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A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ 1 AGRADECIMENTOS Agradecimentos sinceros à orientadora desta dissertação, Professora Doutora Maria da Conceição Carrilho, por aceitar e incentivar as minhas propostas, pela prontidão e constante motivação dispensadas ao longo destes tempos. Foi sempre com atenção, disponibilidade, com a sua enorme capacidade de intervenção e boa disposição que acompanhou a concretização do trabalho, partilhando os seus inúmeros conhecimentos, facultando bibliografia, apoiando-me, nomeadamente nos momentos de maior desalento. Aos meus pais pela solidariedade, compreensão e apoio em todas as ocasiões. Aos meus amigos, pelas palavras de incentivo e pela paciência. Saliento, particularmente, o apoio incondicional das minhas amigas Teresa Alexandra e Ana Soares (que colaborou gentilmente, fazendo o desenho da segunda capa que acompanha este trabalho). Às minhas colegas da terceira edição do Mestrado em Língua e Literatura Francesas, que me aconselharam a nunca desistir. Deixo, também, uma evocação aos meus gatos, animais que aprecio particularmente, que foram os meus companheiros nos momentos mais solitários da escrita da minha dissertação, ou enrolados aos meus pés ou deitados numa cadeira, a meu lado, absortos no seu sono e nos seus sonhos.

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A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 1

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos sinceros à orientadora desta dissertação, Professora Doutora

Maria da Conceição Carrilho, por aceitar e incentivar as minhas propostas, pela

prontidão e constante motivação dispensadas ao longo destes tempos. Foi sempre

com atenção, disponibilidade, com a sua enorme capacidade de intervenção e boa

disposição que acompanhou a concretização do trabalho, partilhando os seus

inúmeros conhecimentos, facultando bibliografia, apoiando-me, nomeadamente nos

momentos de maior desalento.

Aos meus pais pela solidariedade, compreensão e apoio em todas as

ocasiões.

Aos meus amigos, pelas palavras de incentivo e pela paciência. Saliento,

particularmente, o apoio incondicional das minhas amigas Teresa Alexandra e Ana

Soares (que colaborou gentilmente, fazendo o desenho da segunda capa que

acompanha este trabalho).

Às minhas colegas da terceira edição do Mestrado em Língua e Literatura

Francesas, que me aconselharam a nunca desistir.

Deixo, também, uma evocação aos meus gatos, animais que aprecio

particularmente, que foram os meus companheiros nos momentos mais solitários da

escrita da minha dissertação, ou enrolados aos meus pés ou deitados numa cadeira,

a meu lado, absortos no seu sono e nos seus sonhos.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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ÍNDICE

Índice ......................................................................................................................

Introdução ............................................................................................................

Capítulo I

Daniel Pennac: um breve retrato.

1- O professor.....................................................................................................

2- O romancista moderno....................................................................................

Capítulo II 1- A Fábula – uma definição do género..............................................................

1.1 – O papel de La Fontaine .........................................................................

1.2 –“Le Loup et l’Agneau”- de Esopo e de La Fontaine – uma análise......

2- A Fábula em Daniel Pennac - L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche: romance-

fábula?..................................................................................................................

2.1- A presença da oralidade .........................................................................

2.2- Espaço e tempo

2.2.1- O presente e o passado – a aventura picaresca dos heróis.............

2.2.2- Espaço aberto=liberdade � Espaço fechado=clausura.....................

2.3- A dimensão utópica de L’Oeil du loup e Cabot-Caboche.......................

2.3.1- O Sonho............................................................................................

2.3.2- O riso................................................................................................

2.3.3- A comunicação ideal pelo silêncio e o olhar......................................

2.3.4- A conquista amorosa.........................................................................

2.4- Sátira e moralidade – a humanização dos animais e a animalização dos

homens.

2.4.1- A sátira..............................................................................................

2.4.2- A moralidade....................................................................................

Capítulo III

1- A fábula moderna e a paródia

1.1- A fábula no Século XX .........................................................................

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1.1.1- « Le Loup attendri», de Jean Anouilh – uma fábula moderna/uma

paródia..........................................................................................................

Conclusão...........................................................................................................

Bibliografia..........................................................................................................

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INTRODUÇÃO

“L’homme construit des maisons parce qu’il est vivant,

mais il écrit de livres parce qu’il se sait mortel. Il habite en bande parce qu’il est grégaire,

mais il lit parce qu’il se sait seul »

(Daniel Pennac, Comme un Roman, p. 175)

Daniel Pennac, o autor que nos propomos estudar, situa-se entre os

escritores contemporâneos mais lidos em França, mas também no estrangeiro, onde

as suas obras atingiram um êxito singular.

Críticos e leitores são unânimes em considerar que, embora herdeiro de uma

tradição clássica, Pennac tornou-se um autor moderno por excelência, pois aborda

temas actuais, com profundidade e ao mesmo tempo com um humor muito próprio,

chegando a ser desconcertante. O escritor recorre a uma linguagem marcadamente

oral e a técnicas narrativas que o levaram a grangear um sucesso estrondoso, com

maior incidência nos leitores mais jovens.

Apesar de ser um escritor audacioso, Daniel Pennac é, igualmente, marcado

pelas linhas da literatura clássica, denotando-se heranças do romance do século

XIX. Veja-se, a título de exemplo, a saga familiar - Saga Malaussène - que retoma

temas da tradição, presentes em Balzac e Zola; veja-se, ainda, a série de traços do

romance realista, com detalhes da vida quotidiana, ao jeito de Flaubert e, também,

características do romance popular, no qual os heróis vivem fatalidades passageiras.

O escritor abarca, na sua produção, vários géneros, o que o torna fascinante e

possibilita abordagens e estudos diversificados, acompanhando, assim, o debate

sobre a questionação dos géneros, a que se tem assistido ao longo do século XX,

debate esse iniciado já no século XIX.

O prefácio de Pierre et Jean (1888), de Guy de Maupassant1, é disto um claro

exemplo, dado que este escritor se interroga sobre o que une romances tão

diferentes como D. Quixote ou Le Rouge et le Noir; Le Conte de Monte Cristo ou

1 « (…) Si Don Quichote est un roman, Le Rouge et le Noir en est-il autre? Si Monte Cristo est un roman, L’Assomoir en est-il autre ? Peut-on établir une comparaison entre les Affinités électives de Goethe, Les Trois Mousquetaires de Dumas, Madame Bovary de Flaubert, M. de Camors de M.O. Feuillet et Germinal de Zola ? Laquelle de ces œuvres est un roman ? Quelles sont ces fameuses règles? D’où viennent-elles ? Qui les a établies ? En vertu de quel principe, de quelle autorité et de quels raisonnements ? » Excerto do Préface de Pierre et Jean (Ollendorf, 1888)

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L’Assomoir. A dificuldade de encontrar respostas claras às questões ”O que é um

romance?” ou ainda “Quais são as suas regras?” faz deste ensaio um documento

incontornável. No entanto, apesar desta dificuldade, Maupassant propõe que o

romance seja um domínio privilegiado de observação e transformação do real, isto

é, o “Espelho da Sociedade”: “Le réaliste, s’il est un artiste, cherchera, non pas à nous

montrer la photographie banale de la vie, mais à nous en donner la vision la plus complète,

plus saisissante, plus probante de la réalité même.”2

Com V. Hugo e Emile Zola, o romance passa a ser visto como uma descrição

enciclopédica do real. Por isso, dá-se importância ao encadeamento lógico e

cronológico dos acontecimentos. Os episódios têm sequência, o presente é

explicado a partir do passado, preparando o futuro. Este aspecto, abandonado por

alguns autores do século XX, nomeadamente os que abraçaram o “nouveau roman”,

manter-se-á com Pennac, como veremos ao longo do trabalho.

De Balzac a Zola, de Zola a Proust, de Proust a Sartre, de Sartre a Butor, o

romance vai-se transformando e é constantemente questionado. Muda de temas, de

procedimentos e de propósitos. As suas formas sucessivas relacionam-se

estreitamente com as transformações da sociedade mas, também, com as outras

formas de arte: a pintura, a escultura, o cinema, a música, entre outros.

No século XX, e embora se esteja sempre a profetizar o seu fim, o romance é

despertado por um novo espírito poético e absorve muitos outros géneros, que se

entrelaçam de tal forma que, por vezes, é difícil estabelecer uma fronteira entre eles.

O romance converte-se no género desejoso de abarcar todas as experiências

humanas e desenvolve-se em várias direcções: ora vive uma extrema atenção ao

mundo exterior, ora faz uma análise ao pormenor do íntimo do ser humano (explora

ideias, sentimentos...).

Para a evolução e questionação do romance do século XX contribuíram, de

forma particular, James Joyce (1882-1941) e Franz Kafka (1883-1924), não só pelas

temáticas abordadas mas, sobretudo, pela forma como se serviram dos seus

romances para mostrar aos leitores e ao mundo aquilo que os “atormentava”.

2 O prefácio referido romance foi retirado do site: www.ac-orleans-tours.fr/lettres/coin_prof/realisme/preface_de_pierre_et_jean.htm, Aqui Maupassant enuncia algumas das balizas por que se pauta a sua produção e, ainda que no quadro do realismo, deixa antever as suas propostas.

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Em Ulisses, à grandeza totalizadora e à concepção épica da existência

presentes em Homero, Joyce contrapõe, pela paródia, a banalidade e a monotonia

do quotidiano. Bloom, o herói (Ulisses), é um homem ordinário, traído por uma

Penélope infiel (a sua esposa Molly). Este romance aponta a falta de sentido para a

vulgaridade do nosso tempo. Segundo os críticos, James Joyce serve-se de uma

multiplicidade de estilos e procedimentos retóricos (usa várias línguas, mistura

linguagem culta e gíria, recupera arcaísmos, cria neologismos, inventa trocadilhos) e

inova nas técnicas de escrita (narração convencional, paródias de linguagem e

sobretudo a inserção do monólogo interior), trazendo para o género romance novas

formas.

Franz Kafka, apontado por muitos como um escritor angustiado, cuja vida foi

orientada e iluminada pela escrita, deixou registada, na sua obra, uma incomparável

e inquietante cristalização dos sofrimentos do homem contemporâneo. A

Metamorfose (1913), O Processo (1914) e O Castelo (1921) podem ser concebidas

“fábulas” com um significado simbólico, onde sobressai igualmente o fantástico e

onde se tratam temas como o sentimento de angústia do indivíduo, que se encontra

perdido num mundo sem explicação, desumano, regido por não se sabe quem, um

mundo que submete, condena ou destrói o homem. Kafka inaugura uma forma

moderna e mesmo radical de escrita: a literatura pura, denotando-se a justaposição

de registos (ironia e paródia, piedade e horror, lucidez e confusão progressiva). Em

A Metamorfose mostra-se a dualidade homem-animal vivida pelo protagonista, que

se vê transformado em insecto, mas que continua com a lucidez e a consciência

humanas.

Nas mudanças operadas, sobretudo ao nível da prosa3, os escritores

preferiram revolucionar as formas do romance de modo individualizado. Assim, na

literatura francesa, André Gide (1869-1951) renova o romance psicológico, pelas

análises profundas, fazendo coincidir a sua experiência pessoal com as situações

que cria para as personagens das suas ficções. Gide deixou às gerações futuras

uma obra moderna e única, complexa e intencionalmente inesgotável. De Paludes a

3 Verificaram-se igualmente transformações no género lírico, que esteve muito mais ligado a movimentos de vanguarda. A título de exemplo, refiramos o “dadaísmo”, movimento que, ainda que efémero (1916 a 1921), se afirmou como um protesto contra a civilização que provocara os conflitos, ou seja a guerra. Este movimento rejeita as formas culturais padronizadas, propõe a destruição da linguagem literária, porque se descrê nas possibilidades de comunicação da literatura. O “dadaísmo” é uma espécie de “grito romântico” contra a sordidez do mundo.

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Ainsi soit-il, a sua obra é marcada pela desordem, irónica e salubre. Focando

apenas alguns casos: em Paludes (1895), e tal como Pennac fará em muitos dos

seus romances, Gide revela o seu interesse pelo processo de fabricação da obra;

Caves du Vatican (1914) é uma obra paródica e lúdica, onde se cruzam romance e

teatro, encontrando-se traços de farsa, de moralidade medieval e de comédia

barroca. Ao mesmo tempo, Gide subverte o romance balzaquiano, o romance-

folhetim e o romance negro, misturando realismo e fantasia, lógica e “nonsense”.

Les Faux-Monnayeurs (1926) inclui um romance dentro do romance, denotando-se

características do romance-folhetim, do policial e do romance de ideias, em que

existem tantos narradores quantas personagens, sendo que Gide recorre à

focalização desmultiplicada e à apresentação indirecta dos factos.

Estamos perante um dos escritores de vanguarda da literatura francesa, tal

como Céline, Malraux, Camus e Sartre que, para além de se questionarem sobre o

romance e os outros géneros, também se tornam “militantes”/homens de acção e,

através do romance, demonstram a sua inquietação, angústia, pessimismo social e

metafísico, desejando a transformação das estruturas da sociedade em que o

homem é obrigado a viver, onde predomina o absurdo que se tenta combater. Jean-

Paul Sartre, escritor e filósofo, aborda nos seus romances conceitos como a

consciência, a existência, a angústia e a liberdade; as obras de Albert Camus –

jornalista, ensaísta, dramaturgo, novelista e romancista – distribuem-se por três

principais temas, inerentes ao lado negativista da vida: o absurdo4, a revolta5 e a

solidão6.

Os romances mencionados, que são apenas alguns exemplos, reflectem

orientações estéticas determinadas, marcantes em todos os escritores dos finais do

século XX. Daniel Pennac não é uma excepção e, entre toda uma série de

influências na literatura Francesa, Céline é o nome que mais se destaca. A

linguagem oral, as temáticas realistas, o grotesco, a cidade de Paris, eis alguns dos

temas herdados de Louis F. Céline. Todavia, para lá de todas estas influências, o

policial é um dos que mais influenciou este escritor. No romance policial, Daniel

Pennac encontra os arquétipos do romance popular que o orientarão, de uma forma

decisiva, para a reescrita da fábula. 4 L’étranger, Caligula, Le Mal Entendu. 5 La Peste, L’Etat de Siège, L’Homme Révolté. 6 La Chute, L’Exil et le Royaume, Le Premier Homme.

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Com efeito, é da confluência de vários géneros que nasce a obra de Pennac:

o ensaio, a literatura infanto-juvenil, a banda desenhada, o teatro, o policial, o

romance, todos estes géneros têm pontuado sua carreira literária. Desta diversidade

e inter-relação de géneros, o policial é o eixo central de toda a sua obra romanesca,

que alimentou a saga Malaussène.

Face a esta diversidade, como classificar os romances de Pennac?

Entre o policial e o popular, o fantástico, a fábula, a sátira, o maravilhoso,

podemos atribuir a Daniel Pennac um “hibridismo literário”, que é talvez a marca

mais moderna e específica do seu estilo.

No entanto, de forma a não nos deixarmos cair nesta tentação do “hibridismo

literário”, vamos, neste nosso trabalho, tentar clarificar alguns dos eixos que nos

parecem mais interessantes na obra de Pennac. Partiremos de um estudo de Cabot-

Caboche (1982) e L’Oeil du Loup (1984), livros classificados como literatura infanto-

juvenil, de forma a estudarmos uma linha concreta – a fábula.

Em Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup - mas também nos contos da série Kamo

e mesmo nos seus outros romances, aos quais nos referiremos sempre que

julgarmos oportuno - pareceu-nos encontrar traços bastante marcantes do género

fábula. A nossa escolha recai precisamente nos dois romances para crianças e

jovens, anteriormente referidos, porquanto consideramos haver uma aproximação

muito grande da escrita pennaquiana a este género.

A leitura e releitura destas obras de Pennac colocaram-nos perante algumas

interrogações: Fábula, no século XX? Que tipo de fábula? De onde decorrerá a

proximidade da escrita de Pennac ao género fábula? Esta aproximação decorrerá do

facto de se destinarem a um público infantil? Da forte presença da oralidade, uma

das características da fábula? Da presença de um universo maniqueísta, de

carrascos e vítimas, fortes e fracos, perseguidores e perseguidos, devoradores e

devorados? Do eixo satírico que, como acontece também nas fábulas, é muitas

vezes indissociável de uma dimensão utópica? Ou esta aproximação terá sido

também desencadeada pela forte dimensão moral e pedagógica, sempre presente

no universo fabulístico?

O presente trabalho pretende responder a estas questões. Num primeiro

momento, daremos uma visão geral da vida e obra de Daniel Pennac. De seguida,

definiremos o género fábula e evidenciaremos as suas características mais

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importantes. Verificaremos de que modo algumas dessas características estão

presentes em Pennac, que nos parece retomá-las e reescrevê-las de forma curiosa

e original, divertida e imaginativa, integrando-lhe novos elementos, inserindo-a no

romance. Por fim, relacionaremos as características da fábula tradicional com as da

fábula moderna, demonstrando a sua evolução, nomeadamente no século XX, que

passa inevitavelmente pela paródia.

É na forma como retrabalha e reescreve o género fábula que a obra de

Pennac se demarca, pois este género parece contaminar, como veremos, toda a

obra deste escritor, não se limitando, exclusivamente, aos livros destinados a um

público infantil.

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Capítulo I

Daniel Pennac: um breve retrato.

1- O professor.

«Romancier, professeur de français et lecteur passionné, auteur à succès d’une saga

policière aux personnages aussi fantasques qu’attachants – la désormais famille Malaussène

– Daniel Pennac est l’un des auteurs les plus traduits et les plus lus dans le monde. »7

Nascido em Marrocos em 1944, Pennac passou a infância entre a África

(Etiópia e Djibuti), o sudeste da Ásia (Indochina) e o sul de França, o que lhe permitiu

viver experiências várias e adquirir um conhecimento mais alargado do mundo e que,

por conseguinte, figuram no seu universo romanesco.

Estudou durante alguns anos em colégios internos. A leitura funcionava,

então, como passatempo e, ao mesmo tempo, como forma de evasão para os

momentos mais solitários. Pennac afirma que as leituras da sua infância foram

marcantes e que os romances lidos na época: “...m’ont permis de faire une vie en marge

de ma vie de pensionnaire.” A leitura tornou-se um hábito pois, frequentemente e

segundo o próprio Pennac, lia mesmo depois de se terem apagado as luzes. Quando

regressava a casa, o jovem podia ler, junto do pai, num ambiente de tranquilidade e

silêncio (“J’ai toujours aimé le silence”, refere várias vezes8), sentado num cadeirão,

tendo por fundo o fumo do cachimbo, o que convertia este acto numa espécie de

ritual, que aliás fará frequentemente aparição nos seus romances, ou com

personagens a ler livros ou a contar histórias a outras personagens. Deste modo, a

leitura terá uma função primordial no universo romanesco de Pennac.

Através das suas leituras, Pennac descobriu autores que, mais tarde,

influenciaram de forma bastante visível a sua escrita, como os russos Tolstoï,

Tchekhov, Dostoïevski, Bulgakov e ainda Vassili Grossman. Por isso afirma :

“L’écriture a été très tôt la continuité de la lecture. Je suis un écrivain qui s’est mis à l’écriture

pour continuer la lecture, un peu comme si j’écrivais les romans que j’ai envie de lire.”9

7« Le pouvoir des livres», entretien avec Daniel Pennac, Label France, avril 2000, nº 39. 8 Refira-se ainda que o vocábulo silêncio é frequentemente empregue por Pennac na sua escrita. Como exemplo, porque é bastante evidente no capítulo 18 de Monsieur Malaussène, das páginas 134 a 137, o substantivo “silence” aparece referido 5 vezes, o adjectivo “silencieuse” 1 vez e o advérbio “silencieusement” 1 vez. 9 http://www.delirium.lejournal.free.fr/interview_daniel_pennac.htm

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Posteriormente, voltou-se para a literatura do continente americano, tomando

contacto com escritores como o norte americano Henry Miller, o canadiano Réjean

Ducharne e o sul americano Horácio Quiroga10. Não esconde a sua predilecção pela

escritora sueca Selma Lagerlöf, pelos italianos Italo Calvino e Emílio Grada11, bem

como o seu fascínio pelos autores que trabalharam de forma extraordinária a língua

francesa – Proust e Céline. No que concerne aos dois últimos, Pennac refere «...

autant Proust me donne envie d’écrire, autant Céline me coupe la plume au ras de l’encrier,

son écriture m’enthousiasme mais me pétrifie.»12 O seu autor absoluto é W.

Shakespeare, cujas peças afirma “se sentir capable de les relire cinquante fois.” Quanto

à poesia destaca Louise Labé, século XVI, asseverando que “elle a écrit les plus beaux

sonnets en langue française.”13 Se fosse obrigado a ler um único livro, Pennac optaria

por Le Dictionnaire Historique de la Langue Française, de Alan Rey14 onde, como

refere : «On y voit l’histoire des mots, de leur émergence jusqu’à aujourd’hui (…) présentée

dans le désordre (qui fait beaucoup rêver) qu’est l’ordre alphabétique. »

Para Daniel Pennac - professor - é importante que os jovens sejam motivados

a ler. Por isso, os seus livros são atravessados por nomes de escritores e das suas

obras, quer clássicos, quer contemporâneos. Montaigne, Mallarmé, Shakespeare,

Flaubert, Kafka, I. Svevo, G. G Marquez, Stevenson, Dostoïevski, Saki, Gary, Fante,

Dahal, J. Amado, Klaus Mann, Calvino são citados em Comme un Roman,

considerado “un cri du coeur pour la défense de la lecture”15 ou ainda “un hymne aux

plaisirs de la lecture”, segundo Jean-Claude Lebrun16. Em l’Evasion de Kamo

encontramos a menção a L’Amour de la vie, de Jack London e Souvenirs de la

maison des morts, de Dostoïevski. Em Messieurs les Enfants, mais uma vez, as

referências a autores clássicos e contemporâneos são usuais, destacando-se

Charles Dickens, Dostoïevski, Rousseau, Nabokov, Italo Svevo, Vargas Llosa e

G�nter Grass. Mas, não é só de nomes de escritores que a obra de Pennac está

recheada. Há ainda referências a artistas plásticos e, em Monsieur Malaussène,

10 Este autor desenvolve uma literatura muito especial, onde a vida animal se mostra com toda a sua força. 11 Várias vezes referido em Au Bonheur des Ogres. 12 Lire, février 1999 13 Por isso, em Monsieur Malaussène, encontramos uma das personagens a recitar os versos da poetisa. 14 Sabe-se que este é um dos instrumentos de trabalho de Pennac e que nunca abandona a sua mesa de trabalho. 15 citação retirada da contracapa de L’œil du loup, Ed. Pocket Junior, 1994 16 in www.humanité.presse.fr/journal (25/06/2003)

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surgem inúmeras alusões a nomes de realizadores de cinema (Bergman, Cocteau,

Fellini...) bem como aos seus filmes, evidenciando, não só o interesse que o autor

manifesta pelas outras formas de arte, como também o propósito pedagógico que

predomina na sua obra.

Antes de se ter tornado romancista, Daniel Pennac fez uma licenciatura em

letras, tornou-se professor, profissão que exerceu durante vários anos, num liceu de

Soissons, depois em Paris, até 1995. A profissão de professor está presente em

muitos dos seus livros, como se fosse um prolongamento da sua própria vida. São

exemplos Messieurs les Enfants e os livros da série juvenil Kamo.

Os quatro contos que compõem a série Kamo: Kamo et moi; L’Evasion de

Kamo; Kamo, l’idée du Siècle; Kamo et l’Agence Babel são livros cujas histórias

têm por protagonista o jovem Kamo e seus companheiros, onde se relatam as

diversas aventuras por eles protagonizadas, os problemas da adolescência, na

escola e na vida. Podemos referir que existe uma certa semelhança com as histórias

relatadas em Le Petit Nicolas, embora nestas os heróis sejam crianças. Em alguns

dos episódios da série Kamo relatam-se aventuras ligadas à escola, aos trabalhos

de casa, à escrita, às relações com os professores, nomeadamente o exigente e

temerário Crastaing. Este professor aparecerá de novo em Messieurs les Enfants,

um romance mais complexo, onde o universo da escola continua presente e o tema

da composição proposto é exactamente o mesmo que em Kamo et Moi17, desta vez

aos alunos/personagens Joseph Pritsky, Nourdine e Igor. Pennac explica, numa das

suas entrevistas, que a proposta de trabalho que o professor Crastaing apresenta

aos estudantes é exactamente a mesma que o próprio autor havia proposto anos

antes aos seus alunos, em tom de desafio. Estes deveriam fazer um texto em três

páginas e ele em trinta e, deste modo, nasceu Kamo et Moi.

Crastaing é o eterno mal-amado e incompreendido professor que solicita aos

jovens as mais insólitas composições, causando-lhes náuseas e horrores. Sob o

pretexto de desenvolverem a imaginação, estimulando-os para a escrita, o professor

17 «Vous vous réveillez un matin, et vous constatez que vous vous êtes transformé en adulte. Affolé, vous vous précipitez dans la chambre de vos parents : ils sont redevenus des enfants. Racontez la suite.» «Je dis bien : racontez la suite !» avait précisé Crastaing. Puis il avait lâché une de ces phrases dont il avait le secret : «Et n’oubliez pas, l’imagination, ce n’est pas le n’importe quoi !» (pág. 24, Edição da Gallimard Jeunesse)

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usa, com frequência, a expressão: “L’imagination, ce n’est pas le mensonge!”

Todavia, esta frase obceca os jovens e incomoda-os profundamente sempre que a

escutam ou quando se cruzam com este professor, ser estranho e misterioso.

Talvez este fosse, de igual modo, o objectivo de Pennac em relação aos seus

alunos, aos potenciais leitores, mas também um desafio colocado a si próprio, já que

valoriza bastante o imaginário, quer na vida, quer na produção artística. A propósito

do imaginário, o escritor refere na passagem seguinte:

“La place de l’imaginaire dans la vie humaine est vitale. Selon moi, le domaine de la

création artistique quelle qu’elle soit joue, pour la société entière, le rôle que le rêve

joue chez nous, individuellement. Tout se passe comme si la création artistique était

une sorte de production de l’inconscient collectif, projetée sur les écrans, le papier,

les toiles, les formes, la scène. (…).18

Em Messieurs les Enfants, em virtude do tema da composição19, difícil de

desenvolver, as crianças vêem-se, na manhã seguinte, transformadas em adultos;

adquirindo as responsabilidades inerentes ao ser adulto, tendo que se vestir e agir

como adultos. Por força das circunstâncias, vivem experiências mirabolantes que

conduzem uns à prisão, outros às prostitutas. Por seu turno, os adultos convertem-

se em crianças e procedem como tal. Até o professor se torna criança outra vez.

Neste romance, predomina um universo onírico, povoado de personagens

que parecem decalcadas de um conto de fadas: um pai que já morreu a falar em

cima de uma sepultura, uma prostituta que dá lições de psicologia, um polícia -

ladrão e um professor “inoxidável” que propõe aos alunos uma composição quase

impossível... Trata-se de uma fábula moderna, cuja moral se encontra diluída ao

longo do texto e consiste no sonho de uma humanidade generosa e poética. Vive-se

um real, maravilhoso e improvável, que recusa preceitos morais, sem contudo deixar

de afirmar:

“La vérité n’est pas dans les journaux! La vérité n’est pas dans votre poste de

télévision ! La vérité n’est même pas dans ce qui se dit autour de vous ! (…) La vérité

ne vient de nulle part, la vérité ne sera jamais distribuée dans votre boîte aux

lettres… (…) La vérité n’est pas un dû ! La vérité est une conquête, toujours ! » (pp.

18 Idem 19 O mesmo proposto em Kamo et Moi, como se referiu.

15-16)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 14

O facto de ser professor conduziu Pennac a um contacto diferente com a

realidade, com a escola e sobretudo com os seus jovens alunos, reconhecendo

neles necessidades específicas, nomeadamente no que respeita à leitura e à escrita.

O professor/escritor compreendeu a importância e a urgência de reconciliar as

crianças e os jovens com a leitura, assumindo um importante papel de pedagogo.

Para isso, lia romances em voz alta aos seus alunos, falava-lhes da literatura e

“contava-lhes histórias”.

Comme un Roman decorreu da necessidade que sentiu em tornar o acto de

ler para os jovens estudantes numa acção voluntária e não forçada, tentando aclarar

o mistério que escapa muitas vezes quer aos pais, quer aos professores, sobre a

falta de estímulo dos jovens para a leitura. Não se trata de uma quimera mas da

concretização de uma espécie de pedagogia própria que Pennac colocou em prática

enquanto professor. Por isso, faz um apelo para que não se transforme o livro em

instrumento de tortura pedagógica, formulando os conhecidos “dez mandamentos do

leitor” que são, ao mesmo tempo, a sua própria interpretação do acto de ler. Neste

ensaio, o autor penetra no estranho fenómeno da leitura, fala-nos das experiências

de ler, em voz alta, aos seus alunos, método que os leva, posteriormente, a

conhecer os livros e a ler voluntariamente. As páginas 120 a 135 de Comme un

Roman apresentam uma espécie de relato dessa experiência, levada a cabo com os

alunos. Para Pennac «la lecture est une école de liberté ». O seu escritório está repleto

de livros que não são obrigatoriamente os eleitos: “Une bonne bibliothèque n’a que de

mauvais livres, puisque les bons ont été prêtés aux amis ou à des élèves qui ne les ont pas

rendus.”20

Pennac vive em Paris há mais de trinta anos. Morou durante muito tempo no

carismático bairro de Belleville, numas águas furtadas com vista sobre a cidade.

Recentemente, mudou-se para perto do Père-Lachaise, não muito longe do seu

querido bairro. Refira-se que este espaço é tão marcante para o escritor, que acaba

por ser também aquele em que passa a acção de vários romances, nomeadamente

os da saga Malaussène.

Actualmente, Daniel Pennac dedica-se inteiramente à escrita, que considera

uma maneira de estar na vida: ”Si je n’écrivais pas, je serais complètement cinglé,

inviable. L’écriture a été un moyen de finir avec les éléments encombrants qui

20 Lire, février, 1999

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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m’exaspéraient, dont la morosité et la mélancolie. » Todavia, o escritor ainda mantém

contacto com as escolas e com os alunos, onde se desloca para falar dos seus livros

e contar as suas histórias. Assim, Pennac assume-se como um contador de

histórias, que se preocupa com o seu público, pretendendo sobretudo agradar-lhe:

«Quand on veut être romancier, il faut raconter des histoires. (…) Qu’ensuite ces

histoires génèrent du sens ou pas, c’est l’affaire du lecteur et éventuellement celle de

l’auteur de distiller le sens qu’il veut. Mais ce qui me plaît, c’est de faire plaisir en

racontant des histoires. »21

Em suma, o autor reconhece-se não como um intelectual mas como um

romancista e, para si, um romance não se resume à ideia que o fez nascer. É um

ensaio dissimulado em romance. Em suma, Daniel Pennac define-se “comme un

raconteur d’histoires métaphorant”.22 E acrescenta « ...dans un beau roman, même quand

c’est faux c’est vrai. »

2- O escritor moderno.

« La vie n’est pas un roman, je sais... je sais.

Mais il n’y a que le romanesque pour rendre la vie vivable. » Daniel Pennac, Post-scriptum de

La Petite Marchande de Prose (p. 405)

A obra de Pennac, como referimos na introdução, é extensa e variada: passa

pelo ensaio23, pelo teatro24, pela Banda Desenhada25, pelo conto e o romance, para

adultos e também para jovens e crianças. De início, escreveu dois romances que

não conseguiram alcançar o êxito esperado. Talvez por isso afirme : «J’ai longtemps

écrit sans aucun succès. J’ai commencé ma saga Malaussène en 1984 et j’écris depuis

1973. Succès ou pas, je suis heureux quand j’écris.» 26 No entanto, não desistiu do seu

propósito e a escrita tonou-se a sua principal ocupação.

21 Les Inrockuptibles, janvier-février, 1992, nº 33, (pp. 128-139) 22 Le pouvoir des livres, entretien avec Daniel Pennac, Label France, avril 2000, nº 39 23 Le service militaire au service de qui? 24 Monsieur Malaussène au Théâtre 25 La Débauche, ilustrada por Tardi, Maio de 2000 26 in Lire, mai 1995

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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Depois de algumas hesitações, o escritor inclinou-se principalmente para o

romance. Pennac é, acima de tudo, um romancista, que introduz nas suas ficções

aspectos de outros géneros, de que salientamos a fábula (na sua relação com o

fantástico) bastante visíveis em Cabot-Caboche, L’Oeil du Loup e em toda a saga

Malaussène.

Reconhecemos que o facto de ter começado a escrever para crianças e jovens

tem a ver com a sua ligação aos mais novos, enquanto professor, e ainda porque

sempre afirmou gostar de contar histórias. Segundo o próprio Pennac, as crianças

são leitores bastante exigentes. Se a história lhes interessa, lêem até ao fim; se não

lhes interessa, fecham o livro e optam por outras actividades. Desta maneira, decidiu

escrever para os mais pequenos, no ensejo de :

«... enfin de rompre avec le diktat du sens, très encré chez les gens de ma

génération, d’après 1968. J’ai cherché à écrire des histoires qui s’imposent par elles-

mêmes, sans chercher à attirer le lecteur par autre chose que ce qui a un rapport

direct avec la narration. »27

Daniel Pennac valoriza a história/a narração, rejeitadas por alguns escritores da

sua geração. Talvez este tenha sido o ponto de partida para a revalorização do

romance. Por isso, o escritor privilegia o acto de ler/contar histórias, em toda a sua

produção, o que funciona como uma espécie de terapia. Esta parece ser uma das

suas preocupações, a que constantemente alude. Nos romances da saga

Malaussène, Benjamin, Van Thian ou Risson contam histórias, que fazem delirar

toda a gente. O enredo de La Petite Marchande de Prose desenrola-se em redor do

mundo dos livros, da leitura, da família que se reúne em prol da leitura e que conta

histórias. As passagens do romance de JLB, inseridas na intriga principal servem de

sátira à literatura popular que se vende muito bem. Em La Fée Carabine, Risson ou

Thian contam histórias (a da própria Fée Carabine) às crianças e aos velhos,

fazendo-os entrar noutras dimensões, “partindo em viagem” através do olhar, ao

ponto de preterirem a televisão. As crianças estão sempre a pedir que se lhes conte

uma história : «Benjamin, raconte-nous une histoire.»

Em Comme un Roman Pennac refere a propósito da história lida/ouvida: “Oui,

l’histoire lue chaque soir remplissait la plus belle fonction de la prière la plus désintéressée,

27 Au Bonheur des enfants, entretien dirigé par Aliette Armel (p. 98)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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la moins spectaculaire, et qui ne concerne que les hommes: le pardon des offenses ». (p.

33)

Daniel Pennac intrinca histórias dentro de outras, fazendo o leitor viajar no

interior dos livros. E são vários os exemplos que aí encontramos, como o que

acabámos de transcrever, ou a história que a mãe loba conta aos lobinhos

(« L’histoire du louveteau maladroit et de sa grand-mère trop vieille»), em L’Oeil du

Loup.

Afirma-se que Pennac descobriu tardiamente, apenas aos 35 anos, o género

policial, aquele que o lançou como “auteur à succès”. Foi numa viagem ao Brasil

que, em crise de leitura, viu junto de um alfarrabista (“bouquiniste”) francês um velho

romance da “Série noire” de Louis Béretti. Neste autor, encontrou tudo o que

buscava: imagens fortes, densas de sentido e eficazes. Em seguida, um amigo deu-

lhe a conhecer Chester Himes e o efeito foi idêntico. Daniel Pennac tinha,

finalmente, descoberto uma orientação para a sua escrita: romances povoados de

intriga, drama, humor, “suspense” e “loucura”, explorados ao pormenor, com

universos fantásticos, onde o inesperado acontece à passagem de cada capítulo.

São romances situados entre os géneros policial e popular que, no entanto, fogem

às regras convencionais. Nessas ficções, depreende-se o humanismo moderno de

Daniel Pennac, de onde sobressaem o amor e o respeito. Ao mesmo tempo, o

escritor faz uma formidável e optimista descrição do mundo sombrio, numa

linguagem que foge, frequentemente, ao “politicamente correcto”, que se aproxima

do real/do quotidiano do leitor, evidenciando que Pennac acompanhou a evolução

dos géneros. O autor recorre várias vezes a vocábulos do nível familiar/calão, como

por exemplo, “merde”, “emmerdements”, “flics”, “dingue”, “déconne”; a estrangeirismos

“undergroud”, “overdose”, “modern style”, “drugstore”, “dealers”, pipe-line”; algumas das

personagens intervenientes nos romances falam chinês28 ou árabe.

Os romances da saga Malaussène inserem-se no esquema narrativo do

policial, pela sua estrutura, pela intriga recheada de situações inesperadas: o tráfico

de droga, os assassínios misteriosos, a presença da figura do criminoso, do “serial

Killer”, procurado por agentes policiais/detectives e, finalmente, a descoberta do

crime. Os crimes sucedem-se e uns vão, consequentemente, desencadear a 28 Por exemplo em La Petite Marchande de Prose, as crianças querem aprender a falar chinês (p. 401) e podemos ler inúmeras frases ditas pelas personagens, o que causa alguma estranheza mas que confere ao texto um interessante colorido.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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descoberta de outros crimes. Desaparece o segredo que domina, normalmente, este

tipo de romances. A presença dos crimes em série e a sua repetição, na saga

Malaussène, colocam a hipérbole como a figura central do romance. Por outro lado,

a figura do detective foge um pouco à imagem do detective tradicional. Coudrier é

um detective semelhante ao detective Dupin, inventado por Edgar Allan Poe e que

entra nos seus contos fantásticos. Tanto Dupin como Coudrier são figuras humanas,

dominadas pelo bom senso. São intelectuais, inteligentes e fogem à imagem do

polícia tradicional. Coudrier preocupa-se com Malaussène, o eterno “bode

expiatório”. Trata-se de um romance policial que tem como pano de fundo o mundo

social (também presente na literatura popular e no romance realista). Por isso, este

romance policial não respeita as regras/normas, como por exemplo os de Agatha

Christie, em que se propõe um enigma criminal, que o detective – herói, juntamente

com o leitor, vai desvendar. Nesses romances não há espaço para análises

psicológicas, nem intrigas amorosas, susceptíveis de desviar a atenção do leitor.

Normalmente, a intriga é fechada, termina de forma inesperada mas lógica, com a

descoberta do autor do crime.

Os seis romances desta saga têm por principal protagonista uma família (onde

não falta um cão epiléptico e especial – Julius, le chien, que também tem direito às

suas “opiniões”) que funciona como uma tribo: “la tribu Malaussène”, segundo

Pennac, ou como “Sagrada Família”, como a designa Malaussène, em La Fée

Carabine. O herói que atravessa todos os romances é Benjamim Malaussène, o

irmão mais velho e chefe desta numerosa e original família, representando

igualmente a figura do pai, ausente. Benjamin é um homem banal, escolhido pelo

destino para ser uma espécie de azarado perpétuo. Advogado por vocação,

convertido em “bode expiatório” de profissão, carisma mantido ao longo da saga.

Tendo a seu cargo os irmãos mais novos, de quem é uma espécie de “Anjo da

Guarda”; diverte-os, contando histórias antropomórficas de papões de Natal e de

polícias, sobretudo em Au Bonheur des Ogres, mas também em outros romances.

As histórias são mirabolantes aventuras de detectives, polícias-fachos ou

polícias-poetas e crimes, onde dominam o mistério, a intriga e mortes por desvendar,

mas onde subsistem também paixões. Benjamin Malaussène apaixona-se pela

jornalista Julie, a mãe passa o tempo apaixonada, Clara apaixona-se e casa com um

inspector de polícia (La Petite Marchande de Prose), citando apenas alguns

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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exemplos. Ao longo das tramas há desvios intencionais da atenção do leitor, não só

para as mortes misteriosas, mas também para a vivência bizarra da família, que se

intrinca na narrativa. Presenciamos ainda a existência de personagens que

normalmente não fazem parte do universo do romance policial – as crianças, em

grande número, e ainda as fadas e os ogres, especialmente em Au Bonheur des

Ogres.

Em Pennac, descobrimos um universo um pouco diferente e é precisamente

por isso que consideramos o seu estilo e a sua escrita próximos da fábula, já que

contêm os seus elementos, trabalhados de uma forma bastante curiosa: por

exemplo, a presença do universo fantástico, um mundo maravilhoso e imaginário,

com heróis que não morrem, ou que regressam ao mundo dos vivos, mesmo depois

de mortos. Em La Petite Marchande de Prose, Benjamin Malaussène resiste à morte

devido à intervenção miraculosa do médico, uma espécie de anjo ou de génio, ao

amor dos seus familiares e de Julie. Também o pai de Le Petit, um homem

encontrado moribundo na rua, volta ao “reino dos vivos”, depois de tratado pela mãe

e irmãs de Benjamin, em Des Chrétiens et des Maures – 1997. O universo infantil,

povoado de magia, onde intervêm fadas, ogres e papões é central: Jérémy e Le Petit

são miúdos traquinas, capazes de crucificar ou de fazer explodir o colégio. Os seus

nomes têm tanto de curioso como de invulgar - Fruit de la Passion ou Verdun. Refira-

se ainda as crianças-anjo, como C’est un Anje, que incarna toda a inocência e a

pureza da infância. Estas crianças divertem-se a ouvir ler/contar as mais

maravilhosas histórias de ogres e papões.

Predomina, ainda, um universo feérico, com a presença de fadas que

transformam seres em crocodilos (Au Bonheur des Ogres) ou homens em flor,

segundo Le Petit (La Fée Carabine), que protegem as crianças ou os adultos. A fada,

do latim fatum (= destino, fatalidade, oráculo) personifica o maravilhoso, corrige os

destinos humanos, dispõe de poderes sobrenaturais. É um ser que pode ter uma

aparência fantástica, mas de grande beleza, normalmente representada por uma

figura feminina, dotada de virtudes e poderes sobrenaturais, intervindo na vida dos

homens para os auxiliar em situações-limite. Yasmina, por exemplo, protege e

recompensa, é a grande deusa. Também a progenitora se caracteriza por possuir um

enorme coração, apaixona-se facilmente, sendo o fruto de cada paixão um novo

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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filho. Esta funciona como a mãe telúrica e protectora. É a grande fada que se

assemelha a Deus, pois está presente e ausente ao mesmo tempo.

O local onde decorre a acção destes romances é Belleville (Paris), espaço real

e ao mesmo tempo mágico, com uma personalidade distinta, frequentemente

transfigurado. É mesmo um lugar multiracial e multicolor, onde coexistem raças,

profissões e línguas. Os seus habitantes são polifacetados e multicoloridos, na

forma de vestir e de falar. Este bairro torna-se num espaço utópico, de

solidadriedade, de transparência, onde as portas estão sempre abertas. Está

despolitizado, tudo pode acontecer. Não existem fronteiras, tratando-se um espaço

universal, por isso semelhante ao espaço das fábulas. Ao mesmo tempo, é um local

de protecção, por se tratar de um bairro. Ali vive a família Malaussène, apresentada

ao leitor em 1985 com Au Bonheur des Ogres, acompanhando-o até 1999 com Aux

Fruits de la Passion, e é ali que se pretende sempre regressar, mesmo que esteja

em constante mutação/transformação.

Esta dimensão fabulística não impede uma presença muito forte de temas

actuais, abordados de forma peculiar: o consumo de drogas pelos velhos,

abandonados à sua sorte e acolhidos em casa por Benjamin (ponto de partida para

uma reflexão sobre o papel velhice e o abandono dos idosos, do envelhecimento

dos homens e das instituições - La Fée Carabine,1987); o mundo dos livros e da

escrita (La Petite Marchande de Prose – 1989); a especulação imobiliária, retratada

na Belleville em vias de extinção de Monsieur Malaussène; a venda dissimulada de

armas ou o mundo das minorias: os sem-abrigo, os imigrantes, os refugiados de

guerra, os filhos de prostitutas (Aux Fruits de la Passion –1999), temas que

consideramos um interessante objecto de estudo.

Todavia, a nossa reflexão prender-se-á sobretudo com os elementos centrais

da fábula, verdadeiros pilares de toda a obra romanesca de Pennac, que

passaremos a abordar seguidamente.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 21

Capítulo II

1- A fábula – uma definição do género.

Como definir este género?

O género fábula é quase tão antigo como o próprio homem. Os textos deste

género têm, como principais protagonistas, os animais “a falar como pessoas”, com

o propósito de transmitir um ensinamento, sendo acompanhados de uma

moralidade. Crê-se que muitos dos textos primitivos, chegados até nós, tenham

conhecido, inicialmente, a forma fabulística, embora os estudiosos do género

considerem que seja um tanto difícil determinar com precisão a sua origem.

Existem inúmeras definições para fábula, provenientes de fontes diversas. De

entre elas, seleccionámos apenas três exemplos (dois retirados de dicionários da

língua francesa e um de um dicionário da língua portuguesa), evidenciando os seus

aspectos mais importantes, uma vez que não é nosso propósito fazer uma

enumeração de definições.

A- Le Robert, Dictionnaire Historique de la Langue Française29 propõe a

seguinte definição:

« Fable vient du latin (1155) fabula « récit, propos » ; « récit mythologique,

allégorique, conte, apologue » ; du verbe fari – parler, issu d’une racine indo-

européenne ºbh� –« énoncer ». Fable apparaît au milieu du XIIe siècle au sens de

« récit imaginaire, histoire » et « d’allégation mensongère »(1160). Le sens de « petit

récit moralisant qui met en scène des animaux » est lui aussi ancien (1180).

Ce n’est qu’au début du XIIe siècle que le mot désigne la mythologie de l’antiquité

paiënne. »

B- Le Petit Larousse Illustré30 define fábula de forma diferente, apontando

para várias acepções:

« Fable, n. f.(du latin fabula) 1- court récit allégorique, en vers ou en prose, contenant

une moralité (Les Fables, de La Fontaine) ; 2- récit, propos mensonger; histoire

inventée de toutes pièces ; 3- personne qui est objet de propos railleurs ».

C- Num dicionário da Língua Portuguesa31, podemos encontrar para fábula os

seguintes significados:

29 De Alain Rey, Paris, 1992 30 Paris, Larousse, 1999 31 Grande Dicionário Enciclopédico, Clube Internacional do Livro, 1999

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 22

“Fábula (do latim fab�la) s.f., 1-narrativa de acontecimentos inventados, para ilustrar,

moralizar ou divertir, em que geralmente entram animais a falar como pessoas;

ficção; 2- pessoa de quem se fala para zombar ou criticar; 3- falsidade, mentira; 4-

mito, lenda; 5- alegoria, apólogo; 6- enredo, entrecho.”

Neste dicionário, para além das seis definições anteriormente mencionadas,

referem-se, ainda relativamente ao género, alguns aspectos históricos,

apresentando exemplos da evolução ao longo dos tempos:

“O género fábula é quase tão antigo como as primeiras manifestações literárias do

homem e os seus temas, quase sempre moralizantes, têm sempre a mesma fonte: o

Oriente, com as colecções Panchatantra e do J�taka, entre outros, chegados ao

Ocidente através dos persas e dos árabes.

Não é estranho, pois que haja sobreposição entre as fábulas de Planudes (s. XIV), de

Babrius (s. I a.C.) ou de Fedro (15 a.C. a 69 d. C. ). O fabulista mais antigo de que

há notícia é o Indiano Pilpay, mas o mestre do género é o grego Esopo (s. VII e VI

a.C.).

Durante a Idade Média, a colecção latina Romulus foi aumentando o seu acervo com

fábulas de distinta índole. Pelo século XII começaram a intercalar-se nos sermões os

chamados exempla, narrações que muitas vezes eram edificantes em si mesmas,

possuindo outras vezes o carácter de parábolas, que encerravam uma lição moral.

Nos tempos modernos, mantiveram o prestígio da fábula os franceses: La Fontaine e

Florian; os alemães: Gleim, Gellert e Lessing; os ingleses Gay, Prior e Dryden; o

espanhol Iriarte e o italiano Roberti. Também em Portugal muitos foram os autores

que nos seus escritos introduziram fábulas, tendo outros traduzido o fabulário

estrangeiro.”

Destaquemos, então, alguns dos pontos mais relevantes das definições

apresentadas:

1- A primeira definição apresenta uma espécie de evolução do vocábulo

fábula na língua francesa. Alude-se também, nos três casos, à origem latina do

termo Fab�la, que quer dizer “contar”. Indicam-se quatro das características do

género propriamente dito: que se trata de uma narrativa alegórica, breve, que tem

uma moral e que põe em cena animais. Na segunda, citam-se três das

características: a fábula é uma narrativa alegórica, breve, com moral,

acrescentando que pode ser em verso ou em prosa. A terceira definição vai um

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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pouco mais longe: para além de se salientar que entram animais que falam como

as pessoas, acresce que os acontecimentos são inventados para ilustrar,

moralizar ou divertir. Em suma, nas três definições mencionam-se algumas das

características fundamentais do género, com pequenas variações, mas que apontam

para o que normalmente se considera importante sobre a fábula.

2- As definições acima transcritas esboçam, no entanto, outras designações

para o termo fábula: na primeira e terceira fala-se de “récit mythologique”/ mito ou

lenda. Ora, esta definição pode apresentar alguma ambiguidade pois, actualmente,

ou se fala em fábula ou em mito. Em tempos recuados, não se fazia claramente a

diferenciação entre o mito e os outros géneros. Fábula e mito andariam muito

próximos, uma vez que a primeira se situa algures entre o concreto e o abstracto,

por isso estava também associada ao mito. Por outro lado, os animais interagiam

com figuras da mitologia, daí colocarem-se ambos ao mesmo nível.

3- Finalmente, observamos que se apresentam ainda outros significados para

fábula, tais como conto: “propos mensonger”, alegoria ou apólogo, termo empregue

por La Fontaine, no Prefácio das Fables, e que o Grand Robert (ed. de 1981) define

como «court récit, exposé sur une forme allégorique, et qui renferme un renseignement, une

leçon de morale pratique ». Se atentarmos bem, trata-se de uma definição semelhante

à dada pelo Larousse, para fábula. Ao longo dos séculos, fábula esteve também

ligada a parábola, exempla, emblema.

Quanto às fontes do género, no Dictionnaire des Littératures de la Langue

Française32 aborda-se essa questão, apontando-se para duas fontes antigas: a

greco-latina e a oriental. Na primeira integram-se Esopo e Fedro. Crê-se que o frígio

Esopo terá vivido na Grécia no século VI a.C. e atribui-se-lhe uma série de cerca de

trezentas breves histórias, em prosa, por vezes acompanhadas de uma curta

moralidade. Nestes textos, bastante curtos, precisa-se a característica essencial do

género: mentir para dizer a verdade. Frequentemente, em virtude da conjectura

política, social e mesmo económica, o artista tendia a fingir ou “a dizer sem dizer”,

para não ser punido. A melhor forma de o fazer, sem ferir susceptibilidades, era pôr

os animais a falar. Estas fábulas foram fixadas à escrita por Abstémius, no século

XVI. No que concerne a Fedro (s. I d. C.), de origem Társica, posteriormente tornado

romano, este autor reestruturou o género. A sua produção distribui-se por cinco 32 de Alain Rey (1994)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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livros, cuja brevidade e pureza estilística serviriam de modelo, durante muito tempo.

Assim, a fábula continuou concisa mas tornou-se, pela sua construção, uma

comédia ou um pequeno drama, com efeitos cuidadosamente preparados. Em

ambos os casos, a finalidade essencial dos textos era a Pedagogia.

A segunda fonte citada é a oriental. Trata-se de uma recolha do início da

nossa era, que circulava na Índia e denominada Pa�chat�ntra - “Les Cinq Livres”,

composta em sânscrito e mais tarde em língua árabe, com o título de Fábulas de

Pilpay. Os protagonistas são animais da fauna indiana, desde os príncipes da

floresta e da savana aos animais domésticos, como a pulga e o piolho. O chacal tem

o papel desempenhado pela raposa no ocidente.

As duas fontes serviram de inspiração e de base de trabalho aos fabulistas

que, desde esses tempos até La Fontaine, e mesmo ulteriormente, foram criando os

seus textos, passaram outros à escrita ou traduziram para as suas línguas os já

existentes.

Embora o género fábula seja de origem bastante recuada, escolhemos como

ponto de partida La Fontaine (século XVII) por ser um marco importante na

definição, actualização e transformação do género. Salientamos, igualmente, que

não é nosso objectivo fazer uma exposição acerca dos fabulistas, apenas

desejamos fundamentar as nossas constatações, contextualizando-as.

1.1- O papel de La Fontaine na evolução do género fábula.

Jean de La Fontaine (1621-1695), autor de Les Fables33, recuperou assuntos

e temas poéticos de Esopo, que considera o pai da fábula34, de Fedro, de outros

fabulistas35 ou ainda os contidos nas colecções árabes - transmitidos ao Ocidente

pelos jograis franceses, nos fabliaux ou pelos moralistas católicos, nos exemplarios,

com os quais tomou contacto quando estudava num colégio de Jesuítas. Por outro 33 Les Fables de La Fontaine, distribuem-se por doze livros, num total de 242 textos. Aquando da sua publicação, o fabulista descreveu-as, como uma adaptação enriquecida das de Esopo, dedicadas a M. Le Dauphin, de sete anos. No prefácio salientava tratar-se de literatura para as crianças. 34 Je chante les Héros dont Esope est le Père, Troupe de qui l’Histoire, encor que mensongère, Contient des vérités qui servent de leçons. (…) Je me sers des Animaux pour instruire les Hommes. La Fontaine, « À Monseigneur le Dauphin », in Les Fables, p, 73 (Ed. GF-Flammarion, 1995) 35 Avianus, Aphtonius (s. II), Babrius (s. III) Abtémius (s. XV/XVI), Faerno e Haudent (s. XVI).

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 25

lado, o fabulista utilizou as recolhas muitas vezes reeditadas de Baudoin e de

Verdizotti e, como alude no Préface de Les Fables: «J’ai choisi les meilleures, c’est à

dire celles qui m’ont semblé telles...» (1995: 47)

Recuemos no tempo até Esopo, uma vez que é uma das fontes de La

Fontaine. Os estudiosos reconhecem que os seus textos, breves e em prosa, onde

se emprega um vocabulário mais simples, são de cariz essencialmente oral. Embora

se julgue que as fábulas de Esopo não tenham sido por si inventadas, atribui-se-lhe

uma verve mordaz e bastante curiosa, sendo o humor e a humanidade as suas

principais características. Considera-se o fabulista, antigo escravo, um homem

inteligente que, após ter conquistado a liberdade, viajou bastante, tornando-se um

observador do que o rodeava, dando conselhos através das fábulas. Esopo confere

aos textos um cunho pessoal, pretendendo distrair e instruir sem irritar as pessoas.

Como o texto da fábula consistia num ensinamento, quase todas terminavam com

uma moralidade, popular, cuja função seria reforçar a lição inicialmente apresentada.

Muito mais que uma moral, as fábulas de Esopo procuravam transmitir um

ensinamento cínico sobre a mediocridade e a maldade humanas. As que têm o lobo

como protagonista pretendem evidenciar a vileza deste animal, que personifica

aqueles que, pela força física, se destacam dos mais frágeis e que não respeitam os

seus pontos de vista. Em Esopo podemos constatar as seguintes características do

género: a apresentação directa das virtudes e defeitos do carácter humano,

ilustrados pelo comportamento antropomórfico, o propósito pedagógico e,

sobretudo, a brevidade associada à oralidade.

No século XVII, La Fontaine vai trabalhar a fábula de uma forma singular. De

resto, foi ao poeta Francês que se atribuiu o aperfeiçoamento do género fábula,

transformando-se o que até então fora tomado como um género inferior (por ser

bastante simples, quase rústico e sem dignidade literária) numa forma de praticar

uma poesia natural, espontânea, cheia de elegante simplicidade. La Fontaine vai dar

mais importância ao “récit”, tornando a fábula num veículo subtil do pensamento.

Ao apresentar o texto em verso, La Fontaine converteu a fábula num género

literário clássico. Introduziu-lhe a medida, a variedade de tom, mas ainda a comédia e

a sátira, bem como elementos do conto maravilhoso e, entre outros, uma espantosa

acção com personagens. Os recursos estilísticos são mais frequentes, destacando-se

a ironia, a adjectivação expressiva, as anástrofes e os jogos de palavras. Segundo

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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alguns estudiosos de La Fontaine, o facto de as fábulas serem postas em verso

permite-lhe abrir um espaço de liberdade de pensamento e de expressão que outros

géneros não admitiriam. Considera-se, igualmente que, por ser herdeiro de tradições

múltiplas, La Fontaine transformou a fábula em rapsódia de contos de animais, em

ensaio filosófico, como “Discours à Madame de La Sablière” (IX, XX), ou em cenário

cheio de imprevistos e de vagabundagem lírica “Les deux Pigeons” (IX, II). O fabulista

torna-se um espectador da existência, retratando-a através da fábulas, textos

espirituosos, irónicos e em que os homens aparecem já animalizados.

Contextualizemos um pouco a época de La Fontaine. No século XVII viveu-se

essencialmente sob dois signos. Por um lado, o da grandiosidade de Louis XIV e da

sua corte, por outro, e em oposição, o da miséria do povo. A grandiosidade

manifestou-se sobretudo no campo das artes e das letras, florescendo o classicismo.

Portanto, é natural que se tenham reabilitado as formas clássicas como a fábula, que

se tornou um género muito admirado, não só pela corte, como também pelo público

dos salões. A literatura imita a ordem, a disciplina e a regularidade clássicas,

tornando-se social, através do teatro clássico, também recuperado, mas ainda da

eloquência dos discursos inflamados, proclamados na corte ou fora desta. Ora, a

fábula congrega um pouco dos dois. Em algumas circunstâncias, as fábulas parecem

pequenas comédias, noutras tragédias, porque mais densas e com situações mais

complexas. Estima-se que a fábula corresponde aos propósitos da época, utilizando a

exposição clara dos argumentos, uma vez que se pretendia o triunfo da razão. Neste

caso, admite-se que a fábula serve como “prise de parole” e, segundo o velho

esquema da retórica clássica, ela procura ser o exemplo (exemplum) à demonstração

de um propósito (propositio), assim apresentada por Aristóteles n’ A Retórica.

O século XVII, herdeiro do humanismo do século XVI e do barroco, por um lado,

é marcado pelo entusiasmo e pela razão, por outro, pela dura análise e pintura do

homem da época, o que foi feito por Racine, Molière, e mesmo por Bossuet, La

Fontaine, La Bruyère e Fénelon. Preocupados com o que os envolvia, manifestaram-

se ao observar a “misère des paysans”, num tempo em que o poder do rei era

absoluto, em que o povo se mantinha submisso aos arbítrios dos grandes senhores

ou das autoridades. Daí que La Fontaine, nas suas fábulas, que constituem um

retrato do seu tempo, mostre bem a diferença entre dominadores/fortes (na figura do

lobo) e dominados/frágeis (na do cordeiro), para darmos apenas um exemplo.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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No Préface e em diversas fábulas, La Fontaine apresenta os objectivos que

estiveram na origem da composição dos seus textos. O fabulista desejava agradar,

instruir e, ao mesmo tempo, denunciar a ordem institucionalizada. Em «Le bûcheron

et Mercure» (V, I) refere que a sua obra pretende ser uma comédia universal, ou

seja, através do imaginário desvenda-se o real, dando-nos a contemplar a comédia

do mundo: «En faisant de cet ouvrage/une ample comédie à cent actes divers/Et dont la

scène est l’univers »; que a verdade está por trás daquilo que parece ser mentira, um

dos tópicos já preconizados por Esopo, como demonstra em “Le dépositaire Infidèle”

(IX, I) ”Et même qui mentait/ Comme Esope et Homère/Un vrai menteur ne serait./Le doux

charme de maint songe/Par le bel art inventé/Sous les habits du mensonge/Nous offre la

vérité. »

Para La Fontaine, fábula ou apólogo36 (termo também empregue pelo autor

quando se refere à fábula) «est un genre d’origine populaire, consistant en un récit court,

souvent agrémenté d’un dialogue et servant à illustrer une morale ». Deste modo, a fábula

é um género que se baseia no processo alegórico que, por sua vez, personifica os

vícios humanos em animais, satirizando os defeitos com o objectivo de os corrigir.

Em « Le Lion et le Chasseur»(VI, II), La Fontaine escreve: “Les Fables ne sont pas ce

qu’elles semblent être./Le plus simple animal nous y tient le lieu de Maître”, isto é,

apresenta a razão pela qual se serve dos animais, ao mesmo tempo que reitera o

processo alegórico dos seus textos. «Se servir des animaux »37 compreende, assim,

uma intenção política (os animais de La Fontaine são políticos), mas supõe também

uma filosofia implícita – o homem é um animal, entre os outros, privilegiado pela sua

36 Existe uma cetra diferença, pelo menos em Portugal, entre estes dois termos como podemos ver pelas definições: “Fábula é uma narrativa breve vivida por animais, que alude a uma situação humana e tem por objecto transmitir uma certa moralidade. As suas personagens são, quase sempre símbolos, isto é, representam algo num contexto universal, por exemplo, o leão é símbolo do poder, a raposa da astúcia”. Quanto ao apólogo, trata-se de “uma narrativa breve de uma situação vivida por seres inanimados (sem vida animal e humana) que ali adquirem vida e aludem a uma situação exemplar para os homens. Exemplo “O carvalho e a cana”. (Glória Bastos, 1999: 83). 37 “Grâce aux Filles de Mémoire J’ai chanté des animaux. Peut-être d’autres héros M’auraient acquis moins de gloire Le Loup en langue des Dieux Parle au Chien dans mes ouvrages. Les bêtes à qui mieux mieux Y font divers personnages. »

« Le dépositaire infidèle » (IX ; I)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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inteligência. Todavia, deve respeitar as outras espécies. Logo, o mundo animal

pretende representar a sociedade/os homens, com a sua psicologia complexa, as

suas paixões e os seus vícios. Estes animais simbolizam ainda o substracto de uma

comédia que não é a sua, isto é, são uma espécie de marionetes agitadas, que nos

levam a observar o espectáculo daquilo que realmente somos.

Os animais são, por isso, figuras importantes nas fábulas de La Fontaine,

interagindo entre si, mas também com personagens naturais, elementos da natureza,

personagens humanas, mitológicas, históricas, literárias e filosóficas. De referir que

os animais não são simples estereótipos, reduzidos a um papel constante. Por

exemplo, o leão, tanto é brutal, injusto e tirânico, como bom e generoso. O facto de o

animal aparecer travestido é, entre outros, um meio de manter à distância os

comportamentos humanos e, ao mesmo tempo, fazer o leitor tomar consciência dos

seus mecanismos. Representa, ainda, uma forma de falar dos poderosos, sem os

atingir directamente, ou um instrumento para chamar a atenção dos homens sobre a

sensibilidade e inteligência dos animais, contra a tese cartesiana dos animais-

máquina.

Quanto aos métodos, considera-se que o fabulista imita os mestres clássicos,

Esopo e Fedro, sem, no entanto, ser escravo dos seus modelos. Não se coíbe em

enriquecê-los, com o seu próprio conhecimento, mas sobretudo com o génio, como

aponta em «L’Epître à Huet»: “Mon imitation n’est point esclavage/Je ne prends que

l’idée et les tours et les lois,/ Que nos maîtres suivaient autrefois/Si d’ailleurs quelque

endroit plein chez eux d’excellence/Peut entrer dans mes vers sans nulle violence/Je l’y

transporte, et veux qu’il n’aurait rien d’affecté/Tâchant de rendre mien cet air d’antiquité. »

Além disso, mostra que agirá pela sátira e pelo contraste, como refere em «Le

bûcheron et Mercure» (V, 1): “Je tâche d’y tourner le vice en ridicule/ne pouvant

l’attaquer avec les bras d’Hercule” (...) « J’oppose quelquefois par une double image/ Le

vice à la vertu, la sottise au bon sens ». Desvenda a sua intenção moral, de instruir e

divertir, em « Le Lion et le chasseur » (VI, II): «Une Morale nue apporte de l’ennui ;/Le

conte fait passer le précepte avec lui/ En ces sortes de feintes il faut instruire et plaire,/Et

conter pour conter me semble peu l’affaire. »

Antes de La Fontaine, a moral era a coluna vertebral da fábula e o “récit” tinha

apenas uma função secundária, de ilustração, o que acontecia com Esopo ou Fedro.

Com o fabulista francês, pelo contrário, o “récit” desenvolve-se consideravelmente em

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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relação à moral, que é o pretexto. O fabulista interessa-se mais pela narrativa do

que pela moralidade, que por vezes está diluída no texto ou mesmo ausente. Porém,

devemos referir que La Fontaine não se consegue desligar totalmente da moralidade,

como acontece com alguns fabulistas modernos. A presença da moral nunca

desaparecerá por completo da fábula e está impregnada de uma forte função satírica:

mostrar aos homens os seus erros, convidando-os a observar-se a si mesmos,

encorajando-os a valorizar os sentimentos como a entreajuda, o amor pelo trabalho,

a amizade, a concórdia, entre outros.

No Préface das Fables, La Fontaine evidencia «L’Apologue est composé de deux

parties, dont on peut appeler l’une le Corps, l’autre l’Ame. Le Corps est la Fable; l’Ame la

Moralité.» (1995 : 50) Assim, no texto = corpo (parte mais visível) desenvolve-se o

conteúdo daquilo que seria mais invisível = moralidade, mas sem deixar de ser

importante38. Para não aborrecer os seus leitores, La Fontaine varia a formulação,

bem como a posição da moral e não hesita mesmo em suprimi-la, quando o seu

conteúdo é suficientemente explícito. A este propósito citemos Patrick Dandrey

(1992:49) :

“ Le déchiffrement de l’allégorie morale devient sous l’effet de la gaieté envahissant

tout le poème, l’occasion d’un badinage, de quelque saillie supplémentaire, ajoutant

son éclat à ceux qui font briller le récit. Au lieu d’être la clef unique et indispensable du

récit, la moralité en constitue le tremplin ou la chute subtils, imprévisibles même,

ouvrant des perspectives inattendues, jouant avec le lecteur, mais aussi avec le

modèle imité qu’elle détourne, évidente – banale… »

A moralidade, segundo PatricK Dandrey, não constitui a chave única do texto,

mas pode ser o ponto de partida, um desafio que se coloca ao leitor, fornecendo-lhe

pistas, abrindo outras perspectivas para a interpretação do mundo em que vive e que

o texto pode não mostrar logo de início.

Abundante em diálogos, o “récit” é composto por uma polifonia de vozes

narrativas que lhe conferem uma dimensão teatral. O fabulista posiciona-se, também

ele em cena, no “teatro das fábulas”, colocando o leitor à parte e serve de mediador

em relação à sociedade civilizada dos seus leitores. A estes endereça, em imagens e

em discursos, a figura de um mundo imaginário, mesmo utópico, reflexo velado e 38 Daí considerar-se a moralidade como a alma, mantendo-se a concepção/divisão corpo/alma, ainda em voga na época, bem como da visibilidade do corpo e da invisibilidade da alma.

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cheio de graça do mundo duro, feroz e cruel da sociedade do seu tempo. Como o

leitor é convidado a ler a fábula como um jogo, frequentemente a moralidade

encontra-se na voz de uma personagem. Esta, pode funcionar como “o coro” das

tragédias clássicas, personagem colectiva cuja função era a de prever o desenrolar

dos acontecimentos, constatar, confirmar, ou aconselhar, sendo porta-voz do bom-

senso. Por isso, o porta-voz da moral intervém, com frequência, na primeira pessoa

para: constatar («À l’oeuvre on connaît l’Artisan.” I, XXI); aconselhar («Patience et

longueur de temps/font plus que force ni que rage. » II, XI ou « Jamais auprès des fous ne te

mets pas à portée.»IX, VIII); instruir (« La raison du plus fort est toujours la meilleure» I, X);

mas também se dirige directamente ao leitor («Ceci s’adresse à vous, esprits du dernier

ordre,/Qui n’étant bons à rien cherchez sur tout à mordre.» V, XVI) Mais uma vez,

reiteramos o aspecto retórico das fábulas pois, como referíamos anteriormente, dá-se

um exemplo (exemplum), através do texto, para demonstrar um propósito (propositio)

pela moralidade, que pretende ser uma “lição”, onde se mostra aos homens como

agir pelo bem, pela justiça. Muitas vezes, a moralidade é o ponto de partida para a

apresentação de um discurso argumentativo (expondo-se os argumentos e os contra-

argumentos), em que participam duas personagens com pontos de vista opostos,

como o empregue nos tribunais ou na praça pública, na vida política, nos debates

acesos sobre temas controversos.

Os esboços das fábulas de Esopo transformaram-se, com La Fontaine, em

pequenas cenas de género pitoresco, frequentemente coloridas de humor, com um

novo tom, familiar mas sem baixezas, cheio de charme e de nobreza, ou como lhe

chama Patrick Dandrey “la gaieté”, sobre a qual disserta num capítulo do seu ensaio

acerca de La Fontaine39. O próprio fabulista afirmava que a “gaieté” era, tal como a

novidade, o que o público do seu tempo pretendia, como se pode ler no Préface:

« Ce qu’on demande aujourd’hui c’est de la nouveauté et de la gaieté. Je n’appelle

pas gaieté ce qui excite le rire; mais un certain charme, un air agréable qu’on peut

donner à toutes sortes de sujets, même les plus sérieux.» (1995 : 47)

Nas Fábulas, o sorriso, o riso estão presentes um pouco por toda a parte e,

mesmo em assuntos considerados graves, o cómico é multiforme. O humor,

39 La fabrique des Fables, Essai poétique sur la poétique da La Fontaine (1992)2e édition, revue corrigée et augmentée, Paris, Klinksieck, 1992

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característico de La Fontaine, comparado com o de Esopo, provém da mistura de

tons e das intervenções maliciosas do autor sobre a base de uma estrutura

dramática. E, embora La Fontaine afirmasse que se tratava de literatura para

crianças, Les Fables eram, no século XVIII, lidas nos salões, portanto também

dirigidas aos adultos porque, segundo o fabulista em « Le pouvoir des Fables » (VIII,

IV) : «Le monde est vieux, dit-on; je le crois, cependant/Il le faut amuser encor comme un

enfant. »

As fábulas de La Fontaine foram e são conhecidas um pouco por toda a

parte40.” No século XVIII e depois no XIX, muitos fabulistas evitaram imitar La

Fontaine, procurando dar um outro tom às suas produções nacionais. A título de

exemplo, refiramos as fábulas de Florian (1755-1794), por vezes hábeis e graciosas,

mas que são inevitavelmente comparadas com as de La Fontaine; as dos alemães

Gleim (1719-1803) e Lessing (1729-1781); dos ingleses Gay (1685-1732), Prior

(1664-1721) e Dryden (1631-1700) e do espanhol Iriarte (1750-1791).

Quanto ao século XX, embora determinados autores considerem que a fábula

como género decaiu neste século, outros afirmam que a fábula encontrou um novo

sopro, não só com os desenhos animados, mas também com as paródias das fábulas

clássicas, dando-lhes novos e curiosos contornos, encontrando, assim, novas formas

de análise dos homens e dos seus comportamentos.

1.2- «Le Loup et L’Agneau » de Esopo e de La Fontaine – uma análise.

Para percebermos melhor o que temos vindo a enunciar sobre a fábula,

seleccionámos uma de La Fontaine e a correspondente de Esopo - “Le Loup et

l’Agneau”41, das quais apresentaremos uma proposta de análise, feita em paralelo,

delimitando as principais características do género.

40 Em Portugal foram traduzidas por Bocage, Filinto Elísio, Curvo Semedo, Malhão, entre outros. Referindo-se às Fábulas de La Fontaine, Pinheiro Chagas escreveu: ”O que constitui o seu encanto supremo é a vida potente que ele sabe dar a todos esses animais que se movem no imenso tablado da natureza, que falam a linguagem que ele lhe presta, obedecendo a paixões que ele lhes atribui.” (in “Estudos Críticos”), introdução livro Fábulas de La Fontaine, Moderna Editorial Lavores, 2001, p. 5. Esta é uma edição recente com ilustrações de Gustave Doré. 41 Para redigir a fábula « Le Loup et l’Agneau», La Fontaine teve como fontes as de Fedro (I, 1) e de Esopo (II) com o mesmo título.

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A escolha desta fábula advém ainda do facto de o herói animal de um dos

romances de Pennac ser o lobo.

Esopo La Fontaine

Le loup et l’agneau Un loup ayant vu un agneau buvant à une rivière

voulut (le dévorer) avec un bon prétexte. C’est

pourquoi, se trouvant en amont, il l’accusa de

troubler l’eau et de ne pas lui permettre de boire.

L’autre répondant qu’il ne buvait que du bout des

lèvres et que d’ailleurs il ne pouvait pas se

tenant à l’aval, troubler en amont. Le loup ayant

manqué cet argument, dit : «Mais l’an passé, tu

as insulté mon père !» Celui-ci répondant n’être

pas encore né alors, le loup lui dit : «Même si tu

fournis facilement des excuses moi, je ne t’en

mangerai pas moins.»

La fable montre que (les gens) pour qui le

projet est de faire le mal auprès d’eux, une

juste excuse ne vaut rien.

Esope, II

Le Loup et l’Agneau

La raison du plus fort est toujours la meilleure: Nous l’allons montrer toute à l’heure.

Un agneau se désaltérait Dans le courant d’une onde pure. Un loup survient à jeun qui cherchait aventure, Et que la faim en ces lieux attirait. « Qui te rend si hardi de troubler mon breuvage ?» Dit cet animal plein de rage : Tu seras châtié de ta témérité. - Sire, répond l’agneau, que Votre Majesté

Ne se mette pas en colère ; Mais plutôt qu’elle considère

Que je me vas désaltérant Dans le courant Plus de vingt pas au-dessous d’Elle, et que par conséquent en aucune façon,

je ne puis troubler sa boisson. - Tu la troubles, reprit cette bête cruelle, Et je sais que de moi tu médis l’an passé. - Comment l’aurais-je fais si je n’étais pas né ? Reprit l’agneau, je tette encor ma mère. - Si ce n’est toi, c’est donc ton frère.

- Je n’en ai point. – C’est donc quelqu’un des tiens ; Car vous ne m’épargnez guère, Vous, vos Bergers et vos Chiens. On me l’a dit: il faut que je me venge » Là-dessus au fond des forêts Le loup l’emporte, et puis le mange, Sans autre forme de procès.

La Fontaine - I, X

Colocar as duas fábulas em paralelo permite, desde logo, distingui-las,

começando pela moralidade que “opera conceitos ou noções gerais, que pretende ser a

verdade “falando aos homens.” Deste modo, verificamos que, no primeiro texto, esta é

posicionada no final e no segundo no início, sob a forma de aforismo. A moralidade

do texto de Esopo “La fable montre que (les gens) pour qui le projet est de faire le mal

auprès d’eux, une juste excuse ne vaut rien” tem como objectivo fazer uma espécie de

crítica sarcástica à sociedade, como se depreende da expressão entre parêntesis

(“les gens”), colocando a tónica nas pessoas como agentes do mal e que não

aceitam desculpas, mesmo que estas sejam justas. Quanto à moralidade, em La

Fontaine, esta resume-se a um único verso, em tom proverbial/instrutivo: “La raison

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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du plus fort est toujours la meilleure” e introduz a ideia-chave que se desenvolve no

corpo do texto - a de que os fortes vencem sempre. Refira-se, ainda, que se

evidencia, desde logo, um dos paradoxos sobre o qual se desenrola o conteúdo da

fábula: a oposição entre a razão, colocada do lado do mais fraco - o cordeiro e a

força, do lado do lobo. Mostra-se a imposição do poder, do direito e das leis pelos

que se consideram os mais fortes. Pretende-se, de igual modo, denunciar a

violência, escondida, daqueles que procuram justificar, por uma razão pervertida, os

seus abusos, sobre os mais frágeis e sem poder, aspecto igualmente desenvolvido

por Esopo.

Ainda no aspecto formal, verifica-se que a fábula de Esopo, em prosa, é

bastante breve, recorrendo-se a um vocabulário simples. Por seu turno, a de La

Fontaine, em verso, é mais longa, mais complexa e mais rica, denotando-se uma

maior preocupação na escolha dos vocábulos para obedecer ao esquema rimático,

embora não demasiado rigoroso.

No que respeita ao conteúdo, a situação exposta nas duas fábulas é

exactamente a mesma: o lobo e o cordeiro, os dois protagonistas, encontram-se na

margem do ribeiro, um espaço universal, comum a muitas fábulas. Ambos vão-se

querelar, apresentando, respectivamente, os argumentos que julgam mais válidos

para a sua própria defesa. A primeira alegação do lobo é comum aos dois textos,

sendo o verbo “troubler” a palavra empregue em ambos como pretexto para a sua

atitude. Na fábula de Esopo, há um jogo de palavras, relacionado com as posições

dos dois animais, posto na boca do cordeiro - “aval/amont” - que lhe serve de meio

para explicar a sua colocação espacial em relação ao seu acusador e para se

defender da “calúnia” de que está a ser alvo. Assim, presenciamos uma discussão,

baseada na argumentação e na contra-argumentação, cuja finalidade é expor a vida

e a natureza, nas suas vertentes humana e animal.

Após o início do diálogo, acentua-se o efeito de dramatização crescente. “Le

Loup et l’Agneau” apresenta pontos comuns ao teatro clássico, sobretudo pela sua

estrutura: quer da tragédia, pela dimensão mais séria/densa, em que se defrontam

as duas forças opostas (perseguidores e perseguidos), movidas pelas paixões

(teatro das paixões), quer ainda da farsa, pela presença do patético nos argumentos

e actuação do lobo, acusador, dando ainda a ilusão de se estar num tribunal.

Vejamos como se desenrola a acção:

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1- A exposição: apresentam-se os factos de forma breve; introduzem-se as

personagens (lobo e cordeiro) e dá-se conta dos seus principais traços, o que nos

permite conhecer desde logo o seu carácter. O lobo afigura-se como um errante

que, para além de ter fome, procura aventura, dois fortes motivos para iniciar a

quezília com o seu interlocutor; o cordeiro tem sede e vem junto do rio para a saciar.

Ficamos igualmente a saber o lugar e as circunstâncias em que se dá o encontro.

2- A sequência dos episódios. Estes são encadeados e, gradualmente, as

personagens ganham vida. Imaginamos os seus gestos, atitudes e jogos de

fisionomia42. Por detrás dos seus actos, o lobo, que se posiciona acima do cordeiro,

mostra um aspecto feroz, apresenta-se como uma besta cruel. Adivinhamos,

portanto, os seus pensamentos, sentimentos, pois está colérico e desejoso de

vingança. O cordeiro, por seu turno, parece bem mais calmo, aparentando uma

postura de submissão e humildade. Além disso, as personagens falam quase

sempre em discurso directo, sucedendo-se as intervenções ora de uma, ora de

outra, dando-nos a ilusão teatral. A acção é rápida e clara, excluindo-se detalhes

secundários. Os animais têm uma personalidade que funciona em redor de um traço

dominante. A sua psicologia revela-se nos actos e nas palavras. Lobo e cordeiro

agem segundo a principal característica, atribuída desde o início – o lobo pela força,

o cordeiro pela razão. É também o jogo das personalidades que dita as decisões, o

desfecho, tal como na lógica interna das peças clássicas43.

3- O desenlace. Tal como a introdução, este é breve e rápido. De certo

modo, é previsível e aguardado desde o início. Em alguns casos, os factos são

inesperados mas não deixam de ser verosímeis. A partir do desfecho, surge a

eficácia moral e, no caso desta fábula, a confirmação daquilo que se dissera na

moralidade, posicionada no início ou no final do texto.

42 A propósito das fisionomias dos animais intervenientes e consultando algumas ilustrações que normalmente acompanham as fábulas, encontrámos alguns exemplos curiosos que mostram um lobo magro, de pêlo hirsuto, orelhas erguidas, aparentando a sua altivez e cólera, provocando o terror no cordeiro, com aspecto submisso, posicionado abaixo do seu interlocutor, de orelhas caídas. 43 Esta fábula sugere-nos a presença dos elementos da tragédia clássica. Vejamos: há desde o início um conflito (Ágon) em que as personagens se interrogam sobre o destino (Ananké) – o lobo anuncia ao cordeiro que o vai castigar. Lança-se um desafio (Hybris) sobretudo à ordem – o lobo ameaça constantemente o cordeiro. Há um adensar dos conflitos (Climax) que leva ao desenlace (Catástrofe) – que é a morte do cordeiro, já esperada desde o início. Perante os factos, o leitor, tal como o espectador, participa dos sentimentos e apreensões das personagens (Catarse) - geradora de compaixão e temor. Daí falar-se em tragédia como teatro das paixões, pois provoca uma aproximação/adesão do espectador/leitor.

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A situação vivida, bem como as falas das personagens evocam certos

diálogos, extremamente densos, das tragédias e, nesta medida, evidenciam marcas

do discurso retórico44/da oratória (estilo próprio do classicismo), em que cada

interveniente pretende fazer vencer a sua posição pelo poder da palavra, uma das

regras do género. A tragédia clássica é considerada um precioso manual de retórica,

uma vez que se inspira nestes para a “construção” dos diálogos estabelecidos entre

os seus intervenientes. Relembramos as tiradas “inflamadas” de Phèdre quando,

movida pelo ciúme e pela cólera, acusa Aricide e Hippolyte, manifestando o desejo

de vingança: (Acto IV de Phèdre, de Racine - 1677)45. Podemos, igualmente, aludir

as falas de Hermione, que incarna a fúria e o ciúme, quando incrimina Pyrrhus,

manifestando também ela um forte desígnio de vingança (Acto IV de Andromaque,

de Racine - 1667). Tal como nas tragédias, onde tudo é denso, rápido, previsível

desde o início, embora os heróis se debatam para buscar uma saída, sabendo que

isso não é possível pois o futuro é inviável, também nesta fábula há uma constante

“luta”, uma desenfreada busca de saída de parte a parte, acompanhada do forte

desejo de vingança manifestado pelo lobo, e isso passa pelo recurso à palavra para

justificar a acção.

Em “Le Loup et L’Agneau” encontramos marcas da retórica judicial46; o

discurso é pautado pelo fervor da argumentação, com estratégias de persuasão,

associadas à acusação e defesa, empregues por cada um dos intervenientes.

Vocábulos como “accusa”, “argument”, “insulté”, “excuses", “juste” e “excuse” da

fábula de Esopo, e ainda os termos “châtié” e “procès”, do texto de La Fontaine,

enviam para o campo da retórica judicial. Patrick Goupon47 considera que o

desenvolvimento desta fábula se pode apresentar como uma espécie de julgamento,

em que o lobo aparece no papel de acusador, por se sentir vítima. O cordeiro,

embora seja o agredido e esteja no papel de defensor/réu, é considerado, pelo lobo,

como o causador da agressão. Não há juiz, uma vez que o narrador parece 44 Por exemplo em “Les Animaux Malades de la Peste”, o rei (o leão) faz um discurso em que, inicialmente adopta uma atitude nobre. Os cortesãos (os outros animais) encontram argumentos jurídicos em favor do rei acabando por culpar um pobre sem defesa (o burro). É dos homens que se trata, dando-lhes conselhos políticos, chamando-os à realidade. 45 Referimo-nos aos textos de Racine, um dos grandes dramaturgos do século XVII, que revitaliza os textos clássicos de Séneca e Eurípides, apresentando ainda como outras fontes Virgílio e Homero. Phèdre e Andromaque de Racine estão construídas segundo as regras do teatro clássico. 46 Salientamos sobretudo a parte 10 do livro I, sobre a “Retórica Judicial”, pp. 80- 103, de A Retórica, de Aristóteles (1998) 47 In Le Fablier, n.º 3

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imparcial. É ao leitor que cabe esse papel, a quem são fornecidos os instrumentos

para reflexão. De salientar, ainda, que se a intenção do fabulista é satirizar a

sociedade dos homens, dos poderosos, que se servem do seu estatuto para atingir

os fins, então o leitor está no papel de observador e, ao mesmo tempo de “juiz”.

Que sentimentos manifestam? De que forma? O lobo, enquanto

vítima/acusador, demonstra a sua cólera, onde vai buscar a força para agir, à

medida que prossegue a argumentação. O cordeiro, como vitimador/defensor, vai

argumentando, com a sua serenidade e, através do apelo à razão, tenta defender-

se. Desta forma, constata-se que o cordeiro é um “grande orador”. Este utiliza, quer

o registo enfático, quer os procedimentos da argumentação: elogia, argumenta,

persuade e defende-se. As suas tiradas são mais longas, tentando ganhar tempo

para construir a sua defesa e impedir o outro de protestar. O esquema que se segue

apresenta a progressão dos factos e o jogo dos argumentos nas duas fábulas:

Fábula de Esopo Fábula de La Fontaine

Lobo

(Acusação – r. Judicial)

...se trouvant en amont il

l’accusa de troubler l’eau de ne

pas permettre de la boire.

(continua o lobo «ayant manqué

cet argument»)

“Mais l’an passé tu as insulté

mon père »

diz o lobo)

«Même si tu fournis facilement des excuses moi, je ne t’en mangerai pas moins.»

(argumento de autoridade

implícito: como é o mais forte,

tem que agir dessa maneira, é

este quem comanda)

Cordeiro

Defesa

(reprodução da resposta)

…qu’il ne buvait que du bout des

lèvres (…) il ne pouvait pas se

tenant à l’aval, troubler en amont.

(reprodução da resposta)

... n’être pas encore né alors

sem argumento – MORTE

Lobo

(tom acusador) « Qui te rend si hardi de troubler

mon breuvage ?»

Tu seras châtié de ta témérité

(ameaça e dita logo a

sentença)

Retoma a besta cruel)

- Tu la troubles, (…)

Et je sais que de moi tu médis

l’an passé

(Demonstra ter certezas)

- Si ce n’est toi, c’est donc ton

frère.

– C’est donc quelqu’un des

tiens ;

Cordeiro

Defesa

(responde demoradamente o

cordeiro, respeitosamente) Sire, (…)que Votre Majesté

Ne se mette pas en colère ;

Mais plutôt qu’elle considère

Que je me vas désaltérant

Dans le courant

Plus de vingt pas au-dessous

d’Elle,

et que par conséquent en

aucune façon,

je ne puis troubler sa boisson.

pede-lhe calma e explica os

factos cuidadosamente)

(retoma o cordeiro de forma

sagaz

- Comment l’aurais-je fais si je

n’étais pas né ?

(…), je tette encor ma mère.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 37

Tudo se resolve muito

rapidamente tiens ;

Car vous ne m’épargnez guère,

Vous, vos bergers et vos chiens.

(profere invectivas agressivas,

tem dificuldades em encontrar

justificações para culpar o

cordeiro e ataca os seus

“familiares”)

On me l’a dit : il faut que je me

venge » - desejo de vingança

(expõe a autoridade, sem

deixar que o interlocutor se

defenda)

- Je n’en ai point.

(negação)

(sem resposta)

sem resposta) – MORTE

Também aqui se nota a

precipitação dos

acontecimentos

A fábula atinge uma dimensão universal e a moralidade/intenção pedagógica

é comprovada. “Le Loup et l’Agneau” parece, deste modo, desenvolver-se no

espaço de um tribunal – palco, como a tragédia, onde se desenrolam cenas com

uma forte densidade.

O lobo é acusador e torna-se carrasco, mas também é vítima da

irracionalidade do destino, da loucura, do caos e do absurdo do mundo dos homens.

Por isso, fala sempre na primeira pessoa, do alto da sua autoridade e quase

majestade, mais visível no texto de La Fontaine. Desde a primeira fala, dirige-se ao

cordeiro num registo predominantemente acusativo, usando frases curtas e num

ritmo rápido, em tom de ataque, afirmando que este será castigado. Prevê-se, desde

logo, o desfecho trágico, uma vez que o lobo acusa não só o cordeiro, mas todos os

da sua raça, os pastores e inclusive os seus cães. Segundo a “retórica das paixões”,

como a concebe Aristóteles48, esta é uma das formas de que o injustiçado se serve,

indo buscar antecedentes que julga favoráveis à sua defesa.

O lobo é movido, principalmente, pela ira: “A ira é um desejo acompanhado de

dor que nos incita a exercer vingança explícita por causa de um desdém manifestado contra

nós.” (Aristóteles: 1998, 107) e pelo desejo de apaziguar a sua consciência de

justiceiro/devorador/perseguidor.

48 n’ A Retórica.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 38

Quanto ao cordeiro, este representa a fraqueza física, o perseguido, por um

lado, mas também a grandeza de espírito e a inteligência superior. As suas

respostas são semelhantes nos dois textos. Os seus argumentos são mais fortes

que os do lobo, porque pretende persuadir o seu interlocutor, construindo a sua

defesa. Assim, e uma vez acusado, o cordeiro salienta que se encontra posicionado,

no espaço inferior ao do lobo; alega que no ano anterior ainda não era nascido e que

não tem irmãos, o que não deixa de ser um jogo curioso, dado que estas respostas

surgem imediatamente justapostas aos ataques do lobo. As suas intervenções são

construídas na base da rejeição das invectivas do oponente, reforçadas pelas

partículas de negação ne... pas e pela restritiva ne... que. O animal parece aparentar

uma calma, oposta à cólera do lobo, talvez para apaziguar essa ira e aproximar-se

dele. A primeira fala do cordeiro pode expressar a sua inocência e humildade, ao

tratá-lo por «Votre Magesté», utilizando quase sempre o mesmo tom venerador,

dirigindo-se-lhe em terceira pessoa: “...elle...” e ainda “...sa boisson”. Contudo,

também podemos considerar que, em certas intervenções do cordeiro, a ironia e o

sarcasmo são evidentes, por exemplo, quando trata o lobo como um ser superior,

ridiculariza-o/rebaixa-o. De notar que o cordeiro, sendo ainda muito jovem, é

detentor de conhecimentos matemáticos “Plus de vingt pas au-dessous d’Elle”,

confirmando-se, uma vez mais, a sua superioridade intelectual.

N’A Retórica, quando Aristóteles se refere às paixões, como sentimentos que

nos fazem agir, salienta que os argumentos são empregues para afastar ou

aproximar os interlocutores. O lobo age em tom acusador pois é movido pela ira e

pelo desejo de vingança, provocando distância/afastamento. Porque não tem

resposta/argumentos plausíveis para as interposições do cordeiro, o lobo aniquila-o,

pondo em prática o resultado de toda a sua exaltação. Por seu turno, o cordeiro,

procurando a sua defesa, age com calma, tenta minimizar a distância e o fosso que

se criou entre ambos. A força do lobo está acima de tudo, logo a morte é o resultado

do afastamento total entre lobo e cordeiro. É o fim, como se vê nos dois últimos

versos da fábula de La Fontaine: “Là-dessus au fond des forêts/ Le loup l’emporte, et puis

le mange/ Sans autre forme de procès ». Podemos considerar que predomina o

discurso performativo, sendo o do lobo o eficaz, porque o leva à acção e o do

cordeiro o impotente, dado que o conduz à morte. Não importa que o cordeiro seja o

mais persuasivo, porque “La raison du plus fort est toujours la meilleure ».

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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Normalmente, o agressor considera-se vítima e, como já referimos, esta

fábula demonstra que o lobo é, também ele, uma vítima, embora leve até ao fim a

sua intenção. O desejo de vingança acaba por torná-lo uma vítima. Pelo seu excesso

de vingança, os vingadores passam a vítimas e, neste caso, o lobo acaba por ser

uma vítima dos homens. Consideramos que a riqueza desta fábula está,

precisamente, neste aspecto trágico que se desenvolve em torno dos dois

intervenientes. Não podemos deixar de referir, de igual modo que, por ser um eterno

perseguido e constantemente ameaçado, o lobo é sempre representado como um

animal de aspecto famélico e esquelético.

Nesta fábula, podemos ainda confrontar-nos com as dualidades comer/devorar

(lobo) /ser comido/devorado (cordeiro), em toda a sua dimensão trágica, visível de

forma marcante. La Fontaine encara o destino humano na perspectiva da morte, pois

o cordeiro é desde logo condenado pelo lobo a ter esse fim trágico, ao contrário de

muitas fábulas em que o destino é encarado na perspectiva da vida. Em suma, está

patente uma ideia de destino, comum à tragédia, onde se desenvolve um ciclo, uma

espécie de roldana, cujos os elementos são: Homem-lobo-cordeiro-morte.

A fábula “Le Loup et l’Agneau” desenrola-se, assim, em torno de várias

dicotomias: forte � frágil; devorador � devorado ou carrasco � vítima; vencedor �

vencido. Não deixa de estar presente um universo maniqueísta: de um lado, o mau

ou o carrasco - o lobo, do outro, o bom ou a vítima – o cordeiro. Neste caso, vence o

mal, mostrando-se o lado menos bom da vida. Daí que se refira, logo à partida, que

triunfará o mais forte, alertando os homens, para que corrijam os seus defeitos, ou

seja para que se reponha a ordem do Bem sobre o Mal. “Le Loup et l’Agneau”

permite um estudo psicológico do carácter dos poderosos (lobo) e dos oprimidos

(cordeiro) e pode simbolizar a incomunicabilidade. Os animais são as máscaras do

próprio homem, como refere Luda Schnitzer (1995: 65) «Tous ces animaux-masques,

l’homme les a créés à son image et à sa ressemblence. Il ne leur a épargné nulle faiblesse

humaine. »

Na maioria dos casos, porém, verifica-se que o bem vence o mal, ou a astúcia;

a inteligência vence a força; os presunçosos e os sabichões são derrotados. Se na

fábula “Le Loup et l’Agneau” o lobo é o vencedor, noutras será posto em cheque,

derrotado por uma simples cabra ou ridicularizado pela raposa manhosa.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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Vejamos, por exemplo, em Le Cheval et le Loup (V, VIII) o lobo leva dois coices

do cavalo, quando tem de se aproximar deste para ler o que estava escrito na sua

pata e aprende uma lição, para não se considerar o mais esperto. Em Le Loup et le

Renard (XI, VI) o lobo é enganado por uma raposa ainda mais manhosa do que ele.

Tendo caído ao poço e ao ver passar por ali perto o lobo, pede-lhe ajuda, salvando-

se e deixando em “maus lençóis” o seu companheiro de manhas. Em Le Loup

devenant Berger (III, III) o lobo, querendo disfarçar-se de pastor para devorar o

rebanho, cai na sua própria armadilha, pois o disfarce impede-o de fugir, causando-

lhe a morte. Nestas fábulas, o lobo é sempre exposto ao ridículo, torna-se um animal

risível, entrando em jogo uma espécie de comédia moral, despertando o triunfo do

júbilo sobre a angústia que muitas vezes era causada pelas injustiças narradas.

Assim, nas diversas fábulas dedicadas ao lobo, podemos constatar a versatilidade

do animal, que tanto é o protagonista como a vítima do mal, o que o torna risível,

dadas as façanhas que vive. Deste modo, e como refere PatricK Dandrey, a fábula é

um motivo de riso e pode tornar-se numa pequena comédia: “L’apologue ainsi fait rire

l’enfant et sourire l’adulte – et peut-être sourire l’adulte d’entendre en lui rire l’enfant qu’il

permet encore d’être, à distance de nostalgie» (1992 : 272)

Em guisa de conclusão, apresentamos, em seguida, algumas das mais

importantes características do género fábula, tendo em conta a análise dos textos

proposta:

- A maior parte dos textos põe em cena animais, que falam como as

pessoas, fazendo a exposição directa das virtudes e defeitos do

carácter humano, ilustrados pelo comportamento antropomórfico;

- Pela antropomorfização há um rebaixamento de certas atitudes

humanas: como as disputas entre fortes e fracos ou ainda a

esperteza, a ganância, a avareza. Todavia, também se exaltam

outras como a gratidão, a bondade;

- É retratada uma temática variada, essencialmente ligada à

demonstração da força dos poderosos sobre os mais frágeis, ou à

vitória da bondade sobre a astúcia, da inteligência sobre a força; à

derrota dos presunçosos e dos sabichões. Por isso, fala-se no

carácter dramático das fábulas, na medida em que há sempre uma

“luta” entre forças opostas;

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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- A presença de um espírito realista e irónico;

- A presença da sátira - reacção de censura do autor perante o mundo

exterior;

- A presença clara de um universo maniqueísta, sendo o mal

representado pelos poderosos, que deve ser “evitado” e o bem pelos

fracos ou pobres, que deve ser “imitado”;

- Uma situação de crise, que aproxima a fábula da tragédia: uma acção

curta, sem episódios secundários, e bastante tensa.

- Na fábula as personagens são, habitualmente, pouco complexas,

diríamos mesmo que são, na sua maioria, planas pois não evoluem ;

- Não há muitos detalhes, nem descrições pormenorizadas das

personagens. O que interessa mais são as suas qualidades e

defeitos;

- O texto pode ser em verso ou prosa, mas é breve e com diálogos, o

que deixa antever a presença da oralidade. Esta característica

prende-se com o facto dos textos terem sido, durante muito tempo,

de cariz oral;

- O tempo é indeterminado, por isso se diz que as fábulas são

atemporais e universais;

- O texto comporta duas partes – a narrativa, que trabalha as imagens

que constituem a forma sensível, o corpo dinâmico e figurativo da

acção e a moralidade, que é fechada, opera conceitos ou noções

gerais, e pretende ser a verdade “falando” aos homens;

- A conclusão procura abarcar uma dimensão ético-moral, com

intenção fortemente pedagógica, pois esclarece e permite tomar

consciência sobre os problemas e conflitos de diferentes tipos entre

os seres humanos e ainda oferece estratégias para os solucionar (daí

que se integre nos compêndios retóricos, na categoria de género

didáctico);

- As fábulas têm ainda duas finalidades: uma lúdica, pois distraem quem

as lê/ouve e outra pedagógico-didáctica, fazendo passar um

ensinamento/lição.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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Em suma, a fábula, nascida da cultura popular, camponesa, transforma-se num

género onde se propõe um estudo sério sobre o comportamento humano, a ética e a

cidadania.

Mas serão estes os vectores que predominam nas fábulas de hoje? Mantêm-se

todos ou privilegiam-se uns em detrimento de outros?

É este aspecto que será abordado no próximo capítulo.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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2- A fábula em Daniel Pennac

L’Oeil Du Loup e Cabot-Caboche: romance-fábula?

Podem os textos seleccionados - L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche - ser

considerados fábulas, depois do que dissemos anteriormente?

Comecemos por uma breve sinopse das histórias.

L’Oeil du Loup conta a história de um lobo (Loup Bleu), cego de um olho,

enclausurado numa jaula de jardim zoológico de uma cidade do Ocidente, que se

cruza com um menino solitário (Afrique), também ele um ser novo naquela cidade.

Ambos estão afastados das suas origens: o lobo do Alasca; o menino da sua terra, o

continente africano. Por isso, sentem o desenraízamento, bem como a clausura: do

zoo e da cidade (L’Autre Monde).

De início, e apesar da constante insistência do menino em estabelecer uma

comunicação com o lobo, o animal parece imperturbável, na sua deambulação

permanente pela jaula. Todavia, depois da confiança alcançada, ambos vão partilhar

as histórias das suas vidas, numa enorme cumplicidade, que começa no olho aberto

de cada um, uma vez que ambos têm um dos olhos fechados. Assim começa o

desfilar de imagens, numa retrospectiva que tem início na infância de Loup Bleu,

com a sua família, no Grand Nord (Alasca), dominada pelo temor dos homens,

constantemente relembrado como o princípio da sobrevivência. Já no que diz

respeito ao menino, mostra-se, dentro do seu olho, uma vida de errância/viagem

pelas várias regiões de África (Afrique Jaune, A. Verte e A. Grise), onde ganha

novos amigos, que depois perde estranhamente. Uma vez retornados ao presente, o

lobo mostra como foi importante deixar-se seduzir e o seu olho, fechado pela

maldade dos homens e pela sua recusa de o abrir para a realidade, desperta para

um mundo de generosidade e fraternidade reencontradas, junto de Afrique, deixando

perplexos todos os que os rodeiam.

Cabot-Caboche relata o longo e penoso percurso de um cão (Le Chien),

abandonado à nascença, que efectua uma caminhada de errância e aprendizagens

sucessivas, até encontrar e cativar uma dona. Pomme, a menina caprichosa que o

adopta, cedo esquecerá as responsabilidades inerentes ao facto de ter um animal e

ignora-o. Os pais de Pomme contribuem de forma “violenta” para que, uma vez mais,

o cão seja abandonado. Este, pela sua perseverança e com a ajuda de outros

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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animais, de quem se torna amigo, prepara a vingança, que culmina com a sua

adopção definitiva por parte da menina e dos adultos. Le Chien é o portador de uma

mensagem para as crianças e os adultos, que consideramos uma lição de coragem

e persistência, concluída pelo texto de Pennac, colocado no final da ficção e cujo

título é Ni dresseur ni dressé.

� � � � � � � �

As histórias são protagonizadas por heróis-animais, que lhes dão o título – o

lobo e o cão – dotados de capacidades que os aproximam dos humanos e que

partilham o protagonismo com heróis humanos/crianças, cujos nomes são bastante

sugestivos (Afrique e Pomme). As aventuras animal-criança, no seu contacto com os

homens, servem-lhes, muitas vezes, de reflexão, deixando no ar as suas “opiniões

pessoais”. Pennac dá frequentemente a palavra aos animais, facto bastante mais

visível em Cabot-Caboche, em que as intervenções de Le Chien são constantes49.

Este torna-se o herói de diversas aventuras e também comentador, pois “critica” o

mundo que o rodeia, denunciando as atrocidades de que é vítima. A visão que este

animal (e também os outros que se cruzam na sua vida) tem do Homem é

extremamente satírica: os homens animalizam-se e os animais humanizam-se. Daí

que o narrador, cuja presença não podemos ignorar, privilegie sobretudo o ponto de

vista do cão, que pensa e “fala” como os homens.

Em L’Oeil du Loup nota-se menos “a tomada de palavra” por parte dos

animais, embora também se privilegie o ponto de vista, nomeadamente dos lobos e

do dromedário, já que se lhes atribui o papel de “observadores” do mundo em que

se movem. De igual modo, a personagem humana - o menino Afrique - vai relatar as

suas aventuras, com os homens e com os animais, deixando antever a sua visão

crítica.

Detectam-se, nestes romances, elementos da fábula clássica retrabalhados -

os animais que falam, a dimensão moral e pedagógica, embora possamos, desde já,

afirmar que se encontram, também, elementos da fábula moderna, uma vez que os

animais deixam de ser antropomorfizados e os homens tornam-se cruéis,

49 Julius, Le chien, o cão da saga Malaussène também intervém frequentemente, ou escutando e acompanhando os raciocínios de Benjamim, ou mostrando as suas reacções perante o que escuta ou presencia, como que marcando a sua importância enquanto personagem.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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predominando a dimensão satírica, acompanhada da visão utópica do autor, na sua

vontade de contribuir para a mudança do “mundo às avessas” que descreve.

Em L’Oeil du Loup reconhecemos a abordagem de vários temas actuais: o

abandono, a exploração de crianças e o trabalho infantil; a emigração e a imigração;

o desenraízamento; a perseguição, a fuga e a extinção dos lobos; a destruição da

floresta e o avanço do deserto, enfim, a crueldade do Homem e o contraste entre a

civilização ocidental e os amplos espaços naturais de África e do Grande Norte. Em

Cabot-Caboche, destacam-se a adopção e o abandono dos animais, particularmente

Le Chien; os caprichos de uma criança e o esquecimento desta face aos deveres

para com o seu animal adoptado; a união entre os animais, que se opõe à desunião

cada vez mais visível entre os homens.

Para além disso, no final, ao inverso da brutalidade com que culminavam

certas fábulas, presenciamos o nascimento de uma sólida e cúmplice amizade entre

um lobo e um menino, ou um cão e uma menina, o que leva ao final feliz.

Após a breve referência feita a algumas características género fábula que

detectámos nos dois romances, apresentaremos, de seguida, as mais visíveis,

justificando as nossas opções.

2.1- A presença da Oralidade.

De entre as características da fábula salienta-se a brevidade, bem como a

predominância das marcas da oralidade, exactamente por serem textos de cariz

essencialmente oral. Assim, estes textos, normalmente “contados”, eram de

extensão breve, permitido uma melhor fixação da mensagem. Para isso, recorria-se

a uma linguagem simples e coloquial, dado que a maioria dos seus ouvintes possuía

um baixo grau de instrução ou não sabia ler nem escrever.

Talvez seja pertinente, neste momento, estabelecer uma breve distinção

entre textos de cariz oral e textos escritos com características da oralidade, sendo

de referir que o género fábula passou por estas duas esferas. Os textos antigos, em

prosa, pertenceram durante muito tempo ao domínio oral e à tradição popular.

Depois foram fixados à escrita, sendo reescritos ou recriados, quer em verso, quer

em prosa, mantendo-se, no entanto, a brevidade.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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As fábulas eram transmitidas oralmente50, ou seja “contadas”, o que poderia

estar a cargo do próprio fabulista, mas também de outra pessoa. Deste modo,

predominava uma linguagem despojada de ornamentos, com vocábulos simples, de

fácil compreensão e memorização, sendo o texto frequentemente constituído por

diálogos e uma estrutura narrativa muito básica. A retransmissão desses textos,

permitia uma espécie de diálogo entre o contador e o receptor e, assim, passaram,

durante muito tempo, de boca em boca, de terra em terra. O fabulista/ “contador”

recorria à entoação, às redundâncias, mas ainda aos gestos, para melhor se

exprimir.

Com a fixação dos textos orais à escrita, verificou-se a sua reorganização e

adaptação, embora se mantivessem algumas das marcas da oralidade, introduzindo-

se os elementos que a reproduzem: os sinais de pontuação, os marcadores de

pausas, as frases curtas e sem complexidade sintáctica e ainda o recurso a uma

linguagem coloquial.

Daniel Pennac reconstrói a oralidade na sua escrita, usando as marcas do

prosaísmo, que a aproximam muito da linguagem do dia a dia e que conferem à

escrita um estatuto diferente. Tanto em L’Oeil du Loup e em Cabot-Caboche, como

de resto em todos os romances, nomeadamente os da saga Malaussène, a

linguagem empregue “foge”, com frequência, da “norma” escrita. Poderíamos

apresentar vários exemplos, dado que o recurso a esta estratégia é constante.

Optámos por uma citação retirada de Messieurs les Enfants, em que se reproduz o

pensamento de uma das personagens (jovem) que recorre a uma linguagem

predominantemente marcada por vocábulos do nível familiar e mesmo calão:

“L’enculé, pensa Nourdine, oh! Putain de sa mère. Je crois qu’il est en train de m’aider à

faire ma rédac et il m’interroge. (…) Le keuf des keufs ! Putain de lui ! Et je lui ai dit mon

nom ! Niqué, je suis ! Niqué, la putain de sa race ! » (p. 88)

Há quem afirme que Pennac escapa ao “politicamente correcto” porque

emprega uma linguagem com termos vulgares e familiares, frases de estrutura

simples e que nem sempre respeitam a ordem habitual. No que se refere às obras

em estudo, este aspecto é bastante visível em Cabot-caboche, embora também

50 Referimos no ponto anterior deste capítulo que as fábulas de Esopo eram de cariz essencialmente oral, tendo sido fixadas à escrita mais tarde. Também, os contos, as lendas e muitas das narrativas existentes hoje em recolhas escritas, foram durante muito tempo de cariz oral e pertenciam ao folclore, à tradição popular.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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encontremos alguns exemplos em L’Oeil du Loup. Assim, a sequência de oito

interrogações retóricas que o lobo se coloca, quando olhado pelo o menino,

reproduz o seu pensamento, ao ritmo dos seus movimentos rápidos. As

interrogativas finais resumem-se a verbo + partícula negativa ou partícula negativa +

nome, como se a personagem fosse perdendo “o fôlego” e já não conseguisse

“dizer” mais do que isso, tendo em conta que representam a expressão da sua

revolta: “Mais qui est-ce?»

«Qu’est-ce qu’il me veut?» «Ne fait donc rien de la journée?»

«Travaille pas?» «Pas d’école ?» «Pas d’amis ?» «Pas de parents ?»

«Ou quoi?» (p. 11)51

De Cabot-Caboche seleccionámos uma citação onde predomina a linguagem

familiar e o tom coloquial usado pelo homem do talho, em diálogo com o cão. Este

recorre a interrogações que denunciam o seu “ar zangado”, como se expressasse

uma certa “raiva” contra os outros homens. Denota-se ainda uso de repetições e de

interjeições, típicas do discurso oral. Certos vocábulos remetem-nos para a maneira

de falar da personagem, que parece ser uma sátira à pronúncia da região da

Provença, o que não deixa de conferir um tom leve e humorístico ao texto:

« - Et alors, qu’est-ce que ça veut dire? On vient nous écraser nos chiengs ? Quoi ? Pas

content ? Hé ? Faut que je me fâche ? Va donc, eh, Parisieng ! (...)

“- Et toi, qui tu es, toi? D’où tu viengs ? Comment tu t’appelles? T’es pas joli, dis donc! Tu as

faimg? (p. 29)

Um outro exemplo evidencia o recurso a termos vulgares ou a reprodução da

linguagem falada, com a abreviação de palavras ou as repetições:

“- C’est pas tout ça, mais faudrait voir à le baptiser, ce corniaud52 !(…)

- D’accord! d’accord! Qu’on lui trouve un nom, braillèrent les invités.. (...)

- Qu’est-ce que t’en penses, ma p’tite reine? » (p. 72)

Considerando-se que a reprodução da oralidade na escrita torna possível

uma comunicação entre o autor e o leitor, há uma maior adesão, sobretudo do leitor

51 As páginas indicadas são as das edições de 1994, da Pocket Junior 52 Em Cabot-Caboche há vários termos empregues para “dizer” chien, como explica o narrador: “«Clebs» c’est un autre mot pour dire chien. Il y en a d’autres, et pas beaucoup élogieux : «bâtard», «corniaud», «clébard», «cabot», etc. Le Chien les connaît tous ; il y a belle lurette qu’il ne se formalise plus. » (p. 7)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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mais jovem, que se identifica com este tipo de linguagem. Certos autores defendem

que, ao retratar a oralidade na escrita, a narrativa se desenvolve como forma de

comunicação do pensamento em andamento contínuo, tentando dar conta do

movimento da realidade.

A oralidade, fortemente presente no romance moderno, é uma das marcas da

revitalização do romance que se opera no século XX. Há autores que consideram

que o século XX se transforma no novo século da retórica. Foi sobretudo com Céline

(1841-1961), influenciado pelo estilo de Rabelais (1494-1553), que a língua

francesa, durante algum tempo abafada pelo preciosismo, evoluiu. Não podemos

esquecer que este século vai privilegiar a variedade, não só na literatura, como

também na arte (impressionismo, expressionismo, cubismo, fauvismo...). Céline

valoriza a língua, a oralidade popular, adaptando a língua aos temas actuais que

aborda. Em Voyage au Bout de la Nuit (1932), o autor apresenta uma língua

renovada, onde introduz a oralidade, termos de « argot », imagens que retira da

língua popular, falada nos subúrbios de Paris. O escritor enriquece a língua,

inventando novos termos, confrontando-os com expressões arcaicas; as frases são

marcadas pela cadência, cortadas por uma pontuação extrema e pela musicalidade

das palavras. Diz-se que Céline ao oralizar o estilo literário, estiliza a língua oral.

Esta é uma das marcas da modernidade da sua escrita, da sua obra e do romance

em geral.

Pennac é, notoriamente, um herdeiro das técnicas célinianas, que considera

um dos seus mestres. Por isso, também encontramos em Pennac a oralidade e o

recurso a uma linguagem do domínio do quotidiano.

Uma outra marca do romance moderno, que reproduz a oralidade, é o recurso

ao monólogo interior. Este permite reproduzir o fio dos pensamentos das

personagens, à medida que vão aflorando à sua mente, em divagações que deixam

antever tudo. Por isso, na escrita, reproduzindo-se esse discorrer de ideias, parece-

nos presenciar um discurso pronunciado em voz alta, por alguém que dialoga

connosco.

Refira-se ainda que a oralidade torna possível, segundo Calvino53 (1990: 51)

“... a dilatação do tempo pela proliferação duma história noutra, que é uma característica na

53 In, Seis propostas para o novo milénio, São Paulo, Companhia das Letras.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 49

novelística oriental. Sherazade, conta uma história, na qual se conta uma história, na qual se

conta uma história e assim por diante.”

Em Daniel Pennac54 verificamos, igualmente, que uma das marcas da

oralidade passa pela existência da história, lida ou contada, não só nos romances

que estamos a analisar, como em vários outros, técnica narrativa que aproxima o

leitor do livro. Talvez fosse esse o seu principal propósito em Comme un Roman,

onde Pennac relata a sua história, aquela que fez com que os seus alunos

passassem a gostar das histórias que lhes contava, dos romances que lhes lia por

puro prazer, “abrindo-lhes o apetite”, tentando reconciliá-los com a leitura: “Le temps

de lire, comme le temps d’aimer, dilatent de temps de vivre.» (p. 125) Na sua produção

romanesca, o autor intrinca histórias dentro da história. As personagens contam

histórias ou lêem em voz alta, tornando-se veículos de uma cultura “popular” que

tende a ser retomada na literatura actual. Reproduzindo-se a oralidade nos

romances modernos, recupera-se a tradição oral e, deste modo, pode-se

estabelecer um diálogo reflexivo sobre a condição humana e o “sentido da vida”.

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A quem era antes e é hoje atribuído o papel de contador de histórias?

Para Walter Benjamin (1936)55 exitem dois grupos na arte de narrar: os

camponeses sedentários, conhecedores da tradição e os marinheiros comerciantes.

Contudo, apontam-se mais dois grupos de narradores – as mulheres e os velhos.

Assim, a missão de contar histórias era, frequentemente, deixada a cargo da

mulher, que narrava enquanto trabalhava (“mãos cheias, pensamento livre”),

adquirindo um estatuto privilegiado junto das crianças. Para além da educação,

estava-lhes destinada a tarefa de as “entreter”: recitavam fábulas, lengalengas,

provérbios ou cantavam. Ainda hoje constatamos que é quase sempre a mãe que

conta/lê uma história à criança para a adormecer. Quanto ao homem, este só o fazia

se fosse um viajante, um artesão ou um velho (desocupado que tenta resgatar a

memória através do acto de contar), o que ainda é comum entre os povos africanos,

54 Daniel Pennac, já o referimos no capítulo I, afirma que o seu grande prazer é contar histórias e que o romancista é um contador de histórias. Por isso, lia romances em voz alta aos seus alunos ou contava-lhes histórias, como nos dá conta em Comme un Roman. 55 BENJAMIN, Walter (1994) “ O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”, in Obras Escolhidas: magia, Técnica, Arte e Política, São Paulo, Brasiliense

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 50

que normalmente se reúnem em redor da fogueira, à noite56, para ouvir o “grande

chefe”.

Em L’Oeil du Loup, Pennac insere personagens a contar histórias. Na história

do “Louveteau maladroit”, uma subversão da história de Le Petit Chaperon Rouge,

quer no conteúdo, quer no papel do contador e dos ouvintes, a loba-mãe (Flamme

Noire) conta histórias de “homens maus” aos lobinhos, para os adormecer. A sua

intenção era divertir mas também alertar os lobos para a “maldade” dos homens.

Porém, nunca lhes revela o final57. Esta opção do autor, acrescida do facto de não

ter moralidade, permite-nos reconhecer a presença da fábula moderna. O texto

apresenta-se como uma espécie de relato irónico e um pouco trágico, sobre a

perseguição e extinção dos lobos. Não necessita de moralidade porque está

subjacente a todo texto a intenção de fazer o leitor reflectir.

As duas histórias (Le Chaperon Rouge e « Le louveteau maladroit ») começam

com “Il était une fois...” (a fórmula inicial dos contos) e terminam da mesma forma,

abrupta, invertendo-se os papéis – a menina é devorada pelo lobo e a avó do lobo é

morta pelos homens, como podemos ver pelo quadro seguinte:

« Le Petit Chaperon Rouge» - Contes de

C. Perrault

« L’histoire du louveteau maladroit et de sa grand-mère trop

vieille» - L’Oeil du Loup - D. Pennac

« Il était une fois une petite fille de Village,

la plus jolie qu’on eût su voir… » (p. 258)

(…)

«Et, en disant ces mots, le méchant loup se

jeta sur le Petit Chaperon Rouge, et le

mangea.» (p. 260)

Segue-se a moralidade (como conclusão)

« Il était une fois un louveteau si maladroit qu’il n’avait jamais rien

attrapé de sa vie. » (p. 24)

(…)

«- Alors l’Homme tua Grand Mère, lui vola sa fourrure pour se faire un

manteau, lui vola ses oreilles pour se faire un chapeau, et se fit un

masque de son museau. » (p. 26)

sem moralidade e sem conclusão

Em Cabot-Caboche, Pomme lê uma história enquanto Le Chien dorme, na sua

cama, como se lha estivesse a contar baixinho para não perturbar o sono.

Porém, Pennac não atribui só às mulheres o papel de contadoras de histórias.

Nos seus romances, também os homens, velhos e novos, crianças e inclusive 56 Nos contos africanos, há quase sempre o relato de histórias por velhos homens, normalmente os chefes das tribos, viajantes ou habitantes do deserto, em redor das fogueiras, como forma de iniciar os jovens e as crianças nas experiências da vida. 57 Podemos levantar duas hipóteses: ou se pretende mostrar que cabe aos ouvintes, neste caso os lobos, tirar as suas conclusões ou se deseja oferecer ao leitor um motivo de reflexão, dado que podemos considerar este texto é uma sátira à actuação do homem, cujo racionalismo e valores parecem ter-se perdido.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 51

animais (loba e cão) contam/recitam, o que é mais uma das suas marcas

romanescas.

Na saga Malaussène, os velhos Van Thian ou Risson (retirados do mundo da

droga ou da mendicidade das ruas, estrangeiros que habitam bairro de Belleville e

que são acolhidos na casa de Malaussène) contam histórias/lêem livros, à noite, num

espaço de partilha e de confraternização, o que leva quem escuta a sonhar. Muitas

vezes, ao escutar as conversas, as crianças solicitam que lhes relatem os

acontecimentos vividos, tal é a sua avidez pelas histórias. Benjamin Malaussène,

que não é nem velho, nem viajante ou artesão e Yasmina (a mulher-fada) contam

histórias que deliciam e entretêm, não só as crianças, mas também os adultos. São

histórias de ogres e papões de Natal, de crimes e perseguições, de polícias e

ladrões mas que não atemorizam as crianças. De salientar que, com Daniel Pennac,

defende-se uma revalorização da leitura e as histórias ganham novo fôlego junto dos

leitores/ouvintes. Estas já não são consideradas perigosas; os heróis não morrem; os

criminosos continuam a ser castigados; os ogres não são monstruosos e há fadas

boas que intervêm quase sempre. Enfim, continua a prevalecer a lei dos bons contra

os maus, à semelhança dos contos e fábulas clássicos, a moralidade ainda existe,

com a mesma finalidade pedagógica, embora com contornos diferentes.

Em L’Oeil du Loup, Afrique, uma criança-órfã-viajante, dotada de uma enorme

capacidade de contar histórias, deleita todos quantos o escutam (os habitantes do

deserto, da savana ou da floresta e ainda os animais) com as suas narrativas

inventadas ou vividas: « Alors le garçon racontait pour eux les histoires qui naissaient dans

sa tête, là-haut, sur la bosse de Casseroles. Ou bien il leur racontait les rêves du dromadaire….»

(p. 55) (…) “Toutes ses histoires parlaient de l’Afrique Jaune, le Sahara, l’Afrique du soleil, de la

solitude, des scorpions, et du silence. » (p. 55) Esses seres escutam-no, atentamente,

criando laços afectivos, entrando no mundo maravilhoso e onírico: “Ce n’étaient pas des

voleurs. Ce n’étaient pas des animaux affamés. C’était la foule de tous ceux – hommes et bêtes –

qui venaient écouter les histoires d’Afrique. » (pp. 66- 67). As histórias de Afrique são de

tal modo apreciadas que os comentários são os mesmos nos três locais onde as

conta:

“- Il raconte bien, non ?

- N’est-ce pas qu’il raconte bien ?

- Pour ça oui, il raconte bien!” (p. 54, 67 e 78)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 52

Assim, as histórias, lidas ou contadas, podem funcionar como espaço de união,

confraternização, comunicação - troca de saberes e experiências - mas também

como propulsoras do sonho.

Afrique, uma criança, um nómada com uma vida atribulada, representante das

minorias, incarna, de certo modo, as características dos velhos contadores de

histórias, caracterizados pelas suas experiências e sabedoria, aliadas a uma longa

vida, cheia de aventuras. Este menino, que nunca deixa de o ser, revela uma

maturidade fora do comum e uma enorme imaginação criativa, oposta à imaturidade

dos adultos. Com as suas histórias, Afrique ganha adeptos/amigos (os que o

escutam, estão sempre do seu lado, partilham os momentos presentes e futuros), o

que mostra que «a união faz a força» e mesmo “... quand chacun repartait de son côté,

c’était comme s’ils restaient ensemble.” (p. 67).

Em conclusão, a oralidade e o contar histórias, dentro do romance, são

características que Pennac privilegia, possivelmente desejando recuperar a tradição

oral, inserindo-a na escrita, porque um pouco desvalorizada pela sociedade

moderna, mais preocupada com outros aspectos.58 Portanto, em L’Oeil du Loup,

Afrique, sendo um comunicador nato, representa o perpetuador da cultura popular,

vinda da fábula, retratada de uma forma interessante, que procura manter o leitor

“preso” ao texto, ao mesmo tempo que faz passar mensagens onde procura

relembrar valores que parecem esquecidos/invertidos.

2.2- O espaço e o tempo.

2.2.1 – O passado e o presente – a aventura picaresca dos heróis.

Na fábula, espaço e tempo são universais. A sua importância é praticamente

anulada pela mensagem principal que o texto pretende veicular e que não passa

propriamente pela importância dada ao local ou ao momento em que decorrem os

acontecimentos.

58 Consideramos interessante referir Peer Gynt (1867), de Henrik Ibsen, que é o exemplo de uma história em que se critica a falta de capacidade dos homens de ouvir ou de contar, que se iniciou com o advento da sociedade burguesa e a difusão da imprensa. O herói (o jovem Peer) é um anti-herói que tenta resgatar a oralidade para a escrita, dotado de uma imaginação livre, contando histórias inventadas mas em que ele próprio acredita, apesar de ser considerado um louco, mentiroso e bêbado, que sonha tornar-se imperador.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 53

Em Pennac, a relevância concedida ao espaço e ao tempo é evidente, dado

que ambos fornecem elementos essenciais para se entender o decurso dos

acontecimentos. Por outro lado, L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche são textos onde se

relatam factos diversos, passados em tempos e em lugares diferentes, não tão

lineares como nos contos e fábulas.

No decurso das intrigas, há uma clara oscilação entre presente-passado-

presente que permite ao leitor entrever todos os factos importantes para a

construção das histórias dos quatro heróis. Neste aspecto, os dois romances

apresentam pontos comuns.

Em L’Oeil du Loup, as personagens, humana e animal, encontram-se no

presente, no mesmo local - o jardim zoológico, da cidade do ocidente - onde se

cruzam por acaso. Esse tempo presente, no início da história, representa

adversidade e infelicidade .

Entretanto, o leitor é “convidado”, juntamente com cada um dos heróis, a

viajar até ao passado. Esse retrocesso é efectuado através do “mergulho” no olho

aberto. Cada um pode constatar o início de uma vida “feliz”, porque se passa no

território onde o outro nasceu e viveu em liberdade. Loup Bleu e Afrique “relatam”

também as aventuras por que passaram, os constantes encontros com os homens e

as respectivas manobras para lhes escapar. Por isso, a sua liberdade é

constantemente ameaçada até ao momento em que o lobo é capturado ou o espaço

em que o menino vive é destruído, obrigando-os a abandonar definitivamente os

seus territórios, perdendo a independência.

No final, o retorno ao presente revela as mudanças, operadas nos dois

protagonistas, deixando de simbolizar a contrariedade, para representar a liberdade

recuperada, a felicidade, bem como a projecção num futuro melhor.

A estrutura temporal, proposta no esquema seguinte, mostra a circularidade

da história, que começa e termina no momento presente, havendo de permeio um

retorno ao passado:

Capítulo I Capítulo II Capítulo III Capítulo IV

LEUR RENCONTRE

Face a face entre lobo e

menino.

L’OEIL DU LOUP

Através do olho do lobo

em que o menino

mergulha.

L’OEIL DE L’HOMME

Através do olho do

menino em que o lobo

mergulha.

L’AUTRE MONDE

Face a face entre lobo

e menino.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 54

No zoo da cidade do

Ocidente

No Grand Nord Nas três Afriques No zoo da cidade do

Ocidente

Presente Passado Presente

Em Cabot-Caboche as aventuras e desventuras de Le Chien, no passado e no

presente, dão-nos a conhecer um herói cuja vida é pautada pela errância,

instabilidade e fuga. As agruras que fazem parte do seu passado são evocadas

através dos seus sonhos/pesadelos, que nos reenviam até à sua infância, ficando a

conhecer as circunstâncias que o levam a aprender a sobreviver no mundo hostil em

que nasce e cresce.

O esquema que se segue resume a estrutura temporal e espacial desta história

que é ligeiramente mais complexa, estendendo-se por 39 capítulos. No entanto, há

uma sequência cronológica que não sofre grandes desvios. Deste modo, o capítulo I

passa-se no presente, tempo de ansiedade e contrastes. Do II ao XXVIII há uma

analepse que permite ao leitor conhecer as várias aventuras e aprendizagens de Le

Chien (os momentos bons e maus). A partir do capítulo XXIX, até ao fim, regressa-

se ao presente, onde ainda persistem proezas árduas, às quais se sobrepõem as

agradáveis, verificando-se, no final, também uma projecção para um futuro melhor:

Tendo em conta os acontecimentos narrados e a forma como se vão

desenrolando, nomeadamente para os protagonistas, ou seja, todo um percurso de

aventuras e desventuras, que começa no passado, consideramos que Loup Bleu,

Início da história, em Paris, com discussões acerca de Le Chien, Os pesadelos.

1 2

Infância, os tempos na lixeira, a vinda para a cidade em busca de uma dona, o canil.

Cap. I e II

3

Le Chien é levado pela menina (Pomme) e seus pais ( La Poivrée e Le Grand Musc).

Cap. III a XI Cap. XII a XVI

4

O regresso a Paris, a desolação por causa do desinteresse de Pomme, a fuga, o encontro com Le Hyeneux e as aprendizagens. O reencontro com Pomme.

Cap. XVII a XXVIII

5

O regresso do cão a casa. Partida para férias, o abandono e o retorno a Paris; o acolhimento por Le Hyeneux e Le Sanglier; o desejo de vingança.

Cap. XXIX a XXXIII

A união dos amigos, a destruição do apartamento. O regresso de Pomme e a aceitação por parte dos donos.

6

Cap. XXXIV a XXXIX

O retorno ao passado - sonhos/pesadelos Início no Presente Presente e futuro em perspectiva

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 55

Afrique e Le Chien apresentam algumas das características dos pícaros,

domindados por uma certa tragicidade.

Quem é o pícaro?

O pícaro59 é um herói que, normalmente, se distingue pelo seu carácter de

vagabundo, de marginal, proveniente de famílias humildes (de condição social

baixa), mal vestido, um andarilho, que se movimenta em vários espaços, numa

sociedade em decomposição e onde prolifera a miséria, ou seja, um “mundo às

avessas”. Ao longo da sua vida, vai passar por incansáveis peripécias, vive com

dificuldades, pode inclusive matar ou roubar, com a finalidade de alcançar os seus

objectivos. Está condenado a levar os seus dias de mestre em mestre. Pelas

circunstâncias da vida e porque busca melhores condições para a sua miséria,

transforma-se num espertalhão, mas sem maldade. É um ser ingénuo, risonho e até

amável que, com o passar do tempo, faz aprendizagens, o que contribui para o seu

amadurecimento. Para sobreviver, vê-se obrigado a servir um amo que, muitas

vezes, é também um marginal (um cego, uma alcoviteira, um cavaleiro

empobrecido). Tal como o seu amo, este “trapaceiro” busca fortuna e ascensão

social. Todavia, a sorte é efémera e o pícaro tem de se servir de outros

estratagemas para garantir a sua sobrevivência60. Muitos consideram-no um anti-

59Por pícaro designa-se o herói das novelas ou romances picarescos que surgiram em Espanha, em meados do século XVI, sendo Lazarillo de Tormes, que se diz ser de autor anónimo, uma das suas primeiras manifestações. Parte-se da realidade social do país onde, a seguir a um período de expansão, se observou uma forte crise. A sociedade, empobrecida, desprezava o esforço produtivo. Ricos e pobres davam-se o parasitismo. O romance picaresco surge como sátira aos romances de cavalaria. Esta literatura é ainda caracterizada por integrar narrativas (novelas e romances) de cariz autobiográfico, cujas peripécias começam na infância e constituem, além de tudo, uma sátira impiedosa às diversas classes e condições sociais. Fonte: http://fr.encyclopedia.yahoo.com 60 - Não podemos deixar de referir a personagem do Sancho Pança, de Don Quixote de la Mancha (Miguel de Cervantes, 1547-1616), um bufão, homem cuja figura, as aventuras e a própria vida fazem rir, porque se sujeita sempre às vontades de seu amo, suportando-lhe todas as esquisitices, ao mesmo tempo que nos faz reflectir sobre a existência humana... - E porque não referir também a personagem Bardamu, de Voyage au Bout de la Nuit de Céline, o herói/anti-herói, um pícaro, miserável, que vive tribulações aventureiras pelos quatro cantos do mundo, desde a França, aos continentes africano e americano, com o regresso a França e a vivência de novas aventuras. - Por entre os inúmeros exemplos que poderíamos mencionar, há um texto curioso de Miguel Torga, publicado em 1943 e depois em 1985 (edição modificada), intitulado O Senhor Ventura em que o protagonista é um pícaro que, segundo o próprio autor “representa cada um de nós, dado que somos andarilhos do mundo, capazes em todo o lado do melhor e do pior.” (pág 4, Prefácio da 2ª Edição). Este homem, simples, começa a sua vida no Alentejo como guardador de rebanhos, vem para Lisboa, depois parte para Macau. Passa pela China e, desejoso de conhecer novos mundos, deserta do exército. Trabalha como marinheiro, faz contrabando, assassina um fiel de alfândega, torna-se empregado da Ford, sócio de restaurante, viaja até à Mongólia para entregar camiões, vende armas.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 56

herói, por ter características de bufão. No entanto, não é tratado como uma pessoa

de índole má, apenas é amoral, com traços de humor e autopiedade. Segundo

Oldrich Belic (1963), as principais características do pícaro passam pela viagem,

pela servidão e pelo carácter autobiográfico das suas aventuras.

Quem são os pícaros em L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche? Porque é que

podemos considerá-los pícaros? Qual a importância da existência de pícaros nestes

romances? Será que as características atrás mencionadas estão presentes nestes

pícaros?

Afrique, Loup Bleu e Le Chien são os heróis destes dois romances que

funcionam como uma espécie de “conto de aprendizagem” ou “romance de

formação”61 que, segundo a definição proposta por Aguiar e Silva: “narra e analisa o

desenvolvimento espiritual, o desabrochamento sentimental, a aprendizagem humana e

social de um herói” (p. 730). Nas narrativas de formação, a personagem “confrontando-

se com o seu meio, vai aprendendo a conhecer-se a si mesma e aos outros, vai

gradualmente penetrando nos segredos e problemas da existência, haurindo nas suas

experiências vitais a conformação do seu espírito e do seu carácter.» (p. 731) Estes

romances dirigem-se a um público jovem, em formação, daí que as aventuras dos

heróis sejam marcadas pela existência de provas que estes têm que superar para

alcançar os seus objectivos. Em quase todas as histórias infanto-juvenis, os heróis

são uma espécie de pícaros (viajantes do mundo), uns com maldade, outros vítimas

dela. No final, vencem-se os perigos, os heróis são verdadeiros heróis, resistem a

tudo e a todos, conseguem resolver completamente os problemas, restaurando-se o

equilíbrio quebrado inicialmente, para “satisfação” dos leitores, mostrando-lhes que é

necessário, muitas vezes, ultrapassar os perigos para sobreviver.

Os três heróis, dos romances em estudo, passam parte das suas vidas em

viagem. Esta não é um fim, apenas um meio que a personagem encontra para

conseguir uma nova situação, viver novas aventuras e escapar às vicissitudes.

Casa com uma russa, tem um filho e, para conseguir meios para o educar, tem um negócio de máquinas de jogo, uma garagem de taxis, uma fábrica de heroína. Como este negócio corre mal, o Senhor Ventura vê-se obrigado a regressar a Portugal, viajando pelo mundo. Mesmo assim, no Alentejo os negócios nem sempre correm bem. Quando consegue algum dinheiro, volta a partir para a China, percorre de novo vários locais, faminto e esfarrapado, acabando por morrer longe da sua terra. No fundo, este herói pícaro é, como todos os outros, marcado pela vida de aventuras constantes, de viagem, de servidão e tentativas constantes de sobrevivência. 61 Silva, V, M. Aguiar e (1988), Teoria da Literatura,7ª Edição, Coimbra, Almedina (pp. 730-731)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 57

Em virtude da guerra e da violência, o menino Afrique perde a família e vê-se,

constantemente, obrigado a viajar. A sua infância é passada entre o deserto, a

savana e a floresta africanos que, entretanto, vão sofrendo alterações, fruto da

intervenção humana (destruição da floresta e avanço do deserto). O seu destino vai

sendo traçado em cada local por onde passa. Tem vários encontros e outros tantos

desencontros com seres – humanos e animais - que contribuem para a sua

aprendizagem e experiências no mundo dos homens. Vive a um ritmo muito célere,

pois tem que crescer e amadurecer rapidamente. Serve vários amos, que são seus

mestres, passa por diversas privacidades.

Loup Bleu e a sua alcateia estão em permanente viagem/fuga, perante a

presença ameaçadora dos homens. Percorrem o Grand Nord, em busca de um

abrigo, de um refúgio, onde possam continuar a sua vida, sempre junto da alcateia.

Pelo caminho, vão perdendo familiares (Grand Loup, que morre, ou Loup Bleu,

capturado pelos homens) mas persistem em encontrar uma solução.

Le Chien palmilha caminhos (por vezes são mesmo longas distâncias) cheios

de perigos, desde a infância – a lixeira, a cidade de Nice, Paris (por onde vagueia

sozinho), o caminho de regresso a Paris (depois do abandono), sempre em busca

de uma saída. A viagem solitária (quer da lixeira para Nice, quer de regresso a

Paris) fá-lo aprender e, ao mesmo tempo, leva-o a reflectir sobre a vingança que vai

urdindo.

Estes heróis, nomeadamente Afrique e Le Chien, para sobreviverem, servem

vários mestres. Para Afrique, a servidão é um modo de vida e, acima de tudo, um

meio de subsistência. Os mestres que encontra e serve, representam os maus de

carácter, mas acabam por contribuir para a sua aprendizagem e amadurecimento,

ao mesmo tempo que garantem a sua protecção e sobrevivência. Toa le Marchand,

o primeiro mestre, é um homem de má índole, interesseiro e perverso, que se serve

do menino em seu proveito pessoal (fá-lo trabalhar duramente e cobra dinheiro pelas

suas histórias62). Segue-se Le Roi des Chèvres, o velho pastor que lhe ensina a arte

do pastoreio. Todavia, é um homem duro que não permite o mais simples deslize.

62 “Toa, le Marchand n’aurait pu trouver un garçon capable de charger et de décharger le dromadaire plus vite que lui. Ni de présenter si joliment les marchandises devant les tentes des Bédouins, ni de mieux comprendre les chameaux, ni surtout, de raconter de plus jolies histoires, le soir, autour des feux… » (p. 54)

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________________________________________________________________________ 58

Finalmente, o condutor do camião, também dominado pelo seu mau carácter,

explora a criança, cobrando dinheiro pelas histórias que esta conta. Todos estes

mestres podem ser, igualmente, considerados pícaros, “trapaceiros” porque

exploram a criança, o que se torna dramático.

Le Chien tem vários mestres e com eles vai fazer um percurso de

aprendizagem contínua. Os seus mestres são os animais: Geule Noire, na lixeira; Le

Laineux e Le Nasillard, no canil e essencialmente Le Hyéneux, em Paris, os gatos e

ainda Le Sanglier (um humano que o trata bem) que contribuem, com os seus

conselhos e as suas experiências, para que conclua a sua “formação” enquanto cão.

Contudo, estes mestres são-no verdadeiramente, não representam os trapaceiros,

não o obrigam a nada, antes o submetem a provas63. Vejamos o que ensinam a Le

Chien os seus principais mestres e amigos:

Gueule Noire –

a velha cadela da

lixeira

- ensina-o a fugir aos perigos -

a palavra-chave é a “esquive” –

4 referências em duas frases)

- a olhar bem em seu redor para

que aprenda depressa;

- a não hesitar, porque a

hesitação é uma grande inimiga;

- a desconfiar dos homens

porque estes são imprevisíveis;

- a descobrir e identificar os

diferentes cheiros, o que é

muito importante para o cão, na

medida em que são estes que o

auxiliam na sua caminhada em

direcção ao sucesso;

“La force, ce n’est rien, dans la vie. C’est l’esquive qui

compte! (...) L’esquive! C’est l’art d’éviter les mauvais

coups ! »(p. 20)

“Si tu vas en ville, dit-elle, fais attention aux voitures,

l’esquive, mon petit, l’esquive.» (p. 22)

“Eh bien !- puisque tu as les yeux ouverts profites-en pour

regarder autour de toi et apprendre vite. ”(p. 16)

« Quand tu as pris une décision, ne reviens jamais en

arrière (...) L’hésitation c’est l’ennemie mortelle du

chien.” (p. 25)

“- Méfie-toi des hommes, ils sont imprévisibles!” (p. 28)

(esta frase vai ser várias vezes repetida ao longo do texto)

« Petit à petit, il apprit à démêler l’écheveau des odeurs,

et devint même assez fort dans cette spécialité. (…)» (p.

17)

- transmitem-lhe as suas normas

de vida, pois foram também

vítimas de abandono;

63 Por exemplo quando Le Hyéneux leva Le Chien a visitar o cemitério dos cães, onde este é arranhado por um gato, ou quando o cão é colocado perante as crianças “confusas” à porta das escolas.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 59

Le Laineux e Le

Nasillard,

- no canil

vítimas de abandono;

- independência, liberdade e

dignidade (Le Nasillard);

- a nunca perder a coragem (Le

Laineux) ;

“Voyez-vous, moi, ce que j’aime, c’est la liberté, la

dignité… » (p 56)

“C’est le moment de se montrer courageux...” (p. 57)

Le Hyéneux

o cão que o

acolhe em Paris e

que termina a sua

« educação»

- conclui os ensinamentos

iniciados por Gueule Noire;

- fala-lhe dos homens, dos cães e

das suas relações; ensina-o a

reagir quando algum homem lhe

quiser bater;

- o que significa a sedução e

como se processa

- porque é que as crianças são

confusas e têm comportamentos

estranhos

- a compreender as relações cães

–gatos e a possibilidade de

coabitação

“Il lui apprit tout. Tout ce que Gueule Noire n’avait pas eu

le temps de lui apprendre.”(p.114)

“Tu t’assieds, tu prends l’air le plus crétin possible, et

tu le regardes en penchant la tête à droite ou à gauche,

une oreille pendante et l’autre dressée. (…) » (p. 115)

« - Eh bien ! Voilà… Quand on est si moche que nous le

sommes toi et moi, il n’y a qu’une seule solution : C’est la

séduction.» (p. 115)

« - Il faut savoir se faire désirer.» (p. 116)

“Ce n’est pas du caprice. C’est du mélange, elle ne sait

pas encore ce qu’elle veut.” (p. 118)

Estes cães-mestres, que também passaram por aventuras e provas duras,

quais pícaros, mas sem picarice, representam a experiência e o conhecimento,

transmitido a Le Chien. Por isso, em momentos de maior tensão, este escuta as

suas “vozes interiores”, impulsionando-o à acção. No fundo, são eles que dirigem o

“piscar de olhos” ao leitor64. Talvez por isso, a “vingança” final represente uma

espécie de lição, mostrando que a união dos animais é fortíssima, ao contrário da

cada vez maior desunião dos humanos.

As aventuras do herói/pícaro são habitualmente contadas na primeira pessoa

(daí o carácter autobiográfico, aqui um pouco diluído, porque a intervenção do

narrador faz-se notar); os episódios são estruturados de forma linear, tendo início na

- 64 “Il va être trop tard, murmura une voix en lui, n’oublie pas l’hésitation est l’ennemie mortelle du chien. » (Gueule Noire) - « Et la dignité, fit une autre voix, qu’est-ce que tu fais de ta dignité ?» (Le Laineux) - «Qu’est-ce que tu préfères, eh ! Patate ? Rester au chaud et recevoir des coups de balai, ou courir librement dans le froid ? Le chien est un animal indépendant mon pote ! In-dé-pen-dant ! (Le Nasillard) (pp. 94-95)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 60

sua infância. Vejamos, então, de que modo se desenvolvem as histórias destes três

heróis:

Em L’Oeil du Loup, quer a história de Loup Bleu, quer a de Afique são

narradas, no passado, por cada um, através do olho. O que o menino vê, logo de

início, na pupila do lobo: “C’est une louve noire, couchée en boule au milieu de ses petits

(...) Le pelage du sixième est bleu, bleu comme l’eau gelée sous un ciel pur. Loup Bleu ! »

(pp. 16-17), exactamente os primeiros momentos da vida da alcateia, no Grand

Nord. Seguem-se as constantes fugas dos homens, até à captura e à errância pelos

zoos. Por seu turno, o começo da vida de Afrique parece menos pacífico, porque se

passa num ambiente de guerra e hostilidade, visível na selecção de vocábulos

pertencentes ao campo lexical da violência/guerra: “Une nuit terrible. Une nuit d’Afrique

sans lune. (…) Des cris de panique, des galopades, brefs éclairs qui jaillissent de tous les

côtés, suivis de détonations. (…) La guerre ou quelque chose comme ça. (pp. 48/49), em

que a criança perde a família e se vê entregue ao destino.

Em Cabot-Caboche, tomamos contacto com a infância e com a vida de Le

Chien que, através dos seus sonhos/pesadelos, nos transporta até ao passado e à

sua vida de errância constante. Apesar de ser um animal, este cão é um pícaro, que

viaja e vagabundeia, sempre em busca de um destino melhor.

Como sobrevivem estes pícaros?

A vida destes heróis é marcada, quer pelo instinto, quer pelo espírito de

sobrevivência. O assegurar da sobrevivência passa, muitas vezes, pelos desafios

com que se deparam. Afrique nasceu no meio da guerra e da violência, podia ter

morrido. É um ser frágil que ficou sozinho no mundo. Representa os inocentes, os

perseguidos65 (tónica que foi desde sempre colocada na literatura), que está exposto

aos desígnios dos homens que o exploram, embora tenha estratégias de evasão.

Apesar das privações, aprende a sobreviver, trabalhando para garantir a sua

subsistência de forma honesta, não necessita de roubar ou matar, o que o distancia

do tradicional pícaro (por exemplo Lazarillo de Tormes), até ao momento em que

encontra os pais adoptivos (P’pa e M’ma Bia), dois humanos diferentes e sensíveis

que o aceitam, devolvendo-lhe a infância perdida, bem como a serenidade. Este

65 Normalmente as crianças eram alvos de perseguições por uma bruxa má, um ogre, um animal, um ser de má índole (Hansel e Gretel, O Capuchinho Vermelho, A Gata Borralheira...)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 61

menino não apresenta características de bufão, não se torna ridículo ou risível,

talvez porque seja uma criança de boa índole.

Le Chien está várias vezes no limiar da morte à qual escapa sempre, nas

deambulações da sua vida. Logo à nascença, o animal é alvo de um afogamento66,

por ser feio, torna-se um quase miserável, um mendigo da vida; quase é morto por

uma automobilista, em Nice, e escapa da morte ao ser atirado pela janela do

camião. Contudo, o seu instinto de sobrevivência, a sua persistência, a enorme

vontade de vencer e o seu faro levam-no no encalço dos seus objectivos:

- « Ainsi pense Le Chien en cherchant son odeur sous la couche de toutes les

autres. Il cherche patiemment. Il sait qu’il la trouvera. (…) Ces millions d’odeurs qui

font un manteau de dentelle à la terre, c’est la géographie des chiens… » (pp.

164-165)

Loup Bleu, os membros da sua alcateia, mas também os outros animais

(Casseroles, le Guépard e l’Hyène, le Gorille...) vivem em permanente desafio com a

vida e, a todo o momento, podem encontrar perigos pela frente, sobretudo os

homens/perseguidores. Por isso, estão em constante fuga. Para salvar a irmã

Paillete (a desafiadora do destino, símbolo da liberdade, mas também do

inconsciente, pela maneira como se comporta e o seu constante riso; do pisar do

risco e da desobediência), Loup Bleu é capturado pelos homens e ferido num dos

olhos.

Estes heróis não desafiam o destino, são simplesmente apanhados por ele,

desde o início. Todavia, acreditam numa saída, porque encontram formas de

evasão/escape. Afrique serve-se da sedução (através do olhar e das suas histórias);

Le Chien também se serve da sedução, bem como da sua “inteligência” e

perspicácia para ir escapando aos acontecimentos negativos da sua vida.

Pelo contrário, é aos homens que cabe o papel de carrascos, ou seja os

perseguidores/os poderosos que condenam pela perseguição, ao cativeiro e ao

abandono, a criança e os animais. Por isso, o mundo está retratado às avessas.

Estes homens encaram a vida no sentido da exploração dos mais fracos, acabando

por se animalizar. São os pícaros maldosos, marcados pela brutalidade: exploram

Afrique, prendem Loup Bleu, maltratam e abandonam Le Chien.

66 Por ser feio e não servir para obtenção de lucros.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 62

Podemos considerar que a existência destes heróis está em consonância com

a do pícaro, embora associada a uma certa tragicidade, já que há momentos

extremamente densos e com um grau considerável de dificuldades para ultrapassar.

Porém, a existência trágica destes heróis é compensada, no final, pelas conquistas

que conseguem fazer e pelo “volte-face” operado nas suas vidas.

Afrique é a personagem com mais traços de pícaro, nestes dois romances. Em

virtude de todas as aventuras em que se vê envolvida, esta criança é uma espécie

de pícaro, um errante, um vagabundo. Para Ortega y Gasset (1963) “O vagabundo

não vagueia pelo mundo por motivos externos, é um Don Juan dos povos, dos ofícios e dos

lugares. Atravessa todos os meios sem se fixar em nenhum deles. Tem a alma dinâmica de

uma flecha que se esqueceu do alvo.” Afrique, de certa maneira, é uma espécie de Don

Juan - um pequenino sedutor, sempre com boas intenções. Não é um vagabundo

no sentido pejorativo. Talvez possamos chamar-lhe simplesmente um errante,

porque é “vítima” das circunstâncias da vida (guerra, maus tratos, trabalho forçado,

exploração).

Órfão, desprotegido, um tanto solitário, com poucos amigos entre os humanos,

Afrique vê-se constantemente perante o drama de ser Homem entre os homens. As

suas reflexões e comportamentos mostram um ser experiente, observador, mas

também sonhador, que deseja reconquistar a sua liberdade, reencontrar os seus

amigos perdidos e, acima de tudo, conhecer o lobo (o único que desconhecia),

ganhar a sua confiança, fazendo com que se torne seu cúmplice. A sua perspicácia

e persistência levam-no a encontrar estratagemas para escapar ao mundo adverso,

sem ser trapaceiro. Podemos considerá-lo uma espécie de Candide67. Por um lado,

reage com alguma frieza e racionalismo às adversidades, por outro demonstra ser

um idealista/utópico, seduzindo e fazendo pactos com os animais mais ferozes. Esta

amizade criança-animais/animais-criança constitui, uma forma de utopia, de evasão,

de subsistência na sua vida de “peregrinação”. É a utopia que impulsiona o homem

à acção e o pícaro é portador dessa acção. Torna-se, por isso, símbolo de liberdade.

Afrique experimenta essa liberdade no seu “território” e junto dos animais.�

67 Candide, (1759) conto de Voltaire, onde a figura de Candide representa um ser tímido, optimista mas um pouco revoltado, sobretudo quando obrigado a matar pessoas. De certo modo, torna-se também um pícaro porque anda em constante viagem (Holanda, Lisboa, América, Veneza, Constantinopla), escapando sempre das desventuras por que passa.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 63

Mais do que um simples pícaro, este menino é talvez, um “neo-pícaro” do

século XX, pois continua fruto dos antagonismos, de classes e não só. Afrique vive

sob condições de opressão, frente ao poder e à prepotência dos mestres, ou ainda

ao mundo em constante mutação, devastado pelo avanço do deserto ou pela

destruição da floresta. Presencia a perseguição e a extinção de várias espécies -

animais e vegetais - experimenta o abandono, a solidão e a inadaptação ao mundo

civilizado dos homens. Talvez por ser uma criança e inocente, Afrique torna-se um

pícaro sem “picarice”, é uma espécie de “bom selvagem”, para quem a natureza

inexplorada representa o “seu” espaço, apenas violado pelo destino ou pela

intervenção do homem. Não é amoral, nem traiçoeiro, vigarista ou malandro, mas

apenas uma vítima.

Podemos encarar a situação vivida por Afrique, Loup Bleu e Le Chien, no seu

contacto com os homens, semelhante à vivida pelo cordeiro e pelo lobo na fábula de

La Fontaine (“Le Loup et l’Agneau”). O lobo é também um errante, que

consideramos um pícaro, que age, por força das circunstâncias, sobre um cordeiro

indefeso e inocente.

Há, nestes romances, uma inversão intencional dos papéis: os homens,

passam a ser o lobo/o carrasco. Por seu turno, o lobo, o cão e a criança

representam o cordeiro, ou seja, as eternas vítimas. Os mais frágeis são

“espezinhados” pelos “poderosos”, estando em permanente busca de um destino

melhor. Pennac retrata este aspecto ao escolher para “vítimas” um lobo

perseguido/ferido, um cão maltratado e abandonado e uma criança constantemente

explorada, que são “pícaros” - sonhadores.

2.2.2- Espaço aberto = liberdade versus espaço fechado = clausura.

Nas fábulas, o espaço onde decorre a acção/se dá o encontro entre as

personagens intervenientes, embora mencionado é, como aludimos anteriormente,

universal, isto é, não específico de um país ou região. Normalmente, trata-se da

floresta, da margem do rio ou ribeiro, da fonte, da aldeia e das suas casas.

Em “Le Loup et L’Agneau”, os dois animais encontram-se na margem do

ribeiro, local onde se passa grande parte da “acção” (o confronto verbal/duelo). Esse

espaço é, inicialmente, partilhado por ambos, que gozam a mesma liberdade e

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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independência. Contudo, no fim, o lobo leva o cordeiro para a floresta, devorando-o.

Deste modo, a floresta torna-se local de aprisionamento e de morte para o cordeiro,

por ser mais frágil, embora represente a continuidade de liberdade para o lobo,

porque é poderoso e independente.

Em quase todas as fábulas em que o lobo intervém este, pelas suas

características, manifesta o desejo de manter a liberdade a qualquer custo e a sua

total recusa de viver em cativeiro, pois isso significaria a “morte” ou a perda do poder

conquistado68.

Observemos de que forma o espaço é representado em L’Oeil du Loup e

Cabot-Caboche, a dimensão que assume para cada um dos heróis que nele se move

e a sua importância para o desenrolar dos acontecimentos. Ao contrário da fábula,

vamo-nos deparar com uma grande variedade de espaços, que coincidem com as

diferentes etapas da vida de Loup Bleu e Afrique, Le Chien e Pomme, inclusive todos

os que gravitam em seu redor.

No entanto, como nas fábulas, vida destas quatro personagens é

constantemente marcada pela dualidade liberdade /clausura, associada

precisamente a cada espaço.

Em L’Oeil du Loup, os diferentes espaços podem ser representados da

seguinte forma:

Jardim zoológico - L’Autre Monde

Jaula do lobo – espaço fechado (lobo) Espaço circundante - espaço aberto (menino)

68 Em «Le Loup et le Chien» (I, V). O cão convida o lobo, bem como os seus, a abandonar o bosque por forma a não passarem mais fome e a terem melhores condições de vida. «Quittez les bois, vous ferez bien: Vos pareils y sont misérables Cancres, haires, et pauvres diables, Dont la condition est de mourir de faim » De início, o lobo manifesta predisposição para mudar, porém, quando vê a marca da coleira no pescoço do cão, logo do aprisionamento, fica indignado e precipita-se a correr, evitando ser preso, continuando a sua vida em liberdade: «Attaché? Dit le loup: vous ne courrez donc pas ? où vous voulez ? Cela dit, maître loup s’enfuit et court encor.»

CIDADE = PRISÃO = Espaço adverso

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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“cages”/”barreaux”/“enclos”/ “barrages”/”grillages” (desconhecido e adverso)

O Olho do lobo

o Alasca - Le Grand Nord (espaço aberto e símbolo de liberdade)

O Olho do homem

África - Afrique Jaune – Afrique Grise - Afrique Verte (espaços abertos = movimento)

O espaço físico transforma-se em espaço de partilha, de uma vivência inesquecível, deixa de ser

importante para os protagonistas, assim como a passagem do tempo. Passa a ser espaço utópico.

A forma como o autor nos faz penetrar nos espaços é salientada pela sua

visão sensorial do mundo, explorando-se os sentidos das personagens que os

observam e descrevem. Em L’Oeil du Loup é através do olho e do olhar que se

transita de espaço para espaço. Ao longo da intriga, o espaço físico caracteriza-se

essencialmente pelos contrastes de cor, os elementos mais importantes e as

sensações que transmitem, remetendo-nos para as vivências, passadas e presentes,

de cada herói. Em Cabot-Caboche é sobretudo através do faro e da visão que Le

Chien tem de cada local que se conhece cada espaço físico.

Os dois heróis são provenientes de dois amplos espaços associados a

abertura e liberdade, contrastando fortemente com o jardim zoológico e mesmo com

a cidade do ocidente = fechamento e prisão. O espaço-cidade pode ser considerado

um espaço antagónico e algo trágico. A cidade, que deveria ser um espaço aberto,

torna-se um espaço fechado (cidade=prisão), um “locus horrendus”, para Afrique e

para o lobo, fechado na jaula.

Como está fechado na jaula zoo, onde se sente prisioneiro e solitário, o lobo

vê, com apenas um dos olhos, “cages” e “grillage”, no exterior; no interior do seu

Do ponto mais fechado para o mais

aberto. Amplia-se a perspectiva.

Do ponto mais aberto para o mais fechado. Inverte-se a perspectiva, ou seja, depois de tudo visto volta-se ao zoo.

JARDIM ZOOLÓGICO

JARDIM ZOOLÓGICO (lobo e menino em plena sintonia)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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“enclos” há vazio, tristeza e revolta69. Por ter consciência que a sua prisão foi

perpetrada pelos homens, as suas invectivas contra eles são bastante duras.

Consideramos que o lobo é o porta-voz do autor, ganhando contornos de

“panfletário”, mostrando a sua perturbação e indignação, pela forma como se move

no exímio espaço da jaula e como reage, quer aos tratadores, quer aos visitantes. Por

seu turno, o menino, embora em liberdade, considera-se também só e privado do seu

território. Enfim, é um prisioneiro sem prisão, como nos dá conta o narrador: «Il se

sentait comme en prison, entre les murs de notre ville. Et si seul! Si seul...» (p. 85).

Zoo e cidade contrastam fortemente quer com Le Grand Nord, quer por exemplo

com a Afrique Jaune:

Le Grand Nord (ponto de vista do menino) Afrique Jaune (ponto de vista do lobo)

Tout autour c’est la neige. Jusqu’à l’horizon que ferment les collines. La neige silencieuse de l’Alaska, là-bas, dans le Grand Nord canadien. » (p. 18). (…)«Tout autour d’eux, la neige vole en éclats d’argent. (p. 19) (…) Toujours plus loin dans le Nord. Il faisait de plus en plus froid. La neige se changeait en glace. Les rochers devenaient coupants.»����������

“Le jour se lève sur un tout autre paysage. (…) Pas un arbre, pas un rocher, pas un brin d’herbe. D’immenses collines de neige, à perte de vue. Une neige étrange, jaune, mais qui craque et crisse, et qui glisse en planques, comme la neige de l’Alaska. Et bien au milieu du ciel, un soleil blanc … » (p. 51

Nos dois excertos anteriores, descrevem-se espaços amplos que

representam liberdade e imensidão, sendo comuns as colinas e a neve, captados

pela visão e pelo ponto de vista de quem o observa70. Refira-se, ainda, que nas

outras duas Afriques, cujos nomes derivam dos elementos cromáticos, predominam

também os elementos que caracterizam estas regiões: a Grise71 - a Savana, com

os silvados, as rochas cinzentas, as pastagens baixas e os animais que aqui têm o

69 «À l’aller (si on peut appeler ça l’aller) le loup voit le zoo tout entier, ses cages, les enfants qui font les fous et, au milieu d’eux, ce garçon-là, tout à fait immobile. Au retour (si on peut appeler ça le retour) c’est l’intérieur de son enclos que voit le loup. Son enclos vide…, son enclos triste, avec son unique rocher gris et son arbre mort.» (pp. 6 e 7) 70 Apenas existe uma distinção, sendo que no primeiro excerto é a neve branca do Alasca que predomina; no segundo a areia do deserto é metaforicamente transformada em “neige étrange, jaune”. 71 « Cela se passa dans une autre ville du Sud, là où le désert cesse d’être de sable. Cailloux brûlants, buissons d’épineux, et plus au sud encore, grandes plaines d’herbes sèches » (p. 56)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 67

seu habitat e a Verte72 - a Floresta, o denso e alto arvoredo, o verde e as clareiras,

os rios e os seus habitantes animais e humanos.

Quatro diferentes espaços, quatro cores dominantes - branco, amarelo,

cinzento e verde – quase todas cores vivas/fortes/luminosas que apelam aos

sentidos, captam a atenção, transmitem serenidade e onde há vida, apesar de

algumas adversidades. Inseridas na ficção, estas descrições incluem os elementos

caracterizadores, como a vegetação dominante, os seus habitantes, ao mesmo

tempo que fornecem informações indispensáveis, para um melhor conhecimento das

personagens e dos seus comportamentos, nos lugares em que se movimentam.

Em Cabot-Caboche são inúmeros os espaços mencionados, salientando-se

também sua importância em cada etapa da vida (passada e presente), sobretudo do

herói animal, a quem é dada uma relevância muito maior do que em L’Oeil du Loup

(em que as histórias dos dois heróis têm um tratamento equivalente).

É essencialmente a Le Chien que se concede a tarefa de descrever e analisar

cada espaço. O quadro seguinte é um resumo dos espaços (abertos/fechados), dos

acontecimentos que aí decorrem e a sua simbologia.

Acontecimentos Espaços

A infância,

em Nice

(passado)

(4 abertos/3

fechados)

- A Lixeira - aberto não muito agradável, com perigos, mas espaço de aprendizagem para Le Chien (aprende a identificar os diferentes cheiros e ainda o que significa a sobrevivência). - A Cidade de Nice/as ruas (aberto - por onde deambula em busca de uma dona) - O Talho (fechado, para onde os odores o atraem, onde existe alimento) - Uma casa desconhecida (fechado e ligado ao insucesso, não encontra uma dona) - O Canil (fechado - onde experimenta o medo e o desespero. Mas é também aqui que encontra a dona - Pomme) A praia (aberto – de onde guarda a recordação de correr atrás das gaivotas e os primeiros contactos agradáveis com Pomme e desagradáveis com os pais da menina) - O parque de campismo (aberto - há ocorrências que marcam a vida do cão como o baptismo. (O animal, através da observação, faz o retrato das atitudes dos humanos, satirizando-as.)

A vida em Paris

(presente)

(4 abertos/5

- dentro de um apartamento (fechado e pequeno, há uma atmosfera pesada de mau entendimento adultos-cão) – (Primeiros momentos/pesadelos) - O apartamento (fechado: a descrição é uma crítica à forma como se vive nas grandes cidades. Este é um lugar de discussões e discórdias: Le Chien não pode permanecer em todas as divisões, sente o desprezo da sua dona) - A rua (depois da fuga – aberto - mas implica solidão e abandono.) - O metro (fechado – desorientação e fuga) - A estação de comboios (aberto – desconhecido, observado de noite) - O apartamento do Sanglier (fechado mas agradável, onde Le Chien se sente feliz, onde adquire mais ensinamentos, com o seu novo amigo e mestre le Hyéneux.) - A saída das escolas (aberto onde procura Pomme, observa as crianças e os seus comportamentos)

72 « -Dis donc, Berger, tu sais qu’il existe une autre Afrique, une Afrique Verte, des arbres partout, hauts et touffus comme des nuages ? » (p. 67), Tout autour, c’était la muraille végétale de la forêt, si haute qu’on se serait cru au fond d’un puits de verdure.» (p. 77)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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fechados) comportamentos) - O cemitério dos cães (aberto e propício a mais aprendizagens. Aqui encontra os gatos que guardam este local, que têm uma hierarquia organizada e bastante curiosa) - O regresso a casa/apartamento (fechado) na companhia de Pomme, depois de uma demorada “caminhada” para a sedução. Há agitação e desconforto pela chegada do cão.

Partida para

férias –

destino Nice

(Presente)

(2 abertos/3

fechados)

- A Casota (fechado mas confortável, porque preparada por Pomme) - A caravana (fechado, onde o cão faz parte da viagem, dentro da casota, sentindo a falta de Pomme) - A estação de Serviço (aberto – espaço para descomprimir da clausura da viajem. Le Chien observa os camiões estacionados e surpreende o diálogo de Grand Musc com os condutores, pressagiando que algo de estranho lhe poderá acontecer.) - O Camião (fechado e misterioso, para onde o cão é levado à força. Aí experimenta, uma vez mais, o medo) - A ravina (abandono total - aberto – onde desmaia, depois de atirado pela janela do camião.

O regresso

solitário a Paris

(Presente)

(1 aberto/3

fechados)

- A estrada de regresso (aberto mas de sofrimento, pois tem que percorrer um longo caminho, que reconhece pelos odores. Tem tempo para cogitar numa forma de se vingar do abandono. - O apartamento do Sanglier (fechado – aí reencontra o conforto e o retempera forças depois de longos onze dias de viagem) - O apartamento de Pomme (fechado preparado para a vingança. No final, este fica destruído à excepção do quarto da menina.) - O apartamento (fechado mas transformado - local de mutação de comportamentos. A família chega com a menina doente e nem dá pela devastação de que a habitação foi alvo. Pomme recupera e a vida continua...

Cada espaço corresponde a uma experiência agradável ou desagradável.

Também há, como em L’Oeil du Loup, espaços abertos que representam

clausura/tragicidade/contrariedade. Outros espaços são antagónicos. Por exemplo, a

lixeira que é, para os humanos, um local incómodo e desconfortável, com cheiros

desagradáveis, serve de acolhimento aos cães, fornece alimento, permite fazer

aprendizagens: “La décharge ... c’était une bonne école” (p. 16); a rua, tanto pode

simbolizar a caminhada errante e adversa na busca do seu objectivo, como o local

de liberdade e união.

Em suma, a oscilação entre espaços abertos e fechados, associados à

liberdade e à clausura, é uma maneira de chamar a atenção do leitor sobre a

ambiguidade da vida, animal e humana, onde os homens - carrascos continuam a

perseguir as vítimas - animais e criança.

A dimensão fábula, ligada aos espaços, em L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche

está relacionada com a maleabilidade com que estes mudam e alteram as suas

simbologias. O espaço, que na fábula tradicional é o lugar de lutas/duelos de forças

opostas/perdas, morte ou perda de liberdade, aqui mais não é do que a

representação de vivências marcantes das personagens, suas atitudes e

sentimentos. No fundo, para Loup Bleu, Afrique e Le Chien os espaços em que se

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 69

movem representam a instabilidade do ser humano, retratada na fábula, sobretudo

na moderna, pelo “mundo às avessas”, que o próprio homem foi construindo, que

acaba por criar vítimas.

Porém, no final de cada um dos romances, os espaços, antes adversos e de

clausura, transformam-se/metamorfoseiam-se, como por magia73, em local

utópico/maravilhoso/onírico, de transparência total para os heróis, deixando-os

extasiados (ainda que se mantenha o mesmo aos olhos dos que são exteriores ao

seu universo). Os que estão de fora não partilham os mesmos ideais, não estão no

mesmo patamar, que é bastante elevado e apenas atingido pelos heróis, dado que

estão em igualdade de circunstâncias.

Assim, os dois romances terminam, um pouco à semelhança do conto de

fadas, embora sem a fórmula ”E foram felizes para sempre!” mas com fantasia e

magia, ligadas ao espaço, como se pode ver no quadro seguinte:

L’Oeil du Loup Cabot-Caboche

« … il voit Paillette et Le Guépard faire les fous au milieu du zoo, dans la poudre d’or du Sahara… » « P’pa Bia ouvre les portes de la serre, les beaux arbres de l’Afrique Verte envahissent les allées. Sur la plus haute branche – sentinelles – Cousin Gris et le Gorille des Forêts sont assis l’un à côté de l’autre. Et les visiteurs ne remarquent rien… Et le directeur du zoo qui continue sa ronde… « (pp. 92-93) Et la neige qui tombe sur tout cela (en plein printemps !), la belle neige muette de l’Alaska, et garde des secrets…

“Le voilà seul dans l’appartement dévasté. Ça sent le brûlé, la suie, la confiture, et plein d’autres odeurs sympathiques. » (…) « On dirait que la chambre de Pomme s’est endormie. Une odeur de fleurs plane au-dessous des autres. Le Chien attend. (p. 187) « Il a attendu trois jours. (…) Et rien ne s’est passé comme Le Chien avait prévu. » (p. 188) « - Elle est chouette, ma chambre, dis, donc. Jamais été aussi chouette. On y dormira bien, toi et moi.” (p. 191)

No final, estes textos distanciam-se da fábula clássica, em que o espaço

permanece igual, aproximando-se mais do conto maravilhoso, na medida em que há

metamorfoses que incluem a transformação quase total do espaço (os elementos

reais transformam-se em elementos mágicos – a neve mistura-se com a areia do

deserto/o apartamento devastado é local de acolhimento, alegria e recuperação dos

sentidos), onde predomina o onírico, a magia. As personagens parecem

transportadas, em sonho, para uma outra dimensão, sem se moverem. Em

73 Que marca o final dos contos de fadas e dos contos maravilhosos.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 70

conclusão, o espaço, antes adverso, cujos elementos estavam carregados de

negativismo e pessimismo, transforma-se em espaço utópico, ideal, onde tudo pode

acontecer. Do mesmo modo, os heróis que partilham este espaço também se

transformam. Parece haver uma metamorfose, seguida de simbiose total. Podemos

considerar isto utopia.

2.3- A dimensão utópica de L’Oeil du loup e Cabot-Caboche. O que é a utopia? De que forma está presente nos dois romances de

Pennac? Porque estará ligada ao espaço?

O nome comum utopia74 é designado nos dicionários como proveniente do

Latim Utop�a- «utopia, lugar que não existe», construído do Grego o� - «não» +

topos - «lugar».

Na linguagem corrente “utópico” quer dizer impossível, uma quimera, uma

construção puramente imaginária, cuja realização está, à priori, fora do nosso

alcance.

O nome próprio Utopia é o nome de uma ilha (país) imaginária, situada “em

lugar nenhum”75, idealizada por Thomas More, humanista inglês (1478-1535), onde

tudo está superiormente organizado, ou seja, trata-se de um local com um governo

ideal, para um povo feliz e onde existem duas ideias base: a inexistência de

propriedade privada e a satisfação dos interesses individuais ao serviço de uma

lógica colectiva. Embora sejam retirados ao homem os vícios e os males, este

continua a agir como homem, não havendo a intervenção de poderes divinos.

74 Uma outra definição de utopia é a seguinte: O sonho, a imaginação e a inconformidade revelaram-se na utopia como o desejo de conseguir uma sociedade ideal e perfeita. Fruto de épocas de crise, em que a imaginação do Homem se evade, fugindo duma realidade difícil, buscando a felicidade num mundo que é apenas imaginário, mas que seria o ideal, caso existisse. No mundo ocidental, este assunto foi abordado tanto por Platão, na Grécia, como por Virgílio, em Roma. Contudo, foi no Renascimento, com Thomas More, na sua obra Utopia, que este vocábulo se tornou mais utilizado. Elemento fundamental para percebermos este vocábulo é a vontade de ruptura com o presente e o desejo de transformação, por vezes radical, das estruturas e valores sociais em vigor. A utopia pode distinguir-se em várias tipologias: absolutas, relativas, negativas. Absolutas, quando entra em total contradição com a vivência humana. Aqui incluem-se, sobretudo, as utopias mitológicas. Relativas, quando nunca existiram projectos semelhantes, mas seria possível a sua realização. Utopias negativas ou distopias, quando a perfeição tecnológica na sociedade escraviza a condição humana, ou há a proposta de uma sociedade fechada e totalitária, apesar de utópica. In, Diciopédia 2004 75 De notar, no entanto, que este “nenhum lugar” é indicado por More como sendo o Novo Mundo.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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A utopia como a preconizada por Thomas More, na Utopia (1516), deu origem

à literatura utópica, uma literatura de viagem, em que se faz o relato de um périplo,

associado à descoberta imprevista de um além ideal. Com More inicia-se um dos

motivos principais da modernidade, a que o século das luzes chamará de “la

perfectibilité humaine”. Depois de More, o género expande-se, surgindo tratados

políticos, viagens fantásticas, romances satíricos ou a exploração de mundos

extraordinários. Cidade do Sol, de Campanella (1623) ou Nova Atlântida, de Francis

Bacon (1627), são apenas dois exemplos.

Muitos autores associam a utopia a algo impossível de realizar. As utopias que

sobressaem na literatura dos séculos XVI e XVII participam numa crítica da ordem

existente e numa vontade de a reformar em profundidade. Então, podemos

considerar que as fábulas contêm o elemento utopia, em que se criticam os

poderosos, de modo a suavizá-los e convencê-los a mudar.

No século XX, e em virtude dos progressos, a literatura utópica é atravessada

pela dialéctica entre a utopia e a contra-utopia, o sonho e o pesadelo, porque muitas

vezes se abre uma porta para o melhor, outra para o pior, aparecendo, assim, a

utopia como objecto duplo, contendo uma face radiosa e outra sombria. Alguns

escritores desse século, mas também artistas plásticos mostraram, nas suas obras,

essas duas faces: por um lado, o ódio do passado que era necessário abolir, por

outro, a exaltação da máquina, da velocidade, o apelo à violência salvadora, contra

o “passivismo”, de onde surgiu a utopia técnica. Na pintura, destaca-se Fernand

Léger (1801-1955) que, fascinado pela estética da máquina, introduz o elemento

mecânico na sua obra como “arma ofensiva que permite brutalizar a tradição”. No

cinema, destaca-se o realizador austríaco Fritz Lang (1890-1976), com o filme

Metropolis76, de 1926, onde se vêem máquinas devoradoras de homens e um robot

que transforma a bela mediadora em potência maléfica. As utopias do século XX

estão voltadas para o constante desejo de mudança.

Em L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche e, de certo modo, em toda a sua

produção romanesca, Daniel Pennac talvez procure um equilíbrio entre todas as as

vertentes da utopia, transmitindo às gerações futuras a necessidade/o desejo de

recuperar ideais e valores perdidos. Entendemos que o autor não preconiza uma

76 Este é considerado um dos primeiros filmes de ficção científica, cuja acção decorre em 2026 e onde se mostra uma visão expressionista do futuro, numa época marcada pelo pessimismo.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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força totalizadora mas, ao estabelecer um entendimento animais-homens/homens-

homens, num mundo real que é aquele em que vive, deixa transparecer o desejo

utópico de um mundo melhor, que retome o seu curso natural e não esteja às

avessas. Neste mundo, podem coexistir fortes e fracos, iguais e diferentes, desde

que se respeite a cadeia da vida, bem como os direitos e deveres de todos.

Como professor/pedagogo e ainda enquanto escritor, numa época que também

passou por diversas crises, a todos os níveis, ao conceber L’Oeil du Loup e Cabot-

Caboche, para crianças e jovens, Pennac idealiza um universo totalmente

transparente e visível, onde é possível haver comunicação entre animais (em

particular um lobo) e uma criança, bem como uma amizade, sem limites, entre um

cão e uma menina que acabam seduzidos um pelo outro, depois de terem passado

por diversas provas.

Os dois romances em análise, bem como outros de Pennac77 parecem ir um

pouco no sentido das utopias do século XX. A Literatura torna-se veículo de um

pensamento utópico, em que se oferecem alternativas à sociedade, desorganizada

e desenraizada, acreditando-se num mundo melhor. Deste modo, a utopia está

associada ao sonho, que pode ou não realizar-se, mas que faculta um lado positivo

e mais optimista da vida.

Afirmávamos, no ponto anterior, que os espaços estão ligados à utopia porque,

no final, estes se transformam, deixando-nos vislumbrar um ambiente festivo, alegre,

belo, organizado, perfeito; espaço de partilha de sonhos e ideais; espaço de

comunhão e de transparência totais, de fortalecimento de laços. Espaço que deixa

de ser de contrariedade, de clausura, que deixa em aberto a possibilidade de novas

vivências, novas aventuras.

Em L’Oeil du Loup, inicialmente, o Grand Nord e as Afriques são descritos

como territórios ecologicamente quase perfeitos, onde a intervenção do homem

ainda não se nota. A vida é organizada, a alcateia dos lobos tem uma hierarquia que

é respeitada, P’pa e M’ma Bia vivem dos frutos do seu trabalho e em harmonia com

a natureza. No entanto, a intervenção do homem, que destrói e abandona, vem

perturbar a ordem existente, fazendo-os partir. Por isso, a cidade do ocidente e o

77 Reafirmamos por exemplo que Belleville, como já se referiu no capítulo I, é um lugar utópico, de transparência, onde é possível coexistirem raças, profissões e línguas, espaço de comunhão, de partilha e de protecção.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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zoo representam, inicialmente, espaços “impossíveis” de habitar, para o lobo e para

o menino.

Em Cabot-Caboche há locais que, para nós humanos, são o resultado da

desordem e do caos mas que, para os animais, são lugares onde se organizam e

onde mantêm uma hierarquia extremamente rígida. Trata-se da lixeira, em que

convivem restos dos homens e uma “sociedade organizada” de animais que se

entendem e vivem da partilha. Consideremos, também, o cemitério dos cães,

guardado pelos gatos, o que é curioso pois trata-se de uma inversão (normalmente

são os cães que “guardam”). Este espaço mostra uma sociedade animal,

hierarquicamente instituída, onde cada um tem as suas funções: continuam a

guardar os animais já mortos e até embelezam as sepulturas, fazendo-lhes

homenagens. Demonstra-se como os animais são capazes de partilhar espaços, de

agir em colectivo (a possibilidade de gatos e cães se entenderem e se entre-ajudar),

ao passo que os homens actuam individualmente, característica da fábula

indiscutivelmente presente.

Ao contrário, o canil é um espaço adverso, pois trata-se de uma espécie de

prisão para os cães, privados de liberdade por ordem dos homens, em nome da

segurança e do embelezamento da cidade, em época estival. Também a cidade de

Nice (que Le Chien considera igual à lixeira, só que organizada, satirizando o que

observa) e o apartamento de Paris representam ambientes um tanto adversos aos

olhos do animal, dado que a organização destes espaços não corresponde à sua

perspectiva. A organização não é natural, mas imposta; os homens não convivem,

sobrevivem, cada um para seu lado.

Nestes romances, talvez não se pretenda criar um país ou uma sociedade

utópicos, na medida em que não surgem idealizados mas descritos tal como são,

com os aspectos positivos e negativos inerentes. Porém, as personagens (criança e

animais) são detentores do desejo de viver num mundo melhor, onde reinem o

respeito pelos valores e pelo Outro; uma sociedade mais humanizada, onde animais

e humanos possam coabitar pacificamente, onde se poderia eliminar a opressão

homem-animal como forma de acabar com a violência em geral, onde se possa

revelar um mundo sem vencedores nem vencidos. Estamos perante um desejo

utópico de mudança. O romance e a arte em geral são meios de colocar o homem

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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em estado de equilíbrio com o mundo que o rodeia, de torná-lo seu, portanto mais

agradável.

Na verdade, essa utopia passa sobretudo pela existência de novos

sentimentos: pelos sonhos e desejos de conquistar o Outro e ser aceite por ele, de

se sentir desejado e não rejeitado. Cada um dos heróis guarda um sonho, uma

esperança, que pode também ser a do próprio autor. Trata-se de uma utopia

“positiva”, que encerra o sonho e o ideal de um mundo melhor, onde se abulam os

conflitos e persista a liberdade; um mundo mais feliz, transformado, pela fuga à

realidade quotidiana onde, como se pode ver pela citação seguinte: “Quand la réalité

ne le contente plus, l’homme, par le rêve, lui échappe....»78 Talvez porque, como refere o

próprio Pennac, « Rêver c’est la santé du monde. Lorsque nous rêvons nous évacuons

nos toxines mentales. Le rêve permet d’avoir des fantasmes sans passer à l’acte, cela vaut

pour toutes les sociétés. »79

Em suma, consideramos que dos diferentes vectores utópicos veiculados por

estes dois romances o sonho tem um papel preponderante, já que permite

transportar para outras dimensões, tanto so heróis, como os leitores, o que

abordaremos de seguida. Além disso, faremos também alusão ao riso, à

comunicação amorosa pelo olhar e pelo silêncio, como dois outros vectores da

utopia.

2.3.1- O Sonho

“O sonho é a centelha que salta do desejo e é através dela que vou acender as fogueiras

através das quais o rosto do mundo se ilumina. O sonho, levado aos ombros da realidade, que

o simboliza, é o projecto profundo do homem e a teologia da história. O sonho vivido, enraizado

no real que suporta, vai ser a matriz da utopia, o eixo das grandes transformações que fazem a

grandeza do processo civilizatório.”

Hélio Pellegrino, Os Sentidos da paixão (1987)

Em L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche podemos encontrar o sonho em duas

vertentes. Uma, é o facto de nos cruzarmos com personagens que têm, durante o

78 Encyclopédie Nouvelle de Pierre Leroux et J. Reynaud (1842) 79 http://www.delirium.lejournal.free.fr/inerview_daniel_pennac.htm

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sono, sonhos80 e/ou pesadelos (Casseroles e Le Chien); a outra é o sonho como

ideal, como objectivo a alcançar, manifestado pelas personagens, mas também pelo

próprio autor.

Casseroles é um dromedário sonhador. É assim que o leitor toma contacto com

este animal: “Le chameau ne l’écoute pas. Il avance en rêvant.” (p. 51)/”... les rêves du

dromadaire qui rêve toutes les nuits et même parfois en avançant sous le soleil » (p. 55)

que cativa pela relação que estabelece com a criança. Por isso, Afrique é o único

com quem o dromedário partilha os sonhos, talvez porque seja aquele em quem

confia plenamente:

«- Salut, puceron, bien dormi?

- Comme l’Afrique ! Et toi Casseroles, bonne nuit ? («Casseroles» c’est le surnom

affectueux que le garçon donne au dromadaire.)

- Oui, beau sommeil, j’ai fait un rêve intéressant.» (p. 53)

Ambos formam um grupo restrito81, notando-se pela forma como se “tratam”:

“puceron” e “Casseroles”, ao qual os estranhos não têm acesso, porque não

conseguem ver a transparência e a confiança que existe entre ambos. Desta forma,

o diálogo que estabelecem parte do sonho, mas também do silêncio, da imobilidade

e do riso, porque só a eles é permitido ter estas capacidades.

Em Cabot-Caboche, os sonhos, que afloram ao herói Le Chien, são o meio de

evocar o seu passado. São sonhos bons e maus que, de certo modo, lembram a

desordem da sua vida: “Comme tous les rêves de chien, les siens lui font revivre les

meilleurs moments de sa vie. Les meilleurs et les autres. Toute sa vie quoi. En désordre. »

(p.11) É através do sonho que o animal “relata” os momentos importantes da vida,

dos quais destacamos os bons82 como evocação do passado, deixando ver,

claramente, o seu percurso:

80 Sonho = “uma actividade mental não dirigida, que se manifesta durante o sono” (Grande Dicionário Enciclopédico, Clube Internacional do Livro, Vol. XIV) 81 O dromedário não aceita mais ninguém no seu dorso que não seja o menino e recusa-se sempre a partir sem ele. 82 Quanto aos sonhos maus/pesadelos, estes relembram ao animal os momentos menos agradáveis, mas que não fazem parte da utopia - o seu primeiro abandono/o acordar do afogamento - a morte de Gueule Noire; - as diversas desventuras da viagem que fez sozinho da lixeira até à cidade de Nice ; - as constantes recusas das pessoas que foi encontrando; - o encarceramento no canil; - as discussões entre os adultos, contrários à sua presença;

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- a lixeira e as aprendizagens junto de Gueule Noire;

- a descoberta e distinção entre os diferentes odores;

- as corridas na praia atrás das gaivotas;

- os momentos passados com Pomme, no campismo e no carro, de regresso a Paris

ou, ainda, no quarto da menina que o serenava, depois do pesadelo;

- os momentos e a experiência vivida no cemitério dos cães, fazem-no sentir dentro

de um sonho.

No final da história de Le Chien, existe um sonho que se concretiza: o da

vingança por ter sido abandonado. Este facto prende-se com o seu desejo de

transformar o rumo das coisas, já que havia conseguido ultrapassar uma das etapas

da sua vida – a sedução da menina – sua dona. O principal objectivo, impulsionado

pela mãe adoptiva (Gueule Noire), era encontrar uma dona verdadeira que o

protegesse, que o adoptasse. Esse desejo corresponde à outra dimensão do sonho:

à fantasia, à utopia.

Para além de Le Chien, um cão resistente e sonhador, porque acredita sempre

que vai conseguir, Afrique, é talvez a personagem mais marcada pelo desejo

utópico/pela vontade de transformação. É ele que melhor consegue as

metamorfoses que se operam no final, nomeadamente junto do lobo. É que, mesmo

face às contrariedades ou às constantes investidas dos homens, esta criança nunca

se revolta, parece imperturbável. No zoo, um dos seus “sonhos” é fazer com que o

lobo, inflexível, se deixe observar e conhecer.

Com L’Oeil du Loup, o autor coloca-nos perante o facto de ser exactamente

uma criança a enfraquecer a teoria de que o lobo é um animal inacessível, pois

aborda-o, sem medos, ao contrário das outras crianças e até dos adultos. Mas,

Afrique não se entende somente com o lobo. Esta criança faz sonhar animais e

humanos com as suas histórias. Torna-se propulsor do sonho, ele que é também um

sonhador. Esse espaço de confraternização talvez represente o momento em que

esquecem as agruras da realidade em que vivem83, transformando as vivências de

todos, pelo sonho, fazendo-os acreditar num mundo melhor. Há, no texto, uma

passagem que deixa antever que todos partilham dos mesmos ideais e que o sonho

ultrapassa muitos limites: “Aux animaux d’Afrique, il a raconté le Grand Nord. À Loup Bleu, - os diversos medos, a solidão e o desespero que experimentou no seu percurso de errância, no regresso a Paris 83 “(…)Ou bien il leur racontait les rêves du dromadaire, qui rêvait toutes les nuits,” �������

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il a raconté les trois Afriques. Et tous se sont mis à rêver même quand ils ne dorment

pas !» (p. 92) O sonho conduz à união. O sonho que permite sonhar mesmo

acordado, ou seja, não acaba com o despertar, persiste, perpetuando o desejo de

continuar a acreditar, o que representa utopia.

Deste modo, podemos inferir que o sonho está ligado à transparência e à

visibilidade com que os heróis se dão a conhecer e com que agem, ao contrário dos

humanos que actuam de forma velada.

Afrique e Le Chien são seres completamente transparentes, que se deixam

conhecer e que sabem esperar pacientemente pela cedência de Loup Bleu e de

Pomme. Essa transparência passa, também, pelos sonhos, relatados, sem nada

ocultar, para que a compreensão e entendimento sejam totais. Por outro lado, o

sonho-utopia está ligado à comunhão e igualdade que se estabelece entre animais e

crianças, como forma de alertar o Homem para a possibilidade de existência pacífica

entre ambos. Todos partilham as aventuras e desventuras, o que os torna ainda

mais unidos e, colocando-se em situação de igualdade, chegam mais depressa à

comunicação e ao entendimento. Esse entendimento não necessita de palavras.

Então, estamos perante a comunicação silenciosa e total. Esta também passa pelo

riso e pela partilha de segredos.

2.3.2- O riso

Tal como os sonhos, o riso é um meio de comunicação e de partilha que os

heróis (animal – criança/ animais) encontram para escapar às maldades do mundo e

dos homens e de ultrapassar as dificuldades com que se deparam.

Deste modo, o riso pode ser encarado como uma forma de utopia,

desenvolvido em duas vertentes: uma maneira graciosa de transpor os maus

momentos e, ainda, um modo de expressar a satisfação ou de escarnecer do que os

rodeia.

Em L’Oeil du Loup, o riso, partilhado entre o dromedário Casseroles e

Afrique, parece corresponder ao ditado popular “Rir é o melhor remédio”, permitindo-

lhes, assim, encarar os constantes sofrimentos que a vida lhes traz. Trata-se de um

riso interior, a que H. Bergson chama de “reacção defensiva”, mas que podemos

também designar de acto de resistência: «Le dromadaire et le garçon rigolent. Il y a

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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longtemps qu’ils ont appris à rire en dedans. Vus de dehors, l’un et l’autre sont lisses et

sérieux comme les dunes.» (p. 54) Para ambos, comunicar através do riso funciona

como a forma de salvar a dignidade que lhes está sempre a ser roubada. É como se,

diante da violência a que estão expostos, nomeadamente por parte de Toa,

manifestem a vontade de repor a ordem das coisas, buscando o que de melhor

existe, ultrapassando os problemas. Por outro lado, para Casseroles e Afrique, é um

modo de comunicarem sem que ninguém tenha a percepção do teor daquilo que

partilham, por entre risos. Estes risos permitem a troca de segredos, que apenas

ambos conhecem e que guardam só para si.

Estamos, uma vez mais, perante a existência de uma clareza total entre

ambos, já que este riso, “para dentro”, sinal de afastamento em relação aos outros,

os une completamente. Este riso pode ser sarcástico, já que provém da sua

observação do mundo exterior, deixando antever a ridicularização do homem (as

atitudes e gestos de Toa le Marchand, que fazem dele um pícaro maldoso, diferente

de Afrique ou de Le Chien). Estamos perante uma forma de rebaixamento, de

caricatura, pelo riso escarnecedor. Tal como afirma Henri Bergson (1900: 10): « Il n’y

a pas de comique en dehors de ce qui est proprement humain. Un paysage pourra être

beau, gracieux, sublime, insignifiant ou laid ; il ne sera jamais risible. On rira d’un animal,

mais parce qu’on aura surpris chez lui une attitude d’homme ou une expression humaine. »,

são as atitudes/os gestos e as palavras das personagens que as tornam risíveis.

Cabe ao «ethos » (locutor) a denúncia do mundo em que está inserido, uma vez que

este é detentos da verdade, justo e inocente. Assim, o invisível torna-se visível, pelo

riso, deixando cair a máscara, desmistificando aquilo que se desconhecia. O que é

isto senão uma forma de utopia?

Do mesmo modo, quando os lobos riem, com um riso escarnecedor, ao ver

Paillette enganar os homens, isso é revelador de uma espécie de satisfação,

vingança ou mesmo desprezo, porque os homens falharam o seu alvo: “Et les loups

assis tout autour, sur la rive, à rire, à rire, une rigolade, tu ne peux pas imaginer!” (p. 41)

Deste modo, o riso é um meio de comunicação entre os membros da alcateia, que

se conhecem demasiado bem e estão habituados a ser acometidos pela intervenção

do homem. Inverte-se a situação, pois agora não é o homem que ri e salta,

manifestando o contentamento pela captura dos lobos, mas os lobos que se

“vingam” pelo fracasso dos homens.

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Em Cabot-Caboche esta função do riso, como forma de comunicação, é

menos visível. Le Chien é uma personagem de poucos sorrisos e manifestações

exteriores de alegria, mais marcada pelo sofrimento e pelo medo. No entanto,

parece “rir para dentro”, quando observa o mundo e os homens, de que resulta um

retrato pouco “simpático”. Esse riso é transmitindo, ao leitor, pelas constantes

invectivas e pensamentos sarcásticos, como que num piscar de olhos ”maroto”.

Porém, o riso também pode ser utilizado para expressar a satisfação, a alegria

do reencontro, talvez uma procura da perfeição, pelo que o consideramos também

uma forma de utopia. É a outra vertente do riso que focávamos atrás. Assim, em

L’Oeil du Loup, quando o menino reencontra os animais, no zoo, o riso funciona

como uma explosão de júbilo, que passa de uns para outros, como se se

contagiasse, mostrando a concretização do sonho que mantinha de se encontrarem

um dia: “De cage en cage, le fou rire se propagea à tous les animaux...” (p. 87). Destaca-

se o riso de L’Hyène: “À dix mètres ... L’Hyène de l’Afrique Grise riait plus fort que tout le

monde » (p. 87)

Diz-se que rir é próprio do homem e que os animais não riem. Todavia, Daniel

Pennac atribui aos animais esta característica, como que humanizando-os, o que

não deixa de ser interessante. O riso que exprimem, ou de sarcasmo ou de

satisfação, e que partilham ou entre eles, ou com os humanos, pode ser entendido

como meio de comunicação, de transparência e igualdade, de entendimento total, tal

como o silêncio e o olhar, como veremos em seguida.

2.3.3- A comunicação ideal pelo silêncio e o olhar.

«On ne voit bien qu’avec le cœur. L’essentiel est invisible pour les yeux »

Saint-Exupéry, Le Petit Prince, XXI, p. 72

Perante esta temática, colocam-se-nos duas questões pertinentes nos dias de

hoje: Não será o silêncio a verdadeira utopia da comunicação entre os homens? Não

teremos necessidade de silêncio para comunicar, no mundo que nos cerca, cheio de

ruídos?

Muitos autores do século XX têm valorizado o silêncio. Por exemplo, na obra de

Céline, o silêncio é uma exigência estética. O recurso à linguagem, como meio de

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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comunicação, é considerada a pior das mentiras. Por isso, Céline escreve contra a

literatura. Bardamu, a personagem central de Voyage au Bout de la Nuit, é o homem do

silêncio, porque este é a arma dos inocentes. Assim, o silêncio contrasta, muitas vezes,

com os ruídos (da guerra, da cidade, da selva, da fábrica).

Saint-Exupéry valoriza de tal modo o silêncio que este é a “personagem” central

da sua obra. O silêncio marcou profundamente o autor, sobretudo nos momentos de

solidão, passados no deserto, aquando das suas viagens entre África ou a América e a

Europa. Em Le Petit Prince (1943), encontramos o Principezinho a dialogar com o

piloto, no profundo silêncio que domina o deserto e é aí que partilham as suas histórias.

Em Lettre à un Otage (1944)84 encontramos uma reflexão interessante sobre o silêncio,

inspirado pelo deserto do Saara: ”Un silence même n’y ressemble pas à l’autre silence. Il y a

un silence de la paix… il est le silence de midi… il est un faux silence quand le vent du nord a

fléchi… il est un silence de complot… il est un silence de mystère… il est un silence tendu… un

silence aigu… un silence mélancolique, si l’on se souvient de qui l’on aime. »

Evocamos, ainda, Vercors e Le Silence de la Mer (1942), obra profundamente

marcada pela existência de um silêncio, “aterrador”, nomeadamente da parte de duas

das personagens (tio-narrador e sobrinha) face ao oficial alemão, que ocupou a sua

casa, e que tenta manter com estes um diálogo sem nunca obter uma resposta. Fala

sempre em monólogo e, embora proclame o Amor e a Paz, é rejeitado. O silêncio pode,

deste modo, significar a impossibilidade de comunicação, porque o oficial é um

oponente (invasor/inimigo); tio e sobrinha (os ocupados) resistem pelo silêncio. As

mensagens que os dois lados conhecem não são iguais, por isso não pode haver

diálogo. Em seu lugar, persiste o silêncio e os gestos rotineiros que também são meios

de comunicação. As três personagens conhecem o valor do silêncio que se instaurou a

partir do momento em que o oficial ocupou a casa. O silêncio é a palavra-chave deste

romance. Pode simbolizar a resistência dos ocupados, a impossibilidade de

comunicação, a morte dos que foram calados pela guerra, por um lado; por outro, a

comunicação ideal, a desejada pelo narrador e pela sobrinha, para que consigam

coabitar com o invasor, durante a sua permanência.

Também em Daniel Pennac o silêncio é uma constante das suas obras.

Relativamente às obras em estudo, o silêncio pode ser interpretado como a

84 retirado de Vallières, Nathalie des (2000) Saint-Exupéry, l’archange et l’écrivain, Paris, Gallimard (p. 109)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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metáfora da comunicação ideal e, por isso, um elemento utópico. É uma forma de

comunicação interessante, frequentemente explorada85, detectada sobretudo em

L’Oeil du Loup. Ao contrário da fábula, é ao silêncio que se recorre para estabelecer

o diálogo, que vai desencadear a acção.

Deste modo, destacamos a longa conversa silenciosa, estabelecida entre lobo e

menino, através do olho que mostra tudo, ainda que em seu redor persistam ruídos e

movimentos, mas também entre o menino e os outros animais, não sendo

necessárias palavras. Neste diálogo, tudo faz sentido, ao contrário da discussão

acesa, símbolo da incomunicabilidade, a que assistimos entre o lobo e o cordeiro em

“Le Loup et l’Agneau”, que leva à morte, por não haver entendimento.

Em L’Oeil du Loup explora-se a incomunicabilidade entre os humanos, sem

tempo para dialogar, podendo considerar-se este romance uma reflexão sobre a

comunicação e a falta dela. Evocamos igualmente as reflexões que o Principezinho

(Le Petit Prince) faz quando, ao passar nos diferentes asteróides, encontra seres

solitários que não dialogam com ninguém, vivendo no seu mundo de solidão e

egocentrismo. Para além de já não dialogarem, como constatam a raposa e o

Principezinho, mas também Afrique e Loup Bleu, os homens não têm tempo nem

paciência para se escutarem uns aos outros, ou para parar e usufruir de momentos

de silêncio e reflexão, tal é a velocidade a que decorre a sua vida. Por isso, muitos

diálogos são absurdos, mantidos no meio da confusão, das correrias do quotidiano.

Ao contrário, o lobo e a criança conseguem comunicar perfeitamente, tendo inclusive

tempo para o fazer, sem que ninguém os interrompa: “Et voilà maintenant qui se

regardent, œil dans l’œil, dans le jardin zoologique désert et silencieux, avec tout le temps

devant eux. » (p. 13).

Para comunicarem de forma ideal, ambos necessitam de silêncio e calma, que

os leva a olhar-se olho no olho, num duelo cuja principal “arma” é o olhar, e onde

apenas se dá conta dos movimentos que se operam dentro do olho de cada um. O

menino permanece imóvel, em frente do lobo, e este deixa de andar agitadamente

na jaula. Verificamos que dois seres, à partida antagónicos, conseguem comunicar

perfeitamente. Tal pode mesmo levar-nos a reflectir sobre o acto de comunicarmos

com os nossos semelhantes, o que é demonstrado neste romance pelas relações

85 O autor diz-se amador do silêncio e, por isso, este aparece tantas vezes referido nos seus romances.

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entre certos homens: Toa-Afrique; Toa-habitantes do deserto; condutor do camião-

Afrique e mesmo Afrique/La Roi des Chèvres. Muitas vezes, essa comunicação é

unilateral, ou não chega a concretizar-se porque efectuada em circunstâncias

adversas.

Refira-se ainda que, por vezes, o silêncio está associado a uma forma de

“resistência” encontrada pelas personagens para fazer face às atrocidades: “- Je ne

pars pas sans le garçon. Voilà ce que dit le silence du dromadaire, et son immobilité et

son regard tranquille.” (p. 53) como se demonstra na atitude do dromedário, descrita,

que prefere o silêncio como forma de reacção e que demonstra ao menino, o único

que o entende.

Para além do silêncio, a comunicação efectua-se através do olhar. O olho

aberto de Afrique e de Loup Bleu pode ser entendido como a metáfora da

comunicação amorosa, pela qual se chega ao conhecimento do mais profundo de

cada ser, mas também ao entendimento e à aceitação do Outro. Esta forma de

comunicar é identicamente uma importante reflexão, dado que hoje os homens têm

dificuldades em olharem “olho no olho” ou, o que é ainda mais difícil, de se colocarem

ao lado do outro e olhar na mesma direcção.

No entanto, também podemos considerar o olho a metáfora da aprendizagem:

enquanto o olho do lobo mostra, o do menino observa e vice versa, quando se

efectua o processo inverso. Verificamos, pois, que o olho aberto ensina e também

aprende, pois lobo e menino vão fazer uma troca de experiências. O olho passa,

deste modo, a ser o “espelho da alma” de cada um dos interlocutores, revelando o

que de mais íntimo tem para mostrar, porque é totalmente transparente, apesar do

processo de entrada no olho se revelar estranho: “Et c’est quand tout est devenu noir,

absolument noir, qu’il découvre ce que personne n’a jamais vu avant lui dans l’œil du

loup…”(p. 16). Mostra-se que, para haver conversação, são necessárias confiança,

persistência e atenção. O esquema seguinte mostra como se consegue chegar à

comunicação:

Lobo - movimento � Menino - Imobilidade

PARAGEM – igualdade de circunstâncias – Conquista de CONFIANÇA

MENINO - observador LOBO - observador

O OLHAR Como meio de comunicação

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 83

Entra no olho do lobo e a pouco e pouco toma

contacto com uma realidade que não conhecia e

não esperava, o mundo da sua infância.

Entra no olho do menino, e depara-se também com

uma realidade que desconhecia, tomando contacto

com as experiências vivida por este na sua infância.

Existem condições, proporcionadas pelo exterior, mas também criadas pelas

duas personagens, para que o olhar não se desvie, até que penetre

verdadeiramente no olho do outro. A partir daí, nada pode perturbar a comunicação,

nem mesmo a passagem do tempo.

Vejamos como é explorada, neste romance, a metáfora do olho que se torna o

meio de comunicação entre os dois interlocutores, permitindo-lhes partilhar as suas

vidas, sem que pronunciem uma única palavra:

A Metáfora do Olho – início da história do lobo e do menino

L’Oeil du Loup (pp. 15- 44)

Através de um estreitamento e da cor que a pupila do olho vai tomando, o menino chega ao mais profundo do olho do lobo, ultrapassando a realidade, entrando de repente noutro espaço. - «Oeil jaune, pupille noire, petites taches de couleurs différentes » - «tache bleue» - «éclair d’or» - “Tout est devenu noir – c’est une louve noire” (como se a posição em que a loba se encontra impedisse o menino de ver para além dela) Depois de alguma oscilação de cores é a cor NEGRA que predomina, para depois se transformar em branco absoluto. Uma transformação interessante (do negro ao branco = da escuridão ao conhecimento) Predomina um silêncio também absoluto.

L’Oeil de l’Homme (pp. 45- 82)

O olho do menino também se transforma:

A luz apaga-se, como se se tratasse de um túnel muito escuro que lobo tivesse de percorrer. Cada vez vê-se menos – até chegar a um local onde: É de noite – cor escura Curiosamente predomina também o negro dentro do olho do menino, por um lado porque é de noite, por outro porque é um momento muito dramático –a guerra. No entanto há fogos (várias cores) e detonações (vários ruídos), ao mesmo tempo Predominam ruídos, da guerra. O silêncio surge mais tarde, quando se penetra no deserto.

Olho aberto Olho fechado

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 84

Entretanto surge o azul (cor do pêlo de Loup Bleu) e finalmente o BRANCO da neve = frio que predominará na paisagem como elemento fundamental.

Quando o dia surge, é o AMARELO que vai dominar a paisagem (= areia do deserto); depois o CINZENTO (= rochas da savana) e o VERDE (= floresta).

Para que o fenómeno da entrada no olho e a forma como ocorre seja totalmente

conseguido é necessário ver e mostrar bem; que ambos se coloquem em igualdade.

Afrique soube esperar pelo momento certo. Por isso, o lobo cede e anui a ser

observado: “Tu veux me regarder? D’accord! Moi aussi, je vais te regarder! On verra

bien...” (p. 12), «… il s’arrête de marcher. Il s’assied bien droit, juste en face du garçon. Et lui

aussi se met à le regarder. (…). Le vrai regard, le regard planté !»(p.12)86 O verbo

“regarder” ou o substantivo “regard” domina o discurso, sinal de que olhar/ver é o

acto mais importante, desencadeando a acção, permitindo a continuidade da

comunicação: “Pour rien au monde, il ne détournerait la tête. Pas question de se remettre

à marcher” (p. 13) A disposição com que o lobo “dialoga” com este homem é diferente

da atitude que mantinha perante os outros homens, porque Afrique olhou-o no seu

olho, mas sobretudo «avec le cœur », fazendo uso da expressão da raposa, em Le

Petit Prince.

Para além da metáfora da comunicação, o olho pode funcionar como metáfora

de vida – o olho que está aberto/está vivo permite mostrar cenas da vida de cada um;

há movimento e vida dentro deste. Porém, também pode ser a metáfora da morte ou

de resistência e referimo-nos ao olho fechado, sobretudo o do lobo. Porque foi

capturado, perdeu o olho na luta com os homens, foi enclausurado, sinal da violência

extrema, o lobo recusa-se a olhar para eles: “Et, depuis dix ans , il tient le coup: pas une

pensée pour les hommes, pas un regard, rien.» (p. 9) Portanto, o olho que mantém

fechado está, de certo modo, morto, havendo uma referência a essa morte

“simbólica”: “Et bientôt, à travers la cicatrice de son oeil mort, apparaît une larme.” (p. 13).

O lobo recusa-se a abrir o olho, mesmo que saiba que pode fazê-lo, pois não está

disposto a pactuar com o mundo em que está inserido, sobretudo com os homens:

“La vérité c’est que derrière as paupière close, l’œil du loup est guéri depuis longtemps. Mais

ce zoo, ces animaux si tristes, ces visiteurs…«Bof, s’était dit le loup, un seul œil suffit

largement pour voir ça. »” (p. 92)

86 Não é só a sua postura que se altera, também o seu discurso vai-se suavizando. No final já não lhe denotamos as azedas referências ao Homem, que marcavam as suas intervenções iniciais

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 85

Esta rejeição do lobo em abrir o seu olho evoca o conto de Voltaire – Le

Crocheteur Borgne87, cujo início nos reporta para uma reflexão acerca do nosso acto

de ver, e também o de observar o que nos rodeia: “Nos deux yeux ne rendent pas notre

condition meilleure; l’un nous sert à voir les biens et l’autre les maux de la vie; bien des gens

ont la mauvaise habitude de fermer le premier et bien peu ferment le second. ». Nesta

espécie de introdução filosófico-moralista, mostra-se que nem sempre é benéfico ver

o mundo com os dois olhos. A personagem principal - Mesrour – um carregador,

pobre e zarolho, que levava uma vida dura mas feliz, via o mundo com um só olho

sem se incomodar: “Il montrait qu’un oeil de plus et de la peine de moins contribuent bien

peu au bonheur.” Apesar de passar por aventuras que o levam a ver com os dois olhos

e levar uma vida faustosa, Mesrour volta à sua condição de zarolho, contentando-se

em continuar, feliz, a sua vida de “carregador”, porque “Mesrour n’avait point l’œil qui

voit le mauvais côté des choses. »

Neste conto, talvez Voltaire pretendesse mostrar aos homens como estes são

duros com a sua própria condição. É trabalhada a visão na sua dimensão simbólica.

Este homem, simples, não se revoltou e até preferiu só ter um olho porque assim via

sempre o lado bom das coisas. Ao contrário, a humanidade vê com mais frequência

o lado mau, tal é a dimensão negativa da vida e tão pouca parece ser a capacidade

de ver o outro lado, demonstrando-se o pessimismo que marca a existência humana.

O lobo, depois de se assegurar que alguém confiava em si, apercebeu-se de

que poderia ver melhor com os dois olhos, dado que mantivera aberto apenas o olho

que via o lado negativo.

Deste modo, Pennac parece responder às questões que levantámos atrás,

mostrando que a verdadeira comunicação entre os homens muitas vezes decorre não

só das palavras, mas da forma como as usamos e sobretudo do silêncio, numa época

em que cada vez existem mais meios de comunicação, mas em que se torna cada

vez mais difícil comunicar verdadeiramente. Não é esta também uma utopia?

E, para comunicar, não necessitamos de estar em sintonia? Usar o mesmo

canal? A mesma onda? Muitas vezes temos que conquistar primeiro o nosso

interlocutor, como aconteceu com os heróis Afrique e Le Chien... 87 www.voltaire-intégral.com/html/21/CROCHETE/htm No conto narra-se as aventuras deste homem que, ao longo da vida, passa por experiências distintas, talvez para mostrar a ambivalência da natureza humana e os dois lados dessa existência – o bom e o mau.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 86

2.3.4- A conquista amorosa.

Le Petit Prince, L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche

A sedução operada entre os heróis animal e criança (Afrique e Loup Bleu/Le

Chien e Pomme) é uma estratégia de comunicação mas, essencialmente, uma forma

de conquista amorosa.

Esta conquista amorosa, verificada em L’Oeil du Loup e em Cabot-Caboche,

evoca a passagem relatada no capítulo XXI de Le Petit Prince - diálogo entre o

Principezinho e a raposa sobre a sedução.

No quadro que se segue, apresentamos a transcrição dos excertos dos três

textos, onde se nota a intertextualidade (bastante mais visível em Cabot-Caboche),

pela proximidade dos diálogos:

Le Petit Prince (pp. 67-68) Cabot-Caboche (pp. 115-116) L’Oeil du Loup (p. 62)

Je n“ «- Je ne peux pas jouer avec toi, dit le renard. Je ne suis pas apprivoisé. » (raposa) (...)

« - Qu’est-ce que signifie «apprivoiser » ?

- Non, dit le Petit prince. Je cherche des amis. Qu’est-ce que signifie «apprivoiser» ? - C’est une chose très oubliée, dit le renard. Ça signifie «créer des liens… » - Créer des liens ? - … mais si tu m’apprivoises, nous aurons besoin l’in de l’autre. Tu seras pour moi unique au monde. Je serai pour toi unique au monde...” diálogo raposa/principezinho

« - Eh bien ! Voilà… Quand on est si moche que nous le sommes toi et moi, il n’y a qu’une seule solution : C’est la séduction. - C’est quoi, la séduction ? (…) - Il faut savoir se faire désirer. - Et comment on fait ? Silence. Long regard. Soupir. - Je t’apprendrai. » Diálogo Le Hyéneux/Le Chien

« - Guépard, si tu faisais le berger avec moi ? » (…) “- Tu as besoin d’un ami, Guépard, et moi aussi. Voilà c’est ainsi que cela c’était passé avec le Guépard: Afrique et lui étaient inséparables.» (p. 62) Diáolgo Afrique/Le Guépard

Verificamos que os diálogos estabelecidos entre raposa/Principezinho, dois

cães ou ainda menino/fera têm pontos comuns. Para a raposa, é importante a

palavra “apprivoiser”, para Le Hyéneux “séduction”, para o menino “besoin” e “ami”.

Nos três diálogos, deparamo-nos com a constatação da importância da sedução, da

criação de laços/de pactos de amizade para se chegar à comunhão perfeita, e até

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 87

muito além, ao verdadeiro amor. Só depois de estarem em sintonia, de terem

chegado a um acordo, é que raposa e Principezinho dialogam, Afrique e Le Chien

chegam ao entendimento com os seus interlocutores – Loup Bleu e Pomme –

também após uma espécie de “contrato”. Depois do acordo, vêm os fortes laços que

os unem, no final de cada história, e que projectam para o futuro uma relação

duradoura.

Le Petit Prince, de Saint Exupéry é um texto poético e simbólico, de referência,

que se tornou intemporal e lido por pessoas de todas as idades. Por isso, este livro

está entre os mais traduzidos e vendidos no mundo inteiro, sendo considerado uma

fábula moderna, sobre o valor da vida, do amor, da amizade e da necessidade de

valorizar aquilo que realmente é importante.

Porquê a sua comparação com L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche?

Pelas semelhanças dos diálogos, que detectámos aquando da colocação dos

excertos em paralelo, mas também porque consideramos as preocupações do autor

semelhantes às de Daniel Pennac, que segue, de certo modo, temáticas muito

semelhantes, embora em épocas diferentes.

O narrador de Le Petit Prince é um piloto que experimentou uma solidão total,

em pleno deserto, em virtude de uma avaria no seu avião. É acordado pela voz,

doce e serena, de um menino que lhe relata a sua longa viagem, por diferentes

asteróides, e lhe revela as suas fantasias de criança. Este menino, espontâneo e

ingénuo (assemelha-se bastante a Afrique), também é um errante, que percorre

inúmeros locais em busca de amigos88, sente a angústia pelas dificuldades em

atingir os seus objectivos e desabafa com o único ser que o consegue ouvir.

Compreende os adultos mas não é compreendido por eles: o rei (poderoso mas que

não governa ninguém), o homem de negócios (demasiado ocupado e sério para dar

importância a uma criança), o bêbado (que bebe para esquecer que é bêbado), o

geógrafo (que não conhece a geografia do seu próprio país). Reflecte-se sobre a

incomunicabilidade e a incompreensão muitas vezes existentes entre os homens.

Em Le Petit Prince, o narrador mostra-se incompreendido desde criança

(ninguém entendia os seus desenhos, as suas intervenções, os seus desejos) e

desapontado com a falta de capacidade dos adultos para entender as crianças, eles

88 De certo modo o Principezinho é também um ser errante, um pícaro, até encontrar o piloto e a raposa.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 88

que também tinham sido crianças. Com o Pricipezinho, as suas histórias e as

revelações inesperadas, sobretudo com a grande lição de que é portador, o piloto

aprende novamente a ser criança e relembra as suas angústias de criança.

O Principezinho: visão ou sonho? Quimera ou delírio? Admitimos que é um ser

estranho, mas que nos deixa uma mensagem sobre o sentido da vida, que aprende

e ensina a valorizar aquilo que realmente é importante, bem como a necessidade de

cativar os outros, precisamente com uma raposa. Normalmente considerada um

animal manhoso e traiçoeiro89, esta raposa vai ensinar o valor de criar e manter

laços (“apprivoiser” = “Créer des liens”). Só assim, para a raposa, se reconhecerá a

verdadeira importância do que se consegue conquistar90. Além disso, a raposa

relembra que os homens já não têm tempo para nada (os homens que até se

alimentam de comprimidos, para não perderem tempo a comer): “Les hommes n’ont

plus le temps de rien connaître. Ils achètent des choses toutes faites chez les marchands »,

contrapondo-se a atitude dos homens à das crianças “- Les enfants seuls savent ce

qu’ils cherchent, fit le petit prince. Ils perdent du temps pour une poupée de chiffons et

elle devient très importante, et si on la leur enlève, ils pleurent…» (cap. XXII)

Em suma, o que a raposa afirma resume-se às constatações que servem de

ensinamentos, quer para o Principezinho, quer para os homens/leitores, a quem se

pretende chamar à atenção:

- Que só se conhecem as coisas que se cativam/que são conquistadas;

- Que os homens não têm tempo para nada;

- Que os homens compram tudo;

89 Na novela O Romance da Raposa,1924, de Aquilino Ribeiro, temos oportunidade de conhecer uma raposa Salta Pocinhas, manhosa e esperta, que procura todos os meios para atingir os seus fins e, por isso, acompanhamos a sua aventura de aprendizagem na luta constante do dia a dia pela busca das suas pesas – as galinhas. Primeiro, é acompanhada pela progenitora, depois actua sozinha, já com a lição bem estudada. 90 A raposa, mostra-se cansada da vida monótona que levava, em poucas palavras transmite uma mensagem que consideramos ousada, pois coloca-se na boca do animal a sátira ao mundo e aos homens. No fundo, a vida desta raposa era um pouco semelhante à do rei, do homem de negócios, do acendedor de candeeiros, do bêbado, do vaidoso, do geógrafo, mesmo do “aiguilleur” ou da serpente, encontrados pelo Principezinho em cada planeta, pois todos viviam sozinhos e em busca de algo. Contudo, a raposa consegue dar a volta e transformar a sua vida insípida, fazendo o relato de uma experiência excepcional, acabando por criar laços com um ser fantástico como o Principezinho. Face à desculpa de falta de tempo, manifestada pelo menino, e ainda a dois outros aspectos focados por ele (a procura de amigos e as coisas que quer conhecer), a raposa contrapõe-lhe argumentos muito fortes, num tom mordaz, alertando-o a ele mas também aos homens para algo que fora esquecido, palavra que a raposa emprega para se referir a alguns valores que parecem perdidos na sociedade actual.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 89

- Contudo, não podem comprar a amizade;

- Por consequência, não têm amigos;

- Que para se conseguir um amigo é necessário cativá-lo;

- Para cativá-lo, deve ser-se paciente.

Esta mensagem da raposa pode ser, de certo modo, igualada às que Pennac

coloca nas personagens de Afrique e de Le Chien, no seu contacto com aqueles com

quem se relacionam, sejam eles adjuvantes ou oponentes .

Em L’Oeil du Loup, o sedutor é o menino Afrique e os alvos da sua sedução são

os animais e os homens. A mensagem que Pennac faz passar pela personagem de

Afrique, nas suas relações com os animais e com os homens, é semelhante à da

raposa e, no fundo, a todo o texto de Saint Exupéry. Afrique é paciente, espera para

seduzir o seu interlocutor, sabe como lidar com ele, nada é comprado, tudo é

conquistado (até os animais mais ferozes), tem amigos em todos os locais por onde

passa. Ele sabe cativar.

Em Cabot-Caboche, Le Chien também cativa os animais (cães e gatos), mas é

sobretudo com a menina Pomme que se vai desenvolver um jogo de sedução

extremamente interessante, até à conquista final. Le Chien é um pouco raposa, um

pouco Petit Prince.

O processo de aproximação começa na menina, ainda que de forma pouco

pacífica, como se dá conta no esquema que se segue91: (cap. XXVIII):

Le Chien Pomme

Escuta uma voz e fica imóvel e confuso: “Il restait cloué sur place, incapable de savoir ce qu’il ressentait. Une joie immense ? Une trouille intense ? Le désir de sauter dans les bras de Pomme ? L’envie de filler le plus vite possible ? Il ne bougeait pas. » Le Chien considera a menina mudada, sobretudo mais crescida, mantendo a mesma voz, fala alto, como se tivesse autoridade (frases em maiúsculas).

- LE CHIEN! LE CHIEN! LE CIEN ! VIENS ICI TOUT DE SUITE ! (grita) « Pomme non plus. Elle serrait les poings et hurlait de plus en plus fort. » J’AI DIT ICI TOUT DE SUITE ! FAUT QUE J’AILLE TE CHERCHER ? (prepotência, autoridade)

91 Optámos por apresentar esta parte em esquema por considerar que é relevante e onde se dá conta de todos os passos efectuados.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 90

Depois, segue-se um espécie de jogo, que passa de um para outro, em que

presenciamos a aproximação e o afastamento, que culmina na comunicação pelo

olhar:

Le Chien Pomme

2- O cão detestava a mochila – sua rival 4- o cão salta e afasta-se 6- “Le chien attendait sans bouger” 8- «Le Chien hésita… il s’assit brusquement, prit l’air le plus crétin possible et pencha sa tête sur le côté, une oreille dressée, l’autre pendante.» O cão age precisamente como Le Hyéneux lhe ensinara quando alguém lhe tentasse bater 10- « Il faillit céder. (…) Mais au lieu de faire un bond en avant, il fit encore une fois un saut en arrière. » afastamento 12 – « Le chien aussi attendait » 14- O cão « balança » « Le Chien n’avait jamais vu tant de larmes d’un seul coup… il était sur le point de se jeter dans les bras de Pomme » tentativa de aproximação 16- «Le Chien qui se tenait à quelques pas d’elle, l’œil frais et toujours inaccessible » Não quer dar o braço a torcer 18- o cão vê-a afastar-se e espera “Le Chien la regarda disparaître… il resta assis, il laissa passer trois secondes, dix, quinze, les yeux fixés sur l’angle de l’immeuble » 20 - « Et lui là-bas , assis au milieu du trottoir, la tête bien droite attendait, justement qu’elle la trouve » O cão é paciente.

1- Abandona a mochila que era pesada. 3- Corre em direcção ao cão e quase o toca. 5- Pomme abre a boca, para gritar, mas acaba por fechá-la de seguida: ”elle se remit en marche. Elle avançait lentement.” 7- « Pomme saisit une pierre et la brandit au- dessus de sa tête. Elle visait le chien. » (violência) 9- « La main de Pomme s’ouvrit toute seule, la pierre tomba mollement à ses pieds. Et la voix de la petite fille se fit toute douce. » Primeira cedência, sem violência 11- uma vez mais frente a frente «Pomme piquait une colère brève, hurlait, menaçait, trépignait (…) attendait avec une patience de pêcheur.» 13- « Tu te fatigueras avant moi» (pensa Pomme, como pensava o lobo em L’œil du Loup) Mas é ela quem cede primeiro “c’étaient ses jambes à elle qui commençaient à peser. Elle se mit à pleurer. » 15 – Momento de quase cedência, isolamento do resto do mundo, insulta um transeunte “Elle se fichait de tout. Elle ne voyait que le Chien» Recomeça o jogo/ é de noite 17 – A menina tenta afastar-se 19 – « ... la petite rousse réapparut. Mais ce n’était pas du tout le soleil de toute à l’heure… un soleil complètement éteint. Une petite tête lamentable qui se demandait avec angoisse si le Chien l’attendait.» O desespero, a tristeza

A situação do olhar vivida por Le Chien e por Pomme evoca a passada por

Afrique e Loup Bleu em L’Oeil du Loup: “Depuis combien de temps se regardent-ils ainsi,

ce garçon et ce loup? Le garçon a vu plusieurs fois le soleil se coucher dans l’œil du loup.”

« Ils restèrent très longtemps à se regarder ainsi. »

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 91

(p. 42), o que indica que estiveram bastante tempo a olhar-se olho no olho. O

processo de sedução está cada vez mais forte, embora ainda não consolidado:

Pomme Le Chien

Pomme s’approcha.

Quand elle fut à sa hauteur, elle ne chercha pas

à le prendre.

Elle tomba assise sur le bord du trottoir.

Elle parla. Elle dit…

(arrependimento)

Il ne recula pas.

Il ne chercha pas à s’enfuir.

Il baissa la tête et la regarda par en

dessous.

(cedência)

O reconhecimento da sua falta de humanidade, da “brutalidade”, do

esquecimento do seu dever. Depois, a promessa de não deixar que volte a

acontecer.

“C’est vrai, Le Chien, t’as raison. J’ai été méchante, égoïste, idiote. Je t’ai fait souffrir, je t’ai

abandonné, c’est vrai. Mais qu’est-ce que tu veux que je te dise ? Je veux que tu reviennes,

tu m’ manques. J’ai trop pleuré, voilà, je regrette. Bien sûr j’ peux pas t’obliger à revenir, ça

servirait à rien de te dire que je ne le ferai plus, t’es pas forcé de me croire, et pourtant je le

ferai plus…, enfin, je crois… non, j’en suis sûre, je le ferai plus ! Je t’aime trop, Tu m’as trop

manqué, je l’ ferai plus, je le jure. » (pp. 146-147)

A sedução completa-se, estabelecendo-se uma relação de AMOR, nascida entre

cão e menina: “Je t’aime trop” é a consolidação deste demorado processo. No

entanto, menina e cão ainda terão provas a superar, nomeadamente o abandono

pensado e levado a cabo pelo Grand Musc e la Poivrée. Estes não previam a reacção

da menina, desconhecendo a relação de cumplicidade e amor estabelecida e, a greve

de fome que a faz ficar doente, o que faz com que os pais regressem e se rendam às

evidências: Le Chien e a menina eram amigos inseparáveis. Pennac cria “suspense”

antes de acabar a história, dando-nos a entender a dificuldade em concretizar certos

objectivos. Por isso, a criança é de certo modo “perdoada”, poupada à crítica e, no

final, até é recompensada.

No final, o Amor é consumado e consolidado, num tempo e num espaço

perfeitos, ainda que em construção e onde tudo é possível: o entendimento entre um

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 92

lobo e um menino e a aceitação do cão por parte da família completa, ou seja há

acontecimentos positivos e as personagens usufruem desse positivismo.

Para concluir, gostaríamos de referir que a utopia presente nestes romances é

a concretização de sonhos e desejos, podendo resumir-se ao conteúdo de um

poema de Zeca Afonso92 que transcrevemos. À semelhança do desejo que

transparece de alguns versos, entendemos que Pennac, na sua mensagem, aspira a

um mundo onde exista: “Gente igual por dentro/Gente igual por fora”, e pretenda ainda

que o homem se olhe nos olhos, de modo a poder comunicar sem barreiras, como

fizeram Loup Bleu e Afrique; Pomme e Le Chien.

2.4- A sátira e a moralidade – a humanização do animal e a animalização do

homem.

2.4.1- A Sátira

Em L’Oeil du Loup, mas sobretudo em Cabot-Caboche existe uma vertente

satírica bastante demarcada, nomeadamente quando os animais “caracterizam” e

“descrevem” os homens e os seus comportamentos.

Segundo Linda Hutcheon: “A sátira é uma representação crítica, sempre cómica

e muitas vezes caricatural de “uma realidade não modelada”, isto é dos objectos reais A

92 Utopia, letra e música de Zeca Afonso, in: “Como se fora seu filho”, 1983 fonte: http://natura.di.uminho.pt/

É teu a ti o deves

Lança o teu desafio

Homem que olhas nos olhos

Que não negas

O sorriso, a palavra forte e justa

Homem para quem

o nada disto custa

Será que existe

lá para os lados do oriente

Este rio, este rumo, esta gaivota

Que outro fumo deverei seguir

Na minha rota?

Zeca Afonso

Utopia

Cidade

Sem muros nem ameias

Gente igual por dentro

Gente igual por fora

Onde a folha da palma

Afaga a cantaria

Cidade do homem

Não do lobo, mas irmão

Capital da alegria

Braço que dormes

Nos braços do rio

Toma o fruto da terra

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 93

“realidade original” satirizada pode incluir costumes, atitudes, tipos, estruturas sociais,

preconceitos.” (1989: 247-248) As suas normas são muito mais sociais ou morais,

pretende-se criticar para corrigir. Pela sátira, o autor mostra que compreende o

mundo como uma desordem, onde existem máscaras, em que predomina o absurdo.

Como não adere a esse mundo, ataca-o, muitas vezes pelo riso, engrandecendo os

defeitos e vícios.

Assim, perante o absurdo do mundo, as situações de injustiça cada vez mais

expostas, podemos encontrar a inversão dos papéis/das situações/do próprio

mundo. Jean Émelina (1991: 163) refere que esta inversão pode ser feita apenas por

prazer: “Il s’en faut de beaucoup que cette structure soit, même inconsciemment, toujours

chargée de morale ou d’idéologie. De même qu’il y a un esprit inoffensif et un esprit

tendancieux, il y a un monde inversé de pur plaisir. », embora não seja o caso destes

romances, pois a inversão é intencional, com intuito pedagógico.

A ironia e a hipérbole são recursos de que os autores se servem para dar

conta dos defeitos dos homens, exagerando-os, acabando por torná-los cómicos,

um pouco patéticos.

Em L’Oeil du Loup a tarefa de observadores e críticos está destinada aos

lobos, sobretudo Loup Bleu, embora este o faça com alguma amargura e

ressentimento, podendo ter-se uma visão mais trágica do que cómica. Por seu turno,

em Cabot-Caboche é pelo filtro do olho clínico e perspicaz de Le Chien que temos

uma imagem extremamente caricatural dos homens, muito mais humorística e

irónica. Assim, os homens animalizam-se e os animais humanizam-se, deixando

antever o mundo às avessas, que se pretende recompor. A animalização do homem

é um traço dominante do nosso tempo e como salienta Agamben (2002:118)

“L’humanisation de l’animal coïncide avec l’animalisation intégrale de l’homme”.

Muitas vezes, exageram-se os defeitos do Homem, rebaixando-o,

descrevendo as suas atitudes animalescas. Nos dois romances de Pennac, Loup

Bleu e também Casseroles, dirigem os seus pensamentos e críticas ao homem, ser

com quem convivem de perto, ou que impõe a sua presença e de quem fazem um

retrato por vezes pouco abonatório, porque vai no sentido do seu rebaixamento. As

atitudes e os gestos, observados pelos animais do exterior, evocam a atitude de

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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l’Ingénu93, de Voltaire (1767). À semelhança de l’Ingénu, um selvagem que diz

sempre o que pensa (daí o seu nome), revelando-se um ser aparentemente ingénuo,

Afrique, Casseroles e mesmo Loup Bleu, também são ingénuos e inocentes, mas

dotados de uma grande capacidade de análise do que os cerca.

Toa, le Marchand, Le Roi des Chèvres, o condutor do camião e sobretudo os

caçadores, são personagens-tipo que não evoluem, ridicularizadas pelos seus traços

físicos ou pelas atitudes e simbolizam os tiranos das fábulas, sem estar escondidos

por trás da pele dos animais.

Logo desde o início, os lobos escutam uma frase proferida por Flamme Noire

«Le meilleur des hommes ne vaut rien !» (p. 9), constatação amarga, onde se evidencia

toda a carga negativa com que os homens são reconhecidos, uma vez que estão do

lado do mal.

Os homens representam a força destruidora, a perseguição, que se pretende

mostrar:

« …il fallait s’enfuir à nouveau. Les hommes ne se décourageaient jamais. Depuis deux

lunes c’était toujours la même bande qui traquait la famille. Ils avaient déjà eu Grand Loup, le

père. » (p. 22) (…)Et pourtant les hommes nous retrouvaient.

Toujours. Rien ne les arrêtait.

Les hommes…

L’Homme… » (p. 23)

Nestas duas últimas frases a referência aos homens é feita de duas formas: a

primeira, no plural, abarca os caçadores/os perseguidores; a segunda, no singular e

com maiúscula, é a generalização a toda a Humanidade. As reticências deixam no ar

a suspensão do pensamento, significando que algo mais haveria para dizer,

remetendo-se para o leitor a tarefa de tirar as suas próprias conclusões.

Mas, o retrato do homem vais mais além. Mostra-se como são vistos os

homens pelos lobos, exagerando-se nos traços mais animalescos. Normalmente, 93 VOLTAIRE, (1979), Romans et Contes, « L’Ingénu», édition établie par Fréderic Delefore et Jacques Van Den Heuvel, Paris, Gallimard, (pp.285-347) Apesar de estrangeiro (L’Ingénu é um Huron, nome de uma região dos Estados Unidos), este homem que não conhecia nem pai nem mãe, tem princípios e experiências interessantes, falava bem algumas línguas. Leu Rabelais e Shakespeare por iniciativa própria, e efectuou muitas outras leituras por influência de um jesuíta com quem esteve preso. Ao longo da vida sua visão do mundo mudou: “Le monde lui parut trop méchant et trop misérable. » (p. 315) Contudo, esta personagem vê sempre tudo do lado de fora. Julgamos mesmo que se faz passar por ingénuo para poder observar melhor. Voltaire serve-se desta personagem para criticar a sociedade e a religião.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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são comparados com os lobos ou outros animais e estão associados à guerra e ao

mal (pp. 28- 29/35/36) :�

Um animal irracional

Les hommes ? Deux pattes…

Les hommes mangent tout : l’herbe des caribous, les caribous eux-

mêmes et, s’ils n‘ont rien à se mettre sous la dent, ils peuvent aussi

manger du loup !

Les hommes ont deux peaux : la première est toute nue, sans un poil,

la seconde, c’est la nôtre.

Les hommes hurlaient en dansant. Ils étaient vêtus de peaux de

loups.»

“Un des hommes, grand comme un ours, dressé devant lui,

brandissait à deux mains une bûche enflammée”�

Um guerreiro/violento Les hommes ? Deux pattes et un fusil.

L’Homme est un collectionneur !�

Toa Le Marchand é um dos exemplos da violência: tenta abandonar o menino,

espanca o dromedário: “Certains matins, quand il est particulièrement en rogne.. (les

affaires étaient mauvaises, le point d’eau est asséché, la nuit trop froide, il y a toujours une

bonne raison…) » (pp. 51/52), « Toa le Marchand s’arc-boute sur la bride du

dromadaire… » (p. 52) “...Toa brandit un gros bâton noueux...” (p. 52). Ao observá-lo,

o dromedário “...qui le regarde en mastiquant un vieux chardon. (...) Non. Le dromadaire

reste couché sur ses genoux. » (p. 52) resiste pela imobilidade e o seu olhar é portador

de uma certa indiferença. Este homem é ainda caracterizado pela arrogância e

materialismo – uma caricatura dos homens - sobretudo quando se denuncia que este

homem seria capaz de se vender a si próprio - “Mais à la fin de chaque histoire... (...) –

Il fait même payer les histoires de l’enfant.” (p. 56) “-Toa le Marchand, tu te vendrais toi-

même, si quelqu’un voulait de toi.» (p. 56)

Le Roi des Chèvres, de quem se apresenta uma descrição bastante

pormenorizada, tem a fisionomia, os gestos e até os hábitos que o assemelham aos

animais com que lida diariamente como a cabra, o bode e a ovelha – uma imagem

que se aproxima da caricatura, porque os seus traços mais evidentes pertencem ao

campo semântico do animal:

« D’ailleurs, il avait des cheveux bouclés de mouton blanc, ne mangeait que du fromage de

chèvre, ne buvait que du lait de brebis et parlait d’une voix chevrotante qui faisait frétiller sa

longue et soyeuse barbiche de bouc. (p. 59-60)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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Em Cabot-Caboche existe uma frase, constantemente evocada por Le Chien:

«Les hommes sont imprévisibles », citada cinco vezes ao longo da história94. Tal

expressão demonstra a imagem que os animais têm dos humanos, particularmente

dos adultos, transferindo para os homens características que, habitualmente, são

atribuídas aos animais, dada a irracionalidade de muitas das suas actuações. Assim,

as reflexões e descrições dos humanos, nomeadamente dos adultos, serão feitas

pelo rebaixamento/caricatura. Sempre que se descreve os humanos e se refere os

comportamentos, exagerando-se os defeitos, predomina um registo humorístico, cuja

função é a de corrigir os vícios e os defeitos apontados. O autor revela a consciência

da inversão dos valores, numa sociedade que parece ter trocado os valores

colectivos pelo materialismo e o individualismo.

Os humanos/adultos mais expostos à análise de Le Chien, sempre sob o seu

ponto de vista, são La Poivrée e Le Grand Musc, embora também se destaquem

alguns dos veraneantes (do campismo em Nice), cujo retrato é apresentado num tom

depreciativo. Os quadros que se seguem resumem os primeiros contactos que Le

Chien teve com os humanos (pais de Pomme):

No Canil

O homem A mulher

Une espèce de grand type en short, rouge comme

une écrevisse. (p. 58) Une dame toute maigre, un chapeau à fleurs sur la

tête, blanche comme un navet. (p. 58) L’air furieux L’air furieux

Na praia

Le Grand Musc (O homem) La Poivrée (A mulher)

“... sur quoi Le Grand Musc se levait et se mettait à

courir à son tour. Sauf qu’il ne courrait après rien,

lui. Il courait, s’accroupissait, il écartait les bras,

courait de nouveau, il soufflait un bon coup, il se

relevait, courrait de nouveau, etc. Pendant des

heures. Et, quand il avait fini son manège, il revenait

« C’est La Poivrée qui glapit. Elle a une voix

terriblement aiguë.» (p. 5) hipérbole

« La Poivrée quitte la pièce sur ses talons (aussi

pointus que ses mots) » (p. 7) - ironia

94 - “Quelque chose l’a toujours chiffonné avec les hommes: ils sont imprévisibles.” (Le Chien) p. 10 - « Méfie-toi des hommes, ils sont imprévisibles » (p. 28) - « Comme les hommes étaient imprévisibles ! » (p. 90) - « Ils changent de jeux, de préoccupations, de visage, aussi vite que le vent change de direction. Et d’une façon imprévisible. D’une seconde à l’autre ils ne sont plus les mêmes. » (p. 120) - “Les hommes sont vraiment imprévisibles » Voilà se que se disait Le Chien. » (p. 133)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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s’étendre à côté de la Poivrée, l’air très fier de lui.

(Inexplicable !) (p. 68) sarcasmo

« C’était vrai : lui qui ne se baignait jamais, il était

toujours trempé de la tête aux pieds. »

« Á force de courir après sa propre forme et de

transpirer comme une cascade, il s’était fait cette

odeur particulière de musc que Le Chien avait

reconnue tout de suite. (...) Du coup il ne s’approchait

jamais beaucoup du Grand Musc” (p. 68)

« … pendant que Le Grand Musc courait, sautait,

transpirait, se faisait des muscles et une odeur, La

Poivrée passait son temps à sortir une petite

bouteille bizarre de son sac à main, et s’en

aspergeait du matin au soir. (…) Elle sort la

bouteille … quelques gouttes étaient tombées sur le

museau du Chien… tout à fait comme si on lui avait

rempli les narines de poivre. » (p. 69)

O contacto de Le Chien com os dois seres humanos, permite-lhe fazer uma

curiosa comparação entre estes e um animal (uma lagosta) ou um legume (um

nabo), o que torna as suas figuras ridículas (1º quadro). Estamos perante o cómico

de personagem/carácter, o rebaixamento – o ridículo, em que se deforma a imagem

humana. Os nomes escolhidos para as personagens, que são identificadas pelos

cheiros que emanam, manifestam traços das suas personalidades (2º quadro).

Um outro aspecto trabalhado neste romance, explorando a vertente satírica,

tem a ver com os comportamentos dos seres humanos em sociedade e podemos

deduzir uma clara análise sociológica da sociedade francesa actual. Deste modo, Le

Grand Musc, La Poivrée e a sua filha Pomme, representam uma família da classe

média francesa, que vive num apartamento na cidade de Paris, que procura um

animal doméstico (um cão) e que passa férias, em Agosto, no sul de França (em

Nice), ainda que seja no campismo. Por isso, as descrições da vida quotidiana ou em

férias são, por vezes, bastante hilariantes, uma vez que feitas sob o ponto de vista

do cão:

Apartamento em Paris

« Les appartements parisiens n’ont pas d’extérieur. Tout le monde vit dedans. Et

dedans, ce n’est pas drôle. D’abord c’est petit. (…) restent l’entrée (deux mètres

carrés), la minuscule cuisine (…) le couloir (où tout le monde vous marche dessus) et

la chambre de Pomme (sauf la nuit). » (p. 8)

De notar a ironia nos comentários entre parêntesis.

O parque de cam-

pismo

“(C’était là qu’ils passaient les vacances, chaque année, dans ce camping. Près de

Nice) » (p. 71)

Aqui reúnem-se a família e os amigos para conversar, comer e onde se faz a cerimónia

do baptismo do cão.

“Le Grand Musc avait tenu de passer par les montagnes du bord de la mer

(L’Esterel) parce que, disait-il, c’était plus «touristic». “Et aussi beaucoup plus

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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O regresso a Paris de

carro ou a partida para

férias

(L’Esterel) parce que, disait-il, c’était plus «touristic». “Et aussi beaucoup plus

« économic»”, avait juré La Poivrée. » (p. 77)

a linguagem adoptada pela classe média, “importada do inglês”

De referir ainda os inúmeros comentários aos comportamentos dos homens,

quer na condução, quer nas estações de serviço.

A procura de um cão

« - JE VEUX UN CHIEN! » (3 vezes)

«- JE NE VEUX PAS UN CANICHE !»

«- NON, JE VEUX PAS UN FOX-TERRIER!»

«- JE VEUX CELUI-LÀ !» (pp. 58-61)

Estas frases são pronunciadas pela menina, em voz alta, daí serem transcritas

em letras maiúsculas, porque quer adoptar/encontrar um cão e a sua escolha

recai sobre Le Chien, por puro capricho, vencendo o seu desejo.

Muitos outros comentários são tecidos acerca dos comportamentos dos homens:

- a higiene da cidade, que obriga a fechar os cães no canil, uma crítica bem

amarga e cheia de ironia: “L’hygiène de la ville, qu’ils disent? Elle est bien bonne ! Comme si

c’était nous, la pollution de la ville. Avec tous ces gaz que leurs voitures nous envoient sur le

museau ! La rage qu’ils disent, mais c’est eux les enragés, pas nous. Ils se battent sans arrêt. »

(p. 48)

- o facto dos homens terem “invenções estranhas” como a das raças dos cães:

“Qu’est-ce que c’est, «un chien de race» demanda Le Chien. / - Un truc inventé par les

hommes, répondit Le Nasillard sur le ton du mépris. Un truc complètement artificiel.” (p. 49)

- o baptismo do cão, em que este observa os homens a reflectir, algo com que

nunca se deparara, para além de cantarem alto, comportamento que explica dever-

se : “Et c’est sans doute à cause des bouteilles qu’on chantait de plus en plus fort.» (p.

72)

- que os homens não têm muita imaginação: « Tu fais peut-être partie de ces crétins qui

poussent des cris d’admiration quand un chien abandonné a retrouvé ses maîtres à mille

kilomètres de distance. Imbécile ! Pas plus d’imagination qu’un homme… » (p. 164)

Quando Le Chien observa os humanos a reflectir, esta descrição é

acompanhada da comparação com os comportamentos dos animais:

« Très intéressant. Ils se regardaient d’abord les uns les autres, en haussant les

sourcils et les épaules, puis ils regardaient en l’air (…) Lorsqu’il réfléchissait, Le Grand

Musc devenait amusant. Son front se plissait comme celui d’un bouledogue, et sa

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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mâchoire inférieure avançait. On s’attendait à voir sortir ses canines et à entendre

bouillir sa cervelle. Il devenait encore plus rouge que d’habitude. » (pp. 72-73)

A viagem de regresso a Paris torna-se uma espécie de observatório dos

comportamentos humanos, a partir dos “confrontos” entre Le Grand Musc e os outros

homens, comparados às “disputas” entre cães. Recorre-se à hipérbole, como figura

de eleição, para fazer a caricatura. Estes humanos agem como animais, não chegam

a ser ogres, nem monstros, mas estão fortemente animalizados:

Homens cães “Le Grand Musc s’approchait de l’automobiliste en faisant

rouler ses énormes muscles, l’air terriblement menaçant. Si

l’automobiliste était de la même taille, il faisait aussi rouler les

siens de muscles. Et la conversation s’engageait.» (p. 78)

« Deux chiens très costauds s’approchaient l’un de

l’autre en grondant, le poil hérissé sur leurs épaules

musclés. »

TOUT ÇA, C’EST POUR LA GALERIE.

(comentário irónico do cão)

«Avec les hommes c’était la même chose. Les poings serrés, ils

grondaient en se regardant de la tête aux pieds. Leurs

ricanements découvraient des canines en or. De temps à

l’autre, ils jetaient un rapide coup d’œil vers les admirateurs (…)

Mais ils finissaient par se séparer sans se faire mal. Chacun

des deux s’enfermait alors dans une petite maison spéciale

où Le Chien supposait qu’ils levaient fièrement la patte.» (p.

79)

«En effet, après avoir tourné deux ou trois fois l’un

autour de l’autre, les chiens filaient chacun de leur

côté, et levaient fièrement la patte sur le premier

pneu venu, comme s’ils avaient remporté une

immense victoire.»

LA « GALERIE» PARRAISSAIT CONTENTE DU SPECTACLE

Pomme, a criança é, juntamente com Le Sanglier, um dos poucos humanos que

escapa à sátira do animal/narrador e que, apesar de também o ter feito sofrer,

ignorando-o95, acaba por se render à sedução. Por isso, a sua descrição é diferente

e a menina não será punida, talvez por ser ainda criança e representar a inocência e

não a maldade:

« La chose la plus extraordinaire que Le Chien eût jamais vue : une toute petite fille…

mais toute petite alors. Des cheveux roux, raides comme des baguettes qui lui faisait

comme un soleil autour de la tête.» (p. 58) 95 Deparamo-nos com um cão infeliz, desiludido. Exprime sentimentos como a tristeza profunda, o sofrimento, a vergonha, a cólera...

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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« …Le Chien remarqua que la petite fille sentait la pomme. » (p. 63)

Nos dois romances, não só se rebaixa e animaliza o Homem, como também se

retrata a ambivalência humana. Esta é uma das particularidades da sátira: mostrar o

“mundo às avessas”, e tornar visível o invisível, pela inversão dos papéis. Podemos

mesmo acrescentar que esta vertente satírica é, igualmente, uma forma de

moralizar. Pela crítica, denuncia-se o que está mal para, a seguir, se apresentar uma

solução que pretende ser a forma de corrigir os erros, desvendando-os.

2.4.2- A moralidade.

Cabot-caboche e L’Oeil du Loup encerram uma vertente

pedagógico/moralista, sob a forma de alguns aforismos, que o autor deixa

transparecer ao longo dos textos, uma das características mais marcantes da fábula,

retrabalhada por Pennac e que revela a sua vertente mais clássica.

Em L’Oeil du Loup, a moralidade está diluída ao longo do texto. Podemos dar

conta de alguns exemplos de temas que podem levar a uma reflexão mais profunda

da parte do leitor. O esquema abaixo pretende ser uma resenha dos aspectos mais

relevantes de que fizemos o levantamento:

L’Oeil du Loup

história objectivo

A história du «petitt louveteau maladroit» Devemos sempre desconfiar dos homens.

A história de Paillette

O orgulho da sua raça, mostrado por Loup

Bleu.

A história de Paillette, contada por Perdix São as histórias sobre o passado que fazem

com que Perdix seja aceite.

As histórias passadas e presentes de Loup Bleu Exorcisa-se o passado para comunicar com

o presente.

L’Oeil de l’homme

história objectivo

História da guerra/incêndios e do salvamento A tragédia e o desenraízamento que vitimam

a criança.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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Primeira amizade (Casseroles) A importância da solidariedade

A colaboração de Afrique com os seus mestres «A união faz a força!»

O pacto com os animais e com Le Roi des Chèvres Quando se assumem os compromissos da

vida, estes devem ser cumpridos.

A adopção de Afrique A Confiança, a Amizade e o amor.

A moralidade deste romance está ainda na oposicão entre amizade e

bondade, pelo lado positivo e cativeiro e maldade pelo lado negativo, temas que

fomos abordando, ao longo do trabalho.

No que se refere a Cabot-Caboche, a presença da moralidade parece mais

evidente, considerando que Daniel Pennac, ao colocar o texto «Ni Dresseur ni

dressé» (pp. 195-201) no final da narrativa, demonstra a sua intenção sobretudo

instrutiva e, de certo modo, também moralista. Uma das frases-chave deste texto

resume-se à ideia que serve de título: ”Si vous avez un chien, ou quand vous en aurez

un, je vous en prie, ne soyez ni dresseurs ni dressés.” Pennac lembra-nos ainda que:

”Le bon dressage est celui qui impose le respect des dignités mutuelles. »(p. 199)

Afirmando não ser especialista em cães, Pennac revela, todavia, alguns

conhecimentos sobre a “personalidade” desses animais, pela forma como se

exprime acerca deles e como caracteriza Le Chien, Gueule Noire ou Le Hyéneux96.

Neste texto, o autor evoca os “amigos de quatro patas”, relembrando-os como se

ainda estivessem presentes. Aproveita, ainda, para alertar os leitores para as

responsabilidades que devem ser assumidas a partir do momento em que se adopta

um cão: ”Quand on choisit de vivre avec un chien, c’est pour la vie. On ne

l’abandonne pas. Jamais. Mettez-vous bien ça dans le cœur avant d’en adopter un.”

(p. 201), dirigindo-se a todos. Aqui reside a “moralidade” do texto, que pode

funcionar como lição, um alerta que resume a mensagem veiculada pela ficção.

“Ni dresseur ni dressé” contém, nas suas linhas gerais, os pontos tratados numa

novela de Manuel Alegre, intitulada Cão como Nós97, uma ficção cheia de metáforas

sobre a vida do cão do autor que, depois de morto, se transforma em personagem

principal, sobre a qual o narrador/autor reflecte e com quem “dialoga”, no silêncio do

96 Ao longo do romance depreende-se que Pennac juntou as características dos seus próprios animais, dos amigos dos seus cães ou dos cães dos seus amigos para revelar cães com personalidade, com sentimentos, capazes de experimentar emoções como os seres humanos. E sem dúvida que estes cães são bastante humanizados. 97 Publicações Dom Quixote, 2002

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 102

seu escritório, evocando a sua presença, mesmo na sua ausência. A tristeza

causada pelo desaparecimento do animal, resmungão e desobediente, pretende

demonstrar a importância que se dá às coisas ou às pessoas, depois do seu

desaparecimento: “Os animais sabem coisas que nós não sabemos. Nada substitui a

companhia das pessoas, mas há momentos de desespero e de grande solidão interior, de

zanga com o desconcerto do mundo, em que um cão é sempre uma companhia, quando

não há outra e tem uma lealdade incomparável.”

O narrador dialoga em surdina com o seu cão (em capítulos intercalados na

narrativa, colocados entre parêntesis). Este cão podia permanecer em todas as

divisões da casa e o seu local de castigo era a cozinha onde uivava, pedindo

atenção. Era também um especialista em relações humanas: «Sempre partilhou as

nossas alegrias e tristezas.» (p. 69) porque assim lho permitiam, ao contrário de Le

Chien que não teve essa oportunidade muitas vezes. Era um cão capaz de

comunicar: “E aquele cão falava. Falava com os seus vários modos de silêncio, falava com

os olhos, falava até com o rabo, falava com o andar, com as inclinações de cabeça, com o

levantar ou baixar das orelhas.” (p. 89)

A morte do animal causou um sentimento de perda. Por isso, a parte final do livro

funciona como uma espécie de desejo do narrador/autor de evocar e perpetuar a

memória de um companheiro que deixou marcas: “Mas eu gostava que o espírito dele

permanecesse aqui connosco. Foi talvez por isso que escrevi este livro. (...) Tenho a

certeza de que estou a escrever com ele deitado ao meu lado esquerdo, como sempre

fazia quando eu me sentava no escritório.” (p. 113) Esta frase é muito semelhante à

de Pennac que transcrevemos: “Il me semble qu’ils sont tous là, autour de moi, à me

surveiller, pendant que j’écris ces lignes. » (p. 199)

Todavia, a moralidade de Cabot-Caboche não se confina apenas ao texto final

“Ni dresseur ni dressé”. Está subjacente a toda a narrativa uma crítica – sátira - feita

pelo narrador ou colocada na “boca” dos animais, acerca do comportamento dos

homens, denegrindo os seus defeitos, talvez porque se pretendem ver corrigidos,

como vimos anteriormente.

� � � � � � � �

Em guisa de conclusão, da abordagem de L’Oeil du Loup e de Cabot-Caboche

sobressaem alguns aspectos que passamos a sintetizar.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 103

Consideramos que em ambos predominam elementos fábula, já presentes na

fábula clássica, tais como:

- a presença da oralidade, a clausura e a liberdade (associada aos

espaços),

- a vivência picaresca e um pouco trágica dos heróis,

- a presença de um universo dividido entre carrascos e vítimas, perseguidos

e perseguidores, a prepotência dos adultos face à inocência e fragilidade

dos animais e das crianças,

- Finalmente, uma vertente moralista/pedagógica.

Acrescentam-se, ainda, outras características que consideramos presentes na

fábula moderna:

- a sátira da sociedade, como forma de analisar e controlar os

comportamentos humanos;

- a animalização dos homens e a humanização dos animais;

- a predominância da ambivalência humana, dado que são bastante

visíveis as constantes mutações que o ser humano vai sofrendo, bastante

visível em Cabot-Caboche.

- Ao contrário da fábula que terminava quase sempre de forma trágica, tanto

L’Oeil du Loup como Cabot-Caboche apresentam um final feliz.

Consideramos ainda que, com Cabot-Caboche, Daniel Pennac transmite uma

mensagem importante para que os cães sejam tratados com a merecida dignidade,

sobretudo que não sejam abandonados e que, à sua adopção, são inerentes

responsabilidades que não podem ser ignoradas.

Quanto ao lobo, após a leitura de L’Oeil du Loup, bem como de muitas outras

ficções que têm por protagonista este animal, o leitor apercebe-se que houve uma

mudança de olhar sobre o lobo e o seu papel, não só na literatura, mas também nas

outras formas de arte, ao longo do século XX. A esta mutação estão ligados novos

textos em que este animal assume um papel diferente, mas essencialmente as

inúmeras paródias dos textos clássicos, como veremos no capítulo seguinte, em que

abordaremos a evolução da fábula, bem como a eleição da paródia como o género

por excelência do século XX, já que permite dar conta dos sucessivos

“renversements” do mundo.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

________________________________________________________________________ 104

CAPÍTULO III

A fábula moderna e a paródia. 1- A fábula no século XX.

“Es así desde el principio de los tiempos porque es don de los dioses y suelen ellos

fabular cuando conceden. Ese es oficio de los mortales, hijos del pánico y la

costumbre.”

Álvaro Mutis98

Como serão as fábulas do século XX? Serão estas reescritas dos textos

clássicos? Podemos considerá-las como um novo género? Estará este género

inserido em outros géneros, fruto da evolução e das constantes questionações dos

géneros?

Um dos estudos recentes sobre a fábula século XX (anos 90), de Enrique Turpin

Avilés, inserido numa recolha de Castillo (2001), revela que este género se

transformou.

Segundo o referido autor, o género fábula foi um tanto menosprezado no século

XIX. Para Marc Soriano, a fábula parece ter encontrado, no século XX, um novo

sopro com os desenhos animados e sobretudo com Walt Disney. Poderemos também

encontrá-la junto de curtas metragens, do documentário, da novela, do conto, do

poema ou da canção. Alguns autores do século XX, ainda que tenham valorizado

géneros como o romance, a novela, o conto ou os género dramático e lírico, não

deixaram de reescrever fábulas clássicas, de as parodiar ou ainda de criar novos

textos.

A referida evolução passou, num primeiro momento, pela alteração da função

do moralista. Sobre esse papel, José Luis López Aranguren99 (Castillo, 2001: 729)

realça que o mais importante talvez seja a reflexão sobre o sentido da vida,

permitindo um novo olhar do homem sobre si mesmo:

«... oficio más positivo es, sin embargo, el presentar las nuevas o las viejas pero

renovadas virtudes que, en cada tiempo, tiendan a construirse como centrales de la

personalidad, de tal modo que sea en torno de ella como se organice esta. La

98 citado no livro de Castillo e Carbajo (2001: 729) 99 “El oficio del moralista en la sociedad actual” (1952)

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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propuesta de un sugestivo proyecto fundamental de la existencia, el ofrecimiento de

un cabal modo de ser es lo que, creo yo, caracteriza, en su intención mas honda la

obra del moralista.»

Como sabemos, antes a função do moralista era o de denunciar, irónica e

mordazmente, os vícios dos humanos, com um propósito educativo. Segundo o

autor do artigo supracitado, hoje não interessa tanto moralizar e, por conseguinte, o

papel do moralista parece não ser tão necessário. Considera-se, ainda, que o

género fábula evoluiu, uma vez que, tratando-se de um género histórico-literário,

está sujeito a transformações:

«Los géneros son entidades histórico-literarias, son víctimas de una transformación

constante, un desarrollo, o lo que es lo mismo, una evolución, desde el momento en

que las obras añadidas a su nómina constituyen otras tantas variaciones sobre la

matriz genérica que mantienen sus vínculos con las ya existentes.» (Castillo: 2001:

731)

Na fábula tradicional dominavam aspectos como a brevidade, o propósito

pedagógico e a finalidade artística. Na actualidade, combinam-se arbitrariamente

estes motivos, inserindo-se algumas inovações ou abandonando-se aspectos como

a moralidade, até aqui considerados fundamentais para a caracterização do género.

Assim, introduz-se a ironia que assume um papel de destaque. No que concerne

este aspecto, consideremos as afirmações do autor do artigo, Enrique Turpin Avilés

(Castillo, 2001: 732-733)

«La ironía evita cualquier invitación al modo como han de comportarse los hombres

en su conducta y traslada el antiguo discurso inventado para formar las costumbres

por medio de instrucciones disfrazadas debajo de alegorías hacia el terreno de la

incredulidad, con el consecuente aumento de la validación estética por parte de lo

lector. La ironía tiende, por su propia naturaleza, a proporcionar las herramientas que

conducen a descubrir la realidad subyacente en las apariencias...»

A ironia que, de certo modo, estava implícita em muitas fábulas de La

Fontaine, aparece marcadamente mais explícita nos textos actuais. Para o autor do

artigo citado, o recurso à ironia não pretende ser uma forma de transmitir aos

homens normas de comportamento, ou seja, moralizar. Pela ironia, diz-se uma coisa

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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quando se pensa exactamente o contrário. Assim, o fabulista serve-se da antífrase

como forma de crítica. A realidade está camuflada pela aparência da ironia e caberá

ao leitor entrar nesse jogo de descoberta/descodificação. Ao mesmo tempo, será

uma forma de chamar à atenção dos homens para a realidade, sem recorrer à

alegorização do real, mas à sua contradição, sobretudo recorrendo ao “ethos

moqueur”. Consideramos, deste modo, como Linda Hutcheon100 que a ironia é, ao

mesmo tempo, uma estrutura antifrástica e uma estratégia avaliativa, implicando

uma atitude, por parte do autor (a de denúncia) e outra, por parte do leitor (a

compreensão dessa denúncia).

Os fabulistas modernos reorientam os mecanismos internos da própria fábula,

ao considerarem os animais como personagens da ficção, tal como as personagens

humanas e que podem pertencer ao mundo natural ou abstracto. A fórmula clássica

inverte-se. Passa-se da humanização à animalização do referente principal da

fábula. Na fábula tradicional, o animal humaniza-se; na contemporânea, ao contrário,

é o homem que se animaliza, processo enfatizado pela ironia que, por sua vez, serve

de recurso fundamental para actualizar as leis da fábula. Para além disso,

actualmente as fábulas servem para revelar valores e anti-valores, satirizam

aspectos sociais, políticos e económicos do mundo actual.

A presença de novos elementos, caracterizadores do género, implica uma

releitura deste. Por outro lado, em vez da presença de seres, objectos ou conceitos

antropomorfizados ou da consequente doutrina moral, carregada de exemplos

indispensáveis à fábula tradicional, empregam-se novas componentes. Um desses

exemplos é a paródia das formas tradicionais da fábula, género que acaba por se

evidenciar ao longo do século XX. Ancontramos fábulas modernas que são paródias

divertidas dos textos clássicos, de onde desaparece a moralidade, mas onde não

deixa de estar presente uma reflexão interessante sobre os homens e os seus

comportamentos.

Contudo, devemos notar que o trabalho de renovação do género não pode

desvirtuá-lo de todo o seu sentido. Por esse motivo, continua a persistir um propósito

lúdico nas fábulas actuais, que tem caracterizado o género desde o seu início.

De entre as características gerais que definiam o género fábula até aos

últimos tempos, existem alguns indissolúveis para a sua delimitação, os chamados 100 De acordo com o exposto num artigo « Ironie, satire et parodie », in Poétique, nº 46, Abril 1978

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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motivos obrigatórios do género. Alguns foram suavizados, outros impuseram-se e

tornam-se indispensáveis para identificar a fábula contemporânea, como os que a

seguir se expõem:

- A conexão do género com a sátira (a crítica dos costumes na fábula

permanece encoberta pela ficção alegórica, embora por vezes se

negue esse facto).

- O objectivo pedagógico oscila nos mesmos parâmetros que a

finalidade artística, numa gradação que aumenta ou diminui conforme

se potencie um aspecto ou outro.

- A fábula continua a ser um mecanismo de análise da realidade,

embora, actualmente, as suas formulações não apontem para um

objecto extra estético. O que acaba por definir o género, na

actualidade, é a ausência de intencionalidade parenética, ou seja, de

moralizar.

Embora a moralidade esteja quase sempre ausente na fábula moderna, por

vezes o autor/fabulista faz despontar uma intenção moral, diluída ao longo do texto,

obedecendo, essencialmente, a uma finalidade lúdica.

Um outro motivo, que vem desde as origens, é a presença de uma atmosfera

humorística com tendência à crítica, no permanente processo de alegorização da

realidade com recurso à metáfora. Definida por Aristóteles em La Poétique (1457 d,

6-9) “La métaphore est le transport à une chose d’un nom qui en déguise un autre. » A

metáfora serve, antes de mais, como forma de mostrar o mundo de outro modo,

através de um olhar diferente, transposto para uma linguagem distinta, podendo ser

portadora de um julgamento/de um juízo de valor. A este propósito, Italo Calvino

(1999: 121) salienta:

«As metáforas em vez de serem consideradas um ornamento que embeleza a

estrutura condutora das tramas e das funções narrativas, avançam para primeiro

plano como a verdadeira substância do texto, contornadas pelo filiforme arabesco

decorativo das peripécias efabulatórias.»

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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Italo Calvino (1923-1985), que procedeu à recolha e compilação de fábulas e

contos Italianos – Fiabe Italiane101 – das diferentes regiões italianas, publicou, entre

outos, um livro de contos Marcovaldo ou Estações na Cidade102 (1963) que se podem

considerar fábulas modernas. O autor apresenta o seu olhar crítico sobre a sociedade

e o modo de vida das cidades, destrutivo e vazio, recorrendo frequentemente à

metáfora.

As fábulas modernas servem-se de uma linguagem que traz para a trama o

mundo real, sob um efeito linguístico que as torna um objecto essencial à crítica e,

especialmente, à denúncia daquilo que está mal. Por isso, a metáfora passa para o

plano dianteiro da narrativa. Na actualidade, determinadas metáforas entraram na

fábula para a tornar um género a que ousaríamos chamar de “intervenção”, tal como

outros géneros. Apontamos, como exemplo, a metáfora da noite que está associada

à morte, à guerra, às trevas ou à realidade obscura do mundo.

O emprego da metáfora está implicado na transmissão da mensagem aos

leitores, uma vez que constitui a substância fundamental do texto. A sua

interpretação obriga a um jogo de inteligência e de descoberta das verdades, que o

fabulista pretende ver expostas, e que se encontram escondidas pela linguagem

metafórica. Talvez esta linguagem seja a forma encontrada pelos escritores para

substituir a moralidade das fábulas ou contos clássicos, ou uma maneira de

subverter os papéis, fazendo o leitor participar numa espécie de jogo, descobrindo a

mensagem velada por trás da metáfora.

Não se pretende apenas criticar a sociedade actual, invertendo somente os

papéis anteriormente jogados pelos animais e pelos homens; trata-se de dar um

colorido diferente à realidade, observada e profundamente analisada. Para isso,

contribuirão obviamente a sátira, a ironia e a metáfora.

Também pela sátira, que já era característica da clássica, a fábula moderna

procura a crítica da sociedade do momento, em todos os seus domínios, o que

envolve uma constante actualização temática. O fabulista contemporâneo é

101 Estes textos, recolhidos durante os últimos cem anos, foram publicados em Portugal pela Editorial Teorema, em 2000, em três volumes. 102 Marcovaldo, um homem de família, sonhador que vive na cidade com a mulher e os filhos e que por se recusar a partir de férias durante o mês de Agosto como todos os habitantes da sua cidade, vê o seu descanso ser interrompido por uma equipa de televisão que o quer entrevistar precisamente por ser o único que não partiu de férias. In Diciopédia 2004, Porto Editora

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confrontado com uma espécie de sinistro pessimismo que nega qualquer ideia de

aspiração ao perfeccionismo humano. A literatura continua, assim, a desempenhar

um papel importante na análise do mundo exterior.

Em conclusão, o género fábula não morreu. Encontramo-lo inserido em

estruturas superiores como o romance (o que vimos com as obras estudadas de

Daniel Pennac) ou a novela, retrabalhando-se algumas das principais características

do género. Por outro lado, o género também se expressa pela utilização de unidades

mínimas que parecem ir ao encontro da preferência dos autores contemporâneos

pela fragmentação: como a brevidade, a concisão e o prosaísmo. Daí que possa

aparentar-se ao conto. Refira-se, ainda, que vários autores optaram por renovar o

género fábula pelo recurso à paródia dos textos clássicos, surgindo as mesmas

personagens com “rostos” e carácteres diferentes, mas que pretendem traçar um

retrato mais actual do homem e do mundo de hoje.

Vejamos, a título de exemplo, o texto de Jean Anouilh seleccinado e, ainda, a

referência a um conto que parodia “Le Petit Chaperon Rouge” (“Le Petit Chaperon

Bleu Marine”, de Dumas et Moissard). Estes dois exemplos ilustram o pensamento

anterior e comprovam que a paródia é um dos géneros bastante valorizado no século

XX.

1.1.1- “Le Loup Attendri” de Jean Anouilh

Uma fábula moderna/uma paródia.

A fábula supra citada, retirada de Fables103(1967), de Jean Anouilh104, é uma

paródia de “Le Loup et l’Agneau”, mas também de outros textos em que o lobo era o

herói, o grande carrasco, e o cordeiro a sua eterna vítima. A sátira e, de forma

marcante, a ironia são estratégias de que o autor se serve para construir o texto.

Logo no prólogo, extremamente breve (8 linhas), que Anouilh intitula de

Avertissement hypocrite, p. 7, parodiando o prólogo de La Fontaine, o autor

afirma, em tom humorístico, que “Ces fables ne sont que le plaisir d’un été” (...) «…les

103 Publicado em 1962, este livro de fábulas contém 47 textos que são fábulas modernas, com referências muito actuais a situações vividas na sua época. Consideramos que são textos paródicos, uma vez que se tomam textos e temos já tratados, dando-lhes um novo colorido e novos contornos. 104 Autor essencialmente dramático (1910-1987), cujas peças mais conhecidas – Antigone (1944) , Le Voyageur sans bagage (1937), L’Alouette (1953) são dominadas por um certo pessimismo face ao mundo em que se encontra posicionado.

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occasions d’être plus profond ne vous manqueront pas. »105. Anouilh demonstra o seu

desejo de que sejam lidas com o mesmo prazer que teve ao escrevê-las, talvez

porque entenda o seu trabalho como uma forma “divertida” de abordar os textos que

parodia. Ao mesmo tempo, refere-se à ambiguidade da fábula: por um lado, salienta

a sua “futilidade”, por outro, a “profundidade”, podendo propor várias leituras e

demonstrar que o seu efeito imediato pode esconder riquezas mais profundas.

Na referida fábula, o lobo é apresentado como dócil e terno, ou seja,

aparentemente humanizado, ao invés de ser descrito como o animal devorador e

perigoso, temerário e hediondo, como o de La Fontaine. Ao contemplar o cordeiro

fêmea, este lobo demonstra sentimentos contraditórios: ora é terno e emotivo ora,

despertado pelo objecto contemplado, torna-se agressivo/assassino. A situação

descrita torna-se cómica: o lobo, que aparenta um ar dócil e calmo, de repente,

parece acordar do “hipnotismo” causado pela contemplação e age bruscamente.

“Le Loup attendri” satiriza também os comportamentos da sociedade moderna,

neste caso do pós-guerra, em que se vivem momentos contraditórios. Abordam-se

temas da actualidade e parece gracejar-se sobre a conjuntura política e social, ou

seja, o absurdo e ambiguidade de um “mundo às avessas”, no fundo um mundo

dominado pelo pessimismo.

Nesta fábula, em verso, que podemos designar de uma espécie de poema

narrativo, colocando-se de parte a brevidade, apresenta-se uma situação diferente

da descrita nas fábulas de Esopo e de La Fontaine, embora um dos protagonistas

seja o mesmo. O texto não comporta moralidade pois esta não interessa para nada,

deixou de fazer sentido. O mais importante é mostrar, de forma divertida e muito

pessoal, a visão de um “mundo às avessas” que, no seu âmago, continua igual ao

que sempre foi.

105 Não podemos deixar de transcrever o texto que compõe o “Avertissement hypocrite”, que introduz este livro de fábulas, e que apresenta o principal objectivo do autor, ainda que admita o contrário. Este pequeno texto, cheio de ironia, deixa antever os textos que se lhe seguirão: “ Ces fables ne sont que le plaisir d’un été. Je voudrais qu’on les lise aussi vite et aussi facilement que je les ai faites et, si on prend un peu de plaisir - ajouté au mien – il justifiera amplement cette entreprise futile. Il y a tant de gens dont c’est un gagne pain de penser, de nos jours, que ce petit livre refermé et oublié, les occasions d’être plus profond ne vous manqueront pas. » J.A. Septembre 1961 (p. 7, Ed. Folio, 1997)

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“Le Loup attendri”

Un loup un jour regardait

Une jeune agnelle endormie.

Obscurément il regrettait

Que leur race fût ennemie :

Quelle grâce et quelle douceur !

Ce loup rêvait d’une âme sœur,

D’une affectueuse présence,

Qui lui permît de débonder son cœur…

Les loups sont plus sentimentaux qu’on pense,

Mais personne ne les comprend.

C’est une tradition en France

D’ignorer l’envie de tendresse

Qui dort au cœur des assassins.

Hélas ! ce sont souvent

Les innocents,

Se méprenant sur leurs desseins,

Qui, par l’idée qu’ils ont de scélératesse,

Les obligent à les tuer.

Ce loup-là était tout amour.

Il était saint François d’Assise.

Il était au point de pleurer ;

Quand la sotte le voit et appelle au secours.

Que voulez-vous que je vous dise ?

Un malheur est vite arrivé.

Et il arrive qu’on se vexe…

Ce cri, tant attendu, réveille un vieux réflexe

Un bond, un coup de dent, et notre loup, navré,

La tue.

Après d’ailleurs, il la trouva fort tendre…

Pourtant si elle l’avait vue

Cette lueur d’amour au fond de sa prunelle !

Si elle avait fait confiance une fois,

A la bonté universelle…

Ah ! si elle avait eu la sagesse d’attendre

L’éveil du sentiment chez ce loup aux abois;

Légère, elle courrait encore dans les bois…

Il faut dire que les agnelles

Ont l’esprit un peu étroit,

Ne lisant pas assez les journaux progressistes

Où l’on se penche sur l’âme des assassins.

Voilà ce qu’on gagne à être conformiste !

On doute qu’un tueur puisse être un peut saint,

Qu’est-ce qu’on y récolte ? Un mauvais coup.

D’un autre côté, je crois

Qu’il faut avouer que les loups

N’ont pas la tête de l’emploi.

Jean Anouih (pp. 108-110)

O texto não contém diálogos, nem se desenvolve com base na argumentação e

contra-argumentação, ao contrário do parodiado. Assim, entra-se logo na matéria,

sob a alçada do sujeito poético, que intervém constantemente, apresentando as

duas personagens intervenientes – o lobo “attendri” e o cordeiro fêmea

“endormie”– começando pelo verso “Un loup un jour regardait”, colocando a

importância no lobo e na sua acção “regardait”.

Estamos perante uma paródia, com referências culturais e literárias explícitas.

Apresenta-se o lobo e o cordeiro como sendo portadores de uma tradição que

jamais pode ser alterada. Tanto o lobo como o cordeiro têm as suas acções

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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condicionadas e não podem mudar os seus papéis: o lobo porque é um

predador/assassino e o cordeiro porque é a eterna vítima/inocente.

Segundo Linda Hutcheon, a paródia: “É uma alegada representação, geralmente

cómica, de um texto literário ou de outro objecto artístico e é uma representação de uma

“realidade modelada” que, já por si, é uma representação de uma “realidade original”. As

representações paródicas expõem as convenções de um modelo e põem a nu os seus

mecanismos, através da coexistência de dois códigos de uma mensagem.” (1989: 247)

Em “Le Loup attendri”, parodia-se, essencialmente, os comportamentos (os

papéis) das personagens. Estas transformam-se em seres cómicos, quase patéticos,

nomeadamente o cordeiro fêmea, pelas atitudes descritas. O papel sério e a

densidade que detinham em La Fontaine desaparece. Esta fábula torna-se

humorística, divertida e subtil, porque analisa vários aspectos, recorrendo à

subversão, à ironia.

Toda a fábula é construída na base de uma forte ironia, visível desde o primeiro

verso, sobretudo porque se joga com os papéis do lobo e do cordeiro fêmea, com a

alternância dos seus comportamentos, que parecem escondidos por trás de

máscaras. Essas máscaras podem dissimular o próprio homem, que se coloca quer

na pele do lobo/assassino, com vontade de ser santo; ou na pele do inocente

cordeiro que, subitamente, provoca o mal contra si próprio. Quando se compara o

lobo a São Francisco de Assis, a ironia é devastadora e joga com binómios opostos.

Como pode um devorador/assassino ser um santo? Como pode um assassino ter

sentimentos? Por outro lado, a fêmea do cordeiro é descrita como “sotte”, de espírito

pouco aberto, é pouco confiante, não acredita no progresso, enfim é conformista. A

sátira entra também em jogo, sobretudo quando se alude às atitudes do cordeiro

fêmea.

Como podem eles agir de outro modo? Não é assim que a tradição os obriga a

agir? Então, podemos afirmar que esta fábula apresenta uma constante

questionação/ reflexão sobre a tradição, bem como sobre a liberdade do indivíduo.

Não estarão as suas acções condicionadas pelo peso da tradição? Somos ou não

herdeiros da tradição e temos que nos manter fiéis a ela? Porque é que não nos

podemos libertar das amarras que nos prendem ao passado? Parecem ser estas

algumas das questões que Anouilh deixa transparecer nas entrelinhas do seu texto,

sempre em tom de brincadeira.

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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Ironia e paródia, características da fábula moderna, parecem, assim, estar

bastante ligadas, como refere Linda Hutcheon: “L’ironie et la parodie [...] opèrent toutes

deux sur deux niveaux, un niveau de surface primaire, en premier plan, un niveau secondaire

et implicite en second plan. (…) La signification ultime du texte ironique ou parodique réside

dans la superposition des deux niveaux, dans une sorte de double exposition textuelle. »

(Poétique, nº 36) Ora, pela ironia recorre-se a uma espécie de minúcia analítica que,

segundo Bergson, desce “de plus en plus bas à l’intérieur du mal qui est pour en noter les

particularités avec la plus froide indifférence. » (Le Rire)

O lobo carrega longos séculos de “clichés” e questiona-se, frequentemente,

sobre o seu papel: Como ser diferente se este é o comportamento que me espera

desde há séculos e séculos? Por isso, apesar de tentar mudar a sua postura,

tornando-se terno e lamentando-se acerca das rivalidades existentes entre ambos:

“Obscurément il regrettait/Que leur race fut ennemie” (estes dois versos podem ser uma

metáfora das guerras entre povos e raças), não consegue desligar-se da sua

imagem, matando a fêmea do cordeiro. Todavia, o cordeiro fêmea também carrega

consigo o pesado fardo de ser o eterno inocente, a eterna vítima, ele que está

igualmente dominado pela tradição.

Nesta fábula não se parodiam apenas os comportamentos das duas

personagens. Reflecte-se, também, sobre os mecanismos do texto, que é bastante

rico. Já que não se pode mudar a tradição, então opta-se pela sua subversão. O

género serve para tentar responder à vontade de mudança. Provavelmente, este

pode ser considerado uma espécie de texto teórico sobre a paródia. Anouilh parece

querer levantar questões como: Pode esta fábula ser reescrita, invertendo-se ou

reinventando-se os papéis das personagens? Pode-se transformar uma realidade

que existe há tantos séculos?

O que responderia Daniel Pennac? A resposta seria “Não!” Porque, como já

afirmámos, somos herdeiros de uma longa tradição que não nos deixa ir mais além.

Daniel Pennac mantém-se bastante ligado à tradição pois conserva os aforismos. A

moralidade, que é completamente inexistente na fábula de Anouilh, persiste em

Pennac, não só na literatura infantil, como nos romances policiais, embora o autor se

destaque pela tendência satírica, evidenciando os contrastes das relações Homem-

animal, Homem-Homem.

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A questão anteriormente levantada em relação à transformação total da

realidade existente há séculos, pela paródia, encontramo-la também no conto Le

Petit Chaperon Bleu Marine106, cuja leitura consideramos extremamente actual e

divertida.

Trata-se de uma paródia, ou recriação cómica do conto Le Petit Chaperon

Rouge (um dos contos mais parodiados)107, mantendo o carácter lúdico e até mesmo

a moralidade. Imita-se o texto original, invertendo, quer a situação vivida pelas

personagens, quer os seus objectivos, como podemos sintetizar no quadro seguinte :

Le Petit Chaperon Rouge (Grimm) Le Petit Chaperon Bleu Marine

Fómula inicial “Il était une fois...” situação : A menina - Le Petit Chaperon Rouge - vai visitar a avó, que mora do outro lado da floresta, desobedece à mãe, encontra o lobo e deixa-se seduzir por este. Chegada à casa da avó é devorada pelo lobo. Mais tarde este é encontrado pelo lenhador/caçador que liberta as vítimas e castiga o lobo, enchendo-lhe a barriga de pedras. Personagens: Menina – ingénua, enganada pelo lobo/devorada Avó – visitada pela menina, seduzida e devorada pelo lobo Lobo – pérfido, espertalhão, devorador Mãe – alerta a menina e sonfia-lhe a tarefa de visitar a avó Caçador/lenhador – o libertador das vítimas

Sem fórmula inicial “Personne n’ignore, bien sûr, l’histoire du Petit Chaperon Rouge. Mais connaît-on celle du Petit Chaperon Bleu Marine?” (p. 15) situação : A menina - le Petit Chaperon Bleu Marine – vai visitar a avó que mora do outro lado da ciade de Paris. Não vai a pé, pela floresta, mas de autocarro pelo meio da cidade. No caminho, desobedecendo à mãe, sai no Jardin des Plantes e liberta o lobo que está numa jaula. Enquanto a menina se dirige para casa da avó, o lobo põe-se em fuga e vai para junto dos seus. A menina faz a avó rastejar até ao Jardin des Plantes e fecha-a na jaula. Personagens: Menina – neta do Chaperon Rouge, pérfida, seduz o lobo Avó – é o próprio Chaperon Rouge, divide o seu tempo com leituras e o “tricot”, é visitada pela menina, mas um tanto “mal tratada”, porque encerrada na jaula do lobo, pela neta Lobo – o terceiro sobrinho do lobo do conto de Perrault e descendente do que devorou o cordeiro na fábula de La Fontaine, que leu todas essas histórias (é instruído). é o seduzido, mas não se deixa enganar e escapa para a sua terra natal – a Sibéria Mãe – filha do Chaperon Rouge, também dá conselhos à filha, mas é desrespeitada. Não existe caçador, mas os repórteres da televisão e jornais que dão conta das atitudes e perfídias da criança

106 Este é um dos cinco Contes à l’Envers, publicados em 1980, por Dumas et Moissard, na École des Loisirs. 107 A título de exemplo citamos para a narrativa, Le Petit Cahperon Rouge, de Henri Pourrat (1948); Le Petit Chaperon Bleu Marine, de Dumas et Moissard (1977) ; Le Petit Chaperon Rouge de Tony Ross (1978) Le Petit Chaperon Vert, de Grégoire Solotareff (1989). No caso das adaptações em verso citemos Le Petit Chaperon Rouge de Christian Poslaniec (1981).

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Moralidade: Colocada na boca da menina: “Mais pour ce qui est du Petit Chaperon, elle se jura: «Jamais de ta vie tu ne quitteras le chemein pour courir dans les bois, quand ta mère te l’a défendu »

Moralidade: Colocada na boca do lobo: “...et tous ses frères sont donc maintenant prévenus du danger qu’il y a à fréquenter les petites filles françaises (…) Sous réserve, il va de soi, de prendre garde aux hommes qui pourraient y rôder : car certains hommes sont plus dangereux que les loups. » (p. 26

Le Petit Chaperon Bleu Marine apresenta os aspectos do clássico Le Petit

Chaperon Rouge, sobretudo no que respeita às principais personagens. Porém, está

cheio de situações burlescas, opostas às mais dramáticas do conto parodiado. O

lobo passa a ser o seduzido, a menina é a perversa, que tenta enganá-lo. Esta

criança animaliza-se, fazendo a própria avó rastejar até à jaula do lobo. Por seu

turno, o lobo torna-se uma personagem atractiva, deixando de ser o vagabundo e,

ao mesmo tempo, divertida pela forma como reage às investidas da menina.

A acção passa-se na cidade de Paris e não no campo/floresta; a menina

veste um capuz Bleu Marine, comprado nas Galeries Lafayette. O lobo é instruído,

não se deixa enganar e, uma vez libertado, vai para a sua terra, onde se torna

cronista social. Para visitar a avó, a menina desloca-se de autocarro, tendo que

atravessar a cidade, que podemos considerar metaforicamente como a “floresta de

betão”.

Nesta paródia caricaturam-se personagens, vivências, situações do nosso

quotidiano e mesmo certas normas por que se pauta a sociedade actual, fazendo-se

juízos sobre os costumes da época, nomeadamente pela deformação de alguns

valores. Por isso, a moralidade é a subversão bastante divertida da do conto de

Perrault ou dos irmãos Grimm, sendo o próprio lobo que adverte os seus em relação

aos homens.

Uma vez mais, estamos perante uma situação em que se reflecte sobre a

subversão de valores, associada à inversão dos papéis das personagens que, no

entanto, continuam a ser carrascos e vítimas. Portanto, a tradição não se alterou, ou

seja, continua-se a representar o bem e o mal, colocados, agora, de lados

diferentes. Mostra-se que os homens passaram a vestir a pele do lobo e que o

animal, eterna vítima, foge para não continuar a ser castigado. Por outro lado,

representa-se a “maldade” que está por trás dos homens (neste caso das

A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula. ___________________________________________________________________________

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brincadeiras de determinadas crianças) que não medem os seus actos, um tanto

violentos, para os quais se parece chamar à atenção.

O papel do lobo mudou, como vimos neste conto e em L’Oeil du Loup, pois o

animal passou de perseguidor a perseguido/ de carrasco a vítima.

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Porquê a paródia no século XX?

A paródia, embora seja um género bastante antigo108, apreciado em todos os

tempos, tendo feito um grande furor no teatro, é considerada o género por

excelência do século XX em virtude, não só da evolução dos géneros, mas também

dos acontecimentos vividos nesse século. Pela paródia, a literatura torna-se o centro

da literatura, o próprio texto interroga-se. Então, a autoreflexividade predomina neste

género.

Segundo Linda Hutcheon a paródia « ... é, no século XX, um dos modos maiores da

construção formal e temática dos textos. E, para além disto tem uma função hermenêutica

com implicações simultaneamente culturais e ideológicas.» (1989: 12) é ainda « uma forma

de imitação caracterizada pela inversão irónica.» (1989: 17) A mesma autora refere que

«La parodie, aujourd’hui, est à la fois, un «hommage» respectueux et un ironique «pied de

nez» à la tradition.”(in Poétique, nº 36)

A este género estão associados na Grã-Bretanha os nomes de Byron, Shelly

e Lewis Carrol. Em França, no século XVIII, realça-se Voltaire, com Zadig (1747) e

Candide (1758). Todavia, foi o irlandês James Joyce, como já afirmámos, que refez

ironicamente todos os estilos possíveis, desde os classicistas ingleses aos

romances sentimentais, parodiando não só o texto, como também a linguagem

literária.

Segundo o exposto por Sangsue (1994: 79), há géneros e textos que se

prestam mais a ser parodiados e o autor refere que “Les Fables de La Fontaine ont fait

l’objet d’une intense parodisation”. Foram vários os autores que, utilizando as fábulas

de La Fontaine as parodiaram, adaptando-as ao seu tempo, como por exemplo

Anouilh ou Italo Svevo. Sangsue refere ainda que o próprio La Fontaine foi um

108 Crê-se que venha desde o século V a. C. com a Batalha de ratos e batráquios, em que se parodiava a guerra entre gregos e troianos da Ilíada de Homero.

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pouco “l’arroseur arrosé, car il avait lui même transformé les «apologues» d’Esope et de

Phèdre en les «égayant». » (1994 : 79). Também Genette salienta que as fábulas são

um género paródico desde o seu início quando “attribue des conduites et des discours

humains à des animaux” (Palimpsestes, p. 79) Linda Hutcheon considera que parodiar

um texto/género não constitui a sua desvirtuação mas o seu “reforço”.

Num século em que se questionou tanta coisa, tal como referíamos na

introdução, o romance, a novela, o conto, mas também a fábula, vão servir-se da

paródia para revelar o absurdo do mundo e da vida, através da inversão. Segundo

Sangsue (1994: 78-79) “Les contes forment également un corpus souvent visité par la

parodie. L’aspect stéréotypé de l’intrigue, des personnages et des procédés de narration y

fonctionne comme une invite à la parodisation ».109 Existem inúmeros textos actuais que

são paródias dos clássicos, nomeadamente contos e fábulas, como vimos com

Anouilh e Dumas e Moissard.

Todavia, não foi só na literatura que a paródia se manifestou como o género

de eleição. O cinema, como uma das novas formas de arte emergentes no século

XX, começou pela paródia, um dos géneros mais apreciados, primeiro pelos “gags”

cómicos muito curtos, depois em películas mais longas. Numa época em que o

cinema, ainda mudo, fazia as delícias dos espectadores, Charlie Chaplin trabalhou

este género de uma forma peculiar. A sua obra relaciona-se com os grandes

acontecimentos do século XX (as guerras, a Grande Depressão, o “New Deal”, o

advento das ditaduras e desenvolvimento económico dos anos 50/60).

A paródia afirmou-se ainda nas artes, como a pintura e a escultura. Nomes

como René Magritte (1898-1967) ou Marcel Duchamp (1887-1968) marcam, não só

a vontade de ruptura, como também uma nova visão do mundo, pela paródia. O

quadro de Duchamp “Joconde aux Mustaches” (1919), litografado com “grafitti” e

com a legenda LHOOQ110, apresentando apenas um dos exemplos dos mais

conhecidos, toma a obra original de Da Vinci e parodia-a de tal forma, que se

considera o quadro subversivo até à última ponta do bigode. Por isso, ao olharmos

este quadro, deparamo-nos com algo de novo, fora do habitual e inesperado que é

uma paródia, uma “brincadeira” engraçada. Muitos artistas do século XX aproveitam

109 Dá como exemplo Les Mille et une nuits, traduzidos por Galland que deram origem a um bom número de paródias, como por exemplo Les mille et une fadaises, de Cazotte. 110 Soletrando em Francês estas letras obtemos a frase, um pouco chocante “Elle a chaud au cul”.

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a sua arte para mostrar o “mundo às avessas” ou, quem sabe, a verdadeira visão do

mundo tal como ele se apresenta.

Sendo o século XX marcado pela questionação dos géneros e dos valores,

muitos dos temas ancestrais da literatura vão-se alterar, como por exemplo os

ogres111 perseguidores de crianças ou o lobo mau, devorador de meninas e animais,

e introduzem-se novas temáticas, refectindo-se, por exemplo, sobre a perseguição e

extinção dos lobos. Assim, a imagem de animais como o lobo vai-se alterar e estes

tornam-se “simpáticos”. Para isso, contribuem escritores como Marcel Aymé e

Michel Tournier (Le coq de Bruyère, 1978), entre outros, onde se nota a inversão

dos valores veiculados pelas obras que parodiam.

Le Coq de Bruyère é um conjunto de novelas e contos, em que Michel

Tournier cria personagens que fogem à norma (ogres, gémeos ou seres

andróginos), havendo uma inversão intencional, mostrando, em alguns casos, a sua

visão muito pessoal da sexualidade ou da identidade sexual, temas tabu na

sociedade ocidental. Por exemplo, em La Fugue du Petit Pocet: 1980, Logre (joga-se

com o nome desta personagem e l’Ogre do texto parodiado) é descrito como sendo

« beau comme une femme », é ele que fica em casa a cuidar das filhas, enquanto a

sua mulher trabalha. Neste conto, Michel Tournier procura mostrar a diferença que

existe entre os indivíduos e a sociedade. Por isso, Pierre – o jovem herói – não

querendo submeter-se à autoridade/opressão do pai, o Commandant Poucet, e

renunciando viver na clausura da Tour Mercure, decide partir, encontrando junto de

Logre a liberdade e a possibilidade de sonhar. No mundo que encontra, percebe que

é possível viver de forma diferente da que a sociedade lhe impõe. A visão de

Tournier não é completamente optimista, uma vez que, muitas vezes, os indivíduos

são impotentes face à opressão com que se deparam, nem totalmente pessimista

pois, mesmo não se libertando totalmente, as pessoas conseguem criar um universo

muito próprio.

Em Les Contes du Chat Perché (1938) de Marcel Aymé112, o conto “Le loup” é

um texto que desvenda uma imagem “positiva” do lobo, animal sensível, com ar

111 Actualmente, o ogre Shrek, enormemente apreciado e nada temido pelas crianças, trouxe uma nova visão e interpretação da personagem dos ogre e de outras dos contos infantis. Na versão dois deste filme são incorporadas as personagens de contos vários e feitas inúmeras alusões aos irmãos Grimm. 112 O referido conto “Le Loup” (p. 169-187) e, tal como nos outros contos deste livro, o autor (1902-1967) refere “Ces contes ont été écris pour les enfants âgés de quatre à soixante-quinze ans. (…)

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terno e brincalhão. Ao mesmo tempo, trata-se de uma paródia do lobo da fábula “Le

loup et l’Agneau” de La Fontaine e de Le Petit Chaperon Rouge. O autor parece ir

buscar o final ao conto dos Grimm, pois o lobo devora as crianças, despertado pelo

seu instinto animalesco, mas estas são libertadas e “perdoam-no”. A moralidade e o

sentido desta não passa por mostrar um lobo mau mas sim o desrespeito das

ordens paternas, às quais as crianças escaparam.

Num mundo em que há rupturas violentas e intempestivas, em que

praticamente desabaram todas as crenças iluministas, em que ruiu a dicotomia

racional-irracional ou razão-sentimento e, por conseguinte, a dicotomia homem-

animal, a função do animal e a sua relação com o homem mudou completamente.

(Hoje os animais até são utilizados, pela medicina, como terapia para certas

doenças, como por exemplo os cavalos, os burros, os golfinhos ou os cães-guia).

Por outro lado, a frase “Depois de Auschwitz, o que dizer?” mudou completamente a

face do mundo. Por isso, não é de estranhar que a literatura, mas também as outras

formas de arte, reflictam estas novas relações. O homem já não é mais o centro do

equilíbrio do mundo, os animais tomaram o seu lugar.

J’avertis donc mon lecteur que ces contes sont de pures fables, ne visant pas sérieusement à donner l’illusion de la réalité.” (Edition Gallimard, 2001 : 79)

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CONCLUSÃO

« Auteur de La Petite Marchande de Prose, le père de Malaussène est

l’écrivain le plus aimée des français… »

Le Nouvel Observateur

Chegado o momento de concluir, colocamos ainda a seguinte questão: o

elemento fábulístico da obra de Pennac faz desta um caso à parte no panorama da

literatura francesa actual?

Sem dúvida, se tivermos em conta que a fábula está presente, como vimos,

não só na literatura para crianças e jovens, mas também em toda a sua obra

romanesca, que se articula com o elemento policial (saga Malaussène), na sua

estreita relação com o fantástico.

Grande admirador de Italo Calvino, não é, pois, de estranhar que existam

pontos de contacto entre Pennac e o escritor italiano. Calvino é, também ele, um

grande contador de histórias, lidas e admiradas por Pennac. Os seus primeiros livros

– Le sentier des nids d’araignée113 (1947) e Le corbeau vient le dernier114 (1949)

aproximam-se da fábula, quer pelo tom empregue, quer pela atmosfera retratada,

directamente inspirada na experiência de resistente do autor. Ao mesmo tempo,

estas obras abarcam o tema central que atravessa toda a produção de Calvino

(como acontece com Pennac) – a esperança de mudar a sociedade. Tal como

Pennac fará na sua obra, também Iatalo Calvino se considera no dever de

representar a sua época, investindo em duas frentes: na fábula (transformada muitas

vezes em alegoria fantástica) e no humor (baseado na ironia). Não podemos deixar

de referir a triologia de contos fantásticos Le baron perché (1957), Le viconte

pourfendu e Le chevalier inexistant (1959), onde predominam a alegoria e a fantasia

e onde, sob a forma humorística, Calvino coloca muitas interrogações sobre as

relações entre a consciência individual e o curso da História, a partir das quais se

reflecte sobre o bem e o mal. Não são estas temáticas também retratadas por Daniel

Pennac, como vimos ao longo deste trabalho? 113 A personagem central desta história, Pino, é uma criança que sente a mais profunda solidão, a falta de afecto e chora o seu infortúnio. Só se entende bem com os adultos e, na sua existência, vê-se irremediavelmente envolvido na Resistência (no momento em que a Itália se encontra impregnada de Alemães). O leitor é colocado perante a questão “devient-on résistant par choix ou la vie décide-t-elle pour vous?”. Nesta fábula, evoca-se a complexidade dos seres mais simples e das situações mais ambíguas. 114 Este livro decorre de uma recolha de novelas que retratam a infância/juventude, apresentando-se cheias de gentileza, poesia e inocência.

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De facto, estas questões são prementes na obra de Pennac, nomeadamente

a questão do bem e do mal. Esta é, como constatámos, tratada de forma obsessiva

e repetitiva. A profunda dimensão moral do seu universo faz com que a presença da

fábula clássica saja muito mais evidente do que a da fábula moderna, paródica e de

cariz frequentemente céptico.

Se relembrarmos Anouilh, podemos concluir que os romances de Pennac

(L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche) não são paródias, apesar de existirem neles

temas típicos da sátira, como o “mundo às avessas”. O excessivo moralismo de

Daniel Pennac afasta-o deste universo, tão surpreendentemente lúdico, que o leitor

precisa de ler e reler até poder usufruir do universo jocoso subjacente. Ora, a

transparência da leitura da obra de Pennac é de tal forma evidente que logo nos

situamos na “simplicidade” do universo de La Fontaine. De um lado os tiranos, do

outro as vítimas que, no entanto, se elevam e superam as provas a que estão,

constantemente, expostas. Como Pennac nos mostra, menino e lobo/menina e cão,

suplatam todas as barreiras e vencem os que estavam do lado do mal, terminando

ambas as histórias num “happy end”, ao estilo dos contos de fadas. O mesmo

podemos constatar nos romances da saga Malaussène, em que o poder dos “bons”

arrasa o dos “maus” e que, de uma forma fantástica, se operam transformações,

inesperadas e hilariantes, que provam o triunfo do Bem sobre o Mal.

Em conclusão, se concordarmos com Milan Kundera, quando defende que o

romance é o território em que o julgamento divino está suspenso, que o romance é o

mundo da relatividade de todas as coisas, então somos levados a concluir que a

obra de Pennac não é um romance mas sim, toda ela, uma enorme FÁBULA.

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