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MALUNGUINHO: UM PRESSUPOSTO JUREMOLÓGICO DE HISTÓRIA ORAL Alexandre Alberto Santos de Oliveira (L’Omi L’Odò) Resumo Hampaté Bá já nos alertava no início da década de 1980 de que “tudo na África é história” (1982, p. 184). Não seria diferente na tradição da Jurema Sagrada, religião de matriz indígena do Nordeste do Brasil, cujo em diversos elementos se assemelha às tradições africanas, sobretudo em relação ao seu cosmo, filosofia e relação com o meio ambiente. Parafraseando- o, posso dizer: tudo na jurema é história! História oral, tradição oral e memória. Malunguinho, divindade (ou divindades) é considerado o Reis da Jurema. Nele (em seus rituais, toadas, dança, vestes, história e memória oral) encontram-se um expressivo pressuposto juremológico para a discussão do contexto cosmológico desta religião. Sendo assim, este artigo pretende fazer uma etnografia de elementos juremológicos que cercam a figura mitológica e história de Malunguinho, fazendo um aprofundamento em contos que compõe sua história e mitologia nos terreiros. Palavras-Chave: História oral da Jurema, Quilombo do Catucá, Reis Malunguinho. Introdução Pensar na divindade Malunguinho como um pressuposto juremológico 1 para se entender parte fundamental da cosmovisão da Jurema Sagrada, não é algo difícil de presumir, afinal, Ele tem fundamental importância na sustentação cosmológica desta religião de matriz indígena do Nordeste do Brasil, sobretudo na Jurema praticada em Pernambuco, onde seu culto é perceptivelmente mais forte e presente 2 . Trabalho apresentado no III Congresso Nordestino de Ciências da Religião, realizado entre os dias 08 e 10 de setembro de 2016 na UNICAP, PE. Mestrando em Ciências da Religião pela UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco. [email protected] 1 Juremologia: estudo sistemático da Jurema Sagrada a partir de suas próprias bases epistemológicas. Em artigos anteriores, o autor utilizava “Teologia da Jurema” para a mesma função científica. Ver em: 1 - OLIVEIRA, Alexandre Alberto dos Santos (L’Omi L’Odò). Teologia da Jurema, Existe alguma?. V Colóquio de História da UNICAP - ISSN: 2176-9060. Recife, 2011. 2 - OLIVEIRA, Alexandre Alberto dos Santos (L’Omi L’Odò). A Jurema Manda!”A Jurema Sagrada e sua decisiva representatividade territorial em Recife e Região Metropolitana. 25º. Congresso Internacional da SOTER - Sociedade de Teologia e Ciências da Religião - Mobilidade Religiosa – Linguagens – Juventude - Política - ISSN: 2317-0506. Belo Horizonte, 2012. 2 Após várias visitas em terreiros de Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte, pude perceber pessoalmente a ausência de grande parte das toadas, rituais e assentamentos de

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MALUNGUINHO: UM PRESSUPOSTO JUREMOLÓGICO DE HISTÓRIA ORAL

Alexandre Alberto Santos de Oliveira (L’Omi L’Odò)

Resumo

Hampaté Bá já nos alertava no início da década de 1980 de que “tudo na África é história”

(1982, p. 184). Não seria diferente na tradição da Jurema Sagrada, religião de matriz indígena do Nordeste do Brasil, cujo em diversos elementos se assemelha às tradições africanas, sobretudo em relação ao seu cosmo, filosofia e relação com o meio ambiente. Parafraseando-o, posso dizer: tudo na jurema é história! História oral, tradição oral e memória. Malunguinho, divindade (ou divindades) é considerado o Reis da Jurema. Nele (em seus rituais, toadas,

dança, vestes, história e memória oral) encontram-se um expressivo pressuposto juremológico para a discussão do contexto cosmológico desta religião. Sendo assim, este artigo pretende

fazer uma etnografia de elementos juremológicos que cercam a figura mitológica e história de Malunguinho, fazendo um aprofundamento em contos que compõe sua história e mitologia nos terreiros.

Palavras-Chave: História oral da Jurema, Quilombo do Catucá, Reis Malunguinho.

Introdução

Pensar na divindade Malunguinho como um pressuposto

juremológico1 para se entender parte fundamental da cosmovisão da

Jurema Sagrada, não é algo difícil de presumir, afinal, Ele tem fundamental

importância na sustentação cosmológica desta religião de matriz indígena

do Nordeste do Brasil, sobretudo na Jurema praticada em Pernambuco,

onde seu culto é perceptivelmente mais forte e presente2.

Trabalho apresentado no III Congresso Nordestino de Ciências da Religião, realizado entre

os dias 08 e 10 de setembro de 2016 na UNICAP, PE. Mestrando em Ciências da Religião pela UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco.

[email protected] 1 Juremologia: estudo sistemático da Jurema Sagrada a partir de suas próprias bases

epistemológicas. Em artigos anteriores, o autor utilizava “Teologia da Jurema” para a

mesma função científica. Ver em: 1 - OLIVEIRA, Alexandre Alberto dos Santos (L’Omi

L’Odò). Teologia da Jurema, Existe alguma?. V Colóquio de História da UNICAP -

ISSN: 2176-9060. Recife, 2011. 2 - OLIVEIRA, Alexandre Alberto dos Santos (L’Omi

L’Odò). A Jurema Manda!”A Jurema Sagrada e sua decisiva representatividade

territorial em Recife e Região Metropolitana. 25º. Congresso Internacional da

SOTER - Sociedade de Teologia e Ciências da Religião - Mobilidade Religiosa – Linguagens

– Juventude - Política - ISSN: 2317-0506. Belo Horizonte, 2012. 2 Após várias visitas em terreiros de Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte, pude perceber

pessoalmente a ausência de grande parte das toadas, rituais e assentamentos de

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A oralidade será o norte que guiará este breve artigo, considerando

sem preconceitos acadêmicos a tradição oral como o maior documento que

o povo da jurema preserva e possui, como afirma J. Vansina, a partir da

perspectiva africana de tradição oral:

Seria um erro reduzir a civilização da palavra falada simplesmente a uma negativa, ‘ausência do escrever’, e

perpetuar o desdém inato dos letrados pelos iletrados, que encontramos em tantos ditados, como no provérbio chinês:

“A tinta mais fraca é preferível à mais forte palavra”. Isso demonstraria uma total ignorância da natureza dessas

civilizações orais (VANSINA, 1982, p. 154).

Pode-se observar que os saberes deste povo tem metodologia e

merece atenção e aprofundamento de pesquisa. Ainda nos tempos de hoje

há pouca imersão acadêmica sobre a religião e a tradição da Jurema

Sagrada, que ainda é colocada em segundo plano no campo das pesquisas

das ciências humanas. A ausência de boas referências escritas, ou denso

material bibliográfico causa provavelmente um desinteresse na busca por

esta área de estudo. Sendo a tradição oral o maior e mais expressivo

documento deste povo, cabe o aprofundamento da “etnografia densa” e o

rompimento dos preconceitos acadêmicos para com a tradição oral. Sobre

isso J. Vansina afirma:

A oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência

de uma habilidade. [...] Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas

também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isso é, a tradição. A tradição pode ser definida, de fato,

como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra (VANSINA, 1882, p. 154).

Malunguinho nos terreiros. Várias foram as casas/terreiros, cito algumas mais

expressivas por Estado: Templo de Jurema da Mestra Jardecilha/Alhandra-PB, Terreiro

de Jurema do Mestre Benedito Fumaça/Natal-RN, Terreiro de Jurema Fazendinha do Zé

da Pinga/Arapiraca-AL, etc.

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Este artigo usará como referência base o já publicado texto

“Malunguinho - Divindade popular entre a história e o sagrado – um registro

de seu imaginário no culto da Jurema Sagrada”(Oliveira, 2014), e pretende

de forma resumida registrar o complexo imaginário juremológico/religioso

do “Reis” Malunguinho na sua ampla prática ritual religiosa no culto da

Jurema Sagrada fazendo uma interface com seus aspectos históricos. Ainda

não há um estudo sistemático e concreto sobre esta divindade, cabendo a

este artigo dar continuidade ao aprofundamento do tema nos estudos em

Ciências da Religião e Antropologia da Religião.

Sua, forma, seu perfil, personalidade, comidas e cores, imagens,

dança, incorporação, histórias de sua prática nos terreiros, sua importância

simbólica etc. são objetivadas nesta proposta de registro de seu patrimônio

imaterial na história oral do Povo da Jurema. Em Pernambuco. Malunguinho

“congregou em si próprio” as duas dimensões do imaginário: o tempo

histórico da vida material (que foi continuado no tempo religioso mítico

cosmogônico da divindade) e sua prática religiosa/sagrada e tradicional

dentro dos terreiros, afinal, ele (ou eles) é o único líder quilombola da

história do Brasil que virou divindade para os povos tradicionais, “baixando”

nos templos de fé afro indígena. Neste sentido, nossa comunicação tentará

de forma ainda inicial tratar etnograficamente o imaginário de Malunguinho

e sua diversidade de práticas rituais e histórias. Este objetivo em si já seria

demasiadamente amplo para se trabalhar em um artigo de 20 páginas,

portanto, já informei que este texto dá continuidade e amplia os textos

antes publicados por mim. A Jurema Sagrada representada em Malunguinho

é vista aqui em sua singularidade simbólica, abrindo caminho para que se

inicie um estudo mais amplo e aprofundado do tema na academia

futuramente.

Nos últimos anos em Pernambuco, o Povo da Jurema tem vivenciado

constantes momentos históricos de auto-revolução muito interessantes na

perspectiva de desmarginalização de sua juremologia, história, práticas e

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cultura. Tida como religião secundária, inexpressiva, “Xangô umbandizado”

ou culto de desqualificados como afirmaram estudiosos da academia:

Vários desses pais jamais sofreram o processo de feitura do

santo. São pais sem treino, espontâneos, distantes da orgânica tradição africana – os clandestinos do desprezo nagô

[...] São esses pais que mais têm contribuído para a desmoralização dos candomblés, entregando-se à prática do curandeirismo e da feitiçaria – por dinheiro (CARNEIRO, 1967,

p. 130).

Este Povo tem buscado formas de se organizar, se fortalecer e lutar

contra todo racismo e intolerância religiosa vivenciada durante os séculos

passados. Os juremeiros e juremeiras, sacerdotes desta tradição religiosa,

tem buscado através do Quilombo Cultural Malunguinho3, instituição

fundada em 2004 com objetivo de divulgar o personagem histórico e

religioso Malunguinho, fortalecer a Jurema Sagrada e contribuir na

formação intelectual do povo de terreiro sobre seus contextos afrológicos e

juremológicos, históricos e culturais, numa perspectiva de preparar este

grupo para o contemporâneo embate político das religiões de matrizes

africanas e indígenas na luta por espaço no âmbito nacional, em

conferências, congressos, simpósios, atividades internas destas tradições

religiosas etc.

Também, estes (o Povo da Jurema) se organizaram

ainda em Rede – Rede Nacional do Povo da Jurema4, que prepara suas atividades para se colocar como instituição

3 O Quilombo Cultural Malunguinho é uma instituição que atua em Pernambuco propondo

discussões e formações no campo da educação e da formação teológica do Povo da

Jurema e de terreiro em geral com o objetivo de formar e informar na cultura afro

descendente e indígena. Seus participantes são juremeiros e juremeiras pesquisadores.

Suas atividades ao longo de mais de 8 anos, tem colocado a Jurema em espaço de

visibilidade política no âmbito das religiões de terreiro, ao qual antes da instituição sequer

esta religião era citada ou conhecida nos espaços públicos de debates e atividades

políticas. E, Malunguinho só veio ser reconhecido pelo público após diversos seminários

e aulas realizadas por esta instituição de forma descentralizada. Conheça em:

www.qcmalunguinho.blogspot.com 4 Acessar espaço virtual com informações sobre esta Rede em:

https://www.facebook.com/redenacionaldopovodajurema

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representante deste Povo mais amplamente no futuro.

Neste sentido, de busca de espaço e reconhecimento, também de saída da racista condição negativa imposta

ao imaginário geral da academia e conseqüentemente das pessoas, em que a Jurema Sagrada foi colocada

pelos antropólogos, etnólogos e historiadores, é que surge o personagem histórico Malunguinho, que foi um

herói quilombola na luta pela liberdade de seu povo,

como símbolo de valor e legitimação de toda tradição da Jurema, pois segundo os juremeiros e juremeiras, ele

representa parte fundamental do elo histórico, mítico e cultural que foi perdido pela Jurema durante todo

processo de violência vivenciado até hoje com a perseguição a esta religião. Também, Malunguinho,

inspira e dá possibilidade para pensar uma religião mais rica em conteúdo histórico, que propicia um novo olhar

dos pesquisadores em buscar outros personagens preservados na memória oral e na prática litúrgica desta

religião. A proposta de Malunguinho como grande herói da tradição da Jurema, “vivo pós morte”, ativo até hoje

em contato com seus discípulos, o diferencia do líder Quilombola Zumbi, que não “baixa” em terreiro nenhum,

sinalizando que o imaginário de Malunguinho conseguiu

ser mais forte historicamente, se preservando na prática diária dos terreiros de PE. Isto posto, podemos afirmar

que Malunguinho, além de importante personagem da história do Estado de PE, é um elemento de auto-estima

para os praticantes da Jurema, que vêem nele a expressão de força espiritual e simbólica para avançar

no campo das relações sociais e religiosas. Este breve artigo tem como objetivo registrar parte do imaginário

de Malunguinho na Jurema Sagrada, focando sua cosmologia religiosa sem adentrar profundamente seus

aspectos históricos. Pesquisar este personagem é bastante inquietante. Sem nenhum registro amplo e

organizado sobre si, o Malunguinho divino, como prefiro chamar, ficou esquecido até então pelos pesquisadores.

Hoje, há uma necessidade grande por parte dos

religiosos de obterem informações escritas de pesquisa sobre esta divindade, tendo em vista a preservação e

aprendizagem de seu cosmo para assim ampliar sua prática na Jurema. Por outro lado, temos a necessidade

da academia de visualizar este Malunguinho de forma mais aprofundada, garantindo uma proximidade

acadêmica no contexto das ciências das religiões e antropologia, permitindo um avançar no pensar crítico

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sobre o tema, que pretende contribuir para a produção

de mais massa crítica sobre. A metodologia utilizada neste trabalho foi a de pesquisa bibliográfica, pesquisas

de campo com juremeiros e juremeiras e de observação etnológica nos locais de culto (festas e rituais). Esta

pesquisa não tem pretensão de apresentar resultados definitivos ou finais sobre o tema, apenas aqui está um

panorama geral, ainda muito insipiente, de uma

pesquisa em andamento a mais de três anos de forma autônoma, sem nenhuma instituição financiando ou

apoiando este trabalho. A estrutura desta pesquisa está focada em apresentar informações gerais sobre o

Malunguinho divino, registrando seus símbolos, danças, comidas, práticas, rituais, cânticos, sacerdotes e

sacerdotisas, sua presença no campo da cultura popular etc (OLIVEIRA, 2014).

Malunguinho e sua tradição oral – cosmologia e mitologia

No já citado artigo que publiquei anteriormente em 2014 sobre

Malunguinho, disserto que, provavelmente o título honorífico Malunguinho,

que era dado aos líderes do Quilombo do Catucá5 (na primeira metade do

Século XIX em Pernambuco), vem do possível vocábulo Malungo do tronco

lingüístico Kimbundo (Bantu), que significa amigo, companheiro, camarada

ou companheiro de bordo e ainda irmão de criação; nome com que os

escravizados africanos tratavam seus companheiros de infortúnio nos

navios negreiros e nas senzalas. Possivelmente para uma etnia Bantu,

segundo Victor Cajiganga, O sufixo “inho” colocado ao final do termo

Malungo, antroponimicamente, em lato sensu, dentro da perspectiva de

hipocorístico africana, não significa um diminutivo carinhoso, como é típico

no nordeste do Brasil, mas sim conota grandeza e poder, notoriedade e

5 O Catucá correspondia genericamente ao quilombo, ou quilombos dominados por

Malunguinho na primeira metade do século XIX em Pernambuco. Sua extensão territorial

representa hoje o que é compreendido como a Mata Norte do Estado – expandindo-se

das margens do rio Beberibe entre Recife e Olinda até o município de Goiana. Alguns

relatos indicam que os domínios do quilombo se estendiam até a cidade de Alhandra na

Paraíba. Catucá também é o nome de uma das sete principais Cidades encantadas da

Jurema Sagrada: Jurema, Angico, Vajucá, Catucá, Manacá, Aroeira e Juremal.

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transcendência. Quanto menor a palavra para determinar o título de um

líder, ou um diminutivo, mais esta agrega força, contexto e méritos.

Malunguinho era o possível título genérico para as lideranças no quilombo

do Catucá, e também é o líder quilombola que “baixa” nos terreiros de

Jurema, foi o líder (lideres) negro/índio que revolucionou e marcou a

história da luta por liberdade do povo negro e indígena no Catucá. Ascendeu

ao panteão das divindades da Jurema Sagrada, religião de matriz indígena

segundo os juremeiros e juremeiras. Hoje é motivo de auto-estima para o

povo negro e indígena de terreiro ou não, pois é tratado também como

herói, após as descobertas rentes dos historiadores que retratam uma gama

de informações importantes para a história das revoluções e lutas do povo

afro descendente por liberdade em Pernambuco (OLIVEIRA, 2014).

No mesmo texto ainda afirmo:

Malunguinho é uma divindade na Jurema Sagrada. Sem ele os rituais não podem acontecer com segurança. Ele é o

guardião e vigia protetor da Jurema. Para falarmos de Malunguinho, temos antes que entender que ele e sua estrutura de universo e suas narrativas de significação

simbólica e mitológica que encerram suas verdades cujo memória se perdeu no tempo e se preservou na oralidade do

povo de terreiro tem hoje concreta prática cultural entre os juremeiros e juremeiras. Fala-se muito do termo “ancestral divinizado” no Candomblé. No entanto, também existem no

Brasil, personagens históricos negros/indígenas que ascenderam ao altar das divindades no imaginário religioso e

na luta pelo seu povo. Um destes é Malunguinho, conhecido também como o “Reis das Matas”. Ele é verdadeiro no dia a dia dos terreiros, convivendo no cotidiano destes com plena

participação na vida de seus discípulos:

[...] são verdadeiros porque são sagrados, porque falam de Seres e de acontecimentos sagrados. Conseqüentemente

narrando um mito, retomamos o contato com o sagrado e com a realidade, e dessa maneira ultrapassamos a condição

profana, a situação “histórica” (ELIADE, 2002, p. 55).

No ethos do povo da Jurema, os significados habituais de

sagrado e profano não se aplicam de forma simples. No dia a dia deste Povo, é normal se relacionar com o sagrado em

todos os momentos e em quase tudo que se faz sem

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necessariamente estar ligado a um espaço sagrado ou ao imaginário de sagrado (tocado só em momentos litúrgicos

sacros). As entidades e divindades vivem com as pessoas e estão presentes em todos os momentos e em harmonia com o cotidiano, ajudando ou atrapalhando de forma geral. Esta

cosmovisão nos possibilita pensar mais sobre como há alteridades religiosas nas culturas tradicionais de terreiro que

vão além do senso comum do sagrado e profano que estão supostamente divididos, separados. No caso do imaginário teológico da Jurema, estes dois universos estão juntos e são

inseparáveis. Um bom exemplo é ver como os juremeiros e juremeiras se divertem em um momento de beberagem no

final de semana em suas casas ou na praia e, mesmo assim separam o copo de cerveja da entidade mestra de Jurema ou mesmo de uma pombojira simbolizando um ato de respeito e

de oferenda sagrada. Portanto, nos elucida Geertz que:

o ethos e a visão de mundo de um povo encontram-se sintetizados nos símbolos sagrados. Esses símbolos religiosos, teológicos, dramatizados em rituais ou em relatos em mitos,

resumem, para os indivíduos que “vibram” com eles, todo o conhecimento sobre o mundo e a maneira como nele devem

se comportar. “Desta forma, os símbolos sagrados relacionam uma ontologia e uma cosmologia com estética e uma moralidade” (GEERTZ, 1989, p. 93).

Não irei aqui discorrer mais sobre a moralidade da Jurema,

nem mais sobre o ethos da tradição da Jurema, pois não é o foco desta pesquisa. Já está posto o conceito que os

enquadram. Vamos avançar na perspectiva do entendimento mitológico de Malunguinho, que revela uma mitologia totalmente ligada a sua realidade histórica comprovada em

documentos oficiais encontrados no APEJE – Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano de Pernambuco.

No início deste tópico afirmei que Malunguinho é uma divindade na Jurema. Portanto, se faz necessário entender o

porquê de eu não classificá-lo como entidade. Uma divindade é um ser mitológico, não comum, sobrenatural, com forças

inexplicáveis e especiais, superior, criado “espontaneamente” ou por outra divindade, e muitas vezes sua imagem é tida como semelhante à dos seres humanos. Cultuado/invocado,

é tido como um “santo”, divino ou sagrado, e/ou respeitado por uma comunidade religiosa que o adora e teme, ou

respeita, adora sem temer. Normalmente as divindades além de mostrarem-se diferentes e superiores aos seres humanos por suas atribuições, controlam ou regem universos míticos

ou são superiores à própria natureza, se posicionando no imaginário geral como responsável por algo imprescindível no

mundo mitológico. E entidades são espíritos que atingiram

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uma evolução de luz (dentro da perspectiva teológica kardecista) e tem permissão de se comunicar com os seres

humanos, através de médiuns como conselheiros, orientadores, mentores etc. Na perspectiva da Jurema Sagrada, geralmente entidades são espíritos desencarnados

em épocas históricas, portanto, não mitológicas ou distantes, são espíritos como os de índios e índias, caboclos e caboclas,

mestres e mestras, trunqueiros, boiadeiros, marujos, ciganos e ciganas etc. que tem uma história de vida próxima a da vida de pessoas comuns e que “voltam à terra” através dos

juremeiros e juremeiras para “trabalharem” ajudando a comunidade a continuar sua vida de luta contra as opressões

sociais aos quais sofreram em vida. As entidades podem ter índoles boas e más, pois foram pessoas comuns como quaisquer outras. Estas entidades apadrinham seus discípulos

e os ensinam a ciência da Jurema ao longo de sua vida os preparando para serem futuros mestres e mestras na religião

em um processo de muitas provações e de necessidade de entrega total ao trabalho espiritual por parte dos escolhidos para dar continuidade ao culto à Jurema, curando pessoas e

fazendo “trabalhos” diversos para quem procurá-los. Portanto, Malunguinho está na linha tênue que separa estes

dois conceitos. Mesmo tendo comprovação científica de sua existência, tendo sido uma pessoa, ou várias pessoas, ele exerce papeis específicos na mitologia da religião, como

“guardião da Jurema”, o “dono da chave da Jurema”, o que “está na porta da Jurema” permitindo as entidades que

moram nas cidades sagradas mitológicas da Jurema entrarem ou saírem... “O Reis da Jurema” entre outros títulos e funções

que ao longo do texto trabalharemos melhor. José Ribeiro, no seu livro Catimbó Magia do Nordeste, de 1992, registrou parte da função mitológica e simbólica de Malunguinho:

Malunguinho é o dono da chave, o que abre os caminhos. Sua

presença é necessária. Com este Caboclo presente para abrir as portas da Jurema, para abrir os caminhos e portas da direita (lado bom) e fechar a da esquerda, por onde podem

penetrar os maus, se dá no Toré o sincretismo com as forças católicas representadas em Santa Bárbara (RIBEIRO, 1992,

p. 10).

Existem outras definições da umbanda sobre Malunguinho,

portanto não achei pertinente trazê-las para este texto por serem contextos muito distantes do Malunguinho discutido

neste artigo, a divindade da Jurema Sagrada. A umbanda faz alusões sobre ele de forma bastante longínqua como ele sendo chefe de falanges de outros cosmos e universos e que

a chave que ele carrega sustentaria até o firmamento entre outras coisas bastante criativas fora da tradição teológica da

Jurema nordestina.

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Vale à pena ressaltar que a personalidade de Malunguinho,

enquanto divindade está longe de ser a de um santo, coberto por uma áurea branca que o cobre de bondade e complacência. Ele na Jurema preservou suas características

de guerreiro líder do Quilombo do Catucá, transpondo de forma mítica sua história real para sua cosmologia própria

preservada em cânticos, rituais, dança e personalidade. Um homem bravo, forte, intolerante, tosco, bruto e perigoso. “Desconfiado e traiçoeiro” como afirma o juremeiro e

babalorixá Luizinho Gambelê, que herdou o culto à Malunguinho de sua mãe carnal. Malunguinho tem sua

personalidade própria, não muda para agradar ninguém e com ele não há acordos de evolução (darwinismo religioso), pois ele assume um papel de guardião da Jurema, e para

guardá-la ele precisa de grande força espiritual para enfrentar todas as tentativas de invasão dos espíritos maus, segundo

conta o juremeiro Luizinho. Todos estes indicativos mostram o quanto foi transposto para seu culto na Jurema sua história e papel no Catucá. Também, observo que em torno deste

famigerado tem interferência forte do conceito racista que a história o deu. Na primeira metade do século XIX, qualquer

negro ou negra que se rebelasse, ou não, contra o poder constituído pelos brancos era alvo de atrocidades e perseguições diversas, difamações como, por exemplo, a de

marginal, bandido, saqueador, assassino e homem cruel. São estes os termos encontrados em toda documentação histórica

que trata do quilombo do Catucá e seus líderes, e este imaginário mantêm-se vivo até hoje, de forma menos

acentuada, pois Malunguinho na contemporaneidade também é uma divindade que cura, que abre caminhos, que protege e afaga e é muito querido por quem o cultua, mesmo ainda

sendo um esquerdeiro6 cruel nas horas de necessidade. Há relatos bastante impressionantes que reforçam seu

imaginário negativo nas poucas bibliografias existentes que se preocuparam em registrá-lo:

Malunguinho – Negro africano, feiticeiro malévolo. Só pratica o mal. Trabalha com a cabeça no chão. Trabalha à meia-noite,

com panos pretos. É capaz de tomar mais de uma garrafa de cauim de uma vez. Trabalho dele outro espírito não desmancha. É um espírito atrasado, convive em mundos

inferiores. Manda enterrar sapos cururus na porta de quem a gente quer infelicitar. Não possui linha conhecida (RIBEIRO,

1992, p. 28).

6 Esquerdeiro é o termo utilizado para as entidades e divindades da Jurema que trabalham

com forças destrutivas para a defesa e para fazer o mal. São diversos os esquerdeiros.

Em outras pesquisas trabalharei estas personalidades dentro da Jurema com maior

abrangência.

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Malunguinho ainda é dono de uma façanha única dentro da Jurema, a de ser quatro ao mesmo tempo... Ele é caboclo,

mestre, trunqueiro7 (exu ou esquerdeiro) e Reis. Como caboclo, caracteriza-se como um índio, vestindo-se com penas de diversas cores e cocá, carrega uma preaca (arco e

flecha), machadinha, cabaças, apitos e outros elementos que identificam uma entidade cabocla, além da língua falada não

identificada, provavelmente a de alguma etnia indígena, ou de diversas etnias. Fala uma mistura de português com estas línguas que se entende com dificuldade. Ainda dança como

índio imitando o ritual do toré e sinalizando com os dedos das mãos adereços como a lança de caboclo e o próprio arco e

flecha. Como mestre, ele se apresenta como um homem nordestino, com fala firme, vestido com calça, camisa de botões e chapéu de palha ou de massa preto, ou tons escuros.

Traz a ciência da cura e dos encaminhamentos de vida nesta forma de manifestação. Como trunqueiro, ele manifesta-se

como um guerreiro bravo, forte, de dança semelhante à de Xangô no culto nagô de PE. Grita, faz sonorizações de guerra, pula, roda, e modifica totalmente o aspecto físico facial de

seus discípulos, que ficam com feição de ódio, com veias delatadas, pele avermelhada, olhos muito abertos e sudorese

demasiada. Geralmente aos homens que o “recebem” é solicitada pela divindade a tirada da camisa e o chapéu de palha que lhe é entregue a ele neste momento é virado ao

contrário pelo mesmo e colocado cobrindo seus olhos. As mulheres que o “recebem” não tiram suas saias tradicionais

de Jurema, e sim é dado um nó na mesma figurando uma calça masculina. Pude também ver um Malunguinho

“manifestado” no corpo do falecido juremeiro Gilson de Xangô, que tinha terreiro no bairro do Vasco da Gama no Recife, com características de um cangaceiro, todo vestido de

couro, com chapéu de couro de vaqueiro, chicote nas mãos (rebengue) e com fala forte e aguda. Este último se dizia

Malunguinho mestre. O Malunguinho Reis8 é mais uma face

7 Trunqueiro é o termo usado dentro da Jurema para identifidcar as entidades e divindades

que trabalham na “esquerda”, como esquerdeiro ou esquerdeira, como um Exu,

cumprindo o papel desta divindade africana na umbanda ou kimbanda. A palavra nos

remete ao tronco de jurema (trunco-tronco...), forte, firme, duro e resistente de casca

grossa, assentamento também destes. Ainda nos remete ao termo truqueiro, àquele que

joga o truco, jogo de cartas... Também nos alude à palavra truque – ardil, estratagema.

Modo hábil de fazer uma coisa... 8 O termo Reis, falado no plural, provavelmente não é apenas um erro de português no

falar dos juremeiros e juremeiras ao aclamar Malunguinho. Creio que o plural neste título,

sobre tudo se referindo à Malunguinho diretamente, revela à coletividade representada

em um único título/nome, que agrega a memória dos diversos líderes do Catucá. Como

a palavra Malunguinho é um título dado aos líderes que possivelmente lideraram em

determinado momento o Catucá, os juremeiros chamam estas divindades de Reis, como

forma de saudar todas estas lideranças, com seus diversos nomes próprios, como um só,

ou em um só. Segue lista dos nomes dos possíveis Malunguinho do Catucá, ou os que

atuaram nos quilombos: Manoel Galo, Leandro Carumbá, João Pataca, Antonio Cabundá,

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do dinamismo desta divindade que traz nesta forma/jeito de manifestação aspectos das demais formas de incorporação

espiritual já citadas. O pesquisador, antropólogo e professor Sandro Guimarães de Salles nos indica uma boa definição para sua classificação antropológica como Reis:

No panteão da Jurema, os reis são em menor número do que

os mestres e caboclos; entretanto, não menos importantes. Ao contrário do Reis Salomão, alguns são também considerados mestres ou caboclos, como Malunguinho e

Canindé, respectivamente. Ambos entram para o panteão da Jurema como reis, dando continuidade ao papel de liderança

que exerciam em vida. Canindé foi líder indígena na chamada Guerra dos Bárbaros, sendo considerado pelos luso-brasileiros como Rei dos Janduí. Morreu no aldeamento de Guaraíras, Rio

Grande do Norte, em 1699. [...] Já Malunguinho foi o líder quilombola que atuou no quilombo do Catucá, morto em

1835, segundo Marcus Carvalho. [...] A centralidade dessas entidades no contexto da Jurema de Pernambuco e da Paraíba assinala a repercussão que tiveram esses líderes para a gente

humilde, por eles representada. Malunguinho e Canindé teriam permanecido silenciados em velhos documentos,

esquecidos em acervos e arquivos públicos, não fossem os juremeiros, que os mantiveram vivos e ativos, cultuados como reis. (SALLES, 2010, p. 128-129).

Contudo, Malunguinho agrega todas estas características em

um só, atendendo aos chamados dos juremeiros e juremeiras e recebendo as diversas oferendas naturalmente, sem quase

nenhum impedimento ou diferenciação da característica de cada um. Tanto faz se é mestre, caboclo, trunqueiro ou reis, ele fará seus trabalhos nas diversas “linhas da Jurema” como

necessário e de acordo com seu domínio teológico prático. Afinal, Malunguinho é um só, com diversas faces e detentor

de muitas formas de ser cultuado. Sua saudação na Jurema é “Sobô Nirê9”. Este epíteto que o

invoca e saúda, o dá mais ainda a dimensão de ser uma

João Bamba, Paulo, Francisco de Paiva, mais dois chamados de João, Miguel, Raimundo,

Domingos, José Brabo, José Mobunga, Antonio Moçambique, João Carcará, outro João,

José Angico, Francisco, Caetano, José Quinto, José Molenga, Antonio Campona, Francisco

de Olanda. Ainda temos a presença das mulheres Joana, Luzia, Maria, Antonia e

Genoveva, guerreiras que batalharam junto aos Malunguinho. 9 Não sabemos ao certo o significado concreto desta saudação (Sobô Nirê) à Malunguinho

na Jurema. Portanto, podemos tentar aqui traduzir estas palavras que são de origem fon

e yorùbá para pensarmos numa possibilidade de construção de significado para tal:

“Sobô” – (kwa) (PS) –s. Vodum equivalente a Xangô e Zazi. Nomes: Hevioço, Badé. Do

fon Sogbó (CASTRO, 2005, p. 337). Sogbo – divindade dos raios, um equivalente de

Sàngó. De So, fogo, Agbo, o que fura as nuvens, numa alusão à velocidade do carneiro

(BENISTE, 2002, p. 300). Nirê – possivelmente deve aludir ao título honorífico que Ogun

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divindade única no culto da Jurema. Esta invocação alude e indica uma possível ligação étnica com o povo Fon e Yorùbá

da África subsaariana. Nenhuma outra entidade ou divindade na Jurema tem uma saudação única e específica para si. Malunguinho carrega mais este traço cultural que o afirma

mais ainda como uma divindade com amplo cosmo próprio.

O cosmo da imagem - As características imagéticas de Malunguinho

Redireciono aqui o texto integral do artigo de 2014 apenas com a

inclusão do texto sobre o Malunguinho Mestre que não constava no texto

original, sendo assim um acréscimo na construção deste estudo:

As características imagéticas das estátuas que o representam,

há anos têm tradicionais e difundidas formas, como a do Malunguinho trunqueiro a quem primeiro descreverei aqui.

Sempre colocada no chão do lado esquerdo da porta de entrada do terreiro ou do quarto de Jurema, esta estatueta (e todas as demais), sempre são feitas de gesso em fôrmas

imutáveis ao passar dos anos, e que é totalmente preta e traduz a imagem de um menino sentado como se esperasse

alguém, com um olhar intrigante que passa uma mensagem de perigo e cuidado, com os braços segurando as pernas, talvez esperando alguém no caminho... Coloca-nos a pensar

sobre o porquê de um líder tão forte historicamente como Malunguinho teria uma representação aparentemente tão

frágil e infantil. Esta imagem, provavelmente foi criada pelos escultores à época em que não se havia conhecimentos

históricos científicos sobre o guerreiro Malunguinho do

recebeu após conquistar os sete vilarejos entorno de Ìré: “Ògún Méjèméjè lòde Ìré”,

Ògún está nas sete partes de Ìré. Trata-se de uma referência aos sete vilarejos que

existiam em volta de Ìré e que impediam que esta cidade fosse conquistada. Ògún Onìré,

o Senhor de Ìré (BENISTE, 2002, p. 108). Ainda podemos ver o significado de Ire – s.

Bondade, benção, sorte. E kú orí’re o! – Boa sorte!; Ó ro ire sí mi – Ele desejou sorte

para mim (BESNISTE, 2011, p. 388). Sabemos que Malunguinho tem forte ligação com

Xangô, recebendo em alguns terreiros até as mesmas comidas rituais que este Orixá, e

que é possível que o nome “Sobô” em sua saudação faça esta alusão diretamente,

querendo dizer que ele seria Sobô, ou Xangô, uma divindade do fogo... “Nirê” poderia

ser uma alusão à Ògún, como guerreiro e conquistador, traços também de Malunguinho.

O “Reis das Matas” também traz sorte e benção para quem o agrada, portanto, também

poderia aludir o termo “Nirê” à palavra Ire que significa sorte etc. Como no Catucá

existiam diversos negros e negras escravizados de diversas etnias africanas, além de

índios e índias de diversas outras etnias também, a possibilidade de ter ficado este

registro lingüístico no imaginário de Malunguinho se torna totalmente possível e

aceitável. Porém, esta saudação merece maior aprofundamento científico em busca de

maior esclarecimento.

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Catucá. É uma imagem pequena, talvez para dar ênfase ao sufixo “inho” (diminutivo) que carrega no seu nome, aludindo

a uma criança, um garoto de recados, algo meigo e de carinho... Ou cuidado. A fotografia abaixo do Malunguinho trunqueiro foi registrada em 2010 no Terreiro Tenda da Casa

Verde do sacerdote Sandro de Jucá, no bairro da Vila do SESI, nas proximidades do Ibura/Recife. A foto é de Marcelo Curia

– MDS (OLIVEIRA, 2014).

Vislumbrando uma hipótese para explicar a posição

contemplativa do Malunguinho trunqueiro, podemos observar as suas características e sincretismo com o Exu dos yorùbá

das religiões de matriz africana. Vemos que também esta sua posição de espera pode aludir a um oriki popularmente conhecido cantado nos terreiros para o Orixá que tem o nome

de Èsù L’ónà. O oriki é este: “Èsù tiriri l’ónà”(...) “Tiriri (provavelmente uma corruptela do termo yorùbá tiiri) –

significa hesitação ao realizar uma tarefa; delonga. “Èsù tiriri l’ónà – Èsù hesita em seguir pelo caminho. A idéia aqui é de que Èsù não age às pressas. Ele toma todo o tempo que

precisa”. (CARVALHO,1993, p. 40). Segundo o professor José Beniste em seu Dicionário Yorubá Português na página 762,

tiiri significa estar em dificuldade, estar inseguro... E no Modern Pratical Dictionary Yoruba-English; English-Yoruba de Kayode J. Fakinlede afirma na página 655 que tiiri significa:

“to be circumspect; to be on one’s guard” – ser cauteloso, estar em guarda. Isso aqui posto ainda é reforçado pela forma

(imagética) que o Exu Tiriri, grande guardião do Terreiro Xambá, que tem mais de 70 anos de culto no Portão do Gelo, no bairro de São Benedito em Olinda/PE apresenta. À olhos

nus ele seria uma réplica em metal da imagem de Malunguinho na Jurema. Sentado, contemplativo como se

esperasse alguém no caminho, descansando, aguardando... Com as mãos segurando as pernas como a imagem tradicional

do trunqueiro. Estar de guarda é uma função mítica de Malunguinho, portanto, talvez sua imagem enquanto trunqueiro seja de fato uma reelaboração imagética do Exu

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dos africanos por motivos e características já apresentadas. A imagem abaixo é do Exu Tiriri do Terreiro Xambá (para

confirmarmos a semelhança entre os dois, Malunguinho e Exu Tiriri). Foto tirada em 2010 por Marcelo Curia – MDS (OLIVEIRA, 2014).

O Malunguinho Caboclo é um índio, com “cor de índio”, vestido

com uma calça vermelha e um cinto preto com uma bainha de faca, está sem camisa, mostra adornos de penas e colar

com três dentes de animais, carrega uma cabaça a tira colo segurada por algum cordão na cor laranja. Tem uma faca guardada em sua cintura de cabo preto. Possui uma coroa

discreta dourada que segura com a mão direita, apóia-se em um tronco de Jurema, que se localiza em suas costas, tem aos

seus pés desenhada uma estrela de sete pontas, o signo Salomão (um de seus símbolos principais, representando o

domínio das sete Cidades da Jurema), em sua face, mantém um semblante de traição por esconder uma faca na mão esquerda por de trás das costas podendo atacar a qualquer

momento. É uma imagem muito bonita e representa os índios e os não índios (caboclos em geral) na Jurema. Esta imagem

sempre está nas mesas ou nos altares da Jurema, nuca no chão como a imagem do Malunguinho trunqueiro. A fotografia abaixo foi tirada em setembro de 2010 em seu altar no V

Kipupa Malunguinho. Observa-se uma de suas oferendas, as farofas brancas e amarela com pimenta. Foto de Laila

Santana. (OLIVEIRA, 2014).

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O Malunguinho Mestre apresenta-se como um homem totalmente

preto segurando uma garrafa de Pitu na mão esquerda, apoiando-a sob a

perna e na mão direita apóia em seu peito uma taça prateada. Usa uma

calça vermelha sangue segurada na cintura por uma corda ou fita prateada.

Essa imagem é relativamente recente no cenário dos mercados, talvez seja

fruto da necessidade do povo da Jurema de ver refletida na imagem de

Malunguinho o herói do Catucá, que com certeza não era uma criança como

se apresenta na tradicional imagem do Malunguinho Exú/Trunqueiro.

Contudo, essa imagem é nitidamente de um homem jovem, com um

aspecto esperançoso e guerreiro, sem exageros na musculatura e também

sem portar quaisquer arma. Foto de Alexandre L’Omi L’Odò.

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O Malunguinho “Reis”, ou Mestre (pois não existe uma representação imagética dele como homem do sertão

comum), parece um príncipe medieval moreno. Segura em sua mão direita um cálice dourado (provavelmente representando o Santo Graal), e na esquerda uma garrafa

prateada. Sua roupa tem as cores vermelha e branca, com calça vermelha, blusão de mangas cumpridas longas e uma

jaqueta vermelha. Possui um colar com um crucifixo dourado no peito e uma espada longa na bainha. Calça botas pretas e está em posição ereta, pisando em uma estrada de

paralelepípedos, simbolizando as estrada e caminhos que ele protege. Sua pose sugere ação e tranqüilidade ao mesmo

tempo, possui traços não muito negros nem índio, aparenta-se como um branco europeu de cor morena. Esta imagem não é muito comum aos terreiros. Segundo vendedores do

Mercado de São José, foi no Ceará que esta imagem foi concebida e enviada para ser vendida em Pernambuco nos

últimos 10 anos. A fotografia abaixo foi tirada em setembro de 2010 em seu altar no V Kipupa Malunguinho. Observa-se oferendas de frutas diversas aos seus pés. Foto de Laila

Santana (OLIVEIRA, 2014).

Conclusão

Este é um artigo em construção e não há conclusão possível neste

momento da pesquisa. Contudo podemos perceber que o tema abre uma

grande possibilidade de imersão no tema e nos possibilita ampliá-lo no

futuro. Os acréscimos feitos no texto do artigo de 2014 já são fruto do

avanço das pesquisas que continuam se ampliando para artigos futuros.

Afirmo que Malunguinho é sim um pressuposto juremológico de tradição

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oral devido nele estar presente parte fundamental da cosmovisão da Jurema

Sagrada de Pernambuco sobre tudo, como pudemos observar em todo

texto.

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