhadores que natildeo eram considerados cidadatildeos mulheres e crianccedilas

(natildeo votavam) e aos invaacutelidos (temporariamente ou natildeo) para o trabalho ou seja a accedilatildeo

estatal se destinava aos que estavam ldquoagrave margem do sistema poliacutetico e ateacute mesmo

econocircmicordquo461

Posto dessa forma segundo a autora tal medida poderia ser considerada

mais como uma accedilatildeo filantroacutepica do que uma conquista da classe trabalhadora pois natildeo

se constituiacutea em ldquouma intervenccedilatildeo indeacutebita do Estado e natildeo se chocando com a

concepccedilatildeo liberal do mercadordquo462

Para os Deputados gauacutechos a aceitaccedilatildeo desses dois

pontos na legislaccedilatildeo era concebido como um

[] fator de ordem sanitaacuteria e moral justificando-se pela proteccedilatildeo agrave sauacutede

puacuteblica ao futuro da raccedila e da famiacutelia Tratava-se portanto da reproduccedilatildeo e

conservaccedilatildeo da proacutepria forccedila de trabalho e eacute neste sentido que os itens aceitos

satildeo os de acidentes de trabalho e proteccedilatildeo agrave mulher e ao menor 463

Fraccedilotildees da bancada mineira compactuavam com a posiccedilatildeo dos gauacutechos no que

diz respeito ao direito social Entretanto apesar de ser uma das mais numerosas e

importantes da Cacircmara fez ldquopoucos discursos sobre o assunto marcando sua presenccedila

predominantemente com apartes e interpelaccedilotildeesrdquo464

460

GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 81-82 461

Idem p 77 462

Ibidem 463

Ibidem p 77-78 Segundo Acircngela de Castro Gomes os deputados gauacutechos defendiam que as

mulheres fossem afastadas do trabalho fora do acircmbito do lar Para eles a mulher natildeo deveria ser

incorporada como matildeo de obra pelas induacutestrias Ibidem p 78 464

Ibidem p 81

166

O grupo denominado de os ldquotrabalhistasrdquo465

eram mais combativos e na Cacircmara

denunciaram a situaccedilatildeo precaacuteria do proletariado urbano bem como defenderam o

movimento grevista como uma forma de luta dos proletaacuterios Eles propuseram diversos

projetos abordando vaacuterios aspectos da questatildeo operaacuteria como a regulamentaccedilatildeo do

trabalho feminino e infantil reduccedilatildeo da jornada de trabalho a criaccedilatildeo de creches nos

estabelecimentos industriais com nuacutemero superior a dez operaacuterios entre outras

propostas Eles apresentaram vaacuterios projetos entre junho-julho de 1917 quando entatildeo o

movimento operaacuterio estava em sua fase mais acirrada e na Cacircmara estava ocorrendo um

acalorado debate sobre a questatildeo social

Dentro dessa conjuntura a Comissatildeo de Constituiccedilatildeo e Justiccedila da Cacircmara reuniu

todas as indicaccedilotildees e projetos de leis que versavam sobre a questatildeo trabalhista em um

uacutenico projeto o Projeto no 284 do Coacutedigo de Trabalho As propostas desse documento

foram discutidas ao logo dos anos de 1918 e 1919466

No Brasil natildeo houve por parte do movimento operaacuterio reaccedilatildeo ao

intervencionismo estatal na questatildeo social como aconteceu na Alemanha e nos Estados

Unidos467

Na sociedade brasileira o movimento operaacuterio ressaltava a urgecircncia da

elaboraccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo social (trabalhista e previdenciaacuteria) e visualizava a

participaccedilatildeo do Estado como um ldquoaacuterbitro nos conflitos sociaisrdquo468

Os anos de 1917 a

1920 satildeo iacutempares no que diz respeito agrave intervenccedilatildeo do Estado nas questotildees trabalhistas

Nesse periacuteodo ocorreu a ldquodiscussatildeo formal de praticamente todas as medidas que

envolvem a regulamentaccedilatildeo do trabalhordquo bem como a implantaccedilatildeo dos ldquoprimeiros

oacutergatildeos governamentais destinados exclusivamente a tratar deste assuntordquo469

Foi nesse

momento que ocorreu um avanccedilo significativo da questatildeo trabalhista na sociedade

brasileira ou seja ela passou a ser visualizada pelo Estado como uma problemaacutetica de

seu interesse e responsabilidade deixando de ser encarada apenas como um ldquocaso de

poliacuteciardquo No bojo dessa nova concepccedilatildeo da questatildeo social como uma responsabilidade

estatal foi votada a primeira lei trabalhista brasileira em acircmbito federal a Lei de

Acidentes no trabalho em janeiro de 1919470

465

Segundo Acircngela de Castro Gomes o grupo ldquotrabalhistardquo assim se autodenominava e era representado

pelos deputados Mauriacutecio de Lacerda Nicanor Nascimento e Deodato Maia GOMES Acircngela Maria de

Castro Op cit 1979 p 64 466

Ibidem p 64-65 467

Kasumi Munakata ressalta que os anarquistas eram contraacuterios agrave participaccedilatildeo do Estado nas questotildees

trabalhistas MUNAKATA Kasumi Op cit 1985 468

GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 44-45 469

Idem p 157 470

Ibidem p157 FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite Op cit 2010 p 207

167

O projeto sobre acidentes de trabalho foi desmembrado do projeto do Coacutedigo de

Trabalho (no 2841917) sendo discutido e aprovado na Cacircmara e no Senado em

dezembro de 1918 tornando-se lei em janeiro de 1919 pelo Decreto no 3724 A dita

Lei inspirada na legislaccedilatildeo trabalhista internacional foi aprovada depois de um longo

processo de abandono A discussatildeo sobre uma lei para proteger os operaacuterios viacutetimas de

acidentes de trabalho esteve por quinze anos no Congresso Desde 1901 projetos

propondo medidas de proteccedilatildeo ao operariado foram apresentados sem que surtissem

efeitos ou fossem regulamentados Segundo destacou Gizlene Neder

Foi soacute em 1915 no Senado que vingou o projeto de Adolpho Gordo que

chegou agrave Cacircmara Laacute teve dois substantivos o de Prudente de Moraes e o de

Andrade Bezerra adotado este pela Comissatildeo de Legislaccedilatildeo Social em 1918

aprovado pela Cacircmara e pelo Senado feito lei sob o nuacutemero 3724 de 15 de

janeiro de 1919 O regulamento de autoria de Arauacutejo Castro baixou com o

decreto nuacutemero 13498 de 12 de marccedilo de 1919471

Apesar da longa demora na aprovaccedilatildeo da Lei de Acidentes quando enfim foi

aprovada apresentou uma seacuterie de limitaccedilotildees Para Neder a enumeraccedilatildeo das ldquoinduacutestrias

sobre as quais recai o favor da lei fez lsquoipso factorsquo exceccedilotildees injustas e indevidasrdquo472

No serviccedilo rural o trabalhador que sofresse um acidente e natildeo estivesse utilizando

equipamentos que possuiacutessem motores inanimados estava excluiacutedo do direito a

indenizaccedilatildeo pelo acidente sofrido Igualmente estavam privados do direito trabalhista

os empregados do comeacutercio e os domeacutesticos as ldquoinduacutestrias mariacutetimas de pesca e de

navegaccedilatildeordquo A Lei de Acidentes no trabalho de 1919 contemplou fundamentalmente os

trabalhadores do setor fabril isto eacute o trabalho mecacircnico473

A lei de acidentes atendeu principalmente os setores do operariado urbano em

que a contradiccedilatildeo entre capital e trabalho se apresentava de maneira mais acirrada As

reivindicaccedilotildees e manifestaccedilotildees do proletariado urbano colocaram para o empresariado e

para o governo a necessidade de dar um encaminhamento agrave ldquoquestatildeo socialrdquo Em suma

o direito social atendeu a parcela dos trabalhadores que apresentavam certo niacutevel de

organizaccedilatildeo e de mobilizaccedilatildeo naquele momento

Outra limitaccedilatildeo observada na lei de acidentes estaacute relacionada com a questatildeo da

indenizaccedilatildeo devida ao operaacuterio acidentado A lei estipulava no artigo 6o da parte

referente agrave indenizaccedilatildeo que o caacutelculo da mesma estaria vinculado ao salaacuterio do

471

NEDER Gizlene Op cit 1995 p 83 472

Idem p 83 473

Ibidem

168

trabalhador e que natildeo poderia ultrapassar a quantia de 2400$000 (dois contos e

quatrocentos mil-reacuteis) anuais mesmo que os proventos do acidentado ultrapassassem

esse valor Nos casos de morte ou de incapacidade total e permanente da viacutetima a lei

previa que a indenizaccedilatildeo consistiria na soma igual ao salaacuterio de trecircs anos do operaacuterio

(art 7o e 8

o)

A fixaccedilatildeo de um teto para as indenizaccedilotildees foi um ganho para a classe patronal

pois independente do salaacuterio do operaacuterio acidentado a indenizaccedilatildeo a ser paga natildeo

poderia ultrapassar 2400$000 (dois contos e quatrocentos mil-reacuteis) anuais Segundo

Ferraz nos casos mais graves como de morte ou invalidez o total maacuteximo que o

operaacuterio ou seus herdeiros poderiam receber de indenizaccedilatildeo seria a quantia de

7200$000 (sete contos e duzentos mil-reacuteis) considerando os trecircs anos que a lei

estipulava474

O pagamento da indenizaccedilatildeo aos operaacuterios acidentados poderia ser realizado

atraveacutes das companhias de seguros As induacutestriasfaacutebricas segurariam seus funcionaacuterios

em firmas autorizadas pelo governo e em casos de acidentes a dita empresa seguradora

se responsabilizaria por todos os procedimentos discriminados no Art 29 do Decreto no

13498 sobre os acidentes de trabalho O citado Decreto foi equipado com uma tabela

anexa (Art 21 sect 1o) que estabelecia a porcentagem do valor da indenizaccedilatildeo que deveria

ser paga ao operaacuterio que tivesse uma lesatildeo que lhe provocasse uma ldquoincapacidade

parcial e permanenterdquo O valor poderia ser de 5 a 60 do que a viacutetima receberia caso

tivesse uma incapacidade classificada como total e permanente Por exemplo o operaacuterio

que tivesse a matildeo direita amputada a sua indenizaccedilatildeo deveria ser de 45 a 60 do que

receberia no caso de uma incapacidade total e permanente O artigo 21 do Decreto

assinalava que deveria ser levado em consideraccedilotildees no

[] calculo aacute natureza e extensatildeo da incapacidade do operaacuterio e tendo-se em

vista os seguintes elementos a) as faculdades de trabalho que subsistem

depois do accidente b) a idade c) intelligencia d) o graacuteo de instrucccedilatildeo e) a

iniciativa e energia moral f) capacidade de adaptaccedilatildeo a uma outra profissatildeo

g) a seguranccedila da accommodaccedilatildeo do operaacuterio aacute mesma profissatildeo que exercia

na occasiatildeo do accidente475

474

FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite Op cit 2010 p 220-221 475

Decreto n 13498 ndash 12 de marccedilo de 1919 ndash Aprova o regulamento para a execuccedilatildeo da lei n 3724 de

15 de janeiro de 1919 sobre as obrigaccedilotildees resultantes dos acidentes no trabalho Disponiacutevel em

httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm

169

A lei de acidentes de 1919 adotou o princiacutepio do ldquorisco profissionalrdquo em que o

patratildeo passou a ter a responsabilidade de indenizar o operaacuterio pelo acidente sofrido Por

esse princiacutepio natildeo estava mais em questatildeo de quem era a responsabilidade pelo

acidente mas sim o risco inerente agrave atividade laboral476

A lei determinava que apenas

os acidentes ocorridos pelo ldquofato do trabalho ou durante esterdquo deveriam ser indenizados

ficando excluiacutedos os que porventura tivessem ocorrido por ldquoforccedila maior ou dolo da

proacutepria vitima ou de estranhosrdquo477

Para a Lei de Acidentes no Trabalho eram considerados operaacuterios passiacuteveis de

indenizaccedilatildeo em caso de acidentes ldquoo indiviacuteduo que sem distincccedilatildeo de sexo ou idade

presta seus serviccedilos a outrem a titulo oneroso gratuito ou de aprendizagem

permanente ou provisoacuterio foacutera de sua habitaccedilatildeo nas industrias e serviccedilos []rdquo478

Com relaccedilatildeo ao trabalho do ldquomenorrdquo que eacute o tema em tela nesse trabalho a Lei

de Acidentes no Trabalho se refere apenas aos casos dos aprendizes Na parte referente

agrave indenizaccedilatildeo no art 17 fica estabelecido que

[] tratando-se de aprendizes entende-se que o seu salaacuterio diaacuterio natildeo eacute

inferior ao menor salaacuterio de um operaacuterio adulto que trabalhe em serviccedilo da

mesma natureza em caso de incapacidade temporaacuteria poreacutem a diaacuteria do

aprendiz natildeo excederaacute aacute que ele effectivamente percebia na occasiatildeo do

accidente479

A regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil era uma questatildeo presente no projeto do

Coacutedigo de Trabalho (no 2841917) do qual se desmembrou a Lei de Acidentes no

Trabalho Entretanto somente em 1927 com a decretaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores essa

problemaacutetica seria enfim estabelecida em lei Segundo Acircngela de Castro Gomes o

empresariado ao longo do periacuteodo republicano colocou-se contra dois pontos

principais no debate acerca do trabalho de crianccedilas o limite de idade estipulado e o

nuacutemero de horas permitido ao trabalhador ldquomenorrdquo480

A lentidatildeo na aprovaccedilatildeo de leis sociais deixou a classe operaacuteria ao longo de

quase todo o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica exposta a vaacuterias arbitrariedades violecircncias

476

A Lei de Acidentes no trabalho brasileira inspirou-se na lei francesa da teoria do ldquofato do trabalhordquo

FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite Op cit 2010 p 215 477

Decreto n 13498 - 12-03-1919 Tiacutetulo I art 2o Disponiacutevel em

httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm 478

Decreto n 13498 ndash 12-03-1919 Tiacutetulo II art 5o Disponiacutevel em

httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm 479

Decreto n 13498 ndash 12 de marccedilo de 1919 ndash Aprova o regulamento para a execuccedilatildeo da lei n 3724 de

15 de janeiro de 1919 sobre as obrigaccedilotildees resultantes dos acidentes no trabalho Disponiacutevel em

httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm 480

GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 182

170

e a mercecirc dos interesses da burguesia Os ldquomenoresrdquo e as mulheres foram os mais

afetados por essa problemaacutetica uma vez que foram os principais alvos da extraccedilatildeo da

mais valia por parte do empresariado O Estado com o seu ldquoliberalismordquo compactuou

com os interesses dos setores da burguesia industrial ao natildeo promover uma intervenccedilatildeo

efetiva na questatildeo social ao longo da Primeira Repuacuteblica

Na parte seguinte examinarei o Coacutedigo de Menores de 1927 quanto agrave

regulamentaccedilatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo

312 O Coacutedigo de Menores e a regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil

A regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil se daria apenas em 1927 com a

promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores Ao longo da Primeira Repuacuteblica algumas

iniciativas relacionadas a essa parcela da populaccedilatildeo trabalhadora foram adotadas sendo

que em janeiro de 1891 foi aprovado o Decreto 1313 destinado agrave proteccedilatildeo dos

operaacuterios menores das faacutebricas do Distrito Federal Os estados e municiacutepios tambeacutem

procuraram legislar sobre o emprego de crianccedilas poreacutem na maioria das vezes essas

leis foram desrespeitadas em grande parte por causa da falta de uma fiscalizaccedilatildeo

eficiente dos oacutergatildeos governamentais

A preocupaccedilatildeo com os ldquomenoresrdquo desvalidos pode ser observada desde o iniacutecio

do periacuteodo republicano quando se deu a criaccedilatildeo do cargo de Juiz Municipal e de Oacuterfatildeos

e a aprovaccedilatildeo do Decreto 439 (1890) referente agrave assistecircncia agrave infacircncia desvalida Nos

primeiros atos do regime implantado em novembro de 1889 pode-se observar a

preocupaccedilatildeo que permeou a legislaccedilatildeo destinada a esse setor da sociedade qual seja a

de preparar esse estrato da populaccedilatildeo para futuramente serem bons cidadatildeos

trabalhadores disciplinados e ordeiros As medidas ao longo dos primeiros anos

republicanos destinadas agrave crianccedila desvalidaabandonada tambeacutem se estenderam agrave

infacircncia delinquenteinfratora O Coacutedigo Criminal de 1890 foi extremamente rigoroso

uma vez que rebaixou a idade penal de 14 anos para 9 anos Segundo Irene Rizzini esse

endurecimento do Coacutedigo natildeo se adequava agrave realidade do momento que destacava a

prevalecircncia da educaccedilatildeo sobre a puniccedilatildeo481

481

RIZZINI Irene Op cit 2011 p 116 ndash 120

171

No decorrer dos primeiros anos do seacuteculo XX a preocupaccedilatildeo com a infacircncia

pobre associada com a questatildeo do aumento da criminalidade entre essa parcela da

populaccedilatildeo redundou na elaboraccedilatildeo de vaacuterios projetos e na decretaccedilatildeo de leisdecretos

com o fito de proteger controlar e disciplinar os ldquomenoresrdquo atraveacutes da educaccedilatildeo

elementar e do aprendizado de um ofiacutecio Nesse momento destacou-se a figura do

meacutedico Moncorvo Filho na assistecircncia e proteccedilatildeo agrave infacircncia desvalida Outro

personagem de destaque nesse periacuteodo foi o jurista Antocircnio Evaristo de Moraes que fez

dos jornais sua tribuna de denuacutencia das condiccedilotildees precaacuterias da infacircncia desvalida

abandonada e delinquente

A crianccedila era concebida como a ldquosemente do futurordquo entatildeo o que fazer com a

parcela abandonada e delinquente de nossa sociedade Essa problemaacutetica inquietou

vaacuterios segmentos da sociedade entre estes juristas poliacuteticos e meacutedicos Em 1906 foi

apresentado agrave Cacircmara por Alcindo Guanabara um projeto de lei para a regulamentaccedilatildeo

ldquoda situaccedilatildeo da infacircncia moralmente abandonada e delinquenterdquo Participou da

elaboraccedilatildeo desse projeto de lei o jurista Joseacute Cacircndido de Albuquerque Mello Mattos

que tornou-se em 1923 o primeiro Juiz de Menores do Brasil e da Ameacuterica Latina e

uma das principais figuras do Coacutedigo de Menores instituiacutedo pelo Decreto no 5083 de

1926 e consolidado pelo Decreto no 17943 A de 1927 Inclusive o Coacutedigo de Menores

ficou conhecido pelo nome de Coacutedigo Mello Mattos em sua homenagem Do projeto de

1906 ateacute 1926 foram 20 anos de debates para enfim ser decretada uma legislaccedilatildeo

especificamente destinada a regulamentar a questatildeo da infacircncia desvalida abandonada e

delinquente No decorrer dessas duas deacutecadas projetos foram apresentados e

decretosleis foram consolidados versando sobre a internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo os

patronatos agriacutecolas a assistecircncia entre outras questotildees preparando dessa forma as

bases para a instituiccedilatildeo do Coacutedigo de Menores nos anos 1920482

Irene Rizzini aponta duas possibilidades para a demora na consolidaccedilatildeo de uma

lei para a infacircncia desvalida uma primeira hipoacutetese eacute a de essa natildeo se constituir em uma

ldquoprioridaderdquo do governo e a outra eacute a eclosatildeo da Primeira Guerra Mundial que pode ter

desviado a atenccedilatildeo para outros problemas483

A meu ver a morosidade na aprovaccedilatildeo de

uma lei de proteccedilatildeo agrave infacircncia tambeacutem pode estar associada ao posicionamento do

governo de natildeo intervenccedilatildeo nos interesses da classe empresarial principalmente no que

concernia agrave questatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo

482

Idem p 121-126 483

Ibidem p 126

172

Em meados do conflito mundial a questatildeo ressurge colocando para a sociedade

a necessidade de o Estado assumir ldquoa organizaccedilatildeo geral da assistecircnciardquo Nesse

momento a questatildeo passa a ter um caraacuteter utilitarista e os discursos apontam para os

ganhos que o Estado teria com a regulamentaccedilatildeo da assistecircncia agrave infacircncia484

Outro fator

que contribuiu para uma presenccedila maior do Estado brasileiro na problemaacutetica da

infacircncia desvalida foi o debate internacional que ocorreu apoacutes o teacutermino da Primeira

Guerra Mundial sobre os direitos das crianccedilas e que culminou com a aprovaccedilatildeo da

Declaraccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila ndash Declaraccedilatildeo de Genebra em 1923 Essa

Declaraccedilatildeo teve influecircncia na criaccedilatildeo pelo governo brasileiro do Juizado Privativo dos

Menores Abandonados e Delinquentes em 1924485

A intervenccedilatildeo do Estado no que tange agrave regulamentaccedilatildeo da assistecircncia e

proteccedilatildeo agrave infacircncia abandonada pobre e delinquente assistiu a um crescimento no

decorrer da deacutecada de 1920 periacuteodo em que se observa um aumento na aprovaccedilatildeo de

decretos e leis versando sobre a infacircncia e que culminou em 1926 com a instituiccedilatildeo do

Coacutedigo de Menores e em 1927 com a sua consolidaccedilatildeo Todavia eacute necessaacuterio ressaltar

que parcela da intelectualidade juristas meacutedicos entre outros setores tambeacutem se

envolveram no debate sobre o tema em tela Em 1922 na Capital Federal Rio de

Janeiro houve o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteccedilatildeo a Infacircncia promovido por

Moncorvo Filho e o III Congresso Americano sobre a Infacircncia486

O Coacutedigo de Menores foi o resultado de um longo debate sobre as poliacuteticas de

assistecircncia e proteccedilatildeo agrave infacircncia pobre sendo portanto necessaacuterio ressaltar a relevacircncia

que os projetos de leis as leis e os decretos anteriores tiveram em sua elaboraccedilatildeo e

aprovaccedilatildeo487

Irene Rizzini ressalta que o texto do Coacutedigo de Menores aprovado em

1926 quase duplicou se comparado com o documento que consolidou as leis de

assistecircncia agrave infacircncia em 1927 em razatildeo da incorporaccedilatildeo de novos capiacutetulos e artigos

O documento final eacute composto por 231 artigos A autora ainda assinala que ao se

analisar a lei tem-se a sensaccedilatildeo de que

[] atraveacutes da lei em questatildeo procurou-se cobrir um amplo espectro de

situaccedilotildees envolvendo a infacircncia e a adolescecircncia Parece-nos que o

legislador ao propor a regulamentaccedilatildeo de medidas ldquoprotectivasrdquo e tambeacutem

assistenciais enveredou por uma aacuterea social que ultrapassava em muito as

fronteiras do juriacutedico O que o impulsionava era ldquoresolverrdquo o problema dos

484

Ibidem p 126-127 485

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 221 486

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 138-140 487

RIZZINI Irene Op cit 2011 p 132-133

173

menores prevendo todos os possiacuteveis detalhes e exercendo firme controle

sobre os menores atraveacutes de mecanismos de ldquotutelardquo ldquoguardardquo ldquovigilacircnciardquo

ldquoeducaccedilatildeordquo ldquopreservaccedilatildeordquo e ldquoreformardquo488

Com relaccedilatildeo agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil Acircngela de Castro Gomes

assinala que essa era uma preocupaccedilatildeo do Estado uma vez que estava associada agrave

problemaacutetica da sauacutede higiene e proteccedilatildeo da famiacutelia Poreacutem a sua implementaccedilatildeo

sempre esbarrava na oposiccedilatildeo de fraccedilotildees do empresariado e de poliacuteticos que reagiam

contra dois pontos principais quais sejam a idade que o ldquomenorrdquo poderia ser admitido e

o nuacutemero de horas que deveria cumprir489

Essas querelas foram se arrastando ao longo

da Repuacuteblica Velha sendo apenas no final dos anos de 1920 que enfim deu-se a

decretaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores regulamentando o trabalho de crianccedilas

O Coacutedigo de Menores no Capiacutetulo I ndash Do objeto e fim da lei artigo 1o estipulava

que ldquoo menor de um ou outro sexo abandonado ou delinquente que tiver menos de 18

anos de idade seraacute submetido pela autoridade competente agraves medidas de assistecircncia e

proteccedilatildeo contidas neste Coacutedigordquo Do nascimento ateacute a idade de 18 anos a lei procurava

resguardar proteger e controlar a crianccedila desvalida abandonada e delinquente

Para os objetivos desta parte do trabalho interessa mais especificamente o

Capiacutetulo IX intitulado ldquoDo Trabalho dos Menoresrdquo do Coacutedigo de 1927 O citado

capiacutetulo eacute composto por vinte e cinco artigos em que estatildeo discriminadas as condiccedilotildees e

os locais em que os ldquomenoresrdquo operaacuterios e os aprendizes poderiam exercer alguma

atividade profissional quais as funccedilotildees que estavam autorizados a executar o nuacutemero

de horas os intervalos o trabalho noturno as idades em que poderiam ser admitidos as

penas e as multas para quem infringisse as determinaccedilotildees da lei entre outras questotildees

Pelo Coacutedigo de 1927 ficou determinado que a jornada de trabalho dos operaacuterios

e aprendizes menores de 18 anos de idade seria de seis horas diaacuterias com intervalos

para repouso cuja duraccedilatildeo natildeo poderia ser inferior a uma hora (art 108) Uma questatildeo

que chama a atenccedilatildeo no Coacutedigo eacute a preocupaccedilatildeo com a ldquoinstrucccedilatildeo primaacuteriardquo dos

operaacuterios No art 102 estaacute expressa essa questatildeo nos seguintes termos

Igualmente natildeo se poacutede ocupar a maiores dessa idade (12 anos) que contem

menos de 14 annos e que natildeo tenham completando sua instrucccedilatildeo primaria

Todavia a autoridade competente poderaacute autorizar o trabalho destes quando

o considere indispensavel para a subsistencia dos mesmos ou de seus paes ou

irmatildeos comtanto que recebam a instrucccedilatildeo escolar que lhes seja possivel

488

Idem p 133 489

GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 182

174

A questatildeo da educaccedilatildeo do aprendiz e do trabalhador infanto-juvenil aparece em

outros artigos do Capiacutetulo IX do Coacutedigo de Menores sempre enfatizando a necessidade

da instruccedilatildeo primaacuteria490

ou da presenccedila do certificado do curso elementar como

condiccedilatildeo para eles serem admitidos em determinadas atividades profissionais (art 103 sect

3o art 107 e art 122)

Com o Coacutedigo de Menores o Estado passou a se responsabilizar pela crianccedila

desvalida abandonada e delinquente ou seja tomou para si o encargo de educar

disciplinar e preparaacute-la para ser integrada ao mercado de trabalho

Na proacutexima parte desse capiacutetulo analisarei os processos de acidentes no trabalho

em que os ldquomenoresrdquo foram viacutetimas agrave luz da legislaccedilatildeo social ndash Lei de acidentes do

trabalho e Coacutedigo de Menores

3 2 DA RUA Agrave FAacuteBRICA O PROLETARIADO INFANTO-JUVENIL

DA ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo

Nas cidades as fabricas alejam as creanccedilas fenecem o vigor da mocidade e

matam as esperanccedilas da velhice E quando um brado da consciencia uma voz

da humanidade parte da canalha da rua dos paacuterias do brahmanismo

brasileiro e echocirca no recinto do nosso parlamento esmolando o desafogo do

proletariado haacute sempre uma voz cujos sons de metal azinhavrado tem a

facilidade de convencer que no Brasil natildeo haacute questatildeo social a resolver (Sadi

Carnot de Miranda Lima)491

490

Conforme Decreto 981 de 8 de novembro de 1890 que regulamentava a Instruccedilatildeo primaacuteria e

secundaacuteria do Distrito Federal a instruccedilatildeo primaacuteria apresentava a seguinte estrutura escolas primaacuterias de

1o grau e de 2

o grau O art 2

o do citado Decreto no sect 1

o especificava que ldquoas escolas do 1

o graacuteo

admittiratildeo alumnoacutes de 7 a 13 annos de idade e as do 2o graacuteo de 13 a 15 annos Umas e outras seratildeo

distinctas para cada sexo poreacutem meninos ateacute 8 annos poderatildeo frequentar as escolas do 1o graacuteo do sexo

femininordquo O art 3o sect 1

o estabelecia que as escolas primaacuterias de 1

o grau abarcariam trecircs cursos o

elementar (para alumnos de 7 a 9 annos) o meacutedio (para os de 9 a 11) e o superior (para os de 11 a 13)

sendo gradualmente feito em cada curso o estudo de todas as mateacuteriasrdquo Disponiacutevel em

httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-981-8-novembro-1890-515376-

publicacaooriginal-1-pehtml Apesar de o Decreto 981 de novembro de 1890 ser destinado ao ensino no

Distrito Federal Ana Luacutecia Fernandes e Luiacutes Grosso Correia ressaltam que provavelmente o mesmo

ldquopudesse ter um caraacuteter de modelo a ser seguido em niacutevel nacionalrdquo uma vez que a cidade do Rio de

Janeiro aleacutem de ser a capital poliacutetica e administrativa tambeacutem tinha um importante papel ldquono processo

de disseminaccedilatildeo de ideias praacuteticas e modelosrdquo Cf FERNANDES Ana Luacutecia CORREIA Luiacutes Grosso

ldquoO ensino primaacuterio nos espaccedilos-tempos da I Repuacuteblica no Brasil (1889-1930) e em Portugal (1910-

1926)rdquo In Revista da Faculdade de Letras ndash Histoacuteria Porto III Seacuterie v 11 2010 p 185 nota 13

Disponiacutevel em httprepositorio-abertoupptbitstream10216560652LuisGrossoensino000128140pdf

Acessado em 03-2-2014 491

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Japyassuacute de

Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8

175

As agressotildees fiacutesicas os abusos sexuais satildeo apenas algumas das dificuldades

enfrentadas por crianccedilas e adolescentes no ambiente fabril nas oficinas no emprego

domeacutestico no comeacutercio no campo entre outros espaccedilos de trabalho As crianccedilas e

adolescentes foram viacutetimas constantes de acidentes no trabalho Suas pequeninas matildeos e

corpos muitas vezes eram esmagados dilacerados queimados eletrocutados cortados

nas maacutequinas nas engrenagens nos tornos nos fornos e em outros tantos instrumentos

de trabalhos improacuteprios para suas idades e capacidade fiacutesica O que pretendo investigar

nesse item satildeo os processos de acidentes no trabalho em que a viacutetima foi o trabalhador

infanto-juvenil

As notiacutecias sobre os acidentes de ldquomenoresrdquo nas unidades fabris nas oficinas e

nos demais estabelecimentos estatildeo presentes nos perioacutedicos desde finais dos oitocentos

Atraveacutes das notiacutecias veiculadas nos perioacutedicos sobre acidentes de trabalhadores nas

faacutebricas oficinas construccedilotildees serviccedilos agriacutecolas setor de transporte e residecircncias

pode-se ter uma dimensatildeo da exploraccedilatildeo e das condiccedilotildees precaacuterias de trabalho dos

operaacuterios entre os seacuteculos XIX e as primeiras deacutecadas do XX De acordo com Luiacutes

Eduardo de Oliveira o nuacutemero de acidentes entre os dececircnios de 1890 e 1910

provavelmente foram bem maiores do que os noticiados nos jornais locais e que as

constantes propagandas de companhia de seguros de vida e contra acidentes satildeo um

indicativo de que as ocorrecircncias eram bem significativas Os acidentes eram tratados

como fatalidade descuido distraccedilatildeo ou ldquoobrardquo de alguma entidade como o diabo e

recaiacutea sobre as viacutetimas e seus familiares os gastos com o tratamento ou sepultamento

Assim nos casos mais graves como de paralisia de amputaccedilotildees de membros

(pernasbraccedilosmatildeos) ou de longos periacuteodos de convalescecircncia os operaacuterios e seus entes

tinham de contar muitas vezes com o auxiacutelio da caridade puacuteblica uma vez que natildeo

havia nenhum tipo de previdecircncia puacuteblica492

Somente em 1919 com a decretaccedilatildeo da

Lei de Acidentes no Trabalho eacute que o trabalhador passou a estar resguardado por uma

legislaccedilatildeo social Por intermeacutedio dessa lei processos foram abertos e constituem hoje

uma importante fonte de investigaccedilatildeo das condiccedilotildees de vida e trabalho da classe

492

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 240 ndash 246 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoPor

entre maacutequinas amp engrenagens as crianccedilas operaacuterias nos acidentes de trabalho em Juiz de Fora (1919-

1930) In SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da PINTO Jefferson de Almeida (orgs) Poder e

Poliacutetica pensando a toleracircncia e a cidadania (Coloacutequio InternacionalSeminaacuterio de Histoacuteria Poliacutetica da

UFF) Niteroacutei (RJ) UFF 2012b p 109-127 Disponiacutevel em

wwwhistoriauffbrstrictofilespublic_ppghcap_2012_lcp_PoderPoliticapdf Acessado em 04-07-2015

176

operaacuteria durante os primeiros anos do desenvolvimento industrial e das relaccedilotildees

capitalistas de produccedilatildeo da sociedade brasileira

Os processos de acidentes no trabalho possibilitam que seja levantada uma

multiplicidade de questionamentos sobre as condiccedilotildees de trabalho e de vida do

operariado constituindo-se em uma documentaccedilatildeo riquiacutessima para a anaacutelise da questatildeo

operaacuteria Nessa fonte pode-se observar no caso especiacutefico da infacircncia as idades em

que esses ldquomenoresrdquo eram admitidos nas mais diversas tarefas - muitas extremamente

perigosas para suas idades - o nuacutemero excessivo de horas de trabalho o que

impossibilitava o acesso agrave escola as condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees industriais e de

outros estabelecimentos que expunham os trabalhadores a graves acidentes entre outras

tantas questotildees Atraveacutes dessa fonte tambeacutem eacute possiacutevel observar a presenccedila dos

descendentes de imigrantes compondo a massa de trabalhadores fabris bem como dos

afrodescendentes que pude identificar atraveacutes dos sobrenomes e indicaccedilatildeo da

nacionalidade dos genitores e da indicaccedilatildeo da cor Entretanto nem todos os processos

possuem dados como a cor dos envolvidos a nacionalidade e ou a de seus pais

Pesquisei todos os processos preservados de acidentes no trabalho envolvendo o

trabalhador infanto-juvenil referentes ao periacuteodo de 1919 a 1930 sendo analisados 67

autos Todavia eacute necessaacuterio fazer uma observaccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves idades dos ldquomenoresrdquo

nesse periacuteodo Para o recorte de 1919 ateacute 1927 pesquisei processos envolvendo

trabalhadores ateacute a idade de 21 anos E a partir da promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores

em 1927 limitei a consulta ateacute a idade de 18 anos uma vez que o Coacutedigo estabeleceu a

maioridade do operaacuterio na citada idade493

O mais jovem da documentaccedilatildeo compulsada

foi o aprendiz Pedro Paulo de nove anos de idade que trabalhava na Companhia Tecircxtil

Bernardo Mascarenhas na ldquomachina de fiar algodatildeordquo e recebia a quantia de ldquoum mil reis

(1$000) diariosrdquo494

Pedro Paulo era oacuterfatildeo ndash de pai e matildee ndash e residia com seu cunhado e

tutor Joaquim Vidal ldquoagrave Avenida Freirerdquo no bairro Poccedilo Rico No dia 26 de maio de

1928 o aprendiz teve o seu dedo indicador da matildeo esquerda esmagado pela engrenagem

da maacutequina em que trabalhava o que levou agrave perda da falangeta O Juiz de Direito

Custodio de Almeida Lustosa arbitrou a indenizaccedilatildeo em ldquo25 (vinte e cinco por centro)

da indenizaccedilatildeo total que seria de 900 vezes o salario diaacuterio de mil reisrdquo dada a

ldquogravidade da lesatildeo e aacute pouca edade da victima que assim se veraacute privada de um

493

Os processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho encontram-se sob a guarda do Arquivo

Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora e do Arquivo Histoacuterico da Universidade Federal de Juiz de Fora 494

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Pedro Paulo

31-05-1928 cx 006proc 9

177

importante instrumento de trabalho nos melhores anos de sua atividaderdquo495

A pouca

idade do menino Pedro Paulo estava em desacordo com o que o Coacutedigo de Menores

(1927) estipulava em seu Capiacutetulo IX art 101 ldquoeacute prohibido em todo o territoacuterio da

Republica o trabalho nos menores de 12 annosrdquo O aprendiz contava apenas com nove

anos de idade quando do acidente

A questatildeo da instruccedilatildeo primaacuteria para a admissatildeo de ldquomenoresrdquo nos

estabelecimentos industriais e outros foi tratada pelo Coacutedigo de Menores que

estabelecia a sua obrigatoriedade conforme estipulado no art 103 e sect 3o do citado

Coacutedigo

Art 103 Os menores natildeo podem ser admittidos nas usinas manufacturas

estaleiros minas ou qualquer trabalho subterraneo pedreiras officinas e suas

dependencias de qualquer natureza que sejam publicas ou privadas ainda

quando esses estabelecimentos tenham caracter profissional ou de

beneficencia antes da idade de 11 annos sect 3

o Todavia os menores providos de certificados de estudos primarios

pelo menos do curso elementar podem ser empregados a partir da idade de

12 annos

Segundo informaccedilotildees dos ldquoAutosrdquo do processo o aprendiz Pedro Paulo sabia ler

e escrever o que subentende que tivesse recebido instruccedilatildeo elementar mas mesmo

assim sua situaccedilatildeo ainda estava em desacordo com o que a lei estipulava a respeito da

idade miacutenima para a admissatildeo em uma atividade laborativa e ou de aprendizado

profissional

O que se depreende da anaacutelise desse processo e de outros que seratildeo examinados

ao longo desse item eacute que as determinaccedilotildees do Coacutedigo de Menores no que diz respeito

agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho dos ldquomenoresrdquo natildeo foram cumpridas pelos

estabelecimentos industriais e muito menos observadas pelas autoridades

governamentais e judiciais da ldquoManchester Mineirardquo

Analisando as idades dos ldquomenoresrdquo que foram viacutetimas de acidentes no trabalho

percebe-se que a maioria concentrava-se na faixa etaacuteria compreendida entre os 14 e 20

anos de idade Entre as meninas o nuacutemero mais expressivo se dava a partir dos 15 anos

e entre os meninos a partir dos 14 anos de idade No quadro a seguir consta uma visatildeo

mais detalhada das idades dos pequenos operaacuterios que se acidentaram nos

estabelecimentos do municiacutepio de Juiz de Fora

495

Idem

178

QUADRO 6

FAIXA ETAacuteRIA DOS ldquoMENORESrdquo VIacuteTIMAS DE ACIDENTES NO

TRABALHO (1919-1930)

FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de Acidentes no Trabalho (1919-1930)

O nuacutemero mais expressivo de meninos nos acidentes pode estar relacionado com

o fato de que estes eram empregados em outras atividades aleacutem daquelas do serviccedilo nas

faacutebricas tecircxteis Os jovens do sexo masculino tinham um leque mais amplo de utilizaccedilatildeo

de sua forccedila de trabalho Dos 47 operaacuterios envolvidos em acidentes no trabalho 16

(3404) eram do setor tecircxtil e os demais 31 (6596) estavam na abertura de estradas

de rodagem faacutebricas alimentiacutecias de manteiga de ferradura de vassouras e balas em

oficinas mecacircnicas de marcenaria e carpintaria moinho estamparias pedreiras

padarias e companhias de eletricidade Com relaccedilatildeo agraves operaacuterias das 20 meninas

viacutetimas de acidentes com exceccedilatildeo de apenas uma que trabalhava numa faacutebrica de

chinelos496

todas as demais eram empregadas em induacutestrias tecircxteis e malharias

QUADRO 7

Operaacuterios do setor Tecircxtil e de Malharia envolvidos em acidentes no trabalho

(1919-1920)

INDUacuteSTRIA TEcircXTIL E MALHARIAS

OPERAacuteRIAS

ACIDENTADAS

OPERAacuteRIAS

ACIDENTADAS

TEXTIL

MALHARIA

OPERAacuteRIOS

ACIDENTADOS

OPERAacuteRIOS

ACIDENTADOS

TEXTIL

MALHARIA

20 19()

950 47 16 3404

FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de Acidentes no Trabalho (1919-1930) () Faacutebrica de Tecidos de Juta ndash A B Santos amp Companhia 1

Faacutebrica de Tecidos de Malha ndash Benedicto Lacordia 1 Faacutebrica de Malhas ndash Gerhin amp Irmatildeos 1

Companhia Malharia N S da Penha ndash Bichara Calil Estefan 1

Malharia Santa Rosa 1

496

AHCJ Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho Geralda Farini

09-06-1930 cx 107

TOTAL DE

OPERAacuteRIOS

IDADES

(MENINOS

E

MENINAS)

TOTAL MENINAS MENINOS

67

09 - 11 05 746 01 149 04 597

12 -16 31 4627 09 1343 22 3284

17 - 20 31 4627 10 1493 21 3134

179

Malharia Satildeo Miguel 1

Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira 4

Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas 4 Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer amp Irmatildeos 5

Analisando apenas os processos relativos aos trabalhadores das induacutestrias

tecircxteis malharias (conforme quadro 7) observa-se um nuacutemero maior de meninas nesses

estabelecimentos Os estudos que discutem a questatildeo operaacuteria no municiacutepio de Juiz de

Fora tecircm ressaltado a elevada presenccedila de crianccedilas nos estabelecimentos fabris497

Conforme observou Silvia Vilela de Andrade no Censo de 1920 nas faacutebricas tecircxteis de

Juiz de Fora havia uma predominacircncia de trabalhadores do sexo feminino com idade

inferior a 20 anos de idade Dos 1853 operaacuterios empregados nesse setor entre homens

e mulheres 1221(6589) era composto por operaacuterios com menos de 20 anos de idade

Desse total 794 (6503) era constituiacutedo por operaacuterias498

Os graacuteficos a seguir

fornecem uma visatildeo mais detalhada sobre a presenccedila de meninos e meninas nos

acidentes de trabalho

GRAacuteFICO 3

ldquoMENORESrdquo ENVOLVIDOS EM ACIDENTES NO TRABALHO ndash DIVISAtildeO

POR SEXO

FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de

Acidentes no Trabalho (1919-1930)

497

ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe operaacuteria em Juiz de Fora uma histoacuteria de lutas

(1912 ndash 1924) Juiz de Fora EDUFJF 1987 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 NEDER

Carolina Barbosa Memoacuterias que natildeo se apagam o cotidiano de lutas das operaacuterias na Manchester

Mineira (1890-1954) Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Histoacuteria Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

Juiz de Fora 2010 498

ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 p 38-39

180

GRAacuteFICO 4

ldquoMENORESrdquo ENVOLVIDOS EM ACIDENTES NO TRABALHO ndash DIVISAtildeO

POR SEXO E SETOR

FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de Acidentes no

Trabalho (1919-1930)

Com relaccedilatildeo agraves meninas considero que uma parcela expressiva estava

empregada nas casas das famiacutelias abastadas do municiacutepio e como a lei de acidentes no

trabalho natildeo contemplava essa categoria de trabalhadores elas natildeo aparecem nos

registros apesar de estarem expostas a vaacuterios tipos de acidentes como queimaduras

ferimentos cortes e amputaccedilotildees Nos perioacutedicos satildeo constantes as notiacutecias sobre essas

trabalhadoras principalmente logo apoacutes a decretaccedilatildeo do fim do trabalho escravo - em

maio de 1888 Muitas mateacuterias dos jornais ressaltavam a falta dessa matildeo de obra para ldquoo

desespero familiarrdquo das donas de casa e atribuiacuteam essa situaccedilatildeo ao fato de as mulheres

principalmente as libertas natildeo desejarem entregar-se ldquoa nenhum emprego licitordquo ou

acusavam as faacutebricas que com ldquomelhores salarios arrastam ateacute as crianccedilas para a vida

das industriasrdquo499

Tambeacutem foram publicadas notiacutecias sobre fugas de meninas das casas

499

Sandra L Graham realizou uma anaacutelise das relaccedilotildees entre as criadas e seus patrotildees no Rio de Janeiro

nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX e nos primeiros anos do XX A autora explorou questotildees como as

semelhanccedilas nas condiccedilotildees de vida e de trabalho entre as empregadas livres e escravas as relaccedilotildees

familiares das camadas populares o emprego domeacutestico infanto-juvenil a questatildeo da habitaccedilatildeo entre

outras problemaacuteticas Cf GRAHAM Sandra Lauderdale Proteccedilatildeo e obediecircncia criadas e seus patrotildees

no Rio de Janeiro 1860 ndash 1910 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992 SM-BMMM

ldquoCorrespondenciardquo O Pharol 6 jul 1888 p 2 AHCJF ldquoA electricidade no uso domesticordquo Diaacuterio

Mercantil 23 dez 1926 O artigo publicado no jornal Diaacuterio Mercantil com o tiacutetulo ldquoA electricidade no

uso domesticordquo explanava sobre a falta de criadas para o serviccedilo domestico poreacutem ressaltava que as

donas de casas poderiam ficar tranquilas pois a ldquomaior fabrica de material electrico do mundo ndash General

Electric []rdquo estava lanccedilando no ldquomercado apparelhos electricos para todos os misteres caseirosrdquo

181

onde trabalhavam e de abandono pelos patrotildees das pequenas criadas entre outros

assuntos relativos a essas trabalhadoras500

Imagem 15 Nota sobre o abandono de uma ldquomenorrdquo pelos patrotildees

AHCJF ldquoFalta de Conscienciardquo Diaacuterio Mercantil 22 nov 1927 p 1

500

Em 17 de novembro de 1926 foi publicado o desaparecimento da empregada Raymunda Silva de 14

ou 15 anos de idade da casa de seus patrotildees Cf AHCJF ldquoUma menor desaparecidardquo Diaacuterio Mercantil

17 nov 1926 Na ediccedilatildeo de 31 de dezembro do mesmo ano lecirc-se a notiacutecia sobre a fuga da empregada

Raymunda da Conceiccedilatildeo parda de 14 anos da casa de seu patratildeo Cf AHCJF ldquoMenor Desaparecidardquo

Diaacuterio Mercantil 31 dez 1926 Em 22 de novembro de 1927 o jornal Diaacuterio Mercantil publicou uma

notiacutecia sobre o abandono de uma ldquomenorrdquo pelos patrotildees Cf AHCJF ldquoFalta de Consciecircnciardquo Diaacuterio

Mercantil 22 nov 1927 p 1 Cf SILVA Wesleyuml Por uma histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da

delinquecircncia de menores em Belo Horizonte ndash 1921-1941 Doutorado em Educaccedilatildeo Satildeo Paulo

Universidade de Satildeo Paulo 2007 p 204-206

182

Imagem 16 Nota sobre acidente de trabalho de uma ldquomenorrdquo ndash serviccedilo

domeacutestico SM-BMMM ldquoDesastrerdquo Jornal do Commercio 27 jan 1905

p 2

A uacutenica operaacuteria da documentaccedilatildeo por mim compulsada sobre acidentes no

trabalho que natildeo estava empregada na induacutestria tecircxtilmalharia foi a menor Geralda

Farini de 15 anos de idade que sabia apenas ldquoassignar o nomerdquo empregada como

aprendiz na faacutebrica de chinelos de propriedade de Oscar Rodrigues Pereira localizada

na Rua Santo Antocircnio Sua matildee Rachel Farini queixou-se na Delegacia de Poliacutecia que

no dia 31 de maio de 1930 sua filha havia sofrido um acidente quando trabalhava na

183

ldquomachina de ligas do fabrico de chinelosrdquo A ldquomenorrdquo teve o dedo indicador da matildeo

direita atingido pela engrenagem de uma maacutequina que resultou segundo o exame

meacutedico na perda definitiva ldquode um quarto da extremidade da phalangeta do dedo

traumatizado e a perda da unhardquo O que chama a atenccedilatildeo nesse processo eacute a explicaccedilatildeo

dada pela jovem operaacuteria para a ocorrecircncia do acidente Geralda Farini em seu

depoimento declarou que estava trabalhando

[] quando nessa occasiatildeo ao por sua matildeo direita para atraz foi a mesma

apanhada pela engrenagem de uma machina que estava funccionando atraz

das costas da declarenate recebendo no momento ferimento na ponta do dedo

indicador da mesma matildeo501

Pelo depoimento da aprendiz presume-se a precariedade das instalaccedilotildees da

faacutebrica de chinelos A crer na veracidade das declaraccedilotildees de Geralda o que se conclui eacute

que os espaccedilos entre uma maacutequina e outra eram tatildeo exiacuteguos que somente o fato de

colocar a matildeo para traacutes foi o bastante para feri-la

A esse respeito Esmeralda Moura ao analisar a questatildeo operaacuteria em Satildeo Paulo

ressalta

Nos horizontes da cidade o perfil das faacutebricas enquanto liacutedimos

representantes do progresso era motivo de juacutebilo para as autoridades locais

Em seu interior no entanto o improviso era praticamente a nota dominante

maacutequinas e operaacuterios muitas vezes acomodados em espaccedilo exiacuteguo

iluminaccedilatildeo e ventilaccedilatildeo insuficientes ausecircncia de dispositivos de seguranccedila

colocando a matildeo de obra agrave mercecirc das engrenagens502

A classe poliacutetica e econocircmica da cidade de Juiz de Fora tambeacutem se comprazia

em decantar o progresso e a modernidade da cidade do interior mineiro Nos perioacutedicos

satildeo constantes os elogios ao desenvolvimento do municiacutepio Entretanto no interior das

faacutebricas com seus tijolinhos vermelhos com suas chamineacutes e seus apitos o improviso

as gambiarras a falta de espaccedilo e provavelmente de iluminaccedilatildeo e ventilaccedilatildeo adequados

era uma marca503

501

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho Geralda

Farini 09-06-1930 cx 107 502

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 264 503

Para mais informaccedilotildees sobre o discurso das classes dominantes de Juiz de Fora sobre a questatildeo do

progresso e da modernidade da cidade ver os trabalhos de MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990

CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit 2010

GOODWIN JUacuteNIOR James W A ldquoPrincesa de Minasrdquo a construccedilatildeo de uma identidade pelas elites

juiz-foranas (1850-1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Belo Horizonte UFMG 1996 GOODWIN JUNIOR

James William Op cit 2007

184

Outro processo de acidente envolvendo uma aprendiz e que acena para as

condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees das faacutebricas de Juiz de Fora eacute o da ldquomenorrdquo Maria

da Gloacuteria Eduardo de 11 anos de idade que ldquonatildeo sabia ler e nem escreverrdquo Ela feriu

trecircs dedos da matildeo direita quando

[] ao passar junto a uma machina de enrolar barbante quando ia a

instalaccedilatildeo sanitaria satisfazer uma necessidade physiologicva por natildeo ter

outro caminho a passar a natildeo ser junto a referida machina que se achava em

movimento e como era muito estreito o corredor teve que por a sua matildeo

direita em uma das peccedilas da mesma occasiatildeo em que esta pegou-lhe treis

dedos da matildeo alludida fazendo todos elles ferimentos504

Os ferimentos sofridos pela operaacuteria Maria da Gloacuteria Eduardo resultaram

segundo o laudo meacutedico em uma ldquolesatildeo definitiva e portanto incapacidade parcial e

permanente no dedo index da matildeo direita que ficaraacute com uma ankylose ao nivel das

articulaccedilatildeo phalange-phalanginha e phalanginha-phalangetardquo505

Antonio Celso Vieira gerente da Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer amp

Irmatildeos onde trabalhava Maria da Gloacuteria declarou em seu depoimento que a ldquomenorrdquo

havia se ferido quando ldquodistrahidamente poz a matildeo direita em uma das engrenagensrdquo

da maacutequina de enrolar barbante Em momento algum ele ressalta a provaacutevel dificuldade

que os operaacuterios tinham de ter acesso agraves instalaccedilotildees sanitaacuterias como relatado pela

aprendiz O acidente no relato do gerente foi fruto da distraccedilatildeo da ldquomenorrdquo506

As condiccedilotildees inadequadas os espaccedilos exiacuteguos entre as maacutequinas natildeo era uma

caracteriacutestica exclusiva das pequenas faacutebricas Faccedilo tal afirmaccedilatildeo com base na

informaccedilatildeo de que a Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Malha Antonio Meurer em 1925 era a

quarta maior induacutestria do ramo tecircxtil do municiacutepio de Juiz de Fora em nuacutemero de

operaacuterios contando 350 funcionaacuterios e a terceira em termos de equipamentos (220

teares) e valor da produccedilatildeo (2451000$000)507

Essa provaacutevel precariedade dos

504

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Maria da

Gloacuteria Eduardo 18-08-1927 cx 005 proc 15 505

Idem 506 Carolina Neder em seu estudo sobre o cotidiano das operaacuterias de Juiz de Fora entre os anos de 1890-

1954 assinalou que algumas ex-operaacuterias relataram em seus depoimentos as dificuldades que tinham para

irem ao banheiro dadas as normas disciplinares e de controle existentes dentro das faacutebricas sendo que o

periacuteodo menstrual mostrava-se ainda mais problemaacutetico para elas NEDER Carolina Barbosa Memoacuterias

que natildeo se apagam o cotidiano de luta das operaacuterias na Manchester Mineira (1890-1954) Dissertaccedilatildeo de

Mestrado Juiz de Fora (MG) UFJF 2010 p 42-43 507

Secretaria da Agricultura Anuaacuterio Estatiacutestico Ano II (1922-1925) Belo Horizonte Imprensa Official

1929 Apud ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe Operaria em Juiz de Fora uma histoacuteria

de lutas (1912-1924) Ed da UFJF 1987 p 31

185

estabelecimentos expunham os funcionaacuterios a riscos como se deu no caso da ldquomenorrdquo

Geralda Farini Maria da Gloacuteria Eduardo e tantos outros

Egydio Augusto cunhado da aprendiz Maria da Gloacuteria e com quem ela residia

solicitou que fosse nomeado um tutor ad hoc pois a menor era oacuterfatilde de matildee e ldquopor lhe

faltar pae legitimordquo para cuidar de seus interesses no processo de acidente no trabalho

O advogado Joseacute Ribeiro de Abreu foi nomeado tutor ad hoc da menina508

O advogado Joseacute Ribeiro de Abreu em suas ldquoallegaccedilotildeesrdquo em defesa dos

interesses da jovem operaacuteria assim ponderou

Trata-se de uma menor que alem de deformada ficaraacute privada para sempre de

seu dedo index da matildeo direita - ankylosado nas articulaccedilotildees das phalanges

Essa lesatildeo sem embargo aacutes demais constantes do attestado junto deve ser

considerada de summa gravidade e portanto a victima que inicia agora a

lucta pela existencia sem o amparo paternal natildeo poderaacute regressar ao seu

officio com os mesmos elementos de habilidade pelo accidente

paralysados509

Com base nas alegaccedilotildees o tutor ad hoc solicitou que o caacutelculo da indenizaccedilatildeo

devida agrave ldquomenorrdquo fosse arbitrada no maacuteximo da porcentagem que a Lei de Acidentes no

Trabalho (Decreto 13 4981919) estabelecia em sua tabela anexa que era de ldquo40 para

a indemnizaccedilatildeo da perda do indicador da matildeo direitardquo Ele ainda inferiu que o caacutelculo

deveria ser realizado tendo por base o menor salaacuterio de um operaacuterio adulto que

trabalhasse em ldquoserviccedilo da mesma naturezardquo conforme estipulava o art 17 da citada

Lei510

O Juiz de Direito Custoacutedio de Almeida Lustosa arbitrou a indenizaccedilatildeo em 30

tendo como referecircncia o menor salaacuterio de um trabalhador adulto que exercia a mesma

atividade que era de 4$000 A Companhia de Seguro Lloyd Industrial Sul Americano

pediu vista dos autos do acidente de trabalho por natildeo concordar com a indenizaccedilatildeo

arbitrada de 1080$000 Da anaacutelise do processo observa-se que a indenizaccedilatildeo arbitrada

foi efetivada pois em setembro de 1930 o cunhado da ldquomenorrdquo solicitou o

levantamento dos juros da quantia de 1080$000 que Maria da Gloacuteria tinha ldquoem

deposito da Caixa Economicardquo desde setembro de 1927 fruto da indenizaccedilatildeo que

508

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Maria da

Gloacuteria Eduardo 18-08-1927 cx 005 proc 15 509

Idem 510

Art 17 Tratando-se de aprendizes entende-se que o seu salario diario natildeo eacute inferior ao menor salario

de um operario adulto que trabalhe em serviccedilo da mesma natureza em caso de incapacidade temporaria

poreacutem a diaria do aprendiz natildeo excederaacute aacute que ele effectivamente percebia na occasiatildeo do accidente

Decreto N 13498 de 12 de marccedilo de 1919 Disponiacutevel em

httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm

186

recebeu proveniente de um acidente no trabalho O dinheiro solicitado por Egydio

Augusto destinava-se agrave compra de vestuaacuterio Egydio Augusto tambeacutem solicitou em

setembro de 1930 a tutela de Maria da Gloacuteria Apoacutes o Juiz de Direito Andreacute Martins de

Andrade ouvir as declaraccedilotildees da ldquomenorrdquo a respeito de solicitaccedilatildeo de sua tutela por seu

cunhado deferiu o pedido

A ldquolucta pela existenciardquo de Maria da Gloacuteria Djanira Avelino Geraldina

Adolpho Hilda Augusto e tantas outras crianccedilas operaacuterias e aprendizes comeccedilou bem

cedo entre maacutequinas engrenagens apitos e chamineacutes A presenccedila desses pequenos

proletaacuterios nas faacutebricas e em outros estabelecimentos eacute prova da pobreza de uma imensa

maioria da populaccedilatildeo que estava alijada do progresso e da modernidade Em sua ldquolucta

pela existenciardquo essa parcela da populaccedilatildeo ficou longe dos bancos escolares ou recebeu

uma educaccedilatildeo precaacuteria que lhe permitiu quando muito assinar o nome perpetuando

dessa forma a exclusatildeo e a submissatildeo da massa proletaacuteria As dificuldades de

sobrevivecircncia das classes trabalhadoras lhes impuseram a necessidade de empregar suas

mulheres e seus filhos Aleacutem disso a nova eacutetica do trabalho e os mecanismos de

controle social se impunham para as classes pobres pressionando-as a se sujeitarem agraves

precaacuterias condiccedilotildees de trabalho uma vez que natildeo exercer uma atividade laborativa

significava aos olhos da ldquosociedade disciplinarrdquo511

estar contra ou agrave margem dessa

sociedade

Dos 67 processos analisados 35 (5224)512

viacutetimas de acidente declaram que

sabiam ler e escrever 23 (3433) que natildeo sabiam ler nem escrever 7 (1045) que

sabiam assinar o nome e de 2 (298) natildeo haacute informaccedilotildees a esse respeito No processo

de Sebastiatildeo de Carvalho de 13 anos de idade aprendiz de carpinteiro na Companhia

de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Moraes Sarmento haacute a observaccedilatildeo de que ele sabia ldquoler e

escrever malrdquo513

Quantos outros jovens operaacuterios que declararam que sabiam ler e

escrever tambeacutem natildeo estavam nessa mesma condiccedilatildeo Somando o nuacutemero dos

analfabetos com o dos que sabiam assinar apenas o nome o iacutendice dos operaacuterios sem

instruccedilatildeo eleva-se para 4478

511

Cf FOUCAULT Michel Vigiar e Punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis Vozes 2007 512

O operaacuterio Faacutebio SantrsquoAnna que declarou que sabia ler e escrever aparece duas vezes nos processos

de acidentes no trabalho ou seja em 25-04-1928 e 06-03-1929 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci

Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Fabio SantrsquoAnna 25-04-1928 cx 007proc 23

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Fabio

SantrsquoAnna 06-03-1929 cx 107 513

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Sebastiatildeo

de Carvalho 13-11-1919 cx001proc 2

187

A educaccedilatildeo era concebida por setores da classe dominante como um meio de o

Brasil atingir a civilizaccedilatildeo a modernidade e o progresso Entretanto apesar de

reconhecerem a importacircncia da educaccedilatildeo para o desenvolvimento da naccedilatildeo essa

questatildeo natildeo constituiu em uma prioridade para os homens que comandaram o processo

de implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do regime republicano no paiacutes sobretudo com relaccedilatildeo a

que seria destinada agraves crianccedilas pobres A preocupaccedilatildeo era constituir as massas em matildeo

de obra para nascente induacutestria Por isso os debates sobre disciplina e controle das

massas e a questatildeo da defesa nacional tiveram mais peso nas discussotildees e decisotildees dos

homens puacuteblicos do que a da obrigatoriedade do ensino baacutesico514

A educaccedilatildeo das crianccedilas pobres tambeacutem foi uma problemaacutetica que perpassou as

naccedilotildees europeias durante o processo de industrializaccedilatildeo Segundo George Rusche e Otto

Kirchheimer para muitos teoacutericos europeus a ldquoboa educaccedilatildeordquo significava preparar a

crianccedila pobre para o mercado de trabalho nas induacutestrias sendo essa praacutetica considerada

ldquoo melhor caminho para mantecirc-las longe do mal ao mesmo tempo em que as ensinava

ajudar os pais financeiramenterdquo515

Nos perioacutedicos do municiacutepio de Juiz de Fora foram publicadas vaacuterias mateacuterias

sobre a importacircncia da educaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma sociedade civilizada e

moderna A educaccedilatildeo especialmente a profissional era considerada de suma

importacircncia para a formaccedilatildeo da classe trabalhadora Com o fim do trabalho escravo

vaacuterias vozes se levantaram mesmo antes da aboliccedilatildeo para explanar sobre a necessidade

de se instruir os libertos para que os mesmos pudessem ingressar na sociedade

civilizada bem como as classes subalternas Outra questatildeo presente nos artigos

jornaliacutesticos eacute a da abertura de cursos noturnos para o atendimento dos operaacuterios Uma

mateacuteria do jornal O Pharol de 27 de maio de 1888 ressaltava a necessidade da criaccedilatildeo

de cursos noturnos

[] a creaccedilatildeo de cursos nocturnos onde abundam as fabricas e as oficinas

parece-nos um acto de perigosa necessidade E digna da civilizaccedilatildeo desta

cidade e fecundiacutessima em resultados beneacuteficos seraacute a fundaccedilatildeo de um Lyceu

de Artes e Officios []516

No Diaacuterio Mercantil de 23 de dezembro de 1926 na mateacuteria intitulada

ldquoInstrucccedilatildeo Publicardquo foi comunicada a criaccedilatildeo pelo Decreto no 7432 do ldquogrupo escolar

514

A esse respeito ver NEDER Gizlene ldquoAssistecircncia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gisele de Op

cit 2010 p 100 515

RUSCHE Georg KIRCHHEIMER Otto Op cit 2004 p 56-57 516

SM-BMMM ldquoLyceu de Artes e Officiosrdquo O Pharol 27 maio 1888 p 1

188

nocturno na cidade de Juiz de Focircra com a denominaccedilatildeo de Estevam de Oliveirardquo A

reportagem ainda informava que na cidade jaacute funcionavam algumas classes

[] em curso nocturno sete classes anexas aos grupos escolares Joseacute Rangel

e Delfim Moreira considerando que nessas classes destinadas principalmente

a filhos de operaacuterios estatildeo matriculados 410 crianccedilas excedendo de 500 os

pedidos de matricula []517

A preocupaccedilatildeo com a instruccedilatildeo das classes subalternas foi uma constante nos

perioacutedicos ao longo de toda a Primeira Repuacuteblica Era necessaacuterio preparar as ldquoflores de

uma geraccedilatildeo futurardquo518

e dentro desse pensamento a escola se afigurava para vaacuterios

setores das classes dominantes como um espaccedilo privilegiado na transmissatildeo de valores

morais e disciplinares natildeo apenas para as crianccedilas como tambeacutem para os seus

familiares Em outras palavras o poder disciplinador e moralizador da escola

extrapolava os seus muros Segundo Michel Foucault ldquoa escola tende a construir

minuacutesculos observatoacuterios sociais para penetrar ateacute nos adultos e exercer sobre eles um

controle regularrdquo519

Dessa maneira era preciso preparar os filhos dos operaacuterios para

substituiacuterem seus pais nas faacutebricas ou como nos dizeres da reportagem assegurar ldquoem

cada crianccedila de hoje um homem uacutetil aacute sociedade de amanhardquo520

O projeto de lei apresentado pelo vereador Pinto de Moura agrave Cacircmara Municipal

de Juiz de Fora em 1912 versando sobre a regulamentaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho dos

ldquomenoresrdquo nas faacutebricas foi saudado como algo de suma importacircncia para a sociedade

O artigo do Jornal do Commercio louvando o projeto que previa limitar o horaacuterio de

trabalho dos ldquooperariosinhosrdquo ressaltava a necessidade de se ldquofacilitar a essas crianccedilas a

frequecircncia de escolas nocturnas por duas horas ao menos Para isso a cacircmara crearia

escolas nos bairros mais habitados por operaacuteriosrdquo521

A mateacuteria continuou assinalando

que

517

AHCJF ldquoInstrucccedilatildeo publica ndash Grupo escolar lsquoEstevam de Oliveirarsquordquo Diaacuterio Mercantil 23 dez 1926

p 1 518

SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 02 ago 1912 p 1 519

FOUCAULT Michel Op cit 2007 p 174 520

SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1 No primeiro capiacutetulo da tese examinei

o projeto de Lei do vereador Francisco Augusto Pinto de Moura relativo agrave proibiccedilatildeo do trabalho de

crianccedilas ateacute a idade de 14 anos apoacutes as 17 horas O projeto foi apresentado dentro de uma conjuntura de

greve de alguns setores do operariado da cidade Para mais informaccedilotildees sobre a greve de 1912 em Juiz de

Fora ver o trabalho de ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 521

Idem

189

[] esses meninos trabalham nas fabricas para auxiliarem os pais teremos o

direito de privar estes do auxilio dos filhos sem alguma compensaccedilatildeo Certo

que natildeo

Assim pois si impedirmos que as pobres creanccedilas se cansem no trabalho por

todo o dia alguma medida complementar deve ser tomada e essa creio seraacute

facilitar-se-lhes a escola Prohibindo que o pequeno operaacuterio trabalhe ndash para

ajudar os pais mais do que lhe permittam as forccedilas o poder publico vai

adeante do pai na obrigaccedilatildeo que tem este de zelar pela sauacutede do filho Ao

poder publico portanto compete proporcionar ao lado desse zelo alguma

compensaccedilatildeo que o justifique Deve elle auxiliar o operaacuterio na educaccedilatildeo de

seus filhos522

A educaccedilatildeo segundo a reportagem era uma compensaccedilatildeo que o poder puacuteblico

deveria oferecer ao filho do trabalhador uma vez que a precaacuteria condiccedilatildeo social e

econocircmica do operaacuterio lhe impunha a necessidade de empregar seus filhos nas faacutebricas

A demonstraccedilatildeo de que a educaccedilatildeo que deveria ser oferecida a essas crianccedilas seria para

preparaacute-las para ocuparem os cargos inferiores encontra-se no final da mateacuteria quando

foi destacado que era de se esperar que o ldquohumanitaacuterio vereador se preocupe sempre

com outras medidas em favor da infancia dos futuros artiacutefices inspirando-se nas

praticas generosas de verdadeiro catholicordquo523

(grifos meus) O humanitarismo e o

espiacuterito cristatildeo-catoacutelico das classes dominantes entretanto natildeo se preocupava em

eliminar a miseacuteria das classes trabalhadoras e ou erradicar o trabalho infantil O projeto

apresentado agrave Cacircmara de Vereadores de Juiz de Fora sobre a carga horaacuteria dos

ldquooperariosinhosrdquo natildeo versava sobre a educaccedilatildeo A reportagem do Jornal do Commercio

sugeriu que futuramente fossem elaborados projetos sobre a educaccedilatildeo dos operaacuterios

Todavia era a proposta de uma educaccedilatildeo elementar destinada agrave formaccedilatildeo de futuros

operaacuteriosartiacutefices e natildeo para a sua elevaccedilatildeo e de seus filhos mas para a manutenccedilatildeo do

status quo

Aproveitando a ldquobrechardquo aberta pela reportagem sobre as ldquopraticas generosas de

verdadeiro catholicordquo do vereador Dr Pinto de Moura destaco o papel da Igreja

Catoacutelica na discussatildeo do trabalho na sociedade urbana e industrial Segundo Jessie Jane

V de Sousa o catolicismo social incorporou-se ao mundo do trabalho a partir da

publicaccedilatildeo pelo Papa Leatildeo XIII da Enciacuteclica Rerum Novarum (1891) Os preceitos

dessa Enciacuteclica foram incorporados paulatinamente na sociedade brasileira Para a

autora a ldquoRerum Novarum foi o primeiro lsquoalerta profeacuteticorsquo da Igreja quanto agrave

deterioraccedilatildeo das condiccedilotildees de vida dos trabalhadores submetidos agraves relaccedilotildees de trabalho

522

Ibidem 523

Ibidem

190

capitalistasrdquo524

Entretanto foi somente nos anos 1920 que a alta hierarquia da Igreja

Catoacutelica passou a colocar em accedilatildeo o ldquoalertardquo dado pelo papa Leatildeo XIII no final do

seacuteculo XIX525

Jefferson de Almeida Pinto ressaltou que apesar da Enciclica Rerum

Novarum dedicar-se agrave discussatildeo da questatildeo social apresentava um ldquocaraacuteter estritamente

conservadorrdquo526

O documento papal de 1891 explanou sobre as obrigaccedilotildees e deveres de patrotildees e

empregados bem como da necessidade de se evitar os conflitos entre as classes para

que a paz e a ordem reinassem na sociedade O Papa Leatildeo XIII teceu uma contundente

criacutetica agraves ideias socialistas e uma profiacutecua defesa da propriedade privada da famiacutelia do

trabalho da ldquoconcoacuterdiardquo entre as classes O trabalho infantil tambeacutem foi contemplado

pela Rerum Novarum que ressaltava que natildeo se deveria exigir da crianccedila e da mulher o

mesmo trabalho que era requerido de um homem adulto e no vigor de sua forccedila

Especificamente sobre o trabalho infantil eacute enfatizado que a crianccedila natildeo deveria ldquoentrar

na oficina senatildeo quando a sua idade tenha suficientemente desenvolvido nela as forccedilas

fiacutesicas intelectuais e moraisrdquo527

Entretanto o exame dos processos de acidentes no trabalho de Juiz de Fora

sugere que os patrotildees natildeo estavam preocupados com o pleno desenvolvimento das

forccedilas fiacutesicas intelectuais e morais de seus pequenos operaacuterios uma vez que muitas

crianccedilas com menos de 14 anos foram admitidas nas faacutebricas para executarem

atividades em maacutequinas provavelmente para as quais natildeo tinham tamanho e ou forccedila

fiacutesica Acrescente-se a esse quadro o fato de muitos ldquomenoresrdquo natildeo estarem

intelectualmente preparados pois muitos declararam nos processos de acidente que natildeo

sabiam ler e nem escrever ou que apenas assinavam o nome

O fato de muitos ldquomenoresrdquo natildeo estarem no pleno desenvolvimento das forccedilas

fiacutesicas e natildeo terem idade e maturidade suficiente para executarem determinadas

atividades redundou em muitos graves acidentes sendo alguns fatais Dos 67

ldquooperariosinhosrdquo dos processos de acidentes no trabalho 53 (7910) sofreram

ferimentos queimaduras ou amputaccedilotildees nos membros superiores (dedos matildeos e

braccedilos) e 7 (1045) nos membros inferiores (peacutes e pernas) Em 5 (747) processos

524

SOUSA Jessie Jane Vieira de Os ciacuterculos operaacuterios e a intervenccedilatildeo da Igreja catoacutelica no mundo do

trabalho no Brasil uma discussatildeo historiograacutefica p 4 Disponiacutevel em

httpwwwppghisifcsufrjbrmediajessie_jane_circulospdf Acessado em 17-01-2014 525

Idem p 5 526

PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 p 98 527

LEAtildeO XIII Papa Enciacuteclica Rerum Novarum - sobre as condiccedilotildees dos operaacuterios Roma 15 de maio de

1891 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherleo_xiiiencyclicalsdocumentshf_l-

xiii_enc_15051891_rerum-novarum_pohtml Acessado em 19-11- 2013

191

os jovens cada um correspondendo a um tipo de lesatildeo feriram-se na colunaabdocircmen

na claviacutecula no olho na fronte e ferimentos pelo corpo 1 (149) foi viacutetima de asfixia

por afogamento e outro (149) de choque eleacutetrico Dos 67 ldquomenoresrdquo acidentados 4

(597) perderam suas vidas todos do sexo masculino Os primeiros socorros como

curativos prestados aos operaacuterios apoacutes os acidentes eram realizados nas farmaacutecias

locais e dependendo das lesotildees sofridas eram atendidos posteriormente por meacutedicos e

os casos mais graves eram levados para a Santa Casa de Misericoacuterdia528

O aprendiz

Germano Taddei da faacutebrica Estamparia Universal529

de propriedade de Lagrota amp

Companhia assim descreveu o acidente que sofreu e a assistecircncia prestada pelos

proprietaacuterios da mesma

PERGUNTADO o que aconteceu com elle hoje quando trabalhava nesta

Estamparia onde heacute empregado respondeo que hoje cerca de uma e meia

hora da tarde quando limpava a pequena machina (Laminoir) descuidando-se

em certo occasiatildeo colocou os dedos medio e annelar da matildeo direita sobre a

ingrennagem occasionando-lhe pequenos ferimentos nesses dois dedos que

logo que foi ferido os proprietaacuterios da fabrica seos patrotildees o mandaram aacute

pharmacia Barros que immediatamente fez o curativo necessario aos

ferimentos que recebeu que eacute empregado como aprendiz desta Estamparia

vencendo a diaria de um mil reis que seo pae jaacute eacute fallecido tendo porem sua

matildee Pret Taddei []530

Imagem 17 Propaganda da Estamparia Universal 1922 SM-

BMMM Revista Luz Composta e impressa nas officinas Graphicas

ldquoLuzrdquo Ano I n V Junho de 1922

528

Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 244-246 529

A ldquoEstamparia Universalrdquo tambeacutem aparece na documentaccedilatildeo com o nome de ldquoEstamparia Mineirardquo

As declaraccedilotildees no inqueacuterito policial foram dadas pelo soacutecio do estabelecimento Joatildeo Tardio AHCJF

Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Germano Taddei 17-

05-1919 cx 106 530 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Germano

Taddei 17-05-1919 cx 106

192

Doravante passo a anaacutelise dos processos que redundaram na morte dos

operaacuterios Inicio pelo acidente do ldquomenorrdquo Mario Roque de 15 anos de idade pardo

guia de bois na Fazenda Bomba de Fogo situada no distrito da cidade de propriedade

do coronel Alfredo Moreira de Resende Segundo o relato de Anselmo Joseacute dos Santos

lavrador o menino estava ldquotomando conta de uma carroccedila carregada com lixo cujo

vehiculo estava puxado por dois bois []rdquo531

poreacutem o ldquomenorrdquo subiu no

[] cabeccedilalho da carroccedila onde se entretinha a chupar limas que em dado

momento os bocircis espantaram arrastando a carroccedila que foi de encontro a uma

raiz grossa que tem ao lado do caminho provocando com o baque a queda da

victima que se achava como jaacute disse sobre o cabeccedilalho em frente a roda do

vehiculo que foi de encontro ao seu corpo atravessando sobre o peito e perna

esquerda da victima que a morte da victima se deu immediatamente natildeo

sendo por isso possivel dar-lhe qualquer socorro[]532

Os depoimentos das demais testemunhas satildeo semelhantes aos do representante

da fazenda Anselmo Joseacute dos Santos De acordo com as testemunhas o menino era

oacuterfatildeo de pai e vivia na fazenda desde a idade de quatro anos em companhia de seu

padrinho Pedro Ivo funcionaacuterio da mesma propriedade rural pois havia sido

abandonado pela matildee Mario Roque natildeo sabia ler e nem escrever e recebia pela funccedilatildeo

de guia de bois a quantia de oitocentos reis diaacuterios Em consequecircncia do acidente o

ldquomenorrdquo teve ldquofractura da colunna vertebral na regiatildeo dorsal e contusatildeo do abdomem

sendo produzida a morte por choque traumaacuteticordquo533

O responsaacutevel por Mario Roque

natildeo teve direito agrave indenizaccedilatildeo pelo acidente sofrido e que ocasionou a morte do

ldquomenorrdquo uma vez que a Lei de Acidentes no Trabalho natildeo contemplava o trabalhador

rural que natildeo utilizava motores inanimados O processo foi remetido ao Promotor

Puacuteblico Dr Nisio Baptista de Oliveira para dar ldquoVistardquo e que assim justificou o fato da

natildeo indenizaccedilatildeo

[] Natildeo cabe entretanto aos seus herdeiros nenhuma indennizaccedilatildeo porque o

serviccedilo em que trabalhava natildeo foi contemplado na Lei do [risco] profissional

nordm 3724 de 14 de janeiro de 1919 E assim que pelo seu art 3 os operarios

rurais soacute tem direito aacute indennisaccedilatildeo por accidente quando ao serviccedilo de

trabalhos agricolas em que se empreguem motores inanimados

O texto legal eacute bastante claro para se oppor qualquer duvida e o jurista

Andrade Bezerra commentando-o chega a [] conclusatildeo seguinte Escapam

531

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Mario

Roque 12-11-1919 cx 001proc 1 532

Idem 533

Ibidem

193

assim os innumeros casos de accidente na agricultura causados pelo uso de

instrumentos manejados pelo operario ou accionados por forccedila animal

Natildeo fosse a exclusatildeo legal e o patratildeo teria de pagar a indennisaccedilatildeo de

720$000 isto eacute 900 vezes o salario diario da vitima que era de $800 (grifos

no original)534

O processo foi entatildeo arquivado Como foi salientado por Gizlene Neder a lei de

Acidentes no Trabalho ldquoteve a preocupaccedilatildeo lsquomecacircnicarsquo do acidente a ponto de no

trabalho rural proteger o trabalhador que empregue motores inanimados e deixar sem

compensaccedilatildeo os que forem viacutetimas de outros acidentesrdquo535

A partir desse exemplo

histoacuterico concreto destaco as limitaccedilotildees das leis de proteccedilatildeo social especialmente com

relaccedilatildeo ao trabalhador rural e domeacutestico que ao longo do seacuteculo XX foram preteridos

pelo direito social brasileiro

Outro ldquomenorrdquo que teve a sua vida ceifada no exerciacutecio de sua atividade

profissional foi Americo Baresi de 19 anos de idade empregado na Companhia de

Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira durante dez anos ou seja ele comeccedilou a

trabalhar aos 9 anos de idade assim passou toda a sua adolescecircncia no serviccedilo da dita

faacutebrica e estava no momento do acidente como aprendiz de mecacircnico Ele foi viacutetima de

um choque eleacutetrico em fevereiro de 1922 quando conduzia uma barra de ferro que

tocou os fios que conduziam a energia para a dita Companhia De acordo com os

relatos o ldquomenorrdquo foi ldquofulminado pela corrente que possuiacutea seis mil voltsrdquo Segundo o

depoimento de Sebastiatildeo Elias operaacuterio com 20 anos de idade eles trabalhavam ldquona

remoccedilatildeo de umas barras de ferro que se achavam na carpintaria quando ao levantar

uma das barras a victima tocou na corrente electrica que passa pelos fios mais ou menos

baixo no lugar resultando ser fulminado pela corrente []536

As provaacuteveis condiccedilotildees

precaacuterias das instalaccedilotildees da faacutebrica foi o fator que ocasionou a morte de Americo

Baresi Como jaacute salientei nesta pesquisa as gambiarras os improvisos a falta de

espaccedilos e o excesso de trabalho foram preacute-condiccedilotildees para a ocorrecircncia de vaacuterios

acidentes envolvendo os trabalhadores Da leitura das fontes o que se depreende eacute que o

interesse da classe empresarial era manter um ritmo elevado da produccedilatildeo auferindo o

maacuteximo de lucro por meio da exploraccedilatildeo da matildeo de obra sem se preocupar com a

questatildeo da seguranccedila no ambiente de trabalho No caso de Juiz de Fora a presenccedila de

534

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Mario

Roque 12-11-1919 cx 001proc 1 Vista ao processo - Promotor Puacuteblico Nisio Baptista de Oliveira em

30-07-1919 535

NEDER Gizlene Op cit 1995 p 83 536

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Americo

Baresi 23-02-1922 cx 002proc 3

194

um contingente expressivo de matildeo de obra agrave disposiccedilatildeo do setor industrial

provavelmente foi mais um fator que favoreceu a despreocupaccedilatildeo patronal com a sauacutede

e a integridade fiacutesica de seus operaacuterios

A Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira em 1924 foi palco de

mais um acidente com morte de um operaacuterio Jacob Stephan de 17 anos de idade

acidentou-se gravemente quando trabalhava em uma pedreira pertencente agrave dita faacutebrica

Segundo as testemunhas do processo o ldquomenorrdquo encontrava-se sobre um enorme bloco

de pedra que havia sido dinamitado dias antes e que estava ldquoem falsordquo O bloco de

pedra rolou e levou junto o operaacuterio que teve o braccedilo esquerdo decepado em seu terccedilo

meacutedio fratura exposta da perna esquerda ferimentos incisos na cabeccedila (regiatildeo

occipital) na perna direita no antebraccedilo direito e escoriaccedilotildees pelo corpo O acidente

ocorreu no dia 17 de julho de 1924 vindo o trabalhador a falecer de septicemia em

consequecircncia dos ferimentos no dia 31 do mesmo mecircs

No setor da construccedilatildeo tambeacutem foram registrados acidentes fatais envolvendo

jovens operaacuterios Joseacute Finocchio Filho de 15 anos de idade filho de Joseacute Finocchio

italiano e de D Maria Candida Finocchio portuguesa estava a serviccedilo de uma obra da

Inspectoria de Estradas de Rodagem do estado de Minas Gerais (Secretaria da

Agricultura Induacutestria Terras Viaccedilatildeo e Obras Puacuteblicas ndash Directoria de Viaccedilatildeo e Obras

Publicas ndash 4a Residencia de Estradas de Rodagem) sob a administraccedilatildeo do engenheiro

chefe da 4a Residecircncia de Estradas de Rodagem Dr Joseacute da Rocha Lagocirca no ano de

1929 quando se acidentou O ldquomenorrdquo trabalhava na construccedilatildeo da ponte de cimento

armado Carlos Otto quando caiu no rio Paraibuna o que resultou em sua morte por

asfixia por submersatildeo Segundo informaccedilotildees do documento o ldquomenorrdquo trabalhava em

ldquomeacutedia dez horas por diardquo537

A anaacutelise desses processos demonstra as condiccedilotildees precaacuterias e a falta de

seguranccedila a que os operaacuterios estavam expostos em funccedilatildeo da postura do empresariado

de procurar maximizar seus lucros em detrimento das condiccedilotildees de trabalho do

proletariado538

Com relaccedilatildeo agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo esta soacute ocorreu

537

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Joseacute

Finocchio Filho 04-12-1929 cx 107 Segundo Luiacutes Eduardo de Oliveira a construccedilatildeo civil

(demoliccedilotildees construccedilotildees escavaccedilotildees de terrenos etc) ao que parece era o setor da economia local que

apresentava um iacutendice mais elevado de acidentes de operaacuterios entre o periacuteodo de 1890 a 1910 Cf

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 243 nota 278 538

As condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees fabris e de trabalho dos operaacuterios podem ser observadas em O

Lynce de 25 de outubro de 1919 em que foi assinalado o fato dos operaacuterios das faacutebricas almoccedilarem ldquoem

plena rua e debaixo as vezes de uma fina garoacirc []rdquo o que favorecia para a comida ficar com aspecto de

ldquolavagemrdquo Nessa nota de O Lynce que se referia a outra publicada em julho do mesmo ano o perioacutedico

195

em 1927 com a decretaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores Por essa razatildeo os jovens operaacuterios

ficaram expostos em praticamente todo o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica a diversos

tipos de condiccedilotildees degradantes e de riscos a sua integridade fiacutesica nos estabelecimentos

que utilizavam a sua forccedila de trabalho

Dos quatro operaacuterios que morreram durante o trabalho apenas Joseacute Finocchio

estava respaldado pela lei de proteccedilatildeo ao trabalhador infanto-juvenil uma vez que seu

acidente ocorreu apoacutes a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de 1927 Entretanto as determinaccedilotildees

do Coacutedigo foram desrespeitadas uma vez que em seu art 108 estabelecia que

Art 108 O trabalho dos menores aprendizes ou operarios abaixo de 18 anos

tanto nos estabelecimentos mencionados no art 103 como nos natildeo

mencionados natildeo poacutede exceder de seis horas por dia interrompidas por um

ou varios repouso cuja duraccedilatildeo natildeo poacutede ser inferior a uma hora539

Poreacutem no comunicado feito ao Delegado de Poliacutecia sobre o acidente sofrido por

Joseacute Finocchio Filho e no ldquoAuto de Accidente no Trabalhordquo o representante do

engenheiro responsaacutevel pelas obras Joseacute Teixeira informou que o ldquomenorrdquo trabalhava

ldquodiariamente dez horasrdquo e recebia ldquoum mil reis (1$000) a horardquo sendo portanto o seu

ldquoordenado de dez mil reis (10$000) por diardquo540

A carga horaacuteria de trabalho do jovem

operaacuterio que era funcionaacuterio de uma obra do Estado de Minas Gerais estava em

desacordo com a determinaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores que estipulava seis horas diaacuterias

de atividade laborativa para os menores de 18 anos

Outro exemplo de descumprimento do Coacutedigo de Menores pelo governo mineiro

pode ser observado no processo de acidente do menino Albertino de Oliveira de 12

anos de idade que declarou que natildeo ldquosabia ldquoler e nem escreverrdquo O ldquomenorrdquo foi

ldquoapanhado por bloco de terra de uma barreira que estava sendo cortadardquo e esse acidente

resultou na fratura de diversas partes de sua perna direita O acidente ocorreu quando

ele trabalhava no serviccedilo de ldquoreconstrucccedilatildeo da estrada de rodagem lsquoUniatildeo Induacutestriarsquo no

fim da rua Osorio de Almeidardquo uma obra estadual que estava sob a supervisatildeo do

destacou que Jornal do Commercio tambeacutem estava apelando para ldquoos proprietaacuterios das fabricas para que

estes faccedilam cobertas para abrigar tatildeo desprotegidos auxiliares do progressordquo O Lynce 25 out 1919 p 2 539

Coacutedigo de Menores Capiacutetulo IX ndash Do trabalho dos Menores art 108 O art 103 estabelecia que ldquoOs

menores natildeo podem ser admittidos nas usinas manufacturas estaleiros minas ou qualquer trabalho

subterraneo pedreiras officinas e suas dependencias de qualquer natureza que sejam publicas ou

privadas ainda quando esses estabelecimentos tenham caracter profissional ou de beneficencia antes da

idade de 11 annosrdquo Coacutedigo de Menores - Consolida as leis de assistecircncia e proteccedilatildeo a menores Decreto

nordm 17943-a de 12 de outubro de 1927 Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto1910-

1929d17943ahtm 540

AHCJF Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Joseacute Finocchio Filho 04-12-1929 cx

107

196

engenheiro Dr Joseacute da Rocha Lagocirca541

A viacutetima segundo informaccedilotildees do processo

trabalhava havia mais de um ano no serviccedilo para o Estado de Minas ou seja por volta

dos 10-11 anos de idade contrariando o art 101 que estipulava que ldquoeacute prohibido em

todo o territoacuterio da Republica o trabalho nos menores de 12 annosrdquo Natildeo teria o

engenheiro responsaacutevel pela obra Dr Joseacute Rocha Lagocirca conhecimento de que era

proibido por lei o emprego de crianccedilas menores de 12 anos O Coacutedigo de Menores

(1927) estabelecia as condiccedilotildees em que uma crianccedila poderia ser admitida em uma

atividade profissional a partir dos 12 anos de idade Segundo o capiacutetulo IX art 103 sect 3

ldquotodavia os menores providos de certificados de estudos primaacuterios pelo menos do

curso elementar podem ser empregados a partir da idade de 12 annosrdquo542

Entretanto

Albertino de Oliveira segundo informaccedilotildees do processo trabalhava havia mais de um

ano para os serviccedilos do Estado de Minas Gerais natildeo sabia ldquoler e nem escreverrdquo outro

flagrante desrespeito ao Coacutedigo de Menores

Por esses exemplos concretos de natildeo cumprimento da lei e principalmente por

se tratarem de obras puacuteblicas pode-se concluir que o setor privado tenha mantido o

mesmo comportamento de burlar a lei

Pondero que natildeo apenas o Coacutedigo de Menores tenha sido descumprido em

algumas determinaccedilotildees pelo empresariado de Juiz de Fora mas tambeacutem a Lei de

Acidentes no trabalho de 1919 Do ano de 1919 ateacute 1930 foram preservados 67

processos de acidentes em que o trabalhador infanto-juvenil se envolveu A par dessa

informaccedilatildeo faccedilo a seguinte indagaccedilatildeo quantos acidentes natildeo foram comunicados ao

longo desse periacuteodo Levanto tal questionamento baseando-me nas informaccedilotildees

coligidas nos processos acerca das condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees industriais e de

trabalho desses ldquomenoresrdquo como a falta de espaccedilos os fios eleacutetricos baixos e as longas

jornadas de trabalho e que provavelmente redundaram em um nuacutemero maior de

acidentes Outro dado que me leva a suspeitar da possibilidade de um nuacutemero maior de

acidentes nesse periacuteodo eacute o fato de que em alguns documentos pesquisados o

comunicado do acidente foi feito pelo proacuteprio operaacuterio ou por seu representante legal

pelo motivo de o empregador natildeo ter comunicado agraves autoridades competentes o

541

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Albertino de

Oliveira 30-11-1929 cx 107 542

Coacutedigo de Menores - Consolida as leis de assistecircncia e proteccedilatildeo a menores Decreto no 17943-a de 12

de outubro de 1927 Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto1910-

1929d17943ahtm

197

ocorrido em seu estabelecimento543

As ldquozonas opacasrdquo dos textos dos processos ou

seja os seus ldquofiosrdquo e ldquorastrosrdquo possibilitaram que tais questotildees fossem tecidas Segundo

Carlo Ginzburg todo texto eacute constituiacutedo de ldquozonas opacasrdquo e que perscrutando essas

partes ldquovozes incontrolaacuteveisrdquo podem emergir mesmo ldquocontra as intenccedilotildeesrdquo de quem

produziu a fonte544

No caso da documentaccedilatildeo em tela provavelmente os advogados

juiacutezes promotores gerentes patrotildees e outros atores natildeo pretendiam revelar esses

aspectos da industrializaccedilatildeo e da relaccedilatildeo empregado-patratildeo da ldquoManchester Mineirardquo

O processo do ldquomenorrdquo Joseacute Pinto Bretatildes de 18 anos de idade operaacuterio do

Moinho Prosperidade de propriedade de Nerval do Nascimento situado agrave Rua Halfeld

ilustra a relaccedilatildeo da classe empresarial de Juiz de Fora com a legislaccedilatildeo operaacuteria O

Comunicado do acidente foi feito pelo proacuteprio operaacuterio uma vez que o ldquopatratildeordquo natildeo

havia tomado as providecircncias necessaacuterias No ldquoAuto de Perguntasrdquo o representante do

proprietaacuterio do Moinho Nicolino Retto justificou o fato de natildeo ter dado ldquosciencia a

policia por ignorar que era necessaacuteriordquo545

Quantos outros proprietaacuterios natildeo

comunicaram os acidentes de seus operaacuterios agraves autoridades por comodamente

ldquoignoraremrdquo ldquoque era necessaacuteriordquo E ainda pode-se indagar quantos operaacuterios por

desconhecerem seus direitos ou por causa dos vaacuterios tipos de cerceamento e ou de

coaccedilatildeo natildeo comunicaram o fato agraves autoridades Com relaccedilatildeo agrave questatildeo do

conhecimento de seus direitos pelos operaacuterios tem-se de ponderar tambeacutem sobre a

facilidade de acesso dos mesmos agrave Justiccedila e os receios que possivelmente muitos

nutriam e ainda nutrem em ldquolevar o patratildeo na Justiccedilardquo fato esse corriqueiro entre as

pessoas mais humildes

Dos acidentes que foram comunicados agraves autoridades a maioria eacute relativa aos

trabalhadores das induacutestrias tecircxteis e malharias de Juiz de Fora Do total de 67

processos 35 se referem aos citados setores As faacutebricas que mais compareceram na

543 No processo de Geralda Farini de 15 anos de idade aprendiz na faacutebrica de chinelos de Oscar

Rodrigues Pereira o comunicado agrave autoridade policial do acidente ocorrido no dia 31 de maio de 1930

foi realizado pela matildee da ldquomenorrdquo no dia 03 de junho de 1930 Cf AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash

Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Geralda Farini 09-06-1930 cx 107 Outro processo

em que o comunicado do acidente sofrido pelo operaacuterio natildeo foi realizado pelo patratildeo eacute o do ldquomenorrdquo

Pedro Jabour de 15 anos de idade e que havia pegado um ldquobiscaterdquo para substituir temporariamente um

funcionaacuterio doente na faacutebrica de balas (firma Alves Junior amp Cia) situada na Rua Marechal Deodoro O

acidente ocorrido em novembro de 1924 foi comunicado ao delegado de poliacutecia em marccedilo de 1925 pelo

proacuteprio Pedro Jabour Cf AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no

trabalho Pedro Jabour 08-04-1925 cx 003proc1 544

GINZBURG Carlo ldquoIntroduccedilatildeordquo In ________ O fio e os rastros verdadeiro falso fictiacutecio Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2007 p 11-12 545

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Joseacute Pinto

Bretatildes 04-06-1921 cx 001proc 9

198

documentaccedilatildeo foram a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira

conhecida pelo nome de ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo546

com 11 (1642) registros a Faacutebrica

de Tecidos de Malha Meurer Irmatildeos amp Companhia com 8 (1194) processos e a

Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas com 6 (895) casos

A anaacutelise dos processos de acidentes no trabalho demonstra uma presenccedila

significativa de trabalhadores de origem europeia no setor industrial de Juiz de Fora

Essa constataccedilatildeo pode ser feita atraveacutes dos sobrenomes das testemunhas e das viacutetimas

bem como da informaccedilatildeo da nacionalidade dos pais dos ldquomenoresrdquo em muitos

documentos Na fonte compulsada abundam sobrenomes como Peterman Baresi

Gerheim Winther Abramo Farini Stephan Finocchio Rizzo Limp Stehling Jabour

Taddei entre outros Entretanto a presenccedila dos descendentes dos ex-escravos tambeacutem

foi observada na composiccedilatildeo da forccedila de trabalho das induacutestrias e oficinas da

ldquoManchester Mineirardquo atraveacutes da declaraccedilatildeo da cor (preto mulato moreno e pardo)

A principal induacutestria tecircxtil de Juiz de Fora a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem

Industrial Mineira fornece uma imagem bem reveladora da presenccedila do trabalhador

imigrante na composiccedilatildeo do heterogecircneo operariado da ldquoManchester Mineirardquo Em

1897 o trabalhador imigrante e seus descendentes constituiacuteam-se no grosso do

operariado desse estabelecimento fabril correspondendo a 714 dos 241 operaacuterios A

constante chegada de imigrantes na Hospedaria de Imigrantes Horta Barbosa em Juiz

de Fora favoreceu a contrataccedilatildeo de trabalhadores estrangeiros pelas induacutestrias do setor

tecircxtil por modestos salaacuterios e entre eles estavam muitas mulheres e crianccedilas que

tinham ordenados inferiores aos que eram pagos aos homens Na deacutecada de 1890 a matildeo

de obra feminina e infanto-juvenil da ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo correspondia

respectivamente a 469 e 328 do total de 241 empregados547

Sobre a Faacutebrica dos Ingleses o militante e dirigente do Partido Comunista

Italiano (deacutecadas de 1920-1960) Domenico Marchioro (1888-1965) deixou um

546

Segundo Luiacutes Eduardo de Oliveira a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira fundada

na deacutecada de 1880 ficou popularmente conhecida pelo nome de ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo Ela era fruto de

um consoacutercio que tinha como principais promotores e acionistas os ingleses Andrew John e Peter Steele

Willian Moreth e Henry Whittaker ndash ldquocomerciantes e industriais estabelecidos na Corte e na vizinha

Petroacutepolisrdquo OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit 2010 p 124 547

Segundo os dados da pesquisa de Luiz Eduardo de Oliveira sobre a formaccedilatildeo da classe operaacuteria

juizforana os italianos correspondiam a 32 dos 241 trabalhadores da Industrial Mineira em 1897 os

germacircnicos e seus descendentes a 386 os brasileiros e lusos a 286 e os ingleses a 08 Na soma que

realizei dos dados sobre os trabalhadores da Industrial Mineira apresentados por Oliveira natildeo estatildeo

inclusos os portugueses e seus descendentes pois eles foram relacionados junto com os brasileiros pelo

autor A porcentagem de 714 de trabalhadores imigrantes corresponde apenas aos italianos alematildees e

britacircnicos Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 206-208

199

importante relato das condiccedilotildees do operariado de Juiz de Fora e das condiccedilotildees de

adaptaccedilatildeo e de sobrevivecircncia dos imigrantes548

Em 1896 Marchioro e sua famiacutelia (pai

matildee irmatildeos e uma tia) vieram para o Brasil Ao chegarem a Juiz de Fora ficaram como

os demais imigrantes no ldquoluacutegubre edifiacutecio destinado a hospedar os emigradosrdquo

(hospedaria de imigrantes Horta Barbosa) indo pouco tempo depois residir em uma

ldquocasinhardquo proacutexima da hospedaria Seu pai encontrou emprego em uma pequena faacutebrica

de cerveja mas apoacutes 15 dias de trabalho adoeceu o que fez com que Machioro e um

irmatildeo mais velho comeccedilassem a trabalhar nesse periacuteodo ele e o irmatildeo tinham pouco

mais de sete e nove anos de idade respectivamente Eles encontraram uma colocaccedilatildeo na

Faacutebrica dos Ingleses (Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira) e segundo

o relato

[] as condiccedilotildees de trabalho eram aquelas existentes na Inglaterra na

primeira metade do seacutec XIX descritas assim cruamente nos nefastos

relatoacuterios dos Inspetores de Faacutebrica do governo inglecircs daquele periacuteodo

horaacuterio de doze horas diaacuterias salaacuterios mensal miseraacutevel 13 liras italianas de

entatildeo e o chicote que tombava frequentemente sobre o tenro corpo dos

meninos tatildeo logo se distraiam sonolentos549

Entretanto Domenico Marchioro ressalta que as condiccedilotildees de trabalho na

induacutestria tecircxtil italiana natildeo diferiam muito das encontradas nos estabelecimentos fabris

brasileiros onde tambeacutem se empregavam crianccedilas de oito e dez anos com uma carga

horaacuteria de doze horas Segundo o autor as crianccedilas operaacuterias do Vecircneto (Itaacutelia)

cresciam ldquomiseraacuteveis e raquiacuteticosrdquo e com

[] os estigmas da inferioridade fiacutesica moral e intelectual sim tambeacutem e

sobretudo intelectual porque a uma notaacutevel porccedilatildeo deles era praticamente

tolhida a primeira instruccedilatildeo elementar sob esse edificante perfil tinham

muito pouco a invejar dos pequenos escravos do cotonifiacutecio inglecircs de

ldquoMariano Procoacutepiordquo550

548 MARCHIORO Domenico ldquoAutobiografia juvenil de um velho militante das lutas operaacuterias

Domenico Marchioro histoacuteria vivida sofrida e descrita por um proletaacuterio revolucionaacuterio corajoso do

final do seacuteculo XIX aos primeiros anos do seacuteculo XX na regiatildeo norte da proviacutencia de Vicenzardquo

Traduccedilatildeo Dr Antonio Folquito Verona Disponiacutevel em

httpwww2assisunespbrfolquitoautobiografia_marchiorohtm Acessado em 04-02-2015 Cf

OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit p 252-253 549

MARCHIORO Domenico Op cit 550

Idem

200

Todavia para Marchioro o que tornava a vida nas faacutebricas brasileiras do periacuteodo

distinta de outras realidades fabris ldquoera o regime quase escravista existente nas relaccedilotildees

de trabalhordquo551

A presenccedila expressiva da matildeo de obra infanto-juvenil nas unidades fabris de

Juiz de Fora tambeacutem pode ser apreendida atraveacutes das ldquofalasrdquo dos personagens dos

documentos judiciais No processo de acidente da jovem operaacuteria da secccedilatildeo de fiaccedilatildeo da

Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer Maria da Conceiccedilatildeo de 15 anos de idade parda

oacuterfatilde de pai e matildee e que natildeo sabia ler nem escrever eacute declarado pelo representante do

dito estabelecimento Antonio Celso Vieira que na seccedilatildeo que a ldquomenorrdquo se acidentou soacute

trabalhavam ldquomenoresrdquo e que o ldquomaacuteximo ordenado percebido pelos mesmos nessa

secccedilatildeo eacute de dois mil reis (2$000)rdquo A jovem recebia quase o salaacuterio maacuteximo pois o seu

ordenado era de 1$800 reis552

A formaccedilatildeo de uma secccedilatildeo composta apenas por trabalhadores ldquomenoresrdquo eacute um

indicativo do interesse que o empresariado tinha na contrataccedilatildeo dessa parcela do

proletariado como um meio de reduzir os custos da produccedilatildeo uma vez que recebiam

proventos inferiores ao do trabalhador adulto do sexo masculino553

Outro operaacuterio da faacutebrica Meurer da seccedilatildeo de fiaccedilatildeo que foi viacutetima de um

acidente no trabalho foi o ldquomenorrdquo Japyassuacute de Abreu554

de 10 anos de idade que

sabia ler e escrever Em junho de 1921 ele teve os dedos anular meacutedio e miacutenimo da

matildeo direita esmagados quando procedia agrave limpeza da maacutequina ldquofilatoriardquo e teve os

dedos apanhados pela engrenagem da mesma Uma das testemunhas disse que ao ouvir

gritos no salatildeo de fiaccedilatildeo correu e encontrou o menino ldquocahido debaixo da machinardquo O

curador agrave lide555

Dr Sadi Carnot de Miranda Lima indicado pelo Juiz para defender os

interesses do operaacuterio fez um retrato no texto em que deu ldquoVistardquo ao processo das

condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios de Juiz de Fora Na ldquoVistardquo ao processo o curador

Sadi Carnot argumentou que apesar da pouca idade e ldquoquiccedila pensando nos brinquedos

que cedo e cruelmente a miseria lhe arrebataacuterardquo o menor jaacute estava empregado em um

551

Idem 552

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho Maria da

Conceiccedilatildeo 24-01-1928 cx 006proc 15 553

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 262 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit

2010 p 171 e 254 554

O ldquomenorrdquo Japyassuacute de Abreu ora aparece como tendo nove anos de idade ora com dez anos ou doze

anos de idade AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho

Japyassuacute de Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8 555

Curador agrave lide - Pessoa especialmente nomeada pelo juiz da causa para defender os interesses ou o

direito do menor ou interdito no processo em que qualquer deles eacute parte Disponiacutevel em

httpwwwjusbrasilcombrtopicos408436curador-a-lide

201

estabelecimento fabril onde veio a se ferir Para o curador os acidentes envolvendo

crianccedilas e adolescentes nas faacutebricas e oficinas acenavam para a necessidade ldquode uma lei

federal que prohiba ou quando menos regule o trabalho dos menores de 14 annos nos

estabelecimentos industriais do paizrdquo556

Ele ainda asseverava o seguinte

[] Si possuissemos uma lei inspirada em taes principios possivelmente natildeo

teriamos de assignalar o desastre que motivou a presente acccedilatildeo porque outra

tarefa menos arriscada seria a do menor Japyassuacute

Eacute realmente desoladora a impressatildeo em que ficamos quando assistimos -

principalmente nesta culta cidade - o desfile dos operarios ao deixarem as

fabricas Pode-se affirmar que 40 destes satildeo crianccedilas menores de 12 annos

e muitas ainda com a blesidade infantil Notando-se consideravel numero de

meninas

Obrigados a desenvolver um esforccedilo emulo do operario adulto trabalhando

durante o mesmo espaccedilo de tempo que este - quando natildeo fazem seratildeo -

alimentando-se parca e irregularmente eacute contristador ver-se o aspecto doentio

que apresentam essas crianccedilas

Que cidadatildeos a inconsciencia dos nossos legisladores estaacute pregando para

servir a Patria damanhatilde

No interior do paiz nas povoaccedilotildees agriculas a anchilostomiase a molestia de

Chagas e a morpheacutea ceifam vidas numa voracidade espantosa quando natildeo

estiolam a energia dessas populaccedilotildees Nas cidades as fabricas alejam as

creanccedilas fenecem o vigor da mocidade e matam as esperanccedilas da velhice

E quando um brado da consciencia uma voz da humanidade parte da canalha

da rua dos paacuterias do brahmanismo brasileiro e echocirca no recinto do nosso

parlamento esmolando o desafogo do proletariado haacute sempre uma voz cujos

sons de metal azinhavrado tem a facilidade de convencer que no Brasil natildeo

haacute questatildeo social a resolver[] Sadi Carnot de Miranda Lima557

O curador Sadi Carnot em 1921 ressaltava a necessidade urgente que o paiacutes

tinha de regulamentar o trabalho dessa parcela da populaccedilatildeo Essa problemaacutetica esteve

presente nos perioacutedicos ao longo da Primeira Repuacuteblica e vaacuterios segmentos da

sociedade expuseram a premecircncia de leis de proteccedilatildeo do trabalhador infantil poreacutem

somente em fins da deacutecada de 1920 se deu a regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-

juvenil como discuti anteriormente neste capiacutetulo

Em sua argumentaccedilatildeo Sadi Carnot indagou ldquoque cidadatildeos a inconsciencia dos

nossos legisladores estaacute pregando para servir a Patria damanhatilderdquo Com essa indagaccedilatildeo

o curador sugeriu a meu ver a despreocupaccedilatildeo por parte de setores da classe dominante

com as condiccedilotildees de existecircncia dessa parcela da populaccedilatildeo bem como com a sua

inserccedilatildeo precoce no mercado de trabalho Os cidadatildeos que uma parcela de ldquonossos

legisladoresrdquo esperavam para servir a ldquoPatria drdquoamanhatilderdquo era o ordeiro o submisso o

556

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Japyassuacute de

Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8 557

Idem

202

trabalhador sujeito agraves mais precaacuterias condiccedilotildees e que a (in)consciecircncia dos mesmos

acreditava poder ser alcanccedilada atraveacutes de leis repressivas e natildeo sociais

O curador Sadi Carnot ainda chamou a atenccedilatildeo em seu parecer para a

descaracterizaccedilatildeo por parte dos setores dominantes da sociedade brasileira das

reivindicaccedilotildees operaacuterias ao declararem com ldquosons de metal azinhavradordquo que natildeo havia

ldquoquestatildeo social a resolverrdquo A respeito da negaccedilatildeo por setores da classe dominante

durante a Primeira Repuacuteblica da existecircncia da ldquoquestatildeo socialrdquo Gisaacutelio Cerqueira Filho

exorta que antes de 1930 ela natildeo se constituiacutea ainda ldquocomo questatildeo no pensamento

dominanterdquo figurando ldquosenatildeo como fato excepcional e episoacutedico natildeo porque natildeo

existisse jaacute mas porque natildeo tinha condiccedilotildees de se impor como questatildeo inscrita no

pensamento dominanterdquo natildeo sendo pois uma questatildeo ldquolegalrdquo na concepccedilatildeo de uma

parcela das classes dominantes a ldquoquestatildeo socialrdquo era entatildeo concebida e tratada como

ldquoum caso de poliacuteciardquo558

Retornando agrave argumentaccedilatildeo desenvolvida pelo curador Sadi Carnot no processo

de acidente no trabalho do ldquomenorrdquo Japyassuacute de Abreu sobre as condiccedilotildees do

operariado infanto-juvenil de Juiz de Fora pode-se observar a utilizaccedilatildeo por ele do

discurso construiacutedo pelos setores dominantes locais da cidade como culta moderna e

civilizada para entatildeo apresentar a cidade ldquosilenciadardquo que era ldquoinvisiacutevelrdquo aos olhos da

classe dominante559

Em sua descriccedilatildeo da ldquoManchester Mineirardquo o curador ressaltou

que ldquoo desfile dos operarios ao deixarem as fabricasrdquo era uma cena desoladora onde se

observava a presenccedila elevada de crianccedilas que apresentavam um ldquoaspecto doentiordquo

Ainda destacou a presenccedila ldquoconsideraacutevelrdquo de meninas naquele ldquodesfilerdquo560

A presenccedila feminina nas faacutebricas foi algo constantemente discutido pelos

jornais pelos meacutedicos higienistas pelo movimento operaacuterio e por outros segmentos da

sociedade Na passagem agrave modernidade a construccedilatildeo do tipo ideal de mulher ndash

educada boa esposa e matildee de famiacutelia ndash natildeo se adequava agrave realidade das mulheres dos

558

CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio A ldquoquestatildeo socialrdquo no Brasil critica do discurso poliacutetico Rio de

Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 p 59 Cf FRENCH John D ldquoProclamando direitos metendo o

pau e lutando pelos direitos a questatildeo social como caso de poliacutecia 1920-1964rdquo In LARA Silvia H e

MENDONCcedilA Joseli Maria N (org) Direitos e Justiccedilas no Brasil ensaios de Histoacuteria social

Campinas Editora da Unicamp 2006 p 379-416 559

Iacutetalo Calvino no romance ldquoAs Cidade Invisiacuteveisrdquo faz a descriccedilatildeo de inuacutemeras cidades fantaacutesticas

atraveacutes do personagem Marco Poacutelo Cada uma eacute descrita com suas extravagacircncias problemas e

curiosidades Entretanto elas natildeo satildeo reais Agrave semelhanccedila das cidades invisiacuteveis do romance as classes

dominantes de Juiz de Fora descreviam uma cidade moderna civilizada e proacutespera que era ldquoinvisiacutevelrdquo

para a maioria da populaccedilatildeo Cf CALVINO Iacutetalo As Cidades Invisiacuteveis Biblioteca Folha [snt] 560

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Japyassuacute de

Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8

203

setores empobrecidos que dadas as condiccedilotildees impostas pelas precaacuterias condiccedilotildees de

existecircncia tinham de recorrer ao mercado de trabalho nas faacutebricas nas casas das

famiacutelias abastadas e outras atividades inclusive em seus proacuteprios domiciacutelios como a

lavagem de roupas e as costuras por exemplo Todavia a forccedila de trabalho feminina

enfrentava uma dupla estigmatizaccedilatildeo a de trabalhar fora do lar e da desvalorizaccedilatildeo do

seu trabalho em termos salariais Aleacutem disso a mulher proletaacuteria precisa conviver com

a imposiccedilatildeo pela sociedade burguesa de severas normas morais e de conduta Segundo

Margareth Rago quanto mais as mulheres se afastavam ldquoda esfera privada da vida

domeacutesticardquo mais se viam cercadas por imposiccedilotildees morais e por cobranccedilas sociais para

com o lar o marido e os filhos561

A ideia da mulher como um ser talhado para ocupar o espaccedilo do lar como matildee

boa esposa e do casamento como um meio de garantia e realizaccedilatildeo para a mulher pode

ser percebido no processo da ldquomenorrdquo Augusta Gerheim

Augusta Gerheim de 17 anos de idade que trabalhava na Companhia de Fiaccedilatildeo

e Tecelagem Industrial Mineira declarou em maio de 1925 no processo de acidente no

trabalho em que figurava como viacutetima que natildeo sabia ler e nem escrever Ela acidentou-

se quando trabalhava na maacutequina de fiaccedilatildeo e teve a matildeo direita atingida resultando na

amputaccedilatildeo das falanges e falanginhas dos dedos polegar indicador e meacutedio562

O

promotor de justiccedila Nisio Baptista de Oliveira na ldquoVistardquo ao processo concluiu que a

indenizaccedilatildeo a ser paga pela Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira agrave

ldquomenorrdquo deveria ser de 40 sobre o salaacuterio de trecircs anos da operaacuteria que era de 2$600

(dois mil e seiscentos reacuteis) diaacuterios ou seja a indenizaccedilatildeo deveria ser de 936$000

(novecentos e trinta e seis mil reacuteis) Entretanto o curador agrave lide Dr Constantino Luiz

Paletta natildeo concordou com o parecer do promotor pois entendeu que a indenizaccedilatildeo

deveria ser de 60 sobre o salaacuterio de trecircs anos da ldquomenorrdquo O Juiz de Direito da

comarca de Juiz de Fora Augusto Cesar Pedreira Franco em seu parecer analisou os

graves prejuiacutezos que o acidente traria para o futuro da operaacuteria Em sua explanaccedilatildeo o

juiz destacou

561

RAGO Margareth Do cabareacute ao lar a utopia da cidade disciplinar Brasil 1890-1930 Rio de

Janeiro Paz e Terra 1985 p 62-63 562

De acordo com o atestado meacutedico assinado pelo Dr Renato de Andrade em maio de 1925 a operaacuteria

teve as seguintes lesotildees ldquoA) amputaccedilatildeo da phalangeta e 12 phalanginha do dedo medio da matildeo direita

b) amputaccedilatildeo da 12 da 2a phalange do pollegar c) amputaccedilatildeo da phalangeta do index com ferimentos

lateral externo de 2 cm que causou perda correspondente de tecido mollerdquo AHUFJF Foacuterum Benjamin

Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Augusta Gerheim 23-05-1925 cx

003proc 4

204

Considerando que a accidentada eacute uma moccedila de 17 annos nutrindo

naturalmente esperanccedilas de casar e no casamento encontrar o conforto que

natildeo tem como operaria

Considerando que essas esperanccedilas si natildeo ficaram apagadas estatildeo pelo

menos muito diminuidas por isso que com tal deformidade uma mulher

difficilmente encontraraacute marido563

Considerando que a ldquomenorrdquo tinha adquirido uma incapacidade parcial e

permanente para o trabalho por consequecircncia do acidente e que de acordo com o

entender do juiz poderia ateacute prejudicaacute-la a encontrar um marido o mesmo arbitrou a

indenizaccedilatildeo no valor maacuteximo estipulado pela Lei de Acidentes no Trabalho de 1919

ou seja de 60 sobre o valor do salaacuterio de trecircs anos da viacutetima em conformidade com o

parecer do curador agrave lide A senhora Elisa Gerheim matildee e representante legal da

ldquomenorrdquo recebeu a quantia de 1404$000 (um conto quatrocentos e quatro mil reacuteis)

referente agrave indenizaccedilatildeo pelo acidente sofrido pela sua filha

A anaacutelise cuidadosa do parecer do Juiz de Direito permite que se observe o tipo

de visatildeo que esse representante da justiccedila tinha sobre a mulher e o casamento A meu

ver uma visatildeo burguesa da instituiccedilatildeo familiar em que o homem era o provedor do lar

e a mulher a senhora do espaccedilo domeacutestico e dos cuidados com os filhos Para o Juiz o

acidente poderia prejudicar os sonhos da jovem Augusta Gerheim de se casar e de

encontrar nessa instituiccedilatildeo o ldquoconfortordquo que natildeo tinha enquanto operaacuteria Cabe ressaltar

poreacutem que muitas mulheres pobres precisavam contribuir financeiramente com o

sustento do lar e para isso recorriam agrave venda de sua forccedila de trabalho Provavelmente

muitas jovens das classes subalternas natildeo encontraram o ldquoconfortordquo no casamento que o

magistrado assinalou

As severas condiccedilotildees de trabalho a que as crianccedilas operaacuterias provavelmente

estavam expostas sem descanso e sem poderem brincar contribuiacuteram sobremaneira

para que fossem as ldquoprincipais viacutetimas de acidentes no trabalho e de doenccedilas

relacionadas ao trabalhordquo564

Aleacutem disso elas tambeacutem eram alvos dos castigos fiacutesicos

por parte de seus superiores toda vez que saiacuteam do padratildeo disciplinar imposto ao

trabalhador uma vez que

[] O emprego de castigos fiacutesicos como parte integrante do processo

educacional era aceito tanto na educaccedilatildeo formal como na profissional desde

que natildeo excedesse certos limites Nas escolas afora vaacuterias formas de

563

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Augusta

Gerheim 23-05-1925 cx 003proc 4 564

BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p 100

205

humilhaccedilatildeo dos alunos o uso de instrumentos de puniccedilatildeo como palmatoacuterias

eram de praxe 565

Os operaacuterios principalmente as meninas e as mulheres ainda sofriam outro tipo

de violecircncia ndash a sexual ndash que era praticada por patrotildees mestres e ou por companheiros

de trabalho566

Sobre a questatildeo do asseacutedio e dos abusos sexuais enfrentados pelas

operaacuterias Michelle Perrot assinalou que as jovens das faacutebricas tecircxteis francesas no

decorrer do seacuteculo XIX ldquodadas as relaccedilotildees de idade e de poder [] foram as viacutetimas

preferenciais dos abusos e das exigecircncias luacutebricasrdquo de seus chefes que exigiam com

frequecircncia o ldquodireito a primeira noiterdquo como forma de compensaccedilatildeo pela contrataccedilatildeo567

Essa situaccedilatildeo vivida pelas operaacuterias francesas muitas vezes contava com a

ldquocomplacecircncia das famiacutelias por muito tempo indiferentes agrave sua sujeiccedilatildeo sexualrdquo568

Esses abusos praticados contra as jovens trabalhadoras foi um dos grandes temas dos

jornais operaacuterios do Norte tecircxtil francecircs no final do oitocentos e o ldquodireito da primeira

noiterdquo foi uma questatildeo central da ldquogrande greve das operaacuterias de porcelana de Limoges

em 1905 feita contra o diretor amante de lsquocarne frescarsquordquo569

Em Juiz de Fora muitos casos de abusos contra as operaacuterias foram denunciados

mas eacute provaacutevel que muitos outros natildeo tenham sido levados ao conhecimento da justiccedila

por receio das jovens e ou familiares perderem o emprego por medo da opiniatildeo de

companheiros de trabalho e vizinhos entre outros fatores Poreacutem muitas trabalhadoras

denunciaram seus chefes e ou patrotildees por asseacutedio sexual e por terem sido violentadas

sexualmente pelos mesmos Carolina Neder ressalta que vaacuterias operaacuterias natildeo se

intimidaram com as ameaccedilas e com a humilhaccedilatildeo a que eram submetidas quando do

exame de corpo de delito para comprovar que haviam sido estupradas e denunciaram

os seus agressores Entretanto na maioria dos casos os processos se reverteram contra

as ofendidas que foram tidas como mulheres de moral duvidosa As mulheres

565

Idem apud PENTEADO Jacb Belegravenzinho 1910 (retrato de uma eacutepoca) 2 ed Satildeo Paulo Carrenho

EditorialNarrativa Um 2003 p 53 Na passagem agrave modernidade a praacutetica de castigos fiacutesicos nas

instituiccedilotildees escolares foram paulatinamente sendo abolidas por castigos morais No Brasil desde o iniacutecio

do seacuteculo XIX haacute o registro de leis que proibiam a utilizaccedilatildeo de castigos fiacutesicos nos alunos Entretanto

no decorrer das primeiras deacutecadas do seacuteculo XX tais praacuteticas ainda eram usuais nas escolas brasileiras

Cf ARAGAtildeO Milena FREITAS Anamaria Gonccedilalves Bueno de ldquoPraacuteticas des castigos escolares

enlaces histoacutericos entre normas e cotidianordquo In Conjecturas v 17 n 2 mai-ago 2012 p 17-36

Disponiacutevel em httpwwwucsbretcrevistasindexphpconjecturaarticleviewFile16481024 Acessado

em 01-06-2014 566

Cf NEDER Carolina Barbosa Op cit 2010 p 48 83-88 BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p

101-102 567

PERROT Michelle Op cit 1996 p 120 568

Idem p 120 569

Ibidem p 120-121

206

trabalhadoras eram visualizadas com desconfianccedila por setores das classes dominantes e

pelos membros do judiciaacuterio uma vez que natildeo se encaixavam no modelo burguecircs de

mulher ndash dedicada ao lar boa matildee e esposa e que natildeo saiam agraves ruas sozinhas570

Natildeo

apenas no acircmbito fabril ocorriam esses abusos As meninas que trabalhavam nas casas

das famiacutelias burguesas estavam expostas a todos os tipos de agressotildees e arbitrariedades

Pedro Nava em suas memoacuterias da meninice em Juiz de Fora ressalta que as meninas

que trabalhavam na casa de sua avoacute Inhaacute Luisa eram viacutetimas de asseacutedios Segundo

Nava seu tio Juacutelio aproveitava-se para ldquodeixar a matildeo-boba resvalar para os peitos de

bronze da ama-secardquo toda vez que ia brincar com a crianccedila que ela trazia ao colo571

Geralmente os casos de denuacutencia de abusos sexuais eram referentes a meninas e

mulheres Todavia Renata Lutiene Silva compulsando os processos criminais de rapto

e violecircncia carnal deparou-se com um caso de abuso sexual a um menino Em 1916

Joseacute Theodoro de treze anos de idade foi colocado por sua matildee dona Braudina para

trabalhar como auxiliar de carpinteiro de Francisco Gama casado de 78 anos de idade

para que aprendesse o ofiacutecio O ldquomenorrdquo morava e trabalhava na casa de seu patratildeo

onde se deu o abuso Dona Braudina denunciou o caso e as testemunhas arroladas

declararam que o reacuteu ldquotinha haacutebitos pederastas e que jaacute havia atentado contra Iliacutedio

outro menor que fora seu aprendizrdquo Poreacutem Francisco Gama foi inocentado e a

denuacutencia considerada improcedente dada a sua idade572

Os castigos fiacutesicos os abusos sexuais e psiacutequicos sofridos pelos pequenos

trabalhadores acrescidos de atividades muitas vezes superiores agraves suas forccedilas

interromperam e ainda interrompem a infacircncia de milhares de crianccedilas que bem cedo

aprenderam a enfrentar as adversidades da vida Como os filhos dos escravos durante o

periacuteodo escravista os pequenos proletaacuterios filhos de nacionais afro-brasileiros e de

imigrantes antes de completarem uma deacutecada de vida jaacute estavam familiarizados com a

labuta A literatura sobre o periacuteodo escravista tem destacado que a crianccedila escrava ao

570

NEDER Carolina Barbosa Op cit 2010 p 48 83-89 Em um dos casos de violecircncia sexual

analisados por Carolina Neder a operaacuteria da Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Morais Sarmento Maria

de Assis negra menor de idade acusou o mestre da dita companhia Carlos Keller alematildeo de 46 anos

de tecirc-la violentado sexualmente Inicialmente ele foi inocentado apesar de as testemunhas assinalarem

que a operaacuteria Maria de Assis era moccedila virgem e honesta O parecer da justiccedila soacute foi alterado por causa

de uma carta recebida pela poliacutecia em que a esposa de Carlos Keller declarava que ele ldquose utilizava de

sua autoridade para manter relaccedilotildees sexuais com operaacuterias com quem trabalhavardquo e que Keller jaacute havia

sido condenado pelo defloramento de uma operaacuteria em outra cidade de onde eles fugiram e vieram para

Juiz de Fora Idem p 85-86 Cf SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 p 134 -140 Cf RAGO

Margareth Do Cabareacute ao lar a utopia da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista ndash Brasil 1890-1930

4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 571

NAVA Pedro Op cit 1974 p 4-5 Cf SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 p 78-79 572 SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 p 79

207

atingir a idade de sete anos tida como a ldquoidade da razatildeordquo era considerada apta para o

trabalho e ou para o aprendizado de uma atividade profissional573

Acredito que essa

idade tambeacutem era aplicada para as crianccedilas das camadas subalternas da sociedade para a

sua inserccedilatildeo no mercado de trabalho Isso anteriormente agraves leis que foram promulgadas

ao longo da Primeira Repuacuteblica com o fito de regulamentar o trabalho infantil que

entretanto muitas vezes foram burladas como tive a oportunidade de constatar durante

a anaacutelise dos processos de acidentes no trabalho examinados neste item A crianccedila pobre

aprendia bem cedo a rotina fabril com seu apito com os acidentes que dilaceravam suas

carnes e seus membros com o ar carregado e pesado dos estabelecimentos industriais

Na proacutexima parte analisarei um processo de lesatildeo corporal de um jovem

operaacuterio de uma unidade fabril de Juiz e Fora

33 MICUCCI A MORTE DE UM PEQUENO PROLETAacuteRIO DA

ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo

[] Agrave mercecirc dos interesses do empresariado a crianccedila operaacuteria transforma-se

num trabalhador como outro qualquer cuja natureza quando vem agrave tona

como por exemplo ao transgredir a disciplina da faacutebrica eacute penalizada com

repreensotildees que atingem muitas vezes os limites do castigo corporal574

O objeto em tela nessa parte do capiacutetulo eacute analisar o processo de lesatildeo corporal

de um jovem operaacuterio de uma faacutebrica de tecidos de malha de Juiz de Fora que

supostamente foi espancado pelo gerente da unidade fabril e veio a falecer em

consequecircncia do ato de violecircncia de que foi viacutetima Antonio Gervason de 42 anos de

idade italiano gerente da faacutebrica de tecidos de Malha Meurer575

foi acusado de ter

espancado no interior do estabelecimento fabril o operaacuterio Antonio Micucci de 13 anos

de idade brasileiro filho de imigrantes italianos576

573

FRAGA FILHO Walter Op cit 1996 p 121 Cf MATTOSO Kaacutetia de Queiroz Op cit1998 574 MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de ldquoInfacircncia operaacuteria e acidente do trabalho em Satildeo Paulordquo

In DEL PRIORE Mary (org) Histoacuteria da crianccedila no Brasil Satildeo Paulo Contexto 1991 124 575

A Fiaccedilatildeo e Tecelagem de malha meias e camisas de meias do Sr Antonio Meurer foi fundada em

1896 e localizava-se em preacutedio proacuteprio agrave Rua do Espiacuterito Santo ESTEVES Albino LAGE Oscar Vidal

Barbosa (orgs) Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees

2008 p 285 e 317 Na deacutecada de 1920 de acordo com as informaccedilotildees por mim apuradas nos processos

de acidentes no trabalho a faacutebrica denominava-se ldquoFiaccedilatildeo e Tecelagem Meurer Irmatildeos amp Companhiardquo 576

Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima Antonio

Micucci 02-08-1919 cx 138 AHCJF Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoMicucci a morte de um

pequeno operaacuterio ndash Juiz de Fora (1919)rdquo In NEDER Gizlene SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da

208

A anaacutelise dos processos judiciais (criminais e ciacuteveis) tem obtido cada vez mais

relevacircncia nos estudos histoacutericos Atraveacutes dessa documentaccedilatildeo podem-se observar as

visotildees dos agentes da justiccedila com relaccedilatildeo agraves camadas menos favorecidas da sociedade

no que diz respeitos a suas relaccedilotildees familiares seus costumes modo de vida entre

outras questotildees As vozes dos excluiacutedos devem ser filtradas atraveacutes dos discursos

produzidos nessas e em outras fontes pela classe letrada uma vez que os textos foram

escritos pelos homens que detinham o poder (poliacutetico e econocircmico) e o saber dentre os

quais os juristas advogados meacutedicos poliacuteticos latifundiaacuterios e industriais

Por intermeacutedio das partiacuteculas filtradas dos textos o historiador pode

compreender diversas particularidades da sociedade em anaacutelise as tensotildees entre os

grupos sociais o posicionamento da Justiccedila e do Estado frente aos embates entre as

classes bem como outras problemaacuteticas

Imagem 18 Fachada da Faacutebrica de Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Tecidos de Malha Meurer ESTEVES Albino LAGE

Vidal Barbosa (org) Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees

2008 p 317

SOUZA Jessie Jane Vieira de (orgs) Intoleracircncia e Cidadania secularizaccedilatildeo poder e cultura poliacutetica

Rio de Janeiro Autografia 2015 p 122-156

209

331 Entre tapas e pontapeacutes o pequeno operaacuterio Micucci

Antonio Micucci de 13 anos de idade brasileiro filho de Maria Micucci577

e de

Joseacute Micucci italianos como muitas outras crianccedilas pertencentes agraves camadas

empobrecidas da sociedade passava os seus dias entre as paredes e as maacutequinas de um

estabelecimento industrial Ele como outros meninos e meninas teve sua inserccedilatildeo no

mundo do trabalho precocemente provavelmente devido as necessidades familiares

Entretanto eacute necessaacuterio ressaltar que aleacutem da pobreza inuacutemeros fatores direcionavam

(e ainda direcionam) as crianccedilas e jovens para o mercado de trabalho sendo uma delas a

concepccedilatildeo de que o trabalho impedia que a crianccedila pobre se enveredasse para o mundo

do oacutecio da vadiagem e dos viacutecios Na passagem agrave modernidade o trabalho se revestiu

de uma aacuteurea passou a ser visualizado como algo que conferia dignidade disciplina e

respeito sendo que o ldquonatildeo-trabalho se identifica com a vadiagem que eacute matildee do crime

da imoralidade dos viacutecios da preguiccedilardquo578

Essa visatildeo positiva do trabalho difundida

por setores dominantes principalmente no periacuteodo de implantaccedilatildeo do regime de

trabalho livre no Brasil foi adotada pelas classes subalternas que entendiam que o

trabalho lhes conferia respeito e honra perante a sociedade

Micucci trabalhava na faacutebrica de tecidos de malha da viuacuteva Antonio Meurer e

Filhos ao lado de vaacuterias outras crianccedilas e jovens como pode ser constatado atraveacutes do

depoimento das testemunhas no processo de lesatildeo corporal A utilizaccedilatildeo e exploraccedilatildeo

da matildeo de obra infantil nas sociedades reguladas pelas relaccedilotildees capitalistas de

produccedilatildeo foi algo que perpassou as naccedilotildees do Velho e do Novo Continente em seus

processos de industrializaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo Segundo Silvia Villela de Andrade as

condiccedilotildees do operariado de Juiz de Fora eram semelhantes agraves dos proletaacuterios da capital

Federal (Rio de Janeiro) e de Satildeo Paulo579

As faacutebricas juiz-foranas utilizavam-se do

trabalho infanto-juvenil e feminino as condiccedilotildees das instalaccedilotildees industriais

577

A matildee de Antonio Micucci aparece no processo ora com o nome de Maria Manccia ora como Maria

Micucci Irei me referir a ela sempre como Maria Micucci Joseacute Miccusi italiano casado pai de Antonio

Micucci constituiu como seu bastante procurador o Sr Aristarcho Paes Leme para representaacute-lo no

processo que estava em andamento na justiccedila sobre o provaacutevel espancamento de seu filho Na

procuraccedilatildeo o sobrenome Micucci aparece escrito da seguinte forma Miccusi AHCJF Foacuterum da Cacircmara

de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima Antonio Micucci 02-08-1919

cx 138 578

LAPA Joseacute Roberto do Amaral Op cit 2008 p 17 Cf Cf RAGO Margareth Do Cabareacute ao lar a

utopia da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista ndash Brasil 1890-1930 4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra

2014 p 180-181 579

ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 p 53

210

geralmente eram precaacuterias e os salaacuterios eram baixos e com longas jornadas de trabalho

Nesse cenaacuterio eacute que se deu o provaacutevel espancamento do operaacuterio Micucci Assim como

nas faacutebricas e oficinas cariocas e paulistas nessa cidade do interior mineiro tambeacutem os

maus-tratos aos trabalhadores eram verificados

Os operaacuterios cumpriam uma jornada de trabalho aacuterdua geralmente de 10 a 12

horas diariamente Segundo Esmeralda Moura ldquoas normas de trabalho impostas e o

ritmo de produccedilatildeo exigido incidiam sobre o conjunto do operariado mas natildeo de forma

indiferenciadardquo Em outras palavras o trabalhador infanto-juvenil estava exposto agraves

mesmas normas disciplinares e obrigaccedilotildees dos adultos580

Todavia esses ldquomenoresrdquo natildeo

tinham a mesma forccedila fiacutesica desenvoltura senso de responsabilidade e agilidade de um

operaacuterio adulto Natildeo dispondo dessas caracteriacutesticas dada a pouca idade muitas

crianccedilas-operaacuterias transformavam o local de trabalho em um espaccedilo para brincadeiras

jaacute que natildeo tinham outro o que muitas vezes poderia resultar em graves acidentes ou

problemas na produccedilatildeo Esses ldquoerrosrdquo eram alvos de medidas disciplinares por parte de

seus superiores581

Mas natildeo apenas as brincadeiras as atitudes improacuteprias para o local

de trabalho resultavam em repreensatildeo violenta por parte dos patrotildees e chefes aos

operaacuterios As ldquofalhasrdquo os ldquoerrosrdquo os ldquodescuidosrdquo com a produccedilatildeo tambeacutem eram

motivos para que os superiores demonstrassem todo o seu poder e os submetessem a

severos castigos fiacutesicos582

Os estabelecimentos fabris eram (satildeo) espaccedilos de disciplinas

coerccedilatildeo e poder Os operaacuterios eram submetidos a normas disciplinares e de conduta

dentro desse universo tendo seus ritmos de trabalho e atitudes constantemente sob a

ldquovigilacircnciardquo de todos que estatildeo inseridos naquela estrutura583

Segundo Michel

Foucault todos os sistemas disciplinares satildeo constituiacutedos de um ldquopequeno mecanismo

penalrdquo e que

[] na oficina na escola no exeacutercito funciona como repressora toda uma

micropenalidade do tempo (atrasos ausecircncias interrupccedilotildees das tarefas) da

atividade (desatenccedilatildeo negligencia falta de zelo) da maneira de ser

(grosseira desobediecircncia) dos discursos (tagarelice insolecircncia) do corpo

(atitudes ldquoincorretasrdquo gestos natildeo conformes sujeira) da sexualidade

(imodeacutestia indececircncia) Ao mesmo tempo eacute utilizada a tiacutetulo de puniccedilatildeo

580

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 279 581

Para mais informaccedilotildees sobre as brincadeiras dos pequenos operaacuterios nos locais de trabalho ver

MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de 2006 p 268 ndash 270 582

Sobre os castigos fiacutesicos impetrados aos operaacuterios principalmente nos mais jovens ver BATALHA

Claacuteudio Op cit 2006a p 100 - 101 MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 268

RAGO Margareth Do Cabareacute ao lar a utopia da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista ndash Brasil

1890-1930 4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 p 182 188-189 583

FOUCAULT Michel Op cit 2007 p 147-148

211

toda uma seacuterie de processos sutis que vatildeo do castigo fiacutesico leve a privaccedilotildees

ligeiras e a pequenas humilhaccedilotildees584

O caso do operaacuterio Micucci ilustra bem a utilizaccedilatildeo dessa ldquomicropenalidaderdquo

dentro de um estabelecimento fabril O ldquomenorrdquo segundo os depoimentos de algumas

testemunhas natildeo estava brincando em seu local de trabalho mas cometeu uma falha

um erro na atividade que estava executando e por isso foi punido pelo gerente da

faacutebrica Antonio Gervason que o espancou Sobre o provaacutevel espancamento sofrido

pelo menino Micucci na faacutebrica Meurer a testemunha Maria Joseacute Sayatildeo de 16 anos

operaacuteria e que sabia ler e escrever relatou

[] quando se achava no seu trabalho que fica na mesma secccedilatildeo em que

trabalhava Micucci viu quando este por um descuido no trabalho deixou

cahir uma peccedila de fazenda no chatildeo que por esse motivo viu Gervason

repreender a Micucci em quem bateu dando-lhe bofetadas puchotildees (sic) de

orelha e ponta-peacutes que Gervason natildeo gosta que as operarias prestem attenccedilatildeo

quando elle estaacute batendo em algum operaacuterio mas apezar disso sem maior

reparaccedilatildeo a depoente observou que os tapas dados por Gervason em Micucci

apanharam a regiatildeo das costas que a despeito de Micucci ter sofrido todo

espancamento sem dar um grito e sem gemer pelo modo como elle foi feito

natildeo podia deixar de lhe proporcionar grandes docircres que Gervason

commumente bate nos operaacuterios menores que trabalham na fabrica e que na

secccedilatildeo da prensa onde trabalhava muitos meninos quase sempre se datildeo

espancamento585

O motivo que resultou no espancamento do proletaacuterio Micucci segundo o relato

de Maria Joseacute Sayatildeo foi fruto de um ldquodescuidordquo que ocasionou que uma ldquopeccedila de

fazendardquo caiacutesse ao chatildeo Dessa forma o gerente da faacutebrica Antonio Gervason aplicou

no jovem operaacuterio a ldquomicropenalidade do tempordquo e da ldquoatividaderdquo pois ao deixar o

tecido cair no chatildeo por um ldquodescuidordquo (desatenccedilatildeo negligencia falta de zelo) segundo

as palavras de uma testemunha Micucci interrompeu as suas atividades mesmo que

brevemente Sob o olhar ldquovigilanterdquo de seus companheiros de trabalho e de seu superior

o ldquodescuidordquo do proletaacuterio foi percebido e sob esses mesmos olhares ele foi punido

Como saber se ao deixar a peccedila de fazenda cair ao chatildeo o ldquomenorrdquo natildeo estivesse

brincando com um companheiro de trabalho Como saber se esse ldquodescuidordquo natildeo foi

resultado do cansaccedilo da fome ou do sono

Maria Joseacute Sayatildeo ainda asseverou que o gerente da faacutebrica era dado a espancar

outros ldquomenoresrdquo e que essa atitude era comum na ldquosecccedilatildeo da prensardquo onde segundo

584

Idem p 148 585

Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima Antonio

Micucci 02-08-1919 cx 138 AHCJF

212

suas palavras trabalhavam muitos pequenos operaacuterios A imagem abaixo eacute de uma das

seccedilotildees da faacutebrica Meurer O exame da fotografia coloca em evidecircncia o pouco espaccedilo

entre as maacutequinas Esse fator provavelmente circunscrevia os operaacuterios a uma pequena

aacuterea de movimentaccedilatildeo A imagem tambeacutem acena para a presenccedila de trabalhadores

mirins nesse setor do estabelecimento fabril

Imagem 19 Interior da Faacutebrica de Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Tecidos de Malha Meurer ESTEVES Albino

LAGE Vidal Barbosa (org) Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG)

Funalfa Ediccedilotildees 2008 p 321

Com relaccedilatildeo agrave praacutetica da violecircncia contra os trabalhadores pelos patrotildees ou

chefes Esmeralda Moura ressalta que o trabalhador infanto-juvenil foi transformado no

ldquoalvo privilegiado de uma disciplina feacuterreardquo e ainda acrescenta que a relaccedilatildeo entre essas

partes ldquotalvez tenha sido aquela na qual as imagens do pai e do patratildeo frequentemente

se confundiamrdquo586

Durante a Primeira Repuacuteblica setores das classes dominantes transmitiam a

imagem de que a relaccedilatildeo patratildeo-empregado se assemelhava agrave existente entre pais e

filhos ou seja uma relaccedilatildeo de poder e obediecircncia Para Sidney Chalhoub a construccedilatildeo

dessa imagem tinha explicitamente o objetivo de controle social ao procurar mitigar o

potencial de conflito inerente agrave relaccedilatildeo capital-trabalho587

Em seu depoimento durante o inqueacuterito policial a matildee de Micucci assinalou

que chamava o menino para o trabalho agraves cinco e meia da manhatilde Supondo que o jovem

operaacuterio entrasse as seis ou sete horas no serviccedilo teria que trabalhar ateacute as dezessete

horas com intervalos para as refeiccedilotildees Essa rotina se dava de segunda-feira a saacutebado e

586

MOURA Esmeralda B Bolsonaro de Op cit 2006 p 268 587

CHALHOUB Sidney Op cit 2001 p 114-115

213

provavelmente os operaacuterios trabalhavam em peacute durante longas horas em atividades

monoacutetonas repetitivas e exaustivas em um ambiente saturado pela poeira e pelo

barulho das maacutequinas pela pouca iluminaccedilatildeo e ventilaccedilatildeo o que natildeo era em hipoacutetese

alguma salutar para o desenvolvimento fiacutesico dos pequenos operaacuterios

A apuraccedilatildeo da causa mortis do operaacuterio Antonio Micucci iniciou-se com as

investigaccedilotildees policiais logo apoacutes o seu falecimento no dia 31 de julho de 1919 No dia

primeiro de agosto o delegado de poliacutecia Sr Joseacute Ribeiro de Abreu tomando

conhecimento da morte do ldquomenorrdquo determinou que fossem intimados os meacutedicos Drs

Alberto Vieira Lima e Renato de Andrade Santos para realizarem naquele mesmo dia

no cemiteacuterio municipal o ldquoexame cadaverico do alludido menorrdquo Jaacute no dia dois de

agosto as testemunhas que foram arroladas comeccedilaram a dar seus depoimentos sobre o

que teria acontecido com o operaacuterio Micucci no dia 23 de julho uma quarta-feira na

faacutebrica de tecidos de malha Meurer onde ele trabalhava Ao todo foram interrogadas

dezesseis testemunhas entre funcionaacuterios da faacutebrica e meacutedicos Atraveacutes do depoimento

das testemunhas tem-se uma pequena imagem do cotidiano dos funcionaacuterios de um

estabelecimento fabril do iniacutecio do seacuteculo XX e da vida de uma famiacutelia de operaacuterios

Podemos tambeacutem captar atraveacutes da anaacutelise do processo o posicionamento dos homens

cultos da sociedade sobre os operaacuterios e suas famiacutelias

Das dezesseis testemunhas intimadas dez eram funcionaacuterias da faacutebrica sendo

sete mulheres e trecircs homens com idades variando entre quinze e vinte e sete anos de

idade Poreacutem os operaacuterios na faixa etaacuteria dos quinze e dezesseis anos perfaziam o total

de seis Com relaccedilatildeo agrave escolaridade desses dez funcionaacuterios a uacutenica informaccedilatildeo que foi

possiacutevel amealhar eacute a de que sabiam ldquoler e escreverrdquo ou ldquonatildeo sabiam ler nem escreverrdquo

sendo que neste item houve uma equivalecircncia

A presenccedila maior do sexo feminino entre as testemunhas corrobora as

informaccedilotildees da eacutepoca de que era imenso o nuacutemero de meninas e mulheres nas faacutebricas

tecircxteis de Juiz de Fora Em um processo de acidente no trabalho de 1921 o curador a

lide Dr Sadi Carnot de Miranda Lima na Vista ao processo de um ldquomenorrdquo que se

acidentou em seu local de trabalho assim descreveu o cenaacuterio fabril dessa cidade do

interior mineiro

[] Eacute realmente desoladora a impressatildeo em que ficamos quando assistimos -

principalmente nesta culta cidade - o desfile dos operarios ao deixarem as

fabricas Pode-se affirmar que 40 destes satildeo crianccedilas menores de 12 annos

214

e muitas ainda com a blesidade infantil Notando-se consideravel numero de

meninas588

Os perioacutedicos tambeacutem ressaltavam a elevada presenccedila de meninas e mulheres

nas induacutestrias de tecidos da cidade O jornal O Pharol de fevereiro de 1911 em um

encarte que estava sendo publicado com o nome Folha de Mariano trouxe uma mateacuteria

sobre a reivindicaccedilatildeo dos caixeiros pela reduccedilatildeo da jornada de trabalho e aproveitou

para chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees precaacuterias do operariado dos estabelecimentos

tecircxteis de Juiz de Fora destacando a situaccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo e das mulheres Assim

descrevia a reportagem

Haacute entretanto outros operaacuterios mais sobrecarregados de trabalho e mais mal

remunerados Entre eles os das fabricas de tecidos principalmente mulheres

e crianccedilas

E assim que pobres operaacuterias da faacutebrica de tecidos de Mariano a maioria

composta de menores trabalham das 5 horas da manhatilde as 5 horas da tarde

com os pequenos intervalos das refeiccedilotildees e ainda fazem seratildeo ate as 11 horas

da noite segundo nos informam

A atmosfera que se respira nas faacutebricas de tecidos jaacute contribui para alterar a

sauacutede dos operaacuterios O mal aumenta consideravelmente com o acreacutescimo de

horas de trabalho sobretudo no veratildeo e principalmente quando esses

operaacuterios satildeo moccedilas e crianccedilas

Parece-nos que essa classe proletaacuteria tambeacutem merece a atenccedilatildeo de quem deve

cuidar da sauacutede e da higiene puacuteblicas que estatildeo um pouco acima do interesse

industrial589

A notiacutecia desenha um quadro de grande exploraccedilatildeo da matildeo de obra nas

induacutestrias tecircxteis Conforme salientado pelo Curador Sadi Carnot a reportagem tambeacutem

ressalta a presenccedila elevada de mulheres e crianccedilas nas induacutestrias juiz-foranas

Durante o inqueacuterito policial os depoimentos das testemunhas foram

apresentando contradiccedilotildees Dos dez operaacuterios da Fiaccedilatildeo e Tecelagem Meurer que foram

arrolados como testemunhas no inqueacuterito policial sete disseram que natildeo viram que

ouviram falar que nem viram e nem ouviram dizer que natildeo aconteceu nada que nada

sabiam apenas trecircs testemunhas declararam que viram o ldquomenorrdquo ser espancado com

chutes pontapeacutes puxotildees de orelha ser empurrado contra a parede e a maacutequina Mesmo

entre as declaraccedilotildees das testemunhas que disseram que assistiram ao suposto

espancamento haacute divergecircncias As operaacuterias Sebastiana Pereira Maria Joseacute Sayatildeo e

Virginia Judipina (italiana) de 15 16 e 23 anos de idade respectivamente em seus

588

AHUFJF Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Japyassuacute de Abreu 28-06-1921 cx

001proc 8 589

SM-BMMM O Pharol 02 fev 1911 p 2 ldquoFolha de Marianordquo

215

depoimentos apresentaram contradiccedilotildees no que diz respeito ao horaacuterio que teria

acontecido o espancamento - se antes ou depois do meio dia se Micucci continuou no

trabalho ateacute o final do expediente as dezessete horas ou natildeo se ele retornou ao trabalho

no restante da semana ou natildeo

Com relaccedilatildeo ao horaacuterio do suposto espancamento Sebastiana Pereira disse que o

ldquofacto se passou depois do meio dia natildeo podendo poreacutem precizar (sic) a hora exata em

que se deurdquo e Maria Joseacute Sayatildeo disse que foi por volta das ldquotreze horas mais ou menosrdquo

O problema com relaccedilatildeo ao horaacuterio encontra-se realmente no depoimento de Virginia

Judipina ao afirmar que ldquopela manhatilde antes do almoccedilo viu Antonio Gervason espancar

o operaacuterio Micucci dando-lhe com as matildeos e com os peacutesrdquo Por causa da ldquodivergecircncia e

contradiccedilatildeordquo nos depoimentos dos operaacuterios o delegado de poliacutecia Joseacute Ribeiro de

Abreu realizou um ldquoAuto de Acareaccedilatildeordquo entre as testemunhas no dia sete de agosto de

1919 As trecircs operaacuterias que disseram que haviam assistido ao espancamento

confirmaram suas declaraccedilotildees Com relaccedilatildeo ao horaacuterio que teria ocorrido o castigo de

que foi viacutetima o operaacuterio Micucci Sebastiana e Maria Joseacute declararam que o

espancamento havia ocorrido por volta do meio-dia poreacutem Virginia continuou

afirmando que havia se dado ldquoantes do almoccedilo que eacute feito as nove horas da manhatilderdquo

[grifos no original] Outro problema observado nos depoimentos dessas trecircs

funcionaacuterias estaacute na questatildeo se o ldquomenorrdquo permaneceu ateacute o final do expediente ou natildeo

depois do dito espancamento Sebastiana e Virginia disseram que ele permaneceu

trabalhando ateacute as dezessete horas e Maria Joseacute declarou que ele foi embora logo

depois por volta das treze horas Com relaccedilatildeo agrave permanecircncia de Antonio Micucci na

faacutebrica no restante da semana houve tambeacutem divergecircncia sendo que Sebastiana e

Virginia disseram que natildeo o viram mais na faacutebrica depois da suposta surra que ele

recebeu do gerente Gervason As demais testemunhas declararam que viram ou

estiveram com Micucci na faacutebrica depois da quarta-feira 23 de julho em que teria

ocorrido o espancamento O operaacuterio Orlando Meurer declarou que saacutebado 26 de julho

ldquoesteve as quatro e meia horas da tarde com a victima quando se limpavam as

machinasrdquo590

As testemunhas que disseram que assistiram ao espancamento citaram o nome

de outras operaacuterias que acreditavam que haviam presenciado o espancamento do

ldquomenorrdquo As operaacuterias que foram citadas negaram enfaticamente que tivessem

590

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

216

assistido ao espancamento do menino Micucci Carolina Helt de 27 anos cortadeira

que era conhecida na faacutebrica pelo apelido de ldquoSinhaacuterdquo disse que trabalhava na mesma

sala que Micucci ldquosendo que o dito menor trabalhava em logar proacuteximo ao da depoenterdquo

e que natildeo havia acontecido nada com o menino na faacutebrica Ela ainda declarou que

ldquodepotildee sem insinuaccedilatildeo de ningueacutem porque a isso se oporia a quem tentasse fazerrdquo e que

as declaraccedilotildees de Sebastiana Pereira natildeo eram verdadeiras O discurso das outras

testemunhas citadas eacute semelhante ao de Carolina Helt

Observando esses depoimentos algumas indagaccedilotildees satildeo necessaacuterias como por

que apenas trecircs operaacuterias declararam a existecircncia da violecircncia contra o jovem operaacuterio

Antonio Micucci Por que os demais funcionaacuterios da faacutebrica Meurer negaram o

espancamento Nesse caso apenas conjecturas podem ser tecidas Os demais operaacuterios

provavelmente sentiram-se ameaccedilados de perderem o emprego na faacutebrica ou foram

efetivamente ameaccedilados caso confirmassem que havia ocorrido o espancamento

Possivelmente por causa das insinuaccedilotildees de que estava sendo coibida de dizer a

verdade a operaacuteria Carolina Helt tenha declarado que estava depondo ldquosem insinuaccedilatildeo

de ningueacutemrdquo As operaacuterias Sebastiana e Maria Joseacute que depuseram contra o gerente da

faacutebrica Meurer Antonio Gervason natildeo continuaram a trabalhar no dito estabelecimento

industrial Elas declararam que natildeo trabalhavam mais na faacutebrica pois saiacuteram

voluntariamente A testemunha Maria Joseacute Sayatildeo em seu depoimento em juiacutezo disse

[] depois que prestou o seu depoimento na policia ainda voltou ao trabalho

da fabrica e neste esteve durante dous dias natildeo continuando mais porque as

operarias Carolina Helt e Maria Bellote se puzeram a debical-a que esse

debique consistia em as referidas operarias dizerem aacute depoente que esta

quando depoz a verdade na policia eacute porque queria estar no embrulho e que

ellas Helt e Bellote natildeo haviam dito a verdade na policia para se livrarem

de embrulho que tem certeza absoluta que as operarias Helt e Bellote

assistiram ao espancamento e isto porque ellas como a depoente estavam

perto de Micucci quando este foi espancado []591

Os ldquodebiquesrdquo que as operaacuterias Carolina Helt e Maria Bellote comeccedilaram a fazer

a Maria Joseacute seriam a mando do gerente Estariam elas tentando amedrontar a

companheira de trabalho

A operaacuteria Virginia Judipina permaneceu no emprego na faacutebrica Meurer ateacute o

momento em que deu o seu depoimento na justiccedila Uma das suposiccedilotildees para a

permanecircncia de Virginia no emprego eacute o fato de que ela trabalhava na faacutebrica haacute dois

591

Idem

217

anos ou seja tinha domiacutenio do processo de produccedilatildeo e as outras estavam a poucos

meses empregadas Sebastiana ldquodurante quase um mezrdquo e Maria Joseacute ldquoquase tres

mezesrdquo

A perda do emprego a dificuldade de conseguir uma nova contrataccedilatildeo em um

estabelecimento industrial depois de acusar um representante e ou o patratildeo como na

expressatildeo da eacutepoca ldquoentrar no embrulhordquo significava uma possibilidade real para os

operaacuterios A ameaccedila da demissatildeo foi um dos mecanismos de coerccedilatildeo utilizados pelos

patrotildees para manter os operaacuterios submissos Entrar para o rol dos operaacuterios marcados

pelos estigmas de grevista baderneiro ou anarquista em uma cidade em que a classe

patronal se conhecia ou estava ligada por laccedilos familiares de parentesco ou de amizade

representava para a maioria dos operaacuterios um grande temor uma vez que poderia

resultar na possibilidade de o trabalhador natildeo conseguir empregar-se tendo de buscar

emprego em outro municiacutepioestado em muitos casos deixando a famiacutelia em

graviacutessima situaccedilatildeo financeira ateacute conseguir estabelecer-se profissionalmente Aleacutem

disso a falta de uma legislaccedilatildeo trabalhista gerava uma situaccedilatildeo de grande instabilidade

no seio da classe operaacuteria

As lutas dos operaacuterios por melhores condiccedilotildees de trabalho pela reduccedilatildeo da

jornada pela regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-juvenil por melhores salaacuterios soacute

avanccedilaram de uma forma mais significativa poacutes-deacutecada de 1930 No periacuteodo em tela

neste trabalho a classe operaacuteria obteve a sua primeira conquista na luta por direitos em

1919 com a promulgaccedilatildeo da Lei de Acidentes no Trabalho592

Poreacutem essa lei

apresentou limitaccedilotildees graves uma vez que contemplou basicamente os trabalhadores

do setor fabril ou seja trabalho mecacircnico593

Apoacutes essa breve descriccedilatildeo da situaccedilatildeo do operariado durante a Primeira

Repuacuteblica no que tange agraves leis sociais prossegue o exame do caso do ldquomenorrdquo

Micucci Analisando os depoimentos dos meacutedicos594

que examinaram a viacutetima observa-

se tambeacutem contradiccedilotildees no laudo sobre as condiccedilotildees do menino As manchas e

592

A partir de 1919 os operaacuterios ficaram assegurados por lei nos casos de acidentes ocorridos no local de

trabalho atraveacutes da Lei n 3724 de 15 de janeiro de 1919 regulamentada pelo Decreto n 13498 de 12

de marccedilo de 1919 Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwacidentedotrabalhoadvbrleisDEC-

003724Integralhtm e

httplegissenadogovbrlegislacaoListaNormasactionnumero=13498amptipo_norma=DECampdata=1919

0312amplink=s 593

Idem p 83 594

Antonio Micucci foi examinado pelos seguintes meacutedicos Joatildeo drsquo Aacutevila Joatildeo Monteiro Cassimiro

Villela de Andrade Filho Antonio Luiz de Almada Horta Alciro Valladatildeo e Augusto Penna Filho

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

218

contusotildees pelo corpo do ldquomenorrdquo natildeo foram relatadas por todos os meacutedicos ou foram

consideradas sem importacircncia por alguns de acordo com o que foi apurado nos relatos

dos doutores Entretanto todos os meacutedicos enfatizaram que o estado do jovem operaacuterio

era muito grave pois apresentava um quadro de febre altiacutessima mais de 40 graus e

estado delirante e que era uma moleacutestia infecciosa

O primeiro meacutedico a examinar Micucci foi o Dr Joatildeo drsquoAvila que disse natildeo ter

encontrado nenhum sinal aparente que induzisse a hipoacutetese de que o ldquomenorrdquo havia sido

espancado e que as insinuaccedilotildees de que o menino havia sofrido alguma agressatildeo natildeo se

confirmavam com os exames que havia realizado Segundo o seu diagnoacutestico era o

seguinte o quadro do menino

[] um exantema diffuso e manifestaccedilotildees para a pleura e pulmotildees que diante

dessa situaccedilatildeo desejaria que o seu juiacutezo fosse assistido pela opiniatildeo de um

collega distincto na sciencia e tambeacutem distincto pela sua probidade de

maneira a sentir-se assim melhor amparado nessa situaccedilatildeo que se

descortinava ao seu espirito como uma [bandeira de exploraccedilatildeo] que de facto

o seu collega que foi o illustre Dr Almada Horta sancionou o seu juiacutezo

aprovou a sua tese [pneutica] e concordou com o prognostico que

estabelecera de fatal595

Em seu depoimento o Dr Antonio Luiz de Almada Horta disse que na ldquovespera

do fallecimento do menor Micuccirdquo esteve na casa de um ldquodoenterdquo do ldquocollega Dr Joatildeo

drsquoAvillardquo na rua Fonseca Hermes para ldquover em conferenciardquo com o mesmo o estado do

menino O exame foi realizado no paciente na presenccedila de algumas pessoas da famiacutelia e

do Dr Joatildeo drsquoAvilla Segundo seu exame tratava-se de um

[] caso grave de moleacutestia infectuoza por isso que o doente em torpor

delirante tendo alta a temperatura dificuldade de respiraccedilatildeo alem de

apresentar na pelle em diversas partes do corpo manchas roacuteseas e algumas

rocheadas todas porem superficiaes denunciadoras em regra de infecccedilotildees

graves596

O Dr Almada Horta disse que examinando mais detidamente o menino

[] constactou lesotildees mal definidas para os pulmotildees e para as pleuras (pleuri

digo pleuro-penemonite) pequeno timpanismo abbdominal coraccedilatildeo abafado

alem de dores diffusas com localizaccedilatildeo pronunciadas para algumas

articulaccedilotildees ndash articulaccedilatildeo do hombro do joelho e do peacute do lado direito

595

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138 596

Idem

219

(todos do lado direito) que donde concluio tratar-se de um caso de moleacutestia

infectuosa grave597

Disse o Dr Almada Horta que depois de realizados os exames foi inquirido pelo

Dr Joatildeo drsquoAvilla se havia encontrado algum sinal de traumatismo ao que respondeu

que ldquoabsolutamente natildeordquo

O caso Micucci apresentava um cenaacuterio extremamente sombrio A gravidade do

caso era ressaltada por todos os meacutedicos que o examinavam e o problema jaacute havia

ganhado as paacuteginas dos jornais que denunciavam o caso com grande alarde Dentro

desse contexto o delegado de poliacutecia solicitou que o Dr Joatildeo Monteiro e o Dr Augusto

Penna Filho fossem ateacute a casa do dito operaacuterio para examinaacute-lo Em seu depoimento o

Dr Joatildeo Monteiro disse que encontrou o ldquomenorrdquo em ldquoestado febril delirante pallido

uma contusatildeo no tornosello esquerdo acompanhada de edema uma edema no joelho

tambeacutem esquerdo um exantema na parte anterior do thorax pescoccedilo e rostordquo598

O Dr Augusto Penna Filho descreveu um aspecto das condiccedilotildees da habitaccedilatildeo do

ldquomenorrdquo bem como seu estado Segundo Penna Filho

[] o exame a esse que tornou-se deficiente natildeo soacute devido ao estado do

paciente ser graviacutessimo como pela falta de iluminaccedilatildeo na habitaccedilatildeo do

enfermo que apoacutes o exame procurou o Dr delegado de policia dizendo-lhe

que o menino apresentava uma inflamaccedilatildeo no tornozelo esquerdo e o quadro

tiacutepico de uma grave infecccedilatildeo e uma pleurisia do pulmatildeo direito para a qual

chamou a attenccedilatildeo da famiacutelia do enfermo que aconselhou por essa razatildeo a

mesma famiacutelia que de novo chamasse o medico assistente599

A referecircncia da falta de iluminaccedilatildeo feita pelo Dr Penna Filho eacute um

demonstrativo da precariedade das casas dos operaacuterios e da populaccedilatildeo pobre em geral

A falta de iluminaccedilatildeo poderia estar relacionada agrave ausecircncia de uma janela no cocircmodo em

que se encontrava o moribundo Segundo Esmeralda Moura ldquoas habitaccedilotildees operaacuterias os

corticcedilos particularmente representavam cenas inequiacutevocas de um cotidiano pautado na

pobrezardquo600

O ldquomenorrdquo ainda passou pela avaliaccedilatildeo de outro meacutedico o Dr Alciro Valladatildeo

que esteve na casa do menino no dia 31 de julho

597

Ibidem 598

Ibidem 599

Ibidem 600

MOURA Esmeralda B Bolsonaro de Op cit 2006 p 275

220

[] mais ou menos a meia noite e alli jaacute encontrou o menor em questatildeo em

quase estado de comma que attendendo a essa circunstancia e como lhe

dissessem que o menor enfermo fora espancado sua attenccedilatildeo voltou

principalmente para o exame esterno que nesse exame alias feito em todo o

corpo notou algumas contusotildees na regiatildeo direita do homoplata (sic) e sobre a

matildeo direita que entretanto natildeo pode affirmar se essas contusotildees satildeo

consequencias de algum traumatismo ou se produsidas pela moleacutestia

infecciosa que acredita que o exame pericial esclareceraacute essa duvida que

devido ao estado adiantadiacutessimo da moleacutestia que se apoderara de Micucci

tanto assim que o depoente lhe deu poucas horas de vida o seu exame interior

foi mais ou menos raacutepido pois que o seu estado natildeo lhe permitia fazer maior

exame que quando tocava nas partes contundidas o depoente notava que o

doente natildeo acusava docircr entretanto tocando na regiatildeo abdominal verificava

que o doente gemia concluindo elle dahi que se tratasse de uma peritonite

que podia ser uma consequencia do traumatismo ou do curso natural da

moleacutestia601

Nos depoimentos dos meacutedicos que examinaram Micucci nenhum deles em seus

diagnoacutesticos confirmou que o ldquomenorrdquo poderia ter sido espancado Todos

encaminharam seus pareceres para a existecircncia de uma grave infecccedilatildeomoleacutestia uma

pneumonia As manchas roacuteseas e roxas pelo corpo as contusotildeesinflamaccedilotildees as dores

na regiatildeo abdominal foram consideradas provavelmente como uma consequecircncia da

grave infecccedilatildeo que havia se apoderado do jovem operaacuterio

O primeiro meacutedico a examinar o menino foi o Dr Joatildeo DrsquoAvilla Em seu

depoimento no inqueacuterito policial ele assinalou que natildeo havia dado muita atenccedilatildeo as

ldquoinsinuaccedilotildeesrdquo de que o ldquomenorrdquo havia sido espancado na faacutebrica Meurer Em suas

declaraccedilotildees o Dr Joatildeo drsquoAvilla deu a entender que a famiacutelia estava tentando se

beneficiar da doenccedila do menino Micucci com a histoacuteria de espancamento Em seu

segundo depoimento jaacute no sumaacuterio de culpa ele manteve a tese de que a famiacutelia estava

utilizando a doenccedila do menino e disse novamente que natildeo havia dado atenccedilatildeo agraves

insinuaccedilotildees da matildee do ldquomenorrdquo e acrescentou que tudo aquilo ldquo[] era uma verdadeira

phantasia e de que se desejava tirar partido e vantagemrdquo Para corroborar com o seu

diagnoacutestico de pleuro-pneumonia o doutor drsquoAvilla convidou o doutor Almada Horta

para examinar o ldquomenorrdquo

Pelo depoimento do meacutedico Joatildeo drsquoAvilla pode-se apurar o juiacutezo que setores

dominantes faziam das famiacutelias das camadas subalternas como dissimuladas

interesseiras desprovidas de caraacuteter e dispostas a tudo para tirar proveito de uma

situaccedilatildeo A literatura sobre as relaccedilotildees familiares da populaccedilatildeo pobre destacam que elas

601

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

221

eram visualizadas pelos segmentos dominantes como permeadas pela imoralidade

promiscuidade ociosidade viacutecios e pela incapacidade de cuidar e educar seus rebentos

O Dr Augusto Penna Filho em seu depoimento disse que apoacutes examinar o

operaacuterio relatou ao delegado de poliacutecia que em seu exame

[] natildeo foi possiacutevel fazer um diagnostico de espancamento porquanto a

pleropneumonia pela intoxicaccedilatildeo que produz ao organismo pode fazer o

apparecimento de edema dores cyanose etc que aconselhou o doutor

Delegado de Policia que caso o menor vieacutesse a fallecer mandasse proceder aacute

autopsia porque existem si bem que raras pleuropneumonias thraumaticas602

A sugestatildeo do Dr Penna Filho de se proceder agrave autopsia no caso do falecimento

do ldquomenorrdquo pode ser interpretada como um alerta para a possibilidade de ter ocorrido o

espancamento Pode-se conjecturar que natildeo pretendendo contradizer seus

companheiros de profissatildeo ele tenha declarado que natildeo foi possiacutevel determinar que o

menino foi espancado poreacutem por alguma motivaccedilatildeo eacutetica ou ateacute sentimental ele

sentiu-se impelido a sugerir a autopsia esquivando-se de ser reprovado por seus colegas

e pelos setores dominantes Ele negou que o ldquomenorrdquo tenha lhe confidenciado que havia

sido espancado como a matildee de Micucci declarou em seu depoimento mas que essa

histoacuteria lhe foi contada pelos familiares do doente Em resposta a uma inquiriccedilatildeo do

advogado do reacuteu Dr Constantino Luiz Palleta o Dr Penna Filho assinalou que em

casos de infecccedilatildeo grave acompanhadas de temperaturas elevadas o paciente pode ldquo[]

manifestar terrores mostrando-se presa de phantasias e perseguiccedilotildeesrdquo

O depoimento do Dr Casemiro Villela de Andrade Filho no sumaacuterio de culpa

natildeo trouxe novidades com relaccedilatildeo ao estado do ldquomenorrdquo Esse meacutedico limitou-se a dizer

ldquoque natildeo depotildee sobre os factos que constatou durante o exame referentes ao doente

porque quer guardar o segredo profissionalrdquo Por que motivos o Dr Villela de Andrade

natildeo externou o seu parecer sobre a moleacutestia do menor Por que escolheu ldquoguardar o

segredo profissionalrdquo Seria isso uma confissatildeo velada de que a moleacutestia do jovem

operaacuterio Micucci e que o levou a morte era consequecircncia do espancamento de que

diziam que ele tinha sido viacutetima na Fiaccedilatildeo e Tecelagem da viuacuteva A Meurer e filhos Eacute

viaacutevel supor que o Dr Villela Filho natildeo quisesse se envolver no caso por natildeo concordar

com os rumos que o mesmo estava tomando A testemunha sendo reinquirida pelo

advogado do reacuteu disse ldquoque a ningueacutem externou o seu juiacutezo sobre a causa da moleacutestia

do menor Micucci ficando por essa foacuterma contestado o que se propalou a respeitordquo

602

Idem

222

A matildee do ldquomenorrdquo Maria Micucci contou em seu depoimento no sumaacuterio de

culpa que chamou o Dr Villela Filho para ir a sua casa ver o seu filho pois este natildeo

apresentava melhoras Ela relatou que o meacutedico disse ldquoque o haviam chamado aacute ultima

hora e que nada mais podia fazer que o doutor Villela ao sair disse que em vez de um

simples atestado deviam fazer autopsia em Micuccirdquo

O saber meacutedico foi construindo uma imagem do caso do suposto espancamento

do operaacuterio Micucci como uma ldquophantasiardquo arquitetada pela famiacutelia para obter algum

benefiacutecio e as provaacuteveis declaraccedilotildees do ldquomenorrdquo de que o gerente da faacutebrica Meurer

havia lhe batido seria nada mais nada menos que fruto de deliacuterios febris

A necropsia no cadaacutever do ldquomenorrdquo foi realizada no dia primeiro de agosto e o

resultado do laudo pericial saiu no dia sete do mesmo mecircs De acordo com uma mateacuteria

publicada no O Lynce a Associaccedilatildeo Operaacuteria havia contratado advogados e meacutedicos

para acompanharem o caso pois tinham receio de que a necropsia no corpo do ldquomenorrdquo

ldquofosse burladardquo Em protesto pelo acontecido foi declarada uma ldquogreve paciacutefica por 48

horasrdquo por ldquogrande parte do operariadordquo603

O exame pericial foi realizado em presenccedila do delegado de poliacutecia do promotor

puacuteblico representantes da imprensa e partes interessadas604

Os meacutedicos responsaacuteveis

pela necropsia no cadaacutever de Micucci foram os doutores Alberto Vieira Lima e Renato

de Andrade Santos (doutores pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro) que assim

concluiacuteram os resultados dos exames

[] podemos afirmar em san consciencia e conscios das nossas

responsabilidades de peritos que da necropsia tornou-se manifesta e essa eacute a

nossa firme convicccedilatildeo que a morte do menor Antonio Micucci ocorreu em

consequecircncia de uma ldquophlegmosia pleuro-pulmonarrdquo cujos caracteres

anatomicos digo anatomo-pathologicos podem ser com seguranccedila

emquadrado em sua espeacutecie moacuterbida sob a rubrica nosologica dosldquopleuro

pneumossitesrdquo E essa eacute a nosso ver a ldquocausa mortisrdquo A morte foi

ldquooccasionada por uma infecccedilatildeo especifica pelo ldquoPneumococcus de Tolomon

ndash Fraenkelrdquo [] Em tempo ndash accrecentamos que a inspecccedilatildeo da face interna

do thorax apoacutes a retirada das viacutesceras respectivas nada de anormal nos

apresentou605

O laudo pericial natildeo confirmou o suposto espancamento no ldquomenorrdquo sendo a

moleacutestia e a consequente morte do menino atribuiacutedas a uma ldquophlegmosia pleuro-

pulmonarrdquo

603

SM-BMMM ldquoColumna do Operariadordquo O Lynce 02-08-1919 p 2 604

Assinaram como testemunhas do exame pericial Norberto Madeira e Benjamim Barbosa Braga 605

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

223

O Lynce na mateacuteria intitulada ldquoPezames Operariado de Juiz de Foacuterardquo do dia

nove de agosto anunciando o desfecho do caso assinala que as operaacuterias que haviam

declarado que o ldquomenorrdquo havia sido espancado continuavam a confirmar essa

informaccedilatildeo A reportagem em tom sarcaacutestico assinala que ldquoagora eacute que os

espancamentos em menores operaacuterios continuaratildeo com maior intensificaccedilatildeo agora que

a lsquoboca dos mestres e contra mestres ficaram adoccediladasrsquo com o caso Micuccirdquo Nessa

mesma mateacuteria eacute informado o caso de outro espancamento ocorrido na faacutebrica de

tecidos dos Ingleses dias depois do ocorrido na faacutebrica Meurer606

Os relatos e as denuacutencias de violecircncias e de diversas formas de coerccedilatildeo

impetradas contra os trabalhadores das faacutebricas e oficinas do comeacutercio das unidades

rurais foram e satildeo realidade ainda hoje na vida de vaacuterios operaacuterios O caso do suposto

espancamento de Micucci e de outros que foram noticiados pela imprensa eacute apenas uma

pequena mostra do cotidiano dos trabalhadores

Os casos de violecircncia contra os trabalhadores urbanos ou rurais no poacutes-

aboliccedilatildeo eacute um retrato da sociedade brasileira que conviveu com o trabalho compulsoacuterio

por mais de 300 anos A cultura autoritaacuteria o mandonismo dos patrotildees e dos superiores

encontra suas raiacutezes no passado escravista brasileiro607

O poder poliacutetico e econocircmico

poacutes-aboliccedilatildeo continuou nas matildeos de antigos escravocratas e ou de seus descendentes

grupo esse marcado por uma profunda cultura autoritaacuteria A esse respeito John French

assinala

A cultura autoritaacuteria e paternalista das classes dominantes com seus

impulsos repressivos inatos continuaria a permear a sociedade brasileira

mesmo depois de 1888 moldando as dimensotildees interpessoais juriacutedicas e

ideoloacutegicas do Brasil capitalista e industrial do seacuteculo XX608

Apoacutes o laudo da necropsia a autoridade policial tomou as declaraccedilotildees de Maria

Micucci matildee do jovem operaacuterio e do reacuteu Antonio Gervason No ldquoauto de perguntasrdquo

ocorrido no dia oito de agosto de 1919 Maria Micucci relatou os uacuteltimos dias de seu

filho Segundo ela no dia vinte e trecircs de agosto uma quarta-feira dia do suposto

espancamento o menino retornou para casa no horaacuterio habitual ldquotriste e sem querer

receber alimentaccedilatildeo alguma que nessa noite o menino foacutera de seus haacutebitos se deitou

606

SM-BMMM ldquoPezames Operariado de Juiz de Foacuterardquo O Lynce 9 ago 1919 p 3 No jornal O Pharol

do dia 6 ago 1919 foi publicada nas Notas Policiais mais uma denuacutencia de espancamento de um pequeno

operaacuterio O ldquomenorrdquo Bernardo Lobo denunciou que havia sido espancado pelo ajudante de mestre da

Companhia Industrial Mineira SM-BMMM ldquoNotas Policiaisrdquo O Pharol 6 ago 1919 607

Para uma discussatildeo mais ampla sobre a questatildeo da escravidatildeo e liberdade no mundo do trabalho na

sociedade brasileira ver FRENCH John Op cit 2006 608

Idem p 78

224

vestidordquo A declarante disse que tomou essa atitude do filho como ldquopreguiccedila de voltar

ao trabalho e por isso natildeo se incomodou com o factordquo Nos dias seguintes Micucci

continuou a natildeo se alimentar e na sexta-feira em vez de ir para o trabalho foi para a

casa da irmatilde Ana Coelho que residia na Rua de Santa Rita Ao retornar para casa ele

solicitou para que a matildee pedisse ao gerente da faacutebrica Antonio Gervason para natildeo lhe

bater mais poreacutem

[] que ainda nessa occasiatildeo a declarante suppoz que se tratasse antes de

preguiccedila por parte do menor e natildeo quiz acreditar nas suas informaccedilotildees ou

queixas que no dia seguinte sabbado ainda fez com que seu filho Antonio

Micucci seguisse para a fabrica e como notasse que elle parecia seguir de maacute

vontade foi ateacute a esquina e de longe o observou ateacute a distancia que as cinco

horas tarde digo da tarde de sabbado regressou o menino tristonho e sem

acceitar alimento algum foi se deitar ocasiatildeo em que se pocircz vomitar que

nessa occasiatildeo a declarante indo saber do menor se sentia alguma coisa ficou

sabendo por elle que o sr Antonio Gervason lhe havia batido tambeacutem

naquelle dia (sabbado) e que assim natildeo podia mais suportar acrecentando

(sic) que estava machucado [nas costas] por um socirccco recebido que tinha

tambeacutem maxucada uma das pernas informando o menino que essa lesatildeo

recebeu contra um ferro da machina onde foi atirado por Gervason []

Apesar das insistentes queixas do menino a matildee disse natildeo ter acreditado antes

pensou que fosse apenas ldquopreguiccedilardquo Somente quando o ldquomenorrdquo comeccedilou a demonstrar

fisicamente que estava passando mal que a matildee passou a dar creacutedito a suas palavras A

eacutetica do trabalho provavelmente operou na decisatildeo da Maria Micucci de insistir para

que seu filho retornasse a suas atividades laborais pois aquele comportamento do

menino destoava do que era esperado pelos pais e responsaacuteveis e pela sociedade

dedicar-se ao trabalho As condiccedilotildees sociais das famiacutelias operaacuterias no iniacutecio do seacuteculo

XX muitas beirando a sobrevivecircncia possivelmente levaram muitos pais a fazerem

vistas grossas aos tapas e ldquopetelecosrdquo recebidos por seus filhos nos locais de trabalho ou

de aprendizagem de um ofiacutecio Entretanto eacute necessaacuterio ressaltar que o ato de corrigir

uma crianccedila ou adolescente atraveacutes da utilizaccedilatildeo da forccedila fiacutesica (bater surrar) fazia

parte nessa eacutepoca da concepccedilatildeo de educaccedilatildeo Os pais corrigiam e educavam seus filhos

com as chinelas varas tapas e palmatoacuterias E nas escolas os castigos fiacutesicos bem como

os morais tambeacutem eram empregados para disciplinar os alunos

Maria Micucci disse que mandou uma filha ir agrave casa de Gervason para lhe pedir

que enviasse meacutedico e medicamento e que nessa ocasiatildeo o gerente da faacutebrica Meurer

disse que ldquonatildeo o culpasse porque elle apenas tinha dado um peteleco no meninordquo Ele

enviou entatildeo ldquodois cartotildees sendo um para a pharmacia e outro para o medico Dr

225

Avilardquo Em seguida ela passou a relatar a visita de vaacuterios meacutedicos em sua casa para

examinar o ldquomenorrdquo

O gerente da faacutebrica limitou-se no ldquoauto de perguntasrdquo a dizer que natildeo havia

batido no menino Micucci e que era ldquointeiramente innocente no facto que se lhe

imputardquo Disse tambeacutem que no saacutebado havia mandado o ldquomenor comprar um paiz

para sua leitura que a esse menino dava preferencia para seus [mandaletes] por ser elle

um bom meninordquo

Atraveacutes do depoimento do gerente Gervason observa-se que aleacutem das

atividades exercidas no recinto fabril os ldquomenoresrdquo tambeacutem eram utilizados para

cumprirem outras tarefas os [mandaletes] para seus superiores

O delegado de poliacutecia Joseacute Ribeiro de Abreu em seu relatoacuterio no processo crime

de ldquoque foi theatro a Fabrica de Tecidos de Malha da viuacuteva A Meurer e Filhos e fez

echo em toda a imprensa desta cidade e ateacute fora daquirdquo passou a relatar como tomou

conhecimento do suposto espancamento sofrido pelo operaacuterio na dita faacutebrica Ele disse

que foi procurado em sua residecircncia por duas senhoras na tarde do dia 30 de julho que

lhe relataram o caso Apoacutes esse fato ele

[] mandou na casa do menor o Dr Joatildeo Monteiro meacutedico da poliacutecia e

recomendou aos agentes de policia que sobre o facto procedessem aacute

necessaacuteria investigaccedilatildeo porque no inqueacuterito regular que [tencionava]

instaurar tudo ficaria esclarecido

Em sua explanaccedilatildeo dos fatos disse que foi procurado na delegacia por um

italiano de nome Paschoal Luiz que denunciou ter sido o jovem operaacuterio espancado

pelo gerente da faacutebrica Meurer e que ele ldquomorreria em consequecircncia dos ferimentos

graves que lhe produziu Antonio Gervasonrdquo O delegado disse que alertou o dito

Paschoal da gravidade da denuacutencia e sobre a possibilidade de ele responder um processo

por caluacutenia caso aquela acusaccedilatildeo natildeo fosse confirmada Poreacutem Paschoal natildeo

compreendendo esse alerta da autoridade policial ou de maacute feacute passou a declarar que

Joseacute Ribeiro de Abreu natildeo queria tomar providecircncias sobre o caso e que ateacute o havia

ameaccedilado de prisatildeo O delegado desmente essas informaccedilotildees Apesar de denunciar o

suposto espancamento na delegacia Paschoal Luiz natildeo apareceu entre as testemunhas

do caso Micucci

Ainda em seu relatoacuterio dos fatos o delegado passou a descrever os depoimentos

das testemunhas as contradiccedilotildees e o resultado do laudo do auto de corpo de delito que

226

estabeleceu que natildeo havia evidecircncias do suposto espancamento Com relaccedilatildeo aos

depoimentos das testemunhas onde algumas declararam que ocorreu o espancamento e

outras que o negaram o delegado de poliacutecia ponderou que como natildeo se tratava

na hyppothese de testemunhas versadas na arte de enganar satildeo antes moccedilas

empregadas da mesma fabrica e que naturalmente natildeo alimentam nenhuma

animosidade contra o indiciado animosidade essas que as conduzissem a

uma possiacutevel mentira a sustentaccedilatildeo da invencionice natildeo era faacutecil mormente

no auto de acareaccedilatildeo quando foram inquiridas umas testemunhas em frente

das outras609

(grifos no original)

De acordo com as provas dos autos e provavelmente por natildeo acreditar que as

testemunhas que confirmaram o espancamento estivessem mentindo por completo o

delegado concluiu que o gerente da Faacutebrica de tecidos de Malhas Meurer Antonio

Gervason realmente

offendeu physicamente e levemente ao menor Antonio Micucci incorrendo

por isso na sancccedilatildeo do art 303 do Cod Pen que diz ldquooffender pysicamente

algueacutem produzindo-lhe dor ou alguma lesatildeo no corpo embora sem

derramamento de sangue610

O delegado Joseacute Ribeiro de Abreu natildeo descartou a possibilidade do ldquomenorrdquo ter

sofrido algum tipo de violecircncia fiacutesica por parte do gerente Antonio Gervason Todavia

ele ressaltou que a ofensa fiacutesica foi leve posto isso nenhuma relaccedilatildeo poderia ter com a

causa mortis do jovem operaacuterio Micucci tendo ocorrido pois uma ldquoinfeliz

coincidecircnciardquo e desta forma Gervason natildeo poderia ser responsabilizado pela morte do

ldquomenorrdquo

Com a conclusatildeo do inqueacuterito policial os autos foram remetidos para o Juiz

Municipal da Comarca de Juiz de Fora Hugo de Andrade Santos Apoacutes os mesmos

foram remetidos ao Promotor Puacuteblico para dar ldquoVistardquo No dia sete de outubro de 1919

apoacutes dar ldquoVistardquo aos autos o promotor puacuteblico Dr Nisio Baptista de Oliveira

apresentou denuacutencia contra Antonio Gervason pelo suposto espancamento do ldquomenorrdquo

por ter infringido o art 303 do Coacutedigo Penal

As testemunhas foram arroladas e intimadas para deporem no processo judicial

No interrogatoacuterio foram ouvidas tambeacutem as irmatildes da viacutetima Ana Coelho e Rosa

Micucci No interrogatoacuterio da matildee do ldquomenorrdquo Maria Micucci ela declarou que

609

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138 610

Idem

227

inicialmente natildeo acreditou nas queixas de seu filho de que ldquoGervason o espancava e isso

todas as vezes em que se quebrava uma agulha poreacutem a depoente natildeo acreditava e

suppunha ser [faralandice] e mentira de seu filhordquo Relatou ainda que quando seu filho

adoeceu e a depoente o chamava cedo para o trabalho o mesmo se queixava dela e dizia

que por ela ser ldquoitaliana estava esganada pelo seu trabalhordquo611

Na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX o Brasil recebeu uma grande leva de

imigrantes principalmente de origem europeia Muitos imigrantes vieram fugindo de

guerras e conflitos da fome e da miseacuteria Eles traziam em suas trouxas e bagagens o

sonho de uma vida melhor na nova terra poreacutem esse sonho para a grande maioria

rapidamente se desvaneceu Nas aacutereas rurais eles foram submetidos a vaacuterias formas de

exploraccedilatildeo e coerccedilatildeo que se assemelhavam agraves relaccedilotildees escravistas o que contribuiu

para que muitos deles abandonassem as unidades agriacutecolas para viverem nas aacutereas

urbanas engrossando dessa forma o contingente de matildeo de obra disponiacutevel para a

induacutestria bem como de miseraacuteveis Nos centros urbanos os imigrantes empregados no

comeacutercio nas oficinas e nas faacutebricas tambeacutem vivenciaram vaacuterias formas de coerccedilatildeo e

exploraccedilatildeo da sua forccedila de trabalho Eacute viaacutevel supor que as dificuldades enfrentadas

pelas famiacutelias imigrantes desde sua terra natal fizessem com que vislumbrassem no

trabalho uma saiacuteda para melhorar as condiccedilotildees de vida e desse modo era de

fundamental importacircncia a contribuiccedilatildeo de todos os membros da famiacutelia Quando o

jovem operaacuterio Micucci dizia que sua matildee por ser ldquoitaliana estava esganada pelo seu

trabalhordquo talvez fosse pelo fato de ela o obrigar a trabalhar mesmo ele natildeo se sentido

bem ou pela crenccedila ou desejo de seus pais melhorem as condiccedilotildees de vida em uma terra

estrangeira fazendo com que todos os membros trabalhassem Todavia nesse caso

apenas conjecturas podem ser tecidas

No processo judicial as irmatildes do operaacuterio Micucci Ana Coelho 29 anos de

idade italiana casada e do serviccedilo domeacutestico e Rosa Micucci 19 anos de idade

brasileira solteira tecelatilde foram intimadas Em seu depoimento Ana disse que os

remeacutedios e meacutedicos fornecidos a ldquoseu irmatildeo o foram pela Caixa de Beneficencia a que o

mesmo tinha direito como um de seus contribuintesrdquo Rosa assinalou que a pedido de

611

De acordo com o Diccionaacuterio da Liacutengua Portugueza de Antonio de Moraes Silva ldquoEsganarrdquo

significava afogar apertando as fauces estrangular Privar de liacutequidos matar algueacutem com sede

Estrangular-se Se com sede de ouro ou etc desejar muito o ouro ou as cousas que se appetecem com

ardor Flor Diz-se tambeacutem que se esganam os que fallam ou gritam muito BMMM-SM SILVA

Antonio de Moraes Diccionario da Liacutengua Portugueza 6 ed Lisboa Typographia de Antonio Joseacute da

Rocha 1858 (Tomo I ndash A-E)

228

sua matildee foi agrave casa do gerente Gervason solicitar o envio de meacutedico e remeacutedio para seu

irmatildeo que estava doente e que nessa ocasiatildeo o gerente da faacutebrica Meurer disse que ldquolhe

havia dado uns petelecos e que Antonio Micucci era muito preguiccediloso e sem

vergonha[]rdquo Ela ressaltou ainda que Gervason havia dito para que ldquonatildeo o pusessem

no embrulho porque quem com isso havia de soffrer mais tarde era a matildee da

declaranterdquo Levando em consideraccedilatildeo as palavras de Rosa Micucci pode-se dizer que o

gerente da faacutebrica Meurer Antonio Gervason ameaccedilou a famiacutelia do ldquomenorrdquo

supostamente espancado caso ele fosse envolvido no ldquoembrulhordquo Mas no que

consistiria essa ameaccedila O que Gervason quis dizer ao afirmar que quem haveria de

sofrer caso ele fosse envolvido em alguma questatildeo seria a matildee do ldquomenorrdquo Micucci

Seria essa uma ameaccedila de demissatildeo do menino Micucci ou de outro parente que

trabalhava na faacutebrica

Apoacutes a inquiriccedilatildeo das testemunhas o Promotor Puacuteblico Nisio Baptista de

Oliveira considerou desnecessaacuteria a realizaccedilatildeo da acareaccedilatildeo entre as testemunhas que

apresentaram contradiccedilotildees em seus depoimentos pois tal expediente jaacute havia sido

realizado no inqueacuterito policial Apoacutes todas as testemunhas serem ouvidas o reacuteu Antonio

Gervason foi intimado a comparecer no Foacuterum no dia trecircs de fevereiro de 1920 O reacuteu

apresentou a sua defesa por escrito jaacute que a lei lhe facultava esse direito

O procurador do reacuteu o Dr Constantino Luiz Palleta no texto de defesa iniciou

dizendo que toda aquela situaccedilatildeo era ldquoproducto do boato o pernicioso arauto das mais

extravagantes phantazias o eterno demolidor das mais solidas reputaccedilotildeesrdquo A defesa eacute

construiacuteda com o intuito de transformar a provaacutevel violecircncia sofrida pelo ldquomenorrdquo em

uma grande ldquophantaziardquo e sua argumentaccedilatildeo foi embasada nos depoimentos dos

meacutedicos no laudo cadaveacuterico e no depoimento das testemunhas que disserem que natildeo

viram e nem sabiam de nada O Dr Palleta ressaltou que o resultado da lsquoautopsiarsquo

confundiu os ldquoboateirosrdquo pois nenhuma evidecircncia de espancamento foi apurada

ldquointerna e externamente e ndash precisando de modo seguro e irretorquiacutevel aacute luz da

sciencia a causa mortis ndash o que tudo excluiacutea de modo peremptorio o phantaziado

assassinatordquo612

O advogado do reacuteu descaracterizou os depoimentos das trecircs testemunhas que

disseram que assistiram o ldquomenorrdquo ser espancado pelo gerente da faacutebrica Meurer

Segundo o Dr Palleta o depoimento das operaacuterias natildeo era a ldquoexpressatildeo de verdaderdquo

612

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

229

por isso natildeo mereciam ldquofeacuterdquo Ele foi pontuando passo a passo os depoimentos das

testemunhas demonstrando a imprecisatildeo e as contradiccedilotildees dos mesmos O advogado

citou um documento enviado pela irmatilde da testemunha Sebastiana Pereira em que

estava assinalado que a operaacuteria natildeo assistiu ao espancamento mas que fora ldquoinduzida a

fazer aquelle depoimentordquo na poliacutecia por outra pessoa O documento ao qual se refere o

Dr Palleta eacute de dezoito de outubro de 1919 Entretanto o depoimento no sumaacuterio de

culpa (justiccedila) deu-se no dia vinte e nove de outubro de 1919 no qual ela confirmou que

havia assistido ao gerente Gervason espancar o menino Micucci Esse ponto o advogado

esqueceu de ressaltar uma vez que o depoimento dias depois da entrega da carta ao Sr

Gervason desmente o seu conteuacutedo Logo apoacutes ele passa a analisar o depoimento de

Maria Joseacute Sayatildeo que segundo ele era ldquocomparsa de invencionicerdquo de Sebastiana

Pereira O depoimento de Maria Joseacute eacute colocado pelo advogado como uma retaliaccedilatildeo da

operaacuteria ao gerente pois ldquopresa do propoacutesito de comprometter a todo o custo o

indiciado de quem guardava serio sentimento por oppor-se elle a suas desenvolturas e

desembaraccedilos na fabrica ndash sob sua direccedilatildeordquo Colocado dessa forma o advogado daacute a

entender que a operaacuteria desejava apenas se vingar de Gervason e junto com outras

operaacuterias e com a famiacutelia do ldquomenorrdquo criaram toda aquela ldquoinvencionicerdquo de

espancamento O Dr Palleta continua sua explanaccedilatildeo assinalando que exames feitos em

Micucci antes de seu falecimento e a lsquoautopsiarsquo natildeo verificaram a presenccedila de

espancamento em seu corpo e que entre as declaraccedilotildees dos meacutedicos e das operaacuterias ldquonatildeo

haacute vacillarrdquo (sic) ou seja as palavras dos doutores tinham no seu entender mais

creacutedito do que as das moccedilas operaacuterias O advogado argumentou ainda que como as

testemunhas haviam afirmado que o ldquomenorrdquo ldquonatildeo chorou natildeo gritou natildeo gemeurdquo

quando foi supostamente espancado natildeo demonstrando dor o acusado natildeo poderia ser

incurso no art 303 do Coacutedigo Penal613

dada a falta da comprovaccedilatildeo da dor bem como

de lesotildees corporais

A defesa argumentou que se realmente o reacuteu tivesse ldquocastigado

moderadamenterdquo o operaacuterio por uma falta cometida ldquoteria soacute por isso transgredido o

disposto no artigo citado e incorrido na respectiva sanccedilatildeordquo O advogado Dr Palleta

ainda ponderou que Antonio Gervason ldquona qualidade de gerente da faacutebrica de mestre de

613

O artigo 303 do Coacutedigo Penal de 1890 determinava que ldquoOffender physicamente alguem produzindo-

lhe docircr ou alguma lesatildeo no corpo embora sem derramamento de sangue Pena - de prisatildeo cellular por tres

mezes a um annordquo Para mais informaccedilotildees consultar Coacutedigo Penal - Decreto no 847 de 11 de Outubro

de 1890 Disponiacutevel em httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-847-11-outubro-

1890-503086-publicacaooriginal-1-pehtml

230

toda a officina ndash natildeo se lhe pode negar o direito de correccedilatildeo uma vez que esta natildeo

excedesse aos justos limites do castigo moderadordquo Ele citou alguns ldquomestresrdquo do direito

penal (Puglia Nypels et Servais Chauveam et Helie Blanche Garraud etc) e o artigo

230 do Coacutedigo Penal brasileiro614

para embasar seu argumento de que o gerente da

faacutebrica Meurer tinha o direito por lei de corrigir o operaacuterio Micucci e isso era o que

estava sendo ldquofirmado pela jurisprudencia dos tribunaesrdquo Como jaacute assinalei

anteriormente o ato de corrigir utilizando-se da forccedila fiacutesica era de certa forma aceito

pela sociedade

O advogado do reacuteu ainda apresentou as declaraccedilotildees do farmacecircutico Vespaziano

Pinto Vieira para embasar seu argumento de que o ldquomenorrdquo Micucci natildeo foi alvo de

nenhuma violecircncia no interior da faacutebrica Meurer No texto a defesa assinala que o

farmacecircutico declarou ter ouvido o menino dizer que natildeo havia sido espancado pelo

gerente da faacutebrica Meurer Antonio Gervason Com relaccedilatildeo ao depoimento da matildee e das

irmatildes de Micucci o Dr Palleta disse que natildeo teceria nenhum comentaacuterio ldquoem attenccedilatildeo

e respeito ao delicado sentimento que devera pungir o coraccedilatildeo de taes pessoas pela

perda do ente queridordquo Poreacutem ele fez uma ressalva ao dizer que de acordo com o

depoimento de meacutedicos e de fatos preferiu ldquosilenciarrdquo pois ldquomuito poderiacuteamos inferir

para desnudar a preocupaccedilatildeo ndash menos lisa ndash que sempre tiveram taes pessoas ndash

responsabilisando o accusado pela morte de Micuccirdquo A defesa encerra o texto

solicitando a absolviccedilatildeo do acusado uma vez que natildeo ficou provada a denuacutencia de

espancamento

Na conclusatildeo do processo o Juiz Municipal Hugo de Andrade Santos em sua

explanaccedilatildeo dos fatos assinalou que as divergecircncia observadas nos depoimentos das trecircs

operaacuterias da faacutebrica Meurer se justificavam

[] porque segundo o illustre professor da Universidade de Graz a natureza

e educaccedilatildeo as impedem de adquirir o rapido e seguro golpe de vista sobre

factos inesperados e satildeo ellas incapazes de ver e apreciar com exatidatildeo a sua

importacircncia e modalidade615

614

O artigo 230 do Coacutedigo Penal de 1890 estipulava que ldquoExceder a prudente faculdade de reprehender

corrigir ou castigar offendendo ultrajando ou maltratando por obra palavra ou escripto algum

subalterno dependente ou qualquer outra pessoa com quem tratar em razatildeo do officio Pena - de

suspensatildeo do emprego por um mez a um anno aleacutem das mais em que incorrer pelo excesso ou injuria que

praticar Para mais informaccedilotildees consultar Coacutedigo Penal - Decreto n 847 de 11 de Outubro de 1890

Disponiacutevel em httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-847-11-outubro-1890-

503086-publicacaooriginal-1-pehtml 615

AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima

Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138

231

Com relaccedilatildeo aos depoimentos dos meacutedicos o Juiz Municipal assinalou que os

deixavam de parte apesar de dois terem verificado a presenccedila de contusotildees no tornozelo

esquerdo do operaacuterio Micucci mas essa informaccedilatildeo natildeo tinha importacircncia no processo

uma vez que o reacuteu estava sendo julgado por espancamento e nesse caso a ldquodocircr basta

para caracterizar o crime Phenomeno subjetivo que eacute soacute a victima poderia declarar tel-a

ou natildeo sentido e na ausecircncia drsquoessa declaraccedilatildeo diz a jurisprudecircncia ao juiz compete

concluir por inducccedilatildeo a sua existenciardquo Para embasar seu argumento de que o ldquomenorrdquo

sentiu dor ao ser espancado o Juiz Municipal Hugo de Andrade Santos apoiou-se nos

depoimentos das testemunhas que disseram terem assistido ao fato e que Micucci

recebera vaacuterios tapas do gerente Gervason Segundo a argumentaccedilatildeo do Juiz ldquotapas de

um homem de 42 annos no momento de raiva em uma creanccedila de 13 annos fatalmente

produzem dor com ou sem escoriaccedilotildees ou ecchymosesrdquo O Juiz ainda ponderou que as

manchas produzidas pelo espancamento e que poderiam receber vaacuterias denominaccedilotildees

poderiam desaparecer em pouco tempo ldquopois se diffudem aacutes vezes rapidamente e nem

sempre estatildeo em proporccedilatildeo com a violencia do traumatismo mas dependem da

constituiccedilatildeo individual do local da edade etcrdquo Essa argumentaccedilatildeo fundamenta-se no

livro de Hans Grou ldquoGuia Pratico para a instrucccedilatildeo dos processos criminaisrdquo

O Juiz Municipal desconstruiu o argumento do advogado do reacuteu Dr

Constantino Luiz Palleta de que o gerente da faacutebrica Meurer teria agido em

conformidade com a lei caso tivesse repreendido o operaacuterio Micucci Segundo o Juiz o

artigo 230 do Coacutedigo Penal citado e utilizado pelo Dr Palleta na defesa do reacuteu referia-

se ldquoao excesso de poder da autoridade publica ou funcionaacuterio publico tanto assim que a

pena eacute de suspensatildeo de empregordquo Desta forma a invocaccedilatildeo do art 230 natildeo era propiacutecia

agrave defesa do reacuteu Antonio Gervason Pelas provas dos autos o Juiz Municipal Hugo de

Andrade dos Santos julgou no ldquodespacho de pronuacutenciardquo procedente a denuacutencia de

espancamento do operaacuterio Micucci e pronunciou o reacuteu Antonio Gervason no artigo 303

do Coacutedigo Penal sujeitando-o a prisatildeo e arbitrou o valor da fianccedila provisoacuteria em

500$000 A fianccedila provisoacuteria foi paga

O juiz de direito da comarca de Juiz de Fora Augusto Cesar Pedreira Franco foi

ponderando parte a parte o ldquodespacho de pronuacutenciardquo proferido pelo juiz municipal Hugo

de Andrade Santos Em suas observaccedilotildees considerou improcedente a pronuacutencia do reacuteu

Antonio Gervason no art 303 do Coacutedigo Penal pois segundo ele natildeo havia provas

cabais sobre o espancamento do ldquomenorrdquo pelo gerente da faacutebrica Com relaccedilatildeo aos

232

depoimentos das operaacuterias e as divergecircncias constatadas o Juiz de Direito inferiu o

seguinte

[] si seis raparigas todas operarias collocadas no mesmo niacutevel social

tendo as mesmas virtudes e os mesmos defeitos a mesma educaccedilatildeo e quasi

que a mesma edade divergem em seus depoimentos quando tinham razatildeo de

saber que um facto teve ou natildeo teve existencia natildeo pode o juiz sem mais

exame declarar que a verdade estaacute com o grupo que affirma e natildeo com

aquelle que nega Na duvida ou haacute de recorrer a outros elementos de prova

ou haacute de se estes natildeo existem pender para o grupo que nega Pode acontecer

que natildeo esteja com este a verdade Pouco importa O juiz julga pelo allegado

e provado e havendo conflicto de provas a decisatildeo deve sempre ser a mais

favoraacutevel ao accusado In dubio pro reo616

Em oito de maio de 1920 com base nos depoimentos dos meacutedicos testemunhas

e peritos o juiz de direito Augusto Cesar Pedreira Franco deu ldquoprovimento ao recurso

necessaacuterio interposto do despacho de pronunciardquo e o reformou e julgou como

ldquoimprocedente a denuncia de fls 2rdquo Dessa forma o reacuteu Antonio Gervason foi

inocentado da acusaccedilatildeo de ter espancado o ldquomenorrdquo Antonio Micucci no interior da

Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer em julho de 1919

A documentaccedilatildeo criminal segundo Baacuterbara Lisboa Pinto fornece mecanismos

para se perceber nas visotildees dos agentes do judiciaacuterio o que destacavam como

relevante De acordo com a autora ldquosatildeo inuacutemeras as maneiras de se interpretar e

portanto de se fazer cumprir a lei Nesses documentos igualmente podemos perceber

diaacutelogos e conflitos com a sociedaderdquo617

No processo crime de lesatildeo corporal analisado nesse artigo percebe-se o embate

entre os agentes do judiciaacuterio que utilizando o mesmo corpo de lei e literatura afins

tiveram uma interpretaccedilatildeo completamente diversa sobre o suposto espancamento do

ldquomenorrdquo Micucci O Juiz de Direito Augusto Cesar Pedreira Franco teve uma visatildeo

mais pragmaacutetica do caso Ele desconsiderou o depoimento dos familiares do ldquomenorrdquo e

das operaacuterias que disseram que assistiram ao gerente Antonio Gervason espancar

Antonio Miccuci atendo-se apenas agraves declaraccedilotildees dos meacutedicos e ao resultado do auto

de corpo de delito Enquanto isso o Juiz Municipal Hugo de Andrade Santos deu

616

In dubio pro reo em duacutevida pelo reacuteu TARANTI Patrick G Dicionaacuterio baacutesico de latim-portuguecircs

expressotildees e termos juriacutedicos 1 ed virtual SP Cajuru 2006 Disponiacutevel em

httpptslidesharenetWaleriahicionrio-bsico-latimportugus-expresses-e-termos-jurdicos Acessado em

10-11-2013 617

PINTO Baacuterbara Lisboa ldquoO ldquomenorrdquo nos processos criminais sob a oacutetica dos atores dos Tribunais

Criminais no iniacutecio da Repuacuteblicardquo In RIBEIRO Gladys Sabina NEVES Edson Alvisi FERREIRA

Maria de Faacutetima C Moura (orgs) Diaacutelogos entre Direito e Histoacuteria cidadania e justiccedila Niteroacutei

EdUFF 2009 p 143

233

creacutedito agraves declaraccedilotildees dos familiares e das operaacuterias apesar de observar certas

contradiccedilotildees presentes nos depoimentos das mesmas Sobre as atitudes dos agentes da

Justiccedila Baacuterbara L Pinto ressaltou

[] na esfera processual a atuaccedilatildeo dos agentes era norteada por elementos

presentes na hora de acusar de defender ou de decidir sobre questotildees

referentes ao crime em tela Estavam em jogo concepccedilotildees formadas pela

influecircncia da formaccedilatildeo acadecircmica pela forma de compreender o Direito e a

tradiccedilatildeo juriacutedica no Brasil pela influencia do pensamento de autores

valorizados nos manuais de doutrina de direito penal pela organizaccedilatildeo da

burocracia judiciaacuteria pelas praacuteticas que se desenvolviam no cotidiano de

cada instacircncia da justiccedila e esses indiviacuteduos eram ainda influenciados pelas

noccedilotildees gerais de justiccedila que permeavam o universo juriacutedico como aquelas

que faziam parte da opiniatildeo puacuteblica618

As peacutessimas condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios e os abusos de autoridade por

parte de patrotildees e chefes nas faacutebricas nas oficinas no comeacutercio nas residecircncias e nas

lavouras natildeo deveriam ser desconhecidas dos juiacutezes envolvidos no caso do ldquomenorrdquo

Micucci uma vez que os perioacutedicos geralmente traziam mateacuterias sobre as

reivindicaccedilotildees dos proletaacuterios sobre acidentes de trabalho e denuacutencias diversas Por

isso eacute viaacutevel supor que o Juiz Municipal Hugo de Andrade Santos tenha se mostrado

mais suscetiacutevel aos relatos das operaacuterias e dos familiares de Micucci e por isso tenha

pronunciado o reacuteu no artigo 303 do Coacutedigo Penal (1890)

O processo crime de lesatildeo corporal do menino Micucci eacute um retrato das

precaacuterias condiccedilotildees de vida e de trabalho da classe operaacuteria do iniacutecio do seacuteculo XX que

se via na necessidade de inserir seus filhos ainda bem jovens no mercado de trabalho

No processo tambeacutem se apreende o clima tenso entre os companheiros frente a uma

situaccedilatildeo limite no caso a denuacutencia do gerente da faacutebrica A possibilidade de perder o

emprego provavelmente foi um mecanismo de coerccedilatildeo utilizado pelos patrotildees para

frearem as reivindicaccedilotildees dos trabalhadores e para mantecirc-los calados em casos

semelhantes ao do operaacuterio Micucci

618

Idem

234

CAPIacuteTULO 4

OS ldquoDESERDADOS DA SORTErdquo A ASSISTEcircNCIA

AOS ldquoMENORESrdquo POBRES

Imagem 20 Fachada do Asilo Joatildeo Emilio - 1915 ESTEVES Albino LAGE Vidal Barbosa (org) Aacutelbum do

municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees 2008 p 263

235

41 AS INSTITUICcedilOtildeES PARA ldquoMENORESrdquo DESVALIDOS UMA

OBRA DE CARIDADE CRISTAtilde E UM DEVER DO ESTADO

[]

Aos quinze foi mandado pro reformatoacuterio

Onde aumentou seu oacutedio diante de tanto terror

(Faroeste Caboclo - Legiatildeo Urbana)

Atualmente a miacutedia de modo geral tem dado muito destaque aos atos

infracionais cometidos e ou que tiveram a participaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo As reportagens

tambeacutem ressaltam os casos de assassinatos e de chacina de jovens nas comunidades e

em bairros da periferia das grandes e meacutedias cidades praticados por pessoas ligadas

principalmente ao traacutefico de drogas por causa dos chamados ldquoacertos de contasrdquo bem

como por alguns policiais despreparados para as accedilotildees ou envolvidos com a

criminalidade Segundo o Conselho Nacional do Ministeacuterio Puacuteblico ocorreu um

aumento na ordem de 7 no nuacutemero de representaccedilotildees registradas pelos Ministeacuterios

estaduais no que diz respeito aos atos infracionais cometidos por menores de 18 anos

num comparativos entre os anos de 2011 e 2012619

Essas notiacutecias satildeo utilizadas por

uma parcela de poliacuteticos juristas repoacuterteres apresentadores policiais e por diversos

outros setores da sociedade para defender a reduccedilatildeo da maioridade penal no paiacutes

Objetivando sensibilizar a opiniatildeo puacuteblica a esse respeito muitas vezes satildeo lanccediladas as

perguntas ndash ldquoe se fosse com vocecircrdquo ldquoe se fosse com seu filho ou sua filhardquo ou ldquoe se

fosse com um parente seurdquo Assim a questatildeo passa para um niacutevel de discussatildeo pessoal

do indiviacuteduo do emocional ficando relegado a segundo plano a problemaacutetica efetiva da

crianccedila e do jovem infrator abandonada em risco social e desassistida

619

ldquoAumentam representaccedilotildees contra menores por crimes diz MPrdquo Disponiacutevel em

g1globocombrasilnoticia201306aumentam-representacoes-contra-menores-por-crimes-diz-mphtml

Acessado em 16-02-2015 A morteassassinatochacina de ldquomenoresrdquo procedentes das classes sociais

desfavorecidas eacute concebida por alguns setores das classes dominantes como um alivio um ldquobenefiacuteciordquo

uma limpeza para a sociedade Sobre o assassinato de ldquomenoresrdquo o presidente do Clube de Diretores

Lojistas do Rio de Janeiro (1991) assinalou que ldquomatando-se um pivete se faz um benefiacutecio agrave sociedaderdquo

Na Comissatildeo Parlamentar de Inqueacuterito da Cacircmara Federal referente ao extermiacutenio de crianccedilas e

adolescentes ele tentou negar tal declaraccedilatildeo poreacutem natildeo obteve ecircxito e procurou se justificar alegando

que ldquopivetes natildeo satildeo crianccedilas possuem entre 1216 anos e tem forccedila suficiente para enfrentar um adultordquo

Segundo Gisaacutelio Cerqueira Filho tal postura demonstra o ldquodesrespeito agrave lei como mecanismo inscrito na

cultura da violecircnciardquo Pela fala do Presidente do Clube de Lojista do RJ ldquopivetesrdquo de ldquo1216 anos natildeo satildeo

crianccedilasrdquo assim pressupotildee-se que apenas os filhos de 1216 anos de idade de famiacutelias de certo poder

aquisitivo podem ser classificadas de crianccedilasadolescentes e merecem viver estudar serem protegidos

por leis entre outros direitos CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio A Ideologia do Favor amp a Ignoracircncia

Simboacutelica da Lei Rio de Janeiro Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro 1993 p 28 Cf Jornal do

Brasil 23 ago 1991

236

Segundo os dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

(SINASE)620

relativos ao ldquolevantamento anual dosas adolescentes em cumprimento de

medida socioeducativa ndash 2012rdquo o Brasil tem 010 de jovens cumprindo medidas

socioeducativas de restriccedilatildeo e privaccedilatildeo de liberdade e 041 cumprindo Prestaccedilatildeo de

Serviccedilos agrave Comunidade (PSC) e em Liberdade Assistida (LA) Essa porcentagem

segundo o relatoacuterio do SINASE2012 eacute pequena frente ao quantitativo da populaccedilatildeo de

jovens do paiacutes que segundo o censo de 2007 era de 21265930621

Tal constataccedilatildeo

demonstra a necessidade de implantaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas efetivas para o

atendimento das crianccedilas e jovens das classes subalternas da sociedade e do

cumprimento real das disposiccedilotildees do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA 1990)

que infelizmente ainda natildeo atinge todas as crianccedilas do paiacutes pois muitas natildeo tecircm

acesso agrave escola agrave sauacutede entre outros direitos satildeo exploradas sexualmente e satildeo

inseridas precocemente em atividades prejudiciais ao seu desenvolvimento fiacutesico e

intelectual

O relatoacuterio ainda destacou que os atos infracionais satildeo cometidos

principalmente por ldquomenoresrdquo do sexo masculino (2010-2012) correspondendo por

95 das accedilotildees Tais dados se refletem no nuacutemero de unidades socioeducativas

destinadas ao atendimento de jovens do sexo masculino que perfazem um total de 377

O Brasil conta com 452 unidades nas ldquomodalidades de atendimento de internaccedilatildeo

internaccedilatildeo provisoacuteria semiliberdade e atendimento inicialrdquo desse total 35 satildeo

instituiccedilotildees femininas e 40 mistas (masculina e feminina) A regiatildeo sudeste comporta a

maioria dos estabelecimentos socioeducativos do paiacutes sendo responsaacutevel por 46

deles Os dados do relatoacuterio do SINASE2012 tambeacutem apontaram que a internaccedilatildeo eacute a

medida mais aplicada aos jovens infratores sendo os principais atos infracionais

620 O Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente (CONANDA) aprovou e publicou em

2006 a resoluccedilatildeo no 119 que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) Em

2006 tambeacutem foi encaminhado ao Congresso Nacional ldquoum conjunto de propostas [] para que se

fizessem detalhamentos e complementaccedilotildees necessaacuterias em relaccedilatildeo ao adolescente em cumprimento de

medida socioeducativa ao Estatuto da Crianccedila e Adolescente ndash ECA ndash no acircmbito deste tema as quais

deram origem agrave Lei Federal n 125942012rdquo Assim a Resoluccedilatildeo 1192006 e a Lei Federal 125942012

fazem parte do que foi denominado de ldquonormatizaccedilatildeo conceitual e juriacutedica necessaacuteria agrave implementaccedilatildeo

dos princiacutepios consagrados na Constituiccedilatildeo Federal e no ECA em todo territoacuterio nacional referentes agrave

execuccedilatildeo das medidas socioeducativas destinadas aos adolescentes em atendimento socioeducativordquo

Levantamento anual dosdas adolescentes em conflito com a Lei ndash 2012 Brasiacutelia Secretaacuteria de Direitos

Humanos da Presidecircncia da Repuacuteblica 2013 p 8-9 Disponiacutevel em wwwsdhgovbrassuntoscriancas-

e-adolescentespdflevantamento-sinase-2012 Acessado em 16-02-2015 621

Levantamento anual dosdas adolescentes em conflito com a Lei ndash 2012 p 11-12

237

praticados pelos ldquomenoresrdquo o roubo (3870) o traacutefico (2705) e o homiciacutedio

(903)622

Os dados do relatoacuterio trazem apenas um retrato dos tipos de crimes cometidos

pelos jovens todavia natildeo apresentam as condiccedilotildees das instituiccedilotildees de atendimento a

realidade de vida dessa parcela da populaccedilatildeo entre outros fatores Como apontado pelo

documento a internaccedilatildeo eacute a principal medida de atuaccedilatildeo do poder puacuteblico para com os

ldquomenoresrdquo infratores Todavia apesar do sistema de privaccedilatildeo da liberdade dos

chamados jovens infratores o que se verifica nos uacuteltimos anos eacute um aumento da

criminalidade entre essa parcela da populaccedilatildeo do paiacutes Assim eacute preciso procurar

compreender os fatores desse crescimento para combater suas causas O modelo vigente

de medidas socioeducativas de privaccedilatildeo da liberdade natildeo tem dado o resultado esperado

pelas autoridades e pela populaccedilatildeo Em geral o aumento da participaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo

em crimes as constantes rebeliotildees nos estabelecimentos e as reincidecircncias de atos

infracionais entre os jovens tecircm demonstrado isso A reduccedilatildeo da maioridade penal

colocada como a soluccedilatildeo para a problemaacutetica em tela provavelmente natildeo iraacute solucionar

a questatildeo da violecircncia entre os jovens Se atualmente principalmente ldquomenoresrdquo de 16

a 18 anos de idade satildeo ldquoutilizadosrdquo em atividades iliacutecitas pelo ldquomundo do crimerdquo pois

supostamente se ldquolivramrdquo mais facilmente das responsabilidades com a reduccedilatildeo da

idade penal para 16 anos eacute viaacutevel supor que o ldquomundo do crimerdquo iraacute se utilizar de

jovens com idades inferiores se realmente a ldquoloacutegicardquo for essa Dessa maneira eacute preciso

a aplicaccedilatildeo de poliacuteticas sociais efetivas de assistecircncia agraves crianccedilas e jovens das classes

subalternas da sociedade Sem um investimento de monta na educaccedilatildeo dessa parcela da

populaccedilatildeo provavelmente outras medidas ficaratildeo com seus resultados comprometidos

Emilio Garciacutea Meacutendez realizou um exame criacutetico dos vinte anos da Convenccedilatildeo

Internacional sobre os Direitos da Crianccedila (1989-2009) na Ameacuterica Latina onde

procurou fazer ldquoum balance acerca de su impacto y perspectivasrdquo O autor em sua

anaacutelise detectou trecircs periacuteodos distintos da Convenccedilatildeo nos paiacuteses latinos O primeiro

momento (1989-1991) foi o de ratificaccedilatildeo e adoccedilatildeo o segundo (1992-1997) de

expansatildeo juriacutedico-cultural dos diretos da infacircncia e por uacuteltimo (1998-2009) Meacutendez

observou um ldquoproceso de involucioacuten autoritariardquo ou seja um desmantelamento dos

princiacutepios de proteccedilatildeo integral e especial agraves crianccedilas e adolescentes estabelecidos na

622

Idem p 13 17 23-25

238

Convenccedilatildeo623

Esse uacuteltimo periacuteodo (1998-2009) apresenta dois momentos especiacuteficos

que segundo Mendez

Si desde 1997 hasta los antildeos 2003-2004 la involucioacuten autoritaria se

manifiesta bajo la forma claacutesica de las propuestas de aumento de las penas y

baja de edad de la imputabilidad a partir de esa uacuteltima fecha empieza a

manifestarse de forma bien diversa Se trata ahora no tanto del aumento de la

verborragia represiva sino mucho maacutes sutilmente del desmantelamiento

sistemaacutetico jurisprudencial normativo y faacutectico de todo tipo de garantiacuteas

destinado a facilitar la utilizacioacuten de la privacioacuten de libertad como una

ldquoforma reforzada de poliacutetica socialrdquo muy especialmente para los

adolescentes pobres de las periferias de los grandes conglomerados

urbanos624

A sociedade brasileira atual estaacute vivenciando esse processo denominado por

Meacutendez de retrocesso autoritaacuterio As discussotildees sobre penalidades mais riacutegidas para os

ldquomenoresrdquo infratores e os projetos de reduccedilatildeo da maioridade penal representam um

franco ataque de alguns setores sociais aos direitos e garantias da crianccedila e do

adolescente previstos na Constituiccedilatildeo Federal (1888) na Convenccedilatildeo Internacional dos

Direitos da Crianccedila (1989) da qual o Brasil eacute signataacuterio e ao Estatuto da Crianccedila e do

Adolescente (ECA1990) O fenocircmeno do ldquoneomenorismordquo representa um retrocesso na

posiccedilatildeo do Brasil que foi o paiacutes pioneiro na regiatildeo ldquoen mateacuteria de reformas legales e

institucionales que siguen a la Convencioacutenrdquo de 1989625

A internaccedilatildeoprisatildeo de ldquomenoresrdquo abandonados (fiacutesica e moralmente) e ou

indigitados como infratores e delinquentes era apontada como soluccedilatildeo para o chamado

grave problema social representado por esse segmento da populaccedilatildeo na transiccedilatildeo do

seacuteculo XIX para o XX Segundo o discurso corrente no periacuteodo examinado era preciso

moldar e amparar esses ldquomenoresrdquo para futuramente serem uacuteteis ao paiacutes Neste

contexto a educaccedilatildeo passou a ser visualizada como um mecanismo de transformaccedilatildeo

das crianccedilas das camadas subalternas da sociedade No imaginaacuterio republicano a escola

ldquoera uma arma para efetuar o progressordquo poreacutem essa era uma ldquoarma perigosardquo e que

para segmentos das classes dominantes deveria ser manuseada com cuidado impondo

623

MEacuteNDEZ Emilio Garciacutea ldquoDe las relaciones puacuteblicas al neomenorismo 20 antildeos de Convencioacuten

Internacional de los Derechos del Nintildeo en America Latina (1989-2009)rdquo In Passagens Revista

Internacional de Historia Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro v 3 n 1 jan-abr 2011 pp 117-

141 p 117 127-132 Disponiacutevel em wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigov3n1a62011pdf

Acessado em 06-07-2015 624

Idem p 129 625

Ibidem p 134

239

mesmo a ldquoredefiniccedilatildeo de seu estatuto como instrumento de dominaccedilatildeordquo626

Assim a

educaccedilatildeo era concebida como um mecanismo de controle social A modalidade de

ensino destinada agraves crianccedilas desvalidas abandonadas e ou delinquentes era a elementar

conjugada com o aprendizado de um ofiacutecio Em suma a preocupaccedilatildeo natildeo era com a

elevaccedilatildeo social desse grupo mas sim com a sua ldquodomesticaccedilatildeordquo para ser incluiacutedos na

sociedade civilizada do trabalho do progresso e da ordem nos patamares inferiores da

hierarquia social como matildeo de obra barata A esse respeito Irene Rizzini ressalta que

ldquofalava-se repetidamente em educar mas com um sentido particular ndash como antiacutedoto agrave

ociosidade e agrave criminalidade e natildeo como instrumento que possibilitasse melhores

chances de igualdade socialrdquo627

A pretensatildeo neste capiacutetulo eacute refletir sobre o encaminhamento que foi dado pelas

autoridades agrave questatildeo da infacircncia desvalida abandonada e infratora no Brasil na

passagem a modernidade No contexto de implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do trabalho livre

de desenvolvimento industrial e de acelerado processo de urbanizaccedilatildeo o discurso da

disciplina da ordem da proteccedilatildeo e do trabalho foi amplamente empregado para

justificar ou embasar as propostas destinadas aos ldquomenoresrdquo desvalidos que viviam

pelas ruas das cidades desamparados e a praticarem diversos delitos Fraccedilotildees dos

juristas dos meacutedicos higienistas da imprensa de setores da intelectualidade de

poliacuteticos entre outros debatiam sobre a necessidade de implantaccedilatildeo de uma lei de

proteccedilatildeo e de criaccedilatildeo de instituiccedilotildees para proteger corrigir recuperar amparar educar e

preparar pelo trabalho as ldquosementes do futurordquo

626

Segundo Marta Maria Chagas de Carvalho o engenheiro e professor da Escola Nacional de Belas

Artes Heytor Lyra da Silva concebia a ldquoinstruccedilatildeo pura e simplesrdquo como uma ldquoarma perigosardquo Ele e

outros integrantes da ABE (Associaccedilatildeo Brasileira de Educaccedilatildeo RJ 1924) preconizavam uma ldquoeducaccedilatildeo

integralrdquo que valorizava a formaccedilatildeo ciacutevica da populaccedilatildeo Na concepccedilatildeo de setores da intelectualidade a

educaccedilatildeo ciacutevica era revestida de um ldquopoderrdquo disciplinador que extrapolava os muros da escola

CARVALHO Marta Maria Chagas de A escola e a Repuacuteblica Satildeo Paulo Brasiliense 1989 p 7 58 ndash

60 Cf CARVALHO Marta Maria Chagas de ldquoQuando a histoacuteria da educaccedilatildeo eacute a histoacuteria da disciplina e

da higienizaccedilatildeo das pessoasrdquo In FREITAS Marcos Cezar (org) Histoacuteria Social da infacircncia no Brasil 6

ed Satildeo Paulo Cortez 2006 p 291-292 306-307 Cf Associaccedilatildeo Brasileira de Educaccedilatildeo Brasiliana a

divulgaccedilatildeo cientiacutefica no Brasil Disponiacutevel em

wwwmuseudavidafiocruzbrbrasilianacgicgiluaexesysstarthtminfoid=2ampsid=15 Acessado em 10-

04-2015 627 RIZZINI Irene Op cit 2008 p 144-145

240

411 A Assistecircncia aos ldquoMenoresrdquo

A questatildeo do abandono de crianccedilas foi algo que perpassou a sociedade brasileira

desde o periacuteodo colonial Segundo Maria Luiza Marciacutelio tal praacutetica foi introduzida

pelos colonizadores europeus nas terras do Novo Mundo uma vez que tal costume natildeo

existia entre a populaccedilatildeo indiacutegena antes da dominaccedilatildeo europeia De acordo com a

autora a Igreja Catoacutelica era tolerante com o ato de abandonar bebecircscrianccedilas mas

condenava (condena) veementemente o aborto e o infanticiacutedio Tal postura natildeo ocorria

nos paiacuteses de tradiccedilatildeo protestante onde a praacutetica de abandonar os filhos era condenada

uma vez que a doutrina religiosa pregava que o fiel deveria ser responsaacutevel pelos seus

atos perante Deus e a sociedade assim raros foram os casos628

Pelas Ordenaccedilotildees do Reino de Portugal as Cacircmaras Municipais seriam

responsaacuteveis pela criaccedilatildeo e proteccedilatildeo das crianccedilas abandonadasenjeitadas funccedilatildeo que

desempenharam com ldquorelutacircncia e a contragostordquo629

Os conselhos municipais eram

autorizados a criarem um imposto especial ndash a finta dos expostos ndash para arcar com as

despesas da criaccedilatildeo desse segmento A responsabilidade municipal se estendia ateacute a

crianccedila completar 7 anos de idade quando entatildeo eram entregues ao Juiz de Oacuterfatildeos que

as colocavam ldquoem casas de famiacutelias que pudessem acolhecirc-las ou empregaacute-lasrdquo630

Maria Luiza Marciacutelio ressaltou que as Cacircmaras Municipais podiam estabelecer

contratos escritos com outras instituiccedilotildees para a criaccedilatildeo e proteccedilatildeo das crianccedilas

enjeitadas Dessa maneira foram celebrados acordos principalmente entre as

municipalidades e as confrarias das Santas Casas de Misericoacuterdia que com autorizaccedilatildeo

real criaram Rodas e Casas dos Expostos bem como Recolhimentos para meninas

pobres e para as abandonadas mas as Cacircmaras continuaram responsaacuteveis

financeiramente e pelo controle da criaccedilatildeo dos expostos631

Em 1828 a Lei dos Municiacutepios estabeleceu que nos locais onde houvesse Santas

Casas de Misericoacuterdia as Cacircmaras poderiam transferir para as mesmas as suas

responsabilidades com a criaccedilatildeo das crianccedilas abandonadasexpostas Entretanto por

628

MARCIacuteLIO Maria Luiza ldquoA crianccedila abandonada na histoacuteria de Portugal e Brasilrdquo In VENANCIO

Renato Pinto (org) Uma histoacuteria social do abandono de crianccedilas de Portugal ao Brasil seacuteculos XVIII-

XIX Satildeo Paulo Alameda Editora PUC Minas 2010 p 21-22 MARCIacuteLIO Maria Luiza Histoacuteria Social

da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo Editora HUCITEC 2006 p 128 629

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 131 630

Idem p 139-140 MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2010 p 22 ndash 23 631

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 135 Cf RODRIGUES Andreacutea da Rocha ldquoAs Santas

Casas da Misericoacuterdia e a Roda dos Expostosrdquo In VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010

241

causa de problemas relacionados com o repasse de verbas pelas Cacircmaras as

Assembleias Provinciais passaram a subsidiar as despesas das Misericoacuterdias com a

criaccedilatildeo das crianccedilas enjeitadas632

Todavia o sistema mais usual de criaccedilatildeo das crianccedilas oacuterfatildes pobres enjeitadas

abandonadas foi o ldquoinformalrdquo ou ldquoprivadordquo Nas localidades onde natildeo contavam com

sistema de Rodas dos Expostos as crianccedilas eram abandonadas nas praccedilas estradas

praias portas de igrejas e residecircncias entre outros locais e eram criadas na maioria das

vezes pelas pessoas que as haviam encontrado quando os bebecircs conseguiam sobreviver

aos ataques de animais ao frio agrave chuva e agrave fome633

De acordo com Marciacutelio o sistema

informal de criaccedilatildeo dessas crianccedilas foi o mais amplo e universal existente em toda a

histoacuteria do Brasil e tal caracteriacutestica se constituiu em uma originalidade da ldquohistoacuteria da

assistecircncia agrave crianccedila abandonadardquo em nosso paiacutes Nas naccedilotildees europeias ndash eacutepocas

Moderna e Contemporacircnea ndash os enjeitadosabandonados foram majoritariamente criados

pelas instituiccedilotildees634

Oportunamente examinarei o debate acerca das causas do

abandono de crianccedilas e os provaacuteveis fatores que levavam algumas famiacutelias a criarem os

abandonados e expostos

Durante o processo de constituiccedilatildeo do Estado Imperial a problemaacutetica da

infacircncia foi debatida de forma tangencial relacionada agrave questatildeo do ensino ou seja

estava inserida dentro de uma discussatildeo maior que era a da formaccedilatildeo do povo e do

cidadatildeo brasileiro Com a abertura dos cursos superiores de Medicina (Rio de Janeiro) e

Direito (Satildeo Paulo e Recife) na deacutecada de 1820 a temaacutetica e mesmo a definiccedilatildeo da

infacircncia desenvolveu-se com mais vigor principalmente no campo da medicina As

teses meacutedicas defendidas entre as deacutecadas de 1830 a 1870 abordaram diversos temas

sobre a crianccedila e a famiacutelia (educaccedilatildeo aleitamento criaccedilatildeo mortalidade doenccedilas da

pueriacutecia abandono ilegitimidade prostituiccedilatildeo infantil e outros) Nesse periacuteodo das 81

teses que refletiram sobre o tema em apreccedilo 419 dedicaram-se exclusivamente agraves

crianccedilas pertencentes aos estratos desfavorecidos da sociedade Esses estudos

analisaram a problemaacutetica da infacircncia em consonacircncia com as questotildees sociais do

632

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 135 143-144 AREND Silvia Maria Faacutevero ldquoDe

expostos a menor abandonado uma trajetoacuteria juriacutedico-socialrdquo In VENANCIO Renato Pinto (org) Op

cit 2010 p 344-345 633

FARIA Sheila de Castro ldquoA propoacutesito das origens dos enjeitados no periacuteodo escravistardquo In

VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010 p 83-84 ______ A colocircnia em movimento fortuna e

famiacutelia no cotidiano colonial Rio de Janeiro Nova Fronteira 1998 p 68 MARCIacuteLIO Maria Luiza Op

cit 2006 p135-136 MORENO Alessandra Zorzetto ldquoNa roda da vida os filhos de criaccedilatildeo em Satildeo

Paulo colonialrdquo In VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010 p 99-101 634

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 136

242

periacuteodo como escravidatildeo crescimento urbano pobreza mendicidade relaccedilotildees de

trabalho entre outros635

No campo juriacutedico a discussatildeo principal com relaccedilatildeo agrave infacircncia logo apoacutes a

emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil relacionou-se com a questatildeo da definiccedilatildeo da idade penal

e sobre a problemaacutetica do discernimento do ldquomenorrdquo no ato criminoso636

Mas foi a partir da segunda metade do seacuteculo XIX com o processo gradual de

emancipaccedilatildeo do trabalho escravo colocado em andamento pelo Governo imperial (fim

do traacutefico Atlacircntico de escravos 1850 libertaccedilatildeo do ventre escravo 1871 e aboliccedilatildeo do

trabalho escravo 1888) que a questatildeo da infacircncia tornou-se um tema de discussatildeo de

amplos setores da sociedade ndash poliacuteticos meacutedicos juristas professores entre outros

Nessa conjuntura as crianccedilas dos estratos sociais subalternos passaram a ter uma grande

relevacircncia nos debates acerca de questotildees como o controle social a formaccedilatildeo de matildeo de

obra as famiacutelias populares a criminalidade a educaccedilatildeo entre outros De acordo com

Marciacutelio o fim do traacutefico Atlacircntico de escravos em 1850 ocasionou nas classes

dominantes uma ldquoprimeira onda de temor de se verem sem matildeo de obra domeacutesticardquo

bem como agriacutecola Tal fato se refletiu na postura de setores poliacuteticos e da

intelectualidade de modo geral que ressaltavam a necessidade de se dar assistecircncia agraves

crianccedilas desvalidas e ou abandonadas637

Todavia foi principalmente apoacutes a decretaccedilatildeo da Lei do Ventre Livre (1871) que

a crianccedila pobre ndash descendente ou natildeo de escravos ndash tornou-se efetivamente uma

preocupaccedilatildeo para amplos setores da sociedade que passaram a discorrer sobre a

necessidade de uma poliacutetica de assistecircncia para os ldquomenoresrdquo como jaacute foi examinado

no primeiro capiacutetulo

Ao longo da segunda metade do seacuteculo XIX foram criadas algumas instituiccedilotildees

(religiosas leigas ou estatais) com o objetivo de dar assistecircncia educar e preparar pelo e

para o trabalho os ldquomenoresrdquo desvalidos oacuterfatildeos e ou abandonados638

As Santas Casas

635

ABREU Marta MARTINEZ Alessandra Frota ldquoOlhares sobre a crianccedila no Brasil perspectivas

histoacutericasrdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil Seacuteculos XIX e XX Rio de

Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 p 20-22 636

Idem p 22 637

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 193 202 Cf NEDER Gizlene ldquoEntre o dever e a

caridade assistecircncia abandono repressatildeo e responsabilidade parental do Estadordquo Discursos Sediciosos

(RJ) RJ v Ano 9 n 14 p 199 ndash 231 2004 638

Entre as instituiccedilotildees criadas na segunda metade do seacuteculo XIX ainda durante o regime monaacuterquico

podemos citar o Imperial Instituto de Meninos Cegos (Rio de Janeiro 1854) o Asilo dos Meninos

Desvalidos (Rio de Janeiro 1875) o Asilo Agriacutecola Santa Isabel (Rio de Janeiro 1875) o Asilo Santa

Leopoldina (Porto Alegre 1857) o Coleacutegio dos Educandos Menores (Cearaacute 1856) a Casa dos

Educandos Artiacutefices de Manaus (1856) a Escola Propagadora de Instruccedilatildeo (Satildeo Paulo 1873) o Instituto

243

de Misericoacuterdia com suas Rodas de Expostos continuaram funcionando durante os

oitocentos e na primeira metade do seacuteculo XX Mas foram alvos de constantes ataques

por parte de poliacuteticos meacutedicos higienistas juristas entre outros setores que

denunciavam as altas taxas de mortalidade dos expostos a falta de preceitos da higiene

em suas instalaccedilotildees e no trato das crianccedilas por ser um atentado agrave moralidade e por

contribuir para o aumento de filhos ilegiacutetimos entre outras questotildees

A preocupaccedilatildeo social com a infacircncia pobre e ou abandonada observada

fundamentalmente apoacutes a aprovaccedilatildeo da Lei do Ventre esteve profundamente imbricada

com a questatildeo do controle social e da formaccedilatildeo de trabalhadores ordeiros higiecircnicos

civilizados e disciplinados Ao longo da segunda metade do seacuteculo XIX e no decorrer

das primeiras deacutecadas do novecentos a Medicina e o Direito tiveram um papel de

destaque no que diz respeito agrave infacircncia pobre abandonada e dita delinquente As teorias

da Escola de Milatildeo principalmente as de Ceacutesar Lombroso da Escola Socioloacutegica de

Liatildeo e o Positivismo de Augusto Comte tiveram uma grande influecircncia nas propostas de

assistecircncia agrave infacircncia desvalida e delinquente elaborada por meacutedicos juristas e

parlamentares brasileiros639

Essa preocupaccedilatildeo das classes letradas com a crianccedila pobre

abandonada e infratora de querer saber sobre ela e de como trataacute-la adequadamente

relaciona-se tambeacutem segundo Fernando Londontildeo ao fato de os grupos dominantes

verem tal atitude como uma maneira de ldquoparticipar dos avanccedilos do progresso

ocidentalrdquo640

A ldquoscienciardquo era concebida como um siacutembolo da civilizaccedilatildeo do moderno

e do progresso e o Brasil desejava participar desse modelo de ldquoconhecimento e

de Educandos Artiacutefices do Paraacute Lauro Sodreacute (1870-1872) a Casa dos Educandos Artiacutefices do Maranhatildeo

(1874) Colocircnia Agriacutecola Orfanoloacutegica e Industrial Isabel (Recife 1873) Colocircnia Agriacutecola Orfanoloacutegica

Cristina (Fortaleza 1880) a Colocircnia Orfanoloacutegica Isabel (Salvador 1886) entre outras Cf NEDER

Gizlene ldquoAssistecircncia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gisele de (org) Educar na infacircncia perspectivas

histoacuterico-sociais Satildeo Paulo Contexto 2010 p 102 111 MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p

204-205 208-213 217 LIMA Lana Lage da Gama VENAcircNCIO Renato Pinto ldquoO abandono de

crianccedilas negras no Rio de Janeirordquo In PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria da crianccedila no Brasil Satildeo

Paulo Contexto 1991 p 72 ABREU Marta MARTINEZ Alessandra Frota Op cit 1997 p 24-25 639

As teorias europeias tiveram grande influecircncia sobre setores da intelectualidade brasileira O

pensamento de Ceacutesar Lombroso de que as ldquotaras hereditaacuterias do criminosordquo soacute poderiam se contidas com

uma disciplina riacutegida e pela ordem que deveria comeccedilar na famiacutelia por intermeacutedio da autoridade do pai

fez vaacuterios seguidores no Brasil como por exemplo o jurista Evaristo de Moraes O positivismo de

Augusto Comte de consecuccedilatildeo de instituiccedilotildees totais de regeneraccedilatildeo ou correccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo

delinquentes tambeacutem fez adeptos no seio dos setores pensantes brasileiros Cf MARCIacuteLIO Maria Luiza

Op cit 2006 p 194 640

LONDONtildeO Fernando Torres ldquoA origem do conceito menorrdquo In PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria

da crianccedila no Brasil Satildeo Paulo Contexto 1991 p133

244

civilidaderdquo dos paiacuteses europeus e dos Estados Unidos Assim era preciso construir uma

imagem da naccedilatildeo como ldquomoderna industriosa civilizada e cientiacuteficardquo641

Desse modo as propostas de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados

e delinquentes nas primeiras deacutecadas do XX pautaram-se dentro dos ditos princiacutepios

cientiacuteficos (higienismo sanitarismo darwinismo eugenia entre outros) bem como na

jurisprudecircncia internacional relativa a tal problemaacutetica642

Tais projetos estavam em

consonacircncia com a nova conjuntura poliacutetica econocircmica e social da jovem Repuacuteblica

brasileira onde o trabalho passou a ser concebido como algo supremo que propiciava

riqueza ordem e progresso Imbuiacutedos dessa concepccedilatildeo sobre o trabalho setores da

intelectualidade brasileira passaram a defender um modelo assistencial de recolhimento

dos ldquomenoresrdquo desvalidos e infratores em que o trabalho seria um dos principais meios

de disciplinaacute-los e regeneraacute-los para que assim pudessem ingressar na sociedade como

cidadatildeos uacuteteis Entretanto boa parte dos projetos apresentados concernentes agrave

assistecircncia puacuteblica agrave infacircncia permaneceram no campo das ideias dos discursos e

debates ao longo dos primeiros anos republicanos

Apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889) os dirigentes procuraram logo criar

novas leis para o paiacutes No ano seguinte agrave instituiccedilatildeo do regime republicano foi

promulgado o Coacutedigo Penal brasileiro em outubro de 1890 Nesse Coacutedigo de 1890

observa-se um endurecimento no tratamento dispensado agrave infacircncia pobre abandonada e

indigitada delinquente se comparado ao Coacutedigo Criminal do Impeacuterio (1830) A

legislaccedilatildeo republicana reduziu a idade penal de 14 para 9 anos e determinou que os

ldquomenoresrdquo que haviam cometidos atos infracionais ldquocom discernimentordquo deveriam ser

ldquorecolhidos a estabelecimentos disciplinares industriais pelo tempo que ao juiz parecer

contanto que o recolhimento natildeo exceda a idade de 17 anosrdquo (Art 30)643

A ideia do

trabalho como uma estrateacutegia para a recuperaccedilatildeo desse segmento da sociedade pode ser

apreendida no artigo citado

641

SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientista instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil ndash

1870-1930 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 p 28-31 Cf LONDONtildeO Fernando Torres Op cit

1991 642

Nos Estados Unidos a partir da deacutecada de 1820 foram criadas as primeiras instituiccedilotildees

especificamente destinadas para o atendimento das ditas crianccedilas infratoras No decorrer do seacuteculo XIX

esses estabelecimentos ficaram marcados pela instituiccedilatildeo de uma riacutegida disciplina e pela implantaccedilatildeo do

ldquotrabalho fiacutesico e manual como elemento reabilitador educador disciplinador e formador das crianccedilas

infratoras e abandonadasrdquo Cf LONDONtildeO Fernando Torres Op cit 1991 p 133 643

Coacutedigo Penal ndash Decreto no 847 de 11 de outubro de 1890 Disponiacutevel em

httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-847-11-outubro-1890-503086-

publicacaooriginal-1-pehtml Acessado em 22-12-2014

245

Todavia o cumprimento do disposto no Coacutedigo Penal com relaccedilatildeo aos

ldquomenoresrdquo abandonados e infratores esbarrava nas condiccedilotildees materiais dos estados em

outras palavras faltavam instituiccedilotildees apropriadas para o recolhimento dos mesmos o

que na maioria das vezes fazia com que as crianccedilas fossem presas com adultos que

haviam praticado os mais diversos tipos de delitos644

Atraveacutes dos jornais Evaristo de

Moraes teceu contundentes criacuteticas a tal situaccedilatildeo Segundo o autor o encarceramento de

ldquomenoresrdquo com adultos funcionava como um ldquolaboratoacuterio de crimesrdquo onde o jovem se

instruiacuteda nos vaacuterios ramos da criminalidade645

Aleacutem do fato do ldquomenorrdquo

possivelmente se especializar nas atividades criminais ao ser preso com adultos ele

tambeacutem poderia ser viacutetima de diversas formas de violecircncia Wesleyuml Silva cita o caso

noticiado pelo Jornal do Brasil em 28 de marccedilo de 1926 de um jovem engraxate da

cidade do Rio de Janeiro que foi detido depois de jogar um vidro de tinta em um cliente

que se recusou a pagar pelos serviccedilos O ldquomenorrdquo foi encarcerado juntamente com vinte

detentos adultos que dele abusaram sexualmente O engraxate permaneceu preso

durante um mecircs e ldquosomente depois disto pocircde procurar socorro meacutedico junto agrave Santa

Casa do Distrito Federalrdquo A accedilatildeo das autoridades pelo que se presume da notiacutecia do

perioacutedico foi penalizar o ldquomenorrdquo e natildeo defender o seu direito de receber pelo serviccedilo

prestado646

O aumento da criminalidade infantil e da presenccedila de crianccedilas abandonadas e ou

desvalidas nas ruas das meacutedias e grandes cidades brasileiras no final do seacuteculo XIX e

nas primeiras deacutecadas do XX passou a ser uma problemaacutetica constantemente divulgada

pela imprensa que cobrava das autoridades puacuteblicas medidas urgentes para sanar o

grave problema social representado por essa parcela da populaccedilatildeo As mateacuterias

jornaliacutesticas reivindicavam a criaccedilatildeo de instituiccedilotildees que pudessem recolher os

ldquomenoresrdquo das ruas ou retiraacute-los das famiacutelias que presumivelmente natildeo possuiacuteam as

condiccedilotildees morais e materiais para criaacute-los A ideia do trabalho como soluccedilatildeo para essa

problemaacutetica foi recorrente nos artigos publicados nos perioacutedicos da eacutepoca

644

Cf SANTOS Marco Antonio Cabral dos ldquoCrianccedila e criminalidade no iniacutecio do seacuteculordquo In PRIORE

Mary Del (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil 5 ed Satildeo Paulo Contexto 2006 p 224 SILVA

Wesleyuml Por uma histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da delinquecircncia de menores em Belo Horizonte ndash

1921-1941 Doutorado em Educaccedilatildeo Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2007 p 251-253

LONDONtildeO Fernando Torres Op cit 1991 p 138-140 RIZZINI Irene ldquoCrianccedilas e menores ndash do

Paacutetrio Poder ao Paacutetrio dever Um histoacuterico da legislaccedilatildeo para a infacircncia no Brasilrdquo In RIZZINI Irene

PILOTTI Francisco (orgs) A arte de governar crianccedilas a histoacuteria das poliacuteticas sociais da legislaccedilatildeo e

da assistecircncia agrave infacircncia no Brasil 3 ed Satildeo Paulo Cortez 2011 p 119-120 645

RIZZINI Irene Op cit 2011 p 119-120 646

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 111 nota 257

246

A preocupaccedilatildeo social com a crianccedila das classes vulneraacuteveis da sociedade surgiu

em um momento marcado pela discussatildeo do controle sobre a matildeo de obra No contexto

de implantaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre a repressatildeo agrave vadiagem e agrave ociosidade

passou a ser considerada por diversos segmentos da populaccedilatildeo como um imperativo da

nova ordem poliacutetica econocircmica e social O Coacutedigo Penal de 1890 nos Artigos 399 e

400 especificou o que se entendia por vadiagem e determinou as penalidades para tal

infraccedilatildeo

Art 399 Deixar de exercitar profissatildeo officio ou qualquer mister em que

ganhe a vida natildeo possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que

habite prover a subsistencia por meio de occupaccedilatildeo prohibida por lei ou

manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes

Pena - de prisatildeo cellular por quinze a trinta dias

sect 1ordm Pela mesma sentenccedila que condemnar o infractor como vadio ou

vagabundo seraacute elle obrigado a assignar termo de tomar occupaccedilatildeo dentro de

15 dias contados do cumprimento da pena

sect 2ordm Os maiores de 14 annos seratildeo recolhidos a estabelecimentos

disciplinares industriaes onde poderatildeo ser conservados ateacute aacute idade de 21

annos

Art 400 Si o termo for quebrado o que importaraacute reincidencia o infractor

seraacute recolhido por um a tres annos a colonias penaes que se fundarem em

ilhas maritimas ou nas fronteiras do territorio nacional podendo para esse

fim ser aproveitados os presidios militares existentes

Paragrapho unico Si o infractor for estrangeiro seraacute deportado647

A eacutetica do trabalho eacute perceptiacutevel nos artigos citados do Coacutedigo de 1890 O

adensamento populacional das grandes e meacutedias cidades e das capitais na transiccedilatildeo do

seacuteculo XIX para o XX veio acompanhado de diversos problemas sociais como

habitaccedilatildeo saneamento mendicacircncia desemprego prostituiccedilatildeo criminalidade etc

Dentro desse quadro urbano muitas pessoas das classes sociais mais baixas natildeo

conseguiram se inserir profissionalmente fazendo com que muitos vivessem de biscates

ou de atividades consideradas iliacutecitas Os empregos temporaacuterios provavelmente

dificultavam a manutenccedilatildeo de uma residecircncia fixa Apesar da precariedade das casas

populares e de cocircmodos os alugueacuteis eram altos para os parcos recursos Assim essa

populaccedilatildeo excluiacuteda do mercado de trabalho ldquolegalrdquo por inuacutemeros fatores foi

transformada em vadiavagabunda Entre esses setores desfavorecidos da sociedade

havia muitas crianccedilasjovens oacuterfatildes abandonadas vivendo em famiacutelias chefiadas pelas

matildees e ou avoacutes entre outros tipos de organizaccedilatildeo familiar (vivendo com parentes

647

Coacutedigo Penal ndash Decreto no 847 de 11 de outubro de 1890 Disponiacutevel em

httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-847-11-outubro-1890-503086-

publicacaooriginal-1-pehtml Acessado em 22-12-2014

247

vizinhos etc) A insuficiecircncia de recursos dessas famiacutelias pobres possivelmente levava

muitas destas crianccedilas para as ruas das cidades para esmolar realizar atividades

(carregadores engraxates) e outras tinham como moradia as proacuteprias ruas praccedilas e

becos

A presenccedila dos ldquomenoresrdquo pelas ruas das cidades praticando diversas atividades

brincadeiras e delitos foi objeto de consideraccedilatildeo da imprensa e de setores da

intelectualidade que clamavam por uma providecircncia das autoridades O Art 399 sect 2o do

Coacutedigo Penal (1890) estipulou que as crianccedilas maiores de 14 anos de idade que fossem

condenadas como vadias ou vagabundas deveriam ser encaminhadas para instituiccedilotildees

ldquodisciplinares industriaisrdquo entretanto como jaacute foi salientado havia uma carecircncia de

estabelecimentos puacuteblicos para que a lei pudesse ser cumprida integralmente E essa

situaccedilatildeo se manteve praticamente durante toda a Primeira Repuacuteblica Desta maneira as

autoridades policiais e do judiciaacuterio procuraram mecanismos de proteccedilatildeo controle e

repressatildeo para esse grupo social desvalido Uma das estrateacutegias foi o viacutenculo tutelar de

crianccedilas oacuterfatildes abandonadas ou integrantes de famiacutelias que supostamente natildeo tinham as

condiccedilotildees materiais e morais para educaacute-las e criaacute-las como jaacute estudado no capiacutetulo

dois Outra possibilidade era a prisatildeo dos ditos ldquomenoresrdquo vadios e delinquentes em

cadeiasprisotildees juntamente com adultos Havia ainda em alguns municiacutepios a

possibilidade de se contar com os estabelecimentos religiosos de caridade para as

crianccedilas pobres e ou abandonadas

Nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX e em princiacutepios do seacuteculo XX o aumento da

criminalidade infanto-juvenil e o tratamento que deveria ser dispensado aos ldquomenoresrdquo

desvalidos e delinquentes era uma questatildeo que estava em discussatildeo em vaacuterias naccedilotildees da

Europa e da Ameacuterica Dessa maneira fraccedilotildees de poliacuteticos juristas meacutedicos

criminologistas psicoacutelogos policiais educadores entre outros setores letrados passaram

a ressaltar a necessidade de um direito penal especiacutefico para a infacircncia e a juventude

delinquente com tribunais destinados especificamente para o tratamento dessa parcela

da sociedade648

O primeiro passo nesse sentido foi dado pelo Estado de Illinois (EUA)

em 1899 com a criaccedilatildeo do primeiro tribunal juvenil649

648

RIZZINI Irene Op cit 2011 p 118-119 SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 112-116 LONDONtildeO

Fernando Torres Op cit 1991 p 133-134 A tiacutetulo de exemplo pode ser observado o caso da Franccedila

que nos primeiros anos do seacuteculo XX enfrentou um aumento da delinquecircncia entre os jovens - os

apaches Essa situaccedilatildeo foi objeto de consideraccedilatildeo de diversos segmentos da sociedade francesa tendo

mesmo uma parcela dos setores dominantes passado a defender a necessidade de penas mais duras e ateacute

mesmos castigos corporais Segundo Michele Perrot o termo apache se referia aos ldquojovens malandros

dos subuacuterbiosrdquo das grandes cidades principalmente agrave Paris popular A expressatildeo surgiu no iniacutecio do

248

A emergecircncia desse movimento pela proteccedilatildeo social da infacircncia preconizava a

necessidade de se proteger regenerar e recuperar o ldquomenorrdquo para que ele pudesse ser

devolvido sadio e produtivo para a sociedade Tal pensamento se contrapunha agraves ideias

de simples repressatildeo uma vez que o propoacutesito era reeducar o ldquomenorrdquo atraveacutes de

princiacutepios morais da educaccedilatildeo e do trabalho Nesse contexto os Estados foram

paulatinamente ao longo do seacuteculo XX assumindo as suas responsabilidades parentais

para com a infacircncia desvalida abandonada e ou delinquente atraveacutes da decretaccedilatildeo de

leis e de medidas de prevenccedilatildeo de proteccedilatildeo de amparo e de regeneraccedilatildeo passando

mesmo a substituir as funccedilotildees da famiacutelia que supostamente natildeo apresentasse as

condiccedilotildees morais e econocircmicas para a criaccedilatildeo e educaccedilatildeo de suas crianccedilas650

Nesse contexto setores das classes dominantes brasileira em consonacircncia com o

debate que estava ocorrendo em acircmbito internacional ressaltavam a necessidade de o

paiacutes promulgar leis especificas para a infacircncia desvalida abandonada trabalhadora e

dita delinquente Ao longo da Primeira Repuacuteblica diversos segmentos da

intelectualidade passaram a reivindicar uma responsabilidade social maior do Estado

pela situaccedilatildeo do ldquomenorrdquo ou seja medidas de proteccedilatildeo de assistecircncia e de educaccedilatildeo

As propostas de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados oacuterfatildeos e

indigitados delinquentes na passagem a modernidade vinham casadas com a ideia de

trabalho Em consonacircncia com esse pensamento os asilos abrigos escolas institutos

entre outras denominaccedilotildees dadas para estes estabelecimentos emergiram no ideaacuterio de

setores das classes dominantes como espaccedilos por excelecircncia de assistecircncia agraves crianccedilas e

jovens das camadas mais baixas da hierarquia socioeconocircmica De acordo com os

discursos de modernidade progresso e civilizaccedilatildeo da eacutepoca parcelas da intelectualidade

propunham que tais estabelecimentos fossem arquitetados dentro de princiacutepios

seacuteculo XX por volta de 1902 em referecircncia a ldquoimagem indiacutegena difundida pelos livros infantisrdquo

Entretanto natildeo eacute conhecido quem empregou primeiramente essa palavra em referecircncia aos grupos se

membros da poliacutecia da imprensa ou os proacuteprios jovens A expressatildeo apache de acordo com Perrot

passou a ser ldquoo novo sinocircnimo de bandidordquo eram os grupos de jovens que uniam ldquoagrave sua delinquecircncia uma

certa contestaccedilatildeo da ordem socialrdquo PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres e

prisioneiros Satildeo Paulo Paz e Terra 2010 p 315-317 329-332 ______ ldquoA juventude operaacuteria Da

oficina agrave faacutebricardquo In LEVI Giovanni SCHMITT Jean-Claude (org) Histoacuteria dos Jovens a eacutepoca

contemporacircnea Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 p 84 86-87 649

FERREIRA Antoacutenio Gomes LIMA Carla Cristina ldquoMenores em risco social e delinquentes no

seacuteculo XIX e princiacutepios do seacuteculo XX agrave luz da legislaccedilatildeo portuguesardquo In FARIA FILHO Luciano

Mendes de (org) A infacircncia e sua educaccedilatildeo materiais praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e Brasil)

Belo Horizonte Autecircntica 2004 p 91-93 Atraveacutes do Decreto de 27 de maio de 1911 Portugal

regulamentou a criaccedilatildeo e o funcionamento de Tribunais de Menores Idem p 95 Em 1912 foi criado o

Tribunal para Menores na Franccedila PERROT Michelle Op cit 2010 p 132 Cf SILVA Wesleyuml Op

cit 2007 p 114-115 650

FERREIRA Antoacutenio Gomes LIMA Carla Cristina Op cit 2004 p 91-98

249

cientiacuteficos higiecircnicos e disciplinares Assim creio que diversos setores da sociedade

vislumbravam as instituiccedilotildees como uma ldquomaacutequina de poderrdquo que teria a capacidade de

transformar os ldquomenoresrdquo procedentes dos estratos desfavorecidos em ldquocorpos

submissosrdquo e ldquodoacuteceisrdquo ou seja corpos transformados e aperfeiccediloados para ocuparem as

funccedilotildees mais baixas dentro estrutura social651

Desse modo os ldquomenoresrdquo seriam

devolvidos agrave sociedade da ordem e do progresso como trabalhadores submissos e uacuteteis

agrave naccedilatildeo

Ainda no que diz respeito agraves instituiccedilotildees assistenciais creio que a segregaccedilatildeo de

crianccedilas e jovens das camadas vulneraacuteveis da populaccedilatildeo em estabelecimentos de

internamento era visualizada por fraccedilotildees da classe dominante como uma maneira de

ldquolimparrdquo as ruas e praccedilas da presenccedila de pessoas que ameaccedilavam a imagem de

progresso civilizaccedilatildeo e modernidade bem como de se resguardar a seguranccedila e a

propriedade dos setores afortunados Possivelmente natildeo se constituiacutea em uma

preocupaccedilatildeo as causas do abandono da delinquecircncia infanto-juvenil bem como as

condiccedilotildees das instituiccedilotildees para abrigar os ldquomenoresrdquo

De acordo com Edson Passetti ldquoo orfanato e a prisatildeo para crianccedilas e jovens satildeo

imagens que assustam quem estaacute fora e apavoram quem estaacute dentrordquo652

A epiacutegrafe que

abre este capiacutetulo eacute um refratildeo da muacutesica Faroeste Caboclo do grupo de rock brasileiro

Legiatildeo Urbana em que uma das personagens da letra da muacutesica foi enviada aos 15 anos

de idade para um reformatoacuterio ldquoonde aumentou o seu oacutedio diante de tanto terrorrdquo A

histoacuteria dos estabelecimentos de recolhimento sejam religiosos filantroacutepicos ou estatais

satildeo marcadas pela imagem do abandono da solidatildeo das perdas da violecircncia da

exclusatildeo Suponho em consonacircncia com a epiacutegrafe que muitos jovens saiacuteram ou saem

desses estabelecimentos mais revoltados desiludidos apaacuteticos do que quando entraram

devido as experiecircncias vivenciadas nesses estabelecimentos

A vida de muitas dessas crianccedilas foi (eacute) marcada desde o nascimento pela falta

de cuidados baacutesicos (alimentar meacutedico e afetivo) e pelo abandono perdas e carecircncias

Nas instituiccedilotildees de internaccedilatildeo provavelmente elas vivenciaram (vivenciam) outras

formas de abandonoperdasviolecircncia como o afastamento da famiacutelia653

e da

651

FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis Vozes 1987 p 118-

119 652

PASSETTI Edson ldquoCrianccedilas carentes e poliacuteticas puacuteblicasrdquo In PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria

das crianccedilas no Brasil 5 ed Satildeo Paulo Contexto 2006 p 356 653

Segundo Maria M Malta Campos muitas crianccedilas denominadas de abandonadas natildeo satildeo efetivamente

abandonadas ou seja muitas delas que vivem nas ruas dormindo debaixo de viadutos pontes e

marquises continuam se relacionando com seus familiares esporadicamente Viver nas ruas mendigando

250

convivecircncia com os companheiros de rua Nos estabelecimentos os ldquomenoresrdquo ficavam

(ficam) sob a vigilacircncia de funcionaacuterios que na maioria das vezes eram (satildeo)

indiferentes agraves suas condiccedilotildees e ao seu bem-estar tratando-os com descaso e

possivelmente em muitas situaccedilotildees com palavras e accedilotildees violentas654

Ainda com

relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees Ethel Volfzon Kosminsky ressalta que elas eram (satildeo) regidas

por

[] normas obrigaccedilotildees e horaacuterios riacutegidos Eacute o tempo burocraacutetico

determinado pela instituiccedilatildeo Tempo da vigilacircncia e do trabalho fiscalizado

por castigos e por ameaccedilas onde o lsquolazerrsquo eacute um precircmio ao lsquobom

comportamentorsquo natildeo eacute o tempo da infacircncia tempo da liberdade e do bem-

querer655

Entretanto neste espaccedilo de ldquoelogio agrave disciplinardquo nada saiacutea absolutamente

perfeito Segundo Edson Passetti toda uma ldquoeconomia da ilegalidaderdquo era (eacute) colocada

em accedilatildeo entre os internos os ldquointernos e seus superiores superiores e familiares dos

prisioneirosrdquo onde circulavam ldquomercadorias roubadas corpos drogas e lucrosrdquo

Segundo o autor

O mundo dos prisioneiros natildeo existe como algo separado ou marginal ele se

comunica com o mundo dos cidadatildeos livres por meio das ilegalidades

interceptaccedilotildees e exclusotildees Forma e aprimora corruptores enganadores e

camufladores de ambos os lados E obteacutem como resposta eficaz do

prisioneiro ao caacutercere o investimento na sua destruiccedilatildeo Ele eacute o uacutenico que

sabe e expressa que a prisatildeo e o internato em vez de corrigir deforma que a

integraccedilatildeo se daacute pelo avesso na ilegalidade que a austera vida de interno

orientada pela rotina que mortifica individualidades os dispotildee enfileirados

para accedilotildees delinquenciais Mas a falecircncia dos internatos em vez de gerar

investimentos em outras formas de educaccedilatildeo ao infrator se transformou em

estandarte dos amedrontados que clamam por mais seguranccedila muitas vezes

exigindo prisotildees de seguranccedila maacutexima e ateacute pena de morte656

praticando pequenos delitos trabalhando em muacuteltiplas atividades (liacutecitas ou natildeo) eacute uma das

possibilidades encontradas por diversos ldquomenoresrdquo de garantir o seu proacuteprio sustento e de ajudar os seus

familiares com dinheiro restos de alimentos (feiras supermercados etc) CAMPOS Maria Machado

Malta ldquoInfacircncia abandonada o piedoso disfarce do trabalho precocerdquo In MARTINS Joseacute de Souza O

massacre dos inocentes a crianccedila sem infacircncia no Brasil 2 ed Satildeo Paulo HUCITEC 1993 p 118-121

654 Cf KOSMINSKY Ethel Volfzon ldquoInternados ndash os filhos do Estado padrastordquo In MARTINS Joseacute de

Souza O massacre dos inocentes a crianccedila sem infacircncia no Brasil 2 ed Satildeo Paulo HUCITEC 1993 655

Idem p 173 Cf PASSETTI Edson Op cit p 356 Charles Dickens no romance intitulado Oliver

Twist retratou as peacutessimas condiccedilotildees de higiene de alimentaccedilatildeo os maus-tratos e humilhaccedilotildees

dispensados agraves crianccedilas nos estabelecimentos assistenciais ingleses do seacuteculo XIX bem como a

corrupccedilatildeo das instituiccedilotildees e de seus funcionaacuterios A obra pode-se dizer eacute uma denuacutencia das condiccedilotildees

precaacuterias das classes operaacuterias e desvalidas da sociedade inglesa E tambeacutem da exploraccedilatildeo da matildeo de

obra infantil tanto por parte dos setores produtivos quanto por pessoas ligadas ao mundo do crime Cf

DICKENS Charles Oliver Twist Traduccedilatildeo de Machado de Assis e Ricardo Liacutesias 1 ed Satildeo Paulo

Hedra 2002 656

PASSETTI Edson Op cit 2006 p 356 Cf SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 269

251

Apesar de se ter constatado haacute tempos a ldquoineficaacutecia do internamento como

instituiccedilatildeo capaz de corrigir comportamentos ou reeducar o jovem prisioneiro parapelo

trabalhordquo ele permanece sendo o modelo mais usual em vaacuterios paiacuteses Assim de acordo

com Passetti o Estado ao optar por uma ldquopoliacutetica de internaccedilatildeo para crianccedilas

abandonadas e infratorasrdquo escolheu ldquoeducar pelo medordquo657

O autor argumentou que

vaacuterias foram as justificativas ao longo dos anos para a adoccedilatildeo e a permanecircncia do

modelo prisional Nas primeiras deacutecadas republicanas os pareceres meacutedicos-juriacutedicos

serviram de base para as propostas de construccedilatildeo e manutenccedilatildeo desses estabelecimentos

de internaccedilatildeo Era preciso tratar e aplicar as medidas juriacutedicas necessaacuterias aos

ldquomenoresrdquo abandonados e ou infratores para que eles pudessem futuramente ser

reintegrados agrave sociedade como cidadatildeos sadios e uacuteteis 658

Os anos 1920 foram iacutempares no que diz respeito agrave questatildeo da infacircncia no Brasil

podendo ser observada a emergecircncia de uma preocupaccedilatildeo social maior por parte do

Estado A mobilizaccedilatildeo de fraccedilotildees de poliacuteticos meacutedicos juristas advogados

educadores entre outros e o debate em acircmbito internacional sobre a problemaacutetica da

crianccedila abandonada desvalida trabalhadora e infratora creio que geraram uma pressatildeo

poliacutetica que contribuiu para uma intervenccedilatildeo mais efetiva do Estado no que diz respeito

aos ldquomenoresrdquo em especial com os classificados de abandonados e ou delinquentes

Em janeiro de 1921 foi aprovada a Lei n 4242 que fixou ldquoa Despesa Geral da

Republica dos Estados Unidos do Brasil para o exerciacutecio de 1921rdquo que em seu art 3o

autorizava o Governo a ldquoorganizar o serviccedilo de assistencia e protecccedilatildeo agrave infacircncia

abandonada e delinquenterdquo659

Essa autorizaccedilatildeo foi ratificada pelo art 1o do Decreto n

o

4547 de 22 de maio de 1922 Entretanto segundo Wesleyuml da Silva o presidente

Epitaacutecio Pessoa natildeo fez uso da autorizaccedilatildeo que lhe foi concedida pelo Decreto n 4547

provavelmente dada a situaccedilatildeo econocircmica do paiacutes naquele momento660

Em 20 de

dezembro de 1923 o presidente eleito Arthur Bernardes aprovou o Regulamento da

Assistecircncia e Proteccedilatildeo aos Menores Abandonados e Delinquentes atraveacutes do Decreto

de n 16272 Por intermeacutedio desse decreto foi criado no ldquoDistrito Federal um Juiacutezo de

657

Idem p 356 No dia 31 de marccedilo de 2015 foi aprovada na Comissatildeo de Constituiccedilatildeo e Justiccedila (CCJ)

da Cacircmara dos Deputados por 42 votos a favor e 17 contra agrave Proposta de Emenda Constitucional (PEC)

171-A93 que prevecirc a reduccedilatildeo da maioridade penal no Brasil de 18 anos para 16 anos de idade Isso fez

reacender um forte debate na sociedade brasileira sobre a questatildeo da infacircncia desamparada em risco

social e infratora 658

Idem p 357 659

RIZZINI Irene O seacuteculo perdido raiacutezes histoacutericas das poliacuteticas puacuteblicas para a infacircncia no Brasil 2

ed Rev Satildeo Paulo Cortez 2008 p 138 660

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 119-120

252

Menores para assistecircncia proteccedilatildeo defesa processo e julgamento dos menores

abandonados e delinquentesrdquo661

Segundo Irene Rizzini o periacuteodo compreendido entre

1923 a 1927 ldquoassistiu-se ao avolumar de capiacutetulos artigos e incisos procurando-se

cobrir com todo o detalhamento possiacutevel a regulamentaccedilatildeo da assistecircncia e proteccedilatildeo agrave

infacircncia abandonada e delinquenterdquo662

Coroando as accedilotildees governamentais para as

crianccedilas dos setores mais baixos da hierarquia socioeconocircmica em 1927 foi aprovado o

Coacutedigo de Menores (Decreto n 17943-A)

A deacutecada de 1920 ainda foi palco de dois congressos relativos agrave infacircncia Em

1922 a Capital da jovem Repuacuteblica Rio de Janeiro sediou o I Congresso Brasileiro de

Protecccedilatildeo agrave Infacircncia presidido pelo meacutedico Moncorvo Filho e o III Congresso

Americano dirigido pelo Dr Olinto de Oliveira663

Por mais de um seacuteculo a sociedade brasileira vem debatendo sobre a

problemaacutetica da infacircncia pobre fiacutesica e socialmente em perigo abandonada e

delinquente Geralmente a questatildeo levantada era (eacute) o que fazer com esse segmento

social As soluccedilotildees apresentadas na maioria das vezes tinham um caraacuteter paliativo que

natildeo combatiam efetivamente o cerne do problema A praacutetica do internamento sempre

apresentada como a soluccedilatildeo mais viaacutevel vem demonstrando ao longo dos anos a sua

ineficaacutecia Essa modalidade de assistecircncia preconizada por parcela dos setores

dominantes para as crianccedilas das classes subalternas com sua disciplina prussiana e sua

educaccedilatildeo de baixa qualidade objetivava a manutenccedilatildeo das hierarquias sociais e a

qualificaccedilatildeo dessas crianccedilas para o mercado de trabalho como operaacuterios submissos

Todavia creio que esse projeto assistencial natildeo apresentou os resultados esperados em

sua totalidade A austeridade dos estabelecimentos assistenciais favoreceu em muitos

casos rebeliotildees e a formaccedilatildeo de uma parcela dos internos natildeo identificados com os

ideais desejados pelos setores dominantes ou seja trabalhadores submissos e

disciplinados

No proacuteximo item seratildeo apresentados os resultados das anaacutelises dos processos de

tutelas de ldquomenoresrdquo do municiacutepio de Juiz de Fora que foram abandonados por seus

genitores e os casos em que os pais entregaram seus filhos para outras pessoas criaacute-los

661

Decreto n 16272 de 20 de dezembro de 1923 - Regulamento da Assistecircncia e Proteccedilatildeo aos Menores

Abandonados e Delinquentes Disponiacutevel em

httplegissenadogovbrlegislacaoListaNormasactionnumero=16272amptipo_norma=DECampdata=1923

1220amplink=s Acessado em 20-02-2015 662

RIZZINI Irene Op cit 2008 p 139 663

Idem p 139

253

ou solicitaram a suspenccedilatildeo do Paacutetrio Poder com a argumentaccedilatildeo de que natildeo dispunham

de condiccedilotildees econocircmicas para a criaccedilatildeo de sua prole

42 OS ldquoFILHOS DA PIEDADErdquo OS PROCESSOS DE TUTELAS DE

CRIANCcedilAS ABANDONADAS ENJEITADAS EXPOSTAS OU

ldquoENTREGUESrdquo

ldquoO Brasil surgiu como um paiacutes onde o problema da assistecircncia se poderia

julgar resolvido pelo avesso isto eacute pelo indiviacuteduo e natildeo pelo Estadordquo

(Ataulpho de Paiva)664

ldquoDeclaro que entreguei meu filho Francisco com 14 mezes de idade ao sr Joatildeo

[Millar] para a eternidaderdquo665

Assim o pai do menino Francisco Antonio Rodrigues

registrou em 2 de junho de 1923 a entrega de seu filho ldquopara a eternidaderdquo ao Sr Joatildeo

Muumlller sem entretanto manifestar os motivos de tal atitude Assinaram como

testemunhas dessa declaraccedilatildeo Alfredo [Lentini] e Jeronymo Gomes Moreira

664 Apud RIZZINI Irma ldquoMeninos desvalidos e menores transviados a trajetoacuteria da assistecircncia puacuteblica

ateacute a Era Vargasrdquo In RIZZINI Irene PILOTTI Francisco (orgs) A arte de governar crianccedilas a

histoacuteria das poliacuteticas sociais da legislaccedilatildeo e da assistecircncia agrave infacircncia no Brasil 3 ed Satildeo Paulo

Cortez 2011 p 241 665

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas ndash ldquomenorrdquo

Francisco Data 18-06-1923 Cx 6 proc 5

254

Imagem 21 ldquoDeclaraccedilatildeo de entrega do filhordquo AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos

relativos agrave accedilatildeo tutelas - ldquomenorrdquo Francisco Data 18-06-1923 Cx 6 proc 5

O ldquoabandonordquo666

desse ldquofilho da piedaderdquo667

foi levado ao conhecimento do Juiz

de Direito da Comarca Augusto Ceacutesar Pedreira Franco pelo inspetor de poliacutecia da Rua

Bernardo Mascarenhas Alfredo [Lentini] em 16 de junho de 1923 O Juiz Ceacutesar Franco

determinou que Joatildeo Muumlller apresentasse o ldquomenorrdquo ldquoem juiacutezordquo para ldquodar

esclarecimentos sobre o seu abandonordquo668

No ldquoTermo de declaraccedilotildeesrdquo ocorrido em 22 de junho de 1923 Joatildeo Muumlller

assinalou que Francisco era filho de Antonio Rodrigues e de Dona Maria Schoeffer

residentes na cidade de Juiz de Fora e que tinha conhecimento de que eles natildeo eram

666

Estou empregando o termo abandono entre aspas pois natildeo entendo a accedilatildeo dos pais do ldquomenorrdquo como

um abandono em sua literalidade Os pais tiveram o cuidado de entregar o filho para ser cuidado por outra

famiacutelia Eles deram o filho ldquoa criarrdquo Sobre a circulaccedilatildeo de crianccedilas por vaacuterias famiacutelias e ldquodar a criarrdquo os

filhos ver MORENO Alessandra Zorzetto Op cit 2010 667 Expressatildeo ldquofilhos da piedaderdquo foi utilizada por Ana Scott e Carlos Bacellar em referecircncia agraves crianccedilas

abandonadas Cf SCOTT Ana Silvia Volpi amp BACELLAR Carlos de Almeida Prado ldquoCrianccedilas

abandonadas em aacutereas sem assistecircncia institucionalrdquo In VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010

p 60 668

Idem

255

ldquocasados civilmentterdquo poreacutem natildeo sabia informar se o eram ldquoreligiosamenterdquo O

declarante ainda disse que a crianccedila foi abandonada pelos pais que natildeo a queriam e nem

podiam trataacute-la mas que desejavam que o menino ficasse em sua companhia (do

declarante) e de sua esposa e que o ldquomenorrdquo lhe havia sido entregue pelo inspetor de

poliacutecia Alfredo [Lentini]669

Nos autos do processo foi registrado que Antonio Rodrigues e Dona Maria

Schoeffer natildeo queriam e nem podiam tratar do ldquomenorrdquo Eacute provaacutevel que esse natildeo

querer e nem poder tratar de Francisco esteja relacionado agraves condiccedilotildees econocircmicas

precaacuterias do casal Esse processo de tutela eacute apenas um fragmento da vida dessa famiacutelia

e reflete um momento tenso de desestruturaccedilatildeo do grupo familiar (pai matildee e filho pai

e filho ou matildee e filho) Ao longo do processo os pais natildeo foram intimados a prestarem

declaraccedilotildees sobre o ldquoabandonordquo assim natildeo eacute possiacutevel saber se estavam empregados e

quais as atividades que realizavam quais as suas condiccedilotildees econocircmicas e de sauacutede e

mesmo se viviam maritalmente

Sheila Faria em estudo sobre o enjeitamento de crianccedilas no periacuteodo escravista

ressaltou que vaacuterias hipoacuteteses foram aventadas com o objetivo de se explicar as razotildees

para o abandono670

Em seu livro ldquoA colocircnia em movimentordquo a autora chegou a sugerir

que o tipo mais frequente de enjeitamento estava relacionado aos filhos indesejados de

relaccedilotildees amorosas independente das condiccedilotildees econocircmicas dos genitores Apesar de

ressaltar que crecirc que o fenocircmeno fosse mais recorrente entre os setores mais abastados

uma vez que nas famiacutelias pobres de aacutereas rurais os filhos provavelmente eram um

ldquobenefiacuteciordquo apesar de num primeiro momento representarem um ldquofardordquo pois eram

apenas consumidores poreacutem mais velhos como produtores contribuiacuteam para a

prosperidade da unidade familiar671

A exposiccedilatildeo de crianccedilas segundo Faria

ldquorepresentava a proacutepria manutenccedilatildeo da estabilidade familiar ou melhor dizendo da

moralidade familiar Para os mais ricos esconder filhos naturais ou adulterinos poderia

significar manter a heranccedila dentro da legalidade e da moral catoacutelicardquo A exposiccedilatildeo

favorecia o retorno dos solteiros ao ldquomercado matrimonialrdquo672

A explicaccedilatildeo de que uma gestaccedilatildeo indesejada tenha sido a causa majoritaacuteria para

a exposiccedilatildeo de crianccedilas natildeo eacute compartilhada por Renato P Venancio que atribui o

enjeitamento de bebecircs ou receacutem-nascidos agraves precaacuterias condiccedilotildees econocircmicas dos pais e

669

Ibidem 670

FARIA Sheila de Castro Op cit 2010 p 85 671

Idem p 85 FARIA Sheila de Castro Op cit 1998 p 71 672

Sheila de Castro Op cit 1998 p 71 FARIA Sheila de Castro Op cit 2010 p 87

256

ou agraves suas condiccedilotildees fiacutesicas Para o autor eacute na ldquoconjunccedilatildeo da pobreza com a morte ou a

doenccedilardquo dos responsaacuteveis pela criaccedilatildeo das crianccedilas que se encontra a justificativa para

a maioria dos casos de abandono673

A esse respeito Sheila Faria assinala que concorda

em parte com essa abordagem de Renato Venancio poreacutem natildeo crecirc que fossem os

motivos mais frequentes para o abandono e questiona se ldquohaveria realmente um motivo

mais frequente que pudesse explicar o abandono em todas as regiotildees e eacutepocas da

histoacuteria do Brasilrdquo A historiadora ainda enfatiza que ldquonatildeo havia um padratildeo uacutenicordquo e

que as fontes examinadas natildeo sustentam a tese da pobreza como motivo principal674

Dos 346 processos de tutelas por mim examinados no recorte temporal de 1888

a 1930 foram identificados 59 casos em que as crianccedilas foram presumivelmente

abandonadasentregues675

por seus pais e ou parentes No decorrer do exame da

documentaccedilatildeo foram se descortinando distintas modalidades de abandonoentrega

como de ldquomenoresrdquo abandonados em estradas propriedades rurais ruas hospitais

(Santa Casa de Misericoacuterdia) porta de residecircncia ou de asilo de desaparecimento dos

pais matildee e ou pai de desistecircncia do Paacutetrio poder (pais matildee e ou pai) de entrega do

rebento ldquopara todo o semprerdquo676

para uma pessoa da localidade criaacute-lo ou

simplesmente deixaacute-lo na casa de um parente (consanguiacuteneo ou espiritual) ou

conhecido e desaparecer para ldquolugar incerto e natildeo sabidordquo

Nos processos de tutelas em que foi possiacutevel identificar as justificativas para o

abandonoentrega a pobreza e ou a doenccedila foram os mais recorrentes Apenas 10

registros possuem essa informaccedilatildeo Todavia creio que nos autos em que os

responsaacuteveis alegaram que natildeo podiam criar as crianccedilas sem darem maiores detalhes

tambeacutem estivessem relacionados a esses mesmos fatores Entretanto como alertou

Sheila Faria vaacuterios motivos contribuiacuteram para o ato do abandono natildeo havendo pois

um padratildeo uacutenico para essa praacutetica

673

FARIA Sheila de Castro Op cit 2010 p 85 674

Idem p 86 675

Estou empregando a palavra ldquoentregardquo para me referir aos casos em que os pais deixaramentregaram

os seus filhos para que parentes conhecidos ou pessoas da regiatildeo os criassem Em alguns processos de

tutela haacute uma declaraccedilatildeoescritura feita pelos responsaacuteveis pela crianccedila assinalando que estavam

entregando o filho e em outros autos de tutela no termo de abertura eacute registrado que a crianccedila foi

deixadaentregue ao requerente da tutela pelo paimatildee ou pais Cf MORENO Alessandra Zorzetto Op

cit 2010 676

AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas ndash ldquomenorrdquo Mariana

Dornella da Conceiccedilatildeo Data 26-09-1929 Cx 9 proc 31

257

QUADRO 8

TIPOS DE ABANDONOENTREGA DE ldquoMENORESrdquo (1888-1930)

MENORES TIPOS DE ABANDONOENTREGA

59

RENUacuteNCIA

PAacuteTRIO

PODER

ABANDONO()

ENTREGA OU DESAPARECIMENTO

(PAIS MAtildeE E ou

PAI)

09 1525 11 1864 39 6610

Fonte AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas (1888-1930)

() O termo abandono aqui se refere aos casos que atraveacutes da leitura das fontes se pressupotildee que a matildee ou

os pais natildeo eram conhecidos em que procuraram manter o anonimato Satildeo os casos de crianccedilas deixadas

na estrada porta de residecircncia hospital asilo entre outros

No processo de tutela da menina Rita de trecircs anos de idade filha de Joaquim

Pedro da Silva e de Carmem Claudina de Paula as justificativas para a entrega da

ldquomenorrdquo para o casal Hugo Aust e Margarida Caruette-Hugo foi a doenccedila do pai

(cegueira) e as condiccedilotildees financeiras da famiacutelia677

Em abril de 1926 os pais solicitaram

ao judiciaacuterio que Hugo Aust fosse nomeado tutor de Rita

[] por estarem em situaccedilatildeo precaria e na impossibilidade de criar e educar

os seus proprios filhos visto estar quase cego e sem recursos o pae

empregada a matildee deixaram ao cuidado do avocirc materno Snr Joaquim

Romualdo de Paula a sua filha Rita sendo poreacutem o avocirc egualmente pobre

natildeo dispondo do necessario e habitando casa humida e ante-hygienica

entregou a crianccedila que estava doente nascida em 24 de marccedilo de 1923 em

Vargem Grande tendo actualmente 3 annos ao cuidado da familia do Snr

Hugo Aust empregado no commercio de 37 annos de idade casado com

Margarida Caruette-Hugo de 39 annos O casal que eacute sem filhos mora na av

15 de novembro 850 e dispondo de recursos sufficientes cercando a crianccedila

de todo conforto e submettendo a mesma a tratamento medico conseguiu

melhorar o estado de saude da menina graccedilas ao caridoso empenho de Da

Margarida pelo que a pequena Rita tomou muito carinho com a referida

senhora ao que a mesma corresponde como uma verdadeira matildee Tendo em

vista o futuro risonho que a nossa filha teraacute o que em nossas condiccedilotildees nunca

poderiamos offerecer vimos requerer por indicaccedilatildeo do avocirc e em bem de

nossa filha que Va Sa queira delegar a tutela ao senhor Hugo Aust esposo da

Da Margarida e por estarmos ambos de accordo com esta decisatildeo

renunciamos aos direitos do patrio poder que a lei nos confere e assignamos a

presente com duas testemunhas em Juiz de Foacutera em primeiro de abril de

1926678

677

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Rita data 06-

04-1926 cx 07 proc 10 678

Idem

258

O discurso da peticcedilatildeo procurou ressaltar a precariedade de vida sauacutede e

habitaccedilatildeo da famiacutelia de Rita e de seus parentes no caso o avocirc que segundo consta

tambeacutem natildeo dispunha de recursos financeiros e residia em uma ldquocasa humida e ante-

hygienicardquo As condiccedilotildees adversas de vida dessa famiacutelia retratada no requerimento e o

fato de a menina encontrar-se doente foram os fatores alegados para a entrega da

ldquomenorrdquo ao casal Hugo Aust e Margarida Caruette-Hugo

A leitura desse documento me leva a crer que se trata de uma modalidade de

adoccedilatildeo da ldquomenorrdquo Rita pelo casal Hugo Aust e Margarida Caruette-Hugo Pela

legislaccedilatildeo brasileira vigente estava vetada ao dito casal que natildeo tinha filhos a adoccedilatildeo

legal da menina pois o Coacutedigo Civil de 1916 no Capiacutetulo V ndash Da Adoccedilatildeo ndash estabeleceu

no artigo 368 que ldquosoacute os maiores de cinquenta anos sem prole legiacutetima ou legitimada

podem adotarrdquo679

Eles encontravam-se em uma faixa etaacuteria inferior agrave estabelecida pelo

Coacutedigo de 1916 para adotarem uma crianccedila Assim possivelmente a tutela apresentou-

se como uma alternativa legal para poderem criar uma crianccedila como filho

Segundo Maria Luiza Marciacutelio as primeiras leis de adoccedilatildeo ldquoforam cautelosas

muito restritivas a fim de salvaguardar o direito de heranccedila dos filhos legiacutetimosrdquo O

sistema de adoccedilatildeo brasileiro instituiacutedo pelo Coacutedigo Civil de 1916 foi inspirado pela lei

francesa de 1904680

Segundo o parecer do Promotor Puacuteblico os pais natildeo podiam renunciar ao paacutetrio

poder dessa forma natildeo era possiacutevel o estabelecimento do viacutenculo tutelar O Promotor

ainda asseverou que ldquose a menor estaacute bem na companhia do Srn Hugo Aust os seus

paes nada mais tecircm a fazer do q deixarem-na em tal companhiardquo Assim o requerimento

dos pais de Rita foi indeferido pelo Juiz de Direito Ceacutesar Franco681

A alegada falta de

recursos financeiros e de sauacutede dos pais de Rita natildeo foi suficiente para a nomeaccedilatildeo de

um tutor que pudesse zelar pela menina Todavia foi sugerido que a ldquomenorrdquo

permanecesse em companhia do casal Hugo e Margarida mas sem nenhum respaldo

legal

O Coacutedigo Civil no Capiacutetulo VI ndash Do Paacutetrio Poder ndash estabeleceu quais eram as

condiccedilotildees para a suspensatildeo e extinccedilatildeo do paacutetrio poder O Artigo 395 determinou que

679

Coacutedigo Civil Brasileiro 1916 Disponiacutevel em lthttpwww2camaragovbrleginfedlei1910-1919lei-

3071-1-janeiro-1916-397989-publicacaooriginal-1-plhtmlgt 680

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2010 p 27 Cf PERROT Michelle ldquoFiguras e papeacuteisrdquo In

______ (org) Histoacuteria da Vida Privada 4 da Revoluccedilatildeo Francesa agrave Primeira Guerra Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2009 p 138 681

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Rita data 06-04-

1926 cx 07 proc 10

259

ldquoPerderaacute por ato judicial o paacutetrio poder o pai ou matildee I - que castigar imoderadamente

o filho II - que o deixar em abandono III - que praticar atos contraacuterios agrave moral e aos

bons costumesrdquo

Em 1923 Maria Dalvina do Nascimento solteira tambeacutem solicitou a nomeaccedilatildeo

de um tutor para a sua filha Maria da Luz do Nascimento de 1 ano de idade por se

encontrar em ldquodificuldades para manter e crear sua filhinhardquo e declarou que desistia do

paacutetrio poder A matildee da ldquomenorrdquo indicou para tutor o Sr Jose Appoly de Souza em cujo

poder jaacute estava a menina O Juiz de Direito Ceacutesar Franco indeferiu a peticcedilatildeo e assinalou

que os pais natildeo tinham ldquoa faculdade de desistir do paacutetrio poderrdquo e que os artigos do

Capiacutetulo ndash Do Paacutetrio Poder ndash do Coacutedigo Civil natildeo versavam sobre a desistecircncia682

Entretanto em outros processos similares os requerimentos foram deferidos Em

fevereiro de 1922 Esmeraldina Braga de Campos viuacuteva a matildee de Onofre de um mecircs

de idade solicitou a nomeaccedilatildeo de um tutor para o menino por estar ldquodoente e em estado

de extrema pobrezardquo o que a impedia de ldquoexercer o paacutetrio poder sobre seu filhordquo O

Juiz de Direito Cesar Franco suspendeu a matildee do Paacutetrio poder e nomeou o indicado por

ela para tutor de Onofre683

A mesma decisatildeo foi proferida com relaccedilatildeo agrave peticcedilatildeo de

Roza [Mazoni] solteira e ldquoreconhecidamente pobrerdquo matildee de Maria de oito meses de

idade Em dezembro de 1922 Roza solicitou a nomeaccedilatildeo de um tutor para sua filha e

que assim ficaria ldquosem direito ao paacutetrio poderrdquo O Juiz deferiu a peticcedilatildeo e suspendeu a

matildee da menina do paacutetrio poder pelo fato de que ldquoa supplicante pelo seu estado de

pobreza natildeo pode dirigir a criaccedilatildeo e educcedilatildeo(sic) de sua filha nem tel-a em sua

companhia e guardardquo684

De maneira idecircntica o pai de Maria Magdalena e as matildees de

Dagmar Thereza e Roberta que alegaram natildeo poder exercer seus direitos de paacutetrio

poder dadas as dificuldades financeiras e ou de sauacutede e que por isso

renunciavamdesistiam do mesmo tiveram seus requerimentos deferidos685

682

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Maria da Luz do

Nascimento data 09-02-1923 cx 101 683

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Onofre data 07-

02-1922 cx 101 684

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Maria data 18-12-

1922 cx 101 685

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Roberta data 17-

06-1922 cx 101 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo

Dagmar data 26-10-1928 cx 8 proc 5 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave

accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Maria Magdalena de Souza data 21-06-1928 cx 8 proc 14 AHUFJF Foacuterum

Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutela ldquomenorrdquo Thereza data 22-09-1928 cx 8

proc 18

260

Dos oito processos em que os pais declararam que desistiamrenunciavam ou

natildeo podiam exercer o paacutetrio poder sobre seus filhos apenas um era constituiacutedo por um

casal nos demais em seis as matildees eram mulheres solteiras e ou viuacutevas e em um o pai

era viuacutevo

Esses casos ora comentados apresentam similitudes A pobreza e ou problemas

com a sauacutede foram provavelmente os fatores que levaram os pais a solicitarem a tutela

para seus filhos abdicando assim do direito ao paacutetrio poder Poreacutem a decisatildeo judicial

diferiu nos casos analisados dois pedidos foram indeferidos e os demais deferidos Os

processos examinados satildeo posteriores ao Coacutedigo Civil assim coloca-se a questatildeo por

que pareceres diversos Por que Maria Dalvina do Nascimento e o casal Joaquim Pedro

da Silva e Carmem Claudina de Paula tiveram o pedido negado Teria sido por que

declararam que as crianccedilas jaacute estavam vivendo com a famiacutelia das pessoas indicadas para

tutores As ldquomenoresrdquo supostamente jaacute se encontravam amparadas por uma famiacutelia

assim natildeo haveria a necessidade de suspensatildeo do paacutetrio poder dos paismatildee Conforme

o parecer do Promotor Puacuteblico no processo de tutela de Rita se a crianccedila estava bem

na companhia da famiacutelia do indicado para tutor os pais deveriam deixaacute-la onde estava

sem outras formalidades Todavia nesses casos o que pode ser feito satildeo apenas

conjecturas

Provavelmente o pedido de tutor ou entrega do filho foi uma forma encontrada

por muitos pais das classes subalternas para garantir a sobrevivecircncia de seus rebentos

configurando assim uma alternativa ao abandono Eacute viaacutevel supor que muitas famiacutelias

que receberam crianccedilas principalmente naquelas sem prole tenham estabelecido laccedilos

de afetividade com os pequenos Poreacutem eacute necessaacuterio ressaltar que muitas residecircncias

que recebiam os ldquomenoresrdquo ou pessoas que aceitavam o encargo da tutela o faziam com

o intuito de utilizar-se da matildeo de obra dessas crianccedilas

Todavia se a entrega ou o viacutenculo tutelar foi uma alternativa ao abandono nem

todas as matildeespais recorreram a essa opccedilatildeo por inuacutemeros motivos como por ser a

crianccedila fruto de uma relaccedilatildeo proibida e que precisava ficar em segredo pela morte da

matildee e ou pais por natildeo ter com quem deixarentregar Possivelmente essa foi a situaccedilatildeo

vivenciada por muitas mulheres pobres empregadas domeacutesticas que viviam na casa dos

patrotildees ou eram operaacuterias que se viram sem alternativa a natildeo ser abandonar o filho686

686

Cf GRAHAM Sandra Lauderdale Proteccedilatildeo e obediecircncia criadas e seus patrotildees no Rio de Janeiro

1860-1910 Satildeo Paulo Companhia das letras 1992

261

Nos processos de tutelas examinados deparei-me com onze casos de provaacuteveis

abandonos Deste total nove ocorreram na deacutecada de 1920 e em dois natildeo foi possiacutevel

precisar a data do provaacutevel abandono Em 1927 o Coronel Antatildeo Ferreira de Almeida

fazendeiro nesta comarca solicitou a tutela das ldquomenoresrdquo Maria Orlanda e Emilia

pretas que estavam com 12 e 15 anos de idade respectivamente Segundo o requerente

as meninas ldquohaacute alguns annos foram abandonadas na sua fazenda [] Condoida da sorte

das mesmas sua esposa tomou-as sob sua proteccedilatildeo e as vem criandordquo Desse modo natildeo

foi possiacutevel saber quando as meninas foram supostamente abandonadas na fazenda do

dito coronel

Na documentaccedilatildeo analisada foi percebida uma presenccedila maior de meninas em

situaccedilotildees de abandono sendo oito crianccedilas do sexo feminino e trecircs do masculino A

faixa etaacuteria desses ldquomenoresrdquo variou de receacutem-nascidos ateacute 6 anos de idade Esses

pequenos deserdados da sorte foram abandonados em lugares variados Dos onze casos

examinados foi possiacutevel identificar o local do abandono de oito (Santa Casa de

Misericoacuterdia fazenda portas do Asilo Padre Joatildeo Emilio rua estrada e exposto agraves

portas de particulares) Alessandra Zorzetto Moreno assinala que Renato P Venancio

verificou em seus estudos o abandono de crianccedilas em locais ermos terrenos baldios e

outros que ocorriam geralmente em regiotildees que natildeo dispunham de estabelecimentos

para recolhimento dos ldquomenoresrdquo687

Em setembro de 1922 o farmacecircutico Joseacute de Aquino Barros solicitou a tutela

de Myriam de Barros branca entatildeo com um ano de idade que havia sido ldquoexposta ou

enjeitadardquo agrave porta de sua residecircncia no ano anterior Em seu requerimento para ser

admitido a prestar o juramento de tutor o farmacecircutico argumentou que sendo a

ldquomenorrdquo

[] filha de paes desconhecidos natildeo satildeo achados os parentes que deviam

assumir os encargos de criaccedilatildeo e educaccedilatildeo da menor O supplicante recolheu-

a baptisou-a fel-a inscrever no registro civil tem-lhe prodigalizado todos os

carinhos e a estima como verdadeira filha participando sua mulher de eguaes

sentimentos688

No processo de tutela natildeo haacute informaccedilotildees se Joseacute de Aquino Barros e sua

esposa Elisa Soares de Barros professora normalista tinham filhos Mas segundo

Maria Luiza Marciacutelio o ato de acolher a crianccedila encontrada na porta de residecircncia era

687

MORENO Alessandra Zorzetto Op cit 2010 p 100 688

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenorrdquo Myriam de

Barros data 20-09-1922 cx 101

262

considerado pela populaccedilatildeo como um ldquodever intransferiacutevelrdquo bem como a obrigaccedilatildeo de

batizaacute-la imediatamente Para a autora o acolhimento da crianccedila exposta era

provavelmente perpassado por um ldquocomponente religiosordquo689

Esses ldquofilhos da piedaderdquo

tinham de contar com as ldquoalmas caridosasrdquo que compadecidas com a situaccedilatildeo de

abandono acolhiam e criavam essas crianccedilas690

Aleacutem do fator religioso do ato de

caridade de acolher o exposto Marciacutelio ainda ressaltou o fator econocircmico uma vez que

ldquoos expostos incorporados a uma famiacutelia poderiam representar um complemento ideal

de matildeo de obra gratuitardquo A autora fez essas observaccedilotildees para os seacuteculos XVIII e XIX

ou seja durante o periacuteodo escravista e creio que satildeo pertinentes para o exame da

sociedade brasileira nos primeiros anos do seacuteculo XX pois a incorporaccedilatildeo dessas

crianccedilas poderia suprir a demanda por criadosempregadas domeacutesticas691

Todavia estudo realizado por Renato Franco sobre o abandono de crianccedilas em

Vila Rica (Minas Gerais) no periacuteodo colonial alerta para o fato de que natildeo se deve

fazer generalizaccedilotildees quanto ao acolhimento de crianccedilas expostas em portas pela famiacutelia

da residecircncia em que se deu a exposiccedilatildeo De acordo com o autor em Vila Rica foi

habitual o repasse do exposto para famiacutelias dispostas a criaacute-los692

Assim a atitude de

acolher o pequeno deixado agrave porta deve ter variado de regiatildeo para regiatildeo bem como de

uma eacutepoca para outra

Entretanto eacute provaacutevel que o sentimento de ldquodeverrdquo acolher a crianccedila exposta e o

ldquocomponente religiosordquo tenham estado presentes na atitude do farmacecircutico Joseacute de

Aquino Barros e de sua esposa Aleacutem disso pode-se conjecturar que o casal natildeo tivesse

filhos legiacutetimos e que fosse um desejo de ambos a criaccedilatildeo de um filho Em sua peticcedilatildeo

o farmacecircutico assinalou que acolheu batizou e registrou a menina Inclusive ele deu o

seu nome de famiacutelia para a pequena

Ana Scott e Carlos Bacellar em estudo sobre o abandono domiciliar de crianccedilas

em Sorocaba (Satildeo Paulo) entre os seacuteculos XVII e XIX ressaltaram que foi possiacutevel

traccedilar algumas tendecircncias no que diz respeito aos lares receptores de expostos Entre as

tendecircncias destacadas pelos autores estariam os domiciacutelios sem filhos ou com poucos

filhos os casais maduros com filhos jaacute emancipados o acolhimento de rebento

ilegiacutetimo dos(as) filhos (as)parentes ou de um dos cocircnjuges e os lares que acabaram de

689

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2010 p 30 690

SCOTT Ana Silvia Volpi BACELLAR Carlos de Almeida Prado Op cit 2010 p 60 691

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 136-138 692

FRANCO Renato ldquoAssistecircncia e abandono de receacutem-nascidos em Vila Rica colonialrdquo In

VENANCIO Renato Pinto Op cit 2010 p 154

263

vivenciar o oacutebito de um bebecirc e que possivelmente manifestavam o desejo de acolher

um receacutem-nascido aos vizinhos e tal intenccedilatildeo chegava ateacute aos paismatildees que pretendiam

abandonar o filho693

De acordo com Renato Pinto Venancio em seu livro Famiacutelias Abandonadas

apesar de os termos ldquoexporrdquo e ldquoenjeitarrdquo serem muitas vezes empregados como

sinocircnimos eles ldquoencobriam realidades distintasrdquo O ato de deixar a crianccedila receacutem-

nascida no meio da noite em locais ermos ou terrenos baldios significava que ela

estava sendo exposta ldquoagrave morterdquo mas ao deixaacute-la em ldquohospitais conventos e

domiciacuteliosrdquo a intenccedilatildeo era de protegecirc-la No primeiro caso no chamado ldquoabandono-

infanticiacutediordquo o bebecirc geralmente ia a oacutebito por consequecircncia do frio da fome sede ou

de ataques de animais poreacutem no ldquoabandono-proteccedilatildeordquo a crianccedila tinha mais chances de

sobreviver694

As crianccedilas enjeitadas nas portas de casas ou instituiccedilotildees tambeacutem eram

rondadas pela morte Elas eram frutos muitas vezes de gravidezes de riscos de partos

complicados de matildees desnutridas de abortos malsucedidos e ainda podiam ser

acometidas de febres infecccedilotildees de umbigo sarna entre outros agravantes o que

contribuiacutea para sua morte precoce695

Com relaccedilatildeo ao termo ldquoexpostordquo Silvia M Faacutevero Arend salientou que ao

longo do seacuteculo XIX natildeo houve por parte dos legisladores e juristas brasileiros uma

preocupaccedilatildeo com a definiccedilatildeo juriacutedica desse vocaacutebulo E que foi apenas no Coacutedigo de

Menores de 1927 que se atribuiu um ldquosignificado mais precisordquo para termo que assim

foi definido ldquosatildeo considerados expostos os infantes ateacute sete anos de idade encontrados

em estado de abandono onde quer que sejardquo696

O advogado Itagyba de Oliveira procurador do farmacecircutico Joseacute de Aquino

Barros na peticcedilatildeo enviada ao judiciaacuterio solicitando a tutela de Myriam empregou os

dois vocaacutebulos - ldquoenjeitarrdquo e ldquoexporrdquo- provavelmente por causa da imprecisatildeo contida

nos termos e por natildeo haver uma definiccedilatildeo juriacutedica para tais expressotildees ou seja qual era

a condiccedilatildeo social da menina

693

SCOTT Ana Silvia Volpi BACELLAR Carlos de Almeida Prado Op cit 2010 p 73-74 694

VENAcircNCIO Renato Pinto Famiacutelias abandonadas assistecircncia agrave crianccedila de camadas populares no

Rio de Janeiro e em Salvador ndash Seacuteculos XVIII e XIX Campinas SP Papirus 1999 p 23-24 Cf

AREND Silvia Maria Faacutevero ldquoDe exposto a menor abandonado uma trajetoacuteria juriacutedico-socialrdquo In

VENANCIO Renato Pinto Op cit 2010 p 340-342 695

MORENO Alessandra Zorzetto Op cit 2010 p 101 SCOTT Ana Silvia Volpi BACELLAR

Carlos de Almeida Prado Op cit 2010 p 60 696

AREND Silvia Maria Faacutevero ldquoDe exposto a menor abandonado uma trajetoacuteria juriacutedico-socialrdquo In

VENANCIO Renato Pinto Op cit 2010 p 340

264

Em outro processo de tutela uma receacutem-nascida foi deixada perto das Usinas de

Eletricidade (Marmelo) No entanto na documentaccedilatildeo consultada natildeo foram

empregados os termos ldquoenjeitarrdquo ou ldquoexporrdquo mas sim o vocaacutebulo abandono Em 28 de

setembro de 1923 Gabriel Ribeiro de Oliveira foi nomeado tutor pelo Juiz de Direito

Augusto Ceacutesar Pedreira Franco de uma receacutem-nascida

[] abandonada pelos seus paes e encontrada perto das Usinas de

Electricidade na manhatilde de segunda feira (24) vinte e quatro do corrente

envolvida em um panno preto e um sacco de aniagem com as iniciais A H

Bemfica e tendo na cabecinha uma tunica cocircr de rosa []697

A menina que iria ser registrada com o nome de Geralda havia sido encontrada

segundo informaccedilatildeo do termo de tutela por Antonio Martine poreacutem natildeo diz se o

mesmo era funcionaacuterio da Usina No registro de tutela tambeacutem natildeo haacute a informaccedilatildeo do

sobrenome que seria dado agrave ldquomenorrdquo

Provavelmente Geralda foi ldquoexpostardquo durante a madrugada perto das usinas de

eletricidade (Marmelo) A localidade em que foi abandonada a crianccedila estava bem

distante para a eacutepoca do centro da cidade de Juiz de Fora constituindo-se em uma aacuterea

suburbana assim eacute viaacutevel supor que a matildee ou os pais tenham considerado a Usina o

local mais adequado para deixaacute-la podendo a mesma ser encontrada por algum

funcionaacuterio Esses fatos permitem conjecturar que os responsaacuteveis pela crianccedila tenham

praticado o ldquoabandono-proteccedilatildeordquo ao deixaacute-la perto da usina onde possivelmente a

pequena teria mais chances de ser encontrada e de ser encaminhada a uma famiacutelia

acolhedora

Ao que parece um funcionaacuterio da Usina de Marmelo Antonio [Weitzel]

solicitou ao Juiz de Direito Ceacutesar Franco a nomeaccedilatildeo de Gabriel Ribeiro para tutor da

menina Geralda No processo de tutela haacute um bilhete do provaacutevel funcionaacuterio da Usina

Antonio [Weitzel] de apresentaccedilatildeo do dito Gabriel Ribeiro e de agradecimento pela

atenccedilatildeo que lhe foi dispensada pelo Juiz Eacute viaacutevel supor que ateacute o proacuteprio indicado para

tutor fosse tambeacutem um funcionaacuterio da usina de eletricidade

697

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenorrdquo Geralda data

28-09-1923 cx 6 proc 6

265

Imagem 22 Bilhete AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas

ldquomenorrdquo Geralda data 28-09-1923 cx 6 proc 6

Natildeo apenas crianccedilas receacutem-nascidas e de poucos dias foram abandonadas

enjeitadas ou expostas Nas fontes consultadas deparei-me com casos de abandonos de

crianccedilas a quem se atribuiu a idade de 6 anos Em outubro de 1922 Carlos Monteiro

requereu a tutela de uma menina morena de seis anos de idade presumiacuteveis de filiaccedilatildeo

ignorada e que foi ldquohaacute mezes abandonada agrave porta do Asilo Joatildeo Emiacuteliordquo Segundo o

requerente ele estava ldquotomando contardquo desde entatildeo da ldquopequenardquo a qual deu o nome

de Dinah698

Creio que neste caso pode-se aventar a hipoacutetese de que o interesse pela

ldquopequenardquo Dinah pudesse estar aleacutem dos sentimentos humanitaacuterios de caridade ou

religiosos A menina estava em uma faixa etaacuteria em que jaacute poderia ser empregada em

alguns afazeres do serviccedilo domeacutestico Como jaacute salientado o viacutenculo tutelar e ou o

acolhimento de crianccedilas oacuterfatildesabandonadasexpostasenjeitadas poderia ser uma

possibilidade para setores das classes dominantes obterem matildeo de obra gratuita

Argumentaccedilatildeo semelhante pode ser desenvolvida no caso do ldquomenorrdquo Joatildeo preto de 6

anos de idade ldquomais ou menosrdquo Em 29 de maio de 1926 o delegado de poliacutecia

698

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenorrdquo Dinah data 03-

11-1922 cx 101

266

comunicou ao judiciaacuterio que ldquohaacute cerca de um anno nas ruas desta cidaderdquo havia sido

encontrado o menino Joatildeo que teria supostamente informado que era ldquooacuterphatildeo de pai e

matildeerdquo e que ldquona occasiatildeo o menor alludido foi entregue ao Sr Sebastiatildeo Macedo Moura

lavrador residente em Aacutegua Limpa em cuja casa deu abrigo ao dito menor que laacute se

encontra[va] ateacute hojerdquo O delegado informou que o dito lavrador tinha interesse em

regularizar a situaccedilatildeo do ldquomenorrdquo assumindo o encargo da tutela do mesmo699

Em tal

faixa etaacuteria o menino poderia ser empregado em algumas atividades laborativas

proacuteprias do meio rural

A falta de um abrigo ou de uma instituiccedilatildeo para acolhimento das crianccedilas

abandonadas e ou oacuterfatildes em Juiz de Fora era remediada com o recurso de se entregar as

crianccedilas para particulares por intermeacutedio do viacutenculo tutelar No entanto no

requerimento do delegado enviado ao judiciaacuterio observa-se que o menino Joatildeo ficou

por volta de um ano na companhia do lavrador Sebastiatildeo Macedo Moura sem nenhuma

regulamentaccedilatildeo Eacute provaacutevel que muitas outras crianccedilas das classes mais baixas da

hierarquia socioeconocircmica tenham permanecido sob os cuidados de pessoas das classes

mais abastadas ou remediadas sem nunca terem tido a sua situaccedilatildeo regularizada Com

relaccedilatildeo agraves meninas havia a possibilidade de serem internadas no Asilo Joatildeo Emilio isso

quando houvesse vagas O processo de tutela das irmatildes Rheacutea-Sylvia e Ameacuterica acena

para o fato de que natildeo era tatildeo faacutecil conseguir uma vaga Em dezembro de 1928 o juiz

de Direito solicitou agrave Superiora do asilo Irmatilde Maria de Santa Euphrasia Chaves a

internaccedilatildeo das meninas ao que a mesma respondeu

[] tenho de informar-vos que natildeo temos actualmente nenhuma vaga tendo

uma pequena que nos foi apresentada por uma dama de caridade com officio

de V Excia esperando que se decirc uma vaga A lotaccedilatildeo estaacute completa

chegando ao elevado numero de 140700

O abandono em instituiccedilotildees o chamado ldquoabandono-proteccedilatildeordquo tambeacutem foi

verificado na documentaccedilatildeo compulsada Em primeiro de agosto de 1929 Lourenccedilo

Weiss assinou a tutela da menina ldquoMaria Ignez branca nascida em 21 de janeiro []

filha de paes incoacutegnitos e abandonada logo ao nascer na Santa Casa de Misericoacuterdia

desta cidaderdquo

699

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenorrdquo Joatildeo data 31-

05-1926 cx 7 proc 6 Aacutegua Limpa eacute o atual municiacutepio de Coronel Pacheco 700

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenoresrdquo Ameacuterica e

Rheacutea Sylvia data 08-06-1928 cx 8 proc 3

267

Dar agrave luz no hospital nos primeiros anos do seacuteculo XX na sociedade brasileira

era considerado por uma parcela dos setores abastados e meacutedios como algo indigno

proacuteprio de matildees solteiras prostitutas e mulheres pobres A presenccedila do meacutedico

especialista em ldquodoenccedilas de senhorasrdquo e partos foi sendo aceita gradativamente pela

sociedade principalmente pelas famiacutelias dos estratos dominantes Os valores morais e

religiosos da eacutepoca provavelmente tiveram uma grande influecircncia na aceitaccedilatildeo desses

profissionais As famiacutelias de modo geral davam preferecircncia agraves parteiras e aos partos

realizados nos domiciacutelios701

Esse comportamento natildeo foi tiacutepico apenas do Brasil

Segundo Michelle Perrot na sociedade francesa ldquodar agrave luz no hospitalrdquo era ldquosinal de

pobreza e principalmente de vergonha e solidatildeordquo e a ldquorejeiccedilatildeo do filho natural levava

a matildee ao hospitalrdquo A autora ainda ressaltou que a partir do periacuteodo entre-guerras

comeccedilou a ocorrer uma mudanccedila ldquotiacutemidardquo nessa atitude702

Em outubro de 1926 O Lynce exaltou em um de seus artigos a iniciativa de D

Analita de Campos Carvalho ldquode dotarrdquo Juiz de Fora com uma maternidade para a qual

havia escolhido o nome de ldquoTherezinha de Jesusrdquo A importacircncia de tal iniciativa foi

ressaltada pelo fato de a cidade mineira ser []

[] constituiacuteda de operarios como eacute a maioria de nossa populaccedilatildeo essa

maternidade viraacute prestar grandes benefiacutecios aacutes matildees pobres que em grande

numero devido a crise de casas natildeo tem um quarto decente que lhes sirvam

para o repouso durante o parto703

A ideia que a reportagem parece transmitir eacute a de que a maternidade seria

destinada exclusivamente agraves mulheres dos setores mais baixos da sociedade ou seja

para aquelas que natildeo possuiacuteam condiccedilotildees de darem agrave luz no aconchego do lar A

situaccedilatildeo econocircmica e habitacional da cidade eacute ressaltada na mateacuteria Desde o final da

deacutecada de 1910 e ao longo da deacutecada de 1920 a ldquocarestiardquo a alta dos preccedilos dos

gecircneros alimentiacutecios e dos alugueis foi uma constante nos perioacutedicos locais704

701

MARQUES Rita de Caacutessia ldquoA maternidade Hilda Brandatildeo de Belo Horizonte medicina e caridaderdquo

In Gecircnero revista do nuacutecleo transdisciplinar de Estudos de Gecircnero ndash NUTEG v 6 n 1 2 sem 2005

Niteroacutei EDUFF 2006 p 157-172 Para mais informaccedilotildees sobre a atuaccedilatildeo das parteiras e as poliacuteticas

puacuteblicas de fiscalizaccedilatildeo e de regulaccedilatildeo da accedilatildeo das mesmas em paiacuteses europeus ver o trabalho de GISSI

Alessandra ldquoParteiras e controle de natalidade na Europa do seacuteculo XXrdquo In Gecircnero revista do nuacutecleo

transdisciplinar de Estudos de Gecircnero ndash NUTEG v 6 n 1 2 sem 2005 Niteroacutei EDUFF 2006 p 11-

41 702

PERROT Michelle Op cit 2009 p 138-139 703

SMBMMM ldquoMaternidade Therezinha de Jesusrdquo O Lynce 06-10-1926 p 1 704

SM-BMMM ldquoAs casardquo Jornal do Commercio 08-12-1912 p 1 Varias ldquoA Carestiardquo O Dia 04-08-

1918 ldquoSobre a Carestia de Vida a intervenccedilatildeo do Governordquo O Dia 03-07-1924 ldquoVida Apertadardquo O

Lynce 29-07-1923 entre outras reportagens

268

A Maternidade Therezinha de Jesus foi inaugurada em 1o de janeiro de 1927

contou com a presenccedila de autoridades poliacuteticas (municipais e estaduais) religiosas e

militares aleacutem de importantes setores das classes dominantes A maternidade estava

instalada em preacutedio proacuteprio localizado na Avenida Quinze de Novembro (atual Av

Presidente Getuacutelio Vargas) ldquodispondo de todos os requisitos de hygiene e de conforto

para a assistencia efficiente aacutes matildeesrdquo705

Nos jornais locais ressaltou-se a importacircncia

da ldquoinstituiccedilatildeo piardquo que era tida como uma obra de ldquosenhoras e cavalheiros de nossa

melhor sociedaderdquo706

bem como a necessidade de auxiacutelios A esse respeito os

ldquopresidentes do Estado e da Camarardquo jaacute haviam prometido apoio707

Apesar de o municiacutepio contar com uma maternidade desde o ano de 1927 a matildee

da menina Maria Ignez procurou auxiacutelio meacutedico no momento do parto na Santa Casa de

Misericoacuterdia onde deixou a pequena Eacute viaacutevel supor que a matildee de Maria Ignez fosse

uma mulher pobre ou prostituta e que sem recursos tenha ido dar agrave luz na Santa Casa

com a intenccedilatildeo de laacute deixar o bebecirc tambeacutem pode-se conjecturar que fosse uma operaacuteria

ou empregada domeacutestica e que a tenha abandonado por natildeo ter meios de cuidar de sua

crianccedila e pelo receio de perder o emprego Outra hipoacutetese eacute a de que a crianccedila fosse

filha de uma famiacutelia desvalida com outros filhos para criar e que as condiccedilotildees adversas

de vida tenham levado a optarem pelo abandono da menina

Nas anaacutelises sobre o abandono de crianccedilas eacute utilizada uma gama variada de

fontes com destaque para a eclesiaacutestica (batismo oacutebito e casamento) as fontes

institucionais (Santa Casa de Misericoacuterdia ndash Roda dos Expostos) as listas nominativas

de habitantes entre outras A documentaccedilatildeo por mim utilizada para analisar os casos de

abandono foram os processos de tutelas Essa fonte nos fornece mais uma possibilidade

de anaacutelise dos casos de abandono vivenciados por muitas crianccedilas de famiacutelias

desvalidas ou natildeo bem como acena para os provaacuteveis destinos que esses ldquomenoresrdquo

trilharam apoacutes o abandono

Dos 59 processos de tutelas de provaacuteveis crianccedilas abandonadas no periacuteodo de

1889 a 1930 em apenas 15 foi possiacutevel averiguar a cor dos ldquomenoresrdquo sendo 11 natildeo-

brancos e 4 brancos sendo 2 imigrantes italianos A matildee dos italianinhos Humberto de

seis anos e Maria de quatro anos de idade faleceu na Hospedaria de Imigrantes Horta

Barbosa de Juiz de Fora O pai das crianccedilas Luglio Antonio havia desaparecido da

705

SM-BMMM ldquoMaternidade Therezinha de Jesusrdquo Diaacuterio Mercantil 03-01-1927 p1 706

SM-BMMM ldquoMaternidade Therezinha de Jesusrdquo Correio de Minas 01-01-1927 p 1 707

SM-BMMM ldquoMaternidade Therezinha de Jesus a sua inauguraccedilatildeordquo Jornal do Commercio 04-01-

1927 p 1

269

fazenda de Evaristo Botelho e segundo consta no processo nem o fazendeiro nem a

ldquoinspectoriardquo sabia o ldquorumordquo que o imigrante havia tomado ficando as crianccedilas em

abandono708

Dos 11 pequenos natildeo-brancos 6 foram registrados como pretos 2 como

mesticcedilos e os outros 3 foram tidos como moreno pardo e ldquode corrdquo A presenccedila maior de

registros de ldquomenoresrdquo tidos como natildeo-brancos me leva a crer apesar de ser uma

amostra pequena que uma parcela expressiva das crianccedilas abandonadas fossem filhas

de paismatildees com um passado ligado ao cativeiro ou seja pessoas que tendiam a estar

numa posiccedilatildeo inferior dentro da hierarquia socioeconocircmica enfrentando condiccedilotildees

adversas de vida Alguns indiacutecios nos processos reforccedilam essa ideia como os casos em

que natildeo foi declarada a cor das crianccedilas mas que as matildeespais foram identificados

como ex-escravoslibertos

Independente da cor das crianccedilas abandonadas enjeitadas expostas e

ldquoentreguesrdquo das motivaccedilotildees dos paismatildees para tal praacutetica ou dos fatores para o

acolhimento desses ldquofilhos da piedaderdquo o que se descortina atraveacutes da leitura das fontes

satildeo fragmentos de histoacuterias de vidas de pessoas que se viram desde tenra idade

obrigadas a lutarem pela sobrevivecircncia Algumas possivelmente tiveram amor e afeto

de ldquoalmas caridosasrdquo e desejosas de terem filhos mesmo que ldquoadotivosrdquo Ao passo que

outras crianccedilas provavelmente obtiveram de ldquoalmasrdquo natildeo tatildeo ldquocaridosasrdquo apenas

comida teto e trabalho

No proacuteximo item examino os processos de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo desvalidos

A situaccedilatildeo de pobreza as dificuldades de sobrevivecircncia e as relaccedilotildees familiares foram

fatores que levaram muitos pais a solicitarem a internaccedilatildeo de seus rebentos

43 AS ACcedilOtildeES DE INTERNACcedilAtildeO DE ldquoMENORESrdquo DESVALIDOS

Si a assistecircncia publica natildeo se apoderar da crianccedila desamparada ella cresceraacute

como planta damninha cujos fructos seratildeo a ociosidade a embriaguez a

prostituiccedilatildeo o crime na melhor das hypotheses representaraacute ella peso morto

ou quantidade inexpressiva na dynamica social as mais das vezes poreacutem

constituiraacute o fermento da anarchia filho da ignoracircncia e da impotecircncia para a

lucta pela vida iraacute povoar os carceres ou acabar nos hospitaes (Leacuteon

Renault)709

708

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas ldquomenoresrdquo Humberto e

Maria data 26-04-1889 cx 100 709 RENAULT Leacuteon A assistencia a infancia desvalida em Minas Geraes Belo Horizonte Imprensa

Official do Estado de Minas 1930 p 210

270

Em ldquoLe deacutesordre des famillesrdquo Arlette Farge e Michel Foucault examinaram as

cartas enviadas agraves autoridades policiais e ao rei por pessoas em sua maioria

pertencentes aos estratos sociais mais baixos da sociedade francesa do seacuteculo XVIII

solicitando o internamentoprisatildeo de seus maridos esposas filhos(as) e parentes

Segundo os autores em boa parte dessas peticcedilotildees as questotildees eram referentes a assuntos

familiares e privados (ldquodrsquoaffaires de famille et tout agrave fait priveacuteesrdquo)710

como desavenccedilas

entre os cocircnjuges pais e filhos alcoolismo orfandade problemas econocircmicos honra

familiar entre outros711

A documentaccedilatildeo analisada neste item eacute constituiacuteda pelos processos de

internaccedilatildeo de menores Levando em consideraccedilatildeo as diferenccedilas entre as fontes ldquolettres

de cachetrdquo e ldquoprocessos de internaccedilatildeordquo em um ponto elas se assemelham familiares

que por alguma razatildeo solicitaram agraves autoridades do periacuteodo ndash rei poliacutecia e poder

judiciaacuterio ndash o internamentoprisatildeo de um familiar por motivos diversos No caso dos

autos de internaccedilatildeo de menores os pais requereram o internamento de seus filhos ao

poder judiciaacuterio Os motivos alegados foram a pobreza e ou problemas de sauacutede dos

genitores e a suposta propensatildeo dos ldquomenoresrdquo para o crime

Segundo Farge e Foucault por meio da leitura das lettres de cachet se percebe

que os textos eram permeados por um modeloesquema como por exemplo do que

seria um bom pai ou uma boa matildee Em outras palavras os pedidos com o objetivo de

serem aceitos empregavam o discurso dominante do periacuteodo712

Os textos eram

intermediados pelos escrivatildees assim as peticcedilotildees natildeo eram as ldquomanifestations lsquobrutesrsquo

mais des expressions relativement complexes ougrave se fixent entre les particuliers et les

autoriteacutes les representations admises de la bonne et de la mauvaise conduiterdquo713

No recorte delimitado por meu estudo (1888-1930) foram encontrados apenas

quatro processos de internaccedilatildeo de menores no ano de 1929 mas que tratam da

internaccedilatildeo de cinco meninos uma vez que um dos documentos refere-se a dois irmatildeos

Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro Todos os autos satildeo referentes a meninos na faixa

etaacuteria entre 10 e 14 anos de idade Embora seja uma amostra pequena creio poder

710

FARGE Arlette FOUCAULT Michel Le deacutesordre des familles lettres de cachet des archives de la

Bastille Paris Eacuteditions Gallimard Julliard 1982 p 9 711

Idem p 27-36 157-174 712

Ibidem p 171-172 713

Ibidem p 351 ldquo[] manifestaccedilotildees lsquobrutasrsquo mas expressotildees relativamente complexas fixadas entre as

pessoas (particulares) e as autoridades das representaccedilotildees admitidas de uma boa ou de uma maacute condutardquo

(Traduccedilatildeo minha)

271

assinalar que os pedidos de internaccedilatildeo dos filhos enviados ao poder judiciaacuterio pelos

pais de Juiz de Fora tambeacutem tenham empregado um discursoesquema ou seja

utilizaram o discurso dominante da eacutepoca com o propoacutesito de terem seus pedidos

aceitos Assim da leitura dos requerimentos observa-se a presenccedila da ideia de que os

institutosasilosabrigos eram espaccedilos privilegiados para protegerregenerar as crianccedilas

desvalidas e preparaacute-las pelo e para o trabalho para viverem em uma sociedade

civilizada do trabalho da ordem e do progresso Nos pedidos a pobreza e a doenccedila dos

genitores foram colocadas como empecilhos para que os mesmos pudessem continuar a

exercer a contento o direito do paacutetrio poder e que por causa de tal situaccedilatildeo os filhos

estavam encaminhando-se para o mundo do crime Nas entrelinhas das peticcedilotildees estatildeo

presentes os discursosesquemas de quais seriam as condiccedilotildees fiacutesicas econocircmicas e

morais para os pais criarem seus filhos para o mundo do trabalho ou para o mundo do

crime Em outras palavras quais eram as concepccedilotildees sobre as condiccedilotildees para uma boa

ou maacute criaccedilatildeo dos filhos

As peticcedilotildees dos pais dos ldquomenoresrdquo provavelmente foram redigidas por um

advogado delegado ou um escrivatildeo e suponho que as suas declaraccedilotildees ldquobrutasrdquo tenham

sido filtradas e lapidadas por esses profissionais poreacutem como a amostra documental eacute

muito reduzida eacute viaacutevel apenas fazer conjecturas Os textos desses documentos pode-se

dizer que eram padronizados apresentavam um discurso uma estrutura de como

deveriam ser as solicitaccedilotildees encaminhadas ao poder judiciaacuterio Com isso natildeo quero

aqui afirmar que os pais natildeo estivessem realmente preocupados com seus filhos e que a

pobreza e a doenccedila bem como o suposto direcionamento dos ldquomenoresrdquo para a

criminalidade natildeo tenham sido fatores para tais pedidos mas eacute oportuno alertar que

outras questotildees como por exemplo problemas familiares entre pais e filhos entre os

ldquomenoresrdquo e o padrasto e ou a madrasta podem ter contribuiacutedo tambeacutem para os

pedidos de internaccedilatildeo dos meninos mas natildeo foram declarados nos requerimentos pois

para se obter ecircxito no pedido possivelmente era preciso demonstrar preocupaccedilatildeo com a

subsistecircncia e o futuro do ldquomenorrdquo o que subtendia-se na eacutepoca com o futuro da naccedilatildeo

e do mercado de trabalho Abaixo estatildeo as transcriccedilotildees dos pedidos e do termo de

autorizaccedilatildeo do internamento de trecircs jovens onde se pode observar uma padronizaccedilatildeo

conforme argumentei acima O quarto processo dos irmatildeos Joatildeo e Geraldo Theodoro

Monteiro seraacute analisado posteriormente

272

O abaixo assignado casado brasileiro pobre residente nesta cidade pae do

menor Joseacute Guimaratildees Filho de 10 annos de idade vem respeitosamente

pedir a V Ex a internaccedilatildeo do referido menor no Aprendisado Agricola de

Barbacena visto natildeo ter meios para garantir a sua subsistencia e ainda por

estar se habituando a pratica de furtos o seu citado filho714

O abaixo assignado viuacutevo brasileiro indigente e cego residente nrsquoesta

cidade pae do menor Joseacute Luiz da Silva de 13 annos de idade vem

respeitosamente pedir a V Exc a internaccedilatildeo do referido menor em um dos

asylos do Estado visto natildeo ter meios para garantir a sua subsistecircncia e ainda

por estar se habituando a pratica de furto o seu citado filho715

Termo

[] no Forum na sala de audiecircncias perante o Excellentissimo senhor Doutor

Custodio de Almeida Lustosa Meritiacutessimo Juiz de Direito desta comarca

compareceu o cidadatildeo Manoel Silveira e por elle foi dito que autorizava a

qualquer autoridade internar o seu filho menor Antonio Silveira de doze anos

de idade em qualquer estabelecimento do Estado visto natildeo poder exercer o

paacutetrio poder em razatildeo de seu estado de pobreza Para constar mandou o Juiz

lavrar este termo que depois de lido e achado conforme vai devidamente

assignado Eu Jose Cassimiro de Figueiredo escrivatildeo o escrevi e dou feacute716

O municiacutepio de Juiz de Fora natildeo contou com uma instituiccedilatildeo para abrigar os

ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados oacuterfatildeos e apontados como delinquentes nos

primeiros anos da jovem Repuacuteblica Por isso era necessaacuterio enviaacute-los para as cidades

que contavam com esses estabelecimentos ou para a capital do estado Belo Horizonte

Com relaccedilatildeo ao internamento de crianccedilas nos abrigos da capital Wesleyuml Silva ressaltou

que tal fato era motivo de criacuteticas de determinados setores que assinalavam que alguns

ldquomenoresrdquo do interior eram beneficiados por um ldquoprotecionismordquo e que os mesmos

eram internados ldquoatropelando a fila de pedidos e prioridadesrdquo717

Essas criacuteticas eram

rebatidas por Alarico Barroso juiz de Menores e Eleitoral de Belo Horizonte que

transferia a responsabilidade para os juiacutezes de direito das cidades do interior que

ldquoemitiam atestados de pobreza com base em falsas informaccedilotildees prestadas pelas

famiacuteliasrdquo O juiz Barroso chegou a ressaltar que muitos pais que se diziam miseraacuteveis

estavam apenas querendo se livrar dos filhos718

O ldquoprotecionismordquo ou poliacutetica do favor foi objeto de estudo de Gisaacutelio Cerqueira

Filho que analisou ldquoa ideologia do favor amp a ignoracircncia simboacutelica da leirdquo na sociedade

714

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de Internaccedilatildeo de Menores ldquoMenorrdquo

Joseacute Guimaratildees Filho Data 19-10-1929 Cx 0012ordm processo 715

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de Internaccedilatildeo de Menores ldquoMenorrdquo

Joseacute Luiz da Silva Data 30-01-1929 Cx 112 716

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos Relativos agrave accedilatildeo de Internaccedilatildeo de Menores ldquoMenorrdquo

Antonio Silveira Data 02-04-1929 Cx 112 717

Apud SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 252 718

Apud SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 252

273

brasileira O autor procurou nas raiacutezes ibeacutericas e sua filiaccedilatildeo ao tomismo no

autoritarismo e no sistema escravista as explicaccedilotildees para as praacuteticas sociais do ldquofavorrdquo

no Brasil desde o periacuteodo colonial De acordo com Cerqueira Filho a chamada

ldquoideologia do favorrdquo contribui para uma descaracterizaccedilatildeo do Direito para o natildeo

cumprimento das leis ou seja para o reconhecimento-desconhecimento da lei pela

populaccedilatildeo brasileira no que foi denominado pelo estudioso de ldquoignoracircncia simboacutelica da

leirdquo719

Natildeo tenho dados para afirmar que os pais dos ldquomenoresrdquo da documentaccedilatildeo

compulsada foram favorecidos por algum tipo de protecionismo poliacutetico nem de

comprovar a veracidade das alegaccedilotildees de pobreza e doenccedilas A uacutenica constataccedilatildeo eacute a de

que os peticionaacuterios foram atendidos O menino Joseacute Luiz da Silva de 13 anos de idade

foi enviado para o Abrigo de Menores de Belo Horizonte em caraacuteter provisoacuterio pois

segundo informaccedilotildees do Secretaacuterio Joseacute F Bias Fortes da Secretaria de Seguranccedila e

Assistecircncia Puacuteblica do Estado de Minas Gerais natildeo havia naquele momento vaga em

outros estabelecimentos do estado Com relaccedilatildeo aos ldquomenoresrdquo Antonio Silveira e Joseacute

Guimaratildees Filho de 12 e 10 anos de idade respectivamente natildeo foi possiacutevel identificar

para qual ou quais instituiccedilotildees foram encaminhados Joseacute Alves Guimaratildees pai de Joseacute

Guimaratildees Filho solicitou a internaccedilatildeo do menino no Aprendizado Agriacutecola de

Barbacena (MG) poreacutem natildeo haacute informaccedilotildees de que o jovem tenha sido internado no

citado estabelecimento Aleacutem da peticcedilatildeo o processo consta apenas de uma breve

declaraccedilatildeo do Juiz assinalando para se requerer o internamento e uma certidatildeo dizendo

que o ldquomandadordquo havia sido expedido

Nos processos de Joseacute Luiz de Silva e Joseacute Guimaratildees Filho foi colocado que os

meninos estavam se ldquohabituando a pratica de furtordquo Em uma sociedade que a ideia do

trabalho como um meio de se atingir o progresso a modernidade e a ldquocivilizaccedilatildeordquo

estava sendo forjada essa suposta inclinaccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo para o mundo do crime do

natildeo trabalho deveria ser combatida ser tratada e as instituiccedilotildeesabrigosreformatoacuterios

eram tidas como o loacutecus privilegiado para essa accedilatildeo profilaacutetica

Apesar da importacircncia econocircmica (setor cafeeiro e industrial) de Juiz de Fora no

cenaacuterio estadual nas primeiras deacutecadas republicanas bem como do crescimento urbano

e populacional o municiacutepio natildeo dispunha de uma instituiccedilatildeo para abrigar os seus

meninos desvalidos abandonados oacuterfatildeos e delinquentes como jaacute foi salientado Nos

719

CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio A Ideologia do Favor amp a Ignoracircncia Simboacutelica da Lei Rio de

Janeiro Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro 1993 p 19-26

274

perioacutedicos do periacuteodo satildeo constantes as queixas sobre a inexistecircncia de um

estabelecimento em Juiz de Fora e sobre a necessidade de a cidade ser dotada de uma

instituiccedilatildeo para tal finalidade Em uma reportagem intitulada ldquoA infacircncia desvalidardquo o

jornal O Pharol em fevereiro de 1911 discutiu sobre essa problemaacutetica e destacou a

importacircncia do Instituto Joatildeo Pinheiro720

de Belo Horizonte e contemplou que o

Governo do Estado poderia empreender uma obra semelhante em Juiz de Fora Segundo

a mateacuteria

[]

Sem o auxilio do governo que dispotildee de todos os meios para resolver esse

problema eminentemente humanitaacuterio nada se poderaacute fazer em favor da

infacircncia sem assistecircncia

Em Belo Horizonte criou-se o Instituto Joatildeo Pinheiro para recolhimento de

menores pobres e natildeo haacute hoje quem natildeo bendiga os frutos magniacuteficos e a

utilidade desse importante estabelecimento um dos maiores tiacutetulos de

benemerecircncia a que pode aspirar um governo digno da missatildeo que tem de

cuidar dos destinos do povo satisfazendo-lhe as justas e legitimas aspiraccedilotildees

A excelente impressatildeo recebida por quantos tiveram oportunidade de visitar o

Instituto Joatildeo Pinheiro eacute a melhor recomendaccedilatildeo da necessidade de sua

existecircncia e as palavras de louvores com que em todo o Estado satildeo

apreciados os seus resultados devem animar o governo a prosseguir nessa

obra generosa criando institutos congecircneres nas cidades onde avulta o

nuacutemero de crianccedilas sem assistecircncia Juiz de Fora mais do que nenhuma

outra estaacute no direito de exigir um estabelecimento modelado pelo Instituto de

Belo Horizonte pois aqui se podem contar agraves dezenas os menores que vivem

abandonados reclamando o carinho e o cuidado de quem os pode livrar dessa

situaccedilatildeo

Seria muito faacutecil faciacutelimo ateacute ao Estado criar um instituto de assistecircncia agrave

infacircncia nessa cidade Haacute um preacutedio que se presta admiravelmente e cuja

adaptaccedilatildeo para esse fim quase nenhuma despesa acarretaria

Eacute a antiga hospedaria de imigrantes pertencente ao governo de Minas

Ali com ligeiras alteraccedilotildees far-se-ia um oacutetimo instituto modelado pelo da

Capital onde os infelizes deserdados da fortuna adquirissem os meios de

minorar um pouco os seus sofrimentos habilitando-se aleacutem disso para o

futuro preparando-se para ganhar a vida na aprendizagem de artes e ofiacutecios

Lucrariam a infacircncia a sociedade e o proacuteprio governo se tal obra fosse

levada a efeito o que depende soacute da boa vontade daqueles que dirigem o

nosso Estado Vamos sr Coronel Bueno Brandatildeo um bom movimento em

favor dessa medida que natildeo lhe faltaram as becircnccedilatildeos e os aplausos dos

habitantes em peso desta progressiva e adiantada terra ndash J Costahile 721

720

Segundo Cynthia G Veiga e Luciano M de Faria o Instituto Joatildeo Pinheiro foi a primeira iniciativa do

governo do estado de Minas Gerais voltada agrave problemaacutetica da assistecircncia a infacircncia desvalida e

abandonada ldquomaterial ou moralmenterdquo O Instituto foi fundado pelo governo estadual e organizado por

ldquoum grupo de intelectuais professores e juristas republicanosrdquo O ensino agriacutecola era um dos pilares do

estabelecimento assistencial Segundo os idealizadores do Instituto o campo era o local ideal para a

ldquoeducaccedilatildeoregeneraccedilatildeordquo das crianccedilas abandonadas e o ensino agriacutecola era apontado como o mais eficaz

em tais processos Cf VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes de Infacircncia no soacutetatildeo

Belo Horizonte Autecircntica 1999 p 47 51-57 721

SM-BMMM ldquoA Infacircncia desvalidardquo O Pharol 22 fev 1911 p 2

275

A criaccedilatildeo de institutos era visualizada no periacuteodo como a salvaccedilatildeo para os

ldquoinfelizes deserdados da fortunardquo bem como para a sociedade Os estabelecimentos

assistenciais habilitariam os ldquomenoresrdquo abandonados para ldquoganhar a vida na

aprendizagem de artes e ofiacuteciosrdquo para viverem futuramente na sociedade como

trabalhadores Em suma os ldquomenoresrdquo seriam preparados para as atividades menos

qualificadas e para serem inseridos na sociedade como matildeo de obra barata disciplinada

e ordeira enfim sem comprometerem a hierarquia socioeconocircmica estabelecida

Apesar de Juiz de Fora contar com as condiccedilotildees materiais segundo a

reportagem para a implantaccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo de assistecircncia pelo governo do

estado isso natildeo ocorreu ao longo da Primeira Repuacuteblica O texto ressalta que na cidade

era grande o nuacutemero de crianccedilas ldquosem assistecircnciardquo e que poderia se ldquocontar agraves dezenas

os menores que vivem abandonados reclamando o carinho e o cuidado de quem os

pode livrar dessa situaccedilatildeordquo

As famiacutelias pobres e suas crianccedilas podiam entretanto contar com as accedilotildees

filantroacutepicas das ldquodamasrdquo ldquosenhorinhasrdquo e ldquosenhoresrdquo da sociedade juiz-forana ligados

agraves associaccedilotildees como a da Sociedade Satildeo Vicente de Paulo a Uniatildeo Catoacutelica Patildeo de

Santo Antocircnio (Patildeo dos Pobres ligados aos vicentinos) as Damas da Caridade o

Instituto de Proteccedilatildeo e Assistecircncia agrave Infacircncia a Associaccedilatildeo das Damas de Assistecircncia agrave

Infacircncia (ligadas ao Instituto de Proteccedilatildeo e Assistecircncia a Infacircncia) Obra da Santa

Infacircncia (associaccedilatildeo dirigida pelos padres da Congregaccedilatildeo do Verbo Divino) entre

outras de orientaccedilatildeo religiosa ou natildeo Essas associaccedilotildees promoviam festas para

arrecadaccedilotildees de donativos para serem repassados agraves famiacutelias desvalidas agrave Santa Casa

de Misericoacuterdia e ao Asilo Joatildeo Emiacutelio construiacuteam casas para as viuacutevas e famiacutelias

pobres assistidas por essas instituiccedilotildees distribuiacuteam brinquedos roupas e prestavam

assistecircncia meacutedica722

Eram accedilotildees que mitigavam em parte o sofrimento e as carecircncias

dos mais necessitados entretanto natildeo promoviam uma mudanccedila social na vida dessas

722

PINTO Jefferson de Almeida Controle social e pobreza (Juiz de Fora c 1876 ndash c 1922) Juiz de

Fora (MG) Editar 2008 Ver principalmente o capiacutetulo 3 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo

pobreza caridade e accedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico SM-BMMM Em abril de 1918 a

Diretoria do Instituto de Proteccedilatildeo e Assistecircncia a Infacircncia comunicou que havia distribuiacutedo listas de

subscriccedilatildeo para auxiliar na instalaccedilatildeo da sede provisoacuteria do citado instituto ldquoInstituto de Proteccedilatildeo e

Assistecircncia a Infacircnciardquo O Dia 05 abr 1918 p 1 O Instituto de Proteccedilatildeo e Assistecircncia a Infacircncia foi

inaugurado em 29 de setembro de 1918 ldquoInstituto de Assistecircncia e Proteccedilatildeo a Infacircnciardquo Correio de

Minas 29 set 1918 p 1 ldquoA casa da crianccedila uma visita ao Instituto de Proteccedilatildeo e Assistencia aacute

Infanciardquo O Dia 08 jan 1919 A Associaccedilatildeo das Damas de Proteccedilatildeo e Assistecircncia agrave Infacircncia foi fundada

em 26 de outubro de 1919 ldquoAssociaccedilatildeo das Damas de Assistencia aacute Infanciardquo Correio de Minas 28 out

1919 p 2 ldquoAssociaccedilatildeo das Damasrdquo O Dia 26 out 1919 p 2 Doaccedilatildeo de casas para as viuacutevas pobres

ldquoGesto Nobrerdquo O Lynce 20 de ago de 1927 p 1 AHCJF ldquoO grande festival de hontem ndash Em beneficio

da Obra da Santa Infacircnciardquo Diaacuterio Mercantil 04 jan 1926 p 2

276

pessoas que ficavam refeacutens da caridade das damas senhorinhas e cavalheiros que

tinham seus nomes estampados nos jornais locais como benfeitores

Todavia a infacircncia abandonada oacuterfatilde e indigitada delinquente que vivia pelas

ruas de Juiz de Fora sem assistecircncia representava um grave problema para a sociedade

de modo geral O que fazer com esses ldquomenoresrdquo Em alguns casos a soluccedilatildeo poderia

ser a nomeaccedilatildeo de um tutor dativo e em outros o envio para instituiccedilotildees puacuteblicas

destinadas ao atendimento dessa parcela da sociedade A exiguidade de

estabelecimentos para o atendimento dessas crianccedilas provavelmente fazia com que

muitos pedidos expedidos pela justiccedila fossem indeferidos dada a falta de vagas nos

institutos puacuteblicos ou subvencionados pelo estado Wesleyuml Silva ressalta que as

instituiccedilotildees puacuteblicas da capital mineira destinadas ao internamento de ldquomenoresrdquo

geralmente eram caracterizadas pela superlotaccedilatildeo O nuacutemero de internos estava sempre

acima de sua capacidade de atendimento723

A esse respeito Cinthya Veiga e Luciano

Faria assinalaram que boa parte dos problemas enfrentados por essas instituiccedilotildees

provinham da ldquofalta de criteacuterios para a internaccedilatildeordquo724

Assim ao longo de todo o

periacuteodo da Primeira Repuacuteblica como jaacute comentado os perioacutedicos reclamaram sobre a

presenccedila de ldquomenoresrdquo ditos ldquovagabundosrdquoldquovadiosrdquo pelas ruas de Juiz de Fora bem

como exigiam das autoridades puacuteblicas uma providecircncia 725

A soluccedilatildeo muitas vezes

encontrada era o encarceramento dos ldquomenoresrdquo que supostamente estavam vagando

pelas vias puacuteblicas da cidade726

A problemaacutetica da infacircncia desvalida abandonada (fiacutesica e moralmente) e

delinquente bem como a discussatildeo sobre a assistecircncia a ser prestada a essa parcela da

populaccedilatildeo foi (eacute) uma questatildeo presente constantemente na imprensa No iniacutecio do

seacuteculo para diversos setores das classes dominantes as instituiccedilotildees assistenciais de

internamento de ldquomenoresrdquo as chamadas escolas de ldquoregeneraccedilatildeordquo ldquocorrecionaisrdquo e de

ldquopreservaccedilatildeordquo eram consideradas como a soluccedilatildeo para o grave problema social

representado pelos ldquomenoresrdquo que viviam pelas ruas das cidades Esses

estabelecimentos como jaacute foi examinado eram tidos como o locus privilegiado para a

preparaccedilatildeo dessas crianccedilas em futuros cidadatildeos uacuteteis agrave paacutetria ou seja em matildeo de obra

barata e disciplinada O jornal O Pharol do dia 23 de junho de 1905 na coluna

723

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 261 724

VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes de Op cit 1999 p 51 725

AHCJF Diaacuterio Mercantil 09 de dez de 1914 p 1 AHUFJF ldquoReclamaccedilotildeesrdquo O Pharol 23 de jun de

1905 p 2 726

AHUFJF ldquoNotas Policiaesrdquo O Pharol 17 de dez 1905 p 1 SM-BMMM Jornal do Commercio 05

de jan de 1897 p 1

277

ldquoExcerptos dos Jornaesrdquo publicou um trecho de uma mateacuteria do perioacutedico O Paiz sobre

a criaccedilatildeo de escolas correcionais Assim veiculou o jornal carioca

[] na organizaccedilatildeo de uma assistecircncia regular aacute infancia a escola

correccional representa papel destacado Ella eacute o forno de purificaccedilatildeo onde

os elementos viciados se escoimam por uma alta tensatildeo educativa das

impurezas que trouxeram727

Essa concepccedilatildeo das instituiccedilotildees de internamento como propiacutecias para corrigir

erros de reabilitar os ldquomenoresrdquo pode ser observada nas entrelinhas dos requerimentos

dos processos de internaccedilatildeo de Joseacute Luiz da Silva e Joseacute Guimaraes Filho Foi

salientado nas peticcedilotildees que os meninos estavam se ldquohabituando a pratica de furtordquo

assim eacute viaacutevel supor que seus pais compartilhassem da ideia dominante de que esses

estabelecimentos assistenciais pudessem ldquopurificaacute-losrdquo de seus ldquoviacuteciosrdquo e ldquoimpurezasrdquo

e por isso solicitaram o internamento dos mesmos ou apenas tenham se utilizado do

discurso dominante provavelmente orientados por uma pessoa letrada para

conseguirem a internaccedilatildeo de seus filhos

Em O Pharol na mesma data um artigo discorria sobre a necessidade de se dar

assistecircncia agrave infacircncia desvalida e abandonada da capital Federal e de Juiz de Fora Na

mateacuteria ldquoessa misericordiosa providenciardquo era extremamente urgente no Rio de Janeiro

[] onde a infacircncia desvalida desceu ao mais degradante graacuteo da perversatildeo

moral Pelos jardins dos theatros nos estribos dos bondes nos cafeacutes em

todos os logares publicos enfim sempre o emocionante quadro de miserias

meninas arvoradas em cambistas de bilhetes de loterias outras transformadas

em floristas assaltam os transeuntes e fazem commercio aos sorrisos

desgraccediladamente atiradas a essa condiccedilatildeo ignoacutebil por verdadeiros abutres que

as exploram

Entretanto si essas crianccedilas desamparadas encontrassem bem cedo o arrimo

da assistecircncia humanitaacuteria si houvesse no Brasil escolas correcionais si a

instrucccedilatildeo publica achasse neste paiz pelos cuidados dos governantes campo

vasto para sua expansatildeo decerto que estas scenas deprimentes da nossa

civilisaccedilatildeo natildeo seriam tatildeo repetidamente observadas

Os orccedilamentos que satildeo proacutedigos para quanto de inuacutetil existe no serviccedilo

publico e muitas vezes para encampar sinecuras com que se abarrotam os

cabos eleitoraes satildeo tristemente avaros para com a instrucccedilatildeo popular cujos

servidores satildeo parca e miseravelmente subsidiados

O Brasil apezar de rico e vasto natildeo possue estabelecimentos de instrucccedilatildeo

para abrigar a vigesima parte das crianccedilas desamparadas que perambulam aacutes

soltas pelas ruas entregues a toda sorte de viacutecios e de perdiccedilatildeo sem nome

Aqui mesmo em Juiz de Foacutera haacute uma multidatildeo de crianccedilas que vivem em

completo abandono Meninas haacute que exploram a caridade publica para

sustentarem paes validos que no trabalho honrado decerto encontrariam

seguros meios de subsistencia sem exporem a perigos eminentes as

727

AHUFJF ldquo O Paizrdquo - Excerptos dos Jornaes O Pharol 23 jun 1905 p 1

278

pequeninas flores innocentes e puras que Deus lhes confiou quando lhes

deu a suprema investidura da paternidade

Haacute porque a populaccedilatildeo inteira eacute disso testemunha duas meninas menores de

nove annos filhas de um infeliz rapaz chamado Alfredo Duarte um

desventurado a quem o alcool levou aacute morte que vagam pelas ruas pelos

cafeacutes pela estaccedilatildeo da estrada de ferro por toda parte a esmo atocirca

desprezadas ouvindo pilherias e chalaccedilas e a todos ao preto e ao branco ao

burguez e ao plebeu estendendo aacutes matildeosinhas cocircr de rosa pedindo pelo

amor de Deus uma esmola para a sua progenitora que [afirmam] na miseria

Ora essas crianccedilas deviam ser recolhidas a um orphanolato deviam pelo

menos ir [direitinho] para o asylo Joatildeo Emilio ou para uma casa de famiacutelia

caridosa

[]

Para essas desditosas infancias eu chamo a attenccedilatildeo das autoridades

competentes e decerto que assim ellas teratildeo o arrimo de que precisam para a

salvaccedilatildeo de suas abandonadas alminhas em flocircr duas alvoradas que podiam

irromper para a honra para o lar e jaacutemais para o vicio e para as desgraccedilas

dos lupanares728

A longa reportagem traccedila um perfil da situaccedilatildeo da infacircncia desvalida nas ruas

cariocas e juiz-forana O texto tem um caraacuteter ambivalente pois ao mesmo tempo em

que culpa a poliacutetica nacional pela condiccedilatildeo de miseacuteria das crianccedilas pela falta de

educaccedilatildeo puacuteblica ao acesso de todos e de uma poliacutetica assistencial efetiva por outro

lado responsabiliza os pais pela presenccedila das crianccedilas nas vias por esmolarem e fazem

suposiccedilotildees preacutevias acerca da conduta dos genitores tidos como

exploradoresvagabundos A ideia de trabalho que entatildeo estava sendo forjada na

sociedade brasileira desse periacuteodo transformava em vadiosvagabundos as pessoas dos

estratos sociais vulneraacuteveis que natildeo conseguiam se estabelecer em uma atividade

qualquer independente dos fatores que as levaram a estar sem uma ocupaccedilatildeo como a

falta de necessidade de matildeo de obra dos setores produtivos que natildeo absorviam todo o

contingente populacional disponiacutevel problemas fiacutesicos idade doenccedilas entre outros

Com isso natildeo estou negando que uma parcela dos pais e ou parentes possam ter se

utilizado das crianccedilas para explorarem a caridade puacuteblica ou sua forccedila de trabalho

Com relaccedilatildeo ao municiacutepio de Juiz de Fora o texto do perioacutedico ressaltou que

havia ldquouma multidatildeo de crianccedilasrdquo que estava ldquoem completo abandonordquo e citou o caso de

duas meninas oacuterfatildes de pai que vivam esmolando pelas ruas da cidade sujeitas a todos os

tipos de situaccedilotildees e abusos A soluccedilatildeo proposta pelo jornal para o caso das irmatildes era o

internamento em um orfanato ou no asilo Joatildeo Emilio ou ainda serem entregues para

uma ldquofamiacutelia caridosardquo Um dos provaacuteveis destinos dessas ldquomenoresrdquo foi o viacutenculo

tutelar O Juiz de Direito da Comarca de Juiz de Fora ficando ciente de tal situaccedilatildeo

728

AHUFJF ldquoScenas e Factosrdquo O Pharol 23 jun 1905 p 1

279

pode ter indicado um tutor dativo para as duas crianccedilas ou alguma ldquofamiacutelia caridosardquo

pode ter solicitado a tutela dessas ldquoabandonadas alminhas em flocircrrdquo As meninas

encontravam-se em uma faixa etaacuteria menor de nove anos de idade aptas para serem

criadas e educadas no e para o serviccedilo domeacutestico em troca de parcos salaacuterios (soldadas)

ou de roupas alimentos e moradia Outra preocupaccedilatildeo que transparece na reportagem eacute

com a honra dessas meninas que poderiam com tal modo de vida encaminharem-se para

a prostituiccedilatildeo

O problema da infacircncia desvalida abandonada oacuterfatilde e ou delinquente agravava-

se ainda mais quando se tratava de ldquomenoresrdquo do sexo feminino uma vez que as

instituiccedilotildees puacuteblicas existentes em Minas Gerais nos anos finais da deacutecada de 1920

destinavam-se apenas agraves crianccedilas do sexo masculino De acordo com o Decreto 7680

de 3 de junho de 1927 que reformulou o Regulamento de Assistecircncia em Minas Gerais

a assistecircncia agraves ldquomenoresrdquo deveria contar com a iniciativa privada (religiosa ou leiga) ndash

orfanatos e asilos subvencionados pelo estado - bem como com as famiacutelias idocircneas No

caso de as ldquomeninasrdquo serem entregues a famiacutelias o Regulamento determinava que o

Juiz de Menores estipulasse um ordenado (soldada) para as mesmas729

Nos estabelecimentos particulares ou subvencionados destinados a receber

meninas a educaccedilatildeo era constituiacuteda pela intelectual fiacutesica moral ciacutevica e profissional

O sect 3o do art 42 do Decreto 7680 de 3 de junho de 1927 estabelecia que ldquoa educaccedilatildeo

profissional abrangeraacute as seguintes secccedilotildees a) costura b) rendas e bordados c)

chapeacuteus d) lavanderia e) engommagem f) cozinhardquo730

Assim creio que a assistecircncia

prestada a essas meninas era perpassada por um vieacutes econocircmico ao preparaacute-las para as

atividades domeacutesticas ou seja matildeo de obra qualificada para os lares dos setores

abastados

Nos jornais que circularam no periacuteodo eacute comum a presenccedila de mateacuterias

discorrendo sobre a importacircncia de se proteger a infacircncia desvalida Nas reportagens da

eacutepoca em anaacutelise eacute possiacutevel observar o estabelecimento da correlaccedilatildeo salvaccedilatildeo da

infacircncia-salvaccedilatildeo da paacutetria

No jornal O Dia731

17 de novembro de 1920 saiu uma mateacuteria sobre a

Associaccedilatildeo das Damas Protetoras da Infacircncia onde as senhoras faziam um relatoacuterio das

729

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 253-255 730

Apud SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 254 731

O Jornal O Dia foi fundado em 1916 pelo meacutedico e poliacutetico Rubens Ferreira Campos Segundo Almir

de Oliveira esse perioacutedico estava ldquoa serviccedilo do bernardismordquo Cf OLIVEIRA Almir de A imprensa em

280

ativadas realizadas naquele ano como compra de flanela para as crianccedilas da creche do

Instituto aulas de catecismos festivais para arrecadaccedilatildeo de recursos entre outras accedilotildees

No final do relatoacuterio a presidente da associaccedilatildeo destacou a importacircncia da Associaccedilatildeo e

de suas associadas nos seguintes termos

[] praticando a mais sugestiva maneira de se exercer a caridade salvando e

amparando as crianccedilas desvalidas ndash esses pobres rebentos humanos que

protegidos devidamente podem e devem ser transformados em elementos

fortes instruiacutedos e uacuteteis ao nosso Pais Assim agindo cumprindo o dever

humanitaacuterio de sermos caritativas seremos tambeacutem patriotas praticas

militantes732

Examinando o texto observa-se que a obra de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo

desvalidos era considerada por setores das classes dominantes como uma maneira de

contribuir para o desenvolvimento da naccedilatildeo era uma expressatildeo simultacircnea de caridade

e de patriotismonacionalismo uma vez que estava propiciando agraves crianccedilas pobres

meios de sobreviver com dignidade e ao mesmo tempo estava livrando o paiacutes de futuros

cidadatildeo viciosos vagabundos e inuacuteteis

Em Juiz de Fora havia para o recolhimento das ldquomenoresrdquo o asilo Joatildeo Emilio

dirigido pelas irmatildes do Bom Pastor Essa instituiccedilatildeo tinha a finalidade de proteger a

honra das meninas desvalidas oacuterfatildes bem como cuidar daquelas que haviam sido

desonradas as chamadas penitentes Segundo Riolando Azzi o Relatoacuterio Paroquial de

1910 informava que o asilo estava com ldquo60 oacuterfatildes e 40 moccedilas penitentes com a

finalidade de reabilitaccedilatildeo de sua vida moralrdquo733

Nos jornais constantemente eram

registrados os donativos feitos pelas senhoras senhorinhas associaccedilotildees filantroacutepicas

comerciantes industriais Cacircmara Municipal fazendeiros entre outras a esta instituiccedilatildeo

Aleacutem das doaccedilotildees pecuniaacuterias tambeacutem eram realizadas outras em espeacutecies (leite

bototildees tecidos chitas linhas meias agulhas sabonetes sapatos pentes etc) Para

angariar donativos para a pia instituiccedilatildeo eram realizados pelas diversas associaccedilotildees

existentes no municiacutepio festivais concertos almoccedilos chaacutes danccedilantes e outras

atividades734

Juiz de Fora Juiz de Fora (MG) Imprensa Universitaacuteria 1981 p 36 AHCJF ldquoHistoacuteria da imprensa de

Juiz de Forardquo Diaacuterio Mercantil 27 abr 1946 732

SM-BMMM ldquoAssociaccedilatildeo das Damas de Assistecircncia agrave Infacircnciardquo O Dia 17 nov 1920 p 2 733

AZZI Riolando Sob o Baacuteculo Episcopal a Igreja Catoacutelica em Juiz de Fora 1850-1950 Juiz de Fora

(MG) Centro da Memoacuteria da Igreja de Juiz de Fora 2000 p 161 734

SM-BMMM Jornal do Commercio 20 dez 1896 1 ldquoAsylo Joatildeo Emiliordquo Jornal do Commercio 03

jun 1897 p 1 ldquoAsylo Joatildeo Emiliordquo Jornal do Commercio 11 jun 1897 p 1 ldquoChaacute dansanterdquo O Dia

12 out 1919 p 1 Entre outras reportagens

281

Aleacutem das ldquomenoresrdquo desvalidas encaminhadas com peticcedilotildees da justiccedila ao asilo

Joatildeo Emiacutelio a instituiccedilatildeo tambeacutem recebia oacuterfatildes contribuintes Segundo o artigo 18 sect 1o

do regulamento as internas contribuintes ficariam ldquoabsolutamente e em tudo sujeitas ao

mesmo regimem estatuiacutedo para as oacuterfatildes desvalida []rdquo e o sect 2o do citado artigo

assinalava que ldquonenhuma distincccedilatildeordquo seria ldquopermitida no estabelecimento entre

desvalidas e contribuintesrdquo735

Com relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo creio que a preocupaccedilatildeo maior era com a preparaccedilatildeo

das meninas para as atividades domeacutesticas como cozinhar lavar passar engomar

costurar e bordar De acordo com Maria Luiza Marciacutelio a educaccedilatildeo ministrada agraves

meninas nos asilos de modo geral tinha por objetivo ldquopreparaacute-las para serem matildees de

famiacutelia e ou empregadas domeacutesticas instruiacutedas e bem treinadasrdquo A educaccedilatildeo que

deveria ser dada agraves meninas desvalidas era a baacutesica seguida do aprendizado de um

ofiacutecio736

Segundo uma mateacuteria do jornal Diaacuterio Mercantil de junho de 1938 as

internas do asilo Joatildeo Emilio recebiam instruccedilatildeo primaacuteria e aprendiam ldquotoda sorte de

trabalhos manuais e domeacutesticosrdquo para que pudessem ldquomais tarde segundo sua condiccedilatildeo

social ganhar honestamente sua vidardquo737

Os trabalhos de bordados das meninas e

moccedilas do asilo foram extremamente elogiados pelas reportagens O Diaacuterio Mercantil

nas deacutecadas de 1940 e 1950 publicou diversas mateacuterias sobre o asilo Joatildeo Emiacutelio - que

passou a denominar-se Instituto nos anos de 1950 - sobre sua fundaccedilatildeo a obra das irmatildes

do Bom Pastor sobre as dificuldades econocircmicas os problemas de manutenccedilatildeo do

ldquovelho casaratildeordquo que ameaccedilava desabar e sobre a construccedilatildeo do novo edifiacutecio 738

A educaccedilatildeo ministrada aos meninos e meninas desvalidos oacuterfatildeos abandonados

e indigitados delinquentes natildeo contribuiacutea de modo geral para a superaccedilatildeo da condiccedilatildeo

socioeconocircmica desses ldquomenoresrdquo Em suma era uma educaccedilatildeo voltada para a

preparaccedilatildeo de matildeo de obra para os donos dos meios de produccedilatildeo e capital Essa

concepccedilatildeo de educaccedilatildeo para as crianccedilas das classes mais baixas da sociedade pode ser

735

SM-BMMM ldquoRegulamento para a entrada de oacuterfatildes contribuintes no Asylo lsquoJoatildeo Emiliorsquo segundo os

estatutos do estabelecimentordquo Jornal do Commercio 12 jan 1897 p 2-3 736

MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 173-175 737

ldquoA grande obra do Asylo Joatildeo Emiliordquo ndash A vida da cidade - Diaacuterio Mercantil ndash supplemento

illustrado 26 jun 1938 A informaccedilatildeo sobre as reportagens referentes ao Asilo Joatildeo Emilio nas deacutecadas

de 1930 1940 e 1950 e as fotografias do jornal Diaacuterio Mercantil me foram cedidas gentilmente por Rita

de Caacutessia Vianna Rosa 738

ldquoUma instituiccedilatildeo que merece o amparo da populaccedilatildeordquo Diaacuterio Mercantil 26 nov 1940 p 1 (ediccedilatildeo da

tarde) ldquoTreme nos alicerces o velho casaratildeordquo Diaacuterio Mercantil 29 jan 1955 ldquoMatildeos humildes tecem

sonhosrdquo Diaacuterio Mercantil 04 fev 1955 p 6 ldquoCento e cinquenta bocas que imploramrdquo Diaacuterio

Mercantil 5 fev 1955 ldquoO corpo que natildeo trabalha se destroacutei e a alma inativa se arruiacutenardquo Diaacuterio

Mercantil 05 jan 1958 ldquoVisitado o Instituto (asilo) Joatildeo Emiliordquo Diaacuterio Mercantil 25 de dez de 1957

p 5 ldquoA mais velha instituiccedilatildeo filantroacutepica o Asilo Joatildeo Emiliordquo Diaacuterio Mercantil 14 dez 1957 p 5

282

observada nas palavras do diretor do Instituto Joatildeo Pinheiro Leacuteon Renault O diretor do

instituto mineiro de assistecircncia agrave infacircncia desvalida considerava que era dever do

governo propiciar a todas as classes o acesso a ldquoinstruccedilatildeo primaacuteria e elementarrdquo e o

ldquoensino secundaacuterio e superior aacute burguesiardquo Segundo Renault as crianccedilas desvalidas

eram ldquoforccedilas latentes que o ensino adequado e a educaccedilatildeo apropriada aproveitaratildeo para

o engrandecimento econocircmico da nossa terrardquo 739

Essas palavras sugerem que a

preocupaccedilatildeo com os ldquomenoresrdquo era perpassada por um vieacutes econocircmico e tinha por

objetivo apenas proporcionar-lhes os meios baacutesicos de instruccedilatildeo para viverem dentro da

sociedade civilizada higiecircnica e do trabalho almejada por estratos das classes

dominantes Assim a educaccedilatildeo dada a essas crianccedilas natildeo deveria subverter a ordem

social e econocircmica que estava estabelecida

Na proacutexima parte seraacute examinado o processo de internaccedilatildeo dos irmatildeos Joatildeo e

Geraldo Theodoro Monteiro em que as provaacuteveis dificuldades financeiras e problemas

familiares foram fatores para a solicitaccedilatildeo de internaccedilatildeo dos meninos

431 Laccedilos do Infortuacutenio a accedilatildeo de internaccedilatildeo dos irmatildeos Joatildeo e Geraldo

Theodoro Monteiro

Em janeiro de 1929 Dona Maria Umbelina Monteiro matildee dos ldquomenoresrdquo Joatildeo e

Geraldo Theodoro Monteiro de 12 e 14 anos de idade respectivamente sobre os quais

tinha o ldquopoder maternordquo declarou ao juiz de direito Custoacutedio de Almeida Lustosa ldquoque

desejava internal-os em Instituto official por natildeo ter meios de os educar nem de cohibir

o procedimento dos mesmosrdquo740

No ldquoTermo de Declaraccedilotildeesrdquo (15-01-1929) requisitado pelo Juiz a matildee dos

meninos declarou que era natural de Divinoacutepolis (Minas Gerais) possuiacutea 34 anos de

idade era viuacuteva de Joatildeo Theodoro Monteiro e casada em segundas nuacutepcias com

Divino Theodoro Monteiro741

pelo ldquoregimen legal natildeo possuindo bens o seu segundo

739

RENAULT Leacuteon A assistencia a infancia desvalida em Minas Geraes Belo Horizonte Imprensa

Official do Estado de Minas 1930 p 210 740

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos de Internaccedilatildeo de Menores

Menores Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro data 15-01-1929 Cx 0011ordm proc 741

Na documentaccedilatildeo analisada o nome do padrasto dos ldquomenoresrdquo ora aparece como Divino Theodoro

Monteiro e ora como Divino Theodoro Rodrigues Uma explicaccedilatildeo viaacutevel na hipoacutetese do pai e o padrasto

possuiacuterem os mesmos sobrenomes - ldquoTheodoro Monteirordquo - eacute a de que esses indiviacuteduos fossem afro-

283

maridordquo Segundo as declaraccedilotildees de Maria Umbelina ela tivera de seu primeiro

matrimocircnio quatro filhos a saber Geraldo (14 anos de idade) Joatildeo (12 anos) Joseacute

(falecido em Divinoacutepolis) e Raymundo (16 anos) que vivia em Barbacena (MG) e

estava empregado em uma faacutebrica de salames E de seu segundo casamento um filho de

nome Joseacute de trecircs anos de idade Segundo o documento a matildee dos ldquomenoresrdquo havia

declarado que natildeo possuiacutea ldquobens nem meios para educar os seus dois filhos Joatildeo e

Geraldordquo e que por isso desejava que os mesmos fossem ldquorecolhidos a um

estabelecimento para menores do estado e ali educados de modo a se tornarem

cidadatildeos dignos da sociedaderdquo742

Na documentaccedilatildeo analisada observa-se que a matildee dos ldquomenoresrdquo Joatildeo e

Geraldo estava empregando o discurso dominante de que as instituiccedilotildees eram espaccedilos

ideais para a recuperaccedilatildeo ou funcionavam como ldquoforno de purificaccedilatildeordquo dos viacutecios e

comportamentos indesejados das crianccedilas e jovens Talvez orientada por um advogado

ou outra pessoa instruiacuteda ou ainda por ter incorporado o pensamento dominante da

eacutepoca Maria Umbelina teria expressado em juiacutezo que desejava internar seus filhos ldquopor

natildeo ter meios de os educar nem de cohibir o procedimento dos mesmosrdquo e que eles

fossem internados em um estabelecimento oficial e ldquoali educados de modo a se

tornarem cidadatildeos dignos da sociedaderdquo As provaacuteveis justificativas empregadas pela

matildee dos meninos para que eles fossem enviados para um estabelecimento de

assistecircncia foram a pobreza e os supostos ldquoprocedimentordquo dos ldquomenoresrdquo Assim

internaacute-los era fundamental para ldquopurificaacute-losrdquo e tornaacute-los ldquocidadatildeos dignos da

sociedaderdquo ou seja bons trabalhadores disciplinados e ordeiros

Entretanto as justificativas dadas por Joatildeo e Geraldo a respeito de suas

internaccedilotildees diferem das que provavelmente a matildee apresentou Em janeiro de 1929 os

ldquomenoresrdquo foram enviados para o Abrigo de Menores em Belo Horizonte onde deram

brasileiros e que seus antepassados tenham sido escravos de um mesmo proprietaacuterio e que com a aboliccedilatildeo

tenham adotado o sobrenome dos antigos senhores Segundo os estudos sobre a escravidatildeo e o poacutes-

aboliccedilatildeo a praacutetica do sobrenome natildeo era muito comum entre os cativos brasileiros Geralmente era

adotado apoacutes a alforria e comumente era o do ex-proprietaacuterio Outra explicaccedilatildeo que pode ser aventada eacute a

de que o pai e o padrasto fossem parentes Ainda haacute de ser contemplado que a populaccedilatildeo dos setores

subalternos da sociedade muitas vezes natildeo possuiacutea nome de famiacutelia e quando o tinha geralmente natildeo

permaneciam com o mesmo ao longo da vida A matildee dos ldquomenoresrdquo tambeacutem aparece com sobrenomes

distintos nos registros sendo que em alguns aparece como Maria Umbelina Monteiro e em outros como

Maria Umbelina de Jesus Cf FARIA Sheila de Castro Op cit 1998 MATTOS Hebe Maria Das

cores do silecircncio os significados da liberdade no Sudeste escravista Brasil seacuteculo XIX Rio de Janeiro

Nova Fronteira 1998 SCHWARTZ Stuart B Segredos internos engenhos e escravos na sociedade

colonial 1550-1835 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1999 VOGT Carlos FRY Peter Cafundoacute a

Aacutefrica no Brasil ndash linguagem e sociedade Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996 742

AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos de Internaccedilatildeo de Menores

Menores Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro data 15-01-1929 Cx 0011o proc

284

entrada no dia 18 de janeiro de 1929743

De acordo com as informaccedilotildees do

ldquopromptuariordquo do Abrigo de Menores os meninos foram interrogados no dia 19 de

janeiro Abaixo estatildeo as declaraccedilotildees dos ldquomenoresrdquo em seus respectivos

interrogatoacuterios

Interrogatorio feito ao menor Joatildeo Theodoro Monteiro cocircr branca aos

dezenove dias do mez de janeiro de mil novecentos e vinte e nove

Interrogado disse

Que eacute filho de Joatildeo e Maria Umbelina de Jesus aquele fallecido e esta

residente a rua Mariano Procoacutepio nordm 1406 Juiz de Foacutera que nasceu em

Divinopolis e tem doze annos que jaacute frequentou escola e assigna o nome

que tem mais 3 irmatildeos estando um internado aqui outro em Juiz de Fora

com sua matildee e outro empregado em Barbacena que sua matildee e casada soacute no

religioso com Divino Theodoro Rodrigues que seu padrasto maltrata muito o

depoente e todos os irmatildeos que tem um tio Agente de Poliacutecia em Juiz de

Fora que arranjou para o depoente ser internado aqui no Abrigo que nunca

esteve preso e natildeo gosta de beber nem jogar que o depoente e sadio bem

assim sua matildee que tem um tio paterno que jaacute esteve meio atrapalhado do

juiacutezo que agora estaacute melhor []744

Interrogatorio feito ao menor Geraldo Theodoro Monteiro cocircr branca aos

dezenove dias do mez de janeiro de mil novecentos e vinte e nove

Interrogado disse

[] que nasceu no dia 1 de marccedilo de 1914 em Divinopolis que jaacute frequentou

escola e assina o nome que jaacute esteve empregado em Barbacena na ldquoFaacutebrica

de Salamerdquo com o sr Antocircnio de Oliveira e ganhava roupa comida e 15$000

por mecircs dessa quantia tirava 5$000 e mandava 10$000 para sua matildee que sua

matildee eacute casada segunda vez com Divino Theodoro sendo este indiferente para

os enteados por esta razatildeo sua matildee quis interna-los num collegio que o

depoente nunca esteve preso que tem mais 3 irmatildeos um aqui no Abrigo

outro empregado em Barbacena e o uacuteltimo com sua matildee que seu pai bebia

muito que sua matildee presume a morte dele devido a bebida que tem um tio

que jaacute esteve no Hospicio de Barbacena que o depoente eacute sadio bem assim

sua matildee []745

Pelos depoimentos presume-se que o provaacutevel fator que levou a matildee Maria

Umbelina a solicitar a internaccedilatildeo dos meninos tenha sido a relaccedilatildeo supostamente tensa

dos filhos com seu segundo marido Pelos ldquomenoresrdquo foi declarado que o padrasto

ldquomaltratavardquo e era ldquoindiferenterdquo a seus enteados

Nas famiacutelias dos segmentos sociais mais baixos geralmente o pai nem sempre eacute

uma personagem presente e ou conhecida dos filhos Muitas vezes a ausecircncia estaacute

743

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores ldquoMenoresrdquo Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112 744

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores ldquoMenoresrdquo Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112 Juiacutezo de Menores da Comarca

de Bello Horizonte ndash Abrigo de Menores Promptuario Nordm 287 Menor Joatildeo Theodoro Monteiro 745

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores ldquoMenoresrdquo Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112 Juiacutezo de Menores da Comarca

de Bello Horizonte ndash Abrigo de Menores Promptuario nordm 286 Menor Geraldo Theodoro Monteiro

285

relacionada com a morte o abandono a separaccedilatildeo dos pais e outros motivos A

construccedilatildeo de uma imagem paterna pai ou padrasto fica tambeacutem prejudicada em

algumas situaccedilotildees por causa de uniotildees passageiras das matildees com seus companheiros

Aleacutem disso as novas relaccedilotildees afetivas das genitoras das crianccedilas das classes mais

pobres podem significar rompimento dos laccedilos entre matildees e filhos pois muitos

parceiros natildeo aceitam a presenccedila das crianccedilas de uniotildees anteriores no domicilio746

No depoimento Joatildeo assinalou que um tio que era ldquoAgente de Poliacuteciardquo havia

conseguido a internaccedilatildeo dele no abrigo Avento a hipoacutetese se veriacutedica essa alegaccedilatildeo de

que esse tio possa ter se beneficiado de suas redes de conhecimento para ajudar a matildee

dos ldquomenoresrdquo a conseguir a internaccedilatildeo dos mesmos em uma instituiccedilatildeo puacuteblica Como

jaacute foi abordado segmentos letrados da capital mineira criticavam o fato de algumas

famiacutelias do interior conseguirem vagas para internarem seus filhos nos estabelecimentos

de assistecircncia puacuteblica de Belo Horizonte dada a suposta ldquoproteccedilatildeo poliacuteticardquo747

O

ldquomenorrdquo Geraldo em seu depoimento declarou que jaacute havia trabalhado em uma

ldquoFaacutebrica de salamerdquo em Barbacena cidade proacutexima de Juiz de Fora onde recebia

ldquoroupa comidardquo e mais o ordenado de ldquo15$000rdquo (quinze mil reis) mensais e que

enviava para sua matildee parte do salaacuterio Poreacutem natildeo relatou o motivo pelo qual natildeo

permaneceu trabalhando no dito estabelecimento como seu irmatildeo mais velho

Raymundo Geraldo ainda ressaltou que seu pai ldquobebia muitordquo e que sua matildee atribuiacutea o

falecimento dele a esse fato O alcoolismo era (eacute) algo presente em muitas famiacutelias dos

setores desfavorecidos da sociedade Os ldquomenoresrdquo ainda declararam que tinham um tio

que ldquojaacute esteve meio atrapalhado do juiacutezordquo e que havia estado no Hospiacutecio de Barbacena

Segundo Cynthia Veiga e Luciano Faria nos prontuaacuterios do Abrigo de Menores havia a

preocupaccedilatildeo em se registrar a partir dos interrogatoacuterios a existecircncia de casos de

alcoolismo e ou loucura na famiacutelia dos internos bem como a profissatildeo que desejavam

seguir De acordo com os autores tal procedimento se devia []

[] as preocupaccedilotildees com as heranccedilas bioloacutegicas e sua possiacutevel manifestaccedilatildeo

na crianccedila aleacutem da necessidade de identificar no menino as suas propensotildees

de caraacuteter por meio da profissatildeo escolhida procedimento comum no

discurso psicoloacutegico da eacutepoca748

746

KOSMINSKY Ethel Volfzon Op cit 1993 p 164-165 Cf CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio A

Ideologia do Favor amp a Ignoracircncia Simboacutelica da Lei Rio de Janeiro Imprensa do Estado do Rio de

Janeiro 1993 p 36-37 40-42 747

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 252 748

VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes de Op cit 1999 p 59

286

No prontuaacuterio de Geraldo Theodoro haacute a informaccedilatildeo de que o mesmo jaacute havido

estado no Aprendizado Agriacutecola de Barbacena pelo periacuteodo de dois anos mas ldquosem

nenhum resultadordquo Suponho que a relaccedilatildeo de indiferenccedila ou de violecircncia do segundo

marido de Maria Umbelina para com seus filhos ou mesmo a natildeo aceitaccedilatildeo das crianccedilas

no domicilio a tenha levado a recorrer ao internamento como uma maneira de natildeo os

deixarem soltos no mundo

Os irmatildeos Joatildeo e Geraldo incialmente foram para o Abrigo de Menores que

era o estabelecimento responsaacutevel pelo exame das crianccedilas ou seja de fazer a triagem

A passagem por esse estabelecimento deveria ser temporaacuteria ateacute que fosse determinado

em qual instituiccedilatildeo o interno deveria ficar preservaccedilatildeo ou reforma749

A Escola de

Reforma era para atender ldquomenoresrdquo que haviam sido ldquojulgados e condenados como

pervertidos ou delinquentes por um juiz ou entatildeo classificados como tal durante sua

passagem pelo Abrigo de Menores750

E a Escola de Preservaccedilatildeo era para os menores

desvalidos classificados como de boa iacutendole751

Wesleyuml Silva assinala que pelo

Regulamento de Assistecircncia e Proteccedilatildeo do Estado de Minas Gerais (Decreto n 7326 de

1926) foi criado a Escola de Regeneraccedilatildeo esta por sua vez se subdividia em trecircs seccedilotildees

distintas de atendimento a ldquomenoresrdquo a saber o de observaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores

Affonso de Moraes o de preservaccedilatildeo ndash Escola de Preservaccedilatildeo Lima Duarte e o de

reforma ndash Escola de Reforma Alfredo Pinto752

No pouco tempo que passaram pelo Abrigo de Menores eles tentaram fugir Os

irmatildeos deram entrada no estabelecimento em 18 de janeiro de 1929 sendo que uma

semana apoacutes tentaram fugir mas natildeo obtiveram ecircxito sendo ldquocapturadosrdquo no mesmo

dia No dia 26 de janeiro de 1929 ou seja um dia apoacutes a primeira tentativa de fuga o

ldquomenorrdquo Joatildeo conseguiu evadir-se do Abrigo de Menores Em seu prontuaacuterio estaacute

registrado que ele foi apreendido em Juiz de Fora e remetido novamente para o Abrigo

De acordo com Wesleyuml Silva geralmente os ldquomenoresrdquo recapturados retornavam ao

Abrigo de Menores e permaneciam ldquopor tempos variaacuteveis contrariando as

determinaccedilotildees contidas no Regulamento de Assistecircncia e no Coacutedigo de Menoresrdquo753

O

autor ainda ressaltou que as fugas tambeacutem eram comuns na Escola de Regeneraccedilatildeo

Alfredo Pinto e que as ocorrecircncias eram mais frequentes com internos provenientes de

749

SILVA Wesleyuml Op cit 2007 p 243-244 750

Idem p 289 751

Ibidem p 297 752

Ibidem p 241-242 e 297 753

Ibidem p 261

287

outros municiacutepios sendo que os que obtinham ecircxito geralmente retornavam para a sua

cidade754

Os dois prontuaacuterios examinados do Abrigo de Menores satildeo constituiacutedos de uma

ficha que na frente eacute composta pelas impressotildees digitais de ambas as matildeos e no verso

traz os dados pessoais dos ldquomenoresrdquo como nome idade cor filiaccedilatildeo naturalidade

instruccedilatildeo residecircncia motivo da internaccedilatildeo e outras Na mesma paacutegina em que se

encontra a ficha de identificaccedilatildeo consta tambeacutem as fotos dos meninos de frente e de

perfil jaacute com o uniforme do Abrigo contendo a data e o nuacutemero do registro civil O

processo de internaccedilatildeo ainda eacute composto pelo interrogatoacuterio dos ldquomenoresrdquo por pedidos

de informaccedilotildees ao delegado de poliacutecia da cidade de origem sobre os ldquoantecedentes

pessoal e familiarrdquo dos meninos informaccedilotildees sobre qual a profissatildeo que queriam seguir

ficha meacutedica a sentenccedila de abandono e internaccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo entre outras755

Segundo Carlo Ginzburg a necessidade das sociedades em distinguir seus

indiviacuteduos exigiu a criaccedilatildeo de processos cada vez mais elaborados de identificaccedilatildeo dos

mesmos O nome a assinatura arquivos fotograacuteficos antropometria foram meios

utilizados para distinguir os indiviacuteduos da sociedade Poreacutem quanto mais complexa as

sociedades ficavam maiores eram as exigecircncias para a correta identificaccedilatildeo de seus

componentes De acordo com o autor foi no final do seacuteculo XIX que ldquoforam propostos

por vaacuterios lados em concorrecircncia entre si novos sistemas de identificaccedilatildeordquo Tal

processo foi fruto das exigecircncias impostas pela sociedade capitalista burguesa pela luta

de classe pelo aumento da criminalidade Esses entre outros fatores exigiam das

sociedades modernas novas formas de identificar os seus sujeitos A identificaccedilatildeo

constituiu-se em um ldquoprojeto geral mais ou menos consciente de controle generalizado

e sutil sobre a sociedaderdquo A descoberta da impressatildeo digital permitiu a perfeita

identificaccedilatildeo de indiviacuteduos ldquoa senha oculta da individualidaderdquo estava decifrada

Assim ricos pobres analfabetos ou natildeo ldquotornava-se graccedilas agraves impressotildees digitais

reconheciacutevel e controlaacutevelrdquo756

754

Ibidem p 263 755

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores ldquoMenoresrdquo Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112 Cf VEIGA Cynthia Greive

FARIA FILHO Luciano Mendes de Op cit 1999 p 58-59 756

GINZBURG Carlo Mitos emblemas e sinais morfologia e histoacuteria Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2009 p 171-177

288

Imagem 23 Ficha de identificaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores (BH) ndash ldquoMenorrdquo Geraldo 1929

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis processos relativos agrave accedilatildeo de

internaccedilatildeo de menores ldquoMenorrdquo Geraldo Theodoro Monteiro Ano 1929 cx 112

Imagem 24 Ficha de identificaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores (BH) ndash ldquoMenorrdquo Geraldo 1929 Idem

289

Observando as fotografias tem-se a impressatildeo de que os uniformes eram de

tamanhos maiores que a numeraccedilatildeo que os meninos deveriam usar fator este que

contribui para reforccedilar a ldquoideia de abandonordquo desses ldquomenoresrdquo A esse respeito Ethel

Kosminsky em estudo sobre a internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo em unidades da FEBEMSP

na deacutecada de 1980 ressaltou que o fato de as crianccedilas internas em instituiccedilotildees natildeo

possuiacuterem objetos de uso pessoal ou suas proacuteprias roupas representa um dos ldquoelementos

responsaacuteveis pelo aviltamento da identidade ou seja da lsquomutilaccedilatildeo do eursquordquo e que esse

aspecto eacute ldquouma das caracteriacutesticas desse tipo de instituiccedilatildeordquo757

Examinando a fonte observa-se que natildeo havia uma definiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave cor

dos ldquomenoresrdquo ora eles foram descritos como mesticcedilos claros ora como brancos e ou

como morenos

Fazia parte dos procedimentos de internaccedilatildeo uma anaacutelise meacutedica dos ldquomenoresrdquo

que objetivava diagnosticar problemas fiacutesicos psiacutequicos e comportamentais De acordo

com a ficha meacutedica as informaccedilotildees eram fornecidas pelos proacuteprios internos ao ldquomeacutedico

do Juizo de Menoacuteresrdquo A ficha meacutedica era composta pelos seguintes itens identificaccedilatildeo

antecedentes hereditaacuterios a quem a crianccedila estava confiada (parentes tutor assistecircncia

puacuteblicaparticular) meio familiar meio escolar meio profissional antecedentes

pessoais exame fiacutesico musculatura exame intelectual exame escolar caraacuteter-

perversotildees observaccedilotildees parecer e indicaccedilotildees

Muitos itens da ficha meacutedica natildeo eram respondidos pelos ldquomenoresrdquo onde era

registrada a expressatildeo ldquoignoacuterardquo (dados com idade dos pais quando haviam falecido

doenccedilas causas da morte irmatildeos do ldquomesmo leitordquo nome dos avoacutes entre outras)

Cynthia Veiga e Luciano Faria analisaram 70 pastas (prontuaacuterios) de crianccedilas que

passaram pelo Abrigo no periacuteodo de 1927 a 1947 Segundo os autores natildeo foi

identificada nenhuma ficha meacutedica ldquopreenchida adequadamenterdquo sendo que os dados

dos ldquomenoresrdquo geralmente eram descritos de forma bem ldquogeneralizada demonstrando

terem sido obtidos por uma impressatildeo superficialrdquo758

Para Veiga e Faria os itens natildeo

preenchidos poderiam estar relacionados agrave falta de um profissional realmente capacitado

para o preenchimento dos dados ou entatildeo que natildeo haveria

[] nenhum empenho das autoridades em conhecer mais profundamente os

meninos para uma consequente busca de efetiva resoluccedilatildeo para cada caso O

que temos eacute uma tensatildeo entre a existecircncia de uma ficha meacutedica elaborada

757

KOSMINSKY Ethel Volfzon Op cit 1993 p 161-162 758

VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes de Op cit 1999 p 58-59

290

dentro do pensamento meacutedico-cientiacutefico da eacutepoca mas natildeo respondida

adequadamente Eacute como se a proacutepria condiccedilatildeo de abandono e ou miseacuteria dos

meninos os fizessem portadores dos mesmos sintomas que se espalhava por

tudo levando a falta onde quer que estivesse759

Imagem 25 Ficha Meacutedica ndash Geraldo Theodoro Montreiro AHCJF Foacuterum

Benjamin Colucci ndash Processos Ciacuteveis processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores ldquoMenorrdquo Geraldo Theodoro Monteiro Ano 1929 cx 112

759

Ibidem

291

Imagem 26 Ficha Meacutedica (2) Idem

292

Imagem 27 Ficha Meacutedica (3) Idem

293

Imagem 28 Ficha Meacutedica (4) Idem

No exame meacutedico os ldquomenoresrdquo eram submetidos a exames do diacircmetro

biacromial dos aspectos fiacutesicos da fisionomia da capacidade de memorizaccedilatildeo de

leitura e escrita e outros aspectos Durante o seacuteculo XIX e princiacutepios do XX com o

294

surgimento da estatiacutestica social da psicologia da frenologiacraniologia da

antropometria da eugenia da antropologia criminal entre outros estudos o

desenvolvimento e o comportamento humano e os caracteres anaacutetomo-fisioloacutegicos

tornaram-se passiacuteveis de quantificaccedilatildeo mensuraccedilatildeo e classificaccedilatildeo Esses estudos

vestidos com o manto da cientificidade objetivavam determinar a capacidade mental as

propensotildees de caraacuteter os aspectos hereditaacuterios entre outras caracteriacutesticas das

pessoas760

Com relaccedilatildeo agrave escolaridade apesar de os ldquomenoresrdquo Joatildeo e Geraldo terem

afirmado que haviam frequentado o Grupo Escolar a instruccedilatildeo deles resumia-se

basicamente em escrever o nome Na ficha meacutedica de Joatildeo de 12 anos de idade foi

registrado que assinava o nome que natildeo sabia ler e nem escrever e que eram nulas as

suas ldquonoccedilotildees geraes e praticasrdquo Geraldo de 14 anos foi descrito em seu exame como

tendo pouca leitura escrita e copiada tambeacutem pouca761

Na parte referente ao ldquocaraacuteter e perversotildeesrdquo Joatildeo foi descrito entre outros itens

como tendo um temperamento ldquosymphaticordquo natildeo sendo dada a coacutelera violecircncia

impulsotildees fugas e vadiagem e possuiacutea uma ldquoconduta habitualrdquo boa Jaacute seu irmatildeo

Geraldo foi descrito como tendo um temperamento nervoso dado a coacutelera violecircncia

impulsotildees fugas e vadiagem de maacute conduta habitual poreacutem natildeo era nocivo Todavia

as fichas meacutedicas dos meninos apresentam algumas incongruecircncias Ambos tentaram

fugir sendo que Joatildeo obteve ecircxito conseguindo inclusive chegar a Juiz de Fora

retornando somente em 5 marccedilo de 1929 para o Abrigo de onde foi ldquoremettido na

mesma data para a Escola de Reforma Alfredo Pintordquo O ldquomenorrdquo ainda foi descrito

pela professora do Abrigo Dordf Marina Franco como tendo ldquomaoacute procedimento

Desattenciosordquo Entretanto seu irmatildeo foi declarado pela dita professora como tendo um

ldquobom procedimento em sala Attenciosordquo Geraldo tambeacutem tentou fugir por duas vezes

do Abrigo sendo que no dia da segunda tentativa 25 de janeiro de 1929 foi enviado

para a Escola de Reforma Alfredo Pinto sendo entatildeo desligado do Abrigo762

O meacutedico do Juiacutezo de Menores natildeo anotou na ficha de Joatildeo que ele era dado a

ldquofugasrdquo Natildeo teria o Dr Telles de Menezes conhecimento da fuga e da ausecircncia do

760

SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil

1870-1930 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 p 47-61 166-167 GOUVEcircA Maria Cristina ldquoRaccedila

e infacircncia no seacuteculo XIXrdquo In SOUZA Gisele de (org) Educar na infacircncia perspectivas histoacuterico-

sociais Satildeo Paulo Contexto 2010 p 75-78 VEIGA Cynthia Greive ldquoAs crianccedilas na histoacuteria da

educaccedilatildeordquo In SOUZA Gisele de (org) Op cit 2010 p 34-35 761

AHCJF Foacuterum B Collucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de menores

Menores Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112 762

Idem

295

ldquomenorrdquo do Abrigo A impressatildeo que fica da anaacutelise dessas fichas eacute que o meacutedico natildeo

tomava conhecimento dos fatos que envolviam o ldquomenorrdquo desde a sua chegada a

instituiccedilatildeo ou de que natildeo havia uma comunicaccedilatildeo entre a aacuterea meacutedica e as demais aacutereas

do abrigo Esses detalhes reforccedilam as hipoacuteteses de Veiga e Faria jaacute comentadas de que

as fichas provavelmente natildeo eram realizadas por especialistas ou funcionaacuterios

ldquocompetentes para tal e que natildeo havia nenhum empenho das autoridades em conhecer

mais profundamente os meninos []rdquo763

O parecer e indicaccedilatildeo do meacutedico do Juiacutezo de Menores Telles de Menezes em

21 de fevereiro de 1929 foi de que Joatildeo era ldquomentalmente normalrdquo e poderia ldquoser

internado em Escola de Preservaccedilatildeordquo Com relaccedilatildeo a Geraldo apesar de tambeacutem ser

considerado normal foi considerado como dado a fugas e agrave vadiagem sendo assim

deveria ser internado em Escola de Reforma

Apesar de o parecer meacutedico indicar Joatildeo para ser internado em uma Escola de

Preservaccedilatildeo ele foi enviado para a Escola de Reforma Alfredo Pinto depois de ser

apreendido em Juiz de Fora e de ter retornado para o Abrigo de Menores em marccedilo de

1929

Em agosto de 1929 o Juiz de Menores de Belo Horizonte Alarico Barroso

determinou a remessa dos prontuaacuterios para o Juiz de Direito de Juiz de Fora Custoacutedio

de Almeida Lustosa a quem competia ldquoprocessar e julgar o abandono dos menores Joatildeo

e Geraldo Theodoro Monteiro em vista de a matildee dos ditos menores residirrdquo na referida

cidade

A matildee dos meninos foi intimada a comparecer ao Foacuterum da cidade de Juiz de

Fora No ldquoTermo de declaraccedilotildeesrdquo Maria Umbelina Monteiro declarou que []

[] inteirada do que aconteceu a seus filhos depois da leitura destes autos

que lhe foi feita concordava com a internaccedilatildeo delles no logar em que se

acham e ateacute agradecia tatildeo accertadas providencias do Governo pois soacute assim

elles poderatildeo em futuro proacuteximo se tornarem excellentes cidadatildeos []

Eu Joseacute Casimiro de Figueiredo escrivatildeo escrevi e dou feacute

Maria Umbelina Monteiro 764

Provavelmente os supostos maus tratos e a indiferenccedila de seu segundo marido e

padrasto de seus dois filhos Joatildeo e Geraldo tenham levado Maria Umbelina a

considerar que a internaccedilatildeo em uma instituiccedilatildeo puacuteblica seria melhor para o futuro deles

763

VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes de Op cit 1999 p 58 764

AHCJF Foacuterum B Collucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de menores

Menores Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112

296

bem como para livraacute-la de problemas conjugais Pode-se conjecturar tambeacutem que a matildee

dos meninos acreditasse realmente no poder transformador das instituiccedilotildees ou que

estivesse apenas fazendo coro aos discursos dominantes da eacutepoca que afirmavam que

os institutos de assistecircncia contribuiacuteam para a transformaccedilatildeo dos sujeitos em

ldquoexcelentes cidadatildeosrdquo ou seja bons trabalhadores disciplinados

As dificuldades financeiras os problemas com novos companheiros as atitudes

e comportamentos dos ldquomenoresrdquo tidas como inadequadas muitas vezes foram motivos

para as matildees pais e outros responsaacuteveis solicitarem ou concordarem com a internaccedilatildeo

de suas crianccedilas Nessas situaccedilotildees as crianccedilas que tinham (tem) uma vida perpassada

por perdas violecircncias e privaccedilotildees muitas vezes ainda se deparavam (deparam) com as

atitudes de indiferenccedila de suas matildees que os relegavam (relegam) agraves instituiccedilotildees como

uma maneira de os punirem por suas supostas faltas765

Entre os anos de 1931-1932 os irmatildeos Monteiro solicitaram ao Juiz da comarca

de Juiz de Fora que fossem desligados da Escola de Reforma Alfredo Pinto Com

relaccedilatildeo ao pedido de Geraldo Theodoro Monteiro o Juiz de Direito Andreacute Martins de

Andrade assinalou que natildeo tinha ldquonada a deferir por natildeo ter sido o reqte internado por

determinaccedilatildeo deste juiacutezo mas a pedido de parentesrdquo Jaacute o ldquomenorrdquo Joatildeo solicitava uma

ldquoordem de habeas-corpus a seu favor allegando illegalidade do constrangimento que

soffre detido na Escola Alfredo Pinto por ordem de V S desde 5 de marccedilo de 1929

sem sentenccedila nem processordquo O pedido foi feito por duas vezes (1931-1932) e a uacutenica

notiacutecia que se tem eacute a de que as informaccedilotildees jaacute haviam sido prestadas 766

O estudo sobre a infacircncia desvalida abandonada (fiacutesica e moralmente) e

indigitada delinquente tem demonstrado que na maioria das vezes as poliacuteticas puacuteblicas

e as leis promulgadas para o atendimento desse estrato da sociedade foram ineficientes

A construccedilatildeo de instituiccedilotildees que a priori deveriam amparar proteger cuidar e oferecer

uma educaccedilatildeo de qualidade a essas crianccedilas e jovens foram e ainda satildeo locais de

sofrimento de arbitrariedades inimaginaacuteveis de desrespeito para com as

individualidades de descaso para com a formaccedilatildeo (fiacutesica e intelectual) desses

segmentos vulneraacuteveis da sociedade

765

Cf KOSMINSKY Ethel Volfzon Op cit 1993 p 167 766

AHCJF Foacuterum Benjamin Collucci ndash Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo de internaccedilatildeo de

menores Menores Joatildeo e Geraldo Theodoro Monteiro 1929 cx 112

297

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Espancado na faacutebrica Matildeo amputada Eletrocutado Abandonada pelos patrotildees

Natildeo recebeu as soldadas Fratura da coluna Morte por choque traumaacutetico Exposta na

residecircncia Aos prantos Fuga da casa do tutor Natildeo aprendeu a ler e escrever

Internado ldquoEntreguerdquodado para ldquocriarrdquo [] Estas satildeo algumas das situaccedilotildees

vivenciadas pelas crianccedilas cujas vidas ou destinos transitaram pelas paacuteginas deste

trabalho Na maioria das vezes satildeo histoacuterias marcadas por perdas abandono violecircncias

miseacuterias e exploraccedilatildeo Atraveacutes dos processos judiciais criminais das paacuteginas dos

jornais e de revistas e entre outros documentos suas histoacuterias de vida foram se

descortinando e dando um reflexo de como a sociedade do periacuteodo analisado

visualizava a problemaacutetica da infacircncia desvalida abandonada trabalhadora e dita

delinquente A leitura dessas fontes foi reveladora de vaacuterios aspectos da sociedade e das

relaccedilotildees e intenccedilotildees de seus atores A esse respeito Thompson assinalou que ldquoa maioria

das fontes escritas satildeo de valor pouco importando o lsquointeressersquo que levou ao seu

registrordquo e que os ldquoatoresrdquo envolvidos em transaccedilotildees comerciais de propriedades de

acordos nupciais entre outros natildeo tiveram a ldquointenccedilatildeo de registrar fatos interessantes

para uma vaga posteridaderdquo Mas caberaacute ao historiador a leitura desse material e a

partir das perguntas que formular

[] poderaacute derivar dele evidecircncias relativas a transaccedilotildees de propriedade

procedimentos legais mediaccedilotildees entre grupos proprietaacuterios de terras e

mercantis estruturas familiares especificas e laccedilos de parentesco agrave

instituiccedilatildeo do casamento burguecircs ou a atitudes sexuais ndash evidecircncias que os

autores natildeo tiveram a intenccedilatildeo de revelar e algumas das quais (talvez) se

horrorizassem em saber que chegaria agrave luz767

Procurei identificar nas entrelinhas dos documentos produzidos pelas classes

dominantes pelo poder judiciaacuterio entre outras fontes as vozes dos ldquomenoresrdquo e de seus

familiares Os ecos dessas vozes foram percebidos nas atitudes como as fugas dos

ldquomenoresrdquo tutelados das casas de seus tutores dos abrigos nas solicitaccedilotildees dos pais

pela restituiccedilatildeo do paacutetrio poder nas denuacutencias de maus tratos infligidas agraves crianccedilas

tuteladas e operaacuterias e em tantas outras situaccedilotildees Conforme Thompson ressaltou

767

THOMPSON E P A miseacuteria da teoria ou um planetaacuterio de erros uma criacutetica ao pensamento de

Althusser Rio de Janeiro Zahar Editores 1981 p 36-37

298

provavelmente os juiacutezes advogados promotores puacuteblicos os homens da imprensa a

classe empresarial os fazendeiros e outros natildeo tiveram a intenccedilatildeo de produzir relatos

para a posteridade e muito menos as classes vulneraacuteveis da sociedade poderiam supor

que suas lutas por direitos sociais para poderem criar seus filhos as denuacutencias de

abusos e exploraccedilotildees praticados por tutores e patrotildees pudessem revelar no futuro

pensamentos padrotildees de condutas costumes e valores de uma dada eacutepoca

Ao longo deste estudo procurei demonstrar as estrateacutegias de controle social de

segmentos das classes dominantes sobre a matildeo de obra de crianccedilas dos estratos

vulneraacuteveis da sociedade durante o processo de implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do mercado

de trabalho livre na sociedade brasileira A recusa em entregar as crianccedilas a seus

familiares o rapto768

a confecccedilatildeo de contratos de trabalho dando total controle aos

proprietaacuterios sobre a vida dos ldquomenoresrdquo (que foi chamado no processo de apreensatildeo do

menino Antonio de ldquonovo captiveirordquo769

) a busca pelo viacutenculo tutelar foram apenas

algumas das medidas adotadas pelas classes abastadas para manterem sua autoridade e o

controle sob uma parcela da forccedila de trabalho A documentaccedilatildeo analisada para a

realizaccedilatildeo desta pesquisa possibilitou observar o quanto estavam presentes as praacuteticas

autoritaacuterias e coercitivas dos tempos do cativeiro na sociedade brasileira do poacutes-

aboliccedilatildeo

Durante o processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre uma das

medidas para solucionar a provaacutevel falta de braccedilos para a lavoura foi recorrer ao

trabalhador estrangeiro principalmente de origem europeia Assim levas de imigrantes

vieram para o Brasil para trabalharem nas grandes propriedades geralmente as

dedicadas ao cultivo do cafeacute O braccedilo imigrante em determinadas aacutereas do paiacutes

superou a matildeo de obra do nacionalliberto poreacutem as pesquisas dedicadas a tal temaacutetica

demonstram que esta natildeo foi a realidade vivenciada por todas as regiotildees do territoacuterio

nacional inclusive naquelas que se dedicavam ao cultivo da rubiaacutecea Com relaccedilatildeo a

Juiz de Fora os estudos tem salientado que apesar de um contingente expressivo de

imigrantes ter contribuiacutedo para o incremento populacional da cidade na virada do

768

AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de menores Menores

Francisca e Joaquim Data 09 de janeiro de 1890 cx 04 769

AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de menores Menor

Antocircnio 31-12-1888 cx 04

299

seacuteculo XIX para o XX este natildeo chegou a suplantar a forccedila de trabalho composta por

nacionais e libertos no poacutes-emancipaccedilatildeo770

Dessa forma a matildeo de obra das unidades agriacutecolas das oficinas das faacutebricas do

comeacutercio e das residecircncias de Juiz de Fora nos anos finais do oitocentos e princiacutepios do

seacuteculo XX era constituiacuteda por nacionais afro-brasileiros e imigrantes de diversas

nacionalidades (italianos alematildees portugueses siacuterios libaneses e outras) de ambos os

sexos e por muitas crianccedilas Assim esse grupo ldquoheterogecircneordquo contribuiu com sua forccedila

de trabalho para o desenvolvimento e o progresso do municiacutepio

As anaacutelises nas fontes acenaram para o fato de que as accedilotildees coercitivas as

medidas de controle e de disciplinamento sobre a matildeo de obra infantil natildeo se

restringiram apenas as crianccedilas afrodescendentes e nacionais mas se estenderam aos

pequenos imigrantes e ou descendentes Dito de outra maneira tais praacuteticas foram

impostas a todos os ldquomenoresrdquo pertencentes aos segmentos mais baixos da hierarquia

socioeconocircmica independente de sua origem eacutetnica e de seu sexo As praacuteticas

autoritaacuterias de coaccedilatildeo e de controle dos setores dominantes foram percebidas ao longo

do periacuteodo delimitado por este estudo o que denota que tais comportamentos estavam

impregnados nos valores nas condutas e nos costumes de estratos das classes

proprietaacuterias

Desse modo procurei verificar o comportamento e as atitudes das classes

dominantes juiz-forana durante o processo de reestruturaccedilatildeo do Estado brasileiro sob

novas bases poliacuteticas econocircmicas e sociais bem como de elaboraccedilatildeo de uma nova eacutetica

do trabalho na passagem agrave modernidade Assim atraveacutes dos jornais foi possiacutevel

observar que os setores da intelectualidade dos grupos dominantes e do empresariado

local estavam antenados com essas mudanccedilas da sociedade brasileira Em consonacircncia

com esse contexto os segmentos dominantes procuraram erigir uma imagem da urbs do

interior mineiro como moderna civilizada e constituiacuteda por um povo de iniciativa

ordeiro e laborioso As poliacuteticas de aformoseamento saneamento e urbanizaccedilatildeo da aacuterea

central o pioneirismo do municiacutepio com relaccedilatildeo agrave energia eleacutetrica (construccedilatildeo da

primeira usina Hidreleacutetrica da Ameacuterica Latina) o seu desenvolvimento industrial

(Manchester Mineira) e cultural (Atenas Mineira) a inauguraccedilatildeo da Sociedade de

770

Cf CARDOSO Ciro Flamarion ldquoA aboliccedilatildeo como problema histoacuterico e historiograacuteficordquo In _____

(org) Escravidatildeo e aboliccedilatildeo no Brasil novas perspectivas Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988

SARAIVA Luiz Fernando Um correr de casas antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para

o livre em Juiz de Fora ndash 18701900 Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 2001 OLIVEIRA Luiacutes

Eduardo Os trabalhadores e a cidade A formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de Fora e suas lutas por

direitos (1877-1920) Juiz de Fora (MG) Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV 2010

300

Medicina e Cirurgia da Academia Mineira de Letras entre outras iniciativas visavam

fundamentalmente consolidar a imagem de progresso civilizaccedilatildeo e modernidade da

cidade Por outro lado os setores vulneraacuteveis da sociedade o povo ordeiro e laborioso

eram sistematicamente segregados da cidade civilizada moderna e higiecircnica Nos

perioacutedicos locais as condiccedilotildees insalubres das moradias populares os elevados valores

dos alugueacuteis a falta de infraestrutura urbana nos subuacuterbios as condiccedilotildees precaacuterias de

trabalho foram constantemente publicados nos jornais Na contramatildeo do discurso

dominante da cidade da ordem do labor e do progresso movimentos grevistas de

vaacuterios setores profissionais foram deflagrados e comiacutecios e saques contra a carestia

foram promovidos o que sugere que o povo era laborioso mas natildeo tatildeo

ordeirosubmisso

As discussotildees os projetos e leis relativos ao trabalho infantil agrave assistecircncia social

agraves crianccedilas abandonadas e ou delinquentes a educaccedilatildeo para os pequenos desvalidos

foram questotildees analisadas em resposta ao objetivo inicial de minha proposta de

investigaccedilatildeo O exame da legislaccedilatildeo do periacuteodo (Ordenaccedilotildees Filipinas Coacutedigo Penal

1890 Constituiccedilatildeo Republicana 1891 Coacutedigo Civil 1916 Lei de Acidentes no

Trabalho 1919 e Coacutedigo de Menores 1927) foi extremamente importante para a

conduccedilatildeo da anaacutelise em tela O diaacutelogo com o pensamento juriacutedico mostrou-se

imprescindiacutevel para a compreensatildeo da dimensatildeo normativa disciplinadora e punitiva

que os setores dominantes procuraram impor agraves classes desfavorecidas da sociedade

Assim atraveacutes de accedilotildees e normas assentadas em princiacutepios ditos cientiacuteficos da

medicina-higienista e do Direito as crenccedilas os valores a organizaccedilatildeo familiar o lazer e

o cuidado com os filhos das classes pobres foram gradativamente sendo enquadrados

dentro dos valores burgueses Os que natildeo se conformavam com os padrotildees da sociedade

higiecircnica civilizada da ordem e do trabalho eram considerados marginais e dessa

forma passiacuteveis de tratamento e de correccedilatildeo

Dentro dessa conformaccedilatildeo a educaccedilatildeo passou a ser concebida pelos setores

dominantes como um mecanismo extremamente eficiente de controle social e de difusatildeo

dos valores burgueses entre as classes mais baixas Se de um lado a educaccedilatildeo era

visualizada como um caminho para a ordem o progresso e a civilizaccedilatildeo por outro ela

era considerada uma ldquoarmardquo que deveria ser habilmente manejada para que natildeo

comprometesse a hierarquia social vigente Desse modo a educaccedilatildeo que foi delineada

para as crianccedilas pobres foi a baacutesica acompanhada do aprendizado de um ofiacutecio Assim

ela se prestava a alfabetizar transmitir valores morais e higiecircnicos bem como adestrar

301

os ldquomenoresrdquo como matildeo de obra submissa para o mercado de trabalho Dito de outra

maneira a educaccedilatildeo deveria tatildeo somente proporcionar as condiccedilotildees miacutenimas para a

inserccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo na sociedade higiecircnica e do trabalho livrando-os da miseacuteria e

da criminalidade

Entretanto apesar do enaltecimento da educaccedilatildeo como uma via para o progresso

e a civilizaccedilatildeo na passagem agrave modernidade detectei que ao logo dos primeiros anos

republicanos essa problemaacutetica manteve-se no plano dos discursos A ldquoManchester

Mineirardquo com sua boa gente de iniciativa natildeo criou as condiccedilotildees materiais para que

pudesse proporcionar educaccedilatildeo a todos os ldquomenoresrdquo dos estratos vulneraacuteveis

Dialogando com os perioacutedicos verifiquei uma seletividade no acesso aos

estabelecimentos de ensino puacuteblicos das crianccedilas pobres As exigecircncias de uniformes

tipos de merendas o trabalho precoce foram uma das barreiras entre tantas outras ao

acesso dessas crianccedilas agraves escolas

O trabalho infantil foi a problemaacutetica central deste estudo Destarte todas as

discussotildees relativas agraves crianccedilas pobres tiveram por fito compreender e discutir a

inserccedilatildeo desse segmento social no mundo do trabalho nos anos finais do seacuteculo XIX e

princiacutepios do XX Assim uma das preocupaccedilotildees iniciais foi a de definir a noccedilatildeo de

trabalho infantil na qual iria me basear Dessa forma procurei trabalhar com a definiccedilatildeo

de trabalho infantil em que as relaccedilotildees sociais satildeo perpassadas pela exploraccedilatildeo da matildeo

de obra e em que a forccedila de trabalho eacute tida como uma ldquomercadoriardquo771

Atraveacutes da documentaccedilatildeo compulsada verifiquei que as classes dominantes do

muniacutecipio forjaram diversas estrateacutegias de controle social da matildeo de obra de crianccedilas

procedentes dos setores vulneraacuteveis da sociedade ainda durante o periacuteodo escravista

Por intermeacutedio de accedilotildees legais e ilegais vaacuterias crianccedilas foram precocemente inseridas

nas faacutebricas oficinas no comeacutercio nas propriedades agriacutecolas e residecircncias do

municiacutepio de Juiz de Fora como matildeo de obra barata ou gratuita Nas fontes pude

amealhar informaccedilotildees sobre as condiccedilotildees de vida dessas crianccedilas e de seus familiares

os provaacuteveis fatores de seu abandono sobre a inserccedilatildeo precoce no mercado de trabalho

as supostas causas de seus acidentes as relaccedilotildees entre patrotildeesgerentessupervisores e

empregados e entre os operaacuterios Os indiacutecios das condiccedilotildees precaacuterias de trabalho da

exploraccedilatildeo da forccedila de trabalho infanto-juvenil dos abusos contra os ldquomenoresrdquo

obtidas nas vaacuterias fontes examinadas me permitem verificar como a classe proprietaacuteria

771

MARX Karl ENGELS Friedrich O manifesto comunista Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 p 19

302

local (industriais comerciantes fazendeiros e outros) procurava maximizar seus lucros

com a contrataccedilatildeo de um nuacutemero elevado de crianccedilas com longas jornadas de trabalho

e sem se atentarem para as condiccedilotildees fiacutesicas dos estabelecimentos o que

provavelmente foi o fator para alguns acidentes de trabalho Outra constataccedilatildeo eacute a de

que muitas crianccedilas tiveram sua matildeo de obra utilizada sem nenhuma medida legal

(tutelacontrato de soldada) por vaacuterios anos e possivelmente em condiccedilotildees precaacuterias de

trabalho e marcadas por abusos de autoridade

A reflexatildeo desenvolvida na documentaccedilatildeo me fez perceber que a preocupaccedilatildeo

com a regulamentaccedilatildeo do trabalho priorizou os trabalhadores urbanos e principalmente

dos setores industriais que jaacute possuiacuteam um niacutevel de organizaccedilatildeo capaz de promover

reivindicaccedilotildees Dessa maneira foram principalmente os ldquomenoresrdquo inseridos nas

atividades urbano-industriais que ficaram respaldados pelas leis de acidentes no trabalho

(1919) e pelo Coacutedigo de Menores (1927) A questatildeo do trabalho domeacutestico executado

por muitas e muitas crianccedilas natildeo foi contemplado nas legislaccedilotildees do periacuteodo em tela

apesar de ser uma modalidade laborativa que empregou largamente a matildeo de obra

infantil A crer na veracidade das memoacuterias de contemporacircneos as condiccedilotildees das

crianccedilas empregadas nas atividades domeacutesticas eram marcadas por uma grande

exploraccedilatildeo por condiccedilotildees precaacuterias de sobrevivecircncia nas residecircncias por agressotildees

fiacutesicas sexuais e psiacutequicas bem como estavam expostas a vaacuterios tipos de acidentes

Muitos pequenos e jovens trabalhadores dos lares abastados eram provenientes das

aacutereas rurais e foram levados para as cidadescapitais o que provavelmente ocasionou

um rompimento com seus familiares por algum tempo e ou para toda a vida

Geralmente as justificativas para o emprego dessas crianccedilas pautavam-se nos

novos valores difundidos sobre o trabalho e tambeacutem na ideia de que ele era a mais

eficiente profilaxia contra a vadiagem e o crime Nos processos judiciais e nos jornais

pude detectar essas concepccedilotildees nos pareceres nas conclusotildees nas peticcedilotildees nas

reportagens de advogados juiacutezes promotores puacuteblicos homens de letras entre outros

Mas para as famiacutelias pobres o trabalho dos filhos para aleacutem dos valores morais da

sociedade burguesa representava provavelmente uma necessidade premente para a

renda familiar

Ainda no que diz respeito ao emprego de crianccedilas algumas vozes dissonantes

tambeacutem se fizeram ouvir na documentaccedilatildeo consultada Expunham a necessidade de uma

legislaccedilatildeo social e de uma educaccedilatildeo de qualidade para as classes pobres e seus filhos

303

bem como denunciavam os prejuiacutezos que as atividades laborativas acarretavam na

formaccedilatildeo fiacutesica intelectual e psiacutequica das crianccedilas

O binocircmio trabalho-educaccedilatildeo eram as foacutermulas ideais de salvaccedilatildeo da sociedade

o caminho para o paiacutes civilizar-se na concepccedilatildeo de setores da intelectualidade e dos

grupos dominantes Nesse sentido as instituiccedilotildees assistenciais apareciam como o loacutecus

de consecuccedilatildeo desse ideal As crianccedilas desvalidas abandonadas e ou delinquentes

deveriam ser encaminhas para esses estabelecimentos que lhes proporcionariam as

condiccedilotildees necessaacuterias para a sua inclusatildeo na sociedade higiecircnica do progresso e da

ordem

A necessidade de uma legislaccedilatildeo referente agrave questatildeo dos ldquomenoresrdquo desvalidos

abandonados trabalhadores e delinquentes foi debatida ao longo dos primeiros anos do

regime republicano Entretanto somente nos anos finais da deacutecada de 1920 eacute que

efetivamente se concretizou uma accedilatildeo nesse sentido com a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de

Menores de 1927

Uma preocupaccedilatildeo presente neste estudo foi a de procurar perceber as mudanccedilas

e permanecircncias relativas agrave problemaacutetica da infacircncia pobre no Brasil O que pude

verificar eacute que ainda estatildeo extremamente presentes praacuteticas autoritaacuterias de outrora no

trato com as crianccedilas dos setores vulneraacuteveis da sociedade Com relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo

puacuteblica para as crianccedilas das camadas pobres ainda eacute ofertada uma educaccedilatildeo de baixa

qualidade (professores desvalorizados falta de recursos materiais e humanos de vagas

etc) Provavelmente muitos segmentos das classes dominantes continuam concebendo

a educaccedilatildeo puacuteblica para as camadas pobres como forma de preparaccedilatildeo de trabalhadores

para ocuparem os cargos mais baixos dentro da hierarquia social

O trabalho infantil continua sendo uma realidade em nosso paiacutes apesar da

existecircncia de leis que o proiacutebam A falta de uma fiscalizaccedilatildeo eficiente de poliacuteticas mais

justas de distribuiccedilatildeo de renda de um projeto educacional preocupado com os sujeitos

sociais e natildeo com nuacutemeros para as organizaccedilotildees internacionais entre outros fatores tem

contribuiacutedo para a permanecircncia dessa modalidade de trabalho

Atualmente estamos agraves voltas com a discussatildeo da maioridade penal Apesar da

histoacuteria jaacute ter demonstrado que a prisatildeo o abrigo a escola de reforma o reformatoacuterio

natildeo eacute o meacutetodo mais eficaz para solucionar a questatildeo da infacircncia pobre abandonada e

delinquente esta continua sendo apresentada por vaacuterios segmentos da sociedade como a

soluccedilatildeo ideal sem contudo desenvolver um debate substancial sobre tal problema

social

304

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1 a 7

Acervo do Foacuterum da Comarca de Juiz de Fora Foacuterum Benjamin Colucci

Processos Ciacuteveis Processos relativos agrave accedilatildeo tutela (1888-1930) Cx 4 a 9

Acervo do Foacuterum da Comarca de Juiz de Fora Foacuterum Benjamin Colucci

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