pegando três, fernando chiavassa

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  • 7/25/2019 Pegando Trs, Fernando Chiavassa

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    Fernando Chiavassa*

    Pegando trs.

    Quem sou no guarda sombrade quem escreve!Importa mesmo conhecer o que for possvel, tudo aquilo que asexperincias despertam em cada um. Quem so as pessoas queouvem essa histria e quem voc que de novo liberta um texto doseu silncio? Talvez as respostas digam algo do mundo e um poucode cada um. Mas o mundo no existe de to grande e pode ser apenasum simulacro da realidade.

    Essa histria poderia ter cenrios descritos como cidades

    litorneas da regio sudeste do pas, com trechos urbanos entrerochas esculpidas por Deus. Decerto, cantinhos cariocas ou paulistasoferecem praias de areia fina, coroadas pela massa verde da mataAtlntica, espaos brasileiros emoldurados por uma abboda celesteluminosa de um azul profundo, em tarde de maio.

    Mas nem adianta esperar cenrios como esses, pois hoje os espaos so globais. Absolutamente. O tempo, importante emoutras circunstncias, aqui, no interessa muito. Por isso narro o quese passou comigo envolvendo amores que no pude prender ,quando a vida armou uma cilada da qual ningum escapou. Conto ostempos psicolgicos, j que o tempo ideal do romance que talveznem exista mais.

    E de nada adianta querer saber se sou feia ou bonita, seatendo a padres de beleza tradicionais, se sou feliz ou infeliz. Poucovale tudo isso, diante do que aconteceu. O que importa conhecer oque temos dentro de nossos coraes e o que tenho dentro de mimmesma: o vazio de um lado e uma vida de outro.

    Toque ... toque ... toque!Sempre vejo o pior de tudo nos finais de semana. Detesto os

    domingos, quando os amores se enlaam e detesto as famlias que sebastam nestes dias, quando me vejo mais sozinha que nunca. Ontemfoi um domingo que quero esquecer... Toque:

    "Sofia, tudo bem? T acabaada, t chorando sim. No, tudo

    bem, fui visitar Athos no finalzinho da tarde. Ah, Sofia, t mortamesmo. Ah Sofiiia... Conto sim. Parei o carro longe da nossa casa,queria surpresa; entrei feliz da vida. Mas quase morri do corao

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    quando vi Athos nu em pelo no cho, de quatro, com aquela

    vagabunda!"Ainda chocada, no me esquecia do grunhido engasgado

    estranho, o grito esganiado que emiti. Enlouquecida, gritavapalavres de primeira, segunda e de terceira classe, assustava comminhas palavras sujas de sangue.

    "Fiquei rouca, Sofia, a garganta doeu e a cabea latejava.Minhas pernas tremiam. Num segundo chutei sof, poltronas emesinhas; arremessei abajures e quadros com nossas fotos pelo cho,s faltou pr fogo em tudo. Cachorra!"

    A imagem de dois condenados sem reao, se cobrindogaguejando, passava repetidamente na memria. Athos nem olhava

    para mim. Prostrado como beb no cho, horrorizado. Imvel.

    "Ela, ainda tentou falar, mas eu xinguei ainda mais, quasebati. O qu? Nem quero lembrar do nome daquela vaca! Como? Issomesmo... Ela conseguiu e no saiu de perto dele! A puttana pegoutudo o que queria! Eu ardia de raiva e arrebentei! Sa voando dali,sem bolsa e sem sapatos. Bati a porta, prometendo no voltar nuncamais. Ei, al; Sofia?"

    Toque ... toque ... toque!Agi cegamente, no pensando em mais nada. S cabia

    emoo: s vezes no h o que fazer, seno chutar o balde. Isso tudobatia na minha cabea. E ali deixei um balde de quase vinte anos,cado no cho, vazio. Desolado. Foi como uma represatransbordando de emoo que rompeu para no morrer. Eu no tenhoque explicar nada para ningum, mas vou acertar contas e isso eusaberei fazer muito bem. Toque!

    "Al, Sofia? Voc est ouvindo? E esse telefone! Entendeuo que houve? Pode acreditar. , isso mesmo. Imagina, desci asescadas do jardim e queria sumir daquela casa, mas tive que trombarcom a vaca que teve a coragem de dar a volta para me encontrar.Filha da puta, no ? O qu? Nem olhei; essa a no me v nem meouve mais. Deixei tudo l na sala, no balde, no cho."

    Quase tudo; mas isso s eu sei!"Estou ouvindo sim. O que? No, agora voc no vai

    entender; depois te explico. Como assim? Deixa... No, depois...

    Depois! Eu falei que isso eu explico depois. Calma! Escuta, logo quedeixei a vagabunda no cho, entrei no carro. Lgico! Essa idiota no

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    tem a mnima ideia de com quem se meteu. E da? Voc est me

    ouvindo, Sofia? Claro, estava chorando ainda, ainda choro, porra."Amargamente!"Tanto que quase no enxergava nada debruando na

    direo. Fui rpida at a praia mais prxima: tinha que por o p naareia... Ainda bem que no tinha trnsito, porque dirigi muito mal."

    E de alma partida. Chorava partida."Chorava o contrato rasgado, a confiana no cho, as

    lgrimas de dor, de raiva, de d!" Al, Sofia? Que droga! Sofia?Fuuuuuu! Tamanho desmazelo, j, lgrimas de saudade!

    Enxergando a minha frente o suficiente para no sair da estrada, asmsicas curvavam, vertiam lgrimas, gerando convulses pois asletras e notas colavam e calavam fundo. Tinham que ser do Chico, as

    guas salgadas, o corpo molhado, meu peito to dilacerado! Alis, euque nunca li Neruda escreveria fcil alguns versinhos. Cruz!

    Toque ... toque ... toque! Cacete! Toque!"Mas que merda de telefone, Sofia!, melhor encontrar no

    bar, deixei o carro l. Vem logo, preguiosa. O que? Deixa pr l.Voc acredita que um para-choque de caminho dizia: Espera omelhor, prepare-se para o pior e aceite o que vier? Assim quis oacaso. Sofia, chega! Venha logo!" Toque.

    Na verdade no deixei tudo ali nem poderia , tem mais.O menino cresceu nas minhas mos: vinte anos! No merecia isso.Olhos marejados, corpo salgado mar frente , no fundo, alma emfrangalhos. Queria sumir dal mar atrs , mas devagar seguia daareia molhada ao bar. O sol baixava. Uma vida ganhava luz e calor.Andei cabisbaixa, andei seca, feito ali.

    At que enfim, Sofia! Ai, nem lembro como parei o carroaqui pertinho frente ao nosso bar. Andei tanto e voltei cansada.

    Voc tinha que se cuidar melhor, Cibele! Deixa ver essacarinha, meu amor. No consigo acreditar nisso tudo!

    Voc est rindo de que? Melhor chorar! Eu conto emdetalhes. Vamos sentar, pede um vinho, vai. T arrasada.

    At onde andou?At a ponta da praia; andando a esmo, olhando areia, a

    gua, s vezes o cu, sabe? desviando dos casaizinhos s desculpas

    para se pegar. E isso o que mais me doia: ver os dois se pegando dequatro naquela cumplicidade...Tinha que acabar, Cibele e era melhor no ter visto nada.

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    Colocando intenso, gostoso, acredita? Uma boa e velha

    transa, de tempos, com certeza. O que mais eu podia fazer ali? Perdi!No dava mais para segurar, sabe? No dava mais! Perdi!

    Sinto muito, mas difcil acreditar. Mas acho que foimelhor assim, para ns duas...

    Melhor uma ova! Melhor pra voc, no pra mim! D queeu mesmo encho essa taa!

    ...Parava de prestar em Sofia por instantes. olhava longe,

    infinito s pessoas. Ainda deslizava meus ps, tirando casquinhas dagua. Brincava em devaneio com a espuma que explodia, voltandona areia e no tempo. Bem pertinho das ondas quebrando em meus

    ps, a espuma lambia a areia de novo. Outra vez molhada, percebi

    minha imagem quebrada refletida com a luz do crepsculo e me vimuito machucada. Trada. Olhava para meus ps, mos e para meucorpo pintado no cho que j tinha as luzinhas do cu e j no mevia jovem. Minha roupa solta esvoaava ao vento da minha praia,roxa de mgoa, descortinando biruta o meu desvinculo.

    Cibele?Amar do tamanho do mundo e ficar s, Sofia!...A tristeza pelo sofrimento, pelo tabu cruxificada, pelo que

    fui capaz de fazer por causa do desejo espoliado, do vnculo perdidome fazia chorar minha sorte, a de Athos e a de nossas vidas. E portudo o que ficou. O acaso?

    O que certo desarruma e o casual definitiva. Enche meuclice e bebe comigo... Quer outro cigarro? Ah, Sofia; fuuuuuu!

    Olhava para Sofia e para o infinito, transtornada. Choreimuito na praia, guas rolando insistentes, incontinentes. Sangrava ador de me ver eternamente sozinha, j procurando pelo meu amor.

    Vivia esperando por ele, Sofia. Sabia que essa iluso nopodia durar para sempre e por isso mesmo que di, no poder durarnem mais um minuto, nada, Sofia, nada. Morri muito.

    Lembrava tanto quanto falava; confuso. Meu desejo eralevado pelo mar, mas ao mesmo renovado por uma nova vida. Umavida nova girando os ps na gua comigo, naquela praia totalmente

    escura, em que a pintura do por de sol, mostrava quase todas ascores, das quais somente via azuis e violetas. Roxos e negros...

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    Agora, me diz: que adianta contar minha histria de vida,

    a partir dessas verdades cruas? tortura. De que vale tamanhasinceridade se quem ouve a brincar, vai logo imaginando simulacrosda mimese da arte de contar?

    Para com isso, Cibele. O que quer dizer? Que eu estou cansada de mentiras, Sofia. Cansada de

    enredar a todos em minhas malhas. Frustrei os meus, os teus desejosmais profundos. E voc tem que parar de me dar, chega de me dartudo! No Sofia, me deixa, assim no! D mais vinho a e v seacredita em mim! Acredita, mulher!

    E que mais. Que mais? Nem queira saber... Pe mais pra mim: mais; assim, t

    bom... T bom! Acende o cigarro pra mim, vai! Voc faz tudo que eu

    peo no faz? Ah Sofia...Olha aqui, Cibele, eu custo a acreditar em tudo que voc

    me conta, parece uma histria inventada! E voc est bebendo efumando demais.

    E pra quem vou contar, se ningum acredita?...Fuuuuuuuu! ...Cibele, pra mim, as histrias so exatamente as mesmas;

    todas relidas e copiadas. Ainda se voc fosse uma escritora... Ah! Isso no! Voc mesma me copia! No hora pra

    duvidar! Para, Sofia... Eu estou falando da minha vida, porra!S da sua? Ento conto o que vai dentro de mim, Cibele,

    que tambm j no pouco. Eu te acompanho h mais de vinte anos,sei tudo o que voc passou. Sei tambm que somos duas loucas!Voc s pensa em voc, escraviza todo mundo, e faz o que d natelha. No ?

    Chega, chega desses discursos, Sofia, no me venha commais polmicas, nem tenho mais foras! D essa garrafa a! O queterminou foi muito mais que a sombra de um romance. Sabia queacabava. Tinha que acabar e espero que voc acredite em mim!

    Fao fora pra desligar, mas no consigo. Ser que oAthosss aguenta a separao? A imagem deles se querendo, no saide mim, no sai. Mas eu tinha que contar, ele tinha que saber.

    Cibele? Sabe, vivia aflita desde que ns dois transamos pela

    ltima vez... E olha que j faz mais de um ms.

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    Conta...

    Athos me queria mulher e me fazzia gozzar: brincava otempo todo, queria prazzer em tudo, nas guass do maar, nas guasstomadass e ssalgadas, marejadass, mijadass, uma coisa fffofa! Arreque me beijjava todiinha, era foda!

    Cibele! Voc mais louca que eu! Como conseguiram?Vocs so pirados!

    Bom, agora chega, t? No quero mais lembrar que elesse ffoi, que eu perdi pra aqueeela vaaaca, melhor ficar bbada eesqueccer... Esssquecccer... D maiss um cigarrinho, a! Accendiium pr vocc! Vai, vamoss fficar bbadazzzinhass!

    Melhor assim, amor, pronto! Acabou, Cibele! Isso tudo jia longe demais. Esquece, amor, vamos viver nossa vida! Eu te

    conheo, voc supera. E chega de estranhamentos!Esstranhamentoss sss se for para voc; p-pra mim, no!

    Olha... , Sofia, sabe, dessa; desssa veiss, ffiquei Maisssemoccionaada aiiinda... , ...

    Vai, deixa um pouco pra mim, e vamos juntas tomar ofinalzinho? T, acaba comigo! Vamos brindar que?

    Fuuuuuuuuu!...Tgrvida!

    Este conto j foi narrado por Mrio Aviscaio, parte integrante da antologiade contos "Livro Livre", publicado com apoio da Casa das Rosas, no fim de2013. Fernando Chiavassa fez cursos livres de literatura no Museu LasarSegall e participou do Curso Livre de Preparao do Escritor (Clipe), naCasa das Rosas. Escreve poemas, no fico (crnicas e ensaios) e ficosomente do ponto de vista feminino, enquanto seus heternimos, MrioAviscaio e Altair Marino procuram tratar de toda a fico. Mrio escrevepintando enquanto Fernando pinta escrevendo. Altair apenas escreve. Ostextos do Fernando, do Mrio e do Altair, dentre artigos, ensaios, estudos,cartas, crnicas e contos, podem ser encontrados nas suas pginas doFacebook bem como nos seguintes sites:

    https://unisantos.academia.edu/fernandochiavassa

    http://pt.scribd.com/fernando_chiavassa