fraturas do cotidiano: mutualismo e alternativas de vida...
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Fraturas do cotidiano: mutualismo e alternativas de vida popular no tempo da
formação do Estado na Bahia (1821-1850).
DOUGLAS GUIMARÃES LEITE1
Para além de sobrevivências corporativas: sociabilidades em transição
1832 é um ano chave para a história do mutualismo na Bahia. Afinal, no
intervalo de apenas três meses, são fundados os dois coletivos que se têm como
precursores dessa prática associativa na cidade do Salvador. Ambos seriam os únicos do
tipo até o início da década de 1850, quando, num contexto de afirmação do mutualismo,
muitas outras associações abririam suas portas. Segundo Marcel Van der Linden, a
época era mesmo propícia, uma vez que por todo o Ocidente, “a partir de inícios do
Oitocentos, observamos um fenômeno muito comum: a abertura de sociedades de
auxílio‐mútuo (...) Entre outros objetivos, elas eram formadas voluntariamente com o
objetivo de promover auxílio financeiro a seus membros em caso de necessidade”
(VAN DER LINDEN, 1996: 13).
A rigor, a prática do associativismo de auxílio mútuo não era nova no mundo de
influência portuguesa. Pelo menos desde o século XV, e de formas diversas, na Europa
ou no espaço ultramarino, instituições leigas se constituíram à sombra do poder
religioso para congregar esforços de assistência e de promoção da caridade. Verdadeiros
organismos sociais, essas associações traduziam a hierarquia das sociedades de Antigo
Regime que as viam nascer e, nesses termos, atuavam também como espaços de
conformação do poder de grupos e estamentos, a exemplo daquele que lhes garantia a
posse dos altos cargos de uma prestigiosa Santa Casa de Misericórdia (RUSSEL-
WOOD, 1981).
Principal e mais difundido símbolo desse universo leigo da ajuda mútua, as
irmandades despontaram, para além das suas finalidades primeiras, como instrumentos
importantes de consolidação da política colonial portuguesa. Contribuíram para o
povoamento do território mas, principalmente, ajudaram a assentar uma forma de
governo político que se caracterizava pelo manejo de conflitos entre socialmente
1 Professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense. Mestre em História Social
Pela Universidade Federal da Bahia e Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo.
2
desiguais, dispostos de alto a baixo na estrutura de sua organização (BOSCHI, 1987;
REIS, 1997).
Assim se, tal como apresentada acima, a definição de Linden a respeito das
sociedades de auxílio-mútuo surgidas no Oitocentos pode também se aplicar às práticas
das irmandades religiosas coloniais na América Portuguesa – coletivos de ajuda mútua
que eram – há de se atentar, porém, para um fenômeno que marca especialmente o
período, e que dá sentido àquilo de que trata o autor. A dissolução das práticas de
Antigo Regime, com especificidades aqui e alhures, vinculou Velho e Novo mundos
num processo em que a história de suas associações leigas se fez sentir como o peso de
uma forte tradição. Por outro lado, a progressiva presença de novos atores sociais,
instaurando a cena moderna anunciada pela queda de tronos divinos e seculares,
marcava a crise de legitimidade e o esgotamento da linguagem e das respostas sociais
dadas por certas formas organizativas (KOSELLECK, 1999; JANCSÓ, 2005).
Esse processo a Carta Constitucional de1824, outorgada por Pedro I, teve por
bem traduzir pelo dispositivo que punha fim à regulamentação corporativa dos ofícios
mecânicos (art. 179, 25 da Constituição Política do Império do Brasil). Base material de
formação de muitas das irmandades americanas e europeias, as atividades mecânicas
eram com freqüência regidas pelas autoridades do ofício tanto quanto pelos
compromissos das confrarias. Mônica Martins notou que os elos entre irmandades e
corporações “foi de tal monta que se manteve como legado das sociedades fundadas a
partir dos anos 1830 em várias províncias do Império”. (MARTINS, 2014). Mas a partir
de 1824, corporações, irmandades de ofício e todo o conjunto institucional que lhes era
subjacente (procuradores, escrivães, juízes de ofício) não mais estariam autorizados a
protagonizar, por meio das cartas de exame e posturas municipais, o controle e a
disciplina das artes mecânicas. Juridicamente, era preciso reconhecer que o aparato das
corporações de ofício estava extinto (FLEXOR, 1974; MAC CORD, 2012).
É nesse contexto que, em setembro de 1832, é criada a Irmandade de Nossa
Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos. Composta por duas dezenas de africanos
libertos, e voltada à prática da ajuda mútua entre artesãos e trabalhadores do ganho –
seus principais integrantes – ela se estabelece como as demais irmandades sob os
auspícios da devoção católica. Sublinhando a marca racial, admite apenas indivíduos de
cor preta. Poucos dias adiante, na mesma cidade, iniciaria seus trabalhos a Sociedade
3
dos Artífices. Laica, a Sociedade se instala, porém, nas dependências da Irmandade do
Rosário de João Pereira, de onde pretendia se firmar como um coletivo mutualista que
apoiasse, nas dificuldades, trabalhadores ocupados com ofícios artesanais. Além dessa
exigência, não opunha qualquer outra, de cor ou de origem (BRAGA, 1987;
OLIVEIRA, 2005; LEAL, 2011, CASTELUCCI, 2010).
Importa, portanto, observar que, poucos anos após a promulgação da
Constituição de 1824, o cenário social da fundação da Irmandade dos Desvalidos e da
Sociedade dos Artífices guardava correlações importantes com aquele contexto do
século XVIII, de que fala Lysie Reis, em que “no Brasil, assim como em Portugal, as
corporações de ofício e as confrarias religiosas, apesar de não serem a mesma coisa,
mantinham estreitos vínculos” (REIS, 2012; 54). A comparação interessa porque se tem
entendido que o processo de “substituição”2 das corporações de ofício no século XIX se
dá por meio da laicização das associações de ajuda mútua, que, organizando-se em
torno de identidades profissionais, reunirão num mesmo corpo associativo duas práticas
antes atribuídas a instituições que “mantinham estreitos vínculos, apesar de não serem a
mesma coisa”.3
Isso quer dizer que a defesa e o prestígio profissionais outrora garantidos pela
tradição da hierarquia corporativa passariam a ser investidos na forma das práticas de
uma associação livre que atuaria, ao mesmo tempo, como instância de socorro de seus
afiliados nas dificuldades enfrentadas ante à falta do ofício. Não estranha, portanto, que
na Bahia esse processo tenha se apresentado por meio de uma confraria religiosa com
forte acento secular e de uma associação civil de insofismável inspiração corporativa.
Ao menos é o que estado atual da pesquisa e da documentação parece sugerir, como se
discutirá adiante.
De saída, nessas condições, chama a atenção na história de fundação de ambos
os coletivos o fato de a alternativa às estruturas tradicionais de organização dos ofícios
ter se tecido debaixo da expressiva influência dessas mesmas estruturas. No rastro dessa
transição em que “sobrevivências corporativas” se manifestam nos mesmos gestos que
2 Na historiografia do trabalho, discute-se o cabimento da noção de “substituição” para explicar a
progressiva mudança nas formas organizativas de meados do século XIX, das instituições corporativas
para outras, pautadas sob critérios de livre associação profissional (BATALHA, 1999; LUCA, 1990). 3 Segundo Caio Boschi, “grande parte das confrarias teve origem nos ofícios, naqueles casos em que o
caráter devocional era mais marcante”. Por outro lado, “deve ficar claro, porém, que confraria não era
sinônimo de corporação. Quando muito, poderia ser a face religiosa desta última (...)” (Boschi, 1987:13).
4
pretendem superá-las, “a construção e a difusão da Modernidade” é encenada por meio
da “aparição de novas formas de sociabilidade” (GUERRA, 1993: 87). Das tertúlias e
salões literários da Europa de fins da Idade Média, passando pelas Sociedades
econômicas e científicas, até, em todo o Ocidente, as associações de caráter
ostensivamente político (proibidas ou não, mas sempre vigiadas), o processo social mais
amplo dessas formas de reunião é o de uma progressiva adequação das práticas, dos
costumes e da linguagem em um mundo cuja lógica fundamental tenderá a se parecer
cada vez mais com aquela que faz nascer o indivíduo como elemento fundamental de
uma sociabilidade.
Na esteira dessa hipótese, Marcelo Mac Cord mobilizou a noção de
“sobrevivências corporativas” no estudo da Sociedade de Artes Mecânicas, associação
de artífices de Pernambuco criada em 1841 por integrantes da Irmandade de São José do
Ribamar. Ele afirmou que “por mais que a Constituição de 1824 tenha desmontado o
aparato legal que privilegiava as corporações de ofício, todos os seus costumes e
práticas culturais ainda estavam vivos nos corações e mentes daqueles mestres carpinas”
(MAC CORD, 2012a:1).
Como forma de os artífices se adaptarem aos novos desafios e circunstâncias, a
“ideia de constituir uma associação permitiu que eles reforçassem antigos laços comuns
e reelaborassem um repertório cultural há muito tempo consolidado e compartilhado por
eles na cidade de Recife” (MAC CORD, 2012: 50). Seus fundadores haviam dominado,
durante muitos anos, a hierarquia de ofícios na capital pernambucana.4 O aprendizado
prático de uma associação que pudesse lhes distinguir profissionalmente tanto quanto a
corporação que antes controlavam passaria a se dar na estreita convivência entre irmãos
e sócios, alguns deles de dupla filiação. Aliás foi também nas dependências da capela
que abrigava a Irmandade de São José que a Sociedade de Artes Mecânicas se instalou a
partir do segundo ano de funcionamento.
A história na Bahia, ao longo do Setecentos, segundo Maria das Graças de
Andrade Leal, contou também com confrarias que atuaram, “em grande medida, como
espaços de organização do trabalho, considerando a sua interlocução com as Câmaras
Municipais enquanto instâncias controladoras da produção interna e do mundo do
4 Diziam-se “embandeiradas” as irmandades organizadas em torno da prática e da disciplina de ofícios, e
que nessas condições ostentavam a “bandeira” representativa da sua atividade nas solenidades religiosas.
5
trabalho” (LEAL, 2011:6). Lysie Reis discutiu a intrincada configuração de uma dessas
confrarias, da Bandeira do Glorioso São José, erguida na Sé Catedral da cidade do
Salvador. Regidos por um compromisso-regimento do ano de 1780, de cunho tanto
devocional quanto econômico, seus confrades se encontravam obrigados igualmente à
promoção do ofício e à expansão da irmandade, em nome de cujo padroeiro deveriam
desfilar bandeiras nas procissões da Câmara (REIS, 2012: 55).
Meio século depois, registre-se, os Desvalidos se constituíram ostensivamente
como uma irmandade, figura típica da vida colonial e de especial importância nos
arranjos de coexistência entre as diversidades étnicas, de fé e de status legal dos
habitantes da América Portuguesa. Irmandade tardia, poder-se-ia arriscar. Pois Júlio
Braga notou que nos dias que se seguiram à fundação da irmandade não houve menção
às obrigações confessionais, “o que seria de se esperar caso houvesse por parte de seus
fundadores uma preocupação maior em situá-la como irmandade estritamente religiosa”
(BRAGA, 1987).
Definindo o papel das irmandades, Caio Boschi ressalta como “um de seus
propósito fundamentais fomentar o crescimento do culto público”. Por outro lado, anota
também a dificuldade de se “estabelecer com precisão a linha divisória entre
mutualidade espiritual e as beneficências e auxílios mútuos temporais” (BOSCHI, 1987:
13). A se aceitar a opinião de Braga, é possível dizer que a experiência dos Desvalidos
já sinalizava para um passo além da linha divisória que equilibrava com a prática da
ajuda mútua a forte presença do discurso religioso na rotina da irmandade, o que a
aproximaria de um comportamento distintivo das chamadas sociabilidades modernas.
Entre os Artífices da Sociedade de 1832, por sua vez, adivinhavam-se não
menos “sobrevivências corporativas”. Além de ter atendido na sede da Irmandade do
Rosário de João Pereira ao longo dos seus dez primeiros anos de existência, a Sociedade
teria mantido o modelo de organização tradicional das confrarias. Ainda segundo Leal,
ele se fez sentir na prática de rituais e na forma dos cargos, que seriam correlatos aos
presentes na hierarquia das irmandades (LEAL, 2011: 8).
Ao se abrir o quadro de outras modalidades associativas do Brasil oitocentista, a
noção de sobrevivência corporativa mais se avulta. Alexandre Barata, estudioso da
maçonaria mineira, dirá que, “tal como aconteceu em outras partes do Brasil, Minas
Gerais viu surgir novos espaços de sociabilidade que conformavam um „espaço público
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moderno‟”. Apostando na transformação dos tipos de associação surgidos nesse
período, Barata não desconsidera, porém, a influência e a experiência aglutinadora das
irmandades. Citando Caio Boschi, afirma que, dada a sua elevada coesão associativa,
elas
serviram de sólida base para que se organizassem (...) outros tipos de
agremiações como, por exemplo, as lojas maçônicas. É admissível supor que
essas últimas não fizeram tábua rasa das irmandades. No mínimo, as
irmandades tinham criado e desenvolvido na gente mineira o hábito de se
congregar e se reunir para o auxílio recíproco (BARATA: 2009: 51).
Igualmente pesquisando modelos de sociabilidade no Brasil do século XIX,
especialmente na Corte, Marco Morel fala da “complexidade dos pertencimentos às
formas de sociabilidade”, para marcar o fato de que os mesmos indivíduos pertenciam a
tipos distintos de associações (abertas ou secretas, religiosas ou clubs libertários).
Sublinhando as diversas formas de cruzamento entre instituições “de tipo antigo” (como
as Irmandades e as Santas Casas) e outras, criadas na atmosfera liberal, ele frisa que
“nesta construção da modernidade política do Brasil do início do século XIX, pós-
independência, o passado não virara tabula rasa e os espaços públicos se caracterizaram
por tal hibridismo” (MOREL, 2005: 248).
O que essas tensões e o hibridismo do modelo indicam, portanto, é que, naquele
novo tempo de Constituição liberal, de Parlamento eleito e de nascentes vocabulários
políticos, as associações, se por um lado funcionavam como importantes suportes de
memória, também encontravam inspiração em inéditas conformações institucionais. Na
leitura que Leal e outros fazem desse quadro, a extinção legal das corporações de ofício
seria a contrapartida da liberdade de indústria e de trabalho prevista na Carta, também
manifestada no direito de associação. Do ponto de vista do Estado, ela diz, “as
sociedades particulares se constituiriam em espaço privilegiado de educação popular,
para se desenvolver moralmente o indivíduo” (LEAL, 2011: 6). Segundo Mac Cord, em
diálogo com princípios liberais e “experiências europeias, o governo central pretendia
criar processos escolarizantes de instrução das artes mecânicas e assumir o lugar das
velhas formas do ensino artesanal” (MAC CORD, 2012: 9).
Na história europeia das associações religiosas de leigos, as implicações entre os
interesses do Estado e a atuação das confrarias conheceu diferentes registros, mas, de
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um modo geral, as uniões pias, as ordens terceiras e as irmandades propriamente ditas
jamais deixaram a órbita de interesses das autoridades públicas. Ora servindo a
propósitos de expansão do poder real, ora sob a vigilância oficial de alarmados
ministros e seus receios de sedição, seu lugar na configuração do Império Português,
segundo Charles Boxer, era o de sustentação fundamental das colônias, ao lado das
Câmaras municipais (BOXER: 1977: 302). Do ponto de vista da política de
colonização, Minas Gerais é um grande exemplo de como o papel povoador se deve a
essas associações, que precederam as infraestruturas urbanas e ao mesmo tempo
fundaram e custearam as primeiras edificações religiosas. Por isso, a elas “o Estado
esteve sempre atento” (BOSCHI, 1987: 21).
Assim, se por um lado o Estado e os grupos de poder que o compunham tinham
um programa de recepção e disciplina das novas associações, por outro é natural que
seus próprios integrantes tivessem algo a dizer a respeito. Por isso interessa indagar a
perspectiva de trabalhadores urbanos pobres a respeito do impacto do esgotamento das
formas corporativas de associação na interpretação das alternativas que lhes estavam
postas para superarem coletivamente os estigmas da escravidão e ascenderem
socialmente. Ou seja, é crucial explorar as relações concretas e de mútua implicação
entre a decadência das corporações e a laicização das instituições de ajuda mútua na
Bahia, e apurar como artesãos e ganhadores libertos depositaram nesses coletivos a
expectativa de novas possibilidades de inserção social. Importa entender se e como
figuravam, a partir das estruturas que construíram, um caminho efetivamente distinto
daquele que as corporações e seus corolários uma vez tinham oferecido, e também
investigar como engendravam a partir de experiências horizontais de associação a
capacidade de enfrentar as práticas de hierarquização no pós-cativeiro, vigentes no bojo
de um clima social também favorável, formalmente, à afirmação de liberdades
individuais e de cidadania.
Nesse contexto, portanto, a noção de “sobrevivências corporativas” e a tensão
embutida na coexistência de modelos distintos de sociabilidade remetem ao caráter
eminentemente transicional dessas práticas associativas, de resto também sugerido pela
condição em muitos sentidos provisória e precária do cenário político mais amplo da
sociedade oitocentista brasileira, e de todo o Ocidente, entre os anos de 1830 e 1850
(KOSELLECK, 2006; ARENDT, 1990). Os anos em questão configuram um período
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de profundas transformações não só na configuração do Estado e da cultura política
avançada pelas inéditas experiências de ações diretas e representativas, mas
especialmente na tessitura social da América escravista. Nesse intervalo, o Brasil
aprofundou o padrão reprodutivo do tráfico de cativos, intensificando a um só tempo o
volume de internação de escravos e o da produção social de libertos, num expediente
que teria consequências diretas sobre o panorama de que aqui se ocupa.5 Os debates a
respeito do fim do comércio negreiro – incentivados pela edição de leis proibitivas em
1831 e 1850 – estiveram entrelaçados com as pautas da própria construção da nação, em
cujo teor a presença atual e futura da escravidão era decisiva (PARRON, 2011).
Resta dizer que os vinte anos então considerados são tratados pelos estudos que
até aqui se debruçaram sobre ambas as associações baianas como sua “fase de
estruturação”. Entende-se que o “hibridismo” de sua prática formal estaria relacionado
ao tempo de consolidação das próprias instituições no espaço social e político de sua
comunidade, num movimento descrito em meio ao cruzamento dos diversos contextos
sociais acima sublinhados. Ocorre que na documentação atualmente reunida para dar
conta dessa “fase de estruturação” a manifestação de “princípios liberais” não é
ostensiva. Seus primeiros compromissos e estatutos não sobreviveram, seus papéis
iniciais são esparsos e não seriados, o que, ao menos nesse corpus, restringe a pesquisa
a análises indiretas por meio das fontes remanescentes e à reflexão comparada,
sugerindo ainda que se procurem esses atores em uma nova documentação.
A Irmandade dos Desvalidos e a Sociedade dos Artífices: primeiros papéis
Os primeiros registros da Irmandade dos Desvalidos tratam de sua montagem
administrativa: confirmam o depósito das primeiras jóias, a eleição da Mesa, o destino
do cofre da instituição; fixam a disciplina das sessões, estabelecem multas para os
recalcitrantes, e também indicam que, um ano depois da fundação da irmandade, seguia
a deliberação sobre o seu Compromisso. De fato, na epígrafe de um comunicado de
5 Os dados geralmente citados a respeito da expansão do tráfico no período imediatamente posterior à sua
proibição pela Lei Feijó, de 1831, encontram-se em Eltis (1987) e Bethell (1976). Também em Verger
(1987). Nos dez anos seguintes à promulgação da lei, mas sobretudo a partir de 1835, o crescimento do
tráfico em todo o Brasil foi da ordem de 150%. Em 1851, um ano após a entrada em vigor da Lei Eusébio
de Queiroz, o número de escravos ingressos no país recuou para menos de 10% do total importado em
1849.
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março de 1833, pode-se ler a seguinte inscrição: “Cartas para reformas de Capítulo e §
do Compromisso, em 1833”. Termo de resolução do mês posterior noticia a efetiva
alteração promovida no Capítulo 2 do referido documento, mas nos mantém curiosos a
respeito de seu teor (ASPD). Tal como disposto, o conjunto das atas, termos e
documentação das sessões da irmandade permite cogitar, como o faz Xavier Guerra, a
racionalidade das decisões e o papel rigoroso emprestado aos ritos das votações como a
afirmação de um dos traços marcantes da rotina das novas sociabilidades modernas
(GUERRA, 1993: 97).
Mas é num texto de 29 de março de 1835, redigido por Manuel Vitor Serra,
principal autoridade da confraria, que se encontram alguns indícios elucidativos das
prováveis consequências que sobre os Desvalidos produziu o “diálogo com os
princípios liberais”. Pela leitura da ata daquela sessão somos informados da aprovação
unânime (provavelmente após nova reforma) do “Compromisso da Devoção” dos
“chiolos liver de cores pretas”.
O que, portanto, a sentença deixa clara é a restrição ao ingresso de escravos na
irmandade. E se a isso se soma, como indicado por Klebson Oliveira, a ausência de
indícios de que cativos, parentes de irmãos, tenham sido beneficiados com as retiradas
da confraria, podemos supor que as aspirações de cidadania alimentadas por um
coletivo fortemente marcado pela defesa de sua identidade racial não compreendiam a
convivência institucional com outros igualmente pretos que não fossem cidadãos.
Difícil não ver aí uma resposta às novas configurações sócio-políticas vigentes,
especialmente porque não era incomum que escravos e não escravos dividissem espaço
nas irmandades tradicionais (OLIVEIRA, 2005).
Veja-se, por exemplo, o caso da Irmandade de São José do Ribamar, em Recife,
de onde saíram muitos dos fundadores da Sociedade de Artes Mecânicas de 1841. As
mudanças promovidas em 1838 no seu Compromisso, em função da Constituição de
1824, importaram igual vedação à matrícula de escravos. O mesmo documento impunha
restrições aos cativos já ligados à irmandade, que a partir dali seriam alijados do
exercício de qualquer poder representativo na confraria dos carpinas (MAC CORD,
2012: 57).
Enxergando nessas respostas os “atritos entre passado e futuro”, Mac Cord fala
da tentativa de as corporações religiosas minimizarem as perdas impostas pela
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legislação de 1824, que, ao lado das lutas pela cidadania, abriria um quadro de forte
concorrência no mundo do trabalho. A Irmandade, ele diz, “parecia ter chegado ao
limite de todas as suas possibilidades de reforma”. A sociedade de artífices de 1841, por
sua vez, repetiria o dispositivo do Compromisso de 1838, não admitindo a associação
daqueles “sem uma conveniente personalidade jurídica”. Diz ainda o autor que, “em
meio à circulação de idéias sobre modernização e futuro”, a “criação de uma Sociedade
poderia fazer com que os pioneiros cerrassem filas entre os „civilizados‟ e os
„reorganizados para o futuro‟”. Escravos não constavam desses planos (MAC CORD,
2012: 72).
Embora os pioneiros da Irmandade dos Desvalidos não partissem da mesma
condição profissional qualificada que era a marca dos artífices pernambucanos, sua
dissociação da imagem de trabalhadores cativos, a rigor muitos deles colegas de ofício,
poderia produzir importante significado do ponto de vista dos seus pleitos de cidadania,
reconhecimento social e acesso ao mercado de trabalho. Afinal, como demonstrou
Maria Inês Côrtes de Oliveira, no espaço urbano o liberto tendia a manter o ofício que
praticava quando escravo. E ainda mais comum, de acordo com as disposições
testamentárias por ela consultadas, era que esses forros passassem a retirar a própria
subsistência da exploração do trabalho forçado (OLIVEIRA, 1988). Na já avançada
década de 1880, a documentação da SPD indica um ativo processo de “elitização”
manifestado na progressiva recusa em matricular indivíduos ocupados com trabalhos de
pouca ou nenhuma qualificação, como era o caso da grande maioria dos fundadores da
irmandade (ASPD).
Ao lado da identidade de uma confraria de “chiolos liver”, outro importante
elemento da prática dos Desvalidos era o fato de que seu papel material chave consistia
no funcionamento como uma junta de crédito. Esse papel central teria obscurecido
outros, caros à profissão estritamente religiosa de uma confraria, que nos primeiros
meses de funcionamento ter-se-ia limitado a definir “quais seriam os dias obrigatórios
de „se mandar celebrar a missa‟” (BRAGA, 1987: 29).
É importante frisar que essa mudança seguia uma orientação de laicização do
sistema assistencial, manifestada também nos testamentos de libertos escritos a partir do
final da primeira metade do século. É o que dizem sobre o assunto Kátia Mattoso e
Maria Inês Côrtes de Oliveira, para o caso da Bahia. Ambas as autoras encontraram
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nesses documentos um padrão de “mentalidade” e de comportamentos sociais que,
desde o final da década de 30, apontava para o crescente deslocamento do poder
assistencial das instituições religiosas – como as Irmandades – para outras de caráter
civil ou associativo. Essas últimas associações compareceram nos textos de última
vontade desse período como credoras, devedoras, depositárias, legatárias, mas, de
qualquer forma, definitivamente na vida daqueles libertos que tinham algum patrimônio
a transmitir. Ainda que fosse ele imaterial, porque, quanto às Irmandades, era mais
como destino das missas que seguiam sendo lembradas, disputando palmo a palmo a
preferência com as sociedades de culto africano (MATTOSO, 1979; OLIVEIRA, 1988).
Portanto, em que pese a dificuldade de, no estado atual da presente pesquisa,
pôr-se em questão a autenticidade dos propósitos confessionais dos Desvalidos como
instituição, é possível afirmar que a tensão entre “tradição” e “modernidade” sugerida
pela noção de sobrevivência corporativa encontraria em eventos de fins dos anos 40 e
início dos anos 50 um objeto privilegiado de tradução. Em 1848, a Irmandade, fundada
na Capela dos Quinze Mistérios, passaria a funcionar na sede da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo, de onde, após 20 anos e “algumas
desinteligências”, igualmente se retiraria, até finalmente ocupar imóvel próprio em
1887. É no curso do tempo passado com os irmãos pretos do Carmo, no ano de 1851,
que os Desvalidos abandonam a configuração de ordem religiosa e passam a atender
pelo nome de Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD). A coexistência física dos
irmãos com outros coletivos de caráter religioso parece, como em outros casos
similares, de especial importância, pois é no transcorrer desses anos que se dá uma das
principais alterações na sua organização social.
Estudioso do mundo dos libertos africanos na Bahia, e da SPD em especial,
Klebson Oliveira afirma a respeito da constituição da Sociedade dos Desvalidos que
“com a mudança de nome, não se sabe quais outras existiram no âmbito da SPD quando
deixou de ser irmandade e passou a ser sociedade”. Até onde alcançou o seu interesse na
questão, “a documentação parece indicar que, efetivamente, nenhuma reestruturação
relevante tenha existido (OLIVEIRA, 2005: 139). Essa leitura do problema o faz tratar
os Desvalidos, ao longo do século estudado, indistintamente como irmandade ou
associação civil, abstraindo as diferenças porventura existentes nessa história
institucional.
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Vale salientar, porém, que a questão relevante nessa matéria pode ser não tanto o
que a mudança do nome passa a permitir ou a alterar do ponto de vista estatutário na
“irmandade-sociedade”, como quer Oliveira, mas sim o processo que suscitou a
mudança, permitindo que ela se efetivasse. Ou seja, interessa menos o significado
estritamente regimental representado pela conversão em sociedade, e mais a
possibilidade de que, ao longo dos tempos de irmandade, o comportamento da
associação pudesse estar muito próximo do de uma sociedade laica que, ao mesmo
tempo, administrava o legado das confrarias religiosas.
Nesse ponto, então, pode residir uma interessante questão sobre a identidade dos
Desvalidos e sobre seu caráter precursor do mutualismo. Vale notar que Leal não os
reconhece como sociedade mutualista, pois, para ela, “na Bahia, reinou soberana a
Sociedade dos Artífices durante 20 anos”. Por outro lado, Oliveira, Reis e Castelucci a
têm como originária, mesmo antes de em 1851 os Desvalidos adotarem a forma de uma
sociedade civil (LEAL, 2011: 13; OLIVEIRA, 2005: 139; REIS, 2012: 203;
CASTELUCCI, 2010: 44). Diferentes formas de lidar com a questão, porém, não fazem
dela um problema suficientemente explorado, pois as diversas opiniões passam ao largo
do enfrentamento do significado desse caráter precursor, tomando pelo seu valor de
face, seja o título de irmandade, de 1832, seja o de sociedade, de 1851.
O que parece emergir de um primeiro cenário aberto a respeito dos Desvalidos é,
a rigor, a assunção de decisivas posições políticas por parte dos fundadores da
irmandade. Atitudes cujos significados dependem do melhor esclarecimento dos
contextos em que se desenrolaram, por exemplo, as ações que teriam combinado a
exclusão de escravos do espaço da confraria com a solidariedade típica entre libertos e
cativos, aproximados não só por vínculos profissionais mas também por laços de
parentesco e amizade. Igualmente importantes são os sentidos da distinção racial
assumida pelo coletivo, rechaçando a participação de pardos, cabras e mulatos num tipo
de instituição em que não eram raras as composições inter-étnicas. Interessa ainda
entender como uma dada configuração organizativa tradicional pôde facilitar a aceitação
social de práticas por ela “escudadas”, num expediente que a literatura vem atribuindo
aos grupos profissionais reunidos em torno de irmandades fundadas na primeira metade
do século XIX; ou ainda se, de fato, essa viria a ser uma forma comum de desembaraço
de certas sobrevivências dos modelos do passado. Não menos importante, enfim, é
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situar o conjunto de ações e de respostas promovidas institucionalmente pelas
associações em defesa de seus integrantes no cenário dos eventos políticos que tomaram
corpo no pós-independência, mobilizando debates em torno de uma nova agenda de
direitos e de cidadania, e em meio à intensa movimentação de controle e de reação
oficial aos movimentos políticos que tinham a rua como espaço privilegiado de
manifestação.
A mudança de 1851, portanto, faz olhar para trás com o interesse de investigar o
que pode ter posto, ao longo dos vinte anos antecedentes, a Irmandade dos Desvalidos
na trilha dos coletivos importantes para a prática do mutualismo após 1850 na Bahia.
Originariamente concebidos como uma confraria, os Desvalidos parecem ter respondido
às mudanças do tempo dando curso a um processo ao fim do qual se renovariam. Com
Guerra, lembremos que uma das notas distintivas das sociabilidades modernas é o fato
de que “la intensidade y la forma de los vínculos resultan del acto constitutivo mismo de
la asociación. Los associados la definen ellos mismos y pueden – por lo menos en teoría
– redefinirla en todo momento” (GUERRA, 1993: 89). Nesse sentido, os irmãos da
Soledade dos Desvalidos interessam pelo fato de serem o corpo de uma transição.
A história da Sociedade dos Artífices talvez seja ainda menos conhecida do que
a da SPD. Sobretudo o período que essa pesquisa privilegia. Os dois textos de Leal aqui
indicados, contudo, sugerem que a documentação dos Artífices é rica o suficiente tanto
para ser lida na perspectiva do seu legado e do seu “desembaraço” corporativo, como
também sob o influxo dos problemas sociais e propriamente políticos que envolveram
como protagonista a gente livre e pobre na movimentada capital da Província baiana.
Supondo a existência de nexos entre os ideais liberais associativistas professados
no processo de independência brasileiro e a prática de organização coletiva de
trabalhadores após a década de 30, Leal analisa como, em “30 anos de funcionamento, a
Sociedade desenvolveu estratégias para se consolidar como espaço de sociabilidades e
de exercício político em defesa dos interesses de classe”. As idéias liberais, segundo ela,
teriam sido abraçadas pelos fundadores desde a ocasião em que se tentara criar, sem
sucesso, uma associação mutualista no imediato pós-Independência (LEAL, 2011: 1).
Tempos mais tarde, porém, ainda segundo a autora, os anos iniciais das
atividades dos Artífices responderiam pela sua “eficácia associativa”. O período era de
intensa articulação não só com os trabalhadores – com vistas à ampliação dos quadros
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da associação – mas especialmente com as autoridades provinciais, processo por meio
do qual se emprestava ao coletivo o reconhecimento oficial de seu valor como instância
moralizadora dos costumes de trabalhadores livres e libertos (LEAL, 2011a).
Antecedida de intensa negociação, como confirmam as anotações presentes no
Livro de Atas da Sociedade, a fundação da Sociedade dos Artífices em 1832 seria
prestigiada dez anos depois com a outorga do título de Imperial Sociedade, conferida
pelo próprio monarca, que passaria ele mesmo a figurar como sócio-protetor, dali a
apenas dois anos (ASMPA). Essa aproximação da Sociedade dos Artífices com as
autoridades do Estado é digna de destaque, e, naturalmente, nem o eventual fervor
liberal dos Artífices os faria ignorantes da conveniência de angariarem, naquelas
circunstâncias e como um coletivo de “classe”, prestígio público junto às autoridades.
Apesar do uso presente da noção de “classe”, é preciso observar que,
diferentemente dos propósitos e da prática das típicas associações operárias nascentes
no final do século XIX no Brasil, as mutualistas tinham na relação com o Estado um
instrumento importante de confirmação do seu poder social, manifestado no
desenvolvimento de estratégias de proteção contra a concorrência. Por outro lado,
afastavam-se do elemento sindical também por estarem voltadas eminentemente para
finalidades securitárias, ou seja de assistência fora do trabalho e não de enfrentamento
na relação com o capital (LUCA, 1990).
Logo, é importante frisar que não seriam unicamente impalpáveis as vantagens
obtidas em razão da proteção do Imperador. No ano de 1844, no contexto da “inserção
sistemática de personalidades religiosas, políticas, intelectuais, econômicas, assumindo
o lugar de Sócios Protetores, depois Benfeitores ou Honorários”, discursaria o
Presidente da Província a respeito dos Artífices. Dizia esperar dedicação “ao
aperfeiçoamento das obras e descoberta de instrumentos ou máquinas, na medida em
que prometia serem preferidos nos Arsenais, e Administrações das obras públicas, e
merecedores „de alguns prêmios que forem decretados por esta Assembléia para os
inventores‟” (ASMPA).
O redator do relatório financeiro da Imperial Sociedade dos Artífices, do ano de
1853, por sua vez assinala:
Aqui concluo este meu amesquinhado trabalho participando-vos por fim, que
levado ao alto conhecimento do Exmo Sr. Presidente da Província a vossa
representação solicitando a proteção do governo em favor da classe dos
15 artistas nacionais, afim (sic) de serem com preferência admitidos ao trabalho
dos Arsenais de Marinha e Guerra e das obras públicas, foi ela acolhida,
como era de esperar de um governo patriótico, sábio, justo e perspicaz, amigo
e pai do povo, e desejoso de seu bem e prosperidade (ASMPA).
A rigor, não seriam incomuns, século XIX afora, os expedientes de tutela
política de associações de classe, ou de ofício. Seus resultados poderiam aparecer na
forma de contratos, acordos preferenciais com o Estado ou de informações privilegiadas
sobre obras, numa espécie de reserva de mercado que atravessava a disputa por
“hegemonia” no campo profissional respectivo. A Sociedade das Artes Mecânicas de
Recife, criada num contexto muito assemelhado ao da congênere baiana, atuou como
um trunfo para que seus sócios enfrentassem o aumento da concorrência provocado pela
contratação de operários estrangeiros nas obras da cidade, e pelo aumento da força de
trabalho livre, resultante, em linhas gerais, da desagregação do escravismo. Também
eles, os mecânicos de Recife, viviam as “tensões entre monopólio e liberdade
profissional nos canteiros de obras da capital pernambucana”. Também eles não
hesitaram em recorrer às redes de patronato encabeçadas pelas autoridades públicas para
superarem fossem “defeitos mecânicos”, fossem “defeitos de cor” (MAC CORD, 2014:
200).
Três questões se destacam, portanto, nesse primeiro quadro dos Artífices. Entre
eles, comparados com os Desvalidos, parecia estar colocado mais forte e mais
precocemente o problema da associação civil como instância social morigeradora. Ali,
por consequência, eram mais evidentes a aproximação e as relações com uma rede de
autoridades públicas e sócios protetores. Em harmonia com esse desenho institucional, e
dessa vez em aproximação com os irmãos de 1832, a Sociedade também estava fechada
para os trabalhadores cativos. Nela, igualmente, a coexistência com a irmandade junto à
qual havia sido criada cessaria anos alguns depois da fundação. De fato, em 1843 a
Sociedade dos Artífices rompe com a Irmandade do Rosário de João Pereira e se retira
do espaço que até então ocupava por cessão da confraria (LEAL, 2011a: 7).
Interpretando esse episódio, Leal afirma que a ruptura não seria apenas física,
mas especialmente simbólica, pois se tratava de deixar para trás uma tradição
corporativa e eclesiástica, e desafiar “a composição de uma nova força social e política
de cunho civil, configurada na Sociedade” (LEAL: 2011a: 12). Trata-se de uma opinião
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forte, é verdade. Mas, ao menos no texto em questão, sem provas documentais do que
afirma com certa gravidade, a autora não nos permite concluir numa ou noutra direção.
Vale dizer, nem pela mais clara persistência de uma tradição corporativa no cotidiano de
uma associação pretensamente liberal, nem mesmo pela prática já antiga de uma política
distinta de condução dos negócios sociais debaixo de uma estrutura de cargos
formalmente corporativa. A bem da verdade, um importante esclarecimento viria a ser
aquele que pudesse dar conta das condições em que a autonomia em relação a práticas e
símbolos corporativos acabou por dar lugar a novas formas de dependência, dessa vez
oficialmente cunhadas.
Aquilo que de fato se sabe é que ambas as associações baianas descreveram o
movimento que descreveria, vinte anos após a sua fundação, a Sociedade dos Artífices
de Pernambuco. Os carpinas do Recife também romperiam com a Irmandade do
Ribamar, sendo expulsos do espaço físico uma vez compartilhado (MAC CORD, 2012:
40).
Examinar os meandros dessa política de prestígio e elitização praticada pelos
trabalhadores manuais, qualificados ou não, que compunham os quadros de ambas as
associações é então repor a discussão sobre os processos sociais pelos quais artesãos de
extração popular pretendiam se diferenciar dos demais trabalhadores pobres por meio de
estratégias fincadas na vida associativa. Por outro lado, nada obstante o festejado “clima
liberal” de renovação das práticas associativas, evidencia-se que o Estado joga um papel
decisivo no processo de “certificação de prestígio” das associações de trabalhadores,
processo que é ao mesmo tempo aquele pelo qual as autoridades se convencem da
capacidade de esses coletivos atuarem como instâncias de pedagogia cívica. O caminho
da “elitização” trilhado por tais coletivos pode ter tomado especialmente essa direção.
Fosse diretamente, através do recurso a favores e prebendas; fosse indiretamente,
incorporando mudanças voltadas à proteção contra a sanha repressiva oficial.
REFERÊNCIAS
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17
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