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Peter Pál Pelbart São Paulo precisa do parque Augusta? Sim PETER PÁL PELBART Não precisamos de um parque Augusta, apenas. Precisamos de bolsões de experimentação ecológica, coletiva, libertária, espalhados pela cidade inteira, onde não sejamos reduzidos a meros usuários de serviços, ou de equipamentos coletivos já formatados. Não queremos ser simples cidadãos obedientes, que respeitam os limites impostos pelas incorporadoras, pelas forças policiais, pela pusilanimidade dos gestores públicos, pelo conservadorismo vigente --limites que eles transgridem alegremente. Parte do sentimento de sufoco que a cidade vive hoje advém da privatização e do esquadrinhamento de seus espaços comuns e dos fluxos que os percorrem. A isso, cabe contrapor um "direito à experimentação", que forçosamente arrebenta alguns diques, ao mesmo tempo em que lança no ar um sopro vital. Para ficar no exemplo do parque Augusta, de onde foram desalojadas dezenas de ativistas na última quarta, há que insistir que, por meses, ele foi um verdadeiro laboratório biopolítico. Como zelar pelas árvores coletivamente, e por cada uma, recém-plantada, ou doente? Como habitar um terreno abandonado e dar-lhe vida fora de qualquer lógica do mercado? Como oferecer a cada um a oportunidade de usar suas competências e saberes sem que isso redunde numa hierarquia de mando e obediência? Como relacionar-se com a terra sem querer possuí-la? Como exercer livremente o mais elementar dos direitos, o da conexão internáutica? Como fazer com que aquilo que é comum (água, terra, inteligência, criatividade) torne-se "comum"? Mas, também, como desconectar-se e dormir ao relento, a céu aberto se o verde o permite? Como convidar um músico para um show sem patrocínio de um banco? Como exercer o que Eduardo Viveiros de Castro chamou de "suficiência intensiva", na contramão do acúmulo, do produtivismo e da destruição crescentes? Como tangenciar um "ralentamento cosmopolítico", como diz ainda o antropólogo, em sintonia com o que nos chega dos povos autóctones? Sim, um pouco disso e muito mais aconteceu nesses meses no terreno destinado ao parque Augusta. O fato é que não só as árvores se extinguem mas também uma biodiversidade humana, subjetiva. É preciso inventar dispositivos que sustem tal extinção e propiciem novas possibilidades de subjetivação. Laboratório libertário 07/03/2015 Opinião Folha de ... http://tools.folha.com.br/print?url=http://www1.folha.uol.com... 1 of 2 05/04/2015 15:33

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Page 1: PELBART - Laboratorio Libertário 2015 - Opinião - Folha de S

Peter Pál Pelbart

São Paulo precisa do parque Augusta?

Sim

PETER PÁL PELBART

Não precisamos de um parque Augusta, apenas. Precisamos de bolsões deexperimentação ecológica, coletiva, libertária, espalhados pela cidade inteira, onde nãosejamos reduzidos a meros usuários de serviços, ou de equipamentos coletivos jáformatados.

Não queremos ser simples cidadãos obedientes, que respeitam os limites impostospelas incorporadoras, pelas forças policiais, pela pusilanimidade dos gestores públicos,pelo conservadorismo vigente --limites que eles transgridem alegremente. Parte dosentimento de sufoco que a cidade vive hoje advém da privatização e doesquadrinhamento de seus espaços comuns e dos fluxos que os percorrem.

A isso, cabe contrapor um "direito à experimentação", que forçosamente arrebentaalguns diques, ao mesmo tempo em que lança no ar um sopro vital. Para ficar noexemplo do parque Augusta, de onde foram desalojadas dezenas de ativistas na últimaquarta, há que insistir que, por meses, ele foi um verdadeiro laboratório biopolítico.

Como zelar pelas árvores coletivamente, e por cada uma, recém-plantada, ou doente?Como habitar um terreno abandonado e dar-lhe vida fora de qualquer lógica domercado? Como oferecer a cada um a oportunidade de usar suas competências esaberes sem que isso redunde numa hierarquia de mando e obediência? Comorelacionar-se com a terra sem querer possuí-la?

Como exercer livremente o mais elementar dos direitos, o da conexão internáutica?Como fazer com que aquilo que é comum (água, terra, inteligência, criatividade)torne-se "comum"? Mas, também, como desconectar-se e dormir ao relento, a céuaberto se o verde o permite?

Como convidar um músico para um show sem patrocínio de um banco? Como exercer oque Eduardo Viveiros de Castro chamou de "suficiência intensiva", na contramão doacúmulo, do produtivismo e da destruição crescentes? Como tangenciar um"ralentamento cosmopolítico", como diz ainda o antropólogo, em sintonia com o que noschega dos povos autóctones?

Sim, um pouco disso e muito mais aconteceu nesses meses no terreno destinado aoparque Augusta.

O fato é que não só as árvores se extinguem mas também uma biodiversidade humana,subjetiva. É preciso inventar dispositivos que sustem tal extinção e propiciem novaspossibilidades de subjetivação.

Laboratório libertário ­ 07/03/2015 ­ Opinião ­ Folha de ... http://tools.folha.com.br/print?url=http://www1.folha.uol.com...

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Algo se esgotou para nós, não apenas nas promessas dos políticos, no instituto darepresentação, mas sobretudo na depauperação da vida contemporânea, dada agalopante vampirização capitalística.

Nenhum niilismo nessa constatação --o desafio consiste em abrir a percepção paraesses gestos minúsculos ou maiúsculos onde se ensaiam outros modos de existência.

Se um parque Augusta for implantado, e essa exigência é de uma legitimidadeincontroversa (a batalha jurídica e política deve ser sem trégua), talvez ele nunca volte aabrigar o acontecimento inesquecível que foi a "vigília criativa" instaurada ultimamentepor dezenas de moradores da região e ativistas. Isso não importa.

É preciso multiplicar as zonas de autonomia temporária e aguçar a sensibilidade socialpara acolhê-las, sustentá-las, criar entre elas linhas transversais, partindo do princípiode que, por menores que sejam, elas sinalizam um desejo maior que atravessa nossametrópole e mesmo nossa contemporaneidade.

Cabe destampar a imaginação biopolítica para que a cidade deixe de ser mero ParqueHumano, de controle e seleção, de segregação e domesticação --é bom que sejatambém laboratório libertário, catapulta para formas inauditas de vida.

PETER PÁL PELBART é professor titular de filosofia da Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo, autor de "O Avesso do Niilismo: Cartografias do Esgotamento" ecoeditor na N-1 Edições

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