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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade Pele e sensibilidades: Práticas de memórias e identidades do negro na literatura (1909-1940) Túlio Henrique Pereira Vitória da Conquista Fevereiro de 2011

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade

PPeellee ee sseennssiibbiilliiddaaddeess:: PPrrááttiiccaass ddee mmeemmóórriiaass ee iiddeennttiiddaaddeess ddoo nneeggrroo nnaa lliitteerraattuurraa ((11990099--11994400))

Túlio Henrique Pereira

Vitória da Conquista Fevereiro de 2011

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade

PPeellee ee sseennssiibbiilliiddaaddeess:: PPrrááttiiccaass ddee mmeemmóórriiaass ee iiddeennttiiddaaddeess ddoo nneeggrroo nnaa lliitteerraattuurraa ((11990099--11994400))

Túlio Henrique Pereira

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Memória: Linguagem e

Sociedade, como requisito parcial e

obrigatório para obtenção do título de Mestre

Em Memória: Linguagem e Sociedade.

Orientador: Profa. Dra. Maria Helena Ochi Flexor Co-orientador(a): Profa. Dra. Ana Palmira Bittencourt Cassimiro

Vitória da Conquista Fevereiro de 2011

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Título em inglês: Skin and sensitivities: memory and identities' practices of Black people in Brazilian literature (1909-1940)

Palavras-chaves em inglês: Memory; History; Literature; Black people; Querino/Barreto

Área de concentração: Multidisciplinaridade da Memória

Titulação: Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade.

Banca Examinadora: Profa. Dra. Maria Helena Flexor (orientadora); Profa. Dra. Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro (co-orientadora); Profa. Dra. Isnara Pereira Ivo (Titular); Prof. Dr. João Santana Neto (Titular); Profa. Dra. Lívia Diana Rocha Magalhães (Suplente); Profa. Dra. Maria Ilza Ribeiro (Suplente).

Data da Defesa: 17 de fevereiro de 2011

Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade.

Pereira, Túlio Henrique

P4141 Pele e sensibilidade: Práticas de Memória e Identidades do Negro na Literatura (1909-1940). Túlio Henrique Pereira; orientadora Maria Helena Ochi Flexor; co-orientadora Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro - - Vitória da Conquista, 2011.

161 f.

Dissertação (mestrado – Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade). Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2011.

1. Memória. 2. História. 3. Literatura. 4. Negro. 5. Querino/Barreto. I. Pereira, Túlio Henrique. II. Flexor, Maria Helena. III. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. IV. Título.

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Maria Helena Ochi Flexor (Uesb/UCSal)

(Orientador(a))

Profa. Dra. Ana Palmira Bittencourt Cassimiro (Uesb)

(Co-orientador(a))

Profa. Dra. Isnara Pereira Ivo (Uesb)

Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto (Uneb)

Suplentes

Pro. Dra. Lívia Diana Rocha Magalhães (Uesb)

Profa. Dra. Maria Ilza Ribeiro (UFBA) Local e Data da Defesa de Dissertação: Vitória da Conquista, 17 de fevereiro de 2011.

Resultado:

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Dedicatória

A memória é um mecanismo que precisa ser constantemente acionado, senão perde-se o sentido e a razão de todas as coisas que nos valida enquanto sujeitos de nosso tempo. Lembro-me do rápido momento quando eu ainda tinha por volta dos 23 anos de idade e tinha como objetivo na vida concluir a graduação em História e sair da minha cidade no Sul de Goiás.

O tempo nos resguarda do ululante. Perceber os limites e transpô-los é

característico de poucos. Eu almejava apenas não estar mais ali, no lugar em que aprendi a crescer e versejar o óbvio.

Foi em uma noite de fevereiro, quando me deparei com ele pela primeira vez,

cabelos longos, estatura mediana; fala apressada e dispersa, embora objetiva... Olho no olho, senão não poderia me conectar ao que não conhecia... Aniversário de criança, tortas, docinhos e vozes, muitas delas distribuídas à mesa de madeira repleta de bon vivants. Eu, calado. Observar é dádiva.

A partir daquele dia, continuamos o percurso natural de nossas vidas. Os

objetivos continuaram os mesmos, as questões outras, e os diálogos que travei comigo mesmo passaram a ouvir outra voz que não era a minha. Uma voz com nome, cor, face, andado engraçado, desjeitos e fantasmagorias, não no sentido pejorativo, mas na possibilidade real da condição humana em seu aspecto mais enigmático.

Foi esta voz inusitada que, ao visitar minha casa, respondeu ao tom absorto do

meu espírito, que havia estradas recortando meus caminhos. E, no breve diálogo com o tempo, nos contemplamos crédulos nesta existência.

Nilton Milanez, é a você que dedico o labor e o resultado desta pesquisa. O fato

de ter sido você o primeiro e único a acreditar em mim e a trazer o melhor de mim para nosso encontro. Não existiria o Mestrado se não fossem suas palavras, não este com M maiúsculo, bradado em alto som ressoando certezas aos ouvidos elucubrados da mamãe Francisca. A você só tenho a dizer “ainda bem que você vive comigo, porque senão como seria essa vida... sei lá, sei lá”.

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Agradecimentos aos mestres

Os resultados desta pesquisa e sua escrita podem não compor no futuro o texto mais prestigioso da minha história, mas, entretanto, foi construído para este momento como o mais significativo para esta minha vida. E é por essa razão que agradeço:

Ao Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - Fapesb, pela bolsa, sem

a qual não seria possível a execução da pesquisa que resultou este trabalho. À minha professora Maria Helena Ochi Flexor, por sua capacidade de receber o

menor e oferecer o melhor a ele em sua inteireza. A única mulher que conheci, depois de minha mãe, capaz de ser objetiva e profissional com candura na voz. Sua elegância, receptividade e educação são atributos raros no ambiente acadêmico. E posso dizer que sua pessoa é ainda maior ao se dedicar com atenção e delicadeza sinceras, capazes de oferecer troca a aprendizes como eu. Sem dúvida, eu não teria conseguido traçar as linhas sinuosas da memória e das mentalidades humanas sem a leveza e o profissionalismo de sua orientação. E, menos ainda, teria descoberto que, por baixo de toda razão, exista uma pessoa tão apaixonante quanto a senhora. Quando eu crescer quero ser assim.

Ao professor Alexandre Pierezan, cujo ensinamento na graduação em História elevou meu espírito para a pesquisa. Tenho comigo o reconhecimento de sua contribuição para o ensino da pesquisa em história, bem como a lisonja de sua amizade confortante.

À professora Isnara Pereira Ivo, por me ajudar a reatar as pazes comigo mesmo em um momento que pensei que nada mais fazia sentido. A Academia é, sem dúvida, um lugar de perdas e ganhos. Ganhei muito com sua disposição e orientações não oficializadas.

À professora Maria da Conceição Fonseca-Silva, por ser quem ela é, determinada no objetivo de transformar a mente daqueles que almejam o caminho da pesquisa acadêmica. Uma fortaleza em pessoa. Professora, a quem agradeço por me lembrar constantemente que bem abaixo das reflexões e de seus amadurecimentos, existem prazos a serem cumpridos e recortes a serem feitos.

À professora Lucia Ricotta, possuidora do sorriso mais brilhante e honesto de toda a Bahia. Sorriso, sem o qual, eu não saberia mergulhar nas intempestivas considerações de Nietzsche.

Ao professor Edson Farias, responsável pelas tardes mais dimensionais da minha história do Mestrado em Memória. Guardo comigo os momentos da descontração mais sublime que gastamos juntos, enquanto o senhor explanava e eu permitia atravessar os olhos no poente esboçado na vidraça da sala de aula.

À professora Ana Elisabeth, a sua atenção é sem igual e o seu cuidado para conosco nesta jornada foi maior ainda.

À professora Lívia Diana Magalhães, pela compreensão nas aulas vespertinas e pela oportunidade de transpormos nossa jornada de aprendizado para além dos muros da UESB, por meio do Programa de Intercâmbio com a Universidad Nacional del Litoral em Santa Fé, Argentina, sem o qual o Mestrado em Memória não teria tido o mesmo significado grandioso em minha vida.

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À professora Ana Palmira Bittencourt, pelo carinho e consideração dispensados a mim nos momentos mais delicados de crise alérgica. Suas atenções para comigo transpuseram os limites da racionalidade calculada.

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Agradecimentos aos familiares e amigos

Construímo-nos a cada dia em pluralidade. Nunca somos únicos. Somos a união das memórias de todas as coisas e, por isso, nos identificamos com os outros e com o nosso meio, partindo dos emblemas, mitos, ritos e sinais localizados na rua, nos sons, imagens, sentimentos e sujeitos que encontramos no caminho. Sem todos esses elementos eu não seria esse alguém, e é por essa razão que agradeço a...

Minha mãe Francisca Alves Pereira, por ser a pessoa que eu amo mais que tudo

nessa vida, por ser tudo o que ela é em uma só, por ter me deixado como legado as memórias mais tenras e sagradas que guardo em mim.

Meus irmãos José Willian e Ana Carolina, por me amarem tão respeitosamente e

por serem lindos e educados. Meu pai(drasto), José Gomides, pelo contexto de nossas vidas e por sua disposição em ser um pai.

Aos primos, primas, especialmente à prima Janice Silva, porque eu a amo simplesmente. Aos tios e tias, sem vocês não haveria razão da minha vida existir...

Ao meu amigo Ricardo Mattos, por estimular a minha estima a partir de conquistas como a realização deste texto; A Éder Lacerda, por falar com os olhos sobre a finitude de nossa puerilidade; A Jaciane Ferreira, pelo amor gratuito e feliz; A Janaína Santos, pelos conselhos e o exemplo. A Silvia Alencar, a minha Silvie, por tornar as aulas de Inglês e as tardes de sábado mais significativas e renovadoras. A Cecília Barros, pelo abraço com cheirinho de baunilha; A amiga Manoela Correia e a Jorge Augusto, simplesmente porque os quero felizes e muito por perto.

À amiga Poliana Bicalho, por ser especial demais para mim, e ao Maurício, namorado dela, sem o qual não teria conseguido a qualidade alcançada ao fotografar os documentos nos arquivos da cidade de Salvador, BA.

Aos colegas de classe que se tornaram amiguinhos de infância Ronaldo Oliveira Silva, Polliana Moreno e Marleide Paes. Amigos, gastar o tempo com vocês não tem preço.

Aos amigos de classe Thiago França, Clara Carolina, Sara Rodrigues, Thiaquelliny, Lucineide e aos demais.

À memória da amiga Sandra Celino, cujo falecimento precoce, pouco antes da conclusão deste texto, me abalou profundamente. Sem dúvida, alguém que guardo em meu coração com muita estima.

À amiga Luci Mara Bertoni, por ser a pessoa a quem eu possa entregar a minha vida de olhos fechados. Luci e Murilinho, as tardes de domingo que gastamos juntos, os peixinhos ornamentais e as plantinhas têm significados mais que especiais no meu coração. Amo muito vocês.

E agradeço a essa força sobrenatural que nos dá pré-disposição para a vida, a quem denominamos Deus. Sem esse soprinho divino nenhuma das memórias relatadas acima seria possível dessa maneira tão bonita.

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RESUMO

A partir de um campo interdisciplinar possibilitado pela memória, em convergência com a história das mentalidades e dos postulados da História Nova, foi possível acionar, a partir da observação e análise de corpus literário, imagético e midiático, as práticas e memórias do negro brasileiro no cotidiano dos séculos XIX e parte do XX. O negro neste recorte, bem como sua pluralidade étnica, foi compreendido por meio de narrativas de autores negros e brancos, como Manuel Raymundo Querino, Afonso Henriques de Lima Barreto e Adolfo Ferreira Caminha. Esses autores constroem um quadro da experiência de seu tempo, comprometendo-os com a tarefa de ora denunciar sua condição de vida numa sociedade escravocrata como a do Brasil do Império, ora descrever a continuidade de um modelo de negro subjugado, vigente na República. A pele e as sensibilidades do negro servem como referências para o estudo de uma sociedade que identificou e determinou papéis sociais, inicialmente por princípios da religião católica cristã e, posteriormente, pela repersonalização e epidermização do sujeito. É nesta perspectiva, portanto, que este estudo problematiza em caráter descritivo e analítico questões que giram em torno de três eixos: primeiro, as constituintes da pele, momento no qual é feito um panorama breve sobre a história do negro a partir de sua origem até a personalização deste sujeito em sua condição de escravo; segundo, as memórias da pele, seção em que são relacionadas memórias do cotidiano de negros, descritas por viajantes, e impressas em jornais da cidade do Salvador, na Bahia; terceiro, as sensibilidades da pele, uma breve análise da experiência moderna dos autores e personagens presentes no século XX, cujas memórias são remissões de modelos construídos no século passado. Essas memórias trazem evidências que ajudam a pensar como o negro adquiriu ao longo da história uma identidade inerente à condição de subserviência e através do mito em torno de seu fenótipo, relevando o deslocamento dessa identidade ao curso de gerações, em detrimento de identidades plurais e da miscibilidade do negro nascido no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE:

Memória; História; Literatura; Negro; Querino/Barreto

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ABSTRACT

Considering an interdisciplinary domain given by memory, allied to the history of mentalities and the postulates of the New History, it was possible trigger, through the observation and analysis on a literature, image and media corpus, the day-by-day practices and memories concerning the Brazilian black people within the XIX and part of the XX century. The black people on this focus as well as the plural ethnic which identify them was understood by taking black and white narrative’s authors, such as Manuel Raymundo Querino, Afonso Henriques de Lima Barreto and Adolfo Ferreira Caminha. These authors build a frame experience of their own time, engaging them on the task either to speak out against their life condition in a slavery society, as it was in the Empire period, or to describe the continuity of a black model based on domination, during the Republic period. The skin and sensitivities of black people become a reference to the study of a society which identified and determined social roles, initially assured by the Christian catholic religion, and then by the process of repersonalization and the identification of the subject centered on their skin. Established on these basis, therefore, this study problematizes the description and analysis of questions which random around three axes: firstly, the constituents of the skin, in which it is given a brief panorama on black history from its origin up to the personalization of the black subject considering a slavery condition; second, the memories of the skin, section where the day-by-day memories of black are correlated, described by travelers and then printed on newspapers of the city of Salvador, in Bahia; thirdly, the sensitivities of the skin, a brief analysis of the modern experience from authors and characters inscribed in the XX century, which memories are remissions of built models of the last century. These memories bring evidences which help to think over how black people has taken through history an identity inner to a submitted condition and through the myth around the phenotype, highlighting this identity displacement through generations, in detriment of plural identities and the miscegenation of black people born in Brazil.

KEYWORDS Memory; Hisatory; Literature; Black people; Querino/Barreto

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1. As três raças 50

Ilustração 2. As três raças 51

Figura 1. Minerve hassant lês vices de jardin de la vertu 54

Figura 2. Entêrro de uma negra 59

Figura 3. O cirurgião negro 59

Figura 4. Halte de chasse 108

Figura 5. Les noces de cana 108

Figura 6. A morte da mulher de Dario 108

Figura 7. Afonso Henriques de Lima Barreto 119

Figura 8. Manuel Raymundo Querino 121

Figura 9. Georges Ohnet 134

Figura 10. Theseus 134

Figura 11. Narciso 134

Figura 12. O vigor 140

Figura 13. Carpindo 140

Figura 14. Pintando 140

Figura 15. Banhistas 141

Figura 16. Lânguidez 141

Figura 17. Modelando 141

Figura 18. Lendo 142

Figura 19. Vinhedo 142

Figura 20. Musa 144

Figura 21. Tudo é sellado 146

Figura 22. Apresentações 146

Figura 23. Tia Tatá 146

Figura 24. Peste negra 147

Figura 25. 13 de Maio 147

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LISTA DE DOCUMENTOS

Documento 1. Anúncio de venda de escravo Cabinda 67

Documento 2. Anúncio de venda de escravo Mina 67

Documento 3. Anúncio de venda de um escravo para laico 68

Documento 4. Anúncio de venda de escravo sapateiro 68

Documento 5. Anúncio de compra de escrava lavadeira 68

Documento 6. Anúncio de venda de escravo pagem 69

Documento 7. Anúncio de compra de preta Nagô 69

Documento 8. Anúncio de escravos à venda 70

Documento 9. Anúncio de venda macho novo 70

Documento 10. Anúncio de fuga de escrava de Itapagipe 74

Documento 11. Anúncio de fuga de quatro escravos 75

Documento 12. Anúncio de escravos fugidos 75

Documento 13. Anúncio Annuncio 76

Documento 14. Fuga do escravo André, Nagô 77

Documento 15. Fuga de escrava Lucinda de 23 a 30 annos 78

Documento 16. Fuga do engenho Periperi 78

Documento 17. Encontrado negro Nação Congo 79

Documento 18. Fugida 79

Documento 19. Ama de leite 87

Documento 20. Crioula livre 87

Documento 21. Crioulo companheiro de viagem 88

Documento 22. Preto de bonita figura carregador de cadeira 88

Documento 23. Mulato montador com 20 annos 88

Documento 24. Fuga crioulo tanueiro chamado Sabino 89

Documento 25. Moleque de nação Angolla com marcas de fogo de sua terra 89

Documento 26. Preta nação Nagô que se dizia forra 90

Documento 27. Preto e mulatinha fugidos, com 16 a 17 annos 90

Documento 28. Diário da Bahia 26 jun. 1888 104

Documento 29. Diário da Bahia 26 jun. 1888 106

Documento 30. Diário da Bahia 26 jun. 1888 108

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 13

2. AS CONSTITUINTES DA PELE 38

2.1. UMA QUESTÃO DE PELE 38

2.2. Demarcando o sujeito em seu universo 39

2.3. Matizes da pele e sua relação servil etnoindentitária 43

2.3.1 BREVE RETRATO DA MEMÓRIA HISTÓRICA NEGRA NO BRASIL 55

2.3.2 Redefinindo a condição e o lugar histórico e mnemônico do negro 62

2.3.3 O jornal e a literatura como memória histórica 64

3. AS MEMÓRIAS DA PELE 94

3.1. SUJEITOS-AUTORES: MANEIRAS DE EXPERIENCIAR A MEMÓRIA 95

3.1.1. A apropriação do estereótipo como resistência ideológica 115

3.1.2. Afonso Henriques de Lima Barreto 119

3.1.3. Manuel Raymundo Querino 120

4. AS SENSIBILIDADES DA PELE 127

4.1. O AUTOR E O SUJEITO NA LITERATURA DO SÉCULO XIX 128

4.1.1. ESPELHO ESPELHO MEU... EXISTE BELO MAIS NEGRO QUE TESEU? 133

4.1.2. Re-produzindo memórias: memórias lembradas não estão esquecidas 139

5. CONCLUSÕES 149

6. REREFÊNCIAS 153

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1. INTRODUÇÃO

Antes dos meus sete anos de idade, quando ainda não freqüentava a escola, eu

não sabia o que era ser negro, mas tinha noções múltiplas de como o negro era, visto e

representado popularmente nos discursos comuns e a partir de imagens da televisão.

Quando sai de São Paulo para voltar à vida e, de fato, estudar em Goiás, tive o primeiro

contato com aquilo que entenderia por raça, distinguido pelas cinco representações

estéticas da pele e do fenótipo do ser humano, esquema elaborado no livro didático da

escola primária, no qual eram apresentados como raça os sujeitos de pele branca, negra,

amarela e vermelha.

Os brancos eram representados pelos portugueses e descritos como aqueles que

vieram para colonizar, morar, cultivar a terra, sendo eles responsáveis pela criação de

povoados, vilas e cidades, construção dos engenhos para a produção do açúcar e

produção de subsistência e, também, responsáveis pelo ensino dos bons costumes

religiosos por meio da catequização dos índios e negros.

Os índios, ou seja, os nativos que viviam na terra denominada Ilha de Vera Cruz,

depois Terra de Santa Cruz – nomes atribuídos ao Brasil pelos portugueses antes da

colonização -, eram representados no livro didático como selvagens nômades, que

viviam da caça e da pesca, mas que não se submetiam ao trabalho nas lavouras1 e, por

isso, se mudavam sempre quando houvesse escassez de alimentos onde estavam

instalados2.

Os negros eram ilustrados nos livros como seres presos com correntes no

pescoço, braços e pernas, sendo considerados os escravos que vieram da África para o

1 Conforme a descrição de Hermida (1958) “Enquanto os portugueses foram leais, tiveram sempre a amizade dos índios. Havia entre os portugueses e os índios o comércio de troca, pois numa tribo indígena o dinheiro não servia para nada: os índios ofereciam os artigos que sabiam fazer, como redes e utensílios de barro, além dos produtos da terra, papagaios e araras. Também prestavam serviços, como o de cortar e transportar o pau-brasil. Mas não gostavam do trabalho da lavoura: para essa atividade, tiveram os portugueses de trazer da África o escravo negro” (HERMIDA, 1958, p. 33. grifos do autor). 2 A partir de imagens digitalizadas, da Carta de Pero Vaz de Caminha, é possível ter acesso à correspondência em que os exploradores descreviam suas impressões acerca do Novo Mundo, podendo assim identificar o Brasil, reconhecido por eles como a Ilha de Vera Cruz. No entanto, não era todo o território identificado como a Ilha, mas simplesmente a região Nordeste da Costa brasileira. Vê-se: “E pois que Snõr he çerto que asy neeste careguo que leuo como em outra qual quer coussa que de vosso seruiço for uosa alteza ha de seer de my mujto bem seruida, a ela peço que por me fazer simgular merçee mã de vijr da jlha de sam thomee jorge do soiro meu jenro, o que dela receberey em mujta merçee. / beijo as maãos de vosa alteza. deste porto seguro da vosa jlha da vera cruz oje sesta feira prim.o dia de mayo de 1500” (CAMINHA, 1963, s/p).

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14

trabalho nos engenhos3. E foi nesse percurso narrativo, e aparentemente ingênuo, que a

escravidão foi tida como sendo de extrema necessidade, pois os engenhos demandavam

força e quantidade demasiada de pessoas para a grande produção:

o negro escravo praticou todos os ofícios e serviu até como criado doméstico [...] Mas foi no engenho que a escravidão prestou os maiores serviços [...] nos canaviais, no fabrico do açúcar e fornecimento de lenha para as caldeiras” (HERMIDA, 1958, p. 35).

Das classificações gerais encontradas nas páginas do livro didático, tem-se o

branco, negro, amarelo e vermelho, e dessas surgiram as denominações estereotipadas

do amarelo como o sábio milenar de origem oriental, o mulato resultante da mistura

entre o branco e o negro e o cafuzo a mistura entre o índio e o negro.

Confesso não ter sido no livro de Hermida (1958) que estudei em meus

primeiros anos de escola, pois me lembro que precisávamos devolvê-los ao final de cada

aula, já que se tratava de uma escola pública. Quando vi o livro desse autor, ainda

criança, tratei de guardá-lo, o motivo eu não sabia na época, mas estava bem longe de

saber que um dia me seria útil.

A partir dessas imagens e leituras, comecei a perceber que ser negro era

pertencer a uma estética e a uma ideia comportamental com um passado humilhante,

fraco e culturalmente irrelevante. A cultura negra, desenhada naquele contexto, se

limitava ao jogo da capoeira, que “o escravo ensinou ao branco [...] a capoeira, a luta

que no Brasil virou dança” (HERMIDA, 1958, p. 35-36); somada ao ato de ritualizar

magias, consideradas pagãs, freqüentar terreiros de candomblé, ser viril ao mesmo passo

que malicioso, rude e cognitivamente limitado para atividades que não se relacionassem

ao labor físico (HERMIDA, 1958)4.

Não tive uma relação direta de negação à minha condição física, social e

cultural, apenas não conseguia estabelecer um elo entre o que continuamente era

3 Na obra de Debret (1831/1968) são ilustrados diversos momentos do cotidiano dos índios através da iconografia, que derrubam a ideia de que os índios seriam preguiçosos e desapegados do trabalho. A partir dessa iconografia, é possível recriar um imaginário, em conjunto com as descrições bastante detalhadas do autor, – embora com alguns equívocos relacionados as etnias e parcialidades de seu tempo no tocante à crença da bestialidade dos índios brasileiros e dos africanos e da concepção de civilidade atribuída aos brancos europeus -, da não subserviência do negro, como também das razões pelas quais os índios mantinham vida nômade e resistiam a prestar trabalho para o colonizador. 4 Conforme exemplos da obra de Hermida (1958), a contribuição africana, bem como o seu comportamento, reservou-lhe lugares e espaços bem determinados, como a subserviência somada à necessidade de mão-de-obra.

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apresentado pela escola com o que rotineiramente vivenciava dentro da minha casa,

com a minha família, alheia à qualquer uma das conceitualizações propostas pelo livro.

Todas as atitudes públicas, performáticas, ou ordenadamente acordadas

popularmente, resultaram num certo apagamento do sujeito negro da minha realidade.

Na maioria das vezes, era possível perceber esse sujeito sendo tratado de forma genérica

e requisitado por sua estética entendida como feia, suja, amoral e subserviente.

Por outro lado, o sujeito possuidor de outro fenótipo tinha o nome reconhecido, a

profissão e outras adjetivações qualitativas lhes eram dirigidas, além, é claro, de ter

sempre estampada a imagem de rei/rainha, herói/heroína ou príncipe/princesa, salvando-

se alguns casos em que esses heróis possuíam características consideradas curiosas,

como no caso da estatura física pequena de Napoleão Bonaparte e do rei francês Luís

XV, ou mesmo da obesidade do rei D. João VI; imaginário que reitera a afirmação do

geógrafo Milton Santos (1926-2001) em entrevista à revista Caros Amigos (apud

ALVES, 2005, p. 36)5 ao dizer que, “Quando se é negro, é evidentemente que não se

pode ser outra coisa [...] porque a questão central é a humilhação cotidiana”. Diga-se a

humilhação das correntes que o identificam como o escravo e o generalizam como tal,

do cabelo considerado “ruim”, por ser crespo, e da pobreza relativizada pela preguiça ou

falta de interesse pelo desenvolvimento dignificante do ser civilizado.

Muitos desses conceitos, e sua difusão, contribuíram, ao longo de gerações,

como um suporte material no processo de construção da identidade humana e de seus

grupos sociais, visando englobá-los, por assimilações; fenômeno em que os grupos

sociais se reconhecem a partir de sua relação com o meio e seus pares. Cada um em

busca da imagem que evidencie o seu imaginário de coletividade, determinado por

acordos, ao passo que esses sujeitos se encontram nas referências que os legitimam

como sujeitos e os incorporam intermediados pelas semelhanças visadas por cada um.

Mais tarde aprendi, dentro da minha própria casa, que o que via e lia naquele

livro de Hermida (1958), na escola, era o reflexo de um pensamento generalizado. Por

isso mesmo minha linda mamãe negra, quando criança, usava prendedores de roupas

para impedir que o nariz negróide se apresentasse livre denunciando sua estética. E

percebi que a minha tia alisava seus longos cabelos cacheados para que pudesse se

apresentar linda no baile do final de semana. Como ainda era jovenzinho não falava

5 Entrevista do professor Milton Santos concedida à revista Caros Amigos (1998).

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nada, deixava que meus olhos percorressem a felicidade de suas faces e a alegria de seus

corpos nos atos dos ajustes.

Imagino que, à medida que fui crescendo, descobri que minha prima inteligente

não era tão bonita aos olhos dos meninos da rua quanto a vizinha. E que tudo isso estava

ligado ao fato de nossa vizinha ser loura e minha prima ser negra.

Passei a não gostar da Xuxa6, primeiro, porque ela tomava café da manhã de um

jeito desdenhoso em uma mesa cheia de frutas, doces e pães. Ela apenas mordiscava o

melão e pedia para que retirassem a mesa. A Xuxa e toda a produção do seu programa

matinal estavam alheios à realidade de crianças como eu. Eles não sabiam que os dias

com pão e leite na casinha do meu avô eram raros.

O segundo motivo para odiá-la foi o fato de todos a acharem bonita por ser

loura, ter os dentes alinhados e os olhos azuis. Suas características físicas eram tomadas

como sinônimo de beleza, dignidade e bondade. E, desse modo, seus espectadores

adotaram o padrão Xuxa de beleza e comportamento.

O sucesso da Xuxa com as crianças e as famílias despertou em muitas garotas,

incluindo minha prima, o desejo de ser como ela, mas, no entanto, só existia uma.

Assim, para a felicidade da maioria das meninas, decidiram instituir as ajudantes de

palco para a rainha dos baixinhos, no entanto, o pré-requisito para se tornar uma auxiliar

da Xuxa, ou seja, uma Paquita, era que a candidata tivesse o mesmo fenótipo da rainha,

e mais, que essa fosse loura ao natural.

Se o fato de ser louro, ter olhos azuis e dentes alinhados em um sorriso

descomunal era sinônimo de beleza e bondade; considerar que, todos lá em casa éramos

6 Xuxa é o alter ego da apresentadora, cantora e atriz Maria da Graça Xuxa Meneghel, loura e descendente de alemães. Ela nasceu em Santa Rosa, no Rio Grande do Sul, em 27 de março de 1963. Majoritariamente a população do Sul do Brasil formou-se por descendentes de alemães, italianos e poloneses. Xuxa é uma das principais celebridades brasileiras de todos os tempos, reconhecida, inicialmente, por ter sido a namorada do rei do futebol brasileiro Pelé, também namorada do maior piloto de Fórmula 1 do Brasil, Ayrton Senna e, principalmente, pelo seu sucesso em programas infantis na década de 1980, através da Rede Globo de Televisão. A imagem de rainha dos baixinhos, assimilada aos contextos imagéticos dos contos de fada, permitiu que Xuxa conseguisse vender a sua imagem para a América através da Argentina, Espanha e Estados Unidos, onde apresentou programas com o formato semelhante ao Xou da Xuxa produzido no Brasil. No Xou da Xuxa, um programa matinal exibido ao longo da semana, Xuxa descia de uma nave espacial, com motivos infantis, para o mundo da Xuxa. Nesse mundo lúdico, um cenário amplo bastante decorado, ela tomava café da manhã, realizava competições com as crianças, cantava e apresentava desenhos animados bastante populares, entre o público infantil das décadas de 1980, como She-Ra e He-Man. A letra X do alfabeto foi utilizada como estratégia de incorporação da marca Xuxa e foi vinculada nas décadas posteriores a roupas, acessórios, alimentos, eletroeletrônicos, parques, animações de televisão, campanhas educativas e de alfabetização, campanhas de saúde infantil, meio ambiente, entre outros segmentos comerciais. - Texto do autor redigido após leitura livre de dados étnico-culturais de Santa Catarina, RS e de informações do site Memória Globo. (PÚBLICO, 2010).

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feios e ilegítimos em nossa condição de cidadania, foi o mais cabível pensamento a se

instaurar em minha mente.

A historicidade das memórias, que circundam as identidades negras, se tornou

para mim a porta de entrada para um mundo de representações interligadas por laços de

valores sociais. Imagens e representações que, firmadas no espaço humano, partindo de

demarcações socioculturais, econômicas, políticas e étnicas, acumularam múltiplos

sentidos. Não obstantes negativas, deixaram marcas e valores difusos, embora

catárticos. Compreender o processo de construção desses sentidos atribuídos à razão, e

às sensibilidades humanas, permitiu-me captar o fiel sentido de que muitos negros

homens, mulheres, crianças, e uma infinidade de sujeitos subjugados por seus fenótipos

ou identidades corporais, sofreram e continuam a sofrer no limiar de suas

sobrevivências, demarcados em um simulacro da memória, no jogo entre o real e

inverossímeis narrativas sobre mentalidades.

Por fim, foi assim que cresci, estudei, me tornei adolescente e depois adulto.

Foram essas as referências que me trouxeram aqui, referências experienciadas

cotidianamente. Pontuando fenômenos que me silenciaram, silenciando a todos aqueles

que se assemelhavam aos meus entes pela simples razão do matiz da pele ou da

memória de escravização do corpo negro. E por mais que Foucault (2005) nos lembre

sempiternamente de que toda a vontade de poder seja vontade de poder e, embora eu

tivesse tudo para endossar o imaginário popular a que a maioria dos livros didáticos,

programas de televisão e músicas tinha sobre as pessoas com a cor da minha pele,

preferi contrariá-las naturalmente, e buscar, mesmo em um terreno incipiente,

referências que foram opacizadas. Para assim compor o invólucro dos belos tons da

minha cor substantivada pelas subjetividades em que incorro, ainda que se trate de uma

vontade e, mesmo que seja de poder.

***

É a partir de um olhar, a priori, antropológico, que se delineiam os conceitos

acerca do negro neste estudo. Estudo que também se baseia na teoria da História Nova e

se pauta na amplitude da análise histórica e, fundamentalmente, nas questões em torno

das memórias. Dentro desta visão, não há a preocupação, embora respeitando questões

metodológicas, em restringir-se a um conceito único sobre o negro no Brasil,

especificamente na Bahia, que se encerre em si, pois se entende a memória como

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dispositivos e variações sistemáticas manifestadas dialeticamente e, com isso, permitir o

dialogismo dos conceitos e sua aplicabilidade de acordo com os períodos retratados e os

objetos que são colocados em análise.

O negro brasileiro, visto por muitos como uma minoria, não participou

ativamente das representações da historiografia nacional, a não ser como o símbolo do

escravo subserviente, de modo que suas referências simbólicas não alcançaram a

imagem e um lugar edificante para as gerações pertencentes ao regime independente e

republicano no País. Esse acontecimento se deve, senão pelo “fato de que quase todos

os relatos históricos foram feitos por brancos, os quais, muitas vezes, sustentavam as

versões que lhe interessavam” (ERMAKOFF, 2004, p. 14), ao menos pela incorporação

dos sujeitos negros na aceitação de uma identidade corporal e mental, entendida como

inferior e, por isso, marginal à condição de civilidade, atribuída e determinada pelo

gobinismo e darwinismo social surgidos na Europa no século XIX7.

Foi, talvez, por essas razões, em consonância com as análises da questão racial

na esfera macro dos estudos acerca da questão negra que, ao atribuir mais de três

séculos de apagamento e difusão de conceitos identitários equivocados sobre o sujeito

negro, que muitos incorrem no pensamento de Nina Rodrigues (RODRIGUES,

1932/2008)8; ele um médico legista brasileiro, que embora maranhense trabalhou muito

tempo na Bahia. Também foi um dos principais antropólogos, estudioso da cultura

africana, difusor do darwinismo no País, afirmou em relação à

raça negra [na Bahia], que fundamentou com seu suor a argamassa de nossa nação e independência, não apenas predominava em números em relação a brancos e índios como já preparava, diluída na miscigenação, o predomínio que lhe caberia na direção do futuro povo. Ela possui legitimamente o direito de ser devidamente reconhecida (RODRIGUES, 2008, p. 28).

7 Conde Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882). No século XIX, Gobineau publicou sua principal obra

“Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas” (1858). Nela ele nos apresentou a tese que legitimaria a superioridade inata das raças brancas e suas variações sobre todas as outras não-brancas (BUONICORE, 2005). Considera-se também que as concepções em torno de uma ideia de inferioridade do negro, assim como o seu caráter assassino foram influenciadas principalmente pelas ideias difundidas por Lombroso, que acreditava que, pela análise de determinadas características somáticas seria possível antever os sujeitos que se voltariam para o crime. Entretanto para Darwin a expressão “concorrência vital” não possuía conotação ideológica, portanto, o melhor e mais apto não significava ser o melhor em si, mas aquele que encontrasse meios favoráveis para sua sobrevivência (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 62). 8 O livro teve sua primeira editoração póstuma à morte do autor em 1932, entretanto foi escrito entre o período de 1890 até 1905, aproximadamente.

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É o fato de reconhecer neste estudo a relevância de explanar essas histórias, sob

a luz de memórias e práticas opacizadas desses sujeitos, que o eleva ao patamar de não

tornar esta pesquisa um resultado alheio ao objeto pesquisado. A parte integrante da

teia, constituinte dessa historiografia, faz-se por meio da consciência da impossibilidade

de separar a subjetividade do pesquisador da objetividade da pesquisa. Deste modo,

como agente singular, refletido num jogo de relações no qual o autor se entrelaça

sensivelmente com seu objeto e, em seguida, como agente, enquanto pesquisador, lança-

se ao ofício de representante discursivo de sujeitos sociais.

A partir dos equívocos em que incorreram os livros didáticos do século XX que

traziam a discussão sobre raça e condição humana no século XIX, não se pode esquecer

que teoricamente, paralelo à inexorabilidade educacional, foram várias as contribuições

em prol da visibilidade histórica dos sujeitos negros no Brasil nas ciências humanas e,

também, nos estudos encabeçados pela medicina acerca do tema nos séculos

supracitados. Contudo, são estudos que se basearam em características específicas e,

muitas vezes, responsáveis por unificar a compreensão étnica do que seria ser negro, a

partir de determinantes biológicas, religiosidade, folclore, determinantes culturais do

espetáculo dos ritos negros e dos estudos de reminiscências territoriais quilombolas,

propondo certos resgates e impondo uma identidade africana, muitas vezes,

desconhecida pelo próprio negro brasileiro, que se constituiu, não apenas de uma

miscigenação étnica estabelecida, compulsoriamente, com o europeu e o nativo

nacional, mas, também, pela pluralidade étnica da África.

E por mais que essas abordagens, restritas aos seus simbolismos e ritos, resultem

em amplas e ricas fontes de pesquisa, continuam sendo muitos os desafios para esse

estudo, sobretudo, a história recente sobre os negros brasileiros, vê-se atrofiada aquilo

que Santos (2002) considerou a condição negra como objeto, numa visão distanciada, e

o negro como sujeito, numa atitude compromissada. Esses estudos, incluindo o ensaio

Casa Grande & Senzala, de Freyre (1933/2004) servem para compreensão de conceitos

como hibridismo racial, miscigenação e estruturalismo social e raça9. Porém, em sua

maioria, entende-se, neste estudo, que os autores estabeleceram uma ideia de dominação

9 A produção de saberes em torno da causa negra esteve muito ligada aos movimentos nacionalistas incorporados a partir da década de 1989 no Brasil até a inserção de uma nova ordem promulgada no novo século. A principal obra de Gilberto Freyre “Casa Grande & Senzala”, editada pela primeira vez em 1933 é parte inerente de uma ideia de socialismo compartilhada por parte da população brasileira, ávida pelo direito comum e ao mesmo tempo político de seus sujeitos, assim como pela venda de uma imagem corporificada as questões de igualdade racial e de valorização dos patrimônios nacionais, como a fauna e a flora para o exterior.

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e assujeitamento baseados nas teorias darwinistas reminiscentes de estudos, em torno da

antropologia física e antropometria, sem a inserção das sensibilidades e da memória do

negro, tratando-o meramente como um objeto de valor histórico marginalizado, e,

porque não, folclórico10.

Este estudo está intrinsecamente ligado aos resultados finais do Programa de

Iniciação Científica voluntária, realizado na graduação em História, na Universidade

Estadual de Goiás (UEG), no qual se observou as relações de socialização na praça

pública da cidade de Itumbiara, no interior do Estado de Goiás, entre os anos de 1950 e

1980. A pesquisa mostrou como se davam as práticas de socialização que excluíam a

presença dos sujeitos de cor nos espaços públicos em que se praticavam atividades de

lazer como o footing11.

A mesma pesquisa trouxe questionamentos acerca da ausência do sujeito negro

em documentos midiáticos da localidade, nas obras de arte produzidas na região, assim

como na literatura e história locais da contemporaneidade, durante o século XX. Esses

questionamentos também abarcaram os poucos indícios, nos quais a representação do

negro se limitava a estereótipos clássicos de tipos de negro, indicados pelas

características representadas pelo romance Bom-Crioulo, de Caminha (1895/2001) em

que a fisionomia bruta, os lábios excessivamente grossos, a voz assustadora, os gestos

rudes, o odor excessivo, a bestialidade, a pobreza e a sensualidade selvagem do

protagonista negro são apresentadas como qualidades naturais da raça.

O desejo de realizar um trabalho em torno das identidades negras se deu ao

verificar que Caminha (1895/2001), embora tenha utilizado a naturalização de um tipo

estereotipado de negro em seu romance, abriu o diálogo sobre os discursos científicos,

suscitados em seu tempo, que davam legitimidade aos ideais coletivos acerca do sujeito

10 Como exemplo desses autores tem-se Freyre (1933/2004) ao mostrar em sua obra que muitos estudos em torno dos negros no Brasil se limitavam as questões acerca da escravidão e das relações patriarcais determinada pelo branco. A exemplo desses estudos tem-se Brookshaw (1983) ao explicar a abolição no Brasil como um fenômeno puramente de interesse capital e exemplificar a relação senhor – escravo em torno de considerações fetichistas; também, Nina Rodrigues (2008) ao propor em seus estudos um método no qual se determina a partir da observação e da comparação o comportamento e as habilidades dos africanos no Brasil; assim como Rabassa (1965) ao discorrer em suas pesquisas sobre a mobilidade e a liberdade atribuída aos escravos, bem como de uma convivência amena na relação senhor – escravo ao compará-la com outros países da América e Europa. E, também, Arthur Ramos (1943) por falar sobre padrões culturais de dominação, entre outros. 11 O termo footing é bastante comum entre estudiosos das praças públicas. Segundo Pereira (2008) o footing, ou ato de caminhar, é o passeio rotineiro de lazer realizado, ao longo das décadas de 1940-1970 nos finais de semana em praças públicas. Em estudo específico, sobre a Praça da República da cidade de Itumbiara no Estado de Goiás, o autor tratou da vida e da obra do artista plástico itumbiarense Onofre Ferreira dos Anjos (Guigui) entre as décadas de 1950-1980, período no qual foi retratado, na obra do Guigui, o footing dos sujeitos itumbiarenses.

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negro, enquanto esses ideais, promulgados com base nas teorias darwinistas, limitavam

à capacidade cognitiva dos africanos e seus descendentes12.

Acredita-se nesse estudo que Caminha (1895/2001) foi um dos primeiros autores

a inserir o negro, em um romance nacional, no centro de sua narrativa, de forma que não

se tratava de um mestiço, ou de um porta-voz de pele branca e sangue negro, como foi

proposto em A Escrava Isaura, de Guimarães (1875/2005)13.

12 Adolfo Ferreira Caminha foi um escritor brasileiro classificado como naturalista. Branco, nasceu em Aracati, Ceará, em 29 de maio de 1867. Atormentado pelo falecimento da mãe, e pela dificuldade provocada pela seca que assolou a região Nordeste nos idos da década de 1877, decidiu se mudar para Fortaleza onde iniciou os estudos, porém seguiu para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Escola Naval da Marinha de Guerra do Brasil, em 1883. Inserido em um contexto histórico escravocrata e monárquico, Adolfo Caminha, com apenas 17 anos, apresentou-se contrário à mentalidade da época. E nas poucas ocasiões das quais participou deixou clara sua posição de opositor às leis do Império. Formou-se guarda da Marinha Nacional e seguiu a carreira de marinheiro até ser assolado por decisões consideradas ousadas e/ou a frente de seu tempo, como amasiar-se com a esposa de um segundo tenente. Iniciou sua carreira literária em 1886, com o livro de poemas “Voos incertos”, seguido dos livros de contos “Judite e lágrimas de um crente”, ambos com pouca repercussão no cenário nacional, e, A “Normalista”, um dos romances de maior projeção da carreira de Adolfo Caminha. Este livro só foi publicado em 1893, traçando sua visão pessimista da vida urbana. No ano seguinte, o autor editou um livro de crônicas “No país dos ianques” (1894), retrato de suas viagens pelos Estados Unidos e, em 1895, sete anos depois da abolição oficial da escravidão e seis anos da implantação do governo republicano no Brasil, Caminha chocou a opinião pública dos líderes e letrados e rompeu, definitivamente, com os laços, já estremecidos, com a Marinha Nacional ao publicar “Bom Crioulo”, romance homoafetivo, que teve como mote principal o tratamento oferecido a um negro, após a escravidão e as teorias científicas a respeito da homossexualidade. Argumentos mostrados na figura central de um ex-cativo negro (Amaro), que se infiltrou na marinha, em busca de uma alternativa que melhorasse sua condição de vida. Para muitos críticos literários o intuito de Caminha foi o de denunciar a quem o havia denunciado, por seu comportamento “degenerado”. Caminha tem sua obra censurada e levada ao esquecimento durante muitas décadas. Apenas na década de 1990, depois que sua obra foi editada em outros países, o Brasil a retomou para discussões acadêmicas, voltadas para o estudo do comportamento homossexual suscitado pelo autor em sua época. Porém, estudos relacionados à questão negra ainda continuam marginalizados no que se refere à riqueza do tema nesse romance. As abordagens secundárias e/ou contextuais destacam o ambiente repressor da Marinha Nacional, no qual os personagens centrais foram descritos, utilizando os uniformes da instituição, como uma possível crítica de seu tempo até a década de 1970. No texto biográfico, baseado na edição da série Bom Livro, da editora Ática, o editor, ao final do romance, levantou alguns problemas e apontou o trabalho de Adolfo Caminha como sendo uma vingança contra seus superiores. Consta que a possível influência naturalista de Caminha era inerente aos eventos ocorridos no Ceará em 1884. No Ceará o movimento literário era mais expressivo e contava com a participação maciça da classe estudantil. “Promovido a segundo-tenente, Caminha permaneceu no Rio de Janeiro até meados de 1888. Alegando razões de saúde, pediu então transferência para Fortaleza, onde serviu no cruzador Paquequer. Talvez a capital cearense lhe parecesse politicamente mais avançada do que a Corte. O Ceará, por exemplo, havia sido a primeira província brasileira a liberar os escravos em 1884[...] O naturalismo deixava de lado a exaltação patriótica e o sentimentalismo típicos do Romantismo e – com sua proposta de produção de textos que retratassem a realidade de modo crítico e objetivo [...]” (CAMINHA, 2001, p. 3). 13 O romance “A Escrava Isaura” (1875) foi fruto do período em que a campanha abolicionista estava em voga no Brasil. O autor narrou os desafetos e as conquistas de Isaura, uma escrava branca e educada, com caráter nobre, filha de pai português e mãe mulata que, para escapar das intenções do seu senhor, acabou fugindo do seu lugar de origem e indo parar em Recife, onde se viu apaixonada por um milionário com ares republicanos. As características dos personagens desse romance foram: o lugar comum reforçando um imaginário deturpado sobre os personagens negros, e a utilização de uma personagem branca para ser porta-voz de negros e mulatos escravizados. Embora, muitos estudiosos chamem a atenção para o fato de ser, talvez, a escolha do autor o reflexo do público leitor consumidor de romances. Foi uma estratégia de alcance de sua obra e mensagem, pois esse público leitor era composto, na época, de mulheres da

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O cenário do romance de Caminha (1895/2001), ao contrário da representação

bucólica e escravocrata do ambiente rural no Brasil de Guimarães (1875/2005), é a

Marinha Nacional e a cidade do Rio de Janeiro, segundo uma ordem física e política,

representada pelo poder militar, de uma população que testemunhava a transitoriedade e

o estabelecimento de seus novos valores.

O Rio de Janeiro, portanto, na amplitude de seu território, diferente do território

baiano, foi descrito pela literatura, iniciada de uma incursão intertextual, na qual a vida

e a obra de seu autor se entrecruzavam, promovendo o diálogo entre os fatos e as

memórias. A escolha do Rio de Janeiro se deveu, inicialmente, à seleção da obra de

Caminha (1895/2001) e, em seguida, a de Lima Barreto (BARRETO, 1989/1992),

recorrendo ao seu status de capital entre os séculos XVIII e XIX, principalmente, por se

tornar a sede do Vice-reino português, ou seja, o lugar onde o amálgama colonial

determinou o cotidiano e a posição de seus sujeitos, seja pela presença da sede da Corte

Portuguesa, a partir de 1808, seja pelo avanço das culturas da cana-de-açúcar, da

pecuária ou até mesmo pela sua reputação de segundo maior porto de entrada da mão-

de-obra escrava no território imperial. Efetivamente, a relevância das obras propõe,

comparativamente, olhares sobre a presença do negro em Salvador e no Rio de Janeiro,

e vincula-se ao fato de ser o Rio de Janeiro a capital do Império Colonial14 até 1822 e a

sede da decadência política do seu regime, o processo de Independência e, no decorrer

sociedade que, além de suas preocupações corriqueiras relacionadas aos cuidados da casa e de sua beleza, se dedicavam a leitura de romances. Entretanto, vê-se que grande parte da posição da personagem de Isaura segue na contramão de um ideário plural e significante do caráter negro limitado ao cativeiro. Veja-se: “A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. […] Na fronte calma e lisa como o mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração. [...] - Não gosto que a cantes, não, Isaura. Hão de pensar que és maltratada, que és uma escrava infeliz, vítima de senhores bárbaros e cruéis. Entretanto passas aqui uma vida, que faria inveja a muita gente livre. Gozas da estima de teus senhores. Deram-te uma educação, como não tiveram muitas ricas e ilustres damas, que eu conheço. És formosa e tens uma cor linda, que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano. [...] - Mas senhora, apesar de tudo isso que sou eu mais do que uma simples escrava? Essa educação, que me deram, e essa beleza, que tanto me gabam, de que me servem?... São trastes de luxo colocados na senzala do africano. A senzala nem por isso deixa de ser o que é: uma senzala. - Queixas-te de tua sorte, Isaura? - Eu não, senhora: apesar de todos esses dotes e vantagens, que me atribuem, sei conhecer o meu lugar” (GUIMARÃES, 2005, p. 7-8). Os personagens negros retintos ou mulatos, do romance, são Rosa, mulata vaidosa e ciumenta, vivendo por disputar a atenção de seu senhor enamorado de Isaura, além de mentirosa. Segundo Bastide (1983), a escolha pela mulata na literatura brasileira se dá “porque esta se aproximava mais da européia do que da africana” (BASTIDE, 1983, p. 115). André, um escravo doméstico, com caráter lascivo, interessado por Isaura. Os demais personagens negros não são descritos em detalhes e são apresentados com pouca importância ao longo da narrativa. 14 Antes da República houve o regime Imperial, com Imperador, por pouco tempo português e, depois, por Imperador brasileiro.

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do século XIX, pelo advento da República, justificada pelo fato de terem sido, ambas,

capitais, portos e também territórios escravagistas.

Foi nesse contexto que o personagem Amaro, da obra de Caminha (1895/2001),

se tornou homem escravizado devido à cor escura de sua pele, condição social e

mentalidade e, também, por suas afeições, que o levaram a questionar todas as regras e

se rebelar contra a ordem hierarquizante que se estabelecia, há muito, à sua volta, como

o regime escravocrata e os limites oferecidos às populações negras e mestiças. Portanto,

o desejo de abordar, principalmente, o campo das sensibilidades e memórias do negro e

seus matizes, se deu graças a todas essas percepções do citado romance.

Compreender a necessidade da renovação historiográfica, como um fator

preponderante para novos olhares de inúmeras possibilidades na produção do

conhecimento e saberes nas ciências humanas, leva ao questionamento do devir

histórico e à amplitude temática, permitida pelos novos métodos de análise, aglutinados

à perspectiva teórica da memória, a partir de novos documentos como a literatura, a

mídia, a oralidade, as imagens e as práticas e representações inerentes ao campo das

mentalidades. Assim, esses procedimentos, favorecem a construção de novos saberes e

o diálogo com as “verdades” produzidas ao longo de gerações. Essa nova maneira de

olhar para o passado concentra especificidades capazes de refutar o dialogismo oblíquo

estabelecido pelas histórias do passado (CARDOSO, 1997), permitindo a inserção e a

confabulação entre novos conceitos e signos, antes ignorados pelos métodos objetivos e

limitadores, oferecendo um espaço circundante de ciência determinista e lógica.

Partindo, então, desse novo desejo de historicizar os saberes produzidos pelo

passado, dando novas abordagens a eles, e da amplitude frutificada pela historiografia

brasileira, - sob influência da terceira fase da Écoles des Annales da França -, com suas

raízes provenientes de marcos de historiadores nacionais, como Kátia Mattoso (1990) e

Laura de Mello e Souza (1997), na década de 1980, momento em que se iniciava no

Brasil uma série de análises e incorporação de novos documentos de pesquisa em

história no campo das mentalidades. Essa nova maneira de compor a história ampliou a

concepção documental, determinando recortes temporais e propiciou novas aberturas ao

modo de fazer história.

É por meio desse viés que se busca, para além do retorno ao acontecimento

histórico, e dos aportes teóricos impressos pela leitura de determinados documentos, o

relato historiográfico das memórias calcificadas dos negros. Para tanto, foi realizado um

recorte, estabelecendo uma seleção de obras literárias, fruto da produção de saberes e

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práticas de seus autores, valorizando suas experiências e representando a si mesmos

nessas obras ora como sujeitos, analisados no contexto histórico da longa duração que,

neste estudo, é determinado pela transição do Império para a República no Brasil, ora

como personagens que representam trajetórias e memórias de seu tempo.

Consciente, conforme exemplificou Nora (apud LE GOFF, 1997), que o

acontecimento na história vem mudando de sentido e função e que a história

contemporânea tem presenciado a morte do acontecimento natural dos fatos, no qual se

percebia a diferenciação entre uma concepção ideológica e um feito histórico. Nota-se

que os sujeitos estão inseridos no “reino da inflação do acontecimento” (LE GOFF,

1997, p. 37), em que se faz necessário, para o bem ou para o mal, integrar essa inflação

do acontecido15, na trama das existências cotidianas, tendo em vista que essas se

propagam desmesuradamente, propiciadas pelos meios de comunicação, que as

produzem e convidam a todos a se integrar ao imaginário criado por uma sociedade para

a qual se organiza, através dos fios de memórias e de mitos, instituídos em cada uma

delas.

Na perspectiva de memória elencada neste estudo, o acontecimento não se

encerra temporalmente na contemporaneidade, e o acesso, que se propõe a ele, se torna

possível por meio dos dispositivos subjetivos pelos quais vão se entrelaçando, enquanto

sujeitos do tempo presente estão denunciando, por meio de memórias calcificadas em

documentos variados, um passado que não é remoto, – responsável por instituir e/ou dar

legitimidade a comportamentos sociais que integram e excluem seus agentes -,

correspondente ao processo histórico e aos marcos teóricos, vinculados as

características raciais e ao desenvolvimento civilizatório, fundamentados na Europa, sob

a alegação de que o desenvolvimento de determinada sociedade vinculava-se aos

caracteres raciais de sua população (ALVES, 2008). Teorias propagadas ao Ocidente,

por meio do processo de expansão territorial e de colonização, entre os séculos XVIII e

XIX, abarcado pelos eventos inerentes à produção dos saberes, visibilidade e políticas

de integração e reinserção da população negra africana e brasileira instaladas no País.

Para tanto, vale citar o que Le Goff (1997) descreveu:

analisar o acontecimento contemporâneo, sua estrutura, seus mecanismos, tudo aquilo que o integra enquanto significado social, não

15 Em Le Goff (1997, p. 38) lê-se: “hemos entrado en el reino de la inflación acontecimental”.

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seria apenas interrogar, através de uma cortina de fumaça insurgida de um tempo histórico, senão tentar atravancar o funcionamento de uma sociedade através de representações parciais e distorcidas que a mesma produz de si (LE GOFF, 1997, p. 38) (tradução nossa)16

As considerações acerca do acontecimento não são relevantes singularmente.

Para que se tenha o resultado almejado por este trabalho é importante que se estabeleça

o diálogo em torno do negro com os suportes que possibilitem analisar suas memórias, a

exemplo do jornal.

A busca e a visitação nas bibliotecas, arquivos e museus na cidade de Salvador,

evidenciou questões muito graves quanto à preservação e manutenção dos documentos

pesquisados. Muitas edições raras de veículos importantes do século XIX e XX estão

deterioradas, faltando pedaços e, outras, preservadas em ambientes pouco adequados.

Em um dos arquivos visitados, em busca da memória dos jornais baianos, todas as

edições estavam empacotadas e jogadas sobre uma mesa, a justificativa dada para a má

conservação dos jornais foi a de que o ambiente estava passando por reformas e que os

jornais seriam digitalizados brevemente.

O tempo de observação e coleta deste material jornalístico durou um ano e dois

meses. Neste período, foram observadas mais de mil edições de jornais, correspondentes

aos séculos citados. Destas, foram pré-selecionadas e analisadas edições isoladas dos

jornais O Guaycuru, O Bahiano, Diário da Bahia e o Comércio, bem como edições

sequenciais de o Jornal da Bahia de 04 de janeiro a 05 de julho de 1854, Correio do

Povo de 1 de outubro a 31 de dezembro de 1925, Era nova de 1 de julho a 30 de

setembro de 1930, O Estado da Bahia de 1 de julho a 28 de setembro de 1935, A Bahia

de 13 de setembro a 24 de novembro de 1900, Cidade do Salvador de 1 de julho a 28 de

dezembro de 1897, A coisa de 10 de dezembro de 1898 a 8 de outubro de 1904, entre

outros títulos. Foi observado que em ambos foram constatados padrões de anúncios e

iconografias.

Os jornais correspondem, no âmbito geral deste estudo, à análise comparativa e

a intertextualidade entre a teoria o documento midiático e a literatura. Desse modo,

passando a entender o jornal, não apenas como meio de comunicação, que se contenta

16 No texto original lê-se que: “Analizar el acontecimiento contemporáneo, su estructura, sus mecanismos, aquello que el integra em cuanto significado social, no sería tanto interrogarse por una espuma del tiempo histórico sino intentar atrapar el funcionamiento de una sociedad a través de las representaciones parciales y deformadas que ella produce de sí misma.” (LE GOFF, 1997, p. 38).

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com a difusão de informações e/ou acontecimentos, mas que também os produz.

Notícias e informações que, muitas vezes,

Podem ser ampliadas, sem omitir a nova dimensão do acontecimento contemporâneo, ao conjunto de acontecimentos do passado. A crônica, o documento-monumento que nos transmitem a memória de um acontecimento, na realidade, também o produziu. Sem eles, o acontecimento não apenas se manteria oculto no passado, mas também, estaria encerrado ao longo do processo histórico [...] Ao contrário dos historiadores positivistas, tem mostrado que não era um dado, mas um produto do questionamento, da atividade dos historiadores. Esta concepção de produção da história se estende para além do acontecimento. Além disso, essa concepção integra na história acontecimental a dimensão do imaginário que, na marcha dos objetos dos métodos de análise histórica que permite uma melhor perspectiva para captar as relações entre história e memória, o que se constitui em um dos objetos essenciais da reflexão histórica na atualidade. (LE GOFF, 1997, p. 38) (tradução nossa)17

A citação mostra que o esforço, que muitos pesquisadores de história têm

desenvolvido para a atualização sistemática do discurso científico da história como

verdade, se deve, evidentemente, à evolução e a amplitude no uso de documentos, como

fonte de pesquisa, porém, estes procedimentos também podem levar ao descrédito da

história enquanto ciência, já que, com a inserção do imaginário, das representações do

cotidiano, permitidas pela leitura de jornais e interpretação iconográfica daria à história

um caráter parcial e construtivista de um discurso micro-sistêmico, mais próximo das

teias estruturais da narrativa literária. Contudo, esmera-se neste contexto em que é

inserido o relato da representação coletiva mnemônica, acessada por meio de saberes

individuais, que não se mostram e muito menos se explicam, senão no conjunto de todas

as referências e objetos produzidos e produtores de memórias (LE GOFF, 1997).

Ao se eleger o campo da memória, como justificativa primordial para o estudo

da visibilidade historiográfica dos sujeitos negros no Brasil, abarca-se a história

17 No texto original lê-se: “...puede ser extendido, sin omitir la nueva dimensión del acontecimiento contemporâneo, al conjunto de sucesos del pasado. La crônica, el documento-monumento que nos transmiten la memória de um acontecimiento, em realidad, también lo han producido. Sin ellos, el acontecimiento no solamente permanecería oculto en el pasado, sino que además, habría quedado enviscado en la duración histórica [...] En contra de los historiadores positivistas, han mostrado que el hecho histórico no era um dato sino un producto del cuestionamiento, de la actividad de los historiadores. Esta concepción de la producción de la historia se extiende más allá del acontecimiento. Además, esta concepción integra em la historia acontecimental la dimensión de lo imaginário que, en la marcha de los objetos y uno de los métodos del análisis histórico que permite uma mejor perspectiva para captar lãs relaciones entre historia y memoria, lo que constituye uno de los objetos esenciales de la reflexión histórica actual.” (LE GOFF, 1997, p. 38).

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cultural, a antropologia, a sociologia, a memória e a literatura, de modo que as duas

últimas, em muitos momentos, são compreendidas ora como objeto ora como parte da

teoria construída ao longo dos resultados da pesquisa. Esse processo perpassa diversos

aportes epistêmicos e dialógicos quando há o questionamento a respeito do lugar,

posição e condição do sujeito negro brasileiro, impresso no discurso midiático e literário

do período tratado.

A hierarquização com a qual são manipulados os documentos elencados oferece

a compreensão da condição do sujeito, retratado na obra Recordações do escrivão Isaías

Caminha, um livro tomado pela crítica nacional como referencialmente autobiográfico,

cujos principais motes são o preconceito racial sofrido por sujeitos de ascendência negra

no País, bem como da subordinação a que é tratado o tema racial nos veículos de

comunicação no Rio de Janeiro, que, na visão denunciadora do autor do romance,

(BARRETO, 1909/1989), se prestou a manter a soberania daqueles que foram os

senhores de escravos e, porque não, herdeiros dos colonizadores majoritariamente

brancos responsáveis pela posse, produção, manipulação e detenção de grande parte do

território geográfico do Brasil, desde a instalação da Corte, gerando de forma

subsequente uma hegemonia branca e aristocrática no País.

O romance é parte do corpus desta pesquisa, oferecendo observações

relacionadas às sensibilidades em que são descritos os personagens negros e suas

imagens. O autor brasileiro, filho de uma mãe descendente direta de uma africana

escravizada no País e de um pai com ascendência portuguesa, negro, conforme relatou

(BARBOSA, 2002), também poderia ser identificado como pardo respeitando sua

miscigenação, entretanto, segundo Alves (2008), identificar qualquer sujeito como

pardo se vincula às subjetividades sociais adjetivadas por uma ideia de preconceito

racial brasileiro, em que seus sujeitos, na busca do distanciamento de suas raízes

inseriram normas e termos que visam destoar o peso significativo que a identidade

terminológica da palavra negro lhes traria18. Desse modo, ser chamado ou identificar o

18 De acordo com Flexor (2006, 11): “Pardo ou parda [...] designava a mestiçagem de branco e negro e em número mais crescente a partir dos anos de 1790. Mulatinho ou mulatinha [...], mulato ou mulata [...], foram correntes a partir dos meados do setecentos e diziam respeito à mistura de pardos por parte de mãe e de pai, o que equivale dizer, descendentes, de ambas as partes, de mestiços de pretos e brancos”. Mais adiante, citando Oliveira (FLEXOR, 2006, 11), mostrou que em se tratando de libertos, na segunda metade do século XIX, se denominava pardo como sinônimo de mulato. E, em seguida ao citar Karasch (FLEXOR, 2006, p. 11), mostrou a denominação de pardo como sinônimo de mulato. Vê-se: “O viajante alemão Meyer (apud KARASCH, 2000, p. 38-39) dizia que os pardos do Rio eram um grupo distinto que se orgulhava de ser pardo. Acrescentava que mulato era designação menos polida, usada pelos senhores como insulto. Soares (2000, p.102), notifica que os pardos não passavam de 10% da escravatura baiana. No universo pesquisado, entre 1730 e 1830, chegou-se apenas a 5%. A documentação, claramente, faz

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sujeito como mulato, moreno, pardo, cafuzo, bazé, mameluco (índio) ou pessoa de cor,

seria fatalmente menos carregado de julgamento, que chamá-lo propriamente de negro.

Assim é possível aproximar-se do fenômeno recorrente entre o período político da

ideologia do branqueamento, corrente em fins do século XIX no País, em que foram

incentivados os casamentos inter-raciais com o objetivo de erradicar, em uma projeção

matemática, todos os negros presentes no Brasil por meio da miscigenação

(ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 207)19.

Em sua obra Barreto (1909/1989) se apropriou das memórias em torno dos

matizes da pele, para a composição de seu personagem Isaías Caminha, um interiorano

mulato que decidiu seguir para o Rio de Janeiro para cursar medicina e se tornar doutor,

– uma referência à hierarquização social na capital da República, em que todos os

homens que exerciam influência sobre as comunidades mais populares, como senhores

de engenho, coronéis, fazendeiros, médicos eram reconhecidos como doutores e, por

isso, respeitados –, embasado pelo seu sucesso como aluno aplicado em seus estudos

enquanto estudante médio.

É em torno do personagem Isaías Caminha que se faz a criação da parte sensível

desta pesquisa, apontando o sujeito negro brasileiro subjugado por uma identidade

imposta, antagonizada em O triste fim de Policarpo Quaresma, também de Barreto

(1915/1992)20, no qual o lugar do negro é visto pela lente monofocal a determinar

posições socioculturais, dando a cada um o seu lugar na manutenção hierárquica da

República do Brasil (DaMATTA, 1997).

Conforme Bosi (2010), Lima Barreto pertence à geração pós-abolicionista da

Primeira República, e por isso, enfrentou a solidão com desassombro estabelecendo

relações de troca limitadas com seu meio devido à sociedade que repreendia o negro e

as manifestações que transpunham certo controle do sujeito.21

distinção entre pardo e mulato, indicada pelo grau de mestiçagem. Os mulatos eram vistos como brancos. Na revolta de 1814, segundo Silva (2005, p. 174-175), o principal alvo de ataques eram os brancos e mulatos” (FLEXOR, 2006, p. 11). 19 Para (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 207), “...era justamente a miscigenação que garantiria a civilização no Brasil. A esperança era que, em médio e longo prazo, o país se tornasse predominantemente branco. E o caminho para o branqueamento era a miscigenação. Desse modo a “raça branca”, considerada mais evoluída, corrigiria as marcas deixadas na população brasileira por aquelas tidas como “raças inferiores” , negros e índios”. 20 Em 1915 a obra foi reunida e impressa em formato livro, porém, antes de sua editoração, os textos foram publicados em folhetins entre o período de agosto e outubro de 1911. 21 “Desde o início dos seus apontamentos, Lima Barreto mostra que a polícia é um instrumento que serve de veículo para encaminhar o suposto demente a um lugar apartado, na medida em que ele é confundido com o marginal. Por algum tipo de comportamento considerado anormal, deve ser retirado da sociedade e

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Relações e permanências culturais que são lançadas à “dimensão da vida social

para a qual se olha: o universo mental, os modos de sentir, o âmbito mais espontâneo

das representações coletivas e, para alguns, do inconsciente coletivo”, ao considerar-se

os sujeitos produtores e receptores de saberes, a partir das práticas que deixam traços e

indícios cotidianos do acontecido (BARROS, 2004, p. 34). Destacam-se, por

conseguinte, padrões de comportamento, frutos de generalizações, sob à influência do

macro-acontecimento determinado pelo universo da linguagem e das representações

coletivas, que compõem as memórias coletivas.

A literatura pode ser um espaço de interconexão. Um lugar, objeto, documento,

o contraponto e a síntese contextual do imaginário popular narrado, ao mesmo passo

que representa “uma violência organizada contra a fala comum”22 ao se apropriar dela

para transformá-la, formal e materialmente, em linguagem, esta que impõe uma

consciência dramática renovando as reações habituais ao tornar os objetos do cotidiano

mais perceptíveis aos olhos, “nos leva a vivenciar a experiência de maneira mais íntima,

mais intensa. Estamos quase sempre respirando sem ter consciência disso; como a

linguagem, o ar é o ambiente em que vivemos” (EAGLETON, 2003, p. 5).

Assim, é vista como espaço de interconexão, resulta do experienciado23 no

contexto social de suas relações com o ambiente, assimilando-se a ele ou se

diferenciando dele à medida frutificada por suas finalidades, sejam estas a de apresentar

as práticas humanas que se acumularam a sua volta ou povoá-lo do continuus24

epistemológico da memória e suas irrupções coletivas.

encerrado em uma espécie de depósito onde os seres “normais” não o vejam nem mantenham com ele qualquer contato” (BOSI, 2010, p. 12). 22 A literatura é entendida aqui como violência por empregar, em sua narrativa, a linguagem de forma peculiar, baseando-se na teoria do crítico russo Jakobson, de que a literatura seja a escritura intensa e transformada do discurso popular do cotidiano (EAGLETON, 2003, p. 2). Desse modo partiu do pressuposto que, mesmo transformada, esta escrita é nutrida do contexto sócio-histórico de sua época e de seus sujeitos. 23 O diálogo promitente, proposto por Aróstegui (2004, p. 153-154), acerca do problema em que consiste definir ou reiterar um estudo da experiência à parte ou inerente da historicidade, permite observar-se o estudo da história não apenas como um método de classificação e ressignificação dos fenômenos, mas sim, ampliação de um ponto de vista menos sistemático e, talvez, menos refutável. “Bastará advertir que en su dimensión psicológica la experiencia se manifesta, en lo esencial, como acumulación de esquemas de prácticas que quedan en la memoria. La experiencia es un bagaje mental cuyo soporte psíquico es la memória [...] No se concibe, em efecto, separada de la memoria, aunque no se confunda com ella [...] La experiencia está indisolublemente unida a la memoria, permanece viva y puede servir de pauta en situaciones nuevas por lo que el presente nos aparece, por tanto, como la confluencia de acontecimiento y memoria, convertido en un ahora y un aquí desde los que se construye el tiempo todo […] Cabe coincidir, sin duda, en que la Historia es inseparable de la experiencia y que, en consecuencia, la historiografia es ella misma uma “ciencia de la experiência””.. 24 Contínuo (lat. continuus: sem interrupção) 1. Tudo aquilo que constitui uma realidade ainda não dividida em partes distintas: o espaço, o tempo, o movimento (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 54).

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Categorizar o conceito de literatura é o pressuposto inicial mais adequado para

pontuar, de acordo com esta pesquisa, o objeto constitutivo ou material representado

pela obra literária. Esta, muitas vezes, se apresenta como a expressão da individualidade

de seu criador/autor, que imprime em sua obra considerações e/ou ideias coletivas, a

partir de suas subjetividades como sujeito social de determinado tempo, espaço e

lugares de suas subjetivações. Esse fenômeno só é possível ao se considerar que o

sujeito-autor, ao compor sua obra, a concebe de lirismos25 referenciais, ou seja, de

acontecimentos inerentes à sua experiência de vida em sociedade, embora também

ofereça nuances de pensamentos de seus personagens, efetivando o elo entre o si e o

outro, a partir de dispositivos mnemônicos capazes de distinguir este sujeito relator a

partir da memória coletiva26 que o constitui e da qual faça parte.

O significado parte da expressão de si e denúncia do outro, o sujeito/autor/relator

se encontra resguardado por dois tipos conceituais de literatura, a ficcional e a

biográfica. Esta última é considerada, em muitos casos, como não-ficção, por se tratar

de textos jornalísticos referenciais, com o intuito de trazer à público a experiência de

vida de determinado indivíduo elevado à categoria de agente histórico (EAGLETON,

2003).

Neste estudo, porém, não se faz importante a separação do que é ou não ficção

na literatura ou muito menos que obras são canonicamente consideradas como literatura,

partindo, assim, do pressuposto da concepção fenomenológica e estrutural de 25 De lira + -ismo, ou também: do francês lyrisme (Category: :fr:lyrisme - ). Segundo a edição das cartas do escritor brasileiro Mário de Andrade, supervisionada por Oneyda Alvarenga, o escritor brasileiro define o lirismo como sendo um fenômeno psicológico inerente a todos os seres humanos. O lirismo, em sua condição psicológica, afetaria a mente humana fazendo com que o sujeito sinta determinada reação, a partir de sua percepção de algum fenômeno ao seu redor, sendo esta reação positiva ou negativa: “O operário que voltando do trabalho vê num jardim ricaço uma rosa pegável e a arranca e a põe no paletó pra se enfeitar, sentiu e aceitou um fato de lirismo individualista. O operário que voltando do trabalho enxerga num jardim ricaço uma rosa e, por estar imbuído de revolta comunista contra os burgueses, sente raiva, entra no jardim adentro, arranca a rosa e a destrói, também aceitou um fato de lirismo que já não é puramente individualista, mas coletivista, convertido em função social” (ANDRADE, 1983, p. 38-40). 26 Para Halbwachs (2004, p. 26-34), a memória coletiva frutifica por intermédio do conceito de memória social, advinda das considerações de Durkheim a respeito da temática da memória. Nesta concepção, a memória social se dá a partir do conhecimento coletivo dos símbolos e acordos vigentes em uma sociedade e/ou grupo. Desse modo, o sujeito nunca está isolado mesmo se mantendo afastado de outros, pois, na perspectiva halbwachiana, todas as referências e pulsões, acionadas por esse sujeito, advém de seu grupo. Portanto, para ele “nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem [...] Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum” (HALLBWACHS, 2004, p. 26-34).

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composição do texto literário exemplificado por Eagleton (2003), a corroborar a ideia

de que qualquer coisa possa ser literatura:

Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente [...] pode deixar de sê-lo [...] Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da literatura é ficcional, e parte não é [...] (EAGLETON, 2003, p. 15).

O texto em prosa a que se denomina literatura é entendido neste estudo como

espaço de interconexão. É, um espaço histórico-social, nutrido de memórias individuais

e coletivas capazes, de imprimir e apresentar práticas, saberes e representações

identitárias, tanto do universo espelhado de seu relator, quanto de seus relatados. Assim,

possibilitando também enxergar a literatura, ora como lugar - lugar de memória no qual

estão arquivados registros de grupos esquecidos e lembrados -, como objeto, - visando o

livro/obra como materialidade de um discurso histórico denunciativo e/ou ideário -, ora

como documento, ao ser analisado criticamente, observando o seu contexto histórico em

sua amplitude sociocultural.

É a partir desses quatro aportes ressignificados que a literatura é entendida, por

uma visão macro-histórica, como espaço de interconexão; a literatura é compreendida

como lugar de memória; a literatura dividida como objeto e, finalmente, analisada como

documento que, sob um viés multidisciplinar de se pensar a história e a memória, é

apresentada na primeira parte do corpus elencado nesse estudo, sobre as apresentações e

representações mnemônicas das diversas identidades do negro, impressas em quatro

importantes obras literárias, produzidas por dois autores nacionais, o já citado Afonso

Henriques de Lima Barreto e, mais adiante, Manuel Raymundo Querino. Ambos eleitos

como objetos centrais neste estudo do Brasil do final, do século XIX e início do XX,

período abrangente em respeito às datas de publicação das obras e seus efeitos nas

sociedades do Rio de Janeiro e do Salvador.

Este estudo envereda, entretanto, para além da significação do que é ou não

literatura, fundamentando e a categorizando em seu prospecto de utilidade e função

comparando-a, a partir do seu modus operandi, e dos dispositivos qualificáveis,

responsáveis pelo fazer e compor da literatura, em sua ampla categorização

genericamente resultante da obra literária.

Utiliza-se a obra literária para relatar e analisar as representações mnemônicas

das identidades negras no País, por se considerar a literatura nacional um marco

sociocultural no século XIX, elevada pela transição do Império para a República, pelos

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movimentos abolicionistas encabeçados por escritores, jornalistas, artistas negros e

mestiços forros, muitos deles desconhecidos pelo grande público, e outra boa parte

utilizada como mote e inspiração para romances27. Sendo assim, a obra literária é

tomada como a expressão da individualidade de seus autores, em manifestação social e

coletiva de suas ideologias e necessidade de denúncia de acontecimentos sócio-

históricos de uma sociedade que se configurava.

As obras A Bahia de outrora (1919/1946)28 e Costumes Africanos no Brasil

(1938)29, escritas pelo autor baiano Manuel Querino, completam o corpus literário, -

seleção principal de quatro livros de autores sujeitos -, selecionado para a composição

deste trabalho. Entretanto, as duas últimas obras citadas não correspondem às

características estruturais da narrativa literária, embora, de acordo com Flexor (1998),

também não representam características que pudesse desautorizar esse status.

Na contracorrente do que se pudesse incorrer ao se falar particularmente desse

autor-objeto, Manuel Raymundo Querino (1851-1923), entende-se que a obra, bem

como o autor, são entendidos, desde os equívocos de precisão científica presentes nessa

literatura, marcada pela inserção demasiada de depoimentos orais, sem análise

comparativa com outras fontes documentais, - o que resultaria na falta de

problematização teórico-científica -, até às concepções subjetivas acerca da sua própria

vida:

Manoel Querino (sic), apesar de sua interessante produção intelectual para o período em que viveu – segunda metade do século passado e começo do XX -, foi mais um cronista que historiador e suas obras apresentam informações errôneas, impressões, cronologias e atribuições indevidas. Muitas das suas referências, especialmente do período que não vivenciou, basearam-se na tradição oral, ou deduções pessoais, o que, de fato, não credenciam seus dados como verdadeiros. (FLEXOR, 1998, p. 80)

27 Algumas das personalidades negras a compor o imaginário da luta étnico-racial no Brasil foram: Machado de Assis (1839-1908), Francisca da Silva de Oliveira ou Chica da Silva (c. 1732-1796), Juliano Moreira (1873-1933), responsável por discordar de Nina Rodrigues quanto à suposta contribuição negativa dos negros na miscigenação brasileira, e o mais antigo e mítico Zumbi dos Palmares (1625-1695) 28 A primeira edição desta obra foi lançada em 1919. 29 Este é o XV volume da obra original organizada por Arthur Ramos. A obra reúne os principais trabalhos de Manuel Querino no Brasil e, são consideradas pela editora Civilização Brasileira, como as memórias do autor. Estão inclusos os textos de: “A raça africana e seus costumes africanos na Bahia” e “ O colono preto como factor da civilização brasileira”, e textos publicados apenas depois de seu falecimento, como a “A arte culinária na Bahia”.

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Embora as obras A Bahia de outrora (1946) e Costumes africanos no Brasil

(1938) sejam consideradas e tomadas como textos científicos, correspondentes a

importantes estudos resultantes de pesquisas incansáveis de seu autor, em torno da

multiplicidade cultural e étnica da população negra e africana no Salvador, elas são

tomadas nesse estudo em duas condições que se distanciam e se aproximam: a primeira

como estudo teórico-científico, por se entender a importância de sua contribuição

acadêmica como pesquisa sobre as memórias e identidades negras. E, na segunda

condição, compreendida como literatura, ao se considerar que os estudos narrados nas

obras são nutridos majoritariamente por relatos orais e por muito da intenção e

experiência de seu autor e, portanto, são memórias que descrevem um retrato das

comunidades negras no ambiente desigual e excludente no período que vivenciou. É um

momento importante, político e culturalmente, exaltando as diferenças oprimidas no

passado da formação colonial do Brasil.

A época em que Manoel Querino (sic) escreveu, [...], foi o de valorização das coisas nacionais, pois decorria o período posterior à comemoração do centenário da Independência do Brasil e se era atingido pelo espírito nacionalista do mundo ocidental. Assim, procurava-se valorizar, também, o tipo nacional como o mestiço de negro e índio (cabra), o mulato, o índio confundindo-se, inclusive, trabalho mal elaborado [entenda-se inicialmente nas artes plásticas] com a cor da pele. (FLEXOR, 1998, p. 81-82)

No entanto, não se descarta a realidade e o contexto da época em que Manuel

Querino estava inserido e, mesmo sendo ele alguém que transcendia os espaços que

eram delimitados por sua etnia, entende-se que o acesso a documentos importantes por

uma pessoa negra não era facilmente permitido30. Nesse ínterim, compreendem-se as

obras de Lima Barreto e Manuel Querino como irrupções históricas, que se distanciam e

que também se entrelaçam em seu contexto historiográfico e narrativo, legitimando

assim o uso do método comparativo, partindo do corpus virtual até às realidades

cotidianas de dois estados brasileiros: Rio de Janeiro e Bahia. De um lado, vidas em

busca de um lugar de pertencimento e aceitação, e de outro, a manutenção sistemática e

excludente herdada pelo colonialismo estrangeiro em detrimento dos valores

tradicionais de um povo. Toma-se, portanto, essas obras não como construções lineares

30 A partir de diálogos de orientação, a professora Maria Helena Flexor apontou que, Manuel Queirno, assim como muitos historiadores de sua época, não pensava como os pesquisadores do tempo presente, preocupados em fundamentar ideias por meio de documentos. Segundo ela, Manuel Querino herdou a prática de escrever crônicas de escrever crônicas do século XIX.

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no tempo, mas, em suas formas de sucessão, descrevendo as ordens nas quais se

inseriram, compreendendo as especificações e generalizações às quais obedeceram,

enfim, seus diversos tipos de correlações.

De acordo com Schneider e Schimitt (1998, p. 1), “a comparação, enquanto

momento da atividade cognitiva, pode ser considerada como inerente ao processo de

construção do conhecimento nas ciências sociais”, possibilitando a visualização das

irregularidades, assim como são percebidos os fenômenos sociais em seu processo de

rupturas e permanências. Ainda, segundo os autores, a comparação é aplicável à

qualquer pesquisa no campo das ciências sociais, “esteja ela direcionada para a

compreensão de um evento singular ou voltada para o estatuto de uma série de casos

previamente escolhidos” (SCHNEIDER; SCHIMITT, 1998, p. 1). Nesse viés, o método

comparativo

não nos obriga nem a enumerações incompletas, nem a observações superficiais. Para que dê resultados, bastam alguns fatos. Desde que se provou que, num certo número de casos, dois fenômenos variam, um e outro, da mesma maneira, pode-se ter a certeza de que nos encontramos em presença de uma lei (DURKHEIM apud SCHNEIDER; SCHIMITT, 1998, p. 20)

Um dos problemas principais do método de análise comparativo, para as

ciências sociais, está na dificuldade de conciliação entre a complexidade e a

generalidade que norteiam a pesquisa nas ciências humanas (RAGIN; ZARET, 1983).

Entretanto, Durkheim (1985), ao propor o modo histórico para a constituição da

investigação nas ciências sociais, transcende a positividade efetiva do método

comparativo, aplicando a ele a filiação gradual31, na qual os fatos sociais deveriam ser

tratados como objetos (coisas ou acontecimentos).

Ao lado disso, objetiva-se, ao longo do estudo proposto, relatar a memória do

sujeito negro e as memórias produzidas pelos sujeitos-autores eleitos, partindo de suas

obras literárias selecionadas e produzidas do final do século XIX até a primeira parte do

XX.

31 Através do princípio metodológico da filiação gradual realizou-se a observação analítica do contexto macro (geral) para o micro (particular), pois assim, entende-se que é mais perceptível o conjunto que suas partes. No entanto, não se pode ignorar que essa linha teórico-metodológica corre mais riscos de equívocos e imprecisões, considerando suas prévias generalizações (LAKATOS; MARCONI, 1992, p. 43).

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35

Esse estudo se pauta metodologicamente em diversas técnicas de coleta de

dados, como arrolamento de fontes impressas e leituras multidisciplinares, que

resultaram na análise proposta. Compreendendo, conforme exemplifica Lakatos e

Marcone (1992), a fase indireta, baseada no levantamento, leitura e classificação das

fontes bibliográficas e documentais pesquisadas. O segundo momento, é composto pela

fase direta, em que, conforme elucida Certeau (2002), separam-se e reúnem-se as fontes

teóricas e os objetos para transformá-los em corpora. Um trabalho constituinte de várias

subfases, sendo elas a fase empírica e/ou de campo, na qual foi possível observar

analiticamente as fontes primárias e secundárias também compostas de jornais, atas,

registros, livros didáticos, imagens e textos antigos e, em seguida, copiá-las, transcrevê-

las e fotografá-las. E finalmente a fase analítica em que se utilizou do imaginário para

compor um cenário histórico possível pela leitura, observação e diálogo documental.

Certeau (2002) considera importante esse processo, pois, segundo ele, é a fase

em que o trabalho começa a criar forma, ou seja, a produzir o sentido documental, “pelo

simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo

tempo o seu lugar e o seu estatuto”

Este gesto consiste em ‘isolar’ um corpo, como se faz em física, e em ‘desfigurar’ as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori. Ele forma a ‘coleção’. Constitui as coisas em um ‘sistema marginal’[...]; ele as exila da prática para as estabelecer como objetos ‘abstratos’ de um saber [...] e o vestígio dos atos que modificam uma ordem recebida e uma visão social. Instauradora de signos, expostos a tratamentos específicos, esta ruptura não é, pois, nem apenas nem primordialmente, o efeito de um ‘olhar’. É necessário aí uma operação técnica (CERTAU, 2002, p. 81 grifos do autor).

É uma operação técnica que exige, não apenas um método de análise, mas sim,

vários métodos em conjunto que acionem, de modo eficiente, o elo entre o problema

suscitado, suas hipóteses e/ou questões levantadas. Assim como, perceber a partir de

documentos midiáticos, correspondentes ao período abrangido, como se instituíram as

representações dos sujeitos negros com ou sem a identificação das suas múltiplas

identidades e, caso se aplique, como se deu o processo de seu apagamento; compreender

as terminologias e/ou classificações identitárias em relação aos conceitos de raça/etnia

dos descendentes de africanos no Brasil, por meio de discursos impressos na literatura

como saberes representantes de uma realidade. E, finalmente, comparar os múltiplos

olhares sobre o negro brasileiro, com o fim de entendê-lo como sujeito histórico, a partir

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36

da literatura e sua inserção social, reavaliando o sistema de valores instituídos sobre

esses sujeitos e sua situação social.

O uso da iconografia, como forma de documento e seu diálogo para a

fundamentação do que se acredita ser apresentação, decodificação e reconhecimento de

si, na confabulação entre o eu e o outro, também será uma das formas de análise neste

estudo.

Todas essas questões perpassam ao longo de três seções em que o total do texto

será dividido em subitens. Na primeira seção “As constituintes da pele”, é realizado um

percurso marcado pela teoria e análise acerca do sujeito e suas representações, baseadas

nos princípios da semiologia até se incorrer nas questões antigas da história da África e

o sequestro de parcelas de sua população. Essa seção é ocupada por um preâmbulo mais

didático para esclarecimento e percepção da teoria e da conceituação que se propõe

desenvolver no estudo, bem como a justificativa de se trabalhar em torno da condição e

dos fenótipos da etnia negra. Enquanto o Brasil se constitui de uma nação híbrida, não

se vê solução senão a marcação das representações e os estigmas da cor da pele negra

inserida compulsoriamente nas sociedades a serem formadas nas Américas,

especificamente na Bahia.

Em “As memórias da pele” inicia-se com a apresentação dos sujeitos-autores e

suas obras, num exercício de diálogo, no qual se verifica a verossimilhança apresentada

pelos documentos midiáticos produzidos na Bahia do século XIX, a partir dos quais se

questiona a respeito das memórias para determinar a pele negra no cenário histórico

baiano. Procura-se indicar a forma com que esses sujeitos-autores utilizaram sua

literatura, como referência autobiográfica, para mostrar a realidade circundante do

mundo negro, suas sensibilidades, ritualizações, marcas identitárias e forma com que os

mesmos conseguiram transcender os espaços delegados a eles. Também circundam

desta seção a memória do experienciado e a discussão em torno do estigma imposto ao

corpo negro, bem como suas alternativas e processos de ressignificação, no mundo

contemporâneo do século XX, em que se constituem a ligação realizada entre a teoria e

os laços do presente, alcançada pela literatura elencada de Afonso de Lima Barreto e a

narrativa selecionada de Manuel Raymundo Querino, obras que já foram mencionadas

ao longo deste texto.

Encerrando o intercurso epistemológico no relato do universo plural das

identidades negras no Brasil, chega-se à seção final em que “As sensibilidades da pele”

serão observadas e descritas partindo das emoções das personagens de Lima Barreto e

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37

das descrições dos sujeitos estudados por Manuel Querino. Aquelas memórias ditas

como esquecidas, ou calcificadas no passado imperialista e republicano, são

ressignificadas por meio da análise das obras elencadas, possibilitando sua comparação

com obras de outros autores com o fim de reinterpretar ou reinserir novas memórias das

ascendências para os descendentes negros no Brasil.

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38

2. AS CONSTITUINTES DA PELE 2.1. UMA QUESTÃO DE PELE: IDENTIDADE E ETNICIDADE

A consciência de um existir negro, a fixação de uma autoimagem positiva, como

projeto ideológico dos sujeitos negros no Brasil, faz parte de um contexto amplo de um

universo nacional com influências estrangeiras. Estas influências não representam

apenas a necessidade de apresentar uma das faces do negro brasileiro, mas, salientar sua

raiz, apregoada em um imaginário de macrorreferências, englobando todas as nações e

países que sofreram processos de miscigenação com as variadas etnias africanas. No

entanto, as Américas representam, na contemporaneidade, um desafio mais atenuante

em relação às identidades negras e seus legados, - especialmente no Brasil –,

constantemente remissivas ao universo que determinou espaços sociais, demarcadas de

práticas responsáveis por tecer histórias alegóricas, com o objetivo de privilegiar

determinados grupos em detrimento de outros (DEPESTRE, 1980).

Os grupos existentes no Brasil, da década de 1816, já eram étnico-diversificados e

se estabeleceram, antes entre os grupos indígenas e, principalmente, depois com a

colonização geográfica e cultural no País (DEBRET, 1831/1968)32. Predominantemente

realizada pelos portugueses, que se autorreconheciam como civilização (BIGNOTTO,

2004), também ocupada por sua função civilizadora e legitimamente destinada, com

respaldo da Igreja33 de teorias introdutórias às questões da raça e suas contingências –, à

prosperidade mercantil34. É, a partir desse processo histórico e muito antes, com as

32 Em seu estudo Debret (1831/1968) faz o relato de diversas etnias indígenas, nativas da na terra que compôs o Brasil. As etnias descritas por Debret (1831/1968) foram: Mongoió, na região fronteiriça entre Minas Gerais, Espírito Santo e o atual Rio de Janeiro; Camacá, Bugres, viviam na região do Rio Grande do Sul; Botocudos nas regiões do Rio Pardo e Rio Doce; Puris e Patachos da região de Minas Gerais; Patachos, Macharis, Guaianás habitavam a região Sul do Brasil; Guaicurus da região de Goiás; Guaranis, Coroado, Madrucu, Arara, Bororo,Iupuá. 33 Para justificar o tráfico negreiro, os europeus utilizavam o argumento de que os africanos eram povos atrasados, bárbaros, primitivos e incultos, defendendo o escravismo como instrumento de salvação dos infiéis africanos. Contavam também com o apoio da Igreja, conforme trecho retirado da Bula Papal Dum Diversas, de 1452. Endereçada ao Rei de Portugal, D. Afonso, do então Papa Nicolau V, o contém a seguinte deliberação: “Nós, pensando com a devida meditação em todas e cada uma das coisas indicadas, e levando em conta que, anteriormente, ao citado Rei Afonso foi concedido por outras cartas nossas, entre outras coisas, faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter a quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em qualquer parte que estivessem, e aos reinos, ducados, principados, domínios, possessões e bens móveis e imóveis tidos e possuídos por eles; e reduzir à servidão perpétua as pessoas dos mesmos, e destinar para si e seus sucessores e condados, principados domínios, possessões e bens deles (...) Estende-se essas concessões a todas as províncias, ilhas, portos, lugares e mares, quaisquer que sejam seu tamanho e qualidade” (SUESS, 1992, p. 225-232). 34 A partir da leitura de Bignotto (2004) percebeu-se que, com a expansão marítima e as consequentes conquistas da Europa Ocidental, os modelos culturais europeus ficaram entendidos como pólos

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primeiras navegações, que, pela subjetividade estrangeira, em sua maioria anglo-

saxônica, os africanos, os ameríndios e suas nações foram identificados como gentios e

rotulados como selvagens não civilizados por não serem cristianizados (FLEXOR,

2002). Segundo Freyre em entrevista concedida à Revista Veja (2003), de modo geral,

os portugueses viam os negros com olhares diferente dos demais europeus, devido ao

longo contato com os mouros, e tinha uma compreensão toda especial de gentes mais

escuras que ele, como os árabes, que em muitos aspectos possuíam cultura superior à

portuguesa. Portanto, “o elemento branco que colonizou o Brasil tinha outra ideia

religiosa e social a respeito de raças” (FREYRE, 2003, s/p)35.

Nessa seção, portanto, se propõe uma discussão teórico-analítica acerca do

universo que apresenta e classifica uma concepção de sujeito, e suas multifaces

identitárias, especificadas por suas sujeições, abrangendo a partir da cor da pele, seus

fenótipos e discursos, cujas raízes remetem ao processo de escravização. Isto determina,

não apenas uma ideia étnica de sua origem social, mesmo sendo essa origem atribuída a

posteriori pelos comerciantes de escravos36, mas que também serve para a identificação

e agrupamento de alguns tipos africanos inseridos, no tempo e no espaço, possibilitando

o diálogo proeminente da confabulação entre o eu e o outro, ou seja, o colonizador e o

colonizado.

2.2. Demarcando o sujeito em seu universo

Parte-se do pressuposto de que o sujeito histórico, e/ou sujeito pragmático, se

institui a partir de um lugar e seu reconhecimento comum, advém de outros sujeitos no

civilizadores, por meio do entendimento natural dos europeus como civilizados perante à animalesca imagem dos modelos culturais a sofrer a colonização. O modelo exemplificado por Bignotto (2004) foi o greco-romano, que tratou seus cidadãos como civilizados e atribuiu ao estrangeiro o status de bárbaro. A denominação civilizado versus bárbaro, ou no caso do Brasil e África selvagens, impôs o poderio europeu por meio de seu cientificismo e concepção de progresso em detrimento do primitivismo dos nativos ameríndios e africanos. Conforme Todorov (1993), as potências coloniais legitimaram suas dominações, baseadas nessa concepção de civilidade e superioridade, a partir do estranhamento estabelecido pelo encontro do outro, que constituiu a substância essencial, e o etnocentrismo, o motor ideológico. O bárbaro era o outro, aquele fora dos limites políticos e morais de uma comunidade cristã que se entendia universal. 35 Fonte extraída de entrevista do autor concedida à Revista Veja em 24 de setembro de 2003. 36 Nos estudos de Arthur Ramos (1943) encontram-se exemplos da origem de negros africanos que, segundo ele, teriam sido trazidos, em sua maioria, da África Ocidental e, estes, seriam divididos entre padrões culturais dominantes e padrões culturais de sobrevivência. Embora a obra do autor ajude a pensar sobre a questão da origem ela também oferece suporte para visões deterministas e generalizantes, facilitando entendimentos errôneos, principalmente em se tratando de uma abordagem multidisciplinar sobre a pluralidade étnica negro-africanas no Brasil.

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meio coletivo em que habita. Há, em função dessa concepção, o nascimento do eu, no

qual coexistem mentalidades (LE GOFF, 1976), num entrecruzamento fenomenológico

e ideal para com o outro, e que marca elos em bifurcação a tudo que se entende como

coletivo e individual. Portanto, tem-se, além de um contradito, cerceando o sujeito e seu

espaço e/ou lugar de memória, “a emergência de um domínio repelido no ponto de

junção do individual e do coletivo, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do

geral” (LE GOFF, 1994, p. 432), em prol da constituição de discursos e subjetividades,

no campo das ideias, determinando, a partir da estrutura globalizante, as formas de

pensar e de sentir dos pequenos grupos humanos.

Essas subjetividades também podem ser entendidas, no sujeito, como atos

mentais37 ou, neste estudo, como dispositivos que permitem lembrar-se o e do sentir,

seja a partir das representações, seja dos juízos.

Os juízos, por sua vez, se estabelecem por meio de todas as práticas e saberes

construídos pelos grupos humanos em seus espaços. Carr (1996), ao relacionar a

sociedade e o indivíduo, numa perspectiva histórica, apontou o quão difícil se faz

separar o sujeito de seu meio ou determinar a sua ordem de construção, equiparando a

individualidade, - sujeito -, à sociedade -, saberes coletivos, verdade, juízos -, em sua

visão, inseparáveis ao considerar a complementaridade estabelecida entre um e o outro.

Logo que nascemos, o mundo começa a agir sobre nós e a transformar-nos de unidades meramente biológicas em unidades sociais. Todo ser humano em qualquer estágio da história ou da pré-história nasce numa sociedade e, desde seus primeiros anos, é moldado por essa sociedade. A língua que ele fala não é uma herança individual, mas uma aquisição social do grupo no qual ele cresce. Ambos, língua e meio, ajudam a determinar o caráter de seu pensamento; suas primeiras ideias são provenientes de outras [...] o indivíduo, desligado da sociedade, seria incapaz de falar e de pensar (CARR, 1996, p. 67-68).

O sujeito é inerente à sociedade e esta se constitui de saberes acordados entre seus

pares, estabelecendo verdades que são criadas e produzidas entre si, além da ética e dos

juízos. Todas essas verdades criadas são passíveis de variações, entretanto, elas se

entrecruzam e fazem sentido no e para o sujeito, que utiliza dos mesmos mecanismos e

37 Segundo Brentano (1974, p. 8-9), a natureza da mente é determinada por certo número de ‘atos’ mentais. “Por ‘ato’ compreendia a ideia de que a mente é dirigida para certos tipos de objetos. Distinguia três tipos de ‘atos’ dessa espécie: a representação, o juízo e o que chamava de ‘os fenômenos do amor e do ódio’” (CHATELET apud HAMLYN, 1995, p. 379).

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práticas para estabelecer leis, padrões de comportamento e a estética38. Assim, é

possível entender que, ao se unir conceitos de verdade, ética e o juízo, tem-se a

concomitância de um espaço que, embora virtual, se materializa nos sujeitos por meio

da sua sujeição às normas dos conceitos citados no curso de sua história e de suas

representações. Porém, entende-se que, ao se acrescentar a lei e a estética, incorre-se no

caráter mnemônico, no qual, esses espaços se enraízam por meio da consciência

coletiva, determinada pela ideia do continuum.

O continuum, mnemonicamente abarcado pelo sujeito, compõe, neste víes, sua

visão de mundo, que o envolve e lhe dá o sentido de sua existência. E, sob o princípio

da razão, o mundo para o sujeito existe apenas como representação. Desse modo, o

mundo existe tão-somente para ele, pois ele é o espelho que o representa, tornando-se

perante o sujeito, um objeto incalculável, embora finito (SCHOPENHAUER, 2005).

Assim, o mundo é visto como o infinito, apenas em seu caráter mnemônico.

Sob a égide do pensamento de Schopenhauer (2005), a separação do diferente e a

unificação do idêntico, seriam as consequências arbitrárias estabelecidas pelas verdades,

leis, estética e todas as práticas e simbologias determinadas e ritualizadas

mnemonicamente pelos sujeitos39. Estas podem conduzir o mundo conforme “minha

vontade” (SHOPENHAUER, 2005, p. 45), ou seja, a vontade de determinados grupos

sociais. Vontade esta que constrói, no tempo e no espaço, um corpo que seja sua mera

representação e que seja responsável por designar variadas representações, a partir de si,

visto e instituído como objeto de representação.

38 Embora seja proposto em outras seções o diálogo entre as concepções filosóficas ou sociais acerca do belo, não há uma pretensão direta de filosofar epistemologicamente a natureza da estética nem mesmo as concepções em torno do belo nesta seção. 39 Ao discorrer sobre a lei da causalidade, adquirida a partir da experiência, Schopenhauer (2005, p. 56), evidenciou-se que “o dogmatismo realista, ao considerar a representação como efeito do objeto, quer separar representação e objeto, que no fundo são uma coisa só, e assumir uma causa completamente diferente da representação, um objeto em si independe do sujeito: algo no todo impensável, pois, precisamente como objeto, este já pressupõe sempre de novo o sujeito e permanece, por isso sempre apenas uma sua representação”. E, embora, o conceito de sujeito schopenhauriano seja o objeto encerrado em si, este propõe que: “quase sempre a esfera de um conceito é cortada por diversas outras, cada uma das quais encerrando em si parte do domínio da primeira, até mesmo abrangendo muito mais” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 57). É, portanto, que ao dialogar o conceito de sujeito schopenhauriano com a ideia de sujeito histórico e também epistemológico, na proposição do pensamento de Morin (1991, p. 78), que se tem a ideia de que “há algo mais do que a singularidade ou que a diferença de indivíduo para indivíduo, é o facto que cada indivíduo é um sujeito”, ou seja, cada sujeito é a síntese da certeza e dos fundamentos de juízos, em que se baseiam o saber e a ciência, “que, junto com a linguagem e a ação deliberada, constituem o grande privilégio conferido ao homem pela razão” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 98).

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Cada um encontra-se a si mesmo como esse sujeito, todavia, somente na medida em que se conhece, não na medida em que é objeto do conhecimento [...] o corpo é objeto entre objetos e está submetido à lei deles, embora seja objeto imediato. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 45).

Ao definir o sujeito, em sua concepção objeto, que se encerra em si - portanto

distinto da ideia de sujeito a que se reporta este estudo -, Schopenhauer (2005) o

inscreve como criador da representação. Sendo assim, acredita-se que seu estudo se

aproxima muito mais da semiótica do que da semiologia. Nesse ínterim, busca-se a

interpretação da materialidade de um certo sujeito referenciado no espaço histórico,

pois, conforme Schopenhauer (2005, p. 45) “ao sujeito não cabe pluralidade nem seu

oposto, unidade. Nunca o conhecemos, mas ele é justamente o que conhece, onde quer

que haja conhecimento”. Desse modo, intercala-se esse pensamento as concepções de

Hall (2000), quanto à fragmentação e pluralidade dos modos de subjetivação e

pertencimento a que se submetem tais “sujeitos inclassificáveis”, identificados tão-

somente por suas práticas flutuantes, demarcadas nos grupos entre os quais eles

transitam, gerando identidades. Assim, reporta-se a ideia de um sujeito histórico, e não

mais a concepção schopenhauriana utilizada para o entendimento do mundo como

vontade de representação do sujeito.

O sujeito de Schopenhauer (2005, p. 45) não se encontra no espaço nem no

tempo, pois é “inteiro e indiviso em cada ser que apresenta um único ser que

representa”, ou seja, ao contrário do sujeito histórico, o sujeito schopenhauriano não é

determinado pelas múltiplas identidades que assume. Assim, se todos os sujeitos

desaparecessem “o mundo como representação não mais existiria, porque a

representação é fruto da representação humana” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 45).

Neste percurso, é permitido afirmar que onde começa o objeto termina o sujeito,

entretanto, ao contrário do sujeito que é determinado como inclassificável, o mundo é

entendido como representação por se instituir como objeto analisável. Este mundo é

formado por duas partes que o torna perceptível, que são o espaço e o tempo, mediados

pela pluralidade e/ou variações nas quais estabelecem os sujeitos na perspectiva

histórica. Deste modo, o mundo pode incorrer em variações determinadas por suas leis e

suas representações.

É, a partir deste viés teórico e bastante filosófico, – importante para a

identificação de tendências e fenômenos sócio-históricos e suas manifestações ao longo

do período histórico elencado -, que se faz proposto o desafio de mapear os momentos

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em que os sujeitos – em sua conceituação ampla -, perante suas representatividades e

apresentações, passam a definir-se e a definir o outro por sua origem, cor, etnia etc.

Sendo, na maioria das vezes, o outro condicionado a estar em sentido oposto àquele que

o enxerga e classifica, no presente estudo estão definidos pela ideia do europeu e do

africano. E, de forma mais ampla, o europeu, o ameríndio e o africano.

Considerando esses fenômenos de determinações e classificações remissivos a

períodos mais antigos, objetiva-se, em caráter stricto, as classificações apontadas a

partir da socialização política, ambivalente das três principais matrizes étnicas, que

compuseram a nação brasileira, sendo elas a portuguesa, variação de origem latina e

branca; indígena, nativos brasileiros multiétnicos, - até meados do século XX chamados

de vermelhos, diferenciados dos orientais amarelos, e brancos europeus caucasianos, em

função dos índios americanos que eram denominados peles vermelhas -, e a africana ou

nativos da África, formados por grupos multiétnicos majoritariamente pretos40. Segundo

Flexor (2006, p. 12): “a palavra negro servia para denominar o índio, ou negro da terra.

Os africanos eram chamados pretos”41.

2.3. Matizes da pele e sua relação servil etnoidentitária

40 Segundo Freyre (1933/2004), Nina Rodrigues observou entre os negros, trazidos para o Brasil, com os quais ele teria tido contato no tempo da escravidão, os africanos que classificou como de raça branca ou fulas, distribuídos entre os fula-fulos ou fulas genuínos, ou seja, de raça considerada pura ou mestiça. Estes seriam provenientes da Senegâmbia, Guiné portuguesa e costas adjacentes: “Gente de cor cóbrea avermelhada e cabelos ondeados quase lisos. Os negros desse estoque, considerados, por alguns, superiores aos demais do ponto de vista antropológico, devido à mistura de sangue hamítico e árabe [...] Poderão alegar tratar-se de um elemento com larga dose de sangue berbere, e talvez até de origem berbere. Predominantemente não-negróide, considera Haddon a esse povo africano de que dá como verdadeiro nome, Pulbe. O mais (Fula, Funani, Felava, Filani, Fube) seriam corruptelas. Descreve-os Haddon como gente alta, a pele amarela ou avermelhada, o cabelo ondeado, o rosto oval, o nariz proeminente. [...] Os Mandingo, de que o Brasil recebeu várias levas, acusam por sua vez sangue árabe e tuaregue; os Ioruba acusam sangue não negro, ainda por identificar, e os próprios Banto se apresentam, na sua grande variedade de tipos, tocados de vários sangues: de hamita e negrilo, principalmente. Nos demais característicos físicos são: na cor, de um pardo-claro, avermelhado, dos fulos, tanto quanto da cor de couro dos hotentotes e dos boximanes ou do preto retinto dos naturais da Guiné; dolicocéfalos (havendo entretanto grupos de mesocéfalos): menor prognatismo que o dos negros considerados “puros”, o nariz mais proeminente e estreito”. (FREYRE, 2004, p. 385-386). 41 Observa-se em Flexor (2006) que os matizes são distinções que remetem aos setecentos: “Desde muito cedo houve a distinção das cores de pele [...] Deve-se dizer que era de costume remoto o uso da cor para distinguir os homens, independentemente de raça e de cor. Só com os resultados da Revolução Francesa, especialmente sob o lema da igualdade, começou-se a intensificar a obrigatoriedade de dar sobrenome também os escravos e especialmente aos índios. Esta obrigatoriedade já tinha se iniciado na época da administração pombalina. Mesmo os brancos, tinham a indicação dessa qualificação depois do nome [...] A toda essa primeira geração de descendentes de africanos chamavam crioulinha ou crioulinho (309), mantendo essa diferenciação até a idade adulta, quando eram denominados crioula ou crioulo (16), mais numerosos somente nos fins do século XVIII e princípios do XIX (FLEXOR, 2006, p. 11).

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Conforme exemplificações formuladas na seção anterior, o mundo como

representação existe enquanto vontade do sujeito. E esse mundo se estabelece através de

sistemas dinâmicos de organização, determinadas pelos sujeitos, na medida em que a

organização os mantenha ou os reconstitua, respeitando as reivindicações propostas por

seus próprios juízos, determinando acordos sociais para a criação de leis e,

principalmente, a ética. Juntos esses mecanismos sociais, seriam, unidos, responsáveis

pelo advento da memória social em seu conceito lato, ou seja, com a propriedade de

conservar informações de um conjunto de funções psicoideológicas inerentes ao sujeito

e à estrutura que ele representa. Marca, assim, suas impressões do passado e seleciona

as memórias do presente, reforçadas paulatinamente para o futuro, através de práticas e

da capacidade do acionamento mnemônico do pensar: lembrar e esquecer (LE GOFF,

1994).

Nessa perspectiva, verifica-se a memória como a constituição imagética dos

sujeitos, determinada por suas relações com o meio e o espaço histórico, neste estudo,

sua ideia de mundo. Considera-se, então, toda a trama que o possa permear para

estabelecer laços a partir de identificações comuns e legíveis no seio de um grupo

social. Deste modo, não se estabelece apenas uma constituinte branda, em seu exercício

de pensar e agir, mas todas as ações psíquicas e/ou ideológicas do sujeito, sejam estas,

fragmentadas ou contínuas, lentas ou imediatizadas.

De acordo com a apresentação inicial desta seção, postula-se o fato dos grupos

brasileiros étnico-diversificados se estabelecerem por meio da colonização geográfica e

cultural, promovida pelos portugueses, que se autorreconheciam como parte legitima do

que seria civilização. E, apregoavam, enquanto seres civilizados, a necessidade de

salvar do pecado todos os nativos, por meio da subserviência escrava (SUESS, 1992). E,

quando possível civilizá-los independente do lugar em que tais homens, mulheres e

crianças habitassem42. No entanto, Flexor (2002) considera a afirmativa em torno do

desejo de civilizar aos índios por meio da catequização uma generalização equivocada,

considerando as diversas necessidades e discursos dos espanhóis e dos próprios jesuítas

42 A ideia de um reino, fundado no cristianismo, fazia com que os governantes portugueses tomassem para si a tarefa de converter ao catolicismo os povos pagãos, isto é, que não conheciam a religião católica. Os pagãos, também chamados de gentios eram assim denominados e rebaixados socialmente como não-civilizados ou amaldiçoados porque não seguiam nenhuma das religiões monoteístas como o cristianismo, portanto daí a permissão para torná-los servos e convertê-los (SOUZA, 2006, p. 51).

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em relação aos índios43. A premissa para considerar o outro como não civilizado partia

de seus ritos, fenótipos da visão de mundo que tinham.

Em sua pesquisa no Brasil, Debret (1831/1968) fez a distinção de variadas etnias

indígenas, tratando umas como civilizadas ou com padrão de vida superior as demais, à

exemplo dos Guaicurus da região de Goiás e Mato Grosso e, do Sul do Brasil, os

Guaranis; e outras como selvagens não civilizadas, como os Botocudos da região de

Minas Gerais, “os de aspecto mais repugnante por causa das mutilações praticadas”

(DEBRET, 1968, p. 44).

Os mesmos homens, sujeitos baseados na concepção de centralidade universal,

crentes de certa capacidade daquilo que consideravam razão, consciência e ação,

perante o contingente de nativos espalhados pelo Brasil em vias de sua exploração mais

intensa, e também dos africanos, que em suas perspectivas compunham a margem do

seu universo, foram um dos principais responsáveis por classificações e teorizações

baseadas em seus princípios morais e éticos. Foi o europeu que chamou, de forma

genérica, os múltiplos grupos étnicos nativos do Brasil, como negros da terra, pela cor

de suas peles escuras, e também foram os mesmos a denominar os múltiplos grupos da

nação africana por pretos e a dar-lhes em sua maioria, o status de primitivos e incultos

destinados a servidão determinada, principalmente, pela conquista do europeu sobre o

povo africano colonizado (FLEXOR, 2006). Em Rousseau (1973), esse modo de

classificação e imposição de um grupo sobre outro se trata de uma relação estabelecida

pela ideia de sobreposição de culturas, e por isso, não se implicaria a ideologias fortuitas

nem mesmo arbitrárias, mas sim correlacionadas.

Segundo Rousseau (1973), a desigualdade de condições que se observou entre os

homens não se tratou de um fenômeno natural do homem, mas sim inerente a condição

de evolução social deste, determinada desde o estabelecimento de comunidades, aldeias

e cidades até o surgimento da propriedade privada. E, assim, permitindo a aliança do

pacto social, condição em que o sujeito civilizado preza suas honrarias por meio de sua

43 De acordo com Flexor (2002), há uma fluidez considerável e bem distinta nos discursos dos séculos XVI, XVII e XVIII dos espanhóis, que eram pela liberdade dos indígenas, influenciados pelos juristas de Salamanca. Para a autora, considerando outros estudos, os religiosos no Brasil também defendiam os mesmos discursos. Entretanto, não havia habitantes suficientes para os trabalhos, assim como apontou Freyre (1933/2004), e os jesuítas foram os primeiros a formar aldeamentos, reunindo índios de etnias diversas, para alugá-los como mão-de-obra, embora o discurso fosse diverso. Tão logo a sociedade começou a se consolidar, os índios foram abandonados e se procurou africanos. Quando Pombal estabeleceu a liberdade dos índios, os jesuítas dominavam vários aldeamentos, todo comércio, enfim tomavam conta do Brasil, se opuseram à liberdade dos índios e a ensinar português, em vez da língua geral, algumas das razões pelas quais foram expulsos.

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cultura de sociabilidades, enquanto, o sujeito externo a este universo civilizado age com

a naturalidade e a espontaneidade de seus modos de vida, portanto, sendo ele

considerado selvagem, por sua orientação de vida voltada para sua própria

sobrevivência.

Existem inúmeras e respeitadas teorias que defendem possíveis práticas de

escravismo, relatadas por pesquisadores contemporâneos como Jaime Pinsky (2001),

Perry Anderson (1982) e Giovanni Garbini (1966), como ocorrências comuns no

próprio território africano, anteriores à conquista portuguesa. Antes até da expansão

marítima44, a partir das grandes navegações nos séculos XV ao XVII. Não se pode,

todavia, desconsiderar o Egito, e as mais antigas invasões que sofreu, também

protagonizadas por povos indo-europeus.

Segundo Garbini (1966), o Egito representou uma grande civilização que deixou

um legado de tolerância étnica, mistérios de sua rica e peculiar produção artística, para a

história, marcada por suas comunidades com características culturais e religiosas

próprias, além da situação geográfica privilegiada, com importantes efeitos culturais e

políticos nas nações ocidentais, despertando o interesse de muitos povos estrangeiros

em sua era próspera. O Egito Meridional era a porta de acesso para uma África, ainda

dominada por uma cultura de pastagem e de caça. “Ele representava o contraste em toda

a sua significação permanente [...], que nem a breve dominação assíria nem a mais

estável ocupação persa (525-404 a.C.) apagaram” (GARBINI, 1966, p. 164).

Naturalmente, como um fenômeno recorrente entre as civilizações que

guerrilhavam entre si, o Egito e outros povos africanos, oceânicos, asiáticos e europeus

mantinham prisioneiros de guerra e os escravizavam. No entanto, na África, a

escravidão não tinha a mesma conotação da escravidão colonial ocorrida nos países da

América, diferente também dos acordos comerciais formados entre africanos e

europeus, constituídos, inicialmente nos séculos XV e XVI, com as grandes navegações.

Estes acordos iniciados a partir das grandes navegações foram responsáveis pelo

estabelecimento de uma nova cultura demarcando posições para os sujeitos africanos

44 A expansão marítima, segundo o pensamento de Souza (2005), além de contribuir para que a Europa superasse a crise dos séculos XIV e XV, as grandes navegações e os donos de embarcações atendiam a um edital público que estabelecia concorrência para transporte de mercadorias. Nem sempre eram os próprios mercadores que realizavam os transportes. Estes, normalmente, estavam estabelecidos nas conquistas portuguesas e contratavam os transportadores “credenciados” e pagavam pelo transporte (FLEXOR, 2006). Tinham como objetivo principal a exploração de minerais e produtos primários que era comercializado pelos tuaregues e Berberes no Norte da África, além de buscarem um caminho para as Índias que permitisse quebrar o controle que alguns comerciantes, em sua maioria, italianos, tinham sobre o Mediterrâneo (SOUZA, 2006).

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diante do homem europeu. E é a partir desse novo modo de reconhecer-se do africano

negro e seu reconhecimento perante o outro, que se estabelece o tráfico negreiro

compulsório que, na visão de muitos teóricos45 dos séculos XIX e XX, foram

determinados com fins exclusivos para o comércio humano com objetivo puramente

fetichista46.

De acordo com Souza (2006), a escravidão africana era mais recorrente nos

grandes centros, e mais comumente nas regiões não islamizadas, no Norte, nas rotas de

comércio islamizadas do Sael e do Saara, como as capitais dos reinos e nas cidades-

estado onde havia maior circulação de riquezas. Isto leva a pensar que essas ações

podiam invariavelmente estar ligadas, ou ter sofrido influências, que remetem aos

quatro séculos de contato do Egito, região Norte da África, com os persas e os gregos e

suas práticas escravistas, que precederam a conquista de Alexandre e a fundação da

dinastia ptolomaica, no fim do 4º século a.C. (GARBINI, 1966). Mas, todavia, Viana

Filho (1988) também relatou a existência de sociedades escravagistas na África,

embora, concentrada, principalmente no Benin e nas regiões sudano-saelianas. Sendo

aquelas práticas de escravidão com conotações diferentes da praticada com o início da

expansão marítima.

45 Para Mattoso (1990, p. 17-18), “a expansão marítima tem de ser creditada sobretudo às nações ibéricas (sic). A avidez dos mercadores e o desejo de conhecer o vasto mundo levou-os ao desenvolvimento das pesquisas científicas [...] A expansão marítima de Portugal será sustentada por sua superpopulação relativa, a impossibilidade de crescer às custas de Castela, a poderosa vizinha, a penúria em grãos, peixe, especiarias. Suas trocas são contidas pela carência de metais preciosos, e a sede de escravos crescerá com o desenvolvimento dos engenhos de açúcar do sul do Algarve, da Madeira, dos Açores e, mais tarde, das ilhas do Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe”. E para Depestre (1980, p. 8), “o regime escravista epidermizou, somatizou, racializou profundamente as relações de produção, acrescentando assim, às contradições e às alienações inatas do capitalismo, um conflito de um novo gênero, um tipo de caráter adquirido nas condições específicas das colônias americanas: o passional antagonismo racial”. 46 No século XIX Nina Rodrigues (2005) entendeu os negros, em sua concepção baseada em seus estudos etnográficos voltados para a antropologia e, em especial, Cesare Lombroso (1835-1909) e da medicina positiva da época, como humanos incapacitados fisicamente, por serem de raças inferiores à raça branca. Portanto, o nível de inteligibilidade desses “seres inferiores” não os qualificava para compreenderem as elevadas abstrações as quais propunham o monoteísmo religioso cristão. Especialmente em seu trabalho monográfico “O animismo fetichista dos negros baianos” (1896), Nina Rodrigues tratou dos negros miscigenados, defendendo a tese da inferioridade e da degradação na qual a mistura tão enfática, ocorrida no País destruiria o Brasil. Entretanto, num viés um tanto materialista dialético de Depestre (1980), tem-se as considerações objetivas denominando como fetichista a relação estabelecida entre mercadores e seus objetos, os africanos seqüestrados na África: “A fetichização dos caracteres genéticos tomou na história da colonização um conteúdo e formas tão perigosamente completos e mistificadores quanto os fetiches mercantis e monetários do capitalismo. Nas relações unilateralmente irracionais da escravidão e da colonização, o fetichismo da mercadoria serviu de modelo aquele que se encontra na gênese do dogma racial. Como o dinheiro, a cor da pele adquiriu o valor de um símbolo abstrato todo-poderoso a cor branca torna-se símbolo universal da riqueza, do poder político, da beleza, do bem-estar social, atributo hereditário do feliz ‘milagre greco-latino'; a cor negra, símbolo do desprovimento, da impotência política, da feiúra física e moral, atributo congênito da ‘barbárie e do primitivismo africanos’” (DEPESTRE, 1980, p. 11).

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As diferenças podem ser percebidas a partir de diversos exemplos sobre as

práticas de escravidão no continente africano, como no caso de o escravo ser detentor de

mobilidade. Em sua maioria prisioneiros de guerra, seguidos por transgressores,

criminosos, endividados impossibilitados de pagar suas dívidas etc.; muitas vezes

famílias inteiras se ofereciam para a escravidão em busca de sobrevivência. O escravo

africano, conforme denominação de Souza (2006), era integrado à comunidade e podia

se destacar pelos trabalhos prestados, acumular riquezas e também possuir escravos,

mesmo mantendo o status de escravo. No caso das escravas, essas eram escolhidas por

sua beleza e jovialidade, podendo alcançar preços elevados, pagos por aqueles que as

desejavam como esposas. De modo geral, os escravos africanos das regiões do Sael e do

Saara, compunham e lideravam exércitos e exerciam funções respeitadas, como serem

conselheiros do rei. E todos eles podiam receber a liberdade e premiações de acordo

com seu destacamento e fidelidade (SOUZA, 2006).

As práticas escravagistas na perspectiva dos estudos de Mattoso (1990, p. 25),

concluíram que se tratava de uma

Escravidão quase patriarcal, que exclui o tráfico. No Daomé, os filhos de escravos nascem livres e fazem parte da família do senhor. Influências estrangeiras e mercados exteriores só tardiamente generalizaram o cativeiro com o tráfico e a venda como destinação mais ou menos imediata. Somente então um certo tipo de escravidão africana nasce do tráfico e para este, visto que cumpre alimentá-lo de sangue sempre renovado. O tráfico introduziu a escravidão entre muitos povos das florestas e numerosas comunidades litorâneas. Este escravo é inicialmente propriedade coletiva de uma família. O escravo de um só indivíduo é fenômeno tardio (MATTOSO, 1990, p. 25).

As invasões europeias ocorridas na África têm suas principais evidências datadas

há aproximadamente 525 a.C. Sendo uma das invasões realizada pelos gregos no século

VIII a.C. e outra pelos romanos no século II a.C., conforme evidenciou Garbini (1996) e

Giordani (2000), e, muito posteriormente, na Idade Moderna liderada pelos estados

modernos da Europa, a partir do século XIV - muitos como a França e a Grã-Bretanha

utilizaram o continente em proveito do tráfico negreiro, implantando suas colônias no

território africano apenas no século XIX -, pelos franceses, ingleses, neerlandeses,

belgas, espanhóis, italianos e alemães, determinando o compulsório neocolonialismo no

continente africano (ARAÚJO, 2006)47. Estes eventos marcaram historicamente as

47 De acordo com Araújo (2006) a França explorou a região do Senegal, Tunísia e Sudão francês (hoje a região do Mali); os britânicos foram responsáveis pelas regiões do Nordeste, Sudeste e Sul da África

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bases do eurocentrismo ou etnocentrismo, nas sociedades posteriores a esse marco

histórico, principalmente na África e especialmente no Brasil, lugar em que o

hibridismo étnico-racial ganhou conotações mais complexas e em proporções maiores.

Os europeus, em toda sua amplitude sociocultural, partindo de uma concepção de

centralidade, passaram a considerar a cultura de seu povo e sua representação de

mundo, conforme sua vontade e, por ela, passaram a medir todos os povos que fossem

diversos, assim como seus costumes e ritos.

Neste estudo, contudo, assume-se as concepções de Rodrigues (1900/2005)

apenas para ilustração de um pensamento recorrente a partir do estabelecimento da

República no Brasil, traduzindo assim com o pensamento de Depestre (1980), também

de forma ilustrativa e, pontuada, o modo com que as relações socioculturais e a

hierarquização da sociedade brasileira se estabeleceu. Todavia, tanto o negro como o

branco, exemplificados por esse estudo enquanto sujeitos de culturas diversas, assumem

o lugar do estranhamento demarcado pelo si e pelo outro evidenciando relações

dialógicas e subjetivas. O branco em sua noção de progresso e o negro em busca da sua

manutenção diversa e entusiástica. Não se corrobora, portanto, a ideia de inferioridade e

superioridade, mas sim de estranhamento promovido pela diferença, compreendendo o

modelo de hierarquização estabelecido como um fator de persuasão pública do branco.

No Brasil, o eurocentrismo, com suas origens na Europa a partir do século XVIII,

tomou proporções mais complexas, a fim de definir identidades e demarcar posições

sociais, que hierarquizavam de modo sociocultural os sujeitos de acordo com suas

origens e etnia. Para Matoso (1980), o escravismo no Brasil introduziu no negro a

dúvida sobre sua imortalidade, conforme era proposto o discurso religioso da época, e

anulou o exercício do negro de ter vontade própria.

Depois, as duras etapas da reconquista de uma personalidade adaptada, com mais ou menos êxito, às limitações da sociedade de adoção, corpo social de dupla estrutura, no qual coexistem de modo original as comunidades negra e branca. A sociedade brasileira em nada se parece às suas vizinhas, também escravistas, das Antilhas e do sul dos Estados Unidos (MATTOSO, 1990, 12).

Ocidental, enquanto os neerlandeses exploraram a Cidade do Cabo, os belgas o Congo belga (hoje a República Democrática do Congo); a Espanha colonizou as regiões da Guiné Equatorial, Saara Espanhol e Marrocos, a Itália a Líbia, Eritreia e Somália e os alemãs a região do Togo, Camarões, Tanzania e Namíbia.

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O exemplo da gravura, a seguir, representa as três matrizes étnico-raciais (Ilust.

1), que formaram a população nacional brasileira, classificadas pelos etnógrafos do

século XIX, a exemplo de Rodrigues (1932/2008), pautados nas teorias deterministas e

ressignificados pelos estudos culturais e mais abrangentes de Freyre (2004, p. 80-81): “a

partir de 1532, a colonização portuguesa do Brasil [...] caracteriza-se pelo domínio

quase exclusivo da família rural ou semi-rural [...] constituindo-se na aristocracia

colonial mais poderosa da América”.

Este acontecimento histórico apenas reiterou o arcabouço fenomenológico que

passou a definir a identidade hierárquica no Brasil, desde os primórdios do século XVI,

no qual se teve, sob influência portuguesa, a utilização de africanos para o trabalho no

eito e o abandono ou extermínio dos ameríndios, por serem considerados preguiçosos e

inconstantes48.

Segundo Depestre (1980, p. 3), há, em torno dessa memória fatual, “a base

eurocêntrica a postular como direito divino a identidade do conceito tipicamente

colonial de “branco” e o de ser humano universal”, todavia considera-se, em caráter de

correção ao conceito do direito divino, que este era tomado exclusivamente pelos reis da

Idade Antiga e Média. Portanto, neste estudo, compreende-se esse direito como uma

reivindicação hierárquica da estrutura social, colocado no centro da gravura, em que se

48 Em Debret (1968, p. 58-59) essa inconstância do índio brasileiro se dava por uma questão de necessidade, quando alguns grupos, especialmente os domadores de cavalos “eram obrigados a variar de pastagens quando estas se mostravam incapazes de sustentá-los”.

Ilust. 1 – As três raças. Fonte: (HERMIDA, 1958, p. 2)

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encontra o personagem caracterizado como o português, ladeado pela representação do

negro à sua direita e do ameríndio à sua esquerda, ambos em segundo plano.

A gravura, retirada de um livro didático de história, do já referido autor Hermida

(1958), direcionado a crianças do então ensino primário, reforçava o imaginário

coletivo, que se baseou na imagem do negro e do ameríndio, enquanto representações

de exotismo, selvageria com fenótipos grotescos, estigmas servis e até animalescos,

endossando a ideia de centralidade aos descendentes do hemisfério Norte e

marginalidade aos componentes dos grupos não-brancos. Essa observação é mais latente

quando, a partir de uma análise iconológica, observa-se a justaposição das mãos do

português, dadas aos dois, para que eles as tomassem em sinal de benevolência

recíproca e, nas palavras do próprio Freyre (1933/2004), num símbolo de harmonia

entre as raças. No mais, embora a tentativa possa ter sido a simulação de uma ciranda de

roda, a disposição em que estão figurados o negro, o branco e o ameríndio leva à

possibilidade de que ambos estivessem sobre um pódio olímpico (Ilust. 2), atestando

suas conquistas, conforme exemplificação abaixo:

Ilust. 2 – As três raças Fonte: (HERMIDA, 1958, p. 2) adaptação nossa, 2010.

A protuberância excessiva do nariz e dos lábios, a extensão das orelhas, os pés

descalços, as leves sombras, contornando os braços e as bochechas, a exemplo de

sujeira, as roupas com remendos, o colete de pano remendado igual às calças, assim

22 33 11

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como as correntes a formar o libambo49, sobreposto ao corpo do negro são, em seu

conjunto, a personificação unificada de um estereótipo utilizado pelo mundo branco e

por suas populações híbridas e emergentes na história do Brasil. Esse estereótipo foi

retomado insistentemente, ao longo do tempo pela historiografia das Américas, para

mitificar mnemonicamente os descendentes de africanos, com suas variações étnicas, de

forma pejorativa e exterior a compreensão de civilidade concebida pelas leis e ética

brancas.

Esta consciência racial, imposta pelos brancos, partindo da hierarquização social

exclusivamente promovida pela colonização, permite endossar o pensamento de

Depestre (1980, p. 12) ao dizer:

A colonização roubou assim, aos africanos deportados para a América, seu passado, sua história, sua confiança elementar neles mesmos, suas lendas, seu sistema familiar, suas crenças, sua arte. Mesmo a beleza de sua pele foi transformada em fonte permanente de frustração, em obstáculo intransponível entre a situação genérica que lhes foi fabricada com todas as peças e sua realização na história e na sociedade. A reificação e a alienação transbordavam da trama econômica e social do trabalho servil para penetrar pelos poros do negro até às estruturas viscerais de sua personalidade feita em pedaços. Esta apavorante pressão desculturalizante é responsável pela medíocre opinião que os homens e as mulheres das Áfricas e das Américas “de cor”, durante muito tempo, tiveram de seus corpos, de seus sentimentos e de sua identidade, na história das civilizações (DEPESTRE, 1980, p. 12 grifos do autor).

Pautados por uma memória que se calcificou e prendeu o sujeito a uma estrutura

social que o identificou enquanto sujeito, levou o outro a conceber a ideia de centro

essencial do eu em sua totalidade de consciência, ação e razão, conforme propuseram as

bases conceituais do Iluminismo. Esse sujeito, ainda que aparentemente imóvel, foi

marcado por suas práticas e pelo diálogo contínuo com os mundos culturais que o

exteriorizou e o conectou, enquanto agente de seu próprio caráter, estabelecendo sua

política, a pluralização ou unificação identitária.

49 Libambo s. m. Bras. tem origem no quimbundo lubambo, ou seja, corrente. Segundo as descrições destes objetos realizadas por (BILIER, 1997, trata-se de toda espécie de corrente que prendia o escravo. No Brasil, esse instrumento serviu para prender o pescoço do escravo numa argola de ferro, da qual saía uma haste longa, também de ferro, colocada para cima, ultrapassando o nível da cabeça do mesmo. A haste mantinha um chocalho, que alertava se o escravo tentasse fugir. Outra forma de libambo, com pontas retorcidas, se prendia em galhos de árvores do mato, dificultando a fuga do escravo (MATTOSO, 1990).

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O negro, entretanto, significado pelo mundo de concepção branca, encontrava-se

dogmatizado em seu próprio juízo, sujeitado externamente por um fenômeno que, mais

adiante, foi destacado como introjeção.

No Brasil, o efeito da estrutura social, erguida pela colonização, herdou um

sentimento de genuinidade étnicorracial à sociedade baiana do século XIX, resistindo

principalmente na memória dos sujeitos que se classificam como brancos. Evidenciando

uma política hierarquizante mais sólida, e excludente que a ocorrida durante o período

português na Bahia. A pequena elite social branca, em busca do seu status de

dominação tentou estabelecer a sua diferenciação em relação ao mestiço, ameríndio e

negro, buscando insistentemente raízes do hemisfério Norte ou descendências europeias

para valorização sanguínea e distinção social das miscibilidades instauradas.

No entanto, a formação do povo português, anterior à colonização brasileira

sofreu grandes misturas com os vizinhos mouros, dando aos portugueses um caráter

miscigenado e diverso, distante da concepção branca que muitos brasileiros do século

XIX desejavam

a escassez de capital-homem, supriram-na os portugueses com extremos de mobilidade e miscibilidade: dominando espaços enormes e onde quer que passassem, na África ou na América, emprenhando mulheres e fazendo filhos (FREYRE, 2004, p. 70).

Segundo o mesmo autor (1933/2004, p. 70), os resultados mais diversos da

miscigenação portuguesa criaram “figuras com ar escandinavo e negróide”, fazendo

com que a formação da sociedade brasileira sofresse, não apenas de uma mistura

historicamente formada pela colonização, mas também, de antagonismos que a

transcenderam, colocando em controvérsia o desejo de isenção híbrida, seja do lado

africano ou aparentemente branco. “É certo que através de muito maior miscibilidade

que os outros europeus: as sociedades coloniais de formação portuguesa têm sido todas

híbridas, umas mais, outras menos” (FREYRE, 2004, p. 73).

Concluindo o raciocínio do antropólogo, não havia preconceito de raça, senão

fundamentado pela religião. “A falta de gente, que o afligia, mais do que a qualquer

outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação – contra o que não o indispunha,

aliás, escrúpulos de raça, apenas preconceitos religiosos” (FREYRE, 2004, p. 74-75).

O exemplo abaixo retirado da tela do pintor italiano Andrea Mantegna (1431-

1506) representa a deusa da mitologia “Minerva expulsando os Vícios do Jardim da

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Virtude” (1502). O exposto permite o acesso a uma memória que reitera a ideia de

bestialidade atribuída ao negro neste contexto europeu, cristão e mitológico.

Vê-se no recorte a representação de um personagem de pele escura e corpo

formado por uma cabeça de símio e partes inferiores com membros humanos. Na parte

esquerda é de fácil percepção a presença de um seio e a ausência deste na parte direita

do busto. O ventre é detalhadamente masculinizado e a ausência de um dos seios leva a

pensar que se trate de um hermafrodita. Na composição geral da tela anexa, têm-se

inúmeros elementos sendo expulsos do paraíso por Minerva com a ajuda de anjos alados

e outras figuras mitológicas, assim como de inúmeros vícios representados por uma

diversidade de personagens. Mas, o percurso desta pequena análise se concentra,

portanto, no único elemento simiesco que, segundo Salmazo (1996/2004) se trata do

ódio imortal representado na figura do personagem simiesco, localizado na parte

inferior do centro da tela dentro do lago, carregando sobre os ombros, as sementes do

mal e do mal extremo.

A religião cristã católica, praticada por muitos descendentes do hemisfério

Norte, serviu para nivelar o grau de desenvolvimento e/ou capacidade de assimilação

dos povos. Para os europeus, a possibilidade de apreensão da ideologia monoteísta do

catolicismo atestava ao homem o controle que este exercia sobre sua sensualidade, ou

seja, seus impulsos. Os africanos, em sua maioria, contemplavam religiões animistas,

Fig. 1 Andrea Mantegna (1431-1506). Minerve chassant les Vices de Jardin

de la Vertu (1502). Fotografia nossa. Museu do Louvre, Paris, França. 2011

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embora na visão de Rodrigues (1932/2008) fossem animistas, ou preferiam ritos

naturais que lhes apresentavam crentes de suas sensualidades e gozos, muitas vezes

voltados à natureza de seus corpos e à própria fauna e flora terrestres. Querino (1938, p.

60) ao considerar que “o africano é espírita de natureza e, como tal, provoca

invocações”, generalizou os africanos a partir uma única prática religiosa, entretanto,

Arthur Ramos, em nota na mesma edição, ponderou a afirmação do autor e acrescentou

que a prática do espiritismo entre parte do povo negro-brasileiro, foi resultado de um

sincretismo secundário no Brasil.

Segundo Querino (1938, p. 47), no Brasil, a resistência da conversão era

característica mais presente nos negros transplantados da África que nos índios, pois

considerou:

O africano já trazia a seita religiosa de sua terra; aqui era obrigado, por lei, a adoptar a religião catholica. Habituado naquella e obrigado por esta, ficou com duas crenças. Encontrou no Brasil a superstição, consequencia fatal aos povos em sua infancia. Facil lhe foi acceitar para cada moléstia ou acto da vida um santo protector [...] Dest’arte não teve o africano difficuldade em encontrar uma como semelhança entre as divindades do culto catholico e os idolos do seu feiticismo, conforme o poder milagroso de cada um (sic)

Para Vernant (1986, p. 55), a igreja utilizou da imagem de seus ritos para tomar

como pagão qualquer deus que se aproximasse do homem comum, e que não tinha a

divindade determinada pelos seus próprios padrões de acordo com sua própria natureza

construída, “assim a Igreja chama esses deuses de falsos deuses, em exaltação aos seus

próprios deuses”. O personagem simiesco representado por Mantegna (1431-1506)

remete à memória que exemplifica essa ideia mítica do homem selvagem de religião

pagã, senão selvagem.

2.3.1 BREVE RETRATO DA MEMÓRIA HISTÓRICA NEGRA NO BRASIL

A colonização portuguesa no Brasil culminou em um processo histórico

peculiar, se comparada ao tráfico negreiro destinado ao mundo europeu e às formas de

utilização da mão-de-obra escrava na América.

Os valores sociais, atribuídos às raças na colônia do Brasil, a partir do século

XVI, apagaram na história do presente a relevância multiétnica ameríndia, elevaram

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ainda mais os valores estéticos e intelectuais dos brancos e deturparam a herança

cultural, religiosa e estética das civilizações africanas transplantadas. Em todo o

processo histórico brasileiro, implantou-se um amálgama social da opacidade,

responsável pela unificação de identidades negras, muito diferentes de suas

ascendências e que, assim, se tornaram desconhecidas pela maioria de seus

descendentes biológicos.

A forma com que os herdeiros negros são vistos no mundo brasileiro, a partir do

século XX, se distancia largamente das inúmeras possibilidades étnico-identitárias

apresentadas por Nina Rodrigues (RODRIGUES, 1932/2008). Segundo o etnógrafo, o

quadro de raças africanas, transplantadas para o Brasil, excede aos relatos documentais

dos quais poucos pesquisadores mantêm sob sua guarda, bem como as deduções sobre

suas etnias e registros perdidos sem que fossem estudados ou reconhecidos.

Nina Rodrigues (RODRIGUES, 1932/2008) foi fruto de seu tempo e, por isso

produziu uma obra baseada em teorias deterministas, que povoavam o imaginário

coletivo de sua época, oferecendo conceitos generalizantes com pretensão de veracidade

à compreensão científica em torno do estudo das sociedades africanas e sua evolução

psicossocial. Partindo de seu estudo antropológico, embora baseado na medicina,

profissão que exercia, Nina Rodrigues ofereceu uma cadeia de análises que contribuem

para o desfavorecimento dos não-brancos nas culturas da América, colocando o Brasil

como uma nação destinada ao atraso, exclusivamente por seu hibridismo negro,

entendido como fator negativo. Para ele o negro era acometido por uma incapacidade

cerebral, condicionada ao tamanho do seu crânio, biologicamente menor, se comparado

ao crânio de um europeu.

O que importa para o Brasil determinar é o quanto de inferioridade lhe advém da população negra que possui a dificuldade de civilizar-se e se essa inferioridade fica totalmente compensada pela miscigenação, processo natural pelo qual os negros estão se integrando ao povo brasileiro, para a grande massa de sua população de cor (RODRIGUES, 2008, p. 239).

A população negra, antes da declaração oficial da abolição escravista de maio de

1888, não era considerada como componente da sociedade brasileira, mas, sim, como

coisa, propriedade do senhor, e, por isso, relacionada entre os bens, embora contasse

como mão-de-obra forçada e, por isso, como componente da população, visto que não

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57

havia trabalhadores suficientes para os trabalhos da época (FLEXOR, 2006). O status de

membro da sociedade era exclusivo dos portugueses ou estrangeiros europeus. E mesmo

depois da abolição, a população negra e mestiça, fruto da miscibilidade portuguesa com

as etnias africanas e ameríndias, continuaram sendo tratadas como coisa. A

nacionalidade oficial foi estendida a todos os nascidos no Brasil e aos que, por muitos

anos, decidiram se manter nas terras conquistadas.

De acordo com a Constituição Federal de 1891

Arto 69 - São cidadãos brasileiros:

4º. Os estrangeiros que, achando-se no Brasil aos 15 de Novembro de 1889, não declararem, dentro em seis meses depois de entrar em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem;

5º. Os estrangeiros que possuírem bens imóveis no Brasil e forem casados com brasileiras ou tiverem filhos brasileiros, contanto que residam no Brasil, salvo se manifestarem a intenção de não mudar de nacionalidade (NEGRÃO, 1961, p. 1021).

O negro brasileiro, responsável durante séculos pelo eito nas lavouras de cana-de-

açúcar, cacau, café, pela lida com o gado, transportes, e até mesmo pelas

responsabilidades domésticas na casa dos senhores de engenho e de suas sinhás, foi

tomado como um sujeito moroso pela literatura a partir da etnografia do século XIX até

a primeira metade do XX50. Sua possível incapacidade de evoluir, ou assimilar o

modelo branco de civilização, foi constantemente colocada em pauta nos livros de

estudo, iconografias, literatura e nas anotações dos viajantes como o etnógrafo Pierre

Verger (1902-1996), o fotógrafo Augusto Stahl (1828-1877), o fotógrafo teuto-

brasileiro Alberto Henschel (1827-1882), e o pintor francês J. B. Debret (1768-1848).

Os estereótipos pejorativos em torno do negro são fruto de observações desses

relatores e da contribuição dos estudos antropológicos do século XIX, que se

apropriaram dos resultados descritivos sobre o índio e o negro para coisificar esses

50 Veja o exemplo estereotipado das personagens Saci, Tia Anastácia e Tio Barnabé do livro “Viagem ao céu e Saci” (1956), do escritor brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948); o ex-escravo Raimundo de “Iaiá Garcia” (1878) de Machado de Assis (1839-1908), que após a liberdade preferiu continuar prestando os mesmos serviços ao seu senhor, assim como o personagem Anastácio, ex-escravo que continuou ajudando o patrão sem grande consideração, de “O triste fim de Policarpo Quaresma” (1915), de Lima Barreto (1881-1922), e o personagem mestiço, acusado de ser mentiroso e mole, em razão do sangue africano, Mané Candieiro, do mesmo livro.

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sujeitos na concepção do exotismo primitivo como é possível observar na fala de

Rodrigues (1932/2008):

se o futuro do Brasil dependesse de chegarem os seus negros ao mesmo grau de aperfeiçoamento dos brancos [...] se é que algum dia isso pudesse se realizar. Ocorre [...] demonstrar que [...] é nessa morosidade que reside o ponto fraco da civilização dos negros (RODRIGUES, 2008, p. 239).

Em consonância com o pensamento de Rodrigues (1932/2008), está a concepção

de Gerbi (1955/1996) sobre a capacidade limitada e o caráter débil dos sujeitos que

habitou o território do Brasil, incluindo os negros, povos que, para estes estudiosos

foram submissos às forças naturais. Para o autor, os homens do Novo Mundo eram

poucos e débeis e não conseguiram dominar a natureza em que habitaram, “não

souberam vencer e submeter as forças virgens e revertê-las em seu benefício [...]. O

próprio homem permaneceu submisso ao controle da natureza, manteve-se como um

elemento passivo da natureza, um animal como os outros” (GERBI, 1996, p. 21). E

embora, Debret (1831/1968) possua a mesma linha de raciocínio em relação ao caráter

selvagem do homem do novo mundo, este apresentou, em muitas de suas pinturas,

personagens capazes de se sujeitar à condição de civilização do branco.

Observados os exemplos de suas pinturas, foi possível encontrar representações de

personagens nativos do território brasileiro na condição de manipuladores da natureza.

Nestas pinturas de Debret (1968, p. 54), notou-se, com o auxílio de suas anotações, que

os índios Guaicurus, habitantes das regiões de Goiás e Mato Grosso, eram habilidosos

em domar cavalos selvagens, eles utilizavam os cavalos para sua locomoção e, na troca

de outros itens de sua necessidade, “possuíam um padrão de vida sensivelmente

superior aos outros selvagens”. Os índios Charruas do sul eram habilidosos fabricantes

de armas como arco e flechas, como os Coroados que fabricavam instrumentos de

sopro, adornos para o corpo e para a caça. Os negros africanos transplantados se

destacavam pela habilidade curativa em ritos e práticas de saúde, arrancavam e limavam

dentes, barbeavam pelos, dominavam a prática de sangradores com o uso de

sanguessugas (bichas) e, assimilavam a cultura de outros povos muito rapidamente

(DEBRET, 1968, p. 112).

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É possível observar na figura Entêrro de uma negra (1826), um saimento, que

para a época, era tido como prática natural dos negros. A maioria dos participantes era

predominantemente do gênero feminino, “reservando-se aos homens ùnicamente (sic) o

papel de carregadores e o de tocador de tambor. Havia nessas ocasiões uma mistura de

costumes cristão e africanos” (DEBRET, 1968, p. 212), atestando a hipótese de que

algumas etnias negras tinham fácil assimilação de outras culturas, especialmente da

cultura cristã. Segundo Debret (1831/1968), a igreja representada na aquarela trata-se da

Igreja da Lampadosa, e, seria essa, assistida por um padre negro. Na terceira figura

denominada O cirurgião negro (1826) tem-se os elementos representativos de um

cuidador negro retinto, dispondo-se cuidados à vários enfermos também retintos. Nesta

imagem é possível verificar a contraposição do imaginário de que a maioria dos negros

preferisse práticas de cura inerentes ao fetichismo.

Para Debret (1831/1968, p. 176) as doenças que mais acometiam aos negros eram

os furúnculos, as doenças venérias, a sarna, a erisipela e a tuberculose em consequência

do consumo excessivo da cachaça. Os negros cuidadores utilizavam para o tratamento

de seus pacientes a aplicação de ventosas “ou de bichas, acompanhada de larga

distribuição de amuletos”, assim, é possível relacionar que, mesmo considerando o

cuidado curativo de uma causa tópica, ainda existia a crença no ocultismo como uma

força adicional para a efetivação da cura física.

A condição de selvagem, todavia, era mantida mesmo quando as habilidades e a

prática de manipular o barro eram dominadas por esses povos considerados não

civilizados. Os viajantes que vieram para o Brasil em missões especiais, a exemplo de

Charles Darwin (1809-1882) e o já citado J. B. Debret contribuíram para a descrição da

vida cotidiana no período colonial e depois no Império, “esses viajantes que visitaram o

Fig. 2: J. B. Debret. Entêrro de uma negra (1826). Acervo Museus Castro Maya-IPHAN/MinC.

Fig. 3: J. B. Debret. O cirurgião negro (1826). Acervo Museus Castro Maya-IPHAN/MinC.

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60

Brasil durante esse período escreveram extensamente sobre a escravidão e o cotidiano

dos negros, deixando para a posteridade suas impressões a esse respeito” (ERMAKOFF,

2004, p. 54), entretanto, Depestre (1980) chama atenção para o cuidado que se deve ter

com esses relatos, pois, embora se considere a datação desses estudos, marcados pela

teorização da época, o autor alerta quanto à “justaposição mecânica” (DEPESTRE,

1980, p. 5) efetuada por seus estudiosos que, “longe de ser inocente, tem estreitas

relações de causa e efeito com as aventuras racistas do colonialismo e do imperialismo”

da qual faziam parte seus autores. Outro cuidado a que se deve ter com esses relatos,

segundo Ermakoff (2004), se deve ao tempo e lugar de onde esses viajantes escreveram

suas descrições, sem a preocupação de comprovar se o que era visto e representado

fazia parte do cotidiano comum.

Charles Darwin, por exemplo, o célebre naturalista inglês autor da teoria da origem das espécies, esteve no Brasil em 1831 e em 1836, e deixou registrado, no aclamado “Viagem de um naturalista ao redor do mundo”, seu repúdio à ordem vigente, ao afirmar que gostava pouco do Brasil porque nele a escravidão ainda perdurava. [...] Outros [...] mantinham visão preconceituosa em relação aos negros, o que na época, era comum (ERMAKOFF, 2004, p. 54).

Ermakoff (2004) vai mais além e traz em sua obra partes das descrições de alguns

dos viajantes que vieram em missões ao Brasil. Destes é possível notar o tom de

aproximação quanto da questão da escravatura de um negro entendido como homem, e,

em outros, o distanciamento ao considerar o negro apenas um objeto cuja sorte não

poderia ter sido outra senão a escravidão. No trecho de uma entrevista realizada pelo

viajante Auguste de Saint-Hilaire, botânico francês que esteve no Brasil entre 1816 e

1822, o negro entrevistado rejeita os valores de sua terra de origem considerando a

pouca idade em que chegou ao Brasil e, por isso, se mostra feliz e bem cuidado por seu

senhor, pois, para ele, “o meu senhor é bom, me dá bastante de comer: ainda não me

bateu seis vezes desde que me comprou, e me deixa tratar da minha roça. Trabalho para

mim aos domingos, planto milho e amendoim, e com isso arranjo algum dinheiro”. No

relato, o negro se mostrou satisfeito com o tratamento dado de seu senhor, porém,

Mattoso (1990) considerou, que na região Nordeste do Brasil, os senhores optavam, em

troca da violência e das ameaças, manter a prática da manipulação por meio de um

caráter patriarcal e paternalista, fazendo do escravo um servidor, membro da grande

família, conforme observado no trecho seguinte em que, ao falar sobre não ter uma

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esposa, “vou me casar dentro de pouco tempo. Quando se fica assim, sempre só, o

coração não fica satisfeito. Meu senhor me ofereceu uma crioula (negra já nascida no

Brasil), mas não a quero mais: as crioulas desprezam os negros da Costa” (SAINT-

HILAIRE apud ERMAKOFF, 2004, p. 55). O negro relatou que preferiria se casar com

uma mulher a ser futuramente comprada por sua senhora e que esta é de sua terra e fala

sua língua. Entende-se, portanto, que, mesmo na condição de transplantado e de

subjugado enquanto objeto de servidão, este escravo mantém uma percepção que vai

além de sua condição escrava, instaurando neste contexto, não apenas uma barganha de

senhor para com o escravo, mas do escravo para com seus senhores. No próximo trecho,

retirado dos diários do viajante inglês Alexander Caldcleugh (1843-1907), o viajante

registrou que com a chegada do navio negreiro, o desembarque da mercadoria e a

separação do macho da fêmea, os escravos exibiam seus músculos tentando agradar

aqueles que, acreditavam serem senhores bonzinhos, por terem feições amenas e

andarem bem vestidos, ou seja, entende-se, a partir da descrição, que o escravo

racionalizava e tentava garantir uma escravidão menos sofrida nas mãos de seus

possíveis proprietários.

A observação de descrições como estas apresentadas por Ermakoff (2004), faz

pensar o negro em seu processo de escravismo e aculturação, em que Mattoso (1990)

alerta para o conceito de repersonalização do sujeito negro enquanto escravo, em

consideração a sua posição no corpo social. Este, tomado como selvagem e débil, foi

capaz de ajustar sua personalidade natural para sua sobrevivência “numa sociedade

dominada por um modelo branco, de homens pretos ainda sob a inspiração e padrões

africanos” (MATTOSO, 1990, p. 102). Para a autora, o escravo adquiriu uma identidade

social e percebeu que lhe foi dado um papel naquela sociedade, com certa importância,

resultado de uma garantia da proteção familiar de seus senhores, sentindo-se integrado a

ela, “ele pode tornar-se feitor, mestre, cabo de turma e ter a impressão de passar para o

lado da autoridade” (MATTOSO, 1990, p. 103). Eis, porém, que essa identidade se

refere a identidade da família do senhor, no sentido de que o escravo presta ao senhor a

sua lealdade e, em troca, o senhor lhe da proteção e a identidade de sua família, assim a

convivência entre escravo e senhor, conforme Freyre (1933/2004), ganha características

quase democráticas se não fosse a barganha de uma integração distanciada, em que os

papéis de senhor e escravo não sejam confundidos e sempre respeitados, mantendo

separados de um lado o senhor e sua família irredutíveis e de outro o escravo obediente

e humilde.

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A partir das considerações suscitadas por Depestre (1980), Mattoso (1990) e

Ermakoff (2004) foi possível concluir que, embora, muitos estudos e descrições

etnográficas do século XIX, em torno dos sujeitos negros escravizados, mesmo sendo

fruto de uma mentalidade racista de sua época, não se pode descartar o legado deixado

por essas descrições, resultado de pesquisas sobre algumas etnias de grupos africanos

transplantados para o Brasil. Estudos que, em sua particularidade, permitem a

observação de seus indícios contribuindo para reelaborar discursos e memórias no

tocante a identidade à que os descendentes de africanos no Brasil foram ligados ao

longo da historiografia nacional.

2.3.2. Redefinindo a condição e o lugar histórico e mnemônico do negro

Embora falar sobre o negro e o processo de conquista portuguesa, responsável

pela miscibilidade etno-racial ocorrida no Brasil, pareça um recorte razoável para relatar

a memória e as identidades negras produzidas no século XIX, há a necessidade de

restringir ainda mais a ideia de condição e lugar desses sujeitos. Com o fim de

estabelecer, de forma coesa e tópica, as materialidades a serem desenvolvidas a partir de

comparações, relatos e análises de documentos e iconografias sobre as quais se pautam

observações específicas relacionadas ao cotidiano e às memórias históricas produzidas

em torno dos sujeitos negros.

Os acontecimentos de maior envergadura da história brasileira, responsáveis pela

incorporação de ideais políticos, sociais, culturais e econômicos, foram principalmente

datados a partir do século XVI. A conquista portuguesa do Brasil não apenas definiu

uma sociedade marcada por justaposições étnicas, socioculturais e religiosas, mas,

também, deixou marcas e construiu memórias em que se destacaram as capitanias do

Brasil, palco principal desse processo, a Bahia e o Rio de Janeiro como capitais que

foram.

A Bahia foi responsável por abrigar os primeiros conquistadores, tendo Salvador

por capital. Salvador, em seus primórdios, também conhecida simplesmente por Bahia

foi capital do Brasil e sede da administração portuguesa até 1763, além de ser a

principal costa de descarregamento do tráfego negreiro e centro de distribuição e

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comércio humano para a escravidão. A cidade do Salvador é considerada como a

primeira região onde os primeiros negros começaram a desembarcar em solo brasileiro

no período dos governos gerais (VIANA FILHO, 1988).

Segundo Conrad (1978), foi natural o fato de a Bahia ter sido uma das principais

portas de entrada das diversas etnias africanas, durante o período colonial, povoando a

capitania durante os séculos XVII e XVIII, província no século XIX, destacando-se

como um dos principais centros onde se praticou o escravismo. Conforme Viana Filho

(1988), a origem do homem negro foi diversa e variou de acordo com a época da prática

do tráfico de escravos. O autor aponta quatro períodos cruciais, denominados ciclos.

Desses, os principais foram o ciclo da Guiné, durante a segunda metade do século XVI;

ciclo de Angola e do Congo, durante o XVII; ciclo da Costa da Mina, no XVIII e o ciclo

de Benin nas décadas de 1770 até 1850, marcando a fase clandestina após a proibição

do tráfico de escravos para o Brasil.

O contexto citado reforça as memórias das variadas nações a povoarem o

território nacional51. Os períodos ou ciclos responsáveis por esses fenômenos

corroboram para a delimitação territorial desses povos e suas culturas. Povos e culturas

que, ao longo das gerações, foram confundidos até serem apagados na

contemporaneidade do século XIX e XX. Entretanto, faz-se importante evidenciar o

momento em que essas etnias foram lembradas, seja pelos anúncios em jornais,

publicados por seus senhores, para possibilitar a sua compra e venda ou denunciando as

fugas constantes de negros cativos, ou mesmo pela leitura de publicações literárias que

evidenciem as diferenciações étnicas entre os povos africanos e escravos dessa origem

no Brasil.

Enquanto Querino (1938) evidenciou, ao seu modo, que

Os Minas, entre os quaes se recrutou uma infinidade de escravos para a América, são homens de compleição athletica, pelo que no Brasil eram estimados como servos, ao passo que se tornaram temidos pela natural

51 Das diferentes nações transplantadas, Rodrigues (2008) destacou: os camitas africanos, mestiços camitas, mestiços camitas e semitas, negros bantos; os ocidentais formados pelas etnias cazimbas, schéschés, xeys, auzes, pximbas, tembos, congos, cameruns; os orientais formados pelas etnias macuas, anjicos; os negros sudaneses formados pelas etnias mandês, mandingas, malinkas, sussus, solimas; os negros da Senegâmbia: yalofs, folupios, sêrêrês, kruscacheu; negros da Costa do Ouro e dos Escravos: gás e tshis, achantis, minas, fantis, jejes ou ewes, nagôs, beins; sudaneses centerais: nupês, haussás, adamauás, bornus, guruncis, mossis, e, finalmente os negros Insulani compostos pelas etnias bossós, bissau e bixagós.

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altivez, propria de homens nascidos para a liberdade. Iorubás, Egbós e Quêtos, muito considerados em suas proprias terras, eram ali de ordinario preferidos nas posições locaes. Os que mais se adaptaram á nossa civilização foram: o Angola, que deu o typo do capadocio, engraçado, o introductor da capoeira; o Ige-chá, o Congo e notadamente o Nagô, o mais intelligente de todos, de melhor índole, mais valente e mais trabalhador. Os Gêges assimilaram um pouco os costumes locaes, mas não em tudo. Eram muito dados a tocatas, a dansas e um tanto fracos para o trabalho de lavoura. Os mais ferozes e turbulentos eram os Efon ou cara queimada (QUERINO, 1938, p. 39-40).

O discurso de Manuel Querino foi atravessado pelo discurso da condição

humana cientificizada do homem branco que, frente ao seu diferente, seja esse o

africano negro ou o índio, decidiu categorizá-lo segundo as classificações que esse

havia feito de suas espécies animais, atribuindo coleções de tipos de negros, passando a

estudá-los assim como espécimes de várias nações africanas. Não apenas a origem e a

língua eram fatores determinantes para classificar a etnia de um negro, mas também os

seus traços físicos, seu temperamento, os sinais de ritos de passagens sobre a pele,

dentes, face, e modos de vestir. A vigilância sobre essas características era tão pontuada

que “na época os habitantes do Rio de Janeiro sabiam distinguir com facilidade... as

diferentes origens dos negros...” (DEBRET, 1968, p. 156).

2.3.3. O jornal e a literatura como memórias históricas

O jornal e seus anúncios se tornam atitudes de testemunhos que possibilitam

visualizar representações de uma época, partindo dos acontecimentos publicados. Os

traços e pistas de sujeitos, deixados nos jornais auxiliam no processo de aporte e

ressignificação da memória da sociedade do período Imperial até a Primeira República,

período no qual o negro, ou assuntos acerca do negro, foram constantemente noticiados,

ilustrando páginas dos veículos noticiosos, seja por suas constantes fugas, enquanto

cativos, quanto dos ataques contra seus feitores, e, no princípio republicano, como

transmissor de artigos favoráveis à abolição e em defesa da igualdade entre os homens.

O que mais interessa, portanto, não são as notícias enfocando a fuga e nem a

condição de servidão do negro a que esses documentos remetem, mas sim, a descrição

detalhada que faziam do foragido, dando a ideia de seu pertencimento étnico e social,

informações a respeito de suas identidades, idades, características corporais, língua,

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grau de instrução e comportamento. Esse conjunto de detalhes auxilia na reconstituição

da figura e as características dos sujeitos negros, elucidando detalhes para este estudo

em historiar a possível opacidade a que foi relegado o negro na historiografia, quanto às

inúmeras nações africanas transplantadas para o Brasil. Isso permite questionar a

imposição identitária, oferecida pela história oficial, e o imaginário brasileiro de uma

ideia unificada e abrangente de negro brasileiro, quando se pode contemplar uma

pluralidade de ascendências mais amplas e férteis.

Para Freyre (2010), a história do Brasil esta intimamente relacionada aos anúncios

de jornais, considerando o fato de que o passado brasileiro, resguardado por uma

pequena parte de seu povo, é constantemente projetado para o futuro sem que a

psicologia dessas práticas tenha sua construção analisada. Os anúncios de jornais do

Brasil do século XIX são, portanto, para o autor, a constituição de inúmeros aspectos

mentais da sociedade brasileira sobre as feridas abertas por sua má compreensão social,

e, também, elementos importantes para a análise da linguagem cultural de seus sujeitos.

Embora os jornais também representem uma ideia de acontecimento factual,

justificado por sua datação, são as memórias e os fios a serem unidos, entre as práticas e

esses saberes, que fundamentam as tramas históricas contempladas pelo presente estudo.

A memória coletiva leva a pensar que a escravidão no Brasil tenha sido um

fenômeno exclusivo dos grandes engenhos. Porém, novas abordagens científicas levam

a evidências que mostram uma escravidão incorporada em outros meios, além das

lavouras de cana-de-açúcar e café. Os africanos escravizados serviram principalmente

nas grandes fazendas e nas casas de seus senhores, exercendo inúmeras atividades

domésticas e de companhia no lar. De acordo com Flexor (2006), os escravos estavam

associados aos serviços de roça e carpintaria, encontrando-se muitos em profissões

como costureiras, bordadeiras, lavadeira, parteira, alfaiate, sapateiro, carapina, tanoeiro,

calafate, ferreiro, vendeiro, vendeira de porta ou ganhadora de rua52

Eram os negros que exerciam, especialmente, ofícios que envolviam a lida com sangue, como sangradores, barbeiros, parteiras. Interessante era a figura do barbeiro que, além de suas atividades específicas – cortar cabelos e fazer barbas -, também encanava pernas e braços quebrados, tirava dentes, aplicava ventosas, sanguessugas e fazia sangrias, além de ensinar música (FLEXOR, 2006, p.3).

52 Muitas mulheres escravizadas também trabalhavam pesado nas fazendas e lavouras, conforme elucidou Antonil (1963): “As mulheres usão de fouce, e de enchada, como os homens: porém nos mattos, só os escravos usão de machado” (ANTONIL, 1963, p. 19).

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Esses estudos, em consonância com as abordagens propostas nesta pesquisa,

oferecem a conclusão de que a inteligibilidade dos negros, no período relatado, não se

restringia apenas ao trabalho da lavoura ou ao esforço físico necessário para o engenho,

conforme nos evidenciaram os antropologistas nacionais e estrangeiros, a exemplo de

Nina Rodrigues, e da sociedade da época.

Para exemplificação dessas práticas de trabalho, é apresentado, a seguir, um

agrupamento de imagens fotografadas de jornais do século XIX que, embora sejam

fragmentárias se considerado a datação linear, oferece descrições importantes para a

ressignificação das memórias dos indivíduos que foram inscritos e representados nelas.

A disposição dos anúncios e seu agrupamento respeitam três categorias: 1) Função,

habilidades e profissão; 2) identidades corporais, etnia, fenótipos; 3) condição, lugar,

memórias. Conforme o seguinte quadro abaixo:

CATEGORIA VEÍCULO

TIPO LOCAL PERÍODO QTD

Venda (Função,

Habilidades e Profissão)

Impressos diversos

Anúncio/venda Salvador 1820-1860 72

Fuga (Condição, Lugar,

Memórias)

Impressos diversos

Anúncio/troca Salvador (44), Pernambuco (1) e Rio de Janeiro

(3)

1820-1880 48

Iconografia (Identidades

corporais, Etnia, fenótipos)

Impressos diversos

Representação/imagem Salvador 1850-1945 202

Total 322

Quadro 1: Evidências coletadas nos jornais observados

Neste primeiro momento, é analisada a representação contextual inscrita em nove

anúncios de jornais baianos de período anterior a abolição, nos quais as etnias, bem

como as funções exercidas e as habilidades dos escravizados são evidenciadas.

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DOC.1 – Anúncio de venda de escravo Cabinda

Fonte: Bahiano (O), dia, 4 dez. 1830, p.532

Transcrição DOC. 1 - Vende-se um muleque, nação Cabinda, bom cosinheiro, ladino, falla bem Portuguez e lnglez perfeitamente; quem o quizer comprar procure a Antonio Agostinho Pinto de Menezes, a Ladeira do Alvo casa N. 4, que lhe dirá quem he seo senhor (BAHIANO, O, 4 dez. 1830, n. 33, p. 532.

DOC. 2 – Anúncio de venda de escravo Mina

Fonte: Bahiano (O), dia,12 mar. 1831, p. 132.

Transcrição DOC. 2 - Vende-se um escravo, de nação Mina, ainda moço, muito bom cosinheiro, e para todo serviço, lava roupa optimamente até de senhoras, e faz também algumas qualidades de doces; quem o quizer comprar n’esta Typographia se lhe dirá quem vende (BAHIANO, O, 12 mar. 1831, p. 132).

DOC. 3 – Anúncio de venda de um escravo para laico

Fonte: Bahiano (O), 12 mar. 1831, p 132. Transcrição DOC. 3 - Vende-se um pardo, idade 16 a 17 annos, de bons costumes, sem vicio algum, com bom principio de oficio de çapateiro, de boa figura, e hábil para lacaio: quem o pertender comprar, procure a Manoel de Lemos Ribeiro, á Rua direita da Fonte dos Padres, 2º andar, nº 11. (BAHIANO, O, 12 mar. 1831,p. 132).

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DOC. 4 – Anúncio de venda de escravo sapateiro Fonte: O Bahiano (O), 4 dez. 1830, p. 532.

Transcrição DOC. 4 - Vende-se para fora d’esta Cidade um Escravo Sapateiro e que também cosinha o diario de uma casa, por preço comado (sic), de idade de 19 annos para 20, pouco mais ou menos, quem o pertender dirija-se no caes das amarras, no Armansem de massames de Gomes & Dias que ahi achará com quem tratar. (BAHIANO, O, 4 dez. 1830, n. 33, p. 145).

DOC. 5 – Anúncio de compra de escrava lavadeira

Fonte: Commercio (O), 17 jun. 1846, p. 04.

Transcrição DOC. 5 – Compra-se uma escrava que saiba lavar e engomar, e não se poem duvida pagar-se bem quem a tiver dirija-se á rua direita do Commercio loja n. 33 - R (COMMERCIO, O, 17 jul. 1846, p. 04).

DOC. 6 – Anúncio de venda de escravo pagem

Fonte: Jornal da Bahia, 04 jan. 1854, p. 03.

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Transcrição DOC. 6 – ATTENÇÃO. No escriptorio do Sr. Antonio Francisco de Lacerda, ao trapiche Grande se dirá quem compra um escravo com as seguintes qualidades: idade entre 16 a 24 annos, ou seja africano, ou natural do paiz, sem defeitos nem vícios, e com boa figura, e que sirva para pagem: paga-se bem, sendo que agrade: declara-se que a compra é para o Sertão (JORNAL DA BAHIA, 4 jan. 1854, p. 03).

DOC. 7 – Anúncio de compra de preta nagô Fonte: Jornal da Bahia, 11 jan. 1854, p. 03.

Transcrição DOC. 7 – Compra-se uma preta nagô de idade 18 a 25 annos, que seja bonita figura, de bons costumes: quem tiver, e quizer dispor, procure na rua das Pedreiras casa nº 32, 2ª. Andar que achará quem tratar (JORNAL DA BAHIA, 11 jan. 1854, p. 03).

DOC. 8 – Anúncio de escravos à venda Fonte: Jonal da Bahia, 7 jan. 1854, p. 4.

Transcrição DOC. 8 – ESCRAVOS A VENDA. Na casa nº 92 ao largo do Pillar, se dirá quem vende 9 escravos de 18 a 25 annos, sadios, sem vícios, e próprio para todo o serviço, sendo 8 Africanos, e um pardo (JORNAL DA BAHIA, 7 jan. 1854, p. 04).

DOC. 9 – Anúncio venda macho novo.

Fonte: Commercio (O), 17 jun. 1846, p. 04

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Transcrição DOC. 9 – Vende-se um macho novo, para todo o sérvios quem o pretender procure na Calçada do Bomfim na roça de D. Maria Joanna de Freitas (JORNAL DA BAHIA, 17 jan. 1854, p. 04).

Considerado por alguns pesquisadores como um jornal com ideais de oposição

ao governo da Província baiana, “O Guaycuru”, a partir dos seus anúncios, ilustrados

como fotografias descritivas/narradas, parece bastante conservador, mesmo

considerando sua data. Eram poucos os artigos encontrados nesse periódico, incitando a

população a ideias revoltosas, principalmente contra os personagens de comando

político e sociais senhoriais durante o Império. Sua verve conservadora se mostrou

através de textos comuns, ilustrando as páginas que denunciavam, ao bom gosto das

elites da época, a fuga de seus escravos.

É, portanto, que se reconhece que, mesmo sendo o contexto do século XIX

escravagista, não se pode desconsiderar que as revoltas escravas, lideradas por

partidários políticos liberais, jornalistas, negros libertos, mestiços e cativos,

simbolizavam para a época práticas de resistência e mudança53.

Os anúncios apresentados DOC. 1 ao 6 foram selecionados para representar

cerca de 300 outros que retratam abordagens recorrentes, embora com menos riqueza de

detalhes. Eles estão anexados nesse estudo, respeitando a semelhança de seus

conteúdos, que identificam, inclusive, a profissão e/ou habilidades dos cativos, e suas

disposições e/ou talentos para determinados tipos de trabalho.

Observações que ajudam a entender e, talvez questionar, o pensamento de Nina

Rodrigues (RODRIGUES, 1932/2008), ao dizer que o trabalho do cativo africano era

proporcional à habilidade corporal, sendo essa habilidade melhor disposta por eles na

lavoura. Quando se visualiza a notícia sobre um negro, como no DOC. 1, “um muleque”

de origem Cabinda, que era colocado à venda, tendo como atributo a habilidade de ser

um “bom” cozinheiro, verifica-se que a adjetivação “bom” não estava exclusivamente

ligada ao caráter do indivíduo posto à venda, mas sim da garantia que o seu comprador

teria ao levar o jovem escravizado. Outrossim, o que o qualificava mais era o vocábulo

“ladino”, isto é, ao contrário do “boçal”, estava disposto a aprender tudo, a se integrar

entre as pessoas de sua convivência (FLEXOR, 2006)54.A capacidade do escravo que

54 Antonil (1963) afirmou que os ladinos eram escolhidos para o trabalho nas caldeiras, carapina, calafates, tacheiros, barqueiros e marinheiros, por serem habilidades que requeriam mais capacidade cognitiva, diferenciando-se dos boçais, escravos tidos como preguiçosos e rudes. “Os [ladinos] que desde

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“falla bem Portuguez e Inglez perfeitamente” era um fator bastante considerável se

pensado que, esses africanos, originários de diversas nações e/ou etnias, com ritos,

línguas, sistemas políticos diferentes uns dos outros, eram separados de seus ancestrais

em terra e misturados entre si, ainda em sua entrada no navio negreiro (SOUZA, 2006).

A mistura se fazia importante para que não houvesse comunicação entre eles, evitando

qualquer ameaça de revolta.

Ao chegarem ao destino na América, cada um recebia um destino diferente a de

seus conterrâneos étnicos ou de seus familiares. Sendo assim, o aprendizado da língua

portuguesa, em meio a tantas adversidades, deixva a evidência de uma habilidade mais

aguçada do cativo jovem, descrito no DOC. 1, que soube assimilar o português se

destacando como ladino. Antonil (1963, p. 19) considerou que muitos escravos

chegavam no Brasil muito rudes e fechados, alguns continuaram assim até a passagem

de suas vidas, enquanto outros, em poucos anos, saiam ladinos e espertos “para

aprenderem a doutrina christã, como para buscarem modo de passar a vida, e para se

lhes encomendar hum barco, para levarem recados, e fazerem qualquer diligencia das

que costumam ordinariamente ocorrer”.

Há, também, outras explicações para o arremate e a distribuição dos cativos,

considerando a política de distribuição baseada nas habilidades originárias de cada

etnia (RAMOS, 1943) e também o impedimento de agrupamentos massivos de um

mesmo grupo em uma mesma região (RODRIGUES, 1932/2008). A separação vizava

retardar o resurgimento ou a afirmação de valores originários de suas nações no

território do Brasil. “O que mostra o estudo isento dos povos negros é que entre eles

existem graus, em uma escala hierárquica de cultura e aperfeiçoamento. Eles melhoram

e progridem e por isso são aptos a uma futura civilização” (RODRIGUES, 2008, p.

238)55.

As exposições de Rodigues (2008, p. 238) com esta afirmação, estava

intrinsicamente ligada às considerações de valor e relevância de uma etnia africana em

detrimento de outra. A incorporação do negro nos territórios conquistados por um povo novatos se meterão em alguma fazenda, não he bem que se tirem della contra sua vontade, porque facilmente se amofinão, e morrem. Os que nascerão no Brazil, ou se crirão desde pequenos em casa dos brancos affeiçoando-se a seus senhores, dão boa conta de si; e levando bom captiveiro, qualquer delles vale quatro boçaes (sic)” (ANTONIL, 1963, p. 19-20).

55 Nina Rodrigues (2008, p. 135) se referiu à dominância dos Minas de forma generalizada, englobando todos os africanos escravizados, trazidos para o Brasil da África superequatorial, que compreendiam nações de língua guineana, como os nagôs, achantis, fantis e muitos povos sudanese.

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tido como civilizado apresentava, além de uma ameaça ao progresso, a deturpação dos

valores cultivados entre eles. Porém, mais que sofrer perante a “deturpação” de uma

sociedade etnico-centrada - pois sabiam eles, embasados de suas ciências, que “os

negros não tinham condição alguma de herdar a civilização europeia e, ainda menos,

atingir a maioridade social no convívio com os povos cultos”-, custava aos portugueses

redistribuir, seja por meio da hierarquização e também do território, o lugar do negro

nas capitanias e, posteriormente, nas províncias de maneira a incitar mais as diferenças

entre as nações, impedindo a união etnica de sua população diversa à minoria

portuguesa que se impunha pela coerção.

Segundo Freyre (1933/2004) a origem dos cativos era de conhecimento geral da

Corte portuguesa desde o princípio das primeiras navegações. Saber a origem do

homem a ser capturado significavam valores comerciais, habilidade física e intelectual

nos padrões deterministas da época, temperamento e condições de sobrevida ao

território de destino. Contudo, em Antonil (1963, p. 19) aparece

e porque commumente são de nações diversas, e huns mais boçaes que outros, e de figuras muito diferentes, se há de fazer repartição com reparo e escolha, e não ás cegas [...] os de Cabo Verde e S. Thomé são mais fracos. Os d’Angola criados em Loanda são mais capazes de aprender os officios mechanicos que os das outras partes já nomeados. Entre os Congos há alguns bastantemente industriosos e bons não só por o serviço da canna, mas para as officinas, e para o meneo de casa.

Os africanos de descendência Mina eram famosos por seu comportamento

malevolente “os Minas são tão bravos que aonde não podem chegar com o braço,

chegam com o nome” (FREYRE, 2004, p. 384).

A bravura, compreendida como um fator genético inerente à etnia Mina

(FREYRE, 1933/2004), não condiz com o anúncio, DOC. 2, em que aparece o escravo

da nação Mina, ainda moço, qualificado como bom cozinheiro. E não era bom apenas

para cozinhar, mas também para os serviços gerais, como lavar a roupa, inclusive das

senhoras, e fazer doces.

A ênfase dada no anúncio ao fato do escravo, ainda moço, lavar roupas,

inclusive de senhoras, faz supor que as roupas femininas careciam de cuidados

especiais, sendo necessário a manipulação destas vestimentas por alguém mais

cuidadoso e prestativo, informnação que possívelmente se opõe ao imaginário de

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descuido e debilidade cognitiva do escravo, presente na memória coletiva da sociedade

brasileira do que seu oposto.

A imagem seguinte do DOC. 3 reitera as afirmações anteriores e acrescenta

novas informações quanto à possibilidade dos cativos terem vícios. Chamavam vício

também, por exemplo, comer terra, fugir. O anúncio leva ao questionamento sobre os

modos e concepção de boa figura, ou seja, os bons costumes adequados a um cativo,

com idade entre 16 e 17 anos, de estampa harmônica e hábil para lacaio56. Embora

tivesse habilidades para sapateiro, o detalhe da imprecisão de sua idade apenas reafirma

outra fatalidade da época, constantemente lembrada pela história, a inexistência de

registros dos cativos.

O anúncio seguinte do DOC. 4 se refere à venda de outro escravo, com idade

média imprecisa, também com habilidades domésticas para a cozinha trivial. O fato do

escravo ter a habilidade para se responsabilizar pela cozinha do diário evidencia

capacidades mais cotidianas e, somado aos DOC. 4, DOC. 5, DOC. 6, DOC. 7, DOC, 8,

DOC, 9 e mais doze anúncios que tratam das mesmas habilidades não inseridos nesta

seção, mais uma vez, ressignifica a memória do escravo destinado aos trabalhos

pesados do engenho, certamente tradando-se de uma imagem incorporada pelas

memórias distantes, presentes no cotidiano do século XIX.

Os últimos documentos esclarecem pouco sobre as etnias dos indivíduos, porém,

mesmo sendo fragmentários trazem as funções e habilidades exercidas por eles. Vale

lembrar que em trinta e dois anúncios de venda arrolados, bem como nos nove anúncios

selecionados para esta primeira amostragem, o trabalho no engenho ou mesmo a

disposição de se vender ou adquirir um escravo com essas funções não foram relatados.

Encontrou-se nos arquivos dos jornais pesquisados poucas evidências desses ofícios a

serem apresentados adiante. Esses dados somam a hipótese de que o trabalho escravo

nos latifúndios e/ou engenhos não corresponde, neste estudo, em número de evidências

à quantidade destinada aos afazeres domésticos e de pequenos ofícios.

A partir de agora segue a apresentação do segundo grupo de documentos dos

anúncios correspondentes às identidades corporais, etnias e fenótipos anunciados nos

56 O sentido deste termo é amplo. A função de lacaio era exercida historicamente por indivíduos do sexo masculino comuns, ou seja, bastante comuns e de força física insignificante. No Brasil Colônia admitiam-se lacaios como os que serviam seus amos na Idade Antiga e Média, durante longas viagens como acompanhantes de passeio ou viagem. Entretanto, o lacaio qualificava mais a figura do acompanhante, bajulador, amigo de suas sinhás (BILIER, 1997).

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periódicos. É neste momento que se observa a exemplo da Ilust. 1, das “Três raças” de

Hermida (1958) as recorrentes caracterizações e a ideia de pertencimento identitário de

cada um, seja pela etnia/nação de origem, seja pelos fenótipos de suas feições

diferenciando-os dos demais, ou mesmo por sua condição de cativo, determinada pela

localidade e serventia.

DOC. 10 – Anúncio de fuga da escrava de Itapagipe Fonte: Baiano (O), dia 4 mar. 1831, p. 132

Transcrição DOC. 10 - Do lugar de Itapagipe fugio uma escrava nação gêge, de nome Maria Rita, que foi escrava da Madre D. Maria Francisco Borges, Religiosa do Desterro, cuja escrava foi comprada na Villa de S. Amaro a Antonio Alves dos Santos em 16 de Dezembro de 1830, a escrava he inda môça, estatura ordinária, cheia de corpo, dentes alvos e alguns signaes de bexigas quem a prender, e leva-la a ladeira do Carmo a casa de José Pinheiro Requião será bem compensado. – José Pinheiro Requião (BAHIANO, O, dia, 4 mar. 1831, p. 132.).

DOC. 11 – Anúncio de fuga de quatro escravos Fonte: Bahiano (O), dia, 7, dez. 1830, p. 532.

Transcrição DOC. 11 - AVISOS. Antonio Manoel Fernandes, ratifica os avisos que tem feito de 4 escravos fugidos em differentes épocas, dos quaes os signaes são os seguintes, um preto novo, da nação Nagô, ou Jabú, alto, testa grande, algum tanto calvo, olhos vermelhos e aregalados, dentes trigueiros e limados, com uma grande cicatriz sobre o estomago, idade pouco mais ou menos de trinta annos; levou vestido tanga, e um cobertor de algodão de Minas, acha-se fugido desde 20 [...] (BAHIANO, O, 7 dez. 1830, p. 145.)

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(transcrição) DOC. 12 - ESCRAVOS FUGIDOS. Desapparecerão do engenho Almas, termo da villa de S. Francisco, os seguintes escravos: Lauriano, nação nagó, de idade de 60 annos, baixo e de pouco corpo, côr fula, olhos grandes, cabeça e barba ja brancas e falla apressada; emprega-se no officio de mariscador, e desconfia-se que se ache homisiado pela freguezia de Passé; ausentou-se em maio de 1870, levando vestida camisa de baêta azul com golla encarnada com a marca AS e n. 27 e calça de algodão trançado; Tácito, nação uçá, de idade de 40 annos, altura regular e cheio de corpo, cara grossa e olhos grandes, é rendido de uma verilha: ausentou-se em junho do corrente anno, levando vestidas camisa de baêta azul e golla encarnada, com a marca n. AS e n. 43, e calça de algodão trançado. Quem os pegar e os levar ao mesmo engenho, ou nesta cidade ao escriptorio dos Srs. Antonio Pereira Espinheira e C. ao Guindaste dos Padres n. 37 sera recompensado com a quantia de 100 $ por cada um (DIÁRIO DA BAHIA, dia, jul. 1871, p. 4)

DOC. 12 – Anúncio escravos fugidos Fonte: Diário da Bahia, dia, 22 jul. 1871, p. 04

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(transcrição) DOC. 13 - ANNUNCIO. Fugio de Laurentino José de Miranda, sr. do engenho Estrella, meia légoa distante da cidade do Rio Formoso, pronvincia de Pernambuco, em dias de dezembro de 1848 um seu escravo pardo de nome João Cancio, official de canteiro e pedreiro, com 25 annos de idade, de estatura baixa, bom cabello, rosto descarnado, com falta de um ou dous dentes na frente, tendo defeituoso um dos dedos de uma das mãos. Por algumas informações que se tem colhido presume-se que este escravo atravessou para o sul do rio de S. Francisco, e que vive como forro, e de nome mudado, na província de Sergipe ou nos certões desta. A pessoa q’. poder capturar o dito pardo e leval-o a seo sr. no mencionado engenho Estrella, em Maceió ao major Francisco Ignacio de Araujo Jatobá, em Sergipe ao sr. Joaquim Moreira de Magalhães, ou nesta praça aos negociantes Soares e Moura, terá gratificação de 200$: e terá ametade dessa emportancia se der a qualquer das indicadas pessoas noticia certa da existencia do escravo em qualquer logar, contanto que em consequencia dessa noticia se consiga a captura delle.

Bahia 17 de junho de 1853. (GUAYCURU, O, dia, 26 mai. 1853, p. 4).

DOC. 13 – Anúncio Annuncio Fonte: Guaycuru (O), dia, 26 mai. 1853, p 04.

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DOC. 14 – Fuga do escravo André, nagô Fonte: Jornal da Bahia, 7 jan. 1854, p. 3

(transcrição) DOC. 14 – Desappareceu hontem, ás 8 horas pouco mais, ou menos, de casa de casa de Christovam Ruge, morador ao Campo Grande, o escravo André, nagô, cheio de corpo, e não alto, retinto; tem o officio de pedreiro, e anda desembaraçado; pertence ao abaixo assignado, e trabalhava quase sempre nas suas obras: quem o levar ao referido Ruge, ou annunciante será bem recompensado.- Joaquim Pereira Marinho. (JORNAL DA BAHIA, 7 jan. 1854, p. 3)

DOC. 15 – Fuga de escrava Lucinda de 23 a 30 annos.

Fonte: Jornal da Bahia, 4 jan. 1854, p. 3

Transcrição DOC. 15 – Fugio no dia 30 de outubro da casa em Agoa de Meninos nº 13 a escrava Lucinda, nação Nagô, idade 23 a 30 annos, e foi comprada a Joaquim Lorenço de Araújo em Santo Amaro, e quem da dita escrava der noticia certa ou leval-a a casa á cima será generosamente recompensado. (JORNAL DA BAHIA, 4 jan. 1854, p. 3)

DOC. 16 – Fuga do engenho Periperi.

Fonte: Commercio (O), 17 jun. 1846, p. 4

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Transcrição DOC. 16 – Fugio do Engenho Periperi, pertencente ao Visconde de Pirajá, dous escravos um muito preto, estatura ordinária, olhos pequenos, o outro, fullo, rosto comprido, sem barba, e bem parecido, e ambos de nação Nagô; quem os condusir ao mesmo Engenho ou nesta Cidade ao Terreiro de Jesus será bem recompensado. (COMMERCIO, O 17 jun. 1846, p. 4)

DOC. 17 – Encontrado negro nação Congo. Fonte: Brasileiro (O), 11 jul. 1854, p. 533

(transcrição) DOC. 17 – A’ quem faltar um negro de nação Congo, que mostra ser de lavoura, procure a Joaquim Xavier Vella Lione no Engenho da Tuaca, que dando os signaes certos do dito negro, e pagando a despesa, será entregue a quem mostrar ser seo senhor. (BRASILEIRO, O, 11 jul. 1854, p. 533)

DOC. 18 – Fugida.

Fonte: Mercantil (O), 18 jul. 1851, p. 4

(transcrição) DOC. 18 – FUGIDA. Fugio no dia 13 do corrente de casa de sua senhora uma negra de nome Felicidade, de nação Uça, ainda môça, de côr bem preta, pés alguma cousa inchados, tendo só um pequeno signal de sua nação em uma das faces; levou vestida saia de zuarte azul, camisa de algodaosinho branco, panno da Costa azul, e argolas de ouro cobrado: quem della der noticia ou a levas à Manoel de Almeida Lopes, na venda por baixo do hotel do Figueiredo em S. Bento, será bem recompensado. (BRASILEIRO, O, 11 jul. 1854, p. 533)

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A data dos documentos apresentados no primeiro grupo se aproxima, mas

também se distancia do segundo, contudo representam, embora não obedeçam a uma

linearidade indícios de como os negros escravos eram representados. No primeiro grupo

de anúncios, em que comumente tem-se escravos à venda verifica-se neste segundo

registros sobre fugas de escravos, conforme os DOC. 10, DOC. 11, DOC, 12, DOC. 13,

DOC, 14, DOC, 15, DOC, 16, DOC, 17 e DOC, 18. Diferente dos anúncios de venda,

os anúncios de fuga, não todos, apresentam um pouco mais de informações sobre o

escravo, modelo que se mantém mesmo com o distanciamento do período de um

documento para outro. Esses detalhamentos podem estar relacionados ao fato de que

capturar um bem desaparecido requeria mais descrições que para vendê-lo. Se nos

documentos DOC. 1 ao DOC. 9, os vendedores se preocupavam em descrever as

habilidades e funções exercidas pelos cativos, bem como sua etnia, no segundo

conjunto, o estado físico ganhou mais atenção. É evidente que, quanto mais detalhes

fossem descritos em um retrato falado, mais chances seus senhores teriam de encontrá-

los. Contudo, esse conjunto de anúncios leva a uma espécie de um retrato falado, como

memória, embora tenham tido o fim exclusivo de reconhecimento físico partindo das

feições e sinais de identificação peculiares de cada um.

Em ambos os grupos de anúncios, são descritos os sinais físicos do corpo dos

escravos, com maior e menos evidência. Entenda-se sinal como característica física,

como uma cicatriz ou marca de nascença, dentes, cabelos. As marcas também podiam

ser realizadas pelos próprios africanos em rituais de passagem da adolescência para a

idade adulta ou como marcas tribais.

A evidência das fugas nesses documentos ajuda a pensar no que Mattoso (1990,

p. 103) descreveu quanto ao modus vivendi dos negros em acordo/desacordo com seus

senhores, suas formas de obediência e, mando, camufladas na convivência

aparentemente amena de suas relações. Para a autora, a relação estabelecida entre

senhor e escravo foi “uma forma eficaz e sutil da resistência do negro face a uma

sociedade que pretende despojá-lo de toda uma herança moral e cultural”, embora,

noutro sentido, Freyre (1933/2004) defendia a pluralidade cultural e o convívio

harmonioso entre as etnias portuguesas, africanas e indígenas. Em Viana Filho (1988, p.

170), raciocínio que vai de encontro ao de Mattoso (1990), o negro reagia intensamente,

seja contra as tentativas do conquistar em convertê-lo para a religião católica, seja pela

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manutenção imposta da condição de uma vida escrava, “a sua ambição maior era a

liberdade”.

À exemplo da fala do negro, entrevistado por Auguste Saint-Hilaire, conforme

citado no início desta seção, alguns negros organizaram as juntas da liberdade e, os que

podiam, trabalhavam aos domingos acumulando pacientemente o valor correspondente

ao seu preço, para comprar sua liberdade

Trabalhando aos domingos, cultivando pequenas roças, pouparam vintém por vintém a importância com que iriam afrontar o senhor, exigindo a carta da liberdade. Aos poucos, lutando sempre com energia notável, o negro elevava-se. Alforriado organizouos Terços dos Homens Pretos, formou as suas Milícias, combateu ombro a ombro com os brancos na defesa da terra, que também já era dele (VIANA FILHO, 1988, p. 170-171)

A fala de Viana Filho (1988), embora ofereça subsídios para a interpretação de

um comportamento do negro, enquanto suporte para a leitura dos documentos deste

grupo de anúncios, não é tomada de todo, considerando a paixão no discurso do autor e,

principalmente, a ausência de comprovação daquilo que ele chamou de elevação do

negro na sociedade vigente, assim como comprovações desta luta e da integração negra

de posse da terra no Brasil. Em outro sentido, ambas as posições dos autores acima

citados, reforçam as memórias descritas nos anúncios, quanto das constantes fugas de

escravos, que não podiam ou não quiseram acumular valores para pagar por sua

liberdade.

A escrava do DOC. 10, fugida de Itapagipe, era de etnia Gêge e chamava-se

Maria Rita. Ainda jovem e de estatura baixa e gorda, ela ostentava dentes bastante

brancos e tinha marcas de varíola pelo corpo. Alguns dos grupos africanos traziam,

como legado para o Brasil, a manutenção estética e higienização dos dentes, muitas

vezes resistentes e claros por serem determinantes da herança genética. Para Flexor

(2006), a higiene entre os escravos não pode ser tomada como uma verdade geral. Parte-

se do seu estudo em que apontou que muitos escravos eram acometidos por doenças

devido à falta de higiene: “As doenças mais freqüentes denotavam ser resultado de

esforços físicos exagerados ou maltratos [...], falta de higiene - bicho nas costas,

bicheiras de braços, feridas, dedos dos pés ou das mãos comidos de bichos, sarnas,

gonorréia, gálico, boubas” (FLEXOR, 2006, p. 7).

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Apesar de muitos africanos terem sido acometidos de doenças em consequência

da falta de higiene, a informação sobre a manutenção da higiene de alguns desses

escravos resulta de lembranças que não transcenderam à Colônia e o Império, não

chegando às memórias do presente.

O corpo do africano era a representação material de um bem que este devia a

seus deuses, portanto, muito mais que uma questão de estética, os dentes e suas marcas

corporais, estavam carregados de informações ainda muito pouco estudadas pela

antropologia e história brasileiras. A prática comum era higienizar-se com varetas de

junco, dente por dente, trazendo a brancura a que o anúncio se refere (BILIER, 1997).

Outro ponto a que se deve atentar no DOC. 10 está relacionado à amplidão dos

anunciantes. Considerando-se Salvador durante muito tempo a capital do Brasil e da

Província da Bahia, muitos eram os anunciantes de outras capitanias, pelo fato dos

periódicos manterem circulação que transcendia o território baiano atingindo

Pernambuco, as regiões de Minas Gerais, Goiás e Rio de Janeiro, Pernambuco,

Maranhão, Ceará e Pará, como foi o jornal O Mercantil, com circulação periódica

nesses territórios e, também no exterior, como Portugal, Lisboa, Porto e Hamburgo

(MERCANTIL, 1851, p. 1).

Dos quatro escravos denunciados de fuga, em anúncio DOC. 11, de 1831, foi

selecionado o texto correspondente ao escravo preto e jovem de origem Nagô ou Jabú

(de Ijebu) com porte alto, testa grande e certa calvície. Os olhos avermelhados

arregalados e os dentes trigueiros e limados nos dão características que mais se

aproximam dos costumes de Angola57. A tradição ritualística de limar os dentes

incisivos superiores é recorrente principalmente entre as mulheres. A limagem é obliqua

57 De acordo com estudos etnográficos, incluindo as observações de Cascudo (1965) e Jones (1992), na região de Angola, a limagem dos dentes era uma prática recorrente. Também se dava como prática comum em Moçambique, Santos (1962), bem como na Nigéria, conforme estudos de Huchery (1914). Deste modo, vê-se que não se trata de práticas exclusivas de regiões de Angola, mas de diversas regiões de África. As práticas não eram exatamente iguais nas mesmas regiões, podendo sofrer variações de materiais utilizados no ritual e até mesmo na forma em que se concebia a limagem. Porém, embora sofressem pequenas distinções em suas práticas, o mesmo não acontecia com o formato que se davam aos dentes, sendo assim, “as descrições dos tipos de mutilações [dentárias] se mostram muito semelhantes, tornando difícil fazer uma inferência étnica da sua origem a partir apenas da forma dada ao dente pela mutilação” (SILVA, 2003, p. 88). Conforme CASCUDO (apud LOPES, 2003, p. 38): “em Angola, grande porto exportador de escravaria para o Brasil [...] Muitos escravos vindos dali não tinham os dentes da frente, tornando-se estranha a feição apresentada. O costume de arrancar ou limar os incisivos não era peculiar apenas aos grupos ao redor de Benguela [...] Ali era um dos centros de concentração, depósito de pretos arrancados aos sertões, de origens e etnias incontáveis. A passagem por Benguela [...] A ausência dos dentes [...] transmitiu mais esse nome [...] agora constituindo forma peculiar da arcada dentária”.

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e interdental, dando aos dentes a forma de um triângulo invertido (PINTO, s. d.)58. A

marca da cicatriz sobre o estômago e o reforço da ausência do registro são informações

que reforçam memórias do “seu trabalho e seu sofrimento” (MATTOSO, 1990, p. 13), e

até mesmo da “sucessão de violencias (sic) e vergonhas pelos que viviam na ociosidade

a ostentar luxo e grandeza, á custa do seu trabalho” (QUERINO, 1938, p. 41-42).

De acordo com Ventura (2006), é esse corpo, marcado pelo estigma, que foi

apropriado pelo discurso moderno, na representação de uma imagem de negro do final

do século XIX. A memória presente, neste século, remete à condição de subjugado em

que se manteve os indivíduos de pele negra, conforme DaMatta (1997) marcando

diferenças e impondo lugares de hierarquia. Contudo, não se deve pontuar esses traços

como um modo vitimado em que se incorrem estudos acerca da questão negra. É

preciso que se veja uma teia de poder e saberes que se apresentam diante dos exercícios

e processo civilizatório contra a manutenção das diferenças tradicionais (ROUSSEAU,

1973).

A cicatriz sobre o estômago ilustra uma imagem da memória em que esses

sujeitos foram inscritos nesses exercícios conflituosos, “o corpo que se manteve forte

porque foi capaz de criar alternativas [...] para sobreviver [...]. Corpo que busca formas

[...] à recuperação [...] como tentativa de estruturar um jogo de descentramento, uma

reelaboração simbólica do espaço” (VENTURA, 2006, p. 141), bem como o fizera

Amaro, personagem de o Bom-Crioulo (1895/2001), ao transpor o espaço territorial da

fazenda onde vivia “trabalhando, sem ganhar dinheiro, desde a madrugadinha té... (sic)

sabe Deus!” (CAMINHA, 2001, p. 22).

Quando Amaro chegou à bordo, fugido do cativeiro, a descrição oferecida pelo

romance é muito próxima da presente nos anúncios de fuga, enfatizando as roupas de

algodãozinho e, também a idade recorrente destes escravos, “menor teria dezoito anos,

ignorando as dificuldades por que passa todo homem de cor em meio escravocrata e

profundamente superficial como era a Corte – ingênuo e resoluto, abalou sem ao menos

pensar nas consequências da fuga” (CAMINHA, 2001, p. 21)”.

Amaro sentiu o mito da liberdade e, embora trouxesse marcas de seu tempo de

cativo, deixou que essa sensação de liberdade reelaborasse os novos espaços ocupados,

seja a bordo do navio da marinha, seja nos momentos em que se sentia livre nas ruas do

Rio de Janeiro. Em Mattoso (1990), a fuga, o assassinato ou o suicídio, cometido pelos

58 Veja-se, “o hábito de limar os dentes incisivos superiores em triângulo é um costume típico dos ganguelas” (PINTO, s.d., p. 176-177).

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escravos, são vistos como a expressão violenta da revolta interior do escravo que não se

adaptou ao cotidiano distante da vida diferente da que era levada em sua terra de

origem, da falta de enraizamento no conjunto da sociedade e dos grupos de escravo,

mas, também, é preciso considerar o crioulo, ou seja, o negro escravo nascido no Brasil,

que não tinha, ao contrário de seus pais africanos, referências de sua origem, senão as

referências do lugar e da condição na qual havia nascido. É por isso que se considera

terem sido as recorrentes fugas de escravos, resultado da soma das razões citadas acima

mais a revolta contra as imposições da labuta diária e, por que não, a expressão do

simples desejo de não ser subordinado.

E, assim como o indivíduo do anúncio, ambos possuem essa imagem, seja ela

restituída por meio de sua sobrevivência física, sua cultura resistente presente na

limagem dos dentes, seja na marcação de suas peles em relação aos ritos de passagem,

seja na marcação da pele enquanto luta pela sobrevivência ou maus-tratos (FLEXOR,

2006). O anúncio DOC. 11 oferece indicações de que o negro anunciado poderia ter se

machucado na lida diária, na luta corporal com outro escravo, ou sofrido de castigos de

seus senhores, ou até mesmo, cabendo utilizar-se do imaginário para interpretação deste,

durante fuga do cativeiro, portanto, entende-se que, além da ideia de rebeldia, a

ilustração evidencia a possibilidade de se entender o negro como aquele que também se

atirava na punção do olho-por-olho e dente-por-dente, não reservado a subserviência

pacífica.

No anúncio seguinte DOC. 12, o primeiro de publicação do Diário da Bahia,

jornal conhecido por muitos pesquisadores da atualidade como um veículo de ideais

liberais e abolicionistas, similares ao Guaycuru, mas que também trazia anúncios sobre

a fuga de dois cativos, Lauriano e Tácito. Todavia, não se pode descartar a realidade

vigente da época, em que os jornais sobreviviam de anunciantes, independente de sua

procedência ou conteúdo anunciado. A novidade deste anúncio DOC. 12 está na idade

dos dois escravos, sendo 60 e 40 anos respectivamente, diferente da média de idade

veiculada pelos anúncios de venda do Guaycuru do primeiro grupo.

Lauriano era de nação Nagô de estatura baixa e magro, no entanto não tinha a

pele tão escura por se tratar de uma cor fula. Tinha olhos grandes e os cabelos da cabeça

e barbas brancos. Esta é uma das quatro únicas evidências de escravo fugido de um

engenho, retirada de una relação de 48 anúncios de fuga. Entende-se, a partir dos

documentos analisados, que, possivelmente, os escravos com idade avançada e

debilitados eram aproveitados em funções que exigiam menos dispêndio da força física,

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entretanto, continuavam realizando trabalhados complexos, como no caso de um

mariscador, como Lauriano, cujo ofício lhe expunha continuamente em contato com o

sol e a água do mar, senão nas tarefas dos mangues. O segundo escravo fugido é Tácito

de etnia Uçá. Ele tinha porte mediano, forte, rosto grosso e marcado por olhos salientes,

e era rendido de uma das virilhas, mal que acometia constantemente os escravos desde o

setecentos “o número de notificações (48) era muito grande: quebrado ou rendido da

virilha esquerda, da direita ou de ambas as virilhas” (FLEXOR, 2006, p. 7)59.

Especialmente neste anúncio aparece o oferecimento de 100 réis por cabeça,

oferecidos a quem os encontrasse ou informasse com objetividade seus paradeiros. O

escravo mesmo em idade avançada e acometido por doenças tinha um preço de

mercado.

O valor atribuído ao sujeito negro, durante o Império e depois enquanto liberto

na República é tomado, como uma sequência linear que atravessou as fronteiras dos

eventos históricos, chegando ao período moderno de fins do século XIX, posterior à

escravidão e ao advento da República, com certa manutenção, tanto pela estrutura social

hierárquica estabelecida na República Velha, quanto pelo ideal de progresso introjetado

nas Américas nesse mesmo período (DaMATTA, 1997). Assim, segundo Depestre

(1980), o valor inferiorizado do negro foi consequência do regime escravocrata, que

deixou como herança às inúmeras populações negras no Brasil e Américas a

epidermização das relações socioeconômicas “acrescentando assim, às contradições e às

alienações inatas do capitalismo, um conflito de um novo gênero, um tipo de caráter

adquirindo nas condições específicas das colônias americanas: o passional antagonismo

racial” (DEPESTRE, 1980, p. 8-9 grifo do autor), “ou egoísmo de classe reduziu a

“essência” humana [...] de diferentes etnias africanas a uma fantástica essência-inferior-

de-negros; e a “essência” humana dos proprietários saídos de diversas nações européias

em uma não menos extravagante essência-superior-de-brancos”, e continua

Embora o problema racial seja a face psicológica das estruturas sócio-econômicas da colonização, o segredo do racismo dos “brancos”, como do antiracismo ou do racismo anti-racista dos “negros”, não deve ser procurado na psicologia desses tipos sociais, mas na análise objetiva das relações que a escravidão e a colonização estabeleceram entre si.

59 “As doenças mais freqüentes denotavam ser resultado de esforços físicos exagerados ou maltratos – aleijões de braços, pernas, pés, costelas, dedos, entrevados, quebrados da virilha. Provavelmente trata-se hoje da síndrome do impacto do quadril, ainda muito pouco estudada, ou seja, a falta de articulação da cabeça do fêmur com o acetábulo, ou concavidade do quadril em que se encaixa aquele osso, comum em pessoas que exercem atividades impactantes e com esforço” (FLEXOR, 2006, p. 7).

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Brancos, negros, índios - como seus homólogos coloniais: mulatos, mestiços - e as outras combinações de traços físicos [...] são geralmente, famosas armadilhas semânticas, arquétipos platônicos do modo de relações fetichizado, não natural e quase teratológico, estabelecido entre mestres e escravos, nas Américas. Os descendentes de uns como de outros são produto de uma mesma etno-história que criou, neste hemisfério, povos organicamente novos, com suas particulares escalas de valores e seus próprios modelos culturais de referência. Na história colonial, a memória e o imaginário destas novas sociedades nacionais reelaboraram e reprogramaram os antigos modelos africanos, europeus, indígenas, através de um sistema complicado de resistência, de adaptação, de simbiose, de imitação recíproca, de interculturação, de transculturação, quer dizer, de modos tipicamente americanos de mutação e de criatividade sócio-culturais.

O pensamento de Depestre (1980), embora embasado de sua linha materialista

dialética, dialoga com o pensamento sociológico de DaMatta (1997), ao atribuir a

sistematização hierarquizante das relações socioeconômicas dos senhores e escravos,

após o advento oficial da abolição negra no Brasil, o resultado de discriminações de

brancos em relação aos negros. Embora DaMatta (1997) não tenha endossado esse

preconceito exclusivo da cor, mas, sim, como consequência da escravização negra. O

pensamento de Bastide (1980) reitera a concepção defendida por Depestre (1980) e

DaMatta (1997), contudo, este pensamento, atribuído pela teoria sociológica, aproxima-

se mais da concepção verificada na obra de DaMatta (1997) do que da obra de Depestre

(1980).

A análise dos anúncios restantes DOC. 13, DOC. 14, DOC. 15, DOC. 16, DOC.

17 e DOC. 18 encerra a apresentação do segundo conjunto de documentos jornalísticos.

A cidade anunciada fazia parte da província de Pernambuco e o fugitivo era conhecido

como João Câncio, um escravo pardo, pedreiro e canteiro, de 25 anos de idade, estatura

baixa, cabelo bom, rosto descarnado ou magro, sem a presença de dois dentes frontais.

João Câncio também apresentava defeito em um dos dedos, detalhe relevante, a este

também se gratificava com 200 réis.

Nota-se a diferenciação que se dá ao tom do anúncio ao considerá-lo pardo, uma

referência que o distinguia dos demais negros, fato que, na contemporaneidade do

século XX, os movimentos de visibilidade negra e a própria sociedade que se

reconhecia branca preferem unificar em uma concepção generalizada de negro,

englobando mulatos e mestiços na mesma categoria. Mulatos, brancos, pretos e mulatos

eram condições bem distintas umas das outras, cada uma em seu lugar na hierarquia.

Flexor (2006) verificou que os mulatos eram vistos como brancos e, que, na revolta de

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1814, aqueles juntamente com os que se reconheciam brancos, foram alvo de ataque. Os

mulatos juntamente com os pardos e os crioulos passaram a ser vistos com maus olhos,

na virada do século XVIII para o XIX, eram enxergados como assassinos de brancos,

“...mulatos perniciosos, soberbos e vadios [...], prevendo que as grandes propriedades,

fatalmente, cairiam em suas mãos e chamava a atenção do Rei para alguma

providência”, conforme Vilhena (apud FLEXOR, 2006, p. 12, grifo da autora). No

entanto, cabra tinha designação específica, e cafusos, caribocos e ariboco ou caboclos

eram designações do hibridismo entre branco e índio sem a influência genética africana.

Generalizar ou unificar o negro é apenas uma maneira de reiterar um passado

que o inscreveu numa história que opacizou a cultura, seus ritos, política e belezas, “si o

elemento africano não teve notoria influencia, no que diz respeito á moral, no meio em

que viveu, também não destruiu o que encontrou; ao contrario, foi um sustentaculo

persistente dos bons costumes, no regimen domestico (sic)” (QUERINO, 1938, p. 46).

Foi promulgar o sujeito em sua condição de subjugado, justapondo à sua existência

valores que não lhes pertenciam enquanto idealizante, mas somente como idealizado,

conforme evidenciou Querino (1938, p. 45)

o africano prestou valiosos serviços á conservação da unidade territorial e defeza da integridade nacional, serviços que não foram devidamente compensados. [...] Com resignação evangelica supportou todos os martyrios da civilização brasileira; nunca, porém, deixou de ser o typo da fidelidade, tendo por apanagio a gratidão.

Parte-se agora para o terceiro e último grupo de anúncios sobre negros desta

seção, em que são observadas a condição, lugar e memórias destes indivíduos descritos

nestes veículos.

DOC. 19 – Ama de leite.

Fonte: Jornal da Bahia, 22 jun. 1854, p. 3

(transcrição) DOC. 19 – AMA DE LEITE. Na rua da Preguiça nº 7 1º andar precisa-se alugar uma ama de leite parida de pouco. (JORNAL DA BAHIA, 22 jun. 1854, p. 3)

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DOC. 20 – Crioula livre.

Fonte: Jornal da Tarde, 22 jul. 1853, p. 4

(transcrição) DOC. 20 – Quem precisar de uma ama crioula livre, para cuidar no serviço de uma casa de homem solteiro, n’esta typographia se dirá quem se offerece. (JORNAL DA TARDE, 22 jul. 1853, p. 4)

DOC. 21 – Crioulo companheiro de viagem.

Fonte: Jornal da Bahia, 7 jan. 1854, p. 4

(transcrição) DOC. 21 – Ignacio Coelho – vai á Costa d’Africa á negocio, levando em sua companhia o menor Amaro – crioulo -, por todo fim d’este mez. (JORNAL DA BAHIA, 7 jan. 1854, p. 4)

DOC. 22 – Preto de bonita figura carregador de cadeira.

Fonte: Jornal da Bahia, 11 jan. 1854, p. 3

(transcrição) DOC. 22 –João Baptista de Castro Rebello esta incumbido de vender um preto de bonita figura, e optimo carregador de cadeira: quem o quizer comprar dirijaae á Alfandega, ou á casa do annunciante no largo da Victoria. (JORNAL DA BAHIA, 11 jan. 1854, p. 3)

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DOC. 23. Mulato montador com 20 annos. Fonte: Bahiano (O), 26 mai 1846, p. 132

(transcrição) DOC. 23 – Quem quizer comprar um mulato com 20 annos de idade, sadio, sem vicios, bom montador e tratador de Cavalos arrieiro, vaqueiro e muito habil para lacaio, e qualquer das ocupações acima ditas, bom obreiro de birlos, que se vende por precizão procure na casa n. 69 em Santo Antonio da moraria, ou declare aonde deve ser procurada a pessoa que o quizer. (BAHIANO (O), 26 mai. 1846, p. 132)

DOC. 24 – Fuga crioulo Tanueiro chamado Sabino. Fonte: Bahiano (O), 26 mai 1846, p. 132

(transcrição) DOC. 24 - No dia 5 do corrente fugio um crioulo Tanueiro, chamado Sabino, muito preto, beiçudo, feições groças anda calçado com çapatos de lona e um bonel de pele de gato, calça de estopa groça e também de ganga jaqueta branca quem souber ou encontra-lo queira leva-lo a casa de Miguel de Macedo Pinaena, defronte da Capela de N. S. de Guadalupe, que será recompensado. (BAHIANO (O), 26 mai. 1846, p. 132)

DOC. 25 – Moleque de nação Angolla com marcas de fogo de sua terra. Fonte: Guaycuru, O, 18 mar. 1853, p. 3

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(transcrição) DOC. 25 – ventosas, acha-se fugida desde 22 de maio de 1829; um muleque, nação Angolla, muito ladino, falla bem, muito esperto, bem preto, olhos grandes, sombrancelhas grossas, boca pequena, cabelludo pelas costas e braços, não terá mais de [idade ilegível, supostamente 12 annos], tem no peito esquerdo uma marca de fogo da sua terra, fugio em (GUAYCURU, O, 18 mar. 1853, p. 3)

DOC. 26 – Preta nação Nagô que se dizia forra.

Fonte: Guaycuru, O, 18 mar. 1853, p. 3

(transcrição) DOC. 26 – de algodão de Minas, acha-se fugido desde 20 de Fevereiro de 1829; uma preta nação Nagô, já ladina, de nome Carlota, que foi escrava de Sebastião José Coelho, quitandeira em vários lugares d’esta Cidade, Nazareth, Cachoeira, Santo Amaro e Itaparica, onde se intitulava como forra, mostra ter trinta annos, baixa, côr vermelha, pernas arqueadas, dentes alvos, falla atrapalhada, tem em um dos braços uma queimadura de ferro de engomar, signaes da sua terra, e alguns nas costas de ventosas, acha-se fugida desde 22 de Maio de (GUAYCURU, O, 18 mar. 1853, p. 3)

DOC. 27 – Preto e mulatinha fugidos, com de 16 a 17 annos. Fonte: GUAYCURU, O, 18 mar. 1853, p. 3

(transcrição) DOC. 27 - Vende-se um bom preto carregador de cadeira; um muleque de dez a doze annos, e uma mulatinha de 16 a 17 annos, que cose bem, e engoma muito bem liso - ; quem os pretender procure no beco do açougueiro casa n. oito que achará com quem tractar. (GUAYCURU, O, 18 mar. 1853, p. 3)

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Os documentos do terceiro grupo de anúncios, composto pelos DOC. 19, DOC.

20, DOC. 21, DOC. 22, DOC. 23, DOC. 24, DOC. 25, DOC. 26 e DOC. 27 foram

selecionados de uma pré-seleção de 120 anúncios, incluindo venda, fuga, aluguel e

empréstimo de escravos, com evidências da condição a que esses indivíduos estavam

inscritos, seja na condição de escravo ladino, fujão, esperto, bonito, feio, habilidoso,

jovem, velho, mentiroso, seja ocupando um lugar de ama de leite, crioula livre

agenciada para o trabalho, acompanhante de viagens, montador de cavalos, fugido e,

ambos, inscritos no lugar de preto, crioulo e mulato, fazendo emergir memórias ora de

sua origem africana ora de seu nascimento e, miscigenação, em território brasileiro.

Eis que as condições, lugares e memórias de negros presentes nestes documentos

não excluíam a origem, o gênero, a idade ou os ofícios de seus relatados, bem como não

os opunham, nivelando-os ao mesmo status de quem nasceu para servir. A observação

destes mesmos arquivos constrói um imaginário sobre seus relatores, uma classe de

senhores que, para Querino (1938, p. 37) era composta de “nobres orgulhosos e semi-

barbaros, de commerciantes ávidos [...] [numa sociedade em que] o regimen

estabelecido [...] era a ambição do ouro sem o amor ao trabalho. Até o clima servia de

desculpa aos ociosos”.

Percebeu-se que os ofícios praticados pelos negros, fossem esses,

transplantados da áfrica ou nascidos no Brasil, os inscreveu num lugar de servidão, mas

também os integrou à força propulsora da economia do Império. Estar na condição de

cativo não impedia um negro de ter o ganho na rua, ou cuidar de uma pequena fazenda

aos domingos, assim como estar na condição de liberto, ainda que negro, não lhe deu

garantias que não fossem à subserviência do trabalho, como no caso do DOC. 20, em

que a negra liberta foi oferecida para o trabalho doméstico, talvez, em um anúncio pago

por ela ou não.

A datação dos documentos dos grupos apresentados acima, correspondentes às

décadas de 1830 a 1870, permite o acionamento da memória do período em que os

movimentos políticos no Brasil cogitaram medidas60 e executou algumas ações para

60 A Lei Eusébio de Queiroz em 1850 contra o tráfico negreiro, quando Eusébio também propôs a contratação de um exército de mercenários estrangeiros para manter submissos os escravos, em conseqüência da insubordinação de boa parte dos escravos. A Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871, dando liberdade aos filhos de escravos, embora mantidos sob tutela dos senhores até 21 anos de idade. A Lei dos Sexagenários de 28 de setembro de 1885, quando o governo imperial promulga a Lei Saraiva-Cotegipe, conhecida como Lei dos Sexagenários, que liberta os escravos com mais de 65 anos. A decisão foi, mais tarde, considerada de pouco efeito pelos antropologistas sociais, pois a expectativa de

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conter a transplantação de africanos de suas origens com o intuito de frear o comércio, a

exploração e a quantidade ameaçadora de negros no Brasil, uma população retinta, que,

segundo Mattoso (1990), totalizou mais de um terço da população portuguesa.

E, embora tomassem medidas para conter a inflação de negros, impulsionada

pelo crescimento do território habitado, as medidas não se apresentavam os resultados

pretendidos. Para Querino (1938, p. 35-36), “o governo podia decretar as leis que

quizesse, que não moderaria a cobiça desordenada dos que aspiravam às riquezas sem

amor ao trabalho; isso tanto mais quanto os agentes do próprio governo eram os mais

interessados na divisão de presa tão opima”, e continua

Depois da lei de 1831, que aboliu o trafico de africanos, continuou, [...] o torpe comercio (...) os desembarques se faziam à noite, no trapiche Bernabé, e também no Morro de S. Paulo, barra Falsa, e fazenda Tobá, longe das vistas dos cruzeiros nacionaes [...] Os escravizados eram vendidos no trapiche, sendo ahi expostos, completamente nus, homens, mulheres e crianças, envolvendo-os os compradores em tangas de cobertores de algodão, para assim dar-lhes ingresso em casas de família.

Conclui-se, porém, que a paixão de Manuel Querino, em elevar os valores e

diversidade da cultura africana deixou evidências de certo distanciamento do autor

quanto da sua etnia. Querino (1938), ao falar sobre os africanos negros em sua obra,

mantém o leitor omisso de sua realidade cotidiana enquanto negro ou pardo. Em seu

discurso pautado por um tom paternal, o autor enfocou a contribuição do africano na

conservação da unidade territorial e defesa da integridade do Brasil, embora, em sua

opinião, estas contribuições não tenham sido reconhecidas pela população nobre a que

ele mantinha pouco apreço. O negro visto pelos olhos de Querino (1938, p. 45-46),

“com resignação evangelica supportou todos os martyrios da civilização brasileira;

nunca, porém, deixou de ser o typo da fidelidade, tendo por apanagio a gratidão”, e a

exemplo da ama de leite, disponível para aluguel descrita no DOC. 19 esses escravos e

“a escrava martyrisada hontem pela senhora, toma-lhe hoje o filho e o cria, amorosa,

solicita, com o cuidado e a ternura da maternidade desinteressada”.

A cultura negro-brasileira e/ou africana descrita na obra de Querino (1938, p.

46) não traz apenas lembranças de dores e lutas inglórias dos negros de sua época, mas

indícios de memórias de escravos vitoriosos como na década de 1835, quando o

vida do escravo não ultrapassa os 40 anos e, também a abolição escrava no Ceará ocorrida em 1884 (MATTOSO, 1990).

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africano liberto Duarte Mendes e sua parceira Sabina da Cruz contribuíram denunciando

os eventos da insurreição as autoridades da capital e, por isso, “tendo em apreço esse

acto de fidelidade, pelas leis nº.s 344, de 5 de Agosto de 1848, e 405, de 2 de Agosto de

1850, dispensou os referidos africanos do pagamento dos impostos provinciaes a que

eram obrigados”.

A robustez, sensualidade, porte senhoril e, as maneiras delicadas e insinuantes

das negras de etnia gêge, congo, angola e mina, também receberam atenção de Manuel

Querino em sua obra, estas negras transplantadas da África, se confundiam, segundo o

autor com as crioulas elegantes e, por terem o consentimento disso trajavam roupas que

as diferenciavam das mulheres com etnias africanas mais demarcadas, “como se

quizessem disfarçar a sua origem africana” (QUERINO, 1938, p. 100 grifos do autor).

As Gêges e Angolas, especialmente, immolavam o seu amor aos oriundos do paiz e desprezavam os parceiros; mas, si foram casados na terra do seu nascimento e aqui encontraram os maridos davam-lhes toda a preferência. A mulher africana, por força da seita, dava o tratamento de – Senhor – ao marido [...]. Em geral, as mulheres Gêges possuíam nadegas salientes, e talvez houvessem servido de modelo á Venus Hottentote [...] Das tribus africanas, as que assimilaram melhor a nossa civilização foram Angolas, Gêges, Congos e Minas. Destas ultimas escreveu, com muita propriedade, um publicista nacional: ...a negra Mina apresentava-se com todas as qualidades para ser uma excellente companheira e uma creada útil e fiel.

O exercício buscado foi relatar historicamente as memórias do negro, partindo

de uma observação geral para a análise de descrições comuns de negros na sociedade

baiana no Império brasileiro do século XIX. Os matizes da pele foi tratado de maneira

introdutória nesta seção, considerando a quantidade de ilustrações, tanto literárias,

quanto de textos jornalísticos retratando esses matizes, que ainda não foram analisados.

Portanto, ao dar seguimento a esta análise em seções posteriores, busca-se compreender

esses matizes da pele, em sua condição de integração e lugar na sociedade estudada,

determinados a partir dos diferentes tipos de governo que experimentou o Brasil, bem

como das diferentes formas de demarcação de espaços públicos e privados definidos

pelas relações hierarquias senhoriais. Na seção seguinte a pele, portanto, passa a ser

vista como objeto principal deste estudo - antagonizado pelas relações atribuídas ao

escravismo, entendido como herança sociocultural do Brasil -, por ser ela, a pele, a

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responsável direta por representar o sujeito em sua condição e lugar, saberes,

sensibilidades, poder e resistência61, pois, mais que identificar etnias ou ritos, se

considera que a pele constituída, – analisada em sua amplitude sistemática –, e se torna

o espelho invertido para quem enxerga e identifica sua vontade de significação.

61 Conforme relatos de Querino (1938, 121-122), “a revolta de 1893. Não há razão ou fundamento de verdade no facto de attribuir aos africanos Malês, o levante de 1835, nesta Capital. De longa data, desde o domínio colonial, vinham os escravizados reagindo, por meio de insurreições, contra as barbaridades dos senhorios. Em todos esses movimentos, figuravam como elemento de destaque, os Nagôs e os Aüsàs, os quaes, exerciam notória preponderância sobre as outras tribus, notadamente, os Nagôs, por serem mais intelligentes; tanto assim que eram preferidos para determinadas profissões, como por exemplo: mestres de obras, carreiros, feitores de engenho e encarregados do fabrico do assucar”.

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3. AS MEMÓRIAS DA PELE

As memórias da pele se referem ao modo comparativo por meio do qual a

literatura elencada dialoga com o terceiro agrupamento de ilustrações de recortes

noticiosos dos periódicos levantados. É o momento em que são elucidadas questões

relacionadas à vida dos escravos pós-abolição, seus descendentes e os filhos de seus

descendentes; suas práticas e as memórias constituídas em torno dos seus fenótipos,

enfatizam a pele negra na segunda metade do século XIX e primeira metade do XX.

Faz-se a apresentação de sujeitos-autores e suas obras, comparando-as à

verossimilhança apresentada pelos documentos midiáticos, produzidos na Bahia do

século XIX, levantando questionamentos sobre as memórias da pele que cobrem o

negro. A forma com que os principais sujeitos-autores, Manuel Querino e Lima Barreto

utilizaram sua literatura, em muitas passagens, como referência autobiográfica para

denunciar a realidade circundante do mundo negro no início do século XX, suas

sensibilidades, ritualizações, marcas identitárias e a forma com que esses autores-

sujeitos conseguiram transcender os espaços delegados e que circundam a análise nessa

seção.

Bastide (1983) fala do problema que é estudar estereótipos ou, neste estudo, a

memória de grupos partindo da literatura, pois, mesmo que haja o limite do corpus

estabelecido entre sujeitos que se fizeram autores, ou vice-versa, a partir de suas

literaturas, são eles, também representantes de um contexto histórico de passagem,

determinado aqui pelo período correspondente à passagem do Império para a República

no Brasil62.

62 A partir da leitura dos estudos de Sayers (1958) é possível compreender que boa parte da literatura dos séculos XIX e XX é referenciada pelos ideais e acontecimentos de escritores defensores da política do abolicionismo iniciada no século XVIII. Esses foram, segundo o autor, responsáveis pelos ataques contra a escravidão, e seus ideais foram projetados nos territórios que visavam a moral e o humanitarismo, tanto na França, quanto na Inglaterra e, consequentemente, no Brasil. Esses ataques se iniciaram na segunda metade do século XVIII, alcançando a primeira metade do século XIX. A projeção desses acontecimentos atingiu a prosa periódica, a poesia e o romance brasileiro do século XVIII, por intermédio de autores que se destacaram na obra de Sayers (1958) como precursores desse idealismo abolicionista, tais como Frei Gaspar da Madre de Deus (1715-1800), responsável pela alusão em sua obra aos problemas econômicos relacionados com o trabalho escravo; Hipólito da Costa (1774-1823), ao mencionar o tráfico em cartas abertas do Correio Brasiliense; João Severino Maciel da Costa (1769-1832) e Marquês de Queluz, ambos escreveram memórias sobre a importância de abolir a introdução de escravos africanos no Brasil, e, também, sobre o modo e as condições como a abolição devia ter sido feita, entre outros textos em favor da liberdade escrava. Sayers destacou também a herança dos escritos em favor da abolição redigidas por José Bonifácio de Andrade e Silva (1765-1838); Evaristo da Veiga (1799-1837); Maciel Monteiro (1804-1868); José da Natividade Saldanha (1795-1830); José Gonçalves

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Assim, faz-se importante “distinguir os estereótipos do autor dos estereótipos de seus

personagens – o primeiro sendo característicos de uma só pessoa, peculiares a ela, os

segundos tendo mais probabilidade de refletir o pensamento coletivo” (BASTIDE,

1983, p.114).

Como se busca a memória do experienciado63, e não apenas os sentimentos

desses autores em relação ao grupo representado, bem como suas relações com o grupo

em que viveram, suas experiências sociais, sentires e saberes subjetivos fazem parte da

totalidade que se denomina memória. E, assim, desenvolve-se a discussão em torno de

estigmas impostos ao corpo negro, bem como suas alternativas e processos de

ressignificação no mundo contemporâneo, do século XIX e início do XX, entendidos

como palco para a constituição de memórias das imagens de negros, valendo a ligação

entre a teoria e os laços desse presente oitocentista, alcançada inicialmente pela

literatura de Caminha (1895/2001) e, mais para o final do século XIX e início do XX,

nas obras de Lima Barreto e pela etnografia narrativa das obras também citadas de

Manuel Raymundo Querino, que, apesar de ter sido construída ao longo do XIX, tem

sua publicação e importância a posteriori.

3.1. SUJEITOS-AUTORES: MANEIRAS DE EXPERIENCIAR A MEMÓRIA

O cotidiano e a apresentação narrativa da experiência do homem comum podem

ser compreendidos além dos aportes possibilitados pela história, e sem a pretensão de

uma totalidade, embora evidenciando a globalidade desta, pela emergência dos estudos

de Magalhães (1811-1882); Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa (1812-1881), entre outros, com destaques pontuados nas categorias literatura a serem citadas posteriormente. O aporte a esta referência evidencia a literatura dos sujeitos-autores, que, embora tenham suas próprias experiências no período republicano, mantêm-se ligados afetivamente à memória do ideal de liberdade abarcado na literatura de seus antecessores. 63 O diálogo promitente, proposto por Arostégui (2004, p.153-154) acerca do problema que consiste em definir ou reiterar um estudo da experiência, à parte ou inerente da historicidade, permite observar o estudo da história, não apenas como um método de classificação e ressignificação dos fenômenos, mas sim, como ampliação de um ponto de vista menos sistemático e, talvez, menos refutável. “Bastará advertir que en su dimensión psicológica la experiencia se manifesta, en lo esencial, como acumulación de esquemas de prácticas que quedan en la memoria. La experiencia es un bagaje mental cuyo soporte psíquico es la memória [...] No se concibe, em efecto, separada de la memoria, aunque no se confunda com ella [...] La experiencia está indisolublemente unida a la memoria, permanece viva y puede servir de pauta en situaciones nuevas por lo que el presente nos aparece, por tanto, como la confluencia de acontecimiento y memoria, convertido en un ahora y un aquí desde los que se construye el tiempo todo […] Cabe coincidir, sin duda, en que la Historia es inseparable de la experiencia y que, en consecuencia, la historiografia es ella misma uma ciencia de la experiência”.

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da memória, considerando que o hoje seja a síntese do ontem, do processo vivido, do

conjunto estratificado da experiência, conforme elucidou Arostégui (2004).

Sob uma perspectiva psicossocial para a compreensão dos estudos acerca da

memória, Sá (2007) define a categoria de memória social, considerando diversas facetas

e/ou conceitos sobre a memória, dentre elas a memória comum, aquela ligada às

lembranças comuns de conjunto amplo de pessoas, que necessariamente não interajam

entre si, mas que podem ser vistas como a coleção de muitas memórias pessoais, acerca

de um mesmo objeto, ainda que independentes umas das outras, levando em conta o

contexto histórico numa determinada configuração sociocultural.

Esta abordagem é estabelecida para que se compreenda o processo geracional do

qual compartilharam muitos sujeitos históricos, ou seja, o autor leva a pensar sobre o

porquê de gerações distintas compartilharem dos mesmos ritos, costumes, nostalgias e

crenças de uma geração antecessora. A partir desse fenômeno, Sá (2007) discute a

questão da teoria das memórias geracionais, que faz pensar a respeito da memória

apresentada em romances e que, mesmo não sendo essas memórias vivenciadas por seus

leitores, acabam elas sendo compartilhadas por eles, de modo atemporal. Veja-se o

exemplo da segunda metade do século XIX em que, genericamente, se viam nos

romances, gerações de autores-sujeitos ocupados pela política nacionalista e, por isso,

utilizaram como mote de suas obras as questões abolicionistas, inserindo memórias de

negros em um contexto escravocrata, muitas vezes, fruto de idealizações que iam de

encontro aos interesses da política que se instaurou antes do governo republicano,

conforme evidências de Sayer (1958).

Nora (1981, p. 13) concluiu, a partir dos seus estudos acerca dos lugares de

memória, que “não há historia sem memória, que se apresenta e se enraíza no concreto,

no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”, estabelecendo lugares e mentalidades que

possibilitam um espaço de estudo e pesquisa sobre o sujeito (LE GOFF, 1976). Na

perspectiva de Arostégui (2004) não há memória sem história, que, na contramão do

que apresenta Nora (1981), evidencia uma memória que se faz pela transposição da

experiência humana como um todo, embora nutrida subjetivamente de conteúdos

psíquicos, cujo conteúdo individual subjetivo se relaciona à prática coletiva, práticas

protagonizadas por grupos com fins de manter rituais e preservar lembranças. Estas não

estão apenas ligadas aos espaços, mas principalmente às mentalidades.

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Compreender a literatura como um documento nutrido de memória64, ora

experienciada, ora confabulada, permite o estudo da memória em sua condição

histórica, na qual se percebe os sujeitos-autores e seus personagens, como os

responsáveis por dar vida a suas memórias num jogo reverso de valores.

Para Bernd (1987), a recuperação dos elementos da memória coletiva é o vetor

da consolidação de uma identidade mais abrangente sobre o negro. Para ela, a memória

coletiva é entendida como um resgate mnemônico, no qual os grupos negros passam a

ter certeza de si próprios e, assim, a ter acesso a uma dimensão mais ampla do que é a

identidade, esta que os integra como agentes e não mais como atores na realidade

nacional65. No entanto, a autora corrobora a concepção ritualística que se aproxima do

mito, ou do rito, defendida por Nora (1981) em sua problemática discussão sobre os

lugares da memória66.

Ainda sob a perspectiva de Bernd (1987), a memória coletiva, responsável pela

integração da identidade negra, em sua concepção unificada, e dos sujeitos negros se faz

a partir da ritualização de práticas como o candomblé e a capoeira, entendidos por Nora

(1993, p. 13) como espaços simbólicos ao mesmo tempo materiais, lugares de

memórias, calcados no seio da coletividade para o alicerçamento de uma vontade de

preservação da memória de um ritual de passagens. Essa vontade, sob a concepção dos

lugares de memória, se justifica pela ausência da memória espontânea, ou seja, “rituais

de uma sociedade sem ritual, sacralidades passageiras em uma sociedade que

dessacraliza, ilustrando ilusões de eternidade”. Longe de corroborar o pensamento

ideológico de Bernd (1987) e a perspectiva crítica de Nora (1993), evidencia-se o

pensamento de Bastide (1983) que via o tratamento folclórico, dado aos estudos

etnográficos, como mais um método que permite distinguir os principais tipos de

imagens que o brasileiro branco formou a respeito do negro ou do mulato.

O pensamento de Bastide (1983) vai mais além ao propor que o folclore

sobrevive entre as classes baixas da sociedade, reaparecendo e sendo ressignificado de

64 A literatura é um documento que se nutre de sua época, observando e ou retratando fatos de um determinado período, seja para contrapor, legitimar ou mesmo representar (PROENÇA FILHO, 2003). 65 De acordo com Schopenhauer (2005) os princípios de identidade fogem à lógica do racional por pressupor de representações intuitivas que são prévias, em relação às quais se constitui toda a essência que a pressupõe, ou seja, foge do caráter de uma verdade natural, assumindo a globalidade das representações e dos juízos em torno destas. 66 “Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais” (NORA, 1993, p.13).

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maneira espontânea, principalmente nas discussões entre brancos e negros de forma

coloquial e imprecisa. Assim, segundo ele,

o folclore é, por definição, tradicional e não se modela na grande corrente da vida, [e, portanto,] está preso a certas camadas da sociedade e, se nos informa sobre o que pensam os caboclos [...] não pode nos mostrar a extensão dos estereótipos nas classes cultas. (BASTIDE, 1983, p. 113-114)

Bernd (1987), opondo-se do pensamento de Nora (1981) e, principalmente ao de

Bastide (1983), descartou o modus com o qual a literatura foi manipulada no Brasil no

século XIX, de forma categórica por seus editores e autores. Ambos, frutos de um

contexto histórico de transições sociais, e também acirradamente político, propõem uma

memória resgatada do colonizador, e responsável por conceber, ao contrário do que

pensou a autora, não uma interação do negro como agente integrado, mas sim, sua

visibilidade recorrente como ator e/ou objeto de uma das muitas memórias históricas

acerca do universo negro no cenário brasileiro.

É no ponto de intersecção entre a concepção ritualística que promove o resgate

em prol da condição do “reconhecer-se para ser”, levantado por Bernd (1987) e a

sistematização dos variados registros e traços possíveis de composição de um

determinado passado, problematizados por Sá (2007), que são representadas as

manifestações mnemônicas de negros e suas práticas culturais, através da forma

literária, principalmente de sujeitos-autores por suas, talvez, “imposições coletivas de

imagens de negros” (BASTIDE, 1983, p. 114).

Utiliza-se a ideia bastidiana de imposição coletiva de imagens para se fazer uma

simplificação inicial de como essas imagens de negro foram tomadas e entendidas por

seus autores-sujeitos e, em seguida, contrapor essa ideia sugerindo alternativas que não

as trate como mera imposição, mas como um exercício de representação de memórias

coletivas. Conforme se verifica em Proença Filho (apud BERND, 1987, p. 17):

de um lado a literatura é entendida como representação [...] visão de mundo em que a linguagem é apenas um veículo de comunicação; de outro a concentração se desloca para o modo como a literatura se realiza, consistindo sua especificidade no uso da linguagem [...] as duas concepções não são conciliáveis. O processo literário envolve basicamente a inter relação entre quem faz o que, como o realiza e quem o usufrui, vale dizer, entre autor, o texto e o leitor. Logo, em um sentido restrito, será negra a literatura feita por negros ou descendentes de negros reveladora de ideologias que se caracterizam por uma certa

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especificidade. Em um sentido lato, será negra a arte literária feita por quem quer que seja, desde que reveladora de dimensões peculiares aos negros ou aos seus descendentes [...]

É a partir desta verificação que se entende que não é possível desvencilhar o

autor de sua obra por esta ser constituída das memórias de quem a produz, embora não

seja conciliável estabelecer o modus com que se lança o olhar sobre a mesma. Se é

apresentada a literatura com seu caráter restrito às identidades negras, por serem negros

os seus autores, são representadas também as obras dos autores Lima Barreto, nas quais

o autor se pauta na narrativa quase autobiográfica da vida de sujeitos negros e mulatos,

respectivamente, inseridos no contexto imperial e republicano do Brasil, no Rio de

Janeiro, de ares vanguardistas, e nas obras de Manuel Querino, entendido como o

observador negro inserido no mesmo contexto histórico, porém na realidade da Bahia

que se pautava pela tradição da pluralidade étnica e escravista.

Há também as memórias de autores não negros, impelidos pela narração de uma

ideologia vulgarizada do contexto escravocrata brasileiro, determinando, desse modo, o

ponto de vista do outro e o caráter coletivo da memória de uma época67. São as obras de

Caminha (1895/2001) e Guimarães (1875/2005) a reflexão do pensamento coletivo, no

mesmo sentido em que estão elas distantes das peculiaridades atribuídas aos autores

negros, como uma possível vontade de justiça própria ou o favorecimento de

estereótipos depreciativos do branco em favorecimento de uma imagem negra vitimada.

A partir desse diálogo, é possível compreender as maneiras com que essas

memórias de negros e não negros no contexto escravocrata do Brasil, verificadas na

literatura, foram experenciadas por seus autores e ressignificadas até a

contemporaneidade no século XX.

Veja-se o exemplo de narrativas de autores não negros, sobre as imagens do

negro, quando Guimarães dá voz a sua heroína negra:

[...]

67 De acordo com Bastide (1983, p.116) tanto os escritores brancos, como os de cor trazem estereótipos, uns contra os outros, no entanto, o autor informa que mesmo os autores negros criaram estereótipos entre si representados por seus personagens, e estes também se aprofundaram na valorização dos estereótipos sobre o branco ou valorizando-se enquanto negro de forma mais enfática e não correspondente ao período experienciado: “como se o negro, introjetando o modelo branco, se desse a si mesmo um superego ocidental, contradizendo seu ego verdadeiro.” Entretanto, trata-se de uma observação de Bastide (1983), que embora sirva neste estudo para a ilustração de atitudes de representação do branco e do negro através da percepção de autores negros, se distancia da forma que se vê o mesmo fenômeno pelo viés da memória.

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- Não gosto que a cantes, não, Isaura. Hão de pensar que és maltratada, que és uma escrava infeliz, vítima de senhores bárbaros e cruéis. Entretanto passas aqui uma vida, que faria inveja a muita gente livre. Gozas da estima de teus senhores. Deram-te uma educação, como não tiveram muitas ricas e ilustres damas, que eu conheço. És formosa e tens uma cor linda, que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano. [...] - Mas senhora, apesar de tudo isso que sou eu mais do que uma simples escrava? Essa educação, que me deram, e essa beleza, que tanto me gabam, de que me servem?... São trastes de luxo colocados na senzala do africano. A senzala nem por isso deixa de ser o que é: uma senzala. - Queixas-te de tua sorte, Isaura? - Eu não, senhora: apesar de todos esses dotes e vantagens, que me atribuem, sei conhecer o meu lugar. [...] (GUIMARÃES, 2005, p. 7-8).

É importante compreender uma segunda noção sobre ao sujeito escravizado

atentando-se à narrativa do texto, em que é possível entender a condição escrava não

como exclusividade dos africanos de pele preta ou parda. A narração de Guimarães

(1875/2005), neste trecho, propõe um modus distinto de se ressignificar o universo

daqueles que serviram como escravos ou senhores, sendo estes, determinados ora por

seu lugar social, estabelecendo subgrupos de escravos e ex-escravos pretos e mulatos, e

ora brancos pela circunstância do hibridismo de sua descendência, fruto da relação do

português com o africano e, por conseguinte, cativo, por ser este constituído de sangue

negro, mesmo tendo ele o sangue português. Conforme elucida Paiva (2009), o lugar

social é atribuído pela quantidade de sangue infecto, ou seja, sangue negro presente no

sujeito independendo do matiz de sua pele.

Isaura é escrava, mas é uma escrava formosa e possuidora de uma linda cor, tão

linda que ninguém dizia que corria em suas veias uma gota sequer do sangue que

pudesse desqualificar os modos tão polidos de sua invejável educação e beleza.

Guimarães não permite que o leitor imagine ou proponha qual seja a linda cor da

pele de Isaura. O autor, antes mesmo que o leitor se perca nas possibilidades possíveis e

mais comuns do hibridismo consequente das relações entre portugueses e africanos,

apresenta as características dessa cor tão majestosa de Isaura em relação aos outros

escravos. Essa cor, capaz de despertar a paixão mais doentia do seu senhor e até mesmo

de um escravo lascivo como André, encantado por essa beleza, não é branca, mas sim

alva, “é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança

delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. […] Na

fronte calma e lisa como o mármore polido” (GUIMARÃES, 2005, p. 7).

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No contraponto da representação de uma memória sobre um cativo do período

colonial brasileiro, embora nutrido dos conflitos de sua geração vivenciando o processo

pré-abolição, Guimarães (1875/2005) deixa sua contribuição e impressão à causa em

seu romance mais famoso, embora proponha ao olhar o outro de forma generalizada ao

narrar os personagens negros de matizes mais retintos, sob a ótica depreciativa a que se

propunha ao negro, a partir do período pré e pós-abolicionista (DaMATTA, 1997). Não

obstante, Isaura é cativa e reconhece o seu lugar, embora seja branca, quebrando o

estigma quanto do lugar social ocupado pelo negro e escravo. Mas, a leitura destas

características reforça os estereótipos por meio da afirmativa de que a pele e o

hibridismo com o branco favorecessem a polidez e a docilidade do sujeito, pois Isaura

mesmo escrava possuía essas qualidades por ser branca, enquanto Rosa, a escrava

mulata do romance, tendia mais para a vaidade, inveja, ciúme e mentiras, bem como

André, o escravo doméstico de caráter lascivo capaz de qualquer coisa para conquistar

sua musa representada pela personagem de Isaura68.

Na contramão ideológica dos autores não negros, Bastide (1983, p. 115)

concluiu em seus estudos que a escolha pela mulata na literatura brasileira se dá “porque

esta se aproximava mais da européia do que da africana”, propondo, no entanto, a

preferência pela pele branca de Isaura e toda sua personalidade pacífica de humor

bucólico, contrapondo-a à malevolência dos personagens negros Rosa e André.

E, mais além da questão do lugar sobre negros e brancos, suscitado pelas obras

de DaMatta (1997) e Albuquerque; Proença Filho (2009), Bastide (1983) reforça o

entendimento dos estereótipos das identidades do negro como uma possibilidade que vai

além da questão da cor ou da raça e, também, muito além da questão social,

inscrevendo-se principalmente pela degeneração da escravidão a que foram submetidos

muitos africanos.

O romance não oferece maiores detalhes sobre os personagens negros e, pela

opção de não se aprofundar na discussão em torno das intenções do autor, entende-se, a

partir desta análise, que a obra de Guimarães (1875/2005) foi uma proposta de seu

tempo para atrair a atenção de seus leitores para a condição escrava de sua época e, por

68 Bastide (1983, p. 118-119), ao propor o diálogo entre as concepções da teoria do determinismo biopsicológico e a teoria acerca dos estereótipos, considerou através de seus estudos, a constante afirmação de que a degeneração inerente do sujeito de matiz retinto, trazia, reforçando os estereótipos sobre a raça negra, a repugnância para com o mulato escuro. Assim, “As virtudes só apareciam na proporção da dose de sangue branco que lhes corresse nas veias”.

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isso, tendenciado pelo discurso abolicionista manifestado nas obras de diversos

romancistas nacionais do período citado.

A escrita dos autores não-negros carrega juízos de seu tempo, denunciando os

valores comuns de uma população ávida pelo progresso e prestes a dar de ombros para o

passado tão presente, que estabeleceu o hibridismo, o qual seus corpos carregavam.

Veja-se o distanciamento de Caminha (2001, p. 12) diante da narração do seu

personagem principal, em o Bom-Crioulo:

Outras bocas foram transmitindo a ordem té que surgiu [sic], correndo, a figura exótica de um marinheiro negro, de olhos muito brancos, lábios enormemente grossos, abrindo-se num vago sorriso idiota, e em cuja fisionomia acentuavam-se linhas características de estupidez e subserviência.

O personagem descrito por Caminha (1895/2001) é negro conforme trecho da

narrativa. No entanto, é bestial, não por interpretação deste estudo, mas sim, pelas

dimensões exageradas e grosseiras atribuídas aos fenótipos do negro de sorriso “idiota”,

“estúpido” e “subserviente”. Essas adjetivações atribuídas ao personagem, exceto os

“lábios enormemente grossos”, poderiam ser atribuídas a qualquer outro não-negro de

qualquer obra literária, não representando, todavia, caráter de estranheza ao modo com

o qual o branco enxergava o negro, entretanto, não seria se elas, as adjetivações, não

correspondessem a um contexto comum pós-abolição (1895), quando o estranhamento

do branco se fazia como uma prática de resistência ou em defesa de valores que até

então eram comuns e autorizadas apenas ao branco (FREYRE, 1933/2004)69. A

exemplo desse fenômeno tem-se o artigo do jornal Diário da Bahia, explicitando que,

com o advento da abolição, muitos senhores de escravos reivindicavam o ressarcimento

em compensação à perda de seu investimento na aquisição de escravos, porém, esse

ressarcimento não foi permitido pelas esferas públicas eassim, inicia-se certa rivalidade

política, ideológica e econômica entre muitos desses senhores contra idealizadores e

defensores do abolicionismo, e, acredita-se que também contra muitos dos ex-escravos

no intercurso desse processo.

69 Freyre (1933/2004) observou em seus estudos que os senhores de escravo apresentavam-se muito bem vestidos com fraque, bengala e bigode tratando-se de um ritual que demarcava a diferença entre esse e o escravo, não desconsiderando outras diferenças de fácil percepção para a época, pois esses acessórios eram permitidos apenas à classe senhorial formada por sujeitos brancos.

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No artigo do jornal Diário da Bahia é possível atestar o confronto de ideias que

alimentaram emulações políticas contra os costumes e os grupos de negros e não-negros

durante e após a abolição:

Primeira parte da transcrição Senado Discurso na sessão de 19 do corrente O SR. BARÃO DE COTEGIPE – vem desempenhar-se do compromisso, que tomou, de apresentar um projecto para indemnisar os ex-proprietarios de escravos dos prejuízos que soffrerão com a rapida e inesperada abolição da escravidão. Contra essa indemnisação, apenas anunciada levantarão-se os ministros com seu poder, a imprensa com sua influencia, e os abolicionistas da classe dos communistas, com sua força. Não obstante, muito confia no bom senso dos brazileiros. Nunca se persuadiu que chegasse occasião em que fosse mister defender o direito de propriedade contra aquelles que têm por dever sustental-o, e sim contra aquelles que considerão a propriedade um roubo. O nobre ministro da guerra, sem conhecer o plano do orador, declarou logo que o projecto annunciado era uma affronta aos poderes publicos. A imprensa pronunciou se egualmente de modo a fazer esmorecer o orador, em vista do alto poder de que ella gosa. Mas ella é tão sagaz que não podia deixar de perceber que este projecto é um obstaculo às suas vistas futuras; ao orador, monarchista, não cabia fazer trabalho dos que o não são. O descontentamento, a irritação, o desgosto que levão muitos brazileiros a desesperar da forma de governo, são sem duvida adjutório á propaganda republicana; serião os seus propugnadores néscios, se não procurassem manter esse descontentamento que, quando não seja o

Doc. 28 - Diário da Bahia, 26 jun. 1888, p. 2

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principio activo para o resultado de seus desejos, é, pelo menos, um embaraço do caminho. Segunda parte da transcrição Dos ex-abolicionistas nada tem a dizer: estes não considerão somente a sorte dos escravos, têm em vista tambem o descrédito e abatimento dos que os possuião. O seu fim não é outro, senão levar avante a espoliação: o que fizerão com a propriedade escrava, praticaremos com a propriedade rural. Levarão já a audacia ao ponto de dizerem que, em vez de indemnisar se os ex-proprietarios de escravos, estes é que devião ser indemnisados pelo tempo em que estiverão ao serviço d’aquelles. Carece, pois, de abnegação para vir representar o papel que está representando. Mas espera que, expondo os meios para que, sem damno do Estado, se possa satisfazer o fim do orador em bem d’aquelles que soffrerão o mal, espera, diz, que esses meios serão considerados, discutidos e emendados, ou rejeitados, como melhor entender o senado. No projecto não se esconde nenhum Jonas, como se disse do outro que apresentou; tudo quanto propõe está patente; e se parecer que ha, explicará seu pensamento. Esta medida é econômica, é politica, é, em uma palavra, justa. Os princípios de direito não podem variar de um momento para outro. Quanto annunciou este projecto, disse que nenhuma nação extinguiu a escravidão de repente e sem dar algum prazo e indemnisação aos proprietários.

A França foi a primeira das nações européas que levou avante a extincção da escravidão de modo rápido; mas havia muitos annos que, por meio de repetidos inqueritos, procurava conhecer o estado das suas colonias e quaes as cautelas (DIÁRIO DA BAHIA, 26 jun. 1888, p 1-2.).

Evidencia-se no documento apresentado a oposição de um grupo em relação a

política que propunha a liberdade e igualdade de direitos entre a população do Brasil.

Assim verifica-se a composição de grupos que, não apenas se opuseram à liberdade e

igualdade de direitos entre brancos e negros, como é possível pensar que no contexto

social deste período, alguns segmentos da sociedade construiu ideais de caráter

purificador, o que evidenciou nesta análise, como alternativa da época para a

preservação de valores sociais baseados no regime imperialista, em que havia a

distinção entre negros e brancos, escravos e libertos. Entenda-se, portanto, que, esses

novos modos de pensar a manutenção de uma ordem que já estava vigente nas décadas

anteriores se objetivava do rompimento da possibilidade, ainda que iminente, da

inserção negra e mulata no cotidiano civilizado dos considerados brancos70, ao propor

novos modos de se socializar.

70 Segundo Gomes (2006) o conflito de rejeição/aceitação do negro é inerente ao processo histórico brasileiro marcado pela escravidão. Uma concepção que se soma à teoria de Bastide (1983) ao falar sobre

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Terceira parte da transcrição: que devião ser tomadas para que a extincção produzisse o menor abalo possivel. Veio a republica em 1848, e por um decreto do governo provisorio ficou abolida a escravidão em todo o solo francez; mas n’esse mesmo decreto se dectarou que a assembléa nacional trataria de indemnisar os prejudicados por aquella disposição. O decreto que se publicou nas colônias francezas é muito significativo: «Art. 1.º Fica abolida a escravidão. Art. 2º A indemnisação legitimamente devida aos proprietários fica sob a salvaguarda da honra franceza e recommendada á justiça da assembléa nacional. » Pede a attenção do senado para estas palavras «...devida aos proprietarios fica sob a salvaguarda a assembléa nacional. » Com efeito, a indemnisação se fez, dando-se maior ou menor valor aos escravos. O senado conhece e foi um autor muito manuseado, quando se discutiu a lei de 28 de setembro de 1871, o que diz Cochin, o qual é o maior abolicionista conhecido. Entendia elle que devia ser immediata a abolição; entendia, mesmo em abosoluto que não se devia dar indemnisação; entretanto, tratando da emancipação nas colonias francezas assim se exprime: Quarta parte da transcrição: « Se a escravidão não é um facto legitimo, é ao menos um facto legal; a lei o reconheceu, autorisou e animou; o possuidor é de boa fé, e seu erro

a questão da rejeição não estar diretamente ligada à cor da pele do negro, mas sim a sua condição escrava. Gomes (2006) evidencia, em seu estudo, que as representações negativas do sujeito negro ganharam força quando da oficialização da Lei Áurea, embora não exclua a contribuição de fatores externos de organização social, como o capitalismo, cultura, política e, mais tarde, no século XX, a globalização.

Doc. 29 - Diário da Bahia, 26 jun. 1888, p. 2

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foi começado pelo erro do legislador, e esse duplo erro durou por 200 annos... (O nosso por mais de 300); o commercio animou porque tirava d’ella proventos, esta instituição funesta; o thesouro lucrou legalmente; a França foi cúmplice por diversos titulos. É equitativo que ela indemnise. Alem disto, é útil principalmente aos interesses dos escravos (Este trecho vae aos humanitários). A liberdade será para elles a miseria, se no dia seguinte os colonos não puderem pagar o trabalho; a indemnisação é uma subvenção ao trabalho livre, e um adiantamento sobre o salário. « A indenisação foi votada, um anno depois pela lei de 30 de abril de 1849. A indemnisação, diz o mesmo autor, foi mesquinha. Dispendem-se 500 milhões e morrem 50 mil homens em uma guerra; e não ousa-se dispender 300 milhões para libertar 250 mil indivíduos (diga-se 400 mil entre nós) e salvaram-se as colônias da vergonha – e da (ilegível) » A guerra do Paraguay custou-nos mais de 600 mil contos, e n’ella 100 mil brazileiros perderão a vida. Não se olhou a sacrifícios. Hoje o menor sacrifício para attenuar o grande prejuizo dos lavradores, e com elles todo o capital nacional, é como affronta aos poderes publicos! O que fez a Inglaterra? Votou uma lei, não em um artigo singelo; mas em 66 artigos. Essa lei, abolindo a escravidão nas colônias, indemnisou com 20 milhões sterlinos aos proprietarios; marcou prazo para os escravos começarem a usar da liberdade, para aprendizagem do trabalho livre. Os resultados forão excellentes; as colonias inglezas pouco soffrerão. Poucas colonias tinhão a Dinamarca e Suecia: a extincção da escravidão poucos prejuizos lhes causou (DIÁRIO DA BAHIA, 26 jun. 1888, p. 2).

Em DaMatta (1997), se encontra um estudo introdutório sobre a globalidade

e/ou a busca do Brasil por influências europeias e estadunidenses para a implantação de

um sistema social e político que inserisse o país no cenário desenvolvimentista do

começo do século XX, após a implantação da República. Não se tratando de uma

necessidade nacional de igualitarismo, mas sim de manutenções sócio-culturais em prol

do desenvolvimento do País e de suas riquezas econômicas. Alguns segmentos

nacionais, a partir de seus representantes, passaram então a espelhar-se nos modelos

estrangeiros para tomar suas decisões. Esse modo de fazer político se pautou

principalmente nas decisões acerca da extinção da escravidão – a exemplo dos artigos

citados – e da formação ideológica do civilizar-se. Veja-se:

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Quinta parte da transcrição: (cont.)

Apontão-se, porém, os Estados-Unidos; mas ahi não houve lei de abolição; esta foi uma consequencia da guerra, e, portanto, nada havia que indemnisar. Para prova d’esta asserção aqui està um periodo do discurso de inauguração do presidente Lincoln: [...] (DIÁRIO DA BAHIA. Salvador: junho de 1988. p. 1-2).

Os Estados Unidos da América, bem como a França, foram o espelho para o País

que começava a testemunhar a degradação de um sistema simbólico tradicional de suas

relações, baseadas no escravismo. Era necessário, com isso, que a nova ordem se

encaixasse às políticas da nova Constituição, inspirada nos ideais da Revolução

Francesa e na Constituição dos Estados Unidos (DaMATTA, 1997). A nova ordem era

igualar-se e tinha como simpatizantes e defensoras as camadas mais populares da

sociedade, como alguns intelectuais, os partidários do liberalismo e negros libertos.

E foi na medida em que a antiga ordem começou a ser rejeitada por uma massa

popular no Brasil que os antigos senhores de engenho e uma pequena elite71

mantenedora da maior parcela territorial e imobiliária do país e do poder simbólico

nacional começaram a marcar novas maneiras para se distinguirem e assim manter suas

vivências em um mundo hierarquizado, no qual se reforçava a ideia do lugar

(DaMATTA, 2007)72.

71

Ver a composição da elite na seção anterior 72 Entenda-se o lugar do escravo, o lugar do senhor, do feitor, da mulher, do homem, do pobre, do rico, do branco e do negro. Cada um reconhece a si mesmo e se mantém em sua condição para honrar e ser respeitado enquanto sujeito integrado a sociedade. As consequências dessa determinação se deve, segundo DaMatta (1997) a transição do Império para a República e a todas as mudanças sociais em que o objetivo fosse o desenvolvimento socioeconômico do país.

Doc. 30 - Diário da Bahia, 26 jun. 1888, p. 2.

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Um lugar cujas referências transpõem os limites territoriais do Brasil e acionam

memórias de civilizações com um comportamento social demarcado e, há muito tempo,

hierarquizado. No que concerne ao lugar do negro somam-se, ao nosso corpus, os

exemplos de fragmentos das obras do artista plástico francês Charles-André Vanloo

(1705-1765) autor de Halte de chasse (1737), do pintor italiano Paolo Caliari Véronèse

(1528-1588), responsável por Les noces de cana (1562-1563), e do pintor francês Louis

Jeane François Lagrenée (1725-1805), com o quadro da “A morte da mulher de Dario”

(1785).

Nos recortes das três obras artísticas apresentadas foi observado na primeira

Halte de chasse, um indivíduo de pele escura carregando uma sesta de piquenique

enquanto na totalidade da obra anexa os sujeitos brancos, potencialmente representantes

europeus correspondentes ao século retratado, se divertem e descansam na pausa da

caça. No segundo exemplo, também de um fragmento específico da obra anexa Les

noces de cana (1562-1588), notou-se a presença de uma negra servindo o anfitrião em

meio a dezenas de outros indivíduos brancos comendo e bebendo no clima festivo.

Interessante relatar que também há a figura de homens brancos servindo outros homens

de vestimentas mais imponentes na mesma tela, contudo, a atenção ao único elemento

negro enquanto criado chama mais a atenção no contexto pesquisado. Na terceira

Fig. 6: Louis Jeane François Lagrenée (1725-1805). A morte

da mulher de Dario (1785). Fotografia nossa. Museu do Louvre, Paris, França. 2011

Fig. 4: Charles-André, Carle Vanloo (1705-1765). Halte de chasse (1737). Fotografia nossa. Museu do Louvre,

Paris, França. 2011

Fig. 5: Paolo Caliari Véronèse (1528-1588). Les noces de cana (1562-1563). Fotografia nossa.

Museu do Louvre, Paris, França. 2011

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ilustração do fragmento da tela anexa A morte da mulher de Dario, é possível constar a

presença de mais um elemento negro, o único na tela que também representa a figura de

quem serve.

Os personagens de Caminha (1895/2001) estavam adequados aos seus lugares e

respeitavam a ordem de suas posições, ao menos até o momento em que Amaro

assumiu-se transgressor dessa ordem. E, mesmo assumindo o papel de transgressor, os

espaços limitados para sua posição na hierarquia, o negro foi punido, e esta punição foi

dada por um de seus superiores, cuja descrição segue:

Era um oficial distinto, moço, moreno, os olhos vivos e inteligentes, grande calculista, jogador da sueca e autor de um Tratado elementar de navegação prática [...] Era homem robusto de feições e presença nobre, olhar enérgico, muito moreno, desse moreno carregado, cor de bronze, que o sol imprime nos homens do mar, bigode largo e compacto, levemente grisalho, com uma ponta de arrogância convencional, (CAMINHA, 2001, p. 12).

A arrogância convencional, utilizada para descrever tenente e comandante,

respectivamente, personagens de importância relativa, embora secundários na trama,

não foram adjetivações utilizadas com objetivo de diminuir suas índoles, pelo contrário,

os dispunham como racionais e objetivados pela ordem proposta, pelo grau de

civilidade atribuído ao branco. Ao longo da trama do Bom-Crioulo o lugar e os

estereótipos que diferenciavam o branco do negro foram bem evidentes, informando ao

leitor que, segundo a obra, não há meios de confundi-los, principalmente por suas

peculiaridades psíquicas, fisiológicas e comportamentais, conforme era possível

observar na ilustração do trecho da obra em que Amaro utilizou-se do lazer de um

banho: “[...] a primeira vez que o viram, nu, uma bela manhã [...] foi um clamor! Desde

então Bom-Crioulo passou a ser considerado um homem perigoso [...] Os grandes

pesos era ele quem levantava (CAMINHA, 2001, p. 24-25).

O termo moreno empregado pelo autor para descrever o matiz da cor do

comandante de bordo, dizia respeito ao branco bronzeado de sol e, por sua nobreza, se

assemelhava ao bronze, o mesmo material utilizado pelos romanos para a construção de

bustos de deuses e heróis73 . Caminha continuou referenciando outros matizes em seu

romance, a exemplo de um dos prisioneiros presente logo no início da obra, como o

“rapazinho amarelo, cor de terra [...]” (CAMINHA, 2001, p. 14). E mais adiante, “[...]

73

Referência nossa em diálogo a sugestão da robustez presente na citação.

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O outro, um mulatinho esperto, que tinha o hábito de andar espiando à noite, o que

faziam os companheiros, [e, finalmente um] moreno cor de jenipapo, cabelo rente, à

escovinha, olhos negros, nariz acaçapado [...]” (CAMINHA, 2001, p. 17).

Esses exemplos se assemelham aos exemplos presentes na obra de Guimarães

(1875/2005), no que tange ao caráter negativo e à personalidade tola dos personagens

mais retintos, e o abrandamento, com inquietude dos personagens mais claros a exemplo

de Rosa, ciumenta, mentirosa, vingativa, e do mulatinho esperto que se ocupava da vida

dos companheiros no convés.

Caminha (1895/2001), contudo, não utilizou dos estereótipos apenas para a

depreciação do negro conforme a proposta vigente na população baiana de fins do

Império na iminência da República, nem tão-somente para a representação da

superioridade do branco. O autor oscilou suas representações estereotipadas, propondo

um diálogo inédito e sugestivo à narrativa considerada naturalista no Brasil. Tanto

Amaro, o Bom-Crioulo, quanto os personagens brancos, a exemplo de Aleixo, o

grumete, foram, cada um deles, representado em conflitos identitários que, na

observação analítica deste estudo, entende-se como deslocamentos de sentido e uma

proposta de pluralidade identitária do sujeito que, segundo Hall (2002) não possuia uma,

mas sim, várias identidades74.

Em Bom-Crioulo, Caminha (1895/2001) apresentou o seu desejo de abrir o

diálogo acerca do que os estudiosos e teóricos científicos suscitavam e/ou legitimavam,

seguindo as teorias darwinistas, que limitavam a capacidade cognitiva dos africanos e

seus descendentes, bem como novos estudos que surgiam para classificar como

antinatural e/ou patológico a homossexualidade, assim como a questão negra.

O boicote e censura a sua obra em muitas instâncias sociais se manteve durante

muitas décadas e sua imagem de subversor não foi apagada mesmo no século XX. É

neste processo de transição, marcado pelas considerações científicas acerca da

patologização da homossexualidade e da degeneração, representadas pela população

negra e mestiça, que foram demarcadas novas categorias e classificações identitárias,

74 No romance é importante observar que Amaro deixa de ser o negro estereotipado quando a paixão pelo grumete Aleixo o possui. Desse modo, considerou Bastide, “[...] os estereótipos contra os negros não desempenham papel algum enquanto a paixão domina o herói do romance [...] Mas as imagens coletivas, herança do ambiente social, não morreram, e basta que a paixão diminua de intensidade, para que o branco sinta-se enamorado de uma mulher da sua cor, para que bruscamente ela retorne das profundezas, com violência exagerada, principalmente as mais repugnantes dentre elas, o odor infecto do negro e a sua sensualidade de selvagem [...]” (BASTIDE, 1983, p. 127). Entende-se, a partir do citado, que a paixão em Caminha (2001) fosse um sentimento amortecedor da selvageria do negro e este mostrava-se, não apenas o sujeito negro fechado em si, mas sim, o sujeito em suas amplas possibilidades.

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apresentadas na figura do personagem central Amaro, negro e homossexual. A

observação em torno destas questões leva à compreensão de que foi neste momento a

constituição da ideia de cidadão nacional para a modernidade, representado “num jogo

de inter-relação com um modelo de identidade hegemônica” (LARA NETO, 2007, p. 9).

Conforme elucidou Miskolci (apud LARA NETO, 2007), o pensamento social

brasileiro de fins do século XIX, respondeu a este contexto com um diagnóstico que

expressava o temor à degeneração ou o rompimento da ordem, portanto, o romance

Bom-Crioulo não representou apenas uma forma de classificação de certas identidades e

tipos sociais, como fez com as imagens do negro, mas, também, sobre a emergência do

dispositivo da sexualidade no contexto brasileiro, que marcou a memória social, a partir

do campo estabelecido entre o poder público da ordem e a memória que se constitui a

partir deste75.

De acordo com Lara Neto (2007), é possível pensar que Caminha (1895/2001)

propôs em seu romance a naturalização de comportamentos e identidades que trouxeram

à luz temores sociais, que a maioria preferia manter opacizado, como a questão

contextual pós-abolição, e a apresentação histórico-narrativa da memória em que a

abolição se pautou pelo abandono dos ex-cativos, embora se considere o caráter

denunciador de Caminha (1895/2001), ao escolher a estrutura da Marinha de Guerra,

um dos símbolos de civismo e moral, durante o Império brasileiro, como cenário em

uma atitude desmistificadora de suas patentes.

Amaro era um negro, ex-cativo, que após se libertar dos domínios da escravidão

encontrou refúgio na Marinha de Guerra, e passou a fazer parte do corpo da guarda, não

oficialmente, exercendo funções menos apreciadas, porém utilizando-se de toda a

formalidade proposta pela instituição76.

75 Baseado no princípio da memória social, aquela a designar o conjunto de fenômenos da memória na sociedade, Sá (2007) exemplificou as co-relações da vida na sociedade moderna a partir da esfera pública, esta considerada democrática partilha de crenças e juízos estabelecendo regras e impondo moral. “De fato, diz Jedlowski, a discussão política não se faz sem referência constante ao passado e às representações sobre o passado, constituindo assim a arena onde memórias coletivas múltiplas se confrontam”. (JEDLOWSKI, apud SÁ, 2007, p. 294). 76 Caminha evidenciou o pensamento de liberdade do negro, propondo aos leitores o contato com a consciência de um negro, embora pela visão do autor branco. Este propõs à voz negra, que até então era constantemente interditada pela memória comum de uma ideia que se fazia do negro - na troca de lugares com o branco, quando o próprio autor se viu no lugar do crioulo a imaginar o significado da liberdade para si. Veja-se: [...] “Bom-Crioulo só experimentara prazer igual quando o tinham obrigado a conhecer o que é liberdade, recrutando-o para a marinha. Essa liberdade ampliava-se agora a seus olhos, crescia desmesuradamente em sua imaginação, provocando-lhe frêmitos de alucinado, abrindo-lhe na alma horizontes cor-de-rosa, largos e ignorados [...] Ali se achava, ao redor dele, a sublime expressão da liberdade infinita e da soberania absoluta, coisas que o seu instinto alcançava muito vagamente através de um nevoeiro de ignorância” (CAMINHA, 2001, p. 24).

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Inda estava longe, bem longe a vitória do abolicionismo, quando Bom-Crioulo, então simplesmente Amaro, veio, ninguém sabe donde, metido em roupas d’algodãozinho, trouxa ao ombro, grande chapéu de palha na cabeça e alpercatas de couro cru. Menor (teria dezoito anos), ignorando as dificuldades por que passa todo homem de cor em um meio escravocrata e profundamente superficial como era a Corte — ingênuo e resoluto, abalou sem ao menos pensar nas conseqüências da fuga. Nesse tempo o “negro fugido” aterrava as populações de um modo fantástico. Dava-se caça ao escravo como aos animais, de espora e garrucha, mato a dentro, saltando precipícios, atravessando rios a nado, galgando montanhas [...] Logo que o fato era denunciado — aqui-del-rei! — enchiam-se as florestas de tropel, saiam estafetas pelo sertão num clamor estranho, medindo pegadas, açulando cães, rompendo cafezais. Até fechavam-se as portas com medo [...] Jornais traziam na terceira página a figura de um “moleque” em fuga, trouxa ao ombro, e, por baixo, o anúncio, quase sempre em tipo cheio, minucioso, explícito, com todos os detalhes, indicando estatura, idade, lesões, vícios, e outras características do fugitivo. Além disso o “proprietário” gratificava generosamente a quem prendesse o escravo (CAMINHA, 2001, p. 20-21).

A perseguição e o medo narrados por meio das memórias do escravo que

testemunhou essas fugas, representa o fugitivo como um animal feroz, irracionalmente

propenso ao mal. Além de ser acolhido pela Marinha, justificativa pouco evidenciada

pelo autor, Amaro era reconhecido pelos seus pares como o Bom-Crioulo por sua

obediência e sujeição. No entanto, ao se descobrir encantado pelos trejeitos de Aleixo,

um jovem grumete branco e frágil, o oposto de suas feições rústicas, negra e forte,

Amaro, o Bom-Crioulo, começou a lidar com a interface de sua condição passiva e

servil77. É neste instante que ele se vê cativo pela terceira vez, sendo a primeira a

posição como um escravo, a segunda sua subserviência incontestável a bordo do convés

e a terceira a sua condição de afetuosidade de gênero, sendo ele homem, como poderia

lidar com a paixão que se inflamava pelo outro do mesmo gênero78.

77 O personagem de Aleixo, do autor Caminha era, assim como o de Isaura de Guimarães (1875/2005), de pele alva, os olhos azuis e a beleza arrebatadora oferecida pela delicadeza e os fenótipos finos atribuídos aos brancos: [...] “Achava uma graça infinita naquele pedacinho de homem vestido de marinheiro, alvo e louro, sempre muito bem penteado, o cabelo sedoso, os borzeguins lustrosos, todo ele cheirando a essência, como uma rapariga que se vai fazendo mulher” [...] (CAMINHA, 2001, p. 49). Aleixo também era como Xuxa, do programa de TV descrita na introdução deste estudo. Ele, assim como ela, representava a região Sul do Brasil, mais conhecido por ser a região do Brasil em que se preservou através da imigração uma população branca formada por descendentes de alemães, italianos e poloneses, e em pequena parte por indígenas, portugueses, açorianos, espanhóis, africanos e franceses, dentre outros imigrantes a se fixarem no País. (ATLAS SOCIOECONÔMICO RIO GRANDE DO SUL, 2010). 78 Ao conhecer Aleixo, Amaro, o Bom-Crioulo, se encanta pelo grumete, e conforme a expressão de Caminha (2001) este se viu dominado por uma criança de quinze anos, que abalara toda a sua alma, “escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de um ímã” (CAMINHA, 2001, p. 26). Entende-se nesse estudo que Amaro se tornou cativo, ora pela condição de sua etnia, ora por sua

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[...] Amaro soube ganhar logo a afeição dos oficiais. Não podiam eles, a princípio, conter o riso diante daquela figura de recruta alheio às praxes militares, rude como um selvagem, provocando a cada passo gargalhadas irresistíveis com seus modos ingênuos de tabaréu; mas, no fim de alguns meses, todos eram de parecer que “o negro dava para gente”. Amaro já sabia manejar uma espingarda segundo as regras do ofício, e não era lá nenhum botocudo em artilharia; criara fama de “patesca” [...] - Diabo de vida sem descanso! O tempo era pouco para um desgraçado cumprir todas as ordens. E não as cumprisse! Golilha com ele, quando não era logo metido em ferros... Ah! vida, vida!... Escravo na fazenda, escravo a bordo, escravo em toda a parte... E chamava-se a isso de servir à pátria! […] (CAMINHA, 2001, p. 22,41)

Essas evidências suscitam à ideia de tempo e consciência para Reis (1994), na

qual em certas narrativas estão interligadas à destruição e ao terror, tanto dos sujeitos

brancos, quanto os esclarecidamente negros, que se veem frágeis e austeros,

simultaneamente, quando estão diante da finitude inexplicável, proporcionada pelo

tempo e pela segregação. Esse tempo vivido por Amaro na companhia dos oficiais,

apresentado pela obra de Caminha (1895/2001), possibilitou ao branco – representado

pela figuração dos oficiais, assim como ao negro, exemplificado na imagem do Bom-

Crioulo, que ambos enxergassem suas diferenças e semelhanças, de lugares invertidos.

Entretanto, o que é apresentado, inicialmente, tratava-se de um estranhamento e de uma

aceitação incorruptível do outro. Este, o outro, o principal mote suscitado pela obra79.

O outro, neste estudo, povoa o imaginário mnemônico de uma época e se

estabelece como a degeneração de uma ordem, de uma política pública, de uma

memória que se constituiu através de imposições de outras memórias, assim como

utilizou da concepção materialista dialética como explicação para as relações

escravagistas, por um viés puramente fetichista nas Américas, impondo um retrato do

vencedor sobre uma ideia de dominado.

O outro, ou seja, Amaro, o mesmo Bom-Crioulo, ocupou um lugar que não era

seu, e isso provocou risos incontidos nos oficiais estranhos à sua rudeza selvagem,

ingenuidade tipicamente docilizada em decorrência de sua condição escrava e

obediente, e de seu distanciamento daquilo que era compreendido como ritual do

homem civilizado, considerando-se a passagem descrita por Caminha (1895/2001) em

condição de fugido, integrado à Marinha, e também por sua condição afetiva, enquanto encantando pelo “belo marinheirito de olhos azuis, que embarcara no sul” (CAMINHA, 2001, p. 26). 79 Vê-se neste episódio o distanciamento sócio-cultural, que longe de propor uma consideração que o entenda enquanto natural, tem como objetivo legitimar a distância entre o sujeito tido como selvagem e o sujeito civilizado. Para Gomes (2006), as diferenças culturais foram tomadas pelo discurso moderno com um sentido negativo, englobando assim os aspectos físicos, estéticos, a crença e a arte.

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que relatou a surpresa coletiva de muitos ao perceberem que, ao longo dos meses, até se

via o que todos eram de concordar que “o negro dava para gente” (CAMINHA, 2001, p.

22), por saber manejar uma espingarda, segundo as regras do ofício.

É possível compreender que há, ao longo do romance, não somente a evidência

eurocêntrica reconhecendo a bestialidade da raça negra, mas também a confabulação e

manutenção de uma memória sobre o africano enquanto sujeito provido de incapacidade

intelectual e traços de bestialidade. O negro era o centro de um romance nacional, e este

transcendia o tratamento marginal trazido por Guimarães (1875/2005), ao colocar uma

porta-voz de pele branca e sangue mestiço de negro. O cenário do Bom-Crioulo é

metafísico, embora também representasse a ordem física e política, mantida pelo poder

militar instaurado por uma nação que testemunhava a transitoriedade e o

estabelecimento de seus valores.

Amaro se tornou homem escravizado por sua etnia e pele, condição e

mentalidade, e também por suas afeições, que o levaram a questionar todas as regras

circundantes, levando-o a se rebelar contra o que se estabelecia a sua volta. Todavia, o

anti-herói Bom-Crioulo apenas se rebelou contra sua condição de escravo, anterior à

fuga, ou de subjugado quando sentiu o corpo se queimar de paixão. Fato pouco

referenciado na obra de Caminha (1895/2001), embora, não obstante, proponha o

diálogo com os escândalos de sua vida pessoal, como no caso de seu envolvimento com

a esposa de um oficial, ou a simples alusão à presença de um espírito pulsante dentro de

um corpo negro, representado pelo personagem de Amaro. Caminha (1895/2001),

contudo, ofereceu inúmeras possibilidades de compreensão do seu romance mais

polêmico quando sua vida foi analisada e concluiu-se as assertivas de que ele, um

branco partidário da causa igualitária dos direitos humanos, provou, ao seu modo, a

existência de uma consciência para o negro inscrita na literatura de seu tempo, mesmo

imbricada pelo eurocentrismo80.

3.1.1. A apropriação do estereótipo como resistência ideológica

80 De acordo com Sayers (1958), na obra de Caminha encontram-se as mesmas propostas de escritores do século XIX, como Aluísio Azevedo, em O Mulato, sob o rótulo de naturalista. Esses estariam ocupados em descrever os fatos externos da vida diária das classes inferiores, e, por isso, representando os problemas do negro pobre discriminado pela sociedade em circunstância de sua escravidão, e não em razão de sua cor. Esse agravante que seria, no estudo do autor, evidenciado socialmente, principalmente após 1988 no Brasil.

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Conforme se observou, o sujeito negro era representado na literatura dos autores

negros e não-negros do século XIX e XX como possuidores de identidades

estereotipadas, demarcando lugares onde, a partir da observação do corpo físico e de

seus fenótipos, da emoção de seu modo de ser e agir se tornam reconhecidos enquanto

negro ou branco. Todavia, esses lugares e modos de ser correspondiam à memória de

um período em que o temor da degeneração ou o rompimento da ordem, perante as

ideologias de progresso do início do século XX, acometiam o projeto de civilidade e

construção do novo no cenário baiano do Salvador e, também, na capital da República,

o Rio de Janeiro (PERES, 1974).

É nesse viés que se fez o diálogo entre os autores negros e os não-negros,

intercalando as memórias de seus autores-sujeitos e as memórias experienciadas por

eles, e apresentadas em suas obras. Se, de um lado, existiam memórias estereotipadas

dos tipos de negro construídas por sujeitos que se denominam brancos, de outro, tem-se

as memórias destes estereótipos apropriadas pelo discurso dos negros, em muitos

momentos com a intencionalidade de exaltação dos seus valores, embora na maioria

deles sejam usados enquanto reprodução em consequência da introjetação dessas

memórias81.

Lima Barreto exemplificou a ideia de introjeção por se tratar de um sujeito-autor

negro, em que é possível ver na passagem de sua obra, Recordações do escrivão Isaías

Caminha, momento em que o personagem Isaias Caminha se viu ridicularizado pelo

deputado Castro que lhe mentiu com a promessa de ajudá-lo: “Veio-me um assomo de

ódio, de raiva má, assassina e destruidora; um baixo desejo de matar, de matar muita

gente, para ter assim o critério da minha existência de fato” (BARRETO, 1989, p. 67).

Tem-se, após a sensação de traição do deputado, uma reação de revolta em Isaias

Caminha, que se aproximou das concepções representadas pela maioria dos autores não-

negros do período supracitado, a exemplo de Caminha (1895/2001), responsável por

evidenciar o caráter animalesco e assassino de Amaro que encerra o romance após

assassinar Aleixo e abandonar o local do crime com indiferença82.

Não obstante, o autor (BARRETO, 1989/1992) ofereceu a Isaias Caminha a

possibilidade de redenção ao se arrepender de ter deixado submergir, de sua natureza

selvagem, sentimentos degenerados tão desprezíveis ao homem civilizado. E preferiu

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que o leitor contemplasse um personagem mulato de caráter covarde e obediente e, por

que não, vitimizado pela opressão da sociedade responsável por graduar os seus atos,

anulou seus esforços, considerando que essa mesma sociedade fosse determinada a

esmagá-lo tão fortemente até aniquilá-lo por inteiro83.

A humildade proposta ao personagem Isaias Caminha também pode ser tomada

com o objetivo de criar uma ideia positiva do negro (BERND, 1983), que deixava de ser

vinculada tão-somente à bestialidade, ao caráter débil e à ausência deste. Porém,

Rabassa (1965) viu a obra de Barreto (1989) como tendência à posição do autor

enquanto sujeito, ou seja, a voz de Isaias Caminha poderia ser a própria voz de seu autor

que, ao basear seu romance nas próprias experiências de vida, inseriu sua opinião sobre

diversos assuntos acerca das mudanças políticas e sociais no Brasil. DaMatta (1997)

apontou para o caráter político, retratado na obra de Lima Barreto, sendo reveladora,

não apenas da insatisfação de seu autor quanto à política de hierarquização na qual a

sociedade se organizava, quanto também a apropriação de modelos de heróis e

intelectuais estrangeiros a povoar o imaginário nacional. Ao descrever as feições do seu

amigo Leiva, Barreto (1989) deu exemplos da sua ideia de herói, este parecido com

Georges Ohnet: “Bem parecido, de rosto bem feito, e um nariz clássico e uns cabelos

pretos, tratados com especial carinho de manhã e à tarde, ele tinha a insignificante

boniteza dos homens, tanto do agrado das nossas mulheres” (BARRETO, 1989, p. 98).

Não eram eles que não me queriam deixar passar, era o meu sangue covarde, era a minha doçura, eram os defeitos de meu caráter que não sabiam abrir um. Eu mesmo amontoava obstáculos à minha carreira [...] O que me fazia combalido, o que me desanimava eram as malhas de desdém, de escárnio, de condenação em que me sentia preso [...] a gente que me cercava, me tinha numa conta inferior [...] e fosse qual fosse o fim da minha vida os esforços haviam de ser titânicos [...] a beleza é uma promessa de felicidade! (BARRETO, 1989, p. 87-88).

Isaias Caminha tinha a consciência de seu lugar e, conforme DaMatta

exemplificou, Lima Barreto deixou para a literatura nacional “uma descrição

pormenorizada do mundo social brasileiro que nenhum outro escritor jamais replicou,

83 Logo em seguida Barreto (1989) ofereceu ao leitor a vitimização do sujeito negro, frente à sua condição sofrida. Isaias Caminha ponderou sua revolta mostrando que, embora tivesse uma natureza selvagem e assassina, era capaz de controlá-la e se recolher mesmo em face de uma injustiça entendida como coletiva. “Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiu-me uma grande covardia e um pavor sem nome: fiquei amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os por toda a parte, graduando os meus atos, anulando os meus esforços; senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me, e reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente” (BARRETO, 1989, p. 67-68).

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seja sociólogo ou romancista” (DaMATTA, 1997, p. 202). Em seus dois romances

analisados por este estudo e, ao longo dos demais, Lima Barreto se mostrou enquanto

sujeito de seu tempo, descrevendo com riqueza de detalhes as contradições da sociedade

carioca, que se baseava em dois principais ideais antagônicos, sendo o primeiro o desejo

de igualdade e o segundo a manutenção da hierarquia (DaMATTA, 1997).

Naquela recusa do padeiro em me admitir, eu descobria uma espécie de sítio posto à minha vida. Sendo obrigado a trabalhar, o trabalho era-me recusado em nome de sentimentos injustificáveis [...] me veio aquele ódio do bonde [...] Revoltava-me que me obrigassem a despender tanta força de vontade, tanta energia com cousas em que os outros pouco gastavam. Era uma desigualdade absurda, estúpida, contra a qual se iam quebrar o meu pensamento angustiado e os meus sentimentos liberais que não podiam acusar particularmente o padeiro [...] Era uma simples manifestação de um sentimento geral, e era contra esse sentimento, aos poucos descoberto por mim, que me revoltava [...] O álcool não entrava nos meus hábitos. Em minha casa, raramente o bebia. Naquela ocasião, porém, deu-me uma vontade de beber, de me embriagar, estava cansado de sentir, queria um narcótico que fizesse descansado os nervos tendidos pelos constantes abalos daqueles últimos dias (BARRETO, 1989, p. 90-91).

Isaias Caminha também tinha o conhecimento de sua lassidão e fraqueza mental,

conforme a ideia de introjeção exemplificada por Bastide (1983). Tanto que, ao

caminho do bonde, depois de ser rejeitado pelo padeiro e de refletir a respeito do

acontecido, viu a imagem de ingleses pela rua e perguntou a si mesmo se estes, para ele

convencidos de sua originalidade, saberiam da inteligência incalculável que trazia o

povo escondida sob seus matizes negros. Persuasivo pela hierarquização, Barreto (1989)

partindo de Isaias Caminha, repudiou “aquela sociedade com pessoas que me tinham

suspeitado ladrão, pesava-me, abatia-me [...]” (BARRETO, 1989, p. 93). Entretanto,

não eram apenas os sujeitos que se denominavam brancos, os políticos detentores de

poder e os antigos senhores de escravos que compunham a sociedade renegada por

Isaias Caminha. Muitos negros, como o exemplo da mulher no bonde, reiteravam a ideia

de introjeção, quando a mesma a observá-lo, vestido com trajes tradicionalmente usados

pelos senhores, passou a vê-lo como inadequado, por ele não reconhecer o seu lugar de

não-nobre, embora se vestisse como um:

Num dado momento, virei-me e dei com uma rapariga de cor, de olhos tristes e feições agradáveis. Tinha uma bolsinha na mão, um chapéu-de-sol de alpaca e o vestuário era pobre. Considerei-a um instante e continuei a ler o livro, cheio de uma natural indiferença pela vizinha. A rapariga começou a murmurar, perguntou-me qualquer cousa que

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respondi sem me voltar. Subitamente, depois de fazer estalar um desprezível muxoxo, disse-me ela à queima-roupa: - Que tipo! Pensa mesmo que é doutor... (BARRETO, 1989, p.94)

Não apenas da introjeção de um modelo hierarquizante vivam a população de

matiz negro no Brasil, de Salvador e do Rio de Janeiro dos séculos citados. Segundo

Bernd (1983), muitos desses autores negros utilizaram da literatura como forma de

resistir à memória de degeneração da sua raça, propondo assim, de forma articulada, um

vocábulo próprio, bem como símbolos particulares para resgatar uma memória cultural

do negro que, gradativamente, se colocava no esquecimento ao longo do advento da

nova ordem social.

Para essa autora, isto legitimou uma escrita negra, “uma literatura que se propõe

a desconstruir o mundo nomeado pelo branco e erigir a sua própria cosmogonia”

(BERND, 1983, p. 18). Pautada por um viés ideológico, quanto à questão negra, a

autora definiu essa literatura como um grito de apropriação do discurso negativo,

enquanto um modelo de elevação da cultura, do caráter e do corpo físico do sujeito

negro, assim determinado pelo movimento político-ideológico francês da negritude84.

Este movimento representou, na perspectiva de Bernd (1983), o reflexo de uma

crise de identidade, adotado pelo movimento negro no Brasil, com início no século XIX,

dando margem para o posicionamento em torno da questão da pele na sua amplitude. E

assim, considerando os fenótipos, a relação de pertencimento identitário de alguns

grupos que se reconhecem como negros. No entanto, a discussão que é tomada neste

estudo como determinações objetivadas pela discussão sobre as descendências e sua

ascendência negro-africana no Brasil. Essa linha teórica que levaria a reduções e

compreensões pejorativas acerca das memórias negras e sua pluralidade étnica e

identitária, conforme Jaguaribe (apud BERND, 1983, p. 16): “A afirmação da negritude

como uma ideologia que assume supostas correlações inerentes entre as características

psicofísicas do negro e a cultura por ele produzida constitui algo de cientificamente

falso e ideologicamente negativo”.

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3.1.2. Afonso Henriques de Lima Barreto: os laços do presente

A vida de Afonso Henriques de Lima

Barreto, segundo seu biografo, Francisco de Assis

Barbosa (1914-1991), se confundiu com as

narrativas de seus romances e, seus personagens,

com os indivíduos que conviveram com o escritor.

Ao ler a biografia de Lima Barreto, escrita por

Barbosa (2002, p. 41), compreende-se os desafios e

as angustias de Isaias Caminha, o reflexo que,

“através da ficção, Lima Barreto como que

procurava explicar o próprio caso, remontando às

origens obscuras da sua família”.

Nascido no Rio de Janeiro em 13 de maio de

1881, o autor faleceu em 1º de novembro de 1922. Era filho de um mulato, João

Henriques de Lima Barreto, nas palavras de Barbosa (2002), quase preto, que tinha

nascido liberto, mas que trazia na pele o estigma da cor. Homem engajado politicamente

que, por muito tempo, trabalhou como tipógrafo da Imprensa Nacional. A mãe de Lima

Barreto, Amália Augusta, era filha de uma segunda geração de escravos, mas foi ela

quem alfabetizou o autor ainda na infância.

Amália faleceu quando Afonso era ainda criança, “a mais forte impressão de

Lima Barreto, nos primeiros anos da vida, foi sem dúvida a morte da mãe” (BARBOSA,

2002, p.61).

A vida de Lima Barreto já estava traçada pelos ideias de seu pai, representado,

segundo Barbosa (2002, p. 69), pelo personagem Policarpo Quaresma, do livro

homônimo. As referências literárias de Lima Barreto também foram construídas muito

cedo, quando de sua entrada no Liceu Popular, em que ficou até 1894, recebeu de

presente do pai João Henriques “toda a coleção de Júlio Verne”.

O aluno interno, Afonso ia todos os sábados para a Ilha do Governador, onde a sua família passou a residir, desde os primeiros meses de 1891, quando João Henriques foi promovido a almoxarife das Colônias de Alienados [...]. Para o menino da cidade, que morara em casas pequenas de aluguel, mudando constantemente de um bairro para outro, às vezes longíquos, e que depois passou a viver metido num internato, cuja reclusão sempre detestou, a ilha era a própria imagem do paraíso (BARBOSA, 2002, p. 73)

Fig. 7: Afonso Henriques de Lima Barreto

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Barbosa (2002, p. 78) contou que, naquela época, a Ilha do Governador era

ainda uma roça, vivendo, Lima Barreto, com certo isolamento do Rio de Janeiro, “os

companheiros de Afonso eram os irmãos e o velho preto Manuel de Oliveira, um

africano que fora recolhido ao tempo em que as Colônias eram asilo de mendigos”.

Continuando, o biografo revela que este Manuel de Oliveira é representado na

personagem de Anastácio, preto fiel que acompanhava o amo de sol a sol, no Triste fim

de Policarpo Quaresma, romance no qual o pai do escritor era a figura central.

O escritor fez seus primeiros estudos e, com o apoio de seu padrinho de batismo,

o Visconde de Ouro Preto, ministro do Império, completou-os no Ginásio Nacional -

Pedro II, entrando em 1897 para a Escola Politécnica, pretendendo ser engenheiro.

Teve, porém, de abandonar o curso para assumir a chefia e o sustento da família, devido

ao enlouquecimento do pai, em 1902. No mesmo ano estreou na imprensa estudantil e

sua família se mudou para o subúrbio do Rio de Janeiro, Engenho de Dentro, onde se

candidatou ao cargo vago na Secretaria da Guerra, mediante concurso público, tendo

passado em segundo lugar e ocupado a vaga, por desistência do primeiro, sendo

empossado em 1903.

Lima Barreto não alcançou os objetivos de vida almejados por seu pai e, ao

longo de sua vida sofreu com o estigma da cor de sua pele conforme esboçado ao longo

deste estudo, foi internado por diversas vezes em decorrência do alcoolismo e não

atinge em vida, o reconhecimento de suas obras literárias, aliás, a literatura foi

considerada pelo próprio autor a razão do declínio de sua vida. Não se pretende neste

estudo recontar a biografia de Lima Barreto, mas sim, apresentá-la de modo

fragmentário intercalada com as citações de sua obra.

3.1.3. Manuel Raymundo Querino e as memórias que contestam a história

Manuel Raymundo Querino foi da geração da

segunda metade do século XIX, no Brasil, contemporâneo

de Adolfo Caminha e Lima Barreto. Ao mesmo tempo,

esses autores, que experienciaram as memórias de uma

sociedade escravagista no País, tiveram também a vivência

Fig. 8: Manuel Raymundo Querino

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do período pós-abolição em meio aos conflitos sócio-políticos e econômicos.

Manuel Querino nasceu no dia 28 de julho de 1851, na cidade de Santo Amaro

da Purificação, no Recôncavo baiano. A data de seu registro é relativa, considerando a

realidade da época, principalmente em se tratando de descendentes de africanos no

Brasil, que encontravam dificuldades de acesso aos cartórios de registro civil, na

maioria das vezes oneroso e distante de suas habitações (RAMOS, 1938) 85.

Filho do carpinteiro José Joaquim dos Santos Querino e de Luzia da Rocha Pita,

ambos negros livres, foram vitimizados pela epidemia de cólera morbus na região, no

ano de 1855, que deixou Manuel Querino órfão de pai e mãe. Neste período, Santo

Amaro da Purificação era relativamente populosa e bastante conhecida por sua

produção açucareira, destacando-se como referência na Província da Bahia. Segundo

pesquisadores da história da região, a cidade sofreu uma queda acentuada no número de

habitantes, estimando-se ao todo 25 mil óbitos causados pela epidemia (Tavares, apud

GLEDHILL, 2009).

Encaminhado à capital da Bahia pelo juizado responsável pelos órfãos, Manuel

Querino foi confiado aos cuidados de um tutor, o professor aposentado, praticante da

doutrina espírita, Manuel Correia Garcia, doutor em Filosofia pela Universidade de

Tubinga, na Alemanha. Político, jornalista e advogado, também era deputado pelo

Partido Liberal. Contrariando a ordem estabelecida pela condição vivenciada pela

maioria dos negros sob a tutela de brancos, Manuel Correia Garcia, não criou Querino

para o serviço braçal, comumente destinado aos negros, e o iniciou nas primeiras letras,

despertando o interesse do jovem pelos estudos (RAMOS, 1938).

Em 1868, com idade entre os 16 e 17 anos, com apenas o curso primário,

Manuel Querino buscou melhores condições de vida em Pernambuco e Piauí. Segundo

Ramos (1938, p. 8), essa iniciativa fazia parte de um alistamento voluntário de Querino,

almejando se tornar recruta na guerra civil, em 1865, contra o Paraguai, “o seu physico

franzino não lhe permittiu, porém, como era o seu desejo, combater nos campos do

Paraguay. Ficou no Rio, [...] empregado na escripta do quartel, a que pertencia (sic)”.

85 Já na primeira metade do século XIX os registros saíram da responsabilidade da Igreja Católica e foram para os distritos, em que cada cidade era dividida. É o advento dos cartórios. Apenas os negros livres e cristãos podiam ser registrados, uma grande maioria não tinha registro mesmo nesse período. Embora Manuel Querino não fizesse parte, nesse caso dos não registrados, levantamos a hipótese de uma eventual dificuldade ou morosidade na aquisição do documento, levando em consideração as permanências e transitoriedade que marcavam o período, principalmente em relação a população negra pertencente a classe popular.

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Em 1870, Manuel Querino teria sido promovido a cabo de esquadra, e logo depois

dispensado do serviço militar.

Porém, para Gledhill (2009), Querino teria viajado para Pernambuco em

companhia de um sobrinho de Manuel Correia Garcia para evitar o alistamento forçado

na guerra contra o Paraguai, estabelecida pela Tríplice Aliança formada por Brasil,

Argentina e Uruguai. O recrutamento obrigatório para essa guerra seria uma das causas

para o grande torpor instaurado entre a sociedade da capital baiana, afugentando jovens

do sexo masculino amedrontados pela iminência de uma convocação.

Desse modo, ele só teria chegado ao Piauí alguns anos depois, quando, para sua

infelicidade, foi recrutado e enviado para treinamento militar no Rio de Janeiro. A

guerra do Paraguai terminou oficialmente em 1870 e, em outubro do mesmo ano,

Manuel Querino foi desmobilizado do serviço militar, segundo a autora, sob a influência

daquele que o apadrinharia dali em diante, o conselheiro Manuel Pinto de Sousa Dantas,

popularmente conhecido por Conselheiro Dantas.

Seu retorno à Província da Bahia, no ano seguinte, foi marcado por importantes

decisões na vida de Querino, que começou a trabalhar modestamente como pintor e

decorador, dividindo seu tempo entre os ofícios manuais e o aprendizado das línguas

francesa e portuguesa, no Colégio 25 de Março (QUERINO, 1938) 86. Na prática dos

ofícios, o matiz da pele e a influência política, bem como a ascendência genealógica

foram responsáveis por definir e/ou determinar o status social dos sujeitos pertencentes

à primeira metade do século XIX, marcado por transições em toda esfera macro sócio-

cultural na Província baiana, especialmente na capital, Salvador.

Intelectualmente promissor, Manuel Raymundo Querino era considerado um

artista de sua época, pela desenvoltura de suas atividades como pintor87. Segundo Leal

(1995), o baiano do século XIX era confundido com o operário, diferenciado apenas

pelo seu grau de talento. Estes se destacavam pelo esmero que davam a suas produções,

86 Ainda que fizesse parte de uma sociedade pós-colonialista, todos viviam divididos entre a permanência e a ruptura estabelecidas política e culturalmente. Exemplo disso tem-se a prática dos ofícios que distinguiram socialmente seus praticantes, de acordo com suas habilidades. Mesmo depois de transformações políticas e sociais, vivenciadas na metade do XIX, os praticantes das atividades manuais, como artesãos, pintores, marceneiros e ferreiros mecânicos eram vistos como pessoas sem prestígio social e político, por se tratar de uma parcela da população desprovida de recursos econômicos, ou, bens simbólicos. Em sua maioria, os ofícios manuais eram vislumbrados e/ou permitidos aos homens livres, em sua maioria brancos de origem portuguesa. “Alguns gozavam de ‘status social’ mais elevado, como os militares graduados” (LEAL, 1995, p.47). 87 A Escola de Belas Artes do Salvador disponibilizava o curso de Arquitetura, no qual se matriculou Manuel Raymundo Querino. Nesta época, a escola oferecia ensinamentos técnicos para aprimoramento e formação de mão-de-obra para os ofícios manuais. Manuel Querino já desempenhava sua atividade como pintor de paredes e, após sua passagem pela escola se tornou mestre de obras (FLEXOR, 1998).

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podendo ser serralheiros, marceneiros, pintores, carapinas, sapateiros, alfaiates ou

ferreiros. O título de artista conferia valorização ao trabalhador, o contrário acontecia

com aquele que se denominava operário, um simples executor, com baixo grau de

talento no exercício de determinado ofício.

Entende-se que Querino, apesar de um executor de atividades manuais, tal como

a pintura, buscou traduzir uma ideia de estética com o objetivo de deleite em seus

ofícios, e, por essa razão, decidiu se matricular no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia,

tanto por sua inclinação para o desenho e anseio de aperfeiçoamento de sua arte, quanto

pelo seu desejo de cursar humanidades (RAMOS, 1938).

Querino obteve o diploma de desenhista no ano de 188288. Ao longo de sua

carreira como estudante no Liceu, obteve várias medalhas por sua participação em

concursos e exposições promovidos pela instituição.

Com aprovação plena em português e distinção em francês, Querino encerrou

sua vida estudantil no Liceu e decidiu acompanhar o seu professor, o pintor espanhol,

Miguel Navarro y Cañizares, que saiu do Liceu de Artes e Ofícios em 1887, e, no

mesmo ano, montou em sua própria casa, com o auxílio de alguns alunos, incluindo

Querino, a Academia de Belas Artes da Bahia89.

Logo que receberam a doação de uma casa para abrigar exclusivamente a

Escola de Belas Artes, Querino foi contratado para o ofício de pintor, em complemento

ao processo de reforma da Escola e, em seguida, ingressou como aluno fundador, dando

seguimento em seus estudos ao se matricular no curso de Arquitetura.

Os limites entre o Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes eram confusos ao ponto de a própria Presidência da Província propor a junção das duas instituições [...] Ainda em 1891, os membros da comissão de reforma da instrução do Estado, declaravam ter a intenção de, na reforma, autorizar ao Governador entrar em acordo com as diretorias da Academia de Belas Artes e Liceu de Artes e Ofícios sobre o ensino técnico e profissional. Nesse sentido, para diferenciar-se mais do Liceu, a Congregação divide o curso de história das belas artes e estética em dois: curso de estética, estudo geral das artes e suas aplicações e história propriamente das belas-artes (ATAS, 6.8.1891, fl. 131 apud FLEXOR, 1996, s/p).

88 Entenda-se desenhista projetista, foi professor de desenho geométrico no Liceu. 89 O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas artes aparecem como escolas profissionais. A fundação da Academia, segundo Miguel Torres, deu-se na residência de Cañizares, onde havia o seu atelier no segundo andar de um grande sobrado situado a Praça do Palácio, no sítio em que a Rua da Misericórdia forma ângulo com a Ladeira da Praça (TORRES apud FLEXOR, 1996).

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Ainda que tenha sido aprovado com distinção no segundo ano do curso de

Arquitetura, Manuel Querino não o concluiu90. Segundo Barros (1946, p. 8): “não foi

diplomado em virtude de não ter sido lecionada uma das cadeiras91 do 3º ano92”. No

entanto, Querino se distinguiu no magistério, no qual fora licenciado como professor de

desenho, posteriormente nomeado lente de desenho geométrico no Liceu de Artes e

Ofícios e no Colégio dos Órfãos de São Joaquim e agraciado com o diploma de sócio

benemérito pela assembléia geral da época.

No século XIX, no Brasil, a hierarquização e o respeito imposto pela

organização escravocrata, entre os sujeitos da sociedade, eram medidos de acordo com

suas influências políticas e associações interinstitucionais (LEAL, 1995). Até então,

Querino fazia parte de uma instituição de caráter beneficente, o Liceu de Artes e Ofícios

da Bahia. Diferentemente da proposta do Liceu, do Rio de Janeiro, direcionado à

concentração e produção do conhecimento artístico intelectual produzido no País, o

Liceu da Bahia se destinava a atender às necessidades profissionais e de sobrevivência

de artistas e operários, com dificuldades socioeconômicas, instruindo os filhos dos

operários para ocuparem os cargos nas indústrias que surgiam (FLEXOR, 1996). Nesse

período, as relações escravocratas se esvaiam e a maior parte da mão-de-obra ativa da

cidade se constituía de trabalhadores livres (LEAL, 1995).

O fato de o Liceu baiano ser um instrumento para a profissionalização técnica

em prol do incremento produtivo, a partir da mão-de-obra técnica qualificada, não 90 Durante o “Curso Manuel Querino: personalidades negras”, realizado na sede da Academia de Letras da Bahia, na capital Salvador, entre os dias 23 e 25 de março de 2010, a pesquisadora Sabrina Gledhill, no primeiro dia de abertura do evento, levantou a discussão sobre o autodidatismo ou intelectualidade de Manuel Querino, suscitando o fato dele não ter concluído o curso de Arquitetura da Academia de Belas Artes da Bahia. A pesquisadora considerou, subjetivamente, sua qualificação intelectual acadêmica, independente da não conclusão das disciplinas exigidas pelo curso na época: “O fato de Manuel Querino não ter cumprido tais créditos não o impediram de ser um intelectual qualificado academicamente”. No entanto, durante o debate, no final dos trabalhos no mesmo evento, questionei o contexto da época na qual vivia Querino, pontuando a razão de não enxergar anacronicamente tais acontecimentos para não suprimir o momento de represálias, dificuldades e resistência que a figura de Querino impunha à sociedade de ideias racistas e ideais positivistas da época, evitando assim o endeusamento e/ou a heroificação de um sujeito oprimido por sua cor negra e status sociais. 91 Entenda-se matéria ou disciplina de um curso. As duas disciplinas não aplicadas foram: Resistência dos materiais e Estabilidade das construções . Cf. (LEAL, 2009a, p. 14). 92 O curso de Arquitetura era feito em três anos: no 1º se lecionavam teorias, como a aritmética, a álgebra, a geometria e a trigonometria, como prática o desenho linear para arquitetura e maquinas e o desenho de ornamento e sombra. No 2º ano ensina-se teorias a geometria descritiva, a mecânica elementar e elementos de arquitetura, e como prática epuros de geometria descritiva, aplicações de elementos de arquitetura, desenho de portas, janelas, madeiramentos, etc. No 3º ano, finalmente, ensina-se resistência dos materiais e estabilidade das construções, maquinas empregadas nas construções civis, composições dos edifícios e historia da arquitetura; como teoria e prática de aplicações, projetos de casas e edifícios públicos, desenho a lápis, simples e com sombreados. Cf. (ATAS 14.2.1890, fl. 124, 125, apud FLEXOR, 1996, s/p).

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excluia o seu poder de unir o corpo discente e parte do docente em função de um ideal

comum, do qual Manuel Querino fez parte, militando pelos direitos educacionais,

culturais e democratizantes, em favor da população que crescia socioculturalmente

desigual em Salvador.

A Bahia, particularmente a capital do estado, vivia momentos de tensão

marcados pela transição de um modelo imperial, mantenedor do tradicionalismo

agrário-escravista para outro de características mais liberais, evidenciando a luta pelo

abolicionismo dos escravos e a tentativa de implantar uma política republicana. Manuel

Querino presenciou esse contexto, que se enriqueceu ideologicamente baseado na

ascensão e crise da ordem liberal no País, estabelecida desde a guerra contra o Paraguai

marcando toda uma geração em busca de um porvir diverso e, por que não, constitutivo

de uma ordem comum em direção à ideia de progresso e civilidade. Todavia, é sabido

que a luta de Querino pelos cidadãos comuns era inerente à sua própria história de vida.

Ele se esforçou para arredar o artista da tutela da política almejando sua independência e

autonomia, bem como pela causa operária a qual pertenciam os artistas do período; “A

primeira vez que Manuel Querino militou em política foi em 1878, como republicano,

quando teve o seu nome indicado aos sufrágios do povo, tal o devotamento com que se

empenhara na propaganda democrática” (BARROS, 1946, p. 8).

Sujeito do seu tempo, experienciando o fenômeno social que o condicionava na

posição de imobilidade, Querino se articulou sob esta condição em defesa de interesses

comuns ao mesmo tempo coletivos, em favor da causa negra, defendida pelos ideais do

Partido Liberal, visando o republicanismo e o abolicionismo. Ele experimentou, na pele,

a condição limitada, reservada ao negro dos fins do século XIX, ao ver que inúmeras

manifestações e ações realizadas pelo seu movimento em defesa dos direitos civis dos

negros e operários não alcançavam as mãos das lideranças de renome, assim como Ruy

Barbosa e José do Patrocínio, conhecidos pela história oficial por alguns feitos

relacionados à questão escravista (LEAL, 2009b), questões estas a serem retomadas em

outro momento, pontuando as distorções da história, a omissão e manipulação de

documentos sobre a historiografia negra no Brasil.

Seus ideais republicanos eram defendidos por meio dos periódicos “A

Província” e “O Trabalho”, ambos fundados por ele, no auge do advento do novo

regime político que a capital da província baiana testemunhava. Em ambos os

periódicos reclamou categoricamente os direitos da classe operária, “e isso lhe valeu a

nomeação de membro do Conselho Municipal, 1891, e nos debates [...] não cessou de

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propugnar e acentuar suas ideias em relação à causa do operariado” (BARROS, 1946, p.

8).

Não se pretende, neste estudo, recontar a biografia de Manuel Querinoo, mas,

sim, apresentá-la de modo fragmentário intercalada com as citações de sua obra.

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4. AS SENSIBILIDADES DA PELE

Nesta seção há o tratamento das sensibilidades envolvendo os sujeitos de matiz

negra e abordagens em torno das relações pertinentes às identidades do negro, enquanto

personagem de experiências na história e na ficção. As memórias do vivido se

entrecruzam ao discurso narrado de quem viu e sentiu, como no caso dos autores-

sujeitos que compõem o corpus deste estudo, circundando a discussão em torno do

estigma imposto à pele negra ao longo do final do século XIX e início do XX.

O tratamento desta questão em torno das sensibilidades da pele negra remete à

afirmação da presença dos elementos corporais, segundo Vernant (1986), assim como

daqueles que não o são, mas que habitam no reino do divino e/ou no idealismo

mnemônico coletivo constituído desde a era Antiga, na qual padrões de comportamento,

modos de agir e vestir, bem como o fato de ser-ou-não-ser-belo serão determinados, e

seguidamente ressignificados pelas gerações seguintes através dessas memórias do

passado.

O diálogo desta seção é marcado de remissivas lembranças do passado Antigo,

procedimento a soar extemporâneo caso não se tratasse do conceito de memória, que

reitera o critério da discussão proposta em torno das memórias do presente século

supracitado. Os autores cujas obras foram utilizadas nas seções anteriores para o corpus

de contextualização das memórias de sua época, se tornam, a partir desta seção,

personagens ao lado de seus personagens, estabelecendo elos entre o presente e o

passado, ambos os períodos refletidos ao futuro, através dos ideais, e devires destes

sujeitos, acionados por meio de suas lembranças narradas.

E, encerrando o intercurso espistemológico ao relato do universo plural das

identidades negras no Brasil, chega-se à seção final em que as sensibilidades da pele são

observadas e descritas a partir das emoções das personagens de Lima Barreto e das

descrições dos sujeitos estudados por Manuel Querino. Aquelas memórias tomadas

como esquecidas ou calcificadas no passado imperialista e republicano são

ressignificadas por meio da análise das obras elencadas dos autores supracitados,

possibilitando sua comparação com obras de outros autores com o fim de reinterpretar

ou reinserir novas memórias das ascendências para os descendentes negros no Brasil.

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4.1. O AUTOR E O SUJEITO NEGRO NA LITERATURA DO SÉCULO XIX

O escritor e sujeito Lima Barreto imprimiu ao longo de sua obra literária as

memórias de seu tempo e as narrou em detalhes partindo de sua sensibilidade enquanto

escritor. A cada crônica e conto o autor deu pistas do seu cotidiano apontando sua

insatisfação em relação a sua condição de homem à margem da sociedade,

marginalização está, muitas vezes, justificada em sua obra, pela tonalidade de sua pele

“meu pai ainda tinha em muita evidência os traços da raça negra; e meu primo [...]

como todos os antropologistas nacionais, põe os defeitos [...] nos traços e sinais que

ficam à vista” (BARRETO, 2010, p. 150); um motivo pelo qual o autor também

justificou sua entrega ao alcoolismo e à degradação moral ao receber o status de louco e

ser internado por diversas vezes; “eu queria um grande choque moral, pois físico já os

tenho sofrido [...] não poder [...] realizar o ideal que tinha na vida [...] me tirasse dessa

imunda bebida” (BARRETO, 2010, p. 57-58). E foi o alcoolismo um dos fatores

principais para o declínio do ideal a que se pretendia o autor, cuja vida foi marcada por

escândalos e constantes entraves com a polícia, suas próprias convicções e o seu lugar

na sociedade que o mantinha à margem; “a polícia da república (sic)[...] é paternal no

tratamento das pessoas humildes que dela necessitam; e [...] quer se trate de humilde,

quer de poderosos, a velha instituição cumpre religiosamente a lei” (BARRETO, 2010,

p. 257).

Ao contrário de Lima Barreto, Manuel Querino não experimentou, segundo

dados de sua escassa biografia, o conflito do alcoolismo, da loucura e das constantes

prisões em desrespeito as leis de seu tempo, no entanto, o percurso de sua vida seguiu

caminhos muito próximos aos vivenciados por Lima Barreto, como a condição

econômica estagnada à margem social de uma Bahia ressentida, a não conclusão dos

cursos técnicos nas escolas oficiais, o pouco reconhecimento dos pares de sua época

quanto da legitimidade e da importância de sua produção intelectual. Não obstante,

ambos os sujeitos-autores viveram a experiência dos processos que se restabeleceram

com os laços do seu presente até o limiar do século XX.

As experiências construídas ao longo dos séculos XIX e XX por esses

personagens-autores remontam às memórias dos corpos dos deuses inferindo nos

homens através da religião Cristã, o caráter do Sagrado, identificado entre e nos sujeitos

comuns, num sentido hegeliano, o “polimorfismo” do corpo de Cristo significativo de

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um tipo de existência na qual coexista o ser-em-si-e-por-si que se identifica com a

existência-por-e-no-outro (MOINGT, 1986).

É, portanto, desta significação do Sagrado “ao meditar sobre a encarnação que

Hegel fará da conjunção do amor e da morte o princípio constitutivo da pessoa como

transposta de si em direção ao outro e do retorno a si por identificação no outro”

(MOINGT, 1986, p. 80, tradução nossa),93 que se estabelece o elo entre o passado e o

presente, bem como da concepção de civilidade europeia discutida na primeira seção

onde, a partir das concepções de Shoupenhauer (2005), foi possível pensar o sujeito que

se reconhece enquanto sujeito no mundo que ele representa para si. E é da mesma forma

que se percebe a ordem e a dissociação de uma cultura como a europeia, de outra, como

a africana. Deste modo, é possível refletir acerca da supervalorização dada ao homem

europeu e sua cultura no Brasil dos séculos XIX e XX, em detrimento da opacidade da

cultura africana, cujos representantes transplantados para o território do Brasil foram

significativos em número, mas que, no entanto, não significavam a dignidade do corpo

oficial cristão.94

Tem-se, a partir de então, o reconhecimento do europeu para consigo e a

dissociação deste para com qualquer outro povo que não faça parte do seu corpo. E este

corpo, conforme Moingt (1986), é visto como uma noção possível de ser interpretada

como categoria histórica dentro do imaginário que trata de decifrar no interior de uma

cultura particular definindo as funções que ela assume e as formas que ela reveste; neste

estudo, se consistem na pele seus matizes e suas sensibilidades.

Seja esta uma pele negra a definir o caráter lascivo do sujeito que a reveste como

se aplica ao escravo André do romance A escrava Isaura (1875/1989) ou também a pele

mulata do personagem Isaias Caminha do romance Memórias do escrivão Isaias

Caminha (1895/2001), que sente a humilhação do deputado Castro e até mesmo o

abatimento das suspeitas que lhe caíram, denunciado por alguns hóspedes e funcionários

do hotel em que se hospedou, ou até mesmo a pele branca que se enobrece por sua

93 No texto original de Moingt (1986, p. 80) lê-se : “...Et c’est em méditant l’incarnation que Hegel fera de la conjonction de l’amour et de la mort le principe constitutif de la personne comme sortie de soi vers l’autre et retour en soi par l’identification à l’autre.” 94 O discurso religioso acerca do corpo divino contribuiu para que se fizesse a relação do elemento humano que se reconhece em si através do outro, ou se distancia de si a partir da dissociação que é feita do outro. Ao utilizar o exemplo do sagrado tem-se de um lado a divinização do Deus Cristão e o paganismo, atribuído pela civilização cristã, aos deuses africanos. Conforme Moingt (1986) a Igreja utiliza da imagem de seus ritos para tomar como pagão qualquer Deus que se aproxime do homem comum, e que não tenha a divindade determinada pelos seus próprios padrões de acordo com sua própria natureza. Assim a Igreja chama esses deuses de falsos deuses em exaltação aos seus próprios deuses.

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beleza desigual como a da escrava Isaura ou a dos sempre “belos... heróis da Grécia”

(BARRETO, 2010, p. 104).

Em Querino (1938), assim como em Barreto (2010), não há o distanciamento

quanto às impressões do que se observa no sujeito que possua a pele negra,

principalmente ao considerar o tempo no qual ele narra essas observações. Em seu

tempo, ser negro é o mesmo que uma “fatalidade” (QUERINO, 1938, p. 100) em que o

sujeito não tem a chance de decidir ou mudar o destino de sua genética, e, dando

sequência ao seu pensamento, embora o corpo e o sujeito negro possuam atributos

interessantes aos olhos do outro, como “qualidades para ser uma excelente companheira

e uma criada útil e fiel... sadia, engenhosa, fina, sagaz, cautelosa” (QUERINO, 1938, p.

99-100), este não escapa do estigma da ausência da “força inteligível” atribuído a sua

etnia, para elevar-se da fatalidade que lhe diz respeito

[...] a negra Mina apresentava-se com todas as qualidades para ser uma excelente companheira e uma criada útil e fiel (...) Escrava resistente a todos os trabalhos... ao mesmo tempo que nutria um fogo inextinguível, ela sabia dirigi-lo e aproveitá-lo em benefício da própria prole (...) em toda a parte do país onde houve escravatura ela influiu poderosamente sobre o galego e vacinou a família brasileira (...) Não possuindo força inteligível para elevar-se sobre a fatalidade de sua raça, ela pregava toda a sua sagacidade afetiva em prender o branco e a sua gente na tepidez do colo macio e acariciador (QUERINO, 1938, pp. 99-100)

É, contudo, na contramão do pensamento de Moingt (1986) que se propõe o

pensamento de Dolto (1992), ainda que esses autores retratem culturas e contextos

distintos, ambos teorizam sobre o corpo e a raça no processo da história.

Para Fanon (1952/2008), muito além da identificação física do indivíduo estão

os esquemas corporais, e estes especificam o sujeito conquanto representante de sua

espécie, independente do lugar, da época ou das condições nas quais ele tenha vivido. O

esquema corporal seria o responsável por reportar o corpo do presente à experiência

imediata, podendo ser independente da linguagem e da história que relaciona o sujeito

com outros.95 Um ponto possível para pensar em como Querino (1938), enquanto autor,

estabelece o distanciamento da negra que ele relata.

Noutro ponto, tem-se a remissão do que Gomes (2006) chama de memória do

inconsciente, traçada na relação entre o colonizador e o colonizado. Uma consideração

95 Pensamento que remete ao estudo de Freyre (1933/2004) sobre a diferenciação e/ou evolução das etnias, como um fator determinado pela cultura e não pela raça.

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que, se tomada, leva ao que poderia ser considerado um contradito presente no

enunciado de Querino (1938), quando ele suscita a raça como um fator de fatalidade ao

negar a si mesmo na imagem do outro e de seus grupos étnicos, resultando na ideia de

introjeção do racismo.

Para Fanon (1952/2008), neste contexto de introjeção, o conhecimento do corpo

é uma atividade unicamente negadora. Por se tratar de um conhecimento em terceira

pessoa, pois em torno desse corpo reina uma atmosfera de incerteza. Sendo assim, o

negro é sobredeterminado do exterior.96 Deste modo, esta posição de Querino (1938)

não teria se tratado de um sentimento de inferioridade, mas sim de inexistência.

Sentimento este que será compartilhado entre muitos negros após, principalmente, o

advento da República, quando os negros resistiram e sofreram resistência para a

inserção de si e de suas subjetividades no seio social do Brasil.

E, se de um lado, Manuel Querino (1938) atribuiu a não inteligibilidade a uma

das etnias africanas, de outro lado, ele atribuiu à elite política e intelectual de seu tempo

a culpa pela não mobilidade social e intelectual de outros grupos negros, deixando

impresso o seu “protesto contra o modo desdenhoso e injusto por que se procura

deprimir o africano, acoimando-o constantemente de boçal e rude, como qualidade

congênita e não simples condição circunstancial, comum, aliás, a todas as raças não

evoluídas” (QUERINO, 1938, 22).97 Sua reivindicação, todavia, mantém ao final da

citação o lugar comum em que se via naquele período o negro africano, equiparado a

todas as “raças não evoluídas”. Protesto este que para o historiador inglês Brookshaw

(1983) teria sido mais uma reivindicação particular de Manuel Querino na tentativa de

“reabilitação do mestiço urbano alfabetizado; de aspirações pequeno-burguesas”

(BROOKSHAW, 1983, p. 56).

As ideias em torno da concepção da introjeção e também dos esquemas

corporais não são tomadas por este estudo como resposta específica para o recorte e a

posição de Querino (1938), especialmente por serem conceitos muito particulares da

problemática do racismo e dos movimentos negros da segunda metade do século XX.

96 Neste estudo entende-se que, se o negro é entendido pelo seu exterior em relação a sua visibilidade através do branco, o inverso também pode ser considerado. Nesta linha de raciocínio não se vê características especiais de introjeção às etnias negras senão aquelas norteadas ao processo histórico no qual estes sujeitos foram inseridos no contexto da escravidão. 97 Neste trecho é possível observar a separação que Querino (1938, p. 22) faz das etnias africanas, tomadas em seu tempo como raças. Em sua fala “todas as raças não evoluídas” entende-se que o autor esteja reiterando a classificação positivista retratada por Rodrigues (2008) e Ramos (1938) ao separarem os grupos africanos em escala de inteligência e habilidades, considerando seus fenótipos e os matizes de sua pele.

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Estes são conceitos tomados enquanto caminhos para se pensar o modo sensível do

sujeito negro retratar a si na sua subjetividade afetiva e histórica.

A partir das abordagens de Meingt (1989), Fanon (2008) e de Gomes (2006), é

possível concluir desta questão que Querino (1938) não estabeleceu identificação direta

com a negra de etnia Mina por não pertencer ao contexto da escrava, ou seja, ele,

enquanto sujeito nascido em um território fora da África é filho de pais miscigenados, e,

ainda que sejam mais retintos não correspondem à memória descrita que reveste o corpo

da personagem negra.

O distanciamento de Querino (1938) da negra que ele descreve, propõe o relato

de uma lacuna que ligaria o sujeito negro do tempo de Manuel Querino à sua origem

genealógica. E neste intercurso se observa, em Barreto (2010), o distanciamento

determinado entre ele enquanto sujeito, da figura de seu pai, que tem sinais que

conservam de forma mais evidente à sua raça e, por isso, lhe entregou a quem quer que

o tenha visto. Em Barreto (2010), o fato de ser ele o filho de seu pai (BARBOSA,

2002), um homem mulato nascido escravo e de sua mãe, uma filha de escrava agregada

de uma família branca, representa o distanciamento dos sinais da raça por ser ele cria

miscigenada de uma geração antecessora de miscigenados. Com isso, o peso do estigma

negro para Barreto (2010), bem como de sua identificação direta com a pele negra,

teriam sido esmaecidos de sua memória.

Neste contexto, entretanto, é possível compreender que existiu o distanciamento

e a negação da raça, justificados pela justaposição de um padrão de ordem/inclusão

branca e de desordem/exclusão negra. E, todavia, é característico de um devir étnico-

ideológico que não se enquadra nem em um fenótipo tomado no Brasil como branco e

nem no fenótipo tido como reminiscência africana. É, por fim, nesta perspectiva, que se

entende estes sujeitos no cruzamento de uma definição comum, em que há a

consideração e/ou formulação que transpõe o limite de uma etnia genuína. Isso quer

dizer que ele se coloca em um domínio no qual ele não é branco e nem negro, de acordo

com as referências de identificação que emergem da narração feita sobre o outro. Para

finalizar, eles parecem fundar outro lugar para o negro que ainda não havia sido descrito

e com o qual não se identificam para criar outros tipos de identidade. Posto isto se

quebra com a ideia purista que se tem de uma identidade negra fixa, que se molda a

partir do olhar do negro para o negro constitutivamente diferente dentro de sua própria

etnia.

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4.1.1. ESPELHO ESPELHO MEU... EXISTE BELO98

MAIS NEGRO QUE TESEU?

Abrindo o ponto relacionado ao domínio do sujeito negro que não se reconhece

em uma abordagem fixa, em torno de sua pele, validam-se as considerações sobre quem

é e não é tomado como belo. Como exemplo, vê-se na referência de Barreto (2010) sua

impressão do belo, entendida por ele, como característica dos “heróis de Grécia e

Roma” (BARRETO, 2010, p. 104). Esta é uma memória que remete a outra memória

oposta de beleza, como a da personagem Zezé, de O triste fim de Policarpo Quaresma

(1992, p. 43) doida para arrumar namorado, ela não conseguia porque era feia,

“amorenada, com os seus traços acanhados, o narizinho malfeito”. E, em outro

98 “O adjetivo qualifica o que concerne ao belo (emoção ou julgamento estético). O substantivo (que aparece na segunda metade do século XVIII) designa a teoria da arte e do belo, ou, mais precisamente, a disciplina cujo objeto são os julgamentos de apreciação quando se aplicam ao belo e ao feio. Embora o termo lhes seja posterior, pode-se assinalar uma estética (metafísica) em Platão ou São Tomás. Porém, os dois sistemas mais rematados da filosofia clássica nesse domínio são o de Kant (1790) que, insistindo na finalidade interna presente na obra de arte, marca a especificidade da última, e o de Hegel (1988), que mostra que o desvendamento do significado da arte é inseparável de sua história – o que implica a eventualidade de seu fim. Tendo a estética moderna em geral renunciado a assinalar as normas do belo, volta as suas pesquisas seja para o estudo das próprias formas em seu desenvolvimento histórico, conforme Panofsky (1995), seja para as relações que podem existir entre uma obra e seu criador ou, mais amplamente, seu meio social, conforme propuseram os estéticos marxistas”(DUROZOI, 1996, p. 167-168). No entanto, de acordo com Eco (2004, p. 36) ao falar sobre a estética do belo na perspectiva clássica da Grécia: “Chi è bello è caro, chi non è bello non è caro”, ou seja, o que é belo é caro, o que não é belo não é caro. Percebe-se, contudo, que ao referir-se aos versos de provérbios constantemente recordados pelos poetas gregos, entre eles Teognide e Eurípedes, Eco (2004) revela que essa forma de pensar o belo partindo de uma concepção grega não passa de uma expressão do sentido comum sobre a beleza dos antigos gregos. “De fato, porém, na Grécia Antiga a beleza não tinha um estatuto autônomo, pode-se dizer que aos gregos até a Idade de Péricles faltou uma verdadeira e própria estética e uma teoria da beleza. Não por acaso encontramos a beleza quase sempre associada à justiça, a bondade, a generosidade, bem como à medida e a conveniência. A beleza dos corpos masculino e feminino não podem, todavia, afirmar que os textos de Homero manifestaram uma compreensão concebível da beleza. O mesmo devemos dizer para os poetas líricos sucessivos, entre eles com importante exceção de Safo, o tema da beleza não parece relevante. Essa perspectiva originária não pode mais ser compreendida a não ser que se olhe para a beleza com os olhos modernos, como usualmente o fazem quando se trata de beleza clássica, sendo que está na realidade era concebida de forma ficcional, uma verdadeira projeção sobre o passado de uma visão do mundo moderno. Kalón é a significação do que dá prazer que suscita admiração, que atrai o olhar, o objeto belo é o objeto que na virtude da sua forma apaga os sentidos, entre esses em particular o olho e a orelha. No caso do corpo humano assumem um papel relevante a qualidade do corpo e da alma que vem pela percepção do olho, e pela mente, mais que do corpo, sobre essas bases podemos falar de uma primeira concepção da beleza que está mais ligada as diversas artes que a expressão e não a um estatuto unitário, embora apropriada à simetria das partes, da escultura etc.” (ECO, 2004, p. 36-42, tradução nossa). A Aesthesis, como uma dimensão própria do homem, tem despertado, desde a Grécia antiga, interesse e preocupação no ser por aquilo que, efetivamente, o agrada. Essa disposição ao questionamento do belo, a busca incessante pela compreensão e delimitação do conceito de beleza move a estética no transpassar da vida humana como disciplina filosófica, como mera fruição, como criação, como um ideal ou como uma ruptura. Para Platão, o belo é o bem, a verdade, a perfeição; existe em si mesma, apartada do mundo sensível, residindo, portanto, no mundo das idéias. Cf. VALE, 2005. s/p. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/046/46cvale.htm>. Acesso em: 13 jul. 2010. Entretanto, para Hume (1989, p. 266) “quem nunca teve a oportunidade de comparar os diversos tipos de beleza, indubitavelmente se encontra completamente incapacitado de dar opinião a respeito de qualquer objeto que lhe seja apresentado. Só através da comparação podemos determinar os epítetos da aprovação ou da censura, aprendendo a discernir sobre o devido grau de cada um”. Todavia, para Kant (1790), a estética é um estado de vida de direito próprio, uma capacidade de fruição intimamente relacionada a outras capacidades cognitivas do ser humano, sem depender da aquisição de conhecimento, ou seja, para contemplar o belo, o sujeito não se vale das determinações das capacidades cognitivas das faculdades do conhecimento. O juízo estético kantiano chega a um conceito mínimo da percepção estética, pois, para todos os objetos, independentemente de serem eles obras de arte, ou objetos oriundos da natureza, ou objetos da vida cotidiana pública ou privada, estes possuem, minimamente, algum aspecto que se manifesta a partir da atenção que se dá a esta manifestação. Conceitos tais como objeto estético e percepção estética são, nesse sentido, indissociáveis. Todavia considera-se que o valor estético evidenciado ao longo desta pesquisa, trata-se exclusivamente das características dos fenótipos caracterizados no corpo negro-africano e negro-brasileiro.

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momento, ao falar de sua admiração por Georges Ohnet (1848-1918), romancista

francês do século XIX, revelando uma admiração que vai além das qualidades artísticas

do romancista até chegar a contemplação das medidas do “rosto bem feito, e um nariz

clássico e uns cabelos pretos, tratados com especial carinho [...] ele tinha a

insignificante boniteza dos homens, tanto do agrado das nossas mulheres” ( BARRETO,

1989, p. 98).

Entendeu-se, por conseguinte, que Lima Barreto considerou esses homens, de

beleza insignificante, belos como o autor francês que ele citou. Barreto (1989), em seu

discurso, deu sinais de que banalizava este tipo de boniteza, mas, logo em seguida

reforçou que, mesmo achando esse tipo insignificante, as mulheres, em sua pluralidade,

se agradavam dela.

Abaixo é possível observar a representação iconográfica do autor francês

Georges Ohnet, em um agrupamento de imagens que remontam a memória de dois

personagens da mitologia grega, tidos historicamente como belos, Teseu e Narciso.

Em uma breve análise iconológica foram observadas as características do nariz

clássico a que Barreto (1989) se referiu, atribuída ao escritor francês Georges Ohnet,

presente nas três referências de imagens. Este nariz, denominado por Barreto (1989)

como um nariz clássico, é também reconhecido como o nariz caucasiano, característico

das nacionalidades italianas, gregas, árabes, anglo-saxãs e espanholas, ou seja,

Fig. 9: (primeira à esquerda) Georges Ohnet. Fonte: Google images Fig. 10: (ao centro) Antonio Canova (1757-1822). Theseus. Maicar Förlog. Google images

Fig. 11: (primeira à direita) Michelangelo Merisi de Caravaggio (1571-1610). Narciso (1599). Fonte: Folha os grandes mestres da pintura, p. 49

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comumente presente em descendentes de pessoas brancas. Observou-se nas três

imagens um nariz com alongamentos muito semelhantes, incluindo a curvatura das

abas, mais visível nos exemplos de Ohnet e Teseu. Narizes com o dorso alto e

projetado, pelo excesso das estruturas ósseas e cartilaginosas, com a ponta voltada para

baixo e a pele geralmente fina. Outros dois únicos tipos de narizes catalogados pela

literatura médica são os tipos negróide, majoritariamente presentes nas populações com

descendência negro-africana, e o nariz oriental atribuído, comumente, ao povo chinês e

japonês.

Mais uma vez se atribui de clássico uma referência de fenótipo do branco, se

esta atribuição fosse considerada como legítima, teriam, o nariz negro e o nariz oriental

que, ser considerados como não clássicos, e, em obediência à ordem do discurso

representado, não belos. Mas, é sabido, porém, que há uma determinada vontade de

legitimação do branco como medida clássica para todas as coisas, devido a evidência da

cultura cristã e de seu povo europeu, bem como de sua mitologia retomada

continuamente pelas culturas ocidentais, incluindo o Brasil do século XIX e XX.

Narciso é um belo moço, que de tão belo morreu contemplando a sua própria

beleza, por uma única vez, refletida no espelho da água de um pequeno lago. O reflexo

no espelho oferece subsídios para a remissão de outra memória de beleza tida como

clássica, a beleza da Branca de Neve, do livro “Contos” (1976) dos contistas alemães

Jacob e Wilhelm Grimm (1785-1786). A descrição da beleza de Branca de Neve,

(GRIMM, 1976, p. 144) “tão alva como a neve, carminada como o sangue e os cabelos

negros como o ébano” se aproxima da descrição da personagem escrava Isaura de

Guimarães (1875/2005), cuja tez também era alva e, delicada em sua leve palidez. Tem-

se então uma memória que constantemente acessada se torna um lugar de domínio, onde

os considerados narizes clássicos, a exemplo de Georges Ohnet, Teseu e Narciso com a

pele tão alva quanto a de Isaura e de Branca de Neve, representam os modelos clássicos

para uma ideia de valor99 e beleza dos fenótipos.

99

A partir da leitura de HUNTLEY (1985), foi possível concluir que a ideia de belo em determinados padrões geométricos influenciou os artistas da Renascença. Ao retratar faces humanas, eles tinham o cuidado de fazer com que o comprimento das orelhas e o do nariz fossem iguais. Os ideais helênicos, seguidos pelos renascentistas e gerados na Grécia Antiga, traziam o conceito de número áureo, uma fórmula matemática criada para definir a harmonia na proporção das figuras. Essa fórmula deveria ser usada tanto em esculturas de figuras humanas quanto em projetos arquitetônicos. Os gregos acreditavam que determinadas proporções na natureza eram mais belas do que outras. Cortando uma linha de tal modo que a proporção entre o pedaço menor (X) e o pedaço maior (Y) seja igual à que existe entre o pedaço maior (Y) e o todo (Z), eles chegaram à chamada proporção áurea. Essa medida pode ter sido inspirada no corpo humano, já que a distância entre o umbigo e os pés e entre o umbigo e a cabeça segue essa mesma proporção.

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E, por mais que o campo das memórias coletivas remeta ao pensamento de que

Georges Ohnet, Teseu, Narciso e Isaura sejam belos, faz-se importante questionar ao

espelho da Rainha (GRIMM, 1976, p. 145) “quem é a mais bela de todo o País?”, para

que este responda que se trata dela a Branca, “mil vezes mais bela”, que de tão branca

era parecida com a neve. Acontece, porém, que a brancura da pele da personagem

Branca de Neve representada pelos irmãos Grimm (1976) diz respeito ao universo

étnico alemão, e por isso, optou-se neste estudo pela leitura da versão francesa do conto

que traz inscrita a palavra Pays, (GRIMM, 1976, 145) “Petit miroir, petit miroir chéri,

Quelle est la plus belle de tout le pays? [...] Madame la Reine, vous êtes la plus belle

ici, Mais Blancheneige est mille fois plus jolie”.

Na França, a palavra Pays tem o significado único para País em português. Já na

versão brasileira a palavra e o significado tomam outros sentidos, sendo Pays

substituída ora por Reino, no caso de algumas edições mais antigas do conto ora por

Redondeza, e, mais recentemente Mundo, como no caso de Estés, (ESTÉS, 2005, p. 33)

“Espelho, espelho meu, há no mundo alguém mais bela do que eu? [...] Sois a mais bela

aqui, reafirmo, mas Branca de Neve é mil vezes mais bela”. Ao analisar o original em

alemão, as palavras Pays, Reino e Redondeza têm outra referência e novos significados,

(GRIMM, 1949, p. 244) “Spieglein, Spieglein an der Wand, wer ist die Schönste im

ganzen Land? [...] Frau Königin, Ihr seid die Schönste hier, aber Schneewittchen ist

tausendmal schöner als Ihr”. A palavra alemã Land, também utilizada na versão em

inglês100, pode significar tanto País quanto Terra e se aproxima mais da versão francesa

que das versões brasileiras, exceto a de Estés (2005), publicada recentemente. Assim é

possível pensar, finalmente, que a ideia de centralidade e domínio europeu sobre sua

existência foram constantemente retomadas pela memória desses contos no ocidente,

evidenciando os valores de sua cultura em detrimento das culturas de outros mundos.

E, se de um lado, à cor da pele branca e/ou alva é exaltada a ponto de receber a

atribuição do valor de beleza, tanto pela mitologia grega, quanto pelos irmãos Grimm

(1976), e por autores nacionais como Barreto (1989) e Guimarães (1875/2005), de outro

lado, à cor da pele negra foi atribuído o valor de “a coisa mais horrível que se pode

imaginar”, evidenciou Barreto (2010, p. 211), ao retratar os doentes negros nus no pátio

de um hospício, onde o autor passou parte dos últimos anos de sua vida.

100 Na versão do conto em inglês (GRIMM, s/d, p. 125): “Tell me, glass, tell me true! Of all the ladies in the land, Who is fairest, tell me, who? […] Thou, queen, art the fairest in all the land. […] Thou, queen, art fair, and beauteous to see, But Snowdrop is lovelier far than thee!”.

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Mais adiante Barreto (2010), considera

O negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma porção de corpos negros nus, faz ela [entenda-se imagem] que as outras se ofusquem no nosso pensamento. É uma luz negra sobre as coisas, na suposição de que, sob essa luz, o nosso olhar pudesse ver alguma coisa. Aí é que há os berradores; mas, como em toda parte, são só os seus gritos que enchem o ambiente (BARRETO, 2010, p. 211).

Nesta passagem, Barreto (2010) deixou evidente que a cor negra se fazia

cortante e que esta preenchia qualquer ambiente impedindo que a visão transpusesse

qualquer outra imagem senão a evidência do negro em sua pele. Enquanto isso, ao

relatar os doentes tidos por ele como berradores, destes, possivelmente não-negros ou

ausentes de sua vista, só se percebia a voz, pois a cor de suas peles não ocupou ou

roubou tanto a atenção em um ambiente como aquele do hospício ou outro qualquer.

Eis aqui, no fechamento destas proposições, o entendimento de que a partir de um

olhar globalizante os povos costumam, para designar o feio, opô-lo ao belo, e, ainda,

que um estudo mais apurado possa conduzir a uma espécie de autonomia do feio, este

pode se transformar em algo tão rico e complexo que uma série de simples negações

e/ou apropriações das várias formas de beleza (ECO, 2004). Mas, em outro aspecto,

Fanon (2008, p. 107) questiona quem saberá dizer o que é a beleza, quando a questão

está relacionada a visão de quem vê e do lugar que vê, quando num mundo branco “o

preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio [mas pela] brancura

que me calcina”. Para Fanon (2008, p. 105) existe além de um esquema corporal e

histórico-racial, um esquema epidérmico racial, em que o negro não é apenas

responsável pelo seu corpo, mas por sua raça e por sua ancestralidade, da qual será

sempre cobrado, seja por uma coisa boa o ruim101, pelo que sua aparência logo

apresenta ao outro.

Em outra via do mesmo diálogo, tem-se a concepção material para definir e

dissociar o belo do feio e vice-versa. A partir das reações sensíveis dos sujeitos sociais

perante a imagem ou presença do que cada um desses conceitos lhes transmita,

conforme Read (1978),

101 Em Fanon (2008, p 109), ao falar sobre as cobranças do mundo branco feitas ao negro, o autor escreveu que, “quando me amam dizem que o fazem apesar da minha cor. Quando me detestam, acrescentam que não é pela minha cor”.

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o homem reage à forma, superfície e massa do que se lhe apresenta aos sentidos, e certas distribuições na proporção da forma, da superfície e da massa dos objetos tem como resultado sensação agradável, enquanto a falta de distribuição acarreta indiferença ou mesmo desconfôrto (sic) positivo e revulsão. O sentimento de relações agradáveis constitui o sentimento de beleza; o sentimento oposto representa o da fealdade (READ, 1978, p. 20).

Há, entretanto, que ser insistente e perguntar ao espelho da Rainha se existiram

belezas que transpunham os limites territoriais da Alemanha, ou até bem distantes das

fronteiras territoriais europeias. Uma pergunta cuja resposta é revelada mais adiante,

especificamente no início do século XX, momento em que neste espelho a imagem

refletida anunciou um ideal de seleção para a purificação da excelência da raça ariana,

considerada a raça-mestra pelos povos com ideal nazista.

Estes ideais transpuseram o país germânico e a Europa até atingir os veículos de

notícias no Brasil, em artigos, fotografias e representações diversas, como pode ser visto

abaixo.

No Brasil está a m[...] organização nazista for[...]. Denuncia da revista da Universidade [...] centon, Estados Unidos. A revista trimestral da Escola de Assuntos Públicos e Internacionais da Universidade de Princeton publicou um artigo, no qual seu autor, Ewart E. Tuerner, alega que no sul do Brasil, apezar dos esforços do geverno do nosso país, ainda existe uma quinta-coluna bem organizada. O artigo acrescenta que 85% dos alemães residentes no Brasil, que formam o total de um milhão, é de tendência nacional-socialista. Esta é a mais poderosa organização nazista que existe fora do continente europeu. (LIDER, O, 3 out. 1942, p. 2)

Na transcrição do artigo publicado no jornal O líder de outubro de 1942,

material com partes corroídas, é possível construir um imaginário quanto as referências

do nazismo e sua influência na região sul do Brasil. A mesma edição do jornal traz

estampada na capa a imagem de um ditador coreano e em outras páginas, muitas

matérias falando sobre a Segunda Guerra Mundial e a situação caótica na qual eram

encontrados os soldados alemães em confronto com os russos. Conclui-se a partir disto

que sim, os ideais germânicos transpunham os limites territoriais de seu pais e

continente alcançando, não apenas o país sul africano, como também enviando

indivíduos em fuga dos confrontos.

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4.1.1. Re-produzindo memórias: memórias lembradas não estão

esquecidas

São as representações, tomadas no século XX como coletivas, que chamam

atenção para o modo com o qual foi construído o corpo negro partindo da sua

epidermização e, sua identidade, unificada e inerente aos seus atributos físicos.

Como já foi dito nas seções e no item anterior, o sujeito vive em um contexto e

espaço que lhe propõe o acordo para as identificações de uma estética, inscrevendo

lugares e espaços no universo representativo do mundo humano, portanto, não se

poderia limitar o conceito nem a ideia de beleza, simplesmente, por meio da concepção

grega que atravessou pela tradição clássica europeia, determinando padrões métricos e

estabelecendo formas. Se esses modelos do branco, considerados clássicos, fossem

tomados como medida para o mundo dos sujeitos negros, o corpo e a pele do negro,

transcenderia esses padrões métricos se colocando à margem deles. O que para Fanon

(2008) já vem ocorrendo muito antes do século XX, com raízes bem profundas.

Os padrões baseados em uma sociedade branca de etnias europeias como, os

italianos, franceses, espanhóis, gregos e romanos são geralmente, representados por

personagens e sujeitos com pele muito clara, traços finos, pelos lisos e abundantes, e

estaturas medianas, muitas vezes, contrapondo a imagem dos deuses gregos, suntuosos e

altos ainda que preservados outros fenótipos. É, por isso que, ao cometerem o erro de

fazer comparações em torno de um padrão de beleza, ou de uma ideia para o encontro

de um modelo padrão, se exclui qualquer sujeito de etnia que não corresponda à etnia

branca, pois a pele do negro é preta, os lábios do negro são volumosos, o nariz do negro

é arredondado, (FANON, 2008, p. 108) “os dentes do preto são brancos – os pés do

preto são grandes – o largo peito do preto” se diferencia do modelo estreito e

intumescido, cujos defensores do padrão clássico estão habituados a aclamar em suas

representações.

E, ainda que haja concordância de que qualquer sentimento de beleza seja

entendido como um fenômeno flutuante, “apresentando no curso da história,

manifestações muito incertas e por vêzes (sic) muito desconcertantes” (READ, 1978, p.

20) é necessário, ao menos, uma breve observação do quão fluídas e diferentes esses

modelos foram inscritos no cenário brasileiro da Bahia do século XX.

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Observando-se as figuras O vigor, Carpindo e Pintando, ambas da década de

1900, pouco depois do advento da República e dois anos depois da abolição da

escravatura no Brasil, nota-se que as representações de uma população com fenótipos

majoritariamente branco é eleita para representar uma sociedade, apesar de as duas

primeiras imagens ocuparem o imaginário que seria socialmente condicionado aos

sujeitos negros, como é o caso de O vigor, anúncio publicitário destinado aos

trabalhadores com excesso de atividade física e intelectual. Neste caso e no tocante à

figura de Carpindo, imagina-se que para o discurso da época, considerando-se o ideário

de igualdade sócio-etnico-racial entre os sujeitos, o lugar do eito era o lugar em que os

negros e mestiços se encontravam em maior quantidade que brancos, porém, cabe à

reflexão de que, o público consumidor desses anúncios era, em sua maioria, aqueles a

que as imagens representa, levando-se a conclusão de que a população negra ainda não

estava, ou seria considerada como público leitor e consumidor desses tipos de anúncio,

e, assim, ser constituída esta população negra, de um contingente à parte da sociedade

leitora e, também, consumidora de jornais e bens de consumo.

A representação do corpo europeu nos anúncios de publicidade com objetivo de

venda de bens de consumo nos jornais brasileiros do início do século XX, em

detrimento da inserção do corpo negro nesse segmento, revela indícios da psicologia da

Fig. 12: O vigor. Bahia, (A) 25 set. 1900 p. 3

Fig. 13: Carpindo. Bahia (A), 1 out. 1900 p. 4

Fig. 14: Pintando. Coisa, (A) 11 mar. 1900

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época voltada para motivos e concepções gregas em torno dos valores de beleza física e

das artes, de modo geral. Essa representação grega, todavia, estabeleceu materialmente

o ideário do corpo grego que se dá pela combinação das qualidades de um modelo de

beleza física e de uma concepção cristã de superioridade moral. Tem-se nessa

combinação as qualidades arbitrárias da força física, mais comum no corpo negro

escravizado, embora, transpostas para o corpo branco. São essas qualidades físicas que,

também, não condiz com as qualidades do homem português do Brasil do século XX,

mas que faz remissão ao herói grego cheio de valores vitais, que comportam sempre em

referência ao modelo divino uma dimensão sagrada cuja dosagem varia segundo os

casos individuais, “o corpo reveste a forma de um tipo de tabula heráldica na qual se

inscreve e se decifra o estatuto social e pessoal de cada um” (VERNANT, 1986, p. 35-

36).

A forma com que as figuras Banhistas, Lânguidez e Modelando são

apresentadas, reitera à significação da ideia de qualidades vitais presentes no corpo não

tão-somente musculoso, quanto também curvilíneo e gracioso em suas formas

delicadamente acentuadas, conforme a exemplificação da moça com trajes de banho

caminhando para dentro do lago. A moça nua em pose lânguida e as duas

representações de modelagem em posições sinuosas contrapostas a representação rústica

do que seria uma cozinheira robusta por detrás da banhista.

Os corpos apresentados nas figuras representando imagens do gênero feminino

são mais próximos de um imaginário da mulher portuguesa por sua voluptuosidade e os

Fig. 15: Banhistas. Coisa, (A) 26 mai. 1900 p. 4

Fig. 16: Lânguidez. Coisa, (A) 15 abr. 1900,

p. 1

Fig. 17: Modelando. Coisa, (A) 11 fev. 1900, p. 1

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cabelos negros, mas que também remete às propostas do Renascimento102, à exemplo da

recriação rechonchuda da Vênus de Urbino (1538), pintada por Ticiano Vecellio

(1473/1490-1576), bem como as pinturas de mulheres com corpos volumosos

encontradas em evidência nas pinturas de Sandro Botticelli (1444-1510) e Masaccio

(1421-1428). Para Vernant (1986, p. 35-36) este corpo grego seria a semelhança do

corpo divino, porque reúne as combinações de beleza física com a superioridade moral,

indissociáveis. Para o autor “essas qualidades têm uma dimensão sagrada, e estas

qualidades revestem o corpo de um estatuto social e pessoal estabelecendo uma escala

de perfeição em relação aos deuses e aos próprios homens”.

O ato da leitura em que há a manutenção despojada do corpo sobre uma chese, e

até mesmo a representação indumentária de uma camponesa de vinhedos, compõe as

três últimas representações iconográficas do imaginário publicitário do jornal A Coisa

de 1900, em que o fenótipo físico, a manipulação do corpo, a vestimenta e as atitudes

são correspondentes aos padrões europeus, também remissivos ao contexto dos valores

estéticos greco-romanos.

102 Movimento histórico iniciado na Itália e difundido por toda a Europa entre os séculos XV e XVI. Movimento que teve sua principal característica histórica por criticar os valores medievais em valorização da Antiguidade Clássica Greco-romana.

Fig. 18: Lendo. Coisa, (A) 11 mar. 1900 p. 1

Fig. 19: Vinhedo. Bahia, (A) 29 set. 1900 p. 3

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Considerando o contexto das imagens, demarcado no período pós-abolicionista

e, também, de isntauração da República Federativa do Brasil, à luz de um dos principais

objetivos de estabelecer o igualitarismo jurídico de negros e brancos, senhores e

escravos, tem-se nessas representações iconográficas, o que DaMatta (1997, p. 199)

chamou de posições de hierarquização social. Segundo ele, “na medida em que (...) a

bengala, as roupas de linho branco, os gestos e maneiras, o anel de grau e a caneta-

tinteiro no bolso de fora do paletó se dissolviam”, ou seja, passavam a ser de uso

popular tanto de brancos, negros, senhores e libertos, os sujeitos da elite social brasileira

buscavam novas maneiras de separarem suas posições sociais para que o igualitarismo

proposto pelo ideário da política abolicionista e republicana não se consolidasse em sua

totalidade, constituindo esse igualitarismo social, portanto, apenas em sua formalidade

de lei, mas nunca, na esfera social, onde as separações se evidenciam pelos modos de

agir, vestir e calçar-se, consumir e falar etc.

Diante da lei geral e impessoal que igualava juridicamente, o que fazia o membro dos segmentos senhoriais e aristocráticos? Estabelecia toda uma corrente de contra-hábitos visando a demarcar as diferenças e assim retomar a hierarquização do mundo nos domínios onde isso era possível. É claro que a arena privilegiada dessas gradações veio a ser a casa e o corpo, esses domínios fundamentais do mundo das relações pessoais e dos elos de substância. E assim inventamos uma “teoria do corpo”, acompanhada de uma prática cujo aprendizado é, até hoje, extremamente cuidadoso (DaMATTA, 1997, p. 199 grifos e aspas do autor).

Enquanto o corpo branco sob o padrão da estética greco-romana é retomado para

representar uma nova categoria de anúnios de jornais no Brasil. A nova sociedade

brasileira se reorganiza socialmente, substituindo as relações escravocratas e senhoriais

pelas relações de hierarquização determinadas pela representação, sendo de um lado, o

corpo, a pele, a vestimenta, os modos de agir, falar e andar e de outro lado, a casa onde

se encontram os domínios dos bens de consumo para a manipulação e manutenção de

uma nova ideia de corpo sagrado.

Para Vernant (1986, p. 39) a aparência física, aquela que se pode ver com os

olhos, diz respeito ao tamanho, ao contorno, as tonalidades, o brilho do olhar, a

vivacidade e a elegância dos movimentos. Sendo assim, a beleza de um determinado

sujeito poderia ser transportada do exterior sobre o corpo para modificar seu aspecto a

partir do uso da vestimenta ou de adornos, que a exemplo das figuras Modelando e

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Vinhedo, podem embelezar aquilo que não é tão belo, “modificando o aspecto do corpo

para modificá-lo e embelezá-lo”.

Essas unções de juventude, de graça, de força de brilho que os deuses realizam às vezes para seus protegidos, ao revesti-los, de repente, com uma beleza sobrenatural que os cuidados de toalete, os banhos, as aplicações de óleo operam a um nível mais modesto, agindo, para transfigurar o corpo pela limpeza e purificação desembaraçando de tudo que sobre ele produziu mancha, sujou-o, enfeou-o, envelheceu-o (VERNANT, 1986, p. 39).

Tanto Vernant (1986, p. 40-41) quanto DaMatta (1997) reiteram se tratar o

processo do cuidado com o corpo, uma forma de deusificar, ou seja, propor a deferência

de um sujeito em relação ao outro. Desse modo, “pensar a categoria do corpo significa

ressaltar os pólos opostos entre luminoso e sombrio, belo e feio, valoroso e vil,

situando-o numa zona de oscilação entre esses extremos passando de um ao outro”. A

identidade corporal se presta a essas mutações súbitas, essas mudanças de aparência, da

adequação com as roupas e os adornos, passam a determinar identificações e

dessemelhanças entre os sujeitos e os novos grupos que se estabelecem com a proposta

de igualitarismo.

Diante dessa nova ordem social em que o corpo branco é exaltado e levado para

os anúncios publicitários nos jornais, devido a pigmentação clara de sua pele e seus

fenótipos remissivos à Antiguidade Clássica Greco-romana, o corpo negro, sem o

revestimento de indumentárias e os cuidados da toalete que possam embelezá-lo,

mantém-se no mesmo lugar de antes, à margem da sociedade, quando ainda era tido

como um selvagem. Para Skidmore (apud DaMATTA, 1997, p. 200) a problemática

acerca da teoria do corpo, é pontuada, principalmente, neste contexto social, em que há

a evidência do que ele chama de racismo à brasileira, compreendido por duas fases que

Fig. 20: Musa. Coisa, (A) 8 out. 1904, p. 1

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se distinguem, sendo a primeira relacionado aos fatores de hierarquização rígidos,

caracterizados “logo após a Abolição, quando, de fato, o problema se apresenta”, e, a

segunda fase, após a publicação da obra Casa Grande & Senzala, que, na opinião de

DaMatta (1997), ao pautar-se pelos aspectos culturais do fenômeno da escravização e

sociabilidade estabelecidos entre escravos e seus senhores, não evidenciou o problema

da formação sociocultural brasileira no seu aspecto de fundação, passando a defender o

ideário da miscigenação e da mulataria. É, entretanto, nas duas fases, que o autor

acredita estar o corpo como elemento central da elaboração ideológica, oferecendo

subsídios para o plano hierarquizador da sociedade brasileira moderna, “seguindo a

lógica das relações pessoais [...] jamais chegamos a temer realmente o negro livre, pois

todo o nosso sistema de relações sociais estava fortemente hierarquizado”. (DaMATTA,

1997, p. 200-201).

As formas de hierarquização são evidenciadas em muitas passagens dos livros

de Lima Barreto, especialmente em Triste fim de Policarpo Quaresma, quando uma

personagem descrita como velha preta dialoga com o personagem Coleoni. À

personagem do gênero feminino e negra é determinado o temperamento choroso e

humilde, e ao personagem de Coleoni são atribuídas às características de bondade e

altruísmo e, ainda que haja a dispersão dos personagens negros neste romance, o

tratamento estabelecido entre um personagem negro com um branco, é pontuado pela

palavra sinhô, seu majó, sinhá e sinhazinha em constante remissão ao contexto

escravocrata brasileiro. É possível ainda notar às práticas de hierarquização nas

constantes descrições dos olhos tristes e rebaixados do preto velho Anastácio socado na

roça, com sua voz mole de africano. Enquanto o preto que mesmo depois da Abolição

continuou devoto ao major Quarema, muitas damas elegantes passeavam pelas ruas

vestidas com brocados e sedas, evitando que a lama ou o pó sujasse seus vestidos.

Essa hierarquização apresentada por DaMatta (1997) diz respeito às práticas e

usos que a sociedade fundamentou a partir da experiência adquirida no período de

escravização e a adaptou a rede de relações sociais até inseri-las permanentemente nas

áreas internas do sistema, sob os domínios do corpo e da casa, forçando assim a

permanente manutenção da hierarquização dos corpos em zonas de privilégio e de

marginalização, tratados na maioria das vezes com pessoalidade e individualidade.

A observação das figuras abaixo ilustra com mais clareza a condição e os

lugares das etnias branca e negra na sociedade brasileira do Salvador, após o advento da

Primeira República.

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Vê-se à esquerda da iconografia Tudo sellado, retirada da capa do jornal A coisa

de 1900, a imagem de uma negra adulta comerciante com em companhia de jovem

negro. O jornal, cujo objetivo é tratar assuntos sérios do cotidiano baiano, com pitadas

de humor, parece pretender a representação crítica do lugar do negro e do nordestino,

figura central da imagem, perante a política instaurada no País. É possível analisar de

maneira bastante genérica, que o político é representado por uma fotografia e, estaria

distante da realidade destes brasileiros, que mesmo diante dos novos ares da República

do Brasil se veem basicamente nos mesmos lugares de antes. A figura de número quatro

Apresentações reforça o lugar do negro no Brasil republicano, identificado ao fundo

pela imagem de um senhor negro descalço, denominado como Zé povo segurando ao

alto com os braços hasteados o que seria a cabeça de um político. Na mesma imagem

encontra-se a representação em destaque dos federalistas e à esquerda do que se tratava

da concentração, ou seja, a imagem de jovens homens brancos.

A Tia tatá é representada na última imagem e, também, tem o estereótipo da

personagem Anastácia do escritor brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948), uma senhora

negra descalça sentada na calçada com um tabuleiro, possivelmente uma comerciante.

Esta é uma das poucas evidências em que o negro é representado sozinho na capa deste

veículo, suas representações são sempre em planos inferiores dando a ideia de

marginalidade, senão, a representação negativa de uma memória de escravidão e de

morte, conforme os dois próximos exemplos abaixo.

Fig. 21: Tudo é sellado. Coisa, (A) 12 out. 1900, p. 1

Fig. 22: Apresentações. Coisa, (A) 22 jul. 1900, p. 1

Fig. 23: Tia Tatá. Coisa, (A) 8 abr. 1900, p.

1

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Em Peste negra é possível notar a pigmentação escura do crânio em

representação a peste bubônica. Na parte superior da imagem a pergunta “então, posso

entrar?”, remetendo novamente ao lema editorial da publicação, é impossível não unir

os elementos da cor negra da caveira ao torpor social da década de 1900, em que negros

disputavam lugares na sociedade baiana, considerando que estavam livres e dependiam

de novos modos de sobrevivência e sociabilidades. E, em 13 de maio, a segunda e

última evidência de um ícone negro na capa do jornal, tem-se a remissiva de sua

condição escrava, embora com as algemas rompidas para lembrar o dia em que houve

oficialmente a abolição da escravidão no Brasil. Os glifos inseridos na imagem, a dizer

o ponto de interrogação em substituição da cabeça do personagem, traz a tona a dúvida

sobre os caminhos dos negros e, mais uma vez, descalço a exemplo de todos os outros

negros representados pelo A Coisa, este caminha sem direção.

O olhar do branco sobre o negro é caracterizado na evidência dessas figuras, na

condição de pena ou vergonha do alheio, no entanto, embora seja aportada a condição

da escravidão destes negros em seu passado, essa memória ignora os processos de

fundação dessa escravização. Em Triste fim de Policarpo Quaresma o olhar do branco

lançado ao negro ou do mestiço lançado ao negro é carregado de pena e distanciamento,

conforme evidência do olhar do mulato Ricardo sobre a lavadeira, uma rapariga preta

que lavava. Este ao olhá-la no tanque da casa escondida dele, abaixando o corpo sobre a

roupa despendendo todo seu peso para ensaboar a roupa, sentiu pena dela, “teve pena

daquela pobre mulher, duas vezes triste na sua condição e na sua cor” (BARRETO,

1998, p. 93). Essa nova maneira de relacionar proposta pelos novos modelos de

Fig. 24: Peste negra. Coisa, (A) 10 jun. 1900, p. 1

Fig. 25: 13 de maio. Coisa, (A) 13 mai. 1900, p. 1

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socialização institui preconceitos sutis, a partir de brincadeiras em que o negro se vê

depreciado ou colocado na condição de inferioridade.

E, embora miticamente, a estrutura social moderna da Primeira República no

Brasil possa não ter assumido o negro em sua concepção humana, sendo ele, em

constantes oportunidades, representado ou assimilado à morte, a subserviência, a

sujeira, pobreza e descaso conforme as iconografias apresentadas. Esta estrutura o

integrou em caráter externo, ou seja, a partir do outro, responsável por lhe oferecer um

lugar naquela sociedade que começava a seguir um ideal de modernização. O outro, o

mesmo responsável pela escravização do negro, também se responsabilizou por sua

liberdade e, seguidamente, foi o responsável pelo seu descaso social e pela manutenção

de uma identidade equivocada à seu respeito (FREYRE, 2003).

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5 CONCLUSÕES

A partir deste estudo, foi possível compreender que os fatos do presente são

inerentes a contextos que remetem às memórias do passado e, portanto, conclui-se que

não existe história sem que sejam analisadas referências antigas. A história é um

continnun de memórias entrelaçadas, na qual são preservados, por seus sujeitos, ao

longo de gerações, valores, conceitos e devires, correspondentes às práticas religiosas,

ordem e a consciência de si e do outro no espaço territorial que cria um mundo de

representações de acordo com as vontades dos sujeitos históricos.

Desde o povoamento do Brasil, este território foi gerido por povos que

utilizaram de seus recursos e de sua representação de mundo, para inscrever os negros e

os índios nos lugares demarcados em subjugo, lugares inscritos ao longo do processo

histórico do Brasil, mantidos por permanentes ressignificações histórico-sociais de uma

ideia do negro, embora atravessadas por rupturas.

Foi por meio de imagens e leituras estereotipadas do negro, que os grupos

negros passaram a se identificar, anulando-se frente a uma população que lhe

determinava num lugar de subserviência e referenciava seus fenótipos a partir de

exemplos depreciativos, como o pecado, a morte, o caráter débil, o comportamento

bestial e a repulsa provocada por seus corpos marcados por sinais etnicos, sejam de ritos

de passagem de determinadas etniais, seja simplesmente pelas características dos lábios,

olhos e o desenho do nariz.

Essa maneira de ver o negro ajudou a construir uma identidade no grupo social,

englobando esses sujeitos, por assimilações; fenômeno em que os grupos sociais se

reconhecem através de sua relação com o meio e os individuos. Cada um em busca da

imagem que evidencie o seu imaginário de coletividade, determinado por acordos, ao

passo que esses sujeitos se encontram nas referências que os legitimam como sujeitos e

os incorporam intermediados pelas semelhanças visadas por cada um.

No Brasil, portanto, enquanto os negros começaram a buscar formas de

sobrevivência, os que se identificavam como brancos, se aperfeiçoavam nos segmentos

da economia, educação, saúde e cultura. No século XX, os poucos negros preocupados

com sua pouca evidência nos setores mais destacados da sociedade, se ocuparam em

lutar por políticas de inclusão, novamente reivindicadas aos considerados brancos,

enquanto outras pequenas parcelas de negros se ocupavam pelo reconhecimento de uma

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negritude em prol da busca pelo reconhecimento e respeito étnico. A busca por essa

demarcação de uma ideia positiva da imagem do negro no país, no entanto, provocou

separações e elevou novos estudos quanto à integração do negro na sociedade após os

movimentos abolicionistas. Tentou-se, principalmente, recontar a história das

contribuições dos negros enquanto resgate de memórias e lutas opacizadas pela história

oficial.

Enquanto a movimentação política dos negros pela evidência ganhou força,

principalmente, a partir do advento da República, no Brasil, reivindicando o

reconhecimento étnico de suas raízes africanas e até uma ideia de pertencimento social e

cultural, em países da América, como os Estados Unidos, os negros se uniram para o

seu desenvolvimento sociocultural, especificamente nos setores econômicos e da

educação. O universo do que é ser negro no Brasil é constantemente atravessado pela

política das relações pessoais, e norteadas por impressões individuais em torno da pele

do negro, que o apresenta para a sociedade que vê nele, apenas a aparência mnemônica

do escravo, do desfavorecido socialmente, do depreciado. Não que está concepção leve

a considerar que o termo negro no Brasil, tenha intrinsecamente o sinônimo de

escravidão, embora, permita remissões à condição em que inúmeros sujeitos adaptaram

seus corpos. Os corpos de muitos negros estão inseridos e foram representados na

história respeitando as memórias de suas deformidades físicas, resultado do trabalho

precoce e forçado à exaustão, mutilações das mãos, pés e cabeça.

O trabalho do negro a que foi forçado realizar nas lavouras, no engenho,

cafezais, no carregamento de tijolos, tabuleiros, areia, amassando cal, peneirando e

estratificando minérios, deixou marcas de feridas abertas que comiam os dedos,

escasseava os pelos da cabeça, deformava os dedos das mãos, o formato do crânio e dos

ombros, construindo, ao longo da história, um corpo ideologicamente ressignificado,

seja nos anúncios dos jornais, nos discursos do racismo introjetado, nas piadas

reelaboradas pelo universo lúdico, ou pela visão individual e monocular em torno do

negro a partir de sua pele.

O reconhecimento assumido pelo negro de sua condição cambaleante enquanto

cidadão no universo social do Brasil rendeu-lhe, não somente o caráter de vitimizado,

como também o de preconceituoso para com sua própria etnia. Categoria em que a

própria sociedade brasileira do século XX aponta o negro como não reconhecedor de

sua própria etnia negra, instaurando sua consciência no arcabouço da culpabilidade,

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senão de sua vitimização constante ao compará-lo a outras minorias no seio social

moderno.

É, ao tentar se desvencilhar da culpa de sua negação, ou de sua pretensa

vitimização social, que em linhas gerais, o negro e muitos sujeitos dos movimentos

negros, comprometidos com os valores étnicos no Brasil, ocuparam-se com a evidência

dos cultos afro-brasileiros, o folclore, e as raízes africanas. Ocupações essas, que, talvez

fossem pouco urgentes e dignificantes, se considerarem-se a necessidade destes homens,

mulheres, crianças, jovens e adultos, de serem inseridos no cotidiano do trabalho

intelectivo, da política participativa e democratizada e, da formação intelectual.

O retrato evidenciado a partir da leitura das obras dos escritores Lima Barreto e

Manuel Querino, apontou que, no caso do primeiro autor, ao contrário do que muitos

antropologistas sociais escreveram, o negro, personificado na figura de Isaias Caminha,

não conseguiu integrar-se ao meio social por meio da formação escolar. Este sofreu

inúmeras perseguições, tendo seus fenótipos sendo lembrados em muitos momentos de

sua vida, principalmente quando da necessidade de procurar um trabalho. O romance

oferece a ideia de que, ao trazer a hierarquização estabelecida pela relação senhor e

escravo no Império, para as o campo da individualidade e das práticas sociais que

determinam o espaço do público e do privado, o negro vê-se sem alternativas de

mobilidade mais urgentes, considerando o espaço da casa e dos indivíduos ainda

dominados, em sua maioria, pelos representantes da aristocracia rural e da corte

instaurada, ressignificada e erguida no País desde os tempos do Império.

Lima Barreto também ofereceu conclusões sobre as sensibilidades do negro em

seu personagem Anastácio. O retrato claro da vida urbana do negro após a abolição,

optando pela permanência na fazenda do senhor ou indo para os subúrbios em busca da

sobrevivência. Nas duas obras a conclusão que se chega é de que, embora tenha o negro

servido o Brasil com sua força, este quando liberto se viu desamparado e,

principalmente, deslocado na sociedade da República Nova.

Manuel Querino endossa com sua vida, as conclusões a que este estudo chegou,

a partir das obras de Lima Barreto. O autor cuja vida foi dedicada aos estudos teve fim

semelhante ao de Isaias Caminha, Anastácio e Lima Barreto, exceto pela loucura do

último, ambos morram pobres e sem prestígio ao longo de suas vidas.

Manuel Querino, todavia, destacou-se nesta pesquisa pelo distanciamento

daqueles que chamava irmãos africanos. Sua vida e sua obra marcaram o intercurso para

se compreender as questões em torno da introjeção do negro em relação aos modelos de

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branco, presentes tanto em sua obra como na obra de Lima Barreto. Em Manuel

Querino o distanciamento se deu daqueles que o mesmo considerava irmãos, enquanto

em Lima Barreto esse distanciamento foi determinado entre ele e a figura de seu pai,

pelos fortes sinais da etnia africana do último.

Conclui-se a partir destas considerações que existiu o distanciamento e a

negação da raça pelos próprios negro-brasileiros miscigenados. Uma negação justificada

por eles pela justaposição de um padrão de ordem e inclusão branca e de desordem e

exclusão negra. E, todavia, é característico de um devir étnico-ideológico que não se

enquadrou nem em um fenótipo tomado no Brasil como branco e nem no fenótipo tido

como reminiscência africana.

É, por fim, nesta perspectiva, que se entenderam os sujeitos negro-africanos

miscigenados, como o resultado do cruzamento de uma definição pouco comum, em

que há a consideração da epidermização transposta ao limite de uma etnia genuína. Isso

quer dizer que os negros estudados nesta pesquisa, considerados a partir de seus autores,

se colocaram em um domínio no qual eles não eram brancos e nem negros, de acordo

com as referências de identificação que emergem da narração feita sobre o outro.

Finalizando, eles parecem fundar outro lugar para o negro que ainda não havia

sido descrito e com o qual não se identificavam para criar outros tipos de identidade.

Posto isto se quebra com a ideia purista que se tem de uma identidade negra fixa, que se

molda a partir do olhar do negro para o negro constitutivamente diferente dentro de sua

própria etnia.

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